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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
EMANUEL SANTANA
Conexões:movimentosocial,educaçãopopularecinema
A experiência do Movimento dos Atingidos por Barragens de Chapada dos Guimarães – MT
com o Cinema Circulante
Cuiabá-MT
2008
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2
EMANUEL SANTANA
Conexões:movimentosocial,educaçãopopularecinema
A experiência do Movimento dos Atingidos por Barragens de Chapada dos Guimarães – MT
com o Cinema Circulante
Dissertação ao Programa de Pós-Graduação em
Educação, do Instituto de Educação da Universidade
Federal de Mato Grosso. Área de concentração
Educação, Cultura e Sociedade. Linha de Pesquisa
Movimentos Sociais, Política e Educação Popular, como
requisito à obtenção do título de Mestre em Educação.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Augusto Passos
Cuiabá-MT
2008
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S232c Santana, Emanuel
Conexões: movimento social, educação popular e cinema:
A experiência do Movimento dos Atingidos por Barragens de
Chapada dos Guimarães – MT com o Cinema Circulante / Emanuel
Santana.
Cuiabá: UFMT / IE, 2008.
163 p.
Dissertação ao Programa de Pós-Graduação em Educação,
do Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso. Área
de concentração Educação, Cultura e Sociedade. Linha de Pesquisa
Movimentos Sociais, Política e Educação Popular, como requisito à
obtenção do título de Mestre em Educação.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Augusto Passos
Referências: p. 158 – 163
CDU – 37.014:791.43
Índice para catálogo sistemático
1. Movimentos sociais
2. Educação popular
3. Linguagem audiovisual
4
5
AGRADECIMENTOS
Graças a Deus eu tive ajuda de pessoas maravilhosas que me possibilitaram chegar até aqui.
Compartilham comigo mais que idéia e existência.
À minha mãe Esmeralda que me deu a vida e à minha esposa Márcia que deu sentido a ela.
Ao meu filho Gabriel por encher minha vida de alegria e ao meu filho Tiago que está prestes a
nascer e me trazer novamente a honra de ser pai.
Aos meus irmãos Lucas e Mabel por nossa infância e história, que me ajudam a avançar cada
dia na minha trajetória.
Ao meu irmão e amigo Paulo Divino pelas tardes de discussões sobre os problemas do
universo e os temas desta tese.
Ao meu orientador, médico e pajé Luiz Augusto Passos pelo ser maravilhoso que é. Por ter
me acolhido e guiado com carinho e dedicação paternal.
Ao meu pai José Lima Santana.
Aos meus colegas do GPMSE e da Universidade, por toda contribuição que fizeram para
minha pesquisa.
À minha amiga Claudia Moreira que me ajudou a laçar comunicação e educação.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Educação, fundamentais no meu percurso
de mestrado.
Às professoras Christa Berger e Lucia Helena pelo privilégio de tê-las em minha banca e
pelas contribuições que fizeram para o meu trabalho.
6
À Ana, Carlita, Cida e Virgílio pela colaboração e disponibilidade. E por terem me feito,
novamente, sonhar e acreditar num mundo melhor.
7
RESUMO
Esta Dissertação de Mestrado apresenta os resultados de uma pesquisa que investigou
o impacto de um projeto audiovisual de educação popular na elevação da consciência política
e social de quatro militantes do Movimento dos Atingidos por Barragens da região de
Chapada dos Guimarães. Revelo que as oficinas do projeto Cinema Circulante
disponibilizaram aos seus alunos os conhecimentos e as ferramentas para transpor o status de
sujeito puramente receptor de produtos audiovisuais, para um status de ator/ realizador de
produtos audiovisuais, potenciando sua capacidade de atuação política através de um
procedimento de alfabetização audiovisual. Dentro da perspectiva fenomenológica, realizei
entrevistas em profundidade com os alunos e o coordenador do projeto, com intuito de
desvendar as conexões espaciais, temporais, sociais, culturais e econômicas que os levaram a
integrar o movimento social do qual fazem parte e o projeto de educação popular Cinema
Circulante, estabelecendo um processo educacional com vínculo na interculturalidade.
Tomando como pontos de referência e observação quatro sujeitos participantes do curso e que
também participaram da produção do vídeo documentário que foi o produto final do projeto
naquela comunidade, pretendi compreender as possíveis contribuições da iniciativa de
educação popular do projeto Cinema Circulante, averiguando a sua contribuição para o
aprimoramento da capacidade de organização daquela comunidade, bem como o tributo do
projeto a tomada de consciência dos participantes e por extensão a comunidade.
Palavras-chave: Movimentos sociais. Educação popular. Linguagem audiovisual.
8
ABSTRACT
This Dissertation of Master degree presents the results of a survey that investigated the
impact of an audiovisual project of popular education in raising awareness and social policy
of four militants of the Movement of Affected by Dams in the region of Chapada dos
Guimaraes. I show that the workshops of the project “Cinema Circulante” made available to
their students the knowledge and tools to implement the status of subject purely recipient of
audiovisual products, for a status of actor / maker of audiovisual products, boosting its
capacity to act through a political process of audio-visual literacy. Within the
phenomenological perspective, I performed in-depth interviews with students and the
coordinator of the project, in order to unravel the connections spatial, temporal, social,
cultural and economic that led to integrate the social movement of which are part and the
project of popular education “Cinema Circulante”, establishing a link in the educational
process with interculturality. Taking as points of reference and observation four subject
participants of the course and who also participated in the production of video documentary
that was the final product of the project in that community, I wanted to understand the
possible contributions of the initiative of popular education project of “Cinema Circulante”,
cheking its contribution to improve the capacity of organization of that community, and the
tribute of the project raising the awareness of participants and by extension the community.
Keywords: Social movements. Popular education. Audiovisual language.
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SUMÁRIO
1 - INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 10
2 - A LINHA METODOLÓGICA ................................................................................... 14
3 - O MAB NO CONTEXTO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL ............ 23
3.1 - O MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS ...................................... 37
4 - O CINEMA CIRCULANTE ....................................................................................... 59
4.1 – O CINEMA CIRCULANTE COMO UMA AÇÃO DE EDUCAÇÃO POPULAR .. 71
5 - CONEXÕES O MAB VIVO ....................................................................................... 76
6 - CONEXÃO: IMAGEM EM MOVIMENTO E MOVIMENTOS SOCIAIS ........ 126
6.1 - A LINGUAGEM AUDIOVISUAL .......................................................................... 136
6.2 - A ALFABETIZAÇÃO AUDIOVISUAL ................................................................. 147
7 – CONSIDERACOES FINAIS: COMUNICAÇÃO, CULTURA E POLÍTICA
EM UMA NOVA PRÁTICA DA COMUNICAÇÃO ................................................... 150
8 – REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 158
10
1 - INTRODUÇÃO
A educação popular tem sido um instrumento estratégico para a transformação social.
A partir da mobilização da gama de conhecimentos e vivências pertencentes às diversas
“minorias” que se mobilizam em torno de um projeto educacional que tenha como base a
apropriação de uma conscientização política, esses grupos têm conseguido transpor as
barreiras impostas pelas limitações da sociedade brasileira contemporânea.
Os indivíduos e grupos pertencentes às camadas populares e subalternas se defrontam
diariamente com entraves de ordem econômica, política, social, cultural e ideológica, que
tende a relegá-los aos patamares mais baixos da sociedade. Nesse sentido, os procedimentos
qualificados como educação popular têm se demonstrado de grande valor para transpor ou
minimizar essas barreiras.
Essas iniciativas, ainda bem menores do que a demanda, contam com uma
diversificação dos seus formatos de aplicação, que consideram as necessidades e também os
anseios de vivenciações do público a que a educação popular se destina.
Nesse sentido, projetos que contemplem a difusão, capacitação e criticidade sobre os
principais meios de comunicação contemporâneos como rádio, vídeo, cinema e internet, têm
crescido e se multiplicado pelo Brasil. Uma das iniciativas que têm obtido bons resultados de
receptividade são os projetos que visam levar experiências audiovisuais, ou cinematográficas
para comunidades que estejam fora do eixo comercial dos cinemas.
Em nível nacional, empresas e entidades como a Telemar e o SESC executam e/ou
patrocinam ações que levem o cinema até as comunidades carentes em estados como Rio de
Janeiro, Minas Gerais, Bahia, entre outros.
Em Mato Grosso, essa iniciativa ocorre por meio do projeto Cinema Circulante, mas
com uma diferença, que faz muita diferença: além da exibição de filmes, as pessoas da
11
comunidade podem participar de oficinas de iniciação à produção audiovisual, levando-as a
vivenciar além da experiência de assistir a uma narrativa ficcional projetada em uma tela, a
experiência do fazer o produto semelhante ao assistido e, posteriormente, compartilhá-lo com
membros da sua e de outras comunidades.
Esta Dissertação de Mestrado “Conexões: movimento social, educação popular e
cinema – a experiência do Movimento dos Atingidos por Barragens de Chapada dos
Guimarães/MT com o Cinema Circulante” apresenta os resultados de uma pesquisa que
investigou o impacto de um projeto audiovisual de educação popular, que disponibilizou aos
seus alunos conhecimento e as ferramentas para transpor o status de sujeito puramente
receptor de produtos audiovisuais, para um status de ator/realizador de produtos audiovisuais,
podendo ter, ou não, certa influência na vida e nas histórias dos sujeitos estudados,
potencializando sua capacidade de atuação política.
Tomando como pontos de referência e observação quatro sujeitos participantes do
curso e que também participaram da realização do vídeo documentário, o qual foi produto
final do projeto naquela comunidade, pretendi compreender as possíveis contribuições da
iniciativa de educação popular do projeto Cinema Circulante, averiguando a sua contribuição
para o aprimoramento da capacidade de organização daquela comunidade, bem como o
tributo do projeto a tomada de consciência dos participantes e por extensão a comunidade.
Como parte da pesquisa, entrevistei ainda, o facilitador que ministrou o curso e a oficina.
Dentro da perspectiva fenomenológica, propus-me a realizar entrevistas com quatro
militantes do MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens - que participaram das oficinas
do Cinema Circulante e também com um dos coordenadores do projeto, com o intuito de
desvendar as conexões espaciais, temporais, sociais, culturais e econômicas que os levaram a
integrar o movimento social do qual fazem parte e o projeto de educação popular Cinema
Circulante, estabelecendo um processo educacional com vínculo na interculturalidade.
Parti do pressuposto de que ao tomarem posse dos instrumentos de produção
audiovisual, esses sujeitos (alunos) pudessem trabalhar o seu repertório de vida para
desenvolver um material a ser vivenciado posteriormente por outras comunidades, outras
pessoas, de outros lugares por onde eles nem imaginam passar. Uma vez que os participantes
12
da oficina trabalhassem o seu potencial crítico e reflexivo, estariam em melhores condições de
compreender e transformar o seu cotidiano no mundo contemporâneo.
Por considerar o caminho percorrido ao longo do processo de educação popular do
projeto Cinema Circulante tão rico e variado quanto a experiência de vida de cada ser
humano, propus-me a referenciar esse estudo não pela coleta de dados estatísticos e
inconvenientemente distantes da profusão de experiências que formaram as turmas do projeto,
mas pela apreensão e compreensão daquilo que o Cinema Circulante significou para a
aquisição da consciência política, no contexto da linguagem audiovisual, dos sujeitos
participantes da oficina ministrada na comunidade do entorno do distrito de João Carro, em
Chapada dos Guimarães.
A escolha dessa comunidade, face às outras seis onde o projeto ministrou oficinas, tem
como razão o fato dessa comunidade ser o foco de um movimento popular de resistência:
Movimento dos Atingidos por Barragens, que protesta em relação à transformação das suas
vidas, para pior, a partir da construção de barragens, nesse caso, a Barragem de Manso.
Partindo de tais pressupostos e seguindo a linha metodológica da fenomenologia,
busquei avaliar as eventuais mudanças na percepção sócio-política desenvolvida nos sujeitos
observados; destacar as possíveis ações sócio-políticas empreendidas pelos sujeitos a partir da
realização da oficina; confrontar as mediações disponíveis, antes e depois do processo
educacional do projeto Cinema Circulante nos sujeitos observados; fazer uma avaliação plural
do processo afim de contribuir para eventuais aprimoramentos metodológicos do projeto
educacional Cinema Circulante e, por fim, compreender eventuais transformações desta
aprendizagem no repertório de lutas da comunidade contra as barragens.
Para realizar esse percurso, principio com um breve périplo pelos conceitos de
movimentos sociais no Brasil, destacando as principais contribuições teóricas da atualidade
para a discussão sobre a natureza dos movimentos sociais, sua capacidade de intervenção na
realidade e a legitimidade das suas postulações.
Nesse momento não busco discutir em profundidade as diversas concepções de
movimentos sociais, busco, sobretudo localizar a atuação do Movimento dos Atingidos por
Barragens no contexto dos novos movimentos sociais que emergiram no Brasil a partir do
13
final dos anos 60 e com mais evidência nos anos 70 e que podem ser inseridos na categoria de
movimentos sociais na perspectiva da evolução histórica da Modernidade e que procura
romper com a dicotomia classista da concepção anterior dos antigos movimentos.
Ato segundo, procuro localizar o surgimento do Movimento dos Atingidos por
Barragens no Brasil e em Mato Grosso, especialmente no município de Chapada dos
Guimarães, como um processo de resistência das populações locais ao estabelecimento por
parte do Estado e das grandes corporações energéticas e financeiras do complexo hidrelétrico
nacional.
Em seguida, no Capítulo “O Cinema Circulante”, parto das contribuições de Paulo
Freire para localizar a ação do Cinema Circulante como parte importante de um processo de
tomada de consciência, de libertação individual e comunitária, explicando a natureza do
Projeto, suas implicações para a comunidade e, sobretudo os seus efeitos mobilizadores. Uso
para tanto as contribuições de uma entrevista que me foi concedida por Sérgio Brito, um dos
idealizadores e realizador do projeto Cinema Circulante.
Depois de realizar o histórico do surgimento do MAB em Mato Grosso, suas lutas e o
processo de resistência das populações atingidas, e de ter situado o Cinema Circulante,
introduzo as informações obtidas através de quatro entrevistas realizadas com militantes do
movimento que participaram das oficinas do projeto Cinema Circulante: Ana Neves de
Miranda, Carlita Neves de Miranda, Cida Maria Dias Lessa e Virgilio Bispo Alves de
Miranda.
As conexões entre a imagem em movimento – oriunda da linguagem audiovisual – e
os movimentos sociais são analisadas em um capítulo específico, onde abordo de forma
explícita a maneira como os diversos movimentos sociais têm se servido da produção cultural
e informacional em meios de comunicação de massa e/ou que se utilizam da linguagem
audiovisual para incrementar sua capacidade de interação com a realidade. Em seguida
discuto especificamente a forma da linguagem audiovisual e aponto para a necessidade do
estabelecimento, por parte das instituições educacionais, de mecanismos sociais de
alfabetização audiovisual.
A dissertação é concluída com uma discussão sobre comunicação, cultura e política
em uma nova prática da comunicação social.
14
2 - A LINHA METODOLÓGICA
A Harmonia Oculta
A harmonia oculta
É superior à aparente
A oposição traz concórdia
Da discórdia
Nasce a mais bela harmonia.
É na mudança
Que as coisas encontram repouso.
As pessoas não compreendem
Como o divergente
Consigo mesmo concorda
Há uma harmonia de tensões contrárias
Assim como a do arco e da lira.
O nome do arco é vida.
Mas sua função é a morte.
Bhagwan Sheree Rajneesh
15
No início da minha pesquisa a intenção era estudar o projeto Cinema Circulante como
uma ferramenta educacional profissionalizante. Nos primeiros passos percebi sua
inviabilidade, então passei pesquisar a apropriação e ressignificação da linguagem
audiovisual, mas ao decorrer da pesquisa ficou evidente que a linguagem era só a ponta de um
iceberg chamado ser humano.
Foi a clareza de não conseguir abarcar o todo que me fez mudar novamente e estudar
as particularidades compartilhadas por pessoas que as conectam em torno de um movimento.
Foi o caráter discreto das conexões que me chamou a atenção num processo contínuo de
transformação e questionamento do estado social e econômico vigente.
Tenho a convicção, orientado pela fenomenologia, de que não deve haver um método
predeterminado a priori, para se trabalhar em uma pesquisa com sujeitos cuja humanidade
particular conjugam dimensões universais e singularidades que os definem nos próprios
processos de vida e de luta. Nossa trajetória mostra isso. Isso impõe à pesquisa científica um
caráter dinâmico. A mudança é um aspecto fundamental da realidade e dos homens que a
vivem, transformam e por ela são transformados.
No entanto é possível reconhecer certos norteamentos para o trabalho de pesquisa nas
ciências humanas e sociais. Creio que um deles esteja na capacidade de olhar e pensar a
ciência com a sua dinâmica. De fato, não há por que considerar as ciências exatas desumanas
e as ciências humanas como sendo inexatas. Porém, antes que um abutre de silêncio venha me
devorar as entranhas, roer minha alma e a minha própria miséria, antes que eu cale diante na
minha vergonha, acrescento a esse pensamento aquela passagem famosa de Bertrand Russell
onde ele diz algo parecido com “a evidência é sempre inimiga da exatidão”:
Não é minha pretensão argüir aqui uma verdade absoluta, ao contrário, imagino que no
âmago dessa conexão de múltiplas teias que compõem o Universo onde cabem e interagem
sujeitos, objetos, fenômenos e interpretações, há espaço para verdades boas e verdades más.
Há espaço para mentiras sinceras e sinceridades mentirosas. E talvez o ponto chave na
pesquisa de qualquer intelectual não resida necessariamente em determinar qual verdade é
mais verdadeira, mas em confessar com honestidade quais são os princípios norteadores da
sua caminhada: é preciso que a escolha seja feita e que seja também revelada, pois ao fazê-lo
16
estamos a meio caminho de objetivar as nossas motivações subjetivas e indicar aos que
querem percorrer um caminho semelhante, os passos que damos para o erro e para o acerto.
A opção pela linha metodológica da fenomenologia não torna mais fácil essa tarefa.
Primeiramente porque em torno dos possíveis significados do conceito poderíamos construir
bem mais que uma simples Dissertação de Mestrado e, além disso, não é o objetivo desta
esgotar as significações do conceito, ou ainda, aprofundá-lo desnecessariamente a ponto de
perder o foco do trabalho.
Na medida em que existem várias, e não uma única fenomenologia, a metodologia
fenomenológica de pesquisa sofre variações, de acordo com o pensamento filosófico que a
sustenta. Segundo Zuben
1
, Merleau Ponty teria dito que “A Fenomenologia visa a descrever
as coisas e não sua explicação ou análise como uma realidade em si”. Nesse sentido, esta
Dissertação de Mestrado, do ponto de vista da fenomenologia, é apenas uma tentativa de se
descrever os múltiplos significados da experiência vivenciada pelos sujeitos.
Isso porque – e esta parece ser uma característica de todos os pesquisadores neófitos –
sempre que se inicia uma pesquisa tem-se a ambição de fornecer ao leitor todas as explicações
possíveis e imagináveis, de analisar cada aspecto da realidade investigada e, ao final, proferir
o veredicto “imparcial” da ciência. Quando a atenção está voltada para um fenômeno pelo
qual se nutre uma admiração, respeito ou ainda diante do qual se emociona – ou até apaixona-
se -, então invariavelmente sente-se portador de uma “verdade” que precisa ser revelada ao
mundo.
Confesso que me apaixonei pelo fenômeno que me propus a estudar. Por isso, se por
um lado não poderei ser acusado de compactuar com aquele postulado da neutralidade
científica, é provável que possa pecar por não ser capaz de simplesmente usar a metodologia
para descrever o que tento estudar, sem deixar que o fenômeno se contamine com minhas
emoções pessoais.
1
Newton Aquiles Von Zuben, Fenomenologia e Existência: Uma Leitura de Merleau-Ponty. Disponível em:
<http://www.fae.unicamp.br/vonzuben/fenom.html>
17
Quero fazer uma breve digressão para depois retornar a este ponto. De acordo com o
Doutor Cláudio Aparício Baptista, do Instituto de Combate ao Enfarte do Miocárdio, no
artigo intitulado Medicina Baseada em Evidências: Tendenciosidades Prejudicam o Conceito,
há cada vez mais profissionais da Medicina se movendo contra a teoria clássica desta ciência
baseada em evidências, para então incorporar novos valores multiculturais, organizacionais,
centrados no paciente e baseado na realidade e no contexto de cuidados da saúde. Isso porque,
de acordo com ele:
A medicina baseada em evidências tem sido considerada por muitos como um Santo
Gral da prática médica sendo definida como um consciente, explícito e judicioso uso
da melhor evidência corrente na tomada de decisões para o cuidado médico de
pacientes individuais. (...) O argumento e aspecto chave para a medicina baseada em
evidências foi o desenvolvimento da pesquisa de resultados, com estudos
sistemáticos e de larga escala, para verificação dos efeitos das diferentes ferramentas
de diagnósticos ou terapias, quando aplicadas a um largo número de pacientes. Isto
foi facilitado pelo largo uso de computadores para registro e análise de dados
médicos e a padronização de dados de combate e de tratamento tornando-se,
teoricamente, possível conhecer mais precisamente e certamente o que é, e o que
não é a terapia efetiva. (BAPTISTA)
Nota-se que as tais evidencias nas quais se baseiam a ciência médica são tomadas
como que “sagradas”, pois estariam completamente de acordo com os mais altos e perfeitos
arcanos da ciência objetiva. Entretanto, diz o artigo “como se costuma dizer popularmente, na
prática a teoria é outra. (...) poucos testes incluem medidas adequadas de qualidade de vida.
Os dados quanto aos custos são pobremente apresentados” (BAPTISTA).
Posso fazer um link para a problemática colocada pela fenomenologia: parece-me que
o erro central dessa medicina clássica é justamente o de exagerar nos aspectos supostamente
objetivos da relação médico-método-paciente, que poderia ser traduzida ainda como sujeito-
método-objeto. Há um considerável desprezo pelos aspectos humanísticos na medida em que
se perde de vista uma visão holística que buscaria abranger, junto com a metodologia
científica do laboratório, as subjetividades do indivíduo, ou melhor, dos indivíduos, já que
paciente e médico são seres humanos.
Além disso, outra grande objeção apresentada pelo pesquisador à suposta natureza
infalível desse tipo de medicina é a de que “os aspectos éticos dos testes são freqüentemente
negligenciados. O ponto de vista dos pacientes não é analisado ou é esquecido, e participantes
nos testes freqüentemente têm um limitado entendimento do que está acontecendo”.
(BAPTISTA).
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Além do que, “testes usualmente são pobremente administrados. Marqueteiros podem
usar os testes para levar adiante seus próprios interesses de lucro, etc.” (BAPTISTA). Nesse
sentido, é importante frisar os malefícios de uma ciência supostamente imune às imperfeições
humanas. Na medida em que se negligencia a importância e o alcance das particularidades de
cada um dos sujeitos e fenômenos objetos envolvidos em qualquer atividade humana, numa
louca tentativa de enquadrá-los dentro de concepções lineares, esquemáticas, mesmo
supostamente “cientificamente objetivas”, a subjetividade, sem que percebamos, sem ser
convidada, entra pela porta dos fundos e se instala nos interstícios da argumentação, nas
entrelinhas, e nas mensagens subliminares.
Devo frisar novamente o ponto central dessa “objetividade”, dessa certeza matemática
que perpassa a maior parte das ciências, mesmo aquelas que consideram a si mesmas humanas
ou sociais, que é o uso de recursos, metodologias e procedimentos que só reconhecem o fazer
científico quando ele está intrinsecamente relacionado com a objetividade matemática: “pelo
largo uso de computadores para registro e análise de dados médicos e a padronização de
dados de combate e de tratamento tornando-se, teoricamente, possível conhecer mais
precisamente e certamente o que é, e o que não é, a terapia efetiva, conforme diz o estudo
acima citado.
E ainda mais, a resposta a essa maré, indicada pelo pesquisador é justamente
incorporar valores multiculturais, centrados no paciente e baseados na realidade e no contexto
dos cuidados com a saúde; ou seja, refazer o percurso da objetividade, mas dessa vez tomando
o cuidado de incluir, com o máximo de rigor e honestidade o solo no qual cada objeto deita
suas raízes; conhecer as íntimas conexões de cada um dos fenômenos estudados, na
perspectiva de relações polissêmicas; ou ainda, antes de enquadrar o fenômeno dentro da
camisa de força do método e da teoria, saber remover as pedras do caminho e permitir que ele
se mostre tal como veio ao mundo.
Essa breve digressão pelos caminhos da Medicina foi apenas uma tentativa de
demonstrar que as ciências, sejam elas humanas ou exatas, objetivas ou subjetivas, precisam
romper com esse fosso abissal entre a exatidão e a evidência; é preciso apontar caminhos
19
metodológicos nos quais a humanidade não exclua a objetividade, nem esta tenha
necessariamente que deixar de ser humana para ter valor e status científico.
Nesse sentido, penso que a fenomenologia pode dar conta da minha pretensão de
permitir que o fenômeno estudado se revele por inteiro, ou pelo menos se revele na medida
dos meus esforços. Proponho uma analogia à abordagem fenomenológica da pesquisa
qualitativa. No meu compreender, seria mais ou menos como empinar uma pipa e, já lá em
cima, pudéssemos olhar sob o seu ponto de vista.
Num instante estamos limitados à nossa perspectiva horizontal e, de repente, com
algum esforço e vento favorável, começamos a subir, a nos distanciarmos do nosso sujeito e,
enquanto a imensidão vai surgindo, o mundo estudado começa a ficar pequeno e sua
compreensão torna-se mais fácil. Podemos rodopiar, olhar por diversos ângulos, embora
algumas vezes, ainda seja preciso cortar a linha para que possamos olhar de onde a própria
linha não consegue alcançar. Após a observação é preciso voltar e reatar o nó para não
perdemos o centro e cair.
É exatamente isto que proponho: um exercício constante de aproximação e
distanciamento; quando falamos algo assim: do fundo da minha alma, também estamos
dizendo que o corpo é o lado de fora da alma ou é esta que é o outro lado do corpo? A fixação
radical em um ou outro extremo, a afirmação cega e apaixonada de uma verdade absoluta,
pouco ou quase nada pode contribuir para essa caminhada; mais que isso é preciso ser capaz
de saber que ambas as perspectivas se completam em um todo coerente e articulado, que o
subjetivo e o objetivo são facetas de um mesmo fenômeno e que o verdadeiro desafio é saber
onde, quando e em que medida eles se relacionam para formar a realidade nua e crua.
É por isso que tão importante quanto o que foi visto é perceber como essa linha
metodológica ficou toda amarrada e cheia de nós sabendo que será ela que vai nos tirar do
apartheid científico para que um dia não precisemos mais da pipa, nem da linha e com nossas
próprias asas sejamos capazes de voar para a luz e chama do conhecimento.
Diante dessa perspectiva, nosso objetivo é o de estudar o seguinte fenômeno:
Conexões: movimento social, educação popular e cinema: A experiência do Movimento dos
20
Atingidos por Barragens de Chapada dos Guimarães – MT com o Cinema Circulante. Na
primeira fase exploratória do projeto realizei o levantamento bibliográfico e documental sobre
o assunto, procurando verificar as contribuições teóricas mais relevantes para compreender o
projeto.
A opção pela abordagem fenomenológica pareceu-me o caminho mais adequado para
apreender e compreender a experiência vivida pelos sujeitos. Uso como procedimentos
básicos de pesquisa, as entrevistas em profundidade, a observação, a gravação dos
depoimentos em audiovisual, a fotografia e a coleta de documentos. E nesse sentido, a busca
pelos documentos procurou privilegiar aquelas fontes que mais se adequassem à proposta
metodológica.
No caso dos documentos relacionados ao MAB – Movimento dos Atingidos por
Barragens – entendi que deveria utilizar preferencialmente documentos elaborados pelo
próprio Movimento, pois estes expressariam com maior rigor as suas características como
fenômeno estudado. Porém, para evitar que essa orientação pudesse pecar por ser unilateral, a
estes documentos procurei comparar textos jornalísticos de matérias publicadas pela imprensa
local que remetessem ao movimento, como meio de compreender a forma como o movimento
foi percebido pela sociedade circundante.
Esses materiais foram também confrontados com parte da bibliografia que trata dos
movimentos sociais em geral, e do Movimento dos Atingidos por Barragens em particular,
assim como, por uma apreciação crítica fundada em concepções distintas do conceito de
movimento social.
Posteriormente, fui à comunidade do entorno do Distrito de João Carro, em Chapada
dos Guimarães-MT, para me aproximar dos indivíduos da comunidade, coletar depoimentos
preliminares para, a partir deles, escolhermos os quatro sujeitos a serem estudados. Após esse
levantamento, promovi uma sessão onde foi exibida a produção da oficina local, e em
seguida, a produção audiovisual desta oficina em outra comunidade. Mantive tamm contato
com os idealizadores e executores do Projeto Cinema Circulante, obtendo uma entrevista com
Sergio Brito.
21
Depois desse procedimento, foi iniciada a fase de observação das discussões que
foram empreendidas, que universo vocabular e discursividade emergiram das diferentes
perspectivas de vida, valores e das lutas por emancipação, nestes indivíduos. Implicaram, eles,
a luta como coletivo contra as barragens, a partir da experiência de recriarem neles mesmos
novas perspectivas e olhares face à expressão e produção de sua experiência em uma outra
linguagem.
Foi realizado um estudo descritivo qualitativo, com a coleta de informações e
percepções dos espectadores, através de entrevistas em profundidade. Aqui procurei ressaltar
a necessidade de se dar atenção às “sutilezas quase infinitas das estratégias que os agentes
sociais desenvolvem” tão firmemente preconizadas por Bourdieu (1999, p.693). Segundo o
pesquisador, a prática da pesquisa atenta e com respeito ao objeto não é encontrada em
prescrições de uma metodologia mais “cientista” que “científica”. Procurei levar em
consideração que a pesquisa é uma relação social que tem efeitos sobre os resultados obtidos,
e que por conta disso é preciso tomar medidas para que as distorções causadas fossem
imediatamente reconhecidas e dominadas.
Busquei obter esse efeito por meio do estabelecimento de uma comunicação “não
violenta”, ou seja, reduzindo ao “máximo a violência simbólica”. Em todas as entrevistas
realizadas a preocupação central foi permitir que o entrevistado se expressasse sem qualquer
restrição, sendo que as nossas intervenções foram mais no sentido de firmar “uma relação de
escuta ativa e metódica” (BOURDIEU, p.695). Segundo Bourdieu, essa busca implica na:
disponibilidade total em relação à pessoa interrogada, a submissão à singularidade
de sua história particular, que pode conduzir, por uma espécie de mimetismo mais
ou menos controlado, a adotar sua linguagem e a entrar em seus pontos de vistas,
em seus sentimentos, em seus pensamentos, com a construção metódica, forte, do
conhecimento das condições objetivas, comuns a toda uma categoria.
(BOURDIEU, p.695)
Outro cuidado lembrado por Bourdieu na busca do estabelecimento de uma
comunicação não violenta seria a proximidade social e a familiaridade com o entrevistador.
Essa proximidade foi alcançada porque fui apresentado aos entrevistados por uma pessoa
conhecida da sua própria comunidade, no caso, um dos integrantes da equipe que desenvolveu
o projeto Cinema Circulante e que havia permanecido em contato com a comunidade por um
longo período e que, por isso mesmo, já era da confiança dos entrevistados.
22
Devido a outras experiências, como a do projeto Se Liga Nessa
2
, anterior ao Cinema
Circulante, e que em certa medida não foi bem aceito pela comunidade nos seus resultados
finais, de fato a proximidade propiciada pela pessoa que nos facilitou o contato demonstrou
ser de extrema utilidade para a condução dos trabalhos, pois a fala dos entrevistados fluiu de
forma mais natural e descontraída.
Levemos em consideração o perfil do grupo de entrevistados: adolescentes, jovens e
adultos participantes das oficinas. Esses indivíduos pertencem a camadas populares e,
segundo Sérgio Brito – o mencionado facilitador do contato com os mesmos – eles tinham
cursado, no máximo, o Ensino Médio completo.
Desse modo, a fuga de uma falsa neutralidade, por meio da resistência à objetivação
da entrevista e da capacidade de causar empatia junto ao entrevistado, revelando-me
conhecedor dos conflitos, dificuldades e satisfações que permeiam aquelas vidas em
comum, bem como a atenção às singularidades de cada depoimento dado, foram as
coordenadas que pude extrair de Bourdieu para obter êxito na coleta de informações para
esse trabalho.
2
Projeto de produção audiovisual promovido por Furnas e que procurou envolver os acampados com o
objetivo de passar uma imagem positiva da ação da empresa, os próprios acampados, acompanhados e dirigidos
pela equipe técnica do projeto desenvolviam vídeos favoráveis à construção da usina.
23
3 - O MAB NO CONTEXTO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL
Intelectuais apolíticos
Um dia,
os intelectuais
apolíticos
do meu país
serão interrogados
pelo homem
simples
do nosso povo
Serão perguntados
sobre o que fizeram
quando
a pátria se apagava
lentamente,
como uma fogueira frágil,
pequena e só.
Não serão interrogados
sobre os seus trajes,
nem acerca das suas longas
siestas
após o almoço,
tão pouco sobre os seus estéreis
combates com o nada,
nem sobre sua ontológica
maneira
de chegar às moedas.
Ninguém os interrogará
acerca da mitologia grega,
nem sobre o asco
que sentiram de si,
quando alguém, no seu fundo,
dispunha-se a morrer covardemente.
Ninguém lhes perguntará
sobre suas justificações
absurdas,
crescidas à sombra
de uma mentira rotunda.
Nesse dia virão
os homens simples.
Os que nunca couberam
nos livros e versos
dos intelectuais apolíticos,
mas que vinham todos os dias
trazer-lhes o leite e o pão,
os ovos e as tortilhas,
os que costuravam a roupa,
os que manejavam os carros,
24
cuidavam dos seus cães e jardins,
e para eles trabalhavam,
e perguntarão,
"Que fizestes quando os pobres
sofriam e neles se queimava,
gravemente, a ternura e a vida?"
Intelectuais apolíticos
do meu doce país,
nada podereis responder.
Um abutre de silêncio vos devora
as entranhas.
Vos roerá a alma
vossa própria miséria.
E calareis,
envergonhados de vós próprios.
Otto Rene Castillo
3
3
Revolucionário guatemalteco (1936-1967), guerrilheiro e poeta. A seguir ao golpe de 1954 patrocinado pela
CIA, que derrubou o governo democrático de Jacobo Arbenz, Castillo teve de exilar-se em El Salvador. Voltou à
Guatemala em 1964, onde militou no Partido dos Trabalhadores, fundou o Teatro Experimental e escreveu
numerosos poemas. No mesmo ano foi preso, mas conseguiu fugir. Regressou ao exílio, desta vez na Europa.
Posteriormente retornou secretamente à Guatemala e incorporou-se a um dos movimentos guerrilheiros que
operavam nas montanhas de Zacapa. Em 1967, Castillo e outros combatentes revolucionários foram capturados.
Ele, juntamente com camaradas seus e camponeses locais, foram brutalmente torturados e a seguir queimados
vivos. Este poema encontra-se em http://resistir.info
25
Em consonância com a proposta metodológica desta pesquisa, entendo ser necessário
localizar o MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens – no contexto dos chamados
movimentos sociais, explicitando a forma como o movimento é visto, ou seja, conceituado
por estudiosos, pesquisadores e qual percepção a sociedade tem dos movimentos sociais em
geral e do MAB em particular. Num segundo momento, deixo que o MAB fale por si mesmo,
ou seja, utilizo documentos do próprio movimento para que este possa contar a sua própria
história, fazer suas postulações, explicar sua razão de existir, sua luta e sua visão de mundo.
A discussão sobre a natureza dos movimentos sociais, sua capacidade de intervenção
na sociedade e a legitimidade de suas postulações é das mais controversas. O que se pode
perceber é que o esforço intelectual de sociólogos, cientistas sociais e outros estudiosos do
fenômeno sempre esbarra na defasagem existente entre a construção de um modelo de análise
e a dinâmica social e dos movimentos, sempre em transformação.
Mas, o que são movimentos sociais? Devido à dificuldade de análise já exposta acima,
a resposta para essa questão envolve uma série de outros questionamentos, pois este conceito
apresenta significações diferentes que mudam de acordo com a concepção geral de mundo
dentro da qual ele se desenvolve. Além disso, sabe-se que os mais variados tipos de ação
coletiva são atualmente classificados como movimentos sociais, sendo que estas
classificações quase sempre invalidam outras classificações e outras conceituações.
Esse jogo de ambigüidades em torno do fenômeno transforma a tarefa de conceituar
movimentos sociais em um processo problemático, uma vez que qualquer tentativa de buscar
uma definição única, universalizante esbarra não apenas na fluidez do conceito, como também
própria característica mutante da sociedade que a cada instante propicia o surgimento de
novas formas de mobilização social que podem ser enquadradas na categoria.
Nesse sentido, fiz uma opção de fazer um percurso entre as concepções de
movimentos sociais que mais se aproximam tanto dos pressupostos teóricos e metodológicos
que norteiam esta Dissertação, quanto da concepção de movimento intrínseca ao Movimento
dos Atingidos por Barragens.
26
De acordo com Karine Pereira Goss e Kelly Prudencio, (2004),
Até o início do século XX, o conceito de movimentos sociais contemplava apenas a
organização e a ação dos trabalhadores em sindicatos. Com a progressiva
delimitação desse campo de estudo pelas Ciências Sociais, principalmente a partir da
década de 60, as definições, embora ainda permanecessem imprecisas, assumiram
uma consistência teórica, principalmente na obra de Alain Touraine, para quem os
movimentos sociais seriam o próprio objeto da Sociologia. Apesar do
desenvolvimento que o conceito teve nos últimos anos, não há consenso ainda hoje
entre os pesquisadores sobre seu significado. Outros estudiosos do tema, como
Alberto Melucci, por exemplo, questionam o conceito de movimentos sociais por
considerá-lo reducionista, e empregam preferencialmente o de ações coletivas. Isso
sinaliza para a necessidade de uma maior discussão acerca da validade conceitual do
termo, mesmo porque ele vem
sendo utilizado indiscriminadamente para classificar
qualquer tipo de associação civil. (GOSS e PRUDENCIO,2004)
Com efeito, é importante observar que não apenas o conceito de movimentos sociais
mudou a partir de 1960, mas que houve uma mudança ainda mais profunda, uma mudança
social: as transformações econômicas, políticas e sociais ocorridas no contexto da sociedade
ocidental adicionaram novos ingredientes à própria interpretação dos fenômenos sociais, de
tal forma que o conceito de movimentos sociais decorrentes apenas da organização de
trabalhadores tornou-se por demais estreito para representar a realidade existente.
É por isso que a entrada na cena histórica dos chamados novos movimentos sociais,
ligados a questões ambientais, mulheres, orientação sexual, etnia, direitos humanos e também
às Organizações Não-Governamentais coincide com o aparecimento de novos paradigmas de
interpretação dos próprios movimentos.
O que se infere é que a categoria movimentos sociais é elástica e mutante, da mesma
forma que os movimentos que visa analisar. À medida que a sociedade muda, mudam os
movimentos, o que implica numa necessidade de mudança no paradigma de interpretação dos
mesmos, de tal forma que:
De qualquer maneira, as características dos movimentos sociais contemporâneos
apontam para uma reorientação da ação coletiva, o que implica a revisão de algumas
teorias. Os atores sociais já não se enquadram nas categorias teóricas consagradas
para classificar tipos de ação coletiva, embora a pertinência de algumas teses
permaneça. (GOSS e PRUDENCIO, 2004)
As autoras afirmam ainda que os movimentos sociais de forma geral teriam surgido no
horizonte histórico em função de uma certa incapacidade do movimento social tradicional
composto com base nas análises e interpretações de mundo de fundo marxista, ou
27
pretensamente marxista e que privilegiavam (privilegiam) a categoria de classes sociais, estas
consideradas como responsáveis por toda a dinâmica da sociedade:
Pode-se afirmar que a análise das ações coletivas por meio do conceito de
movimentos sociais veio preencher uma lacuna deixada por um certo esgotamento
do conceito marxista de classe social, predominante nas Ciências Sociais até finais
de década de 1970. (...) Os teóricos marxistas debatiam muito sobre a questão das
classes, porém sempre partindo do pressuposto de que essa categoria era
suficientemente óbvia e transparente. Em outras palavras, não era questionado o
conceito de classes sociais, mas outros aspectos, como, por exemplo, se seriam as
classes realmente os agentes das mudanças históricas, se a classe trabalhadora
estaria em extinção, etc. Esse tipo de análise pressupunha que a posição de um
sujeito coletivo na estrutura do sistema capitalista seria uma das principais chaves
para o entendimento dos conflitos sociais. (GOSS e PRUDENCIO, 2004)
A emergência dos chamados novos movimentos sociais, a partir da década de 1970,
não só determinou a quebra do monopólio dos antigos movimentos baseados em partidos e
sindicatos como representantes da coletividade, como propiciaram uma necessidade de refletir
sobre os modelos de análise dos próprios movimentos sociais:
Em parte da sociologia brasileira, essa concepção marxista, que enfatizava a
importância do papel das classes sociais como chave para o entendimento da
sociedade, começou a ser alterada em meados da década de 1970. Nesse período
foram introduzidas questões diferenciadas na análise da realidade social, como a
ênfase na microestrutura e não somente na macro, a percepção de uma
multiplicidade de fatores de análise, além do econômico, o deslocamento da atenção
da sociedade política para a sociedade civil, e da luta de classes para os movimentos
sociais. Os autores deixam de analisar os sujeitos políticos apenas na relação classe-
partido-Estado. Os partidos e sindicatos perdem o lugar de protagonistas políticos
para os movimentos populares que ocorrem no bairro, no espaço social da moradia.
(...) Será com o surgimento de movimentos centrados em questões identitárias,
também denominados de “novos movimentos sociais”, que a problemática do sujeito
passou a ser tratada de forma diferenciada na teoria sociológica. Esses movimentos,
de acordo com o autor, tendem a criar e politizar espaços alternativos de lutas. Os
“novos movimentos” que surgem na América Latina não se baseiam mais em um
único modelo totalizante de sociedade, como ocorria anteriormente. (GOSS e
PRUDENCIO, 2004)
Cumpre notar que o termo “movimentos sociais” começou a ser usado na Europa em
meados do século XIX para se referir aos movimentos da classe trabalhadora. É somente a partir
dos anos 1970 que o termo movimentos sociais passou a incluir múltiplas formas de participação
e organização social, não necessariamente ligadas a questões econômicas da classe trabalhadora:
nesse contexto histórico surgem as lutas ecológicas, de mulheres, negros, estudantes e outros
agrupamentos sociais que passam a postular bandeiras específicas como forma de manifestar uma
identidade coletiva para além da chamada “luta de classes” e dos partidos políticos tradicionais.
28
É interessante frisar como o conceito de movimentos sociais muda de acordo com
quem dele faz uso. O processo de elaboração deste conceito é condicionado pela forma como
cada autor vê o mundo, pela maneira como cada um se posiciona no jogo das relações sociais.
Para Sobottka (2002), os movimentos sociais fazem parte de um fenômeno de longa duração e
estão intrinsecamente ligados ao conceito de modernidade, entretanto, eles representam uma
temática um tanto quanto marginal em termos de ciências sociais, pelos motivos já expostos e
por também se inscreverem na complexa relação entre as ciências sociais e o seu objeto de
estudo:
Como um fenômeno de longa duração, os movimentos sociais são associados muito
estreitamente ao próprio surgimento da modernidade. O sonho e as iniciativas para
conquistar a liberdade pelo homem no iluminismo, definida como emancipação da
tutela alheia, fosse ela do estado, da igreja ou de outrem qualquer, mesmo que isso
implicasse na necessidade de transpassar os limites colocados pelo ordenamento
social dado, tipificam o seu surgimento. A idéia de que a história pudesse ser
planejada e realizada pelo homem foi o elemento revolucionário da modernidade. A
discussão pública sobre a necessidade e possibilidade de transformações sociais
amplas que permitissem emancipação coletiva, associada à crítica da realidade dada,
fez no século 18 disseminarem-se associações, clubes políticos e sociedades de
literatura. O novo tipo de associação, onde a participação ou membresia é voluntária,
baseada numa concepção igualitária dos participantes e que resulta em espaço para o
debate livre entre as pessoas sobre como querem construir sua com-vivência,
distingue a sociedade moderna da pré-moderna. Habermas definiu este novo lugar
social como esfera pública. A revolução liberal-burguesa foi sem dúvida uma das
mais importantes realizações deste projeto emancipatório e, junto com os socialistas
utópicos, um dos projetos mais abrangentes de sociedade, gestado e socialmente
portado por movimentos sociais. (SOBOTTKA, 2002)
No caso do Brasil, Sobottka diz que os movimentos sociais desde sua origem se
vincularam à luta por mudanças abrangentes na sociedade, sendo que a trajetória dos mesmos
se confunde com a própria história do país. O autor também compartilha da avaliação que
estabelece o limite dos anos 1960 para a hegemonia dos movimentos sociais tradicionais,
quando estes começam a ser suplantados pela atuação dos novos movimentos sociais:
No início da década de 1960 o país foi agitado pelos movimentos de reforma de
base, talvez a primeira onda de movimentos sociais que transcendeu os segmentos
estruturalmente definidos, como o sindicalismo, para envolver amplos segmentos da
população que, voluntariamente e por convicção, aderia a grupos e causas. Mas o
movimento por reformas de base, como se sabe, foi interrompido pela ditadura
militar. Só na década de 1970, lentamente sob o guarda-chuva da igreja romana e
depois sempre mais autônomos e ostensivos, movimentos sociais urbanos, oposições
sindicais, comunidades eclesiais de base, pastorais, movimentos rurais e tantos
outros passaram a vir a público, organizar-se e a ocupar importante espaço no
cenário político da vida nacional. (SOBOTTKA, 2002)
29
Enquanto que nesse período na Europa e Estados Unidos os novos movimentos sociais
em ascensão focavam sua atuação em demandas relacionadas com questões identitárias,
ambientais, de gênero, etnia e orientação sexual, no Brasil e na América Latina, cujos países
viviam sob ditaduras militares, os movimentos sociais tinham como foco quase que exclusivo
o combate ao regime e a luta pelo restabelecimento da democracia.
É justamente nesse contexto em que a frágil democracia havia sido derrotada pelo
regime de exceção dos militares que os movimento sociais, de acordo com o autor, passam a
lutar pela garantia dos direitos humanos e a busca pela redemocratização, sendo que as
reivindicações mais específicas, ligadas à própria natureza desses movimentos ficava em
segundo plano, dada a necessidade de se concentrar esforços na luta contra a ditadura militar:
Pode-se dizer que foi um período de luta por direitos civis e sociais de cidadania,
cujo auge foi o processo constituinte de 1987-1988. Expressão da dignidade e
positividade dos movimentos sociais não foram apenas os destaques em eventos
acadêmicos como congressos e seminários ou em livros, mas as cristalizações em
forma de cátedras, revistas especializadas, comitês e grupos de pesquisa. O Brasil e
a América Latina constituíram-se em rico palco de embates e estiveram presentes na
consolidação do campo de pesquisa. (SOBOTTKA, 2002)
Novamente, pode-se perceber como o contexto específico de cada país, como a sua
organização social, as lutas mais gerais, condicionam a atuação dos movimentos sociais e
alteram a forma como os mesmos são percebidos pela própria sociedade.
Para José Maurício Domingues (2007), a compreensão da natureza e da importância
dos movimentos sociais não depende unicamente de uma análise unilateral dos mesmos,
embora este seja um ponto de partida possível e necessário. Para este autor, a emergência na
cena histórica dos novos movimentos sociais está intrinsecamente ligada ao que ele chama de
terceira fase da modernidade:
Tampouco serve-nos evocar em tom de denúncia o neoliberalismo que tem dado as
cartas desde a década de 1990, conquanto seja igualmente importante assinalar as
conseqüências engendradas por esse projeto político. Na verdade é mister localizar a
emergência dos novos movimentos sociais latino-americanos naquilo que quero
definir como a terceira fase da modernidade. Para isso é preciso definir como seriam
as duas fases que a antecederam e delinear a aquela que a elas se seguiu. Realizei
essa operação com mais detalhes em outras ocasiões. Assim, contentar-me-ei em
esboçar em breves traços como elas se caracterizam. (DOMINGUES, 2007)
30
Conforme já foi dito anteriormente, os movimentos sociais e a sociedade se
confundem. A história das sociedades e a história dos movimentos sociais que dela fazem
parte se articulam num todo estruturado e coerente, de forma que não é possível compreender
um sem compreender o outro. A novidade introduzida por Domingues é a de estabelecer a
conexão entre esses dois conceitos – movimentos sociais e sociedade – inserindo-se a
categoria movimentos sociais dentro da evolução histórica do conceito de modernidade, que
teria passado por duas fases até alcançar uma terceira, que estamos vivenciando no momento
atual:
A primeira fase da modernidade – liberal restrita e vigente no século XIX – teve no
mercado seu centro, com um estado que deveria ser meramente coadjuvante na
criação e na manutenção da ordem social. Obviamente, isso era em grande medida
uma utopia, a qual previa a homogeneização absoluta da sociedade, a ser composta
doravante de indivíduos atomizados que teriam laços de outro tipo apenas com suas
famílias. Se na Europa e nos Estados Unidos a concretização desse modelo foi em
geral parcial, na América Latina oligárquico-latifundiária isso foi ainda mais restrito.
A sua crise englobou, de todo modo, de maneiras distintas, o mundo em seu
conjunto. Daí emergiu a segunda fase da modernidade, em que o estado adquiriu
muito mais centralidade, mantendo-se aquela utopia de homogeneização, que
mercado e estado deveriam, cada qual a sua maneira, implementar. O fordismo
complementava o modelo, implicando grande produção em massa de produtos
standart que uma nova classe operária consumiria. Na América Latina periférica ou
semi-periférica, características específicas marcam essa segunda fase. Expressam-se
sobretudo no estado desenvolvimentista, que era a contra-face do estado keynesiano
e de bem-estar que vicejou no ocidente, no centro da modernidade global já então
mais que estabelecida; e, desde os anos 1950, no consumo de produtos pelas
camadas médias proporcionado pela instalação das empresas transnacionais, que no
centro produziam para uma massa de trabalhadores. (DOMINGUES, 2007)
Para Domingues, no contexto social dessas duas primeiras fases da modernidade, o
movimento operário aparece como o principal articulador do movimento social, sendo
secundado pelo movimento feminista e também pelos movimentos de camponeses e ligados a
questões comunitárias, estes principalmente em termos de América Latina, “ligados ao vasto
mercado informal de trabalho e às péssimas condições de vida dessas populações que
migravam para as cidades”.
Segundo o autor, a partir dos anos 1970 entra em cena o neoliberalismo que pretendia
ser uma resposta dos círculos dominantes à crise da segunda etapa da modernidade. A
pretensão era a de elaborar e implantar um novo modelo de regulação social que pudesse
inaugurar uma nova fase de desenvolvimento do sistema capitalista, ainda que seus efeitos
sociais se demonstrassem danosos para as classes subalternas. Esse momento de viragem na
forma como o sistema se organiza, marca, de acordo com Domingues, também uma viragem
31
na forma como os movimentos sociais se organizam e no próprio conteúdo de suas
postulações:
De forma paradoxal, foi este também o momento em que a transição para a
democracia começou a se dar em toda a América Latina, inclusive com regimes
oligárquicos seculares (malgrado formalmente democráticos, como o venezuelano),
mostrando-se frágeis ante a nova situação. A esta altura as massas populares se
libertavam definitivamente de formas de dominação pessoal, inclusive mercê da
consolidação neoliberal dos mercados de trabalho assalariado no campo, via o
fortalecimento da agroindústria, e do corporativismo, desde fins dos anos 1970
através do “novo sindicalismo”, no caso brasileiro. Elas passavam a desfrutar de um
ambiente de liberdades políticas e sociais sem par até então no subcontinente, em
que pese problemas de várias ordens para a consolidação de um amplo estado de
direito. A crescente globalização econômica – neste momento capitaneada pela
abertura dos mercados – e cultural – que disponibilizou imagens e identidades,
intensificando a comunicação em todo o planeta -, é outro elemento a ser
considerado nessa nova configuração social. (DOMINGUES, 2007)
A característica central desse terceiro momento da modernidade, para Domingues é a
fragmentação social e a quebra dos paradigmas:
Permitam-me, então, já em um plano mais analítico listar e organizar alguns
elementos-chave que se encontram presentes nessa nova situação: sociedades mais
complexas e plurais – fruto de processos de diferenciação social cujos
desdobramentos atravessam toda a modernidade – e menos submetidas àquela, cada
vez menos eficaz, utopia homogeneizadora, além de uma maior exposição dessas
sociedades a padrões globais; sujeitos individuais e coletivos mais “desencaixados”,
isto é, com mais mobilidade física e identitária; sistemas políticos altamente
“poliárquicos”, ou seja, com amplas possibilidades de participação, não apenas
eleitoral, e de debate, apesar de suas limitações; e, deve-se acrescentar, a crise da
noção de socialismo, comunismo, libertação nacional e nação que a esquerda
(partidos comunistas, movimentos nacional-libertadores e guerrilhas (...) até bem
pouco tempo sustentava. Estão eles entre aqueles fundamentais para caracterizar
aquilo em que consiste a terceira fase da modernidade latino-americana, ao que se
deve aduzir o pós-fordismo e a renovação da posição subdesenvolvida e subordinada
– como exportadora de commodities – que marca sua posição no padrão global de
desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo, hoje como antes.
(DOMINGUES, 2007)
Domingues parte do pressuposto de que a fragmentação, característica fundamental da
terceira fase da modernidade implicaria por um lado na quebra do paradigma de organização
social de viés marxista e que tem como base a organização social fundada no conceito de
classes sociais, com a conseqüente fragmentação organizativa e política da classe
trabalhadora, e por outro lado na superação do antigo conceito de movimentos sociais, com a
emergência dos chamados novos movimentos sociais que não se inscrevem necessariamente
no espaço da tradicional luta de classes:
32
Aqui encontramos, de um lado, os condicionamentos sociais – inclusive uma
fragmentação ainda maior da classe trabalhadora – e, de outro, as questões e
possibilidades institucionais – em particular a luta pela democracia e a consolidação
enfim do novo ambiente democrático, que se conjugou a um estado enfraquecido
pela política neoliberal – que proporcionaram o surgimento e a renovação dos
movimentos sociais latino-americanos desde os anos 1990. Uma nova “cultura
política” se forjava nesse momento, fruto da luta pela democracia e do pluralismo
cada vez mais amplo e evidente a se expressar nas lutas sociais que contribuíram
decisivamente para a queda das ditaduras militares nos anos 1980, assim como da
consolidação de demandas de populações que mais fortemente alcançavam a
cidadania e lutavam por sua ampliação. (...) Continuidade e solução de continuidade,
como veremos a seguir, se conjugavam nessa nova cultura política. Foi possível até
aqui constatar uma grande pluralização dos movimentos sociais latino-americanos, o
que é fruto e ao tempo consiste em um dos elementos da crescente complexidade da
modernidade, agora em sua terceira fase. (DOMINGUES, 2007)
Ao lado dessas avaliações, que podem ser consideradas não-ortodoxas, do ponto de
vista tradicional dos partidos e dos movimentos sociais clássicos, sobrevivem e se rearticulam
outras visões acerca da natureza, da importância e dos fundamentos políticos do que
conhecemos como movimentos sociais.
Além disso, é preciso observar que embora os fenômenos que podem ser enquadrados
dentro do conceito de movimentos sociais existam há séculos, só recentemente vieram a merecer a
atenção dos cientistas sociais.
No princípio do século XX, o conceito compreendia quase
exclusivamente a organização do proletariado industrial, isto é, os sindicatos. Percebe-se
então que os movimentos sociais parecem estar ligados a uma forma de organização coletiva,
independentemente do poder do Estado e que, se diferem dos partidos políticos basicamente
por não se colarem como alternativa de poder, ou melhor, por não se apresentarem como uma
alternativa de poder no jogo político pelo controle do poder do Estado.
Contudo, alerto para o fato de que não é o objetivo desta pesquisa elaborar um
conceito de movimentos sociais, mas apenas o de situar o surgimento do Movimento dos
Atingidos por Barragens no contexto maior das lutas sociais empreendidas por essas
organizações sociais desde a década de 1970.
De acordo com Fernandes, (2008), o termo tem sido usado desde a década de 1970, como
uma categoria ampla no discurso político para definir muitas e variadas formas de participação
dos cidadãos em organizações sociais independentes de partidos políticos e do Estado:
33
O termo "movimentos" é usado por causa da natureza instável do fenômeno,
diferente das estruturas organizadas para durar longo tempo; são "sociais" em função
do tipo de questões envolvidas, bem como da distância que em geral mantêm da
máquina estatal. Envolvem associações e têm com elas várias características em
comum, mas não estão formalmente circunscritas e movem-se em ondas de
entusiasmo participativo. Podem ter expressões tão disseminadas quanto as
manifestações de paz na Europa ocidental, nos anos oitenta, os movimentos de
protesto na Europa do Leste em 1989, e a luta contra o apartheid na África do Sul.
Em geral, porém, são bastante pequenos, surgindo como respostas a questões locais.
Em todas as regiões, provavelmente na maioria dos países e em áreas dentro dos
países, dificilmente passará um dia sem que algo aconteça como resultado de
alguma ação de um movimento social. (FERNADES, 2008)
Observe-se que a localização do conceito como forma de organização autônoma desde
os anos 70 obedece a um critério que vincula o aparecimento dos movimentos sociais no
Brasil em um contexto de Ditadura Militar, período no qual os partidos políticos não podiam
atuar na legalidade – excetuando os dois partidos admitidos pelo regime: MDB E ARENA –
e, por outro lado, o Estado por definição de colocava exclusivamente no campo das classes
dominantes e das grandes corporações nacionais e internacionais.
Este contexto extremamente adverso, se por um lado dificultava a participação popular
nos moldes tradicionais, por outro abria brechas para que os chamados novos movimentos
sociais já surgissem completamente desvinculados dos partidos políticos tradicionais e
independentes da ação do Estado, a quem contestavam. Mas adiante, veremos como o MAB-
Movimento dos Atingidos por Barragens surge justamente no contexto dos anos 70, de forma
independente dos partidos políticos e em aberta oposição à política energética do Estado e das
grandes corporações:
Como as associações, os movimentos sociais fornecem uma estrutura para a
afirmação de direitos legais e morais por parte de indivíduos independentes.
Contribuem, nesse sentindo, para a assimilação das noções modernas de autonomia
nos mais diversos contextos. Mulheres, jovens, povos indígenas, minorias étnicas e
assim por diante multiplicaram extraordinariamente as circunstâncias nas quais é
exigido o respeito a um ego soberano. (FERNANDES, 2008)
A autonomia frente ao Estado e aos partidos políticos parece ser uma das
características principais dos movimentos sociais, independentemente do conceito que usemos
para definir os movimentos. Na passagem seguinte o autor reforça a percepção de que o
cenário contraditório dos anos 70 em certa medida favoreceram o surgimento de movimentos
sociais desvinculados daqueles tradicionais e ligados aos partidos políticos:
34
Na América Latina, onde as formas tradicionais de participação (sindicatos e
partidos) estavam bloqueados pelos regimes autoritários nos anos setenta, dentro de
um contexto de rápido crescimento urbano, floresceram as associações em nível
comunitário. Uma extensa pesquisa realizada no Rio de Janeiro e São Paulo, em
1987, revelou que mais de 90 por cento das associações de bairro existentes haviam
sido criadas a partir de 1970. (FERNANDES, 2008)
Entretanto, de acordo com o autor, deve-se fazer uma distinção entre essas associações
e os movimentos sociais, já que enquanto as associações típicas reúnem as pessoas em torno
de se alcançar um objetivo comum específico, os movimentos parecem se caracterizar por
uma luta contra algo, por um protesto contra uma situação que atinge uma determinada
categoria ou grupo:
Enquanto estas tendem a ser proativas, juntando pessoas para fazer algo, aquelas
carregam uma conotação retroativa, mobilizando as pessoas em torno de algum
protesto. A distinção não é nítida, claro, já que as pessoas podem se associar para
promover um protesto, mas a militância característica dos movimentos sociais
parece alimentar-se especialmente das fontes da contradição. Por outro lado, ao
contrário das associações, a tendência dos movimentos sociais tem sido ressaltar
uma identidade coletiva, instigando as demandas e afirmando os direitos de
indivíduos coletivamente definidos. O Povo e a Nação foram as expressões típicas
de tais identidades globais nos últimos dois séculos. Os movimentos sociais,
contudo, segmentaram tais noções grandiosas numa variedade de atores. A
coletividade que assimilava a tudo e a todos foi substituída por uma escala mais
específica de identificação, dando visibilidade a uma série indefinida de nomes
próprios coletivos. Grupos étnicos, minorias, tribos, religiões, comunidades locais,
sexo, idade, profissão e outras categorias acrescentaram uma complexidade irrestrita
ao uso da palavra "nós" no cenário público. (FERNANDES, 2008)
Outro autor que situa o surgimento dos novos movimentos sociais no Brasil da década
de 1970 é Rudá Ricci, (2008). De acordo com ele, a emergência desses novos movimentos
está associada ao processo de urbanização/fragmentação social, verificado no período e que
teria “inflacionado” a agenda estatal:
Em virtude dessa explosão de demandas, alguns autores brasileiros denominaram
este período como a Era da Participação. A sociedade civil brasileira ganhou
contornos mais nítidos, distanciando-se da situação de extrema subordinação aos
aparelhos estatais e à lógica patrimonialista, marca da cultura política nacional. Em
outras palavras, no bojo do processo de redemocratização do país, surgiram novos
movimentos sociais, baseados e fundamentados, em sua maioria, na Teologia da
Libertação. Ilse Sherer-Warren, ao estudar a emergência dos novos movimentos
sociais no final dos anos 70, apreende alguns elementos básicos em seu discurso que
constituem a base de sua identidade e sua organização: democracia de base, livre
organização, autogestão, direito à diversidade, respeito à individualidade,
identidade local e regional, liberdade individual associada à liberdade coletiva. A
35
nova identidade social nutre-se do sentimento de exclusão e de injustiça, que está
diretamente relacionado com a geração de novos direitos, de categorias sociais em
processo de conformação. A identidade política em formação, por seu turno, se
alimenta daqueles elementos que constituíam a sociabilidade comunitária, base da
Teologia da Libertação: ausência de autoridade discriminada e de hierarquia de
funções, relações afetivas e contraprestação de serviços na comunidade. Esses
elementos aparecem nas manifestações e nas novas formas de mobilização social a
partir da segunda metade da década de 70. Movimentos que, segundo Ilse Sheren
Warren, são portadores de um discurso que valoriza a participação ampliada da base,
via instalação de mecanismos de democracia direta. (RICCI, 2008)
Essas características elencadas por Ricci, e que fiz questão de grifar, de fato parecem
estar associadas a forma como o Movimento dos Atingidos por Barragens se concebe como
movimento social, embora a pesquisa que desenvolvemos não autorize afirmar que o mesmo
tenha sua origem ou fundamentação ideológica na Teologia da Libertação.
É necessário enfatizar que o Movimento dos Atingidos por Barragens não pode ser
categorizado como um movimento social tipicamente urbano, já que sua área de atuação, a
origem social dos seus militantes e o conteúdo político de suas reivindicações aproxima-o de
outros movimentos sociais do campo, como o MST – Movimento dos Sem Terra. Essa
distinção é importante porque os movimentos sociais do campo, ou que se articulam numa
perspectiva em que o espaço de contestação é a posse de um território ou a modalidade de uso
dos recursos naturais, como é o caso do MAB.
Batista (2008) observa que para esses movimentos sociais,
O território assume dimensões múltiplas, sociais, econômicas, culturais, subjetivas,
simbólicas, que são reivindicados, contestados, configurados e reconfigurados,
espaço de relações de poder e de força, eles podem assumir as formas que lhes
conferem os sujeitos que ocupam, controlam os espaços/territórios. (BATISTA,
2008)
De acordo com esta autora, os movimentos sociais com base no campo surgiram no
Brasil contemporâneo como herdeiros de uma tradição popular cujas raízes estão na luta
secular de negros quilombolas, pequenos agricultores e sujeitos que resistiram a forma como
se configurou historicamente a propriedade fundiária. Assim sendo,
Nas décadas de 1970 e 1980 se destacaram as lutas dos povos da floresta contra o
avanço da ocupação desordenada e irregular e o desmatamento que provocam e
defendendo a manutenção dos meios tradicionais de exploração e extração dos frutos
da floresta (extração do látex da seringueira, coleta de frutos, de ervas, a pesca)
atividades ameaçadas pela exploração predatória em franca expansão. Nessa
conjuntura, diversos sujeitos e personagens entram na cena da luta pela terra, como
36
o Movimento dos atingidos por Barragem (MAB), Movimento das Mulheres
Trabalhadoras Rurais (MMTR), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), as
Comunidades Quilombolas (QUILOMBOLA), os seringueiros com o Conselho
Nacional dos Seringueiros (CNS), pequenos produtores, as lutas dos trabalhadores
apoiadas pela Comissão Pastoral da Terra (CPT, criada em 1975) Pastoral da
Juventude Rural (PJR) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST,
criado em 1985), destacando o território rural e a reforma agrária como palco dos
conflitos resultantes das transformações sofridas no meio rural pelo processo de
modernização conservadora, incentivado pelo sistema econômico capitalista,
alimentando a utopia e a esperança de acesso à terra e inovando as formas de luta
que têm nas ocupações de terra com acampamentos uma das principais estratégias.
(BATISTA, 2008)
Há indícios de que esses movimentos se assemelhem não apenas por proporem
medidas que vão desde a reconfiguração da estrutura agrária, da implantação de outra matriz
energética ao estabelecimento de outra lógica de desenvolvimento econômico; mas
principalmente por serem portadores de uma mentalidade cultural que parece ambicionar uma
Utopia social, política e econômica fundada em uma nova concepção de ser humano e de
valorização do trabalho como fonte de vida e não de enriquecimento:
Os movimentos sociais do campo questionam a estrutura agrária, o modelo de
desenvolvimento econômico, a matriz energética, exigem a demarcação das terras
indígenas e das áreas quilombolas, defendem a necessidade de se implantar e
difundir uma outra lógica de desenvolvimento apoiado em alternativas
ambientalmente sustentáveis, socialmente democráticas e economicamente justas,
centradas no desenvolvimento dos homens e mulheres, no desenvolvimento social e
humano dos sujeitos do campo. Eles defendem que os empreendimentos agrícolas se
organizem baseados em relações solidárias, de cooperação, da autogestão e
cooperativas que envolvam os sujeitos como protagonistas, que valorizem a
produção de saberes dos camponeses em sua diversidade, uma agricultura de base
familiar, pelo que ela constitui enquanto elemento propulsor de equidade social, de
diversidade de culturas e do uso de recursos naturais, de ocupação do espaço agrário
e de possibilidade de trabalho e de desenvolvimento humano. Configurando- se
assim um outro paradigma de sociabilidade. (BATISTA, 2008)
Assim, pode-se dizer que conceituo Movimentos Sociais como um fenômeno social
caracterizado pela mobilização de pessoas em torno de um objetivo que se contrapõe ao status
quo. Não estão necessariamente ligados a uma concepção de classe social no sentido clássico
do termo, embora sua composição social seja de pessoas oriundas das classes subalternas ou
dos extratos sociais excluídos do sistema hegemônico. Surgem de forma autônoma ao
movimento de trabalhadores tradicional e aos partidos políticos tradicionais, embora em suas
mobilizações contem com a simpatia destes. Possuem um forte caráter identitário e, o
Movimento dos Atingidos por Barragens é um exemplo evidente disto, vinculam as suas lutas
particulares a um objetivo estratégico maior de transformação social: defendem a adoção de
outro paradigma de desenvolvimento social.
37
3.1 - O MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS
“... AS RIQUEZAS INJUSTAS”
(Lucas 16,9)
E quanto às riquezas, pois, justas ou injustas
os bens adquiridos bem ou mal:
Toda riqueza é injusta.
Todo bem,
mal adquirido.
Senão por ti, pelos outros.
Tu podes ter a documentação perfeita. Mas
compraste a fazenda a seu legítimo dono?
E ele a comprou a seu dono? E o outro... etc., etc.
Poderias retroceder a teu titulo até a um titulo real porém
foi do Rei alguma vez?
Não se desapropriou alguma vez a alguém?
E o dinheiro que recebes legitimamente agora
de teu cliente, do Banco, do Tesouro Nacional
ou do Banco do Tesouro de USA
não foi alguma vez mal adquirido? Mas
tampouco penseis que no Estado Comunista Perfeito
as parábolas de Cristo já estejam antiquadas
e Lucas 16,9 já não tenha validez
e que não sejam INJUSTAS as riquezas
e que já não tenhas a obrigação de reparti-las!
Ernesto Cardenal
38
O tão ansiado projeto de desenvolvimento brasileiro exige energia, muita energia. De
um lado, energia para abastecer as empresas, indústrias que produzem bens e serviços de
consumo, ato essencial para o motor da economia capitalista. Do outro lado energia física,
psicológica, social e moral para promover a distribuição da riqueza produzida de modo que a
maioria, se não toda a população, possa usufruir do conforto e dos avanços médicos e
tecnológicos obtidos a partir da geração de riqueza.
Entretanto, o quadro que se tem atualmente é de uma sociedade em que a maior
parcela da população, invariavelmente, mais pobre e menos preparada intelectualmente, sofre
as conseqüências do “desenvolvimento” longe da vista dos que são beneficiados. Um exemplo
que ilustra esse raciocínio é o MAB, Movimento dos Atingidos por Barragens. Surgido no
final da década de 1980, a partir da mobilização de pessoas desabrigadas, - e muitas vezes,
destituídas do seu próprio meio de vida, visto que boa parte vivia da agricultura de
subsistência. Esse movimento tem levantado questionamentos acerca do real ganho
proporcionado pela construção de gigantescas usinas hidrelétricas. De acordo com o MAB, a
estimativa é de que um milhão pessoas já foram atingidas por grandes obras em rios.
Um dos aspectos mais importantes da aquisição, por parte dos movimentos populares,
da linguagem audiovisual é justamente a possibilidade de, a partir dessa tecnologia, assumir o
papel de protagonista na escrita de sua própria história. O movimento social é pela sua própria
natureza um protagonista na construção de sua história, pois o seu papel político leva
inevitavelmente a contestação da história feita a partir de cima, pela elite do poder.
Mas a condição de protagonista não é por si mesma suficiente para que se assuma a
condição de ser um escritor da própria história. A alfabetização audiovisual vai tornar
possível ao militante do movimento a capacidade de interpretar e de comunicar a sua história
e a de seu grupo para outros movimentos e para o conjunto da sociedade.
Ora, a proposta fenomenológica é justamente a de permitir que o fenômeno se revele
por si mesmo. Por isso, nada mais natural que um projeto de pesquisa que ambicione revelar
parte da história de um movimento social, orientado pela linha metodológica e investigativa
da fenomenologia, seja capaz de permitir que o movimento assuma a condição de contador de
sua própria história. Nesse sentido, alertarmos para o fato de que a história do Movimento dos
Atingidos por Barragens expressa nesta dissertação é a história tal como nos foi contada pelos
39
próprios militantes do movimento. A preocupação central foi a de preservar a integridade do
discurso e nesse sentido optamos por reproduzir ipsis litera a história tal como é contada
pelos integrantes do movimento.
Porém, antes de prosseguir na história do movimento no Brasil e em Mato Grosso,
entendemos ser necessário estabelecer o conceito de “atingido por barragens”, uma vez que
ele está no centro da discussão entre movimento, governos e empresas responsáveis pelas
barragens no momento em que estes discutem as indenizações e os reassentamentos.
Pode parecer um detalhe menor, mas não é. É esse conceito que vai determinar se a
pessoa e/ou família irá receber a indenização acordada, além do que, ao estabelecer o conceito
de atingido, estabelece-se também o limite do alcance organizativo e político do próprio
movimento. Tanto isso é verdadeiro que, enquanto o MAB afirma ter a usina deslocado 1.050
famílias, Furnas reconhece apenas 422 como atingidas.
Um documento do MAB: Conceito de Atingido por Barragens, a partir do texto O
conceito de atingido – uma revisão do debate e diretrizes, escrito pelo Professor da UFRJ
Carlos Vainer será utilizado como referência para esta dissertação. Diz o documento:
A definição de quem é atingido por barragem afeta diretamente a vida de cada
família atingida ou ameaçada pela construção de barragens no Brasil. O Estado
brasileiro nunca deixou claro e nem assumiu um conceito próprio de quem seja o
atingido por barragem. Já as empresas donas das obras, sempre adotaram a política
de não gastar, ou seja, não reconhecer os prejuízos das populações atingidas. No
caso do MAB, foi através de nossa força, pela luta, pela resistência e organização
que garantiu o reconhecimento das famílias e seus direitos em diversas vezes que
impediu a construção de barragens. (...) no Brasil não existe um conceito definido
sobre o que é um atingido por barragem. Não existe por diferentes interesses, nem os
Governos e muito menos as empresas e nem os bancos querem que se defina
claramente o conceito, dessa forma eles reconhecem quem eles querem e quem lhes
interessar. (VAINER)
De acordo com o MAB, sua luta começa justamente durante a Ditadura. Os governos
militares sequer aceitaram discutir a existência de famílias atingidas ou de que a construção
de barragens pudesse implicar em prejuízos. Essa visão perduraria até os dias atuais pelo fato
de que as empreiteiras que constroem as barragens atuais, serem as mesmas que iniciaram
esse processo nos anos 1970 – Camargo Correa, Grupo Votorantin, Andrade Gutierrez,
Odebrecht, entre outras. Dentro de uma concepção puramente patrimonialista, entretanto, o
atingido é aquele proprietário de terra alagada pela barragem e que possui o título/escritura da
40
área atingida. Assim, o problema se resumiria a negociar com o proprietário o justo valor pela
terra a ser desapropriada.
Ainda de acordo com o documento acima citado, haveria uma concepção hídrica, para
a qual atingidos seriam todos os inundados, inclusive os não-proprietários, tais como
posseiros, arrendatários e meeiros. Embora mais abrangente que o conceito patrimonialista,
este inclui apenas os atingidos pela área alagada.
Há também a concepção dos financiadores dos grandes projetos, como o Banco
Mundial, para quem podem ser atingidos aqueles que forem deslocados física ou
economicamente, sendo que deslocamento físico é a recolocação física das pessoas resultante
da perda de abrigo, recursos produtivos ou de acesso aos recursos produtivos e o
deslocamento econômico resulta de uma ação que interrompe ou elimina o acesso de pessoas
a recursos produtivos sem recolocação física das próprias pessoas.
De acordo com o texto do MAB, o Banco Mundial enfatiza a necessidade de
contemplar os não-proprietários legais em políticas de reassentamento e/ou reparação:
Populações indígenas, minorias étnicas, camponeses ou outros grupos que possam
ter direitos informais sobre a terra e outros recursos privados pelo projeto, devem ser
providos com terra, infra-estrutura e outras compensações adequadas. A falta de
titulo legal sobre a terra não pode ser utilizada como razão para negar a esses grupos
compensação e reabilitação (WORLD BANK, 1994)
Há também a concepção de atingido usada pela Comissão Mundial de Barragens –
CMB – que é uma instituição formada por organizações de atingidos por barragens de vários
países, governos e representantes de empresas. Esta definição é muito próxima daquela usada
pelas agências internacionais financiadoras de grandes projetos de barragens:
Deslocamento é definido aqui englobando tanto o deslocamento físico quanto o
deslocamento dos modos de vida. Em um sentido estrito, deslocamento resulta do
deslocamento físico de pessoas que vivem na área do reservatório ou do projeto. Isso
ocorre não apenas pelo enchimento do reservatório, mas também pela instalação de
outras obras de infra-estrutura do projeto. Contudo, o alagamento de terras e a
alteração do ecossistema dos rios – seja a jusante ou a montagem de barragem –
também afetam os recursos disponíveis nessas áreas – assim como atividades
produtivas. No caso de comunidades dependentes de terra e de recursos naturais,
isso frequentemente resulta na perda de acesso aos meios tradicionais de vida,
incluindo a agricultura, a pesca, a pecuária, a extração vegetal, para falar de alguns.
Isso provoca não apenas rupturas na economia local como efetivamente desloca as
populações – em um sentido mais amplo – do acesso a recursos naturais e
41
ambientais essenciais a seus modos de vida. Essa forma de deslocamento priva as
pessoas de seus meios de produção e as desloca de seus modos de vida. Assim, o
termo atingido, refere-se às populações que enfrentam um ou outro tipo de
deslocamento. (WORLD COMMISSION ON DAMS, 2000: 102).
Ainda segundo o MAB, a partir da década de 1980, com a forte pressão de sua parte e
também de outros movimentos sociais, a Eletrobrás incorporou um conceito de atingido que
se aproxima daqueles usados pelo Banco Mundial e pela Comissão Mundial de Barragens, ao
reconhecer que um projeto hidrelétrico “constitui um processo complexo de mudança social
que implica, além da movimentação de população, em alterações na organização cultural,
social, econômica e territorial” (REFERENCIAL).
O próprio MAB reconhece a dificuldade de se estabelecer um conceito de atingido que
seja amplo e rigoroso o suficiente para não deixar de fora situações que são desconhecidas até
mesmo pelo movimento. Entretanto é a seguinte a definição com a qual o movimento
trabalha até o presente momento:
Podemos dizer que atingidos por barragens são todos e todas que sofrem algum tipo
de perda: econômicas, culturais, ambientais, sociais, políticas, etc, sejam elas antes,
durante ou até mesmo depois da obra ser concluída. Sejam eles proprietários ou não-
proprietários, sejam camponeses (pescador, ribeirinho, agricultor, minerador,
extrativista, assalariado, diarista,...) ou moradores urbanos. Seja ele morador da área
inundada ou não-inundada (abaixo da obra, acima da obra, ao redor do lago, nas
comunidades ribeirinhas, em bairros, ilhas,...). É muito comum a região toda ser
atingida por apenas uma barragem, até mesmo a Bacia Hidrográfica.
(DOCUMENTOS DO MAB, 2005)
Como se percebe, o MAB procura incluir no conceito de atingido todos e todas que de
uma forma ou de outra têm sua vida transformada a partir da construção da barragem.
Importante frisar a amplitude do conceito que inclui também as perdas culturais sofridas pelos
atingidos, uma vez que a dimensão imaterial quase nunca é levada em conta, seja pelos
governos, empresas e até mesmo por correntes políticas cuja atuação leva em conta apenas os
aspectos econômicos.
Para os atingidos da região de Manso, o reconhecimento de sua condição de atingido
foi uma etapa importante na luta geral. E de acordo com a militante Ana Neves de Miranda, o
reconhecimento de atividades como a garimpagem como sendo atingida pela barragem é uma
novidade em termos de Brasil, sendo a região de Manso o único local onde garimpeiros
vieram a ser indenizados com a construção da barragem:
42
Umas das conquistas foi... o quite alimentação, que foi.... uma das primeiras
reivindicações do movimento, acho que em dois mil e dois. Porque, o povo
simplesmente mudou até vir a indenização. É uma indenização que varia né, de
acordo com... aqueles que eram proprietários de terra ganhavam mais, aqueles que
viviam de meeiro ganhavam menos. Variou desde duzentos reais por indenização;
teve duzentos reais por exemplo. Aí, eles só mudaram pras casas e não tinha como
sobreviver ali. Aí, com a luta do movimento, eles conseguiram esse quite
alimentação que há até hoje ainda. E também, outras das... reivindicações era a terra
pro assentamento, que a gente também já conseguiu também... E... acho que foi isso,
porque.... Outras das conquistas grandes também foi... a conquista do... conseguir
provar que os excluídos... que houve muitas pessoas que foram excluídas. Por
exemplo, ele só... considerava atingido se tivessem um... ou se tivesse o titulo da
terra ou se tivesse uma roça lá, se tivesse uma casa, não morasse separadamente. Por
exemplo lá na minha família, eram.... vários dos meus irmãos já tinham família, só
eles só reconheceram como atingido apenas o meu pai. Os meus irmãos saíram sem
direito nenhum. Ai depois com a luta do movimento, a gente conseguiu provar que
essas pessoas também eram atingido e que deveriam ser indenizadas. Aí essa
também foi uma conquista muito grande pro movimento. E também reconhecer os
garimpeiros, que pra eles, os garimpeiros, não eram atingidos pela barragem.
Porque, sabe? Garimpeiro não tem moradia fixa, né? Cada dia ta num local. Ai pra
eles não eram atingidos. E com o movimento a gente conseguiu provar que de fato
que eles eram atingidos, e que tinham... que... ganhar um outro local. Isso... acho
que foi uma das maiores conquistas porque.... o Movimento dos Atingidos por
Barragem, nenhum... nenhuma região do Brasil consegue... conseguiu provar que
garimpeiro é atingido. Só aqui em Manso que houve essa conquista, que... pra gente
foi muito importante. Acho que até hoje, são essas as conquistas que a gente já
conseguiu. (MIRANDA, 2007)
Uma vez definido o conceito de atingido, apresentamos um pouco da história do
movimento. O texto que apresentamos a seguir é parte de um trabalho realizado pela
coordenação do Movimento dos Atingidos por Barragens em Mato Grosso e que nos foi
entregue pela militante Ana Neves de Miranda (2007), quando de nossa entrevista com a
mesma durante a etapa de pesquisa de campo desta dissertação:
A história dos atingidos por barragens no Brasil tem sido marcada pela resistência
na terra, luta pela natureza preservada e pela construção de um Projeto Popular para
o Brasil que contemple uma nova Política Energética justa, participativa,
democrática e que atenda os anseios das populações atingidas, de forma que estas
tenham participação nas decisões sobre o processo de construção de barragens, seu
destino e o do meio ambiente. (DOCUMENTOS DO MAB, 2005)
Apenas este parágrafo inicial já é suficiente para desmistificar a forma como os
movimentos sociais, e dentro deles o MAB, é visto pelas correntes políticas que pretendem
subordinar os movimentos sociais aos partidos políticos tradicionais. Ao contrário disso, o
MAB deixa explícito que os movimentos não devem apenas cumprir o papel de secundar a
ação dos partidos políticos tradicionais que tendem a considerá-los como “manifestações
subjetivas”. Aqui a voz do movimento expressa muito mais que a simples postulação em
defesa dos interesses dos atingidos por barragens. Sua visão política é abrangente, uma vez
43
que postula a construção de “um projeto popular para o Brasil”, ou seja, concebe a sua
atuação de forma estratégica, como opção de poder para o país e não apenas como um
movimento que luta por uma causa específica. Parece-me que esta linha de ação guarda uma
similaridade com o MST, já que também este movimento procura sempre reafirmar a sua
independência dos partidos políticos, apresentando uma plataforma que vai além da simples
luta pela terra para postular transformações radicais no próprio modelo de organização social.
Assim, percebe-se que o que se questiona, como veremos no decorrer da
argumentação do documento apresentado, não é apenas o modelo de geração de energia. Mais
que isso, o MAB se contrapõe ao modelo de Estado e de Governo que, de acordo com sua
avaliação, privilegia um Brasil que não leva em conta as necessidades da ampla maioria de
sua população:
Na década de 70, foi intensificado no Brasil o modelo de geração de energia a partir
de grandes barragens. Usinas hidrelétricas são construídas em todo o país, projetos
“faraônicos” são levados adiante com o objetivo principal de gerar eletricidade para
as indústrias que consomem muita energia chamadas de eletro-intensivas e para a
crescente economia nacional, que passava pelo chamado “milagre brasileiro”,
durante a ditadura militar. Estas grandes obras desalojaram milhares de pessoas de
suas terras, uma enorme massa de camponeses, trabalhadores que perderam suas
casas, terras e o seu trabalho. Muitos acabaram sem terra, outros tantos foram morar
nas periferias das grandes cidades. Desta realidade surge a necessidade da
organização e da luta dos atingidos por barragens no Brasil, como forma de resistir
ao modelo imposto. (DOCUMENTOS DO MAB, 2005)
Nessa perspectiva, o MAB surge a partir de três focos de resistência em distintas
regiões do país e a evolução de sua luta logo faz com que suas lideranças percebam a
necessidade de uma articulação em âmbito nacional e internacional, já que
contemporaneamente o MAB se articula com o MST – Movimento dos Sem Terra – e outras
organizações congêneres de todo o mundo através da Via Campesina:
Três focos principais de resistência, organização e luta pode ser considerados como
o berço do que viria a ser o MAB anos mais tarde: Primeiro na região Nordeste, no
final dos anos 70, a construção da UHE de Sobradinho no Rio São Francisco, onde
mais de 70.000 pessoas foram deslocadas, e mais tarde com a UHE de Itaparica foi
palco de muita luta e de mobilização popular. Segundo no Sul, quase que
simultaneamente em 1978, ocorre o início da construção UHE de Itaipu na bacia do
Rio Paraná, e é anunciada a construção das Usinas de Machadinho e Itá na bacia do
Rio Uruguai, que criou um grande processo de mobilizações e organização nesta
região. Terceiro na região Norte, no mesmo período, o povo se organizou para
garantir seus direitos frente a construção da UHE de Tucuruí. Todas as obras acima
citadas apresentam dois fatos marcantes: a existência, ainda hoje, de organização
popular, e como aspecto negativo, todas têm ainda problemas sociais e ambientais
pendentes de solução devido à construção das barragens. Nessas obras e nas demais
44
regiões do Brasil, a luta das populações atingidas por barragens, que no início era
pela garantia de indenizações justas e reassentamentos, logo evolui para o próprio
questionamento da construção da barragem. Assim, os atingidos passam a perceber
que além da luta isolada na sua barragem, deveriam se confrontar com um modelo
energético nacional e internacional. Para isso, seria necessário uma organização
maior que articulasse a luta em todo o (DOCUMENTOS DO MAB, 2005)
O MAB nasce como um movimento nacional, popular e autônomo:
Assim, em abril de 1989 é realizado o Primeiro Encontro Nacional de Trabalhadores
Atingidos por Barragens, com a participação de representantes de várias regiões do
País. Foi um momento onde se realizou um levantamento global das lutas e
experiências dos atingidos em todo o país, foi então decidido constituir uma
organização mais forte a nível nacional para fazer frente aos planos de construção de
grandes barragens. Dois anos após é realizado o I Congresso dos Atingidos de todo
o Brasil – em março de 1991 – onde se decide que o MAB – Movimento dos
Atingidos por Barragens deve ser um movimento nacional, popular e autônomo, que
deve se organizar e articular as ações contra as barragens a partir das realidades
locais a luz dos princípios deliberados pelo Congresso. O dia 14 de março é
instituído como o Dia Nacional de Luta Contra as Barragens, sendo celebrado desde
então em todo o país. Os Congressos Nacionais do MAB passaram a ser realizados
de três em três anos, sempre reunindo representantes de todas as regiões organizadas
e as decisões tomadas servem como base para o trabalho e linhas gerais de ação.
Com o apoio de diversas entidades realizamos do Encontro Internacional dos
Povos Atingidos por Barragens, em março de 1997, na cidade de Curitiba-
PR/Brasil. O Encontro Internacional contou com a participação de 20 países, dentre
eles, atingidos por barragens e organizações de apoio. Durante o encontro, atingidos
por barragens da Ásia, América, África e Europa puderam compartilhar as suas
experiências de lutas e conquistas, fazer denúncias e discutir as Políticas
Energéticas, a luta contra as barragens em escala internacional, bem como, formas
de defender os direitos das famílias atingidas e o fortalecimento internacional do
Movimento. Do encontro, resultou a Declaração de Curitiba, que unifica as lutas
internacionais e institui o Dia 14 de Março, como o Dia Internacional de Luta
Contra as Barragens. Fruto desta articulação e por pressão dos movimentos de
atingidos por barragens de todo o mundo, ainda no ano de 1997 é criada na Suíça, a
Comissão Mundial de Barragens (CMB), ligada ao Banco Mundial e com a
participação de representantes de ONGs, Movimentos de Atingidos, empresas
construtoras de barragens, entidades de financiamento e governos. A CMB teve o
objetivo de levantar e propor soluções para os problemas causados pelas
construtoras de Barragens a nível mundial, bem como propor alternativas. Deste
debate que durou aproximadamente três anos, resultou no relatório final da CMB,
que mostra os problemas causados pelas barragens e aponta um novo modelo para
tomada de decisões. (DOCUMENTOS DO MAB, 2005)
Conforme podemos perceber no decorrer da argumentação apresentada pelo
documento do MAB, o movimento nasce como uma resposta à implantação de um modelo
energético que privilegia as grandes corporações nacionais e transnacionais, mas à medida
que se articula em âmbito nacional e internacional e à medida que sua luta se desenvolve, o
movimento evolui para a contestação aberta ao sistema capitalista:
Em novembro de 1999 o MAB realiza seu IV Congresso Nacional, onde é
reafirmado o compromisso de lutar contra o modelo capitalista neoliberal, e por um
Projeto Popular para o Brasil, onde inclua um novo modelo Energético. Foi
45
reafirmado que método de organização de base do MAB é através dos grupos,
instância de organização, multiplicação das informações e resistência ao modelo.
MAB vem lutando por uma nova política energética que: “Assegure a participação
popular no planejamento, decisão e execução. Priorize as questões sociais e
ambientais antes da implementação de qualquer barragem, considerando sempre a
bacia hidrográfica. Corrija as distorções existentes no Setor Elétrico, acabando com
desperdícios na transmissão, execução e consumo de energia, bem como o fim dos
subsídios aos grandes consumidores. Invista em pesquisa na busca de novas fontes
energéticas. Priorize o desenvolvimento de fontes alternativas energéticas, por
exemplo: energia solar, eólica, pequenas barragens em local adequado com critérios
estabelecidos pela população. Garanta o acesso à energia a todas as famílias e,
principalmente, àquelas atingidas. (DOCUMENTOS DO MAB, 2005)
O movimento procura se aliar com seus congêneres, como o MST que, embora não
seja literalmente citado, é por ele considerado um parceiro importante; com o qual se articula,
em âmbito mundial, através da Via Campesina. Outro aspecto que merece ser ressaltado é que
o movimento reafirma a sua autonomia frente aos partidos políticos e por conta de sua
interligação com outros movimentos sociais nacionais e internacionais que adotam uma
postura semelhante aponta para um horizonte histórico no qual as grandes transformações
sociais não mais são articuladas via partidos tradicionais:
O MAB é hoje um forte movimento popular, autônomo, organizado local, regional e
nacionalmente. Ele visa reunir, discutir, esclarecer e organizar os atingidos direta e
indiretamente pelas barragens, obras pré-construídas ou projetadas, paras defesa de
seus direitos, sem fronteira de países, cor, sexo, religião ou opção político-partidária.
O Movimento é contra os planos que impõem a construção de grandes barragens
sejam elas estatais, privadas, financiadas ou não por agências internacionais. O
MAB incentiva a busca e luta por alternativas para a geração e distribuição de
energia que modifiquem a atual matriz energética brasileira, o que somente será
possível através de uma real democratização da política energética e de seu
compromisso com um projeto de sociedade socialmente justo e ecologicamente
responsável. O MAB incentiva a luta como processo no qual os atingidos vão
tomando consciência de sua situação, participando integralmente de sua organização
e decidindo com responsabilidade sobre o seu destino coletivo. O MAB reconhece
como seus aliados todos os movimentos populares, em primeiro lugar aqueles que
lutam pela reforma agrária. O MAB busca aliar-se àqueles movimentos, grupos e
organizações que compreendem a necessidade de uma transformação profunda na
matriz energética brasileira, de modo a colocá-la a serviço do povo e adequá-la a
uma concepção de desenvolvimento que considere a necessidade de preservar os
recursos ambientais e, sobretudo, os recursos hídricos. O MAB se solidariza com a
luta de todos os atingidos por barragens no mundo e compreende o caráter
internacional da luta contra grandes barragens, uma vez que os interesses que
fomentam a indústria de grandes barragens são também internacionais.
(DOCUMENTOS DO MAB, 2005)
Em Mato Grosso, o MAB nasce a partir da construção da usina de Manso. De acordo
com depoimentos de moradores do local numa época anterior a construção da usina, a
comunidade não possuía nenhum nível de organização política, sendo que as mobilizações
que envolviam os moradores estavam ligadas às tradições culturais locais, como as festas de
46
santos. É somente a partir do deslocamento da população que a mesma sente a necessidade de
se organizar politicamente em torno de um movimento.
Foschiera (2007), que desenvolveu um trabalho de pesquisa no local, resultando em
uma Dissertação de Mestrado sobre o Movimento dos Atingidos por Barragens na região de
Chapada dos Guimarães, relata que a forma de organização social e econômica das
populações locais anteriores à construção da usina era tipicamente pré-capitalista, uma vez
que tradicionalmente a zona rural do município, na área do entorno de onde é hoje o lago de
Manso, foi originalmente “marcada pela presença de Sesmarias, caracterizadas por fazendas
com agregados, e Quilombos, sendo esses últimos principalmente nas proximidades de rios
como Casca, Quilombo e Manso” (FOSCHIERA, 2007).
Essa forma tradicional de vida permaneceu até que as populações foram desalojadas
para a construção da usina. A forma de organização social privilegiava as relações de
parentesco e amizade entre os membros da comunidade, sendo raros os casos de famílias que
possuíam títulos de propriedade das terras ocupadas, além do grande número de pessoas que
sobreviviam praticando outras atividades como caça, extrativismo vegetal, pesca e
garimpagem e que não foram considerados como atingidos pela empresa Furnas:
As famílias que viviam nas fazendas como agregadas tinham suas relações com o
proprietário mediadas pelo gerente, em acordos de arrendamento de terras, de pastos
ou de porcentagem de diamantes para os garimpeiros. Nas áreas de quilombolas se
consolidaram, ao logo do tempo, os vínculos de parentesco, vizinhança e compadrio
e uma produção de subsistência marcada pelo cultivo agrícola, a pesca e a coleta.
Essas populações, na sua grande maioria, não detinham a propriedade da terra e
viviam na condição de posseiros.
(FOSCHIERA, 2007).
De certa forma, pode-se considerar as comunidades da região como um povo com
cultura e modos de vida próprios, muito diferentes daqueles vivenciados pelo conjunto da
população que vivia e vive nas cidades, como em Cuiabá e que estão totalmente incorporadas
ao modo de produção capitalista.
Nesse sentido, a posterior presença de militantes do MAB-Sul, a partir do
deslocamento das populações e que iria culminar com a criação do MAB em Mato Grosso,
pode ser considerado como um fator de rearticulação econômica e cultural da população local.
Como veremos em outro capítulo, a passagem da forma de organização espontânea para o
47
MAB e posteriormente a aquisição da linguagem audiovisual por parte de militantes do
movimento irá determinar a passagem para uma consciência política de identificação com
transformações revolucionárias na sociedade brasileira.
As atividades de subsistência eram regidas pelas estações do ano, sendo considerado
o inverno ou época das chuvas (de outubro a março) e o verão ou época da seca (de
abril a setembro). Além da roça, geralmente, faziam parte da unidade familiar de
produção o bananal, o brejo de reserva, capoeira, horta, mandiocal, mato, pasto,
pomar, quintal, cerrado. Eram espaços por onde os moradores tinham livre acesso e
retiravam produtos úteis a sua sobrevivência. Os produtos predominantes obtidos
nas propriedades eram mandioca, arroz, milho, banana e feijão. A ligação com o
mercado externo as comunidades era feito por meio de “marreteiros/atravessadores”,
que eram intermediários que compravam produtos agropecuários, peixes e
diamantes da região e revendiam, principalmente, nas cidades de Chapada dos
Guimarães e Cuiabá. Pode-se dizer que predominava um estilo de vida pré-
capitalista, tradicional e fortemente relacionada com a natureza, na maior parte da
área a ser afetada pela Usina de Manso.
(FOSCHIERA,2007)
De acordo com esses militantes – cujas entrevistas fazem parte de um capítulo desta
dissertação – foram os militantes e dirigentes do MAB da região sul do país que começaram o
processo de construção do movimento no Estado de Mato Grosso. A incorporação dos
atingidos ao MAB mostrou-se fundamental para que aqueles adquirissem consciência política
e aumentassem a densidade de sua organização coletiva no processo de conquista de um
reassentamento que atendesse aos anseios – pelo menos do ponto de vista material – dos
atingidos:
A história do MAB em MT se inicia com a construção da usina de Manso em
Chapada dos Guimarães, que perdeu com a construção da Usina Hidrelétrica de
Manso aproximadamente 50 mil hectares de área de lindas paisagens, Atingindo
diretamente e indiretamente mais de mil famílias, sendo que 362 famílias foram
reassentadas em terras improdutivas, e 60 famílias realocadas para os bairros
periféricos da cidade. Levando as famílias a viverem em ambiente totalmente
diferente de seu habitat natural, sofrendo um choque cultural, econômico e social.
Em troca recebem cenário totalmente diferente e intovel: um reservatório com a
mesma dimensão. Isto devido à construção de barragem da Usina Hidrelétrica de
Manso a cargo da empresa estatal Furnas Centrais Elétricas S/A. Tudo que se
encontra na região está condenado a desaparecer do mapa. Começando pelas boas
terras para o cultivo, as matas e o cerrado, ricos em flora e fauna. Além disso, o
povo nativo, que resiste no local à gerações, vem sendo obrigado a mudar para
sempre. Os rios da Casca, Quilombo, Palmeiras, Jardim e tantos outros córregos.
Vales e paredões. Tudo nesta extensa região, desapareceram das nossas vista em
menos de dois anos. (DOCUMENTOS DO MAB, 2005)
As declarações de atingidos e membros do movimento revelam que o discurso do
“desenvolvimento” e do “progresso”, usado tanto pelo governo quanto pela empresa
responsável pela construção da usina, em determinados momentos foram responsáveis pela
48
desmobilização dos atingidos. De certa forma, toda a comunidade esperava ansiosamente que
a construção da usina “gerasse empregos” e significasse o aumento na qualidade de vida da
população, uma vez que a energia gerada seria colocada à disposição de toda a sociedade.
Os pontos de referência da história e cultura desta etnia de trabalhadores rurais
nativos de Chapada começaram a submergir com o fechamento das comportas da
barragem, ocorrido no dia 30 de novembro de 1999. Com o movimento da retomada
das obras da usina, no ano passado, a população acreditou que manso significaria
“progresso”, para gerar energia e muitos outros empregos. Mas com o tempo, foi
conhecendo melhor os interesses envolvidos e sentindo as conseqüências de tal
empreendimento sobre as comunidades diretamente atingidas. Menos território
produtivo na região e mais de mil famílias tiveram seus projetos de vida suspensos
até que se conclua o reassentamento e a reorganização das respectivas comunidades.
O prejuízo material, moral e espiritual destas famílias, durante este período de obras,
são incalculáveis e impagáveis. A história real, agora está registrada e não tem
volume de água nem de sangue que possa afogá-la. Pois foram expulsas de suas
terras e vendo suas casas sendo queimadas e destruídas juntos com seus sonhos.
(DOCUMENTOS DO MAB, 2005)
Essa certa empolgação de muitos e apatia de alguns frente ao processo de implantação
da usina e que favoreceu a desmobilização da comunidade, também foi verificada por
Foschiera (2007), que apontou a forte receptividade do discurso desenvolvimentista pregado
pela empresa Furnas e incorporado pela população:
No período em que se deu a construção da barragem da Usina Hidrelétrica de Manso
não ocorreram maiores questionamentos sobre a obra na região. Absorvidos pelo
discurso do progresso, pela possibilidade de implementação de um grande parque
turístico, pela intensificação do movimento de pessoas na região parecendo que
aqueceriam a economia local de forma duradoura, pela geração de empregos para
pessoas da região na obra, entre outros fatores, os futuros atingidos não conseguiam
visualizar em que condições se encontrariam após o fechamento das comportas da
Barragem. (FOSCHIERA,2007)
De fato, aquelas comunidades acostumadas aos ritmos cíclicos da natureza, praticantes
de uma economia de subsistência, pré-capitalista e portadora de valores culturais e de um
universo simbólico próprios, não poderiam imaginar o real impacto da construção da
barragem em suas vidas. A realidade plausível, com as suas amargas conseqüências somente
iria ser verificada quando a água os expulsasse de seu modo de vida tradicional:
O grande choque da população atingida se inicia com o enchimento do lago,
quando as pessoas realmente tiveram que deixar suas terras, suas moradias e
partirem para os reassentamentos (as que foram reassentadas), ou buscar novos
caminhos (os excluídas dos reassentamentos), ou verem parte de suas terras
inundadas. (os que tiveram a área parcialmente alagada). Algumas famílias tiveram
que sair às pressas, pois as águas estavam chegando e ainda não haviam
transportado todos seus bens, sendo que, em algumas situações, essas mudanças
49
tiveram que ser feitas à noite e até mesmo utilizando-se de barcos. A água chegava
sem pedir licença, assim como fez a empresa responsável pelo empreendimento ao
ali se instalar. Emergia com toda a força o dito que alguns técnicos responsáveis
pela obra não cansavam de destacar ao longo do processo de construção da obra. A
ilusão de uma rápida melhora na vida das pessoas se transformou em desilusão. A
indignação com a obra começava a se fazer presente e uma revolta, inicialmente
individual e/ou privada, começava a ganhar o espaço público. (FOSCHIERA,2007)
A partir desse deslocamento e com os primeiros reveses, sofridos principalmente pelas
famílias que não foram oficialmente reconhecidas como atingidas, mas também pelos que se
viram privados de sua forma tradicional de vida sem conseguir uma adaptação a nova
realidade, os atingidos procuraram se organizar, embora essa organização ainda não
questionasse os aspectos centrais do modelo energético. Mas foi a partir dessa organização
embrionária que mais tarde surgiu o MAB.
Uma pequena tentativa de organização por parte de alguns atingidos pela barragem
do Manso se deu, inicialmente, ao redor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais
(STR) de Chapada dos Guimarães/MT, quando a obra já estava em processo
acelerado de construção. Algumas pessoas chegaram a se manifestar coletivamente
numa área conhecida como Ponte do Mamão, no rio Quilombo, onde impediram a
construção de casas nos locais de novos reassentamentos. Por aproximadamente um
mês, buscaram algumas negociações junto a Furnas e ocuparam o escritório de
Furnas no município de Chapada dos Guimarães. Essa organização inicial não fazia
frente à construção da hidrelétrica e sim, estava voltada ao reconhecimento de
algumas famílias como atingidas e com direito a receberem indenização. Muitas
dessas famílias vinham buscando junto ao Instituto de Terras de Mato Grosso –
INTERMAT a regularização de suas posses e depois ficaram sabendo que parte da
área desejada seria alagada ou estaria incluída na área de preservação ambiental do
empreendimento. Algumas dessas famílias foram cadastradas e outras não no
momento de se fazer o levantamento sócio-econômico para ver quem teria direito a
indenização, por isso o descontentamento que levou a um princípio de organização
acima descrito. (DOCUMENTOS DO MAB, 2005)
É somente a partir da constituição do MAB que a população local atingida passará a
adquirir a consciência do modelo a eles imposto. Se nos momentos anteriores, ainda no
processo de construção da barragem, muitos sonhavam com o progresso e o desenvolvimento
que supostamente seria propiciado pela Usina, mais tarde a militância do MAB iria enumerar
as funestas conseqüências da barragem:
Mais de mil e quinhentas famílias foram atingidas pela barragem de Manso. De cada
dez atingidos, sete são expulsos das terras a serem alagadas sem nenhum direito
garantido. E todas as comunidades ribeirinhas pescadores artesanais ao longo de
Cuiabá tiveram suas atividades econômicas totalmente afetadas. Perdemos os rios de
água corrente, cheios de vida que serviam para a alimentação. Perdemos mais de 50
mil hectares de terra com lavoura, pastagem e reservas. Perdemos toda a vegetação
de área, incluindo arvores frutíferas e madeira de lei. Perdemos mineração, outras
atividades que geram renda. Perdemos atividades pesqueiras da barragem até o
50
pantanal. De todos os levantamentos feitos na região mais de mil e quinhentas
famílias atingidas, mas apenas 422 foram reconhecidas por Furnas. E os restantes
dos atingidos não conseguiram nada, ou seja, foram totalmente excluídas. Destas
beneficiadas e mal indenizadas 362 famílias foram assentadas em cinco
reassentamentos, em terras improdutivas onde sofrem com falta de água e etc. O
MAB, em MT, vem lutado duramente contra todas essas situações de calamidades
sofridas, por isso no mês de março deste ano acampamos pela terceira vez no
canteiro de obra da usina de manso, reivindicando nossos direitos, que desde da a
primeira ocupação FURNAS, prometeu e não cumpriu. (DOCUMENTOS DO
MAB, 2005)
Conforme Foschiera (2007), a partir do contato de integrantes do MAB da Região sul
do país, com os atingidos de Manso, é que o trabalho de organização passa a ser realizado de
forma mais consistente e conseqüente. Esses militantes, já experimentados em lutas
semelhantes em outros locais do Brasil, cumpriram o papel de elevar o nível de consciência
social e política das populações atingidas, possibilitando que as mesmas pudessem fazer uma
outra e nova leitura de sua própria realidade e a partir de então é que pode-se considerar a
existência de um Movimento dos Atingidos por Barragens no local:
Uma ação diferencial ocorreu a partir da chegada de um integrante do Movimento
dos Atingidos por Barragens – MAB (da região Sul do Brasil), no ano 2001, trazido
por um integrante da Comissão Pastoral da Terra - CPT, que passou a fazer um
trabalho de levantamento das condições em que se encontravam os atingidos e de
organização de base nas comunidades, destacando a possibilidade de se reverter a
situação em que os atingidos se encontravam. Cabe destacar que nesse momento a
obra já estava finalizada e o lago já tinha se formado. A liderança do MAB Nacional
que primeiramente se dirigiu ao município de Chapada dos Guimarães,
acompanhado de membros da CPT e um grupo de atingidos pela UHE de Manso que
estavam puxando as discussões, passou por várias comunidades falando da
experiência de organização de atingidos em outras barragens pelo Brasil, destacando
que a organização e ação coletiva dos atingidos em outras barragens tinham mudado
os rumos de milhares de famílias, muitas das quais que até já tinham se conformado
com as perdas causadas pelas obras dos empreendimentos energéticos. Destacava,
também, que isso poderia ocorrer em Manso, caso as pessoas se organizassem e se
propusessem a lutar por seus direitos. É justamente essa ação consciente e planejada
do Movimento dos Atingidos por Barragens que possibilitou à comunidade ter uma
consciência clara da situação na qual estavam colocados. Muito diferente daquelas
ilusões sobre o desenvolvimento, o progresso, a geração de empregos então
propalada pela empresa durante o processo de desocupação e que permaneceu até os
primeiros assentamentos, a situação evoluiu para o descontentamento generalizado:
a maioria dos atingidos não havia sido contemplada com indenizações ou lotes de
terras em assentamentos e os que conseguiram ser assentados logo verificaram que
as terras para onde foram levados não possuíam a mesma qualidade de suas antigas
posses. É nesse instante que a organização, através do MAB, vai possibilitar o
enfrentamento com Furnas e a luta por um reassentamento em terras produtivas. A
presença de lideranças do MAB de tempos em tempos foi fortificando as discussões
entre os atingidos de Manso, bem como a ida de pessoas das comunidades atingidas
em outros estados do país para fazerem cursos de formação de lideranças e
conhecerem experiências semelhantes. Nesse processo foram se formando e
fortificando os grupos de base constituídos por 5 a 10 famílias, sendo um integrante
indicado como líder. Chegou-se a ter 120 grupos de base organizados, que envolvia
tanto reassentados descontentes com a indenização, como também, famílias que se
diziam atingidas pelo empreendimento e que não receberem nenhum tipo de
indenização Os atingidos, agora já organizados como MAB/MT, tentaram abrir
51
negociações com Furnas para rever a questão das indenizações, porém não tiveram
sucesso, tendo como resposta que o situação já estava resolvida e quem tinha direito
já havia sido indenizada, se eximindo de qualquer problema que estivesse ocorrendo
na região. No final do primeiro ano de reassentamento, quando finalizou o período
em que seria distribuída a cesta básica às famílias reassentadas e, também, a
produção agrícola se mostrou ínfima devido às condições do solo onde ocorreram os
reassentamentos, os questionamentos sobre as perdas causadas pela usina de Manso
para os atingidos se intensificou. Como resultado dessa insatisfação generalizada
ocorreu com a presença de lideranças do MAB e apoio da CPT, em 29 de outubro de
2001, o 1º acampamento nas proximidades da Usina de Manso onde os atingidos
passaram a ter o controle de quem poderia entrar e sair da usina. Nessa ação tinha-se
como pauta de reivindicação, entre outras coisas, a volta do recebimento das cestas
básicas para os reassentados, o reconhecimento e garantia de direitos do grupo de
atingidos que se diziam excluídos das indenizações. Devido à ação do MAB na
usina de Manso, ocorreu uma audiência pública para discutir os impactos da
construção da Usina de Manso na Assembléia Legislativa de Mato Grosso. Como
resultado dessa audiência teve-se uma ampliação do debate sobre os impactos da
Usina, mas que não gerou benefícios maiores aos atingidos. Pode-se dizer que levou
a perda do foco principal da ação do MAB/Manso que era Furnas e a usina de
Manso e se gerou expectativa de que por intermédio de deputados e governador
poder-se-ia alcançar os objetivos a que se propunham. (FOSCHIERA, 2007)
Para o contexto desta dissertação, as vicissitudes enfrentadas pelos atingidos
interessam mais do ponto de vista da perda do referencial cultural que o deslocamento
provocou. Dada a intransigência da empresa Furnas e a falta de compromisso do governo, é,
até certo ponto, natural que as populações atingidas tenham necessidade de uma organização
para a defesa dos seus interesses.
No entanto, o que desejo ressaltar é que só remotamente os responsáveis pela
implementação de grandes projetos hidrelétricos são capazes de perceber que o impacto
dessas construções vai muito além do econômico e ambiental. Num certo sentido, percebe-se
que mesmo as populações atingidas somente adquirem a consciência da desestruturação
cultural a qual são submetidas muito tempo depois. Assim, pouco se tem falado sobre a
necessidade de defender o patrimônio imaterial da população, o que reforça a minha
disposição em centrar argumentação nesse sentido.
No ano de 2004, a Relatoria Nacional para o Direito Humano ao Meio Ambiente, da
Plataforma Brasileira de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais produziu para a
Organização das Nações Unidas o relatório Injustiça Ambiental em Mato Grosso, onde entre
outros casos igualmente graves, Jean-Pierre Leroy e Daniel Ribeiro Silvestre denunciam ao
mundo o crime de genocídio cultural que fora praticado contra as populações ribeirinhas
quando da época da construção da barragem de Manso. Este relatório foi realizado quando
parte dos atingidos havia sido assentada em um novo local:
52
A UHE Manso é um empreendimento da empresa estatal Furnas Centrais Elétricas
S/A (controlada pelo Governo Federal por meio da Eletrobrás), no município de
Chapada dos Guimarães, para geração de 210 MW de energia elétrica. O
enchimento do reservatório, de 7,4 bilhões de m
3
e abrangendo uma área de 47 mil
hectares, começou ao final de 1999, com o fechamento das comportas. A região
alagada era ocupada por grupos populacionais que, desde o século XIX,
desenvolveram formas tradicionais de produção econômica e reprodução
sociocultural ao longo dos rios Quilombo, Casca e Manso. A organização social e
produtiva, bem como a própria cultura regional, eram conformadas pelas
características naturais do território. As principais atividades desenvolvidas eram a
agricultura e a pesca, o garimpo e o extrativismo, em geral desenvolvidas
concomitantemente e em família. As trocas eram comuns entre os produtores e
algumas atividades, como as festas de santos, organizadas coletivamente. A
apropriação, por Furnas, de toda a base material que sustentava o sistema produtivo
tradicional dos grupos atingidos, para formação do reservatório, significou a
destruição dos seus modos de vida, desenvolvidos historicamente com aquele
ambiente em boa parte hoje alagado. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS,
2004)
Talvez o aspecto mais cruel e desumano do empreendimento levado a cabo por Furnas
na região de Manso seja o de ter submergido uma forma original de cultura e modo de vida,
um patrimônio cultural que jamais poderá ser recuperado, ainda que todos os atingidos por
barragens sejam recompensados economicamente por seus prejuízos materiais.
Embora não tenhamos conhecimento de uma pesquisa científica nesse sentido, há
indícios de que o desenraizamento cultural, a perda dos referenciais simbólicos e a
desestruturação daquele modo de vida afetou de tal forma as relações sociais imaginárias de
boa parte da população que inviabilizou seu desenvolvimento natural e conduziu-a à perda da
identidade individual e coletiva.
Segundo o Movimento dos Atingidos por Barragens - MAB, dezoito comunidades
foram atingidas, totalizando 1.065 famílias, mas somente 422 famílias foram
reconhecidas por Furnas como atingidas, das quais 362 foram assentadas e 60 foram
deslocadas para as periferias das cidades. A empresa construiu cinco assentamentos:
Quilombo, Campestre, Bom Jardim, Água Branca e Mamed Roder, entregando a
cada uma um lote de 15 hectares com uma casa de alvenaria de 54 m
2
. Furnas
forneceu aos atingidos, além do terreno e da casa: água proveniente de um poço, luz
elétrica, fossa séptica /sumidouro, estrada de acesso com revestimento primário, 4
hectares de solo preparado e corrigido para plantio, ticket alimentação para o
período de 12 meses, finalizado em 2002. Para a comunidade: local para cultos
religiosos, centros comunitários, postos de saúde, armazém, cemitérios, patrulha
mecanizada com trator, grades aradoras, carreta e um caminhão para cada
assentamento, doação de calcário e livros para formação da biblioteca. Assistência
técnica mediante convênio firmado entre SEDER (Secretaria de Estado de
Desenvolvimento Rural), EMPAER (Empresa Mato-Grossense de Pesquisa e
Assistência Técnica e Extensão Rural) e Prefeitura Municipal de Chapada dos
Guimarães. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2004)
53
Conforme esclarece o Relatório da ONU, houve certa preocupação por parte da
empresa em fornecer aos assentados uma estrutura material que, desse ponto de vista, era
melhor que aquela vivenciada em Manso antes da barragem, mas nenhuma preocupação
houve em atender as necessidades culturais da população, que nessa esfera ficou totalmente
dessassistida:
O que poderia parecer como uma justa compensação pela perda do seu território e
das suas condições anteriores de vida e de produção esconde o drama vivido por
essa população tradicional. A população que foi reassentada pela empresa foi
retirada das áreas úmidas do vale para serem realocadas no cerrado, sem nenhuma
consideração com os modos de vida e reprodução social tradicionais. Praticavam
uma agricultura de subsistência no vale (a “mata”), combinada com as atividades de
pesca e de coleta no cerrado, cada atividade conforme a tradições que regiam a
organização social, tanto as manifestações religiosas e culturais quanto a posse da
terra, a produção e o extrativismo. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS,
2004)
Mesmo no aspecto meramente econômico, o processo de transferência para outro local
– o primeiro assentamento – foi realizado sem que se levasse em conta a forma tradicional
como as populações estavam acostumadas a produzir seus meios de vida. Se a produção em
grande parte foi prejudicada pelas condições impróprias do solo, também é verdade que no
assentamento as condições culturais de produção em nada se assemelhavam àquelas que
estavam presentes em Manso e isso foi fundamental para o fracasso do empreendimento.
Os produtores, independentemente da área que possuíam, receberam lotes de mesmo
tamanho. Na extrema maioria desses lotes, nos quais eventualmente estão incluídas
áreas de preservação permanente (nascentes, córregos), pedregulhos e áreas
inaproveitáveis, que reduzem ainda mais o espaço útil para a agricultura, o cerrado
predomina ou mesmo cobre a totalidade do lote. A correção do solo pela aplicação
de calcário foi insuficiente para fazê-lo produtivo. A agricultura que era praticada na
modalidade “roça de toco” e produzia milho, arroz, batata doce, banana, abóbora,
maxixe, quiabo, feijão, algodão, pepino, mamão, etc., hoje não é possível devido ao
solo que é constituído, em média, por 92% de areia. Muitas famílias vêm sofrendo
com a falta de água potável. A pesca sempre foi considerada uma atividade da rotina
dos moradores da região do Manso, fonte essencial na composição de seus hábitos
alimentares e na complementação de renda, pois eventualmente o pescado excedente
era trocado por produtos como açúcar, café, querosene e sabão. A atividade passou a
enfrentar grandes dificuldades, pois o desequilíbrio instalado no ecossistema pela
barragem e o fim da piracema causaram o desaparecimento de certas espécies (como
os “peixes de couro”) e a proliferação de espécies consideradas de baixa qualidade.
Além disso, os moradores agora precisam, para a pesca no lago, de equipamentos
que não utilizavam: barcos, motores, gasolina, o que lhes impõe um custo com o
qual não têm capacidade de arcar. A jusante imediata da barragem, 104 famílias de
pescadores têm sido gravemente afetadas pela escassez e pela má qualidade do
pescado que restou no rio. Hoje, essas falias têm passado fome, mas não são
consideradas atingidas, por Furnas. As atividades do garimpo realizado
artesanalmente, que constituíam para muitas famílias uma fonte complementar de
renda, foram completamente inviabilizadas já que as áreas utilizadas foram
submersas. Outros bens naturais usados tradicionalmente pelas comunidades
54
atingidas tornaram-se escassos ou desapareceram: palha e madeira, usadas em
múltiplas finalidades; as iscas para os peixes, que eram conseguidas nas várzeas e
brejos locais; a argila, usada no artesanato desenvolvido pelas mulheres. Muitos
produtos artesanais eram comercializados informalmente na sede do município,
local de movimento turístico intenso. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS,
2004)
Essa impossibilidade de a comunidade reorganizar seu modo de vida em outro local
agravou as condições que determinaram aquilo que o Relatório chama de genocídio cultural e
que pouco foi explorado até mesmo por aqueles que denunciaram a construção da usina.
Como o sistema econômico local e a cultura estavam articulados em um modo de vida
próprio, no qual um fornecia o suporte para a existência do outro, a impossibilidade de se
manter a formação econômica anterior representou uma forte limitação à continuidade da vida
cultural comunitária, seja porque a população foi dispersa, perdendo-se os vínculos de
parentesco e de amizade que os unia, seja porque nas novas condições econômicas não havia
espaço para manifestações culturais oriundas de um modo de vida pré-capitalista.
Entre as atividades desenvolvidas conjuntamente, destacavam-se as festas sacras e
profanas, mobilizadoras de todas as comunidades. A pobreza a que foram lançadas
as famílias atingidas tem sido o maior obstáculo à manutenção desses eventos, pois
lhes diminuiu a capacidade de fazerem doações como bezerros, porcos, galinhas,
doces, etc. As conseqüências negativas, para os sistemas produtivos tradicionais, das
alterações ambientais introduzidas pela barragem hidrelétrica, são agravadas pela
desorganização social introduzida pelo deslocamento populacional forçado. Além
das perdas, materiais e imateriais, um outro conjunto de problemas pode ser
identificado nas relações de Furnas com as famílias afetadas pelo empreendimento.
Antes do enchimento do reservatório, a empresa procurava convencer as famílias
atingidas que o empreendimento representava o progresso, apresentando a eles tão-
somente os benefícios da mudança. Aproveitando-se da limitação econômica e do
desconhecimento de direitos, por parte dos grupos atingidos, Furnas se beneficiou
no processo de negociação. As indenizações e as compensações oferecidas foram
consideradas, pelos atingidos, absolutamente insuficientes e incapazes de permitir a
reconstrução e reorganização social nos moldes do sistema tradicional. Nos
processos de negociação e indenização, faltou transparência e sobrou o arbítrio
unilateral da empresa. Dezenas de famílias não foram reassentadas e receberam
indenizações insuficientes para comprarem uma casa na cidade. Os próprios
reassentados receberam indenizações desproporcionais e foram empobrecidos. Além
disso, centenas de famílias foram afetadas e não indenizadas, gerando situações de
coabitação nas pequenas casas construídas por Furnas. Geralmente, este é o caso de
familiares que viviam em uma mesma área, filhos que vão constituindo família e
construindo próximo e produzindo no sistema familiar.(ORGANIZAÇÃO DAS
NAÇÕES UNIDAS, 2004)
Nada poderia exemplificar melhor porque todas as riquezas são injustas, conforme diz
o poema de Ernesto Cardenal na epígrafe deste capítulo, do que a situação dos atingidos por
barragens. Foram arrancados de suas terras, nas quais viveram a vida toda e nas quais viveram
55
seus antepassados. Sua cultura foi aniquilada, foram dispersos e empobrecidos, engolidos pela
grande engrenagem do sistema capitalista para que este pudesse ter a energia necessária ao
seu funcionamento.
Tudo isso com a promessa que entrariam em um novo tempo de prosperidade e de
progresso e terminaram não tendo acesso nem mesmo à energia produzida pela barragem,
uma vez que a maioria, assim como milhões outros, não podem pagar por ela:
Hoje, verificam-se inúmeras dificuldades de adaptação ao novo ambiente de vida.
Os resultados negativos dos esforços empenhados na agricultura – fonte de sustento
– em razão da baixa qualidade do solo; a falta de trabalho nas fazendas da região ou
outros meios de sobrevivência; a dificuldade de uso de novas técnicas de plantio e
de pesca; os problemas de abastecimento de água; a pobreza; a ampliação da
distância dos grandes centros para muitas pessoas; as doenças, que se tornaram mais
freqüentes; o calor mais intenso, dada a falta de vegetação; a proximidade de uma
vizinhança com a qual não estavam acostumados; o aumento da violência, do uso de
bebidas alcoólicas e de gravidez de jovens; a perda da autoridade dos pais sobre a
família; separações conjugais em razão da miséria; o clima de desconfiança e
discriminação gerado dentro das comunidades; a falta de perspectiva para as novas e
as futuras gerações: tudo isso tem contribuído para o sentimento de insatisfação com
o local e para a baixa auto-estima dos moradores.
4
As dificuldades de adaptação ao
novo ambiente também se evidenciam na iniciativa de reassentados que construíram
sua casa de sapé e barrote, semelhante à anterior, ao lado da nova casa de alvenaria.
As de alvenaria são mais quentes do que as tradicionais. Nas casas tradicionais, os
atingidos podem ter seus fogões de barro a lenha, pois os novos fogões têm fogo
“frio”, a comida não sai com o mesmo gosto e as famílias não dispõem de recursos
para comprar gás. Ironicamente, tamm recebem mensalmente uma conta de luz
que, em alguns casos, tem chegado a valores altos de até 80 reais. Os depoimentos
colhidos por nós confirmam as observações da pesquisadora Nelita Ramos Toledo:
“É possível verificar o que ocorre nos assentamentos construídos por FURNAS, a
tristeza que se abate sobre as famílias entrevistadas. Os pais que acostumados a
terem seus filhos morando nas proximidades vêm-se hoje sem nenhum apoio para a
lida com a terra, e se sentem abandonados. Por outro lado, as mães se sentem
revoltadas e envergonhadas ao relatarem que suas filhas foram trabalhar na cidade e
que muitas já voltaram grávidas. (...) ... das 50 famílias pesquisadas, 56% se dizem
insatisfeitas e pretendem mudar-se do assentamento”.
5
(ORGANIZAÇÃO DAS
NAÇÕES UNIDAS, 2004)
A extrema desigualdade entre a capacidade de luta e mobilização dos atingidos no
momento da desocupação da região onde viveram uma vida inteira e o aparato tecnológico
colocado à disposição de Furnas para viabilizar seus intentos é fragrante.
4
Cf. Nelita Ramos Toledo, ob.cit., pp. 79-95.
5
A pesquisadora verificou que o sentimento de satisfação era sempre associado a “sossego – não ter que se
preocupar com os filhos, pois moravam ao lado; sustento – com o que vai comer amanha, ter a certeza de que
seu sustento estava garantido com a produção; e proximidade – que se refere a estar próximos dos filhos e
parentes”. (Atingidos pela Construção da Barragem..., ob. cit., p. 89 – grifos do original).
56
Ao passo que às comunidades atingidas foram negadas quaisquer possibilidades de
resistência ou mesmo de questionamento ao modelo imposto, Furnas possuía um arsenal
político, ideológico, social, legal e financeiro incomparável, uma vez que dispunha do know-
how da construção de outras usinas precedentes, não somente naquelas que havia construído,
como também em todas as outras de outras empresas do setor elétrico.
Maria José Reis, em sua Tese de Doutorado O Movimento dos Atingidos por
Barragens: atores, estratégias de luta e conquistas, UFSC (1998), diz explicitamente que
O planejamento e as iniciativas da ELETROSUL em relação ao aproveitamento
hidroenergético da Bacia do Uruguai foram marcados pelas características básicas
que nortearam o setor elétrico brasileiro desde a criação da ELETROBRÁS, no
início da década de 1960. Ou seja, a existência, desde então, de um portentoso
aparelho de planejamento, controle e gestão dos sistemas de produção e distribuição
de energia elétrica no conjunto do território nacional e a opção preferencial por
grandes usinas de aproveitamento hídrico para o atendimento à demanda de
eletricidade. (REIS, 1998)
Chamo a atenção para o grifo nas últimas linhas da citação acima. Parece evidente que
o modelo de geração de energia focado na opção por grandes projetos, projetos de
concentração, de monopolização do processo produtivo de energia, possui estreita ligação
com o modelo de sociedade do qual deriva. Falo explicitamente do modelo no qual
predominam os grandes projetos de “desenvolvimento” nacional em todos os setores da vida
econômica e da sociedade. É o modelo concentrador da propriedade da terra, é o modelo
concentrador dos meios de comunicação social, enfim de concentração nas mãos de pequenos
grupos de todos os meios necessários à produção social da vida.
Por outro lado, ao se posicionar contra o modelo de geração de energia proposto pelos
Governos, e em sentido mais profundo, pelo Estado, o MAB, conforme já explicitamos em
diversas partes desta Dissertação, se insere no contexto do combate estratégico aos outros
tipos de modelos concentradores e excludentes.
É contra essa resistência das populações atingidas, que as empresas subsidiárias da
ELETROBRÁS “atuavam de modo semelhante, através de três estratégias básicas: a
desinformação, a perspectiva territorial patrimonialista e a negociação individual” (REIS,
1998).
57
Fica claro então, que toda aquela situação denunciada pelo Relatório da ONU a que
nos referimos anteriormente decorreu de um planejamento anterior. Furnas sempre soube
como, onde, contra quem e porque agir:
A desinformação, uma das principais “armas” das empresas do setor elétrico em seu
relacionamento com as referidas populações, assumia, nos momentos iniciais de sua
atuação em uma determinada região, a forma pura e simples da sonegação de
informações. Essa sonegação visava, em primeiro lugar, possibilitar o ingresso e a
circulação de pessoal da empresa na região. Facilitaria, também, a conquista de
algumas posições no espaço regional, antes que a população se desse conta do que
estava para acontecer. (...) Por outro lado, essa desinformação continuava, por
vezes, também após o início das obras, através de uma espécie de “propaganda
enganosa”, veiculada pelo próprio setor que, por meio de uma intensa atividade de
“comunicação social”, divulgava o empreendimento e seus supostos “benefícios”,
calando-se quanto aos aspectos socioambientais negativos.
(REIS, 1998).
O fato de as empresas usarem como estratégia fundamental a desinformação e a
divulgação de propaganda enganosa como meio de retardar a reação dos atingidos e
posteriormente de confundir sua atuação, demonstra como o setor elétrico tem consciência da
importância estratégica do controle da produção da informação para o controle da produção
da vida social. Mais tarde será justamente essa percepção por parte do MAB que irá
oportunizar um salto qualitativo na sua capacidade organizativa e política.
Reis prossegue sua argumentação, demonstrando como as empresas concessionárias
da ELETROBRÁS completam sua estratégia de dominação das populações:
A estratégia territorial patrimonialista, por sua vez, de acordo com Vainer e Araújo
(1990, p. 21) foi frequentemente implementada pelas empresas do setor elétrico
quando se tratava de “criar o vazio demográfico necessário à instalação das
barragens (...). Seus levantamentos e estudos de campo fornecem uma vasta e
detalhada informação sobre o espaço a conquistar, os cadastramentos
socioeconômicos dando elementos sobre cada propriedade e proprietário”. A partir
destes dados, efetivava-se através da compra, a “desocupação” da área e sua
reapropriação por parte do setor elétrico, desconsiderando-se os direitos dos demais
ocupantes da área, não-proprietários dos espaços territoriais ocupados. Deste modo,
os trabalhos de aquisição e “limpeza do terreno”, destinados à implantação da obras
e da infra-estrutura básica para a sua construção e funcionamento, eram
58
preferencialmente realizados através de negociações individuais, entre o proprietário
da área requisitada e a empresa responsável por esta tarefa.
(REIS, 1998).
Em um de seus poemas, Ernesto Cardenal diz: “As crueldades dessas luzes não as
defendo / E se hei de prestar um testemunho sobre minha época / será este: ela foi bárbara e
primitiva / porém poética”. Resta acrescentar que essa poesia talvez somente esteja presente
na luta e na caminhada daqueles que, mesmo diante das maiores injustiças cometidas contra si
e contra os seus, não se calam.
E mais: não deixam que a amargura e a injustiça tomem conta de seus corações,
continuam a caminhada “sem perder a ternura jamais”. Como veremos no próximo capítulo,
onde quatro jovens militantes do MAB relatam suas histórias de vida. Nem os poderosos que
construíram a usina, nem os governos que a legitimou, poderiam supor que de um povo
traído, abandonado e explorado pudesse brotar as sementes de uma nova utopia.
59
4 - O CINEMA CIRCULANTE
O projeto Cinema Circulante é uma iniciativa de um grupo de seis produtores culturais
do Estado de Mato Grosso, aprovado e financiado pela Lei Estadual de Incentivo à Cultura do
citado Estado, tendo sido executado e apresentado ao longo dos anos de 2004 e 2005. Além
da realização de 95 exibições fílmicas, com uma média de público de 200 pessoas por sessão,
também foram promovidas oficinas de iniciação aos modos e meios da produção audiovisual,
com um total de 75 alunos.
Para os realizadores do projeto Cinema Circulante um dos resultados mais importantes
do projeto foi a produção de 05 documentários produzidos pelos alunos e alunas. Isso
significa que o Cinema Circulante cumpriu um importante papel de estimular o nascimento de
novos documentaristas oriundos de setores sociais que tradicionalmente sempre estiveram
excluídos dessa forma de comunicação social.
O projeto também promoveu a organização de alguns alunos e alunas em uma
entidade. Os jovens do Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, de Chapada dos
Guimarães, a partir de sua participação nas oficinas do Cinema Circulante, organizaram-se
através de uma entidade cultural, NÓS DO MAB – Cultura do Manso em Movimento, que tem
desenvolvido desde então, autonomamente, um projeto de intervenção cultural inspirado na
tecnologia e no modelo de atuação do Cinema Circulante atendendo as várias comunidades de
assentados que habitam o em torno da represa do Lago do Manso.
Para os objetivos desta Dissertação, destaca-se, sobretudo a realização das oficinas,
onde se busca aprender a forma como a participação de militantes do Movimento dos
Atingidos por Barragens contribuiu para a aquisição da linguagem audiovisual e
conseqüentemente para uma nova tomada de consciência sobre a própria militância política e
social.
60
No entanto, o projeto envolveu também a exibição de filmes nas comunidades e nesse
sentido, pode-se avaliar também o papel do Cinema como ponto de partida para o pensamento
e a expressão da realidade brasileira, principalmente da parte da realidade que se relaciona
com aqueles grupos sociais que sempre estiveram à margem dos processos sociais.
Ou nas palavras de Sergio Brito “É uma experiência gratificante mostrar o cinema
brasileiro, em locais que falta até luz elétrica. O nível de consumo cultural é ainda muito
baixo. Se pensar que o filme ‘Diários de Motocicleta’, nem sequer passou pelos cinemas da
capital. Imagine o que representa levar cinema para quem só tem uma televisão”.
Esse mesmo ideal é compartilhado por toda a equipe do Cinema Circulante, conforme
pode ser verificado em um depoimento:
O que move o projeto Cinema Circulante, além do sonho, são os objetivos de
democratizar, socializar e facilitar o acesso a bens e espaços culturais pelas
populações de baixo poder aquisitivo; de contribuir com a formação critica de novas
platéias para o cinema brasileiro e para arte em geral; de estimular o debate sobre
Cultura, Cidadania e Saúde, Preservação Ambiental e melhoria da qualidade de vida
entre outros. Enfim, fazer acontecer o que rege a Carta Magma: “CULTURA É UM
DIREITO” e o compreendemos como um valor intrínseco no exercício da
CIDADANIA.
6
O Cinema Circulante realizou nas cidades de Poconé, Livramento, Chapada, Várzea
Grande e Cuiabá, a projeção de filmes nacionais em comunidades que dificilmente teriam
acesso ao cinema. Entre os participantes do projeto: Epaminondas Carvalho, Paulo Traven,
Leonardo Sant’Ana e Carlos Figueiredo. O projeto foi idealizado pela Associação dos
Profissionais de Cinema e Outras Tecnologias Audiovisuais de Mato Grosso (AMAV-
ABD/MT), e patrocinada pelo Ministério da Cultura, Secretaria de Estado de Cultura e Rede
Cemat.
Nota-se que o Movimento dos Atingidos por Barragens não foi o único movimento
social envolvido na execução do projeto. Houve uma descentralização na parceria com
organizações populares que apoiaram o projeto na divulgação e mobilização de expectadores
e participantes das exibições fílmicas e oficinas, entre elas estão a Central Única das Favelas
6
AMAV/ABD-MT & EQUIPE DO CINEMA CIRCULANTE.
http://www.amav.org.br/arq_cinema_20062007.php
61
(CUFA); Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB); o Centro de Cultura Afro Bega -
Flor e as associações das comunidades do Complexo Quilombo Mata Cavalo.
As exibições e oficinas foram distribuídas entre os seguintes municípios e
comunidades mato-grossenses: Chapada dos Guimarães – Comunidade João Carro, Nossa
Senhora do Livramento, Poconé, Cuiabá e Várzea Grande. Para o contexto da minha pesquisa,
avalio apenas a execução do projeto nos assentamentos do Movimento dos Atingidos por
Barragens na região de Chapada dos Guimarães.
Essa análise do projeto, além das entrevistas com militantes que participaram das
oficinas e que constam desta Dissertação, conta também com uma avaliação de documentos
fornecidos pelos executores do projeto e uma entrevista realizada com um dos coordenadores,
Sergio Brito. Nascido no Rio de Janeiro, ele é formado em Cinema pela Universidade Federal
Fluminense, já trabalhou na Embrafilme, e é diretor da AMAV - ABD. É documentarista
social e tem em sua obra a inspiração do cineasta Humberto Mauro, de Robert Flaherty e
Eduardo Coutinho.
Sergio Brito é o coordenador desse grupo de produtores culturais responsável pela
implementação do Cinema Circulante junto ao Movimento dos Atingidos por Barragens na
região de Chapada dos Guimarães. Os comentários apresentados a seguir foram extraídos de
uma entrevista que ele me concedeu durante a realização da pesquisa que culminou com esta
Dissertação.
Percebe-se na sua fala uma clara orientação no sentido de que o projeto do Cinema
Circulante se constituísse em uma ferramenta de poder nas mãos das comunidades.
Na verdade eu acho que o cinema circulante catalisou um conjunto de desejos e
vontades de algumas pessoas e num determinado momento eles se juntaram e
convergiu num sentido de construir um projeto. O projeto unifica esses desejos,
essas vontades desse grupo. A gente conseguiu aglutinar em função de uma idéia
que é simples. Fazer com que aquilo que a gente vive lendo nos jornais, nos
documentos oficias dos órgãos públicos e também das instituições representativas da
área da cultura, e da área social como um todo, que é democratizar pra facilitar o
acesso e contribuir pra construção de autonomias e empoderamento das sociedades,
de possibilidades, pra que elas com sua autonomia possam construir as suas
trajetórias. (BRITO, 2008)
62
Nesse sentido, pode-se afirmar que o projeto Cinema Circulante ambicionou, desde o
princípio, abordar a rica diversidade do patrimônio cultural brasileiro, democratizando e
descentralizando o acesso ao bem cultural representado pelo audiovisual, por meio da
promoção de exibições itinerantes de filmes de produção regional e nacional, e de oficinas e
workshops ofertadas para pessoas pertencentes a camadas populares, que normalmente não
têm acesso para assistir a filmes em um cinema comercial ou mesmo a participação em
oficinas nas quais se adquire a linguagem audiovisual.
As camadas populares estão excluídas do acesso ao cinema por falta de salas e pelo
alto preço dos ingressos. As diretrizes do mercado cinematográfico no Brasil
privilegiam a instalação de salas de cinema em shoppings, onde a maior parte da
população brasileira não tem acesso. (SEMINÁRIOS, 2003, p.40)
As oficinas promovidas pelo projeto culminam na produção de um documentário em
vídeo como resultado prático das aulas, proporcionando aos participantes o acesso a bens
educacionais e culturais, além de contribuir para o processo de democratização dos meios e
das possibilidades de produção, tanto em comunicação quanto em cultura.
De acordo com Sergio, um dos objetivos iniciais do projeto foi justamente o de
proporcionar uma prática democrática na aquisição de uma nova linguagem comunicacional
por parte dos integrantes das oficinas e através destes, por toda a sua comunidade. Nesse
sentido, a comunidade foi envolvida na discussão do projeto para que o mesmo não repetisse
o erro de se constituir em uma imposição a partir de cima, do olhar específico dos
organizadores do projeto. Dessa forma, mesmo aquelas pessoas que não participaram
diretamente das oficinas puderam, ao final destas, realizar uma leitura crítica do material
apresentado nas comunidades.
Então o quê que é? Passar, pensar num projeto que escapasse do modelo tradicional
histórico. (...) Que é da exibição, dos filmes, das imagens, pra um grande publico, e
que é um evento que não se, não se repete sistematicamente, ele se repete a um
período muito distante um do outro, às vezes nunca mais passa né? Aqui, no Mato
Grosso e no Brasil mesmo, se tem muito dessa coisa do cinema, eu chamo de
cinema itinerante né? assim, ele faz um itinerário, mais não retorna. (...) Mas não é
formar publico pra ir ao cinema só, nós precisamos formar o publico pra ir ao
cinema e ter uma, uma possibilidade de leituras criticas a respeito do que esta vendo.
(BRITO, 2008)
Segundo transparece na fala de Sérgio, um dos problemas iniciais colocados pelo
projeto foi a escolha dos locais onde ele seria executado, tendo em vista o tamanho do Estado
63
de Mato Grosso, a distância entre os municípios e outros problemas de logística daí
decorrentes. Dada a escassez de recursos e a quantidade de atividades e profissionais que
deveriam ser envolvidos na execução do projeto, ele precisou ser elaborado de forma a
maximizar os recursos e buscando o envolvimento da população alvo, não só como forma de
democratizar o planejamento e a execução, como também de que os próprios beneficiados se
envolvessem.
E ai o que foi a idéia? A opção foi trabalhar localizadamente, não abraçar o Estado
inteiro, acoplar a idéia de exibir filmes, realizar oficinas e um workshop pra que as
oficinas de iniciação de audiovisual e o workshop, um mínimo de informação de
como é que se formata um projeto, elabora e formata tecnicamente um projeto pra
você encaminhar pra financiamento. É pouco. Eu acho que precisa mais. Mas o
recurso que a gente tem, em termos de pessoal mesmo, recursos financeiro... São
escassos. Mas, independente disso, a gente tem consciência de que poderia ser a
oficina em vez de serem quarenta horas, podia ser de oitenta, cento e sessenta horas.
Mas é tudo negociado com as comunidades, quer dizer, então como é que chega às
comunidades? Como é que nós chegamos? Tem essa idéia, discutimos, foi
trabalhado, negociar com o povo do quilombo, e negociar significa sentar e expor as
entranhas da idéia entendeu? Não é “ah, a gente vai passar uns filmes aqui pra vocês
e pronto”, não. (BRITO, 2008)
No caso específico do MAB, esse envolvimento e participação da comunidade na
execução do projeto precisou passar por um processo de discussão que envolveu praticamente
toda a comunidade dos assentados. Esse processo de discussão foi importante e necessário
não apenas porque a implementação de qualquer projeto nos assentamentos passa por uma
discussão coletiva, como e principalmente porque aquela comunidade já estava na defensiva,
pelo fato de uma experiência semelhante ter sido realizada antes – o Se Liga Nessa -, com
alguns resultados adversos para a comunidade.
Um desses resultados adversos e que se constituiu mais em uma falta de ética da
equipe do projeto Se Liga Nessa foi a utilização e imagens geradas pelas oficinas em um
processo de negociação entre Furnas e o MAB.
No caso do MAB, ele é mais emblemático ainda, e ai, porque para que a gente
pudesse chegar lá, passou por um processo de negociação, e um processo de
negociação num primeiro instante com camadas das lideranças, e depois teve que ir
pra uma assembléia entendeu? E que tinha gente pra caramba dentro do espaço, eles
estavam num encontro regional. E a gente teve que ir lá, apresentar a proposta,
discutir... Porque que passou por esse processo? Não só porque é uma pratica deles,
entendeu? Pra discussão coletiva da decisão coletiva etc., mas muito também,
porque eles estavam escaldados com a historia de melancia, com a historia da
manipulação barata, com a historia do mau-caratismo. (BRITO, 2007)
64
Esse episódio, no entanto, também pode ser avaliado em termos positivos, se levarmos
em consideração que a partir dele a comunidade estava mais atenta às possibilidades de
manipulação por parte de pessoas e meios de comunicação. Embora os militantes do MAB e
assentados já estivessem quase que acostumados a uma cobertura parcial de jornais e TVs
locais e nacionais com relação ao movimento e a outros movimentos sociais durante o
processo de desocupação a que foram submetidos, o Se Liga Nessa foi a primeira experiência
em termos de produção audiovisual. Por isso, antes dela as comunidades não tinham ainda um
exemplo de imagens produzidas por seus integrantes e que fossem usadas contra eles mesmos.
Nesse sentido, embora o Cinema Circulante inicialmente tivesse uma dificuldade de
abordagem, a forma como ele foi encampado permitiu um enraizamento na comunidade, ou
melhor, criou as condições para que a comunidade se empoderasse. Nota-se que esse
enraizamento começa justamente com a discussão sobre a implantação ou não do projeto na
comunidade. Foi necessário um processo de discussão, onde não faltaram críticas, negativas e
ponderações.
A gente cumpriu todo um ritual que eu chamaria de aproximação, e de negociação,
pra poder colher os resultados que a gente colheu até agora. (...) Foi pra votação e
teve gente contrária, porque não acreditava. Não acreditava porque? Porque se
reproduziu no mundo real deles, a aquilo que eles viam acontecer cotidianamente, vê
cotidianamente acontecer nos meios de comunicação de massa, que é a manipulação
barata. Então eles sabem, sabiam que isso acontecia. Porque a gente tem ai
processos eleitorais, edição de debates, você tem noticias dadas de uma maneira que
contraria a expectativa da classe trabalhadora, e assim, um jogo de palavras é muito
cruel contra os trabalhadores. (BRITO, 2007)
Observa-se que a conquista da linguagem audiovisual e o acesso aos meios materiais e
humanos que permitem o exercício dessa linguagem, potencializa a capacidade do grupo de
interagir com o mundo circundante e de defender o seu ponto de vista diante da pressão do
meio, que sempre existe no sentido de impor suas concepções de mundo e de movimento, de
nomear de forma negativa as ações e idéias do movimento.
Qualquer observador atento pode perceber como são noticiadas as ações de
movimentos como o MAB nos meios de comunicação social. Invariavelmente os movimentos
são criminalizados. Um exemplo é a categorização que se faz das ações do MST. Governos,
meios de comunicação e latifundiários tratam essas ações como invasões. Para o MST trata-se
de ocupações. Não é uma mera questão de semântica. É uma questão filosófica, política e
ideológica de fundo, de concepção de mundo e a adoção de um ou de outro termo demonstra
65
o interesse social e de classe por trás da notícia. Por isso, a conquista da linguagem
audiovisual não acontece sem que ela também seja colocada do ponto de vista de classe, de
grupo, do ponto de vista e no interesse dos explorados.
Então, eu sempre dou um exemplo assim, o movimento dos sem terra, em nenhum
documento deles, eles vão dizer que invadem terra de latifundiário e tal. Eles não
invadem. Na concepção deles nós ocupamos um espaço que é pra ser coletivo e ta na
mão de um. E isso é a mesma coisa acontecer com o pessoal do MAB. Eles são
atingidos pelas barragens, mas não é só pela barragem física. Eles têm consciência
de que eles foram atingidos é, como se a barragem tivesse arrebentado na vida deles
e atropelado a vida deles. (BRITO, 2007)
Destaca-se o que tem sido afirmado por diversas vezes no contexto desta Dissertação e
que também foi verificado na fala de Sérgio que é a constatação de que a construção da Usina
Hidrelétrica de Manso determinou não apenas a mudança das comunidades de um local para
outro. Houve o que o Relatório da ONU classificou de genocídio cultural, ou seja, a
destruição de um modo de vida. A barragem sepultou um mundo simbólico e imaginário,
formas culturais, experiências de vida, sonhos, toda uma economia de trocas simbólicas que
jamais poderão ser recuperadas, ainda que todos venham a ser reassentados um dia.
Então eles são literalmente atingidos fisicamente pelas barragens e são atingidos
metaforicamente e simbolicamente pela existência da barragem, que varre o mundo
cultural, que varre o mundo social, que varre o mundo comunitário deles. E nós
vamos lá negociar, e eles “não, os caras não manipulam só na televisão, e no jornal,
nós contribuímos pra que alguém viesse aqui dentro e manipulasse a gente, então
agora nós não vamos mais deixar ninguém entrar”. (BRITO, 2007)
Pode-se dizer que há algo de poético nessa relação estabelecida entre a equipe do
projeto Cinema Circulante e as comunidades do MAB. Algo parecido com aquele poema do
Vinícius de Moraes, onde ele diz que o operário faz a coisa e a coisa faz o operário. A
realização do projeto não apenas reconfigurou as relações internas e externas do MAB,
elevando sua capacidade de militância e intervenção a outro patamar, como também
possibilitou um acréscimo à consciência dos membros da equipe responsáveis pelo projeto.
Descoberta em termos geográficos, em termos culturais, em termos sociais. Por
mais bagagem que a gente possa ter acumulado e tal, com as vivencias anteriores,
das experiências de vida, esta experiência no movimento dos atingidos por barragem
de Chapada, é singular. (...) Para equipe inteira, a descoberta foi um baita de um
aprendizado. E eu sempre me emociono muito quando eu revejo o documentário que
eles fizeram. (BRITO, 2007)
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O que demonstra a interação fenomenológica entre uma pessoa que deliberadamente
deseja intervir na realidade e a forma como essa realidade interage com esse indivíduo. Outro
aspecto merecedor de atenção foi a realização dos workshops onde foram abordados os
caminhos e os aspectos legais para a organização formal de uma entidade cultural, e ainda
informações técnicas para a formatação de projetos culturais, estimulando a continuidade das
ações promovidas pelo projeto, de forma autônoma pelas próprias comunidades.
Embora o caráter das oficinas tenha sido o de iniciação, os vídeos produzidos, todos
documentários, abordaram aspectos da vida cotidiana e ao mesmo tempo revelaram a enorme
“riqueza” e diversidade cultural existentes em cada uma das comunidades. Aspectos que
surpreenderam os alunos e as próprias comunidades.
A grande discussão, por exemplo, era qual vai ser o tema que eles vão trabalhar?
Evidentemente que a gente com a nossa arrogância intelectual, a nossa perspectiva
antecipatória de atitudes do outro, eu imaginava, eles vão falar alguma coisa pra
partir pra dentro de furnas, questionar politicamente, vai fazer um documentário com
recorte centrado na luta. Na luta do embate mesmo, do conflito, pesado. E ai o
barato, é a descoberta de como foi se descobrindo o tempo. Porque ta lá tinha quase
vinte garotos e garotas fazendo a oficina, que foi dividida em três grupos. (...)
aparecia uma lista de dez temas em cada grupo, e ai eles iam discutindo, e ia
cortando, cortando, e por... E cortando com justificativa, não é porque “ah, é seu e
eu não gosto”, “ah não dá e por isso, pra chegar a três temas. E ai depois cada um
dos seus grupos vai lá e defende o tema. o interessante, é que não teve votação no
sentido de “vamos votar o tema A, B ou C”, não foi isso. como eles têm prática
política da discussão a construção do consenso não foi uma tarefa muito difícil.
(BRITO, 2007)
Os vídeos produzidos foram:
Mergulhadores da História – Fé e Resistência, Oficina de Chapada dos
Guimarães/ Comunidade João Carro;
Lembranças, Oficina de Nossa Senhora do Livramento;
Da Janela do Ontem para as Portas do Hoje, Oficina de Poconé;
Sambando para não Dançar, Oficina de Cuiabá e Várzea Grande.
Além dos documentários das oficinas, foi realizado outro documentário sobre o
próprio projeto Cinema Circulante.
Os vídeos Mergulhadores da História – Fé e Resistência, Lembranças e Da Janela do
Ontem para as Portas do Hoje, face à qualidade técnica alcançada e aos temas abordados,
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foram convidados a integrarem a programação da mostra Vídeos de Mato Grosso como parte
do 12º Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá, realizado entre 23 e 28 de maio de 2005.
Merece destaque a seleção e exibição dos documentários citados na XV Muestra Nacional de
Cine Y Vídeo Documental Antropológico Y Social, realizada em outubro de 2005, na
Argentina, pelo Instituto Nacional de Antropologia Y Pensamiento Latinoamericano, órgão
do ministério da cultura daquele país.
Além da participação no festival e na mostra argentina, os filmes foram lançados em
suas respectivas comunidades. Sérgio atribui essa capacidade criativa à maneira como o
projeto foi implantado, a forma democrática como ele foi discutido e o seu enraizamento nas
comunidades, o que possibilitou que seus integrantes fizessem um recorte da realidade que
estivesse em consonância com seus ideais e sonhos.
Um componente fundamental que foi a construção de um coletivo que comunga dos
desejos, que comunga das expectativas, que comunga da vontade de contribuir pra
transformar. (...) E ai, isso aconteceu com o MAB. Você vê um grupo se formar,
montar uma associação, montar um projeto, apresentar pra um órgão financiador,
conseguir parte dos recursos, desenvolver atividades, inspirado na matriz, que a
gente desenvolveu e que não é fixa. Nosso modelo de atuar não é uma caixa fechada,
é permeável, vai desde a questão de negociar as programações e quais os filmes
possíveis de serem exibidos, aos locais que locais a gente vai exibir. (BRITO, 2007)
Outro aspecto que pode ter influenciado bastante a integração entre a equipe que
desenvolveu o projeto e a comunidade que dele participou foi o fato de que os membros da
equipe permaneceram nos acampamentos onde vivenciaram a realidade cotidiana dos
assentados, conforme explica Sérgio: “Nós ficamos alojados num lugar que a infra-estrutura é
zero. Num galpão com quatro paredes, uma cozinha onde a gente fazia a oficina, almoçava,
jantava e dormia. E foram de um domingo ao outro, intenso, muito mais do que quarenta
horas de trabalho”.
Observa-se que essa mesma falta de infra-estrutura, que pode ter dificultado a
realização das oficinas e do projeto como um todo, também atuou no sentido de aproximar a
equipe da realidade com a qual ela estava trabalhando. Percebe-se que a equipe terminou por
desenvolver uma empatia com a comunidade a ponto de perceber as dificuldades mais
prosaicas que brotavam na hora da exibição dos filmes, por exemplo.
Você andar oitenta quilômetros em estrada de chão. Lugar que não tem ônibus, que
a estrada é horrorosa, carro pequeno não anda... É o bar da comunidade que tem
68
mesa de sinuca, e quem tem luz, tem uma televisão... E ai você tem uma escola que
só funciona burocraticamente. (...) É você chegar com uma tela, exibindo, caminho
das nuvens, exibindo domésticas, exibindo os filmes do Eduardo Coutinho, do João
Moreira Sales, os curtas de Mato Grosso... O MAB se mobilizava e conseguia
arrumar uns ônibus pra andar as comunidades e ai entra a coisa das articulações
políticas internas no município... Vai lá consegue ônibus, leva gente... O pessoal
chegando de cavalo, motocicleta, de bicicleta, de charrete, a pé, muita gente andando
três, quatro quilômetros pra poder ver uma seção de cinema. Enfrentado chuva...
(BRITO, 2007)
Segundo Sérgio, “O cinema circulante teve uma capacidade de aglutinar, de
articular, e de contribuir pra transformar”. E isso parece ter se tornado possível tanto pela
integração entre equipe e comunidade, como também pela própria história de vida dos
membros da equipe, já que praticamente todos sempre estiveram vinculados a história do
cinema e do audiovisual em Mato Grosso.
O vínculo com os movimentos sociais ta na história do projeto, e o projeto de vida
de quem milita na organização. O Epaminondas pó exemplo é um dos grandes
responsáveis pela existência do cinema em Cuiabá, Mato Grosso. Eu tenho uma
trajetória vinculada ao movimento cineclubista e depois institucionalmente com o
cinema. Leonardo a mesma coisa, tem um vinculo com a produção, embora seja o
mais novo, com a produção audiovisual, Paulo, também com a área da produção...
Então a gente sabe que precisa fazer com que determinadas parcelas da população
assistam os filmes brasileiros. Essa é uma realidade. Vamos construir as famosas
pontes que eu falei pra que as telas possam ser armadas com uma produção
brasileira, com produção nacional, que não é vista, mesmo que chegue aos cinemas,
a gente sabe o quanto o sistema de distribuição brasileiro é contrario a produção
nacional. Em função de quem domina as cadeias de exibição. (BRITO, 2007)
Esse vínculo da equipe com os movimentos sociais parece ter facilitado a aquisição de
uma visão crítica sobre o papel social dos meios de comunicação, principalmente sobre a
capacidade de formar – ou seria deformar? – opiniões.
As redes de televisão de sinal aberto exibem o que? Faz uma semana de filme
brasileiro e pronto. O país que produz no mínimo, sessenta, setenta, oitenta filmes
por ano têm uma semana de exibição é muito pouco. E quando não é isso, é uma
programação lá no meio da madrugada. E, além disso, a programação da semana do
cinema brasileiro é exatamente pros trabalhadores verem. Eu sempre brinco,
colocam na grade da programação uma e meia da manhã, não é? A hora que o
trabalhador ta desperto... Ele dorme de dia? Então, é uma contradição... (...)
(BRITO, 2007)
De fato a televisão brasileira tem exercido um papel de definição da agenda política e
social brasileira, o que pode ser verificado mais explicitamente a partir do final do regime
militar, quando nas primeiras eleições diretas para presidente houve uma clara orientação da
Rede Globo de Televisão e parte da grande mídia em apoiar explicitamente um dos
candidatos.
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Por outro lado, conforme explica Sérgio, a televisão não é todo esse processo, é apenas
parte dele, já a concentração dos meios de comunicação social e entretenimento, muitas vezes
articulados como grupos e estritamente vinculados a outros grupos de outros setores da
economia, terminam por asfixiar a capacidade de expressão social e impedir que o conjunto
da sociedade ou os indivíduos isoladamente estejam em condições de interferir ou de
influenciar na produção e difusão da informação.
(...) A televisão na verdade ela acaba sendo a grande ponta de lança, nuns pais onde
noventa e oito por cento dos lares tem televisão e somente setenta e nove tem
geladeira. Ela se ancora e utiliza de maneira muito competente as outras tecnologias
pra dentro dos seus interesses. (...) Como é que se organiza o discurso não só em
termos de texto, mais imagético da rede de computadores? Você não acessa direto
suas coisas, você tem sempre intermediação nessa relação. Começa pelo provedor,
depois onde é que você paga ... Tem intermediação, as imagens, os textos e sons, te
agredindo... É questionável autonomia, você pode dialogar? Pode. Agora vá
dialogar com, com fornecedor do conteúdo que ta na tua tela, vá lá, negociar com o
Terra, com o Yahoo, nunca, se vai negociar aonde? Com quem? Quem é? Entendeu?
Mas eles sabem quem você é. (BRITO, 2007)
Interessante a maneira como Sérgio vincula a televisão a um processo educacional que
ele chama de deseducação, ou um processo de “educação para outro modelo”. De fato, a partir
do momento em que as grandes redes de televisão se articulam com as grandes produtoras
cinematográficas, com os jornais de grande circulação e mais recentemente com os grupos
que controlam os fluxos de informação na Internet, há a possibilidade clara de que esse
movimento resulte na construção de uma ideologia, de um modo de pensar que termina por
“normalizar” o conjunto das relações sociais de domínio estabelecidas.
Então, acaba como a televisão ser a mais popular. Hoje acho que é pari passu com
o telefone celular, mas no campo do audiovisual, a televisão acaba catalisando essa
coisa. Eu acho que na verdade há um processo de deseducar, mais há por dentro dele
o famoso ovo da serpente, um processo de educação pra outro modelo. Às vezes eu
olho e vejo que ta muito explicito, mas ao mesmo tempo ele é muito camaleônico,
ele se esconde, se transforma, te desautoriza o discurso, que você fez entendeu?
Quantas teorias que vão pro chão rapidamente, porque o sistema é muito
competente, “ah, mais tem alguém que manipula isso?” não, não tem uma pessoa
que manipula. O que acontece é uma conjunção de interesses que se articulam em
determinados pontos da rede e eu não to falando de rede internet não, to falando da
rede da conivência cultural e humana, que se articula em determinados momentos e
constroem determinados consensos, em cima de determinados interesses. Então, há
um processo de educar um pra um modelo, que é o modelo do plano, o modelo da
não existência do contraditório. E jogando sobre as costas do individuo a
responsabilidade de que se ele não tem emprego, se ele não tem salário, se ele não
tem saúde, enfim se ele é um despossuído de alguma coisa, de algum serviço, a
responsabilidade única e exclusivamente, pertence a ele. Entendeu? Então quer dizer
assim, a culpa do sujeito não ter emprego, é porque ele não estudou computação.
(BRITO, 2007)
70
Nesse sentido, não seria ousado nem errado afirmar que esse projeto pode ser
considerado uma forma de educação popular. Esta se define como uma educação feita com o
povo e para o povo, que se direciona as camadas populares e que se vincula aos seus
interesses. Além de estar permeada pelos valores culturais do povo e que pode ser vivenciada
tanto dentro quanto fora das instituições educacionais tradicionais.
Os objetivos propostos pelo projeto Cinema Circulante têm como fim maior diminuir a
desigualdade cultural, de modo a ampliar os instrumentos pessoais e também comunitários de
ascensão social e econômica, independentemente da ação direta do Estado.
Dizemos direta porque, indiretamente o Estado acaba sendo financiador desse
instrumento, visto que se trata de um projeto financiado pela Lei Estadual de Incentivo à
Cultura. Esse projeto se insere na gama de “novos formatos de participação política” (1995,
p.50), análogo aos movimentos sociais, que por meio da disseminação de instrumentos
lúdicos e/ou profissionalizantes de transformação, dão carona para a disseminação de valores
sociopolíticos.
A relação das pessoas que inicialmente participaram da oficina de Iniciação à
Produção Audiovisual e que passaram a participar do projeto como produtores culturais,
semelhante à produção associada, característica da economia solidária, que por meio de uma
apropriação coletiva do processo de produção, dá possibilidades de que isso forneça algum
tipo de profissionalização, produção coletiva da arte e até de produtos para o mercado.
Esses desdobramentos implicam tanto na dimensão da sociedade, singularmente
trocada pela produção, quanto no campo de produção audiovisual, fortemente marcado por
uma prática em que as pessoas são definidas apenas como meros consumidores. Em entrevista
ao jornal O Estado de São Paulo, o diretor de cinema Cacá Diegues expõe sua perspectiva a
respeito desse cenário:
A próxima grande novidade do cinema brasileiro pode escrever, é o surgimento de
um cinema de periferia, feito por comunidades carentes. [...] A tecnologia digital
democratizou a produção cinematográfica, e esses meninos todos estão filmando.
Seus curtas-metragens são originalíssimos, porque são testemunhos de própria voz.
Eles são os porta-vozes de si mesmos, e isso faz muita diferença. (DIEGUES apud
O ESTADO DE SÃO PAULO)
71
4.1 – O CINEMA CIRCULANTE COMO UMA AÇÃO DE EDUCAÇÃO POPULAR
Para Paulo Freire nas suas importantes obras “A Educação como Prática de
Liberdade” e “Pedagogia do Oprimido”, para ser considerada popular a educação tem que
tomar como ponto de partida a vida do indivíduo que sofre opressão, dotando-o de
instrumentos que possibilitem o processo de libertação para si e para sua comunidade. Essa
capacitação implica no empreendimento de ações que motivem a participação ativa no
exercício diário de cobranças de atuações políticas efetivamente voltadas para a promoção do
bem-estar do povo.
É um trabalho humano, que implica em uma mudança que vai além da aquisição de
um novo instrumental de trabalho, mas de uma capacidade crítica ativa, pronta para ser
exercida. A sua metodologia deve revelar
a possibilidade de serem protagonistas do processo de sistematização, reorganização
e reelaboração do conhecimento, e que possam caminhar para estabelecer uma nova
síntese entre o chamado conhecimento científico e o saber que provém de sua
própria prática coletiva de classe (FREIRE, 1984).
No caso do projeto de intervenção cultural Cinema Circulante, esse processo de
aprendizado que se propõe a incluir, promoveu exibições itinerantes de filmes e vídeos de
produção regional e nacional, buscando descentralizar e democratizar o acesso ao bem
cultural representado pelo audiovisual. Através do acesso a filmes e vídeos, bem como das
oficinas e workshops oferecidos, objetivou estimular a organização de entidades locais e a
promoção da capacitação de adolescentes, jovens e adultos.
As visitas aconteceram sempre nos fins de semana, aos sábados e domingos. Após a
primeira exibição de cinema era lançada a Oficina de Iniciação à Produção Audiovisual, para
15 alunos de cada comunidade, preferencialmente adolescentes e jovens adultos. Como
produto final da oficina, os participantes produziram um documentário em vídeo, com cerca
de 15 minutos de duração, com tema escolhido pelos próprios alunos.
Em cada uma das comunidades também foram realizados dois workshops. Um,
abordando os caminhos e aspectos legais para a organização formal de uma entidade cultural.
72
O outro, tratando de informações técnicas para a formatação de projetos culturais,
estimulando a continuidade das ações já executadas, de forma autônoma, pelas próprias
comunidades.
A recepção das comunidades ao projeto superou as expectativas. De 80 exibições
previstas, foram efetivadas 95, com uma média de 200 pessoas por exibição. Além das
apresentações na zona urbana dos municípios selecionados, também foram realizadas
exibições em comunidades que compõem um complexo de quilombo, assentamentos e
comunidades rurais, onde muitas vezes era necessário o uso de gerador de energia, visto que
não se dispunha de energia elétrica para executar a projeção.
É importante salientar ainda que a superação dos objetivos propostos deveu-se em boa
parte à articulação de parcerias com diversas entidades, tais como a Central Única das Favelas
(CUFA), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Centro de Cultura Afro Bega-Flor,
Associação das Comunidades do Complexo Quilombo Mata Cavalo, bem como as
prefeituras.
Numa análise dos objetivos propostos pelo projeto Cinema Circulante, bem como dos
procedimentos metodológicos empreendidos para alcançar tais objetivos, podemos encontrar
indicações de um processo de alfabetização audiovisual. Para tanto, acho necessário fazer
uma análise mais detalhada das oficinas. Elas são distribuídas em cinco dias, conforme a
seguinte descrição.
Primeiro dia: os alunos recebem um suporte teórico que inclui um resumo da história
do cinema e do formato documentário, a apresentação ao vocabulário do cinema com
definições de planos e enquadramentos, técnica e linguagem do cinema ao vídeo, incluindo a
descrição detalhada dos procedimentos para a realização de um vídeo ou filme. A seguir, os
alunos são convidados a pensar criticamente o papel cultural e social do formato
documentário. Ainda no primeiro dia, a turma elege o tema a ser tratado pelo documentário
que deverá ser produzido ao longo da oficina.
Segundo dia: os alunos são apresentados teoricamente às três grandes etapas que
compreendem a execução de um filme ou vídeo. São elas: a pré-produção, a produção e a pós-
73
produção. A partir daí são organizadas as equipes e distribuídas, em comum acordo, as tarefas
a serem cumpridas.
A equipe é dividida em:
Roteirista;
Produtor executivo;
Diretor;
Assistente de direção;
Entrevistador;
Fotógrafo;
Operador de câmera;
Assistentes de iluminação e som;
Editor;
Assistente de edição;
Narrador.
Nesse trabalho os alunos já dão início à execução da etapa de pré-produção do vídeo,
que consiste na elaboração do tema (já escolhido no dia anterior), storyline
7
e sinopse
8
.
Terceiro dia: nesse dia os alunos dão continuidade aos procedimentos de pré-
produção tais como planejamento da produção, definição das locações, levantamento de
recursos necessários e agendamento das gravações. Nesse mesmo dia são iniciadas as
gravações, bem como a decupagem
9
das cenas gravadas. Essas últimas tarefas já fazem parte
da etapa de produção do vídeo.
Quarto dia: ainda dentro da etapa de produção, a turma dá continuidade aos processos
de gravação e decupagem das cenas.
Quinto dia: nesse último dia de oficina os alunos passam à etapa de pós-produção,
com a realização da edição do vídeo.
7
Storyline: a linha da história. Resumo de no máximo cinco linhas contendo a apresentação, desenvolvimento e
a solução do conflito.
8
Sinopse: desenvolve o enredo em começo, meio e fim, incluindo a localização da história no tempo e espaço,
além da descrição detalhada dos personagens.
9
Decupagem: consiste na divisão e indicação de todos os detalhes necessários à gravação das cenas
74
Os objetivos estabelecidos pelo projeto Cinema Circulante foram:
Desenvolvimento do potencial crítico, reflexivo e identificativo a partir da
projeção da própria história e cultura nas telas de cinema;
Incentivo à formação de novos públicos, especialmente entre os jovens;
Difusão da cultura brasileira através do cinema, atraindo o interesse do público
e estimulando o gosto pelo consumo desse produto cultural;
Valorização da produção cinematográfica e videográfica regional e brasileira;
Promoção da construção de um circuito não convencional de exibição através
da criação de Cineclubes ou entidades congêneres;
Estímulo à capacitação e à formação de novos produtores audiovisuais através
das oficinas e workshops.
Para compreender o desempenho alcançado pelo projeto Cinema Circulante cabe
lembrar Paulo Freire: “também se faz história quando, ao surgirem os novos temas, ao se
buscarem valores inéditos, o homem sugere uma nova formulação, uma mudança na maneira
de atuar, nas atitudes e nos comportamentos”.
Com a contribuição dos workshops esses jovens têm agora a possibilidade de
aprofundarem esse saber e também de serem multiplicadores de produção audiovisual e de
conhecimento dos códigos audiovisuais.
Resultados preliminares
A sensibilidade de percepção dos participantes pertencentes ao ambiente rural é
diferente da percepção dos participantes do ambiente urbano;
Os participantes que tiveram acesso a um determinado controle aos meios de produção
de uma determinada obra, mas não tiveram acesso à outra, fazem algumas ligações/
comparações da sua produção com a produção do outro;
A comunidade, além de consumidora desses produtos, atua de certa forma como co-
produtora diferenciada desses produtos;
75
O projeto Cinema Circulante parece ter desenvolvido e aplicado ferramentas de acesso
a bens educacionais para pessoas de camadas populares, através de oficinas, exibições
e produções audiovisuais.
76
5 - CONEXÕES O MAB VIVO
“Livros engajados? Escrevi a Dialética do desenvolvimento para dialogar com os
jovens da época, então tomados de entusiasmo por formas revolucionárias
simplistas. Escrevi O mito do desenvolvimento econômico para denunciar o enorme
custo social e ecológico da chamada política de desenvolvimento seguida no Brasil
sob tutela militar. A hegemonia dos Estados Unidos teve por objetivo projetar
alguma luz na aliança tácita entre o governo de Washington e as ditaduras latino-
americanas. Esses livros não são mais engajados do que a Riqueza das nações, de
Adam Smith, e a Teoria geral, de Keynes. Em ciências sociais, pensamos o mundo
para transformá-lo ou para defender o status quo.
Celso Furtado
77
As entrevistas que se seguem compõem a parte mais importante desta pesquisa, pois
remetem ao momento no qual os integrantes do Movimento dos Atingidos por Barragens
falam a respeito da organização inicial do movimento, da luta contra a construção da Usina de
Manso e posteriormente pelo reassentamento dos atingidos e principalmente pela experiência
de participação no Cinema Circulante.
Em certo sentido, este capítulo completa a perspectiva apontada no Capítulo 3, onde
uso documentos do Movimento para que este conte sua própria história. Foram realizadas
entrevistas com quatro militantes do MAB que participaram das oficinas do Projeto Cinema
Circulante, sendo que dois desses participaram também das oficinas do outro projeto
desenvolvido por Furnas o “Se liga nessa”. Por isso, em muitos momentos eles podem
comparar as duas experiências das quais participaram, tornando ainda mais rica a sua
capacidade de discernimento sobre o papel da alfabetização audiovisual na formação da
consciência política.
Esses quatro integrantes do MAB cujas entrevistas compõem este capítulo não foram
selecionados aleatoriamente, mas a partir de uma escolha consciente e deliberada. Após a
indicação de Sérgio Brito, um dos coordenadores do Projeto Cinema Circulante,
estabelecemos um primeiro contato com os integrantes do MAB. Ato segundo, fomos
apresentados aos militantes que concordaram em conceder estes depoimentos.
As entrevistas foram realizadas durante os meses de agosto e setembro de 2007, em
Chapada dos Guimarães, (Ana Neves de Miranda, Carlita Neves de Miranda e Cida Maria
Dias Lessa), e Cuiabá, (Virgilio Bispo Alves de Miranda). Para realização das entrevistas, não
foram usados questionários, procurei deixar os entrevistados completamente à vontade,
interferindo apenas para evitar a fuga do assunto. Todas as entrevistas foram gravadas em
vídeo, transcritas por um profissional especializado e então confrontamos as falas dos
entrevistados com alguns documentos do Movimento e reportagens publicadas em jornais de
Mato Grosso.
A primeira entrevista foi com Ana Neves de Miranda, 21 anos. Ela nasceu e viveu na
região de Manso até o início da construção da barragem, quando sua família, entre tantas
outras, foi deslocada. A experiência de vida desta entrevistada é todo o percurso dos
argumentos já relacionados nesta Dissertação.
78
Como poderá ser visto, a partir do seu deslocamento do local original onde nasceu e
viveu durante treze anos e a partir daí o contato com o MAB e posteriormente a participação
na oficina do Cinema Circulante são momentos decisivos na formação da sua consciência
política e na definição mesmo de sua consciência social e existencial.
Eu fiquei lá até meus treze anos de idade. E foi em noventa e nove com a construção
da barragem de Manso. Ai que eu me mudei pro assentamento que foi construído...
lá eu fiquei seis anos, lá. E ai nos dois últimos anos eu fiquei acompanhando o
movimento sem... lugar fixo. Na onde o movimento ia fazer mobilização eu tava
acompanhando sempre. Na maioria das vezes lá na usina de Manso mesmo, próximo
ao local onde foi alagado. Eu estudava. Tinha escola lá, só que a escola lá, só tinha
aula até a quarta série. Aí terminava a quarta série, você tinha que ir pra um outro...
Lugar estudar, porque não tinha ali não tinha mais opção pra você. Só que... quando
eu terminei a quarta série, fiquei um ano parada... Provavelmente o destino seria
Cuiabá. Porquê lá que tinha parente da gente lá. Só que... aí com a construção da
barragem, a gente se mudou de lá. Estudava e... no fim de semana você ficava em
casa mesmo, com minha mãe e tal... não ajudava meu pai na roça, era só...
estudando mesmo. (...) Só... não tinha outra opção ali. A gente só ajudava nas coisas
de casa, nos deveres de casa mesmo assim... a minha mãe... (...) tinha, a maioria de
meus parentes morava tudo lá, da família da minha mãe. Tanto da família da minha
mãe quanto da família de meu pai morava ali na região mesmo. (ANA MIRANDA,
2007)
A segunda entrevistada, Carlita Neves de Miranda, 22 anos. Nasceu e morou em
Manso até os quatorze anos. Depois, com a saída de Manso, a família se mudou para a
localidade João Carro, onde permaneceu por cinco anos. De lá foram para a cidade de Alto
Paraguai, mas como é uma militante do MAB, sempre vai até a cidade de Chapada dos
Guimarães, onde foi gravada esta entrevista. Sendo apenas um ano mais velha que a irmã,
Ana Neves de Miranda, Carlita possui uma história de vida semelhante.
Como todos os outros moradores, a vida estava centrada nos relacionamentos
familiares e de amizade. Um aspecto interessante desses relacionamentos é que mesmo as
pessoas morando até dez quilômetros de distância ainda se consideravam vizinhos, talvez
devido à ligação cultural e sentimental, ou ainda para exemplificar que os aspectos simbólicos
dos relacionamentos se sobrepunham aos geográficos.
Ah... era muito boa né. A gente morava... era tudo natural, né. A gente morava
vivendo lá em contato com a natureza, a água, né, muito legal mesmo essa
lembrança que a gente tem, que não some nunca. Por mais que a gente tenta
acostumar com outro lugar assim, mas só não consegue. A gente vivia tudo vizinhos
assim, morava sempre perto um do outro, acostumado com a cultura do pessoal
tudo, né, mesma cultura, né, vivendo sempre assim... e aí a gente muda, né, a
experiência muda, né, totalmente, fica difícil a gente acostumar... a gente não
consegue apagar aquela lembrança, daquele lugar que a gente morava... era mais
parente até, que a gente morava tudo... morando sempre ali né, Então era mais
79
parente. Vizinhos tinham assim, mais a gente considerava quase mais mesmo como
família, porque sempre morando juntos, quatorze anos de convivência ali junto, né.
Então lembranças muito... que não se apagam nunca. (CARLITA MIRANDA, 2007)
Embora contando com pouca idade – 14 anos – no momento da saída da família do
local onde moravam, a entrevistada aponta para aspectos que mais tarde foram também
denunciados tanto pelo MAB, quanto pelo Relatório da ONU, no que tange à falta de
informações a respeito da construção da usina, bem como da divulgação por parte de Furnas
de informações não-condizentes com a realidade. Fica claro como o processo de desocupação
do local foi amplamente favorecido pela incapacidade relativa da comunidade em ter acesso a
informações seguras sobre o assunto.
Não. Não tinha a mínima idéia assim. Eu nem imaginava que ia sair daquele lugar, a
gente já viveu a quanto tempo lá. Ai de repente, chega um pessoal diferente assim:
“ah, vai ter que sair, que a gente vai ter que construir uma usina aqui, então vai ter
que sair”. A gente ficou até assim, “nossa!” a gente nem sabia o quê que era na
verdade, porque, num lugar assim, que a única informação que a gente tinha era pelo
rádio, né, nem pelo rádio a gente ouvia falar isso, né, que... a rádio que a gente ouvia
lá, não tinha essas informações, né. Então a gente não tinha informação nenhuma...
contato com nada disso. A gente não sabia nem o quê que é, fica até com aquela
curiosidade, só que, sem nenhuma informação. A gente então: “ah, vai ter que sair
porquê?”, “ah, por causa disso que vai ter que construir uma usina pra gera energia,
e aí vai ter que mudar todos daqui pra uma outra terra...”. Aí a gente falou assim:
“ah, não, como ... fica aquela coisa...” “como agente ta acostumada com o lugar...”
“não, mas vai ter que sair...”.Até como se fosse obrigado a sair, né. Falava assim:
“ou sai, ou... tipo, sai pra outra terra, ou fica aqui... a água vai expulsar vocês daqui.
De qualquer forma vocês vão ter que sair, e ai não vai ter pra onde ir né...”. Ai a
gente falou: “já que é assim, a gente... se é obrigado a sair, a gente não vai ficar
vivendo debaixo da água né”. Ai que foi que houve essa mudança. A gente teve que
sair. Foi obrigado a deixar o nosso local né, e... sair pra uma outra terra que, não era
tão boa quanto... tão boa não, não era igual a da gente né, porque a gente vivia num
lugar que produzia muito bem. A gente plantava lá, mexia... trabalhava na roça,
plantava, de tudo que a gente plantava produzia, né. Era suficiente pro nosso
sustento, e aí, acabou tudo, né. (CARLITA MIRANDA, 2007))
A terceira entrevista foi realizada com Cida Maria Dias Lessa, 23. Nasceu no Hospital
Santo Antonio em Chapada dos Guimarães, mas morou todo tempo no campo. Antes da
barragem, morava numa comunidade chamada Biquinha, que também foi atingida pela
hidrelétrica. E depois, em 1998, se mudou para um lugar que se chama Paiol Velho, próximo
ao assentamento Mamede Roder. Esta é uma entrevista muito importante para a compreensão
do que significou a participação de militantes do MAB em oficinas de produção audiovisual.
Cida participou das duas experiências realizadas nos acampamentos do MAB.
Primeiro do Se Liga Nessa, que foi um projeto de produção audiovisual promovido por
Furnas e que procurou envolver os acampados com o claro objetivo de passar uma imagem
80
positiva da ação da empresa, uma vez que os próprios acampados, acompanhados e
assessorados pela equipe técnica do projeto desenvolviam vídeos favoráveis à construção da
usina.
De acordo com Furnas, a campanha Se Liga Nessa foi desenvolvida com o objetivo de
informar e promover a integração entre os moradores das novas comunidades que se
formaram a partir da criação do Aproveitamento Múltiplo (APM) Manso, que atingiu 10
municípios do estado de Mato Grosso e os reassentamentos Bom Jardim, Mamede Roder,
Campestre e Quilombo, beneficiando, ao todo, 25 mil pessoas. Os Programas Ambientais do
APM Manso foram apresentados através de jornais informativos, jornais murais, cartilhas,
exposições, tardes de lazer, vídeos e softwares, além de um workshop para os professores da
rede de ensino público e oficinas de teatro, comunicação comunitária e teatro com bonecos de
sucata para a população dos reassentamentos. A divulgação contou ainda com uma exposição
cenográfica montada no Centro de Informações (CI) de Furnas, na Chapada dos Guimarães.
10
Cumpre esclarecer que quando os militantes do MAB aqui se referem ao projeto Se
Liga Nessa, estão se referindo especificamente à participação em oficinas de produção
audiovisual, já que o projeto foi muito mais amplo e abrangente. Interessa-me, sobretudo,
destacar as diferenças na orientação política desses dois momentos: o Se Liga Nessa e o
Cinema Circulante. Embora os dois projetos se coloquem no âmbito da linguagem
audiovisual, parece-me que Furnas detém o controle político da produção, no caso do Se Liga
Nessa, o que não ocorre com o Cinema Circulante.
Não por acaso os historiadores e demais cientistas sociais invariavelmente datem o
início da história da humanidade no momento em que esta conquista a tecnologia da escrita,
ou seja, no momento em que os seres humanos começam a registrar a sua história pela escrita,
de forma consciente, planejada e sistemática: também os movimentos sociais, e aqui
particularmente o Movimento dos Atingidos por Barragens, percebem que conquistaram sua
independência e maturidade no momento em que conquistam a linguagem audiovisual, que é
a linguagem da contemporaneidade.
10
Furnas: Energia e Cidadania Balanço Social 2001, p.26
81
No Cinema Circulante a gente escrevia o quê que ia fazer, e fazia, independente e
ninguém falava “não, não pode fazer isso”. Entende? Isso é interessante. E isso, no
sentido geral, acho que... o Cinema Circulante te reforça a importância da mídia né,
pra gente que ta na nossa luta. Sabemos que no mundo hoje, no mundo capitalista
que a gente vive, tem um monopólio da água, que a gente é contra, monopólio da
energia, da terra, e inclusive dos meios de comunicação, da mídia né, que está ai na
mão de um grupo que só coloca o que é de interesse a eles, e, a gente continua todo
tempo ser alienado. E quando tu apresenta uma alternativa de como fazer a coisa
diferente e que é possível... Acho que o Cinema Circulante traz bem presente isso
assim: nós de um lado somos capazes de produzir os nossos próprios filmes, nosso
próprio documentário, de escrever nossa própria história, porque todo tempo né,
alguém escreveu pra gente. (LESSA, 2007)
A conquista da linguagem audiovisual não somente tornou possível que o movimento
pudesse começar a escrever a sua própria história como também criou as condições para que
os militantes estivessem em condições de comparar a forma como os movimentos são
representados pelos meios de comunicação social e a percepção que eles próprios possuem de
sua militância.
Além disso, o Cinema Circulante é visto aqui como um primeiro passo para toda uma
articulação em torno de um movimento no sentido de trabalhar de forma ampla a
comunicação e a cultura como partes integrantes do próprio movimento.
Então, eu tava falando que todo tempo né, alguém contou a nossa história, que os
meios de comunicação que estavam ai, contou a nossa história da forma deles, por
exemplo: “o Movimento dos Atingidos por Barragens são baderneiros, são
desocupados, são pessoas que não tem o que fazer...”, assim que a mídia discrimina
todos os movimentos sociais. Então eles vão dizer pra sociedade, a versão que eles
tem. E com o Cinema Circulante ou com os meios de comunicação próprios, nosso
que a gente tem sonhado em conseguir pra frente, mostrar nossa história, mas nós
mesmos escrevendo, porque somos agentes dessa história, que isso... isso é
interessante. É nesse sentido que os meios de comunicação é um instrumento
político, que hoje ta na mão de alguém, e nós vamos nos apropriar dele. E ai o
Cinema Circulante nos fez dar o primeiro passo. Eu acho que o Se Liga Nessa, já
ajudou, mas o Cinema Circulante foi assim, o primeiro que nós, enquanto MAB,
estamos trabalhando nessa questão da comunicação. Eu acho que é assim, uma
experiência fantástica e que nós precisamos ter continuação disso, e... Pra frente é
isso, não só a comunicação do audiovisual né, no teatro, na música, dança, e muitas
outras coisas. (LESSA, 2007)
Essa possibilidade de revigorar o movimento através do desenvolvimento de
atividades nas áreas de comunicação e cultura parece estar articulada com a aspiração de
recuperar a unidade cultural perdida ou mesmo de se contrapor ao monopólio da produção
simbólica exercida por meios de comunicação social, que na opinião do Movimento, usam a
linguagem audiovisual apenas como forma de divertimento e de mergulho em uma realidade
da qual não se faz parte e que se quer evitar.
82
Nota-se a ênfase da entrevistada em colocar a experiência do Cinema Circulante como
sendo o “primeiro passo” tanto para a compreensão de que os meios de comunicação
cumprem um papel político “a serviço de alguém”, quanto para o início de um processo de
conquista desses mesmos meios, ou de meios assemelhados e que possam dotar o Movimento
de uma capacidade de interlocução social.
A entrevistada demonstra perceber claramente o efeito da ideologia da sociedade de
consumo que perpassa toda a programação da televisão, no sentido de forçar os expectadores
a mais que comprar mercadorias, comprar a própria lógica individualista e consumista da
sociedade de consumo. Por isso, a experiência do audiovisual se constitui no início de um
processo que mais tarde culmina com o questionamento do modelo concentrador e
monopolista da produção da informação e da cultura perpetrado pelas grandes redes de
comunicação no processo de questionamento geral ao modelo econômico e social em curso.
Como a Carlita falava, nós perdemos muito a cultura, não sei se perder é a palavra
mais correta, mas muitas coisas foram transformadas. Por exemplo, naquele tempo a
gente morava nas comunidades, na noite era chegar na casa dos vizinhos, tomar um
café, contar uma história, tocar violão, cantar umas músicas, isso. Hoje estamos
perdendo toda essa relação, que tu tinha com as pessoas. Hoje cada um está no seu
individual, na sua televisão, com a sua casa; não tem comida, mas uma televisão tem
né. Então assim, isso é muito forte. Não somos contra a comunicação, acho... a
tecnologia... eu acho que isso é fundamental, importante, mas a forma que ela ta
sendo colocada né, que te ensina todo tempo ser individual, a ter que ser melhor que
os outros, a ter que ter mais dinheiro que os outros, a ter que usar um tênis novo, e
uma camiseta... entende, e um celular, cada mês tem que ter um tipo de celular... e
nós temos que contrapor a esse sistema, e a nossa alternativa... acho que é isso,
começando com o Cinema Circulante, temos muitos passos pra andar. (LESSA,
2007)
A conquista da linguagem que permite a construção de objetos culturais e
comunicacionais que, antes da militância e do Cinema Circulante, não pareciam importantes,
passou a ser vista como meio de proporcionar uma integração a um processo diferenciado
daquele vivenciado por jovens de outros grupos sociais. Cida me concedeu essa entrevista em
um intervalo do seu atual processo de formação científica e cultural.
Atualmente ela está estudando em Cuba, onde se instrui em um curso de nível superior
na área de Engenharia Hidráulica ou de Recursos Hídricos e embora isso não tenha sido
explicitado, é óbvio que a militância no MAB e as articulações internacionais deste
movimento foi de fundamental importância para que ela estivesse em condições de sair de um
assentamento de atingidos por barragens no interior de Mato Grosso para freqüentar um curso
83
superior em um outro país, algo que está muito distante da realidade da maior parte da
população brasileira.
Ocorre que hoje ela possui uma visão muito clara da importância desse fato, já que as
perspectivas para qualquer jovem morador das comunidades rurais ou até mesmo da maioria
das cidades interioranas brasileiras são terminar a oitava série, ou quando muito, o segundo
grau, “arrumar” um emprego, constituir família e reproduzir as mesmas condições sociais em
que viveu toda a vida. Para as mulheres essa perspectiva é ainda mais limitada, já que o início
da vida sexual por volta dos 14 anos, o que ocorre quase sempre sem as devidas informações,
leva muitas vezes a uma gravidez indesejada e à conseqüente necessidade de abandono dos
bancos escolares.
O último entrevistado foi Virgílio Bispo Alves de Miranda, 38 anos. Ele faz parte do
MAB, Movimento dos Atingidos por Barragem. Também participou das duas modalidades de
oficinas de produção audiovisual: o Se Liga Nessa e o Cinema Circulante e por isso mesmo
também pode fazer uma comparação entre essas duas experiências.
Um recente estudo realizado pela Prodata/Folha Pesquisa e publicado pelo jornal
Folha do Estado, em 14 de outubro de 2007, revelou que Cuiabá é uma cidade marcada por
uma profunda desigualdade no que tange à distribuição de renda. Segundo o estudo, existem
em Cuiabá aproximadamente 392,62 mil pessoas com idade acima de 16 anos, sendo que
destas apenas 5,8%, algo em torno de 20 mil pessoas recebem mais de 3,5 mil reais/ mensais.
O pesquisador e diretor do instituto, Maurício Munhoz Ferraz, explicou ao jornal que
tais números apontam para a inserção da cidade ao modelo capitalista concentrador de renda e
oportunidades: “poucas pessoas ganham bem enquanto que muitas ganham pouco ou estão
desempregadas”, diz o pesquisador. Embora essa pesquisa tenha sido realizada no âmbito da
cidade de Cuiabá, não há razões para supor que essa realidade econômica e social seja
diferente em outras cidades do estado ou do país.
O grande questionamento que pode ser feito e que se relaciona com os objetivos desta
Dissertação há muito tempo vem sendo denunciado pelo Movimento dos Atingidos por
Barragens: “o modelo energético brasileiro é a cara da política econômica”, conforme enfatiza
um documento do movimento. Isso quer dizer que o modelo energético atualmente em curso é
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parte integrante do modelo econômico adotado, é socialmente injusto e ambientalmente
irresponsável, conforme diz Vírgilio: todos nós, atingidos por barragens ou não, sofremos as
conseqüências deste modelo: famílias atingidas expulsas; 20,3 milhões de brasileiros sem
energia elétrica; 34 mil km² de terras alagadas; milhares de famílias sem conseguir pagar o
alto preço da luz.
Para completar este quadro, basta acrescentar que esse modelo concentrador estende
seus tentáculos também, e talvez principalmente, para a esfera das relações sociais simbólicas,
para a cultura e o imaginário. A comunidade original de Manso era caracterizada não apenas
por desenvolver um estilo de vida tipicamente pré-capitalista, de produção orientada para o
próprio consumo e não para o mercado; mas ainda mais que isso por apresentar uma unidade
cultural que não poderia ser verificada em outro local.
A verdade é que a comunidade estava unida por laços invisíveis, imperceptíveis aos
olhos treinados para verem apenas relações sociais de produção, para sentirem apenas o pulsar
dos fatos econômicos: desde a realização das festas de santo que uniam toda a comunidade na
celebração mística de seu universo no seu contato com a divindade, passando pelas
expressões lingüísticas comuns à vida naquele local, até o inumerável conjunto de relações
culturais que remontam a trezentos anos, todos esses aspectos foram submergidos pelas águas
da represa.
Porém, o moinho não deixou de funcionar no momento em que foram fechadas as
comportas. Ao contrário. A garantia de que a comunidade iria se inserir no contexto da
produção capitalista é fundamentada basicamente no impedimento de que a mesma possa
manter viva a sua cultura original: era necessário que as relações sociais imaginárias, que a
cultura viva do povo fosse esmagada a ponto de não mais emergir na consciência, pois
somente assim cada um poderia entregar sua vida aos fazedores de dinheiro.
É por isso que o modelo concentrador de renda, de terra, de energia, de poder e de
oportunidade de existência não pode existir sem concentrar a produção e o consumo dos bens
imateriais: ao mesmo tempo em que a produção da informão é monopolizada pelos grandes
conglomerados de comunicação, os produtos destes são impingidos ao povo como sendo os
únicos passíveis de serem considerados como bens culturais. E a comunidade, que outrora
produzia uma cultura viva e original, é reduzida à mera consumidora de imagens, símbolos e
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sinais desprovidos de qualquer significado real e cujo objetivo é apenas o de manter sob a
ideologia dominante as mentes e os corações que antes eram livres.
De acordo com o pesquisador João Henrique Rosa, que desenvolve a pesquisa de
Mestrado “As resistências negras quilombolas do século XVIII na capitania de Matto Grosso -
região de Villa Bella da Santíssima Trindade”, as alterações dos espaços são impregnadas
desde a gênese com as marcas no tempo contemporâneo frente aos empenhos dos agentes
sociais responsáveis por elas e as posterga como resultados aos demais na forma de herança
do trabalho e de vivências. “Nesse sentido, as interpretações subjetivas daquilo que foi/é a
herança também se configurarão posteriormente como tal” (ROSA).
Para o contexto desta Dissertação o mais importante é ressaltar que as alterações no
espaço geográfico e no espaço imaginário ocorridas no processo de construção da Usina de
Manso são reatualizadas a cada instante, todos os dias, na medida em que permanecem as
relações sociais que as engendraram. Já nos referimos anteriormente às pessoas oriundas das
comunidades de Manso, que ao invés de se integrarem ao movimento, preferiram receber suas
parcas indenizações e se mudaram para as periferias dos centros urbanos e que pelo fato de
buscarem uma integração ao contexto dominante ficaram impossibilitadas de esboçar uma
resistência ao modelo imposto.
Entretanto, mais importante que isso é frisar a capacidade de se rearticular para a luta
econômica e social no processo de recuperação cultural, que foi promovida por esses
integrantes do MAB e por extensão por todo o movimento, quando da conquista da linguagem
audiovisual. Essa experiência parece ter assumido a condição de agregar as sensibilidades
dispersas, de se constituir como elemento estruturante no processo de revivência de uma vida
cultural coletiva outrora perdida.
Inclusive eu fico feliz quando aparece alguma coisa que eu fiz assim, eu fico muito
feliz, e também gosto, de mexer com o Cinema Circulante, porque, eu adoro fazer
fotografia, fazer gravação e gosto do povo, de estar junto com as pessoas, eu me
sinto muito feliz. Porque eu faço parte de uma equipe de coordenadores, e eu tenho
muito contato com o povo, com as comunidades. Então, quando eu chego junto das
pessoas, principalmente aquelas pessoas de idade, e eles chegam, cumprimentam,
abraçam a gente, fica feliz com o que a gente ta fazendo, eu fico feliz. É um trabalho
tipo voluntário, porque eu nunca ganhei nada pra isso, e faço com prazer porque
quando eu vejo as pessoas felizes, eu fico feliz junto com as pessoas. Então e as
pessoas se sentem felizes, vendo os trabalhos feitos, tanto os jovens, os jovens
querem participar, os adultos, os velhinhos querem ver né. Quando você passa uma
imagem de cinema, você passa num telão, já é uma imagem de cinema, então as
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pessoas que não tem acesso, fica empolgado, acha legal, leva a vida pra frente.
(VIRGILIO MIRANDA, 2007))
Talvez exatamente por isso os militantes que participaram das oficinas, que realizaram
diversas produções de audiovisual, que conquistaram essa nova linguagem, souberam
perceber todo o alcance dessa tecnologia e se apegaram à oportunidade como uma
possibilidade de usar o cinema e outras produções culturais para resgatar sua cultura perdida e
a partir daí se rearticularem como comunidade.
Então assim, eu fiquei triste por causa disso, mas eu vou tentar agora o ano que vem,
se Deus quiser, nós vamos conseguir aquilo que nós não conseguimos, mandar o
projeto e dar continuidade, porque nós já temos a associação já aberta, e o ano que
vem já vai poder mandar em nome da associação os projetos, e já temos parte do
equipamento né, e não temos carro totalmente nosso, mas o carro que é da equipe do
cinema e também do movimento, do MAB. Fizemos parceria, estamos todos juntos
agora. O Cinema Circulante com o MAB Mato Grosso, claro. Nós já temos som,
falta câmera que nós não temos ainda. Mas já temos vídeo, já temos multimídia,
falta montar ainda o resto dos equipamentos, computadores e coisas assim.
(VIRGILIO MIRANDA, 2007)
Recupero agora uma fala da Cida quando ela remete ao cotidiano dos moradores das
comunidades anteriores à usina:
Naquele tempo a gente morava nas comunidades, na noite era chegar na casa dos
vizinhos, tomar um café, contar uma história, tocar violão, cantar umas músicas,
isso. Hoje estamos perdendo toda essa relação, que tu tinha com as pessoas. Hoje
cada um está no seu individual, na sua televisão, com a sua casa. (Cida Maria Dias
Lessa)
Parece evidente que as atividades propostas pelos remanescentes do Cinema
Circulante cumprem um papel social análogo ao citado pela Cida.
O Cinema Circulante desinibiu muito as pessoas, trouxe muita alegria, inclusive nós
temos o telão, temos o multimídia, temos caixa amplificada, não é coisa de primeira,
mas nós temos alguma coisinha que já da pra, pra passar uns filminhos lá, um...
“Mazaropizinho” lá pro pessoal se animar. Então, ajuda muito na animação, porque,
muitas pessoas que ficam acampadas. Então, assim, o Cinema Circulante, ta parado
agora pra nós né, da MAB do Mato Grosso, ta parado por falta de projetos, mas
ainda estamos animando as pessoas que estão acampados lá, porque tem pessoas...
tem uma média de quarenta famílias acampadas lá no município de Alto Paraguai, e
que essas pessoas se animam através do Cinema Circulante, que ainda... nós estamos
fazendo a animação das pessoas lá. Tem imagem, tudo, DVD que a gente passa,
então é isso. Então ajudou muito a animação das pessoas assim, o Cinema
Circulante, e pra equipe ta ajudando, por que a gente ta conhecendo um outro mundo
que a gente não conhecia, e estamos tentando ver se algum dia a gente consegue
montar uma estrutura melhor, e animar mais as pessoas, e a gente sentir mais feliz
com isso. (VIRGILIO MIRANDA, 2007)
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Isso é confirmado em diversas passagens da fala do Virgílio, pois ele sempre se refere
ao Cinema Circulante, ou melhor, às atividades que passaram a ser realizadas pela
comunidade no pós-oficina como um dos principais meios de entretenimento para as pessoas
que estão acampadas.
Além disso, outro aspecto que merece um olhar mais preciso é a influência da
conquista dessa linguagem na própria consciência política daquela militância. A manipulação
das imagens, o trabalho técnico de produzi-las, as histórias contadas e recontadas pelo
audiovisual e as atividades culturais que esse trabalho proporciona para toda comunidade se
constituem em elementos importantes que vão adensar o background cultural e aprofundar a
capacidade individual e coletiva de interagir com o mundo circundante:
Antes a gente acreditava em tudo, eu não sei se eu diria que a gente era muito
humilde, mas a gente acreditava em tudo. Tudo o que as pessoas chegavam...
Quando chegava um de fora, quando a gente não conhece, chegava de carrão, descia
de pasta na mão, e começava a falar, a gente já se sentia que o cara fala bonito, fala a
verdade, e a gente acreditava.... Eu falo a gente assim, o povo, da comunidade, das
comunidades, sabe? Todo mundo acreditava, tanto é que fomos manipulados, por
causa disso, de ser muito humilde acreditar em tudo que vinha. Hoje, através do
áudio e vídeo, e do Cinema Circulante, antes o Se Liga Nessa, a gente vai vendo as
coisas assim, que não é bem assim as coisas, as coisas são diferentes. Eu acho que a
gente aprendeu a ser diferente, a não ser igual os outros, igual a todo mundo.
Acreditar, mas também duvidar, também, ou seja, contestar as coisas que agente vê,
que não está certo. Antes, tudo tava certo, tudo tava bom, mas depois a gente vai
vendo que não ta, que é diferente. Então a gente era humilde, era tímido, e a gente
foi aprendendo a ser humilde também, é claro continua sendo humilde, mais ser
assim, não se deixar levar por qualquer coisa, coisa que tá errado a gente tem que:
“Não. Isso ai não tá certo. Tem que ser assim”. (VIRGILIO MIRANDA, 2007)
Um dos pressupostos de que partimos para analisar a coesão do MAB no local foi o de
que a unidade política em torno do movimento decorria das relações de parentesco e de
amizade existentes na comunidade antes que ela viesse a ser atingida pela barragem. Parti da
conjectura de que o compartilhamento de uma mesma visão de mundo no interior do grupo, a
participação em atividades culturais coletivas como festas, ou mesmo a convivência cotidiana
entre os membros da comunidade poderia favorecer a organização e a consolidação do MAB
num momento posterior:
São bastante. Só irmão são em nove. E fora os sobrinhos.... tinha várias pessoas, não
tenho a quantidade exata, nós somos uma família bem grande mesmo. Uma coisa
que eu achava bastante bacana assim desse povo que você tava falando lá em Manso
assim. Porquê normalmente as pessoas falando assim, “ah meu vizinho”. Só que às
vezes, a pessoa morava, até... oito quilômetros assim por exemplo de distancia, e
chamava “meu vizinho” não tem? Porque tinha uma ligação muito forte assim... com
as pessoas, mesmo que morasse nas outras comunidades assim distante, mas falava
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que era “vizinho”, normalmente assim. E sempre no final de semana se reunia... as
pessoas. Nunca a gente passava o final de semana só em casa assim. Mesmo que era
mais longe as pessoas... mas sempre passava os domingos, sábados assim,
reunidos... a amizade era muito forte entre as pessoas de lá. (ANA MIRANDA,
2007)
Ou ainda:
Uma das coisas que eu mais gostava nesses encontros assim, que eles contavam
aquelas historias do tempo passado, né? É... minha mãe por exemplo, ela era meio
jovem assim, só que ela falava assim, “que era no tempo dela”, que pra ela, era o
tempo que ela já tinha vivido bem... antes da gente assim. Ai eles contavam histórias
como que era, as mudanças que tava ... que havia assim né... porque hoje a gente ta...
é uma coisa tão diferente né deles, porque... que a amizade, que ainda era mais forte
ainda, que reunia pra fazer festa de santo, e tal...(...) Uma das coisas que... era bem...
legal assim: é a fé. Até o nosso filme já diz isso na história, que [aponta?] uma
questão de religião, que... é um motivo bem forte entre as pessoas assim, e
normalmente era comum a gente se reunir, fazia novena, rezava, preparava essa
festa. Que apesar desta festa ser festa de ano, mas ficava no decorrer do ano, ficava
preparando aquela festa até chegar na data e fazer. (ANA MIRANDA, 2007)
Em um capítulo anterior, nos reportamos ao Relatório da ONU para evidenciar o uso
da informação por parte de Furnas como ingrediente central no processo de desarticulação da
comunidade. O seguinte trecho da fala de Ana reforça o argumento de que Furnas se
aproveitou da ansiedade por “progresso” latente no interior da comunidade para disseminar a
sensação de que a construção da barragem iria significar uma melhoria na condição de vida da
população.
Além disso, os que resistiam a esses argumentos foram literalmente forçados a
assinarem um “termo de acordo” (Não compreendo como uma pessoa pode ser obrigada a
assinar um acordo), que mais tarde seria usado por Furnas como uma “prova” de legalidade
nas suas ações.
Depois que construiu a barragem, as pessoas .... Na época assim, adolescente e tal...
achava babaca assim, eu ouvia meus pais falando assim: “que não queria, que ia ser
ruim pra eles, que não queria sair do local de origem”, ó que eu achava assim com o
pai que era besteira né, porque... na verdade, nós que era criança queria sair de lá.
Era louco pra sair de lá, e ir pra um outro lugar, conhecer tal... Ai a gente viu que
prejudicou agora depois assim tendo essa visão de como era antes, a gente viu que
prejudicou. Mas a principio que a gente ouvia falar da construção da barragem
ficava, muito feliz. Eu via assim, minha mãe triste, as vezes chorando assim, porque
não queria sair do lugar que ela nasceu e criou tudo ali. Na verdade, eu nem entendia
porque, né? Aí eu me lembro de quando o pessoal que tava construindo, os
engenheiros passaram lá em casa dizendo que ia construir a barragem, minha mãe,
meu pai principalmente, nunca aceitou. Eles chegaram com aquele papo que...
“trazer progresso, desenvolvimento e tal pra região, emprego, tal e tudo”. Ai eles
fizeram umas duas, três visitas antes, ai depois chegou o termo de acordo lá pro meu
pai assinar. Meu pai disse que não iria assinar, que não ia sair de lá. Ai eles
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simplesmente disse “oh seu João, você escolhe: se você não quiser, a água vai tirar,
a gente só tá fazendo um favor pro senhor... o senhor assina se quiser”. Ai meu pai
assinou o termo de acordo e tal, mas ele nunca concordou... Aí depois quando já
tinham fechado as comportas que a água já tava subindo, que eles chegaram lá pra
fazer a mudança. Nem avisou que dia que ia e tal. A gente já estava na expectativa
né, porque já tinha fechado as comportas tudo, as coisas já estavam arrumadas... mas
a gente nem sabia que hora, sabia que a qualquer momento eles podiam estar
chegando lá pra fazer a mudança. Mas o horário, o dia exato não sabia. Ai ele
chegou. A minha mãe passou uma semana só chorando. Uma semana antes... do
prazo que era pra gente sair de lá, e depois também. E até hoje, nunca... acostumou
neste outro lugar. Meu pai principalmente. È uma mudança que... só você vivendo
mesmo pra saber, mesmo que a gente conte assim, não dá pra dizer, é muito difícil.
Um lugar que a gente gostava tanto... (ANA MIRANDA, 2007)
Esse depoimento de Ana Neves de Miranda é reforçado pelo de Carlita e vem ao
encontro da situação verificada por Maria José Reis, em sua Tese de Doutorado “O
Movimento dos Atingidos por Barragens: atores, estratégias de luta e conquistas”, UFSC
(1998), citada nesta Dissertação (p. 45) ao informar a estratégia das empresas concessionárias
da Eletrobrás no processo de conquista do território.
O primeiro passo é sempre realizar um levantamento detalhado sobre o espaço a
conquistar, desempenhando um cadastramento socioeconômico sobre cada propriedade e cada
proprietário, ao mesmo tempo em que se disseminam informações que dificultam e até
impedem que os atingidos adquiram consciência de sua situação.
Eu fiquei sabendo foi assim, um grupo, chegou um grupo que diz que era um
pessoal da Eletronorte né, que chegou umas pessoas falando. Chegou, a gente não
sabia nem quem era... porque a gente conhecia todo mundo do local né. Então,
chegou essas pessoas diferentes aí falando assim: “ah, nós somos da Eletronorte e
estamos fazendo um levantamento, uma pesquisa das pessoas que moram na
comunidade, quantas pessoas que tem, porque a gente vai ter que fazer... essa
mudança vai ter que sair daqui porque, aqui vai ser construída a usina.” Então a
gente ficou sabendo, dessa forma né. Assim, gente vai ter que mudar. Mas como? E
quando? Ai falou: “o mais rápido possível”. Porque a gente não sabia. Porque na
hora que ficou sabendo, foi muito rápido mesmo, foi questão de dias, que a gente
ficou sabendo. Então, fazer o quê? Tem que aceitar isso, porque, não é que a gente
tem que aceitar, mas é que não teve jeito mesmo. A gente sempre é maioria, mas,
acaba não percebendo essa situação, né. Então eles falaram assim: “ah, vocês têm
que sair...” Aí, ia embora. Ai passava uns dias vinha outro grupo de pessoas, né,
pesquisando, falava “vão ter que mudar isso, isso, e isso...” Depois foi chegando o
pessoal de Furnas também, né. E aí foi fazendo essa pesquisa, esse levantamento,
falando quem que tinha que sair ou não. Mas mesmo assim eles só falavam assim ó,
a única informação que eles passavam era isso pra gente: “vocês vão ter que sair,
porque vai ser construída essa usina assim, assim. Então vocês vão ter que sair
daqui”. Aí a gente, sem nenhum outro conhecimento de nada né. Aí tanto é, que
saiu. (CARLITA MIRANDA, 2007)
Nesse momento, a informação é crucial para o processo de resistência e por isso
mesmo a empresa procura a todo custo dificultar ao máximo o acesso a qualquer informação
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que possa subsidiar um procedimento contrário aos seus interesses. Chamo a atenção para o
fato de que os próprios assentados perceberam, posteriormente, que a falta de informação
sobre o assunto, sobre a própria realidade na qual estavam inseridos, é que foi determinante
para que não houvesse uma resistência imediata ao processo de desocupação do local.
O que estamos tentando afirmar ao longo desta Dissertação é que o controle da
informação, da sua produção e da sua veiculação é parte integrante de qualquer processo
social. A informação, seja ela na dimensão da cultura ou do conhecimento, é a pedra de toque
de qualquer relação social.
E a estratégia usada indica que Furnas sempre teve conhecimento da importância da
informação, pois soube como utilizá-la, de forma consciente, planejada e com alto grau de
sofisticação para atingir seus objetivos. Não nos esqueçamos que a luta pelo controle das
informações continuou, nos meios de comunicação social e em projetos como o Se liga nessa
e o Cinema Circulante durante todo o processo que resultou na construção da usina e até
posteriormente a isso.
A única reação foi que todos falavam que não queriam sair né. Mas só que, por falta
de informação, ninguém... foi perceber, a gravidade depois que construiu né. Então
antes por falta de informação, ninguém, num teve... Mobilização. Aí só depois do
acontecido que nós fomos ver, que começou nossas mobilizações. Mas antes não
teve mobilização...Só depois que tava construída, que ai que foi ver as
conseqüências, que a gente foi... começou as mobilizações, as lutas, e tentar ver o
quê que a gente podia fazer pra mudar, porque pra evitar não tinha mais como evitar.
(CARLITA MIRANDA, 2007)
A segunda experiência, e que estamos analisando em mais profundidade, o projeto
Cinema Circulante, também trabalhou com a linguagem audiovisual, mas com o diferencial
de que aqui os participantes tinham o controle político da produção.
Por ter participado das duas oficinas, Cida pode falar melhor sobre esses dois
momentos e estabelecer uma comparação entre ambos. Repito a definição do projeto Se Liga
Nessa, conforme o Balanço Social de Furnas, do ano de 2001:
A campanha Se Liga Nessa foi desenvolvida com o objetivo de informar e promover
a integração entre os moradores das novas comunidades que se formaram a partir da
criação do Aproveitamento Múltiplo (APM) Manso, que atingiu 10 municípios do
estado de Mato Grosso e os reassentamentos Bom Jardim, Mamede Roder,
Campestre e Quilombo, beneficiando, ao todo, 25 mil pessoas. Os Programas
Ambientais do APM Manso foram apresentados através de jornais informativos,
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jornais murais, cartilhas, exposições, tardes de lazer, vídeos e softwares, além de
um workshop para os professores da rede de ensino público e oficinas de teatro,
comunicação comunitária e teatro com bonecos de sucata para a população dos
reassentamentos. A divulgação contou ainda com uma exposição cenográfica
montada no Centro de Informações (CI) de FURNAS na Chapada dos Guimarães.
(
Furnas, 2001)
O grifo no parágrafo anterior permite estabelecer uma conexão entre o projeto Se Liga
Nessa e o esforço institucional da empresa em promover seu “programa ambiental”. Observa-
se que esse esforço não é somente no sentido de realizar as oficinas de produção de vídeo,
uma vez que estas estão incluídas dentro de um contexto de comunicação, informação e
cultura que vão desde materiais impressos como cartilhas e jornais, passando por softwares,
workshops para professores da cidade de Chapada dos Guimarães, oficinas de teatro e teatro
de bonecos.
Evidentemente pode-se perceber qual o grau de importância conferido por Furnas à
conquista dos corações e mentes dos atingidos, como forma de viabilizar a construção da
barragem, já que por todos esses mecanismos de comunicação, cultura e informação vão
perpassar a ideologia da empresa que irá ser incorporada ao cotidiano dos atingidos até que os
mesmos assimilem o conjunto de idéias como sendo suas idéias.
A preocupação de Furnas em se apropriar da totalidade dos signos e símbolos, do
próprio processo de produção das relações sociais imaginárias dentro do contexto daquela
comunidade será tão abrangente, completa e profunda, que seu esforço irá além das fronteiras
dos atingidos diretamente, já que o processo de convencimento procurou envolver a
participação de professores e lideranças políticas da cidade de Chapada.
Fica clara a utilização, por parte da empresa, da estratégia de “dividir para reinar”, já
que a comunidade, inicialmente, não foi capaz de conseguir uma unidade de ação em torno de
um objetivo comum, já que não foi atingida de forma linear nem a percepção da construção da
barragem, que não era compartilhada da mesma forma por todos os indivíduos, ao passo que
Furnas procurou unificar sua ação e agir de forma diferenciada em relação a cada segmento
atingido.
Por isso a construção da barragem foi facilitada, visto que parte dos atingidos parecia
compartilhar da percepção de que a obra seria um progresso, o que vinha ao encontro do
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pensamento médio na cidade de Chapada dos Guimarães e em outras comunidades urbanas do
entorno de Manso.
E assim só atingido de uma forma diferente, porque a área que eu vivia não foi
alagada, mais a gente ficou ilhada pelo assentamento. A nossa produção, ficou
pequena e já não era mais suficiente pra sustentar todo mundo. E, tamm meu pai
trabalhava no garimpo, e na pesca, que ajudava na complementação alimentar, e que
isso também depois da construção do lago mudou muito. Então, em noventa e nove,
quando fechou a barragem, antes ainda de fechar a barragem, no dia doze de
outubro, foi feita uma manifestação na ponte. Mas que essa manifestação foi feita na
sua maioria foram as pessoas que participavam, eram as pessoas que tinha ficado de
fora, que era por exemplo a minha família, a família de alguns garimpeiros; muita
gente já estava sendo assentada, reassentada, e a gente tava no mesmo lugar e a
situação tava complicada. (...) Então a partir daí, a prefeitura foi contra, o sindicato
foi contra, a gente tinha apoio naquele momento da CPT, que é Comissão Pastoral
da Terra. (LESSA, 2007)
Divididos pela ação da empresa e pela forma variada como a barragem os atingia,
dispersos pela falta de informação, cindidos na unidade das suas relações sociais imaginárias
e desconhecedores de qualquer forma sistemática de mobilização política, os habitantes da
região são forçados pelas circunstâncias à organização, mas inicialmente o fazem de forma
autônoma e espontânea e só evoluem para o Movimento dos Atingidos por Barragens quando
membros desta organização oriundos do sul do país começam a estabelecer contato.
Mas que também, não participava apoiando no sentido de organização, mais nós
éramos um movimento autônomo, espontâneo, que a gente surgiu por uma
necessidade, mas não era que a gente tava organizado ali, que queria se fazer
movimento. Então a partir daí em noventa e nove, a gente conseguiu alguns
avanços... ainda nesse momento não era MAB, era um movimento qualquer ai. E a
partir daí, que fecharam a barragem já no final do ano. Em dois mil, que vieram, as
instruções... através da CPT, o pessoal do MAB nacional começaram a entrar, e ai
instruir melhor, passar informações. Aí que a gente iria se organizar. (LESSA, 2007)
Aparentemente a propaganda de Furnas em torno dos supostos benefícios que seriam
conquistados através da construção da barragem contou com a força de uma argumentação já
presente no imaginário da população brasileira, que é o mito do desenvolvimento econômico,
ou seja, a percepção de que os problemas econômicos e sociais da população e do país irão ser
superados na medida em que o Brasil ampliar e aprofundar as relações capitalistas de
produção. Conforme Celso Furtado (1974):
Os livros publicados sobre desenvolvimento econômico nos dão um exemplo
meridiano desse papel diretor dos mitos nas ciências sociais: pelo menos noventa
por cento do que aí encontramos se funda na idéia, que se dá por evidente, segundo a
qual, o desenvolvimento econômico, tal como vem sendo praticado pelos países que
lideraram a revolução industrial, pode ser universalizado. Mais precisamente:
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pretende-se que os padrões de consumo da minoria da humanidade que atualmente
vive nos países altamente industrializados, seja acessível às grandes massas de
população em rápida expansão que formam o chamado Terceiro Mundo. Essa idéia
constitui um prolongamento do mito do progresso, elemento essencial na ideologia
diretora da revolução burguesa, dentro da qual se criou a sociedade industrial Temos
assim a prova definitiva de que o desenvolvimento econômico - a idéia de que os
povos pobres podem algum dia desfrutar das formas de vida dos atuais povos ricos -
é simplesmente irrealizável. Sabemos agora de forma irrefutável que as economias
da periferia nunca serão desenvolvidas, no sentido de similares às economias que
formam o atual centro do sistema capitalista. Mas, como negar que essa idéia tem
sido de grande utilidade para mobilizar os povos da periferia e levá-los a aceitar
enormes sacrifícios, para legitimar a destruição de formas de cultura arcaicas, para
explicar e fazer compreender a necessidade de destruir o meio físico, para justificar
formas de dependência que reforçam o caráter predatório do sistema produtivo?
Cabe, portanto, afirmar que a idéia de desenvolvimento econômico é um simples
mito. Graças a ela tem sido possível desviar as atenções da tarefa básica de
identificação das necessidades fundamentais da coletividade e das possibilidades
que abre ao homem o avanço da ciência, para concentrá-las em objetivos abstratos
como são investimentos, as exportações e o crescimento. (FURTADO, 1974)
A argumentação de Celso Furtado parece ter sido feita sob medida para explicar a
forma como não apenas a população de Manso, mas praticamente toda a população foi
envolvida e ganha para a idéia de que a construção da usina traria os benefícios do progresso
para todas aquelas comunidade.
Isso fica mais claro na medida em que boa parte da comunidade de Chapada dos
Guimarães, até mesmo remanescentes das comunidades de Manso ainda compartilha com a
idéia de que em algum momento no futuro a construção da barragem poderá “trazer
progresso” para suas comunidades. Assim, a máquina de propaganda colocada à disposição
para conquistar os corações e mentes para a construção da barragem não teria sentido, nem
eficácia se não procurasse realçar elementos já presentes, ainda que de forma latente e
embrionária, no imaginário coletivo.
De fato, o mito do desenvolvimento econômico foi fundamental para que Furnas
estivesse em condições de promover seu genocídio cultural e destruir uma forma de vida
original de uma população remanescente de ocupações que remontam ao século XVIII,
conforme bem observou a reportagem do jornal Diário de Cuiabá, de 30 de novembro de
2005:
A ocupação das áreas hoje cobertas pelo reservatório da Usina de Manso remonta ao
século 18 e tem relação com antigas áreas de sesmarias e também com o surgimento
de quilombos. (...) A permanência de gerações de famílias nessas áreas assegurou os
vínculos com a terra através de saberes e práticas, sem que detivessem o título de
propriedade. (DIÁRIO DE CUIABÁ, 2005)
94
É por isso que inicialmente a própria comunidade parece disposta a participar das
atividades do “Programa Ambiental” de Furnas e que, mesmo após a construção da barragem,
do deslocamento das populações e até mesmo do fracasso na tentativa de um primeiro
assentamento, a idéia de progresso ainda persista no imaginário da população. Cida:
E nesse momento Furnas fez um projeto, que chamava: Se Liga Nessa, na verdade a
idéia do Se Liga Nessa, era pra fazer um projeto de resgate dos animais e aquela é
uma propaganda dizendo que a hidrelétrica ia ser boa. É na verdade, isso é o que
eles falavam antes pra nós como todas as famílias atingidas, que a barragem ia trazer
progresso, que ia salvar os animaizinhos que estavam morrendo lá no rio, que ia
trazer emprego, turismo, que ia desenvolver a Chapada, e até hoje tem gente que
ainda pensa assim né, “ah, mas a barragem não trouxe turismo, não desenvolveu o
município, mas ainda vai ter esse momento, a gente vai ver quem sabe um a dia....
quem sabe daqui uns cem, duzentos anos”. (...) Bom, então entrou o Se Liga Nessa,
que é um pouco nessa proposta. O pessoal que tava fazendo, um grupo do Rio, que
tava um pouco na coordenação do projeto, disseram que não, que eles trabalhavam
com a questão do audiovisual, mas que a comunidade participasse, e fosse ativa no
processo. (LESSA, 2007)
Na fala seguinte, a entrevistada se refere a uma das peças produzidas durante a
realização do Se Liga Nessa, que é a dramatização, do ponto de vista de Furnas, da história de
um casal que viria a ser atingido pela barragem. A discussão do casal se dá em torno do fato
de que o mesmo se encontra dividido quanto às expectativas sobre a mudança que seria
provocada pela usina. Enquanto o esposo parece ansioso pela construção, já que ela vai trazer
o progresso e resolver diversos problemas, como os de comunicação, infra-estrutura e
urbanização do local; a esposa demonstra muita reticência e manifesta uma posição contrária.
O desfecho da trama acontece já em um outro ambiente, mostrando o casal habitando
uma casa de alvenaria, com luz elétrica, água e outras comodidades – anteriormente a
habitação do casal era uma casa simples, de adobe e coberta com palha, sem luz nem água
encanada – e então a esposa demonstra que mudou de opinião, pois o progresso prometido
realmente se concretizou.
O fato de que os habitantes da região tenham sido envolvidos na construção dessas
dramatizações cinematográficas reforça o poder da argumentação, já que ela será introjetada
não apenas como uma peça publicitária, mas como uma prática social. São os membros da
comunidade que produzem e atuam como atores em um filme cujo objetivo deliberado é o de
mostrar os efeitos positivos da barragem.
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Outro dia eu estava assistindo um filme que a gente fez que chamava Mudança de
Hábito. Então, a gente contava um pouquinho a história das pessoas que conviviam
na comunidade antes, e tinha uma personagem que chamava Joana, e eu fazia o
papel, e o esposo dela que era Juca, que ela não queria mudar, e o marido queria e
dizia que ia ser bom, e tal, e ela resistiu até muito tempo, chegou o pessoal “e a
gente vai fazer...”, pessoa de Furnas. Então no final da... depois ela conseguiu, saiu e
foi pro assentamento. Então a primeira imagem, era de uma comunidade... já era no
assentamento, mas era de uma família lá bem pobrezinha né. E depois no final do
filme, era uma pessoa, numa casa já vestida toda diferente, numa casa toda tranqüila
assim. E dizia, e ai... o marido perguntava: “tu lembra aquele tempo que você me
falou assim que não queria sair né?”. E a mulher toda brava: “e, você ainda lembra
disso?”, falou assim, como se fosse uma coisa muito boa né. Então assim hoje se tu
for olhar aquela realidade que a gente vive hoje... naquele momento na verdade tava
bom, porque, pras pessoas que foram assentadas que estavam recebendo um tíquete,
há muitas pessoas que estavam recebendo mínima que fosse da indenização,
duzentos reais, cem reais, teve gente que receberam, mil, dois mil, tava com esse
dinheiro, e ai por exemplo, era cem reais tudo em nota de dois né. Dava um pacote
tudo de nota de dois assim, então... As pessoas estavam contentes, na verdade tava
contente, a gente tinha um motivo né, tava contente. Mais a partir daí que a gente foi
ver a realidade que... começamos a pagar luz né, acabou o tíquete, a terra não
produziu... Então assim, as coisas mudaram muito né. E ai a gente já conseguia ver
numa outra realidade. (LESSA, 2007)
Interessante observar que o aparato de comunicação, cultura e informação não operou
dissociado de outras políticas de convencimento, sendo que aparentemente até mesmo o
pagamento das indenizações aos que foram considerados como atingidos foi realizado de
forma a sugerir a idéia de grandeza: os atingidos recebiam em notas de dois reais para que o
volume das notas escondesse o real valor da indenização. A realidade plausível somente passa
a ser percebida no momento crucial em que a luz precisa ser paga e que a terra demonstra não
produzir o mesmo que o antigo local.
Com todas essas ressalvas, o projeto das oficinas de audiovisual significou um
momento importante na vida daquela comunidade, pois os seus efeitos foram muito além do
esperado e planejado pela direção da empresa. Observa-se no grifo da passagem seguinte,
como a entrevistada adquiriu uma consciência de que ao conquistar a linguagem audiovisual
apoderou-se também de uma nova e mais ampla maneira de ver o mundo.
Mas o Se Liga Nessa, foi importante, a gente até dizia, foi uma coisa que Furnas
colocou, mais não sabia que isso repercutia como repercutiu hoje, por exemplo: eu
acho que eu sou militante do movimento hoje, já desde dois mil e três, que eu
participo ativamente, e eu acho que o Se Liga Nessa contribuiu muito pra isso.
Embora não tinha uma perspectiva política, mas o conhecimento que tu adquire
com áudio-visual ele te ajuda a olhar as coisas, independente se alguém vai falar
pra você que você tem que olhar de um lado e pro outro. A gente mesmo olha pra
nossa própria conta. O Se Liga Nessa trabalhava com um projeto que era pago por
Furnas. Então naquela idéia: “se eu pagar a banda, eu escolho a música”, né.
Então a gente fazia o que eles passavam que a gente tinha que fazer. Teve uma vez,
por exemplo, nesse “Mudança de Hábito”, tinha algumas coisas que gente gravou, e
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na hora de editar não podemos colocar porque falava mal de Furnas, falava algumas
coisas que implicavam. Então assim, a gente fez, na comunidade Mamede que eu
participei, a gente fez quatro filmes, pequenas ficções, tinha um maior, que eu acho
que era de vinte e cinco minutos, mas era muito limitado. Fazia as coisas, a instrução
técnica não era suficiente, e é... não podia trazer nada, nenhum intuito político.
Tinha que muito isso que a mídia coloca né. E você tem que ver as coisas num olhar
mais romântico, nada de realidade. (LESSA, 2007)
Nota-se que o controle político da ação é o que vai permitir ao movimento passar da
condição de observador, de platéia ou de, no máximo, massa de manobra, para a condição de
protagonista; o que será possível não com o Se Liga Nessa, mas com a outra experiência, a do
Cinema Circulante.
A gente viu a diferença desde a construção do projeto, porque nós participamos da
construção do projeto, entende? Então o MAB assim, entrou como protagonista
desde esse processo que estava iniciando. Então o MAB ajudou escrever o projeto, e
aí qual que era a idéia do projeto, era da gente mostrar a nossa realidade de uma
outra forma. E que também a gente fosse parte, e fossemos atores ativos né, que a
gente pudesse participar do processo da construção como protagonistas mesmo, não
como platéia, e isso foi interessante. (LESSA, 2007)
É esta experiência que vai permitir, além da conquista da linguagem audiovisual, o
controle político dessa linguagem e a possibilidade de realizar uma mensagem, também em
todos os aspectos, superior e mais completa do que a possibilitada pela oficina anterior. Tanto
isso é verdade que a entrevistada revela claramente a possibilidade de que o audiovisual torne
possível aos membros do MAB a escrita de sua própria história. Este é o momento em que a
linguagem em movimento se une ao movimento social de forma mais contundente e
dramática; é a conquista da autonomia existencial e o começo da construção de uma nova
possibilidade.
Virgílio se lembra – e isso confere com outros depoimentos – que durante o processo
de transferência de Manso para o primeiro assentamento, muitas pessoas estavam felizes com
a mudança, embora boa parte da comunidade também tivesse manifestado o desejo de
permanecer nas terras ancestrais. Esse sentimento de felicidade, ou mesmo de expectativa
positiva em relação à mudança, pode estar relacionado com a influência da propaganda de
Furnas, bem como com expectativas oriundas do próprio mito do desenvolvimento a que nos
referimos anteriormente.
Nesse sentido, e conforme frisa Virgílio, essas expectativas somente começaram a se
frustrar no momento em que começaram a surgir os problemas já dentro do assentamento,
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vários meses após a mudança, o que também foi registrado pela reportagem do Diário de
Cuiabá, que citamos em outro capítulo: “O milho que antes dava para um ano, agora é
suficiente para três meses. Às vezes, se quero água, tenho que andar dois quilômetros para
pegar”, disse o lavrador Pedro Paulo Ferreira da Cruz, 68 anos, que foi transferido da
localidade de Goiavazinho para o assentamento Mamede Roder.
O que é confirmado por Virgílio:
As pessoas ficaram até um certo ponto felizes, e ocorreu tudo bem até a
transferência das mudanças, ou seja, próximo às mudanças, às transferências das
pessoas. Mas quando mudaram, a partir de um ano, que ninguém produziu nos
assentamentos que foi feito na beira do lago, ai começou criar o movimento, porque
das pessoas de outros estados, é.... na verdade foi o MAB Sul né, as pessoas do Rio
Grande do Sul que veio, que vieram umas pessoas de lá pra Chapada, sabendo da
construção do movimento, ele é nacional né, no Brasil inteiro, então sabendo da
construção da usina de Manso, eles vieram fazer uma visita, e deparou com a
situação do povo, a gente não tava produzindo nada, é... porque é muito arenosa,
tinha até noventa por cento de areia as terras de lá. Foi aí, com a orientação das
pessoas de lá do Sul, que começou a criar o movimento, que as pessoas começaram
a mobilizar, porque... tiveram um entendimento que assim conseguiriam mudar a
situação que não tava indo muito bem. (VIRGILIO MIRANDA, 2007)
Além de ser capaz de distinguir entre as duas experiências de audiovisual que
participou – Se Liga Nessa e Cinema Circulante – Virgílio foi capaz de extrair os aspectos
positivos do projeto Se Liga Nessa:
Já nessa época já, chegou o pessoal, do Rio de Janeiro, uma equipe chamada Se Liga
Nessa. Eu mesmo não conhecia nada de áudio e de vídeo... Não sabia nada. Eram
pessoas simples, e até hoje continuam sendo, mais hoje com um conhecimento a
mais, é claro. Então, ficou por seis meses, a gente trabalhando com oficina, fazendo
coisas do tipo ficção, coisinhas assim que a gente via na televisão, e a gente tentava
imitar. Pelo conhecimento foi bom, foi divertido, as pessoas foram desinibindo,
porque as pessoas eram muito tímidas, principalmente as pessoas que participaram
da oficina do Se Liga Nessa, porque a gente não podia ver, uma câmera, um
microfone na frente, que a gente já ficava com medo. Isso, eu falo por mim né, que
eu ficava também. (VIRGILIO MIRANDA, 2007)
De acordo com o que ele nos informa, durante o desenvolvimento do projeto já houve
certo estranhamento, na medida em que os participantes das oficinas e outros membros da
comunidade perceberam que não possuíam o controle político da produção.
Mais tarde, o fato da empresa ter usado imagens produzidas pelo Se Liga Nessa como
argumento na hora da negociação, foi determinante para que uma das comunidades não
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permitisse a realização do projeto. Outro aspecto que merece destaque nesse momento é
justamente a capacidade da empresa em manipular as informações.
Mais daí, o Se Liga Nessa né, ele terminou o projeto da empresa, ficou apenas um
assentamento que não foi feito, não foi executado porque daí também as pessoas, a
liderança do movimento viu que não tava sendo o que esperavam né. A empresa
tava usando as imagens, as gravações, é a favor dela. E o movimento tava sendo
prejudicado, porque as pessoas empolgadas com o que tava conhecendo né, e ia
seguindo as orientações. (...) Eles tinham o teatro no meio, então, eles usaram umas
melancias grandes, que usaram na peça de teatro, que na verdade não era nem
melancia, era artificial, mais na imagem parece uma melancia normal. Eles
gravaram o teatro, e aquelas melancias que apareciam, e as pessoas falando bem,
porque era a regra da empresa que a equipe tinha que fazer alguma coisa né. Então
eles usaram em uma negociação aqui em Cuiabá, em uma reunião de negociação, e
eles apresentaram fotos das pessoas que eles faziam, que também, tinham fotos que
não eram do Se Liga Nessa, eles usaram, e usaram peças, fotos feitas pela equipe do
Se Liga Nessa, e imagens, e usaram uma melancia. Inclusive as pessoas ficaram
revoltadas, e não deixou fazer a segunda etapa, que foi o único assentamento que
eles não fizeram o projeto. E ai por causa da melancia grande que apareciam, eles
mostrava dizendo que era a produção da terra né. Então, houve uma contradição,
onde as pessoas ficaram revoltadas, mas fazer o que? Apareceu, eles mostraram,
como que vai provar ao contrário contra uma empresa tão grande né? (VIRGILIO
MIRANDA, 2007)
Pelo que pude perceber nesta entrevista com o Virgílio, a equipe que produziu o
projeto Se Liga Nessa, a certa altura do desenvolvimento terminou por estabelecer uma
relação muito pessoal com os assentados. Em algum ponto do percurso os componentes da
equipe devem ter percebido que estavam contribuindo para a defesa do status quo, em
detrimento das populações atingidas.
Talvez por isso os ecos da justificativa dessa equipe nos tenham chegado na fala do
Virgílio quando ele se refere ao uso dos materiais do Se Liga Nessa como instrumento da
empresa na hora da negociação em que ele justifica a ação da equipe como sendo uma
imposição contratual. De qualquer forma, a minha intuição é a de que esse envolvimento
emocional, surgido no percurso da implantação do projeto, possa ter motivado a equipe a
“ajudar” o movimento, na forma de doação de equipamentos e sugestão para que estes
criassem uma ONG, com caráter cultural, para dar continuidade à experiência de audiovisual.
Mas tudo bem. Passou. E aí assim, continuou a luta, o Se Liga Nessa foi embora, e
nós ficamos, não conseguimos, porque não tivemos força. As pessoas do Rio que
tentaram ajudar a gente a montar o projeto, uma ONG, eles até tinham doado uns
computadores, umas impressoras pra gente, pra gente. Eles fizeram cota e
compraram uma impressora, então já ficou com a gente continuar, mas não tivemos
força nenhuma. Inclusive o movimento tem pouca força, a gente não tem dinheiro,
trabalha assim, meio que na raça, no peito, pra ver se consegue alguma coisa. Mal dá
pra gente tocar a negociação né, com a empresa que já dura hoje, vai pra sete anos.
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Então, não conseguimos montar essa ONG, essa associação e parou tudo de novo.
Até que agora chegou né, já pelos finais, pelos finais não, porque é agora atual, mas
na verdade, a luta agora que ta mais acirrada, a briga é mais dura, por que está em
fase de fazer assentamento, de transferir as pessoas de um assentamento pra um
novo reassentamento, então a luta eu acho que ta mais vitoriosa hoje, mais duro,
porque já é fase de concretizar as coisas. (VIRGILIO MIRANDA, 2007)
Quando a equipe do Cinema Circulante realizou o primeiro contato com a
comunidade, houve certa resistência ao projeto, fundada na lembrança do Se Liga Nessa. Para
que o projeto pudesse ser realizado, foi necessário que houvesse uma discussão interna no
MAB, conforme podemos inferir do depoimento do entrevistado.
Então, chegou, apareceu através do Epaminondas, mais o Sérgio Brito, e umas
equipes, eles apareceram com o Cinema Circulante, chegou mais ou menos o Se
Liga Nessa, eles se apresentaram, disseram o quê que eles estavam fazendo, qual
que era o sentido, e tal, e a gente gostou do trabalho, porque tudo que a gente faz no
movimento, tem uma equipe de coordenadores, tem uma coordenação que tem que
ser passado ali, porque, é... tem coisa que chega, que se a gente for abraçar, todas
as coisas que chegam assim, sem, sem a orientação da equipe... porque eu também
faço parte dessa equipe de coordenadores, então, inclusive, então eu tenho que
passar pra equipe, é, tudo o que acontece no movimento, porque pode ser viável ou
não. Porque inclusive, quando fala de cinema, de áudio e vídeo, porque a gente
sofreu né, certo transtorno por causa disso né? Eles se apresentaram, falaram o quê
que era, e a gente viu que era diferente e falou que ia fazer oficina e depois se a
gente podia tocar por conta, se podia conseguir equipamento, através do Ministério
da Cultura, e por ai a fora. “Ta beleza!”. Aí começamos de novo né. Daí as pessoas
já conheciam antes né, porque a gente faz, a gente grava um documentário, ficção, a
gente faz coisinhas assim e ai apresenta pro povo, e o povo gosta. Quando vê uma
tela grande, umas imagens grandes ali, as pessoas ficam todas animadas né? Então é
uma diversão a mais pro movimento. Então, eu acho que essa... é a parte boa do
áudio e vídeo, quando a gente mostra os trabalhos feitos pelas próprias pessoas do
movimento. Eles mesmos fizeram. (VIRGILIO MIRANDA, 2007)
Mais que o sentimento de perda de uma propriedade, grande parte dos atingidos da
região de Manso passaram a apresentar sentimentos de perda em relação à desestruturação do
universo simbólico no qual estavam inseridos. A construção da barragem não significou
apenas a desocupação do espaço material, do fim das atividades econômicas e do modo de
vida material. A partir daquele instante, a construção da barragem significou a desarticulação
do imaginário, a perda dos referenciais simbólicos e uma sensação de impotência diante da
realidade.
Os depoimentos dos entrevistados coincidiram em vários pontos, mas é justamente na
lembrança de um universo que não poderá ser recuperado, ainda que outro assentamento seja
conquistado, é que se fixam a centralidade das recordações.
100
Não existe mais. É impossível recuperar. Mesmo que ele dê um outro lugar talvez
igual... igual impossível, ou vai ser pior ou vai ser melhor. E mesmo que seja
melhor, a gente vai sempre sentir saudade daquilo que talvez seria... daquilo que a
gente tinha, que nunca vai poder recuperar. Nunca mais. É. É isso. Porque a maioria
das pessoas que moravam perto da gente, algumas ficaram porque... é o caso das
terras deles não terem sido alagadas, porquê do meu pai foi alagada completamente,
por isso que ele teve que sair. Mas teve alguns que não teve a terra toda alagada e
que ficaram lá. E as outras que vieram que moravam mais próximos também para
uma outra comunidade, por exemplo, lá na onde o meu pai mora, aqui, a única
pessoa que é de conhecido, é um sobrinho dele que veio de junto, os demais tudo
desconhecido que não conhecia antes. Então perdeu totalmente a ligação que tinha
um com o outro. Outros foram pra Cuiabá porquê não receberam, e tal... O meu pai
hoje ta em Alto Paraguai. Porque... é aquele povo que não quiseram lotes aqui onde
ganharam. A maioria da terra... foi comprovado que noventa e três por cento de
areia. Ai eles entraram na luta, ficaram acampados um ano e pouco lá na obra de
Manso né?... e... aí... agora esse ano que a gente consegui comprar as terras pra fazer
o reassentamento, através da luta do movimento, eles foram pra Alto Paraguai. Ta
acampado lá na fazenda, na onde que em breve vai estar cortando e construindo um
novo reassentamento. Ai eles estão lá. Na verdade eles até deram uma outra terra, só
que é areia, porque a maioria das pessoas que moravam lá em Manso, eles viviam
da... agricultura, né? De subsistência. E agora nessa areia... não tem como produzir,
não tem alternativa. (ANA MIRANDA, 2007)
Colocados no limiar do que o Relatório da ONU classificou como genocídio cultural,
os habitantes da região não puderam esboçar uma reação, pois de uma hora para outra se
viram privados de todas as condições materiais e imateriais para a produção da vida: a perda
da terra e a conseqüente desarticulação das relações sociais, a incapacidade de produzir seus
meios materiais de vida foram articuladas com a perda dos referenciais simbólicos e culturais;
de forma que a comunidade começou de fato uma articulação pela reconquista de um espaço
próprio somente a partir da instalação no primeiro assentamento, nas terras fornecidas por
Furnas.
Na verdade não era um assentamento provisório. Foi a terra que furnas deu depois
que construiu a barragem tinha que dar um outro local. Então eles deram essa casa
pro meu pai ... aí a gente vivia lá, só que como a gente não tinha onde produzir ali, aí
o movimento foi se formando, nós fomos achando uma alternativa pra sair daquela
situação, aí.... com a luta do movimento a gente conseguiu... a gente reivindicava
uma outra terra pra fazer um assentamento onde as pessoas conseguissem produzir.
Aí foi com a luta do movimento que a gente conseguiu no ano passado... que Furnas
comprasse uma outra área e tal... assinamos um termo de acordo com Furnas, no
qual Furnas teria que dar terra pra pessoas na qual ele pudesse produzir, e que...
comprou esse ano, foi esse ano que conseguiu comprar as terras. Ai que a gente saiu
de lá em fevereiro. Aí a gente já tava... saímos do local onde nós morávamos aqui na
Mamede e ficamos acampados na usina de Manso reivindicando outra terra. Aí
agora que saiu agora em janeiro, que a gente... se mudou pra Alto Paraguai. (ANA
MIRANDA, 2007)
Em diversos momentos tenho classificado as comunidades anteriores ao lago de
Manso como sendo ora “comunidades tradicionais”, ora como sendo “comunidades pré-
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capitalistas”. As populações tradicionais, entre elas os ribeirinhos, foram reconhecidas pelo
Decreto Presidencial nº 6.040, assinado em 7 de fevereiro de 2007. Nele o governo federal
reconhece, pela primeira vez na história, a existência formal de todas as chamadas populações
tradicionais. O decreto que reconheceu essas comunidades as define do seguinte modo:
São grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que
possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e
recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa,
ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas geradas e
transmitidas pela tradição.
Embora à época da saída daquele local as comunidades não se reconhecessem diante
dos governos e do conjunto da sociedade circundante, como sendo uma comunidade
tradicional, tudo o que já foi dito sobre a maneira como elas estavam organizadas
culturalmente, religiosamente, economicamente e socialmente pode conferir-lhes esse status.
Por outro lado, nas formações, grupos e sociedades pré-capitalistas, as mercadorias
existem apenas sob a forma da troca com comunidades externas e não entre os próprios
membros da comunidade, sendo que a produção é orientada para o consumo dos membros e
não para o mercado, o que também vai ao encontro da descrição fornecida por Virgílio do que
era o modo de vida das comunidades antes da construção da usina de Manso:
Então, eu costumo dizer hoje, que a gente era feliz e não sabia. Porque antes da
empresa, a gente vivia todo mundo na comunidade ribeirinha ali na beira do rio
Manso, eu não sei bem, mas a extensão é muito longa. Mas ali assim, eram várias
comunidades familiares. A gente vivia todo mundo junto. A gente fazia a nossa
produção de subsistência, plantava arroz, feijão, milho, e as coisas pra consumo.
Era rocinha pequena né, tudo em área de cultura né, ou seja, na mata, na beira de rio,
fazia nossas rocinhas e plantava o que nós precisávamos. Ali nós tínhamos de tudo,
desde arroz, feijão, milho, carne, porque nós tínhamos ali, cada um tinha umas
vaquinhas, tinha seu porco, galinha, tinha tudo. E aí, como planta até hoje, os
ribeirinhos, quem vive em comunidade ribeirinha continua sendo assim, é só na
época que chove que a gente planta, e na época da seca, que as plantas não, não tem
como plantar, a gente trabalha, a gente trabalha em diária, faz vários tipos de
serviços particulares né, por outros, que aí vai comprar o sal, o açúcar, coisa que a
gente não faz né, a roupa, o calçado... E vivia assim, era todo mundo pobre, todo
mundo em casa de palha, casa de barro, poucas tinha casa de alvenaria, poucas
tinha casa coberta com telha, era tudo na palha. Mas não faltava nada,
praticamente nada, todo mundo era feliz, hoje não. Hoje, ta tudo espedaçado como
se diz. Não tem mais aquela comunidade que se reunia nos finais de semana à noite
pra contar história, isso vai acabando tudo. Um ta em Alto Paraguai, outro ta em
Diamantino, é... eu nem sei onde que eu to. Ao mesmo tempo que eu to no Alto
Paraguai, eu to aqui em Cuiabá, eu to no Manso... e to assim meio que jogado por
enquanto. (VIRGILIO MIRANDA, 2007)
102
Nota-se como a descrição do que era a comunidade praticamente coincide com a
definição de comunidade tradicional por parte do governo federal. Além disso, é evidente que
a comunidade praticava uma economia de subsistência, fundada no trabalho familiar e numa
economia de trocas, sendo que os aspectos monetários e que envolviam o trabalho assalariado
eram realizados esporadicamente em fazendas da região apenas como forma complementar e
para angariar o dinheiro necessário à compra dos poucos produtos industrializados
consumidos e que não eram fabricados no interior da comunidade.
Essa categorização daquela comunidade como de modo tradicional, nos seus aspectos
culturais ou de pré-capitalista na formação econômica é necessária para realçar o impacto da
construção da usina na desestruturação de um modo de vida original e no posterior
desenraizamento cultural da comunidade, na sua dispersão em outros espaços geográficos, e
também para assim sublinhar a importância estratégica das experiências com audiovisual no
processo de recuperação dessa herança perdida.
Quero retomar aqui aquela discussão sobre a natureza da Ciência, sobre os conceitos
do que ela seja e que circulam dentro das academias que pensam este país e ao mesmo tempo
recuperar aquela fala do Celso Furtado colocada na epígrafe deste capítulo. “Em ciências
sociais, pensamos o mundo para transformá-lo ou para defender o status quo.”
Ao mesmo tempo, penso que a fala do Virgílio reforça a sensação de que o tempo
inteiro Furnas vem operando dentro de um universo simbólico comum aos brasileiros e que
torna seus argumentos tão palatáveis: de fato deve ter sido muito difícil para aquela
comunidade, praticamente impossível que um de seus membros estivesse em condições de
resistir ao canto de sereia do desenvolvimento econômico e social:
Quando a empresa chegou, que começou a construir a usina tinha até trabalho, na
época que a gente não tava fazendo a roça, a gente ia trabalhava na empresa... Que a
historia que ela trazia dizia que era desenvolvimento, era trabalho, emprego.
Empregou muita gente por uns quatro anos, três anos e pouco empregou muita
gente. Mais aí acabou o emprego, acabou a comunidade né, as terras, todo mundo
perdeu as terras, perdeu o emprego, perdeu as casinhas, perdeu o lugar de fazer a
roça, perdeu tudo. Foi tudo junto com a empresa embora quando acabou, quando
construiu a usina. Então assim, mudou muito, ficou muito diferente hoje, porque
quando a gente pensava que ia ser feliz né, “não, agora nós vamos ter água...”, que
nós não tinha água, tinha que pegar no balde no rio, nós íamos ter encanada dentro
de casa, nós íamos ter energia elétrica, que quando iluminava com querosene, nós
íamos ter uma lâmpada que ascendia automaticamente né, ou seja, tinha que clicar o
dedinho lá e acender. (VIRGILIO MIRANDA, 2007)
103
Michael Löwy e Frei Betto (2007), em um texto chamado “Valores de Uma Nova
Civilização”, argumentam contra o sistema capitalista mundial opondo os valores deste aos
valores defendidos pelos revolucionários franceses de 1789, Liberdade, Igualdade e
Fraternidade: “Nós, do Fórum Social Mundial, acreditamos em certos valores, que iluminam
o nosso projeto de transformação social e inspiram a nossa imagem de um novo mundo
possível”:
Aqueles que se reúnem em Davos – banqueiros, executivos e chefes de Estado, que
dirigem a globalização neoliberal (ou globocolonização) – também defendem
valores. Não devemos subestimá-los, pois eles acreditam em três grandes valores e
estão dispostos a lutar com todos os meios para salvaguardá-los – até guerra, se for
preciso. Três importantes valores, contidos no coração da civilização capitalista
ocidental, na sua forma atual. Os três grandes valores do credo de Davos: o dólar, o
euro e o yen. Estes três não deixam de ter suas contradições, mas, juntos,
constituem a escala de valores neoliberal globalizada. (LÖWY e BETTO, 2007)
Segundo a opinião destes autores, a característica basilar destes três valores é o seu
caráter estritamente quantitativo:
eles não conhecem o bem e o mal, o justo e o injusto. Conhecem apenas
quantidades, números, cifras: um, cem, mil, um milhão, um bilhão. Quem tem um
bilhão – de dólares, euros ou yens – vale mais do que quem tem só um milhão, e
muito mais do que aquele que só tem mil
: Juntos, os três valores constituem uma
das divindades da religião econômica liberal: a Moeda ou, como se dizia em
aramaico, Mamon. As outras duas divindades são o Mercado e o Capital. Trata-se
de fetiches ou ídolos, objetos de um culto fanático e exclusivo, intolerante e
dogmático. Este fetichismo da mercadoria, segundo Marx; ou esta idolatria do
mercado – para utilizar a expressão dos teólogos da libertação Hugo Assmann e
Franz Hinkelammert – e do dinheiro e do capital, é um culto que tem suas igrejas
(as Bolsas de Valores); seus Santos Ofícios (FMI, OMC etc.); e a perseguição aos
hereges (todos nós que acreditamos em outros valores). Trata-se de ídolos que,
como os deuses cananeus Moloch ou Baal, exigem terríveis sacrifícios humanos: no
Terceiro Mundo, as vítimas dos planos de ajuste estrutural, homens, mulheres e
crianças sacrificados no altar do fetiche Mercado Mundial e do fetiche Dívida
Externa. (LÖWY e BETTO, 2007)
Importante recuperar esse pensamento no contexto desta Dissertação, pois há
evidências de que, à medida que se expande no espaço geográfico e se aprofunda nas suas
contradições, este sistema mundial do dinheiro se confronta justamente com comunidades
tradicionais, grupos que vivem em formações econômicas e políticas pré-capitalistas e que
começam a sucumbir ao poder do capital exatamente no momento em que seus valores
tradicionais são colocados em xeque, no momento em que sua forma de vida é comparada
com experiências tidas como “mais avançadas”, no momento em que suas comunidades são
destruídas em nome do “progresso”.
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No momento em que a sociedade civil mundial se organizar, nos mais diversos tipos
de movimentos sociais como uma contraposição ao capitalismo globalizado e visando a sua
superação histórica, é nessas comunidades tradicionais que os pensadores vão buscar
exemplos de vivências e valores que recuperem a verdadeira dignidade humana:
A estes grandes valores, produto da história revolucionária moderna, devemos
acrescentar um outro, que é ao mesmo tempo o mais antigo e o mais recente: o
respeito ao meio ambiente. Encontramos este valor no modo de vida das tribos
indígenas das Américas e das comunidades rurais pré-capitalistas de vários
continentes, mas também no centro do moderno movimento ecológico. A
mundialização capitalista é responsável por uma destruição e envenenamento
acelerados – em crescimento geométrico – do meio ambiente: poluição da terra, do
mar, dos rios e do ar; « efeito de serra », com conseqüências catastróficas; perigo de
destruição da capa de ozônio, que nos protege das irradiações ultravioleta mortais;
aniquilamento das florestas e da biodiversidade. Uma civilização da solidariedade
não pode ser senão uma civilização da solidariedade com a natureza, porque a
espécie humana não poderá sobreviver se o equilíbrio ecológico do planeta for
rompido. (LÖWY e BETTO, 2007)
Nota-se na seguinte fala de Virgílio que uma das estratégias usadas por Furnas para
convencer a população a desocupar – pacificamente e sem luta – a região é justamente a
promessa de que a mesma iria desfrutar de um modo de vida melhor, com habitações
melhores, com os confortos da vida moderna; o que em certa medida foi realizado. Mas em
momento algum a empresa coloca as coisas em termos comparativos, não abre a perspectiva
de que aquele modo de vida tradicional iria ser destruído e que as pessoas iriam simplesmente
ser engolidas pelo sistema mundial de fabricação de mercadorias:
Nós íamos ter casa de alvenaria, coberta com telha... Rapaz ia ter uma mordomia
toda que a empresa mostrou pra nós, e nós acreditamos. É como eu disse antes, nós
éramos humildes e acreditava em tudo. Quer dizer, ela talvez não mentiu, deu a casa
de alvenaria, deu água encanada, deu luz, mas ninguém construiu, porque ninguém
vive só de luz, ninguém vive só de água, mas sem ser encanada, nós tínhamos ela,
com mais abundancia do que encanada até. Agora a luz, só porque liga uma
televisão e assiste as verdades, assiste as mentiras e a gente até quando vê os
comerciais que passa da empresa, a gente fica “pê” da vida, porque... eles só
mostram, mostram verdade né, mais as verdades boas, as verdades ruins não
mostram. Então assim, mudou muito as nossas vidas. Separou todo mundo, não tem
mais aquele negócio de sentar à noite, contar história, vizinho ali, vizinhos... ta todo
mundo num lugar... então, destruiu tudo, foi uma destruição só. Estamos tentando
recuperar isso, mais eu... eu penso que igual a antes, nunca mais fica, não volta mais
a ser. Mas, em certo ponto também eu penso que, até foi bom. Porque a gente
aprende muita coisa da vida que a gente não sabia, mais, que a gente era feliz,
éramos muito felizes antes, éramos. Mas a gente não sabia. Pensava que ia ser mais
feliz depois, mais... (VIRGILIO MIRANDA, 2007)
105
A falsa argumentação da empresa finalmente cai por terra quando a comunidade se vê
pertencente a uma realidade com a qual não é capaz de lidar. Do ponto de vista da empresa
tratou-se apenas de uma mudança aeroespacial, geográfica: a população foi transferida de um
lugar para outro. Mas para o conjunto da população o que ocorreu foi uma
desterritorialização, uma mudança de paradigma existencial, pois foram retirados de uma
forma de vida original, tradicional e incluídos na lógica perversa do capitalismo globalizado.
A energia e a água prometidas vieram, mas é necessário que se pague por elas, assim como
com qualquer outra mercadoria:
Porque quando era na querosene, todo mundo conseguia, se não tinha, não podia
comprar querosene, a gente fazia o azeite de mamona, a gente fazia qualquer coisa,
mais a gente iluminava. A nossa vida era clara. Hoje não. Hoje se qualquer um que
for nos assentamentos vai ver que a maioria tem lá um padrão lá, tem um
transformador lá em cima, mas já arrancaram até a canelinha lá, aquele fusível eles
arrancam. Já tirou a fiação, só ta a dos postes das redes. Mas o padrão tem muito que
já arrancaram do transformador até lá dentro das casas, só ficou o das casas
mesmo... do padrão até acessar a casa já arrancaram tudo. Porque não conseguiram
pagar as contas, as tarifas né de energia, ai, a Rede Cemat vai lá e corta. Ai como
cortou já acostumou, porque quando a gente acostuma, é difícil desacostumar. As
pessoas iam lá e faziam as gambiarras, ligava, ai eles viam e cortavam, cortam duas
vezes a gambiarra, liga de novo, ai eles vão e tiram os fios todinhos... ta lá, você
pode ir no assentamento que você vai ver isso. Tem casa que não tem nem a fiação
mais. Já tiraram. Só dentro de casa as instalações, mais do transformador até a casa
já levaram tudo embora, pras pessoas não fazer a gambiarra, porque não pode pagar,
não consegue pagar as contas porque são altas, as contas de energia são altas... Eu
não sei falar assim agora, exatamente, mais é... Nós pagamos a maior taxa, a energia
mais cara, porque a energia elétrica, eles optam por ela, porque é a mais barata que
tem. Pra se produzir energia, é através de usina hidrelétrica. Mas as taxas, as tarifas
que a gente paga, são umas das mais caras, então, a obra é mais barata, a produção é
mais barata, mas a conta é a mais cara. Então, pouca gente consegue pagar. Os que
conseguem pagar ta feliz, mais a maioria que não consegue. (VIRGILIO
MIRANDA, 2007)
Uma passagem interessante e que nos remete à linha evolutiva dos movimentos sociais
no Brasil e que trata da passagem dos antigos para os novos movimentos é o fato de existir na
região de Manso, antes da construção da barragem um Sindicato de Trabalhadores Rurais,
que exercerá alguma influência no processo de construção do MAB, embora este não venha a
existir numa sucessão ecológica ao Sindicato. Na verdade há indícios de que o Sindicato tenha
sido refratário à defesa dos interesses dos atingidos, deixando um vácuo político que mais
tarde viria a ser preenchido pelo MAB.
A falta de organização política da comunidade e a ação das lideranças do Sindicato
dos Trabalhadores também foi um fator importante e que jogou peso na desmobilização
inicial dos atingidos.
106
Tinha sindicato sim, só que eles diziam que tava apoiando, que tava ajudando, mas
na verdade não foi ajuda né. Eles falavam “ah... apoio, era o apoio, tinha o apoio
deles”, mas só que daquele jeito que não era, parece que não tava bem pro nosso
lado né. Então, não sei, saiu pro lados deles também né, aí acabou prejudicando
todos. Não trabalhou com sinceridade né. Então não trouxe essas informações pra
gente né. Então, não deu aquele conhecimento pra gente, e acabou prejudicando a
gente. (ANA MIRANDA, 2007)
A construção do movimento esbarrou também em uma dificuldade inicial: parte dos
atingidos – pelo que consta composta pelas gerações mais jovens – era de certa forma
receptiva à construção da barragem, pois de fato uma parte da comunidade compartilhava
com a idéia de que Furnas traria o “progresso” para a região; inclusive muitos moradores se
viram seduzidos com a perspectiva real de trabalhar na construção da barragem ou ainda de
compartilhar do “progresso” que poderia advir de tal construção.
De acordo com o depoimento, uma das lideranças na época era o presidente do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais local, que inicialmente se comprometeu com a
mobilização, mas no momento crucial abandonou a comunidade:
Aqui em Mato Grosso surgiu em dois mil e um, através do sindicato dos
trabalhadores rurais sem terra. Tinha um companheiro nosso que... ouvia falar do
movimento, sabia que existia e tal... aí ele fazia curso fora, conhecia as pessoas mais
lá do sul... aí em dois mil e um, veio um companheiro lá do sul que ajudou ele a
construir o movimento, a se formar o movimento aqui em dois mil e um. (...) Sim.
Na verdade... foi a nossa comunidade juntamente com a comunidade que já morava
aqui. Alguns foram alagados lá em Manso, outros aqui também por causa do rio
Quilombo... que morava aqui na beira do rio Quilombo que foram alagados, e
juntamente que se formou o movimento. (...) Na verdade... a barragem fez o
movimento se construir aqui. Porque, lá em Manso tinha um povo que não
concordava. Alguns concordavam com a barragem, que achava que ia trazer
progresso, trazer emprego e tal... e tinha uns grupos que não concordavam, que
normalmente eram as pessoas mais de idade que não queriam, não queriam sair dali.
Então, antes da construção, de fechar as comportas lá de Manso, teve um povo lá em
Manso mesmo, de uma comunidade chamada [goiavazinho], que eles se uniram uma
vez pra.... pra impedir que fossem fechadas as comportas. Ai, chegaram até ir lá pro
canteiro de obra tal, pra tentar impedir. Só que ai era o Ezequiel que era presidente
do sindicato na época, ele organizava o povo lá em Manso e organizava aqui na
comunidade de João Carro também, e... Ai um dia, eles foram lá pro canteiro de
obras... só que tinha poucas famílias, tinha.... umas vinte famílias mais ou menos.
Assim mesmo, foram representantes daquelas vinte famílias. Ai eles chegaram lá, e
o Ezequiel combinou que ele ia daqui da Chapada e encontrava com eles lá no
canteiro de obras. E eles chegaram lá no dia... só que aí quando chegou lá no dia,
não sabemos porque motivo o Ezequiel não compareceu. Chegou lá e tinha uns
policiais lá, ai o povo não tinha... uma organização, não tinha uma formação, não
sabia como que funcionava. Ai eles viram os policiais lá, apavoraram tudo, jogaram
as coisas que estavam com eles da manifestação e foram embora. Aí, acalmou ali. E
já aqui no Quilombo, no João Carro, as pessoas organizavam pra impedir a
construção das... das casas. Enquanto, o povo lá de Manso se reunia pra impedir que
se fechassem as comportas, os daqui se uniam pra impedir que as casas fossem
construídas. Porquê se as casas não fossem construídas, não tinha como fechar as
comportas lá, porque ai não teria pra onde levar o povo. Eles chegaram a fechar a
107
ponte... na qual dava acesso ao assentamento na onde as casas estavam sendo
construídas. Impediam que os materiais de construção chegassem até lá. Só que...
acho que eles ficaram só uns três dias lá.... conseguiu isso. Aí depois o prefeito... foi
com uma liminar pra lá, dizendo que eles iam pagar... um absurdo lá, se ficasse... se
eles fechassem a ponte, mais mil reais por hora que a ponte permanecesse ali
trancada. Ai como o povo não tinha formação, também desistiram. E eu que... não
havia como impedir né? Aí, se acalmou, construiu as casas... tudo, o povo se mudou.
Aí somente em dois mil e um que... aí os dois grupos se juntaram, e com a vinda do
pessoal do MAB Sul, se fortalece e.... aí que se formou o movimento... um
movimento mais... amplo. (ANA MIRANDA, 2007)
Para a entrevistada, a militância no MAB aconteceu de forma praticamente natural:
não somente porque foi atingida diretamente, assim como toda a sua família, mas
principalmente por que um irmão seu foi um dos primeiros militantes do movimento no local:
A minha família sempre participava. O meu irmão é um... um da direção do
movimento, aí ele sempre participava. Eu sempre ia nas reuniões assim, mas não
levava muito a sério assim. Ai só em dois mil e quatro... meu irmão já era da direção
do movimento, perguntou se eu não gostaria de fazer um curso... que ia ter um curso
de formação... em Brasília, aí tava precisando de novos militantes... aí decidi
participar. Sempre gostei. Aí foi no... nesse primeiro curso em dois mil e quatro, em
janeiro, foi um curso de uma semana. Aí a partir daí, quando eu voltei, eu comecei a
participar da luta ativa do movimento, das mobilizações, trabalhava com formação...
e a partir daí, eu não parei mais, de dois mil e quatro pra cá. Ai todas as lutas do
movimento... eu sempre ia nas reuniões só pra ir, ver o quê que o povo tava falando,
mas participar ativamente foi a partir daí, dois mil e quatro, da última mobilização
que nós fizemos no canteiro de obras. (ANA MIRANDA, 2007)
Assim como aconteceu com sua irmã, a entrada de Carlita no MAB se deve à
influência familiar:
Foi depois que começou essas mobilizações, essas lutas né. Aí como todos os
atingidos têm seus direitos, todos têm a necessidade de lutar né. A minha família,
meu pai que foi atingido também, ninguém da região teve uma indenização correta
né. Então todos começaram a mobilizar. Então, a partir dessas mobilizações eu
comecei a participar, tava ali junto também participando. Não tinha muito assim, só
ouvia mais né. Então não participava muito, uma participação direta, mas tava
sempre junto nas mobilizações em vários lugares, na Guia eu tava também, junto
com minha família toda que é atingida... todos juntos né. E eu fui ficando. Ai depois
algumas atividades que foram surgindo no MAB, que a gente... convidava os jovens
pra participar também né. Fui participando, fui tendo mais conhecimento assim, de
como que funciona né, a luta a organização e... foi continuando, fui participando de
várias que teve, e continuo participando até hoje dessas atividades que a gente tem
pelo MAB. Ai eu participo sempre. (CARLITA MIRANDA, 2007)
A participação no Movimento dos Atingidos pelas Barragens foi fundamental para a
experiência posterior do Cinema Circulante. Conforme podemos ler no depoimento,
inicialmente o MAB resistiu à idéia de que seus militantes participassem das oficinas, tendo
em vista uma experiência anterior levada a cabo por Furnas, que usou dos instrumentos da
108
linguagem audiovisual para referendar sua política: antes do Cinema Circulante estiveram na
comunidade membros de uma equipe contratada por Furnas para envolver os atingidos na
elaboração de vídeos-documentários favoráveis à construção da barragem e que realçassem os
aspectos considerados positivos.
Conforme veremos adiante, essa experiência, a do Se liga nessa, vai ter uma análise
ambígua por parte dos militantes do movimento: ao mesmo tempo em que destacam o aspecto
favorável, que é o da conquista da linguagem audiovisual, tamm mencionam a falta de
independência na condução dos trabalhos:
O Cinema Circulante foi.... em dois mil e cinco. Só que nesses cursos que a gente
fazia que... a nível... regional, aí tinha aquela proposta que viria o cinema. Na
verdade o movimento nem queria, porquê já tinha tido um experiência antes com
isso. Só que tinha sido um pessoal de Furnas mesmo que tinha um grupo que
trabalhava com cinema, que chamava-se... “Se liga nessa”. Aí... porque tinha aquela
proposta toda. Durante a construção da barragem, os meios de comunicação
mostravam o que ia trazer de desenvolvimento, né? Aí o pessoal... acho que não
concordou... da empresa acho que não concordou só com isso, e ainda colocou mais
esse grupo pra trabalhar, pra fazer com que o povo dissesse que estava sendo bom.
Aí eles iam lá trabalhavam com esse cinema. E ele dizia pro povo... ia lá fazer
entrevista e dizia o quê que tinha que falar. Ai o povo ia lá falava que tava tudo bem,
que tinha gostado tudo, tal... então foi um... uma experiência que... eu, eu assisto
assim... hoje, porque o que eles fizeram assim... nem acredito. Eu vejo meu pai lá
dizendo que “ta bom”, “que era o que ele esperava” tudo assim... Então eu acho um
absurdo, porquê meu pai nunca concordou com isso. E lá no filme que eles fizeram,
meu ta dizendo que “é bom”, “que trouxe desenvolvimento e tal”. Eu acho que... é
absurdo... não dá nem pra explicar o quê que eles fizeram. Aí o movimento nem
queria trabalhar com o Cinema Circulante, porque tinha medo que fosse semelhante.
Só que aí depois de algumas brigas eles disseram “não, vamos fazer uma
experiência, de repente... funciona.” Aí a gente fez a oficina em dois mil e cinco,
fizemos nosso vídeo, vimos que era diferente. A gente teve voz pra... desmentir
aquela farsa que ele fez antes, com aqueles filmes lá que... é um absurdo. (ANA
MIRANDA, 2007)
Talvez o aspecto mais interessante seja justamente a possibilidade de se fazer uma
comparação entre as duas experiências, a do Se liga nessa e a do Cinema Circulante; já que
todos os entrevistados, direta ou indiretamente, estiveram envolvidos nas duas situações.
Na primeira, embora os participantes da oficina tivessem acesso às informações
técnicas sobre o funcionamento da linguagem audiovisual, não possuíam o controle político,
de forma que, para Furnas, de certa forma eram apenas instrumentos para consecução de um
objetivo que lhes era estranho.
109
Parece-me que com a experiência que a comunidade teve com o Se Liga Nessa, e
também com o Cinema Circulante, eles aprenderam como se conta uma mentira e como se
conta uma verdade, aprenderam a diferenciar as duas coisas e compreenderam, mesmo que
intuitivamente, como essas imagens são construídas.
É porque a gente fazia várias, fazia mais ficções, queria fazer igual a gente vê na
televisão. A gente vê uma novela, vê um filme assim, uma coisa assim né, e que
fazer igual né, que imitar. Mas a gente vê que aquelas coisas que era, antes a gente
via, eu principalmente, assistia novela, filme antes, eu pensava que era tudo
verdadeiro aquilo. Depois a gente vê que não. É uma história, é uma mera
coincidência as coisas que acontecem ali. É uma imitação da vida real que, não é
verdade. Por exemplo, assim, você vê uma imagem de um desenho, de uma coisa
assim, você olha “mais como que tem coisas. Eu vi como que tem coisas... Um
bichinho daquele falar, isso é coisa de antigamente, coisas de antes de Cristo,
quando os bichos falavam...”. (VIRGILIO MIRANDA, 2007)
Aqui se pode perceber claramente como o domínio da linguagem em movimento pode
dar uma nova feição ao próprio movimento social. A conquista dessa linguagem é também a
introdução de novos conceitos às relações entre o MAB e Furnas, pois se esta é capaz de fazer
uso de imagens fictícias contra o movimento dos atingidos, este tamm se tornou capaz de
usar a ficção e a força de imagens verdadeiras para se contrapor à pressão da empresa. A
conquista da linguagem é a conquista de uma nova visão de mundo e consequentemente de
uma nova relação com ele.
Hoje, você pode tudo, tudo você pode fazer. Pode fazer a verdade virar mentira,
pode fazer a mentira virar verdade, faz tudo, então ajuntando o cinema com a
negociação, a gente aprende que nem tudo que vem é verdadeiro, e nem tudo que a
gente quer que seja é. A gente tem que aprender as duas coisas. Aprender a
contestar, aprender a acreditar e desacreditar das coisas também, porque nas
negociações nossas, quantas coisas que a gente fez, quantas negociações que a gente
acordou junto, com a equipe de negociação e a equipe da empresa que negociava né,
ali junto, a gente, acordava as coisas, ficava tudo certinho, em ata, a gente tem ata lá,
a gente tem pilhas de atas de reuniões de negociações que esta tudo escrito ali nas
atas, mas quando chega na hora de concretizar as coisas, os caras falam “não, isso
não é assim, isso aqui é assim....”. Então, a gente aprendeu muito com isso e o
cinema ajudou muito a gente, desinibiu a gente, a gente não se omite mais das coisas
que não estão certas. A gente bate duro. (VIRGILIO MIRANDA, 2007)
A percepção que o entrevistado tem a respeito das diferenças entre as duas
experiências de audiovisual é um tanto quanto ambígua. Ao mesmo tempo em que não
pretende que existam diferenças, pois ambas as experiências se baseiam no domínio da
linguagem audiovisual, demonstra perceber que a diferença reside justamente em que o
Cinema Circulante foi realizado com o controle político por parte da comunidade. Perguntei
explicitamente: Gostaria que vo tentasse explicar melhor, a diferença, se é que tem
110
diferença entre o Se Liga Nessa e o Cinema Circulante. Dessas duas experiências, o que é que
você vê de diferente?
Eu não diria que é diferente. São duas coisas, porque o Se Liga Nessa era a mesma,
era áudio e vídeo como o Cinema Circulante. A diferença é a equipe. Ou seja, o Se
Liga Nessa, ele era uma equipe contratada pela empresa, então, a gente tinha que
fazer as coisas, eles eram obrigados a manipular a gente a fazer as coisas do jeito
que a empresa queria, porque se não, se eles também, se eles não fizessem... Eles
têm um contrato, eles fizeram um contrato com uma empresa, se eles fizerem
diferente, eles desviarem o contrato, eles pagam multa... Eles são uma equipe de
uma empresa séria que eles têm lá, então eles têm que fazer, o que eles fizeram,
acordaram no contrato. Então manipulavam a gente. Às vezes assim, mesmo fora da
oficina, eles falavam “Oh, eu sinto pena de vocês, nós da equipe vamos tentar ajudar
vocês a montar aí uma ONG, uma coisa assim pra vocês depois, vocês fazerem do
jeito de vocês, pra vocês se defenderem porque, a gente....” assim, o coração sente
eles dizendo, “o coração da gente sente, dói por ver o que vocês estão passando,
porque a gente não sabia, porque quando a gente foi, se...fizemos o contrato com
uma empresa pra fazer esse trabalho aqui, a gente só conhecia a empresa, a gente
não conhecia vocês, a comunidade, como que era a realidade de vocês”.
(VIRGILIO MIRANDA, 2007)
Como já disse anteriormente, o contato que foi estabelecido entre os membros da
equipe Se Liga Nessa e as comunidades, em um projeto que se estendeu por vários meses, foi
responsável por criar laços afetivos entre os dois grupos e em certa medida comprometer a
disposição da equipe em simplesmente realizar um trabalho para o qual fora contratada, ou
seja, dar um treinamento técnico na produção de audiovisual e envolver a comunidade na
confecção de materiais publicitários e propagandísticos que mais tarde seriam usados pela
empresa e contra a própria comunidade.
Observe-se como Virgílio reafirma em sua fala: “o Cinema Circulante é a mesma
coisa”. Nesse instante ele não está dizendo que o Cinema Circulante tem o mesmo caráter
político do Se Liga Nessa, o que pode ser percebido facilmente ao longo do seu raciocínio. Na
verdade ele está enfatizando que a diferença não está nos aspectos técnicos das experiências,
mas sim no uso que cada uma propõe para a linguagem audiovisual.
O Cinema Circulante a mesma coisa. Com uma diferença, não era contratado por
uma empresa. É uma equipe, nada a ver uma coisa com outra, porque chegou, e a
gente abraçou ela... Fizemos a oficina, eles mesmos mandaram o projeto em nome
do MAB, veio gente e executou o projeto, e eles estão tentando ajudar a gente a
montar o nosso equipamento e melhorar. Eles estão dando a maior força pra gente, e
a gente faz as coisas que a gente quer fazer, porque não tem nada a ver com a
empresa. A gente faz uma coisa que a gente quer, do jeito que quer e... e apresenta
do jeito que quer né. Quer dizer, não sei se é bem do jeito que quer, mas não é coisa
que a empresa quer. Pelo menos a vantagem é essa assim. A diferença é só o jeito
que chegou as duas, os dois vídeos pra gente, o Se Liga Nessa e o Cinema
Circulante, eles chegaram de jeito diferente, mas não tem muita diferença uma da
111
outra, porque as duas ajudaram muito na felicidade do povo assim, digamos.
(VIRGILIO MIRANDA, 2007)
A experiência do Cinema Circulante confere uma nova dimensão, muito mais ampla e
profunda, pois junto com o controle dos elementos técnicos está o controle político da
linguagem, ou no caso o controle político da produção e veiculação da própria imagem.
Porque... você sabe, aquele negócio lá, que os movimentos sociais são tratados como
baderneiros, né? Então, só que o povo de fora, eles não sabem o quê que acontece
ali. Por exemplo, a gente acampado lá na usina de Manso, o povo ta sempre
passando lá não sabe o porquê que a gente ta ali. Ficou uma coisa, que sempre que
as pessoas passavam ali perguntavam: “ah, mas eles não deram outra terra? Porque
que vocês estão aqui?”. Ai com... o Cinema Circulante, foi uma forma da gente
mostrar o porque que a gente tava ali. Que não era aquilo que ele pregava. Porque,
com aquele filme que eles fizeram antes, eles tinham como mostrar “ah, o povo ta
bem, o povo que ta... o povo que ta falando...”, mas não sabia que antes de fazer
aquela gravação eles iam lá e falavam: “oh, você tem que dizer isso... pra gente
mostrar isso...”. E com... o cinema a gente pode mostrar um pouquinho daquilo que
a gente tinha passado antes, e como que a gente tava vivendo atualmente... (ANA
MIRANDA, 2007)
Nesse sentido, a experiência do Cinema Circulante pode ser considerada como um
momento ímpar, não só de tomada de consciência, mas principalmente de alargamento da
capacidade de interpretar a realidade e consequentemente de influenciá-la. Aqui a conquista
da linguagem audiovisual, em toda a sua plenitude, é o fator determinante da capacidade de
ressignificar o mundo; é a recuperação em um outro patamar da linguagem simbólica do
grupo, que havia sido arrancada no momento da desocupação do terreno.
Com certeza mudou sim. Porque, por mais que a gente lutava ali, mas a gente não
tinha como passar pro povo aquilo que a gente tava sentindo. E então, ele deu voz à
gente, com a oficina. Porque, aí a gente sabia que num... que a gente tinha como
reverter a situação... por mais que o povo tava ali desanimado, achando que... por
mais que a gente conseguisse aquilo que era nosso de volta, mas a gente nunca... ia
poder dizer pro povo, porque que a gente conseguiu, ia falar “ah, simplesmente não
quis um lugar, não quis que ficasse do jeito da empresa e consegui um outro”. E não
é isso. Na verdade, é uma perda que... não dá pra dizer. E com a oficina a gente... eu
fiquei muito feliz, que é uma forma da gente mostrar pro povo o que quê a gente
passou, e saber que eles não conseguiram calar nossa boca. Nunca... [curta pausa]
Foi uma experiência fantástica. (ANA MIRANDA, 2007)
Carlita também participou das oficinas do Cinema Circulante e a sua conclusão de que
através dessa experiência foi possível resgatar um pouco da cultura perdida quando da
mudança de Manso confere com a idéia inicial que tive e que estamos defendendo ao longo
desta Dissertação. De que a conquista da linguagem audiovisual por parte dos integrantes do
112
movimento tornou possível aos mesmos um reencontro com o universo simbólico outrora
perdido.
Ao contrário de outros integrantes da comunidade que não aderiram ao movimento e
se mudaram para centros urbanos, aqueles que se tornaram militantes do MAB e
posteriormente participaram do Cinema Circulante não só puderam adquirir uma consciência
política e social, como recuperaram sua identidade cultural:
O cinema surgiu assim... apareceu esse grupo de Cinema Circulante e falou assim
“ah, trabalhamos com Cinema Circulante, trabalho com áudio-visual”, e... o Sandro
falou que tinha que convidar uns jovens pra participar né, um grupo de jovens que
seria pelo menos uns treze jovens. Ai eles passaram na escola um dia, esse grupo e
falou assim, que pra gente juntar um grupo lá de jovens pra gente participar. Ai a
gente conseguiu lá na escola os treze, era treze participantes, e fomos participar
desse... eu nem sabia como que era né. Sempre tinha vontade assim de, trabalhar
com essas coisas, com áudio-visual, cinema assim, tinha até interesse né. Só que não
tinha tido a oportunidade né. E ai eu tive. Foi uma experiência muito boa, a gente
participou, fizemos a oficina, no final a gente fez um trabalho né, nesse final da
oficina. E boas experiências que... ali a gente conseguiu mostrar um pouquinho,
assim... por causa que... tantos anos de história pra gente contar assim, em alguns
minutinhos, não tem como né. Mas a gente pode vivenciar um pouquinho disso. E a
gente pode ver nesse trabalho, a gente ver, ver com olhos mesmo assim, tudo que
tava... escuro ainda pra gente, que a gente viveu, uma coisa que aconteceu com a
gente, e que a gente não consegue enxergar. Então nisso, a gente pode mostrar um
pouquinho de como que foi o ... as perdas que a gente teve né. Como que a gente
deveria ter agido de uma forma e não conseguimos né. Então a partir daí, a gente
consegue.... melhorar também as nossas... o nosso trabalho daí pra frente né. Vê ...
melhorar a luta, falar assim “assim que a gente deve lutar, dessa forma. Pelo o quê?
Como que a gente vai lutar?, assim, assim...” Porque a gente perdeu tanta coisa, que
a gente nem sabia que tava perdendo, só depois que perdeu é que a gente foi ver né.
Então a partir do Cinema Circulante, essa experiência foi fantástica né. A gente pode
resgatar um pouquinho assim da nossa cultura que ficou perdida né, e que a gente
conseguiu através do Cinema Circulante. (CARLITA MIRANDA, 2007)
O MAB ajudou a comunidade a adquirir uma consciência política. E a experiência do
vídeo, ajudou nesse processo de tomada de consciência da realidade, permitiu ver o mundo de
outra forma ou a mesma coisa. Antes e depois da oficina. Essas experiências mudam a noção
da realidade:
Sim, muda porque... assim, eu não tinha uma clareza assim de... das coisas. Tipo
assim, de que a gente perdeu a nossa cultura né, por exemplo. E através disso a
gente vê como que foi feito desonestamente essa mudança né. Então eu consigo ver
de uma outra forma. Eu vejo que... hoje eu sou uma outra pessoa né. Então eu
consigo ver a realidade de uma outra forma, porque, eu vivi essa realidade, vivo essa
realidade, então através do cinema que eu consegui enxergar isso né. Então isso me
faz ser uma outra pessoa diferente. Ver e quando eu vejo situações com outras
pessoas, que acontecem não dessa forma mas, parecida né, eu consigo sentir aquela
emoção dentro de mim, porque eu vivi isso, então consigo enxergar a realidade
como ela é. Não sou só uma pessoa vivendo, só constatando como ela acontece, mas
eu sou parte dessas coisas que estão acontecendo entendeu? Sou parte dessa
113
realidade, então eu consigo enxergar de uma outra forma diferente. (CARLITA
MIRANDA, 2007)
A conquista da linguagem audiovisual como ponto de partida para uma outra leitura de
mundo, para uma mudança radical no paradigma de interpretação da realidade:
Ah, mudou com certeza. Mesmo depois da gente ter ido, participado das
mobilizações, de vários encontros assim pelo MAB assim... mas só que a gente
ainda não conseguia, não tinha a oportunidade de contar, de mostrar né, de falar pros
outros vê. Porque a gente, outras pessoas assim, tem vários comentários que a gente
ouve na rua mesmo assim, a gente ouve comentários assim: “ah, o pessoal do MAB
é isso.” Mas na verdade eles não são porque, muitos comentam. Então através do
cinema, a gente consegue enxergar de uma outra forma, que a gente pode transmitir
o que a gente vive, porque só a gente vivendo pra te dizer o que é que a gente sente
né. A gravidade das coisas né. Então, através do cinema a gente consegue viver,
essas experiências de uma outra forma né. A vida da gente como mudou e como
pode ser mudada ainda né. Então, muda bastante a vida da gente. (CARLITA
MIRANDA, 2007)
Por exemplo, ao assistir ao Jornal Nacional. ou ver na televisão uma notícia sobre o
MST, o MAB, os militantes que fizeram as oficinas do Cinema Circulante têm uma visão
diferenciada da média da população. A oficina tornou possível que se veja a informação
produzida não como consumidor, mas também como produtor de informação:
Sim. Porque quando antes a gente falava assim, cinema assim, eu imaginava uma
coisa só... uma ficção pra mim que era né. Então a partir desse... do Cinema
Circulante, eu consigo enxergar de uma outra forma, ver a realidade, avaliara a
realidade como ela é né. Então, não é uma coisa que já fica escura pra mim, já fica
bem claro. Eu já consigo assim, sentir ela junto, como se fosse, tivesse vivendo a
minha realidade.(...) Porque através deste cinema a gente consegue ver, mostrar a
nossa historia né. A gente ta trabalhando sempre em cima disso, essa história dos
atingidos, como que foi a mudança, como que era a vida desse povo antes, como que
foi depois, como que está sendo... Então essa união entre o MAB e o Cinema
Circulante, eu acho que... ajuda sim bastante. (CARLITA MIRANDA, 2007)
O genocídio cultural a que estou constantemente me referindo ao longo do texto pode
ser mais bem explicitado na fala da entrevistada no momento em que a mesma alude ao
impacto da destruição do modo de vida na experiência pessoal de um membro da
comunidade. Pelo que se infere, Pedro pode ter sido uma daquelas pessoas que mais resistiu
ao processo de desocupação, sendo resistência aqui não no sentido lato do termo, mas uma
das pessoas que nunca pode aceitar o fato de ser retirado do local onde viveu toda a sua vida.
A tal “tristeza no olhar” talvez só possa ser comparada aos relatos dos negros
seqüestrados na África e trazidos para o Brasil na condição de escravos e que terminavam
114
morrendo de “banzo”, ou de tristeza mesmo: um misto de revolta e de impotência de quem foi
violentamente arrancado dos seus referenciais de vida e que não encontrou outras formas de
se recompor, não tanto economicamente, mas principalmente incapaz de se adaptar às novas
condições de vida. Por outro lado, a experiência do Cinema Circulante parece ter conferido à
Ana a capacidade de capturar essa tristeza no olhar do outro, que na realidade é também a
própria tristeza, já que o sentimento captado pelo olhar da linguagem audiovisual também é
um sentimento pessoal: a experiência do outro é a própria experiência e por isso a importância
de se participar de uma oficina onde além do controle dos mecanismos técnicos, se possui
também o controle político da produção.
Foi positiva. O movimento também né? Porque no momento em que você vai lá pra
rua, com aquelas faixas, com aqueles cartazes dizendo que... na verdade o povo nem
para pra ver ali, e fala: “ah, é um bando de desocupado”. E você faz um filme, pra
pessoa assistir aquele filme ali. Parar pra assistir é muito mais fácil da gente
transmitir um pouquinho daquilo que a gente vive. Acho que a partir do cinema
assim, uma das coisas que mais... me incentiva a lutar, é o Seu Pedro, um dos caras
que a gente trabalhou com ele assim, que... ele sempre falava assim, que... a usina
tinha destruído a vida dele tal, mas no dia que a gente foi fazer essa gravação com
ele, pra fazer esse vídeo... a tristeza que tem no olhar dele assim, nossa! È o que
mais te dá indignação pra você lutar contra aquilo que a gente vê que acabou com a
vida dele. Ele era uma pessoa tão feliz antes da construção da barragem, aí a gente
olha no olho dele, assim... é muita tristeza, não tem? Na gravação que a gente faz
com ele, ele ainda menciona que... acabou a vida dele a partir da construção da
barragem. Então, é uma coisa que... sei lá... eu fico... sempre assim quando bate
aquele desânimo, porque bate um desânimo, você desiste de lutar, você acha que não
vai conseguir, e tudo. Mas eu lembro das frases que ele me dizia ali, nossa! Não dá
pra não lutar. (ANA MIRANDA, 2007)
O controle político desses meios de comunicação parece engendrar uma nova postura
diante da realidade. Aqui, a experiência da linguagem audiovisual conduz a uma outra leitura
do mundo e à capacidade de, por exemplo, ver um filme ou um programa televisivo com um
olhar mais crítico. Muda o ângulo de visão:
Com certeza muda. Porque você assiste um filme ali, você nem sabe o quê que há
por traz. Eu mesmo achava que... era um trabalho muito simples, e na verdade não é
um trabalho muito simples. Há todo um processo ali. Várias pessoas estão
envolvidas naquilo. E com certeza muda a nossa visão. A gente... é uma coisa
bacana, porque a gente vê que há todo um trabalho por traz daquilo. Porque pra você
ver um trabalho que você não sabia qual que é o processo antes, qualquer falha você
critica e tal. Aí é uma outra visão... muda com certeza. Porque, sabe que, ta contando
alguma história ali, mas há tantas outras coisas por traz disso, que são partes da
história, porque não dá pra contar uma história toda num filme...(...) É só uma
versão da história... (ANA MIRANDA, 2007)
Quando se adquire uma linguagem nova, adquire-se tamm a capacidade de ver o
mundo de uma outra forma, de enxergar as coisas, muda a maneira de como você se relaciona
115
com as pessoas com o mundo inteiro. Esta é sem dúvida a parte mais rica da experiência. Foi
a partir da experiência na oficina do Cinema Circulante e com a conquista da linguagem
audiovisual que começou a surgir no interior da comunidade uma demanda pela escrita dessa
história:
Na verdade, a gente queria...porque... no primeiro filme da gente, a gente só mostrou
aquilo que alterou nas festas e tal. Ai a gente queria mostrar nesse nosso segundo
filme, aquilo que... que o povo enfrentou aqui. Dificuldade pra construir o
movimento. As dificuldades que foram enfrentadas, as lutas que foram travadas
durante esses cinco anos, e... as mudanças mesmo que houve. Porque... a partir
desses seis anos que a gente viveu nesse outro assentamento, num... por mais que a
gente achava que era ali que a gente ia viver o resto do tempo, mas nunca ficou
parado. O povo sempre ia fazer em Cuiabá, ou na usina? e tal. É.... destruiu várias
famílias. Minha família mesmo hoje assim, eu vejo assim, ta todo mundo separado.
Não tem um local fixo. Ai a gente queria mostrar pro povo como que a usina
acabou com a vida de várias pessoas, várias famílias, tal. E, é isso ai que a gente
queria mostrar. Como que surgiram as lideranças do movimento, as dificuldades que
eles enfrentaram. E também não foi só dificuldade durante seis anos, a gente
conseguiu várias conquistas. Também queria mostrar pra eles. Que a gente tinha
conseguido também, não era só descer o pau na empresa, mas mostrar aquilo que o
movimento tinha conseguido. (ANA MIRANDA, 2007)
A entrevistada revela que inicialmente compartilhava com a idéia de que sair do local
onde morava seria uma coisa positiva. Entretanto, essa idéia parece mais originária nos seus
anseios adolescentes do que decorrentes da difusão, no interior do grupo, da ideologia de
progresso.
De qualquer forma, é a partir da militância no MAB e posteriormente da participação
nas oficinas do Cinema Circulante que ela passa a ter uma visão mais crítica do processo no
qual esteve inserida. A própria continuidade da militância no MAB parece estar vinculada às
lutas do passado recente e à percepção de que o sofrimento pelo qual passou pode ou poderá
ser infligido a outras pessoas em outros locais nos quais novas barragens poderão surgir.
Acho que quando tava lá, a gente queria conhecer um outro local diferente. Achava
que... mudar... aquele que a gente tinha... aqueles costumes ali, era tudo que a gente
queria. Não sei se é por causa as vezes do tempo que vai passando, não por causa...
Mais eu acredito que é mais por causa das experiências que você vai vivenciando
mesmo que muda isso. Hoje não. Como eu queria voltar! Voltar a morar lá. E
quando eu tava lá eu queria sair, mas hoje que eu não to, eu... gostaria de estar lá de
volta. Aquela vidinha simples mesmo de sítio, sabe? Mas que era muito bom. Que
hoje tem um... uma outra visão completamente que... mesmo que a gente ta ali,
existe tantas coisas que a gente tem que lutar pra melhorar, não só pra gente mas
pro... pro conjunto, né? Às vezes a gente vai individualmente assim... hoje não. Hoje
a gente vê que... tem que construir alguma alternativa pra aquele povo. Ainda que
meus pais voltassem pra morar lá, eu queria, mas eu queria continuar trabalhando
com o povo, não só aqui em Manso assim, mais em outras regiões também que a
gente... vê que... tantas pessoas por ai que vão passar pelas mesmas coisas que a
116
gente passou, se a gente não lutar. Tantas barragens que estão sendo construídas, que
se a gente não for lá e conscientizar o povo antes... talvez a gente consiga depois,
mais vai ser igual... o nosso caso de Manso, que o movimento só chegou depois e...
não teve como impedir. Aí a gente... deseja expandir o movimento pras outras
regiões para que... outras pessoas não passem pelo o que a gente passou. A gente
sabe que... não é um... problema só... só nosso aqui em Manso que ta vivenciando,
mais outras pessoas estão vivendo isso. E vão continuar a passar por isso se a gente
não... conseguir conscientizar, né? (ANA MIRANDA, 2007)
Um dos questionamentos mais fortes do MAB é com relação ao modelo de geração de
energia proposto e desenvolvido pelos sucessivos governos desde a década de 1970; não
apenas pelo fato desse modelo desalojar uma grande quantidade de pessoas, mas
principalmente por ser um modelo concentrador de energia e, portanto concentrador de poder.
Esse questionamento ganha novos contornos quando os militantes do movimento se
deparam com a grande quantidade de pessoas, inclusive muitos dos atingidos, que não
possuem condições financeiras de ter acesso à energia elétrica.
Aliás, a denúncia do alto preço da energia elétrica é uma forma encontrada pelo MAB
para demonstrar que todos de uma forma ou de outra são atingidos pelas barragens, ou seja, o
movimento passa a contar com uma base social muito mais ampla ou mesmo passa a contar
com a simpatia da população urbana.
Outro aspecto muito importante dessa ampliação é que ao pugnar contra o chamado
hidronegócio, ou seja, a apropriação por parte dos grandes grupos financeiros e comerciais
mundiais dos mananciais de água do Brasil e de outros países, o MAB denuncia uma questão
chave para o povo brasileiro e que infelizmente não recebe um tratamento adequado por parte
de movimentos sociais, partidos políticos e instituições governamentais.
É. Isso é um absurdo né? Porque a gente saiu dali.... deixou o nosso local de origem,
acelerado, porque tinha que construir energia elétrica. E agora... que a energia ta
produzindo energia, você tem que pagar um preço absurdo por ela. Sendo que ... o
nosso local ali foi... alagado pra isso. E quantas outras pessoas que saíram dali da
região de Manso, que ... não têm energia. Então a gente vê, pra que isso? Pra que
destruir a vida do ser humano assim? Na verdade, não há nem necessidade de
energia. Na verdade é dinheiro mesmo. È... um absurdo.
A gente travar essas lutas.
E... é isso, quando a gente toca na questão do preço da energia. È uma das lutas que
o movimento ta travando. Não só contra a construção da barragem, porque não basta
a gente tentar impedir a construção da barragem, e continuar pagando esse preço de
energia. Porquê é uma forma da gente.... chamar o povo... da cidade pra ... pra nossa
luta, vê que não é um problema apenas da gente. Quando o MST vai lá lutar por
reforma agrária... eles tão... a conquista da terra é uma coisa que... mais pras pessoas
que ta... que vive do sítio. E quando a gente vai lá, mostrar que a gente pode pagar
menos pela energia elétrica, é uma questão que envolve a maioria do povo brasileiro.
117
Quando a gente vai mostrar que... a água... é uma questão que... não é só nosso do
movimento, mas de todos em si. Porque na verdade, hoje não é nem tanto o agro-
negócio, a questão agora é o hidro-negócio, né? È a questão da água. A gente quer
mostrar pro povo que... não é uma coisa que vai prejudicar só nós do Movimento
dos Atingidos por Barragens, mas também... o povo brasileiro vai sofrer com isso se
não se conscientizar a tempo. Porque, assim, a gente sabe que... a demanda pela
água pelos próximos anos vai ser muita né? Então, eles querem isso agora. Porque,
já pensou, principalmente no Brasil, um pais tão rico de água doce como o Brasil.
Então ter a água no futuro, é isso que... vai dar o dinheiro, né? Porque, por exemplo,
a barragem... enquanto estatal não, mais depois que é privatizado... aí se é dele, eles
podem cercar e impedir que as pessoas que estão ali, próximo use... tenha acesso
àquela água dali. Então, talvez seja um... futuramente ainda vai ser problema mais
do que o MST na questão da terra porque, se você tiver uma casa ali, e mesmo que
você... só aquele local ali onde você tem a sua casa, não tem mais terra, talvez você
consiga sobreviver, e sem a água? Será que a gente vai conseguir? É muito
importante também a terra. Não to questionando que não seja. É muito mais a água,
ainda vai ser um problema mais sério, se a gente não ir pra lutar junto. Porque no
futuro... quem tiver uma usina como a de Manso, quem ... tiver... (ANA
MIRANDA, 2007)
É evidente que o MAB, assim como o MST, não pode ser devidamente compreendido
dentro da esquemática visão na qual os movimentos sociais são apenas “manifestações
subjetivas” da luta de classes, como me referi anteriormente. Parece claro que o Movimento
dos Atingidos por Barragens tem uma visão estratégica que ultrapassa o questionamento do
modelo de produção de energia. A questão central, embora não possa ser imediatamente vista
a olho nu, é o questionamento do modelo econômico e social brasileiro que começa com a
militância e se desenvolve junto com ela:
Eu tomei consciência a partir do momento em que eu comecei a participar dos
cursos de formação, né? Porque... na verdade, eu não tinha esse... essa visão ampla
daquilo que o povo sofria. E ai a partir do momento que você... começa a fazer o
curso, você... começa a se questionar a si próprio, né? Costuma falar: ”ah, o preço da
energia ta um absurdo”. Ta um absurdo, porque... “houve um apagão lá”, “é, ta
faltando energia e a gente tem que pagar caro, porque tem pouco, né?” Aí depois
você vai lá, faz os seus estudos e você percebe que não, que tem muito, é o
suficiente pra... não haver a necessidade de se construir mais. Então a gente começa
a se questionar e ver que... não dá pra ficar parado. Uma das... das músicas do
movimento que a gente até pergunta, fala assim: “que o preço da energia virou mais
um pesadelo”. Não só pra nós atingido, mas pro povo brasileiro também, né? Então
a gente começa a se questionar. (ANA MIRANDA, 2007)
A essa capacidade de questionar o modelo em curso e talvez até pela participação em
uma oficina que possibilitou a conquista da linguagem audiovisual; a militância acrescentou
também uma dimensão importante para a vida: a grandeza da alteridade. A entrevistada
demonstra que o compromisso com a felicidade individual não está dissociado da realização
da felicidade coletiva. Supera-se o individualismo, tão presente na sociedade brasileira:
118
Meu projeto de vida... Ah, eu pretendo... estudar, fazer meus estudos ter a minha
vida mas, não... ter a minha vida lá individual e esquecer da luta, esquecer do povo.
Não. Mesmo construindo minha vida assim, mas eu quero, continuar lutando.
Passando informação pro povo, conscientizando e... fazer com que... eles se
questionem, as pessoas se questionem. Não ficar parado, falando: “ah, é assim
porquê Deus quer”. Normalmente é uma das desculpas que a gente arruma, né? “ah,
Deus quis que fosse assim.”. Na verdade, a gente tem que se começar a questionar,
que não é assim. Que a gente pode mudar as coisas. Sair desse senso comum, se o
povo fala que: “é assim porque tem que ser assim”. A gente “Ah, se é? Eu vou
aceitar?”. Não! Não tem que aceitar, a gente tem que começar a se questionar. O
meu sonho é fazer um filme bem bacana sobre a história, a trajetória do movimento,
aqui. Primeiro aqui em Manso, aí depois quem sabe nas outras regiões também, né?
(ANA MIRANDA, 2007)
Outro aspecto interessante sobre o processo de genocídio cultural pode ser melhor
explicitado na fala da militante, quando ela se reporta às atividades culturais no interior da
comunidade no período anterior à construção da barragem e que se tornaram impossíveis de
serem praticadas. O processo de aculturação a que foi submetida a comunidade pode ser
responsável não só pela perda dos referenciais culturais, mais principalmente pela aquisição
de novos hábitos mais ligados à sociedade de consumo que às tradições:
Então. Hoje eles reclamam que não tem isso, porque, antes lá quando a gente se
reunia assim pra fazer as festas, era normalmente, era naquela violinha, a viola de
cocho, que eles tocavam cururu, tinha siriri, tudo mais assim. E hoje em dia não é
isso, na maioria das vezes é som mecânico, que coloca lá aquelas... uma musica que
não tem nada a ver com a cultura da gente. Totalmente diferente daquilo que viviam
antes. As pessoas acho que se respeitavam mais. Não sei se... os meios de
comunicação que faz isso, mas... com certeza é, que pregam o individualismo... e
antes não, antes ... um povo que vivia como irmãos, e que hoje nem liga pro... pro
outro. A maioria das vezes a televisão... só que o que pega mais, é que povo não tem
uma consciência política... disso. Mas só que... alterou completamente. Talvez, é
porquê a gente convive com pessoas que viviam outro ritmo. Não era aquela cultura
que era nossa, e que agora a gente ta convivendo com isso. Ta diferente agora. Não
dá muito pra passar assim dizendo mais... muda, altera... (ANA MIRANDA, 2007)
Esse processo de perda dos referenciais culturais não foi menos doloroso para aqueles
atingidos que de imediato aceitaram o acordo proposto por Furnas e se mudaram para a
cidade. De posse da indenização compraram casa na cidade, mas não conseguiram se adaptar
ao novo padrão de vida. A entrevistada alude a seguir sua idéia de fazer um novo
documentário que retrate a vida dessas pessoas, chamadas auto-relocados:
É porquê tem pessoas que... a gente... contou de algumas pessoas que sofreram, mas
teve tantas pessoas que sofreram. Uma das que sofreram, foi aqueles que foram pra
Cuiabá, quando viu que a barragem tava sendo construída, e... já saíram antes. Mas
sofreu tanto quanto aqueles que permaneceram ali depois. Aí a gente queria...
mostrar aquilo que aqueles que saíram antes sofreram, aquilo que os que
permaneceram lá também, e... mostrar também o que eles passaram. A gente não
tem muita notícia, porque a gente chama eles de auto-relocados, que foram aqueles
119
que Furnas deram as casas pra eles. Pagou oitenta por cento do valor da indenização
lá., e compraram casas na cidade. A maioria deles estão em São José do Rio Claro.
Aqui em Chapada tem acho que algumas... acho que tem um. Que eu conheço tem
um, uma pessoa. Então eles foram par cidade. E ali... acho que essas pessoas até
sofreram mais do que aqueles que ganharam lá. Porque, a pessoa trabalha de
agricultura, aí chega na cidade não tem nenhuma formação, para começar uma vida
ali, então a dificuldade é imensa pra essas pessoas. Aí a gente queria... saber o que
eles estão passando, e mostrar pra eles como que nós estamos também. Acho que é
isso que a gente queria mostrar. (ANA MIRANDA, 2007)
Embora não tenha elementos para uma conclusão definitiva, há evidências de que o
processo de formação política e de visão de mundo ocorreu de forma diferenciada para
integrantes da comunidade, que na época da desocupação de Manso fizeram opções também
diferenciadas.
Os chamados auto-relocados, que receberam as indenizações de Furnas e se dirigiram
para as periferias de cidades como Cuiabá, Campo Verde e Chapada dos Guimarães
buscaram, sem sucesso, uma integração na vida urbana, mas como não possuíam nenhum dos
elementos – formação cultural, conhecimentos técnicos, etc – para sobreviverem numa
sociedade competitiva, acabaram se integrando de forma subordinada e o seu destino foi o
mesmo da maioria das famílias que a partir da década de 1960 compuseram o quadro do
êxodo rural.
Embora somente uma pesquisa sobre a trajetória de vida dos auto-relocados possa
indicar se essas evidências correspondem à verdade, pelos depoimentos colhidos de outros
integrantes da comunidade e que mantiveram contato com essas pessoas depois da saída de
Manso, o destino daqueles foi justamente a periferia das cidades. Uma forte evidência de que
apontamos para a direção certa é a reportagem especial publicada em 30 de novembro de
2005.
Nela, o jornalista Rodrigo Vargas entrevista duas pessoas que saíram da região de
Manso e foram morar em Chapada dos Guimarães. À época daquela entrevista, uma das
pessoas, Dona Santinha, dividia uma casa na periferia com mais sete pessoas. Ela foi uma das
que, ao invés de aceitar um lote no primeiro assentamento determinado por Furnas, optou pela
compensação financeira e com ela adquiriu uma casa no Bairro São Sebastião, na periferia da
cidade:
120
Eu nasci, cresci e criei meus nove filhos na beira daquele rio. Tinha pomar, criação e
muito peixe. A gente não tinha de comprar nada, só um café e açúcar de vez em
quando. Hoje, aqui na cidade, até água nós temos de pagar”. Com a energia da
casa cortada, sem condição de trabalhar, ela diz que hoje depende da ajuda de custo
concedida por Furnas (R$ 230) para sobreviver. “Se não fosse por esse dinheiro, a
gente já teria morrido de fome há muito tempo. (DONA SANTINHA apud
VARGAS)
Sobre o passado que ficou submerso, ela diz lembrar das festas de santo promovidas
por seu irmão: “Ele era devoto de São Francisco. As festas juntavam um monte de gente da
beira do rio. Hoje está todo mundo espalhado, cada um foi para o seu canto. Acabou tudo”.
O outro exemplo é de uma pessoa que não foi reconhecida como atingida por Furnas e
que, sendo ignorado pelo programa, passou a viver como mendigo na rodoviária da cidade de
Chapada dos Guimarães. Júlio César Kapczec, tinha 47 anos naquela época e antes que as
terras fossem submersas pelo lago de Manso ele praticava a garimpagem nos rios da região.
De acordo com Rodrigo Vargas, “seis anos depois, é numa calçada da rodoviária de
Chapada dos Guimarães que o ex-ribeirinho sua vida perder o rumo. A reportagem do
Diário o encontrou dormindo no chão, embriagado, tendo a única mochila como travesseiro”.
“Tenho família em Londrina (PR). Tenho vontade de voltar para lá, mas, nesta
situação, eu não quero. Não volto não”, resmungou Kapczec, que recebe a ajuda de
custo fornecida por Furnas, mas não foi beneficiado pelo programa de
reassentamento. Tentei de tudo, mas não consigo arrumar um jeito. Desisti.
(KAPCZEC apud VARGAS)
Outra parcela da comunidade, aquela que se organizou em torno do MAB, embora não
tivesse um sucesso imediato, ou melhor, embora a situação aparentemente não se resolvesse
de imediato, como no caso dos auto-relocados que receberam as indenizações, conseguiu
preservar um pouco da sua história de vida, dos contatos com familiares, vizinhos e
conhecidos e a partir do momento em que se tornaram militantes do movimento se colocaram
em condições mais favoráveis para resistir ao processo de desenraizamento cultural e perda
dos referenciais simbólicos.
Mas é verdade. E, quando a gente ta sozinho, quando a gente desanima, a gente não
consegue encontrar força. Ai quando a gente tem esse grupo de pessoas, a gente vê.
Quando a gente acha que o mundo ta perdido, ai o outro mostra pra você que não,
que só ta perdido se você ficar de braços cruzados e não fazer nada. (ANA
MIRANDA, 2007)
121
Além disso, parece ser evidente também que a integração ao movimento, a
participação nos seus cursos e palestras, o desenvolvimento de atividades coletivas e a própria
necessidade do movimento em criar e cuidar dos seus quadros tornou possível a integrantes
daquela comunidade outra perspectiva existencial, uma outra visão de mundo e a conquista de
linguagens como a política e a audiovisual que os capacita a desenvolver um projeto
diferenciado e alternativo ao defendido e implementado pelos governos e grandes corporações
internacionais.
E mais: o questionamento do modelo alcança a conquista de outros valores éticos e
sociais que nos remetem à utopia de um novo ser humano, cujas concepções estão centradas
no ser e não no ter:
Eu acho que só conscientizando as pessoas pra mudar essa história, porque, a gente
vê que... não tem nenhum respeito pela pessoa humana. Que as pessoas fazem tudo
pelo dinheiro. A gente costuma dizer que a ganância é um saco sem fundo, que, a
gente vê que o desrespeito que eles têm. Não importa que aquele povo que ta ali vai
sofrer, e que vai acabar com a vida deles dali. O que importa pra eles é o dinheiro é
o lucro. È uma coisa que a gente tenta mudar. Valorizar mais o ser humano,
valorizar o sentimento das pessoas. Eu acho que é um mundo que eu desejo no
futuro. Talvez só as pessoas se conscientizando pra ver que... sei lá, o ser humano ta
acima de qualquer coisa, do dinheiro, do progresso, tudo. Mas que não há esse
respeito, da parte deles. A gente vê desde a escravidão assim, nossa até que ponto o
homem foi capaz, o ser humano foi capaz de chegar, né? Escravizar o outro ser
humano... (ANA MIRANDA, 2007)
A discussão em torno do conceito de atingido por barragem que principiamos em
outro capítulo e que foi fundamental durante o processo de construção da usina parece fazer
parte de um debate mais amplo e que nos remete à discussão da natureza da própria Ciência.
Da mesma forma que Furnas se utilizou de um conceito restrito de atingido para desqualificar
a maior parte dos que realmente foram atingidos e indenizar apenas uma parcela da
comunidade, da mesma forma que o relatório de impacto ambiental encomendado por Furnas
autorizou a construção da barragem, embora relatórios outros, indicassem o contrário, a
discussão sobre a natureza, o próprio conceito de Ciência pode ser usado como arma que
desqualifica este ou aquele argumento, no interesse de um determinado grupo social e em
detrimento de outro.
Lembro particularmente de um momento durante uma das disciplinas do Mestrado,
oportunidade em que apresentei este projeto de pesquisa e houve um questionamento muito
forte no sentido de que talvez eu não estivesse fazendo ciência, devido ao nível de
122
envolvimento com a causa do MAB e dos atingidos. O relatório realizado por Furnas, assim
como a própria barragem é um exemplo de ciência que desconsidera o ser humano e, em
minha opinião, uma ciência que não seja humana, no sentido lato da palavra, não faz sentido,
pois não atuará no interesse da vida e dos seres humanos.
Para aqueles jovens que migram do campo para as cidades ou dos pequenos para os
grandes centros, as possibilidades de continuidade nos estudos ou de ascensão econômica e
social são igualmente limitadas, pois a disputa pelos melhores postos exige uma formação
científica e cultural que os mesmos não possuem, restando-lhes subempregos e o mercado
informal de trabalho, na melhor das hipóteses ou, na pior delas, a marginalidade, o vício, a
prostituição e a morte. É por isso que a participação no movimento e dentro dele em
atividades culturais é vista como fator de resilência ao desenraizamento cultural provocado
pela saída do ambiente original e enfrentamento do mundo.
Só que eu sou militante do MAB hoje, porque o Cinema, o Se Liga Nessa me abriu
um caminho que não tinha que ser... que eu não tinha que ficar lá no sitio, e casar, e
ter um monte de filho, e não pensar no que eu pudesse fazer. Porque esse é o destino
de quem fica lá no campo. Com doze anos, treze anos, as meninas já estão lá casadas
e tão lá com, vinte anos já tem três filhos né. Então eu já podia agora com vinte e
três, ter uma renca né. Então o cinema me ajudou a pensar, “não, que eu posso
fazer”. E a partir daí que se vê que a gente é capaz. Começa a se incomodar com as
coisas que não ta legal do teu lado. (LESSA, 2007)
De acordo com o pesquisador José Luis Ramos (2007), em física de materiais, o termo
resilência “é usado para definir a característica de um material que consegue retornar a sua
forma anterior após sofrer mudança na forma sob efeito da pressão. Exemplo, quando
caminhados sobre um carpete deixamos nossa marca, que desaparece após alguns minutos,
quando o carpete volta à forma original”:
Na área da psicologia a resilência é usada como a capacidade do indivíduo adaptar-
se de maneira positiva diante de situações adversas, mantendo seu desenvolvimento
normal e recuperando-se dos efeitos estressores. Ou seja, a forma como cada um lida
com situações como morte de uma pessoa querida, a separação, a traição de um
parceiro, um assalto, um seqüestro, um abuso sexual, uma perseguição racial, etc.
(RAMOS, 2007)
Embora seja prematuro e talvez até inconseqüente afirmar, parece claro que a
militância no MAB e a participação nas oficinas de produção audiovisual, principalmente as
do Cinema Circulante conferiram essa capacidade de rearticulação diante da situação adversa.
123
E como a gente não tem alternativa no campo e por isso tem acontecido muito o
êxodo rural... é muito isso também, a gente não tem lazer, não tem esporte, não tem
cultura... pra nós é muito limitado, que tem a televisão né, que vê, que tem a imagem
dela... É, então muito jovem tem que vir pra cidade, que foi o meu caso, e quando
vem pra cidade, encontra uma situação muito diferente. A gente vem com uma
utopia, um sonho de conseguir um trabalho, de conseguir estudar, mas é, de cada...
Vamos dizer da cada cem, oito consegue um trabalho e consegue estudar. Então
assim, a gente vem pra cá, tenta buscar um serviço, não encontra porque a gente
não tem experiência, não conhece nada, não tem nem estudo que é maioria do
campo não ta estudado. E aí não encontra trabalho. E aí pra ir pra escola... se tu
tem que pagar aluguel, ou tem que ir pra casa de parente, pagar aluguel, e ai têm
que comprar comida... se lá na nossa casa não, seu pai vai lá roça, arranca um pé
de mandioca, traz o arroz... tu tem ali o básico pra comer todo dia. Aqui não, aqui
você compra, ou você morre de fome. Então, muitos já vêm pra cá e... encontra uma
realidade diferente do que ele imaginava, e entra no... no campo da droga, da
prostituição, da violência. Então, os meios de comunicação e a cultura são uma
alternativa pra esse sistema. Que se tu tem ali, um grupo de pessoas fazendo um
teatro, por exemplo, ela não ta lá na rua, ela não ta fumando, não ta bebendo, não ta
prostituindo. (LESSA, 2007)
Quando se fala em desigualdades sociais no Brasil, quase que automaticamente
pensamos em concentração de renda, pobreza, miséria ou no imenso fosso que separa a
minoria rica da maioria empobrecida e explorada. Pouco ou muito pouco tem sido escrito ou
feito no sentido de denunciar as injustas estruturas de produção e consumo dos bens culturais
e informacionais que mantém inalteradas as relações sociais e as estruturas econômicas
vigentes.
Da mesma forma que para muitos a denúncia de genocídio cultural pode parecer
exagero, parece exagero também reivindicar, com o mesmo grau de prioridade que o acesso
aos bens materiais, o desfrute do patrimônio imaterial, dos bens simbólicos como os culturais,
como se os mesmos fossem um privilégio da elite e da elite intelectual e cultural e não um
bem tão necessário à vida como o alimento, a água e o ar. Para a entrevistada, a percepção dos
bens culturais como meios de primeira necessidade a um padrão humano de existência é
patente. Como parece ter sido também importante a realização das oficinas, não apenas para
aqueles que delas participaram como equipe técnica ou atores, mas para a totalidade da
comunidade que se viu em cada instante e cuja auto-estima foi elevada apenas com essa
experiência:
Até eu que fui ao cinema agora, tava com vinte anos né. Então, nós não temos esse
espaço nessa cultura que é colocada ai, até porque é limitada tamm, a gente sabe
que uma cultura de qualidade, coisa de qualidade é feita pra quem tem dinheiro, e a
gente não tem, a gente pega ai o lixo cultural que é colocado na rede Globo, e os
lambadões ai da vida. É, então assim, é interessante assim, que as pessoas se viam
lá, “gente, eu to passando no cinema!”, “isso é legal!” né. E a noite aquele telão
grande né, assim... E depois desse Se Liga Nessa... Depois que a gente fez essa
124
experiência, que depois que a gente passava, duas vezes por mês, uma vez era um
filme nosso, produzido por nós, e outra vez era um filme qualquer que a gente
locava. E a gente entrevistava as pessoas. No primeiro momento, a gente não
conseguiu entrevistar nenhum né, e no segundo a gente já conseguiu, e as pessoas já
conseguiam falar, e fazer parte daquele processo. E o Cinema Circulante também
trouxe isso, as pessoas conseguiam se ver, e a formação técnica que teve foi muito
boa, e ai, por exemplo o que eles fizeramda questão da cultura e das festas né. Eu
acho que é isso, além de trazer entretenimento, traz essa questão da auto-estima das
pessoas né, da ocupação do seu tempo... Então, é uma experiência muito
interessante. (LESSA, 2007)
Confesso que durante a entrevista atingi a clara percepção de estar o tempo inteiro
falando de alfabetização audiovisual. Porque acredito que a contemporaneidade, a pós-
modernidade impôs um novo conceito de alfabetização que não é só letramento. Hoje a
alfabetização precisa ser concebida como um conceito que inclui muito mais que a simples
capacidade de ler e escrever. É ou deve ser uma experiência relacionada com as modernas
tecnologias, com a capacidade de interagir com um mundo cada vez mais plural e com uma
sociedade cada vez mais integrada e perpassada pelas redes e fluxos de informação e
tecnologia.
Nesse sentido, um aspecto que me pareceu que deveria ser mais bem explorado e que
tentei captar durante as entrevistas foi tentar intuir como teria sido essa experiência da
aquisição da linguagem audiovisual por parte de uma pessoa, de uma jovem oriunda do meio
rural, nascida e formada no campo? O quê que isso poderia ter significado para formação da
sua consciência? A minha intuição inicial e que se confirmou ao longo desta e das outras
entrevistas era a de que a experiência do cinema só teria paralelo com o aprendizado da leitura
e da escrita:
Eu vou começar assim ó. A gente que é do campo, que é pobre, e que ainda é
atingido por barragem, pra completar né, a gente tem sofrido, e muito preconceito,
“ó lá o jeca-tatu”, “ó lá aquela meninada roça...” Então quando tu começa a
inserir numa idéia dessa e tu começa a sentir parte, e tu consegue ver que tu é capaz
de fazer as coisas, e que tu tem a mesma importância que alguém que ta aqui na
cidade, ou que ta em algum lugar, ou que ta na universidade, mesmo que tu não
esteja, isso fortalece a gente enquanto individuo. A gente aprende a gostar mais da
gente, a gente se sente mais valorizada. Pra mim, o processo de alfabetização na área
do áudio-visual, foi o mesmo que quando eu aprendi a ler as primeiras letras,
entende? (LESSA, 2007)
As influências dessa passagem pelo audiovisual extrapolam os limites das relações
culturais e determinam uma mudança de atitude diante da realidade a ponto de conferir a
capacidade de interpretar os dados dessa realidade sob uma nova ótica:
125
Com certeza. Porque, é... A gente via um mundo...como eu falei, muito romântico,
muito por exemplo: a mídia, a rede Globo, coloca lá uma novela, um melodrama pra
tu viver ali, e não te da nenhum tempo pra tu refletir sobre o quê que ta passando ali.
Tu vês, e tu ficas “meu Deus! E aí... vai matar a mocinha? Ah, não vai?”. E quando
tu consegues ver que tu ta atrás da câmera, e que as pessoas ali tem um sentimento, e
que não é só aquilo que ta passando, tu consegue olhar tudo com o olhar critico. Tu
consegues entender que tem, há muitas coisas por traz de tudo isso. E que ali, assim,
o que existe na televisão, ou o que a gente pode fazer existir na televisão, depende
dos agentes que estão nela. E nós precisamos ser esses agentes. Então assim, o meu
olhar crítico da sociedade a partir daí. Eu acho que o audiovisual traz isso assim,
primeiro que estimula a gente a ler. Eu aprendi, comecei a ler... depois disso o
primeiro livro que eu li foi até, como que é o nome do livro? Livro de José Alencar,
foi um livro que a gente ganhou como prêmio no Se Liga Nessa. Então assim, eu
comecei a ler esse livro, e a partir daí, deu muita gana de ler, e muita vontade de ler.
E ai você já começa já entender que... e aí o Cinema Circulante trouxe isso mais
presente. (LESSA, 2007)
Por outro lado, a conquista dessa linguagem é o que torna possível usar os
instrumentos do audiovisual para a escrita da história do grupo e a partir daí a recuperação dos
próprios fundamentos culturais. É a sua comunidade escrevendo sua própria história, e isso é
encarado como uma maneira de vencer, já que “a história é sempre a história dos vencedores”.
Com certeza. Eu acho que quando tu vê, você sendo protagonista da sua própria
história, já é uma vitória, entende? Isso já, já é uma vitória assim que, que é muito
grande, você nem consegue nem medir. E eu acho que isso já é uma das conquistas
que a gente tem enquanto trabalhadores, enquanto camponeses, enquanto pessoas
que foram todo tempo ficando de fora de muitas coisas, ou fomos incluídos em uma
outra coisa que não era maior pra nós. Então a gente já conseguiu uma vitória,
porque imagine, nunca que eu ia imaginar que eu ia estar pegando numa câmera ali,
ou que, entende, ou que eu ia ta aparecendo ali, ou então... acho que isso não é só
comigo, mas com todos que participaram e que ainda participam. Isso fica. Então
essa vitória que ninguém nunca vai tirar de você, entendeu. Por exemplo, se alguém
te dá um pedaço de terra, depois ele pode ir lá e tomar, mais quando alguém te passa
um conhecimento né, por exemplo, no nosso caso lá do áudio-visual, não, isso nunca
ninguém vai tirar. E essa vitória nossa, da nossa história que foi escrita com nossas
próprias mãos e que vão continuar ser escritas, eu acho que já é uma conquista
nossa e que, vai ser pra sempre né. (LESSA, 2007)
126
6 - CONEXÃO: IMAGEM EM MOVIMENTO E MOVIMENTOS SOCIAIS
“Quando você se movimenta, o mundo se transforma mais rápido”.
Carlos Pacheco
De acordo com Peruzzo (2002), a principal linha de estudos sobre comunicação e
educação tendem a enfocar as relações e as inter-relações entre os dois campos do conhecimento,
destacando o processo comunicativo que permeia a questão do ensino-aprendizagem. “Trata-se de
uma linha de estudos em expansão e que tem trazido contribuições significativas para a
compreensão de tais fenômenos, no entanto ainda não é suficiente compreendida e valorizada
pelos educadores e comunicadores”. O que a autora quer destacar, no entanto é aquela perspectiva
do que ela chama de
educominicão, forjada em outro lugar, no âmbito da educação informal, mais
precisamente a que ocorre no contexto de organização e ação dos movimentos
populares e das organizações não-governamentais, no âmbito do terceiro setor, para
assegurar a observância dos direitos fundamentais da pessoa humana e/ou para tratar
de temáticas sociais mais amplas que dizem respeito ao conjunto da sociedade,
como, por exemplo, questões relativas à ecologia, à construção da paz e à própria
vida no planeta. (PERUZZO, 2002)
Para Peruzzo, as últimas décadas verificaram a emergência de um novo tipo de
comunicação, diferenciada dos meios de comunicação social tradicionalmente vinculados à esfera
pública ou privada e diretamente ligada a um determinado grupo que se posiciona como
movimento social ou ainda como pertencente ao chamado terceiro setor, de alguma forma
comprometido com questões sociais amplas e que devido a isso terminam por alcançar um nível
de organização e politização que os torna capazes de elaborarem processos de educação informal
que se utilizam de meios de comunicação reelaboram as suas culturas na perspectiva de
construção da cidadania:
Esse tipo de manifestação organizativa-cultural tem sido extremamente forte no
Brasil e na América Latina, dadas as peculiaridades desses países, nos quais a
grande maioria da população é excluída das benesses do desenvolvimento e onde se
verificam grandes transformações sociais nos últimos vinte anos. (PERUZZO, 2002)
127
Essa educação para a cidadania, que Peruzzo caracteriza como um dos fundamentos da
educação informal presente nos movimentos sociais está relacionada com o conceito geral de
educação que
se constitui universalmente pelo fato de que em todas as sociedades – das
comunidades tribais às complexas sociedades urbano-industriais – é necessário
garantir não apenas a continuidade biológica, mas, igualmente, a transmissão das
normas, dos valores, dos símbolos e das crenças, enfim, da estrutura intermental
sem a qual nenhuma sociedade pode funcionar. (PERUZZO, 2002)
E, nesse sentido, a comunicação, principalmente aquela vinculada à prática das novas
tecnologias de comunicação, se torna componente fundamental do processo educativo
informal dos movimentos sociais, porque tal processo educacional é tanto mais amplo e
profundo quanto mais ampla e profunda for a “trama de interações comunicacionais” que
estiver à disposição dos educandos:
Está aí o âmago da questão da educação para a cidadania nos movimentos sociais:
na inserção das pessoas num processo de comunicação, onde ela pode tornar-se
sujeito do seu processo de conhecimento, onde ela pode educar-se através de seu
engajamento em atividades concretas no seio de novas relações de sociabilidade que
tal ambiente permite que sejam construídas (...). No contexto de tais movimentos se
desenvolvem experiências de uma comunicação que pode ser denominada de popular ou
comunitária, a qual evidencia características próprias, entre elas, o exercício da
participação direta. Ali se faz possível que os receptores das mensagens dos meios de
comunicação se tornem também produtores das mesmas, se tornem emissores do
processo de comunicação. (PERUZZO, 2002)
Para Peruzzo, não há como desvincular a participação em um movimento social da
inserção em um processo de educação informal, sendo que esses dois momentos são
intermediados justamente pelo processo comunicativo e o resultado dessas determinações é a
ampliação da cidadania, além da conseqüente ampliação dos horizontes culturais:
A participação na comunicação é um mecanismo facilitador da ampliação da
cidadania, uma vez que possibilita à pessoa tornar-se sujeito de atividades de ação
comunitária e dos meios de comunicação ali forjados, o que resulta num processo
educativo, sem se estar nos bancos escolares. A pessoa inserida nesse processo tende
a mudar o seu modo de ver o mundo e de relacionar-se com ele. Tende a agregar
novos elementos à sua cultura. (PERUZZO, 2002)
Ou ainda:
Os meios de comunicação comunitários/ populares – nem todos obviamente – têm assim
o potencial de ser, ao mesmo tempo, parte de um processo de organização popular e
canais carregados de conteúdos informacionais e culturais, além de possibilitarem a
128
prática da participação direta nos mecanismos de planejamento, produção e gestão.
Contribuem, portanto, duplamente para a construção da cidadania. Oferecem um
potencial educativo enquanto processo e também pelo conteúdo das mensagens que
transmitem. Por seus conteúdos podem dar vazão à socialização do legado histórico do
conhecimento, facilitar a compreensão das relações sociais, dos mecanismos da estrutura
do poder (compreender melhor as coisas da política), dos assuntos públicos do país,
esclarecer sobre os direitos da pessoa humana e discutir os problemas locais.
(PERUZZO, 2002)
Nesse sentido, podemos inferir que basta uma leitura superficial dos depoimentos dos
membros do MAB, que fazem parte do capítulo anterior desta Dissertação, para concluir que o
papel dos meios de comunicação nas mãos dos movimentos sociais ultrapassa a esfera político-
organizativa. Obviamente que, ao se apossarem dos meios de comunicação, os movimentos
tendem a alcançar um novo patamar de organização política e/ou ideológica, na medida em que a
posse desses instrumentos cria novos canais e mecanismos que por si mesmos propiciam novos
horizontes.
Contudo, talvez o aspecto mais importante seja que o instrumento de comunicação social
possibilita a reconfiguração da identidade cultural e, no caso dos militantes do MAB, um
mergulho nas raízes antes ameaçadas e o resgate de suas identidades, agora transformadas pela
linguagem audiovisual: a história individual e de grupo não foi apenas reconquistada, foi elevada
a um outro patamar de sensibilidade e subjetividade, pois a posse e o uso coletivo desses meios de
comunicação social
Podem facilitar a valorização das identidades e raízes culturais, abrindo espaço para
manifestações dos saberes e da cultura da população: da história dos antepassados, às
lendas e às ervas naturais que curam doenças. Ou servir de canal de expressão aos
artistas do lugar, que dificilmente conseguem penetrar na grande mídia regional e
nacional. Ou, ainda, informar sobre como prevenir doenças, sobre os direitos do
consumidor, o acesso a serviços públicos gratuitos (como registro de nascimento) e
tantos outros assuntos de interesse social. (PERUZZO, 2002)
Muito além do que defende a autora, ao explicitar o desenvolvimento de uma
educação para a cidadania a partir dos usos dos meios de comunicação social, ressaltamos o
campo do resgate dos valores simbólicos outrora compartilhados pelo grupo e que se
constituíam no pano de fundo das relações sociais imaginárias: nas pessoas daqueles
militantes que participaram da oficina de produção audiovisual, a comunidade tornou-se toda
ela sujeito de sua própria história, pois imagem, símbolos que permitiam o resgate e a escrita
dessa história foram apropriados e a partir de então permitiu-se uma leitura mais ampla e
profunda dos processos sociais e uma nova inter-relação com o conjunto da sociedade
circundante.
129
A participação das pessoas na produção e transmissão das mensagens, nos
mecanismos de planejamento e na gestão do veículo de comunicação comunitária
contribui para que elas se tornem sujeitos, se sintam capazes de fazer aquilo que
estão acostumadas a receber pronto, se tornam protagonistas da comunicação e não
somente receptores. Os veículos de comunicação produzidos por setores organizados das
classes subalternas, ou a elas organicamente ligados, acabam por criar um campo propício
para o desenvolvimento da educação para a cidadania. As relações entre educação e
comunicação se explicitam, pois as pessoas envolvidas em tais processos desenvolvem o
seu conhecimento e mudam o seu modo de ver e relacionar-se com a sociedade e com o
próprio sistema dos meios de comunicação de massa. Apropriam-se das técnicas e de
instrumentos tecnológicos de comunicação, adquirem uma visão mais crítica, tanto pelas
informações que recebem quanto pelo que aprendem através da vivência, da própria
ptica. (PERUZZO, 2002)
Aquele ato pedagógico inserido na comunicação deixou de ser um ato puramente
autoritário, centrado na figura do governo ou da empresa e tornou-se um ato de liberdade, ou
melhor, de libertação, na medida em que permitiu que se quebrassem os grilhões da ignorância.
Por outro lado, a comunicação tornou-se um ato pedagógico, já que a partir da oficina, da qual
participaram apenas uma pequena fração do grupo, pode ver-se a si mesmo, pode mostrar-se,
pode participar integralmente da construção da sua imagem: a democratização dos meios no ato
de produção da linguagem audiovisual tornou-se a democratização do poder, compartilhado por
todo o grupo.
O potencial educativo implícito nos veículos de comunicação, sejam eles de pequeno ou
grande alcance, é muito significativo. Por isso mesmo, são bens públicos e não privados
e representam uma conquista da humanidade enquanto instrumentos capazes de
democratizar, de forma ágil, interessante e com fidedignidade, a informação, a cultura e
o conhecimento, do senso comum ao cienfico. Parafraseando Paulo Freire, em uma
de suas colocações em sala de aula, parece-nos que a frase comunicação é um ato
pedagógico e a educação é um ato comunicativo sintetiza a complexidade e, ao
mesmo tempo, as inter-relações entre comunicação e educação. Essa cumplicidade
entre os dois campos ultrapassa as instituições de ensino para penetrar no campo dos
grandes meios de comunicação de massa, mas também a comunicação engendrada
no contexto das práticas associativas e comunitárias. A escola já não é mais o espaço
primordialmente potencializado para educar. Os meios de comunicação passam a
compartilhar de tal poder, embora nem sempre o façam indo ao encontro do bem-
estar comum. (PERUZZO, 2002)
Não por acaso a militância do MAB evolui do combate ao modelo de produção de
energia centrado nos projetos faraônicos, para o combate ao modelo de organização social
imposto pelo capitalismo. Apontamos dois momentos importantes nessa tomada de
consciência social: primeiramente a passagem da forma espontânea, verificada no interior da
comunidade, antes da problemática levantada pela barragem e caracterizada por relações de
parentesco e/ou tradicionais, para a tomada de consciência propiciada pelo contato com o
130
Movimento dos Atingidos pelas Barragens, que confere aos atingidos uma consciência
política da sua situação. Em um segundo momento, a conquista da linguagem audiovisual,
que amplia essa consciência política, no momento em que a mesma alcança a dimensão da
cultura, do símbolo, do resgate das identidades perdidas e da conquista da capacidade de
construir a própria história audiovisual.
Os meios de comunicação, implementados no contexto das organizações
progressistas da sociedade civil, assumem mais claramente um papel educativo,
tanto pelo conteúdo de suas mensagens, quanto pelo processo de participação
popular que podem arregimentar na produção, no planejamento e na gestão da
própria comunicação. A participação popular é algo construído dentro de uma
dinâmica de engajamento social mais amplo em prol do desenvolvimento social e
que tem o potencial de, uma vez efetivada, ajudar a mexer com a cultura, a construir
e reconstruir valores, contribuir para maior consciência dos direitos humanos
fundamentais e dos direitos de cidadania, a compreender melhor o mundo e o
funcionamento dos próprios meios de comunicação de massa. (PERUZZO, 2002)
A comunicação popular, e dentro dela a experiência da linguagem audiovisual, precisa
ser compreendida como um tipo particular de comunicação onde tanto os aspectos técnicos e
materiais da produção, quanto o conteúdo da mensagem estão diretamente relacionados com o
grupo ou movimento social que dela se utiliza, conforme aponta R. White
A comunicação popular, em sua gênese, não é um tipo qualquer de mídia, como a
mídia grupal, rádio local ou material impresso. Não é também uma instrução
religiosa ou desempenho comunitário de especialistas em agricultura falando a
camponeses em linguagem singela. Ela surgiu de um movimento em nível mais
profundo: grupos de camponeses ou de trabalhadores discutindo entre si ou com
outros grupos similares.
(WHITE apud Peruzzo, 1998):
É justamente esse movimento, em nível mais profundo, que deve ser destacado e
resgatado na experiência do Cinema Circulante, que possibilitou a aquisição da linguagem
audiovisual por parte de integrantes do Movimento dos Atingidos por Barragens em Mato
Grosso.
Em um primeiro momento, as comunidades de pequenos agricultores, sitiantes e
garimpeiros que viviam no limite da sociedade pré-capitalista, podiam no máximo ser
consideradas como consumidores de informação e de produtos da indústria cultural. Mesmo
as gerações mais jovens, que tradicionalmente são as primeiras a usufruírem dos “benefícios”
tecnológicos, não tinham acesso cotidiano à televisão ou ao cinema. O nível de consciência
131
estava circunscrito à participação nas atividades cotidianas da comunidade e a própria
participação política era quase que inexistente.
Com o alagamento das comunidades e o deslocamento dessas populações é que surge
a necessidade de lutar, é que surgem os primeiros contatos com o Movimento dos Atingidos
por Barragens. A partir daí, a própria dinâmica da luta por novos assentamentos e o
desenraizamento cultural é que vai provocar uma tomada de consciência política e a
ampliação e aprofundamento do horizonte existencial. Mas é com a participação no Cinema
Circulante que a população passa a protagonizar a escrita de sua própria história: ela toma em
suas mãos a própria imagem e deixa de ser objeto em uma experiência de especialistas em
comunicação para ser produtora, a comunidade se emancipa.
De acordo com Santoro (1989), o vídeo é um dos mais versáteis instrumentos de
comunicação de massa, já que permite criar modos de produção e exibição próprios, com
conteúdo e público específico, o que faz a sua diferenciação de meios como o cinema e a
televisão:
Com o vídeo pode-se fazer TV fora da TV, isto é, produzir programas de modo
absolutamente independente, sem necessidade de nenhuma estrutura de exibição
pré-montada, que se realiza com os próprios instrumentos de gravação. Tem
evidentemente uma penetração incomparavelmente menor que a televisão, mas
permite com isso um direcionamento absoluto do público, que chega até a
individualização, caracterizando assim um meio de comunicação que tem, ou pode
potencialmente ter, conteúdo, processo de produção e espaço de exibição próprios,
ainda que tenha muitas características técnicas e elementos de linguagem comuns ao
cinema e televisão. (SANTORO, 1989)
É justamente essa capacidade de agregar os elementos da linguagem audiovisual
comuns ao cinema e à televisão, e ao mesmo tempo permitir a criação de modos de produção
e exibição diretamente vinculados aos interesses dessa produção, que tornam o vídeo um
instrumento extremamente atrativo para os movimentos populares. Santoro cita outras
características como a facilidade operacional, o baixo custo, o publico definido, a
independência na produção, facilidade de exibição, entre outras que facilitam enormemente o
manuseio dos instrumentos de produção e difusão do vídeo.
Para o autor, essa idéia de que o vídeo se transformasse numa espécie de militância e
também rearticulasse o próprio conceito de militância em movimentos sociais surgiu a partir
do final da década de 1960, quando um grupo de estudantes universitários canadenses
132
influenciados pelas idéias de Jean-Luc Godard, passaram a usar a produção e a difusão do
vídeo em alternativa à televisão, então considerada um instrumento de alienação das massas.
A idéia básica primordial era justamente a de explorar as características do vídeo como um
instrumento de contra-informação, ou seja, um instrumento de informação e comunicação que
pudesse se opor à lógica hegemônica dos meios de comunicação de massa.
Dessa forma, a produção de vídeo passou a ser compreendida como um novo meio de
comunicação, cuja proposta principal era a de conferir aos grupos e movimentos populares
e/ou sociais a capacidade de confeccionar programas distintos daqueles veiculados pela
televisão e diretamente ligados aos seus interesses políticos e organizativos, onde a própria
produção do vídeo já teria a capacidade de permitir uma nova tomada de consciência
individual e coletiva.
Santoro afirma ainda que, no Brasil a experiência do vídeo já nasceu diretamente
vinculada a movimentos sociais com objetivos definidos de trabalhar a contra- informação e a
cultura desses grupos numa clara atitude de contestação às formas de poder existentes na
sociedade. A radicalidade dessa alternativa não estava somente em se considerar os grupos
sociais militantes como fonte de informação, o grande desafio que se colocou desde o
primeiro momento e que se verifica em experiências como a do Cinema Circulante na
conexão com o MAB, é a de se enfatizar o caráter autenticamente democrático na produção
do vídeo, onde militantes do movimento assumem a condição de protagonistas, se
apropriando da linguagem audiovisual e a usando para a expressão da sua própria historia.
Importante sublinhar também que a experiência do vídeo surge no Brasil justamente
no momento em que o país está imerso em um regime de exceção, o que vai conferir-lhe um
papel ainda mais dramático e profundamente ligado aos interesses e anseios dos movimentos
populares que dele fazem uso:
O vídeo chega aos movimentos populares como mais um componente de luta e, por
suas características técnicas, adapta-se bem a projetos de comunicação popular que
tem os diferentes grupos sociais como públicos alvo, prestando-se desde a simples
exibição de programas pré-gravados até a produção de mensagens originais.
(SANTORO, 1989)
É nesse sentido que o autor postula a idéia de que a maneira pela qual os movimentos
sociais se articulam na e para a produção do vídeo, e as relações que a partir daí são
133
estabelecidas com o poder local e/ou nacional, pode ser considerada como uma questão chave
na discussão sobre o vídeo popular no Brasil.
Santoro nos remete ao duplo movimento decorrente da aquisição, por parte dos
movimentos populares, da linguagem audiovisual: há uma evidente mudança na forma como
os movimentos passam a ler a realidade social na qual estão imersos e consequentemente uma
mudança no próprio paradigma da sua organização a partir do momento em que se apropriam
da linguagem audiovisual e ao mesmo tempo o vídeo passa por uma transformação, pois deixa
de ser apenas um instrumento de comunicação e passa a ser uma ferramenta política,
independentemente do conteúdo de sua mensagem.
Isso se torna ainda mais evidente, quando nos confrontamos com os relatos dos
militantes do MAB que passaram pelo processo de aquisição da linguagem audiovisual.
Podemos notar claramente dois momentos distintos e articulados de tomada de consciência: o
primeiro momento é aquele em que o indivíduo entra em contato com o Movimento e a partir
dele adquire consciência política e pode fazer uma leitura de mundo que o capacita a intervir
na realidade da qual faz parte.
Mas a simples tomada de consciência ainda não é o limite e não é o suficiente para que
esse militante seja capaz de se tornar um protagonista no processo de escrita de sua própria
história. É só a partir de sua alfabetização audiovisual, com a apropriação da linguagem do
cinema, do vídeo, que o indivíduo se torna capaz de produzir uma seqüência de imagens que
conta sua história, da maneira como ele mesmo se vê no mundo:
Fazendo uso de um meio de comunicação que não é revolucionário, como muitos
acreditam, mas que pode ser um componente privilegiado das lutas populares em
todo o continente, colaborando para que as classes populares possam expressar sua
própria visão de mundo, informar-se, registrar a sua história, ou melhor, POSSAM,
COM UMA CAMERA, TOMAR A SUA PRÓPRIA IMAGEM NAS MAOS.
(SANTORO, 1989)
Essa perspectiva de um “vídeo militante” é particularmente reforçada em um trabalho
de Clarisse Maria de Castro Alvarenga intitulado “Vídeo e experimentação social: um estudo
sobre o vídeo comunitário contemporâneo no Brasil” apresentado ao programa de pós-
graduação em Multimeios, da Universidade Estadual de Campinas em 2004. Neste trabalho,
Alvarenga reproduz a mesma citação de Santoro que fizemos uso acima e acrescenta que:
134
Não resta dúvida de que o movimento do vídeo popular, da mesma forma que o
vídeo militante, defendia, em última instancia, a participação direta no sentido de
que a câmera deveria estar nas mãos das pessoas para que elas próprias pudessem
tomar as suas imagens do mundo. É importante dizer que esse processo não seria
uma decorrência da evolução tecnológica, mas fruto de uma decisão política dos
realizadores de vídeo ligados aos movimentos sociais. (ALVARENGA, 2004)
Isto posto, é reforçada aqui a nossa postulação de que o movimento mais importante
na conexão entre os movimentos sociais e o vídeo é justamente a possibilidade de que
integrantes desses movimentos tenham acesso aos instrumentos decorrentes de sua
alfabetização audiovisual, que usem por si próprios os equipamentos e com eles registrem a
imagem do mundo da forma como eles próprios concebem e vêem esse mundo.
É necessário de que esse movimento seja uma decisão política do movimento, pois ela
está na base da independência do movimento em registrar sua realidade, trabalhá-la,
transformá-la na perspectiva da linguagem audiovisual e usar esse produto como ferramenta
de luta e de inserção na realidade social.
Parece ser evidente que a conexão da imagem em movimento com os movimentos
sociais realça a dimensão político-educativa dos movimentos sociais ao mesmo tempo em que
contribui para o processo de democratização da linguagem audiovisual, e conseqüentemente,
forçando a necessidade de se democratizar os próprios meios de comunicação de massa. Essa
perspectiva dos movimentos como agentes culturais e educativos é particularmente realçada
por Maria Stela Marcondes de Moraes, em sua tese de doutorado pela PUC/RJ, “No rastro das
águas: pedagogia do Movimento dos Atingidos por Barragens da Bacia do Rio Uruguai
(RS/SC) – 1978-1990, 2004”.
A dimensão político-educativa dos movimentos sociais se expressa através de
processos formais e informais. É informal a socialização política individual e
coletiva decorrente do engajamento e participação nos diferentes níveis de
organização dos movimentos sociais. São os ensinamentos da vida cidadã
organizada na identidade de interesses e na luta por direitos. As ações político-
educativas formais são práticas pedagógicas intencionais e sistemáticas que
envolvem principalmente as lideranças e dirigentes dos movimentos, de um lado, e,
de outro, a intervenção de mediadores como a Igreja Católica, os sindicatos, as
entidades de “assessoria”. Em uma espécie de meio caminho entre o formal e o
informal está a ação educativa dos dirigentes junto às bases dos movimentos. São as
práticas formais e intencionais que em grande medida, vão determinar os processos
de informação, formação, organização e mobilização das bases dos movimentos e
moldar suas formas de luta e de constituição de diferentes sujeitos coletivos.
(MORAES)
135
Aqui precisamos recuperar aquela visão que confere à comunicação também um
caráter educativo ao mesmo tempo em que nos revela o que há de comunicação no ato de
educar. E nesse sentido, os movimentos sociais, ao se apropriarem da linguagem audiovisual
se tornam capazes de potencializar sua capacidade político-educativa, pois além das práticas
pedagógicas que lhe são implícitas, estas são realçadas como o uso de meios de comunicação
de massa, como a tecnologia do cinema, acessível através de oficinas como a do Cinema
Circulante.
De fato, o mundo se transforma mais rápido, pois a imagem em movimento começa a
ser usada pelos que mais movimentam a sociedade. Assim, a aquisição da linguagem
audiovisual por parte de grupos e movimentos sociais marca uma passagem fundamental tanto
na capacidade organizativa dos movimentos, quanto no processo de democratização dos
meios de comunicação de massa.
Mas o aspecto que talvez mais deva ser ressaltado é justamente este: a experiência do
cinema feito por mãos militantes não é mais o movimento de intelectuais que, assumindo um
compromisso com as camadas, classes, grupos e movimentos sociais populares, se dirigem à
periferia do sistema com intuito de se tornarem porta-vozes desses grupos; agora são os
indivíduos, pessoas nascidas e vivenciadas no interior desses grupos que se apossam da
linguajem audiovisual e passam a ter condição de reflexão sobre a sua própria realidade. De
um movimento de intelectuais orgânicos e/ou comprometidos, passa-se ao patamar de
organismo intelectualizado. O movimento produz seus intelectuais e estes sua própria
linguagem.
136
6.1 - A LINGUAGEM AUDIOVISUAL
Para falar em linguagem audiovisual, eu preciso me referir antes ao histórico do
desenvolvimento do cinema, cuja linguagem foi, desde o princípio, a linguagem viva de uma
sociedade em profunda mutação que pode ser entendida tanto na perspectiva evolutiva, quanto
na do conflito. O desenvolvimento histórico do cinema interessa para o contexto da
linguagem audiovisual porque aquele é a matriz desta, sendo a mesma a linguagem da
sociedade contemporânea.
Assim sendo, tentarei estabelecer essa conexão entre o surgimento da linguagem
audiovisual através do cinema e posteriormente em outros meios como o vídeo, o dvd e a
internet e a sua influência no contexto social. Por um lado, a evolução dos meios e
mentalidades se articulou com o conflito entre os diversos paradigmas sociais, determinando
assim a natureza e o conteúdo da linguagem cinematográfica ou audiovisual, conforme
postulam DeFleur e Ball-Rokeach (1993):
Como aconteceu com o jornal, o desenvolvimento do cinema pode ser entendido
tanto dentro do paradigma evolutivo quanto do de conflito. O processo de
acumulação cultural que forneceu a tecnologia do filme ocorreu sobretudo como
uma acumulação gradativa de realizações cientificas em diversos campos
aparentemente desconexos. (...) O conflito fez parte da totalidade do processo de
evolução. Conflitos significativos ocorreram, não apenas entre vários interesses
tentando possuir e controlar o nascente veículo, mas entre a maioria moralizadora da
sociedade e aqueles que buscavam aumentar lucros apelando para prazeres menos
nobres na preparação do conteúdo dos filmes. Tais conflitos desempenham papel
central na modelagem da natureza do cinema nos Estados Unidos. (DEFLEUR e
BALL-ROKEACH, 1993, p. 78)
É um fato que esses dois paradigmas que compuseram o cinema desde o seu
nascimento acompanharam o seu desenvolvimento, de forma que, na medida em que
evoluíam os processos de acumulação cultural e tecnológica e cujos campos desconexos iam
gradativamente culminando com a entrada em cena do cinema contemporâneo, o paradigma
do conflito também evoluía no sentido de que o conflito resultaria no controle político da
produção cinematográfica por um pequeno grupo de empresas estabelecidas em solo norte-
americano: Hollywood seria transformada na grande Meca do cinema mundial.
Suas indústrias cinematográficas passariam a ditar para o mundo inteiro os paradigmas
cinematográficos, tanto do que se convencionou como técnica cinematográfica quanto do
137
ponto de vista da estética apresentada pelas imagens, do conteúdo político e ideológico
mesmo dos filmes.
Assim, a universalização das imagens cinematográficas foi acompanhada pela
monopolização tanto dos procedimentos científicos e técnicos da produção, quanto do
estabelecimento de um padrão mundial de estética e beleza fundado nos paradigmas do que
essa própria sociedade convencionou como belo. Talvez por isso não houvesse, como ainda
não há, a necessidade de que o cinema norte-americano deslize para o campo da propaganda
ideológica explícita, já que a defesa enfática do modo de vida que o mesmo defende como
belo e verdadeiro ocorre na esfera de relações simbólicas que a primeira vista passam
despercebidas.
Certamente o mesmo pode ser dito em relação ao cinema em outras partes do mundo,
inclusive no Brasil, onde o conflito estabelecido entre as diversas forças e instancias da
sociedade pelo controle da produção e distribuição da linguagem audiovisual possui caráter de
centralidade.
Dadas as características econômicas e políticas da sociedade brasileira, onde uma
pequena elite hegemoniza o controle social através do controle de todos os processos
produtivos – monopólio do poder, da terra, da energia, etc. – o monopólio dos meios de
comunicação social e entre eles o monopólio da produção e distribuição da linguagem
cinematográfica aparece como um componente a mais no processo geral de monopolização
por parte da elite dominante.
No entanto, embora a linguagem audiovisual também se inscreva no campo do
conflito, o cinema e a sua linguagem, apenas remotamente, operam na esfera da defesa
ideológica aberta ou do proselitismo político. Esses elementos somente aparecem diluídos na
linguagem dentro de um contexto de visão geral de mundo em um meio de comunicação
social que é mais entretenimento que conhecimento e/ou informação:
Quando foi encontrada uma estrutura financeira viável para a imprensa de massa na
sociedade capitalista democrática, essa estrutura baseou-se solidamente na
publicidade comercial. E embora o jornal redefinisse esse relacionamento com
assuntos políticos mais de uma vez, a imprensa continuou a encarar atividades
políticas como uma de suas principais áreas de responsabilidade, pelo menos ao
reportar e analisar, embora não de fato em fazer proselitismo. (...) O filme de
138
cinema, por outro lado, nunca esteve mais que marginalmente ligado a apresentação
de um conteúdo publicitário comercial na acepção direta. E, apesar de
ocasionalmente os filmes lidarem com temas de política ou socialmente
significativos, não têm sido empregados amiúde (pelo menos na sociedade norte-
americana) para defender publicamente ideologias políticas. (DEFLEUR e BALL-
ROKEACH, 1993, p. 79)
Esse aspecto da linguagem audiovisual torna o conflito ainda mais sutil, quase que
subliminar, já que não é da natureza do cinema a defesa aberta de um ponto de vista, o
proselitismo político ou o convencimento ideológico, embora os aspectos ideológicos e
filosóficos de visão de mundo estejam sempre presentes como parte intrínseca da linguagem
audiovisual.
Por outro lado, esses aspectos sublinhados se referem mais a uma realidade alienígena
analisada por autores estrangeiros e que não se aplica mecanicamente à realidade brasileira.
Embora por certo período o cinema brasileiro tenha apenas se limitado a copiar fórmulas, a
partir do final dos anos 50 verifica-se uma identificação entre a produção cinematográfica e as
grandes questões nacionais. Como forma de ilustrar essa discussão, vamos introduzir trechos
de uma entrevista de Maurice Capovilla, onde ele fala sobre as interferências entre cultura,
comunicação, cinema e educação.
Maurice Capovilla, cineasta paulista nascido em 1936, um dos mais expressivos
representantes da linha mais engajada do Cinema Novo. No ano de 1962, dirigiu o primeiro
curta de sua carreira, União. No ano seguinte fez Meninos do Tietê. Sua experiência
profissional inclui atuação em outras áreas da comunicação social, como crítico de cinema, -
Jornal da Tarde nos anos 1965-1966 - Professor de cinema da Escola de Comunicação e
Artes da Universidade de São Paulo, no período entre 1968 e 1972.
Capovilla possui diversos trabalhos para a televisão, incluindo documentários para
Rede Globo e TV Bandeirantes, alem de ter coordenado a implantação da TV Comunitária de
Parati. A experiência profissional e a produção de Capovilla está intrinsecamente relacionada
com a própria história do Brasil, o que ele mesmo deixa transparecer na entrevista ao buscar
uma definição sobre a sua personalidade.
Quem sou eu? Bom eu sou um amador do cinema que me transformei num
profissional vivo do cinema desde mil novecentos e sessenta, e to fazendo essa vida,
como uma forma de desenvolver também minha capacidade de pensar o Brasil, de
ver o Brasil. O cinema me ajudou de uma maneira muito pratica a expressar aquilo
139
que eu penso, e escrever. Eu resolvi me escrever através do cinema, essa é a minha
proposta. (CAPOVILLA, 2007)
Essa identidade entre a obra de Capovilla e a história do Brasil e decorrente em parte
da própria opção política e ideológica que norteou a maior parte das produções do chamado
Cinema Novo, um dos mais importantes movimentos do cinema brasileiro, influenciado pelo
Neo-realismo italiano e pela Nouvelle Vague francesa. A principal característica do Cinema
Novo – e que está presente na obra de Capovilla – e que os filmes são voltados à realidade
brasileira e com uma linguagem adequada ao contexto social da época.
Os temas mais abordados sempre estiveram ligados ao conceito de
subdesenvolvimento do país. Historicamente, o cinema novo surge a partir da década de 1950,
no contexto de falência das grandes companhias cinematográficas francesas e por isso mesmo
com espírito contrário as chamadas grandes – e caras – produções. O Cinema Novo
extrapolou o ideal uma câmera na mão e uma idéia na cabeça. Entre os principais nomes do
movimento, estão Cacá Diegues, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra,
Roberto Santos, Capovilla e Leo Hirsman.
As grandes companhias cinematográficas – tendo a Vera Cruz a frente – que
dominaram o cinema nacional até o surgimento do Cinema Novo não se demonstravam
capazes de expressar a realidade nacional, já que repetiam um modelo importado dos Estados
Unidos e suas produções não se caracterizavam por uma reflexão sobre o Brasil, conforme
explicita Capovilla.
A literatura estava enraizada na periferia do Brasil. Drummond era mineiro, é Jorge
Amado era baiano, Érico Veríssimo gaúcho... Toda a história literária brasileira
estava fincada em torno desses dois grandes centros, então, o cinema não tinha
chegado ao nível da literatura, foi muito visto, daí você entende porque que Nelson
vai fazer vidas secas, e sai então, nós saímos em busca dos meninos de engenho, já é
um toque de que o nordeste tem ai uma riqueza imensa, esse é foi o ponto de partida
de conhecer o Brasil. Os nossos temas estão fora da nossa cidade, da nossa classe, da
nossa cultura, esse foi o nosso ponto. (CAPOVILLA)
Nesse sentido, não e exagero considerar o Cinema Novo como um movimento que
extrapola as fronteiras do cinema, ou mesmo da linguagem audiovisual. Ele não é apenas o
maior movimento estético que o Brasil já foi capaz de formular, e uma das mais perfeitas
traduções da realidade nacional, na medida em que, através das lentes dos seus diretores, o
Brasil foi capaz de expressar a sua identidade, a sua cultura, a sua forma particular de existir
140
no contexto das Nações. Assim, a análise que brota de Capovilla é de particular importância
para o contexto desta Dissertação na medida em que busca exemplificar a importância da
linguagem e da alfabetização audiovisual, assim como as interconexões entre cultura, política
e comunicação.
Além disso, o nascimento do Cinema Novo situa-se em um contexto histórico de
particular importância para o Brasil e os brasileiros. A década de 1960, quando essa viragem
cultural e estética está em sua melhor forma, é também o momento da explosão mundial do
poder jovem influenciado pela geração Beat, pela contracultura, pelo pacifismo, pelo
nascimento das preocupações ambientais, pela revolução sexual, enfim a grande revolução
comportamental do final do século XX.
Ocorre que, se na maior parte da Europa e nos Estados Unidos os anos sessenta foram
de uma busca desenfreada pela ruptura total contra o establishment, no Brasil a juventude, os
trabalhadores e o conjunto da sociedade estavam submetidos à ditadura militar, o que tornava
ainda mais dramática qualquer tentativa de contestação ao poder estabelecido, qualquer que
fosse esse poder.
É por isso que o Cinema Novo pode ser considerado como um grande movimento
estético que possibilitou uma espécie de alfabetização audiovisual em massa, na medida em
que foi capaz de expressar a identidade e a cultura do povo brasileiro, de mostrar a cara e o
jeito do povo e de fazer com que boa parte desse povo se visse na grandes telas. Nesse
sentido, pode-se afirmar que experiências como as do Cinema Circulante ambicionam essa
mesma capacidade relativa ao Cinema Novo, de expressar um conjunto de idéias, significados
e conceitos culturais relacionados a uma comunidade e ao fazê-lo, tornar possível o resgate de
uma identidade cultural comum.
Alem desse resgate cultural, para que um povo ou um segmento da população seja
capaz de usar a linguagem audiovisual como forma e meio de exprimir sua cultura, e
necessário que os meios utilizados – a linguagem audiovisual – seja reelaborada na
perspectiva cultural dessa comunidade. A análise de experiências, como as do Cinema
Circulante, tem mostrado que as comunidades que as desenvolvem terminam por desenvolver
também a própria linguagem audiovisual, pois acrescentam ao já existente uma nova gama de
141
significados, técnicas e novos conceitos que não surgiriam a partir da maneira tradicional de
se fazer o cinema.
Por outro lado, essa característica parece se constituir tamm na principal
preocupação na hora em que se necessita transpor as idéias para o plano da realidade concreta,
pois se o segredo está na ação de se interpretar e comunicar a realidade através da linguagem
audiovisual, esse gesto é sempre uma conquista e nunca uma dádiva, já que toda comunidade
ou grupo social marginal ou marginalizado precisa conquistar com suas próprias energias os
meios necessários a consecução de tal projeto. É o que parece dizer Capovilla:
O que eu acho, é, por exemplo, na cabeça de vocês, são mil histórias, tem duzentas
formas de fazer, na cabeça. O que é preciso, é viabilizar as cabeças pensantes. As
idéias precisam ser viabilizadas. Se a gente, por exemplo, trabalhar a idéia, somente
como uma proposta, quer dizer, se ficar no papel, ela não se transforma em filme,
quer dizer, nós temos que criar laços entre a realidade circundante, desses estados
periféricos que são, ricos, de uma riqueza enorme, os cursos, e as oficinas elas vão
estimular a cabeça a trabalhar formas de criar maneiras praticas de realização.
(CAPOVILLA)
É um fato notório que a emergência da linguagem audiovisual, tanto cinematográfica
quanto da televisão e posteriormente da Internet, não determinou uma mudança no padrão de
ensino-aprendizagem no interior das escolas brasileiras. Ensina-se e aprende-se como no
inicio do século XX, quando se começou a estabelecer, em âmbito nacional, o primeiro
sistema de ensino.
Dessa forma, a maneira como se ensina e como se aprende ficou prisioneira do padrão
oral e escrito, de forma que mesmo a maneira como as pessoas normalmente vêem as coisas e
o mundo está condicionada por esse padrão. Por isso, a necessidade de uma alfabetização
audiovisual já no interior da escola como parte integrante do ensino primário e secundário,
conforme defende Capovilla:
É importante que haja uma disciplina de audiovisual, de formação audiovisual,
porque nós crescemos treinados para uma escrita oral, ou uma escrita, quer dizer,
uma oralidade, retórica, entendeu? Não somos treinados pra ver realmente, nosso
olho não está acostumado... Ele esta deformado, ele não esta alfabetizado, mais esta
alfabetizado, de uma forma errada, ou de uma forma única. Então é preciso, que haja
um processo, que o MEC, deveria se encarregar disso. (...) Porque na medida em que
você aplica métodos de compreensão do audiovisual, você automaticamente, ensina,
treina a ver a forma correta dos filmes. Entende? Não é montar igual ao cine clube
não. É montar uma disciplina de análise fílmica, um projeto de alfabetização
audiovisual, esse é o nome é o nome que se dá a disciplina. (CAPOVILLA)
142
Capovilla se refere a um tema que aparentemente não tem recebido a devida atenção
por parte de educadores e pesquisadores do campo educacional que é a influência da televisão
sobre a educação popular. Isso porque a televisão não pode ser considerada apenas como um
meio de comunicação social, mas, sobretudo como um feio formador – deformador? – de
consciências, uma vez que é inegável a sua contribuição para o processo de domesticação do
olhar e que vai conduzir a um processo mais profundo de domesticação da capacidade de
reagir aos padrões estabelecidos.
Se você analisar a televisão como um todo, ela é a multiplicidade de linguagem, ela
tem todas as linguagens ali dentro, só que, as pessoas separam, eles não sabem ver.
Por exemplo, passa um filme, passa a novela, que é a dramaturgia moderna,
utilizada dentro dos padrões da televisão, passa o documentário, passa o musical...
Quer dizer, a televisão é o maior exemplo da diversificação das linguagens, no
entanto, não se percebe, a gente não sente. (...) Agora, tem que haver uma relação
vamos dizer de organização nesse mundo, porque é todo estilhaçado, a televisão
estilhaça, e é preciso que a pessoa receba uma informação desse estilhaçamento, ela
precisa tomar consciência de que ela esta vendo, uma multiplicidade de
possibilidades de, informação através do audiovisual, mais ela não esta sabendo ler.
Esse ai o problema, ela não sabe ler aquele negocio, ela acha que tudo, é igual, ela
acha que tudo é a mesma coisa, mas não é. Tanto que não entende coisas, e entende
outras de maneira errada, entende? A televisão é o maior exemplo de que há uma
imensa possibilidade de você falar além do audiovisual. (...) Agora tem o cara que
fala, que nem ele entende o que ele fala, ele fala errado, to dizendo em termos
audiovisuais, tem o excesso do uso da palavra, ai a imagem perde o sentido, enfim,
tem todas as suas “cagadas”, desculpe, as besteiras todas estão ali dentro. E a própria
impotência dos caras, que fazem televisão, em escolher as linguagens mais apuradas.
Então ta se falando o audiovisual errado, é como se usar o português errado, errar na
construção da frase, Ta errando na dinâmica da comunicação audiovisual, isso é
verdade. (CAPOVILLA)
Segundo Capovilla, essa capacidade da televisão de “deseducar”, ou como disse
Sérgio Brito, de educar para outra realidade, para outro modelo, termina recebendo o reforço
da escola, que além de não trabalhar com a educação audiovisual, ou melhor, além de se
demonstrar incapaz de incorporar aos seus conteúdos uma alfabetização audiovisual, termina
se constituindo em um espaço onde o questionamento e a inquietude próprias da infância e da
juventude não são valorizados.
Eu acho que também, esta se desestimulando o processo de aprendizagem da escola
média, desde o grupo escolar... Quer dizer, se fala do método de alfabetização do
Paulo Frei, ele não foi aplicado, ele foi jogado no lixo, ele não se institucionalizou,
não foi aplicado de uma maneira correta, nem foi, e nunca foi da escola pública
aquilo foi uma grande experiência que se perdeu, não é isso? (...) Hoje o
aprendizado é pela retórica, a imposição sabe? É uma imposição de frases feitas, de
conceitos feitos, e prontos e acabados entende? Não é um processo dialético, onde
você coloca o confronto de idéias, e você chega no confronto das idéias, o
conhecimento, não. (...) É essa forma de pensamento, não se aplica na escola, de
forma que o garoto, quando ele sai de lá, ele esta passivo, ele não tem duvida, ele
não vê a realidade, só aquilo que lhe botaram na cabeça, sai burro, quer dizer, não é
143
burro, sei lá, sai conformado, não sai inquieto, ele não tem inquietude, ele não tem
curiosidade. (CAPOVILLA)
O que não tem sido devidamente pesquisado sobre as confluências entre televisão e
educação é justamente o fato daquela ter se constituído no maior meio de educação de massas
desde o início da era industrial. Desde o seu surgimento a partir do século XIX, essa
modalidade de linguagem se tornou em certa medida hegemônica no processo de produção
das relações sociais simbólicas e imaginárias.
Da mesma forma que a invenção da imprensa e a posterior disseminação de livros
produziram o efeito de multiplicar o poder das idéias e sustentar uma categoria de intelectuais
que iriam contribuir decisivamente para a derrocada final do feudalismo; a linguagem visual
alargou a sua influência do campo da fotografia e do cinema para se estender a praticamente
todas as dimensões da vida social.
Hoje ela está presente nas ciências, em atividades de lazer e entretenimento, nas artes,
na religião, na política – aliás, cada vez mais a linguagem audiovisual se expressa como um
poder político alternativo à política tradicional ou se torna o veículo preferencial da
mensagem religiosa da atualidade – de forma que o mundo pós-moderno foi moldado pela
linguagem e é por ela interpretado a cada instante.
Ela é a expressão ad hoc da contemporaneidade. E não há nenhum exagero nessa
afirmação. São inegáveis os efeitos da linguagem audiovisual na forma como a sociedade se
organiza na atualidade. Desde o impacto da televisão que cotidianamente mobiliza uma
audiência que só pode ser estimada em bilhões de pessoas, passando pela indústria
cinematográfica mundial e seu efeito na produção da cultura popular e de massas, até a
Internet, a sociedade humana contemporânea não seria o que é sem a linguagem audiovisual.
O aspecto mais preocupante dessa influência, porém, talvez seja exatamente que essa
dimensão não esteja sendo estudada na mesma proporção. Enquanto na linguagem escrita a
função de escrever e ler estão muito próximas, já que quem é capaz de ler um livro
tecnicamente é capaz também de escrever e compreender o escrito; na linguagem audiovisual
não há essa necessidade, de forma que uma pessoa pode assistir a um filme ou um programa
televisivo sem necessariamente entender um mínimo do processo que permitiu a sua
produção.
144
Ao passo que a linguagem escrita permite um acúmulo de conhecimentos e um
adensamento cultural, na medida em que quem lê, ao tempo em que lê, penetra nos códigos
culturais lingüísticos do texto lido e se apropria dos mesmos, tornando-se potencialmente um
produtor dessa mesma linguagem; na linguagem audiovisual este recurso não é possível, de
forma que uma pessoa pode assistir dez ou vinte horas de televisão por dia durante vinte anos,
sem que com isso esteja – pelo simples fato de assistir – em condições de dominar os códigos
da linguagem audiovisual.
De acordo com Marinete D´Angelo
11
,
Como a mensagem audiovisual contagia com sua linguagem afetiva, provocando
emoção em forma exagerada, isto dificulta a reflexão sobre o que se está vendo.
Além disso, a fragmentação da narrativa, interrompida pelos intervalos comerciais,
somada ao bombardeio de imagens e informações, dificulta o processo lógico da
reflexão. (D’ANGELO)
Segundo Angel Quiroz, a linguagem audiovisual consiste num
conjunto de convenções e códigos que permitem, mediante o uso de instrumentos,
um processo social de produção e conservação, para posterior reprodução, de
mensagens constituídas por imagens e sons, de uma ou várias partes selecionadas
de uma realidade natural ou construída (QUIROZ, p.03).
Ainda de acordo com Quiroz, para cumprir o seu papel plenamente, um produto
audiovisual deve fazer uso de signos amplamente partilhados pelo público a quem se destina a
mensagem, encadeados em um formato facilmente inteligível, de modo a não causar qualquer
esforço adicional de decodificação dos signos junto ao observador, buscando assim, não
promover um ruído cultural na mensagem. No entanto, alguns teóricos como Geertz,
defendem que a linguagem e o processo de comunicação envolvem uma teia de interações
bem mais complexas.
Partindo na contramão, o que interessa a essa proposta de pesquisa é justamente o
processo de ressignificação que marca a idiossincrasia dos vídeos produzidos nas
comunidades analisadas. Essa idiossincrasia não constitui a singularidade desvinculada da
11
A leitura do audiovisual
http://www.tvebrasil.com.br/oficinatvedemidia/2004/pais_educ/a_leitura_do_audiovisual.asp
145
universalidade do ser humano, mas faz parte da essência universal dele: todos,
universalmente, são diversos.
A linguagem audiovisual se constitui como um dos principais elementos de
relacionamento com o mundo do ser humano. Desde a primeira infância, o primeiro
instrumento de comunicação do indivíduo com o mundo e com as pessoas a sua volta é a
linguagem não verbal, essencialmente, o sentido visual.
A naturalidade com que se faz uso desse sentido é responsável pela falsa impressão de
que essa capacidade não precise ser aprimorada, ao contrário da linguagem verbal, terror de
boa parte dos estudantes. Para dar fim a esse modo intuitivo de tratar o audiovisual, a autora
Donis A. Dondis propõe o empreendimento da alfabetização visual.
Para Dondis (1997, p.16) “a visão é natural; criar e compreender mensagens visuais é
natural até certo ponto, mas a eficácia, em ambos os níveis, só pode ser alcançada através do
estudo”. Rigorosamente, segundo Geertz não existe após o surgimento do ser humano nada de
natural nele, ele já é um artefato social gestado por relações sociais, expectativas e aparatos
que definem o seu olhar segundo o seu grupo cultural. Homem algum é o Emílio
rousseauniano, completamente descontaminado do mundo. Neste sentido em Merleau-Ponty,
o mundo nos precede. Ele é transcendental.
Independentemente do conceito de ideologia usado, uma de suas funções mais gerais é
justamente a de “naturalizar” um fenômeno ou relação social. Ao se abstrair das relações
sociais que produziram determinado fenômeno, cria-se a ilusão de que o mesmo é um
acontecimento “natural”. Assim, a linguagem audiovisual é um fenômeno social,
essencialmente humano e, como tal tem sua gênese no conjunto das relações sociais
estabelecidas e, por isso mesmo, não está imune aos efeitos das contradições sociais.
Paulo Freire reforça essa visão ao afirmar que “a leitura do mundo precede a leitura da
palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura
daquele” (2003, p. 11), Montes, Silva e Leite complementam esse pensamento:
Quando possuo a leitura da palavra não posso abdicar da leitura do mundo. Este
movimento do mundo à palavra e da palavra ao mundo está sempre presente. A
leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo, mas por certa
146
forma de “escrevê-lo” ou de “reescrevê-lo”, quer dizer, de transformá-lo através de
nossa prática consciente”. (MONTES, SILVA e LEITE, 2005, p. 32)
A revolução eletro-mecânica, com o advento da imprensa, possibilitou a disseminação
da alfabetização verbal entre todas as classes sociais (Santaella, 2001). A revolução digital, ao
mesmo tempo que impõe, possibilita o acesso à alfabetização audiovisual, tornando
fundamental o seu processo pedagógico para que o indivíduo, além de compreender de outras
perspectivas o mundo a sua volta, com uma leitura crítica possa transformá-lo.
Em boa parte dos casos é possível notar que a utilização do audiovisual na educação
tem assumido um caráter meramente alegórico, que se resume à apresentação de produtos
audiovisuais que colocam os estudantes no papel de espectadores passivos diante das
mensagens que lhes são apresentadas. Nesse sentido, a atenção a experiências que busquem
transpor esse sistema de utilização do audiovisual como ferramenta de educação e,
especialmente, como objeto de estudo é de grande relevância para a compreensão e
disseminação do processo de alfabetização audiovisual.
Ainda assim, a alfabetização do sentir, olhar, interpretar não tem nunca um sujeito
‘analfabeto’ ou ‘tabula rasa’. Temos formas prévias de permitir ou não essa alfabetização, que
já se constitui numa dimensão cultural adquirida nas relações do grupo humano com o qual
nos relacionamos.
147
6.2 - A ALFABETIZAÇÃO AUDIOVISUAL
A conquista de uma nova linguagem pelo individuo, grupo social ou pela sociedade
amplia a capacidade de perceber e interpretar a realidade. Por outro lado, conforme já disse
anteriormente, a linguagem audiovisual é a linguagem ad hoc da contemporaneidade. Assim,
posso postular que no contexto da sociedade atual a alfabetização não é somente o letramento.
Qualquer um que não esteja em condições de ler os signos que permitem a produção da
linguagem audiovisual e não apenas a sua recepção, não pode ser considerado completamente
alfabetizado, ainda que não seja uma “tabula rasa”. De acordo com Marinete D´Angelo (obra
citada)
Diferentemente da linguagem verbal, a alfabetização para a linguagem audiovisual,
que está presente no nosso cotidiano por meio das mensagens transmitidas pelo
cinema, pela televisão e pela informática, precisa ser incorporada à prática
pedagógica. A linguagem audiovisual é composta por outras três linguagens
verbal, sonora e visual – que, conjugadas, transmitem uma mensagem específica. A
leitura dessa linguagem pressupõe o conhecimento dos seus elementos, seus
códigos e processo de construção. (D’ANGELO)
Ao contrário do que afirma Dondis (1997, p.186) “a compreensão visual é um meio
natural que não precisa ser aprendido, mas apenas refinado através do alfabetismo visual”,
como qualquer outra linguagem, a audiovisual é um dos componentes do processo de
socialização do ser humano e nesse sentido, é exatamente no contexto desse processo de
socialização que reside o processo de alfabetização audiovisual: é na medida em que o
indivíduo mergulha na teia de contradições e relacionamentos do mundo no qual está inserido
que está em condições de alfabetizar-se na linguagem audiovisual.
Tenho demonstrado através das entrevistas realizadas com os militantes do
Movimento dos Atingidos por Barragens que a participação nos movimentos e o
estabelecimento de relações com pessoas possuidoras da linguagem audiovisual resultam num
processo de alfabetização audiovisual – principalmente nos casos em que há essa intenção
deliberada. Isso reforça a sensação de que a linguagem audiovisual precisa e deve ser
aprendida como outra linguagem qualquer, o que somente ocorre dentro de um processo
social e não no contexto de uma suposta “naturalidade”.
148
Como desde a primeira infância somos sensibilizados por nossos sentidos de forma
aparentemente imediata, paira a impressão de que esses sentidos não necessitem de um
processo pedagógico para o aprimoramento de suas leituras, visão que pode ser prontamente
questionada ao considerarmos que a forma como as sensações são interpretadas
individualmente é fruto de contínua observação, imitação e aprendizado.
Ou seja, a visão até pode ser natural e imediata, mas o olhar é cultural e mediador. A
excepcional capacidade de transmissão de informação através de uma imagem requer a
apreensão dos códigos audiovisuais para ser plenamente entendida. No caso específico
examinado por este estudo, a força comunicacional da imagem é reforçada por mais
elementos de construção de enredos que fascinam realizador e espectador: o som, o
movimento, o tempo e a expressão verbal.
Esse amálgama dá ao cinema um poder de transmissão de informações infinitamente
maior. Ao mesmo tempo em que agrega uma maior carga de dificuldade para compreensão e
construção de uma mensagem, também requer a produção prévia de um roteiro verbal, em
alguns casos também um roteiro visual, denominado de storyboard, além da manipulação de
equipamentos de alto custo financeiro. Essas características mantiveram durante um bom
tempo o cinema e o vídeo como instrumentos de difusão de mensagens restritos às classes
mais abastadas.
Felizmente, a evolução tecnológica tem disponibilizado equipamentos mais leves e
financeiramente mais acessíveis, o que tem possibilitado a multiplicação de obras
audiovisuais, especialmente entre as camadas mais pobres da sociedade. No caso do Cinema
Circulante, esse processo de aprendizado se propõe a incluir a manipulação da luz, dos
enquadramentos do objeto que se deseja mostrar, do som que deve acompanhar, ou não, cada
imagem, bem como da seqüência e do enredo dos elementos audiovisuais captados, de acordo
com as intenções que se deseje transmitir para o expectador.
Ora, nessa oficina os alunos são convidados a conhecer o que é a linguagem
audiovisual desde a sua história até os seus conceitos técnicos. Ao organizarem-se em uma
equipe, distribuírem tarefas e executá-las, esses alunos são levados a aprender a fazer um
produto audiovisual desde a sua concepção até a sua exibição. Ao mesmo tempo os objetivos
a serem alcançados pelas equipes formadas, levam seus componentes a exercitarem a
149
cooperação mútua, aprendendo assim a conviver uns com os outros, a fim de obterem um
resultado comum.
Finalmente, quando os participantes da oficina exibem para a sua comunidade, e ainda
para comunidades estrangeiras, o produto de todo esse trabalho, se vendo, se conhecendo e se
reconhecendo em cada cena desse produto, aí finalmente, esses alunos aprendem a ser.
150
7 – CONSIDERACOES FINAIS: COMUNICAÇÃO, CULTURA E POLÍTICA EM
UMA NOVA PRÁTICA DA COMUNICAÇÃO
Chegou, enfim, um tempo em que tudo o que os seres humanos haviam considerado
inalienável tornou-se objeto de troca, de tráfico e pode alienar-se. É o tempo em que
as coisas mesmas, que até então eram comunicadas, mas nunca trocadas; dadas, mas
nunca vendidas; conquistadas, mas nunca compradas – virtude, amor, opinião,
ciência, consciência etc. – em que tudo, enfim, passou para o comércio. É o tempo
da corrupção geral, da venalidade universal ou, para falar em termos de economia
política, o tempo em que qualquer coisa, moral ou física, tendo-se tornado valor
venal, é levada ao mercado para ser apreciada por seu valor adequado.
12
12
Karl Marx, Misère de la philosophie, Paris, Ed. Sociales, 1947, p.33.
151
O projeto Cinema Circulante foi germinado a partir do sonho “da montanha que vai a
Maomé”, ou do cinema que vai até o público. Nesse caso, um público que pelas desigualdades
socioeconômicas características da realidade brasileira e regional, dificilmente teve acesso à
‘montanha’, por mais fascinante que ela pudesse parecer. Assim, esse público cresceu
desconhecedor dessa arte, e com um conhecimento superficial da linguagem audiovisual, “em
espaços fortemente marcados por carências referidas ao vertiginoso crescimento e crise do
Estado capitalista” (COTTA, 1979 apud DOIMO, 1995, P.50).
Essa observação sobre o crescimento desigual da sociedade brasileira é pertinente para
a presente pesquisa porque um de meus objetivos ao iniciá-la foi justamente o de descrever as
assimetrias existentes entre a produção dos significados, das imagens, do que termina se
constituindo em imaginário social, realizada por pequenos grupos com interesses ramificados
na economia, na política e em todos os outros setores da sociedade; e o consumo dessa
produção, quase sempre realizada de forma acrítica pela população tornada “telespectadora”.
É profundamente paradoxal que o número de lares com televisores seja maior do que
os lares com geladeiras e outros eletroeletrônicos básicos: de acordo com a pesquisa “Posse
de Equipamentos e Hábitos de Consumo”, realizada pela Eletrobrás/Procel, no decorrer dos
anos 2004 a 2006, o aparelho eletroeletrônico com maior presença nos domicílios brasileiros é
a televisão, presente em 97,1% deles. O número de televisores supera o de refrigeradores, que
pode ser encontrado em 96% das casas. A força da televisão pode ser medida por outro dado:
a média do número de televisores por residência é de 1,41, ou seja, há mais de um aparelho
por casa.
Por outro lado, não cresceu na mesma proporção as pesquisas sobre as maneiras como
a televisão influencia todo o país pela sua capacidade de penetração, amplo domínio e
dependência que exerce sobre toda a população. Ela é, sem dúvida, um dos meios de
comunicação mais poderosos já inventados. Se a linguagem audiovisual é a linguagem da
contemporaneidade, a televisão é o vetor por excelência dessa linguagem.
Veículo de cultura de massa, fato social, penetra todos os setores e classes da
sociedade, influencia e modifica hábitos, determina comportamentos, condiciona a linguagem
e, como estrutura estruturante de poder econômico e social, favorece amplamente a ideologia
152
da dominação e dos dominadores, tornando-se nas mãos das classes possuidoras um
instrumento de opressão e de alienação.
É claro que não se trata obviamente de creditar na conta dos meios de comunicação
social, em especial a televisão, todas as imperfeições da sociedade. É evidente que uma
política educacional que se preocupasse na alfabetização audiovisual, que se utilizasse dos
meios de comunicação como ferramentas do processo de ensino-aprendizagem poderia
minimizar em muito essa capacidade alienadora da televisão.
Entretanto, talvez mais que formar um público melhor e mais qualificado, mais
preparado para interpretar os signos da linguagem audiovisual, trata-se de criar as condições
para que um número mais expressivo de pessoas, senão a maioria social, seja capaz de
desvendar os segredos da produção da linguagem audiovisual, de produzir, intercambiar e
consumir imagens que estejam relacionadas com a sua experiência de vida particular, com a
cultura de seu grupo social.
É interessante observar que, de acordo com um conceito possível em Marx, a
alienação constitui precisamente na inversão daquele que trabalha, ser alienado da posse dos
meios de produção e desta maneira perder o caráter de produtor da riqueza material ou
espiritual, que passa a ser nominadamente absorvida por aquele que detém os meios de
produção e que passa a ser considerado o produtor.
Observa-se como no cotidiano aqueles que não passaram por um processo de
alfabetização audiovisual são tomados pelos proprietários dos meios de produção de imagens
apenas como “telespectadores”, ou seja, apenas como receptores passivos de informações.
Ao passo que a linguagem audiovisual veiculada pela televisão – aqui insistimos na
televisão, embora ela não seja o foco da nossa pesquisa, porque ela é o principal veículo da
linguagem audiovisual na contemporaneidade – tem o poder e a capacidade de fornecer os
fundamentos para a formação da consciência da existência do “telespectador”, este não possui
nenhum poder nem sobre a produção das imagens, nem sobre o desvendamento da linguagem
absorvida.
Diante desse cenário, o projeto Cinema Circulante se propôs a ir além da exibição que
relegaria a esse público a continuidade no papel de espectador. Ao contrário, através do
153
exercício dos pilares do saber, fazer, conviver e ser, parece incentivar seus participantes a se
apropriarem dos códigos que lhes foram expostos, dando-lhes a oportunidade de fazerem a
resignificação e recriação dos signos da linguagem audiovisual, lhes possibilitando a
oportunidade de uma vivência cultural mais ampla no sentido em que “transformam” a cultura
ao mesmo tempo que são “transformados” por ela.
A apreensão do projeto Cinema Circulante permite enxergá-lo como mais um passo na
concretização da proposta de educar para o acesso aos modos e meios de produção
audiovisual. Dessa forma, esse trabalho parece proporcionar aos seus participantes uma
contribuição marcante para um entendimento mais crítico e participativo da linguagem
audiovisual.
E foi a partir da realização da pesquisa qualitativa fenomenológica, buscando o
estabelecimento de uma comunicação “não violenta” com os entrevistados, que pudemos
compreender um pouco mais em que medida esse trabalho proporcionou a apropriação e
ressignificação dos códigos da linguagem audiovisual pelos participantes das oficinas,
portanto à alfabetização audiovisual, e à valorização mútua do ser individual, da comunidade
e da própria linguagem.
A difusão e a apropriação da linguagem audiovisual pelos movimentos sociais e
camadas populares acenam para o início de uma democratização dos meios de comunicação
audiovisuais, e é uma resposta ao evidente poder que os meios de comunicação exercem sobre
a sociedade.
Estamos no terreno da indústria cultural e sua força política porque criadora de
valores e costumes. Aqueles que reconhecem a força do cinema na construção da
hegemonia norte-americana, do início do século XX até hoje, sabem de que se trata.
Ele constituiu o ethos do país internamente e o impôs internacionalmente. [...]
(DAHL, 2005, p. 11)
Tão evidente que na 16ª legislatura 2007/2010 da Assembléia Legislativa de Mato
Grosso, quatro dos vinte e quatro deputados titulares (Maksuês Leite, Roberto França, Sérgio
Ricardo e Walter Rabello) são apresentadores de programas que mesclam sensacionalismo e
assistencialismo para manutenção e crescimento do seu poder político através de um veículo
“público”, uma concessão estatal.
154
A isso acrescentamos a estimativa realizada pelos próprios meios de comunicação de
Cuiabá, segundo os quais pelo menos seis apresentadores de programas de televisão deverão
ser candidatos a vereador nas próximas eleições municipais. Grande parte dos quais possuem
chances relativas de saírem vitoriosos do pleito, uma vez que a programação apresentada na
TV repete a fórmula tradicional usada com sucesso pelos apresentadores-deputados ou
deputados-apresentadores.
Outro aspecto que demonstra as relações incestuosas entre os meios de comunicação
social locais e os partidos e lideranças políticas é a chamada “verba de zelo”, uma instituição
semelhante ao famoso “jabá” que os produtores culturais e artistas pagam aos locutores e
apresentadores de programas de rádio para que suas músicas sejam tocadas. A “verba de zelo”
é uma prática institucionalizada em todas as redações de jornais e de televisão, embora
oficialmente não exista, tornando-se assim a profissão de jornalista um empreendimento
rentável na medida em que as notícias publicadas visam consolidar a imagem do político que
a paga.
O jornalista Antonio Lemos Augusto, em 24 de setembro de 2001 se reportou a um
fato que ilustra bem o significado dessa instituição para a imprensa da capital de Mato
Grosso
13
:
O que você, jornalista, pensaria sobre sua profissão se ouvisse o presidente da
Câmara Municipal da capital de seu estado admitir, para uma platéia de 70
estudantes de Direito, que a Casa pagava "verba de zelo" à imprensa? Foi o que
ocorreu comigo, na quarta-feira, dia 10/10. O presidente da Câmara Municipal de
Cuiabá, vereador João Antônio Malheiros, afirmou com todas as letras que havia
cortado a "verba de zelo", expediente que – segundo ele – sempre fora utilizado na
Câmara. Alguns minutos depois, outro vereador – o secretário-geral da Câmara,
Aurélio Augusto – não só confirmou o que Malheiros falara, como destacou para a
platéia a importância do ato de suspender a propina e garantiu que todas as
presidências anteriores à atual pagaram "verba de zelo" à imprensa mato-grossense.
O fato ocorreu na Univag, uma universidade em Várzea Grande, município vizinho
a Cuiabá. Conforme os dois vereadores, a extinção da "verba de zelo" foi um dos
motivos que propiciaram à Casa colocar o salário dos servidores do Legislativo em
dia, bem como garantir que – até o fim do ano – os vencimentos não serão atrasados.
É possível compreender, portanto, que não era uma "verbinha" de zelo e, sim, uma
gorda "verbona", pois chegava a influenciar no pagamento salarial. Mais: Malheiros
e Aurélio Augusto garantiram que, pelo fato da "verba de zelo" não mais existir, a
imprensa não noticia coisas boas da Câmara. Por conta disso, a sociedade não fica
sabendo das virtudes do Legislativo. Tudo bem que Aurélio Augusto admitiu, em
outro momento, que só uns cinco ou seis vereadores, de 21 ao todo, prestam na
cidade, mas isso é um detalhe... (AUGUSTO, 2001)
13
http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/ipub241020011.htm
155
Mas a tal “verba de zelo” ainda é um recurso muito tímido se a compararmos com a
verdadeira política de monopolização dos meios de comunicação que vem sendo posta em
prática nas últimas décadas e que resultou em impérios de comunicação controlados por
pequenos grupos políticos e/ou famílias que se instituem como os novos coronéis da pós-
modernidade, ou as novas oligarquias que ancoram seu poder econômico, político e cultural
na monopolização da produção e distribuição de notícias, informações e bens culturais.
A publicitária Gislaine Moraes, em junho de 2005
14
, denunciava a morosidade da
justiça mato-grossense em julgar o episódio protagonizado pelo então ex-governador Dante de
Oliveira que, juntamente com empresários do ramo da comunicação foram acionados
judicialmente para devolverem R$ 500 milhões aos cofres públicos, no caso que ficou
conhecido em todo o Estado como “Secomgate”:
Lamentavelmente, a população mato-grossense se vê diante de mais um episódio de
desrespeito ao cidadão, ao Estado e à Nação Brasileira. Protagonizado por políticos
e empresários da comunicação, o conhecido caso SECOMGATE nos parece que vai
acabar em "nada", levando para o ralo mais de R$ 500 milhões que teriam sido
desviados dos cofres públicos em benefício de meia dúzia de pessoas e apenas um
grupo de comunicação. No banco dos réus, o ex-governador Dante de Oliveira,
Dep.Federal Thelma de Oliveira e os ex-secretários de Comunicação de Mato
Grosso, Pedro Pinto e Mauro Camargo, o hoje senador Antero Paes de Barros, além
dos sócios-proprietários da agência de propaganda DMD Associados. Mais uma vez
foi adiado o julgamento do Recurso de Apelação número 14.974/2003, onde os
acusados foram condenados pelo juiz da 3ª Vara da Fazenda Pública de Cuiabá, Dr.
Alberto Silva, em 2002, por irregularidades na concorrência e na distribuição de
recursos entre os órgãos de comunicação com favorecimento ilícito e explícito.
(MORAES, 2005)
Por outro lado, esse relacionamento entre meios de comunicação e poder político
segue o mesmo paradigma em todo o território nacional, conforme dados da Revista VEJA, 1º
de novembro de 1995, página 43:
Das 302 televisões comerciais existentes no país, 94 pertencem a políticos ou ex-
políticos. Das 2.908 rádios, 1.169 pertencem a políticos ou ex-políticos. Dos 594
parlamentares, 130 têm uma concessão de rádio ou TV, ou uma combinação das
duas. O campeão de concessões no Congresso é o PFL. Sua bancada tem 115
parlamentares, e 44 deles têm 114 rádios e dezessete emissoras de TV. Fora do
Congresso, o PFL também é recordista. Os políticos locais filiados ao partido
detêm outras 196 rádios e dezoito emissoras de TV. Dos 27 governadores, doze têm
concessão de rádio ou TV. Das 20 afiliadas da Rede Globo no Nordeste, dezessete
estão na mão de políticos. (VEJA, 1995)
14
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2005/07/322328.shtml
156
Num país de dimensões continentais como o Brasil, é difícil mensurarmos e definir até
onde vai o poder da Rede Globo de Televisão, ou o quanto a Rede Record influenciou no
crescimento e fortalecimento da Igreja Universal do Reino de Deus e vice-versa. Mesmo
que a família Marinho e o Bispo Edir Macedo declarassem o real montante dos seus
rendimentos, essa informação não seria suficiente para se fazer um cálculo satisfatório, pois
estamos falando de valores culturais que repercutem sobre valores morais, de fé e de forma de
crença em Deus.
Valores que regulam o ser e a existência humana. Por essa razão é que, embora
imensurável pela sua grandeza, seja tão evidente a necessidade de inverter a ordem e passar,
em última instância compartilhar, o poder dos meios de comunicação com a sociedade, de
modo que ela passe a exercer sua cidadania de forma mais plena e consciente.
Fica claro como qualquer tentativa de se ampliar os espaços democráticos e de
participação popular, de se estabelecer no Brasil um novo paradigma social e político que
contemple antes de tudo os interesses do povo brasileiro, passa pela democratização dos
meios de comunicação social. É inegável que aos monopólios da terra, da água, dos meios de
produção material, se alia o monopólio dos meios de comunicação social e sem a quebra
desse paradigma comunicacional não se pode falar em democracia plena.
Para Michel Collon, evidencia-se a necessidade de que os jovens pudessem ter acesso
a “cursos de educação sobre os media”, “pois os media nos manipulam todos os dias. Eles
omitem uma grande parte da realidade”:
Este curso deveria permitir aprender a analisar as imagens, criticar a informação e ir
procurar alhures o que não é dito. Muito frequentemente, os media não dizem senão
uma parte da realidade e escondem elementos essenciais. Este curso deveria
igualmente ser interactivo e provocar a participação dos jovens, que seriam levados
a reagir e a reflectir sobre estas imagens, a perguntar-se se elas são verdadeiras ou
falsas, quem poderia manipular e porque... (COLLON)
A nossa pretensão com esta Dissertação de Mestrado “Conexões: movimento social,
educação popular e cinema – a experiência do Movimento dos Atingidos por Barragens de
Chapada dos Guimarães/MT com o Cinema Circulante” foi demonstrar que a aquisição da
linguagem audiovisual é um passo importante na construção da consciência política: o
conhecimento das ferramentas, dos processos de constituição da linguagem audiovisual
157
permite aos indivíduos passar da condição de mero consumidor de produtos, de imagens, para
a condição de leitor e produtor de imagens e de uma nova história de vida.
As entrevistas em profundidade com os militantes do MAB, os documentos que
relatam a história do movimento e a fala de Sérgio Brito indicam que a educação popular, na
forma de linguagem audiovisual, pode ser um instrumento estratégico para a transformação
social. Parece não haver dúvidas de que, a partir da mobilização em torno desse um projeto
educacional que teve como base a apropriação de uma conscientização política, esses grupos
conseguiram transpor as barreiras impostas pelas limitações da sociedade brasileira
contemporânea.
Afirmamos no início desta Dissertação que os indivíduos e grupos pertencentes às
camadas populares e subalternas diariamente se defrontam com entraves de ordem
econômica, política, social, cultural e ideológica, que tende a relegá-los aos patamares mais
baixos da sociedade. Nesse sentido, os procedimentos qualificados como educação popular
tem se demonstrado de grande valor para transpor ou minimizar essas barreiras.
Essas iniciativas, ainda bem menores do que a demanda, contam com uma
diversificação dos seus formatos de aplicação, que consideram as necessidades e também os
anseios de vivenciações do público a que a educação popular se destina.
Assim, esta pesquisa parece ter demonstrado a necessidade não apenas de
multiplicação de projetos como o Cinema Circulante, mas sobretudo a adoção, por parte das
instituições educacionais, de um programa de alfabetização audiovisual. Isso permitira que a
sociedade passasse da mera condição de telespectadora, de consumidora de produtos
audiovisuais e estivesse em condições de, no mínimo, discutir a produção dessas imagens.
158
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