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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
SANDRA DIAS DA SILVA RENNÓ
PRODUÇÃO DE INFERÊNCIAS
E AVALIAÇÃO DA COMPREENSÃO LEITORA
Mestrado em Língua Portuguesa
São Paulo
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
SANDRA DIAS DA SILVA RENNÓ
PRODUÇÃO DE INFERÊNCIAS
E AVALIAÇÃO DA COMPREENSÃO LEITORA
Mestrado em Língua Portuguesa
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em Língua Portuguesa, sob orientação
da Professora Doutora Vanda Maria da Silva Elias.
São Paulo
2008
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BANCA EXAMINADORA
______________________________________
______________________________________
_____________________________________________
Eis aqui a realização de um grande sonho
que orgulhosamente dedico à minha
orientadora Professora Doutora Vanda
Maria da Silva Elias.
Cada pessoa que passa em nossa vida passa sozinha, e não nos deixa só,
porque deixa um pouco de si e leva um pouquinho de nós.
Essa é a mais bela responsabilidade da vida e a prova
de que as pessoas não se encontram por acaso.
(Charles Chaplin)
AGRADECIMENTOS
À Secretaria da Educação de São Paulo, pelo apoio financeiro.
Ao Programa de Pós-Graduação de Mestrado em Língua Portuguesa da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), pela coordenação e
profissionalismo sério e competente.
À minha orientadora Professora Doutora Vanda Maria da Silva Elias, pelo
carisma, atenção e brilhantismo de sua orientação e, sobretudo, pelas palavras de
incentivo e de reconhecimento.
Às Professoras Doutoras Ana Rosa Ferreira Dias e Marli Quadros Leite, pelas
enriquecedoras contribuições que muito me ajudaram na finalização deste trabalho e
pela participação na banca examinadora.
Aos professores doutores do Programa de Pós-Graduação de Mestrado em
Língua Portuguesa, em especial, ao Professor Dino Preti e às Professoras Ana Rosa
Ferreira Dias e Sueli Cristina Marquesi, pelos ensinamentos e debates intrigantes.
À Rafaela Baract e Patrícia Carvalho, pelo respeito e seriedade para com o
trabalho de revisão.
À amiga Maísa S. Martins, pela amizade e companheirismo sempre presente
nos momentos diversos e, sobretudo, pelo carinho, apoio e troca de idéias.
Aos colegas do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Língua
Portuguesa, pela troca de experiência, em especial, às amigas rcia O. Jesus e
Maria Estela M. Modena, pela amizade, carisma e companheirismo.
À Direção da Escola Estadual Professor Paul Hugon, pelo apoio, e aos Alunos
das 6
as.
séries (A e B), de 2007, pela participação na pesquisa.
Aos meus pais, Braz e Neyde; às minhas irmãs, Sueli e Selma; ao meu
companheiro, Josmar; aos meus filhos, Solange e Renan, por acreditarem em mim,
pelo apoio e compreensão de minhas ausências nos encontros familiares, durante o
período de estudo e elaboração desta dissertação.
Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas...
Que já têm a forma do nosso corpo...
E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos
mesmos lugares...
É o tempo da travessia...
E se não ousarmos fazê-la...
Teremos ficado ... para sempre...
À margem de nós mesmos...
(Fernando Pessoa)
RESUMO
Esta dissertação insere-se na linha de pesquisa Leitura, Escrita e Ensino de Língua
Portuguesa, e tem como foco a produção de inferências e avaliação da
compreensão leitora. Sabendo-se que toda leitura implica a construção de sentidos,
ressaltamos que faz parte deste processo a inferenciação, entendida como uma
atividade de produzir informação nova a partir de informações dadas, em um
determinado contexto (cf.: MARCUSCHI, 1999; DELL'ISOLA, 2001; KOCH, 1993).
Para a realização deste trabalho, fundamentamo-nos em estudos sobre texto e
leitura situados no campo da Lingüística Textual e realizados por autores, tais como
Beaugrande (1997), van Dijk (2004), Koch (2003a, 2003b, 2004), Marcuschi (1999) e
Kleiman (2004), bem como em estudos sobre inferências realizados por Marcuschi
(1999, 2003, 2005, 2008), Dell’Isola (2001) e Koch (1993).
Tendo em vista o objetivo de verificar inferências produzidas no processo de leitura,
selecionamos um texto e solicitamos a alunos de série do Ensino Fundamental II
de uma escola pública da cidade de São Paulo que expressassem por escrito a
compreensão que tiveram do texto lido.
Em nossa verificação, constatamos que os alunos produzem muitas inferências
partindo das pistas textuais e de conhecimentos que possuem sobre as coisas do
mundo, suas vivências e experiências, razão pela qual podemos falar o de uma
única leitura ou sentido, mas de uma multiplicidade de leituras e de sentidos. Os
resultados indicam ainda que necessário se faz, da parte do professor, considerar na
avaliação da compreensão leitora as inferências produzidas pelos alunos,
entendendo esse processo como indissociável da atividade leitura e justificado não
apenas pelas sinalizações do texto, mas também pelos conhecimentos de mundo do
leitor.
Palavras-chave: leitura, inferência e compreensão.
ABSTRACT
The dissertation herein inserts in the research line of Portuguese Language Reading,
Writing and Teaching and is aimed to produce inferences and assessments of the
reader comprehension. Knowing that all reading implies the construction of senses,
we highlight that the inference is part of this process, understood as the activity to
produce new information from the given information, within certain contexts (cf.:
Marcuschi, 1999; Dell'Isola, 2001; Koch, 1993).
To fulfill this work, we based on studies about texts and readings placed in the
Textual Linguistic field and fulfilled by authors such as Beaugrande (1997), van Dijk
(2004), Koch (2003a, 2003b, 2004, 2005), Marcuschi (1999) and Kleiman (2004), as
well as on studies about inferences, fulfilled by Marcuschi (1999; 2003; 2005; 2008),
Dell’Isola (2001), and Koch (1993).
Taking the purpose of control inferences produced in the reading process into
consideration, we selected a text and asked students from the 6
th
grade in an
Elementary Public School from the city of São Paulo to express in writing their
comprehension on the text they read.
In our check, we evidenced that students produce several inferences from the textual
and knowledge tracks they have about worlds matters, their practices and
experiences, reason why we can discuss, not about a single reading or sense, yet a
multiplicity of readings and senses. Results still point out the need of teachers to take
into consideration, while assessing the reading comprehension, the inferences the
students produce, understanding that process as inseparable from the reading
activity and justified, not only by the text signals, but also by the knowledge about the
reader’s world.
Key words: reading, inference and comprehension.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................ 10
CAPÍTULO 1 LEITURA E CONSTRUÇÃO DE SENTIDO....................................13
1.1 Concepção de leitura: uma visão sócio-interacional ...................................... 13
1.2 Leitura e cognição..........................................................................................14
1.3 Leitura e interação ......................................................................................... 19
1.4 Leitura e conhecimento prévio .......................................................................22
1.5 Leitura e contexto........................................................................................... 29
1.5.1 Tipos de contexto ....................................................................................32
CAPÍTULO 2 LEITURA E PRODUÇÃO DE INFERÊNCIA...................................38
2.1. O que é inferência?.......................................................................................38
2.2 Tipos de inferência.........................................................................................43
2.2.1 Tipos de inferências nos estudos de Koch .............................................. 43
2.2.2 Tipos de inferências nos estudos de Marcuschi ...................................... 49
2.2.3 Tipos de inferências nos estudos de Dell’Isola........................................53
2.2.4 Tipos de inferências nos estudos de Ferreira e Dias...............................60
CAPÍTULO 3 INFERÊNCIAS E AVALIAÇÃO DA LEITURA..................................67
3.1 Critérios de escolha de conto......................................................................... 68
3.2 O gênero textual conto: definição................................................................... 73
3.2.1 A brevidade do conto............................................................................... 74
3.2.2 A organização do conto ...........................................................................76
3.3 Os sujeitos da pesquisa.................................................................................77
3.4 Realização de uma atividade de leitura para verificação de inferências e
avaliação da compreensão .................................................................................. 77
3.5 Seleção do corpus ......................................................................................... 78
3.6 Levantamento de inferências .........................................................................78
3.6.1 Inferências produzidas em relação à caracterização e ações das
personagens.....................................................................................................79
3.6.1.1 Sobre o homem que não sabia quase nada .....................................79
3.6.1.2 Sobre a mulher do homem que não sabia quase nada ....................80
3.6.1.3 Sobre a sogra do homem que não sabia quase nada ......................81
3.6.1.4 Sobre o homem, a mulher e a sogra que não sabiam quase nada . 83
3.6.1.5 Sobre o espelho................................................................................ 84
3.6.1.6 Sobre o final da história.................................................................... 85
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................87
REFERÊNCIAS....................................................................................................... 89
ANEXOS ................................................................................................................. 93
10
INTRODUÇÃO
Esta dissertação insere-se na linha de pesquisa Leitura, Escrita e Ensino de
Língua Portuguesa e tem por tema a produção de inferência e avaliação da
compreensão leitora. Sabendo que toda leitura implica inferência, o trabalho se
justifica visto que inferência é entendida como uma estratégia cognitiva por meio da
qual o leitor constrói sentidos, produzindo informação nova a partir de informações
dadas, em um determinado contexto, e deve ganhar especial destaque no ensino da
leitura.
Assim sendo, temos por objetivo geral contribuir para o ensino de leitura, de
modo a enfatizar na interação autor-texto-leitor a produção de inferências e de um
sentido para o texto. Nosso objetivo específico é verificar inferências produzidas por
alunos decorrentes do processo de leitura e analisá-las considerando as orientações
que o texto apresenta e a ativação de conhecimentos que os alunos possuem
armazenados na memória.
Para a realização da pesquisa, situamo-nos no campo da Lingüística Textual,
destacando estudos sobre texto e leitura realizados por Beaugrande (1997), van Dijk
(2004), Koch (2003a, 2003b, 2004), Marcuschi (1999) e Kleiman (2004), bem como
em estudos sobre inferências realizados por Marcuschi (1999, 2003, 2005, 2008),
Dell’Isola (2001) e Koch (1993).
Consideramos igualmente importante destacar que a leitura não é um
processo mecânico, mas, sim, uma atividade complexa que exige do leitor
conhecimentos vários para construção de inferências e, conseqüentemente, para
produção de sentido. Assim, além de a leitura ser uma atividade centrada na
interação autor-texto-leitor, os sujeitos-leitores são vistos como
atores/construtores sociais, sujeitos ativos que dialogicamente se
constroem e são construídos no texto, considerado o próprio lugar da interação e
da constituição dos interlocutores.” (KOCH; ELIAS, 2006, p. 10-11, grifos das
autoras).
11
Especificamente no que se refere à compreensão, consideramos importante
destacar que sempre existirá uma distância entre o que um indivíduo pensa ter dito e
o que o outro imagina que o primeiro disse, ainda que os indivíduos utilizem a
mesma língua, uma vez que a situação, o tipo de relação interlocutiva, o propósito, o
momento da história pessoal de cada um, o humor, o conhecimento de mundo, a
capacidade interpretativa, etc. interferem no processo de leitura e compreensão.
Dessa forma, podemos dizer que a leitura implica também subjetividade e
instabilidade, visto que se trata de uma atividade relacionada ao conhecimento de
mundo do leitor, às suas crenças, ao conhecimento partilhado com o autor, à
capacidade de interpretação do leitor ao estabelecer relações e produzir inferências,
aos tipos de relações interlocutivas entre leitor e autor e àquilo que cada um pensa
sobre si e sobre o outro.
Em relação às inferências, sabemos que exercem forte influência na
construção de sentidos do texto, ponto que vale ressaltar, pois, em um processo de
leitura, o leitor constrói várias inferências. Nesse processo, surgem as mais
inesperadas compreensões, resultado do conhecimento contextual, experiencial,
sociocultural e de crenças individuais.
Assim, tendo em vista os objetivos deste trabalho, estabelecemos os
procedimentos metodológicos:
1. revisão da literatura sobre leitura e produção de inferências para a constituição
da fundamentação teórica da pesquisa;
2. verificação de inferências em comentários escritos de alunos de 6ª série do
ensino fundamental, ciclo II;
3. comentários dos resultados a respeito das inferências.
Esta dissertação está organizada em três capítulos, além da introdução, das
considerações finais, das referências bibliográficas e dos anexos.
12
No capítulo 1, abordaremos a leitura e a compreensão sob o ponto de vista
sócio-interacional, segundo o qual a leitura é entendida como uma atividade
centrada na interação autor-texto-leitor, tendo por base os autores citados
anteriormente.
Por sua vez, no capítulo 2, trataremos de inferências, haja vista que toda
leitura envolve um processo de construção de informações novas a partir de
informações dadas, em um determinado contexto, conforme os autores
anunciados.
Por fim, no capítulo 3, verificaremos, em comentários escritos de alunos de
série do ensino fundamental, ciclo II, inferências produzidas, bem como
comentaremos os resultados obtidos.
Com este trabalho, esperamos contribuir para o ensino de leitura,
considerando o leitor um sujeito socialmente ativo que interage com o texto-autor,
construindo uma multiplicidade de sentidos que variam segundo o conhecimento
prévio, o objetivo e o momento situacional de leitura.
13
CAPÍTULO 1
LEITURA E CONSTRUÇÃO DE SENTIDO
1.1 Concepção de leitura: uma visão sócio-interacional
A leitura tem recebido atenção especial de pesquisadores por ser entendida,
atualmente, como uma atividade de produção de sentido que envolve uma série de
fatores sócio-interacionais no momento em que autor e leitor, via texto, partilham
seus conhecimentos.
Segundo a concepção sócio-interacional, a leitura é uma atividade centrada
na interação autor-texto-leitor. Nessa concepção, os sujeitos o vistos como
atores/construtores sociais, sujeitos ativos que dialogicamente se
constroem e são construídos no texto, considerado o próprio lugar da interação e
da constituição dos interlocutores” (KOCH; ELIAS, 2006, p. 10-11, grifo das autoras).
Tendo por fundamento essa perspectiva, compreendemos que o sentido não
é algo que preexista à interação, mas, sim, construído pelo leitor no momento em
que este mobiliza, com base nos elementos lingüísticos presentes na superfície
textual, um vasto conjunto de saberes (cf. KOCH; ELIAS, 2006).
Esse processo implica entender o texto como um “evento comunicativo em
que convergem ações lingüísticas, cognitivas e sociais” (BEAUGRANDE, 1997,
p.15). Segundo Koch (2003a), um texto só se constitui como evento comunicativo no
momento em que os parceiros de uma atividade comunicativa global interagem com
o texto, recorrendo a uma complexa rede de fatores de ordem situacional, cognitiva,
social e cultural.
Levando em consideração essa concepção de texto, faz-se necessário
ressaltar que “o significado que um texto escrito tem para o leitor não é uma
14
tradução ou réplica do significado que o autor quis lhe dar, mas uma construção que
envolve o texto, os conhecimentos prévios do leitor que o aborda e seus objetivos”
(SOLÉ, 1998, p.22). Nesse sentido, Colomer e Camps (2002) afirmam que ler é mais
do que um simples ato mecânico de raciocínio, pois o leitor realiza uma série de
operações sociocognitivas para constatar que o significado de um texto não reside
na soma de significados das palavras que o compõem, nem coincide com o que se
costuma chamar de significado literal do texto, mas se constrói em relação aos
outros.
1.2 Leitura e cognição
A fim de verificarmos que leitura não é um processo mecânico, mas, sim, uma
atividade complexa que exige do leitor conhecimentos vários para construção de
inferências e, conseqüentemente, para produção de sentido, destacamos, a seguir,
aspectos cognitivos envolvidos na atividade de leitura.
Ao ler um texto, o leitor raciocina e infere de forma contínua, captando uma
grande quantidade de significados que não aparecem diretamente no texto, mas que
são dedutíveis, isto é, que podem ser pressupostos e relacionados implicitamente
com os conhecimentos prévios e compartilhados com o autor. Isso significa que,
durante a leitura, o leitor parte da hipótese de que o texto possui um significado e,
para entendê-lo, busca-o tanto por meio da descoberta de indícios visuais como por
meio da ativação de uma série de mecanismos mentais que lhe permitem atribuir um
sentido. Nesse caso, longe de ser um simples ato mecanicista de decifração de
signos gráficos, a leitura é:
um ato de raciocínio, que se trata de saber orientar uma série de
raciocínios no sentido da construção de uma interpretação da mensagem
escrita a partir da informação proporcionada pelo texto e pelos
conhecimentos do leitor e, ao mesmo tempo, iniciar outra série de
raciocínios para controlar o progresso dessa interpretação de tal forma que
15
se possam detectar as possíveis incompreensões produzidas durante a
leitura. (COLOMER; CAMPS, 2002, p.31)
Para Colomer e Camps (2002), quando o leitor parte da informação
proporcionada pelo texto e a compartilha com seus conhecimentos prévios a fim de
compreendê-lo e apreender novos conhecimentos, ele o controla o progresso
de sua interpretação, como também detecta possíveis incompreensões surgidas no
decorrer da leitura.
Por sua vez, Pellanda (2005, p.53), no que diz respeito à complexidade do
processo cognitivo da leitura, assume uma perspectiva autopoiética e conceitua
leitura como processo de “fazer emergir” por meio de atividade interna de recriação
do texto com autonomia (autoria), o que nada mais é do que o resultado da
interação, “de forma inseparável do próprio processo de viver e tornar-se”.
Fundamentada em pesquisas da Biologia da Cognição desenvolvidas por
Humberto Maturana e Francisco Varela, Pellanda (2005) explica-nos que o termo
autopoiético provém da palavra grega autopoiesis, na qual auto significa “por si
mesmo”, e poiesis, “produção”. A partir dessa linha teórica, a pesquisadora
desenvolve estudos sobre a complexidade do processo cognitivo, isto é, sobre o que
acontece durante o processamento da leitura, partindo do princípio da auto-
organização para as dimensões do vivo e do não-vivo, a fim de explicar que há
implicações em termos de devir da virtualidade e da interação.
O termo virtualidade se deve ao fato de os humanos serem indivíduos virtuais
no sentido de vir-a-ser, uma vez que é por meio de dispositivos mobilizadores e de
mecanismos adaptativos que eles se atualizam. Pellanda (2005) considera a leitura
como um desses dispositivos e inclui em seu trabalho o conceito de Ecologia
Cognitiva, de Pierry Levy, visto que o pesquisador trabalha com a virtualização, no
sentido da convivência humana nas contínuas relações interacionais com o meio em
que o ser vive.
De certa maneira, observamos que não o meio exerce uma influência na
vida dos seres vivos, como também os seres vivos se deixam influenciar pelo meio.
Assim, Pellanda (2005) nota que a complexidade do conceito proposto por Maturana
16
e Varella ocorre porque o sistema depende das interações com o meio e este, por
sua vez, torna-se um elemento perturbador que desencadeia mudanças internas.
Para explicar esse processo, a autora afirma que a concepção autopoiética da
vida se estende à teoria do conhecimento, tendo em vista que é pela interação que
os seres vivos se constituem como tais. No meio, as interações desencadeiam
atividades vitais, uma vez que são “cognitivas e criadoras das configurações do viver
de cada ser”, pois “Todo fazer é conhecer/ Todo conhecer é fazer” (MATURANA;
VARELLA, 1990, p.15 apud PELLANDA, 2005, p.55).
Ainda, segundo Pellanda (2005), existe uma operacionalidade no mecanismo
central responsável pela configuração da realidade de cada indivíduo. Considerando
que essa operacionalidade jamais é pré-dada, verifica-se nela uma ação de
dependência efetiva do ser vivo quando em interação. Tal dependência resulta em
configurações dinâmicas dos sujeitos e do meio, sendo, por isso, chamada por
Maturana e Varella de “acoplamento estrutural”, dado que os seres vivos estão em
permanente conexão com o meio.
Nesse acoplamento estrutural, ocorrido por meio da linguagem,
desencadeiam-se nos seres humanos importantes mecanismos
cognitivos/ontológicos, o que, sob a perspectiva autopoiética, significa conceber
leitura e leitor como um sistema de relacionamento leitor-texto. Nessa relação,
Pellanda (2005) afirma que o texto é um instrumento adaptativo complexo na medida
em que, ao ler, fazemos mais sinapses no cérebro, transformando e aperfeiçoando
nossa capacidade de relação com o real. Portanto, um texto não seria algo objetivo
e prévio para o leitor, mas ele se constitui em cada um de nós durante o processo de
leitura.
Nessa mesma linha de pensamento, Rosenblat adota o conceito de transação
(transation) ao tratar do processo de leitura sob um paradigma que privilegia as
relações e o processo, em detrimento da substância e das referências externas.
Dessa forma, para a autora, cada ato de leitura é:
um evento, ou uma transação envolvendo um determinado leitor e um
determinado padrão de sinais, um texto, e ocorrendo num tempo e contexto
17
particulares. Em vez de duas entidades fixas agindo uma sobre a outra, o
leitor e o texto são dois aspectos de uma situação dinâmica total. O ‘sentido’
não reside num texto ‘já pronto’ ou num leitor definido, mas o que
acontece ou chega a ser tem a ver com a transação que se no processo
entre o leitor e o texto. (ROSENBLAT, 1998 apud PELLANDA, 2005, p.56)
Tendo em visa a Teoria Autopoiesis e o conceito de transação, Pellanda
(2005), com base nos mecanismos que constituem os modelos cibernéticos, propõe
oito movimentos estratégicos para a temática da leitura como cognição:
1. O movimento de apropriação é aquele que nos permite, de forma autônoma,
entrar no texto, operar com as palavras e as frases e fazê-las nossas.
2. O movimento de interação é aquele por meio do qual o leitor, na
intercomunicação texto-autor-leitor, ao texto novo significado por estar
relacionado com seu próprio viver ressignificado.
3. O movimento de experimentação é aquele que toma a cognição como algo
sempre vivido. Baseando-se em Deleuze, Pellanda (2005, p.63) nos diz que o
texto deve ser sempre experienciado e jamais interpretado, pois “nossa relação
com o texto se dá sempre através do nosso próprio devir”.
4. O movimento de virtualização/atualização é aquele em que um texto causa
perturbação no leitor e faz eclodir nele o que era virtual, configurando um novo
domínio de vida. Logo, de acordo com a autora, na leitura de um texto uma
circularidade constante entre virtualização e atualização, pois, como um
pensamento se atualiza num texto e um texto numa leitura, o sentido só é
construído pelo leitor quando ele é capaz de virtualizar as emoções que cada
trecho lido lhe desperta.
5. O movimento das emoções é aquele em que as afetividades estão envolvidas.
Ao basear-se nos estudos de Maturana (1994, 1999), Pellanda (2005, p.64)
observa que, algumas vezes, o cientista nomeia seus estudos de Biologia do
Amor, isto porque, para ele, “os seres humanos têm uma história de relações que
constituem a organização do funcionamento da espécie, e o amor, aí, é o
18
elemento básico. Para esse autor, não fenômeno social sem a presença do
amor. E também não fenômeno cognitivo sem essa emoção”. Nesse sentido,
para a autora, um texto pode provocar emoções e, por sua vez, estas podem
disparar disposições cognitivas.
6. O movimento de invenção é aquele em que o leitor não representa o texto
escrito, mas o reconstrói em seus próprios termos.
7. O movimento da produção da diferença é aquele cujo conhecimento individual
do leitor participa da leitura, pois aquilo que o texto oferece a ele não é a
possibilidade de representação da realidade dada e de percepção do que se
tem de igual entre leitor e autor, mas é a possibilidade de tornar o leitor em outro,
de levá-lo a se produzir enquanto singularidade.
8. O movimento da imaginação é aquele cuja criatividade foi banida da Educação
no paradigma tradicional como um não-conhecimento, ou até mesmo
atrapalhadora do conhecimento. Atualmente, tem-se constatado que a
imaginação está de volta como “instrumento cognitivo fundamental” e que, “numa
cultura informatizada, ela volta com o nome de ‘simulação’” (PELLANDA, 2005,
p.64).
Por sua vez, na perspectiva funcional para leitura, segundo Fulgêncio e
Liberato (2001), o leitor exerce um papel fundamental, pois é ele quem constrói o
sentido para o texto. Dependendo dos objetivos de leitura e da organização
estrutural e contextual, Dell’Isola (2001, p.36), fundamentada nessa concepção, nos
diz que diferentes leituras para um mesmo texto, uma vez que este “é capaz de
evocar uma multiplicidade de leituras em diferentes leitores, ou em um mesmo leitor
em diferentes épocas ou ocasiões”. Dessa forma, o processo de construção de
sentido depende, crucialmente, da participação ativa do leitor. Para Perini (2005,
p.37), “longe de ser um simples receptáculo para a informação do texto, o leitor
colabora ativamente na construção da paisagem mental”.
O autor compreende que ler um texto é formular inferências de caráter lógico
ou expectativas de diversos tipos. Os resultados de tais formulações devem ser
19
extremamente ricos e complexos, que neles reside a grande força do texto escrito
e é nele, pois, que também encontramos grandes problemas de incompreensão.
Assim, a fim de desvendar o que de implícito em um texto, o leitor faz uso de
algumas estratégias para preencher as lacunas textuais e construir sentido. Uma
dessas estratégias é a inferenciação, assunto de que trataremos no segundo
capítulo.
1.3 Leitura e interação
Como foi dito anteriormente, adotamos uma concepção sócio-interacionista
de leitura, cuja atividade de produção de sentido está centrada na interação autor-
texto-leitor. Em se tratando de atividade interativa de leitura, Solé (1998, p.23) afirma
que, ao lermos, “necessitamos, simultaneamente, manejar com destreza as
habilidades de decodificação e aportar ao texto nossos objetivos, idéias e
experiências prévias”. Nesse sentido, Paulino et al. (2001, p. 28) assumem o ponto
de vista segundo o qual “a partir do momento em que o leitor e a leitura são vistos
como elementos integrantes da produção de sentido, o circuito texto/leitor deixa de
ser pensado como uma direção de mão única”. Em outras palavras, o leitor, quando
instigado pelo que lê, “produz sentidos, dialoga com o texto, com os intertextos e
com o contexto, ativando sua biblioteca interna, jamais em repouso”.
Tendo em vista essa perspectiva de leitura, ler torna-se “uma atividade ampla
e complexa que reúne um vasto arsenal de procedimentos, protocolos e ações que
precisam ser desdobrados para que se tenha clareza maior de sua dimensão”.
Assim sendo, para compreender um texto, o leitor transita em dois espaços: “um que
assegura certas liberdades na reconstrução dos fatos textuais; outro que lhe impõe
orientações determinantes para o sentido de partes recorrentes em um texto” (MARI;
MENDES, 2005, p. 155-157).
Nesse sentido, van Dijk (2004, p. 15) parte do pressuposto de que
“compreender envolve não somente o processamento e interpretação de
20
informações exteriores, mas também a ativação e uso de informações internas e
cognitivas”.
Tomando por base o processamento on-line (metáfora computacional), van
Dijk (2004) nos explica como as pessoas compreendem acontecimentos reais ou
eventos discursivos, ao mesmo tempo em que os vivenciam. Segundo o
pesquisador, as pessoas são capazes de construir uma representação mental,
principalmente se ela for significativa. Contudo, é preciso ter um conhecimento mais
geral a respeito de tais acontecimentos, já que, para se interpretar um fato, como um
acidente, por exemplo, as pessoas devem saber alguma coisa a respeito de ações
comuns que envolvem esse tipo de situação (cf.VAN DIJK, 2004, p.15).
As habilidades de interpretação, para van Dijk (2004), são flexíveis e, por isso,
elas permitem que as pessoas processem as informações de diversas maneiras e
nas mais possíveis ordens, mesmo que uma informação esteja incompleta. A leitura,
então, levando em conta a flexibilidade, depende de um universo cultural-cognitivo e
é vista como “um processo de seleção que se como um jogo com avanço e
predições, recuos para correções, não se faz linearmente, progride em pequenos
blocos ou fatias e não produz compreensões definitivas” (MARCUSCHI, 1999, p. 96).
Ao se considerar a leitura como um ato de interação que se desenvolve entre
o leitor e o autor com base no texto, os resultados de uma compreensão não podem
ser previsíveis, pois a multiplicidade de sentidos que pode acontecer durante a
leitura leva-nos às mais inesperadas interpretações (cf. MARCUSCHI, 1999). Tal
multiplicidade de sentido deve-se a fatores de ordem contextual, cognitiva,
experimental e de crenças individuais que sempre exercem influências significativas
na organização das inferências, de modo que os conhecimentos individuais afetam
decisivamente a compreensão leitora, visto que o sentido não reside no texto, mas é
construído na/pela interação leitor-texto-autor.
Sob essa mesma perspectiva interacional, Jurado e Rojo (2006, p.40)
afirmam que “ler é dialogar com a consciência do autor, com outros enunciados e
vozes, não decifrando, mas produzindo sentidos com os conhecimentos que se tem
de outros textos/enunciados e com os que traz o autor.”
21
Seguindo essa mesma linha de pensamento, Gurgel (1999) nos diz que o
leitor, quando lê, projeta sobre o texto seu conhecimento de mundo, seu
conhecimento textual e linguageiro, além de tecer com o outro, por meio do texto,
sua individualidade. Assim, para ela, “a leitura da palavra é antecedida não pela
leitura de mundo, mas por certa forma de escrevê-la ou de reescrevê-lo, de
transformá-lo a partir de nossa prática consciente” (1999, p.210).
Conseqüentemente, isso reafirma o fato de que é pela palavra que o ser humano se
reconhece como parte da humanidade, que o está isolado e que, tem, portanto,
a capacidade de tecer sua própria individualidade a partir do e com o outro.
No processo de interlocução entre leitor/autor, Geraldi (2005) o leitor não
como um sujeito passivo, mas como um agente em busca de sentidos, uma vez que,
durante a leitura, um encontro entre leitor e autor-ausente, cuja presença é
mediada pelo texto e se dá, portanto, por meio da palavra escrita.
Não somente Marcuschi (1999) ressalta que o autor de um texto o pode
prever os resultados da construção de sentidos produzida pelo leitor, como também
Geraldi (2005) afirma que, mesmo que o produtor atribua um determinado
significado ao próprio texto ou imagine que significado seus leitores poderão
construir, ele não será capaz de saber, por si só, o domínio do processo de leitura do
outro, já que a reconstrução e a atribuição de sentido são competências do leitor.
Acreditando nos múltiplos sentidos que um mesmo texto pode ter, Fonseca e
Geraldi (2005) asseguram que essa multiplicidade é conseqüência da mudança das
diferentes condições de produção de leitura. Cada vez que um mesmo texto é lido
com objetivos diferentes resulta em novas leituras e, desse modo, novos sentidos
por elas são produzidos. Em outras palavras, mesmo que o interlocutor/leitor seja o
mesmo, quando se mudam os objetivos de leitura, alteram-se as condições de
produção e, também, o processo.
Os estudos sobre leitura e compreensão abordados neste tópico sinalizam
que a interação leitor-texto-autor é elemento fundamental para a construção do
sentido. Assim sendo, durante o processo de construção de sentido, segundo Koch
(2003b), o leitor jamais deixa de ser participativo e produtor, levando em conta que
em todo texto há incompletudes que precisam ser preenchidas.
22
Ainda de acordo com a estudiosa, todo texto é um ‘iceberg’, pois
possui apenas uma pequena superfície exposta e uma imensa área imersa
subjacente. Para se chegar às profundezas do implícito e dele extrair um
sentido, faz-se necessário o recurso aos vários sistemas de conhecimento e
à ativação de processos e estratégias cognitivas e interacionais (KOCH,
2003b, p.30).
Nesse caso, no decorrer de uma leitura, não se pode deixar de reconhecer
que o conhecimento prévio é fundamental para construção do sentido.
1.4 Leitura e conhecimento prévio
Ao fazer uma leitura, o leitor realiza conexões significativas entre a
informação conhecida e a informação nova. Dessa forma, nas palavras de Oller
(2003, p.40):
A diferença de conteúdos entre o que se e o que se sabe deve ser
suficientemente pequena para estabelecer conexões e suficientemente
ampla, por sua vez, para que possa despertar o interesse do leitor. É
necessário conseguir estabelecer relações significativas entre as
experiências prévias do leitor referentes ao conteúdo da leitura e à
atividade de leitura em si mesma com a informação proporcionada pelo
texto ao longo da leitura.
Nesse sentido, a compreensão de um texto não ocorre apenas pela
decodificação de cada elemento nele explícito, mas é um processo que exige do
leitor o estabelecimento de relações entre as partes desse texto, bem como o
preenchimento de lacunas com base em seus conhecimentos prévios.
23
Em seus estudos sobre leitura e produção de sentidos, Dell’Isola (2001, p.36)
afirma que “compreender um texto é ter acesso a uma das leituras que ele permite, é
buscar um dos sentidos possíveis oferecidos por ele, determinado pela bagagem
sociocultural que o leitor traz consigo”.
Nessa busca de produção de sentido, necessário se faz levar em conta
conhecimentos partilhados entre leitor-autor, pois haverá entendimento se as
informações retiradas de um texto forem integradas ao sistema de conhecimentos
preexistente na memória, de tal modo que o leitor seja capaz de “construir uma
espécie de ‘paisagem mental’ coerente e ancorada em conhecimentos prévios”
(PERINI, 2005, p.37).
De acordo com Fulgêncio e Liberato (2001), a complexidade do processo de
compreensão textual ocorre por diversos fatores inter-relacionados. Dentre eles,
encontram-se: o conhecimento lingüístico, o conhecimento prévio a respeito do
assunto tratado no texto, o conhecimento geral a respeito do mundo, a motivação,
os objetivos e os interesses na leitura.
Reconhecendo que compreensão depende das relações que o leitor
estabelece com o autor durante a leitura de um texto, Kleiman (2004, p.13) defende
que compreender um texto é:
um processo que se caracteriza pela utilização de conhecimento prévio: o
leitor utiliza na leitura o que ele sabe, o conhecimento adquirido ao longo
de sua vida. É mediante a interação de diversos níveis de conhecimento,
como o conhecimento lingüístico, o textual, o conhecimento de mundo, que
o leitor consegue construir o sentido do texto. (grifo da autora)
Por sua vez, Solé (1998, p.23) considera conhecimento prévio tudo aquilo que
faz parte da bagagem experiencial do leitor, pois, para ler, “precisamos nos envolver
em um processo de previsão e inferência contínua, que se apóia na informação
proporcionada pelo texto e na nossa própria bagagem, e em um processo que
permita encontrar evidência ou rejeitar as previsões e inferências”.
24
A estudiosa assegura, inclusive, que toda experiência compartilhada entre os
membros de uma comunidade leva o leitor a entender o mundo que o cerca e a
atuar segundo os esquemas sociocognitivo-culturais da comunidade com a qual se
relaciona, uma vez que
durante toda a vida, as pessoas, graças à interação com os demais e
particularmente com aqueles que podem desempenhar um papel de
educador, vão construindo representações da realidade, dos elementos
constitutivos da sua cultura, entendida em sentido amplo: valores, sistemas
conceituais, ideologia, sistemas de comunicação, procedimentos, etc.
(SOLÉ, 1998, p. 40)
Por isso, a autora considera o conhecimento prévio como um conjunto de
construções das representações da realidade e dos elementos constitutivos de uma
cultura em sentido amplo.
Assim sendo, os esquemas de conhecimentos podem ser mais ou menos
elaborados, manter maior ou menor número de relações entre si, apresentar um
grau variável de organização interna, representar em um determinado momento da
nossa história o nosso conhecimento, sempre relativo e ampliável” (SOLÉ, 1998, p.
40, grifo da autora).
Dessa forma, a estudiosa sintetiza a leitura como um ato de compreensão,
visto que:
ler é compreender e compreender é sobretudo um processo de construção
de significados sobre o texto que pretendemos compreender. É um
processo que envolve ativamente o leitor, à medida que a compreensão que
realiza não deriva da recitação do conteúdo em questão. (SOLÉ, 1998,
p.44)
Além disso, não o conhecimento prévio é fundamental para a produção de
sentidos como também a confiança, a disponibilidade de ajudas necessárias, a
25
motivação e o interesse contribuem para o êxito de uma leitura e garantem a
atenção do leitor ao longo dessa atividade (cf. SOLÉ, 1998).
que é o conhecimento prévio que permite ao leitor fazer predições, Kato
(2004) constata que ele advém do próprio texto ou de informações extratextuais
provenientes dos esquemas mentais do leitor.
Para ela, “a compreensão passa a ser vista não mais como resultado de uma
decodificação dos sinais lingüísticos, mas como um ato de construção, em que os
dados lingüísticos são apenas um fator que contribui para o significado construído”
(KATO, 2004, p.61).
Nesse sentido, para que a leitura se concretize em um ato de construção, o
leitor, que também é um produtor, deve interagir e dialogar com o texto e seu autor.
Contudo, para que isso aconteça, Koch (2004) considera necessário um conjunto de
conhecimentos que possa ser parcialmente partilhado entre as partes (leitor e autor).
Com base em Koch (2004), Dell’Isola (2001) ressalta que uma invocação
de natureza interativa no tratamento textual, pois, ao fazer uma leitura, o leitor
recorre a seu conhecimento prévio para verificar combinações possíveis para
construir o sentido do texto.
Dell’Isola (2001) destaca, inclusive, um aspecto importante que precisa ser
considerado no texto escrito. Para ela, o autor (escritor) deve levar em conta os
conhecimentos prévios dos possíveis leitores de seu texto, visto que tais
conhecimentos variam de um leitor a outro. A propósito, várias são as formas de se
manifestarem as diversidades entre os leitores: a interferência das diferentes
crenças sobre o mundo, a familiaridade (ou não) diante dos tipos e gêneros textuais,
a capacidade de reconhecer características organizacionais de um texto, o domínio
do léxico empregado, a identificação da função da sintaxe e a percepção da
amplitude dos valores semânticos, discursivos e pragmáticos veiculados na obra.
Enfim, todos esses itens, que caracterizam o conhecimento prévio, deverão ser
acionados durante e após a leitura de um texto.
Reconhecendo a relevância que tais conhecimentos exercem sobre a leitura
durante a construção de sentido, Mari e Mendes (2005) esclarecem que, para ler um
26
texto e compreender seu discurso, qualquer leitor precisa se ater à sua textualidade,
a qual, segundo os pesquisadores, é decorrente de regras que se integram ao
sistema da língua.
De acordo com os autores, as regras da língua são todas aquelas que
contribuem para a construção primária do sentido e que representam desde o traço
mais elementar do plano fonológico até os mais complexos no plano semântico.
Portanto, segundo eles, essas regras são universais e públicas, por isso “elas
acabam por assumir a função de assegurar um padrão mínimo de sentidos
consensuais” (MARI; MENDES, 2005, p. 158).
Assim sendo, para haver leitura de qualquer texto, é necessário dominar o
padrão básico de sentido garantido pela língua. Contudo, mesmo que o falante
domine as regras, Mari e Mendes (2005) reconhecem que, como qualquer falante de
uma determinada língua, o leitor pode encontrar dificuldades.
Por essa razão, Koch (2003a) defende que não processamento textual
sem conhecimento prévio. Este, por sua vez, é constituído de três tipos de
conhecimento: o conhecimento lingüístico, o conhecimento de
mundo/enciclopédico e o conhecimento sócio-interacional.
O conhecimento lingüístico é aquele que compreende o conhecimento
gramatical e o lexical e é “responsável pela organização do material lingüístico na
superfície textual, pelo uso dos meios coesivos que a língua nos põe à disposição
para efetuar a remissão ou a seqüenciação textual, pela seleção lexical adequada
ao tema e/ou aos modelos cognitivos ativados” (KOCH, 2003a, p. 32).
O conhecimento enciclopédico ou de mundo é “aquele que se encontra
armazenado na memória de cada indivíduo” e possibilita ao leitor levantar hipóteses
e produzir inferências, uma vez que um texto não possui uma completude total
(KOCH, 2003a, p. 32).
O conhecimento sócio-interacional é responsável pelas formas de inter-
açãopor meio da linguagem. O conhecimento interacional subdivide-se em quatro
tipos, a saber:
27
1. O conhecimento ilocucional possibilita reconhecer os objetivos ou propósitos
que o falante, em dada situação de interação, pretende atingir. Tal conhecimento
exige dos interlocutores o conhecimento necessário para a captação do objetivo
ilocucional.
2. O conhecimento comunicacional visa, por exemplo, às normas comunicativas
gerais, como as máximas descritas por Grice, que orientam a sermos claros
quanto: à “quantidade de informação necessária numa situação concreta para
que o parceiro seja capaz de reconstruir o objetivo do produtor do texto; à
seleção da variante lingüística adequada a cada situação de interação e à
adequação dos tipos de texto às situações comunicativas” (KOCH, 2003a, p.33).
3. O conhecimento metacomunicacional permite ao produtor do texto garantir o
entendimento do texto, evitando possíveis perturbações que possam ocorrer on-
line ou a posteriori. Esses conflitos, explica Koch (2003a), ocorrem, efetivamente,
por meio da introdução do texto, de sinais de articulação ou de construção
textual. O processamento on-line, segundo van Dijk, ocorre sempre que
compreensão dos acontecimentos reais ou eventos discursivos.
4. O conhecimento superestrutural refere-se às estruturas ou modelos textuais
globais, permitindo o reconhecimento dos gêneros e tipos textuais. Koch (2003a)
aponta que esse conhecimento responde pela distinção das macrocategorias ou
unidades globais que nos vários tipos de textos, como, por exemplo, sua
ordenação ou seqüenciação, sua conexão entre objetivos, bases proposicionais
e suas estruturas globais.
Ao reconhecer a superestrutura, o leitor saberá como proceder para a leitura
de um texto, pois o conhecimento superestrutural ou conhecimento sobre os gêneros
textuais permite
a identificação de textos como exemplares adequados aos diversos eventos
da vida social. Envolve também conhecimentos sobre as macrocategorias
ou unidades globais que distinguem vários tipos de textos, bem como sobre
28
a ordenação ou seqüenciação textual em conexão com os objetivos
pretendidos. (KOCH; ELIAS, 2006, p.54)
Ainda sobre esse tipo de conhecimento, Paulino et al. (2001) dizem que os
leitores devem estar aptos a perceber as características que diferenciam os tipos de
textos, uma vez que o elas que determinam os modos de leitura. Somente a
circulação de textos não é suficientemente produtiva. Necessário se faz, também, o
(re)conhecimento de estratégias de composição textual. Isso significa que, além do
contexto de produção, circulação e consumo, o leitor precisa saber diferenciar
quando um texto é informativo, opinativo, didático, literário, poético, etc.
Em cada tipo de texto “subjaz” um pacto de leitura, segundo Paulino et al.
(2001, p.35), “desde o momento em que aprendemos a ler, entramos no mundo da
escrita e subordinamo-nos às suas leis, reforçando nossa condição social, marcada
pela aquisição da linguagem”. À medida que estamos aptos a ler, podemos ou não
nos deixar seduzir pelo texto e pelos mundos que ele nos configura, pois
como no pacto com o diabo, sedução e repressão se instalam no próprio
processo de alfabetização e letramento. A sociedade e, dentro dela, a
escola confere ao cidadão o título de leitor, ao mesmo tempo em que lhe
cobram posturas, comportamentos adequados e leituras pertinentes.
(PAULINO et al., 2001, p.35)
Para a atividade de leitura, o (re)conhecimento do gênero textual é de
fundamental importância. Quando isso não ocorre, pode haver uma leitura
equivocada. Nesse sentido, Koch e Elias (2006) ressaltam que todos os conjuntos
de conhecimentos socioculturalmente determinados e vivencialmente adquiridos
podem determinar nosso comportamento em algumas situações. Segundo as
autoras (com base em van Dijk, 1997), as experiências que apreendemos, ao
realizar atividades específicas, constituem o que chamamos de frames, modelos
episódicos ou modelos de situação.
29
Porque possuem um caráter particular, esses modelos, inicialmente, são
resultado de tudo aquilo que vivenciamos no dia-a-dia. Contudo, tais modelos
tendem a se generalizar quando passam a ser rotineiros, isto é, quando experiências
do mesmo tipo repetem-se constantemente. Sendo assim, é a freqüência do uso, da
prática das ações que os tornam comuns aos membros de uma cultura ou de um
determinado grupo social. Esses modelos são considerados por Koch e Elias (2006)
como constitutivos do contexto.
1.5 Leitura e contexto
Tendo-se em vista que a leitura é uma atividade altamente complexa de
produção de sentidos, pois se realiza com base na mobilização de um vasto
conjunto de saberes, Koch e Elias (2006, p.57) verificam que à concepção de leitura
subjaz o pressuposto de que o sentido de um texto não existe a priori, mas é
construído na interação sujeitos-texto. Assim sendo, na e para a produção de
sentido, necessário se faz levar em conta o contexto.
Segundo as autoras, em uma situação de comunicação, os interlocutores
situam seu dizer em um determinado contexto, que é constituinte e constitutivo do
próprio dizer, ou seja, os indivíduos, quando buscam compreensão, moldam-se no
fluxo da interação, visto que o contexto é variável. Koch (2003b) ressalta, ainda, que,
numa interação, cada um dos parceiros traz consigo sua bagagem cognitiva o que,
por sua vez, não deixa de ser também um contexto.
Sendo assim, Koch e Elias (2006, p.63) definem contexto como tudo aquilo
que, de alguma forma, contribui para ou determina a construção de sentido. Por ser
indispensável para a compreensão e, desse modo, para a construção da coerência
textual, o contexto não só “engloba o co-texto, como também a situação de interação
imediata, a situação mediata (entorno do conhecimento sociopolítico-cultural) e o
contexto cognitivo dos interlocutores”.
30
As pesquisadoras asseguram que, em função do contexto, os enunciados
deixam de ser ambíguos e se tornam unívocos à interpretação do texto. Ao
assumirem tal posicionamento, as relações entre informação explícita e
conhecimentos pressupostos e partilhados se estabelecem por meio de estratégias
de “sinalização textual”, por intermédio da qual o locutor, ao processar um texto,
procura levar o interlocutor a recorrer ao contexto sociocognitivo para “preencher as
lacunas do texto, isto é, estabelecer os ‘elos faltantes’, por meio de ‘inferências-
ponte’” (KOCH; ELIAS, 2006, p.64-66).
Muitas vezes, certos enunciados podem alterar algo que se diz ou que se lê.
Isso ocorre quando uma expressão lingüística tem o seu significado alterado em
função dos fatores contextuais. Se, na linguagem falada, cada gesto, movimento ou
entonação devem estar coerentes com o contexto, o mesmo sucede com a leitura,
isto é, cabe ao leitor usar seus conhecimentos para calcular o sentido com base no
contexto.
As pesquisadoras ressaltam, ainda, que o leitor sempre espera do autor que
seu texto esteja dotado de sentido. É, pois, com base nesse princípio que o leitor
partirá da informação contextualmente dada para construir uma representação
coerente do texto.
Tomando por base o Princípio da Continuidade de Sentido proposto por
Hörmann (1976), Koch e Elias (2006, p.73) afirmam que “o leitor põe em
funcionamento todos os componentes e estratégias cognitivas que tem à disposição,
para dar ao texto uma interpretação dotada de sentido”. Assim, com uma atitude de
expectativa, o interlocutor, perante uma seqüência apresentada, pressupõe, no
mínimo, que seu parceiro a tenha feito com sentido.
Desse modo, para que determinada seqüência enunciativa tenha um efeito
significativo, o contexto comunicativo deve ser condizente com a informação
enunciada, para que todas as informações possam ser "detectadas através de
complexos processos de compreensão de atos precedentes, enunciados,
observações e suposições armazenadas ou inferidas, etc." (VAN DIJK, 2004, p.
77).
31
As condições sociais, quando envolvidas nas formulações das regras
pragmáticas, nas relações de autoridade, poder, papel e polidez, por exemplo, são
relevantes para a construção de inferências e produção de sentido, visto que
operam sobre as bases cognitivas. Em outras palavras, tais condições são
relevantes "na medida em que os participantes têm conhecimento dessas regras,
podem usá-las e são capazes de relacionar suas interpretações sobre o que está
ocorrendo na comunicação às características sociais do contexto" (VAN DIJK, 2004,
p. 77).
Assim, com base na proposta de van Dijk (2004) e em conformidade com
Koch e Elias (2006, p.73), entendemos contexto como "conjunto de todas as
propriedades da situação social que são sistematicamente relevantes para a
produção, compreensão ou funcionamento do discurso e de suas estruturas". Nesse
sentido, verificamos que também Almeida (2006) partilha desse entendimento, ao
afirmar que, quando o enunciador quer comunicar uma idéia, ele deve ter motivos
para supor que o destinatário irá utilizar o contexto para chegar à interpretação
desejada por tal enunciador.
Sendo assim, segundo Almeida (2006), sempre existirá uma distância entre o
que um indivíduo pensa ter dito e o que o outro imagina que o primeiro disse, pois
essa margem de variação ou instabilidade é considerada perfeitamente normal e
constante, visto que se encontra incorporada no funcionamento da linguagem que é
constitutiva do processo dialógico.
O pesquisador destaca, também, que leitura implica subjetividade e
instabilidade, uma vez que ambos os traços estão ligados ao conhecimento de
mundo do leitor, às suas crenças, ao conhecimento partilhado com o autor, à
capacidade de interpretação do leitor ao estabelecer relações e produzir inferências,
aos tipos de relações interlocutivas entre leitor e autor e àquilo que cada um pensa
sobre si e sobre o outro.
Para o estudioso, o enunciador, ao desejar se comunicar, busca adequar
seus enunciados, produzindo sinais por meio dos quais pode conduzir o leitor a uma
percepção e a uma associação de idéias. Isso faz com que a intenção comunicativa
32
dada possa ser hipotetizada pelo leitor a partir de sua pertinência, perante a suposta
intenção de seu enunciador.
A partir daí, Almeida (2006, p.168) defende que, "ao procurar comunicar uma
idéia, o enunciador deve ter motivos para supor que o destinatário irá utilizar o
contexto que produzirá à interpretação desejada". Assim, baseando-se na
concepção de contexto de Sperber e Wilson (1989, p.31 apud ALMEIDA, 2006) -
“uma construção psicológica, um subconjunto do auditor sobre o mundo" –, Almeida
define contexto como um conjunto de premissas utilizado na interpretação de um
enunciado.
É o contexto que, em determinada situação, torna as hipóteses mais
pertinentes do que outras. Sendo assim, Almeida (2006) constata que o efeito
contextual ocorre quando informações não apresentadas diretamente no enunciado
podem ser inferidas por meio de hipóteses, de combinação de informações, de
intenção comunicativa, de reconhecimento de posições interlocutivas, de pertinência,
de imagem de si e de imagem do outro.
Dessa forma, Colomer e Camps (2002) verificam que o contexto torna
possível ao leitor, por exemplo, decidir se uma frase apresenta um sentido de
ameaça ou de esperança. Isso significa que o conhecimento contextual também
pode incidir no tratamento outorgado aos elementos dos níveis inferiores.
Baseando-se nos estudos de Adam e Starr (1982), as autoras concordam
com tais pesquisadores, ao afirmarem que, para ler um texto com significado, “não
se lêem as letras, as palavras e as frases que o compõem do mesmo modo como se
tais frações fossem apresentadas isoladamente; inclusive, a velocidade da leitura de
uma frase depende do contexto à sua volta” (COLOMER; CAMPS, 2002, p.30).
1.5.1 Tipos de contexto
Não havendo dúvidas de que o contexto é muito importante para o
entendimento do texto e para a produção de inferências, e ainda reconhecendo que
33
a definição de contexto esteja em aberto, Dell’Isola (2001, p. 90) identifica nos
estudos de Clark (1997) - um dos primeiros psicolingüistas a investigar a influência
do contexto no processo da língua - três modalidades de contexto:
1. o conteúdo explícito da sentença corresponde ao contexto verbal;
2. as circunstâncias que envolvem a expressão oral constituem o
contexto não-verbal;
3. o tácito acordo consentido entre o falante e o ouvinte, sobre como as
sentenças estão sendo usadas, relaciona-se ao contexto que envolve
o contrato dado-novo (o tácito acordo proposto por Clark, em 1977, é
denominado por Grice, em 1975, como Princípio Cooperativo). (grifos
do original)
Com base nos estudos de contexto de diversos pesquisadores, Dell’Isola
(2001) analisa cinco tipos de contexto: culturais, situacionais, instrumentais,
verbais e pessoais, visto que esses pesquisadores tentam relacionar tais contextos
aos processos de linguagem, porque influem na compreensão textual e na produção
de inferências.
O contexto cultural é “formado por convenções culturais e convenções de
comunicação que influenciam no conhecimento dentro dos limites das unidades
representacionais particulares e das inferências extraídas, com o auxílio dessas
unidades e de acordo com as convenções” (DELL’ISOLA, 2001, p.92). Ainda assim,
é possível compreender que tal contexto se diferencie não apenas entre povos, mas
também entre as sociedades de um mesmo povo. Por exemplo, é mais fácil para um
mineiro (Minas Gerais) inferir o que é Quadrilha (dança) do que Dança das Fitas dos
sulistas (Santa Catarina). Desse modo, é possível concluir que um povo possui
diversas comunidades, e que cada uma delas contém um esquema cultural
diferenciado do outro.
As diferenças oriundas de caráter étnico, crédulo, ideológico, social, político e
econômico podem influenciar de maneira significativa toda e qualquer manifestação
da linguagem, visto que ocorrem no interior de uma determinada cultura, cujas
tradições, usos e costumes são rotinas que devem ser obedecidas e perpetuadas
(cf. KOCH, 2003b).
34
Nesse sentido, o contexto cultural constitui um fundamento usual para a
compreensão, pois mostra como os esquemas culturais e sociais de uma
comunidade são específicos e, por isso, fornecem ao leitor conhecimentos especiais,
através dos quais ele pode extrair inferências necessárias para entender o texto de
uma determinada cultura (cf. DELL’ISOLA, 2001).
Por sua vez, o contexto situacional é formado por circunstâncias que
cercam o texto. Ainda que nele não estejam, tais circunstâncias, por serem
conjunturas do entorno textual, interferem na compreensão e na geração de
inferências. Fazem parte, principalmente, desse contexto as instruções, os objetivos
da leitura e as ilustrações e gravuras, que exercem um forte efeito sobre o texto e
que influenciam o leitor em sua compreensão.
o contexto instrumental refere-se às formas pelas quais o texto pode ser
recebido por um indivíduo. De acordo com Dell’Isola (2001), tanto a leitura quanto a
audição são dois tipos de veículos possíveis de obtenção de informação textual, pois
um indivíduo pode tomar conhecimento de um texto ao ler uma notícia num jornal,
revista, ou ao ouvir uma reportagem pelo rádio ou pela televisão e,
acrescentaríamos, ainda, o saber da história noticiado por uma pessoa.
Embora sejam veículos possíveis para se obter informações textuais, leitura
e audição apresentam efeitos distintos. Consoante a pesquisadora, tais efeitos
podem ser causados por três fatores diferenciais, a saber:
1. Diferenças na memorização, que é mais fácil memorizar um texto lendo que
ouvindo;
2. Diferenças no processamento da ngua, uma vez que, para o leitor, em
termos de compreensão, é mais fácil procurar por uma informação que ouvir. A
leitura permite ao leitor fazer regressões e reanálises, ao passo que, na audição,
essa possibilidade é praticamente impossível, visto que o leitor tem outras
oportunidades de exploração enquanto ouve uma informação.
3. Diferenças em atenção, por ser uma atividade complexa, a leitura requer do
leitor sua atenção; portanto, o leitor deve tomar cuidado e evitar distrações.
35
Muitas vezes, quando em situação de ouvinte de uma leitura oral, este pode
também explorar visualmente o local em que se encontra. Ao se distrair, não
ouve o que está sendo lido, pois seu foco de atenção é outro.
Reconhecendo a influência desses três fatores sobre o processo de extração
de inferências para a compreensão de textos, Dell’Isola (2001) destaca que o efeito
da forma de recepção do texto sobre a ação de inferir ainda permanece, em boa
parte, inexplorado.
Sobre o contexto verbal, Dell’Isola (2001) afirma que este envolve o
conteúdo lingüístico do discurso. Nesse sentido, para a autora, a compreensão
textual deve ser vista como um complexo de processos mentais que extrai
informação e que a combina com partes textuais apresentadas previamente. Esses
processos são influenciados por propriedades lingüísticas particulares do texto, tais
como: referência pronominal, vinculação léxica e tópicos marcadores.
Um outro elemento do contexto verbal, apontado pela autora, por
desempenhar lingüisticamente um papel especial para a compreensão do texto, é o
título. Assunto de muitas pesquisas, o título vem chamando a atenção de estudiosos
quanto a sua influência na e para a construção de sentidos.
A respeito do contexto pessoal, Dell’Isola faz alguns comentários sobre as
evidências de como o conhecimento, a atitude e os fatores emocionais do receptor
(leitor ou ouvinte) influenciam de modo significativo o processo de compreensão.
Declara a autora:
Leitores e ouvintes constroem o significado de um texto por analisar as
palavras, as sentenças e parágrafos em oposição ao background
(experiências, formação, prática, educação) de seus conhecimentos
pessoais. Esse conhecimento é, além disso, condicionado pelo sexo, pela
idade, educação, ocupação, etc. (DELL’ISOLA, 2001, p.98)
No contexto pessoal, além do conhecimento prévio, as atitudes do
leitor/ouvinte também podem afetar o processo inferencial, visto que a leitura
36
desperta no leitor emoções favoráveis e/ou desfavoráveis a respeito da informação
relatada no texto.
Quando o leitor reconhece alguma discrepância entre o texto e sua atitude
pessoal, surge o conflito. Ao contrário, se não discrepância, não ocorre a
necessidade de se chamar a atenção do leitor enlevado, absorto em sua leitura.
Nesse sentido, Dell’Isola (2001) avalia que os fatores emocionais influenciam na
compreensão e na extração de inferências, que o texto contém muito mais do que
apenas informação. Ampliando suas considerações, a estudiosa nos lembra que
fatores emocionais são constituídos pelo contexto pessoal e que, por essa razão,
são importantes condições subjetivas para a produção inferencial no decorrer da
compreensão do texto. Afinal, o contexto determina, inclusive, os diversos tipos de
inferências.
O contexto pessoal está ligado aos contextos social e cultural, dado que todo
indivíduo, além de participativo, está inserido em um ou mais grupos sociais, desde
o nascimento. Portanto, ao conviver com seu grupo, esse indivíduo adquire
conhecimentos pessoais que são forças fundamentais de e para a socialização.
Dessa maneira, socialização é, para Dell’Isola (2001, p. 101-102),
o processo de integração do indivíduo na vida de grupo, desenvolvido ao
longo dos anos. No decurso desse processo, o indivíduo isolado aprende a
cultura (o modo de vida ou de pensamento) da sociedade ou do grupo a que
pertence, de forma a poder exercer funções no interior dela. Pela própria
natureza do fenômeno, a socialização não ocorre de todo sem atrito. É um
processo complexo que envolve conflitos e frustrações, dentre outros
fenômenos.
Sabendo-se que a socialização ocorre por meio das relações interpessoais
entre seres humanos, a autora afirma que o indivíduo, quando inserido em seu meio
por um processo de interação, desenvolve um sistema de comportamento, com base
em suas disposições inatas, que se modificam a partir de sua experiência no interior
da qual são desenvolvidas também suas atitudes. Assim, para a lingüista, as
37
atitudes são manifestações pessoais, individuais, condicionadas pelo contexto
sociocultural, tendo em vista que sociedade e cultura são auxiliadores na aquisição
de conhecimentos do indivíduo gerada pela sua situação humana de convívio com o
outro. Aliás, o conhecimento de mundo do indivíduo é predominantemente social,
assegura a estudiosa, pois, ao internalizar algo, segundo suas crenças, atitudes,
ideologia, o ser humano exterioriza seu conhecimento, visando construir, criar e
recriar o mundo em que vive.
Considerando que a informação sociocultural é parte importante do
conhecimento registrado na memória, Dell’Isola (2001, p.103) destaca que ele é
usado na compreensão textual e na produção de inferência, de modo que “as
inferências são geradas de um conhecimento prévio de mundo que, por sua vez,
nasce do conjunto de vivências, experiências e comportamentos sociais do
indivíduo”. Conforme a autora, quando os indivíduos pertencem a uma mesma
comunidade, possuem conhecimento similar por compartilharem de práticas de vida
semelhantes.
Sendo assim, ao adotarmos a concepção sócio-interacional, entendemos,
aqui, leitura como uma atividade de construção de sentidos e produção de
inferências, pois se por meio de interação entre autor-texto-leitor com base no
contexto. Assim, nesse processo de construção de sentidos e produção de
inferências, vemos o leitor como sujeito ativo e construtor social, pois “se constroem
e são construídos no texto” dialogicamente (KOCH; ELIAS, 2006, p.10-11).
Levando em conta que a interação e os contextos influenciam no processo
inferencial, durante a compreensão do texto escrito, verificaremos, no capítulo a
seguir, o que é inferência e como ela se classifica.
38
CAPÍTULO 2
LEITURA E PRODUÇÃO DE INFERÊNCIA
2.1. O que é inferência?
Sabendo-se que toda leitura envolve um processo de construção de sentidos,
ressaltamos que este se faz de maneira implícita ou explícita por meio de
inferenciação (DELL’ISOLA, 2001). Sendo assim, inferir é um ato que requer um
reconhecimento de proposições dadas que, associadas às novas, permitem ao leitor
estabelecer novos sentidos sobre um dado novo (MARCUSCHI, 1999).
Vista a inferência como uma atividade cognitiva interacional, Ferreira e
Dias (2004, p.440-441) afirmam que inferência é uma “habilidade essencial na
tomada de decisão em situação problema, principalmente em situação de
interlocução real ou virtual (leitura)”, pois, quando envolvido em tal situação, “o
indivíduo precisa mobilizar recursos a partir de julgamentos, raciocínios e
interpretação de informações, para responder adequadamente aos objetivos do
contexto comunicativo.”
Nesse caso, as autoras acreditam que, além de favorecer a organização das
relações de significado dentro do texto, o processo inferencial permite destacar a
malha ou a teia de significados que o leitor é capaz de estabelecer dentro do
horizonte de possibilidades que é o texto. Como tais relações não são aleatórias,
Ferreira e Dias (2004) reconhecem que elas são originárias do encontro-confronto
de dois mundos em situação de leitura: o do autor e o do leitor.
Para as autoras, um leitor maduro é aquele que sabe utilizar adequadamente
todas as informações disponíveis e que estabelece ligações relevantes entre a
informação textual e o seu conhecimento prévio, sem privilegiar ou desprezar
qualquer desses canais de informação.
39
Ao apresentar um conceito de inferência como geração de informação
semântica nova, a partir de informação semântica dada em certo contexto, Richheit
e Strohner (1953, apud KOCH, 1993) ressaltam como é importante e necessária a
interação entre texto e contexto, visto que essa interinfluência permite diferenciar
inferências altamente dependentes do contexto de inferências lógicas como sendo
as mesmas em todo e qualquer contexto.
Nesse sentido, Koch (1993, p.400) afirma que as “inferências podem ser
vistas como processos cognitivos através dos quais o ouvinte ou leitor, partindo da
informação textual explicitamente veiculada e levando em conta o contexto, constrói
novas representações semânticas”.
O processamento inferencial se desenrola num certo lapso de tempo, durante
o qual um estado inicial de representação mental transforma-se em outro. Tal
processo pode ser automático ou controlado pela atenção, pois, segundo van Dijk e
Kintsch (1983, p.65, apud KOCH, 1993, p.400-401), o processamento cognitivo
consiste de diferentes estratégias processuais e se dá
simultaneamente em diversos níveis (proposições atômicas, proposições
complexas, coerência local, macroestrutura e superestrutura), ocorrendo,
ainda, o processamento estratégico nos níveis estilístico, retórico, e não-
verbal. Além disso, o processamento se sobre pequenas porções da
informação global disponível a memória ativa (‘memory working’), onde
têm lugar os processos inferenciais.
No entanto, por possuir limitações, é difícil precisar como a memória ativa
reconhece quando uma informação é a mais importante, bem como a rapidez com
que é computada e os mecanismos e estratégias que integram a informação textual
nova ao conhecimento textual e enciclopédico.
O que se supõe, de acordo com Koch (1993, p. 401), é que, na memória
ativa, se encontram “não uma seleção bastante acurada (em termos
macroestruturais) da informação textual processada, mas também de informação
nova constante de cerca de duas orações”. Assim sendo, a autora pressupõe que
40
há, por trás disso, uma informação nova que é processada, semanticamente, de
maneira seletiva, visto que tanto as inferências do nível da coerência local como
global tomam por base as informações velhas e novas disponíveis.
Nesse sentido, como em um texto pode haver muitos implícitos, é preciso que
o leitor tenha competência para que, em primeira instância, possa captar as
intenções do autor, partindo do input lingüístico, desde que se situe em seu especial
mundo de referência composto por seus pré-conhecimentos, crenças e atitudes.
Contudo, Marcuschi (1999) ressalta que as expressões lingüísticas podem ter forças
ilocucionais que não correspondem ao um sentido dicionarizado, o que exigiria do
leitor uma composição do sentido a partir do contexto de situação.
Segundo o autor, situações de incompreensão textual devem-se, também, a
problemas de organização como, por exemplo, a ambigüidade e o excesso de
pronominalização, os quais podem dificultar a recuperação de referentes e produzir
desarticulações no próprio texto.
Dúvidas de compreensão de texto podem ocorrer se o leitor não fizer as
inferências que o autor espera que ele faça ou, ao contrário, se o leitor fizer
inferências não intentadas pelo autor. Entretanto, muitas vezes, não como se ter
certeza se uma inferência é ou não intencionada pelo escritor, uma vez que o
contexto exerce forte influência no processo de construção de sentidos (cf.: KOCH,
1993).
Tendo em vista que “nem sempre é tão fácil construir as inferências
envolvidas num texto, a dificuldade de compreensão da leitura pode residir
exatamente na dificuldade de estabelecer as inferências necessárias à integração
das informações”, conforme afirmam Fulgêncio e Liberato (2007, p.36). Desse modo,
para a elaboração de inferências, segundo as autoras, “o leitor não joga unicamente
com aquilo que está expresso explicitamente, mas também com um mundo de
informação implícita, não expressa claramente no texto, mas totalmente
imprescindível para se poder compor o significado.” (2007, p.32).
Dependendo da informação que se deseja transmitir, o escritor deve modelá-
la de maneira a considerar tanto o tipo de conhecimento prévio do público-leitor-alvo
41
quanto sua capacidade de fazer deduções, levantar hipóteses e preencher possíveis
lacunas do texto.
Há, portanto, entre inferência e cognição social uma relação bastante
intrínseca e significativa para a produção de sentidos, pois, como destaca Koch
(1993, p.412), a “cognição social é um sistema de estratégias e estruturas mentais
partilhadas pelos membros de um grupo e, em particular, aquelas envolvidas na
compreensão, produção ou representação de ‘objetos’ sociais, tais como situações,
interações, grupos e instituições.”
Assim, com base nos estudos de van Dijk (1992), a autora afirma que o
conhecimento social é “um tipo de conhecimento geral e abstrato sobre o mundo,
partilhado pelos membros da sociedade sobre episódios sociais estereotípicos”
(KOCH, 1993, p.413). Tal conhecimento é aquele representado em scripts, que
envolve o a língua, o discurso e a comunicação, como também as
representações sobre episódios sociais estereotípicos que se formam por
inferenciação com base em modelos repetidamente partilhados para compreender
novos episódios.
Na produção das inferências, é fundamental levar em conta, além dos fatores
lingüístico-discursivos, fatores de ordem cognitiva, sociocultural e interacional, uma
vez que, entre os mecanismos inferenciais, intervêm fatores sociais, tais como: o
contexto sociocultural, os conhecimentos de mundo, as experiências e as crenças
individuais.
Visto que o sentido não reside unicamente no texto, mas se constrói na
interação entre autor e leitor, faz-se necessário ressaltar a noção de contexto
cognitivo defendida por Marcuschi (1999), a partir da qual o autor introduz o princípio
de contextualização cognitiva para definir inferência.
Para Marcuschi (1999, p.98-99), contexto cognitivo é o horizonte cio-
psíquico-cultural do indivíduo, a partir do qual se dá a organização tanto das
percepções e sua elaboração para o processamento cognitivo quanto das
informações e compreensão textual.”
42
Nesse caso, preliminarmente, Marcuschi (1999, p.101) define inferência como
sendo “uma operação cognitiva que permite ao leitor construir novas proposições a
partir de outras dadas”, desde que tais proposições, assim como as inferidas,
mantenham relações passíveis de identificação.
Desse modo, ao considerar os processos de associação semântica, os
raciocínios analógicos, as leis conversacionais ou os princípios pragmáticos, o
pesquisador afirma que o processo inferencial depende do texto, do contexto de
enunciação implícito, do contexto reconstruído local e temporalmente e dos
conhecimentos prévios do leitor.
Levando em conta esses aspectos, podemos dizer que inferência é muito
mais do que recuperar elementos por simples operação automática, uma vez que o
leitor já traz consigo um universo individual que interfere em sua leitura.
Assim, ao reafirmar que as inferências produzidas são/estão determinadas
pelos contextos psicológico, social, cultural e situacional, dentre outros, todo
processo inferencial, segundo Dell’Isola (2001), conduz a traços de memória que
atuam na compreensão de um texto. Logo, durante a leitura, o leitor seleciona
planos e gera inferências de acordo com seus objetivos previamente traçados.
Nesse sentido, informações explícitas e inferidas
tornam-se partes integrantes da representação mental do texto. Entre elas,
um estreito vínculo. Tanto a formação de inferências é influenciada pela
representação mental construída quanto a representação mental surgida
é parcialmente o resultado das inferências feitas. (DELL’ISOLA, 2001, p.52)
Em relação à ocorrência desse processo, Dell’Isola (2001), respaldada nos
estudos de Kintsch e van Dijk (1983), reconhece a dificuldade para se determinar o
momento exato em que as inferências são feitas, bem como identifica que tal
momento pode ser controlado pela compreensão do indivíduo, uma vez que o ritmo
da leitura pode ser mais lento quando se percebe que algo está faltando.
43
Considerando que as inferências variam conforme o conhecimento prévio do
leitor e, principalmente, conforme o contexto, bem como as questões levantadas a
respeito da ocorrência inferencial, o passo a seguir é verificar algumas propostas de
classificação para os tipos de inferência.
2.2 Tipos de inferência
São muitos os trabalhos realizados sobre as inferências e, em particular,
sobre os tipos de inferências. Assim sendo, dentre os pesquisadores que se
dedicaram a observar esse fenômeno, destacamos os estudos de Koch (1993),
Marcuschi (1999), Dell’Isola (2001) e Ferreira e Dias (2004), a fim de verificar
algumas propostas para os tipos inferenciais.
2.2.1 Tipos de inferências nos estudos de Koch
A partir do estudo de Koch (1993), levantamos uma série de pesquisadores
que propuseram classificações inferenciais. Dentre eles, de acordo com a autora,
Garrod (1985) propõe distinguir inferências verdadeiras de pseudo-inferências. A
inferência se verdadeira quando se aplicar um esquema inferencial a um
conjunto de premissas discretas, ou seja, quando derivadas de um substrato
proposicional, tem um custo computacional alto, ao passo que as pseudo-
inferências, por se originarem de um modelo mental da situação, ao qual o
processador tem acesso, tem custo computacional baixo. Nessa concepção:
durante um processamento inicial ou primário, o sistema tem acesso a todas
as pseudo-inferências passíveis de serem efetuadas, pois elas dependem
simplesmente de se interpretarem expressões com base no modelo,
enquanto as verdadeiras inferências requerem processamento secundário,
44
que pode ocorrer no final da oração. (GARROD, 1985, apud KOCH, 1993,
p.403)
Na proposta de Crothers (1979), Koch (1993) destaca que o autor distingue
inferências a posteriori, que são deduzidas do texto precedente, de inferências a
priori, que se baseiam no conhecimento enciclopédico do leitor. Contudo, para o
estudioso, apenas as primeiras contribuem para a coerência.
Segundo a autora, no trabalho de Rehder (1980), o estudioso, ao diferenciar
inferências obrigatórias (desejadas pelo autor do texto) de facultativas (não
intentadas pelo autor), afirma que as inferências obrigatórias são necessárias à
coerência, pois preenchem lacunas do texto, e as facultativas, restritas às
elaborações adicionais, não contribuem para a coerência, apesar de enriquecerem o
conteúdo do texto.
Koch (1993), no entanto, não concorda com a proposta de diferenciação de
Rehder, pois não como verificar se a inferência intentada é ou não desejada pelo
autor. Ainda que o pesquisador especifique exatamente as inferências esperadas, o
fato de o leitor inferir algo que não tenha sido pretendido não indica que sua
inferência em nada contribua para o estabelecimento da coerência.
Segundo a autora, as afirmações a respeito da coerência não se sustentam,
que, de acordo com a teoria dos esquemas, cada inferência ocorre por meio de
ativação de esquemas cognitivos, de tal modo que tanto inferências a priori e
facultativas, quanto inferências a posteriori e obrigatórias relacionam a
informação textual com itens do conhecimento prévio do leitor.
Assim, o que acontece durante o processo de compreensão significa que ou o
texto, em parte, se encontra processado, ou que sua representação mental
constitui parte do conhecimento global com relação ao texto subseqüente. Por esse
motivo é que não para o autor do texto prever a quantidade de inferências que
ele espera de seu leitor, pois é altamente provável que, para o mesmo texto, haja um
número variável de inferências de diferentes grupos de destinatários.
45
No que diz respeito à influência do contexto na construção de inferências,
Koch (1993) retoma os estudos de Richheit e Strohner (1953) e afirma que a
geração de informação semântica nova é dada na relação entre o texto e a situação
em que ele ocorre. Nesse sentido, para os estudiosos, é possível diferenciar o que
são inferências psicolingüísticas como altamente dependentes do contexto de
inferências lógicas – como sendo as mesmas em todo e qualquer contexto.
De acordo com as observações da autora, por um lado, os tipos convergem
para as inferências lógicas e, por outro, divergem, à medida que se ligam às regras
de línguas humanas naturais particulares e às convenções/máximas/princípios
cooperativos da comunicação verbal. Assim, nas pesquisas de Van der Velde
(1989), Koch (1993) constata que o pesquisador classifica quatro tipos de
inferências, e que o faz, partindo da função sintática, da semântica e da ação. Em
vista disso, o autor propõe a seguinte diferenciação para os tipos inferenciais:
inferências sintáticas, inferências ILRRR (entendendo IL como léxico interno e
RRR representação cognitivamente refletida da realidade), inferências lógico-
semânticas e inferências orientadas pela ação.
As inferências sintáticas servem para lidar com a informação gramatical dos
textos, por isso dependem do conhecimento das regras gramaticais e podem ter por
função identificar os constituintes sintáticos e suas relações/funções (casos ou
papéis temáticos).
As inferências ILRRR são responsáveis pela identificação das características
e conexões de sentido carreadas juntamente com as palavras de conteúdo e as
palavras funcionais. Para o autor, ILRRR é simultaneamente o léxico interno (IL) e a
representação cognitivamente refletida da realidade (RRR). Assim, o conjunto
ILRRR designa a memória semântica de um indivíduo.
As inferências lógico-semânticas são de natureza semântica e de natureza
lógica na medida em que trabalham com a informação semântica ILRRR, carreadas
juntamente com os predicados/argumentos/proposições de um texto. Elas podem
ter, também, a função de controlar/verificar se os enunciados ou seqüências de
enunciados são (parte de) uma argumentação válida.
46
As inferências orientadas pela ação têm a ver com a informação semântica
ILRRR, visto que o significado de verbos de ação pertence à memória semântica de
um indivíduo. Com base na informação expressa por verbos de ação e por seus
derivados e compostos, o leitor pode inferir que (sub)ações devem ter sido
efetuadas, como devem ter sido realizadas em um discurso de descrição da ação,
etc. Tais inferências podem contribuir também para a identificação de relações
causais e, ainda, podem estar relacionadas com atividades
cognitivas/afetivas/conativas subjacentes às ações denotadas.
Baseando-se nas estratégias de processamento, Van der Velde destaca dois
tipos de operações: o inferenciamento para frente, o qual acontece quando o leitor
tira conclusões do enunciado sob processamento, ao mesmo tempo em que formula
uma ou mais hipóteses sobre o que vem a seguir no texto; e o inferenciamento
para trás, o qual ocorre quando o leitor raciocina no sentido inverso, partindo da
conexão entre dois enunciados.
Ao conceber inferências como processos atualizados de pensamento ou
raciocínio, o autor considera que tais operações são necessárias para:
1) identificar as partes da informação no interior/entre/por trás de textos
verbais; 2) decompor tais partes de informação em seus constituintes; 3)
conectar a informação entre (os constituintes de) textos verbais; 4) extrair
informações destes; 5) invocar informação que a eles deve ser
acrescentada; 6) compor a informação necessária para completá-los.
(KOCH, 1993, p. 405)
Ao defender a posição de que é impossível ao ser humano organizar o mundo
textual sem recorrer aos processos inferenciais, para Koch (1993), a proposta de
Van der Velde apresenta-se como a mais completa, uma vez que inclui aspecto
lógico-semântico e questões orientadas pela ação. O estudioso, tendo em vista os
níveis de representação mental, torna possível não diferenciar inferências que se
dão nos níveis lexical ou conceitual, sintático-semântico, microestrutural,
47
macroestrutural e superestrutural, como também classificar as inferências de acordo
com a contribuição específica trazida pela representação mental do texto.
Nessa proposta, focalizam-se, portanto:
1) o tipo de unidade semântica no interior da representação mental gerada pelo
processo inferencial;
2) o tipo de conhecimento prévio ativado;
3) a direção da formação da inferência.
Quanto às funções inferenciais, Koch (1993) apresenta os modelos de
Schnotz (1985), a fim de ressaltar as inferências como meio de recobrir lacunas
de coerência (bridging) e inferências como meio de elaboração de
representações mentais.
Segundo o modelo proposto, as inferências por meio de preenchimento de
lacunas de coerência (bridging
1
) ocorrem quando o leitor transforma cada oração
do texto em proposições e as interconecta formando uma rede coerente. Já o
modelo para as inferências por meio de elaboração de representações mentais
acontece quando casos de preenchimento de lacunas de coerência com função
subordinativa. Como a formação de inferências o é limitada a um mínimo
necessário para o estabelecimento da coerência, muitas oportunidades de
conexão entre uma informação textual recém-captada e uma informação precedente
no texto para a construção de inferências conectivas.
Em relação ao processamento inferencial, retomando os modelos de
inferência de Hron et al. (1985), Koch (1993) explica que, ao se dedicarem ao estudo
de inferências, os estudiosos identificaram diferenças entre o processamento
inferencial via audição e o processamento inferencial via leitura. Na audição de
um texto, em velocidade pré-programada, o ouvinte precisa ajustar o processamento
cognitivo, pois a informação acústica fica disponível na memória por um curto
lapso de tempo. Assim, com o fluxo da informação nova, o ouvinte é incapaz de reter
1
O termo bridging inferences foi cunhado por Clark (1975). Entre os defensores mais importantes
desse modelo de Schnotz (1985) estão Kintsch & van Dijk (1978)” (KOCH, 1993, p.406).
48
a informação de que dispõe, sendo necessário processá-la de imediato para
conseguir receber a informação a seguir.
Contudo, na leitura de um texto, o perigo de sobrecarga da capacidade
cognitiva, ao se processar uma informação, é bem menor que por meio da audição.
Sabe-se que, ao ler um texto, o leitor tem a possibilidade de escolher a quantidade
de informação que deseja decodificar e revisar, como também a liberdade de parar e
dirigir seu próprio progresso de leitura, ao ouvir um texto, o ouvinte fica preso a fatias
específicas de informação que são representadas naquele momento.
Koch (1993) aponta, além disso, que as pesquisas de Mussler, Richeit e
Strohner (1985) revelam que os ouvintes, na recordação de um texto cil,
processam mais inferências elaborativas que os leitores de textos muito difíceis.
Nesse sentido, tais pesquisadores diferenciam text-text inference inferência
procedida, no mínimo, de duas proposições originais da base textual de text-word
knowledge inference inferência procedida de uma ou mais proposições originais
e, em acréscimo, pelo menos, de uma parte do conhecimento de mundo dos sujeitos
e de world knowledge inference inferência procedida de uma proposição que
contém exclusivamente conhecimento de mundo do sujeito.
Para classificar inferências, Mussler, Richeit e Strohner (apud KOCH, 1993, p.
411) partem do seguinte pressuposto:
a facilitação de inferências estruturais por meio de ‘ajudas apropriadas é
extremamente importante tanto para a audição como para a leitura. Todavia,
tais ‘apoios’ devem ser construídos diferentemente para um texto escrito e
para um texto oral. Mesmo que os resultados finais sejam semelhantes com
respeito ao processamento cognitivo, supostamente devido à modalidade
específica, textos orais bem preparados diferem de textos escritos bem
preparados com relação a seus atributos estruturais.
Assim, o que de comum entre leitura e audição é que, na teoria
construtivista de Mandl, Stein e Trabasso (1984), retomada por Koch (1993, p.408),
a “compreensão textual é resultante de uma construção ativa de uma estrutura
49
coerente de conhecimento, através da qual a informação do texto e o conhecimento
prévio do receptor são integrados, sob o controle de seus objetivos.”
Considerando as observações feitas sobre leitura e audição, respaldada nos
estudos de van Dijk (1980), Koch (1993, p.408) afirma:
Ouvintes e leitores constroem uma representação cognitiva do texto ouvido
ou lido na forma de uma estrutura integrada hierarquicamente organizada,
composta de unidades semânticas de baixo nível hierárquico
(microproposições) e de alto nível hierárquico (macroproposições), obtidas
pela condensação dedutiva da informação do texto.
Reproduções feitas imediatamente após a escuta ou leitura de um texto
mostram, também, que as performances de reprodução da leitura o melhores que
as da escuta, embora não tenham sido encontradas diferenças entre as duas
modalidades após um longo intervalo de tempo.
De qualquer modo, segundo Koch (1993), para explicar adequadamente o
funcionamento das inferências na produção de sentido, é preciso levar em conta,
além dos fatores lingüístico-discursivos, fatores de ordem cognitiva, sociocultural e
interacional.
2.2.2 Tipos de inferências nos estudos de Marcuschi
Após apresentarmos os tipos de inferências presentes nos estudos de Koch,
a seguir, apontaremos as considerações feitas por Marcuschi (2005, 1999) a
respeito das inferências e seus tipos no processo de construção de sentido.
Para o autor, a atividade inferencial “não deve ser vista como uma
externalização do que se acha internalizado e sim como uma atividade de tornar
explícito o que se acha implícito”. Por isso, inferir torna-se “uma atividade discursiva
de inserção contextual e não um processo de encaixes lógicos”, visto que é
50
impossível inferir sem produzir significações, que “toda significação está ligada a
processos inferenciais”. Nesse sentido, “dizer que algo é isso ou aquilo, é dizer com
base num raciocínio desenvolvido numa atividade inferencial”, inserido num
“contexto de uma ação discursiva”. (MARCUSCHI, 2003, p.245).
De acordo com o autor, um enunciado “deve permitir a projeção de sentidos”
para ser entendido por mais de um indivíduo. Sendo assim, um ato de inferenciação
é entendido como algo muito maior que um cálculo e uma projeção de natureza
sociocontextual, que uma operação lógica em sentido estrito.
No que se refere às inferências produzidas por meio de um input lingüístico,
Marcuschi (1999), ao elaborar seu esquema de tipos inferenciais, retoma as
propostas de classificação inferencial de Clark (1977) e de Warren et al. (1979).
Tendo por base textos breves formados por pares de sentenças, Clark propõe
classificar inferências como processos de referência direta; referência indireta
por associação; e referência indireta por caracterização
2
.
Contudo, Marcuschi (1999) nota que na classificação de Clark um grande
problema, visto que o pesquisador baseou-se em textos muito pequenos, adotando
uma semântica unidimensional, em que as regras conversacionais, por exemplo, têm
papel pouco claro.
Por sua vez, a sugestão de Warren et al. para classificar inferências, segundo
Marcuschi (1999), é mais ampla e foi elaborada para explicar processos inferenciais
que se dão em pequenas histórias ou narrativas. Tal proposta
3
divide inferências
em lógicas, informacionais e avaliativas.
No entanto, Marcuschi (1999) verifica que a classificação dos pesquisadores
também apresenta problemas, uma vez que ela se baseia em respostas que se
poderiam dar a certas perguntas objetivas do tipo: por quê?, como? cujas
respostas resultariam em inferências lógicas. Ao passo que as respostas de
perguntas do tipo: onde?, o quê?, quando?, quanto? resultariam em inferências
2
Cada processo será detalhado no tópico 2.2.3.
3
Marcuschi (1999) somente menciona que, para cada tipo de inferência proposta por Warren et al.,
há subtipos, mas não os especifica.
51
informacionais, sendo que as inferências avaliativas proviriam dos conhecimentos
gerais do leitor.
Marcuschi (1999) observa, também, dois lados inconvenientes na proposta de
Warren et al. Por um lado, os autores, partindo da hipótese da relevância, dado que
esta permite observar a consistência, a determinação, a redundância e outros
aspectos, prendem-se demasiadamente ao sentido explícito do texto, buscando
relações objetivas e intratextuais. Por outro lado, a proposta testada analisa apenas
textos narrativos muito curtos.
Contudo, sem desprezar o que de aproveitável nos modelos de Clark e de
Warren et al., o autor propõe três grupos de inferências textuais com vários subtipos,
ressaltando, inclusive, que, embora sua proposta não seja precisa, sua intenção
fundamental é de apenas fornecer um modelo que venha a dar conta dos processos
seguidos na organização de todo e qualquer tipo de reprodução de texto, como
compreensão, interpretação, paráfrase, etc.
O esquema de inferências proposto por Marcuschi (1999, p.103) divide-se
em três grupos, a saber:
1) lógicas: baseadas nos valores-verdade e na relação entre as proposições, tais
tipos de inferências podem ser dedutivas, indutivas e condicionais;
2) analógico-semânticas: baseadas sempre no input textual, bem como no
conhecimento de itens lexicais e relações semânticas, tais tipos de inferências
podem ocorrer por identificação referencial, generalização, associações,
analogia, composições ou decomposições;
3) pragmático-culturais: baseadas nos conhecimentos, experiências, crenças,
ideologias e axiologias individuais, tais tipos de inferências podem ser
convencionais, experienciais, avaliativas e/ou cognitivo-culturais.
As inferências lógicas, segundo o autor, são do tipo mais usado no dia-a-
dia, de modo geral. Os problemas que ocorrem, nesse tipo de inferência, o as
deduções entre enunciados quantificados. Por exemplo, ao se ler que “alguns
52
presidenciáveis são ignorantes”, não se pode inferir simplesmente que “alguns
presidenciáveis não são ignorantes”. Segundo Marcuschi (1999), logicamente, não é
permitido fazer esse tipo de inferência, embora, isso ocorra usualmente na vida e
sem o menor despudor.
As inferências analógico-semânticas são muito constantes na vida diária,
embora, na leitura de textos, sejam as inferências do terceiro tipo as que mais se
fazem presentes. A analogia também pode estabelecer uma correlação com as
inferências pragmático-culturais, de modo que se pode atribuir uma propriedade a
um elemento por sua relação com outros, conforme verifica Marcuschi (1999).
O raciocínio analógico, para o autor, é aquele que vai sempre do particular
para o particular. É por isso que este raciocínio não oferece garantia de liberdade de
conclusão, pois, por ser sempre provável, vai do efeito à causa e vice-versa ou dos
meios aos fins e vice-versa, bem como pode dar-se por semelhança ou comparação,
razão pela qual o autor prefere empregar o termo inferência analógico-semântica,
uma vez que este compreende uma grande quantidade de ocorrências.
Quanto ao terceiro grupo, o autor assegura que as inferências pragmático-
culturais são encontradas com maior freqüência em reproduções de textos, porque
são baseadas em conhecimentos pessoais, crenças e ideologias dos indivíduos. A
formação individual e a condição sociocultural o as responsáveis por esse tipo de
inferência na construção de sentido de textos, tendo em vista que formam,
geralmente, o princípio de diferença (cf. MARCUSCHI, 1999).
Assim, para uma leitura significativa do texto, quanto mais conhecimentos
forem partilhados entre autor e leitor, maior será a chance de compreensão das
intenções do autor e do aproveitamento das informações textuais. Dessa forma, o
autor deve explicitar verbalmente o máximo que puder para que o leitor não fique à
mercê da própria atividade de elaboração de contextos.
53
2.2.3 Tipos de inferências nos estudos de Dell’Isola
Do mesmo modo como Marcuschi (1999) evidencia, na construção de
sentidos, algumas implicações cognitivas e socioculturais no processamento
inferencial, também Dell’Isola (2001) o faz, quando verifica que, ao produzir uma
inferência, o leitor gera uma informação semântica nova, partindo de uma
informação semântica anterior que, por sua vez, está situada em um determinado
contexto.
Logo, quando o leitor busca, além dos elos lexicais e da organização das
redes conceituais no interior do texto, o extratexto, ou seja, outras informações por
meio de conhecimentos adquiridos pela experiência de vida, com os quais
preenche os “vazios textuais”, ele está produzindo inferências.
Segundo Dell’Isola (2001), o contexto cognitivo gera o processo inferencial
devido à existência de diversos modelos teóricos (frames, esquemas, scripts ou
planos) que, quando experimentados e vivenciados, se organizam na memória dos
indivíduos, constituindo-se, assim, em conhecimentos prévios.
Ao afirmar que fatores sociais e culturais estão envolvidos na produção
inferencial, durante a compreensão do discurso escrito, a autora evidencia que, à
medida que se compreende um texto, inferências fundamentadas em um contexto
sociocultural são geradas. Tais inferências são chamadas pela pesquisadora de
inferências socioculturais, referentes à “informação nova extraída de uma
informação anterior e inserida em um determinado contexto”. Por conseguinte, tal
“informação nova origina-se do contato com o texto, relacionada à identificação da
classe social, às experiências, à formação individual e social e à vivência do leitor”
(DELL’ISOLA, 2001, p.106). Nesse sentido, para a autora, uma informação nova
retorna ao contexto ao qual lhe deu origem.
Assim, para entendermos melhor o processo inferencial sociocultural,
destacamos o seguinte diagrama proposto por Rickheit et al. (1985, apud
DELL’ISOLA, 2001, p.107):
54
Em um processo inferencial, A seria a informação anterior (fornecida pelo
texto); B, a informação nova (inferida pelo leitor); C, o contexto (que permite e
condiciona a produção de leitura e geração de inferência); e a seta, a geração da
inferência (o processo). Desse modo, Dell’Isola (2001) identifica que, durante a
leitura, o processo inferencial passa por cinco mecanismos: decodificação,
compreensão, inferenciação, avaliação e retenção na memória.
Esses subprocessos operam de cima para baixo, topdown, desde a
percepção até a cognição. De acordo com a autora, “os processos perceptuais e
cognitivos atuam em uma corrente contínua, de forma que cada saída ou produto de
um subprocessamento é influenciado por outros subcomponentes” (DELL’ISOLA,
2001, p.107). Assim, o processo interativo que ocorre durante a leitura ao leitor,
ao buscar pistas, a oportunidade de construir significados para o texto, pois, ao
antecipá-las, ele pode formular e reformular hipóteses que podem ou não ser
comprovadas.
Dessa forma, para Dell’Isola (2001, p.109), a inferência pode ocorrer em três
momentos, a saber:
1) o de decodificar e, posteriormente, compreender a informação explícita. Ao
selecionar o que considera mais significativo, de acordo com sua visão de
mundo, o leitor já direciona a sua leitura a uma determinada compreensão
específica;
2) o de ler as “entrelinhas” e integrar os dados do texto à própria experiência ou
conhecimento de mundo. O leitor faz inferências de acordo com seu background,
que está enraizado em uma sociedade e em uma cultura;
Inferência sociocultural = A B
C
55
3) o de apreciar ou depreciar, criticar e julgar. O leitor é levado a se posicionar
emocional e afetivamente diante do texto e avaliar os fatos que lhe forem
apresentados.
Os resultados obtidos pela autora mostram que há múltiplas possibilidades de
leitura e, por conseguinte, inúmeras gerações de inferências feitas pelo leitor.
Como a produção inferencial, muitas vezes, é aleatória, “tanto as leituras produzidas
quanto as inferências geradas estão sujeitas às influências socioculturais do meio
em que vive o leitor” (DELL’ISOLA, 2001, p.109).
Dell’Isola (2001, p.60), respaldada no modelo inferencial de Clark (1977) e
tendo por base o contrato dado-novo, destaca, ainda, que todo o processo
inferencial aciona o fenômeno bridging. Com base nesse fenômeno e em textos
formados por pares de sentença, Clark classifica as inferências como processos
de referência direta, referência indireta por associação, referência indireta por
caracterização, além das relações temporais (CLARK, 1997 apud DELL’ISOLA,
2001, p.60, grifo nosso).
A referência direta é o processo inferencial simples e comum que se
diretamente entre a relação do referente com o referido. Esse processo referencial
subdivide-se em: identidade, pronominalização, epíteto e membro de um conjunto. A
identidade ocorre a partir de uma conexão direta, enquanto a pronominalização
acontece quando se recorre a um pronome para substituir um sujeito, um objeto, um
evento, uma ação ou um estado. Por sua vez, o epíteto (cognome, apelido ou
alcunha) é identificado por inferência direta e revela ser restrito em produtividade,
que não há uma outra forma de interpretação, enquanto o membro de um conjunto é
o processo em que o leitor produz inferência por meio de identificação de
características de componentes de um determinado grupo (cf. DELL’ISOLA, 2001).
A referência indireta por associação “não é um objeto, evento ou estado
previamente mencionado, mas algo indiretamente associado a tal objeto, evento ou
estado” (DELL’ISOLA, 2001, p. 63). Embora algumas partes de informações possam
ser completamente predizíveis, produzidas daquilo que foi mencionado, nem sempre
isso acontece.
56
Essa referência é distinguida por Clark em três níveis de possibilidade de
predição: partes necessárias tendem a ser de fácil inferenciação por serem
predizíveis pelo leitor por associação; partes prováveis inferenciação
fundamentada em probabilidades, levando-se em conta o conhecimento de mundo;
e partes induzidas inferenciação em que o leitor é levado a deduzir determinadas
asserções ao preencher os vazios deixados no texto. Isso se por meio de uma
referência indireta por associação. Para fazer essa distinção, o autor baseou-se nos
níveis que se estendem como um continuum (cf.: DELL’ISOLA, 2001).
As inferências que ocorrem através da referência indireta por
caracterização se dão, geralmente, quando o referido é um objeto que desempenha
papel em um evento ou circunstância previamente mencionada. As inferências
provenientes desse processo subdividem-se em papéis necessários que são
fundamentais e desempenhados por alguém ou por alguma coisa para que um
determinado fato aconteça – e em papéis opcionais – que são facultativos.
Sobre as inferências que ocorrem a partir de relações temporais, Dell’Isola
(2001) explica que o leitor ou o ouvinte pode inferi-las pela:
a) razão - ocorre quando o antecedente da informação dada no enunciado João
caiu. O que ele quis foi assustar Maria, estiver contido na razão apresentada no
segundo, ou seja, João caiu por querer fazer alguma coisa, essa coisa foi querer
assustar Maria. Para encontrar a relação de razão, basta responder à pergunta
para quê?
b) causa - ocorre quando houver uma relação causal entre o evento informado pela
segunda sentença e o evento mencionado na primeira, por exemplo: João caiu.
Ele tropeçou em uma pedra. Como podemos observar, João caiu porque algo
fez com que ele sofresse tal queda, nesse caso, “algo” seria o antecedente do
que ele fez. Para encontrar a relação de causa, basta responder à pergunta por
quê?
c) conseqüência - ocorre quando a conexão inferida pela segunda sentença
justificar o fato ocorrido na primeira, por exemplo: João caiu. Ele quebrou o
braço. Como podemos verificar, o que levou João a quebrar o braço, foi o fato de
57
ele ter caído antes, assim, a informação dada na segunda sentença é o resultado
da informação dada na primeira.
d) ocorrência - acontece quando na sentença João mora em New York. Maria é tola
também houver uma generalização a partir da inferência de que “todos os que
moram em New York o tolos”, que o antecedente da informação dada na
segunda sentença possibilita tal dedução a partir da primeira.
e) subseqüência - ocorre quando houver uma relação seqüencial e sucessiva, por
exemplo, se o segundo evento ocorrer após o primeiro: João chegou à festa. Ele
pegou uma bebida. Como se pode ver na sentença, o evento da segunda é
subseqüente do primeiro.
Segundo Dell’Isola (2001, p.67-68), Clark também distingue, entre essas
quatro categorias inferenciais, as inferências autorizadas e não-autorizadas,
estabelecidas por meio da relação entre leitor e autor. São autorizadas quando o
leitor infere algo pretendido pelo autor, e não-autorizadas quando o leitor infere algo
não-pretendido, isto é, “quando o autor não teve a intenção de levar o leitor a extrair
determinada inferência de seu texto”.
Entretanto, a autora reconhece que a classificação autorizada e não-
autorizada para inferências feita pelo autor foi testada em pequenos textos. Em se
tratando de textos maiores e mais complexos, Dell’Isola aponta que não como o
autor controlar uma inferência não-autorizada por parte do seu leitor, visto que esse
não tem ciência se o que inferiu pode estar ou não-autorizado. Em outras palavras,
seria o mesmo que dizer que o leitor produz inferências o-autorizadas
propositadamente. Contudo, uma vez que um texto torna-se público, ele é alvo das
mais inesperadas produções inferenciais, e um leitor pode produzir inferências não-
autorizadas, isto é, “fora do alcance da intenção do autor” (DELL’ISOLA, 2001, p.69).
Em relação às possibilidades de inferências não-autorizadas, Koch (1993,
p.407) ressalta que “a organização textual também tem um efeito sobre o nível de
compreensão a ser atingido no processamento, isto é, o grau de coerência que será
atingido na construção da representação mental”.
58
No entanto, para Dell’Isola, o que determina se uma inferência pode ser ou
não autorizada não é somente o autor ou texto, mas também o contexto e o discurso
explícito e implícito. Sem querer invalidar o modelo classificatório de Clark, a autora
nota dois problemas nessa classificação: a utilização de uma semântica
unidimensional e o uso em pequenos textos. Nesse sentido, a “terminologia
autorizada/não-autorizada deve ser adotada de maneira multidirecional”
(DELL’ISOLA, 2001, p.70).
Em se tratando de tipos inferenciais, Dell’Isola (2001, p.70-78) enfatiza a
proposta de classificação de Warren, Nicholas e Trabasso (1979). Ao demonstrarem
como se dão os processos inferenciais em pequenas histórias ou narrativas, a
taxionomia proposta pelos autores distingue os tipos de inferências e seus subtipos,
a saber:
1) Inferências lógicas: respondem às questões ‘por quê?’. Os subtipos de tais
inferências são os elos básicos em uma cadeia causal e o domínio do
conhecimento objetivo. Podem ser:
1.1) motivacional aquelas que envolvem os pensamentos, ações, objetivos
voluntários de uma personagem ou, reciprocamente, predizem os
pensamentos, ações, objetivos da personagem sob causas estabelecidas;
1.2) causativas psicológicas aquelas que envolvem a extração das causas
de pensamentos, ações ou sentimentos involuntários de uma personagem
dada e vice-versa;
1.3) causativas físicas aquelas que envolvem inferências sobre causas
mecânicas, eventos ou estados objetivos dados e vice-versa;
1.4) captacionais aquelas que determinam as condições que são
necessárias, mas não suficientes, para um dado evento ocorrer.
2) Inferências informativas: respondem às questões quem?; o quê?; onde? Tais
inferências não indicam a causa ou a conseqüência, bem como não são
bidirecionais. Podem ser:
59
2.1) pronominais – aquelas que especificam o antecedente de pronomes;
2.2) referenciais aquelas que especificam antecedentes relacionados a ações
ou eventos quando a referência não é pronominalmente marcada, cuja
função básica é elucidar os papéis das pessoas e dos objetos em
proposições relacionadas. Esse tipo de inferência ocorre com base no
conhecimento de mundo do leitor sobre objetos e predicados envolvidos no
texto.
2.3) espaço-temporais aquelas que estabelecem uma proposição ou uma
série de proposições de lugar e de tempo, bem como determinam sua
duração por meio de marcadores temporais.
2.4) esquema de mundo aquelas que partilham algumas características das
inferências referenciais e espaço-temporais, como também constroem o
contexto dentro do qual proposições subseqüentes são interpretadas e
tornam-se compreensíveis.
2.5) elaborativas (ou elaborações) – aquelas que são produzidas pelo leitor com
base em seu conhecimento prévio e de mundo, suas hipóteses, suposições
razoáveis, sobre aspectos irrelevantes ou pouco relevantes da narrativa, a
fim de preencher as possíveis lacunas do texto.
3) Inferências avaliativas: respondem às questões avaliativas referentes a quem
agiu bem ou quem agiu mal?; o que fizera agradou ou não?; qual a opinião do
leitor sobre ação/atitude de tal personagem? As inferências avaliativas verificam,
no processo inferencial, como os leitores se posicionam mediante uma
determinada situação contextual. Desse modo, tais inferências são próprias do
julgamento valorativo do leitor, com base em suas crenças, valores sociais e
morais e em seu conhecimento de mundo.
Segundo Dell’Isola (2001), essas perguntas servem como ponto de partida e
são essenciais para verificar, no processo inferencial, de onde parte a geração de
inferência e que tipo de inferência foi produzida. Por essa razão, segundo a autora,
tais perguntas podem ser consideradas como meio e não como fim em si mesmas.
60
No que diz respeito à classificação inferencial de Ballsfaedt, Mandl, Shnotz e
Tergan (1981), retomada por Dell’Isola (2001), os autores diferenciam inferências de
acordo com a direção do processo inferencial na representação mental. Assim, tais
autores propõem uma distinção sob dois ângulos: inferências horizontais e
inferências verticais. São horizontais aquelas que preenchem gaps existentes em
micro ou macronível, e verticais, aquelas que se iniciam de um nível mais baixo e
produzem um resultado que é parte de um nível representacional mais elevado.
Nesse caso, Dell’Isola (2001) identifica dois pontos em relação a esse tipo de
inferência: primeiro, Frederiksen (1978) teria proposto algo semelhante,
classificando-a como inferências estruturais; segundo, sob um outro parâmetro, van
Dijk (1980) teria percebido que o contrário também é viável de ocorrer, isto é, que
uma inferência pode ser uma procedência de um nível mais elevado para o mais
inferior, o que o autor considera como macrooperações inversas que resultariam em
inferências verticais.
Além dos pesquisadores citados anteriormente, Dell’Isola inclui, em seus
estudos de tipos inferenciais, a proposta de inferência de Marcushi (1999),
estudada, uma vez que o modelo do estudioso identifica o processo inferencial
seguido e conta dos processos seguidos na organização de todo e qualquer tipo
de reprodução de texto, seja para compreender, interpretar, parafrasear, etc.
2.2.4 Tipos de inferências nos estudos de Ferreira e Dias
Alguns pontos interessantes sobre inferências e sua classificação também
são abordados por Ferreira e Dias (2004). As autoras retomam os estudos de
Kintsch (1998), a fim de destacar a diferença feita entre inferências e processos de
recuperação de conhecimento. Para o pesquisador, inferências são processos de
resolução de problema que favorecem a geração de uma nova informação, ao passo
que processos de recuperação somente resgatam na memória conhecimentos
preexistentes.
61
Nesse sentido, Ferreira e Dias (2004, p.446) constatam que Kintsch avalia
inferências e recuperação de conhecimento como automáticas (geralmente
inconscientes) ou controladas (geralmente conscientes). Assim, a classificação de
inferências do autor pode ser visualizada no seguinte quadro:
Recuperação Geração
Processo automático
Inferências:
pontes, associativas,
elaborativas
Inferências
transitivas em um domínio
familiar
Processo controlado
Busca de conhecimentos
conectados
Inferência lógica
A recuperação de conhecimento automática, ligada a informações da
memória de longo prazo, permite que esta “seja formada a partir da recuperação de
informações na memória de curto prazo” (FERREIRA; DIAS, 2004, p. 444). Assim,
em tais condições, as informações desse tipo de memória tornam-se acessíveis à
memória de trabalho e expandem sua capacidade temporariamente. Isso, segundo
Ferreira e Dias (2004), é o que Kintsch chama de organização de Estrutura de
Recuperação.
Por um lado, as autoras declaram que, para Kintsch, a compreensão do
discurso é possível graças à memória de trabalho de longo prazo. Por outro lado,
ressaltam que o processo de tornar conteúdos da memória de longo prazo
acessíveis através de estruturas de recuperação não pode ser chamado de
inferência, levando em conta que “a ativação desses conteúdos não garante a
construção do novo e, por conseguinte, a modificação dessas mesmas estruturas
podem ser alteradas quando da construção de novos significados possibilitados
pelo encontro com o texto” (FERREIRA; DIAS, 2004, p. 444).
Sobre a recuperação de conhecimento controlada, as pesquisadoras
constatam que esta acontece sempre que o processo automático não consegue
62
recuperar informações relevantes na memória de curto prazo para suprir a lacuna
existente no texto. Nesse caso, ocorre uma ampla busca na memória para produzir a
informação necessária. Isso é o que se chama de processo estratégico, no qual as
estratégias utilizadas variam de acordo com o tipo de linguagem usado ou o tipo de
texto envolvido. Ferreira e Dias (2004), ainda, asseguram que, assim como acontece
no caso da recuperação automática, a recuperação controlada também não favorece
o surgimento de novas informações, mas, apenas, o seu acesso ou recuperação.
Quando se trata de geração automática, os conhecimentos são gerados
durante o processo de compreensão. “Nesse caso, o leitor infere uma nova
informação e não tem consciência de que ela esteja explícita no texto ou não”
(KINTSCH, 1998, apud FERREIRA; DIAS, 2004, p.444).
Assim sendo, os processos de geração automática provocam inferências
que são derivadas de relações entre termos, enquanto os processos de geração
controlados funcionam como procedimento de reparo fundamental sempre que
problemas de compreensão. Em tal situação, “há a participação do raciocínio
dedutivo, que desempenha um importante papel na compreensão do texto, dando
origem às inferências lógicas, as quais, para Kintsch (1998), são as verdadeiras
inferências”, conforme Ferreira e Dias (2004, p.444).
Entretanto, as estudiosas verificam, no modelo de Kintsch, que o contexto ou
as relações pragmáticas existentes na comunicação leitor-autor via texto não são
ressaltadas, pois o autor não considera as inferências geradas a partir do mundo do
leitor em interação com o seu contexto como inferências propriamente ditas.
Ao analisar a classificação de inferências de Graesser e Zwaan (1995),
Ferreira e Dias (2004) verificam que tal classificação está baseada no Modelo de
Construção-Integração proposto por Kintsch e que, de acordo com esse modelo,
três níveis de representação cognitiva gerados a partir da compreensão de um
texto, a saber: o código de superfície, o texto-base e o modelo de situação.
De acordo com as observações das autoras, o código de superfície
preserva as palavras e a sintaxe da oração. O texto-base diz respeito ao
“significado explícito, mas não às palavras e à sintaxe exata do texto, ocorrendo,
63
nesse nível, um pequeno número de inferências necessárias ao estabelecimento da
coerência textual” (FERREIRA; DIAS, 2004, p.444). O modelo de situação, por sua
vez, está relacionado com o que trata o texto. Nesse modelo, as inferências se
realizam por meio da representação mental que as pessoas têm sobre ações,
cenários e eventos.
Ferreira e Dias (2004) constatam, no modelo de situação, uma relação entre
os conhecimentos do leitor sobre a linguagem, sobre o mundo em geral e sobre as
situações de comunicação com as suas experiências, sendo ambos usados para
construir uma estrutura coerente do texto, para completá-la e interpretá-la. Nesse
sentido, as autoras entendem que Kintsch, em seu modelo de situação, refere-se às
informações inferenciais que o permitidas pelo texto e elaboradas pelo leitor
quando este relaciona as informações do texto com os vários conhecimentos e
experiências prévias.
Pelo fato de o modelo de situação ser pouco conhecido, Ferreira e Dias
(2004) esclarecem que isso levou Graesser e Zwaan (1995) a explorarem as
inferências elaboradas no nível de representação ocorridas em tal modelo. Em suas
pesquisas, os estudiosos identificam processos que acreditam serem centrais para a
construção de modelos de situação, quando narrativas são compreendidas por
adultos e não por crianças.
Sendo assim, tais autores voltam seus interesses, principalmente, para as
inferências geradas durante a construção mental, em outras palavras, para as
inferências on-line ou off-line, visto que são mais prováveis de acontecer em
leituras de narrativas.
Em relação a esse fato, Ferreira e Dias (2004, p.445) ressaltam que “muitas
inferências construídas durante a compreensão de textos narrativos são inferências
de conhecimento-base, ou seja, durante a compreensão, são ativadas na memória
de longo prazo tanto estruturas de conhecimento geral quanto estruturas de
conhecimento específico.”
As inferências de conhecimento-base, por serem automáticas, tratam dos
conjuntos genéricos de conhecimentos de mundo (scripts, frames, estereótipos ou
64
esquemas). Segundo as autoras, são esses conjuntos que facilitam a compreensão
de situações textuais, quando o autor, supondo que sua audiência dispõe de um
conhecimento necessário para preencher possíveis lacunas, deixa algumas
informações implícitas.
As estruturas de conhecimento específico não são automatizadas e
referem-se às experiências ou leituras passadas. Dessa forma, as autoras afirmam
que, por serem as estruturas genéricas de conhecimento ativadas instantaneamente
na memória, elas o inconscientes. Por sua vez, as mais específicas exigem maior
tempo para serem acessadas e utilizadas, configurando um processo de busca
consciente e seletivo.
Nesse sentido, “as inferências fundamentadas no conhecimento geral não
incluem aquelas baseadas na lógica, que são derivadas de raciocínio formal
independente de domínio; nem de inferências quantitativas, que são derivadas de
fórmulas.” (GRAESSER; ZWAAN, 1995, apud FERREIRA; DIAS, 2004, p.445).
Ferreira e Dias (2004, p.444) notam que Graesser e Zwaan “parecem
considerar as inferências baseadas no conhecimento como inferências verdadeiras e
não, simplesmente, como recuperação de conhecimento”. Segundo as autoras,
esses pesquisadores ressaltam, inclusive, a pragmática da situação comunicativa
proposta pela leitura como um aspecto importante na geração de inferências.
Graesser e Zwaan chegam a salientar que a proposta de classificação de inferências
deles parte do sentido de que todas as inferências são extratextuais, quando são
inerentes ou derivadas das estruturas de conhecimento do leitor. Nesse sentido, os
autores não focam as inferências de coerência textual que requerem
exclusivamente, para sua elaboração, informações explícitas no texto.
Quanto à classificação de inferências feita por Graesser e Zwaan, Ferreira e
Dias (2004, p.445) destacam que os autores se fundamentam no conhecimento-
base, conforme os exemplos a seguir:
1) Objetivo superordinário: a inferência é um objetivo que motiva uma
ação intencional do agente.
65
2) Objetivo ou ação subordinada: a inferência é um objetivo, plano ou
ação que especifica como a intenção de um agente é realizada.
3) Antecedente causal: a inferência refere-se ao elo causal (ponte) entre a
oração explícita sendo compreendida e o contexto da passagem prévia.
4) Conseqüente causal: a inferência diz respeito a um elo causal previsto,
desdobrando-se na oração explícita sendo compreendida. Esta inclui
eventos físicos e novos planos dos agentes, mas não emoções.
5) Emoção do personagem: a inferência é uma emoção experienciada por
um personagem em resposta à ação ou evento sendo compreendido.
6) Estado: a inferência é um estado que vem da estrutura do tempo na
trama da história, a que não é ligado de maneira causal ao episódio da
trama. Este inclui características dos personagens, propriedades dos
objetos e relacionamentos espaciais entre entidades físicas. (grifos do
original)
Apesar de o modelo de Graesser e Zwaan ter sido testado em adultos,
Ferreira de Dias (2004) lembram que é importante que sejam identificadas, também,
inferências elaboradas por crianças, quando da leitura de um texto narrativo, bem
como qual a influência do conhecimento geral de tais crianças sobre a construção de
uma representação textual.
As autoras afirmam, ainda, que as classificações elaboradas por Graesser e
Zwaan (1995) e Marcuschi (1985, 1989), além de contemplarem os conhecimentos
gerais de mundo, contemplam as memórias de experiências pessoais e
socioculturais vividas pelos leitores, assim como os valores e ideologias construídos
a partir de suas experiências individuais.
Dessa forma, na relação entre leitura, conhecimento e experiência, Ferreira e
Dias (2004, p.445) sustentam que uma exigência muito ampla do conhecimento
do código e das regras sintáticas implicadas na compreensão de um texto, pois
[...] além de conhecimentos genéricos das situações cotidianas e sociais, a
realização dessas inferências parece exigir também certas habilidades
cognitivas, como, por exemplo, a capacidade de perceber a intenção da
ação de outrem e de diferenciá-las das conseqüências dessa ação. É
66
preciso ter ainda a capacidade de perceber a emoção expressa no
comportamento ou ação do outro.
Para as autoras, ao se tomar leitura como um processo inferencial e cognitivo,
o qual é ativado a partir da intrincada relação entre leitor, texto e contexto, é preciso
“argumentar quanto à importância de se contemplarem essas três vertentes quando
da elaboração de uma classificação de inferências e de sua consideração para a
explicação da atividade de leitura”, a qual é vista como “polissêmica e não-linear”
(FERREIRA; DIAS, 2004, p.447).
Considerando as abordagens sobre o tema em pauta, verificamos que, para
Marcuschi (1999), Dell’Isola (2001) e Koch (1993), as diferenças socioculturais e
contextuais influenciam na produção de inferências, contribuindo, dessa maneira,
para tipos variados de produção inferencial.
As classificações para os tipos de inferências levam-nos a perceber certa
semelhança entre as propostas dos autores. Como estratégias cognitivas usadas na
construção de sentidos e depreensão de uma informação, os tipos inferenciais são
resultados de experiências vivenciadas e compartilhadas no dia-a-dia. Nesse caso,
as inferências são flexíveis, variando de acordo com cada crença, cada ideologia,
cada costume cultural, social e contextual. À medida que aprendemos, apreendemos
e adquirimos conhecimentos novos, esses que se constituem em conhecimentos
prévios nos levam, cada vez mais, às novas conquistas e descobertas.
Tendo em vista o estudo sobre inferências e sua classificação, ressaltamos
que, em conformidade com Marcuschi (1999), entendemos inferência como “uma
operação cognitiva que permite ao leitor construir novas proposições a partir de
outras dadas” (p.101). Assim sendo, informamos que as inferências produzidas
pelos sujeitos da pesquisa serão comentadas segundo a definição e a classificação
de tipos inferenciais propostas pelo estudioso.
Dessa forma, destacamos que não é possível precisar tipos inferenciais,
contudo é possível verificar, no processo de compreensão, que os alunos produzem
inferências com base em conhecimentos de mundo, experiências, crenças,
ideologias e axiologias individuais. Isso é o que analisaremos no capítulo a seguir.
67
CAPÍTULO 3
INFERÊNCIAS E AVALIAÇÃO DA LEITURA
Tomamos por base neste trabalho uma concepção sociocognitiva e
interacional de texto, leitura e sentido. Nessa perspectiva, o texto é entendido como
um “evento comunicativo” em que “convergem ações lingüísticas, cognitivas e
sociais” (BEAUGRANDE, 1997, p.15). Sabendo-se que nem tudo em um texto é
expressamente explícito, no processo de leitura, exige-se do leitor uma participação
ativa, tendo em vista que o sentido é construído na interação autor-texto-leitor.
Na atividade de leitura e construção sentido, o preenchimento de lacunas se
por meio de um processo de inferenciação, para o qual é preciso levar em conta
os conhecimentos prévios dos sujeitos em interação. Lembrando, ainda, que o
contexto sociocognitivo exerce forte influência no processo de interação, de
inferenciação e de construção de sentido do texto, visto que “toda e qualquer
manifestação de linguagem ocorre no interior de determinada cultura, cujas
tradições, usos e costumes, cujas rotinas devem ser obedecidas e perpetuadas”
(KOCH, 2003b, p. 23). Sendo assim, para que duas ou mais pessoas possam
interagir e se compreenderem mutuamente, é necessário que seus contextos
cognitivos (conhecimentos enciclopédico, sócio-interacional, procedural, etc.) sejam
parcialmente semelhantes.
Tendo em vista que, para haver compartilhamento de conhecimentos, os
parceiros de uma interação trazem cada um consigo sua bagagem cognitiva, faz
parte desse processo a inferenciação. Sendo assim, entendemos inferência como
uma atividade cognitiva interacional de produção de informação nova a partir de
informações dadas (cf.: MARCUSCHI, 1999). Por sua vez, leitura é um processo no
qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e interpretação de texto, a
partir de objetivos, de conhecimentos prévios sobre o assunto, sobre o autor e de
tudo que sabe sobre a língua. Durante a leitura, o leitor interage seus conhecimentos
com o texto-autor, inferindo a partir de marcas formais que atuam como pistas para a
68
(re)construção de sentidos do/para o texto. Portanto, uma atividade de leitura implica
seleção, antecipação, inferência e verificação, sem as quais não seria possível
rapidez e proficiência (COLOMER; CAMPS, 2002; KLEIMAN, 2004).
As inferências possibilitam ao leitor, no processo de construção de sentidos,
dizer se algo significa isso ou representa aquilo, pois o conhecimento prévio do leitor
o leva a raciocinar. Tal raciocínio é desenvolvido numa atividade inferencial que está
inserido num contexto de uma ação discursiva (MARCUSCHI, 2005).
Nesse sentido, uma determinada seqüência enunciativa só terá um efeito
significativo, se o conhecimento prévio possibilitar ao leitor o processo inferencial,
durante a construção de sentidos do texto. Desse modo, as inferências e o contexto
contribuem para a compreensão e produção de novas informações, pois o efeito
contextual possibilita que dados não apresentados diretamente no enunciado
possam ser inferidos por meio de hipóteses, de combinação de informações, de
intenção comunicativa, de reconhecimento de posições interlocutivas, de pertinência,
de imagem de si e de imagem do outro (cf.: ALMEIDA, 2006).
Levando-se em conta a concepção de leitura tal como desenvolvida no
capítulo 1 e a concepção de inferência tal como desenvolvida no capítulo 2,
verificaremos, neste trabalho, as inferências produzidas em comentários escritos
por alunos de 6ª série, após a atividade de leitura de um texto.
3.1 Critérios de escolha de conto
Para a realização de nosso objetivo, optamos pelo gênero conto, que
pressupostamente se faz presente na vida dos alunos das mais variadas séries e se
encontra na orientação dos PCNs (1998) em Língua Portuguesa.
Com o intuito de averiguar as inferências e, desse modo, contribuir para o
ensino da leitura, selecionamos o conto a seguir:
69
O Caso do Espelho
Era um homem que não sabia quase nada. Morava longe, numa casinha de
sapé esquecida nos cafundós da mata.
Um dia, precisando ir à cidade, passou em frente a uma loja e viu um espelho
pendurado do lado de fora. O homem abriu a boca. Apertou
os olhos. Depois gritou, com o espelho nas mãos:
- Mas o que o retrato de meu pai está fazendo aqui?
- Isso é um espelho – explicou o dono da loja.
- Não sei se é espelho ou se não é, sei que é o
retrato do meu pai.
Os olhos do homem ficaram molhados.
- O senhor... conheceu meu pai? – perguntou ele ao comerciante.
O dono da loja sorriu. Explicou de novo. Aquilo era um espelho comum,
desses de vidro e moldura de madeira.
- É não! respondeu o outro. Isso é retrato do meu pai. É ele, sim! Olha o
rosto dele. Olha a testa. E o cabelo? E o nariz? E aquele sorriso meio sem jeito?
O homem quis saber o preço. O comerciante sacudiu os ombros e vendeu o
espelho, baratinho.
Naquele dia, o homem que não sabia quase nada entrou em casa todo
contente. Guardou, cuidadoso, o espelho embrulhado na gaveta da penteadeira.
A mulher ficou só olhando.
70
No outro dia, esperou o marido sair para trabalhar e correu para o quarto.
Abrindo a gaveta da penteadeira, desembrulhou o espelho, olhou e deu um passo
atrás. Fez o sinal da cruz tapando a boca com as os. Em seguida, guardou o
espelho na gaveta e saiu chorando.
- Ah, meu Deus! – gritava ela desnorteada É o retrato
de outra mulher! Meu marido não gosta mais de mim! A outra
é linda demais! Que olhos bonitos! Que cabeleira solta! Que
pele macia! A diaba é mil vezes mais bonita e mais moça do
que eu!
Quando o homem voltou, no fim do dia, achou a casa
toda desarrumada. A mulher, chorando sentada no chão, não
tinha feito nem a comida.
- Que foi isso, mulher?
- Ah, seu traidor de uma figa! Quem é aquela jararaca lá no retrato?
- Que retrato? – perguntou o marido, surpreso.
- Aquele mesmo que você escondeu na gaveta da penteadeira!
O homem não estava entendendo nada.
- Mas aquilo é o retrato do meu pai!
Indignada, a mulher colocou as mãos no peito:
- Cachorro sem-vergonha, miserável! Pensa que eu não sei a diferença entre
um velho lazarento e uma jabiraca safada e horrorosa?
A discussão fervia feito água na chaleira.
- Velho lazarento coisa nenhuma! – gritou o homem, ofendido.
A mãe da moça morava perto, escutou a gritaria e veio ver o que estava
acontecendo. Encontrou a filha chorando feito criança que se perdeu e não
consegue mais voltar pra casa.
- Que é isso, menina?
- Aquele cafajeste arranjou outra!
- Ela ficou maluca – berrou o homem, de cara amarrada.
- Ontem eu vi ele escondendo um pacote na gaveta do quarto, e! Hoje,
depois que ele saiu, fui ver o que era. Tá lá! É o retrato de outra mulher!
A boa senhora resolveu, ela mesma, verificar o tal retrato.
71
Entrando no quarto, abriu a gaveta, desembrulhou o pacote e espiou.
Arregalou os olhos. Olhou de novo. Soltou uma sonora gargalhada.
- Só se for o retrato da bisavó dele! A tal fulana é a coisa mais enrugada, feia,
velha, cacarenta, murcha, arruinada, desengonçada, capenga, careca, caduca, torta
e desdentada que eu já vi até hoje!
E completou, feliz, abraçando a filha:
- Fica tranqüila. A bruaca do retrato já está com os dois pés na cova!
(AZEVEDO, Ricardo. O caso do espelho. Revista Nova Escola, São Paulo, ed. especial, v. 2, s.d., p. 34-35.
Disponível em: <http://revistaescola.abril.com.br/edicoes/Esp_003/aberto/mt_especial_259084.shtml>. Acesso
em 10 jan.2008)
Para a escolha do conto, levamos em consideração, como afirmado
anteriormente, que se trata de um gênero textual pressupostamente presente na
vida dos alunos e sugerido pelos PCNs para trabalho em sala de aula. Além disso,
para analisar as inferências produzidas por alunos, tendo em vista as seguintes
condições postuladas por Marcuschi (2005, p.51):
1. Condição com base textual: para haver compreensão é preciso que o sistema
lingüístico seja de “domínio comum e suficiente aos propósitos dos interactantes”.
2. Condição de conhecimentos relevantes partilhados: para haver interação
leitor-texto, além do domínio de regras lingüísticas, é preciso que os
conhecimentos relevantes sejam partilhados.
3. Condição de coerência: para que as condições 1 e 2 sejam significativamente
satisfatórias, deve haver coerência textual, pois, “como um dos fatores
condicionantes necessários à compreensão, a coerência temática (que não deve
ser confundida com a coesão superficial) é construída tanto na produção como
na recepção do texto”.
4. Condição de cooperação: para que haja compreensão, é preciso interação
entre “situações concretas e reais de recepção e produção”, uma vez que, como
atividade interacional, a leitura exige “contratos e negociações bilaterais que se
evidenciam na colaboração mútua, que, mesmo quando violada, deve preservar
72
vias de acesso relevantes”. Em outras palavras, ainda que o leitor viole algum
contrato e/ou negociação, no processo inferencial, tal violação deve encontrar
respaldo nas pistas textuais.
5. Condição de abertura textual: para que não ocorram n possibilidades
interpretativas que nada têm a ver com as alternativas mutuamente aceitáveis,
“na medida em que a compreensão se submete à condição 4, o texto transforma-
se numa proposta de sentido, com características de abertura estratégica”.
Dessa forma, as n possibilidades interpretativas devem estar coerentes com as
vias de acesso relevantes.
6. Condição de base contextual: para que não ocorra indeterminação, criada pela
condição 5 e que as condições 2 e 4 resolvem superficialmente, o autor
sugere uma outra condição que requeira “a presença de contextos suficientes,
situados num tempo e num espaço definidos, tanto para a produção como para a
recepção”.
7. Condição de determinação tipológica: para que haja qualidade contextual, é
preciso além da condição 6, também, considerar o tipo de texto, pois “cada tipo
carrega em si condições restritivas específicas, tanto de contextualização como
de indeterminação” que, por sua vez, agem “conjuntamente com as condições 5
e 6”.
Partindo das sete condições do processo de compreensão, verificamos que
Marcuschi (2001, p. 52) entende que “compreensão é um ato que envolve não só
percepção de relevâncias”, mas também “seleção de saliências textuais, predição de
hipóteses, confrontação e testagem das hipóteses, confirmação ou reconstrução
para chegar a um produto final.” Assim, considerando que o sentido de um texto é
construído na interação entre texto-sujeito e que não é algo que preexista à
interação, entendemos que, como atividade interativa altamente complexa de
produção de sentidos, a leitura de um texto exige sempre a produção de inferências
baseada em conhecimentos ativados pelo leitor em seu processo de interação com o
texto-autor.
73
Como a leitura de um texto requer do leitor um vasto conjunto de saberes
(KOCH; ELIAS, 2006), dentre eles, os referentes a tipos e gêneros existentes, além
do conhecimento prévio sobre a temática do texto, consideramos relevante, neste
trabalho, destacar alguns pontos significativos a respeito da organização do conto.
3.2 O gênero textual conto: definição
Em se tratando de literatura, em linhas gerais, Gotlib (1987) afirma que
inventar estórias foi algo que se desenvolveu, no passado, como uma arte de criar e
transmitir acontecimentos, reais ou irreais. Essa transmissão, primeiramente oral,
com o decorrer do tempo, passou a ser escrita. O registro escrito firma o caráter
literário do conto e nessa forma de produção quem assume o papel contador-
criador-escritor de contos é o narrador.
Tipologicamente, Stalloni (2007, p.118) destaca quatro categorias de distinção
do conto moderno: o conto gaulês (os apólogos, as fábulas), o conto maravilhoso
(conto de fadas), o conto filosófico (as paródias) e o conto fantástico (o
sobrenatural).
Peculiarmente, o conto distingue-se de outros gêneros narrativos por seu
estilo econômico e situado a uma proposição temática bem resumida, evidenciando,
assim, um gênero independente e com características próprias.
Em relação aos traços distintivos do conto, apontamos os seguintes aspectos
apresentados por Stalloni (2007, p. 120-121) que se baseia nos estudos de Robert
(1972) sobre esse gênero:
o conto inclina-se em direção à fábula ou ao onirismo, renunciando ao
realismo e à verossimilhança;
as personagens pertencem ao domínio do simbólico, abandonando as
caracterizações individuais;
o conto possui um fundamento popular, podendo inspirar-se na tradição
oral e coletiva ou no folclore;
74
o conto pode ser (pelo menos teoricamente) mais longo do que a
novela, mas é, como esta, um relato breve;
o conto procede de uma narração direta, inspirada pela oralidade: um
narrador, que se assume enquanto tal, ‘recita’ a história;
o conto comporta uma intenção moral ou didática, claramente expressa
ou implicitamente contida na narrativa.
Além desses aspectos, Gotlib (1987) destaca que a brevidade é uma das
características do conto, que o contista condensa a matéria para apresentar os
seus melhores momentos, em um relato interessante e suficientemente breve, de
modo a absorver toda a nossa atenção. Trata-se de conseguir com o mínimo de
extensão o máximo de efeitos sobre o leitor. Assim sendo, por ser breve, o conto
deve causar um forte impacto no leitor.
3.2.1 A brevidade do conto
A brevidade é uma particularidade essencial do conto. Nesse sentido, o conto
deve possuir uma forma mais desenvolvida de ação, pois, ainda que o enredo tenha
dois ou mais episódios, tais ações devem ser independentes. Sobre esse aspecto,
Gotlib explica-nos que o conto difere do romance, visto que este depende de ações
anteriores e posteriores, enquanto aquele não. Com base nisso, a autora afirma:
O conto é, pois, conto quando as ações são apresentadas de um modo
diferente das apresentadas no romance: ou porque a ação é inerentemente
curta, ou porque o autor escolheu omitir algumas de suas partes. A base
diferencial do conto é, pois, a contração [...], é apresentar os seus melhores
momentos. Pode haver o caso de uma ação longa ser curta no seu modo
de narrar, ou, então, ocorrer o inverso.
(
GOTLIB, 1987, p.64, grifos da
autora)
75
Entretanto, Gotlib (1987, p. 65) ressalta que não se pode afirmar que o conto
seja uma estória curta pelo fato de ele ter um certo número de palavras, ou de
ter mais unidade ou de enfocar mais o clímax que o desenvolvimento da ação”.
Para a autora, além da brevidade, o conto deve causar um efeito especial de
maneira que, o que for abordado como tema, traga algo novo, força, clareza e
compactação (grifos da autora). Sendo assim, é necessário que o texto permita ao
leitor perceber detalhes, prenda-o, não deixando que, entre uma ação e outra, sua
atenção afrouxe o laço de ligação.
Gotlib (1987) ressalta, inclusive, que a compactação e a condensação
objetivam orientar o leitor, desviando-o das múltiplas direções interpretativas, pois
quanto maior for a objetividade do texto, mais forte será o efeito sobre o leitor.
O efeito pretendido é promover “o seqüestro do leitor”, intrigando-o com
questões não resolvidas. Nisso consiste o segredo de um conto, e, para a autora,
esse sentido de armadilha:
promove o seqüestro do leitor, prendendo-o num efeito que lhe permite a
visão em conjunto da obra, desde que todos os elementos do conto são
incorporados, tendo em vista a construção deste efeito (Poe); neste
seqüestro temporário, existe toda uma força de tensão, num sistema de
relações entre elementos do conto e em que cada detalhe é significativo
(Cortázar). O conto centra-se num conflito dramático, em que cada gesto e
olhar são até mesmo teatralmente utilizados pelo narrador (E. Bowen). Não
lhe falta a construção simétrica, de um episódio, num espaço determinado
(B. Matthews). Trata-se de um acidente da vida (José Oiticica), cercado,
neste caso, de um ligeiro antes e depois (José Oiticica). De tal forma que
esta ação parece ter sido mesmo criada para um conto, adaptando-se a
este gênero e não a outro, por seu caráter de contração (N. Friedman). Este
é um lado da questão teórica referente às características específicas do
gênero conto. Eis um caso. (GOTLIB, 1987, p.80-81)
76
3.2.2 A organização do conto
Levando-se em consideração que, no conto, as ações acontecem em um
espaço delimitado e em um tempo curto, o que o caracteriza é a presença de um
conflito. Nesse sentido, segundo Siqueira (1992), a principal característica de uma
narrativa de ficção é a expectativa implícita e/ou explícita que possibilita ao leitor a
identificação do conflito. Para solucioná-lo, dependendo de sua complexidade,
segundo o autor, duas formas: a primeira ocorre no momento em que os próprios
personagens envolvidos na situação resolvem ou, pelo menos, tentam resolver
aquilo que os aflige; a segunda forma ocorre no momento em que surge uma outra
personagem em auxílio para solucionar o conflito. Por conseguinte, quando este é
solucionado, tem-se uma narrativa de sucesso, quando não, tem-se uma narrativa
de fracasso.
De modo geral, uma narrativa, para Siqueira (1992, p.39), organiza-se da
seguinte forma:
criação de uma expectativa para a personagem e/ou para o leitor;
quebra da expectativa, criando um conflito para a personagem
(condição essencial para o texto ser considerado, por nós, como uma
autêntica narrativa);
resolução (ou, pelo menos, tentativa de resolução) do conflito
apresentado;
desfecho, resultante da busca de resolução do conflito, que marca
a narrativa como sendo de sucesso ou de fracasso;
avaliação, que traz uma lição de moral, uma lição de vida ou um
ensinamento qualquer, explícita ou implicitamente. (grifos do original)
Em se tratando do conto escolhido para verificação do processo inferencial,
destacamos que ele se organiza em torno de um conflito gerado pela falta de
conhecimento prévio das personagens - não saber o que era espelho nem sua
utilidade - e que traz implicitamente uma avaliação, isto é, uma moral da história.
77
3.3 Os sujeitos da pesquisa
Neste trabalho, conforme já afirmado, temos o objetivo de verificar o processo
inferencial em produções escritas de alunos. Para tanto, selecionamos um total de
67 alunos, de 11 a 14 anos, que cursavam a 6
a.
série (turmas A e B) do Ensino
Fundamental II da Escola Estadual Professor Paul Hugon, no período da tarde (das
13h às 18h30) – o único período da escola que funciona o Ensino Fundamental.
A escola, pertencente à Diretoria Regional de Ensino Norte 2, situa-se no
bairro Alto do Mandaqui, de classe média e baixa, e localiza-se em uma área
residencial, popularmente conhecida como Bancários, próxima ao Horto Florestal.
3.4 Realização de uma atividade de leitura para verificação de inferências e
avaliação da compreensão
Tendo-se em vista nosso objeto de pesquisa, selecionamos o conto O caso
do espelho, apresentado anteriormente, e o entregamos para leitura silenciosa e
individual de alunos. Participaram da atividade 67 estudantes da série do Ensino
Fundamental II, no ano de 2007. Dos 67 alunos, 34 eram da série A e 33 da
série B. Os alunos da 6ª A participaram da atividade das 14h15 às 14h45 e os
alunos da 6ª B, das 15h10 às 15h40.
Após a leitura, pedimos a eles que escrevessem livremente por 30 minutos o
que haviam compreendido da história. Para garantir a originalidade das construções
inferenciais dos alunos, durante a atividade de leitura e escrita, os alunos não
conversaram uns com outros, nem com a professora.
Ao término da atividade escrita, as produções foram recolhidas e foi iniciada a
segunda fase da pesquisa: verificação de inferências produzidas pelos alunos em
processo de interação com o texto.
78
No levantamento e comentários dos dados obtidos, os alunos e alunas serão
identificados somente por ALUNO, seguido de um número. Ressaltamos, ainda,
que não é nosso objeto de pesquisa verificar a quantidade de inferências
produzidas, mas chamar a atenção para o fato de que:
a) o texto contém sempre lacunas;
b) o leitor preenche as lacunas com base em conhecimentos prévios;
c) a inferência é uma estratégia a que recorre o leitor;
d) a leitura é uma atividade cognitiva.
3.5 Seleção do corpus
Selecionamos aleatoriamente alguns comentários dos alunos para verificação
de inferências produzidas. Tais inferências serão apresentadas agrupadas em
conformidade com a similaridade do raciocínio elaborado, a fim de evitar repetições
nas explicações.
3.6 Levantamento de inferências
Em nosso trabalho, partirmos da concepção sociocognitiva e interacional que
toma leitura como uma atividade centrada na interação autor-texto-leitor. Subjaz a tal
concepção que “os sujeitos são vistos como atores / construtores sociais, sujeitos
ativos que dialogicamente se constroem e o construídos pelo texto” (KOCH;
ELIAS, 2006, p.10-11). Assim sendo, ressaltamos que, nessa interação do leitor com
o texto-autor, pressupostamente, está a produção de inferências.
Como dissemos, entendemos inferências como processos cognitivos através
dos quais o leitor, partindo da informação textual e levando em conta o contexto,
79
constrói novas representações semânticas. Isso implica dizer que o sentido não é
algo que preexista à interação, mas é construído pelo leitor no momento em que
este mobiliza, com base nos elementos lingüísticos presentes na superfície textual,
um vasto conjunto de saberes (Koch, 1993; Marcuschi, 1999; Dell’Isola, 2001; Koch
e Elias, 2006; dentre outros).
Tendo em vista as considerações feitas anteriormente, apresentaremos, a
seguir, o levantamento de inferências nos comentários produzidos por escrito após a
leitura do conto selecionado.
3.6.1 Inferências produzidas em relação à caracterização e ações das
personagens
3.6.1.1 Sobre o homem que não sabia quase nada
É a história de um cara que morava longe da cidade, no meio do mato, então, ele
não tinha essas coisas modernas. (ALUNO 1)
[...] que ele não sabia de nada das coisas, ele era muito distraído. (ALUNO 2)
Era uma vez um homem triste andando pelas ruas passando em frente de uma
loja de espelhos. (ALUNO 3)
Em relação aos comentários dos ALUNOS 1, 2 e 3, podemos dizer que,
baseados em conhecimentos de mundo e em experiências e vivências, os alunos
produzem inferências avaliativas.
Segundo o ALUNO 1, o homem que não sabia quase nada não possuía
coisas modernas porque morava nos cafundós da mata. Para o ALUNO 2, o
80
homem que o sabia quase nada era distraído, pois confundiu o espelho com
retrato. Já para o ALUNO 3, o homem que não sabia quase nada era triste.
Podemos verificar que, com base num esquema montado, o ALUNO 1 parte
de um contexto sociocognitivo segundo o qual aquele que Mora muito longe, numa
casinha de sapé, esquecida nos cafundós da mata não deve possuir coisas
modernas. Em relação ao ALUNO 2, observamos que ele não atenta para o fato de
que o homem não sabia o que era um espelho nem para que ele servia. Nesse
caso, podemos dizer que a inferência do ALUNO 2 é produzida com base em uma
avaliação pessoal segundo a qual quem compra um objeto por outro pode ser
distraído. Assim como o ALUNO 2 infere que o homem era distraído, o ALUNO 3,
partindo do input lingüístico os olhos do homem ficaram molhados, infere que o
homem era triste. Entretanto, de acordo com as pistas textuais, o nada que
sustente que o homem fosse distraído e triste, nem o pouco que estivesse
contente. O que o texto explicita é que o homem não sabia o que era um espelho e
que elese emocionou ao se olhar no espelho, pensando ser este o retrato de seu
pai: - Mas o que o retrato de meu pai está fazendo aqui? [...] - Não sei se é espelho
ou se não é, sei que é o retrato de meu pai. Dessa forma, constatamos que as
inferências avaliativas dos ALUNOS 1, 2 e 3 são pragmático-culturais.
3.6.1.2 Sobre a mulher do homem que não sabia quase nada
Logo quando o velho saiu de casa a mulher foi ver o que era. Ai depois que ela
viu saiu chorando e foi para a sala, sentou no soe assim logo em ceguida o
seu marido chegou. (ALUNO 4)
Ele (o homem que não sabia quase nada) chegou na casa dele e guardou o
retrato embrulhado na gaveta, ele saiu, e a mulher dele foi ver o que ele tinha
guardado. (...) Ele chegou e ela brigou muito com ele, a esposa dele chamou a
mãe dela. (ALUNO 5)
81
Em relação ao comentário do ALUNO 4, podemos dizer que o texto
explicitamente apresenta a informação de que a mulher do homem, assim que
descobre que, na gaveta da penteadeira, havia um suposto retrato de outra mulher
guardado pelo marido, sai chorando do quarto do casal e se senta no chão.
Contudo, o aluno afirma que a mulher do homem, ao descobrir o tal retrato, sai
chorando do quarto do casal para a sala e se senta no sofá. Entretanto, de acordo
com o texto, a mulher do homem sai chorando, sim, mas não se sabe para onde;
ela se senta, sim, mas é no chão e não no sofá, pois é assim que o marido a
encontra ao voltar do trabalho: Quando o homem voltou, no fim do dia, achou a casa
toda desarrumada. A mulher, chorando sentada no chão, não tinha feito nem a
comida. Embora o texto informe o local em que a mulher está sentada, o aluno não
atenta para tal informação. Nesse sentido, constatamos que, com base em
conhecimentos de mundo e experienciais, o ALUNO 4 produz uma inferência
pragmático-cultural.
Em relação ao comentário do ALUNO 5, verificamos que ele infere que é a
mulher do homem quem chama pela mãe. No entanto, o texto apresenta
informações de que é a mãe da moça quem vai até a casa da filha para averiguar o
que estava acontecendo por lá, devido ao choro e à gritaria. Ao inferir o inverso, o
aluno, provavelmente, o faz guiado pela orientação cultural segundo a qual,
geralmente, é sempre a filha quem clama pelo socorro, ajuda da mãe quando em
situação conflituosa e perigosa. Nesse sentido, baseado em conhecimento prévio
sobre comportamentos e relações familiares, a inferência do aluno provém de um
esquema de mundo que, associado à informação do texto, resulta em inferência
pragmático-cultural.
3.6.1.3 Sobre a sogra do homem que não sabia quase nada
a filha deixa eu ver esse espelho e ela começou a dar risada e falou se isso for
uma mulher eu sou um homem. (ALUNO 3)
82
a mãe dela (mulher do homem) começou a rir a rir a rir e falou minha filha esta
mulher é você. (ALUNO 6)
Eu entendi que o homem e a mulher nunca tinha visto um espelho na vida. O
homem, o homem era parecido com o pai [...], a mulher que nunca tinha olhado
em um espelho também [...], e quando chegou a mãe da mulher caiu na
gargalhada é porque eu acho que a mãe da mulher tinha visto um espelho.
(ALUNO 7)
(mãe da moça para a filha) Ela falou fica tranquila ele não está com outra mulher.
Não precisa se preocupar com ele era só um espelho comum. (ALUNO 8)
Eu entendi do texto, que cada pessoa via-se no espelho e achava que era uma
pessoa. E ninguém sabia que aquilo era um espelho. E por isso eles se
separaram. (ALUNO 9)
Em relação aos comentários 3, 6, 7 e 8, podemos dizer que os alunos
elaboram novas informações em relação ao texto lido, a saber:
1. A sogra do homem que não sabia quase nada conhecia um espelho (filha deixa
eu ver esse espelho) - ALUNO 3; (a mãe da mulher tinha visto um espelho) -
ALUNO 7; (não precisa se preocupar é só um espelho comum) - ALUNO 8;
2. A sogra do homem que não sabia quase nada identifica o retrato de um homem e
não de uma mulher (se isso for uma mulher eu sou um homem) - ALUNO 3;
3. A sogra do homem que não sabia quase nada afirma que o retrato é da própria
filha (minha filha esta mulher é você) - ALUNO 6.
Como podemos verificar, as inferências reveladas nos comentários foram
produzidas com base em conhecimentos prévios que os alunos têm sobre as coisas
do mundo (no caso, o espelho) e de como funcionam (o espelho reflete a imagem
83
daquele/daquela que o vê). Nesse sentido, as inferências produzidas pelos ALUNOS
3, 6, 7 e 8 são pragmático-culturais.
Em se tratando do comentário do ALUNO 9, verificamos que o aluno infere
que o casal acaba se separando, que não conseguem resolver o problema. No
entanto, no texto, não pista que aponte nessa direção. Provavelmente, o aluno,
com base em conhecimentos de mundo sobre relacionamentos entre marido e
mulher, brigas entre casais por motivos de traição, produz a inferência pragmático-
cultural.
3.6.1.4 Sobre o homem, a mulher e a sogra que não sabiam quase nada
Eu entendi que eram pessoas muito burras que pouco sabia das coisas e não
sabe diferenciar um retrato de um espelho, e que morava muito longe da cidade
por isso tão pouco inteligente. (ALUNO 10)
Pra mim eles não sabiam que era um espelho [...] eles são muito burros porque
eles estão vendo eles mesmos. (ALUNO 11)
O homem que não sabia de nada comprou um espelho que ele pensava que era
o retrato do pai [...] eles pensaram que eram outras pessoas porque eles eram
muito burros. (ALUNO 12)
Eu entendi que era uma família muito pobre que nunca tinha visto um espelho e
quando viu pensou que era retrato. (ALUNO 13)
Eu entendi que eles eram muito caipiras por isso não viram que era eles
mesmos. (ALUNO 14)
Eu entendi que são pessoas do mato, que não sabem de nada, não conhecem
nada da cidade. (ALUNO 15)
84
Em relação aos comentários dos ALUNOS 10, 11 e 12, podemos verificar que
produziram inferências pragmático-culturais avaliativas, baseadas em
conhecimentos, experiências, ideologias e axiologias individuais, visto que
classificam de burras as personagens pelo fato de elas morarem afastadas da
cidade e por não saberem distinguir um espelho de um retrato.
Por sua vez, os ALUNOS 13, 14 e 15, partindo da pista textual de que o
homem que não sabia quase nada, morava longe, numa casinha de sapé e
esquecida nos cafundós da mata, inferem que se tratava de uma família muito
pobre (ALUNO 13) e que as personagens eram caipiras (ALUNO 14), pois eram
pessoas do mato, que [...] não conhecem nada da cidade (ALUNO 15). Como
podemos verificar, as inferências dos alunos (13, 14 e 15) partem de conhecimentos
socioculturais, visto que para eles quem mora numa casa de sapé e nos cafundós da
mata pode ser pobre e caipira, e não conhecer o que é um espelho a ponto de
confundi-lo com um retrato. Nesse sentido, os ALUNOS 10, 11, 12, 13, 14 e 15
produzem inferências pragmático-culturais.
3.6.1.5 Sobre o espelho
Eu entendi que o fato de um espelho, era um espelho do tipo dramático. (ALUNO
16)
Eu entendi que fala de um espelho que parece mágico, e cada um que olhar
encherga uma coisa diferente. (ALUNO 17)
Eu acho que esse espelho é mágico ou tem macumba [...] porque cada dia muda
a foto no espelho eu acho que o espelho tem algum [o aluno quis dizer “algo” [...]
Esse espelho mostra a foto de qualquer pessoa [...] (ALUNO 18).
Em relação aos comentários dos alunos acima, constatamos que os alunos
elaboram inferências que qualificam o espelho. Para o ALUNO 16, o espelho era do
85
tipo dramático”; para o ALUNO 17, tratava-se de um espelho que parecia ser
mágico”; e, para o ALUNO 18, ou o espelho era gico ou ele tinha macumba”,
uma vez que mostrava fotos de outras pessoas”. Entretanto, de acordo com o
texto, as personagens não sabiam o que era um espelho, nem a sua serventia. De
acordo com as inferências reveladas nos comentários, podemos dizer que os alunos
as produziram com base em conhecimentos de mundo, considerando que ser
mágico é possuir algum efeito enigmático. Podemos dizer ainda que a inferência
pode ter sido baseada em conhecimentos de histórias infantis, tais como Branca de
Neve, A Bela e a Fera nas quais há um espelho mágico.
Particularmente, em se tratando da inferência de o espelho “ter macumba”
(ALUNO 18), podemos dizer que a inferência encontra-se respaldada no
conhecimento segundo o qual “macumba é “um feitiço” (HOUAISS, 2004).
Nos comentários, verificamos que os ALUNOS 16, 17 e 18 não inferiram que
a causa da confusão é a falta de conhecimento do homem, da mulher e da sogra
dele, que eles não sabiam o que era espelho, e a conseqüência disso é o conflito
que surge pelo fato dessas personagens o se reconhecerem nas imagens
refletidas no espelho, ou seja, por não reconhecerem o próprio reflexo no espelho,
as personagens consideram as imagens refletidas como sendo retratos de outras
pessoas: o homem jura ser o retrato do pai; a esposa jura ser o retrato de outra
mulher; a sogra jura ser o retrato de uma bisavó com “os pés na cova”. Assim
sendo, com base em conhecimentos de mundo, crenças e axiologias individuais, os
alunos produzem inferências pragmático-culturais.
3.6.1.6 Sobre o final da história
Era uma vez um homem triste andando pelas ruas [...] e eles viveram felizes para
sempre, fim. (ALUNO 3)
No final das contas a sogra explicou tudo. Depois tudo isso se resolveu, depois
da sogra se ofender de enrugada, feia, velha, cacarenta, murcha, arruinada,
86
desengonçada, capenga, careca, caduca, torta e desdentada que ela tinha
visto. E ela esta no da cova. Depois viveram felizes para sempre. (ALUNO
19)
Em relação aos comentários dos ALUNOS 3 e 19, podemos dizer que
“viveram felizes para sempre” pode ter sido motivado pelo trecho: E completou, feliz,
abraçando a filha. Assim, podemos dizer que os alunos, a partir do xico feliz,
inferem que as personagens, após o problema ter sido supostamente resolvido,
viveram felizes para sempre, tal como acontece em finais de contos de fadas.
Sendo assim, as inferências dos ALUNOS 3 e 19 são pragmático-culturais, que
são baseadas em conhecimentos de mundo e vivências fundamentadas em leituras
de histórias que se organizam em torno de uma narrativa gerada por um conflito que
se resolve sempre com um final feliz.
87
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em nosso trabalho, tivemos por objetivo analisar inferências produzidas por
alunos. Considerando os resultados obtidos,
podemos afirmar com base em
Marcuschi (1999) que a produção de inferências ocorre por meio de processos
cognitivos complexos em cuja base encontram-se conhecimentos de natureza
diversa. Em consonância com o autor, Dell’Isola (2001, p. 109) afirma que “tanto as
leituras produzidas quanto as inferências geradas estão sujeitas às influências
socioculturais do meio em que vive o leitor”.
Partindo de opiniões pessoais, ou seja, de inferências de caráter cognitivo-
cultural muito próprias de quem sempre ressitua tudo o que lê dentro de uma
perspectiva de convicções estritamente pessoais, os alunos produziram de modo
destacado inferências do tipo pragmático-culturais, provenientes de uma
“compreensão que se como fruto de uma operação co-textual/contextual e
cognitiva regida por certas regras.” (MARCUSCHI, 2008, p. 256).
Nesse sentido, em conformidade com Marcuschi (2008, p.256), concebemos
compreensão como processo que não se como “uma atividade de cálculo com
regras precisas ou exatas”, mas, sim, como “uma atividade de seleção, reordenação
e reconstrução, em que certa margem de criatividade é permitida”, ressaltando que,
como uma “atividade dialógica”, “a compreensão se dá na relação com o outro”.
Tendo em vista as análises do processo inferencial dos sujeitos-leitores desta
pesquisa, verificamos que as leituras dos alunos evidenciaram aspectos importantes:
1. que a leitura de um texto solicita sempre a produção de inferências, portanto não
se por um processamento linear nem por um tratamento detalhado de
informações;
2. que as inferências dos alunos caracterizam-se por ser elaborações avaliativas
marcadamente pragmático-culturais, visto que se baseiam em conhecimentos,
experiências, crenças, ideologias e axiologias individuais;
88
3. que, enquanto ação de expressar conhecimento, as inferências dos alunos
baseiam-se num raciocínio desenvolvido numa atividade inferencial, inserida num
contexto de uma ação discursiva (cf.: MARCUSCHI, 1999).
Deste modo, constatamos que a informação sociocultural é parte importante
do conhecimento registrado na memória, usado na compreensão textual e na
produção de inferência, assim, seria mais eficaz e produtivo para o aluno se o
professor direcionasse seus objetivos de ensino de leitura, levando-se em conta o
conhecimento prévio que o aluno possui e ampliá-lo por meio de atividades que
desenvolvam o processo inferencial desse aluno.
Tendo em vista que toda leitura envolve um processo de interação e
construção de sentidos, é importante destacar nesse horizonte a concepção de
sujeito-leitor como aquele que sabe utilizar adequadamente todas as informações
disponíveis, para estabelecer ligações relevantes entre a informação textual e o seu
conhecimento prévio, sem privilegiar ou desprezar qualquer canal de informação.
Assim sendo, abrem-se perspectivas para trabalhos futuros sobre a produção
de inferências e a interação autor-texto-leitor, no processo de leitura visto “como
lugar de interação, de constituição das identidades, de representação de papéis, de
negociação de sentidos, portanto, de co-enunciação” (KOCH, 2004, p.128).
89
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93
ANEXOS
94
95
continuação ALUNO 1
96
97
98
99
continuação ALUNO 4
100
101
102
103
104
continuação ALUNO 8
105
106
107
108
109
110
111
112
113
114
115
continuação ALUNO 18
116
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