Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARA
DEPARTAMENTO DE ARTES
A VOZ...
UMA CONCEPÇÃO FENOMENOLÓGICA
CURITIBA
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
DANIELE DE LUCA ROSA FRANCO
A VOZ...
UMA CONCEPÇÃO FENOMENOLÓGICA
Dissertação apresentada ao Mestrado em Música
do Departamento de Artes da Universidade
Federal do Paraná para obtenção do título de
Mestre.
Orientadora: Prof. Dra. Rosane Cardoso de
Araújo.
CURITIBA
2008
ads:
3
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SISTEMA DE BIBLIOTECAS
COORDENAÇÃO DE PROCESSOS TÉCNICOS
Franco, Daniele de Luca Rosa
A voz : uma concepção fenomenológica / Danielle de Luca Rosa
Franco. – Curitiba, 2008.
105f.
Inclui bibliografia e anexos
Orientadora: Profª Drª Rosane Cardoso de Araújo
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Paraná, Setor de
Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em
Música.
1. Voz. 2. Cantores. 3. Merleau-Ponty, Maurice, 1908-1961. I.
Araújo,
Rosane Cardoso de. II. Universidade Federal do Paraná. Setor de
Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em
Música. III. Título.
CDD 783
Andrea Carolina Grohs CRB 9/1.384
4
Filosofar é procurar; é implicar que há
coisas para se ver e se dizer.
MERLEAU-PONTY
5
AGRADECIMENTOS
Poder estudar e falar sobre esse assunto é dádiva de Deus. Poder contar com pessoas
tão especiais para realizar essa tarefa também o é.
Aos amigos, que demonstraram total apoio e confiança, aos familiares e professores.
Em especial à Rosane, com sua doçura e atenção.
Ao Alvaro, mais que um companheiro, inspiração... Em seu trabalho, realizado com
verdadeira paixão e sabedoria, pude presenciar a transformação de vozes em jóias, lapidadas de
maneira ímpar por sua habilidade de reconhecer a beleza na alma humana. Ao Ravi, filho
de inestimável valor e integridade, ver em seus olhos a confiança de que tudo daria certo fez com
que em todos os momentos eu acreditasse.
Aos amigos Cris, Cláudio, Simone, Adriano e Karina, os quais, nesse processo,
fizeram-me respeitar mais ainda a alma do artista.
À Ana Carolina, amiga, com a qual divido esse trabalho...
Obrigada.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................... 01
CAPÍTULO 1 – A Expressão Vocal............................................... 08
1.1 O Iluminar-se..................................................................................... 08
1.2 Fenomenologia da Percepção......................................................... 12
1.3 Expressão e Música......................................................................... 19
1.4 Música e Expressão Vocal: Aspectos Históricos.......................... 22
CAPÍTULO 2 – METODOLOGIA.............................................................. 27
2.1 O Método Fenomenológico............................................................. 27
2.2 Estudo Multi-Caso............................................................................ 28
2.3 Enfoque dos Casos.......................................................................... 28
2.4 Instrumento de Coleta de Dados.................................................... 29
2.5 Seleção dos Participantes............................................................... 29
2.6 Caracterização dos Casos................................................................ 30
CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DAS ENTREVISTAS........................................ 33
3.1 As concepções de Expressividade que norteiam a prática dos
entrevistados...........................................................................................
34
3.2 As especificidades do sujeito na ação performática..................... 43
3.3 Os elementos envolvidos na preparação vocal.............................. 53
3.4 Critérios para seleção de repertório................................................ 60
3.5 Conclusão das Análises................................................................... 68
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................... 73
REFERÊNCIAS.......................................................................................... 78
ANEXO 1...................................................................................................
ANEXO 2...................................................................................................
84
85
7
RESUMO
A voz é algo muito profundo, que fala do ser humano de uma maneira completa. A teoria
da Expressão, de Merleau-Ponty, aborda os pressupostos de uma fala expressiva que
leva em consideração o corpo como veículo de aprendizagem e de expressão. Neste
trabalho de pesquisa o intuito é investigar concepções acerca da expressão vocal de
cantores tendo como linha discursiva a fenomenologia segundo Merleau-Ponty. A
metodologia escolhida foi a pesquisa qualitativa, envolvendo um estudo multi-caso,
voltado para a prática musical e para as impressões de quatro cantores sobre
expressividade vocal. Todos os entrevistados, em seus discursos sobre expressão,
especificidades na ação de performance, preparação vocal e critérios para a seleção de
repertório deixaram entrever como essa construção do espaço/tempo artístico ocorre em
sua formação, aprendendo a discernir suas formas de expressão pessoais e a projetar
uma forma de mundo complexa e nova que vai promover alterações em seu próprio
mundo perceptivo e no do fruidor. Sugere-se, por fim, a realização de novas pesquisas
envolvendo grupos com amostragem maior de profissionais e que trabalhem com outros
encaminhamentos cnicos para possibilitar comparações de suas performances e
expressividade.
Palavras-chave: Expressividade, técnica vocal, Teoria da Expressão, Fenomenologia.
8
ABSTRACT
The human voice is a very deep phenomenon that represents the whole human being.
Merleau-Ponty’s Expression Theory considers that expressive speech involves the body
as a vehicle of learning and expression. This research aims to investigate the conceptions
about vocal expression in singers considering as a line base Merleau-Ponty
phenomenological aspects. The selected Method was the qualitative research involving a
multi-case study oriented to vocal practice and the personal impressions of four singers
about vocal expressivity. All the singers, in their speech about expressivity, specificity of
their performance, vocal preparation and repertory selection showed how space/time
building occur in their life and they learned how to discern their own personal expression
forms and to project a new and complex way to understand the world and promote
changes in their perceptive world of themselves and their listeners. We suggest new
researches involving groups with a larger number of members and that use another vocal
techniques orientation to be possible to compare their performances and musical
expressivity.
Key words: Expressivity, vocal technique, Expression Theory, Phenomenology.
INTRODUÇÃO
Em uma família com músicos, fui uma criança que cantava bastante. Nossa
brincadeira favorita era montar apresentações aos pais e avós e isso era muito gostoso.
Nessas experiências, alguns primos, músicos profissionais, sugeriam que estudasse
música e canto. Reticente quanto à profissão de musicista, entrei para o curso de
comunicação social e o interesse pelo uso da voz começou a tomar forma.
Seguindo conselhos, iniciei um trabalho vocal voltado ao canto erudito, no que
sempre fui uma aluna bastante dedicada. Esperava que, nesse trabalho, pudesse
aprimorar recursos comunicativos. No entanto, a voz que ouvia não me parecia estar
ficando mais bonita, pelo contrário, eu achava que estava adquirindo um desagradável
som estridente, fator que acabava gerando dúvidas. Pela falta de conhecimento, pensava
que talvez fosse este um processo normal: piorar para melhorar depois. Ao mesmo
tempo, entrei para o grupo de dança da universidade, buscando cultivar a expressão
artística em minha formação.
Mas um encontro especial aconteceu, quando, num dos intervalos das aulas de
dança na universidade, ouvi algo especial. Era uma voz que se espalhava por todo o
espaço de uma forma mágica. Como num ritual de encantamento, fui atrás dela para
saber o que estava acontecendo. Não era um jeito de cantar que valorizava o som agudo,
na cabeça, mas parecia que vinha de toda a cantora e essa era sua força. Nasceu então
uma paixão. Desde essa experiência, procurei essa escola de canto porque encontrei,
nessa maneira de utilizar a voz, respostas para meus anseios. Nesses dezesseis anos,
além da minha formação vocal, pude acompanhar a formação de inúmeros cantores e
também de atores. Percebi que a voz é algo muito profundo, que fala do ser humano de
uma maneira completa. Talvez seja por isso que se tenha tanto interesse para interferir
nessa dimensão da expressão humana. Assim o tema desta dissertação é delimitado no
enfoque do canto enquanto forma de expressão vocal.
A voz é um instrumento de comunicação e, com ela o ser humano é capaz de
estabelecer relações, posicionar-se frente a conteúdos e valores e mostrar-se ao mundo.
Neste trabalho de pesquisa o intuito foi investigar concepções acerca da expressão vocal
de cantores tendo como linha discursiva a fenomenologia segundo Merleau-Ponty. Com
esse enfoque pretendeu-se analisar, a partir dos sujeitos entrevistados, concepções de
expressividade que norteiam suas práticas, as especificidades dos sujeitos na ação
2
performática; os elementos envolvidos na preparação vocal e os critérios para a seleção
de repertório.
Para que tal intento fosse possível, neste trabalho procurou-se focar pesquisas de
autores que tratam da voz em seus diversos aspectos, desde o entendimento puramente
anátomo-fisiológico até o empreendimento de um treinamento vocal que deve ser
compreendido a partir de um sujeito, com suas dimensões pessoais e também inserido
em seu contexto cultural.
A escolha de Merleau-Ponty como o autor que norteia a discussão de expressão
vocal está na importância de seu trabalho para o entendimento da Percepção e da
Expressão humanas. Essas dimensões da comunicação se tornam possíveis a partir do
estabelecimento de significado para experiências que são a razão e relação de existência
desse ser que, atuando no mundo, demonstra sua existência.
Para que seja possível traçar essa relação de expressão vocal do ponto de vista
existencialista-fenomenológico
1
é preciso conhecer o fenômeno vocal a partir do que se
sistematizou a respeito desse assunto. Perrelló (1982, p.1), foniatra espanhol, diz que “a
voz é a respiração sonora, a vida manifesta em som, a diferença mais profunda dos
seres...”. Esta surge quando se pretende qualificar um instante vital, imprimindo
intencionalidades nos diversos contextos. Nas espécies em que ocorre, cumpre as mais
variadas funções como: afugentar, atrair, avisar, marcar território
2
.
Segundo Merleau-Ponty (1999), no ser humano tais funções chegaram a um nível
de sofisticação tão grande que propiciaram o estabelecimento de idiomas. Nesse sentido,
a voz está tão intrinsecamente ligada ao fenômeno vital que é possível, a partir dela,
estabelecer sinais que delineiam a qualificação que se quer dar ao instante vivido.
Portanto, não aquilo que se pode depreender do que é dito, mas também a forma
como é dito assume a mesma importância vital.
Amato (2006) considera que a identificação e qualificação vocal de um indivíduo
pertencem a uma rotina cotidiana de sua rede de configurações sociais, de tal maneira
que num diálogo, mesmo ao telefone, é possível identificar características físicas do
interlocutor, assim como suas intenções.
1
No existencialismo, uma preocupação com o sentido ou o objetivo das vidas humanas, mais que com
verdades científicas ou metafísicas sobre o universo. Dessa maneira, a experiência interior ou subjetiva - e
aí está a influência da fenomenologia - é considerada mais importante do que a verdade "objetiva".
2
Isso pode ser evidenciado através de estudos, como por exemplo, o trabalho de Merker (apud CROSS,
2000), que sugere que um comportamento desse tipo é a farra dos chimpanzés pela fruta - por meio da qual
eles parecem avisar uns aos outros, através de um chamado alto e não sincronizado, de que uma
quantidade abundante de frutas está ao seu alcance.
3
Existe um conjunto extenso de sinais vocais que dimensionam essas
intencionalidades, sentimentos e emoções, tornando-os inteligíveis quando produzidos no
intuito de qualificar um instante vital qualquer. Tais sinais permitem a quem ouve avaliar
desde a estatura de quem fala, até segundas intenções agregadas à declaração. Behlau
& Pontes (1995) consideram que todos somos capazes de reproduzir várias vozes, ou
seja, mudar o padrão vocal de acordo com o interlocutor e com o contexto da
comunicação. Essa capacidade é considerada como um bom sinal de saúde vocal do
ponto de vista anátomo-funcional, ao se conseguir diversos ajustes motores, assim como
do ponto de vista psicoemocional ao se considerar a mensagem vocal que revelará a
intenção do discurso.
O canto, para o ser humano, ocupa um lugar sui generis, pois, de alguma forma,
sinaliza que aquele momento de vida se reveste de um grande significado. As técnicas de
canto tradicionais foram desenvolvidas por artistas ou especialistas da voz como uma
alternativa para ferramentá-la sob diversos aspectos em épocas distintas. Segundo
Coelho (2003), no decorrer da Idade Média, o apelo às emoções humanas era
considerado mundano, “tudo o que estivesse relacionado ao corpo era considerado imoral
e inferior” (ibid, 2003, p. 19) e o grande esforço era o de ressaltar os valores da fé, tanto
na criação musical, quanto na sua execução vocal (cantochão
3
). Num momento histórico
posterior, no Romantismo, a expressão do amor era de tal forma ambígua, que os
padrões sonoros induziam o ouvinte aos aspectos contraditórios de tais sentimentos.
Assim tristeza, alegria, prazer e sofrimento eram emitidos simultaneamente de modo a
ressaltar essa disseminada ambigüidade, caráter esse que se manteve até o século XIX.
No mundo do canto erudito, se observa uma tendência à fixação nos repertórios
dos séculos XVIII e XIX, em que cada registro vocal é subdividido em habilidades
tímbricas que tornam os intérpretes especialistas na realização de alguns papéis clássicos
que integram o repertório tradicional do canto. Isso quer dizer que a realização musical
dependia mais das características tímbricas do cantor, o que não garantia que o cantor
habilitasse sua voz para ser expressiva.
Se no século XVIII o herói era o castrato, no século XIX, no que concerne às
orientações desses papéis, Perelló et al. (1982) elencam as diversas orientações
tradicionalmente aceitas para cada registro vocal. Dessa forma, segundo esses autores,
os tenores são os primeiros atores, jovens de vinte anos, heróis ou cômicos. Os baixos
3
Cantochão é o termo utilizado para designar o canto monofônico e em uníssono, originalmente sem
acompanhamento, empregado em liturgias cristãs. (Dicionário Grove de Música)
4
são os pais nobres, vilões, anciãos ou trágicos. Os sopranos ligeiros são as jovens
ingênuas ou donzelas confidentes. Aos sopranos líricos já são reservados os papéis
românticos e de heroínas. Assim se estabelece esse tipo de classificação.
No século XVIII, Glück (apud PERELLÓ et al., 1982) introduz uma reforma
consciente no canto que aparece demonstrada na introdução à ópera “Alceste”:
Quando empreendi a tarefa de musicar a ópera ‘Alceste’ era minha intenção evitar
cuidadosamente todos os abusos que a falsa vaidade dos cantores e a excessiva
complacência que os compositores haviam introduzido na ópera italiana. Estes
abusos têm rebaixado um dos mais bonitos e brilhantes espetáculos teatrais à
categoria de mais cansativo e ridículo. Por isso pretendi conduzir a música por
seus caminhos verdadeiros, fazendo com que ajude o poema a reforçar a
expressão dos sentimentos e o interesse das situações, sem interromper a ação
nem desfigurá-la com adornos inúteis. (ibid, pág. 25-6)
Observa-se na fala de Glück uma reação de contrariedade aos abusos produzidos
pela atitude dos cantores, assim como pelo excesso de tolerância dos próprios
compositores. Nesse contexto esse compositor assumiu uma atitude de exigir do cantor
uma exploração mais responsável dos conteúdos impressos na obra. Para conseguir tal
intento, exigia dos intérpretes a capacidade de julgar criticamente a utilização das
ferramentas técnicas, possibilitando que a obra pudesse ser apreciada por aspectos que
antes não estavam em evidência. Descobrir e imprimir tais aspectos são tarefa do
intérprete.
Novas alternativas técnicas são buscadas para solucionar a interpretação do
repertório tradicional e contemporâneo. Alcançar clareza na interpretação se torna muito
fecundo, pois destaca aspectos relevantes dos conteúdos. Segundo Salgado e Wing
(2007), investigações recentes na área de performance musical consideram que uma
parte significativa da criatividade musical do intérprete está relacionada à sua capacidade
de expressar e comunicar emoções. Os autores consideram que o Canto e seu estudo,
enquanto atividades criativas e de comunicação, requerem um conjunto de sinais
expressivos que precisam ser identificados e conscientizados pelo cantor, a fim de que
possam ser utilizados com toda sua força comunicativa.
Para Rouanet (1990) a ética comunicativa, subjacente na ação e intenção de
estabelecer uma relação de comunicação entre seres humanos, é universalista. Ela se
fundamenta na hipótese de uma natureza humana universal, baseada na universalidade
da comunicação pela linguagem. A moldura argumentativa, ou seja, o suporte da
argumentação é igualmente universal, não no sentido de que não existam discursos
5
locais, em que os interessados abrangeriam apenas um grupo social específico, mas no
sentido de que os argumentos usados devem ser suscetíveis de convencer todos os
seres racionais, mesmo os não diretamente envolvidos.
É uma ética argumentativa, com uma estrutura de normas e valores que
privilegiam o entendimento mútuo e inclui valores como a liberdade de todos os
participantes e igualdade de tratamento no decurso do processo argumentativo.
Além de aparecer como pressuposto pragmático-transcendental de saber
antropológico, a ética aparece como objeto desse saber...(ibid, p.5)
Com base nessa ética argumentativa, ao se pensar o desenvolvimento técnico da
voz humana precisa-se também expandir as perspectivas interpretativas, para que, ao
discutir “problemas” individuais, simultaneamente o intérprete os universalize. Isso
porque, de acordo com os autores consultados sobre a técnica vocal, é possível que haja
um grande avanço na compreensão da construção de expressão vocal considerando as
experiências nas mais diversas culturas sobre as possibilidades de utilização do aparelho
fonador na produção de sons. Assim sendo, é possível perceber uma tendência de se
compreender o processo civilizatório como uma rede em que todas as comunidades têm
conhecimentos, valores e dimensões vivenciais que podem contribuir para um
aprimoramento global (CALLAGHAN, 2000; SAKAKIBARA et al., 2002; ESTIENNE,
2004).
Ao se falar de aprimoramento global, é necessário que se pense em uma
exploração consciente de sinais da intencionalidade na voz humana que, sem dúvida,
ainda pode ser melhorada pela técnica do bel canto
4
, face às demandas da convivência
atual de toda a humanidade. Segundo Salgado e Wing (2007), parece ser hoje melhor
compreendido, e até passível de ser confirmado empiricamente, que existe uma inerente
homologia de organização e de dinâmica entre os sons da música, os movimentos e até a
própria dinâmica da vida afetiva e os padrões de movimento.
Merleau-Ponty (1999) responde de certa forma a essas preocupações com a voz
expressiva em seu estudo sobre percepção e expressão. Nele, o autor estudou a fala
expressiva a partir do pressuposto de que ela ocorre no momento da fala e a partir da
experiência integral corpórea. Nessa direção encontram-se convergências do estudo de
4
Expressão geralmente usada para se referir ao elegante estilo vocal italiano dos sécs. XVII a XIX,
caracterizado pela beleza de timbre, emissão floreada, fraseado bem feito e técnica fácil e fluente.
(Dicionário Grove de Música). Nos dias de hoje, o termo compreende a utilização da voz cultivada no
repertório erudito.
6
Merleau-Ponty com as pesquisas mais recentes que apontam para a voz expressiva como
uma necessidade para o intérprete.
A voz, instrumento de expressão do ser humano, deve ser entendida como um
produto complexo, resultado de interações biológicas, intelectuais, emocionais, sociais e
espirituais. É o instrumento de trabalho e de comunicação mais difundido (LE HUCHE e
ALLALI, 2005).
Para Amato (2006), o requinte auditivo que o ser humano é capaz de desenvolver é
o principal coadjuvante utilizado no processo de análise de uma voz falada ou cantada.
Boone (1994), estudioso das funções e disfunções da voz, também afirma que o
modo como nos sentimos afetivamente pode ser ouvido no som da voz, revelando a
intimidade entre a voz e a função vocal, confirmando a idéia de que através do som
produzido pelo sujeito por seu mecanismo vocal, ele comunica sua maneira de existir.
Assim como se aprende uma sonoridade em acordo com o que se sente, se pensa, se
percebe de si mesmo e do seu entorno, também se aprende a identificar esses mesmos
mecanismos nos demais sujeitos que comunicam suas relações de existência através do
som que produzem.
Amato (2006, p. 68) explica: “A realização de uma leitura vocal diz respeito à
enumeração dos fatores anátomo-fisiológicos, psicoemocionais, educacionais e culturais
que estruturaram o indivíduo para ajustes motores e produziram sua identidade vocal”.
Para esta autora, a prática de uma leitura sonora desde o nascimento, ao reconhecer a
voz da figura materna, os sinais de afeto e de segurança, assim como os sinais sonoros
que denunciam o perigo, constituem um eficiente mecanismo de defesa e de alerta para a
manutenção da vida.
Assim como a prática de leitura vocal desenvolve a habilidade de reconhecer
características e estruturas físicas, essa mesma prática possibilita a intercomunicação
subjetiva através de sinais sonoros que explicitam a intencionalidade dos interlocutores.
Essa prática também está sujeita aos ajustes musculares e à identidade vocal admitida
por cada sujeito como sua. Muitas vezes esta realidade é subentendida como imutável
condição de identificação de cada sujeito. No entanto, isso não se prova realidade, pois a
voz e seus sinais podem ser reorganizados segundo outros parâmetros, conferindo
condições que sejam mais satisfatórias para o sujeito (ESTIENNE, 2004).
O profissional da voz enfrenta essa questão cotidianamente em seu trabalho, pois
a sua voz o é a sua projeção. Isso se explica diante do desafio que enfrenta ao
construir os diversos personagens e na delimitação das diversas condições em que se
7
deve atuar. Os personagens, geralmente, não carregam características semelhantes às
do profissional que o interpreta; a música deve trazer uma leitura e uma interpretação que
não estão puramente condicionados à experiência do cantor; o locutor deve trazer os
conteúdos presentes no texto comunicando-os independentemente de suas preferências
pessoais ou disposições do momento; enfim, o profissional da voz se torna cada vez mais
eficiente se consegue produzir de forma proposital os sinais de emoção e de
intencionalidade na sua atuação vocal. Neste caso, não se deve confundir a produção da
expressão vocal com o uso dos gestos corporais (bastante estudado e produzido no
ambiente teatral).
No sentido de esclarecer esses pontos na prática da expressão vocal, optou-se por
analisar o discurso de quatro cantores acerca de sua própria experiência ao produzir, de
forma proposital, sinais expressivos que identifiquem suas intenções.
Através dessa análise, será possível extrair considerações que poderão ser
utilizadas no entendimento do fenômeno da expressividade vocal. Este trabalho é
justificado pela escassez de literatura acerca do tema e poderá ser útil a todos os sujeitos
que tem na voz seu instrumento de trabalho ou que buscam aprimorar sua
expressividade.
8
CAPÍTULO 1- A EXPRESSÃO VOCAL
Para tratar de expressão vocal, optou-se por buscar subsídios na Filosofia,
especificamente no pensamento de Merleau-Ponty, em concepções de expressão
vigentes em Música e, também, por meio de um breve histórico sobre a expressão vocal.
Constatou-se que a Fenomenologia surge como contraponto ao racionalismo exacerbado
do século XVIII que excluía a subjetividade humana no fazer científico. Neste sentido, o
pensamento fenomenológico passa a valorizar a experiência subjetiva como uma
estratégia de conhecimento. Nesse capítulo, faz-se uma contextualização do pensar
fenomenológico. A seguir, a partir dos trabalhos de Merleau-Ponty (1999), são abordados
os pressupostos de uma fala expressiva que leva em consideração o corpo como veículo
de aprendizagem e de expressão. Na seqüência, estabelece-se uma correlação entre a
concepção de Merleau-Ponty e a vivência da música como fenômeno expressivo,
fazendo-se uma revisão histórica do conceito de expressão vocal.
1.1 Iluminar-se
O conhecimento foi sistematizado pela humanidade através dos tempos, marcando
culturas e maneiras de entender o homem na sua relação com seu zeitgeist
5
. No
Ocidente, o período Medieval (séculos V - XV) estabelece um ponto de vista teocêntrico,
em que as relações do homem/mundo estão diretamente focadas na religiosidade e na
espiritualidade, estando o ser humano submetido à “vontade de Deus”.
Em contrapartida, o Iluminismo (final do século XVII e início do século XVIII) foi um
momento no qual, após a experiência medieval, a burguesia pôde re-elaborar a cultura
européia na filosofia racionalista. Adorno
6
considera o Iluminismo como um pensar que
fez progressos, pelo qual o homem procurou libertar-se do medo, do “feitiço” enfim, fazer-
se livre para decidir suas ações. Em seu “Conceito de Iluminismo” (1999), o autor pondera
que uma das estratégias adotadas naquele momento histórico era considerar que o que
não se ajustava às medidas da calculabilidade e da utilidade tornava-se suspeito.
5
Expressão alemã que significa “espírito da época”.
6
Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno (1903 — 1969) foi um filósofo, sociólogo, musicólogo e compositor
alemão. Foi membro da Escola de Frankfurt juntamente com Max Horkheimer, Walter Benjamin, Herbert
Marcuse, Jürgen Habermas e outros.
9
Para Lara (1991), o ocidente viveu, por meio da ascensão burguesa, momento de
positividade histórica, de confiança no destino da humanidade e de certezas sobre as
metas a serem atingidas. Com o Empirismo, na figura de seus grandes pensadores, não
foi diferente. A negação de um modo de pensar metafísico, raiz da contestação que o
empirista fazia ao racionalista, não implicava na perda da fé na capacidade que o homem
tinha de conhecer e de gerir seu próprio destino. Nessa forma de pensar dos empiristas
observou-se uma exigência maior, sim, de metodologias diversas.
A Ciência, portanto, a partir deste período, significou a conquista de concretude, de
segurança e de eficácia para a história do homem. No intuito de alcançar tais objetivos, o
racionalista teve de optar por um tipo específico de racionalidade, configurada por
exigências de precisão metodológicas, o que poderia representar uma limitação das
possibilidades de conhecimento. Segundo Lara (1991), nesse contexto, apenas era objeto
de ciência o que pudesse ser enquadrado no método científico, sendo que este deveria
cingir-se pelo quantificável.
Assim, no Iluminismo, a multiplicidade das figuras foi reduzida à posição e
ordenação; a história, ao fato; as coisas, à matéria (ADORNO, 1999). Dessa forma, o que
não era quantificável extrapolava as possibilidades do controle metodológico científico,
portanto não poderia ser pretendido como Ciência. A conseqüência disto era fazer com
que tudo na natureza pudesse se repetir.
A racionalidade científica, limitada pela necessidade de fragmentar o objeto para o
estudo, passou a ser invocada para justificar a nova ordem estabelecida, pretendendo sua
perpetuação. Começou-se a erigir uma racionalidade extremada que se chamou
cientismo ou cientificismo. Como exemplo desse modo de pensar pode-se citar o
Positivismo
7
, o qual surgiu como uma corrente sociológica que, segundo Bochenski
(1968), se esmerou em limitar a Razão, definir quadros, pregar a ordem.
Se, por um lado, esse modo de fazer ciência tornou-se responsável por
estratificações que garantiram grande avanço tecnológico, por outro lado a ciência entrou
numa espécie de crise quando não pôde dar conta da tarefa de pensar a totalidade
(ADORNO, 1999).
Para Hegel (apud Adorno, 1999), o resultado do Iluminismo foi o estabelecimento
de distância entre sujeito e objeto. Hegel ainda afirma que o Iluminismo era tão totalitário
7
O Positivismo é uma corrente sociológica cujo precursor foi o francês Auguste Comte (1789-1857).
10
quanto qualquer outro sistema. Seu ponto fraco não foi o método analítico, a volta aos
elementos, a decomposição por reflexão, mas, sim, o fato de que o processo estava
decidido previamente e identificava o mundo matematizado com a “verdade”.
Os
Iluministas acreditavam estar salvos da possibilidade de retornar ao pensamento mítico a
que se opôs. Como conseqüência, o pensamento se transformou num processo
automático que transcorria por conta própria, muito próximo da máquina que ele mesmo
produzia para que essa pudesse finalmente substituí-lo.
Um mundo infinito, aqui um mundo de idealidades, é concebido como um mundo
cujos objetos não se tornam mais acessíveis a nosso conhecimento um por um,
de maneira incompleta e como que acidentalmente, mas um método racional,
sistematicamente unitário atinge finalmente num progredir sem limites cada
objeto segundo o seu pleno ser em si... Na matematização galilena da natureza, a
própria natureza é então idealizada, sob a orientação da nova matemática; ela
própria modernamente falando torna-se uma multiplicidade matemática
(HUSSERL apud ADORNO, 1999; p. 42).
A convicção de que o único conhecimento válido era o conhecimento científico,
valorizando apenas aquilo que podia ser submetido ao controle científico, provocou uma
crise do Humanismo na cultura ocidental. Se “o homem, para a ciência, pode medir-se
pelos critérios das coisas, ele se torna coisa com as coisas” (LARA, 1991, p.99).
Dessa crise instaurada pelo cientificismo, se podiam distinguir esforços para salvar
o patrimônio humanístico do ocidente através da reflexão filosófica. A Fenomenologia
surge então como uma corrente filosófica de crítica ao cientificismo. Essa corrente de
pensamento pretendia superar a crise do cientificismo e do ceticismo, além de realizar
uma crítica substancial ao psicologismo
8
(TRIVIÑOS, 1987).
Um dos principais representantes da corrente fenomenológica foi Edmund Husserl,
que dedicou toda sua vida e atividade à luta pela superação do estado de coisas
provocado pelo cientificismo, tendo como premissa que a constituição da Filosofia como
reflexão radical era o suporte de uma ciência rigorosa. À Filosofia concebida dessa
maneira Husserl denominou Fenomenologia que, etimologicamente, significa estudo ou
ciência do fenômeno (MOREIRA, 2004).
Ao se falar em fenômeno, admitia-se que se tratava do que era percebido pelos
sentidos e pela inteligência. Para Husserl, fenômeno era tudo aquilo que, pela
8
Tendência de reduzir toda a verdade a uma verdade psicológica, compreendendo como realidade
psicológica a realidade do sujeito empírico, suscetível de experiências sensíveis e quantificáveis
(BOCHENSKI, 1968)
11
experiência, aparecia à consciência. Portanto, para os pensadores da Fenomenologia, o
fenômeno significava o aparecer da realidade à consciência, ou seja, à maneira com que,
de fato, a realidade se dava à consciência. Como tarefa, o filósofo deveria tentar abrir-se
a essa consciência, sem preconceitos para poder apoderar-se dela. O resultado disso foi
que uma das primeiras características da Fenomenologia se constituiu na descrição
minuciosa do fenômeno (TRIVINÕS, 1987).
Como o fenômeno compreendia o aparecer na consciência, isso era o que
realmente se deveria alcançar para compreendê-lo em sua essência. O que era externo à
consciência, estava fora das possibilidades de estudo. Husserl considerava que era
necessário assumir uma atitude diferente da comum que se utilizava frente a qualquer
fenômeno (MOREIRA, 2004). Como procedimento, colocava-se entre parênteses a
possível existência da coisa, ou seja, o fenômeno que se está estudando. Portanto,
concentrava-se no fenômeno para analisá-lo em profundidade. Com isso, reduzia-se a
experiência. Como fruto dessa redução, obtinha-se um conteúdo pensado, uno, sempre
idêntico, indestrutível. Em Filosofia, chamou-se a isso de essência ou eidos
9
.
De acordo com Lara (1991), a filosofia eidética, de que fala Husserl, seria
encarregada de descobrir e de descrever conteúdos da consciência que não são simples
percepções de coisas individuais, mas são significações universais. É por essa razão que
se afirma que a fenomenologia é uma ciência das essências.
9
Eidos, palavra grega para designar essência
12
1.2 A Fenomenologia da Percepção
Maurice Merleau-Ponty foi professor de Filosofia na Universidade de Lyon e da
Sorbonne em 1945 e, em 1952, ganhou a cadeira de filosofia no Collège de France.
Membro do Movimento existencialista, tornou-se colaborador de Sartre no jornal Les
Temps Modernes. Apesar de grandemente influenciado pela obra de Edmund Husserl,
Merleau-Ponty rejeitou sua teoria do conhecimento intencional fundamentando sua
própria teoria no comportamento corporal e na percepção. Sustentava que é necessário
considerar o organismo como um todo para se descobrir o que se seguirá a um dado
conjunto de estímulos.
A relação do sujeito e do objeto não é esta relação de conhecimento de que falava
o idealismo clássico e no qual o objeto aparece sempre como constituído pelo
sujeito, mas uma relação de ser segundo a qual, paradoxalmente, o sujeito é seu
corpo, seu mundo e sua situação, e de certa forma estabelece com estes uma
permuta. (MERLEAU-PONTY apud Von ZUBEN, 1984, p. 125).
Assim, Merleau-Ponty toma como ponto de partida o fenômeno do
“comportamento” e nele erige a percepção como contato primeiro com o mundo.
Merleau-Ponty vai até à raiz da subjetividade com sua concepção do corpo-sujeito,
corpo este que estabelece com o mundo uma relação pré-objetiva, pré-consciente, de
caráter dialético, de modo algum causal ou constituinte: fazer do corpo o sujeito da
percepção não significa ceder ao impulso do empiricismo, mas antes tomar partido contra
o racionalismo cúmplice do empirismo no sentido de se ligarem ao pensamento causal
(VON ZUBEN, 1984).
Merleau-Ponty (1999) afirma que, mesmo depois de meio século dos primeiros
trabalhos de Husserl, a Fenomenologia ainda se encontra longe de ser resolvida. Para
aquele, a Fenomenologia é o estudo das essências, ou seja, todos os problemas se
resumem em definir essências. Nas palavras do autor, a Fenomenologia:
...é uma filosofia transcendental que coloca em suspenso as afirmações da
atitude natural para compreendê-las. Mas é também uma filosofia para a qual o
mundo essempre “ali”, antes da reflexão, como uma presença inalienável, e
cujo esforço todo consiste em reencontrar este contato ingênuo com o mundo,
para dar-lhe enfim um estatuto filosófico (MERLEAU-PONTY, 1999, p.01).
Outros filósofos da existência ou existencialismo, como Husserl, Heidegger e
Sartre, utilizaram o método fenomenológico, chegando mesmo a entrelaçar
13
Fenomenologia e Existencialismo. Porém em nenhum deles se encontram articuladas, de
modo tão explícito e harmônico, a Fenomenologia e a existência como em Merleau-Ponty
(FURLAN e BOCCHI, 2003). Nesta seção, portanto, são abordados os principais
pressupostos do autor sobre a fala expressiva do ponto de vista da percepção e do corpo
do sujeito.
Em “Fenomenologia da Percepção”, o autor discute a relação peculiar entre a fala e
o sujeito. De acordo com as teorias vigentes até aquele momento, o sentido das palavras
era considerado como fornecido através dos estímulos que as evocavam ou com os
estados de consciência que se procurava nomear. A configuração sonora
10
ou articular da
palavra era dada com os traços cerebrais ou psíquicos; a fala não era pensada como uma
ação que manifestava possibilidades interiores do sujeito.
Em estudos de casos de doentes, Merleau-Ponty observou que, na afasia
11
o que
se perdia não era certo estoque de palavras, mas uma determinada maneira de utilizá-las.
A mesma palavra estava disponível na linguagem automática (linguagem relacionada a
um significado evidente e imediato) e deixava de estar no plano da linguagem gratuita
(quando o sentido da palavra está distante da ação ou do contexto em que se insere).
Num exercício verbal, o afásico não conseguia pronunciar determinada palavra quando se
tratava de uma prática sem interesse afetivo e vital. Subjacente à palavra descobrir-se-ia
uma atitude, uma função da fala que a condicionava. A isso, o autor denominou fala
autêntica e esta passou a ser compreendida como um fenômeno do pensamento.
Por meio desses estudos, o autor concluiu que nem as psicologias empiristas ou
mecanicistas e nem as psicologias intelectualistas davam conta de explicar os problemas
da linguagem. Estes não se resolviam passando da tese à antítese. De um lado, a
reprodução da palavra, a revivescência da imagem verbal era o essencial; do outro lado,
ela era apenas o invólucro da verdadeira denominação e da fala autêntica (operação
interior)
12
. Portanto, para as concepções psicológicas vigentes, a palavra por ela mesma
não tinha significação.
Do ponto de vista da psicologia mecanicista, a palavra era apenas um fenômeno
fisiológico, psíquico, ou mesmo físico justaposto aos outros e trazido à luz pelo jogo de
10
Configuração sonora significa aqui os sons que são o suporte da fala.
11
Afasia: enfraquecimento ou perda quase total do poder de captação, manipulação e por vezes de
expressão de palavras como símbolos de pensamentos, em virtude de lesões em alguns centros cerebrais
e não devido a defeito no mecanismo auditivo ou fonador (HOUAISS, 2001)
12
Fala autêntica se refere aqui à idéia, ao pensamento que precede a ação de falar (MERLEAU-PONTY,
1999)
14
uma causalidade objetiva
13
. A evocação da palavra não era mediada por nenhum
conceito.
A palavra analisada por meio da psicologia intelectualista estava desprovida de
uma eficácia própria, porque era apenas o signo exterior de um reconhecimento interior
que poderia fazer-se sem ela e para o qual ela não contribuía
14
. A palavra o era
desprovida de sentido, ela não tinha esse sentido; a palavra continuava a ser um
invólucro vazio. Era apenas um fenômeno articular, sonoro, ou a consciência desse
fenômeno (acompanhamento exterior). Estava além da fala, pois havia um sujeito
pensante.
Merleau-Ponty ultrapassou tanto o intelectualismo quanto o empirismo pela simples
observação de que a palavra tinha um sentido. Com essa constatação foi possível
desenvolver um terceiro ponto de vista.
Se a fala pressupõe o pensamento (intenção de conhecimento ou por uma
representação) não se compreenderia por que o pensamento tende para a expressão,
assim como para seu acabamento, ou seja, para a necessidade de lhe atribuir uma forma
que conta de manifestá-lo. O objeto mais familiar parece indeterminado enquanto não
se encontra seu nome, porque o próprio sujeito pensante ignora seus pensamentos
enquanto não os formulou, pronunciou e/ou escreveu, dando-lhe corpo a partir da ação.
Pensar é uma experiência (fala interior ou exterior) que progride quando dela o sujeito
se apropria. É através da expressão que essa apropriação é possível.
Ainda de acordo com Merleau-Ponty, observa-se que na prática das culturas existe
um pensamento que pode ser chamado de pré-científico, ou seja, não balizado pelas
normas da ciência, no qual o ato de nomear o objeto é fazê-lo existir ou modificá-lo.
Portanto, se depreende que existia um entendimento da importância do som pronunciado
no reconhecimento da existência do objeto ou da experiência significativa. De maneira
análoga, para o autor, a denominação não vem depois do reconhecimento, ela é própria
do reconhecimento, isto é, o objeto passa a ser reconhecido quando é nomeado. O nome
é a essência do objeto e reside nele, do mesmo modo que sua cor e sua forma. A palavra,
13
O paradigma mecanicista agrupa todos os paradigmas que aceitaram a visão de mundo de René
Descartes, segundo a qual o mundo natural é uma máquina carente de espiritualidade, e, portanto, deve ser
dominada pela inteligência humana e ser colocada ao seu serviço.
14
O intelectualismo é uma doutrina que pretende justificar pela razão os fins últimos do ser humano, o
predomínio, de um sistema ou de um tipo de cultura, dos elementos racionais, da inteligência e da razão;
está intimamente ligado ao racionalismo.
15
longe de ser um signo dos objetos e das significações, habita as coisas e veicula as
significações.
A fala, de acordo com o autor, não traduz naquele que fala um pensamento já feito,
mas o consuma. Aquele que escuta, recebe o pensamento da própria fala e pode, muitas
vezes, compreender para além daquilo que espontaneamente se pensa
15
. Apesar de,
geralmente, apenas se compreender uma linguagem que seja familiar, por vezes, os
pensamentos despertados por palavras de um texto se unem em um pensamento novo
que remaneja as palavras, transportando para o centro da idéia, sua fonte. É preciso que
o sentido da palavra seja induzido pelas próprias palavras ou, mais exatamente, que sua
significação conceitual se forme por antecipação a partir de uma significação gestual que
é imanente à fala.
Para o autor, naquele que escuta ou lê, como para o que escreve ou fala, um
pensamento na ação da fala. No sujeito que fala, o pensamento não é uma
representação. Esse sujeito não pensa antes de falar, nem enquanto fala. A sua fala é
seu pensamento. As palavras vêm em direção à expectativa para preenchê-la, e por isso
se fala. Como esclarece o autor, o fim do discurso é o fim de um encantamento. Por isso
podem advir os pensamentos sobre o discurso ou sobre o texto. A palavra é certo lugar
do mundo lingüístico e só há um meio de representá-la: pronunciá-la.
Bérgson, citado pelo autor, ao se referir a um “quadro motor”
16
da evocação,
explica que a imagem verbal não é uma fase anterior ao ato de falar e separado deste.
Ela é uma das modalidades de gesticulação fonética, compondo, com muitas outras, a
consciência global do corpo.
Do mesmo modo, em Arte, a operação expressiva não se limita à tradução, mas
efetua a significação. Em Música, não se procura a significação musical da sonata
separando-a dos sons que a compõem. Uma vez que é encerrada a execução, para uma
possível análise, só se pode reportar ao momento da experiência. Durante a execução, os
sons não são apenas os signos da sonata; a obra está ali através deles. Da mesma
forma, no teatro, o ator lugar ao personagem que interpreta. Assim, para Merleau-
Ponty, a expressão estética confere a existência àquilo que exprime, instala-o na natureza
como uma coisa percebida acessível a todos, ou, inversamente, arranca os próprios
15
Para Merleau-Ponty, o ser humano é capaz de reconhecer, no outro, elementos de expressão carregados
de significação que promovem uma alteração na sua própria rede de significações e a altera.
16
Quadro motor se refere ao conjunto muscular apto a realizar uma ação intencional e planejada
(MERLEAU-PONTY, 1999).
16
signos de sua existência empírica a pessoa do ator, as cores e a tela do pintor - e os
arrebata para um outro mundo.
O autor afirma que sujeitos que apresentam disfunções na fala podem ler um texto
“com ritmo” sem, no entanto, entendê-lo, pois a fala ou as palavras trazem uma primeira
camada de significação que lhes é aderente e que oferece o pensamento enquanto estilo,
valor afetivo, cópia da vida real.
Outra reflexão importante do autor é a da participação do corpo na memória. Para
compreendê-la é preciso que se tenha clareza de que a memória não se trata
simplesmente de um atributo do passado. Ao utilizar o corpo, pode se reabrir o tempo a
partir das implicações do presente. O corpo é o meio de “tomar atitude” e de tornar atuais
as experiências como presentificações
17
. Portanto, é a possibilidade de comunicação com
o tempo e com o espaço.
A função do corpo na memória se traduz como na iniciação cinética
18
em que o
corpo, por exemplo, converte certa ação motora em vociferação, desdobra o estilo
articular
19
de uma palavra em fenômenos sonoros e projeta a intenção de movimento em
movimento real, pois ele é um poder de expressão natural. Com esse raciocínio, o autor
conclui que a fala não é o signo do pensamento. Ambos estão envolvidos um no outro: o
sentido está enraizado na fala e a fala é a existência exterior do sentido. As palavras
podem ser as fortalezas do pensamento” e o pensamento pode ser expresso se as
falas forem, por si mesmas, um texto compreensível e possuírem uma potência de
significação que lhes é própria; devem ser a presença do pensamento no mundo sensível,
seu emblema e seu corpo e não sua vestimenta como mera aparência. Assim como é
com o próprio corpo que o indivíduo se engaja entre as coisas, não se compreendem os
gestos de outras pessoas por um ato de interpretação apenas intelectual. Além do
discurso lingüístico decifrado na esfera do intelecto, concomitantemente o indivíduo
reconhece um modelo expressivo de instância emocional que pode até ressignificar o
discurso lingüístico. A comunicação entre as “consciências” não está fundada no sentido
comum de suas experiências: “Gerações e gerações compreendem e realizam gestos
sexuais como a carícia, por exemplo, antes que qualquer filósofo tenha definido sua
significação intelectual” (SARTRE, apud MERLEAU-PONTY, 1999, p.252).
17
Presentificação é um conceito da gestalt que implica em que todas as experiências vividas tornam-se
significativas no momento presente.
18
Início do movimento intencional (MERLEAU-PONTY, 1999).
19
Estilo articular é o movimento necessário para emitir ordenadamente os fonemas formantes das palavras
de um idioma; é o encadeamento de movimentos durante a fonação (MERLEAU-PONTY, 1999).
17
Merleau-Ponty afirma que é pelo corpo que se compreende o outro, assim como é
pelo corpo que se percebe “coisas”. O sentido do gesto não está atrás do próprio gesto,
mas é a estrutura do mundo que o gesto desenha e que está exposta no próprio gesto.
O autor considera também que, se existe um pensamento universal, ele é obtido
retomando o esforço de expressão e de comunicação tal como ele foi pretendido por uma
língua. Ele afirma ainda que as formas verbais não seriam consideradas arbitrárias se
fosse levado em consideração o sentido emocional da palavra, aquilo que em outro
momento se chamou de sentido gestual. A predominância das vogais em uma língua,
assim como a de consoantes em outra, os sistemas de construção e de sintaxe não
representariam tantas convenções arbitrárias para exprimir o mesmo pensamento, mas
várias maneiras de o corpo humano celebrar o mundo e de finalmente vivê-lo.
O autor afirma, ainda, ser impossível sobrepor no homem uma primeira camada de
comportamentos que se poderiam chamar de naturais em um mundo cultural e espiritual
fabricados. No homem tudo é natural e tudo é fabricado, pois a simples presença de um
ser vivo modifica o mundo físico, faz surgir alimentos aqui e um esconderijo ali, dá,
portanto, aos estímulos um sentido que não tinham. O homem provoca ainda maiores
transformações, pois seus comportamentos criam significações que transcendem sua
condição anatômica e a subjugam. No entanto, são imanentes ao comportamento
enquanto tal, que este se ensina e se compreende. Não se pode fazer economia dessa
capacidade que cria significações e que as comunica.
Para Merleau-Ponty a fala é a única, entre todas as operações expressivas, capaz
de sedimentar-se e de constituir um saber intersubjetivo
20
. Apesar de haver uma espécie
de consenso de que a fala privilegia a razão, o autor chama a atenção para a
necessidade de recolocar o pensamento como um dos fenômenos de expressão para que
se possa compreendê-la bem. Por isso, explica que as atividades categoriais
21
antes de
serem um pensamento ou um conhecimento, são uma maneira de se relacionar com o
mundo e, correlativamente, um estilo ou uma configuração da experiência.
Para Gelb e Goldstein (apud MERLEAU-PONTY, 1999), quando perde seu sentido,
a palavra se modifica até em seu aspecto sensível, ela se esvazia. O elo entre a palavra e
o seu sentido vivo não é um elo exterior de associação; o sentido habita a palavra e a
20
Saber intersubjetivo: saber compartilhado entre diferentes sujeitos.
21
Atividade categorial é a capacidade de estabelecer diferenciações por atributos e critérios, reconhecendo
categorias, e de se relacionar com o mundo através delas.
18
linguagem não é um acompanhamento exterior dos processos intelectuais. Portanto,
deve-se reconhecer uma significação gestual ou existencial da fala.
Merleau-Ponty conclui que o sentido da palavra não está contido nela enquanto
som pré-determinado pela linguagem e, sim, é a definição do corpo humano ao apropriar-
se em uma série de atos descontínuos, de núcleos significativos que ultrapassam e
transfiguram seus poderes naturais. A linguagem coloca problemas tais como: uma
contração da garganta, uma emissão de ar sibilante entre a língua e os dentes, certa
maneira de desempenhar do corpo deixam-se repentinamente investir de um sentido
figurado. Ou seja, é preciso que a gesticulação fonética utilize um alfabeto de
significações adquiridas, que o gesto verbal seja executado de acordo com um
panorama comum aos interlocutores, assim como a compreensão dos outros gestos
supõe um mundo percebido comum a todos.
Merleau-Ponty considera ainda que a análise da fala e da expressão faz
reconhecer a natureza enigmática do corpo próprio (corpo sujeito). Ele não é uma reunião
de partículas das quais cada uma permaneceria em si, ou ainda um entrelaçamento de
processos definidos de uma vez por todas. Sempre se observou que o gesto e a fala
transfiguravam o corpo, mas se contentava em dizer que eles desenvolviam ou
manifestavam uma outra potência, pensamento ou alma. Não se via que o corpo
precisava tornar-se o pensamento ou a intenção que ele significava para poder expressá-
lo. Segundo Merleau-Ponty (1999), é o corpo que mostra e que fala.
19
1.3 Expressão e Música
Em função do significado do corpo na expressão dos conteúdos, como assinalado
por Merleau-Ponty (1999), inúmeros músicos observaram a importância de uma análise
de condutas musicais para a construção de uma pedagogia da música, valorizando a
interação entre o organismo e o meio no processo de aprendizagem musical.
Jaques-Dalcroze (1919), descobriu que as crianças deveriam, desde muito cedo,
aprender música a partir da escuta ativa e dos movimentos corporais, para
desenvolverem a capacidade de audição interior. Dentre outras razões que o levaram a
tais constatações estava a convicção de que as sensações musicais de natureza rítmica
se apóiam em músculos e nervos, ou seja, no organismo como um todo.
Willems (1981) ratificava as idéias de Jaques-Dalcroze, considerando que a
movimentação, através da sica, conduzia a criança a uma escuta geradora de
aprendizagem. Em função disso, obtinha uma resposta criativa que a tornava capaz de
explorar as idéias expressivas contidas no objeto sonoro assimilado.
Fernández (1991) considera que quatro níveis envolvidos no processo de
aprendizagem que devem ser considerados: o organismo, o corpo, a inteligência e o
desejo. Eles atuam simultaneamente em todas as ações do indivíduo. Corroborando com
as concepções de educação musical, tendências da psicopedagogia sistêmica afirmam
que é pelo corpo que se apropria do conhecimento, pois é por meio dele que se faz a
interação com o meio, que se domina o objeto, quer pela corporização prática das ações,
quer por imagens.
A partir dos autores supracitados têm-se indicativos para constatar que a
participação do corpo na construção da expressividade em suas várias dimensões,
inclusive na Música, é de fundamental relevância.
Para Ratner (1980), a preocupação com a expressão em música esteve sempre
presente no pensamento musical e na sua prática. No século XVIII, a expressão se referia
às formas com que se conseguiria provocar e comover os sentimentos do ouvinte. Com
essa finalidade, inúmeros elementos musicais foram codificados para garantir que a tarefa
de tocar o espectador fosse bem sucedida. Compositores comumente relatavam suas
preocupações com a expressão. Koch (apud Ratner, 1980), no seu Lexikon, escrito em
1802, considera que o principal objetivo da música era comover, provocar os sentimentos.
Para Ratner (1980) essa idéia é subjacente ao no trabalho de compositores como C.P.E.
20
Bach, Clementi, Hummel, Adolph Kullak, Ludwig Deppe e no tratado de performance de
Daniel Gottlob Türk (1756-1813), denominado Klavierschule oder Anweisung zum
Klavierspielen (School of Piano or Instruction in Piano Playing), em 1789, um dos mais
importantes tratados na prática interpretativa do século XVIII. Nele, o autor afirma que a
expressão das regras que governam os sentimentos era a meta mais elevada da música.
Ainda conforme Ratner (1980), no Classicismo, as diversas linguagens artísticas
colaboraram com a música com o objetivo de fornecer sentido expressivo e de
organização, trazendo importantes indícios para estruturar esses valores. Esses valores
foram encontrados através de paralelos traçados entre a lingüística e a retórica musicais,
amplamente estudadas no século XVIII. O conceito de período é o mais importante,
adaptado da retórica tradicional. No idioma falado, período representa o fim de uma
declaração completa, de uma sentença da qual o sentido é inteiramente compreendido
apenas quando se aproxima do fim, a atenção do ouvinte fica presa até a última palavra.
Na música, a periodicidade representa a tendência de se mover em direção a pontos de
acentuação. Uma passagem não é percebida como um período aalguma espécie de
cadência conclusiva ser alcançada.
Para Costa (1995), a sica é um meio não-verbal, muitas vezes inconsciente, de
comunicação/expressão de sentimentos e afetos. Assim, o autor defende que o corpo é a
via de acesso ao conhecimento e, pelas mesmas razões, é através dele que se pode
expressar o aprendido e a experiência vivida.
Ao discutir a problemática da expressão, Parsons (1992) admite que a arte tem
implicações diretas com as emoções
22
. Ao descrever as emoções, consegue-se
compreender melhor o caráter de determinada obra de arte. Segundo esse autor, existe
um entendimento de que a relevância da obra está justamente nessa relação entre a arte
e a emoção. Ao desenvolver essa temática, o autor utiliza termos como “exprimir”,
“expressão” e “expressividade” além de definir estágios de apreensão da obra nos quais
são possíveis várias alternativas de análise.
Num primeiro e segundo estágios se procura os sentimentos representados na
obra. No caso de uma pintura é possível encontrar esses sinais nas expressões faciais,
22
Emoção, numa definição mais geral, é um impulso neural que move um organismo para a ão. A
emoção se diferencia do sentimento, porque é um estado psico-fisiológico. O sentimento, por outro lado, é a
emoção filtrada através dos centros cognitivos do cérebro, especificamente o lobo frontal, produzindo uma
mudança fisiológica em acréscimo à mudança psico-fisiológica.
21
nos gestos e nas ações. Em se tratando de interpretação musical, há sinais que codificam
musicalmente esses estados, como figuras rítmicas, tonalidade e andamento.
Para o autor, é no terceiro estágio que se passa a atribuir maior importância à
expressividade e toda a reação do fruidor é organizada a partir dela. Ele a considera
como um estágio subjetivo, quer do autor, quer do fruidor em relação à obra de arte, pois
é nesse momento em que as intenções passam a ser desveladas, explicitadas.
No quarto estágio, o autor considera que as implicações da técnica utilizada na
realização da obra a inserem num contexto histórico ou estilístico. Aqui o autor aponta a
expressividade como algo passível de ser definido e analisado.
Embora o trabalho de Parsons (1992) esteja direcionado à estética das artes
plásticas, ele contribui para o entendimento da expressividade musical ao organizar
estágios de percepção do fenômeno sensível. Essa organização permite compreender
como tais níveis se integram promovendo uma experiência única do fenômeno.
Para Salgado e Wing (2007), investigações recentes na área de performance
musical partem da premissa que uma parte significativa da criatividade musical do
intérprete está relacionada à sua capacidade de expressar e comunicar emoções. Existe
uma inerente homologia de organização e de dinâmica entre os sons da música, os
movimentos e à própria dinâmica da vida afetiva. Os padrões de movimento têm
características gerais similares ao movimento corporal sintomático das emoções
humanas, humores e sentimentos. Em função disso, o autor considera que o Canto e o
seu estudo, por ser uma atividade criativa e de comunicação, requer um conjunto de
sinais expressivos
23
que precisam ser identificados e conscientizados pelo cantor, a fim
de que possam ser utilizados no máximo de seu potencial.
23
Diz-se daquilo que exprime uma idéia, emoção, sentimento ou valores estéticos de modo altamente
significativo.
22
1.4 Música e Expressão Vocal: Aspectos Históricos.
Em seu sentido mais amplo, a música pode ser descrita como um padrão sonoro
que se desenvolve e se estrutura no tempo e que, para Vieillard (2005), traz uma função
comunicativa.
Segundo Perelló et al. (1982), não há concordância entre os estudiosos se a
música precedeu a fala ou vice-versa. O fato é que a música e a linguagem são
manifestações humanas remotas, formas de desenvolvimento da inteligência e meios de
comunicação.
A arte musical é uma prática ainda mais antiga que a agricultura e está
profundamente arraigada na história. Não existem comunidades humanas sem atividade
musical e ainda, segundo Viellard (2005), há uma hipótese lançada para explicar a
importância social da música, garantindo a coesão social e a sincronização do humor,
favorecendo a preparação das ações coletivas.
O medo dos fenômenos naturais, as necessidades de defesa, a ânsia de
comunicação, provavelmente levaram os primeiros homens a movimentarem-se e a emitir
sons em forma ritmada, quem sabe, em resposta a sentimentos de revolta ou sujeição,
alegria da vida ou terror da morte, vitórias ou derrotas.
24
O homem pré-histórico descobriu os sons que o cercavam no ambiente e aprendeu
a distinguir timbres característicos da canção das ondas se quebrando na praia, da
tempestade se aproximando e das vozes dos vários animais selvagens e encantou-se
com seu próprio instrumento musical – a voz
25
.
A laringe é, segundo Perelló et al. (1982), o primeiro instrumento de que dispõe e
faz uso a humanidade. O autor considera ainda que, sem pecar em exageros, a história
da música, pelo menos até o fim do século XV, se refere quase que exclusivamente à
história da música vocal.
Os primeiros livros de exercícios da voz, segundo Sodré (1967) datam do século
XVI. No entanto, relatos históricos apontam para a Grécia antiga, onde a voz era objeto
de preocupação dos cidadãos que tinham na arte da oratória sua grande ferramenta de
intervenção social.
Atores e cantores fizeram da voz o instrumento de expressão do seu ofício desde a
mais remota história da humanidade. Nessa perspectiva, a voz tornou-se o centro de
24
Dados retirados do site de História da Música:http:// www.cic.unb.br/docentes.
25
Idem
23
referência das manifestações culturais e artísticas que tinham no canto e na oratória sua
maior expressão (SODRÉ, 1967).
Na Grécia antiga, Aristóteles foi um dos pioneiros a escrever sobre a oratória
utilizando o termo “retórica”. Durante centenas de anos, a Retórica foi a base de toda a
formação cultural do ocidente. Segundo Sodré (1967), Aristóteles considerava que a
retórica não era ciência, mas a arte de persuadir através da palavra falada. O interesse
pela oratória continua presente até os dias de hoje, constituindo-se numa ferramenta de
comunicação e de expressão.
Por outro lado, Lima (2006) chama a atenção ao fato de que a música, em seus
primórdios, não era vista como um evento estético e, sim, ritualístico. “A ausência de
partitura na música antiga fundia as figuras do compositor, do intérprete e do ouvinte”
(LIMA, 2006, p.48). O autor também considera que, no período Barroco, os compositores
pensavam em escrever uma obra musical não para conservá-la para futuras gerações,
mas para utilizá-la no momento da criação da melhor forma possível. Segundo ele, o
músico barroco sabia muito bem para quem dirigir a sua música.
De acordo com Pacheco (2006), o século XVII pode ser considerado como o
período de ouro do bel canto
26
pelo refinamento de expressão e de pureza de som. Pode-
se dizer que a história do canto barroco se confunde com a história dos castrati
27
, que
tiveram seu apogeu no século XVIII. Como, na Itália, os castrati dominavam a cena vocal,
eles foram responsáveis pelo desenvolvimento dos todos vocais italianos dos séculos
XVII e XVIII. Nesse período de domínio técnico dos castrati, as poucas cantoras de
sucesso tiveram que seguir as regras de uma escola vocal que não havia sido criada
pensando nas necessidades e características de suas vozes.
No Romantismo, Lima (2006) argumenta que ocorre uma grande mudança de
perspectiva, segundo a qual o músico imaginava-se dirigindo sua obra para toda a
humanidade. Vem daí a necessidade de uma partitura mais detalhada onde a
possibilidade de alteração da mensagem musical ficasse quase suprimida. A partir desse
momento, o intérprete não pode adulterar o texto sob pena de transgressão da
mensagem sonora. Nesse período, os compositores passaram a se preocupar de forma
mais severa com os abusos dos castrati em demonstrar suas habilidades em detrimento
do conteúdo da obra. A música deveria se aliar ao texto para reforçar a expressão dos
26
Ver nota de rodapé 3.
27
Os "castrati" eram cantores castrados antes da puberdade para preservarem o registro de soprano ou
contralto da voz. Apoiada em pulmões masculinos, essa voz era ágil e penetrante.
24
sentimentos e o interesse pelas situações, sem interromper a ação com adornos inúteis
(PERELLÓ et al., 1982).
Pacheco (2006) explica que Manuel Garcia
28
, um dos maiores professores de
canto do Romantismo, não era um castrato, bem como nenhum de seus alunos de maior
renome. Foi professor de cantoras que vieram a se tornar grandes divas românticas.
Assim, supõe-se que sua escola estivesse adaptada ou se adaptando ao aparelho vocal
feminino. Nesse período, com o desenvolvimento da ópera e da arte do canto, o repertório
vocal exigiu dos cantores que tivessem uma extensão vocal cada vez maior. Os registros
da voz masculina natural foram explorados no século XIX, em particular com o
desenvolvimento das potencialidades da voz do tenor. Segundo o autor, é essa a técnica
que sobreviveu até os dias de hoje, no ocidente, com algumas poucas alterações.
Sakakibara et al. (2002) pondera que vários estilos de canto no mundo. Essas
variações vocais estão principalmente associadas às variações do timbre. Segundo os
autores, tal diversidade de vozes para o canto deve ter surgido devido às diferenças
culturais, tais como: clima, geografia, língua, aspectos étnicos, religião, estruturas
musicais, entre outros. Podem ser encontradas diferenças consideráveis entre a voz
européia tradicional no canto erudito e a voz gutural asiática tradicional. O canto europeu
requer um timbre constante, enquanto que os estilos de canto asiáticos requerem timbres
ricos e variados. Em suas pesquisas os autores descobriram três grandes categorias de
canto no mundo: canto gutural-laríngeo (na garganta); canto nasal (no nariz) e canto
palatal (na boca).
Para Jackson e Menaldi (1992), no entanto, é importante reconhecer nas diferentes
línguas faladas a qualidade de uma voz determinada pela cor precisa da pronúncia, que
depende de um processo respiratório determinado, posições de língua e bucais
apropriadas. Para esses autores, também é possível reconhecer que há diferenças
típicas individuais, geográficas e por áreas. Nas técnicas vocais européias utilizadas no
canto lírico, os autores descrevem como ocorre a fisiologia com suas adaptações em
cada língua, adaptações essas que fornecem características vocais próprias e típicas de
cada estilo. Após o estudo das distintas vozes, os autores confirmaram a necessidade de
uma técnica vocal fisiologicamente equilibrada, com adaptações particulares ao idioma,
tipo de música, interpretação e características próprias do indivíduo. Segundo esse ponto
28
Manuel Garcia (1775-1832).
25
de vista, a voz do canto popular não segue os mesmos princípios do canto clássico.
Trata-se de uma voz espontânea, natural e relacionada às características da região. Os
autores também descreveram uma classificação dos grandes métodos de educação da
voz cantada e o canto coral, destacando a importância de ter foniatras e fonoaudiólogos
especializados na voz cantada para colaborar com o regente do coral e o professor de
canto na transmissão dos conhecimentos de anatomia e de fisiologia da voz.
Segundo Perez-Gonzáles (2000), desde tempos remotos, ao se procurar os
indícios fisiológicos do funcionamento do aparelho fonador, tentaram-se diversas
explicações que pudessem ser plausíveis. O termo corda vocal foi resultado de um
grande equívoco ao se observar o corpo de um cadáver já em decomposição. Pareceu ao
observador que se tratava de uma corda, como a do violino. Posteriormente, a teoria
mioelástica
29
afirmava que o ar fazia as cordas vocais vibrarem e criava a voz como um
todo. Atualmente, a teoria aceita se chama de neurocronáxica
30
segundo a qual dentre
todas as características vocais: timbre, volume, intensidade, freqüência e vibrato, o
elemento freqüência é resultado exclusivo da ação do nervo recorrente sobre as cordas.
Nesse contexto em que se buscam explicações e formas para compreender o
fenômeno da voz, Coelho (2003) considera que o instrumento vocal é formado pelo
conjunto do corpo humano. Para a autora, didaticamente, esse instrumento pode ser
subdividido em componentes respiratório, ressonador, articulador, controlador e vibratório.
No entanto, essa divisão ocorre apenas para fins pedagógicos, pois o corpo humano não
possui constituição anatômica destinada especificamente ao processo fonatório. A autora
acrescenta que tal processo se apresenta como uma função em acréscimo às funções
vitais de outros órgãos ou partes do corpo. Portanto, a voz resulta de uma utilização
cultural e aprendida de recursos do corpo humano, os quais têm outras exigências mais
imediatas.
Coelho (2003) acrescenta que a técnica vocal deve estar a serviço da
comunicação, que é o compromisso maior do processo fonatório. Muitas vezes, o cantor
pode apresentar postura, respiração, articulação e ressonância corretas e, no entanto,
cantar anestesiado, apático, indiferente e distante do que está fazendo. Segundo ela,
29
Teoria Mioelástica,desenvolvida por Elward, em 1898, considera que a pressão subglótica e a tensão das
cordas vocais são as únicas condições que justificam as características do som emitido, sendo considerada
“passiva” a vibração das cordas vocais.
30
Teoria neurocronáxica, desenvolvida pelo físico Husson, em 1950, considera que a vibração não seria um
ato passivo, elástico, porém um fenômeno de responsabilidade puramente nervosa, em que a adução e a
vibração seriam governadas pelos centros nervosos corticais.
26
essa atitude pode causar muito desgaste decorrente de um grande esforço e de um
pequeno rendimento. Para a autora, a comunicação expressiva faz parte do perfeito
mecanismo vocal, portanto, é necessário saber o que se fala ou canta, conferindo sentido
apropriado a cada momento da emissão, envolvendo-se integralmente para alcançar a
expressão desses conteúdos. Para tanto, é preciso que a pessoa perceba que a
pontuação gramatical não está exatamente junto da pontuação expressiva. As
“entrelinhas” muitas vezes falam mais do que as “linhas” e, portanto, o sentido efetivo será
dado pelas inflexões e jogos tímbricos da voz.
Ao se falar em voz, no entanto, deve-se ter em mente uma distinção entre o
indivíduo e o profissional da voz. Aquele, ao fazer uso de seu instrumento, pretende
comunicar seus estados emocionais e seus conteúdos da maneira mais eficiente possível
e segundo seus critérios. Representa a si próprio. No segundo caso, o sujeito tem na voz
o instrumento de seu trabalho. Seja ator, cantor, o modo de utilizar tal instrumento é
bastante diverso. Segundo Huche (2005), no canto ou na dramatização, a intenção é
atuar, representar. Nesse caso, mesmo que se esteja representando, tal ação não pode
transparecer. O espaço é inteiramente ocupado pelo aspecto expressivo daquilo que é
representado ou cantado.
Durante muito tempo se tem falado das técnicas vocais. Jackson e Menaldi (1992)
consideraram importante realizar um estudo das técnicas vocais existentes no mundo,
acreditando que nestas podem ser encontradas as bases para a obtenção de uma “boa”
voz falada e cantada.
27
CAPÍTULO 2 - METODOLOGIA
Conforme o objetivo geral desta investigação, busca-se no presente trabalho,
estabelecer as relações possíveis entre a experiência e a concepção de cantores acerca
das dimensões expressivas de sua atuação e a concepção expressiva de Merleau-Ponty,
por meio de uma pesquisa que enfatiza o discurso sobre a experiência dos sujeitos. Para
alcançar essa meta o delineamento de pesquisa utilizado no presente trabalho foi o
estudo multi-caso orientado pela linha discursiva fenomenológica, com base na premissa
de que o sentido que uma situação tem para a própria pessoa é uma experiência íntima
que geralmente escapa à observação, pois o ser humano não é transparente; para
desvendar sua experiência, o pesquisador precisa de informações a esse respeito,
fornecidas pela própria pessoa.
2.1 O Método Fenomenológico
A prática da pesquisa fenomenológica se constitui na vivência e apresenta-se como
um desafio para o método experimental que está voltado para a observação dos fatos e o
significado destes, considerando-os em si mesmos. Segundo Masini (2001), Heidegger
considera o Método Fenomenológico (meta_odos: além do caminho, continuar o caminho)
como um retornar ao caminho que conduz a ver o existir simplesmente como ele se
mostra. É reeducar os olhos e reorientar o olhar. Compreender deixa de ser visto como
um modo de conhecer, para ser visto como modo de ser, não havendo separação entre
sujeito e objeto.
A investigação fenomenológica adotada neste projeto interessa-se pelos aspectos
qualitativos; dito de outro modo, interessa-se pela vivência. suporte à visão
fenomenológica o fato do psiquismo humano apresentar alguns aspectos que não podem
ser atingidos, observados e nem mensurados pela observação empírica, tais como a
vivência ou a experiência vivida, que podem ser alcançadas diretamente pelo próprio
sujeito.
Amatuzzi (1989) define a investigação fenomenológica como um estudo do vivido e
seus significados. É a pesquisa que lida com o significado da vivência e, por isso mesmo,
interessa-se pelos aspectos qualitativos desta vivência. Para o autor, o vivido é um
caminho importante para a verdade e para as decisões que se deve tomar. Trabalha na
28
dimensão da intencionalidade, com o material expressivo da vivência humana, levando
em conta uma presença maior da subjetividade do pesquisador, um contexto dialógico no
qual se desenrola toda a pesquisa e uma abertura para níveis mais abrangentes ou
coletivos de significado.
Vista como um método que possibilita chegar à essência do próprio conhecimento,
a fenomenologia utiliza a redução fenomenológica como o recurso para empreender esta
tarefa. A redução fenomenológica constitui-se de dois momentos inter-relacionados e
reversíveis: o envolvimento existencial e o distanciamento reflexivo. O envolvimento
existencial consiste no retorno do pesquisador à vivência e sua penetração na mesma; o
distanciamento reflexivo consiste na reflexão sobre a vivência e na enunciação de seu
significado para a pessoa que a experiencia.
2.2 Estudo multi-caso
A técnica do estudo de multi-casos se aplica à pesquisa qualitativa e é
compreendida como o estudo de dois ou mais casos considerados individualmente. Cada
caso sempre deve ser bem delimitado e com contornos bem definidos, o que desperta um
interesse próprio e singular (LUZ, 1999). O caso, segundo o autor, se destaca por
constituir uma unidade dentro de um sistema mais amplo, portanto o interesse do
pesquisador incide naquilo que ele tem de único, de particular. O autor enfatiza ainda que,
como caso é tratado como único, singular, a possibilidade de generalização é menos
relevante, pois isto dependerá do tipo de leitor ou do usuário do estudo, na medida em
que deseje desenvolver novas idéias, novos significados, novas compreensões. Dessa
forma, é possível dizer que o estudo de caso encerra um grande potencial para conhecer
e compreender melhor os problemas do objeto estudado.
2.3 Enfoque dos casos
Nesta pesquisa, o foco de cada caso voltou-se para a prática musical e para as
impressões de quatro cantores sobre expressividade vocal. Por meio de entrevista semi-
estruturada com os sujeitos pesquisados, focalizou-se a descrição de suas próprias
vivências e experiências acerca da prática de canto, dos critérios utilizados na seleção de
repertório, das peculiaridades individuais na performance e das concepções sobre
29
expressividade que estão dando suporte a esta prática. A análise dos dados foi realizada
por meio de categorias específicas.
2.4 Instrumentos de coleta de dados
Como instrumentos de coleta de dados foram utilizados o registro em vídeo da
performance do cantor durante um recital de canto e piano e uma entrevista semi-
estruturada. O registro em deo serviu como instrumento de estimulação para a reflexão
dos cantores durante a entrevista. Na entrevista, o cantor foi solicitado a relatar a sua
formação em canto, sua relação com o repertório, especificidades na performance vocal,
concepções sobre a expressão vocal e, podendo valer-se da observação de sua
performance registrada, fazer uma avaliação de seu trabalho, apontando os aspectos que
considerou positivos e os possíveis ajustes que deveriam ser feitos.
2.5 Seleção dos participantes
Participaram da entrevista quatro cantores: 01 soprano, 01 meio soprano, 01 tenor
e 01 barítono, para que se tivesse uma amostragem de vários registros vocais e para que
se pudesse obter um relato de concepções de expressividade abrangendo um maior
número de variáveis, como: repertório, extensão vocal, exigência técnica, tipos de
personagens. Não houve disponibilidade de outros registros como alto, baixo, contratenor.
Outro critério para a seleção dos participantes foi que os sujeitos de pesquisa deviam ter
pelo menos três anos de treinamento e de prática vocal. Para garantir a confidencialidade
dos dados e o anonimato, cada participante recebeu um nome fictício.
30
2.6 Caracterização dos Casos
2.6.1 Caso 01.
Alberto
31
, barítono, 30 anos. Iniciou sua formação em técnica vocal em 1997. Atua
como cantor profissional, tendo realizado diversos recitais individuais e em grupo. Integra
um grupo de pesquisas sobre linguagem na ópera.
Iniciou seus estudos de música em 1998, paralelamente ao curso de graduação de
Farmácia. Seu enfoque inicialmente foi o repertório coral. Ao descobrir o canto veio a
paixão, que o fez se aprofundar nos estudos. Contou com a ajuda do maestro do coral da
UFPR e dos pianistas correpetidores do grupo, tanto na formação musical teórica,
recebendo aulas de teoria musical e de piano, assim como no próprio trabalho de
correpetição. Desenvolveu seu trabalho de expressão vocal e técnica vocal com o diretor
do grupo e, mesmo trabalhando profissionalmente em outro grupo, ainda o tem como
orientador. Juntamente com essa formação, fez algumas oficinas e cursos de música. Fez
também alguns cursos de interpretação, como a oficina de Interpretação no Canto
Barroco, bem como oficinas de expressão corporal, entre elas um curso de Flamenco,
sempre com a preocupação de intensificar os recursos expressivos do canto.
Tem como suporte para a sua prática, utilizar diversos recursos de expressão na
performance, intensificando suas capacidades expressivas. Essa idéia tem convergência
com a sua orientação em técnica vocal, que visa atrelar recursos expressivos ao
treinamento da técnica, buscando os recursos expressivos no próprio corpo, através de
uma seleção de ressonadores específicos que conferem uma característica expressiva
peculiar em cada obra. Seu estudo técnico sempre esteve atrelado a uma busca do
significado para o que realizava. Em conseqüência disso, ele considera que o estudo de
técnica vocal precisa estar vinculado à busca de sensibilização do ser humano, portanto
às necessidades expressivas em relação ao momento de atuar.
Considera-se satisfeito em relação à técnica vocal que utiliza por possibilitar uma
gama bastante ampla de recursos expressivos, permitindo que utilize o corpo todo como
fonte produtora de som. Ele aponta para a possibilidade de escolher e de selecionar quais
regiões do corpo que podem ser utilizadas com maior intensidade do que outras. Desse
exercício, ele reconhece uma gama expressiva bastante ampla, ao que considera ser
31
Nome fictício atribuído ao entrevistado.
31
bastante livre para criar e escolher nuances que lhe respondam às necessidades que
reconhece no material que interpreta. Ele chama a atenção às condições de saúde vocal
para ter uma carreira longa e atuante e, ao comentar sobre sua prática, explica que não
se sente limitado tecnicamente, pois, ao garantir uma utilização saudável de sua voz, ele
pode ousar rumo às soluções expressivas com maleabilidade.
2.6.2. Caso 02
Anita
32
, soprano, 31 anos, natural de Curitiba, iniciou seus estudos de canto aos 16
anos. Sua formação em música foi realizada na Universidade Federal do Paraná, como
integrante de grupo artístico que pertence à Pró-Reitoria de Extensão e Cultura. Nesse
grupo, aprendeu Teoria Musical e Harmonia. Estudou piano. Em paralelo fez cursos e
workshops com outros professores sobre aspectos específicos de música. Também
realizou cursos em oficinas de sica como, por exemplo, Interpretação de Canto
Barroco e Ópera Estúdio.
Em sua atuação como musicista realiza pesquisa em Canto, Técnica e Expressão
Vocal, Estética, Sonometria e Acústica. Atua como cantora profissional e em seu currículo
constam diversos recitais solo. É preparadora vocal de diversos corais em Curitiba, além
de ser a diretora artística e preparadora vocal de um madrigal feminino.
Acredita que a técnica vocal é uma necessidade para o desenvolvimento da sua
arte. Considera que o entendimento perfeito da música deva reunir a capacidade de
realização técnica do que foi escrito e de como foi pensado pelo compositor, sem, no
entanto, prescindir do propósito de sensibilização do ouvinte. Dessa preocupação surgiu a
necessidade de pesquisar expressão vocal, ao mesmo tempo em que a emprega no
trabalho de intérprete e no de professora de canto. Ela considera a técnica vocal um
recurso para se conseguir mais profundidade, assim como tornar o trabalho do intérprete
mais rico e mais completo musicalmente e artisticamente.
2.6.3. Caso 03.
32
Nome fictício atribuído ao entrevistado.
32
Ângela
33
, mezzo-soprano, tem 24 anos. Sua formação em técnica vocal iniciou-se
em 1999 e atua profissionalmente como solista e regente de coral. É formada em
Educação Musical e cursa Musicoterapia.
Começou os seus estudos aos sete anos, cantando em coral. Voltou a integrar um
grupo vocal cinco anos e iniciou o estudo de técnica vocal três anos. Considera
que, antes disso, sua formação técnica era falha, principalmente por não ter se dedicado
como gostaria em função de outros estudos. A preparação para o trabalho de regência
despertou o interesse pelo estudo mais profundo da técnica vocal para embasar esse
trabalho. Em relação à técnica vocal, sente ainda necessidade de aprimoramento para
atender suas expectativas como cantora.
2.6.4. Caso 04.
André
34
, tenor, é natural de Curitiba e tem 37 anos. Sua formação em técnica vocal
iniciou-se em 1997. Atua como solista desde 2004. Dedica-se à prática e à pesquisa da
ópera.
Sua formação musical o é formal. Aprendeu a tocar violão na igreja, durante sua
adolescência, quando também começou a cantar. Com o auxílio de um amigo melhorou
sua técnica de violão e com ele formou um duo para cantar especialmente repertório de
música popular. Com o passar do tempo sentiu necessidade de aprofundar os estudos de
teoria e de solfejo, para poder realizar música de forma cada vez mais elaborada.
Ingressou então em um madrigal de sica sacra onde seu gosto pela sica erudita e
pela ópera se revelou. Esta descoberta motivou os estudos de técnica vocal.
33
Nome fictício atribuído ao entrevistado.
34
Nome fictício atribuído ao entrevistado.
33
CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DAS ENTREVISTAS
No presente trabalho, o estudo multi-caso foi realizado por meio de entrevistas
semi-estruturadas com cantores que trabalhavam na ocasião da pesquisa, com o canto
de forma profissional ou não, na cidade de Curitiba e que tinham, pelo menos, três anos
de experiência. Com o material colhido nas entrevistas buscaram-se verificar as
concepções pessoais dos participantes acerca de expressão vocal e de como essas
concepções norteavam seus atos performáticos, sua preparação vocal e suas escolhas
de repertório.
Conforme previsto na metodologia, a análise do discurso dos cantores foi feita com
base na concepção de percepção e expressão de Merleau-Ponty e também outros
autores vinculados ao foco desta pesquisa. Na seqüência, foi feita a análise das
entrevistas e a transversalização dos dados coletados dos quatro participantes.
34
3.1 As concepções de expressividade que norteiam a prática dos entrevistados.
Nessa questão, os cantores discorreram sobre a expressividade, trazendo em seu
discurso os conceitos e aplicações da mesma. Também falaram sobre suas experiências
na busca da expressividade vocal e os questionamentos que apresentaram em relação a
esse tema.
Para Alberto (estudo de caso 1), a expressão vocal se caracteriza pela maneira
como o cantor alia os recursos técnicos aos objetivos de sensibilizar as pessoas que o
assistem. Segundo ele, a expressão depende de fatores diversos como “a luz”, “o
momento do artista”, que colaboram para que o cantor sentido à sua performance
utilizando os recursos expressivos para manifestar o conteúdo e, assim, sensibilizar as
pessoas. Alberto também considera que, num segundo momento, a expressão também
pode estar vinculada à resposta do público.
Seguindo este pensamento, Alberto observa que não é possível estabelecer com
certeza absoluta todos os critérios para uma boa realização expressiva, pois essa vai
depender da ocasião em que a peça será apresentada. Portanto, segundo ele, os ensaios
servem para exercitar possibilidades para que, no momento de atuar, o cantor tenha
vivenciado diversas alternativas performáticas.
Isso pode ser compreendido, conforme argumenta Merleau-Ponty (1999), pelo fato
de que pensar é uma experiência (fala interior ou exterior) que progride quando dele o
sujeito se apropria. O objeto mais familiar parece indeterminado enquanto não se
encontra seu nome, porque o próprio sujeito pensante ignora seus pensamentos
enquanto não os formulou, pronunciou e/ou escreveu, dando-lhe corpo a partir da ação. É
através da expressão que essa apropriação é possível. Extrapolando essa mesma idéia
para o canto expressivo, pode-se concluir que ele também é possível quando o cantor
dele se apropria pela expressão.
O trabalho expressivo do artista em relação à técnica vocal, para Alberto, significa
uma espécie de inventário de rmulas expressivas pertinentes ao código compartilhado
pela cultura e serve de subsídio para a interpretação no canto. No entanto, ele considera
necessário que, para serem eficientes, esses códigos devem ser utilizados pelo artista de
maneira coerente com o seu momento interpretativo, considerando as exigências
interpretativas da ocasião.
Nas palavras do cantor:
35
A gente precisa ter um leque de opções expressivas e realmente conhecer
recursos expressivos. Não que na hora você não tenha uma sacada genial e o
aconteça um recurso expressivo que você não tinha idéia de que existisse.
você assimila e coloca aquilo dentro do seu leque. Às vezes, no fazer, você tem
uma sacada genial e você sente que algo aconteceu, assimila aquele recurso
expressivo e coloca no seu leque de opções como, por exemplo, a interpretação
que foi gravada pra pesquisa. Sempre fiz alguns trechos de uma maneira, mas no
dia, duas coisas aconteceram que eu absorvi pro meu leque de opções e inclusive
achei uma das melhores soluções das que eu já havia feito (C.E 1, p.01).
35
Alberto reconhece a expressividade nos artistas que assiste quando se sente
tocado ou não pela interpretação do cantor. Seguindo esse critério observa que, mesmo
com afinação primorosa, rítmica impecável, dinâmica e linhas melódicas bem trabalhadas,
ainda se pode sentir falta do elemento de sensibilização do público, como se existisse
uma espécie de barreira separando o artista do fruidor. Nas palavras de Alberto: Você
não se sente tocado, você não verdade, não consegue realmente ser sensibilizado
pelo que o cantor está fazendo” (C. E. 1, p.01).
A esse respeito, o cantor considera que há execuções primorosas do ponto de vista
técnico que pecam em não sensibilizar o público e que o contrário também existe. Ele
afirma que pessoas com pouca habilidade técnica e que, no entanto, conseguem
sensibilizar os fruidores: “(...) esses artistas souberam usar o momento, aproveitaram todo
o leque de opções expressivas que tinham, souberam utilizar a intuição do momento e se
entregaram pra interpretação. Do ponto de vista expressivo está maravilhoso, sublime” (C.
E.1, p.02).
Para a cantora Anita (estudo de caso 2), a expressão vocal é seu instrumento
expressivo e atende a uma necessidade de imprimir um conteúdo interno, uma idéia ou
um sentimento e fazer com que as outras pessoas percebam esse conteúdo. Ela entende
que a necessidade expressiva é decorrente da tentativa de se estabelecer uma
comunicação, um entendimento e explica a expressão, no sentido mais amplo do termo,
como uma busca de comunicar conteúdos servindo-se de qualquer forma, como, por
exemplo, a expressão corporal, a expressão através da pintura. Para explicar as
ferramentas que são desenvolvidas, Anita acredita que as pessoas que trabalham com o
uso da expressividade começam a usar termos mais específicos para poder tornar mais
compreensíveis os procedimentos que podem ser repetidos intencionalmente. Segundo
ela, através dessa sistematização, o artista conta com ferramentas que podem ser de
grande valor no momento de resolver a interpretação sem esperar que aconteça uma
35
Caderno de Entrevistas: Caso1.
36
“inspiração divina” para realizá-la. Ela pensa que a idéia de expressão não deve ser
entendida como algo que se manifesta naturalmente, como um dom ou como uma
inspiração do momento somente.
Em sua experiência, Anita observa que, freqüentemente, é possível encontrar a
idéia de que uma pessoa é expressiva porque nasceu assim, “com um dom”. Na sua
busca pelo desenvolvimento da própria expressão vocal, ela afirma que a expressividade
é muito mais do que isso. Segundo ela, é possível desenvolver a expressão vocal para
enriquecer o material musical que se está trabalhando. Mesmo considerando que,
individualmente, uma pessoa possa ter desenvoltura ou uma boa capacidade de
expressão, ela chama a atenção para a possibilidade de desenvolver isto como meio de
aperfeiçoar o desempenho.
Anita afirma que:
A gente que trabalha pesquisando e desenvolvendo a expressão vocal sabe que é
muito mais do que isso. É possível trabalhar expressão vocal, desenvolvê-la de tal
maneira que seja possível o intérprete enriquecer o material que está trabalhando.
Não que as pessoas naturalmente não tenham uma desenvoltura ou uma
capacidade natural de expressão. Mas é possível desenvolver isso também. E
acho que isso é que é interessante porque possibilita que todas as pessoas
possam melhorar, possam se desenvolver e ganhar com isso. realmente vai
poder colocar suas idéias e ter trocas mais ricas com as pessoas (C. E. 2, p.1)
36
.
Ela reconhece o canto como expressivo quando são impressos conteúdos da
experiência humana no material interpretado. Por exemplo, ao interpretar uma música, o
artista tem uma idéia do que quer desenvolver e comunicar para as pessoas. Quando se
percebe que o cantor, de alguma forma, coloca essa idéia na voz ou no conjunto da sua
performance, é possível dizer que ele é expressivo. Ela também considera a expressão
corporal como um recurso importante, pois, na performance de um cantor, quando não é
exclusivamente uma gravação em áudio e acontece no palco ou em uma gravação em
vídeo, considera-se a pessoa inteira, o seu corpo, o seu rosto e a sua voz.
Segundo a entrevistada, o cantor tem que comunicar a sua idéia, ou seja, o que ele
pretende com a peça que está realizando. No entanto, saber se ele tem condições de
fazer essa comunicação de forma premeditada ou não, é uma questão que envolve a
preparação e a maturidade do artista. É possível dizer que as duas coisas podem
acontecer ao mesmo tempo. Ela acredita que quando se desenvolvem recursos de
expressão, consegue-se ser mais eficiente na comunicação.
36
Caderno de Entrevistas: Caso 2.
37
Quando Anita afirma que para o canto ser expressivo é preciso imprimir conteúdos
no material interpretado através de escolhas intencionais, ela reconhece que existem
recursos expressivos que não estão contingenciados à palavra enquanto termo
cristalizado pelo dicionário. É preciso imprimir, por meio de ações corpóreas, qualidades
do som que identifiquem esses conteúdos emocionais. Pode-se comparar o que Anita
reconhece como expressividade na atuação de cantores com o que Merleau-Ponty (1999)
diz ao afirmar que a fala não traduz naquele que fala um pensamento já feito, unicamente
pela palavra consagrada, mas o consuma por meio do próprio ato de falar, pois o nome é
a essência do objeto e reside nele, do mesmo modo que sua cor e sua forma. A palavra,
longe de ser um signo dos objetos e das significações, habita as coisas e veicula as
significações.
Mas Anita considera que quando não se tem controle sobre o que comunicar,
alguns aspectos necessários podem ficar de fora enquanto outros sinais comunicativos
indesejados aparecem e comprometem a interpretação. Por esse motivo, acha perigoso o
artista se deixar simplesmente ser levado pela emoção da peça ou pelo sentido da peça.
Em função disso, enfatiza que é preciso trabalhar recursos de expressividade para que se
possa ter, de certa forma, um controle maior sobre o que realmente se quer comunicar às
pessoas. Ela sente que precisa ter isso, pois algumas especificidades da obra que se vai
apresentar precisam aparecer de maneira exata. A partir dessa idéia, afirma que “é
interessante procurar diferenciar quando o controle do cantor, identificar se ele está
com inteligência e com bom gosto realizando algo o mais perfeito e o melhor possível, ou
se ele está se deixando levar” (C. E. 2, p.2). Para Anita, é possível perceber no olhar ou
na performance global quando o artista está interessado em uma troca, uma
comunicação, e se ele o faz de maneira responsável ou está aleatoriamente propondo
idéias, sem crítica ou escolha.
No entanto, completa seu raciocínio dizendo que a voz deve ser treinada a ponto
de que, em uma gravação em áudio, seja possível imprimir os sinais sonoros necessários
que confiram total distinção dos conteúdos emocionais e das intenções do artista na sua
atuação. Considera que seja esse o norte de um cantor que busca o máximo de eficiência
expressiva: imprimir com clareza os conteúdos fundamentais na própria voz, no som que
emite, independentemente dos sinais corporais que podem ou não confirmar as
informações impressas na voz.
38
Tanto Anita quanto Alberto admitem que a impressão sonora dada pela voz deva
garantir todo o conteúdo expressivo e isso corrobora o que Merleau-Ponty (1999) diz ao
afirmar que, se existe um pensamento universal, ele é obtido retomando o esforço de
expressão e de comunicação tal como ele foi pretendido por uma língua. Esse autor diz
que as formas verbais não seriam consideradas arbitrárias se se levasse em conta o
sentido emocional da palavra, aquilo que em outro momento se chamou de sentido
gestual. A predominância de vogais em uma língua, assim como a de consoantes em
outra, os sistemas de construção e de sintaxe não representariam tantas convenções
arbitrárias para exprimir o mesmo pensamento, mas várias maneiras de o corpo humano
celebrar o mundo e de finalmente vivê-lo. Nesse ponto pode-se compreender o porquê de
os entrevistados justificarem que sua expressividade se enriquece ao exercitar no corpo
diversas maneiras saudáveis de estabelecer significações aos conteúdos que
intencionalmente pretendem imprimir em obras musicais. É uma exercitação que lhes
garante novos entendimentos dos conteúdos e, ao mesmo tempo, lhes suporte de
experiência para poder utilizá-las a posteriori.
Para a terceira participante, Ângela (estudo de caso 3), a expressão vocal é uma
maneira com que o cantor se coloca ou imprime as emoções que quer na música. Para
ela, esta tarefa de imprimir emoções depende muito do que se estudou, do que se
conhece de técnica vocal e de expressão, assim como dos critérios musicais exigidos em
cada obra. Enfim, segundo a entrevistada, a expressão vocal é uma forma de deixar mais
inteligível o conteúdo da música através da voz.
Merleau-Ponty (1999) afirma em seu tratado sobre a fenomenologia da percepção
que “a tradução do percebido em movimento passa pelas significações expressas da
linguagem, enquanto o sujeito normal penetra no objeto pela percepção, assimila sua
estrutura, e através do corpo regula diretamente seus movimentos” (p.185). Dessa
maneira é possível compreender o método por meio do qual os cantores supracitados
procuram assimilar os recursos expressivos, conhecendo-os em seu próprio corpo e
assimilando-os para que sejam bem utilizados quando se tratarem de uma projeção em
situações de performance.
Coelho (2003) confirma essa tese ao dizer que o intérprete colhe impressões
constantemente, para reproduzi-las durante sua performance. Completa essa idéia com a
consideração de que o corpo é o veículo pelo qual se existe fisicamente. Dessa maneira,
o trabalho corporal consciente é de máxima importância para o desenvolvimento do
39
artista, que deve procurar estar em contacto com o seu potencial expressivo a serviço da
arte.
Complementando essa idéia, pode-se levar em consideração a afirmação do cantor
Eladio Pérez-González quando afirma que “experiência não se transmite, mas que
acredita que um exame criterioso de atitudes e processos possa levar os estudantes de
técnica vocal a procurar o âmago da aprendizagem: a autopercepção” (PÉREZ-
GONZÁLEZ, 2000, p. ix).
Todos esses autores reconhecem no corpo o lugar da manifestação da experiência
expressiva, além de identificar a necessidade de perceber-se e de conhecer-se para
alcançar sucesso em sua tarefa de sensibilizar de maneira proposital, em função de
conteúdos específicos, a partir de escolhas feitas a serviço da arte.
Da mesma maneira que Ângela procura desenvolver sua percepção e sua auto-
imagem corpórea no ato expressivo, é também a partir do corpo que ela reconhece um
ato expressivo vindo do exterior.
Quando ela a performance de algum cantor, percebe recursos que
experimentou ou que identificou em seu estudo. Percebe a movimentação do som no
espaço e como foi usado, percebe as opções de uso da técnica e conclui que algumas
coisas ficam muito sutis. Para ela, nem sempre é possível nomear ou exprimir as
sensações, mas é possível sentir. Ângela afirma que muitos recursos técnicos que
norteiam o desencadeamento da expressividade o sentidos no próprio corpo. É uma
reação física: sente arrepio, tem sensação de alegria ou mesmo de agonia, de angústia e
de prisão, vontade de rir. Ela considera que a maneira de o cantor dimensionar o espaço,
qualifica o que está fazendo, podendo dar uma sensação de solidão ou fazendo com que
ele perceba a presença da platéia. Para ela, esta é uma experiência performática que,
mesmo não sabendo verbalizar o que acontece tecnicamente, ela sente, através da
percepção sensorial.
Para André (estudo de caso 4), entender expressão vocal está diretamente
relacionado à seguinte situação: algo que está aliado a uma cnica que é desenvolvida
pelo intérprete e à forma como ele transmite os conteúdos para as pessoas que estão
ouvindo a sua interpretação. Diz que, ao presenciar um evento em que o artista está
sendo bastante expressivo, a primeira reação é o arrepio. Outro aspecto que lhe parece
fundamental é se o artista faz com que o fruidor se sinta participante, envolvido pela
situação, chamando-lhe a atenção de maneira significativa. Caso contrário, o trabalho
40
pode parecer apenas uma performance vazia, um estudo, que não lhe toca com uma
informação e não o atinge. André considera fundamental que a mensagem atinja essa
expressão para sensibilizar quem participa do fenômeno.
O arrepio é o ponto que me chama a atenção se essendo expressivo, se es
sendo bastante expressivo. Um outro ponto é se eu participo desse evento, se eu
me sinto participante, se me chama a atenção, se me envolve nessa discussão.
Caso contrário, pode parecer que é apenas um estudo mostrar uma informação
que não atinge. Então, ela tem que atingir essa mensagem, tem que atingir essa
expressão (C. E. 4, p1)
37
.
Merleau-Ponty (1999) diz que é preciso que o sentido da palavra seja induzido
pelas próprias palavras ou, mais exatamente, que sua significação conceitual se forme
por antecipação a partir de uma significação gestual que é imanente à fala. A expressão a
que o autor se refere está relacionada a uma ação que comunica reações diversas as
quais se presentificam num instante e atribuem significado no momento em que é
realizada a ação de falar ou de cantar. Por meio dessa explicação do autor é possível
entender que a prática do canto expressivo compreende a dimensão da fala expressiva
real e a extrapola, resultando em ferramentas técnicas que viabilizam alcançar o mesmo
resultado no canto, de forma artística.
As preocupações dos cantores sobre a expressão vocal apontam para a
necessidade de tocar o público através dos conteúdos impressos nos materiais
interpretados. Para eles é necessário comunicar algo ao público pela via da sensibilidade.
Por serem cantores, eles estão no papel de alguém ou representando uma idéia, uma
emoção, que são compreendidas por determinada cultura, no caso a cultura ocidental.
Não se trata de estarem vivendo efetivamente a experiência. É preciso que fique bem
clara essa distinção entre a vida real e a ficção de uma obra de arte, porque a voz
também deve ser entendida segundo essa diferença.
Coelho (2003), na introdução de seu livro de técnica vocal, afirma que o cantor é
um comunicador, pois cantar é um fenômeno que envolve o “dizer” e, com isso, tocar a
sensibilidade dos ouvintes. Dessa maneira, a autora se soma aos profissionais da voz ao
considerar que o papel do cantor suplanta uma mera descrição do fenômeno, mas que
está contingenciado a uma comunicação completa que passa pela manifestação de
códigos de significação que a tornam expressiva. Além disso, Coelho também reforça a
37
Caderno de Entrevistas: Caso 4.
41
idéia que está presente em todas as entrevistas, que é a necessidade do
autoconhecimento, como tarefa primordial para aquele que decide expressar-se através
da voz.
Quando Merleau-Ponty (1999) descreve a fenomenologia da percepção e discute a
questão da fala como expressão, ele a está discutindo em sua capacidade de dar
significado na vivência real do sujeito. Ele considera que a expressão acontece no
momento da comunicação, pois estabelece os critérios de significação que são
específicos para esse momento.
O autor aponta para a necessidade de que a fala não seja mais encerrada em seu
contexto semântico, em que por seu uso se depreende conteúdo e significado. O
significado catalogado no idioma não garante conteúdo expressivo, pois esse é
possível com a fala respondendo aos problemas e situações do momento, através de uma
ordenação de esforços emocionais e motores vividos em cada situação. Ao sugerir que o
aprendizado de uma pessoa diante da experiência do outro só é realmente possível ao se
superar a fixação da fala no próprio código, o autor sugere a possibilidade de um ser
humano colaborar para reescalonar as experiências de outro ser humano, através da
comunicação de suas experiências emocionais, que podem ser apreendidas através de
tensões e relaxamentos motores, frutos do conjunto de ações que implicam no
pensamento e que são impressas no ato de falar, conferindo verdade e impacto
expressivo.
Perdemos a consciência do que de contingente na expressão e na
comunicação, seja junto à criança que aprende a falar, seja junto ao escritor que
diz e pensa pela primeira vez alguma coisa, seja enfim junto a todos que
transformam um certo silêncio em fala. (...) Nossa visão de homem continuará a
ser superficial enquanto não remontarmos a essa origem, enquanto não
reencontrarmos, sob o ruído das falas, o silêncio primordial, enquanto não
descrevermos o gesto que rompe o silêncio. A fala é um gesto, e sua significação
é um mundo. (Merleau-Ponty, 1999, p. 250)
convergências entre o que foi explicitado por Merleau-Ponty e a compreensão
de Blacking (1995) ao descrever a capacidade expressiva da música que, segundo esse
último, está diretamente relacionada a dois fatores fundamentais propostos pela tensão e
pelo movimento. Ambos são capazes de retratar, respectivamente, dois fatores da
experiência emocional: a tensão nervosa e o impulso motor. Caso formas particulares de
tensões nervosas e de impulsos motores sejam reconhecidos pela consciência da
experiência objetiva, eles podem formar um suporte para uma expressão inteligível. E
42
nesse sentido vários elementos podem ser relevantes como registro, timbre, dinâmica ou
inflexão rítmica.
Em ambos os autores pode-se entrever uma busca por uma expressão
desfragmentada, em que mente e corpo são um na vivência e manifestação dos
conteúdos.
Os cantores aliam essa condição da música como estrutura peculiar de
comunicação à própria condição expressiva contida no texto cantado. Para garantir
sucesso interpretativo o cantor deve saber conjugar as condições expressivas da música
à necessidade expressiva do texto, além de dar conta do momento artístico ocorrer num
espaço/tempo virtual.
Blacking (1995) afirma que o espaço/tempo virtuais da música podem ajudar a
gerar experiências, pois existe liberdade das restrições impostas pelo tempo real,
possibilitando experiências de maior intensidade e vivacidade como decorrência da
suspensão do tempo/espaço normais.
Os cantores apontam para tal necessidade quando buscam a deformação da
percepção espacial e temporal através do som, como relatado por André e Ângela em
suas entrevistas. Garantir que o espaço esteja preenchido pelo som, com clareza de
emissão é um primeiro passo na definição do espaço de arte. Da mesma forma, quando
Ângela afirma que o som pode se movimentar e ser manipulado pelo artista como
possibilidade expressiva, ela está se referindo a um espaço de representação que
propicia maior fruição de emoções e de sensações no que se chamou espaço virtual.
43
3.2 As especificidades do sujeito na ação performática
Nessa questão, os entrevistados procuram fazer a relação entre sua formação,
envolvendo a preparação técnica, e as condições que consideram necessárias para
alcançar os objetivos expressivos que almejam em suas performances.
Alberto (estudo de caso 1) considera que sua formação em técnica vocal lhe
garantiu muito sucesso quanto aos resultados expressivos porque se trata de um
posicionamento saudável da voz possibilitando alcançar os resultados sonoros
necessários ao seu trabalho de intérprete. Segundo ele, seu preparo técnico é uma
abordagem que visa atrelar recursos expressivos ao trabalho vocal, buscando tais
recursos no próprio corpo, aproveitando a ressonância de todo o corpo, assim como
utilizando uma seleção de ressonadores específicos para auxiliar na expressividade de
cada obra, conforme o conteúdo que esta apresenta.
Coelho (2003) explica que as cavidades de ressonância humanas são todas
aquelas cavidades do corpo cujo conteúdo aéreo e cujos componentes ósseos,
cartilaginosos ou musculares entram ou podem entrar em vibração a partir das vibrações
do interior da laringe. Mesmo que a sensação vibratória possa ser mais significativa em
algumas regiões do corpo, como na cabeça, na realidade todo o corpo humano vibra em
ressonância. A autora ainda completa a idéia de que a ressonância perfeita utiliza todos
os ressonadores do corpo de forma flexível e equilibrada.
Partindo dessa idéia de que o corpo todo é instrumento ressonante, Alberto então,
acrescenta que seu estudo de técnica vocal foi sempre atrelado a uma busca do
significado do próprio som em adequação ao que estudava e cantava. Ele se avalia
bastante satisfeito com a técnica vocal que usa, porque afirma que lhe possibilita uma
gama bastante ampla de recursos expressivos, permite que ele utilize o corpo todo
efetivamente como fonte produtora de som, além de possibilitar a escolha e a seleção
proposital de regiões do corpo que podem ser usadas com maior intensidade do que
outras. Essas alternativas, para ele, garantem muitas possibilidades expressivas. O cantor
ressalta que ele nãos se sente limitado a respeito de suas balizas técnicas.
Merleau-Ponty (1999) conclui que o sentido da palavra não está contido nela
enquanto o som articulado de um fonema memorizado pelo idioma e, sim, é a definição
do corpo humano ao apropriar-se em uma série de atos descontínuos, de núcleos
significativos que ultrapassam e transfiguram seus poderes naturais. A linguagem coloca
44
problemas tais como: uma contração da garganta, uma emissão de ar sibilante entre a
língua e os dentes, certa maneira de desempenhar do corpo deixam-se repentinamente
investir de um sentido figurado. Ou seja, é preciso que a gesticulação fonética utilize um
alfabeto de significações adquiridas, que o gesto verbal execute certo panorama
comum aos interlocutores, assim como a compreensão dos outros gestos supõe um
mundo percebido comum a todos.
Sobre a aplicação de sua técnica vocal, Alberto esclarece ainda:
Então, como eu disse anteriormente, a técnica vocal que uso, na verdade deixa a
minha voz apta a acionar os recursos expressivos necessários quando eu precisar
mesmo no momento de fazer. Então eu o tenho uma limitação técnica, minha
voz não precisa estar sempre no mesmo ponto, limitando que eu utilize, por
exemplo, um recurso expressivo num ou noutro momento. (C. E. 1, p.3)
O cantor Alberto reforça o pressuposto de Estienne (2004), em seu trabalho de
terapia vocal, de que uma boa voz é, antes de tudo, uma voz flexível, que funciona
livremente e com durabilidade, utilizando seus limites naturais explorados ao máximo.
Nesse sentido, ainda considera que trabalhar a voz pode significar devolver ao indivíduo
suas potencialidades, pois explorar seus recursos terá uma ação sobre o indivíduo inteiro.
Para Alberto, o seu trabalho técnico é um caminho saudável para o conhecimento e
utilização de seu aparato vocal, além de ser uma alternativa de conhecimento e de
sistematização de códigos que comuniquem aspirações humanas. Assim, o trabalho
performático, para ele, passa a ser uma construção específica do momento na qual a
resposta do público é alimento para que possa construir a interpretação da música com os
recursos expressivos que domina. Alberto acredita, portanto, que deve manter-se atento à
resposta do blico, seja ela positiva ou negativa, como balizas que geram sutis
alterações de recursos técnicos no sentido de buscar a melhor forma de se fazer
compreender por esse mesmo público. Dessa maneira, acredita que, do ponto de vista
expressivo, as suas performances são, de forma geral, compreendidas pelo público. A
partir dos recursos expressivos que tem, ele considera fundamental usar a resposta do
público para dar continuidade à performance, assim como tal resposta o impele a acessar
novos recursos que sejam necessários naquela circunstância.
Merleau-Ponty (1999) afirma ser impossível sobrepor no homem uma primeira
camada de comportamentos que se poderiam chamar de naturais em um mundo cultural
e espiritual fabricados. No homem tudo é natural e tudo é fabricado, pois a simples
presença de um ser vivo modifica o mundo físico, faz surgir alimentos aqui e um
45
esconderijo ali, dá, portanto, aos estímulos um sentido que não tinham. Para o autor, o
homem provoca ainda maiores transformações, pois seus comportamentos criam
significações que transcendem sua condição anatômica e a subjugam, no intuito de lhes
imprimir sentidos e significações. No entanto, são imanentes ao comportamento enquanto
tal, que este se ensina e se compreende. Não se pode fazer economia dessa
capacidade que cria significações e que as comunica. Tal entendimento da natureza
cultural das ferramentas de comunicação que o autor explica, faz com que se
compreenda a preocupação de Alberto em procurar ajustar todo o seu equipamento
expressivo ao momento de atuação e com sinais adequados para garantir que o público
possa usufruir da melhor maneira o momento artístico por ele proposto.
Sobre o problema proposto por Alberto para a construção do personagem é
possível trazer o discurso de Merleau-Ponty (1999) aprofundando a idéia da significação
em um contexto específico. Ele reafirma a idéia de que a percepção do mundo é feita por
meio do corpo quando diz que “(...) é por meu corpo que compreendo o outro, assim
como é por meu corpo que percebo “coisas”. Assim ‘compreendido’, o sentido do gesto
não está atrás dele, ele se confunde com a estrutura do mundo.” (p. 253)
Esta idéia de Merleau-Ponty (1999) traz novamente a questão de que os “sinais”
percebidos na comunicação são a própria comunicação, pois eles garantem o aspecto
qualitativo, ou seja, da significação impressa no ato comunicativo. Em conseqüência
disso, o momento expressivo se torna único.
Dessa maneira, para esclarecer o problema do cantor, em um ato performático, é
possível citar Estienne (2004) quando resume suas idéias dizendo que:
O locutor adapta sua voz em função de sua percepção real e/ou suposta do canal
de transmissão
38
e de recepção
39
. Antes mesmo de falar ele prepara sua voz em
função da atmosfera que ele sente, da disposição física do lugar, do papel que ele
acredita dever representar, da natureza da mensagem, de sua percepção e da
confirmação que tem de seus ouvintes. (p. 5)
Utilizando o discurso supracitado, cabe contextualizar a fala de Anita (estudo de
caso 2). Ela considera sua expressividade inteligível para o blico, isso em função de
trabalhar com critérios bastante claros. Quando a peça musical exige um tipo de caráter,
38
Aquele que influencia a voz pelo aspecto físico, pela qualidade acústica e da transmissão que pode ser
melhor ou pior (ESTIENNE, 2004).
39
Canal de recepção é aquele que influencia a voz pelo número de ouvintes, seu estatuto a qualidade de
sua audição, assim como o estado de espírito prévio e sua qualidade de escuta e de receptividade
(ESTIENNE, 2004).
46
ela faz questão de que sejam bem claros, por exemplo, a agressividade, a tristeza. Ela
está se referindo aqui ao que Estienne (2004) apontou como a preparação do papel que o
locutor acredita dever representar. Anita acredita que essas emoções ficam bem
evidentes na performance, na expressão. No entanto, quanto mais complexo o conteúdo,
mais alternativas de interpretação são possíveis. Nesse caso, ela considera importante
nortear a percepção através de alguns conteúdos mais nítidos, algumas emoções
específicas que ela queira expressar, que são escolhidos como fundamentais para aquela
peça. Todas as características que ainda precisem ser acrescentadas devem ser feitas
desde que não comprometam a expressividade dos conteúdos mais importantes. “Então
uma das necessidades na performance, que eu vejo é definir alguns pontos básicos que
eu quero expressar, algumas emoções específicas, ou algumas idéias mais específicas
pra realmente deixar aquele conteúdo bem nítido” (C. E. 2, p.3).
Anita considera que, na performance, o mais importante é levar as pessoas a se
sensibilizarem com o que o artista está fazendo. Acha que nisso reside a expressividade
vocal, ou seja, “como o cantor consegue chegar a esse objetivo, realmente tocar a alma
das pessoas” (C .E. 2, p.3).
Para entender a voz, segundo essa disposição de expressar conteúdos e tocar as
pessoas, Le Huche e Allali (2005) fazem a diferenciação entre as manifestações faladas e
distinguem tal disposição como voz de expressão, na qual modificações de
comportamento físico e mental intervêm quando o sujeito está engajado em uma
manifestação com alto nível de energia.
Não dizemos as coisas da mesma forma se elas nos comovem ou se elas nos são
indiferentes. Quando alguém nos fala, somos informados, pouco ou muito, de
maneira vaga ou precisa, e freqüentemente desde o princípio da frase, acerca dos
tipos de sentimentos que o sujeito nutre em relação ao que diz, sem que tais
sentimentos precisem ser formulados. Essa informação resulta a princípio de
muitos sinais tradicionalmente ’extralingüísticos’ (mas que, nem por isso, deixam
de integrar a ‘manifestação falada’) (LE HUCHE E ALLALI, 2005, p. 174).
Ao que Le Huche e Allali chamaram de sinais extralingüísticos, Merleau-Ponty
(1999) considera que a função do corpo na memória se traduz como na iniciação cinética
em que o corpo, por exemplo, converte certa ação motora em vociferação, desdobra o
estilo articular
40
de uma palavra em fenômenos sonoros, projeta a intenção de movimento
em movimento real, pois ele é um poder de expressão natural. Ele afirma que assim como
40
Estilo articular é o movimento necessário para emitir ordenadamente os fonemas formantes das palavras
de um idioma; é o encadeamento de movimentos durante a fonação (MERLEAU-PONTY, 1999).
47
é com o próprio corpo que se engaja entre as coisas, não se compreende os gestos de
outras pessoas por um ato de interpretação apenas intelectual, ou seja, além do discurso
lingüístico decifrado na esfera do intelecto, concomitantemente o indivíduo reconhece um
modelo expressivo de instância emocional que pode até ressignificar o discurso
lingüístico.
Todas essas considerações são feitas para explicar a ação expressiva que ocorre
no momento de comunicação entre sujeitos em condições reais de suas vidas. Resta
ainda ressaltar que existem contextos em que as ações são realizadas em condições
artísticas de representação, situações que o expostas pelos cantores entrevistados.
Para Le Huche e Allali (2005), que se fazer a distinção da voz projetada para a
representação artística, pois, estando diante do público, com o propósito de representar,
no canto ou na dramatização, a intenção de atuar não deve ser aparente. O espaço deve
ser totalmente preenchido pelo aspecto expressivo daquilo que está sendo representado
ou cantado.
Diante do exposto, Anita considera que o artista (nesse caso, o cantor) vai
encontrar no estudo de técnica vocal um recurso para conseguir algo mais profundo, algo
mais rico, mais completo musicalmente e artisticamente. Esse “algo completo”, para a
cantora, dá-se quando as pessoas saem realmente beneficiadas de terem apreciado a
realização artística. Segundo Anita, sua técnica vocal é muito eficiente e a ajuda a fazer o
que se propõe a fazer.
Seguindo essa linha de pensamento, Coelho (2003) compreende que o trabalho de
técnica vocal, entendido em toda sua amplitude, traz a oportunidade de cada um
descobrir-se como instrumento, instrumentista e luthier. Isso porque a voz é o resultado
de uma utilização cultural e aprendida de recursos do corpo humano, sendo o código de
expressão da alma, revelando suas impressões mais profundas através do seu timbre,
volume, sua forma de emissão. Portanto, ao trabalhar a voz de alguém, coloca-se em jogo
o seu esquema de valores assim como toda a sua filosofia de vida e sua cosmovisão.
Tendo essa clareza, o artista pode aplicar seus conhecimentos e sua experiência
em voz para criar as alternativas necessárias à construção de um personagem,
garantindo a objetividade dos critérios expressivos que Anita colocou como estruturantes
de uma performance de sucesso. Da mesma maneira, é possível construir, com fidelidade
ao conteúdo, papéis que sejam bastante distintos da personalidade do artista que o
48
executa. O domínio de recursos técnicos e expressivos assim como a distinção entre
artista e personagem possibilita que tal tarefa seja possível.
Ângela (estudo de caso 3), a outra cantora entrevistada, considera instigante estar
resolvendo as coisas de uma forma diferente. Ela se refere a momentos, como, por
exemplo, em um duo de Mozart, do Cosi fan Tutti, que interpretou pouco tempo, em
que o personagem possuía características e motivações muito distintas das que ela
mesma usaria pessoalmente. Portanto, precisava resolver sua interpretação de alguma
forma, pois, como pessoa, ela é bem diferente, não faz as coisas que o personagem faz.
E isso era o que ela mais gostava na ópera, ou seja, poder realizar esse papel. Essa
experiência, para a cantora, torna possível perceber que os próprios limites são mais
maleáveis e que, portanto, o artista é capaz de dimensionar de forma diferente o que
pode fazer no mundo real.
Coisas do personagem que você se imagina fazendo e você acha que não vai ter
como resolver isso. Mas eu acho que todas as coisas que eu já fiz, pensando em
personagem, foram coisas que num primeiro momento eu pensei: “Nossa! Será
que eu vou conseguir resolver esse personagem? (C. E. 3, p.4)
41
Em função desse enfrentamento com seus próprios conteúdos e valores, Ângela
afirma ter evitado, por algum tempo, alguns papéis, como, por exemplo, a Carmen (da
ópera Carmen, de Bizet). Isso porque ela considerava uma tarefa que seria diferente e
difícil de realizar com o equipamento expressivo de que dispunha. No entanto, mesmo
depois de ter realizado tal intento, explica que ainda está estudando esse personagem,
mas acredita que a superação do limite é um acréscimo que a faz amadurecer em todas
as instâncias.
Isso é possível porque, por meio da técnica que estuda, Ângela aprende a usar os
recursos do corpo assim como a ressonância em seus ossos. Para ela, assim como a
prática de técnica vocal amplia a capacidade de perceber o próprio corpo e modifica a
imagem que se tem dele, muito da expressividade vocal vem com a imagem que se cria
do personagem. Essas imagens da ação do personagem, associados aos sons praticados
na aula de técnica vocal, mostram possibilidades sonoras que são construídas a partir da
seleção de ressonadores corporais específicos. Ela considera que algumas coisas são
expressas com a imagem, não dependem necessariamente da técnica. Mas, depois de
41
Caderno de Entrevistas: Caso3.
49
observar seu funcionamento, é possível reutilizar o mesmo recurso que vem do seu
corpo.
A partir dessa fala de Ângela, reitera-se o que Estienne (2004) considera como um
trabalho vocal que transforma o sujeito, pois explorar seus recursos terá uma ação sobre
o indivíduo inteiro. Dessa relação, é possível concluir que o fenômeno artístico não
interfere ou incide apenas em quem o frui, mas modifica também aquele que faz: o próprio
artista.
Essa é a gica que subjaz à afirmação de Ângela de que evidenciar suas próprias
limitações e caminhar na direção de superá-las faz com que possa dar passos mais
ousados adiante. A experiência de estudar e montar um personagem podem ser tão
frutíferas a ponto de se aprender dimensões humanas novas, tendo como conseqüências
alterações do próprio comportamento porque é possível compreender a coerência do
personagem dentro daquele contexto em que está. Nas palavras de Ângela:
Eu não acho que a gente não seja de vez em quando Carmen. Pelo menos
algumas coisas do personagem Carmen a gente tem como mulher, como querer a
liberdade, de gostar da liberdade. É uma coisa que é bastante comum no ser
humano. Nesse sentido, eu acho que ela foi um bom estudo, de mostrar para você
que a liberdade é possível. (C. E. 3, p.4)
Perelló et al. (1982), ao discutir a psicologia do cantor, afirma que o canto dá forma
às diversas emoções que agitam a alma humana. Sendo assim, os problemas do cantor
podem ser de duas naturezas: os próprios e os causados pela profissão. Em ambos os
casos, o cantor deve estar atento à sua origem e manifestação, pois mesmo que tenha
que cantar assuntos ou idéias que sejam discordantes de suas características pessoais
ou que lhe causem aflição, deve manter-se centrado para conseguir realizar a tarefa.
Em decorrência dessa realidade que o cantor (ou qualquer profissional da voz)
experimenta em sua profissão e que os cantores entrevistados relataram da sua
experiência, volta-se a chamar a atenção para o fato de que, ao trabalhar e alterar os
parâmetros vocais de alguém, está-se influenciando nas manifestações do indivíduo como
um todo. Volto a citar Coelho (2003), quando diz que a técnica vocal promove o
autoconhecimento e a sensibilização que permitem o encontro consigo mesmo assim
como a integração com o mundo circundante. Nesse momento é grande a
responsabilidade de quem orienta o artista para o enfrentamento dos problemas que terá
profissionalmente.
50
Percebendo a dinâmica que implica na construção e manutenção dos parâmetros
expressivos é possível compreender melhor a atitude de André (estudo de caso 4) diante
de suas expectativas. Ele considera que é preciso avançar um pouco mais em alguns
controles, como por exemplo, o stress diante da platéia, que o prejudica na hora de se
“soltar” para poder explorar o momento e ter o controle da situação durante a
apresentação. Ele acredita que no momento em que alcançar maior domínio ou mais
tranqüilidade diante do público, irá se expressar melhor. Durante suas performances
percebe que algumas pessoas sentem algo diferente. Dependendo de sua atuação, o
público reage e, muitas vezes, considera que algo diferente, o que ele atribui ser
resultado da sua capacidade expressiva. Segundo ele, muitos expectadores “acham
bonito”. Portanto, ele considera que é possível transmitir sua mensagem expressiva, não
ainda da forma como almeja, mas com um bom e perceptível resultado. André
considera que um dos aspectos que não colaboram para que esse domínio seja máximo é
o fato de não ser exclusivamente cantor e dispor de pouco tempo para treinar.
O treinamento vocal, como já exposto acima, é um trabalho complexo que promove
uma requalificação dos parâmetros vocais utilizados a partir de uma sensibilização, de
uma conscientização, por meio de exercitação que garante domínio dos recursos
aprendidos e a substituição de antigos por novos parâmetros (substituição de hábitos
existentes). Um dos critérios que podem ser levantados como possibilitadores de novas
aquisições, seguindo a lógica de que os sinais vocais são significativos para o sujeito que
fala, é que os novos referenciais devem ser tão ou mais significativos quanto os que estão
sendo abandonados. Novamente, entram as características pessoais do artista e também
a própria motivação profissional que, para um cantor, implica em adquirir recursos para o
desenvolvimento de seu trabalho.
Para alcançar os objetivos que se propõe, André possui um método de estudo de
seu repertório. Seleciona trechos da obra e intensifica o entendimento deles,
primeiramente de forma mental e depois explorando os recursos. Ao estudar, ele se
referencia em sua própria reação: se sentir que está bom acredita que é um bom
caminho. Nesse método de estudo, considera que a técnica é a forma de utilização, a
maneira que o cantor domina as representações no dia a dia para provocar no interlocutor
o que ele pretende expressar, como a raiva, a alegria ou até revelar a timidez ou até
mesmo a ironia. Para ele, é possível até não expressar nada se o artista o desejar
naquele momento.
51
Ao cantar, André procura perceber como o som está se comportando no ambiente,
se está bem claro, onde está chegando sua voz, se as pessoas o estão ouvindo. Esse é o
primeiro ponto que avalia quanto à sua expressividade: se a massa de som e a
intensidade estão adequadas ao ambiente.
O segundo indicador interno ao qual André se referencia é a sensação de que a
expressividade está fluindo. Portanto, é algo que o é simplesmente treinado. É
preciso que flua de forma orgânica e verdadeira. Segundo ele, quando o cantor percebe
que está no controle e, ao mesmo tempo, a música flui, este é um indicador da
expressividade.
Outro indicador, para André, são as sensações experimentadas no momento da
performance, como o equilíbrio encontrado em ter “os pés firmes” no chão, somada a uma
sensação de “arrepio na coluna”. Ou seja, ele sente que o corpo também se expande e a
energia se movimenta. São sensações que lhe servem de indicadores de expressividade.
Ao construir uma interpretação, ele ouve outras pessoas as quais também já
executaram determinada peça para perceber alguns detalhes. O que é que se faz? Para
André, outros intérpretes contribuem em diversos sentidos para a construção da
interpretação. No entanto, um aspecto que ele considera fundamental nesse momento é
sentir que está dentro do processo expressivo necessário. Se a construção lhe parece
uma quebra, então ele se perde. Mas quando se sente dentro, lhe parece que tem mais
expressão; algo como se sentir inteiro no que está fazendo.
Para Coelho (2003), se a cnica vocal é entendida como o próprio espetáculo,
uma boa formação cnica promove o autoconhecimento e a sensibilização que permitem
o encontro consigo mesmo e a integração com o mundo circundante. Para a autora, o
raciocínio lógico e a sensibilidade decorrentes da técnica vocal como vivência estruturada
e estruturadora de vida são incorporadas pelo cantor e transferidos tanto para a execução
de obras do repertório, assim como para todas as dimensões da atuação como indivíduo
e como integrante do seu grupo social.
Merleau-Ponty (1999) afirma que a fisiologia moderna aponta para que a união
entre alma e corpo não é selada por um decreto arbitrário entre dois termos exteriores.
Ela se realiza a cada instante no movimento da existência. Ainda, afirma que “ser uma
consciência, ou antes, ser uma experiência é comunicar interiormente com o mundo, com
o corpo e com os outros, ser com eles em lugar de estar com eles.” (p. 142)
52
Merleau-Ponty aponta para a integralidade entre corpo e alma. Nas preocupações
que André manifesta em seu discurso, é possível depreender essa necessidade de
integridade quando diz que sua grande baliza de expressividade é sentir-se inteiro, dentro
do processo. Quando diz que o corpo também se expande e a energia se movimenta ele
não separa a experiência do corpo com a experiência de significação intelectual que deve
ocorrer no momento da interpretação. Essa sensação de ser e estar inteiro é um sinal de
que todos os elementos constituintes da percepção contribuem para a comunicação
verdadeira e expressiva, não se fragmentam no momento da performance.
53
3.3 Os elementos envolvidos na preparação vocal
Ao discutirem os elementos envolvidos na preparação vocal, os cantores abordam
os indicativos de uma boa condição de saúde vocal e a exploração saudável de recursos
expressivos necessários para conseguir sensibilizar de forma proposital e clara o público
que os assiste.
Em seu trabalho de preparação vocal, Alberto (estudo de caso 1) destaca a
necessidade de propiciar condições de saúde vocal, conforme havia explicitado na
questão anterior. Quando isso está garantido, é preciso procurar compreender que a voz
responde às necessidades de comunicação dos estados emocionais humanos e, dessa
maneira, adquirir habilidade de sensibilizar o público.
Novamente, o cantor evoca a idéia de que a voz deve ser balizada por parâmetros
saudáveis, evitando os riscos de comprometer o bom funcionamento do aparelho fonador.
Segundo Le Huche e Allali (2005), essa preocupação deve sempre ser cultivada pelos
artistas, para que, em sua prática, evitem o erro de transmitir experiências e imagens que
contrariem a fisiologia e anatomia real do ser humano.
Segundo Gomez (1980), o organismo humano não está anatomicamente formado
nem preparado para falar. O ser humano utiliza o aparelho fonador, que é um conjunto de
órgãos com funções fundamentais distintas, aproveitando os sons e os ruídos que nele se
produzem e ressoam para lhes conferir um significado convencional e simbólico. A essa
afirmação, Coelho (2003) explica que, por se tratar de uma utilização secundária desses
órgãos e estruturas, acaba por ser uma solicitação a mais de esforço. Portanto, para uma
boa aprendizagem dos recursos vocais, é preciso que se respeite a saúde geral do
indivíduo, entendendo-se que esta compreende o biológico, o psicológico e integração
sócio-cultural.
Assim como os autores entendem que a voz responde às necessidades
emocionais, expressá-las com clareza e propriedade também é parâmetro de saúde
vocal. Dessa maneira, Le Huche e Allali (2005) consideram que conhecer a mecânica
vocal não é prejudicial, caso a compreensão de “conhecer” seja “travar conhecimento
com”, ou ainda, se souber esperar que esse conhecimento se integre ao conhecimento e
à “percepção” precedentes, tornando-se algo que é parte do sujeito, evitando reduzir o
fenômeno vocal a um mero processo mecânico, não devendo esquecer seu aspecto
expressivo e humano.
54
Para explicar a expressividade como superação do simples ato mecânico de que o
ser humano é capaz, Merleau-Ponty (1999) reconhece a natureza enigmática do corpo
próprio. Ele não é apenas uma reunião de partículas das quais cada uma permaneceria
em si, ou ainda, um entrelaçamento de processos definidos de uma vez por todas ele
não é aquilo que é, ou não está ali onde está que dele emana um “sentido” que não
lhe vem de parte alguma, mas que o projeta em sua circunvizinhança e o comunica aos
outros sujeitos. O autor considera que sempre se observou que o gesto e a fala
transfiguravam o corpo, mas contentava-se em dizer que eles desenvolviam ou
manifestavam uma outra potência, pensamento ou alma. Não se via que o corpo
precisava tornar-se o pensamento ou a intenção que ele significava para poder expressá-
la. É ele que mostra e que fala.
Nesse sentido, as considerações de Alberto podem ser relacionadas com as idéias
de Merleau-Ponty, pois afirma que todo o seu treinamento está vinculado à descoberta do
significado que o som carrega, de acordo com as características tímbricas, de
ressonância, da projeção do som no espaço e das relações possíveis com a sensibilidade
humana. Conseqüentemente, ao realizar o treinamento para emitir sons adequados a
cada situação expressiva, desenvolveu simultaneamente a própria percepção para
distinguir a presença de sinais expressivos no discurso dos outros, mesmo que contrários
ao texto.
Callaghan (2000) diz que, certamente, no canto, a audição e as funções orais são
coordenadas como um só, para responder ao pensamento, às emoções e aos
feedbacks” sensórios.
Merleau-Ponty (1999), por sua vez, afirma que o resultado final é a própria
experiência expressiva. Para ele, não é possível explicar a significação dos conteúdos
impressos na ação de falar separando os momentos de significação dos de expressão. A
fala significativa (seja ela mental ou verbalizada) é o momento próprio em que se atribuem
todos os conteúdos na expressão.
Na ação pedagógica, por muitas vezes, o estudo do fenômeno vocal é fragmentado
com o intuito de compreendê-lo; no entanto, é preciso que haja clareza de que tal
fragmentação é apenas uma ferramenta analítica e não representa o fenômeno como um
todo (CALLAGHAN, 2000).
A partir dessa compreensão do fenômeno vocal, Alberto diz que a voz deve ser
utilizada como um veículo que possui, por seus próprios recursos, a capacidade de
55
comunicar, independendo de sinais visuais. Ele diz que um cantor ou mesmo um ator
deve ser tão eficiente que, com os olhos fechados ou sem a necessidade de um libreto
explicativo, seja possível depreender todas as nuances e intencionalidades impressas na
voz do personagem. Ele entende que, ao se falar em treinamento vocal, alcançar essa
habilidade é o objetivo expressivo do cantor ou mesmo do ator.
Callaghan (2000) afirma que o órgão essencial no processo recepção sonora é o
ouvido, não apenas para permitir ao público o canal de entrada à informação, mas na
percepção da simetria e do equilíbrio. As duas funções estão intimamente relacionadas
para proporcionar ao cérebro dos ouvintes os dados sobre a natureza e a localização das
vibrações no ar (percebidos como som) e o sistema vestibular
42
do ouvido interno provê
os dados na posição do corpo do ouvinte. Em qualquer tipo de música essas duas
funções estão juntas.
Complementando,
Storr (1992) afirma, em função disso, que a música pode
ordenar nosso sistema muscular assim como tem a capacidade de ordenar nossos
conteúdos mentais. Um sistema perceptual inicialmente projetado para informar das
relações espaciais pelo significado da proposição de simetrias pode ser incorporado e
transformado em significados de estruturação do mundo interno.
Anita (estudo de caso 2), ao discorrer sobre os elementos envolvidos na
preparação vocal, avalia positivamente a sua prática em relação ao que necessita para o
desenvolvimento de sua arte. No entanto, considera que em muitos lugares a
interpretação fica atrelada à idéia de que a “música perfeita” é aquela realizada da
maneira como foi escrita e pensada pelo compositor, como se fosse possível encerrar as
possibilidades de interpretação dessa maneira. Dadas as indicações do compositor, o
artista deve interpretar os conteúdos e isso é muito mais que repetir a nota. Para Anita, o
mais importante é garantir que as pessoas se sensibilizem com a sua atuação. Considera
a boa aplicação da técnica vocal um recurso para se conseguir algo mais profundo, algo
mais rico, mais completo musicalmente e artisticamente.
Chasins (1963), compositor e diretor musical da Estação de Rádio WQXR, do New
York Times, pensa ser impossível se encontrar na partitura símbolos que capacitem o
intérprete a conseguir a nuance de entusiasmo, o estilo íntimo, a acentuação sutil, a
transição suave de um tempo para outro, de um fraseado, de uma variação expressiva
42
Sistema Vestibular refere-se à cavidade central do labirinto decorrente de dilatação do ouvido interno.
Nele se iniciam filetes do nervo auditivo. Também está relacionado ao sentido do equilíbrio. (Almeida Jr.,
1977).
56
para outra, ou qualquer outro dos efeitos que encantam os ouvidos. Para ele, não
símbolos para estes segredos e o intérprete pode aprender com os grandes mestres
sobre estilos de composição e sobre o que esses mestres consideram relevantes na
interpretação. Fora isso, o intérprete fica entregue a si mesmo. Deve esforçar-se por
realizar a música através de sua imagem pessoal, sua verdade pessoal. Esse autor
conclui que, evidentemente, um intérprete diferirá de outro, pois uma obra de arte não
pode significar precisamente a mesma coisa para duas pessoas. Quanto mais rica a
imaginação do intérprete, maior domínio, mais profunda sua intuição, mais humana sua
cultura e melhor ele penetrará e desenvolverá as potencialidades da música que
interpreta.
Ângela
(estudo de caso 3), por sua vez, diz que o estudo da técnica vocal em sua
formação por muito tempo foi falha, até porque, quando teve acesso a ela, a cantora se
interessava mais pelo fenômeno musical. Nesse período, manteve sua atenção no estudo
de composição e de regência e acabou o se focalizando no estudo da técnica vocal.
Apenas nos últimos três anos passou a se dedicar de maneira diferenciada ao seu
trabalho técnico e agora considera que utiliza os recursos com clareza. Com a orientação
do maestro e com os estudos individuais, pensa que é possível ir adequando, na prática
de canto, aquilo de que precisa realmente, aquilo de que sente falta ou que não está bom
ainda.
Com os recursos técnicos de que dispõe e que tornou conscientes em seu
estudo, a cantora se considera inteligível. No entanto, admite que ainda tem alguma
insatisfação em relação a esses recursos. Isso porque, mesmo sabendo de alguma forma
o que deve fazer, ainda sente falta de conseguir fazer com seu corpo. Essa insatisfação é
muito pessoal porque sabe que é possível, pois ouviu acontecendo, viu alguém
fazendo. Por exemplo, existem alguns sons que ela ainda não consegue ouvir no próprio
corpo e, nessa hora, ela procura pensar e se fixar na idéia que quer passar. Nesse
momento não está acessando a sonoridade de forma puramente técnica. Ela pensa em
onde está a ressonância e ela acontece. Mas, como não consegue ouvir exatamente o
que está acontecendo, o consegue identificar e dar significado para isso, ainda
permanece em dúvida quanto ao resultado final. No entanto, ao ver o conjunto, ela
consegue avaliar se o que está realizando está adequado ao todo ou não.
No processo de aprendizagem, o contato profundo com o próprio instrumento (seu
corpo, suas emoções, a pessoa inteira do cantor) é o primeiro enfrentamento que o cantor
57
acaba por fazer, pois, para dominá-lo, deve conhecê-lo bem, saber de seus potenciais e
de suas limitações. Ao mesmo tempo em que o cantor conhece esse instrumento deve
também poder mobilizá-lo para responder às demandas artísticas, ou seja, à interpretação
da obra artística. Coelho (2003) afirma que esse autoconhecimento possibilita que o
cantor exija de sua voz exatamente aquilo que ela pode lhe dar. Estienne (2004)
complementa que o treinamento vocal pode devolver ao indivíduo suas potencialidades
vocais e, dessa maneira, explorar seus recursos vai agir por inteiro sobre ele.
Merleau-Ponty (1999) afirma que é pelo próprio corpo que se compreende o outro,
assim como é pelo próprio corpo que se “percebe” coisas, tomando como ponto de partida
o fenômeno do “comportamento” e nele erige a percepção como contato primeiro com o
mundo. Vai à raiz da subjetividade com sua concepção do corpo-sujeito, corpo este que
estabelece com o mundo uma relação pré-objetiva, pré-consciente, de caráter dialético,
de modo algum causal ou constituinte: faz do corpo o sujeito da percepção. O discurso de
Ângela demonstra isso com clareza, ao afirmar que ainda não consegue atribuir
significações ou mesmo ouvir o som em determinadas regiões do corpo. Para superar
esse primeiro momento, em que apenas suas experiências pessoais é que estão
contribuindo para a realização do som, Ângela recorre a ações como a imaginação do
lugar da ressonância ou a idéias afins que possam lhe garantir uma nova experiência
corpórea e assim assimilar o recurso como seu.
Estienne (2003) esclarece a idéia de que uma bela voz segue critérios de natureza
subjetiva respondendo ao gosto pessoal, cultural, de gênero e de época. Uma boa voz,
por sua vez, está baseada em critérios objetivos e objetiváveis como a flexibilidade, que é
a capacidade de responder a ltiplas demandas (sociais, profissionais e pessoais) sem
ocasionar deterioração.
Quando pensa no personagem Ângela deixa a imaginação falar. No caso da
Carmen, a peça gravada na ocasião da entrevista, imagina que se trata de uma mulher
muito decidida. Portanto, é possível atribuir-lhe traços espeficos como, por exemplo: de
que forma é que ela soa, como é que ela é, não dentro da ópera, mas como uma
pessoa. Dessa idéia ampla é possível determinar, através de recursos técnicos, como é
que o personagem se comporta, como é ao chegar a determinados lugares, como é que
as pessoas a vêem, enfim, características que possibilitem dar vida ao personagem por
meio de uma sonoridade que responda ao projeto determinado previamente. Com os
recursos conhecidos tecnicamente é possível realizar esse projeto. Se a cantora
58
pretende fazer um momento contrastante, é preciso fazê-lo intencionalmente também. A
interpretação de Carmen foi realizada dessa forma.
A voz, para Estienne (2003), é um produto de um modo de fazer resultante de um
modo de ser. De alguma maneira ainda pressupõe que exista um momento de
significação anterior ao da expressão. Merleau-Ponty (1999) discorda dessa concepção.
Para ele a expressão e a significação se realizam num único momento. Compreendendo
o problema do artista à luz de Merleau-Ponty, a representação não pode ser um arremedo
da realidade, mas constitui um momento único no qual o artista se torna invisível e a
dimensão estética confere existência em si aquilo que exprime.
As maneiras de produzir o som que se quer para determinados personagens ou
para expressar emoções e idéias específicas passam pelo aprendizado do instrumento
que é o próprio cantor. Pode-se dizer que esse aprendizado inclui os aspectos subjetivos
e os objetivos do desenvolvimento vocal no cantor. Ambos devem ser dimensionados e
levados em consideração para que o trabalho vocal possa ser bem sucedido em todos os
aspectos. Callaghan (2000) diz que o instrumento vocal é o corpo, mas há duas diferentes
maneiras de observar e de entender o corpo:
Uma delas é da perspectiva da primeira pessoa, de dentro. Esse corpo é o Soma.
Para os cantores, desenvolver uma alta sintonia com o sentido proprioceptivo
um conhecimento do Soma é essencial no uso efetivo do instrumento vocal,
ambos de um ponto de vista físico e estético. A outra maneira é na perspectiva da
terceira pessoa, do observador. Esse é o corpo físico, caracterizado por leis
universais de física e de química. Para cientistas, coletar dados de observação e
mensuração de corpos humanos é essencial para a compreensão de fisiologia e
da acústica vocal. (Callaghan, 2000, p. 16)
André (estudo de caso 4) afirma que é uma experiência fascinante cantar e se
expressar com a voz, porque cada dia se descobre mais capaz de transpor não os
limites como de se relacionar também com as pessoas.
Para ele, existem alguns elementos que a voz por si faz. As pessoas percebem
a intenção subjacente na fala, porque são mecanismos que elas conhecem, são nuances
da vida mesmo usadas no dia-a-dia e que o artista tem que aproveitar. Andacredita
que, demonstrar as intenções pela voz na hora em que se está cantando, constitui o
diferencial na arte de cantar. Se o cantor quiser expressar sentimentos mais complexos,
vai ter que explorar no seu próprio corpo para que se reflita no outro, pra que ele perceba
que a situação mudou e que a expressão, por conseguinte, também mudou. Pode
acontecer que, ao falar ou cantar, o artista tente se valer de gestos ou mímicas ou de
59
expressões faciais para ser compreendido e cair no equívoco de descuidar ou perder
muito da expressão que está na voz.
Quando André considera que a voz por ela mesma garante a expressividade do
que se diz, concorda com Merleau-Ponty (1999) quando este afirma que o sentido do
gesto o está atrás dele e a estrutura do mundo que o gesto desenha se expõe no
próprio gesto. Considerando que a fala se trata de um gesto lingüístico, assim como todos
os demais, ela desenha o seu sentido. A gesticulação verbal, segundo o autor, visa a
paisagem mental que, em primeiro lugar, não está exposta a todos e tem por função
comunicar. Os atos de expressão anteriores estabelecem entre os sujeitos falantes um
mundo comum, ao qual a fala atual e nova se refere, da mesma maneira que o gesto se
refere ao mundo sensível, perceptível ao mundo comum.
André corrobora o que os demais entrevistados apontaram. Está na própria voz
toda a condição de expressão de idéias e de conteúdos emocionais. O treinamento vocal
de um cantor deve garantir que, com os recursos vocais, ele defina as características do
personagem. Quando os cantores falam de corpo o estão se referindo à expressão
corporal para garantir a interpretação. Falam de um aparelho fonador que é o sujeito
completo, que é acionado por todo o seu corpo, através de ritos musculares, conferindo
um resultado que o identifica sonoramente.
Callaghan (2000) afirma que nos últimos trinta anos a ciência e a pedagogia da voz
estão trabalhando juntas para produzir uma nova abordagem vocal. Isso porque, em
função da tecnologia, é possível observar a laringe em operação e realmente depreender
seus reais mecanismos de funcionamento. Nesse período, observou-se a emergência da
interdisciplinaridade para dar conta da abrangência que o fenômeno vocal representa.
60
3.4 Critérios para seleção de repertório
Ao abordar o item dos critérios que os balizam para a seleção de repertório, os
cantores levantaram questões como a motivação para a escolha de material, que
contemplam desde o grau de dificuldade da peça até a capacidade de reconhecer na obra
elementos que possam sensibilizar o ouvinte. Uma das questões exposta por quase todos
os entrevistados se relaciona à necessidade de estabelecer uma distinção clara entre
quem é o personagem e quem é o intérprete, como garantia de uma boa realização
artística.
Um dos critérios considerados importantes por Alberto (estudo de caso 1) na
seleção do repertório é se a obra de um compositor o toca, o sensibiliza. alguns
compositores que ele considera antecipadamente porque estão diretamente
comprometidos com a expressividade e a sensibilidade humana. Como exemplo cita
Mozart e Beethoven, admitindo ter-se apaixonado por eles ao trilhar a sua busca pela
própria sensibilização. Nesse sentido, procura não se limitar tecnicamente, não se
restringir ao repertório de baixo-barítono, de um barítono mais leve ou de um barítono
mais escuro. Procura adequar a técnica vocal e os recursos expressivos à peça escolhida
para ser executada. Ele sempre busca peças que estimulem uma capacidade maior de
expressão, de sensibilização das pessoas que o estão ouvindo. O principal motivo, a
chave pra escolher uma peça, reside na tentativa de sensibilizar o público.
Quando Alberto afirma que tem afinidade com alguns compositores pelo aspecto
sensível que apresentam em suas obras, e que busca sensibilizar o público através
desses mesmos conteúdos, o público estará sendo sensibilizado pela sua interpretação e
também pelos conteúdos originais da obra. Isso se constitui em uma complexa rede de
interpretações. De acordo com Geertz (1989), a interpretação não está acima da
interpretação do seu interpretado, mas concorre com ela, influencia e é influenciada, e é
este complexo jogo de interpretações e contra-interpretações que produz a compreensão
cultural. É o sentido que proporciona um entendimento sobre o mundo e a racionalidade é
apenas uma expressão desse entendimento.
As necessidades envolvidas nessa tarefa podem residir em personagens bastante
diferentes do próprio cantor, mas isso não intimida Alberto. De forma geral, considera
estimulante preparar um personagem completamente oposto. Ele explica que, no
momento da interpretação, o artista precisa entender que está entregando o corpo, está
61
se doando pra fazer uma coisa que não é ele. As limitações impostas por crenças ou
vivências pessoais não podem contaminar a interpretação, por isso o intérprete deve ter
clareza acerca de suas convicções pessoais e não confundi-las com o personagem que
interpreta. É preciso ter clareza e aliar os recursos expressivos pra fazer aquilo de
maneira adequada.
Ao conceituar o esquema corporal, Merleau-Ponty (1999) considera que este não é
apenas o simples resultado das associações estabelecidas no decorrer da experiência,
mas uma tomada de consciência global de postura no mundo intersensorial, uma "forma",
no sentido da Gestaltpsychologie. “Este termo significa que o corpo aparece como postura
em vista de uma certa tarefa atual ou possível. E, com efeito, sua espacialidade não é,
como a dos objetos exteriores ou a das ‘sensações espaciais’, uma espacialidade de
posição, mas uma espacialidade de si-tuação” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 146).
A definição de Merleau-Ponty (1999) sobre esquema corporal confrontada com a
questão da seleção de repertório apresentada por Alberto abre a discussão para a
compreensão da atuação como uma ação em que o artista está no mundo. Dessa
maneira, acarreta em implicações que dizem respeito a várias dimensões, desde a
preparação vocal, a saúde física e emocional do artista, até o engajamento deste em seu
meio cultural e social, que passam a fazer parte de um mundo de representação e de
projeção, virtual, criado e imaginado que é específico da Arte.
Coelho (2003) assegura que um trabalho vocal feito de maneira responsável
provavelmente proporcionará autoconhecimento que dará suporte necessário à atuação
do indivíduo e também do cantor para que possa entregar todos seus recursos à arte.
Ainda, afirma que o estudo e domínio de emoções influenciam o bom funcionamento
orgânico e tornam o corpo mais sujeito à vontade, fator determinante de uma boa atuação
artística. A partir desse processo de formação bem estruturado tem-se indicativos de que
o artista possa representar, lançar-se ao mundo virtual da Arte, fazer a projeção
expressiva que pretende em seu próprio corpo.
Para manter o discernimento entre a ação performática e a vida pessoal do artista,
que muitas vezes se constitui numa linha tênue, o cantor Alberto considera fundamental
garantir a integridade pessoal, respeitar seus ideais e seus valores sobre religião,
sexualidade, convívio pessoal e amizade. Desse autoconhecimento vem o discernimento
entre o real, o representado e o imaginário, podendo-se entregar realmente à
performance artística. Nas palavras do Alberto, “os meus valores eu mantenho íntegros,
62
mas no momento de interpretar eu realmente me entrego. Eu entrego o corpo, eu entrego
os meus recursos vocais, entrego tudo em função da interpretação que eu estou fazendo.”
(C.E. 1 p.5) Com tal clareza, fica mais fácil realizar as ousadias que sejam necessárias
para o papel.
Submetendo-se a essa dinâmica na formação vocal, que está contingenciada à
dinâmica da vida, o artista provavelmente estará mais apto e com referenciais mais
seguros para colocar-se a serviço do canto, evitando confusões a respeito da tarefa de
interpretar conteúdos os mais diversos. Com o discernimento do seu aparato vocal, de
seus potenciais e das necessidades que a atuação lhe demanda, espera-se que o artista
consiga dar clareza aos referenciais que qualificam sua atuação, sensível a todas as
necessidades de adequação e desenvolvimento do viver humano.
Nesse sentido, é importante trazer a discussão da antropologia sobre o papel do
intérprete. Para Geertz (1989), a cultura é um dos agentes responsáveis pela evolução da
mente, promovendo alterações de natureza física e fisiológica com o intuito de garantir o
aporte necessário para dar conta de solucionar as demandas propostas culturalmente.
Nesse sentido, a cultura e, conseqüentemente, a arte são instâncias de experiência
humanas diretamente relacionadas à maneira de viver e estabelecer valores e
significados à própria existência. As ações do intérprete podem ser compreendidas como
agentes de transformação.
Para a antropologia interpretativa é na parte e não no todo que reside o caráter
diferenciador da análise, que o interesse não está na relação dos termos, nem no
sistema, mas no próprio termo enquanto individualidade. Nessa perspectiva, a ação tem
um sentido e é isso o que a faz racional (SÁ, 2007).
Essa maneira de compreender o fenômeno da comunicação e da expressão
impressos na cultura tem afinidade com Merleau-Ponty quando este afirma que a
expressão se encontra na própria ação. Pensar é uma experiência que só progride
quando o sujeito se apropria do pensamento. É através da expressão que essa
apropriação é possível (Merleau-Ponty, 1999) e, portanto, é no ato interpretativo que a
expressão ocorre em sua plenitude e o artista pode se “apropriar” de suas propostas
interpretativas.
Para Anita (estudo de caso 2), a escolha de repertório segue alguns critérios. Um
deles é o seu próprio desenvolvimento pessoal, técnico e artístico com peças que
trabalham conteúdos que seriam pessoalmente desafiadores. Personagens que são o
63
oposto de sua personalidade são consideradas por ela um desafio e ela se propõe a fazê-
los porque, como artista, pensa que deve experimentar todas as formas possíveis de
composição de um personagem, conseguindo fazer todo tipo de performance.
Ao escolher papéis que divergem da sua natureza psíquica e emocional, supõe-se
que a cantora realiza uma experiência de enfrentamento com o potencial da natureza
humana, com isso amplia sua experiência de mundo e pode propor soluções
interpretativas mais ricas ao material que apresenta.
Assim como é pelo corpo que se engaja entre as coisas, não se compreende os
gestos de outras pessoas por um ato de interpretação puramente intelectual, ou
seja, além do discurso lingüístico decifrado na esfera do intelecto,
concomitantemente o indivíduo reconhece um modelo expressivo de instância
emocional que pode até ressignificar o discurso lingüístico (MERLEAU-PONTY,
1999, P.252).
Ao estabelecer conteúdos desafiadores como base para a escolha do repertório,
Anita utiliza a auto-regulação como um aspecto de aprendizagem importante no
desenvolvimento da expertise
43
musical. De acordo com Galvão (2006), a auto-regulação
inclui a busca de padrão de excelência, estabelecimento de objetivos, percepção de auto-
eficácia, auto-instrução e auto-avaliação. Para Custodero (2006), o engajamento em
tarefas cujo desafio exige os melhores esforços da pessoa gera o fluxo.
Para sustentar esta experiência ótima, as habilidades precisam refinar-se de modo
a enfrentar novos desafios e, em contrapartida, os desafios precisam ser refinados para
continuar atraindo as habilidades acentuadas de nível mais elevado, criando assim uma
situação ideal de aprendizagem (CUSTODERO, 2006, p.384).
Tanto Anita quanto Alberto fazem menção à necessidade de se estabelecer a
distinção entre o que é o artista, enquanto sujeito, e quem é o personagem (criação)
permitindo o enfrentamento do diferente. Tal distinção é um primeiro momento para uma
boa realização artística, pois o artista pode lançar mão de novas formas de expressão
com a garantia de que seu eu está preservado. Merleau-Ponty (1999), ao estudar o caso
dos membros fantasmas, oferece pistas que podem ajudar na compreensão desse passo
importante que o artista se forçado a tomar em função de uma boa atuação. Para o
autor, é essa relação intrínseca entre corpo e existência (determinada na ordem vital
segundo padrões mais ou menos fixos da espécie, e aberta a uma história na ordem
simbólica ou humana) que possibilita a idéia de um recalque de ordem existencial na
43
Expertise – competência ou qualidade de especialista.
64
explicação do fenômeno do membro fantasma, além do automatismo corpóreo e aquém
dos atos explícitos da consciência. Porque "a recusa da mutilação no caso do membro
fantasma ou a recusa da deficiência não são decisões deliberadas, não se passam no
plano da consciência" (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 121). Elas pertencem ao modo como
o corpo se situa e se projeta enquanto ser no mundo, ou seja, pertencem à facticidade do
próprio corpo, o modo como ele se encontra lançado em determinada situação de sentido
de mundo, e à sua projeção, através da qual o corpo assume um mundo ou faz da
abertura originária de sentido um mundo propriamente dito.
A perda de um membro que fazia com que o sujeito se inserisse no mundo de
determinada forma, em certo sentido pode se assemelhar à necessidade de o artista se
“mutilar” ou agregar novas formas a esse corpo que ele conhece de uma maneira e que
carrega sua história. Ele tem que admitir mudanças que afetam sua percepção e esse é
um drama inicial que precisa ser superado, pois o artista, em sua atuação, assume
diversas apresentações de si mesmo e, no caso do cantor, a partir de sons que não se
referem a sua história pessoal. Essa dinâmica faz supor que o modo de ser no mundo que
é do artista é bastante plástico, ou seja, admite mudanças expressivas constantemente.
Isso estabelece a distinção desse espaço-tempo que é da Arte como um espaço virtual de
criação.
Outro critério que Anita utiliza ocorre em função de um conjunto de peças para
montar o repertório de um espetáculo. Nesse caso, é preciso escolher determinadas
obras que façam sentido juntas ou que se encaixem na proposta que se quer desenvolver
em função do público a ser atingido com uma idéia ou uma crítica.
A escolha de repertório por Ângela (estudo de caso 3), por sua vez, é muito
variada. Um dos critérios pode ser a indicação do maestro em função das necessidades
de desenvolvimento do momento e de qual peça possibilita o aprimoramento da
expressão. Outro critério é o gosto pessoal, em função de querer expressar algum tipo de
realidade específica ou da necessidade de entender melhor um determinado gênero
musical. Segundo ela, dessa maneira é possível que o intérprete trabalhe na exploração
de tais conteúdos. Nos trabalhos que envolvem mais pessoas, como duos, ela sempre
procura um consenso de como seria melhor a interpretação.
Quando Ângela aponta que um dos critérios de seleção de repertório está
contingenciado ao conselho do maestro, pode-se compreender a necessidade de
mecanismos de controle apontada por Geertz (1989) como uma das características do ser
65
humano. Segundo o autor, a cultura deve ser compreendida não como um complexo de
padrões concretos de comportamentos - costumes, usos, tradições, feixes de hábitos -,
mas como um conjunto de mecanismos de controle - planos, receitas, regras, instruções,
programas e pré-programas - para governar o comportamento. “O homem é precisamente
o animal mais dependente de tais mecanismos de controle, extragenéticos, fora da pele,
de tais programas culturais, para ordenar seu comportamento” (GEERTZ, 1989, p. 58).
Ao comentar o seu trabalho com a personagem Carmen, Ângela declara que
inicialmente não quis aceitar, ou seja, tentou evitar este trabalho. Uma das justificativas é
de que o personagem lhe parecia muito diferente dela mesma e de maneira que nunca
havia se imaginado. Ela considera que, nesses casos, existe uma questão do
personagem mesmo. Características do personagem que, ao se imaginar fazendo, acha
que não vai ter como resolver. Ela comenta que em diversas ocasiões, num primeiro
momento, em suas interpretações, pensando nos personagens, refletiu: “Nossa! Será que
eu vou conseguir resolver esse personagem?” Isso porque, em tais personagens, havia
características realmente divergentes de sua personalidade.
Essa questão da diferença entre sua personalidade e a do personagem,
apontada anteriormente, leva também a outra maneira de entender os problemas
enfrentados por Ângela, comuns no desenvolvimento do trabalho vocal. A prática e o
amadurecimento irão produzir cada vez a maior segurança e distinção entre o que é do
cantor e o que pertence ao personagem, levando à superação do que, para Coelho
(2003), é a problemática da auto-imagem, que pode ser evidenciada no estudo da
ressonância, pois é comum um mascaramento das possibilidades reais de timbre e de
volume decorrentes de imitação de modelos tomados como ideais.
O ser humano tem a tendência de fixar-se em determinadas experiências, em
momentos significativos de sua história, deixando de reconhecer novas possibilidades,
fixando sua identidade em determinadas formas de expressão o que, para Merleau-Ponty
(1999) tem um fundo de patologia. O trabalho do artista acaba proporcionando um
enfrentamento constante a essa condição de cristalização de experiências. O corpo tem
participação na memória, sendo que esta não se trata simplesmente de atributos do
passado. Ao utilizar o corpo, pode-se reabrir o tempo a partir de implicações do presente.
O corpo é o meio de tomar atitude e de tornar atuais as experiências como
presentificações. Portanto, é por meio dele que existe a possibilidade de comunicação
66
com o tempo e o espaço, propondo e projetando possibilidades expressivas que atendam
à necessidade de dar vida ao personagem.
Por sua vez, André (estudo de caso 4) seleciona seu repertório inicialmente com o
que acha bonito e sonoro. Primeiramente o que o move e, se ele se sentir tocado acredita
que vai conseguir transmitir melhor a mensagem. Quando não gosta da música sente-se,
em certa medida, impedido de transparecer esse conteúdo expressivo para as pessoas.
também outro critério que ele avalia como o grau de dificuldade da peça. Músicas
muito simples ele não considera. Sempre procura ver uma peça mais complexa, que
exigir mais de sua capacidade de resolução técnica e de sua habilidade interpretativa. No
ano passado, segundo ele, trabalhou músicas difíceis e participou de um recital no qual
trabalhou Mozart com um repertório complexo. Em 2008, está preparando uma peça de
Bizet cujo caráter é bastante diferente de Mozart. Para ele, tal repertório vai exigir
conteúdos mais apaixonados e mais românticos para transmitir em sua performance.
Outro ponto que chama a atenção de André para a escolha do repertório é o tema.
Embora admita que, de modo geral, os tenores em ópera tenham papéis que
freqüentemente tratem de lamento, de problemas no amor ou ciúmes, tais papéis,
segundo ele, costumam ter momentos em que o intérprete pode expandir sua
expressividade. A possibilidade de se soltar para comover o público, para André, é
importante como momento de arte. Isso lhe chama a atenção nas obras, não tanto tristeza
ou alegria, mas a possibilidade de se soltar. Esses momentos possibilitam vivenciar a
música com intensidade de emoção, de sentimento e de sensações. Essa sensação de
entrega e de plenitude faz com que o público se sinta movido, tocado. É isso que lhe
chama a atenção. Quer fazer bonito, claro, um repertório difícil, mas que as pessoas
depois o aplaudam por terem sentido essa sensação boa.
A existência é "o lugar equívoco de sua comunicação, o ponto em que seus limites
se embaralham" (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 230). Essa superação de limites proposta
por André é possível nessa trama da existência, na qual as soluções interpretativas
realizadas pelo artista assumem dimensões e complexidades cujas significações
apreendidas pela percepção requalificam a experiência. Dessa maneira, o corpo está
polarizado por suas tarefas, enquanto existe em direção a elas, enquanto se encolhe
sobre si para atingir sua meta, e o "esquema corporal" é finalmente uma maneira de
exprimir que o corpo está no mundo. Quando se refere ao artista, espera-se que tenha
67
maturidade quanto ao seu esquema corporal para deixar que, no espaço de atuação,
quem tenha lugar seja a projeção do próprio personagem.
A necessidade de André projetar sua expressão e obter reconhecimento decorre do
fato que, segundo Geertz (1989), a nossa consciência é moldada em doses iguais pela
impressão que os outros têm das coisas e pela maneira como estas coisas se nos
apresentam aqui e agora, onde estamos. André escolhe o repertório que o toca,
pensando que assim ele conseguirá fazer com que o público se sensibilize também,
reconhecendo o agente de expressão como um elemento de identidade cultural.
Para André, momentos durante o estudo em que se duvida da possibilidade de
finalizar a obra, principalmente devido ao grau de dificuldade da mesma. Queira ou não o
cantor está sendo exposto, não é ele mesmo, mas é um ator do qual não se dissocia. Às
vezes surge uma dúvida, se vale a pena continuar investindo na obra, ou porque ela é
difícil ou porque o tempo disponível é curto pra se cumprir com as expectativas. André diz
que, se fosse cantor profissional, teria mais tempo para preparar o repertório. Mesmo
assim, não deixou de apresentar nenhuma das peças que preparou. Embora elas possam
ainda não ter ficado do jeito que ele queria, considera que foi um avanço, foi um
vencer a si mesmo.
De acordo com as teorias da aprendizagem, no discurso do André podem ser
observadas a questão da motivação, a questão dos objetivos a serem alcançados, a
questão da superação da ansiedade e a auto-regulação como mecanismos de aquisição
de expertise musical (Galvão, 2006). Por outro lado, a sensação de entrega e de plenitude
a que o cantor se refere pode ser entendida como uma experiência de fluxo em que ação
e consciência se fundem transformando a qualidade temporal do engajamento musical
(CUSTODERO, 2006).
68
3.5 Conclusão das Análises
A conclusão das análises das entrevistas dos cantores que colaboraram para o
presente trabalho foi realizada com base nos conteúdos extraídos do discurso desses
entrevistados à luz da teoria da expressividade de Merleau-Ponty, explicitada
principalmente em seu livro A fenomenologia da percepção. Para tanto, foram retomados
os temas mais significativos dos tópicos anteriores para analisar as concepções de
expressão dos cantores e para compreender as suas especificidades na ação
performática, os elementos envolvidos na preparação vocal e os critérios para a seleção
de repertório.
No tópico de concepções de expressividade que norteiam a prática dos envolvidos,
teve-se como tema a exploração do corpo e a utilização de recursos expressivos
específicos para alcançar o objetivo comum dos cantores, que é sensibilizar o público e
conseguir clareza na transmissão de conteúdos escolhidos como essenciais na peça e na
ocasião performática.
Sintetizando o discurso dos entrevistados, pode-se afirmar que eles concebem a
expressão vocal como uma forma de projetar o caráter da música através da voz. Para
eles, a necessidade expressiva é decorrente da tentativa de se estabelecer uma
comunicação, a qual se serve de uma espécie de inventário de fórmulas expressivas
pertinentes ao código compartilhado pela cultura como subsídio para a interpretação no
canto. Pela prática de técnica vocal, o cantor aprende a usar os recursos do corpo, como
a ressonância em seus ossos, diferenciando-as em ossos específicos, ampliando a
capacidade de perceber-se e modificando sua auto-imagem, experimentando
possibilidades sonoras. Muitos dos recursos técnicos que norteiam o desencadeamento
da expressividade o sentidos no próprio corpo. Esse corpo é percebido nele mesmo,
mas também ocupa um espaço e isso é significativo, pois como esse corpo se projeta no
espaço, a maneira como o cantor o dimensiona também qualifica o que está fazendo.
A maneira pela qual o cantor domina essas representações no dia-a-dia vai
provocar no interlocutor o que ele pretende expressar, sendo possível desenvolver esse
aspecto como meio de aperfeiçoar o desempenho. Adquirir condições de fazer essa
comunicação de forma premeditada, proposital e intencional é uma questão que envolve a
preparação e a maturidade do artista.
69
Nas respostas dos cantores subjaz a idéia de que o corpo e a expressão integram
uma totalidade. Em nenhum momento os cantores associam a expressão a uma operação
prévia do pensamento. A expressão ocorre concomitante à experiência. Tal experiência
acontece quando ela é proposta como realização técnica, mas que garante a realização
da expressão no próprio corpo, sendo passível de observação por aquele que a propôs.
Esse jogo de vivências e experiências promove um amadurecimento artístico completo.
Para Merleau-Ponty (1999), a aproximação entre a fala e a análise do sentido do
gesto corporal evidencia a intenção de buscar no corpo a origem do sentido da
linguagem. O modo de apreensão do sentido da fala do outro é o mesmo que o do gesto
corporal: eu os compreendo na medida em que os assumo como podendo fazer parte do
meu próprio comportamento. Os gestos não são oferecidos deliberadamente ao
espectador como uma coisa a ser assimilada; eles são retomados por um ato de
compreensão, cujo fundamento remete à situação em que os sujeitos da comunicação
eu e o outro estão mutuamente envolvidos em uma relação de troca de intenções e
gestos. O sentido dos gestos não é dado, mas compreendido, dito de outra forma, é
retomado por um ato do espectador. Toda dificuldade está em conceber bem esse ato e
em não confundi-lo com uma operação do conhecimento. Dessa maneira, a comunicação
ou a compreensão dos gestos é obtida pela reciprocidade entre as intenções e os gestos
dos interlocutores, entre gestos e intenções legíveis nas suas condutas. Tudo se passa
como se a intenção de um habitasse o corpo do outro assim como se as intenções do
outro habitassem o primeiro.
Na segunda questão foram descritas as especificidades dos sujeitos na ação
performática. Nela os cantores discutem sua formação técnica e a sua adequação às
necessidades e aspirações expressivas que têm como profissionais da voz.
De maneira geral, os participantes da pesquisa entendem que cnica vocal é um
trabalho baseado no conhecimento anátomo-fisiológico cuja proposta é garantir saúde
vocal e, ao mesmo tempo, sugerir procedimentos que lhes possibilitem utilizar todo o
equipamento vocal (nesse caso todo o corpo) para produzir os sinais sonoros necessários
para projetar os conteúdos e intencionalidades em seu trabalho de intérprete.
Para os cantores, a voz é um veículo de comunicação que possui, por seus
próprios recursos, a capacidade de comunicar. Como profissionais da voz, entendem que
o estudo de cnica vocal possibilita o domínio e o uso discriminado desses recursos. A
técnica vocal que praticam lhes garantiu sucesso quanto aos resultados expressivos
70
porque se trata de um posicionamento saudável da voz que lhes permite alcançar os
resultados sonoros necessários ao seu trabalho de intérprete. Os cantores admitem que
buscam resolver os recursos sonoros no próprio corpo, utilizando o corpo todo
efetivamente como fonte produtora de som, escolher e selecionar de maneira proposital
regiões do corpo que podem ser usadas com maior intensidade do que outras, garantindo
muitas possibilidades expressivas. A utilização de uma seleção de ressonadores
específicos auxilia na expressividade de cada peça, de cada obra, conforme o conteúdo
que esta apresenta. Para tanto, o estudo de técnica vocal deve estar atrelado a uma
busca do significado do próprio som em adequação ao que canta e, portanto é necessário
trabalhar com critérios bastante claros. É importante nortear a percepção através de
conteúdos nítidos, emoções específicas que se queira expressar e que são escolhidos
como fundamentais para uma peça, como por exemplo, a agressividade, a tristeza, a
paixão.
Os entrevistados entendem o trabalho performático como uma interpretação
proposta pelo artista (não se trata de copiar a realidade) e que deve ser uma construção
específica do momento, necessitando de um ajuste de todo o equipamento expressivo ao
momento de atuação e com sinais adequados para garantir que o público possa usufruir o
momento artístico proposto pelo cantor.
Merleau-Ponty (1999) busca no corpo não só a compreensão do problema da
linguagem, mas também o entendimento de uma questão mais abrangente, a expressão.
Segundo ele, um mesmo modo de apreensão sensível na base da compreensão da
fala e do gesto corporal. Apreende-se o significado da palavra assim como se apreende o
sentido de um gesto: “...eu não percebo a cólera ou a ameaça como um fato psíquico
escondido atrás do gesto, leio a cólera no gesto, o gesto não me faz pensar na cólera, ele
é a própria cólera”.
Para Merleau-Ponty (1999), o sentido transparece na interseção de minhas
experiências com as do outro, pela engrenagem de umas sobre as outras”; ele é, pois,
inseparável da subjetividade e da intersubjetividade, “que faz sua unidade pela retomada
de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do
outro na minha.
Na terceira questão, os entrevistados trazem novamente a idéia de que é preciso
manter o aparelho vocal em condições saudáveis e manifestam o entendimento de que a
voz responde às necessidades de comunicação dos estados emocionais humanos.
71
Portanto, o treinamento está vinculado à descoberta do significado que o som carrega, de
acordo com as características tímbricas, de ressonância, da projeção do som no espaço e
das relações possíveis com a sensibilidade humana.
Para os entrevistados a voz deve ser utilizada como um veículo que possui, por
seus próprios recursos, a capacidade de comunicar todos os conteúdos expressivos e as
intenções do artista, independendo de sinais visuais. Ainda, permite distinguir a presença
de sinais expressivos no discurso dos outros, mesmo que contrários ao texto. Dadas as
indicações do compositor, o artista deve interpretar os conteúdos e isso é muito mais que
repetir notas.
Ao realizar o trabalho de técnica vocal, explorando no seu próprio corpo os
recursos expressivos para que esses se reflitam no outro, os cantores se descobrem mais
capazes de transpor não seus limites, como também de se relacionarem com as
pessoas.
Para Merleau-Ponty (1999), a percepção é o sentido que inaugura a abertura para
o mundo, como a projeção de um ser para fora de si; a linguagem prossegue esta
abertura de mundo na medida em que retoma, transforma e prolonga as relações de
sentido iniciadas na percepção. Por sua vez, é na expressão emocional dos gestos que
se encontram os primeiros indícios da linguagem como um fenômeno autêntico. A fala e o
gesto são fenômenos específicos e contingentes em relação à organização corporal. Os
gestos, portanto, não são oferecidos deliberadamente ao espectador como uma coisa a
ser assimilada; eles são retomados por um ato de compreensão, cujo fundamento nos
remete à situação em que os sujeitos da comunicação – eu e o outro – estão mutuamente
envolvidos em uma relação de troca de intenções e gestos.
Na quarta questão, os cantores discutem os critérios para a seleção de repertório.
O primeiro critério apontado é o de reconhecer na obra a potencialidade de ser
sensibilizado e de, num segundo momento, sensibilizar o outro. Outro critério apontado é
o próprio desenvolvimento pessoal, técnico e artístico optando por peças que trabalhem
conteúdos que sejam pessoalmente desafiadores. Um terceiro critério é a escolha de
obras que façam sentido juntas ou que se encaixem na proposta que se quer desenvolver
em função do público a ser atingido com uma idéia ou uma crítica.
As necessidades envolvidas nessa tarefa podem residir em personagens bastante
diferentes do próprio cantor, evitando se limitar tecnicamente na escolha do repertório. O
artista precisa entender que está entregando o corpo, está se doando pra fazer uma coisa
72
que não é ele e, por isso, o intérprete deve ter clareza acerca de suas convicções
pessoais e o confundi-las com o personagem que interpreta. Dessa maneira o
intérprete pode expandir sua expressividade.
Ao afirmarem que a escolha do repertório se dá com base na sua potencialidade de
sensibilização ou no enfrentamento de situações desafiadoras e que isso concorre para a
expansão da expressividade e aquisição de maturidade artística, os entrevistados estão
de acordo com Merleau-Ponty (1999) quando este afirma que a operação de expressão,
quando bem sucedida, abre para nossa experiência um novo campo ou uma nova
dimensão. A expressão estética confere a existência em si àquilo que exprime,
instalando-o na natureza como coisa percebida acessível a todos ou, inversamente,
arranca os próprios signos de sua existência empírica e os arrebata para um outro
mundo.
73
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De certo modo os monstros são atuais e não tão irreais assim. Eles são maneiras
de lidar com o que não podemos explicar. Não são explicações, mas
representações. E representar é também uma forma de lidar com o mundo, de
conhecê-lo. O ser humano não é apenas aquele que explica o mundo, mas
também aquele que o representa: que cria histórias, que vive, de certo modo,
essas histórias, que absorve essas histórias em seu comportamento e em sua
consciência do mundo – mesmo sem decifrar o enigma. (AGUIAR, 2007, p. 11)
A representação é uma das ações de que o ser humano lança mão para se
relacionar e passar a existir enquanto agente de seu próprio mundo, no qual ainda
existem situações adversas, emoções ainda o nomeadas, na forma de experiências
desconhecidas, enfim, inúmeras possibilidades dele se expressar. Representar a vida, o
cotidiano é buscar significados, atribuir formas e características para vivenciar os
diferentes momentos. Mesmo que não se domine um linguajar ou tecnologia científica
para explicar os fenômenos da existência, o ser humano utiliza-se dos recursos de sua
sensibilidade para descobrir e lhes atribuir sentido e significado. Na vivência de
experiências, o indivíduo as qualifica, expressando-as em formas orientadas pelos
códigos culturais de seu grupo e também por escolhas pessoais. Ao dar forma ao vivido o
ser humano representa.
A partir dessa necessidade de qualificar as experiências, o ser humano tem na voz
um instrumento que possibilita contar uma história (real ou imaginária) e representá-la,
permitindo que o ouvinte vivencie cada detalhe apresentado. Assim é possível imprimir no
som da fala as mais diversas nuances interpretativas para comunicar ao ouvinte os
conteúdos representados.
O levantamento bibliográfico realizado neste trabalho de pesquisa demonstra que
existe, na literatura, um consenso de que a voz revela o ser humano em suas
características mais peculiares, sejam elas de ordem cultural ou da própria natureza
psíquica. Nesse sentido, pode-se afirmar que é possível comunicar os conteúdos
emocionais e as intencionalidades através da vocalização, consideradas a fala ou o canto.
Ainda, como dimensão cultural desenvolvida pelos grupos humanos, pode-se
destacar a função de representação no espaço artístico como dramatização. Nesse
contexto, o artista representa a própria representação, propósito artístico, e por isso é o
fascinante a experiência e ao mesmo tempo tão desafiadora, pois não pode aparentar a
74
intenção de atuar; o espaço é inteiramente ocupado pelo aspecto expressivo, construindo
uma dimensão virtual de experiência (LE HUCHE e ALLALI, 2005).
Dessa maneira compreende-se que a arte é uma forma de ser no mundo, que
constitui um espaço/tempo imaginário criado numa espécie de virtualidade e que tem
como base os conteúdos humanos. Ela não trata de vivências específicas, mas, a partir
da representação, torna esses conteúdos universais. Esse entendimento permite que o
fruidor da arte possa viver tais dimensões de existência humana, livre de sua própria
contingência espaço/temporal, podendo se entregar à experiência com intensidade.
Do mesmo entendimento, o artista também compreende que sua atuação está
contingenciada pelo espaço/tempo artístico. A partir disso, ele deve desenvolver em seu
próprio corpo, as ferramentas para provocar esse deslocamento, conhecendo o maior
número de códigos expressivos possíveis para torná-los inteligíveis na sua performance
artística.
Neste trabalho, o objetivo foi analisar o discurso de quatro cantores acerca de suas
concepções sobre expressividade e articular suas respostas com a teoria de Percepção e
de Expressão de Merleau-Ponty. Todos os entrevistados, em seus discursos sobre
expressão, especificidades na ação de performance, preparação vocal e critérios para a
seleção de repertório deixaram entrever como essa construção do espaço/tempo artístico
ocorre em sua formação. Eles aprendem a discernir suas formas de expressão pessoais e
a projetar uma forma de mundo complexa e nova que vai promover alterações em seu
próprio mundo perceptivo e no do fruidor.
Em meu trabalho como cantora e como professora de técnica vocal, pude perceber
a importância do reconhecimento do corpo como meio de percepção e de ação
expressiva. Também em minha formação como psicóloga, esse reconhecimento pode
apontar alternativas de expressão de conteúdos que muitas vezes não era obtido apenas
com o discurso. Comparando essas duas atuações, pude perceber que a integralidade do
sujeito foi uma alternativa para a compreensão de inúmeros fenômenos diretamente
relacionados à concepção de Homem, dessa maneira interferindo na formação de artista.
A escolha por Merleau-Ponty como linha de pensamento que serviria como suporte de
análise dos discursos dos entrevistados foi decorrente da procura deste autor em
recuperar o estatuto originário da percepção ou sensibilidade, superando a dicotomia
mente e corpo instaurada pela metafísica cartesiana. Ele parte da concepção de uma
noção eminentemente corpórea da expressão. Desta noção a fala emerge enquanto gesto
75
de um corpo que é um todo íntegro. É esse corpo inteiro que expressa suas relações de
sentido com o mundo.
Feita a escolha do autor como suporte de análise, também, em função da minha
experiência como cantora e da convivência com diversos grupos artísticos, imaginei
inicialmente que cada cantor abordaria questões bastante pessoais acerca de suas
facilidades e dificuldades quanto aos aspectos técnicos do canto. No entanto, fui
surpreendida ao constatar que a preocupação desses cantores era mais de ordem
existencial do que de ordem técnica, mostrando que esta não constitui um fim por ela
mesma, mas um meio de alcançar resultados almejados. Dessa constatação pude
perceber uma visão bastante abrangente das suas atuações como artistas.
Tendo em vista as especificidades deste grupo e a opção metodológica pelo estudo
multi-casos, a comparação de performance e expressividade com artistas de outros
segmentos ou que possuam outras formações não foi possível. Os dados encontrados em
cada caso foram significativos para as análises dos discursos dos participantes e o
relacionamento destes com o pensamento de Merleau-Ponty. Neste sentido, observou-se
que:
O discurso dos entrevistados corrobora a idéia de corpo-sujeito de Merleau-Ponty,
ao considerar que é a partir dele, pela via perceptiva, que se a primeira
experiência com o mundo. A percepção é o sentido que inaugura a abertura para o
mundo e a linguagem, por sua vez, prossegue esta abertura de mundo na medida
em que retoma, transforma e prolonga as relações de sentido iniciadas na
percepção
.
É pela percepção corporal que os cantores conseguem discriminar sua
experiência expressiva e é também pelo domínio de fórmulas expressivas
estabelecidas pelo código cultural que podem estabelecer a inteligibilidade de sua
interpretação. Dessa maneira, é nessa relação dinâmica entre a forma de
expressão do momento emocional, direcionada por códigos que organizam a
percepção, que eles consideram o trabalho expressivo.
Os entrevistados, em seu discurso, destacam a noção eminentemente corpórea da
expressão. Novamente, o seu discurso é concordante com a concepção de
Merleau-Ponty quando este considera que a fala emerge, enquanto gesto, de um
corpo que é todo relação de sentido com o mundo. O caráter corpóreo da
significação impede que ela seja tomada como objeto puro de pensamento, pois é
no sentido do comportamento que se encontram as significações das palavras. A
76
comunicação se realiza quando a intenção do sujeito está explicitada em sua ação.
A expressão é, pois, uma maneira de ser, de existir e de assumir uma forma de
estar no mundo.
O discurso dos entrevistados indica que o sentido da fala está além do código
lingüístico convencionado e essa idéia é ratificada pela teoria de Merleau-Ponty
que considera que é na expressão emocional dos gestos que se encontram os
primeiros indícios da linguagem como um fenômeno autêntico. Para o autor, a fala
e o gesto são fenômenos específicos e contingentes em relação à organização
corporal. Nesse sentido, o som que os artistas projetam é contingente a tal
organização corporal, assumindo características expressivas que são
conseqüências da mesma. Dessa íntima relação do corpo com o resultado sonoro,
os cantores explicam que exercitam novas maneiras de configurar o som em seus
corpos. Merleau-Ponty considera que ao assumir essas configurações como parte
de seus comportamentos, conseguem dar novas formas de projeção do todo e
assim assumir novo significado. O corpo compreendido enquanto fenômeno é
portador de uma capacidade singular de apreender o sentido de outra conduta,
seja o sentido do gesto ou da fala do outro considerando que a palavra também é
um gesto e uma forma de conduta.
Merleau-Ponty afirma que a operação de expressão, quando bem sucedida, abre
para nossa experiência um novo campo ou uma nova dimensão, o que se observa
também no discurso dos cantores entrevistados. A expressão estética confere a
existência em si àquilo que exprime, tornando-a percebida na natureza e acessível
a todos ou, inversamente, possibilitando que os próprios signos de existência
empírica passem a ser percebidos como expressão de um outro mundo. Dessa
maneira o cantor ou a atriz tornam-se “invisíveis” e quem aparece é o personagem.
Para compreender a abrangência da operação expressiva, Merleau-Ponty traz a
experiência com os grandes escritores, os quais realizam uma espécie de
deformação coerente que a obra impõe aos significados existentes, fazendo-o para
dizer o que, de certa forma, jamais fora dito antes. Para o autor, é precisamente
esta operação criadora que representa o estilo do escritor e que imprime na
linguagem comum uma modificação de sentido, debilitando seu equilíbrio para
fazê-la dizer e significar o novo. O cantor, de maneira similar, utiliza essa
capacidade de deformação coerente para realizar sua proposta artística,
77
implicando ou não em ser realista, naturalista, exagerado, ou seja, como artista ele
cria seu estilo no intuito de dizer e significar o novo. Os cantores entrevistados, em
momentos de seus discursos fazem menção a essa necessidade de dizer o que
realmente pretendem e da maneira que realmente planejaram, fazendo uma
observação de que o conhecimento de códigos expressivos e a capacidade de
produzi-los intencionalmente é o diferencial para que seus objetivos sejam
alcançados.
Observou-se, portanto, que os discursos dos cantores encontram relacionados à
Teoria de Percepção e Expressão de Merleau-Ponty. Esta investigação e os resultados
encontrados abrem, assim, possibilidades para novas investigações no campo da
performance. Em virtude da opção metodológica pelo estudo multi-caso, o universo de
entrevistados foi delimitado na relação da perspectiva de treinamento vocal e ao campo
de atuação artística dos participantes. Sugere-se, então, a realização de novas pesquisas
envolvendo grupos de artistas, músicos, atores, bailarinos, enfim, profissionais ou
amadores, que trabalhem performance e expressividade.
Considerando que os próprios
cantores entrevistados manifestaram a intenção de sensibilização do público como
aspecto primordial de sua atuação, sugere-se que sejam realizadas pesquisas
envolvendo esse público para conhecer a sua experiência enquanto fruidor.
78
REFERÊNCIAS
ADORNO, T. W. Conceito de Iluminismo. In: ADORNO, T. W. Os Pensadores. Textos
Escolhidos. Ed. Nova Cultural Ltda: São Paulo, 1999.
AGUIAR, L. A. Monstros Mitológicos. São Paulo: Quinteto Editorial, 2007.
ALMEIDA JR., A. Elementos de Anatomia e Fisiologia Humanas. São Paulo: Cia Editora
Nacional, 1977.
ALTENMÜLLER, E.; GREWE ,O. ; NAGEL F.; KOPIEZ, R. Emoção à flor da pele.
Algumas músicas nos afetam a ponto de provocar arrepios. O que faz com que essas
obras tenham efeito sobre o sistema nervoso autônomo e desencadeiem excitação
sensorial? Revista Mente e Cérebro, edição 173 – Junho, 2007.
AMATO, R. Voz cantada e performance. In: LIMA, S. A. de (org.) Performance &
Interpretação Musical. Uma prática interdisciplinar. São Paulo: Musa Editora, 2006.
AMATUZZI, M. O resgate da fala autêntica: Filosofia da Psicoterapia e da educação.
Campinas : Papirus, 1989.
BEHLAU, M. S.; PONTES, P. A. L. Avaliação e tratamento das disfonias. São Paulo:
Lovise, 1995.
BOCHENSKI,J. M. A Filosofia Contemporânea ocidental. Herder, 1968.
BOONE, D. A voz e a terapia vocal. Porto Alegre: Artes Médicas; 1994.
BÜNDCHEN, D. B. S. A criação de novos esquemas musicais com base na relação som-
movimento. In: BEYER, E. S. W. O som e a criatividade. Reflexões sobre experiências
musicais. Santa Maria: editora UFSM, 2005.
CALLAGHAN, J. Singing and Voice Science. Canadá: Singular Publishing Group, 2000.
79
CHASINS, A. Alguns aspectos da interpretação musical. Panorama da Música. São
Paulo: Ed. Fundo de Cultura; 1963.
COELHO, H. W. Técnica Vocal para coros. São Leopoldo, RS. Sinodal, 2003.
COSTA, C. M. Musicoterapia para deficientes mentais. Lisboa: Clio, 1995.
CROSS, I. Música, mente e evolução. Cognição & Artes Musicais/ Cognition & Musical
Arts 1, 22-29. 2006. DEARTES PPG Música.
CUSTODERO, L. A. Buscando desafios, encontrando habilidades: a experiência de fluxo
e a educação musical. IN: ILARI, B. (Org.) Em busca da mente musical. Curitiba: editora
da UFPR, 2006.
Dicionário Grove de Música: edição concisa/ editado por Stanley Sadie. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed. ; 1994.
ESTIENNE, F. Voz Falada, Voz cantada. Avaliação e Terapia. Rio de Janeiro: Revinter,
2004.
FERNANDEZ, A. A inteligência aprisionada. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.
FERREIRA, L. Voz Profissional: o profissional da voz Carapicuíba: Pró-fono
Departamento Editorial; 1995.
FORGHIERI, Y. C. Psicologia Fenomenológica. Fundamentos, Método e Pesquisa. São
Paulo : Pioneira, 1993.
FURLAN, R; BOCCHI, J. C.
O corpo como expressão e linguagem em Merleau-Ponty.
Universidade de São Paulo. Estudos de Psicologia, 2003; 8(3): 445-50.
80
GALVÃO, A. Cognição, Emoção e Expertise Musical. Psicologia: Teoria e Pesquisa.2006;
22(2):169 -74.
GARDNER, H. Inteligência. Múltiplas Perspectivas. Porto Alegre: ARTMED; 1998.
GEERTZ, C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.
GOMEZ, E. M. D. La respiración y La Voz humana (su manejo y enseñanza). 2. La Voz:
Buenos Aires, 1980.
GROTOWSKI, J. Towards a Poor Theatre. Holstebro: Odin Teatrets Forlag, 1968.
HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
JAQUES-DALCROZE, E. Le rythme, La musique et l’education. Lausanne: Foestisch
frères, 1919.
KRATOCHVIL, R. Desafinação Vocal: sintoma de desafinação do indivíduo. São
Leopoldo: EST, 2003.
LE HUCHE, F; ALLALI, A. A Voz. Anatomia e Fisiologia dos Órgãos da Voz e da Fala.
ed. Porto Alegre: ARTMED; 2005.
LIMA, S.A. O virtual e o real da interpretação musical. IN: LIMA, S.A. (Org.) Performance
e Interpretação Musical. Uma prática interdisciplinar. São Paulo: Musa, 2006.
LUZ, A. A.; LUZ, G. O. F. Manual de Apoio às atividades em Pesquisa. Curitiba, 1999.
MARTINEZ, E. Regência Coral: princípios básicos. Curitiba; Colégio Dom Bosco, 2000.
MENALDI, J. La voz normal - Buenos Aires: Editorial Médica Panamericana S.A 1992.
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes; 1999.
81
MERLEAU-PONTY, M. O Homem e a comunicação. A prosa do mundo. Rio de Janeiro:
Edições Bloch; 1974.
MOREIRA, D. A. O Método Fenomenológico na Pesquisa. São Paulo : Pioneira, Thomson
Learning, 2004.
PACHECO A. A registração vocal no séc. XVIII e XIX e suas conseqüências na prática
interpretativa. Anais do II Seminário Nacional de Pesquisa em Performance Musical.
Campinas: Unicamp, 2006, p.19-24.
PARSONS, M. Compreender a Arte. Uma abordagem estética do ponto de vista do
desenvolvimento cognitivo. Lisboa: Editorial Presença; 1992.
PERELLÓ, J.; CABALLÉ, M.; GUITART, E. Canto-Dicción. Foniatría estética. Barcelona,
Editorial científico-médica, 1982.
PERETZ I. ZATORRE R. J. The cognitive neuroscience of music. Oxford University Press,
2003.
PEREZ-GONZÁLES. E. Iniciação à técnica vocal. Rio de Janeiro: E. Pérez-Gonzáles,
2000.
PIRES, B. L. Reflexões sobre a sensibilização musical no fazer psicopedagógico. In:
BEYER, E. S. W. O Som e a Criatividade. Reflexões sobre experiências musicais. Santa
Maria: editora UFSM, 2005.
RATNER, L. Classic Music. Expression, Form and Style. New York: Schirmer Books;1980.
ROUANET, S. P. Ética e Antropologia. Estudos avançados. 1990; 4(10):111-50.
82
SAKAKIBARA, K. et all. Singing voices of the world. Observation of Laryngeal Movements
for Throat Singing. Vibrations of two pairs of folds in the human larynx.
www.acustics.org/press/144th/lay-lang.html; 2002.
SALGADO, A.; WING, A. A percepção do sentido emocional da performance musical
canto lírico medindo a emoção facial. In: Anais do III Simpósio de Cognição e Artes
Musicais Internacional. Salvador: EDUFBA; 2007, 236-237.
SODRÉ, H. “História Universal da Eloqüência”. ed., Vol.3., Rio de janeiro: Forense,
1967.
STAHLSCHMIDT, A. P. Cantos e encantos: sobre a sica na voz e a voz na música. In:
BEYER, E. S. W. (Org.) O som e a criatividade. Reflexões sobre experiências musicais.
Santa Maria: editora fsm; 2005, 240p.
STEFANI, G. Uma Teoria de Competência Musical. Música & Cultura. Revista on-line de
etnomusicologia, n° 2, 2007.
Disponível em http://www.musicaecultura.ufba.br/, acesso
em 25/05/2008.
STORR, A. Music and the mind. London: Harper Collins, 1992.
TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à Pesquisa Em Ciências Sociais. A Pesquisa Qualitativa
em Educação. São Paulo: Atlas, 1987.
VIEILLARD, S. Emoções Musicais. Viver Mente e Cérebro. Revista de Psicologia,
Psicanálise, Neurociências e Conhecimento, Ano XIII, n° 149, 2005, p. 52-57.
WEIL, P. O corpo Fala. A linguagem silenciosa da comunicação não-verbal. Petrópolis;
Vozes, 1987.
WILLEMS, E. El valor de La educacion musical. Buenos Aires: Paidós, 1981.
83
ZAMPIERI S.; BEHLAU, M.; BRASIL, O. Análise de cantores de baile em estilo de canto
popular e lírico:perceptivo-auditiva, acústica e da configuração laríngea. Revista Brasileira
de Otorrinolaringologia. vol. 68 no.3 São Paulo; Maio; 2002.
VON ZUBEN, N. A. Temas Fundamentais de Fenomenologia. São Paulo. Editora Moraes.
1984.
84
ANEXO 1
Roteiro de Entrevista.
1) Para você, o que é expressão vocal?
2) Em sua opinião, quais os indicativos do uso da expressividade na
performance dos cantores?
3) Fale sobre sua formação musical.
4) Relate sua formação específica em relação à técnica vocal.
5) Avalie sua técnica vocal em relação às suas necessidades.
6) Você considera que, numa performance, suas propostas expressivas
são inteligíveis para os interlocutores?
7) Como você escolhe seu repertório? Existem critérios?
85
ANEXO 2
Caderno de Entrevistas
Caso 1. Alberto
1. Alberto - É a capacidade que eu tenho de aliar os recursos técnicos a tentar tocar
as pessoas de alguma maneira. A fazer com que o personagem que eu esteja
interpretando ou a canção que eu esteja fazendo toque as pessoas de alguma maneira.
Então expressão vocal é a maneira de aliar os recursos técnicos estudados com técnica
vocal a uma sensibilização da pessoa, sensibilizar a pessoa de alguma maneira.
Entrevistadora – E como é que você consegue alcançar esse objetivo?
Alberto Tocar as pessoas de alguma maneira? Bom, como usar esses recursos
expressivos, na verdade acontece no momento da interpretação. A gente deixa os
recursos cnicos todos automatizados, a gente deixa todos os recursos técnicos na
manga, a gente deixa tudo automatizado pra que na hora em que você deixa tudo
funcionando certinho na hora a gente na verdade se entrega mesmo, se joga, empresta o
corpo pra algo que acontece na hora. Então você tem a resposta do público, tem a luz
que é diferente no momento, tem o seu estado de espírito no momento, tudo isso aliado
ao que está acontecendo no momento aí esses recursos expressivos são usados de
maneira a emprestar conteúdo pra sensibilizar as pessoas. Agora o que fazer no
momento não dá pra prever antes do ensaio, não dá pra ensaiar antes qual recurso
expressivo usar pra cada trecho da peça, porque isso pode mudar no momento. Então a
gente estuda mil maneiras de fazer pra chegar na hora e fazer a mil e um.
Entrevistadora Então eu poderia perguntar: Essa forma de estudar mil e uma
maneiras é uma forma de fazer com que você conheça alternativas pra que na hora elas
sejam possíveis?
Alberto Eu creio que sim. A gente precisa ter um leque de opções expressivas, a
gente precisa realmente conhecer alguns recursos expressivos. Não que na hora você
não tenha uma sacada genial e não aconteça um recurso expressivo que você o tinha
idéia de que existisse, aí você inclusive assimila e coloca aquilo dentro do seu leque. Não
digo que você tem cem modelos expressivos pra uma peça e aqueles cem modelos sejam
únicos pro resto da vida. Às vezes no fazer você tem uma sacada genial e você sente que
86
algo aconteceu, assimila aquele recurso expressivo, aquela sacada que você fez no
momento e coloca no seu leque de opções e você tem cento e um. o quer dizer que
a centésima segunda não acontecer também. Como, por exemplo, na interpretação
que foi gravada pra pesquisa, eu sempre fiz alguns trechos de uma maneira, mas no dia,
por exemplo, aconteceram duas coisas assim que no momento aconteceram que eu
absorvi pro meu leque de opções. E inclusive achei uma das melhores soluções das que
eu havia feito. Não que as anteriores não tenham sido, na minha opinião, satisfatórias,
mas pra aquele momento aqueles dois, aquelas duas sacadas que aconteceram de
momento foram incorporadas pro personagem pra interpretação do momento e pra aquele
momento foram excelentes no meu ponto de vista.
2. Alberto - Pra identificar o uso dessa expressividade num cantor é relativamente
fácil. Acho que pra qualquer leigo que assistir um concerto ele se sente tocado ou não
pela interpretação do cantor. Então você às vezes execuções primorosas do ponto de
vista técnico: todas as notas afinadíssimas, no tempo correto, a dinâmica perfeita, com a
linha melódica bem trabalhada, mas falta algo assim, você não se sente tocado. Então a
impressão que é que você tem uma parede que divide você do cantor. Você
inclusive expressão corporal sendo bem utilizada, mas vazia. Você não se sente tocado,
você não vê verdade, não consegue realmente ser sensibilizado pelo que o cantor está
fazendo. Por mais que esteja perfeito do ponto de vista técnico. E o contrário também é
verdadeiro. Às vezes você maravilhas do ponto de vista expressivo. Você se sente
absolutamente tocado, comovido, dependendo da peça e com assim cantores que por um
momento não tiveram aquele brilhantismo técnico, aquele virtuosismo técnico, mas que
do ponto de vista expressivo foram brilhantes. Souberam usar o momento, todo o leque
de opções expressivas que tinham, souberam utilizar a intuição do momento e se
entregaram pra interpretação. Aí você sente que do ponto de vista expressivo está
maravilhoso, sublime.
3. Alberto Minha formação musical foi toda realizada na Universidade Federal do
Paraná, no Coral da Universidade, com o maestro Alvaro Nadolny. No Coral eu comecei
em 1998, estava fazendo o curso de Farmácia, inclusive foi meu curso de graduação.
Conheci o coral através de duas amigas que estudavam e comecei a estudar com o
maestro. Comecei a estudar técnica vocal e expressão vocal também com ele. E dentro
87
do coral, a princípio com o enfoque mesmo pro repertório coral, e depois descobrindo um
pouco mais o canto, me apaixonando mais pelo canto, fui aprofundando os estudos com o
próprio maestro dentro do Coral da Universidade. Junto dele tive como ajuda os pianistas
correpetidores; a Karina Gineste da Silva e o Luiz Fernando Melara, que me ajudaram
bastante no começo da formação musical. Com eles tive aula de teoria musical, uma
iniciação pra piano. Tive também aula de teoria musical pra me ajudar nos estudos do
Coral. E com o maestro Alvaro mesmo esses estudos de expressão vocal e técnica vocal
e com ele eu tenho aula até hoje. Junto do coral da Universidade fiz algumas oficinas
paralelas, alguns cursos. Fiz curso de percussão, num grupo de percussão formado
dentro da universidade também, com o Fernando Lemos. Fiz alguns cursos de
interpretação fora também, fiz um curso de interpretação no canto barroco, numa oficina
de música em Curitiba. Fiz um curso de percussão com Naná Vasconcelos. Além disso,
fiz alguns cursos de expressão corporal, algumas oficinas de expressão corporal, fiz um
curso de Flamenco, sempre voltado a ajudar nos recursos expressivos do canto. Não que
não usar isso para outros fins na minha vida, mas mais especificamente pra auxiliar na
expressão do..., assim expressão corporal, a aula de flamenco, sempre voltada pra
melhorar a expressividade do canto.
Entrevistadora - Então de alguma forma a sua formação musical está sempre atrelada
a sua formação vocal?
Alberto - A princípio sim, não que eu não usar esses recursos para outros fins da
minha vida, mas sempre busquei procurando um avanço na minha expressividade vocal.
Aliar recursos que não puramente técnica vocal, mas recursos expressivos pra auxiliar na
expressão vocal.
Entrevistadora Como é que você relataria pra mim a sua formação específica em
relação à técnica vocal?
Alberto - Específica em relação à técnica vocal? A técnica vocal que eu aprendi, e
continuo aprendendo, continuo em estudo, é uma técnica que visa inclusive a atrelar
recursos expressivos junto da técnica vocal. Então nós buscamos recursos expressivos
dentro do próprio corpo, nós usamos uma ressonância de corpo todo, buscando uma
seleção de ressonadores específicos pra auxiliar na expressividade de cada peça, de
cada obra que a gente está fazendo. O meu estudo de técnica vocal foi sempre atrelado a
uma busca do significado do que eu buscava fazer, do que eu buscava cantar. A técnica
vocal é na verdade um posicionamento, um estudo da melhor posição da voz pra
88
garantir saúde e pra garantir que os recursos expressivos estejam aptos a serem usados
no momento em que eu os exigir na execução da peça. Então o estudo de técnica vocal,
na minha opinião, precisa sempre estar atrelado, precisa sempre estar ligado ao estudo
dessa busca da sensibilização da pessoa, a expressividade, no momento de fazer. A
técnica vocal que eu uso ela possibilita uma gama bastante ampla de recursos
expressivos. A técnica que eu uso permite que eu utilize o corpo todo como fonte
produtora de som efetivamente. E me possibilita também escolher, selecionar quais
regiões do corpo eu posso usar com maior intensidade do que outras. Possibilitando
uma gama expressiva bastante ampla. Então, essa técnica vocal me permite também
utilizar a voz de maneira saudável, evitando sérios problemas de saúde vocal que
acontecem com algumas técnicas. Então a gente tem uma possibilidade de ter uma
carreira bastante ampla. A carreira de um cantor usando essas técnicas modernas não
precisa ficar restrita a quinze, vinte anos de carreira enquanto cantor, mas sim ter uma
carreira bem maior. Quanto a aliar os recursos expressivos, eu gosto muito dessas
possibilidades técnicas. Então, como eu disse anteriormente, a técnica vocal que eu uso,
na verdade deixa a minha voz apta a acionar os recursos expressivos necessários
quando eu precisar mesmo no momento de fazer. Então eu não tenho uma limitação
técnica, minha voz não precisa estar sempre no mesmo ponto, limitando que eu utilize,
por exemplo, um recurso expressivo num ou noutro momento. Porque a voz por ela
mesma, pela realização sonora, tem os mecanismos necessários pra expressar todas as
emoções e intenções, isso é importante que seja dito. Então se eu quiser usar a voz, por
exemplo, com o foco mais baixo ou com o foco mais alto, se eu quiser usar uma massa
maior ou uma massa menor, eu não vou estar limitado pela técnica vocal que eu uso. O
que muitas vezes acontece. O cantor se sente limitado porque ele não pode ousar em
alguns momentos do ponto de vista expressivo porque tecnicamente ele não pode passar
ou não pode recuar de um certo ponto que lhe foi por anos dito que era um ponto
correto. Então, a minha voz não pode passar do ponto x, então, se um recurso expressivo
exige o ponto y eu não posso usar porque eu estarei tecnicamente incorreto. Então a
técnica vocal que eu uso possibilita pro cantor essa maleabilidade, esse ajuste de acordo
com as necessidades expressivas. E não na verdade essa limitação.
4. Alberto Na verdade, eu creio que sim, inclusive a resposta que o público me é
alimento pra eu poder construir a interpretação da música com os recursos expressivos
89
que eu tenho. Então a gente sempre fica atento à resposta do público e o público sempre
dá uma resposta, positiva ou negativa, porque ninguém é obrigado a concordar com a sua
escolha, com o seu momento expressivo, mas a resposta do público inclusive é alimento,
é combustível pra poder buscar esses recursos expressivos. Então eu acredito que sim,
acredito que as minhas performances são normalmente compreendidas pelo blico do
ponto de vista expressivo e inclusive uso muito da resposta do público pra construir, com
os recursos expressivos que eu tenho, e criar novos recursos a partir da resposta do
público, com certeza.
5. Alberto- Acho que tem alguns compositores que assim, o nome do compositor já me
chama a atenção pra escolha de uma obra. Inclusive compositores que trabalham muito
com a expressividade humana, a sensibilidade humana. Beethoven, Mozart são
compositores que me apaixonei por esses compositores nesse sentido, pela busca da
sensibilização humana. De uma forma ou de outra, inclusive de formas bem diferentes um
do outro. Outra coisa que me faz escolher é realmente, assim sempre lendo, conhecendo
compositores novos, solfejando uma peça nova e buscando, eu escolho aquelas peças
que o compositor consegue me tocar também. De alguma forma, o compositor, na sua
escrita musical, conseguiu me tocar de alguma maneira. Então eu procuro mais nesse
sentido, não me limito tecnicamente, procuro não me limitar tecnicamente, a não me
restringir ao repertório de baixo-barítono, e não de um barítono mais leve ou de um
barítono mais escuro. Procuro adequar a técnica vocal e os recursos expressivos pra
peça que eu escolhi pra ser executada. Não me limitando por recursos técnicos ou enfim,
timbre ou cor vocal, como acontece normalmente que um soprano ligeiro só estuda peças
de soprano ligeiro, ou um soprano lírico estuda peças pra soprano lírico. Procuro não
me limitar a isso, inclusive estudo peças pra baixo que não é exatamente o meu timbre,
sempre buscando peças que vão me trazer de alguma maneira uma capacidade maior de
me expressar, de sensibilizar as pessoas que estão me ouvindo. Essa é sempre a, a
busca do repertório é realmente essa tentativa de sensibilizar a pessoa que está me
ouvindo. Na verdade é o principal motivo, é a chave pra escolher a peça.
Entrevistadora E você escolhe peças que você acha que se pareçam mais com
você?
Alberto - Não necessariamente. Às vezes é divertido fazer algo que é extremamente
oposto. Mesmo porque, no momento de fazer o artista precisa entender que ele está
90
entregando o corpo, está se doando pra fazer uma coisa que não é ele. Então eu tenho os
meus limites pessoais, tenho os meus pudores pessoais, tenho as minhas limitações
pessoais, mas no momento eu preciso entender que é um personagem, que é uma
interpretação. Então se eu vou fazer um assassino, que seja um assassino convincente.
Mas não preciso necessariamente ser um assassino pra fazer. Ou se eu vou fazer um
monge, eu não preciso ter pessoalmente um comportamento de um monge, mas no
momento de fazer realmente se entregar, a entrega do intérprete pra fazer um monge de
maneira adequada. Então aliar os recursos expressivos pra fazer aquilo de maneira
adequada. Então muitas vezes, fazer um personagem que é muito diferente é muito
desafiador e muito bacana. É bastante divertido.
Entrevistadora - Como você explicaria essa idéia de entrega do artista e existiria uma
possibilidade de sistematizar esse conhecimento para que ele se torne mais perceptível
para um aluno?
Alberto - Eu não sei se sistematizar. Eu não consigo ver agora, no momento. O que eu
orientaria é realmente pra manter a personalidade íntegra, manter os meus ideais, o que
eu penso a respeito de religião, a respeito de sexualidade, a respeito de convívio social, a
respeito de amizade eu mantenho íntegro. São meus valores, são valores que eu
mantenho íntegros, mas no momento de interpretar eu realmente me entrego. Eu entrego
o corpo, eu entrego os meus recursos vocais, entrego tudo em função da interpretação
que eu estou fazendo. Então eu não vejo uma maneira de sistematizar, o que eu vejo
necessário é a manutenção da integridade pra não fazer com que muitos artistas
confundam as suas idéias, os seus limites, os seus pudores com o que o personagem
exige. Pra pessoa não ficar pirada, o ficar maluca. Isso eu acho necessário desde o
começo do estudo de expressão vocal deixar claro para o aluno, deixar claro que o que
ele está fazendo não é necessariamente algo dele, mas sim algo do personagem, algo
que é exigido no momento da interpretação. Isso não é realmente algo dele, então essa
divisão entre o intérprete e o personagem eu acho bastante interessante deixar clara
desde o começo pros alunos.
Caso 2. Anita
1. Anita - Expressão vocal pra mim é você ter uma necessidade de colocar um
conteúdo, ou uma idéia ou um sentimento, qualquer tipo de conteúdo interno e você ter
91
que fazer com que as outras pessoas percebam esse conteúdo. Então expressão vocal
eu compreendo isso, através da voz que é o meu recurso expressivo, eu tenho que fazer
com que as outras pessoas, né, porque eu entendo que é quem eu estou tentando
estabelecer uma comunicação, um entendimento, pra fazer com que essas pessoas
compreendam aquilo que está se passando, o estado ou o sentimento que eu tenho.
Assim como a gente pode pensar na expressão de qualquer outra forma, por exemplo, na
expressão corporal, na expressão através da pintura. Então eu acho que, Bom a gente
que fala mais sobre esse assunto, a gente começa a usar termos mais específicos
também, em relação à voz, mas eu acho que eu usaria diversas ferramentas, diversos
recursos que eu aprendi e isso pra mim é muito bom, porque eu não necessito de que
caia uma inspiração divina, essa coisa pra mim é muito mais a expressão eu acho que a
gente não pode deixar como algo que se manifeste naturalmente ou como um dom ou
como uma inspiração do momento somente, eu acho que a gente tem muito essa idéia de
que uma pessoa é expressiva: Óh, nossa como ela é expressiva”, como se fosse algo
que ela nasceu assim, ela é expressiva naturalmente e é um dom. A gente que trabalha
pesquisando e desenvolvendo a expressão vocal sabe que é muito mais do que isso.
Quero dizer: é possível trabalhar expressão vocal, desenvolver, pra gente enriquecer o
material que a gente está trabalhando mesmo. Não que as pessoas naturalmente tenham
uma desenvoltura, tenham uma capacidade natural de expressão. Mas é possível
desenvolver isso também. E acho que isso é que é interessante também porque
possibilita que todas as pessoas possam melhorar, pessoas muito tímidas assim, podem
se desenvolver, ganhar muita coisa, né, porque realmente vai estar podendo colocar
suas idéias e ter trocas mais ricas com as pessoas.
2. Anita Bom, alguns indicativos, o que eu imagino, o que eu percebo na
expressividade da performance de outros cantores... o que eu penso é assim:
considerando a expressão como você colocar conteúdos de um material que você está
desenvolvendo. Por exemplo, especificamente numa sica, então você tem o conteúdo,
você tem uma idéia que você quer desenvolver e comunicar para as pessoas então eu
preciso perceber que o cantor de alguma forma coloca essas idéias na voz, ou no
conjunto da sua performance. Então a gente poderia também considerar a expressão
corporal como um recurso também importante, né? Afinal de contas a performance de um
cantor quando não é uma gravação em cd ou uma gravação de áudio só, ela, ou ao vivo,
92
no palco, uma gravação em vídeo, eu considero a pessoa inteira. O seu corpo, o seu
rosto e a sua voz com certeza. Então, de alguma forma, o cantor tem que me comunicar a
sua idéia. O que ele está pretendendo com a peça que ele está realizando. Agora, se isso
é, se isso foi, aconteceu naturalmente ou se ele propositadamente está fazendo isso, se
ele está pensando “vou fazer assim pra expressar tal coisa” ou se deixou acontecer
naturalmente. Quer dizer as duas coisas podem, acho que podem acontecer mesmo. Eu
acredito que tem, quando a gente desenvolve recursos de expressão, a gente consegue
ser mais eficiente na comunicação. Então por exemplo, quando a gente, eu sinto assim,
quando a gente deixa a coisa acontecer naturalmente, a gente traz as nossas
experiências de vida inteiras. Vamos imaginar que eu o estou pensando em usar
recurso nenhum e, sei lá, me coloquei, entrei no personagem e vou deixar o personagem
me levar, uma coisa assim, com a minha experiência de vida. Bom, por um lado é até
interessante porque com certeza vai enriquecer muito porque eu tenho muitas
experiências que vão contribuir. Por outro lado, eu posso estar correndo um grande perigo
de, de repente, mudar de alguma forma o conteúdo que eu realmente queria passar. Pode
me escapar, na realização, coisas que eu não gostaria que entrassem na interpretação
daquela peça. Enfim é isso não sei se eu preciso citar algum exemplo, mas é, sei lá,
“pensei numa situação de romance, eu lembrei de alguma situação que aconteceu
comigo ou me veio tararam, mas eu senti uma coisa diferente e, não, mas não é isso
não era pra ter aquele sentimento naquela peça”, então eu acho um pouco perigoso a
gente se deixar simplesmente se levar pela emoção da peça ou pelo sentido da peça
assim, né? Então acho que trabalhar recursos de expressividade. Porque eu acho tão
interessante isso porque também possibilita que eu tenha, bom, de certa forma um
controle um pouco maior do que realmente eu quero comunicar às pessoas. Eu sinto que
eu preciso ter isso algumas coisas eu quero dizer exatamente aquilo. Então eu tenho que
dar um jeito de que isso aconteça. Bom, no caso de eu estar observando a performance
de outros cantores eu não saberia explicar, pra mim é um pouco subjetivo de perceber se
a pessoa está usando os seus recursos ou está se deixando levar. Eu poderia dizer assim
que, não sei, talvez a gente perceba de alguma forma quando o cantor realmente está
interessado em que você apreenda aquele conteúdo, vamos dizer assim, é interessante
tentar perceber e diferenciar quando a coisa está acontecendo sem o controle do cantor
ou ele está se deixando levar e quando ele está com inteligência e com bom gosto
tentando realizar uma coisa mais perfeita e o melhor possível. Talvez seja isso, quando a
93
gente percebe que um interesse genuíno do cantor, do intérprete em que a gente
esteja... É, a gente percebe às vezes até no olhar, em toda performance do artista quando
ele está interessado em que a gente... quer dizer, realmente uma troca, uma
comunicação. Então, isso ainda acho que teria que pensar melhor a respeito, investigar
mais parâmetros de perceber isso, mas... É isso.
3. Anita - Bom, minha formação em música foi realizada no Coral da Universidade
Federal, com o maestro Alvaro Nadolny, que eu aprendi toda essa parte de Teoria,
Harmonia, música em geral. Fiz algum tempo de piano e, em paralelo a isso, fiz cursos,
workshops, com outros professores sobre algum aspecto específico assim de música.
Especificamente de técnica vocal também a minha, posso dizer assim que toda a minha
formação vocal, em técnica vocal em canto foi com o professor Alvaro também, né que foi
aonde eu realmente mais aprendi, com quem eu mais aprendi, mais desenvolvi meus
estudos e os meus conhecimentos. Alguns outros cursos também eu fiz fora, por
exemplo, Interpretação de Canto Barroco, Ópera Estúdio.
4. Anita - Bom, avaliando a minha técnica vocal em relação ao que eu necessito em
relação ao desenvolvimento da minha arte. Bom, aí vendo assim o que eu considero mais
importante que é realmente... não simplesmente fazer um... é difícil dizer o que é uma
música perfeita assim mas a gente, em geral, pensa que a música perfeita é aquela
realizada tecnicamente, como foi escrito e como foi pensado. Acho que o mais importante
é ter uma, é você levar as pessoas e fazer as pessoas se sensibilizarem com o que você
está fazendo. Acho que nisso a expressividade vocal, é realmente o que é, é como a
gente consegue chegar nisso, realmente tocar a alma das pessoas, pois as pessoas
conseguem demonstrar suas emoções e suas primeiras, segundas e terceiras intenções a
partir do som que emitem. Isso é expressão vocal. Bom, aí a minha Técnica Vocal, eu
considero a técnica vocal um recurso pra gente conseguir algo mais profundo, algo mais
rico, mais completo musicalmente e artisticamente. Então realmente é você ter algo
completo... esse algo completo, acho que é quando as pessoas que te escutam se saem
beneficiadas, realmente beneficiadas de terem apreciado aquilo, de terem visto e ouvido.
Então como eu falei, a minha técnica vocal eu acho que ajuda, porque se fosse de
outra forma eu acho que eu não conseguiria fazer isso que eu me proponho a fazer. Se
fosse de outra forma, se fosse, se eu tivesse alguma outra técnica vocal seria muito mais
difícil que eu conseguisse atingir esses objetivos que eu me proponho no meu canto.
94
5. Anita - Bom, se eu considero a minha expressividade inteligível para quem está me
escutando, eu diria que sim. Principalmente porque também a gente trabalha com
aspectos bastante claros, por exemplo conteúdos bastante claros, por exemplo,
agressividade, o tipo de humor, a tristeza, quer dizer, essas emoções ficam bem
evidentes sim na performance, na expressão. Quanto, claro que quanto mais a gente
deixa o conteúdo complexo, mas isso eu acho que qualquer comunicação, qualquer
trabalho que a gente, quanto mais a gente deixa complexo ou rebuscado, mais difícil de
você apreender. Acho que por isso também é interessante colocar alguns conteúdos mais
nítidos, então se uma das coisas na performance, que eu vejo é definir alguns pontos
básicos que eu quero expressar, algumas emoções específicas, ou algumas idéias mais
específicas pra realmente deixar aquele conteúdo bem nítido. Isso acontece, no
contexto geral a gente enriquece, a gente, né, mas nada que comprometa a
expressividade da peça.
6. Meu repertório, eu escolho ele, bom, tem várias maneiras né. Uma das coisas: eu
penso no meu desenvolvimento. Então por exemplo, peças que trabalham conteúdos que
seriam desafiadores pra mim. Então, por exemplo, um tipo de personagem que eu acho
que tem uma personalidade muito difícil, ou um tipo que pra mim seria muito difícil fazer.
Por exemplo, um personagem que é o oposto de mim, então esse pra mim é um desafio,
é algo que eu me proponho a fazer porque a gente é artista a gente tem que experimentar
de todas as formas. E conseguir fazer todo tipo de performance. Então esse seria um
aspecto do desenvolvimento pessoal, técnico e artístico, enfim, é a minha escolha
pessoal. Outro critério seria em função de um conjunto de repertório, por exemplo, para
montar um espetáculo, ou... É, seria isso, ao montar um espetáculo, escolher
determinadas peças que eu vejo que façam sentido junto, ou que se encaixem na
proposta que eu quero desenvolver em função do público que eu quero atingir ou uma
idéia que eu quero expor, ou algo que eu queira criticar por exemplo, ou defender. Então
acho que em geral seriam esses dois critérios gerais.
Também, em relação à minha formação, eu considero importante a formação de ator,
esse trabalho com o corpo que em relação à expressividade tem tudo a ver. Então, eu
tenho algum tempo de preparação de ator e vivências, e trabalhos com o corpo que
também me ajudam a compreender melhor a minha existência, as minhas ferramentas, os
meus conteúdos e logicamente na expressão vocal isso vai se refletir também
95
Caso 3. Ângela.
1. Ângela - Bom, pra mim expressão vocal é uma maneira com que você se coloca na
música ou coloca as emoções que você quer na música, né. É... depende muito do que
você já estudou, do que você conhece de técnica vocal e mesmo de expressão e também
depende de certos critérios musicais exigidos em cada obra, né. Mas expressão vocal é
uma forma que a gente estuda, mais adequada de você deixar claro, deixar mais
inteligível o conteúdo da música, através da voz.
Entrevistadora E como é que você definiria isso, como é que você consegue explicar
mecanismos de expressão vocal?
Ângela Mecanismos? Bom, a técnica que a gente usa é a cnica de ressonância do
corpo inteiro, então a primeira coisa que a gente aprende é empostação, e aí você
aprende os recursos de usar o corpo e no caso a ressonância nos ossos. Então, muito da
expressividade vocal ela vem com a imagem, né, com aquilo que você cria do seu
personagem, como é que é ele agindo assim, como é que é ele agindo assado, e algumas
coisas você ouve de estudar a técnica, tipo “soa assim” e a técnica mostra tal tipo de
ressonância. E, ou e também, eu acho, algumas coisas com a imagem são expressas.
Não precisa necessariamente usar a técnica, né. Depois você onde que soou e você
acaba reutilizando esse mesmo recurso que vem do seu corpo, da maneira que você é.
2. Ângela Bom, quando eu vejo uma performance de algum cantor, eu percebo
alguns recursos que eu experimentei, aqueles que eu identifiquei no meu estudo;
percebo movimentação do som no espaço, se ele está indo prá lá, está indo prá cá, como
foi usado; é... e... algumas coisas que a gente sabe que está acontecendo, né, de uso da
técnica mesmo, algumas coisas ficam muito sutis. Eu não sei dar nomes, né, mas a gente
sente, né, muita coisa a gente só sente, no nosso próprio (está mostrando o peito).
Entrevistadora – E como é que você sente?
Ângela.- Como eu me sinto?
Entrevistadora Não, como é que você sente isso? Come é que é a medida, existe
uma possibilidade de você medir essa sensação? É sensível no tato? É físico?
Ângela.– É Físico, arrepio, sensação de alegria, de riso ou mesmo de agonia, de
angústia, de prisão, e também eu acho que é uma questão de espaço mesmo, de
dimensionar o espaço, porque, às vezes, você, mesmo estando com muita gente, se
96
sente sozinho, por exemplo, num ambiente, você fica mais intimista, ouvindo alguém
cantar. Ou então não, você reconhece que está com todo mundo ao seu lado. Eu acho
que isso também é um recurso de som, nem que você não saiba dizer o que aconteceu,
necessariamente pela cnica, é uma coisa que você sente, ouvindo, pela percepção
auditiva.
3. Ângela - Bom, a minha formação musical é em educação musical, eu sou formada
pela UFPR. Comecei os meus estudos aos sete anos, cantando em coral, daí tive um
período de três ou quatro anos que fiquei fora de coral, mas senão, sempre cantando em
coral. Participando do Coral, cinco anos, estudando técnica mesmo, três anos. Então
eu já falo um pouco da minha formação específica de técnica. Bom, na verdade, a
técnica, o estudo da técnica mesmo, na minha formação é uma coisa muito falha, eu
acho. Porque quando eu tive acesso à técnica vocal, o que me interessava mais era o
fenômeno musical, não necessariamente a técnica vocal, então eu acabei não me
focalizando no estudo da técnica e mais recentemente, três anos, mas mesmo assim
eu gosto de pensar que faz dois anos que eu uso mesmo os recursos assim, com clareza.
Porque a minha maior vontade de estudar mesmo e até, acho que isso também vem da
técnica, mas a princípio a minha participação no coral, estudando com o maestro, foi pelo
fenômeno musical, entender o que acontecia. Mas, a gente tem a orientação do maestro e
tem os estudos individuais que eu acho que esse conta mais, que é a coisa de você...
Conta mais não, conta diferente, porque você vai adequando no teu estudo aquilo que
você realmente precisa, aquilo que você sente falta em você, aquilo que você acha que
não está bom ainda e assim vai.
4. Ângela - Em relação à técnica vocal e as minhas necessidades, eu ainda me sinto
uma estudante da técnica. Então, não condiz com as minhas expectativas ainda, eu estou
ainda num processo de estudo, de amadurecimento, de uso com mais consciência de
cada ressonador, com mais é, como é que eu vou dizer, não com mais eficiência,
mas também com maior cuidado. Eu acho que também existe isso de você dosar bem o
que usar pro personagem ficar do jeito que você quer. Então o personagem claro e assim
que seja inteligível pro público, eu acho que a minha técnica ainda tem que ser
aprimorada. acontece, acontece de forma consciente, algumas coisas eu consigo
fazer como eu gostaria e outras coisas faltam amadurecer bastante ainda.
Entrevistadora - Essas ferramentas técnicas respondem aos seus anseios?
97
Ângela – Sim.
Entrevistadora Porque muitas vezes acontece que as pessoas respondem vamos
fazer na intuição porque se você faz muito tecnicamente a coisa fica sem vida, fica fria.
Ângela É eu acho que tem aquela coisa assim, às vezes você conhece muitos
mecanismos teóricos, né, técnicos, você sabe que é assim que tem que ser, mas por
algum motivo, ou por outro, você não acessa aquilo num primeiro momento. Aquilo exige
de você um estudo. Então eu acho que os recursos técnicos, eles são, eles correspondem
ao que a gente precisa pra se expressar na arte pelo que eu tenho visto. Mas no caso
pessoal, eu acho que acessar esses mecanismos expressivos em relação ao meu corpo é
uma coisa que exige amadurecimento, né? Não que seja é... até porque eu acho que os
próprios recursos cnicos você reinventa, né. Você pode aquela coisa do intuitivo, né, às
vezes você faz ima coisa que...né, você pode até explicar pela técnica, mas talvez você
nem tenha ouvido isso em técnica ainda. Daí então depois de três quatro meses você vai
ver “ah não, isso é isso!” e você fez intuitivo. Mas eu acho que os critérios técnicos que a
gente usa, pelo menos até onde eu conheço, eles me suprem.São condizentes com o que
eu quero, assim, falta a coisa de amadurecer mais, acessar melhor ou com mais
cuidado, com mais responsabilidade, com mais...um bom senso no personagem.
5. Ângela - É...se eu considero a minha expressividade inteligível é isso que eu
estava falando antes. Eu acho que... é... eu não considero ainda que eu tenha chegado
num nível de expressividade bom, que a gente fosse fazer assim “o personagem é tal,
você pensa nele daquela forma e você consegue fazer ele daquela forma”. Mas eu sei
que algumas coisas que eu faço ficam claras pras pessoas. Então algumas coisas ficam
claras, algumas coisas passam, até porque a gente observa a reação das pessoas. Mas
eu não considero que esteja inteligível, que qualquer coisa que eu faça esteja inteligível,
que qualquer coisa que eu fazer, qualquer personagem eu faça com clareza. Então
tem alguns que eu não consigo fazer com clareza ainda, precisa estudo.
Entrevistadora – Eu gostaria que você falasse mais das ferramentas, se você considera
que as ferramentas expressivas que você tem disponíveis são inteligíveis pra o que você
faz. E se você pudesse descrever como é que você pensa que é essa coisa de se tornar
inteligível.
Ângela Eu acho que, com os recursos técnicos que eu tenho, o que eu tornei
consciente no meu estudo, ele atinge as pessoas, é inteligível, né. Mas eu tenho alguma
98
insatisfação em relação aos recursos técnicos, não que eu não saiba mais ou menos o
que fazer. É aquilo que a gente estava falando sobre você saber que ele supre, que eles
são, que eles vão... aporque é uma boa educação vocal, você ouviu acontecendo,
você viu fazendo, você ouviu acontecendo. Mas você ainda sente falta, ou porque
você não conseguiu acessar em você, conseguir fazer com seu corpo. Por exemplo, tem
alguns sons que eu não consigo ouvir no meu corpo, né, então nessa hora, eu procuro
pensar na idéia, me fixar na idéia que eu quero passar, né? E o necessariamente
usando a técnica. Eu penso, penso aonde é a ressonância e ela acontece. Mas, como
eu não consigo ouvir exatamente o que está acontecendo, não consigo identificar, dar
significado pra isso, fica uma dúvida e tal. Lógico, você o conjunto, se você está
adequado ao conjunto ou não. No caso do solista não, no caso do coral, você ouve o que
está acontecendo e você se concentra na idéia que você quer passar. Mas nesse caso
específico assim, se fica inteligível, eu conto mais hoje com essa coisa da imagem.
Entrevistadora - O que você está tratando por imagem?
Ângela Quando você pensa no personagem, você imagina. no caso da Carmem,
por exemplo, você imagine que ela é uma mulher muito...uma palavra pra isso né, ela é
muito enfim, decidida, então você imagina como é que ela soa, como é que ela é, não
dentro da ópera que eu acho que até nesse caso a gente pode, eu pelo menos quando
pensei na Carmem como solo eu tirei ela da ópera pra fazer isso. que era um solo,
eu pensei naquela música, no personagem pra aquela música que é a Carmem. E
então você imagina como é que é o personagem como é que ele deve, como é que é uma
pessoa assim, como é que é ele, e d você procura, usando a cnica, lógico, mas
também, mais imagens, imagens da pessoa, como é que ela é quando ela chega, como é
que ela se comporta, como é que as pessoas vêem ela, enfim, coisa assim que é normal,
né? E essas imagens vão trazendo a sonoridade que você quer, né, também. Daí alguns
recursos você conhece tecnicamente, você coloca, você quer fazer um momento
contrastante com outro, você intensiona isso também, você concentra em fazer isso e
tal. É assim que normalmente eu trabalho, pelo menos na Carmem foi o que eu fiz.
6. Ângela - Bom, o meu repertório varia muito. Como eu escolho o repertório varia
muito. Pode ser indicação, algumas coisas que seriam interessantes de você trabalhar,
então o maestro indica, como foi o caso da Carmem. E tem, lógico, o teu gosto pessoal,
né? Porque às vezes você quer expressar aquele assunto, por exemplo, você quer
entender melhor aquele assunto e você procura estudar aquele assunto, com expressão e
99
tal. Também tem algumas outras coisas, por exemplo, os duos, né, daí um consenso
de como vai ser, o que seria melhor e tal. Mas, basicamente, é o teu gosto ou indicação
do que você deveria aprimorar, que peça que vai te levar a melhorar a tua expressão.
Entrevistadora - Tem alguma coisa que você evita, por exemplo. Que você acha que a
sua voz não vai resolver?
Ângela Carmem eu evitei. Sim, às vezes o personagem ele soa pra você muito
diferente, que você nunca se imaginou.
Entrevistadora De que natureza essa diferença...porque pra mim é assim: se você
pensa “ah! Eu não tenho voz pra isso”, ou se aquele personagem, aquelas características
que ele tem me causam... são duas maneiras de evitar. “Ah! É muito ágil” e eu não tenho
voz ágil, ou “é muito lento” e minha voz é leve. São várias possibilidades de raciocinar...
Ângela É, na verdade eu acho que tem uma questão do personagem mesmo. Coisas
do personagem que você se imagina fazendo e você acha que não vai ter como resolver
isso e tal. Mas eu acho que todas as coisas que eu fiz, pensando em personagem,
foram coisas que num primeiro momento eu pensei: “nossa! Será que eu vou conseguir
resolver esse personagem?”. Porque tem coisas diferentes de como você age, aliás não é
você agindo, né, é uma outra pessoa.
Entrevistadora A voz da Simone pra fazer as coisas da Simone é uma coisa, mas a
voz da Simone, resolvendo musicalmente personagens faz exigências de adaptação.
Existe alguma coisa que você leve em consideração pra fazer essas escolhas?
Ângela - Pra adaptar, não. Eu acho que, até hoje o que eu fiz, os personagens que
eu estudei, pensando nesse ponto de vista, eu acho que não. Eu acho que é instigante
você estar resolvendo as coisas de uma forma diferente, né? Teve muitas coisas, por
exemplo, até posso citar, um duo de Mozart, do Cosi fan Tutti, ele tinha bem essa coisa
assim, de você resolver de uma forma que você pessoalmente não resolveria. Você não
faz issso. Eu não faço isso, no caso, né? E era o que eu mais gostava na ópera, era de
chegar e fazer isso. Lógico que depois você que o teu limite é muito mais maleável, que
não é bem assim, tal, aliás eu acho isso excelente, você vai dimensionando de forma
diferente até o que você pode fazer no mundo real. Mas eu já evitei alguns repertórios, até
a Carmem é um exemplo, porque eu sabia que pra mim seria diferente, seria difícil,
seria uma coisa assim que é uma pessoa que pra mim seria difícil, com o equipamento
expressivo que eu tinha na época e tal. E eu ainda estou estudando ela.
Entrevistadora – Ter feito a Carmem mudou o quê?
100
Ângela AAHH...essa coisa do limite, né, porque às vezes você tem que, é, como é
que eu vou dizer... até bancar a louca e daí você, se você não enlouquece é um bom
sinal. É um sinal de que você pode ir até um pouquinho mais e tal. Essa coisa de você
aprender com o personagem... Aprender, aprender ase comportar e tal, porque é um
personagem coerente dentro daquele contexto que ela está! Eu não acho que a gente não
seja de vez em quando Carmem, ou pelo menos algumas coisas do personagem Carmem
a gente tem como mulher, e essa coisa da liberdade, querer a liberdade, de gostar da
liberdade é uma coisa que é bastante comum no ser humano. E ela, nesse sentido, eu
acho que ela foi muito ... um bom estudo, de mostrar pra você que a liberdade é possível.
Caso 4. André
1. André - O que seria expressão vocal? Pra mim fica muito clara a seguinte situação:
tem a ver com algo que está aliado a uma técnica que é desenvolvida pelo intérprete e a
forma como ele transmite isso para as pessoas que estão ouvindo a sua interpretação.
Pra mim a técnica mais a forma de utilização. Como ele domina essas situações no dia a
dia, esse ouvido vai provocar no interlocutor uma coisa que ele pretende expressar, uma
raiva, uma alegria ou, por exemplo, até uma timidez ou amesmo uma ironia. Ou não
expressar nada se ele desejar nesse momento. Pra mim é isso.
Eu percebo assim, por exemplo, quando eu vejo uma expressividade, o primeiro
que me chama a atenção é o arrepio. O arrepio é o ponto que me chama a atenção se
está sendo expressivo, se está sendo bastante expressivo. Um outro ponto é se eu
participo desse evento, se eu me sinto participante, se me chama a atenção, se me
envolve nessa discussão. Se não, pode parecer que é apenas um estudo mostrar uma
informação que não atinge. Então ela tem que atingir, essa mensagem tem que atingir
essa expressão. É nessa linha que eu percebo.
Eu tenho uma formação musical não formal. Não estudei em escola de música,
nada. Então eu aprendi a tocar violão com doze, treze anos na igreja, fui cantando na
igreja, mais um tempo aprendi com um amigo meu a melhorar a minha técnica de violão.
Eu tinha um dueto que nós fazíamos, o Simon and Garfunkel, então nós cantávamos
músicas pra dueto mesmo, e com o passar do tempo eu senti necessidade de aprender
um pouco mais de teoria musical, ler partituras pra que os outros universos da música
pudessem caminhar junto comigo. depois eu passei pra uma formação pode-se dizer
101
erudita num madrigal e hoje eu canto no Coral da Federal. Então é essa a minha
formação musical, basicamente.
E especificamente técnica vocal eu comecei a trabalhar faz um tempo dentro de
uma proposta de ressonância do corpo inteiro, que alia um pouco da técnica alemã, que
tenta buscar a maximização da voz até através da exploração dessa ressonância no
corpo inteiro, de vários pontos, não cabeça. Pra muitas pessoas é um pouco
complicado de entender esse ponto.
E observando assim o que eu penso, o que eu imagino, o que eu gostaria de
necessidade de expressividade eu ainda sinto que eu preciso avançar um pouco mais em
alguns controles, por exemplo, primeiro no stress diante da platéia que eu acho que isso
me prejudica a soltar um pouco mais, , me soltar mais pra poder explorar e ter o
controle da situação durante a apresentação. Isso que eu percebo. Então se eu estiver
mais dominado, mais tranqüilo eu acho que ela vai me dar esse ganho maior. E, durante
as performances que eu faço, as apresentações, percebo que algumas pessoas sentem
algo diferente, percebem assim, dependendo da forma como eu trabalho, dependendo do
dia, da expressividade elas sentem “opa, tem algo diferente”. Acham bonito, é o primeiro
ponto que chama a atenção. Então eu percebo que o que eu estou querendo passar ele
vai trazer essa mensagem, não ainda 100% do que eu almejo, mas ele uma boa
passagem daquilo que eu gostaria.
Eu hoje repertório eu trabalho assim: o que eu acho bonito, o primeiro ponto. O que
eu acho bonito, acho sonoro. Primeiro o que move pra mim, se eu me sentir tocado eu
acho que eu vou conseguir passar melhor a mensagem. Se eu não gostar muito da
música, mesmo que alguém me diga: “cante essa que é boa”, mas cria um certo bloqueio
que me impede de dar o máximo de mim e até de transparecer essa expressividade pras
pessoas. É nessa linha que eu trabalho. Além também tem um outro critério que eu vejo
a dificuldade, o grau de dificuldade. Então músicas muito simples eu até nem considero.
Eu procuro sempre ver uma mais complexa, que vai exigir um pouco mais de mim. Então
no ano passado eu trabalhei músicas difíceis, no recital trabalhei com Mozart, trabalhei
com músicas bem complexas. Esse ano eu vou preparar alguma coisa de Bizet, então ela
tem todo um caráter diferente de Mozart. Então ela exige, vai exigir de mim um outro
lado, mais meloso, mais romântico pra tentar passar pras pessoas essa situação.
Basicamente é nessa linha.
102
Bem, complementando um pouco a questão da expressividade, bem, pra construir
essa expressividade, vamos dizer como que eu trabalho. Hoje ainda eu pego partes,
trechos da obra e vou tentando intensificar o entendimento dela, primeiro mental, o
entendimento mental, depois eu vou explorando os recursos. Primeiro pra mim, se eu
sentir que está bom primeiro pra mim já é um bom caminho. Por exemplo, eu vou cantar e
começo percebendo, puxa isso aqui está...sentindo por exemplo que está o ambiente,
está bem claro pra mim, onde está chegando a minha voz, se as pessoas estão me
ouvindo. Então esse é o primeiro ponto que eu percebo se estou sendo expressivo, se o
volume, intensidade estão adequados ao ambiente. Então com isso eu tenho esse
primeiro termômetro. Segundo termômetro interno: se eu sinto que está fluindo a
expressividade, não é algo simplesmente, como é que eu posso dizer, treinado, só
treinado. Ela tem que fluir. Se eu percebo que estou no controle mas ao mesmo tempo a
música sai, como se fosse de dentro, pra mim é como se tivesse um termômetro da
expressividade. Outra: que eu o precise ficar preocupado se é aquela frase naquele
momento ou não, se é daquele jeito que vai ser dito ou o. Ela sai dentro dessa linha e
não é muito mastigar a palavra, mas é perceber alguns outros pontos. Por exemplo: a
vibração nem tanto, mas uma sensação de no chão firme assim é que é interessante,
mais aquela questão do arrepio, da coluna. Sentir assim que o corpo também se expande
e ele uma mexida, vai uma energia para a frente. É isso que eu percebo em
expressividade. Um outro ponto também, quando eu vou construir, eu ouço outras
pessoas também que já executaram aquela peça, aquela ária, pra perceber alguns
detalhes. O que é que tal pessoa faz? Bom ele dá uma mastigada e sempre está muito
junto, está sempre dentro, presente na música, mostrando que ele está ali. E outros vão
construindo isso, então eu penso assim: o que é que é o mais adequado? Eu prefiro
nesse momento me sentir mais dentro, que eu estou dentro da expressividade.
Construção ela parece que me dá uma quebrada, então parece que eu me perco. Se eu
me sentir dentro, sinto que tem mais expressão. Me sentir inteiro no que eu estou
fazendo.
Ainda o repertório tem um ponto que chama a atenção que é, vamos dizer, o tema.
O tema chama a atenção. Embora tenor a maioria é sica que se diga assim de
lamento, de mulher mal amada ou dele mal amado, ciúme, mas é um momento em que o
intérprete ele é mais solto, ele é mais pra arrebatado e isso me chama a atenção. Que ele
se solta, que ele faz as pessoas sentirem assim “Nossa! O que é que é isso?”, entende,
103
ele está tão arrebatado, está tão envolvido que está se soltando demais. Então isso me
chama a atenção nas obras, não tanto tristeza ou alegria, mas esse ponto de se soltar.
Entrevistadora – Talvez intensidade. Não é isso, não é?
André Intensidade, vamos dizer assim, de emoção, ou de sentimento ou de
sensações, essa intensidade. Essa sensação de que está preenchendo e que está
jogando assim e que o povo vai se sentir movido, mexido. É isso que me chama a
atenção. Ah, eu quero fazer bonito, claro, um repertório difícil, mas eu quero que as
pessoas depois me aplaudam por terem sentido essa sensação boa.
Há momentos assim que, durante o estudo, que dá um aperto se vai chegar
principalmente, quando, devido o grau de dificuldade. Então a sensação que causa é:
como é que vai ficar no dia? Então, que queira ou não você está sendo exposto, não sou
eu mas é um ator mas eu não me dissocio disso. Às vezes surge uma dúvida, se vale a
pena continuar investindo nessa obra, porque ela é difícil e às vezes o tempo é curto pra
se deixar do jeito que se gostaria. Se eu fosse cantor profissional eu teria mais tempo,
mas eu não deixei de apresentar, todas as que eu preparei eu cantei, não ficou do jeito
que eu queria, mas já foi um avanço, já foi um vencer a si mesmo.
Entrevistadora – E essa peça que a gente gravou do recital?
André Essa peça, por exemplo, como foi estréia, então gerou mais ansiedade
ainda, porque ela é uma peça, eu particularmente acho que ela é muito bonita, mas das
mais difíceis porque ela envolve muitas coloraturas e é muito rápida. Então eu posso dizer
assim que, mais alguns treinos, mais algum tempo trabalhando, ela ficaria bem melhor,
ela causaria um impacto melhor nas pessoas. Não que ficou ruim, péssima, mas poderia
ficar melhor, teria mais expressividade, deixaria as pessoas mais a vontade, entendendo
melhor a mensagem.
Por exemplo, existem alguns elementos, vamos dizer, que a voz por si só ela faz. É
engraçado dizer assim. Mas as pessoas percebem, quando você fala, qual é a intenção.
Se estiver bem treinado o ouvido, né, elas percebem, se elas estiverem bem atentas.
Porque são mecanismos, a gente pode dizer, que as pessoas conhecem. Então se for:
fica aí! A pessoa vai perceber pela voz, eu não preciso nem fechar o rosto, fechar o punho
dizendo fica aí. Não preciso nem fazer nada. É só eu falar que a pessoa vai perceber.
Então, são nuances da vida mesmo que as pessoas usam no dia-dia que a gente tem que
aproveitar. Tentar demonstrar pela voz na hora que está cantando, que é a arte
diferente. Por exemplo, se eu quiser expressar sentimentos mais complexos, eu vou ter
104
que explorar algumas outras coisas no meu corpo para que reflita no outro, pra que ele
perceba que a situação mudou, que a expressão mudou. Então se eu ficar sempre
falando, achando ou fazendo com gestos ou mímicas ou facial, não vai ter a tão grande
expressão, porque ele vai ter que ficar me olhando. Agora ele pode até fechar os olhos e
ouvir que ele vai perceber.
Eu gostaria de dizer que é uma experiência fascinante essa de cantar e tentar
expressar com a voz, porque cada dia a gente se descobre mais capaz, capaz de
transpor tanto os limites como de se relacionar também com as pessoas. Ele uma
diferença muito grande.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo