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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
A PÓETICA DA MEMÓRIA:
O ROMANCE DE HERBERTO SALES
ÂNGELA VILMA SANTOS BISPO OLIVEIRA
ORIENTADOR: PROF. DR. ALFREDO CORDIVIOLA
Tese apresentada à Coordenação de Pós-Graduação em Letras da
UFPE para obtenção do Grau de Doutor em Teoria da Literatura.
Recife, maio de 2006
A-PDF MERGER DEMO
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A POÉTICA DA MEMÓRIA:
O ROMANCE DE HERBERTO SALES
ÂNGELA VILMA SANTOS BISPO OLIVEIRA
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BANCA EXAMINADORA:
Prof. Dr. Alfredo Adolfo Cordiviola (Orientador)
Prof. Dr. Anco Márcio Tenório Vieira
Profa. Dra. Francisca Zuleide Duarte de Souza
Profa. Dra. Maria das Graças Ferreira
Prof. Dr. Ruy Espinheira Filho
A “Betinho” – Herberto Sales – , rapaz boêmio
das ruas de Andaraí, dedico esta tese.
Agradeço a Deus a dádiva das palavras; à minha família Albino,
Terezinha, Maísa e Marcus Vinícius o acolhimento imprescindível, sempre; ao
meu orientador Prof. Dr. Alfredo Cordiviola a cumplicidade amiga e generosa,
vivida desde o mestrado; a Pierre o amor incondicional; aos meus “médicos da
alma”, Tom Oliveira e Dr. Caribé, os inúmeros diálogos sobre a existência; à
minha primeira professora de literatura, Margentina Guimarães, infinitamente;
aos amigos Mayrant Gallo, Andréa Gallo, Andréa Góes, Andréa Betânia e Carlos
Barbosa, sempre prontos ao auxílio de emergência; aos que me ajudaram no
primeiríssimo passo, muito tempo: Benedito dos Anjos e Maria de Lourdes
Dantas Pina; aos meus amigos, todos, de Andaraí, Feira de Santana, Salvador e
Recife, que participaram comigo dessa longa jornada; à CAPES a bolsa de estudos
concedida para a realização do curso.
RESUMO
Estudo da obra romanesca do escritor baiano Herberto Sales, intimamente
relacionada à temática da memória. Focalizam-se seis dos seus onze romances (não
deixando de mencionar incidentalmente os demais): Cascalho (1944), Além dos
Marimbus (1961), Dados Biográficos do Finado Marcelino (1965), Na Relva da
Tua Lembrança (1988), Os Pareceres do Tempo (1984) e Rio dos Morcegos (1993).
O estudo se divide em quatro capítulos: A memória telúrica, A memória da
solidão, A memória e a História, e A memória da Palavra. uma inter-relação
temática, e nisso presumimos a homogeneidade da obra herbertiana: o diálogo
entre livros é constante, freqüente. A memória da Palavra compreende todas as
outras memórias, pois, ali, a escritura literária é a força criadora. Nesse sentido,
escritor e leitor se ficcionalizam imersos na natureza misteriosa das palavras. Se a
biografia do escritor é insistente, acontece conforme se relaciona à obra. Vida de
papel que engloba o real, o imaginário e a ficção numa interseção com a arte
literária e a leitura.
RESUMEN
Estudio de la obra novelesca del escritor bahiano Herberto Sales, íntimamente
relacionada a la temática de la memoria. Son focalizados seis de sus once novelas
(sin dejar de mencionar incidentalmente las demás): Cascalho (1944), Além dos
Marimbus (1961), Dados Biográficos do Finado Marcelino (1965), Na Relva da
Tua Lembrança (1988), Os Pareceres do Tempo (1984) e Rio dos Morcegos (1993).
El trabajo se divide en cuatro capítulos: A memória telúrica, A memória da
solidão, A memória e a História, y A memória da Palavra. Existe uma interelación
temática, y aqui reside, como presumimos, la homogeneidad de la obra
herbertiana: el diálogo entre libros es constante, frecuente. La memoria de la
Palabra comprende todas las otras memorias, pues, allí, la escritura literaria es la
fuerza creadora. En ese sentido, escritor y lector se ficcionalizan inmersos en la
naturaleza misteriosa de las palabras. Si la biografia del escritor es insistente,
ocurre conforme se relaciona a la obra. Vida de papel que engloba lo real, lo
imaginario y lo ficcional, em una intersección con el arte literario y la lectura.
ABSTRACT
Study about romantic character work of the writer Herberto Sales, native of Bahia.
The work is intimately related to the memory theme. Six of the yours books are
focalized (and the others are incidentally mentioned): Gravel (Cascalho) (1944),
Farther on the Marshes (Além dos Marimbus) (1961), Biographic Information
of the dead Marcelino (Dados Biográficos do Finado Marcelino (1965), In
the Turf of thy Remembrance (Na Relva da tua Lembrança (1988), The
Opinions of the Time (Os Pareceres do Tempo) (1984) and River of the Bats
(Rio dos Morcegos) (1993). The study is divided in four chapters: The Land
Memory, The Seclusion Memory, The Memory and the History and The Word
Memory. There is a thematic inter-relation, and in that we presume the Herberto
Sales’s work is homogeneous: the dialogue among books are constant and often.
The Word Memory include every others memories, as, there, the literary writing is
the creator power. In that signification, writer and reader invent themselves
immersed on the mysterious nature of the words. If the writer’s is insistent, it
happens as according relate itself to the work. Paper life that unites the reality, the
imaginary and the fiction in a intercession with the literary art and the reading.
SUMÁRIO
Introdução – A Doação da Memória, 1
Roubando a Memória Alheia, 7
Capítulo Primeiro:
Cascalho e Além dos Marimbus: A MEMÓRIA TELÚRICA
Intróito
A busca da “Cidade Subjetiva”: manancial telúrico, regional, universal, 12
Cascalho, memória de um romance, 15
I. Cascalho: Memória da Terra, do Homem
Realidade e Sonho, 21
Natureza e homem: “pesados contornos”, 22
Das misérias às realidades oníricas, 35
“Um grito impossível”, 40
II. Além dos Marimbus: O Homem e o Pântano
A terra, 46
A canoa e o rio, 48
Os marimbus e suas extensões, 53
As transfigurações, 57
Seguindo seu curso, 66
Capítulo Segundo:
Dados Biográficos do Finado Marcelino e
Na Relva da Tua Lembrança: A MEMÓRIA DA SOLIDÃO
I. Tons e semitons da solidão: Dados Biográficos do Finado Marcelino
Um “estudo de alma”, 72
A casa, 75
O “retorno do morto”, 78
Entre o claro e o escuro, 80
A desmitificação, 89
A Solidão da Maturidade, 101
II. Na Relva da Tua Lembrança: A Poética do Envelhecimento
Os círculos, 106
Biográficas e alegóricas dores de envelhecer, 109
O sonho, 113
As “dunas esquecidas da memória”... , 115
Capítulo Terceiro:
Os Pareceres do Tempo: A MEMÓRIA E A HISTÓRIA
I. Pareceres Iniciais
Os pareceres da memória: um “romance de família”, 123
A memória literária e histórica, 125
A memória do escritor, 129
II. A História Ficcionalizada e a Ficção Historicizada
Da história à História, 133
De um estilo impiedoso ao poético “embalo de amor, 148
Dos feitos “heróicos” aos pareceres risíveis do Tempo, 154
Dos réquiens do Tempo, 163
Capítulo Quarto:
Rio dos Morcegos: A MEMÓRIA DA PALAVRA
I. Voltar: a Palavra final, 169
II. Rio dos Morcegos: O Retorno (Im) possível, 173
Tempo tríplice: sombras do passado, 176
Duas (e múltiplas) memórias, 181
Sombras feéricas, 184
A memória original, 195
Epílogo: Plural de Memórias, 211
Bibliografia (Básica) de Herberto Sales, 216
Referências Bibliográficas, 218
Afinal o homem nada mais é que as suas recordações. Tiram-lhe
as recordações e o homem nada mais é. (Herberto Sales:
Subsidiário 2, p. 201)
Se a vida pode constituir-se de mentiras com aparência de
verdades, um romance pode constituir-se de verdades com
aparência de mentiras. (Herberto Sales: Subsidiário I, p.
516)
“... Portanto, na realidade a sua é uma viagem
através da memória! (...) – É para se desfazer de uma
carga de nostalgia que você foi o longe! (...) Você
retorna das suas expedições com a estiva repleta de
nostalgia! (...) Um pequeno lucro, para dizer a
verdade (...)!”
(Italo Calvino: As Cidades Invisíveis, p. 93)
“... O que a memória ama fica eterno.”
(Adélia Prado: Bagagem, p. 113)
1
A DOAÇÃO DA MEMÓRIA
“A leitura é a arte de construir uma memória pessoal a
partir de experiências e lembranças alheias.” (Ricardo
Piglia)
Nasci no município de Andaraí, Lavras Diamantinas, ou, como se conhece
hoje muito bem, “Chapada Diamantina”, e dos quatro aos vinte e cinco anos morei
na cidade de Andaraí, Rua da Ilha, 19. Aos quatorze, quinze anos conheci a
literatura de Herberto Sales, especificamente Cascalho. Minha professora de
português, Maju (Margentina Guimarães), havia indicado o livro para lermos e, em
seguida, nos avaliar a leitura. Lembro-me que pai comprou para mim aquela edição
de bolso da Ediouro que trazia na capa um garimpeiro debruçado em sua bateia,
imagem por demais interiorizada em todos nós lá da região. Eu não conhecia,
verdadeiramente, um garimpeiro, via apenas um ou outro homem garimpando no
rio, mas conhecia muito bem o garimpeiro folclórico, imaginário, que rondava os
causos daquela cidade, outrora rica de diamantes e pedras preciosas. Diziam que
diamante era encontrado até em moela de galinha. Cresci ouvindo tais histórias e
também aquela que ninguém dali dava muita importância: da existência de um
escritor ilustre, nascido ali mesmo em Andaraí, que era membro da Academia
Brasileira de Letras, e que escreveu um romance famoso sobre a cidade, sobre
garimpos e garimpeiros. As pessoas na rua falavam mal do escritor, diziam que ele
não tinha amor à terra, pois que foi embora e nunca mais voltou, nem para passear;
que deixou o famoso sobradão de vinte janelas cair; que não fazia nada por sua
terra etc.
De minha infância e adolescência trago muitas lembranças, e quase todas elas
relacionadas a histórias que li em livros. Imagens, cenários, atmosferas vêm e vão
como retratos oníricos de um passado tangível, vivenciado. Desde as histórias de
Câmara Cascudo, lidas aos sete anos na biblioteca do Grupo Escolar Luís Viana
Filho, até aquelas “perversas”, provenientes de uma certa náusea sartreana - lidas
aos dezoito, nos intervalos do meu primeiro emprego como professora de
2
datilografia - , a minha vida compôs-se de literatura, esta vida que emergia de
páginas e que confluía, fundia com a minha. Aliás, minha vida era um adendo, uma
continuação de imagens lidas e vividas que perfaziam o ambiente de minha casa, os
caminhos da escola, as pontes de minha cidade.
Que surpresa então ao deparar-me com a Rua da Ilha ambientada no
Cascalho! Outra grande surpresa foi o fato de eu conhecer três personagens do
livro que ainda estavam vivos: D. Pacífica, antiga zeladora da igreja, Chico Pia, o
leiloeiro, e Vitalina. Esta morava na minha rua, era baixinha, negra, e fazia renda
cantarolando na janela. Negava veementemente ter sido ela a Vitalina do livro: não,
ela não foi mulher-dama, de jeito nenhum! Mas muitas pessoas garantiam que era
a própria, sim. Outras punham em dúvida. De qualquer maneira, ao ler o romance
foi a imagem de Vitalina - esta que eu conhecia - que criei como personagem.
Estávamos na década de 80 e o livro trazia como contextualização a década de 30
era mais ou menos fácil rejuvenescer Vitalina na minha imaginação, vesti-la com as
roupas da época, incorporá-la àquela história, mesmo à sua revelia. Diferentemente
de outras leituras que até então havia feito, eu lia agora a minha cidade, passeando
pelas ruas, tão bem conhecidas por mim, pelos rios, serras... O encantamento
desdobrava-se de tal maneira que eu me via como personagem daquele livro, por
que não?
Foi por esse tempo que eu soube que Herberto Sales havia sido convidado
para a inauguração do Banco do Nordeste, em Andaraí. A cidade toda comentava o
fato, as pessoas nos bares, nos passeios da rua falavam, lembravam a ingratidão
daquele escritor famoso com a sua terra, uns diziam ter curiosidade de conhecê-lo,
outros desdenhavam... Eu tinha quinze anos e não entendia direito esse negócio de
mágoa andaraiense com aquele homem tão importante. Pessoalmente, me
orgulhava de ser conterrânea dele. Como toda adolescente, sonhava mesmo era
com o seu autógrafo na minha edição de bolso da Ediouro. A surpresa boa veio a
seguir: soube que ele ficaria hospedado na minha rua, perto de lá de casa! Na
véspera da inauguração, à noite, vimos de longe aquele monte de gente
acompanhando um homem meio gordo, vestido de paletó. Era ele. Eu e minha irmã
3
ficamos alvoroçadas. Pegamos os nossos exemplares de Cascalho e fomos para a
porta de seu Albertino, homem que o hospedava. Ficamos de molho por muitas
horas, quando de dentro surgiu o dono da casa. Ao saber o que queríamos (o
autógrafo do escritor), ele nos deu meras palavras desenganosas: o sr. Herberto
precisava descansar, não poderia atender-nos. Fiquei muito triste, lembro que
minha irmã disse um desaforo qualquer para seu Albertino, mas que não deu
tempo de ele ouvir. A decepção era tão grande, me senti desalojada do romance.
O que aconteceu depois ficou como algo nebuloso na minha memória: o
Banco cheio, um monte de pessoas altas na minha frente, eu sem enxergar nada,
todos querendo ver de perto o homem famoso; discursos, palmas, mais discursos...
E quando chegou a vez de Herberto discursar, ouvimos um silêncio cortado de
emoção. Um choro. A palavra lhe traiu. E também a s todos. Puxa, nem a voz
dele ouvi... O povo se aproveitou disso para falar mal mais uma vez: como é que o
homenageado não retribui a homenagem? Que homem ingrato é esse com a sua
terra? Todo mundo ali estava querendo ouvir as palavras daquele homem ilustre e
o que viu foi um choro cortando as palavras que não vieram... Paciência, uns
diziam, é emoção, ele gosta mesmo da terra. Outros refutavam: que nada, é lágrima
de crocodilo! O que me entristecia não era o choro dele, mas o fato de eu não ter
nem visto esse choro, ouvi mesmo o silêncio. A imagem do homem
homenageado, chorando de emoção, trago na minha memória afetiva, isso
porque meus olhos só viram costas e costas de gente. (Acho que nasceu desse
tempo a minha raiva de ser baixinha.)
Depois ele foi embora e nunca mais voltou. Seria essa uma história com final
triste demais para uma menina que amava os livros. Não, não foi assim, não é
assim. Não houve ainda final, e nunca será demasiadamente triste. Aos vinte e dois
anos publiquei meu primeiro livrinho, uma ousadia literária de uma andaraiense
“tirada” a ser escritora. Consegui um patrocínio na cidade, o garimpo voltava a
movimentar o dinheiro dos andaraienses - agora com suas dragas devoradoras de
rios -, e um garimpeiro endinheirado na época, filho da terra, patrocinou esse meu
livro. Uma temeridade! O povo estava encafifado com aquilo: livro? Para quê? De
4
poesia? Não será um folheto? Mas de fato aconteceu: era um livro, mesmo pouco
pretensioso, é verdade, mas trazendo na capa o nome (não muito expressivo) de
uma editora do Rio de Janeiro. E houve lançamento! Maju, aquela professora que
me apresentou Herberto Sales no ginásio, estava lá. Foi homenageada por mim,
“mãe que foi de minha poesia criança”, como ela mesma disse, pois que comecei a
escrever incitada por ela, aos doze anos, em sua aula de português. Foi a mesma
Maju que, um dia após o lançamento, me deu o endereço de Herberto Sales quase
que intimando para que eu lhe escrevesse, mandando para ele Beira-Vida (nome
de meu livrinho).
Como a adolescência é arrebatadora, no mesmo dia escrevi para Herberto. Fiz
uma carta enorme, contando tudo: até aquela história do autógrafo que não
aconteceu quando da sua ida a Andaraí. E o que eu queria? Não falava muito
daquele meu livro que mandava para ele, não queria projeção e divulgação alguma,
mas pedia, por favor, me mande todos os seus livros, e AUTOGRAFADOS! Assinei
a carta deixando embaixo o meu telefone (outra audácia). Surpresa grande estava
chegando: na outra semana, à noite, o telefone toca e a voz que falava do outro lado
era a voz de Herberto. Quase não acreditei! Fiquei tão emocionada que nem sei
mesmo o que ele falou... Parece-me que agradeceu a carta, disse ter gostado do
livro, e que mandaria, conforme eu pedi, todos os seus livros, autografados. Acho
que foi a partir desse dia que a minha grande paixão por ele se consubstanciou.
Ouvi a sua voz, ela saía do Cascalho e agora falava comigo isso era demais para
mim.
O que se seguiu após, por quase dez anos, foi uma correspondência fiel e
amorosa entre mim e ele. Um livro seu chegava pelo correio, eu logo devorava-o e o
escrevia dando os meus “pareceres” (sempre audaciosa). Telefonemas iam e
vinham, uma festa mesmo de amor literário. Até chegar o grande dia de conhecê-lo
pessoalmente. Aconteceu em 1994, eu estava morando em Feira de Santana e
fazia graduação em Letras na Uefs. Recebi um telegrama seu: “Por favor me
telefone imediatamente”. Ele me disse que estaria no dia 17 de novembro na
Academia de Letras da Bahia, onde seria homenageado pelos cinqüenta anos de
5
Cascalho, e queria me ver por lá. Fui. No salão principal da Casa, no meio de tanta
gente, surge Herberto: nos olhamos e, a despeito de nunca ter visto uma fotografia
minha, ele imediatamente me reconheceu. O que se passou depois foi meio
tumultuado, tanta gente queria falar com ele, e ele me levou para conhecer a sua
mulher, me apresentou alguns escritores ali presentes, foi tudo muito rápido e até
menos interessante que o nosso encontro virtual, poético, de leitura, telefonemas,
telegramas e cartas. Mas também houve outro encontro: o último, em 1996,
também em Salvador. Esse foi mais pessoal, diria até inesquecível. Depois de ir,
com um então namorado meu, assistir a uma palestra sua na Ufba [“Com a palavra,
o escritor”], marcamos com ele um encontro para o dia seguinte, à noite, na casa de
minha irmã. Seria uma surpresa maravilhosa para ela, leitora de Herberto Sales
desde os tempos de ginásio, e que tanto gostava de seus contos e ria com eles, ter
aquela grandiosa presença na sua casa, pessoalmente. Lembro-me ter sido mesmo
uma noite inesquecível. Rimos muito até as quatro horas da madrugada -
Herberto sempre foi um boêmio confesso e, embora doente e com quase oitenta
anos, cumpriu com muito humor aquela noitada no terraço da casa de minha irmã.
Fomos levá-lo de volta ao apartamento em que estava hospedado; chegando lá,
Dona Juraci (sua mulher) ralhou com ele, “não é possível, bebendo de novo, você
não pode” etc. E se foi Herberto. Depois disso, nos falamos algumas vezes por
telefone, pelo correio recebi seus dois últimos livros, e o pior acabou acontecendo:
ele me ligou e não conseguiu proferir uma palavra. Na verdade, quando atendi o
telefone, era Dona Juraci que me esperava: me disse que Herberto estava muito
doente, tinha piorado bastante, e que acordou com muita vontade de falar comigo.
Quando ela passou o telefone pra ele, o que ouvi foi uma vontade enorme que
alguém tem de falar, aquela vontade que a voz não atende porque a doença não
deixa de maneira nenhuma, ou talvez a emoção plasmada nela. Chorei muito. E
num dia de sexta-feira, treze de agosto de 1999, em Andaraí, ante véspera da festa
de Nossa Senhora da Glória, acordo com mãe no meu quarto me dando a cruel
notícia, aquela que subentendia que Herberto não mais me mandaria livros
autografados, e com tão ternas dedicatórias.
6
Desde então ele se instalou para sempre no meu imaginário, no meu coração,
tão visceral como as pedras de nossas Lavras Diamantinas. Nós dois somos
contemporâneos, mesmo eu nascendo cinco décadas após ele, pois que andamos,
corremos e vivemos sobre as mesmas pedras cabeça-de-negro de Andaraí. “Em
qualquer lugar do Rio dos Morcegos havia sempre uma lembrança minha, minha
vida ali começara de nascença, e nessa minha terra muito minha, meu cenário, meu
mundo, ia a minha vida indo embora pouco a pouco, e eu com ela”. Diz o narrador-
personagem Marcelo, no seu romance Rio dos Morcegos, tradução em português
do nome de nossa cidade, proveniente do tupi, e que ora vira tradução féerico-
literária na composição de sua biografia ficcional e de um retorno (im)possível.
Nesse livro, ele realiza o desejo de voltar à terra. Depois de ambientá-la em muitos
romances e contos, principalmente em Cascalho, de novo está voltando para casa.
Incorporado na pele e alma do personagem Marcelo, Herberto compõe a
prodigalidade da volta. Sabe ele que voltar não é fácil, principalmente após tantas
décadas de partida. Voltar para a e que deixou na casa de beira-rio, para os
amigos, as cachaças bebidas nos cabarés, as mulheres-damas suas “irmãzinhas
do pecado” –, para os banhos no rio Baiano, próximo àquela pedra que virava navio
infância afora...
Nesse romance, a sua vida e a minha se entrelaçam, pois que voltamos juntos
ao passado. A paisagem está imbricada no homem, na pele, e a terra nos une
visceralmente. Estou na rua da Ilha, sinto a presença de Áureo Mota esse que foi
grande amigo de Marcelo-Herberto com seu trompete mágico e, “mavioso
assobiador”, “assobiando a valsa Mimi, umas de suas prediletas”. Indo ao bar de
Rê, no Beco da Chocolateira, hoje Travessa do Conselho, encontro o seu antigo
dono, Neto, um sujeito gordo, de óculos, que gostava de ouvir, no rádio,
Albenzio Perrone cantando valsas. Em todos os lugares, seja em Andaraí, Salvador
ou Recife, são as paisagens e personagens de uma Andaraí herbertiana que eu
encontro: as memórias de Herberto são as minhas, unidas em dois tempos
distantes e simultâneos.
7
ROUBANDO A MEMÓRIA ALHEIA
“À medida que transcorrem os anos, todo homem tem a obrigação de carregar
o crescente fardo de sua memória. Duas me oprimiam, confundindo-se às vezes: a
minha e a do outro, incomunicável. A princípio as duas memórias não mesclam
suas águas. Com o tempo, o grande rio de Shakespeare ameaçou, e quase inundou,
meu modesto caudal. Temeroso, percebi que estava esquecendo a língua de meus
pais. que a identidade pessoal baseia-se na memória, temi por minha razão. (...)
Shakespeare foi meu destino.”
A citação acima provém de um dos últimos contos de Jorge Luis Borges,
1
no
qual a um obscuro escritor é doada a memória pessoal de Shakespeare. Ricardo
Piglia, num de seus ensaios, nos remete a esse conto como metáfora da experiência
literária. No processo de incorporação da leitura, o leitor é habitado pela presença
do autor, e essa incorporação permite vivenciar a experiência do outro, roubar a
memória alheia, tamanha a identificação de papéis.
2
Se tudo o que se escreve nasce dos interstícios que abarcam o lido e o vivido,
pressinto que é imperioso que eu declare, à maneira do narrador borgiano:
“Herberto Sales foi [é] meu destino”. As memórias de Herberto são as minhas,
unidas em dois tempos distantes e simultâneos – tempos que se diluem numa
1
BORGES, Jorge Luis. A Memória de Shakespeare. In: _________. Obras Completas. Vol. III, pp. 444-451.
2
PIGLIA, Ricardo. O Último Conto de Borges. In:___________. Formas Breves, pp.43-44.
8
realidade vivida e sonhada, numa localidade específica e ao mesmo tempo
universal. A leitora rouba as memórias do escritor e as faz suas, redimensionando-
as e transformando-as no tempo, o tempo da leitura este que se funde a algo
maior, ao tempo puro, ao tempo anterior.
Andaraí Rio dos Morcegos, em tupi-guarani, nome de uma localidade e
aqui repito de novo a palavra nome de um destino. Começo de tudo.
Diferentemente do personagem borgiano no fragmento citado, ao ser habitada
pelas memórias pessoais-ficcionais de Herberto Sales, não “esqueci a língua de
meus pais”. Minha identidade pessoal provém do mesmo habitat, terra tão nossa,
cenário de nossas infâncias. A memória alargou-se, e a terra trouxe a dimensão de
uma nostálgica e (im)precisa individualidade. É mesmo a sensação de estar vivendo
o seu e o meu passado, e de contar a minha vida através da sua, nos mesmos
ditames que regem a narrativa da vida e da literatura.
Convém, como disse Ricardo Piglia, que “eu lhe fale de mim, mas quem
escreve não pode falar de si mesmo”. “Quem escreve pode falar de seu pai ou de
seus pais e de seus avós, de seus parentescos e genealogias”.
3
Isso porque o
romance e o romancista assim como o leitor são germinados pela “ilusão da
falsidade”.
4
Onde se diz “eu”, ouve-se “tu”. Como acertadamente falou Blanchot, o
escritor, o tempo todo na obra ficcional, renuncia a dizer “eu”.
5
Abrigando o “ele”, o
escritor vai encontrar os “outros”.
6
Aqui, num paralelo teórico e ficcional, o leitor-
crítico escreve sua autobiografia a partir de suas leituras, de suas preferências
literárias, idiossincráticas, e, no caso em questão, de uma identificação particular,
telúrica e ao mesmo tempo universalizada com a voz do Outro – essa voz da
narrativa que não se prende tão somente a uma identidade particularizada.
3
PIGLIA, Ricardo. Prisão Perpétua, p. 12.
4
______________. Formas Breves, p. 23.
5
BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário, p.17.
6
BARTHES, Roland. Crítica e Verdade, pp. 15 a 25.
9
Afirmou Herberto Sales: “sou um habitante do meu passado, estrangeiro em
terras do presente e do futuro”,
7
“sou uma expressão de minha terra”,
8
“A minha
pátria é a minha família, são os meus antepassados, a minha pátria são os meus
mortos”
9
. E mais adiante revela: “Devo dizer que nessas minhas reminiscências
vacilo muitas vezes; e que, no empenho de contar coisas que realmente se
passaram, e como tais devem ser – no dizer de Camões –“cridas”, reconheço (ainda
com o Poeta) que “coisas cridas sem ser passadas”. Tais declarações são
encontradas na trilogia memorialística de Herberto, uma espécie de “inventário”
humano e “prestação literária de contas”.
10
Nelas, percebemos a figura
memorialista do autor como criador de um passado pessoal, declarado, mesclado à
figura fantasmática do escritor, aquele que escreve seu passado. Nos seus
romances, entre um e outro medeia a figura – tão ou mais fantasmática – do
narrador, que vez ou outra deixa no texto os rastros fragmentários da biografia do
autor, traços biográficos que Barthes batizou tão bem de “biografemas”
11
, sinais
imprecisos de uma memória que se funde na fronteira do vivido e do imaginário,
do chamado “real” e daquilo que é inventado.
Nesse sentido, podemos dizer que a própria memória biográfica é literária.
Aquilo do qual lembramos nunca é fato preciso, “tal como foi”, mas algo fluido,
elástico, polissêmico, reinvenção do vivido. Declara o “poeta da memória”, Ruy
Espinheira Filho, que “o autor escreve o que ele é: suas memórias
12
, pois o passado
é “a única coisa que realmente possuímos”, e este “não é algo imóvel”, mas um
mundo que se reinventa.
13
O autor escreve com suas lembranças de coisas, do que
viveu e do que não viveu memória que se elastece e se ficcionaliza,
universalizando-se. Vivido e imaginado fundem-se na arte de narrar a fim de
driblar o cronológico, o efêmero datado, a limitada particularidade. Tentando “fixar
7
SALES, Herberto. Subsidiário 3, p. 307.
8
Idem, p. 328.
9
Ibidem. Subsidiário 1, p. 238.
10
Idem, pp.413-414.
11
BARTHES, Roland. A Câmara Clara, p. 51.
12
ESPINHEIRA FILHO, Ruy. Revista Iararana, n. 9, p. 9.
13
______________________. A Tarde Cultural, 2/7/2005, p. 6.
10
o fluir da vida”, a narrativa se dimensiona na busca do que transcende o
meramente factual, atingindo múltiplas e significantes “verdades”.
14
Herberto Sales, em entrevistas, tentando dar o testemunho pessoal diante de
sua obra, sempre afirmou escrever “com sinceridade”. Porém, o autor, perante tal
testemunho, e na obra propriamente dita, se pluraliza, e a sinceridade ganha
nuanças de mentira. A encenação literária transcende a intenção meramente
humana do homem-autor, e se alarga em múltiplas verdades. É certo que bem
notamos nas entrelinhas dos romances de Herberto os traços éticos de sua
presença, e os chamados “sinais particulares” diante da diversidade temática e
formal que permeia seus livros. Pressentimos nas linhas e entrelinhas a nostalgia
do andaraiense que deixou a terra e foi galgar, à sua revelia, e por conta da
literatura, outras plagas. A memória telúrica emerge nos seus escritos com uma
marca incisiva, até mesmo quando situa os personagens em outras localidades.
Assim, em meio a essa recorrência documental, a vida mítica do escritor se propaga
pelas páginas da narrativa e sua figura documentária se transforma ao mesmo
tempo em figura romanesca.
15
A propalada “verdade”, na qual se firma a busca de
uma especificidade da vida e do literário, fratura-se e ganha tonalidades do falso e
do mentiroso, para a seguir equilibrar-se nas tênues fronteiras que ligam realidade
e invenção os desvios direcionados pelos abismos enigmáticos do imaginário.
Tais abismos nos incitam a perceber a vida labiríntica, profunda, do escritor,
16
mesclada à verdade secreta da ficção.
Nessa conjunção marca-se uma outra verdade: a experiência meramente
subjetiva da leitura cede lugar àquilo que Barthes chamou de marca do “indivíduo”,
marca pessoal – corpo que se separa dos outros corpos através da fruição que
habita o ato de ler.
17
Nesse particular compõe-se o mosaico da poética desta leitura
do romance herbertiano: a “configuração” do texto, o como se permite-me uma
14
PIGLIA, Ricardo. Prisão Perpétua, pp. 47-55.
15
BARTHES, Roland.S/Z, pp. 227-228.
16
SARAMAGO, José. Os Cadernos de Lanzarote, vol. II, p. 196.
17
BARTHES, Roland. O Grão da Voz, p. 81.
11
“refiguração”
18
, o olhar da leitora balizado na textualidade idiossincrática da
memória: a leitura “cola-se ao texto” “com aplicação e arrebatamento”, num
“desfolhamento” de significâncias,
19
e o leitor se ficcionaliza.
Percorrer esses caminhos incertos é a tarefa de quem busca o labirinto sem
perder um certo tom de ingenuidade, proveniente das descobertas que as leituras
juvenis proporcionam. Todas as vidas estão tramadas nos enredos dos romances, e
a poética da leitura nos permite vislumbrar nossa biografia, vivida e ficcionalizada.
Escritor e leitor são uma única e várias individualidades, marcadas por uma
memória alargada, cúmplice, que dimensiona o próprio segredo da vida.
CAPÍTULO PRIMEIRO:
CASCALHO e ALÉM DOS MARIMBUS:
A MEMÓRIA TELÚRICA
“Mas a terra natal é menos uma extensão que
uma matéria; é um granito ou uma terra, um
vento ou uma seca, uma água ou uma luz. É nela
18
Termos ricoeurianos. Ver RICOUER, Paul. Tempo e Narrativa (Vols. I,II e III).
19
BARTHES, Roland. O Prazer do Texto, pp. 19-20.
12
que materializamos os nossos devaneios; é por
ela que nosso sonho adquire sua exata
substância; é a ela que pedimos nossa cor
fundamental.” (Gaston Bachelard: A Água e os Sonhos,
p. 9)
Intróito
A busca da “Cidade Subjetiva”: manancial telúrico, regional,
universal
“- As cidades também acreditam ser obra da mente ou
do acaso, mas nem um nem o outro bastam para
sustentar as suas muralhas.” (Italo Calvino, in: As
Cidades Invisíveis)
É evidente a percepção de estarem os homens, nessa perversa
contemporaneidade, perdidamente desterritorializados.
20
A possibilidade de se
apresentarem em muitos lugares a um tempo, a partir de uma multiplicidade de
informações nas quais os espaços se tornaram muitos e nenhum, faz com que os
homens percam suas relações com as terras natais. Cabe-nos, como disse Félix
Guattari, restaurar a nossa “cidade subjetiva”, recompondo-a nas suas
20
GUATTARI, Félix. Restauração da Cidade Subjetiva. In: __________. Caosmose, pp. 169-179.
13
singularidades individuais e coletivas.
21
Se é uma evidência que a cidade natal, na
maioria dos casos, está definitivamente perdida, podemos reestruturá-la a partir da
composição subjetiva de nossas marcas mais individuais, estas que, em geral,
denunciam a coletividade.
A composição dessa subjetividade trará de volta nossas terras natais perdidas.
algo indescritivelmente anterior em nós que nos liga emocionalmente ao
telúrico, que engendra nossas vidas de um início de tudo. A literatura nos permite
voltar à terra que deixamos nos mais recônditos lugares dos nossos inconscientes.
A leitura nos traz de volta a um tempo único e múltiplo, no qual vivências e
experiências alheias são nossas, confluindo ambas numa atmosfera transcendente,
levando-nos a um devir contínuo, infinito.
A subjetividade proveniente de uma leitura literária, poética, nos permite a
possibilidade de pernoitar o discurso dramático, não mais epistemológico, como
aludiu Barthes.
22
É o saber dramático, próprio da literatura, que norteará as
profundas marcas de “indivíduo” a fim de nos levar às nossas mais labirínticas
terras natais. A partir da encenação da linguagem o homem percebe-se em sua
terra – espelho de muitas outras.
Na literatura brasileira, desde o Romantismo, com a idealização de um
passado nacional, às gerações realistas do início do século XX (“sertanismo”), a
terra sempre foi personagem. A acepção “literatura regionalista” demarca essa
tendência e a década de 30 no século XX, uma das mais importantes, possibilita a
abrangência e o que dela restou. Fortemente influenciado pelo neonaturalismo e
visando uma literatura popular na qual as misérias de uma realidade desconhecida
do país viessem à tona, o chamado “Romance do Norte”, tendo como
representantes Rachel de Queiróz, Jorge Amado, José Américo de Almeida,
Amando Fontes, Graciliano Ramos e José Lins do Rego, entre outros, trouxe como
problemática principal a terra. Nesse sentido, o objetivo maior era enfatizar o
21
Idem, p.170.
22
BARTHES, Roland. Aula, p.19.
14
problema sobre o personagem
23
: ocorrem as generalizações e o personagem é
sucumbido pela emergência das questões sociais, fadado a perder-se no aspecto
humano e estético. O sociologismo se eleva, muitas vezes, em detrimento do
literário, e disso poucos escritores ficaram imunes. Antonio Candido destaca, nesse
grupo, Graciliano Ramos como um exemplo de equilíbrio entre a arte e a temática,
principalmente entre “ficção e confissão”: “A sua obra não nos toca somente como
arte, mas também (...) como testemunho de uma grande consciência, mortificada
pela iniqüidade e estimulada a manifestar-se pela força dos conflitos entre a
conduta e os imperativos íntimos”.
24
Essa conjunção estética é pouco encontrada nos demais escritores desse
grupo. Daí talvez se traduz uma certa pecha quando ouvimos na literatura a
acepção “regionalismo”. Quase sempre tal denominação é tratada de uma maneira
meramente exótica, restrita às particularidades de um local, de um espaço
geográfico.
25
O preconceito inerente provém da própria limitação do conceito
“literatura regionalista”, traduzindo na sua denotação algo reducionista, uma
espécie de antítese de universalidade. Ora, se não é nossa a incapacidade de
perceber o universal no regional, muitas vezes provém da própria obra na sua
estrutura literária, superficialmente limitada ao pitoresco. E isso é possível
observar em alguns romances de nossa literatura brasileira, particularmente
naqueles marcados pelo nacionalismo exacerbado (Romantismo), em muitas obras
da chamada “aluvião sertaneja”
26
no início do século XX, e, como mencionei, em
alguns romances sociológicos da década de 30. A preocupação em traduzir a cor
local, os costumes, as linguagens de sua gente incorreu, pois, o romance muitas
vezes no documento reducionista e pitoresco, perdendo-se em literatura
(linguagem literária) e universalidade.
Em 2004 Cascalho, de Herberto Sales, denominado “romance regionalista”,
completou 60 anos. Ao longo de sua história teve uma grande repercussão no
23
CANDIDO, Antonio. Literatura e Cultura de 1900 a 1945. In: __________. Literatura e Sociedade, 123.
24
_________________. Ficção e Confissão, p. 83.
25
ALMEIDA, José Maurício Gomes de. A Tradição Regionalista no Romance Brasileiro, pp. 310-311.
15
Brasil, adaptado para o cinema e história em quadrinhos, além de traduzido em
onze idiomas,
27
desmitificando desde o regionalismo como antítese do universal.
Tal constatação permeia aqui o que delineamos como problemática nas entrelinhas
da leitura que se seguirá no nosso primeiro capítulo, ou seja, como, em épocas de
globalização, com pretensos desenraizamentos culturais, refletirmos acerca do
regionalismo? Se perdemos nossas terras natais e estamos decididamente
desterritorializados, cosmopolitas, como pensarmos e sentirmos o regional, o
telúrico? Penso que possíveis respostas estão no próprio homem, tanto no âmbito
geral quanto naquele que envolve os meandros da Palavra, da escritura.
Sim, perguntas e prováveis respostas estão mesmo no ser humano, estão na
arte literária, esta que, na dialética entre o localismo e o cosmopolitismo,
28
escolhe
o homem. Enraizados ou desterritorializados possuímos em nós o manancial da
terra e do ar, dos espaços e das desmaterializações. E é a arte literária, com sua
linguagem “carregada de significado até o máximo grau possível”,
29
que nos
ajudará a produzir inúmeras respostas. Daí as descobertas de nossas cidades
subjetivas, (a)temporais, nossa cor eivada de particularidades denunciando o
universal.
Quando de sua publicação, o que os críticos mais louvaram em Cascalho foi
justamente essa conjunção terra e homem (aliada, claro, à dimensão estética),
permitindo que o romance não “caísse no tão fácil documentarismo”,
30
nas
generalizações que muitas vezes “esfumam o pessoal, a alma e o sentir do
homem”.
31
Se na gênese humana a terra é algo absolutamente anterior em nós, e o
discurso que nos permeia é visceralmente o dramático próprio da literatura
26
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade, p. 114.
27
Cascalho foi traduzido em tcheco, romeno, italiano, espanhol, russo, coreano, japonês, chinês, francês,
além de publicado em Portugal.
28
Segundo Antonio Candido a nossa literatura brasileira está regida sob essa dialética. In: CANDIDO,
Antonio. Op. Cit., p. 109.
29
POUND, Ezra. Abc da Literatura, p. 32.
30
REBELO, Marques. Cascalho. In: Revista O Cruzeiro, 26.8.1942, p.21.
31
RAMOS, Ricardo. Além dos Marimbus. Revista O Cruzeiro, p.1: “O romance de uma região, dos que nela
desempenham uma atividade específica, nem sempre nos traz o lado humano. A tendência para o generalizar,
evoluindo-se raros exemplos em contrário, quase esfuma o pessoal, a alma e o sentir do homem (...).”
32
CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. Pp. 14 e 44, respectivamente.
16
essas duas assertivas de alguma maneira respondem à universalidade de Cascalho,
publicado e lido em tantos países.
em nós uma terra subjetiva, cidade que nos estreita no mais íntimo de
nosso ser este amplamente universal, e que a literatura nos possibilita resgatar.
Cidade, como diz o Marco Pólo “de” Italo Calvino, “que se embebe como uma
esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata”, e que aproveitamos não
“as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que às nossas
perguntas”.
32
CASCALHO, memória de um romance
Ler Cascalho, primeiro romance de Herberto Sales, publicado inicialmente
em 1944 e totalmente reescrito em 1951, nos leva a sentir aquilo que nele pulsa de
mais forte: a notação telúrica. Livro nascido da terra, da mais estreita simbiose
entre o homem e a paisagem, bem percebido tanto na estrutura quanto na temática
abordada, Cascalho é o romance de um estreante, um jovem lavrista nascido nas
brenhas dos garimpos de Andaraí, e que um dia resolveu escrever os dramas
humanos ali presenciados.
Na sua estréia, obteve o livro o aplauso da crítica que o batizou como um dos
últimos remanescentes do “Romance do Norte”.
33
Essa denominação se explica
pela influência exercida por esse grupo no jovem leitor Herberto que, como aqueles
escritores, também idealizou escrever o romance de sua região.
34
Entretanto,
mesmo trazendo algumas marcas recorrentes ao regionalismo de 30, Cascalho
33
“Alceu Amoroso Lima saudou Cascalho como o último espécime do romance nordestino de 30.” In:
SALES, Herberto. Discurso de posse Doutor Honoris Causa da Ufba, Salvador, 1996.
34
Disse Herberto: Aos romances da seca, da cana-de-açúcar, do cacau por que não vir juntar-se a eles o
romance dos garimpos?”. In: ALVES, Ivia. Depoimento Pessoal. Herberto Sales- Biografia, p.. 93.
17
direciona-se no sentido de uma ligação aos movimentos formais que
prenunciavam a década de 50.
35
A preocupação com a dimensão estética e com o
humano o distancia do citado grupo, ao tempo em que o aproxima de Graciliano
Ramos, escritor também chamado de “romancista do Norte” e que se diferencia de
tal escola em razão de suas preocupações formais com a escritura. Assis Brasil elege
Cascalho como um divisor de águas, e Herberto Sales como talvez “aquele que fará
a ligação mais distante entre o passado e o presente”, ligação da tradição ao novo.
36
Conta Herberto Sales ter nascido este romance numa noite chuvosa, em
Andaraí, quando, do sobrado de vinte janelas no qual morava, viu transbordar o rio
Gafanhoto que passava em frente. Tais “cheias” eram bem conhecidas por ele;
porém, essa, em especial, embalava-o numa aventura nova: aquela de contar a
história que se passava ali, de garimpos e garimpeiros, senhores que, buscando a
“riqueza que Deus guardou”,
37
estariam agora inundados por uma outra e mesma
chuva a que nascia da escritura, e que procurava se assemelhar ao “temporal de
verdade” que caía lá fora:
Comecei a escrever Cascalho certa noite de chuva, à luz de uma vela,
em Andaraí, no sobrado de meus pais. (...) E nessa noite eu estava
vivendo uma aventura nova, aventura de um temporal e de uma chuva
que eu mesmo estava fazendo, por minha conta, no livro que
começava a escrever, enquanto fora um temporal de verdade e uma
cheia de verdade iam enchendo a noite que enchia o meu livro noite
de Cascalho, uma história de garimpeiros que eu não sabia onde ia
acabar e até onde ia me levar.
38
Esse livro, tentativa de romance que Herberto buscava compor ainda tateante
na juventude, é a configuração literária das experiências vividas na sua terra e que
35
BRASIL, Assis. A Nova Literatura brasileira (o Romance, a Poesia, o Conto). In: COUTINHO, Afrânio. A
Literatura no Brasil, p. 239.
36
Idem.
37
Poema de Fernando Sales: [Garimpeiro]: “Sol a sol o carumbé/ põe coroa na cabeça/ ao triturar o cabelo/
do homem que sonha achar/ riqueza que Deus guardou”. In: SALES, Fernando. Nascença, Apogeu e Encanto
de Horácio de Matos, p.40.
38
SALES, Herberto. Subsidiário 1, p. 92.
18
se formou dentro dele ao longo do tempo, “desde garoto até os vinte e poucos anos”
quando foi escrito:
... Foi uma superposição, uma sedimentação de vivências, de coisas
extraordinárias muito ligadas a mim, e quando em determinado
momento eu resolvi escrever o livro, o livro me foi imposto por esse
background de experiências. (...) E, naturalmente, sim, levado por
uma posição que eu achava que devia assumir, como um escritor em
perspectiva, em relação à comunidade em que eu vivia, à região em
que nasci, é que eu tinha necessidade de fazer alguma coisa no sentido
de revelar ou de fazer, como eu fiz no meu livro, um tipo de denúncia
social da situação de toda uma população que vivia em condições
extremamente precárias, sob um sistema da mais incrível exploração
do homem pelo homem. Mas isso o significa partir de um desejo de
denunciar para escrever o livro. Não, isso tudo se formou ao longo do
tempo e teve um desfecho natural. (...)
39
Nas declarações acima, percebemos que Cascalho nasce mesmo da mais
profunda identificação do autor com o seu meio, de uma relação visceral e
espontânea. Não é a toa que, quando da publicação do livro e sua repercussão em
Andaraí, o escritor precisou sair “fugido” para o Rio de Janeiro, em decorrência da
reação negativa das pessoas que se viram focalizadas no romance:
Em Andaraí, tão logo publicado Cascalho, exemplares do romance
passavam de mão em mão, as pessoas liam o livro cheias de
curiosidade, muitos gostavam, outros me censuravam. Eu fora injusto
com Andaraí, retratando no livro pessoas conhecidas, num ambiente
carregado de exageros. Outros admitiam as verdades de que estava
cheio o romance, mas que havia verdades que não se diziam, roupa
suja se lavava em casa. (...)
40
39
SALES, Herberto. Entrevista. In: _________. Eu, Herberto Sales, p. 13.
40
SALES, Herberto. Subsidiário 1, p. 42.
19
Num outro depoimento do autor, vislumbramos mais uma vez essa intrincada e
complexa relação entre real e ficção [aqui batizada pelo autor de “exagero”] na
escritura e repercussão de Cascalho:
Hoje acho que fiz muitas injustiças com meu padrinho (Cel. Aurélio)
[No livro, Coronel Germano]. E o pior é que a família dele ficou minha
inimiga pelo resto da vida. Não exagerei muita coisa, compreende?
(...) Mas hoje não teria feito no enfoque como eu fiz. (...)
41
Tendo que deixar imediatamente Andaraí, pois que o juraram de morte, o
escritor fixou residência no Rio de Janeiro, mudando radicalmente seu pretenso
destino, o que o levou mais tarde a declarar ser sua vida a vida de um livro.
42
Este
primeiro romance o projetou mundo afora, tamanho sucesso foi o lançamento,
conduzindo-o também a manter contatos pessoais com diversos outros escritores
como Marques Rebelo, Aurélio Buarque de Holanda, Álvaro Lins, Cyro dos Anjos.
O rapaz que até os dezenove anos nunca havia manifestado qualquer interesse
pelos livros, e que, por achar que morreria cedo, se entregou à mais desenfreada
boêmia, sonhando um dia ser tão somente motorista de caminhão, se viu de
repente diante de um chamamento:
A minha vocação literária estava esperando por mim na curva do
caminho, dentro de uma macega. Sabia que eu ia passar por ali. Me
pegou pela mão e me disse assim: Pensei que você não viesse mais. E
pela mão me levou por uma vereda cheia de espinhos, de onde eu não
podia mais voltar. A minha vocação literária me pegou numa armadilha.
Que fazer? O jeito era ir atrás dela.
43
Se a história literária de Herberto é singular nos seus meandros, a história do
próprio livro traz algo de insólito, de um interessante “acaso” feliz. Essa se inicia
41
SALES, Herberto. Depoimento. In: Andaraí – Revista (Comemorativa de Inauguração) do Banco do
Nordeste em Andaraí-BA, p. 30.
42
SALES, Herberto. Subsidiário 1, p. 92. O escritor afirmou: “Minha vida era a vida de um livro”.
43
SALES,.Herberto. Subsidiário 2, p. 49.
20
quando o jovem escritor manda uma cópia do livro recém-escrito para um
concurso no Rio de Janeiro, por intermédio da primeira esposa de Jorge Amado,
Matilde Garcia Rosa. Nesse tempo, ele mantinha correspondência com vários
escritores no Rio, inclusive com Marques Rebelo. Porém, com relação a este, nada
falou a respeito do romance que estava escrevendo. depois, em conversa com
Matilde, Marques Rebelo tomou conhecimento da existência do livro. O que o
Destino sabia, e de pronto resolveu colaborar, era que as cópias não aprovadas em
concurso são incineradas, e colocou, nesse meio tempo, o secretário do concurso,
Aurélio Buarque de Hollanda, no meio da história. Na primeira versão, Cascalho
trazia um glossário a fim de nortear os leitores para os regionalismos. Isto chamou
a atenção de Aurélio, que, imediatamente, lançou mão do livro para anotar as
palavras regionais a fim de registrá-las no seu dicionário. Foi o tempo que teve
Rebelo de saber disso - por intermédio de Matilde - , e salvar o livro. Se o Destino
não fosse tão conseqüente,
44
Cascalho nunca existiria, pois Herberto, num dia de
profundo tédio, queimou a cópia que tinha à sombra de um jasmineiro, num ritual
de “suicídio”:
... Mas um dia, atacado de uma dessas depressões que até hoje me são
comuns, peguei a cópia de Cascalho, fui para o quintal com ela.
Sentei-me debaixo de um jasmineiro, com todo aquele cheiro de
jasmim no ar, e comecei a rasgar a cópia. Era papel demais. (...) Em
pequenos maços dispostos em rigorosa ordem, as pontas das folhas
acertadas, me pus a rasgar a cópia, rasgando em quatro pedaços as
folhas. Era uma operação paciente, determinada. As folhas rasgadas
iam-se amontoando, não havia vento para espalhá-las. Por fim, risquei
o fósforo e ateei fogo ao monte dilacerado de papéis, como nas velhas
crônicas policiais ateavam fogo às vestes os suicidas. Em pouco, da
cópia restavam cinzas, sobre as quais se desfez em trêmula fumaça
a última labareda. Eu “suicidara” Cascalho. Tudo terminado. Foi como
a projeção do suicídio que eu nunca tive coragem de cometer.
45
44
No discurso que o recebeu na Academia, Marques Rebelo dizia, no seu início: “O Destino não é
inconseqüente, às vezes, Senhor Herberto Sales.” In: SALES, Herberto. Subsidiário 1, p. 20.
45
SALES, Herberto. Idem, p. 31.
21
O romance foi lançado no Rio, com a ajuda de Marques Rebelo, pela Editora
O Cruzeiro, esgotando-se logo após o lançamento. O editor quis reeditá-lo a seguir,
porém Herberto não consentiu por achá-lo imaturo. Primeiro reescreveu-o
completamente, só publicando a segunda edição sete anos depois.
Considerado um clássico da literatura moderna, Cascalho tem nas entrelinhas
de sua própria memória enquanto romance a subliminar história de quem o
escreveu – o romancista incansável que diz ter lapidado o texto até a terceira
edição. História reveladora de duas recorrências memorialísticas existentes nesse
artesão e no seu labor: o apuro com a linguagem e a preocupação com o homem
perante as fragilidades de seu destino.
46
I. CASCALHO: MEMÓRIA DA TERRA, DO HOMEM
“... Modestamente procurou ele [Herberto Sales] dar
corpo às suas recordações de Andaraí. Os homens e as
coisas que lhe chegaram à memória superam a
realidade ambiente, mas se eternizam porque quem os
46
VILMA, Ângela. Especial – Herberto Sales. In: Revista Iararana, n. 10, p. 17.
47
REGO, José Lins do. O Romance de Herberto Sales. In: _________. O Vulcão e a Fonte, pp. 273-274
22
tocou possui aquela fidelidade interior que escapa às
máquinas de precisão. O seu dom poético atinge as
profundidades onde não chegam as lentes do
laboratório.” (José Lins do Rego)
Realidade e Sonho
José Lins do Rego, no ensaio publicado em 1958, no qual disserta sobre o
primeiro romance de Herberto Sales, inicia seu texto atacando o que ele denomina
de “desfiguração do gênero romance” ao considerar que alguns romancistas “se dão
às grandes aventuras de espírito” valendo-se muito mais de pesquisas “sobre eles
próprios” de que sobre “a vida de seus personagens”. Nesse aspecto, o escritor
paraibano chama a atenção para Cascalho, principalmente pensando naqueles
leitores que querem que o romance continue a ser “uma história”:
Foi assim que operou Herberto Sales com os dados de sua
experiência de filho de Andaraí, lá para as bandas do rio Paraguaçu.
O seu romance Cascalho não é uma ópera de espanto, montagem
de imagens, de artifícios e de complicações cênicas. Sales sabe o
que faz e deu à sua história a realidade de seus contatos e
sonhos. Existe, no seu livro, uma realidade filtrada pelo
sonho. Para mim essa é que é a marca do romancista. (...)
47
(grifo
meu)
O que José Lins assinala é que Cascalho, muito mais que um romance
regionalista, ou realista, é um romance composto pelo viés ficcional da memória. O
livro nasceu da experiência visceral do escritor com homens e coisas, “contatos e
sonhos”. A realidade aqui é aquela filtrada pela narrativa literária nas suas fendas
de sonho e ficcionalidade. E se a própria memória é ficcional, nessa obra ela está
imbuída de um imaginário na sua forma artística, mais se alargando e se afastando
do estigma do realismo.
23
Natureza e homem: “pesados contornos”
“Primeiro grande romance da região diamantífera”, conforme Sérgio Milliet,
48
Cascalho compõe-se de quatro partes, quatro murais, tendo como protagonistas a
cidade de Andaraí e seus habitantes: garimpeiros, capangueiros, donos de garimpo,
coronéis, mulheres-damas e o rio Paraguaçu. Essas quatro partes se harmonizam
numa “espécie de monobloco inquebrável” [palavras de Adonias Filho]. Nesse
monobloco estão os costumes, os elementos regionais e culturais abrigando o
homem “em sua condição de luta e conquista”.
49
Escrito entre tons e semitons realistas, os acontecimentos narrados nesse
romance são factuais e as descrições das paisagens estão simbioticamente
enoveladas às sensações humanas. O romancista é o homem que está enraizado à
terra, e a história que emerge desse imbricamento é tão visceral quanto as sombras
norteadoras da paisagem. Isso porque nesse livro estão impregnadas muito mais
que a história de uma região e de uma determinada época, mas a própria memória
do romancista, fazendo da ligação à terra o imperativo de criação ficcional. Por isso
esse talvez se posicione como um contador de histórias, ligando a temática social ao
universo humano, impedindo assim que o romance de teor local se perca na
generalizações de um frio documentário.
No livro, o “drama de um povo”,
50
aliado ao trabalho cuidadoso com a
linguagem literária, permite que sua história se universalize naquele sentido que
Haroldo Bruno denominou como “enriquecimento da literatura regional”, pois que
nele o aprofundamento do regional numa dimensão estética.
51
Aqui a renovação
formal em suas diversificações possibilita que o homem se sobreponha a cores
localistas, às limitações pitorescas:
48
MILLIET, Sérgio. Prólogo. Nota à 3
ª
edição. In: SALES, Herberto. Cascalho. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
49
ADONIAS FILHO. Introdução. In: SALES, Herberto. Cascalho. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
50
Notas da Revista O Cruzeiro, durante a divulgação do lançamento de Cascalho (Seção “Livros Novos”).
Rio de Janeiro, 9/09/1944, p. 21.
24
Do céu escuro, com a armação que houve de uma hora para outra, as
águas caíram de uma vez nas cabeceiras distantes. E inundando
talhados, catas e grunas, carregaram pela noite adentro os paiós do
cascalho. No povoado da Passagem, à margem do rio Paraguaçu, agora
de monte a monte, rajadas de vento cortavam de alto a baixo as ruas
ermas, quando os garimpeiros, em lúgubre vozerio,
irromperam pela praça alagada com enxurradas descendo
para o areão. Vinham encharcados de chuva, transportando
como destroços suas bateias, seus carumbés, suas enxadas,
seus frincheiros, suas alavancas, seus ralos, suas brocas
suas ferramentas de trabalho, no ombro e na cabeça. Na
frente deles caminhava o velho Justino, empunhando a
candeia de azeite que o vento ameaçava apagar. Foi quando
de novo desabou a chuva. (9) (grifo meu)
A crítica do autor nunca é ostensiva, panfletária, mas dissolve-se na
imparcialidade de “mostrar” os fatos, as pessoas, a singularidade de uma história
cotidiana, banal, na qual as desigualdades sociais deflagram o embrutecimento do
homem, anulando sua consciência e impedindo que esse sequer se perceba na
terrível armadilha de sua desamparada condição:
... Subiu a serra [um garimpeiro] numa terça-feira, atraído pela fama
dos garimpos da Passagem, e não tardou a dar cálculo numa grupiara.
Arregaçou as calças, muito tranqüilo, e começou a trabalhar. Foi
quando chegou o gerente com uma espingarda nas costas. Estava
inspecionando a serra e disse:
- Você não pode trabalhar aqui não.
- Por quê?
- Porque não.
- De quem são estas terras?
- Do chefe.
51
BRUNO, Haroldo. Opinião Critica. In: SALES, Herberto. Além dos Marimbus. São Paulo: Parma, 1961.
25
- E as margens do rio?
- Do chefe.
- E o rio?
- Do chefe.
O homem olhou. O Paraguaçu descrevia lá embaixo uma curva ampla.
- O rio também?
- Sim. O rio e o leito do rio respondeu o gerente. Você, aqui, sem
ordem do chefe, nem pra beber água. (...) (14)
É discreta a presença do narrador – sóbrio contador de histórias – , mal se faz
perceber diante dos fatos narrados, delineando-se porém sutil e devassável nas
descrições impressionistas de paisagens e homens. E o que descobrimos como
protagonista mesmo é a terra, na sua força de rio e pedra. A natureza é personagem
“por comunhão cósmica, por impregnação instintiva do meio sobre o homem”,
52
detendo o poder num clima místico que move homens e situações, nas quais outra
força poderosa do lugar – o chefe – busca vencer a competição:
... De pé, cercado pelos garimpeiros, a face apreensiva recortando-se à
luz das candeias, o coronel contemplava o espetáculo da cheia. Estava
no alto de uma pedra, as mãos nos bolsos do capote, o chapéu
desabado. Em volta, na escuridão reinante, os garimpeiros
como que se prostravam diante daquelas duas forças que se
defrontavam na noite: as águas rouquejantes e o patrão
majestático. (23) (grifo meu)
Explorados e exploradores convivem no mesmo espaço que a natureza,
personificada com ênfase na força épica do Rio Paraguaçu. “Encantado”, até o chefe
o teme. Mesmo sabendo ser dono daquelas paragens diamantíferas, o chefe se
curva diante daquele que é mesmo o verdadeiro dono dali. O rio – dono dos
diamantes – talvez personifique uma possível leitura dos limites dos homens:
52
BRUNO, Haroldo. Herberto Sales: do Romance ao Conto. In: __________. Novos Estudos de Literatura
Brasileira, p. 209.
26
... Aquela maldição das cheias inesperadas que pesava sobre o seu
garimpo. Exemplos de outras mais antigas, ocorridas no tempo do
coronel Joca de Carvalho, vinham fortalecer suas crendices: o rio
era, de fato, o único “dono” daquelas paragens. Havia como
que um poder sobrenatural, uma força oculta pairando em tudo
aquilo. Lembrava-se, agora, do que lhe tinham contado na infância: “O
Paraguaçu era encantado...” E sentiu-se diluído numa espessa e
acabrunhadora calma fatalista. (...) (15-16) (grifo meu)
Essa relação mística e social existente entre o coronel e o rio envolve a primeira
parte do romance numa atmosfera onírica em que o viés psicológico de um
personagem se ressalta. É a cena do pesadelo que o coronel tem, nessa noite de
chuva, com o rio Paraguaçu.
Era meia-noite quando o Coronel Germano despertou
sobressaltado. Abalara-o terrível pesadelo, na visão tumultuária das
águas que subiam. Diamantes boiavam como estrelas, descendo rio
abaixo. E o velho Justino gritava em meio das catas revolvidas: “As
águas tomaram o serviço todo!” Rouco, desesperado, o grito ecoava
fundamente no bojo da noite. Era preciso evitar aquela derrocada, não
podia permitir que o rio lhe arrebatasse assim tantos diamantes.
Agora um deles vinha passando bem perto – estendeu a mão para
pegá-lo. Tinha, calculadamente, uns dois quilos. Nesse momento,
porém, um trovão estrondou.
A “visão tumultuária” das águas, como a visão do paraíso e do inferno, exibe o
porte majestático de um “gigante”: o poderoso monstro daquelas paragens – o rio:
Ergueu-se, bem no meio do rio, uma tromba d’água da altura de um
sobrado, e, à luz de um relâmpago, apareceu um gigante
desgrenhado, o corpo coberto de espumas. Foi quando uma voz de
mulher se fez ouvir. O coronel volveu o rosto: de preto, acenando
do areão, Dona Hilda gritava: “Volte, meu filho! Volte! É o
Paraguaçu!” Quis retroceder mas viu que o gigante avançava,
27
rilhando os dentes. “Volte, meu filho, volte! Deixe estes
diamantes! Todos são dele! Não ponha a mão em nenhum!
Volte!”(...) (grifos meus)
A água e a mãe, e a morte. A imagem do rio que se transforma em um monstro de
espumas e que traz os seus diamantes enraizados, nos direciona a refletir sobre a
dimensão psicológica de que o coronel Germano está investido. Se a natureza,
como disse Bachelard, é a “projeção da mãe”
53
, e toda água de alguma maneira
traduz a barca de Caronte, nessa passagem do livro notamos o quanto esses
símbolos estão enraizados, dimensionados. A mãe do coronel (D. Hilda, vestida de
preto) “sabe” de todas as artimanhas do rio, de suas raízes prolíferas, por isso pede
que o filho volte – mas o filho resiste e é dominado pelas garras do monstro.
Teve medo. Olhou em torno: as águas continuavam a subir, os
diamantes boiavam. Avidamente, estendeu a mão para um deles;
quando o sentiu sob os dedos trêmulos, puxou-o de uma vez. O
diamante, porém, opôs insólita resistência. Surpreendido, passou a
mão por baixo, e encontrou raízes. (...) Então aquele gigante era o
Paraguaçu, aquele monstro era o “dono” do vale o “dono” daqueles
diamantes que boiavam, daqueles diamantes enraizados? Sim e
sentia agora a respiração “dele” ... Era aquele vento, aquele vento
frio... Tentou então nadar com as últimas forças que lhe restavam; eis,
porém que uma possante garra lhe reteve os movimentos. Era a mão
“dele”! (20-21) (grifos meus)
O poder do rio é ao mesmo tempo o poder supremo. A narração do sonho do
coronel permeia, na sua estrutura, imagens de tensão entre homem e natureza,
homem e poder. Tensão que se revela na imagem indissolúvel de um rio vencedor,
“dono” de tudo, a despeito de algumas vezes se deixar aparentemente vencer diante
da pretensão humana. Por sua vez, o poder do chefe, assim como dos diamantes,
53
BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos, p. 120.
28
está também “enraizado” e esse poder decide o destino da cidade, tanto na sua
topografia quanto nas vidas de seus habitantes. Se o garimpo mobiliza o sonho de
todos, a própria condição humana se enovela numa fatalidade cíclica sem
possibilidades de remissão. Assim, a cidade, como a presente narrativa, e
personagem complexa que é, nasce mesmo dos dramas humanos, “com seus
casebres trepando pelos barrancos”...
A Rua do Ribimba era continuação da do Rapa-Tição. Antigamente
a cidade acabava naquela casa grande da ladeira. Mas depois foram
chegando homens que procuravam trabalho, homens
pobres que vinham atraídos pelas notícias dos garimpos
ricos, e o Ribimba nasceu e foi crescendo, com os seus
casebres trepando pelo barranco como um rebanho de
cabras. De tão grande, constituía quase um bairro. Foi adquirindo
novos nomes nos seus vários desdobramentos, um beco aqui, uma
ruazinha ali, mas sempre com os seus ranchos, que eram
como casinholas de cachorros, de três cômodos no máximo,
onde viviam garimpeiros com as suas mulheres, que eram
fatalmente lavadeiras, e com os seus filhos, que eram
fatalmente futuros garimpeiros. (...) (6) (grifos meus)
A mesmice social que desfavorece principalmente os mais pobres, continua a
repetir, geração a geração, os mesmos destinos num movimento cíclico que nada
tem de natural, mas de social. Entretanto, esses movimentos retornarão sempre e
sempre como algo aparentemente natural, sem qualquer mudança positiva, e estão
circunscritos no livro tanto como temática quanto como estrutura. Se a vida deles –
garimpeiros e filhos de garimpeiros, sucessivamente - está para sempre fadada à
repetição, é a morte quem contornará tudo isso. Assim, estruturalmente o romance
está marcado, tanto na abertura quanto no desfecho, pela morte em forma cíclica:
[Início]
.. Foi quando de novo desabou a chuva.
Mesmo assim pararam defronte da casa do chefe – justamente ao
tempo em que a porta da casa se abria e a figura do Coronel Germano
29
recortava-se contra a claridade indecisa do candeeiro-placa. Como o
ruído da chuva fosse ensurdecedor, o velho Justino teve de gritar:
- As águas tomaram o serviço todo!
Depois passou a explicar ao patrão que os garimpeiros estavam
trazendo um companheiro que morrera afogado “o
Raimundo, aquela frente” na correnteza de uma cabeça d’água. (...)
(9) (grifo meu)
[Final]
Era de manhã, e a luz de um novo dia derramava sobre a serra,
quando retiraram o corpo de dentro da areia. Colocaram-no em uma
rede e levaram-no para a cidade. Mais uma vez, o velho Justino ia
à procura do coronel para lhe dar notícias do garimpo:
morrera apenas um homem. (...) (296) (grifo meu)
Segundo Adonias Filho, em Cascalho “o ficcionista não se deixará ultrapassar
pelo narrador”, pois que aquele domina “a matéria ficcional” movimentando-a
“numa espécie de ordem que equilibra o tema nas situações”.
54
Isso bem se percebe
na tematização da morte a partir de sua estrutura no romance. Se a morte deixa de
ser novidade, o homem que morre é “apenas um homem”, e a vida e a morte se
repetem como se nada fossem, o homem se aprisionando na própria falta de
consciência de existir. Esse aprisionamento se desdobra na repetição cíclica de
destinos, metaforizando-se na serra que, invariavelmente, está condenada a
circundar a cidade numa ordem imponderável, equilíbrio que intercede na
narrativa através da metáfora, traduzindo a perversa “disciplina” da vida:
... Numa ampla sucessão de planos, o casario da cidade
branquejava abaixo da mata rala do barranco e, mais além, a serra
apresentava os relevos de um muramento colossal. (...)
(51)
... Anoitecia. No horizonte barrado de vermelho, a serra
apresentava como que os contornos de uma fortificação em
54
ADONIAS FILHO. Op. Cit.
30
chamas, os píncaros criando a ilusão de monumentais ameias
comburidas. (...) (92)
... Estavam agora mais uma vez juntos, conversando na ampla sala do
sobrado, enquanto as sombras da noite envolviam lentamente a
cidade, fazendo desaparecer, ao longe, os negros e pesados
contornos da serra. (156) (grifos meus)
Sendo aprisionamento da condição humana, a serra/ordem ganha um
primeiro plano no que deixa entrever destinos em permanente duelo. O
enraizamento psicológico, eivado nas entrelinhas do romance, é a notação
centralizada os personagens não têm consciência de tamanho descompasso
social, pois que são logrados no seu sonho. Mas o narrador, aquele que intui as
profundas sensações que subjazem as relações humanas, entrevê uma fresta, tanto
nos imbricamentos metafóricos e impressionistas quanto ao nos deixar ouvir, de
maneira direta, a própria fala dos personagens, seus próprios dramas, perante a
transposição literária de uma dicção regional:
- Nós é que não passamos disto: vivemos sempre com uma mão
atrás e outra adiante. Nunca temos nada...
- O bocado não é pra quem faz disse um dos garimpeiros que
tinham chegado por último.
E acrescentou:
- Pobre na festa, pau na testa.
- Deus fez o mundo assim opinou Joaquim Boca-de-Virgem.
Ninguém pode consertar o que Deus fez. Cada qual nasce com o
seu destino traçado.
- E se chorar é pior – observou outro garimpeiro.
- E se torcer – ajuntou outro – o buraco é maior. Desde o começo do
mundo que existem ricos e pobres. É da vida. Em todo lugar é
assim.
(...) E Boca-de-Virgem completou:
- Se não fossem os pobres, os ricos não existiam. Mas também, se os
ricos não existissem, de que é que os pobres iam viver? (203)
31
Diz Sérgio Milliet que neste romance, “uma importante contribuição ao
estudo do vocabulário e da sintaxe de toda uma região.” Porém, diferentemente de
muitos romances regionalistas, em Cascalho mesmo “uma penetração viva e
aguda, de uma comunhão real do autor com o meio descrito”, assim “seus
garimpeiros falam e agem sem esforço dentro do desenvolvimento normal do
tema”. E ressalta: “essa gente de garimpo é mesmo de garimpo”:
55
- Viver nas Piranhas é pior do que ser escravo. O dinheiro corre
frouxo, é verdade, mas volta e meia um garimpeiro está indo para o
tronco. (...) Já vi um garimpeiro atarraxado lá, com o peador esfolado,
e o povo em redor olhando, parecendo feira, porque o desgraçado
tinha roubado vinte mil-réis de quinto. Piranhas não é terra de gente.
(p. 197)
O ficcionista compreende tais fusões entre o homem e a terra, visualizadas em
costumes e linguagem. Por isso nos leva a sentir tal complexidade ao fundir
estilística e metaforicamente rochas e homens, vidas humanas que são na verdade
uma duplicação ínfima da natureza:
Encontram-se como que encurralados no âmago da gruna
seres
insignificantes ao lado das grandes rochas úmidas e
escuras, sobre as quais vêem projetadas suas
próprias sombras. (...) (292) (grifo meu)
Natureza que se torna algumas vezes, por conseguinte, cúmplice do homem.
Vimos no estudo da contística de Herberto Sales, a partir da análise do conto
“Emboscada”, o quanto a Natureza se aliou aos atos da nossa condição, artifício
alegórico utilizado pelo escritor a fim de que talvez pudéssemos notar a
complexidade que as coisas tomaram diante da irracionalidade humana. Aqui
citamos novamente Brás Cubas e sua fala célebre: “a vida das cousas ficara estúpida
32
diante do homem”. Assim, a Natureza personificada como cúmplice das crueldades
dos homens, pontua nossos mais cruéis desatinos, ilustrando, como disse, “o cerne
de uma natureza desconhecida e íngreme”.
56
Nesse romance, na dramática cena da morte de de Peixoto, quando o
famoso jagunço se tornará alvo de uma “emboscada” armada pelos chefes, a
Natureza ao redor entra em estado de cumplicidade e expectativa, à espera do
homem que será tocaiado:
... Sob a pinguela desciam as águas do rio. Chegavam, aos seus
ouvidos, rumores distantes e confusos. A lua subia no céu azul, de
nuvens esparsas, e o capinzal ondulava ao vento. Na noite
calma, as casas eram pontos luminosos dispersos. Deu os primeiros
passos no areão: a amendoeira derramava uma sombra longa e
negra no beco do deserto. (140-141) (grifos meus)
No momento em que o jagunço está prestes a cair na armadilha, a Natureza torna-
se tão cúmplice dos homens que os agrega nas suas árvores:
A voz cochichou no alto da amendoeira:
- É vem ele agora.
Três dos jagunços achavam-se instalados nos galhos da árvore,
como se estivessem numa espera de caça na mata. Os outros,
inclusive Adalberto Boca-Torta, Manuel Cinco-Horas e Otacílio de
Marianinha, que usavam armas compridas, tinham ficado embaixo,
entrincheirados no muro. Através dos ramos que pendiam sobre
este, ocultando-lhes as cabeças atrás das folhas, viram o negro
entrar no beco.(...) (141) (grifos meus)
55
MILLIET, Sérgio. Op. Cit, p. 24.
56
VILMA, Ângela. Das Tonalidades Afetivas. In: __________. A Tessitura Humana da Palavra – Herberto
Sales, Contista, p. 108.
33
Porém, é a mesma lua que subia no céu azul ajudando os homens na emboscada
que, de maneira ambígua, também se revelará denunciadora perante a
transparência das coisas acontecidas:
... Quem estivesse no Ribimba, poderia ver um grupo de homens
correndo desabaladamente pelo areão, até desaparecerem nos fundos
da Casa da Câmara: a luz da lua era demasiado clara para que
eles não fossem notados. (144) (grifo meu)
Entretanto, é o Tempo em cumplicidade com a chuva , que apaga os últimos
resquícios, promovendo o esquecimento de todo esse episódio:
57
... Com uma chuva recente, tinham desaparecido os últimos
vestígios de sangue nas areias do beco, e era como se nada
de anormal houvesse acontecido ali em qualquer tempo. (...)
(172) (grifo meu)
Se a perplexidade dos personagens deixa de existir diante do que acontece, são
dessas ausências que o autor se serve a fim de pontuar nas entrelinhas do não dito
a sua crítica sutil. E é na fusão entre homem e paisagem/terra que se confirma
serem os garimpeiros “heróis instintivos”
58
, os mais autênticos prolongadores
dessa natureza em estado bruto. É na cata do diamante, no sonho da pedra
preciosa, que esses trabalhadores irão também se animalizar, impor o seu corpo à
condições subumanas, e a, seguir, continuarem pobres como antes. Se eles são
roubados no quinto,
59
a natureza rouba-lhes a vida. Simbiose complexa, fatal, a
natureza e o homem se digladiam a enchente vem, e o mais forte continua. Os
garimpeiros na gruna, à cata do sonho de enriquecer rapidamente, vêem-se presos
à própria armadilha de que são feitos: natureza e instinto. Comparados a formigas,
57
Episódio que segundo JoLins do Rego é página que fica em nossa literatura”. In: REGO, José Lins do.
Op. Cit., p. 274.
58
COELHO, Nelly Novaes. Cascalho: Bateia Brilhante. In: A Tarde Cultural, 17/9/1994, p. 2.
59
“Ônus cobrado pelos donos-de-serra na base de 20% sobre o produto extraído.” In: PROENÇA, Ivan
Cavalcanti. Seleta de Herberto Sales, p. 64.
34
ratos, bichos, o homem desce ao mais primitivo de sua ancestralidade a fim de
amalgamar-se de vez à natureza, voltar a ela.
... À distância, nem pareciam seres humanos: eram como formigas
se movimentando sob um comando invisível mas matemático. (...)
(289)
Uma dor extremamente aguda percorre o corpo de Joaquim. Ele deixa
escapar um grito, e em vão se debate entre as pedras, como um rato
na ratoeira. (...) (295)
Sente-se apanhado irrevogavelmente na armadilha: ia morrer como
um bicho sem vela nem sentinela e esse pormenor lhe causava
uma espécie de decepção. (...) (294) (grifos meus)
Natureza e homem estão em profunda extensão – tanto que o narrador,
envolvido com a terra, assim como os personagens, demarca a participação dos
elementos da natureza sempre acompanhando os dramas e a simplicidade que
envolvem a vida daqueles garimpeiros:
[Fuga do garimpeiro Silvério] ... E foi andando sempre. Os galhos de
mato se agitavam de leve à sua passagem, como à de um
animal esquivo. (...) Momentos depois, com os galhos que se
imobilizavam, voltava a reinar silêncio no local e do homem
em fuga desapareciam todos os vestígios. Ficou pairando nas
sombras o cheiro ácido das pitombas amadurecidas. (235)
(grifos nossos)
... Depois o sol já tombava. Os pássaros pretos voltavam aos
seus ninhos, e os garimpeiros aos seus ranchos. (...) (84) (grifo
meu)
O narrador é discreto, e sua discrição se insinua - com um olho que tudo -
pelas frestas de janelas, entremostrando-nos as atmosferas místicas das “verdades
humanas”. Na cena em que os dois irmãos coronéis, chefes do município se
35
debruçam sobre uma valise de dinheiro, enviada pelo Governo Federal a fim de
patrocinar o “Batalhão Patriótico Lavras Diamantinas” na Revolução de 30, algo
sutil é observado. Como a baixa de carbonatos e diamantes deixa-os numa falência
iminente, aquele dinheiro ali na valise, e a proposta de usurpá-lo a fim de sanar os
prejuízos do garimpo, traduz-se na visualização substancial que o sol dá à sala:
No primeiro momento, o coronel não compreendeu bem o que o
irmão queria dizer com isso. Ainda estava sob a influência do
assombro que a abertura da valise lhe causara: era difícil acreditar que
se tratava de um fato. A luz do sol, coando-se através dos vidros
coloridos das venezianas, dava à sala uma atmosfera de nave
de igreja luz de vitrais incidindo sobre a imagem de
Coração de Jesus encaixilhada em dourado por cima do
cofre: tudo isso fazia parecer que um milagre se tinha
verdadeiramente operado. (283) (grifo meu)
Irônica e poeticamente, coando-se através dos vidros das venezianas, o sol no
paradoxo insondável da natureza - , incide luz de maneira refratária, assim como a
sutileza do olhar do narrador na observação da cena. O artesanato da linguagem na
sua clareza e precisão alia-se ao humor satírico e compassivo, que posteriormente
invadirá de maneira incisiva a obra de Herberto, aqui se traduzindo, em contornos
implícitos, nas entrelinhas de uma ironia sutil, a partir do discurso indireto livre.
Mas são em outras linhas que podemos também ouvir um tom irônico
declaradamente burlesco:
... Finalmente, um candeeiro e reluzente bocal e por trás dele
uma cara que lembrava uma bola de papel amassado. Era a
cara de Seu Teotônio. (215-216) (grifo meu)
É nesse mesmo tom, com uma nuança impressionista, que a mediocridade do
médico Dr. Marcolino, aliado dos chefes, ganha coro de zombaria:
36
... E agarrando vivamente o chapéu, encaminhou-se para o corredor
com o charuto apagado na boca, deixando a porta escancarada atrás
de si.
Um fedor insuportável de urina entrou então pela sala da
redação como uma zombaria canalha. (...) (259) (grifo meu)
Sabedor, principalmente, do estado de brutal animalidade que coabita aqueles
seres, o narrador deixa-se mostrar, ainda, na dose certa de compaixão e crueldade:
... No fundo [do Paço Municipal] – um pasto para animais: o curral do
Conselho. De um lado, a cadeia e o quartel, cujo destacamento se
resumia na pessoa de um único policial (...). Do outro, em volta de
grande pátio lajeado, meia dúzia de cubículos. Moravam nele
alguns inspetores, o carcereiro, e algumas famílias de ratos.
No interior do prédio, um escuro corredor dava passagem para uma
outra sala – a maior de todas cujas janelas se abriam sobre um
chiqueiro de porcos. Nessa sala funcionava A Evolução.
(...) (182) (grifos meus)
A passagem acima, assim como as demais utilizadas anteriormente, é ilustrativa no
sentido de analisarmos o homem além do mero localismo. Se percebemos uma
comunhão viva do escritor com seu meio, também percebemos a comunhão com
todos os homens, aqueles como metáforas de todos os outros.
Das misérias às realidades oníricas
Mais que uma contribuição sociológica dada ao nosso conhecimento humano,
o romance nos leva a refletir sobre as mazelas da própria condição de ser. Como
assinala o narrador, os garimpeiros [como metáforas de todos nós], “eram homens
que traziam em si o ímpeto transfigurador do sortilégio das serras”. O sonho de
enriquecimento imediato movia a todos, e o garimpeiro se via aprisionado ao
37
próprio sonho como num jogo imponderável de perde-ganha, inerente à fatalidade
de existir.
... Não lhe tinham dito que dinheiro de garimpo era amaldiçoado
como dinheiro de jogo? (...) [Filó]: - É sempre assim. Todos chegam
com projetos de ganhar dinheiro e ir embora depois. Mas dinheiro
de garimpo tem dois vv. Do mesmo jeito que vem pra mão
da gente, volta para ele. (..) Não adianta fazer cálculo. Garimpo
dinheiro pra castigar a gente. Volta tudo pra ele. (68-69) (grifo
meu)
- Já vi que você tem mania de ficar rico no garimpo respondeu
Peba. –Mas deixe que eu lhe diga: garimpo protege
garimpeiro matador de dinheiro. (...) No dia que você
fizer cinco contos no garimpo disse Peba, pondo a
ferramenta no ombro você vai querer fazer dez. O saco
da necessidade nunca enche... (104) (grifo meu)
O “bambúrrio” momento epifânico em que o garimpeiro acha um diamante,
é seqüenciado pela venda ao dono da serra, restando-lhe meramente vinte por
cento do valor da pedra. As vidas desses garimpeiros “são numerosas e densas, e
saltam como símbolos de um mundo de coisas que apodrecem inexoravelmente”,
pontua Marques Rebelo.
60
Sabendo-se roubados, porém aceitando resignadamente
tal situação, recompensarão seus infortúnios no mundo feérico dos gastos que o
dinheiro pode lhes proporcionar.
- Veja quanto é que eu devo – disse [Neco Rompedor] em voz alta. –
Agora eu vou para o leilão.
O negociante (usava chapéu de couro) fez a conta rapidamente num
pedaço de papel. Ia dizendo, enquanto escrevia:
- Teve o quilo de requeijão que você mandou dar àquela
mulher... teve mais vinte garrafas de Si-Si... teve mais dez
60
REBELO, Marques. Cascalho. Revista O Cruzeiro, 26/8/1944, p. 21.
38
de cachaça, que você mandou dar ao povo... teve também
o quilo de bolacha Marieta que aquela mulher lhe
pediu... Quer dizer que são... cinco, noves fora dez, com
vinte, trinta e cinco, com trinta, setenta e cinco, com
quatro, oitenta e dois... Oitenta e dois repetiu,
verificando que, na realidade, eram cinqüenta e nove: a
escola sempre lhe servira para alguma coisa.
Neco puxou do bolso uma nota de cem:
- Tire aí.
Sentia-se convictamente feliz a seu modo: era muito importante
para um garimpeiro estar em condições de gastar. (...) (236-
237) (grifos meus)
É nesse clima de compensações que o herói picaresco da narrativa, o
garimpeiro Filó Finança, surge como figura emblemática: bonachão, debochado,
não perde a oportunidade de, no leilão da festa da Padroeira, mudar de classe
social – nem que seja provisoriamente:
Chico Pia, ao mesmo tempo, ecoava:
- Cinqüenta mil-reis!
E ameaçava:
- Afronta faço, mais não acho, mais achara, mais tomara, vou
entregar pelos cinqüenta mil-réis!
O mimo era um sabonete de dez tostões com um laço de fita azul em
volta.
Alguém comentou:
- Esse sujeito está doido! Como é que se cinqüenta mil-réis por
uma porqueira dessas?
Para Filó, porém, uma coisa importava realmente: fazer
figura. (...) (239) (grifo meu)
Além de Filó Finança, um outro garimpeiro, “herói” que circunda a narrativa, e que
mais tarde aparecerá nas páginas de Rio dos Morcegos, é Pedro Almofadinha.
Assim, personagem herbertiano recorrente, assinala as peculiaridades
39
idiossincráticas de quem sonha nem que seja por intercaladas fases ascender
socialmente, a partir do sortilégio que envolve a vida, o diamante.
- (...) Pedro Almofadinha é um sujeito cheio de mania,
metido a rico. Só vai em Andaraí quando bamburra.
E esclareceu:
- Como o povo só ele nessas ocasiões, sempre muito lorde e
engravatado, espancando dinheiro com mulher-dama, fica
pensando que ele tem mais sorte do que os outros. (...) (...) Você
não Pedro Almofadinha espancando aquela lordeza toda,
botando pra fora aquela rouparia de casimira que ele guarda na
casa da tia dele, na Santa Bárbara? perguntou. Em cima da
serra você não conhece ele. Vive que nem um bicho, trabalhando
dia e noite, sem respeitar domingo nem dia santo, pra fazer
figura em Andaraí. Mania besta, mania de ser rico comentou.
Mas que adianta isso? De que adianta passar uma semana com
Helena, com Cleonice, ou qualquer outra mulher de prateleira-de-
cima, se depois ele vai ficar dois ou três meses tocando gloriosa em
cima da serra? (...) (887-89) (grifos meus)
A afluência de tipos e a marcação psicológica que os invade sutilmente,
possibilitam a nomeação mesmo de Filó Finança como um “herói”, ou melhor,
herói às avessas - garimpeiro que se distingue dos demais por ser o único
alfabetizado e pela veia debochada, e que, além de tudo isso, encarna o perfil de
contador de histórias, narrador sedentário benjaminiano, “guardião da memória”
das Lavras e seus fastígios, “o tempo dos sonhos”.
(...)
- Isto não é vida que se leve queixou-se, de certa feita, aos
companheiros. Eu pensei que esse negócio de garimpo fosse mais
positivo. Que era só a gente chegar, cavar um buraco e encontrar
diamante.
Filó Finança sorriu:
- No começo das Lavras era assim.
40
E passou a explicar:
- Era um jeito que quase ninguém usava picuá. Os
diamantes eram carregados em trouxas. Chega a parecer
mentira, mas é a pura verdade. O finado Joaquim
Martiniano, por exemplo, quando fazia uma apuração,
trazia os diamantes entrouxados em dois lenços
enormes.
De repente, desconfiado que suas palavras não estavam merecendo
crédito entre alguns ouvintes, lançou mão desta ressalva:
- Pelo menos é o que dizem os antigos. (66) (grifos meus)
Esse tempo lendário envolve a vida dos garimpeiros, e o mistério e a aventura
compõem suas personalidades. É o que também constatamos no romance Maria
Dusá (1910), de Lindolfo Rocha, livro que, juntamente com Cascalho, compõe a
literatura da região diamantífera da Bahia. O que se visualiza em Maria Du,
história situada na segunda metade do século XIX na região de Andaraí, é a
confirmação do tempo do fastígio das Lavras que tanto os personagens de Cascalho
rememoram, e no qual podemos perceber as heranças de um imaginário e de uma
realidade em decadência, além do diálogo intertextual. Abaixo, os dois excertos de
Maria Dusá e Cascalho, respectivamente:
Ricardo exclamou:
- Qual, senhor, isso aqui é uma riqueza que não acaba nunca!
- É negócio de sorte! Acrescentou o negociante, sempre calmo.
- João! ô João! Gritou no interior da casa a mulher do negociante.
Vem ver se não é diamante o que eu achei na moela da
galinha?
O João Felipe acudiu presto à novidade. Dentro em pouco trazia
um diamante na palma da mão esquerda e a víscera referida
em outra, dizendo:
- Está, senhor Ricardo, porque aqui se vende uma galinha, afora o
papo e a moela! Felizmente esta era nossa mesmo. Veja que lucro
41
o senhor me deu, porque Clarinha pra lhe obsequiar matou-a para
o almoço! Veja!
61
(grifos, em negrito, meu)
Dirigindo-se sempre a Silvério, Filó Finança voltou a falar:
- Hoje em dia, se você for procurar diamantes no meio da
rua, ou em moela de galinha, onde a gente também
encontrava eles antigamente, você morre doido mas não
acha um. Começa por isto: nós não temos mais galinhas... E
quando temos, você bem sabe o que é que a gente encontra na
moela delas. (...) (66) (grifo meu)
Difícil ou desnecessária seria a tentativa de averiguação daquilo que é
fantasia, lenda ou possível verdade na narrativa, na vida. No romance, a história
local foi ficcionalizada, sendo que a própria herança da oralidade que se traduz
como documento memorialístico – já constitui em si mesma a fragilidade nas
fronteiras do “real” e do onírico. A crítica social permeada no livro, numa tentativa
de contar a História de uma localidade, está encarnada na própria voz e vida dos
personagens. Assim, as múltiplas versões da história de uma região são
visualizadas na sua literatura a fim de serem refletidas, sentidas, vivenciadas, tanto
nas suas misérias quanto nos seus sonhos.
“Um grito impossível”
O narrador de Cascalho, na aparente impessoalidade de discreto contador de
histórias, se posiciona a partir das impressões sinestésicas e estilísticas, das
comparações antropormórficas da natureza com o homem, e da imparcialidade de
quem denuncia sem sectarismo. Com a sutileza de uma ironia às vezes burlesca, o
narrador deixa evidente sua relação de afinidade com aquele lugar e com a história
que ali se passa através da adoção elástica do ponto de vista este que, como diria
Paul Ricoeur, designa “a orientação do olhar do narrador em direção a seus
61
ROCHA, Lindolfo. Maria Dusá, p. 51.
42
personagens e dos personagens entre si”. Tal orientação permite a visualização de
vários pontos de vista.
62
Tendo o narrador de Cascalho um alargado conhecimento
daquela realidade, haja vista suas experiências e vivências ali decorridas ,
dimensiona-se assim a experiência do Outro na diversificação múltipla dos olhares,
demonstrando o autor o conhecimento da terra no seu recorte mais íntimo, na
profunda identificação entre homens e coisas. Nesse pormenor coabita a
universalidade entranhada na mais sutil particularidade.
Em meio a essa narração de costumes e condições de existência, o que
prevalece é o matiz psicológico, humanístico. conta-se a história de homens em
suas partículas de “verdades” que não se apregoam literalmente, mas que se
compreendem. A fatalidade cíclica a que estão condenados aqueles garimpeiros,
com seus filhos fatalmente garimpeiros e filhas fatalmente lavadeiras, está
circunscrita no contorno da morte. A morte fechará um ciclo e abrirá outros.
Na região diamantífera, a morte “morrida” e a morte “matada” compõem
duas saídas. Se a primeira denuncia-se aparentemente mais pacífica que a segunda,
na verdade configura-se de um mesmo artefato de violência. É a gruna, pois,
espécie de gruta onde os garimpeiros acreditavam e muitas vezes encontravam
diamantes em profusão, que vai simbolizar em Cascalho uma das marcas mais
recorrentes na obra de Herberto Sales: a morte. Comparada inicialmente pelo
narrador a cofres “com a fortuna se oferecendo num mundo de oportunidades
espantosas”, a gruna vai ali fechar o ciclo das fatalidades humanas. Possivelmente
pode ser a representação final dos destinos daquele lugar, pois que tanto em
Cascalho quanto em Maria Dusá é ela que surge como elemento mais
representativo da morte. Pontuando mais uma vez o diálogo que há entre esses dois
romances, vemos em Maria Dusá que o sonho de enriquecer dos garimpeiros e a
morte é na gruna que estão simbolizados:
- E ainda há grunas ricas? Perguntou o mineiro.
62
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Tomo II, p. 154.
43
- Não tem conta, respondeu o Felipe. Aqui mesmo pertinho há uma,
chamada agora Gruna dos Defuntos e que está entupida,
desde que morreram os gruneiros, que trabalhavam,
quando veio água do monte. Esta dizem que é rica. Há outras
muitas de fama. Eu mesmo tenho informação de uma, daqui a
meia légua, serra acima, que se é como dizem, é um encanto! (52)
(grifo, em negrito, meu)
E é no último capítulo de Cascalho que nos defrontaremos com o outro lado dessa
gruta “encantada” – aquele que desmitifica a própria existência:
... Atrás de Justino, formando uma longa fila, os gruneiros também
conduziam suas candeias: era um cortejo fúnebre uma espécie de
caminhada de morte, angústia e silêncio. Não tiveram que andar
muito. Ali estava a gruna, um rombo dentro da noite, como se
fosse a própria serra escancarando a boca num grito
impossível. (291) (grifos meus)
A voz do narrador se faz a partir daqui grave, densa...
... Ainda que fosse dia a escuridão da gruna seria a mesma: é
qualquer coisa sempre igual, como a eternidade. (...) (292)
(grifo meu)
Eterno pois repetitivo e imponderável. Assim como os destinos daqueles homens
rastejando pelas pedras, presos como “ratos na ratoeira”, pois que a chuva mais
uma vez resolve destruí-los. São as imagens sinestésicas, provenientes de uma
poética perversa do narrador, que nos envolvem naquela atmosfera de fatalidade:
Começaram a entrar na gruna.
Um bafo de umidade retida os envolve. Filó vai na frente, seguindo
de perto Joaquim Boca-de-Virgem e Neco. Seguram a candeia com
uma das mãos, e com a outra amparam o corpo para não rolarem pelo
lajedo. Agora é preciso curvarem a cabeça, porque a gruna se torna
44
cada vez mais baixa. Filó é o rompedor. Sua candeia alumia o caminho
difícil. Dela se desprende uma fumaça densa, o cheiro de
azeite se misturando ao do limo que cobre as pedras. O ar se
faz mais pesado, como que palpável. Entre o teto e o chão
apenas uma fenda, como se o caminho tivesse terminado ali. Mas é
necessário avançar mais e Filó avança, agachando-se, a princípio,
para logo se estirar de comprido sobre a laje. (...) (291) (grifo meu)
A cena é dramática, e, diante do eterno que é a gruna, tudo se mostra
repetitivo, previsível: a morte de “apenas um homem” Filó Finança. A mesmice
retorna implacável. Herói que salva os companheiros e que morre levando o
próprio anonimato, Filó cai mais uma vez nas armadilhas da Natureza e se rende
inteiramente a ela.
... Deixa-se arrastar pela água, e por ela unicamente se orienta. No
meio da escuridão, como poderá localizar o esbirro que sustenta o
emburrado? O emburrado terá desabado? A saída estará obstruída?
Que tolice ter acreditado que era bastante forte para vencer
todos os obstáculos! Tenta em vão erguer-se, e a água o
impede de respirar. O rumor cresce aos seus ouvidos a água
batendo de encontro ao teto, saltando como uma coisa viva,
acometendo por dentro da escuridão. (...) De repente, pareceu-
lhe que nada tinha que ver com o que pudesse ocorrer ali. Houve
então um baque, um estrebuchamento, e a água, por fim, encheu
totalmente a gruna. (...) (296) (grifos meus)
Morrer na gruna simboliza retornar à natureza. Numa atmosfera épica [“era
uma vez...”], poética, fecha-se o ciclo, e a morte se dissolve na paisagem para que a
vida continue:
Era de manhã, e a luz de um novo dia derramava sobre a
serra, quando retiraram o corpo de dentro da areia. Colocaram-no
em uma rede e levaram-no para a cidade. (...) Acima do córrego,
guarnecido por um corte de pedras secas, elevava-se contra
45
a claridade do céu um monte de terra escura. Era o paiol do
cascalho. (296) (grifos meus)
Assim, entre tons claro e escuro, respectivamente, do céu e do monte de terra
do garimpo, a narrativa se encerra. Se começou com a escuridão do céu, a chuva e a
morte, finalizou depois de uma noite escura, também de chuva e morte com a
claridade “de um novo dia”. A morte e a vida simbolizadas na claridade do dia que
nasce aqui se delineia um dos “sinais particulares” da obra herbertiana: a
possibilidade da esperança.
No SubsiDiário, livro de memórias, Herberto nota a recorrência da morte
“o grito impossível” em sua obra, pontuando sua gênese no primeiro romance.
Ilustra, a seguir, as subjetividades nascentes do menino perplexo que foi diante da
morte, carregando em si, para sempre, a primeira lembrança de um brusco
desaparecimento aquele que ficou perpetuado em Cascalho a partir da figura
lendária de Zé de Peixoto:
... Estava caído na calçada um homem que sangrava no peito, posto
abaixo de si mesmo por um tiro de fuzil. Nesse dia descobri que as
pessoas morriam.
63
Com o sucesso desse primeiro romance, acontece a segunda morte na vida do
escritor: deixar a terra natal. Era preciso ir embora, foi “jurado” de morte; um dos
jagunços que tentava tocaiá-lo transitava nas páginas de Cascalho, na tocaia a
de Peixoto, numa repetição da arte na vida e vice-versa:
... O delegado, Clodoveu, vira o homem na ponte, de capa, numa
atitude suspeita. Tratava-se de um velho e conhecido Jagunço,
Adalberto Boca-Torta, que aliás transitava nas páginas de Cascalho. O
delegado perguntou o que estava fazendo na cidade. Viera visitar uns
parentes, qualquer coisa assim, que ao delegado pareceu uma
esfarrapada desculpa. E o delegado foi avisar meu pai, todo cuidado
46
era pouco, o homem fora visto na ponte por onde eu passava toda
noite. (...)
64
Assim, deixar a terra natal uma maneira de morrer. “Não poder conceber
que se pode viver em outra parte...”, disse um personagem de Piglia.
65
Herberto
disse a mesma coisa, em outras palavras:
... Descobri que o tinha mesmo forças para deixar a minha terra
natal, minha casa, os lugares de minha infância, o areão e o rio, e por
cima do rio o céu que eu desde menino via.(...)
66
Regional e universal, telúrico e, acima de tudo, um estilista da linguagem,
Herberto Sales inicia com Cascalho sua longa carreira de romancista. Com o
romance seguinte, Além dos Marimbus, ainda ambientado na sua terra, ganhou a
alcunha de “escritor regionalista”. A terra continua sendo memória insistente
memória que se desenvolve como artesanato literário, “realidade filtrada pelo
sonho”, como disse José Lins do Rego.
63
SALES, Herberto. Subsidiário 1, p.5
64
SALES, Herberto. Subsidiário 1, p. 43.
65
PIGLIA, Ricardo. Prisão Perpétua, p.12. Diz o narrador: “Não queria ir embora do lugar onde tinha
nascido, não podia conceber que fosse possível viver em outra parte e na verdade depois disso nunca fez
diferença o lugar onde vivi.”
66
SALES, Herberto. Subsidiário 1, p. 44.
47
II. ALÉM DOS MARIMBUS: O HOMEM E O PÂNTANO
“... Um romance concebido geometricamente e
geometricamente realizado. Era um problema de forma.
Um romance que tinha de ser uma espécie de soneto.
Talvez um romance parnasiano.”
(Herberto Sales: SubsiDiário, p. 119, falando sobre Além
dos marimbus)
A terra
Pretendendo escapar de vez das influências do “Romance do Norte”, no qual
Cascalho foi situado como um dos últimos expoentes, Herberto Sales quis que o
Além dos Marimbus tivesse uma outra dicção daquela que germinou seu primeiro
livro. Como este foi classificado de “romance do diamante”, assim como houve na
48
época o “romance da seca”, o “romance do cacau”, Herberto não desejava repetir,
com Além dos Marimbus a mesma fórmula, ou seja, o “romance da madeira”,
67
um
dos pontos temáticos desse segundo livro. Por isso o trabalho incansável de
estilista, tendo o romance três versões até ser publicado (1961). As primeiras
versões foram escritas ainda em Andaraí (antes de escrever Cascalho) e depois
de uma viagem que fez às matas de sua terra é que o livro ganhou, segundo o autor,
“embalagem”, a ponto de publicação.
68
O enraizamento telúrico, pois, continua, porém se em Cascalho percebemos a
multiplicidade de planos e ações, com uma forma analítica, em Além dos
Marimbus precisamente o que se ressalta é a unidade, corroborada com a síntese
numa “contextura nítida, limpa, seca”.
69
Herberto estruturou esse segundo livro em
forma de romance de viagem, e com a precisão quase que parnasiana com a
palavra, num rigor estilístico e estético, o romance segue em ritmo lento,
acompanhando as águas do rio Santo Antônio, sem todavia perder, em certo ponto,
o caráter dramático, pontual em Cascalho.
Nessa narrativa, a imparcialidade do narrador é a mesma do romance de
estréia, e a fauna e a flora da região são descritos como em atmosfera de sonho e
magia. A poética que amalgama seres e natureza, afim ao primeiro romance, ganha
nesse em densidade e apuro estilístico. O escritor amadurece, e o sentido de
denúncia que perpassa no livro torna-se ainda mais sutil que em Cascalho o que
importa aqui é a busca do essencial, tanto na linguagem quanto no ambiente físico
e humano.
O romance é uma narrativa de viagem que faz Jenner – personagem principal
às matas de Andaraí, com o objetivo de comprar uma fazenda e finalmente ficar
rico, como tantos outros, com o corte de madeiras. Se à época de Cascalho, poucos
se debruçavam sobre as matas da região, pois que consideravam tão somente o
67
Discurso na Universidade Federal da Bahia, ao receber título de Doutor Honoris Causa, em 1996.
68
SALES, Herberto. Subsidiário 1, p. 110.
69
BRUNO, Haroldo. Opinião crítica. In: SALES, Herberto.Op. Cit., p. 241.
49
garimpo como meio de vida, em Além dos Marimbus essa realidade se altera: a
madeira é apontada como outra fonte de riqueza, a despeito da obstinação pelo
diamante continuar a existir. Agora o que arrebata pessoas de outros lugares
àquelas paragens é a facilidade com a qual se corta árvores e se enriquece com elas,
não obstante o “vício” irredutível pelo garimpo:
... As terras são muito boas, como disse a vosmecê. O problema,
entretanto, continua sem solução: ninguém quer cuidar de lavoura
aqui no município. O trabalhador é inevitavelmente seduzido pelos
garimpos, na esperança de enriquecer de uma hora para outra. O
diamante é uma verdadeira cachaça. Por isso mesmo, os madeireiros
estão encontrando dificuldade em aliciar gente para trabalhar nas
matas. Quase todos os pauzeiros são trazidos de fora, de outros pontos
do Estado. Mas, chegando aqui, com o correr do tempo, vão
abandonando as matas e indo para as serras, sobretudo quando se
descobre um garimpo novo. (119)
Apesar das muitas alusões ao garimpo, delineando aqui o diálogo com alguns
personagens e passagens de Cascalho, o que ganha realce no romance é a
exploração do comércio de madeiras. Enquanto a maioria dos moradores ainda
persistia na busca do diamante – e este já dava mostras de exaustão -, a outra fonte
de riqueza do município, a agricultura, corre sérios riscos de deixar de existir, haja
vista a devastação das matas ocasionada pelos madeireiros:
E João Camilo reentrou a falar da excelência das terras da região.
Os garimpos haveriam de se esgotar um dia. Quando isso acontecesse,
o povo de Andaraí teria finalmente de voltar-se para a agricultura
única fonte de riqueza capaz de consolidar a economia do município.
Mas ele temia que isso ocorresse demasiado tarde. A devastação
operada pelos madeireiros acarretaria perturbações climáticas
desastrosas para aquela extensa área. Não se cuidava de
50
reflorestamento. E o que era, então, mata, poderia de futuro
transformar-se num deserto. (119)
Assim, com a temática social bem marcada, este é um livro denso, no qual o trato
com a palavra permitiu que Aurélio Buarque de Holanda, em prefácio a uma de
suas edições, batizasse seu autor de “admirável trabalhador da prosa e de narrador
sensível ao problema social.
70
E mais uma vez Haroldo Bruno assinala que Além
dos Marimbus, após Cascalho, vem dar vitalidade à temática regionalista na
literatura brasileira a partir do aprimoramento dos “padrões do romance
naturista”, renovando-o em dimensão estética.
71
A canoa e o rio
A narrativa é iniciada avançando lentamente numa canoa pelas águas do Rio
Santo Antônio até chegar aos marimbus - espécie de pântano às margens do rio. A
sobriedade da linguagem alia-se à precisão das imagens e tanto a nossa visão
quanto a audição se aguçam nesses caminhos “fotografados” por um narrador que
parece ter desaparecido diante da história – esta, magicamente, nos dá a impressão
de contar-se sozinha:
A canoa avançava lentamente, cortando as águas escuras do Santo
Antônio, que banham as terras da Fazenda Mangabal. Sentado à popa,
o canoeiro ia impelindo a embarcação no rumo da mata embrejada
que cobria, em toda a extensão, a margem esquerda do rio. O remo
servia ao mesmo tempo de leme; e, ao ser mergulhado na água,
provocava um ruído monótono que feria, com insistência
enervante, o silêncio da mata. (7) (grifo meu)
Nesse primeiro ângulo, a clareza e sobriedade de estilo nos incitam à
visualização do silêncio, e nos faz sentir de imediato “estar no interior da
70
BUARQUE DE HOLLANDA, Aurélio. Introdução. In: SALES, Herberto. Além dos Marimbus.
71
BRUNO, Haroldo. Op. Cit, p. 239.
51
história”,
72
a mergulhar o remo na água. Essa co-operação do leitor é prosseguida
no segundo ângulo da visão dimensionado no cenário: surge a figura humana do
canoeiro, enraizada no rio como plantas aquáticas:
Manuel João vivia ali desde que nascera. Seu trabalho se limitava à
área de terra ribeirinha, ao rio e à canoa, como outrora ocorrera
com o pai. A terra dava-lhe a mandioca, o rio dava-lhe o peixe, e da
canoa lhe provinha o escasso dinheiro do transporte de
passageiros de uma para outra margem. Através dos anos, sua
vida estacionara como diante de um obstáculo, circunscrita ao rio e à
mata. Os marimbus eram as fronteiras do seu mundo mundo de
água, lama e febre, onde nada lhe acontecia que não tivesse
acontecido muitas vezes. Lenta e uniforme lhe decorria a
existência, e a rotina diária, a solidão, a febre que desde
muito se tornara crônica, haviam-no integrado na paisagem
sempre igual, com velhas árvores debruçadas sobre o
pântano. (7) (grifos meus)
Como um velho Caronte cansado de transportar findas existências, Manuel
João, homem simples, corroído com suas misérias particulares, amalgama-se
àquela paisagem num fatalismo cíclico, numa repetição de doença e solidão vida
que, como a canoa e o rio, também avança silenciosamente, sem nenhum sinal de
revolta:
Sob o desabado chapéu de palha de ouricuri, seus olhos tinham
uma expressão de resignada indiferença. Mas do corpo enfermo ainda
retirava alento para levar adiante o trabalho a que se entregara
sem esperança nem protesto, simplesmente porque a vida teria
de lhe impor uma responsabilidade qualquer, e que se transformara
num hábito impossível de quebrar. Seus braços magros
manejavam inapelavelmente o remo, como sob a ação de
72
COSTA E SILVA, Alberto da. Prefácio. In: BRASIL, Assis. Herberto Sales: Regionalismo e Utopia, p. 12.
52
uma ordem secreta e fatal o destino aprisionando-o entre
a mata e o pântano. (7-8) (grifos meus)
Aqui, atravessar o rio não significa alcançar a terceira margem, mas a margem
invisível aquela que, segundo o narrador, não se divisava, pois que era
“impossível distinguir onde acabava o rio e começava a terra firme”: o “ondulante
bosque aquático”, juntamente com a “desordenada massa de troncos e cipós”,
suprimiam as fronteiras “do barranco e do rio”, repetindo o aprisionamento dos
dias e de ser.
Entretanto, é dentro da canoa que a novidade se torna visível nela, Jenner,
“um desconhecido” que, de visita àquelas brenhas, deixa-se mostrar agora num
terceiro ângulo estabelecido pelo narrador- , quebra de pronto a monotonia cíclica
da canoa e do rio:
Um desconhecido cruzava agora aquelas paragens: Jenner. De
casaco e culote de brim cáqui, chapéu de abas largas, e coturnos,
conservava-se atento à mata que se descortinava além dos marimbus.
Parecia ignorar a presença do canoeiro. (8)
Vinha também na canoa, Ricardo, guia encomendado pelo prefeito de Andaraí a
fim de acompanhar Jenner:
... Antigo vaqueiro da Fazenda Mangabal, conhecia-lhe muito bem as
matas. Não via o canoeiro desde o dia em que, despedido do serviço,
atravessara o rio a caminho da cidade, a fim de tentar nova vida. Mas
não se mostrava surpreendido ao encontrar Manuel João
completamente arruinado pela doença: era como se isso
tivesse de acontecer. (9) (grifo meu)
É a solidão, segundo Ivan Cavalcanti Proença, a linguagem maior desse cenário
inicial. Os três personagens e a canoa formam um “círculo que se fecha cada vez
53
mais”, restando apenas “enigma e silêncio solidão”.
73
Ricardo, conhecedor das
matas e das fatalidades a que estão condenados quem vivem ali, pois que “em
outros tempos, sua existência incluía obrigatoriamente o rio, os marimbus, a
guarda do gado e, ao entardecer, o retorno ao rancho”, é o personagem que em todo
o romance evoca o passado que viveu naquele lugar, e os desdobramentos desse
universo vivencial prosseguem na narrativa num ritmo nostálgico de total
cumplicidade com a terra:
... Olhando a paisagem circunjacente, Ricardo sentia-se
reintegrado naquele passado perdido. Via-se na tarde em que,
curvado sobre a sela, corria atrás da vaca pelo atalho conducente à
lagoa. Rememorou o desfecho: o pau atravessado no caminho, a queda
do cavalo, o corpo violentamente projetado contra o murundu.
Lembrava-se dos pormenores, como se estivesse repondo coisas nos
lugares: toda uma existência não bastaria para esquecer o acidente. A
dor no peito, as golfadas de sangue sobre o barro, as duas semanas
passadas na cama tudo isto se achava ligado ao seu último dia de
trabalho ali na fazenda. (9-10) (grifo meu)
Os três personagens, sobre a canoa e o rio, atravessam o destino das matas,
além dos marimbus. O silêncio só é quebrado pelo rumor das capivaras que passam
lépidas. Depois do rio surge a água pantanosa: a natureza personifica-se num
emaranhado de espectros, e as descrições da paisagem se enovelam numa
atmosfera de mistério e densa carga de magia:
A canoa acabava de entrar em pleno marimbu. A poucos
centímetros de profundidade, a matarana entretecia uma rede de
tenros caules chumaços de mato mole que criavam para o rio um
falso leito. Sobre eles se abriam, em placas vermelhas, as folhas novas
dos golfos. As águas ocultavam-se sob as moitas de junco. (...) Com a
noite a avizinhar-se, quase nada se podia distinguir. As árvores
esbatiam-se nas sombras, e do difuso conglomerado de
73
PROENÇA, Ivan Cavalcanti. Seleta de Herberto Sales, p. 95.
54
troncos e moitas desprendia-se algo indefinível, que oprimia
e sufocava. Pairava no ar, vinda de toda parte do chape-chape do
remo nas águas, do roçar das hastes de junco nos animais, do ciciar do
vento nos arbustos, do zumbido das muriçocas sobre o pântano – uma
sensação de mudo temor. Tudo se transfigurava, insinuava um
enigma, rendendo-se ao sortilégio das sombras: sob o céu
escuro, os galhos das árvores eram braços erguidos numa
imobilidade pânica. (11) (grifos meus)
Tudo que ali acontece havia acontecido milhares de vezes, naquele mesmo
horário, com a noite a avizinhar-se” e os temores a saltarem-se de dentro das
coisas. Naquele preciso momento, “os pássaros tinham deixado de cantar” e, “de
quando em quando, alguma ave noturna esvoaçava dentro da mata, desferindo a
praga de um grito áspero”. Nesse ambiente de transfigurações, de silêncios
embrejados no rio, a narrativa nos toma em sobressalto, tamanho é o realismo da
cena:
O silêncio exercia sobre Jenner uma atração maior que a
curiosidade despertada pela vizinhança da mata: todos os sentidos
pareciam concentrar-se-lhe na audição. De repente lapt! qualquer
coisa mole e fria lhe saltou contra o pescoço. o pôde evitar o susto.
Rápido, atirou a pequena rã dentro da água.
74
(11)
Eis o marimbu, trazendo no seu bojo criaturas de carne e osso, não obstante a
condição de seres de papel. Nas palavras de Ricardo Ramos, esses personagens são
sobretudo “gente que vive”, permitindo que o romance não se deixe traduzir tão
somente como uma “problemática local”; é muito mais, haja vista ser composto das
“miúdas apreensões do homem simples, [suas] dores comuns, que falam de um
sentimento universal”.
75
74
Segundo Herberto Sales, Guimarães Rosa havia lhe dito ter levado um susto ao ler essa cena. E como
considerava este livro de Herberto um dos mais bem construídos da nossa literatura, recomendava-o traduções
a editores estrangeiros. Disse a Herberto: “Ainda quero ver aquela rãzinha saltando em muitas nguas”. In:
SALES, Herberto. Subsidiário 1, p. 145.
75
RAMOS, Ricardo. Além dos Marimbus. In: Diário de Notícias, 11-12/6/1961, p.1.
55
Os marimbus e suas extensões
... Marimbus. Palavra que me parecia ter uma reserva de mistério,
um mistério escondido atrás dela, dentro do mato. Marimbus.
(Herberto Sales)
76
Num artigo à revista O Cruzeiro, em 1961, Rachel de Queiróz declara ser o
marimbu a “força maior” desse romance herbertiano. Afirma: “... o pântano verde,
com seus bichos e seus mistérios, a terra instável, o calor, o medo (...) se eleva até
nós, nos abraça e nos confunde com sua mágica aterradora”. O ambiente, segundo
ela, ergue-se em plano maior, aterrador, e, muitas vezes, durante a leitura,
“acontece (...) a gente parar, num meio medo medo de ficar presa ali, na solidão
semi-aquática, junto com aquela gente que parece ter renunciado a grande parte
de seus direitos humanos ou antes, que parece nunca ter tido idéia do que é
direito, quanto mais de os possuir”.
77
Se o local aprisiona o homem e este não tem consciência de suas sobrevidas, é
mesmo o marimbu o cenário desse aprisionamento aterrador, com sua mágica e
seus sortilégios. Porém, o local não se faz maior que a humanidade presente nas
entrelinhas do romance a partir dos personagens que movimentam o cenário e
aparecem com sua força humana. A própria Rachel de Queiroz, no mesmo artigo,
chamou a atenção para essa força que rege as criaturas; criaturas que surgem no
livro não como “tipos”, muito menos transviadas por histórias secundárias nas
quais sobressaem o pitoresco ou o engraçado. Não, o personagem “que tem de
aparecer aparece, funciona, chamado pela mecânica da narrativa”, pois “não fica
fazendo comício nem demonstrações de folclore, (...) é pessoa mesmo, não apenas
personagem”.
78
Essa força do personagem, criatura “viva”, denota a força
humanística do romance, e o personagem enovela-se ao cenário marimbu
76
SALES, Herberto. Subsidiário 1, p. 99.
77
QUEIRÓZ, Rachel. Além dos Marimbus. In: Revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro: 22.4.1961, p. 146.
56
aquático, sendo um a extensão do outro naquilo que sobressai como naturalidade
inconsciente, agônica:
... Insensível às picadas dos insetos, o canoeiro não retirava as
mãos do remo. Em dado momento, um leve tombo da canoa, e sua voz
veio do fundo da escuridão:
- Chegamos.
E era como se desconhecesse a importância que esse
aviso pudesse ter. (12) (grifos meus)
Se na narrativa a vida de Jenner, o forasteiro, não é dissecada
psicologicamente, somente posta à prova em sua concretude de ações, por outro
lado a vida de Ricardo, homem daquelas paragens, é delineada nas próprias
lembranças, firmando-se suave e intrincada nas suas redes de desenganos. A terra
e sua vida estão amalgamadas em cumplicidade de sensações e recordações:
A passos lentos Manuel João ia puxando o cavalo em direção à
manga: pouco significava a escuridão para quem desde menino
transitava pelas estradas da fazenda. A seu lado, Ricardo conduzia o
outro animal. O ar da noite envolvia o antigo vaqueiro numa
onda de calma inesperada, que o deixava numa espécie de
grata intimidade consigo mesmo: reavivam-se-lhe
recordações, em meio a uma sensação de vaga e irrefletida
felicidade – todo o seu passado ali na fazenda sugerindo-lhe que,
afinal de contas, sua vida já fora melhor. (15) (grifos meus)
Tal extensão homem natureza é o tônus romanesco, e se revela em
episódios intrigantes, simbólicos, como naquele em que a mulher de Manuel João e
os outros personagens se debatem entre acontecimentos que envolvem o
aparecimento de uma cobra.
A mulher tinha o terror na face:
78
Ibidem.
57
- Venha depressa, Manuel João. Traga o varão pra matar ele.
(...) Foi quando se ouviu um estranho resfolegar. Era uma espécie
de fundo e prolongado ronco, vindo de qualquer parte do
mato – mas iniludivelmente próximo. Sacando o revólver, Jenner
olhou rapidamente em redor, num ímpeto de assenhorear-se da
situação. Mas tudo o que viu era o que tinha visto antes: as árvores
envoltas nas sombras e, dentro de pântano, o canoeiro e a mulher.
Entretanto, nem bem Jenner sacara a arma, Manuel João fez sinal
para a mulher avançar o fifó e, contraindo as mãos sobre o varão,
ergueu-o para desfechar um golpe contra qualquer coisa que estava à
sua frente. Sem imaginar o que fosse, num movimento instintivo,
Jenner contornou as touceiras altas e, galgando às pressas o barranco,
colocou-se em posição que lhe permitia descortinar toda a pequena
área iluminada.
Uma enorme cobra estava adormecida entre os juncos.
Jenner gritou para o canoeiro:
- Largue esse varão!
E acionou o gatilho. (...) (23) (grifo meu)
A identificação entre o homem e a natureza move aqueles seres instintivos e
puros, e as desigualdades sociais – traduzidas no revólver de Jenner em detrimento
do varão do canoeiro - , circunscrevem-se, contornando a cena em que a natureza
íntima da mulher se amalgama aos acontecimentos, seu corpo refletindo as
extensões primitivas da terra:
... Jenner atentou no canoeiro: parado ao lado do sucuiuiú, cochichava
com a mulher, parecendo interessado em ocultar alguma coisa. Ela
mantinha o vestido suspenso até os joelhos. Fechou as pernas de
repente, deixando cair sobre o pântano a barra da saia. Revelava sinais
de embaraço. Protegida pela distância que a separava dos outros dois
homens, disse timidamente ao marido:
- Meu incômodo chegou. Segure o fifó e seguindo. Eu não
posso andar agora não...
58
Jenner continuava a observá-los: não percebia uma palavra da
conversa deles. Ricardo repetiu:
- Que é que houve, Manuel João?
- Foi Joana que teve uma cãimbra...
O canoeiro tentava dar às palavras um tom natural. Tomando o fifó,
voltou em direção ao barranco. A mulher baixou os olhos e apertou
mais as pernas: não tinha outra coisa que fazer. (...) (25) (grifos
meus)
A mulher e seu corpo são extensão da natureza circundante, que se mostra
mas que também se esconde, e sua liberdade é interditada como os de um animal
peado”, preso:
... Assim que deram as costas, a mulher procurou sair do marimbu. Só
a custo o fez, por conservar as coxas firmemente comprimidas uma
contra a outra. Seus passos eram curtos como os de um animal
peado, e iam abrindo sulcos no terreno mole. Ao chegar à
margem, foi obrigada a movimentos mais largos para subir o
barranco. Descerrou as pernas, e o mênstruo, até então retido,
deslizou as longo delas, dando-lhe a sensação de que urinava em pé. A
escuridão favorecia-a, e ao pensar nisso avançou precipitadamente
para a estrada. (26) (grifos meus)
Na luta com/contra a natureza, nesse final de capítulo duas cenas se
desdobram simultaneamente, num recorte cinematográfico: o constrangimento da
mulher, tentando esconder as reações naturais de seu corpo, e a conversa dos
homens, num delinear de sinuosas sensualidades.
... Chegou-lhe aos ouvidos a conversa de Jenner e Manuel João:
- Quantos palmos ele deve ter?
- Uns trinta.
- Então você vai apurar um bom dinheiro com o couro.
- Não senhor. O couro eu tenho que entregar ao Coronel Moreira.
- Você já matou algum deste tamanho?
59
- Mais ou menos.
- Eu me lembro era Ricardo que falava agora. Eu estava em
Andaraí quando o couro chegou. O senhor não sabe onde é o
armazém dos Cotrins, na praça? Onde eu comprei ração para os
animais? (...) Pois bem. O couro pegou da porta do armazém dos
Cotrins até a porta de Seu Antônio da Basília. Por aí o senhor pode
calcular o comprimento dele.
A mulher parou de súbito. Tinha os pêlos do sexo
encharcados de sangue. Lembrou-se do pedaço de pano velho
colocado sob o travesseiro, e que lhe podia ser tão útil no momento.
Começara a sentir o mau cheiro do mênstruo, como se
presenciasse sua própria decomposição em vida. (26-27)
(grifos meus)
Se nos marimbus após a chuva, “a água apodrecia lentamente, retendo em
infusão galhos mortos e recorbertos de lodo”, e, acentuando “o mau-cheiro”, os
mosquitos vinham nutrir-se “das impurezas da água” e os animais atolavam-se “na
lama”, naquela mulher também ocorria algo parecido, pois que com o mênstruo
As pernas lambuzadas de sangue misturado com lama
causavam-lhe indizível mal-estar. De repente, como se tomasse
uma decisão suprema, agarrou fortemente a anágua e, abrindo as
coxas, esfregou-as com ela de alto a baixo. Saiu quase correndo para o
rancho. Entraria pelos fundos: ninguém iria notar-lhe as manchas
no vestido. (27) (grifos meus)
Assim como as águas dos marimbus, a mulher também ocultava-se “sob as
moitas de junco”, escondendo-se nos “fundos” das algas onde um entretecer de
folhas e caules tomavam todo o rio, tornando-o irremediavelmente pantanoso.
As transfigurações
60
A sobriedade e a precisão da narrativa, juntamente à clareza da linguagem,
nos conduzem à terra e ao homem em suas mais recônditas identificações. A
natureza personificada, deificada, ganha proporções mágicas, transfiguradoras. A
poesia incorpora-se à prosa, e a manhã daquele lugar assoma-se ao sortilégio de
um terceiro olho que tudo vê:
... Nada lembrava o desolado ermo da véspera: escancarava-se fora
uma límpida e fresca manhã. Pássaros cantavam. No extremo dos
talos roxos do mandiocal verdejava, contrastante, o recortado das
folhas ainda úmidas de orvalho. Aboboreiras alastravam-se por trás
das cercas. Derramando-se em macia claridade, o sol criava
sugestões ornamentais na maranha das zabumbas, de onde
as flores irrompiam como trombetas brancas. (...) (35) (grifo
meu)
E o enredamento da mata, nas suas árvores, folhas e cipós, insinua um mundo
insondável, resguardado em seu próprio mistério:
... Foi-se fechando a mata: a ramagem densa ensombrava o chão
recorberto de ervas e arbustos, e a brenha investia súbita contra o
caminho, as árvores irrompendo desordenadamente e múltiplas.
Pendiam delas, enlaçando-as, cordoalhas de fibrosos cipós. Os troncos
acumulavam-se por toda a parte, negros e rugosos, engrifando a
galhardia nas copas imóveis e pesadamente verdes. Grossos
itapicurus projetavam sobre a estrada, como se quisessem
detê-la, as garras do raizame, e por trás deles, de
emboscada, os espinheiros enredavam-se em caramanchões
sinistros. Caules, ramos, hastes, tudo se fundia num
atravancamento caótico, tentando vedar a paisagem. Dir-se-
ia que a mata procurava resguardar-se, defender-se em seu
recesso. (...) (44-45) (grifo meu)
61
Como se propagasse o eco proveniente de um só mundo – de homens e
paisagem, a região vai se desfraldando diante da viagem de Jenner, e todo esse
primitivismo traduz uma carga humana, dilaceradamente humana:
Chegara a encruzilhada. A mata rebentava numa floração agreste e
vária flores lilases, azuis, brancas e amarelas. As vermelhas
recobriam uma touceira de coroas-de-cristo e nela pareciam
sangrar: surdia-lhe dentre os espinhos a corcova de um
murundu, como se o chão, acaso ferido, tivesse sofrido uma
súbita contração de dor. (58) (grifo meu)
É, pois, diante de uma natureza prenhe de vida e eloqüência, que surgem
alguns outros personagens: donos de fazenda, trabalhadores, prostitutas todos
sobreviventes de um mundo social de misérias e dramas particulares. Em razão
disso, suas vidas “não têm começo nem fim” como em alguns romances, “apenas
vivem”.
79
Enquanto o personagem central, o viajante Jenner, prossegue no seu fito
ambicioso e indiferente de comprar uma fazenda e ficar rico cortando árvores,
Manuel João e sua família desfilam sua pobreza; Ricardo sonha e sofre ao
relembrar Maria; Padre Coelho, num discurso suspeito, diz proteger os desvalidos
mas ao mesmo tempo enriquece com o corte de madeiras.
É em meio ao desfilar de personagens pouco humanos e muito ambiciosos
que se encontra o sírio Abubakir, explorador de miseráveis pauzeiros e de
mulheres. José Climaco Bezerra, em artigo de 1961, temerariamente sugere que tal
personagem constitui “o símbolo mais perfeito de interação do homem à terra”.
Argumenta que, a despeito de sua condição de estrangeiro, com a língua travada,
todos os trabalhadores entendem o que ele diz “os cortadores de madeira, os
corretores que fazem a ponte de ligação entre os proprietários da mata e os altos
comerciantes da cidade”.
80
Tal entendimento embrenha-se mesmo é nas relações
perversas do poder que no seu discurso, direto ou indireto, o sírio enraiza à terra e
sua sofrida gente:
79
BEZERRA, José Climaco. Além dos Marimbús (sic). In: Diário de Notícias. Salvador-Ba, 17/12/1961, p. 3.
62
... Quatro homens tinham vindo sentar-se debaixo de um jirau, perto
do abrigo dos caminhões, os pés disformes e ulcerados envolvidos em
trapos, exalando um cheiro nauseante.
- Seu Abubakir! – chamou um deles, pálido e barbado, fazendo
menção de erguer-se.
- Pode ficar mesmo, Laborão! bradou o sírio, sustando-lhe o
movimento com um pronto abrir de mão retesada no ar,
que tanto podia traduzir o desejo de poupar o trabalho ao
esforço de levantar-se como significar o intuito de o
manter à distância.Que é que você quer?(130) (grifo meu)
Discurso que se esconde e se mostra nos gestos e se dissimula nas palavras
(cf. grifo acima), estas que têm em seu cerne uma “pesada e temível
materialidade”.
81
Como argumenta Foucault, querer se apoderar do poder é mesmo
querer se apoderar do discurso
82
.
Esse “poder”, ao mesmo tempo que dilacera pauzeiros e prostitutas, ganha na
narrativa possibilidades de transfiguração a partir dos acentuados “vôos”
estilísticos do narrador. Dentro da fluência da tradição romanesca clássica, o
escritor consegue esses “vôos” [expressão de Aurélio Buarque de Holanda
83
]
repletos de modernidade/vivacidade, num comovente assomo de compaixão
humana. Como na passagem abaixo, sublinhada nesse sentido por Aurélio
Buarque, na qual mãe e filha, Minervina e Maria, ambas prostitutas, dialogam
sobre suas terríveis condições:
- Chucho mandou o dinheiro? – perguntou Minervina.
Não mandara.
80
Idem. Op. Cit.
81
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso, p. 9.
82
Idem. Segundo Foucault, “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo pelo que se luta, o poder de que queremos nos apoderar.” In: Op.Cit.
83
BUARQUE DE HOLLANDA, Aurélio. Op. Cit.
63
A doente apequenou-se, encolhida nas dobras da coberta velha e de
madapolão:
- Homem é um trem ruim mesmo. Só se lembra da gente enquanto
pode tirar proveito.
Maria cachimbou:
- Não é assim também não, mãe. Chucho até que é bonzinho. Pra
semana ele manda o dinheiro. Pode deixar que eu trago. (...) Pode
deixar, mãe. Eu vou falar com Chucho de novo. Pra semana o
dinheiro vem, se Deus quiser. Fique descansada, que Chucho
manda.
- Manda nada, minha filha! (...) Veja se fala com os outros também.
Com Ananias, Bertolino, Pernambuco... Fale com eles, minha filha.
Eles precisam me ajudar. Por causa deles é que estou assim.
- Pode deixar, que eu falo, mãe. Fique descansada. Não pense mais
nisso. Agora vamos ver o remédio. Por que a senhora não
aproveita e passa logo uma vez?
(...) (103)
A clareza e a sobriedade da cena traduzem o fundo clássico da escritura romanesca
e ao mesmo tempo vivificam a inovação a partir de um certa audácia, tanto na
simplicidade lingüística quanto na compaixão que extraímos do tema. Diálogos
curtos, diretos, concisos, secos que aproximam o autor de Graciliano Ramos,
deixando-nos ver e sentir os personagens sem adornos, sem adjetivos
desnecessários.
Nesses “vôos”, a narrativa nos apresenta um homem “singular” o adjetivo
aqui usado destoa do próprio personagem e de minha tentativa de caracterizá-lo:
João Camilo, fazendeiro considerado “estranho” por todos em decorrência de ter
um estilo de vida completamente diferente dos outros fazendeiros. Espécie de
amigo dos bichos e da natureza, João Camilo personifica a volta pacífica à natureza,
não no sentido exótico, mas na quase “constrangedora” forma natural, a qual os
homens não estão mais acostumados:
64
(...) Contudo, ao abordar o assunto da compra de madeiras, foi com
um espanto sincero, enternecido de respeito, que [Jenner] ouviu João
Camilo dizer:
- Eu não posso assumir o compromisso de fornecer madeiras a
vosmecê. As árvores têm vida, como um ser humano.
Vosmecê me desculpe, mas, pra mim, cortar uma árvore é como se
fosse um crime. (...) Eu posso vender a vosmecê as
árvores mortas. São as únicas que eu corto aqui na
Sapucaia. Essas eu poderei negociar com vosmecê.
Vamos esperar. Deixemos que as árvores morram
primeiro. (117 a 120) (grifos meus)
Tal discurso, considerado como louco, por isso interditado e não levado em conta,
84
marca tal personagem no livro como talvez uma das mais incisivas críticas ao
homem diante da total perda de sua espontaneidade. João Camilo representa o
retorno a uma infância, a um mundo natural:
- Seu João Camilo é o melhor homem que eu vi até hoje na minha
vida. Basta dizer ao senhor que ele não consente ninguém caçar aqui
na Fazenda Sapucaia. Os trabalhadores têm permissão de matar os
bichos que prejudicam as plantações, mas não podem dar um tiro
num marreco ou numa pomba. Ele protege todos os bichos mansos.
(112)
Outro fazendeiro, Coronel Moreira, pai do prefeito da cidade e despótico dono
de terras, desponta no romance num contraponto a João Camilo:
O homem vivia acobertado pela política. Invadiu os terrenos do
Estado, e requereu posse baseado em falsas benfeitorias. Saiu
medindo terras a torto e a direito. Ninguém dava um pio. Resultado:
acabou dono de um latifúndio. (...) Enfim, coisas do banditismo das
Lavras. Mas ainda bem que a situação hoje é diferente. A Revolução de
30 teve este lado bom: desarmou os chefes políticos e acabou com os
84
FOUCAULT, Michel. Op. Cit., “oposição razão e loucura”, p.10-11.
65
desmandos deles no sertão. (...) De vez em quando alguém se esquece
disso, sabe? E e as mangas de fora de novo. É sempre bom ter
cuidado. (86-87)
Remanescente e parente do Coronel Germano, personagem de Cascalho,
Coronel Moreira traduz a força da notação intertextual, a ligação entre os dois
romances e uma mesma “realidade”:
O inesperado da observação era chocante, e o sentido zombeteiro dela
ainda mais. Instintivamente, Jenner lembrou-se da cena que
presenciara no sítio de Sinhá Andresa.
Escapou-lhe a pergunta:
- O Coronel Moreira foi chefe do município?
Não o chegara a ser: fora-o um parente dele, o Coronel
Germano, falecido quando o padre viera para as Lavras,
dois anos depois da Revolução.
Mas dava no mesmo continuou ele. Casado com uma irmã do
chefe, o que o Coronel Moreira fizesse, estava feito. Ficava tudo em
casa. (...) Farinha do mesmo saco. (86-87) (grifos meus)
Em meio ao surgimento de um ou outro personagem, a narrativa flui serena,
palmilhando os passos de Jenner e sua ambição de comprar a almejada fazenda. E
eis que aparece num diálogo entre o sírio – dono das madeiras – e pauzeiros
doentes, o próprio Herberto Sales, como personagem, en passant em um dos
primeiros assomos “concretos” da presença memorialista do autor:
- Eu disse que vou trazer um remédio bom. Que diabo! Se vocês
não melhorarem, na semana que vem eu levo todos quatro pra
tratarem essas enfermidades na farmácia, com Seu Betinho.
Ele deu jeito nas feridas de Pernambuco e de Ananias. Mas vejam
lá, hein? Não quero saber de choradeira na hora de acertarem
contas comigo! (131) (grifo meu)
66
O escritor, conhecido em toda a cidade na época em que morava em Andaraí
pelo apelido de Betinho, e então ajudante na farmácia “Esperança” do pai, sentiu
necessidade de deixar sua marca memorialista num romance que aparentemente
flui sem a presença do autor. Sua pessoa biográfica dissemina-se nas entrelinhas e
mostra-se “despistada” ou não. O próprio Herberto, no livro de memórias, ratifica
essas “presenças”:
... Creio que em Cascalho um Betinho que perpassa pelo
romance e que não é outro senão eu, usando o apelido que me
puseram em casa e pelo qual eu era conhecido na minha cidade natal.
No Além dos marimbus o mesmo Betinho é referido en passant, e
logicamente ainda sou eu. (...)
85
Em outra passagem de suas confissões, o autor volta a falar de Além dos
Marimbus e de sua pessoa enquanto personagem que se desdobra:
E nessa personagem [Jenner] talvez haja também um pouco de mim,
por conta das reminiscências de minha viagem às matas [de Andaraí].
Eu estava escrevendo a travessia dos marimbus, por onde começa o
romance, e na personagem central no meio do pântano, com a noite
chegando, eu via menos Milton [amigo que o inspirou na criação de
Jenner] que eu próprio, quando fui com o meu primo Paulo à Lagoa
Encantada.
86
O escritor sabe dessas transfigurações nas quais a criação literária porventura
faz de si. Seus fantasmas e vivências coabitam a criação, porém o estado de
fabulação o eleva a outras dimensões. Como sugere Deleuze, o romancista é
“alguém que se torna”
87
, um vidente, pois que ultrapassa, excede esses momentos
meramente pessoais. Ao tornar-se, transfigura-se, e o que viu e o que vivenciou
85
SALES, Herberto. Subsidiário 1, pp.246-247.
86
Idem, p. 111.
87
DELEUZE, Gilles & GUATTARI. Percepto, Afecto e Conceito. In: _________. O que é a Filosofia?,
p.222-223.
67
paisagens e misérias - é filtrado numa visão “de dentro” – esta que vê o essencial, o
cerne da natureza humana, numa espécie de introspecção compassiva de todas as
solidões:
E era estranho ver todos aqueles homens em volta do caminhão,
subitamente calados, como se lhes houvessem suprimido a faculdade
de convívio. Em torno deles, o rio escuro, no seu fluir
adormecido, criava uma impressão de solidão total,
fundindo-os e confundindo-os numa espécie de sensação de
retraimento e ausência. As águas ladeavam o barranco à direita,
numa curva da mata, e iam desaparecer adiante, costeando um hirto
paredão. E daquele fundo enconchamento, onde o rio parecia ter fim,
desprendia-se um como pressentimento de mistério, sugerindo um
perigo oculto e indeterminado. (138) (grifo meu)
Essa “visão de dentro”, que possibilita ser o autor “alguém que se torna”, bem
está ilustrada na passagem do livro na qual ficamos sabendo que Jenner
personagem pouco esquadrinhado psicologicamente nos tempos de estudante”
ajudara na impressão de um jornal chamado “O Reportário”:
... Decidido, rasgou a primeira fórmula e escreveu numa
segunda, em letra de imprensa, com a mesma habilidade
dos seus tempos de estudante, quando ajudava a fazer o
pequeno jornal manuscrito O Reportório (sic) (...) (150) (grifo,
em negrito, meu)
É numa entrevista concedida por Herberto Sales que também tomamos
conhecimento de um jornal com nome “O Reportário”:
De 1930 a 1932, fui aluno no velho Colégio Antônio Vieira, no Portão
da Piedade, e não tive nenhum colega que se interessasse por
literatura. (...) Contudo, fiz com alguns colegas dois
jornaizinhos manuscritos: O Reportário, cujo título me parece
68
hoje rebarbativo, e O Nariz. Ambos duraram apenas alguns
números.
88
(grifo meu)
No SubsiDiário, quando o autor faz a revisão de Além dos Marimbus para possíveis
edições posteriores, encontramos a seguinte nota:
Página 150: 1
º
parágrafo, última linha, saiu errado o nome do
jornalzinho do colégio, assim: O Reportório”. Corrigir para: “O
Reportário”. A razão é muito especial: é que esse nome – O Reportário
era mesmo o nome do jornal manuscrito que o romancista fazia no
internato do Colégio Antônio Vieira, na Bahia, com um seu colega
chamado Alberto Serra-Vale. (...) O jornalzinho do colégio nada
tem que ver com o romance, nem a personagem que o fazia
no seu tempo de colégio tem que ver com o romancista.
Nada mais é que uma reminiscência talvez sentimental dos
tempos de estudante do autor.
89
(grifo meu)
A nota acima é ilustrativa dos meandros que envolvem a criação literária e a
“transmutação” do autor, seus devires, suas transfigurações. Se o crítico é um
detetive, um “decifrador de oráculos”, o escritor, por sua vez, não deixa de ser “um
delinqüente” que tenta apagar suas pegadas, cifrando seus “crimes”.
90
O leitor-
crítico não fica imune aos rastros deixados pelo escritor, no intuito de descobrir o
homem por trás do romancista. O autor é apenas o homem que se torna, vidente
que é, “perdido” em meio ao discurso romanesco, como bem sugere Roland Barthes
em O Prazer do Texto. Diz o semiólogo francês que o escritor, enquanto identidade,
nunca está, como um demiurgo em potencial, atrás do texto, mas perdido, cifrado
no meio dele.
91
Por isso o romancista é o ator que codifica seus diversos rostos a
fim talvez de ser ou não encontrado. O autor faz de si mesmo uma fabulação, um
desmonte e um mosaico de existências. Como o próprio Herberto cifrou, aqui no
88
SALES, Herberto. Depoimento Pessoal. In: ALVES, Ivia. Herberto Sales – Biografia, p. 91.
89
SALES, Herberto. Subsidiário 1, p. 511.
90
PIGLIA, Ricardo. A Leitura da Ficção. In: __________. O Laboratório do Escritor, p. 72.
91
BARTHES, Roland. O Prazer do Texto, p. 38.
69
Além dos Marimbus, em um de seus múltiplos e distintos rostos, o juvenil que
escrevia o jornalzinho “O Reportário”.
Seguindo seu curso
A história continua, fluida e serena, assim como o Rio Santo Antônio,
seguindo seu rumo “como adormecido ao sol”, “imperceptível, num deslizar
sinuoso e denso.” Diferentemente das margens suprimidas dos marimbus, o rio ali
“se espraiava livremente”, e a história vai prosseguindo na sua concepção de
narrativa de viagem, serena e sem atavios. Encontramos descrições poéticas nas
quais tema e forma estão alinhados num ritmo, como na visualização
caleidoscópica da viagem de trem feita por Jenner assim que saíra de Andaraí a fim
de acertar a compra da fazenda:
E se foi o trem. Em Queimadinhas, estação seguinte, houve a
costumeira baldeação. Jenner transferiu-se para a composição vinda
de Contendas, muito maior que a outra. (...) Daí por diante, com
almoço em Sítio Novo, pelo dia fora um suceder de estações: paradas
e partidas, embarques, desembarques, e o trem sacolejando,
apitando, fumegando, gente entrando e saindo, guarda-pós
empoeirando-se, guarda-freios trabalhando, e o chefe
picotando, de alicate, os bilhetes, e volta e meia surgiam, e
para trás iam ficando, plantações, pontilhões, riachos e
casebres, vilas e cidades, a caixa-d’água de Tapera, o Buraco
do Inferno, e o dia terminando, até que, de repente, de
noite, o trem foi reduzindo lentamente a marcha, apitou,
começou a guinchar nos trilhos, para, devagar, bem
devagar, cada vez mais devagar, até parar de todo, entrar no
pátio do edifício iluminado e enorme da estação de São
Félix. (171-172) (grifo meu)
70
Traduzindo perfeito equilíbrio na combinação dos períodos curtos e longos (como
no trecho acima),
92
a narrativa prossegue num fluir ritmado, medido
simetricamente, linguagem e acontecimentos, forma e tema, até irromper, no
seu final, quando finalmente Jenner irá selar o contrato de compra da fazenda, o
insuspeitado. A atmosfera de tensão se avizinha, e o dramático até então convivido
em compasso lento, de viagem, emerge, lentamente, irrompendo à maneira
incisiva de Cascalho.
..............................
E Azevedo [amigo de Jenner, mediador da compra da fazenda]
levantando-se:
- Vamos Barreto. Severino [o tabelião] deve estar estranhando
nossa demora.
Dr. Barreto [o dono da fazenda], entretanto, permaneceu sentado, sem
tirar os olhos do salto do sapato. A voz tomou-se-lhe sumida:
- Falei com o Sr. Robertoni... Mas ele deu mais trinta.
Jenner empalideceu:
- Como?
- Mais trinta. Quer dizer... Em vez de cento e cinqüenta, ele dá cento
e oitenta.
- E você aceitou? – perguntou Azevedo, numa perturbação.
- Fiquei de falar com o Sr. Jenner. A preferência, em igualdade de
condições, continua a ser dele.
O gerente sentou-se de novo, dir-se-ia que para não cair, tal o espanto
que lhe causou a resposta do médico:
- Você está maluco, Barreto?
(...)
- Eu lhe explico, Azevedo disse Dr. Barreto, numa obstinação,
evitando sempre o olhar de Jenner. O São Marcelo é a única
propriedade que eu possuo. Meu pai, se fosse vivo, não a venderia por
dinheiro nenhum. E que eu vou me desfazer dela, é natural que
procure obter o melhor preço. Fique certo de uma coisa: por cento e
oitenta contos, ela está sendo vendida barato. Não quero criar
92
Aurélio Buarque de Hollanda ressalta este ponto. In: op. Cit.
71
dificuldades ao Sr. Jenner. A preferência continua sendo dele. Espero,
porém, que ele compreenda a minha situação.
Foi quando um grito cortou o ar:
- Canalha!
E Jenner, num impulso, sem que Azevedo tivesse tempo de o
deter, avançou contra Dr. Barreto, repetindo enfurecido:
- Canalha!
Mas o desabafar daquele insulto não lhe satisfazia. Foi além.
Segurou repentinamente o médico, lançando-lhe ao peito da
camisa a mão em garra, e tamanha violência empregou no
gesto que saltaram botões a dois metros de distância. E, mal
o gerente, refeito do choque, tentava interceder, viu-o sacar
o revólver com a mão direita, enquanto mantinha subjugado
Dr. Barreto.
- Canalha! – continuava a gritar. – Vou lhe meter uma bala
na boca, pra você aprender a ter palavra. (...) (180-181)
(grifo meu)
A dramaticidade, marca herbertiana, ganha pulso e Dr. Barreto, figura “sub-
reptícia”,
93
cedendo ao revólver de Jenner, efetiva finalmente a venda da fazenda
pelo preço antes combinado. O rio volta a correr o seu curso, e a narrativa termina
permanecendo em aberto, inacabada, agora com o novo destino que Jenner tem à
sua frente:
- Dentro de dez dias estou passando por aqui de novo, com os meus
caminhões para Andaraí disse Jenner, ao fechar a porta do
carro. – Quero começar logo a tirar madeira. Até a volta!
Azevedo acenou-lhe com a mão:
- Até a volta!
E, vendo ressurgir o entusiasmo daqueles conhecidos planos do
amigo, assunto das primeiras conversas com Dr. Barreto, quis dizer
ainda uma palavra, mas teve de gritar, pois o automóvel se punha
em movimento:
- Boa sorte, Jenner! (184)
72
A narrativa termina inacabada. Essa a característica básica do romance,
segundo Mikhail Bahthin,
94
incita-me a confabulações de leitura, interpelações, e a
perspectiva de pensar que tal incabamento sugere a despedida e o eterno retorno:
enquanto pessoa biográfica, Herberto Sales foi embora de sua terra, mas, como o
personagem Jenner, voltará sempre, a fim de extrair suas mais profundas
riquezas. A exploração aqui percorre outros vieses - aqueles da memória mítica,
que desafia os incessantes devires de um tempo datado e que incorpora o narrador
– e o leitor – na transmissão de experiências vividas e inventadas:
... O Andaraí que hoje está é uma cidade brasileira igual a qualquer
outra cidade brasileira, todo mundo de jeans e tênis, garimpeiro
dançando rock em discoteca. Meu Andaraí é outro. Meu Andaraí
eu carrego comigo. Carrego dentro de mim. Com os meus
mortos e com os marimbus do meu romance.
95
(Grifo meu)
Ricardo Ramos afirma que o Além dos Marimbus nos diz do “artista
consciente, do artesão que pôde concluir uma obra séria, bela, útil”. E ratifica:
“Séria no sentido, bela na forma, útil nos caminhos que aplainam questões velhas,
indicam saídas, e também envolvem o leitor em malhas de humana comoção”.
96
Talvez nessas observações esteja uma possível “receita” do que se traduz, numa
obra telúrica, classificada de regionalista, a universalidade: um certo “quê” de
cumplicidade e indagação com o humano, aliado ao pleno domínio da linguagem
literária.
afirmou Machado de Assis que “o que se deve exigir do escritor antes de
tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país”
97
93
PEREIRA, Armindo. Herberto Sales. In: __________. Julgamento de Valores, p. 165.
94
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética. A teoria do romance. São Paulo: Unesp, 1988.
95
SALES, Herberto. Subsidiário 1, p. 120.
96
RAMOS, Ricardo. Op. Cit.
97
ASSIS, Machado de. Crítica Literária. São Paulo: W.M.Jackson, 1955, v. 29, p. 135.
73
conceito “sutil” daquilo que chamaríamos de literatura nacional.
98
Sentimento
íntimo que produziu nos dois primeiros romances de Herberto Sales a recorrência
à terra, romancista que foi de seu tempo, para a seguir expandir-se com sutileza
por outros destinos, sem, entretanto, jamais livrar-se das imposições imagéticas da
memória, forças telúricas que o perseguirão sempre, de muitas maneiras.
98
Cf. nesse sentido, TENÓRIO VIEIRA, Anco Márcio. Gilberto Freyre, leitor de Machado de Assis. In:
DANTAS, Elisalva Madruga e MUNIZ DE BRITO (Orgs.). Interpenetrações do Brasil. Encontros e
desencontros. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2002.
74
CAPÍTULO SEGUNDO:
DADOS BIOGRÁFICOS DO FINADO MARCELINO
e
NA RELVA DA TUA LEMBRANÇA:
A MEMÓRIA DA SOLIDÃO
“... A ficção dá olhos ao narrador horrorizado. Olhos
para ver e para chorar.” (Paul Ricoeur: Tempo e narrativa
III, p. 327)
Tons e semitons da solidão: Dados Biográficos do Finado
Marcelino
... É possível que eu, involuntariamente, porque estava na verdade
tratando do problema da decadência do meu tio, (...), eu estivesse
fazendo, sem querer, o romance da velhice, ou da solidão do homem.
(Herberto Sales, falando sobre os Dados biográficos..., em entrevista
99
)
99
SALES, Herberto. Eu, Herberto Sales, p. 44.
75
Um “estudo de alma”
Em Dados Biográficos do Finado Marcelino (1965), terceiro romance de
Herberto Sales, o retorno mítico à terra continua. Porém, tal retorno, entremeado
por um sentido psicológico profundo da alma humana, tem como locus não mais
sua pequena Andaraí, mas a cidade grande: Salvador. O caminho ainda é o da
memória na juventude o escritor foi concluir os estudos na capital, e este livro
“registra”, quase que de maneira autobiográfica, essa fase da vida do escritor,
intermediada pelas lembranças telúricas. Quando da publicação do livro, muitos
críticos apontaram uma nova vertente na obra de Herberto: a urbana, negada
veementemente por ele, pois que muito mais que urbano, o romance é mesmo
resultado dos estranhos chamados da memória:
... O livro foi publicado, e as pessoas que vinham acompanhando meu
trabalho, registraram uma mudança na linha da minha ficção,
enveredando por uma literatura urbana. Na verdade o livro é um
romance urbano. Mas eu não pensei deliberadamente nisso. Fiz aquele
romance pensando em meu tio, e o fato de ser um romance urbano foi
em decorrência dessa idéia, desse impulso que eu tive.
100
(...)
Esse romance foi também denominado pela crítica de “literatura
penumbrista”, herança machadiana de uma narrativa que se delineia em semitons,
sem um enredo ostensivo, com nuanças de uma irônica e melancólica ternura. Uma
narrativa que, “como num velho retrato velho de um defunto”, percebe-se mais que
“meios-tons”
101
: as palavras que ali estão dizem menos e mais que elas algo se
esconde, se retrai, deixando-nos vestígios nos matizes claro-escuro de suas fendas.
Marcado pelo memorialismo e ao mesmo tempo pelo desaparecimento de seu
autor, Dados Biográficos do Finado Marcelino, diferentemente dos dois primeiros
100
Idem, 43.
101
Essa é a definição do próprio Herberto para tal livro. In: SALES, Herberto. Subsidiário 1, p. 516.
76
romances, é uma narrativa escrita em primeira pessoa, na qual o narrador-
personagem é um sobrinho curioso de conhecer a vida de um tio falecido, e, para
tal, serve-se da reconstituição de um passado - que envolve não a sua infância,
pois nessa época morou com o tio, assim como o contexto social - , a partir de suas
lembranças pessoais, documentos deixados pelo morto e depoimentos de amigos.
Percebe-se a pulverização das fronteiras do vivido e do ficcional o romance, mais
do que autobiográfico, e o próprio autor assim o confirma, é um “estudo de
alma”
102
, a tentativa de conhecimento da vida de uma pessoa a partir da construção
romanesca. Aqui as múltiplas verdades soçobram o biográfico: a tentativa de se
fixar uma vida é escorregadia, autor e personagem desaparecem, e ficamos a buscar
nós mesmos nesse vazio de presenças.
Para compor a vida do finado Marcelino, o autor situa o romance em três
planos simultâneos: as lembranças do passado juvenil evocadas pelo narrador-
personagem, o momento atual, no qual, adulto, tenta catalogar tais lembranças, e o
depoimento dos amigos do tio. Nesse ínterim, é focalizada a decadência da
sociedade burguesa baiana (década de 30) e o surgimento de novas maneiras de
viver, a partir do desenvolvimento industrial.
O narrador-personagem é prosaico, um homem comum que, numa certa fase
de sua vida, incita-o a curiosidade por conhecer a vida de um tio milionário e
aristocrata com quem viveu um tempo, em Salvador, ao sair de Andaraí a fim de
continuar os estudos na Capital. As primeiras linhas do romance são
eminentemente memorialistas, pois o narrador situa-se no passado a fim de contar
suas primeiras percepções diante dessa nova realidade que se iniciava.
Andava pelos treze anos quando conheci meu tio Marcelino: era a
primeira vez que eu ia a Salvador. Três dias antes deixara Andaraí,
minha terra natal, em companhia de um comprador de diamantes, o
Sr. Gumercindo, velho amigo de meu pai. A viagem enchera-me o
coração de alvoroço: ia conhecer a Capital. (...) Os encantos da viagem,
102
SALES, Herberto. In: A Tarde Cultural, 5/10/1996, p. 8.
77
as emoções de tantas descobertas por ela proporcionadas o trem, o
desfilar de estações com tabuleiros de doces na plataforma, o navio
lançando na madrugada o seu apito rouco, os vendedores a
barafustarem aos gritos pelos convés, pouco antes da foz do rio, onde
as águas mudavam de cor, surgindo então o mar, e depois o recorte da
grande cidade encarapitada além do cais tudo se converteu de
pronto numa funda saudade familiar. (...) (7)
A vida do narrador é percebida nos recônditos familiares das reminiscências e
de suas perplexidades, nas evocações nascidas a partir das notações desse primeiro
contato com uma vida nova.
... Por que seria que meu pai não viera comigo? Quanto a
mamãe, nada de estranhável na sua ausência. Embora ela me fizesse
ali grande falta, eu a desculpava por não me haver acompanhado.
Habituara-me desde cedo a vê-la confinada em casa, no velho sobrado
de janelas abertas sobre as fruteiras do quintal, entregue aos afazeres
domésticos as costuras, os cuidados com a horta, os bolos e
biscoitos, que nunca faltavam no armário da despensa. (...) (7)
... As vitrinas das casas comerciais enchiam-me a vista, de relance, e
desorientavam-me, multiplicadas ao longo das ruas cheias de gente:
eu mal sabia para onde olhar. E esse aturdimento, fazendo parecer
mais complicado o trajeto, incutia-me uma idéia parva: sentia-me
incapaz de aprender algum dia a andar sozinho por ali.
Outra coisa: tendo vivido até então numa pequena cidade do
interior, onde todas as pessoas se conheciam, também me sentia
atordoado por andar no meio daquela multidão de estranhos. (...) (11)
(grifo meu)
É na tentativa de composição da vida do tio que o narrador-personagem reconstitui
o seu passado, como a tentar delinear uma autobiografia entrelaçada à biografia de
Marcelino, em decorrência talvez de ambos coabitaram juntos determinado tempo
e espaço. Desse modo, um estudo de almas se esboça.
78
A casa
A memória do narrador é um vitral, e seus fragmentos vão se estreitando à
história quando finalmente o menino de sua lembrança chega ao palacete do tio.
Esta chegada acontece como arremate do final do primeiro capítulo, a nos
sugerir que ali a casa está o eixo central da narrativa. Do passado, o olhar do
menino emerge diante dela tal qual diante de si mesmo:
... Pouco depois chegávamos ao palacete da esquina, com o seu jardim
sombrio, onde as palmeiras se abriam em renques baixos e espessos.
(...) Tia Edite levou-me através do jardim. Ouvia-se, entre as
palmeiras, numa sensação de umidade e frescura, um ruído de água
esguichando. Foi assim que eu cheguei à casa de tio Marcelino,
naquela tarde distante, tendo pela frente uma vida que não era a
mesma de Andaraí. (15) (grifo meu)
Espaço físico da memória a casa ganha na narrativa um lugar especial, pois que foi
a partir dela que o romance nasceu. Conta-nos Herberto Sales que, após muitos
anos sem visitar Salvador, num eventual passeio pela cidade deparou-se com as
ruínas do palacete do tio Araújo, aristocrata milionário que o hospedara por algum
tempo na adolescência:
... Um dia, muitos anos depois, fui a Salvador, não me lembro a
pretexto de que, foi uma viagem rápida que eu fiz, talvez de passagem,
e um cunhado meu, que queria me mostrar o progresso da Bahia, me
botou no automóvel dele pra passear e rodar pela cidade. De repente
nós passamos numa rua que eu reconheci em que meu tio morara.
Aquilo me recolocou de súbito no passado, trouxe um pouco da minha
infância. De repente, pedi que parasse o carro, porque vi a
casa, em ruínas, aquele jardim maravilhoso que eu
conheci com a sua plantação de palmeiras, tudo
abandonado, as janelas com os vidros partidos, enfim, uma
79
casa que estava em princípio de ruína. (...) Eu pedi que
parassem o carro, desci, fui até o portão, empurrei, estava fechado,
todo enferrujado. E eu me vi de repente colocado diante
daquela casa, que veio do passado com um impacto
tremendo sobre a minha sensibilidade. Eu saí dali
impressionado com aquilo, e a partir daquele momento comecei a
pensar no meu tio. (...)
103
(grifos meus)
Tal como o autor, o narrador também se depara com a casa. adulto, no
intento de pesquisar a vida do tio, pede a um amigo seu que fotografe o palacete.
Após trinta anos de ausência, o que encontram é um cenário de decadência e
solidão, e dele um reencontro com o passado:
Estranhamente, toda a Avenida Bastos ficara à margem das
remodelações operadas no bairro, em outras ruas por onde eu passara.
As casas eram as mesmas. Porém não se desprendia delas a
vida de outros tempos, nem delas se irradiava o conchego daqueles
recessos familiares tão solidamente organizados: não havia ali
aquele ar de prosperidade burguesa, feito de uma paz, de uma ordem,
de um esmero que me tinha sugerido antigamente como a sensação de
uma felicidade definitiva. Agora o mato crescia nas calçadas. E
sobre os gastos paralelepípedos da rua o vento espalhava
pedaços de papel. Tudo me surgia num cenário lúgubre,
tocado daquele secreto halo de mistério das casas antigas,
que infunde, sob as marcas da decadência, um surdo e turvo
apelo de lembranças e evocações. Enfim, ali eu me reencontrava
com o passado. (19-20) (grifos meus)
A casa está guardada em nós como uma das imagens da intimidade, diz
Bachelard. “Topografia de nosso ser íntimo”, morada de nossos passados, é nela
que guardamos as nossas lembranças e também nossos esquecimentos.
104
Por isso
103
SALES, Herberto.Eu, Herberto Sales, pp. 41-42.
104
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço, pp. 19-20.
105
SALES, Herberto. Subsidiário 1. Pp.122-123.
80
é que, diante do palacete em ruínas, autor e narrador estão tão próximos e nutrem
a mesma sensação. Herberto Sales conta-nos o que sentiu, durante o seu passeio
por Salvador, ao se deparar com a antiga casa:
... Como se estivesse à minha espera, estava a velha casa, que no
entanto não era a mesma que um dia me abrigou quando
menino. Janelas com vidros quebrados. O mato cobrindo o jardim.
Desci do carro, sacudi o portão de ferro do jardim, na curiosa
esperança de entrar. Quem sabe havia ali algum vigia, que
pudesse me mostrar por dentro a casa? Não havia ninguém.
O portão de ferro estava fechado com um cadeado. Olhei e
reolhei a casa, pensando em meu tio. E, conquanto morto ele
estivesse, e já estivesse tudo ali acabado, senti que qualquer coisa
havia ali que não se acabara de todo.
105
(grifos meus)
O narrador “reitera”:
Aproximei-me da grade do jardim, tentei abrir o portão que
trinta anos antes, em companhia de Passos, transpusera pela primeira
vez. Um grande cadeado, com uma corrente em volta, fechava-o. Já
não havia a sineta de outros tempos. Em vez daquele vivo badalar que
ressoava por entre os renques de palmeiras, tudo quanto ouvi foi um
ruído de velhos e emperrados ferros a reboar no pátio ermo. Por um
momento, pensei em bater nas janelas, chamar por alguém
que eu não sabia quem fosse, mas desisti. Tudo era bastante
claro: não morava ninguém ali. E aquele portão de ferro,
tão solidamente acorrentado, que eu em vão sacudia, tentando abri-lo,
estava como a separar-me de um mundo para sempre perdido. (20)
(grifos meus)
81
Na fusão de identidades, o autor se dissolve por completo na figura do
narrador
106
, elastece sua biografia esta “de papel”
107
sujeita às encenações do
imaginário. A casa, a narrativa, espaços que retêm o tempo,
108
guardam seus
rastros.
O “retorno do morto”
Assim como no romance se deu com o narrador a necessidade de fotografar o
palacete a fim de reconstituir o passado do tio, para o autor também foi premente a
visualização da casa, no seu estado de ruínas, perante a consecução da obra:
... Eu cheguei ao Rio de Janeiro e comecei a ser perseguido por uma
idéia repentina de escrever um livro em que eu procurasse
reconstituir a figura dele dentro daquela atmosfera e daquela moldura
social baiana em que viveu. Mas eu sentia necessidade de
visualizar melhor a casa, pois a casa teria no livro uma
importância muito grande, como de fato tem. Então pedi ao
Luiz Carlos Barreto, conhecido produtor cinematográfico, então meu
colega do Cruzeiro e meu amigo, que vinha à Bahia naquela semana,
que fizesse as fotografias da casa. (...) Ele foi, e quando voltou tinha
trazido um material belíssimo, que eu guardo comigo até hoje. Está
aquela casa, falando a linguagem do passado, um negócio
tão evocativo. (...) Eu pegava aquelas fotografias, espalhava
em cima de uma mesa, olhava, e ia aos poucos
reconstituindo, em função delas, a casa e a própria época
em que viveu meu tio, e, sobretudo, a época em que vivi
naquela casa. (...)
109
(grifos meus)
O palacete corria o risco de total desaparecimento, por isso o narrador pede a
seu amigo Alcebíades que a fotografe, a fim de que tal retrato possibilite aclarar
“certos pontos” da vida do tio.
106
BRUNO, Haroldo. Posfácio. In: SALES, Herberto. Dados biográficos do finado Marcelino, p. 153.
107
Autor como “ser de papel”. Ver BARTHES, Roland. S/Z, p. 228.
108
BACHELARD, Gaston. Op. Cit., p. 28: “... Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo.
109
SALES, Herberto. Eu, Herberto Sales, p.42.
82
Tenho sob os olhos as fotografias que o neto de Pessanha
fez da casa de meu tio. coisa de um ano, curioso da história
desse meu falecido parente, veio-me a idéia de recolher algumas
informações sobre ele. Muitos fatos referidos por minha família,
quando eu era rapaz, se me apresentavam incompletos, confusos,
entre as lembranças que dele guardei. E eu tinha um sincero
interesse em aclarar certos pontos de sua vida. (...)
(17) (grifos meus)
Afirma Herberto que, “tal como o narrador no romance”, a partir das
fotografias tudo foi se reconstituindo no tempo, a figura do tio “foi-se movendo na
casa” descrita, “e a casa foi ganhando uma alma”
110
. Todas as fotografias trazem
algo de terrível, o “retorno do morto”, diz-nos Roland Barthes.
111
A palavra
espectro (Spectrum) tem em sua raiz uma relação com o “espetáculo”
112
: aqui o
morto ressurge, volta, quase se desvenda. As fotografias do palacete de tio
Marcelino trazem-no de volta para dentro da casa e, mais, para dentro da
narrativa:
Reexamino as fotografias tiradas naquela tarde. Espalho-as sobre a
mesa. E como me parece estranho ver emergir delas, das ampliações
feitas com tanto apuro, a que o reluzir das pias nítidas dá um ar tão
fortemente novo, todos estes envelhecidos rostos do passado!(...) (22)
As imagens estáticas do passado ganham movimentos na memória: as
fotografias são acrescidas de um sentimento vivificador. Ao real que as imagens nas
110
SALES, Herberto. Subsidiário 1, p. 124.
111
BARTHES, Roland. A Câmara Clara, p. 20.
112
Idem.
83
fotos comprovam alia-se a sensação de algo para sempre vivo, eterno,
113
por isso
delas emerge o que a memória resguardou. Mantendo o sonho [a imaginação] na
memória, a casa perdida na noite dos tempos sai da sombra, parte por parte”,
afirmara Bachelard.
114
E é na visibilidade onírica que se fundem fotografias e
lembranças - pincéis que reconstituirão um tempo que não está de todo perdido, e
que ora se refaz inteiro na transposição abaixo, absolutamente necessária:
...E essas lembranças fundem-se nas imagens fotográficas, e
umas e outras de tal forma se confundem que, entre o ver a
casa e o recordá-la ela se recompõe intacta à minha vista.
O oitão, enegrecido e descascado, refaz-se todo em sua larga
superfície, e cobre-se daquele tom cinza-claro da pintura original, que
na fachada vai contrastar com o branco imaculado das colunas. As
janelas, notadamente as do quarto do meu tio, no segundo andar, de
caixilhos meio despregados, restauram-se, íntegras, clareadas numa
tonalidade de tinta nova; e os seus vidros partidos reconstituem-se nas
lâminas de fino chamalote, cintilando inteiros nos vãos das armações.
O palmeiral se restabelece pleno, numa densa linha de leques
longamente abertos por trás da grade do jardim, lanceolada e de ferro.
E eu me vejo novamente ali com tia Edite, andando por
entre as palmeiras farfalhantes, com um ruído de água a
esguichar perto, em qualquer parte daquele recanto
umbroso, no dia em que Passos me foi deixar na casa de
meu tio. (23-24) (grifos meus)
Entre o claro e o escuro
O morto retorna na fotografia que a linguagem constrói e na linguagem da
memória a se reconstruir. No mesmo sentido que autor e narrador são e não são a
mesma pessoa, haja vista a linguagem e outras “personas” os intermediando, a casa
113
Ibidem, p. 118.
84
também tem múltiplos rostos. Ali a fotografia em si (enquanto representação da
imagem do que existiu) é a consubstanciação da certeza – a linguagem que a
descreve não nos essa mesma estabilidade.
115
Tal instabilidade diante do que
aconteceu verdadeiramente é um dos mosaicos da própria memória: ela é em si
mesma ficcional, pois que as lembranças ganham contornos do que poderiam ter
sido.
O despistamento, na verdade, é o matiz desse romance: o autor se dissolveu
na figura do narrador pelo artifício da falsa confidência, aquilo que Barthes
chamou de “falso natural”.
116
Na estética do falso natural o narrador-personagem
é ingênuo, tanto que a narração ganha um estatuto de fluência e naturalidade que
a distingue da sofisticação e erudição do romancista.
117
E é nesse artifício, nesse
périplo de fingimentos, que se encontram os ltiplos segredos de tio Marcelino:
o narrador é e não é o autor, ambos se estreitam e se distanciam, e tio Marcelino –
o suposto biografado, desaparece a cada tentativa de ser conhecido. Permeado de
lugares-comuns, o estilo do narrador busca enaltecer a figura do tio, enquanto o
que coabita as entrelinhas é a sua desmitificação.
Assim, numa narrativa simétrica, com um ritmo regular, apesar dos vaivéns
temporais, a atmosfera de dubiedade está despistada em meio à pretensa
naturalidade do narrador que se trai quando sugerindo-nos que a figura do tio,
absorvida naquele ambiente, envolve mais mistérios que a sua irrestrita
admiração e ingenuidade embebe sempre suas descrições em tons claro e
escuro:
Tia Edite, que, muitos anos depois, bem idosa, eu iria ver
sepultarem em Andaraí, no pequeno cemitério da Piedade, levou-me
através do jardim. Era então uma mulher de seus quarenta anos,
114
BACHELARD, Gaston. Op. Cit., p. 71.
115
BARTHES, Roland. Op. Cit., p. 128: “Nenhum escrito pode me dar essa certeza [da existência, como foi].
O infortúnio (mas também, talvez, a volúpia) da linguagem é não poder autenticar-se a si mesma.”
116
BARTHES, Roland. O Grau Zero da Escritura.
117
SANTIAGO, Silviano. A bagaceira: fábula moralizante. In: _________. Uma Literatura nos Trópicos, p.
109.
85
severamente trajada de preto, mas com traços de uma beleza
ainda fresca, no rosto de talhe fino, cuja palidez os negros e bastos
cabelos em bandós acentuavam. Cruzamos a varanda dos fundos,
onde se enfileiravam palmeiras de menor porte, plantadas em vasos de
cerâmica, e entramos na sala de jantar, de que guardei uma impressão
de assombro. Era imensa, e, com a luz da tarde a filtrar-se
debilmente nas amplas cortinas das janelas, havia ali uma atmosfera
abafada de penumbra, que diluía os contornos dos grandes móveis
erectos sobre os tapetes, entre refrações de uns espelhos
alongados nas paredes. (24) (grifos meus)
Tais imagens crepusculares, matizes que escondem e revelam, devassam e turvam
o interior da casa, o interior da narrativa numa densidade de detalhes descritos:
Penetramos no extenso corredor, onde brilhava, ao fundo, a luz
amarela de um cabelabro, recortando os umbrais de uma série de
portas altas, entre as quais se alternavam, enristadas na parede,
arandelas de mangas de cristal. Tia Edite abriu uma das portas, e
introduziu-me num aposento imerso em semi-obscuridade: nada
divisei ali, a princípio. Logo, porém, ela adiantou-se, e descerrou de
golpe, com ruído, o pesado reposteiro que cobria a janela. Pelos
vidros foscos, subitamente destapados, jorrou então uma
claridade macia, tornando visível toda a peça. Surgiram a meus
olhos uns graves móveis de verniz escuro, dispostos em impecável
ordem (...) . (24) (grifos meus)
O texto é sinestésico, e, à maneira proustiana, a todo momento traz de volta o
passado: o narrador adulto transporta-se àquela lembrança antiga da chegada à
casa do tio, e o cheiro que a mala tresandava o acompanhará como fixação de
pessoas e vivências:
... e um cheiro diferente, suave mescla de sabonetes,
dentrifícios, brilhantinas e loções, num momento me
86
transportou ao quarto dela [de sua mãe], na lembrança arejada e
limpa do seu toucador, diante do qual muitas vezes a encontrara,
toalha ao ombro, penteando os cabelos depois do banho. (...)Ah,
aquele cheiro balsâmico de alfazema, tão evocativo, a
espalhar, pelo quarto severo, uma larga, generosa onda de frescor
vegetal! (...) E aquela fragrância purificadora, a exalar-se da mala que
eu trouxera de tão longe, veio recriar na distância, no ambiente
daquele aposento alheio, subitamente ungido de um reconforto de
recordações, toda uma atmosfera da intimidade de minha infância:
(...) (31) (grifos meus)
Tais acontecimentos são prenunciadores do que virá a seguir: finalmente o
sobrinho conhecerá o tio Marcelino. Trazia do tio apenas a imagem de um retrato
que ocupava a parede de sua casa em Andaraí, “pendendo da parede com realce,
por cima do piano, num caixilho dourado”...
... Sentado numa cadeira de bambu, ao lado de um consolo
ornado de uma jarra, chapéu de palhinha, bigode aparado,
terno de casimira clara, a cadeia do relógio atravessada
sobre o colete, mãos entrecruzando-se descansadas nas
coxas tio Marcelino me fita como na parede do sobrado:
triunfante e moço. (...) (33) (grifos meus)
As duas tonalidades claro e escuro se avivam enquanto temática quando o
narrador constata ao circunscrever no presente o que para sempre está morto
as perversidades do tempo:
118
... Mas uma surpresa me aguardava. Em vez daquela figura
portentosa, a erguer-se em sua glória viageira, sugerida pelos
ambientes de Paris, Londres, Roma, associados à idéia de requinte dos
grandes hotéis internacionais, onde campeavam os luxos da civilização
118
BARTHES, Roland. A Câmara Clara, p. 118: “... Pois a imobilidade da foto é como o resultado de uma
confusão perversa entre dois conceitos: o Real e o Vivo: ao atestar que o objeto foi real, ela induz sub-
repticiamente a acreditar que ele está vivo, por causa desse logro que nos faz atribuir ao Real um valor
absolutamente superior, como que eterno, mas ao deportar esse real para o passado (“isso foi”), ela sugere
que ele já está morto.”
87
encontrei um pobre homem de calças de brim
arregaçadas, a camisa entreaberta, pés metidos em grossos
chinelões de couro, os cabelos inteiramente brancos. Ali no
canto da varanda, entre vasos de barro e latas velhas,
curvado sobre uma peneira de arame, sessando uma terra
escura e grossa, a papada a descair-lhe, nada havia nele que
lembrasse o fino cavalheiro do retrato. (...) (grifo meu)(33)
Se nos sugere comum tão encontro, e o estado de tio Marcelino previsível, o que
prevalece mesmo estruturalmente na narrativa são os tons claro e escuro perante a
presença de acontecimentos antitéticos. Como prenúncio, inicialmente o
alumbramento do menino com as luzes elétricas dentro daquele ambiente
crepuscular se revela em nuanças impressionistas:
... De repente ouvi uns estalidos, e as lâmpadas cintilaram
aos pares, nos globos alinhados ao longo da varanda. Para
mim, pobre menino do interior, habituado ao lampião de querosene,
aos candeeiros laboriosamente acesos no velho sobrado de Andaraí,
(...) o jorro súbito daquelas luzes, sob os cliques de um interruptor
elétrico invisivelmente acionado, teve como o efeito de uma
deslumbrante mágica. A varanda pareceu-me então ainda mais
ampla; e no jardim, banhadas da iluminação forte, as
palmeiras ganharam uns relevos festivos, uns reflexos de
lâminas a moverem-se no ar, enfeixadas nos leques dos
renques farfalhantes. (...) (35-36) (grifos meus)
E tal qual as luzes elétricas incitando o alumbramento, o que ele a seguir surge
também como matiz de iluminação, aludindo-nos aos sentimentos contrários:
... Naquela noite, na expectativa de um reencontro com o rude,
fatigado homem da varanda, a cuja presença tia Edite me levara uma
hora antes que divisei eu ao entrar na sala? Em vez do tratador
de adubos, do bronco ancião da peneira de arame, a sugerir-
me, na sua canseira senil, a antevisão de um pobre velho
derreado na poltrona, em pijama, dormitando à espera do
88
alentador caldo de galinha da dieta que encontrei eu? Um
cavalheiro impecavelmente escanhoado e penteado, de pé, à
cabeceira da mesa, as mãos apoiadas no espaldar torneado e
alto de uma cadeira austríaca. (...) (grifo meu) (37-38)
Tio Marcelino se “traduz” em dois tons, e esse ritual se cumpre no dia-a-dia:
... O mais impressionante é que a cena iria reproduzir-se diariamente,
configurando, em sua singularidade, não só uma rotina de hábitos
caseiros, mas todo um ritual de normas invioláveis. Pela manhã, e à
tarde, estava o tio Marcelino na varanda dos fundos, em chinelos,
as calças arregaçadas, revolvendo com humildade os adubos de suas
palmeiras; à noitinha, moído daquele labor braçal, as mãos sujas de
terra, recolhia aos seus aposentos, nos altos do palacete. E quando
seria lícito vê-lo entregar-se ao repouso, nas regalias
daquela intimidade imperturbada, a acenar-lhe com o
pijama eis que ele ressurgia, enfatiotado, formal,
submetido aos rigores da mais esmerada toilette.
Preparava-se como se fosse sair. Mas, deixando o quarto,
não ia além da sala de jantar: todo aquele requinte de
elegância noturna se contentava do ato cotidiano e trivial de
ir para a mesa comer. (...) (grifos meus) (38)
O narrador-personagem encaminha suas interpretações daquele rigor protocolar
dos jantares por dois tons: inicialmente, o mais corriqueiro, consoante a sua
biografia prosaica (um mero revendedor de remédios que trabalha de cidade em
cidade):
... Só muito depois iria compreender que um motivo bem mais simples
os justificava: eu estava em presença de um homem civilizado e de
bom gosto. (...) (39)
E logo a seguir, a dubiedade ao conjecturar outras nuanças, aparentemente
anódinas:
89
... Pessanha, um dos seus amigos mais íntimos, e mais antigos, me fez
esta revelação espantosa: tio Marcelino nunca relaxou a etiqueta dos
jantares da casa da Avenida Bastos mesmo estando só! Às vezes
me ponho a imaginar esta cena, não isenta de um toque
fantasmagórico, a desenrolar-se ali no salão do palacete, no
cumprimento desse protocolo solitário, antes da chegada de tia Edite:
a grande mesa com castiçais acesos, e tio Marcelino sentado à
cabeceira, alquebrado, mas reposto na elegância tropical dos seus
ternos de palha de seda, a jantar sozinho, sem outra presença
humana à vista, além da copeira que em silêncio o servia.
(...) (39) (grifos meus)
E é nas fissuras da narrativa, nos seus entretons, que percebemos a largueza e a
complexidade das notações aparentemente óbvias do narrador, algo que está por
trás das palavras (e que pertence ao âmbito do autor), devassando as
ambigüidades da vida:
... Como poderia ter ele resistido ao isolamento daquelas noites,
quando, acometido da doença, não podendo sair, lhe restava
apenas recordar o passado, as viagens, os amigos de outros
tempos, e ele que me perdoe, mas por que não o dizer?
as amáveis companhias femininas, desfrutadas pelo mundo
afora, nas suas regalias de celibatário rico? (...) (39) (grifo
meu)
Entre o que foi uma vida e o que dela se transformou, resta ao narrador pontuar as
lacunas, revisitar as perguntas, mesmo que deseje encontrar as respostas mais
amenas, haja vista a irrestrita admiração pelo tio:
... Muita coisa ouvi contar sobre a doença que lhe turbou a mente.
Entretanto, pelo que testemunhei durante o nosso convívio,
nada me autoriza a pôr em dúvida a lucidez de sua memória.
90
Nem de outro modo se compreenderia que ele pudesse viver tão preso
ao passado, fiel a tantos dos seus hábitos mais antigos. E mesmo
as lembranças, as evocações, a ocorrerem-lhe nítidas, num
freqüente reavivar de suas venturas extintas, poderiam
diluir o tédio daquelas noites de solidão, oferecendo-lhe o
consolo de que soubera aproveitar bem a vida e, embora próximo do
fim, nela encontrar ainda motivos de prazer para os seus hábitos
refinados. (39-40) (grifos meus)
Porém, a seguir, o que está claro o que é luz, se turva, instalando de novo a
dubiedade. A penumbra guarda definitivamente os mistérios daquela casa:
119
Oh, como me lembro da mesa ricamente posta, a oferecer-me a
visão surpreendente dos castiçais de cristal arrumados em cima,
com velas acesas, sob as luzes profusas do grande
lampadário que pendia do teto! As flores, a toalha bordada, os
pratos de fina louça estrangeira, orlados de ouro, os guardanapos
imaculados, os talheres de prata tudo isso se apresentava ali numa
ordem grave e bela, que dava à sala um brilho vivo de recepção.
Com o tempo, entretanto, me ficou desse ambiente de gala uma
impressão melancólica. Sim: aquela sala radiosa me parece
agora como envolvida num abafado ar festivo, na impressão
de monotonia daqueles jantares a três. (40) (grifos meus)
Os entretons prosseguem, e um dos capítulos em que a descrição se torna
salutar a fim de tentarmos devassar, ou não, a pessoa de tio Marcelino é a
perscrutação que o narrador faz da biblioteca:
A primeira visão da biblioteca encheu-me de assombro. (...) Uma
sala espaçosa, com as paredes cobertas de alto a baixo de
estantes, no apainelado de uma armação de portas
corrediças, a cintilar na larga vidraçaria dos caixilhos e,
119
Disse Bachelard: “A casa primordial e oniricamente definitiva deve guardar sua penumbra.” In: ______.
Op. Cit., p. 32.
91
por trás delas, em rígidas enfiadas de encardenações, todo
um acervo colossal de obras. O soalho atapetado, a grande
cortina de dossel em bicões, as amplas bergères
adamascadas, estabeleciam uma grave harmonia com o
madeiramento escuro das estantes, e tudo isso dava ao
ambiente um tom de sisuda solidão. (...) 59) (grifo meu)
A figura do tio se resvala entre ambigugüidades livrescas, incertezas, esboçada por
testemunhos de amigos que mais obscurecem que aclaram tal personalidade:
... senti-me tardiamente curioso dos motivos da instalação
de tamanha livralhada no palacete. Costa Pereira, meu antigo
professor, era a pessoa mais indicada para me elucidar isso. (...) (grifo
meu) (59) (grifo meu)
Finalmente, quando lhe falei da biblioteca, da minha excitada
curiosidade em saber dos motivos da existência dela no palacete,
estranhando que meu tio, um homem de negócios, pudesse
ter vivido sob o cerco aterrador de tantos livros, Costa Pereira
tomou-se de um espanto sincero:
- Então, não sabe, meu rapaz?
E fulminou-me:
- Seu tio era um homem de instrução!
Alongou-se numa exaltada apreciação dos atributos de inteligência
de tio Marcelino, louvando-lhe a cultura e o saber, frutos de um
autodidatismo fecundo, que o levara inclusive ao estudo de alguns
idiomas estrangeiros, e depois ao domínio deles, no correr de suas
freqüentes viagens ao exterior. E o pobre Costa, erguendo as mãos,
envaidecia-se do amigo extinto:
- Um poliglota!
(...) (60) (grifos nossos)
Por outro lado, se os amigos do tio perante a quase transparência de seus
perfis parecem nada demonstrar de enigmático, revelam com profundidade a
92
complexa relação antitética das coisas que a própria vida se encarrega de dar: a
opulência, a juventude; e, num contraponto, a miséria e a decadência.
Sim: não me esqueci do Dr. Vilela. É como se ainda o estivesse
vendo, na casa de João Félix, e, depois, em inúmeras ocasiões, no
palacete de meu tio. É como se ainda o tivesse diante de mim: magro,
alto, os ternos muito justos, gravata borboleta, sapato
marrom e branco, a cabeleira impecavelmente penteada
uma figura de dandy, enfim, a mover entre os dedos,
enquanto conversava, a châtelaine de ouro. (...) Mudara, e
muito, o Vilela, a ponto de se tornar irreconhecível. Banira-lhe a
cabeleira uma avantajada e cruel calvície. A barba, por
fazer, eriçava-lhe de fios brancos as bochechas, que lhe
descaíam flácidas. Tudo nele era abandono, desleixo, no
ambiente desordenado daquele apartamento da Rua Carlos
Gomes, muito pequeno e escuro, onde então vivia. (...) (75-76)
(grifos meus)
E é em Pessanha, o amigo “campestre”, que o narrador deixa-nos perceber
com mais acuidade o melancólico humor; humor amargo e compassivo,
proveniente dos tons claro e escuro que emergem dos contrapontos que a vida
impõe quando antigos sonhos e cacoetes sobrevivem às vicissitudes:
... Ali estava o Pessanha, que era um deles. Evidentemente,
já não lembrava, nem de longe, o sólido e rubicundo homem
que eu conhecera em outros tempos, a agitar-se no palacete,
de chapéu-chile e paletó de alpaca, sobraçando uma grande
pasta, em suas visitas matinais a meu tio. Perdera aquele ar
desempenado e rijo que, outrora, ao alardear, em sua
obsessão ruralista, ter nascido para viver no campo, de peito
ao vento, empurrando a charrua, lhe assegurava
possibilidades inequívocas de o fazer com sucesso. (...)
93
... Quando D. Cordélia, sua esposa, nos servia o café, o bom Pessanha,
desarrolando um vidrinho que acompanhava a bandeja, bradou
inconformado:
- Suprema humilhação!
E lançando à xícara um comprimido retirado do vidrinho:
- Eu, homem do interior, nascido e criado no meio do
canavial, vendo fazer açúcar no engenho, estou agora,
no fim da vida, metido neste sobrado, tomando café
com sacarina! (...) Lembro-me como se fosse hoje. Eu e
meu pai, no alpendre da casa da fazenda, olhando os
tropeiros que passavam com os burros carregados de
açúcar. (...) A vida no campo é outra coisa. Na fazenda,
um homem da minha idade ainda está comendo
rapadura. (82-83) (grifo meu)
A desmitificação
... Mas, afinal, quem é tio Marcelino? Esta é a pergunta que nos sugere ecoar
por todo o romance, pois que o personagem escapa diante dos depoimentos de seus
amigos e da irrestrita admiração do sobrinho-narrador. E é nas camadas da
linguagem, nos seus entretons que perceberemos o quanto essa pergunta se tornará
cada vez mais complexa, escorregando por entre as páginas, se esgueirando diante
das reverências e louvores:
... Contou-me, por sinal, outro tio meu, o Sinhôzinho, ao traçar-me
um retrato irreverente e sumário do nosso comum parente, a
essa época, que tio Marcelino, sempre janota, andava pelos bilhares
e pelas casas de raparigas, a gastar o bom dinheiro do meu bisavô.
Não merecem crédito, porém, as palavras de tio Sinhôzinho,
homem bom, mas amigo do copo, que lhe azedava o estômago e a
alma, em dias de mais forte libação. Prefiro acreditar no que me
disse João Félix [amigo e sócio de Marcelino]:
94
- Marcelino nasceu para vôos altos. Vivia deslocado em Andaraí.
Não saiu antes de porque o velho Joaquim Martiniano nunca
deixou. (104-105) (grifos meus)
Os dados biográficos do finado Marcelino são frágeis, pulverizam sua própria
afirmação como personagem, e sua morte acontecerá nesse véu de sombra, tão
enigmática quanto a própria vida que viveu. Sob os olhos do narrador, futuro
adolescente, a morte do tio traduz as percepções agônicas de uma para sempre
tolhida ordem das coisas:
... Ao chegarmos ao palacete, havia alguns curiosos estacionados no
passeio; uma ambulância se afastava, branca e veloz. Não era, como as
atuais, provida de sirene. Fazia soar uma estridente campainha, a
pedir passagem, num alarido de urgência e desespero, amortecido aos
poucos na distância, entre o rumor dos bondes, no fim da rua. Ainda
com aquele agoniado toque a vibrar nos ouvidos,
atravessamos o jardim; e, ao aproximarmos-nos da varanda, senti
no ar, como a desprender-se das palmeiras, um cheiro abafado de
fumaça. Curioso, lancei os olhos ao recanto onde meu tio
habitualmente se entregava ao trato dos seus adubos, na idéia de
encontrá-lo ali. O que vi, entretanto, foram uns estranhos
sinais de desordem terra espalhada no chão, vasos quebrados, e
em meio aquilo uma peneira chamuscada. Sem dúvida, lavrara no
local um começo de incêndio, de que havia vestígios mais evidentes
num sacos de aniagem enegrecidos pelo fogo. (..). Ia pela casa uma
desolação. Havia como um vazio, a indicar, naquela
atmosfera pesada, de reposteiros e candelabros, a mudança,
o fim de alguma coisa imponderável. (...) (129) (grifos meus)
A ingenuidade do narrador na homenagem póstuma ao tio, devota-lhe, mais uma
vez, sua sincera admiração, com um tom pejado de sentimental prosaísmo:
95
... Mas as lágrimas que então me faltaram, vêm-me agora, não aos
olhos, mas ao coração, cristalizadas numa dor sincera, ao lembrar
como tio Marcelino, entre as palmeiras que lhe alegraram tanto a vida,
foi encontrar tão tragicamente a morte. (131)
Se a morte de tio Marcelino se deu em condições enigmáticas, o tom de
mistério permeia também o seu enterro. Dadas as suas relações de homem rico e
conhecido, seu velório e enterro transcorrem quase que vazios. É o próprio
narrador quem chama a atenção a esse contraponto, fazendo-nos crer mais uma
vez nas ambigüidades que traduzem o morto. Entretanto, em seguida desmitifica a
própria dubiedade, tentando convencer-nos das declarações mais amenas possíveis
em relação ao tio.
... Aliás, muitos anos mais tarde, quando a lembrança do velório e do
enterro me voltou à memória, na evocação daquelas presenças
escassas, tão em desacordo com a importância do morto, manifestei
ao Vilela a estranheza que isto me causava. E ele a desfez com
esta explicação plausível:
- Não podia ser de outro modo, dadas as circunstâncias em que
Marcelino morreu. Procuramos evitar que a morte dele se
tornasse logo conhecida. Tudo foi muito discreto. Afinal, ele não
haveria de querer que procedêssemos de maneira diferente.
E repetiu, concludente e incisivo:
- Não podia ser de outro modo. (133) (grifos meus)
É nesse jogo de sombra e luz que a morte de tio Marcelino não se esclarece, ao
contrário, ficará para sempre perdida nos segredos de tia Edite.
Sim: quem sabe se, tão distanciada do acidente, refeita da funda
impressão que ele lhe causara, tia Edite, se viva estivesse, não se
animaria a romper o silêncio que sobre ele guardara até a
morte? Contou-me mamãe que, em muitas ocasiões, lhe perguntara
em que circunstâncias se dera o acidente. Segundo dissera João Félix ,
96
em carta a meu pai, tio Marcelino, ao acender o cigarro, queimara o
pijama, que era de seda, e com facilidade se incendiara, sem dar-lhe
tempo a tirá-lo, ou simplesmente apagar o fogo. (...) Mamãe pedia
confirmação disso a tia Edite. Como podia Marcelino ter-se
descuidado tanto? Por que não gritara logo por alguém, para o
socorrer? Tia Edite estaria tão longe do local que não ouviria um grito
dele? E não havia por perto empregados? Tia Edite, no entanto,
respondia invariavelmente: “Prefiro não tocar nesse assunto. É muito
doloroso para mim”. E silenciava, como a fazer um grande mistério em
torno daquele fato. (...) (135)
Diante da curiosidade do narrador-personagem, de novo o claro e o escuro, os
sentimentos antitéticos: mesmo com o intuito de resguardar de impurezas a
memória do tio, o narrador nos a conhecer uma possível outra face de
Marcelino, narrada novamente por Sinhozinho, aquele outro tio “mais amigo do
copo que da verdade”, e que, por isso, suas palavras não “mereciam fé”:
... Deus me perdoe, e também tio Marcelino e tia Edite, mas o que eu
ouvi da maledicência daquele meu tio, uma tarde, no cartório, se é por
mim recordado agora, não o faço com outro intuito a não ser o de
expressar contra ele o meu repúdio e o meu horror. Pois não foi que
tio Sinhôzinho, visivelmente tocado, me contou que tia Edite, ao voltar
para Andaraí, se entregara à prática do baixo espiritismo? Promovia
sessões na Roça, às escondidas, com um pai-de-santo, para fazer
baixar o espírito de tio Marcelino, que sofria nas trevas, e
livrá-lo dos poderes do Diabo. E nessa escusa prática se
empenhara durante meses, até quebrar o pacto existente entre o
Diabo e meu tio, e dar-lhe, afinal, a paz de que ele necessitava, para
descanso da sua alma. (...) (156) (grifos meus)
Se a partir de tal história o sobrinho pode estar perto de uma provável
verdade sobre a vida e morte de Marcelino, essa é refutada, pois apegado à
97
memória do tio busca sempre preservá-la das “máculas”. A ambigüidade, assim, se
instala incisivamente e agora com as declarações mais “adjetivas” do narrador:
... E eu, com o pensamento voltado para o palacete, lembrando a
fidalguia e a generosidade de tio Marcelino, a sua finura de hábitos, o
seu conhecimento do mundo, a comporem a imagem de um perfeito
cavalheiro, inteligente, culto e viajado, não considerei, contudo,
maculada a sua memória pela palavra insana de tio Sinhôzinho. A sua
memória estava num plano muito alto para ser atingida por
aquela invencionice rasteira. E ele permanecia, na minha
lembrança, em toda a integridade do seu raro padrão
humano. (...) (137) (grifos meus)
Entretanto, depois de tantos encômios, o narrador esboça novamente suas
dúvidas, que podem ou não, nas entrelinhas, esclarecer a personalidade de alguém
tão esquivo à biografia.
... Confesso, no entanto, que de tudo aquilo me ficou uma dúvida. E a
dúvida era esta: seria verdade que tio Marcelino não gostava
realmente de meu pai? Estranhei, então, pela primeira vez, que meu
pai não fizesse de tio Marcelino, em vez de João Félix, meu
correspondente na Capital. Afinal, se João Félix era amigo de meu pai,
tio Marcelino era nosso parente. (...) (grifo meu) (137)
Porém, o narrador de novo busca rechaçar tais dúvidas após um
esclarecimento que vem resguardar a memória do tio, deixando-nos, a nós leitores,
muito mais ressabiados, pois que é nos interstícios da linguagem que tais
ambigüidades se desvelam:
... Somente meu pai poderia tirar-me aquela dúvida. E a ele recorri.
Quando lhe fiz a pergunta, que a mim mesmo fizera tantas vezes,
sobre os motivos da escolha do correspondente, meu pai me
respondeu com outra:
- Por que é que você está perguntando isso?
98
Aleguei simples curiosidade. E veio, finalmente, a resposta de meu
pai:
- Seu tio Marcelino era um homem que estava sempre viajando.
Como podia ele ser o seu correspondente? Por isso escolhi João
Félix. Dos dois, era quem lhe podia dar mais assistência.
Tudo me parecera tão simples que a explicação chegou a se
tornar ociosa. Nem sei mesmo como ela não me ocorrera de
pronto, tamanha era a sua evidência. (...) (137-138) (grifos
meus)
Tais ambigüidades chegam ao seu ápice quando, diante de uma confissão de
Vilela, surgem elementos novos na narrativa que poderão mais ocultar ou
desvendar o tio Marcelino; ou, ainda, deixá-lo para sempre entre o véu e a sombra,
entre a claridade e a penumbra.
- muita coisa estranha na morte de Marcelino observou-me
ele. – Realmente, tudo foi muito estranho. (...)
– Vou lhe dar a minha opinião – disse.
E deu:
- Para mim, o Marcelino matou-se.
- Não, não! reagi instintivamente, e com horror. Não é
possível! Não pode ser.
(...) (144-145) (grifo meu)
Se o suicídio em si já nos conduz a um labirinto de perguntas – o que Camus
considerou como o único problema filosófico “realmente sério”
120
–, os seus
preâmbulos muito mais que esclarecê-los nos conduzem a insondáveis
questionamento. É o que Vilela nos permite pensar quando nos golpeia com o
insólito de uma enigmática, densa e hesitante confissão:
120
CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo, p. 17.
99
- Vou contar-lhe uma coisa mais entranha ainda – disse ele.
Aliás, não contei isso a ninguém, até hoje. (...) Dois dias antes
do acidente, Marcelino me fez um pedido estranho. No
primeiro momento, pensei que fosse uma brincadeira dele. Mas
ele por tal forma insistiu, e falava-me com tanta seriedade, que
eu não tive como duvidar da sinceridade do pedido. (...)
- Você não imagina o que Marcelino me pediu disse,
afinal, andando de novo pela sala, as mãos para trás. Pediu-
me que, quando morresse, eu lhe dissesse ao ouvido uma frase. E
eu tive de dizer. No hospital, depois de o vestirem, aproveitei um
instante em que os outros amigos, afastados, choravam, e,
curvando-me sobre ele, como se o fosse beijar, disse-lhe ao
ouvido, em voz baixa, a frase que ele me pedira para dizer. Saí em
pranto, com o coração despedaçado.
(...)
Sentou-se, curvou-se, os braços apoiados no joelho:
- Você é capaz de não acreditar. A frase era terrivelmente
estranha, mas definidora do seu estado de espírito
naqueles dias que precederam o acidente.
Por fim, esfregando as mãos, num nervosismo, os olhos no chão,
Vilela aliviou-se do seu segredo:
- A frase era esta: “Está satisfeito, ó burro?” (146) (grifos
meus)
Imponderável, insólita, astuta e enigmática - como uma bofetada, a frase
nos leva a induzir aqui uma pergunta óbvia, a fim de nos desviarmos um pouco do
efeito que ela nos causa: será que a partir de agora, finalmente o sobrinho-narrador
se convencerá, na literalidade do texto, de quão complexa é a personalidade do tio?
É em tons ambíguos que essa resposta se insinua:
Abandonei, mais arrasado que ele [Vilela], o seu pequeno
apartamento da Rua Carlos Gomes, onde vivia e fazia a sua prótese
dentária, numa solitária e amarga velhice. Veio-me, então, à
100
lembrança outra frase, agora a soar-me menos estranha que aquela.
Lembrava-me das palavras de Pessanha: “Marcelino não
tinha nada de louco. Loucos éramos nós”. Apressei o passo.
“Loucos éramos nós”. Sim. Quem sabe? Depois de tudo
aquilo, talvez bem que o fossem. (146) (grifo meu)
E é no mesmo tom que ao romance se acrescenta o seu último capítulo, não
por acaso de número treze. Nele vislumbramos que o livro em questão se trata de
uma não-narrativa, na qual o personagem principal se esvanece por completo nas
páginas finais
121
e o narrador tenta nos convencer ser ele mesmo apenas um
prosaico vendedor de remédios que nunca escreveria esse romance.
Não direi que, de início, me tenha deixado levar pelo pensamento
de fixar num livro a vida de tio Marcelino. A princípio, movia-me
apenas o intuito de reunir, com vista à organização de um
despretensioso dossier familiar, aquela esparsa documentação que,
muitos anos após a sua morte, encontrei em Andaraí, no sobrado, em
poder de minha mãe. (...) E dessa investigação resultaram tantos
dados, a fundirem-se nas minhas reminiscências dos tempos do
palacete, que senti, ante o acúmulo deles o reavivar delas, a
necessidade real de escrever um livro sobre meu tio. (...) A idéia do
livro, porém, não queria dizer nada; o busílis estava na
realização dela. Por menos pretensiosa que fosse, era uma
empreitada de muito arrojo para um homem pouco afeito às
lides da pena. (...) (147-148) (grifo meu)
A argumentação é convincente, tão convincente que saímos do livro
esquecidos quase que completamente do seu autor. Numa espécie de desfazimento,
de desconstrução e ao mesmo tempo de construção, o autor, pela voz do narrador
nos conta os segredos da arte romanesca artifícios utilizados na construção dessa
não-narrativa, invisível, visível, vivida e inventada:
121
CARVALHO, Olavo de. Texto-Orelha. In: SALES, Herberto. História Natural de Jesus de Nazaré.
101
... O problema não estava apenas no dizer algumas palavras
sobre a personalidade de meu tio, citando fatos ilustrativos
dela. Tornava-se necessário por exemplo, para dar melhor idéia dos
seus hábitos, fixar o ambiente em que ele vivera. E a minha paleta era
muito pobre de tintas para descrever o palacete, tão vivamente
impregnado de uma graça francesa, a ressumar o espírito de Belle
Époque, que ele recriara com arte e gosto, ao longo das suas viagens a
Paris, numa sede generosa de cultura. E como poderia eu, com tão
minguados dons de observação, reconstituir satisfatoriamente o
“Trianon”? E o hobby das palmeiras? Evidentemente, faltava-me força
para fazer farfalhar uma só daquelas palmeiras. Além disso, se eu
chegasse a traçar-lhe o retrato, me veria na contingência de também
retratar toda uma galeria complementar de tipos, representada pelos
seus amigos. (...) E nesse caso, onde iria eu encontrar o senso
do flagrante, a vocação do perfil, a ciência da análise, o vigor
do estilo numa palavra: o talento para reter no papel,
recompondo conversas e encontros, os retratos de tão
heterogêneas pessoas? (...) (149) (grifos meus)
O sobrinho tinha em mente apenas um breve opúsculo sobre o tio, porém o
que tece, nos trechos acima, são os próprios instrumentos utilizados pelo
romancista ao escrever esta narrativa. Sem deixar, nem no seu final, a
ambigüidade, o narrador nos confidencia:
... Razão tinha o Vilela quando, ao confidenciar-lhe o plano do meu
opúsculo, alargou retumbantemente a sua opinião:
- A vida de Marcelino daria todo um romance.
E estava com a razão. De qualquer forma, não seria eu quem iria
escrevê-lo, mesmo se para isso dispusesse de recursos intelectuais.
Lera alguns romances no internato, e deles me ficara uma
tediosa impressão de coisas inventadas. Não ia eu agora, se
por um milagre me transformasse em romancista,
conspurcar a memória de meu tio, abastardando os fatos da
102
sua vida numa obra de ficção. Ele reclamava a moldura mais
nobre e digna da biografia. (...) (149) (grifos meus)
Como disse Haroldo Bruno, o que houve foi um gesto, por parte do autor, de
uma “heróica renúncia criadora”, no qual não há, em primeira ordem, um
comprometimento literário no sentido de se fazer crer que o livro se trata de
literatura, mas no sentido de “imunizar” o mais possível o romance da influência
direta de seu autor, a fim de que ao romance se abra as potencialidades de
significação.
122
É pela alma do romancista que o narrador trafega o narrador é e
não é o autor, pois que abriga em semitons as diversas camadas da alma. Se o
narrador induz o leitor a dois caminhos, é o da admiração que prevalece em
primeiro plano, sendo que o da dúvida elastece suas potencialidades. Alberto da
Costa e Silva bem percebeu que “é pela linguagem que Herberto Sales inverte a
construção do mito do finado Marcelino”, pois “de chavão em chavão” o elogio do
sobrinho vai revelando o seu contrário.
123
Aqui não é mais o narrador que
estabelece tais dimensões, mas a narrativa o autor está todo o tempo em meio ao
texto, nas suas camadas mais densas, até o último momento:
... Se vivo ele estivesse, completaria anos dali a três dias. Ante aquela
coincidência, ocorreu-me então uma idéia. Telefonei a João Féix,
pedindo-lhe a indicação da sua campa no cemitério. E para rumei,
uma tarde, três dias depois. Comprei umas flores, um pequeno ramo
de saudades e rosas. Cruzei sombrias e silenciosas alamedas, entre
ciprestes. De repente, vi-me diante da sepultura dele. No mármore
negro, uma indicação sucinta, tal como ele recomendara a João
Félix, uma semana antes do acidente, como se pressentisse o
desenlace, que afinal se avizinhava: seu nome; e as datas de
nascimento e morte. Ali estava, em sua última morada, meu tio
Marcelino. Ali consumara-se ele. Em homenagem à sua
memória, depositei-lhe no túmulo, com uma lágrima, as
minhas flores, saudades e rosas, em lugar do pequeno livro
que pensei em escrever sobre ele. (151) (grifos meus)
122
BRUNO, Haroldo. Op. Cit., p. 153.
103
As nuanças que se abrem entre o narrador e o autor entremostram-se num
episódio que marca o livro de memórias de Herberto Sales. Nele, um determinado
amigo do escritor considera que o livro Dados biográficos do finado Marcelino foi
escrito por um “débil mental”, ao que o autor replica:
... Referia-se naturalmente façamos justiça à sua educação e à
amizade que tem por mim – ao meu narrador-personagem. O
narrador, em verdade, não é tão “débil mental” assim. Ele seria mais
uma criatura prosaica. De toda maneira, acho que nele mais
alguma coisa que o mero prosaísmo. uma espécie de
gosto da inocência, da ingenuidade, em que sob uma velada
ironia se compraz uma alma simples, movida por um afeto
cristão, na tentativa de reconstituição da figura do tio que
conheceu na infância. (...)
124
(grifos meus)
Saindo em defesa de sua criação, autor e narrador se distanciam à primeira vista,
para se reaproximarem na confissão que encontramos a seguir:
... Mas, como ia dizendo, lembrei-me de repente que meu tio Sebastião
também morou na casa de tio Araújo (no romance respectivo tio
Marcelino, o próprio finado), e em certa época chegamos os dois a
coabitar com a minha futura e infausta personagem. Mas não o pus no
romance. Por quê? Talvez porque ele fosse na época em que escrevi o
romance o único que estava vivo do grupo romanceado afora,
naturalmente, eu. Era um romance de mortos. Esta pode ser a
explicação. Mas talvez a explicação seja outra, e o meu próprio tio
Marcelino (ou Araújo) sabe qual seja ela, porque no romance eu só
fiz o que ele de alguma forma me pediu que fizesse, em sonho, ou às
vezes como que soprando no meu ouvido a sua vontade gelada. Mas
tio Sebastião me contou uma estranhíssima coisa de meu tio Araújo,
123
COSTA E SILVA, Alberto da. Prefácio. In: BRASIL, Assis. Herberto Sales: Regionalismo e Utopia, pp.
12-13.
124
SALES, Herberto. Subsidiário 1, pp. 515-516.
104
muito antes de eu sequer pensar em escrever os Dados biográficos do
finado Marcelino. Chega a me correr como que um frio pelo corpo,
quando me lembro disso. O que tio Sebastião me contou foi a história
do pedido que fez tio Marcelino, antes de se acabar como se acabou
no hospital, com o corpo dilacerado de queimaduras. Realmente foi ao
próprio Sebastião que ele fez o pedido. Sebastião, satisfazendo sabe
Deus como o pedido que lhe confiou tio Marcelino (ou Araújo), de
resto também tio dele, perguntou-lhe pouco antes de ele morrer, num
cochicho penoso e derradeiro: “Está satisfeito, ó burro?” Exatamente
como no romance.
125
(grifos meus)
Percebemos, nas declarações acima, e nos trechos grifados, o quanto uma
pulverização nas fronteiras daquilo que chamamos realidade e ficção, sendo que a
figura documentária do tio Araújo (ou Marcelino) se transforma em figura
romanesca à medida que o próprio autor também se transformou em narrador-
personagem. uma elasticidade biográfica sua composição emerge das fissuras
do imaginário e tanto autor como personagens se tornam uma legião, dispersando
a tão propalada e única intenção autoral. Esta se dissemina na multiplicidade do
texto, e suas ramificações se propagam num contrato difuso entre autor e leitor
ambos sabem das peripécias do “discurso encenado”
126
e estabelecem um pacto a
fim de intercambiar experiências a partir da mobilidade de um eu que se multiplica
e se esvanece, aparece para logo depois se tornar imperceptível. Assim como tio
Marcelino (ou Araújo), somos nossa própria transcendência, simulacros que se
autodefinem pela própria instabilidade, e que a partir da palavra (e não-palavra)
literária nos percebemos romanescos, fictícios, inventados, dolorosamente
solitários e “reais”.
125
SALES, Herberto. Subsidiário 1, pp. 487-488.
126
ISER, Wolfgang. O Fictício e o Imaginário, p. 24.
105
A Solidão da Maturidade
Larguei a minha infância nas serras de Andaraí e em outras
terras fui crescer e envelhecer. (Herberto Sales: Subsidiário 2, p.
61)
O percurso literário do escritor Herberto Sales, como já foi dito em outra
ocasião,
127
acompanha seus caminhos biográficos. Se os três primeiros romances
estão, de alguma maneira, calcados na memória telúrica, firmados num
memorialismo aparente, o que virá a seguir ao terceiro romance é algo
inteiramente diverso. É bom lembrar que foi após a publicação de Dados
Biográficos do Finado Marcelino que Herberto fez uma pausa a fim de retomar o
contista que prenunciou os primeiros passos na juventude. Publicou, assim, nesse
ínterim, três livros de contos: Histórias Ordinárias (1966), Uma Telha de Menos
(1970) e O Lobisomem e Outros Contos Folclóricos (1970). A partir dos contos
publicados nesses três livros percebemos que, apesar do autor estar profundamente
ligado ainda às suas raízes, um nítido envolvimento com os temas da grande
cidade.
128
Absolutamente presumível, pois que o escritor fora absorvido pelo seu
momento presente, atraído pelo Rio de Janeiro “como um novo campo ficcional”.
129
Assim, nos contos contemplamos a diversificação de temas e ambientes,
indissoluvelmente comprometida com a memória e a vivência pessoal do autor,
seus caminhos biográficos, a partir de um corpo-a-corpo com a vida presente:
127
VILMA, Ângela. A Tessitura Humana da Palavra, Herberto Sales, Contista.
128
VILMA, Ângela. Idem.
129
SALES, Herberto. Depoimento Pessoal. In: ALVES, Ívia.Op. Cit, p. 95.
106
... Muitos dos meus contos se enquadram numa linha carioca de ficção
urbana e suburbana, que vem de Machado a Marques Rebelo,
passando por Lima Barreto. Afinal, eu morei no Rio cerca de 30 anos,
e não é impunemente que um escritor vive tanto tempo numa cidade
de hábitos e costumes tão peculiares, dos quais se torna, mesmo sem
querer, um observador. Isto não quer dizer, porém, que eu
mudei. Ligado às minhas origens, entremeio os meus contos
cariocas com histórias de Andaraí que trazem a inevitável marca
de Cascalho ou mesmo de Além dos Marimbus. (...) - o Rio
alternando com a Bahia, mas eu, afinal, continuando o
mesmo: um escritor que procura contar, como melhor pode,
suas histórias, e sobretudo suas vivências. (...)
130
(grifos meus)
Esse alternar do passado com o presente é que vai possibilitar a diversidade
temática e estilística de Herberto. Desde os primeiros romances, o autor
surpreende com a “capacidade de mudar de fisionomia literária”
131
. Cascalho, Além
dos Marimbus e Dados Biográficos do Finado Marcelino são formalmente
distintos entre si, e o que os une é a recorrência memorialística. E é a partir da
publicação dos livros de contos do autor que percebemos quanto a cidade
cosmopolita o influenciará. A crítica à tecnocracia, a sátira ao homem
contemporâneo, perdido no seu dialeto burocrático, invadirão a contística do
escritor, anunciando seus dois romances seguintes: O Fruto do Vosso Ventre (1976)
e Einstein, o Minigênio (1983); e um terceiro, A Porta de Chifre (1986), originado
depois da publicação do livro Os Pareceres do Tempo (1984). Nesses três
romances, provavelmente instigados pela experiência pessoal do escritor como
diretor do Instituto Nacional do Livro, em Brasília, vivenciador de reuniões
tecnocráticas, o que se percebe como voz é a insurgência de denunciar, sem
partidarismos, o vácuo da vida humana, percebida inicialmente no vácuo da
linguagem, firmando assim um compromisso de “advertência humana”:
130
Idem, pp. 95-96.
131
CARVALHO, Olavo de. Texto-orelha. In: SALES, Herberto. História Natural de Jesus de Nazaré.
107
[O Fruto do Vosso Ventre] ... é uma crudelíssima sátira a todas as
reuniões tecnocráticas da tecnocrática capital brasileira e de todo o
tecnocrático Brasil do tempo da minha nada tecnocrática
administração no INL.
132
... Não diria que esses três romances compõem uma trilogia
deliberada. Não foram escritos com essa intenção. Mas os aproxima, e
os reúne, um sentido comum de crítica social e de advertência
humana. Talvez o sentido utópico de ver mudar as coisas.
133
Nessa trilogia romanesca, é possível notar muito bem a guinada estilística do
escritor. Se nos três primeiros romances ouvimos uma dicção clássica, a partir de
uma escrita límpida – frase construída “no sentido de capturar uma beleza formal”,
como bem declarou o autor,
134
e que levou os críticos a considerá-lo um “clássico
moderno”, na trilogia acima citada ouvimos uma nova dicção: o jogo que Herberto
produz com a linguagem tecnocrática – a chamada “pestilência lingüística” por
Italo Calvino, que reduz a comunicação a “uma crosta uniforme e homogênea”
135
é com o objetivo de libertar essa mesma linguagem a partir do método de utilizá-la
à exaustão, a fim de neutralizá-la. Isso acontece a partir da repetição satírica.
Haroldo Bruno bem sintetizou essa técnica formal e temática de Herberto, ao
afirmar ser essa linguagem tecnocrática, utilizada pelo autor “cuja impressão de
enfado e inutilidade” –, percebida “mais intelectualmente expositiva do que
metaforicamente criadora”. Entretanto, “o que se perde em emoção artística ganha-
se em sugestiva fidelidade ao tema”
136
tema e forma na obra herbertiana sempre
estão entrelaçados como projeto criador.
É no sentido, pois, de constante renovação literária que se distingue a obra de
Herberto Sales. Atribuindo seu destino de prosador ao fato de contar suas
132
SALES, Herberto. Subsidiário 1, p. 277.
133
Idem, p. 457.
134
SALES, Herberto. Subsidiário 2, p. 121.
135
CALVINO, Italo. Seis Propostas para o Próximo Milênio, p. 58.
136
BRUNO, Haroldo. Herberto Sales: Do romance ao Conto. In: _________. Novos Estudos de Literatura
Brasileira, p. 148.
108
vivências, suas histórias, Herberto tentou unir reminiscências pessoais e
observações de um presente vivenciado numa obra ficcional na qual o que pesa
com mais profundidade é a nostalgia de um tempo buscado, para sempre perdido.
Esta temática, que traduz a própria idiossincrasia do escritor, permeia sua obra
romanesca de um tom proustiano, criador que recria sua memória tecendo a
palavra literária. Por isso, mediando a publicação de A Porta de Chifre, de
temática futurista, estão lá Os Pareceres do Tempo (1984), como a corroborar a
sentença do autor, proferida no SubsiDiário: “Sou um habitante do meu passado,
estrangeiro em terras do presente e do futuro.”
137
Nesse romance, o autor busca na
história de um antepassado o mote para a escrita. Escrita que após A Porta de
Chifre retornará ao passado do escritor. Daí em diante é o velho Herberto de
Cascalho que volta. Em cada um dos romances seguintes veremos que continuará
diversificando a forma de acordo com o tema, porém permanecerá nas linhas e
entrelinhas como unidade a nostalgia, a reminiscência de um tempo pessoal vivido
e jamais encontrado, a memória para sempre conjurada à imaginação. A solidão
persistirá – a solidão do homem diante da vida e da morte, destinos irremediáveis.
É sim, a grande solidão humana que perpassa, sub-repticiamente, a obra de
Herberto. Cascalho, Além dos Marimbus e Dados Biográficos do Finado
Marcelino a anunciam, e essa amadurece, se ramifica nas obras seguintes, de
maneira profunda. O escritor está amadurecido, a velhice o assombra com os olhos
de um presente cruel. Presente robotizado, denunciado tão bem na sua trilogia
anti-tecnocrática. O que fazer? O homem já não é mais o mesmo que ficou nas ruas
de Andaraí, está revestido das dores cristalizadas que as linguagens urbanas
tentaram absorver. O escritor também não, pois que foi absorvido pela pestilência
lingüística de tal maneira que através da literatura conseguiu forças para coibi-
la. Talvez é como resultado de tudo isso que nasce o romance quase-novela, quase-
poesia, Na Relva da Tua Lembrança (1988). Nele, o homem-escritor Herberto
Sales atalha um tempo mítico, atemporal, com as forças de um presente cruel, e,
137
SALES, Herberto. Subsidiário 3, p. 307.
109
aderindo a um tom poético de amargura, rompe com a limpidez escritural que o
denominou classicizante. Buscando nos semitons poéticos a palavra não-dita, o
sentimento que se funda no etéreo do silêncio, nesse oitavo romance o autor, por
conhecer tão bem as instrumentalizações da língua, resolve dissipá-las. Busca ele
algo mais, algo bem maior que a própria forma e o próprio tema, e que o inquieta: a
emoção. Ademais, ao buscar a emoção consegue o efeito maior forma e tema de
novo se juntam a fim de dizer o indizível que as palavras não dizem. Sobre isso
esclarece Herberto:
... Na Relva foi diferente. Eu usei tudo que sabia e o que não sabia
para captar na escrita não a forma mas a emoção. A emoção
digamos pura. Pegada no ar de mim. Ou de minha alma. Diria mesmo
que usando a palavra eu a usei apenas e sistematicamente – no
sentido de retirar ou extrair dela como de uma flor o seu lado invisível.
Quer dizer: o seu perfume. Foi isto que tentei fazer. Usei a palavra
como pretexto para captar o lado invisível dela: a emoção, que está
dentro da palavra como dentro da flor, ou da pétala, está o perfume.
138
138
SALES, Herberto. Subsidiário 2, p. 121.
110
II. Na Relva da Tua Lembrança: A poética do envelhecimento
... Estou envelhecendo. E a velhice é feita de desilusões. De
desilusões filosóficas, que levam à descoberta da verdade
humana. Ou da verdade sem ilusões.(...) (Herberto Sales)
139
Os círculos
Os anos de um menino são um círculo pequeno;
os de um velho outro círculo maior,
mas uma vez postos no centro que é a eternidade,
já não há diferença de círculos. (Padre Manuel Bernardes)
A epígrafe acima consta nas páginas iniciais de Na Relva da Tua Lembrança.
A mesma epígrafe poderia ilustrar também, aqui num efeito retroativo, Dados
Biográficos do Finado Marcelino. Neste estão imersos, igualmente, os anos de um
menino e os anos de um velho. A história de tio Marcelino, contada a partir do
resgate do olhar infantil do sobrinho, poderá mesmo, como presume a professora
Eneida Leal em entrevista ao escritor, ter sido uma tentativa de “busca de matrizes”
139
SALES, Herberto. Subsidiário 1, p. 290.
111
que determinaram a maneira de ele, Herberto, “ver o mundo”, ou seja, poderia ter
sido Dados Biográficos o romance da infância e da adolescência do escritor.
140
Isto
nos leva a pensar a sua obra engendrada nesses círculos, perpassada às maneiras
de pensá-los a partir do crivo do vivido amalgamado aos liames, às “transgressões
de limites”
141
do imaginário.
Não é à toa que a narrativa de Na Relva da Tua Lembrança é iniciada numa
pedra próximo ao rio. Pedra biográfica, bio-gráfica. Pedra da infância, da escritura.
Nessa narrativa, o narrador, “um velho escritor sem leitores”, costumava ainda
sentar naquela pedra e fazer de conta ser esta “um barco ancorado ali”:
Costumava fazer sempre isto: me sentar naquela pedra e ficar
pescando no rio, no pequeno rio que por ali passava. (...) A pedra onde
eu costumava me sentar ficava num desses trechos de areia. Muitas
vezes imaginava que ela era um barco ancorado ali, e que eu
era o comandante do barco. Não estava mais em idade de
imaginar coisas assim, ter esses pensamentos de menino.
Mas o menino que a gente um dia foi não há meio de largar a
gente: fica escondido na memória da gente, fundo e escuro
poço sem fundo, onde ele, o menino que a gente foi, de vez
em quando vem à tona e fica boiando, como uma flor. (7-8)
(grifo meu)
No velho Aleixo o menino aflora: o velho à procura do primeiro círculo. A
busca do tempo insere-se num presente atemporal, fazendo com que buscar o
menino perdido seja encontrar o tempo, o rio, a pedra, o navio, a areia. Menino que
aflorou em outras páginas herbertianas, e, em situação idêntica a esta, no livro
infanto-juvenil O Menino Perdido (1984). Nesta breve narrativa, um velho, similar
ao narrador de Na Relva..., procura nas terras de sua infância o menino que ficou
no passado. A busca se inicia no areal, na pedra enorme” da infância, ali calcada
para sempre, junto com o menino:
140
LEAL, Eneida. In: SALES, Herberto. Eu, Herberto Sales, p. 45.
141
ISER, Wolfgang. Op. Cit.
112
Fui direto ao areal, onde havia uma pedra muito grande, uma
pedra enorme, que era o castelo de brinquedo do menino. (...) Às
vezes, a pedra deixava de ser um castelo. E virava um navio, que ia
navegando no mar de areia, rompendo as ondas de areia. Ao leme ia
o menino, comandante que fazia o seu navio apitar, apitando
com um canudo de mamão. (...) O menino costumava estar ali,
no seu castelo ou no seu navio. Mas agora não estava. Tinha
de procurá-lo em outro lugar.
142
(grifos meus)
Declarou Herberto, no SubsiDiário, e aqui repetimos, o quanto tais vínculos
telúricos estão enraizados tanto no homem quanto no escritor , carregando-os
para sempre:
... Descobri que o tinha mesmo forças para deixar a minha terra
natal, minha casa, os lugares de minha infância, o areão e o rio, e por
cima do rio o céu que eu desde menino via.
143
Não mesmo diferença de círculos: o autor velho e menino se dilui na
obra, em busca de si mesmo, das infâncias, e do outro que somos, pois como
leitores também somos perseguidos, na leitura, pelo que um dia fomos. Se
intuirmos que o tempo é uma ilusão, como bem sugeriu Borges em História da
Eternidade, concordaremos com o escritor argentino quando afirma que “a
indiferenciação de um momento de seu aparente ontem e de outro de seu aparente
hoje bastam para desintegrá-lo”.
144
O tempo é um rio que corre, que flui, trazendo
no seu bojo a fantasmática presença biográfica do escritor a partir de uma infância
que está sempre de volta, retornando ao que um dia foi. O leitor espiona pelas
frestas das páginas romanescas e pressente tal indiferenciação dos círculos
homem e autor, menino e velho são a mesma coisa, fraturados e indivisíveis, nunca
coincidindo totalmente entre si diante das incessantes águas do tempo:
142
SALES, Herberto. O Menino Perdido, pp. 11-13.
143
SALES, Herberto. Subsidiário 1, p. 44.
144
BORGES, Jorge Luis. História da Eternidade, p. 33.
113
... Eu gostava de dar pelo cais a minha caminhada domingueira, era
bom andar, pegar um pouco de sol caminhando pelo cais. O rio,
mesmo parecendo que não ia, ia com a gente, carregando
nas costas a sua água parada. (27) (grifo meu)
Aleixo, narrador-escritor desse oitavo romance de Herberto, vem contar os
anos que restam de um velho escritor esquecido por seus leitores, e que, sentado
numa pedra, à beira do rio, de um lugar não demarcado geograficamente,
possibilita-nos visualizar a transcendência de uma possível particularidade:
O que aqui se passou, ou que se vai passar, pouco importa
saber em que lugar se passou. Pode ter sido em qualquer
lugar, desde que nele viva o homem (e seu semelhante). Na
medida em que todos os homens são o mesmo homem,
todos os lugares são o mesmo lugar. E afinal o homem está
em todos os lugares. (7) (grifo meu)
Essa comunhão de destinos que faz com que todos os homens se assemelhem
está no cerne da encenação biográfica e literária. A intensidade biográfica alinha-se
à encenação literária e os muitos eus se apresentam como propostas de se
desembaraçarem do meramente biográfico e circunstancial, dimensionando o que
poderia ser confessional, ampliando os significados de uma existência particular.
Isso acontece através das tessituras da ficcionalidade.
Biográficas e alegóricas dores de envelhecer
Herberto Sales declarou, no seu livro de memórias, a ingênua descoberta do
envelhecimento e da vida.
Eu nunca pensei que as pessoas envelhecessem. Para mim o velho
nascia velho. E criança ficava a vida toda sendo criança. Como estava
114
enganado. Eu era mesmo um animal inocente. E com a velhice, com a
idade que ia passando e que passou, eu descobri coisas piores.
Descobri, por exemplo, que entre 59 pessoas pelo menos 49
patifes.
145
... E de repente eu me descobri velho. (...) Que coisa melancólica. Eu
nunca pensei que fosse tão cruel. Enfim, tenho uma frase para dizer
como consolo na hora de minha morte:
- Graças a Deus estou morrendo.
146
O humor corrosivo e amargo, além de espirituoso, que envolve tais
declarações, corporifica-se Na Relva da Tua Lembrança. O que se passa aqui é
impossível relatar com precisão. Tudo parece não existido, e ao mesmo tempo ter
existido, névoa e poesia que assomam às páginas de uma história de “mata-
velhos”
147
: filhos decidem matar os pais, pois que perceberam a inutilidade da
velhice. Guerra dos jovens contra os velhos a partir do prisma de uma linguagem
alegórica, num gênero que se associa à fábula poética.
148
Se Adolfo Bioy Casares
lançou Diário da Guerra do Porco enfocando a mesma temática, podemos
conjecturar que o que diferencia ambos é a maneira como a realidade é encenada.
No romance de Casares, a realidade é objetiva, motivando os acontecimentos
gerados, enquanto que Na Relva, “o motivo romanesco assume uma expressão
alegórica”
149
através de sua forma poética. É evidente que em ambos contemplamos
o diálogo, a intertextualidade, a despeito de Herberto ter garantido nunca ter lido o
livro de Casares:
... Josué Montello (...) me falou então de um livro de Bioy Casares cujo
tema seria também esse. E me aconselhou a lê-lo. Eu, porém, não fiz
isso, (...)
150
145
SALES, Herberto. Subsidiário 3, p. 87.
146
Idem, p. 153.
147
Denominação que deu Herberto a esse seu livro. In: Subsidiário 2, p. 115.
148
Mário Carelli. Contracapa. In: SALES, Herberto. Na relva da tua lembrança.
149
MONTELLO, Josué.In: SALES, Herberto. Subsidiário 2, p. 200.
150
SALES, Herberto. Subsidiário 2, p. 115.
115
Mnemosyne, deusa da memória, canta “tudo o que foi, tudo o que é e tudo o
que será”. Recrutar os anos de um velho e antever um futuro cruel é algo que está
subjacente ao ato de recordar. Vernant nos lembra que a história de Mnemosyne “é
um deciframento do invisível, uma geografia do sobrenatural.”
151
Matar os pais está
nessa ordem alegórica da lembrança e de um terrível prenúncio da realidade.
Em O Fruto do Vosso Ventre, quarto romance herbertiano, a guerra foi ditada
pela tecnocracia, sendo as mulheres proibidas de procriar a superpopulação
atentava contra a ordem da ilha. Na Relva da Tua Lembrança a guerra é ditada
pelos jovens, e as regras estabelecidas se assemelham, pois que diante do controle
populacional” o resultado a que chegaram foi “catastrófico”:
... A população jovem se reduzia, na medida em que crescia a
população idosa. Dentro de vinte anos (talvez menos) os jovens
estariam trabalhando e trabalhando para sustentar os velhos, que
por serem velhos não trabalhavam, aposentados, inativos. Era um
problema que preocupava os jovens. Os jovens tinham coisa melhor
que fazer que e trabalhar para sustentar os velhos. (...) A solução
era a morte (...) (54-55)
A linguagem poética, alegórica de Herberto não nos levará nunca pelos
caminhos limitativos da interpretação. Não o que decifrar, mas o que sentir
– a evanescência de uma poesia que se ouve por trás de um “humor raivoso”. O tom
da narrativa lança-se como uma névoa sobre o papel: algo leve, ao mesmo tempo
terrível, semelhante às atmosferas do sonho, ou de um enigmático pesadelo. A
amargura está no cerne de uma “violência verbal”
152
perpassada por um lirismo
perturbador, no qual o “armado cavaleiro”, “dono do ronco” , personagem do livro
151
VERNANT, Jean-Pierre. Aspectos Míticos da Memória e do Tempo. In: __________. Mito e Pensamento
entre os Gregos, p. 109.
152
CARELLI, Mário. Op. Cit.
153
SALES, Herberto. Armado Cavaleiro O Audaz Motoqueiro.
116
de contos de Herberto,
153
está de volta em sua multiplicidade: “cavaleiros montados
no barulho”.
Ouves? Não é o trovão da madrugada; o ronco agressivo e mortal de
uma nova guerra, o relincho da besta do Apocalipse correndo
desembestada em tropel nas sombras. Não, não é nenhum dessas
ruidosas e terríveis coisas, no eco de um assombro em marcha pela
noite adentro. São eles. Não estás ouvindo? Que outra coisa podia
rugir de tanta raiva e de tão raivoso ímpeto, cavalgada
mecânica de patas de ferro e roncos, que vem assim
destroçando o silêncio com chifradas de pesadelo? (...) (14)
(grifo meu)
... Então, já ouves? É-vem eles vindo. Quantos serão eles? Não dá para
contar. Eles vêm numa acesa e áspera rajada de zumbidos de faróis,
cabeçudos besouros noturnos zumbindo, bindo, bindo, bondo. (...) E
enquanto a janela fecho, vejo golpeando a fresta passar a louca
sarabanda de motocas, os motoqueiros cavalgando os seus
rebeldes potros empinados, que tudo escoiceam com os seus
coices de rumor e luz. (...) (14-15) (grifos meus)
Aqui, a velocidade da motoca sintoniza-se metaforicamente a um tempo não-
sucessivo: corre-se, corre-se e no rastro da corrida o tempo, para os jovens
motoqueiros, parece congelado. O possível tom moralista que poderia estar no
âmago da narrativa dissolve-se por completo, pois que a poesia se instala, sempre,
“perturbando” o que de alguma maneira poderia soar panfletário:
... Em sua louca corrida tudo que querem é deter o presente. Domar o
presente, cercando-o com os roncos e rabeios de suas indóceis
motocas. Talvez estejam apenas correndo em volta de si
mesmos, como dentro do aquário corre o peixe. Ou como
117
um grande peixe insano corre em volta de si mesmo no mar
o submarino amarelo. (15) (grifo meu)
Juntamente com a poesia o humor, na compassiva ironia de quem conhece as dores
de existir, de envelhecer, circunscritas numa “aritmética” cruel:
- Parabéns pra você!
Quantas vezes? Oh, o estribilho inumerável. Parabéns pra
você. Germaine todavia não casou comigo. Casou com Leôncio, que
aliás se foi deste faz alguns anos. Talvez 10 anos. E deixou
Germaine velha com dois filhos e três netos. Aritmética
familiar. 3 e 2 = 5, com ela 6, noves fora o marido. Que idade
teria Germaine? 75, talvez 76, talvez 81. Francesa velha é mais
velha que qualquer velha. (19) (grifos meus)
A poesia, principalmente, melancólica e doce, sobrevive no que restou das
lembranças do passado:
Germaine, a velha Germaine. Ela foi minha namorada, em antigos e
passados dias da vida. Mas ainda havia uns restos de namoro nas
lembranças que tínhamos um do outro. Ficávamos às vezes evocando
em nossas conversas essas lembranças. Era como se atiçássemos
um borralho. As lembranças se acendiam num fogo pálido.
E ficavam piscando. Piscando e apagando. Germaine. (...) (19)
(grifo meu)
Poesia que invade a narrativa como presença terrivelmente onírica o sonho do
narrador, eixo central do romance, é transladado pelo estilo “poeticamente
castigante, enternecido e violento” do autor.
154
O sonho
118
... o vento cavalgando dunas esquecidas nas areias da minha
memória. (55)
E eis que de um a um, os velhos pais vão desaparecendo. Os filhos argumentam
estarem levando os pais “para fora”, ou seja, para um descanso ao ar livre, nas
montanhas. Mas um sonho incorpora-se à história. O narrador interrompe o que
vinha narrando a fim de contá-lo...
... Foi um sonho que eu tive ontem à noite com Germaine: um longo e
estranho sonho. (32)
Agora a narrativa ganha uma disposição visual de genuína poesia, a partir da
descrição do sonho feita pelo narrador. Sonho e realidade são fronteiras tênues,
imperceptíveis, e as imagens simbólicas desenham círculos da vida, destinos.
E sonhando eu via em sonho as coisas, como se as coisas
eu estivesse vendo fora do sonho: uma coisa realmente estranha,
conquanto uma bela coisa.
E o que eu primeiro vi foi isto:
no meio de umas flores vermelhas e amarelas, a cabeça de
uma menina sorrindo;
e a menina foi saindo do meio das flores, primeiro a
cabeça e depois o corpo todo;
e agora (e logo) menina não era, mas sim uma
mocinha magra e alta no meio de um trigal, alongada haste
em pendão;
e ela veio e veio andando e sorrindo, os cabelos escorrendo sol;
era Germaine, eu a reconhecia então, reencontrando-a nos longes
da minha ternura adolescente, em nossa adolescência compartilhada,
água da mesma bilha; (grifos meus)
154
OLINTO, Antonio. In: SALES, Herberto. Subsidiário 3, p. 190.
119
Os círculos da vida são imagéticos: no alvorecer, a menina, a adolescente
entre as flores. Diz Bachelard que nossos “mistérios familiares” estão configurados
em “raros símbolos”, pois que somos a soma de nossas “impressões singulares”.
155
A simbologia insere-se no grande círculo, e para que este se feche, o tempo,
aparentemente ilusório, se anuncia...
... de repente ela [Germaine] se sumindo foi e desapareceu, levada
pelo vento, assustada flor na boca de um dragão;
e o dragão era ao mesmo tempo vento e monstro;
e vi então um grande prado sem-fim;
era um não acabar de chão num não acabar de verde;
e olhando para a frente e para os lados, para toda parte
olhando, não via eu senão o vasto campo imenso e todo,
coberto todo de relva; (grifo meu)
O tempo, “vento” que é “dragão” e “monstro”, nos remete à relva esta cobre o
vasto campo da existência, imagem que pernoita os prados sem-fim da vida:
e tudo que alcançavam os meus olhos, e a minha vontade de ver
alcançava, era sob o sol o largo campo verde: intocada messe de
ensolada
relva;
e não ouvia cantar o pássaro, nem ouvia cantar o vento: no ar o
silêncio tremulava;
mas eis que de repente vi no horizonte um grande arco
branco;
tinha a imponência triunfal de um arco romano,
desvestido contudo dos símbolos e dos adornos do triunfo:
era e um bloco simétrico e nu de mármore branco, o
arco vazado num fundo de céu; (grifo meu)
155
BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos, p. 8.
120
Arco branco fechamento de círculos, porta de entrada, final... Onde andará
Germaine, símbolo da lembrança do que um dia foi?
e vi que um vulto se encaminhava para o arco, morosamente e só;
e voltou-se para mim o vulto, e vi que era uma velha andando;
ah, e o vulto era Germaine, não mais a menina nem a
mocinha, mas uma velha, não mais as flores nem o trigal,
mas uma réstia de luz branda tremuluzindo na relva;
acenou para mim, e desapareceu sob o arco, lembrança
dissolvida no ar. (33-34) (grifos meus)
No provável fechamento de círculos que o arco talvez simbolize, a velhice é
acompanhada não mais pelas flores, mas pela “réstia de luz branda tremuluzindo
na relva” a vida transpõe o arco e a lembrança se dissolve no ar. O mistério do
mundo se prenuncia no sonho de Aleixo, nos sonhos/fendas da narrativa.
As “dunas esquecidas da memória”....
A história é o sonho. Sonho que ao mesmo tempo é carregado de um
dramático tom real, fantástico na sua real dimensão...
... Não precisa acreditar. A gente não um livro para acreditar no
livro. A gente acredita é na lembrança que a leitura do livro deixa na
gente. A lembrança de uma boa história. Mesmo que a história seja
apenas uma boa mentira. (23)
O sonho se transformou em pintura nas mãos do amigo Emílio, habitante do
Bosque dos Olmos. Linguagens que se traduzem e se ampliam, a descrição do
sonho e sua pintura reafirmam a realidade do que é puramente imagético,
simbólico. Toda paisagem possivelmente é, em si mesma, “uma experiência
onírica”. Porém, “a paisagem onírica não é um quadro que se povoa de
121
impressões”, mas “uma matéria que pulula”, de novo nos diz Bachelard.
156
Aqui a
palavra e a pintura se amalgamam no jogo dos sentidos, na experiência material do
sentir, através da transcrição (em itálico) quase que literal, feita pelo narrador, da
descrição já realizada anteriormente quando esboçou o sonho em palavras:
... E eu contemplava impressionado a tela, tocava-a com os olhos e
com as mãos, a realidade me devolvendo numa brisa diáfana o sonho,
que se tornara assim espantosamente real, sonho ressonhado e
verdadeiro. Sim, ali estava o grande campo relvado. E tudo que
alcançava os meus olhos, e a minha vontade de ver alcançava, era
sob o sol o largo campo verde: intocada messe de ensolarada relva.
Mas eis que de repente vi no horizonte um grande arco branco. Tinha
a imponência triunfal de um arco romano, bloco simétrico e nu,
vazado num fundo de céu. E ali estava ele na tela, o arco. O arco
branco sobre a relva verde. (52)
Nome do quadro: Na relva da tua lembrança. O sonho continua no quadro, como
uma lembrança metafórica do que existiu, e do que não passou de um sonho,
presença sobrenatural da vida.
Pendurei na parede o quadro que Emílio pintou para mim. O
quadro em que ele pintou o meu sonho. Eu olhava e olhava o
quadro, e era como se de novo estivesse sonhando. Era
como uma coisa irreal. Era o meu quarto um lago de
silêncio, onde o quadro flutuava como um nenúfar. (...) (54)
(grifo meu)
A aura do sonho move a narrativa. Por isso, enquanto os amigos do narrador
vão desaparecendo sob o pretexto dos filhos estarem levando-os para fora”, algo
surpreendente acontece sob a névoa da realidade, o cavaleiro Perlino, amigo que
desaparecera logo no início do romance, surge após ter atravessado a relva e o arco
156
BACHELARD, Gaston. Op. Cit., p. 5.
122
do sonho de Aleixo que não é mais sonho tão somente deste, mas de Perlino e
provavelmente de todos os velhos que desapareceram e desaparecerão.
O filho, como lhe havia prometido, levara-o para fora, era um
Domingo. Vamos, papai, está na hora, é um bocado longe. Mas não lhe
disse o nome do lugar, era uma surpresa, na hora ele veria, era um
bonito lugar, ficasse descansado. (...) (71-72) De repente (talvez umas
três horas depois, sempre dentro dessa floresta escura, e rodando
sempre no mesmo pedregoso chão), a estrada desembocou numa
grande claridade verde e lisa. O campo coberto de relva, e ao
fundo o arco branco, sim, impressionante, era o mesmo
lugar, sem tirar nem pôr, do quadro pintado por Emílio,
sonhado por (mim) Aleixo. (...) o campo relvado, com o arco
branco ao fundo, branco-branco, como um mausoléu.
Estranho, mas era um lugar belo, na sua relvada solidão.
(72) (grifo meu)
A solidão é a morte, bela e cruel, pois que aqui é perpassada pela armadilha,
pela traição, pelo abandono e rejeição do passado, da memória, daquilo que é
dilaceradamente humano.
- Quando transpus o arco, e ainda uma vez olhei para trás para
acenar um adeus a meu filho, o chão se abriu subitamente e
duma vez sob os meus pés. E eu, sem haver chegado sequer
a ver o meu filho, que de pé na relva me olhava, fui
precipitado numa espécie de escorregadeira, dentro de
um buraco. Foi terrível, e eu gritei, tomado de surpresa e ao
mesmo tempo de medo, mas foi inútil gritar. (...) Por fim, depois
de dois ou três minutos de desespero e angústia, a
escorregadeira me lançou numa espécie de fosso, sobre
cuja borda descia como um manto a claridade do dia
fora. Aparentemente eu tinha sido atirado numa caverna. (74)
(grifos meus)
123
O buraco, o fosso e fora “a claridade do dia” felizmente, cavaleiro Perlino se
salva. No Diário da guerra do porco, de Casares, numa conversa entre dois
personagens a visão do vazio que intercala o tempo diante do fosso que enterra o
passado e o futuro.
- (...) Tive uma espécie de visão.
- Agora?
- Agora mesmo. Pareceu-me ver um poço, que era o passado, e no
qual iam caindo pessoas, coisas e animais.
- Eu sei – assentiu Vidal. – E dá vertigens.
- O futuro também vertigens continuou Arévalo. Imagino-o
como um precipício ao contrário. Pela borda assomam pessoas e
coisas novas, como se fossem para ficar, mas também acabam
caindo e desaparecendo no nada. (128)
Na guerra do presente com o passado, a memória é uma “espécie de escuridão
translúcida”. Mesmo salvando-se das armadilhas do filho, cavaleiro Perlino
desaparece. Talvez de novo a perseguição do filho. Talvez o suicídio. O mergulho no
tempo, “o mergulho no nada”:
... A mente perturbada de Perlino, perseguida por um vento de
loucura, buscando na destruição de si mesma o seu descanso. Ou a sua
verdade. O suicídio abrindo-se como uma porta. O mergulho no rio. O
mergulho no nada. Como numa espécie de escuridão translúcida.
(124)
Os algozes, jovens parricidas, são o centro do poder, surgindo sempre
munidos da cor (boné, avental, roupas) “amarela”, e de “óculos negros”, como
numa confraria ritualizada. A atmosfera torna-se a cada página mais densa, todo o
grupo de amigos velhos, velhos amigos, desaparece, restando apenas dois solteiros:
Miguel Pompa e Aleixo. Este se refugia no “horto das Oliveiras”, lugar onde resolve
narrar essa história vivida nos “últimos meses”.
124
... Peguei o trem e fui para o horto das Oliveiras, onde me instalei
(talvez provisoriamente) numa pequena cabana abandonada. (...) E,
embora me houvesse jurado e prometido nunca mais escrever, me
dispus a escrever a história que eu vivera naqueles últimos meses. A
minha vida chegava ao fim (81 anos) e eu precisava
aproveitar para viver um pouco comigo mesmo. Escrever
era uma forma de me reencontrar, de a mim mesmo dizer,
eu e eu mesmo, só nós dois, por exemplo isto: E então? Tudo
bem? Que tal ficarmos juntos um pouco? (128) (grifo meu)
A vida de Herberto Sales, assim como do personagem Aleixo, chegou ao fim
aos 81 anos. Não foi esse seu último romance, nem seu último sonho. E escrever
continuou sendo, até o fim, o reencontro consigo mesmo. Diante da janela, o rio do
tempo, a relva onde coabitam as lembranças do Outro e de si. Aleixo-Herberto-
Outro. O campo, a relva, o arco. A vida é “campo sem fim”, sopro, sonho de uma
memória que insiste em permanecer diante dos fossos do efêmero tempo presente
a eternidade sob um céu “escuro” e “frio”, sob o “arco branco” da lua, envolvida
por um vento, também escuro:
Sob as oliveiras eu sentia tremular a paz do horto. Da pequena
janela eu via lá fora o grande mundo. Uma noite me veio em
sonho a visão de um verde campo sem fim. Chão pegado no
sono, dormindo sob uma ondulante relva estendida como um manto.
Na distância a lua era como um grande arco branco.
Despertei num sobressalto. Abri a janela. Sobre o horto descerrava-se
para a eternidade o céu. Um frio céu escuro. Um vento escuro
carregava pelo céu a lua. Na escuridão tamborilavam estrelas. (129)
(grifos meus)
Como Aleixo, Herberto Sales também foi buscar, na solidão de envelhecer, as
montanhas:
125
... Afinal eis-me agora para sempre em São Pedro da Aldeia, vivente
desta pequena e histórica cidade à margem da lagoa de Araruama
plantada. Sobretudo, sou vivente da minha solidão.
157
Aqui, como nos outros livros, o autor, apesar das recorrências biográficas, não
coincide com o narrador, mesmo mantendo uma relação de interdependência.
158
Como Benjamin escreveu a respeito da obra proustiana, o que realmente importa
ao memorialista é o tecido da sua rememoração, o trabalho de Penélope da
reminiscência”, e do esquecimento.
159
Nesse romance, mais do que nunca, o autor é
uma presença fantasmática, uma “presença invisível”, vindo dos mosaicos de uma
escrita pessoal, porém atravessada pela emoção de uma memória anterior, coletiva.
Disso bem deu testemunho o próprio Herberto:
Cada leitor, segundo o que cada um deles achar, dirá no fim do
livro o que aconteceu no livro e se aconteceu. O autor é no livro
uma presença invisível, como os trêmulos flocos invisíveis
que sobre ele caíram do ar. Ele é no livro uma espécie de
fantasma. Nunca o autor. E, voltada a última página, é
deixando no livro o seu fantasmal rastro de fantasma que
ele sai do livro. Talvez com um soluço. (grifo meu)
...................................................................................................................
Em toda essa solidão, a “esvoaçante lembrança” como o vento pode
cavalgar as “dunas esquecidas” da memória:
Ouvi de repente na janela o rumor esquivo de uma asa. Algum
pássaro noturno? Era o rumor de uma esvoaçante lembrança
que por um momento pousou na minha janela escura. (...)
(129) (grifo meu)
157
SALES, Herberto. Subsidiário 3, p. 350.
158
SANCHES NETO, Miguel. Quem escreve o romance?. Disponível em:
<http://tudoparana.globo.com/rascunho/resenhas/n-101.html>
159
BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. In: _________. Obras Escolhidas. Vol. I, p. 37.
126
Solidão como categoria estética,
160
um evolar-se a passados míticos e
presentes ineficazes. A força criadora da natureza (vide Cascalho e Além dos
Marimbus) instala-se nas águas (heraclitianas) do tempo, arrastando no seu bojo a
decadência, a velhice, o abandono, a solidão aqui circunscritos em Dados
Biográficos do Finado Marcelino e Na Relva da Tua Lembrança.
160
PROENÇA, Ivan Cavalcanti Proença. A solidão-decadência: o ser-para-o-outro em Herberto Sales. In:
_________. Seleta de Herberto Sales, pp. 146-167.
127
CAPÍTULO TERCEIRO:
OS PARECERES DO TEMPO :
A MEMÓRIA E A HISTÓRIA
“Narrar, dizia meu pai, é como jogar pôquer,
todo segredo consiste em parecer mentiroso
quando se está dizendo a verdade.” (Ricardo
Piglia: Prisão Perpétua, p. 20)
I. PARECERES INICIAIS
128
A minha pátria é a minha família, são os meus antepassados, a
minha pátria são os meus mortos. (Herberto Sales: Subsidiário
1, p. 238)
Os pareceres da memória: um “romance de família”
Tudo que fará de ti um escritor estará no teu livro de estréia. Pelo resto da
vida não fará outra coisa senão repetir o que disseste em teu livro de estréia,
embora o dizendo de forma aprimorada”. Essa é uma frase de Jules Renard que
Herberto Sales toma emprestado com o intuito de demonstrar possíveis
semelhanças existentes em seus tão díspares e entrelaçados livros,
161
corroborando
as relações de parentesco que traduzem a homogeneidade de uma obra em sua
diversidade. Assim, em Os Pareceres do Tempo (1984), sexto romance do escritor,
aflui decisivamente o traço telúrico”
162
que se intensifica como a marca incisiva e
histórica empenhada em dizer “verdades com aparência de mentiras.”
163
Traço que
marca seu primeiro livro, Cascalho, no qual a brutalidade de uma realidade social é
desvendada como amálgama de uma memória particular e coletiva. Em Os
Pareceres do Tempo a memória individual herbertiana também funde-se ao fictício
e ao histórico a fim de entremostrar dois caminhos: esses que perpassam o escritor
nas suas particularidades biográficas, aliados àqueles que desvendam a memória
coletiva, os quais chamamos História.
Herberto Sales idealizou este sexto romance bem antes de enveredar por
temáticas eminentemente satíricas, vislumbradas, como vimos, naquela trilogia do
escritor na qual linguagem e temática se alinharam no sentido de satirizar a
sociedade atual, inumana em seu burocratismo:
164
O fruto do Vosso Ventre (1976),
Einstein, o Minigênio (1983) e A Porta de Chifre (1986). publicado em 1984, Os
Pareceres do Tempo teve oito anos de pesquisa e seis meses de preparação, e
161
SALES, Herberto. Subsidiário 1, p. 384.
162
BARROS, Franco de. Orelha da 1
a
edição de Os Pareceres do Tempo. In: SALES, Herberto. Os Pareceres
do Tempo.
163
SALES, Herberto. Subsidiário 1, p. 516.
164
Assis Brasil batizou essa fase de “utópica”. In: BRASIL, Assis. Herberto Sales: Regionalismo e Utopia.
129
surgiu inicialmente dos apelos da memória a vontade do autor de escrever um
“romance de família”:
Sempre fui tentado a escrever esse romance porque é a
história do fundador de minha família, o capitão-mor Antonio
Policarpo de Athayde Pereira. Passei minha infância ouvindo histórias
dele, cheguei a conhecer algumas pessoas da família que sabiam muito
sobre ele mesmo em sua fase de decadência, assim como o casarão que
construiu na fazenda Boa Esperança, na Bahia. Até que, um dia,
comecei a colocar no papel suas aventuras e o romance tomou
corpo.
165
(grifo meu)
Nesse processo, no qual o autor foi tomando notas sobre a vida do
antepassado, também pesquisou linguagem, estilo e fatos documentais, pois que
resolveu situar sua história no Brasil do século XVIII. Escrito em “feitio de romance
de cavalaria”
166
e imbuído de um tom aparentemente arcaico, o romance funde
figuras do passado familiar do escritor à contextualização histórica de um Brasil
escravocrata e colonial:
... E recuei no tempo a história. Fiz uma mélange arcaica de épocas,
porque isto dava ao romance o empuxo ambiental, para mim
indispensável, de eclosão histórica, onde eu pudesse mostrar o Brasil
nascendo: o Brasil do português criando com a ajuda do negro escravo
um mundo onde antes havia as matas e os rios que Deus deixara
para o índio. De resto, como em Alexandre Dumas, a História
foi apenas um prego onde eu pendurei o meu romance. (...)
167
Se a História aqui apresenta-se ficcionalizada (e isso é o próprio autor quem
atesta no fragmento grifado acima, além de admitir em sua memorialística os
165
SALES, Herberto. Entrevista. In: O Estado de São Paulo, 31-07-1984.
166
SALES, Herberto. Subsidiário 1, p. 389.
167
Idem, p. 391.
130
anacronismos existentes no romance), o que acontece também, por outro lado, é
verdadeiro: a ficção é historicizada. E isso o autor também confirma:
... Afinal Os Pareceres se relacionam de alguma forma com a História.
(...)
168
Aliando, pois, um livro nascido de motivações biográficas a um pano de fundo
histórico, Herberto conjuga a um tempo os pareceres de uma memória familiar,
particular, aos pareceres de uma memória coletiva. A ficção faz um
entrecruzamento vigoroso com a História, e as significações desse
entrecruzamento emergem através da leitura.
169
A memória literária e histórica
Jean-Pierre Vernant inicia o capítulo dois de seu livro Mito e pensamento
entre os gregos dissertando a respeito de pesquisas do psicólogo I. Meyerson sobre
a evolução da memória individual e coletiva na Grécia Antiga, das quais é
ressaltado que assim como a memória representa “a conquista progressiva pelo
homem do seu passado individual” a história “constitui para o grupo social a
conquista do seu passado coletivo”.
170
Tal evolução da memória do seu aspecto
individual ao coletivo se presentifica inicialmente na mitologia grega a partir de
Mnemosyne, deusa da memória, mentora da poesia lírica e guardiã dos tempos
heróicos, dos feitos memoráveis, da volta às origens. Mãe das Musas, irmã de
Crono, a deusa da memória tem no poeta o seu intérprete: com o dom de ver o
passado, o presente e o futuro, o poeta escolhe o passado como orientação. Esse
168
Ibidem, p. 424.
169
Utilizaremos aqui a abordagem teórica ricoueriana a respeito da relação história e literatura: só a mediação
da leitura permite-nos perceber tanto a historicização da ficção quanto a ficcionalização da História. Cf.
RICOUER, Paul. Tempo e Narrativa, Tomo III.
170
VERNANT, Jean-Pierre. Op. Cit., p. 107.
131
passado então se alarga, abdica de ser meramente individual e busca o “tempo
antigo”, a idade primeva, o tempo original.
171
Partindo desse pormenor, podemos afirmar que a literatura recria o mito
Mnemosyne: na obra literária a memória pessoal do escritor se expande e a história
das coletividades se delineia; seu contraponto, o Esquecimento, Lethe, fonte na
descida ao Hades, água da morte, pertence ao reino das sombras, lugar onde a
consciência temporal de existir se perde e a memória liga-se apenas à função
mnemônica, força do hábito. Aqui se torna imperioso lembrar que na mitologia
grega a separação memória-história ocorre quando no centro da doutrina da
reencarnação das almas, Mnemosyne se transforma: a busca das origens é
esquecida para no seu lugar ganhar atenção as transfigurações das encarnações
sucessivas dos indivíduos. Assim é que a memória se laiciza, desentranhando-se da
história e perdendo o seu caráter cosmológico, nascendo daí a escatologia
negação da experiência temporal e histórica.
172
Nesse sentido, a “nova” História, deixando de lado a tradicional rememoração
historiográfica dos grandes fatos e aliando-se às intrincadas redes desveladoras
prescritas nas memórias orais coletivas e demais discursos,
173
vem conjugar a
memória particular à história das coletividades. Afinal, como assinala Maurice
Halbwachs, são os grupos sociais que determinam as memórias individuais.
174
São
os grupos a família, os amigos, a escola, etc que fazem da memória particular
algo que se historiciza.
Se hoje aceitamos que a História, assim como toda a linguagem, permeia-se
de complexidades tropológicas e por isso não se contrapõe à literatura no que
concerne a tentar discernir o que “de fato aconteceu” pois que a primeira não
deixa de também configurar o mundo através da palavra e de uma redescrição de
171
Idem.
172
Ibidem, p. 115, e LE GOFF, Jacques. Memória. In: __________. História e memória, p. 432.
173
LE GOFF, Jacques. Op. Cit., p. 467.
174
BURKE, Peter. História como memória social. In: __________. Variedades de história cultural, pp. 69-
70.
132
eventos
175
é também consenso perceber as ltiplas verdades que a memória
literária temporaliza. O escritor, ao recriar seu mundo, é o poeta possuído por
Mnemosyne, e suas articulações divinatórias não expurgam o universo temporal,
histórico. Ele é o homem que conhece o passado “porque tem o poder de estar
presente no passado”, e também no presente e no futuro possui ele a sabedoria
inerente da onisciência do divino
176
e do humano.
A memória literária, pois, perpassa o temporal e o histórico além de abrigar o
devir e suas múltiplas e desconcertantes verdades. É o que nos permite ler em Os
Pareceres do Tempo, romance que Herberto Sales escreveu alargando sua memória
familiar com nuances da história coletiva, aliado à uma trama de amor. O enredo,
situado nos finais do século XVIII, e tendo como temática e cenário a Bahia
colonial e escravocrata, é escrito nos moldes clássicos das crônicas oitocentistas
lusitanas. Utilizando uma estrutura antiga, numa linguagem com traços barrocos, o
narrador nos conta a saga de duas famílias portuguesas na Bahia aportadas: os
Golfões e os Rumecões, anunciada desde a epígrafe:
“Os Golfões e os Rumecões, a Cuia d’Água vindos, ou ali estabelecidos;
uns, bafejados pela riqueza, outros pela imprevidência arruinados. Por
sobre eles passou o tempo, firmando os seus pareceres, que já proveito
não lhes trazem, no tornar conhecida a história deles. Mas não será ela
para outros prolixa nem tardia de interesse, que por desprezo fique
ignorada. H.S. ”
A possível denúncia ao Brasil escravocrata do século XVIII que o autor, na voz
do narrador, poderá ter como objetivo, está circunscrita na ironia degustadamente
trabalhada do seu estilo, ora nos realces lingüísticos asperamente apresentados (a
realidade escravagista, o poder dominador do português e a submissão do mais
175
WHITE, Hyden. Trópicos do Discurso.
176
VERNANT, Jean-Pierre. Op. Cit., p. 109.
133
fraco), ora na poesia que se incorpora à história de amor dos dois personagens
românticos da trama. Ironia, aliás, configurada, inicialmente, na própria aparência
de linguagem arcaizante, desde a epígrafe à dedicatória, e ao “Prefácio do Autor,
este um cronista-personagem que se esconde ironicamente sob o pseudônimo de
Herberto Sales:
... O que quis, com sinceridade sem rebuços, foi correr ao seu encontro para
preveni-lo de que não irá ler nenhum grande livro, nem mesmo um livro
medíocre. (...) Isto posto, releve-me o leitor o não lhe dar a conhecer
meu nome verdadeiro, tal como se acha ele nos assentamentos do
registros civil de Cuia d’Água. Por motivos que a ninguém dizem
respeito além de mim, pois amo a modéstia por inclinação, e o
retraimento por destino, preferi ocultá-lo no pseudônimo que
assino este trabalho. (p. 10) (grifo meu)
A história dos Golfões e dos Rumecões, da qual o tempo firmou os seus
pareceres, é o que propõe contar o narrador, personagem que a pesquisou a partir
da oralidade e das informações de um remanescente Golfão, então com 132 anos. A
memória ligada à oralidade e à sua transposição para a escrita retoma aqui a antiga
e propalada função do historiador: ser o guardião da memória,
177
ao tempo que
propõe nas entrelinhas que tanto a memória oral quanto a história escrita estão
eivadas de possibilidades desconcertantes, verdades que se esgueiram, pois que
ambas são narrativas terrenos fluidos onde não lugar seguro para dizer o que
“aconteceu de verdade”. O romancista sabe disso muito bem, e utiliza-se dos
mecanismos do real, do fictício e do imaginário para dizer sobre o mundo, sobre o
homem, sobre a vida.
Por isso que não é inocentemente que em Os Pareceres do Tempo a história
do antepassado do escritor se funde à História do Brasil. É como possuidor de
memórias que Herberto historiciza sua história familiar ao situá-la na história do
177
BURKE, Peter. Op. Cit., p. 69.
134
Brasil “amanhecendo” e se miscigenando, quando a escravatura enriquecia os
poderosos como negócio vantajoso e os índios eram catequizados a fim de melhor
servirem aos portugueses. Tal fusão nos diz algo mais, e aqui a função poética da
memória se avulta nos interstícios dos mecanismos tropológicos utilizados na
escritura. Nesse sentido a ironia se destaca, permitindo-nos, ao ler o romance, ter a
impressão do tempo não como uma recriação do que se passou, mas de uma
projeção “ao vivo” do passado em suas mais íntimas verdades.
178
Portanto, se a ligação desse romance com a História é fato evidente, também
aqui é onde a História se delineia mais ficcionalizada. Essa ficcionalização da
História, assim como a historicização da ficção estão entremeadas mesmo pelo viés
da ironia, visualizada inicialmente na própria linguagem que compõe o livro: o
arcaísmo é apenas, como declarou o autor, “uma doce e risonha imitação livre da
linguagem arcaica”.
179
É nesse pormenor que a narrativa nos possibilita ler a
História na ficção e a ficção na História. É a ironia, pois, um dos instrumentos
estruturais utilizados pelo autor a fim de devassar/refletir uma época, assim como
é um dos arcabouços que nos permite pensar o “fazer” literário.
A memória do escritor
O escritor, inicialmente, se deixa ver no romance através do pseudônimo
anunciado no Prefácio do Autorinstalando, em toda a narrativa, um diálogo com
o leitor, posicionando-se sobre a escritura diante do que considera relevante como
instrumento e artifício literário. Essa reflexão é recorrente, como por exemplo
quando o narrador pontua um aspecto decisivo na obra herbertiana: a honestidade
da verossimilhança, herança da tradição oral, elemento que nos livros de Herberto
irá sempre fundir-se ao estilo clássico:
178
FISCHER, Almeida. O amanhecer do Brasil na recriação ficcional. In: __________. O Áspero Ofício, p.
37.
179
SALES, Herberto. Subsidiário 1, p. 443.
135
Sabe-se que, por um gênero de fatalidade literária, os
escritores que nos seus escritos falam de bois, talvez por tê-
los visto apenas no cinematógrafo, sempre o fazem com a
preocupação de levá-los a esparramarem-se no chamado
“estouro de boiada”, que engendram com forte rebusco de
palavras, para afinal o descadearem no papel, a propósito de
tudo, ou a propósito de nada.
A volumosa boiada que trazia Policarpo saiu do Piauí e
chegou à Bahia sem que nenhum “estouro” lhe perturbasse
a marcha. E isto porque, como infelizmente não sabem os
escritores, não nada mais difícil de ocorrer que um
“estouro de boiada”. (...) Nas pesquisas que fizemos a respeito de
estouros de boiada, motivados pelas viagens de Policarpo nos nossos
sertões, ouvimos onze vaqueiros de comprovada experiência, todos
eles concordes em que muito dificilmente ocorre esse tão
propalada e literariamente festejado fenômeno vacum. De
onde se conclui que o “estouro da boiada” é mais freqüente
nos livros que nas estradas por onde transitam bois. (195-
196) (grifos meus)
Eliminando as distâncias entre personagem e autor, o escritor torna-se
atuante no romance, permitindo, a s leitores, antevermos a própria consciência
do autor Herberto Sales.
180
E como leitores nos entrelaçamos a essa aldeia literária,
na qual personagens fictícios se encontram. É o caso do mestre Manuel, um
ancestral do mestre Manuel de Jubiabá, de Jorge Amado, incluso como
personagem em Os Pareceres do Tempo:
Mais tarde, acompanhado do Almeidão, foi Policarpo Golfão com
Quincas Alçada entrevistar-se com o dono da embarcação que o
levaria a ele e mais os escravos até Cachoeira. Chamava-se o
homem Manuel, e tratado era por mestre Manuel, dada a
sua competência náutica em viagens pelos portos da Baía de
180
GROSSMANN, Judith. O Parecer dos Pareceres. In: A Tarde Cultural, 19.09.92, p. 3.
136
Todos os Santos, suas ilhas, e, adentrando o rio Paraguaçu, que ali
desembocava, (...) (54) (grifo meu)
Confessa Herberto, no Subsidiário, a relação que tem com tal personagem,
nascida dos fascínios recrutados da leitura:
... nos Pareceres do tempo eu inventei entre as minhas
personagens um talvez bisavô ou tetravô português do
baiano Mestre Manuel, personagem de Jubiabá. (...) Mestre
Manuel de Jubiabá, personagem que me ficou na memória e
na alma quando li fascinado o belo romance de Jorge. (...) ...a
minha personagem, homem do mar, descende de uma família de
homens do mar da Póvoa de Varzim. (Aproveito para dizer que
com isso quis homenagear o Eça, depois de por três dias
haver curtido a Póvoa e adjacências ecianas, numa viagem
que com esse especial fim fiz a Portugal.) O meu português da
Póvoa também se chama Manuel; e o seu barco, tal como o saveiro da
personagem de Jorge, tem por nome Viajante sem Porto. (...)
181
(grifo
meu)
É o próprio mestre Manuel herbertiano quem confirma sua genealogia,
sugerindo a continuação – que aqui se fará através de outras leituras e outras
escrituras – de uma grande família:
- É que esse nome foi dum barco do meu pai disse Mestre
Manuel. – Enfim, se isto é verdade, também verdade é que vivo de
porto em porto com o meu barco como se porto não tivéssemos ele
e eu (...). Não me parece mau esse nome Viajante sem Porto. Não
o acho nada estranho. E espero é que o Manuelzito, meu
único filho homem, quando mais tarde lhe houver
chegado a vez de me substituir, que seja ele também um
mestre e que tenha também o seu Viajante sem Porto,
que haverá de tomar o lugar do meu. (55)
137
Na “bela região do Recôncavo”, onde estão presentes mestre Manuel e seu
barco, também se encontram os rastros literários de um futuro escritor, Jorge
Amado, e de um novo mestre Manuel, descendente daquele (este que na verdade
foi seu precursor), vaticinados por uma pré-visão (pós-visão) histórica-literária:
Praza a Deus que, em dias que hão de vir, encontre essa
bela região do Recôncavo baiano um escritor que a descreva
num livro tão belo quanto ela, que corra o Brasil e o próprio
mundo; e que, captando toda a poesia que docemente a
impregna, fale dos seus saveiros e da sua gente, talvez dum
novo Viajante sem Porto, talvez dum novo mestre Manuel.
(65-66)
Essa clara intenção do autor ao resgatar, na verdade, três personagens
(mestre Manuel, seu barco Viajante sem Porto e Jorge Amado), revela-se como
desejo de uma dialogação infinita entre obras literárias. Ao realizar isso, sugere,
nas entrelinhas da narrativa, não a identidade do romance como artifício, como
os resultados da recepção da literatura e de seus efeitos: aqui a ficção se desnuda,
182
assim como sua historicidade.
181
SALES, Herberto. Subsidiário 3, pp. 27-28.
182
Cf. ISER. Wolfgang. “Desnudamento da ficcionalidade”. In: __________. O Fictício e o Imaginário, p.
29.
138
II. A HISTÓRIA FICCIONALIZADA E A FICÇÃO HISTORICIZADA
Da história à História
O narrador cronista antigo –, contador de histórias da oralidade com
evidentes traços clássicos na escritura, reunindo dados orais para contar a epopéia
do protagonista, divide o romance em 54 livros enumerados em algarismos
romanos, sendo que cada capítulo traz inicialmente uma sinopse o “Argumento”
do que se lerá a seguir. O gênero épico configura-se no tom da narrativa, assim
como dos feitos narrados, e a história – que circunda a História – debruça-se, como
foi dito, sobre a saga de duas famílias portuguesas na Bahia Golfões e
Rumecões –, entremeada de uma trama de amor. É singular, pois, no romance, a
vinda para o Brasil de Antônio José Pedro Policarpo Golfão. Em virtude de uma
sesmaria a si ofertado pela Coroa Portuguesa como indenização à morte de seu pai,
“tragicamente desaparecido no naufrágio dum barco português, a caminho da
Índia, em missão militar, o que lhe outorgou a glória, que consola e enaltece, de
morrer pela pátria”
183
, Policarpo Golfão aporta em solo brasileiro, baiano:
O primeiro Golfão de que temos notícia chamava-se Antônio José
Pedro Policarpo: Antônio José Pedro Policarpo Golfão,
139
nomeado inteiro, mais crescido nos prenomes, que no sobrenome.
Tudo que a respeito de sua ascendência conseguimos apurar, valendo-
nos de informações ouvidas às pessoas mais antigas da região, é que
ele se declarava filho dum fidalgo português que perecera num
naufrágio, a caminho da Índia. Conquanto não haja documentos
que indiquem, sob a grave proteção dos arquivos, haver
existido em qualquer tempo esse fidalgo, não ousamos pôr
em dúvida tão respeitável versão, que até nós chegou sem
discrepância, robustecida por mais de dois séculos de
tradição local. (...) (11) (grifos meus)
A palavra do cronista antigo é testemunho de fé, não obstante, como ele mesmo
ressalta, a falta de documentos comprobatórios indicando a existência do
personagem protagonista. O que importa é a memória da tradição oral, testemunho
incontestável da História. E é esta História, a História do Brasil nos setecentos que
irá consubstanciar a trama romanesca. Assim, a cidade de Salvador, mais
conhecida como “Bahia”, e o Recôncavo baiano, são vislumbrados no seu cenário
colonial, sócio-histórico: índios, brancos e negros, traficantes de escravos,
dizimação indígena, conquista de terras, e conflitantes relações entre clero, índios e
negros. Personagens e lugares lendários da Bahia são transportados à narrativa,
como Garcia D’Ávila e sua Casa da Torre. Esse grande latifundiário, conhecido
como “senhor e dono da metade da Bahia”, chegara a Salvador como herdeiro de
uma sesmaria doada pela Coroa Portuguesa, em companhia de Tomé de Souza,
portanto no século XVI.
184
Acredito que devido à sua importância na história
baiana, mesmo não pertencendo cronologicamente ao século XVIII no qual o
romance é situado, é que o mesmo aporta em Os Pareceres:
Vários combates se haviam travado ali, entre os portugueses e os
índios, entre os índios e os homens de Garcia d’Ávila. A torre
simbolizava a Lei. E, nela respaldado, em segurança albergado,
Garcia d’Ávila soubera fazer valer os direitos de propriedade que Sua
183
Os Pareceres do Tempo, p. 177.
184
TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia, p. 68.
140
Majestade o Rei de Portugal lhe conferira mediante a doação das
terras daquela região (...).” (176)(grifos meus)
Contestando o que disse Herberto Sales, a História, reportada a esse livro, é
mais do que um prego onde o autor pendurou o seu romance. Nela a memória do
escritor trafega, entre um salto e outro no imaginário. Portanto, se Herberto se
baseou em documentos e fatos históricos para compor a trama romanesca, não
podemos também nos esquivar de dizer, como Hyden White, que “os documentos
históricos não são menos opacos do que os textos estudados pelo crítico literário”, e
que em toda mimese uma deformação: nunca as coisas são de fato como se
pretendem representar.
185
O romancista sabe disso e intencionaliza sua vontade de
representação. No ato de fingir literário não uma oposição tácita como
ingenuamente se pensava entre o real e o fictício, assim como também se
considerava na composição da obra historiográfica. Há muito mais que isso, pois
que o imaginário tanto na obra literária quanto na historiografia se interpõe,
quebrando a oposição (ficção versus realidade) e formando a tríade (real-ficção-
imaginário) que dirá das complexidades existentes na tessitura dos discursos.
186
Na literatura esse jogo é intencional, o artifício é assumido. Em Os Pareceres,
a topologia, por exemplo, consiste em lugares reais como Salvador, Cachoeira,
Monte Alto. Porém, no centro da história está Cuia d’Água, localidade onde se situa
a sesmaria de Policarpo, proveniente, como declarou o escritor, de três amálgamas:
a real fazenda Boa Esperança na qual o antepassado do autor criou raízes, a
existência de um lugar chamado Cuia d’Água, em São Pedro da Aldeia, e,
especialmente, o próprio nome desse lugar nascido da sonora poesia que bem se
adequava a abrigar uma história de amor:
... Com os nomes das duas famílias escolhidos, tratei de escolher o do
lugar da ação. Havia e perto de o Pedro da Aldeia um lugarzinho
com um nome lindo: Cuia d’Àgua. Um nome contente, com um
185
WHITE, Hyden. O Texto Histórico como Artefacto Literário. In: _________. Trópicos do Discurso, p.
106.
186
ISER, Wolfgang. I. Atos de fingir. In:__________. O Fictício e o Imaginário.
141
barulhinho de regato correndo sobre pedrinhas. Água,
aguinha, chumaços de mato molhado. Uma coisa realmente
linda e simples. (...)
187
(grifo meu)
Os recantos do imaginário possuem essa força de criação e rompimento com o
meramente factual. A memória é por si a criação do imaginário, recriação de afetos.
A Fazenda Boa Esperança no livro, Cuia d’Água lugar onde o Policarpo da
“realidade” fincou raízes, está situada nos recantos idílicos da terra natal do
escritor. E se em Cascalho, narrativa que tão bem endossava as ligações telúricas
herbertianas, vemos, com um denso realismo, a saga da exploração diamantífera da
Bahia na sua crua realidade, nesse Os Pareceres do Tempo a flexibilidade inventiva
traduz o pleno amadurecimento do autor no que tange a fidelidade à memória e à
invenção. A memória aqui elastece-se mais, imbricando num vasto tom de
universalidade – tom que dimensiona uma memória particularizada.
De Heródoto a Tucídides, o narrador mostra-se na narrativa ora como um
cronista, ora como um historiador da História. E se o cronista relaxa quanto à
designação fictícia de lugares e personagens, o mesmo não acontece com a pena
exímia do historiador:
Diga-se, aliás, que segundo o autorizado informe que à História
legou D. Francisco da Cunha Menezes, a citada escala nas ilhas de
Tomé e Príncipe, ainda vigente em 1755, contribuíra em muito para
a “notável mortandade ou infecção de escorbuto na escravatura”. É
verdade que, no interesse do comércio de escravos, a insalubre
escala foi abolida em 1800.” (23)
Lembre-se, por oportuno, e porque seria de inevitável dano e
muita perda para a história de Portugal o não lembrá-lo, que os
portugueses, em experiência e perícia náutica no tráfico
de escravos na época, sobrepujaram de muito os
holandeses, seus rivais nesse mister. Quem se dispuser, com
paciência e afinco, a vasculhar o acervo dos arquivos, poderá
187
SALES, Herberto. Subsidiário 1, p. 387.
142
encontrar ao cabo de algum tempo a confirmação desse fato; não
estamos dando nenhuma informação apressada, nem
dizendo nenhuma palavra vã. (24) (grifos meus)
A credibilidade de ambos cronista e pesquisador , se firma mesmo é na
conotação reflexiva que a ironia permite e isso podemos constatar nos
fragmentos expostos do romance que fará com que a História, ficcionalizada,
ganhe comprovação de coisa acontecida. Ademais, o narrador já historicizou a
ficção a partir de seu tom de passadidade: a voz que fala, contando o que lhe
correu, favorece essa credibilidade ao leitor.
188
É por esse viés que o narrador, de
uma maneira sutilmente irônica, conta-nos como se dava a chegada dos negros à
Bahia colonial:
Chamava-se Chega Negro o local onde aportavam os navios negreiros
que, enfrentando com denodo os grandes riscos da travessia oceânica,
traziam da Costa da Mina, na África, os escravos a serem utilizados no
trabalho braçal em terras da Bahia. Reconheça-se que a designação
Chega Negro era deveras adequada, e tudo indica que tenha
resultado de uma dessas tão típicas manifestações da verve popular,
muito próprias, aliás, dos baianos. Não se estranhe, porém, se a
designação se devesse ao próprio negro ali desembarcado, visto que ao
negro não é de todo alheia a prática da graçola. (18)
189
É contundente a ironia. Para compreendê-la é necessário perscrutá-la nesse
romance naquilo que demonstra de originalidade, de voz que funda uma narrativa.
A palavra ironia entrou no senso comum com ltiplas variantes, e talvez a
definição que a tenha generalizado seja aquela que a conceitua como “algo que ‘diz
uma coisa mas significa outra’, como uma forma de “elogiar a fim de censurar e de
censurar a fim de elogiar”, e como um modo de ‘zombar e escarnecer’”.
190
No cerne
188
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Tomo III, p. 329: “... Entrar em leitura é incluir no pacto entre o
leitor e o autor a crença de que os acontecimentos relatados pela voz narrativa pertencem ao passado dessa
voz.”
189
O “Chega Negro” realmente existiu, e hoje se situa no subsolo do Mercado Modelo.
190
MUECKE, d.c. Ironia e Irônico, p. 33.
143
de tal definição uma carga negativa diante de uma certa ridicularização que
no meramente sarcástico. A busca de uma teoria que esteja mais próxima à
sutileza irônica permeada no estilo de Os Pareceres me leva a pesquisar não mais
aos múltiplos conceitos de ironia, mas a sua raiz profunda: o humor. Aquela
conceituação de Pirandello (apud Bosi) da qual o sentido maior do humor vai além
da comicidade, acolhendo o emocional e aderindo ao afetivo, talvez seja a que mais
se coaduna à ironia herbertiana. Humor como sentimento de contrários, que leva o
riso a não se perder no ridículo, mas ao acolhimento da matéria humana tomada
como contemplação.
191
Porém, no mesmo ensaio de Bosi sobre o texto de
Pirandello, palavras como humor e ironia se atropelam no senso comum deixado
como estigma do conceito de ironia resvalado tão somente ao escárnio, quando o
mesmo declara: “Se a tantos se o nome de humorista (...) é porque se labora no
equívoco de confundir esse poderoso fruto de uma grande concentração de alma
com as formas brilhantes da ironia, sorriso zombeteiro dos que se
restringem a dizer o inverso do que pensam, sem aderir
emocionalmente nem ao que dizem, nem ao que pensam”. (grifo meu) E
reafirma a seguir: “Humorismo não é jogo de palavras, não é ter esprit: é sentir e
ressentir a agonia dos contrastes.”
192
Friedrich Schlegel estabelece a relação da ironia com o humor ao afirmar que
“o contraste entre o homem com suas esperanças, medos, desejos e
empreendimentos, e um destino obscuro, inflexível, propicia abundantes condições
para a exibição da ironia trágica”.
193
E A. W. Schlegel fala da ironia em Shakespeare
relacionada à consciência “da influência quase inevitável dos motivos egoístas na
natureza humana”. A ironia perde, enfim, o caráter meramente zombeteiro e adere
à condição humana. Eis, pois, a ironia aliada ao sentido maior da expressão de
humor. Eis, portanto, a teoria que mais se aproxima da ironia herbertina, a fina
191
PIRANDELLO apud BOSI, Alfredo. Um conceito de humorismo. In: ________. Céu, Inferno, p. 189.
192
dem.
193
Apud MUECKE, d.c. Op. Cit, p. 38.
194
PÓLVORA, Hélio. Entrevista imaginária. In: Memorial de Outono, p. 21.
144
ironia que sedimenta Os Pareceres, e que i permitir tanto a historicização da
ficção quanto a ficcionalização da história.
No último livro de crônicas de Hélio Pólvora encontramos a seguinte
definição, ouvida da voz do escritor itabunense: “A ironia é a expressão superior do
humorismo. É a única arma de que dispõe um pobre homem de Itabuna.
194
Expressão superior do humorismo e arma: essas são talvez a mais completa
definição de Ironia, acoplada àquela da compaixão ao sentimento dos contrários,
que irá bem definir o humor estilístico de Os Pareceres do Tempo.
Com tais definições, nas quais ao riso cáustico se traduz também à compaixão
humana, continuemos à leitura desse romance. Aqui o jogo de palavras a que se
reporta Bosi para conceituar a ironia, não acontece. O que acontece é uma
narrativa desbragadamente desvelada, como “pitadinhas de sal” (assim Goethe
definiu ironia).
195
Inicialmente, tratemos dessa ironia como combate, como arma
de denúncia, para em momentos posteriores pensarmos na ironia como
compaixão. Ora, para narrar o tráfico de escravos e a participação efetiva da Igreja
nesse comércio, o narrador o faz de maneira direta, sem atavios, enfatizando a
legitimação do tráfico a partir da figura emblemática do padre traficante em sua
habitual negociação:
E contou, ainda, o padre Salviano Rumecão a seu amigo Quincas
Alçada, que, tendo conseguido afinal deixar a paroquiazita de Trás-os-
Montes, obtivera o lugar de capelão do navio Salve-Rainha,
agora aportado, e se dedicado, desde algum tempo, ao tráfico de
escravos entre a África e o Brasil, ou, mais exatamente, entre a Costa
da Mina e a Bahia. Ganhava relativamente bem, pelo menos
bem mais que na paroquiazita de Trás-os-Montes; além
disso, tinha do capitão do navio permissão de traficar até
cinco escravos em cada viagem. E o trabalho a bordo não era
195
MUECKE, d.c. Op. Cit., p. 19.
145
desinteressante, ao contrário, era não apenas construtivo,
como reconfortante para um sacerdote. Havia que batizar
todos os negros, segundo os mandamentos da Santa Madre
Igreja, cristianizá-los, para que assim se salvassem e
saíssem das trevas onde até então tinham vivido. E, se
estavam a morrer, como muitas vezes acontecia durante a
travessia oceânica, era levar-lhos a extrema-unção,
colocando-os sob a proteção da misericórdia divina, na
passagem desta para melhor. (28) (grifos meus)
A fala acima do padre traduz a Salvador do final do século XVIII, que na época
tinha aproximadamente sessenta mil habitantes e era conhecida como cidade-
porto: muitos produtos eram comercializados, sendo o tabaco utilizado no resgate
de negros vindos da Àfrica.
196
Além de perfazer-se em renda, o tráfico de escravos
era legitimado pela elite social e a escravatura vivenciada com extrema
naturalidade:
... Acorrentaram-nos assim uns aos outros, deixando-se-lhes todavia
livres os movimentos das pernas, para que pudessem caminhar;
quanto aos braços, foram devidamente imobilizados, com o
conservarem-se esses membros atados por trás; e, ainda, enrolou-se-
lhes em volta do pescoço uma comprida corda, com nós corrediços,
que eventualmente lhes apertariam a garganta, a ponto de
estrangulamento, se porventura intentassem fugir. O encarregado da
locomoção deles, cognominado capitão-do-mato, puxava-os pela
ponta da corda, evitando todavia esticá-la.
(...)
O levar ou trazer escravos assim acorrentados e amarrados,
(...), era fato assaz corriqueiro naqueles tempos, nas ruas da
Bahia: ninguém lhes prestava atenção, ou quase ninguém.
196
VILLALTA, Luiz Carlos.A Bahia: porto do “continente do Brasil”, porta para o mundo”. In: _______.
1789-1809 : O império luso-brasileiro e os Brasis, p. 97.
146
Não se desdenhasse, entretanto, da possibilidade de um ou
outro transeunte, vendo-os passar por essa forma
acorrentados, apiedar-se deles em algum momento. (pp. 57-
58)
Tal naturalidade e legitimação da escravatura torna-se mais contundente no
romance a partir da invocação irônica do pai de Jesus Cristo como patrono do
tráfico de escravos, realçando semanticamente a crítica nada amena à Igreja
Católica:
... a escolha dessa atividade recaíra no tráfico de escravos, por ser ela,
além de lucrativa, de muita respeitabilidade na Bahia. Ademais, quase
todos que a ela se entregavam eram portugueses, não os de inferior
condição social, coitados, mas, ao contrário, os de mais representação
na colônia; e, tanto isso era verdade, que os portugueses traficantes de
escravos tinham mesmo a sua Irmandade própria, que cuidava dos
seus interesses deles na sociedade civil e no foro; e que constituía a
dita Irmandade, em suma, uma respeitabilíssima entidade
sócio-jurídica, que se organizara sob a grave invocação de
São José. (...) (20) (grifo meu)
O superlativo “respeitabilíssima” e o adjetivo “grave” utilizados para acentuar o
disparate da invocação a São José a uma irmandade ao tráfico, bem sublinham a
ironia e a crítica subjacente do narrador. Ironia como arte de combate retroativa,
crítica entranhada no dissimulado humor que zomba a partir da falsa fisionomia de
um tom sério:
[Ainda sobre o padre Salviano Rumecão]
... Ganhara, porém, em experiência, e não pouco; as dificuldades que
atravessara, se por um lado lhe haviam ensinado a sofrer com
resignação, para assim poder melhor servir a Deus, também o
tinham feito descobrir uma verdade a um tempo simples
e profunda: o espírito religioso será tanto mais forte quanto
147
mais imbuído esteja de espírito prático. A propagação da ,
dos ensinamentos da Igreja; o empenho em manter os fiéis à
salvaguarda do Demônio, pregando-lhes a palavra de Jesus, e
ensinando-lhes a serem justos uns para com os outros; o piedoso
pastoreio das almas, para manter em fervorosa união o rebanho de
Deus se, de fato, todas essas altas atribuições dignificavam
e elevavam a missão do sacerdote, não havia, na prática,
como preterir, no exercício delas, a pecúnia, a remuneração,
o santo e rico dinheirinho. (...) (27-28) (grifos meus)
Paralelamente, visitando uma página da história oficial da Bahia,
encontramos algo mais ameno no que diz respeito à posição da Igreja no período
colonial: “Na fundação, crescimento, progresso e evolução espiritual e material da
cidade do Salvador, como de tôda a Bahia, a Igreja Católica exerceu um papel
ativo e preponderante. Principalmente na formação moral e na
educação do povo baiano” (grifo meu). A informação continua a seguir:
“Além dos jesuítas, religiosos das Ordens do Carmo (carmelitas), de
São Bento (beneditinos) e de São Francisco (franciscanos), agiram
no sentido de educação moral, cívica e humanista do baiano,
tanto da cidade do Salvador como nas povoações, vilas e
cidades do interior da Bahia.(...)
197
(grifo meu)
Percebemos o quanto os dois discursos o literário e o historiográfico se
distanciam. Enquanto o primeiro tende a um desvelamento, a uma reescrita da
história, o segundo se aplica a dar continuidade à “velha” história dos grandes fatos
e da idealização do colonizador. Enquanto o primeiro se atém à crítica, o segundo
se confirma como discurso dogmático.
É com sua pátina de romance antigo - ao mesmo tempo antigo e moderno
que Os Pareceres estabelecem, assim, ao leitor uma das mais sutis maneiras de
ironia, de crítica historiográfica, de arma de combate. Entremeia-se nele uma
197
TAVARES, Luís Henrique Dias. Op. Cit., p. 74. É importante ressaltar e se levar em conta a data de
publicação dessa obra historiográfica (1969) e as incessantes revisões feitas pelo autor ao longo dos anos.
148
interseção entre o que é passado e o que é atual, ou supra-atual. Salientou bem
Judith Grossman, “Os pareceres (sic) têm a qualidade intrigante e simultânea de
um quadro antigo e de um quadro ultramoderno, em que o cetim de um e as farpas
do outro pudessem, mágica e misteriosamente, estar combinados”.
198
Ou seja, a
época antiga nos permite vislumbrar o que continua a acontecer diante do
“acabamento e o inacabamento da época em questão, o nosso acabamento e
incabamento de hoje”.
199
Assim, passado, presente e, provavelmente, futuro estão –
até não sabemos quando interligados sob os pareceres cruéis do Tempo, juiz de
nossa triste condição, pois o que acontecia como jogo de interesses no século XVIII
como por exemplo o uso de propinas , permanece insolúvel na atualidade, e
é possível mesmo ao Tempo dar esses pareceres.
O próprio narrador atesta no seu “Argumento” (Livro XXII) tais verdades, a
partir da conseqüência de um desses fatos reincidentes e, diria até, atemporal: “De
como, na sua conversa com Quinças Alçada, teve Policarpo Golfão notícias do
hospedeiro Almeidão e dos efeitos do Alvará de Sua Majestade o Rei de Portugal
sobre o transporte de escravos da África para o Brasil” (p. 125) (grifo meu). Esse
alvará o leitor tomou conhecimento no “Livro X”: tratava-se de uma ordem da
Coroa Portuguesa à limitação na carga de escravos nos navios negreiros, pois que o
tamanho destes era pequeno em relação à quantidade de negros, de maneira que
muitos chegavam mortos, ou em estado deplorável, propagando doenças. O que
acontece, pois, como atesta o narrador, ainda na sua sinopse (o “Argumento”), é
algo que parece mentira: “Onde mais uma vez, evoca-se o testemunho da História
em fatos verdadeiros, conquanto aparentando mentiras” (p. 125):
Segundo o Almeidão, o famoso alvará, que mandara limitar a
carga de escravos nos navios negreiros, sob o pretexto das
inconveniências sanitárias que a superlotação deles acarretava, mas
que em verdade produzira resultados danosos para o tráfico não
surtira efeito. E isto porque, como em pouco tempo
198
GROSSMANN, Judith. Op. Cit., p. 3.
149
puderam constatar as gentes, o alvará passou a ser apenas
uma oportunidade a mais para a cobrança de novos
emolumentos; em conseqüência disso, do humano resultado que
essa nova cobrança suscitou, a propina instituiu-se em praxe,
começou a correr frouxa, desde o provedor-geral, que
recebia pela arqueação dois mil-réis, ao escrivão, que
percebia vinte, passando pelo procurador, que, como o
provedor-geral, também recebia dois mil-réis. Assim, os
navios continuavam superlotados, com evidente proveito para todas as
gentes que empregavam o seu rico dinheirinho no tráfico de escravos.
(126) (grifos meus)
Mais uma vez é o historiador, munido de documentos comprobatórios, quem
atesta e “dá fé” à verdade histórica, talvez numa oportuna crítica aos antigos
historiadores que acreditavam serem os documentos o maior alvo de credibilidade
da História:
Cabe aqui, por oportuno, e no interesse dum enriquecimento da
pesquisa que levamos a efeito nos arquivos baianos, lembrar que um
douto historiador, o conselheiro Rodrigues de Brito, registra que a
corveta Joaquim Augusto aportou à Bahia com “216 escravos mortos
na viagem, fora os que faleceram depois da entrada da corveta no
porto”. A citação está conforme o texto de origem. (127) (grifo
meu)
Diante do tom sem máscaras da História contada no romance, notamos o
quão rígida, máscula, impiedosa
200
se mostra a verve do narrador. Isso porque a
História não é aqui atenuada em cores suaves, a fim de obedecer a padrões oficiais,
mas tudo é ironicamente desvelado as explorações ao negro, a fraudulenta
catequização ao índio e a impiedosa colonização portuguesa:
199
Idem.
200
BARROS, Franco de. In: SALES, Herberto. Op. Cit.
150
E, não tivessem eles cuidado com os escravos que necessitavam
comprar. Disto, ele próprio, padre Salviano Rumecão, de bom grado se
encarregaria, cedendo-lhes, a preço de tabela, os cinco escravos que
consigo trouxera a bordo do navio Salve-Rainha. Eram peças de
vária idade, e escolhidas a dedo, de dentadura completa,
alva e rija, e de rijos músculo braçais: mercadoria de
primeira ordem. Iam ver, os seus dois compatriotas e
amigos, que beleza de animais! (32) (grifo meu)
Num contraponto novamente ao discurso da história oficial, ouviremos a partir da
voz do historiador baiano Luís Henrique Dias Tavares uma outra fala no que
concerne à mesma temática da escravatura:
“Mas, conquanto escravos, sem a menor liberdade, tratados às
vezes como animais, os negros africanos não deixaram de se ligar
com o colonizador europeu. Muitas circunstâncias facilitaram a
aproximação: o regime das grandes fazendas, com o sobrado ou casa-
grande e a senzala ao lado ou na parte baixa da habitação, a pequena e
pobre vida social com as únicas diversões das festas religiosas, missas
e procissões tudo isso estreitando as relações e conduzindo
ao acasalamento de brancos e prêtos.”
201
(grifos meus)
Confrontando os dois discursos, percebemos o distanciamento de ambos. É
preciso salientar porém, que a “nova” história vem de encontro a esse tipo de
discurso dos “grandes vencedores”, a partir de uma nova reescritura
historiográfica. Caso exemplar é o de Ecléa Bosi com sua pesquisa sobre a história
brasileira a partir da memória oral dos velhos.
202
Conquanto isso aconteça, o que
foi ensinado pela História oficial de alguma maneira ecoa ainda como resquício
dessa velha história, por isso o contraponto é inevitável. Isso demonstra a
201
TAVARES, Luis Henrique Dias. Op. Cit., pp.38-39.
202
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade – Lembranças de Velhos. (Primeira edição:1979).
151
importância da literatura como inovação do discurso que se historiciza e desvela
passados.
Nesse caso, a História de um país nascendo, habitado por portugueses,
negros e índios, e suas múltiplas e desconcertantes verdades, amalgama-se à
história-odisséia de Policarpo. A forma e o conteúdo interligam-se a fim de que tais
histórias se desdobrem, e esse desdobramento é firmado pela linguagem. Esta se
constrói em dois tons: áspero e lírico. Dura e impressionista, como a narrativa de
Cascalho, vigorosa e bem humorada, cruel e terna, Os Pareceres do Tempo
ficcionalizam uma história de amor historicizando-a, e ficcionalizam, com extrema
validade, a História do Brasil. através da leitura esses intercâmbios se realizam,
e nela a ficção naquilo que parece mentira desvenda “os possíveis ocultos no
passado efetivo”,
203
o chamado passado “realmente” acontecido. Conjugação que só
a arte literária permite. Atestou bem Gilberto Freyre ao afirmar ser esse romance
“uma história social realmente válida” haja vista seu autor conseguir elaborar a
“miscigenação” difícil entre história e literatura.
204
A história de amor de Policarpo e Liberata está indissoluvelmente atada à
História da formação do Brasil, ponto por ponto, pois que ambos estão muito mais
que subjugados ao jugo cronológico da época contextualizada. O narrador pontua
ironicamente as intrincadas relações humanas existentes no Brasil-Colônia, a fim
mesmo é de lançar luzes sobre o que conhecemos ou não sobre a História do Brasil:
- Não tenha cuidado, capitão Policarpo – tornou o fidalgo. – Os
maracás são índios pacíficos. No princípio não direi que o fossem.
Se o branco facilitasse, vinha uma flechada traiçoeira,
arremetida com fúria de dentro do mato. (...) Ah, meu nobre
amigo capitão-mor Policarpo Golfão, saiba que as
flechadas dos maracás dilaceraram a carne generosa de
muito português que veio ter, sem embargo de achar-
203
RICOUER, Paul. Tempo e Narrativa. Tomo III, p. 331.
204
FREYRE, Gilberto. Contracapa à Segunda edição de Os Pareceres do Tempo. In: SALES, Herberto. Os
Pareceres do Tempo.
152
se em perfeita ordem a documentação das terras de que
lhe cabia tomar posse. (82) (grifo meu)
As complexas relações que envolvem portugueses, negros e índios,
respectivamente, deixam-se ver num momento ímpar do romance: nas linhas e
entrelinhas da “festa da cumeeira” de Policarpo:
E vieram os escravos e fizeram uma roda, e entraram a dançar,
batendo com os pés no chão, como a marcar o compasso da dança.
Todos lhe acompanhavam os movimentos, interessados e
curiosos, aboletados nos bancos removidos da mesa.
E cantava um negro:
Taratatara Kundê.
E os outros respondiam, em coro, agitando os braços:
Ogum de lê
Oya jambá
Maion gongê.
Ninguém entendia o que diziam, o que cantavam eles; mas as
palavras, os sons da cantoria deles, impressionavam pela
tristeza profunda e doce, pela dorida melacolia que
comunicavam, ao mesmo tempo em que eram carregados
duma aspereza de imprecações dramáticas.
Kawô
Kawô
Oyá ajô.
Ao contrário dos negros, os índios conservavam-se em
silêncio, no mesmo lugar onde desde o começo estavam.
Trocavam entre si, às vezes, um olhar, mas, entre si, não se
falavam. Ou falavam entre si com os olhos. (135-136) (grifos
meus)
153
No fragmento acima podemos perceber o quanto essas relações conflitantes
estão sutilmente “pontuadas” pelo narrador. Na narrativa não é imposto um ponto
de vista declarado, uma opinião objetiva. É o leitor quem construirá o ponto de
vista que lhe cabe. Em contrapartida, tal ponto de vista é irrefutável quando nos
deparamos com a aspereza irônica do estilo do narrador diante das “eficiências” da
chibata:
... Os escravos iam muito bem em sua faina de obrigação,
fazendo, com obediência louvável, e rápida adaptação, tudo
que se lhes mandava fazer. Devia-se isto à eficiência do José
do Vale, o capitão-do-mato, e do Bertoldo, que com
eficiência não menor o auxiliava no árduo e difícil mister de
lidar com a escravatura e pô-la a trabalhar. (...) (104) (grifo
meu)
Por outro lado, não nenhuma idealização ao índio, este não é
declaradamente delineado como vítima ou herói. Aliás, todos ali são seres
humanos, apenas seres humanos, pessoas de seu tempo. E é possível ler o quão
complexas foram essas relações humanas, às vezes intensivamente enigmáticas ao
demonstrarem uma falsa e aparente tranqüilidade.
E por três ou quatro vezes, naqueles dias, foi Policarpo Golfão até
ao aldeamento dos índios maracás, estreitando o relacionamento que
começara quando lhes foi apresentado pelo padre Gumercindo como o
dono verdadeiro e legítimo das terras onde viviam e trabalhavam eles.
Um dos índios, Sinimu, que ao ser batizado recebera o nome cristão de
Nicodemos, era dentre todos o que falava melhor o idioma português,
tanto quanto possa fazê-lo um índio. Desde logo Policarpo o elegeu,
não apenas em intérprete, mas também em intermediário entre ele
Policarpo e os demais índios. Esse índio Nicodemos (ex-Sinimu),
além da virtude de se fazer entender bem em português,
muito melhor ainda entendia o que na sua língua de índio
diziam os da sua nação; tinha inteligência razoavelmente
154
desenvolvida, havendo assim aproveitado muito ao dito
Policarpo. (...) (105-106) (grifo meu)
O índio Nicodemos (ex-Sinimu), cacique da tribo maracás, terá no romance
uma representação intensa dessa complexa relação branco-negro. Índio aculturado,
surge sempre na narrativa com o seu nome de batismo português e o seu nome
indígena entre parênteses. Com tal expediente, sugere-nos o narrador a intensidade
dessa aculturação, efetivada pela Igreja Católica:
... O padre Gumercindo, que o conhecia muito bem e muito bem
lhe conhecia as virtudes de índio albergado no cristianismo, emitiu a
respeito dele a sua palavra de fé: o Nicodemos era obediente, temente
a Deus, e aprendera sem esforço demasiado a ajudar à Santa Missa.
Era ele o cacique dos maracás. (106) (grifos meus)
Os volteios tautológicos grifados no excerto acima nos dão bem a idéia da
complexidade dessa aculturação, levando-nos a conhecer um Brasil que muitas
vezes não foi mostrado pela História oficial. Assim, o romance, a partir da
dramática e poética trama de amor de Policarpo e Liberata, recompõe uma época e
emite os pareceres, tanto da História quanto da Ficção, dando-nos a perceber, em
seus mecanismos estruturais (forma e tema), o sentido de denúncia retroativa e
atual.
205
De um estilo impiedoso ao poético “embalo de amor”
Os Pareceres do Tempo é, sobretudo, uma história de amor”, diz-nos Franco
de Barros na orelha da primeira edição do romance. E se até então, na obra
herbertiana, havia uma lacuna no que concerne a uma vigorosa história de amor,
aqui é ela que determina as demais encenações. Tudo: ambiência, época, locais
estão no romance a fim de compor o encontro amoroso de Policarpo Golfão e
205
PARK, Dong Won. A Técnica Narrativa Realista em Herberto Sales. Dissertação/UnB, 1986, p. 105
155
Liberata Rumecão. Amor contrariado, tendo a História do Brasil como cenário.
Amor que se materializa diante dos traços que evidenciam seu tempo: não é à toa
que se insinua no enredo um quase provável triângulo, pois que a negra Gertrudes
também ama Policarpo, seu senhor. Entretanto, tal relação não se efetiva, e
Gertrudes cresce no seu papel, fugindo a um destino previsível.
Por ser, essencialmente, uma história de amor (tanto de Policarpo e Liberata,
quanto do nascimento do Brasil), Os Pareceres do Tempo intercalam duas
linguagens, aparentemente antípodas a áspera e a poética, ambas afeitas ao
deslumbre do nascimento, tanto do amor quanto de uma nação. Aqui a degustação
surge ao apreciarmos a embriaguez de um Brasil nascendo com sua natureza
virgem, sua mistura de raças, os usos e costumes de sua gente e a imensidão de um
território “praticamente sem limites”.
206
Tal paisagem, realmente, é bela; é bela e doce. o
testemunhamos nós mesmos, mais de uma vez, em
eventuais viagens que fizemos na região. Copiosa passarada
canta na mata ribeirinha, voando e revoando pelos ramos; e
a mata, essa, ora se esgarça no seu verde refolhudo,
entremostrando nas áreas cultivadas bueiros de engenhos e arcadas
senhoriais de casas-grandes, ora se adensa numa muralha sombria,
que parece ter em si oculta e encerrada uma doçura de
paraíso. (...) (65) (grifo meu)
O amor de Policarpo e Liberata transborda desse manancial descritivo, e surge
quando Policarpo, ao visitar o Ouvidor-mor Teodoro Rumecão, pai de Liberata
no Solar dos Sete-Candeeiros, finalmente conhece sua amada.
Ainda não haviam eles dado entrada no solar, quando Policarpo
Golfão teve a sua atenção despertada para uma formosa jovem que,
206
GROSSMANN, Judtih. Op. Cit.
156
mostrando-se ao sol, e tendo por ele realçada a sua beleza, estava
debruçada numa das janelas. Eram os seus cabelos muito negros, e
caíam-lhe em tranças sobre o busto, emoldurando-lhe o rosto
gracioso. Pareceu-lhe ela a Policarpo Golfão como se fora
uma flor, ou uma luz, porque era luzente como uma estrela
a sua figura gentil. E, por um instante, cruzou-se com o dele o olhar
dela; e, embora tendo ela logo desviado, num recato, o olhar que nele
pusera, não o desviou a tempo de evitar que, como tocado duma
chama, se incendiasse de amor o coração dele. (...) (33-33) (grifo meu)
Liberata nome real da esposa do antepassado do autor, Policarpo Athayde,
presentifica-se no romance com todo o esplendor de seu nome. Esplendor regido
pelo estilo lírico do narrador, que extrai desse nome sua íntima ressonância
musical:
... Policarpo Golfão, sem que o pudessse evitar, repetia todo o tempo
consigo mesmo, com desvelado afinco, o nome da formosa donzela:
Liberata, Liberata, Liberata. E aos seus ouvidos soava como uma
música o nome dela, conquanto mentalmente ele o
proferisse, de si para consigo fazendo-o. Liberata, Liberata,
Liberata. (...) (33) (grifo meu)
Assim, se o narrador mostra-se verbalmente irônico e impiedoso com a
História que contextualiza, é com enlevo e doçura que se debruça sobre a história
de amor de Policarpo e Liberata. Cuidando antecipadamente das finanças a fim de
viver o seu amor (“porque mesmo quando o amor sobejava à fortuna, era a fortuna
que prevenia o futuro do amor”
207
), Policarpo vai em busca da sesmaria, viajando
dias e noites até chegar a Monte Alto e, principalmente, a Cuia d’Água. Esse
percurso é visualizado sob o matiz épico e poético:
E rolaram dias, e rolaram noites. Por duas vezes mudou a
lua, e por duas vezes apareceu no céu a lua cheia. A mata,
207
Os Pareceres do Tempo, p. 193.
157
que no tempo de escuro, quando umas poucas estrelas
faiscavam no céu, era uma presença invisível na noite
tenebrosa, ganhava com o luar uma dimensão de irrealidade
velada, onde tudo se rendia a uma nova ordem de coisas, a
sombra transformando-se em luz, o terror transformando-
se em mistério, a solidão adoçando-se em saudade. Nessas
noites, Policarpo Golfão vinha para fora da sua barraca; e ali,
contemplando a noite alumiada das alvuras da lua, entregava-se aos
caprichos duma doce e obcecada fantasia, que o fazia esquecer a
própria viagem, para só pensar em surpreender, de um momento para
outro, em algum recanto da mata enluarada, caminhando em
sonho para ele a visão da sua amada Liberata. (72) (grifos
meus)
Este amor será, em todo o romance, ilustrado pela beleza virginal do amanhecer
sempre surgindo a embalar o nascimento das coisas, os sonhos de Policarpo, as
idealizadas esperas por Liberata.
... partiu Policarpo Golfão de Cuia d’Água de madrugada, com os galos
cantando no terreiro, e no céu uma tênue e macia luz se
acendendo. Hora auroral e fresca, a natureza como a
estremunhar com o vivo, estrepitoso trote das alimária em
marcha, que ia acordar nos ramos os passarinhos. (...) (156)
(grifo meu)
Também será o amanhecer a marca nítida das relações de Policarpo com o outro
amor – suas terras, a sesmaria herdada “nos domínios de Cuia d’Água”.
... o primeiro amanhecer em Cuia d’Água, com o assobio da
brisa da madrugada no capinzal e os recantos murmurosos do rio
tingindo-se dos tons róseos da aurora, enquanto lentamente se
desfaziam no ar as últimas sombras noturnas. (...) (84) (grifo meu)
158
O amanhecer, de uma certa maneira, marca a narrativa, desde sua fabulação ao
sentimento maior instalado na alma de quem a escreveu. Revela Herberto, no seu
livro de memórias:
Sempre me fascinou o amanhecer. O dia vindo e vindo aos
poucos, suave luz que em floração desabrochando vem o dia, o Dia,
silencioso caminhante que vai deixando pelos caminhos, como se as
semeasse as sementes tenras da madrugada. (...) Quando em
inesquecíveis dias escrevia o meu romance Os pareceres do
tempo, fui muitas vezes esperar na varanda do apartamento
pela chegada do amanhecer. (...) O meu romance está cheio
de amanheceres. Não foi à toa que isso aconteceu. (...)
208
(grifos meus)
É com a força do amanhecer que a história de amor se fortalece, mesmo
contrariado, pois que o pai de Liberata, o Ouvidor-mor Teodoro Rumecão, a
havia prometido a outro. Amor revolucionário juntos, Policarpo e Liberata, livre
amazona, preparam a fuga, tendo ainda o amanhecer como testemunho:
Sabei que Policarpo Golfão planejou a viagem observando um
itinerário precavidamente estudado, de modo a pernoitar sempre em
algum sítio, uma fazenda, ou um lugarejo desolado e remoto, ou,
mesmo, uma casa de beira de estrada, onde vivesse com a família
algum sacrificado agricultor; queria com isto evitar o desconforto
duma dormida ao relento, (...) Sobretudo, no zelo do seu
cavalheirismo, e cioso do respeito que devia à sua amada Liberata, nas
delicadas circunstâncias duma fuga que empreendiam para casar, não
queria ele expô-la ao constrangimento de com ele partilhar a
céu aberto uma dormida a sós, improvisada a meio do
caminho, na fofura voluptuosa do areal, ou ao duma
208
SALES, Herberto. Subsidiário 3, p. 227.
159
moita, sentindo ao redor, trazido na aragem, um cheiro
silvestre de flores. (237) (grifo meu)
No fragmento acima grifado, fundem-se o tom poético e romântico ao bom
humor do narrador. A história é de amor, e – o leitor saberá a seu tempo – também
é trágica, porém aquele que a conta permite-se entremeá-la de bonacheirice e
leveza. Como resultado, a leitura resulta intensa, estando nós leitores dentro da
história como se a vivêssemos.
É essa intensidade que as páginas da fuga do casal apaixonado reflete.
Montados cada um em seu cavalo, Policarpo e Liberata partem para Cuia d’Água,
onde a fazenda construída por Policarpo – com o trabalho dos negros –, os espera.
Casam-se num vilarejo, no caminho. E aqui, mais uma vez, as asperezas que
circundam a história de negros, índios e portugueses, são substituídas pela poesia
genuína que embala o amor de Policarpo e Liberata, desdobrada nos pormenores
desse envolvimento:
Oh, a imagem doce e bela, emoldurada na cantaria da
janela solarenga, pela primeira vez assim vista, e havendo-o
deslumbrado: como uma luz que na sombra de repente se
acendesse; oh, a mão pela primeira vez tocada, no fortuito
cumprimento da apresentação, longa e fina mão a abrir-se
em pétalas nos dedos longos, imaginada flor desabrochada;
oh, as lembranças dela, a semearem-se nos pensamentos
dele, nos solitários longes que depois os separaram,
conquanto juntos os conservassem, no buscarem-se um ao
outro em si mesmos: nos ardentes sonhos do ardente amor
deles; (...). Oh, agora estava ali, a seu lado, amorável dádiva por que
tanto ansiava a sua amada Liberata: eram agora finalmente um do
outro. (250-251) (grifo meu)
160
Até acontecerem os movimentos trágicos do Tempo, serão os amanheceres na
fazenda Cuia d’Água – numa mediação entre a vida e o sonho, a História e o Tempo
que melhor ilustrarão esse virginal amor. Amor trabalhado em todos os níveis,
tanto no sexual quanto no mítico, principalmente em sua elaboração estilística,
metafórica:
... Liberata ergueu-se da cama, em camisola, comprida e larga
camisola bordada e de fresco linho mole, que a varrer as tábuas do
soalho quase lhe cobriam os pés: os pés desnudos, que ela não cuidou
de enfiar nos chinelos; e assim descalça, os cabelos a escorrerem-lhe
pelos ombros, foi até a janela que dava para a varanda. Descerrou-a de
leve, (...) Mas, o que viu, (...) o que viu foi o rosado tênue do
dia nascendo além do vale. Contemplou, por um momento,
aquele aflorado esbrasear da natureza, que tanto lhe fazia
bem à alma: o amanhecer. Não quando o amanhecer, em sua
glória de luz, iluminava o horizonte, mas exatamente
como o via agora, despontante: o amanhecer, fecundado de
sol, gerando-se em sua origem, a acender na fímbria do u
a sua luz inaugural e tenra. (302-303) (grifo meu)
Amor que, como todos os amanheceres do livro, se efetivará diante dos olhares
ásperos (e poéticos) da História, e de nossa leitura.
Dos feitos “heróicos” aos pareceres risíveis do Tempo
No romance não há heróis, há pessoas com a ambigüidade própria do ser. Por
isso Policarpo Golfão é, antes de tudo, um homem de seu tempo, “um produto da
época” aquele que “dedica obediência à Igreja, gerando o conceito de honra que
promove a expedição punitiva contra os índios que flecharam o primo e amigo.”
209
Quincas Alçada, português e primo bastardo de Policarpo, a índia Iuru (batizada
Joana) e Nicodemos (ex-Sinimu) formarão o tríptico de uma relação que resultará
161
na morte do primeiro pelos índios e na conseqüente fuga desses. É um dos efeitos
das complexas relações entre brancos e índios: os maracás flagram Iuru “em
intimidade” com Quinças Alçada “no meio do mato”, e se vingam. A partir desse
momento, Policarpo declara guerra aos índios, a despeito de ser avisado sobre o
perigo que habita a “impiedade” própria da alma dos “gentios”, consideração
comum à época:
210
[Diz Padre Gumercindo a Policarpo] É preciso cuidado com o
gentio. Com índios todo cuidado é pouco. Não raro, quando
catequizados os supomos, descobrimos um belo dia que
em verdade não logramos fazer com que Deus lhe
penetrasse os corações. E, então, a um pretexto quase
sempre imprevisível, toda a impiedade deles reflui para a
origem ímpia dela, e todo um grande e extenso mal se
propaga rapidamente entre eles, como um rastilho de
pólvora. Tudo volta ao que era antes. E todo um novo trabalho de
catequese tem de ser feito, como antes se fez. (...) (285) (grifos meus)
Eis então que Policarpo, “saudoso do primo” e “iroso dos índios”
211
, decide
formar uma expedição contra os maracás, convocando para isso o alferes Percival.
A partir daqui o tom picaresco invade a narrativa, a despeito da tragicidade
inerente ao que virá. No “Argumento” do capítulo, o narrador nos alerta a respeito
do perfil desse tal alferes que comandará a expedição: “De como um soldado,
transformado em latoeiro, não esquece, como latoeiro, o que aprendeu como
soldado.” Percival, na verdade, “era um homenzarrão de barba ruiva, que, embora
alferes sendo, mais semelhava um marujo de caravela. Tinha a boca torta, mercê
dum tiro que em combate o atingira”(293-294). A expedição esboçada por ele não
difere de seus traços burlescos:
209
PARK, Dong Won. Op. Cit., p. 100.
210
TAVARES, Luis Henrique Dias. Op. Cit, pp. 66-67.
211
Os Pareceres do Tempo, p. 129.
162
E, ali mesmo, com rapidez e competência, esboçou o alferes a
constituição do grupo expedicionário. Um bom rastreador seria
contratado, e os havia muito bons em Monte Alto e redondezas. Além
do rastreador, cumpria levar de cinco a seis cães ferozes;
não apenas de caça, mas ferozes, cães que em abocanhando
a perna duma pessoa, não a soltassem sem antes dilacerá-la.
Um dos homens, além de bom atirador, encarregar-se-ia dos cães:
açulando-os quando necessário, e quando necessário prendendo-os.
Convinha lembrar que os índios não criavam cães; por conseqüência,
lhes tinham pavor. (...) Enfim, era mister que pelo menos três
dos dez atiradores, na hipótese de serem a isso compelidos,
numa situação que não lhe oferecesse alternativa, fossem
capazes de resolutamente sangrar um índio. Então, tudo assim
organizado restaria mesmo à expedição pôr-se em marcha. (295)
(grifos meus)
O tom galhofeiro que o narrador imprime à futura batalha a ser travada por
Policarpo contra os índios infunde o riso na narrativa aquele riso positivo que
satiriza e se compadece da frágil condição humana, desprendendo-se de sua
natureza ridícula. Riso como consciência do sentimento dos contrários, do que é e
poderia não ser, como definiu Pirandello.
212
É dessa maneira que os nove
guerreiros recrutados pelo alferes são visualizados – naquilo que traduzem de
cômico e, ao mesmo tempo, de fragilidade:
- Bem, sem contar comigo, são em verdade nove os homens que
recrutei anunciou o alferes, num prurido de aritmética
militar. Três vieram do Arranca-Toco. Mas, não foi fácil
convencê-los da expedição. Tive de conversá-los, que isto de
conversar sei eu, tive de prometer-lhes um bom soldo. Vieram
afinal. Um deles se chama Pergentino, e é muito bom atirador;
212
Riso, tal qual conceituou Gógol, que “se desprende inteiramente da natureza ridícula do homem” e
“desprende-se dela porque é o fundo da mesma que encerra um manancial que jorra sem cessar. (Apud
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética, pp. 434-435). Cf. VILMA, Ângela. A Tessitura
Humana da Palavra, Herberto Sales, Contista, obra na qual se trabalha o riso herbertiano a partir do conto.
163
inclusivamente, tem experiência de caçar índio fugido. O outro é
João Cagão.
- Como? – interrompeu-o com estranheza Policarpo.
- João Cagão.
- Mas, Sr. Percival, mete-se o senhor por aí, com a missão
de arregimentar homens bravos, para combates talvez
sangrentos, e me aparece com esse João Cagão, que
está cagando antes da hora, cagando no próprio nome?
(...) (322-323) (grifos meus)
Riso que se compadece, que conhece os alicerces da arrogância do ser e da
ignorância maior da finitude humana. A ironia aqui admite o tom de galhofa,
traduzindo o riso que adere à alma dos personagens, assim como um dia rimos
ternamente do Dom Quixote com seus moinhos de vento. Nessa expedição, os tipos
que surgem dão um maior realce ao burlesco da caricatura mas ao mesmo tempo
não ridiculariza no sentido negativo. Assim é que, além do João Cagão, formará a
trupe, segundo o próprio alferes: o “Isidrão”, que “dá a vida para ver um índio
estrebuchando na ponta dum laço”(323); o Ifigênio, “atirador exímio”; Ubaldino,
“rastreador de fama”, e ainda o índio Vavá Tapuio:
- Ah, capitão, não avalia o senhor o ódio de morte que vota
um tapuio a um índio maracá! Com efeito, o Vavá Tapuio é
mestiço de índio, mas de índio de outra tribo. É filho de
português com uma índia aimoré. (...) Vavá Tapuio é um
arqueiro de truz. Vi-o em ação. Pontaria certeira, arco veloz, flecha
firme. gosto vê-lo lançar ao alvo uma flecha. E, outra coisa,
capitão: todas as flechas que levar consigo Vavá Tapuio se
acham convenientemente ervadas. Veneno do bom,
mortífero. (324)
Vavá Tapuio e sua flecha “ervada” vêm desmentir de novo a voz do historiador Luís
Henrique Tavares. No capítulo de sua História da Bahia, no qual contempla a
164
“cultura indígena”, percebemos num discurso que soa até aparentemente
ingênuo – a idealização folclórica do índio:
“Para a caça e a pesca, usavam arco e flecha. O arco tupi era o de
secção semicircular, feito de madeira vermelha escura, lisa, e as
flechas eram de penas inteiras, com pontas de osso, lascas de bambu,
dentes de tubarão, cauda de arraia e talos de madeira dura. Nunca
envenenavam suas flechas. (...)”
213
(grifo meu)
Num contraponto notamos, de novo, que em Os Pareceres não idealizações:
nem do branco, nem do negro, nem do índio. Vavá Tapuio vem ilustrar isso, essa
“nivelação”: tanto os índios entre si se desentendem, como o branco com o índio. A
expedição é uma espécie de representação da espécie humana. Segue-se então:
Taveira, que mesmo sendo tanoeiro foi um ex-militar, e segundo o alferes, “tem
a sua bravura, a sua pontaria”; Porcino, que a despeito de ser um assassino, não
tinha como não levá-lo, pois nas palavras de Percival, “se índios a matar, nada
como termos em nossas hostes alguém a quem não repugna o crime”; e, por fim,
Couto, que “atira que dá prazer”. No dia aprazado, saíram de Cuia d’Água Policarpo
com “os seus cavaleiros andantes” – uma expedição “ansiosa de índios”.
214
É mesmo num tom aparente de mentira, traduzido pela ambigüidade da
ironia, do riso galhofeiro, que o escritor intermedia as tonalidades de uma verdade
que comumente não se conta. Verdades dolorosas: guerras, dizimações, dores
pessoais, coletivas. Desatinos que se desdobram como fatalidades comuns a todos
nós, perdidamente humanos. Por isso, como nos diz Ruy Espinheira Filho, “não
neste livro, nem heróis nem vilões: homens e mulheres vivendo suas vidas e
circunstâncias”. Os personagens ali estão como nós mesmos diante de nós: sem
trapaças.
215
213
TAVARES, Luis Henrique Dias. Op. Cit, p. 29.
214
Os Pareceres do Tempo, p. 327.
215
ESPINHEIRA FILHO, Ruy. Posfácio à segunda edição de Os Pareceres do Tempo. In: SALES, Herberto.
Os Pareceres do Tempo, p. 412.
165
Os mistérios e as possíveis chaves do romance se encontram mesmo na
linguagem. Sendo a linguagem arcaica utilizada apenas na “aparência”, cabe-nos
crer que essa linguagem antiga é reexaminada, ganhando uma nova utilização, sob
os pareceres de um Tempo atual, como se este emitisse possíveis julgamentos.
216
A
zombaria que resvala em toda a narrativa, associada ao matiz romântico, poético,
nos dão a possibilidade de duas leituras: aquela que se funda na denúncia e no
risível que na própria condição humana, e a de degustação da beleza que
infunde ao nascimento – tanto do amor, quanto de uma nação. É a entonação
debochada do narrador que dirige e persuade a nossa leitura, fazendo-nos rir e
pensar sobre a estupidez e o risível de uma história onde não culpados nem
inocentes. Como disse o próprio Herberto, “todos somos afinal culpados”, pois
“onde está o homem está a culpa: a culpa original de nossa condição humana”.
217
Tais pareceres, que só o Tempo nos ajudará a perceber, estão sob a mensagem
antevista nas entrelinhas da aspereza e, ao mesmo tempo, da poesia e do riso. É na
batalha que Policarpo empreende contra os índios na qual a visibilidade que a
distância entre épocas, aberta pela irônica “imitação” contemporânea de um olhar
arcaico, habita onde mais vislumbraremos os pareceres. É essa batalha,
risonhamente contada, a despeito de sua tragicidade, um dos grandes momentos
do romance:
...Com efeito, o capitão-mor Policarpo Golfão e os Dez Pares
de Cuia d’Água haviam alcançado a região que com muita
paciência e gana muita buscavam. (357)
A batalha é trágica, repetimos. É em nome de uma honra ferida que Policarpo
decide vingar a morte do primo. A honra, “bem essencial” que desde muito
tempo o homem pleiteia a si como bem vital, nos séculos XVII e XVIII é um tema
comum, tendo o seu contraponto a desonra – como algo que se compara à morte.
No “Tratado do ponto de honra” de 1675, escreve Courtin sobre tal virtude: “É o
216
GROSSMANN, Judith. Op. Cit.
217
SALES, Herberto. Subsidiário 3, p. 228.
166
que valoriza os homens e os torna estimados; é o fundamento da boa e pelo qual
se jura; é o que triunfa sobre todos os insultos da fortuna e todos os ataques do
mundo; é a única coisa que traz a felicidade; é o que se prefere à vida; enfim, é tudo
que existe de mais caro, de mais precioso e de mais sagrado entre os homens”.
218
Com esse sentido vigoroso de “honra” é que Policarpo, homem temente a Deus,
resolve vingar a morte de um membro de sua família:
... Com ira não menor gritava-lhe no peito a vingança justa
que sobre o sangue do primo assassinado jurara tomar. Numa
turbação, ele próprio estranhava que dentro de si
pudesse abrigar tanta ira ele, um homem de tão boa
índole. O encontro com o índio Gonçalo, e a possibilidade de
através dele chegar aos outros índios, tornava afinal mais próxima
a perseguida hora da vingança. E, na sua ira, uma suprema coisa
descobria Policarpo: - que era a vingança a piedade
verdadeira que podia oferecer em sacrifício ao seu
amado defunto. (358-359) (grifos meus)
A passionalidade que envolve Policarpo nas garras daquilo que o filósofo Francis
Bacon definiu como justiça bárbara” a vingança, permite que possamos vê-lo
com todos os atributos em que consiste o gênero humano. Assim, com os
sentimentos próprios à espécie, se não podemos redimi-lo, muito menos podemos
condená-lo. Ouvimos apenas as palavras do filósofo inglês do século XVII: “Não há
homem que faça o mal pelo mal, mas apenas na perseguição do lucro, do prazer ou
da honra.”
219
Como a perceber esses matizes que coabitam a escuridão da alma humana,
o narrador, no momento que Policarpo e seus cavaleiros chegam ao acampamento
indígena, muda o tom da narrativa. O burlesco, que até então reinava como
tonalidade central, cede lugar ao lírico e ao mítico. Ao descrever poeticamente a
218
COURTIN apud FARGE, Arlette. A honra, necessidade privada e pública. In: ARIÈS, Phillipe e
CHARTIER, Roger. História da vida privada – Da Renascença ao Século das Luzes, p. 589.
219
BACON, Francisco. Da vingança. In: ________. Ensaios. Lisboa: Guimarães Editores, LDA, 1992, p. 42.
167
cena que surge, talvez como a redimir o grotesco humano, o narrador sugere uma
terna compaixão aos homens, senhores estúpidos da História:
Finalmente, ainda com o sol alto, entreviu Policarpo o
acampamento, através da discreta folhagem dumas árvores. Havia
uma clareira, onde os índios moviam-se lentos e descuidados,
entregues aos seus quefazeres índios deles: ralavam mandioca, com
mandioca faziam cauim, que bebiam, e farinha, que comiam. Três
índias entreteciam cipós sentadas, acalentando no regaço uns
balainhos que iam nascendo. Um índio soprava uma flauta de
bambu; da flauta escorria uma música triste, que ia
pingando tristeza em tudo. Era uma cena tão pura e
essencial, tão embebida na essencialidade das coisas, com a
mata rodeando calada e toda em verdor os índios, que
parecia um começo de mundo: um mundo começando com
um sopro de flauta. (365-366) (grifo meu)
A consciência da vida, da fragilidade dos homens, compõe a voz lírica e
poética do narrador. Porém, o que diz Policarpo a seguir é dissonante ao ambiente
descrito:
- Preparem-se para atacar! – disse Policarpo. (366) (grifo meu)
A vingança acontece de fato: Policarpo se vinga da morte do primo matando o
índio Nicodemos (agora assim chamado pelo narrador, sem mais colocar à frente,
entre parênteses, “ex-Sinimu”), através da tonalidade ironicamente risonha do
narrador, como se dessa maneira atenuasse a tragicidade do acontecimento. E são
nas flechas zunindo sobre as cabeças dos destemidos cavaleiros que a risível
vingança se efetiva.
Diga-se, aliás, que num abrir e fechar de olhos a clareira esvaziou-
se. (...) Choveram de dentro do mato flechas. E uma delas
alcançou em cheio a dobra do joelho de Policarpo; ele curvou-se sobre
168
a sela, contorcendo-se em dores; e, tentando inutilmente livrar-
se da flecha, que lhe rasgara fundo as carnes, enquanto o
cavalo desgovernado corria pela clareira, acabou tombando dele.
(...)
E, sem perda de tempo, [o alferes] convocou quatro homens:
- Tu, ó Isidrão, e tu, Ifigênio, e tu, Pergentino, e tu, João, fiquem a
postos. Eu vou acabar com esses índios agora mesmo.
- Olha a flecha! gritou Vavá Tapuio. Eles estão atirando
flechas em nossa direção!
- Dentro em pouco não poderão fazê-lo disse o alferes,
abaixando-se todavia, pois uma flecha acabava de zunir-
lhe acima da cabeça. (...)
- Olha a flecha! tornou a gritar Vavá Tapuio. Eles estão
mesmo querendo flechar a gente.
(...) (367-368) (grifos meus)
Finda a luta, nada resta do índio “Nicodemos, ou Sinimu” aqui não mais
importam os nomes, sugere-nos o narrador, pois o que o circunda é apenas “um
grande silêncio chamuscado”:
O alferes Percival, em chegando ao local que buscava, dali atirou,
sucessivamente, seis artefatos explosivos (por ele próprio fabricados)
contra o local onde se concentravam os invisíveis índios; os quais,
assombrados com os estampidos e a densa fumarada que deles se
originou, fugiram em debandada, deixando em lugar deles
apenas um grande silêncio chamuscado, em volta do
cadáver de Nicodemos, ou Sinimu. (369) (grifo meu)
Como ilustração daquilo que de mais picaresco e grotesco na espécie humana,
ouviremos cada um dos combatentes, em forma de competição entre si, relatarem
os feitos “heróicos”:
... disse o expedicionário Couto. Eu por exemplo, derrubei
três, quando eles corriam para o mato.
169
E seguiu-se o relato dos feitos do combate:
Isidrão:
- Quanto a mim, derrubei pelo menos cinco. Eu os vi bem
quando caíram. E, naturalmente, dada a pujança das cargas do
arcabuz, caíram mortos.
João, dito Cagão, também depôs:
- Eu matei dois. Disso tenho certeza. Se estou em dúvida é se
eram índios, ou índias.
Pergentino garantiu:
- Eu acertei a cabeça de um. Vi quando ele gritou e caiu. E ainda
acertei outro, bem à altura do ombro. Eu parece-me que até
lhe arranquei a ele o braço com o tiro.
(...)
- No que me diz respeito, derrubei pelo menos quatro
disse Ifigênio, que, igualmente ao Taveira, também servia na
armada portuguesa até dar baixa.
E o Taveira, por falar nele:
- A uns três índios, salvo engano, coube a mim matá-los.
- Em verdade, eu usei apenas o meu arco; ele me bastou, graças
a Deus disse Vavá Tapuio, benzendo-se. E com o meu arco
eu flechei pelas costas, na corrida em que iam, nunca
menos de quatro índios.(...) (370-371) (grifos meus)
Ao imprimir o bom humor o escritor atemporaliza a narrativa, possibilita-nos uma
melhor compreensão dos descompassos humanos,
220
e nos faz crer que os
pareceres do Tempo são mesmo risíveis, a despeito da irrevogável tragicidade que
compõe a História.
Dos réquiens do Tempo
220
A esse respeito disse Ruy Espinheira Filho, no posfácio à edição revista de Os Pareceres do Tempo, p.
412: “O leitor vê-se arrebatado pela história, participa dela com toda a intensidade de sua emoção, não é
poupado em momento algum. E sem dúvida sai dela melhor, mais capaz de compreender o ser humano. E de
se compreender.(...)”. In: SALES, Herberto. Op. Cit.
170
Diz a onisciência do narrador que sabe bem dos descaminhos humanos
sobre a consciência de Policarpo que, após vingada a morte do primo, segue
tranqüilo para casa, sabendo que “por maior que fosse o erro que com dureza e
iniqüidade ali acaso cometera, maior que o erro fora a desgraça terrível que o
engendrara”.
221
Tanto sabe o narrador da fatalidade dos descaminhos que, talvez
interpondo um certo tom de moralismo à história, constrói a seguir as armadilhas
do Destino a esperar Policarpo: a volta para casa, depois do extermínio da aldeia
indígena, é coroada com a notícia da morte de sua Liberata. O que povoará sua vida
a partir de agora será apenas o “silêncio desolado e liso, de sol de tenra luz, sob um
céu de tenro azul”. Aqui de novo retomamos as palavras de Francis Bacon, como
ilustração desse possível moralismo: “... as pessoas vingativas vivem a vida das
feiticeiras que, malévolas, acabam mal afortunadas.”
222
Se o narrador não diz exatamente o que o filósofo disse é porque se
compadece mesmo da dor do outro e sabe das tramas perversas da vida. Porta-voz
da perda, imprime, isto sim, a esse triste momento um tom pungente, traduzindo o
réquiem que desanda da alma de Policarpo:
... Policarpo sentiu um abalo n’alma, um horror irracional e brusco,
ante a realidade que tão brutalmente se lhe apresentava aos olhos, de
chofre. Liberata morta! Liberata debaixo do chão. Liberata
enterrada no chão. Morta! Oh, a sua doce amada finando-se
ali debaixo, nas trevas fundas duma cova, luz para sempre
extinta na escuridão, Liberata, Liberata, Liberata. (379)
(grifo meu)
Como a atenuar tanta dor, Policarpo é dado a saber sobre a assistência
médica, competente, que assistiu Liberata.
221
Os Pareceres do Tempo, p. 371.
222
BACON, Francisco. Op. Cit., p. 43.
171
- Quando o Fidalgo esteve a primeira vez, a finada Liberata
achava-se sob os cuidados do Dr. Maciel. Preocupado da
resistência da febre, que não cedia, lembrou o Fidalgo ao Dr.
Maciel a conveniência de ele ouvir em conferência um colega. O
Dr. Maciel concordou. Mandou então o Fidalgo chamar em Morro
do Fogo o Dr. Francisco Rocha, que no mesmo dia chegou a
Cuia d’Água. Eram remédios e mais remédios, que o Fidalgo,
pessoalmente, ia buscar à Farmácia Esperança, em Monte Alto.
Aliás, o farmacêutico, Dr. Laércio, dono da farmácia, que
embora não sendo médico, tem grande prática no trato
de doentes, esteve muitas vezes, ajudando aos dois médicos.
(...) (381) (grifos meus)
Sobre essa assistência médica revela Herberto Sales em suas memórias:
Lembro-me, ao reler a página 420, na notícia que padre
Gumercindo a Policarpo das providências tomadas para o
atendimento médico de Liberata, que o “Dr. Macielera o nome do
meu padrinho, também médico, em Andaraí; que o outro médico
mencionado, Dr. Francisco Rocha”, era, também, o nome de um
íntimo amigo meu, companheiro meu de vida estudantil e de farra em
Salvador; e que, por fim, o “Dr. Laércio”, farmacêutico, era o nome
do meu primo apelidado Lessa, que trabalhava na farmácia de meu pai
em Andaraí, “Farmácia Esperança”, também citada na página.
Meu Deus! Todos estão mortos...
223
Essa galeria de personagens reais adentram o romance como a requerer um
espaço na memória; ou, melhor, como a requerer um registro nos pareceres da
memória do autor. Isso ocorre justamente num momento final, quando a morte
surge fechando ciclos, iniciando outros, o tempo dando suas primeiras sentenças:
Policarpo ergueu-se, inquieto; deu alguns passos na varanda,
mancando; alongou por um momento a vista pelo verde amplo do
172
vale; (...). E pôs-se a pensar, com desolada amargura, que ao
homem lhe dá a vida tão pouca aventura e segurança, que de
copioso só tem mesmo ele a dor e o desalento. (382)
Ao fechar os ciclos, lembra-nos o narrador no “Argumento” do “Livro LIV”, o
último: “mais uma vez se comprova que uma história acaba quando acaba a vida de
quem lhe forneceu o assunto”. O ciclo é fechado: sob o ipê amarelo de sua fazenda
em Cuia d’Água morre Policarpo:
... Matara-o um ataque do coração. Sobre o seu corpo inerte
desfazia-se em pétalas de sedoso ouro a floração amarela do
ipê. (405)
Os que ficaram foram a Igreja construída abrigando a imagem de São
Sebastião que Policarpo mandara fazer em Roma (consolidação da religião e do
poder); a fazenda Cuia d’Água, cuja administração coube a negra Gertrudes, sua
comadre e tutora dos dois filhos (consolidão da Vida); e estes dois filhos que um
dia entenderão “que as pessoas vivem para algum dia morrerem”
224
. O último a
morrer será Braulino José que, ainda ancião, com 132 anos, ajudou ao narrador a
construir tal história. Nos “Registros Finais”, em sete tópicos enumerados,
saberemos dos destinos dos que restaram, como a “dar fé”, testemunho final, à
história ali narrada. “Paz às suas almas”:
Estes registros fizemo-los depois de visitarmos em Cuia d’Água a
antiga fazenda do capitão Policarpo, praticamente em ruínas.
Braulino José foi o nosso principal informante. Levou-nos até ao
cemitério da fazenda, em parte já invadido pelo mato.
Na lápide da sepultura conjunta do finado Policarpo e sua esposa,
depois de removermos o espesso que a cobria, conseguimos ainda
ler esta muito antiga inscrição de um muito antigo reencontro:
223
SALES, Herberto. Subsidiário 1, P. 445.
224
Os Pareceres do Tempo.
173
AQUI JAZEM O CAPITÃO-MOR
ANTÔNIO JOSÉ PEDRO POLICARPO GOLFÃO
*1763 – 1803 +
E SUA ESPOSA
LIBERATA RUMECÃO GOLFÃO
*1773 – 1798 +
DERRADEIRA E SENTIDA HOMENAGEM
DOS SEUS FILHOS JOAQUIM E BRAULINO JO
A saga se encerra, a história acaba. E a(s) História(s) continua(m): O quase-
passado
225
que o romance construiu, se desnuda, assim como o próprio artifício do
literário. Ambos sustentam-se na credibilidade, proveniente da leitura: a ficção se
historiciza a partir das significações permitidas no seu cerne lingüístico, estrutural,
assim como a história se ficcionaliza a partir da perspectiva de quem a conta,
mesmo quando balizada da chamada “verdade historiográfica”, pois que ambas se
convergem no tronco da narrativa, o narrar de um tempo humano.
226
Herberto Sales, assim, com Os Pareceres do Tempo, esboça a largueza de
uma memória particularizada e literária ao contextualizá-la sob o prisma da
coletividade, sob os pareceres da História. A memória épica de um herói familiar,
Policarpo Golfão e/ou Policarpo Athayde, aqui se traduz como protótipo de nossos
antepassados históricos. Nossa pátria, e isso concordamos com Herberto, é mesmo
nossa família, nossos antepassados, nossos mortos.
225
RICOUER, Paul. Tempo e Narrativa. Tomo III, p. 331: “... é graças a seu caráter quase histórico que a
ficção torna-se assim o detector dos possíveis ocultos no passado efetivo.
226
Idem.
174
CAPÍTULO QUARTO:
RIO DOS MORCEGOS:
A MEMÓRIA DA PALAVRA
175
“O verdadeiro tema de uma obra não é o
assunto tratado, sujeito consciente e
voluntário que se confunde com aquilo
que as palavras designam, mas os temas
inconscientes, os arquétipos
involuntários, dos quais as palavras,
como as cores e os sons, tiram o seu
sentido e a sua vida.”
(Gilles Deleuze, in Proust e os Signos, p. 45)
I. Voltar: a Palavra final
Retomei a amorosa rota de outros tempos, fazia
escuro, de pedras soltas era o meu caminho, mas os
meus passos me conduziam com segurança, na
memória do sonho, na realidade do chão que eu sabia
de cor e salteado. (Herberto Sales, Rio dos Morcegos,
p. 262)
Ecléa Bosi, no livro Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos, chega à
conclusão, a partir do depoimento de alguns velhos, de como uma divisão do
tempo no ato da lembrança. Se a infância é larga, “quase sem margens”, e o
176
território da juventude é atravessado sem desembaraço, é na velhice o tempo
presente dos velhos que lembram que o tempo se congela. Assim, a “idade
madura” é entremeada pela estagnação, pela falta de esperança, num tempo “que
gira sobre si mesmo em círculos iguais e cada vez mais pidos sobre o
sorvedouro”.
227
É dessa maneira que podemos pensar em Herberto Sales nos seus três
últimos romances: um homem que, diante da dor de envelhecer, se apega com toda
força e tenacidade às lembranças do passado como a tentar se livrar do sorvedouro,
ou como a abraçar de vez o absurdo da vida. Por isso, voltar. Voltar para sua
Andaraí infância e juventude, para a mãe, a família, exorcizando os desafetos, as
dores, a fim de – como ele mesmo desabafou na epígrafe de seu penúltimo romance
– “entrar de coração aliviado e limpo na eternidade”.
228
É o tema da volta, pois, que compõe seus três últimos romances. Em Rio dos
Morcegos (1993), o retorno à terra, à mãe, especialmente a si mesmo; em Rebanho
do Ódio (1995) o exorcismo dos sentimentos familiares; e em A Prostituta (1996), a
despedida voluntária da literatura a partir da alusão a uma fase feérica: sua
juventude boêmia vivida em Salvador na década de 30. Nos três romances
Herberto se mostra muito mais que nos anteriores, e a impressão que temos é que
o escritor intenciona por a nu a si mesmo, sua vida, dar um testemunho direto de
sua memória. Isso ele fez de fato na trilogia memorialística (os Subsidiários),
publicada anteriormente a esses últimos romances; porém o que deseja agora não é
contar o passado, mas perseguir o desnudamento da palavra na sua condição de
enigma, claro enigma. A ficção mais uma vez vence a confissão. Assim, vemos
nesses romances o homem Herberto, seu passado, suas histórias, personagens que
migram dos primeiros livros, lugares revisitados e familiares, acontecimentos e
idéias que se repetem, mas principalmente também não vemos o homem Herberto.
O que se assoma como pretensa biografia se distende, se bifurca, ganha outras
227
BOSI, Ecléa, p. 415.
228
SALES, Herberto. Rebanho do Ódio.
177
dimensões, aquilo que Barthes chamou em S/Z de vida biográfica como tecido de
conexões e não de uma filiação: aqui o autor é um ser de papel, e a vida dele é
mesmo uma bio-grafia vida que se escreve, e ele uma figura romanesca, muito
mais que documentária.
229
Se a ficção não foi vencida pela confissão, mas a biografia do escritor se
delineia insistentemente, o que nos cabe perscrutar é como acontecem essas
conexões, como sua biografia se ficcionaliza, como os interstícios imaginários
contornam o acontecido e a memória literária transmuta o meramente vivido.
Estamos, portanto, no reino da Palavra na sua memória, seus signos, símbolos,
arquétipos -, no reino do insuspeitado. Mnemosyne, deusa da memória, é,
repetimos, sem dúvida, um deciframento do invisível” e sua história “uma
geografia do sobrenatural”.
230
“Um homem em busca de si mesmo, indisfarçável e puro”, assim Autregésilo
de Athayde definiu Herberto Sales.
231
Homem que “xinga com raiva e beija com
amor”, reiterou Cid Seixas;
232
homem que se diz ltiplo e uno, como na
declaração pessoal que permeia as primeiras páginas do último romance: “... Eu
sou o mesmo romancista (a mesma alma) em cada um dos entre si tão diferentes
romances que escrevi.” De Cascalho à A Prostituta, essa alma se mostra e se
esconde a partir de uma memória que se quer, a todo custo, literária. E se, como
bem acentuou Olavo de Carvalho, a cada livro Herberto muda de fisionomia,
233
é
ao envelhecer que surge o desejo de uma possível unicidade. Logo, nos três últimos
romances a memória pretende se firmar, decisivamente. O homem busca, na
229
BARTHES, Roland. S/Z, p. 228. Barthes também propôs isso em O Grão da Voz, p. 83.
230
VERNANT, Jean-Pierre. Op. Cit., p. 113.
231
ATHAYDE, Austregésilo de. Herberto Sales, perfil de um homem. In: SALES, Herberto. Subsidiário 3, p.
116.
232
SEIXAS, Cid. O riso da metralhadora. Do Cascalho ao Diamante. In: _________. Triste Bahia, Oh quão
dessemelhante, p. 117.
233
CARVALHO, Olavo de. Texto-orelha. SALES, Herberto. História natural de Jesus de Nazaré.
234
GUIMARÃES, Márcia. Herberto Sales: o ódio sob a ótica amarga. In: A Tarde Cultural, 30/9/1995.
178
velhice, conforme declarou no texto-orelha de A Prostituta, “a liberação de
lembranças obscuras de sua vida, nas saudades machadeanas de si mesmo, numa
hora em que em si mesmo se recolhe, invocando a misericórdia de Deus”. Esta
busca, sabe ele, só é possível realizar-se plenamente através da literatura.
Rebanho do Ódio, penúltimo romance, pontua esse exorcismo da memória
nas páginas iniciais: “A quem me vai ler, quero aqui lembrar que uma vida longa
(muito longa) faz sofrer a gente: os amigos vão morrendo, os afetos apodrecendo.
De repente, resta mesmo de cada um de nós a gente: nós sozinhos, somente nós,
cercados de mágoas que magoam a gente. E então é preciso exorcizá-las, se
queremos entrar de coração aliviado e limpo na eternidade”. Nesse livro, que tem
sua história situada em São Pedro da Aldeia (RJ), percebemos que a trama é
inteiramente ficcional, não pistas direcionadas à biografia do escritor.
Entretanto, a despeito disso, observamos que os sentimentos que atravessam as
páginas são fortes o suficiente para revelarem os desvãos biográficos de uma
alma.
234
Nas dores e ódios que perpassam o jogo familiar narrado, antevemos em
muitos momentos referências discretas ao universo primitivo do escritor, assim
como à sua obra. Como por exemplo a acentuação nostálgica a uma carne de sol
com pirão de leite, iguaria incomum no litoral do Rio de Janeiro. Relacionada ao
seu universo romanesco encontramos pelo meio do livro uma citação irônica a
Cascalho: “De passagem, entraram no bar de beira-estrada Cascalho (paciência,
mas este era mesmo o nome do bar)...” Assim, o que norteia essa narrativa é uma
certa busca de si mesmo no voltar ao tempo a partir da força de um ódio que recua
a lembrança e que perpetua as complexas ligações familiares. Essa busca
interminável de exorcismo do passado fecha seu círculo com o último romance.
A Prostituta vem inicialmente resgatar o Herberto leitor. Nesse livro, o autor
cria a personagem Maria Corumba, espécie de remanescente da família Corumba,
proveniente de Os Corumbas (1933), de Amando Fontes. Essa alusão ao “romance
do Norte” é apenas incidental: não se trata aqui de voltar às origens regionalistas
do escritor, mas de trazer no tempo a juventude vivida em Salvador entre os
179
estudos e a boêmia, e de destacar com sensibilidade o universo humano das
prostitutas. Como afirmou Herberto, esse não é um romance de tese, mas a
tentativa de resgatar a figura da prostituta como uma mulher como outra qualquer,
como ser humano,
235
e de relembrar sua profícua convivência com as chamadas
“mulheres da vida”. Tal temática se esboça em Cascalho, desaguando,
antologicamente, em Rio dos Morcegos.
Essa é uma das razões que elegemos, entre os romances acima citados, Rio
dos Morcegos como leitura emblemática: todos os outros livros, assim como os
primeiros, estão nele acoplados. Espécie de antologia da vida e obra herbertiana,
esse nono romance permite uma certa visão panorâmica tanto da vida vivida de
Herberto quanto da inventada, (representadas aqui pela volta às origens),
funcionando também como fechamento de ciclo de sua obra literária. Nesse livro
encontramos, em suas quinhentas e setenta páginas, um pouco de cada romance,
conexões que se firmam, dialogam, numa memória que se pretende ficcionalizada a
fim de firmar-se como verdadeira. Disse Proust, no seu O Tempo Redescoberto,
que “a vida verdadeira, a vida afinal descoberta e tornada clara, (...), a única vida
plenamente vivida, é a literatura”. E conclui: “... Graças à arte, em vez de ver um
mundo, o nosso, nós o vemos multiplicar-se”.
236
É esse paradigma que utilizarei
como arcabouço de leitura.
II. RIO DOS MORCEGOS: O RETORNO (IM)POSSÍVEL
... e o fim de nossa viagem será chegar ao lugar de
onde partimos. E conhecê-lo então pela primeira vez.
(T. S. Eliot)
235
Depoimento do escritor. In: A Tarde Cultural. Salvador, 5/10/1996, p. 9.
236
PROUST, Marcel. O Tempo Recuperado, p. 683.
180
Até escrever Rio dos Morcegos, Herberto Sales sempre alimentou o desejo de
voltar àquele ambiente de Cascalho, seu primeiro livro, ou seja, voltar à sua terra,
não no sentido de um retorno literal – pois que sabia que a Andaraí que conheceu e
viveu não existia mais –, mas ao retorno mítico, esse que corresponde tanto à vida
quanto à obra e que se realiza verdadeiramente no universo da palavra literária.
Voltar, no sentido literal, ele voltou, em 1983, quando foi convidado como filho
ilustre da terra – para a inauguração do Banco do Nordeste em Andaraí. Foi,
passeou pela cidade e não encontrou mais o que buscava. Dessa triste aventura
restou o saldo de um livro infantil chamado “O Menino Perdido”. É a história de
um velho buscando um menino nos lugares onde passou sua infância. O velho
buscou o menino em todos os lugares onde ia quando criança, porém o menino não
estava mais lá. Restava somente encontrá-lo nas páginas da literatura.
Esta última ida a Andaraí deu-se na época em que a cidade assistia ao retorno
da efervescência dos garimpos, quando o dinheiro do diamante de novo
movimentava o comércio e o povo sonhava com os velhos bons tempos, aqueles que
o escritor eternizou em seu primeiro livro. Nessa ocasião, Herberto concedeu uma
entrevista ao Banco e afirmou o quanto seria impossível a volta desses bons
tempos, porém desejava retornar um dia àquele ambiente: “A riqueza do diamante
pode voltar, mas os velhos bons tempos, não. Foi uma época maravilhosa. Tenho
vontade de voltar a escrever sobre todo aquele clima, aquela visão...”
237
Esse retorno, de proporções insuspeitadas, dá-se em 1993, quando publica
Rio dos Morcegos. Nas páginas iniciais do romance, encontramos a seguinte nota
do autor para seu editor:
“Ênio,
eu sempre quis (sonhar é uma forma de querer) voltar ao
ambiente de Cascalho, não para repeti-lo, ou alongá-lo, mas
simplesmente para me reencontrar em minhas origens,
aprofundando-as no que meu romance de estréia aflorou. E isso era
237
SALES, Herberto. Depoimento. In: Revista do Banco do Nordeste do Brasil S.A., p. 27.
181
em verdade um sonho, que o meu novo romance materializa. Talvez
seja melhor dizer um pesadelo, de que eu afinal me livrei no despertar
do novo romance escrito. O elemento auto-biográfico é puramente
incidental, na medida em que na história da vida de qualquer homem
no caso uma personagem todos os homens são de alguma forma
parte. Eu resumiria Rio dos Morcegos em três palavras, a saber:
dramático, erótico, terrível.”
Herberto
O desejo da volta se materializa, mas tal regresso obedece a imposições interiores,
diferentemente das implicações sociais do primeiro livro. Essas novas implicações,
intimamente memorialistas, querem-se ficcionais, tanto que o autor afirma ser
“puramente incidental” o elemento autobiográfico. Andaraí agora é semântica e
psicologicamente sua raiz etimológica: “... de origem tupi Indira-y, significando
água de morcego, isto é: andira, morcego e y, ou ig, rio ou água. (...) quer dizer rio
dos morcegos.”
238
Portanto, Rio dos Morcegos-Andaraí, como foi Combray-Illiers
para Proust. Nesse expediente a sugestão inicial da largueza de uma memória
que não se quer biográfica, mas ficcional. O escritor está de volta à sua terra, mas
não em busca dos garimpos perdidos, daquele ambiente socialmente esmagado
pela miséria o qual presenciamos em Cascalho. Não que a miséria não reine ainda
lá, aliás, a miséria reina mesmo lá, no absurdo que reitera o sonho e o pesadelo de
existir. A miséria alia-se à beleza de uma juventude vivida em todos os níveis dos
sentidos, e o exterior a topografia é tão somente alusão ao interior: mundo
hamletiano do narrador-personagem Marcelo, aquele que compõe a prodigalidade
da volta.
Diz acertadamente Deleuze que “não se escreve com lembranças de infância,
mas por blocos de infância, que são devires-criança do presente”, ou seja com
blocos de sensações, afectos e perceptos. Para tanto é preciso não a memória, mas
um material complexo que não se encontra na memória, e sim nas palavras, nos
238
Informação dada pelo autor nas páginas iniciais do livro.
182
sons”.
239
No texto-orelha de Rio dos Morcegos diz Ênio Silveira que Herberto Sales
nesse romance recria “um mundo que, se não era exatamente assim, foi assim que
se eternizou em sua sensibilidade”. Encontramos no enredo personagens e
situações que se dizem biográficos, porém ao mesmo tempo o romance ultrapassa-
os. Isso quer dizer que a memória aqui estabelece outros parâmetros. Sendo a
lembrança no seu cerne uma recriação do vivido, na arte a mesma se transmuta
em essência, o vivido se desmaterializa em signos e as reminiscências são mesmo
“metáforas da vida”, pois que “só a arte realiza plenamente o que a vida apenas
esboçou”.
240
Acredito que essas considerações iniciais melhor pautarão nossa leitura, que
não deixará de lado a biografia e muito menos a elegerá como condição primordial.
O que foi e o que poderia ter sido e o que não foi mas poderia ter sido este é um
possível raciocínio que subjaz à leitura desse romance determinado como foi por
seu autor de “dramático, erótico, terrível”. As intermitências de uma memória que
se quer verdadeira abarca o puramente escrito, não o puramente vivido. “Dentro da
experiência fictícia o irreal e o passado se equivalem”.
241
Logo, na memória da
Palavra as descobertas e os enigmas da existência promulgam outras descobertas e
outros enigmas. E estes estão, de maneira perplexa, ligados àquela que talvez seja
mesmo a verdadeira vida – a que a obra de arte, a literatura, realiza com plenitude.
Tempo tríplice: sombras do passado
Dois anos, três anos, talvez quatro anos fazia que eu deixara Rio
dos Morcegos. Minha terra natal, útero materno, eu em mim, placenta
e alma, frágil criatura de Deus. Afinal o regresso, como se dali no
entanto não houvera saído. Saíra e ficara. Me banira em vão.
O regresso: a volta todavia sem partida. (11) (grifo meu)
239
DELEUZE, Gilles. Percepto, Afecto e Conceito.In:_________. O que é a Filosofia?, p. 218
240
DELEUZE, Gilles. Proust e os Signos, p. 52.
241
NUNES, Benedito. Narrativa Histórica e Narrativa Ficcional. In: RIEDEL, Dirce Corte (Org.). Narrativa –
Ficção e História, p. 24.
183
Este é o primeiro parágrafo que assinala a busca de Marcelo, um Marcel
proustiano perseguindo um tempo para sempre perdido. Está de volta à terra, e
esse momento se bifurca em três tempos a partir de sua voz narrativa: passado
relembrado no presente que consagra a volta, presente propriamente dito que se
transformou também em passado, e presente da narrativa presente atemporal,
ou futuro, de alguém que recorda. Tempo tríplice que se amalgama pelas ruas e
pelas pedras de Rio dos Morcegos:
Ora, e dizer-se que foi no caminhão de Salim que viajei no dia de
minha fuga de Rio dos Morcegos. Também não havia outro carro
no lugar. Eu teria preferido fugir a cavalo, uma madrugada, o dia
nascendo e o cavalo correndo, parará, parará, parará, no tropel a
liberdade. Sempre pensei em fugir assim. (...) (12) (grifo meu)
Demorou no dia esse o caminhão tanto e tanto de pegar, que
resolvi acabar de chegar a pé. Havia uma canção que falava de um
bonde tão ruim, que o saía do lugar, que o passageiro, em tendo
pressa de ir para a cidade, indo a era melhor. Pus em prática o
expediente. (11-12) (grifo meu)
... Eu era então um menino, hoje sou um homem. Mas me
lembro de tudo como se fosse hoje. que hoje tudo o é mais
nada. Ou é apenas uma valsa. (18) (grifo meu)
Nesses três fragmentos, percebemos o quanto o passado coexiste, de maneira
incisiva, ao presente e ao futuro. É aqui que a tese bergsoniana, proveniente de
Matéria e Memória, encontra uma ressonância. A memória como conservação do
passado visa à sobrevivência do passado tanto em formas de lembranças quanto
em estado inconsciente. Isso quer dizer que estamos situados diretamente no
passado, e que este não representa exatamente o que foi, mas o que é e coexiste
com o presente; e mais ainda, que o passado se conserva nele mesmo. Diz Bergson:
“... a verdade é que nosso presente não deve se definir como o que é mais intenso:
184
ele é o que age sobre nós e o que nos faz agir, ele é sensorial e é motor; (...). Nosso
passado, ao contrário, é o que não age mais, mas poderia agir, o que agirá ao
inserir-se numa sensação presente da qual tomará emprestada a vitalidade”.
242
É o
que acontece aqui, nesse tríplice tempo herbertiano: o passado se conserva
infinitamente e levará Marcelo, no presente e no futuro, ao repetido retorno da
lembrança, à “volta todavia sem partida”.
Assim, voltar à terra, como o próprio narrador disse, é estar na terra, pois que
de nunca saiu. Certeza do tempo no qual decorreu sua ausência ele não tem:
“talvez dois anos, três anos, talvez quatro anos” – será este na narrativa o seu
bordão, pois que a cronologia da ausência é incerta quando não há de fato a partida
total:
Agora estava eu ali de novo, no beco de Valu. Deixara o caminhão
enguiçado do outro lado da ponte, e a vinha fazendo o resto do
trajeto. Dois, três, acho que quatro anos se haviam passado
desde que fugira de Rio dos Morcegos. (...) (14) (grifo meu)
Marcelo está de volta, e as lembranças da partida, da fuga, entremeiam esse
regresso. O passado simultâneo ao presente, na força da lembrança, emerge a
partir de algumas figuras simbólicas: o pai, a mãe e a reiteração das “sombras”,
vocábulo que surgirá no romance repetidas vezes, centenas de vezes:
Esperei no beco de Valu o caminhão, na hora combinada com Salim.
Era ao anoitecer. Sombras chegantes vinham de manso acumpliciar-
se com a minha fuga. E eis que (de repente) vi recortados nas
sombras os vultos de um homem e de uma mulher. Os vultos
trouxeram, nas ritmadas estocadas de uma bengala, as pessoas de meu
pai e de minha mãe. A bengala de meu pai. Minha mãe era o seu
silêncio complementar.
- Que história de viagem é essa? a voz de meu pai, incrustada na
sombra. (pp. 12-13) (grifos meus)
242
BERGSON, Henri. Resumo e Conclusão. In________. Matéria e Memória, p. 281.
185
As sombras serão o cenário da partida por seu caráter fugidio elas surgem
aparentemente na ausência da luz, no instante em que o desconhecido abre suas
portas. Marcelo, para fugir, confronta-se com essas sombras trazidas nas figuras da
mãe e do pai:
Ouviu-se por dentro das sombras o ronco do caminhão de Salim.
Parecia um barco perdido no nevoeiro, no clamor silencioso dos faróis
acesos.
- Pois, já que o senhor quer por sua conta e risco buscar lá fora o seu
futuro, que vá. Saiba porém que não conta mais com a minha
pessoa. Nossa conversa acaba aqui.
E isto dizendo, meu pai me voltou as costas, a bengala como um
relógio marcando os seus passos, na distância e no tempo.
- Meu filho, meu filho...
Beijando-me, minha mãe se despediu de mim, molhando com os seus
soluços as sombras da noite e as do meu coração. (13-14) (grifos
meus)
Partir, deixar a terra, os pais, era buscar o futuro que, diferentemente daquelas
sombras que pairavam, registra na luz dos faróis do caminhão uma esperança
possível. Hoje, o futuro que se fez presente anota aquilo que permeia as entrelinhas
do regresso: a morte do pai – sombras aparentemente perdidas:
... Nunca mais a sua bengala, nunca mais a sua voz, sombras
desfeitas no fim do caminho. Fui andando e me lembrando dele. A
nossa vida em comum terminara ali, no dia em que deixei Rio dos
Morcegos, o caminhão de Salim me levando como por dentro
de uma névoa, no rastro de luz dos seus faróis. (16) (grifos
meus)
186
A morte reivindicará como narrativa sua carga dramática, erótica, terrível.
Sustentará os tempos da memória de Marcelo e contornará seus caminhos qual
sortilégio, destino, direção.
Como esquecer os caixõezinhos forrados de cetim azul
celeste, com flores ornamentando, em que eram levados
para o cemitério os pequenos mortos, meus irmãozinhos?
Meu pai, de pé ao lado da janela, via sair o enterro. Com o lenço
enxugava a sua dor. Eu ainda não sabia o que era a morte, nem
mesmo o que era a vida. Não tinha idade para entender em
seus mistérios essas contraditórias coisas. (...) (17) (grifos
meus)
Da infância sem margens, num areal que a vista inteiramente abarca, resta a
lembrança de uma valsa, uma “valsa antiga, muito antiga”, que seguia o enterro das
crianças em Rio dos Morcegos:
... A orquestra tocando no enterro era também um costume de Rio dos
Morcegos. Em enterro de pecador tocavam uma música de meter
medo, espécie de lastimoso clamor. Os anjos [as crianças] iam para o
cemitério com a orquestra tocando uma valsa. (...) Eu era então um
menino. Hoje sou um homem. Mas me lembro de tudo como
se fosse hoje. Só que hoje tudo não é mais nada. Ou é apenas
uma valsa. (18) (grifo meu)
Na repetição do fragmento acima grifado, a alusão a um tempo enigmático.
Futuro do narrador-personagem? Presente do autor Herberto Sales? Esta última
pergunta soa temerária demais, pois sabemos o quanto é complexa a influência da
vida do autor sobre a obra. Nesse sentido concordamos com Barthes quando
afirma, num ensaio sobre Proust, que o que entre a vida vivida e a vida escrita
não é analogia, apenas homologia
243
: tão somente “vidas paralelas” que se
encontram através da complexidade da Palavra. É no veio dessa complexidade que
187
as perguntas acima confluem. E fica, por enquanto, a última pergunta, “nas
sombras” desse início de leitura para ser retomada no final dela. A fim de tentar
entendê-la na sua ousadia, somente intuímos, por enquanto, os meandros desse
tríplice tempo que enreda o romance - sombras que sedimentam tanto o tema
quanto a forma da narrativa.
Nesse tempo tríplice estão a infância do narrador, seu pai, sua mãe, seus
irmãos mortos, a casa de beira-rio onde nasceu; a “volta” – presente de um passado
regido por regressar à mãe após a morte do pai, viver plenamente os cinco
sentidos nas cachaças bebidas com os amigos e com as mulheres-damas, pelo
pesadelo que é sentir o tédio da existência e da vida, e por desejar insistentemente
a morte. Na última parte desse tempo está ela, a morte propriamente dita e
sonhada, a morte como emblema circular dos tempos e que envolve o autor nas
nostálgicas interseções do memorialista que às vezes se trai, despista, mas resulta
confessando, como deliberadamente um dia o fez nos Subsidiários que escreveu:
Mas não quero falar mais destes tempos loucos, que a minha vida
se alongando me obrigou a ter debaixo dos olhos
horrorizados, embora eu viva à margem deles. Recolhido à
fazenda, e sobretudo recolhido a mim mesmo, aguardo com
paciência a morte, que sempre esperei viesse cedo. No
presente vivo afinal o meu futuro, que nunca me preocupou. se
disse que o futuro é feito do passado. No meu paradoxal futuro
encontro tudo que de descuidado viver e de verdade humana
constitui o meu passado de rapaz. E é esse passado e ele
que recordo aqui, indiferente ao que fora de mim acontece
no mundo, nesse seu presente que nada tem comigo. (98)
(grifos meus)
O presente (e/ou futuro) existe. Presente da voz de quem narra e relembra um
tempo passado; presente que também faz um pacto com a morte, pois que o
narrador a espera no refúgio da velhice e da fazenda morte que desde cedo o
243
BARTHES, Roland. Vidas paralelas. In:________. Inéditos-Vol. II, p. 172.
188
rodeou. Assim, são essas as sombras (des)norteadores dos três tempos sombras
que invadem a alma de Marcelo-Herberto e que desvelam (ou não) as páginas
dessa narrativa.
Duas (e múltiplas) memórias
... Minha palavra tem de fazer o que eu quero,
segundo a minha vontade e o meu exemplo. Afinal a
minha palavra sou eu. (Herberto Sales, in
Subsidiário 3, p. 316) (grifo meu)
Rio dos Morcegos é uma bifurcação de duas e muitas vidas, duas (e múltiplas)
memórias: a do homem Herberto Sales e da Palavra por ele escrita, burilada,
artesanalmente perseguida. um ponto de encontro claro e ao mesmo tempo
tênue entre a biografia e a invenção, entre o que foi e o que poderia ter sido. Se esse
romance não explica o que foi sua vida, ao mesmo tempo entremostra
possibilidades daquilo que poderá ser uma vida ou não poderá ser. A existência,
em suma, continua com e sem respostas, e aqui concordamos com Herberto
quando afirma ser a literatura “não (..) apenas o que é feito com arte literária”, mas
“também, o que se faz com a verdade da alma”. Como arte literária, a verdade da
alma insere-se na literatura a partir de seus abismos e de suas buscas intermináveis
por respostas.
É isso o que acontece em Rio dos Morcegos: está o Herberto Sales homem,
sua biografia, sua alma, e está a Palavra, a arte literária, a busca da verdade.
Nesse caminho, a biografia não pode ser legitimada, pois que feita de palavras, mas
também não pode ser esquecida. Nesse caminho, a Palavra reina absoluta, é
verdade, mas por trás dela está o homem que a perseguiu, e estamos nós, leitores
(detetives) que a buscamos. É dessa bifurcação que talvez encontremos, como
disse Judith Grossmann sobre esse romance, “a anima que se preparou para ir ao
189
encontro de si mesma, do que ficou perdido lá no início, submerso”.
244
Esta busca é
tanto do autor/personagem quanto de nós leitores, seres que se ficcionalizam.
Nesse encontro que tenta se efetivar a partir da procura de uma espécie de
totalidade do ser, aquilo que Jung nomeou de self, o autor está “na retaguarda o
tempo todo” e Marcelo, o personagem, à frente.
245
Marcelo é o personagem, o outro
que habita o autor, talvez sua sombra vital. “A minha história começara a ser
contada por mim mesmo, eu próprio vivendo a minha história, personagem e
autor”, nos diz Marcelo, nos diz Herberto. Nessa vida contada/inventada
encontramos a obra do escritor: todos os seus livros estão, de alguma maneira, nas
páginas de Rio dos Morcegos. Memorialista e romancista, não se contenta em
apenas buscar a si mesmo mas perseguir a alma humana, pois como declarou, “na
história da vida de qualquer homem – no caso uma personagem – todos os homens
são de alguma forma parte”.
... Eu estou sempre vindo, nem sempre de um lugar para outro, mas
vindo de mim para mim mesmo. É a minha vida. Ou a minha sina
íntima. (...) (33)
É essa a topografia do livro: Rio do Morcegos é o si-mesmo de Marcelo,
personagem tumultuado, rebelado com as convenções da sociedade, e que nas suas
verdades naturais se denomina “um pobre homem infeliz, rude animal sedento”
246
,
cultivando o presente para pensar o absurdo da vida, vivendo-o sob os mais
primitivos instintos, e para relembrar o passado. Passado que a infância símbolo
de uma espontaneidade absoluta – ressurge como paraíso para sempre perdido:
Nu, comigo mesmo nu, instante de efêmera inocência
solitária, que no banho nos devolve momentaneamente ao
nosso ingresso no mundo, vida e memória em flor, entrei na
água. (...) Tudo que me lembro é que a serra, fechando de um lado o
244
GROSSMANN, Judith. Da sede antes de tudo. In: A Tarde Cultural, 17/6/1995, p.2.
245
Idem.
246
Rio dos Morcegos, p. 164.
190
horizonte, e a mata do outro lado fechando-o, eu me sentia cercado de
uma natureza primitiva, minha origem no mistério da criação, ovelha
do rebanho de Deus. Meus pais eram meus pastores. Tomavam
conta de mim. Cuidavam de mim, pequeno animal deles. (...)
A vida era para mim um ofício poético de nada fazer que não
fosse viver sem fazer nada, livre, descomprometido de
interesses subalternos com as pessoas outras que à minha
volta eu via, agitadas como peixes num aquário, correndo
umas atrás da outras e de si mesmas. (...) (42) (grifos meus)
Se uma vida se conta e ao mesmo tempo não se conta, esta verdade é uma linha de
força desse romance. Nos Subsidiários herbertianos, encontramos muitas vezes o
Marcelo de Rio dos Morcegos, personagem e autor de si mesmo. Personagens e
situações que marcaram a infância e juventude do escritor surgem nesse romance
com os seus nomes encontrados nos livros de memórias, e às vezes temos a
enganosa impressão de ser esse romance um desdobramento daqueles. Não, não é.
É a vida que parece ser semelhante, a vida contada, sombras que surgem como
redundância em toda sua obra:
Era a roça da velha Mariquinhas um dos pontos de Rio dos Morcegos
a que mais ligada estava a minha infância, não apenas pelo tempo,
memória profunda e antiga de mim, mas também pelo sortilégio que
envolvia, em sombras tocadas de mistério, as lembranças que eu de
guardava. O dia em que eu, depois de atravessar em solidão o
pequeno bosque de pitangueiras, entrei no jardim da casa,
quintal de madressilvas e gerânios, e vi sentada no interior
da sala, junto à janela, sob a ramagem do cafeeiro solitário,
uma velhinha costurando, os cabelos brancos, o rosto muito
pálido, em silêncio e só. Ah, era a minha bisavó, imaginei de
repente, na minha avoada e impossível cabeça de menino,
vendo como afinal eu via, pela primeira vez, a mulher aquela
que devia ser minha bisavó Carolina, de que tanto ouvira
falar lá em casa. Minha avó Carolina, avó de minha mãe, retrato
191
na parede da sala, cercada de silêncio e esquecimento. (Rio dos
Morcegos, p. 489) (grifo meu)
Inesquecível tia Edite! (...) Lembrava-me bem (e ainda hoje me
lembro) da vida simples que ela levava na Roça. (...) Pelo menos uma
vez por semana, mamãe ia até lá; e eu invariavelmente a acompanhava
nesses passeios, (...) Freqüentei a Roça desde cedo, quando ainda vivia
minha bisavó Ermelinda, mãe de tia Edite. Eu era muito
criança, mas retive nítida, através dos tempos, a imagem
daquela velhinha sentada ao lado da janela, fazendo renda.
É curioso como a lembrança de certas pessoas, que conhecemos em
nossa infância mais remota, possa concentrar-se apenas numa
determinada cena, fixar-se às vezes num simples pormenor, enquanto
em nossa memória se perde, desfaz-se de todo a fisionomia delas.
Acontece isto comigo e minha bisavó Ermelinda. (Dados
Biográficos do finado Marcelino, p. 25) (grifo meu)
As pessoas não se vão de todo, dos lugares onde viveram. (...) As
presenças ali estão, nos mesmos lugares onde estavam antes,
escondidas em si mesmas, como o vento quando em si mesmo se
esconde e cessa de ventar. Foi assim que na roça de tia Nonô, na
sala deserta, junto à janela que dava para o jardim deserto,
eu vi sem nada ver minha bisavó Carolina fazendo a mesma
renda que em vida fazia. (...) (Subsidiário 1, pp. 120-121) (grifo
meu)
Nos três excertos acima, encontra-se o matiz da memória: como esta se recompõe e
se decompõe em cada obra para novamente se recompor e se decompor. Por isso é
que, mesmo não sendo o mais importante, a biografia não pode ser esquecida: o
homem Herberto é também Marcelo, narrador que de alguma maneira se
fragmentou em muitos narradores, desde Cascalho à A Prostituta , e que são as
muitas faces que todos temos em nossa alma, e que a literatura escreve.
192
Sombras feéricas
... Na vida eu sempre me senti uma espécie de solitário
passante, carregando a minha alma desocupada, para a
qualquer instante depositá-la nas sombras, entregá-la a
misericórdia de Deus. (...) (Rio dos Morcegos, p. 118)
A vida presente de Marcelo se refugia num presente-passado. O futuro para
ele “só serve para a gente se lembrar do passado” e para pensar a morte, que “aliás
não devia tardar, ainda no presente”.
247
É este, talvez, um dos mais instigantes
temas de Rio dos Morcegos: o presente o passado a morte. É preciso morrer
cedo, como os seus irmãozinhos, saindo um a um para o cemitério da Piedade.
Herberto Sales memorialista declarou no seu Subsidiário: “... eu era em Andaraí,
um pobre rapaz boêmio, que esperava morrer cedo”.
248
“Como não morri dentro do
prazo que num desdém pela vida imaginei que fosse curto”,
249
surgiu a obra, onze
romances, quatro livros de contos e muitos infantis. Herberto Sales não morreu
cedo, enfrentou a velhice para chegar, numa circularidade, ao desejo primordial:
morrer. Diz Marcelo, e quase ouvimos nesse pormenor ensaístico e filosófico a voz
do autor:
... A morte, de que tanto foge o velho, na tentativa ridícula e de
rejuvenescer, de mostrar que não é tão velho assim, dignifica em
verdade o homem. O suicídio de um jovem é um ato de poesia, ainda
que também seja uma manifestação de insana rebeldia contra Deus. A
morte de um velho é o estremeção final dos despojos de uma vida que
desde muito tempo já o deixou de ser. (79)
Herberto Sales viveu o suficiente para saber, como Marcelo soube na juventude,
que uma “vida longa, ao atingi-la finalmente na velhice, já o homem nada mais tem
que ver com o futuro que ilusoriamente construiu”. Torna ele então “não mais o
247
Rio dos Morcegos,pp. 44 e 47.
248
SALES, Herberto. Subsidiário 1, p. 295
249
Idem, p. 408.
193
homem que era, mas apenas uma sombra do que foi. E entre sombras viverá, até
afinal morrer, infeliz e só, castigado pelo egoísmo de viver muito”.
250
As sombras,
sempre as sombras serão elas as duplas imagens de uma vida sem remissão. Se
escolhe viver, o homem terá que fazer um pacto com elas espelho mórbido da
morte. Diz a psicologia serem as sombras todo o território pouco explorado e
conhecido de nossa psique, enganosamente classificadas muitas vezes como
aspectos puramente negativos da pessoa humana.
251
Jung chamou “realização da
sombra” o processo de conhecimento de nossa personalidade que muitas vezes
preferimos não olhar diretamente.
252
Tentar ver a sombra talvez seja essa uma
das práticas desse romance.
Marcelo não escolhe as sombras não há escolha, mas um pacto original. A
tese de Jung é que “todo homem tem uma sombra e, quanto menos ela se
incorporar à sua vida consciente, mais escura e densa ela será”.
253
E é aqui que
encontramos dois caminhos da vida herbertiana levados pela sombra no auge de
sua mais perturbadora consciência: morrer e escrever, morrer ou escrever. As
duas assertivas foram/são possíveis, senão não existiria a obra, senão não teria
existido o personagem, ou o homem Herberto. Caminhos entrelaçados: vida-
morte-obra. É o que se conclui ao ler Rio dos Morcegos. Se Herberto Sales viveu
muito e envelheceu, com Marcelo isso não poderá acontecer. Ele terá que sucumbir
na juventude. Conforme assinalou Judith Grossman, nesse romance encontramos
Hamlet e Horácio reunidos num só. É preciso morrer, mas é preciso também viver
para contar sua história.
254
A morte de um jovem é um ato de poesia enquanto que
a morte de um velho é apenas um tremor efêmero de uma vida que há muito deixou
de ser, já havia dito Marcelo no horror pelas imposições sociais e físicas da vida:
... Uma obscura convicção, feita de premonição e desejo, me levava à
certeza de que ia morrer cedo. Não chegaria aos trinta anos.
250
Rio dos Morcegos, p. 79, grifos meus.
251
ZWEIG, Connie e ABRAMS, Jeremiah. Ao Encontro da Sombra, p. 15.
252
FRANZ VON, M. – L. A realização da sombra. In: JUNG, Carl G.. In: O Homem e seus Símbolos., 168.
253
Apud ZWEIG, Connie e ABRAMS, Jeremiah. Op. Cit., P. 26.
254
GROSSMANN, Judith. Op. Cit.
194
estava com vinte e três (fizera-os na última primavera), e certamente
era curto o caminho que faltava percorrer. Trinta anos. Não chegaria
até eles. Que me importava então o futuro? Que me importava viver?
(79) (grifo meu)
Se Hamlet morreu aos trinta, Marcelo não chegará a tanto. É o seu desejo. Mas
antes que isso aconteça será ele uma espécie de animal instintivo que buscará nos
sentidos que a vida física lhe proporciona, em todos os níveis, a possível alegria de
existir:
... farra, que outra palavra não se inventou até hoje para substituir no
tempo de mim essa palavra feérica e mágica. Eu digo farra, e logo vejo
à minha frente um carrossel iluminado, música girando em volta de si
mesma, espiral de sons e cores. Um encantamento. Homem brincando
como no tempo de menino. (...) (55) (grifo meu)
E ali no quarto, com Maria Sedan deitada ao meu lado, puxei
para cima aos poucos e docemente a sua camisola de
algodão, até desnudar-lhe os pequenos seios, ainda rijos de
carne moça, seios como se de moça fossem. Acariciei-os, enquanto
com a outra mão lhe afagava os cabelos curtos, sedosos (...)
(99) (grifos meus)
A vida me parecera sempre destituída de sentido, salvo em
sua dispersividade lúdica, na fruição dos seus efêmeros
prazeres e passageiras alegrias, que são de resto o seu
encanto. A vida, para que tanta luta para nada? Achei sempre uma
tolice levar a vida a sério, nunca encontrei um bom motivo para
pensar diferente, na minha verdade natural. (58) (grifos meus)
É a noção de fatalidade que Marcelo tem da vida que o leva ao nada absoluto, o
nada que era “simplesmente tudo”, conforme declarou. Para justificá-la mesmo
viver a vida no seu mais absoluto natural, a vivência plena dos sentidos: a devoção
195
ao sexo, à bebida, a utilização exacerbada do tato, paladar, olfato, audição, visão,
que faz dessa narrativa, como bem notou Judith Grossman, “uma festa da
sinestesia e um repositório da vida natural”:
255
... Agora tudo que quero é tomar uma pinga, para começar o dia.
(...) (149) (grifo meu)
Tomar uma pinga para começar o dia” é o equivalente à justificação metafórica da
vida como presença instintiva dos sentidos, sua verdade natural. A pureza de
Marcelo se revela em todo o romance, seja na dedicação à inocência das prostitutas,
suas “irmãzinhas”, seja no desvelo lírico que dedica à sua noiva Lorena, seja na
louvação à mãe. E o momento talvez mais puro, mais natural de Marcelo se
encontra numa cena forte, aquela na qual ele se depara relacionando-se
homossexualmente com Abelardo, empregado da fazenda:
256
... Fiquei sem saber o que fazer de mim. Eu já nem sabia mesmo quem
eu era, nem o que eu era, na vileza de minha miséria humana. (...)
(549)
Nessas sombras puramente instintivas Marcelo viverá. Para isso sua terra, Rio dos
Morcegos, será sua cúmplice, a partir de sua natureza feérica, perdidamente
mágica. Tal natureza perdurará no tempo e marcará a memória telúrica e sensitiva
do escritor. É o que podemos ler nos fragmentos adiante: o encontro de uma
mesma noite em duas narrativas tanto nesse nono romance como em Cascalho,
respectivamente:
... E, que dança, a dança de cabaré de Rio dos Morcegos! A dama
vinha, e abrindo-se ao meio escanchava na perna do cavalheiro, que
lhe pegava da o e esticando o braço a puxava para baixo, de banda,
como se repuxasse um freio. E o par, assim atracado e empinando, ia
255
Op. Cit.
256
GROSSMANN, Judith. Op. Cit.: “”... E talvez a cena mais mpida, mais pura, dissolução total de si
mesmo, seja a cena homossexual com Abelardo (...)”
196
indo e vinha vindo, passo pra frente, passo pra trás, com o cavalheiro
levantando volta e meia na coxa a dama que a cavalgava, num upa de
cavalo árdego. Era uma dança que era dança e não era, mais
parecendo uma briga, ou um troço de circo. E todo mundo suava. (Rio
dos Morcegos, p. 210)
... O homem da harmônica batia com o para marcar o compasso, e
uma poeira tênue e parda começou a desprender-se com o arrastar dos
chinelos de trança no cimento gasto da sala. Os pares dançavam
enganchados as mulher de pernas abertas cavalgando firmemente a
coxa direita dos homens: parecia uma luta. Dançava-se em silêncio e
de chapéu todos tinham uma cara mais ou menos agressiva...
(Cascalho, p. 236)
Esse universo feérico, telúrico, traz de volta muitos personagens de Cascalho:
Sinhá Cutu, dona da vendola de cachaça, Lió e o seu botequim, e, principalmente,
Pedro Almofadinha, garimpeiro bamburrista que descia a serra quando pegava
um diamante para assim gastar todo o dinheiro com cachaça e mulher-dama
Helena, a mais cara, chamada “prateleira de cima”. A despeito de pouco se falar em
garimpos em Rio dos Morcegos, Pedro Almofadinha lá se encontra, simbolizando
as raízes que só os prazeres da vida consolidam como memória:
... Pedro Almofadinha era um simples garimpeiro. E como simples
garimpeiro, mas sobretudo como companheiro nosso, freqüentava o
nosso grupo quando estava na cidade. Sua presença na
cidade era sinal de estar abonado. (...) Pedro Almofadinha,
enquanto não encontrava no seu garimpo algum diamante à altura das
circunstâncias, permanecia todo o tempo na serra, entocado no
garimpo como um bicho esquivo. Encontrado porém o diamante,
vinha vendê-lo na cidade, transformando-o em perdulário
dinheiro, e na cidade ficava até gastar o último tostão. (...)
(205) (grifos meus)
197
É nesse pormenor, onde os prazeres da vida confluem, que Cascalho e A Prostituta
deságuam em Rio dos Morcegos. Nesses três romances, a juventude do escritor, em
meio a prostituição da década de 30, tanto em Andaraí quanto em Salvador, tem
incisivo destaque. O diálogo desses três livros se firma nessa confluência
memorialística. Se em Cascalho são apenas citados os cabarés e as prostitutas
universo que os garimpeiros bamburristas tinham acesso, em Rio dos Morcegos
este ambiente de luxúria ganha delicada relevância. Nesse sentido é que A
Prostituta surge como resultado memorialístico, através de situações, personagens
e palavras que migram de Rio dos Morcegos. Podemos perceber isso em dois
fragmentos desses romances:
... Foi no externato que entrei pela primeira vez numa casa de
mulheres. (...) Essa casa noturna e alegre ficava (vejam só) na rua da
Oração, numa cidade onde, de resto, dizia o povo haver trezentos e
sessenta e cinco igrejas. (...)
Lembrei-me de outro quarto, em tudo diferente daquele, no cabaré de
Edite Cavalão, na capital do estado, onde pela primeira vez dormi
com uma mulher da vida. Zenaide era o seu nome. (...) Era uma
mulher branca, esguia, que dançando no cabaré usava com o vestido
de soirèe uma echarpe de seda, atavio e mistério de uma
sensualidade insinuada. (...) (95)
Quando mais tarde e aos poucos me deixei envolver no fascínio vadio
da boêmia, até me tornar um freqüentador diário de cabarés e de
pensões de mulheres, Zenaide se mudara da Bahia. Ali alguém me
disse ( terá sido Zilda?), que Zenaide amigara com um negociante
sergipano, que a retirara do cabaré e a levara para Aracaju. (...) (Rio
dos Morcegos, p. 96) (grifos meus)
A primeira noite na pensão Andaraí, onde Edite Cavalão (...)
instalou Maria no quarto que lhe reservara,(...), dava para a rua da
Oração. (...) Uma das mulheres (...) chamada Zilda, emprestou-lhe
um vestido de soirée vermelho, que vestiu muito bem nela, como se
198
para ela fora especialmente feito. (...) (A Prostituta, p. 164) (grifos
meus)
O que sugere de autobiográfico nos dois romances impõe-se de maneira a resgatar
uma fase lúdica na vida do escritor e a reafirmar uma nostalgia vigilante. Esta
nostalgia tem um elo firmado com os prazeres que a vida possibilita à alma de
quem se acossado pelo desconforto da existência. Porém, a aglutinação de todos
os sentidos para usufruir os prazeres não impede o personagem Marcelo da
angústia de pensar, consciente de sua inadequação ao mundo:
... Você sabe, eu nunca fui mesmo de ligar muito para nada, exceto a
morte. Eu não pedi para nascer, e muito menos pedi para
viver, a vida envolvia uma série de imposições que a minha
índole displicente repelia, a começar pelo trabalho.
Evidentemente eu preferia morrer a trabalhar, o trabalho
era para mim um ato de violência humana. Imagine você,
uma pessoa ter de fazer uma coisa que não quer fazer, sem
ter nenhum motivo verdadeiro e profundo para fazê-lo. (...)
(255) (grifo meu)
Diferentemente do otimismo de Pangloss, personagem de Voltaire que afirmou ser
o trabalho “o único meio de tornar a vida suportável”, Marcelo não acredita no
trabalho, muito menos em candidamente “cultivar o seu jardim”.
257
Para ele
somente tem relevância a entrega aos prazeres dos sentidos e a reiteração à
memória do passado - sua infância vivida em Rio dos Morcegos:
Tomamos outra cachaça. E começamos a achar graça das coisas do
mundo, tão sérias coisas, mas ao mesmo tempo tão engraçadas. Era
impressionante como as coisas sérias do mundo eram engraçadas.
Emprego era uma delas. Pra que emprego? A coisa melhor do mundo
era a gente não fazer nada.
257
VOLTAIRE, Cândido, pp. 160-161.
199
E demos os dois uma gargalhada. (36)
... O futuro para mim não existia, para mim o futuro era o presente, o
presente o passado. (...) (256)
Infância que fazia dele mesmo simplesmente “vida em si”, pois que quando
crianças, a psicologia afirma, não utilizamos ainda a sombra como repositório de
energia.
258
Dessa maneira somos “vida em si”, plena, total:
Saí de casa e fui andando pelo areão, chutando a areia e chutando a
vida, como no tempo de menino, que no tempo de menino eu
não dava pela vida, eu era a própria vida chutando a areia.
(...) (300) (grifo meu)
A existência de Marcelo estará para sempre contornada pela serra, “muralha de
rumos e ventos”: pedras que formam seus destinos, metáforas da solidão humana:
Pedras do meu caminho. Por toda parte, inumeráveis e, gerais, as
pedras que me viram nascer, com os seus opacos olhos de pedra. O
horizonte montanhoso, pedras bloqueando meus passos. A serra com
os seus morros altos era um desafio, um enigma: muralha de rumos e
ventos. Aonde ir? Que havia além da serra, minha prisão de
pedras? Grandes pedras mudas me espreitavam: os gigantes
de pedra dos meus medos infantis, das minhas incertezas de
adolescente. Pedras. (...) (27) (grifos meus)
A Andaraí de Cascalho agora é tão somente a metáfora que a pedra simboliza na
sua forma em repetição: a vida, o si-mesmo. No seu sentido simbólico antigo, a
morada de deuses, a revelação, mediadora entre o homem e o Espírito Divino.
259
Pedra que é a existência maior de Rio dos Morcegos, topografia que nasce das
258
BLY, Robert. A Comprida Sacola que arrastamos Atrás de Nós. In: ZWEIG, Connie & ABRAMS,
Jeremiah. Ao Encontro da Sombra, p. 30.
259
JAFFÉ, Aniela. G. Símbolos Sagrados: a Pedra e o Animal. In: JUNG, Carl G. Op. Cit.,p. 232.
200
sombras do inconsciente, lembrança que se associa à busca por respostas e à
formação da própria individualidade:
... Em qualquer lugar de Rio dos Morcegos havia sempre
uma lembrança minha, minha vida ali começara de
nascença, e nessa minha terra muito minha, meu cenário, meu
mundo, ia a minha vida indo embora pouco a pouco, e eu com ela. (...)
(105) (grifo meu)
Volto a mencionar aqui pois que foi citado no primeiro capítulo um
trecho de “As cidades e a memória”, em As cidades invisíveis de Italo Calvino: “A
cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se
dilata.
260
Assim é Rio dos Morcegos-Andaraí de Marcelo-Herberto. O olhar de
Marcelo e Herberto Sales “percorre as ruas como se fossem páginas escritas...
261
Os
símbolos emergem do passado dos que ali passaram, viveram, recolhendo no
tempo e na Palavra o momento indissolúvel de sua significação:
Saí da prefeitura, passei pelo bar de Neto. No rádio do bar
Albenzio Perrone estava cantando uma valsa que pela hora que era, e
pelas coisas que cercavam a hora e a valsa, dava uma tristeza de doer a
alma. Não choremos a vida passada, porque todo romance tem fim,
suplicava o cantor nos soluços da valsa. (35) (grifo meu)
E até os objetos ressurgem como a atestar a vida, ressonância que envolve a
essência das coisas, metáforas de um universo sobrevivente na memória perecível:
... Tomamos uma lapada (eu e Dino) na marquesa, velho móvel
rústico por onde haviam passado sombras de criaturas que
não tínhamos conhecido. E que esquecidas ficaram em sua
transitória passagem pela marquesa. Pela marquesa e pelo
mundo. (...) (56) (grifo meu)
260
CALVINO, Italo. As cidades e a Memória. In:_______. As Cidades Invisíveis, p. 14.
261
CALVINO, Italo. As cidades e o Desejo. In:_________. As Cidades Invisíveis, p.21.
201
A idéia de felicidade que reina no grupo de Marcelo é sempre reiterada pelos
prazeres que a cidade oferece, como as célebres vendolas de cachaças (casa de
Donana, Puduzinha, Sinhá Cutu...) casas de velhas que traziam no seu interior
um “pequeno paraíso de garrafas”,
262
para todos os gostos e afinidades do olfato e
paladar:
Você vê, por exemplo, a casa de Donana, onde nós estamos. Não é um
bar. Não é um botequim. É uma casa onde mora uma velha que vende
cachaça, o que é coisa muito diferente. A gente entra aqui, e é como se
estivéssemos em nossa própria casa. É uma espécie de lugar bom para
a gente ficar e depois sentir saudades de nós mesmos. Isso não existe.
É a própria felicidade. (...) (407) (grifo meu)
Marcelo compartilha esse mundo feérico com os amigos Dino de Felizardo,
Vavinho, João de Filomena e Áureo Mota. Este surgiu das ruas de Andaraí, amigo
de Herberto, para a vida de Marcelo em Rio dos Morcegos. Foi no Subsidiário que
inicialmente ouvimos falar dele: “... Áureo Mota, que era meu auxiliar na venda,
meu amigo de verdade, tocador de claro sopro de trompete, embora com físico
mais para violino que para instrumento de sopro...” Eis o Áureo Mota de Rio dos
Morcegos:
Um assobio, olhei para ver quem era, era Áureo (Áureo Mota) que
ia passando, (...) Áureo era bom de beiço e sopro, no assobio e
sobretudo no trompete. (84) (...) Ele (...) era bem meu irmão em
coerência de princípios diante da vida. (...) Áureo (que eu soubesse) só
uma vez trabalhara, empregado na venda de Betinho, também
nosso irmão de descuidada juventude. (...) (85) (grifos meus)
262
Rio dos Morcegos, p. 223.
202
Aqui Marcelo é amigo de Herberto, Betinho – que era como o conheciam em
Andaraí, e que um dia teimara em ser comerciante, conforme atesta o Subsidiário 2
do escritor, e Marcelo reitera:
... Betinho, vítima um dia de mande um ataque de trabalho, abrira
uma venda, com numerário otimista do pai. Nunca era tarde para
começar qualquer coisa. A venda seria o começo, se Betinho o
começasse de trás para diante o seu plano de tornar-se comerciante.
Em três meses a venda chegou ao fim. (...)
É como se dissesse Herberto, nas entrelinhas: Marcelo não sou eu, poderia ter sido
eu. Eu fui Betinho, não cheguei a ser Marcelo. Ou ainda: Eu sou, no mais íntimo de
mim, puramente Marcelo, por isso um dia escrevi Rio dos Morcegos. Ou, melhor:
quem sou eu? Pergunta insistente que Herberto Sales se fez, diretamente, nos
três livros de memórias, e que também se fez nas entrelinhas de toda a sua obra
ficcional. É em decorrência dessa pergunta que nasceu sua literatura, pois é dessa
pergunta que tudo nasce, mesmo quando não a proferimos, principalmente a arte.
Declarou Herberto no Subsidiário:
Quantas páginas terei escrito até hoje? Duas mil? Três mil? Três mil e
oitocentas? Quinhentas? (...) Essas escritas e pelo mundo espalhadas
páginas numa coisa me aproveitariam. Elas seriam a prova
lícita e provada de que não consegui saber até hoje – perante
mim próprio e perante o torvo juízo meu quem sou
realmente eu em face de mim mesmo. Elas não me ajudaram a
me conhecer bem, de verdade. Depois delas, continuo como nunca, na
soprada fumaça do meu tempo, em que me envolvi e em que me perdi,
a ser apenas um homem que não sei quem é. Eu, um
estranho de mim. (Subsidiário 2, p. 182) (grifos meus)
A memória original
203
... A escuridão me devolvia à minha origem, no arcabouço
de uma insone e nostálgica memória. (...) (Rio dos
Morcegos, p. 145)
A sensação que perpassa Marcelo é do enigmático. No mundo das sombras,
dos sortilégios e mistérios da memória, sua vida se insinua. Marcelo somos todos
nós o indecifrável. Sorriso de Monalisa, enlouquecimento de Hamlet.
263
Não
respostas para o que somos, para o que é a vida. “Um dia tudo acabará. E eu
descansarei”
264
, diz Marcelo, e reitera: “... Pobre de mim, frágil e contraditório ser
humano, que arrogantemente convencido de saber tudo de si e dos outros,
simplesmente descobria não saber nada de si mesmo, desconhecido de si mesmo
sendo, sendo de si mesmo outro”.
265
Não conhecer a si mesmo e ainda assim buscar-se, teimar em encontrar um
sentido. Por isso a multiplicidade de eus do escritor seja talvez a tentativa da
unicidade, a busca desse sentido. O eu se torna móvel, encarna as infinitas
possibilidades de existir para daí encontrar quem sabe uma significação.
266
Na
memória da palavra reinam muitas outras, e nossas percepções aguçadas
poderão captá-las – são as verdades da alma, que a literatura reescreve. Aqui
recorremos como metáfora às palavras de Marcelo sobre os bilhetes que ele e
Lorena – sua namorada – escreviam e rasgavam: “... Deles não ficou nenhum
vestígio, conquanto houvesse ficado dentro de nós, pelo menos dentro de nós, a
memória das palavras que neles havíamos escrito um ao outro”.
São as memórias das palavras que tentarão decifrar o enigma – que para
sempre continuará indecifrável. Como a vida. Mas nessa tentativa encontramos
esboços para muitas significações. E é isso que lemos em Rio dos Morcegos: uma
vida que foi e que poderia ter sido, e que as palavras traduzem como memória do
263
GROSSMANN, Judith. Op. Cit..
264
Rio dos Morcegos, p. 426.
265
Idem, p. 439.
266
Ver, nesse sentido, COSTA LIMA, Luiz. Sociedade e Discurso Ficcional, pp. 237-239.
204
imponderável. Nesse retorno de Marcelo-Herberto para Rio dos Morcegos-Andaraí
a Palavra dirá muito, pois que não é impunemente que uma volta se realiza. A terra
é a mãe. Voltar à mãe depois de uma longa ausência é uma temeridade. É como
voltar aos seios de Duília, encontrar o fim da ilusão. Mas Marcelo volta depois da
fuga; volta para a mãe – seu pai morreu e sua mãe o esperava:
... Eu carregava comigo o meu destino. E para terminarmos juntos,
como uma haste e sua flor, foi que voltei para a minha terra, sem
logo no entanto descobrir que tudo que eu fazia era voltar
para minha mãe. Imaginei que ia ser uma coisa simples, uma
espécie de felicidade. Mas a gente é feliz um dia. Um dia se acaba
logo, e a felicidade também. (..) Então, a felicidade é mesmo o
que podia ter sido. (...) (pp. 562-563) (grifo meu)
É a mãe que simboliza no romance o que poderia ter sido a felicidade, a
terra, a memória original. Diz Bachelard que a origem de todos os sentimentos, de
todas as “formas de amor”, está no sentido filial do amor à mãe, e que
“sentimentalmente, a natureza é uma projeção da mãe”.
267
Se, como disse o filósofo,
toda água é leite materno, e toda natureza é a mãe, a memória original de Marcelo
está circunscrita ao maternal, ao feminino, à anima retorno simbólico às águas de
Rio dos Morcegos. Segundo Jung, na manifestação da individualidade a anima de
um homem é “determinada por sua mãe”. E é “a mulher no interior do homem”
quem lhe transmitirá as mensagens do self, possível totalidade do ser.
268
Em Marcelo acontece a busca de uma anima soterrada, de um eu perdido que
intenciona encontrar talvez um possível sentido de existir. Recusa o trabalho,
símbolo da autoridade, do masculino, para associar-se somente aos prazeres da
vida.
267
BACHELARD, Gaston. A Água Maternal e a Água Feminina. In: __________. A Água e os Sonhos,
p.119.
268
FRANZ VON, M. – L. “Anima”: o Elemento Feminino. In: JUNG, Carl G. Op. Cit., p. 178.
205
Na perspectiva freudiana, Marcelo encarna bem o complexo de Édipo: tem
uma relação difícil com o pai, foge para o Rio de Janeiro e volta quando esse
morre. Desde então vive para a e. aqui um parricídio velado, assim como
Freud encontrou em Hamlet, e que batizou como “complexo do incesto”.
269
A fuga
de Rio dos Morcegos, deixando no pai uma mágoa indissolúvel, se delineia como
um parricídio simbólico. No sentido psicológico, como bem assinalou Freud, o
importante não é o crime propriamente dito (no romance o pai morreu doente),
mas o desejo inconsciente de matar:
270
Tanto que quando soube da morte do pai,
Marcelo acolhe a notícia com uma disfarçada indiferença:
... Eu estava ausente, sem dar nem receber notícias. Afinal com as
lágrimas de minha mãe me veio a notícia triste. Meu pai morrera,
depois de grandes sofrimentos, que a carta todavia não explicava quais
fossem. Falava-se em dores, em perda de peso, meu pai certamente
magrinho, definhando em cima da cama. Impossível o meu
comparecimento. Eu nessa época andava perdido em mim mesmo,
sem vontade de nada nem pra nada. (...) (15) (grifo meu)
E só retorna à mãe após saber a morte do pai, a despeito de negar isso:
Agora estava eu ali, de novo, paletó no ombro, mala na mão, de volta a
Rio dos Morcegos, no caminho de casa. Não porque meu pai
morrera. Mas porque minha mãe ainda estava viva. Em
verdade eu dali estivera por algum tempo ausente, sem dali contudo
haver saído. Onde estava minha mãe, estava eu: onde eu estivesse,
comigo estava ela. (...) (16) (grifo meu)
É a mãe mesmo, natureza em estado original, que importa, sempre. É ela
quem Marcelo escolhe como emblema vital:
269
FREUD, Sigmund. Quarta lição. In: __________. Cinco Lições de Psicanálise, p. 52.
270
FREUD, Sigmund. Dostoievski e o parricídio. In:___________. O Futuro de Uma Ilusão, p. 193.
206
... E em verdade, embora eu tenha boas lembranças de meu pai, a
minha educação se fez sob o medo dele. Eu confiava mais em minha
mãe que nele. E preferia estar longe dele e perto dela. (...) (106)
(grifo meu)
Certamente é o amor pela mãe que fará com que Marcelo resolva interessar-se pelo
trabalho e se casar. Pela mãe aprende a desempenhar um papel que não era dele:
viver como os outros vivem, com os fadados compromissos oficiais que a vida
impõe:
... Queria numa palavra levar a fazenda a sério. Não tanto
pela fazenda em si, mas por minha mãe. Eu queria para minha
mãe o que minha mãe queria que eu fosse. (...) (366) (grifo meu)
... Às vezes me parecia estar apenas representando um papel
que minha mãe me havia reservado, mas procurava
desempenhá-lo bem. Não vinha ao caso se entre mim e o meu
papel não havia uma identidade perfeita. O meu papel era o de um
homem forte. E no avesso do meu papel eu era um homem de vontade
tíbia, um homem fraco, para dizer a palavra exata. (...) (369) (grifo
meu)
“Eu gostava de Lorena, mas talvez não houvesse resolvido desposá-la
logo, como ia fazer, não fosse o empenho de minha mãe em me
ver casado”. (437) (grifo meu)
A mãe, a mãe. Motivo da vida, origem de tudo:
Voltei a pensar em minha mãe. Quantas vezes teria ela dormido no
mesmo quarto onde eu agora me sepultava na escuridão? Talvez a
minha vida houvesse começado ali, ocorreu-me de repente
essa incômoda, estranha, caprichosa idéia. Minha vida em
seu começo, frágil canteiro de células e cartilagens, amorfa
anatomia gerada na flora da treva uterina. A escuridão me
207
devolvia à minha origem, no arcabouço de uma insone e nostálgica
memória. A escuridão. (145) (grifo meu)
É através da escuridão que Marcelo persegue sua origem, onde a mãe reina como
sentido primevo. A sensualidade descrita no trecho a seguir leva-nos a tentar
entender o que as sombras têm em comum com essa história.
Nisso, ouço os passos de minha mãe, vulto esfumado nas sombras
do entardecer, andando em minha direção, e me dizendo meu filho,
por que você está tão calado, sentado aqui fora, sozinho? E ela veio
andando, no rasto de sua voz. Senti pousado nos meus cabelos a
mão dela. Que silêncio é esse? Ela me perguntou. E afagando os
meus cabelos, como se os pêlos de um cão afagasse, carinho
maternal e animal, insistiu. (...) Eu via a noite descer sobre nós,
minha mãe ali a meu lado. Mas não conseguia (escondido em mim
mesmo, nas sombras cúmplices do entardecer) dizer-lhe uma
palavra, responder-lhe. (...) Instante de silêncio e de hesitação, de
seda nas sombras que se adensavam, com o cerco dos passos de
pluma da noite. Ela, minha mãe, era uma sombra no meio
das sombras. (...) E, numa perturbação, querendo fazer de mim
alguma coisa, ser alguém, deixar afinal (nem que fosse por um
instante) de ser nada, numa ânsia vital de afirmações, levantei-me e
abracei-a. Foi como se abraçasse uma sombra. Minha mãe, me
perdoe, eu disse. (...) E eu, apertando-lhe as mãos, sem ver contudo os
seus olhos, que de dentro das sombras também me olhavam
sem me ver, disse mãe, eu preciso lhe falar. E ali, nas sombras
que nos envolviam, conspiradoras do nosso muito e mútuo
amor de mãe e filho, eu abri em queixas o meu coração.(...) (119)
(grifos meus)
As sombras têm a ver com a anima, com a descoberta do feminino. Ao
encontrar o "outro lado”, sua mãe, “vulto esfumado nas sombras do entardecer”,
Marcelo encontra sua própria sombra. Diz Jung que a sombra representa
208
“qualidades e atributos desconhecidos ou pouco conhecidos do ego”, e nesse caso
aqui as sombras de Marcelo refletem nas sombras de sua mãe o reflexo de uma
anima perturbada. Essa perturbação do personagem com a vida, com o existir, é o
conflito maternal do seu ser mais íntimo. uma conjunção de feminilidade, uma
afinidade entre as sombras da mãe e de Marcelo. Porém, sub-repticiamente, é
preciso que um terceiro elemento se incorpore, como arquétipo do triângulo
amoroso que desertará o encontro feminino do filho com a mãe. Esse outro surge
de maneira sutil, porém Marcelo, sempre com os sentidos instintivos em alerta,
percebe:
- E já disse à senhora que não tolero esse Vieira.
- Mas... por quê? Ele nunca lhe fez nada...
- Não precisava fazer, sabe, mãe? Não gosto dele, e pronto. É
uma coisa instintiva, difícil de explicar. Coisa de cão e
gato. (445) (grifo meu)
- Está bem, mãe... está bem... Me desculpe a aspereza. É que eu não
posso ver a cara desse prefeito, sabe? É uma coisa instintiva,
de cão e gato.
- Que bobagem, meu filho. E no entanto ele gosta tanto de você,
além de ser como é um velho amigo da família. (416) (grifo meu)
No mais fundo de si, ao ouvir a defesa da mãe para aquele homem que atravessa o
caminho dos dois, talvez dissesse Marcelo, qual Hamlet, de novo: fragilidade, teu
nome é mulher!...” Se o o disse, disse quem o espreita, quem o descreve, quem o
criou, pois que como quase todos os artistas, Herberto também conforme
proclamou o Hamlet de Laforgue comeu “do fruto da inconsciência”.
271
Comer
desse fruto é saber da repetição de caminhos, da vida. Parafraseando Laforgue:
aqui, um Hamlet a mais. Esse daqui também não está decidido a vingar a morte do
pai matando o outro que pretende substitui-lo, mas vingar sua própria vida,
271
LAFORGUE, Jules. Hamlet ou as conseqüências do amor filial. In:__________. Moralidades lendárias,
p. 16.
209
proveniente tanto do pai quanto da mãe. Vida que pouco se lhe diz. Vida que traz
na mãe o emblema primordial. A traição materna é a traição desse emblema, dessa
vida, anima que aos poucos se esfuma como sombras...
Algo havia em minha e, nos seus modos, em suas palavras, que me
parecia inusitado. Por que tamanho horror ante a possibilidade
embora vaga de um adiamento do meu casamento, e por que tanta
pressa em fazê-lo realizar-se? Tamanho açodamento dela em me ver
casado, embora ela sempre o desejasse, era mesmo maior que o meu,
por mais ansioso que para isso eu estivesse. (486)
O prenúncio da descoberta fatal vem vestida de negro, na pessoa de sua tia-avó
Mariquinhas que, simbolizando a velhice malsã, envenena para sempre a alma de
Marcelo com palavras, palavras, palavras...
- Mais de uma vez sua mãe me disse que não pensava em se casar de
novo, antes de você se casar. Depois de você casado, sim,
talvez ela viesse a se casar novamente. Era um
compromisso que ela havia assumido consigo mesma.
Primeiro, o seu casamento, e depois do seu casamento
o casamento dela. Ela não queria casar deixando você solteiro.
(493) (grifo meu)
Marcelo recebe tais palavras com “um abalo, uma funda e aguda dor na alma”...
Palavras que resvalam sua significação na ferida exposta de um filho traído:
- Não, não, tia Mariquinhas, minha mãe nunca pensou em
se casar de novo. A senhora está fazendo confusão.
Minha mãe saberá honrar o luto dela, assim como a
senhora soube honrar o seu.
- Pobre de mim, Marcelo... Comigo foi diferente. Quando enviuvei,
eu estava um caco, quem havia de me querer? Eu tinha mesmo
de ficar sozinha. Mas sua mãe, não. Sua mãe é ainda muito moça,
210
está de carne moça. Quando enviuvei, eu tinha carne velha.
(493) (grifo meu)
A reiteração da “carne moça” será o estribilho da dor em Marcelo, como a lhe ferir a
alma hamletiana que agora vê na mãe a traição absoluta:
- Se sua mãe quer realmente casar de novo, você não deve se
aborrecer com isso continuou tia Mariquinhas, persistindo no
seu ponto de vista, que como num triunfo alardeava. Nininha
ainda está muito moça, de carne moça. Se quiser casar,
como mais de uma vez me disse que pensava fazer, é deixá-la
casar, enquanto pode fazer isso sem cair no ridículo. Não se trata
de nenhuma velha saliente, mas de uma mulher ainda em
pleno viço. É como eu digo: uma mulher de carne moça.
(494) (grifos meus)
“As pitangueiras estavam morrendo”, percebe Marcelo na saída da casa da tia-avó.
“Talvez fosse por falta de chuva”, conclui. Essa conclusão vem no contraponto ao
eco da carne moça” da mãe. Dentro dele tudo está morrendo... Remanescente de
um Édipo profundamente arrependido, Marcelo não suporta a alusão ao corpo da
mãe:
... Ainda era muito moça, e de carne moça. Essa idéia ofendia
o meu espírito, na medida em que me fazia sofrer, me
magoava. Minha mãe não estava pensando em homem
nenhum. Minha mãe era um ser puro, fiel ao luto pelo marido, fiel ao
respeito por si própria, à sua própria e inerente dignidade. (...) Se por
desgraça minha mãe realmente assim pensava, estaria me
traindo, e traindo a si própria. Não. Minha mãe era
intocável em sua pureza de sentimentos. (...) (506) (grifos
meus)
211
Um Édipo dilacerado, um Hamlet enlouquecido... trágico personagem
shakesperiano... Marcelo e a mãe, Marcelo e a vida, Marcelo e as sombras, Marcelo
e seus mais naturais instintos desconhecidos...
... Tensos instantes carnais me levam duas ou três vezes aos braços
inesperados de Lindaura. Passo todavia a evitá-la, me
incomodava aquela história de ela dizer que podia ser
minha mãe. (...) (510) (grifo meu)
Eu fitei demoradamente minha mãe. (...) pela primeira vez, embora
discretamente, minha mãe usara carmim no rosto e cobrira os
lábios com uma leve camada de batom. Minha mãe, uma
viúva, ainda de luto embora aliviado, se pintara!
(...)
- Vai sair sem me beijar?
- Vou, mãe. Não quero desarranjar a pintura do seu rosto.
Fechei a porta e saí, deixando atrás de mim um silêncio estupefacto.
(516) (grifos meus)
A partir daqui encontramos um ator cansado do papel que até então
representara... A fazenda, o casamento, Lorena, tudo tudo se vai desintegrando:
“Sentia-me como um artista cansado, farto do papel que desempenhou,
conservando todavia a consciência entediada mas responsável de ir até o fim.” Que
fim será esse? Viver até encontrar o envelhecimento? O Hamlet laforguiano diz
aqui o que bem poderia ser dito por Marcelo-Herberto:
- E, no fundo, dizer que existo! Que minha vida me pertence! A
eternidade em si antes do meu nascimento, a eternidade em si
após a minha morte. E passar assim meus dias a matar o tempo. E
a velhice que chega, a horrível velhice, respeitada e venerada pelas
donzelas, hipócritas e medíocres donzelas. Não posso vagar assim,
anônimo! Não me basta deixar apenas Memórias. (...) Ora! que
212
interesse teriam por minha biografia, com seu pão de cada dia,
cercada de amores e mortes? (...)
272
E o que ouvimos a seguir, na narrativa, é o eco entorpecido de duas memórias
Marcelo e Herberto , ou Herberto e Marcelo:
O maior castigo para aquele que vive muito é sobreviver às suas
pessoas queridas, que como para feri-lo e fazê-lo sofrer se vão antes
dele, e cujo fim ele não apenas presencia mas até de certa forma
participa, coveiro de afetos e talvez de amores. Nunca esperei viver
tanto como já vivi. Ainda bem que por enquanto não sofri a punição de
ver morrer os meus amigos. (...) (562)
A morte então é o destino escolhido. É preciso que Marcelo/Hamlet sucumba para
que Herberto/Horácio escreva sua história. Diria Herberto-Marcelo, como disse o
Hamlet de Laforgue: Não tenho um amigo que possa narrar minha história, um
amigo que precedesse em todos os lugares, para evitar as explicações que me
matam.”
273
ele mesmo, ele/o outro, pode fazer isso, trazendo no arquétipo
universal da traição da mãe o pré-texto para a narrativa:
... Não. Não era possível. De repente, vejo abrir-se o portão. Dois
vultos se desenham sob o luar. um abraço estreito e prolongado,
que os reduz a um único vulto. Mas logo um deles se desprende do
outro, num longo e lento deslizar de mãos, como um laço se
desfazendo. É um homem. Afasta-se apressadamente da casa. (...)
Grito:
- Seu Vieira!
Ele pára. Me olha um momento, o tempo apenas de me ver. Apressa
então os passos, e logo se põe a correr pelo descampado, rumo às
272
LAFORGUE, Jules. Op. Cit., pp. 22-23.
273
Idem, p. 22.
274
Conforme vimos no capítulo primeiro deste trabalho.
213
pedras do rio, pusilânime, cavalheiro abandonando a sua dama. (...)
(564)
A temática da descoberta da traição da mãe na obra de Herberto teve início em
Cascalho. E se incorporou no Coronel Germano, homem endurecido pela vida, que
unindo as águas do Rio Paraguaçu à mãe,
274
traz talvez nas suas origens a resposta
dessa dureza: o eterno conflito com a anima:
A memória era qual uma mão que tivesse aberto uma porta:
viu uma mulher de luto em Andaraí, com uma balança de pesar
diamantes no bolso da bata, dando ordens a dois garimpeiros, de
na calçada da casa; era sua mãe, e ele tinha dez anos. (...)
Subitamente, porém, tudo se lhe apagou na memória, como se a porta
se fechasse diante dele; quando ela de novo se abriu, um homem
saiu de dentro do quarto abotoando-se, e sua mãe apareceu
muito pálida em seguida. “Não mandei você ficar no
quintal?” – disse-lhe.(...) (Cascalho, pp. 270-271) (grifos meus)
A memória é insistente, e o fim pode resolver esse drama. O fim, a morte. Se
nascer é pouco, e viver é tão insignificante e perturbador, a morte é também
inócua.
275
Marcelo a encontra, numa tragicidade indevassável. Na abordagem
junguiana a “batalha pela libertação” acontece quando o ego entra em conflito com
a sombra.
276
No momento em que isso acontece, o ego (máscara) morre.
Daí surge
um novo ego reestruturado. Marcelo entra em conflito com a vida, com a mãe, com
a sombra, mas a reestruturação, a libertação acontece em outro nível: entrando na
Casa da Morte de sua infância, pois está o que o interessa: o cianureto de matar
formigas. Formigas como metáforas do que há de mais instintivo e ao mesmo
tempo ínfimo na vida: sua própria existência.
275
GROSSMANN, Judith. Op. Cit.
276
HENDERSON, L. Joseph. Heróis e Fabricantes de Heróis. In: JUNG, Carl G. Op. Cit., p. 118.
214
... Aquilo precisava ter um fim. Caminhei lentamente até a cozinha (...)
Peguei o facão da cozinha, enfiei por baixo da braçadeira que prendia
o pequeno cadeado do armário de guardados. A chave ficava com
minha mãe. Forcei a braçadeira com o facão, fiz soltar os parafusos
delas. Aberta a porta do armário, tirei de dentro a chave que eu
conhecia e queria. (...) Havia um cheiro de morte no ar. Diante da
Casa da Morte parei. (...) Era a primeira vez que eu entrava na Casa da
Morte. Mas conhecia o cheiro abafado e forte que de se desprendia,
quando em minha curiosidade de menino eu via, pela porta
entreaberta, o empregado ir buscar dentro o vidro de veneno para
matar as formigas. A Casa da Morte. Abri a porta. Abri o vidro. E no
cheiro mortífero me desfiz, desapareci numa caverna escura. Eu
não era eu.
Marcelo morre, e sua Ofélia – Lorena, a noiva preterida –, seguindo a morte do seu
amor, vai às águas de um poço em busca do mesmo destino. No apêndice, sabe-se a
morte de Lorena a partir da carta de Ester – irmã de Marcelo – a um padre,
rogando a missa para os dois suicidas. Morrer na água, segundo Bachelard, é “a
mais maternal das mortes”
277
... Assim, Lorena, ao escolher as águas tenta mais se
aproximar, inconscientemente, do universo de Marcelo. Morrer na água é a
“verdadeira matéria da morte bem feminina”. Como Ofélia, Lorena também “deve
morrer pelos pecados de outrem, deve morrer no rio [no poço], suavemente, sem
alarde”:
278
No dia seguinte à morte de Marcelo, outra tragédia aconteceu, como
desdobramento de seu suicídio. Lorena, sua noiva, desapareceu de
casa. (...) Deu-se uma busca, muita gente procurando, e à beira do
poço do Calafate, assim chamado, encontraram as suas sandálias
arrumadas ao lado da sombrinha, que ela teve o cuidado de fechar,
como se fosse guardá-las. (...) Mergulhadores exploraram o poço, e
pouco depois trouxeram à tona o corpo da infeliz. (...) Lorena,
277
BACHELARD, Gaston. O Complexo de Caronte. O Complexo de Ofélia. In: ________. Op. Cit., p.75.
278
Idem, p. 84.
215
coitada, suicidou-se porque não pôde suportar a dor de ficar
sozinha no mundo sem Marcelo. (568) (grifos meus)
Tudo o que no homem é mulher, segundo disse Laertes no drama hamletiano,
entende a morte na água. Duas forças femininas, jovens e belas se encontram, pois
que a “água é o elemento da morte jovem e bela”,
279
água que se ofeliza no drama
contíguo da existência das lágrimas.
O suicídio na literatura, diz ainda Bachelard, é preparado como um longo
destino íntimo de quem o escreveu. É, segundo ele, a morte “mais preparada, mais
planejada, mais total”. “Quer queira quer não”, afirma ele, “o romancista revela o
fundo de seu ser, ainda que se cubra literalmente de personagens” e de palavras.
280
Ouvimos Camus dizer sobre o suicídio: “...Um gesto desses se prepara no silêncio
do coração, da mesma maneira que uma grande obra.O próprio homem o ignora.”
281
. E afirma adiante: “Matar-se, em certo sentido, e como no melodrama, é
confessar. Confessar que fomos superados pela vida ou que não a entendemos”.
Confessar, portanto, o absurdo da vida, e matar-se como a dizer de uma “aspiração
ao nada”.
282
Foi essa aspiração que talvez tenha tido o tio Marcelino, no terceiro
romance de Herberto, quando se queimou (propositadamente?) no seu jardim, e
quando, com os olhos de menino, o narrador herbertiano mal pode perceber a
complexidade daquilo tudo: “... Somente eu, muito menino ainda para me capacitar
do horror daquele transe, somente eu, que nunca vira morrer ninguém, e nada
sabia do significado da morte, somente eu não chorava. Dir-se-ia que eu apenas
estranhasse o fato de uma pessoa poder deixar de viver. (...)”
283
279
Ibidem.
280
Ibidem, p. 83.
281
CAMUS, Albert. O Absurdo e o Suicídio. In: __________. O Mito de Sísifo, p. 18.
282
Idem, p. 20.
283
SALES, Herberto. Dados Biográficos do Finado Marcelino, p. 131.
284
CAMUS, Albert. A Liberdade Absurda. In: __________.Op. Cit., p. 67.
216
O jovem Marcelo matou-se, Herberto escreveu o romance. Diz Camus que, no
suicídio, o homem ao perceber o seu terrível futuro se precipita nele como a
resolver o absurdo da vida. Mas para que o absurdo se mantenha a recusa ao
suicídio: “Consciência e revolta, estas recusas são o contrário da renúncia. Pelo
contrário, tudo o que de irredutível e apaixonado num coração humano, lhes
insufla ânimo e vida. (...) O homem absurdo não pode fazer outra coisa senão
esgotar tudo e se esgotar. O absurdo é sua tensão mais extrema, aquela que ele
mantém constantemente com um esforço solitário, pois sabe que com essa
consciência e com essa revolta testemunho cotidianamente de sua única
verdade, que é o desafio.
284
Como Sísifo, é preciso levar a pedra ao alto da montanha, desafio da verdade
que nos sugere o romancista Herberto Sales. Diria ele, talvez, à maneira de Camus:
“Por isso vivo o que há de mim em Marcelo e sobrevivo para escrever o romance. E
apesar da dor de subir infinitamente a montanha com uma pedra que insiste em
cair sempre, é possível imaginar um Sísifo feliz”. Na escritura, o romancista ao
perceber o absurdo da vida mergulha “com todos os excessos”, e sabe o momento
exato em que a consciência desse absurdo lhe faz feliz: a realização da obra.
Memória que a palavra literária permite ser entre o que aconteceu e o que não
aconteceu, pois criar é mesmo “dar uma forma ao destino”.
285
No sonhos e nos mitos, conforme Jung, a sombra surge “como uma pessoa do
mesmo sexo que o sonhador”.
286
Dessa maneira é possível conjecturar que Marcelo
pode ser talvez uma das sombras de Herberto. Herberto sonhou morrer cedo, mas
Marcelo executou o sonho. Em Rio dos Morcegos o sonho da morte é realizado
como recriação, como criatividade, como libertação, através da Palavra escrita.
Para melhor compreendermos essa relação, aqui ilustro com uma história contada
no Livro do Alcorão, e que Jung utilizou para exemplificar as forças vitais que
285
Idem. A Criação sem Amanhã. In: _________. Op. Cit., p. 133.
286
Apud HENDERSON, Joseph L. O Arquétipo de Iniciação. In: JUNG, Carl J. Op. Cit., p. 169.
287
FRANZ VON, M. – L. A Realização da Sombra. In: JUNG, Carl. G. Op. Cit, p. 175.
217
também existem na sombra. É a história do encontro de Moisés com o anjo Khidr,
“o primeiro anjo de Deus”, que faz um pacto com Moisés para que o mesmo assista
as suas aparentes destruições sem se revoltar: “põe a pique o barco pesqueiro de
alguns pobres aldeães”; mata um “formoso jovem” e “restaura os muros tombados
de uma cidade de ateus”. Ao explicar o motivo de seus atos, o que era sombra,
destruição, revelou-se em ações criadoras: “afundando o barco salvou-o para os
próprios donos, que aproximavam-se (sic) piratas para roubar a embarcação”; “o
formoso jovem preparava-se para cometer um crime” e , por último, ao restaurar o
muro dos ateus, “dois piedosos jovens foram salvos da ruína, já que um tesouro que
lhes pertencia estava enterrado debaixo deles.” Nessa história, Khidr é, pois,
“essencialmente, a personificação de algumas ações criadoras e secretas de
Deus”.
287
Essa história nos serve como ilustração a fim de podermos presumir uma
possível verdade: Herberto Sales, ao resgatar sua sombra através do personagem
Marcelo, personifica-a como ação criadora e secreta. Nessa ação criadora, a arte
possibilita que a memória alcance o estado original, a essência de um tempo
primevo, algo como a eternidade. A mãe, o pai, os conflitos, os exorcismos, são tão
somente temáticas de um passado que se faz insistentemente presentes para que se
alcance a redescoberta de um tempo original perdido, algo que a psicanálise chama
de inconsciente e que a arte desenha a partir dos sortilégios da palavra. com a
arte é possível apoderar-se, pois, do passado original, das essências de um “tempo
em estado puro”, das verdades da alma.
288
Deleuze diz que a busca proustiana é muito mais uma busca da verdade que
uma busca do tempo perdido. E se foi batizada “busca do tempo perdido” é porque
o tempo tem uma profunda relação com a verdade. E mais, diz ele que buscar a
verdade é em suma decifrar signos. E são os signos da Arte que têm superioridade
sobre todos os outros, pois que é a arte a “verdadeira unidade: unidade de um signo
288
DELEUZE, Gilles. Proust e os Signos.
218
imaterial e de um sentido inteiramente espiritual”. E a essência é “exatamente essa
unidade do signo e do sentido, tal qual é revelada na obra de arte”. Se na vida os
signos são sempre materiais, com a arte encontramos o sentido “inteiramente
espiritual”,
289
que transmuta, transcende o meramente vivido, conduzindo-nos a
outras clareiras onde a vista material não consegue pernoitar sem antes fazer um
pacto com as sombras do inconsciente reinantes na memória da Palavra. Disse
Octavio Paz sobre a excelência da palavra poética não ser “completamente deste
mundo: sempre nos leva mais além, a outras terras, a outros céus, a outras
verdades”.
290
Assinalamos, no início de nossa leitura, para no final desse capítulo tentarmos
retomar, uma pergunta temerária sobre um possível tempo em Rio dos Morcegos
que poderia ser presumido como confissão de um momento atual do autor. Era a
recorrência a um presente, dentro do tríplice tempo, que se insinuava
extremamente autoral. Foi nos desdobramentos desse tempo que Herberto Sales
autor, na retaguarda da narrativa talvez por um ato falho, ou de maneira
deliberada, pontuou memorialisticamente uma existência que continua antes/após
sua sombra, Marcelo, sucumbir. Retomemos o fragmento:
Mas não quero falar mais destes tempos loucos, que a minha
vida se alongando me obrigou a ter debaixo dos olhos
horrorizados, embora eu viva à margem deles. Recolhido à
fazenda, e sobretudo recolhido a mim mesmo, aguardo com
paciência a morte, que sempre esperei viesse cedo. No
presente vivo afinal o meu futuro, que nunca me preocupou.
se disse que o futuro é feito do passado. No meu
paradoxal futuro encontro tudo que de descuidado viver e
de verdade humana constitui o meu passado de rapaz. E é
esse passado e ele que recordo aqui, indiferente ao que
fora de mim acontece no mundo, nesse seu presente que
nada tem comigo. (98) (grifo meu)
289
Idem, pp. 38-39.
290
PAZ, Octavio. A Consagração do Instante. In: ____________. O Arco e a Lira, p. 231.
219
Desse fragmento posso apenas dizer que “viver à margem”, no caso de
Herberto que se exilou no final da vida em São Pedro da Aldeia para esperar a
morte, corresponderia talvez a acolher voluntariamente o passado e a morte como
tema, e a Palavra como salvação possível. É como se ele que aguardou “com
paciência a morte”, vinda cedo apenas para Marcelo – continuasse com sua sombra
e ao mesmo tempo sua libertação. Através da palavra literária, essa sombra o
passado , se transfigurou em matéria reveladora de uma vida em permanente
cumplicidade com a memória, com a criação. Cumplicidade que tem início em
Cascalhomarca enfática de sua memória telúrica –, e finaliza, como fechamento
de ciclo, em Rio dos Morcegos, memória que persegue, muito mais que a terra, o
próprio ser a alma acossada que a Palavra incorpora. Desses imbricamentos é
possível aqui repetir o que disse Barthes sobre a obra de Proust: “... não é a vida
que informa a obra, é a obra que irradia, explode na vida e nela dispersa os mil
fragmentos que parecem preexistir-lhe”. Parodiando-o, digo ainda que não é a vida
de Herberto Sales que encontramos em sua obra, é sua obra que encontramos na
vida de Herberto Sales.
291
Epílogo: PLURAL DE MEMÓRIAS
A memória é solitária porque intransmissível. Salvo
por raros escritores que sabem como tirá-la da
solidão para fazê-la solidária. (Artur da Távola, in:
Memória e Solidão)
292
Afinal o assunto deste livro sou eu. Eu e minha
miserável condição humana. (Herberto Sales, in:
Subsidiário 2, p. 133)
A memória no Renascimento era simbolizada na forma de um cão. Um cão
negro. O cão evoca algo como “fidelidade ao homem e a cor escura uma certa
291
BARTHES, Roland. Vidas parelelas. In: _______. Op. Cit., p. 173.
220
melancolia
293
que interage com tal fidelidade. A memória, pois, persegue fielmente
o homem, e essa perseguição, e essa fidelidade revelam, muitas vezes, um
sofrimento constante. Sofrer por não conseguir esquecer - tão triste como a
amnésia, o esquecimento total. É preciso, em verdade, transformar essa memória
em alguma coisa material e/ou espiritual, para que não naufrague no
esquecimento ou até mesmo para que não enlouqueça quem a carrega.
Transmutar a memória em literatura, em arte literária, essa é a proposta da
obra romanesca de Herberto Sales. Se tudo é memória e dela não podemos escapar,
e estaremos para sempre condenados às lembranças, ao passado; se esse cão fiel é
muitas vezes perverso e teima em nos acompanhar infinitamente... por que não
transformá-la, ludibriá-la, multiplicá-la nas mil faces do imaginário? Por que não
persegui-la na fidelidade da “mentira” ficcional? Por que não tocar nas suas fendas
mais secretas, nas mais complexas fissuras que fazem dela essa coisa híbrida,
mistura de sonho e realidade?
Disse Barthes que um ponto marcante que difere o conto do romance é um
certo sentido de catástrofe que perpassa a narrativa longa. No romance a catástrofe
“tem algo de orgânico” enquanto que no conto “o infortúnio” sobrevive como “ato
solitário”: “as situações não se encadeiam nem se perdem, mas se confrontam e
rompem”. No romance, a catástrofe ganha uma “espessura existencial”.
294
Aqui
utilizo as palavras de Barthes para relacionar a memória e o romance. O que teria
mais espessura existencial que o ato de lembrar? Assim, tal espessura é no romance
que se cola adequadamente” é como untar forma e tema: vida e memória. Por
isso é que o romance tende a ser poema, e também tende a ser conto, e tende a ser
imagem, quadro, música, pintura...
295
O romance acopla todos os gêneros, todas as
formas, para mais dizer sobre o homem e seus afluentes memorialísticos, esteja ele
buscando um tempo perdido ou criando tempos futuros. O romance junta, dessa
292
TÁVOLA, Artur da. Memória e Solidão. Disponível em: <http: armazemdesonhos.com.br/Cronicas-
arquivo/arturdatavola/memoriasolidão.htm>
293
SCLIAR, Moacyr. A melancolia na arte e na literatura. In: ___________. Saturno nos Trópicos, pp.82-83.
294
BARTHES, Roland. Maupassant e a física do infortúnio. In: __________. Inéditos. Vol. 2 – crítica, p. 119.
295
Nesse sentido, PAZ, Octavio. Ambigüidades do Romance. In: _________. O Arco e a Lira.
221
maneira, a catástrofe do lembrar, a evocação ao que foi à condenação estrutural da
lembrança, que nada mais é que a condenação à vida.
Herberto Sales, como todos nós, estava também condenado à memória, à
vida, à “catástrofe” de existir. Fazer dessa condenação um ofício poético, uma
poética visceral, é tornar possível a criação de um personagem: o escritor.
Utilizando-se do romance, da palavra literária, o escritor Herberto Sales promulga
a unificação do que estava disperso puramente na imaginação. Com a criação
literária, a imaginação ganha uma forma, a memória se materializa, e assim é
possível ficar amigo do cão fazer as pazes com a melancolia inerente à memória.
No romance, pois, o homem Herberto se transformou em personagem
personagem de si mesmo; e dele, dessa memória, o que sabemos está na sua obra.
Inicialmente, em Cascalho. Nesse primeiro livro, ele, um rapaz andaraiense
de vinte e quatro anos, resolve escrever o que até então sua memória guardava: as
histórias que trazia do lugar que nasceu e viveu – sua terra, memória telúrica que o
perseguia nas formas primitivas de uma natureza personificada e nas forças brutais
dos homens; na morte reinando muda entre as grunas, onde o sonho do diamante
transformava quem sonhava os garimpeiros - em seres ínfimos, mortos como
ratos numa ratoeira. O local Andaraí se alarga e a comunhão do escritor com
seu meio se transforma numa comunhão universal: aquele lugar se expande, e o
que se vê é o homem na sua condição primeva, homens de papel que se
transformam em puramente natureza ao morrer nela e por ela. Essa memória
agarrada à terra, aos costumes e vivências, se alarga mais ainda, no sentido
universalizante, em Além dos Marimbus. Nesse romance, como vimos, o pântano –
os marimbus – está imbuído de uma relação tenaz com o homem, nas suas misérias
sociais. A humanidade que circunda esse livro, denominado como Cascalho de
literatura regionalista, possibilita que o documento humano e estético prevaleça
sobre o pitoresco e a mera denúncia social. As paisagens estão imbricadas no
homem de uma maneira simbiótica, e o homem é a paisagem. Sua vida irmana
dessa memória primordial memória da terra, revelação primeira do homem. Por
222
isso será a memória telúrica o início e o arcabouço da memória na obra
herbertiana. A terra, como espaço, está impressa na condenação de lembrar.
Esta condenação telúrica prosseguirá inelutavelmente, impressa nas
classificações da memória que, de maneira didática, tentei catalogar a fim de a
leitura tornar-se mais clara, e a obra herbertiana revelar-se por si mesma. Na
verdade todas as memórias estão interligadas pois que estas o apenas uma (e
múltiplas): um cão fiel e negro. A obra acompanha sua vida biográfica, e é a
memória na sua natureza de recriação que tentará desvelar os fios, os liames que
conjugam vida e ficção. Indecifráveis, tais fios continuarão atados e desatados.
Resta, afinal, a memória da solidão: os Dados Biográficos do Finado Marcelino, a
tristeza da decadência e da velhice, o enigmático que soçobra uma vida humana
impossível de se biografar, os claros e escuros de uma memória que faz retornar
um morto, mas não o decifra. A mesma solidão reiterada no romance Na Relva da
Tua Lembrança – a poética do envelhecimento faz um acordo cruel e criador com a
poética da palavra, e o que resulta é a solidão da maturidade: a solidão de
perceber-se múltiplo; a emergência em conjurar a memória à imaginação; a
nostalgia de buscar um tempo perdido num contraponto ao tempo presente de um
velho Herberto que, ao refugiar-se em São Pedro da Aldeia-RJ, encontra o retorno
mítico à memória telúrica, agora eivada de solidão somente. Nessa solidão, os
filhos matam os pais, o presente e o futuro matam o passado, e o que resta é o exílio
na literatura, nas ramificações que a memória individual possa estabelecer com a
trama romanesca, com a história coletiva. Desses imbricamentos eis Os Pareceres
do Tempo, história do antepassado familiar do autor aliado à história do Brasil.
História particular aliada à história de uma nação. Como “possuidor de memórias”
Herberto Sales universaliza sua memória particular dimensionando-a à memória
do país, de uma coletividade. Ficção e História se entrecruzam fazendo-nos
perceber que a ironia será sempre o mecanismo de desvelar memórias escondidas
numa História que muitas vezes foi contada a partir de uma linguagem que
pretensiosamente queria oficializar-se verdadeira. Os Pareceres do Tempo é a
comprovação de que o que se propagava como ficcionalidade/mentira sendo
antípoda de História/realidade é completamente descartado. Ambas – ficção e
223
história estão interligadas ao narrar de um tempo humano, tronco comum que é
a narrativa.
296
Memória, assim, como narrativa da História, finalmente juntas,
particular e coletivo num tronco, Menemosyne finalmente reencontrando suas
origens.
Todas essas memórias são, aqui, unicamente uma: a memória da Palavra.
Não deixa de ser um truísmo essa constatação a que chegamos no final de nossa
leitura. É a Palavra que, coexistindo com a memória, será seu corpo. É disso que é
feito a literatura: de estilo, forma. Disse Deleuze muito bem que “o estilo não é o
homem, é a própria essência.” E o que é essência? “É o que constitui o ser, que nos
faz concebê-lo”.
297
Essência que a arte encarna na Palavra, nos seus sons e
significações, desmaterializando a vida, espiritualizando a matéria. O estilo é essa
transmutação da matéria a partir da essência proveniente de uma arte que
reorganiza o tempo e a memória. Palavras – essências de uma memória que se quer
elástica, espiritual e essencial; volta ao tempo puro, na qual signos são índices de
possíveis verdades. São esses paradigmas utilizados como composição da
memória da Palavra que Rio dos Morcegos, antepenúltimo romance
herbertiano, simboliza, tendo como arcabouço aquela verdade proustiana de ser a
literatura a vida plenamente vivida.
Nesse último romance abordado, todas as memórias fazem parte, num
amálgama quase que de perversão: o erotismo, a tragédia, a morte são pré-textos
para que a memória volte às suas origens de palavra em tempo puro, memória
original. A terra do autor se metaforiza e a memória telúrica é mesmo memória da
palavra, memória da solidão, memória e história, pois que estamos
particularizados nessa história universal que é a condição humana. O possível
passado íntimo do homem Herberto se dimensiona em escritura, e deixa de ser
unicamente biográfico para se transformar em memória alheia, memória nossa,
afinal estamos todos no mesmo barco de Caronte, em plena travessia... Todos nós,
com nossas memórias, fiéis cães em busca de um tempo perdido, de uma vida
296
RICOUER, Paul. Tempo e Narrativa.
297
DELEUZE, Gilles. Os Signos da Arte e a Essência. In: _________. Proust e os Signos, 39-46.
224
perdida, condenada à mortalidade, porém também condenada à felicidade de um
confronto íntimo. Com a literatura, com a encenação literária encontramos nossa
própria alteridade somos afinal apresentados ao nosso ser mais íntimo nessa
nostalgia e busca inacessível que tem o homem de possuir a si mesmo. Foi o que o
personagem Marcelo nos fez antever enquanto simulacro, encenação: a
transgressão de todos os limites que a vida impõe.
298
É aqui, nesse encontro entre o ser e a possibilidade de não ser, na conjunção
de memórias que a encenação literária modela, que posso afirmar ser minha a
memória herbertiana. Não somente porque venho das terras embrejadas de sua
memória telúrica, na qual paisagem e homem continuam entrelaçados. Mas porque
sei das urdiduras que a vida, na velhice e abandono, confere ao homem no bojo da
memória de uma solidão imponderável. Porque sei que minha pátria são também
minha família e meus mortos, e que também é minha a memória particular e
universal dos mesmos pareceres que o tempo, o tempo dá, e que concedeu na
obra herbertiana. E mais ainda: porque persigo a memória da Palavra é que teimei
em fazer um pacto com ela a partir da poética da leitura, adentrando o universo da
experiência estética, poiesis, produção, criação particular, diálogos com o si-
mesmo, com o outro. Leitura que ora encerro, constatando que a vida
documentária de Herberto Sales é consoante à vida romanesca, numa fronteira em
que o vivido e o escrito se amalgamam a fim de compor tão somente um corpo
unidade que se transforma em “plural de encantos”, “canto descontínuo de
amabilidades”,
299
e que eu, leitora, no prazer da fruição da leitura, revelei como co-
existência de vidas, de memórias: as minhas, por exemplo, se desenrolam nas
entrelinhas dessa leitura, desse corpo.
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Nesse sentido, ISER, Wolfgang. A Encenação como Categoria Estética. In: _________. O Fictício e o
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