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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
DEPARTAMENTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGÜÍSTICA
Alumbramento e luta: Um estudo da metapoesia em
Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade
Eduardo Alexandre da Silva Costa
Orientador: Anco Márcio Tenório Vieira.
Dissertação de Mestrado
apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Letras,
da Universidade Federal de
Pernambuco, como requisito
parcial para obtenção
do título de Mestre em
Teoria da Literatura.
Recife
Abril de 2006
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SUMÁRIO
Resumo/Abstract .......................................................................................................... p.04
Agradecimentos ............................................................................................................. p.05
Introdução ...................................................................................................................... p.06
Capítulo I: Por dentro do poema
1 - Metalinguagem: o rei posto a nu .............................................................................. p. 03
2 – Literatura crítica ..................................................................................................... p. 15
2 - Intertextualidade: o infinito jogo do ler ................................................................... p. 19
4 - Modernos, não modernistas .................................................................................... p. 26
Capítulo II: Manuel Bandeira
1 - Desentranhamento alumbrado ............................................................................... p. 34
2 - Desentranhamento assumido .................................................................................. p. 63
.
Capítulo III: Carlos Drummond de Andrade
1 - Recomeço constante diante da pedra .................................................................... p. 72
2 - Luta e sedução no reino das palavras .................................................................... p. 84
3 - Recuo e avanço ...................................................................................................... p. 117
Conclusão .................................................................................................................. p. 120
Bibliografia geral ................................................................................................... p. 125
RESUMO
Em “Alumbramento e luta: um estudo da metapoesia em Manuel Bandeira e Carlos
Drummond de Andrade” foram analisados os processos de realização poética usados por
esses dois autores, fundadores de uma tradição moderna na literatura brasileira.
Empreendeu-se, para isso, um estudo crítico sobre os principais metapoemas desses dois
poetas. Em Manuel Bandeira, seus versos mais próximos de uma metalinguagem, já que
sua obra é carregada de intertextualidades, e seus metatextos nem sempre são declarados
como tais. Foram pesquisados seus dois principais conceitos: o “alumbramento” e a técnica
de “desentranhar” poesia das coisas. Em Carlos Drummond de Andrade, autor
metalingüísticamente mais assumido, pesquisou-se seu posicionamento diante da feitura
poética. Seus constantes recuos e avanços diante do “reino das palavras”. Por fim, foram
avaliados, também, as principais diferenças e coincidências nos conceitos metalingüísticos
de Bandeira e de Drummond.
ABSTRACT
In "Alumbramento e Luta: um estudo da metapoesia em Manuel Bandeira e Carlos
Drummond de Andrade", the processes of poetic accomplishment used by those two
authors, founders of a modern tradition in the Brazilian literature, were analyzed. It is
undertaken, a critical study on those two poets’ principal metapoems. In Manuel Bandeira,
his closer verses of a metalanguage, since all his work is loaded of intertextuality and his
poems about poetry not always are declared as such. His two main concepts, the
"alumbramento", a sophisticated kind of inspiration, and the technique of "to draw poetry
from anything", were researched. In Carlos Drummond de Andrade, author whose
metalanguage were more clear, it was researched his positioning before the poetry making.
His constant recoiling and progresses before the "kingdom of the words". Finally, it was
evaluated also the main differences and coincidences in the metalinguistic concepts of
Bandeira and of Drummond.
AGRADECIMENTOS
Aos professores da Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de
Pernambuco, pela abertura das portas do conhecimento. Agradeço tanto aos que de me
deram aulas quanto aos que me ajudaram apenas com dicas e observações. Agradecimento
especial ao meu orientador, Anco Márcio Tenório Vieira, que mais que um mestre tornou-
se um amigo.
Aos amigos que tiveram paciência em me ouvir falar deste projeto, quando há tantos
outros assuntos na vida.
Aos meus pais, por tudo.
Esta dissertação é dedicada a Letícia Garcia, minha mulher e revisora.
1
Introdução
Metalinguagem, como se verá a seguir, sobretudo a metalinguagem poética, tema
desta dissertação, mais ainda de dois autores tão próximos da tradição literária moderna
brasileira, como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, parece ser algo de
certa forma simples, num primeiro momento. Os dois poetas estão entre os mais estudados
do país. Seus poemas já são considerados clássicos, alguns, bastante populares. Mas não é
fácil. Bandeira, de uma falsa simplicidade cantada em verso e prosa por ele mesmo, só o é
de fachada: sua poesia é sua própria metalinguagem poética, seja no contexto da criação
ou só no plano das idéias. Sua poesia é metalingüística antes de ser poesia, já na idéia do
“alumbramento”, conceito que se verá a seguir e que é fundamental para o entendimento
de seu fazer poético. Sem falar nas encruzilhadas intertextuais que o poeta injetou em sua
poesia, algumas vezes de forma tão hermeticamente identificadas com sua vivência pessoal
que se faz necessário e assim ele fez uma explicação ao leitor imaginário sobre o que
se está dizendo. O Manuel Bandeira que desentranha poesia de qualquer coisa, das mais
simples às mais complexas, só reitera isso.
Carlos Drummond de Andrade, por sua vez, foi mais clássico, mesmo dentro de
suas inovações formais. Sua poesia também acaba sendo repleta de metalinguagem, mas há
espaço para o lirismo puro, que a consciência comum da Tradição já não considera como
um processo metapoético por si só, embora a realidade esteja ali retratada e simbolizada de
forma não-linear, como convém aos conceitos mais clássicos de poesia. Drummond, ao
contrário de Bandeira, faz metapoesia mais às claras; diz que a fará e a faz. A poesia é o
sujeito e, às vezes, o objeto direto de seus mais marcantes metatextos. Mais filosófico,
mais angustiado em suas experiências com o mundo que seu colega pernambucano não
que Bandeira não fosse um observador da realidade (não apenas o é, como é um dos
melhores), mas sua poesia pouco jorrou além de suas angústias pessoais: o mundo girou
em torno de suas visões sobre a própria doença, com a qual conviveu, com seus amores ou
desamores e com seus amigos, tudo temperado de simbolismos formados na mitologia de
sua infância. Sem falar que a análise da obra drummondiana, como bem apontou Silviano
Santiago, deve levar em consideração que “seus poemas já vêm carregados de significação
2
suplementar, dada pelos diversos analistas e intérpretes [...]”
1
. O que vale também para
Bandeira.
Diante disso, a metodologia usada foi muito simples e pessoal. No primeiro
capítulo, tentou-se encontrar as melhores definições sobre o que é a metalinguagem,
recurso presente em todas as artes, que nem sempre se sente, mas que está sempre lá.
Autores que discorreram sobre o tema, bem como suas variantes, como é o caso da
sofisticada noção de intertextualidade. Só a partir daí tornou-se possível uma maior
compreensão da arte poética que se estuda, examina-se, disseca-se. A metalinguagem da
metalinguagem.
O segundo capítulo é dedicado inteiramente ao estudo da metapoesia de Manuel
Bandeira, de seu pós-Simbolismo e pós-Parnasianismo da primeira fase à inteireza da
prática moderna, do poeta maduro. Para isso, este trabalho procurou seguir uma ordem
poética cronológica, não por considerá-la mais útil que uma ordem afetiva ou mesmo
temática; mas por considerar que assim procedendo pode-se perceber melhor o
crescimento técnico da poesia desse autor: seu amadurecimento, seu fluir e desenrolar-se
ao longo dos anos (até porque os conceitos bandeirianos vão se somando, incorporando-se
uns aos outros). Esta dissertação procurou também na obra bandeiriana os poemas mais
próximos do que possa ser metapoesia, mesmo que não pareçam como tal, em uma
primeira leitura. Procurou não de forma aleatória. Foi utilizada, como guia nessa busca,
parte de sua numerosa fortuna crítica. E a opinião do próprio poeta, que, melhor que
Drummond, soube explicar seu próprio processo criativo até por ser melhor prosador que
o mineiro. No capítulo dedicado a ele, estão esses poemas, alguns analisados de forma
mais ampla, outros, utilizados só como exemplo ou ilustração; ou confirmação. Tudo
girando em torno de seus conceitos chaves: o “alumbramento” e a técnica de
“desentranhar” poesia das coisas.
No capítulo dedicado à Carlos Drummond de Andrade, o terceiro, fez-se breve
estudo de seus metapoemas mais significativos. Verificou-se, também, que no poeta de
Itabira essa relação com a poesia é mais sofisticada, não em um sentido que poderia
menosprezar ou ultrapassar os conceitos bandeirianos. De fato, esses conceitos são sim
1
SANTIAGO. 1976. p. 26. O autor utiliza o conceito de suplementação de Jaques Derrida “para explicar o
movimento de significação que é avançado ao acrescentar alguma coisa a um todo”. (Idem. Ibidem. p. 26).
3
ultrapassados, mas na medida em que é normal uma geração ultrapassar a outra, nem que
seja no sentido de transformá-la, renová-la, mesmo que sem idéia próprias o que não é o
caso drummondiano. Isso para se chegar a uma idéia de Drummond como um poeta
estrategista, que se movimenta no “reino das palavras”, recuando e avançando, sem limites
estabelcidos para essas ações. Por fim, na conclusão, tentou-se algum esboço de finalidade
a que se destinou ambas as obras, e suas implicações para o que viria a seguir.
Sobre os autores utilizados como base teórica, deixa-se claro aqui nesta introdução
que não se seguiu um critério marcadamente ideológico. Ou seja, esta dissertação não se
baseia em uma única escola ou pensamento de quaisquer espectro ideológico ou estético. O
que se verificou necessário ser usado foi usado, desde que tivesse alguma relação com o
tema ou com os autores estudados. Poetas da dimensão de Bandeira e Drummond não
merecem amarras.
4
Capítulo I - Por dentro do poema
1 - Metalinguagem: o rei posto a nu
[...] nossa sociedade, fechada por enquanto numa
espécie de impasse histórico, só permite à sua
literatura a pergunta edipiana por excelência: quem
sou eu? Ela lhe proíbe, pelo mesmo movimento, a
pergunta dialética: que fazer? A verdade de nossa
literatura não é da ordem do fazer, já não é da ordem
da natureza: ela é uma máscara que se aponta com o
dedo.
2
Ao se escrever estas linhas, motivado em parte pela epígrafe acima, já há prática de
metalinguagem. Este projeto, de estudo de um corpus definido de poemas metalingüísticos
nas obras de Manuel Bandeira e de Carlos Drummond de Andrade, suas diferenças e
semelhanças, é metalinguagem desde a época em que era apenas um vago pensamento. É o
código falando do código, expondo as entranhas do código através dele mesmo. Conta-se a
alguém sobre um assunto qualquer, e, de repente, esse interlocutor imaginário interrompe o
discurso: “Mas o que é mesmo ‘tal coisa’?”. Isso é metalinguagem, a explicação dentro do
contexto, quebrando o sentido linear de uma frase, de um texto, de uma arte, para expor a
face e o corpo da linguagem utilizada. Seja na poesia, no cinema, no teatro, nos comerciais
de televisão, nos jornais, nos romances, nas histórias em quadrinhos, na música. Onde
houver uma linguagem pode haver metalinguagem, a explicação da linguagem pela
linguagem. E não há limites para o processo metalingüístico. A ciência, por exemplo, é
metalinguagem: observar, descrever, observar de novo, analisar, explicar. Ao se ir ao
cinema assistir “A Rosa Púrpura do Cairo” (1984), do diretor norte-americano Woody
Allen, vê-se metalinguagem – um filme sobre o cinema. Mais: a personagem principal se
confunde com personagens do filme que assiste; essas, por sua vez, saem da tela para se
misturarem às personagens da vida real. Para os espectadores, todas são personagens
fictícias no mesmo nível, mas a confusão de linguagem-real versus linguagem-imagética
permite que se mergulhe em um caleidoscópio metalingüístico. Um romance como
2
BARTHES. 2003. p. 29
5
“Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, é outro exemplo
metalingüístico. O personagem Brás Cubas, o “defunto-autor” (a possibilidade de escrever
um livro depois de morto é, em si mesma, uma experiência de metalinguagem), brinca
freqüentemente com o leitor, ordena-lhe que retorne a páginas já lidas, inverta seqüências,
quebre a linearidade narrativa com textos como o do capítulo 71 (“O Senão do Livro”):
Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho
que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo
sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é
enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contratação cadavérica; vício
grave, e aliás íntimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu
tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar [...]
3
O próprio dicionário, por exemplo, ao dar definições sobre palavras, explicando o
código com o próprio código, é um instrumento metalingüístico. O mesmo vale para as
gramáticas. Estão aí, nesses exemplos, todos os ingredientes metalingüísticos descritos por
Roman Jakobson, que fez uma distinção entre a metalinguagem e o que chamou de
“linguagem-objeto”, a linguagem que fala dos objetos.
Sempre que o remetente e/ou destinatário têm necessidade de verificar se
estão usando o mesmo código, o discurso focaliza o CÓDIGO;
desempenha uma função metalingüística.
4
E completou:
Todo processo de aprendizado da linguagem, particularmente a
aquisição, pela criança, da língua materna, faz largo uso de tais operações
metalingüísticas; e a afasia pode ser definida, amiúde, como uma perda
da capacidade de realizar operações metalingüística.
5
3
ASSIS. 1988. p. 70
4
JAKOBSON. 1970. p. 127
5
Idem. Ibidem.
6
Ou seja, para Jakobson, a função metalingüística existe para o código
6
. Roland
Barthes, por sua vez, teceu considerações mais diretas sobre a diferença entre linguagem-
objeto e metalinguagem.
A linguagem-objeto é a própria matéria que é submetida à investigação
lógica; a metalinguagem é a linguagem forçosamente artificial pela qual
se leva adiante essa investigação. Assim – e é este o papel da reflexão
lógica – posso exprimir numa linguagem simbólica (metalinguagem) as
relações, as estruturas de uma língua real (linguagem-objeto).
7
Quando se explica o funcionamento da linguagem utilizando-se ela mesma, revela-
se os segredos do código através do próprio código: eis a metalinguagem. Samira Chalhub,
de forma didática, assinalou:
...a linguagem b refere-se, em sua própria linguagem, à linguagem a. Ou,
por outra, a linguagem-objeto (linguagem a) é falada pela linguagem b,
cujos signos são constituídos da linguagem a.
8
Parafraseando as idéias de Jakobson, completou:
A função metalingüística pode ser percebida quando, numa mensagem, é
o fator código que se faz referente, que é apontado.
9
Ela ainda observou a lógica moderna como sendo uma “linguagem-objeto”. Ou
seja, faz-se metalinguagem quase o tempo todo sem se dar conta disso – aí há a presença
da operação “tradutora da metalinguagem”
10
, já que o código é auto-referente, testa-se e
verifica-se. Chalhub trouxe à tona, também, a discussão sobre essa “tradução”,
exemplificando-a com textos de Guimarães Rosa, Drummond e Paulo Mendes Campos.
Nos casos apresentados, há sempre um texto falando de construções textuais, do
significado das palavras, da própria palavra (que pode até não ser o tema principal, mas se
6
O ensaio no qual está presente esse conceito é o “Linguagem e Poética”. Nesse texto, foram desvendadas as
várias funções da linguagem, em busca da melhor delas para se entender a poesia (no caso, segundo ele, a
“função poética”), objeto de estudo do pesquisador russo.
7
BARTHES, 2003, p. 27.
8
CHALHUB, 2002, p. 7.
9
Idem. Ibidem. p.27.
7
for usada para explicar a si própria, como no caso dos chamados poemas visuais, por
exemplo, é metalinguagem).
Assim, o código verbal e suas qualidades, sejam sonoras, sejam visuais,
ao se desenharem (configurar) diagramadoramente (desenho que
mostraria, no conjunto, os elementos em relação), adquirem
características do objeto que definem.
11
Em poesia, isso também ocorre. Inclusive pela própria forma diferenciada do uso da
linguagem (questão que em si só remete a inúmeras discussões sobre o que é ou não
poético), que provoca efeitos não sentidos em outras formas de comunicação. Para os
formalistas, isso era provocado pelo “estranhamento”, a propriedade que tornaria possível
a “literariedade” dois conceitos bastante discutíveis. Como afirmou Eikhenbaum,
pensando sobre Jakobson:
[...] O objetivo da ciência literária deve ser o estudo das particularidades
específicas dos objetos literários, distinguindo-os de qualquer outra
matéria, e isso independentemente do fato de que, por seus traços
secundários, esta matéria pode dar pretexto e direito de utilizá-la em
outras ciências como objeto auxiliar.
12
Ele completou dizendo que “o caráter específico da arte consiste na utilização
particular do material”
13
.
Para quem acreditou que as imagens são menos importantes, no fazer poético, que o
procedimento, a própria feitura do poema sua engenharia , Chklovski escreveu:
[...] o caráter estético se revela sempre pelos mesmos signos: é criado
conscientemente para liberar a percepção do automatismo; sua visão
representa o objetivo do criador e ela é construída artificialmente de
maneira que a percepção se detenha nela e chegue ao máximo de sua
força e duração.
14
10
Idem. Ibidem. p. 28.
11
Idem. Ibidem. p. 29.
12
EIKHENBAUM. 1978. p. 8
13
Idem. Ibidem. p. 14.
14
CHKLOVSKI. 1978. p. 54.
8
Ou seja, faz com que se repense a linguagem utilizada, percebendo a concepção de
representação da realidade utilizada. Para João Alexandre Barbosa:
[...] o poema realizado pressupõe basicamente não apenas uma escolha
por entre os filões possíveis da linguagem como a transformação dos
objetos representados por força das relações estabelecidas no espaço do
poema.
15
O fato é que a poesia, ou a grande parte dela, já é feita de modo diferente, para que
se saiba que diante de um texto assim não se encontra a fala comum, ou caso ocorra (como
em muitos textos modernistas, por exemplo), saiba-se que se trata de um poema por um
motivo ou outro, nem que seja apenas por vontade do autor como veremos, por exemplo,
no “Poema tirado de uma notícia de jornal”, de Manuel Bandeira, no capítulo seguinte
deste estudo. É certo, no entanto, que a discussão sobre “fala comum” e “desvio”, pensada
pelos formalistas, não é capaz de açambarcar toda a complexidade do discurso poético.
Primeiramente, porque a linguagem em si, embora tenha seus caprichos, não possui sentido
imanente. Dependerá sempre dos contextos extratextuais e, particularmente, do leitor
pensando, em termos bartheanos de “escritura”, o leitor como sendo também o agente da
escritura; ou seja, o leitor que produz seu próprio texto ao ler outros textos , que é quem
concederá qualidades estéticas à obra.
Mais longe que os conceitos formalistas chegou Wolfang Iser, com o estudo do
“fingimento” no texto literário. Ele estabeleceu esse conceito a partir da introdução de um
elemento a mais na oposição clássica real versus fictício (ou linguagem comum versus
linguagem poética, para se fazer uma comparação com o pensamento formalista): a
imaginação, o imaginário. Esse item torna um texto ficcional. A imaginação provoca,
portanto, o ato de fingimento.
[...] evidentemente, há no texto ficcional muita realidade que não só deve
ser identificável como realidade social, mas que também pode ser de
ordem sentimental ou emocional. Estas realidades por certo diversas não
são ficções, nem tampouco se transformam em tais pelo fato de entrarem
na apresentação de textos ficcionais. Por outro lado, também é verdade
que estas realidades, ao surgirem no texto ficcional, nele não se repetem
15
BARBOSA. 1974. p. 9.
9
por efeito de si mesmas. Se o texto ficcional se refere à realidade sem se
esgotar nesta referência, então a repetição é um ato de fingir, pelo qual
aparecem finalidades que não pertencem à realidade repetida. Se o fingir
não pode ser deduzido da realidade repetida, nele então surge um
imaginário que se relaciona com a realidade retomada pelo texto. Assim
o ato de fingir ganha sua marca própria, que é de provocar a repetição no
texto da realidade vivencial, por esta repetição atribuindo uma
configuração ao imaginário, pela qual a realidade repetida se transforma
em signo, e o imaginário em efeito do que é assim referido.
16
Ainda segundo esse autor,
Desaparece assim a oposição entre ficção e realidade, pois como “saber
tácito”, ela sempre implica um sistema referencial que o ato de fingir,
enquanto transgressão de limites, não mais pode levar em conta.
17
Esse ato de fingimento e suas relações com o texto literário teriam um forte efeito
metalingüístico. Iser cita três operações fundamentais do autor em um texto: a seleção, a
combinação e o desnudamento. Redundante e resumidamente, ele explicou:
Na seleção, são transgredidos os sistemas contextuais do texto, mas
também o é a imanência do próprio texto, por incluir em seu repertório a
transgressão dos sistemas contextuais selecionados. Na combinação,
ocorre uma transgressão dos espaços semânticos intratextualmente
constituídos, o que vale tanto para a ruptura de limites do significado
lexical, quanto para a constituição do acontecimento central a narração, o
qual se manifesta na transgressão de limites dos heróis do romance. No
como se, a ficção se desnuda como tal e assim transgride o mundo
representado no texto, a partir da combinação e da seleção. Ele põe entre
parênteses este mundo e assim evidencia que não se pode proferir
nenhuma afirmação verdadeira acerca do mundo aí posto. Em princípio,
o desnudamento assinala duas coisas. Em primeiro lugar, significa para o
destinatário da ficção que ela deve ser tomada como tal. Além disso,
afirma que aqui domina a hipótese de que há de se supor como mundo o
mundo representado apenas para que assim se mostre que é representação
de algo outro.
18
16
ISER. 1983. P. 385-386.
17
Idem. Ibidem. p. 387.
18
Idem. Ibidem. p. 410.
10
Iser ainda fez questão de apontar que tudo isso só faz sentido em relação ao
destinatário do texto, o leitor:
Sucede por fim uma última transgressão que o texto provoca no
repertório de experiências dos receptores; pois a atividade de orientação
provocada se aplica a um mundo irreal, cuja atualização tem, por
conseqüência uma irrealização temporária dos receptores.
19
Ou seja, “o sinal de ficção não designa nem mais a ficção, mas sim o ‘contrato’
entre autor e leitor, cuja regulamentação o texto comprova não como discurso, mas sim
como ‘discurso encenado’”
20
. Embora se refiram mais ao texto em prosa, as idéias de Iser
podem ser aplicadas à poesia, com mais propriedade que a noção de “desvio” e
“estranhamento” dos formalistas, já que esses últimos acreditaram ser a “literariedade”
imanente ao texto literário, quando, na verdade, é contextual, e exige uma relação entre o
autor (e sua intencionalidade em fazer literatura) e o leitor (que pode ou não entender isso
como tal, dentro de seu próprio repertório).
Nesse mesmo sentido foi Luiz Costa Lima, ao analisar a relação conotação versus
denotação no texto literário. Para ele, é errado o uso comum que se faz da equivalência
entre poesia e conotação, e da fala comum à denotação, pois, na verdade, ambos os
discursos transitam num eixo que vai desde a conotação total (o que provocaria a
polissemia) à denotação total (o que geraria uma redundância explícita). Para ele,
[...] a poética do desvio exercia um fecundo compromisso: a poesia era
permitida, de certo modo estimulada, contanto que poetas e analistas
partilhassem da mesma convicção quanto à “normaticidade” do não-
poético [...]
21
Esse compromisso, que queriam atribuir aos caracteres imanentes do texto, na
verdade era o mesmo “contrato” sobre o qual falou Iser. Ainda de acordo com Luiz Costa
Lima:
19
Idem. Ibidem. p. 410.
20
Idem. Ibidem. p. 397.
21
LIMA. 1974. p. 7.
11
Neste sentido, dizemos que todo juízo estético é função de um efeito de
deslocamento: pretendendo-se falar da obra, na verdade se fala da reação
causada pela obra.
22
Daí a dificuldade em se firmar um conceito definitivo do que seja poético, mesmo
que o poema seja, ainda segundo o autor citado acima,
[...] o limite da linguagem, no sentido de ter como peculiaridade a tensão
estabelecida entre a busca de a tudo converter em formas de dito e a
geração, por efeito deste mesmo esforço, de novas camadas de não-dito.
23
2 - Literatura Crítica
No entanto, o que parece óbvio hoje, que toda linguagem tem seu funcionamento, e
que esse funcionamento é sempre passível de ser analisado, demonstrado, criticado dentro
de seu próprio ato de funcionar, nem sempre o fora. Em tempos nos quais a ordem mística
era sempre mais importante, quando nada acontecia sem a vontade dos deuses ou,
posteriormente, do Deus das religiões monoteístas, quando o homem e suas vontades
incluindo o fazer estético – eram joguetes de algo maior, de uma inspiração anterior ao
homem, as explicações para o funcionamento das coisas passavam sempre por teorias
transcendentais. Um pintor era incapaz de se sentar numa cadeira diante de uma tela em
branco e pintar conscientemente, só por pintar: tinha sempre de estar possuído pela
inspiração, tocado pelas musas. Assim como escritores e poetas.
Barthes discorreu sobre a cegueira da crítica e dos escritores em não considerar, por
muito tempo, a própria literatura como linguagem crítica e, portanto,
[...] submetida como qualquer outra linguagem, à distinção lógica: a
literatura nunca refletia sobre si mesma (às vezes sobre sua figura, mas
22
Idem. Ibidem. p. 8.
23
Idem. Ibidem. p. 9.
12
nunca sobre seu ser), nunca se dividia em objeto ao mesmo tempo
olhante e olhado; em suma, ela falava mas não se falava.
24
Esse autor apontou as seguintes fases, partindo dessa literatura sem consciência
própria até a metaliteratura atual: uma percepção do caráter artesanal da literatura, depois,
“[...] uma vontade heróica de confundir na mesma substância escrita a literatura e o
pensamento da literatura (Mallarmé)”
25
.
Chalhub, por sua vez, ao entrar no tema das poesias sobre poesia, deixou claro que
esse tipo de metatexto, que se constrói contemplando sua própria construção, é fruto da
modernidade. Faz, portanto, um paralelo entre um pólo de consciência e construção
(novos) e um pólo de sentimento e expressão (tradicional). O novo pólo seria conseqüência
da “dessacralização” do fazer artístico, da “perda da aura” (Walter Benjamim
26
), do fim do
mito da criação; coloca, enfim, o processo de produção em plena nudez. Antes, um leitor
apenas contemplava um poema, admirado, talvez, com a inspiração e genialidade do autor.
Com os versos expondo suas próprias tentativas de organização, com o desmascaramento
operado pela metalinguagem, o leitor é tão participante da construção de sentido quanto o
autor, já que o que está em jogo é o código, algo comum aos dois. Isso vem da crise da arte
do final do século XIX e início do século XX. A arte não se contentava mais em ser mera
imitação da realidade. Passou então a ser mais crítica com essa postura, auto-referencial.
No caso da literatura, “perguntando sobre o que é, pergunta também com o próprio
instrumento de fazer a pergunta – a palavra”.
27
Daí vem a noção de metalinguagem como duplo (dizer = fazer), que Chalhub
exemplificou com “A Procura da Poesia”, poema-síntese da metalinguagem em Carlos
Drummond de Andrade. Poema que, didaticamente, explica sobre o que não se deve dizer
e o que deve ser revelado em um poema, além de pedir paciência e trabalho com as
palavras (que vivem em seu mundo de dicionário, em seu próprio limbo, antes de serem
trazidas ao mundo da linguagem pelo poeta). Poema que será estudado no terceiro capítulo
deste trabalho.
24
BARTHES. 2003. p. 28.
25
Idem. Ibidem. p. 28.
26
No ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: BENJAMIM. 1987. p. 165-199.
27
CHALHUB. 2002. p. 46.
13
Para Ivete Walty e Maria Zilda Cury, a metalinguagem começa já no ato da leitura,
pois,
[...] toda leitura aciona mecanismos próprios do trabalho com a
linguagem e se faz, por isso, linguagem sobre a linguagem, porque o
leitor, ao encontrar as palavras ocupadas, habitadas por outras vozes,
questiona o código ainda que apenas no nível dos significados. Ler é uma
atividade produtora de sentidos, mas ler criticamente é metalinguagem, é
descrever o processo de feitura do texto com o auxílio de um referencial
teórico que sirva de alicerce e de sustentação de pontos de vista.
28
Essa observação concorda com as de outros autores que acreditam ser a experiência
crítica (e crítica é produção de sentidos sobre a leitura feita) metalinguagem em estado
puro. Haroldo de Campos afirmou que só há crítica quando se depara com a questão da
linguagem pela linguagem. Sua visão do trabalho do tradutor é uma prova disso. Para ele,
existem dois tipos de matéria literária a ser traduzida. A primeira seria de natureza técnico-
científica, a qual cabe uma tradução literal ou próxima disso, como faz a maioria dos
tradutores. Aqui, Campos também introduziu parte da literatura, sobretudo a prosa de
cunho mais realista, de lógica mais formal – que, não por acaso, é desinteressante para o
poeta-crítico concretista. A segunda diz respeito à poesia ou prosa mais poética, na qual
qualquer trabalho de tradução mais literal seria um afrontamento às idéias do texto
original. Como traduzir Mallarmé, Joyce ou Homero para o português, por exemplo? Ou
Guimarães Rosa para um outro idioma qualquer? Se se optar por uma tradução literal,
muito do ritmo, do imaginário poético, sobretudo, da forma imaginada pelo autor do texto
original seriam perdidos, em detrimento de se achar um sentido, de se traduzir o conteúdo.
Para isso, ele aconselhou o que chamou de “tradução crítica”, uma tradução inventiva, no
qual o tradutor tentaria se aproximar mais do ritmo e versificação originais (mantendo a
idéia inicial mais ou menos intacta) do que passar simplesmente as palavras e frases de um
idioma ao outro, de forma mecânica (o que vale para a paráfrase literária, como se verá em
Manuel Bandeira). O tradutor seria, portanto, também escritor e crítico, mergulhado em um
jogo metalingüístico.
28
WALTY; CURY. 1999. p. 7
14
A idéia de tradução como formação de novos textos, em cima do texto original – e
o exercício metalingüístico aí presente – não se aplica apenas no caso de idiomas
diferentes. A própria atividade crítica, escrever sobre algo já escrito, também faz parte
desse universo. De acordo com Barthes,
A relação da crítica com a obra é de um sentido com uma forma. O
crítico não pode pretender “traduzir” a obra, sobretudo de modo mais
claro, pois não há nada mais claro do que a obra. O que ele pode é
“engendrar” um certo sentido derivando-o de uma forma que é a obra.
29
“Traduzir”, “engendrar” o código através do código, entenda-se: metalinguagem.
Leyla Perrone-Moisés, defendeu que essa “crítica-inventiva”, criadora, transformadora (a
“escritura” de Barthes) flerta com a metalinguagem.
Desde o fim do século XIX, os escritores revelaram uma acentuada
tendência à autocrítica. Desde então, a obra literária tem-se tornado, cada
vez mais, uma reflexão sobre a literatura, uma linguagem que contém sua
própria metalinguagem (Lautréamont, Mallarmé, Joyce). Esta “crítica
interna”, realizada no interior das próprias obras, entrou em concorrência
com a “crítica externa”, exercida pelos leitores-críticos. A crítica
institucionalizada entrou em crise: as novas obras a repeliam, tornavam-
na supérflua.
30
Ou seja, a crítica era antes uma conseqüência natural da literatura, uma seguidora
no processo quase religioso no qual se dava o ato da criação artística
(Criador/criador/crítico; Deus/artista/crítico; Musa/gênio/crítico-leitor). Segundo ela, havia
um “contrato literário”. Tudo isso, entretanto, ruiu com a nova prática da escritura.
Ao mesmo tempo que a obra literária assumia um caráter cada vez mais
crítico, certos críticos começaram a revelar uma ambição crescente de
autonomia, com relação às obras criticadas. Abandonando pouco a pouco
a posição modesta de leitores e de guias de leitores, esses críticos
passaram a aparecer como escritores cuja obra concorria, em termos de
invenção, com a obra pretensamente analisada.
31
29
BARTHES. 2003. p. 221.
30
PERRONE-MOISÉS. 199., p. 11.
15
Enfim, a literatura desnudada, sem magia linear. A poesia desmontada peça por
peça. A crítica como metalinguagem das obras literárias – consequentemente,
metalinguagem de si própria.
3 - Intertextualidade: o infinito jogo do ler
Boa parte da dessacralização do ato de escrever – que pode também ser
transportado para outros fazeres artísticos – vem dos vários conceitos de intertextualidade.
Ou seja, não há nada de novo, nada divino. Tudo o que se cria hoje, dialoga com o que foi
criado outrem, e assim sucessivamente até o conceito, quase abstrato, de texto-matriz
(texto no sentido de conjunto de signos, que pode ser um quadro, um filme, uma lenda etc),
da obra original. Ao se escrever reporta-se imediatamente ao que já se leu no passado. O
que torna, portanto, muitas vezes possíveis as operações de metalinguagem é a existência
de relações intertextuais, socando a cara do leitor com a verdade da operação lingüística,
como a chamar-lhe a atenção para seu caráter de representação da realidade, de sua
realidade apenas enquanto linguagem, não como vida real.
Para Laurent Jenny (confrontando idéias sobre o tema de autores variados, como
Julia Kristeva e Harold Bloom, por exemplo),
O que caracteriza a intertextualidade é introduzir um novo modo de
leitura que faz estalar a linearidade do texto. Cada referência intertextual
é o lugar duma alternativa: ou prosseguir a leitura, vendo apenas no texto
um fragmento como qualquer outro, que faz parte integrante da sintagma
ou então voltar ao texto-origem, procedendo a uma espécie de anamnese
intelectual em que a referência intertextual aparece como um elemento
paradigmático “deslocado” e originário duma sintagmática esquecida. Na
realidade, a alternativa apenas se apresenta aos olhos do especialista. É
em simultâneo que esses dois processos operam na leitura – e na palavra
– intertextual, semeando o texto de bifurcações que lhe abrem, aos
poucos, o espaço semântico.
32
31
Idem. Ibidem. p. 12.
32
JENNY. 1979. p. 21.
16
Relacionando intertextualidade e metalinguagem, Chalhub explicou que, para se
auto-referenciar, explicar-se a si mesmo, um texto recorre sempre à memória de outros
textos e da própria linguagem: “se metalinguagem é sempre um processo relacional entre
linguagens, tratando-se de literatura, haverá sempre esse diálogo intertextual”
33
.
A intertextualidade é, portanto, mais do que um instrumento da linguagem: ela é a
força mesma que mantém o texto, que lhe dá coerência e sustentação. Para Jenny, a
intertextualidade é
[...] a própria condição da legibilidade literária. Fora da intertextualidade,
a obra literária seria muito simplesmente incompreensível, tal como uma
palavra duma língua ainda desconhecida. De facto, só se aprende o
sentido e a estrutura duma obra literária se a relacionarmos com os seus
arquétipos – por sua vez abstraídos de longas séries de textos, de que
constituem, por assim dizer, a constante. Esses arquétipos, provenientes
de outros tantos “gestos literários” codificam as formas de uso dessa
“linguagem secundária” (Lotman) que é a literatura.
34
O autor acrescentou ainda que a intertextualidade não se faz sentir só no uso do
código lingüístico, mas também refletindo na forma. Ou seja, dependendo do modo
intertextual usado (paródia, plágio, citação, colagem etc) o texto segue uma ou outra
direção formal. A História também influencia a leitura intertextual, pois cada época possui
seus valores e seus modelos estéticos e teóricos. Um processo intertextual que hoje se faz
por reverência, elogio estilístico, amanhã poderá, muito bem, negar tudo isso, ridicularizar
o texto-matriz. Outra particularidade, segundo Jenny, do processo intertextual, que permite
que o texto não seja implodido pelas operações intertextuais, é o componente ideológico
de toda intertextualidade.
Repetir para delimitar, para fechar num outro discurso,
consequentemente mais poderoso. Falar para obliterar. Ou então,
pacientemente, negar para ultrapassar.
35
33
CHALHUB. 2002. p. 52.
34
Chalhub. 2002. p. 5.
35
Idem. Ibidem. p. 44.
17
A intertextualidade não é um fenômeno novo; foi percebida já por autores e críticos
do passado. Mas foi com as idéias de Mikhail Bakhtin – o “dialogismo” literário e a
“polifonia” – que a discussão sobre o tema aprofundou-se. Julia Kristeva explicou bem
esses conceitos. Segundo ela, o dialogismo parte do princípio de que todo enunciado
lingüístico se fundamenta sobre um diálogo implícito com outros enunciados. Ou seja: um
texto está sempre dialogando com outros textos anteriores ou sincrônicos a ele. O
dialogismo bakhtiniano apresenta uma outra origem, uma outra totalidade para o
nascimento da obra literária (inserida no grande conjunto das artes em geral): a de
intertextualidade, a de um autor que reescreve textos de outros autores (e outras
personagens e outras motivações temáticas). Resumindo,
[...] uma concepção segundo a qual a palavra literária não é um ponto
(um sentido fixo), mas um cruzamento de superfícies textuais, um
diálogo de diversas escrituras; do escritor, do destinatário (ou da
personagem), do contexto cultural atual ou anterior.
36
E completou, afirmando que “... todo texto se constrói como mosaico de citações,
todo texto é absorção e transformação de um outro texto
37
”. Já a polifonia, a existência de
muitas vozes dentro de um romance, seria, portanto, a característica de muitas obras
literárias pós-Dostoievski, sobretudo os da contemporaneidade. No estilo épico, por
exemplo, não há presença de dialogismo direto, ou seja, os épicos são monológicos por
estarem direcionados a um destinatário sob a forma de mito, de Verdade. A melhor forma
de se apresentar o dialogismo são as manifestações carnavalescas. Esse dialogismo não é
apenas intertextual, mas também translingüístico, ou seja, transborda para outras práticas
semióticas, inclusive a história e a ideologia. Ao escrever, um autor está também
dialogando com seu tempo e com a língua de seu tempo.
No carnaval o sujeito é aniquilado: aí se efetua a estrutura do autor
enquanto anonimato que cria e se vê criar, enquanto eu e enquanto outro,
enquanto homem e enquanto máscara.
38
36
KRISTEVA. 1974. p. 62. [Grifos da autora]
37
Idem. Ibidem. p. 64.
38
Idem. Ibidem. p. 78 [Grifo da autora.]
18
A esses conceitos, Kristeva acrescentou os de “livro fechado” (o texto termina
quando o livro se fecha, mas, uma vez reaberto, voltará a fazer parte do grande conjunto
dos textos de todos os tempos). Ainda sob a idéia de intertextualidade bakhtiniana, ela a
relacionou à de “escritura-leitura” (pensando com Barthes). Ou seja, o autor, ao escrever
(não qualquer tipo de texto, mas sim o “aberto”, o que permite o carnaval, a polifonia, ou
seja, a “escritura”) passa para seu texto as leituras que já fez. Outro leitor, ao se deparar
com esse mesmo texto, acrescenta-lhe outras leituras e, ao produzir seu próprio texto,
continua o processo infinito de produção de sentidos sobre os sentidos anteriormente
comunicados. Lendo ao escrever, escrevendo ao ler.
O texto literário se insere no conjunto dos textos: é uma escritura-réplica
(função ou negação) de um outro (dos outros) texto (s). Pelo seu modo de
escrever, lendo o corpus literário anterior ou sincrônico, o autor vive na
história e a sociedade se escreve no texto.
39
Para Kristeva, a linguagem poética seria a linguagem maior, a linguagem definidora
do grande conjunto de linguagens, na qual estaria inserido a fala dita normal,
científica/aristotélica, como nos textos acadêmicos ou na literatura de cunho realista, por
exemplo (as várias metalinguagens, como ela cita, também estariam dentro disso).
De acordo com Perrone-Moisés, através das idéias de leitura múltipla, dialogismo,
do texto plural, com Dostoiévski, Joyce, Kafka – e outros autores modernos –, as
personagens tornaram-se receptoras e produtoras de muitas vozes, o que também acontece
na poesia.
Os poemas também não permitem mais uma leitura unitária, porque
ocorre neles um estilhaçamento temático e uma mistura de vários tipos de
discurso que desencorajam a leitura homogeneizadora (Mallarmé,
Apollinaire, Pessoa).
40
Essa “intercomunicação dos discursos” não é nova, mas sim o aparecimento disso
como algo sistemático, sempre sem “a preocupação de fidelidade (imitação) ou da
39
Idem. Ibidem. p. 98.
40
PERRONE-MOISÉS. 1993. p. 58.
19
contestação simples (paródia ridicularizante)”
41
. Há uma quebra de hierarquia e uma fuga
em relação a todo esforço de buscar uma Verdade, uma totalização textual. O monólogo
textual (em oposição ao dialogismo) já não serve para essa nova literatura, para essa nova
visão de mundo múltipla. A intertextualidade, enquanto fenômeno de absorção de
informação textual, é parte importante desse conceito. Há uma visível quebra das barreiras
que separavam o texto original de seu simulacro (ou mesmo cópia referencial) do texto
original. Ou seja, na escritura, a liberdade é a liberdade de artista, de autor original, e não
do crítico frustrado por não exercer a arte a qual critica. Perrone-Moisés afirmou ainda que
a intertextualidade só vai existir mesmo quando os “dois muros tiverem caído, e isso
implica a derrubada de muros bem mais vastos do que os da literatura”.
42
A autora, contudo, foi além da intertextualidade, fenômeno derrubado pelo conceito
de “escritura”, segundo ela:
Nesse tipo de crítica, não pode haver verdadeira intertextualidade, mas
tão-somente uma transcrição mais ou menos rigorosa que visa tornar
inteligíveis as estruturas significantes do sistema-objeto, isto é, que visa
torná-lo legível.
43
Ou seja, uma linguagem que tem como finalidade explicitar uma outra linguagem.
O crítico-escritor (o autor de “escrituras”) permite-se, portanto, ao engano, permite-se
[...] ao diálogo infinito da crítica e da obra, que faz com que o tempo
literário seja tanto o tempo dos autores que avançam quanto o tempo da
crítica que os retoma.
44
Esse diálogo pleno só acontece numa atividade escritural, num texto crítico que
entre no vazio do texto literário que está retomando. Mais do que metalinguagem
explicativa (lógica, portanto), trata-se de metalinguagem escritural, ambígua;
metalinguagem no olho do furacão. O texto crítico põe-se, portanto, em pé de igualdade ao
texto criticado, que apenas lhe serve como pré-texto para suas próprias viagens na
41
Idem. Ibidem. p. 58.
42
Idem. Ibidem. p. 67.
43
Idem. Ibidem. p. 67.
44
Idem. Ibidem. p. 70.
20
linguagem. Nunca dando por finalizada a obra – nem inicializada, já que todo texto teria
seu pré-texto (e todo pré-texto geraria novos textos que gerariam novos pré-textos).
Affonso Romano de Sant’Anna também discorreu sobre o assunto da
intertextualidade. E o fez através das distinções existentes entre “paródia”, “paráfrase”,
“estilização” e “apropriação”. Na medida em que se tem um texto original mesmo que o
próprio conceito de escritura desautorize um pensamento nesse sentido , o autor procurou
estudar o que faz um segundo texto, inspirado no anterior, aproximar-se mais ou menos de
sua essência, indo mais ou menos para próximo de um “eixo parodístico” ou de um “eixo
parafrásico”. A paráfrase estaria mais próxima do texto original; seria como uma forma de
explicá-lo em outras palavras (ou retomá-lo a partir do ponto parado, como referência). A
paródia é uma oposição radical ao texto original, que pode até apresentar um caráter de
deboche, mas sempre tentando revolucionar o sentido do texto anterior. A estilização é
procurar escrever da maneira de um autor anterior. É quando há, segundo Iuri Tynianov
citado por Sant’Anna concordância nos planos do “estilizando” e do “estilizado”. Na
estilização, o desvio é mínimo e tolerado, em relação ao texto original – há uma fusão de
vozes, de acordo com os conceitos bakhtinianos. A apropriação, por sua vez, já estaria
mais próxima da paródia. A apropriação trabalha com um nível de deslocamento quase
total. O objeto (um texto, por exemplo) é retirado de seu contexto e de sua essência
original e recebe novos valores e conceitos. “Ou seja, a idéia da realização é que é
importante. A forma é secundária”
45
. A apropriação seria uma radicalização da paródia, em
confronto também com a estilização e a paráfrase.
Paráfrase e estilização estariam, assim, próximos ao texto original, aos conceitos já
estabelecidos, à conformação e ao elogio do já-dito. Paródia e apropriação seriam algo
mais próximos de uma rebeldia textual, do pólo contrário ao texto original, mesmo que a
forma seja mantida, a idéia não o é. Esses quatro conceitos são metalingüísticos, mas
deslizam em níveis diferentes de desvios (vistos aqui mais como deslocamento do que
como o efeito que provocaria o “estranhamento” formalista) em relação ao texto-matriz.
Paródia e apropriação estariam dentro de um nível de desvio maior, enquanto os outros
dois termos estariam próximos a um desvio mais agradável ao conceito original do texto
anterior (às vezes, dentro de um grau de desvio quase nulo). Ainda segundo Sant’Anna:
21
[...] a paródia, por estar do lado do novo e do diferente, é sempre
inauguradora de um novo paradigma. De avanço em avanço, ela constrói
a evolução de um discurso, de uma linguagem, sintagmaticamente. Em
contraposição, se poderia dizer que a paráfrase, repousando sobre o
idêntico e o semelhante, pouco faz evoluir a linguagem. Ela se oculta
atrás de algo já estabelecido, de um velho paradigma.
46
Superando os paradigmas originais apresentados por Tynianov e Bahkitin, que
opunham paródia e estilização, Sant’Anna propôs outros modelos, mais plurais e flexíveis:
os conceitos de “pró-estilo” e “contra-estilo”. A estilização seria a base de uma pirâmide,
que teria como topo o texto original. Saindo daí e indo em direção à paráfrase, tem-se algo
mais próximo do “pró-estilo”. Em direção à paródia, entra-se no terreno do “contra-estilo”.
Considerando o texto original como modelo igual a zero, a paráfrase seria, portanto,
diferente de zero. A estilização teria valor 1, e a paródia, valor –1. Os valores são
atribuídos à medida em que o segundo texto se distancia positiva ou negativamente (indo
de ou ao encontro) do texto original. Mais uma vez interrelacionando literatura e
matemática, haveria a idéia de conjuntos. Paráfrase e estilização estariam no “conjunto das
similaridades”, enquanto paródia e apropriação, no “conjunto das diferenças”.
Em ambos os conjuntos há uma gradação: a paráfrase é o grau mínimo de
alteração do texto, e a estilização, o desvio tolerável. Entre elas há um
parentesco evidente no eixo das similaridades. A paródia é a inversão do
significado, que tem o seu exemplo máximo na apropriação. Por isso,
pode-se dizer, que paráfrase é a apropriação de cabeça para baixo.
47
Parafraseando, citando, reverenciando, parodiando ou, simplesmente, apropriando-
se de outros textos, a intertextualidade literária transpira metalinguagem, na medida em
que, ao se fazer existir – e permitir a existência mesma do texto enquanto conjunto
significante –, deixa claro ao leitor ou autor ou crítico-escritor ou autor-leitor que ali há
uma linguagem sendo devorada pela linguagem. Um leitor menos esclarecido pode até
mesmo passar incólume diante de uma intertextualidade literária das mais gritantes (até de
45
SANT’ANNA. 2003. p. 45.
46
Idem. Ibidem. p. 28.
47
Idem. Ibidem. p. 48.
22
um plágio, a menos prestigiada das formas intertextuais). Mas basta um certo nível de
leitura prévia, um conhecer básico da Tradição, para que a simples leitura de textos
transforme-se numa aventura metalingüística. Um mergulhar nas fontes (vestido também
com suas próprias fontes), em busca do texto-fonte, um enxergar códigos dentro do código.
Como entrar molhado numa piscina. Desde que houve uma representação da realidade pela
arte, houve metalinguagem. Mas o desnudar-se poético, tema deste trabalho, tornou-se uma
obsessão moderna.
4 - Modernos, não modernistas
Não foi o Modernismo ou o Futurismo ou como se quiser chamar as posições
vanguardistas em literatura, do início do século XX , os inventores da auto-
referencialidade poética. Assim como não foi o Modernismo o introdutor no Brasil da
metalinguagem e da intertextualidade literárias. A poesia pelo mundo sempre foi vista por
si mesma, dos clássicos romanos ao Barroco de um Gregório de Matos, no século XVII,
dos vários romantismos às formas neoclássicas do parnasianismo. E também na tentativa
de se abrir musicalmente, escancarando o caráter vago do verso, dos simbolistas e
penumbristas finisseculares, da França ao Brasil. De forma discreta ou mais aberta, poesia
como representação é por si só metalingüística.
Embora se discorra às vezes que poesia não se distingue da prosa substancialmente,
ela possui certas particularidades. Na forma, no uso das palavras, no uso de imagens. Prevê
também, é claro, como se verá mais adiante neste trabalho, tanto em Manuel Bandeira
quanto em Carlos Drummond de Andrade, a ordem mais lógica da maioria da prosas. A
palavra poética pura já se perdeu, não só pela incorporação das coisas cotidianas o que
inclui as diversas falas, mas também pela ruptura sintagmática, semântica e até fonética
da prosa moderna, inventiva e solta ideologicamente da linearidade usual a prosa-poética
de um James Joyce ou de um Guimarães Rosa, por exemplo. Poesia é linguagem que se
revela um pouco em seu próprio fazer.
Aponta-se, no entanto, os simbolistas (ou pós-românticos, em alguns casos), mas
precisamente Baudelaire e Rimbaund posteriormente, Mallarmé , como responsáveis
23
pela introdução do espírito moderno na poesia. Roberto Sarmento Lima viu nessa escola o
ponto de “ruptura com a tradição literária”
48
,
[...] o Simbolismo, a despeito de sua feição evanescente, comporta
elementos que vão repetir a passagem para a contemporaneidade. Assim,
o simbolismo francês pode ser compreendido como o momento estético
inaugural da modernidade.
49
Isso porque o simbolismo antecipa a auto-referencialidade moderna na poesia,
quebrando o ideal de representação da realidade existente até aqueles finais do século XIX,
por colocar “a nu o tecido textual”
50
.
Pela primeira vez, de forma consciente e sistematizada, a poesia abria
uma reflexão sobre o seu próprio fazer, por meio de uma auto-reflexão. A
estranheza da linguagem, batizada comumente de hermetismo, era o sinal
da reação: o que se buscava eram as relações íntimas entre a necessidade
do lirismo e a realidade, a justificativa do poema, a sua razão de ser.
51
Não foi em vão, percebe-se, que a maioria dos modernos, incluindo o Brasil, foi
buscar no simbolismo as raízes radicais para as mudanças estéticas que pretendiam
realizar. Não foi à toa também que os modernistas brasileiros pouparam essa escola de seus
ataques inicias, nos anos quentes que antecederam a Semana de Arte Moderna de 1922.
Como afirmou Mário da Silva Brito:
Na verdade respeitam a escola simbolista, chegando mesmo a considerá-
la inspiradora de muitas de suas atitudes e a admitirem até estarem dando
prosseguimento aos princípios por ela formulados.
52
O Simbolismo possuía um dos principais motores da modernidade, que é a
sensação da perda de unidade do homem, da sociedade, da própria palavra. A poesia, no
final do século XIX, desfragmentou-se, perdeu parte de seu sentido social e passou a se
voltar mais para si mesma. Essa transformação foi bem explicada por Octavio Paz
48
LIMA. 1987. p. 11.
49
Idem. Ibidem. p. 8.
50
Idem. Ibidem. p. 15.
51
Idem. Ibidem p. 11.
52
BRITO. 1974. p. 207.
24
Na antigüidade o universo tinha uma forma e um centro; seu movimento
estava regido por um ritmo cíclico e essa figura rítmica foi durante
séculos o arquétipo da cidade, das leis e das obras. Na ordem política e
na ordem do poema, as festas públicas e os ritos privados – e também as
discórdias e as transgressões da regra universal – eram manifestações do
ritmo cósmico. Depois, a imagem do mundo ampliou-se: o espaço se fez
infinito ou transfinito; o ano platônico converteu-se em sucessão linear,
interminável; e os astros deixaram de ser a imagem da harmonia cósmica.
Deslocou-se o centro do mundo e Deus, as idéias e as essências
desvaneceram-se. Não ficamos sós. Mudou a imagem do universo e
mudou a imagem que o homem fazia de si mesmo: não obstante, os
mundos não deixaram de ser o mundo nem o homem os homens. Tudo
era um todo. Agora o espaço se desagrega e se expande; o tempo se torna
descontínuo; e o mundo, o todo, se desfaz em pedaços. Dispersão do
homem, errante em um espaço que também se dispersa, errante em sua
própria dispersão. Em um universo que se desfia e se separa de si, da
totalidade que deixou de ser pensável exceto como ausência ou como
coleção de fragmentos heterogêneos, o eu também se desagrega. Não que
tenha perdido a sua realidade ou que o consideremos como uma ilusão.
Ao contrário, sua própria dispersão multiplica-o e fortalece-o. Perdeu a
coesão e deixou de ser um centro, mas cada partícula se concebe como
um eu único, mais fechado e obstinado em si mesmo que o antigo eu. A
dispersão não é pluralidade, mas repetição: sempre o mesmo eu, que
combate cegamente a um outro eu cego. Propagação, multiplicação do
idêntico.
53
Ou seja, as novas formas poéticas estavam prontas ou tentando estar para um
homem moderno.
Mas as reticências simbolistas, sua musicalidade, não estavam preparadas para a
velocidade que viria a seguir. Aliás, é curioso que um dos fundadores dessa escola literária,
o poeta Jean Moréas, praticamente previra a morte da nova escola, ao colocá-la no mesmo
nível de “todas”, que tenderiam a desaparecer um dia e justamente em seu primeiro
manifesto.
[...] toda manifestação da arte chega fatalmente a se empobrecer, a se
esgotar; então, de cópia em cópia, de imitação em imitação, o que foi
pleno de seiva e de frescura se desseca e se encarquilha; o que foi o novo
e o espontâneo se torna o vulgar e o lugar comum.
54
53
PAZ. 2003. p. 101-102.
54
MORÉAS. 1966. p. 54.
25
O Simbolismo foi desaparecendo lentamente, como na névoa, como nas reticências
do poema, através dos ecos que provocou em diversos ismos que varreram a Europa na
Belle Epóque.
No Brasil, país que também viveu uma época de valorização do Simbolismo
(embora o Parnasianismo era quase oficial,) foi mesmo a partir do aparecimento das
primeiras manifestações de vanguarda, grupo enorme e vago no qual está inserido o
Modernismo, que a prática metalingüística tomou proporções fora do alcance de quem
antes queria manter a poesia dentro de certas prisões de estilo, de métrica, de vocabulário
e, sobretudo, de temas. Não houve praticamente avanço literário que não tenha vindo para
cá, mesmo que truncado, adulterado ou readaptado. E apesar da importância de um
Baudelaire ou de um Mallarmé e de outros simbolistas franceses no berço da idéia de
avanço formal da linguagem poética, a história literária moderna brasileira ou que gerou
o Modernismo neste país está no “Manifesto do Futurismo”
55
, do poeta italiano
Marinetti, de 1909. Ou melhor: das discussões geradas a partir dele, o que, diga-se, não se
55
“1. Nós queremos cantar o amor do perigo, o hábito à energia e à temeridade./ 2. Os elementos essenciais
da nossa poesia são a coragem, a audácia e a revolta. 3. Tendo a literatura até aqui enaltecido a imobilidade
pensativa, o êxtase e o sono, nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo ginástico,
o salto mortal, a bofetada e o soco./ 4. Nós declaramos que o esplendor do mundo se enriqueceu com uma
beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com seu cofre adornado de grossos tubos
como serpentes de fôlego explosivo… um automóvel rugidor, que parece correr entre a metralha, é mais belo
do que a Vitória de Samotrácia./ 5. Nós queremos cantar o homem que está na direção, cuja haste ideal
atravessa a Terra, arremessada sob o circuito de sua órbita./ 6. É preciso que o poeta se desgaste com calor,
brilho e prodigalidade, para aumentar o fervor entusiástico dos elementos primordiais./ 7. Não há mais
beleza senão na luta. Nada de obra-prima sem um caráter agressivo. A poesia deve ser um assalto violento
contra as forças desconhecidas, para intimá-las a deitar-se diante do homem./ 8. Nós estamos sobre o
promontório extremo dos séculos!… Para que olhar para trás, no momento em que é preciso arrombar as
misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Nós vivemos já no absoluto, já que
nós criamos a eterna velocidade onipresente./ 9. Nós queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo -
o militarismo, o patriotismo, o gesto destrutor dos anarquistas, as belas idéias que matam, e o menosprezo à
mulher./ 10. Nós queremos demolir os museus, as bibliotecas, combater o moralismo, o feminismo e todas as
covardias oportunistas e utilitárias./ 11. Nós cantaremos as grandes multidões movimentadas pelo trabalho,
pelo prazer ou pela revolta; as marés multicoloridas e polifônicas das revoluções nas capitais modernas; a
vibração noturna dos arsenais e dos estaleiros sob suas violentas luas elétricas; as estações glutonas
comedoras de serpentes que fumem; as usinas suspensas nas nuvens pelos barbantes de sua fumaça; as pontes
para pulos de ginastas lançadas sobre a cutelaria diabólica dos rios ensolarados; os navios aventureiros
farejando o horizonte; as locomotivas de grande peito que escoucinham os trilhos, como enormes cavalos de
aço freados por longos tubos, e o vôo deslizante dos aeroplanos, cuja hélice tem os estalos da bandeira e os
aplausos da multidão entusiasta. (MARINETTI, F.T. “Manifesto do Futurismo”. (In: TELES. 1976. P-85-
86.) Esse manifesto seria complementado pelo “Manifesto Técnico da Literatura Futurista”, de 1912, no qual
Marinetti detalhou melhor seu programa é lá que está o apelo pelo verso livre e a instigação a atitudes
radicais, como o uso do verbo sempre na forma infinita e a abolição da pontuação.
26
fez imediatamente. Demorou mais de uma década para que ele começasse a ser discutido
abertamente, tanto como modelo inicial a ser seguido como alvo a ser ridicularizado, por
parte dos passadistas, num primeiro momento, e depois pelos próprios modernistas
56
.
De qualquer forma, foi ele que lançou com força revolucionária o verso livre e o
uso do cotidiano na poesia. Por causa disso, foi negado violentamente, expurgado das
Belas Letras a serem lidas no Brasil, adotado por alguns que viram nisso a explicação mais
lógica e perfeita, como em Graça Aranha
57
, por exemplo para o que estavam fazendo
então. Depois negado como teoria estrangeira, sem aplicação prática na realidade brasileira
no que as posições violentamente militaristas e fascistas de Marinetti contribuíram ,
postura que adotará o Modernismo nacional após 1926
58
, que passaria de uma fase mais
universalista para uma de nacionalismo enraizado ou em busca de suas raízes (o que
chegou à esbarrar no extremismo político, tanto de esquerda quanto de direita). Além, é
claro, dos diversos surtos regionalistas (e os diversos regionalismos) que a literatura no
Brasil conheceu desde então.
O curioso é que o Futurismo de Marinetti, adotado ou negado, influenciou o
ambiente literário brasileiro da segunda década do século XX, mas já não teria o mesmo
efeito nos dois poetas que serão estudados neste trabalho. Bandeira e Drummond, um
antes, outros depois, passaram ao largo de Marinetti, pelo menos substancialmente. O
primeiro por desenvolver sua obra inicial pré-modernista sem a devida reflexão do
Manifesto Futurista, que então não se fazia sentir. Adotou oficialmente as formas
modernistas já em 1930, quando as dúvidas iniciais já encontravam respostas ou pelo
menos tentativas disso e o próprio movimento já encontrava rumos diversos ao surto
futurista inicial. Drummond lançou-se em livro em 1930, com essas conquistas formais e
56
Segundo Mário da Silva Brito, Oswald de Andrade foi o responsável por “importar” o futurismo para o
Brasil, ao regressar da Europa, em 1912. (BRITO. 1974. p. 29.). Mas o debate sobre o tema esquentou
apenas após a exposição Anita Malfati, em 1917, e se intensificou mesmo em 1920, quando, de acordo com o
historiador, sobretudo com os jovens autores paulistas de então, “os modernos são encaixados à força e até
contra a vontade dentro do futurismo”. (BRITO. 1974. p. 161.). Marinetti, por sinal, veio ao Brasil e foi
mal recebido, já numa época em que os modernistas de São Paulo o tinham como um antimodelo.
57
MARTINS. 2002. p. 100. Essa tentativa em reafirmar o futurismo, por sinal, é uma da razões que
alimentaram a rivalidade que sempre existiu, de acordo com Wilson Martins, entre Graça Aranha e Mário de
Andrade.
58
Quando houve também um racha ideológico no movimento, segundo Wilson Martins: um grupo à direita,
“com Plínio Salgado, Cassiano Ricardo, Cândido Motta Filho, Menotti del Picchia”, e um à esquerda, “com
Oswald de Andrade, à princípio”. (MARTINS. 2002. p. 139-140.)
27
estéticas digeridas pela inteligência literária brasileira (ou em vias de ser amadurecido por
ela), embora tenha vivido esses questionamentos nos anos da década de 1920, em Belo
Horizonte, em torno de um seleto grupo de jovens, como se verá no capítulo destinado ao
poeta itabirano.
A obra de Manuel Bandeira, por sinal, é anterior ao Modernismo. Seu primeiro
livro, A Cinza das Horas, data de 1917. Cinco anos antes da Semana de Arte Moderna em
São Paulo, que revolucionaria as concepções artísticas brasileiras no século passado. Dois
anos depois, no entanto, da primeira edição da revista Orpheu, aventura futurista do grupo
de vanguarda português, de Fernando Pessoa, Almada Negreiros e Sá-Carneiro. Só para
fechar as datas, o primeiro livro de Bandeira nasceu oito anos depois do manifesto de
Marinetti. A Cinza das Horas, que será apontado no próximo capítulo, ainda não era
modernista. Mas foi aberto com um metapoema (bem ao estilo bandeiriano, como será
analisado), uma epígrafe. Embora “Os Sapos”, de Carnaval, tenha sido declamado na
Semana de Arte Moderna de 1922, como uma espécie de hino modernista, numa época em
que os novos autores ainda buscavam seus textos de fundação, o próprio Bandeira só
declarará modernista seu livro seguinte, Libertinagem. Sua relação ativa com o movimento
foi discreta, embora seu contato com Mário de Andrade, de quem era mentor e discípulo ao
mesmo tempo, numa relação epistolar-simbiótica, tenha ajudado a refletir os rumos da
vanguarda no Brasil pelo menos na produção poética de ambos, já que as cartas que eles
trocaram só foram publicadas anos depois. O paulista chamou o pernambucano de “São
João Batista do Modernismo” José Guilherme Merquior o considerou a “fonte de
todos”
59
. Mas o fato é que Bandeira foi poeta de si mesmo. Os movimentos passaram em
sua volta e foram absorvidos e acrescentados.
Drummond, por sua vez, surgiu em livro em uma fase tão mais avançada do
pensamento moderno, que sua geração, a de 1930, tornaria-se um marco de ruptura (ou um
deles) com o que estava sendo feito antes pela geração de 1922
60
. Influenciado pelos
59
MERQUIOR. 1989. p 357.
60
Segundo Wilson Martins, “Mário de Andrade, embora sem muita clareza, parecia distinguir três gerações
literárias: a sua, a dos anos 30 e a novíssima, simbolizada pelos chato-boys (como diria Oswald de Andrade)
da revista Clima”. (MARTINS. 2002. p. 135) Para exemplificar isso, o crítico utilizou “Elegia de Abril”, de
Mário de Andrade.
28
franceses finisseculares, no início, sobretudo Anatole France
61
, o autor mineiro, contudo,
viveu as angústias modernistas antes de estrear com o Alguma Poesia. E curiosamente,
parte do extravasamento dessa angústia também se deu em cartas a Mário de Andrade
este último, aliás, logo cedo, um autor a romper publicamente com as idéias de Marinetti
62
.
Drummond nasce literariamente, portanto, como um clássico moderno.
Ou seja tanto Bandeira quanto Drummond são modernistas e atemporais ao mesmo
tempo, caminhando por suas próprias fases e em velocidades bastante particulares.
Bandeira, depois do uso modernista pleno em Libertinagem, voltaria a fazer versos
tradicionais com maior freqüência, o que, na verdade, nunca deixara de praticar. Já Carlos
Drummond de Andrade avançou até onde conseguiu nas inovações anteriores, politizou-as
ao extremo para, depois, também pedir benção à Tradição e abandoná-la ou misturá-la
com os avanços literários, posteriormente, seus e alheios. Mais até do que avanços e
experimentações formais, bem mais importante do que isso, está o fato de ambos terem
inovado e experimentado também no tratamento dos temas poéticas, dos assuntos da
poesia, novos e velhos. Dentro disso, a metalinguagem em ambos também acompanhou
suas particulares velocidades ao longo do tempo. Avançou. Recuou. Intensificou-se e se
61
Em carta a Mário de Andrade, de 22 de novembro de 1924, Drummond revelou explicitamente sua
influência: “[...] não me arrependo de lhe haver mandado o meu artigo sobre o finado Anatole France. Ele
promoveu uma aproximação intelectual que me é muito preciosa...” (ANDRADE; ANDRADE. 2002. p.56).
No artigo , publicado no Diário de Minas, o poeta mineiro escreveu: “Anatole France é, em países de cultura
como a nossa, um ‘acidente’ de juventude. Todos nós passamos por ele. Muitos aí ficam: outros, mais
ousados, seguem para diante”. E completou com tom crítico: “Eu confio que Anatole France passará na nossa
ingênua e exaltada admiração. 1924 já não é mais seu tempo”. (ANDRADE; ANDRADE. 2002. p.62).
Ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1921, Anatole France foi um dos mais importantes
representantes do pessimismo finissecular francês, que não mais empolgava, na época do artigo
drummondiano, os modernistas de São Paulo, em busca de uma nova identidade nacional.
62
Em um artigo intitulado “Meu poeta futurista” (publicado em 27 de maio de 1921, na edição paulista do
Jornal do Comércio), que antecipou a publicação de Paulicéia Desvairada, Oswald de Andrade saudou o
aparecimento de Mário de Andrade, revelando, inclusive, alguns trechos do poema que então permanecia
inédito. Não deixou de ser, contudo, mais uma provocação do primeiro, um agitador cultural dos maiores que
já se viu no Brasil, mas gerou uma resposta de Mário de Andrade, que virou alvo dos ataques passadistas e
chegou a ser prejudicado até mesmo em seu trabalho como professor (BRITO. 1974. p. 232). O artigo de
Oswald levou a uma resposta de Mário de Andrade (no mesmo jornal, no dia 6 de junho de 1921, sob o título
“Futurista?!”), o que ajudou, aliás, a levar o debate modernista adiante e talvez se possa pensar que tenha
pressionado o autor de Paulicéia a assumir uma postura mais ativa. No artigo, Mário de Andrade escreveu:
“O poeta de ‘Paulicéia Desvairada [o artigo está em terceira pessoa] não é um futurista e, principalmente,
jamais se preocupou de ‘fazer futurismo’. Ele consente em que o chamem de extravagante, original, atual,
maluco, do ‘domínio da patologia’ (frase já estereotipada entre os zoilos) mas não admite que o prendam à
estrebaria malcheirosa de qualquer escola”. (Apud BRITO. 1974. p. 238.)
29
incorporou não só aos seus estilos pessoais, como também na influência das gerações de
poetas que viriam depois.
30
Capítulo II – Manuel Bandeira
1 - Desentranhamento alumbrado
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e
manifestações de apreço ao sr. Diretor
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de
um vocábulo
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem
modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare.
Não quero saber do lirismo que não é libertação.
63
Quando “Poética” foi publicado em 1930, no livro Libertinagem, Manuel Bandeira
era já um poeta maduro e respeitado. É a sua mais direta arte poética. Nesse texto vê-se
63
Para esta dissertação, foi usado o volume Estrela da Vida Inteira (2003), que encerra toda a obra poética de
Manuel Bandeira.
31
claramente o salto dado por ele em direção a uma poesia mais simples, fora da penumbra
simbolista e da perfeição gramatical parnasiana, que, apesar de pequenos avanços formais
e de idéias, exerceram forte influência em seus três livros anteriores, A cinza das horas, O
ritmo dissoluto e Carnaval. Com mensagens diretas e em tom de desabafo, o autor dá
pistas sobre o que acha ser a poesia, sobretudo por listar o que acha não ser mais poesia ou
as coisas das quais pretendia se afastar. Definição que o próprio Bandeira, em texto crítico,
admitiu ser difícil:
Um dia, ao começar a escrever um livro didático sobre literatura, tive que
dar uma definição da poesia e embatuquei. Eu, que desde os dez anos de
idade faço versos, eu que tantas vezes sentira a poesia passar em mim
como uma corrente elétrica e afluir aos meus olhos sob a forma de
misteriosas lágrimas de alegria: não soube no momento forjar já não digo
uma definição racional, dessas que, segundo a regra da época, devem
convir a todo o definido e só ao definido, mas uma definição puramente
empírica, artística, literária. No aperto me socorri a Schiller, em quem o
crítico era tão grande quanto o poeta, e disse com ele: ‘Poesia é a força
que atua de maneira divina e inapreendida, além e acima da
consciência’...
64
Afirmou o próprio poeta, para depois citar outros exemplos de Dante, Mallarmé,
Valéry e Banville.
“Poética” é simbólico por diversos motivos. Além de ser um dos poemas mais
estudados e citados de Bandeira, está no meio do caminho de dois poetas, que, na verdade,
nunca deixaram de ser um único, disperso em fases que menos se distinguem do que se
somam. Está entre os primeiros exercícios metalingüísticos com ecos passadistas de
“Versos escritos n’água” e “Desencanto” (A cinza das horas) e a revisão de seus valores
em “Nova arte poética”
65
(Belo Belo), no qual tenta exigir de si e dos outros o que nunca
conseguira de todo: uma maior participação social. Não que não fosse capaz disso, apenas
64
BANDEIRA. 1951. p. 107.
65
“Vou lançar a teoria do poeta sórdido./ Poeta sórdido:/ Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida./ Vai
um sujeito,/ Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e na primeira esquina
passa um caminhão,/ salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama:/ É a vida.// O poema deve ser
como a nódoa no brim:/ Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero./ Sei que a poesia é também orvalho/
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram
sem maldade.”
32
considerava a si próprio um “poeta menor”
66
e via Carlos Drummond de Andrade mais
perfeito para a tarefa
67
. Sem falar na técnica de “desentranhar” do poeta maduro. É a visão
de um autor entediado com tantas regras, de ter de carregar o peso de uma Tradição que já
dava sinais de cansaço, clarificando uma posição mais concatenada com os ideais
modernistas de 1922, mais prosaica, próxima à realidade e às vanguardas literárias pelo
mundo
68
. Boa parte dos valores que nega em “Poética”, exercera nos primeiros livros e
viria a exercer novamente em textos posteriores, sobretudo na fase final, quando já estava
mais do que consagrado e não havia motivos para abandonar o que a Tradição lhe oferecia
o que, aliás, nunca fizera de todo, já que é um dos mestres do verso metrificado na
literatura brasileira. O que clama também, o “lirismo dos loucos”, o “lirismo dos bêbados”,
o “lirismo dos clowns de Shakespeare”, ou seja o lirismo do cotidiano, nunca abandonaria
mais, e é certo que já havia a presença desses elementos nos livros anteriores a 1930. O
mais importante, contudo, é compreender como se deu essa virada poética em Bandeira,
como se deu o pulo da Tradição despedaçada para a modernidade escancarada e como
esse pulo alterou sua poesia.
Nada melhor para isso que analisar, ao lado de “Poética”, alguns de seus
metapoemas. É preciso entender a visão poética do autor pernambucano, sobretudo nas
66
Em “Testamento”, de Lira dos cinqüênt’anos: “Criou-me desde eu menino,/Para arquiteto meu pai./Foi-se-
me um dia a saúde.../Sou poeta menor, perdoai!”. No Itinerário de Pasárgada, Bandeira afirmou: “Tomei
consciência de que era um poeta menor; que me estaria para sempre fechado o mundo das grandes abstrações
generosas; que não havia em mim aquela espécie de cadinho onde, pelo calor do sentimento, as emoções
morais se transmudam em emoções estéticas: o metal precioso eu teria de sacá-lo a duras penas, ou melhor, a
duras esperas, do pobre minério das minhas pequenas dores e ainda menores alegrias” (BANDEIRA. 1984. p.
30.)
67
“... intenso é o meu desejo de participação, mas sei, de ciência certa, que sou um poeta menor. Em tais
altas paragens, só respira à vontade entre nós, atualmente, o poeta que escreveu o Sentimento do mundo e A
rosa do povo.” (Idem. Ibidem. p. 102.)
68
Bandeira anotou que sua colaboração com o grupo modernista de 1922 “sempre se fez com restrições”.
(Idem. Ibidem. p. 71). Sérgio Buarque de Holanda escreveu que Bandeira “não obedecia a nenhum programa
definido e não se prendia a compromissos. Ninguém foi menos militante, ninguém menos antiacadémico” .
(HOLANDA. 1987. p. 110). A prova disso talvez esteja em um texto de 1924 intitulado “Poesia Pau Brasil”,
no qual critica o teor programático da aventura oswaldiana: “Poesia Pau-Brasil. O nome é comprido demais.
Bastava dizer Poesia Pau. Por inteiro: Manifesto Brasil da poesia Pau. Porque poesia de programa é pau. O
programa de Oswald de Andrade é ser brasileiro. Aborreço os poetas que se lembram da nacionalidade
quando fazem versos. Eu quero falar do que me der na cabeça” (BANDEIRA. 1986. p. 247). E mais adiante,
desabafou; “É por tudo isso que eu vou me fazer editar pela Revista de Língua Portuguesa. Sou passadista”
(Idem. Ibidem. p. 248). Já Tristão de Athayde viu na indefinição bandeiriana uma indefinição da época
mesmo da qual era fruto, já que se tratava de um poeta que vinha de uma época em que o Modernismo ainda
não tinha chegado e as tradições simbolistas e parnasianas já estavam indo embora. “E os poetas dessa época
sem nome e sem definição foram mais a expressão de si mesmos do que da coletividade ou de um grupo.”
(ATHAYDE. 1987. p. 97.)
33
primeiras vezes em que novas idéias nesse sentido apareceram em sua obra, bem como
estas foram amadurecendo até formarem um estilo único na poesia brasileira. Parte desse
trabalho, por sinal, é facilitada pelo fato de Manuel Bandeira, como poucos no Brasil, ter
pensado profundamente sua arte, não só em versos como também em prosa, seja em textos
publicados ou em debates missivistas com amigos.
Distanciado pelo tempo, hoje se pode fazer uma análise que o próprio Bandeira só
conseguiu ao longo de seus 82 anos de vida: sua noção de poesia começou na infância,
acentuou-se com a presença próxima da morte na juventude (provocada pelo diagnóstico
da tuberculose) e explodiu na fase madura, quando a idéia da morte lhe deu uma trégua e
ele pôde finalmente aproveitar a vida, fazendo, para isso, um itinerário de seu passado, que
é bem revelador depois viria a calmaria da velhice, mas esses pontos principais já tinham
sido mais que pensados (e lucidamente absorvidos pelo poeta). Citado por muitos, a já
célebre frase “a poesia está em tudo, nos amores e nos chinelos”, escrita no Itinerário de
Pasárgada, é tomada, muitas vezes, como sendo uma sentença definitiva de seu
pensamento sobre sua arte, quando na verdade fora feita já na fase madura, olhando o que
tinha ficado para atrás em sua vida. Bandeira chegou a isso através de outras noções que
articulara anteriormente em sua obra, e que, ao aparecerem, nem sempre foram percebidas
desde o início, seja por ele ou pelos seus primeiros críticos.
O mais importante é ter como ponto de partida que a metalinguagem poética em
Manuel Bandeira não se dá de forma tão direta, como se verá em Carlos Drummond de
Andrade, no próximo capítulo deste trabalho. São poucos os textos bandeirianos, como
“Poética”, no qual a poesia é o tema principal dos versos, do início ao fim. O assunto, no
entanto, está sempre lá, vivo, presente nem que seja apenas nos títulos de seus textos. Às
vezes está disfarçado de iluminação erótica; outras, camuflado de reminiscências. Isso se
dá porque Bandeira misturou, ao longo de sua obra, vida e poesia. Poucos são tão
autobiográficos, tão despidos de personas como ele. Pode-se pegar os textos poéticos
bandeirianos, sem ordem cronológica e fazer deles um roteiro de vida, paixão, morte,
poesia, doença, amizades, como em uma biografia de caráter mais histórico. O que faltar
será mero psicologismo.
Partindo de uma noção cronológica (mais para relatar os avanços formais e de
concepção sobre poesia do que para fazer um apanhado de poemas, uma espécie de
34
antologia metalingüística) de como se deu o pensamento sobre poesia de Bandeira,
interessa saber como seus metapoemas foram se transformando, suplementando-se,
incorporando idéias antigas às novas, ao longo da obra. Ou seja: de como o poeta saiu de
uma visão ainda passadista de inspiração (como “alumbramento”, uma das idéias chaves
de sua forma de pensar a arte em versos) para um olhar, digamos, mais consciente, como o
provocado pelo efeito de “desentranhar” poesia de qualquer coisa (principalmente em
relação àquilo que, diante de olhos anteriores, passara despercebido), e mais perto da
simplicidade, tendo aquilo que Gilda e Antonio Candido classificaram como sendo uma
“simplicidade do requinte”, através de uma “redução ao essencial”
69
.
O primeiro livro de Manuel Bandeira, A Cinza das horas, de 1917, começa com um
metapoema bem ao seu estilo (ou seja, sutil, sem dar grandes pistas do que realmente é),
“Epígrafe”:
Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.
Veio o mau gênio da vida,
Rompeu em meu coração,
Levou tudo de vencida,
Rugiu como um furacão,
Turbou, partiu, abateu,
Queimou sem razão nem dó
Ah, que dor!
Magoado e só.
Só! meu coração ardeu:
Ardeu em gritos dementes
Na sua paixão sombria...
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria.
Esta pouca cinza fria...
69
CANDIDO; CANDIDO. 1993. p. 4-5.
35
A palavra “poesia”, ou similares, não aparece, mas o próprio fato de abrir seu livro
de estréia com um poema que traz como título a palavra epígrafe já demonstrava que nele
haveria bem mais que exercícios de representação. Mais ainda pelo fato de ter sido
colocado posteriormente na organização do livro (fora escrito no ano da publicação
70
), até
para explicar o clima sombrio que viria a seguir, já que A cinza das horas é, sem dúvida,
seu livro mais soturno, carregado da dor de quem mal escapara da morte ou do “mau
destino”, como diz o próprio poeta na primeira estrofe
71
. À presença da morte segue-se a
descoberta do amor e seus redemoinhos juvenis. Esses dois temas, amor (desejo carnal,
erotismo) e morte (tanto o medo de morrer do jovem poeta quanto sua posterior aceitação
pelo homem maduro) serão constantes em sua obra
72
. Mais: esbarram freqüentemente com
sua noção do que seja poesia, pois o próprio Manuel Bandeira admitiu que só começara a
fazer versos seriamente depois da doença
73
. Ao escrever uma epígrafe para fazer seus
leitores imaginários entenderem o contexto de dor e medo daqueles versos, faz, ao mesmo
tempo, um exercício de metalinguagem dos mais sofisticados. O poema serve como um
coro trágico, que guia o leitor pelo mar de tristeza e de pressa que mergulhará a seguir.
Isso, contudo, só será mais explicitado no poema seguinte do mesmo livro, esse sim
metapoesia escancarada: “Desencanto”, de 1912:
70
Este trabalho usará as datas apresentadas em Estrela da Vida Inteira (alguns poemas, no entanto, não estão
datados).
71
Lêdo Ivo chamou esse começo literário de Bandeira de “desabafo confessional”, pois “libera um horizonte
de pequenas mágoas, dores e desapontamentos: as mortes familiares, a tuberculoso que lhe sonegou a carreira
de arquiteto, o breve exílio num sanatório suíço que foi também uma escola de aprendizagem poética, o
sentimento forte da solidão e adversidade”. (IVO. 1989. p. 395).
72
Para Jozef Bella, “nem o amor nem a morte são constantes de uma ponta a outra do texto de Bandeira: eles
se sucedem, se justapõem e até coexistem. O combate entre essas duas forças é desigual. O amor envolve o
ser, toma conta do seu íntimo, é luta constante; a morte o paralisa, adormece. O passado com sua carga
conotativa positiva é a antimorte, enquanto o futurismo se ergue em sua dionisíaca insurreição contra o
passado, fiel a um tempo eterno, insuscetível de ser corroído pelas vicissitudes do passar dos dias”. (BELLA.
1989. p. 87.)
73
A doença foi uma descoberta de tal impacto em sua vida, que pode sim ser sentida em toda a sua obra, sem
que o crítico corra riscos de subjetivismo psicológicos. Mário de Andrade, por exemplo, anotou: “Na vida de
Manuel Bandeira só se deu um fato além de pessoal: o encontro dele com a tuberculose. Nos outros poetas
tísicos que o Brasil já teve a doença foi apenas um acidente. Pra Manuel Bandeira é uma data histórica. Nos
outros a doença não diminuiu nem aumentou as características pessoas. Em Manuel ela decidiu de Manuel.
Os outros foram tristes por moda, índole nacional e circunstâncias de inadaptação que enfim começam a
desaparecer entre nosso meio e povo. Manuel não. Nem é o que se chamam um triste de verdade. Antes um
solitário. Por adaptação ainda mais que por índole pessoal. Gosta da vida, eu sei. Muitíssimo. São, daria num
desses vivedores que estamos acostumados a chamar de canalhas porque praticam atos que estamos
acostumados a chamar de canalhismos. Era por natureza observador. Se por acaso a doença não aparecesse
seria um observador dentro da vida”. Em seguida, o crítico definiu: “Manuel se retirou da vida. O observador
virou contemplativo. E tudo contou em função da sua realidade interior”. (ANDRADE. 1987. p. 73.)
36
Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
Eu faço versos como quem morre.
Para começar, uma constatação óbvia: o poema remete mais ao clima dos
românticos
74
(de quem Manuel Bandeira gostava) do que dos simbolistas e parnasianistas.
Isso não é pouca coisa, já que freqüentemente atribuem ao A cinza das horas um clima
parnasianista-simbolista, dando, inclusive, esse termo para o que chamam de primeira fase
de sua poesia. Embora a estrutura métrica seja bem ao gosto parnasianista, há ecos também
de poesia lírica portuguesa, uma das influências do pernambucano
75
. Esse poema, por
sinal, foi motivo de uma das inúmeras discussões entre os amigos e críticos um do outro,
Bandeira e Mário de Andrade
76
. Num artigo publicado no número 107 da Revista do
Brasil. Mário de Andrade escreveu:
“Eu faço versos como quem morre”... Mentira. É mentira que quem faz
versos age como quem morre. Ninguém poetou jamais a se exaurir, a não
74
Edson Nery da Fonseca apontou que esse clima romântico poderia ter vindo da doença: “A doença que fez
o poeta afastar-se do Brasil, fez também com que ele se voltasse, introspectivamente, para dentro de si
mesmo. Sua poesia exprime, por isso, na primeira fase, um intimismo romântico, atenuado apenas pelo
simbolismo da época”. (FONSECA. 1989. p.3 7). É bom apontar também que Bandeira foi biógrafo e crítico
de um dos maiores nomes dessa escola no Brasil, Gonçalves Dias.
75
SARAIVA. 2004. p. 203-217. No capítulo “O jeito de Portugal do poeta Manuel Bandeira”, no livro
Modernismo Brasileiro e Modernismo Português – subsídios para o seu estudo e para a história de suas
relações, Arnaldo Saraiva lista os poetas citados pelo próprio Bandeira, em verso ou em prosa, e ainda aponta
algumas semelhanças entre poemas do autor pernambucano e de Gomes Leal, simbolista luso cuja presença
não é acusada voluntariamente por Bandeira.
76
Para o próprio Bandeira, Mário de Andrade foi “a última grande influência” que sofreu. (BANDEIRA.
1984. p. 69.)
37
ser por essa teatralidade ingênita que herdamos da nossa mãe cotidiana, a
hipocrisia. Que cantos de cisne, nem nada!
77
O assunto era a “teatralidade” na poesia, um dos tabus a serem questionados pelos
modernistas de 1922, adeptos de uma poesia mais direta e cotidiana. Em carta ao amigo e
crítico, Bandeira respondeu:
... Será preciso ser tísico para sentir certas coisas de tísico? ... Acho [o
poema “Desencanto”] uma das coisas mais minhas e melhores. Pela
verdade de instrospecção e justeza de expressão. A cenestesia do poema
se restabelece instantaneamente quando o releio, faz agora 16 anos que o
compus numa crise quase mortal de consumpção neurastênica. Este,
“Epígrafe” e mais alguns poucos, foram realmente feitos como que a
morrer. É coisa que não se pode discutir...
78
Do ponto de vista lírico, é claro que a função emotiva descrita por Jakobson (o
texto com pendor para o emissor) estabelece-se como o chão de “Desencanto”. São as
dores do poeta que estão sendo cantadas. Mas a função metalingüística serve como guia
para que o eu de Bandeira mostre-se nos versos. É uma explicação poética do sofrimento
do poeta, por isso metáforas como “Meu verso é sangue” ou “Dói-me nas veias”. É a
“cenestesia” de que falou o pernambucano. Sua metalinguagem, desde o início, age sempre
sobre a superfície lírica do eu poético. De mais, vale destacar os versos nos quais dialoga
diretamente com um leitor imaginário (“Fecha meu livro se por agora/ Não tens motivo
nenhum de pranto”) e que remetem ao poema “Versos escritos n’água”, também de A cinza
das horas:
Os poucos versos que aí vão,
Em lugar de outros é que os ponho.
Tu que me lês, deixo ao teu sonho
Imaginar como serão.
Neles porás tua tristeza
Ou bem teu júbilo, e, talvez,
Lhes acharás, tu que me lês,
Alguma sombra de beleza...
77
ANDRADE. 1987. p. 75.
78
ANDRADE; BANDEIRA. 2001. p. 166.
38
Quem os ouviu não os amou.
Meus pobres versos comovidos!
Por isso fiquem esquecidos
Onde o mau vento os atirou.
Dar, portanto, ao leitor o poder de fazer seu próprio poema, sem contudo deixar de
ele mesmo, o poeta, fazê-lo, sendo essa busca a chave para a compreensão textual na
poesia moderna, como afirmou João Alexandre Barbosa:
De um modo geral, pode-se dizer que o poema moderno, em seus
momentos mais eficazes, tende a estabelecer pelo menos dois níveis de
leitura convergentes: aquele que aponta para uma nomeação da realidade
em seus limites de intangibilidade, operando por relações múltiplas de
significado, e aquele que, ultrapassando tais limites, refaz o périplo da
própria nomeação, obrigando a linguagem a exibir as marcas de sua
trajetória. Por um lado, o leitor busca a compreensão; por outro, a
compreensão está na busca que é o início de uma viagem.
79
Um poema, por fim, que se faz ao se negar enquanto poema. O vocabulário e a
metrificação ainda são clássicos
80
, mas a jogada de dar poder ao leitor ao mesmo tempo
em que escancara o procedimento da feitura do próprio poema é explicitamente moderno.
Há aquele componente de deslocamento do poeta na sociedade, presente na poesia
moderna, do qual falou Octavio Paz:.
Durante mais de cento e cinqüenta anos o poeta sentiu-se à parte, em
ruptura com a sociedade. Cada reconciliação, com as igrejas ou os
partidos, terminou em nova ruptura ou na anulação do poeta. Amamos a
Claudel ou a Maiakóvski não por, mas a despeito de suas ortodoxias,
pelo que a palavra tem de solidão irredutível. A solidão do novo poeta é
distinta: não está só diante de seus contemporâneos mas diante do futuro.
E este sentimento de incerteza compartilha-o com todos os homens. Seu
desterro é o de todos.
81
79
BARBOSA. 1986. p. 139.
80
Até porque, como pensou Chklovski, citado por Eikhenbaum, “cada época literária não contém apenas
uma, mas várias escolas literárias. Elas existem simultaneamente na literatura, e uma entre elas domina e se
acha canonizada”. (Apud EIKHENBAUM. 1978. p. 34.). Eikhenbaum complementou: “o ramo vencido não é
nadificado, não cessa de existir. Deixa somente o cimo, é relegado a uma via de espera, mas pode ressurgir
novamente como um pretendente eterno ao trono”. (Idem. Ibidem. p. 34.)
81
PAZ. 2003. p 121.
39
A sensação dada pelo verso final do poema bandeiriano é de uma completa
inutilidade da poesia, sem contudo deixar algumas pistas de possibilidades positivas: o
poema jogado ao mar pelo vento (sociedade/História/visão crítica do poeta) possibilita o
surgimento de um novo poema, no qual o leitor, convocado a reagir diante desse vazio
poético, pode colocar o que realmente sente, não sendo obrigado a sentir os mesmos
sentimentos lhe passados pelo poeta (ao contrário de “Desencanto”, no qual o autor chega
a desautorizar os leitores que não sentem o mesmo que ele). Trata-se também de uma
atitude constante da produção do pernambucano (e também uma característica bastante
moderna, de um modo mais geral): a de se colocar dentro do poema, mesmo que sob a
perspectiva de observador. Pensando sobre o poema “Maçã”
82
, de Lira dos Cinqüênt’anos,
Roberto Sarmento Lima explicou que, ao fazer isso,
[...] o poeta denuncia sua presença e a natureza do seu papel,
evidenciando sua capacidade de representar, de produzir metáforas; tal
atitude pode ser constatada no modo como constrói as imagens, típica da
mímeses de produção.
83
Em A cinza das horas a metalinguagem aparece também na forma de homenagem a
dois poetas que influenciaram Bandeira, ambos sob a forma de soneto: “A Antônio Nobre”
e “A Camões”, ícones da poesia em língua portuguesa, tão celebrada pelo poeta
pernambucano. A forma clássica do soneto e a intensa obediência à métrica e aos cacoetes
parnasianos fazem com que estes dois poemas destoem do restante da obra, em termos de
inventividade. Ruy Espinheira Filho refere-se ao “A Camões” como tendo sido feito por
um
82
“Por um lado te vejo como um seio murcho./ Pelo outro como um ventre de cujo umbigo pende ainda o
condão placentário.” (Trecho).
83
LIMA. 1987. p. 36. [grifos do autor]. Sarmento considera que a modernidade é incompatível com a
mímeses de representação, ao gosto da poesia mais antiga, como a parnasiana: “por isso, associa-se à
metalinguagem, através da qual se assiste à desmontagem da metáfora enquanto processo de construção
poética” ... E nisso a experiência moderna é diametralmente oposta à da tradição, já que esta é arredia a
qualquer interferência discursiva que comprometa a integridade da composição, que é, ao mesmo tempo,
meio e fim”. (Idem. Ibidem. p. 38.)
40
[...] arquiteto parnasiano em pleno domínio de suas virtualidades. Um
técnico senhor das técnicas e utilizando-as plenamente, com
competência e frieza
84
.
É importante compreender o diálogo que Bandeira travará com outros artistas em
poemas que viriam depois até mesmo sob a forma de um quase plágio declarado, ou
melhor, de apropriação, já no auge da técnica de “desentranhar” (batizada depois de “`À
maneira de...”).
A metalinguagem bandeiriana, até então presente nesse diálogo com leitores,
mudaria em Carnaval, de 1919, no qual há um dos mais satíricos poemas de sua obra, “Os
sapos”:
Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
— "Meu pai foi à guerra!"
— "Não foi!" — "Foi!" — "Não foi!".
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: — "Meu cancioneiro
É bem martelado.
Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos!
O meu verso é bom
Frumento sem joio
Faço rimas com
Consoantes de apoio.
Vai por cinqüenta anos
Que lhes dei a norma:
84
ESPINHEIRO FILHO. 2004. p. 51.
41
Reduzi sem danos
A formas a forma.
Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas . . .”
Urra o sapo-boi:
— "Meu pai foi rei" — "Foi!"
— "Não foi!" — "Foi!" — "Não foi!"
Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
— "A grande arte é como
Lavor de joalheiro.
Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo."
Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas:
— "Sei!" — "Não sabe!" — "Sabe!".
Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Verte a sombra imensa;
Lá, fugindo ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é
Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio...
O próprio Bandeira, no Itinerário de Pasárgada, considera só seu livro seguinte, O
ritmo dissoluto, como sendo o ponto de transição de sua fase inicial, sombria e com ecos
passadistas, para sua fase mais modernista. “Os sapos”, porém, tomado isoladamente, é
42
que deveria ter sido considerado como tal. Primeiro, porque, apesar de não haver ainda um
rompimento com as formas tradicionais de versificação e o devido salto no bonde
modernista do verso livre , o poema é uma irônica crítica ao Parnasianismo, ainda em
moda naquela época. O alvo principal dos ataques é Olavo Bilac
85
(o “sapo-tanoeiro”), e o
texto constrói-se como uma paródia de “Profissão de fé”
86
, um dos mais lembrados e
metalingüísticos, no sentido de ser uma arte poética parnasiana desse autor
87
.
O fato de continuar os tiques passadistas, serve como força destruidora desse
sistema de regras formais. Ou, como, afirmou José Carlos Carbuglio:
Trabalhando com os instrumentos fornecidos pelo Parnasianismo, o
poema reforça a capacidade destrutiva porque rói por dentro a matéria
indesejável. Ao insistir na voz dos sapos como eco de outra voz, o poema
cria no seu interior um sistema de repetição, destituído de força ou poder
criador, deixando no próprio verso a marca da fadiga.
88
.
O curioso é que o poema é metalingüístico e referencial, ao mesmo tempo, pois se
trata de uma alegoria narrativa. É na voz dos sapos que o tecnicismo poético dos
parnasianos é desnudado e ironizado, mesmo utilizando a mesma fôrma poética. Há uma
seqüência narrativa sob a forma de diálogos (ou monólogos, o que torna mais intenso a
força de ataque do texto). “Os sapos”, por sinal, termina com um dos melhores auto-
retratos feitos por Bandeira: a imagem do “sapo-cururu”. A imagem é forte e mostra o eu
lírico (que também entra no exercício jocoso da “saparia”) como um ser à parte nessa
85
Poeta que Bandeira, no Itinerário, afirmou saber de cor todo o “Via Láctea” (BANDEIRA. 1984. p. 23), na
época em que estudava no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, local importante na fixação poética do
pernambucano.
86
BILAC. 2004. p. 13-14: “Não quero o Zeus Capitolino/Hercúleo e belo,/Talhar no mármore divino/ Com o
camartelo.// Que outro não eu! a pedra corte /Para, brutal,/Erguer de Atene o altivo porte/ Descomunal.//
Mais que esse vulto extraordinário,/ Que assombra a vista,/Seduz-me um leve relicário/ De fino artista.//
Invejo o ourives quando escrevo:/ Imito o amor/ Com que ele, em ouro, o alto relevo/ Faz de uma flor.//
Imito-o. E, pois, nem de Carrara/ A pedra firo:/O alvo cristal, a pedra rara,/ O ônix prefiro.// Por isso, corre,
por servir-me,/ Sobre o papel/ A pena, como em prata firme/ Corre o cinzel.// Corre; desenha, enfeita a
imagem,/ A idéia veste:/ Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem / Azul-celeste.// Torce, aprimora, alteia, lima/
A frase; e, enfim,/ No verso de ouro engasta a rima,/ Como um rubim.// Quero que a estrofe cristalina,/
Dobrada ao jeito/ Do ourives, saia da oficina/ Sem um defeito:// E que o lavor do verso, acaso,/ Por tão
subtil,/ Possa o lavor lembrar de um vaso/ De Becerril.// E horas sem conto passo, mudo,/ O olhar atento,/ A
trabalhar, longe de tudo/ O pensamento.// Porque o escrever tanta perícia,/ Tanta requer,/ Que oficio tal...
nem há notícia/ De outro qualquer.// Assim procedo. Minha pena/ Segue esta norma...”. [Trecho.]
87
Bandeira estende a crítica a outros dois parnasianos, Goulart de Andrade e Hermes da Fonte.
(BANDEIRA. 1984. P. 61.)
88
CARBUGLIO. 1998. p. 52.
43
discussão cheia de soberba do coaxar dos batráquios mais ilustres. Na beira do rio, num
canto escuro e com frio, longe da luz que deslumbra os outros, o sapo-cururu sente medo e
solidão. Sente-se deslocado ao não se perceber mais como fruto daquele meio. A virada da
poética bandeiriana deriva de uma insatisfação com os próprios modelos poéticos que
aprendera como certos e até como únicos. De acordo com Lêdo Ivo:
Nessa solidão propícia às interrogações e perplexidades, nessa
horizontalidade de um mundo imóvel, Manuel Bandeira viveu, mais do
que qualquer outro dos seus pares, a experiência da transição estética, e
sua obra guarda os sinais fortes do conflito entre a tradição e a ruptura.
89
Carbuglio, por sua vez, viu também em “Os sapos” o uso de uma linguagem que
“resgata a voz lírica diluída no uso abusivo com que se esvaziou a palavra e se anularam
suas potencialidades”
90
, pois, “amesquinhada e diminuída, a voz lírica reage às imposições
que lhe maculam a pureza e reclama seu direito à liberdade”
91
. Não é à toa, portanto, que
este poema de 1918 seria alçado à condição de hino inaugural do Modernismo no Brasil,
declamado na polêmica Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo (Bandeira, diga-
se, não participou diretamente do movimento, apesar de encontros com seus entusiastas e
da correspondência extensa com Mário de Andrade, um dos artífices modernistas, que
apelidou o poeta pernambucano de “São João Batista”
92
do Modernismo).
Ao poema “Os Sapos” soma-se, ainda em Carnaval, a idéia contida em
“Alumbramento”, curiosamente bem anterior ao primeiro texto. “Alumbramento” foi
escrito em 1913, durante a passagem de Bandeira pelo sanatório de Clavadel, na Suíça,
onde fora em busca de melhora para a tuberculose e tivera de voltar antes do término do
tratamento, por causa do início da Primeira Guerra Mundial, em 1914. Lá, por sinal,
conhecera o poeta francês Paul Eluárd, então um editor de livros. Apesar de o
pernambucano ter dito que sua estada em Clavadel nada trouxera para sua literatura
93
, foi
lá, e por sugestão certa de Eluárd, que veio a idéia de publicar seus versos. Além disso,
89
IVO. Lêdo. 1989. p. 396.
90
CARBUGLIO. 1987. p. 35.
91
Idem. Ibidem. p. 35.
92
E Haroldo de Campos interpretaria como “Decano de uma poesia moderna”. (CAMPOS. 1971. p. 99.)
44
fixou no imaginário do poeta a idéia de poesia para combater o que chamou de “ócio”
94
provocado pela doença. Segue “Alumbramento”:
Eu vi os céus! Eu vi os céus!
Oh, essa angélica brancura
Sem tristes pejos e sem véus!
Nem uma nuvem de amargura
Vem a alma desassossegar.
E sinto-a bela... e sinto-a pura...
Eu vi nevar! Eu vi nevar!
Oh, cristalizações da bruma
A amortalhar, a cintilar!
Eu vi o mar! Lírios de espuma
Vinham desabrochar à flor
Da água que o vento desapruma...
Eu vi a estrela do pastor...
Vi a licorne alvinitente!...
Vi... vi o rastro do Senhor!...
E vi a Via-Láctea ardente...
Vi comunhões... capelas... véus...
Súbito... alucinadamente...
Vi carros triunfais... troféus...
Pérolas grandes como a lua...
Eu vi os céus! Eu vi os céus!
Eu vi-a nua... toda nua!
O conceito de alumbramento, esse impulso lírico diante de um fato considerado
pela sensibilidade como sendo de natureza poética, é imprescindível para a compreensão
da poesia de Manuel Bandeira. Embora não fuja, a princípio, dos conceitos clássicos de
inspiração, com seu teor divino
95
, com seu toque das musas, o poema muda
93
“Essa estada de pouco mais de um ano em Clavadel quase nenhum influência exerceu sobre mim
literariamente, se não que me fez reaprender o alemão, que eu aprendera no Pedro II, mas tinha esquecido (de
volta ao Brasil li quase todo o Goethe, Heine e Lenau).” (BANDEIRA. 1984. p. 53.)
94
Idem. Ibidem. p. 57-58. (Na página 29, Bandeira ainda se refere ao fato de ter começado a fazer versos
“por fatalidade”.)
95
“Não faço poesia quando quero e sim quando ela, poesia, quer”. (Idem. Ibidem. p. 118).
45
estruturalmente a lógica disso. Ele se inicia no céu, com ares divinos, mas vai descendo até
encontrar o objeto que desencadeia sua inspiração (visto como iluminação): o corpo nu de
uma mulher a imagem, por sinal, reapareceria, anos depois, em “Evocação do Recife”, de
1925, inserido em Libertinagem: “Um dia vi uma moça nuinha no banho/Fiquei parado o
coração batendo/Ela se riu/Foi meu primeiro alumbramento”.
“Alumbramento” também não é originalmente um metapoema. A palavra poesia,
mais uma vez, não aparece em momento algum. Mas o texto ganhou um caráter
metalingüístico por conter exatamente o termo alumbramento, que viria a ser usado pelo
próprio poeta como sinônimo de inspiração e motivação poética no Itinerário, Bandeira
chegou a se referir também a uma “atitude de apaixonada escuta”
96
. Ou seja, é um
metapoema que se fez pelo uso, que ganhou ares auto-referenciais, porque ali, apesar de os
primeiros leitores talvez não terem notado, estava a gênese do que era a poesia para
Manuel Bandeira: o extravasamento de um sentimento impulsivo diante de um fato
considerado poético, seja ele qual for, bastando apenas que tocasse sua alma. Ou melhor
que lhe provocasse algum tipo de desejo ou “relance erótico”, como definiu Davi Arrigucci
Jr.
97
. Para esse crítico, “Alumbramento” forma
[...] um expressivo claro-escuro, que dá a impressão de casar-se
admiravelmente bem ao leque de significados, onde a revelação luminosa
pode velar-se pela sombra do mistério, à medida em que se passa da
iluminação, na acepção própria e material, para outros significados
espiritualizados a que a palavra também se presta, como “inspiração”,
“inspiração sobrenatural”, “maravilhamento” ou “iluminismo”, no
sentido místico.
98
Mesmo assim, o caráter real, concreto do corpo feminino nu, gerador de todas as
outras imagens do poema (que começa no céu, vai ao mar e, depois, à terra) traz a poesia
para algo mais próximo do cotidiano, que Bandeira saberia magistralmente explorar em
textos posteriores. Ainda segundo Arrigucci Jr.:
96
Idem. Ibidem. p. 17. E Bandeira completa: “Na minha experiência pessoal fui verificando que o meu
esforço consciente só resultava em insatisfação, ao passo que o que me saía do subconsciente, numa espécie
de transe ou alumbramento, tinha ao menos a virtude de me deixar aliviado de minhas angústias” (p. 30).
Essa visão, no entanto, pode ser facilmente desmentida, não só pela sofistica técnica de desentranhamento,
como também pela produção de Bandeira como tradutor.
97
ARRIGUCCI JR. 2003. p. 123.
46
[...] seu modo simbólico de conceber e dar forma ao poético, tal como em
“Alumbramento” transparece, se afasta também do símbolo da tradição
mais próxima do Simbolismo, da qual ele parte, à medida que se
distancia do alto espiritualismo dessa corrente, de suas “vagas
nebulosidades” para apoiar claramente sua visão alumbrada não nas
“quimeras do desejo”, mas no chão bem mais concreto e prosaico onde
esplende o corpo nu de uma mulher.
99
Ou seja, o vocabulário de “Alumbramento” é ainda raro, como manda o modelo
simbolista-parnasianista. A métrica é devidamente respeitada, bem como a pontuação dos
tercetos (as reticências como que a suspender cada verso), mas a visão da inspiração
prosaica, não derivada mas geradora de imagens místicas e sobrenaturais, é profundamente
moderna e acompanharia Bandeira ao longo de sua trajetória. Alumbramento e inspiração
se confundem, mas, ao contrário do segundo termo, o primeiro não é de ordem divina, e
sim ou, também, se for o caso provocado por fatos no chão, na terra, de contemplações
poéticas presentes em seu cotidiano.
Tão importante quanto a noção de alumbramento é a característica intertextual da
obra bandeiriana. Culto e conhecedor das técnicas poéticas e da história da arte, Bandeira
sempre esteve impregnado de Tradição acrescentando a essa observação o conceito de
“mosaico de citações”, de Kristeva, pois não há como lê-lo sem ler, ao mesmo tempo, tudo
o que foi feito anterior e posterior a ele, já que, além de admirador da Tradição, o poeta
pernambucano foi também um iniciador de uma tradição moderna na poesia em língua
portuguesa. Em “Epílogo”, poema que fecha o livro em questão (e que dialoga de forma
98
Idem. Ibidem. p. 149.
99
Idem. Ibidem. p. 163. (as expressão colocadas em destaque por nós e em aspas pelo autor são de
autoria de Cruz e Souza, no soneto “Carnal e místico”.)
47
interessante com “Epígrafe”, do anterior), Bandeira explica que todo o Carnaval
100
fora
feito baseado na música de Schumann
101
.
Eu quis um dia, como Schumann, compor
Um carnaval todo subjetivo:
Um carnaval em que o só motivo
Fosse o meu próprio ser interior...
Quando acabei a diferença que havia!
O de Schumann é um poema cheio de amor,
E de frescura, e de mocidade...
E o meu tinha a morta mortacor
Da senilidade e da amargura...
O meu Carnaval sem nenhuma alegria!....
A intertextualidade em Bandeira, presente aqui no universo musical do compositor
alemão, irá se radicalizar mais adiante com a noção de desentranhamento. É importante
ressaltar que esse fenômeno no poeta nem sempre é simples de explicar. Boa parte das
manifestações intertextuais bandeirianas dá-se em relação a textos e situações estéticas que
seriam inacessíveis ao leitor comum (mesmo àqueles mais sofisticados), se o próprio
Bandeira não tivesse deixado uma dica de que determinado poema conversa com um texto
ou uma idéia anterior como, por exemplo, em “Poema para Santa Rosa”
102
ou na fase
100
Para Bandeira, Carnaval era um livro “sem unidade”. Escreveu o poeta: “Sob o pretexto de que no
carnaval todas as fantasias se permitem, admiti na coletânea uns fundos de gaveta, três ou quatro sonetos que
não passam de pastiches parnasianos (‘A ceia’, ‘Menipo’, ‘A morte de Pã’ e mesmo ‘Verdes mares’, que este
até o Pedro Dantas, meu fã nº 1, considera imprestável), e isto ao lado das alfinetadas dos ‘Sapos’’’.
(BANDEIRA. 1984. p. 60.) Não foi à toa que Mário de Andrade se referiu a Bandeira, neste livro, como
sendo um “carnavalesco da amargura”. O escritor paulista achava que Carnaval já era modernista, por conter
“a reação contra o simbolismo”, que “provocou o desejo de recriar a comoção em vez de a descrever”
(ANDRADE. 1987. p. 74 e 78).
101
Compositor alemão, do século dezenove, cuja obra romântica bebeu em fontes do pessimismo de Byron.
Uma de sua obras mais importante é exatamente Carnaval , de 1835.
102
Poema de Belo Belo: “Pousa na minha a tua mão, protonotária./ O alexandrino, ainda que sem a cesura
mediana, aborrece-me./Depois, eu mesmo já escrevi: pousa a mão na minha testa./ E Raimundo Correia:
"Pousa aqui, pousa ali etc."/ É pouso demais, basta Pouso Alto./ Tão distante, tão presente, como uma
reminiscência da infância./ Pousa na minha a tua mão, protonotária./ Gosto de "protonotária"./ Me lembra
meu pai./ E pinta bem a quem eu quero./ Sei que ela vai perguntar: - O que é protonotária?/ Responderei:/ -
Protonotário é o dignitário da Cúria Romana que expede, nas grandes causas, os atos que os simples notários
apostólicos expedem nas pequenas./ E ela: - Será o Benedito?/ - Meu bem, minha ternura é o fato, mas não
gosta de se mostrar./ É dentuça e dissimulada./ Santa Rosa me compreende./ Pousa na minha a tua mão,
protonotária.” Sobre esse texto, Flávia Ferraz Jardim Goyanna disse se tratar de um dos mais bem realizados
metapoemas bandeirianos (p. 40). Santa Rosa, a autora obviamente lembra, seria Thomás Santa Rosa,
“artista responsável pela primeira capa de Estrela da Manhã” (p. 46). Segundo ela, o poeta parte de um
“poema hipotético” de um verso (“pousa na minha a tua mão, protonotária”), do qual sai tecendo
48
mais intensa de desentranhamento de poesia de determinadas prosas, algumas tiradas até
mesmo de correspondências pessoais, como “Poema desentranhado de uma prosa de
Augusto Frederico Schmidit”. Pode ser encontrado também poemas inteiros saídos de uma
única frase, dita por outra pessoa, como em “O Lutador”, de Belo Belo (1948), feito a partir
de um mote involuntário dado por uma carmelita (“Seu grande coração
transverberado
103
). Algumas vezes, trava-se um diálogo com outros autores, como em
“Antônia”, de Estrela da Tarde. Nesse poema, Bandeira retorna ao tópico clássico do Ubi
Sunt qui ante nos in mundo fuere? (“onde estão os que antes de nós viveram no mundo”).
Mais: retorna ao tema instigado pela crítica do amigo Augusto Meyer, que antes analisara
o “Profundamente”, de Libertinagem
104
.
Esses conceitos continuariam a existir em O ritmo dissoluto, sem contudo o
acréscimo de novidades que possam levar à compreensão da metalinguagem bandeiriana.
Nesse livro, o mais importante é saber o porquê de seu título. Ainda resistente ao verso
livre, o poeta anota no título do livro que ele mesmo percebera a desproporção rítmica
daqueles versos. Ou melhor, são versos tradicionais, mas sem a preocupação de manter a
comentários pessoais (como á referência a Pouso Alto, cidade mineira que ele visitou algumas vezes para ver
seu amigo Ribeiro Couto, e o diálogo com a amada hipotética, com a qual dialoga e para a qual define seu
sentimento ternura como “dentuça e dissimulada”) e críticos (como a referência ao aborrecimento que lhe
causava a monotonia dos versos alexandrinos) ou a definição metalingüística do termo “Protonotário”, como
se o poema se transformasse num dicionário. Talvez só mesmo Bandeira conseguisse explicar o motivo do
“alumbramento” que gerou esse texto, apesar do comentário sobre a possível compreensão de Santa Rosa.
(GOYANNA. 1994. p. 43-47).
103
Sobre esse poema, desentranhado de um sonho (como relatado pelo próprio Bandeira no Itinerário de
Pasárgada), Edson Nery da Fonseca viu uma “paráfrase da vida e da morte de Santa Tereza de Ávila”.
(FONSECA. 1989. p. 30). O próprio Bandeira explicou sua gênese no já citado livro de memórias: “... ouvi
um dia de minha prima Maria do Carmo do Cristo Rei, monja carmelita, a narrativa de viagem que lhe
fizeram umas irmãs peruanas, de volta de uma peregrinação a Ávila, onde visitaram as relíquias da
reformadora do Carmelo. Naturalmente falaram com unção do coração transverberado da grande santa. A
palavra ‘transverberado’ impressionou-me fundamente. Passei o resto do dia pensando nela, mas sem
nenhuma idéia de poema. No dia seguinte de manhã acordo com o soneto pronto na cabeça, com título e
tudo”, e mais adiante, “... Tanto esse soneto como a ‘Palinódia’ [outro que garante ter vindo de um sonho]
são coisas que tenho que interpretar como se fossem obra alheia”. (BANDEIRA. 1984. p. 126-127). Para
Flávia Jardim Ferraz Goyanna, trata-se de um exagero do poeta, “pois sem dúvida, a substância destes gritos
do inconsciente é formada pelas leituras e vivências do homem-poeta, fermentando um material bruto que, à
força de alguma disposição especial de seumood’ psicofísico a fadiga, o tédio, o desalento, o sentimento
de perda ou frustração em determinado momento organizou-se em fluxo de criação poética”. (GOYANNA.
1994. p. 34.)
104
“Antônia”: “Amei Antônia de maneira insensata./ Antônia morava numa casa que pra mim não era casa
era um empíreo./ Mas os anos foram passando./ Os anos são inexoráveis./ Antônia morreu./ A casa que
Antônia morava foi posta abaixo./ Eu mesmo já não sou aquele que amou Antônia e que Antônia não amou./
Aliás, previno, muito humildemente, que isto não é crônica nem poema./É, apenas,/ Uma nova versão, a mais
recente, do tema ubi sunt,/ Que dedico, ofereço e consagro/ A meu dileto amigo Augusto Meyer.”
49
coerência rítmica das variadas formas poéticas. Por isso, talvez, ele considerasse ser esse
seu “livro de transição” para a fase seguinte, inaugurada em Libertinagem, quando o verso
livre fora devidamente incorporado ao seu repertório.
Transição para quê? Para a afinação poética dentro da qual cheguei, tanto
no verso livre como nos versos metrificados e ritmados, isso do ponto de
vista da forma; e na expressão das minhas idéias e dos meus sentimentos,
do ponto de vista do fundo, à completa liberdade de movimentos,
liberdade de que cheguei a abusar no livro seguinte, a que por isso
mesmo chamei de Libertinagem.
105
O curioso é que o próprio poeta afirma que as experiências contidas em O ritmo
dissoluto derivaram de fases diversas de sua vida, pois alguns daqueles poemas são
contemporâneos ou até mesmo anteriores a Carnaval. Isso é importante para mostrar
Bandeira como um poeta consciente da organização de sua obra. Esses poemas não fizeram
parte, por diversos motivos, do livro anterior (um livro temático, de inspiração musical,
como se viu), mas entraram em O ritmo dissoluto exatamente por causa dos avanços
formais de uma certa anarquia rítmica. Resta apontar também a presença de um poema
que, se não é metalingüístico, mostra um autor preocupado com os aspectos de inovação
formal e com a aliança disso ao cotidiano, à simplicidade das palavras, mesmo as geradas
por onomatopéias: “Os sinos” (“Sino de Belém, pelos que inda vem!/Sino de Belém bate
bem-bem-bem//Sinos da paixão, pelos que lá vão!/Sinos da paixão, bate bã-bão-bão.”).
Além do conceito de alumbramento, outro tão intenso quanto estaria por vir na obra
de Bandeira: o de que “... a poesia está em tudo tanto nos amores como nos chinelos,
tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas”
106
, idéia que permitiria o surgimento da
técnica de desentranhar poesia das coisas
107
. Esse foi o caminho seguido pelo poeta em
Libertinagem. Esses dois conceitos são o centro da primeira poesia bandeiriana. Mesmo
105
BANDEIRA. 1984. p. 75. Gilberto Mendonça Teles definiu essa passagem de fases em Bandeira como
sendo um “suave deslizar do antigo para o moderno”. (TELES. 1989. p. 229.) Contribui para isso, aliás, o
fato de Bandeira ter publicado seu grande livro modernista, Libertinagem, oito anos depois da eclosão do
modernismo no Brasil. Sua fase anterior antevira a modernização, mas quando ela veio, o poeta mais assistiu
que agiu em seu meio. Para José Guilherme Merquior, Bandeira era a fonte de toda a renovação literária no
Brasil, por ser “mais moderno que modernista”, o que fizera chegar “mais espontaneamente pela via do
simples ao resultado querido pela renovação literária: a expressividade simples e direta, despida da pompa
verbal parnasiana e da rica orquestração do verso simbolista”. (MERQUIOR. 1989. p 357.)
106
BANDEIRA, 1984. p. 19.
50
quando o poeta descobre a vida, numa fase mais luminosa depois de vencer a idéia
iminente da morte que lhe roubara a juventude , o alumbramento continua a existir, mas
melhor trabalhado, porque capaz de acontecer a qualquer momento, diante, por exemplo,
da mais comum estátua de gesso (“Gesso”, de O ritmo dissoluto), de memórias da infância
(“Evocação do Recife”, de Libertinagem) ou através do sofisticado conceito de
desentranhamento
108
, no qual qualquer texto, qualquer situação textual, pode virar poesia
das melhores de anúncios publicitários (“Balada das três mulheres do sabonete Araxá”) a
textos escritos por outras pessoas sem falar na série “À maneira de...”.
Em Libertinagem, para que acontecesse essa virada de um poeta soturno para um eu
lírico mais radiante e esperançoso diante da vida
109
embora traços de desespero e
lamentação sempre o tenham acompanhado fora necessário, sobretudo, romper com as
formas tradicionais e aderir de vez ao verso livre e aos conceitos vanguardistas de poesia.
Essa aceitação das formas livres de versificação, de acordo com o próprio poeta, foi difícil.
Segundo ele, o verso livre engana, pois,
À primeira vista, parece mais fácil de fazer do que o verso metrificado.
Mas é engano. Basta dizer que no verso-livre o poeta tem de criar o seu
ritmo sem o auxílio de fora. É como o sujeito que solto no recesso da
floresta deva achar o seu caminho e sem bússola, sem vozes que de longe
o orientem, sem os grãozinhos de feijão da história de João e Maria. Sem
dúvida não custa nada escrever um trecho de prosa e depois distribui-lo
em linhas irregulares, obedecendo tão somente às pausas do pensamento.
107
Outra definição sua era a de que “a poesia é feita de pequeninos nadas”. (Idem. Ibidem. p. 33).
108
Conceito, por sinal, que quebra a própria sentença bandeiriana, ao afirmar no Itinerário de Pasárgada que
“jamais poderia construir um poema à maneira de Valéry”, com o “máximo de consciência possível”. (Idem.
Ibidem. p. 29-30). Bandeira, na verdade, parecia acreditar realmente que a poesia, muitas vezes, lhe tomava
de assalto, como explica em trecho do Itinerário, sobre a composição de “Última canção do beco”, de Lira
dos Cinqüênt’anos. O poeta contou que, durante uma mudança de endereço, ficara exausto e caíra na cama,
ainda emocionado por estar saindo da Rua do Curvelo. “De repente a emoção se ritmou em redondilhas,
escrevi a primeira estrofe, mas era hora de vestir-me para sair, vesti-me com os versos surdindo na cabeça,
desci à rua, no beco das Carmelitas me lembrei de Raul de Leoni, e os versos vindo sempre, e eu com medo
de esquecê-los, tomei um bonde, saquei do bolso um pedaço de papel e um lápis, fui tomando as minhas
notas numa estenografia improvisada, se não quando lá se quebrou a ponta do lápis, os versos não paravam...
Chegando ao meu destino, pedi um lápis e escrevi o que ainda guardava de cor... De volta para casa, bati os
versos na máquina e fiquei espantadíssimo ao verificar que o poema se compusera, à minha revelia, em sete
estrofes de sete sílabas.” (Idem. Ibidem. p. 188-119.)
109
Norma Setzer Goldstein irá identificar nessa projeção uma atitude de “aceitação”: “Conceituo assim a
atitude oposta à frustração, que mistura alegria de viver e capacidade de superar os males, encarando a vida
de frente e usufruindo das coisas boas que ela oferece, Uma espécie de maduro compromisso com a
realidade”. (GOLDSTEIN. 1987. p. 9.)
51
Mas isso nunca foi verso-livre. Se fosse, qualquer pessoa poderia por em
verso até o último relatório do Ministro da Fazenda.
110
E concluiu:
O modernismo teve isso de catastrófico: trazendo para a nossa língua o
verso-livre, deu a todo o mundo a ilusão de que uma série de linhas
desiguais é poema.
111
A parte em que diz “sem dúvida não custa nada escrever um trecho de prosa e
depois distribui-lo em linha irregulares, obedecendo tão somente às pausas do pensamento”
é curiosa, pois o próprio Bandeira faria isso com prosa alheia embora com a
sensibilidade necessária para enxergar a poesia das coisas, ou seja, com o “alumbramento”.
O fato é que com Libertinagem o poeta aderiu de vez ao verso livre, às idéias dos
modernistas de 1922, o que aliás estavam fazendo vários outros autores do país, como
Carlos Drummond de Andrade, que no mesmo ano de 1930 publicava seu Alguma poesia.
Apesar de o livro de Bandeira ainda não conjugar abertamente o verbo “desentranhar”,
indícios disso, que, misturados com a noção de que “a poesia está em tudo”, mostra o poeta
numa fase bem mais aberta à realidade que o cercava influência da vida no “morro do
Curvelo”, em Santa Tereza, como ele mesmo apontou:
A Rua do Curvelo ensinou-me muitas coisas. Couto [Ribeiro Couto] foi
avisada testemunha disso e sabe que o elemento de humilde cotidiano
que começou desde então a se fazer sentir em minha poesia não resultava
de nenhuma intenção modernista. Resultou, muito simplesmente, do
ambiente do morro do Curvelo.
112
E: “a morte de meu pai e a minha residência no morro do Curvelo de 1920 a 1933
acabaram de amadurecer o poeta que sou
113
. A prova dessa presença da rua na obra de
Bandeira que, Ribeiro Couto, citado pelo próprio pernambucano, definiu como tendo
110
BANDEIRA. 1951. p. 123.
111
Idem. Ibidem.
112
BANDEIRA. 1984. p. 65. (O “morro do Curvelo” na verdade é apenas uma rua, como citada na primeira
vez, pertencente ao Morro de Santa Tereza, no Rio de Janeiro.
113
Idem. Ibidem. p. 65.
52
trazido aquilo “que a leitura dos grandes livros da humanidade não pode substituir”
114
está no magistral “Poema tirado de uma notícia de jornal” “tirado” como sinônimo claro
de “desentranhado”, termo que seria o preferido mais tarde.
João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num
{barracão sem número.
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
É outro poema no qual a metalinguagem não se dá explicitamente, acontecendo
novamente no título. O poeta diz claramente que vai fazer poesia a partir de uma notícia
de jornal, de um fato banal não que toda notícia de jornal o seja, mas o tom cotidiano do
fato narrado (e o verbo narrar pode ser usado nesse tipo de poesia, épica-modernista)
mostra que aquilo poderia ser tudo menos poesia, para os desavisados de alumbramento. O
fato de afirmar de onde sairá a poesia é importante, já que demonstra um poeta consciente
de sua arte. O alumbramento existe como percepção de que a desgraça de um brasileiro
comum pode ter sua beleza poética, pois não há nem sombra de qualquer idéia de poesia
como sendo a arte de enaltecer temas nobres, como se via no pensamento passadista. Ou
melhor: transforma em nobre, com ares trágicos, a mediocridade da vida e da morte de um
homem do povo, que nada fizera pela humanidade a não ser existir. Não só o assunto é
tirado do mais claro cotidiano, mas, assim como em “Alumbramento”, há um decréscimo
de situações. O personagem João Gostoso sai do alto de sua moradia (no morro da
Babilônia) e vai morrer no baixo da cidade, numa lagoa. Por causa disso, sai numa notícia
de jornal, fazendo-se notar diante de uma sociedade que, até então, ignorava-o. Ou como
afirmou Carbuglio: “ao conquistar o direito de ser, já não é mais”
115
. O curioso é que,
como apontou Arriguci Jr., há uma inversão também de valores sociais. O morro da
Babilônia, o alto da cidade, é uma favela carioca, onde moram pobres (“um barracão sem
número”). Onde João Gostoso vai morrer, a Lagoa Rodrigo de Freitas, por sua vez, é um
114
Idem. Ibidem.
115
CARBUGLIO. 1987. p. 39.
53
tradicional bairro de elite do Rio de Janeiro. No intervalo entre a vida e a morte, João
Gostoso bebe, canta e dança, numa seqüência dionisíaca, pontuada de forma a dar entender
que há um crescente temporal nessas ações. Uma situação textual de cunho referencial,
como uma notícia jornalística. Aliás, essa seqüência de versos “Bebeu/Cantou/Dançou” é
exatamente onde reside o fato de aquele texto ser um poema, não mera prosa referencial,
por conter o que Arrigucci Jr. chamou de “condensação brutal dessa síntese brevíssima de
uma vida”
116
. A simetria dessa seqüência de ação em versos, por sinal,
[...] não é menos marcante. São os únicos versos que rimam, perfeita e
imperfeitamente, no poema (-eu/ou/ou). E o acento rítmico incide sempre
na segunda sílaba, formando a mesma sucessão de uma sílaba átona e
uma tônica, ou seja, uma mesma célula rítmica repetitiva, um mesmo pé
jâmbico.
117
Mais uma vez, há um compromisso metalingüístico com o leitor, pois o título é um
canal direto entre o poeta e o público, mesmo fora do universo dos metapoemas. É aí que o
autor tenta passar alguma idéia do que virá. E quando esse título afirma, mas do que
sugere, como acontece em “Poema tirado de uma notícia de jornal”, essa relação
metalingüística e de cumplicidade torna-se ainda mais profunda. É claro que se pode cair
na sempre perigosa definição individual do que seja poesia, ou seja, a perigosa busca da
compreensão sobre o uso especial da linguagem com fins artísticos. Perigo que se faz
presente sobretudo relacionado a textos modernos, nos quais esses limites entre poesia e
prosa tornaram-se mais tênues que o pensamento de Cohen, para quem a prosa seria o
padrão e a poesia esse desvio, cada qual se inserindo num nível maior de características
fônicas (o que chamava de “prosa versificada”) ou semânticas (os “poemas em prosa”)
118
.
A “integral”, como definiu, teria ambas características, desviando-se assim da “prosa
integral”, na qual não haveria caracteres fônicos e semânticos o que parece ser limitado
ao ignorar a já citada prosa poética pensando num Guimarães Rosa, por exemplo. O fato,
no entanto, é que nesse (e em outros casos na obra bandeiriana) é o próprio poeta quem diz
que ali haverá poesia. Cabe ao leitor aceitar ou não o fato. Mesmo que não houvesse a
116
ARRIGUCCI JR. 2003. p. 110.
117
Idem. Ibidem. p. 116.
118
COHEN. 1966. p. 13-14. Cohen estudou, particularmente, a tradição da poesia francesa metrificada.
54
seqüência “Bebeu/Cantou/Dançou”, caberia ainda aos leitores considerarem aquilo poético
ou não, como acontece também com “Tragédia brasileira”, de Estrela da manhã (1936)
119
.
Mas ao fazê-lo, de início, Bandeira antecipa-se a qualquer julgamento estético. A
metalinguagem dá-se, portanto, já no conceito do poema que segue a idéia no título.
Afinal, para ele,
[...] em poesia tudo é relativo: a poesia não existe em si: será uma relação
com o mundo interior do poeta, com sua sensibilidade, a sua cultura, as
suas vivências, e o mundo interior daquele que lê.
120
O caráter modernista do texto torna-se mais importante ainda quando se conhecem
as circunstâncias nas quais ele se deu. Trata-se de uma das colaborações feitas pelo poeta
ao jornal A Noite, numa seção intitulada “Mês Modernista”, que lhe permitira, como ele
admitiu, seus primeiros rendimentos como poeta (cinqüenta mil contos de réis
121
).
Esse tipo de metalinguagem intencional desde o título, por sinal, também está
presente em “O Último poema”, que fecha Libertinagem:
Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
119
“Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade./Conheceu Maria Elvira na Lapa, prostituída,
com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e o dentes em petição de miséria./ Misael tirou Maria
Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, manicura... Dava tudo quanto ela
queria./Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranj ou logo um namorado./Misael não queria
escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada./Não fez nada disso: mudou de casa./Viveram três anos
assim./Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa./Os amantes moraram no
Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de
Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do
Mato, Inválidos.../Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência, matou-
a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul.”
120
BANDEIRA. 1951. p. 114.
121
BANDEIRA. 1984. p. 92. Colaboraram também na seção Carlos Drummond de Andrade, Sérgio Miliet,
Prudente de Morais Neto, Martins de Almeida e Mário de Andrade, esse último, responsável pelas
indicações. Para esse mesmo jornal, Bandeira fez “Duas traduções para o moderno acompanhadas de
comentários”, no qual traduziu, entre outras coisas, um soneto de Bocage, bem ao gosto de sua prática
intertextual.
55
Esse “último” do título, além de se referir ao fato de o texto estar propositadamente
no final do livro, diz respeito também a um ideal de desfecho poético, algo ainda vivo dos
tempos em que escrevia como “a morrer”. No corpo textual, há uma clara preponderância
de elementos que remetem à simplicidade, a um estado de espírito contido e ao
desconhecido poético. Libertinagem marca também o processo de transição entre dois
poetas distintos, em relação à sua atitude diante da vida (e, obviamente, de sua arte): um
poeta da dor e um poeta do otimismo, segundo Octavio de Faria:
[...] o poeta passou da aceitação e do elogio da dor (de uma concepção
trágica da vida), ao seu repúdio e à formação de um ideal novo de vida,
livre de qualquer elemento trágico o famoso ideal de partida para
Pasárgada, para esse reino do otimismo e de prazer que tanta importância
tem para a compreensão do nosso modernismo.
122
O importante é verificar que, a partir de Libertinagem, o conceito metalingüístico
em Manuel Bandeira estaria completo, unindo o alumbramento, a inspiração que vem de
dentro para fora, geralmente a partir de fatos vividos e vistos pelo poeta, uma percepção
poética aguçada, e o desentranhamento, o ato de tirar poesia de qualquer coisa, até mesmo
das mais banais (ou de coisas contadas ou escritas por outras pessoas). Ambos se
confundem em suas técnicas poéticas, bebidas de Tradição e ousadia. São, muitas vezes,
um só conceito, que vai sendo composto diante das coisas simples. Na verdade, o segundo
é conseqüência do primeiro fenômeno. Caminhando no limite entre a Tradição e a
modernidade, esses dois elementos foram sendo desenvolvidos durante toda a obra
bandeiriana, tendo como fundo a idéia de que a “a poesia está em tudo”. O conceito de
“desentranhar” poesia das coisas, contudo, é o que mais interessa, já que a partir dele pode-
se chegar, entre outras coisas, a um entendimento de ser o alumbramento poético apenas o
desejo de externar esteticamente algo por parte do poeta, ou seja, um trabalho consciente
de fazer literatura, que ultrapassa a percepção inicial de que se trataria apenas de mais um
sinônimo da tradicional inspiração. O alumbramento gera a vontade de fazer poesia; o
desentranhamento é a ação de fazê-la, é a técnica que torna possível o alumbramento se
transformar em versos, em objeto artístico. Para Murilo Marcondes de Moura,
56
Desentranhar, portanto, parece conter duas direções, entre si articuladas.
A primeira, de caráter mais passivo, se situa no plano da percepção... em
que o poeta reconhece a presença da poesia nos lugares mais inesperados.
A segunda diz respeito diretamente à criação poética, como no “Poema
desentranhado de uma prosa de Augusto Frederico Schmidt”, no “Poema
tirado de uma notícia de jornal” e em tantos outros.
123
E completou:
O método de desentranhar não deixa de ser exemplar também de uma
certa complementaridade entre o “alumbramento” e artesanato poético
em Bandeira, já que ele comporta tanto a receptividade para a poesia
errante no cotidiano como a capacidade artística de expressá-la.
124
Em Estrela da Manhã, de 1936, por exemplo, há uma obra-prima disso: a “Balada
das três mulheres do sabonete Araxá”, escrita em 1931:
As três mulheres do sabonete Araxá me invocam, me bouleversam,
[me hipnotizam.
Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde!
O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!
Que outros, não eu, a pedra cortem
Para brutais vos adorarem,
Ó brancaranas azedas,
Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata
Ou celestes africanas:
Que eu vivo, padeço e morro só pelas três mulheres do sabonete Araxá!
São amigas, são irmãs, são amantes as três mulheres do sabonete Araxá?
São prostitutas, são declamadoras, são acrobatas?
São as três Marias?
Meu Deus, serão as três Marias?
A mais nua é doirada borboleta.
Se a segunda casasse, eu ficava safado da vida, dava pra beber e nunca mais
[telefonava.
Mas se a terceira morresse...Oh, então, nunca mais a minha vida outrora
[teria sido um festim!
Se me perguntassem: queres ser estrela? queres ser rei?
queres uma ilha no Pacífico? Um bangalô em Copacabana?
Eu responderia: Não quero nada disso, tetrarca. Eu só quero as três mulheres
122
FARIA. 1987. p. 87-88.
123
MOURA. 2001. p. 46.
124
Idem. Ibidem. p. 46.
57
[do sabonete Araxá:
O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!
Bandeira contou que escrevera esse texto “de brincadeira”, tentando fazer o que
“Eliot faz a sério, incorporando aos seus poemas (e convertendo-os imediatamente em
substâncias eliotianas) versos de Dante, de Baudelaire, de Spender, de Shakespeare etc”
125
.
Para explicar esse jogo intertextual, ele continuou:
A mim sempre me agradou, ao lado da poesia de vocabulário
gongorinamente seleto, a que se encontra não raro na linguagem
coloquial e até na do baixo calão. Assim, a expressão “ficar safado da
vida”, em que o adjetivo “safado” só pode ser superado por outro que não
se deve escrever, continua para mim preservando, na sua condição de
lugar-comum, a mesma virtude poética inicial.
126
Para compor à maneira de T. S. Eliot, Manuel Bandeira incorpora/desentranha na
“Balada das três mulheres...” fragmentos de versos de Castro Alves, Eugênio de Castro,
Bilac, entre outros, tendo como ponto de partida de seu alumbramento uma peça
publicitária. A escolha de um produto tão prosaico como um sabonete, além do fato de o
poema ter sido inspirado numa peça publicitária (com toda sua carga de reificação das
relações humanas, baseadas no consumo, antes de tudo) elevam esse texto à condição de
poética do desentranhamento. Se se pode tirar poesia de uma coisa dessas ainda mais
usando versos já consagrados por outros autores, portanto presos às suas origens textuais ,
realmente poesia pode mesmo vir de qualquer outro lugar. O próprio Bandeira sabia da
força desse poema, pois comentou que ele deveria ser “bem cafajeste”
127
para a chamada
Geração de 45 grupo de poetas surgido no Brasil nos anos 40 do século XX e que
pregava um maior rigor dos versos, confrontando-se com os ideais mais soltos dos
modernistas de 1922 e também de parte da geração anterior, a de 30. O uso da colagem,
bastante vanguardista já naquela época, torna os versos de outros autores utilizados por
Bandeira tão poéticos quanto o próprio tema de uma peça publicitária de um sabonete.
Ambos são colocados em um mesmo nível. Mais: os versos, já carregados de significados,
125
BANDEIRA. 1984. p. 102.
126
Idem.Ibidem. p. 101.
127
Idem. Ibidem. p. 101.
58
até mesmo pelo uso repetido, equiparam-se também, em função, a uma propaganda. Ou
seja, os versos alheios são alçados à condição da publicidade, e esta à condição de poesia.
É importante ressaltar também, embora não seja o tema deste trabalho, o componente
erótico das três mulheres da peça publicitária do citado sabonete, que podem, se for usado
uma interpretação psicológica (sempre perigosa), ter desencadeado a reação de
alumbramento do poeta, assim como no poema que originou esse termo no pensamento
bandeiriano. Mas o uso de expressões de outros autores, coladas a seu texto da forma como
está, deixa claro que a “Balada das três mulheres...” é um exercício consciente de poesia
desentranhada
128
. Isso só é possível porque Bandeira não se preocupa de onde vem sua
poesia: apesar de uma certa tendência a divinizá-la, herança psicológica e vício lingüístico-
interpretativo de gerações anteriores, ele sabe bem encontrar a beleza poética das coisas,
sejam elas poemas consagrados da literatura mundial ou uma frase escrita num cartaz. Isso
se dá, segundo Haroldo de Campos, pelo fato de o poeta pernambucano saber deslocar o
objeto estético a ser poetizado, trazendo-o para um ambiente lírico, no qual antes não se
encontrava (e talvez, por isso, não se fizesse notar).
Bandeira é um desconstelizador. Sua poesia certa parte dela inscreve-
se nessa linha sutil que separa o lugar comum (a redundância, frase feita,
o clichê da sensibilidade) da informação original, e que faz muitas vezes
que, por uma simples mudança de ângulo de enfoque e/ou de âmbito
contextual, o que é redundante passe a produzir essa informação nova;
melhor esclarecendo: a informação estética de certos poemas
bandeirianos (sirva de exemplo a “Balada das três mulheres do sabonete
Araxá”, de Estrela da Manhã, 1936) nasce do deslocamento repentino,
fiado numa fímbria de linguagem apenas, do lugar comum para o lugar
incomum (para usar aqui uma fórmula de Décio Pignatari).
129
128
Em minucioso estudo, Sônia Brayner desentranhou as intertextualidades do poema bandeiriano. Para
começar, a “Balada das três mulheres do Sabonete Araxá” é quase uma paródia de “As três irmãs”, de Luís
Delfino. Conversa ainda com Salomé (a de Oscar Wilde e a de Eugênio de Castro), “Une saison en enfer”
(Rimbaund), Ricardo III (Shakespeare), Navio Negreiro (Castro Alves) e até com um samba de Lamartine
Babo (“Luar Cor de Prata”). (BRAYNER. 1987. p. 42 -47. )
129
CAMPOS. 1971. p. 100.
59
2 - Desentranhamento assumido
No entanto, é só em Lira dos cinqüent’anos, de 1940 (editado em Poesias
completas) que aparece pela primeira vez na obra do poeta o termo “desentranhar”, em
“Poema desentranhado de uma prosa de Augusto Frederico Schmidt”:
A luz da tua poesia é triste mas pura.
A solidão é o grande sinal do teu destino.
O pitoresco, as cores vivas, o mistério e calor dos outros seres te interessam
[realmente.
Mas tu estás apartado de tudo isso, porque vives na companhia dos teus
[desaparecidos.
Dos que brincaram e cantaram um dia à luz das fogueiras de S. João.
E hoje estão para sempre dormindo profundamente.
Da poesia feita como quem ama e quem morre.
Caminhaste para uma poesia de quem vive e recebe a tristeza
Naturalmente
Como o céu escuro recebe a companhia das primeiras estrelas.
Trata-se, como pode ser constatado já numa primeira leitura, de uma crítica, feita
pelo autor citado, à poesia de Manuel Bandeira. O pernambucano simplesmente colocou as
palavras escritas em prosa pelo amigo carioca e as dispôs de forma poética. Bandeira
esbarra aqui no perigoso conceito apropriação (ou plágio, se o crítico for mais radical
130
).
Não são suas aquelas palavras. Mas, embora já houvesse beleza poética no texto de
Schmidt, fora Bandeira a enxergar naquilo uma situação poética real. Foi ele quem atribuiu
valor àquelas palavras ao ponto de transformá-las em poesia. Transformou o esforço
intelectual de seu crítico em alumbramento, que permitiu o ato de desentranhar, ou seja o
objeto poético gerado da versificação do que antes se apresentava como prosa. Fez
modificações no texto, pontuando-o e distribuindo-o em versos. Isso pode ser visto quando
isola “naturalmente” que ecoa “profundamente” (que remete, obviamente, a
“Profundamente”, poema de Libertinagem citado na crítica por Schmidt
131
) de seu
130
Agravado com a “ausência de aspas”, para usar expressão de Roberto de Oliveira Brandão. (BRANDÃO.
1987. p. 25.)
131
E que, como apontou Lêdo Ivo (1989. p. 398) , remete ao “The hill”, do inglês Edgar Lee Master (“Todos,
todos estão dormindo, dormindo, dormindo na colina”, em tradução de Jorge de Lima citada por Arriguci Jr.
(2003. p. 291.)
60
complemento anterior (“Caminhaste para uma poesia de quem recebe a tristeza”) e
posterior (“ Como o céu recebe a companhia das primeiras estrelas”). Nesse último,
conferiu ao travessão a dica de que tudo não passa de um diálogo. A voz de Schmidt é
incorporada como se fosse a sua, numa auto-referência moderna (é bom apontar que o
nome Bandeira não aparece no texto). Também no caso, mais uma vez, temos o poeta
usando o título para expressar, metalingüísticamente, sua posição poética. O nome de
Schmidt apareceria outras duas vezes em Lira dos Cinqüênta’anos: no “Soneto em louvor
de Augusto Frederico Schmidt” e no “Soneto Plagiado de Augusto Frederico Schmidt”.
Nesse último, o poeta volta a fazer poesia “À maneira de” (embora essa terminologia só
viesse a aparecer depois, nos poemas reunidos em Mafuá do Malungo, coletânea na qual
estão seus versos de circunstâncias). Ao contrário de “Balada das três mulheres...”, em que
ousa fazer um poema eliotiano, em “Soneto plagiado de Augusto Frederico Schmidt”,
como o título denuncia, ele incorpora de forma reverente o estilo do poeta do Rio de
Janeiro, dado a textos místicos e elegíacos da segunda fase do Modernismo no Brasil.
Já em “Haicai tirado de uma falsa lira de Gonzaga”, o processo é radicalizado. O
poeta desentranha poesia de outro poema, mimetizando, de forma irônica até, o processo
metalingüístico.
Quis gravar “Amor”
No tronco de um velho freixo:
“Marília” escrevi.
Primeiramente, o termo “tirado” é novamente usado aqui como sinônimo de
“desentranhado”. Mais metalingüístico esse poema não poderia ser, embora, mais uma vez,
a força da crítica poética aconteça no título. O poeta tira poesia de outra poesia. Vai além,
inclusive, tirando (aqui o desentranhamento assume função de transformação, mais do que
tudo) um tipo de poesia específico (um haicai, poema japonês com três versos curtos e ao
qual pode ser atribuído alguma idéia de modernidade, pois demorou a chegar ao Brasil,
embora seja uma tradição no Japão) de um outro tipo específico (uma lira, bem ao gosto
arcadista, ou seja, pertencente à Tradição brasileira). Como apontou Flávia Jardim
Goyanna, a crítica acontece no uso do termo “falsa”. Isso porque Bandeira se refere a uma
lira falsamente atribuída ao neoclássico luso-brasileiro Tomás Antônio Gonzaga, que diz,
61
numa de suas partes, “No tronco dum freixo/que viçoso vi,/quis gravar “Amor”/ “Marília
escrevi”. Para fugir do uso das quadras, mais ao gosto da poesia lírica, Bandeira teve de
encurtar a idéia contida no verso original, suprimindo a adjetivação do tal freixo (“Que
viçoso vi”). Acrescentou em seu texto, por sua vez, um outro adjetivo, “velho”, que pode
remeter à idéia de Tradição, já que o poema se refere a um autor clássico da literatura
brasileira. Tirando isso, a idéia é a mesma. Toda a crítica e o humor
132
contidos nesse
poema bandeiriano dá-se, portanto, mais uma vez, no título. Segundo Goyanna:
Operando estas sutis e importantes transformações, Bandeira parece ter
logrado seu intento: extrair um perfeito haicai de um outro tipo de
poema, filtrando o que semelhava haver de essencial na lira, que seria a
inesperada troca do nome “Amor” pelo próprio nome da amada.
133
Ainda trabalhando a idéia de “desentranhar” poesia das coisas, o “Poema
encontrado por Thiago de Mello no Itinerário de Pasárgada”, de Opus 10 (1952), inverte a
situação existente do “Poema desentranhado de uma prosa de Augusto Frederico Schmidt”:
Vênus luzia sobre nós tão grande
Tão intensa, tão bela, que chegava
A parecer escandalosa, e dava
Vontade de morrer.
Aqui, Bandeira apenas assume para si o alumbramento de outro. Foi o poeta
amazonense Thiago de Mello quem enxergou no texto em prosa bandeiriano
134
uma
atmosfera poética. Bandeira, portanto, desentranha poesia de um texto seu em prosa, o que
só se tornou possível por ele ter tido o alumbramento de aceitar o alumbramento de um
outro autor. Ao contrário de outros textos seus, mesmo se Bandeira não tivesse dado a dica
de que esses versos foram retirados de um fragmento do Itinerário de Pasárgada, seu
132
Maria do Carmo Soares Costa tem uma visão curiosa sobre o humor e o uso de ironia no texto
bandeiriano. Para ela, essa é uma das mostras do “engajamento” do poeta,. A Autora escreveu: “O
engajamento em Bandeira manifesta-se pelos recursos do poema-blague (jogo), pela inserção de elementos
narrativos, ou melhor, de trechos de diálogos que alternam com traços descritivos/narrativos no poema como
observamos em ‘Meninos Carvoeiros’ e ‘Trem de Ferro’, por exemplo”. Ainda segundo ela: “o efeito bufão,
longe de ser inocente e arbitrário, é intencional. Pela força expressiva e mordacidade, ele provoca uma
espécie de délivrance crítica junto ao leitor”. (COSTA. 2004. p. 93.)
133
GOYANNA. 1994. p. 42-43.
134
O trecho citado está na página 98 do Itinerário, na qual o poeta explica a gênese de “Oração do Saco de
Mangaratiba”, de Libertinagem.
62
testamento poético, qualquer crítico atento teria chegado a essa conclusão. A referência no
título, portanto, importa apenas pelo fato de Bandeira conceder uma co-autoria
135
a Thiago
de Mello, que vislumbrou a força poética do fragmento em prosa utilizado pelo
pernambucano, autor no qual, como já se disse, a intertextualidade assume proporções
espantosas, não só por se fazer tão explícita que possa, a leigos, parecer até plágio
136
(ou
pelo menos detonar esse conceito) mas também por conter em si um alto poder de
poetização, tendo, para isso, a sensibilidade (concentração alumbrada) e a ferramenta (o
domínio do desentranhamento). Um caso bastante particular disso é o rápido flerte que o
poeta teve com as experiências do Concretismo, ao qual tinha reservas mas criticou de
forma adulta e lúcida, o que muitos outros, mais conservadores, sequer tentaram.
Experiências como “Verde-Negro”, “Ponteiro” e “O nome em si” (todos de Estrela da
Tarde). Não só nesses poemas, em que joga verbalmente ou desentranha o poder
encantatório dos subjetivos como faz com o nome de Gonçalves Dias, no último
exemplo acima e que pareceram, para quem julgava já conhecê-lo, pouco bandeirianos,
como em “Balada das três mulheres...” ou mesmo nos poemas metrificados, da primeira
fase, e nas apropriações de estilo do “À maneira de”, o poeta pernambucano mostra-se,
acima de tudo, um ágil estruturador da palavra: se existe uma definição textual de algo,
esse algo pode se tornar poesia, nem que para isso precise ser deslocado (como pensava
Campos) ou desentranhado, como preferia o próprio Bandeira
137
.
Mais: tudo sem a violência tão comum a movimentos de vanguarda. Como definiu
Gilberto Mendonça Teles:
135
Fez o mesmo em “Alegrias de Nossa Senhora”, de Opus 10, com a observação: “Esta composição está
inspirada no texto de oratório de poema de uma monja carmelita”. Explicou o poeta: “Mais de uma vez me
pedira Mignone texto para um oratório e decerto eu tinha muita vontade de satisfazê-lo, mas cadê inspiração?
Um belo dia recebo de uma religiosa carmelita um caderno de poemas sobre os quais me pedia que desse
opinião. Entre eles havia um, intitulado “Alegrias de Nossa Senhora”, que me pareceu belíssimo e logo me
deu a idéia que dele se poderia extrair o texto de que precisava Mignone. Pus mãos à obra, e no fim verifiquei
que o poema resultante era tanto meu quanto da religiosa, senão mais dela do que meu. Propus-lhe então que
assinássemos ambos, mas a sua santa modéstia não quis que o seu nome aparecesse”. (BANDEIRA. 1984. p.
84.)
136
Talvez, por isso mesmo, Bandeira sentia a necessidade em conceder co-autorias, nos títulos de seus
poemas. Seria uma forma, portanto, de se apropriar pedindo licença.
137
Para Brandão, o poeta “procura desarticular o compromisso que os vocábulos assumem com seus
referenciais através do tempo a ponto de serem incapazes de designar outras coisas”. (BRANDÃO. 1987. p.
26.)
63
Dizia coisas novas com palavras comuns; experimentava, mas por dentro
da linguagem, sem recorrer a signos não-verbais, como foi comum com o
poema processo e até concreto.
138
Esse jogo consciente ou não com as palavras, essa intertextualidade além do texto,
como se tudo já existisse, faltando apenas ser desentranhado, ainda mais em um poeta cuja
intensidade autobiográfica era escancarada
139
, acabaria não poupando nem a si próprio.
Bandeira também foi desentranhado por Bandeira, em “Antologia”, de 1956 publicado
em uma das reedições de sua obra completa e incluído posteriormente em Estrela da tarde:
A vida
Não vale a pena a dor de ser vivida.
Os corpos se entendem mas as almas não.
A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
Vou-me embora p’ra Pasárgada!
Aqui eu não sou feliz.
Quero esquecer tudo:
A dor de ser homem...
Este anseio infinito e vão
De possuir o que me possui.
Quero descansar
Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei...
Na vida inteira que podia ter sido e não foi.
Quero descansar.
Morrer.
Morrer de corpo e alma.
Completamente.
(Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir.)
Quando a Indesejada das gentes chegar
138
TELES. 1989. p. 250.
139
José Guilherme Merquior considerou que “Bandeira foi “de fato nossa primeira face lírica rigorosamente
subjetiva”, acrescentando também que “foi com o desnudamento de Bandeira que a musa da confidencia
ingressou em cheio em nossas poesia”. (MERQUIOR. 1989. p. 358.). Já para Alcides Vilaça, essa
configuração poética de Bandeira, com o uso de “um máximo de individualidade”, confunde: “No impulso da
simplicidade, com que logo nos cativa, a poesia de Bandeira projeta-nos a um só tempo no interior e na
contramão do cotidiano: no interior, porque os elementos poéticos estão todos nele, reconhecíveis e
familiares (inclusive os sonhos e as fantasias); e na contramão, porque a composição poética desses
elementos, com seus critérios de proximidade atenta e afetiva, contraria o estado de dispersão e a
impessoalidade que lhe impõe o ritmo moderno”. (VILAÇA. 1987. p. 30.)
64
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
Aqui foi o próprio poeta que escolheu trechos de outros poemas seus para que
formarem um novo. Tanto sua intenção não era ser hermético que os trechos escolhidos
vieram de alguns de seus mais famosos textos. Não houve a intenção de codificar o que ele
pretendia com os versos usados. Apenas os deslocou, do todo onde estavam, para um novo
todo simbólico. Cada verso retirado de seu contexto original cria novos contextos quando
agrupado a outros versos-órfãos. Na verdade, seu “estilo humilde” revela-se até mesmo na
hora de fazer um poema-antologia. Poema curto, de uma concisão curiosa para quem já
tinha tantos versos famosos, além dos que foram usados. Ao analisar as traduções de
poemas ingleses feitas por Bandeira, Abgar Renaut acertou no que não viu: a fôrma poética
bandeiriana:
O que constitui o ‘Background’ da legítima poesia inglesa é, exatamente,
o que forma boa parte da fisionomia espiritual da poesia de Manuel
Bandeira: o mesmo sentido de economia, a mesma contenção, a mesma
concentração emocional, a mesma compressão de desbordamentos, tão
comuns à nossa poesia, o mesmo domínio total da massa poética, o
mesmíssimo brilho seco, severo, cruel às vezes, muitas vezes oculto, o
que tudo redunda numa cousa muito séria uma absoluta ausência de
sentimentalismo.
140
Um rigor na hora da feitura poética, que Bandeira sempre ostentou ao falar até de si
mesmo, uma humildade que, na verdade, era rigor crítico. Na verdade, Bandeira utilizava
esse rigor (que em hipótese alguma pode ser confundido com formalismo, muito pelo
contrário, pois não abria mão do sentimento impulsivo da idéia do alumbramento estético)
em seu processo de “experimentação”, como definiu Gilberto Mendonça Teles, e que foi
em todas as direções possíveis: “do mais antigo ao mais moderno, do mais clássico ao mais
popular”
141
.
140
RENAUT. 1989. p. 26.
141
TELES. 1986. p 78-100.
65
Movendo-se conscientemente do velho, do antigo e do tradicional para o
novo, para o moderno e para a vanguarda, passando da linguagem erudita
à popular e misturando-as numa expressão particularmente bela, de
“sabedoria e beleza”, o seu processo de seleção não poderia ser apenas
intuitivo, como ele inúmeras vezes proclamou, caindo logo em seguida
em contradição, quando começava a explicar os seus procedimentos
retóricos. A sua autocrítica lhe dizia sempre qual o caminho melhor e
mais eficazmente poético. A sua humildade, também várias vezes
proclamada, tinha muito de acismo e até de disfemismo: no íntimo,
chamava mais atenção sobre o poeta..
142
Muito desse rigor está voltado para “Antologia”, na economia dos trechos usados,
na transformação em versos curtos do que poderia ser um longo poema-itinerário.
Novamente aqui utiliza-se do recurso de aproveitar até o título para passar recados
poéticos, ao deixar claro, desde o início, de que se trata de uma antologia, ou seja, uma
reunião de textos. Unindo todos eles estão algumas das idéias centrais da poesia
bandeiriana: a melancolia, a inutilidade da vida, a eterna espera pela morte já aceita
como verdade da qual não se pode escapar. O fato de todos os versos usados estarem no
mesmo clima ajuda para que o poema, que poderia ser uma mera colagem, tenha unidade.
A idéia da inevitabilidade da morte, por exemplo, é quase totalmente extraída de um de
seus melhores poemas, “Consoada”, de Opus 10
143
. Não por acaso, “Consoada” é também
o último poema citado por Bandeira em seu Itinerário de Pasárgada (que pode ser
considerado uma antologia explicativa de sua obra), com o mesmo intuito: o de dever
cumprido
144
. Isso é importante para um poeta que se considerava “menor” e que dissera ter
começado a fazer versos por causa de uma doença. O fato de ter achado nesse destino uma
unidade para sua vida, idéia que está tanto em “Antologia” como em quase todo o
Itinerário, mostra um autor não só consciente de seu papel na literatura e na sociedade
(mesmo que seja o de apenas aliviar a angústia alheia) mas também descobridor de que sua
vida não fora assim tão inútil para justificar o não ter valido a pena ser vivida. Pelo menos
142
Idem. Ibidem.
143
“Quando a Indesejada das gentes chegar/ (Não sei se dura ou caroável),/ Talvez eu tenha medo,/ Talvez
sorria, ou diga:/ Alô, iniludível!/ O meu dia foi bom, pode a noite descer,/ (A noite com seus sortilégios.)//
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,/A mesa posta,/ Com cada coisa em seu lugar.”
144
“De fato cheguei ao apaziguamento das minhas insatisfações e das minhas revoltas pela descoberta de ter
dado à angústia de muitos uma palavra fraterna. Agora a morte pode vir essa morte que espero desde os
66
poeticamente, Manuel Bandeira não só valeu, como foi (e é ) fundamental para a aceitação,
compreensão e admiração da idéia de modernidade literária no Brasil; não só as suas, mas
as de todas as gerações de autores que vieram depois.
Entre o alumbramento e o desentranhamento, Bandeira desnudou-se pouco a pouco
em sua obra, tendo feito de sua vida sua força poética e de seu talento para versos um
motor vital. O alumbramento, com o qual sentia o desejo poético, e a tarefa de
desentranhar versos de qualquer coisa que a seus olhos parecessem poética, tarefa a qual se
dedicou, são fundadores de um jeito bastante particular de enxergar a poesia, além de
terem influenciado outros autores que vieram depois na literatura brasileira e também na
portuguesa, onde é presença constante
145
. E isso é bem mais intenso do que pode conter de
manifesto em “Poética”
146
ou mesmo em “Nova Poética”, metalinguagens que o autor
pensou, fez conscientemente como tais. E que foram importantes como rumos, não como
definições de seu fazer poético.
Há um certo aspecto de facilidade no ato poético, que pode ser enxergado nos
metapoemas bandeirianos, facilidade esta sempre perigosa, como apontou Álvaro Lins,
para quem Bandeira era não só “difícil
147
, como, muitas vezes, “hermético”, por causa de
sua poesia ser “individualista” e “egocêntrica” (o que não levou em conta as pistas e dicas
deixadas por Bandeira, como se viu neste estudo, na tentativa, talvez, de fugir exatamente
desse hermetismo). A poesia, para ele, vinha da dor, do medo e posterior aceitação da
morte, da ausência das pessoas queridas, das coisas simples de seu cotidiano, mas não era,
de forma alguma, uma tarefa difícil, já que, somada ao seu alto grau de conhecimento da
dezoito anos; tenho a impressão que ela encontrará, como em ‘Consoada’ está dito, ‘a casa limpa, a mesa
posta, com cada coisa sem eu lugar’”. (BANDEIRA. 1984. p. 132.)
145
Para melhor compreensão, recorre-se ao já citado estudo de Arnaldo Saraiva, “O ‘jeito de Portugal’ de
Manuel Bandeira”. (SARAIVA. 2004. p. 203 a 217.)
146
Roberto de Oliveira Brandão viu nesse poema uma atitude “subversiva na medida em que recusa as
manifestações líricas que se caracterizam seja pela contenção, pela disciplina ou por estarem a serviço
exclusivo de interesses outros (a pátria, os sentimentos e as dores pessoais)”. (BRANDÃO. 1987. p. 23.)
147
“Só aparentemente é que o sr. Manuel Bandeira é um poeta ‘fácil’. Na realidade, muito mais difícil do que
o mais hermético dos nossos grandes poetas, o sr. Murilo Mendes. ‘Difícil’ não só em poemas como ‘Estrela
da manhã’ e ‘Noturno da Parada Amorim’, mas naqueles que nos parecem mais objetivos e claros. Trata-se,
aliás, de um poeta rigorosamente aristocrático; é popular, às vezes, na sua inspiração temática, mas sempre
aristocrático na forma e na expressão conceitual. O sr. Manuel Bandeira não se sente nunca chamado a
exprimir os sentimentos de outros homens, os movimentos coletivos, as paixões que se desenvolvem ao seu
lado. É um solitário que exige nosso esforço, a nossa vontade, o nosso despojamento. Só exprime os homens
na medida em que estes homens procurem colocar-se dentro dele. Para sentir sua poesia será preciso subir até
ao poeta e identificar-se com ele, porque nunca descerá para se identificar conosco.” (LINS. 1987. p. 118.)
67
Tradão, a técnica do desentranhamento, que o fazia, muitas vezes, “influir alma em
matéria sem vida”
148
, facilitava sua tarefa. Bem diferente, portanto, do que se verá em
Carlos Drummond de Andrade, no capítulo seguinte deste trabalho, para quem a arte
poética foi um constante estado de luta com as palavras e de uma estranha luta por
posicionamento do eu lírico diante delas e do mundo real
148
BANDEIRA. 1984. p. 33.
68
Capítulo III – Carlos Drummond de Andrade
1 - Recomeço constante diante da pedra
Fruto da modernidade em literatura, o mineiro Carlos Drummond de Andrade,
diversamente do que pensava John Gledson
149
, não teve os mesmos dilemas estéticos que
afligiram Manuel Bandeira, pelo menos em sua estréia em livro, em 1930, com Alguma
poesia. Ele já tinha domínio de grande parte das técnicas vanguardistas em poesia o que
iria melhorar ainda mais com o tempo , correspondia-se com alguns dos membros
participantes do modernismo brasileiro (como Mário de Andrade e o próprio Bandeira) e
havia resolvido parte dos questionamentos estéticos que, a posteriori, viria apenas a
lapidar. Estavam ali o verso livre, a presença de temática do cotidiano, o humor
150
. Mesmo
assim, seu pensamento sobre o que seja a poesia também avançou e se modificou ao longo
de sua obra, como aconteceu com Bandeira, de quem, obviamente, também é fruto. Mais:
caminhou, como se verá, dentro da linha tortuosa de seu espírito gauche
151
.
Antes de Alguma poesia e de, obviamente, ter se tornado um autor conhecido fora
das fronteiras de Minas Gerais (apesar de ter colaborado em revistas do Rio de Janeiro),
Drummond esteve a frente de um grupo de jovens escritores em Belo Horizonte com
algum projeto de renovação estética. De 1920 a 1925, colaborou com críticas, crônicas e
poemas no jornal Diário de Minas, órgão pertencente ao conservador Partido Republicano
149
Para Gledson, Drummond escrevera em Minas durante os anos de dúvida e inquietação do Modernismo
paulista, mas tinha uma atitude literária muito mais “penumbrista”, próxima a de autores pós-simbolistas
como o gaúcho Álvaro Moreyra (GLEDSON. 1981. p. 23-51). Este trabalho, no entanto, usará a convenção
de que Drummond pertence à chamada Geração de 30 do Modernismo, pelo fato de ter sido nessa década que
ele publicou seu primeiro livro, ou seja, organizou conscientemente uma coletânea de versos, editando,
muitas vezes, alguns poemas que já haviam sido publicados em jornais e revistas, de Belo Horizonte e do Rio
de Janeiro.
150
Para Abgar Renaut, seu companheiro nos primeiros anos modernistas em Belo Horizonte, o humor
drummondiano era “bem inglês, inglês como a grafia dessa palavra (humour), inglês como o sobrenome do
poeta” (mais adiante o crítico faria uma curiosa comparação entre o poeta mineiro e um possível ancestral
escocês, o poeta do século 18 William Drummond of Hawthornden). (RENAUT. 1978. p. 75)
151
Este trabalho usará a definição de gauche de Affonso Romano de Sant’Anna: “[...] herói não pelo que
deveria ser, mas pelo que efetivamente é, que quando não fosse uma aproximação estética realista seria, em
última análise, a definição do herói pelo seu avesso, como da tese pela antítese”. (SANT’ANNA . 1992. p.
30).
69
Mineiro, que dividia com seu semelhante paulista o poder oligárquico do Brasil naquela
época. Em 1925, colaborou também nos três números de A Revista, publicação que desde
seu surgimento e durante sua curta duração foi declaradamente modernista, já dentro do
discurso estético influenciado pelos integrantes da Semana de Arte Moderna de 1922. Isso
não é pouca coisa. Pode-se dividir o Modernismo no Brasil em quatro fases didáticas (às
vezes, apenas três): a inicial, de 1922 a 1930 (os primeiros modernistas e a luta para validar
a nova forma poética); a que vai de 1930 a 1945 (quando boa parte das vacilações iniciais
já haviam sido resolvidas e quando apareceram também mais romances, já que no começo
o movimento era predominantemente poético); a de 1945 a 1956 (onde houve um
realinhamento com as formas clássicas, duramente criticadas e evitadas antes); e a de 1956
(a partir dos concretistas e de uma nova busca experimental de linguagens). Apesar de ter
iniciado sua produção como poeta e crítico nos momentos iniciais do Modernismo (as
produções dos vanguardistas de São Paulo e do Rio de Janeiro tinham críticas publicadas
quase que instantaneamente no Diário de Minas e em A Revista), o marco da publicação do
primeiro livro é que define Drummond como pertencente a essa segunda geração do
Movimento. Para Gilberto Mendonça Teles, “há nisso muito de verdade e algum erro”:
É verdade, por exemplo, que o poeta se estreou em 1930, com Alguma
Poesia, livro que, segundo seu autor, ‘traduz uma grande inexperiência
do sofrimento e uma deleitação ingênua com o próprio indivíduo’; quatro
anos depois nos deu Brejo das Almas, em que ‘alguma coisa se compôs,
se organizou”. Ambos foram editados em Belo Horizonte e apresentam
assim mesmo muitas semelhanças, tanto de tema como de linguagem.
Por essa época, os ‘desvarios’ e desacertos dos pregadores do
modernismo já haviam chegado ao fim. Estavam aparecendo outras obras
de poesia, já revelando os benefícios dos novos rumos estéticos.
152
De qualquer forma, mesmo já tendo superado os tais desvarios do primeiro
modernismo brasileiro, a poesia de Carlos Drummond de Andrade, na época de Alguma
poesia, não estava pronta. Cresceria enormemente ao longo dos anos, passando por fases
distintas que influenciaram também sua própria visão do fazer poético, através de seus
metapoemas, o que interessa a este trabalho. De forma simplificada (e sempre provocadora
de polêmica), há quatro fases distintas na poesia do autor mineiro: o Drummond inicial,
70
irônico e recolhido; o Drummond participante, de poética fortemente com conotação
social; o Drummond estilista, aventurando-se nas formas clássicas do verso ou em novas
experimentações vanguardistas, e, por último, um Drummond misturando tudo isso, já
numa fase madura e quase que propositadamente despreocupada, como se vê nos últimos
livros (onde há uma presença forte de prosa poética).
Antes de se entrar no estudo mais detalhado da metalinguagem em Carlos
Drummond de Andrade e chegar ao resultado a que se propõe este estudo, de mostrar que
a poesia drummondiana é marcada por constantes movimentos de recuo e avanço em
relação ao mundo real e a um mundo contemplativo, e que isso gera conseqüências em sua
visão do fazer poético é necessário rever alguns conceitos sobre ele. Para explicar melhor
essas muitas faces de um mesmo autor, que, paradoxalmente, nunca deixara de ser coerente
desde seu início, faz-se preciso entender pelo menos quatro visões da obra drummondiana,
vindas de críticos que tentaram analisar os mistérios de sua evolução, cada qual com sua
teoria sobre as fases drummondianas (e que será fundamental para o estudo da metapoesia
do autor mineiro): Gilberto Mendonça Teles, Affonso Romano de Sant’Anna, Luiz Costa
Lima e John Gledson. Com exceção de Teles, os outros três foram já analisados e
confrontados por Silviano Santiago, em livro de 1976
153
.
Para Teles, há dois tempos na obra de Carlos Drummond de Andrade: o de Minas
Gerais e o do Rio de Janeiro, o que ele chama de “projeção geográfica”.
Há um tempo de Minas Gerais e um tempo do Rio de Janeiro na sua
obra, embora o do Rio esteja sempre poetizado por um “doce vento
mineiro”. Apesar dos poucos traços biográficos possíveis de identificação
na sua obra, é fácil averiguar que toda ela versiprosa corresponde a
essa dualidade: de um lado a obra poética mais próxima de Minas e
construída sobre um tempo passado que se atualiza no silêncio interior da
linguagem poética. (É certo que noutra época houve necessidade de se
afirmar que era o ‘tempo presente, os homens presentes, a vida
presente’.) E de outro lado, as três faces da obra em prosa, mais ligada ao
Rio de Janeiro e realizada dentro de um tempo cotidiano e contínuo, em
que os temas ou são motivados pelo fluxo da reminiscência (mesmo no
caso da crítica) ou são recolhidos diariamente da agitação da vida
152
TELES. 1994. p. 222. [O autor não explica de onde retirou as citações.]
153
Santiago analisou em Teles as repetições em seus poemas, no livro Drummond - A estilística da repetição
(1970).
71
carioca. Não se trata, entretanto, de um tempo comum, “de partido” ou de
“homens partidos
154
. Mas de uma categoria de tempo que se desdobra
da memória, fundindo-se no presente ou se confundindo no passado
[...]
155
Pode-se fazer, portanto, um paralelo nesse sentido com Manuel Bandeira, para
quem os anos passados em Pernambuco tiveram grande importância, já que as imagens da
infância praticamente fundaram sua visão poética, como se viu no capítulo anterior. Mas
isso só pode ser percebido em Drummond ao se analisar a obra inteira, já que nos
primeiros momentos, em torno do aparecimento de Alguma Poesia, não havia a
necessidade de afirmação do passado mineiro, até porque Minas (e seu passado interiorano
em Itabira) e Belo Horizonte (onde se formara intelectualmente) não eram meras
lembranças, mas a realidade do poeta. Depois, tornou-se uma espécie de porto ao qual
Drummond remetia sua alma poética, mesmo no Rio de Janeiro, para onde se transferira,
ainda na década de 1930, para trabalhar como funcionário público no Ministério da
Educação, com seu amigo dos primeiros anos modernistas na capital mineira Gustavo
Capanema, ministro da pasta, na época do presidente Getúlio Vargas.
O principal problema da tese de Teles é a mitificação da mineiridade, tão presente
no imaginário brasileiro (e para qual, diga-se, os versos de Drummond contribuíram
bastante). Para analisar isso, é necessário descrever como era a Belo Horizonte de quando
Drummond começara suas experiências literárias. Cidade planejada para ser a capital
mineira, em substituição a Ouro Preto, Belo Horizonte tinha na época em que o poeta de
Itabira começara a colaborar no Diário de Minas, pouco mais de 100 mil habitantes
156
. Era
uma cidade moderna, desenvolvida nos moldes das grandes reformas urbanas positivistas
do século XIX, na Europa e nos Estados Unidos, mas que ainda preservava ares
provincianos, que tanto perturbavam Drummond, por sinal é importante lembrar que o
próprio poeta, filho de fazendeiro em Itabira, fez parte desse processo de modernização, de
transferência do campo para a cidade, pela qual passou Belo Horizonte e o próprio país (os
154
Referência ao poema “Nosso Tempo”, de a Rosa do Povo.
155
Idem. p. 221. [As três faces da prosa drummondiana, citada por Teles, referem-se aos contos, às crônicas e
aos ensaios.]
156
Em 1930, a população oficial era de 116.981 habitantes. A cidade foi planejada para comportar 200 mil.
72
modernistas de São Paulo também tinham efetivos laços com a economia cafeeira, por
exemplo).
O antigo arraial de Belo Horizonte, onde foi construída a nova capital,
passou por total demolição, uma vez que suas construções e seu traçado
foram considerados incompatíveis com o projeto dos engenheiros. A
modernidade de Belo Horizonte afirma-se, portanto, em oposição ao que
havia em seu antigo sítio e, principalmente, em flagrante dissonância
com a antiga capital, Ouro Preto.
157
Além disso, a preocupação em romper com os laços tradicionalistas na cidade era
tanta, que o próprio Drummond tinha, na época, como grandes influências os franceses
finisseculares, como Anatole France. Até a lírica portuguesa era renegada pelos
modernistas mineiros, nos primeiros momentos. Belo Horizonte sofria influência direta do
Rio de Janeiro. Os jornais de São Paulo eram de difícil acesso. Mesmo assim, aqueles
jovens colaboradores do Diário de Minas, e que viriam a fundar A Revista, tomaram
conhecimento da Semana de Arte Moderna de 1922 e discutiram suas inovações. Isso, no
entanto, só se intensificou com a Caravana Paulista de 1924, quando, sob o pretexto de
ciceronear o poeta francês Blaise Cendrars em uma viagem às cidades históricas mineiras,
passou pelo Estado e por sua capital um grupo liderado por Mário de Andrade, Oswald de
Andrade e Tarsila do Amaral
158
. Vinham de um Carnaval no Rio e chegaram a Minas
Gerais em plena Semana Santa. O contato com esses artistas desencadeou uma mudança de
consciência no grupo mineiro
159
, sobretudo em Carlos Drummond de Andrade, que passara
a se corresponder com aquele que viria a ser uma espécie de mestre e amigo, tal qual
acontecera com Manuel Bandeira: Mário de Andrade. Além disso, foram os paulistas que
conseguiram reerguer a importância artística do Barroco mineiro, que estava esquecido,
relegado a fato do passado, pelos intelectuais da nova capital, que sonhavam com uma
cultura mais universal
160
.
157
ANDRADE. 2004. p. 75.
158
O grupo era ainda formado pela mecenas Olívia Penteado, seu genro Godofredo Teles e por Oswald de
Andrade Filho (o depois artista plástico Nonê).
159
Faziam parte desse grupo, entre outros, Pedro Nava, Emílio Moura, Martins de Almeida, Afonso Arinos,
Milton Campos e Abgar Renaut.
160
Para Silviano Santiago, “1924 complementa e contradiz 1922. São Paulo já estava em Minas, como a
Minas árcade e iluminista já estava no Brasil. Não são duas regiões do país que buscam ganhar autonomia e
ostentar o título de líderes. Nem São Paulo nem Minas Gerais é o Brasil que está sendo configurado como
nação pelos escritores modernistas. Na busca audaciosa do mais atual no concerto das nações, eles
73
O assunto universalismo versus nacionalismo, por sinal, foi um dos principais
assuntos nas primeiras cartas trocadas entre Mário de Andrade e Drummond. Em missiva
de 10 de novembro de 1924, Mário escreveu ao amigo.
[...] Carlos, devote-se ao Brasil, junto comigo. Apesar de todo o
ceticismo, apesar de todo o pessimismo e apesar de todo o século 19, seja
ingênuo, seja bobo, mas acredite que um sacrifício é lindo. O natural da
mocidade é crer e muitos não crêem. Que horror! Veja os moços
modernos da Alemanha, da Inglaterra, da França, dos Estados Unidos, de
toda a parte: eles crêem, Carlos, e talvez sem que o façam
conscientemente, se sacrificam. Nós temos que dar ao Brasil o que ele
não tem e que por isso até agora não viveu, nós temos que dar uma alma
ao Brasil e para isso todo sacrifício é grandioso, é sublime. E nos dá
felicidade... Eu não amo o Brasil espiritualmente mais que a França ou a
Cochinchina. Mas é no Brasil que acontece viver e agora só no Brasil eu
penso e por ele tudo sacrifiquei.
161
O que gerou resposta rápida do mineiro, que aceitara ser “indígena entre os
indígenas, sem ilusões”, em 22 de novembro de 1924:
Reconheço alguns defeitos que aponta no meu espírito. Não sou ainda
suficientemente brasileiro. Mas, às vezes, me pergunto se vale a pena sê-
lo. Pessoalmente, acho lastimável essa história de nascer entre paisagens
incultas e sob céus pouco civilizados. Tenho uma estima bem medíocre
pelo panorama brasileiro. Sou um mau cidadão, confesso. É que nasci em
Minas, quando devera nascer (não veja cabotinismo nesta confissão,
peço-lhe) em Paris. O meio em que vivo me é estranho: sou um exilado...
Sabe de uma coisa? Acho o Brasil infecto. Perdoe o desabafo, que a
você, inteligência clara, não causará escândalo. O Brasil não tem
atmosfera mental; não tem literatura; não tem arte; tem apenas uns
políticos muito vagabundos e razoavelmente imbecis e velhacos.
Entretanto, como não sou melhor nem pior do que os meus semelhantes,
eu me interesso pelo Brasil. Daí o aplaudir com a maior sinceridade do
mundo a feição que tomou o movimento modernista nacional, nos
últimos tempos: feição francamente construtora, após a fase inicial e
lógica de destruição dos falsos valores. O que nós todos queremos (o que,
pelo menos, imagino que todos queiram) é obrigar este velho e
imoralíssimo Brasil dos nossos dias a incorporar-se ao movimento
universal das idéias.
162
reencontram o passado e a tradição brasileiros e se defrontam com novas propostas políticas para a nação. O
império da letra modernista tem o sentido da construção nacional”. (SANTIAGO. 2002. p. 17.)
161
ANDRADE; ANDRADE. 2004. p.51.
162
Idem. Ibidem. p. 56-57.
74
O “deslocamento geográfico” de Teles responde, talvez, a divisão poesia/prosa na
obra drummondiana, mas não responde às variações de estilo dentro de sua poética pelo
fato de, apesar de estar no Rio, Drummond nunca deixara de ser mineiro. E mesmo
mineiro, nunca fora apegado a temas regionais, que se entraram em sua obra, como na série
memorialista de Boitempo, por exemplo, foram como temas possíveis na poesia, como
quaisquer outros. O universalismo, de temas e de estilo, sempre foi uma marca em sua
poesia. As imagens mineiras são associadas a Drummond por uma simples constatação
biográfica. Mas poderia ser qualquer outro lugar onde houvesse algum nível de tensão
entre o regional e o universal, entre o interior e a capital. Em qualquer lugar ele se sentiria
tentado a ultrapassar seus limites, já que seu coração era “maior que o mundo”. Mesmo se
um estudo der atenção apenas à fase memorialista de Drummond a série Boitempo
163
.
Outra visão importante sobre a progressão da obra de Drummond é a de Affonso
Romano de Sant’Anna. Para ele, a obra do poeta itabirano gira em torno de três
comparações entre o eu lírico e o mundo. Há a fase do “eu maior que o mundo”, a do “eu
menor que o mundo” e a do “eu igual ao mundo”. Na primeira, temos um poeta consciente
de seu perfil gauche, errado, torto como o anjo de seus versos, escondendo-se
poeticamente atrás da ironia, vendo tudo de cima, sem participação. Nas palavras do crítico
mineiro:
Condenado a estar na franja dos episódios como espectador, o gauche
desenvolve uma atitude contemplativa diante da realidade. Os olhos, que
eram a única coisa que brilhava no escuro canto onde se postou, passam a
ser, então, o instrumento de contato com o mundo, mirante onde se
instala para contemplar o que se passa...
164
Como se vê neste exceto de “Poema das sete faces”, o primeiro de Alguma Poesia:
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres
163
Na qual, segundo Costa Lima, ele opta pela condição de “poeta cronista”, renegando a “experiência do
poema” (visto aqui como exercido pela mitológica figura na poesia moderna do “poeta-crítico”). Costa Lima
chegou a comparar Drummond ao Fausto, de Goethe, alegando que ele renegara a reflexão poética em troca
das facilidades do contato com os leitores, posição com a qual este estudo não concatena. (LIMA. 1989. p.
318.)
164
SANT’ANNA. 1992. p. 44.
75
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração
Porém meus olhos
não perguntam nada
Na segunda fase, o poeta percebe-se apenas como uma mola na engrenagem da
vida, como mero participante do espetáculo do mundo, e sente a necessidade de uma ação
mais direta na realidade que o cerca, percebendo assim sua estatura diminuta. É a fase da
dita poesia social do autor, sobretudo em A rosa do povo, mas, segundo Sant’Anna, nesse
livro não há apenas poesia de participação:
Tais poemas são uma das faces de uma participação múltipla, que não se
esgota no social, mas se estende dentro da história do próprio indivíduo
naquilo que tem de mais pessoal e intransferível, justapondo o universal e
o particular. O poeta que aceita alegremente a idéia de que poesia é
participação é adepto de uma integração mais ampla que abrange vários
níveis, mas sempre com um modo peculiar de ver as coisas.
165
Na terceira fase, há um eu lírico já tranqüilo em relação ao seu conflito com o
mundo: sabe que não há como mudá-lo, mas não consegue mais se ver pairando sobre ele,
como nos tempos iniciais. Parte, então, para uma atitude de contemplação metafísica e
prosaica da realidade e dos sentimentos.
A essa altura, sua poesia converteu-se numa sistematização da memória,
numa maneira de se reunir através do tempo. O sujeito (gauche), que
vinha interagindo com o objeto (mundo), encontra o equilíbrio (relativo).
A ironia inicial que se entretinha no simples humorístico desenvolve sua
dialética latente e transmuda-se num exercício metafísico com um tom
barroco de desconsolo. Nessa etapa o poeta já realizou grande parte de
sua travessia sobre o mar do tempo. Experimentou a morte alheia e sua
morte parcial e apreendeu a recriar sua vida no plano poético da
memória. Sujeito e objeto se interpenetram dialeticamente. O lirismo se
torna mais puro. Dá-se a epifania máximo de sua vida-obra e a máquina
do mundo se abre dentro e fora dele oferecendo-lhe a solução de todos os
enigmas.
166
165
SANT’ANNA. 1992. p. 89.
166
Idem. Ibidem. p. 17.
76
Pensando junto com Santiago:
Diante da inexorabilidade da destruição e da morte, volta-se o poeta para
a linguagem, e é através dela, construindo poemas, que procura articular
o mundo, alçando-o então à condição intemporal, e num só gesto o torna
eterno e livre de contato com corrosão.
167
Trabalhar a oposição do eu lírico drummondiano e o mundo que o cerca é
importante exatamente por causa da atitude gauche que elege como lema, desde o “Poema
das sete faces”
168
. Esse olhar faz mais sentido que o “deslocamento geográfico”, que
poderia, em outras circunstâncias, nem ter se dado, já que mesmo em Minas ele já tinha
olhos para além das montanhas. Se o fato de estar na capital brasileira da época e a
proximidade com o mar que poderia simbolicamente representar a possibilidade de ir a
qualquer outro lugar, num mundo sem fim, tal qual pensavam os velhos navegadores dos
quais o Brasil é fruto assustavam Drummond, a permanência em Minas e sua condição
provinciana mesmo após a inauguração de sua então moderna capital tampouco deixava de
incomodá-lo. Na verdade, o poeta não conseguia se encaixar em nenhuma dessas
realidades, por causa de seu olhar gauche, que ele “institucionalizou”
169
. É bom apontar
também que a relação de redimensionamento do eu lírico com o mundo parte sempre do
primeiro, e não o contrário. Não é o mundo que percebe o eu lírico, que continua, mesmo
querendo participar (e participando a seu modo), com uma certa atitude afastada e com um
ar de desconfiança típico da personalidade gauche. É o eu lírico que se acha, em diversas
fases da obra drummondiana, “menor”, “maior” e “igual ao mundo”. Esse raciocínio vai na
linha de alguns autores que consideram traço fundamental da poesia de Drummond seu
167
SANTIAGO. 1976. p. 45.
168
Sobre essa curiosa imagem, na qual vê uma atitude de “rebaixamento” do poeta, Davi Arrigucci Jr.
escreveu: “A idéia do rebaixamento do lugar do poeta se revela fundamental para a compreensão do
sentimento drummondiano do mundo em discórdia: tanto no sentido passivo do afeto, medida do coração, em
que se traduz o contato do Eu com o universo exterior, quanto no ativo e reflexivo, pelo qual a consciência,
dobrando-se sobre si mesma e sobre o que sente, forma o seu senso discordante do universo”. (ARRIGUCCI
JR. 2002. p. 48.)
169
SANT’ANNA, 1992. p. 23.
77
individualismo. José Guilherme Merquior adjetivou de “coriáceo”
170
esse perfil
drummondiano. Já Luiz Costa Lima viu nele um “ouriço individualista”
171
.
Por sinal, Costa Lima é outro autor que trabalhou a relação conflituosa do eu lírico
drummondiano com o mundo. Nesse crítico, porém, a idéia parte de seu “princípio-
corrosão”, ou seja, o amadurecimento (ou desgaste) da ironia inicial, através do tempo, que
se transforma em participação social (em confronto com a História) e, depois, na fase final,
em opacidade, em tentativas de escapar (escavar) a realidade, mas já num plano metafísico,
freqüentemente atribuído à última fase do poeta mineiro. Trata-se da mais difícil das
visões, porque não é tão simples trocar o caráter irônico, que pode ser atribuído por
qualquer crítico iniciante aos poemas de Carlos Drummond de Andrade, por um conceito
estruturalmente complexo, como o da corrosão. Antes de mais nada, é bom entender o que
o crítico quis dizer com esse termo. Segundo ele, a corrosão
[...] não se confunde com derrotismo ou absenteísmo. Ao contrário, no
contexto drummondiano ela aparece como a maneira de assumir a
História, de se pôr com ela em relação aberta.
172
E acrescentou:
[...] a corrosão que a cada instante a vida contrai há de ser tratada ou
como escavação ou como cega destinação para um fim ignorado.
173
O “princípio-corrosão” nasce, portanto, da tensão entre duas forças: uma que pedia
ao eu lírico uma maior participação na vida, a partir de Sentimento do Mundo, e outra que
mantinha o interesse no distanciamento irônico da primeira poesia drummondiana.
[...] enquanto a ironia lançava mão do distanciamento da
experiência pessoal, o caráter empenhado não se
coadunava com essa tática do distanciamento. O choque
haveria de terminar pela dissolução de um dos dois
elementos em confronto se a poética drummondiana não
alterasse o perfil de seu próprio gerador.
174
170
MERQUIOR. 1975. p. 19.
171
LIMA. 1995. p 149.
172
Idem. Ibidem. p. 131.
173
Idem. Ibidem. p. 131.
174
Idem. 1989. p. 292.
78
É a “pedra no meio do caminho”, difícil de ser ultrapassada, que se transformou no
labirinto de “Áporo”, como veremos mais adiante. O que não pode ser ultrapassado, na
luta vã
175
com as palavras, torna-se “opaco”, aceito como a realidade de um “abismo sem
fundo”
176
pelo eu lírico, como as verdades desdenhadas pelo mesmo em “A máquina do
mundo” (de Claro enigma). Ao contrário de Sant’Anna, que viu a obra a partir da
consciência de dimensão do eu lírico perante o mundo, Costa Lima analisou os poemas
drummondianos sob a ótica do sentimento do eu lírico diante desse mesmo mundo, de sua
visão histórica, o que resulta em tentativas de combate ou de aceitação da nulidade de
combate, através do tempo. Essa suposta desistência do combate diante do mundo não
significa, de acordo com o autor, niilismo, porque o “princípio-corrosão”, essa forma de se
inserir na História, não é abandonado nem na fase mais metafísica e classicizante do poeta.
Pelo contrário, tal princípio, que acaba se naturalizando ao estilo do poeta, permite a
existência de uma “armadura indispensável para que Carlos Drummond não faça poesia
escapista
177
. É necessário compreender que, assim como a obra do autor nitidamente
possui fases distintas, o “princípio-corrosão” também se metamorfoseia. Ele nasce do
comportamento irônico (“ironia séria”
178
e “sem mordacidade”
179
, segundo Costa Lima),
transforma-se em corrosão-escavação (a corrosão que provoca uma necessidade de luta, na
fase mais social do autor, a partir de Sentimento do Mundo) até chegar à aceitação da
existência de um abismo sem fim e à volta contemplativa ao individualismo inicial, porém
maduro, sem a ironia (em termos de blague) dos primeiros textos. A corrosão, de acordo
com Costa Lima, não é um estilo, um modelo, mas um princípio gerador da poética de
Carlos Drummond de Andrade, que permite ao poeta se abrir “tanto para fora para o
175
Sobre essa atmosfera de luta presente na poesia de Drummond, escreveu Emanuel de Moraes, em texto de
1964: “Tanto faz interpretar-se a palavra drummondiana como objeto ou instrumento de luta. O seu
posicionamento do mundo e na arte, sua função social, escolhido que foi o caminho, a profissão de poeta,
passou a depender dessa luta para se realizar, buscando-as cautelosamente quando se oferecem prenhes de
sutilezas e subterfúgios, de modo a poder transformar sua vida em presença útil no seu sonho das coisas
humanas”. (MORAES. 1978. p. 101.)
176
LIMA. 1995. p. 151.
177
Idem. Ibidem. p. 151.
178
Afonso Arinos de Melo Franco viu como um dos principais atributos da poesia drummondiana a
predominância dos aspectos intelectuais, que não permitiam que sentimentalismos tomassem conta de seus
versos ou que a ironia descambasse para a simples piada (o que tinha influência até mesmo na sua forma de
construção poética): “quando a ironia não atua como defesa, o estilo enxuto o faz, e assim a inteligência de
Carlos nunca deixa o sinal aberto para a passagem franca da inspiração: ou ironia, sinal vermelho (pare) ou
forma contida, sinal amarelo (passe com cuidado). Sinal verde é que nunca”. (FRANCO. 1978. p. 84.)
179
LIMA. 1995. p 138.
79
mundo dos eventos como para dentro para a nomeação da memória e dos restos da
família”
180
.
John Gledson, por sua vez, abriu ainda mais o leque de fases drummondianas. Para
ele, são cinco as fases do poeta, separadas pela publicação de alguns livros-chaves: 1) a de
Alguma poesia (1930); 2) a de Brejo das almas (1934); 3) a que vai de Sentimento do
mundo (1940) até A rosa do povo (1945) o que inclui Jo (1942); 4) a que vai de Novos
poemas (1948) a A vida passada a limpo (1959) o que inclui também Claro enigma
(1951) e Fazendeiro do ar (1954); 5) Lição de coisas (1962)
181
. Gledson separa a obra
nessas cinco fases,
[...] enfocando a relação entre o poeta e as múltiplas estruturas objetivas
sociais, lingüísticas, familiais, literárias, existenciais, econômicas,
históricas etc. pelas quais se sabe (o poeta) limitado, mas que é
naturalmente incapaz de descrever, e menos ainda de dominar. Os
poemas, nas suas estruturas variadas, representam etapas diversas na
tentativa de capturá-las e compreende-las tentativa que chega ao seu
ponto mais ambicioso em A Rosa do Povo.
182
Para o crítico, com A rosa do povo, o eu lírico drummondiano consegue vislumbrar
a totalidade desse sistema de forças que o cerca. Antes e depois desse livro, porém, algo ou
está para ser descoberto ou se perde na aceitação dos fatos e forças tais quais eles são.
Nos dois períodos iniciais (1 e 2), nega ou rejeita a influência das estruturas, num
espírito zangado e rebelde; nos últimos (4 e 5), pelo contrário, sente-se incluído nelas
qualquer rebelião aparente é assim expressão de um destino
183
. A rosa do povo é o ápice
desse modelo (aliás, tal qual o é também para os modelos de Costa Lima e de Sant’Anna)
porque “nesta coletânea proclama a unidade com o seu tempo, embora, repitamos, seja
uma unidade da alienação”
184
. Gledson completou ainda:
180
Idem. 1989. p. 294.
181
Esse autor também trata da fase posterior a Lição de Coisas, sem contudo encaixá-la em seu esquema.
Diz que os livros posteriores a 1962 “demonstram a coerência da obra inteira, utilizando a riqueza de
experiências das coletâneas anteriores” (.GLEDSON, 1981. p 267).
182
Idem. Ibidem. p. 17.
183
Idem. Ibidem. p. 18.
184
Idem. Ibidem. p. 206.
80
A confiança de A Rosa do Povo, a sensação de que a forma da poesia e a
forma da experiência coincidem, não podia durar. Mas sem este
momento de confiança, o ceticismo do poeta não teria a importância que
tem. Drummond sabe muito bem que é mais fácil duvidar que afirmar
185
.
Apesar do estudo estilístico em Sant’Anna de termos e imagens mais usadas ao
decorrer da obra em Drummond
186
, da constatação em Costa Lima de que na fase mais
classicista que se segue à de participação Drummond amadurece como autor, ampliando a
palavra, e da visão de Gledson, ao pensar a relação das mesmas com a colocação do poeta
em relação às estruturas que o cercam, esse autores não perceberam que a
evolução/amadurecimento do autor itabirano pode ser explicada através de seus
metapoemas, como se verá a seguir.
2 - Luta e sedução no reino das palavras
O primeiro metapoema explicitamente assim declarado a aparecer em Alguma
poesia, livro de estréia do poeta, é “Poema que aconteceu”.
Nenhum desejo neste domingo
nenhum problema nesta vida
o mundo parou de repente
os homens ficaram calados
domingo sem fim nem começo.
A mão que escreve este poema
não sabe o que está escrevendo
mas é possível que se soubesse
nem ligasse.
Estão aí os traços iniciais da poesia drummondiana, ou seja, a ironia (de tom blasé),
que caracteriza o eu lírico que se considera “maior que o mundo”, nessa fase, como pensa
Sant’Anna. Há uma certa indiferença no trato de sua arte, numa atitude menos passiva do
que observadora. Mesmo assim, de um observador crítico, nem que seja no sentido de não
querer nem ligar para o que está acontecendo no mundo (o “vasto mundo”) ou em sua
185
Idem. Ibidem. p. 207.
186
Como no já citado estudo de Gilberto Mendonça Teles, de 1970.
81
própria arte. Uma atitude conscientemente bla. Para o eu lírico, reduzido pelo poeta a
apenas uma mão que escreve (e as figuras das mãos
187
aparecerão com freqüência em sua
poesia, como em “A mão suja”
188
, de José), não importa o que está sendo escrito, pois não
há como ter controle total sobre isso, idéia que será melhor desenvolvida em “O lutador”,
de A rosa do povo. Apesar da atitude irônica, típica do Modernismo, e dos versos livres, há
é claro a idéia da Tradição de que a poesia vem de fora do poeta, que serve apenas como
intermediário entre um mundo de idéias (e, consequentemente, de palavras) e o papel
(leitor). Muito embora, o eu lírico drummondiano deixa-se servir de forma indiferente (ou
propositadamente assumindo uma atitude assim). Indiferença ao mundo, à poesia e às
pessoas (possíveis leitores), como acontece em “Nota social”, também em Alguma poesia.
O poeta chega na estação.
O poeta desembarca.
O poeta toma um auto.
O poeta vai para o hotel.
E enquanto ele faz isso
como qualquer homem da terra,
uma ovação o persegue
feito vaia,
Bandeirolas
abrem alas.
Bandas de música. Foguetes.
Discursos. Povo de chapéu de palha.
Máquinas fotográficas assestadas.
Automóveis imóveis.
Bravos...
O poeta está melancólico. [trecho]
Isso não significa que o poeta não tenha consciência e gosto por sua arte. Na
verdade, ele, inclusive, esforça-se em obtê-la, e boa parte dessa indiferença pode ser
entendida diante da dificuldade em lidar com a poesia. É o que nos mostra, do mesmo
livro, “Poesia”:
187
Bem como as pernas, obsessão que Silviano Santiago chamou de “Forma metonímica” de desejo.
(SANTIAGO. 1976. p. 77)
188
“Minha mão está suja./ Preciso cortá-la./ Não adianta lavar./ A água está podre./ Nem ensaboar./ O sabão
é ruim./ A mão está suja,/ suja há muitos anos.” [Trecho.]
82
Gastei uma hora pensando em um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.
Nada mais é que uma descrição poética do esforço de escrever. A transformação do
poema em objeto vivo, que, por vontade própria, não quer sair ou sai, sem que o poeta
saiba sequer do que se trata, como se viu em “Poema que aconteceu” diz sobre a
conscientização da arte (numa possível releitura do “alumbramento” bandeiriano). Ou seja:
Drummond e seu eu lírico gauche compreendiam os meandros dos versos que queriam
escrever. A atitude blasé de Drummond, a indiferença vista em alguns poemas, seria um
tipo poético: o tímido, ao qual se referiu o amigo e crítico Mário de Andrade:
A análise de Alguma Poesia dá bem a medida psicológica do poeta.
Desejaria não conhecer intimamente Carlos Drummond de Andrade pra
melhor achar pelo livro o tímido que ele é. Pra ele se acomodar, carecia
que não tivesse nem a inteligência nem a sensibilidade que possui. Então
dava um desses tímidos só tímidos, tão comuns na vida, vencidos sem
saber o que são, cuja mediocridade absoluta acaba fazendo-os felizes!
Mas Carlos Drummond de Andrade, timidíssimo, é, ao mesmo tempo,
inteligentíssimo e sensibilíssimo. Coisas que se contrariam com
ferocidade. E desse combate toda sua poesia é feita. Poesia sem água
corrente, sem desfiar e concatenar de idéias e estados de sensibilidade,
apesar de toda construída sob a gestão da inteligência. Poesia feita de
explosões sucessivas. Dentro de cada poema, as estrofes, às vezes os
versos, são explosões isoladas. A sensibilidade, o golpe de inteligência,
as quedas de timidez se interseccionam aos pinchos.
189
Drummond é um poeta para o qual a idéia das musas e da inspiração divina já não é
sedutora, bem como, aliás, para boa parte de sua geração. Sem ter como escudo um achado
189
ANDRADE. 1978. p. 33. Por mais que haja traços subjetivos fortes na poesia drummondiana (como no
memorialismo da série Boitempo) , ele foi um poeta que soube (ou quis) separar sua vida de sua obra de uma
forma bem mais forte do que ocorre com Manuel Bandeira, por exemplo. Ao afirmar que Carlos Drummond
de Andrade fazia uma poesia objetiva, que necessitava de uma “interpretação objetiva”, Otto Maria Carpeaux
acreditou que “com isso, está eliminada a possibilidade de uma interpretação personalista, psicologística, já
inviável quando se trata de um poeta vivo, e particularmente de Carlos Drummond de Andrade
[o ensaio é de
1943], separando ele, tão rigorosamente a sua vida particular e a sua poesia”. (CARPEAUX. 1978. p. 148.)
83
semelhante ao do “alumbramento”, como em Manuel Bandeira, o poeta mineiro vai sempre
querer atravessar o mar da poesia através da perigosa e instável ponte que separa a
autonomia poética, vista como o mundo das idéias, das palavras livres, e do poeta
consciente, isento de inspiração coisa que seria superada (em termos) apenas por João
Cabral de Melo Neto.
“Explicação”, também do livro de estréia, embora sem o tom grandioso e sem a
importância de alguns metapoemas drummondianos que viriam a seguir, pode servir de
pista para interpretar a relação do poeta itabirano com seu ofício.
Meu verso é minha consolação.
Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.
Para beber, copo de cristal, canequinha de folha-de-flandres,
folha de taioba, pouco importa: tudo serve.
Para louvar a Deus como para aliviar o peito,
queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalhos
é que faço meu verso. E meu verso me agrada.
Meu verso me agrada sempre...
Ele às vezes tem o ar sem-vergonha de quem vai dar uma cambalhota,
mas não é para o público, é para mim mesmo essa cambalhota.
Eu bem me entendo.
Não sou alegre. Sou até muito triste.
A culpa é da sombra das bananeiras de meu país, esta sombra mole, preguiçosa.
Há dias em que ando na rua de olhos baixos
para que ninguém desconfie, ninguém perceba
que passei a noite inteira chorando.
Estou no cinema vendo fita de Hoot Gibson,
de repente ouço a voz de uma viola...
saio desanimado.
Ah, ser filho de fazendeiro!
A beira do São Francisco, do Paraíba ou de qualquer córrego vagabundo,
é sempre a mesma sen-si-bi-li-da-de.
E a gente viajando na pátria sente saudades da pátria.
Aquela casa de nove andares comerciais
é muito interessante.
A casa colonial da fazenda também era...
No elevador penso na roça,
na roça penso no elevador.
Quem me fez assim foi minha gente e minha terra
e eu gosto bem de ter nascido com essa tara.
Para mim, de todas as burrices a maior é suspirar pela Europa.
84
A Europa é uma cidade muito velha onde só fazem caso de dinheiro
e tem umas atrizes de pernas adjetivas que passam a perna na gente.
O francês, o italiano, o judeu falam uma língua de farrapos.
Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só,
lê o seu jornal, mete a língua no governo,
queixa-se da vida (a vida está tão cara)
e no fim dá certo.
Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.
Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?
Aqui, nos moldes de Bandeira, tem-se um metapoema que se faz sem querer ter
sido feito. Mas o tom crítico de uma crítica que não poupa nem mesmo o próprio eu
lírico nos mostra que essa intenção é apenas superficial. A “cachaça” poética, o vício em
escrever, mais do que um método para que as dores pessoais possam jorrar, “aliviar o
peito, queixar o desprezo da morena” é também forma de se conhecer a si próprio:
comunicação. Resta apontar também o convite à participação do leitor, sob a forma da
desautorização no penúltimo verso: “Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que
entortou/Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?”. O título “Explicação” talvez
quisesse mostrar aos leitores imaginários o porquê daquela poesia errada, torta, o porquê
do vaticínio do anjo, logo ao nascer do eu lírico, em “Poema das sete faces”, que depois
seria acentuado em “Poema da Purificação”, que não coincidentemente fecha Alguma
poesia.
Depois de tantos combates
o anjo bom matou o anjo mau
e jogou seu corpo no rio.
As água ficaram tintas
de um sangue que não descorava
e os peixes todos morreram.
Mas uma luz que ninguém soube
dizer de onde tinha vindo
apareceu para clarear o mundo,
e outro anjo pensou a ferida
do anjo batalhador.
85
Praticamente toda a poesia metalingüística de Drummond vai se basear nesse
combate entre o anjo bom e o anjo mau
190
, sem que nem sempre se possa atribuir quais
valores estão de cada lado da disputa (individualismo versus participação, palavra versus
poeta, infância versus morte, entre outros).
A busca pelo dimensionamento diante do mundo (em Sant’Anna), a sobrevivência
dos valores irônicos-corrosivos, tentando encontrar saídas estéticas/políticas/filosóficas
(em Costa Lima) ou, simplesmente, o tal deslocamento geográfico e sua respectiva busca
de valores passados na memória da infância mineira (pensando com Teles), tudo vai girar
em torno da luta pessoal, espiritual e estética do eu lírico poético drummondiano com as
palavras (com o mundo, com a realidade), sempre sob a interferência do “anjo bom”
(ordenador de claros enigmas) e do “anjo mau” (responsável por seu modo errado de viver
e encarar a vida). Esse combate entre bem e mal, entre certo e errado, entre o mundo
exigindo participação e o sujeito gauche sentindo-se excluído e perdido também se dá pela
presença constante de problemas aporéticos, como se verá mais a frente.
É tão difícil fazer poesia para Drummond, que sempre fora grande também a
vontade de não fazê-la, de se calar (pelo menos textualmente), como, aliás, sugere em
“Segredo”, do livro seguinte, Brejo das almas, de 1934: “A poesia é incomunicável/Fique
torto no seu canto/Não cante”. É ainda o eu lírico blasé, sem perspectiva geográfica e
histórica de “Também já fui brasileiro” (de Alguma poesia) ou do “Soneto da perdida
esperança” (Brejo das almas): “Perdi o bonde a esperança/Volto pálido para casa/A rua é
inútil e nenhum auto/Passaria sobre meu corpo”.
Essa atitude, porém, mudaria em Sentimento do mundo, de 1940, não por acaso o
livro que inicia também sua fase mais politizada, no sentido de que ali há uma exigência
pessoal do eu lírico em participar dos acontecimentos que modificavam o mundo a sua
volta, como no poema homônimo:
Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
190
Como apontou Marlise Sapiencinski, “... em todo o conjunto da obra drummondiana desponta a visão do
anjo torto, desencontrado, irremediavelmente condenado a amar sem limites, sem, contudo, conseguir
estabelecer uma troca real com seu semelhante, pois sabe amar apenas de ‘maneira torcida e reticente’
(‘Sonho de um sonho’)”. (SAPIENCISNKI. 2002. p. 169). O poema citado pela autora está em Claro
Enigma.
86
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.
Embora ainda não haja uma tomada de posição, o clima de conflito (o mundo vivia,
então, os horrores da Segunda Guerra Mundial) havia começado a despertar no autor
gauche uma vontade de, pelo menos, observar tudo com um olhar mais crítico que
indiferente, o que inclui sua própria produção de sentidos como artista. Essa crise daria
“Mãos dadas”, do mesmo livro:
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Tamm não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
87
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.
não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
Nesse texto, Drummond deixa claro o que, naquele momento, não cantaria (o
passado e o futuro), tornando-se um lírico da presentificação. Esse texto pode fazer um
paralelo interessante ao “Poética”, de Manuel Bandeira. Tal qual no poema do
pernambucano, aqui o mineiro diz o que não quer cantar para cercar seu objeto de atenção
poética: “o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”
191
. Essa prisão à vida faz
o autor priorizar o que se passa ao seu redor, de forma a se tornar mais contextualizado
192
,
menos voyer e ainda distante do caráter metafísico que assumiria posteriormente. Está
ignorando o lirismo (“Não serei o cantor de uma mulher, de uma história./ Não direi
suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela./ Não distribuirei entorpecentes ou cartas
de suicida”) e o absenteísmo tradicional de nossa poesia (“não fugirei para ilhas nem serei
191
O formato poético de negar o que seja poesia para afirmar o que o eu lírico considera como caminho
válido seria repetido, em termos, em “Procura da poesia”, de A Rosa do Povo.
192
Não por acaso, para seguir a linha de raciocínio de Affonso Romano de Sant’Anna, é neste livro,
Sentimento do Mundo, que se dá a transformação de um eu lírico que se acha maior que o mundo para uma
formação do tipo: “eu menor que o mundo”. Isso se dá, mais precisamente, no poema “Mundo Grande”:
“Não, meu coração não é maior que o mundo./É muito menor./Nele não cabem nem as minhas dores./Por
isso gosto tanto de me contar./Por isso me dispo,/por isso me grito,/por isso freqüento os jornais, me
exponho/ cruamente nas livrarias: preciso de todos. //Sim, meu coração é muito pequeno./Só agora vejo que
nele não cabem os homens./Os homens estão cá fora, estão na rua./A rua é enorme. Maior, muito maior do
que eu esperava./Mas também a rua não cabe todos os homens./A rua é menor que o mundo./O mundo é
grande.// Tu sabes como é grande o mundo./Conheces os navios que levam petróleo e livros,/carne e
algodão./Viste as diferentes cores dos homens,/as diferentes dores dos homens,/sabes como é difícil sofrer
tudo isso, amontoar tudo isso/num só peito de homem...sem que ele estale.// Fecha os olhos e esquece./Escuta
a água nos vidros, tão calma. Não anuncia nada./Entretanto escorre nas mãos,/tão calma! Vai inundando
tudo...// Renascerão as cidades submersas?/Os homens submersos-voltarão? Meu coração não sabe./Estúpido,
ridículo e frágil é meu coração./Só agora descubro/como é triste ignorar certas coisas./(Na solidão de
indivíduo/desaprendi a linguagem/com que homens se comunicam).// Outrora escutei os anjos,/as sonatas, os
poemas, as confissões patéticas./Nunca escutei voz de gente./Em verdade sou muito pobre.// Outrora
viajei/países imaginários, fáceis de habitar,/ilhas sem problemas, não obstante /exaustivas e convocando ao
suicídio. //Meus amigos foram às ilhas./Ilhas perdem o homem./Entretanto alguns se salvaram e/trouxeram a
notícia/que o mundo, o grande mundo está/ crescendo todos os dias,/entre o fogo e o amor. //Então, meu
coração também pode crescer./Entre o amor e o fogo,/entre a vida e o fogo,/meu coração cresce dez metros e
explode./ ó, vida futura! Nós te criaremos.”
88
raptado por serafins”), pois, “o tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens
presentes, a vida presente”. A poesia não é o foco principal aqui, mas sendo uma coisa da
vida, a qual está preso, pode ser lida subliminarmente. Para Pedro Lyra, “apesar do estado
desumano do mundo, o poeta não foge nem se refugia no individualismo, mas parte para o
enfrentamento crítico dessa realidade, junto aos contemporâneos”
193
. Esse é o tom que se
lerá na maioria dos poemas de A Rosa do povo. É também a nova postura do autor diante
de sua poesia.
Curiosamente, contudo, seria no livro anterior, em José, de 1942, que Drummond
publicaria sua grande arte poética: “O lutador”:
Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.
Deixam-se enlaçar,
tontas à carícia
e súbito fogem
e não há ameaça
e nem há sevícia
que as traga de novo
ao centro da praça.
Insisto, solerte.
Busco persuadi-las.
Ser-lhes-ei escravo
de rara humildade.
Guardarei sigilo
de nosso comércio.
193
LYRA. 2002. p. 53.
89
Na voz, nenhum travo
de zanga ou desgosto.
Sem me ouvir deslizam,
perpassam levíssimas
e viram-me o rosto.
Lutar com palavras
parece sem fruto.
Não têm carne e sangue
Entretanto, luto.
Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.
Quisera possuir-te
neste descampado,
sem roteiro de unha
ou marca de dente
nessa pele clara.
Preferes o amor
de uma posse impura
e que venha o gozo
da maior tortura.
Luto corpo a corpo,
luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento.
Não encontro vestes,
não seguro formas,
é fluido inimigo
que me dobra os músculos
e ri-se das normas
da boa peleja.
Iludo-me às vezes,
pressinto que a entrega
se consumará.
Já vejo palavras
em coro submisso,
esta me ofertando
seu velho calor,
aquela sua glória
feita de mistério,
outra seu desdém,
outra seu ciúme,
90
e um sapiente amor
me ensina a fruir
de cada palavra
a essência captada,
o sutil queixume.
Mas ai! é o instante
de entreabrir os olhos:
entre beijo e boca,
tudo se evapora.
O ciclo do dia
ora se conclui
e o inútil duelo
jamais se resolve.
O teu rosto belo,
ó palavra, esplende
na curva da noite
que toda me envolve.
Tamanha paixão
e nenhum pecúlio.
Cerradas as portas,
a luta prossegue
nas ruas do sono.
Poesia assume aqui seu sentido metonímico: palavra. É uma grande ode à palavra,
“O lutador”. Se antes o poeta escrevia sem saber o porquê, deixando que os versos
utilizassem sua mão, fingindo uma certa indiferença à grandeza do momento poético, em
“O lutador”, Drummond assume-se como o grande cortejador da poesia, que muitas vezes
é ignorado pelo objeto de seu desejo/peleja. O poeta sabe que tem de buscar as palavras,
sabe que é com elas que ele tem de lutar para chegar ao seu objeto final, o poema.
Também é importante ressaltar que “O lutador” começa num despertar e vai, num plano-
seqüência que atravessa o dia, até o adormecer, quando, por sinal, a luta continua, num
mundo onírico, que pode, inclusive influenciar esse desejo durante o estado de consciência
desperto.
Nesse texto, pode ser observado o princípio-corrosão de Luiz Costa Lima, em seu
sentido de opacidade (embora esse autor só o defina a partir de Claro enigma), já que se
trata de uma busca que não tem fim, que recomeça e termina, para depois recomeçar e
terminar novamente, do sono ao despertar, atravessando as horas, pois o “inútil duelo
jamais se resolve”. O próprio estar com as palavras, durante o dia, tem caráter onírico, já
91
que elas se demonstram fugidias e inconstantes. O poeta brinca com a humanização das
palavras, ao atribuir a elas um caráter que já possuem: o de serem etéreas como o vapor,
como objetos abstratos que são (também vale a pena apontar a adjetivação fluida): “Mas
ai! é o instante/ de entreabrir os olhos:/ entre beijo e boca,/ tudo se evapora”. Sobre o
caráter de luta do texto, é preciso verificar que ele se dá mais em termo de enlace erótico
do que de atitude violenta. Ou seja: é mais sexual que combativo, o que ressalta o conteúdo
de sonho desse poema. O poeta, inclusive, chega a se rebaixar, até na base da chantagem,
como nos versos “Busco persuadi-las/ Ser-lhes-ei escravo/ de rara humildade/ Guardarei
sigilo/ de nosso comércio”. Ao tachar sua busca como comércio, reforça a idéia de que
elas, além de prazer e de serem seu objeto de desejo, servem a ele também como “sustento
num dia de vida”.
O conceito de combate/enlace com a poesia e sua dificuldade (muito por causa do
caráter fugidio e sem saída da mesma, tema recorrente de Drummond, desde que publicou,
em 1928, o polêmico “No meio do caminho”
194
, na Revista de Antropofagia) é
aprofundado no livro seguinte, A Rosa do povo, de 1945. Mais precisamente em quatro
metapoemas, dos melhores do autor, diga-se: “Consideração do poema”, “Procura da
poesia”, “Áporo” e “O elefante”.
Não coincidentemente, as duas primeiras citadas no parágrafo acima abrem A rosa
do povo, o livro de maior participação social de Carlos Drummond de Andrade. Ambas
servem para explicar a relação do poeta com as palavras e com sua arte poética, antes de
chegar à visão político-social do autor, naquela conturbada época (o mundo estava saindo
da Segunda Guerra e o Brasil, do clima ditatorial do Estado Novo getulista
195
). “Procura da
poesia” é quase uma continuação de “O lutador”, mas “Consideração do poema” vai além
de estabelecer o que é ou não poético: traça um itinerário lírico drummondiano até chegar
ao seu alvo, naqueles tempos, o povo, ao qual “o poema atravessa”:
194
“No meio do caminho tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do caminho/tinha uma pedra/no meio do
caminho tinha uma pedra.// Nunca me esquecerei desse acontecimento/na vida de minhas retinas tão
fatigadas./Nunca me esquecerei que no meio do caminho/tinha uma pedra/Tinha uma pedra no meio do
caminho/no meio do caminho tinha uma pedra.” [Note-se que “No meio do caminho” não deixa claro se a
“pedra” foi ou não ultrapassada, apenas que esse acontecimento deixou profundas marcas no eu lírico do
texto.]
195
Segundo Mário Faustino, com um certo exagero, “a poesia de Carlos Drummond é documento crítico de
um país e de uma época (no futuro, quem quiser conhecer o Geist brasileiro, pelo menos de 1930 e 1945,
92
Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.
Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus. De todo o orgulho,
de toda a precisão se incorporam
ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinícius
sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski.
São todos meus irmãos, não são jornais
nem deslizar de lancha entre camélias:
é toda a minha vida que joguei.
Estes poemas são meus. É minha terra
e é ainda mais do que ela. É qualquer homem
ao meio-dia em qualquer praça. É a lanterna
em qualquer estalagem, se ainda as há.
– Há mortos? há mercados? há doenças?
É tudo meu. Ser explosivo, sem fronteiras,
por que falsa mesquinhez me rasgaria?
Que se depositem os beijos na face branca, nas principiantes rugas.
O beijo ainda é um sinal, perdido embora,
da ausência de comércio,
boiando em tempos sujos.
Poeta do finito e da matéria,
cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,
boca tão seca, mas ardor tão casto.
Dar tudo pela presença dos longínquos,
sentir que há ecos, poucos, mas cristal,
não rocha apenas, peixes circulando
sob o navio que leva esta mensagem,
e aves de bico longo conferindo
sua derrota, e dois ou três faróis,
últimos! esperança do mar negro.
terá que recorrer muito mais a Drummond que a certos historiadores, sociólogos, antropólogos e ‘filósofos’
nossos...)”. (FAUSTINO. 1978. p. 75.)
93
Essa viagem é mortal, e começá-la.
Saber que há tudo. E mover-se em meio
a milhões e milhões de formas raras,
secretas, duras. Eis aí meu canto.
Ele é tão baixo que sequer o escuta
ouvido rente ao chão. Mas é tão alto
que as pedras o absorvem. Está na mesa
aberta em livros, cartas e remédios.
Na parede infiltrou-se. O bonde, a rua,
o uniforme de colégio se transformam,
são ondas de carinho te envolvendo.
Como fugir ao mínimo objeto
ou recusar-se ao grande? Os temas passam,
eu sei que passarão, mas tu resistes,
e cresces como fogo, como casa,
como orvalho entre dedos,
na grama, que repousam.
Já agora te sigo a toda parte,
e te desejo e te perco, estou completo,
me destino, me faço tão sublime,
tão natural e cheio de segredos,
tão firme, tão fiel... Tal uma lâmina,
o povo, meu poema, te atravessa.
“Estes poetas são meus”, “estes poemas são meus”, “... é toda minha vida que
joguei”, diz, citando alguns autores dos quais gostava (Vinícius de Moraes, Murilo
Mendes, Neruda, Apollinaire, Maiakovski). O pronome possessivo é uma clara indicação
da tomada de posição de Drummond, de sua aproximação com o mundo e, por
conseqüência, com sua arte. O poema começa com uma crítica à poesia meramente formal,
sem nada para dizer (“Não rimarei a palavra sono/ com a incorrespondente palavra
outono./ Rimarei com a palavra carne/ ou qualquer outra, que todas me convêm”). Em
seguida, vem a grande adjetivação de seu objeto de desejo, as palavras: “indevassáveis”.
Trata-se de mais uma “pedra no meio do caminho” (“ou apenas um rastro, não importa”)
em sua vida, talvez a maior de todas
196
. A dificuldade inicial diante da pedra torna-se
196
Em Claro enigma, no poema “Legado”, Carlos Drummond de Andrade dá a entender ser essa a única
idéia que realmente deixaria, em sua obra: “Que lembrança darei ao país que me deu /tudo que lembro e sei,
tudo quanto senti?/Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu /minha incerta medalha, e a meu nome se ri.
94
fugidio na memória do poeta que varreu os anos e descobriu formas para contornar o
estorvo mineral
197
. “Ser explosivo, sem fronteiras”, “poeta do finito e da matéria, cantor
sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas, boca tão seca, mas ardor tão casto”, o eu lírico
drummondiano vai definindo que não é apenas a tal “pedra” que o prende à terra, ao
mundo, mas também “peixes circulando sob o navio que leva esta mensagem,/ e aves de
bico longo conferindo/ sua derrota, e dois ou três faróis, últimos! esperança do mar negro”.
A vida, portanto, no mar, no ar, na terra. Os temas “mínimos” e “grandes”. E seu “canto”
torna-se, aí, repleto de utilidade, apesar das dificuldades do fazer poético, já que “Está na
mesa/ aberta em livros, cartas e remédios/ Na parede infiltrou-se./ O bonde, a rua,/ o
uniforme de colégio se transformam,/ são ondas de carinho te envolvendo”. Por isso,
Drummond entende que sua arte, apesar das adversidades, cresce “como fogo, como casa,/
como orvalho entre dedos,/ na grama, que repousam” até chegar ao limite de atravessar o
povo, seu objetivo numa época em que aprendeu a sair de sua clausura individualista e
agir. “Consideração do poema”, portanto, realiza o que em “O lutador” era apenas desejo:
o domínio da técnica, o domar das palavras, o transformá-las em objeto útil, em poesia
com função social
198
. Trata-se de uma metalinguagem lírica do próprio poeta, um
itinerário. A poesia é o tema dos versos acima transcritos, mas é o poeta o protagonista
dessa história. É ele que importa.
Senhor de técnicas, além de ser um “maker, um inventor”, como definiu Haroldo de
Campos
199
, Drummond contaria definitivamente os segredos que havia aprendido em “A
procura da poesia”, que, não por acaso, seguiria “Consideração do poema”, em A rosa do
povo:
// E mereço esperar mais do que os outros, eu? / Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti. / Esses
monstros atuais, não os cativa Orfeu, / a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.// Não deixarei de mim nenhum
canto radioso,/ uma voz matinal palpitando na bruma/ e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.//
De tudo quanto foi meu passo caprichoso / na vida, restará, pois o resto se esfuma,/ uma pedra que havia em
meio do caminho.”
197
Davi Arrigucci Jr. concluiu que os obstáculos no caminho do eu lírico drummondiano nunca fizeram com
que ele se tornasse incomunicável: “comunicou sempre sua incomunicação”. (ARRIGUCCI JR. 2002. p. 20).
198
Luiz Costa Lima afirmou que esse poema “oferece, retrospectivamente, ao modernismo o manifesto
prático de que ele carecera. (LIMA. 1989. p. 299)
199
“Drummond é antes de mais nada um ‘maker’, um ‘inventor’ (nele ‘tudo é palavra’, já observou Décio
Pignatari), e, por isso mesmo, há nele essa capacidade rara de transferir mesmo as efemérides mais íntimas
para o horizonte do fazer, de celebrá-las então não em ‘festa’, mas em criação, na ‘luta corpo-a-corpo com a
95
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
palavra’, que deve ser, aliás, em poetas como ele, o secreto exercício para a perene juventude do espírito”.
(CAMPOS. 1970. p. 39.)
96
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
O poema é dividido em duas partes. Na primeira, o eu lírico discorre sobre o que
não é poesia. Essa parte inicial é marcada pela negação: “Não faças versos sobre
acontecimentos”, “Não faças poesia com o corpo”, “Não me reveles teus sentimentos”,
“Não cantes tua cidade”, “Não dramatizes, não invoques,/ não indagues. Não percas tempo
em mentir/ Não te aborreças”, “Não recomponhas/ tua sepultada e merencória infância/
Não osciles entre o espelho e a/ memória em dissipação”. Curiosamente, muitos desses
supostos erros seriam cometidos pelo próprio Drummond ao longo de sua obra. Mais: até
mesmo no próprio livro onde está essa arte poética. O que o poeta quer dizer, no entanto, é
que poesia não é canto inútil ao sentimentalismo, às paixões, a uma cidade. É bem mais
que isso. É saber lidar com as palavras
200
.
200
Drummond retomaria esse tema em “Conclusão”’, de Fazendeiro do ar: “Os impactos de amor não são
poesia/ (tentaram ser: aspiração noturna)./ A memória infantil e o outono pobre/ vazam no verso de nossa
urna diurna.// Que é poesia, o belo? Não é poesia,/ e o que não é poesia não tem fala./ Nem o mistério em si
nem velhos nomes/ poesia são: coxa, fúria, cabala.// Então, desanimamos. Adeus, tudo!/ A mala pronta, o
corpo desprendido,/ resta a alegria de estar só, e mudo.// De que se formam nossos poemas? Onde?/ que
sonho envenenado lhes responde,/ se o poeta é um ressentido, e o mais são nuvens?”.
97
É exatamente isso que explica na segunda parte de “A procura da poesia”. O eu
lírico indica o caminho para obter a poesia através de sua matéria-prima, a palavra. Só
pode fazer isso alguém que já passou por esse caminho e já cometeu os erros que aponta.
Ou seja: Drummond faz, em “A procura da poesia”, o seu mais didático metapoema. Ao
seu estilo, já que suas ordens (“penetra”, “convive”, “aceita”, “chega” e “repara”)
funcionam como indicação para que a poesia seja contemplada em seu mundo. Apenas
“penetrar” invoca alguma violência, através da violação entre mundos distintos o mundo
real e o mundo das palavras. Mesmo assim, vem acrescentado do adjunto adverbial
“surdamente”. Sem alarde, uma invasão de gatuno. Os outros verbos convidam à
paciência e à contemplação. Pedem que se aprenda com as palavras em busca da poesia.
Não instigam a uma usurpação das mesmas. No mundo das palavras, elas estariam em
“estado de dicionário”, esperando sua transformação em poemas. “Espera que cada um se
realize e consume/com seu poder de palavra/e seu poder de silêncio”, diz o poeta. Sobre
isso, João Alexandre Barbosa escreveu:
Entre este dizer, que a linguagem inclui antes de ser tratada pelo poeta, e
o dizer que resulta de uma reconsideração operada sobre o primeiro, o
poema realiza-se como possibilidade de instauração do que ficou por
dizer.
201
[Grifos do autor.]
Para esse crítico, o silêncio do que “ficou por dizer” chega a ser mais intenso, nas
poéticas modernas, do que o que o poeta quis dizer, pois
É no prolongamento daquilo que restou para além da comunicação que o
poema moderno encontra o seu alimento. Perigoso alimento! Os seus
limites estão dados, por um lado, pela comunicação e, por outro, pelo
silêncio.
202
E continuou:
O poeta, por isso, escolhe caminhos: ou ele diz acerca do silêncio, que é
o seu demônio, e se arrisca à borda do hermetismo, ou ele comunica uma
201
BARBOSA. 1974. p. 108.
202
Idem. Ibidem. p. 108.
98
experiência que jamais é aquela existente antes de sua realização
verbal.
203
Mesmo assim, trafegando no perigoso jogo de silêncios e palavras comunicadas, o
poeta precisa sempre tomar cuidado ao saber seu poema, “como ele aceitará sua forma
definitiva e concentrada no espaço”.
Esse trabalho de lidar com as palavras, não pode, entretanto, ser feito por qualquer
um, deixa claro o poeta itabirano, ao se referir à pergunta principal que as palavras farão a
quem ousar entrar em seu reino: “Trouxeste a chave?”. Mesmo “indevassáveis”, as
palavras esperam virar poesia, e o poeta é o caminho para isso, seja numa visão de
“alumbramento”, como em Bandeira, seja no cortejo erótico-combativo drummondiano.
Mas ainda em A rosa do povo, apesar do clima angustiante, que se percebe,
sobretudo, em “Áporo” e “A flor e a náusea”, o poeta enxerga saída para a inutilidade
poética e seu horizonte sem fim. Nem que seja sobre a forma de um eu lírico insistente,
que não desiste do jogo de sedução e luta que é o lidar com as palavras. É o que se pode
ver em “O elefante”:
Fabrico um elefante
de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
tirado a velhos móveis
talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão,
de paina, de doçura.
A cola vai fixar
suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
é a parte mais feliz
de sua arquitetura.
Mas há também as presas,
dessa matéria pura
que não sei figurar.
Tão alva essa riqueza
a espojar-se nos circos
203
Idem. Ibidem. p. 108.
99
sem perda ou corrupção.
E há por fim os olhos,
onde se deposita
a parte do elefante
mais fluida e permanente,
alheia a toda fraude.
Eis o meu pobre elefante
pronto para sair
à procura de amigos
num mundo enfastiado
que já não crê nos bichos
e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
e frágil, que se abana
e move lentamente
a pele costurada
onde há flores de pano
e nuvens, alusões
a um mundo mais poético
onde o amor reagrupa
as formas naturais.
Vai o meu elefante
pela rua povoada,
mas não o querem ver
nem mesmo para rir
da cauda que ameaça
deixá-lo ir sozinho.
É todo graça, embora
as pernas não ajudem
e seu ventre balofo
se arrisque a desabar
ao mais leve empurrão.
Mostra com elegância
sua mínima vida,
e não há na cidade
alma que se disponha
a recolher em si
desse corpo sensível
a fugitiva imagem,
o passo desastrado
mas faminto e tocante.
Mas faminto de seres
e situações patéticas,
100
de encontros ao luar
no mais profundo oceano,
sob a raiz das árvores
ou no seio das conchas,
de luzes que não cegam
e brilham através
dos troncos mais espessos.
Esse passo que vai
sem esmagar as plantas
no campo de batalha,
à procura de sítios,
segredos, episódios
não contados em livro,
de que apenas o vento,
as folhas, a formiga
reconhecem o talhe,
mas que os homens ignoram,
pois só ousam mostrar-se
sob a paz das cortinas
à pálpebra cerrada.
E já tarde da noite
volta meu elefante,
mas volta fatigado,
as patas vacilantes
se desmancham no pó.
Ele não encontrou
o de que carecia,
o de que carecemos,
eu e meu elefante,
em que amo disfarçar-me.
Exausto de pesquisa,
caiu-lhe o vasto engenho
como simples papel.
A cola se dissolve
e todo o seu conteúdo
de perdão, de carícia,
de pluma, de algodão,
jorra sobre o tapete,
qual mito desmontado.
Amanhã recomeço.
Exercício lúdico ou metalinguagem, “O elefante” é um dos mais enigmáticos
poemas drummondianos. Ele também pode ser dividido em duas partes. A primeira é quase
todo o poema, no qual é relatado a feitura do elefante (a poesia) e seu passeio diário pela
101
cidade. A segunda parte seria apenas o verso final, que demonstra um poeta
insistentemente consciente das dificuldades poéticas, mas com alguma esperança de que
num outro dia a situação possa ser modificada. A primeira parte, por sinal, pode ser ainda
subdividida em outras duas, já que começa com o eu lírico explicitando sua própria
dificuldade no engenho estético do elefante/poema. Bem ao estilo de Manuel Bandeira, que
se considerava um “poeta menor”, Carlos Drummond de Andrade faz, logo no início um
jogo de humildade, ao admitir suas qualidade limitadas (“Fabrico um elefante/ de meus
poucos recursos”). Em seguida, metaforiza o ato de escrever no fazer artesanal do elefante
e mais uma vez deixa claro não se considerar digno desse empreendimento, ao não
conseguir moldar corretamente uma parte do animal, “as presas,/ dessa matéria pura” que
ele não sabe “figurar”, referindo-se ao marfim dos elefantes, material considerado dos mais
nobres, ainda hoje que pode remeter, entre outras coisas, à ourivesaria bilaquiana. E há
também os olhos do bicho, que, para o poeta, é onde está “a parte fluida e permanente,/
alheia a toda fraude”. Ou seja: onde o próprio eu lírico se coloca para o mundo.
Na segunda subparte, a do passeio, há um clima negativo, na medida em que o
gigantesco animal desajeitado vai, em sua busca pela vida, sendo ignorado ou rejeitado
pelos homens nas ruas, apesar de ser ele uma espécie de salvação àquilo tudo, por remeter
“a um mundo mais poético/ onde o amor reagrupa/ as formas naturais”. Sua graciosidade é
cantada, apesar das críticas do eu lírico aos seus defeitos mais aparentes, as pernas que não
ajudam, o “ventre balofo”, as “patas vacilantes” (outro sinal de uma possível tentativa de
parecer humilde). Então, o bicho retorna ao ponto de partida e se desmancha após não
encontrar o que queria, a atenção dos homens. É nesse ponto que Drummond revela ser ele
mesmo o elefante (“eu e meu elefante/em que amo disfarçar-me”), ou sua poesia, o que, no
final, dá no mesmo. Apesar de o artefato feito pelo poeta desintegrar-se, há a parte final, na
qual se revela menos a certeza do eu lírico e mais sua consciência de que tudo deve ser
tentado novamente, mesmo que termine do mesmo jeito: “Amanhã recomeço”. “O
elefante” nada mais é que uma outra maneira de dizer o que já havia sido dito em “O
lutador” e “A procura da poesia”. Só que, ao contrário dos dois anteriores, no qual as
palavras foram posicionadas como protagonistas, nesse texto é o poeta que vai às ruas, com
seu poema e suas verdades poéticas, incompreendidas, mas insistentes na tentativa de achar
um caminho para o mundo. Esses três poemas citados, por sinal, encaixam-se
102
perfeitamente. O dia começa, a luta começa. O dia termina, a luta termina, pelo menos até
um novo amanhecer, onde tudo “recomeça” (ou invade o mundo dos sonhos, como em “O
lutador”). Aliás, a própria cidade pela qual o elefante percorre pode ser o “reino das
palavras” de “A procura da poesia” ou o sonho de “O lutador”. Ou uma extensão desses
dois domínios nos quais a palavra poética reina. Nesses poemas há a mesma dificuldade do
fazer poético e a busca por ele, empreendida pelo poeta, sujeito aos erros apontados em “A
procura da poesia” e ao desprezo das palavras ( e do povo, já atravessado pelo poema) de
“O lutador “ e “O elefante” .
Esse é o clima de A rosa do povo, no qual a esperança é apenas um detalhe. Sem
certeza de que as coisas possam melhorar, há a crença do poeta de que, pelo menos, a
realidade pode ser enxergada de outra forma. É o que tenta dizer o hermetismo de
“Áporo”:
Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?
Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:
em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.
De origem grega, áporo é dicionarizado como sendo um termo da matemática e
significa algo difícil, sem passagem. Também é uma planta esverdeada, da família das
orquídeas, que cresce solitária, e um inseto da família dos cavadores (himenópteros). Para
Gilberto Mendonça Teles, o poema apresenta, estruturalmente, essas três significações. Na
primeira estrofe, por exemplo,
103
[...] através de um expressivo jogo fonológico (/k/, /v/, /l/ e /s/) com base
no fonema /a/, se delimita o terceiro significado, o de “inseto cavador”.
Daí a repetição do verbo “cava / cava” em enjambement, expressando as
várias tentativas de fuga. Ademais, três significados se juntam sob um
mesmo significante: cava-verbo “cavar”. Substantivo “cava” (fosso); e
adjetivo feminino ‘cava’ (rouco, cavernoso). São três áreas de percepção
que se ligam por contigüidade e que se aplicam na mesma estrofe através
de expressões como sem alarme (cavernoso), perfurado (cavando) e
sem achar escape (Fosso, fossa. Cf. a expressão popular “estar na
fossa”). Na segunda estrofe já se começam a perceber os três sentidos de
áporo: “país bloqueado” se refere a problema e traduz idéia de espaço-
tempo em que a noite (o difícil), a raiz (a orquídea que se vai formando)
e o minério (o inseto fossilizado) aparecem “enlaçados”.
204
[Destaques
do autor.]
E concluiu:
Tal como no mito de Teseu
205
, o poeta mostra como a inteligência
resolve o problema do labirinto, desatando também um fio: o da
metamorfose. No último terceto, o inseto bicolor (inseto-raiz) consegue
escapar-se transformando-se na orquídea solitária (sozinha) e
esverdinhada (verde) que, contra todas as leis do equilíbrio, como um
absurdo (antieuclidiana), pende de uma árvore, proparoxitonamente (a
próclise do último verso).
206
[Destaques do autor.]
“Áporo” é, portanto, um intelectualizado resumo da poética drummondiana até
então: a poesia (e o poeta) tentando achar um objetivo (escape), culminando numa frágil (e
solitária) esperança, figurada na orquídea que se forma no solo duro ou no inseto que
consegue perfurar o solo labiríntico, achando a solução para a equação de seu destino. Ao
sair da terra (problema), mineral como a pedra drummondiana sempre presente, faz-se a
vida na forma de inseto/planta/solução, que permite o eterno recomeço de luta. Luiz Costa
Lima, porém, enxergou na própria escavação e não na busca por escapar do
labirinto/problema o sentido do poema.
204
TELES. 1994. p. 153.
205
Na mitologia grega, Teseu consegue vencer o Minotauro e, depois, escapar do labirinto onde ele vivia
com o auxílio de um novelo de lã.
206
TELES. 1994. p. 153-154.
104
A escavação do inseto perfura a terra, mas a escava sem
achar escape. E se o labirinto se desata é para que irrompa
a beleza transitória e então absurda da flor. O inseto é ágil
mas cego, assim como a vida se realiza. O que lhe é
interdito é a realização do escavar como elaboração de
uma perspectiva.
207
É outra forma de dizer o verso final de “O elefante”: “Amanhã recomeço”. Apesar
das adversidades, o inseto acha o escape e a flor irrompe. Por isso, o termo
“antieuclidiana”, que diz respeito a Euclides
208
, matemático e geómetra sírio-grego,
supostamente morto no ano 260 A.C.. A imagem do labirinto e sua posterior solução pelo
inseto-orquídea podem dar essa idéia de coisa antieuclidiana, desconexa, absurda.
Também é importante lembrar que a cor verde é geralmente apontada, pela cultura popular,
como sendo um signo da esperança. Décio Pignatari vê ainda no verso “presto se desata”
uma possível alusão ao líder comunista Luis Carlos Prestes, que havia sido libertado na
mesma época do texto das prisões da ditadura getulista, da qual o país saia no ano de
1945
209
. Como A rosa do povo é um livro engajado, no sentido de exigir participação
política e social da poesia, algo assim não pode ser descartado, embora o posicionamento
político de Carlos Drummond de Andrade nunca tenha sido algo claro
210
. Aliás, “Áporo”
faz alusão a um outro poema de A Rosa do Povo, “A flor e a náusea”
211
, que, por sinal,
inspirou o título do livro. Esse sim, um poema claramente político/esquerdista, cuja
imagem final, a flor furando o asfalto, é a mesma de “Áporo”. O obstáculo que o
inseto/planta precisa ultrapassar para se fazer existir é uma releitura da “pedra no caminho”
207
LIMA. 1995. p. 170.
208
Euclides, em seu único livro a chegar até nós (vários outros, porém, lhe são atribuídos), Elementos, ordena
a geometria, que até então era um ajuntamento de teses desconexas. Para ele, cada teorema era explicável
pelo teorema anterior.
209
PIGNATARI. 1971. p. 131-137. Pignatari também usa a expressão, bastante persistente, “inseto-soneto”,
para se referir ao poema.
210
Chegou a se aproximar do Partido Comunista Brasileiro, participando de jornais ligados à sigla, mas não
foi algo duradouro. A burocracia partidária logo cansou o poeta itabirano, que, no entanto, sempre se
consideraria de esquerda.
211
“... Uma flor nasceu na rua!/Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego./Uma flor ainda
desbotada/ilude a polícia, rompe o asfalto./Façam completo silêncio, paralisem os negócios,/garanto que uma
flor nasceu.//Sua cor não se percebe./Suas pétalas não se abrem./Seu nome não está nos livros./É feia. Mas é
realmente uma flor.//Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde/e lentamente passo a mão
nessa forma insegura./Do lado das montanhas, nuvens macias avolumam-se./Pequenos pontos brancos
movem-se no mar, galinhas em pânico./É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”
[Trecho.]
105
do início da obra drummondiana, tema recorrente, portanto, de seu aprendizado poético e
de sua maneira de, através dos versos, enxergar a vida. Pensando com Dall’Alba, esse tema
seria o seu jeito de “reordenar o caos”, por isso a repetição quase clerical do assunto,
embora muitas vezes apareça com outras faces.
A propósito, convém afirmar que a estrutura da poética drummondiana se
assemelha em muito com a litania clerical no que concerne à repetição
, onde uma voz entoa, monodicamente uma longa e repetida reza. O
canto do poeta se refaz a cada poema monodicamente, construindo-se o
enigma ao mesmo tempo que se procura a sua desconstrução. Cada
poema reinventa o anterior e é pelo seguinte reinventado; ainda que o
poema não se repita, o movimento que o encerra é o mesmo. O
movimento é então de recriar, poema após poema, em um incansável
ressurgimento de formas e de questões que formulam o enigma da
construção.
212
Para esse autor, com esse reinventar constante, Drummond faz um “acordo entre a
obra e a vida, entre o poema e o enigma, entre o homem e o poeta”
213
. De acordo com
Dall’Alba a pedra é “um dos nomes do enigma” drummondiano, “... ela só, responsável
por um outro caminho autotextual de constante autoreferencialidade”
214
. Já segundo
Álvaro Lins, Drummond consegue ser político, sem que para isso tenha de ser panfletário,
pois não abandona os problemas estéticos de uma obra de arte. Tensão que ele acredita ser
o “drama” da poesia drummondiana. Para isso, o poeta une
[...] uma inspiração em pensamento, idéias e sentimentos
revolucionária, contendo por isso uma substância em parte popular, ao
lado de uma forma difícil e não disposta a concessões, um estilo
aristocrático e por isso inacessível ao grande público.
215
Para Lins, isso se resolve devido “a sua vigilância com uma lucidez implacável”
216
.
212
DALL’ALBA. 1998. p 20.
213
Idem. Ibidem. 20.
214
Idem. Ibidem. p. 41.
215
LINS. 2003. p. XLVIII. O dito “estilo aristocrático” de Drummond é contestável, pois foi esse um dos
autores brasileiros que mais trouxeram uma certa simplicidade para a poesia brasileira, mesmo se se levar em
conta a complexidade de alguns de seus poemas.
216
Idem. Ibidem. p. XLVII. [Nota deste estudo: exageros à parte, Drummond raramente é hermético, mas é
verdade que, até aquele momento (a publicação de A Rosa do Povo), e também em alguns livros posteriores,
106
Depois de A rosa do povo, a poética drummondiana, seu revelar-se através de
metapoemas, passaria a, sobretudo, reafirmar o que já havia sido dito
217
. Não que o tema
deixasse de existir. Muito pelo contrário: a poesia continuaria sendo assunto de seus
poemas, mesmo quando isso não é algo explicitado pelo texto. No entanto, alguns
metapoemas dão um novo sentido ao ato de fazer poesia, igualando-se em espírito à nova
fase pela qual passa o poeta, a partir de então, considerada metafísica. Um exemplo disso é
“Canção amiga”, de Novos poemas, livro de 1948:
Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.
Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.
Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.
Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.
Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.
Mais que um exercício lúdico, “Canção amiga” é uma antologia drummondiana.
Para começar, o verbo usado, “preparar” já traz em si implicitamente a ação de realizar,
o poeta ainda não havia mergulhado no prosaísmo mais simples, que pode ser verificado em seus últimos
livros.]
217
Na verdade, Drummond publicaria ainda livros significativos como Claro enigma e Lição de coisas, e
outros bons poemas espalhados pela obra, até o fim da vida (e postumamente, como na poesia erótica de
Amor natural, publicado em 1992, cinco anos após sua morte), mas passaria a apresentar mais a “esquisita
irregularidade” apontada por Luiz Costa Lima. (LIMA. 1981. p. 167.) Já para Davi Arrigucci Jr, há, em toda
a obra do mineiro, “traços de coerência profunda” e que a “fidelidade a si mesmo é um traço fundamental de
Drummond”. (ARRIGUCCI JR. 2002. p. 15-21.)
107
inventar algo. Ou seja, é o poeta que, depois de entrar no “reino das palavras”, seduzi-las e
aceitar os seus caprichos, faz conscientemente um novo poema, e já com finalidades
específicas (“uma canção/ em que minha mãe se reconheça,/ todas as mães se
reconheçam,/ e que fale como dois olhos”). Esse primeiro verso vai do particular (“minha
mãe se reconheça”) ao coletivo (“todas as mães se reconheçam”), o que mostra que
Drummond ainda não havia dado por encerrado na verdade, nunca daria sua ação
participativa no mundo, apesar da mudança de humor em relação a ele: sai a ironia seca e a
vontade de participação explícita; entra um ar mais contemplativo, embora ainda crítico.
Além disso, o último verso da primeira estrofe lembra a feitura poética de “O elefante”,
pois lá também há uma atenção especial aos olhos (nada mais natural em um poeta que
muitas vezes se apresenta como um observador). Em “Canção amiga”: “que fale como
dois olhos”. Em “O elefante”: “E há por fim os olhos,/ onde se deposita/ a parte do
elefante/ mais fluida e permanente,/ alheia a toda fraude”. Na segunda estrofe, a
comparação é com “América”, de A rosa do povo. No meio desse poema, o autor diz:
[...]
Uma rua começa em Itabira, que vai dar no meu coração.
Nessa rua passam meus pais, meus tios, a preta que me criou.
Passa também um escola o mapa , o mundo de todas as cores.
[...]
Em se tratando de um coração “mais vasto que o mundo”, nada melhor que
comparar com o trecho de “Canção amiga”: “Caminho por uma rua/ que passa em muitos
países./ Se não me vêem, eu vejo/ e saúdo velhos amigos”. Essa rua, por sinal, que pode
levar ao “País dos Andrades”
218
, onde repousa a memória drummondiana, pensando com
Teles e seu “deslocamento geográfico” para Minas Gerais, pode ser também a mesma
estrada mineira na qual se apresentou ao poeta a “Máquina do mundo”
219
, cujos segredos e
218
Poema de A Rosa do Povo: “No país dos Andrades, secreto latifúndio,/a tudo pergunto e invoco; mas o/
escuro soprou; e ninguém me secunda./Adeus, vermelho/(viajarei) cobertor de meu pai”. (trecho).
219
De Claro Enigma: “E como eu palmilhasse vagamente/uma estrada de Minas,/pedregosa,/e no fecho da
tarde um sino rouco /se misturasse ao som de meus sapatos/ que era pausado e seco; e aves pairassem/no céu
de chumbo, e suas formas pretas/lentamente se fossem diluindo/na escuridão maior, vinda dos montes/ de
meu próprio ser desenganado,// a máquina do mundo se entreabriu/para quem de a romper já se esquivava/e
só de o ter pensado se carpia.// Abriu-se majestosa e circunspecta,/sem emitir um som que fosse impuro/nem
um clarão maior que o tolerável //pelas pupilas gastas na inspeção/contínua e dolorosa do deserto,/e pela
mente exausta de mentar// toda uma realidade que transcende/a própria imagem sua debuxada/no rosto do
108
ensinamentos foram por ele renegados, pelo cansaço da vida e pela desconfiança inerente
ao gauche. Por fim, após afirmar que aprendera “novas palavras” e tornara “outras mais
belas” (o aprendizado poético), Drummond volta a usar o tema de dia/noite, tal qual em “O
lutador” e “O elefante”: “Eu preparo uma canção/ que faça acordar os homens/ e
adormecer as crianças”. Homens que devem ser despertados para entender o seu
tempo/mundo (o que mostra que Drummond não abandonara sua postura política).
Crianças que devem dormir para sonhar com um tempo melhor ou ideal, como em
“Lembrança do mundo antigo”
220
, de Sentimento do mundo.
Do ponto de vista formal, Drummond passa a privilegiar, nessa fase, a Tradição e
suas técnicas, rendendo-se, talvez, ao marfim das presas do elefante, que lhe eram tão caras
na fabricação poética. O poeta passa a dar preferências às formas fixas e metrificadas,
como o soneto. Não que antes esses recursos não estivessem presentes em sua obra. Mas
mistério, nos abismos.// Abriu-se em calma pura, e convidando/quantos sentidos e intuições restavam/a quem
de os ter usado os já perdera// e nem desejaria recobrá-los,/se em vão e para sempre repetimos/os mesmos
sem roteiro tristes périplos, //convidando-os a todos, em coorte,/a se aplicarem sobre o pasto inédito/da
natureza mítica das coisas,// assim me disse, embora voz alguma/ou sopro ou eco ou simples
percussão/atestasse que alguém, sobre a montanha,// a outro alguém, noturno e miserável,/em colóquio se
estava dirigindo:/’O que procuraste em ti ou fora de// teu ser restrito e nunca se mostrou,/ /mesmo afetando
dar-se ou se rendendo,/e a cada instante mais se retraindo,// olha, repara, ausculta: essa riqueza/sobrante a
toda pérola, essa ciência/sublime e formidável, mas hermética,// essa total explicação da vida,/esse nexo
primeiro e singular,/que nem concebes mais, pois tão esquivo// se revelou ante a pesquisa ardente/em que te
consumiste... vê, contempla,/abre teu peito para agasalhá-lo.’// As mais soberbas pontes e edifícios,/o que nas
oficinas se elabora,/o que pensado foi e logo atinge// distância superior ao pensamento,/os recursos da terra
dominados,/e as paixões e os impulsos e os tormentos// e tudo que define o ser terrestre/ou se prolonga até
nos animais/e chega às plantas para se embeber// no sono rancoroso dos minérios,/dá volta ao mundo e torna
a se engolfar,/na estranha ordem geométrica de tudo,// e o absurdo original e seus enigmas,/suas verdades
altas mais que todos/monumentos erguidos à verdade:// e a memória dos deuses, e o solene/sentimento de
morte, que floresce/no caule da existência mais gloriosa,// tudo se apresentou nesse relance/e me chamou
para seu reino augusto,/afinal submetido à vista humana.// Mas, como eu relutasse em responder/a tal apelo
assim maravilhoso,/pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,// a esperança mais mínima - esse anelo/de ver
desvanecida a treva espessa/que entre os raios do sol inda se filtra;// como defuntas crenças
convocadas/presto e fremente não se produzissem/a de novo tingir a neutra face// que vou pelos caminhos
demonstrando,/e como se outro ser, não mais aquele/habitante de mim há tantos anos,// passasse a comandar
minha vontade/que, já de si volúvel, se cerrava// semelhante a essas flores reticentes// em si mesmas abertas e
fechadas;/como se um dom tardio já não fora/apetecível, antes despiciendo,// baixei os olhos, incurioso,
lasso,/desdenhando colher a coisa oferta/que se abria gratuita a meu engenho.// A treva mais estrita já
pousara/sobre a estrada de Minas, pedregosa,/e a máquina do mundo, repelida,// se foi miudamente
recompondo,/enquanto eu, avaliando o que perdera,/seguia vagaroso, de mãos pensas.”
220
“Clara passeava no jardim com as crianças./O céu era verde sobre o gramado,/a água era dourada sob as
pontes,/outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,/o guarda civil sorria, passavam bicicletas,/a menina
pisou a relva para pegar um pássaro,/o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranqüilo em redor de
Clara.// As crianças olhavam para o céu: não era proibido./A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não
havia perigo./Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos./Clara tinha medo de perder o
bonde das onze horas,/esperava cartas que custavam a chegar,/nem sempre podia usar vestido novo. Mas
passeava no jardim, pela manhã!!!/havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!”
109
depois de A rosa do povo, sobretudo a partir de Claro enigma, o poeta mineiro, pode-se
dizer, passa a exercitar mais seriamente esse estilo de poema, trabalhando os metros
corretamente, não apenas fazendo versos livres em forma de sonetos. Haroldo de Campos
enxergou, nessa fase, um poeta em conflito, o que teria provocado essa “pausa”, segundo
ele, na inventividade drummondiana. Isso seria
[...] compreensível numa quadra em que, sociologicamente, o País
entrava em compasso de espera e, esteticamente, nossa poesia andava
atacada da nostalgia da “restauração”; em que o modernismo era dado
como um ciclo encerrado e “modernista” passava a ser uma
caracterização depreciativa.
221
Campos viu apenas em Lição de coisas
222
, de 1962, uma retomada do espírito
“inventor” em Drummond.
[...] a consideração do poema como objeto de palavras, a resolução
última de tudo – emoção, paisagem, ser, revolta – na suprema instância
da coisa-palavra. Aqui, o poema se abre a todas as pesquisas que
constituem o inventário da nova poesia: ei-lo incorporando o visual,
fragmentando a sintaxe, montando ou desarticulando os vocábulos,
praticando a linguagem reduzida.
223
221
CAMPOS. 1970. p. 41.
222
Sobre esse livro, o também concretista Décio Pignatari disse: “... tem muito de desafio, ou de proposta de
desafio da poesia concreta de quatro anos antes, a ponto de sentir-se obrigado a declarar no prefácio que os
procedimentos experimentais de vários poemas constantes no livro brotam de sua obra anterior (trata-se, é
verdade, de um estranho prefácio/nota editorial não assinados): ‘Pratica, mais do que antes, a violação e a
desintegração da palavra, sem entretanto aderir a qualquer receita poética vigente’. Como se um percurso
poético individual, como seu, não fosse igualmente capaz de gerar ‘receitas’ auto-adesivas... Mas quem sabe
isso não importa, se tamanha vaidade foi capaz de produzir ‘Isso é aquilo’, um poema que Borges ou Paz
não poderiam produzir” (PIGNATARI. 1995. p. 70). [Nota deste estudo: Não há provas de que tenha sido
Drummond o autor do prefácio de Lição de coisas, embora, certamente, ele tenha concordado com sua
publicação. Na verdade, o poeta mineiro via com desconfiança o Concretismo, apesar de ter sim assimilado
alguns de seus modelos e métodos, desde o livro A vida passada a limpo, de 1958, mas que apareceu apenas
no ano seguinte, na reunião Poemas.] Campos, em Metalinguagem, também citou “Isso é aquilo”, poema
emblemático que trabalha com esdrúxulas aproximações semânticas. Também sobre Lição de coisas,
Emanuel de Moraes viu um reencontro de Drummond com “a sua grande linha de criação poética”. Para ele,
havia novamente aí a figura do “poeta maior”, “universal, que transpõe os limites do lirismo propriamente
dito para se lançar em busca de caminhos só percorridos pelos que dispõem de força verdadeiramente épica”.
(MORAES. 1978. p. 117.)
223
CAMPOS. 1970. 42.
110
Antônio Houaiss, por sua vez, comentou que essa fase pós-Rosa do povo não é
meramente classicizante, mas sim definidora de uma nova forma de enxergar socialmente,
o que ele considerou também ser uma “tomada de posição”.
[...] o poeta será mais do que nunca poeta, mas não homem de
participação pública: o escritor participa do mundo como antena
premonitória para que todo o mundo se o quisesse tomasse
conhecimento de como ia o mundo.
224
Nessa mesma direção, João Alexandre Barbosa considerou que a metafísica
drummondiana não é só filosófica, como costumam lhe atribuir. Escreveu o crítico:
Trata-se, antes, de uma poesia que inventa modos de investigação da
realidade, intensificando os valores sensíveis, emotivos, afetivos e
intelectuais, incorporando estímulos psicológicos, históricos e sociais,
que passam ao leitor por entre as frestas da construção poética.
225
Já Costa Lima apontou para a mudança na linguagem do poeta:
Do ponto de vista da linguagem, este agora será o poeta da dicção
elevada, de versos isossilábicos, da composição de sonetos e elegias. Do
antigo modo irônico, permanece apenas o gesto grave da compostura.
Trata-se agora menos de uma poesia sobre fatos e cenas Claro enigma
trazia como epígrafe a sintomática frase de Valéry “Les événements
m’ennuient” do que de cunho meditativo. Se as coisas são vistas ou
lembradas é para delas se dizer que formam um círculo vazio, pelo
mundo convertido em cela (“A Ingaia Ciência”). Onde antes os restos se
combinavam para atualizar a dialética da corrosão, agora domina a busca
de vê-los sob a absoluta distância; por assim dizer, sob o prisma do além
da matéria.
226
Para ele, “é o ato mesmo de compor, não o compor em nome disso ou daquilo,
aquele que agora o orienta e o mantém interessado na poesia”
227
. Nessa nova forma mais
clássica drummondiana, e com esse último enfoque dado por Costa Lima, apareceriam
ainda outros quatro metapoemas em forma de soneto, bem ao estilo do poeta e ainda
224
HOUAISS. 1981. p. 35.
225
BARBOSA. 2002. p. 48.
226
LIMA. 1989. p. 303.
111
girando em torno de suas idéias iniciais de luta com as palavras e dificuldades no jogo de
sedução (tudo sob o olhar gauche sentenciado pelo “anjo mau”): “Remissão” e “Oficina
irritada”, de Claro enigma, e “Conclusão” e “Brinde no banquete das musas”, de
Fazendeiro do ar (1954).
“Oficina irritada” relembra o clima dos primeiros metapoemas, quando ainda o
poeta não tinha o domínio da técnica e nem a “chave” para penetrar no “reino das
palavras”. O tom volta a ser pessimista em relação à utilidade poética.
Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difícil de ler.
Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser, não ser.
Esse meu verbo antipático e impuro
há de pungir, há de fazer sofrer,
tendão de Vênus sob o pedicuro.
Ninguém o lembrará: tiro no muro,
cão mijando no caos, enquanto Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender.
Mas há nesse texto uma reviravolta nessa inutilidade, já que o poeta,
conscientemente, parece não querer se importar com o destino de seus poemas e sua
influência no mundo: o que conta é o fazer poético em si, além da certeza de que esses
versos serão “duros”, “antipáticos” e “impuros”, vistos aqui menos como herméticos e
mais como provocadores de reações sinceras. Ressalte-se também a ironia, bem ao modo
dos primeiros livros, no verso “tendão de Vênus sob o pedicuro” (parodiando o mito grego
de Aquiles e seu ponto fraco, transferindo-o para a deusa da beleza), exemplo utilizado por
Drummond para demonstrar o quanto queria que seu soneto incomodasse quem o lesse,
embora seu destino fosse o esquecimento ou abstração, como um “cão mijando no caos”,
227
Idem. Ibidem. p. 304.
112
mesmo que uma estrela (Arcturo
228
), com seu “claro enigma” se surpreendesse com “seu
maligno ar imaturo”.
A mesma atmosfera sombria encontra-se em “Remissão”:
Tua memória, pasto de poesia,
tua poesia, pasto dos vulgares,
vão se engastando numa coisa fria
a que tu chamas: vida, e seus pesares.
Mas, pesares de quê? perguntaria,
se esse travo de angústia nos cantares,
se o que dorme na base da elegia
vai correndo e secando pelos ares,
e nada resta, mesmo, do que escreves
e te forçou ao exílio das palavras,
senão contentamento de escrever,
enquanto o tempo, em suas formas breves
ou longas, que sutil interpretavas,
se evapora no fundo de teu ser?
O poeta torna-se a soma de sua memória, o inventário de lutas com as palavras, de
galanteios às mesmas, de invasões aos seus domínios. Já não há o peso de ter de participar,
pois a vida (“sem mistificação) já é por si só participação. Do ato de escrever, resta só o
gosto por escrever: “E nada resta, mesmo, do que escreves/e te forçou ao exílio das
palavras,/senão contentamento de escrever”. O poeta vai seguindo seu rumo velhice,
morte, aceitação da vida e entendendo, ao mesmo tempo, que escrever faz parte da vida.
Que o mundo das palavras estava ali, ao lado, tanto no alto, com Arcturo, quanto na
“cidadezinha qualquer”
229
, onde a “vida é besta”. E a entrega às palavras é uma espécie de
228
Na mitologia grega, Arcturo teria sido colocado no firmamento por Zeus, para proteger a constelação da
Ursa Maior, na verdade a bela ninfa Calisto, com quem o deus tivera uma relação amorosa. Arcturo, portanto,
seria filho de Calisto com Zeus. Calisto foi transformada em ursa pela deusa Hera, por ciúme. Zeus os
colocou no céu para impedir que Arcturo caçasse a própria mãe, a qual não reconhecera na figura do animal.
Arcturo é uma das mais brilhantes estrelas no céu, daí talvez a adjetivação “claro enigma”, dada pelo poeta.
229
“Cidadezinha Qualquer”, de Alguma Poesia.
113
morte diária, um adormecer para recomeçar, depois, quando o que “é perdido se
salva...”
230
.
3 - Recuo e avanço
O fato, no entanto, é que, descartada a “projeção geográfica” de Teles, que não é
capaz de explicar a transformação da obra drummondiana, fazendo apenas uma
constatação geográfica/temporal da mesma, os outros modelos apresentados neste trabalho
dividem Carlos Drummond de Andrade em tantas fases que fica difícil não tentar reduzir
essas esquematizações, a fim de provocar um entendimento maior de como a poesia do
mineiro se modificou. Na verdade, a poesia de Drummond pode ser dividida em apenas
duas fases, que variam de acordo com a colocação do poeta (não se pode fugir à
importância do individualismo do eu lírico drummondiano) em relação ao
mundo/tempo/estruturas: há um eu lírico recuado e um eu lírico avançado. Mais
importante ainda é afirmar que, apesar de a diferenciação de A rosa do povo na obra de
Drummond ser fundamental, esse estado mais recuado ou avançado pode ser encontrado
em toda a obra do poeta. Em momentos nos quais a voz lírica parecia mais avançada (ou
participante), esteve ao mesmo tempo distante, recuada; em outros, em que o recuo, a
indiferença pareciam gritar, o poeta conseguiu, simultaneamente, participar, nem que seja
como um observador (só se está realmente alheio diante de um fato do qual que se tem
consciência).
A rosa do povo seria, portanto, o momento em que Drummond estaria no centro
desse conflito, entre ser um observador participante ou um participante observador, entre
o “anjo bom” e o “anjo mau”. Mesmo assim, a cantada participação plena deu-se no plano
apenas das possibilidades. O desejo de “dinamitar sozinho a Ilha de Manhatan”
231
foi só
230
Trecho de “Brinde no Banquete das musas”, de Fazendeiro do ar: “Poesia, marulho e náusea,/ poesia,
canção suicida,/ poesia, que recomeças/ de outro mundo, noutra vida // Deixaste-nos mais famintos,/ poesia,
comida estranha,/ se nenhum pão te equivale:/ a mosca deglute a aranha. // Poesia sobre os princípios/ e os
vagos dons do universo:/ em teu regaço incestuoso,/ o belo câncer do verso.// Poesia, sobre o telúrio,/
reintegra a essência do poeta,/ e o que é perdido se salva.../ Poesia, morte secreta.”
231
Verso final de “Elegia 1938”, de Sentimento do mundo.
114
um desejo. A “pedra no meio do caminho” nunca foi ultrapassada. O passeio pela rua com
o elefante-poema demonstrou-se em vão (ninguém o notou), embora houvesse sempre a
certeza de um recomeço a cada manhã. E quando se afastou
232
do mundo, quando se
assumiu como observador, nunca deixou de ser crítico, seja através da ironia
escancaradamente modernista dos primeiros livros ou pela indiferença metafísica da fase
pós-Novos poemas. Há momentos bem específicos em sua obra, como o período
memorialista de Boitempo, fase na qual os dois posicionamentos, o recuado e o avançado,
uniram-se de forma equilibrada (mas não centralizada, como em A rosa do povo). Ao
resgatar sua memória, sua Itabira e Minas Gerais míticas, seus familiares e amigos do
passado, o poeta estava distanciado pelo tempo, como não poderia deixar de ser, mas
participante dessa recriação. O período posterior, em que o acusaram de abusar do
prosaísmo, aproximando-se das crônicas, o poeta também participou
233
, apesar da calma da
velhice, com textos contundentes como o “Eu, etiqueta”
234
, do livro Corpo (1984), por
exemplo. Ou seja: esteve, como analisou Otto Maria Carpeaux, fazendo poesia com
“símbolos da coletividade e símbolos da individualidade”
235
. Há um claro raio conciliador
(ou “ordenador”, como o espírito de Minas que visita o eu lírico, em “Prece de mineiro no
Rio”, de A Vida passada a limpo).
232
Afastamento que, no que diz respeito à metalinguagem praticada pelo autor, não significa completo
alheamento ao mundo, já que, como observou Roberto Sarmento Lima, “desprovida de um referente externo
(o social explícito, por exemplo), a poesia faz do ato literário o seu assunto, artifício pelo qual ainda é
possível dialogar com a sociedade”. (LIMA. 1987. p. 12.)
233
Cláudia Poncioni observou, com propriedade, que o período em que o poeta mais se reservou à atuação
como cronista, com textos escritos para o Correio da Manhã (1954 a 1969) e Jornal do Brasil (1969 a
1984), correspondeu à “fase áurea da crônica no Brasil” . E que essas poesias mais prosaicas “foram escritas
por um Drummond no auge de sua popularidade, da sua capacidade crítica, da criatividade poética”.
(PONCIONI. 2003. p. 136.) Drummond, na verdade, antes disso, já havia escrito crônicas em publicações
mineiras, sobretudo para o Diário de Minas, até 1934, e sempre se declarou jornalista. “Trabalhei na
imprensa durante minha vida toda, com um ligeiro intervalo em que me dediquei só à burocracia do
Ministério da Educação”, como disse ele próprio, em entrevista a Geneton Moraes Neto. (In MORAES
NETO. 1994. 22-23.)
234
“Em minha calça está grudado um nome/ que não é meu de batismo ou de cartório,/ um nome... estranho./
Meu blusão traz lembrete de bebida/ que jamais pus na boca, nesta vida./ Em minha camiseta, a marca de
cigarro/ que não fumo, até hoje não fumei./ Minhas meias falam de produto/ que nunca experimentei/ mas
são comunicados a meus pés./ Meu tênis é proclama colorido/ de alguma coisa não provada/ por este
provador de idade.” [Trecho.]
235
CARPEAUX. 1978. p. 149.
115
Esse clima conciliador e cordial”
236
é que parece ter procurado o último Drummond,
mesmo quando se tratava de sua relação com a própria arte, em seus metapoemas, quando
aconselhou a penetrar “surdamente no reino das palavras”. Apesar de agir e recolher
algumas palavras para seu “sustento”, não houve violência nem pressa, até porque essas
coisas demonstraram ser desnecessárias diante das artimanhas da matéria-prima dos
poemas. Ou seja, houve aí uma participação recuada. Entre o poeta que aceita a palavra
domar-lhe à mão e o que desliza silenciosamente com a chave no reino das palavras há
uma única figura: o gauche, que errado de nascença, tenta contornar a pedra (nem que seja
apenas abstratamente) para errar o mínimo possível na vida.
236
Como o que define Jerônimo Teixeira, em seu estudo sobre a aplicação das idéias de Sérgio Buarque de
Holanda e seu “homem cordial” (conceito presente em Raízes do Brasil, de 1936) na obra drummondiana.
(TEIXEIRA. 2005).
116
Conclusão
Tarefa árdua, como se viu, a de analisar a metalinguagem poética de dois dos
maiores autores brasileiros, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade.
Inicialmente, porque muito da poesia de Drummond bebeu nas conquistas e experiências
poéticas de Manuel Bandeira. Depois, porque, não satisfeitos em seguir a ordem
cronológica das influências a “passagem da tocha” a que se referiu Antonio Candido ,
eles acabaram ignorando a hierarquia literária e passaram a se influenciar mutuamente.
Candido afirmou que essa passagem é peça fundamental do esquema de “sistema literário”
que criou. Ou seja:
[...] um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que
permitem reconhecer as notas dominantes duma fase. Estes
denominadores são, além das características internas (língua, temas,
imagens), certos elementos da natureza social e psíquica, embora
literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da
literatura aspecto orgânico da civilização.
237
No caso, portanto, Drummond teria pegado a tocha de Bandeira. Como, no entanto,
foram contemporâneos e se influenciaram mutuamente (e foram, em certos aspectos,
influenciados pelos mesmos autores, bem como tiveram como formador de opinião, no
início de suas obras, o mesmo Mário de Andrade), o sistema literário entre eles, se um
houver, torna-se mais circular que retilíneo. É nítido que alguma coisa de Bandeira
certamente viu-se em Drummond, já que o pernambucano era um confessado admirador (e
amigo) do itabirano. Há poemas na obra bandeiriana que lembram Drummond em termos
de estilo, já que os tópicos eram, na maioria das vezes, muito pessoais , como “Boi
morto” (Opus 10) e “Preparação para a morte” (Estrela da tarde). Há atmosferas
bandeirianas além daquelas geradas pela leitura da Tradição em versos de Drummond
como em “Cidadezinha qualquer” (Alguma poesia) e como em quase todos os poemas
circunstanciais já na fase mais, diga-se, prosaica do poeta.
237
CANDIDO. 1981. p. 23
117
Além do mais, ambos ajudaram a consolidar as idéias do Modernismo,
ultrapassando-as. Tudo isso a ponto de suas reflexões sobre a poesia terem influenciado de
tal maneira as gerações posteriores, que, excetuando-se as idéias específicas do movimento
concretista (no qual tanto Drummond quanto Bandeira se aventuraram, mais por desafio
intelectual do que por modismos literários), tornaram-se uma tradição. Quando vivos, eles
certamente ouviram críticos os alçando à condição santificada de geradores de obras
primas e de caminhos a seguir. Não apenas isso: viram eles mesmos os autores mais
jovens os repetirem (uma repetição que vai além de reproduções, chegando mesmo a
ultrapassá-los em sofisticação, como na poética de João Cabral de Melo Neto, outra peça
sagrada da poesia brasileira). Há reflexões drummondianas na pesquisa poética de um
autor como Ferreira Gullar, por exemplo (ou Affonso Romano de Sant’Anna, seu
conterrâneo no pensar Minas) . Há reflexões bandeirianas na exegese da palavra de um
Manoel de Barros ou de um Mário Quintana (dois poetas que conseguiram levar o “estilo
humilde” a extremos). Há outros, famosos ou não. Há autores que ainda sequer
conseguiram publicar coletâneas suas, mas que já guardam nas gavetas versos derramados
de bandeirismos ou drummondianismos.
O fato é que a metapoesia de Drummond e Bandeira, apesar de suas
especificidades, têm mais semelhanças que diferenças. A técnica do “desentranhamento”,
do autor de “Os sapos”, lembra o “lutar com as palavras” do criador de “No meio do
caminho”. O “penetrar” o “reino das palavras” e contemplá-las, tentando sempre pegar
algumas para o “sustento diário”, o “domá-las” de Drummond lembram, por sua vez, o
“alumbramento”, esse momento de êxtase erótico que leva o poeta a procurar papel e lápis,
instintivamente (ou fazer parecer como tal), de Manuel Bandeira. Acima de seus tempos,
enquanto eram homens contemporâneos a tudo que ia acontecendo ao redor, de certo e de
errado, de feio ou bonito, de sublime ou trágico, os dois fizeram uma legenda em suas
histórias. Marcaram de tal modo a literatura de suas épocas, que essas cicatrizes continuam
hoje e se infiltraram na Tradição, refazendo-a. Tornaram-se marcos do futuro e do passado
em literatura. Tornaram-se um tipo de autor ao qual o talento individual sobrepõe-se à
Tradição, constrói uma nova, para depois dilui-la, torná-la um referencial temporal, tal qual
a daqueles que foram suas fontes. Viraram clássicos em vida, fazendo repensar a História
118
por trás. Não por serem gênios, conceito vago, mas por terem, cada um a seu modo, a
mente aberta, repleta de sentimentos, sentidos, imagens, a qual se referiu T.S. Eliot
238
.
Importante também nas duas metapoéticas estudadas são os componentes altamente
individuais presentes nelas. Em Manuel Bandeira a poesia é observada a partir do eu lírico.
Ele está presente na observação metalingüística. Já Drummond, por sua vez, embora
também se faça presente nas principais observações sobre poesia, ou seja, permite seu eu
lírico dividir o posto de protagonista do poema com a própria poesia e a palavra, sabe
também, distanciar-se, contemplá-la de longe, com um eu lírico que é apenas um olhar
sobre as coisas, sobre as palavras, embora esteja ali, também.
Mas as diferenças também se fazem sentir fortemente. O “contemplar”’
drummondiano é diferente do “desentranhar” do pernambucano. O segundo não tem a
mesma timidez “de ferro” do primeiro; esse, por sua vez, não possui a mesma
impetuosidade alumbrada/erótica do conceito de Manuel Bandeira. O alumbramento
invade o poeta, como a inspiração passadista, gerando o desentranhamento, o trabalhar
com as palavras (esse, um conceito moderno e consciente). Em Drummond, por sua vez, o
poeta, que tentou ser invadido pela poesia, mas não conseguiu, teve de invadir, ele mesmo,
o “reino da palavras”, conscientemente, mesmo alertado sobre a inutilidade de tal ato de
fazer poesia, de colocar o elefante poético nas ruas.
Bandeira parece ser mais simples. E não é que não seja, perto de Drummond: só
que é de uma simplicidade calculada, lapidada por um “estilo humilde” mais pensado que
sentido, como quis fazer parecer muitas vezes o próprio poeta em confissões em verso e
em prosa. É uma simplicidade tão descarada que chega a parecer simples até diante de
poetas inferiores, mas que rebusquem mais seus textos. Bandeira não tem excessos. É claro
que se fala aqui do melhor Bandeira, mais livre, mais solto. Não que o poeta de versos
metrificados, que se lançou a estilos tão variados quanto o soneto, a redondilha, a balada, o
rondó, não seja também um grande autor. Não apenas o é, como é um dos melhores desses
tipos de versos mais tradicionais. O fato é que o poeta do verso livre conseguiu uma
profundidade pioneira na arte moderna em versos no Brasil. E não apenas por ter vindo
238
“The poet’s mind is in fact a receptacle for seizing and storing up numberless feellings, phrases, images,
wich remain there until all the particles which can unite to form a new compound are present together.”
(ELIOT. 1951. p. 19.)
119
primeiro, como nos faz parecer uma mera interpretação rápida desse pioneirismo: essa obra
atravessou gerações e chegou aos dias de hoje sem perder o frescor moderno de quando
apareceu muitas vezes, melhor entendida hoje do que antes.
A concepção errada que se pode ter tomando a idéia de “alumbramento” como
sinônimo de inspiração é logo afastada pelo complexo conceito de “desentranhamento”,
que, posteriormente na obra do poeta, tomou sua idéia sobre fazer poesia, incorporando o
alumbramento e o outro ponto fundamental de seus versos: a idéia de que a “poesia está em
tudo”. O desentranhamento, portanto, é a principal força da poesia bandeiriana, já que o
alumbramento parece ser somente um motor capaz de gerá-lo, uma espécie de luz na visão
do autor. Portanto, afasta-se, como pensou Flávia Jardim Ferraz Goyanna, qualquer
possibilidade de reduzir Manuel Bandeira a um poeta lírico, ou, como pensavam alguns de
seus críticos, um autor meramente autobiográfico. Para ela, que o considerou um “anti-
romântico”,
Uma análise cuidadosa da produção poética bandeiriana leva-nos a
rejeitar certa impressão superficial que se pode ter e freqüentemente se
tem da obra do poeta pernambucano e que consistiria em atribuir à
efusão lírica um lugar determinante ou central no conjunto desta
produção poética. O lirismo em Manuel Bandeira não é um fim em si,
mas um ponto de partida para um questionamento amplo que ultrapassa
os limites do eu lírico para abordar a realidade do mundo e os problemas
da criação poética.
239
Paradoxalmente, a simplicidade bandeiriana consegue ser mais complexa que a
sofisticação metafísica, a pesquisa ontológica drummondiana, pois essa já nasceu moderna,
já nasceu filha de seu tempo, embora fosse ele um poeta que ousou, experimentou e lançou
estilos e formas poéticas. Bandeira não teve a mesma facilidade: renovou a poesia com o
carro da vanguarda ainda em andamento e com a velocidade que os primeiros modernistas
lhe atribuíam. Manobrou com as palavras com a onda ainda em formação na verdade, já
começou no mar calmo e longínquo, pegando essa onda em direção à praia.
Drummond, por sua vez, fez um curioso caminho inverso. Começou sofisticado,
angustiado, engajou-se na história (mesmo que de longe na maioria das vezes), para
239
GOYANNA. 1994. p. 118.
120
depois, sem perder profundidade poética, buscar uma simplicidade que nunca conseguira
de todo, muito por causa de seu reconhecido ímpeto modernizador, inerente ao seu estilo.
Por isso foi tão difícil para o itabirano aceitar com passividade a poesia, mesmo quando às
vezes, por sentimento de estar deslocado, por gauchismo, enxergou-se “menor” do que era,
numa semelhança ao “poeta menor’ do colega pernambucano. Drummond era, desde cedo,
consciente de seu papel na feitura do poema, sem pedir licença, como Bandeira, que
denunciava sua intertextualidade até nos títulos dos poemas. A inspiração para o mineiro,
porém, era um trabalho artesanal, como a feitura de seu elefante, e exigiu do poeta um
poder de sedução e certa ousadia no trato com as palavras. Drummond soube, desde o
início de sua obra, que a arte poética é feita com palavras e através delas se expressa. E foi
assim tanto através do verso livre como também já na fase em que procurou fazer poemas
mais tradicionais, como sonetos, trabalhando metrificações e rimas bem ao estilo
passadista, mas sempre com inventividade. Se avançou e recuou sobre o mundo e as
palavras, ao longo de sua obra, sempre foi para aprender melhor a lidar com elas, para
sobreviver enquanto poeta. Mas a coerência interna de seus melhores textos, sejam
engajados ou metafísicos, é espantosa até para os dias de hoje. A ponto de sua sombra
ainda se fazer presente, e de ele ainda ser considerado já o era, em termos, no final da
vida o maior poeta do país, com poucas e envergonhadas contestações.
Enfim, dois poetas que deixaram um legado acima do que suas consciências
permitiram antevir. E através deles, a metapoesia, esse estudo poético da poesia dentro do
próprio poema, tem servido de modelo. Mais: os metaversos de Manuel Bandeira e Carlos
Drummond de Andrade, alumbrados ou gauches, desentranhados ou construídos
artesanalmente, próximos à realidade cotidiana ou das dores da humanidade, servem, ainda
hoje, como um curso sobre o que é fazer poesia. Aceitando-os ou negando-os. Bastando,
para isso, conhecê-los e senti-los.
121
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