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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
BOI-DE-MAMÃO: UMA BRINCADEIRA DE RUA NO CHÃO DA EDUCAÇÃO
INFANTIL.
DIÁLOGOS COM A CULTURA POPULAR
Florianópolis/SC
agosto, 2008
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
BOI-DE-MAMÃO: UMA BRINCADEIRA DE RUA NO CHÃO DA EDUCAÇÃO
INFANTIL.
DIÁLOGOS COM A CULTURA POPULAR
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre em Educação,
pelo Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal de Santa Catarina.
Mestranda: Dione Raizer
Orientadora: Maristela Fantin, Dr.a.
Florianópolis/SC
agosto, 2008
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AGRADECIMENTOS
Agradeço ao Vitor e ao Murilo, por tudo que vale a pena.
Agradeço à minha família pelo incentivo, pelas faltas, desculpo-me.
Agradeço ao senhor Darci, benzedor de boi, que trouxe para a minha vida de
professora a brincadeira do boi-de-mamão de outros tempos.
Agradeço à comunidade, que arteiramente trouxe o boi-de-mamão para o chão da
unidade educativa, ensinando-me.
Agradeço às crianças, que ao brincarem de boi-de-mamão apaixonaram-me.
Agradeço aos profissionais da unidade educativa que por estão e que por lá
passaram, deixando suas marcas no meu jeito de brincar de boi-de-mamão.
Agradeço à Ana Regina Ferreira de Barcelos, minha supervisora e amiga, ao organizar
minha prática pedagógica, torna-me capaz.
Agradeço ao secretário municipal de educação, prof. Rodolfo Joaquim Pinto da Luz,
por conceder minha licença para aperfeiçoamento, possibilitando-me.
Agradeço aos professores da Pós-Graduação em Educação, CED-UFSC, pelos
preceitos.
Agradeço às minhas parceiras de mestrado, Lúcia e Rose, pelos longos e esperados
momentos de conforto.
Agradeço aos professores Dr.a Luciana Esmeralda Ostetto, Dr. Reonaldo Manoel
Gonçalves e Dr.a Mônica Fantin, ao aceitarem fazer parte da banca, qualificando o meu saber-
fazer.
Agradeço à professora Dr.a Maristela Fantin, por orientar meu trabalho, por quebrar
minhas resistências e indicar dolorosos e necessários caminhos, amorosamente.
Não poucas vezes acontece
E acontece em todo mundo
Ver técnica e saber profundo
Onde o bom senso prevalece,
Sensato, simples e comum
A qualquer um.
RESUMO
Este estudo é centrado em uma unidade de educação infantil da rede regular pública
municipal de Florianópolis num período de 1994 a 2004, situada numa comunidade que tem
na brincadeira do boi-de-mamão a manifestação da sua prática cultural. Buscando investigar
as relações constituídas entre uma prática cultural de rua e uma prática educativa no espaço de
educação, pontuo a partir da organização de projetos pedagógicos a construção dos diálogos
com a cultura popular. Esta pesquisa busca a compreensão entre as relações educativas da
brincadeira do boi-de-mamão dessa manifestação popular dentro do chão da escola de
educação infantil como possibilidade de compartilhar essa memória coletiva de forma a
qualificar as interações das crianças com os processos de reprodução e (re)significação da
cultura. Valendo-me dos relatos orais de antigos brincantes do grupo de boi-de-mamão do
Itacorubi, de seus antigos moradores, de profissionais e de famílias da unidade educativa
investigada, delimito assim o trabalho: no primeiro capítulo traço a caracterização da história
cultural do bairro Itacorubi, que brincou e ainda brinca de boi-de-mamão; no segundo capítulo
apresento a estruturação de projetos político-pedagógicos e a co-responsabilidade das
famílias; e no terceiro capítulo trato dos diálogos propostos entre a cultura popular, a
educação infantil, a formação dos profissionais, a participação das famílias, delimitando as
(re)significações de qualidade no processo de formação das crianças como sujeitos ao
usufruírem dessas relações.
Palavras-chaves: educação infantil; brincadeira do boi-de-mamão; cultura-educação
ABSTRACT
This study is centered in an infant educational unit from the regular municipal public
education system of Florianópolis, Santa Catarina, Brazil, from 1994 to 2004. It is situated in
a community that practices the “papaya bull” (boi-de-mamão) play activity, a manifestation of
the local cultural practice. Seeking to investigate the relationship constructed between a
cultural practice of the street and an educational practice within an educational environment, I
point out the construction of dialogues with popular culture, based on the organization of
pedagogical projects. This study seeks greater comprehension between the educational
relationships of the boi-de-mamão game of this popular manifestation on the floor of the
primary school as a possibility of sharing this collective memory in a manner that qualifies the
children’s interactions with the processes of reproduction and re(significance) of culture.
Making use of the oral reports of ancient participants of the boi-de-mamão group from
Itacorubi, the neighborhood’s eldest members, professionals, and families from the
educational unit investigated, I outline the work as follows: in the first chapter I trace the
characterization of the cultural history of the Itacorubi neighborhood, who played and still
plays boi-de-mamão; in the second chapter I present the structuring of political-pedagogical
projects and the co-responsibility of the families; and in the third chapter I deal with the
dialogues proposed between popular culture, primary education, professional’s education, the
families’ participation, highlighting the (re)significances of quality in the process of educating
children as subjects who benefit from these relationships.
Keywords: primary education; boi-de-mamão game; culture-educacion
SUMÁRIO
RESUMO ................................................................................................................................... 4
ABSTRACT .............................................................................................................................. 5
LISTA DE FIGURAS ............................................................................................................... 6
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10
Como me constituí brincante de boi-de-mamão num espaço de educação .............................. 13
Trajetória de uma professora pesquisadora: os passos dados da pesquisa ............................... 16
1 [...] NO MEU BAIRRO TEM BOI-DE-MAMÃO [...] A BRINCADEIRA DO BOI-DE-
MAMÃO NO BAIRRO ITACORUBI .................................................................................. 20
1.1 A história de um velho boi-de-mamão... Dialogando com os brincantes do Grupo do
Itacorubi .................................................................................................................................... 29
1.2 Entre Folclore e cultura popular ......................................................................................... 37
1.3 [...] bom era quando fazia verso, fazia Folclore, fazia poesia [...] ...................................... 44
1.4 A história de um bairro de Florianópolis ............................................................................ 52
1.4.1 Um jeito de ser do bairro Itacorubi ..............................................................................................55
1.5 Um espaço guardador da brincadeira do boi-de-mamão... A sede folclórica ..................... 59
1.6 Entre Folclore e educação................................................................................................... 62
2 UM JEITO DE A BRINCADEIRA DO BOI-DE-MAMÃO ADENTRAR NO ESPAÇO
DE EDUCAÇÃO .................................................................................................................... 67
2.1 O contexto político e a configuração de propostas para a rede municipal ......................... 68
2.1.1 A constituição de propostas político-pedagógicas para a educação das crianças .......................72
2.2 A unidade educativa como um sujeito organizador de diálogos com a cultura popular .... 82
2.2.1 “Vamos moreninha, vamos até lá [...]” entender os diálogos construídos neste espaço de
educação com a brincadeira de boi-de-mamão .....................................................................................89
3 OS DIÁLOGOS ENTRE CULTURA, EDUCAÇÃO, FORMAÇÃO DOS
PROFISSIONAIS E PARTICIPAÇÃO DAS FAMÍLIAS ............................................... 120
3.1 Diálogos da cultura e da educação ................................................................................... 127
3.2 Diálogos da cultura com os profissionais ......................................................................... 134
3.3 Diálogos com a participação das famílias ........................................................................ 142
4 CONSIDERANDO UNS FINALMENTES... E O BOI POR ONDE ANDA? ............. 147
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 153
ANEXO A − MÚSICA DO BOI-DE-MAMÃO NA SOCIEDADE FOLCLÓRICA BOI-
DE-MAMÃO DO ITACORUBI .......................................................................................... 161
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 − 2º Festival de boi-de-mamão em 1998 ............................................................... 26
FIGURA 2 − 2º Festival de boi-de-mamão em 1998 (continuação) ........................................ 27
FIGURA 3 − Personagens do boi-de-mamão ........................................................................... 30
FIGURA 4 − A brincadeira com os personagens do boi-de-mamão ........................................ 31
FIGURA 5 − Tem boi na rua! .................................................................................................. 52
FIGURA 6 − Mutirão para organização do espaço em 1994/1995 .......................................... 83
FIGURA 7 − Reunião de pais .................................................................................................. 85
FIGURA 8 − Mutirão com as famílias em 2002 ...................................................................... 88
FIGURA 9 − Construção de um brinquedo de parque em 2002 .............................................. 88
FIGURA 10 − Pelo pátio do antigo prédio, em 1994 ............................................................... 90
FIGURA 11 − Visita do seu Campolino, do grupo de boi-de-mamão do Itacorubi, em 1997 . 90
FIGURA 12 − Cantando com a banda Tijuqueira em 1997 ..................................................... 91
FIGURA 13 − Construção dos personagens feita por uma família .......................................... 91
FIGURA 14 − Brincadeira do boi-de-mamão .......................................................................... 93
FIGURA 15 − A brincadeira continua... .................................................................................. 94
FIGURA 16 − Aprendendo a brincar de boi-de-mamão em 2001 ........................................... 95
FIGURA 17 − Brincando no hall em 2002 .............................................................................. 96
FIGURA 18 − Em algum momento... .................................................................................... 101
FIGURA 19 − Festa Junina em 2001 ..................................................................................... 101
FIGURA 20 − Momentos de formação em serviço de 2001 a 2004 ...................................... 103
FIGURA 21 − Ano de 2005, os adultos brincando de boi-de-mamão ................................... 105
FIGURA 22 − Construindo os personagens do boi de mamão em 2001 ............................... 106
FIGURA 23 − Brincando no pátio em 2002 .......................................................................... 106
FIGURA 24 − Visita ao museu na UFSC em 1994 ................................................................ 107
FIGURA 25 − Visita à casa açoriana, no Sambaqui, e ao museu, no Alto Ribeirão, em 1997
................................................................................................................................................ 107
FIGURA 26 − O seu Darci ensinando a brincar de boi “é bem abaixadinho” em junho 2004
................................................................................................................................................ 110
FIGURA 27 − A marcação do ritmo da brincadeira pelos profissionais do NEI em 2001 .... 111
FIGURA 28 − Participação das famílias em momentos de apresentação em 2003 ............... 112
FIGURA 29 − Grupo do bairro, Gente da Terra, compartilhando momentos em 2003 ......... 112
FIGURA 30 − Apresentação do boi-de-mamão em julho de 1997 ........................................ 113
FIGURA 31 − O tom da música do boi-de-mamão embalada pela voz do cantador da barra,
seu Zé Agostinho, em junho de 1998 ..................................................................................... 114
FIGURA 32 − Apresentação no espaço cultural do Angeloni em 2001 ................................ 117
FIGURA 33 − Instituto Estadual de Educação em 2002 ........................................................ 117
FIGURA 34 − Angeloni em 2001 .......................................................................................... 118
FIGURA 35 − NEI em 2007 .................................................................................................. 122
FIGURA 36 − NEI em 2003 .................................................................................................. 122
FIGURA 37 − Visita ao Museu da Santur, em 2001 .............................................................. 125
FIGURA 38 − Dança com as famílias, em 1995 .................................................................... 125
FIGURA 39 − Em 2001 ......................................................................................................... 131
FIGURA 40 − Em 2002 ......................................................................................................... 131
FIGURA 41 − Em 2005 ......................................................................................................... 137
FIGURA 42 − Reunião com as famílias ................................................................................. 144
FIGURA 43 − Construindo a casinha em 1994 ...................................................................... 145
FIGURA 44 − Canteiro de flores em 2001 ............................................................................ 145
FIGURA 45 − Oficina de bonecas de pano em 2002 ............................................................. 145
FIGURA 46 − Casinha de bonecas em 2001 .......................................................................... 145
10
INTRODUÇÃO
Ó dono da casa dá sua licença
pro meu boi dançar na sua presença [...]
A pesquisa busca investigar as relações constitutivas entre uma prática cultural de rua
e uma prática educativa na escola. Tento, a partir da compreensão entre as relações educativas
da brincadeira do boi-de-mamão, delimitar essa manifestação popular dentro do chão da
escola como uma possibilidade de compartilhar essa memória coletiva de forma a qualificar
as interações das crianças com os processos de reprodução/(re)significação da cultura.
A investigação se numa Unidade de Educação Infantil.
1
O recorte temporal da
pesquisa refere-se ao período de 1994 a 2004, no qual ao longo desses 10 anos a brincadeira
do boi-de-mamão intercruzou uma caminhada na qualificação profissional e na organização
de projetos de trabalhos e práticas coletivas da unidade educativa. A pesquisa tem como
intuito dar visibilidade ao trabalho educativo-pedagógico
2
desenvolvido nos espaços públicos
de educação, pois como professora da rede municipal faço parte de um contingente de
professores que se constrói e se constitui na luta diária e na busca de qualificação no
atendimento às crianças e às famílias.
Com relação à preocupação em qualificar as relações estabelecidas pelas crianças nas
interações com a sua comunidade, a escola assume a possibilidade de alargar esses espaços de
vivências. Desta maneira, para Brandão,
3
a escola na comunidade é uma unidade de laços,
eixos, feixes e rede de interações entre pessoas. E essa comunidade tem a prática cultural da
brincadeira do boi-de-mamão em seus moradores; velhos e novos brincantes manifestam uma
preocupação em guardar as memórias dessa brincadeira. Para Paulo Freire,
4
como marcas da
resistência, as famílias vão trazendo arteiramente o boi-de-mamão para esse espaço da
educação infantil.
Estabeleço como objetivo uma compreensão das construções nas vivências entre
adultos e crianças em torno da brincadeira do boi-de-mamão, mediando nesse cotidiano as
1
A unidade educativa da rede municipal atualmente atende a crianças de 1 a 5 anos e 11 meses em período
parcial e integral.
2
Para Machado (1996), significa assumir que a função do atendimento institucional às crianças menores de 6
anos tem um caráter educacional no seu sentido mais amplo, mas tem também um caráter pedagógico, ou seja,
de intencionalidade assumida, planejada, acompanhada, sistematizada pelos profissionais que desta tarefa
participam.
3
BRANDÃO, 2002, p. 206.
4
FREIRE; FAUNDEZ, 2002.
11
relações de participação com a comunidade e de compartilhamento da educação das crianças
nos espaços educativos. E nesse meu processo de reflexão delimito vários questionamentos:
como se constitui esta prática educativa da brincadeira do boi-de-mamão
recriada por outros sujeitos; as crianças e os profissionais refazem um dos
símbolos de identidade cultural dessa comunidade que tanto brincou de boi-de-
mamão;
a participação das famílias, como brincantes na organização da prática
educativa da brincadeira do boi-de-mamão na educação infantil, é condição de
(re)criação de uma prática da cultura popular; e
a escola quando recria essas práticas culturais privatiza essa manifestação com
contornos de educação formal. A organização da prática educativa da
brincadeira do boi-de-mamão nos espaços da escola privatiza um fazer cultural
de uma comunidade.
É nesta comunicação entre resguardar, pertencer e participar que se estabelece uma
relação dialógica com a cultura, nela se constitui o conteúdo de se fazer educação em que se
realizam diálogos com as experiências educativas de outros espaços. Desta forma, na relação
da brincadeira do boi-de-mamão e entre educar e cuidar, buscou-se “reinventar um outro jeito
de se fazer educação”,
5
numa ação e reflexão de aprender a fazer boi-de-mamão pela
constituição de um diálogo com essa prática cultural, por um ato educativo pela experiência
que se acumula na história de cultura popular dessa comunidade.
Assim, esse espaço de educação para a criança assume uma função educativo-
pedagógica, tendo a brincadeira como uma das condições inerentes à criança. Para Brandão,
6
brincar é a experiência cultural mais humanamente gratuita e generosamente inteligente e
criativa. Então, pensar em brincadeira e infância é condição de relacionar essas práticas
humanas e culturais, pois, como prática cultural de uma brincadeira, é que o boi-de-mamão
traz para o espaço da escola o espaço da rua, numa lógica que se configura pelas construções
de símbolos, identificando-os como sujeitos comunitários, segundo o autor, pela ampliação
dos espaços e tempos formais/informais de socialização formadora através de vivências mais
livres e menos curriculares.
5
FANTIN, 2005, p. 180.
6
BRANDÃO, 2002, p. 204.
12
Para Prado,
7
esses espaços devem se apresentar como continuidade e
complementaridade às experiências que as crianças realizam nos seus vários âmbitos da vida,
mediando-as e colocando-as em uma perspectiva educacional, de maneira a estender o direito
de brincar para além dos limites dos direitos das crianças, atingindo os direitos dos próprios
adultos a usufruírem de sua cultura nesses espaços de educação.
Com relação a esses direitos dos adultos pontuados pela autora, na unidade educativa
pesquisada, a perspectiva de se pensar a cultura popular vinculada à organização da
brincadeira para e pelas crianças tem uma motivação muito particular e singular, pois a
brincadeira do boi-de-mamão faz parte da história de seus sujeitos. Assim como inúmeras são
as produções teóricas publicadas que dariam conta do brincar na educação infantil, busco
entender como uma manifestação da cultura popular organiza um coletivo formado por
profissionais e famílias, assegurando alguns diálogos na participação. Esses diálogos são
constituídos das diferenças entre os contextos formais e informais de educação.
E como produção a cultura existe viva, como processo identifica nos contextos as
ações e as práticas humanas. Para Brandão, são “os modos e os produtos do modo como o
povo vive, pensa, simboliza, cria e usa”.
8
Segundo Paulo Freire,
9
a cultura não é a
manifestação artística ou intelectual que se expressa através do pensamento, a cultura se
expressa acima de tudo nos gestos mais simples da vida.
Então, é sob essa perspectiva de aprofundar reflexões e entender esses espaços de
formação dos sujeitos, das crianças e dos profissionais que se consegue dar visibilidade à
constituição da prática cultural dessa comunidade. É interessante perceber uma relação muito
próxima na qual a especificidade da criança pequena sugere e possibilita os diálogos afetivos,
amorosos, os quais promovem uma comunicação e vão propondo as receitas da brincadeira do
boi-de-mamão do tempo dos avôs, dos tios e dos pais.
Essa comunicação facilitada pelos diálogos entre os espaços de educação formais e
informais passa longe da organização dos tempos e dos lugares com uma visão fragmentada
do desenvolvimento infantil, que agrupa e divide as crianças segundo a evolução de suas
aptidões e capacidades cognitivas, de certa maneira naturalizando a infância como um período
inacabado, precário e que deve por meio do acúmulo de experiências caracterizar a vida
adulta, longe da demarcação evolucionista do desenvolvimento cognitivo, que não nos auxilia
7
PRADO, 1999.
8
BRANDÃO, 2002, p. 54.
9
FREIRE; FAUNDEZ, 2002.
13
a lidar com arte, criatividade e ludicidade dos sons, das cores, dos cheiros e das formas das
múltiplas linguagens.
E por quais caminhos uma prática cultural informal adentra no espaço de educação de
crianças, propondo outros caminhos e outras formas de organização das práticas formais,
segundo Brandão,
10
com uma reordenação dos termos da vida cotidiana propostos pela ordem
e pela lógica da cultura dos adultos.
Convivemos na educação das crianças pequenas com uma perspectiva adultocêntrica
que, para Perrotti,
11
é uma visão redutora de infância, quando o adulto se apresenta numa
relação de poder, de controle da infância, concebendo-a apenas como um vir-a-ser, jamais
alguém em transformação constante como se, ao atingir um estágio determinado, o ser
humano estivesse condenado à cristalização.
E nesse processo de (re)significação amarro alguns nós e, a partir do meu fazer
educativo-pedagógico, alinhavo a brincadeira do boi-de-mamão com outros brincantes.
Teóricos como Faria,
12
Freire,
13
Certeau,
14
Canclini,
15
Cascaes,
16
Brandão
17
e tantos outros
me auxiliaram a desfiar alguns nós, atar muitos fios que se encontravam soltos nessa feitura
de produzir com os pedaços de muitos fazeres, das muitas recordações de fazer boi-de-
mamão, a minha colcha de retalhos que me constituí como professora de criança pequena.
Sendo assim, penso ser relevante partilhar com o leitor a trajetória percorrida e tento
estabelecer inúmeros diálogos com a possibilidade de ter construído um outro olhar ao me
constituir brincante de boi-de-mamão.
Como me constituí brincante de boi-de-mamão num espaço de educação
Dessas interrogações em compreender a prática cultural da brincadeira do boi-de-
mamão começo a significar o meu lugar nesse espaço de vivências com as famílias e com as
crianças, percebendo que são fios de histórias que compõem as experiências desses sujeitos. E
10
BRANDÃO, 2002.
11
PERROTTI, 1990.
12
FARIA, 2002, 2005.
13
FREIRE, 1983; FREIRE; FAUNDEZ, 2002; FREIRE; NOGUEIRA, 2005; FREIRE, 2006a, 2006b.
14
CERTEAU, 2003, 2004.
15
CANCLINI, 1983, 2006.
16
CASCAES, 2003.
17
BRANDÃO, 2002.
14
são esses fios que, tramados na educação, proporcionam a relação entre uma prática que se
identifica pela brincadeira resgatando-lhes generosidade ao compartilharem-na.
Essa interação com a comunidade qualifica minha prática educativa, sendo o suficiente
para que possa estabelecer muitos diálogos, primeiro em reconhecer-me como professora nas
ações de encontro a um outro, numa alteridade
18
pelas trocas de continuidade com esse saber
e com a minha história, portanto, faço uma opção de fazer parte de um processo cultural cuja
comunidade escolhi atuar.
Nesse processo de aprender a brincar de boi-de-mamão começo a constituir-me
professora, que lida com arte e criatividade. Marcadamente de formação teórica e acadêmica,
vou lambuzando mãos, roupas, rostos e construo meu espaço de interação através do processo
de formação desses sujeitos, tendo bem claro que eu sou a parte mais tocada nessa
aprendizagem e descobrindo que posso dançar e brincar de boi-de-mamão.
E num processo de extrema amorosidade e coletividade o boi-de-mamão toma forma,
alinhavado e costurado pelas memórias dos adultos da unidade educativa, pois alguns sendo
moradores da comunidade relembram as brincadeiras de infância com o boi-de-mamão. Nesse
processo de inserção da cultura popular na escola, o coletivo de profissionais começa a
partilhar possibilidades e a visibilidade de um fazer coletivo, uma história que pode ser
construída com as mãos de todos os envolvidos: as famílias, os profissionais e principalmente
as crianças.
Com a participação das famílias toma corpo o trabalho pedagógico, tendo as crianças
como referência de qualificação da prática, como centro do nosso palco de apresentações de
um espaço de formação de sujeitos.
Nesse processo de aprender e ensinar, como moradora do interior do Estado sou
alimentada por outras construções simbólicas ao brincar; ser brincante de outras brincadeiras
me possibilita adquirir a recolocação de uma memória cultural, a qual agora assumo como
minha representatividade como sujeito. E ao lidar com arte e criatividade, descubro-me
bonequeira e vou criando e reproduzindo os mais diversos e necessários papéis sociais; e na
melhor acepção do termo, vou costurando possibilidades de alimentar minha prática
educativo-pedagógica com a elaboração e a construção de bonecas de pano, e, assim, sigo
alimentando minhas buscas e reinventando tantos modelos.
Construo minha boneca ao ser professora de educação infantil, com braços e abraços
dessas mãos que me ensinam a enxergar a cultura popular que traduz brincadeiras de pais,
18
BATISTA, 2003.
15
avós e irmãos. E com essa minha boneca da prática educativa que vive e produz consideração
ao brincar de boi-de-mamão, penso em verdades e alegrias ao ter essas histórias na mão. As
vestes dessa boneca são trocadas a cada grupo de crianças e famílias que chegam e abraçam o
boi-de-mamão como se fosse seu. Roupas de formatos e formas vindos de várias partes desta
cidade, deste e de outros Estados, descobrindo que a brincadeira se reveste da singularidade
de cada canto deste lugar.
Então alimentada por uma prática educativa em torno da brincadeira do boi de mamão,
necessito encontrar os diversos fios de maneira a alinhavar um molde de histórias contadas
pelos adultos brincantes, num tecido estampado pelo universo da educação infantil e com
enchimento das contribuições de diversos parceiros.
Com o desejo de ampliar minhas inquietações como profissional, mobilizo-me a vir à
universidade e assumir o lugar de pesquisadora e assim, ao tentar relacionar tantos saberes-
fazeres, sou convidada nesse processo a não me cristalizar pelas fragilidades pontuadas pela
investigação, pelos nós, que, identificados, precisam ser refeitos e atados de outra maneira. Há
necessidade de retornar com outras diferenciações teóricas, de um outro lugar, constituindo-
me pesquisadora de minha prática e da coletividade de que faço parte.
Retorno à unidade de educação em setembro de 2006 na possibilidade de dar os meus
primeiros passos para a qualificação, apresentando minhas intenções com a pesquisa. Foi
muito importante apresentar ao grupo as minhas intenções, pois juntos lembramos de nossas
histórias com o boi-de-mamão, e tento a imparcialidade no papel de observadora dando voz a
tantos parceiros. Num processo de diálogo entre quem tem na memória a brincadeira desde
criança e quem deseja tê-la, estabeleço uma relação com as culturas populares.
Com esse retorno estabeleço uma significação com esses sujeitos por minha
aproximação com o objeto de pesquisa, e esse processo (re)memoriza nossa condição de
sujeitos brincantes, ou seja, somos adultos que brincando trazemos nossa “infantilidade”,
19
talvez perdida, talvez esquecida. Tentando apreender essas diferenças que nos constituem,
estabeleço as diferenças como pesquisadora e com o olhar atento às histórias dou os meus
primeiros passos trilhando um longo caminho.
19
Kohan (2004) sinaliza a infantilidade como a condição de vivermos nossa infância.
16
Trajetória de uma professora pesquisadora: os passos dados da pesquisa
Tarefa difícil (re)visitar a minha prática educativo-pedagógica agora com o
distanciamento como pesquisadora, investigar num espaço onde vivenciei nestes 10 anos uma
prática coletiva em torno de um fazer educativo. Para tanto, necessidade de olhar de novo
bem devagar
20
a constituição dessa prática dentro da unidade educativa e pelas memórias de
outros brincantes para resgatar um fazer educativo-pedagógico que se acredita ser uma
possibilidade de qualificar o atendimento às crianças na educação infantil.
Por se tratar de uma pesquisa que será desenvolvida no cotidiano de um espaço de
educação infantil, devo abordá-la a partir de uma pesquisa qualitativa, pois, como afirma
Ludke,
21
esse tipo de perspectiva metodológica enfatiza mais o processo do que o produto e se
preocupa em retratar uma perspectiva dos participantes.
Do tipo etnográfico, a pesquisa é uma descrição de um sistema de significados
culturais de um determinado grupo. Para Sarmento,
22
a etnografia “visa apreender a vida, tal
qual ela é quotidianamente conduzida, simbolizada e interpretada pelos actores sociais nos
seus contextos de acção”. Para o autor, a investigação etnográfica da escola é uma
interpretação de interpretações.
As entrevistas foram realizadas de janeiro a novembro de 2007 no espaço da unidade
educativa e na comunidade. Dos profissionais entrevistados dispuseram-se os mais antigos da
unidade educativa: a supervisora, duas professoras, três auxiliares de sala e o auxiliar de
serviços gerais. Os entrevistados na maioria foram moradores do bairro, de forma a garantir
suas lembranças de boi-de-mamão na infância. Não delimitei a quantidade de participantes,
pois entendia que, quanto mais informações, mais significativas seriam as recordações. Para
identificá-los na produção escrita, utilizei-me dos personagens que assumem na brincadeira.
O primeiro passo realizado foi o levantamento fotográfico no acervo da unidade
educativa; ali se buscou o registro da trajetória da constituição da brincadeira do boi-de-
mamão. As imagens utilizadas no trabalho são de meu arquivo pessoal e dos arquivos da
unidade educativa. A prática da documentação pelos registros de imagens é recente na história
da educação infantil. Os registros no período de 1994 a 1998 apresentam uma precariedade
pela não disponibilidade da máquina de fotografia, adquirida pela APP somente em 1998.
20
BOSI, 2004, p. 10.
21
LUDKE, 2005.
22
SARMENTO, 2003, p. 153.
17
Esse momento foi extremamente gratificante, pois possibilitou a cada profissional,
23
que encontrou as datas das fotos soltas em álbuns de fotografia, reviver momentos
significativos; datas ora sinalizadas pelo reconhecimento das crianças, ora por profissionais
que haviam trabalhado na unidade educativa em anos anteriores.
Outro passo foi pesquisar nos relatórios dos projetos desenvolvidos pelos professores
que atuaram na unidade no período estabelecido, organizando a brincadeira do boi-de-mamão.
Na seleção dos tradicionais brincantes do Grupo do Itacorubi, encontrei como
Presidente o Senhor Miguel Soares, o "Miguelzinho", referência de quem está na frente do
grupo organizando a brincadeira do boi-de-mamão. Eu o entrevistei numa tarde muito quente
de Verão; ficamos horas conversando, e seu depoimento resgata muitas histórias do grupo,
que por ora se confunde com a sua própria história no boi-de-mamão.
Nas histórias relatadas pelo Senhor Miguel descobri novas fontes de informação, então
agreguei ao núcleo de entrevistados o "seu Lica", Senhor Diomar Wilpert, um dos primeiros
fundadores do grupo. Ele foi o cavalinho na brincadeira do grupo por 10 anos, uma
notoriedade dada pelos moradores. Assim, conversei com ele sobre o boi-de-mamão e o seu
aprendizado, e descobri ser filho de brincante de boi-de-mamão pelos cantos desta cidade.
Ao filho do cantador "seu Estevão", Senhor Valci Estevão Pires, chego por uma
relação muito próxima com sua esposa dona Branca
24
; eu me aproximo para ouvir suas
histórias no grupo, acompanhado e acompanhando o seu pai, “o que fazia folclore, fazia
poesia”.
25
Com as lembranças de dona Branca a pesquisa foi pontuando a necessidade de
encontrar mais relatos de moradores que acompanharam a brincadeira como público, e chego
ao boteco do "seu Cabelo", morador do bairro desde que nasceu, é no seu bar que velhos
moradores, como o "seu Catuto", Senhor Luis Ramos da Silveira, passam suas manhãs, quiçá
lembrando boi-de-mamão. Numa manhã de janeiro, conversei com ele sobre o bairro, seus
antigos moradores, suas antigas casas, e descobri as várias maneiras que, na infância,
brincaram com o boi, seja ele de mamão verde, de pano ou de pasto.
Como público exigente e crítico, encontrei o Senhor Valdir Francelino Vieira,
morador no bairro mais de 50 anos, sentado vendo os carros que passavam na Rodovia SC
23
“Foi um exercício de tamanha emoção nos enxergarmos e dar conta do que vivemos, de que recriamos tantas
mudanças no cotidiano e mergulhadas numa rotina, que muitas vezes nos engole, vamos esquecendo-nos de tudo
que juntas construímos coletivamente” (Marimbondo. Entrevista concedida em out. 2007).
24
Funcionária pública, trabalhamos juntas na creche do bairro. Esta entrevista foi muito interessante, pois contei
com a participação de dona Branca, que, interessada em resgatar suas lembranças, faz um diálogo de muita
emoção ao se lembrar das histórias do cantador de boi-de-mamão, o seu Estevão.
25
Assim foi referenciado na entrevista por seu Valdir.
18
404. Os seus relatos foram depoimentos bastante saudosos. Aposentado e viúvo, relembrou
tantas histórias de boi-de-mamão pelas estradas do bairro.
Como vizinho de porta, Senhor João Candido Machado, "seu Machadinho", é morador
nas proximidades da unidade educativa investigada e organizador da comunidade. Ele se
dispôs com tanta emoção a falar da brincadeira do boi-de-mamão e trouxe para o relato a
emoção de se lembrar do seu pai, cantador famoso de pau-de-fita: "seu Candinho".
Vale ressaltar que as entrevistas de certa forma expuseram muitos sentimentos,
motivados por lembranças saudosas e queridas. Houve lágrimas ao relembrarem as ausências.
Para Brandão, “os entrevistados, ao falarem da comunidade, situam as alternativas de
composição e de variação dos círculos e circuitos da vida cotidiana e da ‘história-ao-longo-de-
uma-vida-na-comunidade’”.
26
Além dos expectadores da brincadeira no bairro, vou à busca de outros pesquisadores
e estudiosos de boi-de-mamão, como o Senhor Gelcy Coelho dos Santos, “o Peninha”, que
qualifica a brincadeira de outro norte. O atual superintendente da Fundação Franklin Cascaes,
Senhor Wilson Rosalino dos Santos, como vereador foi autor da Lei de Incentivo à Cultura no
município. Quanto à organização de políticas educacionais para as Unidades Educativas, fui
recebida pela professora Telma Piacentini numa tarde de semana na praia do Campeche para
qualificar-me com o projeto progressista de educação pensado por essa professora militante
aos habitantes desta cidade, quando secretária de Educação.
A identificação dos moradores e brincantes do grupo de boi-de-mamão do Itacorubi
foi autorizada nominalmente. A construção das entrevistas permeou muitas informações,
sendo caracterizadas como semi-abertas; e as indagações foram conduzidas em muitos
momentos a partir de fatos e motivos ao serem lembrados pelos brincantes, pelos profissionais
e pelas famílias. Desta maneira, para Paulo Freire, "a narrativa é um exercício de memória,
atenta no presente, desafiando as pessoas a se apoderarem do que é oralmente narrado".
27
A seleção das famílias a serem investigadas deu-se pelo critério de terem participado
na unidade educativa nestes 10 anos da organização da brincadeira do boi-de-mamão. Outras
famílias que sinalizaram participar foram resgatadas pela possibilidade de falarem sobre suas
atuações na organização da brincadeira do boi-de-mamão em momentos diferenciados.
As imagens do Grupo de boi-de-mamão do Itacorubi foram retiradas de registros
fotográficos de jornais de circulação municipais e estaduais, recolhidos na Casa da Memória.
Constatou-se que a fotografia era prática pouco habitual; por ser cara a sua aquisição o grupo
26
BRANDÃO, 2002, p. 205, grifos do autor.
27
FREIRE; NOGUEIRA, 2005, p. 28.
19
dispunha de poucos registros fotográficos que pudessem diferenciar dos que consegui
registrar no trabalho.
Esta dissertação tem como organização os seguintes capítulos: o primeiro aborda a
história cultural do bairro Itacorubi, o seu jeito de ser e fazer, de maneira a caracterizar um
espaço da cidade que brincou e ainda brinca com o boi-de-mamão, identificando-se
culturalmente.
O segundo capítulo aborda a estruturação de projetos educativos da Secretaria
Municipal de Educação SME e a unidade de educação infantil pesquisada, que demarcou
parceria com as famílias na elaboração de seu projeto educativo-pedagógico, o seu jeito de
fazer.
O terceiro capítulo trata dos inúmeros diálogos propostos entre a cultura popular, a
educação infantil, a formação dos profissionais e a participação das famílias nesse espaço de
educação, tentando delimitar (re)significações de qualidade no processo de formação das
crianças.
20
1 [...] NO MEU BAIRRO TEM BOI-DE-MAMÃO [...]
28
A BRINCADEIRA
DO BOI-DE-MAMÃO NO BAIRRO ITACORUBI
[...] Ó dono da casa sua licença pro meu
boi dançar na sua presença [...]
O folguedo boi-de-mamão, ou boi de pano, assim chamado em algumas comunidades
da Ilha de Santa Catarina é uma pantomima
29
representada e vivida por personagens reais e
simbólicos. A brincadeira do boi-de-mamão é cultura popular de tradição oral, sendo
manifestada nas organizações festivas e culturais, “[...] e o espírito criativo do nosso povo se
revela [...] na riqueza das versificações alusivas a cada figura que dança. Essa é a cultura
latente em cada um, cuja herança é fruto de caldeamento étnico da formação do nosso
povo”.
30
Sem creditar de onde ou como surgiu
31
, quando a manifestação da brincadeira do boi-
28
Entrevista de uma profissional, dona Maricota.
29
Segundo o Dicionário Houaiss, pantomima era o nome dado, na Roma Antiga, à representação com um
dançarino solista e um coro narrativo. Segundo o Dicionário Aurélio, é a peça que os atores se manifestam só por
gestos, expressões corporais ou fisionômicas, prescindida da palavra e da música: mímica.
30
SOARES, 2002, p. 20.
31
O folguedo do boi-de-mamão, no folclore catarinense, é uma das brincadeiras de maior atração popular. Existe
no folclore brasileiro com os nomes mais diversos: bumba-meu-boi, boi-bumbá, boi-pintadinho, boi-de-reis,
boizinho, boi da cara preta, boi-calemba etc.; entre nós é chamado de boi-de-pano e boi-de-mamão. Antigamente
o folguedo do boi era conhecido como bumba-meu-boi, depois boi-de-pano, mas, com a pressa de se fazer uma
cabeça, foi usado um mamão verde, e quando foi apresentado recebeu o nome de boi-de-mamão. Nome este
mantido até a época atual, onde se vêem bois com cabeças de todos os tipos, até mesmo de boi. Há quem
contrarie essa versão dizendo vir o nome “boi-de-mamão” do boi que mama (SOARES apud GONÇALVES,
2006, p. 46).
Para o museólogo Gelci Coelho dos Santos, o Peninha, estudioso da cultura açoriana na Ilha: "Sabes [...] então
eu tenho uma hipótese como apareceu, [...] que nos meses de dezembro e janeiro, no Norte do Brasil era muito
quente, da festa natalina, e os senhores relaxavam as senzalas, só que as senzalas congregavam africanos de
várias etnias, eles entre si não se entendiam nem na língua, nem nas culturas, mas uma coisa é universal, o culto
ao touro, como símbolo de fertilidade, de vigor, é arcaico essa coisa do touro, nós vamos buscar isso em
arquecivilização, essa relação homem/animal, ele é transformado num deus animal, é cultuado, [...] então é um
culto universal de deificação de um animal, porque ele é suporte, garantia de força de Trabalho, de alimento,
tudo, do boi não se perde nada, tudo é aproveitado em beneficio do homem, enfim então é um animal realmente
sagrado [...] eles aproveitam para fazer folga, acredito eles faziam uma armação e ficavam brincando ali, faziam
as batucadas, essas batucadas atraíam os índios pra ver, e os jesuítas devem ter percebido e transformado aquilo
num auto para catequizar, e a coisa mais importante para a catequização é tentar falar da morte e ressurreição,
que é a grande questão cristã. Então aí eles aproveitam isso e fazem o boi morrer, mas ressuscitar, pra tentar
explicar o processo de ressurreição. Não sabemos, isso não foi registrado, o fato é que se brincava lá e se
espalha, perde o domínio dos jesuítas, cai no gosto popular e se dilui no Norte inteiro; bumba-meu-boi, boi-
bumbá, boi-estrela, boi-pintadinho, boi-calenga e vai e agora como vai aparecer aqui ainda com esse nome
diferente [...].
Então tem folguedo do boi no Brasil inteiro com nomes diferentes, então eu acredito, porque tinha a guerra do
Paraguai muito próxima. O Norte era convocado para a guerra, eu era convocado, mas eu mandava o meu
representante, o meu escravo no meu lugar, com a promessa que dava a alforria quando terminasse a guerra,
21
de-mamão acontece, é envolta numa forma de diálogo que organiza adultos e crianças, pois a
compreensão das brincadeiras, do sentido lúdico de cada povo, depende do modo de
organização em seu tempo e espaço; e a brincadeira do boi-de-mamão é parte desse
imaginário coletivo. Segundo Gonçalves, “o boi-de-mamão deve ser entendido como um
espaço de socialização de saberes, de dores, de alegrias, de resistências, de confiança, de
combinações, de muitos ensaios”.
32
O enredo da brincadeira do boi-de-mamão possui regras explícitas que giram em torno
da vida/morte e ressurreição do boi, num misto de dança e cantoria, caracterizando-se como
jogos interpretativos que estão na representação da cultura popular. “O boi de mamão é uma
ação cultural para além da simples reprodução cultural, é um descobrir, um criar e recriar
jeitos de viver a vida dentro dos bonecos, dentro da cantoria, dentro do jogo dos personagens,
enfim, dentro da brincadeira”.
33
Para o estudioso da cultura popular na Ilha Doralécio Soares, a brincadeira do boi-de-
mamão acontece predominantemente na região litorânea de Santa Catarina, sendo a
coreografia dos grupos muito semelhante, acompanhada pelo mesmo ritmo musical e com
uma criatividade local muito regionalizada na introdução de novos personagens “[...]
praticamente, as mesmas carcaças de pano e massa, com armações de taquara e bambu, os
mesmos dançarinos ágeis, o desfile dos bichos, cuja variação é ilimitada, a morte do boi, sua
ressurreição, cantos alusivos, tudo isso com música alegre, quase sempre em tempo
binário”.
34
vários grupos de boi-de-mamão pela cidade e “A Sociedade Folclórica Boi-de-
mamão de Itacorubi aqui se apresenta com seu chamador Estevão Tomé Filho e seus
companheiros de cantoria, numa seqüência de versos girando em torno do boi”. O Folguedo
do boi-de-mamão, além das figuras – boi, cavalinho, cabra, urubu, vaqueiro, Mateus e Doutor
–, tem a cantoria, com pandeiros, tamborim, sanfona, violão, cantadores e chamador, que
cantam a entrada das figuras, diz o encarte do disco gravado pelo grupo em 1976.
quando terminou a guerra do Paraguai essa gente toda que já se sentia alforriada devia voltar lá pro Norte, vai
voltar pro Norte de a pé, como tu ias voltar? Eles ficaram por aí, depois ganharam na coisa, tentam fazer aquelas
festas, aqueles folguedos que eles tinham hábito lá no Norte, só que aqui não há grupos completos de pessoas,
acaba surgindo uma outra coisa, é nessa outra coisa que aparece, é boi-de-pau, boi-de-palha, boi-de-pano e
depois que ganha esse nome que eu tô discutindo, a possibilidade de ser desde o Maimonedes, o boi-fingido, o
boi-mamado, o boi-de-saião, o boi-de-salão e vai, pode ter até outras explicações" (Peninha. Entrevista
concedida em 17 jul. 2007).
32
GONÇALVES, 2000, p. 10.
33
GONÇALVES, 2000, p. 151
34
MELO FILHO, 1953, p. 80.
22
Manter viva toda a cultura do seu povo, cultura que se apresenta pela manifestação da
brincadeira do boi-de-mamão, que, para o “seu Lica”, Diomar Wilpert, vaqueiro por 10 anos
no Grupo do Itacorubi, no seu tempo a brincadeira acontecia assim: “cantoria é a primeira que
entra, uma volta no salão, na volta sai cantando em roda e a cantoria se instala lá, num
lugar lá e depois ele chama os dois vaqueiros, aí o vaqueiro e o Mateus entram primeiro”:
35
Você e seu companheiro, olelé
36
Já podem se apresentar
Eu chamo pra ele vim, olelé Eu brinco meu boi, ai, á
Olha, lá mestre vaqueiro, olelé Escutai com atenção
Eu chamo pra ele vim, olelé Eu brinco meu boi, ai, á
Me pega essa bicharada, olelé Traz cá pro meio do salão
Eu chamo pra ele vim, olelé Eu brinco meu boi, ai, á
Vamos fazer o desfile, olelé Que é nossa tradição
Eu chamo pra ele vim, olelé Eu brinco meu boi, ai, á
Vamos mostrar pra platéia, olelé O nosso boi de mamão
Eu chamo pra ele vim, olelé Eu brinco meu boi, ai, á
[...] Olha lá mestre vaqueiro, olelé Agora preste atenção
Eu chamo pra ele vim, olelé eu brinco meu boi, ai, á
E pega essa bicharada, olelé Tira fora do salão
Eu chamo pra ele vim, olelé Eu brinco meu boi, ai, ái.
E continua “depois dos vaqueiros estarem dentro, ele chama o boi, tem a
continuação do boi”:
Você e seu companheiro No salão já podem entrar
Olé, olá Nosso boi quer vadiá
E entre logo de repente Olha que eu já te mandei
Olé, olá Nosso boi quer vadiá.
E mais uma vez “terceiro lugar entra o boi, daí ele chama o boi”:
E agora mestre vaqueiro Você me preste atenção
Olé, olá nosso boi quer vadiá
E vai buscar o boi malhado E traga pro meio do salão
35
Seu Lica. Entrevista concedida em 15 jun. 2007.
36
A íntegra da letra da música do boi-de-mamão do Grupo do Itacorubi está anexa.
23
Olé, olá Nosso boi quer vadiá
O nosso boi já chegou Aí no salão pra brincar
Olé, olá Nosso boi quer vadiá
[...] E este boi é muito brabo Vai te botar pelo chão
Olé, olá Nosso boi quer vadiá
Agora mestre vaqueiro Escutai o meu cantar
Olé, olá Nosso boi quer vadiá
[...] E o vaqueiro já caído Nosso boi já se deitou
Olé, olá Nosso boi quer vadiá
Agora mestre Mateus Vai chamar o seu doutor
Olé, olá Nosso boi quer vadiá
[...] E dei-lhe uma injeção E depois uma benzedura
Olé, olá Nosso boi quer vadiá
[...] E vai com eles com urubu E por aqui vamos parar
Olé, olá Nosso boi quer vadiá
[...] E alevanta boi malhado E alevanta devagar
Olé, olá Nosso boi quer vadiá
[...] E olha lá mestre vaqueiro Esta cantiga é pra ti
Olé, olá Nosso boi quer vadiá
[...] E vai laçar o boi malhado Que tá dando muito trabalho
Olé, olá Nosso boi quer vadiá.
O “seu Lica” diz que tem a “continuação da cabrinha, da bernunça, depois os outros
bichos, depois da Maricota”:
Esse meu cavalo Ele já chegou
E o ginete dele Já cumprimentou, ai, ai, ai, ai
Olha lá ginete Escuta o meu cantar
Prepara o teu laço Pra esse boi laçar
Prepara o teu laço Pra esse boi laçar, ai, ai, ai, ai
[...] Olha lá ginete Já chegou a hora
Tás com o boi no laço Vai de porta a fora
Tás com o boi no laço Vai de porta a fora, ai, ai, ai, ai
Chamador: E olha lá mestre vaqueiro
Cantoria: Ei cabra, ei cabra
[...] E pega a cabra não demora: Ei cabra, ei cabra
E pega pro meio do salão: Ei cabra, ei cabra
24
E a cabrinha já chegou: Ei cabra, ei cabra
[...] E dá uma volta, meia volta: Ei cabra, ei cabra
[...] E começou a remoer: Ei cabra, ei cabra
[...] E a folha da bananeira: Ei cabra, ei cabra
Eu vou chamar o meu ginete: Ei cabra, ei cabra
E pra entrar nesse salão: Ei cabra, ei cabra
É pra laçar a minha cabra: Ei cabra, ei cabra
[...] Escutai o meu cantar: Ei cabra, ei cabra
E entre logo no terreiro: Ei cabra, ei cabra
E tua cabra vem laçar: Ei cabra, ei cabra
[...] E já pode se arretirar: Ei cabra, ei cabra.
Urso
Chamador: Olhá lá mestre vaqueiro Escutai o meu cantar
Bota a corrente nos bichos Traga eles pra dançar
Ai, ai, ai Nosso urso já chegou
Ai, ai, ai Nosso urso é dançador
[...] E lá vem o urso branco Aí, urso preto e o Jaraguá
Os macacos e os gorilas No salão para dançar
Ai, ai, ai Nosso urso já chegou Ai, ai, ai Nosso urso é dançador
Agora mestre vaqueiro Olha que eu vou te mandar
E a hora já chegou Já podem se arretirar
Ai, ai, ai Nosso urso já chegou Ai, ai, ai Nosso urso é dançador
Bernúncia
Chamador: E olha lá mestre vaqueiro Escutai o meu cantar
Bota a corrente no bicho Traga ela pra dançar
Cantoria: Olé. Olé, Olé, olá Arreda do caminho Que a bernúncia quer passar
E a bernúncia é bicho brabo Eu lhe digo porque é
Gosta de engolir menino Gosta de engolir mulher
Olé. Olé, Olé, olá Arreda do caminho Que a bernúncia quer passar
E no meio do salão O bicho já se deitou
Agora mestre vaqueiro Vai chamar o seu doutor
Olé. Olé, Olé, olá Arreda do caminho Que a bernúncia quer passar
E agora mestre vaqueiro Olha que eu vou te dizer
Me arruma dois meninos Para a bernúncia comer
Olé. Olé, Olé, olá Arreda do caminho Que a bernúncia quer passar
25
Depois dessa refeição veja o que vai acontecer
No meio desse salão Dois filhotes vão nascer
Olé. Olé, Olé, olá Arreda do caminho Que a bernúncia quer passar
No meio desse salão Mas o bicho já levantou
O bicho já tá curado E agradece o seu doutor
Olé. Olé, Olé, olá Arreda do caminho Que a bernúncia quer passar
E agora mestre vaqueiro E olha que eu vou mandar
Pega a mãe e os filhotes Já podem se arretirar
Olé. Olé, Olé, olá Arreda do caminho Que a bernúncia quer passar
26
FIGURA 1 − 2º Festival de boi-de-mamão em 1998
FONTE: FUNDAÇÃO FRANKLIN CASCAES. Casa da memória. 1998.
Maricota
Chamador: Olha lá mestre vaqueiro Escutai o meu cantar
Prepare estas donzelas (bis) E trague pra dançar
Cantoria: Fizemos um baile bonito fizemos um baile de cota
Está chegando a hora (bis) De dançar a maricota
Maricota chegou No salão para dançar
Agora que eu quero ver (bis) As duas se rebolar
Fizemos um baile bonito Fizemos um baile de cota
27
Está chegando a hora (bis) De dançar a maricota
A maricota mais velha Tem 15 metros de altura
E a filha é mais baixinha (bis) E mais bonita de cintura
Fizemos um baile bonito fizemos um baile de cota
Está chegando a hora (bis) De dançar a maricota
Olha lá mestre vaqueiro Olha que eu vou te avisar
No meio desse terreiro (bis) Faz as duas se abraçar
Fizemos um baile bonito Fizemos um baile de cota
Está chegando a hora (bis) De dançar a maricota
Olha lá mestre vaqueiro Escutai o meu cantar
Me faça uma meia lua (bis) Pra você se arretirar
Fizemos um baile bonito Fizemos um baile de cota
Está chegando a hora (bis) De dançar a maricota
Eu canto pra essa platéia E fica o muito obrigado
Prometemos aqui voltar (bis) Em outra oportunidade
Fizemos um baile bonito Fizemos um baile de cota
Está chegando a hora (bis) De dançar a maricota
Olha lá mestre vaqueiro Escutai o meu cantar
Dá uma volta no salão (bis) E já podem se arretirar
Fizemos um baile bonito Fizemos um baile de cota
Está chegando a hora (bis) De dançar a maricota
As moças já foram embora Acabou-se a folia
Agora fica com o gaiteiro (bis) Junto com a cantoria
FIGURA 2 − 2º Festival de boi-de-mamão em 1998 (continuação)
FONTE: FONTE: FUNDAÇÃO FRANKLIN CASCAES. Casa da memória. 1998.
28
O “seu Lica” completa: “No final entra toda a bicharada, cantoria na frente a bicharada
tudo atrás da cantoria e faz aquela volta no salão que é a despedida [...] e sai todo mundo [...]
e vai tudo atrás do outro”. Segundo Melo Filho, “[...] e se foram eles heróis anônimos do
populário catarinense, fontes de tradição dessas cenas emotivas, que tanto tem da heterogenia
raça brasileira, em busca de uma outra casa amiga que lhes desse um terreiro onde dançar”.
37
A cantoria vem não se sabe de onde. Para Gonçalves,
38
a cantoria é um texto móvel.
Um texto que dialoga com o que acontece na roda de apresentação. No Grupo do Itacorubi
quase todo mundo é a mesma cantoria, seu Estevão cantava uma cantoria, seu Firmino
cantava igual, o mesmo acontecia com o seu Nonoca
39
; é a singularidade de aprender a cantar
ouvindo o outro cantando.
Para dona Branca, que acompanhou por tantos anos a cantoria com o seu Estevão, a
música do boi-de-mamão é a alma da brincadeira:
o meu sogro era assim, se tivesse cantando o boi e chegasse uma autoridade,
ele já colocava bem ali, já falava, botava verso pra uma pessoa que chegasse,
ele botava verso pro cavalinho, ele botava verso pra qualquer coisa,
inventava sim [...].
40
Interessante perceber através da fala dessa entrevistada que é a partir da cantoria que o
cantador centraliza e torna a brincadeira participativa, interagindo com o contexto e as
situações inusitadas e promovendo a interação com o público que assiste e se sente
participando pelas palavras do cantador. Assim, cada apresentação é única e singular.
Segundo Gonçalves,
41
constata-se isso pela fala de outros cantadores de boi-de-mamão, “se
inventava, ou se bem antenado como uma parabólica”, definição dada por seu Benta,
cantador de boi da Barra da Lagoa.
Sobre essa invenção e improvisação de quem observa e acompanha os mais velhos,
seu Valci Tomé relata que seu pai, Senhor Estevão, cantador do Itacorubi,
lhe disse que quando era mais novo já brincava, cantava, ele sempre
cantou, ele dizia que sempre cantou boi-de-mamão, começou novo, então
por isso ele tinha facilidade, aprendeu com as pessoas mais antigas.
42
37
MELO FILHO, 1949, p. 20.
38
GONÇALVES, 2006, p. 123.
39
Fala do Senhor Diomar, seu Lica (Entrevista concedida em 13 abr. 2007).
40
Dona Branca. Entrevista concedida em 25 mar. 2007.
41
GONÇALVES, 2000, p. 70.
42
Seu Valci Tomé. Entrevista concedida em 25 mar. 2007.
29
E desse jeito, cantando e propondo a improvisação em cada canto que se apresenta, o
grupo, entre tantos terreiros, apresenta-se em 28 de setembro de 1977 na cidade de Santo
Ângelo no Rio Grande do Sul. Assim se manifestou a imprensa gaúcha sobre a participação
do boi-de-mamão de Santa Catarina:
em frente às ruínas das missões o grupo catarinense de boi-de-mamão
repetiu o show que foi apresentado no sábado, no ginásio marista: o mais
de 20 pessoas entre adultos e crianças, que cantam, dançam e demonstram a
brincadeira do boi que veio de Florianópolis, trazido pelo conferencista
Doralécio Soares. O espetáculo, que guarda a pureza e o primitivismo de
suas raízes folclóricas, foi o mais pitoresco de todos, pelo clima de humor e
descontração do folguedo, que divertia adultos e até assustava as crianças,
impressionadas com os rodopios do boi, da Maricota, figura de mulher
gigante e sua filha a maricotinha, da bernuncia (o bicho papão), com o
nascimento da bernuncinha [...]. O cavalinho e seu ginete laçando o urubu, o
cachorro, o macaco e o urso são parte das figuras que acompanham a
brincadeira.
43
A estrada percorrida pelo grupo nas várias apresentações pelo Estado e fora dele acaba
por definir um referencial de atuação, preservação e manutenção dessa prática cultural, tendo
uma diferenciação no papel institucionalizado na manutenção da prática da brincadeira do
boi-de-mamão, assumido frente nos órgãos responsáveis pela cultura na cidade.
Trata-se a seguir do entendimento da constituição dessa cultura popular nos espaços
desta cidade, num bairro em que se brincou tanto de boi-de-mamão e cuja prática vive nas
lembranças de velhos e jovens que presenciaram esse fazer cultural.
1.1 A história de um velho boi-de-mamão... Dialogando com os brincantes do
Grupo do Itacorubi
[...] os bois que ainda existem, que
não morreram, mas estão sentindo
dores de partida
44
Por meio das dores da partida de velhos brincantes e das memórias de alguns, tenta-se
registrar a história do Grupo de boi-de-mamão do Itacorubi, que permanece nas lembranças
43
BOLETIM DA COMISSÃO CATARINENSE DE FOLCLORE, Florianópolis, n. 30-31, ano XVI, ago. 1978.
44
Seu Machadinho. Entrevista concedida em 11 jul. 2007.
30
de quem ajudou e ainda ajuda a manter essa brincadeira viva. “Os novos atores falam sempre
velhas linguagens porque não têm ainda uma linguagem própria. Enquanto se formam,
utilizando a herança dos movimentos que os precederam, se enraízam na memória e nos
símbolos do passado”.
45
É possível constatar tal afirmativa no depoimento do ainda brincante Miguel, hoje
presidente da Sede Folclórica do boi-de-mamão do Itacorubi. É uma das pessoas que possuem
a herança da organização da brincadeira, pois sabe de uma história que foi vivida na relação
com a sua idade e a sua inserção na brincadeira. Nascido no bairro lembra ainda menino entre
os seus 11 e 12 anos e sabe de um início de feitura de um boi-de-mamão:
sei dizer que foram 4 pessoas que uniram e resolveram fazer um boi [...].
Provavelmente já existia. Com a inspiração de fora eu acredito que tenha
sido porque na época existia um boi no continente na Ivo Silveira. O boi–de-
mamão que eles viram e resolveram fazer o Sr. Campolino, o Júlio do
João Paulo que tinha um caminhão, o falecido Senhor Zizo e o Sr. Agapito
(ainda vivo). O boi foi feito na casa do Seu Agapito, eu lembro que era
criança, atravessava o cafezeiro e ia até lá raspar o bambu, na época era feito
de taquaras. A armação inicial era arco de bambu, depois de pano, cabeça de
boi mesmo e com couro do boi ficou muito pesado. o Seu Campolino,
que era mestre em trabalhar com o alumínio, fez os bichos de alumínio,
armação de alumínio com arrebite. Hoje ainda são os mesmos personagens.
46
FIGURA 3 − Personagens do boi-de-mamão
FONTE: CADERNOS DA CULTURA CATARINENSE, Florianópolis, ano 1, abr./jun. 1985.
45
MELUCCI, 2001, p. 82.
46
Seu Miguel. Entrevista concedida em 2 fev. 2007.
31
FIGURA 4 − A brincadeira com os personagens do boi-de-mamão
FONTE: BOLETIM DA COMISSÃO CATARINENSE DE FOLCLORE, Florianópolis, ano XXX,
dez. 1994.
O entrevistado alega que a data registrada, quando da criação da Sociedade Folclórica,
não corresponde à da origem da brincadeira do boi-de-mamão no bairro. Diz que hoje conta
com 51 anos de 1956), pelas suas lembranças em torno de 1967 ou 1968 é que começou a
brincar, são 40 anos fazendo e brincando de boi-de-mamão:
quando surgiu o estatuto como o boi tem tantos anos, mas não tem; eu
digo que aquilo ali não é, foi quando o Sr. Firmino regularizou, o boi já
existia antes, baseei muito na minha idade. O mais velho sou eu; sou a
mais velho que o Sr. Firmino na brincadeira do boi. Participei desde o início,
sou o mais velho.
47
O “seu Miguel” lembra que “a brincadeira do boi antigamente era na estrada de chão,
era um carro por hora que passava, quando passava e o boi dançava na frente das casas”.
48
Esse uso da prática cultural e a criação de um estilo definem essa maneira de fazer, e esse
espaço de vivências é alterado pelas práticas, transformando-se em manifestações de um fazer
cultural. Dessa forma, eles não só brincam, mas fazem boi-de-mamão:
a gente começou ensaiando na casa do Sr. Campolino, e saía na rua
brincando, passava um balainho, o pessoal colocava um dinheirinho, botava
47
Seu Miguel. Entrevista concedida em 2 fev. 2007.
48
Seu Miguel. Entrevista concedida em 2 fev. 2007.
32
uma bebida. Depois pegava o caminhão desse Júlio e ia para o Saco Grande,
Santo Antonio [...]. A intenção de divertir, ahoje essa é a intenção, todas
as apresentações eram na rua, na estrada com o boi na mão, na época se
encontrava pela estrada com o boi na mão, ia correndo até brincando entre as
casas, tipo a procissão do Espírito Santo [...]. A procissão do santinho
começava com 10 pessoas daqui a pouco tinha 20, 30, acompanhavam até a
igreja depois de volta todo mundo acompanhava [...].
49
Para seu Valdir, morador do bairro há 50 anos e público atuante, pois acompanhava as
andanças do boi-de-mamão como membro da Sede Folclórica e era vizinho de rua e
observador criterioso:
O boi brincava de casa em casa, igual um terno de reis de casa em casa.
Depois veio um tipo de egoísmo, trabalhava por dinheiro, era por
amizade, tinha dinheiro. Tu ia na minha casa e eu dava um litro de cachaça
para eles tomar, eu dava café, eu dava R$ 20,00 reais, outro dava R$ 5,00
reais, conforme a pessoa, não tinha conta certa, então aquilo ali isso era uma
coisa que a pessoa fazia, um prazer, para dar. Então cantava, cantava, fazia
consertada, tomava aquela consertada,
50
tomava café, dançava, depois ia pra
outra casa até o amanhecia o dia, quando chegavam 10 horas, 11 horas, com
o sol alto e cada um agarrava suas casas e à noite, voltava pra baixo, pra
cima.
51
Com a brincadeira do boi-de-mamão, ia-se para cima ou para baixo, assim seu Valdir
referiu-se ao caminho percorrido nesse trânsito das festividades, no prazer de dar e receber a
brincadeira no espaço de sua casa “então cantava, cantava”. Para Brandão, a festa possibilita
esse fazer deslocar entre as pessoas e pelos lugares que a própria festa simbolicamente
reescreve e redefine: sujeitos, cerimônias e símbolos.
52
O boi saía, e todo mundo ia atrás fazendo a festa, “ela quer ser a memória, apenas
brincando com os sentidos, o sentido e o sentimento”.
53
Afirma seu Miguel que:
Ninguém ganhava nada na época. Cantava mais para se divertir, ganhava
muita bebida, difícil o dono da casa que não desse um litro de alguma coisa.
A brincadeira acontecia na rua, de casa em casa, com os bichos entrando e
saindo das casas por troca de trocado e bebida.
54
Pelo depoimento desse entrevistado, sua fala revela a particularidade da brincadeira
quando realizada para congregar, agradar e promover a interação entre os moradores do
49
Seu Miguel. Entrevista concedida em 2 fev. 2007.
50
Refere-se ao fato de alimentar-se para continuar a brincadeira.
51
Seu Valdir. Entrevista concedida em 15 jun. 2007.
52
BRANDÃO, 1984, p. 13.
53
BRANDÃO, 1984, p. 17.
54
Seu Miguel. Entrevista concedida em 2 fev. 2007.
33
bairro. A participação era o melhor do que se congregava indo de casa em casa, cuja
sinalização para a entrada do espaço doméstico lhe garantia integração.
Outro brincante, Senhor Valci, filho do cantador Estevão, que brincou no boi desde os
6 ou 7anos, ia com o pai. Ele socializou sua experiência informando que:
[...] às vezes na época tinha a brincadeira do pau de fita (lá do Saco Grande)
e às vezes saíam juntos os dois para brincar, tinha uma casa brincava com
pau de fita, na outra brincava com o boi, tem gente que gostava mais e os
dois brincavam e a gente brincava até altas horas da madrugada.
55
É interessante perceber que a fala desse brincante revela um tempo e um espaço
demarcados pela possibilidade de relacionarem-se em espaços comunitários em segurança,
todavia, com o processo de urbanização, reapropriam-se e singularizam-se as ações e alteram-
se as relações sociais, as interações, os costumes e a rotinas.
Para seu Lica, “naquele tempo brincava assim de porta em porta, o nosso aqui
brincava muito tempo, mas depois passaram a fazer apresentação. Aqui a gente ganhava
pouco, como se diz para manter a brincadeira e tudo limpinho, para fazer alguma coisa e
outra”.
56
Nesse depoimento pode-se perceber uma dinâmica que perpassa de uma vivência
anterior, de um passado que interage com um presente, que se ausenta de uma dinâmica
elaborada com muita participação da brincadeira pela fala desse antigo brincante, a
articulação de sua compreensão pela falta da brincadeira pelas estradas e pelas ruas no bairro.
Dessas histórias em que o boi-de-mamão percorria as ruas e as casas do bairro, seu
Miguel relembra que “começamos a viajar e o boi deixou de ser estradeiro” (refere-se ao
caminho percorrido pelas estradas ainda não asfaltadas do bairro). Para “seu Lica", a
brincadeira do boi modificou-se não somente por não fazer apresentação,
[..] mas porque aí era muito cansativo. O sujeito brincava a noite toda, até de
manhã, era cansativo. Não fazia uma apresentação só, nós amanhecíamos até
3 ou 4 horas da madrugada, fazendo apresentação. E era menos bicho
naquele tempo, era o boi, a bernunça, a cabrinha e a Maricota, depois já
surgiu o urso, surgiu o macaco, a Maricota pequena, a cabra pequena, nada
disso não tinha [...] quer dizer que era menos espaço de brincadeira, hoje é
mais, o sujeito brinca mais. Naquele tempo só que a gente amanhecia,
começava a tocar e ia até de manhã.
57
55
Seu Valci. Entrevista concedida em 25 mar. 2007.
56
Seu Lica. Entrevista concedida em 13 abr. 2007.
57
Seu Lica. Entrevista concedida em 13 abr. 2007.
34
Amanhecendo e tocando até de manhã, o grupo ia tomando os espaços do bairro e das
imediações de bairros vizinhos. Ao assistir à apresentação do grupo no bairro Saco Grande, de
acordo com o seu Valdir, o então presidente da Comissão Catarinense do Folclore, Doralécio
Soares, fez a proposta ao grupo de tornar pública a brincadeira do boi-de-mamão. Assim, o
Senhor Firmino assume a Presidência da Sociedade Folclórica do boi-de-mamão, fundada em
31 de dezembro de 1972.
Relata o seu Miguel:
A partir desta data o boi-de-mamão passa a viajar muito dentro e fora do
Estado, se apresentando muito pouco na cidade. A gente ia representando
pela Fundação Florianópolis e representando o Estado fora. Hoje parou,
faz tempo que está parado, a última foi na Barra da Lagoa, num particular.
58
A esse período em particular refere-se uma política adotada pelos órgãos estatais de
um certo protecionismo quanto à manutenção e à divulgação da brincadeira do boi-de-mamão,
tanto no Estado quanto pela cidade. A denominação de um caráter jurídico aos centros
folclóricos
59
facilitaria a manutenção dos grupos pelo recebimento de verbas públicas. O
propósito de preservar a manifestação popular do boi-de-mamão possivelmente contribuiu
para que a divulgação, socialização e preservação da brincadeira fosse tão presente na
memória de uma cidade.
A atuação do grupo na comunidade assume uma diferenciação quanto ao papel
institucionalizado na manutenção da prática da brincadeira do boi-de-mamão, assumido diante
dos órgãos responsáveis pela cultura. De certa maneira, representou o aprisionamento da
manifestação popular pelas ruas do bairro, não diferente do cenário de cerceamento de
práticas populares com a Ditadura Militar.
Para o pesquisador Osmar Fávero, ao analisar as produções teóricas em torno da
organização do movimento das culturas populares no Brasil dos anos 60,
Surgiu fazendo a crítica não apenas da maneira de como se pensava
"folclórica", "ingênua" a cultura do povo brasileiro, mas também e
principalmente aos usos políticos de dominação e alienação das classes
populares, através de símbolos e dos aparelhos de produção e reprodução de
uma "cultura brasileira", ela mesma colonizada, depois internamente
colonialista.
60
58
Seu Miguel. Entrevista concedida em 2 fev. 2007.
59
Gonçalves sinaliza que são assumidos pelos órgãos promotores da cultura alguns grupos na cidade, sendo eles:
o Grupo de Catumbi de Capitão Amato, o Grupo de Pau-de-Fitas do Monte Verde e o Grupo de Boi-de-Mamão
do Itacorubi (2006, p. 67).
60
FÁVERO, 2001, p. 8, grifos do autor.
35
A utilização de uma certa referência cultural assumida pelos órgãos promotores de
cultura evidencia claramente uma visão congelada da prática de manifestação popular,
intensificada pela eleição de grupos representativos da produção cultural, revelando uma
desconsideração da diversidade de tais manifestações pelos grupos da cidade. Assim, a
utilização de um certo entendimento do que seja popular em meados dos anos 70 tem, para
os antigos brincantes do boi-de-mamão, uma memória presente a partir de uma política
cultural assumida pelos órgãos responsáveis na organização da manifestação popular e pelo
movimento folclórico iniciado nos anos 40, cujo objetivo era de preservar as tradições
culturais do povo, passando obrigatoriamente pelo resgate das tradições populares e
oferecendo a essa identidade uma memória a ser compartilhada.
Então fazer parte de um certo referencial cultural da cidade articula-se com uma
política de preservação de uma cultura nacional que, congelada e estanque, descaracteriza
uma prática de rua, uma prática da possibilidade, da participação, e de certa forma passa a ser
um espetáculo a ser somente visto, pois esse domínio sobre o popular absorve, retraduz e
invade domínios e formas de expressão cultural.
As discussões acerca dos estudos folclóricos a partir dessa data influenciaram muito a
caracterização cultural da cidade
61
, de certa maneira estabeleceram uma outra organização e a
manutenção do grupo de boi-de-mamão do Itacorubi, pois, associado a uma manutenção
financeira assumida pelos órgãos estatais, acaba por redefinir outra atuação no seu fazer
cultural, a sua institucionalização, segundo Ayala,
Uma manifestação cultural deixa de ser popular, tornando institucional,
mesmo que tenha sido anteriormente muito difundida em segmentos
subalternos da população, quando seus produtores passam a depender, para a
sua realização, de uma entidade pública ou privada [...] perdendo seus
espaços próprios de apresentação.
62
A dependência gerada pelo grupo na subvenção estatal para a realização da brincadeira
do boi-de-mamão acabou por gerar contradições entre o real significado e o sentido na
brincadeira e o rumo que o grupo tomou. As aparições cada vez mais escassas no bairro
deram-lhe notoriedade como representação de uma manifestação cultural de uma cidade,
perdendo-se espaço próprio na sua comunidade, no seu jeito estradeiro.
São várias as situações relatadas pelos brincantes em torno de cobrir financeiramente a
brincadeira. Os entrevistados relacionam uma proximidade com o Sr. Doralécio Soares, como
61
Sobre a influência desses intelectuais na organização da cultura, ver SAYÃO, 2004.
62
AYALA, 2006, p. 63.
36
secretário de Cultura, quem organizava o grupo, agendava as viagens e muitas vezes os
acompanhava. Na fala do “seu Lica” revela-se que o grupo passou a fazer apresentação,
uma festa exibida.
63
Para o “seu Miguel”, ao deixar de ser estradeiro, o grupo perde o contato
com a comunidade, com o seu público, e passa a “representar o Estado”, de certa forma,
representa uma homogeneidade num fazer cultural, desconsiderando outras manifestações
culturais como a ratoeira e o pau-de-fita, presentes no bairro.
perdas de espaços públicos de atuação pelo Grupo do Itacorubi, referenciadas por
Brandão,
64
quando afirma que esses instrumentos de expressão simbólica de representação da
vida e do significado na comunicação de valores podem ser usados aqui pelos organizadores
da cultura como subordinação do imaginário das classes populares à classe dominante, pela
manutenção financeira.
Ainda Brandão, com relação às estruturas de relações que constituem a reprodução de
dominação sobre as culturas populares, afirma:
Ao instrumentalizá-la para proveito próprio, ele determina o
empobrecimento do sentido e das significações do "saber da cultura", de que
politicamente se apropria para realizá-la como um artifício de "ilusão social"
e como uma estrutura de relações sociais sob o seu controle.
65
Assim quando os responsáveis pela organização da cultura tomam a prática da cultura
do boi-de-mamão, apropriando-se da produção e tornando-se elementos simbólicos de uma
reprodução de desigualdade, privilegiam somente um grupo e desprivilegiam as outras
práticas culturais.
Esse rumo assumido pelo grupo revela os rumos da organização da cultura na cidade,
os quais são relatados a seguir.
63
BOSI, 2004, p. 10.
64
BRANDÃO, 2002.
65
BRANDÃO, 2002, p. 45, grifos do autor.
37
1.2 Entre Folclore e cultura popular
[...] Interessante que a gente promova, desenvolva, mantenha sempre vivo
todo folclórico, toda cultura do seu povo.
66
A brincadeira do boi-de-mamão necessitou buscar outros terreiros, como espaços de
organização da brincadeira, para alegrar como aquele que segue a cantoria e se organiza para
outras apresentações de forma a “manter o folclórico, a cultura de seu povo”. Se assim é
entendida como manifestação folclórica pelos moradores que assistem e que participam da
brincadeira, essa conceituação pode ter sido gerada pelos interesses em torno da generalização
do fazer cultural de um povo, necessariamente divulgado pelos organizadores da cultura.
Segundo Brandão,
67
esses moradores sentem o que vive, mas nem sempre compreendem ou
sabem o sentido social do que sentem. Segundo Gelci José Coelho, estudioso da cultura
açoriana,
Eles já aprenderam essa palavra com eruditos, com intelectuais e ia ao
encontre deles e fala essa palavra mágica, é lindo dizer folclore, para eles é
lindo. E eles não se sentem cultura, aquilo ali é expressão, é manifestação
cultural, é manifestação deles, espontânea. Por isso por ser espontânea a
gente classifica como folclore, mas na verdade são expressões culturais que
se manifestavam ao longo do tempo, existe um calendário, eles não
brincavam isso a qualquer momento do ano.
68
Se não compreendem o sentido social do seu fazer e se aprenderam com os intelectuais
essa palavra mágica, como alega esse pesquisador, pode-se perceber as contradições travadas
no interior de uma discussão que ainda se revela entre os folcloristas e os pesquisadores de
cultura popular. Florestan Fernandes
69
sinaliza as relações estabelecidas pelos folcloristas em
não analisarem os fatos folclóricos numa ordem de fenômenos mais ampla, a cultura,
resultando numa tentativa de unificação e de sistematização dos conhecimentos que veio a
receber o nome de Folclore, englobando todos aqueles elementos, como valores, técnicas e
formas de conduta, incompatíveis com o estado de cultura geral.
66
Seu Machadinho. Entrevista concedida em 11 jul. 2007.
67
BRANDÃO, 2002.
68
Gelci José Coelho. Entrevista concedida em 17 jul. 2007.
69
FERNANDES, 2003.
38
Para Câmara Cascudo, importante pesquisador do Folclore brasileiro, a cultura é
identificada como uma espécie de sobrevivência herdada do Brasil tradicional. Assim, na
delimitação dos estudos folclóricos entende o Folclore como uma cultura do povo, sendo uma
cultura viva, útil, diária, natural, e preciso que o motivo, fato, ato, ação, seja antigo na
memória do povo; anônimo em sua autoria; divulgado em seu conhecimento, e persistente nos
repertórios orais ou no hábito normal".
70
No meandro das divergências teóricas em relação aos métodos e às concepções
utilizados pelos folcloristas, o sociólogo Florestan Fernandes destacou que
para os folcloristas algumas camadas da população não acompanhavam o
desenvolvimento geral da cultura, conservando suas antigas formas de ser,
pensar e agir tradicionais (o folclore definido como "saber popular",
abrangendo as sobrevivências), e essas camadas eram constituídas, em países
civilizados, pelos "meios populares", pelo "povo".
71
A compreensão da cultura popular como sinônimo de cultura produzida pelas classes
de baixa renda gerou polêmica, e existem inúmeras produções teóricas que sinalizam essas
divergências. Nesta produção serão pontuadas apenas as conceituações mais próximas da
Comissão Catarinense de Folclore, pois um de seus membros, Doralécio Soares, é figura
decisiva na organização do Grupo de boi-de-mamão do Itacorubi e na divulgação da
brincadeira na cidade e no Estado.
Em 1948, com a criação da Comissão Nacional de Folclore pode-se dizer que se
iniciam as tentativas do estudo organizado do Folclore brasileiro em quase todas as regiões do
País. Assim, as comissões estaduais, fazendo parte do Conselho Nacional de Folclore,
assumem as diretrizes assinaladas na busca das identidades pelo resgate das tradições
populares, tendo a necessidade de coletar o maior número possível de manifestações
populares.
Os estudos folclóricos fizeram parte de uma política nacional de elaboração e da
caracterização de uma identidade nacional, haja vista o crescente processo de modernização
do País intensificado por uma política desenvolvimentista e de um acelerado processo de
modificações sociais pela produção. Para os folcloristas, havia a necessidade de resguardar e
se conservar o tradicional nessas práticas populares. Assim, o popular é o que se refere à
tradição, como depositário de simples coleções de curiosidades, conjunto de objetos
cristalizados, descontextualizando as relações sociais estabelecidas com quem as produz.
70
CASCUDO, 1972, p. 16.
71
FERNANDES, 2003, p. 55, grifos do autor.
39
A preocupação com a identidade nacional passa a ser o fio condutor na elaboração de
uma cultura brasileira como proposta de estabelecer uma tradição nacional, sendo essa
tradição o resultado de diferenças entre as contribuições culturais de outras origens. "O
português, o negro e o índio, com seus cruzamentos ou não, dão-nos o substancial do folclore
brasileiro; significam as próprias origens do nosso folclore".
72
Neste sentido, para esses estudiosos, o Folclore e a tradição relacionavam-se, pois,
tendo o Brasil uma formação étnica recente, era necessário preservar o que se considerava de
tradicional antes do processo de miscigenação cultural, a partir das raças que formavam o
cenário nacional, esse caldeamento cultural. Para Brandão,
73
“como um amálgama pacífico da
mistura das três raças”.
Assim, para os folcloristas, a cultura ainda estava em processo de formação e por isso
a preocupação com a localização e a classificação de tais manifestações, como consta na Carta
do Folclore Brasileiro, resultado do I Congresso Brasileiro de Folclore em 1951, realizado no
Rio de Janeiro.
Constituem o fato folclórico as maneiras de pensar, sentir e agir de um povo
preservadas pela tradição popular [...]. São também reconhecidas como
idôneas as observações levadas a efeito sobre a realidade folclórica, sem o
fundamento tradicional, bastando que sejam respeitadas as características de
fato de aceitação coletiva, anônima ou não, e essencialmente popular.
74
No Estado, não diferente do que pontuava a Comissão Nacional de Folclore, os
folcloristas que compunham a Comissão Catarinense eram altos funcionários do governo e
tinham uma preocupação política com a questão da identidade nacional, saindo para
colecionar essas manifestações populares. Para Sayão,
75
como diferenciar o folclore
discursiva e sistematicamente produzido pela Comissão Catarinense de Folclore de uma
cultura elaborada por pessoas, em muitos casos, que cultivam, através da oralidade, uma
cultura própria?
Os membros dessa comissão são expoentes dentro da organização da cultura
catarinense, contribuindo para o atual quadro cultural, a partir de suas compreensões políticas,
sociais e culturais das manifestações populares. Desta forma Osvaldo Rodrigues Cabral em
1954 define: “o folclore é um ramo da Antropologia que estuda todas as manifestações e
72
GEVAERD, 1978, p. 40.
73
BRANDÃO, 2002, p. 47.
74
BOLETIM DA COMISSÃO CATARINENSE DE FOLCLORE. Carta do Folclore Brasileiro. Florianópolis,
ano III, n. 9-10, p. 55-56, set. /dez. 1951.
75
SAYÃO, 2004.
40
aplicações coletivas de cultura vulgar, mantida geralmente pela tradição paralelamente as
oriundas ao saber erudito, entre grupos de cultura superior quaisquer que sejam as
modalidades sob as quais se apresentem".
76
Para o pesquisador Nereu do Vale Pereira,
77
o Folclore é o conjunto de fatos culturais
gerados pela criatividade popular. Como fruto da cultura espontânea, o Folclore é de natureza
dinâmica e, paradoxalmente, tradicional e de aceitação coletiva.
E para o pesquisador Doralécio Soares,
78
o Folclore é manifestação de cultura popular,
a sua maneira de sentir, pensar e agir, dentro deste princípio, manifesta-se à dinâmica do
Folclore, com o espírito de criatividade do povo sempre em ação, o costume vai se
transformando diante da evolução natural das coisas.
É interessante perceber, a partir dos entendimentos desses pesquisadores, o sentido de
conservação e caracterização de que o movimento folclórico faz uso como mantenedor da
tradição, partindo de um enfoque que desconsidera essas manifestações como parte de um
contexto sociocultural historicamente determinado, "contra os usos intelectuais vigentes que
tradicionalmente representam a cultura popular às tradições do povo, um folclore que não
resulta das e nem espelha as relações de poder entre os seus diferentes tipos de produtores".
79
Assim, esse movimento folclórico passa a compor um quadro do que seria a manifestação
popular da cultura.
Para esse mesmo autor, essas manifestações culturais, esse Folclore é sinônimo de
cultura popular nos discursos oficiais, diferenciando-se da representação simbólica do
cotidiano das pessoas. A cultura “consiste tanto de valores e imaginários que representam o
patrimônio espiritual de um povo, quanto das negociações cotidianas através das quais cada
um de nós e todos nós tornamos a vida social possível e significativa".
80
Com a iniciativa privada da organização da cultura pela Comissão Catarinense através
de recursos públicos para manutenção de tais grupos, pode-se perceber que a brincadeira vai
deixando de ser organizada pelos grupos ao longo do litoral. O Grupo do Itacorubi ao ser
patrocinado passa por uma imensa modificação nesse jeito de ser estradeiro, uma contradição
entre morrer no bairro e viver em outros espaços, num movimento de vida e morte na
brincadeira do boi.
76
CABRAL apud GEVAERD, 1978, p. 39.
77
PEREIRA, 1980.
78
SOARES, 2002.
79
BRANDÃO, 2002, p. 47.
80
BRANDÃO, 2002, p. 24.
41
Os espaços de sobrevivência dessas representações demarcadas por esse jeito de fazer
cultura popular assumem, segundo Canclini,
81
uma especificidade que reside no fato de que o
povo produz no trabalho e na vida formas específicas de representação, reprodução e
reelaboração simbólica de suas relações sociais.
Para a pesquisadora Marilena Chauí,
82
a forma de apropriação desigual dos bens
econômicos e culturais é percebida quando da manifestação da diferença, oposição e luta de
classes, portanto, em formas diferenciadas de representar e interpretar a relação com a
natureza e com os homens. Pois esse caráter de sinônimo da cultura popular associado ao
tradicional, arcaico, já traz a definição na oposição de outra cultura, a da elite.
A transformação dos meios e os modos de produção de certa forma singularizam o
modo de organização das pessoas em viver e sentir essas transformações, sendo elas
associadas à desigualdade entre as classes sociais, unindo o conceito de cultura popular como
representação simbólica na organização das camadas populares, como espaços de
sobrevivência.
É nesta perspectiva das dimensões políticas que as constantes transformações
geográficas e demográficas acabam por aproximar ricos e pobres, nesta inter-relação entre as
produções simbólicas, a cultura letrada, por assim dizer, apropria-se da cultura da classe
popular e as relações econômicas ditadas pelo mercado de consumo aproximam os pobres da
cultura da elite. Essa aproximação, essa interação cultural, gerou uma apropriação da cultura
popular de forma a descaracterizá-la como um fazer coletivo, como representação dessa
classe, estabelecendo de certa forma um determinado controle. A interação cultural não
sugere autonomia e sim uma subordinação das culturas populares a políticas culturais de
manutenção, seja de espaços, seja de políticas públicas.
Esse controle pode ser efetuado quando do uso e do financiamento de políticas
públicas, ou da falta delas, determinando de certa maneira a forma como essas práticas
culturais sobrevivem nas comunidades. Uma política cultural estatal serve de manutenção
desse controle como prática reguladora de um sistema, cujas formas se empenham em
direcionar a partir de uma visão romântica. Defende-se que devemos retomar essa visão
romantizada dos saberes e fazeres produzidos pelas culturas populares, mas não imaculando-
os, pois sugerem uma estagnação no tempo e na forma da organização da brincadeira.
Sobre essa visão romantizada da cultura popular, para o pesquisador da brincadeira do
boi-de-mamão nos cantos desta cidade, Reinaldo Gonçalves, destaca que: “O fazer das
81
CANCLINI, 1983.
82
CHAUÍ, 1990.
42
culturas populares nos impõe perguntas no sentido de como fazer para que elas ainda
permaneçam de pé, atuantes, como forma de luta, ao lado de correntes que vislumbram as
culturas populares como ‘cândidas, originais’ alguns ainda ousam chamá-las de
‘autênticas’".
83
Para esse autor, a brincadeira passa a ser uma possibilidade de maior representação
política e de atuação mais significativa, mas essa visão romantizada acaba anestesiando nesses
espaços esses sujeitos, como sujeitos públicos de direitos. Pois, como sujeitos públicos,
reivindicam esse fazer cultural como espaços de representatividade simbólica de uma história
construída no coletivo por um grupo de pessoas que, de certa forma avalizadas por um
público, asseguram a reflexão, a escolha, a criação de elementos que signifiquem sua atuação
na comunidade.
Além de uma visão romantizada da produção cultural, crê-se que as políticas de
apadrinhamento em relação ao Grupo do Itacorubi estabeleceram uma estagnação de um fazer
pelas ruas, pelas estradas do bairro. Hoje, com a perda de uma situação de protecionismo, o
Grupo percebe várias relações de impossibilidade em sair para brincar com os bichos, constrói
um outro olhar sobre a sua atuação e propõe, do jeito que dá, que a brincadeira esteja pelos
cantos da comunidade, pois desta maneira resiste convivendo com um cotidiano que produz
outros significados à sua persistência.
Esse olhar diferenciado que o grupo consegue perceber nos movimentos de dialogar
com o seu público representa uma subjetividade ao entreter seus vizinhos, amigos ou parentes.
Pois, na brincadeira é esse público que reage às inovações e de certa forma possibilita e
empurra o grupo para frente, vivo e brincando. A brincadeira do boi-de-mamão representa a
garantia de uma simbologia que os caracteriza como sujeitos públicos que preservam uma
criatividade popular.
E essa garantia da cultura popular de manter o boi-de-mamão vivo pela comunidade é
pontuada por Brandão, não como um estado pronto, acabado, mas sim como
uma ativa estrutura social de produção simbólica que a cada dia de muitos
modos se reproduz a sei mesma, criando e recriando. Preservando e
modificando, fazendo circular entre uns e outros, através de redes de pessoas
e grupos e instituições populares, tudo aquilo que pessoas em situações reais,
em situações concretas, fazem e refazem através de seus trabalhos
culturais.
84
83
GONÇALVES, 2006, p. 21, grifos do autor.
84
BRANDÃO, 2002, p. 93.
43
Essa criatividade na prática cultural dos grupos de boi-de-mamão, representados numa
pluralidade que produz a heterogeneidade, apesar da similaridade na música, no enredo da
brincadeira e nos personagens, é um fazer diferenciado sinalizado por um gesto, um
personagem, um outro jeito identificado pelos brincantes e pelo público. A cultura é plural,
pela complexidade e pela diversidade das manifestações culturais populares, sendo impossível
poder analisá-la em todas as suas formas e dinâmicas. Para Marilena Chauí,
se mantivermos viva a pluralidade permaneceremos abertos a uma criação
que é sempre múltipla, solo de qualquer proposta política que se pretenda
democrática. Enfim, graças à percepção das diferenças poderemos encontrar
o lugar onde alguma convergência se tornaria possível, isto é na dimensão da
política.
85
É a partir dessa diferenciação entre uma dimensão política e o fazer da cultura popular
que são estabelecidas as representações da comunidade do bairro do Itacorubi. Para
Canclini,
86
a forma com que a prática de uma cultura popular estabelece entre a produção e a
sua distribuição diferencia uma prática associada ao consumo, produzindo um objeto
descartado após seu prazo de validade. Para esse autor, o popular não se encontra nos objetos,
mas nas práticas sociais que lhes conformam. Tornado objeto, a brincadeira do boi-de-mamão
do Grupo do Itacorubi talvez se justifique pela fragilidade com que o grupo atualmente se
encontra, mas é na certeza de uma prática cultural iniciada pelas ruas do bairro que os
moradores reivindicam-lhe outra forma de atuação. E a criatividade que lhe assegura na
brincadeira irá indicar outras possibilidades, outras saídas para continuar brincando.
De acordo com uma prática identificada nas ações, a saudade em ver boi-de-mamão é
constantemente referenciada por quem brincou, por quem viu brincar e quem deseja a
brincadeira para si. Os rumos que o grupo assumiu destituíram, para os velhos brincantes,
uma das maneiras de brincar com o boi-de-mamão. Para os novos brincantes; “essa gente
nova” brincando (re)significa um fazer pelas memórias de quem viu ou de quem apenas ouviu
dizer de uma brincadeira do boi-de-mamão pelas estradas do bairro Itacorubi.
Para Mafessoli, "Somos, antes de mais nada, de um lugar. De um lugar que nos
ultrapassa e cuja forma nos forma. De um lugar que se constitui por sedimentações sucessivas
e que conserva a marca de gerações que a modelaram e, com isso, se torna patrimônio"
.
87
85
CHAUÍ, 1990, p. 45-46.
86
CANCLINI, 1983.
87
MAFESSOLI, 2005, p. 101.
44
Não pensamos a cultura popular como Folclore, como um conjunto de crenças, objetos
e práticas tradicionais, assumindo uma idéia de uma coisa do passado que se mantém hoje.
Pensamos numa prática viva que traz elementos que se constituíram na história da vida de
quem esteve na frente da brincadeira do boi-de-mamão e alimenta as atuações de quem como
brincante recria e cria novas formas de brincar de boi-de-mamão, que o referenda vivo,
atuante e necessário, como patrimônio que lhe garante o direito de continuar existindo e
lutando, mesmo que em parcas aparições ele se faça presente, seja nas festas da Igreja ou nas
escolas, seja em espaços reservados para o seu direito de resistir e, ao existir, seja lhe dado o
desafio de dialogar com o outro, sejam eles velhos, sejam eles novos moradores do bairro.
E são esses elementos subjetivos, afetivos e comunitários que vamos buscar nos
relatos de antigos brincantes de um público muito exigente.
1.3 [...] bom era quando fazia verso, fazia Folclore, fazia poesia [...]
Segundo Sayão,
88
se por um lado as manifestações populares passavam pelos crivos
dos intelectuais que detinham posições sociais de prestígio e saber, na Comissão Catarinense,
por outro, no bairro passava pelo crivo de um público e participante do boi-de-mamão do
Itacorubi. Morador, o Senhor Valdir nos seus 72 anos prediz que era bom quando o cantador,
seu Estevão, tendo a função de puxar o boi de mamão, “fazia verso, fazia Folclore, fazia
poesia”.
É esse Folclore denominado por seu Valdir que se articulava a uma prática na tradição
de ser parte de uma comunidade, atuando e configurando uma prática cultural.
Porque essa turma de novos não tem amizade, então como é que vive, vive
por viver, mas onde está o prazer? Era um boi familiar, uma coisa linda,
bonita, tudo fazia parte. Então hoje não tem mais. O Lica brincou de
Mateus, o Miguelzinho, o Campolino de vaqueiro [...] o gaiteiro era gente
fina, quem tocava o tambor, o bumbo a gente sabia. Hoje não tem mais
aquela coisa gostosa [...].
89
“Coisa gostosa” se refere o seu Valdir a um tempo de celebração, de se conhecerem,
de tradição da comunidade, de saberem viver, de terem prazer, de terem um sentido em ter
88
SAYÃO, 2004.
89
Seu Valdir. Entrevista concedida em 15 jun. 2007.
45
boi-de-mamão como um momento de referenciar a vida nessa comunidade. Hoje, os velhos
apresentam-se receosos de um tempo que passou, e assim se passa a vida, a de seus
conhecidos, a de seus amigos. para pensar numa relação temporal do significado para os
velhos de um fazer jovem, dando pistas neste processo de aceleração das relações
comunitárias que vivem hoje, para eles isso é a significação de um tempo em que essas
relações praticamente o mais existem. Também nessas velhas considerações verifica-se a
situação para que o boi continue vivo.
Para Gelci José Coelho, o significado que essa manifestação representava e à qual
ainda se atribui certo prestígio ao fazer expressivo desses velhos “era o folguedo que marcou,
porque ali era um momento de grande expressão, é aonde ele se mostra artista, ele é ator, ele
tem platéia olhando [...]”.
90
Essa expressividade, traduzida em competência por comunitariamente organizarem-se
para ter boi-de-mamão, é dita de quem viveu a brincadeira e se lembra de grandes noitadas em
que o boi indo de casa em casa celebrava os vários momentos. Pensar nesses saberes da
cultura popular supõe uma construção simbólica da vida desses moradores, que acabaram por
determinar ou influenciar as manifestações da vida cultural da cidade e de um bairro, pois
hoje como pais guardam como possibilidade de preservação e continuidade.
a necessidade, nas palavras do museólogo Gelci José Coelho, de “chamar a
comunidade para discutir, envolver a comunidade precisa comover a comunidade, mover com
emoção e buscar essa memória, abrir uma exposição, começar a chamar atenção”, diz um
estudioso em organizar as comunidades em torno de um fazer cultural.
A participação dos entrevistados na brincadeira do boi-de-mamão explicita uma
vontade de continuidade nessa maneira de fazer. Segundo Certeau (2003), essa participação
expõe a dinâmica interna dessas festas populares e dessa prática cultural, em que, mediante o
processo de urbanização do bairro, reapropria-se dos espaços garantidos para suas
manifestações culturais. Esse jeito de fazer expressa a construção comunitária de uma
identidade, pois são facilmente reconhecidos por seu papel desempenhado no boi-de-mamão.
Essa notoriedade atribuída a um fazer cultural expressa uma dinâmica da tradição de um fazer
das pessoas que compõem esse bairro.
Esse fazer cultura popular imprimiu às memórias de suas vidas lembranças ligadas aos
caracteres comunitários laçados pela vida comum em torno desses fazeres, ao partilharem
momentos significativos de construção comunitária. O fazer junto e coletivo correspondia a
90
Gelci José Coelho. Entrevista concedida em 17 jul. 2007.
46
encontrar-se nas festividades pelo bairro, seja pelo caminho até a igreja, seja pelo caminho até
a escola; esses espaços adquiriram uma certa simbolização que centralizava um saber, aqui
um saber criativo e lúdico de brincar com o boi, seja ele de pano, seja como brinquedo de
criança, seja como alegoria dos adultos e das crianças no mangueirão.
Como organizador de ões culturais para e na comunidade, seu Machadinho acredita
que
[...] sempre envolvendo a comunidade para que a comunidade crescesse com
essa alegria, essa vontade, esse amor pela festa da comunidade e nessa festa
da comunidade, sempre procuramos colocar o folclórico que estivesse mais
próximo de nós [...] para as pessoas que montaram e participaram, para a
festa não ser industrializada, e ser uma festa povão, de coração,
comunitária.
91
Para esse organizador comunitário, a arte não industrializada representa esse jeito de
fazer a quem confere autoria, autoridade, pois a arte, se traduzida num fazer, nessa maneira de
ser, é o jeito que consegue continuar e manter a brincadeira. Mesmo assim, atento à diversão
do povo, o grupo percebe e cria outros elementos para brincar com o boi, assim como nos
relata Miguel:
[...] Vaqueirinho foi criação nossa, tu, a bernúncia porque no boi-de-mamão
é uma bernúncia,
92
criamos a boca grande para engolir criança, engolir por
dentro da boca, se vestir debaixo e nascer, sair. A segunda Maricota mãe e
filha foram invenção nossa e a cabrinha que são duas também é invenção
nossa, foi feito com a criatividade do boi do Itacorubi. Umas coisas que tinha
que nós tiramos, o maribondo, ninguém tem, não se via muito graça, no
homem que se vestia de mulher, a Joana.
93
Não somente a inovação pela criatividade é característica, mas a organização desse
grupo segue uma peculiaridade que é a de ser um boi familiar, numa complementaridade entre
a rua e a casa, discutida por Brandão, quando associa uma “intenção permanente de começar
num e acabar noutro e fazer com que tudo o que se festeja oscile entre os dois domínios”.
94
Para Miguel:
o nosso pessoal não ensaia, eles vão participando de pequeno [...]. Nós não
ensaiamos cada um que brinca sabe o que tem que fazer. Quando não
91
Seu Machadinho. Entrevista concedida em 11 jul. 2007.
92
Doralécio Soares (1978) credita ao “boi-de-mamão do Itacorubi, uma inovação introduzida pelo pessoal,
numa valorização da brincadeira, quando a bernuncia, após ter engolido duas crianças botou uma bernuncinha”.
93
Seu Miguel. Entrevista concedida em 2 fev. 2007.
94
BRANDÃO, 1984, p. 18.
47
integrado ao grupo, mas é filho de quem participa. Os que entram, entram
sabendo o que têm para fazer, é uma tradição.
95
Sobre aprender a brincadeira do boi-de-mamão, seu Lica nos relata que:
[...] Eu tinha mais essa parte de saber como isso aí, porque meu pai
brincava no boi-de-mamão ali no Saco Grande [...] eu tinha mais ou menos
uns 14 ou 15 anos [...] dali comecei a brincar, via como o velho brincava,
uma palhaçada e coisa. O meu irmão faz a mesma coisa, o Antonio, morador
da Vila. Sabia brincar também, fazendo a palhaçada toda.
96
É interessante perceber a contextualização dada pelos brincantes ao seu fazer, ao seu
papel na brincadeira do boi, desta forma entende-se que a definição dada por esse entrevistado
sugere uma caracterização de assegurar uma apresentação que interaja com o riso e a
criatividade em entreter o público, ainda quando associa a figura do palhaço, que ao interagir
com o público vai definindo sua atuação.
Nesse processo de manter uma tradição, na acepção do verbo latino tradire, que
designa o ato de passar de uma geração para outra geração,
97
esse boi-de-mamão, com uma
trajetória de atuação intensa em outros espaços, hoje é a brincadeira assegurada pela
continuidade dessas antigas famílias “[...] o cantador leva o filho, o tio Campolino levava
mais o filho dele [...] tem muita gente eles são tudo parente bem família”.
98
Para Brandão,
99
códigos de regras e princípios de participação. uma estrutura
interna de reprodução de um saber que ali existe e que transfere os segredos do que se faz e do
que se cde modo organizado e rigorosamente sistemático. Isso pode ser percebido pelos
relatos dos entrevistados, quando sinalizam que é pela observação que aprendiam ou
aprenderam a prática da brincadeira, assim como relatado pela música, que vai permanecendo
com a mesma letra, passada pelos diversos cantadores.
A sistematicidade dessa tradição familiar acaba com o tempo, sendo revista hoje pela
necessidade de revitalizar outros para participar. O grupo abre agora a possibilidade de outros
integrantes, como um coro de mulheres “para dar a voz fina, o cantador também faz o coro
não consegue fazer os versos porque o boi tem que rimar”.
100
95
Seu Miguel. Entrevista concedida em 2 fev. 2007.
96
Seu Lica. Entrevista concedida em 13 abr. 2007.
97
ARAÚJO, 1977, p. 92.
98
Dona Branca, esposa do seu Valci. Entrevista concedida em 25 mar. 2007.
99
BRANDÃO, 2002, p. 93.
100
Seu Miguel. Entrevista concedida em 2 fev. 2007.
48
Nesse processo de revitalizar a organização do grupo para que a brincadeira do boi-de-
mamão seja recuperada pela memória e nos espaços ainda existentes no bairro, o grupo de
certa forma vai encontrando saídas e possibilidades, pois preocupação de a brincadeira do
boi-de-mamão não ser esquecida num bairro que cresceu tanto: “manifesta pela propriedade
(voraz) que o sistema geográfico tem de poder metamorfosear o agir em legibilidade, faz
esquecer uma maneira de estar no mundo”.
101
Para não cair no esquecimento, o grupo tem a preocupação de percorrer os espaços,
como a igreja, o Colégio Estadual, “quando é no bairro a gente faz de graça, porque nosso
espaço é pequeno na sede. A gente procura fazer no bairro porque nós somos realmente do
bairro”.
102
E nesse ato de caminhar parece encontrar um espaço de enunciação de forma a
manter a brincadeira viva.
Seu Lica parece ter encontrado um espaço para enunciar-se:
se puder reunir a turma toda [...] eu posso ir lá pra fazer uma proposta, que
nós temos que fazer, por exemplo tem uma festa na igreja, o boi-de-mamão
se apresenta, de dois em dois meses fazer uma apresentação ali pra não
deixar cair, porque hoje tá caído [...] tem que ter apresentação, tem pra
gurizada chegar lá e tomar gosto daquilo ali.
103
Para esse brincante, que aprendeu a “ver como o velho brincava”, a observação é um
grande ensinamento “pra gurizada tomar gosto” de boi-de-mamão. Para Canclini, a
participação nessas festividades é para consolidar as relações afetivas comunitárias de
pertencimento à comunidade. E é esse conjunto de bens e práticas tradicionais que nos
identificam como povo que é apreciado como um dom, algo que recebemos do passado com
tal prestígio simbólico: “Que preservá-lo, restaurá-lo, difundi-lo são a base mais secreta da
simulação social que nos mantém juntos”.
104
Tornada pública, a comunidade vai ditando tantas possibilidades para a continuidade
da brincadeira, basta saber ouvir. Para seu Machadinho, como ex-presidente de uma
associação de moradores, a tarefa está em:
a princípio seria quem gosta e quem poderia se doar, cuidando nas horas
vagas, brincando e participando, esse que é o interesse. A pessoa tem que ter
101
CERTEAU, 2003, p. 176.
102
Seu Miguel. Entrevista concedida em 2 fev. 2007.
103
Seu Lica. Entrevista concedida em 13 abr. 2007.
104
CANCLINI, 2006, p. 160.
49
o amor, se tiver o dinheiro foge o sentido e o negócio cresce com o
dinheiro, e o dinheiro não tem o sentido de levar o folclórico, a alegria.
105
Essa participação enunciada pelo morador e público da brincadeira do boi-de-mamão
sugere um gostar como possibilidade de organização da brincadeira em diversos momentos na
comunidade, se anteriormente a brincadeira estava na rua pelas festividades no bairro e na
cidade, hoje é necessário que se faça presente para que a comunidade participe. Ele sinaliza:
o funcionamento, a engrenagem do boi é uma coisa. Assistir eu gosto, não
tem dúvida acho interessante que a gente promova, desenvolva, mantenha
sempre vivo todo folclórico, toda cultura do seu povo. A nossa ilha hoje vem
gente do exterior para assistir um boi-de-mamão e um pau-de-fita e não vê.
Está faltando um apoio nesse sentido [...] uma política pública, um interesse
da política administrativa, na parte social, na parte cultural, essa é a verdade.
Infelizmente os nossos políticos pensam muito mais em construção, obras
faraônicas, e o mais importante tudo isso sem um coração, sem a cultura
não tem sentido.
106
Esse sentido pontuado pelo senhor Machadinho é assegurado pela memória de um
público: seu Catuto, ao acompanhar os passos do grupo, relembra “[...] e eles fazendo boi
onde brincavam no seu Lima e aqui na Igreja, no seu Zeferino, na Trindade, no Pantanal,
foram no Santo Antônio, daí foram para São Paulo, foram em Minas Gerais e ali na Lagoa,
Barra da Lagoa”
107
e refaz os caminhos trilhados, que de certa forma lhe atribuíram
significado em ser morador do Itacorubi, pois no momento em que é convidado a referenciar e
reapresentar esses relatos populares da brincadeira de uma comunidade, essa história se
confunde com suas memórias de público, que cresceu participando da brincadeira pelas ruas
do bairro, “é o retorno das situações e atos que a memória grupal reforça atribuindo-lhes
valor”.
108
Esse mesmo autor alega que, apesar da massiva rede de comunicações que
menosprezam a prática cultural como bem popular, uma capacidade de resistência que
esses grupos assumem para não deixar de existir como parte de sua história, construída numa
relação de diálogo, do jeito que eles sabem fazer, colocando o boi para brincar. Para o autor,
essa resistência das culturas populares em sobreviver “pressupõe, aqui, diferença: história
105
Seu Machadinho. Entrevista concedida em 11 jul. 2007.
106
Seu Machadinho. Entrevista concedida em 11 jul. 2007.
107
Seu Catuto. Entrevista concedida em 22 mar. 2007.
108
BOSI, 2004, p. 11.
50
interna específica: ritmo próprio; modo peculiar de existir no tempo histórico e no tempo
subjetivo".
109
Por essa transcrição do tempo subjetivo pelas memórias dos brincantes de boi-de-
mamão e dos moradores do bairro, crê-se que necessidade de estabelecer muitos diálogos
com esse grupo, que garante, da forma que conhece, que a brincadeira continue vivendo e faz
isto numa relação de pertencimento a essa comunidade, que abriga inúmeras recordações de
muitos e muitos anos fazendo boi-de-mamão.
Esse fazer com outros sujeitos expressa uma dinâmica participativa entre o individual
e o coletivo, entre um fazer coletivo que serve de instrumento para estabelecer os diálogos na
comunidade. Como um chamamento, a brincadeira do boi-de-mamão alimenta uma forma de
interagir com a memória das histórias de vida das pessoas e alimenta a construção de
memórias dos mais jovens brincantes. E esses diálogos são o resultado de um processo da
construção das relações que se constituem na brincadeira do boi-de-mamão.
E a feitura da brincadeira, nessa resistência em trazer para a vida o boi, o faz na sua
teimosia em existir, como uma reivindicação que se apropria de significação para os sujeitos
do bairro. Essas recordações são para o seu Lica lembranças de um jeito de fazer boi-de-
mamão, pois para ele
a brincadeira morreu no seguinte [...] enquanto eles o brincam mais de
porta em porta que eles deveriam fazer aqui no Itacorubi [...] mas todo mês
tinha que ter apresentação ali pro pessoal do Itacorubi. Ó vai ter
apresentação do boi-de-mamão ali na sede, pra dizer que tá vivo.
110
Vivo para esse tradicional brincante é marcar presença da brincadeira de casa em casa,
é assegurar a tradição de o filho acompanhar o pai brincando, de o boi-de-mamão reunir a
comunidade, reivindicar espaços de atuação, que sugerem outras formas de atuação dos
jovens e das crianças num espaço de um bairro que se descaracterizou como um espaço
comunitário. Para Gonçalves, confirmar a pertença a uma identidade de grupo enquanto se
brinca".
111
Essa identidade comunitária também é compartilhada por seu Machadinho:
E o que a gente aprendeu com os pais, gostava de assistir com eles, não
aprendemos mais porque a gente não se envolveu mais, no fundo em síntese
seria essa vontade nossa, que cada um fizesse o seu trabalho, se esforçasse,
se dedicasse mais para haver pau-de-fita e boi-de-mamão uma vez por ano,
109
BOSI, 2004, p. 10.
110
Seu Lica. Entrevista concedida em 13 abr. 2007.
111
GONÇALVES, 2006, p. 39.
51
mas que fosse sempre. Tivesse o apoio da comunidade, da sociedade e das
fundações da administração, mas num sentido de geração a geração, do
primeiro mês até o ultimo do ano, essa que seria bonito só uma vez por ano é
pouco [...] o boi tem que estar na rua que é pras crianças sentirem, ele tem
que no calor, vamos fechar a nossa rua e fazer um boi-de-mamão, pau-de-
fita e não só naquele dia, envolver todo mundo aqui dessa rua, então tem que
começar assim, no teu jardim, aqui na associação, teria que ter 200 bois e a
gente procurando um e custando. Um que às vezes tem o apoio, porque
falta esse exatamente esse amor que nós falamos, fazer com amor.
112
É nesse amor, nessa comunicação, nesse diálogo entre a comunidade, entre as
unidades de educação, entre as escolas, entre as associações, que, por quererem a brincadeira
do boi vivo, assim entre tantos "diálogos brincantes" e saudosos, um "diálogo guardador de
memória"
113
possa ser ensaiado quando da sistematização dessas histórias, a partir de quem
traz o boi para a vida, de quem assiste como público atuante e principalmente quem relata
histórias dessa prática cultural em fazer boi-de-mamão no Itacorubi, uma vez que são esses
mesmos sujeitos que trazem essa manifestação, essa brincadeira para o espaço da educação.
É nessas idas e vindas de se fazer cultura popular pela trajetória de um grupo de boi-
de-mamão que se foi resguardando as muitas histórias ao desenterrar os caminhos trilhados ao
brincar, encantando-se. Para Certeau, estamos ligados a esse lugar pelas lembranças: “É
pessoal, isto não interessaria a ninguém, mas enfim é isso que faz o espírito de um bairro”.
114
Como se escreveu essa história? Onde esses moradores revivem lembranças e
situações em torno de uma manifestação cultural que lhes atribui significação? Essa é a
história que passa a ser contada.
112
Seu Machadinho. Entrevista concedida em 11 jul. 2007.
113
Conceitos elaborados pelo grupo de pesquisa Pandorga, da UFSC. Ver FANTIN, 2005.
114
CERTEAU, 2003, p. 189.
52
FIGURA 5 − Tem boi na rua!
FONTE: FUNDAÇÃO FRANKLIN CASCAES. Florianópolis, Fala Bernunça. ano VI, n. 23, 1998.
1.4 A história de um bairro de Florianópolis
A caracterização da constituição da cidade e a demarcação geográfica do bairro
Itacorubi delimitam uma organização social dos seus moradores e estabelecem as relações
significativas com um fazer cultural na brincadeira do boi-de-mamão.
A significação de uma prática cultural efetivada num dos cantos desta cidade
115
torna
possível ser contextualizada quando identificamos e caracterizamos os seus moradores nos
lugares e nos espaços em que realizam a sua manifestação cultural, espaços estes que são
delimitados a partir de um lugar praticado,
116
um lugar que intercruza as histórias, as
vivências e as práticas desses sujeitos.
Para Certeau, “o espaço assim tratado e alterado pelas práticas se transforma em
singularidades aumentadas [...]”.
117
A prática da brincadeira do boi-de-mamão no bairro
115
GONÇALVES, 2000.
116
CERTEAU, 2003, p. 202.
117
CERTEAU, 2003, p. 181.
53
Itacorubi estabeleceu uma memória cultural com um passado tatuado no cotidiano delimitado
nos espaços educativos da cidade.
Uma cidade que educa é formada por fragmentos de trajetórias e propõe em seu
contexto uma identidade cultural que sobrevive pela memória dos que participaram e
participam de uma prática da brincadeira do boi-de-mamão. Certeau
118
propõe uma retórica da
caminhada, quando visualiza que a maneira de fazer determina uma maneira de ser. Esse
movimento sendo gestado pelas caminhadas é registrado num cotidiano, num modus vivendi,
cuja história das vivências de uma comunidade se inscreve numa possibilidade de viver uma
condição de cidadania no seu local de passagem pela cidade.
A cidade oferece espaços de diálogos e de um extenso leque de iniciativas no seu
contexto social em que esses diálogos estão implicados na perspectiva de uma outra reflexão
ao (re)significar os espaços públicos da cidade. “(Re)conceitualizar a cidade, entendendo-a no
seu emaranhado de ruas, avenidas, praças e prédios como um território de múltiplas histórias
e culturas, e por isso, de incontáveis possibilidades educativas”.
119
Desta maneira, a delimitação demográfica e geográfica do bairro Itacorubi assegura as
maneiras de relacionar-se com os vários espaços da cidade pela interação ao entorno de uma
prática que define uma caracterização social juntamente com os inúmeros moradores que
modificaram a paisagem do bairro a partir do processo de urbanização da cidade por volta dos
anos 80.
A história da cidade resguarda inúmeras possibilidades desde que conheçamos essa
identificação, pois como sujeitos comunitários somos determinados por essa história social,
“mas que detém uma certa ancestralidade marcadora de identidade cultural das novas
gerações que se seguiram”.
120
É essa ancestralidade determinada pelo movimento de construção de nossa identidade
cultural e social que relatarei brevemente. “Um pedacinho de terra perdido no mar” e no
caminho da rota marítima de comércio para as índias. A ilha de Meiembipe, denominada
como “montanha ao longo do canal” pelos índios carijós, os primeiros habitantes por mais de
três séculos, por sua localização estratégica é visitada por exploradores estrangeiros,
portugueses e espanhóis desde o culo XVI. Recebe como primeira denominação pelos
exploradores de Ilha dos Patos, provavelmente por “Juan Dias de Solis em 1516”,
121
devido à
118
CERTEAU, 2003.
119
TOLEDO; FLORES; CONZATTI, 2004, p. 41.
120
CECA, 1996, p. 61.
121
FUNDAÇÃO FRANKLIN CASCAES, 1995, p. 16.
54
imensa população desses víveres, que se caracterizou uma prática na criação de pássaros
existentes ainda nos dias de hoje.
É posteriormente denominada de Ilha de Santa Catarina por Sebastião Caboto. As
navegações não somente estabeleceram relações entre os estrangeiros e os habitantes da Ilha,
como se deu início à colonização pelos constantes naufrágios, desterros de espanhóis e
portugueses e ao extermínio do povo indígena, que aos poucos é banido da Ilha. Assim
começa o povoamento da Ilha de Santa Catarina.
Resguardada pela coroa portuguesa de possíveis invasões espanholas devido às
tensões dos limites ao Sul de Tordesilhas, a Ilha somente receberá povoamento português em
meados do século XVII; e em 1675 Francisco Dias Velho, nobre de São Vicente, instala uma
igreja em devoção a Nossa Senhora do Desterro, “a póvoa contava aproximadamente 400
habitantes, entre familiares agregados e escravos, que se dedicavam ao cultivo da mandioca e
da cana-de-açúcar, à pesca”.
122
Em 23 de março de 1726, a póvoa do Desterro é desmembrada da Vila de Laguna e
alçada à categoria de Vila. A colonização começa a desenvolver-se impulsionada por projetos
militares, com a construção das fortalezas situadas estrategicamente pela colonização
açoriana, “em 06 de janeiro de 1748 desembarcaram na Ilha de Santa Catarina 461 pessoas,
formando 88 cazaes vindos do arquipélago dos Açores. Primeiros dos cerca de 6.000
açorianos e madeirenses que imigraram para o Desterro, entre esta data e 1756”,
123
e pela
pesca à baleia. Assim, tem-se início ao povoamento açoriano com o objetivo de resolver o
problema de população das ilhas portuguesas de um “peso morto – velhos, doentes, inválidos”
e das necessidades protetivas e políticas do Reino de Portugal em disputa com o Rei de
Espanha pelas terras do Sul.
Os primeiros casais chegados à Ilha foram encaminhados para as freguesias da Nossa
Senhora da Conceição da Lagoa, Nossa Senhora das Necessidades de Santo Antonio, Nossa
Senhora da Lapa do Ribeirão, Santíssima Trindade Detrás do Morro, São João do Rio
Vermelho e São Francisco de Paula de Canasvieiras. Em virtude da terra imprópria para o
cultivo das sementes distribuídas quando da sua chegada, os novos colonos açorianos que
ficaram na terra tiveram que se adaptar ao cultivo agrícola herdado dos índios, que
forneceram as bases culturais para a sobrevivência dos colonos açorianos, no
séc. XVIII, pois era deles a prática do cultivo de espécies de inhame, milho,
algodão, amendoim, pimenta, tabaco e cabaça e o seu legado cultural
122
FUNDAÇÃO FRANKLIN CASCAES, 1995, p. 18.
123
FUNDAÇÃO FRANKLIN CASCAES, 1995, p. 24.
55
permanece vivo, pois este povo de se fazer partícipe da nova cultura que iria
se desenvolver no nosso território.
124
Na colonização de costumes de práticas culturais, não se pode desconsiderar a vertente
da colonização brasileira, brancos, negros e índios, na identidade cultural das populações da
Ilha de Santa Catarina, constituindo hoje uma herança adquirida em três séculos de contato
entre essas etnias. “Desses filhos do arquipélago e dos carijós, acrescidos de outras influências
dos escravos, resultou uma diversidade na forma de magia, crença, cultos e rituais
religiosos".
125
Assim, nessas caminhadas de perpetuação e preservação, esses moradores criaram um
jeito de ser e de fazer cultura popular. Para Certeau,
126
os passos moldam espaços. Nesse fazer
tecem lugares por uma prática social, como sistemas reais cuja existência faz efetivamente a
cidade. E o processo de urbanização descaracteriza essa maneira de estar no mundo, mas
impulsiona para uma transformação, uma regulação da estabilidade e a sua continuidade.
Tecem novos lugares dando outros e mais passos, tecendo outros fazeres e saberes na prática
cultural dessa comunidade.
1.4.1 Um jeito de ser do bairro Itacorubi
A demarcação dos espaços da cidade quando do povoamento do bairro do Itacorubi,
que na denominação tupi-guarani significa “rio das pedras esparsas”, tem a forma de uma
extensa faixa de terra fazendo divisa com os bairros João Paulo, Santa Mônica, Córrego
Grande, sendo caminho de acesso à Lagoa da Conceição. Por essa delimitação geográfica e
com relativamente uma escassa população, o bairro tem, a partir do processo de modernização
da cidade nos anos 80, a instalação gradativa de órgãos estatais como a EPAGRI, o Centro de
Ciências Agrárias da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), as Centrais Elétricas de
Santa Catarina S.A. (CELESC), as Telecomunicações de Santa Catarina (TELESC), a
Universidade para o Desenvolvimento do Estado de Santa Catarina (UDESC), a Federação
das Indústrias do Estado de Santa Catarina (FIESC), o Instituto Médico-Legal (IML), entre
outros.
124
FUNDAÇÃO FRANKLIN CASCAES, 1995, p. 14.
125
VARZEA, 1984, p. 30.
126
CERTEAU, 2003.
56
O Itacorubi também denominado Saco do Itacorubi ou Saco Grande, era
pouco farto em culturas, apesar de ser bem provido de comunicações pelo
rio, mar e estrada que permitam alcançar o coração da cidade em apenas
hora e meia. Seus habitantes ocupavam-se mais com negócios de galinhas e
ovos para vender no mercado, e os sítios também davam café e cana.
127
São trazidas as lembranças de um antigo morador, o senhor Luis Ramos da Silveira,
128
“chamam de Catuto, mas é apelido, ninguém bota o nome mesmo”, que fala de um bairro que
se inicia no cemitério até “cá em cima” (refere-se ao Morro da Lagoa). Leiteiro, entre os seus
15 e 25 anos, ia de carroça e vendia leite no centro [...] vendia de casa em casa, batia com o
caneco no latão. Olá o leite, o leiteiro [...]”. O senhor Luis Ramos da Silveira delimita uma
configuração do bairro, nomeando os seus poucos moradores e os espaços de criação de gado
e animais, as pastagens e os laranjais, os bananais e a localização das poucas casas. Faz uma
referência de um caminho pelo bairro pela estrada antiga, cujo trajeto ainda é feito pela linha
de ônibus atual, nas ruas Pastor William Richard e Amaro Antônio Vieira.
Na cidade de Florianópolis nas décadas de 70 e 80 tem-se um acentuado
desenvolvimento urbano, incrementado pela busca e pela ocupação das praias pela população
local e, principalmente, por turistas estaduais, mas as conseqüências foram imediatas e
devastadoras ao patrimônio natural e cultural. A modernização da cidade com a construção da
Rodovia SC-404 via acesso às praias da região Leste acaba por provocar a delimitação de dois
acessos ao bairro, um de acesso à Lagoa da Conceição pela Rodovia e outro pela rua antiga do
Itacorubi, que ainda preserva alguns vestígios de uma longa história.
Com a construção da atual Rodovia nos anos 70, “a estrada acabou com o campo de
futebol do Paula Ramos [...] passou bem no meio”. Através dos relatos desse morador, seu
Catuto, e na “rua de dentro” na “rua antiga” ainda existem velhas vendas,
129
a creche, o posto
de saúde, uma associação de lavadeiras, igrejas, escolas; locais de encontro entre os velhos e
os novos moradores.
Velhos moradores descendentes desse jeito de ser açoriano são constituídos “das
relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado”.
130
Invocando um
passado, esse velho morador discorre “tô falando anterior [...] hoje mora pouco de antigo [...]
hoje cheio de casa, mas tudo morador que ninguém conhece mais, de fora”. Para esse
morador, são esses diálogos com o passado que revelam um jeito de brincar com o boi-de-
127
CECA, 1996, p. 54.
128
O senhor Luis Ramos da Silveira é morador nascido no bairro há 60 anos e motorista de táxi. Entrevista
concedida em 22 mar. 2007.
129
Do tipo armarinho, vendendo gêneros de primeira necessidade.
130
CALVINO, 2004, p. 14.
57
mamão, compondo essas relações entre um passado e um presente, numa rede de
comunicações em que se pretende manter a brincadeira do boi-de-mamão, numa
representação simbólica que lhe constitui.
Para Certeau,
131
esses velhos guardadores da memória compõem o uso da prática
cultural e de certa forma possibilitaram a criação de um estilo, uma maneira de ser que definiu
um fazer nesse espaço de vivências no bairro, assegurando particularidades na organização da
brincadeira, quanto à cantoria e à composição dos personagens, respondendo a uma lógica
particularizada.
Nessas particularidades, entre elas a constituição de uma demarcação entre três
maneiras de brincar com o boi: no mangueirão,
132
referindo-se ao “brinquedo de boi”;
133
na
parte central do bairro com a sede folclórica, o “boi de tradição”; e, na parte de cima, uma
brincadeira de criança propriamente dita, como assinala o senhor Catuto:
Depois daquilo ali surgiu o boi, de tradição do Itacorubi [...] o seguinte
falando que nós comecemos desde guri tal, depois o final boi-de-mamão
certo mesmo foi eles que começaram o forte do boi-de-mamão.
134
E nessas particularidades os novos moradores do bairro que, vindos de várias partes do
Estado, de outros Estados, instalam-se de forma gradativa com as prestadoras de serviços
estatais, cujas áreas para a sua construção foram estreitando os imensos terrenos vazios que o
bairro possuía para pasto de gado, cultivo de cafezais e frutas e realização de diversas
brincadeiras de rua, entre elas a brincadeira do boi-de-mamão, do pau-de-fita e Terno de Reis.
O processo de urbanização e o desenvolvimento da região metropolitana trouxeram a
reapropriação dos terrenos vazios por imensos blocos de edifícios, pois, trazendo novos
moradores, vão desapropriando uma história, iniciando outro ritmo nas constituições das
relações comunitárias. Nesses espaços reorganizados perderam-se os espaços de brincadeiras
de rua, além disso, “eram também espaço de produção da vida simbólica, suas brincadeiras,
histórias e referências culturais”.
135
[...] nossos filhos quando eram pequenos tinha essa de fazer boi-de-mamão
de caixa de papelão, e mesmo por que eles brincavam com isso, com sete
anos o Nei começou no boi-de-mamão contigo, o meu mais velho, eles já
faziam e brincavam. Onde tem esse condomínio Itacorubi 2 era um pasto,
131
CERTEAU, 2003.
132
Onde hoje está instalado o Hospital do CEPON.
133
Seu Maneca, da venda, morador do bairro há 57 anos em conversa referiu-se à farra do boi.
134
Senhor Luis, o seu Catuto. Entrevista concedida em 22 mar. 2007.
135
CECA, 1996, p. 170.
58
um gramado, viviam a tarde inteira brincando com essa coisa de boi-de-
mamão, eles faziam boi-de-mamão com mamão mesmo, mamão verde
botavam duas aspas tudo, quando eles criaram.
136
Na busca por essas memórias, ao conversar com o seu Catuto, ele revela que entre
seus “doze ou treze anos. Pegava Bambu, fazia o arco, o mamão e dois galhinhos” (aponta os
dedos em V, imitando dois galhos), “ali surgiu boi-de-mamão”. Mas quem ensinou a brincar
com boi-de-mamão?
Foi invenção nossa, o único quem inventou isso foi meu primo, mas já
morreu com a idade de 60 anos; único a dizer que brincou foi ele. Vamos
fazer boi-de-mamão? A cabrinha daí surgiu e nós brinquemos. Como vocês
querem saber o começo, a brincadeira começou assim e no final o boi-de-
mamão tá lá parado porque ninguém se interessa [...].
É interessante perceber a apropriação da brincadeira por parte dos moradores, uma vez
que a impossibilidade de comunicação com os outros bairros, devido ao não acesso,
dificultava uma relação para perceberem que a brincadeira também era organizada. Como
dito, a brincadeira do boi apresentava-se de forma muita similar na sua organização em
relação aos personagens e até em alguns versos da cantoria; é a apropriação que lhe confere
autoria, autonomia.
A delimitação geográfica do bairro desfavoreceu a permanência desses espaços de
vivências, das brincadeiras, mas favoreceu uma interação ao entorno de uma prática cultural
que saiu para a rua e que de certa maneira definiu uma comunicação, uma forma de
estabelecer alguns diálogos comunitários e de organizar um conjunto de outras possibilidades,
“também as desloca e inventa outras, pois as idas e vindas, as variações ou as improvisações
da caminhada privilegiam, mudam ou deixam de lado elementos espaciais”.
137
Soluções são encontradas por esses brincantes de boi-de-mamão de maneira a
sobreviverem para continuar o seu percurso, apresentando-se em outros espaços, não mais
pelas estradas do bairro, mas resguardados num espaço que lhes apropria uma identidade, a
sede folclórica do boi-de-mamão. Para Certeau,
138
as mesmas ruas permitem saídas, meios de
sair e de entrar e, portanto, criam outros espaços de resistência.
136
Dona Branca, esposa do seu Valci, participou ativamente da entrevista em 25 mar. 2007, inclusive com um
olhar bem diferenciado, atento a outros movimentos do grupo e da brincadeira no bairro.
137
CERTEAU, 2003, p. 178.
138
CERTEAU, 2003.
59
1.5 Um espaço guardador da brincadeira do boi-de-mamão... A sede folclórica
Uma brincadeira que se realizava pela estrada de chão da rua tem uma possibilidade de
permanência assegurada através de um grupo de moradores, que, lutando, garantiram uma
sede, como um espaço guardador dos personagens do boi, criando uma outra maneira de
brincar de boi-de-mamão pelos espaços da cidade, nas viagens pelo Estado, “Em Blumenau,
São Francisco do Sul, Criciúma, Araranguá, todo o Estado a gente brincou [...]”,
139
por outros
Estados, “[...] só em Campinas, SP fomos 5 vezes [...]”.
De certa maneira o papel assumido pelo grupo em percorrer outras estradas brincando
acaba lhe assegurando uma notoriedade, o que possibilita a garantia de um espaço para
guardar e conservar os bichos e de certa forma retirando a brincadeira da rua, privatizando-a.
Para seu Lica, esse foi um jeito de preservar a continuidade, “porque antes, nós não fazíamos
a reunião não era ali, era lá na casa do seu Dico, num ranchinho que tinha [...] então toda
segunda-feira nós tínhamos reunião do boi-de-mamão lá, depois é que veio a sede ali, que o
Amin fez a sede, passamos para ali”.
140
A sede folclórica foi inaugurada na gestão do governador Esperidião Amin e do
prefeito Cláudio Ávila da Silva, tendo os senhores Campolino Alves e Firmino Pires como
presidente e tesoureiro, respectivamente.
Foi inaugurado o Centro Folclórico de Itacorubi que abrigará com Sede a
Sociedade Folclórica Boi de Mamão de Itacorubi. O acontecimento se
revestiu de grande importância para o movimento da cultura popular em
Florianópolis, pois além de constituir num ato público dos mais importantes,
teve na palavra do Senhor governador o cumprimento de uma das metas da
Carta dos Catarinenses. Está de parabéns o boi de mamão de Itacorubi, e a
comunidade da região.
141
A apropriação da “sede do boi”
142
é um legado cultural em que esses brincantes de
boi-de-mamão de certa maneira resistem ao movimento de reorganização espacial da cidade,
delimitando diálogos guardadores de memória, o que lhes resgata uma certa historicidade com
o seu passado, “porque mostram que os elementos folclóricos, ao se preservarem, continuam a
139
Seu Valci Estevão Pires. Entrevista concedida em 25 mar. 2007.
140
Seu Lica. Entrevista concedida em 13 abr. 2007.
141
BOLETIM DA COMISSÃO CATARINENSE DE FOLCLORE, Florianópolis, n. 37, p. 107-108, 1987.
142
Seu Lica. Entrevista concedida em 13 abr. 2007.
60
desempenhar funções socialmente construídas nas estruturas e nas relações sociais através das
quais se mantêm”.
143
Para seu Lica, velho brincante no boi-de-mamão, o que se faz necessário é constituir a
sede como um espaço de ensinamentos,
[...] para ensinar essa gurizada mais nova [...] essa turma de gente nova, essa
gurizada nova não sabe nem o que é boi-de-mamão, não sabe mais nada. E
tem que saber brincar, aquela gurizada não sabe brincar [...].
Essas e outras memórias que esses velhos moradores, “o pessoal anterior” para seu
Catuto, ainda guardam desse bairro são recordações necessárias para demarcar os caminhos
da brincadeira do boi-de-mamão e estabelecer alguns passos dessas memórias brincantes: “a
memória é redundante: repete os símbolos para que a cidade comece a existir”.
144
Desses velhos moradores foi necessário resgatar a memória dos seus antigos costumes,
de suas antigas brincadeiras, da brincadeira do boi-de-mamão, entrelaçar essas lembranças de
maneira a delimitar como essa brincadeira foi festejada pela comunidade que a preserva
mais de 40 anos. “Se os grupos que nos deram ontem tantos mestres e que hoje são deitados
nos nossos corpos, se levantassem para marcar, eles mesmos, as suas idas e vindas nos textos
que os veneram, enterrando-os”.
145
Essas idas e vindas desse conhecimento perduram entre a comunidade numa relação
afetiva e simbólica com a brincadeira do boi-de-mamão, nesse ir e vir com os velhos e novos
brincantes à frente da brincadeira de forma que continue viva. A reflexão cotidiana dos
fazeres do grupo impõe perguntas para que a brincadeira sobreviva e viva das lembranças de
ontem e de um outro jeito de fazer, o de hoje. Para o velho brincante "seu Lica", a vida está na
organização em ensinar os novos de forma a garantir um jeito de brincar. Para o Miguel, a
ausência de financiamento das políticas públicas para a manutenção do grupo impede a saída
para brincar; e para os moradores do bairro, a ausência da brincadeira nos momentos em que a
comunidade se organiza para celebrar representa a falta de um fazer cultural.
falta de políticas culturais mais claras e efetivas que demarcam uma
impossibilidade de manter o grupo ativo. Pois o financiamento da brincadeira exige a
manutenção e a arrumação dos bichos. As contrariedades entre o significado e o conceito da
organização da brincadeira para o grupo e para os promotores de cultura são diferenciadas, o
143
FERNANDES, 1979, p. 38.
144
CALVINO, 2004, p. 23.
145
CERTEAU, 2003, p. 90.
61
que faz com que esses dissentimentos gerem muitas vezes a não participação no fazer cultura
popular pela cidade.
Para o superintendente da Fundação Franklin Cascaes, senhor Wilson Rosalino, essa
divergência é quase inevitável, pois
a cidade cresce e a cidade se expande, se torna cosmopolita e sim, a arte e
a cultura que essa cidade está produzindo não é mais aquela que produzia
dominantemente algumas cadas ou pelo menos um século. Ou seja,
um processo de substituição inexorável, um pouco inevitável.
146
Se hoje é inevitável esse olhar diferenciado de quem pensa a cultura para todos os
cantos desta cidade, em décadas anteriores, a partir desse movimento iniciado com o processo
de desenvolvimento da cidade, propositores da cultura, como o senhor Doralécio Soares,
foram alimentando a vida desses grupos propondo uma saída, a de recuperar as manifestações
folclóricas da cidade através do financiamento desse grupo folclórico.
Seu Machadinho, à frente na luta para garantir a brincadeira do boi-de-mamão “nas
festas de igreja, associações; nestes movimentos da comunidade”, considera que as práticas
culturais de financiamento determinadas pelos órgãos do governo não convergem com os
interesses da comunidade, pois “na realidade um bom profissional, não tem a verba mas tem
que mobilizar essa sociedade, e trazer verba para a sociedade, da própria vontade do povo [...]
é preciso esse toque especial, o administrador ter carinho e ter também ir à fonte [...]”.
147
“Ir à fonte”, conforme possibilidade assinalada pela comunidade, como nos diz seu
Machadinho, é a maneira de ver sua manifestação cultural, pois o entendimento do que seja
cultural tem na diferenciação conceitual um grande empecilho, aqui pela fala do
Superintendente da Fundação Franklin Cascaes.
Eu não acredito que uma fundação de cultura possa investir tudo nisso,
menos ainda que a cidade possa se voltar exclusivamente para isso. Isso
pode conviver, não sei quanto tempo [...] isto pode conviver com o moderno
de expressão cultural e artística e aí, existem coisas que são poderosíssimas,
pelo menos estão vindo para ficar nos próximos decênios.
148
Contrariamente a fala do organizador da cultura na cidade, que venha o poder do que
seja moderno na expressividade das culturas, pois a brincadeira do boi-de-mamão considerada
cultura popular, simplória, fica relegada aos cantos da cidade, pelos pátios das igrejas,
146
Senhor Wilson Rosalino dos Santos. Entrevista concedida em 3 out. 2007.
147
Seu Machadinho. Entrevista concedida em 11 jul. 2007.
148
Senhor Wilson Rosalino dos Santos. Entrevista concedida em 3 out. 2007.
62
associações e escolas. Acredito que nestes espaços de atuação destes sujeitos, ao se fazer
cultura popular, esteja o poder das cidades.
quando eu faço a brincadeira do boi-de-mamão eu estou contando uma
história, o problema está em saber quanto de significado novo, atual e
pujante essa história contém, a arte vigorosa é aquela que num certo
momento contém mais significado para as pessoas, isso faz mais sentido.
149
E esse novo sentido é pontuado ainda por um significado antigo, denso, que, atribuído
por um fazer coletivo, encontra-se na fala dos moradores sobre a brincadeira do boi-de-
mamão, que ocupa os seus espaços de sobrevivência, sendo um deles a unidade de educação
infantil, vindo a fazer parte de um calendário oficial quando da institucionalização do
Folclore, que será abordado a seguir.
1.6 Entre Folclore e educação
Como movimento de perpetuação das características nacionais que deveriam ser
preservadas e perpetuadas tem-se na escola a possibilidade de transmitir e ensinar tais
peculiaridades. Para Vilhena,
150
é pela educação que os folcloristas apontam uma das questões
primordiais na organização do poder nacionalizador da tradição, da preservação e da
manifestação do que era nacional.
Tendo-se como objetivo a perpetuação das manifestações folclóricas, a pesquisa
busca: identificar e mapear os fatos folclóricos e fundamentar os esforços contra a sua
descaracterização; e preservar para manter, guardar, proteger e perpetuar; aproveitar o
Folclore pela educação numa tentativa de não regressão das tradições populares.
Esse objetivo baseia-se na realização da I Semana Nacional do Folclore em 1948, cujo
tema foi “Folclore e Educação” a defesa a cargo de Cecília Meirelles, para quem,
diferentemente dos demais folcloristas, os estudos folclóricos deveriam entrar na educação,
como experiência educativa a atmosfera das crianças servindo como
instrumento de orientação da ação pedagógica e recreativa. Em seu
pronunciamento ela propôs que o folclore fosse vivido a cada dia, na sua
149
Senhor Wilson Rosalino dos Santos. Entrevista concedida em 3 out. 2007.
150
VILHENA, 1977.
63
realidade, justamente para assegurar a sua permanência e prosseguir na sua
evolução.
151
Apesar da proposta indicada por Cecília Meirelles pela introdução dos estudos
folclóricos como vivência sociocultural nas escolas, é através das idéias de identidade
nacional que seu uso é justificado, em que se desloca a espontaneidade característica das
manifestações de tradições folclóricas para a "artificialidade das atividades cívicas
celebratórias que passaram a ser denominadas nas escolas de folclore".
152
Assim é no governo de Castelo Branco, em 1965, que se institui o Dia do Folclore nas
escolas brasileiras, reduzido a uma forma enviesada dessas manifestações populares,
desconectadas do contexto social, histórico e cultural que as constituem. Em Santa Catarina,
Pedro Ivo Campos, quando deputado estadual, foi autor do projeto que deu origem à Lei n.
4.287, de 7 de abril de 1969, que institui o Dia do Folclore no Estado, em seu pronunciamento
na sessão de 21 de agosto de 1980, na câmara dos deputados, destacou:
a instituição da efeméride, que representa o reconhecimento da importância
do folclore na formação cultural do país, visa estimular, em todo o território
nacional, a investigação, os estudos e a sobrevivência das danças, dos
folguedos, das artes populares etc. considerados elos valiosos da
continuidade tradicional brasileira [...] assim, as mutações profundas que
caracterizam a evolução acelerada do mundo contemporâneo vêm
estimulando a preservação do patrimônio cultural dos povos, integrado por
símbolos e signos transmitidos através das artes, da literatura oral das
tradições diversas do artesanato, das crenças, dos mitos, dos folguedos, dos
usos e costumes, em suma, das diversas manifestações folclóricas [...].
153
O sociólogo Florestan Fernandes,
154
que reconhecia o valor educativo do Folclore
além de seu caráter de diversão, constituía a participação num sistema de idéias, sentimentos e
valores que, orientando seus comportamentos, ofereciam um campo significativo de
aprendizado para as crianças. Pois na educação através da participação em grupos sociais
aprende-se a agir como ser social e no contato com um mundo simbólico através do qual se
internalizam representações da vida e dos valores histórica e socialmente construídos.
Esse estudioso, preocupado com a recomendação dos folcloristas na introdução do
Folclore como disciplina acadêmica, discordava do uso deliberado do Folclore como técnica
de ensinar resultando numa folclorização das condições de existência dos indivíduos. Para
151
BORBA, 2005, p. 126.
152
BORBA, 2005, p. 127.
153
BOLETIM DA COMISSÃO CATARINENSE DE FOLCLORE, Florianópolis, ano XVII, p. 57-58, dez.
1980.
154
FERNANDES, 2003.
64
esse autor, “deve-se dar maior atenção às influências construtivas do folclore e aproveitá-las,
onde for possível, na educação sistemática. Porém, de forma criteriosa e independentemente
de complicação do currículo”.
155
E parece ter tido efeito à inclusão da comemoração da cultura popular nas escolas,
pois se observa uma prática instituída na comemoração da Semana do Folclore, na qual se
serem refeitos os passos desse quadro cultural. Canclini
156
pontua sobre o uso, a circulação e o
consumo da cultura, que também pode ser observada nessas práticas escolares: a
institucionalização do Folclore como objeto. A organização da prática cultural necessita ser
viva e pulsante, a criança precisa conviver com a sua história, pois como dizia Franklin
Cascaes:
Usar todas essas histórias açorianas, dos colonizadores da ilha de Santa
Catarina nos currículos das escolas, em vez de copiar ou imitar historinhas
estrangeiras! Ah se possível um dia? Essas histórias são autenticamente
brasileiras, catarinenses, como as histórias dos peixes [...]. Mas eu duvido!
157
Se não todas as histórias constituídas, mas se deve assumir essa obrigatoriedade como
espaço de formação de cultura e do processo de formação de sujeitos, como uma possibilidade
assinalada por esse pesquisador da cultura açoriana. É dele que a discussão irá tratar a seguir,
tentando esboçar o caminho trilhado e vivido na descoberta das histórias da colonização, das
músicas, das danças, enfim, da história que compõe os espaços desta cidade.
Entre as produções teóricas acerca do tema da cultura popular e da educação, cita-se o
estudo de Faria,
158
que analisa como foco central os parques infantis no Departamento de
Cultura da Prefeitura de São Paulo de 1935 a 1938, tendo a atuação de Mário de Andrade
decisiva na organização de espaços de educação para as crianças das classes operárias de
forma a garantir o direito à brincadeira e à cultura.
O Folclore tão em voga nos anos 40 era visto por Mário de Andrade como um
processo de conhecimento. Para esse intelectual, a criança não só aprende e consome a cultura
do seu tempo, como também produz cultura, seja a cultura infantil da sua classe, seja
reconstruindo a cultura à qual tem acesso. Assim, opondo-se ao ranço didático das
falsificações escolares da cultura, denunciava a moralização da coisa folclórica, em que a
155
FERNANDES, 2003, p. 68.
156
CANCLINI, 2006.
157
CASCAES apud CARUSO, 1997, p. 55.
158
FARIA, 2002.
65
"criança aprende a sua roda em casa ou na rua e vai encontrá-la na escola com modificações
de palavras e deformações de sentido".
159
Era contrário à produção das questões da educação infantil em posições
comportamentizadas do conhecimento e da cultura, esvaziando os seus significados mais
profundos quando restritas às questões didatizadas na escola. Sua importância é delimitada na
organização de espaços para a educação de crianças que garantiram criação e acesso à cultura.
Diferentemente dos folcloristas, "que pregavam a inclusão do folclore nos currículos
escolares e universitários como forma de incutir amor às coisas nacionais, portanto, apenas
como um conteúdo a ser ensinado".
160
Pesquisador da cultura popular, Florestan Fernandes, aliado de peso, vem corroborar
com estudos sobre a produção cultural das crianças no município de São Paulo nos anos 40,
analisando as trocinhas do Bom Retiro. Para esse sociólogo, o valor situado entre as tradições
culturais está no contato da criança com um mundo simbólico através do qual internaliza
representações da vida, do homem, dos sentimentos e dos valores histórica e socialmente
construídos. E essa aprendizagem se de forma espontânea e nas interações com os outros.
Porém, ao se didatizar o Folclore como técnica de educar passa-se a outro vel de reflexão,
pois desta forma é reduzido a um instrumento didático. Pois a criança aprende na rua, na
escola, ela entra em contato com um mundo simbólico que se perpetua pelo Folclore como
continuidade sociocultural.
São dessas fontes aqui apenas citadas que podemos afirmar que hoje a
institucionalização da Semana do Folclore acaba por perpetuar essas idéias pontuadas por
esses pesquisadores, pois a referência festiva da Semana do Folclore nas escolas apenas
assegura a idéia de um uso e de uma circulação da cultura, pois nas escolas se faz Folclore e
se aprende Folclore em semanas festivas e alusivas ao tema, em que grupos folclóricos são
chamados como mantenedores e representantes da cultura; uma cultura para ser na maioria
das vezes somente vista, como um espetáculo.
E os grupos de boi-de-mamão pela cidade, instituídos como representantes de uma
cultura que se expressa pela oralidade, reservam lampejos de continuidade por uma
brincadeira como forma de representação de um jeito de fazer e de uma maneira de ser da
comunidade, que brincou tanto pelas estradas do bairro e pelas estradas do Estado,
significando uma cultura popular de sentido e existência.
159
FARIA, 2002, p. 14.
160
FARIA, 2002, p. 150.
66
Essa comunidade que, existindo ou tentando resistir ao processo de desenvolvimento
do bairro, vai pedindo a aparição do boi-de-mamão nos espaços que restaram pela
desconfiguração das suas ruas e estradas. Resiste quando critica a falta de políticas públicas
de financiamento para que a brincadeira represente um povo, um jeito de ser da cidade; resiste
quando sugere formas de participação de quem quiser aprender a brincadeira do boi; resiste
quando velhos moradores do bairro relembrando exigem a sua presença; resiste quando
promove a descoberta para brincar em outros espaços, um deles o espaço da escola de
educação infantil.
E desse jeito de adentrar neste espaço como Folclore, como cultura popular de que
precisamos falar, que permaneça também em dias festivos, pois muitas vezes somente desta
maneira as crianças se percebam sujeitos que possuem culturas e talvez façam a diferença
para um professor mais atento, para uma unidade educativa que garanta em seu projeto
político-pedagógico a história cultural de seus sujeitos, as crianças.
E é esse processo mais atento às falas da comunidade que será abordado a seguir...
67
2 UM JEITO DE A BRINCADEIRA DO BOI-DE-MAMÃO ADENTRAR
NO ESPAÇO DE EDUCAÇÃO
O objetivo deste capítulo é uma tentativa de compreender como a cultura popular entra
e adentra nos espaços de uma unidade educativa de educação infantil. No capítulo anterior
tentou-se esboçar e compreender o processo de significação da brincadeira do boi-de-mamão
pelo bairro e neste entender a manifestação da brincadeira na história dos sujeitos quando
estes participam de um espaço de educação formal, a educação infantil na Rede Municipal de
Educação.
Educação, cultura popular e recriação da cultura. Como a cultura se instala e
proporciona elementos significativos na elaboração de projetos de trabalho num espaço de
educação na comunidade? E então fica a indagação de como que se organizam os fazeres
educativo-pedagógicos de uma unidade de educação infantil na perspectiva para definir seus
parâmetros de qualidade destinados ao cuidado e à educação de crianças, tendo na cultura
popular um dos seus alicerces, um tom para que se promova a participação das famílias nesse
processo de formação.
Nesses processos de significação da cultura e na produção de conhecimentos
organizados e construídos nesses espaços de educação que coube a participação das famílias,
com suas experiências de vida, suas lembranças, num processo de garantia de continuidade
com uma história vivida ou por viver. E essa existência é subjetiva e objetiva, pois, ao lidar
com as emoções, a brincadeira do boi-de-mamão mostrou pelos "diálogos dos brincantes"
161
que adentra nos espaços nos quais é chamada a participar e dos quais de certa forma se
apodera. E assim se apoderou das lembranças e das memórias das brincadeiras da infância, da
adolescência, da velhice.
Essa subjetividade é parte e condição na organização de uma relação muito próxima e
necessária com os adultos, que se responsabilizam por esse processo de educar sujeitos; e é
aqui que as crianças se apresentam como sujeitos de plenos direitos para usufruírem das
histórias, para participarem das lembranças construídas no seu cotidiano, na sua comunidade
por outros e pelos outros.
A finalidade a seguir é delimitar na organização de projeto político da Secretaria
Municipal de Educação de Florianópolis no período de 1995 a 2004 as possibilidades de se
pensar um projeto de educação diferenciado no atendimento às crianças. Aqui é delimitada a
161
Conceitos sinalizados no capitulo anterior.
68
prática educativo-pedagógica de um espaço de educação infantil que tenta na sua história
diferenciar seu atendimento, esboçando critérios de qualidade a partir das falas e da
participação das famílias como co-responsáveis pelo processo de educação.
2.1 O contexto político e a configuração de propostas para a rede municipal
A configuração de um projeto de educação para as unidades educativas municipais
perpassa fundamentalmente pelo viés político das respectivas administrações públicas. Toda
organização da educação é um ato político, e políticas são as decisões que configuram os
projetos educacionais para os habitantes da cidade. A luta pela democratização da escola
pública está atrelada ao intenso movimento da década de 80, iniciado com a redemocratização
brasileira com o fim da Ditadura Militar, ressurgindo com a luta do povo brasileiro pela
liberdade de escolha na representação política e social de seus governantes.
Na Capital do Estado; Florianópolis, o contexto não é diferenciado do restante do País,
articulado pela mobilização dos professores da universidade, pela organização dos
movimentos sociais ligados à igreja e de grupos políticos progressistas, na clara intenção de
romper com o poder representado por uma oligarquia que anos seguidos somente se revezava
no poder.
Mendonça
162
, pesquisador que analisou a participação popular na cidade neste período,
descreve como esse movimento demarcado pela “politização dos sindicatos e dos meios
universitários e culturais tem criado, nos segmentos mais organizados da sociedade, um
anseio por mais participação nas decisões do estado, tornando essas decisões mais
democráticas”.
Nesse processo de democratização, a organização que se iniciava na cidade, pelo viés
da participação dos movimentos de esquerda que pleiteavam a escolha de seus representantes
políticos, vai delineando na Capital a organização de grupos que lutavam pela garantia de
direitos sociais e pela cidadania, acabando por instituir uma ampla reforma do quadro político
da Capital, acostumado aos revezamentos instituídos pelas oligarquias costumeiras.
Assim é que a configuração política da década de 80 vai ser marcada pela intensa luta
pelo poder em Florianópolis. Esperidião Amin, então governador, indica pelo voto indireto
162
MENDONÇA, 1998, p. 1.
69
Cláudio Ávila da Silva a prefeito da Capital, que permanece no cargo um ano e oito meses,
após esse período deixa o cargo para ingressar na recém-criada Frente Liberal na ruptura de
Jorge Bornhausen com o PDS. Com a saída de Cláudio Ávila da Silva, assume a Prefeitura de
Florianópolis por 10 dias o presidente da Câmara, que esperava a nova eleição para
Presidência.
Na verdade, a luta pelo poder em Santa Catarina já foi deflagrada e a primeira batalha
vai ocorrer no dia primeiro de fevereiro, quando da eleição do novo presidente da câmara
municipal”.
163
Assim é deflagrada essa batalha, esse movimento de disputa política entre o
governador do Estado e o recém-criado PFL indicando uma aliança entre PMDB, Frente
Liberal e as alas progressistas. Para Vera Gaspar da Silva,
164
o interesse em apropriar-se ou
manter o domínio sobre esse significativo espaço de projeção política, nos bastidores, os
partidos políticos irmanaram-se, consolidando articulações estranhas na aparência, mas
justificáveis na sua essência.
Se justificadas são as alianças pela disputa do poder, é no dia 2 de fevereiro de 1985
que Aloísio Acácio Piazza e o PMDB assumem, após 21 anos de oposição, a Prefeitura da
Capital. Defensor das diretas para Presidente, o então prefeito eleito indiretamente assume a
grande tarefa de diferenciar para a cidade a organização de um plano de ação que restabeleça
os anseios da comunidade e de seu partido, com a intenção de concorrer ao pleito no mês de
novembro do mesmo ano, quando seriam realizadas as primeiras eleições com a participação
do voto popular à administração municipal.
Com o intento de definir políticas mais claras e alterar os projetos políticos
clientelistas assumidos até então para a cidade, o prefeito Aloísio Piazza indica para a pasta da
educação a professora Eglê Malheiros, que alinhava grandes possibilidades progressistas de se
pensar um projeto de educação pública para essa cidade, assim "fizeram uma proposta
articulada com uma pedagogia de mudança, democrática. Então tinha esse foco trabalhando
numa perspectiva de mudança".
165
Em entrevista a um jornal de circulação no dia 5 de fevereiro de 1985, dia em que
tomou posse da pasta da Educação, Eglê Malheiros declarou como ponto central de sua
administração fazer com que os professores participassem mais da política relacionada com o
163
O ESTADO, 20 jan. 1985.
164
SILVA, 1993, p. 6.
165
Telma Piacentini. Entrevista concedida em set. 2007.
70
ensino, para tanto pensava nas eleições diretas para diretores das escolas básicas como
fundamental para garantir uma participação mais efetiva.
166
Esse critério de participação que começa a ser delineado para a efetivação de um papel
social assumido pelo professor lhe é assegurado por melhores condições de trabalho a partir
do aparelhamento das escolas e de políticas salariais, segundo a secretária Eglê Malheiros,
pela necessidade de agilização do estatuto do magistério municipal e do plano de cargos e
salários. “Onde o professor deixará de ser um mero executor de tarefas habituais e participará
das decisões gerais relacionadas à educação”.
167
O atrelamento do Departamento da Educação à Secretaria de Educação, Saúde e
Desenvolvimento Social dificultou a agilização de projetos específicos para a área de
educação pela insuficiência de recursos ligados a duas outras secretarias. Começa nessa
gestão a ser delineado um quadro efetivo para a futura Secretaria da Educação, com recursos
próprios que virão a ser efetivados na gestão do próximo prefeito. Assim, a criação da
Secretaria da Educação é aprovada no dia 30 de dezembro de 1985.
Desta forma, em 1986, após a organização de vários movimentos sociais e políticos,
Edison Andrino é eleito, e são eleitas as reivindicações de um governo que se diferencia das
oligarquias, que nos governos anteriores se revezavam pelo poder administrativo e político da
Capital do Estado. Assim, o novo prefeito denomina sua nova função: “O prefeito apenas
segura o leme quem vai levar o barco da prefeitura se o esforço de todos funcionários e
comunidade que vão decidir junto conosco as metas e iniciativas que a administração vai
tomar”.
168
O referendo do voto popular, que indicou o desejo da população de
Florianópolis de alteração do exercício do poder político municipal, levou a
nova administração a empreender esforços no intuito de atender as
necessidades da população já muito apontadas nos discursos políticos,
mas que careciam de iniciativas mais contundentes.
169
Com esse resultado, Florianópolis representou uma cidade que, querendo
transformação, vinha rompendo suas ligações com o passado tradicional e desejando uma
nova organização para a cidade.
166
O ESTADO, p. 5, 5 fev. 1985.
167
O ESTADO, p. 5, 5 fev. 1985.
168
O ESTADO, 8 jan. 1986.
169
SILVA, 1993, p. 13.
71
O prefeito foi eleito com a proposta de tornar democrático o executivo
municipal, através de um envolvimento dos movimentos comunitários e
sociais na administração municipal. Este processo surgiu a partir da
institucionalização de discussões que o prefeito mantinha semanalmente com
os movimentos comunitários.
170
Atrelado aos movimentos de luta pela garantia de escola pública extensiva a todos, o
governo de Edison Andrino, comprometido com a construção de um projeto progressista para
a educação, convida a professora Telma Piacentini, pedagoga, militante nos movimentos
sociais na cidade e professora da UFSC, a assumir como secretária da Educação, com o
compromisso de constituir a estrutura, bem como definir a linha político-pedagógica da
recém-criada Secretaria da Educação. Assim se refere à professora Telma Piacentini:
Eu vinha de um movimento grande a nível nacional e estadual de
educadores, era uma época de luta contra a ditadura militar, de proposta de
uma nova escola, de uma nova educação, isso era muito claro. A proposta foi
organizada em cima dessa passagem da sociedade da ditadura militar para
uma sociedade democrática [...] propomos uma educação integral para a
formação de uma sociedade democrática, isso como fruto de um trabalho
coletivo.
171
A indicação da referida professora militante na luta pela democratização da escola
pública vai representar a efetivação na organização da estrutura da Secretaria da Educação, da
constituição de alguns parâmetros democráticos e de mudança: o caráter educativo instituído
na educação infantil ao trazê-la para a Secretaria da Educação, a instituição do auxiliar de sala
e a organização do número de crianças por grupo de atendimento, resultando na criação de
referências diferenciadas ainda hoje do que é indicativo sugerido pelo MEC em relação ao
número de crianças atendidas em cada grupo.
Para Luciana Ostetto,
172
a educação infantil pública municipal mesmo acompanhando
as tendências nacionais, quando iniciada, resguarda certas particularidades, principalmente na
sua vinculação à Secretaria Municipal de Educação, sendo comum a maioria das instituições
estarem “vinculadas às Secretarias do Bem Estar Social, da Família, Promoção Social e
congêneres”. Em Florianópolis, “veremos uma distinção com relação a outros municípios e
estados brasileiros: os profissionais contratados são professores, desde o projeto inicial”.
É certo que a manutenção desses referidos critérios no atendimento da educação
infantil municipal gerou e gera inúmeros entraves políticos por parte dos administradores
170
MENDONÇA, 1998, p. 4.
171
Telma Piacentini. Entrevista concedida em set. 2007.
172
OSTETTO, 2000, p. 28-29.
72
municipais, que vêem na adequação do número de crianças a possibilidade de ampliar o
número de vagas, cuja reivindicação é cobrança da sociedade.
As discussões geradas para a garantia de permanência dessa organização mobilizam
profissionais que atuam nessa modalidade de educação, cuja mobilidade permite ao corpo das
instituições pensar e repensar sua prática educativa. O histórico de luta na garantia do
atendimento na educação infantil ainda é campo suscetível de muitas batalhas políticas e
sociais, mas se acredita que a qualificação da prática educativa garante a continuidade de sua
construção para o reconhecimento prioritário na fala e nas ações dos que governam.
2.1.1 A constituição de propostas político-pedagógicas para a educação das crianças
Nessa época, em 1987, a efetivação na elaboração de um projeto de educação para a
cidade vem demarcada por objetivos que visavam à construção da qualidade e da
democratização da escola pública. Ao assumir a recém-criada Secretaria da Educação, a
secretária afirma que
quanto a administração da nova secretaria, Telma diz que tem que ser como
uma caixa de ressonância do que existe de melhor. um ritual pedagógico
que a gente está querendo construir [...] criar um espaço cheio de vida, em
que o aprendizado tenha força, com participação, saúde mental, troca,
vivência no momento pedagógico [...] uma escola tem que ser colorida, cheia
de humor, não se pode separar o ensino da alegria.
173
“[...] uma escola tem que ser colorida, cheia de humor”; a partir de uma estrutura a
Secretaria foi pensada de forma a atender às demandas de um referencial que integrasse a
educação num projeto político-pedagógico e que cada instituição educativa assim o
elaborasse, de acordo com
o tipo de escola que se quer e o que fazer para essa escola possa ser
desenvolvida, até numa perspectiva cultural mais ampla da cultura local [...]
acabar com a divisão onde a secretaria é uma coisa e a escola é outra, criar
uma rede de relações, o canal foi criado e até onde eu pude acompanhar
provocou mudanças, eu fui naquele encontro dos 30 anos
174
e você cada
escola com a sua proposta pedagógica, para mim é uma grande satisfação,
173
O ESTADO, 10 jan. 1986.
174
Refere-se à comemoração dos 30 anos da educação infantil no município em 2006, quando foi convidada a
participar.
73
que as idéias se transformaram, são ações. [...] não é a prática pela prática, a
prática articulada a uma teoria.
175
A efetivação desse projeto político-pedagógico, passados quase 20 anos, como
percebido pela ex-secretária, demonstra que as ações pensadas foram sendo postas em prática,
e é no decorrer da constituição histórica da escola pública municipal e na construção da
prática educativa que as instituições de educação esboçaram um quadro de qualidade e de
participação da comunidade, principalmente na efetivação das eleições para diretores e na
constituição de espaços de decisões como os conselhos de escolas, que serão práticas
democráticas instituídas ao longo dos anos.
A efetividade do projeto político-pedagógico com as metas para a educação no período
de 1986−1989 está detalhada e analisada na produção teórica: por trás das palavras da
pesquisadora Vera Lúcia Gaspar da Silva,
176
que analisa a perspectiva progressista desse
projeto de educação para a população da cidade.
Feitas as considerações, é na Secretaria da Educação com a criação da Divisão de
Educação Pré-Escolar que a organização e a estrutura dessa modalidade da educação vão
tomando corpo e visibilidade. Propostas pedagógicas são formuladas e há a organização de
um quadro efetivo de professores com habilitação específica e de auxiliares de sala, cuja
formação era assegurada em cursos de aperfeiçoamento na área.
Assim é que nesse período de 1986−1989 a Divisão de Educação Pré-Escolar (DEPE),
traçando um plano de ação, em que as diretrizes básicas se concentravam principalmente no
investimento da formação dos profissionais, visto que muitos possuíam formação até o
grau, e na proposta político-pedagógica, pontuava o caráter educativo das unidades de
educação, pois,
Negando a pré-escola, como depósito de criança, como preparação exclusiva
para o ensino de 1 grau, como corretora das carências sociais, postulamos
que sua função reside, justamente no seu caráter educativo, enquanto espaço
que possibilita e contribui para a construção da autonomia moral e cognitiva
da criança.
177
[...] quando tinha aqueles encontros maiores com professores, eram
trabalhadas estas questões nas entrelinhas, pelo menos na construção da
175
Telma Piacentini. Entrevista concedida em set. 2007.
176
SILVA, 1993.
177
SECRETARIA MUNICIAL DE EDUCAÇÃO. Síntese da proposta político-pedagógica da Divisão de
Educação Pré-Escolar (DEPE). Florianópolis, 1987.
74
disciplina intelectual. Era uma opção enquanto secretaria, enquanto projeto
para a educação.
178
É nas entrelinhas de um projeto como meta de uma secretaria que, construindo uma
opção política, vai-se delineando um caráter pedagógico para as unidades de educação infantil
da rede. A não vinculação à assistência social
179
assinala uma diferenciação como espaço de
educação em busca da regulamentação sob a responsabilidade da Secretaria da Educação, em
vez das questões relacionadas somente às compensações das carências econômicas ou sociais.
Assim, a DEPE configura uma outra função para o profissional, pois,
Sendo os professores aqueles profissionais envolvidos na relação direta com
as crianças e sendo estes, sujeitos historicamente determinados é importante
investir na sua formação, no sentido de possibilitar-lhes que caminhem para
a construção de uma visão de mundo e de criança. De modo que, lhe permite
exercer uma prática reflexiva, compreendendo o que a criança necessita para
sua formação enquanto sujeito de seu conhecimento.
180
É num contexto de construção de políticas para o atendimento das crianças em
instituições educativas que, nessa perspectiva, a pré-escola municipal cumpre uma função
pedagógica no momento que possibilita um trabalho que toma a realidade e os conhecimentos
infantis como ponto de partida e os amplia através de atividades significativas, dando um
significado concreto para as suas vidas,
181
diferenciando-se do entendimento de supressão de
carências atribuídas às crianças pelos órgãos governamentais.
[...] mesmo com todo o romantismo que as pessoas traziam, mas havia um
foco, um planejamento, observação. Quais os conflitos, quais as brincadeiras
no parque, as brincadeiras de sala e as falas na roda. O que eles trazem, o
que eles evidenciam. Então, isso é realmente fazer um planejamento e a
criança participar deste planejamento.
182
[...] na época dele parece que tudo era gostoso, tudo era diferente mesmo.
Devido a carga horária que ele deu pra gente, foi muito bom. Na época do
Andrino, foi uma época muito boa. [...] a gente tinha esses cursos, agora não
tem mais. A gente tinha mais espaço.
183
178
Joana. Entrevista concedida em 4 out. 2007.
179
Até esta data a dotação orçamentária para a manutenção das creches e NEIs já existentes era vinculada à área
de assistência social e convênios com a LBA.
180
SECRETARIA MUNICIAL DE EDUCAÇÃO. Síntese da proposta político-pedagógica da Divisão de
Educação Pré-Escolar (DEPE). Florianópolis, 1987.
181
Ver: Educação Infantil em Florianópolis, em que a pesquisadora Luciana Ostetto identificou desde a
criação da rede municipal de educação infantil, os programas político-pedagógicos elaborados em cada período,
até a gestão da Frente Popular em 1996.
182
Joana. Entrevista concedida em 4 out. 2007. Atua no NEI desde 1987.
183
Feiticeira. Entrevista concedida em out. 2007. Atua no NEI desde 1982.
75
eu nunca trabalhei com crianças e não fazia idéia. Talvez por ser mãe
mesmo, o espírito materno da própria natureza. No começo a gente fazia
muito pelas crianças botava os pratos para eles, a gente fazia para eles e a
gente começou a estudar e ver o próprio caminho, uma mudança, eu
aprendi.
184
Essas considerações sinalizadas pelas antigas profissionais da unidade educativa
demarcam uma diferenciação no atendimento, possibilitada pela observação e pela autonomia
ao ter mais espaço, conquistado pela participação em cursos de formação, o que proporcionou
um processo de construções coletivizadas, pois não era um projeto de gestão, não tinha isso
na época [...] porque nós sempre fizemos um projeto pautado na nossa vivência, do que se
queria para a escola”.
185
As auxiliares de sala sem formação específica garantem que é na
participação de cursos de formação continuada em serviço que este “espírito materno” é
delineado, organizado, pois provoca mudança possibilitando um outro fazer.
A delimitação do processo de formação continuada em serviço para os profissionais da
educação infantil possibilitou a configuração de espaços de aprendizados, “no começo a gente
fazia muito pelas crianças, botava os pratos para eles, a gente fazia para eles e a gente
começou a estudar”. Para Sônia Kramer,
186
é somente neste processo que a teoria, os estudos,
as discussões se misturam, costuram os conhecimentos, vivências aos saberes que vêm com a
prática.
Esses saberes são costurados pelas observações das manifestações infantis e pela
percepção da sua prática, do seu fazer, como relações necessárias na construção dos processos
de autonomia das crianças e dos profissionais. É nessa relação de diálogo que esse
profissional percebe a sua intenção na prática educativa e aprende, construindo outras
interações junto ao processo de conhecimento, tanto das crianças como o seu próprio. Se o
foco de planejamento era pertinente como conteúdo de sua história, conteúdo do sujeito, essas
observações possibilitavam a configuração de um planejamento em que as crianças passavam
a ser o ponto central na organização dos tempos e dos espaços das instituições educativas.
Crê-se que essa intencionalidade num olhar diferenciado possibilitado a partir de um
referencial teórico, pela e através da observação das crianças, é que os profissionais possam ir
modificando a sua prática, abandonando a postura de trabalhar para as crianças e sim trabalhar
184
Dona Maricota. Entrevista concedida em 4 out. 2007. Atua no NEI desde 1987.
185
Joana. Entrevista concedida em 4 out. 2007.
186
KRAMER, 2002.
76
com as crianças, pois "a história contada e a prática refletida são a substância viva dos
processos de formação".
187
Esse tempo de reflexão do que é vivido, do que faz parte do cotidiano nos espaços de
educação, é um tempo diferenciado das questões e das diretrizes administrativas. Pois essa
"substância viva" provoca e possibilita mudanças cotidianamente. Mas essas mudanças nos
tempos e nos espaços no cotidiano das instituições educativas sofrem com a alteração de
referências políticas e pedagógicas em cada troca de gestão municipal; é assim que, após o
governo Andrino, assumiu a Prefeitura municipal para o exercício de 1989−1990 o prefeito
eleito Esperidião Amin.
Nesse período, com a promulgação da Constituição de 1988, a educação infantil é
garantida como um direito da criança, das mulheres e dos homens trabalhadores. Ao ser
instituída com um caráter educativo, recebe via dotação orçamentária do Governo Federal,
sendo os recursos destinados para a manutenção e a elaboração do planejamento dos
programas de formação continuada em serviço. Assim é que a DEPE prevê na organização do
seu plano de ação o programa nacional “Menino, quem foi teu mestre?” de forma que
propostas pedagógicas garantissem um projeto norteador para a educação infantil.
Com novas diretrizes político-pedagógicas para a educação pré-escolar. A
orientação, embasada no Programa Menino Quem foi teu Mestre, do MEC
passou a ser elaborada pelos diretores, em reuniões individuais, grupos de
estudos, encontros, seminários e cursos de formação e atualização.
188
Para Luciana Ostetto,
189
essa indicação significou uma descontinuidade com o projeto
efetivado na gestão anterior, haja vista a não sistematização em termos de uma proposta
pedagógica, mas sim várias orientações quanto ao caráter pedagógico da pré-escola,
atribuindo-lhe um papel de ensino−aprendizagem e assumindo um caráter de preparação para
a educação fundamental, uma vez que indicava conteúdos a serem trabalhados por áreas de
conhecimento pela função de antecipação, restando saber quais antecipações seria necessário
antever.
Moises kuhlmann,
190
ao abordar a perspectiva histórica do atendimento à criança,
alerta para o grande erro em que na ênfase de garantir as questões educacionais
desconsiderou-se o atendimento à questão da assistência aos cuidados vitais. Para o autor,
187
KRAMER, 2002, p. 119.
188
SECRETARIA MUNICIAL DE EDUCAÇÃO. Encarte comemorativo aos 30 anos da rede de educação
infantil de Florianópolis. 2006.
189
OSTETTO, 2000.
190
KUHLMANN, 1998.
77
essa idéia ainda permanece generalizada no pensamento educacional, fragilizando as
propostas e as ações.
Essa fragilidade entre educar e cuidar
191
também pode ser sentida quando se tenta
desconsiderar o caráter social de atendimento às necessidades sociais das famílias
trabalhadoras. Para o autor, a creche passou a ser uma conquista, ela é o resultado, um
símbolo concreto dessas lutas: o movimento popular e as reivindicações das feministas
colocaram a creche na ordem do dia.
192
Para além do direito da mãe e do pai trabalhador, o que se faz necessário é que se
compreenda que, para além de um favor, a garantia de atendimento às crianças das classes
mais empobrecidas, como um direito do que lhe é negado, é uma possibilidade de lhe atribuir
significação no seu tempo de infância. Em muitos casos, somente esses espaços garantem
alguma dignidade às crianças, o que não significa responsabilizar as famílias, mas sim a
miserabilidade que o sistema econômico nos impõe.
Sônia Kramer,
193
pesquisadora sobre a infância, vem contribuir afirmando que as
políticas públicas são cruciais para a idéia da educação da infância, não somente como um
direito social mas também como um direito humano. Salienta a pesquisadora, “Como direito
humano porque representa uma contribuição, dentre outras, em contextos de violenta
socialização urbana como os nossos, que se configura como essencial para que seja possível
assegurar uma vida digna a todas as crianças”.
É nesse movimento de luta pelo direito social e humano à educação das crianças e das
mulheres trabalhadoras que na ordem do dia foram lançados com a promulgação da
Constituição de 1988 o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei de Diretrizes de Bases da
Educação Nacional de 1996. Se a partir dessas instâncias deliberativas as crianças são
instituídas como sujeito público de direitos, hoje a luta é pela universalização do atendimento
a todos os meninos e meninas, de quaisquer classes.
Proclamada na lei como sendo de dever e responsabilidade do Estado, passa a
educação infantil a ser atrelada à receita orçamentária dos municípios,
194
em regime de
colaboração com os governos estaduais e federais por subsídios, o que não significou
191
Quando sinalizadas, essas funções acabaram gerando algumas controvérsias, alguns autores como Fúlvia
Rosemberg e Sônia Kramer pontuam discussões entre educar e cuidar.
192
KULHMANN, 1998, p. 198.
193
KRAMER; BAZÍLIO, 2006, p. 56.
194
Aos municípios compete organizar, manter e desenvolver os órgãos e as instituições oficiais dos seus sistemas
de ensino, integrando-os às políticas e aos planos educacionais da União e dos Estados e oferecer a educação
infantil em creches e pré-escolas, entre outras atribuições. Cabe aos estados, entre outras atribuições, elaborar e
executar políticas e planos educacionais em consonância com as diretrizes e os planos nacionais de educação,
integrando e coordenando as suas ações e as dos seus municípios.
78
mudanças muito contundentes, uma vez que fica atrelada a não obrigatoriedade da oferta de
vagas à população de zero a seis anos. Para Maria da Graça Souza Horn,
195
nessa trajetória,
toda a política de educação infantil emanada do poder público se caracterizou como um jogo
de empurra-empurra para quem se responsabilizasse pelo financiamento e pela manutenção da
rede de educação infantil.
Esse jogo de empurra-empurra pela não obrigatoriedade à garantia do atendimento e
pela falta de políticas públicas que assegurem sua efetiva manutenção, para Kuhlmann,
196
significou a desvalorização que penetrou a escola pública em nosso país,
desmantelada pelo descaso de sucessivos governos, fazer parte do sistema de
educação publica é quase o mesmo que fazer parte de um sistema que se
tornou exclusivo para a educação dos pobres.
Se por um lado a creche, desde a sua criação, garante às mulheres trabalhadoras a
guarda de seus filhos em instituições educativas, por outro, não é legítima a corporificação de
um atendimento empobrecido, por ser destinada na sua grande maioria à classe
desprivilegiada. Pois, em nível nacional a configuração das funções político-pedagógicas da
educação infantil é debate singular entre os movimentos sociais e entre os órgãos oficiais na
elaboração de políticas públicas.
Assim são vários os estudos que analisam políticas públicas para a infância
197
no
cenário nacional e em especial as funções que, atreladas à compensação da falta de
obrigatoriedade no atendimento, mostram-se precárias e defasadas. Assim são definidos os
programas oficiais, que ora compensam as carências alimentares e afetivas, ora preparam para
a educação subseqüente.
Lenira Haddad
198
diz ser urgente que nos discursos oficiais haja uma reestruturação no
sentido de romper com as polaridades marcadas tradicionalmente pela alternância entre o
cuidado custodial e o enfoque escolarizante, pela ênfase ora nos direitos da família, ora nos
direitos da criança, que acaba provocando cisões entre cuidar e educar, corpo e mente, família
e instituição, acentuando a separação entre o ambiente educacional e a vida fora dele.
E a partir dessa relação contraditória que análises da constituição de propostas
pedagógicas pelas administrações públicas municipais devem ser previstas, como reflexos das
políticas nacionais em relação ao financiamento e à manutenção da educação infantil. Desta
195
HORN, 2007.
196
KUHLMANN, 1998, p. 204-205.
197
Ver estudos de Kulmann (1998), que refazem historicamente a construção desse atendimento às crianças
pequenas, contextualizando-as num cenário político.
198
HADDAD, 2002.
79
maneira, a efetivação de diretrizes educativo-pedagógicas fica atrelada às políticas nacionais,
por órgãos responsáveis na formulação de políticas públicas.
199
É nesse bojo do cenário nacional na definição das diretrizes para essa modalidade do
ensino que assume no município de Florianópolis, em 1993, uma gestão da Frente Popular. A
Secretaria Municipal de Educação, colocando-se como animadora no processo de reorientação
curricular, estabelece como diretrizes: a democratização da gestão, a democratização do
acesso, a política de educação de jovens e adultos e uma nova qualidade de ensino.
Em 1994, com base na pedagogia Histórico-crítica, foi instaurado o
Movimento de Reorientação Curricular que representava uma possibilidade
de repensar e refazer o currículo da RME. Objetivava a participação de todos
os profissionais da educação no seu processo de elaboração para tomar
corpo, forma e conteúdo nas salas de aula das escolas, creches e NEIs.
200
No documento de reorientação curricular elaborado pela gestão da Frente Popular,
o entendimento da educação infantil como um espaço socioeducativo, de caráter coletivo,
diferente e complementar à família, compreendendo a criança como sujeito ativo, criativo e
capaz. Orienta que, a partir da função indissociável entre educar e cuidar, deve-se refletir
sobre as ações educativo-pedagógicas, em que a creche ou o NEI que
fundamenta este Projeto de Trabalho deve estar baseada na diversidade
cultural, devendo ter representados todos os interesses da comunidade.
Para que isto aconteça é preciso que seja um espaço aberto ao diálogo e
posicionamento dos pais, crianças, profissionais da educação e SME.
201
É nesse espaço aberto de diálogo, proposto pela equipe central da Secretaria, que vai
delineando-se uma organização diferenciada. Optando por uma perspectiva sociocultural,
predispõe alguns conceitos que de certa forma provocaram a prática educativa dos
profissionais e solicitaram através de mecanismos de participação das famílias que se
apropriassem desse processo, pela eleição direta para diretores, extensivos às creches e aos
NEIs, pelos conselhos escolares e pela organização das APPs.
Assim é que na organização do cotidiano das unidades educativas são reformuladas
antigas práticas de antigos conceitos, pois o entendimento da criança como sujeito social de
199
Sobre a análise na formulação de políticas públicas para a educação infantil, ver os estudos de Fúlvia
Rosemberg (1995), entre outros.
200
SECRETARIA MUNICIAL DE EDUCAÇÃO. Divisão de Educação Infantil (DEI). Encarte comemorativo
aos 30 anos da rede de educação infantil de Florianópolis. 2006.
201
SECRETARIA MUNICIAL DE EDUCAÇÃO. Traduzindo em ações: das diretrizes a uma proposta
curricular. Florianópolis, 1996.
80
direito lhe garantia a participação e sujeição de um planejamento mais singular e de acordo
com a fala da comunidade. Desta forma é que nesse processo de organização caberia ao
professor a
seleção e definição dos temas a serem desenvolvidos, envolvendo a
brincadeira, a linguagem e a contribuição das áreas do conhecimento, vistas
como recorte da vida cultural e do trabalho adulto [...] podendo ampliar os
espaços de atividades, explorando as características peculiares de seu bairro
e cidade.
202
A redefinição de diretrizes educativo-pedagógicas vem acompanhada da instauração
de um amplo debate de discussões e elaboração de propostas pedagógicas para as unidades
educativas, pois é “entendida como um espaço sócio-educativo, de caráter coletivo, diferente
do espaço familiar”
203
e de complementaridade no processo de formação desse sujeito de
direitos: as crianças.
Estabelecidas as diretrizes do ensino por essa administração municipal, em que um dos
focos é a qualidade de ensino, é na qualificação dos profissionais da educação que se
demarcou o princípio educativo, pois a participação em grandes seminários e a formação
continuada
204
em serviço buscaram democratizar e ampliar o debate e o diálogo entre os
educadores da rede.
Atrelada às políticas instituídas pelos órgãos federais, a nova administração municipal
no período de 1997−2004 tem estabelecido os seguintes princípios
205
para a educação infantil:
a criança como sujeito social dos direitos; a pedagogia da infância; a co-participação
instituição e família; e o desenvolvimento das múltiplas dimensões. É de um tempo e de uma
organização que será tratado a seguir, delimitando as elaborações de projetos educativos
instituídos num espaço de educação infantil da rede municipal, desde a sua fundação.
Assim é que nesse processo se propõe a analisar a efetivação das práticas educativas
desse espaço de educação infantil num movimento de profundas (re)significações quanto ao
papel dessa instituição na comunidade. Ao abordar essas singularidades em torno da
202
SECRETARIA MUNICIAL DE EDUCAÇÃO. Em debate: documento preliminar da Educação Infantil.
Florianópolis, 1995.
203
SECRETARIA MUNICIAL DE EDUCAÇÃO. Em debate: documento preliminar da Educação Infantil.
Florianópolis, 1995.
204
Ver FERNANDES, Sonia. Grupos de formação: análise de um processo de formação em serviço sob a
perspectiva dos professores da educação infantil. Dissertação (Mestrado) − Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, 2000.
205
A formação em serviço constituída neste período pode ser analisada no documento Síntese da Educação
Infantil, de 2000, em que são delimitadas as questões teóricas referentes a cada um dos eixos organizadores da
prática nas instituições de educação infantil.
81
manifestação do boi-de-mamão, esta unidade educativa é composta de profissionais que,
unindo-se comunitariamente, elegem uma forma de diferenciar o seu fazer.
E com esse fazer boi-de-mamão com um ouvido atento ao que pulsa de significativo e
produz uma rede de pertencimento, de partilha, de conquista, de perdas e ganhos com uma
história que os profissionais estão aprendendo juntos, a elaborar a qualificação para a
educação da infância de meninas e meninos.
Fácil não é delimitar qualidade e competência no atendimento, muitas vezes impostas
pela inexistência ou insuficiência de políticas públicas, mas ter claro que a qualificação será
construída quando da elaboração de critérios que partam do entendimento da criança como
sujeito de direitos, de um espaço que traduza em ações as manifestações das crianças e das
professoras, ligeiramente demarcando a questão de gênero e de preconceito, em relação à
feminização da profissão. A tarefa nessa construção não é fácil, pois remete à elaboração de
uma prática educativa que signifique a teoria em ações singularizadas, contextualizadas, não
podendo ser descrita em manuais ou referenciais nacionais.
Nesse processo de significar o trabalho educativo-pedagógico nos espaços de
educação infantil, Peter Moss,
206
ao desconsiderar a conformidade de alguns padrões já
preestabelecidos no atendimento das crianças, nesta universalização das práticas educativas,
vem propor o conceito de criar significado. Para o autor,
Criar significado, portanto, é antes de tudo uma questão de construir e
aprofundar o entendimento do trabalho pedagógico em uma instituição
infantil − tornar significativo o que está acontecendo. É importante, portanto,
encontrar formas nas quais o trabalho pedagógico real da instituição da
educação infantil possa ser visível e sujeito a diálogo, confrontação e
reflexão.
E são alguns diálogos significativos construídos nesse processo de participação,
reflexão e de muita brincadeira com o boi-de-mamão que são pontuados a seguir.
206
MOSS, 2002, p. 24.
82
2.2 A unidade educativa como um sujeito organizador de diálogos com a cultura
popular
A unidade educativa integrando a rede municipal de educação tem na constituição de
sua história uma decisiva participação das famílias quando da organização de seu projeto
político-pedagógico. Fundada em 1982, localiza-se às margens da SC-401, no caminho das
praias do Norte, e atende às crianças de três a seis anos de idade, em período parcial de seis
horas. A configuração estética da unidade é característica das concepções acerca do espaço e
disponibilizada para o atendimento
207
das crianças, assim é demarcada a falta de infra-
estrutura adequada, como já assinalada pela produção de Agostinho,
208
que analisa os espaços
de educação infantil a partir da configuração de uma concepção política e arquitetônica das
unidades educativas da rede.
Seguindo essa concepção, o espaço oferecido às crianças era demarcado pela
insuficiência de condições físicas, materiais e estéticas do prédio, desconfigurando um espaço
prazeroso e seguro para o atendimento às crianças e às famílias, como relatado por
Marimbondo:
muitas vezes assustávamos com os carros na rodovia, chegando uma vez
numa batida a quebrar os muros do NEI, sem, falar da falta de materiais, e
muitas vezes nós trazíamos brinquedos dos nossos filhos para as crianças
brincarem.
209
Para a organização de um espaço mais aconchegante, a unidade educativa tem na
participação das famílias e dos funcionários a reestruturação dos espaços externos, com a
construção de uma casinha, dos balanços, dos pneus e do plantio das árvores. “Nestes
encontros almoçávamos, cantávamos, e celebrávamos ao som de uma ciranda os passos da
integração”;
210
passos da consagração de um espaço de educação que, possibilitado pela
participação, começava a delinear estética e belamente uma outra forma de atender às crianças
e às famílias, conforme demonstrado pelos registros fotográficos.
207
Quanto ao atendimento nas unidades educativas na rede municipal, a creche atende em período integral de até
12 horas, e os NEIs em período parcial de até 6 horas.
208
AGOSTINHO, 2003.
209
Marimbondo. Entrevista concedida em out. 2007.
210
Joana. Entrevista concedida em 4 out. 2007.
83
FIGURA 6 − Mutirão para organização do espaço em 1994/1995
FONTE: Arquivo pessoal e da unidade educativa.
Pela nova configuração estética do prédio e com o início das discussões da efetividade
de um trabalho educativo, a unidade constrói uma confiabilidade, relatada pelos antigos
profissionais, em que a cada forma de participação das famílias no espaço da unidade
aumentava a procura por vagas e conseqüentemente a necessidade de organização de outros
grupos para a demanda das crianças do bairro e de outros bairros.
Com essa reorganização pela procura de vagas, são construídas mais duas salas para
atendimento e conseqüentemente lotação de novos profissionais, dando início a novas
considerações pontuadas por Marimbondo:
Com a chegada das novas professoras, o grupo deu uma quebra no jeito
como fazíamos, porque eu não tinha formação de professora, e fazia de um
jeito conforme a prefeitura ensinava e as novas, tinham pedagogia e
começaram a questionar. Mas hoje eu vejo como bem importante porque
também aprendemos com elas.
211
211
Marimbondo. Entrevista concedida em out. 2007.
84
Esse movimento vivenciado na unidade educativa teve momentos de extrema
produção e efetivação do que era proposto e em muitos momentos foi necessário recuar na
história, resgatar princípios para serem analisados, delimitando uma forma, um outro jeito.
Pois em xeque eram colocadas as novas e antigas propostas, e esse movimento de reflexão
acabou assegurando imensos diálogos de contrariedades, similaridades do que é educar e
cuidar das crianças. Acredita-se que mudanças de focos fazem-se relevantes, pois rupturas são
necessárias para que a reflexão e os desejos se sobressaiam.
E o desejo de (re)significar e aprender a educar as crianças tem no resgate do percurso
a ação de caminhar de cada um, que ao mesmo tempo constrói e resgata a caminhada vivida e
por ainda viver no grupo. É nesse movimento de reflexão que os profissionais revêem suas
práticas e assim são tomados de muitos desejos, e o melhor deles é o de não deixar adormecer,
pois os anos de muitas histórias vividas animam e empurram para frente.
Com tantos diálogos construídos e (des)construídos, começa-se a definir ações e
possibilidades de dialogar com a comunidade, com as associações do bairro, com os
comerciantes e com os antigos moradores de forma a garantir-lhes um lugar de referência, o
"jardinzinho", como é conhecido. Nesse “jardim” foram plantadas e adubadas inúmeras
possibilidades de criarem raízes e ali permanecerem deixando marcas com a vinda de várias
gerações, de filhos a netos. As famílias foram chamadas a compartilhar da elaboração e da
construção desse espaço de educação, passam a ser um dos pilares necessários para a
qualificação do atendimento. Quando do início da organização do seu projeto político-
pedagógico, o coletivo de profissionais estabelece como objetivo:
Propiciar a integração dos pais, alunos, funcionários e professores
construindo assim uma unidade, onde o compromisso com a qualidade de
trabalho e ensino seja prioritário.
212
A integração é de construir, plantar e colocar a mão na massa, como pode ser
observado pelos registros fotográficos, que possibilitam hoje relembrar as situações
prazerosas de conversas para além do cuidado das crianças, uma proximidade por uma
igualdade de competências, de pais pedreiros e marceneiros, de mães bordadeiras e
costureiras que alinhavando conversas mil vão descobrindo afinidades, medos e desejos,
anseios, os quais se traduziam em abraçar os projetos delimitados com a unidade educativa.
212
PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO. Núcleo de Educação Infantil, 1996.
85
FIGURA 7 − Reunião de pais
FONTE: Arquivo pessoal.
A implementação de várias estatais pelo bairro aumenta o fluxo de carros de forma a
colocar em insegurança as crianças e suas famílias, o que demarca a necessidade da
construção de um espaço de melhor disponibilidade na garantia ao atendimento das crianças.
A conquista de um novo espaço é reivindicação da organização das famílias, tendo na Direção
e na APP a centralidade das conversas com o órgão central: a Secretaria da Educação. E no
dia 23 de março de 2001 o novo prédio
213
é inaugurado.
São muito significativas as construções vividas pelo grupo de profissionais
214
naquele
antigo espaço, à pesquisadora são relatados vários contextos, pelas trocas de idéias, pelos
conhecimentos, pelos valores e pelos sentimentos. É a partir dessas lembranças que compõem
o coletivo dessa unidade que se pretende sinalizar algumas propostas gestadas e que, ao
serem iniciadas, deram cabo de tantas mudanças: na forma de a comunidade se relacionar com
o “jardinzinho” ou a “escolinha” e com o compromisso demarcado na qualificação do
atendimento.
E esse compromisso ao atendimento (re)significado pela qualidade e pelo
entrosamento entre educar e cuidar das crianças é demarcado pelo desejo dos profissionais em
organizar um espaço que traduza para as crianças muitas possibilidades de brincarem e
compartilharem com o que foi criado para elas: a construção da casinha, dos balanços, dos
canteiros de flores, dos escorregadores, da areia, da brita, enfim, do espaço sendo construído
com a participação das famílias, conforme explicitado por Marimbondo.
213
O prédio velho é demolido e com a demolição “assistimos a destruição de tantos anos, creio que cada um
sentiu a falta e vai lembrar com este espaço vazio” (comentário de uma antiga professora em relação ao espaço
que hoje é apenas um terreno baldio, ao longo da Rodovia).
214
Professores, auxiliares de sala, merendeiras, auxiliar de serviços gerais.
86
Cada família ajudava como podia e foi sendo registrado; numa pintura na
parede da casinha, num canteiro de lua, numa almofada, num banco, num
quadro, numa toalha de mesa, foram inúmeras contribuições de quem por
passou para quem, por lá ficou.
215
Pelo depoimento da profissional antiga na unidade, em algumas construções ficaram
muitas marcas, muitas delas são referências percebidas na elaboração do projeto político-
pedagógico, resultando na significação de um processo de educar, cuja participação vem nos
muitos momentos determinar e delimitar várias ações.
De certa maneira a orientação vinculada pela DEPE (gestão 93−96)
216
na elaboração
dos projetos político-pedagógicos vinha sendo gestada, construída pelo grupo de
profissionais, o que assegurou muitas aprendizagens coletivas ao definir projetos de trabalho,
demarcando a partir das discussões com os profissionais a percepção da falta ou da
precariedade de um projeto coletivo para cada unidade educativa.
Compreendemos então que era necessário promover um amplo debate sobre
ESCOLA INFANTIL sua FUNÇÃO. Para isto abrimos espaços para pais em
reuniões, que passaram a ter um cunho pedagógico, avaliações que
apontavam que este segmento queria para a escola de seu filho e a criação da
APP.
217
A unidade educativa sendo parte de uma rede municipal vai alinhavando junto aos
profissionais em encontros e reuniões pedagógicas as deliberações e as orientações acerca da
organização do tempo e do espaço no cotidiano, sistematizado pelo órgão gestor da secretaria.
Acredita-se que uma peculiaridade nesta unidade quanto à sua organização tem no seu quadro
funcional um número significativo de profissionais moradores da comunidade, o que de certa
maneira lhe confere uma comunicação muito próxima e muito particular, cujas profissionais
são moradoras e descendentes de antigas famílias, assim é sinalizado por dona Maricota:
Quando iniciaram o NEI lá embaixo em 1982, a diretora da época foi
passando de casa em casa e pedindo quem queria trabalhar, eles queriam
mesmo pessoal da comunidade, todas que vieram moravam no bairro João
Paulo.
218
A credibilidade iniciada com a redefinição das relações entre a unidade educativa e a
comunidade possa a ser proveniente do reconhecimento das profissionais que moravam no
215
Marimbondo. Entrevista concedida em out. 2007.
216
SECRETARIA MUNICIAL DE EDUCAÇÃO. Traduzindo em Ações. 1996.
217
PROJETO POLÍTCO-PEDAGÓGICO. Núcleo de Educação Infantil, 1996.
218
Dona Maricota. Entrevista concedida em 4 out. 2007.
87
bairro de forma a garantir uma certa seguridade de pertencimento, relações estabelecidas pela
crescente participação das famílias nas atividades organizadas pela unidade, o que possibilitou
a construção de um espaço de educação que visualizava nesta parceria uma condição de co-
responsabilidade.
Inúmeras estratégias foram sendo estabelecidas quando o grupo de profissionais foi
objetivando e qualificando sua prática pedagógica. Isto pode ser observado quando da
elaboração do planejamento estratégico situacional (PES), em que se refletia sobre os nós
críticos a serem desatados pelo coletivo dos profissionais, sendo um deles:
a falta de participação dos pais: 2a. poucos pais comparecem as reuniões ou
participam da APP; 2b. os pais desconhecem a realidade da sala de aula; 2a.
a linguagem utilizada inibe os pais. Como ações: 2a. convites, cartazes,
murais convidando-os a participação; criar outras formas de participação
além da reunião, palestras, festas, apresentações; marcar atendimento
individual com os pais. 2b. reuniões que demonstrem rotina e conteúdos da
sala; expor trabalhos e criações para além das paredes da sala (cartazes,
murais...); 2c. reuniões, bilhetes, cartazes numa linguagem mais acessível.
219
Marimbondo nos relata que
cada profissional tinha a tarefa de receber e promover o acolhimento das
famílias nas reuniões sejam com bolos, pães, chás e cafés, assim ao sabor de
pequenos agrados alimentando o corpo, alimentávamos também nossas
histórias diárias, nosso cotidiano. Lembro de compartilhar muitas
histórias.
220
Nesse processo de assegurar a participação, a garantia na escolha do diretor pelo voto
direto é instituída no período da gestão da Frente Popular (1993−1996)
221
para as creches e os
NEIs. Nessa unidade educativa em questão somente no ano de 1998 é que se apresenta uma
profissional para pleitear o cargo pelo voto direto. Sendo professora da unidade, a diretora
eleita em 1988 garante a continuidade de um projeto de gestão que intensifica um olhar
diferenciado para a prática educativa. Nessa gestão é elaborado um projeto na área de
educação ambiental, possibilitando uma prática coletiva e participativa.
O projeto de educação ambiental organizado na unidade conseguiu lidar com
os conteúdos do lixo do sujeito, ao lidarmos com as questões ambientais,
219
Planejamento Estratégico Situacional, 1996.
220
Marimbondo. Entrevista concedida em out. 2007.
221
Sobre o processo de eleição para Creches e NEIs em Florianópolis, ver a produção de QUINTEIRO, 2007.
88
construímos uma participação mais efetiva no processo de formação das
crianças e conseqüentemente das famílias. O processo de formação foi
organizado com a ajuda das famílias em construírem os canteiros para a
elaboração do minhocário, para o plantio das mudas e árvores, para fazermos
papel e construirmos agendas pela reutilização de materiais trazidos pelas
famílias.
222
Com esse olhar atento ao sinalizado pelas famílias, a gestão democrática na unidade
educativa vai amarrando esses imensos laços, que no cotidiano iam tecendo e costurando
propostas pedagógicas com a inserção dos desejos das histórias desses sujeitos na educação
dos seus filhos. Os projetos pedagógicos eram redimensionados a cada momento de reflexão
acerca do trabalho, e muitas foram as trocas que possibilitaram redefinir outras atuações.
Desta maneira, o “jardinzinho” vai ocupando o seu espaço de respeitabilidade na comunidade.
FIGURA 8 − Mutirão com as famílias em 2002
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
FIGURA 9 − Construção de um brinquedo de parque em 2002
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
222
Marimbondo. Entrevista concedida em out. 2007.
89
2.2.1 “Vamos moreninha, vamos até lá [...]” entender os diálogos construídos neste
espaço de educação com a brincadeira de boi-de-mamão
E o boi-de-mamão? Chego à unidade educativa e o boi está lá, nos muros como cartão
de visita, para ser lembrado, decora espaços abertos e ocupa-os. Por quais caminhos entrou?
Como chega e ganha visibilidade nos muros e vem brincar com as crianças? Como está
presente nas paredes? Como se funda a participação das famílias com a brincadeira do boi-de-
mamão?
A resposta da participação das famílias encontra-se em conversas informais com os
profissionais mais antigos e relata-se nos espaços de participação, sejam em reuniões gerais
ou específicas. As famílias geraram possibilidades de perceberem na sua história de vida a
brincadeira do boi-de-mamão ao compartilharem sobre os processos de formação e educação
das crianças na construção dos projetos de trabalho dos profissionais.
Adentrando nesse espaço encontram-se registros escritos
223
que encerram e narram
muitas histórias, que registradas compartilham tantos conhecimentos construídos.
Encontram-se também registros fotográficos, e, visualizando as imagens das memórias de
antigos profissionais, resgata-se uma história de boi-de-mamão nesse espaço de educação.
recebo através da farra do boi uma cabeça de boi
224
para organizarmos a
brincadeira, e assumo juntamente com o profissional que atuava comigo a
responsabilidade de construirmos os personagens e apresentarmos paras as
famílias na festa junina. Moradora do interior do estado inicio um processo
de diálogo trazido pela memória das famílias ao brincarem com o boi-de-
mamão.
225
223
Projetos de trabalho de grupos de crianças.
224
Sobre esta cabeça de boi me foi relatado que ficou na sala até a mudança de prédio em 2001, ano em que foi
"jogada fora".
225
Registro de uma professora, em 1994.
90
FIGURA 10 − Pelo pátio do antigo prédio, em 1994
FONTE: Arquivo pessoal.
Na conversa com as famílias a história da brincadeira do boi-de-mamão vai
se revelando na memória das antigas brincadeiras do tempo de criança dos
pais, resgatando a memória da brincadeira no bairro pelas recordações de um
bisavô.
226
FIGURA 11 − Visita do seu Campolino, do grupo de boi-de-mamão do Itacorubi, em 1997
FONTE: Arquivo pessoal.
226
Registro de uma professora, em 1997.
91
FIGURA 12 − Cantando com a banda Tijuqueira em 1997
FONTE: Arquivo pessoal.
Foi interessante perceber que as famílias se dispunham a colaborar, pois na
sua grande maioria tinham um parente, um amigo, um tio para vir falar sobre
o boi-de-mamão para o grupo de crianças, o que de certa maneira foi
estreitando muitos laços de cooperação e participação.
227
Pelos registros disponibilizados, percebe-se que a construção e a organização da
brincadeira estão para além de um simples planejamento organizado, a partir somente do
desejo das professoras, caracterizando um projeto pedagógico construído com as famílias ao
trazerem a brincadeira do boi-de-mamão para o espaço da escola. Para Kramer,
228
esses
espaços são espaços de circulação das culturas: das tradições culturais, dos costumes e dos
valores dos diferentes grupos, configurando o espaço da escola como o local de possibilidades
construtivas na história de determinado povo.
FIGURA 13 − Construção dos personagens feita por uma família
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
227
Registro de uma professora, em 1997.
228
KRAMER; BAZÍLIO, 2006.
92
era muito importante participar deste processo de confecção dos personagens
do boi, primeiro porque construindo lembrávamos de quando éramos criança
e gostávamos de brincar com o boi e porque, nosso filho vendo a nossa
participação sabia que isso era importante para ele.
229
Pelo depoimento dessa família, pelos registros ora escritos, ora fotográficos, ora na
memória, percebem-se e constatam-se os significados que foram sendo construídos ao longo
desses anos e deixados como marcas, como tradição, como condição. Desta forma, a
brincadeira do boi-de-mamão segue vivendo. No período da pesquisa encontram-se os
personagens do boi presos a paredes, nas estantes, estando quietos, mas presentes. E a partir
de alguns profissionais vêm para o chão. Acredita-se que a cada olhar diferenciado, um
olhar que recria, um olhar de possibilidades e descobertas, que vêm para as mãos das
crianças, que seguram e asseguram a brincadeira.
E adiante são descobertos em cadernos de registros mais relatos com a brincadeira do
boi-de-mamão,
A construção do boi-de-mamão foi, segundo a diretora [...] uma atividade
significativa elaborada pelas crianças quando estavam na turma do maternal.
Durante este período surpreenderam desenvolvendo a linguagem, interação
com o grupo, aspecto afetivo, emocional e cognitivo. Existe este material na
escola, com marca registrada, servindo de referência positiva para um
número de crianças significativo.
230
A história do boi vem sendo resgatada alguns anos nesta unidade. Neste
ano, pensando em aprimorar e aprofundar o resgate da cultura, desse
folclore, aprendendo junto com as crianças as músicas, letras e batidas do
tambor, atabaque, a percussão, que são as características básicas do boi-de-
mamão.
231
Estando na unidade realizando a pesquisa documental e as entrevistas no período da
Festa Junina, a pesquisadora presencia o "ensaio", conforme foi chamado pela professora que
estava organizando o grupo e demarcando os passos, as entradas através da cantoria. E assim
foi sucedida. Começam a soar os tambores tocados pelas cantadoras marcando o compasso
para que o público organize-se numa roda e para que as crianças brincantes, que darão vida à
brincadeira, iniciem um momento tão esperado para quem recorda um jeito de fazer cultura
popular.
229
Família Urso Preto. Entrevista concedida em jul. 2007.
230
Registro de uma professora, em 2000.
231
Registro de uma professora, em 2001.
93
“Vamos moreninha, vamos até [...] vamos lá no NEI para ver o boi brincar
232
[...]”.
E ao som de quatro tempos no tambor a cantoria é iniciada, e ao compasso da organização, a
brincadeira. É apresentado o Mateus, como o dono do boi e com o chapéu na mão,
cumprimenta “[...] ó dono da casa sua licença pro meu boi dançar na sua presença”. E em
seguida é anunciada a entrada do cavalinho “[...] cavalo ligeiro”, que atende ao chamado da
cantoria e “vai trazer o boi pra dentro do terreiro [...] te apresenta boi malhado, te apresenta
devagar vem meu boi vem cá”, e o boi após tantas galhadas e investidas contra o público
“[...] nosso boi morreu [...] que será de mim manda buscar outro [...] um minuto de silêncio
pro boizinho que morreu [...]”.
FIGURA 14 − Brincadeira do boi-de-mamão
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
Sem saber o que fazer, Mateus clama pela ajuda do médico, que entre auscultas e
picadas “[...] esse dotô não é de nada”, então apela para uma benzedura e evoca a entrada do
senhor benzedor, “benzido [...] benzidó seu Darci, seu Darci
233
[...]”, que numa reza braba
troca favores com o senhor dono da casa “[...] eu benzo esse boi com a folha de alecrim o
senhor dono da casa café pra mim”, desfaz o feitiço e o boi alevanta e “dá galhada na
guria” e entra em cena “ó meu cavalinho não tenha demora bota o boi no laço”, que, entre
tentativas de acalmar o boi, laça-o e o traz para fora da roda “[...] vai, vai vai deixá-lo
ir se tiver amor ele vai e torna a vir [...]”.
232
As escritas destacadas referem-se à cantoria de domínio popular da brincadeira do boi-de-mamão cantada no
NEI.
233
Auxiliar de serviços gerais que assume esta função na brincadeira do boi.
94
FIGURA 15 − A brincadeira continua...
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
Dando seqüência à brincadeira, as cantadoras chamam para roda a cabrinha, que, entre
pulos e berros, “ela com caganeira, uma volta no salão”, e o cavalinho, “não tenha
demora pega a cabra no galho sai de porta afora”. E em seguida acontece a entrada de ursos,
um branco e um preto, que divertem as crianças “[...] rola, rola pelo chão nosso urso é
brincalhão”. Ao som dos tambores, ocorre a retirada dos ursos da roda “[...] olé, olé, olá
arreda do caminho que a bernunça quer passar [...]”, desta forma é anunciada a chegada do
bicho que engole gente, do bicho brabo “que engoliu mané João [...] come pão come bolacha
come tudo que eles dão”, que vai saindo quando é anunciada a entrada de outra figura
feminina “[...] fizemo um baile bonito [...] fizemo um baile de cota, chegando a hora de
dançar a Maricota”. Uma moça tão bonita e prendada é “moça trabalhadeira, aqui vai nossa
homenagem as maricotas rendeiras”, que, distribuindo tapas na platéia, saracoteia em seus
quase dois metros de belezura “deixou cair a calça bem no meio do salão [...] tá chegando a
hora da Maricota ir embora [...]”. E no auge da brincadeira, são chamados “[...] todos os
bichos no salão o cidade sim, o cidade não [...] o nosso boi vai embora [...] ó dono da casa
nosso boi vai [...]”. Num ritual de despedida os bichos são retirados um a um do meio do
salão; e ao som mais forte dos tambores é finalizada a brincadeira do boi-de-mamão e “[...]
um e dois e três e quatro [marcação do ritmo do tambor]”.
Naquele momento o olhar não era para a brincadeira realizada pelas crianças, pois para
isso deveriam ser planejadas outras possibilidades para o desenvolvimento da pesquisa, o
olhar estava voltado em visualizar os registros fotográficos encontrados na unidade de outras
apresentações. E a partir da organização da professora, percebe-se que a preocupação era
sinalizar a percepção da cantoria de maneira a demarcar os passos de cada personagem;
insistentemente era paralisada a brincadeira e demarcada a necessidade da percepção para
quem cantava, que sinalizava por gestos ao Mateus a entrada ou a retirada dos personagens.
95
Em muitos movimentos de organizar brincadeiras a partir da cultura popular nas
unidades educativas há uma certa preocupação de garantir somente espetáculo, o
entretenimento, como afirma o pesquisador Gonçalves, pela desconsideração de seu espaço de
construção de conhecimento. Para o autor,
Este patrimônio lúdico que são as brincadeiras populares, como registro do
passado, dos antepassados, chegam às mãos das crianças e nelas assume um
outro registro, uma outra assimilação. As crianças, ao brincarem de jogos
tradicionais, boi-de-mamão, cirandas, etc., vão perfazendo um caminho que
as leva ao processo da assimilação e da criação.
234
FIGURA 16 − Aprendendo a brincar de boi-de-mamão em 2001
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
Vamos [...]. "Vamos moreninha" falar sobre a brincadeira do boi-de-mamão,
que além do caráter de socialização e resgate da cultura catarinense, trouxe
para as crianças a possibilidade de realização de movimentos de diferentes
qualidades expressivas e rítmicas.
235
A assimilação da brincadeira por parte das crianças, conforme pontuado pela
professora, pode ser observada pelos registros fotográficos, por forma de apropriação e
234
GONÇALVES, 2006, p. 39.
235
Registro de uma professora, em 2001.
96
recriação, pelo jeito de lidarem com os bichos, tudo isso vai demonstrando como cada um lida
com sua potencialidade e demonstra a não preocupação de saber lidar com uma perspectiva
do espetáculo.
Que ritmo é esse flagrado por estes registros fotográficos que permitem perceber o
movimento, os gestos proporcionados por uma brincadeira dos adultos, dando oportunidades
às crianças de saírem brincando, dando galhadas, chifradas, fazendo de conta e contando que
a organização de situações significativas propicia e possibilita a recriação de muitos
elementos, pois a brincadeira, mesmo sendo ensinada, é reinventada e recriada a todo o
momento pelas crianças.
É recriação na batida do tambor que segue outro ritmo, é um outro jeito de segurar nas
mãos essa brincadeira, é um outro jeito de se curvar, é um outro passo que surge e marca
diferente colocando outro tom na forma de brincar.
FIGURA 17 − Brincando no hall em 2002
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
Se a brincadeira tem em seus vários movimentos a recriação das crianças é porque está
no ponto de observação do planejamento e na organização das professoras em seus projetos
de trabalho, seja por grupos específicos, seja por coletivos. Foi relatado que nos momentos de
organização da brincadeira, era ouvida, vista e brincada pelos diferentes grupos de crianças,
“[...] as crianças ouviam o batuque dos tambores e parece que era o indicativo de sair porta
afora, largavam tudo para ver os maiores aprendendo o boi [...] e olha que aprenderam
somente olhando [...]”. Essa referência pode ser percebida nos registros de outras professoras:
Escolhi trabalhar este projeto boi-de-mamão com esta turma
propositalmente, pois no ano passado a música, encenação e a dança do boi
foi iniciada de uma forma bem lúdica através da brincadeira com o boi,
percebi no grupo a necessidade de estar retomando esse projeto, pois eram
constantes os pedidos: − pró, coloca a música do boi para a gente dançar? as
crianças demonstram constantemente de forma prazerosa o quanto gostam de
97
dançar, falar e até mesmo de desenhar as histórias relacionadas ao boi-de-
mamão.
236
Talvez de todas as vivências a de maior destaque seja a do boi-de-mamão,
pois na verdade ela não é apenas mais uma atividade e sim demonstra ser
vida, emoção, prazer, alegria, envolvimento não só pelas crianças deste
grupo, mas também pelos menores e funcionários. Pretendemos com isto
fazer um resgate cultural e proporcionar que ele permaneça vivo na
comunidade educativa.
237
É dessas práticas educativas com a brincadeira do boi-de-mamão na constituição
desses fios das histórias que cruzam o cotidiano que a unidade pôde ir pouco a pouco
intercruzando-as para construir esse projeto coletivo. Assim é que, com o ouvido atento, a fala
das famílias, pelas lembranças de situações vividas entre eles com a brincadeira do boi-de-
mamão, assume a tarefa de que "educar alguém é trazer esse alguém para uma vida social
segundo um conjunto de significados, artefatos, rituais, costumes, práticas, crenças e valores
ao qual se denomina cultura".
238
Segundo Veiga Neto, educar é compartilhar dos significados sociais que nos
constituem, e os professores ao elaborarem situações significativas estabelecem possibilidades
de sua autoria, de sua recriação e também das crianças. Paulo Freire,
239
ao definir sua
concepção de educação libertadora, sinaliza que nesse processo ambos, professor e aluno,
aprendem e estão situados num processo cognitivo, apesar de serem diferentes. E sinalizamos
a aprendizagem das famílias ao participarem desse processo.
[...] eu faço uma retrospectiva do que eu pude ver aquela nostalgia da
infância, das historinhas de boi-de-mamão, que a minha mãe e meu pai
falavam que viam [...] o boi passava aqui tem a dança do boi, eu vim curtir
justamente na fase dos meus filhos, apesar de conhecer de saber mais ou
menos, porque cada boi, cada dança, tem do Itacorubi, do Ribeirão, então
cada um tem seu acréscimo [...].
[...] antes aqui da escola era um pátio onde o boi se apresentava e a gente
saía correndo atrás, acompanhava pelas ruas, pelo bairro [...].
Às vezes vinha o boi do Itacorubi, lá no Rio Vermelho, fazia a festa lá, tinha
a Maricota, o boi-de-mamão, a bernunça, a cabra, o urubu, o cavalo, tudo
quanto era bicho [...] aprendi quando eles tocavam o boi eu gravei na
cabeça para benzer o boi.
240
236
Registro de uma professora, em 2002.
237
Registro de uma professora, em 2004.
238
VEIGA NETO, 2006, p. 117-118.
239
FREIRE; SHOR, 1987, p. 46.
240
Família Cavalinho, família Urso Branco e benzedor, respectivamente. Entrevistas concedidas em 4 out. 2007.
98
De cada acréscimo relatado nessas histórias da comunidade o coletivo dos
profissionais vai se apropriando nos relatos sobre os espaços de atuação desses sujeitos, sendo
interessante perceber uma dinâmica de criança e infância com o boi-de-mamão, pois as
lembranças do boi asseguravam uma ligação, uma união que os tornava comum em relação a
essa brincadeira. Através dessas lembranças do passado, as famílias reafirmavam um desejo
de brincarem, de compartilharem essas recordações.
Os nossos filhos têm visto com tanta freqüência e isso tem feito parte [...] foi
muito importante assim a minha vivência no caso na minha infância eu via
falar e via também.
241
Eu, [...], lembro da minha infância, era a brincadeira do boi-de-mamão, do
boi de pano que a gente brincava, vivenciado junto com o boi de campo
porque a gente brincava [...] então o boi era um elemento presente na
brincadeira da gente [...] sei que essas coisas contribuíram para mim,
achar no NEI, recuperar essa memória das vivências que eu tive com o
boi.
242
Quando eu era pequena o boi-de-mamão que cantava no João Paulo [...] eu
tinha aproximadamente 11/10 anos e a gente podia andar na rua e não tinha
movimento nenhum [...] eu lembro que a gente ia atrás das carroças, a gente
ia ver o boi quando voltava pegava carona nas carretas [...] toda noite tinha
boi nas casas, porque na verdade os terrenos, os espaços físicos não eram
como agora, eles iam às casas cantar e a gente ia atrás ver, era muito legal.
Desde pequena eu fui criada com a imagem do boi-de-mamão, tinha boi-de-
mamão no meu bairro. [...] ele vinha pela estrada via a casa que oferecia e
entrava e fazia [...] eles saíam de casa em casa, a casa que estava aberta
esperando já sabia da tradição deles e então cantava.
243
Eu fui ver boi-de-mamão aqui no NEI, de novo.
244
“[...] Desde pequena eu fui criada com a imagem do boi-de-mamão”. Na história de
vida trazida por profissionais ao terem brincado com o boi-de-mamão na infância assegura em
muito o desejo de organizarem a brincadeira em sua prática educativa, pois, ao trazerem em
suas memórias simbólicas essa manifestação cultural, acreditam garantir uma maneira de
agarrar com as mãos suas lembranças. Como salienta Ferraço
245
“assumindo cada pessoa
241
Família Cavalinho. Entrevista concedida em 4 out. 2007.
242
Supervisora. Entrevista concedida em 8 out. 2007.
243
Dona Maricota. Entrevista concedida em 4 out. 2007.
244
Filha da Maricota. Entrevista concedida em 4 out. 2007.
245
FERRAÇO, 2006, p. 175.
99
como tendo diferentes possibilidades de invenção e partilha de significados, que estão
relacionadas a diferentes histórias de vida, diferentes percursos de formação [...]”.
Porque é uma cultura nossa que não pode morrer, o conhecimento que tem
que passar para a criança, que está na nossa ilha, na nossa cidade, que são as
nossas características, que é nosso. Mostrar para eles que existe, porque as
crianças o têm oportunidade senão for a escola oferecer [...] tudo vale
quanto brincadeira, quanto conhecimento cultural, não a brincadeira por
si, mas o conhecimento da tradição, do porque.
246
Que características culturais são essas, ao serem apontadas por essa profissional que
indica uma preocupação em assegurar às crianças uma possibilidade de devir, de apontar
caminhos no que está sendo planejado para elas. Kramer
247
nos fala sobre esse processo de
ver e rever a tradição, mirar o que foi produzido ontem com o olhar de hoje. E desse ontem
essa profissional se lembra, pois ter brincado de boi-de-mamão lhe assegura resgatar suas
experiências com a cultura popular.
Assim, relacionar a produção das crianças com a “experiência da infância” desses
adultos para discutir a brincadeira do boi-de-mamão passa a ser de extrema importância ao
analisá-la no cotidiano dessa unidade educativa. Essas experiências possibilitaram diálogos
que, no decorrer desses anos, produziram maior credibilidade com a proposta pedagógica.
Para dispor da possibilidade de pensar a cultura como manifestação social do humano, seja ele
em que espaço estiver, basta poder expressar essa manifestação como parte da história dos
sujeitos dessa comunidade, pois,
Se perdermos de vista a perspectiva cultural no seu sentido mais amplo, ou
seja, no sentido que as pessoas precisam reconhecer na cultura, que são
sujeitos da história e da cultura, além de serem por elas produzidas, [...]
passamos a ter uma visão de que o pedagógico é algo instrucional e visa
ensinar coisas.
248
É sob essa perspectiva cultural sentida e vivida pelos adultos dessa comunidade que
podemos perceber a intencionalidade produzida pelo movimento da brincadeira do boi, pois,
se a prática anteriormente constante no bairro ficou adormecida e agora levanta pela mesma
intencionalidade de quem antes assistia, esse espaço de educação passa a ser atuante e
possa virar um brincante. É uma opção, uma intencionalidade pedagógica em organizar a
brincadeira nos espaços das e para as crianças.
246
Dona Maricota. Entrevista concedida em 4 out. 2007.
247
KRAMER; BAZÍLIO, 2006.
248
KRAMER; BAZÍLIO, 2006, p. 62-63.
100
Para a Kohan, se algo a se preparar por meio da educação é não deixar a infância, a
experiência de sermos sujeitos culturais. “Se a educação é educação dos que estão na infância,
dos excluídos da experiência sejam crianças ou adultos −, a tarefa de uma tal educação é
inventar essa infância e não deixar que se volte a perder".
249
A tarefa da inventabilidade e do resgate dessa infância, já anunciada por esse autor,
também é pontuada pela profissional, que nos diz da urgência em garantir “a tradição do
porquê” da brincadeira do boi-de-mamão na comunidade. Escolhendo a socialização dessas
experiências, garantem-se nessas interações das crianças com os seus pares, com os adultos e
com o universo cultural as condições necessárias para a produção dos processos de
significação e as construções simbólicas para uma compreensão do universo social para que
as crianças e os adultos possam ler o mundo, para que se reconheçam e consolidem relações
de identidade e pertencimento. Esse parece ser um dos papéis da educação.
A continuidade é porque os adultos gostam, a gente se identificou, têm
pessoas que têm paixão pelo boi, têm pessoas que aonde o boi for dançar
eles vão. Lembra uma brincadeira de infância [...].
250
Fui criada com a brincadeira, mas o que eu sei de boi-de-mamão meu pai
ensinava [...] é tão rico, presente nas famílias [...].
251
Acredito que as relações estabelecidas nesse processo de educação e cultura devam ser
asseguradas por uma continuidade rica, presente, alegre, colorida, prazerosa, com paixão, com
dança, com música e com brincadeira do boi-de-mamão de forma a diferenciar essas práticas
educativo-pedagógicas ao organizar um espaço que traduza para as crianças infinidades para
(re)elaborarem as situações que (re)signifiquem o seu cotidiano, o seu faz-de-conta.
Organizando esses espaços, para Agostinho,
252
ousamos aprender e viver com a
espontaneidade e a autenticidade infantis que nos provocam e encantam.
249
KOHAN, 2005, p. 258.
250
Feiticeira. Entrevista concedida em out. 2007.
251
Dona Maricota. Entrevista concedida em 4 out. 2007.
252
AGOSTINHO, 2003.
101
FIGURA 18 − Em algum momento...
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
Ver o boi é um deslumbre, te ver como público, eu fico [...] além de fazer
uma retrospectiva com as fases que eu vivi junto. Eu vim a curtir mais
justamente, na fase dos meus filhos no NEI.
253
O que eu percebi ao longo de 2001 a 2004, onde a gente vivenciou isto de
forma mais pontual, onde numa forma inicial o projeto era percebido como
uma marca e tinha uma referência, um respaldo muito grande pelas famílias,
ou seja, cada vez que a gente pensava numa apresentação do boi, era um
movimento de mobilização das famílias [...] por reconhecer na unidade um
trabalho de qualidade [...] eles aprendem a dançar, a cantar, a produzir
uma coisa que historicamente está dado na comunidade, que estava dado em
outros espaços [...].
254
FIGURA 19 − Festa Junina em 2001
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
253
Família Cavalinho. Entrevista concedida em 4 out. 2007.
254
Supervisora. Entrevista concedida em 8 out. 2007.
102
Nesse processo de encantamento a unidade pontua em seu projeto de formação
continuada a necessidade de um exercício de reflexão coerente com a prática que se pretendia
(re)significar, em que “nosso esforço tem sido no sentido de oportunizar situações de estudo,
discussão, reflexão sobre estes fazeres através da formação em serviço [...]. Desejamos
sistematizar, ampliar nossos espaços de troca, estudos, planejamentos e socialização de
experiências”.
255
Nos debruçávamos para qualificar, ao promover formação para os
profissionais para a instituição e os profissionais vivenciarem as cantorias,
vivenciarem o brincar, é como se nós fizéssemos o exercício da criança
brincante e ao fazer isso, saímos da perspectiva de amador e olhar a
dimensão, onde muitos de nós temos pouco acesso a vivenciar estas coisas
como dançar, cantar em especial em público e então fazer a escolha e
assumir a responsabilidade de cantar e aprender a tocar tambor [...].
256
Para Kramer, todo projeto político-pedagógico é um trabalho de opção, de decisão
política em que esse processo de “formação implica constituição de identidade, para que
professores possam narrar suas experiências e refletir sobre políticas e trajetórias,
compreender a própria história, redimensionar o passado e o presente, ampliar seu saber e seu
saber fazer".
257
255
PROJETO DE FORMAÇÃO CONTINUADA. Um espaço de interações. 2004.
256
Supervisora. Entrevista concedida em 8 out. 2007.
257
KRAMER; BAZÍLIO, 2006, p. 99.
103
FIGURA 20 − Momentos de formação em serviço de 2001 a 2004
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
É desse jeito que a brincadeira do boi-de-mamão gera cumplicidade e encantamento e
provoca a participação das famílias ao trazerem imensa contribuição com o trabalho
educativo, a participação das crianças ao vivenciarem essa prática cultural e a participação
dos profissionais que aprenderam a rever e refazer algumas práticas de certas formas
estagnadas, ou engessadas, ditas em manuais ou receitas prontas. É desta forma que o boi vai
pedindo licença para brincar com presença, com participação.
[...] se via muito presente pelo depoimento das famílias, então eu entendo
que o boi de mamão é uma das possibilidades de se dançar, cantar, pintar, se
movimentar que é uma das expressões culturais daquela região que a
unidade conseguiu resgatar da memória dos pais e como a gente não tem que
inventar a roda, as famílias gostaram e foram se apropriando, então isso
conferia a unidade respeitabilidade, porque eles sabiam que era uma
brincadeira séria, e as crianças faziam esse movimento desejavam muito isso
e pra gente isso funcionava com elemento organizador do trabalho, que
vinculava as questões de educação ambiental em alguns momentos, em
outros se equilibravam, às vezes o boi ficava um pouco mais secundarizado e
isso também é uma questão que também está muito vinculada ao significado
que os profissionais que estavam com as crianças davam [...].
258
Ó senhor dono da casa sua licença pro meu boi brincar [...] pedindo
licença rompe com a organização pela imprevisibilidade proposta pelas
crianças [...] ao iniciar a história se ouve um batuque ao fundo e torna-se
impossível segurá-los na sala. é o boi [...] é o boi [...] o boi-de-mamão
exerce um verdadeiro fascínio no grupo e todos foram assistir o ensaio da
brincadeira que estava acontecendo no hall.
259
É nessa partilha, nessa sistematização coletiva que se estabelecem os tempos dos
projetos de trabalho, é quando se define um currículo que se estrutura por conteúdos de um
cotidiano e suas relações que estão intercruzadas por temas sociais, afetivos e simbólicos. E
258
Supervisora. Entrevista concedida em 8 out. 2007.
259
Relatório de estágio realizado na instituição em 2005.
104
essa imprevisibilidade relatada das crianças sugere participação e autonomia pontuada por
Faria,
260
em que a unidade educativa deve ser organizada de forma que garanta o imprevisto e
que possibilite o convívio entre meninas e meninos, iniciando o exercício da ludicidade, da
contradição, da provisoriedade e da necessidade de transformação, através de um processo de
valorização da cultura, da palavra e da ação infantis, suas múltiplas linguagens.
Vamos [...] vamos moreninha, vamos falar sobre a brincadeira do boi-de-
mamão [...] as crianças tiveram a oportunidade de construir os personagens
do boi-de-mamão, enchendo a Maricota, papietando o boi e a cabrinha, isso
oportunizou que as crianças explorassem diferentes materiais. A experiência
com o boi permitiu que incorporassem isso a sua individualidade, ampliando
a confiança, a auto-estima e a consciência corporal, além de o grupo explorar
a cooperação, a solidariedade e o respeito mútuo.
261
Partindo do conhecimento prévio das crianças e da comunidade sobre a farra
do boi e o boi-de-mamão do conhecimento popular, organizamos um
passeio-visita ao Museu de Arte de Santa Catarina para ver a exposição de
Juarez Machado e seus diversos olhares sobre a cultura da ilha, sobre a farra
do boi e o boi-de-mamão.
262
Entre objetos e adereços nosso boi foi sendo criado, de caixas de papelão
criamos o cavalinho, a cabra com lençóis velhos, criamos a bernúncia, e a
dona Maricota, ganhou um vestido doado por uma professora.
263
Esses registros de projetos de trabalho acabam referendando um olhar diferenciado e
construído pelos profissionais em diferentes anos, mas que se alimentam de algo vivo,
imprevisível e reconstruído com cada grupo de crianças. Pela recriação da cultura adulta e no
exercício na disponibilidade dessas significações as crianças alimentam o olhar dos
profissionais. Não há fórmula, cada grupo de crianças um tom diferente à brincadeira, seja
construindo e analisando os objetos em museus, seja construindo mais um brinquedo para
brincar, seja dançando e brincando de boi-de-mamão.
Para Brandão,
264
o sentido de aprender é participar de vivências culturais, e, ao
participar, cada um de nós se reinventa a si mesmo. E é nessa recriação das linguagens que se
cria com caixas de papelão, que se reaproveitam vestes que revestem outras possibilidades ao
se lidar com o universo das múltiplas dimensões do humano. Pela recriação da brincadeira de
260
FARIA; PALHARES, 2000.
261
Registro de uma professora, em 2003.
262
Registro de uma professora, em 1998.
263
Registro de uma professora, em 1997.
264
BRANDÃO, 2002.
105
boi-de-mamão singularizam-se os atores num imenso palco de brincadeiras, afetos, sabores,
cores e dores.
Precisa ressaltar a dimensão cultural da vida das crianças e dos adultos com
os quais convivem, apontando para a possibilidade de as crianças
aprenderem com a história vivida e narrada pelos mais velhos, do mesmo
modo a que os adultos concebam a criança como sujeito histórico, social e
cultural.
265
E nesse processo de (re)significar a atuação desse sujeito de direito a escola passa a ser
um espaço de formação contínua; a escola é um local de encontro/convívio, é universo de
encontro/produção cultural. Desta forma cabe aos adultos ensinar a brincadeira do boi-de-
mamão às crianças, pois ao ensinarem lhes é permitida a construção de um universo simbólico
que envolve imagens e (re)significações lúdicas da cultura adulta. Ao concordar com
Brandão,
266
pensa-se que a educação que praticamos se abre a nós, professores, como um
inacabado desafio ao pensamento e à (re)criação.
FIGURA 21 − Ano de 2005, os adultos brincando de boi-de-mamão
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
Na (re)significação desse processo de produzir e reproduzir as culturas, os
profissionais e as crianças pintam e repintam, enchem e esvaziam, põem e tiram, dialogam
com as cores, com os cheiros, com as texturas, e assim são reconhecidas suas capacidades de
criação, e elas são descobertas por viverem num mundo que se apresenta adulto e a todo o
momento são chamadas a recriá-lo.
265
KRAMER, 2002, p. 129.
266
BRANDÃO, 2002.
106
FIGURA 22 − Construindo os personagens do boi de mamão em 2001
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
E dessas recriações as crianças produzem vastos ensinamentos, pois reinventam a roda
para brincar e cantar, e constroem e dirigem o boi-de-mamão, dão pulos e berros, brincam de
ser ursos brancos e pretos, rolando e brincando pelo chão, e saem debaixo de lençóis, sendo
bernúncias, assim vão refazendo os caminhos trilhados por nós, adultos, de muitos jeitos e
de seus jeitos.
FIGURA 23 − Brincando no pátio em 2002
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
Aos profissionais o ouvido atento a outros tantos diálogos para entender esses
caminhos construídos e recriados pelas crianças; diálogos com brincantes e estudiosos de boi-
de-mamão desta cidade; diálogos organizados na prática educativa dos profissionais que
(des)cobrem as histórias nos cantos desta cidade. É desta maneira que o professor cria as
107
condições necessárias para as significações sociais e culturais das crianças, quando prevê na
organização do cotidiano as interações com os objetos sociais de conhecimento, as culturas.
[...] quando a gente foi redimensionar enquanto um projeto de trabalho de
sala vinculado a um grupo de crianças, ampliando a possibilidade de
enriquecer os enredos, a gente lida com algumas coisas, o que a gente fez:
levou-os para o Sambaqui para ver a casa açoriana que tinha os elementos do
boi, levamos para ver o boi do Itacorubi na festa da comunidade, trazê-los
para eles terem uma referência de boi grande e uma das alternativas foi levá-
los até o museu antropológico, tendo a possibilidade de conversar com o
Peninha [...].
267
FIGURA 24 − Visita ao museu na UFSC em 1994
FONTE: Arquivo pessoal.
FIGURA 25 − Visita à casa açoriana, no Sambaqui, e ao museu, no Alto Ribeirão, em 1997
FONTE: Arquivo pessoal.
É percebido pelos registros fotográficos o contato com a memória do que já foi
elaborado em museus, e isso amplia e sugere às crianças as reelaborações de conteúdos
267
Supervisora. Entrevista concedida em 8 out. 2007.
108
significativos que irão compor e alimentar as suas construções. Mônica Fantin,
268
ao analisar a
constituição da brincadeira e sua relação com a cultura, alerta-nos que como opção
pedagógica não se trata de didatizar o conteúdo da brincadeira, a experiência na educação
infantil não é para ritualizar os conteúdos nos moldes da escola de anos iniciais, mas
oportunizar vivências de situações significativas, garantindo a elaboração de um repertório
lúdico, estético e cultural pelas crianças, ampliando assim o seu universo cultural.
Neste grupo desenvolveremos um estudo sobre aspectos culturais da ILHA
DE FLORIANOPOLIS. Enfatizaremos a cultura, música, costumes,
festividades, crendice popular e suas transformações. No entanto, a origem
da denominação do BOI-DE-MAMÃO, seus personagens e folclore serão o
eixo norteador do trabalho [...] acreditamos ser interessante oportunizar as
crianças a entrar em contato com diferentes culturas, pelo viés do estudo da
vida cotidiana, a fim de que possam estabelecer relações com o nosso modo
de vida atual. Além disso, podemos fazer uso dessa situação para que
progressivamente ampliem seu conhecimento, e saibam conviver e respeitar
as diferenças.
269
O trabalho teve a intenção de articular a brincadeira do boi-de-mamão
manifestação do folclore ilhéu com a arte, o conhecimento e a cultura.
Entre os diversos objetivos, destacamos a construção de um boi-de-mamão
através de um processo lúdico-artístico e a aproximação com a cultura como
possibilidade de ampliar a experiência estético-visual e assegurar o alimento
ao imaginário infantil e suas diversas linguagens: corporais, verbais,
estéticas e musicais.
270
Essa lógica de descobertas das marcas dessa brincadeira pela cidade apresenta uma
outra rotina, que cobre e descobre os significados e as participações populares num cotidiano.
E esse cotidiano pode se transformar numa rotina rotineira” pela construção de tempos e
espaços organizados por outra lógica. Essa unidade teve objetivo de incorporar a manifestação
cultural do boi-de-mamão como eixo de um projeto coletivo, e isso demandou uma
reorganização das práticas, que é indicado por Batista,
271
como uma recusa das práticas
reguladoras, homogêneas, universalizantes e impessoais desconectadas da função social de
educação infantil, que, ao respeitarem as produções culturais das crianças, qualificam dessa
forma o fazer educativo-pedagógico.
268
FANTIN, 2000.
269
Registro de uma professora, em 2000.
270
Registro de uma professora, em 1998.
271
BATISTA, 2003.
109
Eu acho que quem incentiva mesmo é a escola [...] eu acho que boi tem
mesmo aqui [...] eu acho assim as crianças gostam, acho que tem que
trabalhar mais o boi [...].
272
Eu pego o boi aqui na escola e saio para brincar aqui no pátio junto com as
crianças eu ensino para eles. É bem abaixadinho! Abaixa, abaixa é bem
abaixadinho, não levanta a cabeça porque o pessoal está vendo vocês
debaixo do boi, não pode vê, o corpo do boi e o boi tem que ir pra
juntar o pessoal.
273
Se o boi tem que ir juntar o pessoal, conforme descrito por esse profissional, é
promovendo encontros de formação e revendo suas práticas educativas que perguntas são
feitas e refeitas, tantas indagações sugerem dúvidas, incertezas, mas alimentam um exercício
de constante reflexão: sobre como educar as crianças. Assim como pontua Sônia Kramer,
274
deve-se educar as crianças trabalhando numa perspectiva de humanização de resgate da
experiência, de conquista, da capacidade de ler o mundo, de escrever as histórias coletivas,
apropriando-se das diversas formas de produção da cultura.
E dessa apropriação com a experiência da produção cultural que se pode resgatar
trajetória e relatos; e, quando os adultos da instituição se mobilizam para construir o boi-de-
mamão, pode-se perceber que a proposta é abraçada de forma coletiva e sem hierarquização
de poder, pois o boi foi construído pelo auxiliar de serviços gerais, que nos momentos de
apresentação é protagonista, personificado no benzedor. De certa forma explicita a mágica
promovida pela manifestação dessa brincadeira, que se torna a síntese de experiências
diversificadas que se aproximam de uma mística exercida pelo boi-de-mamão sobre todos os
que se envolvem no projeto coletivo, os quais se ligam por meio de uma rede de cumplicidade
e partilha.
272
Feiticeira. Entrevista concedida em out. 2007.
273
Benzedor. Entrevista concedida em out. 2007.
274
KRAMER; BAZÍLIO, 2006.
110
FIGURA 26 − O seu Darci ensinando a brincar de boi “é bem abaixadinho” em junho 2004
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
Como espaço de cultura, de singularidades e de pluralidade na construção da
brincadeira do boi-de-mamão, a história é coletiva, pois quem cozinha e alimenta as crianças
na brincadeira do boi canta e encanta, são as merendeiras que tocam os tambores. O benzedor,
que cuida da natureza, traz para a vida o boi-de-mamão. Quem educa e cuida das crianças
marca o compasso e o tempo anunciando os atores, são professoras e auxiliares de sala. E as
crianças criam e recriam tempos de outrora nos seus tempos de agora, (re)produzindo a
cultura. Para Kramer,
275
“o trabalho coletivo é, portanto, ponto de partida e de chegada e não
pode ficar congelado sob pena de se tornar autoritário como se estivesse pronto para ser
aplicado”.
275
KRAMER; BAZÍLIO, 2006, p. 73.
111
FIGURA 27 − A marcação do ritmo da brincadeira pelos profissionais do NEI em 2001
FONTE: Arquivo pessoal.
[...] E quando a gente tem um objetivo comum e afinidades a tendência é
construir e ampliar, então eu acho que a parceria, direção e supervisão
naquela ocasião, vinculada a auxiliar de ensino, auxiliar de sala e as demais
pessoas que trabalhavam naquela instituição, porque tinha isso, não fazia
aquele trabalho de forma amadora, apesar de ser uma cultura popular, se
assim a gente pode dizer.
276
Essa coletividade só tem sentido se proposta pelos diálogos dos que participam, e, para
Brandão,
277
participar não significa apenas estar presente, mas criar com o poder da presença
e o direito à intervenção daqueles a quem a gica do arbítrio destina lugares à margem da
vida e da cultura, na sociedade, tão bem demarcados pela luta ao direito à educação das
crianças e da cultura popular, já sinalizada pelos brincantes.
A participação das famílias, seja como apreciadores, seja como apoiadores na
organização da brincadeira nos vários momentos de construção, tanto no espaço da unidade
como nos diversos espaços em que o boi-de-mamão se apresentou, foi criando organicidade e
indicando diversas possibilidades, conforme o depoimento da supervisora.
[...] a gente tinha uma cumplicidade com as famílias, então era uma relação
que se estendia para além dos muros da escola, da unidade, do NEI estava
para, além disso, e era como se a gente presenteasse os transeuntes que
assistiam e isso sem falar que mobilizava muito as pessoas. Então eu percebo
o boi-de-mamão do NEI Santo Antônio de Pádua com essa característica, ou
seja, com esta possibilidade de resgatar, de trazer uma memória daquela
comunidade, de inserir novas crianças e novas famílias nesse enredo que
estava presente, como possibilidade de organização do trabalho por este viés
[...].
276
Supervisora. Entrevista concedida em 8 out. 2007.
277
BRANDÃO, 2002.
112
FIGURA 28 − Participação das famílias em momentos de apresentação em 2003
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
FIGURA 29 − Grupo do bairro, Gente da Terra, compartilhando momentos em 2003
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
Saudades, lembranças de uma brincadeira que ficará viva para sempre em
nossos corações, nem o tempo e nem a distância terão forças para apagá-la
de nossa memória. Fica a tarefa às famílias, de durante as férias matar a
saudade da brincadeira cantando às crianças a música do boi e assim
revivendo momentos alegres que as crianças vivenciaram ao longo do ano.
278
Esse diálogo constituído na relação de parceria das famílias com a organização dos
projetos da unidade, bem como numa relação material de subsídio financeiro, gera
278
Registro de uma professora, em 2003.
113
cumplicidade e belas trocas quando as famílias prestigiam a manifestação da brincadeira em
vários espaços. Para Paulo Freire,
279
esse diálogo gera amorosidade, cumplicidade, e desta
maneira a unidade educativa consegue estabelecer vínculos de extrema respeitabilidade na
comunidade devido ao canal aberto com as suas práticas educativo-pedagógicas e com a
história de vida das famílias. Veja esse registro nos depoimentos:
[...] curtindo muito, convivendo com essa cultura, gostando. Acho que essa é
a importância de tudo isso é gostar, conhecer através da cultura, conviver e
fazer, participar inclusive.
280
Deveria continuar um trabalho que está dando certo, como a autonomia das
crianças, minhocário, canteiros, o boi-de-mamão [...] para que não seja
interrompido um trabalho que foi realizado com dedicação e carinho, por
todos os profissionais desta unidade.
281
FIGURA 30 − Apresentação do boi-de-mamão em julho de 1997
FONTE: Arquivo pessoal.
279
FREIRE, 2006b.
280
Família Cavalinho. Entrevista concedida em 4 out. 2007.
281
Registro escrito.
114
FIGURA 31 − O tom da música do boi-de-mamão embalada pela voz do cantador da barra, seu Zé
Agostinho, em junho de 1998
FONTE: Arquivo pessoal.
O tom dado para essa cumplicidade foi construído pela inter-relação da cultura popular
dentro de um espaço de educação da infância, pela participação de um velho cantador de boi-
de-mamão, em que através dos seus versos da cantoria alimentou a memória da vida dessa
comunidade. Pois o desejo de ver boi-de-mamão sugere a participação em espaços que
acabaram se traduzindo, pelo viés da cultura, aqui num espaço de educação. Para Carlos
Rodrigues Brandão, "dentro da cultura do povo há um saber; no fio da história que torna este
saber vivo e continuamente transmitido entre pessoas e grupos há uma educação".
282
Para esse pesquisador toda cultura humana é fruto direto do trabalho da educação, em
que educar é criar cenários e situações em que entre pessoas, comunidades, símbolos sociais e
significados da vida e do destino possam ser criados, recriados, negociados e transformados.
[...] em cada laçada que a gente dava naquela amarração pro tambor estes
elementos vão deixando marcas na constituição, não é qualquer coisa, era
algo pensado, trabalhado, sempre estava no exercício de aprimorar, viver
cantando, catando histórias onde aparecia o boi-de-mamão, buscar Franklin
Cascaes para ver aonde que nas histórias dele aparecia, estabelecer outros
vínculos com a cultura da região, isso qualifica o trabalho, uma demanda
que eu penso, que é estar exercitando aqueles princípios da democracia, da
ética, da cultura, da ludicidade. Então penso que isso é na prática exercitar
aqueles direitos, como a nossa creche respeita os direitos, manifestar a
cultura, as religiões enfim, todas as marcas que esta atividade podia propiciar
e percebo que era um caminho extremamente rico e profícuo para estarmos
pensando, inclusive ampliar aquela cultura em outra dimensão, que outras
formas de cultura podia estar trazendo, porque o olhar sensível, a
sensibilidade através da música [...].
283
282
BRANDÃO, 2002, p. 97.
283
Supervisora. Entrevista concedida em 8 out. 2007.
115
“Em cada laçada [...] em cada amarração” é construído um tambor de significados que
ressoam qualidade e possibilidades de comunicação geradas pelo diálogo que provoca e que
aproxima as culturas. Pode-se perceber que a organização da brincadeira do boi-de-mamão se
faz pelas mãos hábeis da cultura, que se expressa pela oralidade das recordações da infância
dos adultos, fazendo parte das vivências da infância das crianças hoje. Assim, partindo do que
lhe é de mais caro, a unidade educativa aprende a organizar sua prática e percebe que nessa
rede de partilha se encontram os sujeitos, os quais, participando de um processo de formação,
enaltecem qualidade e responsabilidade com a humanidade, com a ética e com o respeito.
Nesse movimento entre as memórias e as vivências, reciprocidades são possibilidades
de recriação e criação de inúmeros diálogos. Para Paulo Freire,
284
uma relação dialógica é
estabelecida num encontro de educação entre os homens, tendo o diálogo como um fenômeno
humano, em que a oralidade da palavra é produtora de ação e reflexão.
É pela reflexão na oralidade dessas histórias com o boi-de-mamão que na constituição
de projetos de trabalho pode-se pensar a brincadeira do boi-de-mamão do ponto de vista da
produção de culturas pelas competências desses sujeitos de menor tamanho, as crianças.
Assim, a comunicação do boi-de-mamão nos espaços de educação infantil se expressa pela
observação e pela responsabilidade de ter uma história nas mãos.
E esse ato criador é possibilitado com a (des)coberta desse espaço de educação como
um lugar de se produzirem culturas rompendo com uma cultura corporativa e massificadora
que se faz pela infantilização nos produtos de mercado, os quais não são constitutivos do
universo cultural e não estão guardados na memória. Veja as observações percebidas pelo
Benzedor ao relembrar como as crianças gostam de brincar de boi-de-mamão no NEI, pois
largam os brinquedos, as figurinhas, as bonecas “[...] é só passar a mão ali no boi fazendo que
vai para brincar, eles olham tudo para ver se tira o boi para brincar”.
Está sendo e vai ser marcado muito importante na vida deles, diferente
porque não se também na tevê, não se desenho ligado ao grupo e
realmente isso é um diferencial nos projetos, porque sai daquela mesmice,
sai do marketing também, que tudo faz parte do lucro, é o brinquedo, é o
desenho que vira brinquedo, as brincadeiras que acabam, acabam as culturas
[...].
285
É de muita percepção esse depoimento, pois a cultura televisa desapropria as crianças
de suas especificidades culturais e acaba generalizando brinquedos que sinalizam uma
284
FREIRE, 2006b.
285
Família Cavalinho. Entrevista concedida em 4 out. 2007.
116
infância universal e conseqüentemente uma forma de brincar. Nesses olhares diferenciados
para a produção das crianças como uma prática cultural que lhes cobre de história, é que se
consegue estabelecer uma perspectiva de visualizar as relações entre a constituição de uma
prática cultural e uma prática educativa num espaço de educação formal.
286
Essa compreensão entre as relações educativas da brincadeira do boi-de-mamão nos
espaços de educação garante o entendimento dessa manifestação popular dentro do "chão da
educação infantil" como uma prática cultural que faz parte de uma memória simbólica da
comunidade que persiste em preservar sua continuidade.
Isto significaria abrir as portas da escola e sair a buscar compreender os
mundos circunvizinhos, antagônicos, próximos e remotos onde estão, onde
vivem e convivem com suas culturas do cotidiano os próprios personagens
da vida escolar.
287
São essas diferenças que a unidade educativa foi aprendendo em tantos anos ao pensar
na brincadeira e na infância como condição de relacionar essas práticas humanas e culturais,
pois como manifestação cultural de uma brincadeira é que a prática do boi-de-mamão traz
para o espaço da escola o espaço da rua; rua esta que simboliza um dos espaços públicos que
constituem as histórias coletivas quando da manifestação do boi-de-mamão pelas estradas do
bairro.
Nessa velha prática cultural e estradeira, a experiência educativa propõe o seu jeito de
lidar com a emoção dos saberes, pois o boi-de-mamão produziu o inusitado propondo a
participação das famílias como forma de ação, como forma de atuar na dinâmica de um
cotidiano de educação infantil. Para o pesquisador Reonaldo Manoel Gonçalves,
288
o
reconhecimento dessa participação resgata o respeito pelos diálogos de um mundo social
composto de diversidades, pois são velhas histórias que podem ajudar não a dançar o boi-
de-mamão como um corpo lúdico que se funde nesta forma de diálogo que a brincadeira
representa para a manifestação popular.
Esse é um diálogo que a cultura popular estabelece numa existência que transgride a
não valorização das políticas públicas, valorizando as histórias das famílias e fazendo história
na comunidade. Nesses encontros propiciados pela educação e pela cultura popular que se
constituem os princípios da relação para a continuidade, ao relacionar-se com uma história
286
A formalidade se dá devido à organização como espaço escolar diferente de onde a brincadeira aparece, ou
seja, na rua, na associação, nas praças.
287
BRANDÃO, 2002, p. 156.
288
GONÇALVES, 2000.
117
que precisa ser vivida, pois a cultura parece ser parte do hoje com o ontem, entre o velho e o
novo, entre o conhecido e por conhecer.
FIGURA 32 − Apresentação no espaço cultural do Angeloni em 2001
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
A esse conhecer que a unidade educativa é convidada a apresentar-se em vários
espaços pela cidade de forma a gerar cumplicidade ao responsabilizar-se com essa história
que faz parte de seu cotidiano, qualificando a prática educativa dos profissionais, e com a
história cultural dessa comunidade, gerando momentos de partilha com a história desses
sujeitos, entre os diversos locais que as crianças puderam significar suas brincadeiras de/com
boi-de-mamão.
FIGURA 33 − Instituto Estadual de Educação em 2002
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
118
Neste vai-e-vem foi-se criando inúmeros diálogos entre a manifestação da cultura
popular da brincadeira com o boi-de-mamão, pois se crê que o popular devolve para as novas
gerações uma história vivida, compondo-a de autoridade ao se constituir uma relação de
educação sistematizada pelos conteúdos subjetivos percebidos nessa interação comunitária. É
essa prática cultural da brincadeira do boi-de-mamão que os diferencia como comunidade, por
isto é tão desejada, tem valor subjetivo, não compara, cria diferença.
As diferenças são sinalizadas quando do movimento de um diálogo construído pelas
brincadeiras e pelas experiências que entra para o mundo da infância das crianças e dos
adultos com um outro jeito de brincar. Esse diálogo é produzido por um fazer, por um pensar
e por um querer a brincadeira, a ludicidade, como síntese das trocas afetivas em torno da
formação dos sujeitos.
A brincadeira do boi-de-mamão vem para o chão da educação infantil por um canal
aberto que se estabelece por práticas que fortaleceram imensos diálogos entre as recordações
das brincadeiras de infância, das famílias e dos profissionais, na co-responsabilidade dos
adultos no processo de formação das crianças, num espaço que deva ser ocupado pela dança,
pela música, pelo gesto, pelo abraço.
FIGURA 34 − Angeloni em 2001
FONTE: Arquivo pessoal.
É pela tentativa na laçada dessa diferença, num encontro entre educação de crianças e
brincadeira de boi-de-mamão, que se propõe a relacionar diálogos entre a educação infantil e
119
a cultura popular. Acredita-se poder estabelecer e dialogar com velhas e novas histórias de
fazer boi-de-mamão, com quem está aprendendo e quiçá com quem virá a brincar de boi-de-
mamão pelas ruas da cidade, pelo bairro e pela história da educação infantil pelos cantos desta
cidade.
120
3 OS DIÁLOGOS ENTRE CULTURA, EDUCAÇÃO, FORMAÇÃO DOS
PROFISSIONAIS E PARTICIPAÇÃO DAS FAMÍLIAS
[...] eu entrei na roda para ver como
se dança, eu entrei na contradança
289
Para essa roda de diálogo pensa-se na circularidade de idéias geradas a partir desse
movimento que conduz à construção de saberes em relacionar a cultura popular no contexto
da educação infantil, aqui representada pelo movimento no qual a brincadeira do boi-de-
mamão intercruza os diálogos com os profissionais e as crianças como sujeitos ao usufruírem
dessas relações.
Nesta roda são convidados para dialogar os pesquisadores que construíram uma
perspectiva de entendimento dessas relações entre a cultura popular e a educação das crianças,
propondo conversar com os brincantes com suas histórias de boi-de-mamão pela comunidade,
com as famílias com a sua forma de participação e com os profissionais com os processos de
formação na sua prática educativo-pedagógica. Esses elementos vão dando pistas ao se entrar
na contradança e propor uma educação e um cuidado de um outro jeito.
E eis quem chega para dialogar conosco, o pesquisador de educação popular Paulo
Freire,
290
que dirá que se aprende a dançar, pois os passos dados pelo professor na tarefa de
educar são os de educar-se numa relação dialógica com outros homens. Segundo o autor, o
sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto uma relação dialógica em
que se confirma com inquietação e curiosidade em permanente movimento na história.
Propondo a brincadeira do boi-de-mamão como processo de socialização, a unidade educativa
delimita um espaço de aprendizagem com as culturas populares.
Assim, assumindo esse espaço como possibilidade de organização de uma brincadeira
popular, em que a mudança dessa territorialização da rua como espaço de onde o boi-de-
mamão percorria trazendo emoção coube o confinamento para um outro espaço, o da escola.
Essa prática cultural se reduzida aos pátios das escolas reserva em seus itinerários espaços de
encenação, tendo as comemorações festivas o seu maior palco. E esse confinamento fica
atrelado aos órgãos financiadores e promotores de cultura na nossa cidade, conforme já
sinalizado pelos brincantes do Grupo do Itacorubi.
289
Cantiga de domínio popular.
290
FREIRE, 2006a.
121
Não reprodução dominante nas culturas populares, sempre algo, nas
expressões culturais populares da resistência, na linguagem, na música, no
gosto da comida, na religiosidade popular, na compreensão do mundo.
291
Essa é a compreensão do mundo e pode-se acrescentar a compreensão local, pois a
manifestação da brincadeira do boi-de-mamão resistente e generosa continua a reunir as
pessoas ao entorno de praças, nos pátios das igrejas e nos pátios das escolas, para se encantar
com a experiência de quem continua lutando por espaços de formação de sujeitos, espaços de
pronunciamento de um jeito de ser e de um jeito de fazer. Compartilha-se com o
entendimento dos brincantes por seu desejo de querer a brincadeira viva, e que viva possa
participar dos movimentos de transformação da vida, do bairro e da cidade.
Essas práticas são vividas e experienciadas por esses guardiões da tradição, conforme
pontuado pelo pesquisador da cultura popular Reonaldo Gonçalves, que salienta que essas
práticas de um boi estradeiro tornam-se emoção a cada memória, a cada pedacinho dessa
história vivida por esses velhos brincantes com experiências de fazer educação popular. Suas
experiências demarcam a brincadeira do boi-de-mamão como um espaço de socialização de
seus saberes e de uma resistência em mantê-lo vivo, atuante em “espaços que socialize seu
fazer e proponha que o boi seja de todos os que nele quiserem fazer sua parte”.
292
Como exilado, Paulo Freire percebe “quão forte são nossas marcas culturais”, de sua
experiência vivida vem nos ensinar que nossas marcas culturais são tatuadas no nosso jeito de
sentir, de lembrar, de querer, “até que ponto lutamos por criar ou encontrar caminhos em que,
contribuindo de certa forma com algo, escapamos a monotonia de dias sem amanhã”.
293
Escapamos da monotonia pelas mãos desses velhos brincantes com a sabedoria de
provocar o diálogo como uma condição intrínseca ao processo de aprendizagem, não simples
exterioridades, mas experiências carregadas de sentimentos, de emoção ao brincar de boi-de-
mamão. E é nesse espaço de educação infantil que encontramos a existência desse saber
cultural, e o coletivo de profissionais propõe romper com um discurso pedagógico
psicoligizante, constituído de muitas práticas fragmentadas, cuja fragmentação é reformulada
pelas mãos desses saberes, compondo o espaço educativo da escola como espaço de
socialização dessas experiências entre as famílias e a comunidade.
E quando se chega aos espaços da escola, por ponde se entra,
curtindo muito,
convivendo com essa cultura, gostando. Acho que essa é a importância de tudo isso, é gostar, conhecer
291
FREIRE; FAUNDEZ, 2002, p. 36.
292
GONÇALVES, 2000, p. 38.
293
FREIRE; FAUNDEZ, 2002, p. 33.
122
através da cultura, conviver e fazer, participar inclusive”.
294
É pelo relato dessa família que pistas
são dadas para um fazer coletivo para um projeto de parceria no qual
busca-se que as instituições que educam crianças sejam espaços de abertura
para os pais e a comunidade com rculos de cultura e leitura da/para a
infância e ainda com possibilidades de inovações criadoras e criativas nas
relações adulto-criança, criança-criança, comunidade-criança.
295
FIGURA 35 − NEI em 2007
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
FIGURA 36 − NEI em 2003
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
Nesses registros fotográficos, percebe-se uma outra forma de relacionar-se com a
brincadeira do boi-de-mamão, em que as crianças têm o direito de qualificar e vivenciar
situações de produção e reprodução da cultura dos adultos, nos espaços que possam ser
capacitadas a mostrar suas produções, qualificando o seu olhar sobre a brincadeira e o olhar
do público sobre a sua forma de manifestar-se, de certa maneira num rculo de produção
como sujeitos que reproduzem a cultura adulta.
“Eu vou chegando, licença pra entrar nessa roda?”, é Carlos Rodrigues Brandão
296
que entra e colabora ao falar do lugar dessa cultura, que não é o lugar de uma cultura
criadora, de uma cultura crítica, que conscientize e mobilize o povo. O seu lugar é antes o de
instrumentalizar concretamente os sujeitos, produtores de cultura, de seu saber e de sua
dimensão de uma educação do povo.
E nessa dimensão de uma cultura que redimensiona os saberes produzidos por esses
sujeitos, vão sendo recriadas novas categorias de criadores de cultura, dando um novo sentido
para o que se canta e o modo como se dança o boi-de-mamão na escola. Pois essas categorias
redimensionam essas relações internas, trazendo para o espaço de educação a brincadeira
294
Família Cavalinho. Entrevista concedida em 4 out. 2007.
295
COSTA, 2007, p. 47.
296
BRANDÃO, 2002.
123
como possibilidade de criação de sujeitos que brincam de boi-de-mamão de um outro jeito.
Martins, pesquisador e professor da rede municipal, vem colaborar dizendo que "o repertório
de apoio à produção da cultura infantil é o universo cultural do adulto".
297
E com esse olhar diferenciado, criativo e criador Paulo Freire
298
traz para a nossa roda
de conversa a necessidade de o professor ter clareza política, estética e ética do seu processo
de ensinar e de aprender, pois, nessa relação dialógica com o conhecimento de si e do outro,
ambos aprendem. O acolhimento da cultura popular nesse processo de educação implica
reconhecer e qualificar um fazer, um processo de criação.
É justamente sobre esse processo de recriação da cultura dos adultos que se pergunta:
se o projeto defendido na unidade educativa era entendido como cultura ou folclore,
299
se pelo
entendimento como cultura popular viva permite ser alterado, criativo e recriador, se o
entendimento do folclore estático, um espetáculo, para Brandão,
300
é uma festa exibida, passa
somente a ser instituído, sem ser praticado.
Parece que a institucionalização do Dia do Folclore nas escolas acabou gerando o
próprio olhar estagnado dos folcloristas pelas manifestações culturais populares. A produção
de materiais ou danças, apenas como um espetáculo, acaba instituindo uma forma estanque de
perceber e entender os processos de criação das culturas populares. Para Canclini, "o mundo é
um palco, mas o que deve ser representado está escrito. As práticas e os objetos valiosos se
encontram catalogados em um repertório fixo".
301
E quais são os processos de criação das culturas populares, é esse processo com a
brincadeira do boi, com o popular, com o que não está escrito, mas está na oralidade do canto,
de um gesto, que vive na memória, na lembrança? Quais os ensinamentos dessa cultura
popular? De que lugar a escola fala? De que lugar a escola aprende e reaprende? De que lugar
a escola refaz e faz a todo o momento com que a oralidade se expresse pelos desejos das
crianças e dos adultos de ter boi-de-mamão?
Pensa-se a circularidade das idéias a respeito de educação e cultura popular como uma
história que nos constitui, pois nesses diálogos estão as relações interindividuais entre
sujeitos, entre gerações, portanto, entre culturas. E aqui está a relação entre educação e
cultura. A cultura não é apenas uma manifestação artística ou intelectual que se expressa
297
MARTINS FILHO, 2005, p. 21.
298
FREIRE, 2006a.
299
Veja Capítulo 2.
300
BRANDÃO, 2002.
301
CANCLINI, 2006, p. 162.
124
através do pensamento, mas sim se manifesta acima de tudo nos gestos mais simples da vida
cotidiana.
Segundo Paulo Freire,
302
além desses gestos da vida, a cultura são todas as
manifestações humanas, inclusive a cotidianeidade, e fundamentalmente na cotidianeidade
está a descoberta do diferente, que é essencial numa relação de construção de conhecimentos.
Descobrir os outros, descobrir outra realidade, outros objetos, outros gestos,
outras mãos, outros corpos; e, como estamos marcados por outras linguagens
e nos acostumamos a outros gestos, a outras relações, esta é uma longa
aprendizagem, este novo descobrir, este novo relacionar-se com o mundo. E,
portanto, a diferença está por onde esta aprendizagem se inicia.
303
Paulo Freire afirma, para o nosso círculo, que numa relação educativa o essencial é
perceber o outro como diferente. Crê-se que o respeito pelas histórias trazidas pela
comunidade possa a ser o marco de respeitabilidade acerca da proposta de um projeto
político-pedagógico que se pretendeu constituir-se como direito fundamental de as crianças
vivenciarem no tempo e nos espaços aprendizagens significativas que qualifiquem suas
interações sociais com as culturas.
De acordo com Paulo Freire,
304
a oralidade se expressa pela comunicação entre o
processo de ensinar e aprender numa relação entre o processo de apreender sobre as
diferenças. uma diferenciação entre os objetivos com o processo de formação, pois as
famílias, ao pontuarem os seus quereres, são chamadas a participar, a sugerir, pois a ação e a
prática são um dos pontos de extrema importância para que se respeite a diversidade.
Pesquisadora de educação popular, Maristela Fantin vem pontuar a "participação como uma
determinada ação humana, que revela capacidade de exprimir o desejo de realizar, fazer
coisas, afirmar a si mesmo, e ao coletivo, suas potencialidades".
305
Para essa pesquisadora, a participação sugere autoria, e nesse movimento de respeito à
participação da prática do outro, a unidade educativa vai construindo e buscando a construção
e a autoria do seu projeto político-pedagógico. E parece que a unidade encontrou uma forma,
um jeito de qualificar-se pela fala, aqui a fala da cultura popular.
Assim educar implica acolher o outro e apresentar-lhe a nossa cultura. Isso
não significa anular a cultura do outro nem impor ao outro a nossa cultura,
302
FREIRE; FAUNDEZ, 2002, p. 31.
303
FREIRE; FAUNDEZ, 2002, p. 31.
304
FREIRE, 2006b.
305
FANTIN apud GONÇALVES, 2006, p. 28.
125
como se ela fosse a cultura, como se fosse a melhor, mais desenvolvida e
mais evoluída forma de cultura.
306
Com a realização do projeto do boi-de-mamão, ficou tão visível a
aproximação das famílias, sempre dando opiniões, sugestões e melhor, me
ensinaram sobre como acontecia a brincadeira, pois não sendo daqui ainda
não via esta cultura local.
307
Ao falar dessa alteridade, da relação entre os diálogos produzidos ao se organizarem
os tempos e os espaços de educação para as crianças, foi-se rompendo com a visão de função
preparatória, de compensação e de carência e trazendo a relação entre educar e cuidar como
forma de delimitar uma diferença na educação das crianças.
Percebe-se que com a brincadeira do boi-de-mamão a cultura popular rompe com uma
visão estagnada e engessada, pois a cultura popular por si se sobressai de conflitos: por um
lado a não valorização pelos órgãos de cultura, promovendo o seu escamoteamento cotidiano,
e por outro lado, pulsa na memória e de memória que somos construídos e nos constituímos; e
nisso consiste a educação das crianças em espaços nos quais se garanta que vivam plenamente
a sua infância como o seu espaço de constituição cultural.
FIGURA 37 − Visita ao Museu da Santur, em
2001
FONTE: Arquivo pessoal.
FIGURA 38 − Dança com as famílias, em 1995
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
Nossa roda vai intensificando a construção de um outro olhar acerca da produção
cultural e dos caminhos que são atravessados num espaço de educação infantil. É pelas mãos
da reflexão deste pesquisador da cultura popular, Reonaldo Gonçalves,
308
que se pontua que
as mãos são levadas a um fazer subjetivo que se manifesta no sentimento, num gostar, na
resignação, no lamento, na alegria.
306
VEIGA-NETO, 2006, p. 118, grifo do autor.
307
Registro de uma professora, em 2001.
308
GONÇALVES, 2006, p. 109.
126
Sobre a diferença entre a prática, entre as mãos e a teoria, entre os manuais, Paulo
Freire vem sinalizar que "a mão humana é tremendamente cultural. Ela é fazedora, ela é
sensibilidade, ela é visibilidade; a mão faz proposta, a mão idealiza, a mão pensa e ajeita".
309
E então dessas mãos dos fazeres, da prática, da experiência pontuada pelo autor que se
pode perceber que a brincadeira do boi-de-mamão é história construída por muitas mãos,
pelas mãos desses velhos brincantes que passaram pela unidade e deixaram possibilidades,
pelas mãos dadas com a memória de quem brincou, pelas mãos dadas na formação dos
profissionais, pelas mãos dadas com as famílias e pelas mãos das crianças, que, brincando,
incentivam a diferenciar a organização de um espaço educativo.
Levanta a mão para referendar a nossa roda, a participação da presidente da
Associação de Pais e Professores da unidade (APP), sobre as diferenças na responsabilidade
dos fazeres no espaço da escola, traz para a nossa roda de conversa a falta de políticas
públicas para a efetivação de práticas educativo-pedagógicas na educação infantil. Ela nos
relata:
Acredito que quando assumimos junto à direção o projeto para o NEI, era
responsabilidade da Associação dar conta, ir atrás do dinheiro, dos recursos.
Fomos a Assembléia Estadual, a Câmara dos Vereadores, na tentativa de
viabilizar os projetos da Unidade. E conseguimos sem a ajuda da Prefeitura
pagar a Oficina da brincadeira do boi-de-mamão. Os Projetos de menor valor
de custeio foram decididos em Assembléia geral, onde as famílias
contribuíram com colaboração espontânea, é o caso do professor de
música.
310
Esse depoimento descreve algumas das respostas dadas às dificuldades que vão se
impondo no cotidiano do NEI, e, encontrando-se novas saídas, vai-se rompendo com o
desânimo e com o descaso dos órgãos mantenedores. A brincadeira do boi-de-mamão foi
dando respostas positivas, alegres, cantantes e, de certa maneira, respostas de seguir em
frente, de mãos dadas com quem pretende constituir espaços de direitos às crianças de
usufruírem a cultura popular.
É a partir desse lugar praticado, como já nos disse Certeau,
311
no espaço dessas
práticas cotidianas que se constitui o fazer das manifestações culturais, e, por algumas
considerações; os fios tramados produzem tantas dúvidas e tantas perguntas dentro de um
contexto de educação. Pois o fazer coletivo vai sendo construído num processo de muita
309
FREIRE; NOGUEIRA, 2005, p. 34.
310
Depoimento concedido por telefone com a presidente da APP, em julho de 2007.
311
CERTEAU, 2003.
127
prática e, crê-se, de poucos momentos assegurados para a reflexão, pois as mãos que atam
esses fios possibilitam que sejam tramadas as histórias nos espaços efetivos de significados,
de símbolos, de culturas, na/pela prática, na/pela experiência.
E na organização do cotidiano dos espaços de educação são poucos os momentos de
reflexão para referenciarmos a prática educativo-pedagógica como um processo de formação
e avaliação do que se organiza para as crianças nos espaços coletivos de educação. Aqui se
encontra uma breve tentativa ao pontuar tantos quês, porquês e para quês.
3.1 Diálogos da cultura e da educação
“Entrar na contradança” para se aprender a dançar, com os passos na luta dos
movimentos de reivindicações dos direitos das crianças. E de quais direitos? Aos direitos
anteriormente citados por pesquisadores a cada canto de creche deste país:
direito à brincadeira; à atenção individual; a um ambiente aconchegante,
seguro e estimulante; ao contato com a natureza; à higiene e a saúde;
alimentação sadia; desenvolver sua curiosidade, imaginação e capacidade de
expressão; movimento em espaços amplos; à proteção, ao afeto e à amizade;
expressar seus sentimentos; atenção especial durante seu processo de
adaptação a creche e a desenvolver sua identidade cultural, racial e
religiosa.
312
Esse direito é garantido no papel da Lei com a aprovação da LDBEN,
313
que afirma
que a educação infantil é reconhecida como primeira etapa da educação básica e exige sua
inserção no sistema formal de educação, reconhecendo e acentuando suas especificidades em
relação ao atendimento e à forma como se organiza. Então, às crianças fica assegurado o
direito conforme o artigo 79, III desenvolver currículos e programas específicos,
incluindo os conteúdos culturais correspondentes às respectivas comunidades. Assim, fica
assegurado pela Constituição o direito às crianças da sua história cultural, e "a creche deve ser
um espaço de criação e expressão cultural das crianças, das famílias e da comunidade".
314
312
Critérios para um atendimento em creche que respeite os direitos fundamentais das crianças (ROSEMBERG,
1995).
313
BRASIL, 1996.
314
Critérios para um atendimento em creche que respeite os direitos fundamentais das crianças (ROSEMBERG,
1995, p. 25).
128
Que garantia à sua história cultural e de que jeito a escola tem se organizado e
propiciado esse direito das crianças para que possa ser e tornar-se um sujeito social?
Brandão
315
nos situa nessa difícil tarefa de transformamos pela educação indivíduos
biologicamente, introduzidos em uma sociedade, em pessoas culturalmente construídas
através de interações significativas das culturas de um universo social.
Com essas interações construídas com e na comunidade, o Grupo de boi-de-mamão do
Itacorubi encontrou um jeito de fazer com que lhe garanta a sua continuidade neste universo
local em que vai se apresentando e representando um jeito de continuar existindo e resistindo.
E os espaços de educação se apresentam como uma formalidade, mas que têm a grande tarefa
de educar sujeitos que sejam conhecedores, conscientes e criativos de um mundo cotidiano.
Para Brandão, a escola é um cenário
onde acontecem a história social e o cotidiano interativo das trocas de afetos
e de saberes, de símbolos e significados, de poderes, de conflitos e de
alianças, de frustrações e de resultados do encontro entre pessoas
culturalmente situadas de um lado a outro do trabalho de ensinar e
aprender.
316
É com o cenário situado por esse autor que encontramos a interação entre os
profissionais, ao ensinarem a brincadeira do boi, seja colocando os bichos para as crianças
interagirem, seja pelas mãos do benzedor, seja pelos espaços abertos no tio ou nos espaços
cobertos. A contribuição de cada adulto que "interfere", que coletiviza na organização do
cotidiano, qualifica as interações das crianças com essa apropriação cultural.
Pois, é de um lado a outro da prática de ensinar e aprender que perguntas são
constituídas das diversas indagações que estão sendo levantadas nesta roda de diálogos por
pesquisadores mais experientes. E se lança mais uma indagação: é nesse trato da subjetividade
que se encontra a tarefa de educar alguém como forma de relacionar-se com os símbolos e os
significados construídos culturalmente e passíveis de serem inter-relacionados na formação de
um sujeito criativo e criador de forma a diferenciar-se como proposta a ser organizada nos
espaços de educação formal.
Brandão responde a essa indagação e vai além dizendo que "trazer para a escola todas
as interligações com as experiências sociais e simbólicas da vida da pessoa, da sociedade e da
cultura, significa, um re-centrar da educação",
317
com o risco sinalizado pelo autor de, ao
315
BRANDÃO, 2002.
316
BRANDÃO, 2002, p. 144.
317
BRANDÃO, 2002, p. 157.
129
realizar com coragem e criatividade a derrubada dos muros, abrem-se as portas da escola para
o mundo.
Seu Machadinho, morador do bairro, acredita que, além da coragem e da criatividade
expressas por Brandão, o trabalho no NEI deve dar continuidade:
você fez aqui [referindo-se ao NEI], mas se o tiver recepção na frente,
então teria que ter projetos que desse esse envolvimento de idades em todas
as escolas; sai do jardim vai para a escola e depois vem para a associação.
Acho que é um complexo, mas tudo compensa porque a alegria que as
crianças obtiveram nos primeiros anos no jardim com o boi, as crianças que
brincaram já valeu a pena o seu trabalho, mas precisaria que ele continuasse,
que era para poder levando essa alegria para as outras pessoas.
318
De acordo com o olhar atento desse organizador, são complexas as perguntas e os
riscos necessários para que se possa abrir a escola ao mundo de significados, de
continuidades. Há muitos riscos para se usufruir as histórias em que se constituem as crianças
e as famílias, que chegam com suas visões de mundo, suas sensibilidades, seus saberes e se
apresentam com "um universo cotidiano cheio de vida e de densidade cultural”, segundo
Brandão.
319
Além da sua densidade cultural e dos espaços de alegria, Paulo Freire traz para a
reflexão a possibilidade de reconfigurarmos, desta maneira, o espaço da escola, pois, para o
autor, "o espaço da instituição se tornou não apenas formal de escolaridade: o espaço da
escola é re-descoberto como sendo lugar de opções, é então um espaço preenchido por opções
políticas".
320
Entende-se por políticas as opções desenhadas e orientadas por uma efetiva prática
educativa que se paute no respeito, nas diferenças e nos riscos que são colocados na pauta do
dia, na organização da unidade educativa, tendo a cultura popular como um dos alicerces ao
elaborar seu projeto político-pedagógico, delimitando outra forma de considerar as produções
culturais das crianças, num processo de significação e (re) significação da cultura dos adultos,
que vai possibilitando e construindo um agir neste cenário que é a escola. A supervisora do
NEI pontua:
Para quem está na coordenação consegue conciliar três eixos na verdade que
é; o trabalho dos professores que acreditam naquela possibilidade e ali vêem
um desdobramento para qualificar o trabalho, pra estar dando conta de todos
318
Seu Machadinho. Entrevista concedida em 11 jul. 2007.
319
BRANDÃO, 2002, p. 155.
320
FREIRE; NOGUEIRA, 2005, p. 49.
130
os conceitos e as habilidades que as crianças têm que estar desenvolvendo
porque a demanda do material para fazer o boi, era uma demanda de material
bastante rico e diversificado, porque tinha hora que era argila, tinha hora que
era papel reciclado, tinha hora que era pano, era feltro, então dava uma
demanda de elementos e o outro eixo as famílias [...].
321
Ao longo dos anos temos nos empenhado em oferecer um trabalho de
qualidade às crianças que atendemos. Neste sentido, os profissionais vêm
tentando assumir uma postura na qual a criança é percebida como sujeito de
direitos. Para internalizar este fazer, faz-se necessário questionar nossas
ações, para que desvencilhemos de práticas que historicamente vêm
povoando nosso cotidiano [...] tendo como objetivo: conhecer a expressão
cultural que é o boi de mamão e aprimorar o manuseio dos instrumentos e da
cantoria.
322
Esses riscos pontuados na ordem do dia acabam por (re) significar uma outra forma de
organizar o trabalho educativo-pedagógico da unidade educativa, pois exigem uma
reformulação do conceito dos espaços, da prática dos profissionais e de uma política de
atendimento que assegure o direito às crianças de participarem de momentos significativos e
prazerosos e que promova o exercício da criatividade.
Do jeito que se dança e se provoca, não se permite o enquadramento de propostas
educativas para organizar a brincadeira do boi-de-mamão, pois ela caminha conforme a
possibilidade de seguir brincando, dando passos pelo pátio coberto, pelo pátio na rua, nos
espaços onde a unidade for convidada a referenciar um fazer coletivo.
As imagens das crianças prontamente dariam outras produções teóricas ao serem
vistas, escutadas, na sua forma de recriação da cultura dos adultos, como pode ser sinalizado
nas diversas formas e maneiras com que interagem com essa brincadeira. Conforme
visualizados, os registros fotográficos vão dando pistas que essa é a organização que
possibilita a construção de aprendizagens que vão além de significados meramente
pedagógicos, sinaliza possibilidades de se criarem e refazerem os passos de cada brincante ao
se apropriarem da brincadeira do boi-de-mamão.
321
Supervisora. Entrevista concedida em 8 out. 2007.
322
PROJETO DE FORMAÇÃO CONTINUADA. Um espaço de interações. 2004.
131
FIGURA 39 − Em 2001
FONTE: Arquivo pessoal.
FIGURA 40 − Em 2002
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
Traz-se dona Maricota para a nossa roda de diálogo de forma a acreditar que nos
espaços organizados para a educação das crianças elas atuam como sujeitos sociais, pois
criam constantemente sentidos, conforme se pode perceber pelos registros abaixo.
São estruturas que ao brincar com esse boi, a gente vai oportunizando que as
crianças vivenciem, reelaborem para poderem ampliar esse universo com
esses olhos que elas vão estar olhando o mundo, pode estar na tela, pode
estar no fantoche, que está no tambor, eu penso que é isso é exercício de
vivenciar as múltiplas linguagens.
323
Primeiramente pela brincadeira para eles assim, no caso objetivo maior é
brincar e dançar o boi, querer ser o boi para dançar. É divertido para eles, é
música, é alegre, é uma coisa que chama a atenção, acho que para eles é
brincar mesmo. Os pequenos fazem chifre com as mãos, para a criança é
uma pura brincadeira.
324
Conhecer a cultura do boi foi como ganhar um abraço ao chegar no NEI [...]
toda a função e a empolgação das crianças ao verem os personagens
323
Supervisora. Entrevista concedida em 8 out. 2007.
324
Dona Maricota. Entrevista concedida em 4 out. 2007.
132
brincando [...] foi uma vivência ímpar. Era tudo uma novidade [...] pois eu
não conhecia [...] o que seria esse Boi-de-mamão [...] e a Maricota [...] fiquei
muito curiosa. Foi uma experiência muito valiosa, pois pude descobrir
inúmeras linguagens e também possibilitou a minha aproximação com o
grupo.
325
Como disse o senhor Miguel, brincante do Grupo do Itacorubi, no contexto da
brincadeira do boi-de-mamão é chegar e ver como se brinca e aprender brincando. De
acordo com Paulo Freire, esse conhecimento sistematizado pela observação só tem sentido se
percorrer a prática. Para o autor, neste percurso, "ele é imediato, o conhecimento" se
reflexão através dos corpos humanos que estão resistindo e lutando, estão ‘portanto’
aprendendo e tendo esperanças".
326
Fica-se indagando sobre o registro escrito, as outras linguagens relatadas pela
professora no seu processo de formação e pela observação das crianças brincando apreendem
a reflexão de um conhecimento popular que resiste e luta dançando e brincando. Com as
crianças aprende-se em outro momento, pois para isto é necessário construir outros olhares
diversificados, diferentes e próximos, longe e perto, embaixo e em cima, colorido e sem cor,
de dentro e de fora, mas o importante é saber que para elas, as crianças, esses diálogos aqui
estão sendo pontuados, gestados e questionados.
Brandão afirma “deixa-me pontuar um ponto de vista para que nunca seja esquecido
ou perdido é sobre”
327
as crianças, esses seres que fomos e não seremos mais. "Seres da
vida − crianças a quem nos toca, como adultos, como educadores, o introduzir em uma cultura
a ‘nossa’, que haverá de ser a deles". E, ressalta-se ainda, a quem uma vez ou outra
desejamos voltar em nossos objetos de pesquisa.
“Quais os passos do caminho para voltar?”, pergunta-se como professora de educação
infantil. Quem sabe pelas análises sinalizadas quanto à organização de espaços de educação
para as crianças; é interessante perceber na fala da organização da unidade educativa que os
professores assumem um lugar de não saber. Pensa-se que, com a brincadeira do boi-de-
mamão, a cultura popular coloca em xeque algumas estruturas amarradas que os professores
têm nas suas práticas no cotidiano. Quando se diz “amarradas”, sinaliza-se a necessidade de
receitas, moldes e manuais para elaborarem os seus planejamentos, os seus projetos de
trabalho.
325
Registro de uma professora, em 2003.
326
FREIRE; NOGUEIRA, 2005, p. 25, grifo do autor.
327
BRANDÃO, 2002, p. 191-192, grifo do autor.
133
Aqui se sinaliza outra contribuição de Paulo Freire sobre o espaço da escola, visto que
é redescoberto como sendo o lugar de opções, e os profissionais, opcionados:
são profissionais que propõem mudanças e propõem a satisfação do trabalho
crítico; são pessoas que semeiam novas direções e semeiam um certo
contentamento com este trabalho de mais qualidade no trato pedagógico com
as crianças, com os temas e os programas.
328
Pontua-se a referência desse autor ao perceber nos registros das professoras, na
participação das famílias, que a organização da brincadeira do boi-de-mamão instituía uma
continuidade na realização de um saber-fazer, as professoras, ao criarem possibilidades para a
sua produção, aprenderam pela competência das relações construídas pelas crianças no
contato com uma brincadeira popular. O que garante essa diferenciação na organização é o
enfoque de cada professor numa relação muito próxima com o seu grupo e com o coletivo.
Para o autor, a opção de ouvir as diferentes modalidades do conhecimento, a oralidade
cultural, é, também, um diferente uso da corporalidade.
329
A brincadeira do boi-de-mamão
organizada neste espaço de educação infantil parece não encontrar receitas, nem manuais
prontos, são tantos anos sendo organizada, e a cada grupo de criança as possibilidades são
diferenciadas, o que sugere a imprevisibilidade e a criatividade da batida do tambor, o jeito de
brincar com o boi.
Como já pontuado por Paulo Freire sobre a ação de ensinar e aprender:
Quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender
participamos de uma experiência total, diretiva, política, ideológica.
Gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que a boniteza deve achar-se
de mãos dadas com a decência e com a seriedade.
330
Traz-se para esta roda a reflexão de Paulo Freire citada, pensa-se na boniteza nos
abraços e nos braços das crianças com os bichos do boi-de-mamão, pensa-se na batida dos
tambores de profissionais que largaram os instrumentos de professores, pensa-se nas palavras
do benzedor, que deixa a vassoura de lado e traz para a vida o boi-de-mamão. E aqui cabe o
que acompanha a pesquisadora como professora na educação infantil, qual é o foco que se faz
necessário observar pelo adulto ao qualificar a sua prática com um grupo de crianças e suas
328
FREIRE; NOGUEIRA, 2005, p. 50.
329
FREIRE; NOGUEIRA, 2005, p. 29.
330
FREIRE, 2006a, p. 24.
134
famílias, pois quiçá haja a possibilidade de se aprender com cada criança e com cada família a
que se atende no cotidiano no processo de cuidar e educar.
E esse olhar é alimentado por sugestão, por ensinamento neste processo que se
retroalimenta dos diálogos que produzem belas, sérias e competentes reflexões.
3.2 Diálogos da cultura com os profissionais
um mundo de cultura produzido e se produzindo cotidianamente no qual a
criança vai se apropriando, criando e recriando ao interagir com outras crianças e com os
adultos. São essas experiências que, traduzidas em práticas vividas, tecidas e construídas
pelos sujeitos que vivem nesse cotidiano, de certa maneira asseguram a cultura como um
espaço de enunciação que possibilita uma inter-relação cultural num espaço de educação.
Nos espaços de educação infantil intencionalidade e organização neste processo, o
que implica em formação profissional especifica. É de uma prática vivida e de um outro
espaço de escola que “negamos a escola como museu imaginário de diversas culturas, como
se pudesse colecioná-las através das datas comemorativas, personagens da história ou da
cultura, costumes de determinados povos [...]”.
331
[...] porque essa escola não é depósito, essa escola para mim ela foi
realmente escola, ela trabalhou como escola e não como depósito.
332
Pelo entendimento expresso e verbalizado por essa família em relação às suas
expectativas, pode-se perceber que no NEI o processo de formação continuada foi se
comprometendo com um olhar diferenciado, os profissionais aprenderam a enxergar a
brincadeira como possibilidade de organizarem a sua prática educativa, pois, conforme
relatado nos registros escritos, a brincadeira aparecia pela fala das crianças, pela organização
dos projetos da unidade e pela fala das famílias. Desta maneira, extrapolavam os objetivos de
serem meras apresentações, mas sim representações daquilo que as crianças pontuavam como
espaços de brincadeira.
As crianças não precisavam necessariamente estar com o boi para eles
estarem brincando de boi, eles conseguiam representar isso em outros
espaços, negociar isso em outros movimentos e isso se ampliava, tanto que
os pequenos que não tinham efetivamente a inserção num primeiro momento
331
FERRAÇO, 2006, p. 157.
332
Família Cavalinho. Entrevista concedida em 4 out. 2007.
135
específico de um projeto de trabalho com o boi, mas pelo interesse, pela
curiosidade aguçada pelos maiores, acabaram tendo que incorporar também
pelo exercício desse movimento.
333
Se a brincadeira não for permitida pela visão estagnada e engessada dos processos de
formação, então esse é o cenário possível, ou seja, na relação entre a experiência da
comunidade e a experiência dos sujeitos na escola, dos profissionais e das crianças. Defende-
se um espaço construído pelas relações que dialogam com os contextos de cada envolvido
nesse processo de formação dos sujeitos: os profissionais, as crianças e as famílias.
Essas interações não são fáceis e não o foram para os profissionais da unidade
educativa na qual a cada ano cobria-se a ausência das professoras efetivas.
334
Na aproximação
com o projeto do boi-de-mamão, cada profissional deveria ser provocado a elaborar essas
situações no seu planejamento. O boi-de-mamão provocou, encantou, intimidou, possibilitou
interagir com esse cotidiano, participar e compartilhar com outras práticas educativas,
podendo ser levadas à compreensão dos limites de cada pessoa que compõe esse cenário,
conforme podemos sinalizar nos registros das professoras que atuaram no NEI.
Quando eu vejo o boi, eu falo para as gurias, eu lembro de quando eu era
pequena é tão engraçado, isso e aquilo [...] eu vejo como uma brincadeira
que eu posso também brincar.
335
Quando eu cheguei no NEI, logo me convidaram para cantar o boi no
Angeloni e eu não conhecia e aquilo me encantou de uma forma [...] eu
aprendi a cantar e isso foi me ensinando a fazer o principal. O meu
encantamento de ver com vocês e as crianças que começou a minha vontade
de trabalhar o boi-de-mamão.
336
A experiência com a produção cultural pode resgatar trajetórias e relatos,
provocar a discussão de valores, crenças, e na reflexão crítica da cultura que
produzimos e nos produz; suscita o repensar do sentido da vida, da sociedade
contemporânea e, nela do papel de cada um de nós.
337
Esse é o papel assumido pela unidade educativa que tem como função política e social
ampliar as possibilidades de conhecimentos dos sujeitos participantes. Essas possibilidades
processam-se nas e através das reflexões dessas relações. E reflexões são necessárias para se
333
Supervisora. Entrevista concedida em 8 out. 2007.
334
O quadro de professores conta com cinco professoras de 40 horas, mas atualmente somente duas professoras
estão atuando no NEI, as outras professoras encontram-se atuando em outras unidades ou em outras funções.
Assim, a cada ano as vagas são preenchidas por professores substitutos.
335
Dona Maricota. Entrevista concedida em 4 out. 2007.
336
Cantadora. Entrevista concedida em nov. 2007.
337
KRAMER; BAZÍLIO, 2006, p. 98.
136
entender como a manifestação da cultura popular da brincadeira do boi adentra e entra nos
espaços de formação desses sujeitos e permite a configuração de outra opção na organização.
Eu conhecia a história, mas o de cantar e dançar. Tinha época que a gente
dizia assim, que coisa chata, toda vida isso, toda vida esse boi. Mas daí tu vai
pegando a coisa e vai gostando, o envolvimento das crianças e que a gente
tem, como é grande, como eles se envolvem.
338
Esse relato expressa as possibilidades que a brincadeira do boi-de-mamão foi
exercendo na prática dessas professoras, pois sem muito compreender vão se relacionando, se
encantando, num exercício de muita observação, e percebendo os caminhos a serem
descobertos. Isso é tão grande a ponto de encantar a organização de um planejamento. O que
parecia ser chato modifica, pois quem brinca aprende a gostar, a envolver-se, a participar do
boi-de-mamão. Essa característica é sinalizada por Paulo Freire:
Quero também mencionar uma característica dupla no trabalho do(a)
profissional no interior da instituição escolar. É um trabalho sério, é trabalho
competente, é também um trabalho contente, pois se conduz por caminhos
da satisfação.
339
Pede licença para falar o pesquisador da cultura popular Reonaldo Gonçalves,
340
ao
analisar a constituição da brincadeira do boi-de-mamão num espaço de formação de
brincantes de boi, vem esclarecer a generosidade da cultura popular em provocar esses
diálogos, que se apresentam pela oralidade e pela subjetividade e que provocam, encantam e
produzem muitos diálogos, um deles como instrumento, uma voz que pede que a brincadeira
fique viva no espaço da escola.
E essas características são pontudas pelo movimento da brincadeira do boi-de-mamão
nesse espaço da educação, sendo organizada, é intencionada e partilhada de outro jeito, pois
o reconhecimento das famílias, como manifestação cultural acontece sempre da mesma
forma e desta maneira se permite a diferença pontuada pelas crianças pelo jeito que brincam.
Essa pluralidade pode ser traduzida na retroalimentação pontuada pela supervisora do NEI,
pois tem a capacidade de construir novos significados durante o processo de constituição da
brincadeira do boi-de-mamão pela participação de novos integrantes provenientes de outros
contextos culturais, num movimento de muita integração entre um processo de apreender a
cultura popular na comunidade.
338
Cantoria. Entrevista concedida em nov. 2007.
339
FREIRE; NOGUEIRA, 2005, p. 52.
340
GONÇALVES, 2006.
137
“Chego tarde para esta roda de conversa?”, é Luciana Ostetto, pesquisadora na área da
educação infantil na rede municipal, que vem contribuir com o olhar de quem conhece o chão
que os pés pisam,
341
senta e acrescenta à formação dos professores:
é necessária uma formação que contemple experiências estéticas capazes de
devolver o ser da poesia presente e esquecido no professor-adulto roubado
em suas linguagens ao longo da vida. Pensar o gosto e o repertório das
crianças é problematizar o gosto e o repertório dos adultos.
342
Não é nesse contexto com a criação dos diálogos entre arte, poesia e criatividade que
acontece a brincadeira do boi-de-mamão? Nesse contexto é que adultos brincantes de boi-de-
mamão de outras gerações, criativos e criadores de cultura adentram e entram produzindo
cultura, arte e cidadania? E nesse constante diálogo de ouvir o outro e de comprometer-se
com o outro é que se encontra um grande exercício de escuta que possibilita uma relação dos
significados, permitindo a reconstrução de sentidos, como nos fala Luciana.
343
FIGURA 41 − Em 2005
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
No exercício das crianças e das professoras de pesquisar, construir, papietar,
pintar, dramatizar, cantar, dançar, assistir, enfim vivenciar esta experiência,
tem nos possibilitado perceber que o espaço educativo deve ser um centro
irradiador de cultura e conhecimento, a expressão disso está presente das
inúmeras apresentações que o grupo realizou em vários espaços culturais.
344
Esse exercício da escuta pode ser pontuado pela unidade educativa que se permitiu
reconstruir uma história, com os profissionais, ao elaborar o seu projeto de formação
continuada necessário para que pudesse viver, criar, perceber, construir e desconstruir nesse
341
Expressão popular.
342
OSTETTO; LEITE, 2004, p. 57.
343
OSTETTO; LEITE, 2004, p. 57.
344
BARCELOS; RAIZER, 2003.
138
espaço de formação a sua dimensão brincalhona, a sua dimensão estética, a sua dimensão de
possibilidade de formar um profissional com um “sensível olhar-pensante
345
e que fosse
deixando marcas de múltiplas possibilidades nas crianças e em si mesmo como sujeitos
criadores e criativos de cultura.
Que histórias conta um corpo? Os gestos, formas, posturas, o que dizem?
Espaços do corpo no tempo. Espaços que educam o corpo no tempo:
comprimindo, expandindo, prendendo, soltando, reproduzindo, criando
gestos. Diferentes tempos, diversos corpos. Corpo objeto. Corpo metade.
Corpo inteiro. Corpo fechado. Corpo aberto. Corpo sagrado. Corpo profano.
Diferentes códigos, diversas imagens.
346
Paulo Freire
347
vem corroborar com a autora quando pontua que o primeiro ponto
daquele que educa é saber perguntar é espantar-se. Se aprendêssemos a nos perguntar sobre a
nossa própria existência cotidiana, todas as perguntas que exigissem respostas e todo o
processo pergunta/resposta que constitui o caminho do conhecimento começariam por essas
perguntas básicas de nossa vida cotidiana, desses gestos, dessas perguntas corporais que o
corpo nos faz.
Durante o relato das entrevistas pode-se perceber que alguns profissionais pontuam
observações e constatações e formulam suas perguntas, que estão impressas no corpo da
atuação de cada profissional que está hoje na unidade educativa. E essas perguntas necessitam
serem reformuladas para provocar múltiplos diálogos de reflexão:
Mas quem permaneceu aqui gosta de boi, se não sou eu quem tira o boi de
[referiu-se às paredes].
348
Sobre o jeito que buscamos as famílias, nós as banimos [...] não chamo mais
as famílias para tratar do conteúdo do sujeito, do que está levando para casa
e o busca mais o feedback com as famílias. Democracia é você fazer com
qualidade porque ele está tendo interesse.
349
A participação tem a ver com o trabalho desenvolvido no NEI, com
profissionais [...] esquece as dedicadas [...] o comprometimento, a
responsabilidade, o compromisso [refere-se às profissionais].
350
345
MARTINS, 1996.
346
OSTETTO; LEITE, 2004, p. 124.
347
FREIRE; FAUNDEZ, 2002, p. 48.
348
Cantadora. Entrevista concedida em nov. 2007.
349
Joana. Entrevista concedida em 4 out. 2007.
350
Bernúncia. Entrevista concedida em nov. 2007.
139
Falta fazer esse repasse do que nós tínhamos [...] porque vamos acabar com
aquela história que fulana fazia isso, vamos preservar aquilo de bom que nós
tínhamos, nós não estamos preservando. O projeto não é da pessoa é do
coletivo [...].
351
Acho que até acaba um pouco, pela mudança do professor substituto até
chegar incorporar, conhecer o trabalho leva um tempo na escola, às vezes é
uma professora que vem de longe que nem sabe o que é um boi. Poderia ser
uma pessoa efetiva na escola que trabalhasse o próprio grupo de boi [...].
352
Essas perguntas estão sendo elaboradas e imprimidas no cotidiano do NEI; o boi
saindo sozinho não tem voz para cantar e não encontra profissionais cantadores, profissionais
brincantes que gostem de boi, como indagado pela professora. Mas o gosto não é construído e
nem reconstruído se não tiver um carro-chefe,
353
uma direção, um olhar que possibilite,
promova, (des)cubra. A forma com que a participação é organizada tem gerado essas
negações com a falta de profissionais dedicadas e compromissadas? Isso tem a ver com a falta
de um projeto de gestão que envolva e possibilite que decisões sejam gestadas no coletivo?
O coletivo de profissionais lança seus questionamentos a partir de algo que já se viveu
tanto: a prática e a organização da brincadeira pelos pátios do NEI, conforme depoimentos
visualizados nos registros fotográficos, que se encontram nos acervos da unidade. Já
pontuados por Paulo Freire,
354
esses questionamentos são caminhos para espantar-se com a
naturalização das práticas no cotidiano, e na unidade educativa pesquisada eles têm a ver com
a forma de se organizar o projeto de gestão, a relação com as famílias e os planejamentos das
professoras.
Nesse processo de fazer coletivo se faz necessário que a brincadeira do boi-de-mamão
tenha momentos de descanso, que seja “secundarizada”, tenha momentos de “deitar e
esquecer de levantar”, pois a reflexão permitirá que esse fazer seja avaliado e sistematizado,
tendo claro que as ações nesses pequenos gestos produziram e produzem muitos significados,
como a participação das famílias e a qualificação do atendimento às crianças da comunidade.
Nesse diálogo silencioso do boi, a reflexão é alimentada pelas memórias da prática da
brincadeira do boi-de-mamão, pelas imagens das crianças e dos adultos brincando e pelos
locais onde o boi-de-mamão se apresentou.
351
Cantoria. Entrevista concedida em nov. 2007.
352
Dona Maricota. Entrevista concedida em 4 out. 2007.
353
Cantoria. Entrevista concedida em nov. 2007.
354
FREIRE; FAUNDEZ, 2002.
140
Para a roda, entra e pede licença uma autora cuja produção teórica vem analisar os
desafios da pesquisa no cotidiano da e na escola: Corinta Geraldi,
355
que afirma que são esses
saberes construídos no cotidiano a partir de certa provisoriedade que geram uma insegurança
vivida para ter coragem de arriscar o diferente, o novo, o velho, o antidogma, o saber não
metódico, o grupo, o trabalho coletivo. Essas análises é que podem auxiliar a entender o
silêncio do boi-de-mamão. Pois, se levantar, já será de outro jeito, de outra forma, com outros
cantadores e outras crianças, essa é a generosidade da cultura popular, que permite a
criatividade, a continuidade de uma manifestação popular, seja em que momento for.
Essa pesquisadora vem salientar a fragilidade do fazer coletivo pela formação dos
profissionais, pois a organização de uma rotina devoradora
356
nos engole e muitas vezes
impossibilita a reflexão, tornando difícil conseguir manter-se livre da uniformização. Mas,
resiste como voz de um instrumento que sugere a beleza de compartilhar as inseguranças com
os demais sujeitos do processo educativo-pedagógico.
A fragilidade pontuada pela autora passa a ser caracterizada pelo processo de
construção e efetivação da prática do profissional da educação infantil, não a descolando do
contexto de luta pelo direito à educação infantil. A formação de cada profissional teve e tem
uma luta diária no exercício de reconhecimento, na garantia de direitos e cotidianamente no
reconhecimento de sua prática educativa, para Costa,
357
como categoria prática e organizativa
em plena construção pelos próprios profissionais.
Brandão
358
pontua que, ao analisar essas fragilidades, não devemos separar a escola
dos outros sistemas que a configuram, “é preciso não esquecer que uma visível falácia do
ensino é devida menos ao fato de que os métodos pedagógicos foram e são ruins e mais ao
fato de que o contexto social, cultural e econômico transformou-se".
Acreditando e vivendo no cotidiano esse sucateamento pelas transformações que
orientam as políticas públicas é que a fragilidade pode ser também percebida por uma
imposição política que descaracteriza um fazer educativo-pedagógico nos espaços de
educação, pois a organização das famílias, seja nos eventos de apreciação da produção das
crianças, seja em reuniões, traduz-se na luta dos direitos de melhoria do trabalho realizado e
nas condições de infra-estrutura dos espaços destinados às crianças. Veja nos depoimentos a
luta na construção dos direitos à educação infantil, em que a participação das famílias foi
papel preponderante.
355
GERALDI, 2006.
356
BRANDÃO, 2002, p. 180.
357
COSTA, 2007.
358
BRANDÃO, 2002, p. 164-165.
141
Nós nhamos os pais envolvidos, nós tínhamos muito mais. Se for pensar
em tudo o que a gente fez no NEI lá de baixo [refere-se ao prédio antigo] até
aqui e no que está hoje, o nosso boi está bem morto [...] ele deitou e
esqueceu de levantar.
359
Acho que a escola tem que ter alguma coisa, ela tem que ter algum projeto
que prenda, algum projeto, alguma coisa que a comunidade e os pais em si,
tenham interesse de voltar para a escola para ver o que está acontecendo, o
que se passa na escola. Acho que é obrigação de amarrar alguma coisa, onde
os pais se interessam por vir.
360
Essa amarração pontuada por essa profissional como condição parte de um projeto de
gestão claro, pois defende a organização de projetos de gestão que caracterizam a participação
democrática das famílias em assumir um papel na educação das crianças; talvez essa
fragilidade possa ser situada e confrontada neste espaço de educação em que a brincadeira do
boi-de-mamão está ausente, pois exige um olhar atento à proposta político-pedagógica e um
olhar diferenciado sobre as propostas de educação para as crianças e sobre o papel social que
assume esse espaço de formação de sujeitos, sejam eles profissionais, crianças ou famílias.
Frágeis sempre serão as organizações diferenciadas no contexto da educação infantil,
seja por projetos educativo-pedagógicos que assinalem a participação dos sujeitos envolvidos
no processo, seja pela reivindicação de qualidade no atendimento, pois a formação dos
profissionais é cada vez mais situada entre a não obrigatoriedade de recursos financeiros para
subsidiá-los, ficando esse processo a cargo dos responsáveis nas unidades educativas.
Traz-se para esta roda de diálogo, para construir com essas reflexões, a constituição de
uma prática educativo-pedagógica, sendo a brincadeira do boi-de-mamão a responsável por
intercruzar esses diálogos, que por ora parece estar dormindo pela falta da participação das
famílias compostas de suas histórias, de lembranças, de memórias de brincarem, de estarem
juntos compartilhando tantos pedaços de cores, de alegrias e dores; essas dores que são
lamentadas por não se brincar tanto de boi-de-mamão neste espaço de educação, dores dos
profissionais de não saberem para onde ir, de que jeito vai? Que estrada seguir? E as crianças
que passam longe da brincadeira são privadas dessas possibilidades de encantamento, de
brincadeira.
Para o pesquisador da cultural popular Reonaldo Gonçalves, esse olhar para trás
chamamos de passado; mas a consciência de ter vivido e de ter apreendido as dores e as
alegrias decorrentes da vivência do passado é chamada de experiência vivida.
361
Crê-se que
359
Cantoria. Entrevista concedida em nov. 2007.
360
Dona Maricota. Entrevista concedida em 4 out. 2007.
361
GONÇALVES, 2006, p. 111.
142
essa mesma experiência vivida trará a brincadeira do boi-de-mamão para o espaço da unidade
educativa.
3.3 Diálogos com a participação das famílias
Os registros fotográficos e os depoimentos dos profissionais sinalizam as inúmeras
construções, os muitos momentos de parcerias, de trocas, de convergências e de divergências
sobre o papel da unidade educativa em educar as crianças; as famílias participam opinando e
perfazendo um caminho de ação. Assim, encontra-se em registros escritos no NEI um
instrumento utilizado em 2001 em que as famílias sinalizam para a candidata à direção o
espaço da escola de seus filhos; é um jeito de as famílias participarem e ditarem o seu olhar.
Estes são alguns dos seus desejos para a escola de seus filhos:
Uma escola comprometida com a educação, que tenha projetos
comprometidos com o bem-estar das crianças;
Que as crianças sejam tratadas iguais;
Que o planejamento seja feito pelos professores e não pela direção;
Uma escola organizada, bem planejada;
A participação e a segurança sejam um ponto forte para que a escola possa
desempenhar suas atividades;
Sugiro mais participação dos pais junto à creche;
Desejo uma escola um ambiente saudável em todos os sentidos, isto é lógico;
que as decisões tomadas pela escola sejam reflexo da opinião em consenso
de pais, professores e coordenadores e não que as iniciativas partam de uma
só pessoa.
362
É interessante perceber pelos depoimentos das famílias que sinalização de estarem
junto, de terem autonomia, de participarem; e isto acarreta um ponto de interrogação. Houve
quebras nesses processos de interação com as famílias, a eleição para direção, garantida
anteriormente, não assume a participação dessas famílias na elaboração do projeto de gestão.
Para contribuir, segue o depoimento de uma profissional, o qual foi sinalizado para a
elaboração do projeto de gestão em 2000:
O que estranhei na época com a aplicação deste instrumento foi não ter
percebido como professora uma certa insatisfação de alguns pais, os motivos
não sei, talvez a contrariedade de alguns pais quando eram chamados a
362
Estes registros foram disponibilizados pela candidata da época.
143
responsabilizar-se pela educação das crianças, isso foi muito forte no NEI,
ou mesmo a forma como a direção entendia alguns encaminhamentos.
363
Muitas vezes a gente subestima as famílias, mas elas têm uma capacidade de
compreensão muito grande e têm contribuições muito valiosas. Elas
percebem esse vai-e-vem essa escuta das famílias. Receber as famílias não é
ficar de comadragem, só estar presente. A família como terceiro pilar, de co-
participação.
364
Alguns depoimentos dados pelos profissionais da unidade indicam que, nos encontros
promovidos em reuniões gerais em que se debatiam questões de organização de cunho
administrativo e nas reuniões específicas de grupos de crianças, uma efetivação mais ativa
da participação; os desejos das famílias são esboçados e, sendo compartilhados, produzem
resultados, conforme sinalizado por um instrumento de avaliação em 2001.
[...] as inovações como a aula de música,
365
de ed. Física, e claro o projeto de
educação ambiental e o boi-de-mamão que como sempre trazem muito
“prazer” às “crianças” e ensinam a dar valor à natureza.
366
[...] Noto um grande comprometimento por parte das professoras que com
responsabilidade e “criatividade” possibilitam aos nossos filhos uma
aprendizagem mais agradável.
367
[...] a professora consegue articular seu referencial teórico em sua prática
educativa. Analisando os conteúdos temáticos abordados de “forma lúdica”,
sentindo um entendimento dos mesmos.
368
[...] percebo que desenvolvem um trabalho competente e que “respeitam os
ritmos” das crianças.
369
[...] O destaque para mim no NEI é a preocupação em proporcionar para as
crianças o contato com o “imaginário” (teatro, brincadeiras, festas,
atividades, etc.) considero todos estes eventos realizados muito importantes e
válidos tanto para as crianças como também para o “envolvimento dos
pais”.
370
[...] as atividades [...] foi muito interessante ajudando inclusive o
relacionamento dela com o novo mundo (escola e sociedade). Todas as
363
Marimbondo. Entrevista concedida em out. 2007.
364
Joana. Entrevista concedida em 4 out. 2007.
365
Durante o ano de 2001 o NEI com colaboração financeira das famílias custeou um profissional que
desenvolvia um projeto de cantigas de roda com as profissionais de sala.
366
Registro em instrumento de avaliação da Unidade, em junho 2001.
367
Registro em instrumento de avaliação da Unidade, em junho 2001.
368
Registro em instrumento de avaliação da Unidade, em junho 2001.
369
Registro em instrumento de avaliação da Unidade em junho 2001.
370
Registro em instrumento de avaliação da Unidade em junho 2001.
144
atividades realizadas foram de grande valia, pois tudo que pudemos mostrar
para as crianças, cultura (cinema/teatro) e também o que ocorre no meio
ambiente com certeza estaremos “construindo consciências” melhores para o
futuro.
371
[...] que tenham mais passeios e apresentação do boi-de-mamão.
372
[...] felicito a “organização” em festas e atenção com nossos filhos, pois
transferimos aos educadores a tarefa de educar e cuidar de nossos filhos.
373
FIGURA 42 − Reunião com as famílias
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
Sobre o desejo das famílias, Paulo Freire
374
diz que são esses textos que sinalizam as
narrativas dos contextos que elaboram as expectativas, as organizações e os conhecimentos
que lhes pertencem de maneira a possibilitarem que, ao saber narrar, também estimulem uma
tomada de decisões sobre o espaço de educação desejado. É o que se pode perceber na
avaliação das famílias em relação à prática educativa, compartilhada em reuniões assegura-
lhes conteúdo muito próximo à segurança emocional e valorativa do que consideram
competências a serem ensinadas às crianças.
Acredita-se que essa deva ser a participação das famílias, que reconheçam que a
garantia de qualidade para as crianças é condição de um espaço que promova situações
significativas e prazerosas nos aspectos que valorizem. Isto pode ser traduzido como
educativo para as famílias.
371
Registro em instrumento de avaliação da Unidade em junho 2001.
372
Registro em instrumento de avaliação da Unidade em junho 2001.
373
Registro em instrumento de avaliação da Unidade em junho 2001.
374
FREIRE; NOGUEIRA, 2005.
145
[...] o envolvimento da família é fundamental para que a criança sinta-se
segura na tarefa de aprender mais, faz-se necessário que a família estreite seu
diálogo com a escola compreendendo assim o universo infantil.
375
FIGURA 43- Construindo a casinha em 1994
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
FIGURA 44 − Canteiro de flores em 2001
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
FIGURA 45 − Oficina de bonecas de pano em
2002
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
FIGURA 46 − Casinha de bonecas em 2001
FONTE: Arquivo da unidade educativa.
[...] as famílias é como eu falei, o boi dava uma legitimidade ao trabalho da
instituição. Então eles fazem pra além de brincar, eles percebiam as crianças
cantarem, os menores ampliarem a linguagem. Eles pediam para reproduzir
o cd, a gente entregava a letra do boi para as famílias porque queriam
aprender para cantar com as crianças. Estes elementos criam um vínculo
muito grande e dava corpo ao trabalho da instituição.
376
E nessa relação, nesses movimentos iniciados dentro de um espaço de formação de
sujeitos que se constituem movimentos organizados, formalizados, mas que podem ser
rompidos e constituídos de outros movimentos da cultura popular: a brincadeira do boi-de-
mamão, pois o movimento da brincadeira pelas ruas e pelas estradas do bairro acontece de um
jeito muito peculiar, sendo constituído e reconstruído com a feitura da apropriação e da
desapropriação dos espaços públicos de brincar, de festejar e de comunitariar-se.
375
Registro de uma professora, em 2003.
376
Supervisora. Entrevista concedida em 8 out. 2007.
146
O movimento da brincadeira no espaço de educação rompe com o silencioso
com datas predeterminadas que não permitam que a cultura pulse e brinque,
o não enquadramento às questões didatizadas no planejamento e projetos de
trabalho, rompe com a possibilidade de o boi ser um eixo do trabalho
coletivo.
377
Mesmo rompendo com a formalidade, conforme pontuado por esse profissional, pode-
se perceber os limites da brincadeira do boi-de-mamão nesse espaço de educação, pois a
imprevisibilidade necessita ser alimentada por um carro-chefe, por um projeto de gestão claro.
A brincadeira vai apontando caminhos, mas exigências, algumas respostas por "diálogos
brincantes"
378
entre a comunidade. A falta da participação das famílias nos projetos da escola
foi rompendo com a ligação que se faz necessária e indispensável para que se construam os
limites de cada um no processo de formação e educação das crianças.
Os limites da brincadeira do boi-de-mamão nas estradas e nas ruas do bairro vão
encontrando respostas quando se alcançam possibilidades de se atuar em outros espaços, e, do
jeito que se consegue, o estabelecidos os limites. Desta forma, o grupo vai-se apropriando,
de maneira atenta e precária, pode-se dizer, mas num "diálogo silencioso"
379
vai provocando
outros sujeitos a brincar de boi-de-mamão.
Volta-se ao NEI em 2007 e procura-se por olhares conhecidos, sabidos, vividos e não
são encontrados, estão em outros lugares
380
de educação infantil, com outras brincadeiras e
com a brincadeira do boi-de-mamão, que foi aprendida no NEI e hoje encanta outras meninas
e meninos dos cantos desta cidade e quiçá retorne a este espaço e encante as crianças e os
adultos que por lá estiverem a fazer boi-de-mamão.
É ficar em silêncio e escutar a música do boi que está no muro, no brinquedo de
parque, nas paredes, nas camisetas das crianças. E neste momento do diálogo silencioso da
brincadeira do boi-de-mamão no NEI, faz-se necessário que adultos se encantem com a
brincadeira, que se percebam desafiados a romper com a mesmice, com os rituais ditos em
manuais, e aprendam a olhar diferente para as histórias que estão do outro lado dos muros da
escola.
377
Marimbondo. Entrevista concedida em out. 2007.
378
Já sinalizado no Capítulo 1.
379
Já sinalizado no Capítulo 1
380
Algumas profissionais que atuaram na unidade educativa estão atuando entre outras unidades, organizando a
brincadeira conforme foi relatado pelos profissionais que ainda mantêm contato.
147
4 CONSIDERANDO UNS FINALMENTES... E O BOI POR ONDE
ANDA?
Lá vai deixá-lo ir, se tiver amor ele volta a vir [...]
Não se termina, mas se conclui uma etapa do objetivo como pesquisadora de entender
a cultura popular dentro desse espaço da educação infantil; saliento que inúmeras são as
questões que ficaram sem respostas. Entendo que nesse movimento é necessário ficar com
poucas certezas e muitas dúvidas, de certa maneira elas farão com que retorne e consiga olhar
tudo de novo, bem devagar.
Neste espaço de educação e formação que é a universidade, tenta-se compreender os
processos que foram constituindo-me a professora de educação infantil. E, ao tentar
compreender a cultura popular da brincadeira do boi-de-mamão, num espaço de educação
para as crianças, estranha-se com o familiar,
381
em que nestes 10 anos como participante de
um “lugar”, vi o boi entrando e entremeando as falas, os corpos, os risos, as lágrimas
traduzidas em palmas ao verem a manifestação do boi-de-mamão brincada pelas crianças,
numa relação com e nas culturas.
Para Certeau,
382
este espaço da escola é como um lugar praticado, sendo constituído
pelas relações sociais estabelecidas entre os sujeitos que as qualificam, cujas histórias tão
diferentes se traduzem em culturas; culturas que os familiarizam, os unificam pelos relatos
orais e corporais quando ensinam a brincar de boi-de-mamão os profissionais, os professores,
os auxiliares de sala, as merendeiras e os auxiliares de serviço gerais; esses adultos que,
estando num espaço de educação, tentam compreender as relações estabelecidas com as
crianças.
A experiência desses adultos na unidade educativa, que ora se apresentam como
profissionais habilitados a trabalhar com as crianças, está à margem de um processo que
aponta diferenças, e diferenças são possibilidades de lidar com o outro. E nessa relação de
alteridade, os trânsitos entre as diferenças
383
percebem uma qualificação na construção de
uma interação entre a cultura popular e os projetos educativo-pedagógicos.
381
FARIA: MELLO, 2007, p. 35.
382
CERTEAU, 2003.
383
PRADO, 1999, p. 114.
148
A manifestação da brincadeira do boi-de-mamão encontra nesse espaço de educação
um palco de possibilidade ao atuar de outra forma, porque nunca é do mesmo jeito. E essa
outra forma de atuação nos foi contada pelos brincantes de boi do Grupo do Itacorubi, nos
seus espaços de sobrevivência, pelas estradas do bairro, pelas estradas da cidade e do Estado,
como representantes de uma manifestação da cultura popular.
E esses espaços de atuação entre a cultura popular e a educação infantil nos dão as
mãos para que se construam espaços de qualificação para a brincadeira, o riso, o choro, o
medo e o prazer de dançar pelas mãos de uma brincadeira de infância. Mãos que unidas fazem
e se propõem construir junto, mas que na sua grande maioria estão afastadas pela falta e pela
insuficiência de políticas públicas; afastadas estão as histórias da vida que pulsa e combina
sentimentos, emoções; afastados estão os conceitos de se pensar a formação de sujeitos: as
crianças.
Mesmo com o descaso de políticas que não saem do papel, para Suely Amaral
Mello,
384
deve-se valorizar o desejo de mudança expresso nas práticas cotidianas dos
professores, que se esforçam para democratizar as relações com as crianças e enriquecer as
experiências vividas por elas. Patrícia Prado
385
vem colaborar afirmando que a sinalização da
organização de tais práticas que singularizam a cultura popular aponta para a importância do
olhar, da escuta, da observação, da alfabetização dos adultos nessas múltiplas linguagens.
E a brincadeira do boi-de-mamão nessa unidade educativa vem colaborar com a
construção de papéis e com a redefinição das funções que assumem os profissionais e as
crianças dentro da perspectiva de uma pedagogia para a infância, a qual é o nosso maior
objetivo.
E a brincadeira do boi-de-mamão? O boi-de-mamão mostrou um dos caminhos para a
qualificação no atendimento de qualidade, na efetivação de formação de sujeitos de cultura,
na efetivação de um espaço conhecido da comunidade, na efetivação de práticas educativas
diferenciadas dos profissionais; mostrou caminhos para a efetivação de um projeto coletivo,
produzindo inúmeras interações entre a unidade educativa e a comunidade, numa relação
muito próxima de co-participação neste processo de formação: das crianças, das famílias e
dos profissionais.
E nesta colaboração das famílias, a participação da cultura popular na unidade
educativa dá visibilidade a um outro jeito de organizar os projetos político-pedagógicos, pois
ainda são receitados o educar e o cuidar das crianças, reservando os aspectos de
384
FARIA; MELLO, 2007.
385
PRADO, 1999.
149
desenvolvimento motor e cognitivo, o que se acredita que desqualifica a construção e a
reconstrução na e de cultura pelas crianças. Ao contrário, se faz necessária a construção de um
tempo e de um lugar para que se viva a infância, múltipla e diversa, capaz de observar, de
imitar, de reproduzir, de recriar velhas e novas brincadeiras com novos significados.
Para Suelly Amaral Mello,
certamente que não basta mudar o discurso, mas mudar o discurso no
processo de criar novas formas de viver juntos o encontro das crianças com a
cultura historicamente acumulada assim como a cultura que as crianças
produzem entre si − é um desafio.
386
A alteração além do discurso, mas no percurso, como sinalizado por essa autora,
provoca e produz, pelos fazeres e pelos saberes da cultura, grandes e bonitas histórias com o
boi-de-mamão sendo puxado e guiado por muitas mãos, que vivem e revivem essa cultura na
comunidade (os brincantes do Grupo do Itacorubi). Foi pelas mãos de projetos progressistas
para as unidades educativas que esse querer fazer boi-de-mamão foi gestado e construído. As
fragilidades são impostas, e a brincadeira do boi-de-mamão vai dando respostas com muita
alegria, com sabedoria popular, com saber-fazer, com um "fazer pequeno"
387
.
Edmir Perroti
388
vem colaborar quando pontua que esse fazer pequeno possa estar
numa relação muito próxima entre uma vontade e uma decisão política de transformar os
espaços de produção de culturas em espaços que permitam o lúdico. As escolas podem não
ser força produtiva, mas garantem espaços de criação e recriação da cultura adulta “sobre a
possibilidade de sobrevivência que a cultura popular (o lugar dos excluídos) vivam, produzam
se reconheçam sujeitos ativos, participantes, humanos”.
O autor e a produção da pesquisa mostraram que a cultura popular também é relegada
nos espaços de educação, em que suas circularidades se assemelham às lutas diárias dos
professores para a continuidade de um projeto político-pedagógico que inove e que provoque
mudanças, construindo os seus espaços de sobrevivência pelas ações desses sujeitos que
fazem história de educação com qualidade pelos cantos desta cidade.
A grande questão levantada na elaboração deste estudo é poder visualizar as
fragilidades, as incertezas das práticas educativo-pedagógicas que pretendem ser
diferenciadas, cuja luta cotidiana em muito se assemelha à luta na preservação e na
manutenção da brincadeira do boi-de-mamão pelo Grupo folclórico do Itacorubi. Essa luta é
386
FARIA; MELLO, 2007, p. 174.
387
Já sinalizado no Capítulo 1.
388
PERROTI, 1990, p. 21.
150
marcada pela participação nas estradas e nas ruas do bairro e desta cidade; luta marcada pela
garantia às crianças, como sujeitos de direitos, de terem acesso à cultura popular e à
participação na constituição desses lugares praticados. Esses espaços são tatuados com muitas
mãos fazendo e refazendo novas práticas, novos olhares, novas vivências coletivas por um
espaço de possibilidades e de reflexão com as famílias e com os profissionais da educação
infantil.
Descobre-se que esse fazer mesmo fragilizado não está morto, pois a pesquisa, as
entrevistas e os registros fotográficos dão conta de uma memória que, embora relegada num
canto, numa parede, vive na lembrança e na emoção de saber-fazer boi-de-mamão. Esses
relatos nostálgicos provocaram risos e lágrimas ao perfazerem as estradas em que o boi-de-
mamão passava e que, transformados pelos reordenamentos geográficos, são recordações de
uma brincadeira de criança com cabeça de mamões verdes, de boi-de-pano e de boi-de-pasto:
a farra do boi no mangueirão.
Essas formas de se relacionar com a brincadeira pelas ruas e pelos campos são para
Prado "brincadeiras que revelam um espaço de cultura, espaço da totalidade das qualidades e
produções humanas distinto do mundo material e possuidor de uma unidade axiológica que
produz e veicula projetos da vida humana".
389
Esses projetos veiculados de vida humana, de simbolização cultural, conforme
pontuado pela autora, foram encontrados durante a pesquisa e transpareceram nos 10 anos de
muitos registros documentados nos muros da escola, no brinquedo do parque. E o boi-de-
mamão vive além dos muros, numa espécie de passagem do cotidiano da escola para a
educação do cotidiano, conforme pontuado por Brandão.
390
A unidade educativa foi buscar
essas histórias e trouxe muitas marcas que não se apagaram tão facilmente, apesar de não
serem valorizadas; não estão sob os holofotes, mas estão neste lugar, num lugar onde se
encontram a emoção, a criatividade e a ludicidade de fazer educação com paixão.
É neste lugar da paixão que a emoção vai dando pistas para ensinar a brincadeira de
boi-de-mamão, como um espaço de enunciação proposto por "seu Lica", é necessário
aprender a observar para fazer boi-de-mamão. Neste lugar vivido, praticado, memorizado pelo
morador não importa saber as origens da brincadeira, de onde veio; esse é um saber não
sabido, trata-se de um saber sobre o qual os sujeitos não refletem. Dele os sujeitos dão
testemunho sem poderem se apropriar, não como propriedade, mas como uma prática
cotidiana, um saber-fazer:
389
PRADO, 1999, p. 114.
390
BRANDÃO, 2002.
151
O saber-fazer das práticas cotidianas não seria conhecido senão pelo
intérprete que o esclarece no seu espelho discursivo, mas que não o possui
tampouco. Portanto, não pertence a ninguém. Fica circulando entre a
inconsciência dos praticantes e a reflexão dos não praticantes, sem, pertencer
a nenhum.
391
Não respostas didatizadas para entender a constituição do boi-de-mamão nos
espaços de educação. A formalidade da brincadeira está na criatividade de encontrar um jeito
de pedir licença para o boi brincar, de laçar, de morrer e benzer o boi, de ser tapeado pela
Maricota e de rolar e brincar pelo chão com o urso brincalhão.
Sendo organizada num espaço de formalidades, a brincadeira do boi-de-mamão
provou alguns limites no espaço da educação, já pontuado pelos autores, pois longe de
transformá-la em matéria didática, ela é cultura popular e transpõe outros limites, com o
ouvido atento aos relatos de muitas lembranças, com a participação que provocou e promoveu
cirandas para dançar e conversar sobre educação ambiental, mutirão, processo de formação
das crianças. As famílias votaram, escolheram, opinaram, calaram e participaram nos fóruns
de decisões e nos momentos de confraternização pela produção das culturas pelas crianças,
emocionaram-se.
Com a história nas mãos, foram construídas parcerias com outros brincantes de boi
pela cidade e pelo cavaquinho de um velho cantador de boi que, ao embalar a brincadeira de
boi das crianças, capacita-os como sujeitos brincantes. E as festas são momentos de celebrar,
nas rodas organizadas, as circularidades de emoções, sejam pelos filhos, pelos netos ou pelas
crianças que demarcam a satisfação de brincar de boi-de-mamão; esses momentos são feitos
para quem quiser ver e ouvir essa pulsação da brincadeira neste canto da cidade.
Pulsação de uma brincadeira que, se ontem encantava pelas estradas do bairro, hoje
segue adiante no coração de antigos e novos moradores; segue adiante sinalizada por querer
um novo espaço de enunciação com novos atores à frente da brincadeira do boi-de-mamão
nas escolas, na igreja e nas estradas, que os moradores consigam comunitariamente a emoção
da vida e da morte no boi-de-mamão.
Querer comunitariamente esses espaços onde possam enunciar-se nos espaços de
educação e que permitam que as histórias e as práticas de cultura popular informalmente
rompam com os muros das políticas públicas e das escolas, onde professores não sejam (des)
possuídos de valores culturais e planejem o improviso, o imprevisto, e tenham as culturas
populares como projeto de criatividade, de ludicidade, das múltiplas linguagens. É preciso que
391
CERTEAU, 2003, p. 143.
152
a participação promova o diálogo e possibilite as interações entre os sujeitos de forma a
qualificar os espaços destinados à formação de sujeitos culturais. Que o diálogo na
cotidianeidade permita o diálogo do corpo do outro e se traduza em belas e imensas recriações
da cultura dos cantos desta cidade.
E é neste canto da cidade que este espaço de educação infantil vai (des)cobrindo
velhas e construindo novas histórias da brincadeira do boi-de-mamão, que chegam por quem
brincou tanto, que chegam por quem assistiu, mas chegam por quem quer ver por muito
tempo essa cultura popular dentro do chão na vida, nas ruas, na praça e nas escolas.
153
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO, Kátia Adair. O espaço da creche: que lugar é este? Dissertação (Mestrado) −
UFSC, Florianópolis, 2003.
ARAÚJO, Adalice Maria. Mito e magia na arte catarinense. Florianópolis: Secretaria da
Educação e Cultura, 1977.
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ANEXO A − MÚSICA DO BOI-DE-MAMÃO NA SOCIEDADE
FOLCLÓRICA BOI-DE-MAMÃO DO ITACORUBI
Chamador: Olha lá mestre vaqueiro, olelé
Escutai o meu cantar
Cantoria: Eu chamo pra ele vim, olelé
Eu brinco meu boi, ai, á
Você e seu companheiro, olelé
Já podem se apresentar
Eu chamo pra ele vim, olelé
Eu brinco meu boi, ai, á
Olha, lá mestre vaqueiro, olelé
Escutai com atenção
Eu chamo pra ele vim, olelé
Eu brinco meu boi, ai, á
Me pega essa bicharada, olelé
Traz cá pro meio do salão
Eu chamo pra ele vim, olelé
Eu brinco meu boi, ai, á
Vamos fazer o desfile, olelé
Que é nossa tradição
Eu chamo pra ele vim, olelé
Eu brinco meu boi, ai, á
Vamos mostrar pra platéia, olelé
O nosso boi de mamão
Eu chamo pra ele vim, olelé
Eu brinco meu boi, ai, á
No meio desse salão, olelé
Que coisa tão bonita
Eu chamo pra ele vim, olelé
Eu brinco meu boi, ai, á
E o nosso boi de mamão, olelé
Com muitos laços de fita
Eu chamo pra ele vim, olelé
Eu brinco meu boi, ai, á
Também nossa Maricota, olelé
O cabelo precioso
Eu chamo pra ele vim, olelé
Eu brinco meu boi, ai,á
Desfilando pra essa platéia, olelé
Com muitos colares de ouro
Eu chamo pra ele vim, olelé
Eu brinco meu boi, ai, á
Olha lá mestre vaqueiro, olelé
Escutai o meu cantar
Eu chamo pra ele vim, olelé
Eu brinco meu boi, ai, á
Meninos já estão cantando, olelé
Devemos se arretirar
Eu chamo pra ele vim, olelé
Eu brinco meu boi, ai, á
Olha lá mestre vaqueiro, olelé
Agora preste atenção
Eu chamo pra ele vim, olelé
Eu brinco meu boi, ai, á
E pega essa bicharada, olelé
Tira fora do salão
Eu chamo pra ele vim, olelé
Eu brinco meu boi, ai, á
O cavalo vai na frente, olelé
Porque eu já estou chamando
Eu chamo pra ele vim, olelé
Eu brinco meu boi, ai, á
E o resto da bicharada, olelé
O vaqueiro vai pegando
Eu chamo pra ele vim, olelé
Eu brinco meu boi, ai, á
Olha mestre gaiteiro, ole
Escutai o meu cantar
Eu chamo pra ele vim, olelé
Eu brinco meu boi, ai, á
No salão não tem mais nada, olelé
Por aqui vamos parar
Eu chamo pra ele vim, olelé
Eu brinco meu boi, ai, á
170
Morte do boi
Chamador: olha mestre vaqueiro
Escutai o meu cantar
Cantoria: olé, olá
Nosso boi quer vadiá
Você e seu companheiro
No salão já podem entrar
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
E entre logo de repente
Olha que eu já te mandei
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
E agora mestre vaqueiro
Você me preste atenção
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
E vai buscar o boi malhado
E traga pro meio do salão
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
O nosso boi já chegou
Aí no salão pra brincar
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
Tem uma corrupiada
Para o povo apreciar
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
E olha lá mestre vaqueiro
Escutai o meu cantar
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
E este boi é muito brabo
Ele pode te pegar
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
Agora mestre vaqueiro
Você me presta atenção
Olé,olá
Nosso boi quer vadiá
E vai na frente do malhado
Está chegando a ocasião
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
E este boi é muito brabo
Vai te botar pelo chão
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
Agora mestre vaqueiro
Escutai o meu cantar
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
Cuidado com a criançada
Pro bicho não machucar
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
Agora mestre vaqueiro
Está chegando a ocasião
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
E olha o vaqueiro na frente
Bater com ele no chão
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
E o vaqueiro já caído
Nosso boi já se deitou
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
Agora mestre Mateus
Vai chamar o seu doutor
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
E vai curar o boi malhado
Que dá doença não tem cura
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
E dei-lhe uma injeção
E depois uma benzedura
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
Agora mestre gaiteiro
Escutai o meu cantar
171
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
E vai com eles com urubu
E por aqui vamos parar
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
Ressurreição do boi
Chamador: O nosso boi está vivo
Ai quero ver levantar
Cantoria: Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
E alevanta boi malhado
E alevanta devagar
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
No meio desse terreiro
Faz o povo se espalhar
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
Mas embrabece boi malhado
Embrabece eu quero ver
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
No meio desse terreiro
Faz os vaqueiros correr
Olé,olá
Nosso boi quer vadiá
E olha lá mestre vaqueiro
Esta cantiga é pra ti
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
E esse boi é muito brabo
Vamos tirar ele daqui
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
Eu vou chamar o meu ginete
Amontado no cavalo
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
E vai laçar o boi malhado
Que tá dando muito trabalho
Olé, olá
Nosso boi quer vadiá
O cavalinho
Chamador: Olha lá gente
Escuta o meu cantar
Vai se preparando
Que eu vou te chamar
Cantoria: Vai se preparando
Que eu vou te chamar ai, ai, ai, ai
Olha lá gente
Me preste atenção
Já chegou a hora
Entre no salão
Já chegou a hora
Entre no salão, ai, ai, ai, ai
Esse meu cavalo
Ele já chegou
E o ginete dele
Já cumprimentou
E o ginete dele
Já cumprimentou, ai, ai, ai, ai
Olha lá ginete
Escuta o meu cantar
Prepara o teu laço
Pra esse boi laçar
Prepara o teu laço
Pra esse boi laçar, ai, ai, ai, ai
Olha lá ginete
Eu vou te mandar
171
Bota o boi no laço
Vamos apreciar
Bota boi no laço
Vamos apreciar, ai, ai, ai, ai
O boi tá no laço
No meio do terreiro
Agüenta ginete
Junto com o vaqueiro
Agüenta ginete
Junto com o vaqueiro, ai, ai, ai, ai
Olha lá ginete
Escuta o meu cantar
Faça meia-lua
Pra se arretirar
Faça meia-lua
Pra se arretirar, ai, ai, ai, ai
Olha lá ginete
Já chegou a hora
Tás com o boi no laço
Vai de porta a fora
Tás com o boi no laço
Vai de porta a fora, ai, ai, ai, ai
O boi foi embora
Cabou-se a folia
Fica com o gaiteiro
Minha cantoria
Fica com o gaiteiro
Minha cantoria, ai, ai, ai, ai
Cabra
Chamador: E olha lá mestre vaqueiro
Cantoria: Ei cabra, ei cabra
Escutai o meu cantar
Ei cabra, ei cabra
Você e seu companheiro
Ei cabra, ei cabra
No salão já podem entrar
Ei cabra, ei cabra
E olha lá mestre vaqueiro
Ei cabra, ei cabra
E agora preste atenção
Ei cabra, ei cabra
E pega a cabra não demora
Ei cabra, ei cabra
E pega pro meio do salão
Ei cabra, ei cabra
E a cabrinha já chegou
Ei cabra, ei cabra
E no salão para dançar
Ei cabra, ei cabra
E dá uma volta, meia volta
Ei cabra, ei cabra
E para o povo apreciar
Ei cabra, ei cabra
E olha lá mestre vaqueiro
Ei cabra, ei cabra
E olha o que eu vou te dizer
Ei cabra, ei cabra
E esta cabra está com fome
Ei cabra, ei cabra
E começou a remoer
Ei cabra, ei cabra
E agora mestre vaqueiro
Ei cabra, ei cabra
E você me preste atenção
Ei cabra, ei cabra
E pega a faca e o balaio
Ei cabra, ei cabra
E vai apanhar a ração
Ei cabra, ei cabra
E a ração que ela come
Ei cabra, ei cabra
E a folha da bananeira
Ei cabra, ei cabra
E a folha da laranjeira
Ei cabra, ei cabra
E a folha da pessegueira
Ei cabra, ei cabra
Eu vou chamar o meu ginete
Ei cabra, ei cabra
E pra entrar nesse salão
Ei cabra, ei cabra
É pra laçar a minha cabra
Ei cabra, ei cabra
Que já chegou a ocasião
Ei cabra, ei cabra
E o ginete do cavalo
Ei cabra, ei cabra
Escutai o meu cantar
172
Ei cabra, ei cabra
E entre logo no terreiro
Ei cabra, ei cabra
E tua cabra vem laçar
Ei cabra, ei cabra
E ginete do cavalo
Ei cabra, ei cabra
E olha que eu vou te mandar
Ei cabra, ei cabra
E bota a cabrinha no laço
Ei cabra, ei cabra
E para o povo apreciar
Ei cabra, ei cabra
E a cabrinha tá no laço
Ei cabra, ei cabra
E no meio desse salão
Ei cabra, ei cabra
E dá uma volta, meia volta
Ei cabra, ei cabra
E faça tua obrigação
Ei cabra, ei cabra
E o ginete do cavalo
Ei cabra, ei cabra
E olha que eu vou te mandar
Ei cabra, ei cabra
Taca a cabrinha no laço
Ei cabra, ei cabra
E já pode se arretirar
Ei cabra, ei cabra
E olha lá mestre vaqueiro
Ei cabra, ei cabra
Escutai o meu cantar
Ei cabra, ei cabra
E no salão não tem mais nada
Ei cabra, ei cabra
E por aqui vamos parar
Ei cabra, ei cabra
Urso
Chamador: Olhá lá mestre vaqueiro
Escutai o meu cantar
Bota a corrente nos bichos
Traga eles pra dançar
Ai, ai, ai Nosso urso já chegou
Ai, ai, ai Nosso urso é dançador
Olha lá mestre vaqueiro
Agora preste atenção
Os bichos estão na corrente
Traga eles pro salão
Ai, ai, ai Nosso urso já chegou
Ai, ai, ai Nosso urso é dançador
E lá vem o urso branco
Ai, urso preto e o Jaraguá
Os macacos e os gurilas
No salão para dançar
Ai, ai, ai Nosso urso já chegou
Ai, ai, ai Nosso urso é dançador
Olha lá mestre vaqueiro
Escutai o meu cantar
Cuidado com a criançada
Pro bicho não machucar
Ai, ai, ai Nosso urso já chegou
Ai, ai, ai Nosso urso é dançador
Urso branco e urso preto
Ai, são bichos domesticados
Cuidado com os gurilas
Que esses não foram domados
Ai, ai, ai Nosso urso já chegou
Ai, ai, ai Nosso urso é dançador
Olha lá mestre vaqueiro
Escutai o meu cantar
Dá uma volta com a bicharada
Para o povo apreciar
Ai, ai, ai Nosso urso já chegou
Ai, ai, ai Nosso urso é dançador
Os bichos já estão cansados
E a noite tá muito quente
Agora mestre vaqueiro
Bota os bichos na corrente
Ai, ai, ai Nosso urso já chegou
Ai, ai, ai Nosso urso é dançador
Bota os bichos na corrente
Faça a tua obrigação
O resto da bicharada
Deixe solta no salão
Ai, ai, ai Nosso urso já chegou
Ai, ai, ai Nosso urso é dançador
Olha lá mestre vaqueiro
O senhor é o mestre sala
173
Cuidado com esse gurila
E me prende ele na jaula
Ai, ai, ai Nosso urso já chegou
Ai, ai, ai Nosso urso é dançador
Olha lá mestre vaqueiro
Agora preste atenção
Os bichos estão na corrente
Tira fora do salão
Ai, ai, ai Nosso urso já chegou
Ai, ai, ai Nosso urso é dançador
Agora mestre vaqueiro
Olha que eu vou te mandar
E a hora já chegou
Já podem se arretirar
Ai, ai, ai Nosso urso já chegou
Ai, ai, ai Nosso urso é dançador
Agora mestre gaiteiro
escutai o meu cantar
No salão não tem mais nada
Por aqui vamos parar
Ai, ai, ai Nosso urso já chegou
Ai, ai, ai Nosso urso é dançador
Bernúncia
Chamador: E olha lá mestre vaqueiro
Escutai o meu cantar
Bota a corrente no bicho
Traga ela pra dançar
Cantoria: Olé. Olé, Olé, olá
Arreda do caminho
Que a bernúncia quer passar
E agora mestre vaqueiro
Ai você me preste atenção
Se o bicho tá na corrente
Traga ela pro salão
Olé. Olé, Olé, olá
Arreda do caminho
Que a bernúncia quer passar
E a bernúncia já chegou
No salão para dançar
Tira a corrente do bicho
Deixe ela vadiar
Olé. Olé, Olé, olá
Arreda do caminho
Que a bernúncia quer passar
E a bernúncia é bicho brabo
Eu lhe digo porque é
Gosta de engolir menino
Gosta de engolir mulher
Olé. Olé, Olé, olá
Arreda do caminho
Que a bernúncia quer passar
E olha lá mestre vaqueiro
Escutai o meu cantar
Cuidado com a criançada
Pro bicho não machucar
Olé. Olé, Olé, olá
Arreda do caminho
Que a bernúncia quer passar
E olha lá mestre vaqueiro
Agora preste atenção
Dá uma volta com o bichinho
No meio do salão
Olé. Olé, Olé, olá
Arreda do caminho
Que a bernúncia quer passar
E olha lá mestre vaqueiro
Olha que eu vou te avisar
O bicho já está cansando
Tá querendo se deitar
Olé. Olé, Olé, olá
Arreda do caminho
Que a bernúncia quer passar
E no meio do salão
O bicho já se deitou
Agora mestre vaqueiro
Vai chamar o seu doutor
Olé. Olé, Olé, olá
Arreda do caminho
Que a bernúncia quer passar
E agora mestre vaqueiro
Você me presta atenção
Já está chegando a hora
Desse bichinho comer
Olé. Olé, Olé, olá
Arreda do caminho
Que a bernúncia quer passar
E agora mestre vaqueiro
Você me presta atenção
174
Já está chegando a hora
De fazer a refeição
Olé. Olé, Olé, olá
Arreda do caminho
Que a bernúncia quer passar
E agora mestre vaqueiro
Olha que eu vou te dizer
Me arruma dois meninos
Para a bernúncia comer
Olé. Olé, Olé, olá
Arreda do caminho
Que a bernúncia quer passar
Depois dessa refeição
Veja o que vai acontecer
No meio desse salão
Dois filhotes vão nascer
Olé. Olé, Olé, olá
Arreda do caminho
Que a bernúncia quer passar
Eu canto pra essa platéia
Vocês me prestem atenção
Dentro de poucos minutos
A cria nasce no salão
Olé. Olé, Olé, olá
Arreda do caminho
Que a bernúncia quer passar
E olha lá mestre vaqueiro
Escutai o meu cantar
O bicho tá se mexendo
Tá querendo levantar
Olé. Olé, Olé, olá
Arreda do caminho
Que a bernúncia quer passar
No meio desse salão
Mas o bicho já levantou
O bicho já tá curado
E agradece o seu doutor
Olé. Olé, Olé, olá
Arreda do caminho
Que a bernúncia quer passar
Agora mestre vaqueiro
Escutai o meu cantar
O bicho já tá de pé
Bota os filhotes pra mamá
Olé. Olé, Olé, olá
Arreda do caminho
Que a bernúncia quer passar
Ai meu senhor mestre vaqueiro
Olha que eu vou te avisar
Os filhotes já mamaram
Tá na hora de afastar
Olé. Olé, Olé, olá
Arreda do caminho
Que a bernúncia quer passar
E agora mestre vaqueiro
Ai você me preste atenção
Passa a mão na corrente
Prende o bicho no salão
Olé. Olé, Olé, olá
Arreda do caminho
Que a bernúncia quer passar
E agora mestre vaqueiro
E olha que eu vou mandar
Pega a mãe e os filhotes
Já podem se arretirar
Olé. Olé, Olé, olá
Arreda do caminho
Que a bernúncia quer passar
E olha lá mestre gaiteiro
Escutai o meu cantar
No salão não tem mais nada
Por aqui vamos parar
Olé. Olé, Olé, olá
Arreda do caminho
Que a bernúncia quer passar
175
Maricota
Chamador: Olha lá mestre vaqueiro
Escutai o meu cantar
Prepare estas donzelas (bis)
E trague pra dançar
Cantoria: Fizemos um baile bonito
Fizemos um baile de cota
Está chegando a hora (bis)
De dançar a maricota
Agora mestre vaqueiro
Você me presta atenção
As moças estão maqueadas (bis)
Trague elas pro salão
Fizemos um baile bonito
Fizemos um baile de cota
Está chegando a hora (bis)
De dançar a maricota
A Maricota chegou
No salão para dançar
Agora que eu quero ver (bis)
As duas se rebolar
Fizemos um baile bonito
Fizemos um baile de cota
Está chegando a hora (bis)
De dançar a maricota
A filha da Maricota
É uma moça bonitinha
Ela não gosta de rebolar (bis)
E gosta de andar sozinha
Fizemos um baile bonito
Fizemos um baile de cota
Está chegando a hora (bis)
De dançar a maricota
A maricota mais velha
Tem 15 metros de altura
E a filha é mais baixinha (bis)
E mais bonita de cintura
Fizemos um baile bonito
Fizemos um baile de cota
Está chegando a hora (bis)
De dançar a maricota
Olha lá mestre vaqueiro
Escutai o meu cantar
Pergunte pra essa morena (bis)
Se ela quer casar
Fizemos um baile bonito
Fizemos um baile de cota
Está chegando a hora (bis)
De dançar a maricota
Olha lá mestre vaqueiro
Você não diga besteira
Se eu casar com outro velho (bis)
Prefiro ficar solteira
Fizemos um baile bonito
Fizemos um baile de cota
Está chegando a hora (bis)
De dançar a Maricota
Olha lá mestre vaqueiro
Olha que eu vou te avisar
No meio desse terreiro (bis)
Faz as duas se abraçar
Fizemos um baile bonito
Fizemos um baile de cota
Está chegando a hora (bis)
De dançar a maricota
Depois desse grande abraço
No meio desse salão
O Mateus e o vaqueiro (bis)
Dei-lhe um aperto de mão
Fizemos um baile bonito
Fizemos um baile de cota
Está chegando a hora (bis)
De dançar a maricota
Olha lá mestre vaqueiro
Olha que eu vou mandar
Pega as moças pela mão (bis)
E sai com ela a passear
Fizemos um baile bonito
Fizemos um baile de cota
Está chegando a hora (bis)
De dançar a maricota
Agora mestre vaqueiro
Olha que eu vou mandar
Solta as moças no terreiro (bis)
E deixe elas vadiá
Fizemos um baile bonito
Fizemos um baile de cota
Está chegando a hora (bis)
De dançar a maricota
Olha lá mestre vaqueiro
Escutai o meu cantar
Me faça uma meia lua (bis)
Pra você se arretirar
176
Fizemos um baile bonito
Fizemos um baile de cota
Está chegando a hora (bis)
De dançar a maricota
Eu canto pra essa platéia
E fica o muito obrigado
Prometemos aqui voltar (bis)
Em outra oportunidade
Fizemos um baile bonito
Fizemos um baile de cota
Está chegando a hora (bis)
De dançar a maricota
Olha lá mestre vaqueiro
Escutai o meu cantar
Dá uma volta no salão (bis)
E já podem se arretirar
Fizemos um baile bonito
Fizemos um baile de cota
Está chegando a hora (bis)
De dançar a maricota
As moças já foram embora
Acabou-se a folia
Agora fica com o gaiteiro (bis)
Junto com a cantoria
Fizemos um baile bonito
Fizemos um baile de cota
Está chegando a hora (bis)
De dançar a maricota
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