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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM TEORIA DA LITERATURA
RUPTURA OU AMADURECIMENTO?
Uma análise dos primeiros contos de Machado de Assis.
Eduardo Melo França
Recife
2008
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM TEORIA DA LITERATURA
RUPTURA OU AMADURECIMENTO?
Uma análise dos primeiros contos de Machado de Assis.
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-graduação em Letras da
Universidade Federal de Pernambuco
como requisito para obtenção do grau
de Mestre em Teoria da Literatura.
Orientador: Prof. Dr. Anco Márcio Tenório Vieira
Eduardo Melo França
Recife
2008
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França, Eduardo Melo
Ruptura ou amadurecimento? Uma análise dos
primeiros contos de Machado de Assis / Eduardo Melo
França. – Recife : O Autor, 2008.
183 folhas
Dissertação (mestrado)
Universidade Federal de
Pernambuco. CAC. Teoria da Literatura, 2008.
Inclui bibliografia.
1. Literatura brasileira -
Crítica textual. 2. Contos
brasileiros. I. Assis, Machado -
Critica e interpretação.
II. Título.
82.09 CDU (2.ed.) UFPE
809 CDD (22.ed.) CAC2008-10
AGRADECIMENTOS
Agradeço com muito carinho ao Professor Anco Márcio Tenório Vieira,
meu orientador, amigo, exemplo pessoal e acadêmico, que com um bom humor
invejável, nesses últimos anos, sempre com atenção, simpatia, dedicação e
paciência, atendeu a todas às minhas solicitações, em muitos momentos
inconvenientes e ansiosas. Professor Anco Márcio ao mesmo tempo em que
soube ser uma inspiração, me fez acreditar nas minhas capacidades
intelectuais e no meu ainda incerto futuro acadêmico. Agradeço-lhe por ter me
recebido tão calorosamente no Programa de Pós-graduação e me fazer
acreditar que sou tão capaz quanto meus demais colegas do departamento de
Letras.
Agradeço (com muitos beijos) aos amigos que sempre atenciosamente
se mostraram interessados pelo meu trabalho: Ricardo Cícero, presença
constante e indispensável na minha casa e no meu coração; Jorge Rodrigo,
amigo que soube pacientemente agüentar minhas insistentes tentativas de
incluir Machado de Assis e literatura nas nossas noites de Empório; Professor
Jorge Alves, amigo e corretor “oficial” deste trabalho; Edna(lda), amiga de
faculdade e principalmente de vida que comigo compartilhou o sonho de um dia
ser professor universitário; Alexandre Buhr que apesar das ausências é, e
sempre será, um amigo que me faz sentir querido e necessário; Raul Azevedo,
meu parceiro de estudo e uma grata surpresa que descobri durante o
mestrado; e Érico e Cibele, amigos que além de exemplos em todos os
sentidos, nos últimos anos têm sido presenças constante na minha vida.
De uma forma especialíssima, agradeço ao professor e amigo Fernando
da Mota Lima, sem dúvida um dos maiores responsáveis por eu ter dado os
meus primeiros passos acadêmicos. Como meu primeiro orientador, Professor
Fernando, com sensibilidade e doçura indescritíveis, me ensinou a escrever,
estudar e a ter prioridades. Além de amigo, será sempre um exemplo de
elegância pessoal e intelectual. Não posso esquecer de Sylvio Ferreira,
professor que com charme e sedução primeiro me apresentou ao mundo das
idéias e até hoje influencia meu modo de pensar e falar.
Com carinho, paixão e amor, agradeço à Rafa; namorada e amiga que
mais de sete anos entrou na minha vida e a cada dia me faz mais feliz.
Agradeço-lhe por estar sempre ao meu lado e compreender meus sonhos,
hábitos e manias. Obrigado pelas revisões ortográficas e pelas injeções de
estímulo e otimismo.
Agradeço a Pinho, o melhor irmão que alguém poderia desejar e que
ainda sobre meus ombros inúmeras vezes leu meus textos e rascunhos antes
que qualquer um. Agradeço também à Ciana, irmã que mesmo morando longe,
nunca deixou de estar no meu coração e é uma alegria que não raras às vezes
faz uma imensa falta em casa. À Zezé, minha amada “mãe-branca”, obrigado
pelos carinhos, pelo amor e pelo importante papel que desempenhou na minha
educação.
Contudo, agradeço principalmente e especialmente àqueles que sempre
estiveram ao meu lado dando amor, carinho e sustento: Edmir Cavalcanti
França e Angela de Almeida Melo França, meus pais. Sem eles nada do que fiz
ou sou seria possível. Sempre me deram mais do que precisei e mereci.
Agradeço-lhes pela compreensão, paciência e total aceitação diante das
minhas escolhas. Obrigado por se mostrarem orgulhosos de mim, pela
educação que me proporcionaram, pela confiança e total liberdade de escolha.
Espero nunca os decepcionar. Amo vocês.
Ruptura ou Amadurecimento? Uma análise dos primeiros contos de
Machado de Assis.
Resumo
: Esta dissertação estuda os contos de Machado de Assis publicados
até 1880, e que até hoje se convencionou chamar de “fase romântica” de sua
obra. Demonstramos que é possível localizar entre esses primeiros contos, dez
dos principais tópicos — ou “problemas”, como define Antonio Candido —
considerados pela crítica como fundamentais e caracterizadores de sua obra
dita madura. Em outras palavras, mostramos que o que ocorre na década de
oitenta, em relação aos seus contos não é o que podemos chamar exatamente
de ruptura, mas de evolução e amadurecimento. Ao apontarmos entre esses
primeiros contos a presença dos mesmos problemas que também estão em
seus melhores contos, demonstramos como ocorreu o desenvolvimento de
suas idéias e estilo.
Palavras-chaves
: Machado de Assis Conto Contos Fluminenses
Histórias da Meia-Noite
Rupture ou Ripening? An analysis of the first Machado de Assis’ short-
stories.
Abstract:
This dissertation studies Machado de Assis´s short stories published
until 1880, the ones conventionaly identified as pertaining to his Romantic
phase. We attempt to point out ten main topics or problems’, as defined
Antonio Candido - that the critics consider fundamental in Machado de Assis´s
later work. In other words, we argue that there is no rupture, but evolution and
improvement between the two phases. By pointing out the presence and
continuity of the same basic problems in Machado de Assis´s best short stories,
we show how he was aware of the development of his ideas and style.
Key words:
Machado de Assis Short-story – Contos FluminensesHistórias
da Meia-Noite.
SUMÁRIO:
Introdução........................................................................................................09
Capítulo 1. Alguns aspectos do Conto
1.1 Do Mito ao Conto, a fixação de uma forma.................................................15
1.2 Os “acontecimentos” de Poe e as “interpretações” de Machado.................25
1.3 O Conto (sempre) interpretado. ..................................................................35
1.4 Sobre a intratextualidade hipertextual dos contos de Machado .................41
Capítulo 2. Um olhar mais atento sobre os primeiros contos
2.1 O que (pouco e repetidamente) se falou sobre os primeiros contos...........57
2.2 Do pessimismo em relação às capacidades do indivíduo.......................... 67
2.3 Personagens-artistas em busca da Perfeição.............................................81
2.4 A identidade, O Machate e o Outro.............................................................97
2.5 Sobre a relatividade das coisas e a precisão do Conto.............................109
2.6 Virgínius: entre o local e o universal..........................................................119
2.7 Virgínius e o sentido do ato.......................................................................127
2.8 As primeiras mulheres (da obra) de Machado...........................................132
2.9 Notas sobre os primeiros indícios de loucura (na obra) de Machado........143
2.10 O homem como objeto do próprio homem..............................................153
2.11 Quando a fantasia parece realidade........................................................160
Conclusão.......................................................................................................171
Bibliografia Citada ........................................................................................177
Bibliografia Consultada.................................................................................180
9
INTRODUÇÃO
Entre 1858 e 1907 Machado de Assis publicou 7 coletâneas de contos:
Contos Fluminenses (1870), Histórias da Meia-Noite (1873), Papéis Avulsos
(1882), Histórias sem Data (1884), Várias Histórias (1896), ginas Recolhidas
(1899) e Relíquias da Casa Velha (1906). Se somarmos aos 76 contos que
compõem essas coletâneas um outro tanto publicado em revistas, periódicos e
jornais, mas não recolhido e organizado em livro pelo próprio Machado,
chegaremos ao espantoso numero de cerca de 218
1
contos no total.
Desse total de contos, 103 foram publicados até 1880 ano
costumeiramente apontado como o início de sua obra madura e considerada
“realista”. Foi justamente sobre essa quase primeira centena de contos que
compõe o que até hoje se chama “primeira fase” ou “fase romântica” da obra
de Machado que nos debruçamos para realizar este trabalho. No decorrer
desta pesquisa, sempre que nos referirmos aos primeiros contos ou aos contos
experimentais de Machado, não estaremos nos resumindo apenas aos
publicados nas suas duas primeiras coletâneas Contos Fluminenses e
Histórias da Meia Noite mas, sim, a todos aqueles publicados ao ano de
1880; seja em livro, revista, periódico ou semanal. Para isso, fizemos uso de
três edições das obras completas de Machado: Obras Completas de Machado
de Assis. Org. Afrânio Coutinho. Ed. Nova Aguilar; Obras Completas de
Machado de Assis. Org. Ary de Mesquita. Ed. W. M. Jakcson; e Contos
completos de Machado de Assis. Org. e notas de Djalma Cavalcante. Ed.
UFJF.
Apesar dessa considerável quantidade de contos, podemos dizer que
ainda hoje são poucos os estudos que se propõem a analisá-los de uma forma
mais ampla, que levem em conta suas principais características e seu
desenvolvimento ao longo dos anos. Boa parte se limita a abordar
isoladamente alguns dos principais contos ou a tomá-los como exemplos ou
complementos para teorizações e interpretações sobre as idéias e os
romances de Machado. Mesmo o clássico ensaio Esquema de Machado de
1
Segundo Djalma Cavalcante, que organizou ahoje a mais completa coletânea de contos
machadianos; Contos Completos de Machado de Assis. Org. Djalma Moraes Cavalcante. Juiz
de Fora. Editora UFJF. 2003.
10
Assis de Antonio Candido (2004), que proporciona ao leitor um satisfatório
panorama sobre a forma e os principais problemas de toda a obra de Machado
(inclusive os contos), não é um estudo específico sobre seus contos. Aliás,
será difícil encontrarmos algum “livro” ou obra mais extensa que se dedique
especificamente às suas narrativas curtas. A grande maioria são capítulos de
livros, trechos de capítulos ou ensaios reunidos que acabam não construindo
um raciocínio mais coeso sobre a totalidade ou mesmo sobre algum recorte
mais extenso da sua obra contista. O livro de Barreto Filho (1980), Introdução a
Machado de Assis, é um exemplo de estudo que exaustivamente cita e
comenta seus contos, mas na maioria das vezes, como suplemento às
interpretações referentes aos romances.
Dentre os poucos trabalhos que apresentam uma intenção interpretativa
mais ampla, “horizontal” e que se mostram preocupados em fazer uma leitura
da obra contista de Machado e não somente de alguns contos em específico,
estão: Os Contos de Machado de Assis, de Paul Dixon (1992), no qual o autor
mostra que nos principais contos de Machado idéias semelhantes à de
Merleau-Ponty e, conseqüentemente, opostas ao pensamento científico de
Augusto Comte. Entre os que dedicam capítulos significativos aos contos de
Machado, destacamos Realidade e Ilusão em Machado de Assis, de Jo
Aderaldo Castello (1969), que aponta entre os primeiros contos a presença de
temas que também perpassam suas crônicas e romances; e O Enigma do
Olhar, de Alfredo Bosi, que faz pertinentes observações sobre a constante
presença da “máscara” entre os contos de Machado (2003). Há também
Machado de Assis, contador de Histórias, de Mário Matos que, apesar de ser
um ensaio de apenas dez páginas, faz uma varredura dos contos e mapeia
quais seriam os seus temas mais recorrentes. O estudo de Mário Matos tem o
mérito de, diferente de quase todos os outros, incluir em sua análise os contos
publicado até 1880
2
.
Uma dificuldade ainda maior ao realizar este trabalho foi encontrar
bibliografia sobre os primeiros contos de Machado. Se hoje até mesmo os seus
primeiros romances dispõem de boas críticas, o raríssimos, entretanto, os
2
Sabemos que esses o o os únicos trabalhos sobre os contos de Machado, mas
possivelmente foram os únicos que se propuseram a lê-los de uma forma mais ampla e
“horizontal”.
11
estudos que se dedicam aos seus primeiros contos. Na maioria dos casos,
como veremos no segundo capítulo, os autores se limitam a repetir o pouco
que foi dito e a defender a idéia de que eles nem mesmo valem ser lidos ou
estudados.
Alguns críticos, responsáveis por trabalhos hoje considerados clássicos,
afirmaram que a primeira parte da produção machadiana era dispensável ou
quase sem valor. Entre eles, Lúcia Miguel Pereira, Massaud Moises, Barreto
Filho e Jean Michel Massa. Outros, como Antonio Candido, Alfredo Bosi, John
Gledson e Roberto Schwartz, visivelmente atribuíram mais importância e se
debruçaram mais enfaticamente sobre os contos e romances publicados a
partir de 1880. Vale ressaltar que Roberto Schwartz é responsável por uma
leitura sócio-histórica da obra de Machado, que nos últimos trinta anos se
firmou quase como um dogma.
Como conseqüência dessa leitura marxista, a justificativa que imperou
na crítica sobre a grande mudança da obra de Machado, foi a que, ao ascender
socialmente, o escritor passou a enxergar e melhor representar as mazelas e
os descompassos da sociedade brasileira oitocentista. Era como se Machado,
a partir da década de oitenta, agora renascido, deixasse de tentar denunciar as
chantagens emocionais a que a classe menos favorecida se submetia em
busca de ascensão social e passasse a satirizar e ironizar a dinâmica de troca
de favores e também todo o descompasso ideológico que o Brasil vivia nessa
época. Essa leitura não deixa de ter sua importância, mas, incomodamente,
apenas legitima e analisa a obra de Machado a partir de sua capacidade de
refletir a sociedade brasileira. Se tomássemos este critério sociológico como
fundamental para o estudo da literatura, conseqüentemente, valeria nos
debruçarmos sobre aqueles contos que de fato pudessem ser considerados
como um espelho crítico ou fiel da sociedade. Foi pensando assim que essa
tradição sócio-histórica excluiu de um estudo mais sistemático a dita “primeira
fase” ou “romântica”, dos contos de Machado, uma vez que, segundo essa
perspectiva, esses seriam ainda românticos, melodramáticos, moralizadores e
escritos em boa parte especificamente para o público feminino do Jornal das
Famílias.
Contudo, não foi nosso intuito realizar uma análise sociológica ou que
tente relacionar os primeiros contos de Machado aos principais preceitos da
12
escola romântica, realista ou naturalista
3
. Mesmo que em muitos momentos
levemos em conta o contexto no qual foram escritos ou como as heranças
literárias estão implicadas no processo de criação do escritor, nosso trabalho
pretendeu fundamentalmente demonstrar que, nos contos publicados antes
de 1880, é possível localizar muitos dos problemas
4
que a crítica considera
como sendo os mais importantes, recorrentes, que caracterizam e definem a
maturidade da dita “segunda fase” de Machado de Assis. Isto é, procuramos
demonstrar que a sua obra contista, ao contrário do que se diz, não sofreu uma
completa ruptura ou uma espécie de renascimento na década de oitenta, mas,
sim, um amadurecimento em relação aos problemas abordados e ao modo
como são tratados. Com isso, poderemos afirmar que desde o início de sua
carreira de contista, Machado abordava as mesmas questões que
posteriormente a crítica apontaria como fundamentais em sua obra. Em
resumo, pretendemos mostrar que a primeira parte da sua produção de contos,
não somente tem seu valor, como também merece e deve ser estudada, pois
assim entenderemos que ela é o que podemos chamar de “embrião” da sua
produção madura de contos.
Conforme dito, quase metade de todos os contos escritos por Machado
foram publicados até a década de 1880. Por isso, ao invés de acreditarmos
simplesmente que a grande virada de sua obra seria decorrência de uma
suposta crise espiritual que ele teria vivenciado aos quarenta anos, preferimos
compreender o desenvolvimento dos seus contos como um processo evolutivo,
no qual alguns temas trabalhados ainda embrionariamente num primeiro
momento (entre 1858 e 1880), seriam posteriormente (após 1880) retomados e
desta vez expostos principalmente com mais ironia, excelência, economia
formal e profundidade psicológica.
Ao decidirmos compreender Machado como um autor que não nasceu
“pronto”, mas que aos poucos foi amadurecendo, precisávamos decidir quais
seriam alguns dos principais problemas da sua obra madura e tomá-los como
pontos de partida para a análise desses primeiros contos. Para isso, buscamos
3
Acreditamos que mesmo um estudo de enfoque sociológico pode incluir em suas análises os
primeiros contos de Machado.
4
A Utilização do termo “problema” visa seguir a terminologia utilizada pelo próprio Antonio
Candido no ensaio O Esquema de Machado de Assis (2004).
13
entre a crítica trabalhos que se propuseram a ler sua obra de forma mais ampla
e que tentaram mapear quais seriam os principais problemas de sua ficção.
Foram três os estudos que, basicamente, nos serviram para delimitar
quais seriam esses problemas. O primeiro (e mais importante) foi O Esquema
de Machado de Assis (2004), de Antonio Candido, que não somente se mostra
lúcido e esquemático, mas também como o que melhor reúne as questões que
mais unanimemente são apontadas como fundamentais na obra de Machado.
Os outros dois estudos que nos ajudaram a delimitar quais seriam esses
problemas, foram: Machado de Assis o Contador de Histórias (1997) de Mário
Matos e Os Primeiros Contos que Machado Contou, de Djalma Cavalcante,
que é uma espécie de introdução dos dois primeiros volumes dos Contos
Completos de Machado de Assis (2003), por ele mesmo organizado.
Partindo desses três estudos, delimitamos que os problemas
classificados como fundamentais e mais recorrentes na obra madura de contos
de Machado são: (1) o pessimismo em relação às capacidades do homem,
(2) o personagem-artista em busca da perfeição, (3) a formação da
identidade, (4) a relatividade, (5) a preferência por uma análise da
psicologia universal, (6) o sentido do ato, (7) a personagem feminina, (8) a
loucura, (9) a tomada do homem como objeto do próprio homem e, por
fim, (10) a tomada da fantasia como realidade.
No entanto, algumas ressalvas devem ser feitas em nosso objetivo. (1)
Não temos a pretensão de afirmar que os problemas a partir dos quais
escolhemos analisar os primeiros contos de Machado são necessariamente os
únicos que podem ser classificados como muito importantes ou mais
recorrentes entre os seus contos. Outros tantos poderiam ser incluídos nessa
lista. Contudo, se consideramos apropriado nos delimitar a esses dez, é porque
eles foram apontados mesmo que não necessariamente de forma tão
esquemática como faz Antonio Candido – quase que unanimemente pelos
principais críticos sobre o conto machadiano. Enfim, se esses problemas
podem não ser os únicos, com certeza estão entre os principais.
(2) Não pretendemos dizer que somente nos contos que escolhemos
trabalhar seja possível apontar a presença desses problemas. É muito provável
que também possamos localizar essas mesmas questões em vários outros
contos publicados até 1880 e que não foram citados nesse trabalho.
14
(3) Vale salientar que em nenhum momento consideramos que, de forma
geral, esses primeiros contos apresentam a mesma qualidade formal que os
posteriores aos Papéis Avulsos. Pelo contrário. Em alguns momentos,
inclusive, ao compararmos os diferentes modos como o jovem e o maduro
Machado tratam do mesmo tema, acabamos evidenciando como, com o passar
dos anos, ele foi capaz de se aprimorar, até que a partir da década de oitenta
encontrou a forma ideal para tratar os temas que desde o início estão
presentes em seus contos.
Dividimos nosso trabalho em dois capítulos, sendo o segundo
subdividido em onze seções. No primeiro capítulo, fundamentados nas idéias
de André Jolles, relacionamos o surgimento do conto literário ao mito e ao
conto popular. Também nesse primeiro capítulo apresentamos algumas das
principais idéias propostas por Edgar Allan Poe e Julio Cortázar sobre o conto
e as contrapomos com alguns dos traços mais marcantes do conto
machadiano. Sempre que se fez necessário recorrer, citar ou comentar algum
conto de Machado para exemplificar alguma generalização ou contraposição às
idéias de Poe, permitimo-nos utilizar tanto os publicados antes, quanto os
posteriores aos Papéis Avulsos, uma vez que nesse primeiro capítulo nosso
objetivo foi o de estabelecer um pequeno contraponto entre as idéias de Poe e
Cortázar sobre o conto e a forma definitiva e acabada do conto machadiano.
Por fim, ainda no primeiro capítulo, tomamos o conceito de hipertextualidade de
Genette e o utilizamos para fundamentar teoricamente qual tipo de relação
acreditamos existir entre os contos de Machado.
Na primeira seção da segunda parte, retomamos os (poucos) autores
que se propuseram a mapear os principais problemas da obra de contista de
Machado e apontamos suas (também poucas) opiniões sobre os contos
publicados pelo autor até a década de oitenta. Em seguida, em cada uma das
dez seções mostramos em quais desses primeiros contos podemos apontar de
forma mais evidente a presença desses dez problemas que consideramos
como fundamentais e que perpassam tanto a fase inicial quanto a madura dos
contos de Machado; além de em muitos momentos também estabelecermos
comparações entre o modo como esse mesmo problema é tratado antes e
após os Papéis Avulsos.
15
CAPÍTULO I
ALGUNS ASPECTOS DO CONTO
1.1 Do Mito ao Conto, a fixação de uma forma
Foi a partir dos irmãos Grimm e sua coletânea de narrativas Kinder-und
Hausmärchen (Contos para Crianças e Famílias) que o conto verdadeiramente
adquiriu um sentido de forma literária. Segundo Jolles, podemos dizer que a
definição “conto” é atribuída a uma produção literária sempre que ela
compartilhe, em maior ou menor medida, características fundamentais da obra
dos irmãos Grimm (Jolles 1976: 181).
Mas, para quem deseja entender em torno de qual debate o conto, tal
como o entendemos, nasce, ou melhor, legitima-se, é preciso considerar o
vínculo que a coletânea dos Grimm estabeleceu com outra coletânea publicada
alguns anos antes por Arnin e Bretano: Des Knaben Wundeborn (A Trompa
Maravilhosa) (Jolles 1976:183). Podemos dizer, sucintamente, que esse debate
gira em torno de dois conceitos-chave: poesia da natureza e poesia artística.
Para Jacob Grimm, enquanto a poesia artística é uma elaboração”, um
produto fruto da “genialidade” de um artista, a poesia natural nasce do seio de
um povo e de forma espontânea. Vejamos o que diz Jacob Grimm sobre
distinção que ele próprio faz entre essas duas concepções:
A poesia é aquilo que passa em estado de pureza e sem alterações do
coração para as palavras; por conseguinte, é algo que brota incessantemente
de um impulso natural e é captado por uma faculdade inata; a poesia popular
sai do coração do Todo; o que entendo por poesia artística sai da alma
individual. Por isso é que a poesia moderna assinala seus autores, ao passo
que a antiga não sabe nome algum; ela não é produzida por um, dois ou três, é
a soma do Todo; já disse que não sei explicar como essas coisas foram
arranjadas e feitas mas, pra mim, não é mais misterioso do que as águas que
confluem num rio para correr juntas. Não seria capaz de conceber a existência
de Homero nem que os Nibelungenlied tivesse um autor (Apud Jolles 1976:
183-184).
De fato, podemos até admitir que haja uma distinção entre poesia
artística e natural. Contudo, o que os irmãos Grimm não perceberam é que ao
16
apenas recolher os contos, as anedotas, lendas e estórias repassadas
oralmente e nascidas espontaneamente de um povo, eles não simplesmente as
“organizavam”, mas as reescreviam e lhes davam uma forma definitiva e
artística. Ao definirem (e fixarem) sua forma, eles as transplantavam da
categoria das formas simples - sem autores e forma fixa para as das
produções literárias agora poetizadas e marcadas, querendo ou não, pela
pena do autor. Ao se apropriarem de estórias como o Gato de Botas, A Bela
Adormecida e as “porem no papel” e nesse caso conseguirem que suas
versões alcancem um status de “definitiva”, – os Irmãos Grimm, de certo modo,
estabelecem, a partir de então, um distanciamento quase intransponível entre o
leitor e o mito ou a estória original que gerou cada uma dessas narrativas. A
partir do momento em que são fixadas pelo poeta, essas estórias deixam de
ser “formas simples” e passam a ser produtos artísticos”, que não apenas são
transcritos, mas reelaborados por poetas.
O conto, tal como o conhecemos no ocidente, nasce da apropriação e
fixação formal, artística e elaborada que o poeta faz dos gêneros que Jolles
(1976) classificou como “Formas Simples”. Dentre eles, o conto popular, a
anedota, a legenda, o mito, etc. Em poucas palavras, o poeta moderno fixa de
forma artística e definitiva o que a tradição perpetua, com pluralidade, através
da oralidade.
É irônico que a obra dos Grimm seja parâmetro para o estudo do conto,
uma vez que ao mesmo tempo em que o admitiam a diferença entre poesia
da natureza e poesia da arte, também acreditavam que fossem capazes de
transcrever fielmente cada estória de que se apropriavam. Arnim, por sua vez,
em correspondência com os Grimm, tenta abrir-lhes os olhos para o fato de
que ao transcreverem e, por conseqüência, fixarem a forma dos tais contos
infantis, eles estariam exercendo justamente esse papel de poeta moderno. Na
correspondência, Arnim diz que “[...] não desejaria magoar-te, mas não posso
evitar fazer-te esta observação: jamais acreditarei, mesmo que tu próprio o
creias, que os Kindermärchen [Contos Infantis] foram transcritos tal qual os
recebestes; a tendência para constituir e continuar uma obra é mais forte no
homem que todos os seus projetos e simplesmente impossível de erradicar”
(Apud Jolles 1976: 187).
17
Um exemplo de como esse “simples” ato de recolher estórias evidencia
o lugar e a tarefa do poeta, é a relação entre uma mesma estória popular que
tanto originou o Pardoner’s Tale de Chaucer, quanto o Second Jungle Book de
Kipling. Northorp Frye (2000: 32) aponta esse caso como uma evidência de
que diferentes narrativas podem ter como origem a mesma “estória” ou “mito”.
Diferentemente de Frye, tomaremos este caso para demonstrar que apesar de
dois autores se apropriarem de uma mesma suposta estória popular, a
particularidade com a qual cada um deles se apropria dessas estórias,
certamente, gera duas diferentes obras, que mesmo podendo serem
correlacionadas e, segundo Frye, obviamente contarem a “mesma história”
(2000: 32), sem dúvida são narrativas literariamente distintas, autônomas,
artísticas e elaboradas.
Não seria aqui o espaço para discutirmos a tese defendida por Frye.
Contudo, podemos nos valer em certa medida de seu pensamento ou ao
menos de suas implicações, para reforçar a idéia de que ao organizar e fixar
formalmente uma estória popular, um autor não somente transplanta essa
estória do conjunto das Formas Simples para o das Artísticas, mas também se
torna autor dessa nova versão, e não somente um organizador.
De fato são poucos os temas abordados pela literatura: morte, amor,
perda, sacrifício, busca do sentido da vida, ciúmes, etc. Por isso, diante dessa
limitada série de temas que a literatura aborda
5
, é indispensável que a forma
como cada um desses temas é tratado seja considerado como um importante
elemento definidor do seu valor, caracterização, autonomia e da assinatura do
autor. Sobre essa supremacia da forma na literatura, mais especificamente no
conto, Cortázar diz que “Basta perguntar por que determinado conto é ruim.
Não é ruim pelo tema, porque em literatura o temas bons nem temas
ruins, somente um tratamento bom ou ruim do tema [...] até uma pedra é
interessante quando dela se ocupam um Henry James ou um Franz Kafka”
(1993: 152).
Como assume o próprio título da coletânea de Charles Perrault, Histoires
ou Contes du Temps Passe avec Moralités, o conto natural tem como um dos
principais objetivos, senão o mais importante, a transmissão de uma
5
Salientamos ter noção de que essa lista pode ser mais ampla do que a aqui apresentada.
18
mensagem, ou como costumamos dizer, de uma “moral da estória”. Por isso,
mesmo que se contado precariamente por uma criança sem qualquer iniciação
literária formal ou mesmo não alfabetizada, o conto natural, o mito, a lenda ou a
estória espontânea, terão sua função cumprida caso sua “moral” seja
transmitida. Pensando assim, podemos dizer que tanto o Pardoners Tale de
Chaucer, quanto o Second Jungle Book de Kipling, são diferentes versões de
um mesmo mito, o que não os fazem, em hipótese alguma, serem narrativas
extremamente semelhantes. Nunca diríamos que Kipling e Chaucer, por terem
escrito livros que têm em sua origem o mesmo mito, escreveram a mesma
estória.
Se o conto popular pode ser contado de diversas formas sem que haja
um prejuízo significativo no processo de transmissão de sua “mensagem”, ou
no efeito que causa no leitor, no conto artisticamente elaborado, a dinâmica é
outra. A estória popular e o mito constroem estórias que moralizam e
problematizam questões que dizem respeito ao mundo no qual vivemos. As
estórias espontâneas existem para esclarecer o mundo e orientar os homens,
enquanto que a literatura, mesmo que nunca deixe de ter um caráter mimético,
não necessariamente se refere a um suposto mundo verdadeiro, mas ao
mundo que ela mesma constrói. Por isso, se o mito exerce uma força
centrifuga, a literatura exerce uma força centrípeta.
Daí, também, no conto literário, a forma ocupar um lugar fundamental e
ter tanto destaque na sua constituição e relação com o leitor. Tomemos o conto
O Relógio de Ouro de Machado de Assis, por exemplo. Essa narrativa
demonstra como o processo de recepção do conto artístico é indissociável da
forma como ele é narrado. Qualquer mudança na sua forma mudaria o conto e
sua recepção. Ou seja, o modo como o conto artístico é narrado é tão
importante quanto o seu tema, assunto ou mensagem. Nele, a forma e o
conteúdo estão interligados de um modo que é inconcebível imaginarmos a
mudança de um sem que o outro também sofra um abalo. Enfim, nas palavras
de Frye,
Então podemos ver que a literatura é, num cenário complexo, aquilo
que a mitologia é, num cenário mais simples: um corpo global de criação
verbal. Em literatura, o que quer que tenha uma forma tem uma forma mítica e
19
nos conduz ao centro da ordem de palavras. Pois assim como o naturalismo
crítico estuda o contraponto entre literatura e vida, palavras e coisas, a crítica
mítica nos afasta da “vida” em direção a um universo literário autônomo e auto-
suficiente. Mas o mito, como dissemos no começo, quer dizer muitas coisas
além de estrutura literária e do mundo das palavras, afinal de contas, não é tão
auto-suficiente e autônomo (2000: 46).
II
No século XIV, em Toscana, surge um tipo de narrativa curta de Forma
Artística que teria seu desenvolvimento marcado por Boccaccio. Esse tipo de
narrativa era produzido de dois modos: em coletâneas ou isoladas. As
coletâneas, também chamadas por Jolles como “narrativa-moldura” (1976: 189)
e que tinham como modelo o Decameron, apresentavam uma linha que as
ligavam entre si e que definia por quem e onde foram escritas.
Essa novela toscana que, segundo Jolles, ocupa um lugar tão
embrionário na trajetória do conto, “[...] procura, de modo geral, contar um fato
ou um incidente impressionante de maneira tal que se tenha a impressão dum
acontecimento efetivo e, mais exatamente, a impressão de que esse incidente
é mais importante do que as personagens que o vivem” (Jolles 1976, 189).
Diferentemente, tal como aponta José Aderaldo Castello (1969) e mostraremos
no decorrer desta dissertação, no conto machadiano é o personagem que está
em primeiro e absoluto lugar. As situações, eventos e contextos sociais e
históricos são sempre panos de fundo ou coadjuvantes em função da
abordagem psicológica do personagem.
Antes de prosseguirmos, dois pontos merecem ser ressaltados sobre o
Decameron, de Boccaccio. O primeiro diz respeito a ele no século XIV ter
como uma de suas principais características a marca inconfundível da
“assinatura” de seu autor. Isto quer dizer que o Decameron é um dos principais
marcos que caracterizam o surgimento da importância do papel do autor, com
sua individualidade e singularidade. Como diz Luiz Costa Lima,
Com efeito, se P. Zumthor toma o século XIV como aquele em que já se
ampliava o uso do pronome “eu”, nos poemas, em função referencial i.e., em
20
que o “je” não mais se confundia com a figura gramatical assumida por que
quer que lesse ou recitasse é ainda no século XIV, entre 1350 e 1375, que
Boccaccio escreve a primeira defesa “moderna” da poesia livros XIV e XV da
Genealogia deorum.
O segundo ponto se refere ao Decameron, contar, de modo geral,
estórias que pareçam ter realmente acontecido. Essa tentativa de relatar
incidentes que nos passem a impressão de efetivos, antes de tudo, ressalta
que Boccaccio possivelmente foi um dos primeiros autores “realistas” da
literatura. Contudo, quando o Decameron foi escrito, segundo Costa Lima, essa
linguagem “realista” não era bem vista pela Igreja, uma vez que os homens
ainda não tinham a capacidade de diferenciar entre o aparente e o verdadeiro
(Lima 1986: 43). Assim sendo, o uso dessa linguagem realista, e sua
repercussão, inevitavelmente, estariam relacionados com o poder que a
religião tinha sobre a literatura e a ficção.
Boccaccio é um descendente literário direto de Dante. Por isso, sua
obra, também impregnada de intenções cristãs, tenta conciliar a função poética
com os objetivos da Igreja (Lima, 1988: 7). A “ficção” na obra de Boccacio não
existe em função do elogio à forma ou é sustentada por um estatuto próprio da
arte, que naquele momento, era considerada pela igreja apenas como um meio
de aproximar os homens dos valores divinos. Deste modo, essa “ficção” de tom
realista e que passa a impressão de relatar acontecimentos efetivos, justificava
sua existência a partir do momento em que é considerada um “ornamento que
oculta e encarece o poético” (Lima 1988: 7). Poético esse que sempre deveria
estar em função dos valores religiosos.
Ainda segundo Costa Lima, ao acentuar “a conformidade do poético com
a verdade religiosa”, Boccaccio não estaria simplesmente e apenas
expressando sua opinião de crente. Costa Lima acredita que talvez por
Boccaccio não acreditar que sua obra pudesse conservar a memória de seu
nome, “[...] explorou o ambíguo e o licencioso, falou mal dos respeitáveis,
fossem leigos ou religiosos” (Lima, 1988: 9).
21
Apesar dessa novela
6
do tipo narrativa-moldura, inaugurada por
Bocaccio, ter como característica a assinatura distinguível do autor que interliga
todas as estórias contadas e o relato de “acontecimentos efetivos” (Jolles 1976:
189), ou seja, que nos passem a impressão de terem acontecido, as
coletâneas que lhe seguem e que dela são descendentes, incorporam
estórias do mesmo tipo que posteriormente os Grimm recolherão nos Kinder-
und Hausmärchen. Isto é, fábulas ou estórias fantásticas, nascidas
“espontaneamente”, repassadas de forma oral e que recusam a possibilidade
de serem tomadas como de fato acontecidas. Dentre essas coletâneas,
Piacevoli Notti de Giovanni Francesco Straparola e Cunto de li Cunti de
Giambattista Basile. O trabalho de Basile, que ficou mais conhecido como
Pentameron pois notoriamente parodia Bocaccio apesar de também, tal
como o Decameron, se organizar em “moldura”, parece anotar o máximo de
expressões populares e locais e reunir algumas das mesmas estórias que
estão nos Contos dos Grimm Cinderela, Os Sete Corvos e a Bela
Adormecida. Alguns estudos críticos no século XIX, consideram a obra de
Basile como a primeira coletânea do gênero.
Para os Grimm, entretanto, passando por cima da Histoire de Psyché de
La Fontaine, as primeiras e verdadeiras coletâneas de contos têm início no
século XVII, com Charles Perrault e seus Contes de ma Mère lOye. É fácil
entendermos o porquê dos Grimm passarem por cima de La Fontaine.
Primeiro, porque mesmo que a Histoire de La Fontaine formalmente se
assemelhe aos Contes de Perrault, ela quase sempre é formada por
transposições versificadas das novelas da escola de toscana, i.e., narrativas
artísticas e que deixam evidente o seu criador e também seu momento e local
de criação. Retomando os termos que anteriormente discutimos, a Histoire de
La Fontaine seriam obras artísticas e não naturais. Segundo, porque em 1697
os Contes de ma Mère lOye, são publicados novamente com o título Histoires
ou Contes du Temps Pasé avec Moralités e, dessa vez, são acompanhados
por estórias que não somente são da mesma natureza das que privilegiavam
6
Jolles emprega o termo “novela” de um modo que o compreendemos como “conto de ficção”,
seja ele maravilhoso ou não, mas de autoria definida. E o termo “conto”, de uma forma que
podemos entendê-lo como compreendendo estórias populares, repassadas pela tradição oral.
Tais como mitos, sagas, legendas e lendas.
22
os Grimm, como também algumas delas mais tarde também serão encontradas
na sua coletânea, tais como Chapeuzinho Vermelho, A Bela Adormecida e A
Fada Má.
Durante o século XVIII a Europa passa a ser permeada por narrativas do
mesmo gênero que as de Perrault, mas que também apresentam marcas da
herança da novela toscana. Esse hibridismo, fruto da relação entre o
maravilhoso, nascido de forma espontânea do tipo escrito por Perrault e do
eterno retorno que a literatura realiza em direção ao que é supostamente
verdadeiro ou que poderia ter acontecido leia-se, aqui, a herança deixada
pela novela toscana – é o que caracteriza não somente o conto do século XVIII,
mas o que temos até hoje.
Ainda sobre a distinção entre prosa artística “elaborada” e prosa natural
e “espontânea”, devemos nos perguntar a que ponto realmente elas são
indissociáveis ou se uma não estaria embrionariamente ligada à outra.
Tomemos como exemplo as novelas de Bocaccio, que a princípio são ditas
como elaboradas e criadas a partir da imaginação do autor. Segundo Jolles,
apesar de noventa por cento dessas estórias estarem disponíveis em outras
obras literárias, elas não chegaram ao conhecimento de Bocaccio através de
manuscritos e sim pela tradição oral. (1976; 192). É importante que notemos
que o cerne dessa discussão não gira somente em torno da originalidade ou da
tradição de uma estória, mas da apropriação e fixação que um artista faz dela.
O mito, a legenda ou o conto “natural”, ao permanecer sustentado pela
tradição oral, mantêm sua pluralidade, sendo cada vez transmitido de uma
forma não definitiva e particular e caracterizando-se como uma Forma Simples.
No conto, o universo retratado é redefinido e adequado à forma estabelecida
pelo autor, e aqui temos o que chamamos de Forma Artística. Como resume
Jolles, “Numa palavra: pode aplicar-se o universo ao conto e não o conto ao
universo” (1976: 193). Complementando sua definição acerca da dualidade
entre “conto” e “novela”, o próprio Jolles considera que:
Tudo isto pode ser resumido da seguinte maneira: A Novela e o Conto
são igualmente Formas; entretanto, as leis formativas da novela são tais que
ela pode dar uma fisionomia coerente a todo o incidente narrado, seja real ou
inventado, porque tem como característica específica ser impressionante; as
23
leis de formação do conto são tais que, sempre que ele é transportado para o
universo, este transforma-se de acordo com um princípio que rege esta
Forma e só é determinante para ela (Jolles 1976: 194).
Em outras palavras, a forma artística, segundo Grimm, se caracterizaria
por uma intervenção do artista, através do processo formal, em uma parcela do
mundo; adequando-o, ordenando-o e fixando-o, i.e., realizando o que ele
chama de elaboração. O oposto seria a criação espontânea, caracterizada pela
presença do “universo numa forma estabelecida de acordo com um princípio
que rege e determina exclusivamente essa forma e só é determinante para ela”
(Jolles 1976: 194).
Não questionamos a legitimação desses dois conceitos, mas uma certa
tendência proposta por Grimm, pelo menos a princípio, de que a forma natural
pertenceria (imponentemente) ao passado, enquanto que a elaborada ocuparia
um lugar apenas secundário e atual. Hoje sabemos que não é isso o que
acontece. Ambas vivem concomitantemente e se alimentam mutuamente a
partir de suas diferenças. A obra artística estetiza uma parcela do universo de
forma definitiva, sólida, peculiar e única, enquanto que a obra natural se propõe
a absorver o universo tal como ele supostamente é, preservando sua
mobilidade, fluidez e capacidade de a cada geração ou transmissão de
conteúdo renovar sua pluralidade. Nas formas artísticas, o poeta é dono da
palavra e imperador da forma. Nas formas simples, as palavras fluem entre
diferentes gerações e discursos, determinando sua própria forma; de maneira
contingencial, plural, renovável e incontrolável.
Para Vladimir Propp (1983: 43), a maioria dos contos “naturais” que
brotam em algum momento e por algum motivo da cultura popular, pode ter sua
estrutura (assuntos ou motivos) localizados em outras estórias “naturais”
originadas de outras culturas e épocas. Isso aconteceria, pois, segundo Frye
(2000), apesar das diferenças aparentes, todas nascem de um mesmo mito.
Quando Frye diz que o mito é o arquétipo (2000: 22), entendemos que o
arquétipo seria a forma herdada do mito. Levando em conta que “o mito é o
arquétipo”, podemos admitir que as estórias, ao se apropriarem da forma de
um mito e se espalharem por diversas culturas, a princípio, apresentariam
mudanças apenas no que diz respeito à imagem superficial dos personagens e
24
ao modo como a trama transcorre. A princípio, pois, na verdade, elas
manteriam em seu cerne a reprodução arquetípica do significado desse mesmo
mito.
O modo como um mito, através da sua reprodução arquetípica, se
propaga e se faz “natural” em mais de uma cultura, se dá, principalmente, pela
pluralidade e capacidade de recontextualização e reatualização que a
transmissão oral lhe proporciona. Sua forma é maleável, seus elementos
intercambiáveis e seus personagens, apesar de manterem sempre, nas
palavras de Propp, a mesma função, podem ser substituídos por personagens
da história de cada cultura. Sendo assim, o artista criador, inserido em uma
determinada cultura, ao entrar em contato com alguma versão desse arquétipo,
se apropria dele e o transforma artisticamente em gênero (Frye 2000: 23). Ou
seja, em literatura.
Há, no entanto, um importante aspecto não apontado por Jolles em
relação ao modo como o artista, quando se relaciona com a equação formada
pelo mito e o conto, deixa de ser um mero “organizador” e, além de escritor,
pode chegar a exercer o papel de “gênio”. Digamos que esse artista apreende
uma estrutura até então pluralizada, fluida, repassada oralmente e fixa-a.
Mesmo fixando-a e lhe dando uma forma particular e artisticamente definida,
ainda assim essa “nova” narrativa se mantém capaz de tocar homens de várias
épocas e culturas. A genialidade, por exemplo, dos irmãos Grimm, reside em,
mesmo eles definindo a forma de um conto popular, não restringirem sua
compreensão apenas aos que com eles compartilham dos mesmos valores.
Por isso, tantas narrativas curtas terem nascido da fixação artística das versões
de algumas lendas, mitos e estórias populares da Europa e até hoje
permanecerem sendo não somente compreendidas, mas significativamente
marcantes para crianças de todos os tempos e culturas.
O fato de a palha nascer espontaneamente no mato, o homem colhê-la
e dela fazer o artesanato, não implica que ele seja apenas uma ferramenta
secundária ou um mero meio de organização da matéria natural. A palha, nas
mãos do homem, encontra forma definitiva, forma de artesanato. Cada homem
se apropria da palha e lhe atribui um sentido particular. Fazendo-a deixar de
ser palha para se tornar artesanato, o homem a encerra, a (re)define e fixa sua
forma. E mais, lhe atribui um valor, um sentido e um lugar. Do mesmo modo, o
25
homem, quando toma a palavra e a transforma em narrativas sólidas e fixas,
não somente será um mero organizador ou recolhedor, mas, sim, seu “dono” e
criador; alguém que a domina e lhe atribui sentido. Assim como o artesão que
transforma a palha em artesanato, o poeta despe a palavra da simplicidade e a
elabora, revestindo-a de uma forma artística.
1.2 Os “acontecimentos” de Poe e as “interpretações” de Machado
Em resenha ao livro de Hawthorne, Edgar Allan Poe declara sua
preferência pelo conto e desenvolve uma espécie de “teoria do conto”. Diz ele
que:
Were we called upon however to designate that class of composition
which, next to such a poem as we have suggested, should best fulfil the
demands of high genius — should offer it the most advantageous field of
exertion we should unhesitatingly speak of the prose tale, as Mr. Hawthorne
has here exemplified it. We allude to the short prose narrative, requiring from a
half-hour to one or two hours in its perusal. The ordinary novel is objectionable,
from its length, for reasons already stated in substance. As it cannot be read at
one sitting, it deprives itself, of course, of the immense force derivable from
totality. Worldly interests intervening during the pauses of perusal, modify,
annul, or counteract, in a greater or less degree, the impressions of the book.
But simple cessation in reading would, of itself, be sufficient to destroy the true
unity. In the brief tale, however, the author is enabled to carry out the fulness of
his intention, be it what it may. During the hour of perusal the soul of the reader
is at the writer's control. There are no external or extrinsic influences
resulting from weariness or interruption (Poe 1842).
Em relação à possibilidade apresentada por Poe
7
, na qual o tempo gasto
na leitura de um conto deve ser um dos critérios para que ele seja classificado
como tal, vale lembrar que Norman Friedman propõe uma outra solução menos
7
Apesar de Poe utilizar a palavra “tale”, acreditamos que as reflexões que ele faz sobre o
gênero dizem respeito ao que hoje conhecemos como short-story” ou conto. Isto porque
aparentemente ele analisa e concebe a natureza do “tale” a partir dos mesmos princípios
formadores dos seus próprios contos, que ao longo dos anos vêm sendo tomados como
parâmetro justamente para o estudo da “short-story”. Além do que, um estudo como o de Boris
Schnaiderman (1999), que contrapõe a estrutura do conto de Poe ao de Tchekhov, exemplifica
que a maioria dos estudiosos do conto admitem que as reflexões feitas por Poe em Review of
Hawthorne -- Twice-Told Tales e Philosofy of Composition dizem respeito ao conto, tal como o
conhecemos hoje no ocidente.
26
“teorizada” e rigorosa, mais maleável e que sinceramente preferimos. Nas suas
palavras, “o senso comum nos diz que, embora as fronteiras exatas não
possam e não precisam ser determinadas, podemos muito bem distinguir,
sem considerar casos extraordinários, entre ficção longa, curta e média”
(Friedman 1976: 131). Segundo dia Batella Gotlib, Tchekhov acreditava que
a expansão da imprensa durante o século XIX possivelmente foi um dos
principais estímulos para a grande produção de contos na época. Os autores,
precisando de dinheiro, produziam muito e depressa (2006: 44). O que ela não
comenta, mas podemos imaginar, é se a necessidade de ganhar dinheiro
também não colaborou para que os escritores se esforçassem em adequar o
tamanho do conto ao formato do jornal.
Honestamente, não consideramos que Mário de Andrade tenha trazido
significativas contribuições acerca da teoria do conto. No entanto, como não
podemos ignorar seu lugar na história do pensamento literário brasileiro,
lembremos, que em uma frase de efeito, mas pouco reveladora, ele diz que
“(...) em verdade, sempre será conto aquilo que seu autor batizou com o nome
de conto” (1972: 5). Em contraposição à opinião de rio de Andrade, que
leva demasiadamente em conta a intenção do autor, Massaud Moises diz que
“[...] a narrativa passível de ampliar-se ou adaptar-se a esquema diverso
daquele em que foi concebida, não pode ser classificada de conto, ainda que o
seu autor o considere, impropriamente como tal” (1967: 99).
Não negamos a relevância de uma problematização acerca da
intencionalidade do autor em relação à extensão do conto. Entretanto, antes
disso, é fundamental que sejamos capazes de estabelecer uma clara distinção
entre Romance, Conto e Novela que não seja apenas baseada na sua
extensão ou intenção do autor, mas, quem sabe, no que podemos considerar
como sendo as suas diferentes possibilidades de análise do homem e da vida.
O Romance seria um olhar individual que busca ou atribui um sentido à
totalidade da vida e da existência. A Novela, também partindo de um olhar
individualizado, analisa a partir de um período de existência, suas implicações
psicológicas ou sociológicas. o conto seria uma leitura singular sobre
apenas um episódio ou um recorte muito pequeno e também todas suas
possíveis implicações. Já discordando de Poe e Cortázar – mais à frente
falaremos sobre isso acreditamos que um bom conto oferece ao leitor tanta
27
reflexão quanto um bom romance. A complexidade e intensidade de um conto
derivam justamente do autor precisar aproveitar todos os mínimos detalhes
possíveis para que seu texto torne-se denso o suficiente e não apenas um
relato banal de um caso qualquer.
A principal contribuição de Poe para o estudo do conto foi sua opinião
sobre a importância que ele atribui às intenções de um ator ao escrevê-lo. Na
relação leitor-romance-autor, tanto o leitor quanto o autor, cada um ao seu
modo, interage, constrói e atribue ao romance um sentindo particular. O autor
perde o domínio completo da sua obra e passa a ocupar um lugar de
expectador, que ansiosamente deseja saber como suas palavras ecoam no
leitor. O romance, do mesmo modo que é escrito aos pouco, paulatinamente,
tendo a cada página escrita seu sentido reconstruído, ampliado, reduzido e
fixado, também ao ser tomado pelo leitor, a cada frase, página e capítulo, se
permite ser reconstruído, reampliado, (re)reduzido e provisoriamente fixado. No
corpo do romance, entre suas frases e pausas, repousa uma imensidão de
possibilidades interpretativas e efeitos, que nem o seu próprio autor tem
consciência de existirem e nem o leitor conseguirá perceber. A expectativa que
o autor de um romance tem do efeito que seu texto pode gerar no leitor, é
incerta, aberta e imprevisível.
Enquanto isso, o contista parece nunca perder o controle do conto. Por
seu caráter necessariamente forte, impetuoso, tenso e palpitante, o próprio
conto se apropria e consome o leitor. O conto, como diz Poe e ressalta
Cortázar (1993: 121) nasce de um projeto do autor em causar um determinado
efeito preconcebido. A combinação de incidentes e palavras não é aos poucos
construída, como no romance, onde mesmo o autor pode, como acontece na
maioria das vezes, se surpreender com a sua própria construção. Ao contrário
disso, no conto, tudo é milimetricamente pensado. Cada elemento, incidente,
palavra, deixa ou pausa, faz parte de um projeto que, parodiando Pablo
Picasso, visa agarrar o leitor pelo rabo
8
.
Apesar de não afirmarem, ambos os autores transparecem acreditar que
apenas o conto é pensado e escrito milimetricamente, o que nos parece um
certo reducionismo ou uma tentativa forçada de criar uma teoria específica para
8
O Desejo pelo Rabo. Peça de Pablo Picasso escrita em 1941, mas censurada e apenas
encenada pela primeira vez 26 anos depois.
28
cada detalhe do conto. Afinal, como não imaginar que autores de romances,
como por exemplo, Ulisses, Grande Sertão: Veredas, Enquanto Agonizo,
Macunaíma, Memórias Póstumas de Brás Cubas e toda a literatura naturalista,
não pensaram exaustivamente em cada palavra ou idéia escolhida.
O conto, para Poe, é uma máquina literária de criar interesse. Para que
essa máquina engrene, funcione perfeitamente e, principalmente,
intensamente, deve se abster de tudo o que é supérfluo e desnecessário. Poe
e Cortázar consideram que um conto “memorável”, para não dizer “bom”, deve
se ater com intensidade a um acontecimento, suprimindo qualquer comentário
ou explicação sobre o evento narrado (Cortázar 1993: 122). A eficácia do conto
estaria intimamente ligada à sua economia e a alguns aspectos que, segundo
Cortázar, também estariam relacionados ao jazz, tais como a tensão, o ritmo, a
pulsação interna, o imprevisto dentro de parâmetros pré-vistos e essa
liberdade fatal que não admite alteração sem uma perda irreparável” (1993:
235). Pensando assim, o papel discreto, econômico e objetivo desempenhado
pelo narrador seria um fator fundamental para que o conto contemporâneo, que
nasce com Edgar Allan Poe, de fato seja um máquina literária de causar efeito.
Pois bem, Poe defende que cada palavra deve estar a serviço do
acontecimento em si. O que implica nunca fazer da matéria do conto uma
alegoria, teoria ou generalização psicológica ou didática. Sua essencialidade
seria limitada ao evento em si. Se o romance em todos os sentidos é uma obra
aberta e o seu fim, dependendo de cada leitor, pode nunca existir ou se existir,
ir além das suas páginas, o conto é antes de tudo delimitado; atentem que não
digo limitado. A narrativa do conto, ao se situar no “plano essencial e, portanto,
efetivo” (Cortázar 1993: 123), mantém, deste modo, fora do seu alcance a
possibilidade de tecer “uma visão universal do homem, a uma teleologia e
uma ética” (Cortázar 1993: 123 n.4).
Concordamos em parte, ou ao menos o discordamos completamente,
com a hipótese de que a extensão de um romance pode favorecer sua maior
profundidade psicológica, em comparação a um conto. No entanto, isso não
deve ser encarado como uma regra, tal como praticamente fez Poe e Cortázar
(1993: 123 n.4). Os contos de Machado, apesar de obviamente não serem tão
extensos (principalmente os de seu período maduro) como um romance de
29
Dostoievski, apresentam, sem a menor sombra de dúvida, o mesmo grau de
profundidade, problematização e “visão universal do homem”.
Isso é possível na obra de Machado, pois, diferente do que acontece na
de Poe, a essência de seus contos, se assim podemos chamar, reside na
análise da densidade psicológica de seus personagens e suas motivações, não
necessariamente no efeito obtido através da descrição impactante do evento
em si. O acontecimento no conto machadiano está a serviço do personagem e
de sua análise psicológica. O conto machadiano, e agora nos permitimos com
segurança fazer uma afirmação diametralmente oposta ao que pensa Poe, é
construído em função e em torno da análise da capacidade psicológica de cada
personagem, que por usa vez tomará o acontecimento apenas como mote
demonstrativo dessa psicologia. Exemplo disso é seu conto O Machete. Esse
praticamente atende a quase todos os requisitos técnicos apontados por Poe
sobre como um conto deve ser construído. A diferença fundamental entre ele e
os contos de Poe é o modo como apresenta as possibilidades de análise
psicológica. O que também não quer dizer que ele funcione se concebido
como uma alegoria, como supõe Cortázar.
Apesar d’O Machete ser um conto sucinto e nos levar sem desvios para
um caminho supostamente preconcebido pelo autor, ele não apresenta, como
exige Poe, um clímax. Mesmo no seu final, quando a esposa do violoncelista
foge com o tocador de machete, não há uma sensação de clímax. Essa
ausência possivelmente se dá pela profunda melancolia que paira nas palavras
e na reflexão que o personagem faz sobre sua perda. O último momento do
conto, marcado pela fuga da esposa, acaba deixando de ter um impacto de
clímax, pois é obscurecido ou sobreposto pelas palavras reflexivas e
melancólicas do marido abandonado. Se essa melancolia que possibilitará
uma reflexão tão profunda quanto a que poderia nos oferecer um romance que
também se propõe a problematizar a existência do personagem e de questões
importantes sobre os dilemas de um artista.
Apesar dessa ausência de uma espécie de momento catártico ou
impactante, podemos dizer que realmente em O Machete uma confluência
dos elementos que nos levam ao seu desfecho. Por isso, a presença do clímax
deve ser dissociada da idéia de que todos os elementos estão concatenados e
trabalhando em função da concisão, intensidade e do seu efeito
30
preconcebido. Em Idéias de Canário, o clímax, como parece ser proposto por
Poe, é substituído pela reflexão pessimista sobre a relatividade e a
impossibilidade de estabelecermos uma verdade definitiva sobre o mundo. O
que não nos impede de facilmente percebermos que todos os elementos do
conto estão arranjados de uma forma que ao fim da leitura possamos
compreender a construção de uma espécie de “teoria” (pessimista) sobre a
relatividade da liberdade. Qualquer alteração no modo de contar essa estória
implicaria em uma desarrumação desse pensamento e, por conseqüência, não
causaria no leitor a sensação de coerência e convencimento que ela nos
transmite acerca da relatividade. Nem todo conto é construído em função de
uma conclusão, alguns são em função de uma “teorização”.
Segundo Cortázar, cada conto começa por interessar a inteligência, mas
termina se apoderando da alma do leitor (1993: 125). falamos que o
concordamos plenamente com a idéia de que o clímax seja parte fundamental
de um conto. Essa exigência pode nos permitir imaginar que se ele começa
como uma máquina literária de criar interesses, ao fim se torna uma espécie de
máquina literária de causar sensações. O que não necessariamente acontece
nos contos de Machado. Mesmo os seus piores contos são mais cerebrais que
emocionais. E, se boa parte deles pode ser considerada memorável, excelente
e irretocável, isso se muito mais pelo efeito desnorteante e problematizador
de suas reflexões e teorias implícitas sobre o homem, do que por algum efeito
impactante ou catártico que um clímax possa causar no leitor
9
.
Poe, nas palavras de Cortázar, “compreendeu que a eficiência de um
conto depende de sua intensidade como acontecimento puro, isto é, que todo
comentário ao acontecimento em si [...] deve ser radicalmente suprimido”
(1993: 122). Talvez essa ênfase dada por Poe ao acontecimento em si, seja
por sua teoria do conto ter como base, principalmente, os contos fantásticos.
No caso de Machado, é fácil encontrarmos entre seus contos alguns que
possam tipicamente ser classificados como fantásticos. Contudo, em Machado,
o fantástico, o assustador e o que (aparentemente) beira o “extra-humano” e
nos causa esse efeito de estranhamento e de macabro são justamente os
9
Mário de Andrade (1978) disse que Machado não é um autor que se ama, mas que se
admira. Barreto Filho (1980) considera que a emoção o está ausente nos contos de
Machado, mas disciplinada pelo espírito.
31
contos que denunciam as patologias mentais e comportamentos insólitos que
menos desejaríamos admitir que nós, seres humanos, somos capazes de
realizar.
O próprio Freud, em seu texto O Estranho (1919), tomou emprestado o
conto fantástico Homem de Areia de E.T.A.Hoffman, para demonstrar que
muito do efeito de desconhecido e macabro que algumas pessoas, situações,
objetos, histórias ou estórias nos causam, são por conta deles nos remeterem
a aspectos que inconscientemente nos o familiares, mas conscientemente
não. Tomando emprestada essa idéia de Freud, poderíamos dizer que contos
como Um Esqueleto e A Causa Secreta, causam esse sentimento de
estranhamento, desconforto e de aparente macabro, pois evidenciam algo que
está distante de nós, mas não distante no sentido externo e sim interno. Ou
seja, nem tudo que nos é estranho, distante ou desconhecido está no mundo
“exterior”. Alguns dos nossos aspectos psicológicos podem nos parecer
sombrios, assustadores e desconhecidos por estarem localizados nas camadas
mais profundas, distantes e inconscientes de nossa mente. Essa idéia de que
em Machado o que há de mais assustador não está na esfera do fantástico,
mas na do humano, será melhor apontada quando abordarmos a semelhança
entre Um Esqueleto e A Causa Secreta. Se por um momento deixarmos de
lado toda a rigidez proposta por Poe sobre a concepção do conto, poderemos
novamente questionar a idéia de que ele e, aparentemente também, Cortázar
defendem acerca dos limites de problematizações que esse gênero pode
suscitar.
Admitamos que não somente no conto, mas também no romance, e não
especificamente em um ou em outro, o autor, em determinados momentos,
tanto adéqua a forma do texto a suas idéias quanto suas idéias à forma que
pretende finalmente construir. Cortázar diz que o conto é antes de tudo
delimitado, que sua narrativa deve se situar no “plano essencial e, portanto,
efetivo”, mantendo, deste modo, fora do seu alcance a possibilidade de tecer
“uma visão universal do homem, até uma teleologia e uma ética”. Ora, como
diante dessa teoria entendermos os contos que não são concebidos a princípio
como contos, mas como capítulos de romances, que posteriormente foram
excluídos pelo autor do formato final de sua obra, como, por exemplo, o conto
Mrs. Dalloawy na Bond Street de Virginia Wolff? Ou ainda, os capítulos de
32
romances que funcionam perfeitamente como contos: tais como História de D.
Plácida ou O Almocreve das Memórias Póstumas de Brás Cubas?
Mesmo que não tenhamos uma resposta definitiva para essa questão,
vale repensar se realmente o capítulo que foi a princípio concebido como parte
de um romance, ao se fixar como conto, perderia de fato todas as marcas e
intenções deixadas pelo autor, que indicam, por exemplo, a densidade
psicológica do personagem ou generalizações sobre o resgate do tempo e da
memória, como no caso de Mrs. Dalloawy na Bond Street. Ou, como no caso
dos capítulos que funcionam como conto, como entender que no meio de um
romance, haveria um recorte um capítulo que estivesse destituído das
intenções e (amplas) possibilidades de um romance e apenas funcionasse
pontualmente como uma narrativa de um evento em si? Seria possível
negarmos que, além de ter uma estrutura e função semelhante a de um conto,
o capítulo d’O Almocreve também não possibilita uma reflexão que vai além da
descrição intensa do episódio e problematiza o cinismo e o egoísmo humano?
Para Boris Schnaiderman (1999: 334), a escrita de Tchekhov é uma
superação em relação ao que propõe Poe em sua Filosofia da Composição.
Isto porque, quem pela primeira vez apresentou de forma incisiva o conto como
sendo algo a mais do que o relato de um acontecimento foi exatamente
Tchekhov. O escritor russo foi o responsável por libertar definitivamente o conto
de um dos seus fundamentos mais marcantes: a narrativa de um
acontecimento extraordinário (Gotlib 2006: 46). Semelhante ao que também
ocorre em muitos contos de Machado, em alguns de Tchekhov a impressão
de nada acontecer. As narrativas aparentemente não possuem enredo e
relatam estórias comuns que, segundo os mandamentos de Poe, não
mereceriam ser tomadas como matérias de conto. Em Tchekhov, isso
acontece, por exemplo, nos contos Angústia e Dois Amigos, em Machado, em
Missa do Galo, Teoria do Medalhão e Idéias de Canário.
Tzvetan Todorov percebeu que boa parte dos contos de Poe encerram
com uma “frase derradeira, carregada de maior significação, que ao mesmo
tempo esclarece sabiamente o mistério mantido e anuncia um fato, em geral
horrível” (1980: 162). Diferente disso, nos contos mais psicológicos, escritos
por Machado e Tchekhov, além da profundidade psicológica dos personagens,
umas das coisas que mais chame a atenção seja um silêncio final perturbador
33
ou uma certa pulsação enigmática que permanece no leitor mesmo após
terminar de lê-los. Nesses, ao contrário do que acontece nos de Poe e na
maioria dos policiais ou de terror não necessariamente algum enigma a
ser desvendado, problema a ser solucionado ou revelação a vir à tona. Ao
invés de neles encontrarmos desfechos com “soluções” ou “conclusões” do tipo
anagnorisis, na qual todo o restante da trama seja reconhecida e esclarecida,
encontramos estórias ambíguas que mantêm questões sutis em aberto e a
serem solucionadas pelo próprio leitor a partir das mais diversas
interpretações.
Essa possibilidade do conto manter-se em aberto com questões não
solucionadas e sem respostas definitivas para sua trama, pode ser notada em
Missa do Galo. Nele, o próprio narrador diz: “Nunca pude entender a
conversação que tive com uma senhora, muitos anos, contava eu
dezessete, ela trinta” (1997 II: 605). Ninguém é capaz de chegar à conclusão
acerca do que realmente aconteceu naquela noite, nem o narrador e muito
menos o leitor. Em Missa do Galo, nem mesmo uma conclusão distorcida ou
parcial nos é oferecida. Pelo contrário. Apenas a ratificação de que a verdade
sobre o episódio está perdida, restando ao leitor apenas imaginar e analisar as
intenções dos personagens e os indícios que parecem levá-lo a respostas
incertas sobre as intenções de ambos. Teria Nogueira visto D. Conceição
naquela noite com um “ar de visão romântica”, pois lia Os Três Mosqueteiros e
estava “ébrio de Dumas”? E ela, uma mulher traída e conformada, estaria
envolvida naquela conversação, pois desejava se sentir novamente capaz de
seduzir? Enfim, apenas impressões nos restam sobre a conversa entre
Nogueira e Conceição. Impressões que segundo o próprio Nogueira, são
“truncadas e confusas”. Diante dos desfechos enigmáticos que os contos de
Machado oferecem, somos levados a fazer milhares de perguntas. Para
algumas obtemos respostas ambíguas. Para outras, apenas um silêncio
perturbador.
Ainda sobre os contos que não apresentam conclusões”, lembremos de
Uns Braços. O conto narra uma estória aparentemente simples, e de fato o é.
Complexos são os personagens e os seus sentimentos: ambíguos, reprimidos,
sutis, introspectivos, não declarados e indefiníveis, pois o nos esclarecem
nada e não se justificam.
34
Anteriormente falamos da concepção mais clássica de conto que o
define como uma narrativa delimitada e que encerra em si mesma. Mas como
definir o sentimento de perplexidade que permanece no leitor diante do clima
discreto de sensualidade e sedução que é construído em Uns Braços?
Acreditamos não sermos os únicos que após a leitura do conto ainda
permanecemos sentindo a sensualidade pulsante no ato de D. Severina
quando motivada por um enorme desejo sexual beijar Inácio enquanto ele
dorme ou mostrar parte dos braços de forma sedutora durante as refeições. E
mais, também não acreditamos sermos os únicos que enxergamos em tantas
outras situações da vida esse mesmo jogo tácito de sedução representado na
relação entre D. Severina e Inácio, na qual ambos desejam, mas enquanto um
não se permite, ao outro não é permitido.
Outra significativa marca deixada por Tchekhov foi a possibilidade do
conto não necessariamente narrar um recorte único da vida do personagem,
mas “registrar uma sucessão de quadros, como se fosse um mosaico,
abandonando a construção tradicional, que previa uma ação com
desenvolvimento, clímax e desenlace” (Gotlib 2006: 47). Nessa fórmula, o autor
recortaria apenas acontecimentos significativos da vida do personagem, o que
ocorre em vários contos de Machado. Em O Esqueleto, o narrador constrói
uma seqüência de acontecimentos ou passagens capazes de denunciar o
desejo de Dr. Belém em causar medo e temor à esposa. Em A Causa Secreta,
são encadeados seguidos quadros que retratam o sadismo de Fortunato. Em
D. Benedita, o narrador não se preocupa em descrever toda a vida da
personagem ou da sociedade ao seu redor. Ele apenas concatena uma
seqüência de quadros que ressalta a incapacidade da personagem levar a
cabo qualquer atividade. Em cada um desses contos como que uma
espécie de coletânea dos melhores, mais significativos e representativos
momentos da vida dos personagens. A união desses recortes deve ser
suficiente para que tenhamos uma noção da totalidade da psicologia de cada
um deles. Esse mosaico constitui o que podemos chamar de substância da
vida”.
Apesar de todos os contrapontos que estabelecemos em relação às
idéias de Poe, não estaríamos sendo contraditórios, se admitíssemos que
inegavelmente um conto, entre tantas características e controvérsias,
35
essencialmente se estrutura como um texto curto. As razões podem ser duas:
ou a matéria em si é essencialmente curta, ou, sendo maior, é formalizada de
tal modo e intensidade a maximizar o seu efeito artístico. É útil a comparação
feita por Cortázar entre o conto e o trabalho do fotografo. Em ambos, é preciso
ter noção de que o recorte a ser trabalhado precisa aproveitar todos os
detalhes, uma vez que ele deve ser sucinto e intenso. O escritor deve enxergar
tanto na matéria curta em si, quanto na que foi concentrada intensamente num
relato breve, a mesma possibilidade e dimensões artísticas e
problematizadoras que um fotografo ao definir seu alvo e foco. Tanto o conto,
quanto a fotografia, são densos, intensos e breves, pois, quando memoráveis,
retratam recortes representativos da vida ou amostras concentradas da
psicologia humana. Nas palavras de Cortázar, tanto a fotografia quanto o
conto, consistem em “[...] recortar um fragmento de realidade, fixando-lhe
determinados limites, mas de tal modo que esse recorte atue como uma
explosão que abre de par em par uma realidade muito mais ampla [...]” (1993:
151)
10
. Parece-nos, assim, clara nossa opinião de que o conto não somente é
uma máquina de causar efeito, mas também de problematização.
1.3 O Conto (sempre) interpretado
A possibilidade de fazer do conto um material no qual concentração
de elementos, efeitos e análises psicológicas foi levada por Machado às
últimas conseqüências. Seus contos, ao mesmo tempo em que narram recortes
precisamente pinçados e representativos da vida, são delineados com uma
forma que se adéqua e parece ter sido criada exatamente com o propósito da
análise psicológica. Nas palavras de Mário de Andrade, “De Maupassant, de
Machado de Assis, literalmente adultos, não o que preferir, porque não
são descobridores de assuntos pra contos, mas da forma do conto” (1972: 8).
Apenas como nota, vale lembrar que enquanto Tchékov e Maupasant
10
Consideramos coerente a comparação entre a fotografia e o conto. No entanto, não
deixamos de reparar que se agora ele diz que o conto pode proporcionar uma realidade mais
ampla”, anteriormente, ele também afirmou que o conto deveria se limitar ao “plano essencial e,
portanto, efetivo” (1993:123), o que implica manter fora do seu alcance a possibilidade de tecer
“uma visão universal do homem, até uma teleologia e uma ética” (Cortázar 1993: 123. 4n).
Ficaria assim a questão: Cortázar acredita ou não na possibilidade do conto ser mais do que
uma narrativa do acontecimento em si?
36
publicavam seus primeiros contos na década de oitenta, nessa mesma década,
Machado já se tornava um autor maduro e definia seu estilo.
Um dos aspectos mais marcantes da forma do conto machadiano é a
presença hipertrofiada do narrador. Em O Espelho, Primas de Sapucaia,
Ernesto de Tal e O Anjo das Donzelas, há, antes do conto propriamente dito,
uma espécie de introdução, na qual o narrador emite juízo e opinião, como
quem está em uma posição privilegiada em relação ao conto e à anedota.
Nesse pequeno introdutório, conhecemos um narrador que ao mesmo tempo
se define e define o que narrará; julgando, organizando e atribuindo sentido à
estória. Esse intróito, nem sempre tão segmentado do restante do conto,
apresenta a suposta origem e finalidade do conto, além de contextualizá-lo
num parâmetro ficcional e justificar sua importância e existência. Ou seja, é o
próprio conto machadiano que se anuncia e (supostamente) se define.
Começamos agora a seguir por um caminho pelo qual Poe
provavelmente não imaginava que o conto pudesse seguir ou simplesmente
não aprovasse. Esse narrador, oposto ao das estórias fantásticas de Poe, nos
contos de Machado é o responsável por ir além do acontecimento em si e
decifrar o sentido da “anedota”
11
ou do “caso” relatado pelo conto. Os casos
narrados, como os próprios narradores costumeiramente os definem, são
supostamente reais, não inventados, testemunhados por eles próprios ou por
alguém de seu conhecimento
12
; o que não necessariamente implica possuírem
um significado em si. Novamente nos vemos diante de outra oposição entre o
conto poeano e machadiano.
Enquanto o do escritor americano alimenta sua pretensão e intenção na
possibilidade de que o acontecimento em si cause efeito e impacto no leitor, o
conto machadiano se estrutura e apóia o seu objetivo mais importante, não no
acontecimento, mas na capacidade de interpretá-lo e lhe atribuir sentido.
Mesmo Cortazar, que em vários momentos parece concordar com Poe, ao ler
A Lição de Mestre de Henry James, reconhece que alguns acontecimentos em
si carecem de significado. Para ele, nesse livro de Henry James “sente-se de
imediato que os fatos em si carecem de importância, que tudo está nas forças
11
Daqui em diante, o termo “anedota” deverá ser compreendido como a matéria, o assunto ou
o acontecimento em si que o conto se propõe a narrar.
12
Tudo isso, sempre, dentro de uma lógica interna e ficcional do conto.
37
que os desencadearam, na malha sutil que os precedeu e os acompanha”
(1993: 158).
Ilude-se quem acredita que, ao nos depararmos com um narrador desse
tipo, que justifica, atribui significado e interpreta, estamos sendo poupados de
mais trabalho. Uma vez que a relação entre o leitor e a anedota do conto é
intermediada pelas interpretações e juízos do narrador, o trabalho do leitor
acaba sendo quase que dobrado e exigindo muito mais perspicácia e atenção
para tentar, se possível, discernir entre a anedota e o discurso do narrador que
a envolve. Asseguramos, inclusive, que no conto machadiano é mais fácil e
menos importante visualizar a anedota em si e mais importante e complexo
compreender as teorizações e os complementos interpretativos tecidos pelo
narrador. Como nos lembra Montaigne, “Interpretar as interpretações mais
trabalho do que interpretar a própria coisa, mas escrevemos mais livros sobre
livros do que sobre os assuntos mesmos; comentamo-nos uns aos outros”
(1987 III: 352).
Por esta razão, alguns contos de Machado nos quais aparentemente
nada acontece ou se acontece não é qualquer coisa significativa conseguem
manter sua força e impacto no leitor. É o caso de algumas de suas melhores
estórias: Teoria do Medalhão, Missa do Galo, Uns Braços, O Segredo do
Bonzo e O Espelho. A força do conto machadiano nasce muito mais de uma
reflexão inteligível acerca da narrativa (interpretativa) do narrador, do que de
um arrebatamento emocional fruto da narrativa do acontecimento em si.
Como nos lembra Abel Barros Baptista (2006: 212), em O Empréstimo,
Machado no segundo parágrafo escreve:
E, para começar, emendemos Sêneca. Cada dia, ao parecer daquele
moralista, é, em si mesmo, uma vida singular; por outros termos, uma vida
dentro da vida. Não digo que não; mas por que não acrescentou ele que muitas
vezes uma hora é a representação de uma vida inteira? Vede este rapaz:
entra no mundo com uma grande ambição, uma pasta de ministro, um banco,
uma coroa de visconde, um báculo pastoral. Aos cinqüenta anos, vamos achá-
lo simples apontador de alfândega, ou sacristão da roça. Tudo isso que se
passou em trinta anos, pode algum Balzac metê-lo em trezentas páginas; por
38
que não de a vida, que foi a mestra de Balzac, apertá-lo em trinta ou
sessenta minutos? (1997 II: 334) (grifos nossos).
O tipo de raciocínio que Machado toma emprestado de Sêneca
13
é do
mesmo tipo indutivo utilizado na relação que Freud estabelece entre a análise
de um caso clínico e a construção de uma teoria geral a partir desse caso.
Esses três pensadores um filósofo (Sêneca), um escritor (Machado) e um
psicanalista (Freud) acreditam na possibilidade de se chegar à compreensão
do todo a partir da análise de uma parte. Todos eles crêem que a carga
psicológica de um indivíduo, sempre e ininterruptamente, está em
funcionamento. Por isso, a cada passo que damos, escolha que fazemos,
palavra que falamos e atitudes que tomamos, deixamos a marca de quem mais
profundamente somos. Pensando assim, é absolutamente plausível que o
conto e sua brevidade sejam capazes de captar a existência de alguém ou a
complexidade de uma vida, uma vez que ele (particularmente o conto
machadiano) “[...] inclui ainda o exame desse trânsito da parte para o todo, do
particular para o geral: investiga, ficcionalizando-a, a possibilidade de apertar a
vida inteira numa hora, acrescentando-lhe outra: a possibilidade de ver a vida
inteira apertada numa hora” (Baptista 2006: 213).
E, se admitirmos que de fato uma vida pode ser condensada em uma
hora, como saber qual hora seria essa? Toda grande obra de arte é fruto de
uma mente arguta que, de forma pouco comum e muito especial, apreende o
mundo e o transforma em ficção. No caso de um grande contista, sua
genialidade residiria, primeiro, em perceber que nos menores atos e em
pequenos intervalos, somos capazes de demonstrar, mesmo que
inconscientemente, mas intensamente, toda uma estrutura psicológica ou o
sentido de uma vida. Segundo, identificar em quais possíveis horas do dia, dias
da semana, atitudes, escolhas ou olhares, o personagem estaria intensamente
retratado. Por fim, se somente um grande romancista consegue estetizar o
13
As idéias de A. B. Baptista, sobre a qual tentamos realizar novas problematizações sobre o
conto, certamente derivam de uma leitura particular do modo como Machado possivelmente se
apropriou do pensamento de Sêneca. Vejamos onde originalmente se encontra esse
pensamento de Sêneca: “Apressa-te a viver, caro Lucílio, imagina que cada dia é uma vida
completa. Quem formou assim seu caráter, quem quotidianamente viveu uma vida completa,
pode gozar de segurança; para quem vive de esperanças, pelo contrário, mesmo o dia
seguinte lhe escapa, e depois vem a avidez de viver e o medo de morrer, medo desgraçado, e
que mais não faz do que desgraçar tudo” (Sêneca. Cartas a Lucílio. Trad. J. A Segurado e
Campos. 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 556)
39
sentido ou retrato de uma existência, apenas um contista maduro e perspicaz é
capaz de condensar em poucas páginas o suficiente para que possamos ver e
entender em um episódio singular “todo” o personagem, uma vez que ele e sua
psicologia estão “totalmente” presentes nesse episódio.
A.B. Baptista diz que [...] nada ou ninguém assegura que não é antes a
capacidade de ver que constitui uma representação para ser vista” (2006: 214).
Essa sentença não é apenas mais um jargão pós-estruturalista-modernista que
insiste em dizer que não há qualquer coisa que possua um valor em si, mas
sim, o olhar de quem olha e a disponibilidade de encontrar o que se procura,
que investem no objeto o sentido e o valor procurado. Sabemos que essa
discussão (pós-estruturalista) pode encontrar uma conclusão apenas num
ponto muito distante do qual pretendemos chegar. No entanto, a partir da
observação de Baptista, somos instigados a sublinhar e constranger esse
narrador que no conto machadiano ocupa um lugar tão fundamental
questionando-o até que ponto esse recorte é intenso, significativo e
representativo de uma vida ou se apenas esse significado lhe é atribuído. De
uma forma ou de outra, o certo é que um conto construído com o objetivo de
suscitar questões mais amplas do que as apontadas por Poe, estabelece uma
relação tão intrínseca entre o discurso do narrador e a anedota, que a
inteligibilidade da anedota passa a ser dependente da voz do narrador.
Não nada que permita confiarmos plenamente no narrador
machadiano. Pelo contrário. Uma das marcas dessa forma criada por Machado
é a autoridade com a qual o narrador se permite, a fim de legitimar o sentido
problematizador que atribuiu ao episódio, lapidá-lo até que pareça algo natural
e inquestionável. Mas, nada de natural no conto machadiano. Tudo é
resultado da forma condicionada pelo gosto do narrador. Ele é o responsável
desde o pequeno intróito que delimita a função e intenção do conto, até sua
forma, que dispensando o suporte naturalista, funda para cada conto uma
lógica própria e interna.
Todo esse poder que lhe é delegado, permite, em função dessa
coerência interna, algumas arbitrariedades que ao leitor não cabe julgar se são
verdadeiras ou falsas. Quando o narrador machadiano afirma que Custódio, de
O Empréstimo, “nascera com a vocação da riqueza, sem a vocação do
trabalho” ou quando diz que Garcia, de A Causa Secreta, “[...] possuía, em
40
gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres [...]”,
ele re-introduz no conto elementos do “todo” que anteriormente haviam sido
excluídos em função de um olhar mais limitado ao acontecimento. Esse tipo de
acréscimo, comum nos contos contemporâneos e não somente no
machadiano, é o que possibilita, em muitos casos, nos lançarmos num conto
também com uma perspectiva de “todo”.
A partir dessa explicação “geral” sobre Garcia, inferimos que a intenção
do conto não é somente retratar sua obstinação em entender Fortunato. Mais
do que isso, sabendo que ele “possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os
homens”, compreendemos que o recorte trabalhado pelo conto é uma
compactação intensa de todo o sentido de sua vida. O desejo de Garcia não se
limitava somente a decifrar Fortunato. Tentar decifrar os homens fazia parte
fundamental da psicologia e personalidade de Garcia. Como diria A. B.
Baptista, “todo” o Garcia está naquele momento, pois pelo caráter intenso do
conto, “todo” o Garcia está sendo representado naquele momento.
É importante salientarmos que no conto machadiano a interpretação do
narrador se sobrepõe determinantemente à anedota em si, de tal forma, que
seja esse em terceira pessoa (como em O Relógio de Ouro e O Anjo das
Donzelas) ou em primeira (como em Virgínius), somente é possível ter acesso
à anedota através de sua “narrativa-interpretativa”. Se levarmos esse raciocínio
adiante, nos conscientizaremos que, por conseqüência, todas as interpretações
que fazemos do conto, na verdade, são sempre interpretações de
interpretações. “A história contada”, segundo Baptista, “é, por isso, em primeiro
lugar, a história de uma narração, de alguém contando uma história” (2006:
218).
Todavia, como mais adiante veremos, nem sempre o narrador
estabelece um compromisso de narrar a estória imparcialmente, sem meter-lhe
uma ênfase aqui, outra ali. Como acontece em O Anjo das Donzelas, nem
sempre a leitura que o narrador faz do recorte selecionado se mostra correta.
Com isso, a complexidade torna-se ainda maior, pois, mesmo tendo a sua
forma determinada pelo discurso do narrador, o conto, ainda assim, deve se
apresentar ao leitor de uma maneira que ele possa discordar da interpretação
do narrador. Em pouquíssimas palavras, o narrador primeiro faz o que bem
entende com o conto, define sua forma e o qualifica. Depois, autoritariamente
41
se impõe como único meio de conhecermos a anedota. Por fim, nos entrega o
conto e nos deixa a vontade para não ficarmos presos a sua interpretação,
inclusive, permitindo que discordemos dele e realizemos novas leituras.
Ainda assim, todas essas notas sobre uma suposta forma do conto
machadiano foram escritas com muito receio, pois o que pretendemos até aqui
foi destacar mais alguns funcionamentos marcantes do seu conto, do que
definir uma regra ou teoria geral sobre sua forma. O receio de definir a forma
do conto machadiano, em boa parte se pelo que até agora comentamos
sobre o seu narrador autoritário, que a cada conto se permite criar, reinventar
ou se apropriar de formas mais antigas. O narrador machadiano,
paradoxalmente, ao mesmo tempo em que é o responsável pelo caráter
irredutível do conto, também é o elemento mais marcante, definidor, inovador e
que atravessa quase todos os contos de Machado.
1.4 Sobre a intratextualidade hipertextual dos contos de Machado
Transtextualidade é como Gerard Genette (2006) chama, de forma mais
ampla, as cinco diferentes possibilidades de um texto se relacionar com outros
textos. Ele diz que “[...] transtextualidade, ou transcendência textual do texto,
que definiria já, grosso modo, como tudo que o coloca em relação, manifesta
ou secreta com outros textos” (2006: 7). A primeira dessas possibilidades, e
que segundo Genette, teve em Julia Kristeva uma de suas maiores
exploradoras, é a intertextualidade. Resumidamente, ele diz que a
intertextualidade seria a “[...] co-presença entre dois ou vários textos, isto é,
essencialmente, e o mais freqüentemente, como presença efetiva de um texto
em outro” (Genette 2006: 8).
Para o próprio Genette, a mais abstrata das modalidades de
transtextualidade é a arquitextualidade. Diz ele que “trata-se de uma relação
completamente silenciosa, que, no máximo, articula apenas uma menção
paratextual (titular, como em Poesias, Ensaios, o Roman de la Rose, etc., ou
mais freqüentemente, infratitular: a indicação Romance, Narrativa, Poemas,
etc., que acompanha o título, na capa), de caráter puramente taxonômico”
(Genette 2006: 11).
42
Paratextualidade, o terceiro tipo de transtextualidade apresentado por
Genette, se caracteriza pela relação do texto, propriamente dito, e seu
“[...] paratexto: título, subtítulo, intertítulos, prefácios, posfácios,
advertências, prólogos, etc.; notas marginais, de rodapé, de fim de texto;
epígrafes; ilustrações; errata, orelha, capa, e tantos outros tipos de sinais
acessórios, autógrafos ou alógrafos, que fornecem ao texto um aparato
(variável) e por vezes um comentário, oficial ou oficioso [...]” (Genette 2006: 9).
Se tomarmos a idéia de paratextualidade, podemos dizer que a obra de
Machado é um prato cheio para os estudos transtextuais. Desde a Advertência
de seu primeiro romance, Ressurreição, até às primeiras páginas do último,
Memorial de Aires, Machado cita e nomeia com quais autores dialoga e quais
pensamentos lhe servem como norte. Na Advertência da primeira edição de
Ressurreição, ele explica suas intenções, tomando emprestadas as palavras de
Shakespeare:
[...] Minha idéia ao escrever este livro foi pôr em ação aquele
pensamento de Shakespeare:
Our doubts are traitors
And make us lose the good we oft might win,
By fearing to attempt.
Na sua original Advertência às Memórias Póstumas de Brás Cubas, diz
ele ao leitor:
Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem
leitores, cousa é que admira e consterna. O que não admira, nem
provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de
Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco.
Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a
forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti
algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a
pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá
sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas
aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o
43
seu romance usual, ei-lo fica privado da estima dos graves e do amor dos
frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.
Já na Advertência aos Papéis Avulsos, os dois citados são Diderot e São
João:
[...] Quanto ao gênero deles, não sei que diga que não seja inútil. O livro
está nas mãos do leitor. Direi somente, que se aqui páginas que parecem
meros contos, e outras que o não são, defendo-me das segundas com dizer
que os leitores das outras podem achar nelas algum interesse, e das primeiras
defendo-me com São João e Diderot. O evangelista, descrevendo a famosa
besta apocalíptica, acrescentava (XVII, 9): "E aqui sentido, que tem
sabedoria". Menos a sabedoria, cubro-me com aquela palavra. Quanto a
Diderot, ninguém ignora que ele, não escrevia contos, e alguns deliciosos,
mas até aconselhava a um amigo que os escrevesse também. E eis a razão do
enciclopedista: é que quando se faz um conto, o espírito fica alegre, o tempo
escoa-se, e o conto da vida acaba, sem a gente dar por isso.
Em Várias Histórias, além de (novamente) fazer referência a Diderot,
desta vez Machado transcreve uma citação do enciclopedista francês:
Mon ami, faisons toujours des contes...
Le temps se passe, et le conte de la vie
s'achève, sans qu'on s'en aperçoive.
A epígrafe de ginas Recolhidas é uma pequena citação de Montaigne:
“Quelque diversité d'herbes qu'il y ayt, tout s'enveloppe sous le nom de salade”.
Em Esaú e Jacó, antes de iniciar o primeiro capítulo, apenas uma frase de
Dante paira sobre o romance, sugerindo (ou despistando) algo acerca do
espírito do autor e do livro: “Dico, Che quando l’anoma mal nata...”. Por fim, em
Memorial de Aires, duas cantigas servem de anúncio para o desfecho de sua
obra romanesca:
Em Lisboa, sobre lo mar,
Marcas novas mandey lavrar...
(Cantiga de Joham Zorro)
44
Para veer meu amigo
Que talhou pryto comigo,
Alá vou, madre.
Para veer meu amado
Que mig’a preyto talhado, alá vou, madre.
(Cantiga d’el-rei Dom Denis)
14
Ainda sobre as outras possibilidade de transtextualidade propostas por
Genette temos a metatextualidade. Essa categoria designa a relação que “[...]
une um texto a outro texto do qual ele fala, sem necessariamente citá-lo
(convocá-lo) até mesmo, em último caso, sem nomeá-lo [...]” (2006: 11). Essa
estratégia, quase sempre silenciosa, ocorre através de alusões e diálogos
velados. Um exemplo de metatextualidade, tal como entende Genette, na obra
de Machado são as evocações e alusões críticas que ele faz a Darwin e sua
Evolução das Espécies. Ora, mesmo sem dar nome aos bois, sabemos que o
Humanitismo, os contos A Sereníssima República, Conto Alexandrino e a
teorização que resulta na máxima (cínica) “ao vencedor, as batatas! estão
inegavelmente evocando de forma silenciosa A Evolução das Espécies de
Darwin.
Mas, sem dúvida, a maior contribuição dada por Genette à teorização da
transtextualidade e que mais nos será útil para fundamentar a relação que
enxergamos entre os contos de Machado é a conceitualização de um quinto
tipo de transtextualidade: a hipertextualidade (2006: 12). É assim que ele a
define:
Entendo por hipertextualidade toda relação que une um texto B (que
chamarei hipertexto) a um texto anterior A (que, naturalmente, chamarei
hipotexto) do qual ele brota, de uma forma que não é a do comentário [...].
Dizendo de outra forma, consideremos uma noção geral de texto de segunda
mão (desisto de procurar, para um uso tão transitório, um prefixo que
abrangeria ao mesmo tempo o hiper- e o meta-) ou texto derivado de outro
texto preexistente. Esta derivação pode ser de ordem descritiva e intelectual,
em que um metatexto (por exemplo, uma página da Poética de Aristóteles)
14
Todas as Advertências e prefácios aqui transcritos foram cotejados das Obras Completas de
Machado de Assis. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1997.
45
“fala” de um texto (Édipo Rei). Ela pode ser de uma outra ordem, em que B não
fale nada de A, no entanto não poderia existir daquela forma sem A, do qual ele
resulta, ao fim de uma operação que qualificarei, provisoriamente ainda, de
transformação, e que, portanto, ele evoca mais ou menos manifestadamente,
sem necessariamente falar dele ou citá-lo (2006: 12-13).
Na verdade, o modo como Genette define hipertextualidade faz com que
ela possa ser vista mais do que como apenas um quinto tipo de
trantextualidade. A última passagem que transcrevemos demonstra como o
teórico, com esse conceito, foi capaz de ao mesmo tempo dissolver as
pequenas (e em muitos momentos desnecessárias) minúcias que diferenciam,
classificam e subclassificam as possíveis relações entre obras e resumir (em
poucas e óbvias palavras) o que em comum e de fato importa nas diversas
possibilidades de relação entre textos. Se, substancialmente, a
hipertextualidade é definida a partir da idéia de que um texto B o existiria tal
como ele é sem que anteriormente existisse um texto A, podemos dizer que
qualquer um dos outros quatro tipos de transtextualidade, no final das contas,
também pode ser visto como um processo hipertextual.
O conceito de hipertextualidade consegue ao mesmo tempo ser
simplificador e abrangente. Ele nos poupa perder tempo com justificativas
acerca das terminologias que indicam qual tipo de relação enxergamos entre
obras e nos deixa livre para pesquisar o que na verdade há de mais importante
numa relação transtextual, isto é, o grau de influência ou determinação que um
texto exerce sobre outro.
O diálogo que a obra de Machado estabelece com A Vida e as Opiniões
do Cavalheiro Tristram Shandy (Laurence Sterne) e o pensamento de Pascal é
um ótimo exemplo de como a hipertextualidade pode (de forma mais simples,
mas não simplista) reunir sob o mesmo enfoque e designação o que antes
seria (ao nosso ver, desnecessariamente) dividido em uma análise metatextual
e outra paratextual.
Primeiro vejamos o que anteriormente seria classificado como
paratextualidade. Nas Memórias Póstumas, alguns aspectos da
intencionalidade do autor são declarados e inegáveis. Machado faz questão de
citar quais autores, como diz Genette, foram fundamentais para que ele
46
escrevesse a estória de Brás Cubas tal como a conhecemos. Entretanto, a
hipertextualidade entre sua obra e a de Sterne não se evidencia apenas
através da referência explícita ao nome do escritor irlandês. Mesmo que Sterne
não fosse mencionado no prólogo das Memórias, percebemos (apesar de
alguns críticos insistirem em não ressaltar este aspecto como fundamental) que
As Memórias Póstumas de Brás Cubas é uma obra atravessada pelo estilo de
narrativa digressiva que Machado absorveu de Sterne. Por isso, podemos dizer
que se ele escreveu as Memórias, tal como a conhecemos, isso também se
deve significativamente à existência prévia d’A Vida e as Opiniões do
Cavalheiro Tristram Shandy. Parafraseando Genette (2006: 14) quando diz que
Virgílio contou a estória de Enéias à forma de Homero, dizemos que Machado
contou a estória de Brás à forma de Sterne
15
.
Do mesmo modo, os contos A Igreja do Diabo e Adão e Eva mostram a
hipertextualidade (e que anteriormente seria apontada como metatextualidade)
entre a literatura de Machado de Assis e a filosofia de Pascal. Nesses contos
como também em alguns trechos das Memórias Póstumas – mesmo sem
nomear ou citar Pascal, Machado está constantemente evocando suas idéias,
seja de forma direta ou indireta, discordando ou concordando.
Há, entretanto, uma outra possibilidade de hipertextualidade não
apontada por Genette, mas que pode ser exemplificada a partir da discutida
suposta recepção de Schopenhauer por Machado. Como relembra Luiz Costa
Lima, nunca nenhuma pesquisa que se propôs a mostrar a presença das idéias
desse filósofo na obra de Machado, conseguiu alcançar profundidade
indiscutível (Candido... [et al.] 1999: 229). Isso nos leva, num primeiro
momento, a questionarmos se de fato Machado o teria lido. E posteriormente,
apesar de estranho, a repensar se mesmo entre autores que nunca se leram
seria possível uma relação hipertextual.
É importante termos em mente que, em cada época, contexto intelectual,
literário ou acadêmico, paira de forma predominante alguma corrente de
pensamento, sobre o mundo, as artes e a ética. Esta corrente de pensamento
15
Sobre a forte presença da Sátira Menipéia na obra de Machado de Assis, ver: REGO,
Enylton Jode. O calundu e a panacéia: Machado de Assis, a sátira menipéia e a tradição
luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. Mais especificamente sobre a
importância de Laurence Sterne para Machado, ver: ROUANET, Sérgio Paulo. Riso e
Melancolia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
47
que em determinado momento se encontra em um lugar de destaque, de tão
impregnada nas discussões do seu tempo, em muitos momentos, mesmo que
indiretamente, acaba fazendo parte das reflexões de quem com ela
intencionalmente não estabelece diálogo. Ou seja, mesmo que um autor não
esteja intencionalmente e conscientemente dialogando com uma determinada
corrente de pensamento, uma imensa possibilidade dele indiretamente e
não intencionalmente dialogar com as concepções e implicações desse
pensamento.
Nos dias de hoje, por exemplo, mesmo um escritor que não seja leitor
de Freud ou um conhecedor da filosofia de Heidegger e Nietzsche, muito
provavelmente, quando iniciar a escritura do seu romance ou tese, tangenciará
problemas relacionados ou conseqüentes das idéias desses pensadores. Isso
ocorre, pois, quando esse escritor tem em mente o pensamento de algum outro
autor de sua preferência, inevitavelmente ele se insere em uma cadeia de
idéias, pensamentos e obras que lhe faz entrar em contato indireto, via a
dissolução e o desdobramento das idéias, com concepções (supostamente)
nascidas das páginas de Freud, Nietzsche e Heidegger. Deste modo, não
chega a ser um absurdo considerarmos a hipótese de que se, por exemplo,
Freud, Nietzsche e Heidegger nunca tivessem escrito, muito provavelmente
toda a literatura, filosofia, sociologia e história que assistimos nascer desde
1900 seria outra.
Dessa forma, mesmo que Machado não tenha lido Schopenhauer, é
grande a possibilidade dele ter sido indiretamente e inconscientemente
influenciado (de forma convergente ou divergente) pelas suas idéias, que em
sua época estavam em voga. Em outras palavras, é muito provável que
Machado estivesse, pelo período em que viveu, mesmo sem perceber,
respirando um ambiente cultural e intelectual impregnado pelas idéias, ou
implicações das idéias, de Schopenhauer.
Para que uma pesquisa consiga realmente compreender o papel da
hipertextualidade na construção de uma obra, é necessário que ela transcenda
a simples preocupação em classificar e anotar os indícios da presença de um
texto em outro texto. É fundamental que ela além das linhas e entrelinhas e
tome como seu objetivo principal verificar até que ponto, tal como propõe
48
Genette, uma obra B não existiria da forma que existe sem a existência prévia
da obra A.
O modo como a equação hipertextual propõe a relação entre B e A,
entre outras coisas, liberta a análise transtextual da condição de refém da
intencionalidade do autor e do diálogo óbvio e factual entre duas obras. Todo
grande texto está inevitavelmente inserido em uma tradição (literária, filosófica,
etc.) ou em uma teia de idéias de uma determinada época. Daí ele
necessariamente se relacionar com outros textos e (intencionalmente ou não)
incorporá-los a sua estrutura. Não são apenas os textos e autores que um
escritor cita ou entra em contato direto que podem ser considerados
importantes para a formatação definitiva do seu texto. Também fazem parte da
construção de um texto, em maior ou menor medida, aqueles que lhe chegam
diluídos e disfarçados.
Machado explicita, através de citações ou referências nominais, em
prólogos e prefácios, os textos e autores que foram fundamentais na
construção de sua obra. Isso praticamente nos impede de negar que tais
autores estão, de uma forma ou de outra, presentes nas linhas e entrelinhas de
seus romances e contos. Ainda assim, seria necessário um outro trabalho caso
fosse nossa intenção apontar todas as referências dispersas e não declaradas
existentes em sua obra.
Como veremos melhor no segundo capítulo desta dissertação, nossa
proposta não é evidenciar a hipertextualidade entre os contos de Machado e as
idéias e estilos de outros autores, mas demonstrar que, durante toda sua
trajetória de contista, ele estabeleceu uma importante (e muito possivelmente
consciente) relação hipertextual com seus próprios primeiros contos.
Mostraremos que a hipertextualidade entre os seus contos maduros e
experimentais se por uma constante retomada de problemas, que na
maioria das vezes foram esboçados pela primeira vez nos seus primeiros
contos e, posteriormente, aprimorados e novamente apresentados nos seus
contos maduros
16
. Ao verificarmos que não são poucos os momentos nos quais
16
Nossa preocupação ao longo desta seção é demonstrar que a existência de temas
recorrentes entre os contos de Machado pode ser lida como um aspecto intertextual, ou melhor
dizendo, intratextual. Os detalhes que clarificam e confirmam essa intratextualidade, isto é, a
presença do mesmo problema em contos publicados antes e depois de 1880, serão expostos
de forma mais minuciosa no segundo capítulo.
49
localizamos entre seus primeiros contos alguns dos mais importantes
problemas de suas obra madura, poderemos contestar a teoria de que sua
obra contista é marcada por uma ruptura na década de 1880 e, que ao invés
disto, a intratextualidade deve ser considerada como uma das principais e mais
importantes características de sua obra contista
17
.
Augusto Meyer também notou uma “certa nota monocórdia” na ficção
machadiana. Segundo o crítico, “[...] a variedade de temas e a mudança de
perspectiva não chegam a determinar uma verdadeira renovação de romance
para romance, de conto para conto” (1964: 163). Se a intratextualidade entre
seus contos (mesmo que não muito explorada) não chega a ser uma novidade
entre os seus críticos, podemos afirmar que a hipertextualidade entre seus
contos maduros e experimentais não somente é um aspecto praticamente
inexplorado, e por conseqüência, não levado em conta quando se pretende
compreender o processo de desenvolvimento dos seus contos numa
perspectiva integral.
Vale relembrar que nossa proposta não é afirmar que Machado
constantemente retoma exatamente seus primeiros contos, personagens ou
estórias, mas, sim, alguns dos mesmos traços esboçados nesses primeiros
personagens e problemas tratados nesses primeiros contos. O que sem dúvida
ainda nos permite considerar esse procedimento como hipertextual, se
seguirmos a nomenclatura de Genette. Afinal, se como dizem, Machado
alcançou em O Espelho um alto grau de profundidade ao abordar a relação
entre um indivíduo e um “outro”, é muito provável que isso tenha sido possível
também como decorrência de suas primeiras experiências literárias envolvendo
esse mesmo problema como pode ser visto em O Machete. Do mesmo modo,
devemos ser capazes de perceber que para alcançar a limpidez, economia e
lucidez teórica com a qual aborda o tema da relatividade nos contos Idéias de
Canário e A Desejada das Gentes, Machado exercitou a problematização
17
Dizemos que na obra contista de Machado uma intratextualidade, pois, como veremos ao
longo deste trabalho, acreditamos ser constante, através da retomada de temas, a relação de
diálogo (hipertextual) entre seus primeiros e maduros contos. Por isso, sempre que falarmos da
intratextualidade da obra contista de Machado, teremos em mente o sentido dado por Genette
ao conceito de hipertextualidade.
50
desse mesmo tema em alguns de seus primeiros contos, como, por exemplo,
em Cinco Mulheres e A Herança
18
.
Ler os contos de Machado de uma perspectiva intratextual, nos permite
imaginar que a forma dos seus contos maduros se deve significativamente ao
fato dele ter trabalhado, do início ao fim de sua obra, com temas recorrentes. O
que por conseqüência nos leva cada vez mais a pensar que a construção de
alguns de seus personagens psicologicamente mais profundos e o modo como
aborda determinados problemas, é resultado, não de uma ruptura com os seus
primeiros contos, mas, pelo contrário, entre outras coisas, de um constante
retorno a alguns problemas e personagens desses primeiros contos.
Partindo da equação que, segundo Genette, caracteriza a
hipertextualidade, tomemos os contos publicados por Machado a partir de 1880
(a sua obra madura) como sendo um corpo formado por contos do tipo
hipertexto e os publicados até 1880 (seus contos experimentais) como formado
por contos do tipo hipotexto. Pois bem, se um hipertexto, entre outras coisas, é
fruto de um diálogo com um hipotexto e, se classificamos os contos maduros e
experimentais de Machado como hipertextos e hipotextos, podemos dizer que
seus contos maduros, entre outras coisas, são fruto de uma relação
hipertextual com seus primeiros contos. Essa idéia reforça ainda mais a
concepção que nutrimos da obra contista de Machado como um todo coeso ou
uma espécie de sistema, pelo qual transpassa um modo de pensar coerente,
que interliga e estabelece relações de amadurecimento, complementaridade e
contraposição entre os seus diversos personagens, estórias e problemas.
A relação entre os contos experimentais e maduros não
necessariamente reflete apenas um amadurecimento no modo de abordar os
problemas. Em vários casos, essa intratextualidade é verificada justamente a
partir de visões diferentes, ou melhor, complementares, que seus contos
oferecem sobre o mesmo tema. Deste modo, ao realizar uma leitura integral
dos seus contos, concluímos que em sua obra contista há o que podemos
chamar de uma espécie de “intratextualidade complementar”. Isto é, a mesma
questão está presente em vários contos, mas em cada um deles de uma forma
18
No segundo capítulo mostraremos os detalhes que nos fazem crer que assim como O
Espelho e O Machete tratam do mesmo tema, também Cinco Mulheres e A Herança abordam o
mesmo problema que Idéias de Canário e A Desejada das Gentes
51
diferente e apresentando novas possibilidades de abordagem. Esta coerência e
aparente intenção em dessecar alguns problemas, passa a sensação de
Machado, mesmo não sendo filósofo, construir algo parecido com um “sistema”
de pensamento, o que não necessariamente seria uma exigência para um
escritor de ficção.
Como veremos ao longo deste trabalho, este modo de abordar os
contos de Machado, sempre levando em conta uma leitura integral da sua obra
e fazendo correlações entre contos produzidos em diferentes períodos de
alguma forma se assemelha ao que Antonie Compangnon (2001) chama de
método das passagens paralelas. Pois, assim como o resultado de nossa
pesquisa nos permite acreditar que sua obra contista forma uma espécie de
sistema coeso e coerente, também a adesão ao método das passagens
paralelas, segundo Compagnon, implica “aceitar uma presunção de
intencionalidade, isto é, de coerência, intenção, não significando,
evidentemente, premeditação, mas intenção em ato” (2001: 77).
Admitir a existência desse suposto “sistema”, “linha de pensamento” ou
“coesão”, a partir do qual conhecemos as concepções do autor sobre arte,
personalidade, criação, amor, educação, política, verdade, etc., é possível
se cada conto for concebido como um ponto conscientemente elaborado e
responsável pela confecção de uma teia de idéias e pensamentos interligados.
Diante das questões que estamos tratando, não há como negar a
necessidade de pelo menos mencionar (e admitir o incômodo que nos causa) o
problema da intencionalidade do autor. De fato, nossas interpretações, como
diz Compagnon, consideram relevante a intenção do autor, senão como
premeditação ou intenção prévia, pelo menos como estrutura ou sistema (2003:
72), o que não quer dizer que ignoramos a existência do inevitável e
imprevisível espaço entre a intenção do autor em escrever algo e os
significados que a seqüência de suas palavras podem produzir.
Admitimos a existência e importância da intencionalidade do autor,
entretanto, também admitimos a impossibilidade e conseqüente precariedade
de fundamentarmos nosso trabalho a partir dessa idéia. Por isso, diante dos
nossos objetivos e métodos, a intencionalidade do autor não chega a
representar uma aporia que nos obrigue a dedicá-la muitas linhas. Afinal, se
por um lado todas as nossas interpretações deixam transparecer que
52
consideramos a intencionalidade do autor como algo que existe, é relevante,
deixa marcas no texto e pode ser problematizado e inferido, por outro, em
nenhum momento demonstramos entendê-la como determinante para a
construção dos significados e interpretações do texto.
São muitos os modos como a existência de um texto A pode interferir na
construção da forma e conteúdo de um texto B. Essas possibilidades vão
desde o que Genette chamou de transformação, imitação, transestilização,
passando pelo processo mais genérico de influência (direta ou indireta) e
chegando ao ponto de determinar que o autor intencionalmente aborde em
relação a outra obra, um tema diferente ou mesmo semelhante, mas a partir de
uma visão oposta, complementar ou suplementar. Como falamos, em alguns
casos, impressão da intratextualidade entre os dois períodos da obra
contista de Machado acontecer pela diferença, contraponto ou
complementaridade de perspectivas apresentadas entre um conto e outro.
Entre os seus primeiros contos, alguns que se destacam pela qualidade
estão os que têm como tema central personagens artistas. Aurora sem Dia e O
Machete são dois desses no quais os personagens principais são artistas ou
pelo menos pretensos artistas. Entre os contos maduros: Um Homem Célebre,
Cantigas de Esponsais, Habilidoso e Um Erradio. No próximo capítulo, na
seção dedicada a esse problema, apontaremos mais detalhadamente como
esses dois grupos de contos se relacionam. Por ora, cabe ressaltar que ao
admitirmos uma relação hipertextual entre eles, podemos não apenas enxergá-
los como um exemplo de amadurecimento estilístico e psicológico de Machado
como contista, mas, também, conhecer a diversidade e complementaridade de
suas opiniões sobre a figura do artista e seu processo de criação.
Somente lendo Aurora sem Dia, O Machete, Um Homem Célebre,
Cantigas de Esponsais, Habilidoso e Um Erradio como interligados pelo
mesmo problema – isto é, o personagem artista e o problema da inspiração – é
que entenderemos que Machado não tinha uma concepção fechada ou uma
resposta definitiva sobre o problema da inspiração e criação artística. Se o
problema e a forma final dos considerados maduros foi em alguma medida
determinada, condicionada ou influenciada pela existência dos contos
experimentais, foi porque Machado, aparentemente, os escreveu pretendendo
em cada um deles propor uma diferente perspectiva de arte, artista e criação.
53
Podemos conceber esses contos como interligados por uma espécie de
circuito, no qual cada nova perspectiva apresentada num conto é resultado de
sua relação de complementaridade com a perspectiva apresentada no conto
anterior. que falamos em circuito, esse “circuito-machadiano” funcionaria
como que em corrente continua, ou seja, cada conto acumularia a carga, i. e.,
as idéias expostas no conto anterior e conseqüentemente contribuiria para a
construção de um circuito, sistema ou ponto de vista coeso, interligado e
coerente.
Um outro exemplo de como a constante problematização de um mesmo
tema pode nos levar a crer que há na sua obra contista o que decidimos
chamar de “intratextualidade complementar” é a presença do mesmo problema,
mas abordado de diferentes enfoques, nos contos O Machete, O Espelho, O
Segredo do Bonzo e Teoria do Medalhão. No próximo capítulo mostraremos os
detalhes que nos levam a acreditar que esses contos podem ser lidos como
fazendo parte de um “projeto” que se propõe a abordar de forma multifocal o
lugar do outro na construção de nossa personalidade e valoração das coisas.
Admitindo que esses contos problematizam o mesmo tema, mas a partir
de diferentes abordagens, concluiríamos que a hipertextualidade entre eles se
caracterizaria pela possibilidade de em cada um deles observarmos como
ocorre e quais são as diferentes conseqüências da inevitável relatividade que a
presença do olhar de um outro exerce na construção da nossa personalidade
(O Espelho), na legitimação das verdades de um discurso ou teoria (O Segredo
do Bonzo), na determinação do valor e reconhecimento das coisas (O
Machete) e na tentativa mesquinha de ser aceito na sociedade da forma mais
discreta, dissimulada e menos original possível (Teoria do Medalhão).
Em meio a essa produtiva intratextualidade, pelo menos dois casos
que servem para destacar sua constante retomada de alguns temas e o seu
amadurecimento em relação ao estilo e ao modo de abordá-los. O primeiro
deles é a aproximação entre Um Esqueleto e A Causa Secreta. Se tivéssemos
que classificar a derivação de hipertextualidade existente entre esses dois
contos a partir dos dois tipos fundamentais de hipertextualidade propostos por
54
Genette (imitação e transformação
19
), com alguma reserva, seria como
transformação
20
.
Se não podemos afirmar que uma é exatamente a reescritura
amadurecida do outro, ao menos podemos dizer que a estrutura” sobre a qual
A Causa Secreta foi montada é praticamente uma derivação de Um Esqueleto.
Nas duas estórias, além da loucura ocupar um lugar central, também os três
personagens principais de cada uma desempenham funções muito
semelhantes. Em ambos temos como personagem principal um homem “louco”
e mais velho que os demais; sua esposa, que mais sofre com seus
comportamentos e um jovem amigo da família, que primeiro desperta para a
patologia do comportamento do personagem principal.
Tanto Fortunato d’A Causa Secreta quanto Dr. Belém de Um Esqueleto,
com pequenas diferenças, desconfiam da existência de uma paixão entre suas
esposas e seus jovens amigos. Ambos são sádicos, marcados por um forte
apreço à cientificidade e, apesar de lúcidos e conscientes de suas ações, não
conseguem nelas enxergar qualquer estranheza, que também nos dois casos é
impactante e faz os dois jovens não conseguirem num primeiro momento
assimilá-la muito bem.
Tendo em mente o modo como Genette define transformação e ao
mesmo tempo, novamente, parafraseando a relação que ele diz existir entre o
Ulisses de Joyce e a Odisséia de Homero, diríamos que o Machado maduro
tratou em A Causa Secreta o mesmo problema tratado pelo jovem Machado
em Um Esqueleto: a loucura. Mas, desta vez, de uma forma diferente, mais
relativa e profunda.
Na obra de Machado de Assis, com certeza pelo menos um exemplo
de transestilização. Em 1862, ele publica O País das Quimeras. Quatro anos
mais tarde (1866), retoma essa mesma estória, mas desta vez modificando o
estilo, o lugar do narrador, alguns detalhes e alterando o título para Uma
Excursão Milagrosa.
19
Em poucas palavras, o processo de transformação consciente em o texto imitativo contar a
mesma estória do texto imitado, mas de forma diferente. Como exemplo, Genette diz que “[...]
Joyce conta a história de Ulisses de maneira diferente de Homero [...]”. o processo de
imitação consistiria em um texto imitativo contar algo diferente do que o texto imitado conta,
mas seguindo o seu modelo. Como exemplo, Genette diz que “[...] Virgílio conta a história de
Enéias à maneira de Homero [...]” (Genette 2006: 14-15).
20
Na seção 2.8 do capítulo 2 apontaremos mais minuciosamente como e quais detalhes
ressaltam e legitimam a hipertextualidade entre esses dois contos.
55
Porém, se esse é o único caso que seguramente afirmamos ser um
exemplo de transestilização, a relação entre O Segredo de Augusta e Uma
Senhora nos convida a investigar suas semelhanças com o conceito de
transestilização e, deste modo, a tomá-la como segunda evidência, talvez
maior do que qualquer outra, da intratextualidade entre os primeiros e maduros
contos de Machado.
Nesse caso, Machado não apenas retoma após vários anos o mesmo
tema a tentativa de uma mulher retardar o envelhecimento – como também o
mesmo contexto no qual ele é problematizado.
Tanto Augusta, de O Segredo de Augusta, como D. Camila, de Uma
Senhora, tentam retardar a sensação de envelhecimento evitando ou adiando
ao máximo o casamento de suas filhas. Para essas duas jovens senhoras, com
o tempo, o casamento de suas filhas naturalmente lhes fariam avós. O que as
levariam a constatação definitiva e irrefutável que estariam de fato
envelhecendo.
Não acreditamos somente que para Machado escrever Uma Senhora foi
fundamental que ele tenha revisitado o problema exposto em O Segredo de
Augusta. Mais do que isso, acreditamos que entre um conto e outro houve um
processo muito semelhante ao de transestilização. Para contar a estória de D.
Camila, Machado se reapropriou da de Augusta, mas desta vez escreveu um
conto mais sucinto, psicologicamente mais profundo e desprovido de qualquer
aparente conselho moralizador.
Para Genette, “[...] toda transestilização que não se restringe nem a
uma pura redução, nem a uma pura ampliação [...] procede inevitavelmente por
substituição, isto é, segundo a fórmula café com creme supressão + adição”
(2006: 38). Ou seja, não são as significativas diferenças entre um conto e outro
que impossibilitam o crítico considerá-los como fazendo parte de um mesmo
processo de hipertextualidade e transestilização.
Estamos conscientes de que por essa intratextualidade que acreditamos
existir entre os primeiros contos e os maduros ocorrer através de uma não
declarada constante recorrência de temas, em certos momentos, nossas
interpretações e correlações podem parecer apenas frutos de nossas
56
observações e interpretações enquanto leitor
21
. O que, se de um lado, em certa
medida, não deixa de ser verdade, de outro, não pode ser considerado como
um problema analítico e muito menos metodológico. Em nossa defesa não
precisamos ir muito longe. Primeiro, lembremos que Michel Riffaterre,
visivelmente atribuindo ao leitor um papel de destaque em relação à
constatação da intertextualidade, diz que “[...] O intertexto é a percepção pelo
leitor de relações entre uma obra e outras, que a precederam ou as
sucederam” (apud Genette 2006: 8-9). Depois, com mais fôlego, mas ainda
atribuindo ao leitor o mesmo papel decisivo, o próprio Genette afirma que:
Quanto menos a hipertextualidade de uma obra é maciça e declarada,
mais sua análise depende de um julgamento constitutivo, e até mesmo de uma
decisão interpretativa do leitor [...] depois do que as confirmações de detalhe
[que confirmem a hipertextualidade] não faltarão, simples tarefa do engenho
crítico. Da mesma forma posso buscar em qualquer obra os ecos parciais,
localizados e fugidios de qualquer outra anterior ou posterior. (2006: 18).
Apesar de acreditarmos que uma leitura intratextual da obra contista de
Machado deve ser vista como imprescindível a quem deseja compreender a
evolução dos seus contos e como alcançou sua maturidade literária,
concordamos com Genette quando ele diz que:
“ [...] o recurso ao hipotexto nunca é indispensável para a simples
compreensão do hipertexto. Todo hipertexto, ainda que seja um pastiche, pode,
sem "agramaticalidade" perceptível, ser lido por si mesmo, e comporta uma
significação autônoma e, portanto, de uma certa maneira, suficiente” (2006:
44).
21
Do mesmo modo em relação às interpretações do segundo capítulo.
57
CAPÍTULO II
UM OLHAR MAIS ATENTO SOBRE OS PRIMEIROS CONTOS
2.1 O que (pouco e repetidamente) se falou sobre os primeiros contos
Em 1968, Antonio Candido publica Esquema de Machado de Assis. Seu
clássico ensaio até hoje se mantém como referência obrigatória para os que
estudam a obra do escritor carioca. Em dezessete páginas e com uma delicada
escrita, Antonio Candido apresenta as maiores influências de Machado, os
principais aspectos de sua prosa, as várias tendências interpretativas que ao
longo dos anos se debruçaram sobre o seu trabalho e de forma
extremamente esquemática faz uma exposição dos seis problemas que ele
acredita serem os principais, mais abordados e freqüentes na sua obra.
Segundo Antonio Candido (2004), esses problemas que perpassam
essencialmente toda a obra de Machado de Assis são: (1) a formação da
identidade, (2) a relação entre o fato real e o fato imaginado, (3) o sentido do
ato, (4) a busca pela perfeição, (5) a relatividade das coisas, e (6) a tomada do
homem como objeto do próprio homem. Fazendo referências aos contos e
romances de Machado, A. Candido faz uma pequena explanação sobre cada
um desses problemas e quais seriam os principais estudos realizados pela
crítica sobre cada um deles.
As questões levantadas como fundamentais e os contos e romances nos
quais ele localiza esse material, de fato, o exatos e convincentes. No
entanto, duas questões significativas na verdade, uma desdobramento da
outra – deixam de ser examinadas. Em nenhum momento A. Candido comenta,
cita ou aponta a presença, ou não, desses problemas entre os contos
publicados até os Papéis Avulsos. Simplesmente ele os ignora.
Conseqüentemente, acaba também não problematizando o discurso
estabelecido pela crítica que considera haver duas fases na obra de Machado:
uma “romântica” e outra “realista”. Ele não reflete até que ponto esses
primeiros trabalhos se mostram como embriões do que ficou conhecido como a
obra madura de Machado de Assis ou se seriam apenas uma espécie de corpo
estranho que não estabelece qualquer relação ou semelhança com os seus
trabalhos posteriores à década de oitenta e por isso não merecem ser
estudados.
58
Apesar dessas observações, decidimos adotar o trabalho de Antonio
Candido como um dos principais referenciais de nossa pesquisa, pois o seu
Esquema, sendo um dos mais amplos e o mais esquemático, de uma forma ou
de outra, abrange quase todos os problemas também apontados por outros
críticos que igualmente se propuseram a mapear os problemas fundamentais
da obra de Machado.
Em 1858 Machado de Assis inicia sua carreira de contista com a
publicação do conto Três Tesouros Perdidos, no periódico A Marmota
Fluminense. Entre essa primeira publicação e o início da década de oitenta
período que marca o nascimento de sua obra madura – ele publica 103 contos,
sendo 85 desses no Jornal das Famílias (1863 -1878). Suas duas primeiras
coletâneas de contos (Contos Fluminenses e Histórias da Meia-Noite) reúnem
sob a organização do próprio autor 13 desses primeiros contos.
Como o próprio nome indica, o Jornal das Famílias era uma publicação
familiar, feita quase que especificamente para atender ao gosto do público
feminino. Por isso, seu conteúdo era constantemente submetido à vigilância
dos maridos e pais. Suas edições traziam sempre receitas de culinárias,
páginas de moda, poemas sentimentais ou religiosos e um ou dois contos.
Segundo Jean-Michel Massa, os contos publicados nesse jornal “encerram um
entusiasmo moral às vezes simplista proposto à meditação das leitoras e,
eventualmente, dos leitores”. Mesmo os contos escritos por Machado, segundo
Massa, “constituem um vade-mecum da arte de viver e de amar que se
aconselha às brasileiras, jovens e menos jovens” (1971: 245).
Ainda segundo J. M. Massa, esses contos praticamente não apresentam
humor ou irreverência. Seus personagens são “lubrificados, agem da maneira
que deles se espera” e “correspondem a tipos previamente definidos” (Massa
1971: 546). Contudo, apesar dos Contos Fluminenses ser quase todo
composto por narrativas anteriormente publicadas no Jornal das Famílias,
Massa considera que Machado, ao reuni-los em formato de livro, ao contrário
do que pensa L. M. Pereira, sugere o somente uma significação para o seu
critério de escolha, mas também uma tentativa de estabelecer uma certa
unidade temática ou formal entre esses contos.
As narrativas que compõem essa coletânea, segundo Massa, além de
serem estórias morais que retratam malfeitores sempre castigados e exemplos
59
que não devem ser seguidos (1971: 614-615), “têm em comum o fato de não
serem realistas em nenhum sentido do termo” (1971: 613). Mesmo acreditando
que os Contos Fluminenses representam um passo à frente na carreira de
Machado, Massa permanece considerando-os moralizadores, pedagógicos e,
aparentemente, combatentes da hipocrisia e das calúnias.
Lúcia Miguel Pereira, por sua vez, considera que Machado “escolheu ao
acaso” as narrativas que compõem os Contos Fluminenses (1988: 134).
Diferentemente de Massa, ela não consegue ver nesse livro qualquer tipo de
unidade e chega, inclusive, a afirmar radicalmente que tanto ele, quanto
Histórias da Meia-Noite, “nada valem” (Pereira 1988: 135). Pelo menos, a
escritora percebe que entre esses primeiros contos, encontramos alguns temas
que no futuro Machado retomaria com mais excelência. Para L. Miguel Pereira,
do mesmo modo que O Segredo de Augusta, de Contos Fluminenses, seria
(inegavelmente) o germe de Uma Senhora, Senhora do Galvão seria a
retomada aprimorada de O Relógio de Ouro (1988: 136).
em relação às Histórias da Meia-Noite, Lúcia Miguel mostra-se um
pouco mais generosa e admite que algumas de suas páginas são “[...]
apreciáveis. As Bodas de Luís Duarte, Ernesto de Tal, Aurora sem Dia, têm
alguma coisa do verdadeiro Machado, o que se revelaria inteiramente com
as Memórias Póstumas de Brás Cubas (Pereira 1988: 136). Apesar de
também concordarmos com a imensa superioridade dos contos publicados
após a década de oitenta e com as limitações daqueles publicados nos Jornal
das Famílias, o que nos frustra nas biografias escritas por J. M. Massa e
principalmente – L. M. Pereira é o fato de ambas não terem conseguido
enxergar a partir desses primeiros contos, que Machado não somente não
poderia ser considerado definitivamente um autor romântico, como também
muitos dos temas e elementos que futuramente caracterizariam sua
profundidade psicológica, já podiam ser notados nas suas primeiras produções.
Apesar desses dois estudos biográficos aparentemente mostrarem
diferentes opiniões sobre esses primeiros contos, no fim das contas, ambos
nutrem o mesmo desprezo e falta de interesse em estudá-los com mais
cuidado. L. M. Pereira considera que não nesses dois livros “um contato
quente com a realidade. Tudo artifício, tudo jogo de palavras” (1988: 136). J.
M. Massa, fazendo objeção direta à opinião de L. M. Pereira, ao mesmo tempo
60
em que diz que esses contos na verdade são “obras engajadas num combate
de edificação” (1971: 616), afirma também não serem realistas em nenhum
sentido” (1971: 613). Por fim, os dois concordam que essas narrativas, por se
adequarem ao espírito do Jornal das Famílias, quase sempre recriam um
universo permeado de romances, nos quais as moças de família precisam
distinguir entre os rapazes bem intencionados e os interesseiros. Para esses
críticos tudo giraria em torno de desgostos amorosos, galanteios, traições,
paixões, conselhos moralizantes e exemplos de condutas a serem seguidos.
Na biografia que escreveu, L. M. Pereira disse que nesses primeiros
livros observamos em Machado apenas “um autor romântico” (1988: 133).
Suas estórias “[...] dispunham apenas de três ou quatro tipos femininos, todos
copiados da galeria dos manequins românticos [...]”, em seguida, complementa
dizendo que “os homens ainda são mais estereotipados” (1988: 135).
Felizmente, em seu estudo posterior (Prosa de Ficção) ela parece reavaliar
esses mesmos livros e concordando com J. M. Massa que considerava não
haver neles “qualquer cor local, nenhum pitoresco” (1971: 614) desta vez,
não reconsidera ter classificado Machado como romântico, mas também
admite haver nesses textos alguns traços psicológicos até então inexistentes
em nossa literatura:
Mesmo em seus primeiros livros, quando ainda o cerceavam os
cânones românticos e possivelmente o inibia a timidez, o receio de ser
diferente dos outros, de enveredar por caminhos até então indevassáveis, já as
suas figuras se distinguem pela independência em relação ao meio físico e ao
moralismo convencional. Não obedeceu nem ao preconceito, então de rigor, de
filiar à natureza tropical o feitio das criaturas, nem ao de fazer personagens
exclusivamente boas ou más, tão caro ao romantismo. Os temas não
continham nenhuma novidade, eram em sua maioria as cediças variações
sobre o amor, mas os tipos demonstravam uma diferenciação psicológica a
bem dizer inexistente em nossa ficção. (Pereira 1957: 63)
Outro clássico trabalho sobre a obra de Machado de Assis é Introdução
a Machado de Assis de Barreto Filho. Se lhe fazemos menção, certamente é
menos pela qualidade de suas interpretações e mais por ele, apesar das suas
61
limitações, ser um dos estudos que mais páginas dedicou aos contos
machadianos. Seu trabalho pouco tem de original e se fundamenta quase que
por completo em repetir comentários e interpretações feitas por outros críticos;
tais como Lúcia Miguel Pereira, Mário Matos, Alcides Maia e outros. Nas
poucas linhas que dedica aos primeiros contos de Machado, além de
transcrever uma citação de Lúcia Miguel Pereira, ele se limita a simplesmente
classificá-los como “medíocres, tateantes, sem convicção” (Barreto Filho 1980:
65). Fora isso, sugere, sem exemplificar, que apenas algumas linhas desses
contos, apesar de românticos, anunciavam o grande contista que Machado
se tornaria.
Felizmente podemos reunir um pequeno grupo de trabalhos que se
propõem a analisar a obra machadiana sob uma nova perspectiva. Silviano
Santiago, em seu estudo sobre Dom Casmurro, considera que:
é tempo de se começar a compreender a obra de Machado de Assis
como um todo coerente organizado, percebendo que à medida que seus textos
se sucedem cronologicamente certas estruturas primárias e primeiras se
desarticulam e se articulam sob forma de estruturas diferentes, mais complexas
e mais sofisticadas (2000: 27).
Alguns desses poucos estudos procuraram entender a obra de Machado
como um sistema no qual a crítica, a ficção e o teatro possuem uma coerência
estética e temática. Como ressaltamos na introdução deste trabalho, nossa
intenção não é provar que os primeiros contos de Machado possuem a mesma
qualidade que os publicados a partir da década de oitenta. Mas, a partir de um
recorte de sua obra os contos mostrar que muito dos temas e intenções
apresentados nessas suas primeiras produções seriam retomados com mais
qualidade nos seus livros posteriores. Ainda sem entrar em detalhes que fogem
ao nosso objetivo, vale lembrar que a tese constantemente repetida de que o
jovem Machado seria um escritor romântico, vai de encontro a dois outros
gêneros importantíssimos no seu trabalho e que foram escritos principalmente
antes da década de oitenta: o teatro e a crítica.
No que diz respeito ao Machado teatrólogo, suas peças o denunciam
como um autor em processo de amadurecimento. A profundidade psicológica e
62
a qualidade dos diálogos não deixam espaço para descrições de hábitos e
enredos mirabolantes, tão característicos do romantismo.
Em seus melhores contos, o cuidado com os diálogos, certamente, é a
principal característica herdada do teatro. Ao invés de descrições e narrativas
esclarecedoras, Machado, impregnado pela sua intensa produção teatral nesse
período, prefere retratar seus personagens através de diálogos e monólogos.
Aliás, um aspecto normalmente não lembrado, mas que rechaça a classificação
do jovem Machado como autor romântico, é que possivelmente ele foi o
primeiro no Brasil a se dedicar exaustivamente ao conto
22
- que pela sua
natureza objetiva, pode ser lido como uma reação anti-romântica
23
.
O segundo argumento contra a classificação do jovem Machado como
romântico é que os seus melhores e mais importantes ensaios sobre literatura,
teatro e identidade cultural, nos quais percebemos todo o seu projeto estético e
cultural, foram escritos até a década de 1880 : O passado, presente e o futuro
da literatura (1858), Idéias sobre o teatro (1859), O ideal do crítico (1865),
Instinto de nacionalidade (1873) e A nova geração (1879).
Silviano Santiago, novamente, é muito feliz ao expor o modo como
acredita que devemos conceber o desenvolvimento da obra de Machado:
A busca seja da originalidade a cada passo, seja da excitação
intelectual em base puramente emocional, a leitura dirigida para “os melhores
momentos” do romancista dificultou a descoberta daquela que talvez seja a
qualidade essencial de Machado de Assis: a busca, lenta e medida do esforço
criador em favor de uma profundidade que não é criada pelo talento inato, mas
pelo exercício consciente e duplo, da imaginação e dos meios de expressão de
que dispões todo e qualquer romancista. (2000: 28)
Mário Matos, possivelmente, foi quem primeiro concebeu o
desenvolvimento dos contos de Machado de forma integral.
Surpreendentemente, no final da década de trinta, ele traçou um sóbrio
22
Machado passa a publicar contos regularmente a partir de 1864.
23
Especificamente no Brasil, foi durante o movimento naturalista que o conto se firmou
definitivamente. No entanto, ao invés da propensão à análise psicológica (de Machado), os
escritores naturalistas brasileiros se satisfaziam com as descrições minuciosas e superficiais.
Ainda sobre a presença do teatro entre seus primeiro contos, são abundantes as referências
feitas a Molière.
63
panorama dessa obra contista
24
(Matos 1997). No seu ensaio, além de
constatar a inegável superioridade dos contos publicados a partir da década de
oitenta, tal como Antonio Candido (2004), ele também aponta quais seriam os
problemas principais e mais recorrentes entre os contos de Machado. Além
disso, seu texto, mostra uma vantagem em relação à maioria dos estudos
machadianos. Ao apontar em quais contos estão esses temas, ele,
diferentemente do próprio A. Candido, não se limita a abordar somente os
contos publicados a partir dos Papéis Avulsos, mas também os que compõem
os Contos Fluminenses e as Histórias da Meia-Noite.
Vejamos, então, quais desses elementos, segundo Mário Matos, são
notados nos Contos Fluminenses e Histórias da Meia-noite. O papel de
destaque atribuído às personagens femininas está presente em: Miss Dollar, A
Mulher de Preto, O Segredo de Augusta, Confissões de uma Viúva Moça,
Linha Reta e Linha Curva, A Parasita Azul, Ponto de Vista e O Relógio de
Ouro. O elemento surpresa, em: Linha Reta e Linha Curva, O Relógio de Ouro,
A Parasita Azul e Miss Dollar.
Outro traço marcante da obra de Machado e que, apesar de ainda
“superficial” (Matos 1997: 14), pode ser encontrado nessas duas primeiras
séries de contos, é o humor, que não raras vezes, tanto em seus contos
maduros, quanto nos primeiros, surge muito freqüentemente através de outro
elemento que percorre toda sua obra: os aforismos (pseudofilosóficos)
inspirados em experiências e impressões do dia-a-dia. Dos Contos
Fluminenses, destacamos essas pequenas pílulas de sabedoria: “Mãe de
família deve ser fecunda e ignorante”; “Tirai do mundo o o e o mundo será
ermo”; “Algumas pessoas, que têm salas elegantemente dispostas, costumam
deixar tempo de serem estas admiradas pelas visitas”; “O ridículo é uma
espécie de lastro da alma, quando entra no mar da vida; algumas fazem toda a
navegação sem outra espécie de carregamento”; “Diz-me como moras, dir-te-ei
quem és”. Em Histórias da Meia-Noite, encontramos: “A gravidade não é nem o
peso da reflexão, nem a seriedade do espírito, mas unicamente certo mistério
do corpo, como lhe chama La Rochefoucauld”; “Importuna coisa é a felicidade
24
Estamos utilizando nesse trabalho a edição: MATOS, Mário. Machado de Assis, contador de
histórias. In Obras completas de Machado de Assis. Vol 2. Nova Aguilar. Porém, esse artigo foi
primeiramente publicado em Machado de Assis, O Homem e a Obra – Os Personagens
Explicam o Autor. São Paulo, Companhia Editora Nacional (“Brasiliana”). 1939.
64
alheia quando somos vítima de algum infortúnio”; “Porque não raciocínio
nem documento que nos explique melhor a intenção de um ato do que o
próprio autor do ato”. Em Um Esqueleto (conto publicado em 1875 no Jornal
das Famílias, mas não incluído nas coletâneas) destacamos: "Lágrimas não
são argumentos”.
Matos, mesmo que não tão esquematicamente como Candido, também
percebe que Machado em seus melhores contos sempre retorna aos temas da
indecisão, da dúvida, da idéia fixa de perfeição e da loucura
25
. Contudo,
infelizmente, desta vez não sugere onde nos Contos Fluminenses e nas
Histórias da Meia-Noite podemos localizá-los.
Um estudo injustiçado e que nos últimos anos tem sido esquecido pela
crítica é Realidade e Ilusão de José Aderaldo Castello. Aos que desejam
realizar um trabalho no qual a obra de Machado é concebida de forma integral,
isto é, levando-se em conta a sua produção crítica, teatral, de contos e
romances, esse livro tem uma enorme importância. Nele, Aderaldo Castello
demonstra sensibilidade em perceber que, antes de qualquer coisa, os
primeiros contos publicados por Machado se diferenciavam dos seus
contemporâneos românticos, principalmente, por terem como objetivo
principal de suas análises a vida interior e psicológica dos personagens. Diante
do nosso objetivo, é importantíssimo destacarmos que Castello considera que
“a experiência humana utilizada nos contos da fase experimental é,
conseqüentemente, quanto aos aspectos mais objetivos, idêntica à que ele
utiliza em realizações posteriores” (1969: 77).
Tal como J. M. Massa, Castello, ao analisar os primeiros contos de
Machado, leva em conta não somente os Contos Fluminenses e da Histórias
da Meia-Noite, mas também todos os outros publicados até a década de
oitenta no Jornal das Famílias, porém não incluídos nessas duas coletâneas. À
diferença de L. M. Pereira, ele acredita que por decorrência da primazia
sempre dada por Machado ao estudo dos caracteres, mesmo os seus primeiros
personagens não se enquadram no esquema simplista do Romantismo, no
qual havia o herói como personificação do bem e o vilão, como a do mal.
25
Com exceção da busca pela perfeição, que recebe um tópico próprio, e a loucura que é
incluída no tópico da identidade”, essas demais questões também são debatidas por Antonio
Candido, mas pertinentemente agrupadas no tópico “o sentido do ato” .
65
Em contos como Miloca, Frei Simão, Virgínius, Folha Rota, O Esqueleto,
Aurora Sem Dia, A Chave, Ernesto de Tal e Uma Excursão Milagrosa, Castello
percebe muito dos aspectos que fizeram a fama de Machado de Assis como
escritor de abordagem psicológica. Em Um Esqueleto, por exemplo, além de
tratar de forma menos convencional e romântica o sentimento de culpa, assim
como também o fará em Frei Simão, Machado começa a mostrar sinais de
interesse pela análise da loucura e dos comportamentos patológicos e bizarros,
que também estarão presentes em A Causa Secreta e A Verba Testamenteira.
Em todos esses contos, além das concepções românticas de amor
predestinado, paixões proibidas, almas amarguradas pelo amor frustrado e por
isso impossibilitadas de amar novamente, há uma outra característica marcante
que atravessa, ainda discretamente, as definições de seus personagens e
sentimentos. Nas palavras de Castello, trata-se do conflito entre a pessoa
moral e a pessoa afetiva. Ou seja, essas primeiras tentativas de análise moral
e psicológica realizadas por Machado, quase sempre retratam menos
romanticamente o choque entre as reais condições sociais do personagem e
suas ambições (Miloca); entre as impressões subjetivas e os dados da
realidade (A Mulher de Preto) e entre o ideal de felicidades e as desilusões e
frustrações inevitáveis de uma relação amorosa (Folha Rota e Ernesto de Tal).
Um autor que parece vacinado contra o maniqueísmo reducionista que
pairava sobre os principais estudos anteriores sobre Machado é Alfredo Bosi.
Em seu ensaio A Fenda e a Máscara, ele apresenta uma interessante
interpretação da evolução dos contos de Machado. Segundo Bosi, a máscara é
um elemento que atravessa todo o pensamento do conto machadiano. Ele
considera que “a partir das Memórias Póstumas e dos contos enfeixados nos
Papéis Avulsos importa-lhe cunhar a fórmula sinuosa que esconda (mas não
de todo) a contradição entre parecer e ser, entre a máscara e o desejo, entre o
rito claro e o público e a corrente escusa da vida interior” (Bosi 2003: 84).
No pensamento de Roberto Schwarz em relação à obra madura de
Machado a máscara seria fundamentalmente fruto da ambição social e posta
em prática apenas racionalmente através da dissimulação dos atos e dos
sentimentos. Ele insiste em atribuir ao uso da máscara uma dimensão
absolutamente social, racional e estritamente ligada ao jogo das aparências
burguesas. Enquanto isso, Bosi considera que a máscara está menos atrelada
66
a uma descrição da burguesia brasileira do século XIX e mais a uma profunda
análise da psicologia humana. Para ele, a máscara na obra madura de
Machado “é uma necessidade estrutural, profunda. Não é uma coisa que se
possa simplesmente criticar”. Ela faria parte do “sistema da vontade e do
prazer“ (Bosi 1982: 335-336). Os contos nos quais essa dimensão psicológica
está melhor retratada, são os que ele classificou como “contos-teoria”
26
.
Segundo Bosi, apesar de já haver a presença da máscara entre os
primeiros contos, nesta primeira etapa, sua dimensão ainda não alcançaria
profundidade psicológica. Neste primeiro momento ela ainda estaria
intimamente ligada às relações constantemente assimétricas entre seus
personagens. Isto é, nas primeiras narrativas, a relação entre os personagens
e as angústias que os atormentam, seriam determinadas, nas palavras de Bosi,
pelo horizonte de status (2003: 75).
Seus primeiros personagens, sempre com a intenção de obter
patrimônio ou acender socialmente, apresentam duas possibilidades de
utilização da máscara. Na primeira delas, alguém através do seu uso – ou seja,
dos atos calculados e do afeto forjado tentaria diante da família, tios ou
padrinhos, o direito a uma farta herança. A segunda possibilidade na qual
uma assimetria de sentimentos, interesses e a busca pelo lucro, é o
casamento. Aqui, o noivo ou a noiva, surgem diante do pretendente ambicioso
como uma chance de ascensão social. Em ambos os casos, após a conquista
do “ouro”, a máscara cai, restando ao enganado somente a dor da ingratidão
ou da traição. Luís Soares, O Segredo de Augusta, Miss Dollar e Ernesto de
Tal são alguns contos experimentais que Bosi apresenta como exemplos dessa
assimetria motivadora do uso da máscara.
Além dessa interpretação proposta por Bosi não deixar de compreender
o aspecto moralizante e pedagógico, tantas vezes destacado pela crítica como
marcante nesses contos, ela também aponta para a possibilidade de
concebermos a evolução dos contos de Machado, marcada não por uma
ruptura, mas por um processo de desenvolvimento, que na pertinente leitura do
26
Segundo Alfredo Bosi, fazem parte dessa categoria: O Alienista, Teoria do Medalhão, O
Segredo do Bonzo, A Sereníssima República, O Espelho, Conto Alexandrino e A Igreja do
Diabo.
67
autor, estaria proporcionalmente relacionado à evolução pela qual passa o
conceito de máscara no pensamento de Machado.
Enfim, mesmo aqueles trabalhos que se propõem a articular os dois
períodos da sua obra, o chegam a se aprofundar nos seus primeiros contos.
Falta ainda algum estudo que se debruce realmente sobre esses contos e
apresente, a partir de um critério legítimo, um número consistente de análises,
nas quais se verifique a presença significativa e relevante dos principais
problemas da obra madura de Machado entre suas primeiras produções.
Será justamente com esse objetivo, que nas seções seguintes, a partir
de leituras mais minuciosas e direcionadas, analisaremos alguns dos primeiros
contos de Machado de Assis.
2.2 Do pessimismo em relação às capacidades do indivíduo
Após uma leitura integral de todos os contos de Machado e do exercício
de tentar entendê-los de forma global e sistemática, poderíamos nos perguntar:
existiram dois Machados de Assis? Um dito romântico que viveu até a
publicação das Memórias Póstumas e dos Papéis Avulsos e outro que nasce
após esses dois livros, agora mais severo, sarcástico e pessimista? Tomando
as palavras do próprio Machado, respondemos: Creio que não, e tu
concordarás conosco; se te lembras bem do Machado ainda inexperiente e
colaborador do Jornal das Famílias, hás de reconhecer que um estava dentro
do outro, como a fruta dentro da casca.
Por trás da ironia, do riso amarelo e da aparente vulgaridade dos atos e
situações de seus personagens, a obra definitiva de Machado é marcada pela
presença de um amargo e corrosivo pessimismo. Uma espécie de praga que
se alastra por toda sua obra, corroendo qualquer fio de bondade e de
esperança que haja entre seus personagens. Contudo, trata-se de um
pessimismo discreto, não choroso, não lamurioso. Um pessimismo que antes
de tudo gera a descrença na capacidade do indivíduo em ser tocado pela dor e
desgraça do outro; uma capacidade de ser indiferente a qualquer coisa que
não lhe diga respeito. Sobre seu pessimismo, disse Machado:
Não tirei da última frase a conclusão do ceticismo. Não achareis linha
cética nestas minhas conversações dominicais. Se destes com alguma que se
68
possa dizer pessimista, adverte que nada mais oposto ao ceticismo. Achar
que uma coisa é ruim, não é duvidar dela, mas afirmá-la. O verdadeiro cético
não crê, como o Dr. Pangloss, que os narizes se fizeram para os óculos, nem
como eu, que os óculos é que se fizeram para os narizes; o cético verdadeiro
descrê de uns e outros. Que economia de vidros e defluxos, se eu pudesse ter
esta opinião! (1997 III: 769).
A citação é de um artigo publicado na Semana em 28 de fevereiro de
1897. Porém, sua descrença na generosidade e capacidade de seus
personagens fazerem o bem despretensiosamente ou pensarem em outrem
antes de si próprios já era evidente antes do nascimento de sua obra madura.
Um bom exemplo é o conto O que São as Moças, publicado no Jornal das
Famílias em 1866.
Apesar de ser um conto convencional, o comportamento de suas
personagens retrata a descrença machadiana nas pessoas fazerem o bem ou
abrirem mão de suas posses gratuitamente.
Teresa e Júlia tinham uma amizade “[...] tão firme, tão profunda, tão
verdadeira, que as famílias respectivas, para melhor caracterizá-la, dava às
duas a designação de Orestes e Pílades... de balão” (Machado 2003: 352).
Entretanto, ambas, sem saber, apaixonam-se pela mesma pessoa.
Posteriormente, com tristeza, tanto Júlia quanto Teresa, tomam conhecimento
da situação e se propõem a abrir mão dessa paixão. Ao fim do conto, Gabriel,
irmão de Teresa, percebendo o real motivo que levou as duas amigas a não
persistirem na luta pelo amor do mesmo rapaz, comenta que “[...] com a
singularidade de que a carta de desistência do coração do primeiro foi escrita
depois do primeiro olhar amoroso do segundo” (Machado 2003: 366). Ambas,
diante desse comentário, apenas “[...] coraram e esconderam o rosto. Tinham
de ficar vexadas” (Machado 2003: 366).
Através da leveza de um sorriso inocente e feminino, Machado sugere a
existência de uma falsa generosidade entre essas amigas. Tanto Teresa,
quanto Julia, apenas abriram mão do namoro com Daniel após encontrarem
outros amores. Trata-se de uma resignação apenas aparente, de um retrato de
uma bondade dissimulada. Sobre essa mesma possibilidade a do ser
69
humano abrir mão de suas posses e prazeres Freud, em Escritores Criativos
e Devaneios – considerava que:
Quem compreende a mente humana sabe que nada é tão difícil para o
homem quanto abdicar de um prazer que já experimentou. Na verdade, nunca
renunciamos a nada; apenas trocamos uma coisa por outra. O que parece ser
uma renuncia é, na verdade, a formação de um substituto ou sub-rogado (1976
IX: 151).
Se a idéia do conto é interessante e sua perspectiva psicológica
apresenta o mesmo pessimismo freudiano acerca da generosidade humana,
seu desenvolvimento peca por uma certa imaturidade. O conto é
demasiadamente auto-explicativo. Sua estrutura supre qualquer necessidade
do leitor minimamente se esforçar para entendê-lo. Tudo é dado de mão
beijada; desde o título até os comentários do narrador e o desfecho final. Ao
fim do conto, por exemplo, após o bastante esclarecedor “diagnóstico” de
Gabriel sobre as motivações reais das duas moças, o narrador ainda faz
questão de ressaltar que “Caía assim o véu que encobria o sacrifício e via-se
que ambas haviam praticado o sacrifício no interesse pessoal; ou por outra:
largavam um pássaro tendo outro em mão” (Machado 2003: 366). Sobre esse
narrador excessivamente esclarecedor, José Aderaldo Castello considera que
ele seria uma das marcas do romantismo ainda presente nesse primeiro
período da obra de Machado. Ainda segundo Castello, em alguns momentos,
encontraremos nos primeiros contos de Machado “o excessivo romanesco; o
melodramático; as intervenções muito diretas do Autor, explicando situações,
esclarecendo reações, auxiliando a memória do leitor relativamente à
concatenação e coordenação de fatos, justificando situações providenciais,
coincidências inaceitáveis” (1969: 93).
O tema escolhido como objeto de estudo do conto nos faz imaginar que
Machado desejava desconstruir o aparente sentimento de generosidade
gratuita entre as amigas. Contudo, apenas a idéia é pessimista. O modo como
o narrador intervém, faz do conto uma peça leve e praticamente sem
surpresas. O que poderia ter sido uma desconstrução sarcástica do sentimento
70
de generosidade, acabou sendo apenas mais uma peça graciosa e leve, feita
aos moldes e na medida para o Jornal das Famílias.
Apesar do conto, aparentemente, pretender desconstruir a idéia de
generosidade desinteressada entre as duas amigas, esse sentimento íntimo de
pessimismo em relação à psicologia dos homens somente encontrará sua
forma ideal, por exemplo, em A Igreja do Diabo. O que acontece com O que
São as Moças é comum em muitos outros contos experimentais de Machado.
Isto é, a idéia já era machadiana, mas a forma não.
Mesmo Miss Dollar sendo considerado pela crítica como um dos
primeiros trabalhos de Machado no qual se percebe a presença de um narrador
que dialoga diretamente com o leitor, O que São as Moças, publicado
anteriormente, apresenta um narrador marcante e que se relaciona
diretamente com o leitor. Contudo, diferente do narrador maduro que é capaz
de gerar ambigüidades e incertezas, esse primeiro se faz presente através de
explicações e esclarecimentos. Segundo JoAderaldo Castello, observamos
nos primeiros contos de Machado as intenções muito diretas do Autor,
explicando situações, esclarecendo reações, auxiliando a memória do leitor
relativamente à concatenação e coordenação de fatos, justificando situações
providenciais, coincidências inaceitáveis” (1969: 96).
Em O que São as Moças, apesar desse mesmo narrador imaturo dizer
que não pertence “ao número dos narradores que atribuem aos leitores uma
cegueira completa para a averiguação de certos pontos da narrativa” (Machado
2003: 360), contraditoriamente, logo em seguida afirma que “fica entendido que
o leitor sabe que o namorado de Júlia e Teresa, e o rapaz entrando às 10
horas na casa do Comendador***, causando tanto abalo aos convidados, eram
uma e a mesma pessoa” (Machado 2003: 360). Imediatamente nos
perguntamos porque então ele não esperou que o próprio leitor fizesse tal
dedução.
Em outro momento, quando especulando sobre a natureza do amor de
Daniel pelas duas moças, o narrador faz a seguinte reflexão: “Como explicar o
procedimento de Daniel? Amaria ambas? Impossível. Enganaria ambas ou
uma só?”. Antes que o leitor comece a montar o seu quebra cabeça particular e
se divirta imaginando quais seriam os sentimentos de Daniel, novamente, logo
no parágrafo seguinte ele mesmo responde que “[...] o amor de Daniel, era
71
simplesmente um objeto de distração; ele não amava, nem Julia, nem Teresa;
divertia-se com ambas, por mero passatempo” (Machado 2003: 362). Pois
bem, eis um narrador contraditório, ingênuo e ansioso.
Apesar do “tom machadiano” ainda não ser tão presente e marcante
quanto será em seus contos maduros, as primeiras discretas pitadas de
pessimismo entre seus contos experimentais apontam o rumo e o tom de sua
obra madura. Podemos perceber o discreto, mas constante e definitivo
surgimento desse narrador pessimista no conto Mariana, publicado em 1871 no
Jornal das Famílias.
Mariana, personagem principal do conto homônimo era uma:
Gentil mulatinha nascida e criada como filha da casa, e recebendo da
minha mãe os mesmos afagos que ela dispensava às outras filhas. Não
sentava-se à mesa, nem vinha à sala em ocasião de visitas, eis a diferença; no
mais era como se fosse pessoa livre (Machado 1997 II: 773).
Coutinho, personagem que conta a estória e por quem Mariana se
apaixona, transmite respeito e até afeto pela sua figura. Segundo ele próprio,
jamais havia sido amado por alguém como fora por ela. Mariana se apaixonara
por ele muitos anos, antes mesmo de ele acertar o casamento com a prima
Amélia. Não suportando a impossibilidade de se relacionar com Coutinho e da
iminência de seu casamento, Mariana, após tentar fugir algumas vezes, mata-
se diante do próprio amado.
Coutinho não a amava. Nem por isso deixamos de observar a
indefinição do sentimento que toda aquela situação lhe gerava. Ela era uma
escrava, (quase) tratada como filha e perante a sociedade (praticamente) uma
agregada. Ele sentia-se envaidecido por saber que era amado. Dizia que
“qualquer que seja a condição de uma mulher, sempre, dentro de nós um
fundo de vaidade que se lisonjeia com a afeição que ela nos vote” (Machado
1997 II: 777). Ao mesmo tempo, não se esquecia do lugar e da condição social
de Mariana, chegando a considerar um atrevimento ela nutrir tais sentimentos:
Que esperanças concebera ela com as minhas palavras, não sei; cuido
que elas tiveram efeito por lhe acharem o espírito abatido. Acaso contaria
72
ela que eu desistisse do casamento projetado e do amor que tinha à prima,
para satisfazer os seus amores impossíveis? (Machado 1997 II: 777)
São dois os personagens do conto que tomam as rédeas da narrativa:
Macedo e Coutinho. Coutinho durante quase todo o conto. Macedo apenas na
introdução e nas últimas linhas. Entretanto, são nesses poucos momentos em
que Macedo tem voz no conto que percebemos a amargura de seu tom e a
indiferença que ele e seus amigos demonstram pela morte de Mariana.
No princípio do conto, Macedo diz que um dos motivos de não ter
envelhecido foi “a vantagem que tirei das minhas constantes viagens. Não
decepção possível para um viajante, que apenas de passagem o lado belo
da natureza humana e não ganha tempo de conhecer-lhe o lado feio”
(Machado 1997 II: 771). Macedo negligencia a tristeza e o lado feio da vida. Só
lhe interessa o que é seu e o que é bom. A dor dos outros e a tristeza alheia
não lhe dizem respeito.
Foi exatamente isso o que ele e seus amigos fizeram ao fim da narração
de Coutinho. Todos viram apenas de “passagem” a tragédia de Mariana. Por
um rápido instante ficaram tristes, mas daí a pouco já estavam na Rua do
Ouvidor, observando os pés das damas. Sobre a morte de Mariana? Era
apenas mais uma estória. Não mais lhes diziam respeito. “Duas horas de
conversa”, disse Macedo nas últimas linhas do conto, “tinha-nos restituído a
mocidade”.
Um exemplo de como essa mesma indiferença pela dor dos outros
permanecerá constante na obra de Machado, será a estória contada em
Quincas Borba, sobre o ébrio e a choupana em chamas:
Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona um triste
molambo de mulher chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no
chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a
mulher, perguntou-lhe se a casa era dela.
– É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía, neste mundo.
– Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto? (Machado 1997 I:
743)
73
Para a construção do conto Mariana, Machado utiliza uma estratégia
que também observamos em alguns de seus trabalhos maduros. Um narrador
homodiegético faz uma pequena narração introdutória e o fechamento do
conto, enquanto que outro, autodiegético, relata aos companheiros uma
experiência que teve, ou que lhes contaram, ou mesmo que tomou
conhecimento a partir de manuscritos. Isso implica dizer que a estória é
contada no embalo das limitações da memória e nas fantasias da
rememoração. Essa estratégia da rememoração e da presença de dois
narradores, um principal e outro secundário, também está nos contos O
Espelho e A Desejada das Gentes.
Podemos até admitir que o principal objeto de estudo do conto é uma
análise da condição social e indefinida do agregado. Não é isso o que
questionamos. Chamamos a atenção para um detalhe que, apesar de
aparentemente secundário, não é menos importante: o pessimismo sarcástico
representado pela indiferença de Macedo, Coutinho e seus colegas pela
tragédia de Mariana. O conto, de fato, pode ser resumido ao relato do
Coutinho, mas, atenção, é a voz de Macedo que lhe o tom e a assinatura
machadiana.
Seria realmente necessário muito esforço, caso fosse de nosso
interesse atestar ausência de moralismo nos primeiros contos de Machado.
dezenas deles que podemos supor terem sido escritos com a intenção de
abordar temas que dissessem respeito especificamente ao mundo das leitoras
do Jornal das Famílias. São alguns desses: Confissões de Uma Viúva Moça, O
Oráculo, O Pai, Felicidade pelo Casamento, Possível e Impossível, O Último
Dia de Um Poeta, O Carro e O Caminho de Damasco. Tal como esses, outros
tantos abordam o conflito entre o amor sincero e o casamento por interesse; o
sedutor insensível e a dama interesseira que apenas desejam o casamento
lucrativo; o amor inesperado e arrebatador ou a moça namoradeira que ao fim
da estória fica sozinha e serve de lição para que as leitoras mantenham-se
sempre na linha e atendam à expectativa da sociedade.
Além da lição de moral e do desfecho romântico e folhetinesco típico do
séc XIX, em alguns desses contos percebemos que há uma última frase, uma
última citação, ou melhor, uma última “alfinetada” que nos faz lembrar que
estamos lendo Machado e não um autor definitivamente romântico.
74
Não bastava para Machado castigar o homem sem caráter e insensível
ou alertar às suas leitoras o risco da confiança desmedida nos amigos, amigas
ou amantes. Não era suficiente que restasse ao mau caráter um final vexatório.
Machado fazia questão de mostrar que mesmo entre os pares não devemos
esperar muita consideração. Se bastaram duas horas de conversa e alguns
pés de damas na rua do Ouvidor para que Coutinho e seus amigos
esquecessem a tragédia de Mariana, com Luís Soares não foi diferente, bastou
uma ida ao Alcazar.
Luís Soares, conto recolhido entre os Contos Fluminenses, demonstra
mais uma vez a expectativa que Machado tinha do ser humano e de sua
possibilidade de compaixão. Luís Soares, personagem principal do conto
homônimo, gastou todos os bens deixados pelo pai. Após desprezar a prima
Adelaide, é desprezado por ela, que percebe o amor dissimulado e interesseiro
dele. Depois da partida de Adelaide para a Europa, Luís Soares suicida-se. E
aqui chegamos a um ponto importante. O conto mostra fortes traços
românticos, seja na forma ou na abordagem do tema. Entretanto, tal como
acontece em Mariana, antes de seu encerramento, o pessimismo acerca da
capacidade dos personagens sentirem compaixão também se faz presente
pela forma de humor sarcástico representado pela indiferença que os antigos
colegas de Soares demonstram pelo seu suicídio. O conto termina com Pires
dando à Vitória a notícia da morte de Soares:
– Sabes de uma cousa?
– Não. Que é?
– O Soares matou-se.
– Quando?
– Neste momento.
– Coitado ! É serio?
– É serio. Vais sair?
– Vou ao Alcazar.
– Canta-se hoje Barbe-Bleue, não é?
– É.
– Pois eu também vou.
Entrou a cantarolar a canção de Barbe-Bleue. (Machado 1997: 59)
75
Novamente o pessimismo sarcástico surge no desfecho do conto. Nunca
como prato principal ou pano de fundo, mas como tempero final, que caso não
o levássemos em consideração o conto passaria como mais um dentre vários.
Outro conto importante na trajetória de amadurecimento do pensamento
psicológico e literário dos contos de Machado é Aires e Vergueiro, publicado
em 1871 no Jornal das Famílias. O conto mostra-se diferente até mesmo em
relação aos que apresentavam traços discretos, mas perceptíveis de
pessimismo em relação à capacidade do homem.
Aires casou-se com a irmã de Vergueiro e mesmo após o falecimento da
esposa tamanha era amizade entre os cunhados que se tornaram sócios e
passaram a praticamente morar juntos. Os negócios que a princípio iam bem,
com o tempo começaram a declinar. Trataram de arquitetar um plano. Aos
poucos venderiam os bens que ainda possuíam e viajariam. Vergueiro foi
primeiro e para não causar suspeita, deixou que sua esposa Carlota fosse
posteriormente acompanhada por Aires. Ao fim da estória, Vergueiro esperou o
amigo e a esposa em Buenos Aires. Aires e Carlota não foram encontrá-lo. “O
certo é que daí a dez dias, Aires, Carlota e o dinheiro saíram furtivamente...
para a Europa”.
O tempero de pessimismo que aos pouco vinha dando um gosto
particular à obra de Machado, nesse conto toma força e destoa da maioria das
estórias contadas no Jornal das Famílias. Primeiro, a ausência de moralismo é
evidente. Nem a esposa infiel, nem o amigo traidor são castigados. Segundo,
o narrador não não anuncia o desfecho com surpresa, como, pelo contrário,
faz isso até com certa malícia ao criar com as reticências uma expectativa
sobre o destino do casal.
Terceiro, e provavelmente o aspecto mais cruel e maduro dessa
narrativa: as coisas são contadas de forma muito natural e corriqueira, como se
toda essa situação fosse absolutamente normal. Não é criado nenhum tipo de
expectativa com situações absurdas ou enredos mirabolantes e românticos. O
narrador, diferente do O que São as Moças, não evidencia o que é importante
ou em que devemos prestar atenção para entender os personagens e suas
motivações. Nesse clima de naturalidade dissimulada Machado testa as
capacidades de seus personagens. Isto é, personagens que iniciam a narrativa
76
respeitados e bem sucedidos, mas que diante do insucesso e da iminência
inevitável da falência sucumbem às artimanhas da falcatrua e da traição.
Em que medida Machado acreditava na honestidade e sinceridade dos
homens? Possivelmente pouco. Apenas até o momento em que a dificuldade
ou a perfeita oportunidade de enganar e tirar vantagem da situação surgisse.
Aires e Vergueiro são sinceros e honestos até quando todos podem facilmente
ser: enquanto os negócios o bem, as dívidas não existem e a oportunidade
fácil (apesar de fraudulenta e rasteira) não bate à porta como oferta
aparentemente irrecusável.
Quando a falência se aproxima, ambos resolvem fugir e não pagar aos
credores. Quando Carlota e Aires se encontram sozinhos, com dinheiro e Aires
em Buenos Aires, viajam “furtivamente” para a Europa. Não moralismo nem
remorso entre os personagens. O conto é um dos primeiros que Machado
escreve de forma fria, natural e sutil sobre a capacidade do indivíduo em
enganar o próximo e, quando diante das dificuldades, recorrer às alternativas
mais fáceis.
Em Mariana, Aires e Vergueiro e Luís Soares os indicativos que nos
serviram para perceber o pessimismo aparecem como que frases ou diálogos
de encerramento. Talvez por isso, as leitoras da época não entendessem, não
fizessem questão de entender ou mesmo não precisassem perceber a relação
daquelas últimas considerações acerca da estória para compreendê-la.
Depois de chamarmos a atenção para essas ainda leves pitadas
machadianas de pessimismo, com qual perspectiva a partir de agora
deveríamos ler esses mesmos contos? Qual seria realmente a moral desses
“contos de família”? Em Luís Soares, seria a morte de Soares ou a fria
indiferença de seus amigos diante de seu suicídio? Do mesmo modo, qual a
mensagem do conto Mariana: a denúncia da condição do agregado ou um
retrato pessimista da falta de compaixão por parte de Coutinho, Macedo e seus
colegas? Ou mais difícil ainda, o que seria mais enfático em Aires e Vergueiro,
a desonestidade quase que naturalizada e sem remorso dos sócios, a traição
do amigo e da esposa ou o cinismo do narrador, que utilizando as reticências,
tranqüilamente conta sem qualquer moralismo ou surpresa a fuga de Aires e
Carlota para Europa.
77
De qualquer modo, essas últimas questões não precisam
necessariamente ser respondidas de forma objetiva para que possamos
compreender definitivamente os contos. Necessário é que o leitor tenha
consciência de que apesar desses contos não apresentarem o pessimismo
como objeto específico ou pano de fundo, mas como complemento final, sua
presença, mesmo que discreta, nos obriga a entender que Machado além de
transmitir o que a princípio lhe era encomendado estórias moralizantes e
adequadas às publicações do Jornal das Famílias também começava a se
sentir à vontade para esboçar o pessimismo como um ponto de vista sobre o
entendimento das motivações humanas.
Entretanto, esse pessimismo ainda o estava tão bem articulado com
os relatos dos contos. Suas estórias ainda pareciam pouco contaminadas por
esse sentimento ou perspectiva, uma vez que Machado apenas apresentava a
possibilidade de uma interpretação amarga somente ao fim do conto.
É admitindo o pessimismo como uma espécie de sentimento íntimo do
autor representado ainda timidamente por discretos desfechos, que
descortinamos a possibilidade de lermos os primeiro contos de Machado de
forma mais “machadiana”. Isto é, não atribuindo aos fatos e acontecimentos
toda a responsabilidade dos significados e sentido do conto. É necessário
admitirmos que esse prematuro narrador machadiano, apesar de ainda não ser
tão subjetivamente hipertrofiado, é capaz de dar suas sugestões e temperar
os tais contos românticos para que o sejam somente apenas “contos-
românticos”. Machado, como notamos, não era cético em relação à psicologia
perversa dos homens. Pelo contrário, isto lhe era uma certeza.
Progressivamente e irreversivelmente aos poucos ele ia se tornando um
pessimista.
Ao interpretarmos esses primeiros contos, certamente não lhe
exigiremos as mesmas possibilidades interpretativas, ambigüidades,
incertezas, lacunas e ntese que os contos maduros apresentarão. Contudo,
interpretando-os dentro de suas possibilidades, poderíamos admitir que o conto
Mariana não é apenas uma crônica denunciadora do lugar social do agregado.
Isto seria praticamente lhe atribuir o status de crônica. Muito menos que Luís
Soares é somente uma lição moralista e pedagógica endereçada às leitoras do
78
Jornal das Famílias. Isto lhe faria praticamente um manual de bons costumes.
Ou que Aires e Vergueiro é uma simples estória de traição e adultério.
Esses contos também devem também ser vistos como episódios
tomados como motes para que Machado explicitasse sua pessimista
concepção dos homens em diferentes contextos; a partir da sociedade e seus
valores de status; entre cavalheiros e damas com seus interesses singulares
em relação ao casamento e até entre sujeitos que dissimulam a amizade, o
amor e a confiança unicamente para atingirem seus objetivos pecuniários e
sensuais.
Seriam os desfechos infelizes por exemplo, com morte, traição ou
personagens que se tornam cronicamente amargurados que caracterizariam
esses contos como pessimistas?
Não é o desfecho infeliz ou trágico que nos faz considerá-los estórias
ventiladas por um tom discretamente pessimista, mas, sim, apresentarem algo
para além da moralidade pedagógica. O pessimismo apresentado nesses três
contos mostra-se como uma espécie de moral (perversa) da moral. Como uma
proposta para que interpretemos menos romanticamente alguns dos contos
que Machado publicava no Jornal das Famílias.
Nesses contos, o moralismo é contraposto a uma outra espécie de
moral, só que desta vez mais cética e nica. Por exemplo, em Luís Soares, a
primeira lição de moral e mais óbvia é o castigo dado ao conquistador
interesseiro. No entanto, essa lição de moral é pervertida e reaproveitada para
demonstrar a falta de consideração que os próprios bilontras têm uns pelos
outros. Ou seja, para além da moral moralizante, também uma moral de
riso amarelo, mais ou menos como alguém que ri da desgraça de um colega
merecidamente castigado.
Apesar de sabermos que Pascal sempre foi uma forte influência para
Machado, é importante atentarmos que em algum momento seus pensamentos
tomam caminhos distintos. O filosofo francês acreditava e ressaltava de forma
pessimista a existência da tragicidade da vida, sempre com o objetivo de
provar a importância e a necessidade da religião cristã como a única
possibilidade de salvação do homem. Machado, de outra forma, sobrepondo
uma moral satírica e indiferente a outra edificante, transmite a idéia de que não
há motivo para lamentações, lições de moral ou surpresas diante das tragédias
79
pessoais e sociais. As tragédias da vida não nos levam a uma solução
salvadora. Para Machado, não era outra coisa senão a própria tragédia e o
cinismo o que somente poderíamos esperar da vida e dos homens.
Em contos como O Caso da Vara, Lição de Canário, Pai Contra Mãe,
Um Homem Célebre, Cantigas de Esponsais, etc., o narrador de tão presente e
hipertrofiado mistura seu discurso, impressões e tom narrativo com os eventos
e o enredo do conto. Isto dificulta para que o leitor consiga distinguir entre os
eventos em si e a narrativa subjetivada que ele lê. Entre o que é contado e o
julgamento do narrador não distinção. Por isso o sabemos se o gosto
amargo desses contos é decorrência dos relatos das tragédias da vida ou de
um narrador pessimista que contamina melancolicamente tudo que relata. Nos
seus contos maduros o pessimismo e o enredo do conto se confundem num
mesmo nível, por isso, o leitor não encontra saída para a melancolia e o
pessimismo. Tudo é contaminado.
Nos contos mais experimentais, o pessimismo em relação à tragicidade
da vida e ao egoísmo do ser humano é transmitido menos fatalmente. Ainda
resta ao leitor a possibilidade de escapar dessa flor amarela que é a
melancolia. Em Mariana, por exemplo, como ressaltamos, toda a narrativa
empreendida por Coutinho é transmitida em tom respeitoso e até afetuoso em
relação a Mariana. Seria esse o nível do relato. Macedo é o responsável pelo
nível de pessimismo e pela falta de gravidade atribuída ao relato sobre a morte
de Mariana. É ele quem transmite o clima de banalidade que cerca a morte da
gentil mulata.
Do mesmo modo, em Luís Soares a impressão que nos fica é que se o
conto terminasse antes do diálogo entre Vitória e Pires, tratar-se-ia de mais um
conto tipicamente moralista e sem qualquer sinal do que anteriormente
apresentamos como uma moral (perversa) da moral. Isto é, o pessimismo de
Machado nessa época ainda era um toque final e a mais no conto. Era um
ponto de vista que ele ainda não sabia como introduzir intrinsecamente em
suas estórias. Nos seus trabalhos maduros, o pessimismo e o amargo irônico
se entranham em cada linha e parágrafo e não somente como desfechos
suplementares, como nesses seus primeiros trabalhos
27
.
27
Ao evidenciarmos como estão presentes nos primeiros trabalhos de Machado alguns dos
principais aspectos de sua obra madura não equiparamos esses dois períodos de sua
80
Tanto em Mariana, quanto em Luís Soares e Aires e Vergueiro (nesse
último um pouco menos), precisamos recorrer às frases finais de cada conto
para perceber o “machadianismo” que ali começava a surgir. Isto mostra que
Machado ainda não conseguia integrar naturalmente o pessimismo ao relato do
conto. Nessa época, ele o era capaz de escrever, como diz Lúcia Miguel
Pereira, as coisas, a um tempo tão chão e tão elevado (1988: 13).
Principalmente em Luís Soares e Mariana, observamos que o
pessimismo é uma opção dada ao leitor. Segundo Antonio Candido, na obra
madura de Machado sua técnica consiste em sugerir as coisas mais tremendas
da maneira mais cândida (como os ironistas do século XVII). Isso ainda não
acontecia em suas primeiras publicações. Ele o conseguia contar coisas
graves de forma graciosa. Por isso é tão evidente a distinção entre a narrativa
principal do conto – escrita convencionalmente – e o detalhe pessimista e
grave do autor, no desfecho.
Justamente por nessa época ele não dominar a técnica apontada por A.
Candido, que podemos observar como que dois tons distintos em um mesmo
conto. O leitor pode ou não levar em consideração ao interpretar os contos o
último diálogo de Luís Soares ou o último comentário de Macedo em Mariana.
Isso acontece porque o pessimismo é observado apenas nesses dois detalhes.
Ele se mostra como um adendo ou um apêndice.
Apesar da desconsideração desses dois detalhes não impedir que o
leitor compreenda o conto, é importante ressaltar que essa desconsideração
implicaria nele entrar em contato com um outro conto, diferente daquele que
conhecemos ao levar em conta o desfecho menos romântico. Ao mesmo tempo
em que essas pontas de pessimismo podem nos levar a subverter a “moral da
estória” e nos deixar com um gosto ligeiramente amargo, nesses contos, o
pessimismo ainda era uma espécie de oferta que a leitora oitocentista não
poderia evitar, como possivelmente o esperava encontrar entre as
publicações do Jornal das Famílias
28
.
produção. Pelo contrário, acabamos ressaltando que seus trabalhos publicados a partir de
1880, como se sabe, são inegavelmente superiores aos primeiros.
28
O que temos para falar sobre o pessimismo em sua obra não se esgotará nesse tópico,
fazendo-se também fortemente presente na seção onde trataremos da “tomada do homem
como objeto do próprio homem”.
81
2.3 Personagens-artistas em busca da Perfeição
O personagem-artista é um dos temas mais freqüentes entre os contos
de Machado. Além disso, possivelmente é um dos que mais se destaca pela
qualidade dos contos. Um Homem Célebre, Cantigas de Esponsais, Habilidoso
e Um Erradio são alguns de seus trabalhos maduros mais populares. Tratando
o tema, ora de forma aparentemente cômica, ora melancólica, o que
observamos em todos esses casos são personagens-artistas frustrados que se
encontram perdidos entre suas vocações, desejos, inspirações e limitações.
De todos os aspectos fundamentais da obra de Machado que este
trabalho pretende apontar como também presentes entre os seus primeiros
contos, o tema do personagem-artista é o mais evidente. Entre suas primeiras
publicações, o cenário de contos que abordam esse tema não é muito diferente
do de sua obra madura. o ele é objeto de análise em mais de um conto,
como também, e isso é importante notarmos, certamente são esses uns dos
que mais apresentam qualidade entre seus primeiros trabalhos. Entre sua obra
experimental, os contos que abordam esse tema são Aurora Sem Dia,
publicado nas Histórias da Meia-Noite e O Machete, excelente conto publicado
no Jornal das Famílias em 1878. Além de ressaltar a evidente presença
desse tema entre os contos experimentais de Machado, ao longo desta seção
estabeleceremos um diálogo entre esses e os seus contos maduros, nos quais
Machado aborda o personagem-artista.
Tanto Luís Tinoco de Aurora Sem Dia, quanto Inácio Ramos de O
Machete, são os precursores de uma vasta galeria de personagens que se não
me atrevo a classificar como mórbidos, como fez Lúcia Miguel Pereira (1988:
137), digo que o personagens que passam a vida presos a uma idéia fixa,
que na maioria das vezes tanto tenta unir a satisfação pessoal à aceitação
pública de sua obra, quanto o desejo de ir além do que já realiza com maestria
e compor aquilo que o desejo pede, mas suas habilidades não permitem.
Esses personagens não encontram pela frente dificuldades reais que os
impeçam de alcançar um desejo cultivado durante toda a vida. Suas
dificuldades são interiores, subjetivas e não palpáveis.
Dentre os personagens-artistas mais célebres da galeria machadiana,
destacam-se os melancólicos Pestana e mestre Romão. Tanto Lúcia Miguel
Pereira (1988: 227), quanto Antonio Candido (2004: 26), os situam na categoria
82
dos personagens que problematizam a busca obsessiva e inalcançável pela
perfeição. Admitindo que a busca pela perfeição tal como conceituam esses
dois críticos se confunde com a busca de um sentimento de plenitude que
nunca é alcançado, gerando assim uma eterna insatisfação, podemos dizer
que não somente em Mestre Romão e Pestana notamos a presença dessa
temática, mas, do mesmo modo e anteriormente, já em Inácio Ramos de O
Machate.
Pestana, Romão e Inácio Ramos são personagens bem sucedidos nos
seus exercícios. Inácio é um excelente violoncelista. Mestre Romão, o melhor
regente da paróquia e Pestana, o mais bem sucedido e popular compositor de
polcas de sua época. Contudo, os três buscam além dessas satisfações, outras
realizações que aparentemente se mostram como complementares ou
suplementares às suas respectivas atividades.
Mestre Romão não desejava somente ser o maior intérprete, como foi o
ator “João Caetano ou o cantor lírico Martinho”. Ele desejava compor uma obra
original. Pestana não se satisfazia e até desdenhava em alguns momentos de
suas próprias polcas. Ele verdadeiramente ansiava em compor uma peça
erudita, mesmo que apenas uma. Inácio Ramos vivia talvez um dos maiores
dilemas de um artista criativo. Ao mesmo tempo em que não abria mão da
satisfação pessoal de tocar o violoncelo, pois era, segundo ele, o que lhe dava
prazer e transmitia com honestidade a voz de sua alma, também desejava
conquistar o reconhecimento e os aplausos do público. Todos esses
personagens-artistas, como diz Machado, vivem como uma “[...] eterna peteca
entre a ambição e a vocação...” (1997 II: 502), mas também entre a satisfação
íntima e o reconhecimento público.
Deste modo, levando em consideração as palavras de Antonio Candido
e Lúcia Miguel, podemos dizer que O Machete anuncia a mesma busca pela
perfeição retratada em Cantiga de Esponsais e Um Homem Célebre. Contudo,
não uma perfeição no que diz respeito à qualidade ou efeito estético. Mas sim
uma perfeição concebida a partir da idéia de plenitude das capacidades,
sentimentos e desejos; no casamento entre a satisfação interna e externa, na
união entre suas aspirações e inspirações; ambições e capacidades.
83
II
Desde cedo, Machado, através da ficção e da crônica, se mostrou
preocupado em problematizar o fenômeno artístico e suas implicações. Ele
apresentou ao público uma concepção de arte e de processo de criação
fortemente influenciada pela Arte Poética de Boileau
29
e de Horácio. A
verdadeira arte de qualidade, segundo Boileau, Machado e Horácio, nunca é
somente fruto da inspiração, do amor ou como dizemos hoje em dia do insight.
O capricho e a inspiração súbita e espontânea não são suficientes para
geração de grandes obras de arte. Mais do que inspiração, é fundamental que
o artista lance-se incansavelmente na tarefa de cada vez mais buscar a
perfeição. Esmerar um poema ou uma frase de um romance deve ser encarado
pelo autor mais do que como uma tarefa, mas como um cio, pois através
da releitura e reescritura infatigável que o autor poderá alcançar a perfeição.
Logo de cara, vemos que Luís Tinoco parece ser um exemplo às
avessas do modelo de artista traçado por Horácio na sua Poética. Nela, ele
ressalta a importância do esmero e insistência na feitura de poema. Segundo
Horácio: “Vocês, descendentes de Pompílio, retenham o poema que tenha sido
apurado em longos dias por muita rasura, polido dez vezes até que uma unha
bem aparada não sinta aspereza” (2005: 63). Não estando Tinoco disposto a
esse “sacrifício” que todos os poetas devem passar, podemos dizer que ele é
um artista, se assim o podemos chamar, com atitudes completamente postas à
concepção que Machado herda de Boileau e Horácio. Imediatamente
percebemos que se trata de um desses tipos que estamos acostumados a
imaginar logo que nos vem à mente a figura de um poeta romântico do século
XIX. Um homem refém da inspiração e que tropeça nas idéias que lhe surgem
nos momentos mais inesperados. Tinoco,
[...] andava com o ar inspirado de todos os poetas novéis que supõem
apóstolos e mártires. Cabeça alta, olhos vagos, cabelos grandes e caídos;
algumas vezes abotoava o paletó e punha a mão ao peito por ter visto assim
29
A principal referência que Machado faz aos pensamentos de Boielau aparece numa carta
endereçada à Imprensa Acadêmica de São Paulo. Carta à redação da Imprensa Acadêmica”.
(Machado 1997 III: 978). A carta foi originalmente publicada em 28.08.1864.
84
um retrato de Guizot; outras vezes andava com as mãos para trás. (Machado
1997 II: 223)
Uma das primeiras tentações diga-se de passagem, pertinente - ao
estudarmos Aurora Sem Dia é relacionar Luís Tinoco ao parasita literário, tipo
satirizado por Machado em sua crônica publicada em 1859
30
. Quase todas as
características utilizadas por Machado na caracterização desse pseudo-artista,
que representa o típico escritor medíocre do séc XIX, também são utilizadas
para definir o caráter de Tinoco.
Notem como é possível combinarmos perfeitamente a descrição de
Tinoco e com a caracterização do parasita literário. Do mesmo modo que o
parasita, primeiro Tinoco encontra no jornal um espaço no qual enviando
enxurradas de versos, obriga ao leitor se deparar com sua produção medíocre.
Depois, tal como esse “vampiro” literário satirizado por Machado na crônica, ele
“associa-se e cria um jornal próprio. Aqui é que não de escapar-lhe”
(Machado 1997 III: 1959). Por fim, seguindo o caminho destinado a todos os
parasitas, enrosca-se ainda por todas as vértebras da sociedade” (Machado
1997 III: 955), entra na política e finalmente acredita encontrar o triunfo ao
publicar seu próprio livro, o imponente e provavelmente também medíocre
Goivos e Camélias. É inegável a relação entre Horácio, Boileau e Machado.
Também Horácio percebeu a existência e definiu em poucas linhas o
comportamento desse incômodo tipo literário: “Não há dúvidas que [esse poeta
medíocre] enlouqueceu e, como um urso que logrou quebrar as barras da jaula,
esse declamador molesto afugenta o bio e o ignorante; e quando agarra
algum, não o larga, mata-o lendo, sanguessuga que farta de sangue se
despega da pele” (2005: 68).
A idéia que a crítica nutriu ao longo dos anos que não ganhamos em nada ao
ler a obra do jovem Machado é primeiramente contrariada pela intenção de
compreendermos quando e como nasceram alguns tipos machadianos que
permanecerão presentes durante toda a sua carreira de contista. Luís Tinoco é
o primeiro de três personagens-artistas que podemos encontrar entre os contos
de Machado e que se mostram reféns da inspiração e avessos à disciplina.
Seus dois “herdeiros” – figurantes entre a galeria de personagens maduros –
30
Aquarelas II: o parasita (Machado 1997 III: 955).
85
são João Maria de Habilidoso e, como também notou José Aderaldo Castello
31
,
Elisiário de Um Erradio. Antes de prosseguirmos em nossas análises, é
importante deixar claro que não concebemos a relação entre esses
personagens como especular, mas, sim, que em alguns aspectos específicos
eles são muito semelhantes, ou quando lidos de forma interligada, são capazes
de abordar várias facetas de um mesmo problema.
Luís Tinoco, em poucas palavras, é daqueles que tem muita aspiração,
pretensão, aparente inspiração, mas pouquíssimo talento, disciplina e vocação.
Em quase nada ele foi bem sucedido. Não tinha talento algum e pensava
possuir todos. Não conseguia sequer compor uma pequena peça de valor e se
achava capaz de escrever grandes poemas épicos.Tornou-se poeta sem
esforço. Como em um toque de mágica. Como diz o narrador do conto, “o certo
é que um dia de manhã acordou Luís Tinoco escritor e poeta; a inspiração, flor
abotoada ainda na spera, amanheceu pomposa e viçosa” (Machado 1997 II:
220).
Certa vez, quando o Dr. Lemos lhe perguntou onde havia aprendido a
fazer versos, Tinoco, que o acreditava no ensino da poesia, respondeu que
“isto não se aprende; traz-se de berço” (Machado 1997 II: 222). Não estudava e
também não conhecia a tradição da arte que escolheu exercer. Nunca havia
lido Shakespeare, Dante ou Basílio da Gama, o que não o impedia de citá-los.
Também não relia o que escrevia. “Fiz aquela poesia em meia hora e não
emendei nada. Acontece-me isso muita vez” (Machado 1997 II: 223), disse
certa vez Tinoco todo orgulhoso. As possibilidades de ridículo e fracasso as
quais Tinoco está susceptível, são as mesmas apontadas por Horácio aos
pretensos artistas descrentes da necessidade da técnica e do domínio da
tradução. Para os que não estudam e apenas se inspiram, Horácio diz que: “Se
não posso nem sei respeitar o domínio e o tom de cada gênero literário, por
que saudar em mim um poeta? Por que a falsa modéstia de preferir a
ignorância ao estudo?” (Horácio 2005: 57).
Elisiário é um homem culto. Tinoco e João Maria não têm cultura ou
talento. Apesar dessas diferenças, esses personagens apresentam uma
semelhança que não pode deixar de ser destacada. Os três são, no final de
31
Comissão Machado de Assis. Prefácio. In: MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Histórias
da meia-noite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: INL, 1975, p.14.
86
tudo, artistas medíocres, reféns da inspiração e que não conseguem, cada um
por um motivo, construir uma obra artística significativa.
A falta de compromisso em estudar o primeiro período da produção de
Machado, fez com que a crítica não conseguisse enxergar que nesses
primeiros contos, por exemplo, já havia a ironia instalada através do jogo de
palavras e do total aproveitamento do texto. Assim como um significado
irônico em o escravo de Brás Cubas se chamar Prudêncio, também a falta de
senso de realidade e a capacidade de Tinoco viver em um mundo de fantasia e
ilusão, será satirizada por Machado a partir de um jogo de palavras que ele faz
com o nome da amada do seu herói. Inocência é o nome verdadeiro da sua
paixão. Laura é como ele a chamava em seus versos. “Esta Laura”, diz
Machado, “preciso é que se diga não era Laura, era simplesmente Inocência”
(1997 II: 228). Notemos que Machado brinca com a semelhança existente entre
as palavras Laura e láurea para mostrar que qualquer suspiro de
reconhecimento que Tinoco alegasse ter entre seus pares, não passava de
fruto de sua inocência, tal qual o verdadeiro nome de sua amada. Tinoco nunca
tivera o reconhecimento que julgara ter. Ele nunca tivera nenhuma Laura ou
láurea, mas apenas e simplesmente Inocência e uma inocência que lhe fazia
acreditar que uma arte sem engenho poderia alcançar a excelência.
Tinoco parece não seguir a cartilha de Boileau e como bom parasita que
é, mostra certa...
[...] modéstia nas palavras ou certo abatimento, que faz lembrar esse
ninguém elogiado da comédia. Mas ainda assim vem a afetação; o parasita é o
primeiro que está cônscio de que é alguma coisa, apesar da sinceridade com
que procura pôr-se abaixo de zero (Machado 1997 III: 955).
É exatamente essa falsa modéstia, mas verdadeira prepotência típica
daqueles que não possuem o bom senso e por isso não acreditam que a
poesia, como qualquer atividade, exige exercício e estudo que o Dr. Lemos
encontra ao fazer uma crítica sensata ao trabalho de Tinoco. Observemos um
típico parasita literário em ação:
87
Dr. Lemos disse-lhe com franqueza, que a poesia era uma arte difícil e
que pedia longo estudo; mas que, a querer cultivá-la a todo o transe, devia
ouvir alguns conselhos necessários.
Sim, respondeu ele, pode lembrar alguma coisa; eu não me nego a
aceitar-lhe o que me parecer bom, tanto mais que eu fiz estes versos muito à
pressa e não tive ocasião de os emendar.
– Não me parecem bons versos, disse o Dr. Lemos; poderia rasgá-los e
estudar antes algum tempo.
Não é possível descrever o gesto de soberbo desdém, com que Luís Tinoco
arrancou os versos ao doutor e lhe disse:
Os seus conselhos valem tanto como a opinião de meu padrinho.
Poesia não se aprende; traz-se de berço. Eu não dou atenção a invejosos. Se
os versos não fossem bons, o Mercantil não os publicava (Machado 1997 II:
222).
Essa prepotência de Tinoco e seu gesto de soberba diante da
sinceridade crítica de Dr. Lemos era completamente oposta ao modo como
Boileau acreditava que o artista deveria se comportar perante o próprio
trabalho e às críticas recebidas. O escritor, segundo Boileau, deve ser:
Severo crítico para consigo mesmo. A ignorância está sempre propensa
à auto-admiração. Faça amigos prontos a criticá-lo. Que eles sejam confidentes
sinceros de seus escritos e os adversários zelosos de todos os seus defeitos.
Despoje-se, diante deles, da arrogância e autor; mas saiba distinguir o
lisonjeador do amigo. Tal pessoa parece aplaudi-lo; e está, no entanto,
zombando de sua obra e enganando-o. Goste que o aconselhem e não que o
elogiem (Boileau 1979: 20-21).
De forma muito semelhante, anteriormente Horácio já havia dado aos
jovens escritores alguns conselhos muito semelhantes a esses de Boileau, e
que certamente nosso herói nunca seguiu. Horácio acredita que do mesmo
modo que o poeta deve se dispor abertamente a receber e assimilar as críticas
honestas feitas por amigos sinceros, e não bajuladores, ao seu trabalho,
também deve ter a paciência necessária para a construção e gestação de um
poema.
88
Você não dirá nem fará nada contrariando a Minerva; tal é o seu
sentimento, o seu feitio. Se, porém, alguma vez vier a escrever algo, sujeite-o
aos ouvidos do crítico Mécio, aos de seu pai e aos meus e retenha-os por oito
anos, guardando os pergaminhos; o que tiver publicado poderá ser destruído; a
palavra não sabe voltar a trás (2005: 66).
E complementa na página seguinte,
Quando se recitava alguma coisa a Quintílio, ele dizia: “Por favor ,
corrige isto e também isto”; quando você, após duas ou três tentativas
frustradas, se dizia incapaz de fazer melhor, ele mandava desfazer os versos
mal torneados e repô-los na bigorna. Se, a modificar a falha, você preferiria
defendê-la, não dizia mais uma única palavra, nem se dava ao trabalho inútil de
evitar que você amasse, sem rivais, a si mesmo e à sua obra (2005: 67).
A pretensão de Luís Tinoco em exercer uma grande arte sem nenhum
engenho, sendo apenas dependente da inspiração e indiferente à técnica,
apesar de com algumas diferenças, o aproxima do despretensioso poeta
Elisiário de Um Erradio. Este último, personagem que consta entre os tipos
maduros criados por Machado, também não estudava seus discursos e
poemas. Tudo lhe surgia de improviso. o planejava, também não relia e
muito menos revisava as transcrições que seus colegas faziam de seus
discursos e versos.
Diferente de Tinoco, Elisiário de fato era um homem culto e talentoso.
Em suas aulas informais e conversas com Tosta, demonstrava dominar a
tradição grega e as normas da poesia. Seus discursos e versos, mesmo que
sempre improvisados, impressionavam aos ouvintes pela qualidade. Se Tinoco,
não tendo bom senso e capacidade em perceber a (falta) de qualidade de sua
obra, considerava que tudo o que escrevia tinha o máximo valor e por isso não
se preocupava em aprimorá-los, o trabalho de Elisiário, por sua vez, apesar de
também fruto do improviso e inspiração, tal como os de Tinoco, possivelmente
tinha algum valor. Entretanto, no final das contas, rigorosamente, seu talento
de nada valeu, pois, tal como Tinoco, Elisiário, apesar de talentoso, nunca
conseguiu aprimorar seus versos e torná-los definitivos. Tanto um quanto outro,
apesar de diferentes em vários aspectos, se aproximam pelo fato serem reféns
da inspiração e por isso morrerem sem deixar qualquer obra ou legado.
89
O segundo personagem da galeria madura de tipos machadianos que
também não tem talento, discernimento artístico e disciplina, é João Maria de
Habilidoso. Dentre todos os personagens-artistas talvez seja ele o único que
apresente tão pouco talento quanto Luís Tinoco. Enquanto Tinoco é um tipo
cômico e patético, João Maria é uma figura que beira o ridículo. Pintor
compulsivo, não trazia consigo o sentimento de satisfação íntima ao exercer a
pintura. Não pintava para si, mas para os outros. Seu único objetivo era a
busca do reconhecimento público. Como diz o narrador do conto, João Maria
mirava o aplauso público”.
Do mesmo modo que Tinoco não estudava a poesia e sua tradição, pois
segundo ele “isto não se aprende; traz-se de berço”, João Maria, seu primo na
mediocridade, “aborrecia a técnica, era avesso à aprendizagem, aos
rudimentos das coisas” (Machado 1997 II: 1051). Sua técnica resumia-se a
copiar o que lhe parecesse interessante e potencialmente atrativo ao olhar do
público. De passagem, notemos o cuidado de Machado em relacionar a
psicologia do personagem a todas suas escolhas e esferas da vida. Até no que
diz respeito à sua escolha profissional, João Maria escolheu uma atividade que
não lhe exigia qualquer aprendizado. Abriu uma casa de trates velhos “para o
qual se lhe não exigiam estudos preparatórios” (Machado 1997 II: 1051).
Diferente de Tinoco, não é a crença em possuir um verdadeiro talento e
a pretensão em ser reconhecido como um grande artista que mais chama
atenção na postura de João Maria. Apesar de quando ainda jovem ter sido
chamado de habilidoso, e isso certamente lhe ter motivado na persistência de
continuar pintando, João Maria, antes de qualquer coisa e de qualquer
pretensão em ter talento, desejava ter platéia. Sua satisfação não repousava
na feitura de uma tela impecável ou original. Seu prazer era saber que alguém
simplesmente a observava. Pintar sem ser visto não lhe fazia sentido. Havia
nele um resquício de saltimbanco e foi esse sentimento que lhe definiu o rumo
da vida. Apesar de não ter talento em coisa alguma e nisso diferenciar-se dos
protagonistas de Cantiga de Esponsais, Um Homem Célebre e O Machete,
João Maria também é um personagem-artista que atravessou toda a existência
com uma idéia fixa na mente.
sabemos que apesar de diferentes, Tinoco, Elisiário e João Maria se
igualam na dependência da inspiração e na incapacidade de construir alguma
90
arte que perdure pelo tempo. Agora, observemos como eles lidam com a
recepção de suas obras. Elisiário é o que mais parece ter talento desperdiçado.
Por decorrência de sua despretensão em se fazer poeta de fato, não se
preocupa em editar seus versos e em saber como suas palavras repercutem
em quem as ouve. Luís Tinoco, ao mesmo tempo em que desejava ser lido,
pois como um parasita literário” encontra meios de publicar seus versos em
jornais e até fundar sua própria folha, tinha, a princípio, a obtusa e inabalável
convicção da qualidade de sua poesia. Como decorrência disto, tratava com
desdém a opinião crítica dos leitores. João Maria, por sua vez, apenas deseja
ser assistido. Ansiava em saber se comentavam seu trabalho. A continuidade
de sua produção dependia unicamente da presença de um público. Seja qual
fosse a qualidade desse público.
Sua primeira reprodução foi exposta na do Ouvidor. Não houve
repercussão. Ninguém a notou. Depois, seus espectadores passaram a ser os
familiares e convidados que freqüentavam sua casa. Com o tempo apenas os
parentes mais próximos, a esposa e os filhos. A vida de João Maria literalmente
caminhava para um beco sem saída. Ao fim de tudo, o que lhe restava era ser
observado por quatro crianças da rua. Crianças que nada entendiam de arte ou
pintura, tal como ele próprio. Mas isto não importava, contanto que ele tivesse
platéia, como diz o narrador “todo ele está ali” (Machado 1997 II: 1054).
Lúcia Miguel Pereira acredita que os contos publicados até 1881 são
frutos de um Machado de Assis com muita fantasia e pouca imaginação (1988:
136). Não havendo, segundo ela, entre os Contos Fluminenses e Histórias da
Meia-Noite uma só estória que nos apresente um contato com a realidade. Nas
suas palavras, tudo transparece um artificial jogo de palavras.
Contrariando a biógrafa, aparentemente não o que nos impeça de
acreditar que Luís Tinoco é a encarnação ficcional do parasita literário típico do
séc. XIX, satirizado por Machado em sua crônica de 1859. Assim como tudo
também nos leva a crer que ele tenha moldado as atitudes de Tinoco com o
propósito delas estarem diametralmente opostas às idéias que ele
compartilhava com Boileau acerca da postura que um artista deve tomar para
si.
Ironicamente, Jean-Michel Massa, outro biografo de Machado, afirma
que “não se trata, portanto como afirmou L. M. Pereira, de uma leitura amena
91
de pura fantasia sem nenhum fundamento na realidade, mas de obras
engajadas num combate de edificação” (1971: 616). Ele acreditava que o
jovem Machado vivia intensamente as idéias e os dilemas de sua época. Não é
por acaso que Byron, Gilbert, Guizot e André Chénier, artistas importantes para
os autores românticos, surgem no conto como os principais referenciais
artísticos de Tinoco.
Mas nem tanto à fantasia como quer L.M. Pereira, nem à realidade
quanto quer J. M. Massa. Do mesmo modo que não se pode atribuir à Aurora
sem dia um caráter absolutamente fantasioso, por que deveríamos tomá-lo ao
da letra como uma crônica sobre a literatura e os literários parasitas do séc
XIX no Brasil, se afinal de contas o próprio Machado havia escrito de fato
uma crônica sobre essa espécie de escritor?
Um estudo que relacione Aurora Sem Dia com a possível crônica que o
originou, serve, por exemplo, para mostrar que o jovem Machado já tinha
consciência de que a crônica tinha seu lugar específico no cotidiano de uma
época, enquanto que o conto, não só pode ser lido como retrato de uma época,
mas, principalmente deve ser escrito para que possa ser apreciado por leitores
de todos os tempos.
Sobre a intenção do artigo, no qual satiriza o parasita literário, Machado
diz que se “quisesse ferir individualmente, tocar em suscetibilidades, desonraria
aqui um sudário dessas invasões na literatura; mas o meu fim é o indivíduo, e
não um indivíduo” (Machado 1997 III: 954). A melhor forma que ele encontrou
de nomear esse parasita e não condicionar o entendimento de suas idéias ao
conhecimento de um período histórico ou de algum escritor em específico, foi
através da ficção. Luís Tinoco, ao mesmo tempo fere um indivíduo e o
indivíduo (grifos nosso). Ficando ao gosto do leitor acreditar que ele é o escritor
real ao qual Machado se refere como parasita literário ou qualquer outro, de
qualquer país ou época.
É importante ressaltar que antes de tudo Aurora Sem Dia é um conto de
ficção. Sua função não é de denúncia ou crônica do cotidiano, apesar desses
elementos estarem presentes no texto. Ao contrário da crônica que precisa ser
contextualizada historicamente, a estória de Luís Tinoco, e nisso ela é bem
sucedida, pode perfeitamente ser apreciada sem que seu valor seja
92
condicionado pelo conhecimento prévio do leitor acerca do que se entende por
literatura ou romantismo.
Roberto Schwarz encabeça uma tradição crítico-realista que condiciona
qualquer estudo dos primeiros trabalhos de Machado a uma relação com a
sociedade brasileira do séc XIX. Diferente dessa perspectiva, ao estudar esses
primeiros contos de Machado, acreditamos que o nosso maior benefício será
ampliar nosso entendimento sobre a concepção, o desenvolvimento e as várias
possibilidades de interpretação do tema do personagem-artista presente nos
seus contos.
Dois aspectos nos guiarão a uma rica ambigüidade acerca desse grupo
de contos. Primeiro: as semelhanças entre as concepções nutridas por
Machado, Boileau e Horácio sobre o artista criativo. Segundo: o discurso crítico
que ao longo dos anos vem afirmando existir um Machado-romântico, da
primeira fase e um realista, da segunda.
Apesar da concepção machadiana de artista-criativo, semelhante à de
Boielau, defender que a verdadeira arte de valor é fruto do trabalho duro e
rigoroso do artista conhecedor da técnica, Alfredo Bosi nos lembra que Cantiga
de Esponsais demonstra que “a beleza não é obra da vontade, mas do dom,
graça do acaso que premia a quem quer e não os que a querem” (1982: 449).
Podemos ressaltar a presença dessa idéia na obra de Machado, lembrando
dos vários momentos nos quais o verso bem feito ou a melodia encantadora e
atraente surgem nos seus contos somente como fruto do acaso, da inspiração
e do puro deleite. Em Cantiga de Esponsais a melodia que mestre Romão
perseguira arduamente durante toda a vida, nasce do cantarolar a toa e
inconsciente de uma jovem apaixonada e recém casada:
Nesse momento, a moça embebida no olhar do marido, começou a
cantarolar à toa, inconscientemente, uma cousa nunca antes cantada nem
sabida, na qual cousa um certo trazia após si uma linda frase musical,
justamente a que mestre Romão procurar anos sem achar nunca (Machado
1997 II: 289).
Pestana, de Um Homem Célebre, acredita que o caminho que deve
seguir para compor uma canção erudita é o da disciplina infatigável. Contudo,
93
fracassa e nada consegue compor. Enquanto que por outro lado, as polcas que
o fizeram extremamente popular e que eram enormes sucessos foram
compostas quase sem esforço, como que espontaneamente.
O terceiro caso que reforça essa pequena digressão que fazemos sobre
o surgimento da inspiração e cujo desfecho será uma ironia, é o de Elisiário.
Sua facilidade com os verso e a prosa, se faz presente entre garfos, pratos,
jantares e em reuniões com amigos. Seu talento em encantar a todos com suas
palavras só o ar da graça quando atraído inesperadamente pela inspiração.
Entretanto, quando compelido pelo amigo e a esposa a organizar sua obra e
escrever versos definitivos, a fonte seca.
Pois bem, a observação acerca da relação que Elisiário, Pestana e
Romão estabelecem com a inspiração e a disciplina, somada à nota feita por
Bosi que nesses contos uma necessidade do acaso ou do inconsciente para
a concretização artística, de certo modo nos remete a uma leve promessa
romântica de musa inspiradora e inspiração involuntária. Por outro lado, Luís
Tinoco é o completo oposto a tudo isso. Sua saga é a demonstração do
fracasso da inspiração súbita e inconsciente. Aparentemente é uma espécie de
conselho que Machado aos novos poetas que depositam toda a esperança
artística numa musa inconstante.
Aí está uma bela ironia crítica e ao mesmo tempo uma interessante lição
de como devemos ter sempre o atrás diante de alguns rótulos acerca das
“fases” da obra de Machado. No final das contas, Aurora Sem Dia, conto visto
pela crítica como um dos que compõe a “fase romântica”, acaba mostrando-se
com um forte pendor realista. A vida de Luís Tinoco é uma negação da musa
inspiradora e da concepção romântica de inspiração vinda do nada, do acaso e
do inconsciente.
os seus contos maduros, ditos “realistas”, mostram
contraditoriamente uma perspectiva romântica de inspiração. Em Cantiga de
Esponsais, é a moça apaixonada que “cantarola a toa e inconscientemente” a
inédita melodia perseguida por Romão. Em Um Homem Célebre, é quando
submetido à espontaneidade da inspiração que Pestana compõe suas
fabulosas e populares polcas; diferente do que acontece quando de forma
frustrada trabalha arduamente a fim de compor uma peça original. Por fim,
lembremos de Elisiário, que apenas consegue encontrar a rima no improviso e
94
na inspiração não talhada. Resumindo, o conto que a crítica considera como
sendo da “fase romântica” (Aurora sem Dia) tem uma visão mais realista e
racional da criação artística. Enquanto que os considerados da “fase realista”
(Um homem Célebre e Cantiga de Esponsais) apresentam um olhar temperado
de romantismo, acerca da inspiração súbita e incontrolável.
Temos de um lado os personagens-atistas que representam o primado
da disciplina e da técnica: Pestana, Inácio Ramos e mestre Romão. Do outro,
os que se apóiam unicamente na volubilidade da inspiração: Luís Tinoco, João
Maria e Elisiário. Contudo, todos o frustrados e infelizes. Machado não deixa
escolha aos seus artistas, pois nem somente a inspiração, nem somente a
disciplina são capazes de produzir a grande arte. Há a impressão da existência
de fatores subjetivos que afetando todos esses artistas, em algum momento
fogem da consciência e os impedem de a partir da disciplina chegarem à
inspiração ou partindo da inspiração se motivarem a atingirem o rigor da
técnica. Essa mesma imprevisível encruzilhada que surge ao poeta entre o
talento e a disciplina também é apontada por Horácio: “Já se perguntou se o
que faz digno de louvor um poema é a natureza ou a arte. Eu por mim não vejo
o que adianta, sem uma veia rica, o esforço, nem, sem cultivo, o gênio; assim,
um pede ajuda ao outro, numa conspiração amistosa (2005: 67).
Dentre os contos que abordam essa temática, uma das principais
distinções que deve ser feita entre os contos escritos pelo jovem e o maduro
Machado, é que se o primeiro ainda é capaz de sugerir através do artista
medíocre, Luís Tinoco, que antes a enxada vigorosa do que os versos fúteis, o
Machado maduro não sugere mais nada. Deixa que seus artistas sejam
corroídos pelo embate entre a falta de vocação e o excesso de ambição.
A Pestana, Romão, João Maria, Elisiário e Inácio Ramos fica a maldição
tragicômica lançada por Brás Cubas, na qual a idéia fixa se entranha nesses
pobres diabos artistas e os consomem melancolicamente até a morte ou o
ridículo, como no caso de João Maria.
O único de seus personagens que usufruiu do privilégio da resignação é
Luís Tinoco. Mesmo Elisiário não foi capaz de resignar-se e por isso antes que
abandonasse os versos, foram eles que o abandonaram, ficando no leitor a
impressão de um vácuo no espírito desse homem que era talentoso, charmoso
95
e que outrora foi tantas coisas, mas que por fim acaba como uma eterna
promessa de algo que verdadeiramente nunca foi.
A resignação de Tinoco abandonando as letras e a política deve ser
encarada não como uma derrota, mas como uma virtude. Ainda mais se
comparada ao decepcionante desfecho de Elsiário e o ridículo fim de João
Maria, que não percebendo sua mediocridade apela como “último e derradeiro
horizonte das suas ambições: um beco e quatro meninos” (Machado 1997 II:
1054).
Como que reconfortado com as palavras de Boileau, finalmente Tinoco
resolve tomar a enxada e a pá como instrumentos de trabalho:
Se for sua vocação, seja antes pedreiro, operário considerado numa
arte necessária, do que escritor sem relevo e poeta vulgar. Existem, em
qualquer arte diferentes graus e pode-se, com honra, ocupar segundas filas;
mas na perigosa arte de rimar e de escrever, não há graus do medíocre ao pior
(Boileau 1979: 66).
Mais uma vez parece clara a descendência de Machado e Boileau em
relação a Horácio. Afinal, como negar que esse comentário do escritor francês
não fora minimamente inspirado nas palavras de Horácio: “Vocês, que
escrevem, tomem um tema adequado a suas forças; ponderem longamente o
que seus ombros se recusem a carregar, o que agüentem” (Horácio 2005: 56).
Discordando novamente de Lúcia Miguel Pereira, talvez Pestana e
Romão fossem tipos mórbidos, mas nunca Tinoco. Pelo contrário, e é
importante que se atente a esse detalhe: Tinoco foi único que preferiu a vida ao
vírus corrosivo da obsessão e da idéia fixa.
Por mais ambíguo e aparentemente contraditório que possa parecer, se
num primeiro momento, quando comparado ao mestre Romão e Pestana, Luís
Tinoco se mostra absurdamente imaturo, tanto do ponto de vista artístico,
quanto psicológico, num segundo momento, ele se mostrará muito mais
amadurecido psicologicamente e talvez até mesmo um pouco mais
artisticamente
32
.
32
Vale relembrar que até hoje são raras as críticas que fogem da reprodução do comentário de
L. M. Pereira acerca de Aurora sem dia. Comentário esse que se limita a definir Luís Tinoco
como um personagem mórbido e que mostra algum traço semelhante ao das Memórias
Póstumas de Brás Cubas.
96
Como diriam os psicanalistas, ele foi o único que aceitou a condição da
castração, atualizada através da impotência e das limitações da sua falta de
talento artístico. Percebeu que não poderia ter tudo o que ansiava. Suas
possibilidades eram limitadas e, ao invés de passar toda a vida lutando contra
uma condição castradora e que ressaltava a limitação e a incompletude do
seu ser e de suas capacidades, preferiu salvar sua condição psicológica,
resignando-se e aceitando as possibilidades que lhe cabiam fora da
mediocridade.
Enquanto isso, Romão, Pestana, João Maria e Inácio Ramos não foram
capazes de aceitar a condição de impotência que a limitação de suas
habilidades e a falta de inspiração lhes remetia. Passaram toda a vida em
busca de algo que estava mais do que perdido, mas perversamente prometido:
a realização completa de todos os desejos. Eles não se satisfizeram apenas
com o que tinham e eram capazes. Faltou-lhes a aceitação da frustração, da
privação e da definitiva condição que somente Tinoco concebeu: a de serem
sujeitos que sempre sentirão falta de algo e não terão aquilo o que mais
desejam.
no fim do conto, conversando com Dr. Lemos, Tinoco plenamente
satisfeito com sua vida diz que
Tive animo de pisar em terreno sólido, em vez de patinar nas ilusões
dos primeiros dias. Eu era um ridículo poeta e talvez ainda mais ridículo orador.
Minha vocação era esta. Com poucos anos mais estou rico. Ande agora beber
o café que nos espera e feche a boca, que as moscas andam no ar (Machado
1997 II: 234).
Esse desfecho claramente nos impede de concordar com L.M Pereira.
Luís Tinoco não é um personagem mórbido. Se tivermos o cuidado de analisar
psicologicamente sua estória, perceberemos inclusive que ela tem um final
feliz. Diferente dos outros personagens-artistas, ele admite suas limitações e
finalmente consegue adequar seus desejos às suas habilidades.
Surpreendentemente, como se observa no trecho anteriormente reproduzido,
ele passa de um estado completamente regido pelo princípio da fantasia, no
qual havia espaço para as “ilusões” e falta de autocrítica, para uma outra
97
condição determinada dessa vez pelo princípio de realidade, representado pela
pá e enxada.
Mórbidos e melancólicos são João Maria, Inácio Ramos e principalmente
Pestana e mestre Romão, que perseguem suas idéias fixas como o cachorro
persegue o próprio rabo. Já Tinoco refaz sua própria estória. Foge de um
destino fadado ao fracasso e à mediocridade e refaz suas perspectivas.
Pestana e Romão, por sua vez, sucumbem ao fatalismo de suas ambições e
acabam imersos em uma espécie de tragédia de seus próprios desejos.
O segundo conto publicado por Machado antes de 1881 e que aborda a
problemática do personagem-artista é O Machete. Por sua qualidade e
importância, se faz necessário uma outra seção, na qual evidenciaremos que
nele estão presentes alguns importantes problemas que marcarão as idéias
da obra madura de Machado.
2.4 A Identidade, O Machete e o Outro
John Gledson afirma que, caso o critério único para compor uma lista de
antologia dos melhores contos de Machado fosse a qualidade literária, nenhum
dos contos da suposta primeira fase deveriam ali aparecer (2006: 40). Massaud
Moisés também considera que boa parte das narrativas que compõem as
Histórias da Meia-Noite e os Contos Fluminenses é melodramática, sentimental
e, além disso, não “acrescentam o mínimo brilho ao prestígio do Machado
contista” (2001: 117).
Entretanto, ao excluir de seus estudos os primeiros trabalhos de
Machado e, por conseqüência, um conto como O Machete, publicado em 1878,
esses críticos deixam de perceber que uma das idéias mais importantes de sua
obra madura estava presente no primeiro momento de sua produção.
Pretendemos nesta seção mostrar que O Machete, além de poder ser lido
como um conto sobre o personagem-artista e seus dilemas, também pode ser
concebido como precursor das principais idéias encontradas em O Espelho,
Teoria do Medalhão e O Segredo do Bonzo. Isto é, eles apresentam a
constante condição de relatividade das coisas e dos homens como decorrência
da importância do efeito que o discurso do outro exerce na valoração das
coisas e na formação e manutenção de nossa identidade psicológica.
98
Antonio Candido acredita que um dos problemas mais importantes da
obra de Machado seja o da busca por uma identidade (2004: 23). Partindo
fundamentalmente da teoria das duas almas uma exterior e outra interior,
apresentada em O Espelho ele mostra como essa busca pela identidade na
obra de Machado passa inevitavelmente pelo discurso do outro.
Aparentemente, o modo refinado com o qual o tema da identidade é
tratado n’O Espelho, lhe permite ocupar um status de primeiro escalão entre os
problemas abordados por Machado em seus contos. Mas o que Antonio
Candido não menciona é que a busca pela identidade apresentada pela
primeira vez n’O Espelho na forma da “teoria das duas almas” não é uma
teoria em si, ou nuclear.
Em hipótese alguma discordamos de que O Espelho trata de forma
profunda e elegante o problema da relatividade da construção da identidade.
Contudo, o que desejamos mostrar é que a teoria das duas almas é um dos
desdobramentos possíveis de um modo de pensar, apresentado pela primeira
vez em O Machete. Explico melhor. Não será na estória de Jacobina, mas na
de Inácio Ramos, que Machado pela primeira vez tratará da inevitabilidade do
discurso do outro na determinação relativa da formação e valoração das coisas
e da identidade.
Quando Bosi (2003: 84) diz que O Espelho, O Segredo do Bonzo e
Teoria do Medalhão são “contos teorias”, é importante termos consciência de
que todos eles se articulam entre si a partir de uma mesma idéia, que surge
pela primeira vez na obra de Machado em O Machete. Pensando assim, a
partir de agora somos capazes de entender esses contos como diferentes
modos de abordar um mesmo problema.
Indo ainda mais longe na tarefa de compreender os contos de Machado
de um modo sistemático, podemos conceber o desenvolvimento desses
“contos teorias” como inseridos em um projeto, no qual observa-se inclusive
uma espécie de “metodologia”. Aplicando a mesma idéia em diferentes
contextos e circunstâncias, Machado verificaria que a presença do efeito de
relatividade do discurso do outro sobre a ilusão de autonomia que os homens
nutrem sobre si mesmos e suas coisas, está no centro das contradições
existentes entre a aparência e a essência, contigencialidade e permaneciam,
verdade e discurso.
99
O Espelho relata a estória de Jacobina, um jovem recentemente
nomeado Alferes da Guarda Nacional que foi passar um tempo na fazendo de
sua tia. Esta, orgulhosa do status do sobrinho cria um ambiente no qual é
supervalorizada sua promoção. Após um tempo essa mesma tia precisa fazer
uma viagem. Os escravos aproveitam a situação para fugir e por conta disto
Jacobina acaba encontrando-se só na fazenda.
Sozinho e sem qualquer pessoa que reafirmasse sua identidade, agora
condicionada pelo reconhecimento de seu novo status social, Jacobina sentiu,
não necessariamente de forma consciente, sua identidade se esvaecer. Foi
quando percebeu que, vestindo-se com a farda de alferes e se olhando
diariamente no espelho, poderia salvar sua condição psicológica. Como
dissemos, talvez essa idéia não passasse conscientemente pela cabeça do
jovem alferes, mas o que de fato ocorreu foi que sua identidade a partir de
agora estava indissociável do valor simbólico da farda de alferes.
A busca pela formação e manutenção da identidade observada n’O
Espelho é apenas um dos possíveis desdobramentos das idéias nascidas em
O Machete. No caso de Jacobina, tratar-se-ia de um desdobramento no campo
da psicologia da identidade, a partir do qual concebe-se a formação da
identidade como algo contingencial e também condicionado pela importância
do efeito do discurso do outro.
Não foi preciso que Machado esperasse o surgimento da psicanálise
Lacaniana e sua teoria do narcisismo, fortemente influenciada pelas idéias de
Heidegger, para que notasse a volubilidade e indefinição de nossa identidade.
Sua obra nos impõe questões do tipo: teríamos uma existência essencial ou
relativa? Somos um e unicamente um, ou estamos constantemente submissos
ao olhar do outro para que possamos tangenciar alguma sensação de definição
psicológica?
Discordamos de J. Gledson (2006: 48), quando ele afirma que a teoria
que subjaz ao O Espelho diz respeito ao contexto social do século XIX ou à
formação da identidade nacional. O que emerge da estória de Jacobina, como
diz o próprio subtítulo do conto é um esboço de uma nova teoria da alma
humana.
O modo como Machado compreendia a formação de nossa identidade
apresenta o somente semelhança com o pensamento psicanalítico.
100
Observemos o que Montaigne no ensaio Da Incoerência de Nossas Ações
escreveu sobre isso:
É aparentemente possível julgar um homem pelos fatos mais comuns
da sua vida; mas, dada a instabilidade natural de nossos costumes e opiniões,
pareceu-me muitas vezes que os melhores autores erravam em se obstinar a
dar de alguém uma idéia bem assentada e lógica [...] Acredito que a constância
seja a qualidade mais difícil de se encontrar no homem, e a mais fácil a
inconstância.
E complementa mais à frente:
Quem se examina de perto raramente se duas vezes no mesmo
estado. Dou a minha alma ora um aspecto, ora outro, segundo o lado para o
qual me volto (1987 II: 100) (grifo nosso).
Excluir O Machete da categoria dos “contos teoria”, implica não perceber
que Machado retratou todas as possibilidades de combinação entre a alma
exterior e a interior! Partindo da explicação dada pelo intransigente narrador de
O Espelho fica mais cil entendermos, segundo a teoria “das laranjas”, porque
Jacobina consegue manter-se são, enquanto que Inácio Ramos de O Machete
enlouquece.
Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro
para fora,outra que olha de fora para dentro... Espantem-se à vontade, podem
ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me
replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito,
um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. casos,
por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma
pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par
de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda
alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é,
metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde
naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da
alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma
exterior aquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer.
101
"Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras
no coração". Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a
morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a
mesma...(Machado 1997 II: 346).
O Espelho apresenta uma posição central na articulação entre a alma
exterior (aparência, máscara ou o efeito do discurso externo) e a interior
(essência, ou verdade e desejos íntimos pretensiosamente autônomos em
relação aos efeitos externos).
Diferentemente do que ainda muito se repete, a manutenção da
integridade psicológica de Jacobina alcançada através do ato de vestir-se
diariamente com a farda de alferes e se olhar no espelho, não representa uma
imagem da sobreposição da alma exterior sobre a interior. O seu drama
psicológico se situa exatamente no meio de uma linha, na qual em uma das
extremidades está a alma interior e do outro a exterior. O jovem alferes foi
capaz de enxergar o que nem Inácio Ramos de O Machate, nem o pai
conselheiro da Teoria do Medalhão foram capazes: o equilíbrio necessário
entre as duas almas.
Em Teoria do Medalhão, o que temos é um desdobramento das
conseqüências da presença opressora e artificial do discurso do outro no
campo da ética. Neste caso, o que observamos é que esta teoria consiste
basicamente em esmagar quase que por completo a alma interior em prol de
uma outra exterior e absolutamente condicionada pela aceitação blica. Ou
seja, a aparência sobre a essência, a aceitação pública sobre a sinceridade
íntima. A teoria do medalhão pouco se importa, ou mesmo não acredita, no
valor das atitudes em si ou com a honestidade das opiniões. Para a teoria do
medalhão, a ética não é um valor em si, mas, sim, um instrumento a partir do
qual alcançamos nossos objetivos.
Uma das principais posturas de quem artificialmente deseja ter seus
comportamentos e juízos condicionados pela opinião pública é a fuga da
originalidade. A presença desse conceito faria do aprendiz de medalhão um
caráter surpreendente e sincero, excluindo, desse modo, a tranqüilidade
buscada na comodidade das relações superficiais. Não pensar muito e não ter
idéias que possam destoar da ordem comum, seria o lema intelectual de um
102
medalhão. Para isso, é fundamental que aprenda a “arte difícil de pensar o
pensado” (Machado 1997 II: 291). Sobre isso, Janjão ouve do seu pai que “o
verdadeiro medalhão tem outra política. Longe de inventar um Tratado
Científico da Criação dos Carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos
sob a forma de um jantar, cuja noticia não pode ser indiferente aos seus
concidadãos” (Machado 1997 II: 292).
Partindo dessa mesma perspectiva, podemos dizer que a vida de Inácio
Ramos nos reporta a uma condição quase que diametralmente oposta à da
Teoria do Medalhão. Lamentando a fuga da esposa, ele diz ao seu filho: “Oh!
Nada, disse Inácio, ela foi-se embora, foi-se com o machete. Não quis o
violoncelo que é grave demais. Tem razão; machete é muito melhor” (Machado
1997 II: 865).
Essas palavras na voz de Inácio Ramos, em um ato de desespero e em
tom melancólico, apesar de destoarem do cinismo com o qual são dadas as
lições ao aprendiz de medalhão, guardam a semelhança de preservar o
primado do externo sobre o interno, da aparência sobre a essência e da busca
da atenção pública sobre o desejo verdadeiro e a satisfação íntima e sincera. A
única diferença é que em Teoria do Medalhão o pai aconselha ao filho que
tome no futuro a aceitação pública como parâmetro das coisas, enquanto em O
Machete, o pai que fora abandonado pela esposa, lamenta tardiamente no
passado não tomou a aceitação pública como parâmetro para sua arte e vida.
A Teoria do Medalhão é a proposta de um cínico em negligenciar
completamente sua alma interior e íntima em prol do predomínio da alma
exterior, da aparência e da máscara. O Machete, por sua vez, é o retrato do
desesperado Inácio que iludido com a possibilidade da felicidade
fundamentada unicamente na satisfação íntima, negligencia sua alma exterior
em prol da interior. Ele perde sua outra metade da laranja, ou melhor, no seu
caso, o reconhecimento público. Inácio Ramos pecou no que a teoria das duas
almas tange à sua existência enquanto músico: ele não encontra o equilíbrio
entre a auto-satisfação, o desejo íntimo e verdadeiro e a expectativa da
atenção pública.
Em algum momento ele preferiu o violoncelo, afinal, pensou que tocar
com a alma ou transmitir verdadeiramente o que sentia através de um
instrumento grave, com uma “poesia austera e pura” lhe seria suficiente. Não
103
foi. Diferente de Jacobina que percebeu a importância do equilíbrio entre a
alma exterior e interior para sua saúde psicológica, Inácio relegou ao segundo
plano o aplauso e o julgamento público. Ele trocou a rabeca, instrumento que
herdou do pai e que se mostrava como uma possibilidade de ser aceito
musicalmente pelos que o rodeavam, pelo violoncelo. Foi essa aposta única e
excludente na satisfação íntima que o enlouqueceu. Dizia ele que “o violoncelo
está ligado aos sucessos mais íntimos da minha vida, que eu considero antes
como a minha arte domestica” (Machado 1997 II: 862).
Do mesmo modo que Jacobina, mesmo sem sair de casa precisou da
farda de alferes para não enlouquecer, aparentemente, durante algum tempo,
Inácio utilizou dessa mesma estratégia doméstica para se manter
psicologicamente saudável. Dizia ele que “tocava a rabeca para os outros, o
violoncelo para si, quando muito para sua velha mãe” (Machado 1997 II: 857).
Com o tempo parou de tocar rabeca e dedicou-se unicamente ao violoncelo. A
partir de então seus recitais se tornaram caseiros e particulares, tendo como
suas duas únicas espectadoras sua velha mãe e depois sua esposa. No
entanto, ambas serviam mais como espelho do que como público ou contato
com o julgamento alheio. Elas não nutriam opiniões críticas ou posturas que o
obrigassem a sair da condição de total comprometimento com a satisfação
íntima e o obrigasse a reconhecer a importância da expectativa do público.
O Machete nos mostra como a presença da força do reconhecimento do
outro está implicada na difícil condição do artista que pretende exercer sua arte
autonomamente. Além disso, podemos também a partir desse conto
problematizar a inevitável condição de valor relativo que um instrumento
adquire diante do público. Tudo isso diz respeito ao eterno dilema que o artista
precisa encarar: ser indiferente ao desejo do público e trilhar o caminho
autônomo e solitário da busca alienada pela satisfação íntima ou adotar uma
postura de completa submissão em relação às expectativas públicas e por
conseqüência negligenciar amargamente o seu desejo honesto e verdadeiro.
Partindo das intenções explícitas da teoria do medalhão, por mais
contraditório que pareça, seria adotando uma atitude nica e dissimulada que
Janjão encontraria o mesmo ponto de equilíbrio de Jacobina. O cinismo implica
a existência de um indivíduo com idéias próprias que conscientemente as
negligencia com o objetivo de alcançar determinados objetivos.
104
Ser cínico e dissimulado o quer dizer que o indivíduo não pense por
conta própria ou que seja um fantoche do interesse social. Por mais
questionável que essa postura possa ser, ela demonstra alguém que tem
consciência de seus objetivos e é capaz de exercer um juízo de valor, mesmo
que esses sejam arbitrariamente dissimulados. Enfim, o cinismo e a
dissimulação não atestam a ausência de idéias próprias e de desejos
verdadeiros. Ao contrário disto, reafirmam uma existência através da ausência.
O pai, professor da teoria do medalhão, sugere que o filho ignore suas
idéias próprias e originais e, se possível, nem mesmo as cultive: “uma vez
entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas idéias que houveres de nutrir
para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente” (Machado
1997 II: 290). Ou seja, o aprendiz de medalhão não deve ser cínico,
dissimulando idéias e opiniões, mas definitivamente excluir de si a
possibilidade de cultivá-las. Ele deve tornar-se quase que anestesiado às
próprias sensações. A idéia original ou que busca unicamente a satisfação
íntima e honesta deve ser evitada, os riscos são muito grandes. Para isto, é
preciso que se evite todas as situações que possam gerar idéias. Até mesmo,
alerta o pai-professor da teoria do medalhão, caso queira dar algum passeio:
“mormente nas de recreio e parada é utilíssimo, com a condição de não
andares desacompanhado, porque a solidão é oficina de idéias” (Machado
1997 II: 291). Notem que Janjão deve se preparar para parar de pensar!
O que está em questão não é uma negociação entre os desejos
verdadeiros (alma interior) e os superficiais e sociais (alma exterior), mas sim
uma tentativa de aniquilamento completo da subjetividade do indivíduo. Uma
sobreposição absoluta da alma exterior sobre a interior. Ao contrário do que
ocorrerá com Inácio Ramos, que ao final mostrará uma consciência
arrependida em relação à preponderância dada à sua satisfação íntima, os
ensinamentos da teoria do medalhão, visam um tal aniquilamento da
subjetividade, que um pensamento crítico sobre si próprio torna-se impossível.
Jacobina vive o que podemos chamar de luta pela autonomia do
indivíduo. E por conseqüência disso, alcança, não a autonomia desejada, mas
o que somente podemos ter, uma saudável ilusão dessa autonomia. Enquanto
a teoria do medalhão prega uma espécie de desaparecimento desse indivíduo,
Inácio, ao contrário, vive justamente as conseqüências por acreditar
105
inocentemente em uma autonomia psicológica. Isto implica dizer que
erroneamente, ele acreditou que o violoncelo e sua identidade eram algo em si,
independentes do público e dos outros.
Antonio Candido propõe o entendimento da loucura como um
desdobramento da problemática acerca da identidade, na obra de Machado
(2004: 23). Não esqueçamos, contudo, que como observamos, o se trata
especificamente do problema da identidade em si, mas sim do lugar do
discurso do outro na busca pela identidade ou na valoração das coisas ou na
formalização dos saberes.
Antonio Candido aponta O Espelho como o melhor representante do
problema da identidade em Machado. Já sabemos que alguns dos pontos
importantes desse conto foram previamente apresentados em O Machete. O
que ainda não comentamos é que a estória de Inácio Ramos se articula com
outros dois contos maduros de Machado: O Alienista e Último Capítulo
Em O Aliensita é a loucura o aspecto relativizado. Todos sabemos que
ao fim do conto, Simão Bacamarte percebe que o status da loucura não deve
ser concebido como um valor em si, mas sempre dentro de um contexto no
qual o comportamento humano pode ser analisado idiossincraticamente e não
normativamente. O que diferenciaria a loucura da normalidade seria apenas a
sua intensidade, diria Freud em Psicopatologia do Cotidiano. Ou o contexto
histórico, diria Foucault em a História da Loucura.
Em O Machete seriam o valor de um instrumento e a satisfação do
artista os objetos relativisados. Inácio Ramos decidiu tocar violoncelo após
assistir a um músico alemão arrebatando o blico carioca com o som do
instrumento. A partir de então decidiu que seria esse instrumento o seu meio
de exercer a arte. No entanto, nunca conseguiu que o seu violoncelo
arrebatasse o público. O efeito que causava nos poucos que o ouviam era de
gravidade e menos de explosão. Ele não percebeu que o público que o
rodeava, diferentemente daquele que se impressionou com o musico alemão,
preferia a rabeca e o machete ao violoncelo.
Sua idéia, como a de tantos personagens machadianos, era fixa e
trágica. O violoncelo, não é melhor nem pior do que outro instrumento. Se “a
palavra”, segundo Montaigne, “é a metade de quem a pronuncia, metade de
quem escuta”, nenhum instrumento possui a priori uma grandiosidade em si. O
106
valor de um instrumento não reside somente em que o executa, mas também,
em mesma medida, em quem o escuta.
Inácio Ramos, ao desprezar o gosto do público, perdeu sua esposa e
enlouqueceu. Sendo indiferente à idéia de relatividade do valor do violoncelo
e de seu talento –acabou ignorando, segundo A. Candido, que o que “há de
mais profundo em nós mesmos é no fim de contas a opinião dos outros”
(2004:27).
Apesar do talento e da sinceridade com a qual Inácio tocava o
violoncelo, ocorreu-lhe exatamente o oposto ao ensinamento dado pelo mestre
Pomada, do Segredo do Bonzo. Dizia o mestre que se puserdes as mais
sublimes virtudes e os mais profundos conhecimentos em um sujeito solitário,
remoto de todo contato com outros homens, é como se eles não existissem”
(Machado 1997 II: 325).
Inácio tocava o violoncelo com alma e cada vez para um público menor.
Diferentemente de Barbosa, que se não tocava o machete com alma e com
talento, tocava-o com os nervos.
Todo ele acompanhava a gradação e variação das notas; inclinava-se
sobre o instrumento, retesava o corpo, pendia a cabeça ora a um lado, ora a
outro, alçava a perna, sorria, derretia os olhos ou fechava-os nos lugares que
lhe pareciam patéticos. Ouvi-lo tocar era o menos; vê-lo era o mais. Quem
somente o ouvisse não poderia compreendê-lo (Machado 1997 II: 861).
Do que adiantava tocar o instrumento com alma, talento e técnica, se
eram os nervos expostos e a emoção exaltada que repercutiam no público.
Inácio era um músico que tocava com alma um instrumento de câmara, de
quarto e de poucos ouvintes. Já Barbosa, que o era exatamente um músico
ou um instrumentista, mas um tocador, executava um instrumento de público,
explosão e espetáculo.
Mesmo que Inácio tivesse mais talento que o seu colega e rival, o
sucesso desse segundo, inclusive em conquistar a esposa, pode ser resumido
na lição que Fernão Lopes aprendera do mestre Pomada:
107
Se alguma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e
existir na realidade sem existir na opinião, a conclusão é que das duas
existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade,
que é apenas conveniente (Machado 1997 II: 325).
É importante notarmos que Inácio não acreditou durante todo o tempo
que o violoncelo poderia ser um instrumento de fácil acesso ao público. Não
houve uma tentativa em fazê-lo um instrumento popular. Ao contrário disto, o
prazer em tocar o violoncelo derivava cada vez mais da satisfação íntima e não
do espetáculo público. Ao deixar de lado a rabeca, instrumento herdado pelo
pai e de enorme aceitação pública, e preferir a gravidade do violoncelo, ele fez
a opção pela satisfação íntima.
Do mesmo modo que propomos que o equilibro na Teoria do Medalhão
seria o cinismo e a dissimulação, Inácio, ao abandonar a rabeca e cada vez
mais conceber sua relação como violoncelo de uma forma introspectiva, nos
faz acreditar que ele não buscou um equilíbrio entre o violoncelo que lhe tocava
a alma e a rabeca que tocava o blico. No caso de Inácio, não houve um
dilema, mas apenas um arrependimento posterior.
Quantos escritores ou músicos são forçados a exercerem publicamente
práticas que não são necessariamente suas verdadeiras paixões? Muitos deles
exercem o ofício na rua e apenas em casa praticam a verdadeira arte que
realmente lhes dar prazer. Reconhecer o público, mas ao mesmo tempo não
negligenciar sua própria satisfação é o exercício de equilíbrio que quase todo
artista deve viver conscientemente. Inácio não o viveu. Do mesmo modo que o
medalhão deveria negligenciar a alma interna, Inácio também assim o faria,
que em relação à exterior.
Em todos os aspectos, a estrutura psicológica de Inácio Ramos mostra-
se mais precária do que a de Jacobina. Como conseqüência última da análise
dessa precariedade podemos mesmo dizer que nele não havia sequer
diferença entre alma externa e interna, o que caracteriza um rio problema. O
narrador intransigente d’O Espelho, diz sabiamente e anti-metafisicamente que
“agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...”.
No primeiro momento, essa definição nos permite entender que o
violoncelo está para Inácio Ramos assim como a farda de alferes está para
108
Jacobina e o par de sapatos lustrosos está para o pobre coitado do conto
Último Capítulo. Entretanto, o que diferencia Inácio desses dois outros
personagens é que Jacobina e o homem dos sapatos lustrosos tomam os
objetos externos como prolongamentos de suas identidades, como uma
espécie de bengala psicológica. Inácio, por sua vez, estabelece entre sua
identidade e o valor atribuído ao violoncelo um estado de completa fixidez.
Quando relata ao amigo que sua esposa havia fugido com o tocador de
machete
33
, ele não se refere como tendo sido trocado por outro. A esposa, nas
suas palavras, havia preferido o machete ao violoncelo. Isto é, podemos dizer
que o violoncelo não só o representava completamente, ele era o próprio
violoncelo. Não havia mais diferenciação entre um e outro.
É a impossibilidade de se dissociar do instrumento que leva Inácio à
loucura. A relação entre Jacobina, o mendigo e os significados singulares que
ambos atribuem aos seus objetos, apesar de fundamental na construção e
manutenção de suas identidades, ainda preservam justamente o sentido de
atribuição. Ou seja, há um ser que atribui um sentido a um objeto. Tanto os
sapatos como a farda permanecem como objetos externos, mesmo que
revestidos por significados simbólicos e fundamentais.
O que se observa entre Inácio e seu violoncelo é uma situação na qual
não somente uma atribuição de significados ou mesmo uma relação entre
um ser e um objeto. Ambos se fundem. A dissociação entre a identidade de
Inácio e o objeto é impossível. Um é outro e vice e versa.
Foi esse estado de fundição entre Inácio e o seu instrumento que o
levou à loucura. A farda de Jacobina ou os sapatos lustrosos do mendigo não
eram almas externas a priori. Elas devem ser lidas simbolicamente apenas
dentro de um contexto. Inácio, no entanto, cristalizou o lugar do violoncelo na
sua vida. Não importava quem o assistia, ouvia ou com quem convivia, sua
identidade não somente estava relacionada ao violoncelo, ela era o violoncelo.
Como conseqüência, qualquer relatividade que afetasse o reconhecimento do
instrumento também o afetaria. Como dizia um “vizinho compadecido e filósofo
[...] o violoncelo há de levá-lo ao hospício” (Machado 1997 II: 864). Dito e feito!
33
“Oh! Nada, disse Inácio, ela foi-se embora, foi-se com o machete. Não quis o violoncelo que
é grave demais. Tem razão; machete é muito melhor” (Machado 1997 II: 865).
109
A presença da relatividade entre os primeiros trabalhos de Machado não
se esgota em O Machete. Na verdade, são vários os contos nos quais
percebemos a presença desse elemento. Trataremos mais especificamente
desses contos na seção seguinte.
2.5 Sobre a relatividade das coisas e a precisão do Conto
Antonio Candido considera que o problema da relatividade mostra-se
presente na obra de Machado não somente no que diz respeito à
transitoriedade do valor das coisas. Ele justifica a presença desse elemento
como fundamental na obra de Machado, primeiramente partindo da concepção
de que a relatividade é causada pelo efeito que o discurso do outro tem na
determinação do valor das coisas e na idéia que fazemos de nós mesmos
(Candido 2004: 27).
O segundo aspecto apontado pelo crítico e que diz respeito à
relatividade dos atos dos personagens machadianos, é que “a impossibilidade
de os conceituar adequadamente, lugar ao sentimento de absurdo, do ato
sem origem e do juízo sem fundamento” (Candido 2004: 27). Tomando como
exemplo o conto Singular ocorrência, Antonio Candido relaciona a obra de
Machado à de Dostoievski e Kafka, no que diz respeito à presença do ato
singular e inexplicável entre os seus contos.
Consideramos que entre a relatividade das coisas daí a
impossibilidade de conceituação adequada do ato e a obscuridade das
motivações, um caminho que A. Candido não justifica muito bem em seu
artigo. Possivelmente não situaríamos o problema do ato sem justificativa no
mesmo tópico no qual ele aborda a relatividade das coisas, sentimentos e
atitudes. Acreditamos que haja uma diferença entre um ato de origem
enigmática e injustificada e outro que pode ser interpretado de diferentes
formas, justamente pela possibilidade de ter sido motivado a partir das mais
variadas e diferentes intenções. De qualquer modo, tomaremos esses
parâmetros apresentados por Candido sobre a relatividade na obra de
Machado, para verificar a presença dessa larga concepção entre suas
primeiras produções.
A contigencialidade de nossa identidade, o efeito do discurso do outro, o
valor transitório das coisas e as mais diversas motivações que precedem um
110
ato, podem ser relacionados a partir de um mesmo elemento: a relatividade. Ou
seja, além de ser em si um aspecto importante da obra de Machado, esse
elemento tem sua importância ressaltada pelo fato de ser o elo entre todos
esses assuntos.
Na seção anterior, destacamos especificamente como em O Machete a
concepção de relatividade como conseqüência do efeito do discurso do outro
tem uma importância fundamental na determinação do valor das coisas e no
reconhecimento dos homens. Nesta seção, apontaremos outros contos que
evidenciam a idéia de relatividade das coisas e dos atos, mas também, como
quer Antonio Candido, da relatividade retratada através do ato injustificado e
aparentemente absurdo.
Entre seus trabalhos maduros, o conto Idéias de Canário é um dos que
melhor aborda o problema da relatividade. Nele, um canário quando preso em
uma gaiola dentro de uma velha loja, considera que isso é a liberdade.
Posteriormente, quando preso numa gaiola maior e com uma bela vista para o
jardim, o mesmo pássaro muda de idéia e considera que isso sim é liberdade.
Por fim, quando livre da gaiola, ele não concebe outro modo de liberdade
senão essa, sem grades e sem limites.
Nesse conto, a condição de liberdade é exposta por uma perspectiva
pessimista e relativa. Somente podemos nos considerar livres a partir das
concepções de liberdade a que temos acesso. Machado propôs, antes de tudo,
que por conta de nossa obtusidade, não percebemos que a sensação de
liberdade não passa de uma mera ilusão, absolutamente relativa e baseada
nos limites impostos pelas contingências nas quais nos encontramos. Tal como
o canário falante do conto, apenas nos consideramos de fato livres, por não
sabermos quais são as reais possibilidades de liberdade que estão disponíveis
para além de nossa condição.
Arrisco-me dizer que a relatividade pode ser verificada entre suas
primeiras produções, não somente de forma embrionariamente e secundária,
mas intencional e específica. Entre seus primeiros trabalhos, um dos que mais
significativamente e possivelmente de forma intencional evidencia a
presença do valor relativo das coisas e de nossas atitudes é o conto Cinco
mulheres, publicado em 1865 no Jornal das famílias.
111
Aparentemente esse conto foi escrito com o propósito de mostrar que
dependendo da situação, a mesma atitude não pode, como deve ser
analisada de diferentes formas. O valor de cada ato não deve ser concebido
em si ou apenas conceitualmente, mas sempre dentro de um contexto e
levando em consideração qual o intuito que o sustem.
O conto é dividido em quatro pequenos relatos independentes, nos quais
observamos o valor relativo que o ato de dissimular, mentir ou omitir a verdade
pode adquire diante de cada contexto.
Antes de entramos nas especificidades de cada um desses pequenos
relatos, nos concentremos no que mais nos interessa: o ponto em comum que
relacionará as estórias dessas cinco mulheres. De forma semelhante ao que
Machado escreve na “Advertência” dos Papéis Avulsos, antes de iniciar
propriamente o conto, o narrador diz que “[...] vai um grupo de cinco
mulheres, diferentes entre si, partindo de diversos pontos, mas reunidas na
mesma coleção, como em um álbum de fotografias” (Machado 2003: 210).
Todas essas estórias fazem parte de um mesmo álbum que pretende
analisar e ressaltar as várias possibilidades de omissão da verdade como uma
atitude de valor relativo. O sentimento pessimista com o qual esse ato é
exposto em Dom Casmurro, aqui, cede lugar à necessidade da análise
contextual e relativa. Já no primeiro relato do conto, observamos a intenção de
Machado em desconstruir um juízo a priori sobre a dissimulação.
Marcelina é a protagonista da primeira estória. Ela adoece e morre por
decorrência de um amor secreto que nutria pelo noivo da irmã. O médico que a
tratava, acabou se tornando seu confidente e amigo. Era ele o único que sabia,
por ter descoberto, a paixão secreta de Marcelina pelo cunhado. Nem mesmo
ao amigo e médico ela confessou essa paixão, apenas a admitiu. Marcelina
nunca conseguiu tirar o cunhado do coração. Até a sua morte, a jovem
permaneceu nutrindo silenciosamente esse amor secreto pelo noivo da irmã.
Mentira, ausência de verdade ou dissimulação. Seja como chamemos
a atitude de Marcelina, o mais importante é notarmos que Machado
provavelmente desejou esboçar uma situação, a partir da qual pudéssemos
contrariar a perspectiva gida que afirma ser a mentira e a dissimulação uma
atitude sempre necessariamente pejorativa e absolutamente recriminável.
112
Em uma carta endereçada à mãe, Marcelina escreveu que “se eu sofro
por não ter a felicidade de possuí-lo, não sofreria ela, se ele fosse meu? Querer
a minha felicidade à custa dela, é um sentimento mau que mamãe nunca me
ensinou. Que ela seja feliz e sofra eu e minha sorte” (Machado 2003: 214).
Como diante dessas palavras classificar essa dissimulação como um ato
injusto ou com conseqüências prejudiciais aos que estão ao seu redor? Não foi
outra pessoa, senão ela própria, quem unicamente sofreu com essa mentira,
que nesse caso alguns preferem chamar de renúncia.
Não só a impossibilidade da realização desse amor, mas também o fato
de tê-lo nutrido clandestinamente, possivelmente colaborou para a morte
precoce da frágil Marcelina. Talvez, mesmo se não fosse correspondida, quem
sabe se em simplesmente verbalizar seu sentimento, ela não se sentisse
melhor e evitasse sua morte precoce. Entretanto, em seus pensamentos, o
prolongamento de sua vida ou sua própria satisfação, não pagariam um mal-
estar gerado na família ou uma grande confusão na vida de sua irmã.
Caso nos recusássemos a entrar em contato com a obra do jovem
Machado, perderíamos a oportunidade de a partir da estória de Marcelina,
afirmarmos categoricamente que nem todos os personagens machadianos
dissimulam com objetivos perversos e egoístas. Alguns deles dissimulam ou
mentem, mas com a melhor das intenções.
O segundo relato é a estória de Antônia, que como diz o narrador, seria
a representação dos “Tibérios femininos”. Ela era casada e aparentemente
apaixonada por Oliveira, seu marido. Contudo, com o tempo correu a notícia,
verdadeira, que ela nutria uma relação extraconjugal com Moura, um amigo da
família.
O início do conto retrata principalmente a felicidade do casal. O narrador
faz questão de ressaltar a confiança mútua existente entre ambos e
principalmente o fato de que até então conseguiam se divertir e aproveitar
os prazeres do mundo se juntos estivessem. O destaque dado ao modo como
ambos se davam e apenas se divertiam juntos não é gratuito. Este aspecto
será utilizado mais à frente para evidenciar e ressaltar o caráter de
dissimulação de Antônia.
Certa vez, ela desejava assistir a uma celebridade cantando no teatro.
Oliveira por doença ou enfado não quis. A insistência da esposa foi grande.
113
Mais de uma vez ela ameaçou o ir, caso o marido não a acompanhasse.
Oliveira, compreensivo dizia que não iria, mas que também não achava justo
ela deixar de se divertir por ele.
A insistência de Antônia em fazer o marido acompanhá-la ao teatro, aos
poucos, deixa transparecer que seu verdadeiro desejo com aquela insistência
era buscar a certeza de que Oliveira não sairia de casa, ficando ela, assim,
livre para se encontrar com Moura no teatro. Essa idéia pode ser confirmada
pela sua reação, quando Oliveira lhe pergunta qual o número do camarote no
qual ela permanecerá acompanhada das amigas:
– De que numero é o camarote? Perguntou bruscamente Oliveira.
– Vinte, segunda ordem, disseram algumas amigas de Antônia.
– Antônia empalideceu ligeiramente.
– Então, irás, depois, não é? Disse ela.
– Não, decididamente, não.
– Dize se vais.
– Não, fico, é decidido (Machado 2003: 217).
Antônia exerce a dissimulação subvertendo a intenção de um
comportamento que o marido tomava como motivado pelo carinho e o afeto.
Outras vezes, essa insistência em ir ao teatro ou para outros compromissos
apenas se acompanhada por ele, demonstrava, como disse o narrador, que um
não era capaz de viver ou se divertir sem o outro. Desta vez, Antônia percebe
que o melhor modo de obter a certeza, sem causar suspeita, de que o marido
ficaria em casa, não a acompanharia ao teatro e assim a deixaria livre para se
encontrar com o amante, seria exercendo uma atitude tantas vezes motivada
pelo amor, mas que desta vez seria pelo desejo de viabilizar a traição.
O caso de Antônia ratifica a idéia de que uma mesma atitude pode ser
gerada pelas mais diversas intenções. O Diabo, em A Igreja do Diabo, nos
lembra que salvar a vida de uma pessoa pode ser um ato de egoísmo, quando
praticado por um misantropo. Do mesmo modo, a aparente demonstração de
carinho por parte de Antônia, insistindo pela companhia do marido, tem como
motivação oculta uma busca pela certeza da viabilidade do adultério. Ou seja,
insistir pela companhia do marido, nesse caso, não é uma demonstração de
afeto ou uma vontade de estar junto dele, mas um meio de traí-lo.
114
No terceiro relato, Carolina faz uso da dissimulação de forma
diametralmente oposta ao que fez Antônia. Se esta última pretendia somente
dissimular suas intenções a fim trair o marido, Carolina ocultou a paixão que
sentia por Fernando, um antigo namorado, com o objetivo de preservar a honra
do seu marido, do seu casamento e evitar a tentação. O relato sobre Carolina
não é somente de um segundo exemplo de como podemos conceber a
dissimulação fora da classificação de “ruim e egoísta. Mais do que isso,
levando em conta o motivo que a levou a dissimular, podemos conceber essa
tomada de atitude como um ato de sacrifício e respeito.
O quarto e último relato do conto, o de Carlota e Hortência, mostra-se
como o de maior qualidade. Hortência, após confirmar que era traída pelo seu
marido, é recebida por Carlota em sua casa. No entanto, ao invés de mostrar-
se agradecida e fiel a esta amizade, ela passa a manter uma relação amorosa
com Durval, marido de sua amiga Carlota.
Desde o início do conto, durante o enterro de Carlota, o narrador
aponta evidências de como em todos os momentos, a dissimulação, nos seus
mais variados graus, está presente entre as pessoas.
Os que acompanhavam o enterro apenas dois o faziam por estima à
finada; eram Luís Patrício e Valadares.
Os mais iam por satisfazer a vaidade do viúvo, um José Durval, homem
de trinta e seis anos, dono de cinco prédios e de uma dose de fatuidade sem
igual.
Valadares e Patrício, na qualidade de amigos da finada, eram os únicos
que traduziam no rosto a profunda tristeza do coração. Os outros levavam uma
cara de tristeza oficial (Machado 2003: 221).
É evidente, mesmo ao leitor mais desatento, que é Hortência a quarta
mulher (das cinco anunciadas pelo título do conto) a exercer a dissimulação.
Qual, deste modo, seria a quinta se esse é o último relato do conto?
É exatamente esse ponto que faz dessa a melhor e mais bem construída
das quatro estórias. Qualquer falta de atenção nesse momento nos impediria
de perceber que Carlota morre pelo mesmo motivo que Marcelina. Ambas
115
dissimulam seus sentimentos por mais tempo do que poderiam ou deveriam, e
isso as faz padecer.
Vejamos como o narrador, sutilmente, apresenta o momento no qual
Carlota resolve sufocar sua raiva:
Hortência era amante de José Durval.
Quando Carlota descobriu qual era a situação de Hortência em relação a ela,
sufocou um grito. Era a um tempo, ciúme, desprezo, vergonha. Se alguma
coisa podia atenuar a dor que ela sentia, era a covardia do ato de Hortência,
que tão mal pagava a hospitalidade que obtivera de Carlota.
(...) A frieza que começou a manifestar a Hortência, mais do que isso, a
repugnância e o desdém com que a tratava, despertou no espírito desta a idéia
de que era preciso sair de uma situação tão falsa.
Carlota, com uma cólera sufocada, lançou em rosto à amiga o
procedimento que tivera em casa dela. Hortência negou, mas era negar
confessando, pois que nenhum tom de sinceridade tinha a sua voz (Machado
2003: 222) (grifo nosso).
Eram duas as dissimulações que se confrontavam simultaneamente
nesse momento. Uma de Hortência que “negou” a situação, e outra de Carlota
que “sufocou um grito”.
Diferentemente de alguns dos primeiro trabalhos de Machado, como por
exemplo, O que São as Moças, nos quais o narrador chama a atenção do leitor
para os detalhes mais importantes do conto, nesse último relato, somente a
mentira de Hortência é evidenciada. Nem a dissimulação dos que
acompanhavam o caixão de Carlota, nem a atitude da própria Carlota em
dissimular sua raiva são ressaltadas e postas em primeiro plano. Novamente,
notamos mais uma das principais características dos trabalhos maduros de
Machado. Ele evidencia o que é menos importante e intencionalmente apenas
insinua de forma sutil o detalhe revelador e primoroso.
Ainda nesse mesmo conto, a dissimulação é mais uma vez abordada
sob uma nova perspectiva relativista. Desta vez ainda mais sutilmente. No fim
do conto o narrador expõe uma carta escrita por Valadares a L. Patrício. Na
carta ele conta ao amigo o fatídico fim de Durval. Após a morte de Carlota, o
viúvo e Hortência se casaram. Não demorou muito para que ela começasse a
116
traí-lo. Os desgosto gerados por esse casamento fizeram com que Durval fosse
morrendo à míngua e desmoronando aos pouco.
Valadares não esconde a satisfação que sente ao presenciar e relatar o
fim de Durval. Tendo escrito sobre esse sentimento na carta que enviou a
Patrício, obteve como resposta do amigo a seguinte sentença:
Muito me contas, meu amigo Valadares, acerca dos algozes da Carlota.
É uma paga, não deixes de crê-lo, mas no que fazes mal, é em mostrares
alegria por essa desgraça [...] (Machado 2003: 224).
Essa passagem retrata a última possibilidade apresentada no conto
acerca das diferentes intenções que podem motivar a dissimulação. Patrício
sugere que Valadares não somente não sinta esse tipo de satisfação, mas que
se caso isso seja inevitável que sufoque esse sentimento e não deixe que ele
venha à tona. Desta vez, o ato de dissimular é proposto com um objetivo quase
cristão de não desejar o mal ao próximo, mesmo que ele o mereça.
O conto, num primeiro momento pode parecer ter como objeto de
análise o comportamento feminino ou o ato da dissimulação. Mas, o modo
como ele é estruturado e as estórias são contadas nos fazem imaginar que
Machado tinha o objetivo específico em abordar algum tema e problematizar
sua condição de relatividade diante de suas motivações e contextos.
Por outro lado, certamente não foi gratuita a escolha de escrever quatro
relatos nos quais em todos eles o objeto relativizado era a dissimulação.
Machado tomou como exemplo de relatividade as várias possibilidades de
motivações que leva uma pessoa a mentir, esconder, omitir ou ocultar uma
verdade ou dissimular um juízo, um sentimento ou uma atitude. Deste modo,
caso seu leitor fosse capaz de admitir a relatividade de uma atitude tão a
priori condenada, como a dissimulação, possivelmente ficaria mais fácil que ele
concebesse a partir de então a relatividade de outros sentimentos e atitudes
menos estigmatizados negativamente.
Outro aspecto maduro presente nesse conto é a capacidade de síntese
e de exposição de somente o necessário. Sobre o conto, diz o narrador que
“Isto não é um romance, nem um conto, nem um episódio; — não me ocuparei,
portanto, com os acontecimentos dia por dia” (Machado 2003: 211). Diferente
117
de um romance, no qual as digressões e as volúpias de um narrador podem
enriquecer os aspectos formais e idealísticos da obra, em um conto, gênero de
estrutura linear, é importante que o escritor consiga fazer que o leitor não se
despeça do seu objetivo. Um grande romance apresenta além de seu objetivo
principal, vários outros aspectos, problemas, temas e objetivos secundários. O
conto deve ter uma estrutura linear, funcionar com uma flecha, com um alvo
único e certo.
Em se tratando de Cinco Mulheres, um conto composto por quatro
estórias independentes, foi necessária a opção de Machado em não se apegar
aos detalhes que poderiam desviar a atenção do leitor, que nesse momento
deveria aos poucos ir percebendo a relação entre uma estória e outra.
Um exemplo dessa postura é quando o narrador, se referindo
diretamente ao leitor, diz que “como eu não quero entreter os leitores com
episódios inúteis e narrações fastidiosas, salto aqui uns seis meses e vou levá-
los à casa do Mendonça, numa manhã de inverno” (Machado 2003: 219). Ao
escrever esse conto, Machado fez o mesmo que seu narrador ao nos falar
sobre a carta deixada por Fernando a Carolina: “A carta [tal como o conto,
poderia ser] abundante em comentários, mas eu julgo melhor conservar
somente a substância dela” (Machado 2003: 219).
Apontamos a presença da relatividade em Cinco Mulheres, baseados na
idéia de que um mesmo ato pode ser motivado por diversos interesses. Num
mesmo conto, Machado demonstrou que uma mesma atitude pode ser
motivada por quatro diferentes motivos: abnegação, adultério, respeito ou falta
de coragem.
O valor definitivo de uma atitude, tanto pode se perder no abismo da
relatividade por conta de um excesso de possíveis motivações, quanto
(segundo A. Candido) pela aparente ausência delas. É essa segunda opção
que nos faz incluir o conto A Herança entre as estórias de Machado, nas quais
o ato em questão se encontra imerso num halo de absurdo; sem explicações
possíveis ou justificativas racionais.
Entre os contos maduros, além de Singular Ocorrência, apontado por
Candido, Missa do Galo, A Verba Testamenteira e a Causa Secretao alguns
exemplos de estórias que retratam personagens que agem de forma
injustificada e aparentemente sem motivações racionais e decifráveis. Será
118
com a leitura do conto A Herança publicado no Jornal das Famílias em 1878
que mostraremos a presença desse mesmo cenário, composto por atitudes
injustificáveis, entre os primeiro trabalhos de Machado.
O enredo do conto é simples. Venância, entre outros sobrinhos, tinha
dois que eram órfãos: Emílio e Marcos. Marcos era “seu mordomo, espôso, pai,
filho, médico e capelão” (Machado 1957 XVII: 187). Emílio não amava,
entretanto, a tia; se fosse mau, podia detestá-la; mas se não a detestava,
confessava intimamente que ela o aborrecia” (Machado 1957 XVII: 189). D.
Venância morre e nomeia Emílio seu herdeiro universal. Aos outros sobrinhos
deixa apenas um razoável legado. O fato não espantou, como indignou
Marcos, que esperava da tia uma divisão em partes iguais dos seus bens.
D. Venância age de forma semelhante a Quintília, do conto A Desejada
das Gentes. Ambas tomam atitudes injustificáveis. Durante toda a vida
Quintilha se nega a casar. No entanto, somente quando consciente de sua
irreversível debilidade sica e da proximidade de sua morte, aceita o pedido de
casamento do Conselheiro. Do mesmo modo que não razão para Venância
tanto desdenhar o casamento, também não para somente quando no leito
de morte e já se despedindo da vida, aceitar o pedido de casamento do
Conselheiro.
A relatividade em A Herança, seguindo o raciocínio de Antonio Candido,
se caracteriza pela falta de justificativas racionais, tanto para o amor
desproporcional e não correspondido que D. Venância tem por Emílio, como
também, por conseqüência, para ela ter deixado a maior parte de sua herança
para ele.
Lendo o conto e nos colocando no lugar de Marcos, perguntamo-nos: o
que, de fato, nos faz amar alguém? Por que não condicionamos nossos
sentimentos somente às pessoas que nutrem sentimentos recíprocos por nós.
Apesar de Emílio dizer que sua tia chegava a aborrecê-lo e que por isso
raramente a visitava, “Emílio”, para D. Venância, “era o predileto de seus
sobrinhos; ela adorava-o. A melhor hora do dia era a que êle lhe destinava a
ela“ (Machado 1957 XVII: 180).
Mais uma vez, não somente podemos apontar a presença de um
aspecto maduro entre os primeiros contos de Machado, como também
perceber a consciência que ele tinha sobre como deve ser a estruturação de
119
um conto. A Herança é todo construído com o objetivo de ressaltar e evidenciar
o seu propósito: a decisão injustificada e surpreendente da tia em fazer de
Emílio seu herdeiro universal. O destaque dado durante todo o conto a
diferença de comportamento e sentimentos que os irmãos nutrem pela tia, é
uma estratégia para que ao nos depararmos com o seu testamento, nos
surpreendamos e entendamos que o objetivo do conto é uma reflexão sobre
como em muitos momentos nossos sentimentos e atitudes o injustificáveis.
Quanto mais o conto é capaz de transmitir a indiferença de Emílio pela tia e o
cuidado de Marcos por ela, maior será o estranhamento do leitor diante do
intrigante e não justificável amor que ela devota a Emílio. O seu testamento é
uma espécie de desfecho representativo do que Antonio Candido chama de
“ato injustificável” e “senso profundo das contradições da alma”.
No próximo tópico, ao tratarmos sobre Virgínius, novamente, a partir de
outros aspectos, abordaremos o tema da relatividade.
2.6 Virgínius: entre o local e o universal
Segundo Antonio Candido, podemos dizer que em meados do século
XIX a ficção regionalista dos nossos principais românticos Bernardo
Guimarães, José de Alencar, Visconde de Taunay e Franklin Távora era
claramente construída em torno de questões humanas, indicando uma certa
independência dos personagens em relação às peculiaridades regionais. No
entanto, as possibilidades de análises psicológicas que esses autores nos
proporcionavam eram ainda muito inocentes e limitadas para que pudéssemos
caracterizar algum sinal de maturidade no romance brasileiro (Candido 1975 I:
212). Impregnados pela preocupação em descrever o Brasil e os brasileiros,
suas estórias eram superficiais e “se apegam à descrição dos costumes, forma
elementar do estudo do homem na ficção” (Candido 1975 I: 296). Faltava-lhes
o gosto pela análise psicológica minuciosa que, segundo Lúcia Miguel Pereira,
somente com Machado de Assis e Raul Pompéia seria inaugurada na nossa
literatura.
Apesar de abordarem diversos temas, havia, entre os românticos, um
fim comum: “o de buscar o homem brasileiro, nas suas origens, como fez José
de Alencar” (Pereira 1957: 62). Fugindo dessa preocupação romântica de
descobrir quem é o brasileiro, Machado desde cedo tomou para si o desafio
120
maior de desvendar não somente o brasileiro, mas o humano. De fato, apesar
dos seus melhores contos psicológicos terem sido escritos após a década de
oitenta, suas primeiras produções já sugerem que os atos mais vulgares
podem esconder razões indecifráveis; que os mais insólitos devem ser vistos
como fazendo parte do repertório dos ditos comportamentos “normais” e os que
aparentemente são apenas explicados ou justificáveis a partir das
contingências especificas e locais, na verdade fazem parte da psicologia
universal humana e não somente do comportamento do brasileiro.
Em 4 de agosto de 1878, isto é, antes do início de sua obra madura, em
uma correspondência a Francisco de Castro, Machado, falando sobre sua
crença na existência de alguns sentimentos universais dos homens, escreve:
[...] que a evolução natural das cousas modifique as paixões, a parte
externa, ninguém jamais o negará; mas alguma coisa que liga, através dos
séculos, Homero e Byron, alguma coisa inalterável, universal e comum que fala
a todos os homens e a todos os tempos (Apud Barreto Filho 1980: 74).
Mesmo com todas as limitações que a imaturidade e a obediência em
escrever estórias leves e que tocassem temas que dissessem respeito ao
mundo das leitoras da época, desde cedo, se podia observar que em alguns
de seus contos as atitudes dos personagens adquiriam um caráter relativo, por
decorrência da infinidade ou aparente ausência de motivações. Seu desejo
em esquadrinhar a alma humana e compreender suas paixões, o fez cada vez
mais revestir o personagem de complexidade e ocupar um lugar primordial na
sua ficção. Relegando, deste modo, a um plano secundário, os cenários,
contextos históricos e eventos nos quais seus personagens se inserem.
Notemos que não é o caso de afirmarmos que suas estórias são destituídas de
quaisquer marcas que nos impeçam de as situar na história do Brasil, mas
apenas que sua intenção principal sempre foi a análise do homem e seus
comportamentos, e não o Brasil e sua dinâmica social particular.
Como conseqüência dessa primazia dada aos elementos que compõem
a densidade psicológica de seus personagens, a arquitetura do seu conto,
segundo José Aderaldo Castello, “primeiramente, é apoiada no esquema de
uma situação adequada à demonstração de caracteres esboçados. Fatos ou
121
acontecimentos são assim configurados muito mais na dependência da análise
do que em função de um esquema narrativo” (1969: 76).
Ao optar seguir uma tradição de escritores obcecados pela dissecação
psicológica, e não pela construção de uma literatura verde-e-amarela, Machado
adquiriu a liberdade estética e ideológica necessária para alargar seus
parâmetros literários e buscar, também, além dos limites da literatura nacional,
novos elementos para construção de sua obra. Assim, se em Montaigne,
Pascal, Shopenhauer e na Bíblia (Candido 1975 II: 118) reconhecemos a
origem de muitas de suas idéias nutridas acerca do homem, será
principalmente na obra de escritores descendentes da sátira menipéia que ele
encontrará inspiração para a forma de sua ficção. Dentre esses autores,
destacam-se Sterne, Fielding, Cervantes, Rabelais, Swift, Sêneca, Luciano,
entre outros (Sá Rego 1989: 18).
No livro Calundu e a Panacéia, Enylton de Rego mostra que com a
publicação das Memórias Póstumas, Machado definitivamente se insere na
tradição da sátira menipéia. Dentre algumas das principais características
herdadas por Machado dessa tradição, constam o gosto pela paródia e a
atenção privilegiada à cultura clássica.
Não somente nos romances, mas também nos contos que publicou a
partir da década de oitenta, se tornaram freqüentes as referências à cultura
clássica. Entre os contos, A Segunda Vida, por exemplo, mostra-se como uma
versão de Machado para o mito de Er tal como descrito por Sócrates no Livro
X da República. Em Viver!, são postos na mesma cena um personagem da
mitologia grega, Prometeu, e uma lenda bíblica, Ahasverus. O título A
Desejada das Gentes, nos remete ao dizer bíblico que se referia a Jesus Cristo
como “O Desejado de todas as gentes”. Na Arca (três capítulos inéditos do
Gênesis), obviamente se inspira nos textos bíblicos, mais especificamente no
Gênesis, do Antigo Testamento, na passagem do Dilúvio. E Pílades e Orestes,
novamente faz referência à mitologia Grega. Além desses contos, são
inúmeras as citações espalhadas pela sua obra que nos remetem à literatura e
à história clássica.
Apesar de John Gledson considerar de forma generalizada que os
primeiros contos de Machado publicados em 1864 são “estranhamente
desajeitados” (2006: 41), será justamente através da leitura de Virgínius
122
(narrativa de um advogado), publicado nesse mesmo ano no Jornal das
Famílias, que apontaremos a presença (articulada) de dois aspectos que
futuramente serão constantes e definitivos em sua obra madura: a referência à
cultura clássica e, como chamamos atenção no início do capítulo, o gosto por
analisar a psicologia humana de uma perspectiva universal.
Djalma Cavalcante (2003), também preocupado em compreender o
desenvolvimento dos contos de Machado, constatou que no primeiro período
de sua produção são freqüentes as referências à história da Grécia antiga e da
Roma Imperial. Ainda de acordo com Djalma Cavalcante, além da história, a
cultura clássica também se fará presente entre esses primeiros contos através
da mitologia e da filosofia.
Em Virgínius (narrativa de um advogado) Machado recontextualiza no
Brasil do século XIX, a tragédia romana de Virgínius, sua filha Virgínia e o mais
popular dos decênviros, Ápio Cláudio. Nele, além de ainda não percebermos a
veia satírica, característica marcante da apropriação que os escritores da sátira
menipéia fazem dos textos clássicos, também a narrativa do conto preserva a
mesma gravidade da tragédia na qual se inspira, deixando transparecer um
certo ar moralizante, que mais à frente Machado substituiria pela ironia.
Virgínius é uma das primeiras amostras de que Machado, ao contrário do que o
acusava Silvio Romero, não “macaqueava“ gratuitamente os modelos clássicos
estrangeiros. Já de forma consciente, ele parecia se apropriar dos elementos
da cultura clássica a fim de abordar de forma universal os temas do Brasil da
época.
É o próprio Machado, em Virgínius, quem avisa ao leitor que o conto em
suas mãos não somente teve seu título inspirado na tragédia de Virgínius,
como também seu enredo: um pai que mata a filha, pois acredita que esse é o
melhor modo de defender a sua honra que está em risco.
Todos conhecem a lúgubre tragédia de Virginius. Tito Lívio, Diodoro de
Sicília e outros antigos falam dela circunstanciadamente. Foi essa tragédia a
precursora da queda dos decênviros. Um destes, Ápio Cláudio, apaixonou-se
por Virgínia, filha de Virginius. Como fosse impossível de tomá-la por simples
simpatia, determinou o decênviro empregar um meio violento. O meio foi
escravizá-la. Peitou um sicofanta, que apresentou-se aos tribunais reclamando
123
a entrega de Virgínia, sua escrava. O desventurado pai, não conseguindo
comover nem por seus rogos, nem por suas ameaças, travou de uma faca de
açougue e cravou-a no peito de Virgínia (Machado 2003: 102).
Nas poucas linhas que até agora a crítica dedicou ao conto, algumas
delas o destacam principalmente por ser ele um dos primeiros no qual
Machado aborda o difícil tema da escravidão entre as folhas do Jornal das
Famílias (Gledson 2006: 42). José Aderaldo Castello, apesar de a princípio
tomá-lo como exemplo da capacidade de Machado em recontextualizar em
assuntos de seu tempo temáticas clássicas, prefere enfatizar que o conto
chama atenção principalmente por representar o aspecto “revoltante e trágico”
da escravidão (1969: 90).
Em outro trabalho, Luiz Roncari brevemente ressalta que Virgínius é um
perfeito exemplar da maioria dos contos publicados por Machado no mesmo
período, nos quais ele inicia a narrativa com observações realistas sobre as
práticas sociais, mas logo cede às intrigas romanescas. Também, de modo a
ressaltar o tratamento dado por Machado ao tema da escravidão, Roncari diz
que o conto “é armado desse modo, com intenso realismo, mas depois se
desenvolve como romance’. Para reparar a ordem ameaçada no
desenvolvimento do conto, os crimes o punidos, os maus castigados e os
bons compensados na justa medida do que cabia a cada um” (Roncari 2006:
87-88).
Seguindo outra linha de pensamento, que acredita existir no jovem
Machado um escritor que tende a abordar temáticas universais, preferimos
chamar a atenção para o fato de que, ao conscientemente buscar numa
tragédia clássica o tema para a construção do seu conto, Machado demonstra
que além da preocupação em abordar os temas de sua época, no início de
sua carreira ele também parecia desejar ratificar que as justificativas para as
motivações de seus personagens ultrapassam os limites do contexto histórico,
devendo ser compreendidas a partir de uma perspectiva universalista da
psicologia dos indivíduos. Ao estabelecer uma relação entre Ápio Cláudio e
Carlos, Machado mostrou compreender que a capacidade de exercer
cruelmente o poder de dominação é uma característica universal da psicologia
humana e não exclusiva dos senhores de engenho e seus herdeiros. Trata-se
124
de uma espécie de pulsão sádica que apesar de assumir diferentes formas,
pode ser verificada em todas as épocas e culturas.
Nem a tirania de Cláudio deve ser unicamente justificada pelos poderes
tiranos que o Império Romano proporcionava aos seus legisladores, nem o
senso de propriedade que Carlos pensava possuir sobre Elisa deve ser
unicamente atribuído à permissividade do regime escravocrata do Brasil no
Segundo Império. Peter Gay, em seu estudo Freud para historiadores, por
também acreditar em alguns traços universais da psicologia humana, defende
que qualquer um que pretenda conhecer essa psicologia, “diante de um desfile
de personagens históricos, pode ver os atos deles mas deve inferir os seus
motivos” (1989: 29).
O clássico artigo Prosa de Ficção, de Lúcia Miguel Pereira, certamente é
umas das melhores coisas que até hoje se escreveu sobre a relação entre o
universal e o particular em Machado. No trecho transcrito abaixo, ela faz uma
observação que pertinentemente podemos também atribuir à importância que
acreditamos existir na relação estabelecida por Machado entre o seu Virgínius
e a tragédia romana de Virgínius. Segundo L. M Pereira:
O adjetivo brasileiro, limitador, caiu ou passou a segundo plano,
permitindo que o substantivo homem se revestisse afinal, pela primeira vez em
nossa literatura, de toda a sua significação. Não que os pormenores locais
fossem inteiramente desprezados; estão ao contrário admiravelmente anotados
em sua obra, pela qual se pode em boa parte reconstruir a sociedade
oitocentista em alguns dos aspectos mais característicos (1957: 62).
Não podemos negar que Virgínius apresenta elementos que retratam a
condição social do Brasil do século XIX. Contudo, reduzir o seu sentido a uma
suposta intenção de Machado em simplesmente tê-lo concebido como uma
peça de denúncia social contra as conseqüências de um regime escravocrata,
é não perceber que já em 1864 Machado possuía esse profundo senso de
dialética entre o clássico e o novo, o universal e o particular, a história e a
psicologia. Ao mesmo tempo em que a tentativa de desrespeito de Carlos em
relação à Elisa pode ser lida como supostamente motivada por essa pulsão
sádica, egoísta e violenta do ser humano, tambem não devemos perder de
125
vista que será somente através das possibilidades oferecidas pelo seu meio, ou
seja, o regime patriarcal, escravocrata e a condição privilegiada dos senhores
de escravo no Brasil dos oitocentos, que essa pulsão encontrará a
possibilidade de ser posta em prática. Por isso, L. M. Pereira afirma que:
Apreciar o indivíduo, concomitantemente, em face do universo e da
pequena sociedade a que pertencia foi dos seus maiores dons. Do mesmo
modo passo que sonda as paixões comuns aos homens de todas as latitudes,
fixa os hábitos peculiares de uma região (1957: 75).
Freud, em O Mal-Estar na Civilização, ao apontar a possibilidade de
observarmos em diversos períodos da história da humanidade a mesma
capacidade do homem em causar sofrimento, mostra, tal como Machado, nutrir
uma impressão pessimista e universal da psicologia humana:
O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas
estão tão dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que
desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas;
pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em
conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu
próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual,
mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a
explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente
sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe
sofrimento, torturá-lo e matá-lo. Homo homini lupus. [...] Em circunstâncias
que lhe são favoráveis, quando as forças mentais contrárias que normalmente
a inibem se encontram fora de ação, ela também se manifesta
espontaneamente e revela o homem como uma besta selvagem, a quem a
consideração para com sua própria espécie é algo estranho. Quem quer que
relembre as atrocidades cometidas durante as migrações raciais ou as
invasões dos hunos, ou pelos povos conhecidos como mongóis sob a chefia de
Gengis Khan e Tamerlão, ou na captura de Jerusalém pelos piedosos
cruzados, ou mesmo, na verdade, os horrores da recente guerra mundial,
quem quer que relembre tais coisas terá de se curvar humildemente ante a
verdade dessa opinião (Freud 1976 XXI: 133).
126
Observemos no trecho seguinte, que Sérgio Paulo Rouanet ao analisar
o episódio do escravo Prudêncio e as humilhações às quais Brás submete
Eugênia, também empreende uma leitura na qual se vê, além da relação com a
psicanálise, o mesmo cuidado nosso em notar na obra de Machado o diálogo
entre o universal e o local:
Achas que o episódio do moleque Prudêncio se vingando em um
escravo das pancadas recebidas é um traço da natureza humana? Engano,
amigo leitor. Estás generalizando para o homem em geral um comportamento
condicionado por estruturas particularíssimas de opressão. Marx, e não
sejas reacionário. Afirmas que, humilhando Eugênia, Brás está se comportando
unicamente como representante de sua classe? Tolice leitor ignaro. Estás
esquecendo dados universais da psicologia humana, como a ambivalência
amor-ódio e a existência da pulsão de morte. Freud, e não sejas
reducionista (Rouanet 1993: 330).
Se Machado considerou que a tragédia de Virgínius, mesmo
atravessando séculos, ainda permanecia viva e podia ser recontextualizada
nos temas em pauta do século XIX, é porque algo nela foge aos limites do
contexto histórico e retrata tanto as atitudes dos homens do séc V, quanto as
do séc. XIX. Mantendo, deste modo, o que toda peça clássica deve ter: uma
matéria universal que a possibilite tangenciar questões fundamentais dos mais
diversos períodos históricos e contextos culturais. Ao se apropriar de uma
tragédia clássica e revesti-la com uma roupagem antiescravista, Machado
mostra que é preciso ir além das camadas superficiais dos acontecimentos
para encontrar as respostas do comportamento humano. O regime
escravocrata deve ser compreendido como apenas uma das possíveis páginas
que a história nos apresenta como conseqüência da até hoje incansável
vontade do homem em exercer o poder e tomar seus semelhantes como objeto
de exploração.
A presença do poder entre as relações humanas vai além das
constatações feitas pelas leituras marxistas sobre os meios de produção ou os
períodos de escravidão em diversas culturas. Em toda relação na qual haja um
que supostamente detém o poder e outro que é submisso, haverá sempre a
127
quase inevitável possibilidade do superior e mais forte ceder à tentação de
subjugar, agredir e obter, mesmo que à força, os bens materiais, físicos ou
sentimentais do subjugado. Onde houver duas pessoas se relacionando, em
algum momento seus sentimentos, palavras, ou acordos perpassarão pelas
conseqüências da força do desejo e da possibilidade de usufruto do poder.
Isso, desde um cenário intelectual, onde um aluno e um mestre; passando
pelo da escravidão, com o senhor e o escravo; até os relacionamentos
amorosos, nos quais a relação de dominação não obedece a uma regra estável
e institucionalizada, mas às do jogo da sedução e do erotismo que o poder da
conquista possui.
O modo como Machado percebe o que há de mais importante e humano
na tragédia romana de Virgínius e pertinentemente recontextualiza sua
essência no típico cenário do Brasil no séc. XIX, observado em Virgínius, prova
que desde o início de sua carreira ele é, segundo Antonio Candido, um
“exemplo de como se faz literatura universal pelo aprofundamento das
sugestões locais” (1975 II:117).
2.7 Virgínius e o sentido do ato
José de Alencar foi quase exato em definir seu Iracema (1865), não
como um romance, mas como uma espécie de “lenda” (Merquior 1996: 113).
Não só ele, mas boa parte da ficção romântica brasileira estava longe de
apresentar profundidade psicológica ou alguma problematização do sentido da
vida. O seu único compromisso era essencialmente o de estabelecer uma
identificação entre o herói e a sociedade nacional.
José Guilherme Merquior considera que “edificação moral, divertimento
e problematização da vida” (1996: 208) seriam as funções históricas da arte
literária. A ficção que fundou nossa literatura e que tinha à frente da fila
Alencar, de fato conseguiu grande popularidade. O divertimento oferecido aos
leitores vinha em forma de um romance de costumes; com enredos planos,
personagens unidimensionais e a descrição de paisagens e tradições que
possibilitava ao leitor menos letrado conseguir, sem muito esforço, se identificar
com a trama e o cenário do romance. Antes de Machado surgir definitivamente
como um autor maduro, a literatura brasileira, apesar de já ter incorporado os
128
elementos fundamentais da literatura ocidental, ainda era marcada pela
carência de problematizações psicológicas, sociológicas e filosóficas.
A edificação moral, presente na maioria dos folhetins, inclusive os
publicados por Machado no Jornal das Famílias, era responsável por, ao
mesmo tempo, proporcionar às mulheres um divertimento seguro e que ainda
reforçasse os valores tradicionais da época. Nos grandes romances, essa
edificação moral seria trocada pela edificação nacional. Enfim, ao insistir não
na construção, mas também na existência de uma literatura brasileira,
mesmo nossos maiores românticos não fizeram outra coisa senão uma
literatura moralista (no sentido restrito da palavra), divertida (com dramas
superficiais) e, como diz Merquior, de “consciência ingênua” (1996: 209).
É oportuno relembrarmos que quando Alencar afirmava ser Iracema
uma “lenda” e não um romance, realmente ele parecia compreender não
somente a condição da sua literatura, mas toda a produção daquele período. A
literatura romântica, de forma geral, se não em sua totalidade, o conseguiu
construir personagens que representassem a condição de indivíduo moderno
34
.
Como dissemos no tópico anterior, apesar desses personagens poderem ser
distinguidos da paisagem, todas as suas atitudes e escolhas giravam numa
esfera coletiva e nacional.
As atitudes dos personagens eram construídas com o objetivo de
representar um povo e não de analisar as possibilidades psicológicas dos
homens. Em lugar de problematizações existenciais, filosóficas e psicológicas,
observávamos apenas afirmações ideológicas, históricas e estéticas. As
justificativas para tudo o que ocorria nesse mundo quase épico de Alencar,
apenas poderia ser encontrada na superficialidade do tema, na descrição da
paisagem e do cenário histórico ou na tentativa de representar o espírito
nacional. O grande problema alencariano e da literatura brasileira em sua fase
de formação, foi acreditar que, para ser autêntica, criar raízes e definitivamente
poder representar o Brasil, teria que abrir mão da análise psicológica do
indivíduo em detrimento da descrição do tipo brasileiro e omitir qualquer
impulso que problematizasse a existência.
34
No transcorrer desta seção ficará claro o que entendemos por “personagem modernos”.
129
Em contraponto a esse cenário, mesmo o jovem Machado, quando
ainda escrevendo contos dos quais suas leitoras pudessem obter alguma
“edificação moral”, esboçava a intenção de cutucar o leitor e chamar sua
atenção para a possibilidade de analisar as escolhas e atitudes de seus
personagens como dilemas absolutamente inexoráveis à condição de
desamparo e liberdade do indivíduo moderno. Machado seria o primeiro a
apresentar ao leitor brasileiro a conflituosa condição de um personagem
constituído enquanto indivíduo e que, por conta disso, é obrigado a conviver
inevitavelmente com o incerto espaço existente entre o intuito e o ato, com o
dilema relativo diante das opções e com as implicações existenciais e
redefinidoras decorrentes de um ato praticado.
Segundo Antonio Candido, esse problema do sentido do ato, após
percorrer toda a obra de Machado, é retomado no romance Esaú e Jacó. A
personagem Flora e sua indecisão, diante da rivalidade dos irmãos gêmeos
Pedro e Paulo, “encarna a decisão ética, o compromisso do ser no ato que não
volta atrás, porque, uma vez praticado, define e obriga o ser de quem o
praticou” (Candido 2004: 26). Ainda segundo Antonio Candido, e reforçando o
que dissemos anteriormente, além da responsabilidade da escolha e do ato, o
personagem machadiano vive as angústias da complicada relação entre a
validade do ato e o intuito que o sustem (2004: 26).
O estudo do sentido do ato entre os primeiros personagens de Machado,
mostra-se possível ao admitirmos que ele nunca os concebeu como símbolos
culturais ou apenas peças de uma engrenagem maior e empenhada na
construção e firmamento da identidade nacional. Chega a ser surpreendente
que em 1865, apenas um ano após a publicação de Iracema, Machado
publique Virgínius e nele, apesar de ainda não se mostrar como o escritor
maduro que ficará para a história, se percebe uma ficção constituída por
personagens modernos, autônomos e responsáveis pelos próprios atos.
No tópico anterior, mostramos que o comportamento de Carlos não
representa somente o resultado de uma dinâmica social especificamente
brasileira, mas que também carrega a marca de traços da psicologia universal
dos homens. Agora, admitindo que Julião não representa somente um tipo
social, mas um indivíduo moderno e subjetivamente singular, podemos analisar
sua atitude como não sendo um resultado inevitável da história. Assim como o
130
episódio no qual Virgínius mata Virgínia deve ser lido como um acontecimento
histórico, cada personagem dessa tragédia dever ser compreendido como um
elemento que possui sentido em função de um todo maior que compõe a
história da Roma Antiga. Enquanto isso, Machado, ao mesmo tempo em que
toma emprestada dessa tragédia sua essência, atribui ao ato de Julião um
caráter absolutamente idiossincrático. Principalmente pelas suas motivações
particulares, pelo seu direito de escolha e pelas conseqüências dessa escolha
não serem históricas, como na tragédia de Virgínius, mas sim singulares e
psicológicas.
Caso construíssemos nossa interpretação de Virgínius em torno de um
eixo histórico, estaríamos reduzindo nosso trabalho ao exercício de
simplesmente localizar na história do Brasil qual o período retratado pelo conto.
No entanto, deslocando-a para um eixo psicológico ou filosófico, poderíamos,
além da contextualização histórica, também problematizar a distância entre as
intenções de Julião e a validade do seu ato. Assim como também ressaltar seu
inegável direito de escolha e sua responsabilidade enquanto sujeito implicado
num ato que não volta atrás. Machado, mesmo em seus primeiros contos,
“chegaria assim a uma concepção do personagem como uma realidade
autônoma, válido por si mesmo, isto é, reconhecido nos limites do seu próprio
mundo” (Castello 1969: 36).
Deste modo, qual seria a validade do ato de Julião, que prefere matar a
filha a vê-la desonrada por Carlos? Em que medida essa atitude o define como
herói ou assassino?
Depois de praticado, o mesmo ato pode defini-lo como herói ou vilão.
Para admitirmos que essa atitude o define como herói, é preciso que o
concebamos como um ato de sacrifício. Julião, neste caso, seria considerado
herói, pois foi capaz de tomar uma difícil decisão: em troca da honra da filha,
carregaria pelo resto da vida a marca desse acontecimento e o peso da
decisão que tomou e não necessariamente que precisou tomar. Apesar de
aparentemente questionável, podemos dizer que, desse ponto de vista, Julião é
o mártir de toda essa tragédia. Afinal, ao ser assassinada e tendo sua honra
salva, foi Elisa quem mais se beneficiou com o ato do pai. Enquanto que Julião,
apesar de brandamente punido pela justiça, foi o mais sacrificado, uma vez que
para sempre cumprirá a rigorosa pena de carregar a marca da sua decisão.
131
Por outro lado, até que ponto seu ato não pode ser definido como uma
escolha egoísta e covarde? Teria ele salvo somente a honra da filha ou
também a sua? Não seria mais heróico conviver com essa desonra e enfrentar
ao lado da filha os olhares atravessados e preconceituosos dessa sociedade
oitocentista? Qualquer resposta que déssemos para essa questão poderia ser
considerada arbitrária. O mais importante é notarmos que, na tomada da
decisão e no ato praticado, Julião, enquanto sujeito, tanto se mostra implicado
e compromissado com o ato, pois ele o reflete, quanto também tem sua
existência redefinida.
Antonio Candido faz uma aproximação entre o sentido do ato na obra de
Machado e as teorias de Sartre e Camus. Segundo o existencialismo, ao
mesmo tempo em que é o indivíduo que significação ao ato, pois este em si
não possui nenhuma, a tomada de uma decisão e a realização do ato também
definirão esse mesmo indivíduo. O sujeito, segundo o existencialismo
sartreano, está condenado ao ato da escolha. Tendo cada escolha como
conseqüência um novo critério, uma finalidade, um valor e, em última
conseqüência, um ato. Será esse ato resultante da liberdade da escolha e da
singularidade do sujeito.
Segundo o existencialismo lembrado por Candido, a tomada de uma
atitude ou de uma escolha define o sujeito como um projeto de si mesmo; um
projeto fruto da liberdade (ou condenação) de escolha. Ora, pensando assim,
não faria sentido dizermos que Julião agiu por falta de escolha. Pelo contrário.
Se tivéssemos que apontar uma única coisa da qual ele não foi destituído
naquele trágico episódio, seria do direito de escolha. Por isso, não podemos
considerar que a morte de Elisa foi apenas mais um exemplo das páginas da
história do Brasil ou uma decorrência inevitável do desrespeito de Carlos. Sua
morte não foi outra coisa senão a conseqüência de um ato, que por sua vez, foi
fruto do direito (ou condenação) de escolha e decisão de Julião.
Tanto a autonomia dos personagens do conto, quanto essa indefinição
acerca das implicações éticas que o ato praticado tem na caracterização da
índole de Julião, estão na contramão do que observamos nos personagens
românticos, publicados naquele mesmo período, e nos naturalistas, que
surgiriam com mais vigor dali a um tempo. Segundo Castello,
132
No Romantismo principalmente durante as primeiras manifestações do
romance, o protagonista biparte-se nas categorias de herói e vilão, ou do bem
e do mal, convergindo para a justiça punitiva e reparadora. Também exprime a
fuga da aspiração sentimental ao pressionamento da sociedade, ou carrega
consigo no caso de investir contra a sociedade um potencial reparador e
reabilitador sobre o poder de forças corruptoras. No realismo-naturalismo, o
protagonista freqüentemente se reduz a um títere, sem apreciável autonomia,
negando ou omitindo a pessoa moral (1969: 34).
Basicamente, são duas as questões pontuadas por A. Candido para
indicar a presença do problema do sentido do ato na obra de Machado. Na
primeira ele afirma que o grande problema suscitado é o da validade do ato e
de sua relação com intuito que o sustem”. Sobre isso, mostramos que o ato de
Julião não foi fruto de uma imposição, mas sim de uma escolha que nos leva a
pensar se realmente foi válido o ato de matar Elisa, com a intenção de salvar
sua honra.
A segunda questão seria o compromisso do ser no ato que não volta
atrás, porque uma vez praticado define e obriga o ser de quem o praticou”. Por
isso, segundo Antonio Candido, Flora tendo em Pedro e Paulo opções
excludentes entre si, ao escolher entre um dos dois ela “se sentiria reduzida à
metade [...] e a posse das duas metades a realizaria”. Flora morre sem
escolher e nela sentimos um sopro de ataraxia”. No que diz respeito a Julião,
se cada ato que define o sujeito como projeto de si mesmo (Para-si) é sempre
responsabilidade em sentido total e absoluto, ao realizar sua escolha (defender
a honra da filha) e praticar o ato (assassiná-la), ele, ao mesmo tempo em que
se define enquanto sujeito implicado no ato, reflete e obrigatoriamente
convive com as conseqüências de seus conceitos, julgamentos, prioridades,
capacidades, escolhas e desejos.
2.8 As primeiras mulheres (da obra) de Machado
A preocupação em relação às personagens femininas sempre foi uma
constante em todo o percurso de Machado de Assis como contista. Nos Papéis
Avulsos, a mulher é destaque em D. Benedita. Em Histórias Sem Data, em
Uma Senhora, Capítulo dos Chapéus, Noite de Almirante, A Senhora do
133
Galvão, Primas de Sapucaí e Manuscrito de um Sacristão. Em Várias Histórias,
o tema é retomado em A Cartomante, Uns Braços, A Desejada das Gentes, D.
Paula e Mariana. Em Páginas Recolhidas, Missa do Galo e Eterno. Por fim, em
Outras Relíquias o tema surge em Viagem à Roda de Mim Mesmo.
Assim sendo, o motivo principal desse capítulo não será a preocupação
em simplesmente ressaltar a presença (óbvia) desse tema entre seus primeiros
contos, mas verificar até que ponto essas personagens femininas se inserem
de forma tipificada em narrativas que simplesmente podem ser reduzidas a
discursos moralizantes de um Machado de Assis ainda romântico, idealizador e
escrevendo para moças da sociedade carioca ou se em algumas dessas
estórias se pode observar algo do grande Machado de Assis, que foi capaz
de criar personagens que retratam mulheres singulares com psicologias
marcantes, tais como D. Paula e D. Benedita.
Como afirmamos, o fato de Machado ter escrito a maioria dos seus
primeiros contos especificamente para publicação no Jornal das Famílias,
certamente contribuiu para que muitas dessas estórias abordassem questões
que girassem em torno do casamento, tema que possivelmente era o único
com o qual as mulheres da sociedade deveriam de fato se preocupar. Por isso,
em Ernesto de Tal, Linha Reta e Linha Curva, a Mulher de preto, Miss Dollar, O
segredo de Augusta, Confissões de uma viúva moça, Ponto de vista, Miloca,
Cinco Mulheres, O que são as moças e Onda, as personagens, a princípio,
quase sempre estão às voltas com problemas relacionados à infelicidade (e
infidelidade) conjugal, amores frustrados, busca por parceiros ideais e desejos
reprimidos.
Pois bem, se naquele momento, quando iniciou sua carreira na ficção,
Machado escreveu praticamente boa parte dos contos tendo em mente o
público feminino e por conseqüência tendo também que supostamente
abordar temas que lhe dissessem respeito nada mais natural que nesse
período, segundo Castello, o tema central de sua obra fosse o amor (1969: 77).
É justamente nessa constatação feita por Castello, que reside um dos pontos
mais e sutis e importantes do seu estudo.
Ele não nega que nesses contos as personagens estivessem imersas
em estórias impregnadas de concepções românticas. Em Linha Reta e Linha
Curva, por exemplo, observamos o seguinte diálogo:
134
- Ah! foi casada duas vezes?
- Em dous anos.
- E por que enviuvou da primeira?
- Porque meu marido morreu, disse Emília rindo-se.
- Mas eu pergunto outra cousa. Por que se fez viúva, mesmo depois da
morte de seu primeiro marido? Creio que poderia continuar casada.
- De que modo? perguntou Emília com espanto.
- Ficando mulher do finado. Se o amor acaba na sepultura acho que não
vale a pena de procurá-lo neste mundo (Machado 1997 II:131).
Tal como em A Parasita Azul, percebe-se nesse diálogo uma certa idéia
romântica de amor predestinado, único e que deve permanecer vivo mesmo
após a morte. Contos como A Última Receita e Fôlha Rota, sugerem, através
de estórias leves, que diante de um pretendente, as moças devem se mostrar
sempre com muito recato, e que a escolha do noivo e futuro marido deve
passar inevitavelmente pelo consentimento e autorização da família. Em
Miss Dollar e Confissões de uma Viúva Moça se discute os riscos de cair nas
garras de pretendentes interesseiros e conquistadores baratos.
Castello acredita que mesmo nos contos menos interessantes e mais
superficiais, nos quais o amor e suas implicações são as únicas matérias que
aparentemente interessam, Machado se diferenciaria dos autores românticos
pela forma como trata o tema. Em muitos deles, além de não abusar do
sentimentalismo (Castello 1969: 79), suas personagens quase sempre vivem
não somente dilemas superficiais, mas também um descompasso entre a
“pessoa moral e a pessoa afetiva”. Isto é, apesar da base moral manter-se
praticamente intacta, em contos como Ernesto de Tal, Miloca e Confissões de
uma Viúva Moça, surge algo que somente com Virgília, das Memórias
Póstumas, seria plenamente admitido pelo autor: a dissociação quase que
inevitável (mesmo que mínima) entre os desejos íntimos e as limitações
impostas pelo contexto social.
Mesmo que as primeiras mulheres machadianas precisem ceder às
imposições sociais que as circunstâncias lhe impõem, por decorrência da
crença que Machado possuía na força da vida interior e na ênfase que dava
135
aos estudos das motivações, e não somente aos dos costumes, quase sempre
seus contornos psicológicos permaneciam imunes às soluções simplistas do
romantismo, que as reduziam em duas categorias: as das moças respeitadas e
direitas e as das ambiciosas e por isso castigadas.
Nesta época, ainda faltava a Machado coragem suficiente para criar
uma personagem tão livre, ambígua e contraditória como Virgília, que “traíra o
marido, com sinceridade, e agora chorava-o com sinceridade”. Mas, em Miloca,
por exemplo, a heroína embora seja castigada pelas suas ambições, não se
culpa, não perde seus desejos e nem muda seu caráter. Do mesmo modo, em
Folha Rôta, a separação do primo, a qual foi obrigada a se submeter, não fez
desaparecer por completo os sentimentos de Luísa. Pelo contrário, deu-lhe a
real dimensão do amor que sentia. Em outro conto que se sobressai, Mariana,
a gentil mulata que apesar da consciência da impossibilidade de manter
uma relação com o senhorzinho, prefere se matar, mas não abre mão do direito
de amá-lo.
Se em muitos desses contos, o amor frustrado ou as atitudes
reprováveis levam à morte ou ao castigo em forma da infelicidade amorosa, é
porque Machado, mesmo ainda não sendo capaz de subverter através da
ironia, do humor e da sensualidade discreta, a ordem moral à qual as mulheres
estavam subjugadas, fez questão de ressaltar a força dos desejos íntimos e a
impossibilidade de acreditarmos que os parâmetros sociais, além de manterem
as aparências, também fossem capazes de condicionar definitivamente a
“pessoa moral”, como diz Castello.
Se Machado até a década de oitenta era capaz de adequar os destinos
e desfechos de suas personagens aos parâmetros sociais, o mesmo não faria
com suas motivações psicológicas. Nos primeiros contos, se os desejos de
suas personagens não necessariamente obedeciam a alguma regra, em
compensação, se os praticassem, inevitavelmente seriam julgadas e
castigadas pelos códigos sociais. Já nos seus trabalhos maduros, não somente
as personagens apresentam motivações íntimas e singulares, como também,
não necessariamente, são sempre punidas ou retaliadas. Pelo contrário. Muitas
vezes são capazes de agir diferentemente do que delas se espera (como Sofia
em O Capítulo dos Chapéus); realizarem atitudes transgressoras e não se
sentirem culpadas (como Virgília das Memórias); sentirem desejos proibidos e
136
se permitirem realizá-los (como D. Severina de Uns Braços); serem
intempestivas e obstinadas (como Maria Olympia de Senhora do Galvão) ou
injustificáveis e imprevisíveis como D. Benedita. As primeiras personagens de
Machado imaginam e desejam, mas são recatadas ou reprimidas pelas normas
e convenções sociais. Suas personagens maduras se permitem desejar e não
raras às vezes realizam seus desejos, mesmo que coloquem seu status social
em risco.
Entre todos os sentimentos presentes definem suas personagens e que
aparentemente estão submissos ao moralismo da sociedade, mas na verdade
se fazem notar pelos comportamentos que, como diz Bosi, causam um furo na
máscara, um parece ter sido trabalhado por Machado com um gosto especial: a
vaidade. Possivelmente, esse sentimento seja o responsável por alguns dos
melhores momentos de seus contos. Em a Senhora do Galvão, Maria Olímpia,
vendo a possibilidade de ser ofuscada numa importante noite pela suposta
amante de seu marido, mesmo não acreditando que de fato ela fosse a tal
amante, entra em ação e em um único ato mostra ao leitor quem de fato ela é e
o que a vaidade pode levá-la a fazer:
— Naturalmente, disse a outra abrindo e fechando o leque; e, depois de
umedecer os lábios, como para chamar a eles todo o veneno que tinha no
coração: Ipiranga, você está hoje uma viúva deliciosa... Vem seduzir mais
algum marido?
A viúva empalideceu, e não pôde dizer nada. Maria Olímpia
acrescentou, com os olhos, alguma coisa que a humilhasse bem, que lhe
respingasse lama no triunfo. no resto da noite falaram pouco; três dias
depois romperam para nunca mais (Machado 1997 II: 467-468).
Outro belo exemplar da galeria de mulheres vaidosas de Machado é
Quintília, de A desejada das Gentes. Ela nunca escondeu a repulsa que tinha
pela idéia de se casar. Falava sobre isso abertamente, aliás, como tudo o que
sentia. Ela não tinha segredo, e por isso seus olhos eram “sem mistérios nem
abismos” (Machado 1997 II: 507). No entanto, nunca deixou de ser cortejada.
Pelo contrário, “ela não favorecia a um mais que a outro; mas era lhana,
graciosa e tinha essa espécie de olhos derramados que não foram feitos para
137
homens ciumentos” (Machado 1997 II: 507). Durante toda a vida manteve ao
seu redor vários pretendentes. Com o passar do tempo, todos perceberam a
impossibilidade de desposá-la, retiraram-se da batalha e abriram espaço para
outra leva de pretendentes. Quintilha adoece. Quando a morte já era inevitável,
ela aceita casar-se com o Conselheiro. Seria isso crueldade ou uma espécie de
presente de consolação que ela dava em troca de toda a atenção que ele lhe
devotara durante seu padecimento? Enfim, o único abraço que ele lhe dera, foi
quando ela já era um cadáver.
Maria Regina, em Trio em Menor, também não deixa de mostrar uma
grande dose de vaidade. Ao mesmo tempo em que não consegue escolher
entre Maciel e Mirando, também não abre mão de tê-los sempre à disposição.
Seja para se sentir cortejada ou para alimentar a ilusão de plenitude e
perfeição que aqueles dois homens tão diferentes lhe causavam.
De fato, na maioria dos seus primeiros contos, raramente a vaidade das
mulheres se revela como um aspecto psicológico, mas como estratégia de
casamento e ascensão social. Em quase todos os casos a vaidade feminina se
faz presente através da busca que empreendem pelo melhor partido. Ou seja,
essas primeiras personagens nutrem a esperança de dois ou mais
pretendentes, não por serem realmente dominadas pelo impulso da sedução,
pelo prazer de serem cortejadas simultaneamente por mais de um homem ou
se acharem “boas demais” para qualquer um, mas, e quase sempre somente,
pela necessidade de se manterem precavidas em caso de um dos seus planos
matrimoniais não ser bem sucedido.
Vejamos que em Ernesto de Tal, todo o trama gerado em torno da
indecisão de Rosina entre Ernesto e o rapaz de nariz comprido pode ser
resumido à ambição de uma moça que deseja garantir o melhor partido, mas
também não abre mão de ter sempre um amante de reserva. O conto não
questiona quem de fato ela ama ou se ama os dois. Do ponto de vista
psicológico, sabe-se apenas que ela é uma jovem ambiciosa e consciente de
suas intenções. Enquanto que Ernesto seria um sujeito fraco, submisso e
disposto a qualquer coisa por Rosina.
Desse caso para os contos maduros, nos quais também triângulos
amorosos, Machado incrementa suas análises psicológicas e deixa de reduzir
todas as atitudes de suas heroínas ao desejo de ascender socialmente. Em
138
Esaú e Jacó, a indecisão de Flora diante dos dois irmãos, retrata a sua
incapacidade em escolher entre dois caracteres não somente diferentes, mas
completamente antagônicos. Tanto Pedro quanto Paulo representam para
Flora possibilidades distintas, mas válidas e complementares. Sua indecisão
denuncia muito mais um dilema existencial do que uma estratégia de conquista
e ascensão. Da mesma forma, em Trio em Menor, o seriam os aspectos
financeiros os responsáveis pela indecisão de Maria Regina entre Maciel e
Miranda. Cada um deles representa um tipo diferente e que por conseqüência
atende a diferentes expectativas. Como exemplo do que se passava na cabeça
de Maia Regina, basta dizer que em certo momento, ela “tratou de combinar os
dous homens, o presente com o ausente, olhando para um, e escutando o
outro de memória; recurso violento e doloroso, mas tão eficaz, que ela pôde
contemplar por algum tempo uma criatura perfeita e única” (Machado 1997 II:
522).
Mesmo em Noite de Almirante, quando aparentemente somos levados a
achar que o principal motivo para Genoveva descartar Deolindo em detrimento
do mascate, seria a condição financeira desse último, o próprio narrador nos
avisa que é de algo muito mais sério, uma vez que a personagem nos remete
ao que de mais próximo da natureza humana. Genoveva representaria a
capacidade do indivíduo em se comprometer unicamente com seus próprios
desejos. Ela apenas queria poder desejar o mascate do mesmo modo que
pôde anteriormente desejar o marujo, seja por qual motivo financeiro ou
amoroso. Seu desejo, assim como o de todos os personagens modernos, é
dissonante, egoísta, auto-conservativo, egocêntrico e simplesmente quer ser
saciado, não importando a dor e a frustração que poderá causar em outrem. Os
desejos (seja lá de qual natureza) quando verdadeiros na obra de Machado
rompem as linhas de força da racionalidade e põem em cheque a dança da
ordem social.
Mas retornemos aos seus primeiros contos e desta vez, com um pouco
menos de pressa, poderemos notar que em alguns deles Machado já se mostra
disposto a não reduzir completamente as motivações de suas heroínas à
conjugação entre sedução, casamento e ambição social. Em 1867, ele publicou
no Jornal das Famílias o conto Onda. Digamos que se trata de um conto
simpático e promissor. Simpático, pois apesar de ser um dos seus
139
primeiríssimos trabalhos, Machado o borra suas linhas com
sentimentalidades ou digressões inconvenientes e explicativas do narrador
romântico e moralizador. Promissor, pois anuncia algumas das melhores
páginas que um dia ele seria capaz de escrever sobre a vaidade feminina.
Onda, como é conhecida a personagem principal do conto homônimo, parece
ser construída com o mesmo material que também formará as Sofias, tanto de
Quincas Borba, quanto do Capítulo dos Chapéus.
Dois aspectos do conto podem ser acusados de carregar um certo
clichê. O primeiro deles é a personagem que retrata a jovem bonita e charmosa
que consciente e ardilosamente encanta, seduz e se permite ser cortejada por
todos, mas sem nunca de fato se apaixonar ou mostrar verdadeira
consideração ou admiração por seus pretendentes. O segundo clichê, por
muito pouco Machado não consegue evitar. Apenas nas últimas linhas ele
parece cair na tentação de introduzir alguma pequena lição de moral para suas
leitoras e uma também minúscula, mas inegável e desnecessária nota
explicativa do narrador. Ou seja, seria uma injustiça condenarmos todo o conto
ou deixarmos de reconhecer seu valor, numa perspectiva progressiva dos
contos de Machado, apenas por esses dois pequenos deslizes finais.
Nada do comportamento de Onda pode ser reduzido às mesmas
justificativas outras vezes pisadas e repisadas por Machado em outros de seus
primeiros contos. Ela não busca obstinadamente um casamento bem sucedido.
Não demonstra desejo em ascender socialmente e muito menos, como é o
caso de Miss Dollar, não se torna cética e amedrontada em relação aos
conquistadores baratos. Onda conquista pelo prazer de conquistar. Pelo prazer
de colecionar pretendentes e de encorpar sua auto-imagem de sedutora.
Também não se trata somente de definir nossa heroína como a mais bela de
todas e nem que seus contornos se resumem aos limites do seu corpo ou ao
modo como move o leque. Onda será umas das primeiras personagens que
Machado definirá psicologicamente a partir da descrição do olhar. O narrador
diz que Onda “conhecia a fundo esta arte de atrair e prender os corações e as
vontades com um simples volver de olhos, um simples meneio de leque” e
mais, com um pouco de maldade e malicia, ele continua afirmando que ela
“sabia mover uns olhos que Deus lhe deu e de que ela, seja dito em honra da
verdade, fazia um mau uso” (Machado 2003: 472).
140
Nas Memórias Póstumas, o senso “prático”, se assim podemos chamar,
e nico de Brás, fica registrado quando ele em um de seus momentos
especiais e divertidíssimos de reflexão, se questionando sobre Eugênia,
pensa: “Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?”. Em certa medida,
esse senso de praticidade também está presente no modo como suas
personagens fazem uso de seus dotes de sedução. Quando bonitas e
sedutoras, elas sempre fazem uso de seus atributos em causa própria. Suas
vaidades não são obsoletas, mas normalmente estão a serviço de seus
interesses ou são frutos de suas conquistas. No caso de Onda, sua vaidade
não era um simples ornamento ou um traço de sua psicologia que se nutria de
elogios e permanecia inerte diante das possibilidades. Daí, Machado avisar ao
leitor que “Distinga-se porém: a minha heroína era casquilha por ser
namoradeira, o que é alguma coisa diferente de casquilha por cascalhice”. E
com um humor que é de seu feitio e traz sua assinatura, completa, “Se me é
licito aplicar uma formula séria, direi que entre as duas espécies a diferença
que vai do princípio da arte pela arte ao princípio de arte pela moral” (Machado
2003: 473).
Levando em conta que esse conto foi escrito em 1867, parece-nos que
Machado demorará para novamente notar que nem todas as atitudes são
motivadas apenas por interesses financeiros e sociais. E que a vaidade
decorrente da capacidade de seduzir e conquistar não necessariamente está
atrelada a planos matrimoniais. Muitas vezes trata-se de algo que
simplesmente é inevitável, pois nem sempre o ser humano precisa pensar para
existir, em alguns momentos, antes disso, sua existência define-se por
sentimentos que ele apenas sente, sem nem mesmo planejar ou racionalizar.
Mas, sigamos em frente, pois ainda a possibilidade de localizarmos
nesse mesmo período outro trabalho no qual Machado não apenas dissocia a
sedução da ambição social e a atrela à vaidade, como também esboça a
vaidade em outros âmbitos ainda mais privados e íntimos do ser humano. É o
caso do Segredo de Augusta.
Esse conto, publicado em 1870 nos Contos Fluminenses, e que tem sua
temática retomada em 1884 em Uma Senhora de Histórias se Data, é um dos
casos mais exemplares de como Machado durante sua produção madura, em
141
vários momentos recorreu a temas previamente abordados no início de sua
carreira.
Comecemos apontando algumas das evoluções que podemos observar
do Segredo de Augusta para Uma Senhora. A primeira de todas é a
capacidade de síntese. Em O Segredo de Augusta, a narrativa é longa, quase
cansativa e se prende a uma querela, superficial, que diz respeito a um
possível casamento de Adelaide com Gomes. Enquanto que em Uma Senhora,
Machado de forma mais condensada encontra a justa medida, descrevendo
apenas o essencial nos diversos namoros de Ernestina.
Muito se falou da relação entre ambos os contos e da diferença de
suas extensões. Contudo, ainda o se chamou a atenção para o fato de que
se O Segredo de Augusta perde muito tempo com o possível casamento de
Adelaide e em Uma Senhora temos apenas sucintas, mas suficientes
descrições dos vários namoricos de Ernestina, é porque no primeiro caso, o
tema da vaidade feminina e do pavor em envelhecer, apesar de
psicologicamente mais profundo e também mais promissor, ainda parece dividir
a mesma cena com outra temática que persistia entre os contos de Machado:
uma abordagem moralizante dos namoros e noivados. Sinceramente, em
alguns momentos, principalmente após alguma releituras, chegamos a pensar
que realmente o conto apresenta duas morais igualmente trabalhadas. Uma
psicológica, investigativa e interessada em denunciar as várias formas da
vaidade se entranhar disfarçadamente onde e quando menos esperamos e
outra quase pedagógica, que condizia aos interesses das publicações
direcionadas para o público feminino do Jornal das Famílias. Se em Uma
Senhora, Machado acentua a filigrana psicológica e se preocupa
fundamentalmente com as razões íntimas e a vida interior das personagens,
em O Segredo de Augusta, apesar de inegavelmente existir essa
preocupação e de fato uma abordagem do tema, também um resquício do
papel moralizador do jovem Machado. Papel esse que é exercido através da
denúncia dos jovens interesseiros que apenas buscam casamentos lucrativos.
Na análise que faz de D. Camila, fica claro como Machado retoma ao
mesmo tema, mas agora com mais sutileza e minúcia:
142
Mas haveria outros defeitos, devia haver outros. D. Camila buscou-os
com alma; indagou de suas relações, hábitos, passado. Conseguiu achar umas
cousinhas miúdas, tão-somente a unha da imperfeição humana, alternativas de
humor, ausência de graças intelectuais, e, finalmente, um grande excesso de
amor-próprio. Foi neste ponto que a bela dama o apanhou (Machado 1997 II:
426).
Apesar de não serem comuns pesquisas psicológicas como essa na
análise de D. Augusta, ao menos a ironia pode ser constatada:
- Ah! continuou Augusta, se soubesses o terror que me a idéia do
casamento de Adelaide...
- Por que, meu Deus?
- Por que, Carlota? Tu pensas em tudo, menos numa cousa. Eu tenho
medo por causa dos filhos dela que serão meus netos! A idéia de ser avó é
horrível, Carlota.
Vasconcelos respirou, e abriu a porta.
- Ah! disse Augusta.
Vasconcelos cumprimentou Carlota, e apenas esta saiu, voltou-se para
a mulher, e disse:
- Ouvi a tua conversa com aquela mulher...
- Não era segredo; mas... que ouviste?
Vasconcelos respondeu sorrindo:
- Ouvi a causa dos teus terrores. Não cuidei nunca que o amor da
própria beleza pudesse levar a tamanho egoísmo. O casamento com o Gomes
não se realiza; mas se Adelaide amar alguém, não sei como lhe recusaremos o
nosso consentimento...
- Até lá... esperemos, respondeu Augusta.
A conversa parou nisto; porque aqueles dous consortes distanciavam-
se muito; um tinha a cabeça nos prazeres ruidosos da mocidade, ao passo que
a outra meditava exclusivamente em si (Machado 1997 II. 98).
Em ambos os contos, o tema (o medo da velhice) e o modo de abordá-lo
(a partir de um possível casamento da filha) é o mesmo. No entanto, se em O
Segredo de Augusta, paralelo ao tema da vaidade corre uma certa lição de
143
moral, em Uma Senhora, além da ausência de moralismo, temos uma narração
que ao invés de condenar e denunciar o uso das máscaras, prefere satirizá-la.
Por fim, além das semelhanças e mesmo com todas as diferenças,
ainda assim podemos dizer que Machado desde sempre, tentou e
posteriormente conseguiu, fazer do conto um laboratório psicológico. Um lugar,
ou melhor, um gênero, a partir do qual ele demonstra enxergar nos
acontecimentos mais comuns e vulgares, as situações mais inusitadas e
motivadas por razões imprevisíveis, singulares e obscuras (!).
2.9 Notas sobre os primeiros indícios de loucura (na obra) de Machado
Sem sombra de dúvida, quem consagrou na literatura brasileira, de
forma profunda e duradoura, o tema da loucura foi Machado de Assis. Se
seguirmos ao da letra a trilha deixada pelos seus primeiros contos e
chegarmos ao ano de 1858, ano em que publicou Três Tesouros Perdidos,
veremos que o uso de algumas expressões, tais como “quando deu acordo de
si estava louco ... louco varrido”, denuncia que desde o início de sua carreira,
ele pretendia introduzir entre suas narrativas o tema da loucura (Frosch 2006:
278).
Indo um pouco mais à diante, mas ainda entre seus primeiros contos,
em Frei Simão também fica evidente que ele, mais cedo ou mais tarde,
definitivamente abordaria o tema da loucura, dos personagens acometidos de
“particularidades” mentais e dos comportamentos insólitos. No entanto,
notemos que nesse período, em alguns momentos, ele ainda abusa do uso de
clichês. Vejamos, por exemplo, o que escreve em Frei Simão:
Os hábitos da solidão e taciturnidade a que se votara o frade pareciam
sintomas de uma alienação mental de caráter brando e pacífico; mas durante oito
anos parecia impossível aos frades que frei Simão não tivesse um dia revelado de
modo positivo a sua loucura (Machado 1997 II:153).
Alguns críticos apontam Frei Simão como o conto, entre os ditos da
primeira fase, que inicia a abordagem machadiana da loucura
35
. Realmente,
35
Ver: Rocha, João Cezar de Castro “Rosebude o Santo Graal: uma hipótese para a leitura
dos contos de Machado de Assis.In Teresa: revista de Literatura brasileira. São Paulo. Ed. 34:
144
em algum momento essa temática se mostra presente no conto. Principalmente
pelo fato dos colegas do frei especularem sobre o seu grau de alienação e
também se ele já teria ingressado louco na ordem beneditina. Se por um lado,
em alguns momentos a crítica faz vista grossa ao fato de alguns contos
maduros de Machado retomarem temas trabalhados entre seus primeiros
contos, por outro, quando empenhada nessa tarefa, suas conclusões parecem
em vários momentos ser fruto de análises forçadas, apressadas e superficiais.
Exemplo disso é tomar a loucura como temática principal de Frei Simão.
Em Frei Simão, a loucura não surge como mote para a análise
psicológica. Pelo contrário. A delineação do caráter de frei Simão é superficial e
se resume ao mínimo necessário para que o típico drama romântico do casal
apaixonado, mas que acaba sendo separado por questões de
incompatibilidade social, se desenvolva. Frei Simão simplesmente enlouquece
como conseqüência de um drama romântico e previsível. Não se trata de um
estudo da sua personalidade ou do modo como a loucura se entranha nas suas
atividades do dia-a-dia. Ele enlouquece pela mesma razão que alguns outros
primeiros personagens machadianos se matam ou se tornam insensíveis e
anestesiados ao amor. Ou seja, por lhes terem sido negado a possibilidade de
concretizar uma grande paixão. Apesar de também incluir frei Simão entre os
contos que iniciam um flerte com a temática da loucura, o crítico José Aderaldo
Castello percebe que nele ocorre o mesmo que em outros contos da dita
primeira fase. Machado deixaria seus heróis “febris ou prostrados pela
ansiedade de amar, pelo amor não comunicado, pelo amor impossível, ou faria
definhá-los até a morte” (1969: 78).
Por isso, podemos dizer que a loucura em Frei Simão é uma questão
contingencial e que poderia ser substituída, como dissemos, pelo suicídio, por
uma insensibilidade crônica, uma infelicidade aguda ou pelo isolamento social,
e ainda assim o conto permaneceria, aparentemente, com sua estrutura e
efeito inabalados, uma vez que o objetivo principal e ainda muito romântico
do conto é mostrar que as conseqüências de uma separação amorosa forçada
podem ser psicologicamente ou fisicamente devastadoras; e que os
Imprensa Oficial, 2006; Castello, João Aderaldo. Realidade e Ilusão em Machado de Assis. São
Paulo. Editora Universidade de São Paulo. 1969. p.84; Junqueira, Maria Aparecida. Projeto
estético-literário machadiano: uma visão preliminar. In: Recortes Machadianos. orgs. Ana
Salles (...). São Paulo. Educ. 2003. p.241.
145
responsáveis por essa separação, como acontece com o pai do frei, no fim
também são castigados. O que de mais importante em Frei Simão é algo
que será retomado, por exemplo, em O Segredo do Bonzo: a problematização
acerca do papel do narrador.
A princípio, a narrativa se em dois planos. O primeiro, que não temos
acesso, são os documentos deixados pelo próprio frei. A partir deles, um outro
frade seleciona as partes que ele supõe mais importantes e nos relata. Ou seja,
ao invés de termos acesso aos seus “fragmentos de memórias”, temos acesso
apenas a alguns fragmentos dos seus “fragmentos de memórias”. Mas até
qualquer leitor mais desatento poderia notar. O que ainda perece ser mais
interessante no conto é algo que diz respeito às idéias de Walter Benjamim e o
modo como ele concebe a relação entre o mundo, o narrador e a possibilidade
deste último em transcrevê-lo.
Hoje é quase unânime a idéia de não termos acesso ao mundo em si,
mas somente ao que é apreendido por esse narrador moderno. No caso de
Frei Simão, o elemento loucura radicaliza ainda mais a idéia de que o discurso
do narrador é sempre uma verdade relativizada, particular e construída sobre
certezas imprecisas e singulares. Admitindo que o personagem não estava em
suas faculdades mentais perfeitas e que suas memórias foram compostas por
uma “série de reticências” e um “discurso sem nexo, sem assunto, [um]
verdadeiro delírio”, podemos desconfiar que esse “filtro” exercido pelo narrador,
entre o leitor e o mundo, no caso de um narrador demente, como Simão, é
ainda mais particular e radical.
Em outras palavras, na narrativa de Frei Simão temos um primeiro plano
que é o da realidade em si, mais comumente chamado de “real”, que, por ter
sido apreendido por um personagem que supostamente enlouqueceu, torna-se
ainda mais inacessível e menos compartilhado. Posteriormente, um segundo
plano composto pelas impressões – radicalmente particulares – de alguém com
alterações mentais e que foram registradas em forma de memórias. E por
último, o terceiro e o único plano a que temos acesso, que é o relato
constituído a partir da seleção feita pelo frade dos papéis deixados por frei
Simão. Essa estratégia de um manuscrito encontrado e relatado através da
leitura de um “narrador-leitor” está em O Segredo do Bonzo.
146
Para entendermos como e quando a loucura nos contos de Machado se
apresenta como tema e mote para a análise psicológica, lembremos e
tomemos como exemplo, entre seus trabalhos maduros, O Alienista e A Causa
Secreta.
Hoje, a partir de nossa cômoda situação, é fácil olharmos para trás e
afirmamos que mais cedo ou mais tarde, Machado introduziria essa temática
no seu repertório. Afinal, não são raros os exemplos de escritores que
fortemente o influenciaram e que também trabalharam em medidas variadas
com esse mesmo tema. Entre eles, Miguel de Cervantes com seu Dom Quixote
de la Mancha, Erasmo de Rotterdam com o Elogia à Loucura (Encomium
Moriae), Diderot com Jaques le fataliste et son maître e Laurence Sterne com
The Life and Opinions of Tristram Shandy. Todos eles introduziram em seus
romances personagens que, se não completamente loucos e rompidos com a
realidade, ao menos, estabelecem com o mundo um modo particular de se
relacionar. Um modo no qual a excentricidade e a fantasia se sobrepõem aos
fatos e à realidade.
É importante que se diga que a influência exercida por esses autores em
Machado fez com que ele não se preocupasse em simplesmente retratar a
loucura de uma forma isolada e a partir de manifestações estereotipadas e
sintomas clássicos. A riqueza e profundidade dos seus trabalhos maduros que
abordam essa temática, reside na elegância, discrição e humor com que trata e
denuncia o tênue limite existente entre a loucura e a sanidade, e da sutileza e
naturalidade como introduz os comportamentos “patológicos” no cotidiano dos
personagens. Partindo dessas idéias, podemos dizer que entre seus trabalhos
maduros que abordam esse tema, A Causa Secreta possui um lugar de
destaque.
A primazia desse conto reside no modo como Machado demonstra que
os comportamentos patológicos não se mostram apenas nas suas formas mais
isoladas, exageradas e estereotipadas, mas também nos pequenos atos
vulgares do dia-a-dia. Fortunato, por exemplo, que exerce seu sadismo
visitando hospitais, socorrendo enfermos, assistindo a peças sangrentas de
teatro, dando inocentes e despretensiosas bengaladas em cachorros perdidos
pelas ruas e mesmo observando de muito próximo e atenciosamente a dor e o
sofrimento da esposa no leito de morte. Ou seja, antes da marcante cena na
147
qual ele tortura um rato, todos os indícios de seu sadismo são transmitidos
discretamente através de formas culturalmente aceitas e insuspeitadas. Aliás,
com exceção dessa cena do rato, todos os outros meios pelos quais o seu
sadismo encontra vazão, podem ser considerados como “normais”. Afinal,
quem nunca molestou um cachorro, visitou amigos em hospitais ou assistiu
com prazer a um espetáculo com cenas violentas?
Apesar de Machado não ser filósofo, e por isso dele não exigirmos um
sistema filosófico, não são raros os momentos nos quais sua obra parece
constituir um todo coeso e costurado por idéias coerentes e interligadas. Em A
igreja do Diabo, tomamos consciência de que o Diabo (ou Machado) concebe a
alma humana como um manto de veludo que rematasse em franjas de
algodão. D que “a misantropia pode tomar aspecto de caridade” e mesmo
aquele homem que salva a vida de outro em um naufrágio, pode assim agir,
pois “deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los”.
Ficamos assim em um beco sem saída, pois a suspeita criada pelo olhar
constantemente relativista e pessimista de Machado, nos impede de não
acreditar que mesmo os melhores homens ou as atitudes mais generosas não
possam ser motivadas por intenções sádicas ou egoístas. Afinal, se é do
estrume e do vício que nasce a flor e a virtude, como não saber se a flor não é
venenosa ou a virtude não é apenas a superfície. É sob essa perspectiva que
ele muito discretamente, sem fazer alarde, propõe ao leitor que desconfie dos
primeiros comportamentos de Fortunato. Entre a bondade aparente que se
declara numa visita a um hospital, numa ida ao teatro, em um socorro prestado
ou na fundação de uma casa de saúde, podem se esconder intenções pouco
cristãs.
É interessante notarmos que n’A Causa Secreta se concentram muitos
dos elementos definidores da obra de Machado: a penetração psicológica (não
necessariamente condicionada pelas notas locais), o pessimismo em relação à
capacidade dos homens, a tomada do homem como objeto do próprio homem
e a análise dos comportamentos que transitam indefinidamente entre a loucura,
o bizarro e o insólito. Entretanto, é decepcionante o fato de que mesmo os
pouquíssimos autores que vêm se dedicando a tarefa de ler integralmente os
contos de Machado, deixam de apontar uma possível relação entre A Causa
148
Secreta e o conto Um Esqueleto, publicado alguns anos antes, em 1875 no
Jornal das Famílias.
Além de abordarem o mesmo tema, ambos são construídos em torno de
personagens extremamente semelhantes e que exercem respectivamente em
cada um dos contos funções quase que paralelas. Vejamos algumas dessas
semelhanças que ratificam a idéia de que possivelmente Um Esqueleto é o
embrião gerador d’A Causa Secreta.
Primeiro ponto, os personagens principais. Em A Causa Secreta,
Fortunato é um homem sádico que aproveita todas as oportunidades que lhe
são oferecidas para obter prazer diante de outro que sofre. Seu sadismo é
amplo e persistente, encontrando vazão tanto em circunstâncias nas quais ele
mesmo encarna o papel de torturador quanto nas que ele apenas se encontra
como espectador. Do mesmo modo, o mote principal para Um Esqueleto, é o
comportamento insólito e sádico como mais à frente verificaremos do Dr.
Belém. Este último, tal como Fortunato, é um homem de meia idade, excêntrico
e enigmático. Seu principal traço é a obsessão em manter guardado o
esqueleto da ex-esposa. Obsessão essa, que tal como acontece com
Fortunato, acaba por consumir e condicionar toda a sua vida e suas relações.
Os contornos psicológicos do Dr. Belém quase sempre são definidos de
forma ambígua por Alberto, o narrador do conto. Dr. Belém, diz ele, “era um
excêntrico, talvez não fosse, não era decerto um homem completamente bom;
mas era meu amigo; não direi o único mas o maior que jamais tive na minha
vida” (Machado 1997 II: 815). Do mesmo modo, “conquanto seu olhar fosse
muitas vezes meigo e bom, tinha lampejos sinistros, e às vezes, quando ele
meditava ficava com olhos de defunto” (Machado 1997 II: 815). Mais à frente,
sobre a capacidade de Dr. Belém em ser assustador, mas também meigo,
Alberto afirma que “era singular como aquele homem, que por certos hábitos,
maneiras e idéias, e até pela expressão física, assustava a muita gente e dava
azo às fantasias da superstição popular, era singular, repito, como me falava às
vezes com uma meiguice incomparável e um tom patriarcalmente benévolo”
(Machado 1997 II: 820).
Ao mesmo tempo em que o hábito de manter guardado o esqueleto da
ex-esposa é um comportamento que foge da regra normal e pode ser
considerado como patológico, dificilmente poderíamos classificar Dr. Belém
149
como um louco anti-social ou completamente isolado do mundo. Ele tem
consciência de suas ações. Convive em sociedade. Não se comporta como um
desses psicóticos que estamos acostumados a imaginar trancados em
manicômios. E mesmo quando questiona o espanto do amigo e da esposa
diante do esqueleto, demonstrando não ver qualquer excentricidade nesse seu
costume, parece nos soar sutilmente em sua voz um ar irônico, perverso e
provocador, como que perguntado sádico-ironicamente: Do que vocês têm
medo? O que há de se estranhar em guardar um esqueleto no armário?
Literalmente, como diz o ditado popular, Dr. Belém guarda um esqueleto
no armário. Ao mesmo tempo em que isso lhe re-atualiza constantemente o
erro de julgamento que cometeu, matando a ex-esposa, também serve de
aviso à Marcelina, sua nova companheira. No entanto, mesmo assumindo o
erro de julgamento, ele não demonstra qualquer culpa. Daí, supormos que de
forma muito semelhante a Fortunato, Dr. Belém tinha também entre seus
projetos o de atormentar Marcelina até fragilizá-la completamente. Por isso, a
imposição da presença do esqueleto na mesa de jantar não pode ser
concebida apenas como um modo de avisar à Marcelina sobre sua capacidade
de vingança, mas, sim, um modo de atormentá-la e amedrontá-la
gratuitamente.
Tanto as justificativas para os sadismos de Fortunato, quanto o apreço
do Dr. Belém pelo tal esqueleto, se perdem numa vacuidade de absurdo. Os
dois personagens são conscientes de seus atos, exploram o efeito psicológico
que suas loucuras causam nos que estão ao seu redor, mas não conseguem
justificar suficientemente de forma racional suas atitudes. Simplesmente, ao se
definirem psicologicamente a partir desses desejos insólitos, acabam
condicionando o ritmo e as atividades de suas vidas ao exercício desses
comportamentos patológicos. De um lado, um homem que até na doença fatal
da esposa encontrou prazer, do outro, um cientista que preferiu perder-se na
vida, apenas acompanhado por um monte de ossos.
Tal como acontece com o sadismo de Fortunato, a volubilidade de D.
Benedita e a vaidade de Maria Olympia (Senhora do Galvão), a psicologia
macabra do Dr. Belém retrata algo que estará presente em toda a obra de
Machado: uma espécie de tragicidade psicológica. Ele é um dos primeiros
personagens machadianos, fortemente psicológicos, que não consegue, não
1
50
tenta e nem conscientemente deseja se libertar de suas obsessões. Como
disse Dr. Belém à esposa, “veste-me como quiseres, (...) o que não poderás
fazer nunca é mudar-me a alma. Isso nunca”. A isso, ela respondeu, ”não
quero”. E ele retrucou,”nem podes” (Machado 1997 II: 819).
Outro elemento comum aos dois contos são os supostos triângulos
amorosos. Em A Causa Secreta temos Garcia (o jovem médico e único amigo
da família), Fortunato (personagem principal) e sua esposa Maria Luísa, por
quem Garcia se apaixona. Em Um Esqueleto, de forma muito semelhante,
temos o jovem Alberto (também o único amigo da família), Dr. Belém e sua
esposa Marcelina, por quem, segundo Dr. Belém, Alberto estaria apaixonado.
Será a partir das relações travadas entre esses personagens, que em ambos
os contos, os comportamentos patológicos se evidenciarão e mostrarão suas
capacidades em afetar quem estiver próximo.
Até mesmo a semelhança entre algumas cenas desses contos parece
evidenciar que o autor os construiu com intenções semelhantes. Em A Causa
Secreta, o ponto alto e mais tenso é a cena na qual Fortunato tortura um rato,
enquanto sua esposa e Garcia definitivamente se convencem de sua psicologia
particular. Do mesmo modo, em Um Esqueleto, há a cena na qual pela primeira
vez Alberto presencia Dr. Belém, sua esposa e o esqueleto sentados à mesa
de jantar. Em ambas, o clima de suspense e tensão é semelhante. Assim como
também é através delas que tanto Garcia percebe a real dimensão psicológica
de Fortunato, quanto Alberto confirma suas suspeitas sobre Dr. Belém.
Nos dois contos o modo como aos poucos as esposas vão se
fragilizando é muito parecido. No primeiro momento, Maria Luísa é definida
como “interessante” e Marcelina como “simpática, educada e viúva”. Com o
passar do tempo e os tormentos psicológicos que sofrem pela proximidade
danosa com seus respectivos maridos, as duas igualmente vão se tornando
frágeis, amedrontadas e perplexas. O que leva, novamente nos dois casos, a
tanto Maria Luisa se aproximar de Garcia, quanto Marcelina de Alberto. Esses
dois jovens, além de exercerem o mesmo papel de único amigo da família,
também estabelecem um certo pacto de confiança e intimidade com Maria
Luísa e Marcelina. O que por sua vez, acaba resultando em Garcia e Maria
Luísa se apaixonarem e Alberto e Marcelina se aproximarem tanto, que Dr.
Belém chegue ao ponto de acreditar que estão apaixonados.
151
Outro aspecto que deve ser levado em consideração. A relação entre os
dois contos não se verifica apenas pelos seus pontos em comum. A
semelhança e os aspectos que favorecem e evidenciam a teoria de que Um
Esqueleto muito possivelmente é o embrião gerador d’A Causa Secreta, podem
ser observados em mesma medida nos seus aspectos divergentes e naqueles
em que n’A Causa Secreta se mostram melhor acabados.
A primeira diferença evidente entre ambos, é o modo bem mais sutil
com o qual o narrador dA Causa Secreta apresenta e dá indícios da loucura de
Fortunato. Essa loucura sádica é somente aos poucos denunciada. O grande
mérito desse conto é a capacidade encontrada por Machado em enxergar a
possibilidade dos hábitos mais vulgares do dia-a-dia serem realizados a partir
de motivações sádicas e em alguns casos tão sádicas que tangenciam a
loucura. Com exceção da cena na qual Fortunato é flagrado queimando o rato,
não nenhuma atitude sua que possamos dizer que foge da dita
“normalidade”. Machado consegue articular em Fortunato, “sua anormalidade
essencial (...) com sua perfeita normalidade social de proprietário abastado e
sóbrio, que vive de rendas e do respeito coletivo” (Candido 2004: 31). Essa
proximidade discreta e silenciosa que Machado nos induz a notar entre a
loucura e a normalidade, é um dos principais motivo dA Causa Secreta ser
considerado como um dos seus melhores contos. Seu pessimismo nos faz
pensar que muitas das motivações humanas permanecem ininteligíveis, pois se
mascaram de bondade, dissimulam suas verdadeiras intenções e forjam o
egoísmo que nos faz buscar sempre o prazer, mesmo que esse signifique a
dor, o sofrimento e a morte de alguém.
em Um Esqueleto, ainda lhe faltava um certo tato pra melhor
manipular a relatividade de nossas ações. Se o sadismo de Fortunato se
esparrama por todo o conto através de várias atitudes normais”, a loucura do
Dr. Belém resume-se ao seu hábito de guardar o esqueleto. Em relação ao Dr.
Belém, diferente do que acontece com Fortunato, Machado não dilui sua
loucura em atos vulgares e conseqüentemente não passa plenamente a
impressão de que uma patologia mental pode se alastrar por todas as camadas
da sociedade e em todos as atitudes mais comuns. Enfim, nesse período,
ainda faltava a Machado perceber que a loucura quando contaminando
discretamente o cotidiano, ao invés de quando somente retratada através de
152
situações isoladas, transmitiria ao leitor mais profundidade psicológica e
também lhe causaria um efeito de maior desconforto e impertinência.
Em A Causa Secreta, a constante presença corrosiva da loucura em
nossas vidas, é incorporada à filigrana da narrativa e utilizada como elemento
funcional da composição literária. Enquanto que em Um Esqueleto, o mesmo
tema é mostrado ainda muito descritivamente e de forma quase caricata.
Parafraseando um comentário de Antonio Candido (2004: 21) sobre o que
pensava Roger Bastide da nacionalidade na obra machadiana, diríamos que o
grande estudo da loucura nos contos de Machado tem seu início em Um
Esqueleto, mas nele ainda não alcança a maturidade, pois retrata a loucura de
um modo para psiquiatra ver. Ao contrário do que ocorre com A Causa Secreta,
que transmite o que de mais corrosivo na loucura: a silenciosa capacidade
de entranhar-se na vida social, disfarçar-se de mania e com a aparência da
normalidade usar a máscara da benesse com objetivos que vão do sadismo
mais perverso a um egoísmo barato. A loucura, nos melhores contos de
Machado, não é representada de um modo para psiquiatra diagnosticar, mas
para literário ler, analisar e, interpretar e principalmente se divertir.
Ainda a partir da análise de Um Esqueleto, podemos pensar sobre o
porque do título A Causa Secreta. Como diz Aderaldo Castelo, Um Esqueleto
“trata-se de um conto que comunica o estado alucinatório do protagonista, em
virtude do sentimento de culpa de quem havia matado a esposa tida como
infiel. Casando-se a segunda vez, impõe à nova companheira a presença do
esqueleto da primeira” (1969: 83). Pois bem, enquanto que a causa do
sadismo de Fortunato permanece secreta, sobre a loucura do Dr. Belém,
podemos dizer com uma razoável margem de certeza que seu comportamento
alucinatório iniciou após a morte de sua esposa e tem como justificativa, ele
assumir, pelo menos aparentemente, o seu erro de julgamento.
Em outras palavras, de Um Esqueleto para A Causa Secreta, Machado
entende que não somente do ponto de vista formal seria mais interessante que
algumas motivações para as atitudes dos personagens permanecessem
injustificadas, secretas ou não definitivamente amarradas, como também do
ponto de vista psicológico, estudar a alma humana nem sempre implica, como
se propõe a ciência, encontrar verdades categóricas e exatas. Muitas vezes, as
melhores conclusões são aquelas que refletem exatamente a condição
153
enigmática na qual estamos inseridos e que nos motiva a ser como somos e
como agimos. Também por isso, podemos dizer que indicação (quase) precisa
acerca da razão da loucura de Dr. Belém é responsável por alguma perda de
relatividade do conto. Afinal, como diz Antonio Candido, e podemos verificar,
por exemplo, na estória de Fortunato, a relatividade surge nos contos de
Machado, também através do ato sem justificativa, do comportamento absurdo
(2004: 27), e por que não, também das causas secretas.
Ao fim do conto, Alberto confessa aos seus colegas que a figura do Dr.
Belém nunca existiu. Por quê? Não haveria ainda em Machado a certeza de
que pessoas com essas capacidades poderiam conviver entre s, sem que
percebêssemos? Esse aspecto não é um mero detalhe. Ele, somado à
referência feita pelo próprio narrador do conto entre a história do Dr. Belém e a
literatura de Hoffmann, nos uma exata noção da evolução que as
concepções psicológicas de Machado sofreram ao longo do tempo.
Como vemos, se antes da década de oitenta seu trabalho mostra
enorme relação com o que viria a produzir posteriormente, também denuncia
que naquele tempo o jovem Machado apenas acreditava que casos como o do
Dr. Belém e de Fortunato, apenas existiam em um mundo fantástico, não no
nosso. Somente ao longo dos anos o Bruxo do Cosme Velho compreendeu que
a matéria-prima que os homens nos dão o mais do que recursos para uma
literatura fantástica. Ele descobriu que não era preciso apelar para o gênero
fantástico, caso quisesse justificar os atos mais bizarros, patológicos, insólitos
e loucos. Entre Um Esqueleto e A Causa Secreta, ele teve tempo para
descobrir que nada é mais fantástico e principalmente assustador do que a
psicologia humana e sua capacidade de gerar dor e sofrimento.
No próximo tópico ainda falaremos algo sobre Um Esqueleto e o que
nele podemos observar sobre o problema da “tomada do homem como objeto
do próprio homem”.
2.10 O homem como objeto do próprio homem
Segundo Antonio Candido, um dos aspectos mais cruéis abordados por
Machado é “a transformação do homem em objeto do próprio homem” (2004:
27). Assim como também acontece com outros temas trabalhados pelo autor
nos primeiros contos, se casos em que a dinâmica do problema se
154
desdobra (de forma quase reducionista) em função apenas de tramas
condicionados pela ambição pecuniária de seus personagens, outras
situações mais interessantes nas quais os personagens justificam a
instrumentalização do próprio homem a partir de motivações psicológicas,
mórbidas, sádicas, egoístas ou simplesmente amorosas. Quanto mais
Machado amadurece enquanto contista e moralista, mais abandona as
descrições superficiais da sociedade, as temáticas propensas a uma espécie
de pedagogia dos costumes e gradativamente cria um mundo de análise
psicológica, no qual os personagens justificam cada vez menos suas atitudes a
partir de interesses sociais ou financeiras.
Sobre esse tema, nossa maior dificuldade não foi exatamente localizá-lo
entre os primeiros contos, mas, sim, entre eles, localizar situações que não
condicionassem completamente as atitudes, interesses e sentimentos dos
personagens ao desejo de ambição social ou de agregar fortuna.
A partir da década de oitenta, os personagens de Machado se tornam
como icebergs. Suas psicologias, personalidades e mundos interiores cada vez
mais tomam dimensões gigantescas e profundas, ao passo que a consciência
e o drama social da superfície e das aparências vão se apequenando até o
ponto em que ficam quase desprezíveis; como acontece, por exemplo, em A
Causa Secreta, O Espelho, D. Benedita, A Senhora do Galvão, etc. Quando
não é esse o caso, como bem lembra Paul Dixon (2006), Machado parece
construir os personagens do mesmo modo que se constrói uma teoria acerca
dos homens, seus contrastes e motivações. Entre os contos que mais parecem
demonstrações teóricas, estão Idéias de Canários, O Espelho, Ex-cátedra,
Surge-se Gordo, A Sereníssima República, Conto Alexandrino, etc.
Como percebemos ao longo da nossa pesquisa, a grande questão não
seria exatamente localizar os tais problemas fundamentais entre os primeiros
contos, mas, sim, a diferença de tratamento formal e psicológico que Machado
lhes dedicou. A presença da “tomada do homem como objeto do próprio
homem” é quase óbvia entre os primeiros contos. Contudo, não há como negar
que a maioria deles relata dramas escritos aparentemente com intenções
moralizadoras e que se desdobram sobre relações nas quais o pretendente ou
a pretendente não nutre sentimentos sinceros, mas apenas deseja dar o
chamado “golpe do baú”.
155
Em A Conversão de um Avaro, Um Homem Superior, Luís Soares,
Ernesto de Tal e O Segredo de Augusta, os personagens exercem, ou ao
menos tentam exercer, o poder da conquista, acreditando que podem lucrar
com um possível casamento. Luís Soares, personagem do conto homônimo,
querendo seduzir sua prima Adelaide, simula um desejo natural em mudar seu
estilo de vida. Soares vê a prima apenas como um meio de readquirir o mesmo
nível de vida que outrora tinha, mas que perdeu, pois gastou todo o dinheiro
deixado pelo pai. Ele não tinha a menor consideração pela prima, que em outra
época era apaixonada por ele. Não lhe passava pela cabeça fazê-la feliz. Para
Soares, Adelaide não era mais do que um instrumento a partir do qual ele
enxergava a oportunidade de novamente enriquecer. Em Ernesto de Tal,
Rosina Ernesto e o rapaz de nariz comprido apenas como oportunidades de
casar e melhorar de vida. Para ela, ambos são objetos que potencialmente
podem lhe proporcionar a satisfação dos desejos.
Mas, como dissemos, também é possível entre esses primeiros contos
destacarmos algumas situações nas quais a tentativa de manipulação do
indivíduo e a tomada do outro como meio de satisfação de um desejo ou
alcance de um objetivo, não esteja completamente relacionada a questões
pecuniárias. Tomemos como primeiro exemplo um conto que trabalhamos
anteriormente, O Segredo de Augusta.
Nele, num primeiro momento, novamente nos deparamos com
personagens que simulam interesses amorosos a fim de alcançarem garantias
financeiras. No entanto, notamos que o conto é uma das primeiras tentativas
bem sucedidas de Machado em realizar uma abordagem psicológica mais
vertical, amadurecida e que se proponha antes de tudo a entender e retratar a
obscuridade e singularidade existente por trás de cada ato. Esse tipo de
abordagem até então não somente não existia em seus contos, como também
na literatura brasileira. Estamos falando agora de um olhar míope que busca
não mais as intrigas da sociedade burguesa ou as implicações de uma frágil
educação doméstica e patriarcal. Apesar do seu inegável tom moralizante, O
Segredo de Augusta, certamente, é um dos primeiros e mais incisivos
momentos de análise psicológica de Machado. Dentre seus primeiros contos,
possivelmente é um dos que mais se aproxima de suas futuras e maduras
narrativas psicológicas.
156
Adelaide, filha de Vasconcelos e Augusta, é ao mesmo tempo vista pela
mãe e por Gomes, o amigo de seu pai e seu pretendente, como um
instrumento. Gomes, colega de noitadas de Vasconcelos, sem saber que a
família do amigo não possuía mais qualquer fortuna, viu na jovem Adelaide um
instrumento de obtenção de riqueza e ascensão social. Apesar de muitos
desses primeiros personagens machadianos verem seus semelhantes apenas
como instrumentos de enriquecimento e por isso, apenas aparentemente,
apresentarem o mesmo tipo de comportamento de Sofia diante de Rubião em
Quincas Borba, algo de importante sobre esta personagem que merece ser
destacado. De fato, Sofia seduzia Rubião visando sua fortuna. O humilde
professor se torna um instrumento facilmente manipulável por ela e seu hábil
marido Palha. Contudo, o que a diferencia desses outros personagens
psicologicamente mais rasos, é que além do desejo de tomar toda a fortuna de
Rubião, ela parece também seduzi-lo pelo prazer de seduzir. Para a bela Sofia,
maior do que o prazer proporcionado pelo dinheiro, pode ser o obtido através
da própria sedução.
Rubião o é para Sofia apenas um instrumento financeiro, mas
também de vaidade. Assim como Fortunato enxerga em que estiver na sua
frente um instrumento para obter prazer através da dor, parece nos que
também para Sofia todos que estiverem ao seu lado são vistos como
instrumentos em potencial para inflar sua vaidade e assim lhe dar mais prazer.
Por outro lado, Adelaide também acaba se tornando um instrumento,
desta vez mais complexo, de sua mãe. Descobrimos ao fim do conto que todos
os seus protesto em relação ao possível, mas não concretizado, casamento da
filha, encontram justificativas em uma única razão que nada tem a ver com
amor materno, implicância com o pretendente, questões de dinheiro ou
incompatibilidade social. A justificativa é psicológica. Tudo gira em torno de um
ato egoísta e da concepção de posse que Augusta nutria sobre o futuro da
filha. Se Fortunato d’A Causa Secreta faz de doentes, ratos e esposa,
instrumentos de sadismo para obtenção de prazer, Augusta, tão egoísta quanto
ele, enxerga na filha um instrumento a partir do qual pode retardar sua velhice.
Mantê-la solteira e por conseqüência impedi-la de ser mãe é o caminho que ela
imagina para evitar que a passagem do tempo e o envelhecimento se
evidenciem através da possibilidade dela se tornar avó. Sobre a filha se casar,
157
diz Augusta: “Tenho medo por causa dos filhos dela que serão meus netos! A
idéia de ser avó é horrível” (Machado 1997 II: 98).
É importante salientarmos que a evolução observada entre esses dois
diferentes modos de entender a tomada do homem como objeto do próprio
homem, se assemelha com a evolução também ocorrida na obra de Machado
em relação ao conceito de máscara. Tanto a máscara, quanto essa
“instrumentalização” do homem, para Machado, num primeiro momento,
estavam quase sempre ligados à dinâmica social e aos problemas cotidianos,
amorosos e econômicos da burguesia brasileira do século XIX. Enquanto que
no segundo momento, ambas as idéias sofrem uma profunda evolução
psicológica e passam a ser entendidas não como características de uma
sociedade assimétrica ou condicionada pela aparência, mas como aspectos da
psicologia humana, que no final das contas não dependem exclusivamente das
dinâmicas sociais.
Machado recusa as respostas genéricas e superficiais de um
“sociologisismo” e “psicologismo” de aparência e realiza análises que, pela
profundidade e crença num indivíduo fragmentado e marcado pelo
inconsciente, muito nos lembra a psicanálise. Machado parece então entender
que nem todos os desejos dos homens se resumem ao dinheiro. Alguns
preferem assistir e gerar sofrimento. Nem todas as mulheres têm como
principal preocupação o casamento, algumas se preocupam mais em se
manter jovens, mesmo que para isso seja preciso tomar a própria filha como
um instrumento a partir do qual se obtém o que se deseja.
Outro exemplo de como, quando ainda jovem, Machado retratou a
capacidade do homem instrumentalizar o próprio homem, é o conto A Mulher
de Preto. Nele, um enfoque semelhante ao que anteriormente destacamos
em Cinco Mulheres.
É quase óbvio que o título desse tópico (A tomada do homem como
objeto do próprio homem) e as primeiras frases escritas sobre ele, nos leve a
imaginar que tudo que lhe diga respeito será relacionado ao que de pior
sobre as capacidades humanas presentes nos contos de Machado. Não é bem
o caso. A relatividade na sua obra não surge apenas como tema
problematizado, mas também como peça estruturante de suas narrativas.
Desde o princípio, ele não somente escreveu sobre a relatividade, mas também
158
de forma relativa. Se em Cinco Mulheres, Machado relativiza o ato de
dissimular e mostra que não necessariamente sempre que o praticamos temos
como objetivos interesses egoístas, em A Mulher de Preto, a tomada do
homem como objeto, tem como justificativa, a princípio, um ato de
reconciliação, um ajuste de mal entendido, a reconquista de um amor.
Madalena, injustamente foi julgada e abandonada por Meneses que no
passado acreditou que ela o traía. Tentando provar sua fidelidade, reconquistá-
lo e reatar seu casamento, ela se aproxima do jovem médico Estêvão, que nos
últimos tempos havia se tornado grande amigo de Meneses. Estêvão, ainda
sem saber que Madalena era (ou ainda é) esposa de Meneses, se apaixona
por ela. A partir daí o conto dedica várias (e excessivas) páginas a um possível
flerte entre o jovem médico e Madalena. Mais à frente descobrimos que todo o
esforço de Madalena em se aproximar de Estêvão faz parte de uma estratégia,
na qual o primeiro passo seria criar intimidade com ele para posteriormente lhe
pedir que interviesse frente a Meneses.
Desde o primeiro momento em que se aproximou de Estêvão, Madalena
o tratou de uma forma tão particularmente carinhosa que acabou criando nele,
e também em nós leitores, uma expectativa em relação à possibilidade de
algum romance. Mas tudo não passava de um plano. Desde o princípio ela o
concebeu apenas como um instrumento a partir do qual conseguiria se
aproximar novamente do marido.
Dissemos que esse caso, em alguma medida, poderia contrariar a idéia
que fazemos acerca do tema, pois, desta vez, a instrumentalização do sujeito
estaria sendo exercida por alguém que supostamente apresenta intenções
amorosa, dignas e não egoístas. Porém, falamos isso apenas porque não
levamos em consideração a condição de Estêvão.
Independentemente de quem pratica ou quais são suas intenções, a
tomada do homem como um objeto através do qual se pode atingir um objetivo,
inevitavelmente guarda, mesmo que discretamente, um ranço de egoísmo.
Afinal, pelo que parece, Madalena, criando todo um clima de intimidade,
conscientemente seduz Estêvão, sem muito se preocupar com os seus
sentimentos. A descoberta da relação entre Madalena e Menezes e o pedido
de ajuda que ela lhe fez acabou sendo um grande golpe para o jovem médico
que àquela altura já estava apaixonado.
159
Estêvão saiu da casa da viúva agitado por diversos sentimentos, com
passo trêmulo e a vista turva. A conversa com a viúva fora um longo combate;
a última promessa foi um golpe decisivo e mortal. Estêvão saía dali como um
homem que acabava de matar as suas esperanças em flor; caminhava ao
acaso, precisava de ar e queria meter-se em um quarto sombrio; quisera ao
mesmo tempo estar solitário e no meio de imensa multidão (Machado 1997 II:
75).
Os motivos dessa instrumentalização podem ser os mais variados, mas
uma coisa é constante, a dor, o sofrimento e a decepção de quem é explorado.
Seja no caso da moça que por ser de uma família abastada é vista pelo seu
pretendente como uma conta bancária; do jovem que é seduzido e envolvido
em um clima de confiança e intimidade apenas para que possa prestar uma
espécie de serviço de reconciliação ou da filha que tem sua vida amorosa
condicionada pela tentativa da mãe em retardar a chegada da velhice.
Um outro retrato da tomada do homem como objeto do próprio homem é
Um Esqueleto. Nele, Dr. Belém age com uma perversidade gratuita ao impor à
atual esposa a presença do esqueleto da sua primeira mulher. O prazer obtido
através desse comportamento não é posto em primeiro plano como em A
Causa Secreta, no qual é notório que Fortunato sente prazer em observar ou
causar dor e sofrimento. Para o Dr. Belém, a princípio, o esqueleto teria apenas
a função de lhe relembrar seu erro de julgamento e advertir à nova esposa o
que poderia lhe acontecer caso ela o traísse ou ele apenas achasse que foi
traído. Mas, Marcelina, do mesmo modo que Maria Luisa, passa a ser um
objeto a partir do qual Dr. Belém obtém prazer. Um prazer sádico que nasce ao
vê-la sofrer e se amedrontar.
Diferente do que acontece com o sadismo de Fortunato, que é posto em
primeiro plano, o sadismo do Dr. Belém e o prazer em causar sofrimento em
sua esposa, surgem como um aspecto secundário e aparentemente menos
relevante diante da obsessão pelo esqueleto e de um possível estudo que o
conto nos convida a fazer sobre o sentimento de culpa. Parece que mais uma
vez Um Esqueleto apresenta valiosos indícios de que o jovem Machado
pretendia denunciar que os nossos motivos estão submersos em um lugar que
raros escritores conseguem alcançar.
160
Em Esquema de Machado de Assis, Antonio Candido, ao abordar esse
problema deixa de ressaltar que o homem não somente pode ser tomado como
um objeto ou instrumento através do qual um outro pode alcançar seus
objetivos, mas, como ocorre em Um Esqueleto e n’A Causa Secreta, além de
ser concebido como instrumento ou objeto através do qual se obtém prazer, o
homem também passa a ser em si o objeto no qual se obtém esse prazer. Ou
seja, nesses casos, o prazer ou a satisfação não estariam em outro lugar
adiante, mas no próprio sujeito instrumentalizado.
Enfim, agora que levamos em considerando alguns dos seus primeiros
trabalhos, como Um Esqueleto e O Segredo de Augusta, podemos dizer que
Machado, do início ao fim de sua obra, registrou que infelizmente não somente
o homem toma outros homens como instrumentos, mas também, sempre em
busca de benefício próprio, os devora em relações sádicas (como no caso de
Fortunato e Dr. Belém) ou egoístas (como no de Sofia e Augusta).
2.11 Quando a fantasia parece realidade
Algumas obras literárias marcam seu nome na história, não pelas
certezas ou descobertas que deixam, mas, pelas grandes aberturas, incertezas
e dúvidas que suscitam. Umas das maiores incertezas e contradições que até
hoje insistem em manter acesa sobre a obra de Machado, é a fidelidade de
Capitu. Silviano Santiago, de forma lúcida, sobre esse assunto, diz que “os
críticos estavam interessados em buscar a verdade sobre Capitu, ou a
impossibilidade de se ter a verdade sobre Capitu, quando a única verdade a
ser buscada é a de Dom Casmurro (Santiago 2000:30).
Devemos buscar a verdade em Dom Casmurro, não porque a partir dele
saberemos se Capitu o traiu ou não, mas porque através de sua estória
entenderemos as razões que o levaram a ter essa dúvida. Tudo no romance
parece ter sido construído em função da problematização acerca do discurso
de Bento (ou Casmurro). O ensaio de Silviano Santiago veio preencher a
ausência na crítica machadiana de um estudo sistematizado e que
evidenciasse todos os aspectos envolvidos na construção da suposta verdade
do narrador de Dom Casmurro. Ao chegar nesse romance, Machado havia
tido tempo para amadurecer a idéia do que gostaria de fazer. o inúmeras as
suas narrativas que envolvem traições e casamentos. A larga distância entre
161
essas primeiras obras de adultério e Dom Casmurro, se entre outros
motivos, por Machado ter deslocado o eixo fundamental da história, da traição
para a suspeita da traição. Com isso, a obra, como diz Humberto Eco, “torna-se
aberta”. Sua interpretação definitiva torna-se impossível de ser alcançada.
nos restando o que é muito reler o romance, quantas vezes nos der
prazer e aprendermos a convivermos com suas ambigüidades.
Para Machado alcançar esse grau de ambigüidade, ele precisou
entender que o mais importante seria, sutilmente, nos fazer acreditar que
Casmurro, o narrador do romance, e todos os seus argumentos estão corretos,
mas, ao mesmo tempo, também mostrar que todas as estratégias desse
narrador trazem em si o germe de sua autodestruição. Por exemplo, o
argumento principal para ele admitir que Ezequiel era filho de Escobar e não
seu, seria a semelhança física entre ambos. No entanto, Machado,
discretamente, introduz no conto um elemento importante na descontrução
dessa hipótese: a semelhança entre Capitu e a mãe de Sancha. Isto é,
pessoas que o muito parecidas fisicamente, não necessariamente são
parentes.
Outro ponto importante nessa sucessão de argumentos é o modo como
a imparcialidade jurídica de Bento é desmontada pela sua insegurança
pessoal. Possivelmente Machado tenha feito de Bento um advogado, para que
sua capacidade retórica fosse justificável e justificada. Ele próprio é o narrador
não onisciente do romance e todas as suas verdades, apesar de serem
supostamente “verdades particulares” nos são oferecidas com “verdades
absolutas”.
O que tanto Helen Caldwell (2002), quanto S. Santiago lembram é que
estamos tratando de um narrador extremamente ciumento. Seria esse um
primeiro ponto que poderíamos utilizar para contestar suas supostas verdades
imparciais. Porém, mais do que isso, Bento foi enquanto criança, e
permaneceu quando adulto, um homem inseguro. Machado, definitivamente,
ao mesmo tempo em que soube ser sutil, também caprichou nos elementos
que constituiriam a psicologia insegura de Bento e posteriormente de Dom
Casmurro. Ele é fruto de um lar sem pai e em lugar deste, apenas a figura
patética de um agregado ambicioso. Um embuste. Um charlatão declarado.
Sua mãe, superprotetora, antes mesmo de Bento nascer já marcara sua vida
162
com dois grandes fados. O primeiro foi prometer que se ele nascesse com
saúde, seria padre. O segundo foi nascer com a responsabilidade de preencher
o lugar de um irmão natimorto. Sobre isso, a psicanalista Arminda Aberasture
“[...] sempre chamava a atenção para as dificuldades que terão em seu
desenvolvimento psicológico os filhos que vêm predestinados, vêm em lugar de
outro irmão, por exemplo” (Freitas 2001: 130). Bento nasceu destituído de
poder ter seus próprios desejos. Como diriam os psicanalistas, Bento não
desejava, apenas era desejado por sua mãe. Ele nasceu como fruto de desejos
egoístas de sua mãe. Antes de ser sujeito, era padre. Antes de ser ele
mesmo, era quem veio preencher o lugar de um irmão que nasceu morto. O
que poderíamos, então, esperar de Bento? Que ele não fosse inseguro? Que
ele não se tornasse Casmurro?
Enfim, não sendo nosso trabalho sobre Dom Casmurro, acreditamos que
essas poucas páginas que lhe dedicamos são suficientes para ao menos
lembrar que o grande salto de Machado foi investir, não no enredo complexo
ou na revelação ou não do adultério, mas na construção psicológica dos
personagens e numa problematização metalingüística sobre o próprio discurso
do seu narrador.
Antonio Candido (2004) propõe que a tomada do fato imaginado como
sendo real é um dos eixos da obra de Machado de Assis e assim, como vimos,
também de um dos seus principais romances, Dom Casmurro. Candido faz um
pequeno resumo de como a crítica vem se comportando em relação a esse
tema em Dom Casmurro e cita o estudo de Helen Caldwell
36
como um dos
principais sobre o tema. Mas, o que ele deixa de salientar é que, além da
tomada do fato imaginado como real e das implicações do narrador parcial em
primeira pessoa, de Dom Casmurro, caso desejemos situar a presença desse
tema em outros contos, é preciso que o concebamos despido das
particularidades inerentes a esse romance. Fazendo isso, encontraremos no
ponto mais neutro do tema, o problema do narrador não confiável. Com esta
constatação, fica ainda mais claro que a descoberta das possibilidades
narrativas de um narrador não confiável e parcial, certamente foi um dos
36
CALDWELL, H. O Otelo Brasileiro de Machado de Assis; Um estudo de Dom Casmurro, Atelie
editora. Rio de Janeiro. 2002.
163
principais responsáveis pela ambigüidade, relatividade e abertura de algumas
das obras de Machado.
Vale salientar que como narrador não confiável entendemos aquele que
parece distorcer o material que supostamente deveria ser narrado (a anedota)
ou omiti partes significativas dessa anedota para transmitir ao leitor sensações
de suspense, surpresa e expectativa. Em O Relógio de Ouro, por exemplo,
somente ao fim do conto notamos que fomos traídos pelo narrador que a todo o
momento nos induz a um pré-julgamento que apenas reforçou nosso
preconceito sobre Clarinha (Bastazin 2003: 197). Do mesmo modo, em O Anjo
das Donzelas, mesmo aparentemente o narrador tendo total domínio da
estória, ele se limita, meio que “ardilosamente”, a contar estritamente o
necessário. Assim, somente ao fim do conto toda a verdade é esclarecida e
percebemos que durante todo o conto erroneamente achávamos que
estávamos lendo uma estória fantástica.
Como anteriormente falamos, a relatividade não surge na obra de
Machado apenas como um tema problematizado, mas também como um modo
de se relacionar com o leitor. Ao ampliarmos um pouco mais a equação da
“tomada do fato imaginado como realidade” e chegarmos ao narrador não
confiável, passamos a admitir a possibilidade de não somente os personagens
machadianos tomarem como fato o que é fantasia, mas também, nós leitores,
diante de um narrador caprichoso, parcial e descompromissado com qualquer
“verdade” em relação ao texto, passarmos a também tomar o que é narrado
pelo narrador, como o que supostamente seria a matéria do conto. Com um
pouco mais de cuidado, veremos que a relação entre o fato imaginado e o fato
real, não é apenas um tema problematizado no conto e concernente às
relações entre os personagens. Mas, também diz respeito à dinâmica existente
entre o leitor e o narrador machadiano. Exemplo disto é o que acontece com
Dom Casmurro, quando o narrador usa a retórica a fim de não permitir que nos
aproximemos dos supostos fatos que envolvem sua história com Capitu. Ele
nos manipula e nos apresenta, não a história e os fatos, mas apenas sua
narrativa.
Seria muito difícil encontrarmos entre seus primeiros trabalhos algum
narrador com o mesmo grau de amadurecimento e requinte do de Dom
Casmurro. Entretanto, alguns contos desse período parecem ir além de
164
estórias nas quais os maridos tomem como verdade absoluta seus próprios
julgamentos distorcidos e abordem, mesmo que ainda de forma tateante, a
tomada do fato imaginado como real e do narrador não confiável.
Como vem sendo nosso costume nesta dissertação, é hora de
apontarmos entre os primeiros trabalhos de Machado, a presença de todas
essas questões que estamos discutindo. Vejamos então o conto O Anjo das
Donzelas, publicado em 1864 no Jornal das Famílias. Em resumo, trata-se da
estória de Cecília, uma jovem que, com medo de se apaixonar e sofrer, pede
aos anjos que a proteja e impeçam que ela se apaixone. No outro dia pela
manhã, após sonhar que um anjo colocara em seu dedo um anel e que seria
esse o responsável em proteger seu coração, ela de fato acorda com o tal anel
no dedo. Até aí, e durante quase todo o conto, o narrador vai contando a
estória como bem entende e somente ao fim do conto, nos revela que o anel
que a heroína acredita ter ganho do anjo e que a protegeria de se apaixonar,
na verdade, foi posto em seu dedo enquanto dormia, por um primo seu
apaixonado e que naquela mesma noite partia em viagem.
Apesar desse conto ainda tratar de um tema que a crítica considera
como “romântico”, alguns aspectos sobre seu narrador são interessantes. O
primeiro deles é que, na década de sessenta, observamos um narrador que
tem voz ativa e se refere diretamente ao leitor. Logo nas primeiras linhas, após
discutir sobre o constrangimento que existe em “entrar na alcova de uma
donzela” (2003: 66), ele tranqüiliza o leitor oitocentista, qualificando o conto e
também lhe fazendo uma breve interpretação. Diz ele: “Descanse leitor, não
verás neste episódio fantástico nada do que não se pode ver à luz blica”
(2003: 66).
O conto definitivamente não é fantástico. Pelo contrário, o relato do
narrador é que parece ter sido construído para que fôssemos levados a
acreditar que se trata de uma narrativa fantástica. Pois bem, ao fim de tudo,
percebemos que a única coisa de que temos certeza, é que estamos diante de
um narrador não confiável. Ainda entre os primeiros contos, outro narrador
se mostra caprichoso, o confiável e desta vez a mesmo capaz de fazer
uma espécie de acordo tácito com o personagem a fim de obscurecer alguns
elementos e ressaltar outros. Estamos falando do conto O Relógio de Ouro.
165
Luís negreiros encontra uma corrente de ouro em seu quarto e
imediatamente, porém sem qualquer fundamento, suspeita que deve pertencer
a um amante de sua esposa. Sua esposa Clarinha, chorando compulsivamente
e sem querer falar no assunto, apenas afirma desconhecer o objeto. Negreiros,
então, torna-se agressivo com a esposa a fim de saber a origem da tal jóia. O
conflito está instalado. Mais adiante seu sogro chega a sua casa e lembra que
seu aniversario está próximo. Negreiros então imagina que a corrente é um
presente que a esposa lhe providenciou. Clarinha nega ter comprado a
corrente. Após mais brigas choros e negações, Clarinha lhe entrega uma carta
que veio junto com a peça de ouro. Negreiros finalmente descobre que quem
lhe enviou a corrente foi sua amante.
O interessante acerca desse conto é que o narrador, desde o princípio,
parece anunciar uma narrativa cujo desfecho ele já domina. Diz ele que “Agora
contarei a narrativa de um relógio de ouro. Era um grande cronômetro”
(Machado 1997 II: 209). Isso quer dizer que a ordem e o modo com os eventos
são narrados, obedecem estritamente ao desejo do narrador de manter em
suspensa a verdade sobre a origem da jóia e a culpa de Negreiros.
Tendo em mente as idéias propostas por Edgar Allan Poe em A
Filosofia da Composição, podemos dizer que O Relógio de Ouro tem todos os
elementos necessários para que um conto seja bem sucedido. Sua estrutura
revela uma narrativa subordinada a um objetivo predeterminado, linear e que
tende sempre a desencadear um determinado efeito, no caso, a surpresa da
revelação da origem da jóia.
Ora, dizemos que o narrador do conto não é confiável, pois, mesmo
dominando toda a estória e por isso sabendo a verdadeira origem do relógio,
se mostra obstinado em ressaltar os elementos que supostamente incriminam
Clarinha. A certa altura, ele diz que:
O gesto de indignação e a repulsa quando ele a foi abraçar na sala de
costura, eram a favor dela; mas o movimento com que mordera os lábios no
momento em que ele lhe apresentou o relógio, as lágrimas que lhe rebentaram
à mesa, e mais que tudo o silêncio que ela conservava a respeito da
procedência do fatal objeto, tudo isso falava contra a moça (Machado II 1997:
220).
166
Como conseqüência dessa aliança entre o narrador e Negreiros, durante
todo a narrativa, também o leitor acaba sendo seduzido e em alguns momentos
pára de se questionar sobre a origem da jóia e passa a acompanhar o
raciocínio do narrador e todos os elementos que ele supõe serem indícios da
culpa de Clarinha. Se em Dom Casmurro, o “Casmurro-narrador” estabelece
um acordo com o “Casmurro-personagem” a fim de enganar o leitor e
convencê-lo a tomar seu partido, em O Relógio de Ouro, o narrador também
estabelece uma espécie de trato com o personagem Negreiros. Ele, como que
conscientemente, ressalta alguns aspectos e obscurece outros a fim de
alcançar seu objetivo, que é durante o máximo de tempo possível fazer com
que o leitor acredite na culpa de Clarinha e na inocência de Negreiros (Bastazin
2003: 199). Mesmo a superficialidade e a linearidade da narração podem ser
vistas como índice da farsa assumida pelo narrador para surpreender o leitor.
(Bastazin 2003: 201). Contudo, Machado, nesse momento, ainda parecia se
sentir na obrigação de ao fim do conto revelar toda a verdade. A possibilidade
de deixar a história em aberto só seria concretizada em Dom Casmurro.
O que poderíamos apontar como uma das principais diferenças entre
Dom Casmurro e os contos o Relógio de Ouro e O Anjo das Donzelas é que,
apesar de nas três situações termos narradores não confiáveis que tentam nos
enganar, Machado, ao conceber Dom Casmurro como sendo narrado em
primeira pessoa, ressalta ainda mais uma possível (meta)discussão acerca da
retórica, seus estratagemas e as possibilidades de manipulação dos fatos. A
partir de todas as implicações de um narrador em primeira pessoa,
observarmos ainda de forma mais clara o esquema retórico que, como se
construído de vidro, nos permitesse observar a evolução de todos os
estratagemas e intenções retóricas do narrador. Outra diferença entre essas
narrativas não confiáveis em primeira e terceira pessoa, é que a partir das
“falhas” do discurso desse narrador parcial, em primeira pessoa e com
interesses próprios, Machado de denunciar e ironizar as próprias falhas e
estratégias retóricas do narrador.
O narrador, como diz Luiz Costa Lima (1991), não é somente um
ornamentador das palavras, mas um legislador. O modo como o conto é
construído, os episódios narrados e as personagens apresentadas, não
167
obedecem a uma regra. Tudo é opção do narrador. É preciso entender que a
regra que condiciona o modo e a ordem como determinados eventos são
descritos, obedecem unicamente aos desejos do narrador em transmitir
sensações e impressões. Outros modos de narrar a estória de Cecília em não
se apaixonar, poderiam mais rapidamente nos fazer descobrir o caráter não
fantástico do conto, mas não é isso o que acontece. Parece ser intenção do
narrador nos manter em suspenso e acreditando na existência do tal anjo. O
narrador, narrando o conto” e legislando a palavra, consegue transmitir o que
Machado chamou de “substância da vida”. Isto é, os principais eventos e
características que são necessários para podermos realizar algum estudo
sobre o personagem ou a situação.
O mesmo erro que os personagens machadianos incorrem ao tomar a
fantasia como realidade, nós leitores também incorremos ao tomar as palavras
do narrador como o que de fato está sendo narrado. Notem que nossa equação
não leva em conta a realidade ou um referente externo. Isso implicaria
levarmos em conta a figura do autor. Não é o caso. Apenas nos interessa
observar o descompasso existente entre o discurso do narrador e a estória que
supostamente ele deveria nos contar. Essa possibilidade de admitirmos que,
internamente, o plano do narrador e outro do que é ou deve ser narrado,
adquire sentido, a partir do momento em que o próprio discurso do narrador
problematiza o seu próprio estatuto de verdade, como é o caso de Dom
Casmurro, ou deixar transparecer que entre o narrador e a matéria a ser
narrada, uma certa distância e que essa distancia lhe permite falar, divagar,
interpretar e inclusive nos enganar.
Abel Barros Baptista (2006), no ensaio A emenda de Sêneca, faz duas
leituras relevantes sobre os contos de Machado. A primeira é que o nero
conto não teria uma forma definida e que a obra de Machado seria um exemplo
disso, uma vez que ela não obedece a uma regra fixa, mas a cada conto
constrói novas formas de narrar estórias. A segunda observação, e que por
hora é a que mais nos interessa, é quando ele afirma que dentre essas formas
construídas por Machado, há uma na qual o narrador do conto exerce uma
autoridade que lhe permite, normalmente logo no início, qualificar e interpretar
a matéria que ele próprio irá narrar. Mais do que isso, Baptista destaca que não
necessariamente as opiniões desse narrador são coerentes ou esclarecedoras
168
em relação ao conto. Além disso, o conto e as interpretações que podemos
fazer sobre ele não dependem exclusivamente das opiniões desse narrador
não confiável.
Segundo Abel B. Baptista:
Toda teoria da forma breve se decide nisto: requer o narrador
autoritário, que afirme, sem réplica possível, o principio que delimita a forma;
ao mesmo tempo, exige que o narrador se retire para que a forma, completa e
autônoma, se entregue inteligível ao leitor e produza efeitos no seu exterior. O
que chamei acima teoria implícita da forma é menos a superação desta tensão
do que um seu efeito; e é menos a teoria do conto do que a marca da
inevitabilidade da reiteração em cada conto de uma teoria do conto (2000:
218).
Entre os contos maduros de Machado, um exemplo desse processo é
Primas de Sapucaia. O conto inicia com o narrador dizendo: “Há umas
ocasiões oportunas e fugitivas, em que o acaso nos inflige duas ou três primas
de Sapucaia; outras vezes, ao contrário, as primas de sapucaia são antes um
beneficio do que um infortúnio” (Machado 1997 II: 417). A forma se enquadra
na descrita pelo crítico. As palavras desse narrador são imperativas, parciais,
julgam e qualificam quem são as primas de Sapucaia, e o que devemos
esperar de Primas de Sapucaia. Ao mesmo tempo em que o discurso do
narrador implica um entendimento do conto, também é uma afirmativa genérica
que pode ser lida e transmitir algo independente da história a ser narrada. Isto
é, sabemos que ele esta se referindo a algo que se relaciona com o conto, mas
também a questões, como o acaso e suas implicações, que transitam entre o
infortúnio e o benefício.
A maior virtude da “Emenda de Sêneca”, tal como definida por A. B.
Baptista, é destacar que, por conta do caráter autoritário desse narrador, ele se
sente livre para divagar sobre o conto, sobre coisas que não sejam
necessariamente relacionadas a ele e também para não se sentir obrigado a
narrar com exatidão e imparcialidade a matéria do conto. Parece que
novamente nos deparamos com o problema do narrador não confiável. Esse
narrador machadiano, tão notoriamente conhecido por ser caprichoso e
impertinente, agora, também chama a atenção pelos palpites e pensamentos
169
nem sempre corretos e coerentes sobre a humanidade e não
necessariamente apenas sobre a narrativa em questão.
Diante do que até agora falamos e da nossa crença numa descrença
constante em relação ao narrador machadiano, podemos afirmar que “a história
contada é, por isso, em primeiro lugar, a historia de uma narração, de alguém
contando uma história” (Baptista 2006:210). Isso é constatado em Dom
Casmurro, quando concluímos que o que lemos não é a estória de sua vida ou
da de Capitu, mas a história da narrativa de sua vida. Do mesmo modo, em o
Anjo das Donzelas, o narrador o é simplesmente alguém que, ao narrar o
conto, lhe está prestando um serviço. Ele é o dono do conto. Emite
julgamentos, opiniões e até se sente no direito de não ser honesto com o leitor,
qualificando o conto de uma forma que ao fim percebemos ser falsa. Por fim,
em O Relógio de Ouro, temos também uma narrativa sob suspeita. Afinal,
percebemos que fomos manipulados todo o tempo pelo narrador quando
descobrirmos a “verdade” do conto. O Relógio de Ouro, apesar de contar entre
os contos que a crítica considera como menores, podemos classificá-lo como
um conto muito bom.
Entretanto, como ressaltamos em outros momentos, não é nossa
intenção dizer que os primeiros contos de Machado possuem a mesma
qualidade dos publicados a partir da década de oitenta. Em muitos deles, como
apontamos, ele parece iniciar algumas abordagens mais audaciosas, mas
por fim, acaba construindo um desfecho convencional. Exemplo claro disso é O
Relógio de Ouro. O conto é sucinto, claro, objetivo, consegue manter o
suspense e sua narrativa manipula com sutileza os elementos denunciativos do
problema em questão. No entanto, ao fim do conto, o narrador, prefere não
deixar dúvidas acerca de quem traiu e quem foi traído. Aparece ainda haver
um certo compromisso moral com a sociedade.
Com uma certa ênfase, achamos que, se Machado não tivesse ao fim do
conto revelado a verdade sobre a origem da jóia e deixasse no leitor a
sensação de indefinição, dúvida ou mais ainda, deslocasse a preocupação
principal do conto, da suspeita da origem do relógio para um destaque acerca
das possibilidades de como contar uma estória, manipular argumentos e ainda
deixar a estória em aberto, sem uma verdade final e absoluta que solucione o
170
conto, muito possivelmente esse conto, que de fato é bom, alcançaria o mesmo
grau de dubiedade e abertura de Dom Casmurro.
Outros contos desse mesmo período, apesar de não apresentarem essa
mesma complexidade narrativa, são estórias que se desenvolvem a partir
principalmente de erros de julgamentos, falsas deduções e atribuições injustas
de culpa. Ou seja, a tomada de uma fantasia como realidade.
Em A Mulher de Preto e Um Esqueleto, uma sobreposição da
verdade interior, não verificável, não baseada em fatos, mas apenas em
impressões, sobre a realidade exterior. Em Um Esqueleto, Dr. Belém mata a
ex-esposa simplesmente por “achar” que ela o havia traído. Da mesma forma,
Meneses, em A Mulher de Preto, apenas por julgar ter sido traído, abandona
Madalena, deixando-a obviamente em uma situação extremamente
desconfortável, principalmente por ser uma estória que se passa no século XIX.
Sobre a semelhança entre A mulher de Preto e Dom Casmurro, Aderaldo
Castello diz que: “na demonstração da tese, o Autor, principia a esboçar uma
concepção de existência que repousa na análise de comportamento feita em
correlação com a verdade interior do indivíduo. É um esquema que será
demonstrado de maneira mais definitiva em Dom Casmurro (Castello
1969:80).
Por fim, podemos afirmar que Machado de Assis, desde o seu primeiro
conto, abordou a sobreposição da realidade interna (a fantasia) sobre a externa
(a realidade supostamente factual). Afinal, surpreendentemente, em Três
Tesouros Perdidos, ele desenvolve, ainda que muito sumariamente, uma
situação na qual um personagem acredita em algo que não houve e toma uma
atitude irreversível baseada unicamente em seu juízo deturpado.
171
CONCLUSÃO
Não como negar que os melhores trabalhos de Machado de Assis
são os publicados a partir de 1880 e que, de fato, os anteriores são
formalmente inferiores e psicologicamente menos profundos. Não foi isso o que
esta dissertação tentou contestar. Há mais de meio século a crítica divide sua
obra em duas fases. Até hoje aprendemos que sua “primeira fase” é romântica
e constituída por trabalhos formalmente inferiores e psicologicamente rasos,
enquanto o que ficou conhecido como sua “segunda fase”, é por muitos ainda
hoje classificada como “realista”, madura e fortemente marcada pela
profundidade psicológica, ironia, humor, estilo e crítica social.
Ao longo dos anos, a explicação para a virada que ocorre na obra de
Machado a partir dos Papéis Avulsos e das Memórias Póstumas de Brás
Cubas vem sendo em grande parte justificada como decorrência de uma
mudança em relação ao modo como Machado entendia a sociedade brasileira
do século XIX. Antonio Candido, com razão, diz que o modo como enxergamos
os grandes escritores "[...] ainda é bastante romântico, temos uma tendência
quase invencível para atribuir aos grandes escritores uma quota pesada e
ostensiva de sofrimento e de drama, pois a vida normal parece incompatível
com o gênio” (2004: 15).
Antonio Candido está certo. Mesmo as explicações mais sociológicas
acabam passando a idéia de que a transformação na obra de Machado teria a
ver com alguma mudança pessoal na sua vida. Machado, que veio de uma
família humilde e na maturidade alcançou um lugar de respeito na sociedade
carioca, segundo suas biografias, aos quarenta anos sofrera uma ria crise
que lhe obrigou a se retirar em Petrópolis. Teria sido nesse período quando
descobriu que, como ele mesmo diz, o melhor modo de apreciar o chicote é ter-
lhe o cabo na mão. A partir de então, para muitos críticos, ao invés de
continuar fazendo uma literatura “romântica”, moralizadora e quase de
denúncia, Machado estabelece uma ruptura na sua trajetória literária e passa a
utilizar como arma literária contra a sociedade burguesa do Brasil oitocentista,
o humor e a ironia. Apesar de considerarmos que a sua obra madura
certamente é mais crítica e apresenta uma aguda visão sobre o Brasil dos
oitocentos, não é por esta razão que a consideramos uma grande obra. Mais
172
do que isso, acreditamos que a maturidade literária de Machado se caracteriza
pela direção vertical que tomam suas análises psicológicas e sociais, e também
pela adesão formal que faz à sátira menipéia.
O que esta dissertação nos mostrou foi que, apesar de realmente sua
obra considerada madura ser muito superior a quase tudo que ele havia antes
publicado, o que ocorre na década de oitenta, em relação aos seus contos, não
é o que podemos chamar exatamente de ruptura, mas evolução. Ou seja, é
errada a idéia de que seus primeiros contos nada têm a ver com sua obra
madura e que são dispensáveis para um estudo mais amplo e que pretenda
entender de forma integral os principais aspectos dos seus contos.
Podemos afirmar com segurança que todos os problemas apontados
pela crítica como fundamentais e que caracterizam sua obra madura podem
ser localizados, embora em muitos casos ainda embrionariamente, entre seus
contos publicados até os Papéis Avulsos. Isto quer dizer que Machado não
renasceu na década de oitenta, mas, sim, amadureceu. Os problemas que
tratou com tanta perfeição em seus melhores contos não estavam presentes no
início de sua carreira apenas na sua obra crítica, mas também nos seus
primeiros contos começavam a ser abordados.
É verdade que, entre os contos experimentais, em muitos casos, a
abordagem desses problemas não atinge a mesma profundidade psicológica e
qualidade formal que nos seus contos maduros. Mas, como falamos em rias
outras passagens, nunca foi nossa intenção provar que seus contos
experimentais e maduros apresentam a mesma qualidade. Se para um leitor
comum que busca no ato da leitura, antes de tudo, prazer e a possibilidade de
ampliar sua visão sobre o mundo e os homens, esses primeiros contos podem
parecer superficiais; para os que desejam compreender o desenvolvimento da
obra contista de Machado, estudar esses primeiros contos significa poder
entender como e em quais contos surgem pela primeira vez alguns problemas
fundamentais da sua obra.
Partindo de estudos críticos que se propuseram a analisar seus contos
de uma forma integral, escolhemos dez problemas que podem ser
considerados fundamentais em sua obra e verificamos se já estavam presentes
nos seus contos experimentais.
173
O primeiro deles é o pessimismo em relação às capacidades do
indivíduo ser tocado pela dor e desgraça do outro; uma capacidade em ser
indiferente a qualquer coisa que não lhe diga respeito. Verificamos que em pelo
menos quatro desses primeiros contos essa problemática está presente: O que
São as Moças, Aires e Vergueiros, Mariana e Luís Soares. Em relação ao
segundo problema, o do personagem- artista em busca da perfeição, não
apenas ressaltamos a sua evidente presença em Aurora sem dia e O
Machete, mas também analisamos como esses primeiros contos se articulam
aos contos maduros que tratam desse mesmo tema e por fim acabam
construindo um certo panorama das diferentes idéias de Machado sobre a
figura do artista e do processo de criação.
Sobre o que a princípio muitos críticos consideram como o problema da
identidade na sua obra, primeiramente, mostramos que a problematização da
identidade é apenas uma das possibilidades de abordar um problema muito
maior: o do lugar do outro na constituição da nossa personalidade e na
valoração das coisas e discursos. Sob esse enfoque, este problema é notado
principalmente em O Machete.
Em Cinco Mulheres, A Herança e O Machete, sublinhamos o quarto
problema: a relatividade. Também destacamos que em alguns desses contos
Machado põe em prática uma das principais características do gênero: a
concisão. O quinto problema da nossa lista, e que está em Virgínius, é um dos
mais ressaltados da obra de Machado: a abordagem da psicologia humana a
partir de uma perspectiva universal. Também a partir dessa estória
mostramos como desde o início de sua carreira ele introduziu em seus contos
elementos e citações da cultura e literatura clássica.
O sexto problema, o sentido do ato, também pôde ser localizado em
Vírgínius. O sétimo problema e que evidentemente existia entre suas
primeiras produções, é o da personagem feminina. Entre os contos que
abordam esse problema estão: Ernesto de Tal, Linha Reta e Linha Curva, a
Mulher de Preto, Miss Dollar, O Segredo de Augusta, Confissões de uma Viúva
Moça, Ponto de Vista, Miloca, Cinco Mulheres, O que São as Moças, Onda, A
Última Receita e Fôlha Rota. Se a maioria dessas estórias é do tipo “água-com-
açúcar”, em O Segredo de Augusta, por exemplo, já percebemos uma tentativa
de analisar mais verticalmente a vaidade feminina.
174
Oitavo problema: a loucura. Apresentado por Antonio Candido como um
dos principais da obra de Machado, mostramos que Um Esqueleto não
somente aborda esse tema, como também apresenta muitas semelhanças em
relação A Causa Secreta, inclusive, a de conceber a loucura não apenas como
um quadro estereotipado e isolado do comportamento humano, mas
entranhado nas atitudes mais vulgares e ditas “normais”.
Apontado por alguns críticos como um dos mais cruéis problemas
apresentados por Machado, o homem como objeto do próprio homem, na
maioria dos casos ainda está atrelado a questões de interesse financeiro e
social como em A Conversão de um Avaro, Um Homem Superior, A Mulher
de Preto, Luís Soares e Ernesto de Tal. Porém, em O Segredo de Augusta e
Um Esqueleto alguns temas e estórias que futuramente seriam novamente
abordados com mais profundidade em A Causa Secreta e Uma Senhora
surgem de forma promissora.
O décimo problema que escolhemos como característico da obra
madura de Machado e que localizamos entre seus contos publicados até 1880,
certamente é um dos mais estudados em Dom Casmurro: a tomada da
fantasia como realidade. Além de destacá-lo em A Mulher de Preto, Três
Tesouros Perdidos e Um Esqueleto, tal como fizemos em relação ao problema
da identidade, demonstramos que a tomada da fantasia com realidade pode
ser entendida como um possível desdobramento de uma questão formal bem
mais ampla e importantíssima nos contos e romances de Machado: o narrador
não confiável. Alguns dos primeiros contos que inauguram essa galeria de
narradores não confiáveis são: O Anjo das Donzelas e O Relógio de Ouro.
Ao verificarmos que é possível encontrar entre os primeiros contos de
Machado, os dez problemas que escolhemos como representativos de sua
obra madura, concluímos que sua obra contista não se caracteriza por uma
forte ruptura, mas por um amadurecimento, que a partir da década de oitenta
se torna mais evidente.
A partir dessa conclusão, outras duas hipóteses puderam ser
verificadas. A primeira diz respeito à possibilidade de encontrarmos esses
problemas entre os contos experimentais, não apenas como decorrência de um
desejo nosso, mas por de fato estarem lá. Na verdade, são vários os contos
nos quais parece ter sido intencional a abordagem desses problemas, pois,
175
mesmo quando não são os objetos principais de estudo ocupam um lugar de
destaque e são fundamentais para a estória. Por exemplo, a relatividade em
Cinco Mulheres; o pessimismo em relação à capacidade do indivíduo em
Mariana e Luís Soares; a loucura em Um Esqueleto; o narrador não confiável e
a tomada da fantasia como realidade em O Anjo das Donzelas e A Mulher de
Preto; a tomada do homem como objeto do próprio homem em Um Esqueleto,
A mulher de Preto, O Segredo de Augusta e Luís Soares; a personagem
feminina e sua vaidade em Onda, Ernesto de Tal e O Segredo de Augusta; os
personagens artistas em busca da perfeição em Aurora Sem Dia e O Machete;
a presença do outro como fundamental para a construção de nossa
personalidade e valoração das coisas também em O Machete e o sentido do
ato e a análise da psicologia de uma perspectiva universal em Virgínius.
Se Machado, apesar de ainda convencionalmente, abordou todos esses
problemas de forma consciente em seus contos experimentais, do mesmo
modo podemos acreditar o nos faltam evidências para afirmar que também
conscientemente ele retomou esses mesmos temas após 1880. A relação entre
os contos Um Esqueleto e a Causa Secreta e O Segredo de Augusta e Uma
Senhora, nos faz crer que Machado, de forma menos mórbida que seus
personagens, nutria em si o tal vírus da idéia fixa.
Além desses contos que de forma evidente e estrutural se assemelham,
vimos durante toda esta dissertação inúmeras passagens e reflexões presentes
nos seus primeiros contos que nos remetem aos seus trabalhos maduros,
como por exemplo, o narrador dissimulado de O Relógio de Ouro, A mulher de
Preto e Dom Casmurro; a indiferença pela dor do outro em Luís Soares e o
episódio da choupana em chamas nas Memórias; a vaidade de Onda e de
Sofia de Quincas Borba e a tentativa de relativizar um conceito em Cinco
Mulheres e Idéias de Canário.
Tentar encontrar uma resposta definitiva para o desenvolvimento da
obra de Machado de Assis, definir suas principais características e quais as
razões para que ainda hoje ela continue sendo considerada a maior obra da
literatura brasileira, é uma tentação para todo crítico literário. Por isso, já é hora
de admitirmos que uma obra extensa e complexa como a sua exige uma
análise mais ampla e que se proponha a tomá-la integralmente como um todo
coeso.
176
Apesar de, com veemência, considerar que o papel principal de uma
obra de ficção é proporcionar prazer ao leitor, cabe aos que o somente lêem
Machado, mas que decidiram estudá-lo, retomar suas interpretações, mas
agora sem compromissos nacionalistas ou ideológicos. Machado é um caso
exemplar de como um autor e sua obra devem ser concebidos antes numa
tradição literária do que social.
A obra de Machado de Assis pode ser compreendida como um “sistema”
tanto no sentido de construir idéias e formar um todo coerente, como também
no sentido exposto por Antonio Candido em Formação da Literatura Brasileira.
Contudo, para conseguirmos compreendê-la e lhe atribuir o lugar merecido na
literatura ocidental, é fundamental que passemos a tentar explicá-la não
apenas a partir de nossa história, mas, sim, dos diálogos que estabelece com
outras grandes obras literárias e, como fizemos, a partir do desenvolvimento de
seus aspectos internos, tais como, sua evolução formal e o aprofundamento de
idéias.
177
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