Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM TEORIA DA LITERATURA
GERMANA DA CRUZ PEREIRA
Brás Cubas:
Discurso e Metadiscurso na Construção da Personagem
no romance e nos filmes
RECIFE – 2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM TEORIA DA LITERATURA
GERMANA DA CRUZ PEREIRA
Brás Cubas:
Discurso e Metadiscurso na Construção da Personagem
no romance e nos filmes
Dissertação apresentada como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Teoria da
Literatura, do Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal de Pernambuco.
Orientador: Profª. Drª Maria da Piedade Moreira Sá.
Co-orientador: Profª. Drª. Maria do Carmo Nino.
RECIFE – 2008
ads:
Pereira, Germana da Cruz
Brás Cubas: discurso e metadiscurso na
construção da personagem no romance e nos filmes /
Germana da Cruz Pereira. - Recife: O Autor, 2008.
114 folhas: il.
Dissertação (mestrado)
Universidade Federal
de Pernambuco. CAC. Letras, 2008.
Inclui bibliografia.
1. Literatura brasileira -
Crítica e interpretação. 2.
Análise do discurs
o. 3. Cinema brasileiro. 4.
Metadiscurso. I. Assis, Machado de -
Crítica e
interpretação. II. Título.
82.09 CDU (2.ed.) UFPE
809 CDD (21.ed.) CAC2008-
33
À Graça e Georgia,
incentivo e amor indispensáveis.
AGRADECIMENTOS
À minha mãe, Graça. Sempre forte e guerreira, amiga e presença constante e
incondicional nos momentos de angustia e cansaço em que necessitei de colo e
afeto.
À Georgia, irmã e amiga, pela paciência com que conversava comigo sobre este
estudo, pelas horas a fio e as madrugadas em claro revisando meus textos e pelo
incentivo nos momentos de descrença.
A Eder, companheiro e amigo, pela compreensão e apoio.
Aos amigos Jacinto, Edvânea, Wilma, Lílian, Lenilde, Eduardo França, Helena, pelas
discussões envolvendo minha pesquisa, mas também pelas risadas e brincadeiras
nos momentos em que precisávamos relaxar da dura jornada acadêmica.
À Professora Piedade de Sá, pela orientação paciente, respeito e disponibilidade
com os quais me conduziu durante a produção desta dissertação, e por ensinar-me,
através de seu exemplo, que a vida acadêmica requer dedicação e amor ao que faz.
À Professora Maria do Carmo, pela disposição com que sempre me acolheu,
orientando-me atenciosamente sobre os percursos trilhados durante a elaboração
deste trabalho.
À Professora Ermelinda, pela atenciosa leitura e pelas relevantes contribuições feitas
durante a pré-banca.
Ao Programa de Pós-graduação em Letras da UFPE, coordenadores, professores
funcionários e bolsistas, pela receptividade e dedicação.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela
concessão da bolsa, que subsidiou o desenvolvimento desta pesquisa e a
participação em congressos e seminários.
A todos que deixei de citar, mas que direta ou indiretamente contribuíram para que
esta caminhada fosse concluída com êxito.
A Deus, principalmente, que em sua infinita sabedoria e bondade, proporcionou-me
condições de finalizar mais uma etapa de várias outras que surgirão no decorrer de
minha existência.
ix
RESUMO
Este estudo tem por objetivo analisar o discurso e o metadiscurso presentes
em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, e verificar os
recursos utilizados pelos diretores a fim de transmutá-los do romance para o cinema.
Através da análise da obra literária e suas adaptações Brás Cubas (1985), de Júlio
Bressane, e Memórias Póstumas (2001), de André Klotzel, e observando as
diferentes particularidades dos meios semióticos e as escolhas estéticas de cada
diretor, percebemos como o narrador se constrói duplamente, como
defunto/autor/ator e como personagem principal de sua autobiografia por meio tanto
do discurso como do metadiscurso. Estudos como os de Antônio Cândido (2004) e
Renata Palottini (1989), acerca da personagem, Baudrillard (1991), sobre simulacro,
Genette (1982) e Chalhub (1997), sobre metadiscurso, auxiliam na análise da
construção verbal e imagética da irônica personagem Brás Cubas.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura, Cinema, Discurso, Metadiscurso.
x
RESUMEN
Este estudio tiene por objetivo analizar el discurso y el metadiscurso presentes
en Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, y verificar los
recursos utilizados por los directores a fin de transmutarlos de la novela para el cine.
A través del análisis de la obra literaria y sus adaptaciones Brás Cubas (1985), de
Júlio Bressane, y Memórias Póstumas (2001), de André Klotzel, y observando las
diferentes particularidades de los medios semióticos y las elecciones estéticas de
cada director, percibimos cómo el narrador se construye, como difunto/autor/actor y
como personaje principal de su autobiografía por medio tanto del discurso como del
metadiscurso. Estudios como los de Antônio Cândido (2004) y Renata Palottini
(1989), sobre el personaje, Baudrillard (1991), sobre simulacro, Genette (1982) y
Chalhub (1997), sobre metadiscurso, auxilian en el análisis de la construcción verbal
e imagética del irónico personaje Brás Cubas.
PALABRAS-LLAVE: Literatura, Cine, Discurso, Metadiscurso.
xi
LISTA DE FIGURAS
Figura 2.1 - Brás Cubas (KLOTZEL, 2001) ................................................... 34
Figura 3.1 - Dedicatória (KLOTZEL, 2001) .................................................... 51
Figura 3.2 - Título do filme (KLOTZEL, 2001) ................................................ 52
Figura 3.3 - Créditos finais (BRESSANE, 1985) ........................................... 53
Figura 3.4 - Página do jornal em que é publicada a nomeação de Lobo
Neves (KLOTZEL, 2001) ..........................................................
55
Figura 3.5 -
Caderneta com a data de nomeação de Lobo Neves
(BRESSANE, 1985) ...................................................................
55
Figura 3.6 - Brás e o pai observados pelo defunto-ator (KLOTZEL, 2001) ....
59
Figura 3.7 - O esqueleto de Brás Cubas (BRESSANE, 1985) ......................
60
Figura 3.8 - O espectro do defunto-autor no escritório que pertenceu a Brás
Cubas (BRESSANE, 1985) ........................................................
60
Figura 3.9 - Brás presenteia Marcela com um colar, enquanto outro homem
escapa sorrateiramente (KLOTZEL, 2001) ................................
62
Figura 3.10 - O espectro Brás Cubas beija Virgília (KLOTZEL, 2001) ............
64
Figura 3.11 - Brás dirige-se à Virgília (BRESSANE, 1985) .............................
64
Figura 3.12 - O esqueleto beija Virgília (BRESSANE, 1985) .......................... 64
Figura 3.13 - Brás agradece a atenção do público (KLOTZEL, 2001) ............ 65
Figura 3.14 - Brás Cubas (BRESSANE, 1985) ............................................... 67
Figura 4.1 - Brás após a morte da mãe (BRESSANE, 1985) ........................
74
Figura 4.2 - Brás, sua irmã e o marido discutindo a partilha dos bens
deixados pelo pai (BRESSANE, 1985) ......................................
76
Figura 4.3 - Brás conversa com o pai sobre a carreira política e o
casamento (BRESSANE, 1985) ................................................
79
Figura 4.4 - Brás e o pai conversam sobre a política e o casamento
enquanto o defunto-ator os observa (KLOTZEL, 2001) .............
79
Figura 4.5 - Defunto-ator olha de relance o encontro amoroso de Brás e
Virgília (KLOTZEL, 2001) ...........................................................
82
Figura 4.6 - Diante das carícias do casal o defunto-ator fica sem palavras
(KLOTZEL, 2001) .......................................................................
82
Figura 4.7 - Brás num encontro amoroso com Marcela (BRESSANE,1985).. 83
Figura 5.1 - O defunto-ator mostra seu sepultamento ao espectador
(KLOTZEL, 2001) .......................................................................
98
Figura 5.2 - O defunto-ator apresenta Virgília ao espectador (KLOTZEL,
2001) ..........................................................................................
99
xii
Figura 5.3 - Esqueleto de Brás sentado no escritório (BRESSANE, 1985) ... 100
Figura 5.4 - A equipe de produção discute aspectos técnicos (BRESSANE,
1985) ..........................................................................................
102
SUMÁRIO
PRÓLOGO ................................................................................................. 10
INTRODUÇÃO ........................................................................................... 11
1. LITERATURA E CINEMA ........................................................................... 13
1.1.
NO PRINCÍPIO ERA O VERBO... ..............................................................
13
1.2. DO VERBO À IMAGEM ...............................................................................
16
2. POR ENTRE PÁGINAS E TELAS: MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS
CUBAS .......................................................................................................
20
2.1 COM A PENA DA GALHOFA E A TINTA DA MELANCOLIA .....................
20
2.2.
BRÁS CUBAS: A ‘INVENÇÃO-TRADUÇÃO’ DE BRESSANE ...................
25
2.3.
MEMÓRIAS PÓSTUMAS: O DEFUNTO-ATOR DE KLOTZEL ..................
30
3. O NARRADOR ........................................................................................... 37
3.1.
BRÁS CUBAS: CONTANDO UM CONTO... .............................................
40
3.2. O EU É O OUTRO: O SIMULACRO BRÁS CUBAS .................................. 45
4. A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM BRÁS CUBAS ............................ 69
4.1. EU, BRÁS CUBAS ......................................................................................
73
4.2.
O ESQUELETO SE FAZ OUVIR... ............................................................
84
5. O LITERÁRIO E O CINEMATOGRÁFICO: A METADISCURSIVIDADE
DE BRÁS CUBAS ......................................................................................
86
5.1. O QUEBRA-CABEÇA BRÁS CUBAS .........................................................
90
5.2. EXTRALINGÜÍSTICO .................................................................................
97
5.3. O METADISCURSO DE BRÁS CUBAS .....................................................
104
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................... 107
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..........................................................
110
10
PRÓLOGO
O presente trabalho, dê-me a liberdade de alertá-lo, caro leitor, traz a relação
profícua estabelecida entre a literatura e a cinematografia. Defunto-autor que sou, fiz
questão de espionar, e até mesmo palpitar aqui e ali para saber no final das contas
de que maneira me tiraram das letras e me puseram em luz e imagem em
movimento.
Saiba o senhor que, estando eu cá, na calmaria e eternidade de minha morte,
deparei-me com outro Brás Cubas, um sujeito debochado, vivendo sob efeito da
inércia e cheio de experimentações. Passado algum tempo, acreditam ter eu
encontrado ainda outro de mim? Na verdade, não como eu, Brás literário, trabalhado
com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, mas minha re-apresentação nas telas
do cinema que, distinto do sujeito que conheci antes, traz consigo um tom irônico e
está em cena durante toda a apresentação de minhas Memórias, recebendo, por
isso, nesse estudo, a alcunha de defunto-ator. Confesso ter sentido certo
estranhamento ao reconhecer uma dupla de Brás Cubas, imagéticos, de épocas
diferentes, tão iguais e ao mesmo tempo tão distintos.
Não fique o leitor a pensar que minha narrativa é tomada como realidade,
pois, nas páginas seguintes a história criada para ser renovada e moderna tem sua
metadiscursividade observada de modo a perceber como a trabalhei visando minha
construção como defunto-autor e personagem.
O que muito me surpreendeu foi descobrir que para tudo teoria... quiçá até
para os emplastos... essa criação duvidosa que alimentou muitas noites passadas
em claro sonhando com o prestígio e reconhecimento por mim almejados.
Dentre tantas teorias, as aqui presentes são as que dão conta do romance, de
sua adaptação para o cinema e da construção de suas personagens que, por sorte,
não se depararam com nenhum vento encanado.
Mas deixemos de lado os prólogos longos e reveladores, conheçamos os
principais aspectos dessa análise feita sobre esse defunto-autor que vos fala...
Brás Cubas
11
INTRODUÇÃO
A relação da Literatura com as outras artes vem a cada dia ganhando mais
estudiosos, os quais sob o ponto de vista intersemiótico percebem as múltiplas e
variadas vantagens para as manifestações artísticas como um todo. Literatura e
Cinema sempre estiveram à luz dos holofotes críticos e teóricos, devido às
controvérsias causadas por essa relação, que gerou repulsa por parte de alguns
conservadores, mas vem ganhando mais e mais defensores e adeptos.
O presente estudo, além de visar desfazer as nuvens que ainda possam
obscurecer a relação Literatura e Cinema, traz como foco a análise da
metadiscursividade presente em Memórias Póstumas de Brás Cubas e em suas
adaptações para o cinema: Brás Cubas e Memórias Póstumas. A reflexão feita sobre
o narrador, seu discurso e metadiscurso, assim como as estratégias discursivas
empreendidas para a construção da personagem Brás Cubas no romance e no
cinema, nos levam a observar o papel desempenhado pela metadiscursividade.
Os capítulos estão organizados de forma que o seguinte complemente o
anterior, aparentando, às vezes, uma análise fragmentada e diluída. Porém, os
aspectos são analisados separadamente para que, ao final, constituam o todo.
Funcionando como complemento da introdução, o primeiro capítulo demonstra
a preocupação em esclarecer as nuances desse estudo sobre Literatura e Cinema,
ressaltando o quão fértil essa interação pode ser para as duas artes, lembrando,
contudo, que nem sempre os teóricos e críticos a viram com bons olhos. Roman
Jakobson, com seu conceito de tradução intersemiótica, bem como estudos
semiológicos como os de Roland Barthes, fundamentam essa análise da
transmutação da obra literária para o cinema.
No segundo capítulo apresentamos o texto literário e as adaptações fílmicas,
de Júlio Bressane e André Klotzel, e analisamos suas respectivas características.
Nesse apartado estão delineadas, também, as estéticas dos diretores dos filmes,
pertencentes ao Cinema Marginal e Cinema da Retomada, o que auxilia na
compreensão das análises feitas nos capítulos seguintes.
A análise e o confronto entre Literatura e Cinema inicia-se no terceiro capítulo,
no qual o defunto-autor recebe a alcunha de defunto-ator, ao tratarmos da película
de Klotzel. Nesse capítulo, o estudo feito sobre o narrador mostra as cnicas e
12
linguagem por ele empregadas, a fim de, ao mesmo tempo em que contava a
história, utilizando-se do discurso e do metadiscurso, construir-se a si próprio e à
personagem principal, Brás Cubas, vivo. Levando em consideração tanto a obra
literária como suas adaptações cinematográficas, ressaltamos as convergências e
divergências entre os textos literário e fílmicos, que seguirão sendo observadas até o
capítulo final.
O capítulo quatro trata da construção da personagem, analisada sob teorias
literárias, cinematográficas e teatrais, principalmente as de Antônio Cândido e
Renata Pallottini, visando identificar como o narrador, através do discurso e,
auxiliado, pelo metadiscurso, constrói a personagem principal, na obra literária e no
cinema.
Complementando o subtítulo desse estudo, vem o quinto capítulo, no qual os
segredos e artimanhas metadiscursivas revelam Brás Cubas como falante ficcional
que reflete sobre o que está escrevendo e a maneira como o faz. Ressaltamos ter
sido também traduzida para os filmes a metadiscursividade presente no texto
literário, saindo do verbal e encontrando, nas respectivas técnicas de cada diretor,
soluções dentro do imagético.
Apresentados capítulos e motivações deste trabalho sobre a obra Memórias
Póstumas de Brás Cubas e suas adaptações para o cinema, adentremos pelos
bosques dessa análise a fim de perceber que ainda muito a conhecer sobre o
estilo, a técnica e a linguagem empreendidos para o emprego da metadiscursividade
no texto machadiano, bem como as soluções encontradas para a transposição da
obra literária, com suas particularidades, para as telas do cinema.
13
1. Literatura e Cinema
Desde que o cinema surgiu não sonhamos
mais da mesma maneira.
Duvignaud (BRITO, 2006)
1.1. NO PRINCÍPIO ERA O VERBO...
Ao contrário do que podemos pensar existe uma relação profunda e fértil entre
Literatura e Cinema, ou melhor, relações, pois se dão desde o desenrolar das
tramas às técnicas específicas de cada arte. Na história do Cinema percebemos,
desde os seus primórdios, um íntimo relacionamento com a Literatura; tal ligação
gerou e continua gerando muitos frutos, possibilitando que cada arte, a seu modo,
tire dela proveito.
O cinema, a partir de D. W. Griffith, passou a utilizar técnicas presentes nos
textos literários de Dickens, como o ponto de vista, que influenciou na posição da
câmera e foi responsável pela origem dos planos cinematográficos; a narrativa
visual, na qual o escritor alterna um assunto com outro; o enquadramento, no qual a
posição da câmera varia com relação ao que está sendo filmado; a montagem; a
noção de contraste. Griffith não foi o primeiro a trabalhar a posição da câmera, mas
o pioneiro na sistematização do uso da angulação, planificação e enquadramento.
Essas técnicas literárias obtiveram um resultado o satisfatório que passaram a
compor os chamados recursos cinematográficos. Brito (1996, p. 14-15) ressalta que
até mesmo a “consagrada distinção historiográfica e estilística entre o cinema de
arte europeu e o cinema clássico americano não deixa de refletir, no fundo, a
relação literatura-cinema”, pois se diferenciavam quanto ao estilo dos textos em que
se baseavam.
Por outro lado, a literatura, sobretudo a moderna, espelha-se no cinema
quando coloca o foco da narrativa na personagem de visão limitada, numa tentativa
de aproximar-se de roteiros cinematográficos. No Brasil, podemos observar este
foco narrativo em obras como Um Copo de lera (1992), de Raduan Nassar, uma
14
narrativa, feita sob a ótica da personagem, num fluxo ininterrupto, e a mudança de
perspectiva. As técnicas do cinema utilizadas pela literatura, principalmente a
moderna, geraram discussões com relação ao trato dado à objetividade. Bory (apud
BRITO, 1996, p. 16) “alertava contra o perigo de o romance moderno, ‘esse invejoso
do cinema’, generalizar, na linha de Robbe-Grillet, o investimento na objetividade,
um caminho sem saída estética”. Para ele, o escritor deveria potencializar, por meio
da ‘magia do verbal’, o que as limitações plásticas do cinema não permitem, tratar do
invisível. Desta maneira fizeram os que optaram por se distanciar das técnicas
cinematográficas, buscaram uma interiorização, revelando aquilo que o verbal
permite que seja dito.
A relação entre a literatura e a sétima arte se de maneira tão próxima e
próspera que “para recrutar as suas personagens o cinema não demonstra,
efetivamente, o menor espírito de exclusividade. Age, pelo contrário, com a maior
desenvoltura em relação às que encontra prontas, isto é, elaboradas por séculos
de literatura e teatro” (GOMES, In: CÂNDIDO et al., 2004, p. 115). Frequentemente,
essas personagens são tão marcantes nas produções cinematográficas quanto nas
páginas dos livros ou nos palcos, e, por vezes, o que vem ocorrendo nos últimos
anos, o cinema as retira do anonimato, trazendo-as para diante do público.
Criações literária e cinematográfica, por meio de suas semelhanças, nos
mostram que o fazer artístico, em ambas as artes, ocorre em várias etapas,
principalmente no que diz respeito à narração. No cinema, a câmera narra, pois ela
tem
Prerrogativas de um narrador que faz escolhas ao dar conta de
algo: define o ângulo, a distância e as modalidades do olhar
que, em seguida, estarão sujeitos a uma outra escolha vinda
da montagem que definirá a ordem final das tomadas de cena
e, portanto, a natureza da trama construída por um filme.
Portanto, dizer que um filme mostra imagens é dizer pouco e
muitas vezes elidir o principal.
(XAVIER, In: PELLEGRINI et al., 2003, p. 74)
15
Na literatura essas escolhas são feitas principalmente pelo escritor, porém, o
editor também sugere modificações e cortes a serem feitos antes da publicação,
que, muitas vezes, são pré-requisitos para que o texto seja publicado.
Na trajetória do Cinema Nacional o intercâmbio entre literatura e cinema ocorre
de forma semelhante, apresentando igual relevância para as citadas artes. Contudo,
conforme Brito (1996, p. 17), “obviamente, o catalisador das relações entre literatura
e cinema tinha que ser mesmo a adaptação, ponto nevrálgico em que duas
modalidades de arte se tocam ou se repelem, se acasalam ou se agridem”. A esse
sensível limite entre as artes é que dedicamos reflexão e análise.
Diversas produções cinematográficas, nacionais e internacionais, tiveram seus
roteiros baseados em obras literárias, adaptando-as
1
para o cinema, o que
possibilita maior apreciação e difusão tanto para a sétima arte quanto para os textos
nos quais se basearam as criações fílmicas. Porém, nem sempre este diálogo foi
bem aceito pelos que viam a Literatura como ‘Arte Maior’, pois acreditavam que o
cinema estava se aproveitando do texto literário, que pretendia ocupar seu lugar e
desviar seus leitores, o que gerou divergências entre os que teorizaram sobre a
adaptação do texto literário para o cinema. As divergências eram com relação à
qualidade e fidelidade das adaptações.
Atualmente essa discussão quase não mais existe, visto que é ponto pacífico e,
como mencionamos, não os cineastas e roteiristas se baseiam na literatura a fim
de escrever seus roteiros, como esta também se utiliza dos recursos
cinematográficos para proporcionar a criação de imagens por parte do leitor.
No processo de adaptação podem ocorrer modificações, e geralmente
ocorrem, no texto fonte, que seriam, conforme Brito (2006), redução do texto
literário, captando apenas sua essência; adição de elementos extras ao filme
adaptado; deslocamento, os elementos presentes no romance e na adaptação são
os mesmos, porém, no momento da montagem, a ordem em que aparecem na obra
literária é alterada; e, a transformação de signos verbais em formas icônicas, para a
qual serve de exemplo o capítulo LV ‘O velho diálogo de Adão e Eva’, de
Memórias Póstumas de Brás Cubas, que na obra literária é composto, praticamente,
1
Nesta análise, usamos os termos adaptação, tradução, transposição e transcriação como
equivalentes/sinônimos; eles não implicam juízo de valor com relação ao significado de cada um
deles e o produto final do processo; consideramos apenas a trajetória do texto de uma linguagem à
outra.
16
apenas por reticências, mas André Klotzel e Júlio Bressane em suas adaptações
montaram iconicamente tal diálogo, deixando ‘falar’ o não-verbal.
A transmutação de produções literárias para as telas é entendida como uma
reescritura, releitura e recriação do texto de partida, conforme afirma Lèfèvere
(1992). O roteiro, texto alvo, é visto como uma nova e independente produção que
apenas buscou o texto literário como fonte ou ponto de partida e não como cópia, “a
imagem tem, portanto, seus próprios códigos de interação com o espectador,
diversos daqueles que a palavra escrita estabelece com o leitor” (PELLEGRINI; In:
PELLEGRINI et al., 2003, p. 16). Por esse motivo, não podemos fazer nenhum juízo
de valor, como costumavam os críticos, com relação à originalidade ou comparar as
duas produções com o intuito de verificar qual a melhor ou mais ‘fiel’, pois se trata de
meios semióticos distintos e que por isso devem encontrar soluções próprias para
gerar a significação. Compartilhando com a afirmação de Ismail Xavier (In:
PELLEGRINI et al., 2003, p. 62), “ao cineasta o que é do cineasta, ao escritor o
que é do escritor” —, compreendemos cada texto, literário ou fílmico, como sendo
único, com todas as particularidades a ele reservadas.
1.2. DO VERBO À IMAGEM
O cineasta não se contenta em plagiar
como fizeram no final das contas, antes dele
Corneille, La Fontaine ou Molière; propõe-
se a transcrever para a tela, numa quase
identidade, uma obra cuja transcendência
ele reconhece a priori.
André Bazin (1991)
A partir de uma análise semiológica, que “vê o signo mover-se no campo da
significação, enumera as suas valências, traça a sua configuração” (BARTHES,
1964, p. 294-295), percebemos o signo como uma “idéia sensível”, capaz de ser
interpretado e reinterpretado:
17
Todo o signo inclui ou implica três relações. Em primeiro lugar,
uma relação interior, aquela que une o seu significante ao seu
significado; depois, duas relações exteriores: a primeira é
virtual, une o signo a uma reserva específica de outros signos,
da qual o destacamos para o inserirmos no discurso; a
segunda é actual, ela junta o signo aos outros signos do
enunciado que o precedem ou lhe sucedem.
(BARTHES, 1964, p. 289)
Por meio das relações que o signo implica é que o leitor/espectador pode
atribuir significação ao texto que tem diante de si, seja ele verbal ou imagético. A
interpretação, ou atribuição de significado, pode ser manipulada pelos que produzem
o texto que se está lendo, por questões mercadológicas, por fatores culturais ou
estilísticos. Da mesma forma que faz o diretor com as imagens e montagem do filme.
Ao falar sobre o mundo dos textos ficcionais, Wolfgang Iser (2002, p. 973)
aponta a finalidade da ficção, mostrando que o universo do texto proporciona a
percepção sobre o mundo com a função de produzir um como se.
Iser tem como foco de seus estudos o texto literário, porém o ato de fingir,
apresentando a ficção como se fosse realidade, aparece nas artes de maneira geral,
principalmente no cinema, uma vez que ele tem a capacidade de, assim como a
literatura, fazer o receptor imergir nas imagens que recria, produzindo por meio de
seu fingimento um constante como se, uma sensação de realidade.
Dentro da chamada sociedade s-moderna, a qual visa subverter o equilíbrio
e a razão modernista, escritores literários e diretores cinematográficos reproduzem o
que os receptores, a sociedade do espetáculo, vivenciam. Criam simulacros capazes
de revolucionar as atitudes das pessoas, que os consideram uma janela com vista
para o paraíso, porém muitos não percebem que este paraíso é virtual.
O conceito de sociedade do espetáculo é entendido por Guy Debord (apud
NOVAES, 2005) como sendo aquela cujo cotidiano é vivido como se estivesse o
tempo inteiro diante do público e necessitasse representar. A mídia passa, assim, a
guiar a conduta social, pois apresenta o que os espectadores almejam, os quais
passam a reproduzir o visto nas imagens.
A imagem permite a análise de uma rie de processos utilizados pelos
diretores para traduzir aspectos de determinada obra literária para as telas, que
18
como explica Perez (2004), a teoria da significação “é capaz de nos fazer penetrar
no movimento interno das mensagens, o que nos a possibilidade de resgatar os
mecanismos que são usados nas linguagens, permitindo a análise das mensagens
em vários níveis”.
Jakobson define “a tradução intersemiótica ou transmutação” como “a tradução
de signos verbais em sistemas de signos não verbais” (1991, p. 64-65), ou seja, a
transmutação do texto-fonte (obra literária) para o texto-alvo (cinema, fotografia,
imagem), de um meio semiótico a outro. Utilizaremos o termo tradução
intersemiótica por entendermos que abrange a passagem de textos de uma arte à
outra, respeitando as particularidades de cada uma.
Ao comentar sobre tradução intersemiótica, como a feita por ele em Brás
Cubas, Júlio Bressane (2000, p. 49) ressalta que nela
O que se impõe é a necessidade de uma tradução
identificadora, que force os limites do meio traduzido. Tradução
em cinema faz-se com luz movimento angulação -
montagem.
Descobrir a luz, o ritmo, o fino fio de uma tradição de clichês
cinematográficos que, transformados, transvalorados,
recriados, reinventados, podem, de alguma maneira, nos
sugerir, nos remeter, dar-nos uma idéia do formalismo do texto,
do objeto, do espírito, do humor, do mau humor, do original.
O diretor afirma ainda ser a tradução intersemiótica uma tarefa heróica, “que,
segundo R. Jakobson, não é orientada pela razão, mas, talvez, unicamente, pela
intuição” (BRESSANE, 2000, p. 49). Tarefa heróica, mas perfeitamente possível de
ser realizada, visto que, como dissemos e enfatizaremos ao longo deste estudo, a
forma como o texto será traduzido de um meio semiótico a outro varia de acordo
com as escolhas de quem o está fazendo, seja escritor, diretor, roteirista, pintor ou
fotógrafo.
Com base no conceito de Jakobson, considerando a adaptação fílmica como
uma forma de tradução, propomos uma análise da transmutação de Memórias
Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, para o cinema,
materializada em Brás Cubas (1985), do diretor Júlio Bressane, e Memórias
19
Póstumas (2001), de AndKlotzel, observando as escolhas feitas pelos diretores e
roteiristas com o intuito de recriar o apresentado no texto-fonte, texto literário, e
transpor sua metadiscursividade, construindo, desta forma, a personagem Brás
Cubas por meio do discurso e do metadiscurso instaurado pelo narrador. Para tanto,
faz-se necessário apresentar as obras literária e cinematográficas, com suas
particularidades.
20
2. POR ENTRE PÁGINAS E TELAS: MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE
BRÁS CUBAS
2.1. COM A PENA DA GALHOFA E A TINTA DA MELANCOLIA...
As idéias claras e precisas costumam ser as
mais perigosas, porque ninguém ousa
substituí-las.
André Gide
Representando o marco do romance realista no Brasil, Memórias Póstumas de
Brás Cubas se destaca pelo tratamento dado ao objetivismo e à linguagem. Estes
aspectos e o estilo machadiano foram alguns dos responsáveis por ter sobressaído
dentre outras obras do século XIX e a continuar figurando como uma obra moderna
e atual até os dias de hoje.
O texto machadiano conta a história de Brás Cubas, um burguês, que, após a
morte, em 1869, decide aproveitar a eternidade dada aos mortos contando suas
memórias, aventuras e desventuras, vividas em sua passagem pelo mundo. E assim
o faz, narrando em primeira pessoa sua própria história, deixando explícito, até para
o leitor mais desavisado, sua condição de defunto.
Ser um defunto-autor, explica ele, tem a vantagem de não ter pressa para
contar sua história e de não precisar omitir nenhum fato, visto que a sociedade
não pode mais apontá-lo e cobrar posturas aceitáveis. Contudo, Brás apesar das
aparentes revelações sobre sua vida não se desmascara, não desfaz o simulacro
que é, mas se recria de maneira que observemos seu comportamento como num
espetáculo, no qual o meio social é o diretor.
Desde o prólogo, feito por Brás Cubas, intitulado ‘Ao Leitor’, percebemos que
não se trata de uma narrativa convencional, tampouco de um narrador comum,
21
Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás
Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne ou de um Xavier
de Maistre, não sei se lhe meto algumas rabugens de
pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena
da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil de antever o
que poderá sair desse conúbio.
(ASSIS, 1997, p. 16)
Mais adiante, no mesmo prólogo, adverte sutilmente, através do metadiscurso,
no qual comenta aspectos da criação e estilo empreendido para escrever suas
Memórias, sobre o caráter da obra:
O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as
diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito
contar o processo extraordinário que empreguei na composição
destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. (grifo nosso)
(ASSIS, 1997, p. 16)
A explicação induz o leitor a ficar atento às propriedades discursivas da
narrativa, que o coloca num jogo de espelhos, no qual Brás Cubas aparece como
narrador-personagem e autor ficcional
2
.
Adorno (2003, p. 60) ressalta que o romance tradicional “deve ser comparado
ao palco italiano do teatro burguês. Essa técnica era uma técnica de ilusão”. Essa é
uma das características da obra analisada, visto que o narrador se comporta sempre
como se estivesse encenando, inclusive conversando diretamente com seu
narratário, o leitor. Ilusionismo, como veremos mais adiante, é o que não faltará na
produção de André Klotzel, o qual pretende fazer um filme aos moldes da obra
machadiana.
Ao iniciar sua narrativa, o defunto-autor deixa claro a sua principal ‘virtude’: a
franqueza, que somente os mortos têm o privilégio de possuir, por o deverem
mais satisfação à sociedade. A partir de então, começa o relato dos fatos que
2
Para Adams (1985) o escritor cria uma ficção ao atribuir o que escreve a outro falante criado por ele.
Esse falante ficcional, ou narrador, passa a ter atribuídos a si os atos de fala construídos pelo escritor,
por pertencer ao universo ficcional e não possuir relações com a realidade de seu criador.
Denominamos Brás Cubas autor ficcional, visto que assina sua autobiografia ficcional, assumindo,
desta forma, os atos de fala presentes no texto machadiano.
22
marcaram sua vida, desde o seu nascimento aa morte, sem deixar de lado a
ironia, característica marcante da personagem,
Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era
solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado
ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que
não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia...
(ASSIS, 1997, p. 17)
e o humor, ressaltando sempre, mesmo que implicitamente, o seu ponto de vista
com relação às suas atitudes de jovem imaturo, que começava a vislumbrar a vida e
almejava conquistar seu espaço:
Tinha dezessete anos; pungia-me um buçozinho que eu
forcejava por trazer a bigode. Os olhos, vivos e resolutos, eram
a minha feição verdadeiramente máscula. Como ostentasse
certa arrogância, não se distinguia bem se era uma criança
com formas de homem, se um homem com ares de menino.
(ASSIS, 1997, p. 39-40)
Com igual ironia o narrador relata seu relacionamento com Marcela, “primeira
comoção de minha juventude, que doce que me foste! Tal devia ser, na criação
bíblica, o efeito do primeiro sol” (p. 41), concluindo, após mostrar sua relação com a
cortesã, o real interesse dela: “amou-me durante quinze meses e onze contos de
réis; nada menos” (p.44). Estas extravagâncias levaram o pai a enviá-lo a Portugal.
A narrativa está permeada por assuntos inseridos por Brás Cubas para
demonstrar como percebia seu entorno e quais suas visões e posturas diante dos
acontecimentos, como a adesão à Teoria do Humanitismo, criada por Quincas
Borba, e a filosofia das folhas velhas; ou simplesmente para demonstrar sua
ocupação quando vivo, como o Capítulo CXIX – ‘Parêntesis’, composto por máximas
que escreveu, e que não deixa de ser uma crítica à sociedade burguesa desocupada
de sua época.
Brincando com sua própria condição de morto, Brás revela a sua visão com
relação ao desenvolvimento científico do final do culo XIX ao falar sobre seu
23
delírio, relato que, aliás, é movido pelo desejo de fama e reconhecimento público,
motivos que o levaram a tentar criar seu emplasto anti-hipocondríaco:
Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio;
faço-o eu, e a ciência mo agradecerá.
(ASSIS, 1997:25)
O Rio de Janeiro é o cenário dos episódios protagonizados por Brás Cubas.
Episódios que trazem à tona assuntos em voga devido à estética realista, que perdia
os ares romanescos e adquiria a sobriedade da realidade, abordando temas como a
escravidão, os preconceitos sociais, o casamento feito por interesse, o adultério.
Episódios como o do almocreve e o do primeiro beijo de Eugênia são postos
para revelar o caráter de Brás Cubas. Este, como dissemos anteriormente, dedica
capítulos inteiros a discorrer sobre assuntos inusitados, como a função do nariz, a
sabedoria das pernas, os quais servem também para retardar a narração de sua
história.
Vale ressaltar que Brás Cubas ao fazer o balanço de sua vida no último
capítulo do livro, ‘Das Negativas’, confessa ao leitor que embora o tenha
conseguido concretizar nenhum sonho, considera-se um ganhador:
Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará
que não houve mingua nem sobra, e conseguintemente que saí
quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este
outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é
a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive
filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa
miséria.
(ASSIS, 1997, p. 176)
O ritmo em que as Memórias são narradas é hesitante e trôpego, cheio de idas
e vindas, convites para saltar capítulos, o que ressalta a ironia presente no discurso,
e alerta sobre a importância de alguma informação que o defunto-autor julga
relevante para o todo da história. Brás Cubas orgulha-se, em diversas passagens
metadiscursivas, de seu estilo e da maneira como dispõe os fatos, organizando-os
de forma que o leitor seja guiado por ele:
24
Que há entre a vida e a morte? Uma curta ponte. Não obstante,
se eu não compusesse este capítulo, padeceria o leitor um
forte abalo, assaz danoso ao efeito do livro.
(ASSIS, 1997, p. 150)
Schwarz (2000, p. 19) caracteriza Brás Cubas como “um narrador
voluntariamente importuno e sem credibilidade”, entretanto, “cria-se entre autor e
leitor uma relação de facto, uma luta pela fixação do sentido”, através de um diálogo
direto, no qual Brás deixa seu interlocutor ciente do que falará e livre para fazer suas
próprias escolhas, saltar fragmentos e ler apenas o que lhe interessar, ou conhecer
o relato na íntegra, portanto, utilizando as palavras de Klotzel, participar como “co-
criador”.
Campbell, em seu livro O herói de mil faces, apresenta o herói mítico como o
ser que nasce predestinado a lutar por uma causa nobre, em prol da coletividade, de
uma nação, com bravura, para deixar suas marcas num passado que será exaltado
por suas conquistas, fruto de renúncias e duelo com a morte. Um ser que ao concluir
sua ‘missão’ está transformado. “O herói, que em vida representava a perspectiva
dual, ainda é, depois de sua morte, uma imagem-síntese” (CAMPBELL, 2002, p.
342).
À diferença do herói mítico de Campbell, percebemos Brás Cubas como o
típico herói moderno, em sua essência, um bon vivant, podendo caracterizar-se
como “flâneur, o herói da modernidade: ocioso, deixa-se levar pela multidão e pelo
ritmo das tartarugas” (BENJAMIN, apud MATOS; NOVAES, 2005, p. 178). Brás é
uma personagem passiva, mergulhada num universo fragmentado e sem sentido,
para quem o importante é o que percebe de si mesmo, mostrando-se, assim, o anti-
herói da narrativa. É alguém que vive no marasmo, que nunca conquistou nada de
concreto e ainda conclui que saiu da vida com saldo positivo.
25
2.2. BRÁS CUBAS: A ‘INVENÇÃO-TRADUÇÃO’ DE BRESSANE
Cada filme meu é uma nova e estranha
aventura feita por uma nova e estranha
pessoa.
Júlio Bressane (1980)
O filme moderno caracteriza-se pela subversão dos padrões clássicos da
narrativa, que se apresenta menos dramatizada, com vazios e, geralmente, com
finais abertos. As personagens dessas produções têm menos nitidez, muitas vezes
estão em crise existencial e provocam uma reflexão espelhada nos dramas que
vivenciam. No cinema moderno os procedimentos visuais e sonoros confundem o
espectador entre objetividade e subjetividade, entre o visível e o invisível.
Em Brás Cubas (1985), do diretor e roteirista Júlio Bressane, percebemos a
intenção em sobrepor o real ao virtual, equiparando sua técnica à do teatro de
Brecht
3
, chamando a atenção do espectador para que ele não caia nas armadilhas
sedutoras da imagem, fazendo do seu filme “uma arte da explicação”, e não apenas
mais “uma arte de expressão” (BARTHES, 1964, p. 72). Ao explicitar, ou pelo menos
tentar fazê-lo, o que a priori deveria estar implícito no filme, Bressane convida o
público a lançar um olhar interpretativo sobre o que lhe está sendo mostrado, a
deixar a passividade de lado e participar na construção do significado.
Os meus filmes são simplesmente filmes. O que pode parecer
uma narrativa fragmentada, sem lógica nenhuma ao
espectador e, evidentemente, uma sucessão de símbolos,
significados ou dados semióticos.
(BRESSANE, apud LYRA, 1995, p. 38)
3
Ao falar sobre A Revolução Brechtiana, Barthes (1964, p. 71-72) afirma que Brecht “diz-nos,
desprezando toda a tradição, que o blico deve semicomprometer-se no espetáculo, de modo a
‘conhecer’ o que é mostrado, em vez de a ele se submeter; que o actor deve produzir esta
consciência denunciando o seu papel e não incarnando-o; que o espectador nunca se deve identificar
completamente com o herói, de modo a manter-se sempre livre para julgar as causas, e depois os
remédios para o seu sofrimento; que a ação não deve ser imitada, mas contada”.
26
Podemos perceber nos filmes de Bressane traços bem particulares, picos do
cinema moderno, visto que, assim como Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, Luiz
Rozemberg e outros cineastas, “assume: ‘filmarei a meu modo, definirei minha
poética’, e seu estilo entra em forte conflito com as convenções” (XAVIER, 2001, p.
59). É o que observamos na produção cinematográfica em questão, que segue a
estética iniciada pelo Cinema Novo de movimentar a câmera uma idéia na cabeça
e uma câmera na mão –, de fazer os enquadramentos e diálogos, porém, não
compartilha da abordagem veemente das questões políticas e ideológicas, visto que
Júlio Bressane não adere ao pensamento do cinema como veículo de denúncia e
crítica, mas reflete sua ideologia através de sua estética e da construção de suas
personagens, fazendo uma crítica ao ilusionismo cinematográfico utilizando a
metalinguagem. Brás Cubas, embora apresente características da estética
cinemanovista, pertence ao Cinema Marginal, estética na qual se enquadra seu
diretor, pois, segundo Lyra (1995, p.33), “o cinema de Bressane assenta-se num
experimentalismo que orla os tons culturais assumidos pelo cineasta: em vez de
cinema experimental, o experimental no cinema”.
Os recursos utilizados por Júlio Bressane para a construção da personagem
Brás Cubas e para a transmutação de técnicas presentes no metadiscurso e
discurso machadianos são um reflexo da cultura e ideologia do diretor, cuja carreira
iniciou no chamado Cinema Marginal, nome dado ao movimento influenciado pela
antropofagia do Modernismo que o tropicalismo trouxe à tona; pelas teses de Jean-
Luc Godard (apud LEITE, 2005, p. 106) sobre narrativa cinematográfica, as quais
defendiam que “são filmes com começo, meio e fim, mas não necessariamente
nessa mesma ordem, produções marcadas pela ampla liberdade de criação”; pelos
postulados definidos por Orson Welles; e pelo cinema moderno americano, em
especial os filmes B.
Assim, percebemos que o objetivo dessa vertente do cinema é evitar as
discussões de caráter filosófico e existencial contidas nas produções do Cinema
Novo. Características importantes do Cinema Marginal são o diálogo com várias
narrativas cinematográficas e a fragmentação narrativa, o que observamos em
outros filmes do próprio Bressane como Tabu (1983), que dialoga com o
pornográfico O Suplício (1928) e com o homônimo Tabu (1931), de Murnau e
Flaherty.
27
A estética marginal de Brás Cubas faz com que, para compreender o que
passa na tela, o público não apenas absorva as imagens, mas que filtre o que
realmente tem importância para a construção do enredo da película.
O cinema experimental de Júlio Bressane é uma amostra de como a escolha
das imagens leva o espectador a uma reflexão sobre o que lhe está sendo
apresentado, pois ao ser visto de maneira crítica cumpre seu papel. Mas essa visão
crítica necessita da ativação dos conhecimentos prévios e o apuro do olhar do
espectador sobre o assunto, para que possa, dessa forma, fazer suas próprias
inferências, possa não apenas ver, mas rever a criação artística.
O diretor de Brás Cubas deixa claro em suas entrevistas que não se preocupa
em seguir os padrões estéticos dos filmes clássicos, que não tem a intenção de
agradar as massas, declarando: “não faço cinema para o público, faço para mim [...].
A ciência aperfeiçoa você numa visão de mundo; a arte aperfeiçoa você”
(BRESSANE, apud LYRA, 1995, p. 26). Com seu modo singular de “fazer cinema”,
Bressane conquista cada vez mais um público de intelectuais interessados num
cinema-invenção, onde o foco principal seja a própria arte e não a crítica social e
política.
Em suas produções, desde a escolha das imagens que formam a narrativa até
a fotografia da película é cobrada a capacidade que o ser espectador tem de
interpretar as imagens apresentadas, de maneira que possa decifrar a intenção do
diretor ao escolhê-las e organizá-las numa seqüência, pois, como ressalta Merlau-
Ponty (apud NOVAES, 2005), “o sentido de uma imagem depende daquelas que a
precedem, e sua sucessão cria uma realidade nova que não é simples soma dos
elementos empregados”.
Segundo Ismail Xavier (2001, p. 32), a obra de Júlio Bressane “é feita de
invenções-traduções que convocam um amplíssimo repertório” de interpretações e
significações. A invenção-tradução de Bressane se consolida pela exploração da
função poética do filme, percebida pela maneira como une sica, imagem, pintura,
enfim, mescla várias formas de expressão artística.
Teixeira (2003, p. 97) afirma que as obras do diretor sempre apresentam um
quê de tradução, intrasemiótica ou intersemiótica, visto que trata de inserir
fragmentos de textos de escritores ou músicas inteiras sendo executadas.
28
Sua orquestração expõe, de maneira bastante peculiar na
paisagem cinematográfica brasileira, tanto uma visão da cultura
que se inscreve num registro polifônico e polimórfico, enquanto
precipitado que opera descontinuamente por transformação
(mais que por formação), quanto uma concepção da atividade
criativa cujo processo, o filme em germe se fazendo filme,
adquire a consistência de material de composição.
Observa-se que a produção Brás Cubas vai de encontro, como afirma seu
diretor, às técnicas cinematográficas empregadas na narrativa clássica. Bressane
transforma o texto machadiano num roteiro completamente não-linear, encerrando o
filme com o episódio da loucura de Quincas Borba, fato que marca na obra literária o
princípio do isolamento de Brás Cubas, e que somente será rompido por sua
enfermidade e conseqüente morte.
Observando a existência de uma dimensão especular na tradução do livro por
Júlio Bressane, Teixeira (2003, p. 100) percebe
Dois níveis de estranhamento: um imediato, em que o familiar,
o signo dado (o livro do escritor, carregado de significações), é
de partida alheado (estranhamento do familiar); o outro
mediato, em que o alheio é transmutado em signo
cinematográfico próprio (transmutação do familiar em
estranho).
E tão próprios são os signos bressanianos, que, embora afirmando que o texto
machadiano vem pronto para ser transmutado em imagem fílmica, deixa bem
marcada sua linguagem e estilo de fazer cinema.
Por apresentar características próprias, Bressane escolhe para interpretar sua
personagem principal Luís Fernando Guimarães, ator que se diferenciou dos
modelos clássicos de interpretação, no qual os papéis são bem definidos e os finais
bem resolvidos, devido a seu modo debochado e humorado de atuar. Contudo,
quando eleito para encarnar Brás Cubas, embora tenha feito bastante sucesso com
a peça Trate-me Leão
4
(1977), era um artista desconhecido do grande público, visto
4
Luís Fernando Guimarães teve como um de seus primeiros trabalhos relevantes a peça Trate-me
Leão, do diretor Hamilton Vaz Pereira e produtor Perfeito Fortuna. A peça foi montada pelo grupo
29
que o maior responsável pela sua consagração nacional foi o programa humorístico
TV Pirata (1990). Juntamente com Regina Casé, com quem contracenou em Trate-
me Leão, torna-se um artista “símbolo do espírito da contracultura e do teatro
marginal. A irreverência aliada à estética, que em lugar dos efeitos cênicos trabalha
com a imaginação e a paródia, afirma o descomprometimento e, com ele, a rejeição
ao teatro tradicional” (Enciclipédia Itaú Cultural). Bressane elege um ator símbolo do
teatro marginal para trabalhar em seu Cinema Marginal, conseguindo, ainda,
conservar as técnicas discursivas do texto machadiano e inserir sua marca autoral.
O diretor elege as principais passagens do livro para adaptar e, pela primeira
vez, traduzir “signos alheios”, como ele mesmo declara. Contudo, numa de suas
entrevistas, ao falar sobre a adaptação, reitera, o que havia expressado noutras
ocasiões, o interesse a respeito da obra machadiana, a qual acredita não necessitar
de um roteiro adaptado ao cinema, visto que seu texto se apresenta pronto e se
mostra à frente do seu tempo, pois “Machado faz verdadeiras tomadas de câmera,
faz cortes dentro de seqüências, isso antes do cinema ser inventado” (BRESSANE,
apud LYRA, 1995, p. 44). Essas características do texto literário apontadas pelo
diretor aliadas ao seu estilo de experimentalismo cinematográfico explicam a escolha
de Memórias Póstumas de Brás Cubas, visto que da mesma forma que Machado de
Assis ousou e inovou, Júlio Bressane o faz ao apresentar através dos recursos
cinematográficos as técnicas literárias presentes no livro.
Asdrúbal Trouxe o Trombone, do qual o ator foi um dos fundadores, responsável por lançar nomes
importantes conhecidos até os dias atuais. Trate-me Leão deu o prêmio Molière de melhor atriz a
Regina Casé quando tinha apenas 22 anos.
30
2.3. MEMÓRIAS PÓSTUMAS: O DEFUNTO-ATOR
5
DE KLOTZEL
A dramaturgia, o ato de contar história,
continua tão complicado quanto era antes.
Difícil é fazer algo divertido, de
entretenimento, ou que discuta idéias e seja
relevante do ponto de vista artístico, seja
que formato (digital ou cinematográfico) for.
André Klotzel (2002)
O mundo contemporâneo abriga uma sociedade marcada por uma postura de
contemplação passiva, prisioneiro de uma cultura na qual grande parte do público
simplesmente absorve o representado pela ficção, de forma alienada, sem fazer uma
reflexão crítica sobre o que lhe está sendo mostrado, passando a vivenciá-la em seu
cotidiano – a ‘sociedade do espetáculo’.
Considerando que, para Guy Debord (apud JAPPE; In: NOVAES, 2005, p.
255), “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre
indivíduos, mediada por imagens”, percebemos que Memórias Póstumas (2001), de
André Klotzel, apresenta a sociedade à semelhança de como a Debord, na qual
tudo não passa de uma representação social, funcionando como cenas de um
grande espetáculo.
Observamos esta representação social quando, com um leve tom humorístico,
Klotzel constrói a seqüência narrativa em que o pai de Brás morre. Não fica claro,
como o narrador comenta, se a causa da morte do senhor Cubas foi a doença ou o
desgosto de ver Virgília trocar seu filho por Lobo Neves. A vergonha diante do olhar
da sociedade se mostra desde o momento em que o jovem Brás perde seu posto de
noivo, pois a partir daí o senhor Cubas começa a tossir e pigarrear, repetindo
sempre – ‘Um Cubas! Um Cubas!’. Ao exalar seu último suspiro, ainda exclama: ‘Um
Cubas!’.
5
A expressão defunto-ator é adotada para designar o narrador-personagem da adaptação de André
Klotzel, pois ele conversa com o espectador olhando para a câmera, está em cena, e, por vezes,
preocupa-se com sua imagem. Ademais, ao agradecer ao blico no final do filme, fica explícito que
esteve o tempo inteiro encenando.
31
O cinema conserva características que foram apropriadas com mais ênfase
pela televisão e pelo rádio, mediando uma relação social entre os indivíduos e
destes com o mundo, fazendo que o blico se identifique diretamente com o que
está vendo, pois a televisão oculta o mundo sob a imagem do mundo e o cinema
tem a mesma função, sendo mais propício o ambiente da sala de exibição, com sua
pouca luz e a grande tela, para a imersão total no ficcional.
Pertencente à geração do Cinema da Retomada
6
, o diretor de Memórias
Póstumas, ao contrário dos diretores do Cinema Novo e do Cinema Marginal,
“demonstra grande fidelidade às narrativas cinematográficas tradicionais,
esquemáticas e naturalistas, típicas do cinema norte-americano” (LEITE, 2005, p.
134), embora os cineastas brasileiros não manifestem interesse em produzir filmes
ao estilo hollywoodiano.
Sem compromisso com a continuidade de estéticas como o Cinema Novo e o
Cinema Marginal, as produções da fase da retomada “indicaram a ascensão da
tendência de um ciclo que se notabiliza pela pluralidade temática das produções,
voltadas, muitas vezes, para explorar os diferentes nichos do mercado exibidor”
(LEITE, 2005, p. 129-130). Os problemas sociais, tão trabalhados pelos
cinemanovistas, quando retratados, servem simplesmente de cenário para o
desenvolvimento de uma “narrativa melodramática”, pois, como explica Leite (2005,
p. 130), “abordar as chagas sociais do país agrega às produções recentes do
cinema nacional uma espécie de chancela de qualidade intelectual e artística”, cult,
na qual, em alguns casos, as mazelas sociais o transformadas em simples
entretenimento.
Ao falar sobre os efeitos de distanciamento na arte dramática, Brecht (2005, p.
75) explica ser o distanciamento utilizado em peças de dramática não-aristotélica,
pois não se fundamentam na empatia, com o objetivo de “se efetuar a representação
6
Até chegar a esse período, a partir de 1995, que, sob fortes contestações, recebe o nome de
Retomada, o cinema nacional passou por altos e baixos, mais baixos do que altos. Devido à abolição
das leis de incentivo à produção cinematográfica, juntamente com a extinção da Embrafilme (órgão
que regulava o repasse de verba para os diretores e produtores), durante o governo de Fernando
Collor no início dos anos 1990, a indústria cinematográfica brasileira passou por sérias crises,
deixando de produzir em larga escala, visto que estava fadada a concorrer com as grandes
produções norte-americanas sem qualquer protecionismo estatal. Contudo, a partir da Lei Rouanet,
elaborada e difundida desde os governos de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, e
juntamente com a Lei do Audiovisual, promulgada com o objetivo de aperfeiçoar a lei anterior, o
cinema nacional ‘renasce’, ressurge.
32
de tal modo que fosse impossível ao espectador meter-se na pele das personagens
da peça”. O teórico afirma ainda que “a aceitação ou a recusa das palavras ou das
ações das personagens devia efetuar-se no domínio do consciente do espectador, e
não, como até esse momento, no domínio do seu subconsciente”.
Percebemos na obra literária e na adaptação de Klotzel aspectos brechtianos,
não explícitos, como no filme de Bressane, mas sutis, através do metadiscurso do
narrador, isto é, do seu pensar sobre a criação artística, e da maneira como ele se
comporta, principalmente no filme, fazendo interrupções e comentários, chamando a
atenção dos leitores/espectadores para as artimanhas da ficção, não permitindo sua
imersão completa, visto que o efeito do distanciamento brechtiano não se apresenta
“sob uma forma despida de emoções, mas, sim, sob a forma de emoções bem
determinadas que não necessitam encobrir-se com as da personagem representada”
(BRECHT, 2005, p. 81).
Em Machado de Assis e em Klotzel observamos a preocupação com o público,
visto que seu defunto/autor/ator assume uma dupla postura, a de despertar o
leitor/espectador, utilizando a metadiscursividade, e a de narrar a história como se
fosse a própria câmera, por isso, ao mesmo tempo em que o desperta para o caráter
ficcional de suas Memórias, dá-lhe liberdade para imergir, conscientemente, nela.
Conforme dissemos, a preocupação com o público, que representa o paradoxo
identificação-estranhamento, com a compreensão e aceitação da produção
cinematográfica, está explícita na maneira como o diretor AndKlotzel apresenta o
filme: com um narrador guiando o espectador da mesma forma que o autor ficcional
faz com seus leitores na obra literária. Essa preocupação com a identificação do
público, nada brechtiana, também observamos através da escolha do ator para
interpretar a personagem principal, Reginaldo Farias, artista conhecido por seus
trabalhos no cinema, teatro e televisão. Dando à personagem um tom entre sério e
irônico de homem ao mesmo tempo respeitável e cínico, Reginaldo encarna Brás
Cubas, fazendo com que o espectador tome o defunto como real e,
consequentemente, sua história, submeta-se a ele, pois, como afirma Paulo Emílio
Sales Gomes (In: CANDIDO et al., 2004, p. 114), “os grandes atores ou atrizes
cinematográficos em última análise simbolizam e exprimem um sentimento coletivo”,
representam, a exemplo das personagens dos romances realistas, a sociedade
retratada na ficção em que estão inseridas.
33
A referida preocupação quanto à escolha do elenco é explicitada por Klotzel,
em entrevista a Beatriz Costa (2002), ao comentar sobre a presença de nomes
consagrados pela televisão em produções brasileiras:
Tento não ter preconceito com o ator, seja ele da TV ou não.
Gosto de poder ver os atores como atores, independentemente
do status que eles têm na produção e junto ao público. Agora,
existe uma outra necessidade, de ter alguns nomes em
determinados filmes. As pessoas conhecem mais os atores que
estão expostos. Procuro fazer o que acho melhor para o filme
mas tenho algumas obrigações a cumprir. Não mudo a escolha
se o ator for famoso mas não for o ideal. Agora, quando eu
encontro alguém que é conhecido e que acho que é ideal, eu
coloco imediatamente, não a menor dúvida. Eu preciso de
uma cota de atores famosos para os distribuidores. O diretor
vai comercializar seu filme, conseguir o dinheiro da publicidade
e as distribuidoras perguntam: qual é o elenco? Tenho que me
sujeitar a isso.
A citação é extensa, porém necessária para que compreendamos o
funcionamento da nossa indústria cinematográfica, na qual os profissionais têm de
submeter-se às exigências das distribuidoras para manter-se atuantes no mercado.
Pelas palavras de Klotzel fica clara a distinção entre seu cinema e o de Bressane,
visto que aquele produz filmes com características comerciais, visando atrair
espectadores para as salas de exibição, não importando se para isso tenha de dirigir
uma meia dúzia de artistas conhecidos do público, mesmo que não sejam os atores
ideais para o papel.
O diretor André Klotzel, ao comentar sobre o elenco e o patrocínio de seu filme,
revela o preconceito existente por parte do distribuidor e dos donos de salas de
exibição, os quais elegem as produções conforme o rol de artistas que dela
participam, mas esclarece que “não existe uma regra. Para Memórias Póstumas,
escolhi o elenco depois que tinha o dinheiro. As pessoas que dirigem às vezes se
sentem pressionadas, às vezes se iludem” (COSTA, 2002).
Ressaltamos a autoridade do diretor ao falar sobre o cinema brasileiro, visto
que preenche seu currículo com sucessos de crítica e público como A Marvada
34
Carne (1986), Capitalismo Selvagem (1994) e Memórias Póstumas (2001), após ter
trabalhado como técnico em longas-metragens, curtas, documentários e comerciais.
André Klotzel é sócio da produtora Superfilmes, que fundou com colegas em 1983, e
foi um discípulo de Paulo Emílio Sales Gomes, na Universidade de São Paulo
(USP), com quem compartilha certas visões sobre o estilo brasileiro de fazer cinema.
O defunto-ator construído por Klotzel se vale do jogo discursivo e
metadiscursivo para induzir o espectador a cair na armadilha do seu fingimento, por
meio do qual reproduz uma vida como se fosse a mais pura realidade, quando o
narrado não é mais que um simulacro, uma re-apresentação do mundo.
Esta recriação através de suas memórias deixa visível o quanto de invisível
aparece nas entrelinhas, visto que Brás expõe apenas os fatos que considera
relevantes, saltando, assim, acontecimentos que possam desmascará-lo, mostrando
o eterno fingidor que é. Fingidor, sim, e não mentiroso, pois o que depreendemos em
seu discurso é a falta de franqueza, evidente pela manipulação dos acontecimentos
narrados, o que é bem diferente de mentira
7
.
Ao afirmar que é franco Brás apenas despista a atenção do leitor/espectador,
que, supondo não ter um defunto motivos para mentir, se despe de suas
7
“O termo verdade, quando usado com referencia a obras de arte ou de ficção, tem significado
diverso. Designa com freqüência qualquer coisa como a genuinidade, sinceridade ou autenticidade
(termos que em geral visam à atitude subjetiva do autor); ou a verossimilhança, isto é, na expressão
de Aristóteles, a não adequação àquilo que aconteceu, mas àquilo que poderia ter acontecido; ou a
coerência interna no que tange ao mundo imaginário das personagens e situações miméticas; ou
mesmo a visão profunda de ordem filosófica, psicológica ou sociológica da realidade.”
(ROSENFELD; In: CÂNDIDO et al., 2004, p. 18)
Figura 2.1 – Brás Cubas (KLOTZEL, 2001)
35
desconfianças e passa a acreditar na sinceridade do narrador. Porém, podemos nos
indagar, Brás não é realmente medíocre? Assim sendo, não haveria motivos para
que ele mentisse ou fingisse, visto que a morte, como ele mesmo afirma, o deixa
livre para desvelar-se.
Talvez o espectador se espante com a franqueza com que
revelo minha mediocridade. Mas saibam que a franqueza é a
primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar das opiniões, a
diferença de interesses, a luta das condições, nos obrigam a
esconder, a disfarçar, a enganar aos outros, e a si mesmo. Mas
na morte, que diferença, que desabafo, que liberdade.
(KLOTZEL, 2001)
Contudo, tal franqueza anunciada nada mais é que uma licença para seguir
com a postura ratificada pelo status quo: seguir com a franqueza protocolada, a
liberdade vigiada que a todo momento sente-se olhada e analisada.
Não se preocupe, caro espectador. Não mancharei esta história
com sangue. Eu tinha muita vontade de estrangular o Lobo
Neves, mas isso é muito diferente de fazê-lo. (grifo nosso)
(KLOTZEL, 2001)
O filme de André Klotzel é bem diferente da produção de Bressane, pois o
diretor, produtor, roteirista e montador de Memórias Póstumas preocupa-se com a
recepção de sua produção levando em conta que a fabricação dos signos obedece à
lógica do modo de produção capitalista, baseada na exploração do trabalho e na
criação de mercadorias. O consumo ou a recepção – desses signos também
obedece à lógica do mercado. Bressane se recusa a obedecer a essa exigência
mercadológica; por isso, e também pela estética adotada, sua produção apresenta
imagens fora de enquadramento, cenas à la Brecht, entre outras manifestações.
Klotzel decide por uma produção com caráter ilusionista, que agrade ao público em
geral, na qual as ações desenrolam-se como se o narrador estivesse numa
constante encenação, olhando diretamente para a câmera ao falar com o
espectador. Tal encenação pode ser percebida através dos gestos e olhares feitos
36
pelo defunto-ator e pelo agradecimento final, reverenciando os espectadores, como
se estivesse num palco teatral e terminasse sua apresentação.
Livro e filmes apresentados, percorramos suas labirínticas teias discursivas a
fim de identificar e compreender como o narrador constrói a personagem Brás
Cubas por meio de seu discurso e metadiscurso, como os diretores transmutaram
esses recursos construtivos, e de quais técnicas se valem para a construção da
personagem cinematográfica Brás Cubas.
37
3. O Narrador
Em verdade, o que um filme, um romance
ou uma peça me oferecem é a trama, pois
não posso me relacionar senão com a
disposição do relato tal como ele me é
dado. E é a partir daquilo que me oferece
a trama – que deduzo a fábula, que refaço a
vida das personagens em minha cabeça. E
não o contrário. Narrar é tramar, tecer.
Ismail Xavier (2003)
Nos estudos de obras literárias dois aspectos são abordados com maior
freqüência e ênfase, o narrador e a personagem, que podem ser fundidos, como em
Memórias Póstumas de Brás Cubas, num narrador-personagem. Esses aspectos
norteiam a leitura e compreensão do texto, fazendo que o leitor possa apoiar-se
neles como fio condutor do desenrolar da narrativa.
Desde os primórdios da humanidade cultiva-se o hábito de contar histórias.
Seja de forma oral, escrita ou imagética, sempre houve alguém que detivesse um
conhecimento diferenciado e dominasse a arte de envolver o blico que ouve ou
o que está sendo narrado. em quem narra uma espécie de instinto de
Sherazade, sempre a contar tramas e enredos, a querer envolver o outro com mil e
tantos fatos precedidos por era uma vez.
Para Leite (1989, p. 6), “quem narra, narra o que viu, o que viveu, o que
testemunhou, mas também o que imaginou, o que sonhou, o que desejou”. Desta
maneira, narração e ficção surgem ao mesmo tempo e se unem com o fim comum
de relatar fatos.
com as epopéias, a cultura da narrativa ganhou ênfase. Nelas, para contar
as trajetórias de grandes nações, deuses e bravos guerreiros, o narrador mantém
uma visão distanciada do mundo, servindo de “mediador entre as musas e os seus
ouvintes”. Um traço essencial desse gênero é o fato de seu objeto não ser um
destino pessoal, mas o de uma comunidade, os feitos do herói elevam ou rebaixam
toda uma sociedade por ele representada.
38
As narrativas vão se modificando e o verso passa à prosa, surge o romance,
considerado por Lukács (2000, p. 71) “a forma da virilidade madura, em
contraposição à puerilidade normativa da epopéia”, na qual “a completude de seu
mundo, sob a perspectiva objetiva, é uma imperfeição, e em termos da experiência
subjetiva uma resignação”. O romance permite que o autor ficcionalize seus escritos
sem preocupação com a realidade histórica, visto que ele não se preocupa mais em
enaltecer heróis, deuses, povos, mas criar uma atmosfera mágica que alimente o
imaginário dos leitores.
É a partir do século XVII, com a estética barroca, que o romance prolifera e
ganha a devida importância. Caracterizado “pela imaginação exuberante, pela
abundância de situações e aventuras excepcionais e inverossímeis” (SILVA, 1974, p.
12), o romance agrada ao público leitor, conseguindo sua consagração como
narrativa literária. Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, é o marco
dessa ascensão, pois se acreditava, até então, que o romance seria uma produção
inferior por ter a função de entreter, principalmente o público feminino.
Neste ínterim, ocorrem modificações tanto na maneira de criar e transmitir
quanto na recepção da narrativa, visto que a figura do contador de histórias o
narrador não mais se pode valer de recursos e aspectos não-verbais, tais como
gestos e expressões faciais, traços que acompanhavam a narrativa oral. Os leitores
ganham participação mais ativa no processo narrativo, uma vez que em suas
mentes é que a história se desenvolve, eles passam a fazer inferências a partir de
brechas deixadas pelo narrador ao longo do texto, interpretando-o.
A técnica de ilusão dentro do romance, como se esse fosse um palco teatral à
la Brecht, defendida por Adorno (2003, p. 60), afirma a subjetividade apresentada
pelo narrador, pois não existe um fato acabado a ser exposto, mas a sua construção
perante o público. O que importa aqui não é mais o apego à realidade; trata-se de
convencer o leitor, de fazê-lo crer na verdade criada pelo narrador na tessitura do
texto que ele, leitor, tem em mãos. Assim sendo, o narrador acaba por conseguir
dizer o quase impossível, como expressa o escritor português Fernando Pessoa
(2005):
39
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
Esse é o mesmo “fingimento” de que se vale o narrador de um texto em
prosa, como o romance, com o intuito de levar aos seus leitores a crença na verdade
do que ali está sendo dito, dar-lhe verossimilhança para proporcionar a sua
identificação com o texto. Acreditava-se que a narrativa de um romance deveria ser
uma cópia da realidade, motivo pelo qual se tem durante um longo período textos
literários com descrições exageradas de detalhes com o propósito de compor
inteiramente o universo apresentado ao leitor.
Esta exigência pela necessidade de um retrato fiel da realidade não mais
existirá no romance contemporâneo, pois “é comum nos grandes romancistas dessa
época que a velha exigência romanesca do ‘é assim’, pensada até o limite,
desencadeie uma série de proto-imagens históricas” (ADORNO, 2003, p. 62),
levando-o a pensar nas imagens primeiras pertencentes à trajetória de um povo.
Embora tenha se consolidado como gênero literário, o romance, assim como
os demais gêneros, sofreu modificações e adaptações ao longo do tempo, as quais
foram ocorrendo de acordo com a exigência dos leitores, do mercado editorial e dos
próprios autores das obras. Modifica-se a estrutura dos romances, seus temas e, por
conseguinte, a forma como são narrados:
No decorrer da HISTÓRIA, porém, as HISTÓRIAS narradas
pelos homens foram-se complicando, e o NARRADOR foi
mesmo progressivamente se ocultando, ou atrás de outros
narradores, ou atrás dos fatos narrados, que parecem cada vez
mais, com o desenvolvimento do romance, narrarem-se a si
próprios; ou, mais recentemente, atrás de uma voz que nos
fala, velando e desvelando, ao mesmo tempo, narrador e
personagem, numa fusão que, se os apresenta diretamente ao
leitor, também os distancia, enquanto os dilui.
(LEITE, 1989, p. 6)
40
Observando tais modificações, e até evoluções, pelas quais passaram as
narrativas, em especial o romance, verificaremos a seguir como se apresenta o
narrador machadiano, visto que em Memórias Póstumas de Brás Cubas trata-se de
um defunto-autor (e não de um autor-defunto) instaurando um discurso
caracteristicamente verossimilhante, visando a emaranhar o leitor em suas teias.
Ademais, pontuaremos como os diretores das adaptações fílmicas trabalharam com
o citado discurso, transmutando-o.
3.1. BRÁS CUBAS: CONTANDO UM CONTO...
O problema de mentir é que isso vai
depender de o mentiroso ter uma clara
noção da verdade a ser escondida. Nesse
sentido, a verdade, mesmo aquela que não
aparece em público, tem uma primazia
sobre toda falsidade.
Hannah Arendt
A figura do narrador é de suma importância dentro de uma obra literária,
independentemente do modo como aparece no texto, haja vista a sua tarefa de
apresentar tanto o enredo quanto as personagens que participam da trama. Castro
(2002, p. 57-58), ao falar sobre a importância do narrador ressalta que, “como
princípio, o narrador é o que a função das partes no todo que é a obra”, é aquele
que, “através do seu agir (narrar), origem a um objeto, no caso, a obra, tendo
esta como matéria de sua construção a Linguagem”. Por esse motivo e por meio
dessa Linguagem se estabelece um ‘pacto’ de confiança entre narrador e leitores, de
modo que creiam no que lhes está sendo mostrado, não cabendo um
questionamento sobre a veracidade dos fatos ali presentes. O texto literário traz
consigo exigências para com seus receptores, regidas por regras próprias
estabelecidas por texto e leitores, resguardando a ambos no processo de leitura: à
narrativa assegura seu papel de ficção literária, e aos leitores o direito ao deleite e à
sublimação da realidade cotidiana.
41
A relação entre narrador e personagem é indissociável, visto que é por meio
da voz que narra que tomamos conhecimento dos indivíduos atuantes numa história.
Essa voz pode nos apresentar as personagens de duas formas: direta, pela
caracterização feita na narrativa; ou indireta, através de inferências permitidas pelos
significados implícitos e pelas interferências do próprio narrador.
O narrador, que constrói a imagem das personagens, e da trama em geral,
leva os leitores a conhecê-las sob sua ótica, pois, como observa Brait (2004, p. 64),
em Memórias Póstumas de Brás Cubas,
O narrador, de forma discreta, vai criando um clima de empatia,
apresentando a personagem principal de maneira convincente
e levando o leitor a enxergar, por um prisma ao mesmo tempo
discreto e fascinado, a figura do protagonista.
O narrador-defunto, resolvendo aproveitar a ociosidade propiciada pela
eternidade para escrever sua autobiografia, trabalha o discurso de maneira irregular,
indo e voltando, uma vez que não existe continuidade linear em seu texto; tece uma
parte da história, caminha um pouco mais e retorna para preencher alguma lacuna
deixada no momento em que narrava o episódio.
Eis que Brás Cubas, o narrador, começa a construção de sua teia desde o
prólogo do livro, assumindo, assim, a posição de autor ficcional, distinguindo as
posições ocupadas por ele e por Machado de Assis na obra literária, ‘ganha vida’ e
apresenta comentários metadiscursivos sobre sua criação artística:
Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da
melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse
conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas
aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não
achará nele o seu romance usual; [...] Mas eu ainda espero
angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a
um prólogo explícito e longo. [...] Conseguintemente, evito
contar o processo extraordinário que empreguei na construção
destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo.
(ASSIS, 1997, p. 16)
42
Suas memórias estão permeadas de lembranças, as quais, por conta do
tempo, podem se apresentar enevoadas fazendo com que as experiências
vivenciadas não sejam expostas por completo, auxiliando na manipulação do leitor,
afinal, conforme Bournneuf & Ouellet (1976, p. 248-249), o narrador ao fazer um
relato de suas experiências pode interrompê-lo ainda incompleto ou simplesmente
esconder alguma parte importante de sua trajetória.
O relato do defunto-autor não merece total credibilidade, pois além da
manipulação do discurso a seu favor, somente ele “tem o comando de todas as suas
idéias e pode juntá-las, misturá-las e variá-las de toda maneira possível. Pode
conceber objetos fictícios com todas as circunstâncias” (GASS, 1971, p. 48). Através
dessa manipulação, Brás vai tecendo sua teia de palavras bem estudadas e
empregadas, conduzindo o leitor a trilhar o caminho indicado por seu fio e, assim,
acreditar na sua história.
Forster (1969, p. 23) explica que “a base de um romance é uma estória, e a
estória é uma narrativa de acontecimentos dispostos em seqüência no tempo”, no
romance moderno esta linha temporal pode aparecer meio tortuosa, com avanços,
voltas ou paradas, como na obra machadiana em questão, em que o narrador joga
com o leitor deixando-o zonzo com as idas e vindas no tempo, as quais Genette
(1979) denomina anacronias: prolepses e analepses.
No tocante ao romance moderno, ressaltamos uma recusa da perfeita
representação da realidade, e a ruptura com a forma é fator preponderante para a
atribuição de significado, como observamos na obra analisada que traz, fugindo dos
padrões clássicos, capítulos curtos, em formatos variados, escritos numa linguagem
por vezes imagética e lacunar. Ocorre uma desintegração da articulação da vida e
da identidade da experiência que, conforme defende Adorno (2003, p. 56), “só a
postura do narrador permite”. Essa postura assumida pelo narrador moderno é o
retrato de uma sociedade em que o indivíduo está fragmentado e busca se colocar
diante do mundo, reafirmar o seu papel diante da sociedade, que para o defunto era
a sociedade das aparências.
Por se tratar de um defunto-autor, que passa toda a obra dialogando com o
leitor, mostrando que não mais existe a obrigação com a realidade, mas um pacto de
cumplicidade com seus ‘possíveis’ receptores, Brás Cubas apresenta a postura do
narrador moderno, buscando localizar-se na narração e deixando transparecer, por
43
meio da metadiscursividade, todas as reflexões sobre o ato criativo, sobre a
composição do texto.
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo
princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu
nascimento ou a minha morte. [...] Dito isto, expirei às duas
horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869,
na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e
quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de
trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze
amigos.
(ASSIS, 1997, p. 17)
Para as relações entre narrador e personagem, Jean Pouillon (LEITE, 1989,
p. 19-21), entendendo que a narração depende de onde o narrador está situado no
momento em que cria o seu texto, propõe a existência de três possibilidades: a visão
com a personagem, a visão por trás da personagem e a visão de fora da narrativa.
Na visão por trás, o narrador conhece a vida da personagem, inclusive seu futuro; é
o que se chama normalmente de narrador onisciente, pois sabe o que dizem,
pensam e fazem suas criaturas, esse é o narrador que mais conhece a história e,
conseqüentemente, as suas personagens. Na visão com, o narrador não mais
assume a postura de um deus que tudo sabe e vê, mas “limita-se ao saber da
própria personagem sobre si mesma e sobre os acontecimentos”, ele não conhece
mais nem menos, mas igual às criaturas do seu texto. Já na visão de fora, o narrador
não conhece os sentimentos e intenções da própria personagem, relata apenas o
observado, revelando conhecer menos que as criaturas da narrativa.
Por se tratar de uma obra literária o rica e densa, cheia de detalhes que se
o leitor não estiver atento podem passar despercebidos, caracterizaremos Memórias
Póstumas de Brás Cubas, segundo a classificação de Pouillon, na visão com, pois o
narrador sabe somente o que presenciou ou o que lhe foi relatado, apesar de, em
algumas passagens, demonstrar um conhecimento mais amplo e profundo de suas
personagens e da história, como se possuísse certa onisciência. Embora esteja
contando o vivido, o defunto-autor, aparentemente, não conhece mais do que o visto
ou ouvido, com o agravante de que o relatado faz parte de sua memória e, por isso,
44
o leitor deve desconfiar da fidelidade desta narrativa, pois as lembranças de Brás
Cubas podem estar permeadas de interrogações, espaços turvos e brancos,
preenchidos pela imaginação. Ao declarar ser um defunto-autor Brás Cubas sugere
possuir certa onisciência para falar sobre os acontecimentos e mesmo sobre o
pensamento de algumas personagens, a qual é bem limitada, visto que está
condicionada à sua situação de defunto que sabe como aconteceram os fatos em
sua vida.
A visão com, “é típico de certa linha de romances do século XX, em primeira
pessoa, que usam monólogo interior
8
e o fluxo de consciência” (LEFEBVE, apud
LEITE, 1989, p. 21), contudo Memórias Póstumas de Brás Cubas foi escrito ainda no
século XIX, antecipando, ou inaugurando, características dos romances modernos, e
que acreditamos ser um dos motivos pelos quais Machado de Assis é tão difundido e
lido até os dias atuais. São características que deixam o escrito “mais galante e mais
novo” (ASSIS, 1997, p.17).
Considerando os quatro tipos fundamentais de estatuto do narrador descritos
por Genette (1979, p. 247), extradiegético-heterodiegético, extradiegético-
homodiegético, intradiegético-heterodiegético e intradiegético-homodiegético,
podemos classificar o narrador Brás Cubas como extradiegético-homodiegético,
visto que conta sua própria história, faz sua autobiografia, ou seja, se apresenta
como personagem e ativo participante da história que narra.
E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim
que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet,
sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado
e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e
aborrecido.
(ASSIS, 1997, p. 17)
Para Prado (In: CÂNDIDO et al., 2004, 86), Brás Cubas é um narrador “dos
mais petulantes e impertinentes que se conhece”, pois teima em permanecer em
8
Para Ricardo Sérgio (2007), “o monólogo interior é uma técnica literária que trata de reproduzir os
mecanismos do pensamento no texto. Caracteriza-se por transcorrer na mente da personagem, como
se o “eu” falasse a si próprio. Daí considerar-se o monólogo interior, um diálogo; visto que
subentende a presença de um interlocutor, “o tu” (com quem se fala), ou seja, ‘o outro’”.
45
primeiro plano na narração, não permitindo, assim, o destaque nem da história, nem
da personagem. A personagem ganha relevância, principalmente, por ser o próprio
narrador e devido o estilo em que as Memórias são narradas, com a não-linearidade,
o metadiscurso e a sugestão de uma constante crítica a suas atitudes.
O narrador tanto participa da narrativa como permite, aparentemente, que os
leitores também tomem decisões com relação ao andamento e à leitura da obra,
contudo, ao dar essa autonomia a seu narratário, ao contrário do que se poderia à
primeira vista pensar, prende cada vez mais o leitor nas teias do seu discurso, pois
trabalha com os capítulos e a linguagem de modo a induzir o leitor a conhecer o
relato na íntegra, a aceitar seu simulacro.
3.2. O EU É O OUTRO: O SIMULACRO BRÁS CUBAS
Cada espelho, como ilusão de meu ser
redobrado, remete à morte, quer dizer, à
imagem de meu ser mortal, jamais o mesmo
ou nunca mais o mesmo.
Bavcar (2005)
3.2.1. A Re-criação Ficcional
A eterna sucessão de imitações, de criações e recriações da realidade,
constitui a vida. A realidade dela está simplesmente em se perceber que tudo nada
mais é que uma imagem, a virtualidade de uma possível existência, simulacro.
Em sua Alegoria da Caverna, Platão (2004, p. 210-238) coloca como
alienados os que estão mergulhados no mundo sensível, os quais o fazem
distinção entre realidade e virtualidade. Os seres platônicos viam apenas imagens
de um mundo desconhecido, sem apresentar um referencial aos que ali se
encontravam para que pudessem reconhecê-lo, tornando-se, assim, um mistério
aterrorizante.
46
Desta mesma forma ocorre com alguns leitores ou espectadores que, ao se
permitirem seduzir pela simulação da vida trazida pelas imagens, verbais ou visuais,
deixam de lado seu olhar crítico e passam a vivenciar o que lhes foi apresentado por
meio do simulacro, possibilitando, assim, que as artes, em especial, a literatura e o
cinema se aproveitem dessa circunstância, dessa inclinação, para fazer o leitor/
espectador imergir completamente na ficção. Porém, mergulhar na ficção é deixar-se
levar através da ilusão criada pela sensibilidade, é crer que não somente a arte imita
a vida, mas que a vida é puramente a imitação da arte.
A palavra imagem está relacionada à vontade de produzir algo. Produzir é
representar e, por sua vez, representar é apresentar de novo o mesmo, o que
percebemos tanto nas obras literárias, por meio da linguagem verbal, quanto nas
produções cinematográficas, pelas linguagens verbal e não-verbal. É essa tentativa
de representar, de recriar imagens, que faz com que o receptor de um livro ou de um
filme mergulhe num mundo de eternos simulacros, de representações de
representações.
Vale ressaltar que o termo imagem aqui utilizado deve ser entendido num
contexto amplo que engloba a criação e apresentação imagética verbal e não-verbal,
considerando o pensamento cartesiano de que para dar conta da percepção é
necessário ultrapassar a dimensão dos conteúdos visuais.
Buscando uma imagem dentro de outra, os historiadores da arte tentam
desvendar os sentidos dos sentidos, sabendo que a obra de arte deve ser vista
como re-apresentação da realidade, assim como as imagens vistas do interior da
Caverna de Platão. Essa re-apresentação também aparece quando se fala tanto da
ficção literária quanto da cinematográfica, pois, a ficção é a imagem da imagem da
realidade: simulacro
9
.
Com uma rápida reflexão sobre a idéia de simulacro, Deleuze (1974, p.2)
ressalta que o “puro devir, o ilimitado, é a matéria do simulacro, na medida em que
se furta à ação da Idéia, na medida em que contesta ao mesmo tempo tanto o
modelo como a cópia”. Ao trazer à tona reflexões acerca de Idéia, Modelo, Cópia,
Deleuze retoma e compartilha do pensamento sofista, visto que, para Platão o
mundo das Idéias é o único completo e possuidor de perfeição, pois ao sair dele e
9
Do latim simil, cópia, simulacro é o termo utilizado para designar a cópia da realidade, o re-
apresentado, o re-criado.
47
virar cópia a imagem poderá apresentar semelhança, mas nunca será a mesma. Por
essa aproximação com a Idéia e, ao mesmo tempo, essa dessemelhança, Platão
denomina essas imagens de simulacros, que, para ele, as cópias são
semelhantes a seus modelos.
Conforme Deleuze (1974, p. 264), o simulacro para os sofistas: 1) implica
grandes dimensões, profundidades e distancias que o observador não pode dominar
e, por isso, experimenta uma impressão de semelhança; 2) inclui em si o ponto de
vista referencial, no qual o observador faz parte do próprio simulacro, que se
transforma e se deforma de acordo com seu ponto de vista; 3) “há nele um devir-
louco, um devir sempre outro, subversivo das profundidades, hábil a esquivar o
igual, o limite, o mesmo ou o Semelhante”. Baseado nestes pontos começamos a
identificar os simulacros nos filmes Brás Cubas e Memórias stumas e no
romance, pois, embora aparentem aproximar-se do leitor/espectador, estas obras o
mantêm distanciado o suficiente para que o simulacro presente não seja facilmente
percebido, para tanto, utiliza-se o ponto de vista referencial. A adaptação de Júlio
Bressane demonstra bem esse “devir-louco”, subversivo, apontado por Deleuze, pois
o diretor está sempre surpreendendo com suas inovações, as quais muitas vezes
ultrapassam o âmbito do cinematográfico e dialogam com outras artes.
As contribuições de Deleuze para o estudo do simulacro são pontuais,
restringindo-se, em sua maior parte, a um apanhado das considerações de Platão e
Lucrécio sobre o assunto, razão por que optamos pelos conceitos
desenvolvidos/expostos por Baudrillard.
Iniciando pelo conceito de simulação, caracterizado como “a geração pelos
modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-real”, Jean Baudrillard (1991)
mostra como a imagem vai atravessando sucessivas fases, desde se apresentar
como o reflexo de uma realidade, mascarar e deformar esta realidade, mascarar a
ausência do real, até chegar ao ponto de não ter nenhuma relação com ele.
Sem relação com a realidade a imagem se torna um simulacro puro. A partir
dessas noções, entendemos simulacro como um movimento constante e contínuo de
produção de imagens, que são representações de outras representações. O próprio
homem pode ser considerado um simulacro, devido às simulações criadas durante o
cotidiano. Para Deleuze (1974, p. 268 269) a simulação “designa a potência para
48
produzir um efeito”, apresenta-se como máscara, revelando existir sempre outra por
trás, levando-nos a pensar no palimpsesto.
O mundo é formado por vários simulacros, as próprias pessoas são
simulacros, pois vivem num constante representar, buscando se recriar. Usando
máscaras, são atores sociais que, no palco, nas telas, nas páginas do livro ou na
vida, atuam conforme cada situação. Vive-se num círculo de representações de
representações, onde não se consegue distinguir até que ponto é realidade ou
simulação dela. O simulacro, segundo Oliveira (2003, p. 34), “desvela a
fantasmagoria, que sustenta a verdade, mostrando que a máscara é a condição de
existência de todas as coisas e que a realidade é vivida como ficção”.
Literatura e cinema não devem nem aspiram a ter público de alienados, que
não reflitam sobre o que lhes é apresentado, visto que sem a reflexão fica
comprometida a compreensão e a distinção do que é simulacro e do que é
realidade. Contudo, utilizam-se do que Wolfe (2005, p. 18) chama de ilusão
imaginária, “a crença de que as imagens não são imagens, que elas são produzidas
por aquilo que elas reproduzem”, a vida. As imagens são a simulação do que estão
reproduzindo. Essa ilusão imaginária faz com que ao entrar em contato com uma
história, seja ela literária ou fílmica, o receptor se permita envolver como se todas as
imagens ali presentes fossem reais.
Genette (1979, p. 182), falando sobre o romance moderno, seu narrador e
suas personagens, mostra como o discurso estilizado é elaborado de forma a
transmitir ao leitor uma idéia de realidade. O mesmo acontece com o discurso
cinematográfico:
O discurso ‘estilizado’ é a forma extrema da mímese do
discurso, em que o autor ‘imita’ a sua personagem não
somente no tecido dos dizeres, como também nessa
literalidade hiperbólica que é a do pastiche, sempre um pouco
mais idiolectal que o texto autêntico, como a ‘imitação’ é
sempre uma paródia por acumulação e acentuação de traços
específicos.
49
A imitação - que equivale ao conceito de simulação enunciado por Baudrillard
- é considerada por Genette como paródia, por ser esta re-apresentação do discurso
primeiro, do texto autêntico.
O termo paródia é utilizado por Linda Hutcheon, em seu livro A Teoria da
Paródia (1985), para designar a recriação de uma obra, modificação de um texto
existente, podendo ter um caráter irônico ou humorístico. Pode ser a simples re-
apresentação de um mesmo discurso, seja ele verbal ou visual.
Após esta explanação, percebemos que a terminologia, no que diz respeito à
representação e recriação, diverge conforme o teórico, porém, a essência do
conceito continua a mesma, tratando-se apenas de uma questão de nomenclatura.
Observamos que, como dissemos anteriormente, Deleuze compartilha da idéia de
simulacro dos sofistas, com a qual Baudrillard trava um diálogo, desenvolvendo seus
conceitos e adequando-os à modernidade. O presente estudo adota o termo
simulacro na acepção que lhe confere Baudrillard, visto que o teórico a partir das
considerações sofistas moderniza o conceito de simulacro e simulação, deixando-os,
desta forma, mais flexíveis para a análise das artes em geral.
A tradução de obras literárias para as telas mostra como a imagem necessita
da percepção dos seus receptores para ser compreendida, visto que uma obra
literária ou fílmica pode ser produzida utilizando várias imagens ou seqüências de
imagens para conseguir o efeito desejado em seu público, porém esse retorno
somente virá se os leitores/espectadores tiverem os conhecimentos prévios
necessários à apreciação da obra, compartilhando do mesmo código. Podemos
notar a necessidade de pré-conhecimento sobre a matéria tratada no texto (aqui em
seu sentido lato), por parte do público, nas artes em geral.
A análise ora proposta tem como finalidade verificar, no texto literário e nos
textos fílmicos, como o narrador Brás Cubas formula seu discurso e, por
conseguinte, seu metadiscurso, de maneira a gerar imagens de si como personagem
e transmitir uma confiabilidade que gera no leitor/espectador o efeito de
verossimilhança em relação ao exposto, quando ele não passa de uma simulação da
realidade, simulacro.
50
3.2.2. Como se fosse Brás
Perceber é conceber, portanto ao percebermos uma imagem a concebemos,
a compreendemos, daí as várias interpretações possíveis de uma mesma obra ou
objeto, pois tudo dependerá do sujeito que está diante da imagem por ele gerada.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas a compreensão das imagens não se
de maneira tão simples, como podemos a priori imaginar, considerando que as
particularidades desta obra se apresentam desde o autor ficcional, chegando à
estrutura da própria narrativa, essas particularidades se congregam, se utilizam da
ilusão imaginária para seduzir e serem vistas como realidade e não representação
dela.
Brás Cubas, cansado de viver na eternidade do além-vida, decide escrever
sua autobiografia, seu livro de memórias, o que seria uma decisão absolutamente
normal se não fosse pelo fato de ser ele um defunto, como se auto-intitula e faz
questão de frisar, um defunto-autor e não um autor-defunto.
Toda a estrutura da narrativa, incluindo os comentários metadiscursivos feitos
pelo narrador, é organizada dentro de um discurso que se propõe simular a
realidade, aprisionando o leitor numa teia de simulacros chamada Brás.
Genette (1979, p.171), afirma que a mímese do discurso, ou seja, a diluição
das marcas da instância narrativa, “dando logo à primeira a palavra à personagem”
foi “uma das grandes vias de emancipação do romance moderno”. Em Memórias
Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis leva essa emancipação ao extremo,
fazendo que o narrador, aparentemente, ocupe o posto de autor da obra, por meio
de um jogo constante de simulações e de uma narração em primeira pessoa. Assim,
se observarmos as considerações de Genette, a obra literária em questão ganha sua
emancipação como romance moderno ao ter como autor ficcional o próprio narrador,
uma instância narrativa criada por Machado de Assis.
Logo no início do livro, dilui-se a distinção ou dualidade entre autor e narrador,
- aentão claramente definida dentro da narrativa romanesca, para em seguida
estabelecer-se a posição ocupada por cada um. Na capa da obra o escritor se
apresenta como Machado de Assis, já a dedicatória é feita pelo defunto, autor
ficcional das memórias, de forma a construir bases sólidas, reforçadas pela
51
recorrência à metadiscursividade, para que seu discurso seja tomado como verdade
e não como simulação desta:
AO VERME
QUE
PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES
DO MEU CADÁVER
DEDICO COMO SAUDOSA LEMBRANÇA
ESTAS
MEMÓRIAS PÓSTUMAS
(ASSIS, 1997)
A mesma dedicatória, remetendo a uma lápide de cemitério, apresentada no
filme de André Klotzel, referencia a obra transmutada e voz, assim como no livro,
ao discurso do defunto-autor Brás Cubas.
A adaptação inicia com o defunto, identificado pela maquiagem e seqüência
das cenas, assistindo e comentando seu próprio sepultamento, fato esclarecedor
sobre o narrador da história.
O prólogo, feito por Brás, se dirige diretamente ao público. Sob o título de ‘Ao
Leitor’, o autor ficcional adverte aos possíveis leitores da obra sobre o que poderão
encontrar nas linhas seguintes. Mais uma vez o discurso é elaborado para persuadir
o leitor a dar credibilidade ao assunto do texto em questão, bem como usar o fato de
ser a obra escrita por um defunto a atração principal. Percebemos que Brás
Figura 3.1
Dedicatória (KLOTZEL, 2001)
52
empenha toda sua retórica para prender o receptor nas armadilhas da sua ficção,
como se o apresentado ali fosse a pura realidade:
Obra de finado. [...] Mas eu ainda espero angariar as simpatias
da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e
longo. [...] Conseguintemente, evito contar o processo
extraordinário que empreguei na construção destas Memórias,
trabalhadas cá no outro mundo. (grifo nosso)
(ASSIS, 1997, p. 16)
Essa simpatia encontramos no defunto-ator de Klotzel, visto que se vale do
humor como forma de aproximação com o espectador. O narrador do filme age de
modo a criar familiaridade e conduzir pela mão os que se propõem a aceitar o seu
simulacro.
Na obra literária Brás Cubas assina o prólogo de suas Memórias, o título da
produção cinematográfica de Klotzel aparece com a assinatura, em letras cursivas,
da personagem principal.
A dedicatória da adaptação de Júlio Bressane é feita por meio dos créditos
finais, que aparecem em forma de caminhos deixados pelos vermes, aos quais as
memórias são dedicadas, na terra.
Figura 3.2
Título assinado pelo autor ficcional
(KLOTZEL, 2001)
53
Embora conheça presente, passado e futuro, desde os primórdios do
universo, pois em seu delírio a Natureza, ou Pandora, mostra-lhe toda a trajetória do
planeta e pela sua própria condição de defunto, que o dotaria de onisciência, Brás,
algumas vezes faz comentários visando a afirmar a veracidade de seu relato,
dizendo que tudo o que sabe ou é recordação de algo vivido ou é o que lhe foi
contado, afinal, o delírio pode não ter passado de simples imaginação. Ao expor este
detalhe afirma indiretamente que sua narrativa é apenas uma re-apresentação de
algo que lhe foi apresentado, que está criando imagens a partir de imagens, em
resumo, que sua vida é uma imagem, uma lembrança, como por exemplo, no
capítulo X - ‘Naquele Dia’ - em que fala das circunstâncias do seu nascimento e da
festa de seu batizado:
Digo essas coisas por alto, segundo as ouvi narrar anos
depois; ignoro a mor parte dos pormenores daquele famoso
dia. [...] Não posso dizer nada do meu batizado, porque nada
me referiram a tal respeito, a não ser que foi uma das mais
galhardas festas do ano seguinte, 1806.
(ASSIS, 1997, p. 31)
No capítulo XXIV, ‘Curto, mas alegre’, ao tecer comentários sobre as
diferenças entre a vida e a morte, principalmente as diferenças sociais, o narrador
revela o simulacro em que o ser humano deve se converter para ser aceito e
Figura 3.3
Créditos Finais (BRESSANE, 1985)
54
lisonjeado dentro da sociedade. Brás Cubas, agora morto, percebe a liberdade de
ser ele mesmo e não precisar representar, seguir convenções, para justificar sua
posição, percebe o quão prazeroso é deixar, aparentemente, de ser um ator.
Aparentemente, visto que durante todo o livro ele atua e mascara a realidade,
simulando-a para o leitor, simulação que aparece no filme de Klotzel por meio da
narrativa direta, a qual utiliza as mesmas palavras do livro:
Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e
realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a
primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o
contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a
calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a
não estender ao mundo as revelações que faz à consciência;
[...] Mas na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade!
Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as
lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se,
confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque,
em suma, não vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem
conhecidos, nem estranhos; não há platéia. (grifo nosso)
(ASSIS, 1997, p. 55)
Notemos que desde o início de sua narrativa Brás, literário e fílmico, trabalha
com o discurso demonstrando e tentando dar provas ao leitor de que seu relato é
ratificado pela franqueza dos mortos, criando uma imagem de defunto sincero,
ganhando a confiança dos desconfiados, para que sua história seja tomada como
real e verdadeira, quando não passa de ilusionismo.
Interessante percebermos como a seqüência narrativa da obra literária foi
transposta para os filmes, pois os diretores optaram por, assim como Brás faz no
livro, explicitar a seleção dos fatos mais relevantes da vida do defunto,
demonstrando ter havido cortes e montagem no apresentado ao leitor/espectador.
Podemos identificar, na adaptação de Bressane, os trechos retratados devido às
palavras-chave usadas pelas personagens, principalmente Brás Cubas, que podem
remeter tanto ao assunto como ao título do capítulo, como quando Luis Fernando
Guimarães tem o rosto enquadrado, em close, e fala, pausadamente: “Por que não
fui ministro de estado...”, frase que intitula um dos capítulos do livro. Na adaptação
55
de Klotzel essa referência aparece mais sutil, sem o tom apelativo de Bressane,
dentro das falas das personagens ou pelas imagens, como no episódio em que Lobo
Neves não aceita a nomeação devido ao decreto ser de número 13. Coincidência ou
não o mesmo episódio é retratado imageticamente pelas duas adaptações.
O decreto é o número 13 do dia 13, e isso me traz uma
recordação fúnebre. Meu pai morreu no dia 13, às 13 horas, 13
dias depois de um jantar em que havia 13 pessoas. Minha mãe
morreu no parto do 13º filho, numa casa que tinha o número
13, este filho morreu aos 13 anos. Mas isto é segredo.
Ninguém pode saber o motivo da minha recusa.
(KLOTZEL, 2001)
Figura 3.4
Página do jornal em que é publicada a
nomeação de Lobo Neves (KLOTZEL, 2001)
Figura 3.5
Caderneta com a data da nomeação de Lobo
Neves (BRESSANE, 1985)
56
Minha nomeação e a do Brás vai sair no dia treze, mas não vou
poder aceitar. Meu pai morreu no dia treze, quinze dias depois
de um jantar que tinha treze pessoas, a casa em que morreu
minha mãe era treze. É um algarismo fatídico.
(BRESSANE, 1985)
Notemos a quebra da verossimilhança existente no filme Brás Cubas, pois
como uma trama passada no século XIX poderia ter uma anotação numa caderneta
com espiral metálico? Mais uma vez Bressane sacode o espectador, defrontando-o
com a realidade, quebrando o mergulho no simulacro mostrado na tela.
Construindo sua narrativa de maneira não-linear, dando saltos aqui e ali, por
achar desnecessário contar determinado episódio de sua vida, Brás Cubas mascara
o fato de que sua autobiografia é um relato feito a partir de recortes de memória e
que a perspectiva do narrador faz com que somente conte o que melhor lhe
aprouver.
Noutra passagem, no capítulo XXVIII - ‘Contanto que...’, o pai de Brás, ao
tentar persuadi-lo a casar e se tornar político, mostra-lhe como é importante para um
homem aparecer perante a sociedade, de preferência da maneira como ela deseja
vê-lo, assim como no conto machadiano Teoria do Medalhão, no qual o pai ensina
ao filho como deve comportar-se para que tenha consideração social. O jovem Brás
devia ser outro, alguém que a sociedade exigia que fosse, devia ver a vida como um
eterno palco, pois não podia se manter no anonimato:
- Olha, estou com sessenta anos, mas se fosse necessário
começar vida nova, começava, sem hesitar um minuto.
Teme a obscuridade, Brás; foge do ínfimo. Olha que os
homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de
todos é valer pela opinião dos outros homens. Não estragues
as vantagens da tua posição, os teus meios...
(ASSIS, 1997, p. 60)
O simulacro chamado Brás Cubas não é aparente, visto que o jovem burguês
é um e o autor ficcional é outro, sendo ambos a re-apresentação do mesmo Brás.
O romance encerra-se com o capítulo ‘Das Negativas’, no qual, fazendo um
balanço de sua vida, Brás Cubas afirma que ao passar para o lado da morte levou
57
consigo um saldo. Termina o seu relato sustentando o simulacro Brás construído ao
longo da narrativa:
Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará
que não houve mingua nem sobra, e conseguintemente que saí
quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este
outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é
a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive
filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa
miséria.
(ASSIS, 1997, p. 176)
3.2.3. O Simulacro do Simulacro...
Se em Memórias Póstumas de Brás Cubas o narrador-personagem Brás
Cubas é um simulacro, uma pura representação, como Bressane constrói sua
personagem a partir desse simulacro? O que podemos afirmar da personagem
homônima do filme Memórias Póstumas? E o metadiscurso, como é transposto para
as adaptações a fim de auxiliar a re-criação de Brás?
Adaptado da literatura para o cinema, com roteiro, produção, montagem e
direção de André Klotzel, Memórias Póstumas é a narração, feita por um defunto, de
sua trajetória pela vida. O referido defunto-ator, por meio do voice-over, ou
diretamente em cena, tece comentários sobre sua obra, sobre as pessoas que com
ele conviveram e sobre si mesmo, preservando o tom e o estilo machadianos.
Regado por um tom ora irônico ora humorístico, o filme inicia-se com a cena
do sepultamento de um senhor, que se mostra ao espectador em duas situações ao
mesmo tempo, dentro do caixão para ser enterrado, e passeando calmamente por
entre as covas do cemitério, assistindo a seu próprio enterro, de onde lança um olhar
para a câmera. Neste momento, o público conhece Brás Cubas, defunto e narrador
das memórias, que começa a trabalhar na construção da sua imagem,
apresentando-se:
58
Algum tempo fiquei em dúvida se deveria começar essas
memórias pelo principio ou pelo fim, isto é, se eu contaria antes
o meu nascimento ou a minha morte. Normalmente se começa
uma história pelo começo, mas decidi começar pelo fim, por
dois motivos. Primeiro, é que como eu ressuscitei para ser o
autor dessas memórias, eu não sou um autor defunto, mas um
defunto autor, a sepultura para mim foi outro berço. Segundo, é
que a história fica renovada e moderna...
(KLOTZEL, 2001)
Em seguida ocorre um flash-back, estamos no quarto da casa de Catumbi,
onde se inicia a trama, local em que Cubas faleceu. Em voice-over, o narrador
constrói todo o seu histórico, incluindo locais, datas e nomeando os conhecidos que
o estavam velando em seu leito de morte, chamando a atenção do espectador para
uma senhora que ali se encontrava e que tivera grande relevância em sua vida,
Virgília.
Contudo, somente se saberá sobre esta mulher na cena em que o jovem
Brás, conversando com seu pai sobre uma futura carreira política e seu casamento
com uma linda moça, que o senhor Cubas ansiava que acontecesse o mais rápido
possível, descobre o nome da bela tão elogiada, Virgília.
A referida cena é congelada e o defunto-ator passando por pai e filho mira a
câmera e esclarece ser a moça e a senhora presente em seu quarto, no dia de sua
morte, a mesma pessoa, e que o trocara por outro pretendente, - Lobo Neves
confiada na promessa de tornar-se marquesa. Posteriormente, casada, ela
protagonizaria, ao lado de Brás, um intenso e proibido romance. A cena de pai e
filho conversando volta a se desenrolar como se nada tivesse acontecido, como se
alguém tivesse simplesmente apertado um botão e pausado o filme para que o
narrador fizesse suas considerações, pusesse suas ‘notas de rodapé’.
59
O fato de o defunto aparecer em cena deixa explícita a dualidade existente
entre Brás Cubas vivo e Brás Cubas morto. Percebemos essa dualidade por meio
das imagens o-verbais, visto que, na maior parte das vezes, os dois aparecem na
mesma cena, na qual existem olhares e gestos feitos pelo defunto para se referir ao
Brás vivo; e, através dos comentários que o defunto-ator tece sobre suas atitudes de
jovem bon vivant e sobre o próprio discurso que faz, como na cena em que relata o
delírio, que antecede sua morte, e na qual aparece falando direto para o espectador.
Para dar um tom, ao mesmo tempo, cômico e real à cena do moribundo,
quando o narrador aparece fazendo os citados comentários, andando e sendo
acompanhado pela câmera, num travelling, que aumenta sua velocidade, passando
dele, levando-o a apressar-se para não sair de cena. Aliás, não ficar fora de cena foi
a ambição de Brás durante boa parte de sua vida, e a velocidade com a qual a
câmera faz o travelling indica uma suposta pressa do espectador em saber logo os
detalhes das memórias, em conhecer seu simulacro e as oportunidades tidas, as
quais passaram sem que conseguisse agarrá-las. Essa alusão à pressa do
leitor/espectador encontramos na obra literária transmutada, na qual o narrador frisa
ser a pressa do leitor o problema de seu livro.
Júlio Bressane apresenta o mesmo enredo e trama, porém, devido à estética
a qual pertence, o diretor traz soluções bem distintas das encontradas por Klotzel,
como quando materializa o defunto-autor, narrador das memórias, num esqueleto,
que emite sons (“Necrofone! Necrofone!”) e habita o escritório em que Brás procurou
obsessivamente a fórmula para seu emplasto anti-hipocondríaco.
Figura 3.
6
Brás e o pai observados pelo defunto-
ator
(KLOTZEL, 2001)
60
Bressane não tem por objetivo a criação de uma história que seja tomada
como realidade por parte do público, mas desmascará-la, mostrando seu processo
de criação, quebrando com a verossimilhança. O diretor transmuta para o cinema a
obra literária enfatizando sua personagem, a qual necessita ser construída
duplamente, como defunto-autor de suas memórias, e como personagem principal
da história narrada pelo espectro, como percebemos desde o título que remete ao
tema central da produção, Brás Cubas.
Construindo uma narrativa não-linear, os narradores das adaptações
apresentam as passagens de sua existência que julgam relevantes, dando saltos
temporais em determinados trechos, como a escola, por exemplo, onde apurou seu
caráter e reafirmou o apelido de “menino diabo”.
No filme de Klotzel, ao pular fases de sua vida Brás explica os motivos que o
levaram a fazê-lo, dando um tom de veracidade ao seu relato. Estes esclarecimentos
por vezes são acompanhados de pinturas que representam o momento histórico
vivenciado pelo jovem, como na passagem da infância para a juventude: na
seqüência aparece a pintura de Pedro Américo, O Grito do Ipiranga (1888),
retratando o grito de independência de D. Pedro I às margens do rio Ipiranga, para
reforçar o simulacro de Brás Cubas, embora o citado quadro tenha sido pintado
posteriormente aos acontecimentos narrados. Funcionando como elo entre ficcional
e real a pintura faz com que o espectador correlacione as memórias do defunto com
a história, reiterando a veracidade dos fatos narrados, diferentemente da caderneta
Fig
ura 3.7
O esqueleto de Brás Cubas
(BRESSANE, 1985)
Fig
ura 3.8
O espectro do defunto-
autor no
escritório que pertenceu a Brás
Cubas (BRESSANE, 1985)
61
espiralada do filme de Bressane, que quebra com a verossimilhança, pois gera a
indagação sobre a existência deste produto em pleno século XIX.
Em Memórias Póstumas, observamos a existência de um jogo discursivo de
simulação feito pelo defunto-ator, mostrando que simular, ou seja, “fingir ter o que
não se tem” (BAUDRILLARD, 1991, p. 9), foi uma característica por ele cultivada.
Tudo na vida do jovem Brás se apresenta como uma encenação, uma
constante simulação da realidade. Seu romance com Marcela, uma cortesã a quem
dedica seus primeiros suspiros e uma boa parte da fortuna paterna, ilustra esse
traço da personagem, pois ao ser enviado contra sua vontade para estudar em
Lisboa revela como “padeceu” de amor, na cena do navio, temperada por Klotzel a
fim de dar a Brás Cubas um caráter ainda mais volúvel que o apresentado no texto
machadiano:
No primeiro dia pensei em me matar; no segundo, em virar
padre; no terceiro, em beber até cair; no quarto, pensei em
escrever uma carta para Marcela; no quinto comecei a pensar
na Europa; e no sexto sonhava com as noites em Lisboa. Em
seis dias Deus fez o mundo e eu refiz o meu.
(KLOTZEL, 2001)
É também no episódio de Marcela que conhecemos a perspectiva da
narrativa do defunto-ator, pois, assim como na obra literária, o relatado é o que foi
vivenciado, com um toque nem tanto sutil de crítica às suas atitudes. Com relação a
Marcela, os comentários feitos transmitem ao espectador o jovem imaturo e volúvel
que era manobrado por esta mulher, que o fazia acreditar no seu amor e fidelidade.
Numa seqüência de cenas passadas na casa de Marcela, de onde primeiro
Brás sai às escondidas enquanto Xavier a presenteia e, em seguida, Cubas está a
presenteá-la enquanto em suas costas um homem (amante da cortesã?) parte
sorrateiro, o narrador explicita as nuances desse relacionamento, demonstrando o
quão era ingênuo:
62
Teve duas fases a nossa paixão. A primeira foi uma espécie de
parlamentarismo em que o Xavier era o presidente, e eu, o
primeiro ministro. Mas não demorou muito dei um golpe de
estado e fiquei com todos os poderes em minhas mãos, me
transformei num ditador sem nenhuma oposição, eu acho.
(KLOTZEL, 2001)
Empenhado na construção do simulacro Brás Cubas, o defunto-ator, ao falar
sobre seu passeio pela Europa, depois de ter recebido da Universidade “o diploma
de uma ciência que eu estava longe de trazer no rebro”, mostra-se um moço
galanteador, revelando os amores que teve pelos países por onde passou:
Não direi tudo o que fiz na Europa, senão teria que escrever
um diário de bordo e não umas memórias como estas em que
entra a substância da vida. Contarei apenas que conheci a
Itália com Isabela, a Espanha com Carmencita, a Inglaterra
com Margareth, Paris com Michelle e a Alemanha com Helga.
(KLOTZEL, 2001)
Ao citar a dama que o acompanhou em cada cidade por onde passava, o
narrador tem um duplo objetivo, conferir credibilidade à sua história apresentando
dados ‘concretos’, nomeando a todas elas, e, alimentar seu ego, relembrando o
conquistador que um dia fora. Ademais, os nomes das mulheres são típicos de seus
Figura 3.9
Brás presenteia Marcela com um colar, enquanto outro
homem escapa sorrateiramente
(KLOTZEL, 2001)
63
países, e funcionam mais como mapa do itinerário do jovem Brás do que como
desejo de recordar os amores passados.
Notamos diferenças entre o eu que narra e o eu que é narrado, no
temperamento, nas atitudes, no comportamento e ana visão que têm da vida. Os
dois são, aparentemente, a mesma pessoa, com um intervalo de cem anos; todavia,
este intervalo gerou reflexão e mudança no modo de ver as situações, na verdade,
um é a recriação, a imagem do outro, por isso, não se trata de um Brás Cubas e,
talvez nesse aspecto, possamos compartilhar com o conceito de simulacro como
dessemelhança de Deleuze e Platão.
Uma cena em que aparece sua dissimulação é a da briga de Brás com Lobo
Neves, embate somente imaginado, mas posto no filme de forma que o espectador
acredite na simulação. Com tranqüilidade e certo tom irônico, como que zombando
do fato de alguém ter acreditado em sua farsa, o defunto-ator separa a briga dos
dois e passa pelo meio da cena, esclarecendo o ocorrido, conversa com o próprio
espectador, ressaltando o seu desejo, impossível de concretizar-se por conta das
convenções sociais:
Não se preocupe, caro espectador. Não mancharei esta história
com sangue. Eu tinha muita vontade de estrangular o Lobo
Neves, mas isso é muito diferente de fazê-lo.
(KLOTZEL, 2001)
Essa dualidade - Brás defunto e Brás jovem está presente na cena em que
Brás Cubas e Virgília discutem sobre o seu relacionamento na casa onde se
encontravam às escondidas, com o auxílio de Dona Plácida. O jovem acalma a
moça e aproxima-se dela, porém quem aparece beijando-lhe a testa é o espectro, o
qual comenta ter ela sentido um arrepio como se tivesse recebido o “beijo de um
defunto”.
64
Beijo também retratado no filme Brás Cubas numa cena bem parecida com a
mostrada acima, na qual Virgília recebendo o beijo de Brás fica tão indiferente como
se quem a beijara fosse um esqueleto.
No fim da produção cinematográfica de Klotzel, correspondente ao capítulo
‘Das Negativas’ da obra literária adaptada, o defunto-ator age como se estivesse em
pleno palco teatral, pois na cena em que Brás Cubas, em seus últimos momentos,
recebe a visita de Virgília, termina de fazer o balanço de sua vida chegando à
conclusão de que saiu ganhando por não ter tido filhos, não ter deixado para
ninguém “o legado de nossa miséria”, o defunto pára, pensa, sorri dando a sensação
de satisfação pela tarefa cumprida e agradece ao público com a tradicional
reverência utilizada pelos atores diante de uma platéia.
Figura 3. 10
O espectro Brás Cubas beija Virgília
(KLOTZEL, 2001)
Figura 3.11
Brás dirige-se à Virgília
(BRESSANE, 1985)
Figura 3.12
O esqueleto beija Virgília
(BRESSANE, 1985)
65
3.2.4. Minha história parecia encaminhar-se para um final feliz...
Por meio de uma análise do discurso e metadiscurso formulado por Brás
Cubas ao narrar as suas memórias e da personagem principal, percebemos que os
textos literário e fílmicos são simulacros, conforme os entende Jean Baudrillard,
recriações de alguém que mesmo no cotidiano da vida parecia encenar
constantemente.
Sabendo que, como afirma Bavcar (2005, p. 148), “a imagem é sempre o
outro”, deduzimos que o narrador se recria, por esse motivo o devemos ver seu
relato como verdade, como o aparentemente ‘franco’ defunto-autor tenta convencer
os leitores/espectadores no filme de Klotzel, ou como a câmera tenta retratar no
filme de Bressane. O narrador cinemático, criado por Júlio Bressane, apresenta a
história deixando o espectador atento à construção da película, evitando que tenha
um maior envolvimento e identificação com a personagem. Já o público de Memórias
Póstumas, embora tenha um narrador que tenta mostrar os fatos como se fossem
reais, não pode deixar-se imergir por completo em sua trama. O espectador deve
atentar para o fato de que a imagem de Brás é o reflexo, vindo das páginas ou das
telas, de sua re-apresentação. Por sua vez, Bressane nos revela através das
imagens sua leitura de Brás Cubas, implícita nas entrelinhas da obra literária.
O ‘eu’, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, não representa um retorno
exatamente a si, pois o defunto-autor não mais se nas imagens geradas por
Figura 3.13
Brás Cubas agradece a atenção do público
(KLOTZEL, 2001)
66
seu discurso, mas um retorno, feito ao longo de sua narrativa, a um outro Brás, a
quem ele critica. É um ‘eu’ escrevendo sua autobiografia, relatando os fatos da vida
de um ‘outro’.
Sabendo que a vida é um simulacro, que as pessoas se mascaram,
recriando-se e, conseqüentemente, transformando-se num simulacro, então,
podemos afirmar ser o defunto autor e personagem - igualmente um simulacro,
que ao narrar ou ser narrado gera uma imagem de si. Não se trata dele, mas de sua
imagem, de sua cópia.
Simulacro do simulacro é o que percebemos no que diz respeito ao
defunto/autor/ator dos filmes Brás Cubas e Memórias stumas, pois se na obra
literária Brás é considerado como a representação de algo já ocorrido e a ele
apresentado, e a obra cinematográfica é uma recriação a partir do texto literário,
então a personagem fílmica Brás Cubas é o simulacro do simulacro Brás literário.
André Bazin (apud Aumont, 1994, p. 72), afirma que “a vocação ontológica do
cinema é reproduzir o real”, ou seja, deve “produzir representações dotadas da
mesma ‘ambigüidade’ ou se esforçar para isso”. Podemos dizer que a reprodução
da realidade com suas nuances não somente compete ao cinema, mas às artes
como um todo, embora algumas, como, por exemplo, literatura, cinema e pintura se
aproveitem melhor da ilusão imaginária.
Nas narrativas, literária e fílmicas, é feito um ‘pacto’ entre narrador e
receptores, visto que possuímos as imagens devido à ausência de realidade,
portanto, leitores/espectadores devem se deixar levar por um defunto que retorne
para fazer sua autobiografia, possibilitando a construção da ficção. Esse pacto é
rompido por Bressane que, seguindo a estética brechtiana, não se propõe a criar
verossimilhança nem identificação entre espectador e filme. Klotzel cria um filme
ilusionista, no qual ao espectador a ilusão de que não existem significados além
dos mostrados na tela, permitindo que o mais atento perceba o todo de sua obra.
Ao colocar o autor ficcional em cena, Klotzel mostra que ele assina sua
própria história, o mesmo ocorre na obra literária, quando Brás assume o papel de
autor ficcional. Bressane não apresenta, como Machado de Assis e Klotzel, o
narrador-personagem constantemente em cena, visto que seu principal narrador é o
narrador cinemático, a câmera, mas insere em algumas ocasiões comentários feitos
pelo próprio Brás Cubas referindo-se ao passado, fato que nos revela ser esse o
67
defunto-autor e não a personagem principal, como na seqüência que mostra o
sofrimento pela morte de sua mãe, em que comenta: “Fiquei prostrado. E, contudo,
era eu nessa época um fiel compêndio de trivialidade, de presunção”. Para em
seguida esclarecer, por meio do metadiscurso, encarando o espectador, sobre suas
qualidades de defunto:
Talvez espante ao espectador a franqueza com que realço e
exponho a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a
primeira virtude de um defunto. Não nada tão
incomensurável como o desdém dos finados.
(BRESSANE, 1985)
Contudo, nos casos aqui estudados, o defunto/autor/ator não trabalha
sozinho, pois tem o leitor/espectador participando como co-criador de suas
memórias, como gerador de suas imagens, visto que tanto o texto literário como os
fílmicos deixam lacunas que necessitam ser preenchidas pelos
leitores/espectadores, a fim de que a compreensão não seja comprometida.
O contado nas obras literária e cinematográficas, pelo defunto e pela câmera,
faz parte do ‘círculo vicioso das realidades virtuais’, neste, tudo o que se olha nada
mais é que uma imagem, criada a partir da realidade que se deseja maquiar.
Agora morto, Cubas sente-se livre e usa de sua liberdade para criticar a
burguesia, a família brasileira e a si próprio, mostrando que “ser livre é poder olhar
Figura 3.14
Brás Cubas (BRESSANE, 1985)
68
de outra maneira e poder, sobretudo, imaginar-se por si mesmo e por meio de suas
próprias visões” (NOVAES, 2005, p. 157). É por meio dessa visão, do discurso e do
metadiscurso que leitores e espectadores tomam conhecimento do simulacro Brás
Cubas.
69
4. A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM BRÁS CUBAS
Ser ou não ser... Eis a questão.
(Hamlet)
Estamos habituados a falar sobre o discurso objetivo do narrador, ressaltando
sempre ser esse a mola mestra da narrativa, porém, conquanto o discurso seja
importante para a distinção entre ficção e realidade, é “a personagem que com mais
nitidez torna patente a ficção, e através dela a camada imaginária se adensa e se
cristaliza” (ROSENFELD, In: CÂNDIDO et al., 2004, p. 21).
O romance ganha vida devido à personagem, isso porque funciona como
elemento de identificação do leitor com o texto, pois com ela o leitor se entrega para
mergulhar no universo ficcional, deixa-se levar pela imaginação. O narrador funciona
como veículo de transmissão da história, por meio da narração, mas é a
personagem que o leitor adota, e ‘encarna’, para viver o romance como se estivesse
em sua pele, como se fosse ela.
Para que haja a identificação do leitor/espectador com uma personagem, ela e
todo o contexto em torno do qual existe necessitam ser coerentes. Vale lembrar que
imaginação e fantasia são distintas de falsidade. A personagem é imaginação do
autor e, quando coerente, é apenas simulacro. Uma personagem incoerente, fugindo
à verossimilhança
10
interna da obra, gera descrença e enfado e compromete a
existência do romance ou filme enquanto obra de arte.
Para um aprofundamento sobre a personagem observemos primeiramente o
conceito de Aristóteles (1997), que a define como mímese, como cópia do ser
humano. Compartilhando da visão aristotélica sobre personagem, Pallottini (1989, p.
5) afirma que essa seria “a imitação, e, portanto, a recriação dos traços
fundamentais de pessoa ou pessoas, traços selecionados pelo poeta segundo seus
próprios critérios”.
Pallottini (1989, p.11), esclarece, ainda, que personagem e pessoa apresentam
os mesmos traços, sendo que a primeira é uma pessoa imaginária e para a sua
10
Referindo-se à dramaturgia clássica Patrice Pavis (apud PALLOTTINI, 1989, p. 20) esclarece que
verossimilhança “é o que, nas ações, nos caracteres, na representação, parece verdadeiro ao
espectador”. Embora Pavis não tenha se dirigido diretamente ao romance ou ao cinema, entendemos
seu conceito cabível nessas artes.
70
construção “o autor reúne e seleciona traços distintivos do ser ou de seres
humano, traços que definam e delineiem um ser ficcional, adequado aos propósitos
do seu criador”. Percebemos que nessa construção a criatura, neste caso a
personagem, é a imagem do que seu criador, escritor/diretor, deseja mostrar e, ao
mesmo tempo, caracteriza seu público alvo.
Agora, ressaltemos que a personagem se define com clareza apenas no
desenrolar da ação ou do acontecimento no tempo, visto que seus atos e diálogos
esclarecem sobre ela e dão credibilidade ao dito pelo narrador.
Porém, as objectualidades, a história em si, necessitam de algo mais. Na
realidade, a apresentação dos fatos e personagens na literatura e, esporadicamente,
no cinema ocorre de maneira que o narrador toma por vezes o espaço da
personagem, devido à matéria-prima de ambas as artes: palavras e imagens, as
quais, como afirma Rosenfeld (In: CÂNDIDO et al., 2004, p. 31), são as “que
‘fundam’ as objectualidades puramente intencionais, não as personagens”. Por esse
motivo, as personagens podem ser dispensadas durante alguns instantes, para que
o narrador mostre as nuances da história.
Mesmo podendo ser retirada da narrativa por certo tempo, um texto literário
não existe sem personagem. É ela que, como dissemos, vida e importância ao
texto, haja vista obras como Hamlet, Don Quixote de La Mancha, Grande Sertão:
Veredas e Dom Casmurro, vivas até os dias atuais no imaginário dos leitores, devido
a suas personagens. Como não recordar, por exemplo, os olhos de ressaca de
Capitu? Ou as incertezas de Riobaldo? Ou, ainda, as aventuras do fidalgo D.
Quixote?
Ao falar sobre a personagem ao longo dos séculos, Antônio Cândido (2004, p.
54-55), ressalta que
Pode-se dizer que é o elemento mais atuante, mais
comunicativo da arte novelística moderna, como se configurou
nos séculos XVIII, XIX e começo do XX; mas que adquire
pleno significado no contexto, e que, portanto, no fim de contas
a construção estrutural é o maior responsável pela força e
eficácia de um romance.
71
O teórico, ao abordar a importância da construção estrutural do romance,
remete à coerência e verossimilhança da história. Esses dois elementos estão
intimamente relacionados. Imaginemos um filme de época, passado no século XVIII,
por exemplo, no qual as mulheres fossem tomar sol na praia trajando biquíni. Ao
deparar-se com a cena o espectador sentiria o impacto causado pela incoerência
entre o período retratado e as vestimentas, o que o deixaria descrente com relação à
história, isso sem questionar se as pessoas daquele tempo iam ou não à praia para
tomar sol. Damos o exemplo não para mostrar que a narração deve ter um cunho de
realidade ou ser verídica, mas que necessita, como pré-requisito para atingir seu
objetivo enquanto texto ficcional, ser verossimilhante
11
, somente assim envolverá o
leitor/espectador em suas teias.
Antônio Cândido (2004) ainda defende que a grande revolução sofrida pelo
romance no século XVIII foi a mudança do “enredo complicado com personagens
simples, para o enredo simples com personagens complicadas”. Enredo simples
pode ser entendido como coerente e uno, e a nomenclatura usada para
personagem, simples e complicada, se refere ao que Forster (1969, p. 54-55) chama
de planas e redondas.
Por serem as teorias, em sua maioria, provenientes de reflexões voltadas para
o texto literário, nos referimos aos receptores como ‘leitores’. Ressaltamos, contudo,
que devido à proximidade das técnicas e características da criação e das
personagens na literatura e no cinema, principalmente por ser este uma arte híbrida
na qual várias outras artes se inter-relacionam e se complementam, ao tratarmos
das teorias a respeito da personagem não necessidade de distinguir e enfatizar
se literária ou cinematográfica. Entendemos que as teorias aqui apresentadas
abrangem os dois universos, e quando isso o ocorrer mostraremos as
divergências. Devido às ligações entre literatura, cinema e teatro, por conta da
existência de adaptações de um meio semiótico para outro, e a escassa bibliografia
sobre a construção da personagem literária e fílmica, utilizamos, para nosso estudo,
11
Ao falar sobre verossimilhança textual, Riedel (1980, p. 67) revela que o texto deve adequar-se à
cultura em que está inserido, pois “cada modelo de cultura tem sua orientação, que se exprime por
uma escala determinada de valores, por uma relação do ‘verdadeiro’ e do ‘falso’, do ‘alto’ e do
‘baixo’”. Como exemplo dessa verossimilhança ajustada à cultura receptora temos as explicações
sobre o trabalho de Nida (RODRIGUES, 2000), principal tradutor da Bíblia para vários idiomas,
revelando a impossibilidade de colocar o ritual do sacrifício de cordeiros a Deus se o público alvo da
tradução forem os esquimós, visto que eles não conhecem tal animal.
72
teóricos que escreveram sobre esse aspecto relacionado ao teatro, os quais trazem
pensamentos e reflexões que se adequam à relação intersemiótica.
Ao falar sobre a construção da personagem, Beth Brait (2004) considera a
existência de duas formas segundo as quais ela acontece: quando o narrador é a
câmera e quando a personagem é a câmera. Por meio de uma analogia com o
cinema, Brait mostra as diferenças de pontos de vista na construção. Ao funcionar
como câmera o narrador constrói a personagem a partir do seu exterior, com
exceção do narrador onisciente, o leitor tem acesso a informações reduzidas com
relação ao íntimo delas; quando a personagem é a câmera começa sua
construção para o leitor desde o interior, visto que por suas próprias palavras,
intenções e ações vai se caracterizando.
Renata Pallottini (1989, p. 12), num estudo de grande relevância sobre a
construção da personagem, mostra-nos, detalhadamente, como é feito o construto
de modo a torná-la verossimilhante:
O autor, na criação de um personagem, desenha um esquema
de ser humano; preenche-o com as características que lhe são
necessárias, dá-lhe as cores que o ajudarão a existir, a ter
foros de verdade. Uma verdade, é claro, ficcional. o se trata
de ter um personagem que seja a cópia real de uma pessoa
qualquer, viva, existente, conhecida do autor. Mas de criar um
ser de ficção, que reúna em si condições de existência; que
tenha coerência, lógica interna, veracidade. Um ser que
poderia ter sido, não necessariamente um ser que é.
A autora ressalta que a personagem não necessita existir na realidade, mas
precisa de características coerentes com o mundo ficcional no qual está inserido,
para suscitar a identificação e imersão do leitor/espectador.
Ao falar sobre a profundidade e construção da personagem, Rosenfeld (In:
CÂNDIDO et al., 2004, p. 35-36) esclarece que
É precisamente o modo pelo qual o autor dirige nosso ‘olhar’,
através de aspectos selecionados de certas situações, da
aparência física e do comportamento sintomático de certos
estados ou processos psíquicos ou diretamente através de
73
aspectos da intimidade das personagens – tudo isso de tal
modo que também as zonas indeterminadas começam a
‘funcionar’ é precisamente através de todos esses e outros
recursos que o autor torna a personagem até certo ponto de
novo inesgotável e insondável.
Muito se fala e debate sobre os processos utilizados pelo escritor para a
criação de suas personagens, mas, e se considerarmos que o autor, conforme
dissemos no capítulo anterior, atribui seu texto a uma instância narrativa criada por
ele, e observarmos como por meio dessa instância, o narrador, constrói a
personagem? Quais recursos discursivos ele utiliza para tal empreitada? É sobre
esse aspecto em particular que nos debruçaremos no apartado a seguir.
4.1. EU, BRÁS CUBAS
Acredito que no começo Deus fez um
mundo para cada homem separadamente e
é nesse mundo dentro de nós que devemos
procurar viver.
Oscar Wilde (2003)
Se nosso intuito é falar sobre personagem, falemos sobre Brás Cubas, do
romance e das adaptações cinematográficas, objetos de nossa pesquisa. E, como
diria nosso defunto-autor, trataremos dos aspectos mais importantes, da essência da
vida, para ser mais explícita, da construção dessa personagem.
Por ser o autor ficcional, tomando a obra para si ao assiná-la, a personagem
liberta-se da tutela do escritor para criar vida e adquirir uma independência dentro da
própria obra. Tudo isso conscientemente dado por Machado de Assis, fato que
permite ao narrador fazer seu relato como melhor lhe aprouver.
Justificamos, inicialmente, com as palavras de Antônio Candido (2004, p. 64), a
visão do autor ficcional ao narrar suas memórias, ao se olhar, a fim de que
possamos entender, pelo menos em parte, seu pensamento ao construir-se, pois
74
Poderíamos dizer que um homem nos é conhecido quando
morre. A morte é um limite definitivo dos seus atos e
pensamentos, e depois dela é possível elaborar uma
interpretação completa, provida de mais lógica, mediante a qual
a pessoa nos aparece numa unidade satisfatória, embora as
mais das vezes arbitrária.
A citação acima explica o fato de o narrador Brás Cubas julgar sua
personagem, ou seja, ele mesmo, que, agora morto, pode lançar-lhe um olhar
mais geral e crítico, embora brando. É por meio desse olhar que o leitor/espectador
vê Brás Cubas construindo a si mesmo, personagem de caráter fútil e volúvel
cultivado desde criança, quando educado cheio de regalias e vontades. A obra
literária mostra a expectativa que seu nascimento causara na família e sua
formação, inclusive as tentativas frustradas da mãe em transformá-lo num homem
de bem, íntegro e religioso, já dando indícios do futuro adulto descrente e cético.
As duas produções cinematográficas também retratam essa fase, como
veremos a seguir, enfatizando detalhes narrados no livro, como as brincadeiras e
peripécias com o aval do pai.
A construção de Brás feita por Julio Bressane em sua adaptação acontece
desde sua enfermidade, mostrando alguém moribundo e desinteressado da vida,
solitário pelos cantos escuros da casa, até a escolha do ator que o encarnou,
escolha motivada pelo fato de ser este ator, as mais das vezes, o intérprete de
personagens cômicas, irônicas e com certo tom de deboche, características que
marcaram o Brás Cubas idealizado pelo diretor.
Figura 4.1
Brás após a morte da mãe (BRESSANE, 1985)
75
André Klotzel, em sua adaptação, também inicia a construção da personagem
no leito de morte. E, como na obra literária, recebe a visita de Virgília, que tenta
animá-lo, dizendo: “Ando a ver se ponho os vadios para a rua” (1997, p. 23). A
referida cena chega aos espectadores por meio da narração do defunto-ator, que
aparece sentado numa cadeira observando a apresentação imagética do que está
contando verbalmente como se estivesse assistindo a um filme. Ademais, as várias
pessoas que figuram no quarto de Brás reforçam a idéia da morte como espetáculo,
que deve ser assistido por todos.
Observe-se que Bressane coloca apenas um ator para o papel, enquanto
Klotzel, para diferenciar as etapas juventude, velhice e morte trabalha com dois
atores, estratégia que demonstra a preocupação com o espectador, pois, se não
houvesse a troca de atores no papel, ficaria, assim como na adaptação de
Bressane, difícil distinguir as mudanças de fases apenas por meio das imagens.
Além disso, Klotzel usa a maquiagem
12
para estabelecer tida distinção entre Brás
Cubas e o defunto-ator.
Em Bressane e em Klotzel a apresentação da personagem acontece, assim
como no livro, através de uma seqüência de cenas: a partir do bebê Brás, o
espectador é induzido a montar os retalhos de um caráter em formação, em que o
menino, realmente, é o pai do homem’. Vemos o menino Brás brincando de cavalo
montado num negro, fato que demonstra o tipo de sociedade em que foi criado, e
sua educação, ao levantar as saias das escravas para vê-las nuas, revelando de
que terra e com que regalos “nasceu esta flor”. Uma criança, como muitas outras,
inconseqüente e mimada, capaz de, como no episódio do senhor Vilaça com D.
Eusébia, denunciar um sigiloso enlace amoroso, como vingança por Vilaça tê-lo feito
esperar demais a sobremesa.
Na seqüência, aparece o jovem Brás iniciando sua vida de amores e
desamores. O primeiro amor, Marcela, mostrada como uma mulher madura e
movida pelo interesse, ao lado de um jovem, cego de paixão, capaz de dar-lhe tudo,
se não fosse a interferência de seu pai. A cena em que Brás Cubas conta-lhe que
será mandado para a Europa e a chama para partir com ele, prova, mais uma vez, o
quão era ingênuo frente às artimanhas da vida:
12
Na adaptação de André Klotzel o defunto-ator aparece com o tom da pele, sutilmente, acinzentado,
diferenciando-o do Brás Cubas vivo que tem seu rosto rosado.
76
- Embarco daqui a três dias. Vem comigo?, pergunta Cubas.
- Três dias?, pergunta Marcela olhando-o pelo canto do olho,
Vou...
(ASSIS, 1997; BRESSANE, 1985; KLOTZEL, 2001)
Brás é embarcado pelo pai à força, e sem Marcela. A adaptação de Klotzel
enfatiza como rapidamente o rapaz se recupera da perda da mulher amada e
conhece os prazeres proporcionados pela vida de estudante em Lisboa e na Europa
em geral, por onde, como dissemos no capítulo anterior, depois de formado, viaja
com mulheres, belas companhias que encontrava em cada país por onde passava.
Bressane, de maneira bem explícita, assim como na obra literária, mostra como
a personagem principal é facilmente manipulada por outrem, como se deixa enganar
quando “ama”, indícios de inexperiência. Mas mostra também como era astuto,
quando mais velho, não se deixando dominar pela vontade e persuasão alheias,
como no episódio da divisão da herança de seu pai.
Episódio de grande relevância para esta análise o da partilha dos bens logo
após a morte de Bento Cubas, seu pai.
Brás, sua irmã e o marido estão sentados em torno de uma mesa, o casal de
um lado e o maduro protagonista de outro, fazendo lembrar uma competição de
quebra de braço, a qual vence aquele que tem o pulso mais forte, possível alusão à
teoria do humanitismo.
Figura 4.2
Brás, sua irmã e o marido discutindo a partilha
dos bens deixados pelo pai (BRESSANE, 1985)
77
Livro e filmes apresentam um enredo que não chama a atenção por si só, visto
que trata de situações corriqueiras vividas por um homem comum da sociedade
carioca. Mas, se considerarmos ser esse homem um defunto contando suas
memórias, alegando a busca de uma maneira de passar o tempo na eternidade da
morte, a obra ganha peso que recai sobre a personagem. O foco do romance
voltado para a personagem e a dubiedade de que ela se reveste foi uma das
características responsáveis pelo ingresso de Memórias Póstumas de Brás Cubas
no grupo dos grandes romances modernos, inclusive, como mencionamos
anteriormente, inaugurando o uso dessas peculiaridades na Literatura Brasileira.
“O enredo existe através das personagens; as personagens vivem no enredo”.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas “enredo e personagem exprimem, ligados,
os intuitos do romance, a visão da vida que decorre dele, os significados e valores
que o animam” (CÂNDIDO, 2004, p. 53-54). Ao conhecer Brás Cubas o
leitor/espectador não tem diante de si o indivíduo, mas o retrato da sociedade na
qual se espelha, é o individual exprimindo a coletividade.
As personagens, ao falar, revelam-se de forma mais completa, por esse motivo
o próprio defunto narra a trama e através de suas palavras o leitor/espectador
conhece a ele e à sua personagem principal, Brás Cubas. Ao construir sua
personagem utilizando as palavras, no livro, e as palavras e imagens, nos filmes, o
narrador demonstra tê-la arquitetado física e psicologicamente, projetando-a,
contudo, como indivíduo ‘real’, completo em suas características.
Embora, após fazer a leitura ou assistir às adaptações, o leitor/espectador
reconheça o projeto completo chamado Brás Cubas, a personagem é apresentada
de maneira fragmentada e incompleta, pois sua construção, por ser manipulada pelo
narrador, não ocorre de forma direta e precisa, mas é oscilante, aproximativa e
descontínua, assim como a narração.
Existem, conforme Antônio Cândido (2004, p.61), duas famílias de
personagens, as de natureza e as de costumes
13
. Considerando essa classificação
podemos enquadrar Brás Cubas como uma personagem de natureza, pois não se
apresenta de forma bidimensional, como a personagem de costumes, mas com uma
íntima terceira camada responsável por deixar algo obscuro e incógnito ao
13
Em seu artigo sobre a personagem de ficção Antônio Cândido ressalta que esta nomenclatura era
utilizada já no século XVIII por Johnson.
78
leitor/espectador. No cinema, essa camada aparece de maneira mais sutil, porém
mais facilmente percebida, visto que as imagens denunciam qualquer tentativa mais
aprofundada de simulação por deixar à mostra as expressões dos atores diante das
situações. Expressões que denunciam os pensamentos e reações de Brás diante
dos acontecimentos.
Rosenfeld (In: CÂNDIDO et al., 2004, p. 30), ao esclarecer a relação entre o
ator e a personagem no teatro brechtiano, revela que:
Quando Brecht pede ao ator que não se identifique com a
personagem, para poder criticá-la, põe um foco narrativo fora
dela, representado pelo ator que assume o papel de narrador
fictício.
Através dessa afirmação chegamos a duas conclusões: uma com relação à
obra literária e outra sobre a adaptação feita pelo diretor Júlio Bressane. Sobre o
livro podemos dizer que, visando distanciar-se a fim de criticar o Brás Cubas vivo,
existe o defunto-autor, o qual ressalta conhecer os tempos, em sua evolução ou em
seu retrocesso, apresentados por Pandora, e reprovar algumas atitudes do jovem
Brás, chegando a caracterizá-lo como “um fiel compêndio de trivialidade e
presunção” (ASSIS, 1997, p.55). Sobre o filme de Bressane, falemos com relação à
atuação de Luis Fernando Guimarães, que não permite a identificação do
espectador nem a confusão entre intérprete e personagem devido à ironia e cinismo
exacerbados em sua representação, diferente das atuações de Petrônio Gontijo e
Reginaldo Farias, em Memórias Póstumas. O tom debochado atribuído a Brás por
Bressane é uma maneira de criticar a personagem através de suas próprias atitudes,
como na cena em que Brás entrega presentes à Marcela e faz comentários sobre
sua relação com ela, assumindo, ao mesmo tempo, a posição de narrador e
personagem:
Marcela amou-me... amou-me...
Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis.
Podemos explicar a forma como a ironia foi trabalhada no filme por Júlio
Bressane (2000, p. 50) por suas próprias palavras, pois, falando sobre Memórias
79
Póstumas de Brás Cubas, diz que “é a ironia, um processo de investigação, mais
intelectualmente que o humor, que é mais líquido e imprevisto, que rege a expressão
desta voz de além-túmulo”.
No cinema observamos, parafraseando as palavras bíblicas, que o verbo se faz
imagem. A personagem, até então formada por palavras, se materializa num ator e
se cristaliza em imagens com força suficiente para difundir de maneira mais rápida e
duradoura suas nuances.
Para Rocha Filho (1986, p. 13) o fundamental para uma personagem dramática
“é que ela absorva a ação, a conduza, tomando para si as palavras e intenções do
autor”. Podemos perceber exatamente isso nas adaptações aqui analisadas, pois as
personagens apresentam traços nos quais lemos o estilo do autor, nesse caso
diretor, porém, sem a personalidade individual de cada ator ao interpretar Brás
Cubas, a elaboração da personagem em cena ficaria comprometida.
Os indivíduos Luís Fernando Guimarães, Reginaldo Farias e Petrônio Gontijo
(Jovem Brás), com suas particularidades, o imprescindíveis para a construção e
composição da personagem por eles interpretada, visto que conseguem, à sua
maneira, conservar o tom da personagem literária, a exemplo do episódio em que
Bento Cubas propõe a política e o casamento a Brás. Esse episódio aparece nos
filmes revelando, por meio dos movimentos da câmera e do tom dos diálogos, a
personalidade mais debochada e irônica da personagem de Júlio Bressane (Luís
Fernando) e a personagem mais sóbria de Klotzel (Gontijo), que o deixa de ser
irônica, se diferenciando somente pelo fato dele usar a ironia como tempero e não
como leitmotiv.
Figura 4.3
Brás conversa com o pai sobre a
carreira política e o casamento
(BRESSANE, 1985)
Figura 4.4
Brás e o pai conversam sobre a
carreira política e o casame
nto
enquanto o defunto-
ator os observa
(KLOTZEL, 2001)
80
Não respondi logo; fitei por alguns instantes a ponta do botim;
declarei depois que estava disposto a examinar as duas coisas,
a candidatura e o casamento, contanto que...
- Contanto que?
- Contanto que não fique obrigado a aceitar as duas; creio que
posso ser separadamente homem casado e homem público...
- Todo homem público deve ser casado, interrompeu
sentenciosamente meu pai. Mas seja como queres; estou por
tudo; fico certo de que a vista fará fé! Demais, a noiva e o
parlamento são a mesma coisa... isto é, não... saberás depois...
Vá; aceito a dilação, contanto que...
- Contanto que?... interrompi eu, imitando-lhe a voz.
(ASSIS, 1997, p. 60)
O caráter da personagem principal é apresentado na obra literária e nas
produções cinematográficas por meio das suas atitudes diante das situações. É o
caso do casamento, para o qual o pai tenta persuadi-lo, agindo Brás de maneira
displicente e debochada diante dos argumentos do senhor Cubas. Na primeira cena
de Brás Cubas mostrada acima, o enquadramento da câmera enfatiza os pés do
rapaz, indicando talvez que se quisesse poderia escolher o rumo de sua vida, o
necessitando seguir indicações de outrem. Na segunda cena, de Memórias
Póstumas, a constante observação do defunto-ator de Klotzel, o qual faz
interrupções para esclarecer as suas atitudes quando vivo, e as feições mais
comedidas de Gontijo.
A personagem vai sendo construída por meio do discurso e metadiscurso
instaurados pelo narrador, como quando o defunto-ator da adaptação de Klotzel
ressalta ter chegado aos sessenta anos e que o espectador pode observar as
mudanças causadas pelo passar do tempo. Através do episódio da coxa de
nascença o caráter preconceituoso da personagem é construído no livro e nos
filmes, visto que, Brás cogitou a possibilidade de casar-se com Eugênia, desistindo
por ela ser “bonita, mas coxa!”.
Se o filme, ao colocar as palavras ultrapassando as limitações impostas pelo
seu emprego somente nos diálogos, torna-se “campo aberto para o franco exercício
de uma literatura falada” (GOMES, In: CÂNDIDO et al., 2004, p. 109), então
podemos dizer que Brás Cubas e Memórias Póstumas apresentam o uso dessa
81
literatura de maneira impecável, principalmente para construir a personagem. Nos
dois filmes a ‘literatura falada’, recitação do texto literário, é encontrada no discurso
monológico do narrador e nas falas das personagens, praticamente idênticas às do
livro. Na adaptação de Klotzel o narrador é mais incisivo, pois atravessa todo o filme
fazendo comentários, principalmente metadiscursivos, e dando explicações ao
espectador, a exemplo da imagem anterior, assim como na obra literária.
Em Memórias Póstumas encontramos a ‘verdadeira’ face de Brás Cubas ao
ouvi-lo dizer que “tinha chegado aos quarenta anos e não era pai nem ministro. Não
era nada”, pois toda a superioridade que deixaria transparecer adiante ao fazer o
balanço de sua vida, afirmando sair lucrando por não ter tido filhos, não passa de
mais uma de suas simulações, visto que, na verdade, sempre almejara um cargo
político e deixar descendentes. Podemos observar que é o discurso de um ser
deprimido e frustrado com a própria história.
Para que a personagem seja construída a contento na produção
cinematográfica, o roteiro trazendo as indicações de como deve ser a atuação dos
atores, assim como na peça teatral, é de suma importância.
As indicações a respeito de personagens, que se encontram
anotadas no papel ou na cabeça de um argumentista-roteirista-
diretor, constituem apenas uma fase preliminar de trabalho. A
personagem de ficção cinematográfica, por mais fortes que
sejam suas raízes na realidade ou em ficções pré-existentes,
só começa a viver quando encarnada numa pessoa, num ator.
(GOMES, In: CÂNDIDO et al., 2004, p. 114)
Essa encarnação da personagem na pessoa conta tanto com o auxílio de
laboratórios e workshops feitos pelos atores antes do início das gravações, visando
a sua imersão no mundo da personagem, quanto com as indicações para atuação
presentes no roteiro. Exemplo disso aparece quando observamos o roteiro de
Memórias Póstumas, escrito e dirigido por André Klotzel, do qual escolhemos a cena
em que o defunto-autor observa Brás Cubas e Virgília num encontro íntimo para
mostrar como o roteiro apresenta o texto e as orientações, e o resultado imagético
da personagem, neste caso o defunto-ator.
82
Seqüência 97 -int/dia- Casinha.
Fantasma de Brás no canto do quadro. Ao fundo,
completamente fora de foco, vemos os vultos de Brás e Virgília.
Pode-se perceber sutilmente, pelos gestos e sons, que os dois
transam. O Fantasma, completamente constrangido, o
encontra palavras para explicar aquilo. Ele tem muitas
hesitações, ensaia começar a falar mas se breca. um
sorriso mas fica sem graça.
(O Off da Sequência seguinte poderá ser dado aqui).
Notemos que a maneira como deve agir, o olhar, a expressão do rosto, tudo
está indicado pelo diretor no roteiro. Lógico que não podemos tirar o mérito do ator
em compreender o que está em palavras e dar seu toque ao encarnar a
personagem, pois se não houver um profissional que encarne o papel realmente
como instruído pelo diretor o resultado será comprometido.
Paulo Emílio Sales Gomes (In: CÂNDIDO et al., 2004, p. 117), ao falar sobre a
modernidade e temporalidade da personagem, ressalta que
A vitalidade da personagem literária, novelística ou teatral,
reside no seu registro em letras, na modernidade constante de
execução garantida por essas partituras tipográficas. A
Figura 4.5
O defunto-
ator olha de relance o encontro
amoroso entre Brás e Virgília
(KLOTZEL, 2001)
Figur
a 4.6
Diante das carícias do casal o defunto-
ator
fica sem palavras (KLOTZEL, 2001)
83
personagem registrada na película nos impõe até os ínfimos
pormenores o gosto geral do tempo em que foi filmada.
Mas, e quando falamos num filme de época? Poderemos determinar a época
em que foi produzido? Certamente que não, pois o período retratado remete a um
tempo passado e não ao período em que foi filmado, embora percebamos alguns
traços da estética do diretor, fato que pode funcionar também como marca de uma
época. Num filme que trate do tempo em que está inserido, sim, nesse temos por
meio das roupas, dos diálogos, dos movimentos das personagens o gosto e
costumes do tempo em que foi filmado.
Em Brás Cubas, Júlio Bressane ironiza o retrato feito por um filme de época ao
colocar Luís Fernando Guimarães e Regina Casé, numa cena de Brás e Marcela,
confirmando:
- Mas num pode aparecer minha calcinha que a minha calcinha
é de lycra, minha calcinha num é de época.
-Minha cueca também num é de época.
(BRESSANE, 1985)
Como dissemos anteriormente, as personagens devem mostrar-se aos
leitores/espectadores coerentes para não quebrar a verossimilhança e comprometer
a catarse. Sua diegese necessita observar os padrões aceitos pelo seu tempo e por
Figura 4.7
Brás num encontro amoroso com Marcela
(BRESSANE, 1985)
84
seus receptores. Porém, em obras como as aqui analisadas, que têm por objetivo
essa quebra do mergulho catártico através do metadiscurso literário e fílmico, a
verossimilhança aparece para sustentar a ficção e em alguns momentos,
principalmente no filme de Bressane, ela não é pré-requisito para a criação.
4.2. O ESQUELETO SE FAZ OUVIR...
Existem verdades que a gente só pode dizer
depois de ter conquistado o direito de dizê-
las.
Jean Cocteau
Através da análise do funcionamento narrativo da obra cinematográfica e das
técnicas de produção utilizadas, podemos identificar como a personagem literária
Brás Cubas foi construída pelos diretores Júlio Bressane e André Klotzel.
Assim como no livro, Brás Cubas nos filmes é construído através de uma
narrativa com digressões, em tom memorialístico, começando por sua morte, o leitor
conhece desde o seu nascimento até a fase adulta. Tal forma de construção é
também conhecida como flashback, a rememoração de algo. A narrativa possui uma
estrutura, onde há uma subversão da ordem natural dos acontecimentos, o fim
passa a ser início e este, fim.
Os contextos objectuais, como se refere Rosenfeld (In: NDIDO et al., 2004),
vão aos poucos constituindo e produzindo Brás vivo, porém, por serem produzidos
pelo defunto-autor também o constituem através de seu próprio discurso e
metadiscurso.
Percebemos que, embora as estéticas da obra literária e das obras
cinematográficas sejam bem diferentes, os diretores preocuparam-se em construir a
personagem por meio de suas atitudes e do discurso do narrador, deixando ecos da
obra adaptada, mantendo o estilo machadiano.
Se retornarmos à reflexão sobre verossimilhança, podemos afirmar que, seja
esqueleto ou defunto, o autor ficcional dessas Memórias, literária ou fílmicas, a
85
construção de si e de Brás vivo dá-se de forma coerente. Contudo essa coerência
não significa que o intuito é fazer com que o leitor/espectador possa deixar-se levar
e acreditar na criação de um personagem-sujeito
14
chamado Brás Cubas, mas que
possa observar os recursos discursivos empregados para sua construção, bem
como para a criação de suas Memórias.
14
Para Hegel (apud PALLOTTINI, 1989, p. 37), personagem-sujeito é aquele que tem liberdade para
decidir sobre si mesmo e seu destino, “ele tem vontade, quer, decide, escolhe e age”.
86
5. LITERATURA E CINEMA: A METADISCURSIVIDADE DE BRÁS
CUBAS
O leitor atento, verdadeiramente ruminante,
tem quatro estômagos no cérebro, e por
eles faz passar e repassar os atos e os
fatos, até que deduz a verdade, que estava,
ou parecia estar escondida.
Machado de Assis
A literatura, em especial o romance, desde seu princípio carrega consigo a
função de seduzir, de atrair adeptos através do jogo com as palavras, que,
carregadas de um simbolismo mágico, fazem que o dito por um texto possa
confundir-se com o visto ou vivido, levando à identificação dos leitores com o mundo
ficcional. Daí explica-se, em parte, o êxito da literatura.
Feita de modo a ser tomada como verdade, como se fosse um retrato fiel da
realidade, a escrita gerou um mito por muito tempo cultivado, o da criação como dom
divino. Acreditava-se que para ser um escritor, de poema ou prosa, era necessário
possuir um dom, uma dádiva ofertada pelos deuses a um seleto e restrito grupo de
pessoas, e que existia um ritual de inspiração - a começar pelas musas - por meio
do qual os autores se preparavam para a composição do texto literário. Isso explica
o fato de alguns artistas se isolarem a fim de buscar concentração para criar; essa
reclusão mistificou sobremaneira o fazer criativo, atraindo os olhares curiosos do
público desejoso de saber os segredos existentes na concepção artística.
O mistério que revestia a criação da obra de arte foi, por inúmeras vezes,
apresentado nas telas de cinema, seja como tema central, como no filme Van Gogh
vida e obra de um gênio (1990), seja como pano de fundo para a narrativa fílmica,
como em Moça com Brinco de Pérola (2003), trazendo à tona discussões sobre a
genialidade do artista; além de existirem várias pinturas que retratam o artista em
plena criação, como A Lição de Pintura (1919), de Matisse.
87
Com a expansão da imprensa e a propagação do romance moderno, a figura
do artista foi dessacralizada, perdeu-se a idéia de que a obra de arte é o resultado
da inspiração, passando-se a vê-la como produto de técnicas empreendidas por seu
criador; ademais, perdeu-se a visão de obra única. Walter Benjamin em seu artigo A
obra de arte na era da reprodutibilidade cnica (1985, p.165-196), defende que a
obra de arte, principalmente a partir do cinema, perde sua aura, visto que por meio
da mecanização dos equipamentos pode ser reproduzida em larga escala,
permitindo que se mostre em vários lugares ao mesmo tempo, perdendo sua
singularidade.
Quando os artistas começam a usar a metalinguagem como recurso recorrente
durante a elaboração de sua obra, principalmente na modernidade, o romance é
despido completamente da aura benjaminiana, visto que ela “indica a característica
da intocabilidade, de enigma, de distanciamento e singularidade da arte, seja
pintura, música ou literatura” (CHALHUB, 1997, p. 43). Ao refletir sobre sua própria
criação o artista desvenda os mistérios que rodeiam sua produção, pelo menos
aparentemente, uma vez que, mostrando ao público as técnicas utilizadas, revela
que para escrever não é necessário possuir um dom especial, nem tampouco ser
gênio, mas é imprescindível o domínio da linguagem, da técnica e possuir talento.
Contudo, o que nos dias atuais é observado como amadurecimento da
literatura, no século XIX era visto com descrença, pois os comentários
metadiscursivos, sobre o processo de produção do texto, desmistificam o fazer
artístico. Direta ou indiretamente o leitor é convidado a conhecer os mecanismos de
criação da obra de arte, a perceber o nível de manipulação ali empregado, a
envolver-se, a ter um contato mais próximo.
A metalinguagem tem como conseqüência “a perda da aura, uma vez que
dessacraliza o mito da criação, colocando a nu o processo de produção da obra”
(CHALHUB, 1997, p. 42). Embora esse invólucro se tenha perdido, um ganho
quanto ao estilo e à participação do receptor. O que Chalhub denomina de
metalinguagem, Todorov (1967) classifica como enunciado reflexivo.
Para Todorov (1967, p. 28-29), o enunciado reflexivo é o que trata de si próprio,
“ele fala, portanto, no interior do enunciado, de um dos elementos do processo de
88
enunciação
15
desse mesmo enunciado, do seu ato de emissão”, possibilitando,
assim, que todos os aspectos do enunciado (exceto o aspecto referencial), tanto o
processo de enunciação como o aspecto literal, possam ser discutidos. Todorov
aborda apenas o enunciado verbal e não permite nenhuma abrangência de seu
conceito a textos não-verbais ou imagéticos, pois restringe suas idéias ao adotar os
termos enunciado e enunciação.
Linda Hutcheon (apud REICHMANN, 2006) denomina a ficção que inclui em si
mesma o comentário sobre a narrativa metaficção, ressaltando que por meio dessa
o leitor não reconhece os recursos utilizados durante sua construção, mas
participa de forma autoconsciente como “co-criador no processo” (p.3), preenchendo
a posição de autor manipulador. Para Hutcheon a linguagem do romance é sempre
representacional, mas na metaficção o leitor tem explícito esse fato, reconhecendo
tratar-se de uma produção e ao mesmo tempo deixar-se levar por ela, visto que o
texto requer envolvimento por parte do leitor para que participe recriando-o através
da imaginação. A autora estabelece modalidades explícitas e implícitas para a
metaficção, as quais levam em consideração os aspectos diegéticos e lingüísticos.
A abordagem da literatura narcisista, feita por Linda Hutcheon, enfoca a
reflexividade textual e seus efeitos sobre os leitores, não se detendo num estudo
mais aprofundado sobre a construção metadiscursiva.
Entendemos a metalinguagem, conforme demonstrada por Chalhub, enunciado
reflexivo, como caracterizado por Todorov, e metaficção da maneira tratada por
Hutcheon como sendo sinônimos do que Genette (1982) denomina metatexto.
Gérard Genette (1982, p. 9-10), ao falar sobre os tipos de relações
transtextuais, classifica como metatextualidade a relação de um texto com outro por
meio dos comentários, sem que haja necessidade de nomeá-lo ou citá-lo. O teórico
afirma ainda que o metatexto pode estar inserido dentro do texto ao qual se refere.
Se vista sob essa ótica, Memórias Póstumas de Brás Cubas
16
apresenta as
15
Benveniste (apud TODOROV, 2004, p. 59-60), admite a existência na linguagem de dois planos de
enunciação, os quais se referem à integração do sujeito de enunciação no enunciado: a história, que
é a apresentação dos fatos num percurso temporal e sem qualquer intervenção do narrador; e, o
discurso, que é “toda enunciação supondo um locutor e um ouvinte, tendo o primeiro a intenção de
influenciar o outro de algum modo”.
16
A função metalingüística existe quando numa mensagem o código é utilizado para falar sobre ele
mesmo. No estudo sobre a metadiscursividade em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de
Machado de Assis, e a transposição desta para o cinema nas adaptações Brás Cubas (1985), de
Júlio Bressane, e Memórias Póstumas (2001), de André Klotzel, será adotado o termo metadiscurso,
89
recordações do defunto-autor como texto e os comentários a respeito de sua
construção como metatexto, que é o metadiscurso.
Baseada na metatextualidade exposta por Genette, utilizaremos o termo
metadiscurso, por observarmos que compartilha da visão dos teóricos citados,
mostrando a existência de uma relação intertextual entre texto e metatexto, e
possibilita a análise de textos imagéticos ao usar os termos mais genéricos.
Entendemos por metadiscurso um texto (discurso) que ressalta as características do
processo durante o qual seu enunciado se carrega de significado.
A obra de arte na contemporaneidade leva seu espectador a refletir sobre o
objeto observado, pois traz em seu interior a metadiscursividade, - explicações,
detalhes, técnicas -, somente acessível, até pouco tempo, ao criador. Esse recurso,
se não esclarece por completo, chama a atenção do espectador para que lance um
olhar mais minucioso, vendo o que se esconde detrás daquelas palavras, pois a
metadiscursividade funciona como arma de sedução e manipulação, prendendo o
público em suas teias, conduzindo-o.
Ao falar sobre o cinema, Benjamin (1985, p. 189) salienta que ele “faz-nos
vislumbrar, por um lado, os mil condicionamentos que determinam nossa existência,
e por outro assegura-nos um grande e insuspeitado espaço de liberdade”, mas
essas também seriam funções exercidas pela literatura.
Literatura e Cinema estão bem próximos. Isso pode ser percebido pela
observação das técnicas comuns às duas artes, como no caso da
metadiscursividade, recurso que não é privilégio apenas do literário, mas de toda a
criação artística. O cinema traz diversas produções nas quais o metadiscurso está
presente, aparecendo em alguns casos como tema central, como Um homem com
uma câmera (1929), de Dziga Vertov, no qual é mostrado o processo de captação,
seleção e montagem das imagens, Crepúsculo dos deuses (1950), de Billy Wilder,
que revela a criação de um roteiro, Encontros e desencontros (2003), de Sofia
Coppola, que apresenta o processo de gravação e os profissionais nele envolvidos.
O metadiscurso implica que se esteja numa situação privilegiada em relação ao
próprio discurso, podendo-se, desta forma, controlá-lo e manipulá-lo. Os diretores
para os comentários feitos pelo narrador Brás Cubas sobre seu próprio discurso e sobre a criação da
obra enquanto produto artístico. Na literatura, a observação se sobre o verbal; nos filmes, a
análise pede que vejamos as técnicas cinematográficas e o texto proferido pelas personagens.
90
dos filmes aqui analisados, bem como Machado de Assis, se apresentam como
exímios conhecedores de suas respectivas linguagens, pois dominam e utilizam de
forma natural os recursos metadiscursivos. Na obra machadiana, verificamos com
freqüência o metadiscurso, usado com objetivos que vão do simples comentário
sobre o discurso até a apresentação e construção de uma personagem:
Não se irrite o leitor com esta confissão. Eu bem sei que, para
titilar-lhe os nervos da fantasia, devia padecer um grande
desespero, derramar lágrimas, e não almoçar. Seria
romanesco; mas não seria biográfico.
(ASSIS, 1997, p. 141)
5.1. O QUEBRA-CABEÇA BRÁS CUBAS
O estilo está tanto nas palavras como dentro
delas. É igualmente a alma e a carne de uma
obra.
Gustave Flaubert
Romance considerado iniciador do Realismo na Literatura Brasileira, Memórias
Póstumas de Brás Cubas inaugura técnicas modernas, ainda no século XIX, dentre
as quais aparecem a posição do narrador e a metadiscursividade, presente também
em outras obras machadianas, como por exemplo, Memorial de Aires (1908), em
que o Conselheiro faz um diário no qual comenta e critica as próprias anotações,
explicando-se quando passa alguns dias sem escrever.
Subjetivo, irônico e conhecedor da linguagem adequada para compor seu
relato, Brás Cubas conta suas memórias em primeira pessoa dialogando
constantemente com um narratário a quem se refere como o leitor. Esse narratário
ocupa o papel de confidente e companheiro do narrador durante sua empreitada e é
a quem faz comentários metadiscursivos, revelando suas hesitações com relação à
seqüência em que possa ser apresentado seu relato: “se devia abrir estas memórias
pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a
91
minha morte” (ASSIS, 1997, p. 17). Essas hesitações, que parecem apenas mostrar
a elaboração da história, estão dispostas ao longo do metadiscurso auxiliando na
construção da personagem.
[...] Fiquei desconsolado com esta reflexão, chamei-me
pródigo, lancei o cruzado à conta das minhas dissipações
antigas; tive (por que não dizer tudo?) tive remorsos. (grifo
nosso)
(ASSIS, 1997, p. 52)
Ao demonstrar a tentativa de omitir o sentimento de remorso por ter dado ao
almocreve que o salvara uma moeda mais valiosa quando o rapaz ficaria igualmente
agradecido com uma de menor valor, o defunto-autor deixa transparecer a avareza e
ingratidão de Brás Cubas jovem, que, como ressaltamos no capítulo anterior, são
frutos de uma educação frouxa.
O interlocutor machadiano aparece quando invocado pelo narrador Brás
Cubas, que o faz constantemente, convidando-o a interagir no desenvolver da
narrativa, referindo-se a ele, aconselhando-o:
Volúpia do aborrecimento: decora esta expressão, leitor,
guarda-a, examina-a, e se não chegares a entendê-la, podes
concluir que ignoras uma das sensações mais sutis desse
mundo e daquele tempo.
(ASSIS, 1997, p.56)
Por meio de suposições o defunto-autor instaura uma comunicação, inferindo o
que seu interlocutor possa vir a pensar, caracterizando-o por meio de uma analogia
com os capítulos de um livro dizendo que “capítulos compridos quadram melhor a
leitores pesadões; e nós não somos um público in-folio, mas in-12, pouco texto, larga
margem, tipo elegante, corte dourado e vinhetas... principalmente vinhetas...” (1997,
p. 53). Ao se colocar no mesmo patamar que os leitores, Brás revela suas
características tanto de autor como de leitor, mostrando, como o faz desde o
prólogo, certa repulsa aos romances românticos tão em voga até então.
92
Essa comunicação traz consigo comentários metadiscursivos sobre o estilo e o
conteúdo das memórias, sobre sua recepção, mas também mostra seu pensamento
diante de um público que não é dado a histórias com enredo bem elaborado e
complexo, que só espera uma narração direta e simples dos fatos:
Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e
não esteja daí a torcer-me o nariz, porque ainda não
chegamos à parte narrativa destas memórias. iremos. Creio
que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus
confrades, e acho que faz muito bem. Pois iremos. [...]
Vamos lá, retifique o seu nariz, e tornemos ao emplasto.
(ASSIS, 1997, p. 21)
Dita explicação também aparece na adaptação de André Klotzel, logo após um
jogo de suspense, feito pelo narrador, sobre os acontecimentos vindouros. O
defunto-ator de Memórias Póstumas demonstra a habilidade com que encadeia os
fatos da narrativa, ao mesmo tempo em que domina o estilo utilizado para a
construção de seu relato.
As reflexões metadiscursivas, que deixam implícitos aspectos estilísticos do
texto, sugerem que Brás Cubas sabe e utiliza o que agradará ao leitor encontrar num
romance, apesar de afirmar no prólogo que sua obra é uma biografia, que são suas
Memórias, e reiterar no desenrolar da história que “isto não é um romance, em que o
autor sobredoura a realidade”. O narrador recorrendo à metadiscursividade,
prestando esclarecimentos sobre seu texto, demonstra ter ciência da obra que está
realizando:
Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra,
com a pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do
século, obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual,
agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica nem
destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que
passatempo e menos do que apostolado.
(ASSIS, 1997, p. 21)
93
Como afirma Castro (2002, p. 68), “a relação pensamento e linguagem é a
grande questão do homem e narrador moderno”, visto que a maneira de exteriorizar
as idéias é por meio de palavras, que nem sempre, principalmente em se tratando
de Brás Cubas, significam o que aparentam à primeira leitura. O defunto-autor no
prólogo, que escreve Ao Leitor, após tecer considerações sobre o estilo adotado na
construção de suas memórias e a reação que espera dos leitores, encerra o último
período revelando que “a obra em si é tudo” (1997, p. 16).
Tudo se pode esperar dessa “obra difusa”, e pela linguagem, pelo jogo com as
palavras, pelos recursos metadiscursivos é que o narrador vai tecendo seu relato,
vai envolvendo cada vez mais o leitor, vai se construindo como autor ficcional e
personagem de suas Memórias. Brás domina o estilo e a linguagem, além de que
não ninguém melhor que ele para contar a história de sua vida, por isso, domina
também o modo como constrói os fatos e como se constrói, como vimos no capítulo
anterior. Ele sabe exatamente quando e o que revelar, quando e o que omitir,
quando e o que calar, a fim de que não se perca o interesse por sua narração.
Ademais, dá uma aparente liberdade ao leitor dizendo que se o “for dado à
contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; direto à
narração” (1997, p. 25), mas, logo após, incita-o a ler o relato por completo, pois “por
menos curioso que seja, sempre lhe digo que é interessante saber o que se passou
em minha cabeça durante uns vinte a trinta minutos”. Nessa passagem, mostra-se
um narrador manipulador, pois havia dito o saber de ninguém que houvesse
relatado o seu próprio delírio de morte.
Como dissemos anteriormente, o narrador construído por André Klotzel toma o
espectador pela mão e o conduz por entre as cenas enquanto os fatos lhe são
apresentados. Ele, assim como o narrador da obra literária, sabe como manipular de
modo a fazer que o público seja envolvido e se deixe agarrar por entre suas teias
discursivas, distinto da adaptação de Júlio Bressane, na qual o espectador, quando
não tem a câmera como guia, vê-se sozinho para compreender as imagens. Em
Memórias Póstumas, o narrador demonstra, por meio do metadiscurso verbal,
conhecer e acompanhar intimamente o espectador, inferindo suas expectativas e
desejos diante da história, assim como na obra literária. Machado de Assis e Klotzel
filtram a história pela perspectiva do narrador. Contudo, o filme de Klotzel, constrói a
narrativa e a personagem atrelando o verbal ao imagético, pois por meio dos closes,
94
dos travellings e da interpretação dos atores chegam ao espectador o Brás Cubas e
o defunto-ator. Bressane opta por transmutar o metadiscurso literário utilizando e
explicitando cnicas cinematográficas, como o aparelho de áudio ligado ao
microfone que possibilita a extração de sons do esqueleto e a película preta
cobrindo a lente da câmera, necessitando que seja retirado um pedaço para a
visualização da cena.
“É ao modo de organização da mensagem que devemos devotar nossa
atenção, a fim de observar-lhe o funcionamento”. A afirmação de Chalhub (1997, p.
13) leva a uma reflexão diante de Memórias Póstumas de Brás Cubas, pois,
observando-a por completo, percebemos que a obra está organizada de modo a
reter a atenção do leitor e a construir a personagem, caracterizando-a parágrafo a
parágrafo por meio do discurso, como mostramos no capítulo anterior, e do
metadiscurso, como no capítulo CII ‘O Repouso’, no qual comenta seus
sentimentos com relação à partida de Virgília devido à nomeação de Lobo Neves e,
ao recusar-se a contar uma atitude sua, revela características do jovem Brás:
Mas este mesmo homem, que se alegrou com a partida do
outro, praticou daí a tempos... Não, não hei de contá-lo nesta
página; fique esse capítulo para repouso do meu vexame. Uma
ação grosseira, baixa, sem explicação possível... Repito, não
contarei o caso nesta página.
(ASSIS, 1997, p. 131)
O defunto-autor utiliza o metadiscurso para construir Brás Cubas vivo ao
criticar os modos grosseiros e baixos de sua personagem e mostrar sua
insensibilidade e egoísmo por ter ficado feliz com a reviravolta política de Lobo
Neves, o qual ia viajar com a família para assumir uma província, pois, assim, ia
livrar-se dos olhares inquisidores da sociedade sobre seu relacionamento com
Virgília, sem se importar com os sentimentos dela com relação à separação.
O narrador está convicto de que domina esse jogo, no qual as peças são os
capítulos e o tabuleiro, o livro, e se vangloria disso mostrando aos leitores “com que
destreza, com que arte faço eu a maior transição deste livro”, e, para certificar-se de
que sua demonstração não passe despercebida, continua enfático: “Viram?
95
Nenhuma juntura aparente, nada que divirta a atenção pausada do leitor: nada”
(1997, p.30).
Os capítulos são peças fundamentais no jogo discursivo e metadiscursivo de
Brás Cubas, visto que está sempre ponderando qual deveria escrever e qual
suprimir, além disso, relembra assuntos tratados em capítulos anteriores ou evita-
os para que “não adiantemos os sucessos” (p. 39). Como num quebra-cabeça, o
narrador brinca com os títulos dos capítulos, a exemplo dos capítulos XXIII –‘ Triste,
mas curto’ e XXIV ‘Curto, mas alegre’, e a entender que na sua organização
textual conhece as expectativas e dificuldades de quem lê:
Não obstante, se eu não compusesse este capítulo, padeceria
o leitor de um forte abalo, assaz danoso ao efeito do livro.
Saltar de um retrato a um epitáfio, pode ser real e comum, o
leitor, entretanto, não se refugia no livro, senão para escapar à
vida. Não digo que este pensamento seja meu; digo que
nele uma dose de verdade, e que, ao menos, a forma é
pitoresca. E repito: não é meu”.
(ASSIS, 1997, p. 150)
Embora admita não ser seu o pensamento, Brás Cubas afirma compartilhar,
pelo menos em parte, com a idéia de que a Literatura funciona como refúgio, ao qual
o leitor recorre quando deseja escapar à realidade, ela é vista não como retrato da
vida, mas como simulacro dela.
Através dos comentários metadiscursivos e de seus ‘solavancos’, comparando
seu “estilo ao andar dos ébrios”, o narrador incita a curiosidade do leitor e o culpa
pela imperfeição de suas Memórias. Reafirmando sua condição de defunto, atribui à
pressa de viver do leitor o defeito do livro, visto que para Brás Cubas o tempo já não
é um inimigo, mas um aliado para que possa escrever suas memórias sem
atropelos, esmiuçando os detalhes e refletindo com relação ao estilo. No capítulo
LXXI ‘O Senão do Livro’, mais uma vez expõe seu ato de criação, tira o invólucro
da aura artística, assim como o faz Klotzel na cena em que o narrador profere
palavras equivalentes:
96
Começo a arrepender-me deste livro. o que ele me canse;
eu não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros
capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um
pouco a eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro,
traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo,
porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa
de envelhecer, e o livro anda devagar, tu amas a narração
direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu
estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda,
andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o
céu, escorregam e caem...
(ASSIS, 1997, p. 103)
O metadiscurso feito pelo defunto-autor não se dirige somente aos leitores, os
críticos também o contemplados em sua narrativa, porém, de maneira apenas
parcialmente positiva, pois no capítulo CXXXVIII ‘A Um Crítico’, Brás queixa-se de
ter sempre de dar explicações sobre seu discurso, e logo escreve o capítulo CXXXIX
‘De Como Não Fui Ministro d’Estado’, formado por reticências, para, em
seguida, no capítulo CXL ‘Que Explica o Anterior’, justificar o silêncio das
reticências: “Há coisas que melhor se dizem calando; tal é a matéria do capítulo
anterior. Podem entendê-lo os ambiciosos malogrados”. Ao explicar as reticências o
defunto-autor demonstra o pessimismo de Brás Cubas por ser um “ambicioso
malogrado”, não alcançando o cargo político que tanto almejara. A fuga das palavras
significa que não existem mais argumentos nem esperanças, Brás não era nem
marido, nem pai, nem político, como o narrador completa: “imaginem o desespero, a
dor, o abatimento do dia em que perdi a cadeira da câmara dos deputados. Iam-se-
me as esperanças todas; terminava a carreira política”. Brás Cubas, por vezes,
ocupa-se em explicar algo dito, utiliza-se da metadiscursividade ao longo de toda a
sua narrativa, a fim de evitar alguma interpretação, ou como forma de incitar
leitores e críticos, justifica-se.
Conquanto faça que o leitor volte sua atenção para o conteúdo de seu
discurso, a metadiscursividade em Memórias Póstumas de Brás Cubas funciona
como técnica para a dupla construção da personagem Brás Cubas, pois pela
narração simples e direta ele retrata os aspectos físicos e psicológicos que possuía
em vida, mas por meio do metadiscurso desvenda o que pensa e, nas entrelinhas,
97
como age o defunto-autor, sem deixar de revelar sutilmente características do jovem
Brás. Analisaremos como esses aspectos foram transmutados para as adaptações
cinematográficas.
5.2. EXTRALINGÜÍSTICO
Francamente, eu não gosto de gente que
venha adivinhando e compondo um livro
que está sendo escrito com método...
Machado de Assis
Christian Metz (apud VANOYE, 1994, p. 44) aponta a diferença existente entre
o romance e o filme argumentando que o romance é verbal por inteiro e a matéria do
filme é amplamente extralingüística. Contudo, essa afirmação deve ser tomada com
cautela, pois existem filmes que utilizam a narração verbal como mola mestra para
seu desenvolvimento e compreensão, caso em que as imagens funcionarão como
complemento para o verbal.
Esse é o caso do filme Memórias Póstumas (2001), de André Klotzel, pois se o
verbal fosse suprimido comprometeria seu entendimento e aceitação, visto que nele
as imagens têm seu significado atrelado ao discurso proferido pelo narrador, que
guia o espectador. Isso não acontece com Brás Cubas (1985), de Júlio Bressane, do
qual podemos dizer que é um filme cheio de imagens que são a pura significação e
exercem a função de narradoras, junto com a câmera, elas constroem os espaços e
as personagens, principalmente Brás Cubas, revelando, por meio do metadiscurso
cinematográfico, suas sensações diante dos acontecimentos retratados, como na
cena em que o rapaz está desolado devido à morte de sua mãe e a mera faz
panorâmicas rápidas pela sala mostrando como ele sentia-se após o forte golpe
recebido.
Tentando aproximar ao ximo sua adaptação ao texto machadiano, André
Klotzel, em Memórias Póstumas, transpõe do livro o metadiscurso, bem como o
comentado diálogo do narrador com o narratário, neste caso o espectador. Contudo,
98
não traduz as técnicas literárias em cinematográficas, trazendo, da mesma maneira
que no livro, Brás Cubas narrando sua história, tecendo considerações
metadiscursivas sobre seu andamento, sobre a pressa que tem o leitor em antecipar
os fatos. Essas intervenções ocorrem às vezes com voz off e em outras por meio de
um discurso feito pelo defunto-ator com um olhar diretamente dirigido ao espectador.
Na primeira cena do filme de Klotzel o público conhece o defunto-ator, o qual
se apresenta em duas situações: como defunto, no caixão, sendo sepultado, e como
defunto-narrador de suas memórias póstumas. Nesse momento, o diretor mostra,
sutilmente, aos espectadores a duplicidade da personagem principal, que a partir de
então se divide em Brás vivo e Brás defunto-narrador. A metadiscursividade, por
meio da reflexão sobre o estilo e a organização dos fatos, é revelada desde esta
cena, pois Brás Cubas faz divagações sobre como deveria começar a contar sua
vida, enquanto observa seu próprio funeral.
Em seguida, o espectador conhece o quarto de Brás, onde este aparece em
seus últimos minutos de vida. A cena, porém, não está posta sem nenhuma
explicação: o defunto-ator narra até os pensamentos que teve e, principalmente, seu
delírio. O narrador joga com o espectador, fazendo mistério sobre a mulher que o
visita, preferindo deixar a revelação para depois, e trava um diálogo unilateral, já que
ao ouvinte não é dado o direito de manifestar-se, advertindo-o de que “não fique a
Figura 5.1
Defunto-ator mostrando seu sepultamento ao
espectador (KLOTZEL, 1985)
99
remexer-se na poltrona”, os pormenores chegarão no tempo certo, porque para os
defuntos o tempo é companheiro e amigo.
Por vezes, a câmera faz close no defunto-ator, que conversa com o caro
espectador’, esclarecendo seus pensamentos juvenis ou a construção de suas
memórias. Demonstrando o domínio da linguagem e do estilo utilizado para revelar
sua história, Brás Cubas, ao estilo machadiano, faz diversas paradas para simples
divagações ou esclarecimentos sobre algo dito de maneira verbal ou visual.
Essas pausas, juntamente com as imagens, auxiliam na construção do
narrador ao mostrá-lo elegante, com olhar e tom de voz irônicos. A personagem
principal é construída na adaptação de Klotzel, principalmente por meio do discurso
do narrador, mas, da mesma forma que no livro, o metadiscurso auxilia nessa
construção, visto que, o diretor põe passagens inteiras da obra literária sem traduzi-
las à linguagem cinematográfica.
Para Fairclough (2001, p. 158) “o metadiscurso parece ser comum em
discursos em que é valorizada a apresentação do ‘eu’ em posição de controle”. O
caráter metadiscursivo da produção de Klotzel se apresenta por meio das pausas,
idas e voltas feitas por Brás em seu discurso, visto que uma valorização do
defunto-ator, único capaz de narrar suas memórias por completo e que, por esse
motivo, pode manipular o espectador, sobretudo ao construir sua imagem de defunto
despreocupado com os olhares sociais e a de Brás Cubas vivo, para quem o status
social aparecia como foco constante de sua existência.
Figura 5.2
O defunto-ator apresentando Virgília (KLOTZEL, 2001)
100
Sabendo disso, indagamos: Até que ponto o defunto/autor/ator, de Machado e
Klotzel, está despreocupado e despido das convenções sociais? Se o ‘olhar público’
não o incomoda, como se explica tamanha preocupação com o estilo em que
compõe suas Memórias? E a construção que faz de si mesmo, vivo e finado?
Refletindo sobre essas indagações e observando os textos literário e fílmico,
percebemos o quanto Brás Cubas se preocupa com as convenções sociais e com o
olhar público, pois durante toda sua narrativa está a justificar-se, a explicar-se, a
cuidar do estilo em que narra e explicitando a despreocupação com a sociedade.
Essa constante afirmação de que não se importa com as críticas sociais aparece
para despistar o leitor e tentar iludi-lo dessa despreocupação.
Júlio Bressane, apesar de afirmar que Machado de Assis já é um roteiro pronto,
opta por não apresentar um narrador-ator, como o faz Klotzel, mas por traduzir as
técnicas literárias às cinematográficas. Notamos a presença do narrador cinemático,
visto ser a câmera quem narra a história, porém, antes que a objetiva assuma esse
papel aparece o esqueleto que emite sons provocados pelo atrito do microfone em
seus ossos: é a personagem principal, que, na seqüência, está sentada na cadeira
do escritório de Brás de pernas cruzadas, pronta para ver o espetáculo, usando uma
cartola. O microfone dando voz ao esqueleto (defunto-autor) ratifica a idéia, muito
presente no livro e em ambas as adaptações, de espetáculo, e, principalmente, de
que a narrativa de Brás pertence ao mundo ficcional.
Figura 5.3
O esqueleto de Brás Cubas sentado no escritório
(BRESSANE, 1985)
101
Ao longo do filme, o defunto, representado por Luis Fernando Guimarães,
aparece algumas vezes diante das câmeras para fazer comentários metadiscursivos,
aos moldes do texto literário, e sobre seus pensamentos conforme as situações
retratadas, como exemplificamos no capítulo 3.
O livro do qual foi adaptado é constantemente referenciado, principalmente, por
meio dos títulos dos capítulos, como CONTANTO QUE ou PORQUE NÃO FUI
MINISTRO D’ESTADO, que o repetidos por Brás com ênfase e com uma
expressão pessimista e tristonha, remetendo à profunda dor relatada pelo narrador
do livro. O metadiscurso encontrado no filme de Bressane está nessas nuances que
remetem à elaboração da narrativa fílmica, mostrando o ponto de partida para a
construção da produção Brás Cubas e, conseqüentemente, da personagem
principal, como também está nas meta-imagens da obra cinematográfica.
A personagem é construída no filme de Júlio Bressane, sob uma ótica bastante
negativa, como um ser pessimista, debochado, sem personalidade, que está
acostumado a ser o centro das atenções. O diretor utiliza o plongée atrelado ao
close no rosto da personagem para remeter a essa necessidade de ser visto; o
contra-plongée e closes para caracterizar o pessimismo da personagem, como na
cena após a morte da mãe de Brás ou quando Brás e o pai estão na casa de Virgília
e o pai o aconselha a casar-se. Nesta cena a câmera está posicionada tão
verticalmente acima que o espectador tem a imagem dos dois de conversando,
vistos a partir da cabeça. Enquadramentos fora dos padrões clássicos para
demonstrar a ironia, o deboche, a volubilidade, como na cena em que Brás Cubas
fala sobre a função do nariz, na qual aparece apenas uma parte dele dentro do
quadro, também são técnicas de Júlio Bressane.
Júlio Bressane presta tributo a Machado de Assis quando o apresenta a moças
como Tarsila Amaral, Pagu e Anita Malfati, nomes consagrados do modernismo
brasileiro, aludindo ao fato de que Memórias Póstumas de Brás Cubas foi o
precursor do romance moderno no Brasil, ao mesmo tempo em que cita o autor do
livro no qual o filme foi baseado. Além disso, as figuras modernistas são
representadas por crianças, “jovens e a modernidade, uma combinação explosiva”
(BRESSANE, 1985), revelando que o movimento anunciado pela estética
machadiana apenas engatinhava. Machado é referendado, ainda, por meio de uma
fotografia sua que figura sobre o piano de Brás Cubas.
102
A cena em que o diretor entra para interferir na atuação é o ápice
metadiscursivo de seu filme, pois, aparece toda a equipe técnica com seus
equipamentos saindo detrás das câmeras para discutir sobre a posição em que
devem ficar para filmar uma relação sexual. É o que de mais próximo os diretores
poderiam fazer da obra de Machado de Assis, pois essa cena representa um
verdadeiro diálogo de meios semióticos e quebra de uma vez com qualquer
mergulho catártico.
Luis Fernando Guimarães (Brás Cubas) e Regina Casé (Marcela) indagam
sobre o tipo de filme, repetindo: “O filme é de época? É de época?” (BRESSANE,
1985), enquanto Bressane descortina os bastidores cinematográficos com o retrato
de como fazer um filme e quem está por trás dele, desmistificando ainda mais a aura
benjaminiana.
Na adaptação de Klotzel, de maneira mais sutil, o defunto-ator revela o jogo
cinematográfico quando ao entrar na cena em que apresentará a jovem Virgília o faz
pela porta esquerda e sai pela direita para retornar à cena paralisada na qual estão
Brás e seu pai, como se as cenas fossem separadas apenas por uma porta de
entrada e outra de saída.
Existem cenas em que Brás Cubas, ainda vivo, faz divagações com relação
aos episódios mostrados no filme por meio de uma conversa com o espectador. Em
outras são divagações do defunto, como quando fala sobre o modo como constrói
Figura 5.4
A equipe de produção discute aspectos técnicos
(BRESSANE, 1985)
103
seu relato, logo após a morte de sua mãe, dizendo que “talvez o espectador se
espante com a franqueza com que revelo minha mediocridade” (BRESSANE, 1985).
Por meio do metadiscurso, a exemplo do proferido nessas cenas, ou da
interpretação dos atores vai se construindo para o espectador da adaptação de Júlio
Bressane os dois Brás, vivo e defunto, os quais, à diferença de Klotzel, não
distinguimos pelas imagens, mas somente através do verbal. Porém, como
mostramos, Júlio Bressane emprega o discurso e metadiscurso cinematográficos
também na construção da personagem.
A música auxilia o desenrolar dos fatos, ela prepara o espectador para o que
acontecerá. Bressane mostra novamente os recursos utilizados para a produção do
filme quando coloca em cena um violoncelo sendo tocado no canto da sala, ou um
trio que canta e toca uma música fúnebre quando Lobo Neves morre, sons que
apareciam como música de fundo das cenas. Além disso, as letras das músicas
revelam uma espécie de síntese da situação apresentada e o estado no qual se
encontra a personagem, geralmente melancólico.
Existe apenas uma cena no filme de Júlio Bressane em que, assim como
acontece na obra literária, Brás fala sobre seu estilo, comparando seu relato aos
“ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram,
gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem... e caem...” (BRESSANE, 1985),
pois percebemos que para o diretor o primordial é a construção e apresentação da
personagem, e a exploração dos recursos cinematográficos, os quais utiliza para
enfatizar o metadiscurso fílmico, mas que é a transmutação do empregado na obra
machadiana.
No filme de Bressane, as situações são meio difusas, visto que as imagens
aparecem por vezes fora de foco, outras fora de enquadramento e as seqüências
podem ser isoladas sem nenhum prejuízo aparente, pois o diretor faz abruptos
cortes deixando uma seqüência de cenas independente das que a antecedem ou
sucedem, causando estranhamento no receptor pela maneira inusitada como é
mostrada. Lembremos que Júlio Bressane integra, assim como Glauber Rocha,
Sganzerla e Nelson Pereira dos Santos, o grupo de pioneiros das inovações
cinematográficas no Brasil, que geraram estéticas como o Cinema Novo e o Cinema
Marginal, que, por fugirem ao convencional não tiveram grande difusão ou
receptividade por parte do público, como mencionamos no capítulo 2.
104
As soluções encontradas pelos diretores das produções analisadas para
adaptar a obra machadiana são bem próximas, desde a seleção das passagens do
texto literário até a apresentação de pinturas que auxiliam o desenrolar da narração.
Contudo, é importante salientarmos as estratégias utilizadas para a transposição do
verbal advindo do texto literário: Klotzel opta por um roteiro priorizando o lingüístico,
que é apresentado por meio do discurso direto, no qual Brás Cubas narra,
caracterizando física e moralmente as personagens, mas não deixa os diálogos de
fora, pois do contrário seria um filme totalmente narrativo; Bressane faz uma escolha
distinta, na qual o discurso direto é empregado, mas com muitos diálogos e pouca
narração verbal, as personagens são apresentadas pela câmera, que é o narrador
principal e mostra cada detalhe presente na trama.
Brás Cubas foi construído por André Klotzel por meio do verbal. Através do
discurso e do metadiscurso, o espectador a personagem principal sendo
construída num flashback narrativo; o defunto-ator, com suas características físicas
e comportamentais, é desvendado diante do olhar objetivo da câmera. Embora o
defunto-ator tenha tentado manipular a opinião do público por meio de seu discurso
e metadiscurso, a ‘transparência’ da câmera de Klotzel não o permite. Júlio
Bressane constrói um Brás de tom mais debochado, o que percebemos pela escolha
de um ator cômico como Luis Fernando Guimarães para o papel, e também pelas
imagens reveladoras de um ser interesseiro e burlesco, que leva uma vida de eterno
bon vivant.
5.3. O METADISCURSO DE BRÁS CUBAS
Publicamos para não passar a vida a corrigir
rascunhos. Quer dizer, a gente publica um livro
para livrar-se dele.
Jorge Luís Borges
Como observamos nos subcapítulos anteriores, por meio de um jogo
discursivo, o autor ficcional de Memórias Póstumas de Brás Cubas introduz
105
passagens reflexivas, metadiscursivas, sobre seu processo de criação, revelando as
escolhas e dúvidas que experimentou enquanto escrevia, visando à construção
dupla da personagem Brás Cubas e a uma aproximação do leitor ao adverti-lo sobre
o conteúdo de suas memórias:
Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás
Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne ou de um Xavier
de Maistre, não sei se lhe meto algumas rabugens de
pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena
da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil de antever o
que poderá sair desse conúbio.
(ASSIS, 1997, p. 16)
O narrador tenta induzir o público a interpretar seu texto como memórias
regadas de melancolia e solidão, sensação reiterada por Klotzel em sua adaptação,
ao colocar o defunto-ator no cemitério se apresentando ao público com ar de
tristeza, e por Bressane ao mostrar em sua primeira cena um esqueleto deitado no
chão num ambiente fúnebre e o local em que as pessoas choram a morte de Brás.
Dällenbach (1979, p.51), ao classificar os tipos de intertextualidades, sugere a
existência de uma intertextualidade autárquica, a autotextualidade, ou seja, uma
relação de reduplicação interna. A autotextualidade está presente de forma bem
delineada na adaptação fílmica Brás Cubas, visto que, além de se tratar de releituras
de um texto literário, a produção de Júlio Bressane desvenda o próprio ato criador
de um filme. É o texto fílmico que alude ao seu processo de produção, tomando para
si o recurso da metadiscursividade, encontrada na obra adaptada.
Duplicação é como se pode chamar a existência de dois Brás, vivo e defunto,
nos textos literário e fílmicos, construídos de maneiras bem parecidas por meio do
metadiscurso ou da meta-imagem.
Brás Cubas, tanto no livro quanto nos filmes, tem consciência da narratividade
e literariedade de seu texto, por esse motivo traz à tona aspectos de sua própria
construção, e os reflete demonstrando que no texto moderno “a reflexão rompe a
pura imanência da forma” (ADORNO, 2003, p.60). Essa reflexão pode apresentar-se
de maneira verbal, por meio das divagações, sobretudo no livro, mas também de
maneira sonoro-visual.
106
Através do metadiscurso o narrador demonstra ser um conhecedor dos
mecanismos de linguagem necessários para tornar os seus escritos
verossimilhantes, mesmo sabendo que o apresentado em seu relato é apenas a re-
apresentação da realidade.
Como podemos perceber pela análise procedida, a metadiscursividade em
Memórias Póstumas de Brás Cubas apresenta reflexões sobre o estilo, comentários
com relação aos rumos tomados pela narração, bem como auxiliam na construção
da personagem principal, essas características proporcionam uma relação mais
próxima com o receptor, que se sente mais à vontade com o texto, haja vista dispor
de mecanismos que lhe ajudam a decifrar a obra, compreendê-la, discuti-la.
Observemos que os mecanismos de metadiscursividade presentes na obra literária
são repetidos nos filmes realizados, de modo a reforçar o duplo potencial do
metadiscurso: condutor, pois na adaptação de Klotzel vira fator de aproximação
entre espectador e filme por gerar uma identificação; e distanciador, visto que no
filme de Bressane desperta o espectador para os mecanismos cinematográficos,
ressaltando os recursos utilizados para a construção de uma ficção, não permitindo
a identificação e o mergulho do blico. O metadiscurso proporciona que, mesmo
árido e de cunho experimental, os discursos sejam compreendidos.
107
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As relações intersemióticas existentes entre obra literária e produções
cinematográficas compuseram a maior parte de nosso estudo, no qual observamos a
metadiscursividade presente nas palavras do narrador e na construção da
personagem Brás Cubas, não de forma desinteressada e sem critério, mas criando
um simulacro capaz de ‘angariar a simpatia’ dos leitores/espectadores, e aproximá-
los ao texto, seja literário ou fílmico.
André Klotzel e Júlio Bressane, diretores tão diferentes por suas estéticas, mas
com o texto machadiano como ponto convergente em suas trajetórias, assumiram a
missão de traduzir os signos verbais presentes no livro em imagens fílmicas.
Percebemos que Memórias Póstumas de Brás Cubas, enquanto texto literário,
funciona como intersecção entre os diretores de suas adaptações, porém, enquanto
produção cinematográfica demonstra ainda mais a distância ideológica e estética
que os separa. Klotzel, parafraseando a obra machadiana com uma adaptação mais
próxima do texto, utilizando tecnologia de som dolby, patrocínios governamentais,
personagem interpretada por ator ganhando alto cachê e todas as inovações
tecnológicas que tem à disposição. Bressane, dono de uma estética contestadora,
sem muito engajamento social, parodia o texto machadiano com uma personagem
ácida e cortante, mostrando porque, mesmo sem gostar da denominação, sua forma
de filmar se enquadra, em 1985, dentro do Cinema Marginal.
A principal explicação para as diferenças estéticas dos diretores em questão é
o mercado, pedindo novas formas de produção cultural e o contexto histórico em que
cada um está inserido, que marca seus estilos. Os diferentes estilos justificam as
conexões entre o texto ficcional e os elementos da linguagem cinematográfica, as
quais são muitas vezes claras, como em Memórias Póstumas, outras sugeridas,
como em grande parte de Brás Cubas.
Júlio Bressane buscou em sua adaptação criar analogias entre o texto literário
e o fazer cinematográfico, traduzindo além da história propriamente dita, o estilo em
que é contada, especificamente, os recursos metadiscursivos utilizados por
Machado de Assis para realizá-la. O diretor adota uma maneira diferenciada de fazer
cinema, indo contra os padrões vigentes da época, para conceber um texto mais
autoral, cheio de pequenas significações infiltradas nas cenas, como tomadas em
108
que se evidencia um uso mais experimental do plongée e contra-plongée, travelling
e closes.
O olhar do público é tão relevante que Machado em seu livro critica a
sociedade com sutileza, críticas que de igual maneira foram transmutadas para os
filmes, ou através das falas das personagens ou por meio das imagens, divergindo
de um autor, diretor, para outro: na adaptação de Klotzel vem em tom humorado e
na de Bressane em tom de ironia, de sarcasmo, chegando quase ao deboche, e de
crítica aos padrões clássicos de atuação e de fazer cinema.
A construção da personagem se dá de modo a torná-la personagem-narrador e
narrador-personagem dando uma plurivocalidade a Brás Cubas, que também se
auto-referencia, pois ao mesmo tempo em que a ação, a alusão a ela e sua
análise pelo defunto-autor. No livro e na produção de Klotzel, Brás pretendia com
seu emplasto a representação de si mesmo, onde o produto que traria seu nome iria,
por meio de imagens, representá-lo para si e para os outros, deixando latente a idéia
de espetáculo no qual tudo é pura encenação.
Ao estilo brechtiano, a metadiscursividade é utilizada para despertar o
leitor/espectador sobre os processos de construção de uma obra de arte e de suas
personagens, revelando as intervenções dos autores/diretores durante a produção.
No texto literário e no filme de André Klotzel, ao inserir passagens metadiscursivas,
autor ficcional e diretor demonstram uma reflexão em torno da estrutura e estilo em
que produzem a autobiografia, e o domínio da retórica posta em prática para
construir personagens e envolver leitores/espectadores, criando uma atmosfera de
intimidade. Na adaptação cinematográfica feita por Júlio Bressane, a
metadiscursividade aparece em reflexões provenientes da obra literária adaptada,
mas seu papel principal, e ousado, está em mostrar o fazer artístico no cinema, a fim
de desmistificá-lo.
O desvendar metadiscursivo permite uma identificação e aproximação maior do
leitor/espectador com a obra, pois, ao mesmo tempo em que o torna consciente dos
mecanismos de elaboração artísticos, deixa-o livre para discutir aspectos dela e,
como defende Brecht, mergulhar, sem vendas nos olhos, na ficção.
Por mais redundante que possa parecer, visto que o cinema é por si uma
mídia predominantemente não-verbal, a construção da personagem, bem como do
roteiro fílmico, se por uma riqueza de detalhes e imagens a fim de agregar
109
verossimilhança à história contada pelo defunto-autor, possibilitando o
reconhecimento e a adesão do público. Tornar-se conhecido e imortal por gerações
e gerações foi a ‘idéia fixa’ de Brás Cubas. Com essa pretensão decide aproveitar a
eternidade do além-morte para narrar suas Memórias deixando-as vivas e eternas
por meio da palavra impressa, contudo, evidentemente, nem nas mais profundas
aspirações o defunto-autor imaginou seus ecos verbais reverberando em signos
icônicos, demonstrando a contemporaneidade desse livro escrito de maneira a ficar
‘mais elegante e mais novo’.
Os diretores fizeram releituras diferentes da obra machadiana, cada um
priorizando um aspecto dela, que se adequasse à sua estética cinematográfica.
André Klotzel enfatiza o enredo e utiliza a metadiscursividade apenas verbalmente:
como no livro, nos diálogos do narrador com o espectador, esse verbal auxilia na
construção da personagem. Júlio Bressane não ênfase à história, mas à
transposição da metadiscursividade literária, o essencial da criação machadiana,
para os recursos metadiscursivos fílmicos, atrelando-os ao discurso constroem a
personagem principal. Embora as adaptações não tenham contemplado juntos o
enredo, o estilo e técnicas discursivas, transmutando-os para seu meio semiótico,
percebemos ser possível a tradução intersemiótica, visto que, como dissemos ao
longo de todo este estudo, ela envolve escolhas por parte dos diretores, os quais as
fazem de acordo com sua visão de cinema e, por isso, podem privilegiar apenas um
aspecto da obra adaptada.
Por ser o espetáculo do espetáculo é que o cinema fascina e seduz, por
colocar na tela mercadorias que não existem ou praticamente não existem, apenas
imagens criadas para dar a sensação de realidade. Por isso, ao terminar a exibição,
as luzes se acendem e temos a impressão de despertar de um profundo sono, o
sono da virtualidade.
110
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADAMS, Jon-K. Pragmatics and Fiction. Amsterdam: John Benjamins Publishing
Company, 1985.
ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34,
2003.
ARISTÓTELES. A poética. In: A poética Clássica/ Aristóteles, Horácio e Longino.
Trad.: Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 19-52.
ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 23ª ed. São Paulo:
Ática, 1997.
ASSIS, Machado de. Obra Completa de Machado de Assis. São Paulo: Nova
Aguilar, 1997.
AUMONT, Jacques et al. A estética do filme. São Paulo: Papirus Editora, 1994.
BARTHES, Roland. Ensaios Críticos. Coleção signos, volume 11. Lisboa: Edições
70, 1964.
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Trad.: Maria João da Costa
Pereira. Lisboa: Relogio d'Agua, 1991.
BAVCAR, Evgen. A imagem, vestígio desconhecido da luz. In: NOVAES, Adauto
(Org.). Muito além do espetáculo. São Paulo: Editora Senac, 2005.
BAZIN, André. Cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
historia da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BOURNNEUF, Roland; OUELLET, Real. As personagens. In: BOURNNEUF,
Roland; OUELLET, Real. O universo do romance. Trad.: José Carlos Seabra
Pereira. Coimbra: Livraria Almedina, 1976.
BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 2004
BRECHT, Bertolt. Estudos sobre o teatro. Trad.: Fiama Pais Brandão. ed. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
BRESSANE, Júlio. Alguns. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
______________. Brás Cubas. In: BRESSANE, lio. Cinemancia. Rio de Janeiro:
Imago, 2000, p. 49-59.
BRITO, João Batista de. Literatura no cinema. São Paulo: Unimarco, 2006.
111
__________________. Imagens amadas: ensaios de crítica e teoria do cinema.
Graphos. Revista da Pós-Graduação em Letras da UFPB. João Pessoa, V. I, 02,
junho de 1996, p. 9-28.
CADEMARTORI, Lígia. Períodos literários. São Paulo: Ática, 2004.
CÂMARA, Antônio da Silva. Sobre o filme Memórias Póstumas de Brás Cubas.
KinoDigital. 1, dez. 2006. UFBA. Disponível em:
http://www.kinodigital.ufba.br/edicao1/pdf/memoriaspostumas.pdf > Acesso em: 03
de ago. 2007.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces.ed. Trad.: Adail Ubirajara Sobral. São
Paulo: Cultrix/Pensamento, 2002.
CÂNDIDO, Antônio et al. A personagem de ficção. 10ª ed. São Paulo: Perspectiva,
2004.
CÂNDIDO, Antônio; CASTELLO, J. Aderaldo. Realismo, Parnasianismo,
Simbolismo. In: CÂNDIDO, Antônio; CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da
literatura brasileira História e Antologia. 6 ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 1994,
V. 1, p. 281 – 451.
CASTRO, Manuel Antônio de. O narrador e a obra: a linguagem como medida. In:
MARCHEZAN, Luiz Gonzaga, TELAROLLI, Sylvia (Orgs.). Cenas Literárias: a
narrativa em foco. Araraquara: UNESP, FCL, Laboratório Editorial; São Paulo:
Cultura Acadêmica, 2002, p. 57-74.
CATTRYSSE, Patrick. Film (adaptation) as translation: some methodological
proposals. In: Target 4:1, 1992, p. 53–70.
CHALHUB, Samira. A Metalinguagem. São Paulo: Ática, 1997.
COSTA, Beatriz. Aprendiz de Paulo Emílio. Disponível em:
http://www.cinemando.com.br/200211/entrevistas/andreklotzel_01.htm> Acesso em:
03 de ago. 2007.
COSTELLA, Antonio F.. Para apreciar a arte: roteiro didático. 3ª ed. São Paulo:
Editora SENAC São Paulo, 2002.
DÄLLENBACH, Lucien. Intertexto e autotexto. In: Intertextualidades. Coimbra:
Almedina, 1979, p. 51-76.
DINIZ, Taís Flores Nogueira. Tradução intersemiótica: do texto para a tela. In:
Cadernos de Tradução. Florianópolis, 4: 313-338, 1998.
112
EISENSTEIN, Sergei. O Sentido do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2002.
___________. A Forma do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
Enciclopédia Itaú Cultural Teatro
<http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseactio
n= personalidades_bibliografia&cd_verbete=790> Acessado em 04/set/2007.
FAIRCLOUGH, Norman. Intertextualidade. In: FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e
mudança social. Brasília: UNB, 2001, p. 133 – 174.
FORSTER, E. M.. Aspectos do romance. Trad.: Maria Helena Martins. Porto
Alegre: Globo, 1969.
GASS, William H.. A ficção e as imagens da vida. Trad.: Edílson Alkimim Cunha.
São Paulo: Cultrix, 1971.
GENETTE, Gérard. Palimpsestes: la litterature au second degré. Paris : Éditions
de Seuil, 1982.
_______________. Discurso da narrativa. Ensaio de método. Lisboa: Arcádia,
1979.
GONZAGA, Sergius. Real-naturalismo. In: GONZAGA, Sergius. Manual de
literatura brasileira. 3ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987, p. 83 – 116.
HAMON, Philippe et al. Para um estatuto semiológico da personagem. In: SEIXO,
Maria Alzira. Categorias da Narrativa. Beira Douro: Lisboa, 1976.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Lisboa: Edições 70, 1985.
ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz
Costa (org.). Teoria da Literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002, vol. 2, p. 955-987.
JAKOBSON, Roman. Aspectos lingüísticos da tradução. In: JAKOBSON, Roman.
Lingüística e comunicação. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo:
Cultrix, 1991, p. 63-72.
JOLY, Martine. A imagem e sua interpretação. Trad.: José Francisco Espadeiro
Martins. Lisboa: Edições 70, 2002.
JÚNIOR, Gonçalo. Na tela, obra machadiana tem resultado desigual. EntreLivros
– nº 07. São Paulo: Duetto, 2005, p. 42-43.
LEFEVERE, André. Translation, rewriting & the manipulation of literary fame.
London and New York: Routledge, 1992.
113
LEITE, Lígia Chiappini. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1989.
LEITE, Sidney Ferreira. Cinema Brasileiro: das origens à Retomada. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 2005.
LUKÁCS, Georg. Teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000.
LYRA, Bernadette. A nave extraviada. São Paulo: Annablume: ECA – SP, 1995.
NASSAR, Raduan. Um copo de cólera. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
NOVAES, Adauto (Org.). Muito além do espetáculo. São Paulo: Editora Senac,
2005.
OLIVEIRA, Rejane Pivetta de. Literatura, cinema e produção de simulacros. In:
SARAIVA, Juracy Assman (org.). Narrativas verbais e visuais – leituras refletidas.
Vale do Rio dos Sinos: UNISINOS, 2003, p. 27-41.
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia: a construção do personagem. São Paulo:
Ática, 1989.
PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora
SENAC, Instituto Itaú Cultural, 2003.
PEREZ, Clotilde. Semiótica: origem e conceito. In: Signos da Marca:
expressividade e sensorialidade. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004.
PESSOA, Fernando. Poesias. ___________:Itatiaia, 2005.
PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2004.
PLAZA, Júlio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2001.
REICHMANN, Brunilda T. O que é metaficção? Narrativa narcisista: o paradoxo
metaficcional, de Linda Hutcheon. 2006.
<http://mestrado.uniandrade.edu.br/links/menu2/publicacoes/metaficcao.pdf>
Acessado em 28/mar/2008.
RIEDEL, Dirce rtes. Meias-verdades no romance. Rio de Janeiro: Achiamé,
1980.
ROCHA FILHO, Rubem. A personagem dramática. Rio de Janeiro: INACEN, 1986.
RODRIGUES, Cristina Carneiro. Tradução e diferença. São Paulo: Editora UNESP,
2000.
RODRIGUES, Leandro Garcia. Cazuza: a Bricolagem Crítica do Rock
<http://www.criticaecompanhia.com/leandro.htm> Acessado em 04/set/2007.
SANTAELLA, Lúcia. Semiótica aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson Learning,
2004.
114
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis.
São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000.
SÉRGIO, Ricardo. O monologo interior e o solilóquio. Disponível em <
http://recantodasletras.uol.com.br/visualizar.php?idt=405046> Acessado em
21/set/2007.
SHAKESPEARE. William. Hamlet. São Paulo: Martin Claret, 2000.
SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. A estrutura do romance. Coimbra: Livraria
Almedina, 1974.
TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. Transfilmar é criar no vazio (Júlio Bressane em
videogaláxias). In: TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. O terceiro olho: ensaios de
vídeo e cinema: (Mário Peixoto, Glauber Rocha e Júlio Bressane). São Paulo:
Perspectiva: FAPESP, 2003, p. 93 – 128.
TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas. Trad.: Leyla Perrone-Moisés. São
Paulo: Perspectiva, 2004.
________________. Literatura e Significação. Trad.: Antônio José Massano.
Lisboa: Assírio & Alvim, 1967.
WOLFE, Francis. Por trás do espetáculo: o poder das imagens. In: NOVAES, Adauto
(Org.). Muito além do espetáculo. São Paulo: Editora Senac, 2005.
VANOYE, Francis e GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Trad.
Marina Appenzeller. Campinas, SP: Papirus, 1994.
XAVIER, Ismail. O Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
Memórias Póstumas: Notas de Produção
http://www.webcine.com.br/notaspro/npmempos.htm - Acessado em 12/01/2007.
CINEMATOGRAFIA
BRESSANE, Júlio. Brás Cubas. Embrafilme, 1985.
KLOTZEL, André. Memórias Póstumas. Superfilmes, 2001.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo