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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP
Josânia Silva Santos
A poética da morte na obra As Máscaras do Destino, de Florbela Espanca
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS
EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
SÃO PAULO
2008
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JOSÂNIA SILVA SANTOS
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Literatura e Crítica Literária sob a
orientação da Prof
ª.
Drª. Vera Bastazin.
São Paulo
2008
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Banca Examinadora:
__________________________________________________
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__________________________________________________
j
À minha mãe Almerinda Rodrigues (in memoriam)
e à minha filha Juliana, razão de minha existência.
AGRADECIMENTOS
A Deus por todas as bênçãos recebidas.
A UNEB (Universidade do Estado da Bahia), pela licença e apoio concedidos.
A CAPES pela bolsa de estudos recebida.
Ao Programa de Literatura e Crítica Literária da PUC-SP, aos professores Maria José Gordo
Palo, Fernando Segolin, Beatriz Berrini, Erson Martins, Maria Rosa Duarte, Biagio D’Angelo e
Maria de Fátima Marinho (Universidade do Porto-Portugal).
A professora coordenadora deste Programa: Maria Aparecida Junqueira, por tudo...
A Presidência da Pós-graduação pela compreensão dispensada.
A secretária do Programa de Literatura e Crítica Literária, Ana Albertina, pelas palavras de
incentivo nos momentos de angústias e pelo carinho com que sempre me atendeu.
Aos colegas da UNEB, pelo incentivo e amizade.
Aos amigos que conquistei aqui em São Paulo: Douglas, Joelice e Júlio pelo apoio
incondicional em todos os momentos.
As minhas irmãs Estela e Sônia Mara, pela prontidão em sempre me ajudar nas dificuldades.
A Banca examinadora desta pesquisa.
A orientadora, Profª Drª Vera Bastazin pela leitura desse estudo.
A todos aqueles que acreditaram e torceram por mim, muito obrigada.
RESUMO
Esta dissertação tem por objetivo apresentar uma leitura da poética da morte inscrita
nos contos “A Morta”, “A Paixão de Manuel Garcia” e “As Orações de Soror Maria da Pureza”,
que compõem a obra As Máscaras do Destino (1927), da poeta e contista portuguesa Florbela
Espanca.
A prosa dessa autora alentejana apresenta uma constante rememoração do espetáculo
da morte encenada em situações amorosas díspares. Nesse sentido, sua obra gravita sobre o
universo mesclado de prosa e poesia o que vem a compor o que chamamos de prosa poética.
Para se alcançar os objetivos propostos, dividimos este estudo em três capítulos. No
primeiro: A narrativa poética de Florbela Espanca, traçou-se um panorama geral sobre o
gênero conto, suas primeiras manifestações na Literatura Universal e sua inserção em solo
português. Em seguida, refletimos sobre os contos florbelianos e sua relação com o aspecto
biográfico imputados pela crítica. No segundo capítulo intitulado A Poética do amor e da
morte, abordamos a relação mitológica de Eros e Psique, o “amor cortês” no imaginário
medieval, salientando que a cortesia lírica representa o pilar da Literatura Portuguesa. Ainda
neste capítulo, discutimos o universo de Eros e Thanatos representados ao longo da História
pela literatura. Para ressoar a voz de Eros, convidamos Georges Bataille e sua tese da busca
da continuidade perdida para nos acompanhar nesse ambiente tão nostálgico e nebuloso que
é o mundo das representações do erotismo.Dedicamos ao terceiro capítulo a análise do
corpus selecionado. A Linguagem do Amor Além-túmulo foi construída a partir do conto ‘A
Morta”. Tragédia na Ficção Amorosa Florbeliana tem como esteio o conto “A Paixão de
Manuel Garcia” e Erotismo nas Máscaras da Morte se baseia na fábula d”As Orações de
Sóror Maria da Pureza”. Nesta seção, analisamos a relação amorosa de cada personagem
nas fronteiras da vida-morte.
PALAVRAS CHAVE: Florbela Espanca – Conto – Poética – Erotismo - Amor – Morte.
ABSTRACT
The central object of this research is analysis the short stories poetic in “A Morta”, “A
Paixão de Manuel Garcia” and “As Orações de Soror Maria Pureza” collected in the book As
Máscaras do Destino, by portuguese author Florbela Espanca.
The prose of this portuguese writer show a constant remember to the spectacle of death
staged by love situation so different. This way, her work turn around over the universe which
mix prose and poetry that we named poetry prose.
The short stories selected, beyond summarized the characteristics over decrypts, bring
a resort theme which is the death inscribe under de sign of love.
To get the purpouse drown up a general plan of some considerations writer by someone
that worried to structure the short story like narrative genre. In after that, we shared the
research in three sections: First: The poetic narrative by Florbela Espanca. We discoursed
about short stories. In the second section, we talked about The death poetic. We discoursed
about Eros, Thanatos and Psique. In the last section, we analised the short stories: “A Morta”,
“A Paixão de Manuel Garcia” and “As Orações de Soror Maria da Pureza”.
In this research, we studied the relationship between love, death in anothers worlds.
And then we get about the short stories news possibilities to understand the Florbela short
storties.
KEY WORDS: Florbela Espanca – Short story – Poetic – Love – Death.
SUMÁRIO
Introdução:
Sob as máscaras de Tanatos: uma introdução aos contos de Florbela
Espanca ..........................................................................................................09
CAPÍTULO I - A narrativa poética de Florbela Espanca..................................21
1.1 O Conto......................................................................................................22
1.2 A inserção do conto em solo português.....................................................27
1.3 Os contos florbelianos...............................................................................30
CAPÍTULO II - A Poética do amor e da morte ................................................38
2.1 Eros e Psique: encontros & (des)encontros..............................................39
2.2 Amor Cortês: ilusão ou criação do imaginário medieval............................41
2.3 Na corte de Eros e Thanatos....................................................................47
CAPÍTULO III - A linguagem do amor além-túmulo: “A Morta”........................53
3.1 Tragédia na ficção amorosa florbeliana: “A Paixão de Manuel
Garcia..............................................................................................................66
3.2 Erotismo nas máscaras da morte: “As Orações de Soror Maria da
Pureza”............................................................................................................82
Considerações finais........................................................................................90
Referências Bibliográficas...............................................................................94
9
INTRODUÇÃO
SOB AS MÁSCARAS DE TANATOS: uma introdução aos contos de Florbela
Espanca
“Atira as asas mais ao alto, escalando os
cimos infinitos, já fora do mundo, na
sensação maravilhosa e embriagadora de
um ser que se ultrapassa!”
(Florbela Espanca: O Aviador)
10
Florbela D´alma da Conceição Espanca, Flor Bela Lobo ou simplesmente,
Florbela Espanca (como ficou conhecida), nasceu na cidade alentejana de Vila
Viçosa, Portugal, em 08 de dezembro de 1894. Era filha de Antónia Lobo e seu
patrão, o republicano João Maria Espanca – casado com Mariana do Carmo Ingleza.
Precoce, Florbela escreve seu primeiro poema aos sete anos de idade e o primeiro
conto, intitulado “Mamã”, aos treze, em 1907. No ano seguinte, Antónia Lobo, a mãe,
morre vítima de uma neurose e, por conta disso, Florbela acompanha a família do
seu pai em mudança para outra cidade alentejana – Évora.
Durante sua curta vida, Florbela dedicou-se mais à escritura de poemas
1
do
que à prosa: escreveu apenas dois livros de contos
2
O Dominó Preto (1982) , As
Máscaras do Destino (escrito em 1927 e publicado em dezembro de 1931), e um
diário nomeado Diário do último ano (publicado pela Livraria Bertrand em 1981, com
um prefácio de Natália Correia). Florbela Espanca suicidou-se na cidade de
Matosinhos na passagem de 07 para 08 de dezembro de 1930, dia do seu
aniversário.
Para melhor entender a proposta da obra de Florbela Espanca é necessária a
apresentação do seu contexto histórico e cultural. Na transição do século XIX para o
século XX, em Portugal, o movimento do Saudosismo de Teixeira de Pascoaes e A
Águia atraíram poetas, tais como Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Numa
tentativa de superar a iniciação saudosista de Pascoaes, Fernando Pessoa, Mário
de Sá-Carneiro e outros
3
fundaram a revista Orpheu (1915), com o objetivo de tornar
público seus ideais estéticos, nascendo, assim, o “movimento Orphista”. Na
introdução ao primeiro mero da revista, Luís de Montalvor declarou o seguinte
objetivo:
Nossa pretensão é formar, um grupo ou idéia, um número escolhido
de revelações em pensamento ou arte, que sobre este princípio
aristocrático tenham em ORPHEU o seu ideal esotérico e bem
1
Os poemas aparecem nas obras Livro de mágoas (junho de 1919), Livro de Soror Saudade (1923),
Charneca em flor (janeiro de 1931), Charneca em flor (abril de 1931, com 28 sonetos inéditos),
Reliquiae (1931) e Juvenília (outubro de 1931), que é composta de textos inéditos de Florbela,
publicados pelo professor Guido Battelli.
2
Sua prosa consta, também, das Cartas de Florbela Espanca a Dona Júlia Alves e a Guido Battelli
(agosto de 1931), Cartas de Florbela Espanca (1949), e Trocando olhares (publicado em 1994 sob a
responsabilidade da crítica Maria Lúcia Dal Farra).
3
Fizeram parte deste projeto juntamente com os poetas citados, Mário Beirão, Afonso Duarte, Raul
Leal, Luís de Montalvor (que lançou a idéia de publicarem a revista), Santa-Rita Pintor e o brasileiro
Ronald de Carvalho.
11
nosso de nos sentirmos e conhecermo-nos
4
(MOISÉS, 1973, p.138).
É com este propósito que o grupo do Orpheu inaugura a Estética Modernista
em solo português.
Massaud Moisés (1973, p.137-8) esclarece que os participantes
empolgados pela novidade, que correspondia a seus anseios de
modernidade, (os orphistas) conjugam forças e dão a público o
primeiro número do periódico, sob o título de Orpheu, datado de
janeiro-fevereiro-março de 1915. Dirigido por seus ideadores, Luís
de Montalvor e Ronald de Carvalho, e subintitulando-se “revista
trimestral de literatura”, o periódico encerrava colaboração dos
diretores e mais de Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Alfredo
Pedro Guisado, José de Almada-Negreiros, Côrtes-Rodrigues e
Álvaro de Campos.
Esta revista teve um segundo número publicado em 28 de junho do mesmo
ano e um projeto para lançamento do terceiro número. Moisés (Ibid.,p.138) diz que
“o referido número permaneceu inédito, embora parcialmente composto”. Após o
desaparecimento da publicação de Orpheu, surgiram outros grupos e projetos para
dar continuidade ao movimento de transformação do estagnado ambiente literário
português: Exílio (1916), Centauro (1916) e Portugal Futurista (1917), imbuídos de
ideologia estética semelhante ao do Orpheu: “poesia irreverente, estetizante e
esotérica, espécie de choque elétrico na estagnação pequeno burguesa em que
vegetava a cultura em Portugal” (MOISÉS, Ibid., p. 139).
À margem dos acontecimentos que envolveram esses projetos citados, surgiu
Florbela Espanca com uma escrita literária que apresenta um desnudamento
acentuado do “eu” lírico a expressar seus desejos mais íntimos. Dessa forma, a obra
da escritora causou estranhamento e, algumas vezes, repulsa, por parte da crítica,
por não entenderem a liberdade com que a poeta se expressou na construção do
discurso poético. Nos registros da Literatura Portuguesa, somente as Cantigas de
Amigo (“eu” lírico feminino, elaborado pela voz do trovador que dava cor a expressão
dos sentimentos da amiga; jovem habitante das vilas ou do campo) e as missivas de
4
Grifo do autor.
12
Mariana Alcoforado
5
se fizeram portadoras do sofrer de amor feminino, até o
momento em que brotaram os escritos literários de Florbela.
Até hoje, esta escritora continua marginalizada na Literatura Portuguesa. Os
críticos não sabem qual o lugar que seus escritos podem ocupar nos “gavetões” das
Escolas Literárias. Mendes (2002, p.53) observa que Florbela “pertence” à geração
pós-Orpheu fase chamada de Interregno - apenas em sentido cronológico e não
de ambiente literário. A exaltada e audaciosa poeta portuguesa viveu alheia às
discussões teóricas, extraindo da própria existência conturbada o material de sua
produção, que é marcada pelo lirismo erótico e confessional. Mendes (Ibid., p.53)
acrescenta que “o simbolismo pessoalíssimo de Florbela contribuiu para embaraçar
os críticos mais inteligentes da época, como foi o caso de José Régio que não
compreendeu a ‘força da sensibilidade’ e a ‘riqueza profunda’ com que a poeta se
expressou, confundindo-as com falta de intelectualidade”. Essa não-compreensão
da sua obra foi, muitas vezes, a responsável pelo rechaçamento da crítica para com
a sua produção.
Como afirma Pereira:
[...] julgando-se incompreendida e afetivamente desamparada,
Florbela sentiu-se também acossada pela pressão de ambientes
adversos à sua singularidade idiossincrásica e ao irridentismo ético-
social da sua trajetória existencial. Por outro lado, sendo notório, a
partir de 1915, o empenho na divulgação da própria obra e no
contato com meios culturais, chocou-se quase sempre com o
descaso, viu-se quase sempre remetida para a obscuridade (2003,
p.57).
Vale enfatizar que os volumes dos contos preparados por Florbela vieram
à lume após a morte da escritora. Logo, a mesma não teve acesso a todas as
considerações que os críticos teceram sobre a sua prosa. Thereza Leitão de Barros,
crítica literária portuguesa, comentou em 7 de dezembro de 1930 que Florbela havia
escrito também contos, a maioria ainda inéditos, salientando que todos os contos
5
Publicadas primeiramente em Paris, em 1669, sob autoria anônima, as cartas são a súmula de um romance
malfadado e um dos mais pungentes documentos de que se tem notícia sobre a solidão, a ansiedade amorosa e a
entrega total. em 1810 a autoria foi atribuída a Mariana Alcoforado (1640-1723), freira do convento da Nossa
Senhora da Conceição, na cidade de Beja, em Portugal. O suposto destinatário era um certo Sr. Cavalheiro De
Chamilly, oficial do exército francês que servira em terras lusas.
13
têm originalidade e nenhum apresenta qualquer deslize de bom
gosto literário, aliás bem desculpável em quem viveu quase sempre
longe do proveitoso convívio intelectual. Com certeza haverá algum
editor que publique, sem demora, a obra em prosa que Florbela
deixou e que é melhor, incomparavelmente melhor do que tanto livro
de contos apregoados sem cessar pelas trombetas da Fama
(BARROS, apud DAL FARRA, 2002, p.69).
O Dominó Preto, provavelmente o primeiro desses livros a ter sido escrito por
Florbela, obteria a sua primeira edição em 1982 pela Bertrand Editora, com um
prefácio de Yvette Kace Centeno.
As Máscaras do Destino (1927), o último elaborado, foi o primeiro a ser
editado. Publicado no ano seguinte à morte da escritora (1931), o volume contou
com a revisão do Dr. Cláudio Bastos e a rubrica da Editora Marânus, do Porto.
Entretanto, a segunda edição ocorreria em 1979, quando passaria a ostentar,
graças à chancela da Livraria Bertrand de Lisboa, um prefácio assinado por Agustina
Bessa-Luís: “tenho de ausentar-me um pouco do seu lado, para poder outra vez
falar dela e retomar o tema que julgo saturado pela observação e até pela simpatia
que toda a personagem exige de nós quando a revelamos e lhe damos vida”. A
crítica aponta, nesse aspecto, Florbela como personagem de si mesma, destacando
seu discurso biográfico ao prefaciar As Máscaras do Destino (1998, p.9).
Com esse olhar cristalizado, Bessa-Luís enfatiza a relação corpórea entre os
textos e a estrutura física, já amortecida, da escritora, assemelhando, de forma
distorcida e imprecisa, esse cadáver mudo, signo de uma saudade deixada pela sua
ausência, com as narrativas que tem linguagem própria e gozam do direito da
atemporalidade da voz e universalidade da obra de arte:
ao publicarem-se os seus contos, é como se exumassem o seu
corpo mais uma vez, como quando do cemitério de Sendim, em
Matosinhos, trouxeram os seus despojos à luz do dia. A cabeleira
negra estava intacta. Os contos são como ela símbolo de
permanência no pensamento da terra, fio de amor que mantém a
sua magnética força, saudade de tudo que podia significar felicidade
e expansão do afecto (1998, p.10-16).
14
No Brasil, a primeira publicação desta obra foi em 2003, pela editora
Aquariana LTDA. Em nosso estudo, utilizaremos como referência a sétima edição
portuguesa, de 1998, da Bertrand Editora.
A obra As Máscaras do Destino foi escrita em homenagem a Apeles Espanca,
único irmão da contista, morto em 1927, quando, durante um vôo de treinamento,
seu avião mergulhou nas águas do rio Tejo. Dal Farra (2002, p.70) diz que “é assim
que esta obra nasce: sob o signo da memória ao seu morto querido”.
As Máscaras do Destino apresenta ao leitor, primeiramente, um verso do
poeta Marco Aurélio, usado como epígrafe: “Vários grãos de incenso, destinados a
ser queimados, espalharam-se sobre o mesmo altar. Um caiu mais cedo, outro mais
tarde; que lhes importa?”. O verso do poeta se reescreve nas primeiras linhas da
escritura de Florbela. Um palimpsesto poético:
Sobre uma pedra tumular ficaria bem esta sentença do mais poeta
dos sábios, mas nada de firme, nada de eterno se pode gravar nas
ondas, e são elas a pedra do seu túmulo.
O grão de incenso que, sobre o altar, caiu mais cedo, ardeu mais
cedo; foi apenas um grão de incenso entre o número infinito dos que
hão-de cair e arder, entre a imensidade doutros que caíram, que
arderam; e o infinito desapego, o desesperante abandono, a
imensa renúncia do símbolo faz tombar num gesto de resignação as
minhas mãos crispadas, tapa-me a boca que quereria gritar, abafa-
me os soluços e as blasfêmias na ansiosa expectativa do momento
em que outro grão de incenso há-de cair e arder...
“Um caiu mais cedo, outro mais tarde; que lhes importa?
(ESPANCA, 1998, p. 27)
Em seguida, a escritora apresenta uma homenagem impregnada de lirismo
fúnebre, que é dirigida ao irmão desaparecido. Citemos uma passagem da
dedicatória:
A meu Irmão, ao meu querido Morto
Este livro é o livro de um Morto, este livro é o livro do meu Morto.
15
Tudo quanto nele vibra de subtil e profundo, tudo quanto nele é
alado, [...] tudo é d´Ele, tudo é do meu Morto!
A sua sombra debruçou-se sobre o meu ombro, no silêncio das
tardes e das noites, quando a minha cabeça se inclinava sobre o
que escrevia; com claridade de seus olhos límpidos como nascentes
de montanha, seguiu o esvoaçar da pena sobre o papel branco; com
o seu sorriso um pouco doloroso, um pouco distraído, um pouco
infantil, sublinhou a emoção da idéia, o ritmo da frase, a profundeza
do pensamento.
Bastar-me-ia voltar a cabeça para o ver...
Este livro é dum Morto, este livro é do meu Morto. Que os vivos
passem adiante...
Florbela Espanca (ESPANCA, 1998, p.31-33)
É nesta atmosfera de ternura e saudades do “meu Morto” que a fábula se
desenvolve. As personagens que habitam cada conto carregam seus traços de
inspiração e semelhança para com a História do “Morto” mas, é nesse quesito
que podemos aproximá-lo da obra, visto que a narrativa segue sua trajetória
construindo caminhos permitidos pelo mundo da ficção. As Máscaras do Destino é
composta por oito contos: “O Aviador”, “A Morta”, “Os Mortos Não Voltam”, “O Resto
é Perfume”, “A Paixão de Manuel Garcia”, “O Inventor”, “As Orações de Soror Maria
da Pureza”, e “O sobrenatural”.
Se a obra é dedicada a um ser falecido, todo o seu conteúdo pode remeter ao
tema do óbito. Isso se comprova ao lermos os textos do livro. No conto “O Aviador”,
aparece a história de um ser alado, quase um Ícaro
6
, que ultrapassa os limites do
seu mundo e adentra um universo maravilhoso repleto de seres aquáticos: sereias,
nereidas e fadas d’água. Ali, o Aviador fica a dormir o seu sono de morte sob os
cuidados dessas figuras encantadas.
O texto “Os Mortos Não Voltam” apresenta um narrador que, ao refletir sobre
o retorno dos mortos, relembra uma festa na casa de Madame L. A personagem
Lídia de Vasconcelos, prostrada no seu calvário amoroso, quebra o silêncio que se
6
Na Mitologia Grega, Dédalo foi um grande inventor que construiu um labirinto a pedido do rei Minos para
aprisionar o Minotauro. Ao ajudar Ariadne, filha do rei, fugir com seu amante Teseu, Dédalo foi aprisionado no
labirinto juntamente com seu filho Ícaro. Com o intuíto de fugir ele construiu asas para ambos, avisando ao filho
para não voar muito alto. Ícaro, desobedecendo às ordens do pai, voa além do permitido, a cera que prendia suas
asas derrete e ele cai no mar. (Acessado em 31/08/2008, no site:
www.exames.org/apontamentos/latim/latim_cultura_mitos_de_latim_freakystyley.doc).
16
fez no salão, gritando ao mar o nome do seu noivo João, desaparecido nas águas,
na esperança que ele retornasse. Ao ficar sem resposta, Lídia cai desconsolada em
sua cadeira e o narrador enfatiza que os mortos não voltam, mesmo ouvindo os
reclamos de amor.
Na narrativa “O Resto é Perfume”, o narrador-personagem lembra-se de uma
tarde em que conversava com uma amiga sobre a vida dos mortos. Juntos, eles
contemplam a paisagem alentejana e tecem descrições sobre o lugar, refletindo que,
para ambos, a vida dos mortos é o que interessa, “o resto é perfume”.
No conto “O Inventor”, a obsessão precoce da personagem pela água serve
de inspiração para a mesma escolher a carreira de marinheiro. Após se decepcionar
com tal escolha, a personagem vai direcionar seus sonhos para a aviação. Seu
mundo gira em torno do projeto de construção do avião. Ao se tornar aviador, ele
refletirá que a única companheira inseparável do homem é a morte; para ele, a vida
sem o perigo e sem a aventura não faz sentido.
Na narrativa que fecha a obra, “O Sobrenatural”, a temática da morte não se
relaciona diretamente ao falecimento de Apeles – fonte inspiradora da obra, como se
pode perceber nos demais. No entanto, as personagens são identificadas como
oficiais da Marinha e seus aspectos físicos se assemelham as características
corpóreas do falecido. Este texto narra as recordações do jovem rio Meneses
com uma moça de origem misteriosa: Gatita Blanca. Este é o nome com o qual a
personagem é descrita. A ambiência textual é estruturada numa atmosfera
fantástica, cuja personagem apresenta aspectos fantasmagóricos. O clima de tensão
entre a personagem masculina e a moça causa um estranhamento no leitor,
principalmente ao descobrirmos que esse ser feminino é a personificação da morte.
Percebemos que grande parte dos discursos de aspecto negativo sobre a
prosa de Florbela, especialmente os contos, deve-se ao deslocamento da vida real
da escritora para a ficcional. Esta relação vida/obra tem sido um dos caminhos mais
trilhados por pesquisadores e curiosos. Nesse viés biografista muito foi dito, às
vezes, até distorcendo ou empobrecendo as discussões a respeito de sua obra. Não
discordamos de que a obra florbeliana possibilita estabelecer relações entre a vida e
a produção literária numa perspectiva de inspiração para a escritura. Mas, olhá-la
apenas sob a perspectiva biográfica é destituir a autonomia da ficção, pois o texto
literário não é o retrato do mundo real.
Barthes (1966, p.206) afirma que
17
A função da narrativa não é a de “representar”, mas de constituir um
espetáculo que ainda permanece muito enigmático, mas que o
poderia ser da ordem mimética. [...] “O que se passa”, na narrativa
não é, do ponto de vista referencial (real), ao da letra, nada; “o
que acontece”, é a linguagem inteiramente só, a aventura da
linguagem, cuja vinda não deixa nunca de ser festejada.
Procurar, unicamente, a vida de Florbela dentro do imaginário dos seus textos
destitue o poder da Literatura. “A Literatura é, e o pode ser outra coisa, senão
uma espécie de extensão e de aplicação de certas propriedades da Linguagem”
(TODOROV, 2004, p. 53).
Todorov salienta que “a literatura deve ser compreendida na sua
especificidade, enquanto literatura, antes de se procurar estabelecer sua relação
com algo diferente dela mesma” (2004, p.81).
É neste universo literário, textual, dentro das relações literatura-linguagem,
que percebemos a criação de uma poética na constituição do espetáculo da morte
nos contos de Florbela Espanca.
Sendo assim, este estudo tem por objetivo apresentar uma leitura da poética
da morte inscrita nos contos: “A Morta”, “A Paixão de Manuel Garcia” e “As Orações
de ror Maria da Pureza”. Os textos selecionados compõem, entre os citados, a
obra As Máscaras do Destino (1927), da poeta e contista portuguesa.
Nossa opção em escolher como corpus de investigação os contos: “A Morta”,
“A Paixão de Manuel Garcia” e “As Orações de Soror Maria da Pureza
7
”, nasceu da
observação de que há, nestes textos, uma elaboração de linguagem, cujas
características instigam a investigação do caráter poético da morte, solidificado
numa tessitura amorosa. Outra justificativa para tal seleção deve-se ao
encantamento e sedução que o enredo desses contos causou-nos, desde o primeiro
momento de leitura. A poética que se inscreve em Florbela impregnou-nos de
imediato. Dessa forma, apresentaremos uma síntese desse corpus com a finalidade
de despertar no leitor um desejo de conhecê-lo na íntegra.
Como numa espécie de encantamento, a personagem do conto “A Morta”
7
Utilizaremos as siglas: AM para designar o conto “A Morta”, PMG para designar o conto “A Paixão
de Manuel Garcia”, e OSMP para designar o conto “As Orações de Soror Maria da Pureza”.
18
após seu sepultamento retorna do mundo dos mortos para se encontrar com seu
noivo: dá-se o enlace amoroso da morta-viva com o noivo vivo-morto. Tal como são
nomeados pelo narrador. Após esperar em vão a visita do noivo, a personagem
vaga pelas ruas até se encontrar com o rio e, mergulhando nele, transforma-se em
gota d’água em direção ao oceano.
No conto “A Paixão de Manuel Garcia”, o narrador nos conta o drama de um
rapaz humilde, que, é apaixonado por Maria Del Pilar, jovem pertencente à nobreza.
Ao saber do casamento da jovem, Manuel Garcia se suicida. A descrição dos
acontecimentos passa da ótica do narrador para as reflexões da mãe da
personagem, que, com seu semblante envolto pela dor, segue tecendo seus
lamentos em defesa das pessoas humildes. Chama nossa atenção o desfecho
paradoxal: afinal, para quem seria a carta deixada pelo suicida: para a Maria nobre
ou a Maria humilde? Sobre isso, o narrador silencia.
No escrito “As Orações de Soror Maria da Pureza”, a fábula começa a ser
desenvolvida em um ambiente externo: os jardins da casa de Maria, por entre as
grades, onde aconteciam os encontros amorosos desta personagem com seu noivo,
passando, logo após a morte do mesmo, para um ambiente interno: a clausura do
convento no qual Maria professara seus votos.
Maria, após receber a notícia de que o seu noivo havia morrido, retira-se da
vida citadina e recolhe-se ao seu íntimo, preferindo viver em um convento. É neste
ambiente de clausura que ela voz aos seus cantos de amor, imersos em um
erotismo sagrado, confundidos, pelas noviças, com orações.
É deste universo amoroso e fúnebre que procuramos verificar como os signos
verbais constituem a ambiência de morte: fenômeno tão próximo e tão desconhecido
para cada um de nós.
Jean Chevalier (2003, p. 621-23) no Dicionário de símbolos, apresenta-nos
diversas explicações sobre a morte. Citemos uma:
Revelação e introdução. Todas as iniciações atravessam uma fase
de morte, antes de abrir o acesso a uma vida nova. Nesse sentido,
ela tem um valor psicológico: ela liberta das forças negativas e
regressivas, ela desmaterializa e libera as forças de ascensão do
espírito. Liberadora das penas e preocupações, ela não é um fim em
19
si; ela abre o acesso ao reino do espírito, à vida verdadeira a
morte, porta da vida.
Ao adentrarmos, ficcionalmente, o reino misterioso da morte, buscaremos
tratar da problemática da poética que a inscreve no tecido textual florbeliano,
deduzindo que esta representação é possível devido aos artifícios de linguagem
utilizados: desenvolvimento da fábula, organização do discurso e desenvoltura do
narrador.
Organizamos este estudo em três capítulos e, em cada um deles, buscamos
dar ênfase ao aspecto mais relevante do conto.
No capítulo I, refletimos, sucintamente, sobre o gênero conto e suas primeiras
manifestações em solo português. Em seguida, dedicamos nossa atenção à entrada
de Florbela Espanca nesse universo narrativo.
No capítulo II, “A Poética do amor e da morte”, discutimos a temática amor,
erotismo e morte, baseada nas teorias dos estudiosos Jean Chevalier, Gastón Paris,
J. Le Goff, J. M. Wisnik, J. Solé, Lúcia Castello Branco, Alexandrian, Georges
Bataille, Marisa Mikahil Boccalato, José Maranhão e José Saramago. Nesta seção
procuramos relembrar o mito de Eros e Psique na criação da simbologia do amor;
refletimos sobre a criação do “amor cortês” no cotidiano medieval e a representação
de Eros e Thanatos no universo literário, tomado como exemplo o período da
estética realista no século dezenove, a partir do patrulhamento social enquanto
mecanismo de repressão.
No capítulo III, dividimos a abordagem em três partes. A primeira intitulada “A
linguagem do amor além-túmulo tem como foco principal o conto “A Morta”. A
narrativa aborda a continuidade do amor entre duas personagens que estão em
planos diferentes: o mundo dos mortos e o dos vivos. Esse amor funciona como
fonte de alimento para a personagem morta, que, obstinada por esse sentimento,
transita entre as fronteiras desses mundos, ao mesmo tempo que os seres
inanimados ganham vida e intensificam o caráter eterno e transformador do amor.
Em “Tragédia e cortesia na ficção amorosa florbeliana”, o foco é o conto ”A
Paixão de Manuel Garcia”, cuja personagem suicida-se em conseqüência da não
realização do seu amor. Construímos nosso discurso fundamentado no drama da
personagem e na relação de vassalagem amorosa que o mesmo realizava no
anonimato. O amor cortês e suas implicações constituem a base para a discussão
20
desse escrito.
Na última parte, intitulada “A representação do erotismo nas máscaras da
morte”, o foco é o conto “As Orações de Soror Maria da Pureza”, cujo texto traz a
idealização de um erotismo de cunho sagrado, no qual declarações de amor são
confundidas com orações ao santíssimo. A relação entre o mundo terreno e o
espiritual constitui a base da narrativa e, portanto, da sua análise.
A divisão adotada se justifica em função da narrativa estar marcada de lirismo
e simbologia textual sobre o espetáculo da morte que se manifesta sob óticas
variadas: a morta-viva, o suicida e a noviça apaixonada. Assim, afastamo-nos da
relação obra e vida da autora e enveredamos num mundo criado pela linguagem, ou
seja, o universo da prosa poética.
21
CAPÍTULO I
A NARRATIVA POÉTICA DE FLORBELA ESPANCA.
Eu trago-te nas mãos o esquecimento
Das horas más que tens vivido, Amor!
E para as tuas chagas o ungüento
Com que sarei a minha própria dor.
Os meus gestos são ondas de Sorrento...
Trago no nome as letras duma flor...
Foi dos meus olhos garços que um pintor
Tirou a luz para pintar o vento...
Dou-te o que tenho: o astro que dormita,
O manto dos crepúsculos da tarde,
O sol que é de oiro, a onda que palpita.
Dou-te, comigo, o mundo que Deus fez!
- Eu sou Aquela de quem tens saudade,
A princesa do conto: “Era uma vez...”
(Florbela Espanca, “Conto de fadas”
In: Charneca em flor, 1930)
22
O homem criou a narrativa como forma de representar o universo no qual está
inserido. Os signos lingüísticos permitiram que, desde os tempos iniciais, com a
criação de produções visuais e depois verbais, a Literatura nascesse e tomasse
corpo ao longo dos séculos.
A Literatura se apresenta como uma forma de constituir o mundo da
imaginação; a linguagem, um artifício para que esse imaginário se exponha para a
humanidade.
As primeiras narrativas são míticas, são a semente de tudo. As histórias o
relíquias de um povo, de uma comunidade; é a história do próprio ser humano diante
da dualidade em que vive: vida/morte.
O ato de narrar-contar deu origem a um gênero textual breve, rico e
desafiador: o conto. Ricardo Piglia (2004, p.90) diz que “este gênero não encerra em
si apenas uma breve história, mas o encontro de histórias que se entrelaçam num
curto espaço de tempo narrativo”.
Apresentaremos um breve panorama histórico sobre esse gênero narrativo e
sua inserção na literatura portuguesa. Abordaremos, também, a incursão da
escritora Florbela Espanca por esse universo no qual o contar vai muito além do
relatar fatos.
1.1 O CONTO
CONTO Do lat. comentum, in. (invenção, ficção, plano, projecto), ligado ao v.
contueor, eris (olhar atentamente para, contemplar, ver, divisar).
Muitas teorias tem sido elaboradas numa tentativa de definir e classificar o
conto, este gênero narrativo tão breve e encantador. O conto foi apontado como
perpetuação da vida e resistência a morte: “sob a magia do contar, desfiando a
imaginação ao sabor das aventuras, a vida sai vencedora em seu duelo com a
morte. Sherazade, a das Mil e Uma Noites, conquista o coração do rei Shariar
valendo-se da arte de contar estórias”. (REIS, 1992, p.07).
23
O conto atuou como responsável pela reunião de pessoas nas comunidades
para ouvir histórias; ele representa, dessa forma, um ato de confraternização entre
os povos por vários culos. Sua identificação com a história de vida das
civilizações, permite afirmar que ele é a base estrutural da cultura dessa gente.
Gotlib (2002, p.6) esclarece que
embora o início do contar estória seja impossível de se localizar e
permaneça como hipótese que nos leva aos tempos remotíssimos,
ainda não marcados pela tradição escrita, fases de evolução dos
modos de se contarem estórias.
“Os contos dos mágicos” – contos egípcios – são aceitos como os mais
remotos por alguns estudiosos. Esses contos datam de 4000 anos antes de Cristo.
Caminhar pelo mundo do conto permite encontrar a história da cultura do ser
humano, alguns exemplares de que se tem notícias datam de momentos transcritos
da Bíblia livro sagrado para a religião Cristã tais como a história de Caim e Abel,
O Grande Dilúvio etc. ou os textos do mundo clássico greco-latino que constituem a
base dos estudos literários do Ocidente: a Ilíada e a Odisséia de Homero.
Os famosos contos do Oriente: a Pantchatantra datados no culo VI aC,
escritos na língua nscrita, foram traduzidos para a língua árabe (VII dC) e,
também, para a língua inglesa (XVI dC). A coletânea citada As Mil e uma noites
transitou pela rsia no culo X, chegou ao Egito (XII) e foi disseminada por todo o
continente Europeu na centúria XVIII.
No culo XIV, o conto passou por um processo de transformação na sua
base estrutural: a oralidade. Nesse momento, ele foi registrado e observado quanto
a sua categoria estética.
Gotlib ( Ibid., p.7) informa que,
Os contos eróticos de Bocaccio, no seu Decameron (1350), são
traduzidos para tantas outras línguas e rompem com o moralismo
didático: o contador procura elaboração artística sem perder,
contudo, o tom da narrativa oral. E conserva o recurso das estórias
de moldura: são todas unidas pelo fato de serem contadas por
alguém a alguém. E os Canterbury tales (1386), de Chaucer, são
contados numa estalagem por viajantes em peregrinação.
24
Seguindo o fio da história, vamos encontrar o Héptameron (XVI -1558), de
Marguerite de Navarre, as Novelas ejemplares (XVII 1613), de Cervantes e, no
final da centúria, Charles Perrault e uma seleção de contos conhecidos como Contos
da mãe Gansa. Em seguida, La Fontaine (XVIII) exibe sua especialidade: narrar
fábulas.
No século XIX, o conto se estrutura mediante a influência da cultura medieval,
popular e folclórica e pelo desenvolvimento da imprensa que possibilita a divulgação
dos escritos em revistas e jornais. “Este é o momento de criação do conto moderno
quando, ao lado de um Grimm que registra contos e inicia seu estudo comparado,
Edgar Allan Poe se afirma enquanto contista e teórico do conto”. (Ibid., p.7).
Para André Jolles
,
o conto, ao lado da legenda, saga, mito, adivinha, ditado, caso,
memorável e chiste, é uma “forma simples”, isto é, uma forma que
permanece através dos tempos, recontada por vários, sem perder
sua “forma” e opondo-se, pois, à “forma artística”, elaborada por um
autor, única, portanto, e impossível de ser recontada sem que perca
sua peculiaridade. (1976, p.17-18)
O conto, como uma das “formas simples”, é mencionado por Walnice
Nogueira Galvão, no ensaio “Cinco teses sobre o conto”:
O conto é, [...], definido, antes de mais nada, pela ação de contar; e
desse modo, vem a incorporar as “formas simples”, que persistem
ainda a seu lado como suas irmãs. Percebe-se melhor o percurso
histórico do conto em obras mais antigas, seja nos contos que são
contados um a um nas modalidades aditivas da ficção, como as Mil
e uma noites, o Decamerone, os Contos de Canterbury, seja nos
contos intercalados na Ilíada e na Odisséia. (GALVÃO, 1989, p. 167)
A crítica observa que a noção moderna de conto está ligada à implantação da
indústria editorial, sendo esse gênero apresentado em periódicos e livros. Nessa
nova versão, os contos podem ser classificados em dois grupos: os de enredo e os
de atmosfera.
Os contos de enredo destacam a “unicidade de situação, desfecho
25
determinante” e preocupação em apresentar informações ao leitor. os contos de
atmosfera primam pela “sugestão do ambiente” e a “criação de estados de espírito”
(GALVÃO, 1989, p. 169-170)
Um dos maiores criadores dos contos de enredo é Edgar Allan Poe, que
também é destacado por discutir sobre o conto breve. Citemos o autor norte-
americano:
No conto breve, o autor é capaz de realizar a plenitude de sua
intenção, seja ela qual for. Durante a hora da leitura atenta, a alma
do leitor está sob o controle do escritor. Não nenhuma influência
externa ou extrínseca que resulte de cansaço ou interrupção (Poe
apud Gotlib, 2004, p.34).
A intensidade é um dos maiores atributos do conto breve, como nota lio
Cortázar, em “Alguns aspectos do conto”:
O que chamo intensidade num conto consiste na eliminação de
todas as idéias ou situações intermédias, de todos os recheios ou
fases de transição que o romance permite e mesmo exige. Nenhum
dos senhores terá esquecido “O tonel de Amontilado”, de Edgar
Allan Poe. O extraordinário deste conto é a brusca renúncia a toda
descrição de ambiente. Na terceira ou quarta frase estamos no
coração do drama, assistindo ao cumprimento implacável de uma
vingança. (Cortázar, 2004, p. 157).
Cortázar compara o romance com o conto, fazendo uma analogia entre os
dois tipos de composição:
Nesse sentido, o romance e o conto se deixam comparar
analogicamente com o cinema e a fotografia, na medida em que um
filme é em principio uma “ordem aberta”, romanesca, enquanto que
uma fotografia bem realizada pressupõe uma justa limitação prévia,
imposta em parte pelo reduzido campo que a câmara abrange e pela
forma com que o fotógrafo utiliza esteticamente essa limitação
(CORTÁZAR, 2004, p. 151).
26
Para Massaud Moisés, o conto
é uma narrativa unívoca, univalente: constitui uma unidade
dramática, uma célula dramática, visto gravitar ao redor de um
conflito, um só drama, uma só ação. Caracteriza-se, assim, por
conter unidade de ação, tomada esta como a seqüência de atos
praticados pelos protagonistas, ou de acontecimentos de que
participam. A ação pode ser externa, quando as personagens se
deslocam no espaço e no tempo, e interna, quando o conflito se
localiza na mente. (MOISÉS, 2001, p. 40)
Várias teorias foram construídas ao longo da história com o objetivo de
conhecer e explicitar o arcabouço literário do gênero conto. Assim, esta forma
narrativa recebeu inúmeras nomenclaturas por seus estudiosos: maravilhoso,
fantástico, metafísico, erótico, cômico, trágico, de amor, etc. Este fato comprova que,
mesmo adquirindo estruturas e teorias diferenciadas da sua origem, essa forma de
narrar continua despertando a atenção dos seres humanos, tanto quanto acontecera
nos tempos iniciais.
.
27
1.2 A INSERÇÃO DO GÊNERO CONTO EM SOLO PORTUGUÊS
As primeiras manifestações literárias registradas em solo português,
pertencem ao gênero lírico: as cantigas trovadorescas de amigo e de amor. Essas
produções são localizadas no período medieval, momento de construção da cultura
portuguesa.
O conto levou mais tempo para impor-se na Literatura Portuguesa do que nas
outras literaturas européias, nas quais que desde os séculos medievais, era uma
modalidade narrativa presente e marcante. Enquanto na Espanha, França, Inglaterra
e Itália, o conto era cultivado e expressivo, em Portugal havia apenas formas
embrionárias.
Todavia, a escassez do conto no período medieval português não significa
que este não tivesse algumas produções que se avizinhassem do gênero. No século
XVI, surge o primeiro contista português Gonçalo Fernandes Trancoso, que
escreveu “Contos e Histórias de Proveito e Exemplo”, inaugurando a trajetória
escrita desse gênero em solo lusitano. Esses textos foram baseados em contos
populares com um propósito didático-moralizante, sob a influência de alguns
escritores como, por exemplo, Boccaccio, cujas obras revelam um prosador
espontâneo, mas firme em seus objetivos estético-moralizantes.
No advento da Estética Barroca em Portugal (1580-1756), o conto foi
escassamente praticado, devido ao impacto dos padrões estéticos daquele
momento.
Segundo Moisés (1995, p.13), “Misto de conto literário e fábula, o conto
barroco ainda se prende às matrizes pré-renascentistas”. É nessa estética que
alguns estudiosos intentam elaborar a primeira teoria do conto no idioma vernáculo.
No Arcadismo (1756-1825), não há grande desenvolvimento da produção de
conto, uma vez que esse movimento literário é baseado na poesia. Neste momento,
a prosa de ficção é representada pelo Feliz Independente do Mundo e da Fortuna,
do Padre Teodoro de Almeida, e pelas Aventuras de Diófanes (1752), de Teresa
Margarida da Silva e Horta, ambas novelas de cunho moralizante.
Citando Moisés (Ibid., p.15),
Ainda que tivesse de aguardar o Realismo para, desligando-se de
28
suas raízes folclóricas, erigir-se em obra de arte tão válida quanto o
romance e a novela, o conto entrou a ser amplamente cultivado no
Romantismo. [...]Duas linhas de força podem ser notadas, a
historicista e a popular, na primeira das quais se enfileiram escritores
como Alexandre Herculano e as Lendas e Narrativas (1851),
centradas na Idade Média e cujo intuito de reconstituir o quadro
histórico que serviu de berço à nacionalidade não raro exibe a livre
expansão da fantasia criadora.
Alexandre Herculano seguiu uma linha mais historicista. Mesmo havendo
incompatibilidade entre o historicismo e a ficção, é dessa mistura que nasce
narrativas antológicas do conto romântico em Portugal.
No século XIX, essa forma literária se expande por meio da pena de seus
seguidores. Alexandre Herculano compilou os “Nobiliários” em “Portugaliae
Monumenta Histórica”, essa coletânea reúne alguns dos poucos exemplares da
contística esparsa que restou da prosa do português arcaico.
Esses textos foram escritos como “casos” ou “exemplos”, conforme apontado
por Massaud Moisés (1995, p.13). Em certa medida, esses textos enquadram-se
acidentalmente no gênero, pois visavam a moralidade além de se aproximarem da
fábula e de recorrerem ao maravilhoso.
Juntam-se aos “Nobiliários” duas outras coletâneas que mostram a presença
do conto português medieval. Trata-se do “Horto do Esposo” (XIV) e “Castelo
Perigoso” (XIV). Esses escritos trazem estruturas muito próximas à do conto e
também seguem as mesmas intenções moralizantes de caráter cristão.
A estética realista foi o movimento literário no qual a estrutura do conto obteve
terreno infenso ao seu desenvolvimento. A partir dessa escola literária, o conto
adquiriu vínculo mais forte do que o romance, com destaque, em Portugal, para o
escritor Eça de Queiroz que construiu exemplares dignos de serem comparados aos
grandes contistas de outras nações.
No período simbolista, o conto português repercutiu a tendência geral de se
relacionar a obra de arte com material para consumo, à maneira do teatro ligeiro ou
outras atividades, utilizadas, apenas, com o intuito de divertir o povo.
Observando em solo europeu a transição do século XIX para o XX sob a ótica
dos “ismos”, constatamos que essa fase foi marcada pela atividade lírica na qual a
29
geração do Orpheu deu a tônica modernista na Literatura Portuguesa. Corresponde
a esse momento um acentuado esmorecimento na atividade em prosa, à medida
que os construtores da ideologia do Orpheu estavam preocupados com o fazer
poético em verso, segundo a concepção de Fernando Pessoa: o poeta é um ser
“fingidor”. Os escritores que compartilharam com esse propósito e arriscaram
produzir contos, o fizeram sob a perspectiva da poética e prosística, de onde
supomos a elaboração de prosa poética.
Com a geração da Presença (1927-1940), o conto foi trabalhado com mais
ênfase, constituindo, assim, o ponto de resistência dessa geração. Esse gênero foi
elaborado de forma tão peculiar que possibilitou elevar os seus prosadores à
categoria de mestres dessa tipologia textual na Literatura Portuguesa.
A estética neo-realista que se inaugura a partir de 1940 têm no romance a
forma mais utilizada para inscrever as questões sociais revisitadas por essa escola.
Essa escolha de gênero literário deve-se ao fato de que seus teorizadores preferiam
uma tipologia mais extensa na qual fosse possível debater uma série de mazelas da
sociedade. Entretanto, isso não significa que os escritores representantes desse
período não tenham cultivado o conto como forma de elaboração fictícia.
Nesse contexto, Moisés (1995, p.27) esclarece que
à medida que nos aproximamos dos nossos dias, a visão da
realidade vai-se tornando embaçada, impossibilitando as
discriminações esclarecedoras. (Uma) Parte da dificuldade provém
de as tendências anteriores continuarem presentes, como tais ou
miscigenadas às novidades do momento. (Outra) Parte resulta do
confuso entrelaçamento das possibilidades estéticas nos últimos
vinte anos: não raro ficcionistas se contagiaram, no fio de sua
trajetória e até mesmo dentro de uma única obra, por soluções
díspares ou contraditórias.
30
1.3 OS CONTOS FLORBELIANO
Diante desse passeio pelo círculo contista português, verificamos que o nome
da escritora Florbela Espanca, sequer fora citado. O silêncio dos críticos em relação
à mesma perdura desde o seu nascimento literário. E, quando o fazem, é, somente,
pela análise dos seus versos e de sua biografia. Sua prosa continua na berlinda.
Adentraremos este universo para verificarmos a pertinência de sua escrita sob a
ótica do discurso crítico atribuído à sua prosa de ficção.
Antes de tratarmos especificamente das narrativas de Florbela Espanca, é
preciso refletir, abreviadamente, sobre um aspecto mais geral: a questão da
Literatura.
A literatura é um fenômeno da linguagem que se constitue em formas de
metáforas. São formas que transcendem o real; imagens que provocam a libertação
da realidade; textos que funcionam como esculturas verbais:
A literatura goza de um estatuto particularmente privilegiado no seio
das atividades semióticas. Ela tem a linguagem ao mesmo tempo
como ponto de partida e como ponto de chegada; ela lhe fornece
tanto sua configuração abstrata quanto sua matéria perceptível, é ao
mesmo tempo mediadora e mediatizada. A literatura se revela
portanto não só como o primeiro campo que se pode estudar a partir
da linguagem, mas também como o primeiro cujo conhecimento
possa lançar uma nova luz sobre as propriedades da própria
linguagem (TODOROV, 2004 , p. 54).
Nesse campo de construção textual, Florbela caminhou pelo mundo poético,
mundo este em que prosa e poesia se fundem criando cenários propícios para o
deleite da linguagem, dissolvendo, desta forma, as fronteiras entre os gêneros
literários citados.
Renata Junqueira (2003, p.18) afirma, em relação a Florbela, que:
quer a sua poesia, quer a sua ficção narrativa, quer ainda a sua
prosa confessional (diários e cartas), aparecem marcadas pelo
preciosismo de flores diversas, de fúlgidos brocados, de diamantes
31
e outras gemas cintilantes que ornamentam um cenário em que
sempre se apresentam cenas melodramáticas, contrastes
artificiosos, exageros às vezes surpreendentes e máscaras
frequentemente compostas com o auxílio oportuno do biografismo.
Essas máscaras do biografismo encobrem uma outra realidade: a da ficção
literária que a escritora soube construir com maestria. Florbela Espanca, esculpiu
sua narrativa pautada no lirismo, nos símbolos, na dramaticidade, na voz do seu
narrador que se ergue das páginas para convidar o leitor a enveredar pelo destino
de cada personagem.
Percebemos esse chamamento no primeiro contato com a obra a partir do
seu tulo As Máscaras do Destino. Nessa nomeação a contista utiliza em sua
constituição dois signos lingüísticos de forte expressão temática. Máscaras são
disfarces, ato de ocultar, não revelar, camuflar. Destino relaciona-se ao campo
antropológico do ser, é a reta final a qual o ser humano chegará, ou seja; a morte.
Segundo Chevalier (
1991, p. 598),
[...] O símbolo da máscara se presta a cenas dramáticas em contos,
peças, filmes, em que a pessoa se identifica a tal ponto com o seu
personagem, com a sua máscara, que não consegue mais se
desfazer dela, que não é mais capaz de retirá-la; ela se transforma
na imagem representada.
Nos contos de Florbela, os disfarces, ou seja, as máscaras da morte são
várias, tendo como pano de fundo a perda amorosa, o sofrer de amor, o lirismo
herdeiro do ultra-romantismo. Contudo, nenhum dos disfarces impede a instauração
da morte, uma vez que esta narrativa foi inspirada em uma situação verídica.
A particularidade da obra vem anunciada na sua dedicatória: “A meu irmão,
ao meu querido Morto” (p.31). A letra “m” em maiúsculo, valoriza e explicita o morto
entre os demais. “Este livro é dum Morto, este livro é do meu Morto. Que os vivos
passem adiante...”(p.33). Nessa dedicatória, Florbela parece renunciar os seus
leitores deixando para eles, apenas, o legado de agentes divulgadores do seu
desejo sepulcral.
Segundo Renata Junqueira (2003, p.77),
32
[...]mais importante (na obra) será a percepção do tema subjacente,
que se instaura numa camada semântica menos aparente dos
contos. Trata-se da transfiguração da identidade das personagens
que apenas vivem em função dos seus mortos queridos. Por força
de uma saudade e de uma evocação obsessivas, as personagens
vivas anulam-se para dar lugar aos mortos, que ganham assim uma
configuração real que se sobrepõe à realidade dos vivos. Gera-se,
pois, um mundo fantasmagórico em que se confundem o real e o
irreal: se os mortos são aqui figuras reais, os vivos são como figuras
de pedra que se deixam paralisar pela lembrança dos mortos.
Assim, os vivos são mortos e os mortos são vivos: as identidades
interpenetram-se e sugerem ao leitor um jogo de máscaras
cambiantes [...]
Essa transfiguração de identidades sugerida na dedicatória, parece migrar a
autoria da narrativa de Florbela para Apeles que se faz presente no momento da
escritura:
A sua sombra debruçou-se sobre o meu ombro, no silêncio das
tardes e das noites, quando a minha cabeça se inclinava sobre o
que escrevia. [...] Seguiu o esvoaçar da pena sobre o papel branco;
[...] sublinhou a emoção da idéia, o ritmo da frase, a profundeza do
pensamento.
Bastar-me-ia voltar a cabeça para o ver...
(ESPANCA, 1998, p.33)
Essa presentificação imaginária acentua a poesia do discurso Florbeliano, ao
construir no corpus escolhido a aventura do eu romântico que malogrado o amor,
entrega-se à morte. Todas as narrativas da obra são construídas numa atmosfera
fúnebre, mas concomitantemente, impregnadas de um lirismo que confere aos
contos laivos de poesia.
O vocábulo “lirismo” apareceu no interior do Romantismo francês, designando
o caráter acentuadamente individualista e emocional, assumido pela poesia lírica a
partir do século XIX. No período simbolista-decadentista, foi utilizado para nomear
33
narrativas de fundo introspectivo: narrativas líricas ou prosa poética. Pereira (2003,
p.237) diz que, “nAs Máscaras do Destino, é a sensibilidade, como é próprio da
novelística neo-romântica, que tende a determinar a mundividência”. Essa
sensibilidade cria um esteio dentro do mundo narrativo florbeliano; alimenta
personagens, narrador e fortalece o elo entre o leitor e o texto à medida em que a
trama vai se desenrolando.
Nessa atmosfera que domina As scaras do Destino, o narrador à
semelhança do eu poético seduz o leitor com uma linguagem de encantamento, ao
relatar a fábula das personagens. Inseridos nesse universo de máscaras textuais,
verificamos a junção dessa personalidade poética com o agente narrativo.
Sobre o “eu” do discurso, citemos Todorov (apesar de ser extensa,
necessário),
A narrativa literária, que é uma palavra mediatizada e não imediata e
que sofre além disso os constrangimentos da ficção, conhece
uma categoria “pessoal” que é a terceira pessoa, isto é, a
impessoalidade. O que diz eu no romance não é o eu do discurso,
por outras palavras, o sujeito da enunciação; é apenas uma
personagem e o estatuto de suas palavras (o estilo direto) lhe o
máximo de objetividade, ao invés de aproximá-la do verdadeiro
sujeito da enunciação. Mas existe um outro eu, um eu invisível a
maior parte do tempo, que se refere ao narrador, essa
“personalidade poética” que apreendemos através do discurso.
Existe pois uma dialética da pessoalidade e da impessoalidade entre
o eu do narrador (implícito) e o ele da personagem (que pode ser
um eu explícito), entre o discurso e a história. Todo o problema das
“visões” está aqui: no grau de transparência dos eles impessoais da
história com relação ao eu do discurso (2004, p.61 – 62).
A aproximação poesia/prosa remonta à Antiguidade greco-latina. A prosa
literária como gênero é historicamente posterior à poesia. Assim sendo, foi pela
concessão de caracteres dessa última que a prosa poética se constituiu.
Massaud Moisés (2001, p.22) afirma que
Tão profundamente se operou a simbiose dos dois gêneros ao longo
34
da hegemonia simbolista que nenhuma obra em prosa escapou do
seu fascínio: o século XX prolongará, com todas as mudanças de
rumo decretadas pelo advento das vanguardas, a aliança entre a
prosa e a poesia.
Situada, por alguns críticos, dentro da estética simbolista-decadentista, a
prosa de Florbela opera uma simbiose entre os gêneros: prosa e poesia, mostrando
a desenvoltura da escritora em caminhar por tais universos. Sua escritura é
composta por vocábulos caracterizados, às vezes, como “pessimistas”, “preciosos” e
“ornamentais”. A bula amorosa do texto, a relação morte/vida sem fronteiras, a
descrição minuciosa do ambiente, o apelo do narrador ao buscar no leitor um
confidente para as suas indagações e a linguagem utilizada concorrem para
assegurar um caráter poético da obra.
Florbela, ao se isolar do mundo moderno, imprimiu em sua obra
características do Simbolismo-Decadentismo como mola propulsora da sua veia
artística. Seu universo singular não foi circundado pelas vantagens do esteio
capitalista. Ela cobriu-se com máscaras para se proteger dessa ambiência que
julgava nociva. Sobre esses disfarces, Daiches comenta que
O mundo de máscaras em que o escritor então se projeta
radicalmente parece protegê-lo da hostilidade do mundo real que o
oprime, ao mesmo tempo que compensa a perda de identidade que
lhe advém daquela mesma hostilidade. [...] O artista
decadentista/simbolista/impressionista tem lugar apenas como
“palhaço artificial” da burguesia industrial (1967, p.351).
Nessa ambiência de scaras sociais, surgiram algumas vozes femininas na
Literatura Portuguesa; as obras produzidas por elas foram nomeadas pela crítica
vigente como “literatura cor-de-rosa ou “panegíricos da alma adolescente” de
senhoras livres, desocupadas. Dessa forma, os críticos desse momento adotaram a
veia biográfica para analisar essas produções. Confundida com tais “senhoras”,
Florbela tem a sua produção literária encarcerada nas grades do biografismo. Esse
ponto de vista configura um dos paradoxos mais apontados na leitura da obra
florbeliana. É por meio do exaltamento do “eu” poético dos seus textos em versos
que críticos como Agustina Bessa-Luís (citada na Introdução), procura de forma
35
alucinada, a substituição da voz do narrador pela voz particular da escritora Florbela.
Maria Lúcia Dal Farra (2002, p.75) diz que “a crítica que tem se ocupado dos
contos de Florbela tende, em geral, a depreciá-los diante da sua obra poética”. Essa
depreciação deve-se aos olhares empenhados, apenas, no biografismo, ao não
entendimento do texto ficcional que pode se espraiar sobre qualquer temática e
gênero textual. Esses críticos dizem que “seus contos nada trazem de original, pois
que suas personagens o enrijecidas por uma visão formal e tradicionalista,
convencionalista até, muito diversa daquela que Florbela a conhecer nos seus
poemas”.
Agustina Bessa-Luís (As scaras do Destino, prefácio da edição de1998,
p.19-22) diz que Florbela,
para quem a memória é uma persuasão e não uma vontade moral,
escreve contos formais para ignorar o seu formidável gosto de
desagradar. [...] Por isso, essas história melífluas, a simpatia dum
estilo róseo, a expressão lógica e sensata dos conceitos. Ela teme
ser original, porque a sua originalidade é a Medusa que paralisa os
homens e os torna temerosos. Temos que ler As Máscaras do
Destino com a confiança amigável que nos merece o diário duma
adolescente, em que certa mediocridade talentosa anuncia os
desejos que se evitam. Os contos são o que melhor conduz o seu
mapa biográfico. São disfarces duma memória triste; são lago de
esquecimento que espelha o rosto em pranto.
Nessa perspectiva das reflexões citadas Lívia Apa (apud Dal Farra, Ibid.,
p.75), crítica portuguesa daquele século, evidencia esse aspecto biográfico,
destituindo, assim, o valor literário da prosa florbeliana. A estudiosa diz que
Florbela produz situações monótonas em que demonstra escassa
habilidade na construção de narrativas, e em que a técnica é pouco
elaborada, visto que o narrador ali intervém de maneira
melodramática. O léxico da prosa florbeliana é rebuscado e de
adjetivação excessiva; todavia, malgrado toda esta camuflagem,
eles acabam por deixar transparecer um estado de melancolia e de
frustração, uma visão dolorosa e desencantada da vida, uma
36
incapacidade em se contactar com a realidade, com o mundo social
à volta.
Esta estudiosa não compreende a construção desses textos, não percebe que
o rebuscamento de linguagem enfatizado por sua observação faz parte de uma
estratégia de construção da narrativa, estrutura esta muito utilizada pelos escritores
da época de Florbela. Outro fator que depõe contra as observações de Lívia Apa é
tentar transferir para o texto literário a função de retratar a realidade, o mundo social
a sua volta.
Para Seabra Pereira (apud. Dal Farra, p.76) ocorreriam nas narrativas de
Florbela,
coincidências inverossímeis, retratos inconvicentes, aprisionamento
dos personagens pela ótica do narrador e um pendor declamatório à
maneira da ficção neo-romântica, que explora os ambientes
outonais, a visão desencantada, o cariz fatalista da realidade, enfim,
a visão negativista da existência humana.
Todos esses pré-conceitos imputados à obra florbeliana só reforçam a tese do
desconhecimento da estrutura narrativa e ficcional de suas obras. Numa outra
perspectiva de estudo, Renata Soares Junqueira elabora uma análise comparativa
das obras em prosa de Florbela: O Dominó Preto e As Máscaras do Destino, com as
obras A Engomadeira de Almada Negreiros, A Confissão de Lúcio e A Grande
Sombra de Mário de Sá-Carneiro, e ainda O Livro do Desassossego, de Fernando
Pessoa, todos participantes do movimento Orpheu. Renata assegura que estes
escritores constrõem com suas obras uma estética da teatralidade. Cada escritor
criaria seu mundo ficcional, teatralizado, para se afastar do cotidiano:
É no ‘alheamento de uma ação’ que nasce a estética da teatralidade
tendo em vista a construção de um mundo artificial que compense o
artista das suas frustrações com a realidade que o circunda. É na
esfera da arte, no universo estético que se apresenta ao artista fin
de siècle como uma espécie de palco construído paralelamente ao
cenário da vida real é que se vai projetar toda e qualquer ação,
que agora tende a ser, frequentemente, apenas imaginação (Adolfo
37
Casais Monteiro apud Junqueira, 2003, p.24).
Para Yvette Kace Centeno, no prefácio à obra O Dominó Preto (1982, p. 11-
14), Florbela é “incapaz de transmitir às mulheres dos seus contos algo que lhe
pertença, que as torne a elas mais vivas, mais complexas. Retrata apenas a imagem
social a que foi habituada, e que nós gostaríamos de vê-la contestar”. É por meio do
discurso de Florbela, agora despido de paixão e descontentamento que outrora fora
concretizado nos textos em verso, que agora “fala o pretenso equilíbrio da mediania
burguesa e da sua moral de aceitação e obediência cega”.
Centeno, como os demais críticos, nessa obra, apenas, a recriação do
mundo social-burguês do qual a contista fazia parte, ressaltando que esses textos
literários sofrem de engajamento social na luta para emancipação do papel feminino
na sociedade vigente. Segundo sua expectativa, a obra literária serviria de veículo
para disseminação dos ideais de uma classe que buscava seu reconhecimento num
momento de auto-afirmação. O valor dos textos como ficção é negado em prol dessa
luta de valores éticos e morais.
Diante de argumentos como os citados, empreendidos pela crítica que se
ocupou da obra de Florbela, constatamos que a maior parte das investigações foram
concebidas a partir de idéias pré-estabelecidas propícias ao ambiente daquele
momento: o biografismo. Infelizmente, essa ideologia ainda permanece na mente
daqueles que não sabem diferenciar a obra literária de um relato pessoal. No corpus
em estudo, percebemos uma estrutura linguageira mantenedora da obra de Florbela
dentro dos anseios do texto literário: figuras de linguagem; metáforas, sinestesias,
anáforas, o uso dos sinais gráficos como forma de subjetivação do discurso, relação
narrador-personagem, tempo, espaço e uma captação do leitor, envolvendo-o na
teia da fábula narrada.
38
CAPÍTULO II
A POÉTICA DO AMOR E DA MORTE
Morte, minha Senhora Dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce laço
E, como uma raiz, sereno e forte.
Não há mal que não sare ou não conforte
Tua mão que nos guia passo a passo,
Em ti, dentro de ti, no teu regaço
Não há triste destino nem má sorte.
Dona Morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!
Vim da Moirama, sou filha de rei,
Má fada me encantou e aqui fiquei
À tua espera... quebra-me o encanto!
(Florbela Espanca, “A Morte”
In: Reliquiae, 1931)
39
Como fora dito, as personagens de Florbela sofrem de um “amor”
indissolúvel que transpõe as fronteiras da vida e da morte para que esse sentimento
não se extinga. O amor; essa poção mágica, sempre habitou as manifestações
literárias ao longo dos séculos. Reprimido ou exaltado, ele inspirou as mais belas
histórias fictícias de que se têm notícias. Vitorioso ou malogrado, codificado ou
vivenciado, todas as personagens que o representaram não refutaram o destino que
esse sentimento encaminhou: a morte.
2.1 EROS E PSIQUE: ENCONTROS & DESENCONTROS
Nosso objetivo nesse capítulo é teorizar o amor e exemplificá-lo por meio do
discurso daqueles que se preocuparam em seguir seus rastros. Na simbologia de
Chevalier (2003, p.46), encontramos esse sentimento sob o discurso mítico do
nascimento do Amor “Eros, filho de Afrodite e de Hermes, possui uma natureza
dupla: pode ser filho de Afrodite Pandêmia, deusa do desejo brutal, ou da Afrodite
Urânia, que é a deusa dos amores etéreos”. O drama mítico entre Psique e Eros
enfatiza o embate entre a alma e o amor, neste universo tão desconhecido da
humanidade. Citaremos, aqui, uma passagem da história mítica de Eros e de sua
pajem Psique.
Jovem cuja beleza sobrepuja a das mais belas, Psique não
consegue encontrar noivo: sua excessiva perfeição amedronta.
Seus pais, desesperados, consultam o oráculo: é preciso ataviá-la
com vestes de casamento e expô-la sobre um rochedo, no cume da
montanha, onde um monstro virá tomá-la por esposa. No meio de
um cortejo fúnebre, conduzem-na ao lugar designado, onde fica
sozinha. Dentro em pouco, um vento leve transporta-a pelos ares
até o fundo de um extenso vale, para um palácio magnífico onde
vozes se põem ao seu serviço como se fossem escravos. À noite,
sente a proximidade de uma presença, mas não sabe quem é. É o
marido a quem o oráculo se havia referido; mas ele não se identifica;
40
simplesmente adverte-a de que, se ela o vir, o perderá para sempre.
Dias e noites se passam assim no palácio, e Psique sente-se feliz.
Como, porém, deseja rever os pais, obtém permissão de passar
alguns dias perto deles. chegando, suas irmãs, ciumentas,
despertam-lhe a desconfiança; de regresso a seu palácio, à luz de
uma lâmpada, ela adormecido a seu lado um belo adolescente.
Ai! a mão de Psique treme: uma gota de azeite escaldante cai da
Lâmpada sobre Eros! O Amor, assim descoberto, desperta e foge. E
é então que começam as desventuras de Psique, vítima da cólera
de Afrodite que lhe impõe tarefas cada vez mais difíceis a fim de
atormentá-la. Mas Eros não consegue esquecer Psique; ela
também o pode olvidar. Eros obtém de Zeus o direito de desposá-la.
Psique torna-se sua mulher, reconciliando-se com Afrodite (Ibid.,
p.47).
Nessa perspectiva mítica, Eros simboliza o amor e Psique representa a
personificação da alma na busca de conhecer e apreender esse amor fugidio. Ao
revelar sua face, Eros foge, e a alma, tão desejosa ,parte em busca do amado,
adentrando o Inferno, onde é presenteada por Perséfone com um frasco de água da
juventude. Esse ato significa que depois de toda a expiação do mal que as ações de
Psique causaram a Eros, ela passará por um processo de renovação: Psique,
adormecida, é despertada com uma flecha lançada por Eros que, também a buscava
por todas as partes. Eros, ser desejante do gozo, busca na alma Psique, sua
completude, sua realização e infinitude.
Após essas considerações iniciais sobre o mito do amor, abordaremos a
temática do “amor cortês” fundamentado nas teorias que o aprovam como primeira
manifestação lírica do amor em solo cristão.
41
2.2 AMOR CORTÊS: ILUSÃO OU CRIAÇÃO DO IMAGINÁRIO MEDIEVAL
Amor Cortês foi um código social utilizado na Europa Medieval para
denominar certas atitudes diante do amor. Enaltecido de tal forma, esse sentimento
influenciou na criação de manifestações literárias de grandes significâncias para a
História da Literatura Ocidental, as Cantigas Trovadorescas do gênero lírico: ou
cantigas de amor. Nelas, o “eu” lírico masculino exaltava o seu sentimento a uma
mulher que era chamada respeitosamente de “mia senhor” ou “mia Dama”. Dentro
de um código de vassalagem amorosa a essa Dama, o trovador dirigia seus
reclamos de amor numa tentativa de sedução dessa senhora. A mesma, no entanto,
deveria manter-se fiel ao seu senhor/marido e resistir aos embates dos cantares do
amante.
Esse código de amor surgiu por volta do século XII nas cortes das regiões
que pertencem a França atualmente. Essa cortesia pregada pelos seus praticantes
trazia em sua base uma situação paradoxal: o desejo erótico inscrito nas cantigas ao
lado de uma busca espiritual, elevando a dama, algumas vezes, a categoria do
divino, do transcedente.
A expressão amour courtois "amor cortês", foi utilizada por Gaston Paris em
um artigo escrito em 1883, "Études sur les romans de la Table Ronde: Lancelot du
Lac, II: Le conte de la charrette", um estudo no qual ele analisa a obra Lancelote, o
Cavaleiro da Carreta (1177) do escritor Chrétien de Troyes. O amour courtois de
Paris era uma disciplina nobre e fantasiosa.
Gaston Paris divulgou o termo “amor cortês” no século dezenove, e daquele
tempo até os dias atuais, essa nomenclatura tem sido aplicada a várias definições e
usos para falar de um amor concebido dentro de uma estrutura social bem definida:
o feudalismo.
Nessa sociedade, o coração do amante representaria um feudo para sua
Senhora. Ela detinha o poder da rigidez, da moral e da ética amorosa. Situando-se
no alto da pirâmide, que representa a estrutura feudal do medievo, essa Dama tinha
na figura do amante a simbologia do seu escravo sexual, mesmo que essas relações
42
não passassem do plano da inspiração, desejo e espiritualidade da situação
apresentada. Esse amante convivia com a liberdade da dama e procurava colocar-
se à altura dos seus desejos, realizando de maneira nobre todos os seus pedidos,
fosse de caráter sexual ou não.
Gaston Paris teve sua nomenclatura “amor cortês” adotada por outros
estudiosos. C. S. Lewis, em 1936, escreveu The Allegory of Love, fundamentando o
amor cortês como "amor de um tipo altamente especializado, cujas características
podem ser enumeradas como Humildade, Cortesia, Adultério e a Religião do Amor".
Logo depois de Lewis, outros estudiosos da cultura medieval se interessaram
por analisar o apregoado “amor cortês”, considerando-o uma invenção moderna,
imprópria para a época do medievo, uma vez que essa ideologia o encontrava
fundamentação nos textos da cultura feudal.
Sobre essa origem, levantaram várias dúvidas, assim como a veracidade do
seu uso pela sociedade daqueles séculos. Os historiadores encontraram a
expressão “cortez amors”, apenas em um poema da região de Provença (França
atual), datado dos fins do século doze, escrito pelo trovador Peire d’Alvernhe. Eles
identificaram uma ligação semântica com a expressão fin’amor – “gentil amor”, muito
utilizada nas cantigas em provençal, francês e alemão (hohe Minne). Outras
expressões com a mesma significação foram verificadas por estudiosos que
buscaram esclarecer a fragilidade das concepções de Gaston Paris mas, eles
perceberam que, por associações de alguns vocábulos, a idéia de cortesia no plano
amoroso não era tão estranha ao cotidiano daquele povo.
Um paradoxo observado pelos historiadores diz respeito a aplicação desse
ideal de cortesia: ou o “amor cortês” era praticado no cotidiano daquelas pessoas,
como um código estruturador da sociedade, ou essa ideologia se inscrevia, apenas,
no universo do texto literário.
Segundo o Livro das Três Virtudes (1405) de Christine de Pizan, o código da
cortesia era utilizado de forma errônea para encobrir atos inescrúpulosos como os
relacionamentos ilícitos e adúlteros. Alguns historiadores do século XIXcomprovaram
a existência das “cortes de amor”, ou seja; tribunais femininos, nos quais as
43
mulheres “Senhor” apresentavam seus problemas amorosos para serem julgados de
acordo com as regras do “amor cortês”. Logo depois, John F. Benton observou que
"nenhuma das abundantes cartas, crônicas, canções e dedicatórias pias" sugeriam
que esses tribunais tenham existidos fora da literatura poética. Benton propõe,
então, que esses tribunais pudessem ser analisados como se fossem encontros para
essas senhoras apresentarem seus conflitos amorosos por meio da veia poética, ou
seja, os saraus femininos.
A gênese do mito do amor na, Cultura Ocidental Cristã, inicia-se com a
história de Tristão e Isolda. A lenda dos amantes celtas das terras da Cornualha,
divulgada no culo XII, é o primeiro modo de celebração do amor. Ela se inscreve
com o surgimento do “amor cortês” e as trovas/cantigas corteses.
A história de Tristão e Isolda e as trovas corteses constituem nossa herança na
busca do conhecimento desse “objeto”, que é o amor como sentimento indecifrável.
Esse caminho que inaugura a origem da representação se faz herdeiro de uma
Idade Média amorosa, na qual a literatura e a cultura estão alicerçadas por um
código de convenção social: o amor cortês, amor apaixonado, provençal.
Para J. Le Goff (1983, p.116), o amor cortês revelou-se
um combate que tendia a revolucionar não só os costumes como a
própria sensibilidade. Reclamar a autonomia dos sentimentos e
pretender que podia haver entre os dois sexos relações diferentes
das do instinto, da força, do interesse e do conformismo eram coisas
em que havia muito de verdadeiramente novo.
Amar à moda cortês se configura, então, como uma forma moderna de falar
de sentimentos entre os sexos opostos, fora das alianças dos casamentos por
interesses financeiros. Essa nova energia, que aqueceu a cultura medieval a partir
do século XII, possibilitou a criação de um sentimento idealizado, domesticado
dentro dos muros dos castelos e exibidos nos saraus. O sentimento deslocou-se da
esfera da cavalaria viril e guerreira, da amizade entre cavaleiros, para uma
atmosfera mais plangente, na qual o ser desejante (o amante) proclama o paradoxo
da ideologia cortês: a “felicidade” por estar “sofrendo” de amor; a coita de amor.
J. Le Goff, acrescenta que
44
o amor cortês soube encontrar o miraculoso equilíbrio da alma e do
corpo, do coração e do espírito, do sexo e do sentimento. [...] o amor
cortês continua sendo o dom imperecível que, [...] aquela
civilização(medieval) deixou à sensibilidade humana. (1984, p.117).
Fingimento ou o, observamos que esse sentimento está na base das
histórias de amor concretizadas pelas mais diversas obras literárias do Ocidente
Cristão. Retomando Tristão e Isolda, o cavaleiro amante jamais obstruiu as regras
da cortesia. Foi fiel a sua “senhor” até a morte. Ela, por sua vez, também, não fugiu
dos padrões que estruturavam essa convenção amorosa. Ambos desposaram outras
pessoas, mas nunca deixaram de se amar, visto que a ideologia da cortesia era
fundamentada no ato de “estar amando”.
Para J. M. Wisnik a “peculiaridade do amor de Tristão e Isolda, as
características dessa paixão exaltada”
prefiguram o campo de uma poética onde o sentimento do paradoxo
e o trânsito sutil ou declarado entre as fronteiras do profano e do
sagrado, do sexo e da ascese, darão margem à grande poesia de
Dante e Petrarca e John Donne e toda a poesia barroca, passando
por Camões e Gregório de Matos
(1989, p. 215, apud. BRANCO,
1996, p.24).
Nesse campo propício para o cultivo das invenções sentimentais, no qual o
sagrado e o profano habitam o mesmo espaço, a poesia provençal germinou e
encontrou no imaginário medieval a face perfeita para a sua exibição. Essas
invenções percorreram os séculos. O estudioso Duby informa que “a lição do amor
cortês, do erotismo provençal, que associa o espírito cavaleiresco à idéia de amor e
põe o sentimento de comunhão espiritual no papel de excitante sexual, levou o
casamento de outros tempos a sofrer terríveis golpes”. Para “os amantes atuais o
pior dos crimes, pois é um crime contra o amor, é fazer amor sem amor” (1992, p.87,
apud., BOCCALATO, 1996.). Com essa ideologia, os trovadores medievais
construíram, com sua arte literária, uma nova concepção de amor que se entranhou
nos alicerces das culturas posteriores, moldando profundamente o arcabouço da
45
mentalidade ocidental.
Segundo Alexandrian (1993, p.41-4), a constatação de “uma gênese do “amor
cortês” atribuída a Guilherme IX”, como responsável pelo surgimento da rica de
cortesia, faz-se de forma muito “simplista” e equivocada, pois “Não se sabe onde,
quando e como nasceu o amor cortês. Entre suas influências, invocam-se
contraditoriamente, as canções de maio, a retórica latina da Idade Média e a poesia
árabe. Resolve-se a dificuldade fazendo sua história começar pelo primeiro
trovador”.
Outra forma simples de se resolver o problema da origem da prosa amorosa é
consagrar a história de Tristão e Isolda a primogênitude desse gênero. A versão
desses primeiros escritos deve-se à pena de Béroul, por volta de 1160, e a de
Thomas entre 1155 e 1160. Alguns estudiosos não comungam dessa resolução fácil
para a compreensão desse gênero. Lançando luz em outras fontes, eles buscaram
analisar toda a conjuntura social e seus fenômenos no rastro de um aclaramento
dessa gênese. Vejamos Solé (1992, p.82-88),
o erotismo cortesão construiu-se a partir de elementos emprestados
a seu meio de origem e à sua sociedade. A influência da poesia
neolatina dos estudantes, ‘os aprendizes errantes’, do século X é
longínqua. As influências muito variadas do folclore meridional, da
brilhante civilização árabe andalusa e da moral cavalheiresca estão
muito mais próximas. E, primeiramente, as tradições populares,
brincadeiras que fazem parte do mundo dos rústicos. No mês de
maio rapazes e moças vão aos bosques cortar ramos verdes para
ornamentar a igreja. Eles dançam nos campos, as saias flutuam ao
vento. ‘Eis o belo mês de maio, cada galanteador troca de amiga’,
diziam as canções de Languedoc. Maio é o mês do amor sensual,
da galanteria pré-nupcial. O casamento ocorrerá mais tarde [ ao lado
de] outro costume, vindo do norte, a ‘valentinagem’. Ele concede às
esposas à vista e no conhecimento dos maridos, toda a
familiaridade com um ‘Valentim’, o mesmo que galanteador. ‘Você
me terá amanhã; esta noite é do meu amante’, diz a mulher a seu
marido nas canções francesas. Adultério mais simbólico que real.
Na cultura árabe-andalusa, este autor salienta que a “sensualidade é menos
46
simbólica, é de fato vivida”.
Independente da sua origem, o “amor cortês” está na base da Literatura
Portuguesa. Com uma cultura imersa num lirismo infinito, os escritores/poetas
souberam representar, em seus textos em versos, esse amor de forma tão intensa
que os outros gêneros ficaram relegados a uma segunda categoria textual. Quer
seja pelos cantares de amor e amigo dos seus trovadores, quer pela veia poética de
Camões, Bocage, Florbela Espanca, Fernando Pessoa, etc., esse gênero se
constituiu como marco da História Literária de Portugal.
Com o advento da Estética Romântica na Europa, no século XIX, dá-se o
ritmo triunfante do amor-paixão, por meio de uma forma literária que irrompe os
salões europeus: o romance romântico. Destaca-se, em Portugal, a obra Amor de
Perdição de Camilo Castello Branco. Com seu drama à moda Romeu e Julieta, seus
protagonistas entregam-se à morte em nome de um amor impossibilitado por
questões familiares. Mas, não é em solo português que podemos encontrar tais
exemplares desse amor-paixão. Citemos os mais famoso dentro do mundo literário:
a história de Abelardo e Eloisa, Os Sofrimentos do Jovem Werther, os citados
Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, e o romance português Eurico, o presbítero.
Todas essas fábulas concorrem para demarcar um código que, mesmo
inscrito como ilusão ou criação de um período encoberto pelos mantos dos discursos
da História, reaviva essa “certeza” de o “amor cortês” elevou o que tinha de mais
bonito no imaginário daquela sociedade feudal: o amor.
47
2.3 NA CORTE DE EROS E THANATOS
Acostumado a habitar os mais recônditos lugares da alma, o erotismo marca
seu espaço na cultura cristã desde o mito adâmico que trata do pecado original. Eva,
ao comer a maçã, fruto proibido que simbolizava o pecado, adentrou um novo
universo; o universo erótico, visto que à medida que Eva “pecava”, ela se descobria
enquanto corpo desejante.
Esses desejos da alma se inscrevem enquanto sensações reprimidas,
camufladas pela metáfora do “fruto proibido” e da “tentação da serpente”. Eva na
sua busca pelo desconhecido ousou desafiar o “criador” desvelando, assim, a face
do “pecado”. Psique, influenciada por suas irmãs, descobre a face de Eros. Ambas,
no seu eterno desejo de busca pelo incógnito, representam a necessidade de
apreender o fenômeno erótico.
Definir ou explicitar esse fenômeno representa uma atividade muito complexa,
ou mesmo impossível de se realizar, visto que Eros não tem definição exata, precisa,
como sugere alguns estudiosos, o ximo que eles conseguem nessa busca de
compreensão é “lançar luz” sobre o erotismo. Bataille (2004, p.45), reflete que o
“erotismo é um dos aspectos da vida interior do homem. Nós nos enganamos a seu
respeito porque ele busca incessantemente fora um objeto do desejo. Mas esse
objeto responde à interioridade do desejo”.
Ao procurar representar na literatura essa “interioridade do desejo” muitos
escritores caíram na armadilha do conservadorismo que regia as sociedades da
época em que erguiam seus discursos. Sobre esse aspecto da manifestação erótica,
Lúcia Castello Branco argumenta que
estudar as manifestações do erotismo na literatura é, portanto,
estudar também as relações dialéticas entre vida e morte que se
desenvolvem nas trajetórias das personagens e que servem, muitas
vezes, como ocorre na literatura realista, para encobrir, escamotear
o fenômeno, numa época em que o decoro, a austeridade e o pudor
literário não nos permitiam abrir as cortinas das alcovas (1985,
p.16).
48
Por mais conservadora que seja uma época, uma sociedade, as leis que a
regem, nenhum instrumento de punição conseguirá acabar com o fenômeno erótico,
uma vez que ele integra a base da vida humana. Sufocado, disfarçado, mascarado,
ele sobrevive nas fendas que a moral vigente não consegue isolar do resto do
mundo.
O erotismo está além da relação sexual para reprodução, como acontece com
todos os animais sexuados; ele se inscreve na sensualidade do ato sexual, nas
sugestões do encontro, na poesia do momento.
Recorremos, novamente a Bataille (Ibid., p.19):
A atividade sexual de reprodução é comum aos animais sexuados e
aos homens, mas, aparentemente, apenas os homens fizeram de
sua atividade sexual uma atividade erótica, o que diferencia o
erotismo e a atividade sexual simples como uma pesquisa
psicológica independente do fim natural que ocorre na reprodução e
na preocupação com a prole.
O erotismo se assenta no Ocidente Cristão pelo discurso da repressão. No
século dezenove com o aumento das linhas de trabalho e o enriquecimento da
burguesia, aumentaram, também, as formas de controle da expressão da
sensualidade, do amor, nessas sociedades capitalizadas. A relação sexual tinha
apenas um objetivo de caráter biológico: a reprodução. Para não desviar o foco do
mundo capitalista, mantido pela força de trabalho, os dirigentes desses povos
criaram leis para assegurar a moral e os bons costumes da sociedade: máscaras
sociais de honra e respeito.
Nessas sociedades puritanas, na qual imperava a hipocrisia, os castradores
de Eros criaram à margem dessas civilizações válvulas de escape com o objetivo de
não danificar a estrutura social instaurada; prostitutas, amantes, adultérios, fazem
parte desse universo marginalizado.
Na literatura, também, se fez notar esse universo de máscaras. A estética
realista da segunda metade do século dezenove operou essa dissimulação nas suas
fábulas: austeridade como característica das personagens em questão,
personagens-amantes às escondidas, falta de detalhamento das cenas dos
encontros amorosos, narrador hipócrita; discurso controlado em nome do “bom tom”
49
social e literário. No romance realista o escritor usa a estratégia de mudança do foco
narrativo, cobrindo as cenas de amor com o silêncio. Criava-se uma ambigüidade na
narrativa colocando o leitor e o narrador como voyers das cenas: o fazem, mas
gostam de observar. Com essas estratégias, buscava-se aprisionar a libido do povo,
enfatizando somente o mundo da produção do capital. Lúcia C. Branco (1985, p.19)
ressalta que “vinculando a existência de Eros à finalidade única da procriação,
estavam garantidas a tranqüilidade da família e a segurança do Estado. O sexo
regulamentado mantinha, no canto escuro do quarto dos pais, equilíbrio e harmonia
de toda uma sociedade”.
Mesmo em época em que a discrição ou a hipocrisia era a tônica dos
discursos; o patrulhamento social por meio dos seus “mecanismos de defesanão
conseguia, de fato, eliminar o erotismo das entranhas da civilização; uma vez que
ele concretiza a reunião de duas forças opostas: vida/morte, em todas as esferas da
humanidade. “Do erotismo, é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na
morte” (BATAILLE, Ibid., p.19).
Essa aprovação da vida com a morte é possível percebermos nos contos “A
Morta” e “As Orações de Sóror Maria da Pureza” de Florbela espanca. Neles, as
protagonistas interagem com o mundo dos vivos e dos mortos alimentadas por uma
relação amorosa inacabada. Bataille diz que “somos seres descontínuos, indivíduos
que morrem isoladamente em uma aventura ininteligível, mas temos a nostalgia da
continuidade perdida (Ibid., p.25-6)”. Ao buscarem essa “continuidade perdida” após
a morte ter insurgido em seus caminhos, as amantes dos textos citados cometeram
um ato de transgressão; encontraram no erotismo a força vital para continuarem
“vivendo”.
Medo e fascinação, atração e repulsão, constituem-se, portanto, em
elementos que estarão eternamente em jogo no processo do erotismo,
que este engendra os mecanismos básicos e opostos de vida e
morte. A força de Thanatos revela-se também na posse amorosa que
desemboca, com freqüência, nas manifestações violentas dos
chamados crimes “por amor”, ou do suicídio. Os amantes, quando se
deparam com a impossibilidade da posse real do ser amado,
terminam, muitas vezes, por preferir sua morte à sua perda.
(BRANCO, 1985, p.63).
50
No conto A Paixão de Manuel Garcia, este protagonista encerra sua vida por
meio do suicídio, ao descobrir que seria impossível viver uma relação amorosa com
a sua “Dama”. Nessa ação, Thanatos se inscreve com toda a sua força no aspecto
violento da paixão-amorosa. “O que designa a paixão é um halo de morte. Sob essa
violência, à qual corresponde o sentimento de contínua violação da individualidade
descontínua – começa o domínio do hábito e do egoísmo a dois, o que significa uma
nova forma de descontinuidade” (BATAILLE, Ibid., p.28).
Os discursos da literatura estão repletos de exemplares amorosos como o
das personagens citadas. Nessa dualidade vida/morte, Eros/Thanatos, a
continuidade não está perdida, pois uma sensualidade no discurso do além-
túmulo
Ao longo dos séculos, vários escritores tentaram representar a morte nas
mais diversas formas de linguagem em prosa ou poesia. Mas, falar do
desconhecido, do mistério que envolve a morte, não é tarefa das mais fáceis.
José Saramago (2005), na obra As Interrmitências da Morte, trata dos
problemas que a falta da morte poderia provocar nas sociedades. Com muito humor
e ironia, o escritor mostra a necessidade do morrer para as civilizações.
No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente
contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação
enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos
lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da
história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter
alguma vez ocorrido fenômeno semelhante, passar-se um dia
completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas,
contadas entre diurnas e nocturnas, matutinas e vespertinas, sem
que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal,
um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada.
Nem sequer um daqueles acidentes de automóvel tão freqüentes
em ocasiões festivas, quando a alegre irresponsabilidade e o
excesso de álcool se desafiam mutuamente nas estradas para
decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte em primeiro lugar.
A passagem do ano não tinha deixado atrás de si o habitual e
calamitoso regueiro de óbitos, como se a velha átropos da dentuça
51
arreganhada tivesse resolvido embainhar a tesoura por um dia [...]
(SARAMAGO, 2005, p.11).
Instala-se o caos: ninguém mais morre, os hospitais ficam superlotados, as
funerárias ficam sem a clientela, a religião fica sem a sua base: a promessa de vida
eterna. Cria-se um poder paralelo que trafica “quase mortos” para um país vizinho,
onde poderiam morrer.
A obra de Saramago nos faz refletir sobre o paradoxo que sustenta nossa
sociedade: a busca da imortalidade, que nos faz esquecer a morte como parte da
própria concepção da vida.
Segundo a ideologia bíblica, a morte é a mais natural das coisas: “Aos
homens está ordenado morrerem uma vez” (Hebreus 9.27). A morte é, também,
conseqüência do pecado. Deus disse a Adão: “no dia que delas comeres” referindo-
se à maçã, fruto que simboliza o pecado original, “certamente morrerás” (Gênesis
2.17). Paulo pregou que: “por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo
pecado a morte” (Romanos 5.12), e que “o salário do pecado é a morte” (Romanos
6.23).
A morte é o verdadeiro problema existencial que aflige o ser humano. As
civilizações renovam-se, reconstituem-se devido à presença da morte como
fenômeno que representa um fim e um começo. Buscar entender uma civilização e
sua cultura requer compreender suas representações da morte. Mesmo do ponto de
vista físico e biológico, a morte não representa apenas o final do ser. Sabemos que
sem a morte a possibilidade de renovação dos seres vivos seria nula.
A cultura ocidental moderna na morte um problema que deve ser negado
em prol da concepção capitalista e materialista que estrutura nossa sociedade.
Nesse mundo de competições, não lugar para os rituais da morte, nossas
representações repressoras desse fenômeno constrõem a morte como um não-
lugar, uma interdição.
Segundo Maranhão (1998),
A morte, tão presente, tão doméstica no passado, vai se tornando
vergonhosa e objeto de interdição. [...] Á medida que a interdição em
torno do sexo foi se relaxando, a morte foi se tornando um tema
proibido, uma coisa inominável (p.9).
52
Maranhão salienta que “ao negar a experiência da morte e do morrer, a
sociedade realiza a coisificação do homem” (Ibid., p.19).
Quer seja por meio do discurso positivo ou negativo para representar a morte,
a obra de arte é o único meio que possibilita a sua permanência, “continuidade
perdida”, por toda a humanidade. Nesse viés, tomamos a literatura como corte da
arte literária, responsável pela presença de Eros e Thanatos no mundo das
linguagens. O texto literário não desaparece com a evolução irreversível das coisas
do dia-a-dia. Ele constrói seu espaço marcado pela nostalgia da continuidade
perdida.
53
CAPÍTULO III
A LINGUAGEM DO AMOR ALÉM TÚMULO: “A MORTA”
Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...
Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...
Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri
E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...
(Florbela Espanca, “Se tu viesses ver-me”
In: Charneca em flor, 1930)
54
Falar do amor, este sentimento tão constante e fugaz, representado pelo
discurso da obra literária, requer uma análise dos elementos que constituem o texto
na criação desse sentimento. Pautaremos nosso estudo no conto “A Morta”,
analisando a linguagem do amor além-túmulo, ou seja; como esse afeto é
materializado na narrativa após a morte da protagonista. Nesse texto temos duas
temáticas instigantes que se unem: a da morte e a do amor que resultam na criação
de um mundo paralelo. Buscaremos estabelecer relações entre ambos a partir da
simbologia presente no conto. Para isso, utilizaremos o Dicionário de Símbolos, de
Chevalier. Para enriquecer a leitura crítica ainda nos serviremos dos textos de
Chiampi, Octávio Paz e Renata Junqueira.
A história apresenta uma personagem que partiu do mundo dos vivos, que
é nomeada A Morta como símbolo da morte, mas não sabemos a causa do
falecimento: “A Morta ouviu dar a última badalada da meia-noite, ergueu os braços, e
levantou a tampa do caixão. Desceu devagarinho, circunvagou em redor os olhos de
pupilas sem luz [...]” (AM, p.49). O nome do conto designa a personagem, que ao
ser sepultada, leva consigo lembranças, sentimentos e objetos pessoais. Dentre
esses sentimentos, o amor que sente pelo noivo-vivo, que não é nomeado e não se
tem muita referência dele. Sabe-se apenas que ele vai visitar a noiva-morta por um
determinado tempo e que depois desaparece “misteriosamente” da narrativa.
Portanto, temos uma relação amorosa entre dois seres que estão em mundos
opostos: A Morta na “[...] silenciosa cidade dos mortos” (p55-6), enquanto o noivo se
encontra na “[...] alucinante cidade dos vivos” (AM, p.56).
Esse escrito é apresentado ao leitor com uma afirmativa que tenta imprimir
um caráter de verossimilhança: “Isto aconteceu” (AM, p.49). O narrador, à
semelhança de quem fala nos contos de fadas, traz à tona os fatos por meio de
lembranças. O conto constitui uma fábula cheia de encantamento, na qual a
protagonista habita um mundo cheio de sonhos, mistérios e magias, isto é, um
universo maravilhoso.
Chiampi (1980, p.48-9) afirma:
Maravilhoso é o extraordinário, o insólito, o que escapa ao curso
ordinário das coisas e do humano. Maravilhoso é o que contém a
maravilha, ou seja, coisas admiráveis, belas ou execráveis, boas ou
horríveis, contrapostas às naturais. [...] Tradicionalmente, o
55
maravilhoso é, na criação literária, a intervenção de seres
sobrenaturais, divinos, ou legendários: deuses, deusas, anjos,
demônios, gênios, fadas, na ação narrativa ou dramática. É
identificado, muitas vezes, com o efeito que provocam tais
intervenções no ouvinte ou leitor: admiração, surpresa, espanto,
arrebatamento.
Narrado em pessoa e focado nas lembranças da personagem, o texto
baseia-se em um discurso indireto. Às vezes esse narrador age como um intruso
que busca apoio no leitor para explicitar suas reflexões: “– para que se há de fechar
a porta aos mortos?... e saiu...” [...] Foi então que lhe chegou aos ouvidos um ciciar
brandinho... Seriam passos? ... Ruflar de asas? ... Folhas de Outono tombando?...”
(AM, p.57). Caracterizamos este narrador, também, como onipresente e onisciente,
pois são a cumplicidade dos seus relatos e de suas reflexões que dão “vida” à
diégese do texto, uma vez que é ele o responsável por trazer a história a tona.
Ao adentrar as recordações trazidas pela protagonista, nota-se que no mundo
dos mortos vida, mesmo que em geral “os outros mortos, bem mortos, dormiam
pesadamente” (AM, p. 49). Nos parágrafos iniciais da narrativa, percebe-se
características dos seres vivos atribuídas ao mortos como, por exemplo, “almas de
tísicos bailavam numa clareira” (AM, p. 40) ou um suicida, escavando a terra com
as unhas” (AM, p.50). Nessas passagens, é possível notar a fusão entre dois
mundos: o dos mortos e o dos vivos. Essa imagem acentua-se ao se tomar
conhecimento de que “A Morta ia a lembra-se, que os mortos também se lembram”
(AM, p. 50). Porém, confirma-se essa idéia com o seguinte trecho:
[...] na solidão do túmulo tempo e sossego para lembrar; é que
as virgens tecem as mais preciosas lhamas dos seus sonhos. Para
quem saiba ouvir, vibrações de carnes mortas nos túmulos
brancos das que morreram puras, como que um frêmito brando de
erva a crescer...” (AM, p. 50).
Essa relação torna-se evidente porque, apesar de mortas, as virgens sentem
desejo e prazer, uma vez que as ervas que brotam de seus mulos sugerem a
presença de um gozo erótico. Segundo a interpretação de Chevalier, as ervas o
símbolos de tudo que é vivificante, elas ”[...] restauram a saúde, a virilidade e a
56
fecundidade” (CHEVALIER, 2003, p.377). Portanto, as ervas estão associadas à
vida. Instaura-se um paradoxo, pois como vida na morte? Existe se considerar a
morte do ponte de vista positivo, conforme mostraremos no decorrer das análises
dos demais contos escolhidos como corpus dessa pesquisa.
A criação de um mundo alternativo, um lugar no qual os amantes podem
transitar livremente é a solução encontrada para o amor não concretizado em vida,
realizar-se. A linguagem utilizada nos diálogos dos amantes poderia ser
decodificada por eles mesmos, uma vez que criaram um espaço bem diferente e
distante do mundo real.
Entre o vivo e a morta o diálogo era duma sobre-humana beleza
(AM, p.55).
O vivo e a morta falavam, e o que eles diziam não o podem
entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortos, aqueles que
ao lado dormiam pesadamente, braços pendidos num gesto de
fadiga pelos séculos dos séculos (AM, p. 55).
No universo dos seus encontros, das suas lembranças, das suas formas de
comunicação, somente os noivos poderiam participar, revelando uma relação de
dependência e subordinação um para com o outro. Sobre esses paradoxos do amor
único, Octávio Paz (1994, p.113) diz que “[...] uma pessoa, sem nunca saber
exatamente a razão, se sente invencivelmente atraída por outra pessoa, excluindo
as demais” e assim desenvolve uma dependência para com ela, mantendo uma
relação de subordinação e vassalagem, num ato voluntário e livre. Paz acrescenta
ainda que “O amor é representado na forma de um nó; é preciso acrescentar que
esse nó é feito de duas liberdades entrelaçadas”.
Nesse entrelaçamento, as personagens vivenciam seus desejos imersos no
seu mundo “sobre-humano”:
A Morta ia a lembrar-se:
Sentira num êxtase sobre-humano, num assombroso sair de si,
numa prodigiosa transfiguração de todas as fibras do seu ser, a
pressão duns dedos quentes que lhe desciam as pálpebras sobre as
pupilas paradas (AM, p.50-1).
57
A presença de um clima sensual-erótico ganha força à medida que a narrativa
avança:
[...] Uma boca, que ela nunca sonhara tão macia e fresca, roçara-lhe
a macieza e a frescura da sua, em beijos miudinhos, cariciosos,
castos como gotas de chuva que nas tardes de Verão, infantilmente,
recolhia nas suas duas mãos estendidas (AM, p.51).
Após as lembranças da personagem A Morta, o narrador faz uso do recurso
do “flash-back”, pois volta ao passado no momento da preparação do corpo da
personagem para o sepultamento:
Vestiram-na de branco, ungiram-na de branco, envolveram-na numa
nuvem de branco. Era branca a almofada de rendas onde lhe
poisaram a cabeça, devagarinho, no gesto sagrado de quem poisa
uma relíquia três vezes santa nas rendas dum altar. Brancos, os
sapatinhos de cetim, aqueles mesmos que mal roçavam agora as
pedras do caminho. Branca, a grinalda de rosas de toucar que lhe
prenderam à seda dos cabelos. Branco, o vestido, o seu último
vestido do seu último baile. Brancos, os cachos de lilás, as rosas e
os cravos que eram como asas de pombas a cobri-la. Branca, a
caixinha de sete palmos pequeninos onde a mãe a deitou como a
deitara anos a fio na brancura do berço (AM, p.51).
O vocábulo “branco” é repetido exaustivamente: vinte e uma vezes. Ele cria
uma invisibilidade na narrativa, um aspecto cênico num jogo de luz e sombras.
Lançando mão deste recurso anafórico, a escritora enfatiza a pureza da personagem
e do sentimento amoroso que a envolve, elevando-a à esfera de um corpo sagrado
num momento de ofertório.
Para Chevalier (2003, p.141-42), o branco é uma cor que se relaciona aos
ritos de passagem: “é justamente a cor privilegiada desses ritos, através dos quais
se operam as mutações do ser, segundo o esquema clássico de toda iniciação:
morte e renascimento [...]”.
58
No pensamento simbólico, a morte precede a vida, pois todo nascimento é um
renascimento. Por isso, o branco é primitivamente a cor da morte e do luto.
A cor preta e seus derivados constroem, no conto, um contraponto com o
branco, utilizado pelo narrador na criação imagética da encenação textual.
Simbolicamente, o preto é compreendido sob seu aspecto frio e negativo. É
associado às trevas primordiais, ao indiferenciamento original, lembrando a
significação do branco neutro, vazio, e serve de suporte às representações
simbólicas análogas, como as do cavalo da morte, às vezes alvo, às vezes negro.
O branco é o elemento criador da imagem da morta; seu universo é inundado
por essa característica na idealização de um luto branco, indicando uma ausência a
ser preenchida, uma falta provisória que será resolvida com as visitas do noivo.
Após esse ritual, ocorre o mutismo: “Silêncio. Um silêncio feito de fluidos
rumorosos. [...] o mundo ficava longe” (AM, p.53)
A tessitura dos acontecimentos mergulha na introspecção, como se as
marcas da memória viessem à tona a cada cena da trama; como se o mundo
externo, o “não-eu”, e o interno, o “eu”, se unissem num só. O cenário é retomado
com novas cores, um novo perfume a exalar dos elementos da natureza:
Começou depois o encantamento. Todas as tardes, à hora em que o
crepúsculo, todo vestido de glicínias, descia com a doçura dumas
pálpebras que se fechassem, o perfume das rosas, dos cachos de
lilás, das suas recordações de amor encerradas com ela, fazia-se
mais denso, corporizava-se, tornava-se nuvem, ungüento divino que
a inundava, que a aromatizava toda. Os passos, letras de um poema
que ela sabia de cor, mal se ouviam, perdidos ainda no coração da
cidade, gritante, alucinada cidade dos vivos... mas, agora, vinham
mais perto, distinguiam-se melhor, eram mais arrastados, tacteavam
o chão, tomavam posse das pedras do caminho da silenciosa cidade
dos mortos(AM, p. 53-4).
Apenas A Morta e seu noivo participavam desse encantamento, como nos
informa o narrador. Os outros vivos e mortos continuavam no seu mundo:
O vivo e a morta falavam, e o que eles diziam não o podem
entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortos, aqueles que
59
ao lado dormiam pesadamente, braços pendidos num gesto de
fadiga pelos séculos dos séculos (AM, p.55).
Do noivo da personagem, temos poucas informações. Apenas descrições dos
objetos que recordam o amor entre ambos, encerrados com o corpo morto: “E agora,
as cartas do noivo, o retrato do noivo, as dulcíssimas recordações do noivo. E,
piedosamente, cuidadosamente, não fosse esquecer alguma pétala de flor, algum
fiozinho dos seus lindos cabelos pretos, algum pedacinho de papel onde as queridas
mãos morenas lhe tinham traçado o nome, tudo lhe levaram, como uma divina oferta
a um ser divinizado” (AM, p.52)
.
O narrador se limita a chamá-lo de “noivo-vivo” e o representa de forma
enigmática: afinal, quem é esta personagem que possibilitou a permanência do amor
pós-túmulo? A resposta não se concretiza na narrativa, a nebulosidade das sombras
signicas encombrem-na.
O conflito da narrativa é instaurado quando, sem nenhuma informação mais
detalhada da vivência do noivo, cessam suas visitas para a noiva-morta. Eis que o
silêncio irrompe a narrativa, marcando o cenário de encantamento:
Silêncio. Um silêncio feito de fluidos rumorosos, do vago rastejar
dum perfume, dum leve vapor de incenso pairando. Silêncio como
um vago clarão de fogo fátuo, como o rasto, a poalha dum desejo
imaterial, silêncio em torno da vasta catedral de sombras onde as
sombras vestidas de branco pontificam pelas noites. [...]
Aproximava-se o silêncio, que trazia pela mão, devagarinho, não
fosse tropeçar, a noite cega.” (AM, p.53-6).
Segundo Jean Chevalier , ( Ibid., p.833-834), o silêncio na simbologia,
é um prelúdio de abertura à revelação. O silêncio abre uma
passagem. Segundo as tradições, houve um silêncio antes da
criação; haverá um silêncio no final dos tempos. O silêncio envolve
os grandes acontecimentos: às coisas grandeza e majestade.
Marca um progresso.
60
O silêncio da linguagem verbal mostra a insuficiência do signo lingüístico de
constituir e expressar, em sua totalidade, os sentimentos do homem.
A mudez, as sombras, o mistério e o exacerbamento do “eu-profundo”
mostram um narrador preocupado em tornar públicos os alicerces da alma; proposta,
esta, utilizada pelos escritores decadentistas da época em que Florbela, por meio de
sua pena, construiu seu arcabouço literário, cujas personagens são a representação
desse “eu” materializado na ficção.
Imersa nesse silêncio como num passe de mágica, a personagem está
fadada à espera eterna, ao anseio pelo retorno do amigo
8
que o ocorre: “Mas,
uma tarde, a Morta esperou em vão, e esperou outra e outra e outra ainda em
infindáveis horas de infindáveis tardes” (p.56).
Novamente, percebemos, no texto, nuanças do conto de fadas. Desta vez,
tomamos como exemplo o conto “A Bela Adormecida”, que dormiu durante cem anos
esperando para ser despertada por seu verdadeiro amor. A Bela Adormecida vive
uma morte simbólica, pois a força do amor de um príncipe poderia trazê-la de
volta para o mundo dos vivos. Observa-se que, ao contrário da heroína da fábula,
que ficou adormecida esperando pelo seu amado, a personagem A Morta, após
adentrar o reino da morte, Hades (segundo a mitologia grega), não caiu em sono
profundo, mas continuou sua aventura amorosa com seu noivo-vivo, criando um
mundo para eles. Todavia, no momento em que cessam as visitas, ela se torna
inerte à espera daquele que a despertaria.
O tempo, mais uma vez, deixa suas marcas na transformação do ambiente. À
medida que o amor desaparecia, as recordações desse enlace sofriam os desgastes
desse agente condicionador da vida:
Na caixinha de sete palmos onde os cravos e os lilases eram
viçosos e frescos ainda, como se uma eterna madrugada os
banhasse de orvalho, começaram a enlanguecer os perfumes, a
desmaiar os seios nus das rosas; as cartas de amor amareleciam;
os braços da virgem iam esboçando já o gesto de fadiga dos outros
mortos que ao lado dormiam pesadamente (AM, p.56).
8
Usamos o vocábulo amigo, aqui, fazendo referência ao amante das cantigas de amigo medieval,
que partiam para suas batalhas e a amante-amiga, ficava a esperar na incerteza do seu retorno.
61
O noivo, vivo-morto, não se esquece de sua namorada morta, visita-a no
cemitério, atuando como o alimento que a mantém viva. Observa-se que não a
putrefação do corpo da amada e de todos os objetos que lhe foram ofertados, tais
como as flores que com ela foram enterradas e que permanecem viçosas e
perfumadas, sem nenhum sinal de deteriorização. Quando o noivo se ausenta,
acontece a destruição dos sonhos de amor da protagonista.
Segundo Renata Junqueira (2003, p.82),
as duas personagens são, afinal, agentes de uma estranha
simbiose: ele aviva-lhe o corpo, ela alimenta-lhe a alma. Isso lhes
permite um afastamento radical da esfera real em que se incluem os
vivos e os mortos comuns; lado a lado, na paz do cemitério, os dois
estabelecem a sua própria realidade, a despeito de todos os
“vendavais, das medonhas invernias desencadeadas, das outras
vagas maiores que se quebravam ao longe, num marulhar
incessante, no mar alto da vida.
Na perspectiva de continuarem sempre juntos, mesmo depois da morte ter se
instalado entre os enamorados, eles isolam-se do resto do mundo. É uma
obstinação irreal. Com a cumplicidade do narrador, os noivos conseguem destruir
até mesmo as barreiras impostas pelo destino e transitam pelo o mundo dos vivos e
dos mortos, diante do qual o narrador insiste em alarmar: “Isto aconteceu” (AM, p.49-
58).
O amor da personagem A Morta para com seu noivo-vivo representa a união
de corpo e alma numa atmosfera construída poeticamente: “[...] preciosas lhamas
dos seus sonhos”, “frêmito brando de erva a crescer...”, “beijinhos miudinhos,
cariciosos...”, “fúlgidos brocados tecidos dos preciosos metais” etc. A linguagem
utilizada para estas construções deixam transparecer a poesia do texto, marcando a
união indissolúvel do corpo e da alma desses amantes:
Essência de almas, as almas tocavam-se e era tão cândido e tão
profundo aquele choque, que as misteriosas forças desse fluido
criavam outros fluidos, sopros, hálitos de almas, desses que os
predestinados sentem às vezes passar como asas invisíveis
roçando um rosto na escuridão. (AM,p.55).
62
Octávio Paz (1994, p.115) diz que:
O amor consiste na união indissolúvel de dois contrários, o corpo e a
alma. [...] A pessoa é um ser composto de uma alma e um corpo,
[...] amamos simultaneamente um corpo mortal, sujeito ao tempo e
seus acidentes, e uma alma imortal. O amante ama por igual o
corpo e a alma. [...] Para o amante o corpo desejado é alma; por
isso lhe fala com uma linguagem para além da linguagem, mas que
é perfeitamente compreensível, não com a razão, mas sim com o
corpo, com a pele. [...] O amor mistura a terra com o céu: é a grande
subversão [...].
A subversão no texto acontece quando o corpo da Morta não se deteriora,
como o dos outros mortos. O amor mantém-no vivo, sem sofrer os desígnios do
processo de envelhecimento que o tempo traz, pois é esse sentimento, o amor, o
alimento do qual o corpo e a alma precisam para darem continuidade aos enlaces
amorosos. Nessa perspectiva, os amantes criam um universo paralelo para a
concretização do encontro de ambos.
Renata Junqueira (2003, p.83) diz que
a oposição mais forte, sobre a qual o conto se fundamenta, não é a
que se dá entre o mundo dos vivos e o dos mortos, mas antes a que
se estabelece entre o mundo artificial dos noivos e o mundo natural
de todos os demais vivos e mortos.
Nessa ambiência criada pelos amantes, Renata Junqueira (Ibid., p.83)
observa
uma inversão de valores que provoca sensíveis vantagens sobre a
natureza, a tal ponto que, quando a morta levanta a tampa do seu
caixão e salta para o mundo dos vivos à procura do noivo
desaparecido, todos os outros mortos continuam a dormir
pesadamente, mas, em compensação, as figuras de pedras que
constituem a estatuária do cemitério ganham vida imediatamente.
63
Essas figuras petrificadas passam por um processo de personificação,
adquirindo hábitos humanos:
As estátuas descansavam das suas atitudes contrafeitas. A saudade
alisava as roupagens roçagantes, e sentava-se com a face entre as
mãos, olhando vagamente a noite. Uma musa de curvas sensuais,
num túmulo de poeta, cerrava languidamente os olhos e fazia com a
boca o gesto de quem beija (AM, p.50).
As estátuas ganham “vida”, e características próprias de um ser humano.
Seus gestos funcionam como uma mola propulsora de energia que revitaliza o
ambiente. A Morta parece petrificar-se na sua procura obstinada pelo noivo, na
“alucinante cidade dos vivos”:
[...] foi então que ela ergueu os braços, levantou brandamente a
tampa do caixão, e desceu devagarinho... foi então que ela puxou
para si a porta do jazigo que dava para a noite. E a Morta foi pela
soturna avenida, no seu passo, de manto a roçagar.[...] atravessou
ruas ermas, estradas solitárias [...], andou de porta em porta, subiu a
todos os lares [...] (AM, p.56-7).
Esse encantamento não acaba, mesmo quando ela desiste de esperar e vai
em busca de novos horizontes. Parece ocorrer um processo de transformação com a
personagem: de ser petrificado pelo amor, torna-se um “objeto” impalpável, uma
onda pequenina.
A natureza participante do ambiente, é toda cíclica. Na medida em que a
protagonista é abandonada por seu amante, as flores, os cachos de lilás, rosas,
cravos etc., que antes eram viçosos, perfumados, agora amarelecem, murcham,
perdendo seu viço. Pendem todos desmaiados assim como a Morta pende na sua
espera por aquele que não vai mais voltar:
[...] Na caixinha de sete palmos onde os cravos e os lilases eram
viçosos e frescos ainda, como se uma eterna madrugada os
banhasse de orvalho, começaram a enlanguescer os perfumes, a
desmaiar os seios nus das rosas; as cartas de amor amareleciam;
64
os braços da virgem iam esboçando já o gesto de fadiga dos outros
mortos que ao lado dormiam pesadamente. (AM, p.56).
A cena em que a personagem se entrega ao rio foi construída com linguagem
impregnada de poesia. Nesse momento a Morta reflete uma imagem divina, pois as
suas vestimentas assemelham-se ao “manto de virgem” tal qual o manto da Virgem
Maria:
Na taça de prata, cinzelada a traços de maravilha pelas mãos dos
gênios das águas, erguida ao alto por mãos misteriosas e invisíveis,
dormia todo o azul do infinito. O seu vestido branco aurelou-se de
sonho, teve tons azulados de nácar e madrepérola, claridades
fosforescentes de fogo-fátuo; como se lhe batesse de chapa todo o
luar dos céus longínquos, lembrou um manto de Virgem; as mãos,
num gesto de graça, foram duas minúsculas conchas azuis (p.58).
A água, símbolo de pureza e renascimento é o elemento responsável pela
fusão da personagem com o rio. É nessa água que a mesma vai buscar refúgio e
consolo para o seu abandono. Na passagem, o mistério do desconhecido está
representado na linguagem pelo uso dos sinais gráficos reticências:
Debruçou-se... Marulho de ondas... e a morta foi mais uma onda,
uma onda pequenina, uma onda azul na taça de prata a faiscar...
(AM, p.58).
Todavia, a água, como todos os símbolos, pode ser entendida em dois planos
opostos: é fonte de vida e fonte de morte, criadora e destruidora:
As significações simbólicas da água podem reduzir-se a três temas
dominantes: fonte de vida, meio de purificação, centro de
regenerescência. Esses três temas se encontram nas mais antigas
tradições e formam as mais variadas combinações imaginárias [...].
Mergulhar nas águas, para delas sair sem se dissolver totalmente,
salvo por uma morte simbólica, é retornar às origens, carregar-se de
novo num imenso reservatório de energia e nele beber uma força
nova [...] (CHEVALIER, 2003, p.15-6).
65
A personagem ao se entregar às águas do rio sintetiza a sua união com a
natureza, o que fora predito desde o início da narrativa. Os elementos naturais
interagem com A Morta, pois quando esta se encontra em êxtase, as flores, a noite,
tudo ao seu redor parece compartilhar dessa alegria, assim como no momento de
sua tristeza, há sombra, silêncio e noite cega:
[...] quando enfim as sombras se esvaíram na silenciosa cidade dos
mortos, um caixão foi encontrado vazio, uma caixinha branca de
sete palmos pequeninos, onde cartas de amor amareleciam e flores
deixavam pender as pálidas cabeças desmaiadas (AM, p.59).
O conto “A Morta” foi selecionado para iniciar a análise da prosa florbeliana
porque condensa a proposta que objetivamos discutir nesta pesquisa: a poética da
morte. Logo no primeiro parágrafo se insinua uma definição simbólica para a
morte: “[...] uma macabra dança de roda” (p.49). Nota-se que a escritora traz na
estrutura desse texto características que, de certa forma, antecipam um traço dos
textos da Modernidade.
Dentre os estudiosos que formularam idéias acerca do conto, destaca-se,
conforme mencionado no capítulo inicial, o escritor e ensaísta norte-americano
Edgar Allan Poe. Segundo ele, o conto deveria ter um final surpreendente e
acabado.
Os contos de Florbela Espanca, apesar de apresentarem um desfecho
inesperado, não correspondem integralmente à proposta de Poe, já que a finalização
dos textos dão margem a uma leitura propensa a múltiplas interpretações, ou seja,
diferentemente da teoria de Poe, os mesmos não se concluem. Com isso, identifica-
se um dos aspectos presentes na modernidade, o final em aberto, conforme
verificaremos nas análises seguintes.
66
3.2 TRAGÉDIA NA FICÇÃO AMOROSA FLORBELIANA: “A PAIXÃO DE MANUEL
GARCIA”
A linguagem das máscaras, cuja função é velar a morte nos contos de
Florbela é construída a partir de uma situação amorosa na qual cada personagem
está envolvida. Dessa relação entre o amor, a vida e a morte nasce uma poética que
abarca a trama textual. Assim, a trajetória das personagens é feita sob a égide da
realização amorosa.
Octavio Paz (1994, p.190-1) reflete sobre o amor, esse sentimento que está
no cerne do ser humano. O autor faz uma viagem pela história desse afeto por meio
dos poetas que o trabalharam como temática em seus textos. O que de comum
em todos esses escritos é a presença do jogo de contradições que permeia o amor:
O amor é um composto indefinível de alma e corpo; entre eles, à
maneira de um leque, se desdobra uma série de sentimentos e
emoções que vão da sexualidade mais direta à veneração, da
ternura ao erotismo. Muitos desses sentimentos são negativos: no
amor rivalidade, despeito, medo, ciúme e finalmente ódio. Esses
afetos e ressentimentos, simpatias e antipatias, misturam-se em
todas as relações amorosas e compõem um licor único, diferente em
cada caso e que muda de coloração, aroma e sabor segundo
mudam o tempo, as circunstâncias e os humores. É uma poção
mais poderosa que a de Tristão e Isolda. Provê vida e morte: tudo
depende dos amantes. Pode transformar-se em paixão,
aborrecimento, ternura e obsessão.
O amor, esse sentimento tão antigo e tão atual é a mola do conto A Paixão de
Manuel Garcia. É por sua causa que a situação de morte se instaura.
Muito já foi dito sobre o amor. Há séculos, poetas, escritores, cientistas tratam
essa temática. O amor é um sentimento que invade a alma humana e ganha espaço
e apreço de observadores, estudiosos e apaixonados, principalmente daqueles que,
na transferência do seu ser, buscam no outro sua duplicidade. Refletindo sobre essa
composição amorosa, o crítico Octavio Paz argumenta que o amor
67
é composto de dois contrários, mas que não podem se separar e
vivem constantemente em luta e reunião com eles próprios e com os
outros. Esses contrários, como se fossem os planetas do estranho
sistema solar das paixões, giram em torno de um único sol. Este sol
também é duplo: o casal. Contínua transmutação de cada elemento:
a liberdade escolhe a servidão, a fatalidade se transforma em
escolha voluntária, a alma é corpo e o corpo é alma. Amamos um
ser mortal como se fosse imortal. [...] No amor tudo é dois e tudo
tende a ser um (Ibid., p.191).
No amor trágico, a morte se apresenta como a possibilidade de solução
inesperada ou a fuga da atmosfera sufocante em que se encontra o amante.
Tomamos por exemplo a tragédia grega de Antígona. Essa personagem, em texto
homônimo, situa-se diante de um desejo: sepultar seu irmão Polinice, apesar de ter
sido proibida de realizar esse ato. Assim, todas as noites, às escondidas, Antígona
joga terra sobre o corpo do irmão falecido. Ao tomar conhecimento dessa atitude,
Creonte determina um castigo para a protagonista: “viver” encarcerada numa gruta,
como se estivesse morta. A ação realizada por Antígona transformou-se em signo do
desejo, pois ela buscou no seu ato de transgressão a demonstração do seu
sentimento.
Ao comentar essa tragédia, Nádia Ferreira argumenta que o ódio fora
substituído pelo amor, e
amar implica perdoar. Mas aqui o amor, em vez de assegurar vida,
conduz à morte. Antígona, aquela que não cede do seu desejo, tem
como suplício ficar suspensa na zona fronteiriça entre-as-duas-
mortes: sem estar morta, é riscada do mundo dos vivos e, estando
viva, não tem futuro. Sem esperança não tem desejos sustentados
pela fantasia. [...] Seu irmão como objeto do desejo está perdido
para sempre. Mas para além dele há um ser que faz com que
Antígona ofereça seu ser em nome do amor. Um ato de amor que
expressa a natureza verdadeira do amor, que é o de se dirigir para
algo inefável e fugidio, que é signo do próprio amor, como metáfora
do desejo (2004, p.53).
68
Nesse mito grego, o amor não se faz representar pelo aspecto da relação
sexual, pelo desejo carnal entre homem/mulher. Mas, ele se constrói na mítica da
relação familiar, remetendo-nos a lenda bíblica de Caim e Abel, cuja relação de ódio
proporcionou o assassinato de Abel pelo irmão Caim. Polinice, nos seus entraves
familiares, também foi vítima dos desafetos do seu irmão. Antígona, consciente do
seu desejo, aparece na história como um ser perpetuador do amor, transmitindo aos
demais a força imbatível desse sentimento.
Nádia Ferreira afirma ainda que,
a conjugação entre amor e desejo na tragédia se caracteriza por um
amor que se sustenta em um desejo, que se dirige a um objeto
perdido e que se situa para além do bem e do mal. Amar então
torna-se a proeza de um ato que anuncia a morte do amante que
perdeu para sempre o seu amado (Ibid., p.54).
No conto “A Paixão de Manuel Garcia”, no primeiro parágrafo, o narrador
nos apresenta o conflito da narrativa: o suicídio cometido pela personagem que
nomeia o texto: “Manuel Garcia, o pobre canteiro da Rua das Silvas, quando soube
que Maria del Pilar ia casar-se, matou-se (PMG, p.95). Em seguida, o leitor é
avisado que a narrativa trata-se de “Um drama encerrado em duas linhas, numa
escassa dúzia de palavras, um drama que levou anos e anos a desenrolar-se, que
teve o seu primeiro capítulo numa doce manhã de Maio e o seu epílogo num
modestíssimo quarto duma casinha de pobre” (PMG, p.95).
O leitor é tomado de surpresa ao, perceber, nas primeiras vozes do texto, que
a narrativa será desfiada pelas vias do suicídio causado pela não correspondência
amorosa. Manuel construiu seu mundo paralelo e nele cabia a paixão que sentia
por Maria Del Pilar. Seu desejo era, a cada dia, mais intensificado á medida que
esculpia nas pedras o corpo da amada. “A ótica desse ser desejante é desviada da
perspectiva trágica original. O trágico é destruído pela modernidade, o destino é
refutado por ela. Temos a irrupção do drama nas ações humanas, e essas escolhas
recaem sobre o indivíduo e não mais no destino como acontecia nos mitos”. Na
história de Manuel, o seu calvário está associado a escolha que ele fez: amar Maria
Del Pilar, mesmo que esse ato fosse o último da sua “vidinha de pobre”, levando-o a
morte, ou convidando-a para solucionar a situação. “A morte é o único elemento que,
69
vindo da tragédia, sobrevive na modernidade. E o amor, que conduz a ela, perde a
conotação trágica para ganhar um aspecto dramático” (FERREIRA, 2004, p.55).
Esse anseio pela presença da amada é o elemento estruturador do
pensamento do amante, transformando-o em fantoche, à medida que se entrega a
idealização de um sentimento.
O narrador caminha por um universo de tensão, no qual os fatores sociais,
econômicos e psicológicos dão cor à narrativa, apropria-se da dor da mãe do
suicida, para falar de padrões sociais que era o alicerce daquela comunidade. Como
no período feudal, da remota Idade Média, em que não havia ascensão social, no
“tempo” de Manuel não se cogitava essa possibilidade de mudança e/ou aceitação
da mistura de classes sociais, mesmo em nome de um sentimento tão nobre como é
o amor.
Manuel amou no silêncio, e nele buscou refúgio. Sua “senhor”
9
palaciana,
jamais voltou o seu olhar para o jovem mancebo que, no vazio da sua “oficina de
canteiro”, dirigiu-lhe os reclamos de amor.
A vassalagem amorosa de Manuel para com Maria Del Pilar, acontecia,
apenas, no mundo das suas ilusões e das suas estátuas moldadas com muito
afinco, numa tentativa de transladar o corpo da virgem para o objeto de pedra,
dando inspiração e vida para estes seres inanimados; “canção do martelo”,
“consciência da pedra”, etc. (PMG, p.103):
[...] E então fazia de pedra tudo quanto queria! O granito duro e
informe parecia uma pasta mole, uma cera obediente, que ele
talhava a seu bel-prazer. [...] a canção do martelo ressoava alegre
na oficina, fazia surgir de sob as suas mãos privilegiadas de artista,
[...] as rendas mais subtis, as mais elegantes grinaldas, os mais
complicados florões. Ninguém era capaz de enrolar com mais
elegância as curvas caprichosas, as ondulações envolventes das
roupagens roçagantes,em volta dum corpo de mármore cor-de-rosa.
(PMG, p.103).
9
A utilização do vocábulo senhor” faz referência às formas de tratamento da dama da cantiga de
amor medieval: “mia senhor”, “mia dama”. Na Idade Média, esse vocábulo era comum para os dois
gêneros.
70
Alternando a narração entre a “Manuel Garcia [...] quando soube que
Maria del Pilar ia casar-se, matou-se” (PMG, p.95), “As mães adivinham sempre,...”
(PMG, p.96), Não gritou, não disse nada...” (PMG, p.97), “Olhou-o longamente,
profundamente...” (PMG, p.98) e a “Como é difícil sondar os corações humildes,
as histórias das vidas simples” (PMG,p.95), “Oh, a medonha coragem dos que vão
arrancando de si, dia a dia, a doçura da saudade do que passou...” (PMG, p.110),
por meio de um discurso indireto (na maior parte do texto), o narrador voz às
personagens num momento final, de desvelamento da narrativa, flertando, assim
com o discurso indireto livre:
Um casamento de estrondo! Fidalgos, novos, ricos, bonitos... que
lindo par! “Que lindo par!”, repetiu uma estranha voz de sonâmbulo
(PMG, p.108).
[...] Pareceu-lhe ver nos olhos do filho uma lágrima; olhou uma
lágrima atentamente, estremeceu e, numa súbita intuição, estendeu
os braços para a cama onde o filho jazia, murmurando:
“Não, meu filho, não... Eu sei. Que loucura! A carta... eu sei, a carta
não é para a Maria del Pilar que a esta hora dança, vestida de
branco, nos braços doutro. Não... Eu sei. A carta vai ser entregue à
outra, a pobrezinha por quem tu morreste. Eu sei. Cala-te. Não
chores. Está sossegado.”
Pareceu-lhe então ver na boca do filho um eflúvio de sorriso [...]
(PMG, p.115).
Este narrador onisciente, pois conhece toda a história, também marca sua
presença ao longo da narrativa com suas reflexões, alternando o foco narrativo da
paixão da personagem até o seu suicídio, para as lamentações da mãe que ganha
um papel de destaque dentro do conto. Parece-nos que a tragédia de Manuel serviu,
apenas, de pretexto, para que esse narrador chamasse a atenção para os dramas
das mães, neste caso, a pobre mãe de um suicida. De forma “intrusa”, este narrador
convida o leitor a participar das suas inquietações:
[...] Quem o diria?!... Só a mãe, talvez... As mães adivinham sempre,
[...](p.96).
71
[...]Os pobres vêm ao mundo sem nada; o pouco que a vida lhes
deixa é emprestado que lhes hão-de tirar que seja deles?! (p.97).
[...] Para quê? Quando naquele aziago anoitecer de Novembro
transpôs o limiar do quarto e viu o filho morto, não gemeu, não
gritou. Para quê?... (PMG, p.98)
Utilizando como recurso o “flash-back” na marcação temporal, Florbela
rememora na mente do narrador o momento em que a personagem é tragada pelas
flechas do cupido, ao se deparar, pela primeira vez, com a imagem de Maria, “pura e
santa como um vaso sagrado”: “Quando a viu, endoideceu. Preso, embriagado,
arrastado por aquela delirante paixão, nunca mais teve sossego nem descanso [...]”
(PMG, p.101-2).
Ao se valer da mistura de tempos: cronológico - “Maria del Pilar tinha casado,
doze horas, na capela do palácio” (PMG, p.112) e psicológico “Todos os seus longos
anos de renúncia e sacrifício vieram em procissão, das sombras da noite, acalmá-la
[...]” (PMG, p.114), a escritora reforça a alienação da personagem diante da
realidade.
A sintaxe da narrativa apresenta uma estrutura verbalmente construída no
pretérito: matou-se, era, iluminava, levou-lhe, lavou-lhe, vestiu-se, etc., na
elaboração da cena textual. Assim, esses caracteres reforçam a ação da morte no
drama de Manuel.
Segundo Massaud Moisés,
etimologicamente o vocábulo drama designava simplesmente a
ação. Aristóteles, em sua Poética, distingiu a imitação, ou mimese,
“na forma narrativa” daquela em que se processa a imitação da
ação, chamando-na de drama Na primeira metade do século XVIII,
este vocábulo ganha uma outra roupagem e encontra terreno na
nomenclatura “drama burguês”. Nos dias atuais, além da
significação comum: acontecimento terrível, catastrófico, comovente
ou de exagero, classifica-se de “drama” toda peça teatral marcada
pela seriedade ou solenidade, em oposição à comédia propriamente
dita ( 2002, p.161-2).
72
A morte se caracteriza como personagem do texto, á medida em que surgem
os seus rastros pelas cenas descritas. Observamos que a escritora Florbela lhes
atribui diversas conceituações metáforicas na inscrição da poética textual. “[...]
suprema ausência, que não tem regresso”. (PMG, p.100), “[...] como se quisesse
matar às marteladas qualquer “ave de rapina” que sentia roer-lhe as
entranhas”(PMG, p.103). Havia morte em todos os elementos que fazia parte da vida
de Manuel, “todos os simbólicos vultos dos túmulos, a Saudade, a Fé, as Musas e os
Anjos, todos lhe saíam das mãos” (PMG, p.103), todos remetem à morte. “Apoiou-se
pesadamente à pedra que trabalhava, e, muito lido, foi escorregando devagarinho
até cair como um boneco a quem um bebé, curioso e azougado, tivesse cortado os
fios da sua pobre existência de fantoche, que vivera duma mentira uma vida que não
passara de ilusão” (PMG, p.108). Manuel, com sua vidinha de fantoche, se deixara
escravizar por um sentimento não correspondido. À medida em que passava os dias,
mais esse amor- paixão tornava-se signo da sua destruição.
O amor-paixão coloca em cena a idealização do ser. O real como registro do
impossível é negado e substituído pela promessa de felicidade e totalidade
no outro. Da esperança ao fracasso, o sonho se transforma em vassalagem
amorosa (como no período medieval), martírio a serviço do gozo. Nega-se a
castração para sustentar o caráter ilusório de que o amado tem o que falta ao
amante. A diferença entre a sublimação e o ser idealizado remete para a
performance do amante em relação ao amado. (FERREIRA, ibid., p.8-9).
Na literatura ocidental o discurso do amor ganhou outra roupagem a partir do
século XII. Fundamentado no ideal de cortesia da cultura medieval, o “amor cortês”
representa a ficcionalização desse sentimento. O amor se associa à dor, ao
sofrimento e à promessa de servidão eterna. Aqueles que eram tomados por esse
sentimento ficavam à mercê da ventura e da desventura, da boa e da sorte, da
fortuna e do infortúnio:
O êxito heróico ou o fim trágico dessas narrativas (de amor) não
comovia o leitor, incentivando-o ao devaneio, mas também
contribuía para a ratificação do mito do amor: A plenitude é
inatingível porque o amor é proibido. Eis a estratégia do mito de
73
amor: a conversão do impossível em interdição a fim de que seja
mantida a promessa de felicidade (FERREIRA, 2004, p.8).
A criação do amor e toda a sua conjectura inserem a possibilidade de
aceitação e anseio pelo outro; mas essa aceitação se inscreve na medida em que o
objeto desejado revele, apenas, a idealização criada pelo amante. Ao Revelar as
máscaras que cobrem a trama amorosa e buscar, nelas, a estrutura de linguagem
que a concretiza, possibilita-nos inferir que toda a significação do amor depende dos
signos que o definem, da linguagem escolhida para representá-lo. Sendo o amor
algo subjetivo, sua expressão nasce da exposição do “eu” que, saindo do seu
isolamento labiríntico, busca se expor no sujeito à procura de um contato com o
outro.
( 2002, p.161-2).
Nádia Ferreira diz que:
O milagre do amor, o amor cortês e o amor trágico se inscrevem na
função de sublimação, na medida em que, por estratagemas
diferentes, o amado e o desejado se apresentam como objeto
inacessível, seja sob a forma de impossível ou perdido. No lugar do
objeto é colocado um vazio, fazendo com que o amor revele o que
tem por função velar: o real (2004, p.54).
No amor cortês, o objeto amado é colocado no plano da contemplação á
media que o trovador ou amante expõe o sentimento na forma de idealização da
mulher amada. Esse afeto torna-se sinônimo de sofrimento e vassalagem amorosa.
São regras que estabelecem as relações entre amante e amada: a cortesia, a
humildade, a fidelidade e o segredo, ou seja, o sigilo da identidade da amada.
Manuel em seu universo de idealizações não encontrava um elo para desenvolver
sua obediência amorosa:
E em tantos, tantos anos, nunca a loira fidalguinha olhara para ele.
Não, ele não se lembrava de um olhar, de sentir poisados nos
dele uma vez, de fugida, aqueles grandes olhos verdes-claros
que o endoideciam de amor!.Se ela tivesse olhado para ele ao
menos uma vez na sua vida! Mas não... no seu mesquinho tesoiro
de apaixonado, não encontrava nada, por mais que procurasse, por
74
mais que remexesse, que se assemelhasse ao doce fulgor de duas
límpidas esmeraldas claras [...] (PMG, p.105).
O amor cortês é um código de invenção ou ilusão (como citamos no capítulo
dois) fruto da cultura medieval. Todas essas regras eram praticadas por convenção,
dessa forma ratifica-se, aqui, o caráter ilusório desse sentimento. Salientamos que
esse aspecto de fingimento não foi construído hipocritamente, mas dentro de normas
estabelecidas. Aquele que se curvasse aos seus mandamentos, deveria cumprir na
íntegra todo o ritual feudal.
A inacessibilidade à mulher amada em “A Paixão de Manuel Garcia” revisita
uma forma de cortesia: a cortesia do anonimato, da indiferença: “E assim passaram
largos anos. O extraordinário é que ninguém deu por isso [...] a sua grande paixão
passou despercebida aos olhos de toda a gente” (PMG,p.104), que se inscreve no
silêncio do amante, ao não revelar a identidade da dama cortejada:
Sim, o louco segredo do filho, do pobre operário canteiro, era
aquele. A Maria del Pilar, a quem gritara de longe seu doido amor,
sua cega paixão de romântico, não era, como à primeira vista
poderia imaginar-se, a priminha afastada de que terras de Espanha
viera meses e que por aqui ficara, presa como andava a uns
escuros olhos portugueses. [...]. Era a outra, a outra Maria del Pilar,
a filha duma nobre espanhola e dum grande fidalgo português, era a
loira princesinha, a fada de seus sonhos de poeta, que um dia, dia
aziago e fatal, avistara por entre as grades douradas de seu jardim
distante (PMG, p.101).
Após viver imerso no seu segredo amoroso, enlaudado pelo sofrimento, pela
“coita”, pelo “morrer-de-amor” poeticamente, a personagem-amante ao ser
informada do compromisso da Dama- objeto amado - com Outro, põe fim ao seu
calvário amoroso.
Essa entrega à morte, por impossibilidade da consumação dos desejos do
amante, é própria da Estética Romântica do século XIX, em que o ser apaixonado,
na impossibilidade da realização amorosa, buscava na morte a libertação para os
seus sofrimentos. Esse ato do “morrer de amor” assemelha-se as mesmas ações
75
praticadas pela personagem Werther da obra Os Sofrimentos do jovem Werther de
Goethe. Aproximamos-os á medida que os protagonistas buscaram no suicídio a
solução para os amores não correspondidos.
Quando, naquele húmido crepúsculo de novembro, o sangue
salpicou a parede muito branco de cal, ao lado da cama, no
modestíssimo quarto de sua casinha de pobres, quando as morenas
mãos crispadas, que revolveram a chaga na angústia suprema da
morte, foram manchar de vermelho a pobre colcha branca, muito
lavadinha, seu orgulho de dona-de-casa, - quando ela entrou e viu, a
história leu-a ela inteira, dentro de sua triste alma de mãe dolorosa;
foi como se a lesse toda, linha a linha, capítulo por capítulo, naquele
funesto segundo em que o destino lhe punha diante dos olhos,
brutalmente, para que ela o lesse, seu sinistro epílogo de morte
(PMG, p. 96).
O corpo morto constrói um texto inesperado: a paixão por uma Dama
impossível de ser conquistada, culminou na bravura do suicídio, pois “quando o que
lhe ficou para trás não foi mais que um ponto perdido no desapego de tudo a que
chegara, quando conseguiu finalmente arrancar de si os pedaços irreconhecíveis do
seu sonho desfeito, Manuel Garcia olhou face a face a vida, e sorriu. Oh, o sorriso
de desdém dos que querem morrer!”, nesse desapego pelas coisas materiais, a
personagem segue a sua trajetória a ultrapassar-se como ser, construindo para si o
seu próprio destino, “quem foi que se atreveu a dizer alguma vez, quem foi que
ousou traçar num papel as letras da palavra cobardia, falando dum suicida?! Oh, a
medonha coragem dos que vão arrancando de si, dia a dia, a doçura da saudade do
que passou, o encanto novo do que há-de vir [...]” (PMG, p.110). Embriagado por
sua ilusão amorosa e assombrado pela verdade do seu mundo, Manuel buscou
fazer da paixão que sentia por Maria, o elixir da sua alma:
Quando Manuel Garcia viu pela primeira vez a princesinha loira,
através das grades doiradas do seu jardim distante, teria quando
muito dezessete anos e ela treze. [...] As suas gargalhadas eram
frescas como o riso dum regato a descer um monte.
76
Aos olhos de Manuel Garcia, Maria del Pilar, em seu jardim, no meio
das amigas, era assim como um sol a iluminar os seixos escuros e
desprezíveis das estradas. Que loucura! (PMG, p.104-5).
O encantamento causado em Manuel pela presença de Maria, transforma-o
em um ser sem vida, inanimado, ou melhor, petrificado, assim como os objetos
criados por ele na sua oficina de canteiro. Indiferente a tudo isso, Maria não tinha
conhecimento desse poder que exercia sobre ele; não sabia que Manuel era vassalo
do seu amor:
O deslumbramento da sua presença, da sua recordação intangível e
sagrada, do seu ser, dela, Maria del Pilar, princesinha loira, que,
com as suas mãos de boneca, o empurrara para a cova sem o
saber, fizera do rapagão moreno e cheio de vida, que ele era, o
trapo que ali jazia insensível e inútil (PMG, p.105-6).
Maria del Pilar não corresponde aos anseios do amante. Ela não toma
conhecimento da veneração que o protagonista lhe dedica. O seu mundo era outro,
sua classe social era outra e, mesmo noiva, continuava a ser intocável, como nos
informa o narrador numa descrição sacralizada:
Maria del Pilar, tão perto, estava longe, mais longe que as terras
longínquas de além-mar, mais longe que uma estrela cadente, que
nem o pensamento a pode seguir pelos céus fora, mas estava ali;
não era dele, não, meu Deus! Não a podia cobiçar sequer, mas não
era de ninguém. Vaso sagrado por onde nenhuma boca matara a
sede, templo que nenhuns passos tinham profanado ainda, torre de
marfim do seu amor a que nenhum olhar subira, não era dele, não,
mas era a Pura, a Intangível, era A que não era de ninguém!
10
(PMG,p.106-7).
Com essa informação: A que não era de ninguém, o narrador enfatiza a
pureza de Maria Del Pilar. Ela não pertencia a nenhum dos pretendentes,
independente de suas classes sociais: rico (o noivo) ou pobre (Manuel Garcia).
10
Destaque feito pela escritora Florbela Espanca.
77
Aproximamos essa passagem; o não ser de ninguém, vaso intocado perpetuando o
corpo virginal, com o corpo da “Virgem Maria”. Segundo o mito bíblico, Maria não
concretizou o ato sexual com seu noivo José e sua gravidez ocorreu por
interferência do plano espiritual. Assim, seu corpo não foi maculado pelo “pecado” da
entrega sexual.
A escritora apresenta-nos um caminho paradoxal ao informar da pureza de
Maria. Inferimos que, se a mesma não pertencia à ninguém, a paixão de Manuel por
ela serve, tão somente, de pano de fundo para o narrador tecer suas reflexões
sobre o ato de suicidar-se. O discurso amoroso do protagonista se esvazia, para das
fendas desse instigante amor, vir à tona, mais uma vez, o mbolo da morte, de
forma redentora para aqueles que padecem das doenças do coração.
Manuel segue ao longe sua “vidinha de pobre” vigiando o corpo de Maria a
circular pelo seu palácio. Enquanto ser desejante, a personagem busca energia no
seu labor diário para suportar a indiferença do ser amado. Segundo Junqueira
(2003, p.87-8), o trabalho com o qual o jovem se sustenta é alienante: serve,
surpreendentemente, como meio de manutenção da idéia fixa da personagem: a
paixão por Maria del Pilar.
[...] trabalhava, trabalhava febrilmente, sem descanso, o dia inteiro,
numa exaltação de todos os seus nervos, numa ânsia de todo o seu
ser, como se quisesse matar às marteladas qualquer ave de rapina
que sentia roer-lhe as entranhas (PMG, p.102-3).
Na oficina de canteiro em que trabalhava, Manuel passava os dias a moldar
corpos que se assemelhava ao corpo de Maria. A determinação com que criava as
peças, sugeria o tamanho da sua devoção pela dama:
Todos os simbólicos vultos dos túmulos [...] lhe saíam das mãos,
não se sabia por que acaso, com o mesmo perfil finíssimo, o mesmo
sorriso sinuoso, os mesmos contornos delicados dum rosto que o
obcecava e que o trazia arredado do resto do mundo, com os
mesmos corpos esbeltos de adolescentes puros talhados em linhas
rígidas e hieráticas. Parecia que a pedra tinha consciência da sua
alta missão, o orgulho de, bruta e informe, realizar um sonho, ser
78
transformada, por um raro prodígio de amor, numa Maria del Pilar
que a paixão dum pobre divinizara (PMG, p.103-4).
O narrador deixa transparecer a inconsciência de Manuel perante a vida e
surpreende-se ao perceber que ele, depois de muito tempo vivendo petrificado por
seus sentimentos, como se fosse um boneco com sua vida automatizada, acorda do
encanto (parecendo que alguma fada o tivesse condenado-o a isso),
transformando-o, novamente, em ser humano:
[...] Acordou sobressaltado do êxtase de tantos anos e deu com os
olhos na miséria da vida! Tinha adormecido criança, despertou
homem feito e, espavorido, estendeu as mãos para agarrar toda a
sua linda adolescência inverosímil e quimérica que lhe fugia. As
estátuas, os companheiros, os blocos de pedra, tudo redopiava em
volta numa vertigem que não conseguiu vencer. Apoiou-se
pesadamente à pedra que trabalhava, e, muito pálido, foi
escorregando devagarinho até cair como um boneco a quem um
bebé, curioso e azougado, tivesse cortado os fios da sua pobre
existência de fantoche, que vivera duma mentira uma vida que não
passara de ilusão (PMG, p.108).
O drama do canteiro começa a ser revelado no momento em que sua mãe
encontra seu corpo inerte no quarto, sangrando, com uma bala no peito:
As mães adivinham sempre, não sei porque miraculosa intuição, o
mistério que no mistério das suas entranhas foi gerado, e nunca se
enganam! Quando, naquele húmido crepúsculo de Novembro, o
sangue salpicou a parede muito branca de cal, ao lado da cama, no
modestíssimo quarto da sua casinha de pobres, quando as morenas
mãos crispadas, que revolveram a chaga na angústia suprema da
morte, foram manchar de vermelho a pobre colcha branca, muito
lavadinha, o seu orgulho de dona de casa – quando ela entrou e viu,
a história leu-a inteira, dentro da sua triste alma de mãe dolorosa; foi
como se a lesse toda, linha a linha, capítulo por capítulo, naquele
funesto segundo em que o destino lhe punha diante dos olhos,
79
brutalmente, para que ela o lesse, o seu sinistro epílogo de morte
(PMG, p.96).
Acostumada a conviver com a presença da morte: “Havia muitos anos que
aquela pobre, aquela desgraçada, sentia a morte rondar-lhe a porta. Ouvira-lhe, por
muitas vezes, os passos ao longe, depois mais perto, mais perto ainda até pararem
à porta... e a morte entrava” (PMG, p.97-8), a mãe não surpreende os leitores ao se
reencontrar com ela:
Não gritou, não disse nada; os pobres não gritam. A morte faz parte
de seu lúgubre cortejo de amigos, tem um cantinho em seu leito e
um lugar à sua mesa; quando chega, pode levar tudo; quando
transpõe a porta, aberta de par em par, com sua presa, não vê à sua
volta, a escoltar-lhe o fatídico vulto negro, senão cabeças curvadas
num gesto de resignação, braços caídos, braços de quem deu tudo,
de quem não tem mais nada para dar (PMG, p.97).
Os momentos de tensão desse reencontro o amortecidos pelas reflexões
do narrador. O clima de livre efusão interior não tem como refrear a forte onda
emotiva que o arrasta à lamentação, convidando o leitor a refletir com ele sobre o
destino trágico da classe pobre:
A dor dos pobres é resignada e calma; traz às vezes consigo as
aparências da revolta mas, no fundo, é cheia dum imenso, dum
infinito desapego por tudo. Os pobres vêm ao mundo já sem nada; o
pouco que a vida lhes deixa é emprestado. Que lhes hão-de tirar
que seja deles? Pergunta o narrador ao leitor, convidando-nos a
participar desse drama de gente simples, humilde, pobre. – Aos
pobres toda a gente chama de desgraçados (PMG, p.97).
A quantidade de mortes pelas quais à mãe passara, enfatiza a constância da
morte em seu mundo, a impossibilidade de fuga:
[...] Levou-lhe a mãe, o pai, dois filhos pequeninos, uma filha de
vinte anos, o marido, e por último entrara-lhe assim em casa, de
80
repelão, sem prevenir, e fizera-lhe do coração um frangalho
(PMG,p.98).
Junqueira salienta que
A persistência do elemento factício, que sempre prevalece sobre o
natural, incita-nos a eleger o canteiro Manuel Garcia como figura
emblemática, saliente dentre todas as personagens que se
apresentam em As máscaras do destino. De fato, sua atitude de
projetar na pedra a imagem da mulher amada reflete vivamente um
procedimento que é comum a todas as criaturas de Florbela: o de
deslocar a ordem do real para a esfera do ficional, instalando-se o
indivíduo, definitivamente, no espaço da sua imaginação espaço à
parte, espaço marginal que o deixa “arredado do resto do mundo”
(Ibid., p.89).
Os fenômenos construtores das cenas textuais asseguram a permanência da
morte por toda a sua trama: “noite-dia”, “claro-escuro”, “morte-vida”, “mistério”,
escuridão”. O dilúvio entra na cena para assegurar o aspecto de renovação para o
mundo daquela mãe: “[...] amortalhada na frescura daquela chuva que continuava a
encharcar tudo, como se para além das quatro paredes daquele quarto o mundo
acabasse num novo dilúvio”. (PMG, p.113).
Na simbologia, Chevalier argumenta que
“um dilúvio não destrói senão porque as formas estão usadas e
exauridas; mas ele é sempre seguido de uma nova humanidade e
de uma nova história. Evoca a idéia de reabsorção da humanidade
na água e de instituição de uma nova época com uma nova
humanidade” (2003, p.339).
Por esse foco, percebemos que o discurso da mãe da personagem-suicida
traz para o conto toda uma atmosfera inusitada. Dentro da proposta da
modernidade, esse gênero narrativo traz uma história interligada à outra, causando
espanto ou comoção no leitor. Assim, de uma malfadada história de amor, o
narrador nos conduziu para outros caminhos, outras reflexões, pautada numa
81
poética em que a voz do morto se fizera ouvir num momento de sorriso e por meio
desse diálogo entre os dois mundos: vivos-mortos, a poética da morte se
corporificou.
Ao interagir com o drama do filho, a mãe assume uma postura que causa
estranhamento; muda o destinatário da carta. Dessa forma, ela acentua mais uma
máscara da qual Manuel não poderia se desvencilhar: a morte metafórica do seu
amor por Maria Del Pilar, a moça nobre.
“Não, meu filho, não... eu sei. Que loucura! A carta... eu sei, a carta
não é para Maria Del Pilar que a esta hora dança, vestida de branco,
nos braços doutro. Não... eu sei. A carta vai ser entregue à outra, à
pobrezinha por quem tu morreste. Eu sei. Cala-te. Não chores. Está
sossegado. Pareceu-lhe então ver na boca do filho um eflúvio de
sorriso. Sim, era isso, não a enganara a sua intuição; era isso que
ele queria. A carta era para a costureirinha [...], pois para quem
havia de ser? Ele não conhecia outra Maria Del Pilar!...
82
3.2 EROTISMO NAS MÁSCARAS DA MORTE: “AS ORAÇÕES DE SOROR MARIA
DA PUREZA”
Caminhar pelo universo de Eros requer muita atenção, principalmente,
quando o que se convencionou chamar de erotismo nos dias atuais, é, nada mais,
que os apelos sexuais do corpo representados na mídia pela linguagem vulgar ou
pela imagem distorcida de um fenômeno tão misterioso e complexo.
Lúcia Castello Branco, refletindo sobre a densidade desse fenômeno, informa
que
definir erotismo, traduzir e ordenar, de acordo com as leis da lógica
e da razão, a linguagem cifrada de Eros, seria caminhar em direção
oposta ao desejo, ao impulso erótico, que percorre a trajetória do
silêncio, da fugacidade e do caos. O caráter incapturável do
fenômeno erótico não cabe em definições precisas e cristalinas - os
domínios de Eros são nebulosos e movediços
( 2004, p.7.
Vários estudiosos que perseguiram ou tentaram desvendar a trilha desse
“deus”, às vezes, por falta de resposta, mergulharam na perplexidade, no delírio, ou
se isolaram num silêncio eterno. Poetas, sexólogos, psicólogos, etc. têm um impulso
comum: a necessidade de verbalizar o erotismo, de escrever a linguagem do desejo,
de decifrar o “enigma do amor”, numa tentativa, talvez, de negar a morte em que
irremediavelmente nos lançamos ao percorrer os rastros de Eros.
Na mitologia grega Eros é o deus do amor; ele aproxima, mescla, une,
multiplica e varia as espécies vivas. A idéia de união não se restringe apenas ao
caráter sexual entre dois seres vivos; ela se estende à junção, conexão ou re-união
com a origem da vida e com o seu fim: a morte. A ligação com o cosmos, Deus,
natureza, ou outra nomenclatura usada, produziriam sensações fugazes, intensas,
êxtases, na busca da completude e da totalidade.
Segundo Georges Bataille:
o erotismo se articula em torno de dois movimentos opostos: a
busca de continuidade dos seres humanos, a tentativa de
permanência além de um momento fugaz, versus o caráter mortal
83
dos indivíduos, sua impossibilidade de superar a morte. Os
indivíduos se lançariam nessa busca de permanência porque eles
carregam consigo uma espécie de nostalgia” da continuidade
perdida ( 2004, p.53).
No universo literário, a linguagem como criação poética retoma esse “deus”
erótico, que escolhemos para o trabalho com o conto “As Orações de Soror Maria da
Pureza”. Para realizarmos essa busca da “continuidade perdida”, recorremos à
história bíblica de Maria e José, para focar o amor elevado à categoria do sagrado,
situação em que a morte não constitui barreira para que o mesmo se desenvolva.
Além do erotismo de cunho sagrado identificado na narrativa, percebe-se,
ainda, a presença de Tanatos (deus grego da morte), caminhando ao lado de Eros,
nesse universo inundado por êxtases.
O conto “As Orações de Soror Maria da Pureza”, desde o início, tematiza
esse universo duplo: erotismo e morte. O primeiro parágrafo, inicia-se com a
construção sintática: “No mundo era branca e loira; tinha quinze anos e chamava-se
Maria” (OSMP, p.139). A locução adverbial “no mundo” evoca a possibilidade de a
narrativa centrar-se na história de uma personagem que, no momento do relato,
se encontra morta. Os verbos no pretérito imperfeito, presentes em todo o primeiro
parágrafo, reforçam a perspectiva da morte, porém, o leitor é posteriormente
surpreendido ao descobrir que a morte física não se refere à Maria, mas ao seu
jovem namorado.
A narrativa é um espetáculo rememorado que se desdobra na mente de quem
a vai tecendo, como se desfiasse o novelo da memória: “Mariazinha lembrava-se
muito bem; era todas as noites a mesma coisa [...] (OSMP, p.140). A ambigüidade
da morte reforça a temática abordada nos contos aqui analisados. Da descrição do
ambiente ao aspecto psicológico, percebemos que a vida e a morte estão sempre
inseridas no cotidiano das personagens; quer seja de forma física ou metafórica. As
fronteiras entre essas duas forças são, por meio dos protagonistas, dissolvidas.
A personagem Mariazinha é, desde o início, apresentada como um ser
sobrenatural, sacralizada pelas descrições: “no umbral da porta envidraçada, descer
os degraus de mármore do terraço, surgir na grande avenida do jardim em direcção
às grades, muito branca, muito leve, quase imaterial" (OSMP, p.141).
84
Como se percebe, a protagonista exala uma aura de mistério, em que seu
universo parece desprender-se do mundo real.
Contrastando com a fantasmagoria da personagem, o ambiente é repleto de
caracteres que, insistentemente, representam a vida na sua plenitude. No jardim,
cenário dos encontros amorosos uma “vinha virgem de folhagem de rubis que a
mãe mandara arrancar mais de cem vezes, e que voltara sempre não sabiam donde,
não sabiam como, a enlaçar as grades em mil inflexíveis abraços, que nem a morte
podia quebrar” (OSMP, p.140).
Essa passagem remete-nos ao desfecho da história de Tristão e Isolda: No
túmulo onde estão enterrados, lado a lado, nascem uma roseira vermelha e um cepo
de vinha entrelaçados. E por três vezes o cortados, e por três vezes renascem e
se buscam, eternamente entrelaçados. O povo e seu rei, Marc, reconhecem e
aclamam o destino insuperável dos amantes das Cornualhas”. (BOCCALATO, 1996,
p.59). Dessa forma, a vida e a morte se mostram sempre amparadas uma na outra,
evitando a descontinuidade de ambos.
Retomando, mais uma vez, as observações de Chevalier, videira e vinha
virgem o a mesma coisa. Esta simbologia reforça a insistência da vida em brotar.
O estudioso aponta que, na mitologia grega, o cultivo da videira está ligado a
Dionísio
[...] cujo culto associado ao conhecimento dos mistérios da vida
após a morte, alcançou uma importância crescente. É essa ligação
de Dionísio com os mistérios da vida após a morte, que também são
os do renascimento e do co-nascimento, que fez da videira um
símbolo funerário, cujo papel continuou no simbolismo do
cristianismo (CHEVALIER, 2003, p.954-55).
A simbologia proposta pelo estudioso, além de reforçar a idéia da morte, traz
outra importante referência, que é a ligação do símbolo da videira com o
cristianismo. Lembramos que o nome da personagem é Maria, figura importante da
religião cristã. O noivo, ao se encontrar com ela, não ousa tocá-la, antes a como
uma santa “via-a tão pura que não ousava estender a mão com medo de que ela se
esvaísse [...] Mariazinha tão pura!” (OSMP, p. 142).
85
Conforme fora apontado anteriormente, a respeito do caráter ambíguo da
narrativa, no que se refere à vida e à morte, outro ponto de ambigüidade se instaura
na relação entre o sagrado e o profano, pois, ao mesmo tempo que o noivo a
como santa, o cenário conspira para uma atmosfera de sensualidade, como se
percebe no seguinte trecho:
Em vão o jardim voluptuoso multiplicava todas as suas seduções,
desvendava todos os seus segredos numa febre ansiosa [...]. A
vinha virgem agarrava-se com mais força, prendia mais os dedos,
num espreguiçamento voluptuoso, lânguido e firme, doce e brutal,
ao duro ferro das grades. [...] A sua carne era como a carne das
rosas, que mesmo aos beijos do sol fica fria. A rubra e ardente
poesia da noite sensual fazia realçar ainda mais a límpida candura
da virgem (OSMP, p.142-3).
Nesse trecho, no qual se apresenta o cenário, uma carga de erotismo no
entorno da personagem, o que à narrativa, conforme mencionado, um caráter
de oscilação. Enquanto a brancura de Mariazinha reforça o sagrado, o jardim
expressa os elementos sensuais.
O namorado parece lutar contra as forças naturais que os envolvem e resiste
à tentação de tocá-la, antes, entrega-se à adoração expressa por meio de uma
oração, que evoca diretamente a reza da “Ave-Maria”, conforme se observa no
fragmento destacado:
Quando te vejo vir ao longe, tenho vontade de te rezar: Ave-Maria,
cheia de graça... Maria! Toda tu és luz e iluminas-me, toda tu és
clarão e incendeias-me! Toda tu és expressão e alma imaterial; as
tuas formas são espírito revestindo outro espírito, como um manto
de rendas sobre um vestido de prata (OSMP, p. 143).
Nota-se que mesmo rezando, a ambigüidade se instaura fortemente.
Mariazinha o é comparada à Virgem, mas toma-lhe o lugar na oração do noivo.
Porém, expressões como “incendeias-me” e “manto de rendas” continuam
contribuindo para o caráter sensual que os envolve.
86
A obstinação da escritora em construir sua personagem envolta na claridade,
“branca”, “loura”, reforça a tese de que esta pertence a uma esfera sobrenatural, na
qual a “brancura” cria luz no texto, intensificando o aspecto sagrado de Mariazinha:
No mundo, era branca e loira; tinha quinze anos e chamava-se
Maria. [...]. Mariazinha, branca e loira, tinha um namorado [...]. E a
Mariazinha pouco mais era ainda que um bebé! [...]. Os cabelos
lisos, sem uma onda, a emoldurar-lhe de oiro a face branca [...]
(OSMP, p.139, 141).
Vale lembrar ainda que, segundo a tradição católica, a Virgem, escolhida por
Deus para dar a luz ao salvador da humanidade, era uma jovem de quinze anos,
que tinha um noivo chamado José. Esta referência enfatiza o que se afirmou
anteriormente. A personagem feminina do conto assume o lugar da personagem
bíblica aos olhos do noivo, que à semelhança de José, não concretiza o amor carnal.
Retomando o Dicionário de Símbolos, é possível observar ainda que:
a cor loura simboliza as forças psíquicas emanadas da divindade. E
a Bíblia confirma essa tradição: o rei Davi é representado por um
louro ruivo, tal como será representado o Cristo, louro, em
numerosas obras de arte (CHEVALIER, 2003, p.560).
Mariazinha nasce sob o signo da santidade, com uma aura divina que as suas
características físicas lhe imprimem. O seu cabelo louro cobre-a como se fora um
manto, ou um véu, a proteger o corpo santo da virgem, que em momento algum fora
profanado.
A busca de Eros, ou seja, a procura do amor e do desvendamento de seus
mistérios, perdura a eternidade, pois essa busca está intimamente ligada à morte,
conforme o pensamento da estudiosa cia Castelo Branco, cuja obra foi evocada
no início deste capítulo. O amor ultrapassa os limites da morte, como pode se notar
no conto “As Orações de Soror Maria da Pureza”, no qual mesmo após a morte
física do noivo, a relação amorosa permanece.
Com o anúncio da morte física dele, Mariazinha também morre para a vida
terrena “encerrada em si mesma como num cofre selado, foi um túmulo fechado e
mudo, onde as revoltas e os gritos, as censuras e as carícias iam despedaçar-se em
87
vão” (OSMP, p.146).
Após um período de “luto”, Mariazinha convence os pais sobre seu desejo de
enclausurar-se num convento: “levaram-na como quem acompanha uma filha morta
ao túmulo onde há-de ficar” (OSMP, p.148). Este trecho reforça a proposição acima
citada de que a personagem morrera para a vida terrena.
A santidade de Mariazinha, sempre vislumbrada pelo namorado, é reforçada
no convento, onde as freiras, bem como a própria madre superiora, a vêem como
Nossa Senhora:
[...] Sob o hábito, que lhe ficava tão bem como um vestido de
noivado, tinha estranhas parecenças com uma Nossa Senhora do
convento que, numa capelinha cheia de luz à direita do altar-mor,
sorria a um menino que lhe estendia os braços (OSMP, p.150).
Antes do Concilio Vaticano II, a tradição católica observada pelos religiosos e
religiosas consagrados era de que o noviço, ao cumprir os votos de consagração,
recebia na cerimônia, na qual assumia sua vocação, um novo nome. O motivo desse
cerimonial era de representar a morte para a vida secular e o nascimento para a vida
monástica. É isso que acontece com a personagem, pois, “quando a Mariazinha
adormeceu, acordou Soror Maria da Pureza” (OSMP,p.150). Dessa forma, a
personagem morreu para o mundo e renasceu para a vida religiosa. A dor da morte
do noivo serviu como uma espécie de motivação para o rito de passagem por ela
vivido no convento.
No claustro, Soror Maria da Pureza parece comunicar-se com o noivo morto
fazendo a mesma oração que ele fazia para ela em vida, ou seja, é através da
memória que eles se eternizam.
Assim como Cristo se sacrifica pela humanidade, Mariazinha “sacrifica-se” em
nome do Amor. Conforme se percebe nas situações em que ela, freira, “reza” as
declarações de amor. A forma como Soror Maria da Pureza as entoa, ”mais lindas,
mais fervorosas que as orações de Santa Teresa” (OSMP, p.152), permite às
testemunhas (freiras) a constatação de que se trata de uma oração a Deus;
configurando a ambigüidade do relato, pois uma elevação do pensamento ao
namorado e não a Cristo.
Há, portanto, a comunicação entre o mundo físico e o espiritual. A própria
construção do texto, nos permite a distinção de dois mundos: o plano terrestre
88
(profano) e o espiritual (sagrado). Logo no início da narrativa encontra-se a marca
espaço-temporal “No mundo, era branca e loira...” (OSMP, p.139). A partir desse
ponto começam as mudanças espaciais, camufladas pelas alterações no
comportamento da protagonista, pelas mudanças de sentimentos e reações: “[...]
Continuava a ir à grade onde ficava horas e horas a sorrir, de olhos baixos, com as
mãos a tremer, num enleio de amor que não era deste mundo” (OSMP, p.148).
A narrativa passa a ser mais introspectiva, para caracterizar a transcendência
do amor. Amor este que por não se materializar em vida, faz com que o casal
busque a única saída que lhe resta: sobreviver em contemplação espiritual. O objeto
amado era contemplado nessa perspectiva de sagrado no mundo profano,
onde o noivo divinizava sua amada de tal maneira que não se achava digno de tocá-
la:
Indigno sacrário que recolhe os teus gestos de beleza, só de joelhos
devia ver-te. Indigno pecador, como foi que te mereci?! Para te
pagar as horas inefáveis que das tuas mãos recebo, as horas de
paz que deixas cair sobre o mundo, toda a minha alma em preces,
de joelhos, de mãos postas, não é o bastante, Maria! (p.144-5).
Pode-se dizer que, apesar dos amantes estarem frente a frente, o amor
encontrava barreiras para se concretizar fisicamente, pois de um lado havia o
silêncio da amada, do outro a veneração do namorado, como se estivesse diante de
uma santa. Com a entrada de Mariazinha para o convento, uma inversão dos
papéis. Desta vez, é Soror Maria da Pureza quem venera o noivo falecido, por
meio das constantes orações.
A santidade atribuída à personagem é retomada pelas demais freiras, bem
como pelo capelão: “curvava-se reverente quando ela passava, quase imaterial,
pelos corredores escuros. Tinha o andar baloiçado e sereno de quem caminha num
andor em procissão”(OSMP, p.153). Uma das religiosas atribui a Soror Maria da
Pureza uma espécie de milagre ao afirmar que tinha visto “[...] a velha acácia que
não dava flores deixar cair pétalas no chão aos pés da vinha virgem, uma tarde em
que Soror Maria da Pureza lá rezara uma oração” (OSMP, p.154).
É nessa atmosfera sagrada que Mariazinha, agora Sóror Maria da Pureza,
continua amando e professando seus votos de amor:
89
“E no plácido silêncio dos claustros, onde o gorjeio do veiozinho de
água continuava a afagar os rios roxos, no coro onde os vitrais
transformavam como alquimistas o Sol em pedras preciosas,na
cerca cheia de murmúrios e risos de passarinhos, na igreja onde a
Nossa Senhora da capelinha cheia de luz estendia os braços, no
banco, sob o dossel da vinha virgem, por toda a parte, enfim, Soror
Maria da Pureza, indiferente a tudo, cada vez mais exangue, mais
frágil, mais luminosa, continuava a rezar as suas orações, que
andavam de boca em boca e que eram mais lindas e mais
fervorosas que as de Santa Teresa (OSMP, p.154)
.
Enfatizamos que a morte não foi empecilho para que o casal de amantes
perpetuasse seu sentimento. De caráter sagrado e/ou profano: “orações de amor,
sacrílegas, blasfemas orações de pecado, a um noivo-morto, rezadas num convento
de Toledo, aos pés dos altares, por bocas puras, que estranhas orações de
pecado!...” (OSMP, p.154) as súplicas de Sóror Maria da Pureza chegaram a
emocionar até as pessoas de corações fechados ao amor carnal: “De pecado?...
Não... que Sóror Clara das Cinco Chagas, a severa e ríspida superiora, ao ouvi-las
rezar um dia por uma das pequeninas na capela do Sagrado Coração, dissera
suavemente, erguendo os olhos ao céu: “Sagrado Coração do Senhor, ouvi-a!”
(OSMP, p.154-5).
O Cupido, Eros, ou o amor - como o nomeados - nesse embate infinito
venceu Tanatos ao se perpetuar na “vida” das personagens enamoradas. Como em
um arrebatamento, Mariazinha libertava-se dos muros dos claustros e adentrava o
mundo espiritual ao encontro do seu amado. Mundo este em que a linguagem verbal
é insuficiente na representação dos êxtases sentidos pela protagonista. Sua aura de
mistério irradiou-se pelas páginas do conto ao transformar as folhas em branco em
um manto de luz. Por meio do amor, à personagem constrói seu espaço no plano
divino.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
90
A prosa de Florbela Espanca causou,e ainda causa,estranhamento aos
leitores críticos, bem como aos leitores comuns. Ao final desta pesquisa,podemos
atribuir esta característica ao fato de que os tores adentram o universo da narrativa
de ficção florbeliana com uma idéia pré-concebida: procuram na obra a biografia da
escritora, destituindo, desse modo, o poder do texto literário. Este fato fez com que o
biografismo florbeliano se destacasse mais do que sua ficção narrativa.
Florbela Espanca chamou atenção para a sua vida íntima pelo fato de ter sido
uma mulher à frente do seu tempo. Mostrou-se livre nas relações amorosas e fez
dos seus versos o extravasamento para sua alma. Sua conduta tornou-a símbolo do
movimento feminista em Portugal. Ao agir dessa maneira, Florbela provocou a ira
dos guardiães da “moral e dos bons costumes” de sua época.
Dentre as temáticas que a escritora tratou, destacam-se o amor e a morte.
Florbela fez desses dois fenômenos o esteio da sua ficção. O destino de suas
personagens está sempre na dependência desses dois elementos, é por isso que
lhe atribuímos a construção de uma poética da morte inscrita na obra As Máscaras
do Destino.
As Máscaras do Destino é uma obra que deve ser lida a partir da sua
dedicatória, toda ela um canto doloroso de ternura por Apeles. O rtico “A meu
irmão, ao meu querido morto” ensejo direto à tônica da perda, da intensa dor, do
mau agouro a que não se deu ouvidos, ao acesso definitivo de Thanatos, a morte,
que Florbela quer, a todo custo, esconjurar, expulsar, para domesticá-la. Ela é
referência por meio da qual não se morre, mas se permanece: “Os mortos são na
vida os nossos vivos, andam pelos nossos passos, trazemo-los ao colo pela vida
fora e só morrem conosco”. (DAL FARRA, 2002, p.73).
A partir da reflexão de Florbela de que não se morre, foi possível
acompanhar, no decorrer das análises, a trajetória das personagens e seus dramas
de amor e morte, dentro de um discurso simbólico construído nas fendas
reveladoras de Eros e Thanatos.
Ao mesclar poesia e prosa, Florbela Espanca construiu contos, cheios de
lirismo, encantamento e fantasia. A dualidade constante entre vida e morte,
instaurados por uma situação amorosa, é entendida como mola propulsora na
criação estética e dramática dos textos analisados. O amor representa a alma
91
dessas narrativas; quer seja um amor à moda dos contos de fadas, um amor suicida
ou um amor de aspecto divino. A poesia que a linguagem desses textos constrói faz
a morte deixar de apresentar um aspecto repugnante, amedrontador, para
representar a possibilidade de fuga ou encontro dos amantes.
Nessa zona de encantamentos e seduções, Eros fez seus rastros dentro das
narrativas, simbolizando vida, energia, vigor ou, sucumbindo aos apelos de
Thanatos. O amor transformou-se em instrumento causador do suicídio, como se
ocorre no conto “A Paixão de Manuel Garcia”.
Florbela Espanca construiu sua narrativa com laivos de religiosidade. Nos
contos “A Morta” e “As Orações de Soror Maria da Pureza”, as protagonistas
vivenciam momentos em que o assemelhadas e/ou confundidas com a Virgem
Maria. No conto “A Morta”, o vestido da personagem é comparado às vestes da
Virgem Cristã “[...] O seu vestido branco aurelou-se de sonho, [...] lembrou um manto
de virgem” (p.58).
Em “As Orações de Soror Maria da Pureza”, suas canções de amor são
confundidas com orações ao sagrado: “Orações de amor, sacrílegas, blasfemas
orações de pecado [...]. De pecado?... Não... que Sóror Clara das Cinco Chagas,
dissera [...] erguendo os olhos ao u: Sagrado coração do Senhor, ouvi-a!.” (p.154-
5). Essa preferência da personagem Mariazinha optar por viver no claustro após a
morte do noivo, fechando-se para a vida, remete-nos ao pensamento medievalista
em que o convento era o refúgio apropriado para aquelas que perderam seus
amores. Essa ideologia do medievo ainda é muito acentuada no espírito português.
No texto “A Paixão de Manuel Garcia”, a religiosidade deve-se ao caráter de
pureza atribuído a personagem Maria Del Pilar. Mesmo comprometida com outro, a
moça continuava a exalar o seu semblante de pureza, vaso sagrado, como atesta o
narrador. Com esse aspecto divinizado, aproximamos a personagem, também, à
Virgem Maria e ao seu mito de ser intocado.
Como citado a introdução, a escritora Florbela Espanca não participou do
grupo do Orpheu, momento de rupturas na sociedade portuguesa e preferiu construir
um mundo à parte, no qual somente ela era a protagonista. Foi desse universo que
brotou inspiração para a escritura da sua prosa de ficção. Prosa essa que é marcada
por uma linguagem vazada em símbolos. Tomamos, por exemplo, a simbologia da
cor branca que proporcionou uma aura de luz aos textos, ao mesmo tempo em que
esta cor representa, também, o estado de luto. o esqueçamos que a obra As
92
Máscaras do Destino é uma ficção lutuosa, inspirada em fatos verídicos. Logo, todos
os seus artifícios de linguagem encaminham para a criação de uma ambiência
fúnebre nos seus escritos.
Por mais que se esforçasse para publicarem suas obras, Florbela Espanca
sempre encontrou obstáculos para essa realização. Quer sejam de ordens
financeiras ou sociais, as obras desta escritora foram relegadas ao descrédito da
crítica vigente. Foram publicados em vida, somente os livros de versos Livro de
mágoas (1919), o Livro de Sóror Saudade (1923) e algumas publicações esparsas
em editoriais de pouca credibilidade cultural.
As Máscaras do Destino, apesar de ter sido escrita em 1927 em louvor de
Apeles Espanca, ganhou “vida” no pós-morte da escritora. Sob esse ponto de
vista, observamos nesse expediente uma gênese da inscrição da morte na obra. Sob
a ótica do texto de ficção, verificamos o espraiar da morte pelas páginas, num desejo
de se fazer presente, de se corporificar em cada trecho da narrativa. Nesse caminho
construído pela voz do narrador relatando as lembranças das personagens, Eros
a tônica da fábula narrada a partir das considerações de Georges Bataille no que
tange a continuidade e descontinuidade dos seres.
Podemos observar, também, uma outra forma de manifestação desse deus
grego no conto “As Orações de Soror Maria da Pureza”: um erotismo de caráter
sagrado, um erotismo que nasceu em um ambiente profano e se desenvolveu nas
teias do discurso litúrgico, inscrito nas orações que a Sóror Maria dedicava ao noivo
falecido.
Outro aspecto que essa análise tentou verificar foi a relação de vassalagem
amorosa ocorrida no anonimato do ser. O código de cortesia medieval estabelecia
que um amante ou trovador poderia dirigir a uma Dama nobre os seus reclamos de
amor, essa senhora escolhida seria o alvo de toda a galanteria do seu servo
amoroso. No conto “A Paixão de Manuel Garcia”, a personagem homônima
inscreveu uma forma nova de vassalagem: a vassalagem do anonimato. Suas
súplicas, seus desejos jamais foram proclamados diretamente á Dona. Neste texto, o
foco narrativo foi desviado para as reflexões da mãe da personagem, que com seu
ímpeto de juiz ou deus, muda o desfecho, ao criar um final inusitado para a narrativa.
O corpus selecionado apresenta novas formas de desfecho para a narrativa:
desenlaces inesperados, com margem de possibilidades interpretativas. Dessa
93
forma, constatamos esse estilo de narrar como uma das marcas do texto moderno,
usadas por outros escritores com louvor e discriminadas pelos críticos de Florbela.
Assim, as reflexões apresentadas neste estudo, autorizam-nos a encaminhar
As Máscaras do Destino a ocupar um lugar na Estética Modernista Portuguesa, que
naquele momento de concepção fora banida pelo discurso preconceituoso da crítica,
inviabilizando sua presentificação no universo da História da Literatura Portuguesa.
94
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