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Eduard Marquardt
A ÉTICA DO ABANDONO
César Aira e a nova escritura
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Literatura da Universidade Federal de Santa
Catarina, linha de pesquisa Textualidades
Contemporâneas, para obtenção do grau de Doutor
em Literatura, com área de concentração em
Teoria Literária.
Orientação: Profª Drª Ana Luiza Andrade
Florianópolis, fevereiro de 2008.
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1
A ÉTICA DO ABANDONO
César Aira e a nova escritura
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2
RESUMO
Esta tese estuda a escritura (Barthes) de César Aira (Coronel Pringles,
Argentina, 1949). Grande parte da investigação baseia-se em material disperso,
textos de jornais e revistas, ocupando lugar de destaque a conferência "O a-
ban-do-no". A produção de César Aira é lida a partir deste texto, para trás e
para frente, buscando-se modos de como este procedimento se relaciona a outros
mecanismos da escritura, a saber, o contínuo, a tradução e a singularidade,
caracterizando, em seu caso, um processo de documentação marcado pelo uso da
prosopopéia. O abandono constitui uma ética (Badiou), pela qual o sujeito se
lança infinitamente a um para-além do já-sabido. Do abandono para uma nova
escritura.
Palavras-chave: César Aira; Literatura; Argentina; Abandono; Ética; Escritura;
Arte; Crítica; Procedimento.
3
ABSTRACT
This thesis studies the écriture (Barthes) of the Argentinian writer César Aira
(Coronel Pringles, 1949). It is fundamentally based on disperse material where
the conference "O a-ban-do-no" (Abandonment) plays an important role, for it is
the point of departure for a reading of Aira's production. An immitation as
well as a search for a procedure which goes backwards and forwards, it relates
to other mechanisms of his own writing (écriture) such as the continuous,
translation and singularity, and will characterize a prosopopaeic way of
arranging documents. Finally, abandonment institutes an ethics (Badiou) by
which a subject is infinitely drawn beyond the already-known. From abandonment
to a new writing (a new écriture).
Keywords: César Aira; Literature; Argentina; Abandonment; Ethics; Écriture;
Art; Criticism; Procedure.
4
5
Meus agradecimentos ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da
Universidade Federal de Santa Catarina e à Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior, CAPES, que financiou parte desta pesquisa.
Devo à Profª Ana Luiza Andrade a condução da redação final, a quem
agradeço, tanto pelas sucessivas leituras e sugestões, quanto pelo convívio. À
banca, Drª Sandra Contreras, Dr. Nelson Schapochnik, Drª Alai Garcia Diniz e
Dr. Sergio Medeiros, agradeço a disposição em examinar o texto. Aos professores
Maria Lucia de Barros Camargo e Raúl Antelo reconheço presença neste trabalho,
aos quais também muito agradeço.
Aos colegas do Instituto Esfero, Marco Maschio Chaga, Simone Dias,
Jacqueline Iensen, Carlos Castilho, os amigos Felipe W. Lins, Fernando
Massignam, Widomar Carpes Jr., Frank Marcon, Guilherme Peixoto, Gizelle
Bedendo, Guto Rosa, meus irmãos Evandro e Dayana Marquardt, agradeço pelas
conversas de sempre e pela parceria. Este trabalho é também para vocês.
A César Aira, por fim, agradeço sua generosidade e confiança.
6
para Rolf e Neli
e pro Du, que já lê.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................... 10
CAPÍTULO 1 ................................................................... 14
1.1 Nota ................................................................... 14
1.3 O abandono ............................................................. 30
1.4 O contínuo ............................................................. 37
1.5 Contínuo, repetição e diferença ........................................ 39
1.6 Singularidade, analogia e tradução ..................................... 47
1.7 Individualidade e singularidade ........................................ 53
1.8 Assemblage ............................................................. 55
1.9 Atonalidade ............................................................ 61
1.10 Imagem ................................................................. 66
1.11 Mimese ................................................................. 69
1.12 Indícios ............................................................... 72
CAPÍTULO 2 ................................................................... 78
2.1 A desistência .......................................................... 78
2.2 Uma trapaça, um estrago ................................................ 82
2.3 ética .................................................................. 87
2.4 A ética da literatura .................................................. 92
CAPÍTULO 3 ................................................................... 98
3.1 Caixas-pretas e dispositivos ........................................... 98
3.2 Deriva e documentação ................................................. 101
3.3 Aparelho, procedimento, cifra ......................................... 107
3.4 Maquete ............................................................... 112
3.5 A prosopopéia ......................................................... 116
3.6 Conexão e abandono .................................................... 121
SEM MÃE ..................................................................... 127
BIBLIOGRAFIA ................................................................ 133
DE CÉSAR AIRA ............................................................... 133
Livros ...................................................................... 133
Em colaboração .............................................................. 134
Em periódicos ............................................................... 134
Como editor ................................................................. 137
Traduções assinadas ......................................................... 137
Entrevistas ................................................................. 138
Traduções para o português (Brasil) ......................................... 138
SOBRE CÉSAR AIRA ............................................................ 139
GERAL ...................................................................... 144
MAPA CRONOLÓGICO ............................................................ 155
MAPA ELETRÔNICO ............................................................. 164
8
ARQUIVO ..................................................................... 167
TEXTOS ESPARSOS DE CÉSAR AIRA ............................................... 168
Romance argentino: nada além de uma idéia ................................... 169
A tradução .................................................................. 173
Era uma vez... .............................................................. 174
Best-seller e literatura .................................................... 176
O desejo real de viajar ..................................................... 179
Cecil Taylor ................................................................ 181
Osvaldo Lamborghini e sua obra .............................................. 188
O distraído ................................................................. 192
Uma máquina de guerra contra a pena ......................................... 194
Um barroco do nosso tempo ................................................... 196
Um teste .................................................................... 198
O a-ban-do-no ............................................................... 199
Exotismo .................................................................... 201
Arlt ...................................................................... 205
A prosopopéia ............................................................... 215
Pobreza ..................................................................... 219
A nova escritura ............................................................ 222
A cidade e o campo .......................................................... 226
A cifra ..................................................................... 231
Kafka, Duchamp .............................................................. 236
O incompreensível ........................................................... 240
O ingênuo ................................................................... 243
Braulio Arenas: por uma literatura modular .................................. 249
Nossas improbabilidades ..................................................... 252
Duas notas sobre Moby Dick .................................................. 254
A utilidade da arte ......................................................... 257
A obra-prima secreta ........................................................ 260
Os quadros de Prior ......................................................... 262
Contra a literatura infantil ................................................ 264
O ensaio e seu tema ......................................................... 265
A poesia do suporte ......................................................... 269
Mutilação narcisista ........................................................ 270
Entre presidente e presidente ............................................... 271
O dândi de um traje só ...................................................... 273
Os poetas do 31 de dezembro de 2001 ......................................... 275
Vozes entre a selva ......................................................... 277
Rimbaud, um mistério intacto ................................................ 278
Semelhanças e diferenças entre Colômbia e Argentina ......................... 280
O medo criador .............................................................. 283
O que fazer com a literatura? ............................................... 285
Por que escrevi ............................................................. 287
Adeus, Natal ................................................................ 291
A hora azul ................................................................. 293
Contos de fantasmas ......................................................... 294
O método da caneta-tinteiro ................................................. 297
Chileno, florentino, chinês ................................................. 298
Mil gotas ................................................................... 300
A onda que lê ............................................................... 310
A boneca viajante ........................................................... 312
A ilha deserta .............................................................. 314
A intimidade ................................................................ 316
O carrinho .................................................................. 320
Pequenos delitos, grandes obras ............................................. 322
Verne e o leitor ............................................................ 324
Provemos com veneno ......................................................... 326
Experiência vital ........................................................... 328
IMAGENS ..................................................................... 329
APÊNDICE .................................................................... 335
9
É paradoxal, mas eu, que me sinto tão
longe e diferente de meus colegas escritores,
me reconhecia num carrinho de supermercado.
César Aira
10
INTRODUÇÃO
A escritura de César Aira é um lugar, e como todo lugar, admite várias
narrativas. Esta tentará ser uma delas.
Partamos de algumas escritas: Sandra Contreras percebeu em Aira a
conversão do trabalho literário na superprodução de uma literatura ruim como
transgressão às hierarquias herdadas;
1
Graciela Montaldo chamou atenção para o
modo desviado como Aira se coloca na indústria cultural, saturando o mercado
com livros na maior parte artesanais, proliferando algo que imediatamente se
torna raro;
2
Adrián Cangi sublinhou a constante de uma literatura filosófica,
auto-reflexiva e sempre limítrofe (de uma anacrônica gauchesca até a ficção
científica e o romance de aventuras), por meio de um automatismo que tudo
absorve;
3
Francine Masiello entendeu-o como um formidável pós-moderno, herdeiro
dos projetos de Manuel Puig na medida em que altera as economias sexuais que
regulam o mercado das letras, pondo em juízo a crença na representação e
atacando todas as instituições de aprendizagem que nos ensinaram a confiar nas
nominalizações;
4
Mariano García reiterou essa conexão com Puig, estendendo-a a
Roberto Arlt e Eduardo Gutiérrez, esboçando uma linha de inovação nas letras
argentinas que põe em xeque a distinção entre aparição e aparência, entre
verossimilhança e realidade, entre realidade e representação, através de uma
androgênese que se sobrepõe às fronteiras sexo-identitárias e dilui a noção de
gênero textual, caracterizando uma escritura em que o que prolifera é
justamente a degeneração;
5
Florencia Garramuño detectou o uso paradoxal de um
verossímil contra-histórico como modo de referência à cultura nacional para
deslocá-la com ficções que problematizam identidades;
6
Reinaldo Laddaga,
tratando daquilo que posteriormente chamaestética da emergência, enfatizou a
dificuldade em se pensar, em âmbito latino-americano, numa obra que possua
igual nível de risco e inventividade. Trata-se, a seu ver, de uma
hiperloquacidade que dificulta o acesso à obra, embora não deixe, o crítico, de
1
Cf. CONTRERAS Las provocaciones de César Aira. Lote n. 64, Dossiê César Aira, nov. 2002,
s.p.; Las vueltas de César Aira. Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 2002.
2
Cf. MONTALDO, Graciela Um caso para o esquecimento: estéticas bizarras na Argentina
(livros, indústrias culturais e ficções). A propriedade da cultura. Ensaios sobre literatura e
indústria cultural na América Latina. Trad. Eduard Marquardt. Chapecó: Argos, 2004, p. 79-96.
3
Cf. CANGI, Adrián César Aira, o autômata do presente. Posfácio a AIRA, César A trombeta
de vime. Trad. Sérgio Molina. São Paulo: Iluminuras, 2002, p. 121-6.
4
Cf. MASIELLO, Francine El espectáculo de la diferencia. El arte de la transición. Trad.
Mónica Sifrim. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2001, p. 97-174.
5
Cf. GARCÍA, Mariano Degeneraciones textuales. Los géneros en la obra de César Aira.
Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 2006.
6
Cf. GARRAMUÑO, Florencia Utopías invertidas: el pasado contra la historia. Genealogias
culturales. Argentina, Brasil y Uruguay en la novela contemporánea (1981-1991). Rosario:
Beatriz Viterbo Editora, 1997, p. 86.
11
denominá-la como "uma literatura de classe média";
7
Washington Cucurto (na
verdade, Santiago Vega) disse ser Aira um escritor revigorante, que exige do
leitor um atrevimento, uma escritura. A marca de Aira, a seu ver, estaria na
ação que cria uma circunstância, traço cuja melhor resposta seria Dalia Rosetti
(na verdade, Fernanda Laguna), quando a circunstância cria a ação;
8
Daniel Link
viu no procedimento aireano um dispositivo semiótico que põe todo o pensamento
e toda a literatura numa espécie de nave fantasma rumo ao infinito,
possivelmente assumindo a forma da música de Enya tocada em random permanente
enquanto uma lavadora está em funcionamento; trata-se da literatura como
brincadeira e, ao mesmo tempo, de uma seriedade que queima;
9
Raúl Antelo
sublinhou o aspecto de uma obra em miniatura e multifária escudada no eu que
reinventa um passado, devolvendo-lhe o poder perdido de imaginar alternativas,
num movimento de refutação do tempo que afirma sua temporalidade com o mesmo
gesto que a impugna.
10
O presente trabalho parte da hipótese de que pela escritura proliferante
e partenogenética de César Aira emerge uma ética da literatura pautada por um
procedimento-chave: o abandono. Para tanto, ocupa lugar de destaque, como o
ponto articulador de toda a sua escritura, para trás e para frente, a
conferência de mesmo título, "O a-ban-do-no", apresentada a estudantes da
Universidade de Buenos Aires, no Centro Cultural Ricardo Rojas, ao final da
década de 1990, e cuja convocatória era "Como ser escritor". O texto, anos mais
tarde, foi sabiamente deixado de lado por Aira.
11
Como procedimento (o elemento restante da vanguarda), o abandono prima
pela renúncia como possibilidade do novo. "Abandonar é permitir que o mesmo se
torne outro, que o novo comece", diz Aira.
12
Se a literatura é matéria cuja
definição é sempre eventual (e cujo nome seria apenas um momento apolíneo do
dionisíaco), história, sujeito, verdade e real são também conceitos sempre por
vir. A literatura seria não o produto de um saber expressado pelo indivíduo,
posteriormente institucionalizado e perpetuado, mas o dispositivo que dá
possibilidade ao pensamento, remetendo-o infinitamente ao não-sabido. Sua
permanência, curiosamente, só se dá pela própria convulsão.
7
Cf. LADDAGA, Reinaldo Una literatura de la clase media: notas sobre César Aira.
Hispamérica Revista de literatura a. n. 88. S.l.: Ediciones Hispamérica, 2001, p. 37-48;
Espectáculos de realidad. Ensayo sobre la narrativa latinoamericana de las últimas dos
décadas. Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 2007.
8
Cf. CUCURTO, Washington — ¿Por qué hay que leer a Dalia Rosetti? Disponível em:
http://www.eloisacartonera.com.ar/eloisa/rosetti.html. Acesso: 20 jan. 2008.
9
Cf. LINK, Daniel Los fantasmas de la literatura. La chancha com cadenas. Doce ensayos de
literatura argentina. Buenos Aires: Ediciones del Eclipse, 1994, p. 86-92.
10
Cf. ANTELO, Raúl Crítica e ficção: uma perspectiva hispano-brasileira. Crítica e ficção.
Florianópolis: Núcleo de Estudos Literários & Culturais, 2005, p. 7-50.
11
Cf. AIRA, César Entrevista a Fernando Villagrán, programa Off the Record Cultural. Arco-
Iris TV, Chile, 2002. Disponível em: http://chile.arcoiris.tv/modules.php?name=Unique &id=261.
Acesso: 12 nov. 2006.
12
AIRA, César — O a-ban-do-no. Cf. Arquivo, p. 199.
12
Assim, se toda máquina é máquina de máquina,
13
na de César Aira interessa
menos o sentido e mais o mecanismo que mantém a escritura em funcionamento. Daí
que seus livros se espalhem sempre datados ao final, como páginas de um diário
que remete a um futuro perpétuo o desenlace ou desdobramento do escrito,
14
atravessando gêneros mas prevalecendo, sempre, o tom opinativo e provisório do
ensaio.
15
Do gesto-primeiro, o abandono, brotarão todos os demais mecanismos de
sua escritura (o contínuo, a tradução e a singularidade), bem como seus
conectores (a prosopopéia, fundamentalmente).
Pelo abandono, o contínuo emerge como o segundo gesto do escritor:
encaixar o discurso na ordem infinita da linguagem, buscar o significado não no
que passou, mas no que vem adiante. Pela série de abandonos, a singularidade
aparece como verdade, i.e., como processo, o elemento impuro que opera contra a
obra; cada relato, ao retomar problemas anteriores, redesenha a série na qual
ele mesmo se vincula, podendo o todo hipotético ganhar nova forma. Mas a
singularidade não se origina do nada; ela advém da recombinação do já-
existente, do reposicionamento das imagens do real mas que, ao se revelarem,
não atestam esse real; produzem mais do mesmo, com o que se avança, sem que no
entanto o esclarecimento venha por fim à tona. A tradução fica implicada, e
não se trata do processo técnico que conceberia a mimese como passagem do
objeto de uma linguagem a outra, preservando o sentido (a garantia de
manutenção da soberania estatal, a liberdade sob a lei), mas do dispositivo
que, apropriando-se do já-existente, modifica-o pela simples enunciação,
propulsando o novo (o que se terá aí, vale dizer, serão sempre apenas
indícios). Assim, próprio do abandono é o contínuo; próprio do contínuo é a
tradução; próprio da tradução é a singularidade; próprio da singularidade é a
literatura; próprio da literatura é o real.
Alain Badiou viu no abandono a traição de uma fidelidade ao incerto para
a adoção da substância de uma verdade com potência total: a continuidade.
16
Nossa perspectiva, tributária do posicionamento de Aira, é outra: pelo abandono
das certezas da situação, do já-sabido, do existente e institucionalizado é que
o animal humano enlaça a condição de sujeito. Trata-se de um estado que, como
todo estado, é provisório; daí que a fidelidade ao incerto se imponha como
única possibilidade para que essa condição retorne, para que o indivíduo
13
Cf. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix O anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia. Trad.
Georges Lamazière. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
14
"Minhas novelinhas são também como diários. Escrevo-as dia-a-dia e vão entrando coisas da
realidade" (AIRA, César Cualquier cosa: un encuentro con César Aira. Entrevista a Craig
Epplin e Phillip Penix-Tadsen. Buenos Aires, 4 jul. 2005. Disponível em:
http://www.lehman.cuny.edu/ciberletras/v15/epplin.html. Acesso: 19 junho 2007).
15
"Os pensadores latino-americanos tiveram de desenvolver estratégias de sobrevivência
intelectual que lhes permitissem manter-se sobre o fio da navalha sem cair em nenhum dos
abismos da oposição binária. Tiveram de aceitar o axioma excludente da modernidade — afirmação
ou negação, ser o mesmo ou o outro —, mas sabotando-o com as técnicas do ensaio: um modo de
argumentar e pensar que expõe as idéias em forma de opiniões pessoais e provisórias."
(RODRÍGUEZ, Luz El sueño de la razón. ¿És importante la literatura latinoamericana? Leiden:
Rijks Universiteit, 1998, p. 20.)
16
Cf. BADIOU, Alain A traição. Ética. Um ensaio sobre a consciência do Mal. Trad. Antônio
Trânsito; Ari Roitman. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995, p. 87-9.
13
(suporte do sujeito) permita-se novamente deixar-se atravessar por um
acontecimento. O abandono, portanto, não vislumbra o nada, como pareceria à
primeira vista; o abandono não se coloca como negatividade. Trata-se, antes, de
uma desistência que não desiste de si, para usar da expressão de René Major.
17
Também não se trata de uma estética, se por este termo a arte se
configura como ilustração da filosofia. Como procedimento, o abandono se
desdobra num dispositivo ético e, ao mesmo tempo, inestético. Ético, se
entendermos, contrariamente à ética geral (cujo princípio religioso e
universalizante apenas coíbe o pensamento), ou à ética supersticiosa (uma
etiqueta, segundo Borges, que põe de lado a eficácia de um mecanismo, o
discurso, para nas habilidades aparentes do escritor, suas tecniquerias,
estabelecer um modelo de perfeição da arte),
18
que o trabalho do escritor seja
justamente o infinito, a desestabilização dos saberes instituídos. Inestético
porque, longe do confinamento pedagógico, a arte não é instrumento
elucidatório ou ilustrativo, mas um pensamento próprio, um pensamento singular
que propulsa singularidades, às quais podemos nos afiançar porém não sem
novamente abandoná-las, ocasionando singularidades outras, todas máquinas
celibatárias.
19
Fora dos esquemas filosóficos que caracterizaram a arte até boa parte do
século XX (a saber, didático, clássico e romântico),
20
a narrativa da César Aira
se mostra imanente e singular, um pensamento cuja obra é o real, não o efeito,
o que, à primeira vista, indica uma desistência da representação. Ao primar
pelo contínuo (não pela continuidade), pelo impossível, sua literatura desiste
da substância mas persiste no realismo, e nisso reivindica o que aqui
chamaremos "ética do abandono".
17
Cf. MAJOR, René A golpes de dado(s). Lacan con Derrida: análisis desistencial. Trad.
Beatriz Rajlin. Buenos Aires: Letra Viva, 1999, p. 133-44.
18
Cf. BORGES, Jorge Luis A ética supersticiosa do leitor. Discussão. ed. Trad. Claudio
Fornari. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994, p. 15-9.
19
Cf. CERTEAU, Michel de — As "máquinas celibatárias". A invenção do cotidiano. V. 1: Artes de
fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 243-6.
20
Cf. BADIOU, Alain Arte e filosofia. Pequeno manual de inestética. Trad. Marina
Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p. 11-28.
14
CAPÍTULO 1
1.1 NOTA
César Tomás Aira nasce em Coronel Pringles, Argentina, em 23 de fevereiro
de 1949. Desde 1967 vive em Buenos Aires, no bairro de Flores. Romancista,
novelista, contista, tradutor, ensaísta, dramaturgo (na verdade, sempre o mesmo
exercício), sua escritura ambivalente pode ser lida como uma dessacralização da
literatura
21
(por aqueles que se valem da noção de texto), mas também como uma
desfaçatez (por aqueles que se pautam pela noção de obra),
22
"Porque escrevo
sempre, esteja onde estiver, aconteça o que acontecer".
23
Oscila, como repara
Adrián Cangi, entre literaturas-limite, ou seja, de uma anacrônica gauchesca a
uma ficção científica desvairada, chegando à narrativa de aparições e de
aventuras.
24
É autor de cinqüenta, sessenta livros, nunca se sabe ao certo.
Certo, no entanto, é que seu nome constitui um dispositivo articulador de uma
escrita que nunca pára, e essa, sem dúvida, é a imagem que mais retorna nos
comentários críticos, ensaios, resenhas, entrevistas, nem sempre lida como uma
qualidade, mas sempre como algo chocante. Para Sandra Contreras, trata-se de
"um ritmo febril de invenção", que nada mais é, a seu ver, que uma estratégia
de sobrevivência:
A publicação de algo em torno de trinta e cinco relatos, em ritmo quase
ininterrupto, no curso das duas últimas décadas do século (especialmente
desde 1990, quando Os fantasmas inicia a publicação "periódica" de seus
textos inéditos, à razão de dois, três e até quatro por ano) converteu-se
quase num lugar comum quando se passa a falar dessa literatura, destacando o
frenesi inventivo que a impulsiona, essa capacidade inusitada e inaudita para
imaginar e contar histórias. Disto se trata, sobretudo na literatura de César
Aira: da invenção, a mais pura e absoluta, na forma de uma história sempre
nova e única.
25
21
"A literatura está dessacralizada", diz Roland Barthes, "as instituições estão impotentes
para protegê-la e impô-la como o modelo implícito do humano. Não é, por assim dizer, que a
literatura esteja destruída: é que ela não está mais guardada: é pois o momento de ir a ela".
Trata-se, assim, de uma deserança: "nem anjos nem dragões estão mais para defendê-la; o
olhar pode então voltar-se, não sem perversidade, para coisas antigas e belas, cujo
significado é abstrato, perempto: momento ao mesmo tempo decadente e profético, momento de
suave apocalipse, momento histórico de maior gozo." (BARTHES, Roland Aula. ed. Trad.
Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 42.)
22
Para essa distinção, cf. IDEM Da obra ao texto. O rumor da língua. ed. Trad. Mario
Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 67.
23
AIRA, César — El tilo. Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 2004, p. 46.
24
Cf. CANGI, Adrián — César Aira, o autômata do presente. Op. cit., p. 121.
25
CONTRERAS, Sandra Las vueltas de César Aira. Op. cit., p. 11. O mesmo aspecto aparece em
FERREYRA, Javier Poética del desequilibrio (La Voz del Interior, Córdoba, 8 ago. 2002);
VALENCIA, Leonardo César Aira y la comedia de los procedimientos (Lateral Revista de
Cultura n. 93, set. 2002); MALDONADO ROSALES, Iván Javier Me considero un saboteador de la
literatura: César Aira (UniVerso El Periódico de los Universitarios a. II, n. 77. Xalapa;
Veracruz; México: Universidad Veracruzana, 7 out. 2002); LAMBERTI, Luciano Instrucciones
15
Também ministrou cursos na Universidade de Buenos Aires, mais exatamente
no Centro Cultural Ricardo Rojas (sobre Copi, Rimbaud), e na Universidade de
Rosario (sobre o construtivismo e Mallarmé). Elencar seus trabalhos se torna
uma tarefa sempre difícil e incompleta; dentre seus textos (a que Aira prefere
chamar novelinhas, sempre beirando o relato, o ensaio e a autobiografia),
entregues a distintas e pequenas editoras, muitas com circulação restrita,
algumas argentinas, outras espanholas ou mexicanas, estão Moreira (1975), Ema,
a refém (1981), A luz argentina (1983), As ovelhas (1984), Canto castrato
(1984), O vestido cor-de-rosa (1984), Uma novela chinesa (1987), Os fantasmas
(1990), A lebre (1991), Copi (1991), O batizado (1991), Nouvelles impressions
du Petit Maroc (1991), A prova (1992), Barragem (1992), Diário da hepatite
(1992), O panfleto (1992), O pranto (1992), A guerra das academias (1993), A
costureira e o vento (1993), Como me tornei freira (1993), Mãe e filho (1993),
O infinito (1994), Os mistérios de Rosario (1994), A fonte (1995), Os dois
palhaços (1995), A abelha (1996), O mensageiro (1996), A brincadeira (1997), A
serpente (1997), Dante e a rainha (1997), Duchamp no México (1997), Taxol
(1997), A mendiga (1998), A trombeta de vime (1998), As curas milagrosas do Dr.
Aira (1998), Alejandra Pizarnik (1998), O sonho (1998), Haikais (1999), O
congresso de literatura (1999), O jogo dos mundos (2000), Um acontecimento na
vida do pintor-viajante (2000), A vila (2001), As três datas (2001),
Aniversário (2001), Um sonho realizado (2001), A pílula de hormônios (2002),
Fragmentos de um diário nos Alpes (2002), Varamo (2002), O mágico (2002), A
princesa Primavera (2002), Mil gotas (2003), O todo que suga o nada (2003), A
tília (2004), As noites de Flores (2004), Cérebro musical (2004), Edward Lear
(2004), Eu era uma moça moderna (2004), Eu era uma menina de sete anos (2005),
O pequeno monge budista (2005), Como ri (2005), O jantar (2006), Parmênides
(2006), A vida nova (2007), Picasso (2007), As conversações (2007) além de
títulos em caráter colaborativo (Buenos Aires: uma antologia da nova ficção
argentina, editado por Juán Forn, 1992; Argentina, as grandes estâncias, 1995,
editado em Nova York por Juan Pablo Queiroz e Tomas De Elia, e Argentina: um
país desperdiçado, 2003); enciclopédico (Dicionário de autores latino-
americanos, 2001), e um grande número ensaios e traduções (Nova economia
internacional, de Wilson B. Brown e Jan S. Hogendorn; A metamorfose, de Franz
Kafka; Refém na Patagônia, de Benjamin Franklin Bourne; Maus: História de um
sobrevivente, de Art Spiegelman; São mais aqueles que morrem de angústia, de
Saul Bellow, A simples arte de escrever e Adeus, boneca, de Raymond Chandler;
Suki e Escrever: como e porquê, de Matthew Lipman; Ahmed e as máquinas do
esquecimento, de Ray Bradbury; História natural dos sentidos, de Diane
para leer a César Aira (Fe de Rata Revista de Vicios y Virtudes a. II, n. 18, Córdoba, 1
jun. 2003); COELHO, Oliverio El acto en cuestión (variaciones sobre César Aira) (Zunino &
Zungri. Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 29 dez. 2003); ESTRIN, Laura Aira, el provocador
(Lote n. 64, nov. 2002, Dossiê César Aira); FAGNANI, Fernando Pensar y abismarse (El
Cronista Cultural, 19 abr. 1992); KOHAN, Martín Repetición y diferencia (El Cronista
Cultural, 27 out. 1992); KOZAK, Claudia La utopía de Aira (Primer Plano, suplemento de
Página/12), 13 ago. 1995; HOPENHAYN, Silvia Casi todo está permitido (La Nación, 13 maio
1998); BRASCA, Raúl — Inestable y real (La Nación, 21 out. 1998), dentre outros.
16
Ackerman; Manuscrito encontrado em Zaragoza, de Jan Potocki; A casinha, de Jean
François de Bastide; Férias hindus, de Joe Randolph Ackerley, dentre outros
autores, como Stephen King e Antoine de Saint-Exupéry). Também editou a obra de
Osvaldo Lamborghini.
Apesar do número, a circulação dos textos de César Aira foi restrita por
bastante tempo, de modo que a chegada de seus livros a um blico mais amplo é
parcial e recente. Hoje possui traduções na França, Inglaterra, Alemanha,
Itália, Espanha, Venezuela, xico e Brasil (onde, aliás, até 2005 Aira é
praticamente desconhecido; tem-se, em português, O vestido cor-de-rosa,
recolhido em Nova narrativa argentina, volume editado por May Lorenzo Alcalá, e
A trombeta de vime, ambos traduzidos por Sérgio Molina e publicados pela
editora Iluminuras, de São Paulo; também alguns fragmentos de Diário da
hepatite, em tradução de Jorge Wolff, na revista Medusa; Mil gotas, recolhido
no volume A ficção latino-americana do século XXI, organizado por Beatriz
Resende, lançado por ocasião do colóquio de mesmo nome, e, mais recentemente,
Um acontecimento na vida do pintor-viajante e As noites de Flores, em tradução
de Paulo Andrade Lemos, foram editados pela Nova Fronteira. Parte dos textos
arquivados nesta investigação foi publicada em 2007 pela editora Arte & Letra,
de Curitiba, sob o título Pequeno manual de procedimentos).
26
A prova teve sua tradução para o cinema em 2002, por Diego Lerman,
intitulando-se Tão de repente.
27
Tradução, vale dizer, conforme a conotação que
o próprio Aira atribui ao termo: "A tradução ganha interesse quando se
uma passagem de tonalidade"
28
daí que, embora o argumento se mantenha, do
livro não se encontre, no filme, mais que a sua introdução. Dois anos mais
tarde, em 2004, Lerman faz de A guerra das academias um curta-metragem.
Como se disse antes, a maior parte de seus livros sai a público por
editoras quase clandestinas e em tiragens pequenas. Suas narrativas são
geralmente curtas e lidas muito rapidamente, repara Graciela Montaldo, para
quem a literatura de Aira opera num limiar, escapando por fora de toda
institucionalização prévia, seja a da academia, seja a do mercado. Atua em
ambos os ambientes, e deles prescinde. Suas novelinhas
podem ser lidas na lembrança, armando com suas cenas ficcionais uma nova
obra-Aira, um ready-made dos dejetos de suas histórias. Costuma ser muito
divertido contar alguns episódios dos romances de Aira mas, talvez, nenhum de
maneira completa. E muitas vezes o mesmo acontece com a leitura: submete-nos
ao tédio de ler histórias triviais, embora sempre com a certeza de que ali
vamos encontrar alguma cena memorável que desengonçará o todo. Parece que sua
ficção não está em nenhum de seus livros, mas fora deles, na cristalização de
26
Para a listagem destes ensaios, cf. Bibliografia (de César Aira/Em periódicos).
27
Antecede o longa um curta metragem, La prueba, de 17 min., lançado em 1999. Cf.
http://www.cinenacional.com/personas/index.php?persona=15903. Acesso: 6 fev. 2008.
28
AIRA, César — A tradução. Cf. Arquivo, p. 173.
17
cenas e episódios, na sua possibilidade de produzir mais relatos, como se os
leitores tivessem a incumbência de recontar suas histórias.
29
É ainda Graciela Montaldo quem sublinha, no prefácio que redige a Os
fantasmas, que
O estranho de sua literatura não esnos motivos nem na língua; aloja-se no
próprio núcleo produtor da ficção, nos mecanismos de criação de histórias.
Poderíamos lembrar sobre este ponto "A arte narrativa e a magia", em que Borges
postulava a causalidade como motor de todo relato, ficcional ou referencial,
cujos mecanismos são o secretos como os da magia. Aira faz da causalidade o
problema narrativo por excelência, desconcertando por meio de histórias
paradoxais, levemente ingênuas e perversas, incompreensivelmente fantásticas
e sempre no limite do trivial. Diz: "Se a frivolidade é a arte de fazer com
que efeitos insignificantes provoquem grandes causas, a literatura possui um
alto potencial dela. É preciso uma guerra para produzir um punhado de bons
livros... Mas a literatura é frívola mesmo sem inversões de causalidade".
30
A
literatura é frívola porque, para Aira, não é moral.
31
Daí encontrarmos relatos tais como o das gotas de tinta que abandonam a
tela da Gioconda e saem a correr pelo mundo, em Mil gotas, ou o de Norma
Traversini, professora de artes cênicas que deseja dar aulas de expressão
artística, e para isso redige um panfleto, breve, mas que no entanto se torna
um romance; o cientista louco que se dirige a um congresso de literatura para,
com sua vespa adestrada, conseguir uma célula do escritor mais inteligente,
Carlos Fuentes, a fim de produzir um exército de clones; ou ainda o dos dois
palhaços que tentam escrever uma carta de amor a uma mulher chamada Beba, sendo
que sua escritura estará repleta de um sinal de pontuação, a coma [vírgula]. Um
deles, ao levar as palavras a sério, e entendendo a si mesmo como destinatário
dos enunciados, terminará terrivelmente castigado, pois ao ouvir Beba, bebe
licor de pêra; ao ouvir o outro ditar uma coma, come salsichas...
32
Trata-se de
uma ficção do desconcerto, de literatura, de camp: "a sensibilidade da
29
MONTALDO, Graciela Um caso para o esquecimento: estéticas bizarras na Argentina (livros,
indústrias culturais e ficções). Op. cit., p. 84-5.
30
AIRA, César — Nouvelles impressions du Petit Maroc. Saint-Nazaire: M.E.E.T, 1991, p. 49.
31
MONTALDO, Graciela La perpetua huída hacia adelante. Prefácio a AIRA, César Los
fantasmas. Caracas: Fundarte, 1994, p. 3.
32
Sandra Contreras reitera e amplia o argumento, observando que o "caráter de absoluta
singularidade de cada relato é substancial. É o que deixa ver muitos — e diversos, divergentes
— Airas: o Aira que reinventa o pampa e o deserto argentino, de Ema, a refém a A lebre, o Aira
darwinista e mutante do ciclo genético (que vai de A lebre a, digamos, O sonho, passando por
Barragem, A guerra das academias, Os mistérios de Rosario), o Aira surrealista de A costureira
e o vento ou Dante e a rainha, o Aira quase divulgador de enciclopédia de Um acontecimento na
vida do pintor-viajante, o Aira intratável de Haicais, o Aira catastrófico e comic de O
panfleto, o piadista de A pílula de hormônios, o Aira extravagante de Um sonho realizado, o
monstro-menina de Como me tornei freira, o expressionista torturante de A mendiga ou o
torturado de Os mistérios de Rosario, o Aira da fábula da ilha (A fonte) ou o que insere
fragmentos da realidade argentina mais imediata, o Aira catalogador de Fragmentos de um diário
nos Alpes e o delirante e mestre da invenção de Mil gotas, o Aira artista do procedimento como
em A trombeta de vime ou o Aira artista da rememoração, como em A tília, o Aira da juventude
(A prova, Eu era uma moça moderna) e o Aira dos cinqüenta anos em busca de aventura
(Aniversário, Um sonho realizado), o Aira a um tempo desmistificador e venerador da
literatura de Varamo, O mágico. Poderíamos ir adiante" (CONTRERAS, Sandra César Aira, la
estricta ética de la invención. Ínsula 711 Revista de Letras y Ciencias Humanas. Madrid:
Ínsula Librería, mar. 2006, p. 20).
18
seriedade fracassada", diria Susan Sontag.
33
Tenho me esforçado, na escassa medida de minhas possibilidades, em preservar
toda minha idiotice natural, para que a literatura atue em mim sem barreiras.
Mesmo que disso surja outro paradoxo: é preciso certa inteligência, senão
muita, (e comprovei isso às próprias custas) para escrever. Daí que minha
idiotice natural seja um simulacro armado por minha inteligência, que por sua
vez é um simulacro utilitário que ativa minha idiotice astuta.
34
Para Daniel Link, Aira é o tutor da literatura argentina atual, de um
experimentalismo que engloba nomes como os de Hector Libertella, Rodolfo
Fogwill, Arturo Carrera, Raúl Escari, Luis Gusmán, Nicolás Peyceré, María
Moreno, Alejandro López, Washington Cucurto, Gaby Bejerman, Santiago Llach,
Andi Nachon, Bárbara Belloc, Pablo Pérez, dentre outros. "Não podemos esquecer
que também se trata de ler experimentalmente: a lista é infinita."
35
A
dissidência de Aira, a seu ver, reside "no modo como sustenta uma experiência
estética que para qualquer outro escritor seria desastrosa: a literatura como
jogo e, ao mesmo tempo, de uma seriedade que queima. É essa idéia de pôr à
vista de todos o mero processo de estar escrevendo, deixando de lado (ou
inclusive boicotando) os resultados".
36
Trata-se, em suma, daquilo que se retira da dimensão álter e cortês do
valor,
37
e que reivindicando o nome literatura, detona-o por dentro, não por
meio de uma ficção fantástica, mas por entender que a literatura se movimenta
tão-somente por modificações do conceito de realismo.
38
O que está em jogo,
portanto, não é o fantástico, ou algo que o valha, pois este seria o modo
positivo de se entender as torções do real; o que está em jogo é o próprio
real.
39
Diríamos, assim, que a realidade, essa instância que se quer inequívoca,
sustenta-se na verdade pela simples negação da irrealidade: a realidade não é
mais que uma irrealidade negada.
40
Todavia não se trata de compromisso, missão. "De fato, a literatura não é
obrigatória deve ser das poucas coisas não-obrigatórias que ainda restam",
diz Aira.
41
Não há servilismo entre escritor e sociedade, i.e., uma ordem
33
SONTAG, Susan Notas sobre camp. Contra a interpretação. Trad. Ana Maria Capovilla. Porto
Alegre: L&PM, 1987, p. 331.
34
AIRA, César — Nouvelles impressions du Petit Maroc. Op. cit., p. 52.
35
LINK, Daniel — El profesor pop. Entrevista a Patricio Lennard. RadarLibros, 14 ago. 2005.
36
IDEM — Ibidem.
37
Daniel Link, a partir da leitura de Os fantasmas, repara que "O frívolo do pensamento é
pensar que quatro é quatro, mas é também julgar-se preso a um sistema de convenções de outrem,
um sistema de regras de cortesia de outrem (que alguns chamam língua, outros cultura, outros
neurose)" (LINK, Daniel — Los fantasmas de la literatura. Op. cit., p. 92).
38
Cf. AIRA, César — Sin novedad en el frente. El Porteño n. 51. Buenos Aires, 1986, p. 60.
39
"Nada disso", observa Daniel Link, "mereceria o menor comentário depois de Borges, por
exemplo, salvo pelo seguinte: Aira faz isso tudo tomando por referência o romance realista,
enquanto Borges o fazia em relação ao conto fantástico." (LINK, Daniel Los fantasmas de la
literatura. Op. cit., p. 89.)
40
Cf. BLANCHOT, Maurice — O infinito literário: o Aleph. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-
Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 140.
41
AIRA, César — Introdução e ensaio. A trombeta de vime. Op. cit., p. 68.
19
particular que reitera ou perturba o todo que preexistiria, mas um esforço
em se fazer do mundo, mundo: a ordem universal que se desenha pelo agenciamento
particular. No entanto, é também um serviço que o escritor presta: escrever
caso tudo se perca; dar testemunho.
42
É o sujeito que origina o mundo, porém
identificado somente por retroversão (nisso encontraremos o nio); é uma
demanda, uma contingência, uma decisão (como diria Badiou), e, também, uma
assinatura (como diria Derrida).
43
E o ponto mais alto desse paradoxo, no
entanto, é o de que esse sujeito não é César Aira, e sequer o narrador ou
seja, não é o nome (o nome é o fascismo do código). O sujeito é um Interesse,
sem o qual a literatura não existe,
44
e o Interesse, por sua vez, também não é
mais que a voz deslocada que o leitor, por procuração, empresta ao discurso.
45
O nome Aira, assim, é tão-somente um dispositivo, espécie de máquina
celibatária,
46
solta, mas que no entanto fabrica outras máquinas, as quais
servem "para fazer coisas que não servem (especialmente para fazer obras de
arte, para entender a realidade)", diz Graciela Montaldo.
47
Adrián Cangi, por
sua vez, observa que essa máquina, desaforada e excessiva, é também parte de um
engenho que revela o automatismo da escritura; de um dispositivo que expõe, em
suma, e como dirá Aira, aliás, que a imaginação não opera senão pela composição
de elementos providos pela realidade daí que, agudizando a frivolidade,
conclui Cangi, possamos afirmar que sua escritura trate, no fundo, de um
verossímil e intenso realismo.
48
Assim, nada melhor para ilustrar essa máquina
que um dos desenhos de Rube Goldberg, "Simple reducing machine", p. ex., que
Deleuze e Guattari estampam em O anti-Édipo: para que uma vitrola seja acionada
42
Cf. AIRA, César — Por que escrevi. Cf. Arquivo, p. 287.
43
"Operação disseminante afastada da presença (do ser) segundo todas as suas modificações, a
escrita, se existe, talvez comunique, mas não existe certamente. Ou apenas existe para os
presentes, sob a forma da mais improvável assinatura." (DERRIDA, Jacques Assinatura
acontecimento contexto. Limited Inc. Trad. Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus, 1991,
p. 37.)
44
"Poderíamos dizer que a Literatura nasceu como uma correção marginal à crueldade implícita
do pensamento criativo. Ela estende a ponte para o jardim do inofensivo, onde qualquer um pode
cortar suas rosas sem temor de prejudicar quem quer que seja. Esse milagre a Literatura o
consegue revestindo-se de Interesse e, assim, entregando-se ao puro e livre-arbítrio de cada
um. De fato, a Literatura não é obrigatória — deve ser das poucas coisas não-obrigatórias que
ainda restam. Deve-se montar no Interesse, como quem monta em um burrinho para atravessar uma
Cordilheira, até chegar à Literatura. E quem faz isso? Eu o fiz, mas sou um em um milhão."
(AIRA, César — Introdução e ensaio. Op. cit., p. 68.)
45
Cf. BARTHES, Roland — S/Z. Trad. Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 173.
46
Michel de Certeau fala de "uma escritura que se maquina indefinidamente e não encontra nunca
a não ser a si mesma. saídas em ficções, janelas pintadas, espelhos de vidro". As
máquinas celibatárias se constituem "não pela indecisão de um real que mostrariam nas
fronteiras da linguagem, mas pela relação entre os dispositivos produtores de simulacros e
ausência de outra coisa. Essas ficções romanescas ou icônicas narram que não existe, para a
escritura, nem entrada nem saída, mas somente o interminável jogo de suas fabricações",
demarcando, por fim, "o não-lugar do acontecimento, ou um acontecimento que não tem lugar"
(CERTEAU, Michel de — As "máquinas celibatárias". Op. cit., p. 243).
47
MONTALDO, Graciela Vidas paralelas: la invasión de la literatura. Actas del Coloquio
Internacional César Aira: un épisode dans la littérature argentine de fin de siècle. Paris-
Grenoble, maio 2004. Também em RESENDE, Beatriz (org.) A literatura latino-americana do
século XXI. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2005, sob o título "Una literatura que lo puede todo",
p. 146. Em tempo, em Uma novela chinesa, o guia autodidata esboça uma idéia bastante
semelhante à de Montaldo: considera a Grande Muralha nada além de um monumento ao
keynesianismo, "um dispositivo que não serviu para nada além de sua construção" (AIRA, César —
Una novela china. Ed. eletr. Buenos Aires: Javier Vergara Editor, 1987, p. 69).
48
Cf. CANGI, Adrián — César Aira, o autômata do presente. Op. cit., p. 122.
20
(a ficção), é preciso nada menos que um soldado, julgando-se no campo de
batalha (tendo em sua frente apenas um quadro), acione a corda de um mecanismo
que, em seu primeiro desdobramento, puxa a cadeira de um glutão sentado à mesa,
o qual, no susto, perderá as ervilhas espetadas ao garfo, que por sua vez
acionarão o gongo para que um boxeador então salte sobre um colchão de ar;
este, por seu soprar, faz com que um coelho (uma lebre?), atado ao start do
toca-discos, se movimente, caindo, por fim, a agulha sobre o vinil.
49
Rube Goldberg — Simple Reducing Machine, s.d.
Para prosseguir, deixemos de lado momentaneamente esse argumento (cujo
desdobramento estará na idéia de contínuo, como veremos mais adiante), para
voltar um passo e pensar o modo como essa singularidade opera um território, a
nação, a partir de um ponto comum à produção literária argentina no século XX:
Jorge Luis Borges.
49
"[Osvaldo Lamborghini] insistia que todos os grandes romances estão percorridos por uma
pequena melodia, uma 'musiquinha'. O romance se fazia com frases providas de sentido, mas a
frase, por sua vez, para ser, tinha de ser pura música ('música porque sí, música vana'), a
citação do famoso soneto, que repetia tanto. É a passagem paradoxal do verso à prosa." (AIRA,
César — Osvaldo Lamborghini e sua obra. Cf. Arquivo, p. 188.)
21
1.2 BORGES
O fim de século argentino parecia encerrar seu balanço tranqüilamente,
com os nomes institucionalizados de Juan José Saer e Ricardo Piglia, depois
de Borges, e também com Manuel Puig, quando, a partir dos anos 90,
fundamentalmente, emerge uma série de relatos com a marca sar Aira, nome que
passa a desarrumar a biblioteca, invertendo hierarquias e valores dados como
certos naquilo que poderíamos chamar panorama de uma história da literatura. O
argumento é de Sandra Contreras,
50
quem, em As voltas de César Aira, esboça
um primeiro balanço dessa escritura que prolifera, sem exagero, por uma espécie
de agamia ou fissiparidade.
51
Antes, porém, caberia perguntar pelo que une e separa estes e outros
nomes da literatura argentina recente e, mesmo, o que se entende por esse
significante comum, o argentino. Graciela Montaldo se dedicou a essa
discussão, reparando que, no caso da Argentina, desde o século XIX sua
literatura começa a consolidar sistemas ficcionais que tiveram tanto um gesto
fundacional a respeito de poéticas e zonas à espera de representação, quanto um
olhar ancorado na tradição, i.e., a um conjunto de discursos, práticas e
valores que, fixando sentidos sobre o passado, ativam-se no presente, entre os
contemporâneos, com pretensões hegemônicas.
52
"O argentino", nesse caso, seria
menos uma pretensão de se referir a um conjunto efetivo de qualidades e mais
uma vontade de intervir publicamente na construção de discursos que forneçam
algum tipo de coesão simbólica ao país que pouco a pouco se arma conforme o
modelo das repúblicas européias.
Mas se algum elemento agrupador desses escritores (podem ser vários;
Montaldo, no entanto, repete e acrescenta um nome à lista de Contreras: além de
Ricardo Piglia, Juan José Saer e César Aira, Montaldo menciona Copi, pseudônimo
de Raúl Taborda), trata-se da concepção de realismo. Embora de forma distinta
em cada um deles, em todos o realismo aparece como um artifício que devolve
potência à representação, que se desdobra, cada escritor a seu modo, em
possibilidades de se desenvolver outra forma do significado, deixando sempre
entrever que vida ainda não entendida. não se trata de uma história dada
e apregoada, mas de uma história possível, de um passado que permanece
passando, e cujo princípio de verdade, que agora se sabe, é não se mostrar de
uma vez por todas.
Montaldo assim define três campos de problemas nos quais essa escritura
finissecular parece atuar, a saber: 1) um posicionamento diante da tradição
narrativa argentina, tentando dar uma versão a mais da história, da qual retira
50
Cf. CONTRERAS, Sandra — César Aira, la estricta ética de la invención. Op. cit., p. 21.
51
Fissiparidade refere-se, aqui, à idéia de um organismo, um texto, que se divide em partes
geneticamente iguais (bipartição ou divisão múltipla), passando assim a constituir novos
organismos, novos textos.
52
Cf. MONTALDO, Graciela Entre el gran relato de la historia y la miniatura. Estudios
Revista de Investigaciones Literarias a. I, n. 2. Caracas, jul.-dez. 1993, p. 81.
22
seus materiais e pela qual requer seu próprio lugar na tradição; 2) um trabalho
que busca a elaboração de uma língua própria para, a partir dela, dar uma
torção especial à tradição; e 3) um levante narrativo que se debate com uma
forte reflexão sobre o literário no contexto da literatura universal. A
história de uma nação seria então, a rigor, não mais o elenco de elementos de
caráter, como preconizaria o nacionalismo, mas a história de uma vontade, de
uma pulsão talvez, ou mesmo de uma particular fidelidade a um acontecimento, e
mais, da manutenção de uma fidelidade a essa fidelidade, como diria Badiou.
53
Porém, há mais. Se há uma figura que fundo e forma ao intelectual e à
literatura argentina do século XX, essa figura é Borges, cuja escritura,
observa Daniel Link, aparece como uma língua universal.
54
No início do século,
Leopoldo Lugones atribuía a si a função de constituir um repertório nacional,
repleto de datas e censuras aos imigrantes que ameaçavam a cor local (vide El
payador). Ricardo Rojas, mais tarde, dará corpo à iniciativa, redigindo os
quatro tomos de História da literatura argentina Ensaio filosófico sobre a
evolução da cultura no Rio da Prata. Mas também nos anos vinte, Borges, em
Evaristo Carriego, ensaia os argumentos que mais tarde retomará no famoso
ensaio "O escritor argentino e a tradição", publicado em 1932 e acolhido em
Discussão. Sabemos que a literatura nacionalista de Lugones se esgota tão logo
começa, porque, por princípio, o nacionalismo não permite atualização, apenas
manutenção. Borges, ao contrário, entenderá que o argentino não é mais que uma
máscara, uma superfície moldada em negativo, um como que nada tem a ver com a
descoberta da cor local, que essa scara é obtida a partir de qualquer
material, pois todo e qualquer material que ali se produza carregará consigo
essa afetação.
Borges, sublinha Montaldo, passará a ser também uma espécie de sombra
para a literatura argentina posterior, da qual será bastante difícil se
desvencilhar, seja pela assimilação, seja pela elaboração de uma teoria que,
alinhavada, se coloque adiante. A apropriação do outro como constituição do
próprio se torna procedimento, e este procedimento se converterá em tarefa
obrigatória àqueles que desejarem escrever depois de Borges, que soube dar
formulação a problemas culturais tanto argentinos como latino-americanos. na
década de 90, diz a crítica, será possível reconhecer novas recolocações do
sistema literário argentino, quando a figura de Borges passa a ser parte da
história, e não seu peso.
Em Ricardo Piglia, a marca Borges aparece, a princípio, como um marco do
qual se deve desvencilhar, nisso requerendo a chancela de Roberto Arlt. Em
Respiração artificial, Borges aparecerá como uma espécie de Valéry argentino,
de último escritor do século XIX. O vínculo com Arlt, dono de um estilo
53
Cf. BADIOU, Alain A ética das verdades. Ética. Um ensaio sobre a consciência do Mal. Op.
cit., p. 55.
54
LINK, Daniel — Borges, él mismo. La chancha con cadenas. Op. cit., p. 29.
23
mesclado
55
e extremista,
56
seria então um modo de se chegar ao século XX e a seus
"materiais degradados", provindos da cultura de massa (isso que se entenderá
como uma tradição negada pelo borgismo).
57
Todavia, Borges emerge também como um
modelo reverenciado nas "Teses sobre o conto" e nas "Novas teses sobre o
conto": "Uma história pode ser contada de maneiras distintas, mas sempre um
duplo movimento, algo incompreensível que acontece e es oculto".
58
Nada em
suas teses, porém, que buscam dar um passo além do "Decálogo do contista
perfeito", de Horacio Quiroga, ultrapassa o projeto borgiano, "afinal, nos
contos de Borges, a história secreta é sempre a mesma, apenas variando o relato
aparente".
59
Daniel Link arremata a idéia, observando que no texto de Piglia,
Respiração artificial, a leitura circula "como um dispositivo, segundo o qual
sempre se pode ler outra coisa, sempre se pode ir além, de acordo com o regime
da suspeita".
60
Podemos ainda entender que Piglia retoma Borges para, via Arlt,
a seu modo responder à questão lançada pelo autor de Ficções em "O escritor
argentino e a tradição": como escapar do nacionalismo sem ser nacional? Via
falsificação, é a resposta, pois se "toda tradição é clandestina, ela se
constrói retrospectivamente e tem a forma de um complô"
61
(vide Os sete loucos,
de Arlt).
Em Juan José Saer, colega de Piglia na edição da revista El Traje del
Fantasma, entre 1985 e 1988, e a quem dedica seu romance A pesquisa (cuja nota
biográfica na tradução brasileira não hesita em considerar seu autor como um
dos mais importantes escritores da geração "pós-Borges"),
62
o arsenal borgiano
não é um peso, mas permanece como um mecanismo que regula a narração entre
História e ficção. quem diga, por exemplo, que o núcleo duro dos romances de
Saer, principalmente a partir de Ninguém nada nunca, na década de 80, seria a
História e a política como referentes ineludíveis, ou seja, o experimentalismo
lugar a uma narrativa afiançada ao real, mostrando sua outra face. Sob essa
ótica, Ninguém nada nunca seria, junto a Respiração artificial, a primeira
figuração da violência que marca o país em função da ditadura
63
(a alegoria de
Ninguém nada nunca é bastante sugestiva nesse aspecto: na pasmaceira do pampa,
sob a atmosfera do regime militar, vários cavalos aparecem mortos, assassinados
55
Cf. BARRERA, Trinidad Ricardo Piglia y las genealogías. Ínsula 711 Revista de Letras y
Ciencias Humanas a. LXI, mar. 2006, p. 17.
56
Cf. SARLO, Beatriz Roberto Arlt, excéntrico. Prefácio a ARLT, Roberto Los siete
locos/Los lanzallamas. Ed. crítica. Coord. Mario Goloboff. Col. Archivos n. 44. Buenos Aires:
ALLCA XX, 2000, p. XVI.
57
Cf. ANTELO, Raúl Emilio Renzi, Ricardo Piglia e outros. Folhetim n. 564, Folha de S.
Paulo, 27 nov. 1987, p. 5.
58
PIGLIA, Ricardo Novas teses sobre o conto. Formas breves. Trad. José Marcos Mariani de
Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 106.
59
Cf. IDEM — Ibidem, p. 4.
60
LINK, Daniel — Borges, él mismo. La chancha con cadenas. Op. cit., p. 25.
61
Cf. ANTELO, Raúl — Emilio Renzi, Ricardo Piglia e outros. Op. cit., p. 5.
62
Cf. nota biográfica em SAER, Juan José A pesquisa. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
63
Cf. BERMÚDEZ MARTÍNEZ, María La narrativa de Juan José Saer: una poética de la ficción.
Ínsula 711 — Revista de Letras y Ciencias Humanas a. LXI, mar. 2006, p. 11-4.
24
com tiros à queima-roupa, sem qualquer motivo ou explicação). Por outro lado,
Bernardo Carvalho, quem assina a tradução brasileira de Ninguém nada nunca,
sublinha o perigo em se reduzir a leitura de Saer à extração de uma metáfora
que, em sua simplificação e obviedade, aponte somente para o terror imposto
pelos militares na Argentina. A política de Saer, repara o tradutor no
posfácio, é outra, e se refere a uma certa indistinção física entre homem e
coisa, entre real e leitura. "Os pampas de Saer, em vez de espalharem a
imaginação para todos os lados, puxam-na para dentro do vazio, num rodamoinho
para dentro do charco, do lodo, da terra. Uma terra que também não pode ser a
base das raízes, o lastro das identidades e das tradições nacionais, porque é
um terreno movediço."
64
"Não há, no princípio, nada" é a frase que
insistentemente abre vários dos capítulos do livro, em alguns dos quais três
das personagens estão a ler alguma coisa, um gibi, um jornal, um livro de Sade.
A descrição da leitura e a descrição da paisagem se dão de tal modo que nada
difere entre as duas, a leitura se torna também elemento físico do mundo. O
assassinato dos cavalos e sua metáfora possível, mais imediata, é tão coisa
quanto essa alegoria da leitura, de modo que o valor de ambas não é mais que
uma atribuição, um agenciamento exterior, cujo maior risco seria o crítico, de
saída, pressupor valores a priori a cada uma delas mas aquela que reflete a
sociedade, em viés realista-sociológico, sempre valendo mais, por ser o índice
de maior visibilidade da História. A política de Saer, mostra seu tradutor,
reside na apresentação de um mundo ainda desconhecido ("Não há, no princípio,
nada"), sem antropomorfismos, expondo um sujeito que não se diferencia
daquilo que o cerca. Nesse mundo movediço, a coisa-leitura, entre o rio e o
gibi, distrai o indivíduo de quem ele julgava ser.
Alberto Giordano entende o procedimento de Saer por um "efeito de
irreal",
65
algo que difere tanto do efeito de real, a ilusão dos textos
realistas identificada por Barthes, quanto do "efeito de literatura", o
exercício de auto-representação que evidencia o procedimento. O irreal não é
simplesmente o oposto do real, diz Giordano via Blanchot. O irreal, essa
aspiração dos leitores sem ilusão
que não pressupõe outras convenções, outras certezas diferentes das que
estamos acostumados, que não se deixa confundir nem com "maravilhoso" nem com
o "mágico", não é outra realidade mas, pelo contrário, o outro da realidade,
aquilo que, para se constituir, a realidade nega, mascara: o vazio que é o
coração de nossas evidências, o enigma em que nossas certezas se fundam.
Efeito de irreal quer dizer: aparição desse mascaramento, afirmação dessa
negação. O que aparece é que algo se esconde, o que se afirma é que algo se
nega, e esse algo incerto a literatura revela em sua incerteza: esse algo não
é nada, sequer o nada.
66
64
CARVALHO, Bernardo A leitura distraída. Posfácio a SAER, Juan José Ninguém nada nunca.
Trad. Bernardo Carvalho. São Paulo: Companhia das Letras, p. 231.
65
Cf. GIORDANO, Alberto El efecto de irreal. La experiencia narrativa. Rosario: Beatriz
Viterbo Editora, 1992, p. 11-21.
66
Cf. IDEM — Ibidem, p. 17.
25
Digamos que esse efeito de irreal em Saer seja justamente a máscara de
que fala Borges; é esse modo de pensar, essa mirada, essa escopia
67
o que gera
em negativo (diferentemente da enunciação ou alegoria deste ou daquele fato)
uma substância singular que se possa denominar como caractere de uma nação, de
um território. está o efeito-Borges, ecoado num ensaio publicado em 1993, a
que Saer intitula "Literatura e crise argentina":
O escritor escreve sempre a partir de um lugar, e, ao escrever,
concomitantemente escreve esse lugar, porque não se trata de um simples lugar
que o escritor ocupa com seu corpo, um fragmento do espaço exterior cujo
centro o escritor está contemplando, mas de um lugar que está mais no centro
do sujeito, que se tornou paradigma do mundo e que o impregna, voluntária ou
involuntariamente, com seu sabor peculiar, o escrito [...]. Esse lugar não
tem nada a ver com a procedência genérica atribuída pelos documentos de
identidade, mas com os lugares reais nos quais, por razões complexas, o
empírico constitui os modelos decisivos do imaginário [...]. Onde quer que
esteja, o escritor escreve sempre a partir desse lugar que o impregna e que é
o lugar da infância.
68
César Aira, por sua vez, em entrevista a Carlos Alfieri para a revista Ñ,
suplemento de Clarín, em 2004, quando questionado sobre como se sentia diante
da poderosa figura de Borges, pondera ter sido esta quase grande demais para a
Argentina, uma espécie de sombra paterna que ocupou a literatura de todo o
século XX.
De fato, acredito que minha primeira leitura séria, aos doze ou treze anos,
foi a de seus contos. Quando ouvi falar pela primeira vez de Borges, em 1961
ou 1962, ele ainda não havia iniciado sua grande carreira de fama
internacional, mas era um clássico argentino, seus livros saíam numa série
chamada "Obras completas", publicada pela Emecé. Como eu insistia em lê-los,
meus pais compraram e li. Não sei se eu era um menino inteligente ou se
Borges possui algo que também conquista a juventude. Eu era muito jovem, mas
sentia a grandeza, a elegância, a esquisitice de seus textos, isso que é
quase um veneno porque nos deixa mal-acostumados, depois todo o resto da
literatura parece não estar à sua altura. Claro que, como todos os escritores
na Argentina, tive meus altos e baixos em relação a Borges. Tive uma fase
militantemente anti-borgiana, em que passei à vereda de Rimbaud: a vida, a
vida que entra e se funde à literatura. Borges é outra coisa: é frio, esse
Everest de inteligência, de lucidez; não se contamina com a realidade... Mas
fiz as pazes com Borges e me sinto contente com isso.
69
A partir dessa biblioteca da infância, cuja conjunção é sempre única e
irrepetível, é que César Aira montará o argumento de sua conferência "A cifra",
apresentada em outubro de 1999 na Aliança Francesa de Buenos Aires, por ocasião
do centenário de Borges. Nesse texto, Aira testemunha a presença do escritor na
geração, formada durante a década de 60, a que se inclui, para a qual Borges
67
Cf. AIRA, César Exotismo. Arquivo, p. 201. Graciela Montaldo também se detém sobre o
problema no ensaio "Espaço e nação" (MONTALDO, Graciela A propriedade da cultura. Ensaios
críticos sobre literatura e indústria cultural na América Latina. Op. cit., p. 123-39).
68
SAER, Juan José Literatura y crisis argentina. Literatura argentina hoy. De la ditadura a
la democracia. Ed. K. Kohut y A. Pagni. Frankfurt am Main, Vervuert, 1993, p. 108.
69
AIRA, César El mejor Cortázar es un mal Borges. Entrevista a Carlos Alfieri. Revista Ñ,
suplemento de Clarín, out. 2004, s.p.
26
apontara o caminho da literatura.
70
Não deixa, entretanto, de enunciar a
reprovação que esta mesma geração de jovens sublinhava na surpreendente falta
de curiosidade intelectual do autor de O fazedor. Parecia que os interesses de
Borges tinham se fechado na infância, de modo tal que o século XX nada tinha a
lhe dizer. Nada quis saber sobre seu tempo; nem Marx, Freud, Schoenberg,
Picasso, Eisenstein, Brecht, Wittgenstein, Lévi-Strauss, Jakobson ou Duchamp
tinham algo a lhe dizer. Uma justificativa, pondera Aira, talvez estivesse no
fato de que Borges já tinha esboçado o círculo de necessidades para escrever
sua obra, não indo um centímetro além. Seria este o seu estilo, um estilo
assistemático, contrário ao saber coletivo e interpessoal. Somente o passado
assegura um saber individual, inteiramente próprio, diz Aira, e nisso residiria
a falta de curiosidade de Borges pelo presente. Borges expunha o mecanismo
genérico da literatura, o que dispensava a existência de um sujeito patético a
mais na galeria de casos da história da literatura. Esse mecanismo genérico,
por sua vez, fazia com que a escritura deixasse de ser a exibição de uma
psicologia individual, livrando a leitura do seu peso, i.e., um trajeto
angustiante perdido de antemão. O dispositivo dispensava a leitura de todos os
livros, convertendo-se numa atividade confirmatória e hedônica por meio de
exemplos ao acaso, exemplos os quais seriam sempre confirmatórios. A
multiplicação dos livros se justifica na História, onde se multiplicam as
essências da literatura, algo não imutável, ou, por outro viés, onde se
registram os efeitos contingentes do tempo.
No presente do ator histórico, cada livro reinventa a literatura e dissolve
uma suposta essência; para renunciar a essa postura de ator, como desejou
Borges, é preciso reinvestir na figura do leitor, dotando-a de poderes
insólitos, cujo modelo seria Pierre Menard. Nessa invenção transmutadora
estão os limites da imaginação de Borges: nele a História é confirmatória,
não criadora. O sujeito histórico que assumiu a máscara do leitor se converte
em livros apenas para atualizar uma essência trans-histórica, livros estes
que servirão como exemplos intercambiáveis de um sentido que estava antes
e que estará depois.
71
O sujeito seria, portanto, a combinatória de leituras feitas ao acaso, única e
irrepetível. Uma particularidade absoluta, para usar do termo com que encerra a
conferência e que mais tarde dará título a outro texto, publicado em El
Mercurio.
72
Antes, porém, deve-se atentar que é justamente essa combinação,
particular e absoluta, nunca encerrada, que Borges propõe no texto "O nada da
personalidade". Trata-se, podemos ler, do argumento de base à idéia de
70
"É uma figura tão grande, tão visível que na verdade quase todos nós argentinos aprendemos o
que de literatura lendo Borges, de modo que é inevitável ficarem marcas suas em nós."
(AIRA, César Cualquier cosa: un encuentro con César Aira. Entrevista a Craig Epplin e
Phillip Penix-Tadsen. Buenos Aires, 4 jul. 2005. Disponível em: http://www.lehman.cuny.edu/
ciberletras/v15/epplin.html. Acesso: 19 junho 2007.)
71
AIRA, César — A cifra. Cf. Arquivo, p. 231.
72
Cf. AIRA, César Particularidades absolutas. El Mercurio, 29 out. 2000; Nueve Perros a. I,
n. 1. Rosario, dez. 2001.
27
anacronismo deliberado, cujo procedimento então se efetiva na figura de Menard.
"Para Borges", sublinha Raúl Antelo, "o sujeito é nada. Não é um baú de
lembranças, claro, mas tampouco um amontoado de coisas. Antes, um depósito de
imagens, porque a idéia desvinculada do sujeito como a soma do acontecido
transforma o homem contemporâneo na potencialização do possível."
73
Pois bem,
essa multiplicação que caracteriza o sujeito, e que, a rigor, jamais poderia
servir de exemplo ou ser comparada a outrem, também não gera unidades fechadas
de sentido, tal qual desejaria uma noção fundamentalista de realismo. A
possibilidade dos possíveis e sua negativa, um nada o-negativo ("um nada
afirmativo que não dialetiza o ser mas deixa acéfala a totalidade" e que,
ademais, vontade de potência, vontade de acaso, vontade de vontade, ato
eternamente repetido, não por isso menos revogado, e no entanto, infinitamente
potencializado"),
74
será a base daquilo que Aira apontará como "a nova
escritura", como veremos mais adiante.
Mas sua resposta a Borges, i.e., à posição do escritor na tradição
nacional, está delineada em outro ensaio, a que Aira intitula simplesmente por
"Exotismo".
75
Nele, citando Montesquieu, Aira esboça o homem e sua nacionalidade
como um elemento formado a partir da contingência e do acaso. Montesquieu,
durante o processo de assentamento das bases racionais do estudo do mundo
moderno, cria, concomitantemente às ciências sociais, um gênero literário, o
"romance exótico", cujo primeiro exemplar seria suas Cartas persas, em que Rica
e Usbek, os protagonistas, vêem a Europa como nenhum europeu viu antes, dada a
sua condição de estrangeiros. Esses persas, no entanto, ressalta Aira, não são
reais, mas o dispositivo elaborado por Montesquieu para gerar a escopia, esse
mecanismo que permite passar do ver ao enxergar.
Essa passagem gera uma nova condição para o pensamento: a ficção passa a
atuar como uma espécie de auxiliar. Para produzir uma escopia, i.e., um olhar,
é necessário passar pela instância ficcional do "como se", ou seja, para que se
veja a Europa, por exemplo, é necessário um dispositivo de distanciamento do
fenômeno, algo que nele esbarre por um processo de estranhamento. Mas essa,
reparará Aira, é a condição própria do escritor que, para ver a sociedade que o
rodeia, deverá supor a si mesmo como estrangeiro, louco, ingênuo, gigante,
artista etc. Dessa simbiose entre ficção e realidade, de um eu que se mostra
por uma imagem em negativo a partir de um outro hipotético, resulta o romance
exótico, sob o signo da inversão: para que a realidade revele o real, deverá
antes se tornar ficção. Alain Badiou nesse ponto obstaria, expondo um problema
de arquitetura do argumento: o problema não é o Outro, e sim o Mesmo. O
reconhecimento do outro implicaria no abandono do circuito grego da filosofia,
a que se deve a subordinação do pensamento à lógica do Mesmo, ao primado da
73
ANTELO, Raúl Visão e pensamento. Poesia da voz. Trad. Eduard Marquardt. Crítica e ficção,
ainda. Florianópolis: Núcleo de Estudos Literários & Culturais, 2006, p. 25.
74
IDEM — Ibidem.
75
Cf. AIRA, César — Exotismo. Cf. Arquivo, p. 201.
28
substância e da identidade. Grosso modo, não como, para o Mesmo, reconhecer
o Outro sem nele depositar a si próprio. Porém, como pensar o outro sem passar
pela projeção? Se a origem do acesso ao outro perpassa minha própria imagem
redobrada, instala-se aqui um esquecimento de si mesmo fundamental: "o que
valorizo é esse eu-mesmo-à-distância que, justamente por ser 'objetivado' para
minha consciência, me constrói como dado estável, como interioridade dada em
sua exterioridade".
76
Mas é esse jogo, cuja artimanha é esse afastamento
provisório de um si mesmo que nada é além de vazio, que produz a ficção, o
real, o mundo. O mesmo Badiou é quem formaliza o problema: "O real, tal como se
concebe em sua absolutez contingente, nunca é real o bastante para que não se
suspeite de sua condição de semblante. A paixão do real também é
necessariamente a suspeita. Nada pode testemunhar que o real é real, salvo o
sistema de ficção no qual representará o papel de real".
77
"Seja como for, isso
acontece na realidade. E a realidade só se manifesta em relatos."
78
Para Aira,
essa relação de potências trata, na verdade, de processos inerentes à
literatura, convertidos em imagens:
O "estrangeiro" que contempla meu mundo habitual não é senão eu mesmo
enquanto escritor, fazendo meu trabalho de estranhamento e descobrimento. E o
"viajante", por sua vez, não é outro senão aquele que regressa contando o que
viu nas ilhas curiosas de sua fantasia, seu destino, seu estilo. Mas, de
repente... (e esse inesperado tem data, o século XVIII, quando a viagem,
imemorial nos fatos e livros, começa a se articular em formato de Razão,
entre fatos e livros...) de repente essas terras longínquas estão no mundo,
Pérsia, África, América, Taiti, China... Estão realmente no mundo, são
literatura ready-made; basta apenas ir vê-las.
79
E tais processos seriam, portanto, três:
Do primeiro estágio (o persa em Paris) ao segundo (o francês na Pérsia),
uma passagem da produção ao produto. O primeiro era uma metáfora do escritor
em seu trabalho, estranhando a si próprio para fabricar um olhar; o segundo é
a máquina de fazer literatura sem esforço, saltando para além da invenção,
deixando-a a cargo do mundo. Trata-se da transformação do livro em mercadoria
e da conseguinte aparição em cena do leitor, o consumidor.
Com a entrada do leitor se cristaliza o terceiro estágio do exotismo:
o persa que vende aos leitores franceses uma Pérsia "persa", colorida,
diferente, exótica. O escritor se utiliza de um estranhamento ready-made. Um
duplo ready-made: não a matéria, mas também o sujeito que a expressa. O
procedimento se completa. não é preciso viajar nem importar nativos. O
persa em Paris e o francês na Pérsia convergem no mexicano serviçal, a quem
não falta a consciência de estar vendendo seu país por trinta moedas. Mas não
devemos nos apressar no julgamento: se fizéssemos isso, estaríamos caindo no
jogo da sua má-consciência.
E assim chegamos à nossa situação atual. Em nosso clima de exigência e
de consciência exacerbada (que é sempre má-consciência), no que se
transformaram esses três exotismos? O primeiro, do estrangeiro em nosso mundo
76
BADIOU, Alain O Outro existe? Ética. Um ensaio sobre a consciência do Mal. Op. cit., p.
36.
77
IDEM Pasión de lo real y montage del semblante. El siglo. Trad. Horacio Pons. Buenos
Aires: Manatial, 2005, p. 74.
78
AIRA, César — Cómo me reí. Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 2005, p. 19.
79
IDEM — Exotismo. Cf. Arquivo, p. 201.
29
cotidiano, tornou-se ciência, abandonando o campo da literatura. O segundo,
do "viajante", no simples transcorrer das fronteiras degenerou em gênero, no
pior sentido da palavra: literatura de gênero, literatura comercial, ficção
científica ou fenômenos paranormais, viagens no tempo ou regressos da morte.
As viagens, simplesmente, tornaram-se cada vez mais distantes, a lógica do
consumo fez com que o público pedisse exotismos cada vez mais esquisitos.
E o terceiro, do "persa profissional"? É o mais incandescente porque,
em boa medida, é o que nos qualifica. Internou-se nos labirintos da
nacionalidade e ali permanece.
80
Uma vez criadas, as nacionalidades se fetichizam como mercadorias, diz
Aira, e seria esta a fórmula final do exotismo: a fetichização da
nacionalidade. Aqui emerge a famosa polêmica de Borges, certamente uma de suas
citações mais freqüentes, a parábola dos camelos do Alcorão: "no Alcorão não
camelos porque Maomé era um árabe autêntico (não um francês disfarçado de
Maomé), ou seja, os camelos não chamavam sua atenção; não os via diretamente e
por isso não os registrava, não tinha olhar".
81
Neste ponto, especificamente, reside a cisão de Aira com Borges. A seu
ver, o fundo moral da parábola explicita que o árabe autêntico expressaria uma
Arábia autêntica, enquanto o "árabe profissional" poria no mercado uma Árabia
embalada a vácuo, para estrangeiro ver. Na base do raciocínio de Borges está a
má-consciência, uma mesquinharia, diz Aira, porque sua receita consegue apenas
distinguir o bom do mau profissional; o competente do incompetente. Podemos
dizer que essa oposição deu respaldo a uma espécie de "dialética da
autenticidade" na literatura argentina, confortavelmente apaziguada como
situação dada. Exige-se autenticidade do escritor, dando-se esta como um valor
certamente positivo. Aira, porém, torce a questão e pergunta: o artista é
artista justamente da transmutação dos valores. "E se ele prefere ser
inautêntico? Ninguém pode impedi-lo. Do contrário, estaríamos confundindo as
virtudes cívicas com as artísticas."
82
Ser um bom profissional da arte, a seu
ver, não equivale a ser um bom artista, e a diferença, caso exista, reside,
assim, não na habilidade profissional do escritor em lidar com a
verossimilhança, mas em saber lidar com o acaso, que será o dispositivo que
configura tanto uma nacionalidade quanto o contínuo do pensamento. Daí que a
Argentina, para Aira, não seja nada além de um acaso: o mundo precisa assumir
uma configuração nacional para se tornar inteligível historicamente. Trata-se
de um movimento dúplice: a nação nada será além de linguagem. Mas por outro
ângulo, propagar essa linguagem será justamente o que constituirá a nação.
83
Mas o acaso permanece como elemento irredutível porque não termina na
escritura, a leitura o estende e amplia infinitamente. E se isso aponta uma
distinção de Aira para com seus demais colegas de geração, a distinção se
não pelo efeito-Borges, mas pelo efeito-Duchamp, que se trata não de
80
IDEM — Ibidem, p. 201.
81
IDEM — Ibidem.
82
IDEM — Ibidem, p. 202.
83
Cf. IDEM — Por que escrevi. Cf. Arquivo, p. 287.
30
esclarecimento, mas, pelo contrário, de se obscurecer o cristal da Razão (a
seriedade, a verdade). A literatura trabalha um jogo precário, que é sempre
mais ou menos que literatura, nunca um objeto cuja identidade se possa revelar,
pois a revelação desse mistério acabaria por corrigir o estrago que ela produz
na linguagem.
Não podemos ser tão sérios sem renunciar a literatura. Se no fundo temos de
confessar que a literatura é uma espécie de perversão, de jogo louco, nossos
melhores silogismos invariavelmente se deslocam. Mesmo esta história do
exotismo parte de uma brincadeira, de um quebrar as regras do jogo limpo.
Quem mandou os escritores utilizarem os países distantes como ready-made
literário? Ninguém, é lógico. É o vanguardismo como tentação, como jogo
perigoso que atenta contra a persistência do próprio jogo. Mas é também
aquilo que torna interessante continuar jogando.
84
A essa renúncia que constitui a literatura, por fim, se agregam dois
mecanismos vitais, que constituirão as regras do jogo da representação. Trata-
se, como veremos a seguir, do abandono e do contínuo.
1.3 O ABANDONO
Para que a literatura afirme sua potência
própria, não basta que ela abandone as normas e as
hierarquias da mimesis. É preciso que abandone a
metafísica da representação. É preciso que abandone a
"natureza" que a funda: seus modos de apresentação
dos indivíduos e as ligações entre os indivíduos;
seus modos de causalidade e de inferência; em suma,
todo seu regime de significação.
Jacques Rancière Deleuze e a literatura
Nunca abandonaremos o bastante.
César Aira — O a-ban-do-no
Para iniciar esta seção, gostaria de narrar um acontecimento: o modo como
"O a-ban-do-no", texto de César Aira concebido como prelúdio a um curso para
uma platéia de jovens estudantes da Universidade de Buenos Aires (assim o era
durante as aulas ministradas anos antes, no inverno de 1988, sobre Copi, também
no Centro Rojas),
85
caiu em minhas mãos. Penso que esse modo interfere e
potencializa, definitivamente, sua própria leitura.
Praticamente inédito, "O a-ban-do-no" surgiu de numa consulta à Internet,
num desses dispositivos genéricos de busca. Lancei a palavra aira e uma lista
de cem ou mais lugares foi o resultado. Resenhas, resenhas, resenhas,
entrevistas, livrarias virtuais, trabalhos acadêmicos, notas da imprensa
84
IDEM — Exotismo. Cf. Arquivo, p. 202.
85
Cf. IDEM — Copi. Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 1991.
31
brasileira sobre a passagem do escritor pelo país, um site a ele dedicado.
86
Em
meio a isso tudo, uma mensagem de correio eletrônico, cujo cabeçalho dizia
"[Literatura] Texto de César Aira"; logo abaixo, o nome e endereço virtual de
seu remetente: E. G. mail to: [email protected]d.edu, e a data firmada: Wed,
17 Jul 2002 04:31:02 GMT. Devo dizer, desde já, que sobre o destino da mensagem
e sua suposta função nada era possível precisar. Em todo caso, antecedia o
texto anunciado uma nota pessoal, que dizia o seguinte:
Colisteros,
Aquí les va este texto de quien —en mi humildísima opinión— es por hoy uno de
los mejores escritores latinoamericanos.
Ya me contarán qué les parece y si comparten mi entusiasmo con respecto a
Aira.
Desde Fargo (Dakota del Norte), se despide.
E. G.
Parecia tratar-se de uma comunidade virtual de discussão, como tantas
outras que proliferam na rede. Creio que o valor acoplado ao nome de Aira ("um
dos melhores escritores latino-americanos") não venha muito a caso, mas o
vocativo da mensagem sim, que surge contaminado pelo texto que motivara a
iniciativa: colistero é uma forma não dicionarizada, indireta, figurada, de
"perdedor", de desistente; daquele que, numa corrida, logra o último lugar. Não
porque ainda estivesse preocupado com o trajeto, mas porque nada lhe restava, a
competição certamente teria acabado, a não ser fugir para frente,
87
seguir
andando já em outro ritmo, fugir para sempre.
As comunidades virtuais, geralmente, dão-se em função do debate, da
troca, seja qual for o assunto. As mensagens vinculadas, postadas a um número
grande de destinatários, possuem vida curta, minutos, dias, talvez uma semana,
não como precisar. Dependem da repercussão; o assunto se desdobra aque
outro venha à pauta e nada reste do anterior sem, portanto, que a origem
possa ser constatada (o que, sem dúvida, é um elemento fundamental do jogo:
esquecer para que o novo tenha lugar; para que possa ser recordado, talvez, mas
sem a mesma forma, ou de uma forma outra, monstruosa).
88
A essa mensagem,
no entanto, não constava resposta alguma. Entre seu lançamento na rede e este
encontro fortuito passou-se mais de dois anos, o que me faz supor ter ficado
esquecida em algum servidor, assim como se esquecem documentos em tantos
computadores, como largamos notas de supermercado em meio aos livros, como
perdemos textos em meio ao próprio arquivo.
86
http://www.aira.7p.com. Acesso: 27 ago. 2004.
87
"Huir hacia adelante" é a expressão utilizada por César Aira. De tradução complexa, cuja
forma literal poderia ser "fugir rumo adiante", adotarei a versão "fugir para frente", sem a
anteposição do "a" que lhe seria característica ("fugir para a frente"), a fim de não
substantivar este "a frente", nem entendê-lo como um lugar delineado, a posição de vanguarda,
por exemplo, e sim como uma remissão direta ao indefinido, "para frente", simplesmente.
88
Para o conceito de monstro, cf. IDEM Estética de lo monstruoso (Disponível em:
http://maxicrespi-fotos.blogspot.com/2005/04/csar-aira.html. Acesso: 5 jul. 2005; trata-se de
um fragmento de "Arlt", cf. Arquivo, p. 205), e "Duas notas sobre Moby Dick" (Arquivo, p. 254.)
32
Mais tarde, passei a procurar pela fonte do ensaio que a mensagem
lançava. Comentei com alguns conhecidos, ninguém reconhecia o texto. Parti para
o lógico: perguntar a quem havia redigido a mensagem. Nada aconteceu. Nem
resposta, nem devolução do e-mail enviado (que seria a reação normal de quando
se envia uma mensagem a um endereço inexistente). Passei a supor que o
destinatário não se interessou por minha necessidade, talvez já não se
interessasse pelo assunto, talvez estivesse decepcionado com o descaso de seus
parceiros de discussão, abandonando as leituras; talvez, por fim, fora
atropelado sem que houvesse tempo de cancelar o endereço eletrônico. Solicitei
ajuda, então, a uma colega especialista (preservarei os nomes) no escritor;
expus-lhe a situação e pedi pela referência. De imediato não sabia me dizer,
mas prometeu-me cotejar com outro ensaio que possuía. Mais tarde viria a
resposta: não se tratava do mesmo texto. Indicou-me outra especialista, que
havia tratado da organização da obra do autor. Havia eu conseguido seu estudo
poucos dias antes, e minha leitura ainda não passava da introdução; na
bibliografia, no entanto, tampouco constava menção ao ensaio. Outra mensagem,
mais uma vez a situação exposta.
A resposta veio. Dizia conhecer o texto e, mais que isso, que o havia
citado em seu trabalho (afirmação esta que me deixava suficientemente
envergonhado por minha leitura incompleta), mas percebia, com certo espanto,
tratar-se do único texto ao qual, por algum lapso, não fazia referência formal
na bibliografia. Muito bem; no entanto, também não encontrava a cópia do ensaio
em parte alguma de sua biblioteca. Mas citou-me de memória.
"O a-ban-do-no" fora publicado no jornal do Centro Cultural Ricardo
Rojas, da Universidade de Buenos Aires. Tratava-se de um texto escrito em
função de um curso proferido por César Aira naquela instituição. Quanto ao ano,
1992, 1993, talvez 1996.
Tempos depois procurei novamente na rede pela mensagem que detonara a
busca. Lancei as palavras-chave. Nada. Refinei a pesquisa. Nada. Procurei pelo
endereço primeiro, onde tudo tinha começado.
89
Nada também. Suponho que minha
interferência em uma área restrita, porém aberta, tenha sido detectada, tenha
acusado uma falha, tenha mostrado uma porta secundária do servidor, uma zona
morta. Agora trancada, porque é preciso abrir espaço, esvaziar as gavetas,
esquecer.
Sem dúvida, era melhor desistir, abandonar. A procura pela fonte de algum
modo equivale à procura da origem, seguir adiante às cegas, olhando para trás.
A procura pela fonte, de algum modo, tenta varrer a poeira
90
depositada no
89
http://www.listas.rcp.net.pe/pipermail/literatura/week-f-mon-20020715/002159.html. Acesso:
12 set. 2004.
90
Cf. BATAILLE, Georges — Poussière. Oeuvres Complètes I, 1922-1940. Paris: Gallimard, p. 197.
Sobre o mesmo aspecto, Francis Bacon declara: "Outra coisa com relação ao caos é que posso
utilizar a poeira. Eu usei a poeira do ateliê para fazer aqueles quadros das dunas de areia,
que vi na Bretanha. É um pavor essa brincadeira de juntar a poeira do chão, mas, como vê,
poeira é o que não falta aqui, ela se agarra aos quadros, agarra em tudo" (SYLVESTER, David
33
texto, no arquivo; de algum modo tenta purificar a imagem, quando, enfim, a
poeira é parte dessa mesma imagem que, aliás, não é a mesma, mas tão-
somente um momento de sua aparência, em potencial. Porque a imagem convoca uma
série, produz uma genealogia.
O drama dessa procura, vale dizer, não era novo, pelo contrário; lembrava
em muito outra anedota de Kafka, contada por César Aira, aliás, que o desenha
na forma de uma menina que perdera sua boneca. Sentada aos prantos num dos
bancos do parque Steglitz, por onde Kafka costumava passear, a menina chamara a
atenção do escritor, que se aproxima e pergunta pelo motivo do choro. Depois de
ouvir o relato da menina, Kafka se dispõe a contar uma história, uma história,
por sua vez, também muito parecida com outra, a das gotas de tinta do quadro da
Gioconda:
91
a boneca não tinha se perdido, apenas decidira sair e conhecer o
mundo. Dizia ainda que a boneca enviara recentemente uma carta à menina,
expondo seus motivos, e prometeu trazê-la na manhã seguinte. À razão de uma
carta por dia, durante três semanas, a boneca narrava seus feitos, que se
desdobravam em viagens, noivado, casamento, filhos. Não se tratava de perda,
portanto, mas de um elemento novo na série que constituía a imagem boneca. Um
elemento duro, difícil, porque exigia o abandono da presença do objeto, das
certezas, dos pertences, do saber, por fim, que a presença atestava e dava fé.
Seguia a nota do remetente, então, o texto do escritor argentino. Nada
mais.
O A-BAN-DO-NO
No princípio está a renúncia. Dela nasce tudo o que podemos amar em
nosso ofício; sem ela nos veremos reduzidos ao velho, ao superado, às
misérias do tempo, à cegueira do hábito, às promessas melancólicas da
decadência. Trata-se da condição do início: terminar de uma vez, deixar tudo
para trás, de uma vez por todas. A renúncia é nossa utopia, a de todos os
artistas, mesmo os mais persistentes. Balzac fez seu o lema da inscrição em
pedra nos muros da Grande Cartuxa: Tace, late, fuge (cala, abandona, foge).
Uma generalização bem óbvia é a de que todos os escritores, quando
jovens, desejamos ser escritores. Não menos óbvio é termos sido todos jovens:
fomos o tempo todo em que desejamos ser escritores, em tudo aquilo que nos
levou a aprender que, para ser escritor, teríamos de encontrar um modo de
renunciar a sê-lo. E não a apenas isso, mas a ser "escritor bom" ou "escritor
ruim", a ser poeta, romancista, crítico, filósofo, e renunciar a mais, muito
mais, se possível a tudo. Claro que descobrir o que era esse "mais" e esse
"tudo" não se mostrou tão simples. Investigar é entrar no território da
invenção, do estilo, do destino. O que mais devemos abandonar? Que outra
coisa devemos calar? De que novos giros de tempo ainda devemos fugir? Chega
de perguntar e estaremos no coração do romanesco, nas ilhas, montanhas,
selvas, castelos, trens, barcos, rumo ao acaso. É quase como se voltássemos a
ser jovens, e qualquer um sabe, por experiência própria, que todos os jovens
quiseram ser escritores.
Por sorte não somos tão ingênuos, e se aprendemos algo, é que o
abandono e a liberação não sobrevirão por um mero cessar. O antigo resiste a
morrer: fulmina-o o raio do inesperado, burlando suas mais sutis precauções,
Entrevistas com Francis Bacon. ed. Trad. Maria Teresa Resende Costa. São Paulo: Cosac
Naify, 2007, p. 192).
91
Cf. AIRA, César — Mil gotas. Arquivo, p. 300.
34
uma legião. Tudo deve ser inventado, inclusive a renúncia a seguir
inventando. Sobretudo a renúncia. A literatura inteira, o sistema das artes
em sua fantástica variedade se revela nessa tarefa, se põe de (até agora
víamos isso ao contrário, num reflexo desluzido).
Abandonar é permitir que o mesmo se torne outro, que o novo comece. E
assim nunca abandonaremos o bastante, tão grande é nossa sede de
desconhecido. (Por isso nos fizemos escritores.) Buscamos algo mais para
abandonar, outra coisa, outra além, nos esforçamos como nunca nos esforçamos
em nenhum dos trabalhos que empreendemos, mobilizamos toda nossa invenção,
até mesmo a alheia, em busca de novas renúncias. E não se trata de
abandonar técnicas, gêneros, uma profissão, nossas velhas mesquinharias... O
que aparece, afinal, como objeto digno de nosso abandono é a vida em que
vínhamos acreditando até agora. "Já vi, tive, já vivi." descobrimos que
a literatura ainda nos serve, a literatura posta do direito, instrumento
perfeito para negar a si própria, levando consigo tudo, em seu reflexo
aniquilador.
É a euforia, enfim, o entusiasmo, a vocação, o êxtase prometido... Mas
é uma euforia da melancolia. Porque nossa vida passou... Teve de passar para
que aprendêssemos. Parece como se fosse muito tarde, como se não houvesse
outro momento além deste, póstumo, para começar. Então, "do fundo do
naufrágio", voltamos em busca de consolo nos poetas que amamos em nossa
juventude, quando queríamos ser escritores. Primeiro Baudelaire. Depois todos
os outros. E depois Rimbaud. Nele nos detemos, perplexos, no presente.
Chegamos. Podemos começar. Podemos terminar. De Rimbaud, o poeta mais amado,
sempre se diz ser mais que um poeta amado. Deve ser isso, porque não
começamos sequer com ele. Não começamos, aliás, sequer com nós mesmos. Nos
escapa como um mau projeto. Foge para frente, e não vale a pena persegui-lo.
É o mito de nossas vidas, nossa juventude em pessoa. Certa vez perguntei a um
poeta, o que mais amei, por que não havia terminado o secundário. Por que não
havia seguido o caminho. Me respondeu, com toda naturalidade, como se fosse
óbvio: "Pra que, se o que eu queria era ser Rimbaud". É óbvio, realmente,
todos poderíamos responder o mesmo. Mas ultimamente começo a me perguntar se
essa frase não estará além das precisões biográficas, repetindo para sempre o
mito que pretendemos encarar. Para que viver, com efeito, por que querermos
ser escritores, se o que desejamos é ser Rimbaud? Deveríamos deixar de nos
mentir. Talvez saiamos ganhando ao perder tudo. O tempo, em sua transparência
inofensiva, contém a promessa do instante, e a alquimia se realiza no caderno
de um menino. E digo "se realiza" em sentido literal. Se faz realidade, tal
como se faz real a realidade: no presente, em nós, definitivamente. Nossos
mais loucos e irrealizáveis desejos estão se fazendo realidade em nossas
vidas, ou seja, em Rimbaud. Não é história, nem filologia, nem crítica
literária; é um procedimento para fazer do mundo, mundo. Por isso, este
curso, que originalmente se chamaria "Como ser escritor", irá se chamar, ao
fim das contas, "Como ser Rimbaud".
Redigido em separado, para que se pronuncie destacando-se o signo, para
que outro não seja posto em seu lugar, porém dentro dele próprio incluindo seu
modo (nesse grifo da separação silábica se entrelê um "basta", "enough", "não-
mais"), "O a-ban-do-no" sinaliza um esvaziamento, mostrando a que vem na
primeira frase: "No princípio está a renúncia". Para começar é preciso
abandonar as metas. Espelhar-se é sustentar uma gramática alheia, cegar-se pelo
hábito, pela promessa de felicidade. Terminar é a condição do início, através
de um sujeito esvaziado: "Abandonar é permitir que o mesmo se torne outro, que
o novo comece". Desse abandono (que é um abandono da representação, da arte, e,
portanto, da literatura) se projeta o gozo do porvir, um gozo que a experiência
não permite, pois se trata, em última instância, de um abandono da vida tal
como se acreditava nela. Desse abandonar dos pertences (a mimese, sua natureza,
35
seu regime de significação), a literatura ganhará potência, pois ainda servirá
para alguma coisa.
Mas essa potência que se entrelê em Aira não se refere explicitamente a
um novo fazer, a um novo ato. Giorgio Agamben ressalta que a potência, conforme
expunha Aristóteles, possui uma existência autônoma, ou seja, ela não se em
função do ato, não é uma negatividade em função de, não é uma mera
possibilidade lógica. O ato, aliás, figura como fim da potência, algo como
tornar o poder constituinte, poder constituído. Para que a potência tenha
consistência própria, articula Agamben, preciso que ela possa até mesmo não
passar ao ato, que seja constitutivamente potência de não (fazer ou ser), ou,
como Aristóteles diz, que ela seja também impotência".
92
Bartleby, a personagem
de Melville, resiste tanto à potência de quanto à potência de não ("Preferiria
não fazê-lo"); Aira, por sua vez, pontifica que "tudo deve ser inventado,
inclusive a renúncia a seguir inventando. Sobretudo a renúncia".
O paradoxo desse abandono da literatura, se entendida como lei,
preconiza, no entanto, que não há um fora da literatura (ou que o fora, o
que dá no mesmo). Para que não nos vejamos "reduzidos ao velho, ao superado, às
misérias do tempo, à cegueira do hábito, às promessas melancólicas da
decadência", é necessário um desbordamento: pensar a literatura por fora de sua
condição substancial (a obra), o que implica dar-lhe energia (uma produção),
mesmo que isso signifique um ultrapassamento de si, pois, em última análise,
não se trata de ausência de presença, mas da presença da ausência. A
nominalização, a substância ou seja, literatura é tão-somente o momento
apolíneo do dionisíaco, o momento de descanso daquilo que não pode parar,
93
e
cuja permanência não se dá senão pela própria convulsão.
Abandonar poderia ser, à primeira vista, uma opção pelo Mal, uma
destruição pela destruição, ou mesmo uma traição. Porque "o lado do Bem é o da
submissão, da obediência", repara Bataille. "A liberdade é sempre uma abertura
à revolta, e o Bem esligado ao caráter fechado da regra."
94
Seria, portanto,
aquilo que no Mal se reconhece como transgressivo. Mas não há transgressão no
abandono. A transgressão, em seu movimento, prevê a manutenção da lei, pois a
partir dela se identifica: é a partir da lei que a transgressão é transgressão,
e por esse viés não se iria muito além do movimento realizado pela paródia, que
ao satirizar reconhece o lugar ocupado pelo elemento satirizado. Ao abandono,
pelo contrário, o limite inexiste, porque exige não a permanência no mundo
abandonado (aí se tem a transgressão), mas a fabricação de novas verdades,
92
AGAMBEN, Giorgio Potência e direito. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I. Trad.
Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 52. Cf., também, "A potência do
pensamento" (Trad. Carolina Pizzolo Torquato. Scielo Brazil. Revista do Departamento de
Psicologia da UFF v. 18, n. 1. Niterói, jan.-jun. 2006).
93
Cf. BARTHES, Roland — Da obra ao texto. Op. cit., p. 67.
94
BATAILLE, Georges A liberdade e o mal. A literatura e o mal. Trad. Suely Bastos. Porto
Alegre: L&PM, 1989, p. 176.
36
pelas quais nada resta do sistema anterior.
95
Daí que abandonar nada tenha a ver
com estar em abandono. O banido não está nem fora nem dentro da ordem: está, ao
mesmo tempo, à mercê e por sua vontade; excluído e exposto a tudo. Já abandonar
é um gesto sem transgressão, ou seu avatar seguinte; é remeter-se adiante, a um
lugar inexistente, a um neutro talvez: um fora que não o fora-da-lei. Ou, em
última análise, a um fora que se dilui, porque é tão-somente superfície: o
Aberto, o livre-do-ser.
96
95
Seria este um ponto de fissura entre Deleuze e Badiou. Badiou critica o modo como Deleuze
concebe a verdade, que começaria "como síntese disjuntiva, ou experiência da separação do
presente", e terminaria "como injunção memorial para sempre recomeçar". o mesmo que dizer
que não começo", diz Badiou, "apenas presente abolido (em via de virtualização), memória
que sobe à superfície (em via de atualização). É isso que não posso admitir. Pois considero
que toda verdade é fim da memória, desdobramento de um começo" (BADIOU, Alain Deleuze. O
clamor do ser. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 82). Em
outros termos, conforme a ótica de Badiou, em Deleuze a verdade, no abandono, seria uma
condição ébria, tal como mostra Benjamin: "O flâneur é um abandonado na multidão. Com isso
partilha a situação da mercadoria. Não está consciente dessa situação particular, mas nem por
isso ela age menos sobre ele. Penetra-o como um narcótico que o indeniza por muitas
humilhações" (BENJAMIN, Walter Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Obras
escolhidas III. Trad. José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 51).
Enquanto para Badiou, podemos aventar, a verdade apontaria para uma intervenção, porque
estaria atravessada por um acontecimento, demandando a elaboração de um sujeito, tal como na
teoria da deriva esboçada pelos situacionistas, quando, ao contrário da flânerie, impera um
ócio consciente contra a mais-valia temporal (cf. DEBORD, Guy et al. — Teoría de la deriva. La
creación abierta y sus enemigos. Textos situacionistas sobre arte y urbanismo. Org. e trad.
Julio González del Río Rams. Madrid: Ediciones de La Piqueta, 1977, p. 61-9).
96
Cf. AGAMBEN, Giorgio Aburrimiento profundo. Lo abierto. ed. Trad. Flavia Costa; Edgard
Castro. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2007, p. 127.
Lucio Fontana — Concetto spazziale: attesa, 1963.
37
Ao abandono delineado por Aira como "condição do início: terminar de uma
vez, deixar tudo para trás, de uma vez por todas", e que Jacques Rancière
aponta como única salvaguarda de uma singularidade,
97
se tem, na pintura, um
equivalente na fenda aberta por Lucio Fontana no branco da tela (vide Conceito
espacial: espera).
Por essa fenda se esvai toda representação, pois não resta objeto em
anterioridade ao procedimento; caso esse objeto exista, seu nome seria Tudo.
Paradoxalmente, entretanto, é também por essa fenda que a representação ganha
potência, remetendo-se a um para-além que até então não lhe era possível.
Emerge a imagem de uma ausência mas, também, a imagem de uma desistência.
98
O que se tem agora é um portal. Mas um portal para onde? De que serve
essa ausência, essa despesa? O que vem depois do abandono?
1.4 O CONTÍNUO
Mas a eternidade sempre se interrompe; são as
interrupções o que a fazem eterna.
César Aira — A Princesa Primavera
Destacamos antes o nome Aira como um dispositivo, uma máquina
celibatária, solta, cuja função seria, tal como reparava Graciela Montaldo,
produzir coisas que de nada servem, produzir obras de arte, entender a
realidade. Daí que Adrián Cangi, radicalizando a fórmula, veja na escritura de
Aira um verossímil e intenso realismo, cuja melhor ilustração, para nós,
estaria nos desenhos de Rube Goldberg.
Essa junção de máquinas, que Cangi entenderá como o acidente ("o acidente
torna o sistema narrativo protéico, produzindo múltiplos desencadeantes na
progressão do relato"),
99
constitui aquilo que Aira chamará, em Copi, de
contínuo. O contínuo, é bom reparar, não se trata do homogêneo, coerente,
pacífico, durativo, permanente, sem falhas, apolíneo. A repetição do contínuo
97
Cf. RANCIÈRE, Jacques Deleuze e a literatura. Apresentado nos Encontros Internacionais
Gilles Deleuze, no Colégio Internacional de Estudos Filosóficos Transdisciplinares, na UERJ,
entre 10-12 de junho de 1996. Disponível em: http://www2.uerj.br/~pgletras/ranciere.htm.
Acesso: 16 fev. 2005.
98
René Major, desdobrando relações entre Lacan e Derrida, faz referência a um processo de
desligadura que prevê "uma passagem do sujeito à des-constituição que lhe é constitutiva, a um
'estado', um 'lugar' onde desiste sem desistir de si, ou ainda a um praticável onde o sujeito,
desinstalando-se de suas identificações, 'encontra-se' em desistência (désistance)." O
surpreendente, no entanto, é que justamente a mimese é o que submete o sujeito a essa
desestabilização, porque "o 'próprio' da mimese é não ter um próprio" (MAJOR, René A golpes
de dado(s). Op. cit., p. 138). Sobre a desistência, cf., ainda, BATAILLE, Georges A poesia
sempre é, de um certo ponto de vista, um contrário da poesia. A literatura e o mal. Op. cit.,
p. 39-40; e HOME, Stewart — Quando estourar o golpe é golpear um estouro. Greve da arte. Trad.
Monty Cantsin. São Paulo: Conrad Editora, 2004, p. 25.
99
CANGI, Adrián — César Aira. O autômata do presente. Op. cit., p. 124.
38
como absoluto, dirá Aira, nos está negada, porque a ausência de cortes,
acidentes, ou seja, de confronto entre forças, nada produziria, nem matéria nem
idéia de matéria. O contínuo é o mundo se extinguindo em impulsos nervosos
traduzidos por antropomorfismos,
100
o real que persiste irredutível, que se
demonstra, se desdobra, porém sem nunca se revelar. O acidente será aquilo que
irrompe durante a repetição, fazendo-a diferente, possibilitando os possíveis.
Mas não há, pois, repetição sem diferença, nos ensina Norma Traversini, a
personagem de O panfleto,
101
quando a cada recomeço tenta convencer seus
possíveis alunos de expressão artística a se matricularem no curso que deseja
oferecer, simplesmente porque seu argumento nunca se esclarece de todo nem
nunca se encerra. Daí se tem o romance ou, por outra, daí se tem o mundo.
Paradoxal, entretanto, é que se alguém deseja buscar o significado, diz Aira,
deverá buscá-lo no que segue adiante, não naquilo que leu, naquilo que passou.
Em outras palavras: naquilo que faz o contínuo, no que advém, não naquilo que o
corta.
102
Em Diário da hepatite, que registra uma desistência, a de não escrever
mais,
103
o movimento se esboça:
Agora me ocorre uma nova explicação para o contínuo: a negação do
pensamento. Na ponta dessa negação uma afirmação pela qual o pensamento
volta a se formar, sem interrupção alguma.
Não sei como pude me entregar a esse passatempo contraditório de
buscar "exemplos de contínuo", sendo que os exemplos são em si descontínuos;
o contínuo não pode dar exemplos porque não possui nada além de si mesmo.
Mas pode sim: tem transformações, as quais se pode apreender em
forma de exemplos se quisermos continuar pensando.
104
O contínuo, assim, permanecerá como o irredutível, "a soma dos cortes",
diríamos apressadamente, porém lembrando que, se feito de cortes, de acidentes,
ele deverá desconsiderá-los (não anulá-los) e seguir adiante, fugir para
frente. Porque para o contínuo, em última análise, sendo puro acidente, o
acidente inexiste. É a imagem plasmada no primeiro parágrafo de Uma novela
chinesa:
100
Cf. IDEM — Ibidem.
101
Cf. AIRA, César — El volante. Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 1992.
102
Cf. IDEM — Copi. Op. cit., p. 30.
103
Veja-se o prelúdio do livro: "Caso me encontrasse desfeito pela desgraça, destruído,
impotente, na última miséria física e mental, ou as duas juntas, exilado e condenado no alto
da montanha, por exemplo, fundido na neve, em avançado estado de congelamento, após uma queda
de centenas de metros, chocando em lanças de gelo e rochas, com as duas pernas arrancadas, ou
as costelas esmagadas e quebradas, suas pontas perfurando-me os pulmões; ou no fundo de uma
valeta ou de um beco, após um tiroteio, esvaindo-me em sangue num sinistro amanhecer que para
mim será o último; ou num pavilhão para desenganados de um hospital, perdendo hora a hora
minhas últimas funções em meio a dores atrozes; ou abandonado aos avatares da mendicância e do
alcoolismo, na rua; ou com a gangrena escalando-me uma perna; ou no processo espantoso de um
espasmo da glote; ou francamente louco, fazendo minhas necessidades dentro da camisa de força,
imbecilizado, humilhado, perdido... o mais provável seria que, mesmo tendo lápis e caderno à
mão, não escreveria. Nada, nem uma linha, nem uma palavra. Não escreveria, definitivamente.
Mas não por não poder, não pelas circunstâncias, mas pelo mesmo motivo pelo qual não escrevo
agora: porque não tenho vontade, porque estou cansado, entediado, farto; porque não vejo de
que poderia servir (23 de janeiro de 1992)." IDEM — Diario de la hepatitis. Buenos Aires: Bajo
la Luna, 1993, p. 7-8.
104
IDEM — Ibidem. Buenos Aires: Bajo la Luna, 1993, p. 31.
39
Uma história, qualquer uma, se desfaz, mas a vida roçada por essa história
fica por toda a eternidade. A lembrança se apaga, mas outra coisa fica em seu
lugar. A terra assume formas eternas, enquanto a água se adapta à fugacidade
de todas as coisas, transcorrendo sobre elas. Não se perde nas dobras da
multiplicidade; delas toma uma qualidade de infinito que a torna perfeita e
irretocável. Quanto ao ar, é um destino das coisas e das vidas; quando a
memória se apreende apenas aos giros de uma folha solta, o vazio cavado no
ar, entre os céus delicadamente sobrepostos e a terra opaca, de repente
resplandece, numa eternidade que imita a do silêncio, ouvida por aqueles
que possuem o ouvido muito aguçado. Mas as vidas passam, e, com elas, todo o
resto: civilizações, impérios, até mesmo a visão e a beleza das paisagens em
seu ciclo aquarelado de estações. Não acreditamos, mas é assim. Nunca podemos
acreditar, porque nos distrai a irisada contemplação de nossas próprias vidas
que se refletem em outras, em inumeráveis outras, por vezes amadas. A ciência
da História criou um grande mal-entendido nesse aspecto. Acontece que, por
definição, a História não se admite como irreal. E, no entanto, na
irrealidade deveríamos buscar sua definição.
105
A própria escritura, por fim, desdobra esse movimento ininterrupto. É a
desistência do Diário da hepatite, mas desistência que não desiste de si,
porque o abandono da escritura se dá justamente através dela mesma.
1.5 CONTÍNUO, REPETIÇÃO E DIFERENÇA
Boa parte da crítica pergunta por que Aira publica tanto, por que publica
tudo. Martín Kohan, em resenha a O panfleto, recombina a questão, lembrando um
juízo bem pouco complacente, o qual entenderia que, embora publique muito,
Aira, na verdade, escreve pouco, ou, com outras palavras, escreve sempre o
mesmo.
106
Edgardo Russo entende que nessa ficção elevada ao cubo para preencher
o vazio, o leitor se converte em testemunha da produção de um imaginário que
prolifera resistindo a qualquer tipo de seleção ou censura: rascunho e obra são
uma coisa no território opaco e atemporal da escritura.
107
Silvia Hopenhayn,
por sua vez, relembra o argumento de que talvez os livros de Aira sejam
comparáveis apenas entre si.
Ele mesmo se encarregou de ordenar as coisas de um modo tal que fortalece
essa idéia. Por um lado, sua obra, que abarca distintos gêneros. Escreveu
teatro (Mãe e filho), conto, romance (Ema, a refém, A lebre, Os fantasmas, A
guerra das academias), nouvelles (O pranto, A prova, A costureira e o vento,
Os dois palhaços), diário (Diário da hepatite) e ensaio (trabalhos sobre
Copi, Arlt e Rimbaud). Por outro, sua imagem: Aira desenhou esmeradamente sua
105
IDEM — Una novela china. Ed. eletr. Buenos Aires: Javier Vergara Editor, 1987, p. 4.
106
"O panfleto é uma das novelas curtas que César Aira escreveu entre 1989 e 1990, e que está
publicando agora. Este ano foram editadas A prova e O pranto, com o que se intensifica o
efeito de fecundidade exacerbada que a obra de Aira logra produzir. Essa abundância suscitou
tanto a admiração incondicional como a formulação de um juízo menos complacente, segundo o
qual Aira publica muito mas escreve pouco, ou, em outras palabras, escreve sempre o mesmo.
Sabe-se, todavia, como o própio Aira tematiza em seus relatos que o repetição sem
diferença. Também O panfleto é 'mais uma novela de Aira', definição que alude ambiguamente que
nela se encontrará o mesmo que em algumas das anteriores, mas também outra coisa, ou dita de
outro modo." (KOHAN, Martín — Repetición y diferencia. El Cronista Cultural, 27 out. 1992.)
107
Cf. RUSSO, Edgardo — Vientos de Aira. El Cronista Cultural, 5 ago. 1994, s.p.
40
própia estratégia de marketing (praticamente um código de honra). Editora ou
meio de comunicação algum pode tentá-lo a ponto de fazê-lo largar sua
autonomia. Ele estabelece as regras, assim como para a realidade desvairada
de sua ficção. Pode publicar seus romances pela Emecé, como é o caso de O
sonho, e as nouvelles e outros textos menos centrais
108
de sua produção em
editoras menores, dentre as quais a rosarina Beatriz Viterbo Editora, sua
favorita. Dupla vida editorial, com a qual parece sustentar uma política de
si próprio, em que importam mais os passos que a pegada.
109
Longe de um demérito, essa escritura proliferante também se constitui como
parte fundamental do procedimento: "Daquilo que se escreveu um dia terá de se
reivindicar para o seguinte, sem voltar atrás para corrigir inútil), mas
avançando, dando sentido àquilo que não possuía força para avançar [...] As
histórias, por fim, vão empurrando adiante a consumação da arte que as
justifica".
110
Tal procedimento, aqui, entenderíamos como aquilo que sustém o
sujeito (o sujeito é uma condição, aquele atravessado por um acontecimento e
não uma entidade duradoura) por meio de uma fidelidade ao incerto. Não
interessa a obra, não interessa a recepção, interessa permanecer escrevendo,
reposicionando as imagens, o material verbal.
111
Em O sonho uma passagem
bastante ilustrativa a respeito da repetição e do reposicionamento das séries.
Vejamos.
A história acontece em Flores, bairro onde mora o escritor e que, como
dissemos, é o ambiente de alguns de seus textos. A narrativa parte de uma banca
de jornal, cuja parede lateral se apóia num albergue de mães solteiras e que,
pela frente, do outro lado da rua, de encontro a um colégio de freiras. O
triângulo, tal como repara Silvia Hopenhayn, é perfeito: de um lado mães
solteiras expulsas da sociedade, de outro, freiras carentes de um filho e que,
a partir de um artigo de uma antiga revista, chamada Para Ti, criam uma fórmula
para procriar e salvar o mundo. Articulando esse cenário esdrúxulo está a banca
de jornais, a máquina distribuidora da realidade cotidiana, em suas mais
variadas modalidades, e onde matinalmente se encontram os filósofos mundanos
para seus debates. À maneira de um relato cinematográfico, que não impede
desdobramento algum, são muitas as conversas entre Natalio, o dono da banca,
seu filho Mario e os clientes habituais. Numa delas, portanto, surge a notícia
do roubo de um banco, estampada nas páginas de um dos jornais do dia. Um dos
caixas do estabelecimento fugira com uma enorme soma em dinheiro, abandonando
não o trabalho como também a esposa e seus três filhos. Não era um roubo
inédito, o modelo remetia ao de Togliazzi, porque não se tratava apenas de
saquear as notas do caixa, foram feitas transferências de fundos, fundos sequer
realmente existentes, porque o caixa manipulava excedentes que ele próprio
108
Registre-se que não partilhamos desse argumento esboçado pela resenhista.
109
HOPENHAYN, Silvia — Casi todo está permitido. La Nación, 13 maio 1998, s.p.
110
AIRA, César — Cumpleaños. Barcelona: Mondadori, 2001, p. 95/7.
111
Clarice Lispector anunciava essa condição em Água viva: "Sei o que estou fazendo aqui:
estou improvisando. Mas que mal tem isso? improviso como no jazz improvisam música, jazz em
fúria, improviso diante da platéia" (LISPECTOR, Clarice Água viva. 12ª ed. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1993, p. 27).
41
criava, de montantes que o banco punha para cobrir contas negativas de grandes
empresas, trapaça que assegurava ao ladrão o silêncio da instituição. Era um
dinheiro que não existia, ou melhor, que existia apenas como números numa
planilha, mas que nessa condição era perfeitamente sacável, porque o banco, em
sua própria operacionalização, cria dinheiro o tempo todo. Togliazzi fizera o
modelo dez anos antes, e por certo atingia o rol de gênio para os debatedores
do quiosque, naquela manhã. Mas e seu seguidor, este que agora repetia a
fórmula? Um gênio ainda maior, "porque não se dera sequer o trabalho de
inventar nada".
112
O detalhe não mencionado pelo jornal, porém, e que um dos
debatedores desenvolvia, era que entre o modelo e sua cópia uma série de roubos
semelhantes podia ter acontecido sem que viessem à tona, quem saberia quantos,
porque se tratava do crime perfeito, ninguém precisava saber. "Teriam
descoberto"; o que sempre dizem, para tranqüilizar suas consciências. Mas
não é necessário, para nada, muito pelo contrário...". E o narrador (trata-se
de discurso indireto livre), por fim, conclui: "Entre o modelo e a repetição,
com efeito, se dava um lapso, que de modo geral passava despercebido, durante o
qual poderiam realizar-se todas as repetições secretas".
113
Deleuze diz que a forma serial é essencialmente multisserial.
114
Se não
fosse assim, teríamos apenas a duração do homogêneo. As séries são simultâneas
sem nunca serem iguais; são contíguas,
115
daí que o contínuo se erija sobre uma
infinidade de acidentes, as próprias séries e suas especificidades, sem nunca
por eles se deter. A série, porém, não é autônoma; "já é assim em matemática,
onde uma série construída na vizinhança de um ponto não tem interesse a não ser
em função de uma outra série, construída em torno de outro ponto e que converge
ou diverge da primeira".
116
Esse movimento pode se desenvolver inclusive por meio de uma falta.
Deleuze pensa a respeito da leitura de Jacques Lacan sobre o conto de Edgar
Allan Poe, "A carta roubada", que apontaria duas séries: a primeira seria "o
rei que não a carta comprometedora recebida por sua mulher; a rainha,
aliviada por ter melhor escondido a carta justamente por ter deixado a carta em
evidência; o ministro que tudo e se apodera da carta"; a segunda, "a polícia
que não acha nada em casa do ministro; o ministro que teve a idéia de deixá-la
em evidência para melhor escondê-la; Dupin que tudo e retoma a carta". Ambas
as séries nada seriam sem a falta, o ponto articulador de ambas. "Da instância
paradoxal é preciso dizer que o esnunca onde a procuramos e, inversamente,
que nunca a encontramos onde está. Ela falta em seu lugar, diz Lacan".
117
112
AIRA, César — El sueño. Buenos Aires: Emecé, 1998, p. 27.
113
IDEM — Ibidem, p. 31.
114
Cf. DELEUZE, Gilles Sobre a colocação em séries. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto
Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 39.
115
Cf. IDEM; GUATTARI, Félix Kafka. Por uma literatura menor. Trad. Júlio Castañon
Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1977, p. 108.
116
Cf. IDEM — Sobre a colocação em séries. Op. cit., p. 39.
117
IDEM — Ibidem, p. 41/3.
42
nisso algo que remete ao "monólogo assistido" de Haicais, texto que
César Aira entrega à editora Mate, dirigida por Arturo Carrera, em 1999. Vejam-
se algumas de suas variações, onde o dinheiro é o dispositivo que rege as
séries, justamente em sua falta. Aqui, "a grana falta em seu lugar":
I: Devolva a grana que me deve. [...]
II: O tempo passa o tempo todo; até quando não passa nunca, está
passando, pois faz isso. A um dia segue outro, exatamente igual, ainda que
um pouco mais curto. Nada muda. Como pode querer que me esqueça do que me
deve? [...]
III: não me importa tornar-me um fardo, nem me repetir; se
necessário, vou repetir palavra por palavra, pronunciando-as com a mesma
entonação, na mesma ordem e acompanhadas dos mesmos gestos. Lamentavelmente,
não é preciso. Pra você é novo, a puta que te pariu. Não me dá sequer o gosto
de me repetir, porque não me escutou antes. Vejamos se não me ouve mesmo:
Devolva a grana que me deve, bastardo filho de mil putas! [...]
IV: Contigo, repetir é a única forma de conversar. Vejamos se por fim
me entende: pague a grana que me deve. Pague e me calo pra sempre. Também
estou cansado de me ouvir. [...]
V: Vou te matar, miserável. Canalha do caralho, se não me pagar, te
mato. [...]
VI: Tudo isso é uma distração, e não tenho mais remédio senão pôr os
pontos nos is: o que me interessa é outra coisa, i.e., que reconheça sua
dívida e decida honrá-la. [...]
VII: Ainda não me pagou. Não pode ser, mas é: continua fugindo. Quero
minha grana, preciso com urgência, v. sabe do que se trata. [...] Não vou a
parte alguma, você também não. Imagine que todos se foram, como nessas
cidades abandonadas que os exploradores encontram tomadas pela selva:
estaremos nós dois, como sempre, eu pedindo minha grana, você se fazendo de
surdo, assando e nos cagando de frio, alternadamente.
118
As ries, portanto, são as repetições secretas, ou todas as repetições,
cuja condição de segredo sustenta a aparência do novo enquanto particularidade
absoluta. Essa galvanização de originalidade é o que permite ao contínuo seguir
adiante, sem se deter sobre o próprio processo,
119
sem querer saber de si.
Porque, para isso acontecer, seria necessária uma torção, um que abalaria
toda a contigüidade, e o contínuo seria, justamente, a soma infinita das
contigüidades, daquilo que estando em paralelo, que repete, remete por fim
adiante, como diferença. Nesse caminho, parar o contínuo para corrigi-lo seria
ocasionar a própria catástrofe.
Porém, o que repete é o procedimento, diretamente ligado à idéia de
recombinação. E só. (O procedimento repete, mas não pode ser isolado, extraído,
separado, dada a singularidade que lhe é constitutiva.) O enunciado reaparece,
mas sozinho nada diz; a enunciação o recombina, dilui, porém não garante o
significado (significante e significado são séries distintas); o que estava
antes ou durante não necessariamente estará depois; depende de um novo
agenciamento. Poderá inclusive estar, mas apenas como uma dentre as infinitas
possibilidades do acaso.
118
AIRA, César — Haikus. Buenos Aires: Mate, 1999 (datado 11 nov. 1998), p. 7, 11, 16, 22, 31,
36 e 41.
119
Para este argumento, cf. IDEM — Arlt. Arquivo, p. 205.
43
Em fevereiro de 2003, César Aira publica uma crônica, "A hora azul", no
suplemento Babelia, do jornal El País, em que narra um momento final do dia,
quando em companhia de uma amiga, E., também tradutora, aguarda "l'heure bleu",
a fim de confrontar se suas respectivas traduções da hora azul francesa
coincidem com os céus de Buenos Aires.
120
Enquanto esperam, o narrador ouve E.
citar uma frase de Kafka, "Um livro deveria ser como o machado que rompe o mar
de gelo que cobre nosso coração". Pode ser uma frase patética, dessas com que
se faz literatura, adverte, porém a partir dela a crônica desdobrará o
programa da literatura por vir: de como se continuar a escrever, quando a
confecção de um escritor exige um longo período de preparo, nunca completo, é
certo, à custa de um asceticismo crescente, que não é outra coisa senão o
entendimento. "É esse o gelo que se deve quebrar com o machado, que o
machado, no entanto, também é de gelo."
121
Pouco tempo depois, em maio do mesmo ano, César Aira termina As noites de
Flores. Quase ao final do relato, a hora azul retorna, sem ganhar esse nome,
apenas como efeito. É a hora do whisky, da tertúlia, do fim de uma jornada. Na
cena, ganharão espaço Zenón Mamaní Mamaní, procurador do Ministério Público;
sua mulher, ex-escultora, e Ricardo Mamaní González, escritor boliviano, em
visita. Vale a pena ler toda a conversação, pois nela também se desenvolve o
problema lançado na crônica escrita para Babelia.
Ricardo pretendia ser rígido quanto à hora em que se servia de whisky:
ao pôr-do-sol. Mas era uma questão de perspectiva. Comentavam isso rindo,
chamavam-no para que descesse do quarto onde passava as tardes lendo as obras
de Pedro Perdón: "Chegou a hora!" "Estamos te esperando!" Ele aparecia na
janela: "O sol se pôs?" "Aqui embaixo, sim!" A piada, que oferecia matéria
para variações inesgotáveis, era de que o Bajo necessariamente fazia com que
o horizonte subisse e que o sol se pusesse antes. "Não deveria ser o
contrário?", dizia Ricardo simulando uma enorme dúvida.
O céu foi tomado de um azul profundo depois que as últimas nuvenzinhas
cor-de-rosa passaram rumo ao norte. Eles prolongaram a conversa, os pássaros
preenchiam os silêncios.
122
Zenón, bastante cansado pela investigação em torno do seqüestro do motoboy
Jonathan, desfrutava daquele momento em que podia enfim relaxar um pouco;
Ricardo estava tranqüilo, passava bem e acenava com a possibilidade de uma nova
visita à família no ano seguinte; a Sra. Mamaní reiterava a importância da
presença do convidado naquele momento difícil: não fosse isso, o crime estaria
ocupando o ambiente da casa, porque Zenón "não tinha aprendido a colocar a vida
profissional e a vida particular em seus devidos lugares e deixava que o
trabalho contaminasse a vida doméstica".
Na realidade, Zenón evitava falar de suas responsabilidades em casa e
mais ainda diante do convidado, com quem preferia explorar os temas
120
Cf. IDEM — La hora azul. Babelia, suplemento de El País, 8 fev. 2003. (Arquivo, p. 293.)
121
IDEM — Ibidem.
122
Cf. nota seguinte.
44
artísticos que interessavam à sua mulher (ela era escultora). Pedante e
seguro de si mesmo, Ricardo discursava.
A arte está sempre buscando o novo e o novo acabou se identificando
com o diferente. E a realidade se define pelo diferente. Mas o crescimento
vegetativo da população e o aumento relativo de artistas na sociedade
contemporânea multiplicou a diferenciação artística a tal ponto, que hoje
quase poderíamos nos assegurar de que qualquer configuração da realidade
tinha sido antecipada pela arte.
Todas? Inclusive esse momento delicioso de paz doméstica que estamos
vivenciando? disse Zenón. Esse momento, nós quatro reunidos, o seu
whisky, o meu suco de tomate, o jardim, o papo?
Certamente! Não literalmente, é claro, mas em seus componentes
cruciais, em seu mecanismo, em seu significado, este momento deve estar
registrado em romances, em quadros, em músicas...
— Isso está um pouco vago.
Mas poderia ter uma aplicação mais precisa e até prática, em
situações reais mais complicadas ou mais intrigantes... Por exemplo, um crime
a solucionar. Como aconteceu? Quem o cometeu? está solucionado em alguma
obra de arte, pode apostar! Apenas é necessário saber ver... Mas é tão
difícil ver a arte...
Um gesto de interesse, de interesse quase doloroso, apareceu no rosto
de Zenón. Sua mulher, adivinhando para onde iam os pensamentos dele,
apressou-se em desviar o rumo do assunto.
Isso é uma questão de combinatória, Ricardo. É como dizer que um
macaco batucando ao acaso uma máquina de escrever durante toda a eternidade,
terminará escrevendo toda a literatura...
Exatamente! E isso é o que se fez realidade, no atual estado da
arte.
— Você está me dando razão, então. Faz-se arte demais.
Com isso, a senhora Mamaní se referia a uma controvérsia cordial que
mantinha com Ricardo. Ele era um admirador da arte contemporânea e tinha
reunido uma coleção importante na Bolívia, enquanto ela a considerava como um
grande embuste em sua totalidade. Cavalheiresco, Ricardo usava argumentos
tangenciais para defender os artistas jovens que ela considerava verdadeiros
farsantes. Ele dizia, por exemplo, que, mesmo que a qualidade intrínseca das
obras pudesse deixar a desejar, eles criavam, em sua intenção geral, um
estímulo para a vida e para a criação, e era isso que ele apreciava... Na
verdade, estava mentindo. Ele gostava da arte contemporânea porque gostava, e
tinha descoberto que aquilo de que ele mais gostava era o de que ela menos
gostava. O pomo da discórdia podia estar no fato de que ela era artista e via
a questão sob uma perspectiva técnica. Ela era escultora, filha de um famoso
escultor filipino, tinha aprendido o ofício pelo caminho difícil e julgava
tudo em termos da ética do trabalho. Quis o acaso que um dos artistas
favoritos de Ricardo fosse um suíço, Andreas Dobler, cuja obra consistia em
quadros "conceituais" (isto é, mal pintados ou pintados por seus assistentes)
que representavam esculturas imaginárias. Isso parecia à senhora Mamaní o
cúmulo do embuste. Ela ficou sabendo da existência de Andreas Dobler por
acaso, e tinha ficado escandalizada. Quando soube que Ricardo tinha adquirido
várias obras de Dobler por dezenas de milhares de dólares cada uma, ela pôs a
boca no trombone. Não via injustiça maior no mundo do que esse falsificador
da arte (segundo ela) ganhar com um de seus artefatos, confeccionado em
quinze minutos, mais que seu marido em um ano de muito trabalho, e ela sabia
melhor do que ninguém o quanto ele trabalhava.
Sempre seguindo sua tática de evitar o confronto, Ricardo optou por
dar-lhe razão mais uma vez:
Mas eu nunca neguei isso! Existem artistas demais. A lógica da
diferença assim o exige. Trata-se de fazer algo diferente, e tudo o que não é
igual é diferente...
— Que decadência.
— "Que floresçam mil flores."
— Prefiro o meu jardim.
45
Outra causa absolutamente determinante são as subvenções para as
artes. No capitalismo pós-industrial, a necessidade de empregar o dinheiro
excedente colocou o pagamento antes do trabalho. E assim, vemos crescer a
quantidade de artistas que são subvencionados e premiados pela sua arte antes
mesmo de produzirem as obras. Quando chega o momento de fazê-las, fazem
qualquer coisa. — Ele só não disse: "E é isso que me agrada."
E o que estamos esperando para nos tornarmos todos artistas? disse
Zenón, rindo-se.
[...]
E então, se fez noite. O céu sobre o jardim foi se enchendo de
estrelas, a princípio elas também tímidas e vacilantes, depois firmando-se
sobre um azul que se aveludava. Até Zenón, que era tão rígido com os horários
devido ao seu medo da hipoglicemia, esqueceu-se do jantar. As
correspondências arte-realidade o tinham absorvido. E já havia deixado de lhe
importar que a arte fosse inexistente e a realidade casual. A convergência
criava uma forma distinta de realidade na qual tudo era contíguo.
123
A resposta de As noites de flores à questão de "A hora azul", "como
continuar a escrever", poderia ser esta: escrevendo. Continuar a pensar sem
ceder ao desejo de querer assistir ao próprio processo. Permanecer fiel a essa
atividade deslocada dos ciclos produtivos, sem pensar demais, ou, por outra,
sem pensar sobre si, lançando-se adiante, porque este "si" não está completo,
nem tem sua resposta nele mesmo: não há nada ali além de vazio. Paul Valéry
dizia que compreendemos os outros ou a nós mesmos graças à velocidade com
que passamos pelos enunciados. Cada palavra, cada imagem que nos remete de um
pensamento a outro, em recombinação infinita, rumo ao que ainda não se fez,
parece, a Valéry, "uma destas pranchas leves que jogamos sobre uma vala ou
sobre uma fenda na montanha e que suportam a passagem de um homem em movimento
rápido. Mas que ele passe sem pesar, que passe sem se deter e,
principalmente, que não se divirta dançando sobre a prancha fina para testar a
resistência!... A ponte frágil imediatamente oscila ou rompe-se, e tudo se vai
nas profundezas".
124
Daí que a meta da escritura seja talvez, caso exista, uma espécie de
decantação ou diluição. Indagar sem exigir resposta, problematizar sem
responder, ou responder sem dar à verdade encontrada a potência total do
esclarecimento, do fim. Porque o que de mais honesto uma verdade pode fornecer
é sua provisoriedade. Daí a atual condição da arte, seu caráter supérfluo e
dispensável (o que uma obra realiza certamente possui um antecedente que o faz
melhor), e, ao mesmo tempo, sua condição indispensável e irrepetível, sua
diferença, que impele o contínuo adiante e vaticina a certeza das
continuidades. Pop filosofia.
125
Assim, sem a questão implícita que disparara a crônica de Babelia,
"como continuar a escrever", sem os paradoxos em torno à condição contemporânea
123
IDEM As noites de Flores. Trad. Paulo Andrade Lemos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2006, p. 168-74/80-1.
124
VALÉRY, Paul Poesia e pensamento abstrato. Variedades. Org. e introd. João Alexandre
Barbosa. Trad. Maiza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 1991, p. 203.
125
DELEUZE, Gilles — Dialogues. Paris: Flammarion, 1977, p. 10.
46
da arte que envolvem parte das noites do bairro Bajo Flores, a hora azul
retorna, anos mais tarde, em março de 2005, apenas como um fundo, um cenário da
jornada do pequeno monge budista.
Quando um breve som agudo indicou que os mecanismos da câmera
completavam o giro, no céu havia chegado "a hora azul". Uma intensa
luminosidade obscura preenchia o ar. Os pássaros tinham se calado, os monges
tinham ido dormir. Esse momento, que se prolongava, era dia e noite ao mesmo
tempo. Uma noite clara, um dia escuro.
126
De um mesmo ponto dão-se singularidades que de algum modo convergem no
alguém que se faz sujeito por essa escritura proliferante, que em distintos
momentos retorna a um mesmo enunciado, mas que é o mesmo por retroversão.
Trata-se de uma fidelidade ao incerto da escritura, e não à substância da
literatura (que nada seria além de sua modulação institucionalizada, desdobrada
pela noção de qualidade).
127
Eis, então, o primeiro abandono: escrever sem
parar, fugir para frente. O mesmo texto, sempre, com pontos finais provisórios;
"Continuar!", a máxima da ética, segundo Badiou,
128
e a base do contínuo, para
César Aira.
O trabalho do escritor, como todo trabalho, não pode adotar outra modalidade
senão a do infinito. Nunca se deixará de escrever; não importa a brevidade da
vida, pois não se trata exatamente do tempo tal como podemos pensá-lo, mas de
um tempo que se torna infinito voltando sobre si mesmo, em forma de espaço.
Esse espaço é o texto.
129
126
AIRA, César — El pequeño monje budista. Buenos Aires: Mansalva, 2005, p. 75.
127
Deleuze: "Quando dizemos que o eterno retorno não é o retorno do Mesmo, do Semelhante ou do
Igual, queremos dizer que ele não pressupõe qualquer identidade. Ao contrário, ele se diz de
um mundo sem identidade, sem semelhança, sem igualdade. Ele se diz de um mundo cujo próprio
fundo é a diferença e em que tudo repousa sobre disparidades, diferenças de diferenças que se
repercutem indefinidamente (o mundo da intensidade). Ele mesmo, o eterno retorno, é o
idêntico, o semelhante e o igual. Mas, justamente, ele nada pressupõe daquilo que ele é,
naquilo de que ele se diz. Ele se diz daquilo que não tem identidade, semelhança e igualdade.
Ele é o idêntico que se diz do diferente, a semelhança que se diz do puro díspar, o igual que
se diz do desigual, a proximidade que se diz de todas as distâncias. É preciso que as
coisas sejam esquartejadas na diferença e tenham sua identidade dissolvida para que elas
venham a ser a presa do eterno retorno e da identidade no eterno retorno. [...]
"É porque nada é igual, é porque tudo se banha em sua diferença, em sua dessemelhança e
em sua desigualdade, mesmo consigo, que tudo retorna. Ou melhor, tudo não retorna. O que não
retorna é o que nega o eterno retorno, que não suporta a prova. O que não retorna é a
qualidade, é o extenso — porque a diferença, como condição do eterno retorno, aí se anula. É o
negativo porque a diferença se reverte para anular-se. É o idêntico, o semelhante e o
igual porque eles constituem as formas da indiferença." (DELEUZE, Gilles A repetição no
eterno retorno não é qualitativa nem extensiva, mas intensiva. Diferença e repetição. Ed.
eletr. Trad. Luiz Orlandi; Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988 p. 228.)
128
Cf. BADIOU, Alain A experiência da "consistência" ética. Ética. Um ensaio sobre a
consciência do Mal. Op. cit., p. 64.
129
AIRA, César — Copi. Op. cit., p. 36.
47
1.6 SINGULARIDADE, ANALOGIA E TRADUÇÃO
Em "A arte como procedimento", Vítor Chklovski fala de uma história da
mudança da imagem, argumentando, por meio do trabalho de Potebnia, que todo o
trabalho artístico "não é mais que a acumulação e revelação de novos
procedimentos para dispor e elaborar o material verbal, e este consiste antes
na disposição das imagens que na sua criação".
130
Na automatização da linguagem,
sua dimensão encrática, i.e., quando nos movemos pela língua sob a tutela do
significado sem o questionar, apenas reconhecendo-o, a vida desaparece, diz
Chklovski, "é como se a vida não tivesse sido", citando o diário de Tolstói.
131
Para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra
é pedra, diz o teórico, existe então o que se chama arte.
O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como
reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos
objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a
dificuldade e a duração da percepção. O ato de percepção em arte é um fim em
si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do
objeto, o que é já "passado" não importa para a arte.
132
Naquele momento, o primeiro quarteto do século XX, isso era marcado por
uma oposição entre linguagem prosaica e linguagem poética, buscando-se aquilo
que hoje chamamos literariedade. A partir da disposição elaborada (entenda-se
aqui a sua "dificuldade") da linguagem literária, extraía-se o "procedimento de
singularização", o modo como determinado autor mostrava o objeto pela primeira
e única vez, servindo-se, na descrição, de palavras alheias à significação reta
do vocábulo. Mostrava-se o objeto, em suma, não para que o leitor o
reconhecesse, mas de um modo único, singular. Era mais fácil identificar esse
procedimento na poesia, dado o aspecto formal da linguagem, que na prosa,
133
principalmente caso se tratasse, grosso modo, de um romance realista, tal como
certo viés da teoria entenderia o romance desejado por Lukács,
134
ou, ainda
130
CHKLOVSKI, V. A arte como procedimento. In EIKHENBAUM, B. et al. Teoria da literatura:
formalistas russos. ed. Org. Dionísio de Oliveira Toledo. Trad. Ana Mariza Ribeiro
Filipouski et al. Porto Alegre: Globo, 1976, p. 41.
131
IDEM — Ibidem, p. 45.
132
IDEM — Ibidem, itálico no original.
133
"A prosa permanece um discurso ordinário, econômico, fácil, correto (Dea Prosae é a deusa
do parto fácil, correto, de uma boa posição da criança)", anota Chklovski (ibidem, p. 55).
134
O que não deixa de ser discutível, porque mesmo Lukács e o romance realista não
correspondem a significantes fechados, cuja leitura é reta e certeira. Hernán Sassi,
comentando um ensaio de Sandra Contreras (En torno al realismo. Pensamiento de los Confines n.
17, dez. 2005), observa o modo como a comentadora analisa outras formas possíveis de realismo
em algumas das novelinhas mais recentes de Aira. "Contreras descobre um Aira de corte
balzaquiano e lukacsiano, em que seu realismo resulta expressamente de 'uma conexão singular
com a realidade', fruto de uma 'incorporação de fragmentos de realidade' que sacrifica o
verossímil e que alcança um maior realismo com menor verossimilhança. O central no realismo de
Aira não estará no verossímil, nem na tipicidade, nem numa posição político-estética do
escritor, mas em outro lado. O que definirá o escritor como realista será essa 'sede de
verdade, de realidade' do escritor (palavras de Lukács retomadas por Aira), antes da obra, a
qual, caso seja de um escritor realista, indefectivelmente se agarra aos grandes problemas de
sua época. De modo que o que determina o realismo é o fanatismo de realidade do escritor. Com
48
melhor, se estivéssemos lidando com um produto "quimicamente limpo de
literatura", o best-seller.
135
Em suma, a questão aqui seria de que modo pensar a singularização em
César Aira, que sabemos que se algo simples em sua escritura, trata-se
exatamente daquilo que poderíamos chamar aspecto formal. Nossa hipótese seria,
então, a de que essa singularização se não pelo enunciado, mas pela
recombinação das imagens produzida na enunciação. Chamaremos a esse processo,
simplesmente, tradução.
Sobre a tradução, Benedetto Croce falava de uma certa impossibilidade,
essencialmente com relação à poesia, a qual remeteria sempre para um "mais ou
menos do sentido".
136
Borges reconhecia duas maneiras de se traduzir: a
romântica, que praticaria a literariedade, e a clássica, cujo procedimento
seria a perífrase.
137
Giovanni Gentile também dizia que a tradução não era
possível, nem nunca se traduz, porque a língua é única, e todas as línguas uma
só. Por outro lado, seu argumento dizia também que se está sempre a traduzir,
porque a língua nunca é a mesma, seja com relação a uma língua estrangeira,
seja com relação à própria, porque traduzir é a condição de qualquer ato de
pensamento ou de aprendizagem.
138
Ambos os posicionamentos remontam a uma noção
romântica, humboldtiana, da impossibilidade, segundo a qual diferentes línguas
remetem a diferentes percepções da realidade, de modo que não como alterar a
expressão lingüística sem junto alterar o conteúdo.
139
Giulio Lepschy, por sua
vez, diz que na contemporaneidade os problemas são os mesmos, porém agora
essa marca, A vila e As noites de Flores serão, segundo Contreras, textos 'tramados a partir
de dois núcleos duros da realidade argentina mais imediata, a favela e a crise econômica, em
sua seqüência de delinqüência, seqüestros e assassinatos [que] conduzem à catástrofe própria
do sensacionalismo.
"Para situar melhor o realismo de Aira, Contreras demonstra que tanto a versão de
Contorno como a de Punto de Vista ancoram o realismo de G. Lukács em sua vontade cognoscitiva
e interpretativa da realidade nacional, social e política. Resgatando um Lukács oposto a esse
clichê, a essa visão que 'tende a dissociar realismo e melodrama, realismo e extravagância,
associando realismo e verossimilhança ou, mais exatamente, realismo e vontade congnoscitiva,
crítica, logo a partir do presente', demonstra como o retorno ao realismo de Aira cimenta-se
melhor sobre um cruzamento desses campos antes antagônicos" (SASSI, Hernán La última vuelta
de Bizzio: la novela de fantasmas realista. El Interpretador, mar. 2005, s.p.).
135
"A pedra-de-toque na diferença entre best-seller e literatura é a sinceridade. De um lado
estão os usos diretos e verazes da palavra, o transcurso utilitário do verbo na sociedade:
aqui confluem os 'Bons dias', 'Amo você', 'Passo te pegar às oito' e o best-seller. De outro,
esse peculiar questionamento da significação a que chamamos Literatura. A incompatibilidade é
absoluta. A literatura é falaz em dois planos: utiliza-se de uma palavra cujo valor de troca
deixa de ser seu sentido direto, pondo em cena o teatro desse uso perverso. O best-seller, por
sua vez, é simetricamente veraz em dois planos: diz o que quer dizer, e oferece isso como
aquilo que é" (AIRA, César — Best-seller e literatura. Cf. Arquivo, p. 176).
136
Cf. CROCE, Benedetto La poesia. Introduzione alla critica e storia della poesia e della
literatura. Laterza: Bari, 1963.
137
Cf. BORGES, Jorge Luis — Las dos maneras de traducir. La Prensa, Buenos Aires, 1 ago. 1926.
138
Cf. GENTILE, Giovanni Il torto e il diritto delle traduzioni. Frammenti di estetica e
letteratura. Carabba: Lanciano, 1921.
139
"Traduções são, mais do que obras duradouras, trabalhos que, a partir de um parâmetro
estável, põem à prova o estado de uma língua em uma determinada época, o definem e devem
influir sobre ele, tendo sempre de ser novamente refeitas. Além disso, aquela parte da nação
que não pode ler os antigos por conta própria, irá conhecê-los melhor por meio de várias
traduções do que pelo recurso a uma única. São, pois, outras tantas imagens do mesmo espírito,
cada qual reproduzindo aquilo que foi capaz de conceber e representar: mas o verdadeiro
espírito repousa somente no texto original." (HUMBOLDT, Wilhelm von Introdução a Agamênnon.
Trad. Susana Kampff Lages. In HEIDERMANN, Werner (org.) Clássicos da teoria da tradução.
Volume I. Florianópolis: NUT (Núcleo de Tradução)/UFSC, 2001, p. 91-103, itálico nosso.)
49
direcionados para o conceito de fidelidade, que implica no tradutor ora como
substituto do autor, ora como intérprete.
140
Mais recentemente, Patricia
Willson,
141
em exame à "Lei de Equivalência" formulada na década de 1960, e
valendo-se de termos tais como importação/exportação/contrabando, nota que a
partir dessa mesma época o discurso teórico sobre a tradução teve de deixar de
privilegiar perguntas essencialistas, do tipo "como se define uma tradução?",
"de que modo se deve traduzir?", "o que é uma boa tradução?", ou da
traduzibilidade em si, que as respostas, fortemente marcadas por concepções
genéricas de linguagem, advêm de distintas versões daquilo que deve permanecer
sem variantes entre o texto de partida e o texto de chegada, ou seja, de
distintas versões da própria noção de equivalência.
A questão, no início da década de 1980, também ocupa um dos números da
revista Xul, no qual, além de César Aira, colaboram Raúl Gustavo Aguirre, Ramón
Alcalde, Rodolfo Modern, Raúl Vera Ocampo, críticos pertencentes a uma geração
anterior.
142
Para Aira, a posição dos melhores artistas, na contemporaneidade, é
adversa à tradução, porque os estímulos plásticos da realidade não são
convertidos a uma linguagem unificada; ao contrário, permanecem em estado
bruto. Não representação; basta pensar em Duchamp, "o carrasco da tradução".
A tradução só ganha interesse, diz Aira, quando se dá uma mudança de
tonalidade; do contrário não passa do mais néscio dos passatempos.
143
Se traduzir é a condição de qualquer ato de pensamento ou de
aprendizagem, nessa operação "se fundamenta a soberania estatal. O sentido,
cujo respaldo e garantia é a tradução, nos faz dóceis à lei. Desde que a ordem
seja compreendida, será necessário acatá-la. Daí o valor liberador da
literatura, que opera contra o sentido".
144
Para Aira, a tradução é um mito. Se
ela existe, trata-se de mais um dispositivo propulsor de singularidades; daí
então que o seu ritual seja a literatura, e não a tradução propriamente dita.
145
A tradução concerne, sim, a todo e qualquer ato de pensamento e aprendizagem; a
ressalva, no entanto, é de que nada garante que "do outro lado" ainda
encontraremos vestígios facilmente identificáveis do texto ou imagem
antecessores. Se traduzir indica mudar de um código para outro, como articula
Vilém Flusser, significa também saltar de um universo a outro.
146
Vejamos como essa quina funciona entre duas imagens: a passagem das
instalações de Víctor Grippo, Analogias, a um texto de César Aira, Mil gotas.
140
Cf. LEPSCHY, Giulio Tradução. Enciclopédia Einaudi v. 2: Linguagem-enunciação. Lisboa:
Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 2000, p. 291.
141
Cf. WILLSON, Patricia La constelación del sur. Traductores y traducciones en la
literatura argentina del siglo XX. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2004.
142
Cf. VVAA — La traducción poética. Xul — Revista de Poesía n. 4, Buenos Aires, ago. 1982, p.
6-10.
143
Cf. AIRA, César — A tradução. Cf. Arquivo, p. 173.
144
IDEM — Ibidem.
145
Cf. IDEM — Ibidem.
146
Cf. FLUSSER, Vilém Glossário para uma futura filosofia da fotografia. A filosofia da
caixa-preta. Trad. do autor. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002, p. 79.
50
A primeira imagem aparece em 1977, na XIV Bienal Internacional de São
Paulo. Víctor Grippo (Argentina, 1936-2002), em sua primeira mostra coletiva,
expõe duas de suas instalações. Numa delas, Energia vegetal, Grippo nos mostra,
sobre uma mesa, quatro batatas com eletrodos, todas ligadas a um voltímetro.
Consta ainda um texto, porém ilegível porque a cópia em imagem digital .jpg,
não permite a leitura.
147
(A perda é um aspecto a ser considerado. Na verdade,
apenas a ser constatado.)
No início da década de 70, Grippo, nascido em Junín, graduado em Desenho
pela Escola Superior de Belas-Artes, em La Plata, também desenvolvendo estudos
superiores na Facultade de Química da mesma instituição, passa a elaborar a série
Analogias, a que Energia vegetal certamente se vincula. A série reincide,
basicamente, nos mesmos materiais. Na primeira versão de Analogia I, datada de
1971, têm-se trinta batatas numa estante com divisórias, novamente conectadas a um
voltímetro. na versão de 1976 as batatas se multiplicam, agora sobre uma mesa
ampla, junto de alguns frascos químicos, dentro alguns quidos. Boa parte das
batatas ainda não é madura, algumas, aliás, estão verdes. Outras, porém, se
mostram num processo mais avançado: deixam ver os brotos, tão habituais àquelas
colhidas algum tempo. Uma delas, por fim, mostra sinais de deterioro.
Analogia IV (1972) mostra, por sua vez, a mesa posta, a toalha branca, um prato de
porcelana com três batatas, talheres. No lado oposto, a mesa em negativo, a toalha
escura, os objetos em acrílico, ou material de efeito semelhante.
148
Víctor Grippo — Analogia I, 1971. Víctor Grippo — Analogia IV, 1972.
147
Cf. GRIPPO, Víctor Energia vegetal. Disponível em: http://www.educared.org.ar/tamtam/
images/grippo.jpg. Acesso: 13 nov. 2006.
148
Para visualizar as instalações de Víctor Grippo, cf. o catálogo editado por Jorge Glusberg,
editado pela AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte), seção Argentina, publicado
no início da década de 80. também o catálogo da XIV Bienal Internacional de São Paulo, de
1977, e ainda o número 3 da revista Milpalabras (Buenos Aires, outono 2002), todo ilustrado
com trabalhos seus.
51
Víctor Grippo — Energia, 1976. Víctor Grippo — Energia, 1976.
A segunda imagem data de 2003. É projetada desde "No hay cuchillo sin
rosas", cartonagem e galeria de arte, sede da editora Eloisa Cartonera, em
Buenos Aires, idealizada por Fernanda Laguna, Javier Barilaro e Washington
Cucurto, que edita relatos curtos, de autores novos ou não. As edições são
artesanais, miolo em xerox e capas de papelão recolhido das ruas da capital,
pintadas a guache pelos próprios catadores. De dentro de um dos volumes da
coleção, Mil gotas, de César Aira, brota a imagem.
Mil gotas relata o segundo sumiço da Gioconda, no museu do Louvre. O
primeiro, sublinha o narrador, fora um roubo convencional: Vicenzo Peruggia,
pintor decorador que se infiltrara como servente no museu, em 1911, consegue
carregar o quadro por baixo do avental. Na tentativa de vendê-lo a uma galeria
italiana, com a idéia de resgatar um patrimônio nacional, a polícia o
intercepta e o quadro retorna ao Louvre. O sumiço posterior, no entanto, é mais
grave, porque nenhuma justificativa plausível explica o fato. Restava agora
apenas o fundo branco da tela, e no vidro blindado sobre o quadro uma
infinidade de pequenos orifícios mil —, pelos quais, o narrador nos explica,
sem mais, as gotas vivas de tinta, entediadas e carregadas com a energia de
séculos de obra-prima, abandonam a tela e resolvem sair pelo mundo, em busca de
aventuras.
Do ato de abandono se origina uma proliferação de relatos. O todo da
Gioconda se desfaz, e cada gota, cada coisa, cada máquina recebe um nome,
produzindo mais realidades. A novelinha de Aira se ocupa, portanto, de narrar
alguns desses passeios.
Num deles, que é o que nos interessa aqui, aparece Gota San, muito rico,
com duas esposas gueixas que o entretêm com sessões dançantes de esgrima. Certo
dia, então, a família Gota faz um piquenique sob a chuva, e, depois de tomar
chá, comer camarões, admirar a paisagem, os três se distraem com um jogo
52
curioso: "uma cancha de tênis de papelão, dobrável, do tamanho de um tabuleiro
de xadrez, sobre a qual, com raquetes de ráfia, quatro rãs vestidas de branco
disputavam uma partida de duplas mistas. As rãs eram de verdade, e não estavam
nem vivas nem mortas. Eram acionadas por eletrodos, algo bastante incômodo.
Além disso, como nem o senhor Gota nem suas duas esposas conheciam as regras do
tênis, a partida era bastante caótica".
149
O retorno da imagem da instalação de Grippo no texto de Aira seria aquilo
que Deleuze chama repetição e diferença, "um mundo cujo próprio fundo é a
diferença e em que tudo repousa sobre disparidades, diferenças de diferenças
que se repercutem indefinidamente".
150
Coloquemos as imagens lado a lado.
uma cancha de tênis de papelão,
dobrável, do tamanho de um
tabuleiro de xadrez, sobre a
qual, com raquetes de ráfia,
quatro rãs vestidas de branco
disputavam uma partida de
duplas mistas. As rãs eram de
verdade, e não estavam nem
vivas nem mortas. Eram
acionadas por eletrodos, algo
bastante incômodo.
Víctor Grippo — Energia vegetal, 1977. César Aira — Mil gotas, 2003.
(Lembre-se ainda que Nem viva nem morta, nem triste nem alegre é o título de
outro trabalho de Grippo, datado de 1983.)
Florencia Battiti ressalta que em Grippo a arte não é uma atividade, mas
uma forma de vida. A seu ver, Grippo incursiona em universos tidos por
diferentes, ciência e arte, daí advindo analogias.
151
A acepção direta do termo analogia é de fato esta, a de uma relação de
semelhança entre coisas distintas. Pode-se dizer que a analogia opera como uma
assembléia, como o momento em que o díspar, ou seja, em que os elementos
heterogêneos por algum motivo se reúnem, reivindicando um território (a saber,
o momento em que a metáfora mostra o objeto pela primeira e única vez; o que
vem depois é encratismo). Daí que a presença do voltímetro, tanto em Energia
vegetal quanto em Analogia I, não seja gratuita: trata-se do instrumento que
149
AIRA, César Mil gotas. Trad. Eduard Marquardt. In RESENDE, Beatriz (org.) A literatura
latino-americana do século XXI. Op. cit., p. 19.
150
DELEUZE, Gilles A repetição no eterno retorno não é qualitativa nem extensiva, mas
intensiva. Diferença e repetição. Op. cit., p. 228.
151
BATTITI, Florencia La experiencia (estética) de observar um fenómeno vital. Canecalón
La Revista de Comunicación de Peluca Films a. I, n. 2, 2004, s.p.
53
permite medir a diferença de potencial entre dois
pontos distintos de um mesmo circuito. Na prática
da analogia, nos mostra Grippo, não interessa
tanto o resultado. Nela, o resultado (a
revelação) é mera convenção. Podemos dizer,
aliás, que o que retorna da analogia são os
materiais, o díspar, ou seja, que o que permanece
na analogia é a assemblage. Em última análise,
diríamos, à maneira do autor da segunda imagem,
que a prática da analogia não é a analogia, mas a
tradução ("Aquele que traduz abre mundos,
permeia, contamina. A tradução tem por ideal a
mescla e abertura", observa Jorge Panesi).
152
Porém, uma tradução partenogenética, assexuada,
tal como entenderia Georges Bataille:
A sexualidade implica a morte, não somente no
sentido de que os recém-chegados prolongam e
substituem os desaparecidos, mas porque ela
faz entrever a vida do ser que se reproduz. Reproduzir-se é desaparecer, e os
seres assexuados mais simples se sutilizam ao se reproduzirem. Eles não
morrem, se pela morte se entende a passagem da vida à decomposição, mas
aquele que existia, ao se reproduzir, deixa de ser aquele que era (pois se
torna duplo).
153
As batatas de Víctor Grippo e as rãs de César de Aira compõem, juntas,
uma série, caracterizada, ao mesmo tempo, por aquilo que Chklovski chamaria de
"devir do objeto", e Borges, "anacronismo deliberado".
154
São singularidades
constitutivamente impuras, sublinha Derek Attridge, sempre abertas à
contaminação, ao amálgama, ao acidente, à reinterpretação e à
recontextualização;
155
são próteses iminentemente imitáveis, "nem vivas nem
mortas", cujo real, por fim, permanece em estado bruto, ou à meia tradução,
como diria Aira. A analogia é possível, sim, sem que no entanto se estabeleça
um centro harmônico entre as singularidades.
1.7 INDIVIDUALIDADE E SINGULARIDADE
Se a analogia opera uma relação de semelhança entre coisas distintas (a
tradução de Energia vegetal, de Víctor Grippo, em Mil gotas, de Aira), tem-se
152
PANESI, Jorge La traducción en Argentina. Críticas. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma,
1998, p. 78.
153
BATAILLE, Georges O erotismo é a aprovação da vida até na morte. A literatura e o mal.
Op. cit., p. 12.
154
Cf. BORGES, Jorge Luis Pierre Menard, autor do Quixote. Ficções. Trad. Carlos Nejar.
Porto Alegre: Globo, 1972, p. 58.
155
Cf. ATTRIDGE, Derek The Singularity of Literature. London; New York: Routledge, 2004, p.
63.
Víctor Grippo — Ni viva ni muerta,
ni triste ni alegre, 1983.
54
um movimento, que poderíamos chamar movimento assemblage: quando elementos
díspares, heterogêneos, são momentaneamente reunidos para armar um organismo
(uma tela, um texto, um território), um corpo em assembléia. A História diz que
o termo assemblage é repassado às artes na década de 1950, referenciando
trabalhos que vão além das colagens, praticando uma espécie de estética da
acumulação: tudo pode ser incorporado. O volume se por justaposição, porém
guardando a possibilidade de se reconhecer cada um dos elementos em sua
individualidade.
Tais elementos poderiam ser, a princípio, individuais e singulares. Em
estado de assemblage, os elementos estão providos de sua especificidade, que se
caracteriza tão-somente pelo contraste: o específico só é específico em
contraste a. Desse movimento resulta sua individualidade enquanto elementos de
um mesmo sistema: o mundo; mas também por esse movimento se chega à cisão entre
individualidade e singularidade, duas instâncias sem qualquer ponto de contato.
A rigor diríamos então que a singularidade estaria no resultado, na
reunião única e irrepetível de materiais distintos, providos de sua
individualidade, e cujo conjunto, ao mesmo tempo em que deixa entrever a origem
dos elementos, vislumbra uma espécie de indiferença com relação às suas
propriedades.
156
A singularidade seria aqui apontada pela História, apta para
medir a qualidade de acontecimento de um determinado objeto para seu respectivo
campo de atuação. Esse gesto, entretanto, também devolve o acontecimento à
ordem da situação, ou seja, ao sistema do mundo que além dos elementos, com
suas respectivas individualidades, agora possui um objeto novo, distinto e, p.
ex., elaborado via assemblage.
Mas não. Seria apressado localizar a singularidade pelo resultado; ela se
refere ao processo, do que o procedimento é parte. Reside no processo porque
consiste na instância cuja repetição não é possível, sob hipótese alguma: é
aquilo do que advém uma experiência. O não-específico.
157
Mesmo estando aberta à
contaminação, à singularidade o é possível estabelecer parâmetros de
comparação, pois ela cria seu próprio meio de existência e expressão sem que
para isso necessite se mostrar através de um objeto individual. o resultado
não contém nada além de individualidade, está no sistema do mundo (no da
literatura, p. ex.), tornou-se mais uma coisa, um dispositivo, um gadget. O
singular, enquanto "instância" (se por instância se tem algo palpável ou
visível, então não existe a instância do singular), não possui fim determinado,
e se poderia pensá-lo como o mito pessoal de um escritor, sua
incompreensibilidade,
158
mas não seu estilo. O estilo nos remeteria novamente ao
156
Cf. AGAMBEN, Giorgio — The Comming Community. Trans. Michael Hardt. Minneapolis: University
of Minnesota Press, 1993, p. 19.
157
Cf. HALLWARD, Peter The Limits of Individuation or How to Distinguish Deleuze and
Foucault. Angelaki Journal of Theoretical Humanities v. 5, n. 2. London: Routlege, aug.
2000, p. 93-111.
158
"A literatura é algo incompreensível. Isso é absoluto. Mas não se trata de um
incompreensível hermético, esotérico, ou, em geral, 'fino'. Incompreensível deve ser o
55
individual, ao sistema particular que se define como particularidade (como
especificidade) em função de um sistema mais amplo, geral, pois constitui o
elemento passível de ser forjado. (Por outro viés, diríamos que somente pelo
pastiche que se obtém o estilo.) O singular, em última análise, não reconhece
limite; sendo processo, não há Outro para ele.
1.8 ASSEMBLAGE
No espaço do resultado, no entanto, os objetos existem, únicos e
individualizados por contraste. Na esteira dos gêneros, Mil gotas poderia ser
conto, novela (o termo, em português, é de difícil apreensão e se refere mais a
um aspecto quantitativo: menos extensa que o romance, menos breve que o conto),
mas assemblage seria talvez o termo mais apropriado para denominar esse texto
(talvez todos os textos; o risco seria adentrar uma discussão genérica sobre a
intertextualidade e o conceito terminaria por se diluir).
No ensaio "Ars narrativa", César Aira comenta que quando começou a
escrever, seus modelos não eram exatamente literários, mas obras como o Grande
vidro, de Duchamp, o Pierrot Lunaire, de Schoenberg, os filmes de Godard. "Não
se tratou de literatura, na verdade, salvo para me fazer entender."
159
"Se
tivesse de mencionar uma figura tutelar (além de Borges, claro) diria: Duchamp.
Dos músicos, acho que de nenhum tirei lições tão valiosas como de Scarlatti:
gostaria que cada uma de minhas novelinhas fosse como uma de suas maravilhosas
sonatas em miniatura (e gostaria de escrever quinhentas, como ele)."
160
Trata-se de um movimento que, junto da prosopopéia, como veremos no
capítulo 3, articula sua escritura de um extremo a outro. Os modelos a que se
refere podem constituir imagens que retornam, mais ou menos explícitas. Seria
interessante, nesse sentido, perseguir o itinerário do Grande vidro em seus
textos.
Bem antes de Mil gotas, mais precisamente, num ensaio regido em 1991,
161
em que se detona por dentro a leitura ideológica depositada sobre a escritura
do autor de Os sete loucos, Roberto Arlt,
162
Aira comenta a relação entre Irene
e Balder, personagens de O amor bruxo (1932), último romance do escritor, e que
escritor, não a obra. Incompreensível por não se ajustar à etiqueta social da linguagem, como
um palhaço num velório. E, sobretudo, incompreensível não para os demais, mas para ele mesmo."
(AIRA, César — Um teste. Cf. Arquivo, p. 198.)
159
IDEM — Ars narrativa. Criterion n. 8. Caracas, jan. 1994.
160
IDEM — Asimetrías. Entrevista a Benjamin S. Johnson. Animalitos Inexpresivos, 25 maio 2007.
Disponível em: http://animalitosinexpresivos.blogspot.com/2007/05/asimetras-una-entrevista-
con-csar-aira.html. Acesso: 15 dez. 2007.)
161
IDEM — Arlt. Cf. Arquivo, p. 205.
162
O argumento pertence a Sandra Contreras: "Mediante a fábula da consciência, que tudo
precede, Aira detona por dentro a crítica ideológica que assume, sem dúvida, em Sexo y
traición em Roberto Arlt, de Oscar Masotta, seu maior expoente" (cf. CONTRERAS, Sandra El
nacimiento del Monstruo. Las vueltas de César Aira. Op. cit., p. 252-3).
56
se poderia entender como um tratado contra o casamento ou, ao avesso, um
tratado do celibato. No ensaio, Aira tratará, dentre outras coisas, do
confronto entre o Monstro e a Virgem, o modo como um constitui o outro e de
como esse confronto implica numa extinção eminente.
163
Diz:
O Monstro não se constitui sem a interseção com a Virgem. Nela o homem
encontra um ensejo de representação. A Virgem não tem planos. É uma
superfície pura de beleza. Não contém tempo; é o Instante. É um enigma, mas
por não ocultar enigmas. "Virgem" é uma palavra, é claro, o nome que damos à
negação a se reproduzir. A Virgem faz o Monstro confirmando o homem na
eternidade do indivíduo, fechando ou tornando invisíveis por transparência os
caminhos perspectivísticos da espécie. A representação é um fenômeno da
perspectiva.
164
A imagem em seguida se desdobra: cenário e personagens constituem um jogo
de potências cuja melhor imagem estaria esboçada no trabalho de Duchamp:
A aparição da Virgem, tal como em Arlt, acontece no Grande vidro de
Duchamp. Pintada sobre vidro, vidro sem pintar em sua maior parte, com um
grande vazio no centro ou ponto de fuga, esta obra se propõe, segundo o
próprio Duchamp, como o altar da Deusa Perspectiva. Os solteiros, os "oito
moldes macho", projetam-se no céu da Noiva por efeito do "gás de iluminação"
(os sete loucos concluirão, por sua vez, com a ajuda de gases letais). E no
alto, a Virgem, a "peça fêmea", realiza sua pirueta. É a última e definitiva
torção. A virgem quer assistir à sua própria virgindade, como se o Instante
quisesse coincidir com seu desenvolvimento, ou a unidimensionalidade dobrar-
se sobre si mesma. Consegue apenas parcialmente, no acontecimento cósmico de
seu desnudamento, porque não dispõe de nada além de sua essência como
instrumento para ser, e da torção impossível resta uma fenda, uma
transparência onde a perspectiva se ausenta. Com ela, também o artista.
165
O anacronismo das traduções, aproximações e encontros se multiplica: Amor
bruxo pode ser a versão portenha do balé em um ato de Manuel De Falla, estreado
em 1915, no teatro Lara, de Madri, que narra a história Candela, uma cigana
possuída pelo espírito de um antigo pretendente morto, e Carmelo, que se
disfarça de espectro durante a "Dança do fogo" para liberar sua amada do
feitiço. Se Duchamp tem algo a ver com a elaboração do texto de Arlt não será
possível precisar, simplesmente porque jamais será possível precisar o que
constitui o processo de uma singularidade. Os fatos, no entanto, colocam
Duchamp em Buenos Aires, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, onde a
princípio nada consegue fazer além de jogar xadrez (o que também não é gratuito,
163
"No encontro de Balder e Irene, em sua atmosfera de mito e pantomima expressionista,
constitui-se o primeiro casal do mundo de Arlt, seu Adão e Eva: o Monstro e a Virgem. Ambas as
figuras são ainda imperfeitas. A virgindade de Irene será negada ao final, e a monstruosidade
de Balder é discreta, ainda que alguns traços já apontem ao monstro completo:
'Seu rosto brilhava em gracilidade cutânea. Estava bem encurvado, o tronco torcido, o
traseiro pesado, a caixa toráxica encolhida, os braços inertes, os movimentos torpes...
grossas rugas começaram se desenhar em seu rosto. Ao caminhar, arrastava os pés. Visto de trás
parecia corcunda, caminhando de frente dir-se-ia que avançava sobre um plano ondulado, e assim
se balançava por inércia. O cabelo escapava pelas têmporas até cobrir as orelhas, vestia-se
mal, era sempre visto com a barba por fazer e as unhas sujas de tinta'." (AIRA, César — Arlt.
Cf. Arquivo, p. 205.)
164
IDEM — Ibidem.
165
IDEM — Ibidem.
57
porque no xadrez Duchamp encontra um modo de o pintar; mais precisamente, pelo
xadrez Duchamp abandona a pintura);
166
mais tarde produzirá ali o Pequeno vidro.
Relevando, no entanto, o possível encontro entre Arlt e Duchamp, e
considerando tão-somente o acaso, ou a analogia esboçada por César Aira no
fragmento anterior, termina sendo muito curioso observar, enviesadamente, o
"Plano de la planta de fosgeno", desenhado por Erdosain e estampado em Os
lança-chamas (1931), continuação de Os sete loucos (1929), ao lado da
maquinária do Grande vidro. Veja-se:
Marcel Duchamp — Large glass, 1912-23, por Gloria
Moure — Key to the Large Glass (including
elements not executed), 1988.
Roberto Arlt — Los lanzallamas, 1931.
166
"Com que pressuposto rompe Duchamp em 1912?", indaga Jean-François Lyotard. A resposta,
dele próprio, é categórica: "Com o de que é preciso fazer um quadro, mesmo que seja cubista"
(LYOTARD, Jean-François "Resposta à pergunta: o que é o pós-moderno?" O pós-moderno
explicado às crianças. Correspondência 1982-1985. Trad. Tereza Coelho. Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 1987, p. 16). A esse período, 1912-6, corresponde a confecção de Nu descendo a
escada, a que Aira visualiza como o fim do expressionismo: "Ninguém nunca disse que Duchamp
foi um expressionista, mas eu acredito que foi, e que com ele o expressionismo chega à sua
culminação e se evapora. A linhagem expressionista pode ser rastreada por vários caminhos. Um
deles é o seguinte: no cinema expressionista, derivado em boa medida do teatro de Max
Reinhardt, o essencial é a criação do espaço, que nunca se dá por certo. Seus autores falam do
'beseelt Landschaft', paisagem com alma, isto é, um espaço psicológico, projetivo
(evidentemente Einstein tomou daí sua concepção da 'Natureza não-indiferente'). Esse espaço se
cria mediante luzes, como uma ilusão do olho do espectador, ou mediante as perspectivas
manipuladas nos telões, ou inclusive mediante os movimentos do ator; o bom ator expressionista
'constrói o espaço'. Isso explica o abuso de escadas de todo tipo no cinema expressionista:
porque a escada favorece 'a expansão do dinamismo do ator', permitindo-lhe criar mais espaço,
em mais direções. A esse mecanismo responde o Nu descendo a escada, a obra com que Duchamp
abandonou a pintura aos vinte e quatro anos. Não deixaria de abandoná-la pelo resto de sua
vida. Tinha conseguido criar um interstício, que daí em diante não se fecharia, no mesclado
espaço mental expressionista, e por ele fugiria sem cessar. A criação da distância, na lógica
das contingüidades indestrutíveis do expressionismo, significa uma válvula de escape" (AIRA,
César — Arlt. Cf. Arquivo, p. 205).
58
Entre o ensaios "Arlt" e "Ars narrativa" o vão de alguns anos. Em
novembro de 1996, Duchamp vira tema de um relato, "Duchamp no México".
167
Mas
será preciso uma volta de parafuso a mais para chegarmos à assemblage de Aira,
Mil gotas.
Ao fim do relato, duas gotas, entediadas de suas perambulações
mundanas, resolvem ultrapassar a última fronteira e abandonar o planeta. Era
algo simples para elas, que não necessitavam de ar nem se afetavam pelas
condições adversas do éter e da radiação. O cosmos então se torna uma quina,
ou mais uma imagem:
nesses abismos vazios se decidiam os resultados de trajetórias ferozes,
meteoritos luminosos de mecânica complexa, em circuitos sem limites. A
escuridão se abria por trás dos biombos de luz pintada no nada, luz sem
sombra, mas não sem figuras. E um ponto-cego nos biombos abria novos
universos que voltavam a ser o Universo. Curvas rugiam, faces de luz dos
faróis examinando o volume de porões titânicos, paredões de nebulosas.
168
Mas a cena mais emblemática, o gran finale, é quando nessa plataforma
etérea dá-se um encontro que marcará o fim dos tempos. Sem saber, as gotas,
habituadas a não causar efeito, descobrem que por sua mera presença acabam por
alterar a ordem cósmica: num trovão, Gravidade aparece, pousa na linha do
horizonte e Perspectiva, com os olhos no além, perde o equilíbrio, caindo em
seus braços. Dois monstros se encontram. Nessa conjunção, nesse acontecimento,
Evolução, a eterna celibatária, recebe um duro golpe e é vencida. Veja-se o
texto na íntegra, que deve ser lido sobre a imagem do Grande vidro.
Duas gotas se encontraram nesses termos inconcebíveis do paralelo. Num
planeta distante, numa bola de gás, em férias de densidade, uma gota
projetava sombra sobre um chão de átomos rochosos. Devido à sua forma
perfeitamente esférica, a sombra era sempre igual, estivessem onde estivessem
os sóis e as luas. Outra gota vinha na direção oposta, num foguete.
Comunicavam-se por microfones. A sombra da astronave formava leques de dois
foles. O céu escuro mostrava curiosos saca-rolhas de hélio.
Desembarcaram para explorar. As duas gotas, em seus escafandros, se
balançavam nas catorze mil densas atmosferas do planeta Carumba. Parada no
horizonte, sobre uma espécie de pernas-de-pau com colares de pérolas eram
carteira amarela e cabeleira branca que se agitavam em redemoinhos de quarks
—, se encontrava Perspectiva. Parecia indiferente. Não olhava ninguém, sabia
que todos olhavam pra ela. Era também o que as gotas faziam, estupefatas.
Desde que se desprenderam do quadro, sentiam-se órfãs dessa bela divindade.
Gostariam de poder voltar a se abrigar sob suas asas invisíveis. Mas ela não
as via. Seus olhos estavam fixos no além. Seria este desamparo o preço que
deveriam pagar pela liberdade que lhes permitira chegar tão longe? Sem se dar
conta, alinharam-se numa figura em perfeita simetria.
167
Cf. IDEM Taxol. Precedido de Duchamp en Mexico y La broma. Buenos Aires: Simurg, 1997.
Sobre o texto, Eva V. Barenfeld repara que "O esquema da história não aparece nunca, diria-se
que 'a obra' é a grande ausente; em seu lugar, o que lemos é a explicação das circunstâncias
nas quais a obra foi gerada, explicação pela qual se dão as bases de uma verossimilhança"
(BARENFELD, Eva Verónica "César Aira: realismo em proceso” Espéculo. Revista de Estudios
Literarios, n. 23. Universidad Complutense de Madrid:. Disponível em: http://www.ucm.es/info/
especulo/numero23/c_aira.html.html. Acesso em 14 maio 2004).
168
AIRA, César — Mil gotas. Op. cit., p. 32.
59
Então aconteceu algo. Um troo fez rachar a concavidade escura do éter,
aparecendo Gravidade, com sua capa plástica carmesim e seus sapatos bico-fino. As
gotas se assustaram, supondo que cairia por cima, esmagando tudo. Para alívio das
duas, Gravidade deu um sobrevôo, pousando sobre a linha do horizonte, que se encurvou
pra baixo. Perspectiva, que estava na mesma linha, resvalou e caiu nos braços de
Gravidade, que a esperava de braços abertos e com o pau duro. Ela se encaixou como um
coração numa lança. Do contato se fez um estalar de beijo, difundindo em todas as
direções uma forte luz, em linhas, sobre as quais se inclinaram as constelações. O
que havia acontecido? Simplesmente que, ao se encontrarem duas gotas, Perspectiva,
sempre distante, havia tocado a si própria. E Gravidade, que desde há incontáveis
milênios aguardava essa ocasião, não a deixou escapar. Reconhecendo a gentileza,
dirigiu-se às duas, e, sem soltar Perspectiva, piscou um dos olhos, cúmplice. As duas
gotas astronautas maravilharam-se com a idéia de que sua presença, ao acaso, num
lugar que parecia Qualquer Lugar, pudesse resultar num efeito tão transcendental.
Tinham se acostumado, desde que abandonaram a tábua, lá no Louvre, a não causar
efeito. O abraço continuava, operando uma transformação. Gravidade, tão severo e
redundante, tornava-se esbelto e delicado; Perspectiva perdia seu ar habitualmente
desprendido, fazendo-se compacta e palpável. As núpcias foram celebradas numa festa
instantânea, sem que fosse preciso mandar convites (os convites, desde o Big Bang,
tinham estado viajando).
As duas gotas se olharam, como se dissessem Veja você. Às duas ocorria o
mesmo, ao mesmo tempo: agora sim o Papa ficaria solteiro pra sempre. E o imaginaram
plantado no altar, lá no Vaticano, em seu vestido branco, os calos na mão e uma
lágrima correndo pela velha bochecha enrugada. Foi a última fantasia, a mais realista.
Os recém-casados partiram num carro, arrastando latinhas pelo firmamento.
Seria uma Lua-de-Mel combativa, pois dariam um fim na Evolução, a eterna celibatária,
que desta vez, rompido o equilíbrio das forças (divide e reinarás), seria derrotada.
Mas as gotas que pisavam os limites fantásticos da realidade...
prosseguiam na realidade, e não podiam evitar a melancolia.
Fazer a identificação entre os nomes é arriscado. E desnecessário,
talvez. Dos elementos que compõem o Grande vidro (o altar da deusa Perspectiva,
para Duchamp), vê-se de fato a noiva, a Gioconda; Gravidade está na linha do
horizonte, mas aparece apenas nas Notas de Duchamp; as duas gotas, órfãs, podem
estar no extremo direito, ou também fora do campo; e pode-se confundir carteira
amarela e cabeleira branca com os tubos capilares, a auréola da noiva e seus
netos com os saca-rolhas de hélio. Enfim.
169
As imagens, as narrativas, saem em busca de outras narrativas e imagens
que as amplie ou desgaste. O veículo é a assemblage; o transporte, a tradução.
Mas o caminho é o mal-entendido. Na espiral que conecta e também distancia
esses trabalhos, é como se O grande vidro, que é pura energia, por reverberação
demandasse Mil gotas. Só que o contrário, por retroversão, também é possível.
Ambos registram e constituem uma extinção eminente, o encontro do monstro
e seu caçador. A Noiva, a Gioconda, cansada de fazer funcionar por séculos a
máquina Obra-Prima, cansada de ser noiva, não se contém: abandona. O Grande
vidro se torna imagem, e a Técnica se encarrega de reproduzi-lo imóvel nos
catálogos da História da Arte.
Mas antes disso a caixa de vidro se rompe, e as gotas se vão.
169
Para uma visualização do funcionamento do Grande vidro, cf. o site de STAFFORD, Andrew
Making Sense of Marcel Duchamp. Disponível em: http://www.understandingduchamp.com. Acesso: 9
fev. 2008.
60
César Aira — Mil gotas, 2003.
1
Marcel Duchamp — The Large Glass, 1912-1923.
61
1.9 ATONALIDADE
Após um século de intervenções vanguardistas, sabemos, há pouco ou nada o
que acrescentar ao campo artístico ou da invenção. César Aira, em "A nova
escritura", entende que das vanguardas, esse recomeço otimizado da arte,
embalado a vácuo, resta-nos apenas o procedimento (seu argumento é o de que as
vanguardas emergem quando a profissionalização dos artistas se deu por
encerrada, ou seja, quando a arte estava inventada, restando apenas seguir
fabricando obras. Em outros termos, a profissionalização punha em risco a
historicidade da arte, quebrando a dialética forma-conteúdo: este passava a ser
a pedra-de-toque da História, enquanto aquela era necessariamente sacrificada,
ou melhor, petrificava-se em modus operandi, viabilizando isso a que chamamos
encratismo ou comunicação. Se o processo de autonomização da arte e
profissionalização do artista levara três mil anos para se consumar, as
vanguardas, como um simulacro pirata, não puderam mantê-lo funcionando por
muito mais que a primeira metade do século XX. Daí, diz Aira, o ar pouco sério
que a elas se atribui).
Se as vanguardas irrompem como verdades que atravessam a homogeneidade da
situação, para fazer uso dos termos de Alain Badiou, deixam nesta um rastro que
faz reordenar a enciclopédia portátil da qual se recolhem as opiniões, as
comunicações e a sociabilidade.
170
Mas a estabilidade retorna, "o antigo resiste
a morrer".
171
Daí que o esgotamento se constitua sempre como um movimento
previsível. É o princípio do contínuo, lembremos, por mais que a própria
história abomine as situações estáveis. Daí também que o procedimento, enquanto
aspecto que permanece intacto desse movimento entre tensão e estabilidade,
reponha o processo ali onde se havia entronizado o resultado.
Entendidas como articuladoras de procedimentos dirá Aira as vanguardas
permanecem vigentes, carregando o século de mapas do tesouro que aguardam ser
explorados. Construtivismo, escritura automática, ready-made, dodecafonismo,
cut-up, acaso, indeterminação. Os grandes artistas do século XX não são os
que fizeram obra, mas aqueles que inventaram procedimentos para que esta
fizesse a si própria, ou não se fizesse. Para que precisamos de obras? Quem
quer outro romance, outro quadro, outra sinfonia? Como se não existissem o
bastante!
172
O procedimento não é o feito, o produto. Justamente o contrário. O
produto não interessa, bastante inútil", diria Duchamp. Se as vanguardas
cortavam o fluxo contínuo da arte, interessa não o objeto resultante do corte,
mas o modo de se seguir cortando e, portanto, de se seguir no contínuo. Em
resumo, "que a 'obra' seja o procedimento para se fazer obras, sem a obra. Ou
170
Cf. BADIOU, Alain O problema do Mal. Ética. Um ensaio sobre a consciência do Mal. Op.
cit., p. 80.
171
AIRA, César — O a-ban-do-no. Cf. Arquivo, p. 199.
172
IDEM — A nova escritura. Cf. Arquivo, p. 222.
62
com a obra, mas como um apêndice
documental que sirva apenas para deduzir o
processo do qual saiu".
173
É o que se
constata em 3 Stoppages Étalon, de Duchamp,
assemblage que não apresenta nada para se
contemplar: seu efeito reside em desvendar
seu processo de elaboração: três pedaços de
fio, cada um de 100cm de comprimento,
deixados cair de 1m de altura sobre uma tela
e colados nesse lugar.
No ensaio em questão, Aira ilustra a
tese com Music of Changes, peça para piano
solo de John Cage, montada sobre quatro
tabelas quadriculadas, a primeira para os
sons, a segunda para a duração, a terceira
para a dinâmica e uma quarta para a
densidade. Todas elas, diga-se, articuladas
por hexagramas do I Ching, o Livro das
mutações. Atirando seis vezes uma moeda ao acaso, tem-se o número de um dos
hexagramas; o processo se repete para cada uma das tabelas. O resultado dessa
equação, portanto, é a ausência de composição, ausência de melodia, ausência de
produto. Pode haver melodia, sim, pode haver inclusive uma repetição, porém
somente se o acaso assim propuser. Não obra. o procedimento (ou,
eventualmente, uma maquete, como veremos mais adiante).
174
Redigido em 1981 e publicado em 1988, dez anos antes de "A nova
escritura", portanto, podemos dizer que "Cecil Taylor",
175
outro relato de Aira,
funciona como uma espécie de hospedeiro do ensaio, ou vice-versa. A história
("argumento" não seria a palavra mais adequada. Como o próprio narrador
sublinha, "tudo são situações, êxtase romanesco, não de conceitos")
176
elenca
a série de fracassos que este pianista negro, estudioso da avant-garde musical
do século XX, em 1956 com pouco mais de 30 anos, passa a colecionar
sucessivamente em suas apresentações, sempre interrompidas nos primeiros
minutos, geralmente pelo dono do bar, que igualmente aos críticos,
universitários ou demais colegas vanguardistas, considerava aquilo que fazia
não mais que uma brincadeira.
Sabemos, e o próprio narrador nos lembra, ter Cecil Taylor feito a
primeira gravação atonal de jazz, pouco antes de Sun Ra ou Ornette Coleman.
(Reza a crítica que, trabalhando simultaneamente na mesma invenção, ou no mesmo
173
IDEM — Ibidem.
174
Cf. IDEM — Introdução e ensaio. Op. cit., p. 65-76.
175
Cf. IDEM — Cecil Taylor. Fin de Siglo n. 14, ago. 1988. Sandra Contreras atesta 9 ago. 1981
como data de redação. Cf. Las vueltas de César Aira. Op. cit., p. 299.
176
IDEM — Ibidem, Cf. Arquivo, p. 181.
Marcel Duchamp — 3 Stoppages Étalon,
1913-4/1964.
63
sentido, ou no mesmo tipo de estrago, nenhum dos três tinha noção da existência
dos outros dois.) Ninguém fazia idéia do que Cecil estava fazendo; considera o
narrador, no entanto, que
sua originalidade residia na transmutação do piano, que, em suas mãos, de
instrumento passara a ser um método composicional livre, instantâneo. Os
chamados "conjuntos tonais" com que desenvolvia sua escritura momentânea
tinham sido utilizados anteriormente por um músico, Henry Cowell, mas Cecil
levara o procedimento a um ponto tal que, por suas complicações harmônicas, e
sobretudo pela sistematização da corrente sonora atonal em fluxos tonais, era
impossível compará-lo com o que quer que fosse.
177
Cecil Taylor talvez fosse o único a ir além de Debussy, "aquele que pôde
consumar a música como torção sexual da matéria, o atomista fluido de todos os
sentidos e sem-sentidos que constituem o jogo do pensamento no mundo",
178
preparando-se, enfim, "para a incongruência inerente às grandes geometrias".
179
Nosso pianista, que durante o dia lavava copos ou trabalhava como vigia,
servente, e talvez habitasse um apartamento escuro com um piano nunca afinado,
tinha consciência, porém, de que deveria "descartar a idéia de um
reconhecimento súbito, é claro, inclusive de um triunfo gradual, à maneira de
círculos concêntricos",
180
embora esperasse, sim, que em determinado momento seu
talento pudesse ser comemorado. Aqui, sublinha o narrador entre parênteses,
aparece uma verdade e um erro: a verdade é que de fato hoje ouvimos Cecil
Taylor com tamanha admiração que seria inviável duvidar desse talento; o
erro é o que a própria narração busca engendrar: a divisão infinita dos
fracassos, uma espécie de agamia que o êxito não produz.
Além dos bares, Cecil arriscara-se numa apresentação particular, a
convite de uma senhora que atendia pelo sobrenome Vanderbilt, e que contratava
pianistas para animarem os chás que servia em sua casa, pela tarde. Pois bem,
nem se passavam os primeiros vinte segundos de sua apresentação e a senhora
Vanderbilt o interrompia, contando com os aplausos de seus convidados. Algo
bastante parecido ocorre tempo depois, ao ser convidado para se apresentar numa
universidade e, em seguida, num ciclo de artistas de vanguarda, na Copper
Union. Na universidade, a sala logo ficou vazia, obrigando o professor que o
convidara a um difícil malabarismo para justificar o evento. A ocasião mostrava
a Cecil que o público universitário não tinha motivo algum para entender sua
música, menos ainda apreciá-la, porque isso não lhes dizia respeito. na
Copper Union nada se mostrava tão apático, e a experiência fora ainda menos
gratificante.
Os músicos vanguardistas, que também apresentavam suas obras, estavam na
posição ideal de determinar o que era música e o que não era, uma vez que
177
IDEM — Ibidem.
178
IDEM — Ibidem.
179
IDEM — Ibidem, p. 182.
180
IDEM — Ibidem.
64
eles mesmos se encontravam, precisamente, na margem interna da música, em sua
área de ampliação sistemática. Mas tampouco aqui a posição ideal deu lugar ao
juízo correto. Da obra do jazzman negro puderam dizer apenas duas coisas: que
naquele momento não era música (ou seja, que não seria nunca), e que
casualmente lhes ocorria a pergunta de se não estariam diante de um tipo de
brincadeira.
181
Certo crítico, que assistira a um de seus fracassos noturnos, reforçava o
argumento, entendendo que "o jazz é uma forma de música, e é, assim, uma parte
da música. Como aquilo que nosso bom Cecil faz não é música, tampouco pode
aspirar à categoria jazz. [...] não se pode avançar no jazz senão por um desvio
do genérico, ou seja, não particularidades que possam se relacionar, por
analogia, ao jazz".
182
Mas sustentar a importância do genérico seria justamente manter-se sob a
custódia do encratismo, ou acatar o fascismo da língua. Essa é a recusa de
Cecil Taylor, que não se julgava um gênio, e sim "um homem sem imaginação".
Daí, talvez, o paradoxo que via se formar em seu fracasso recorrente: o que
poderia unir pessoas tão díspares (um traficante dono de bar, a senhora
Vanderbilt, um professor universitário, seus colegas músicos de vanguarda) em
torno a um mesmo ato, o de interrompê-lo, por acharem tratar-se de uma
brincadeira? "Havia algo inerente a seu trabalho que provocava a
interrogação."
183
O detalhe que abre a história, no entanto, que concerne àquilo que o
narrador chama "atmosfera", e embora aparentemente desconexo do "tema",
arremata o procedimento da música de Cecil Taylor, e vai além. O primeiro
parágrafo narra um amanhecer em Manhattan, quando uma prostituta negra retorna
a seu quarto, num lugar esquecido do mundo, após uma noite de trabalho.
Embriagada, caminha errante, quando se depara com uma pequena turba em frente à
vidraça de um comércio desativado. Alguns homens assistiam, na penumbra
interior do vidro, a um rato encurralado, prestes a ser pego por um gato. A
puta, ficando a par da situação, bate com a carteira na vidraça, distraindo o
gato e dando ao rato a chance de fugir. Não se trata de moral, ou de uma máxima
que otimize a série de fracassos colecionados pelo jazzman. Nosso narrador, num
giro de parafuso, ou tal como uma fita de Moebius, limita-se a dizer que
Depois de um conto vem outro. Vertigem. Vertigens retrospectivas. Bastaria um
elemento qualquer da série para que o seguinte a fizesse interminável. A
vertigem produz a angústia. A angústia paraliza e nos evita o perigo que
justificaria a vertigem; aproximar-se da margem, por exemplo, da falha
profunda que separa um elemento de outro. A paralisia é a arte no artista,
que transcorrerem os acontecimentos. A noite acaba, o dia também: algo
embaraçoso no trabalho em curso. Os crepúsculos opostos caem como lâminas num
sulco de gelo. Olhos que se fecham definitivamente, sempre e noutro lugar.
Paz. Contudo, existe, e bem mais perceptível do que poderíamos desejar, um
movimento descontrolado, que gera angústia nos outros e o modelo
181
IDEM — Ibidem, p. 185.
182
IDEM — Ibidem, p. 184.
183
IDEM — Ibidem.
65
impossível da angústia em si mesmo. Chama-se arte também. A arte é uma
multiplicação: estilos, bibliotecas, metáforas, disputas, o quadro e seu
crítico, o romance e sua época... Tem-se de aceitar isso tal como a
existência dos insetos. restos por toda parte. Mas a vida, sabemos, "é uma
só". Daí que a biografia de um artista seja algo impossível; modos de se
provar isso: esses modos se confundem na possibilidade da biografia, com o
que volta a nascer a literatura, e a situação insuportável de novo se instala
no pensamento, o operador se inquieta e não a sucessão de escrúpulos
mas uma proliferação de modelos de difícil aplicação. A biografia, como
gênero literário, deriva da hagiografia; mas os santos são, ou foram santos,
justamente por renunciar os benefícios biográficos, recolhendo apenas seus
restos descartáveis. Por outro lado, as hagiografias nunca estão sós, sempre
fazem parte de uma espécie de coleção. A biografia tenderia ao contrário,
ainda que o resultado fosse exatamente o mesmo. Quem se orgulharia em saber o
que é um resto, e de poder diferenciá-lo do contrário? Ninguém que escreva,
ao menos.
184
A cisão entre o relato da prostituta e o de Cecil Taylor talvez possa ser
lida como o primeiro sintoma de uma subliteratura, de uma narrativa pouco ou
nada articulada que deixaria aparecer sua costura, mostrando uma debilidade do
discurso. O realismo como doutrina, sabemos, funciona como um simulacro que em
seu arremate deseja extirpar o caráter enganoso da ficção. Os personagens, o
tempo, a seqüência, a duração, a intensidade, a densidade são fatores, dentre
outros, regidos para que ao fim não reste dúvida de que aquilo pudesse
realmente ter acontecido. Roland Barthes observa que o realismo "aceita
enunciações creditadas pelo referente", forjando um discurso sustentado pela
"colusão direta de um referente e de um significante: o significado fica
expulso do signo e, com ele, evidentemente, a possibilidade de desenvolver uma
forma do significado".
185
Mas a fórmula se refere não à literatura. Trata-se
de uma forma ordenadora da linguagem, e que portanto pode funcionar na música,
na arquitetura, na publicidade. É sobre esse patamar do realismo que a
comunicação se edifica como a possibilidade de entendimento entre dois, na
certeza de que uma mensagem se conserva intacta entre emissor e receptor. É a
soberania da lei estatal: traduzir, fazer sentido, acatar.
A cisão entre o relato da prostituta e o de Cecil Taylor é literatura,
por certo, porque quebra a ordem direta entre o tema e seu desenvolvimento. É
tão atonal quanto os acordes de Cecil, sempre considerados nada além de uma
brincadeira. Se na atonalidade pouco interessa a melodia (o elemento popular),
embora ela possa inclusive ocorrer, na escritura ela mostra que nada confirma a
necessidade de uma história, que seria "nada além de um capricho literário",
como o narrador nos informa.
Acontece que, uma vez imaginada, ela se torna de certo modo necessária. A
história da prostituta que espantou o rato não é — o que não quer dizer que a
grande série virtual das histórias seja desnecessária em seu conjunto. E, no
entanto, é. A de Cecil Taylor é uma fábula antiga: o que lhe convém é o modo
de aplicação.
186
184
IDEM — Ibidem, p. 181.
185
BARTHES, Roland — O efeito de real. O rumor da língua. Op. cit., p. 189.
186
AIRA, César — Cecil Taylor. Cf. Arquivo, p. 181.
66
A escolha de Cecil Taylor como objeto da ficção nos menos como
biografia do artista (a biografia é impossível), e mais como um índice do
próprio funcionamento disso que Graciela Montaldo ou Adrián Cangi chamam
"máquina Aira". A atonalidade, esse elemento recusado pelo interlocutor musical
de Cecil, e que no momento presente de sua execução o levara constantemente ao
fracasso, se repete na armação ficcional de César Aira como renúncia à
qualidade, como abandono da literatura. E o porvir disso é justamente sua
própria explosão enquanto sistema fechado. O paradoxo, no entanto, é o de que
César Aira, ou seu narrador, ou seus narradores, ou seus personagens, ou Césars
Airas, praticarão o abandono, a trapaça, o estrago, a atonalidade não como o
fim da literatura, seu abandono, sua trapaça, seu estrago, mas como
possibilidade.
187
A máquina Cecil Taylor, que abandona, e nisso amplia, o funcionamento do
jazz, é também a máquina Aira; e chegaríamos, assim, à equação literatura =
jazz, porque nenhum dos elementos possui a priori limite algum além do nome.
Nesse ambiente, que nada é além do mundo, o contínuo, e cujo procedimento é
pura simulação, a simulação inexiste. Porque a atonalidade (o acidente) não se
julga atonal, se julga apenas mais (música, arte, o que for). O real, por sua
vez, ao produzir ficção, não produz ficção, nem realismo nem realidade. O real,
aliás, não gera nada. Ele é sempre personagem; a ficção é que o exige. Porém, o
que dele teremos serão sempre indícios, ou, simplesmente uma imagem.
1.10 IMAGEM
Toda imagem é também uma narrativa.
Roland BarthesAula
Walter Benjamin, no famoso ensaio sobre Leskov, estipula três modalidades
para a narrativa, a saber: a narrativa clássica, dada pelo caráter oral do
narrador, que transmite um saber a seu ouvinte; a narrativa do romance, mediada
pelo instrumento "livro" e reveladora de um sujeito isolado, em formação, que
não ouve um saber nem sabe transmiti-lo; e a narrativa informativa,
jornalística, cuja dimensão é o plausível, o verificável, em si e para si.
188
187
Lembre-se que Adorno não considerava o jazz uma arte em função de sua estandartização (cf.
ADORNO, Theodor W. Sobre música popular. In COHN, Gabriel (org.) Theodor W. Adorno. Trad.
Flávio R. Kothe. São Paulo: Ática, 1986, p. 115-46), argumento este que seria equivalente à
recusa em se considerar a escritura de César Aira literatura, em função de seu apelo constante
ao frívolo e/ou genérico.Benjamin reconheceria ambos como artes industriais (cf. BENJAMIN,
Walter A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Magia e técnica, arte e
política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas I. ed. Trad.
Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 165-96).
188
um problema intrínseco a essas três denominações quando estipulamos todas como
"narrativas", pois Benjamin entende apenas a primeira formulação, a do narrador clássico, como
67
Esses três modelos se dão em épocas distintas, caracterizando-se,
separadamente, pela crise do modelo anterior. No entanto, qual o fio condutor
dessas três linguagens, o que se modifica por trás delas ou, por outra, o que
produzem em comum?
Chamemos essas três modalidades narrativas de literatura, digamos ser a
literatura o que se modifica por trás dos procedimentos narrativos, mas que, ao
mesmo tempo, se amplia. O que une e separa esses procedimentos é a noção de que
a literatura, seja ela qual for, produz imagem. Entre essa imagem produzida e
seu mecanismo disparador está a representação, que por sua vez indica sempre um
objeto anterior ao discurso, originando, em graus distintos, o que conhecemos
como verossimilhança. Esse processo, mimético, tal como acusado por Platão e
revisto como técnica, como aquilo que origina uma finalidade prática, por
Aristóteles, Susan Sontag o entende como estruturante da consciência e reflexão
sobre a arte no Ocidente.
189
O que está em questão, portanto, são os usos da imagem. Dentre as
modalidades apontadas por Benjamin, podemos detectar imagens distintas, porém
todas mediadas pela representação. O uso mais radical, podemos aventar, se
no discurso do realismo,
190
que, se visto à distância, emerge como nova
verossimilhança, porém renegando e necessariamente se opondo a essa condição
simulacral. O realismo dispara, através de sua maquinária, uma imagem compacta,
um bloco de matéria que não admite ser constituído por átomos em movimento.
Sofre, portanto, do mesmo mal imposto à fotografia, quando de seu uso
policialesco: desde a perseguição empreendida pela polícia de Paris aos
comunas, em 1871, a fotografia se converteu em dispositivo panóptico dos
Estados modernos para o controle da massa, que entendiam a imagem fotográfica
como prova irrefutável de um evento.
191
Essa imagem compacta, legisladora, gerará castas operárias em sua função,
o que Pierre Bourdieu chamará economia das trocas simbólicas: admitirá como
porta-voz o intelectual hermeneuta, um iniciado a quem cabe estabelecer o
sentido da obra, e que nos condena ao exercício da compreensão, tornando a arte
algo sério, convencionando procedimentos interpretativos para enfim reforçar a
idéia de que o conteúdo realmente existe. Em outras palavras, de um modo
bastante masculino, entendia-se o texto como um damasco: para se chegar até o
sentido era preciso aprender a lição de anatomia, dissecar, autopsiar, penetrar
a obra, procurar o núcleo. Encontrado o sentido (o conteúdo), dava-se então o
tal; o romance já se caracterizaria por uma morte da narrativa em si, e a informação, por fim,
seria tão-somente uma forma de comunicação, pondo, no entanto, o próprio romance em crise.
Abandonemos essa distinção momentaneamente. Cf. BENJAMIN, Walter O narrador. Considerações
sobre a obra de Nikolai Leskov. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e
história da cultura. Op. cit., p. 197-221.
189
Cf. SONTAG, Susan — Contra a interpretação. Contra a interpretação. Op. cit., p. 12.
190
Este realismo, no caso, apontaria à "soma dos traços característicos de uma escola
artística do culo XIX", como denomina Roman Jakobson, em "Do realismo artístico" (cf.
EIKHENBAUM, B. et al. Teoria da literatura: formalistas russos. Op. cit., p. 120-1).
191
Cf. SONTAG, Susan Na caverna de Platão. Ensaios sobre a fotografia. Trad. Joaquim Paiva.
Rio de Janeiro: Arbor, 1981, p. 5-6.
68
atestado de óbito, posteriormente divulgado pelos manuais, e fiscalizado pela
academia. O conteúdo fornecia portanto valor ao objeto artístico, colocando-o
numa esfera superior da cultura.
Como uma versão menos ortodoxa, a interpretação emerge como uma
flexibilização dessa imagem compacta, devolvendo o significado ao signo,
admitindo suas formas, porém conservando sua essência (e aqui é necessário
falar de essência e de obra): "a obra de arte é seu conteúdo; uma obra de arte,
por definição, diz alguma coisa".
192
A arte ganha autonomia, produz uma
linguagem que violenta a doxa, porém carece do intérprete para que este a torne
moeda corrente.
Algo acontece, no entanto, algo de podre aparece no reino quando os
procedimentos de leitura da obra se potencializam, na metade do século XX. E
essa idéia é crucial: a morte do autor, a emergência do leitor. E é também a
morte da obra: pense-se num texto como Bartleby, o escriturário, de Melville. A
posição hermeneuta entenderia a narrativa como "a história das esquisitices e
das infelicidades de um pobre escriturário",
193
o qual, delegado a realizar a
simples tarefa de copiar documentos, resiste dizendo "Preferiria não fazê-lo".
A posição detonadora, por sua vez, desprezará o conteúdo: não interessa a
esquisitice de Bartleby, i.e., não interessa a história, a intriga
aristotélica; tampouco interessa o símbolo, o sentido por trás da história: a
condição humana. A obra é tão-somente uma fórmula ("a fórmula é bem conhecida
sem que sejam, entretanto, reconhecidos a natureza exata de sua potência de
ruptura nem o caráter propriamente metafísico de suas implicações").
194
É uma
performance. Uma performance que devolve à materialidade do texto o movimento
dos átomos, sendo ela própria, a performance, uma operação material. César
Aira, em "A nova escritura", observa que o elemento mais são das vanguardas é
"devolver a ação ao primeiro plano, não importando que pareça frenética,
lúdica, sem direção, desinteressada dos resultados. Tem de se desinteressar dos
resultados para permanecer sendo ação".
195
A obra é portanto uma coisa, uma
coisa cuja matéria é dispensável (sabemos hoje, inclusive, que a matéria, o
átomo, se constitui também de vazio). É uma imagem que se opõe tanto ao sistema
representativo da mimese quanto ao ideal simbólico. Esse gesto abole a noção da
arte como finalidade prática, como técnica de reprodução de um objeto; dá,
justamente, autonomia ao objeto, que fica despido tanto da metonímia (uma
contigüidade do signo) quanto da metáfora (uma analogia). Porém, nesse curto-
circuito, o que sobra? O que produzirá uma imagem que, ao contrário da versão
compacta, é pura ausência?
196
192
IDEM — Contra a interpretação. Op. cit., p. 12.
193
RANCIÈRE, Jacques — Deleuze e a literatura. Op cit., s.p.
194
IDEM — Ibidem.
195
AIRA, César — A nova escritura. Cf. Arquivo, p. 222.
196
Para as categorias de imagem compacta e imagem ausente, cf. ANTELO, Raúl Crítica e
ficção: uma perspectiva hispano-brasileira. Op. cit., p. 29-34.
69
1.11 MIMESE
A realidade, essa coisa que o narrador informativo, caracterizado por
Benjamin, almeja como fato, verdade, Aira nos mostra, em Fragmentos de um
diário nos Alpes, de 2002, como nada mais que uma casualidade, um acidente.
Numa das passagens desse relato, o narrador conta se utilizar de uma cabine
telefônica para chamar sua esposa, em Buenos Aires (estava então na França);
prefere usar cartões telefônicos a abusar da hospedagem dos amigos, enfim. Ao
final de uma dessas conversações, surge um homem irado, forçando a porta da
cabine. O narrador entende se tratar de uma emergência e supõe que o homem não
o tenha visto, mas de qualquer forma já chegava ao fim do telefonema. Ao tentar
sair da cabine, o homem se coloca em sua frente, agressivo, acusando-o. Dizia
algo como "Você estava me ligando? Ligava e desligava, ligava e desligava. Por
que me sacaneia? Por que isso?". Nosso narrador nada entende, mas o homem lhe
mostra o identificador de chamadas do celular, e o número que se é o da
cabine recém utilizada. Diante do fato, o narrador lhe explica ser estrangeiro,
que falava com sua esposa na América do Sul, que está na cidade apenas dois
dias, que não conhece ninguém e muito menos tem a intenção de molestar com
telefonemas a quem quer que seja. Não convencido, o homem repete a história,
pergunta se alguém ocupara a cabine antes, e por quanto tempo seu interlocutor
a utilizara. A resposta, peremptória, certificava que ninguém havia estado por
ali, e que a ligação durara dez minutos (um erro, deveria ter dito cinco, seria
mais próximo do ocorrido). Sem se convencer, o homem deixa nosso narrador
passar, que segue adiante, sem olhar, porém sabendo que é seguido. No dia
seguinte, ao entrar no Bar de la Roize na verdade, nosso narrador contava
sobre seu hábito de escrever na mesa de cafés, em qualquer lugar onde esteja —,
percebe o homem do episódio observando-o do outro lado da rua, que, sem demora,
entra no recinto e passa a vigiá-lo por um dos espelhos. Ao sair do café, o
narrador avista a outra cabine telefônica do povoado onde se encontra.
Planejara ligar para sua esposa, mas abandona a idéia. E se justo durante a
conversa soasse o celular do rapaz, e lhe desligassem na cara? E se a
combinação de códigos que tecla para chamar sua esposa coincidentemente aciona
o celular do rapaz? "Pode ser qualquer coisa", diz o narrador, "com esses
aparelhos que não entendemos. Nestes últimos anos, os franceses se tornaram
fanáticos por telefones celulares".
197
E deste, o narrador passa para o relato
das plantas carnívoras...
Fragmentos de um diário nos Alpes se constitui como uma prática de
abandono, tal como o entendemos até aqui. O próprio título demonstra o
paradoxo do relato: o diário é um texto sem gênero, uma escritura particular,
como um exercício de si próprio, que não vislumbra enredo, ou seja, despe-se da
intriga aristotélica, cujo ponto de partida pode ser uma banalidade cotidiana,
197
IDEM — Fragmentos de un diario en los Alpes. Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 2002, p. 47.
70
ou não, mas que, certamente, não possui um ponto de chegada. Pode ser uma
escrita ao infinito, sem clímax. Poderíamos entender o diário, talvez, como
descrição, e da descrição se diz, retoricamente, ser um texto cujo lugar dos
enunciados pode ser alterado sem que haja prejuízo ao sentido, pois o que está
em questão é um momento da aparência de determinado objeto. Guardadas as
devidas proporções, o diário, à medida que não descreve necessariamente um
enredo, possui a mesma peculiaridade. O mecanismo ainda se radicaliza, porque,
ao fim, não temos o diário todo, apenas seus fragmentos. Isso parece relevante
se levarmos em conta que o que está em questão neste relato de Aira é a
descrição de uma casa, uma descrição que nunca se mostra suficiente, um imagem
que nunca se mostra plena, e pela qual se forja uma teoria da arte ("uma
transformação, uma redefinição").
198
O narrador do relato nos diz, ao primeiro dia de suas notas (constituir-
se-ão de uma semana), ter estado "nesta casa de um vale dos Alpes" (a ficha
catalográfica define o relato como um "livro de viagens"). Sabemos que os Alpes
são bastante vastos, que possuem diversos vales, e que dentro de cada um desses
vales estão, sem dúvida, muitas casas. Porém, isso, para o narrador, não tem a
menor importância. O importante é tentar apreender a imagem da casa, na qual
residem Michel, professor de literatura, latinista, hispanista, e Ana, filha de
um exilado republicano espanhol, seus interlocutores. A casa, repleta de
imagens-objeto, ou seja, de miniaturas, é o mote do diário. O narrador
(possivelmente Aira, essa é a impressão embora não se possa afirmar com
certeza, o que também não importa) mostra que através dessas miniaturas, uma
proliferação de imagens, se o encanto da casa, um encanto que guardava como
impressão e que o faz retornar ao lugar. Os objetos são muitos, de fato, e logo
na segunda página se tem um inventário de alguns, constantes no quarto habitado
pelo narrador:
a parede de fundo está empapelada com o trompe l'oeil de um palácio
à italiana, uma loggia vista por dentro;
no flanco da porta um teatro de marionetes, onde seria possível
colocar duas pessoas (não olhei dentro); no cenário se acrescenta um ciclista
montado;
[...] na tela que fica entre o cabideiro e o armário, um esplêndido
óleo do pai de Ana, uma paisagem no estilo de Corot;
— sob o quadro, uma pequena estante piramidal com livros e objetos;
o armário embutido é enorme, as portas de madeira lisa; abri apenas
um centímetro, só para ver que está repleto de brinquedos;
[...] em cima da cômoda, colado na parede, um pequeno quadro de Ana,
um dos seus melhores, muito no estilo de seu amado Magritte;
por último, no canto, uma mesa com tampa de vidro, agora coberta com
meus livros mas onde há muitos objetos curiosos;
[...] Toda a casa está povoada dos mesmos objetos-imagens, e os demais
são livros. Desses, uma boa quantidade são livros de imagens; os que não são,
é porque estão em processo de se tornarem imagens; o gosto de Michel se
198
IDEM — Ibidem, p. 18.
71
inclina definidamente por uma literatura figurativa, ou de gênese de
imagens.
199
Feita a descrição, o narrador dá uma volta na peça da casa, e confessa:
É bastante humilhante confirmar até onde falha a capacidade de observação de
alguém, sobretudo nesse caso, para aquilo que estava olhando. Ao variar o
ângulo, sobretudo ao me aproximar, aparecem novos detalhes, objetos novos, e
comprovo que cada coisa poderia ter sido registrada melhor com outras
palavras.
200
Ou seja que essa tarefa que o narrador se impõe, a descrição (aquilo que
a análise estrutural consideraria "pormenores supérfluos", e que Barthes
observa como dispositivos do efeito de real), produz uma torção na própria
tarefa da representação: ao informar ao leitor o conteúdo da peça, de mostrar a
realidade do quarto em seus objetos, que por sua vez se mostram como esforço de
representação de tantas outras coisas, se constitui um work in progress ao
infinito e às avessas, porque o efeito de real se mostra como o próprio motivo
do texto; o efeito de real, a descrição em seu excesso produz uma atmosfera de
representação (uma utopia) ao quadrado, ou em potência. Trata-se de um
mecanismo tal qual uma lente, que de tanto ampliar, almejando a profundidade,
perde a imagem do objeto, chegando ao sinistro, a uma anomalia dele próprio.
Fragmentos de um diário nos Alpes não representa nada, ao fim das contas;
apresenta uma teoria sobre a impossibilidade da mimese: próprio dela é o desvio
(ou "próprio da mimese é não ter um próprio").
201
A mimese poderá existir como
vontade, mas o que o desejo mimético gera nunca seo mesmo elemento em outro
ambiente, pois nesse movimento o universo inteiro se altera: a casa que aciona
o mecanismo do texto se constrói e se modifica junto com quem enuncia, sem que
no fim se chegue a uma imagem definida, compacta. O relato em si não mostra um
evento que o antecede, não é a continuidade do evento, mas o ponto de fissura
que um acontecimento produz no sujeito que enuncia e que, ao fazê-lo, não faz
mais que enunciar a si próprio. É um testemunho, que, por sua vez, não é a
representação plena de uma vivência; antes, trata-se de um discurso do impasse
diante da representação da experiência humana, ou seja, dado pela
impossibilidade de se encontrar a expressão justa e a imagem adequada de
reprodução do vivido.
202
É um momento de sua aparência, em espiral: a volta nos
a impressão de um círculo fechado, mas o contínuo, para ser contínuo, não
permite esse fechamento: empurra para frente, modula.
203
Sob essa condição, o
199
IDEM — Ibidem, p. 8-11.
200
IDEM — Ibidem, p. 12.
201
MAJOR, René — A golpes de dado(s). Op. cit., p. 138.
202
Cf. AGAMBEN, Giorgio Homo Sacer III. Lo que queda de Auschwitz. El archivo y el testigo.
Trad. Antonio Gimeno Cuspinera. Valencia: Pre-Textos, 2000.
203
A modulação é assunto do ensaio "Braulio Arenas: por uma literatura modular". Arenas
(Chile, 1913-88) monta um romance, El castillo de Perth (1969), a partir de uma série de
elementos que se repetem ao longo da narrativa; é uma combinatória que dá potência a uma reles
quantidade de objetos e gestos que retornam com significados distintos ao longo do texto. Esse
72
testemunho é ao mesmo tempo testemunho e prova,
204
singularidade cuja remissão a
outro momento da série se através do acaso. Não é o Real, mas é também o
real. O próprio Aira, num de seus ensaios, entende que "Ao realismo do relato
precede a invenção da vida. Para que alguém possa narrar uma aventura, terá
antes de tê-la inventado, vivendo-a, por exemplo".
205
1.12 INDÍCIOS (OU APENAS UM RELATO)
Todo texto produz imagem. Philippe Dubois, detendo-se sobre o estudo da
fotografia,
206
estabelece três pontos de vista sobre o estatuto da imagem: o
primeiro concerne ao discurso da mimese, relacionando-se, no caso, a um certo
viés discursivo do realismo,
207
ou de uma concepção de literatura como reflexo
do real; o segundo como sendo o discurso do código e da desconstrução, i.e., a
imagem como transformação do real; e o terceiro, o discurso do índice, que
entende a imagem como traço de um real. Literalmente, o signo índice remete
àquilo que indica com probabilidade a existência de (algo); não é a coisa em
si, mas seu rastro.
Apoiado nos textos de Rosalind Krauss, Dubois mostra que boa parte dos
artistas contemporâneos se utiliza da fotografia por seu valor de traço, de
lembrança, de clichê (Rauschenberg, Warhol, Boltanski, Hockney, dentre outros),
ou também aqueles que sem se utilizar da fotografia, trabalham a partir de
problemáticas indiciárias (os frottages de Max Ernst, as moldagens no corpo de
Segal, as impressões no corpo de Yves Klein ou nas roupas de Manzoni). São
obras (é preciso redimensionar o termo) que rompem com a pertinência clássica,
pois não existem nelas signos separados, repetíveis. Não revelam um referente
através de uma mensagem. O que há é puro signo.
Não representação portanto, porque "a proximidade entre o signo e seu
objeto torna-se identificação total".
208
O conteúdo da obra fica completamente
relegado; toda a semântica está contida em sua pragmática, sua gramática, pois
reposicionamento poderia, ao fim, produzir a literatura toda, infinitamente. (Cf. AIRA, César
— Braulio Arenas: por uma literatura modular. Arquivo, p. 249).
204
quase meia-noite, estou sentado na escrivaninha contra a parede deste quarto de hotel de
Tandil. A porta fechada com trava, o mesmo com as aberturas da janela. Por uma vez, não devo
buscar um tema. Porque hoje, apenas cheguei, aconteceu-me um fato milagroso que não dá,
como também me converte em tema. Pois a ninguém aconteceu antes algo igual. Sou o primeiro, o
único, e ao mesmo tempo que isso me obriga a dar testemunho, simplifica para mim a tarefa de
dá-lo, pois qualquer coisa que diga e de qualquer modo que diga será automaticamente (por ser
eu quem disse) testemunho e prova." (AIRA, César El todo que surca la nada. Ed. eletr.
Disponível em: http://www.letraslibres.com/index.php?art=11448. Acesso: 30 maio 2007.)
205
IDEM — Copi. Op. cit., p. 16.
206
DUBOIS, Philippe — Histórias de sombra e mitologias de espelhos. O ato fotográfico e outros
ensaios. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1994, p. 109-39.
207
Sempre conforme a tipologia esboçada por Roman Jakobson, em "Do realismo artístico" (In
EIKHENBAUM, B. et al. Teoria da literatura: formalistas russos. Op. cit., p. 120-1).
208
DUBOIS, Philippe — Histórias de sombra e mitologias de espelhos. Op. cit., p. 114.
73
não é o resultado o que interessa, e sim o ato pelo qual algo se deu, ou se
— seja do artista, seja do interlocutor. Diz Dubois:
como não existe nada de exterior àquilo que nos é mostrado e como aquilo que
nos é mostrado ocorre aqui e agora, é porque depois (ou antes) e em outra
parte não (mais) nada. Nada de restos. Tudo foi consumido naquele instante
e no local da referência. Unicamente entre nós. Aqui nos encontramos diante
de experiências que realizam de certa maneira uma espécie de absoluto da
lógica indiciária.
209
Este absoluto podemos ver, p. ex., nos trabalhos que Didi-Hubberman
utiliza para ilustrar O que vemos, o que nos olha:
210
o Pine Portal, de Robert
Morris, 1961, obra destruída, e Buried Cube Containing an Object of Importance
but Little Value, de Sol LeWitt, 1968, obra desaparecida.
Robert Morris — Pine Portal, 1961. Sol LeWitt — Buried Cube Containing an Object
of Importance but Little Value, 1968.
Em ambos os casos, o que se tem é uma proliferação de paradoxos. Seus
fins são semelhantes: um foi destruído, outro desapareceu. Tais gestos finais
são parte da obra e de sua lógica indiciária radical. O que temos, no entanto,
são as fotografias das obras, que também não são sua representação mais fiel,
sua continuidade, mas um traço de seu efeito, um indício de que ali estiveram,
embora não estejam nem sejam mais; o ambos como a sombra que se desfaz;
209
IDEM — Ibidem, p. 114-5.
210
Cf. DIDI-HUBBERMAN, Georges O interminável limiar do olhar. O que vemos, o que nos olha.
Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 245 e 253, respectivamente.
74
sua presença fotográfica equivale ao desenho da sombra, que sustenta o indício
de que algo esteve ali e já não está mais; não como remeter ou ver novamente
a obra, sua diluição funciona como um modo de se atravessar a imagem, de vencê-
la. É a passagem pelo portal de Morris; é a fenda, novamente, aberta por Lucio
Fontana sobre a tela branca, ou a rachadura na esfera (a forma ideal da
escultura).
211
Diz ainda Dubois:
Essa perda de indicialidade, essa conquista de iconização, essa automização
temporal que, ao mesmo tempo que conserva uma relação de conexão real com o
referente, o como anterior, como origem ultrapassada, vê-se bem que isso
corresponde finalmente a um grande fantasma de qualquer representação
indiciária: ao mesmo tempo afirmar a existência do referente como uma prova
irrefutável do que ocorreu, e ao mesmo tempo, portanto, eternizá-lo, fixá-lo
além de sua própria ausência; mas também, por esse mesmo caminho, designar
esse referente mumificado como inelutavelmente perdido, doravante inacessível
como tal para o presente: é, no mesmo movimento, estatuificá-lo para sempre
como signo e remetê-lo como referente a uma ausência inexorável, ao
esquecimento, à carência, à morte.
212
Contrária à imagem compacta do realismo, a estética do índice corpo a
isso que antes se denominou imagem da ausência. Ressalte-se, no entanto, que a
noção de índice não coabita com a noção de imagem compacta. Ela se sobrepõe,
inviabilizando o desejo pelo total. Porque mais que um procedimento, o índice
se torna um modo de olhar o mundo, um modo que, a princípio, abandona toda a
metafísica da representação. Dessa imagem da ausência, o sentido se dará apenas
como provisório e por um agenciamento extrínseco. ("Disso se trata o sentido,
todo sentido, de um abandono de um termo por outro.")
213
Em outras palavras, a
lógica indiciária mostra que, contrariamente ao uso policialesco da imagem, que
a entende como prova de um evento, o que por trás dessa imagem é tão-somente
um relato.
Por outro viés, entretanto, o que o índice demanda é justamente
representação, toda a representação do mundo. Costuma-se atribuir à doença de
Alzheimer o codinome "mal do século", antes aplicado a outras enfermidades, tal
como a tuberculose fora no século XVIII. Trata-se de uma perda progressiva da
memória, a que talvez sequer seja possível denominar como doença, pois a
condição de se estar doente vislumbraria a possibilidade de se recobrar um
estado anterior, o que, no caso, não se aplica. (Na verdade não se aplica a
caso algum, porque retornar ao estado anterior será sempre impossível.) Para o
afetado, a condição de doente é passageira, porque uma vez manifestado o mal,
não volta: o indivíduo, embora exista, não é mais que seu próprio indício.
Pelo Alzheimer, o indivíduo abandona a si mesmo, remetendo-se a um lugar
inatingível para aqueles que permanecem no âmbito da normalidade. (Poderá ter
adentrado o portal de Morris, fugido pela fenda aberta por Fontana, quem poderá
211
Vale lembrar que a editora Mate ilustra a capa de Haicais, de César Aira, justamente com um
detalhe de Conceito espacial, de Lucio Fontana, 1964.
212
DUBOIS, Philippe — Histórias de sombra e mitologias de espelhos. Op. cit., p. 120.
213
Cf. AIRA, César — Osvaldo Lamborghini e sua obra. Arquivo, p. 188.
75
saber?) E nesse abandono não transgressão alguma, porque a transgressão
exigiria permanência para se caracterizar como tal. É algo inexorável. Toda a
medicação aplicada, os famosos inibidores, na verdade atua para aqueles que
assistem a esse abandono, tornando mais pacífico o convívio com o indício do
ente querido. Tal como a fotografia da obra que se destruiu, sua presença
indiciária demanda daqueles que permanecem na esfera do idioma todos os relatos
possíveis, todas as lembranças, todas as representações, na esperança de que a
identidade do afetado se manifeste por si mesma.
Borges desconfiava que Funes, o memorioso, não era muito capaz de pensar,
porque pensar demanda esquecimento, avanço dedutivo sobre as coisas, um avanço
que o índice possibilita. Funes não aceitava o índice; poderia partir dele,
mas nunca dele para outra coisa. Esse seria o movimento do pensamento, sua
sístole e diástole. Do índice, Funes reconstruiria a coisa em si, num avanço
para trás, indefinidamente.
214
Mas o índice não ilustra uma categoria específica da representação. Ele
age sobre tudo e todos. Todo museu, a rigor o lugar que garante a conservação
dos objetos primais da cultura, na verdade não guarda objetos, mas um indício
do Zeitgeist,
215
o "espírito de uma época".
216
Vimos antes o episódio da cabine telefônica, de Aira, como uma imagem da
realidade enquanto acidente, casualidade. Segue este episódio, em Fragmentos de
um diário nos Alpes, o "relato das plantas carnívoras". Vejamos.
Ana, interlocutora do nosso narrador, possui algumas plantas dessa
natureza. Prontamente, a dona das plantas lhe explica o modo como estas
capturam insetos e de como sua digestão é lenta. O narrador, por sua vez, não
hesita. Relata:
Vou buscar a câmera; quero levar fotos para meus filhos, porque de outro modo
não acreditarão em mim: as plantas carnívoras pertencem mais ao reino da
ficção que à realidade, e ainda que saibamos todos existirem de fato,
resistimos em aceitar que existem num lugar e num momento determinado.
217
Ana não se opõe e o observa bater as chapas, sem, no entanto, deixar-se
tirar nenhuma. Tem fobia. Com receio do efeito que as imagens possam produzir
214
Cf. BORGES, Jorge Luis — Funes, o memoriso. Ficções. Op. cit., p. 115-25.
215
Zeitgeist é um termo alemão, que se traduz como espírito do tempo, também podendo se
utilizar do termo em português para denominá-lo. O Zeitgeist significa, em suma, o nível de
avanço intelectual e cultural do mundo numa época específica. O conceito de espírito do tempo
remonta a Johann Gottfried Herder e outros românticos alemães, mas é melhor conhecido em
Filosofia da História, de Hegel. Em 1769, Herder escreveu uma crítica ao trabalho Genius
seculi do filólogo Christian Adolph Klotz, introduzindo a palavra Zeitgeist como uma tradução
de genius seculi (em latim, genius: "espírito guardião" e saeculi: "do século"). Os alemães
românticos, tentados normalmente à redução filosófica do passado às essências, trataram de
construir o "espírito do tempo" como um argumento histórico de sua defesa intelectual.
216
Cf., a esse respeito, CARVALHO, Flavio de Rezende As ruínas do mundo. Os ossos do mundo.
(1936) 2ª ed. São Paulo: Antiqua, 2005, p. 41.
217
AIRA, César — Fragmentos de un diario en los Alpes. Op. cit., p. 48.
76
às crianças, Ana pede ao fotógrafo de ocasião uma série de precauções ao
mostrar as fotos: dizer aos filhos que possui as plantas por mero acaso, o dono
do viveiro de quem é cliente lhe presenteara porque não conseguia vendê-las a
ninguém e iria destruí-las caso não as levasse... Em suma: não queria que as
crianças pensassem ser ela uma bruxa. Feitas as fotos, o narrador do diário
acrescenta:
Estou certo de que ficarão todas ruins. Tenho sorte as fotos, ou talvez
devesse dizer que a sorte foi ter nascido sem talento para essa arte tão
excepcional. Me consolo pensando serem apenas rascunhos, fotos-documento. Com
os bonsais sequer faço uma tentativa. Suponho que em se tratando de algo
cujas dimensões importam, é necessário algum refinamento, o que está além de
minhas possibilidades. É como se as miniaturas regessem um relato; isso é
algo que estou aprendendo sobre a casa e sua população: quando se chega ao
fundo da descrição de um objeto, quando se abandona o mundo das dimensões
normais em que nos movemos (ou seja: quando não resta nada por dizer) nasce
um relato. O que nasce é fatalmente um relato. Talvez esteja a origem de
todo relato.
218
O relato, então, se mostra um dispositivo capaz de lidar com as
oscilações e com a captura sempre incompleta das coisas (das imagens, da
história). Em Aira, ele retorna como uma forma de sobreposição à pretensão
totalizadora da escola realista, bem como sobre a experimentação vanguardista
do romance argentino das décadas de 1960 e 70.
219
O relato é algo semelhante ou
tributário à teoria da arte que o narrador menciona ainda no início do diário:
"uma transformação, uma redefinição".
220
Este processo é o que pouco a pouco se
demonstra ao longo da narrativa, através do "uso das imagens, e sua relação com
os donos da casa".
221
Um exemplo (Aira reitera em vários de seus textos o perigo da armadilha
que são os exemplos: eles não exemplificam nada, porque se trata de um
movimento impossível. Costumamos considerar os exemplos como pontos neutros ou
subalternos a uma idéia que lhes seria anterior e maior; seriam pontos de
ilustração, de comunicação entre duas singularidades. Mas não. Os exemplos não
são exemplos, e sim a coisa em si. São "invenções particularíssimas as quais
generalidade alguma gerencia".
222
Conceber esse movimento seria como pensar a
ausência do neutro porque tudo, absolutamente tudo, é neutro) seria o
calendário que os habitantes possuem na casa: a folha correspondente a cada
218
IDEM — Ibidem, p. 49.
219
um ensaio de Aira intitulado "Novela argentina: nada más que una idea" (um título
apelativo, aliás, distinto de todos os seus demais trabalhos), publicado na revista Vigencia,
n. 51 (Buenos Aires, Universidad de Belgrano, p. 55-8), datado de agosto de 1981, no qual
discute a condição da literatura argentina daquele momento e, mais especificamente, a condição
vanguardista dessas narrativas. Entende-as como bons produtos "dessa retaguarda da vanguarda
que hoje em dia é a única vanguarda de que dispõem aqueles que não praticam a literatura a
sério. Em nosso século, a vanguarda artística passou por três momentos: primeiro a prática,
depois a teoria, e agora a prática que obedece à teoria". Trata-se de um vanguardismo de
brincadeira, um modo de se anteceder à crítica, bem como uma política que se pode aplicar em
toda e qualquer ocasião (cf. Arquivo, p. 169).
220
IDEM — Fragmentos de un diario en los Alpes. Op. cit., p. 18.
221
IDEM — Ibidem, p. 7.
222
IDEM — A nova escritura. Cf. Arquivo, p. 222.
77
dia, destacável, vem estampada com um ou mais ursos de pelúcia, dispersos num
cenário ou carregando adereços bastante específicos. Conta terem os habitantes
adquirido o calendário apenas por simpatia, mas com o passar dos dias acabaram
por descobrir seus poderes de significação.
O dia dos atentados em Nova York, na semana passada: um ursinho
bombeiro saindo veloz ao resgate, sobre um carro hidrante.
O sábado, dia de minha chegada ao vale; um urso de óculos lendo um
livro.
Lógico que uma boa parte fica a critério da interpretação. Da magia se
tem de descontar a extrema ambigüidade do urso antropomorfo. Além disso,
pode-se fazer pirraça.
223
Trata-se de um processo de atribuição errônea, que nada mais é que a
teoria do ready-made, ou seja, "métodos, máquinas que sustentam a si próprias,
sem exterioridade e que dilapidam sua energia sem gerar coisa alguma", sublinha
Graciela Montaldo.
A roda de bicicleta de Duchamp ou a destruição do supermercado, em A prova
continua a crítica provam pouco ou nada, funcionam para si, não para os
outros, se exibem mas não produzem nem reproduzem. Essas máquinas-obras são
simples (fazem-se, em geral, através de métodos lógicos, são postulações
sobre o papel), baratas (armam-se com dejetos: trapos, restos, sucatas,
diagramas, fórmulas) e não servem para nada (depois de se descrever seu
funcionamento, chega-se à conclusão de que não são necessárias para se chegar
a um determinado fim; ao contrário, deixam o produto desembalado). Essa falta
de produtividade, essa falta de objeto e finalidade para as mais sofisticadas
criações intelectuais, esse celibato radical da literatura e da arte é o que
lhes permite ser o exercício da liberdade e de se preservar da instituição.
224
Se tais "artefatos sem objeto", poderíamos dizer, já não se acomodam
entre os saberes instituídos pós-vanguarda, é porque deles emana um pensamento
que novamente exige uma reconfiguração do saber. Deles brota um comportamento
ético que ultrapassa o que comumente entendemos por ética. É nesse aspecto que
nos deteremos, em detalhe, daqui por diante.
223
IDEM — Fragmentos de un diario en los Alpes. Op. cit., p. 19-20.
224
MONTALDO, Graciela — Vidas paralelas: la invasión de la literatura. Op. cit., s.p.
78
CAPÍTULO 2
2.1 A DESISTÊNCIA
Sobre o pensamento, ainda não o sabemos. Não saber o pensamento.
Poderíamos parar aqui. Está tudo dito.
Quando se diz "arte", hoje, se diz o quê? Há alguma unidade pertinente do
nome? Os nomes iludem, dão a impressão de matéria, de substância que existe, de
coisa do mundo, que podemos carregar e consultar na enciclopédia portátil de
que nos valemos cotidianamente para isso a que também se tem um nome,
comunicação. O que sabemos, no entanto, é que o sentido de fato varia conforme
o lugar de enunciação: segundo a tradição que remonta ao platonismo, trata-se
de uma habilidade ou disposição dirigida para a execução de uma finalidade
prática ou teórica, realizada de forma consciente, controlada e racional;
segundo o aristotelismo, um conjunto de meios e procedimentos através dos quais
é possível a obtenção de finalidades práticas ou a produção de objetos, ou
seja, uma técnica. Podemos seguir o esquema filológico, entendendo arte como
habilidade e seu uso, tanto no pensamento como na experiência, como acervo de
obras, conhecimento, esmero técnico, requinte, profissão, dom, perícia, modo,
fascínio, artimanha, produção consciente de um ideal de beleza, sensibilidade,
tendência geral das manifestações artísticas em determinada época, fase, lugar,
manufatura, setor específico de acabamento de uma produção gráfico-visual,
enfim. Mesmo variando conforme o local de enunciação, é certo também que em
todas essas referências a arte permanece como esfera particular, uma atividade
sempre atada à organização social. Pode-se falar de arte como se pode falar de
economia, educação, mecânica, jardinagem, cultura, o que mais quisermos. Podem-
se estabelecer dispositivos, combinações ensaísticas do tipo A e B, arte e
economia, arte e mecânica, ou A em B, arte na economia, economia na arte, e
outras mais, infinitamente, pois a linguagem nos permite. Alain Badiou retoma
uma combinação bastante antiga, arte e filosofia, que aqui nos interessa
tanto quanto arte e verdade, arte e pensamento, arte e leitura, pensamento e
leitura.
Numa de suas conferências apresentadas durante sua primeira vinda ao
Brasil, em 1993, e publicadas sob o título Para uma nova teoria do sujeito,
Badiou encerra sua fala com uma pergunta categórica: Quais são as configurações
contemporâneas entre arte e filosofia?
225
Anos mais tarde, em 1998, ao publicar
225
Cf. BADIOU, Alain Arte e filosofia. Para uma nova teoria do sujeito. Conferências
brasileiras. Trad. Emerson Xavier da Silva; Gilda Sodré. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994,
p. 29.
79
seu Pequeno manual de inestética, o ensaio "Arte e filosofia" retorna, ampliado
e com algumas modificações, mas a pergunta permanece. Permanece porque concerne
à própria existência da arte contemporânea, todo o pensamento contemporâneo se
ocupa em apontar e constituir um viés para a questão. A diferença entre os dois
ensaios se porque Badiou, com o passar dos anos, ensaia ele mesmo uma
resposta, que passaria pela elaboração de uma nova relação entre arte e
filosofia.
No fim do século XX esta relação se mostra em três esquemas fundamentais.
No primeiro, a que Badiou chama didático, a arte é incapaz de verdade, ou toda
verdade lhe é exterior. A arte é um encanto, uma sedução, e, assim sendo, deve
ser recusada, tal como preconizava Platão. Essa recusa se justifica pela razão
de que como encanto, trata-se da aparência de uma verdade sem fundamento, não
argumentada, esgotada em seu estar-aí. O cerne da polêmica reside na idéia da
arte não como imitação das coisas, mas como imitação do efeito de verdade. E
deixar-se cativar por uma imagem menospreza a verdade: esta não pode se
utilizar da sedução, pois isso invalida a força do labor dialético. A arte, no
esquema didático, é tão-somente a sedução de uma aparência de verdade. Daí que
ela deva ser tratada apenas em caráter instrumental, e mantida sob forte
vigilância filosófica, que a sustém sob a ordem da educação a fim de que não se
torne um embuste. A arte, aqui, pode ser controlada, valendo apenas por seus
efeitos públicos.
O segundo esquema, romântico, preconiza, ao contrário, que somente a arte
é capaz de verdade; ela realiza aquilo que a filosofia pode apenas indicar.
Trata-se de um corpo glorioso, intocável. É a própria arte que educa, revelando
o infinito a partir de uma forma coesa, bem como mostrando a esterilidade
subjetiva do conceito.
Esquivo à rudeza de um controle (o esquema didático) e ao êxtase de uma
fidelidade (o esquema romântico), aparece um terceiro esquema, o clássico.
Sustentado por Aristóteles, este esquema reincide na argumentação platônica:
sim, a arte não é capaz de verdade, que sua essência é mimética. Mas isso
não deve preocupar, porque o destino da arte não é a verdade, já que ela sequer
pretende isso. A arte tem uma função terapêutica das afecções da alma; é
catártica, não reveladora. Não depende do teórico, mas do ético. Seu critério é
agradar, e nisso reside sua semelhança com o real (a verossimilhança), na
identificação do espectador que à obra transfere e trabalha suas paixões. No
esquema clássico, em suma, a arte é um serviço público, e é assim que o Estado
a concebe. Entre verdade e verossimilhança, a relação arte/filosofia repousa
tranqüilamente. Todavia, o preço pago por essa tranqüilidade é o de que a arte
não constitui um pensamento, mas subserve como instrumento na educação dos
indivíduos e se confina, com maior ou menor grau entre os esquemas, na ala que
a filosofia lhe dedica especialmente: a estética.
80
Ao fim do século XX, pondera Badiou, — e na incipiência do século XXI,
podemos acrescentar o fato é que não se geraram esquemas novos, ou com a
mesma amplitude, caso não queiramos ser tão categóricos, para a relação
arte/filosofia. Conservadora, a chancela dos últimos cem anos pode, quando
muito, ganhar a qualidade de eclética. Badiou se pergunta pelas disposições
solidamente destacáveis do pensamento no século XX, quais seriam? O marxismo, a
psicanálise e a hermenêutica. Poderíamos ressalvar a consideração e indagar
pelo estruturalismo, e mais ainda, pelo pós-estruturalismo. Este certamente
produziria formulações diferenciadas para a conjugação arte/filosofia,
perpassando, inclusive, o fim destas mesmas categorias. Uma hipótese seria a de
que algo como o pós-estruturalismo ou a desconstrução não sustenta, digamos,
disposições do pensamento solidamente destacáveis, ao menos no mesmo "grau" ou
para ele concebíveis, talvez apenas por ainda não terem passado à ordem da
situação, permanecendo como acontecimentos irredutíveis. Das três disposições
citadas por Badiou, os esquemas se mantêm intactos: o marxismo é didático
(pensemos no platonismo do teatro brechtiano); a psicanálise, clássica (a arte
demonstra a causa do desejo, o encetamento do simbólico pelo real); a
hermenêutica, romântica (a interpretação consegue apenas entregar o poema à
finitude do pensamento, permanecendo o poeta como o guardião do Aberto).
Embora sem elaborar um novo esquema, o novo século não deixa de assinalar
a saturação dos mesmos, sublinha Badiou.
O didatismo está saturado pelo exercício histórico e estatal da arte a
serviço do povo. O romantismo está saturado pelo que de pura promessa,
sempre ligada à suposição do retorno dos deuses no aparato heideggeriano. E o
classicismo está saturado pela consciência de si que a demonstração completa
de uma teoria do desejo lhe proporciona: daí, caso não se ceda às miragens de
uma "psicanálise aplicada", a convicção ruinosa de que a relação da
psicanálise com a arte é sempre apenas um serviço prestado à própria
psicanálise. Um serviço gratuito da arte.
226
Restaria ainda perguntar pelas vanguardas. As vanguardas, para Badiou,
não foram além de experiências, mediando instâncias e resultando algo como um
esquema didático-romântico: didáticas pelo desejo de dar um fim à arte;
românticas pela convicção da auto-referencialidade. A situação atual, portanto,
além de revelar a saturação dos três esquemas, conta também com o esgotamento
de toda e qualquer iniciativa vanguardista que almeje o mesmo efeito.
Urge, portanto, formular um novo esquema. O que há de comum entre os
esquemas apontados, sem dúvida, toca à relação da arte com a verdade, e essa
relação implica fatores aentão assimbiônticos: imanência e singularidade. A
imanência indaga se a verdade é parte interna da arte e tão-somente uma
parte, uma parte constitutivamente imanente, o demonstravelmente existente
ou se a verdade lhe é sempre exterior, a obra não passando de um instrumento. A
singularidade, por sua vez, pergunta se a verdade testemunhada pela arte
226
IDEM — Ibidem. Pequeno manual de inestética. Op. cit., p. 18.
81
concerne somente a ela mesma ou se essa verdade pode se transportar intacta
através de outros registros do pensamento operante. Por essas questões, Badiou
aventa que em nenhum dos esquemas apresentados convivem, simultaneamente,
imanência e singularidade.
Ora, o que se constata? Que, no esquema romântico, a relação da
verdade com a arte é de fato imanente (a arte expõe a descida finita da
idéia), mas não singular (pois se trata da verdade, e o pensamento do
pensador não se coaduna com nada que difere do que o dizer do poeta desvela).
Que, no didatismo, a relação é certamente singular (só a arte pode expor uma
verdade sob a forma de aparência), mas de modo algum imanente, pois em
definitivo a posição da verdade é extrínseca. E que, finalmente, no
classicismo, trata-se apenas do que uma verdade coage no imaginário, sob a
forma do verossímil.
227
Pois bem, na simultaneidade inédita entre imanência e singularidade se
pauta um novo esquema possível. E afirmar essa simultaneidade implica dizer que
não há relação entre arte e verdade (a própria noção de "relação" indicaria,
pois, a cisão). A arte é propriamente um procedimento de verdade. (O que
também, vale dizer, não significa afirmar que a arte seja a verdade; a verdade,
dissemos antes, é imanente à obra, uma de suas partes, cuja dimensão não é
possível mensurar.) "A arte é um pensamento cujas obras são o real (e não o
efeito)."
228
Esse pensamento, ou as verdades por ele ativadas, sublinha Badiou,
permanecem irredutíveis a outras verdades o que aponta sua singularidade,
sejam tais verdades científicas, políticas ou amorosas.
Talvez seja equivocado, a essa altura, pensar que apenas determinadas
obras produzam a simbiose imanência/singularidade, ou que se trate de uma
peculiaridade da produção artística recente. Nesse caminho, não iríamos além do
mecanismo que reincide naquilo que critica, porém acrescentando às suas
modulações o prefixo "pós". Pensar essa relação simbiôntica implica repensar
toda a arte; caso não seja assim, reincidiríamos no esquema didático, quitando
novamente a imanência, i.e., mais uma vez a teoria viria de fora, gerindo o
instrumento arte, projetando a verdade que só ela seria capaz. Não.
Se esse quarto esquema afeta toda a arte, não interessa de que obra
estamos falando. o interessa a obra. o se pode falar da obra. Se
entendemos a obra como um procedimento de verdade, sabemos que isso não se
no objeto-obra, pois o objeto não é a verdade materializada, instransponível
ou não, conforme o esquema de agenciamento. O objeto pode ser a forma finita do
infinito, não mais. Quando vemos/lemos uma "obra", não vemos uma verdade,
simplesmente porque não verdade a ser vista. A obra faz parte da composição
do processo, que não termina no limite autor/leitor. O limite não limita
nada. Esse objeto-obra será parte do acontecimento que, encontrando o alguém-
leitor (na falta de uma palavra melhor), requisita um novo sujeito, mostrando
227
IDEM — Ibidem, p. 20, itálico nosso.
228
IDEM — Ibidem.
82
não uma elucidação (a revelação de um segredo) mas a permanência de um
mistério,
229
i.e., a reinserção naquilo que podemos chamar, simplesmente, de
contínuo: o contínuo do pensamento. A questão, tanto em Aira quanto em Badiou,
é categórica: como, longe das certezas e das substâncias, continuar a pensar?
O que implode, aqui, em última análise, é a função pedagógica: "A arte
educa simplesmente porque produz verdades e porque 'educação' jamais quis dizer
nada além (a não ser nas montagens opressivas ou pervertidas) do seguinte:
dispor os conhecimentos de tal maneira que alguma verdade possa se
estabelecer".
230
Primar pelo contínuo, retirando a arte da condição prestadora de serviços
à instituição teoria, é dar possibilidade ao pensamento, tanto o anterior, que
na ordem do encontro disparara o acontecimento/sujeito, quanto o que advém,
agora imune à condição tanto legisladora quanto interpretativa da "obra de
arte", e livre, por fim, do peso dos significados.
O objeto-obra continua existindo, sem vida, embora, após saber como
fazê-lo, sua realização se torne bastante inútil. O objeto continua existindo
simplesmente porque a instituição, o museu, o modernariato
231
exige a presença
finita do infinito. Para a economia, a ausência do objeto poderia também
sinalizar um problema, mas nada tão grave que um mero ajuste técnico não
resolva: à bolsa de valores basta um nome.
2.2 UMA TRAPAÇA, UM ESTRAGO
"A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância
que a literatura nos importa" a frase, de Roland Barthes, é pronunciada em
sua Aula Inaugural no Collège de France, em 1977, mas poderia ser de Andrei
Tarkovski, que à mesma época se dedica ao texto de Stalker. No filme, grosso
modo, três homens lançam-se numa terra baldia a fim de adentrar a ZONA. Trata-se
de um território interditado, atingido por um fenômeno cósmico que, após uma
misteriosa catástrofe (o cenário nos mostra um mundo em fragmentos), e
quando boa parte do planeta tornou-se inabitável, guarda em seu interior um
núcleo, um quarto que, ao ser acessado, permite ao visitante realizar todos os
seus desejos. Não deve ser gratuito, vale a pena reparar, que os três
229
Cf. a distinção esboçada por César Aira em "O ingênuo": claro que 'mistério' é uma
palavra vaga, a que se pode atribuir qualquer significado. Defino-a como o oposto de
'segredo': um segredo, por mais protegido que esteja, sempre acabará por se revelar; o
mistério, ao contrário, é insolúvel, implica as próprias categorias mentais que poderiam
elucidá-lo" (Cf. AIRA, César — O ingênuo. Arquivo, p. 243).
230
BADIOU, Alain — Arte e filosofia. Pequeno manual de inestética. Op cit., p. 21.
231
Termo cunhado por Paolo Virno para a acumulação de quinquilharias pela modernidade (cf.
VIRNO, Paolo — Il ricordo del presente. Saggio sul tempo storico. Torino: Bollati Boringhieri,
1999, p. 41-7).
83
personagens do filme sejam um Escritor, um Cientista e um guia, ou seja, um
Stalker. A conversa que antecede a saída, num bar, é a seguinte:
[Professor] Quer dizer que ele vem conosco?
[Stalker] Logo ficará claro. Também precisa ir pra lá.
[pausa]
[Escritor] O senhor é realmente professor?
[Professor] Como quiser...
[Escritor] Está bem, permita que me apresente. Chamo-me...
[Stalker] Chama-se Escritor.
[Escritor] Ok. E o senhor é Professor.
[Professor] Eu sou o Professor.
[Escritor] Claro! Como escrevo, todos me chamam, por alguma razão, Escritor.
[Professor] E sobre o que escreve?
[Escritor] Sobre os leitores.
[Professor] Sim, sobre outro assunto nem vale a pena escrever.
[Escritor] Em princípio, não vale a pena escrever sobre nada. [pausa] E você,
é químico?
[Professor] Antes físico.
[Escritor] Deve ser tão enfadonho buscar a verdade. Ela se esconde e vocês
procuram. Ora cavam aqui, depois cavam ali. E encontram algo cujo núcleo é
constituído de prótons. Mais uma cavada, e que beleza: o triângulo ABC é
semelhante ao triângulo A'B'C'. Comigo é diferente. Eu encontro essa
verdade. Mas enquanto cavo ela se transforma, e por uma razão
desconhecida, ao invés da verdade encontro um monte de... Preferiria não
dizer do quê.
[um apito]
[Stalker] Ouvem? É o nosso trem.
232
Nesse hiato, nesse "preferiria não" do Escritor, que bem poderia ser
Barthes, ou Bartleby, a personagem de Melville, abre-se o espaço onde toda
epistemologia se consome, se gasta, se esvai. Um nada que passa a entender que
a potência não reside em evocar mais um nome, mais uma positividade, e sim numa
recusa. Porque a recusa ao nome (ou a recusa à ação) se mostra, então, como o
gesto inusitado da potência. (Levar o argumento adiante é permanecer na lei. E
o hiato não se trata, é bom dizer, de um direito de permanecer calado não
corresponde ao fim da fala, mas à sua possibilidade, seu não-mesmo.)
Interessa aqui reparar que, sem um contato direto (as coisas simplesmente
independem), a fábula de Tarkovski contém, a vácuo, boa parte da argumentação
(do conflito, talvez) que Barthes desenvolve na Aula, pronunciada enquanto
aquele preparava o filme.
Esse espaço não-elementar, ou seja, esse espaço não constituído por
prótons (a saber, a parte mais estável da matéria) e que o Escritor, em
Stalker, entende como a verdade que se transforma, a verdade que se reconhece
verdade em sua falsidade ou, por outra, diríamos que próprio da verdade é seu
revogar, não seu estabelecimento —, Roland Barthes entenderá como uma das
forças de liberdade que residem na literatura, uma sorte de mathesis, de
conhecimento geral. A literatura (uma prática) faz girar os saberes, sem no
entanto fixar ou fetichizar nenhum; a estes concede um lugar indireto, incerto,
232
TARKOVSKI, Andrei — Stalker, 1979, 19'.
84
e nisso fragua outros saberes possíveis, irrealizados.
233
O saber que a
literatura mobiliza, assim, nunca é inteiro nem derradeiro; ela trabalha nos
interstícios da ciência, está sempre atrasada ou adiantada, sem que isso
constitua um valor, pois não se trata de uma dicotomia Ciência/Letras; do ponto
de vista da linguagem, observa Barthes, são apenas lugares diferentes de fala:
na ciência, o saber é um enunciado (possui, é um limite); na escritura, ele é
uma enunciação sempre potência, o infinito, o aleph). A escritura, em suma,
está em todo lugar onde as palavras têm sabor.
234
Muito antes, sabemos, Jakobson tentara estruturar uma ciência da
literatura, nomeando o elemento irredutível que faria de uma obra literária,
uma obra literária: a literariedade (literaturnost).
235
O paradoxo dessa
ciência, no entanto, adverte Alberto Giordano, é que
a busca da "literariedade", busca que a literatura realiza e à qual nos
convida como leitores, não pára (não deve parar) nunca e obriga àqueles que
com ela se comprometem ir sempre além, a transbordar toda e qualquer
representação. A literatura reflete sobre si mesma, quer captar em si aquilo
que possui de essencial e dar uma representação de sua essência, mas não
encontra e isso é decisivo o começo nem o fim do ato, e sim o vazio. Ela
se mostra, se autodesigna, mas faz isso de um modo equívoco: a literatura é
sempre algo mais e algo menos que literatura. Se fosse ela mesma, ainda
não seria ela mesma.
236
O mecanismo da ciência da literatura, ou seja, a idéia de auto-
reflexibilidade, de uma linguagem que remete a si antes de se projetar a um
referente anterior e exterior, podemos aventar, seria o elemento disciplinador
(vigilante, diria Foucault) inerente ao procedimento científico. Novamente,
seria o poder didático que se projeta sobre caos e o organiza sob a tutela do
nome: caos. Por meio dessa vigilância, o mecanismo instantaneamente tenta
converter à ordem da situação a irredutibilidade do acontecimento. Seria este o
efeito panóptico sobre a escritura, que automatiza o discurso para originar ou
encorpar um saber. A resposta da literatura a esse saber, outorgado pela
ciência (cuja função é fornecer estatuto ao desconhecido),
237
é irônica, porque
diz ao poder que nele próprio algo que o supera e desborda: a ficção. Para
estatizar um saber, a ciência não dispõe de outro mecanismo que não o de
produzir uma ficção.
238
É o princípio básico do panóptico: "Uma sujeição real
233
Cf. BARTHES, Roland — Aula. Op. cit., p. 19.
234
IDEM — Ibidem, p. 21.
235
Cf. JAKOBSON, Roman — A moderna poesia russa. Ensaio I. Praga, 1921, p. 11 apud EIKHENBAUM,
B. — A teoria do método formal. Teoria da literatura: formalistas russos. Op. cit., p. 8.
236
GIORDANO, Alberto — El efecto de irreal. La experiencia narrativa. Op. cit., p. 13-4.
237
Cf. BARTHES, Roland — Da ciência à literatura. O rumor da língua. Op. cit., p. 4.
238
"Existe outra história que não seja o relato da história? Os fatos têm significação antes
de pertencer à trama que o relato constrói? Quais são, se é que existem, os limites entre o
relato ficcional e o relato da história? Porque se o relato (de relacionar, vincular algo a
algo) outorga sentido às coisas, assume também a responsabilidade intransferível de erigir uma
verdade" (SCHMUCLER, Héctor La única verdad es el relato. Babel Revista de Libros a. II,
n. 9. Buenos Aires, jun. 1989, p. 28).
85
nasce mecanicamente de uma relação fictícia",
239
e assim, sobre a torre (não
dentro, que o panóptico é também um regime ficcional) que organiza o
discurso, a língua, a literatura devolve à ciência a fragilidade de sua
condição.
A redução do literário à auto-representação pressupõe também o apagamento do
vínculo essencial que liga a literatura com a realidade. Sua simplificação é,
nesse sentido, complementária à do realismo, porque, se naquela se
hierarquiza a realidade sobre a literatura, aqui não outra realidade que
não a literária: a literatura como real, como causa de si mesma.
Realismo/auto-representação: os termos se opõem, porém sobre a base de um
predicado comum: a crença na possibilidade de se representar certezas (a da
realidade, a da literatura) pela linguagem. Concebida como uma busca do
incerto, uma revelação daquilo que nas evidências se mascara, a literatura
não encontra nessa crença ingênua nada mais que um obstáculo.
240
"A literatura é sempre uma intenção desviada", diz César Aira.
241
Essa
peculiaridade da literatura se pelo estrago que ela produz na linguagem. E
esse estrago seria aquilo no que os homens trabalham mas que, ao mesmo tempo,
também os trabalha. Trata-se de uma linguagem-limite que rejeita e se esquiva
daquilo que Foucault, tempos antes, também no Collège de France, entenderia
como a ordem do discurso, e que Badiou, mais tarde, formalizaria como a ordem
da situação. São exemplos que remetem para aquilo que Barthes detecta como o
poder que se inscreve sobre a linguagem, em sua expressão obrigatória: a
língua. A linguagem, digamos, legisla a língua, seu código, e esta, por sua
vez, nos exige permanecer em seu interior, para que nos movimentemos conforme
sua lei. Daí que Barthes entenda a língua como um fascismo que não impede, mas
obriga a dizer.
Essa sim será uma condição final, porque haverá liberdade por fora da
linguagem
242
onde, diz Lacan, não é possível estar. A língua, para Barthes,
"deve ser combatida, desviada: não pela mensagem de que ela é o instrumento,
mas pelo jogo de palavras de que ela é o teatro",
243
pois a literatura uma
estratégia não utiliza a linguagem, ela a encena, engrenando o saber ao
infinito, e desvinculando-o da pura demonstração. O saber se dilui; seu
discurso não é mais epistemológico, mas dramático.
244
Isso tudo nada tem a ver com a instituição literatura, ou com a
instituição arte, caso tenhamos de reconhecê-la por locais (a academia, o
museu) e objetos (o livro, o quadro, a escultura). A essa classe de
materialidades é que se refere quando falamos em crise, e a troca de suportes
do discurso, certamente implicando numa série de modificações de toda natureza,
239
FOUCAULT, Michel O panoptismo. Vigiar e punir. Nascimento da prisão. ed. Trad. Ligia
M. Pondé Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 178.
240
GIORDANO, Alberto — El efecto de irreal. Op. cit., p. 14.
241
AIRA, César — Best-seller e literatura. Cf. Arquivo, p. 176.
242
Cf. BARTHES, Roland — Aula. Op. cit., p. 15-6.
243
IDEM — Ibidem, p. 17.
244
IDEM — Ibidem, p. 19.
86
não deve no entanto ser vista como perda. É inexorável, aconteceu e
continuará acontecendo.
Como procedimento, a literatura persiste, necessariamente. Vira
estratégia: um uso da linguagem que tenta se esquivar do fascismo da língua,
mas que nisso pode se transformar, decantar, diluir, chegando a outros lugares,
por diferentes vias. Enzensberger enuncia, sem ilusão, uma imagem precisa dessa
mudança de estado:
Vejam este copo de água, olhem agora para esta aspirina branca e observem
atentamente o que acontece. A instituição (literatura) se dissolve, mas não
desaparece. Ela continua existindo, mas deixa de chamar atenção. Finalmente
distribuída, ela continua existindo como solução e como dispersão. A
concentração diminui, mas agora ela está onipresente. Observem outro detalhe
que poderá se revelar significativo, apesar de não podermos ter certeza.
Estou me referindo ao sedimento. Se observarmos atentamente, perceberemos um
depósito esbranquiçado no fundo do copo, o resíduo persistente do concentrado
original. Estes resquícios obviamente resistiram à dissolução. Podemos
ignorá-los, uma vez que parecem ser insignificantes quando comparados com a
grande aspirina original. Mas quem sabe...
245
A instituição é a ZONA, esse território em ruínas visitado pelos três
homens esboçados por Tarkovski, o professor, o cientista e o guia, cuja jornada
não é diferente da das mil gotas de tinta que abandonam a tábua da Gioconda, no
Louvre, e saem pelo mundo, pelo cosmos. Porque o que une esses dois relatos é a
necessidade em ambos de se criar novos regimes ficcionais, de ainda poder
fabricar verdades, cuja consistência será não mais que a de um relato, e que,
justamente por essa forma, volta a dar possibilidade ao pensamento através de
um mecanismo bastante simples: o mal-entendido.
246
Por esse vão torna a ganhar
potência um efeito, o incompreensível, que impele o sujeito para adiante, e
cujo meio é também ou principalmente a literatura que pode ser apenas isto,
um nome, do qual nos valemos para seguir adiante e projetar novas
assimetrias.
247
Acho que a literatura funciona assim: quando alguém está escrevendo, tudo é
sobreentendido (tudo se entende muito bem para ele); quando o lêem, tudo é
mal-entendido, necessariamente. A literatura é um salto do sobreentendido ao
mal-entendido, sem nunca se deter no ponto médio, o "entendido". Se é
245
ENZENSBERGER, Hans Magnus Literatura como instituição ou O efeito aspirina. Mediocridade
e loucura e outros ensaios. Trad. Rodolfo Krestan. São Paulo: Ática, 1995, p. 32.
246
"O mal-entendido não se resolve jamais. Não se resolve porque não é esse seu destino. Para
resolvê-lo seria preciso voltar atrás, rebobinar, e se sabe que por fora da ficção não se
volta ao passado. O destino do mal-entendido é justamente o contrário: fazer avançar o tempo,
arquitetar outros mal-entendidos, multiplicá-los e torná-los mais eficazes, deles fazendo
verdades que sirvam para viver e criar." (AIRA, César — O incompreensível. Cf. Arquivo, p. 240.)
247
"Por vezes pensei", diz Aira, "que todo o meu trabalho poderia se definir, em resumo, como
a busca de belas novas assimetrias. É uma palavra negativa, agora percebo, mas tomo-a em seu
sentido positivo, criativo. Ao fechamento das simetrias oponho a abertura dos desequilíbrios,
as adições inesperadas. Talvez seja uma tentativa de continuar criando, de resistir ao fim. A
obra de arte acabada sempre estabelece uma simetria; a assimetria a mantém em processo.
Gostaria que fosse uma 'assimetria ampliada', que operasse com todos os planos num contínuo:
forma, conteúdo, ficção, realidade. Certamente não estou me explicando bem: são intuições
obscuras, mas que me bastam para escrever. também prefiro que se mantenha a assimetria,
entre o pensamento e a ação." (IDEM — Asimetrías. Entrevista a Benjamin S. Johnson. Op. cit.)
87
possível entendê-lo, não é literatura. O que se entende é o discurso
utilitário.
248
Santo Agostinho, lembra Aira, dizia que o mundo é conhecido por Deus,
pois Ele o fez. "Nós não, porque não o fizemos. A arte seria, então, a
tentativa de se chegar ao conhecimento através da construção do objeto por
conhecer; esse objeto não é outro senão o mundo. O mundo entendido como uma
linguagem. Não se trata de conhecer, mas de atuar."
249
Um teatro, uma festa,
portanto, uma farsa, uma trapaça. "Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse
logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma
revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura", diz
Barthes.
250
E essa descompostura, essa desobediência,
251
trata-se, na verdade, de
uma ética,
252
ou seja, de "instituir no próprio seio da linguagem servil uma
verdadeira heteronímia das coisas".
253
2.3 ÉTICA
É preciso, a essa altura, desvencilhar o termo. Alain Badiou tem se
dedicado a uma crítica radical do uso genérico, ideológico, abstrato e
indiscriminado da palavra, proliferante em suas variantes socializadas na
política, no direito e nos meios de comunicação.
254
Mote da filosofia que
coordena a existência prática com a representação do bem, a ética assume, hoje,
uma forma substancial que atua contrária a todo pensamento, firmando-se por um
dispositivo jurídico, fortemente institucional, pautado pela experiência do
Mal, i.e., fundamentalmente a experiência do século XX, a da catástrofe.
Repassemos momentaneamente os argumentos de Badiou.
Dos estóicos aos modernos, o conceito de ética sofre diversas adaptações
e releituras, embora, na versão atual, permaneça preso a uma orientação
religiosa e jurídica, pautada em categorias universalizantes e abstratas (a
saber, Homem, Direito, Outro). Para os modernos, que desde Descartes se ocupam
da questão do sujeito, ética é mais ou menos sinônimo de moral; Kant a entendia
como sinônimo de razão prática, diferente da razão teórica. Implicaria,
portanto, as relações da ação subjetiva e de suas intenções representáveis com
248
IDEM — Ibidem.
249
IDEM — A nova escritura. Cf. Arquivo, p. 222.
250
BARTHES, Roland — Aula. Op. cit., p. 16.
251
Lembremos certa passagem de O prazer do texto: "um arrebatamento (marginal, excêntrico)
rumo ao Novo arrebatamento desvairado que poderá ir até a destruição do discurso" (IDEM O
prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 55).
252
"Eticamente, é tão-somente pela travessia da linguagem que a literatura persegue o
abalamento dos conceitos essenciais da nossa cultura, em cuja primeira linha, o de real", diz
Barthes, em "Da ciência à literatura" (IDEM O rumor da língua. Op. cit., p. 5).
253
IDEM — Aula. Op. cit., p. 29.
254
Cf. BADIOU, Alain — Ética. Um ensaio sobre a consciência do Mal. Op. cit.
88
uma Lei Universal; seria o princípio de julgamento das práticas de um Sujeito,
o do cogito, seja ele individual ou coletivo. Hegel, mais tarde, estipulará
uma diferença sutil entre ética e moral: o princípio ético rege a ação
imediata, enquanto a moralidade concerne à ação refletida; seria, portanto, uma
ética da decisão. Em versão kantiano-utilitarista, a ética contemporânea se
mostra novamente como uma ética do juízo, espécie de marco regulador das
situações históricas, científicas, sociais e midiáticas, ou seja, legislando
códigos tais como os direitos humanos, a bioética, bem como arrematando
condutas sociais, como a política do "estar-junto".
Certamente como uma medida saneadora do mal-estar gerado pelas
intervenções do marxismo revolucionário, cuja convivência implicaria no
abandono das certezas e objetividades positivistas que organizam o mundo
(Foucault entendia o Homem como um conceito histórico e variável; Althusser via
a História como um processo sem sujeito; Lacan, por sua vez, distinguia
completamente Eu e Sujeito: sem possuir qualquer substância ou natureza, este
dependeria apenas e tão-somente da contingência), as categorias universais
retornam camufladas. A ética contemporânea pressupõe um sujeito humano geral,
reconhecível em toda parte, que possui direitos naturais e evidentes, seu papel
sendo a salvaguarda desses direitos. É um gesto de orientação, de implantação
de uma referência que caiu por terra, mas que, para fins utilitários, passa
a ser entendida como se nos tivesse sido extirpada. A ética seria, assim, uma
legislação consensual entre os homens em geral, delimitando universalmente
aquilo que não se coaduna com a essência humana, ou seja: definindo o que é o
Mal.
Tal definição do Mal, através da declaração dos direitos do homem, p.
ex., caracterizaria o atual retorno a Kant, ou, sublinha Badiou, a uma certa
imagem de Kant, ou ainda aos teóricos do direito natural. Por prerrogativa, é
bom reparar, essa retomada conserva a idéia de que certas exigências
imperativas, formalmente representáveis, que não devem ser subordinadas a
considerações empíricas ou a exames de situação, referentes aos casos de
ofensa, de crime, de Mal, e que tais exigências devem ser acompanhadas de um
direito, nacional e internacional, para sancioná-las. A ética emerge, então,
como um dispositivo capaz de reconhecer o Mal a priori, e o Direito, por sua
vez, como o aparato que aciona esse dispositivo cuja ação punitiva arbitraria
em prol da claridade e justiça.
O pressuposto básico desse estado de coisas seria então o do sujeito
humano geral, sendo que o mal que lhe sucede pode ser identificado
universalmente. É, ao mesmo tempo, um sujeito passivo (aquele que sofre), e um
sujeito de julgamento (que identifica o Mal e sabe o que deve fazer para cessá-
lo). Esse princípio judicativo subordinará a política à ética, na figura do
espectador que assiste às circunstâncias, corroborando esse mecanismo que
estipula o Mal como aquilo a partir do que se dispõe o Bem, não o oposto. Nesse
89
cenário, os direitos humanos seriam, basicamente, direitos ao não-Mal. Badiou,
assim, passará a entender a ética solicitada como um niilismo: entender o
sujeito como universal e localizá-lo no homem que sofre, que possui direitos ao
não-Mal, é concebê-lo como uma vítima. E contrário a essa definição vitimária,
Badiou estipula o Homem a partir da subjetivação, i.e., pela substância que o
separa de sua simples condição animal e biológica, convertendo-o em uma espécie
de Imortal.
Um argumento freqüente, experimentado pelos situacionistas, lembremos, ao
fim da década de 70, é o de que todo projeto de revolução, toda utopia tende a
se converter em pesadelo totalitário.
255
Se o consenso ético baseia-se no
reconhecimento do Mal, Badiou também sublinha que, curiosamente, toda tentativa
de reunir os homens em torno de uma idéia positiva do Bem e, mais ainda, de
identificar o Homem por tal projeto, se revela, ao fim, como "a verdadeira
fonte do próprio mal".
256
Ora — diz o filósofo —, esta sofística é devastadora. Pois se trata-se apenas
de priorizar, contra um Mal reconhecido a priori, o compromisso ético, como
se poderá considerar uma transformação qualquer do que é? De onde o homem
retirará a força do ser imortal que é? Qual será o destino do pensamento,
sobre o qual se sabe que é invenção afirmativa, ou não é? Na realidade, o
preço pago pela ética é de um conservadorismo espesso. A concepção ética do
homem além de ser no final das contas ou biológica (imagens de vítimas), ou
"ocidental" (satisfação do benfeitor armado), proíbe toda visão positiva e
ampla dos possíveis. O que é aqui elogiado, o que a ética legitima, é na
realidade a conservação, pelo pretenso "Ocidente", daquilo que ele possui.
Baseada nessa posse (posse material, mas também posse de seu ser), a ética
determina o Mal como aquilo que, de uma certa maneira, não é com o que ela
goza. Ora, o Homem, como imortal, se sustém a partir do incalculável e do
impossuído. Ele se sustenta a partir do não-sendo. Pretender proibi-lo de ter
uma representação do Bem, de nele ordenar seus poderes coletivos, de
trabalhar pelo advento de possibilidades insuspeitadas, de pensar o que pode
ser, em ruptura radical com o que é, tudo isso é proibir-lhe, simplesmente, a
própria humanidade.
257
Por essa determinação negativa e a priori do Mal, arremata Badiou, a
ética se nega a pensar a singularidade das situações, quando toda humanidade se
enraíza na identificação em pensamento de situações singulares. Não ética em
geral. ética dos processos de verdade (dos procedimentos de verdade,
poderíamos dizer), ou seja, do trabalho que faz advir a este mundo algumas
verdades. A ética não existe. ética-de (Lacan: A ética da psicanálise).
Não um único sujeito, mas tantos quantas verdades houver. "Uma filosofia
propõe-se a construir um lugar de pensamento em que os diferentes tipos
subjetivos, dados nas verdades singulares de seu tempo, coexistam. Mas essa
255
Cf. a introdução de Julio González del Río Rams a DEBORD, Guy et al. La creación abierta
y sus enemigos. Textos situacionistas sobre arte y urbanismo. Op. cit., p. 9-14.
256
BADIOU, Alain O Homem existe? Ética. Um ensaio sobre a consciência do Mal. Op. cit., p.
27.
257
IDEM — Ibidem, p. 28, itálicos no original.
90
coexistência não é uma unificação, e por isso é impossível falar de uma
Ética."
258
Seja como representação consensual do Mal, seja como preocupação para com
o outro, a ética contemporânea designa, antes, a incapacidade de nomear e
querer um Bem. A ética combina a resignação diante do necessário com uma
vontade puramente negativa, destrutiva, constituindo o niilismo de que falamos
antes: a vontade do nada, o homem conformado, reverso de uma necessidade cega.
O nome moderno da necessidade, diz Badiou, é economia. É pela economia que o
regime do capital cria uma opinião pública em torno do que é necessário. A
economia é uma exterioridade neutra, cujo momento subjetivo, ou valorizador,
seria a política. A ética aceita o jogo do necessário como base de todos os
juízos de valor. Do fim das ideologias para a retomada ética, o que entra em
campo é a adesão às trapaças da necessidade, num empobrecimento do valor ativo
dos princípios. Ao invés de ideologias, uma ética geral, quando o próprio de um
projeto emancipador é dividir consciências.
A essa altura, a ética não é mais que uma variante do consenso
conservador, esterilizando toda reunião coletiva em torno do que pode ser feito
aqui e agora. "Os alimentos da ética nos são servidos em domicílio pela
História."
259
E mais que apenas um niilismo, como se disse antes, a ética
constitui um niilismo beato. Contra isso, "só podemos erigir aquilo cujo modo
de ser é não ser ainda, mas de que o nosso pensamento se declara capaz".
260
Apenas declarando querer aquilo que o conservadorismo decreta ser impossível
e afirmando as verdades contra o desejo do nada é que nos afastamos do
niilismo. A possibilidade do impossível, que todo encontro amoroso, toda
reformulação científica, toda invenção artística e todo passo da política da
emancipação põem sob nossos olhos, é o único princípio contra a ética do
bem-viver, cujo conteúdo real é decidir a morte — de uma ética das
verdades.
261
Se não "ética em geral", é porque falta o sujeito abstrato, aquele que
deveria possuí-la. Há, todavia, um animal particular, convocado pelas
circunstâncias, a se tornar sujeito. E para que este aconteça (seja político,
científico, artístico ou amoroso), é preciso ter ocorrido alguma coisa de
irredutível à sua inscrição no "aquilo que há" (a situação, ou seja, o reino
das opiniões e dos saberes instituídos; a situação é da ordem da comunicação, é
o ambiente do animal humano que pela opinião julga emitir uma verdade, embora a
opinião esteja aquém da verdade e da mentira,
262
tratando-se apenas de um
ruminar).
258
IDEM — Ibidem, p. 42.
259
IDEM — A ética, figura do niilismo. Ética. Um ensaio sobre a consciência do Mal, p. 47.
260
IDEM — A ética das verdades. Op. cit., p. 50.
261
IDEM — Ibidem, p. 51.
262
Trata-se da filodoxia, para José Bianco. "Havia uma sorte de coisas que flutuavam entre o
ser e o não ser, e que não eram do âmbito do conhecimento mas da opinião." (BIANCO, José La
Argentina y su imagen literaria. Ficción y realidad. Caracas: Monte Ávila Editores, 1977, p. 7.)
91
A emergência de um sujeito então se por um suplemento da situação,
dado na forma de um acontecimento (aquilo que atravessa, trespassa o animal
humano e nisso, nesse encontro, reivindica a condição de sujeito em seu ser-
múltiplo que não é nada além de uma condição, nunca uma substância). Este
acontecimento, algo casual, imprevisível, desvanecido tão logo aparece, que se
posta por fora de todas as leis regulares da situação, obriga a inventar uma
nova maneira de ser e de agir dentro desta, ou seja, nos obriga a decidir uma
nova maneira de ser.
263
Caberia perguntar, então, de que decisão se origina o processo de uma
verdade. Da decisão de referir daí por diante à situação do ponto de vista do
suplemento do acontecimento: uma fidelidade. A fidelidade ao acontecimento,
entretanto, não significa converter o acontecimento em verdade, pois sabemos
que não verdade da verdade (sabemos apenas que uma verdade "perfura" os
saberes, sendo-lhes heterogênea e, ao mesmo tempo, a única fonte de saberes
novos; forçando saberes, por fim, a verdade reorganiza a enciclopédia portátil
da qual se retiram as opiniões, a comunicação, a sociabilidade). Poderíamos
inclusive dizer que não fidelidade ao acontecimento, mas tão-somente
fidelidade ao procedimento, fidelidade ao processo de uma verdade. Pós-
acontecimento, a fidelidade se revela como uma investigação contínua da
situação, onde reina o saber estabilizado. Próprio da fidelidade, então, é uma
ruptura contínua e imanente (aquilo que não exclui um saber, mas detona-o por
dentro). Badiou mostrará ser necessário então sustentar fidelidade a uma
fidelidade, deixar-se atravessar pela desorganização vital que inviabiliza que
o acontecimento se converta em verdade da verdade, e que nisso permite ao
alguém humano continuar entrando na condição de sujeito, atravessado por
acontecimentos cuja substância jamais se revela, jamais se mostra orgânica.
Trata-se apenas de um vislumbre.
reside a consistência ética, que nada mais é que uma renúncia ao já-
sabido, àquilo que o saber converteu em saber; uma renúncia ao mecanismo que
faz com que um acontecimento passe à ordem estável da situação. Contrário ao
Mal, estipulado consensualmente pelo aparato ético punitivo, que origina o
sujeito-vítima, o Bem emerge por essa desorganização prolongada da vida, esse
interesse desinteressado que caracteriza a subjetividade, suporte do sujeito.
Em última análise, o objeto do Bem não tem forma, não se mostra para ser visto,
não constitui obra. Ele prima apenas pelo procedimento, por aquilo que faz com
que o alguém capturado pelo acontecimento continue, por suas próprias forças,
não pela representação (que seria aqui sinônimo de continuidade), rumo a outras
verdades possíveis. Seria este o único indício que distingue o homem da
condição animal: a possibilidade de primar pelo impossível, o não-realizado.
263
Para uma noção de acontecimento em César Aira, cf. "Uma máquina de guerra contra a pena"
(Arquivo, p. 194).
92
Nesses termos, a ética não figura enquanto código, legislação ou
dispositivo punitivo sobre o animal humano (a punição jamais se dará sobre o
sujeito). O que se costuma chamar ética, na contemporaneidade, é no fundo outra
coisa, seja que nome tenha ou possa ter, sempre arraigada às evidências
consensuais e genéricas, e sem portanto definir nada. A inversão desse
julgamento determinado seria, conforme Badiou, a afirmação de verdades como
núcleo de composição de um sujeito e para o alguém que entra nessa composição.
Aí reside o advento singular de uma ética perseverante.
2.4 A ÉTICA DA LITERATURA
À definição vitimária do homem, de um sujeito dado como universal e
abstrato, que sofre, apregoada pela ética jurídica contemporânea, podemos
obstar a subjetividade como o fator que o separa da mera condição animal, como
aquilo que o distingue como uma espécie de Imortal. É pela subjetividade que se
pode almejar uma transformação do ser i.e., próprio do ser é o não-sendo, é
não se definir, de modo a deixá-lo aberto à amplidão positiva dos possíveis.
Lançar-se sob essa premissa sem garantias, como uma fidelidade ao incerto, ao
incalculado, ao impossuído, é dar chance para que o sujeito continue emergindo
no alguém que lhe serve de suporte. Essa seria a representação do Bem, e dela
partiria a definição do Mal: conceder a uma verdade potência total (todo e
qualquer fascismo, inclusive a conversão deste princípio em norma), declinar
das incertezas para gozar, no indivíduo, de uma identidade final. Próprio do
subjetivo é dividir consciências, é mostrar-se ainda capaz de pensar. Retirar
do homem a subjetividade equivale, a essa altura, a suprimir-lhe a humanidade,
devolvendo-o o somente à ordem animal. Próprio do humano, portanto, é o
desvio.
Vimos antes que à arte, sendo ela própria um pensamento singular, cuja
verdade não lhe é exterior mas imanente, não cabe o papel de ilustrar a
filosofia, ou, por uma mediação didático-pedagógica, educar a quem quer que
seja, de que forma for. A educação se sem qualquer intervenção de caráter
pedagógico, e independe da natureza do objeto ou experiência. Aos formalistas
coube entender como próprio da arte o estranhamento, fator que violenta a
linguagem, quitando do significante sua relação imediata com um significado, ou
seja, à arte não cabe função referencial. A arte, uma "obra", um conjunto de
obras, sem ilustrar uma verdade agenciada, poderá ser um acontecimento, aquilo
que faz advir um sujeito. Mas isso não se dá nem pelo viés da forma, nem pelo
conteúdo. Trata-se de uma captura sempre particular e única, singular, que não
pode ser ilustrada e que nada tem a ver com o discurso histórico que se acopla
ao objeto-obra, atribuindo-lhe aura, prestígio, e, por conseqüência, valor.
93
Onde se arte, pode-se ler literatura, ficção. Próprio do homem é a
ficção (uma estratégia), porque nada de mais subjetivo. Nem a verdade, nem
ilusão de verdade. A partir daí, um texto, um discurso vale não por seu
caráter de reflexão de um momento histórico-social (o que seria útil apenas ao
esquema didático da arte, ou, para dar outro nome, ao realismo burocrático),
264
mas pela possibilidade de acontecer, de atravessar um sujeito, de ainda
suscitar sentido, sem o entregar. O ideal, portanto, seria desvencilharmo-nos
da noção de valor, porque um texto não "vale" pelo que quer que seja, porque
não há como atribuir o valor sem reincidir no juízo estético
265
ou no
agenciamento histórico, cuja ação seria estabelecer quais obras podem formar o
cânone de uma nação, p. ex., narrando e garantindo sua história, ou mesmo um
cânone particular. Canonizar, vale dizer, equivale a inserir no discurso o gene
da durabilidade, petrificá-lo, torná-lo indigesto, cancerígeno talvez. Se parte
fundamental da vida é sua própria degenerescência, sua transformação, a
permanência de um discurso se não pela conservação, mas pelo deslizamento,
pela variação, pelo ultrapassamento e pelo repúdio.
266
Sabemos que a Teoria Literária não se arma como disciplina sem se valer
da estabilização institucional dos saberes. Trata-se de um movimento
inevitável, e não haveria como ser diferente. O século XX mostrou diversas
formas de concepção e abordagem do texto literário (o formalismo russo, a
hermenêutica da nova crítica e da estilística, o dialogismo, a epistemologia do
estruturalismo etc.), formas estas sempre de algum modo, em maior ou menor
grau, atadas ao caráter científico necessário à formação de uma disciplina.
Reforça-se a cisão entre ficção e teoria (algum modo de distingui-las de
uma vez por todas?), bem como a ilusão crítica que se pretende neutra diante da
amostra que investiga e analisa.
Contra aquilo que, mais tarde, Leo Spitzer, p. ex., oficializa como
método estilístico de análise da obra de arte, e que permanece latente sempre
que trabalhamos a partir da análise formal, ou contra a auto-suficiência de uma
estética desinteressada, como o New Criticism,
267
Jorge Luis Borges sublinha, já
em 1930, a emergência de um modo de leitura que entenderia o estilo não pela
eficácia de uma página, sua possibilidade de acontecer, mas pelas habilidades
aparentes do escritor, ou seja, suas tecniquerias. Essa "distraída leitura de
264
Cf. LUKÁCS, Georg et al. Realismo: ¿mito, doctrina o tendéncia histórica? Col. Numeros,
v. 7. Trad. Irene L. Cusien et al. Buenos Aires: Tiempo Contemporáneo, 1969.
265
"Cada vez mais, a arte contemporânea apresenta-nos produções diante das quais não é
possível recorrer ao mecanismo tradicional do juízo estético, e para as quais a dupla
antagônica arte/não-arte parece absolutamente inadequada. Diante de um ready-made, p. ex. em
que a estranheza do princípio formal foi substituída pela sensação de estranheza do objeto
não-artístico, introduzido à força na esfera da arte —, o juízo crítico, por assim dizer,
confronta-se imediatamente consigo mesmo ou, para ser mais preciso, com sua própria imagem
invertida: o que o juízo tem de levar à não-arte já é não-arte em si, e assim sua operação se
esgota numa simples comprovação de identidade." (AGAMBEN, Giorgio El hombre sin contenido.
Trad. Eduardo Margaretto Kohmann. Buenos Aires: Áltera, 2005, p. 84.)
266
Cf. BARTHES, Roland — Da obra ao texto. Op. cit., p. 66.
267
Cf. MILLER, J. HillisA ética da leitura. Ensaios 1979-1989. Trad. Eliane Fittipaldi. Rio
de Janeiro: Imago, 1995, p. 78.
94
atenções parciais" trata, a seu ver, de uma superstição, de uma "supersticiosa
ética do leitor".
268
A análise dessas tecniquerias, o julgamento pautado pela
originalidade de suas combinações, resultaria no veredicto de se aquela gina
ou obra teria por fim o direito de agradar ou não ao leitor. "Significa que não
se fixam na eficácia do mecanismo", diz Borges, "e sim na disposição de seus
componentes".
269
Procura-se a "página perfeita", e com a arrogância sempre
característica a um método que se propõe a dar conta do objeto, brota daí uma
ética judicativa geral, hierarquizante, hermenêutica, que acaba por converter
um discurso, pelas noções de obra, de escritor, em modelo de escritura para
aqueles que o sucedem em ordem temporal como parâmetro de qualidade e
densidade. não interessa a eficácia de um pensamento (que seria sempre um
acontecimento particular), tampouco seu procedimento (o mecanismo que torna
possível ao texto acontecer indefinidamente), mas sua disposição. Pela
disposição será possível atribuir o valor, exercitar o método.
Ora, operar dessa forma não faz mais que reforçar o domínio da estética,
confinando a arte como instrumento da representação, seja do belo, seja do
social. E a ética geral do método, qualquer método, se revela, observa Borges,
não uma ética, mas apenas uma "etiqueta não contestada". Esse esquema
analítico, pautado essencialmente pelo valor, pela obra, pela denominação da
existência inequívoca dos grandes representantes da literatura universal,
prevalece hoje com muita força; dele sobrevém a idéia do "ensino de
literatura", ou de que uma obra deva ser interpretada. A ética hermenêutica, do
método, não se constituirá de uma livre-iniciativa rumo ao Aberto, mas, pelo
contrário, de uma consulta ao já-feito, de uma reiteração da história acoplada
ao objeto, daquilo que se reforça no alguém que agora agencia o discurso e que
pela amostragem do já-feito reivindica autoridade. Trata-se, como observa
Badiou, de mais um conservadorismo pautado pela ordem Ocidental estabelecida
que, diante dos descentramentos teóricos operados principalmente a partir da
década de 60, reprime toda e qualquer emancipação política dos discursos não
prescrita. Ora, emancipação do que quer que seja, diremos, desde que se
poste fora do já prescrito.
A página de perfeição, a página onde nenhuma palavra pode ser alterada sem
dano, é a mais precária de todas. As mudanças da linguagem apagam os
sentimentos laterais e os matizes; a página "perfeita" é a que consta desses
delicados valores e que com mais facilidade se desgasta. Inversamente, a
página que tem vocação de imortalidade pode atravessar o fogo das erratas,
das versões aproximativas, das leituras distraídas, das incompreensões, sem
deixar sua alma na provação.
270
Essa discussão atravessará todo o século XX. Um de seus começos possíveis
está na concepção de Walter Benjamin para a tradução. Diz o crítico que a
268
Cf. BORGES, Jorge Luis Borges — A ética supersticiosa do leitor. Op. cit., p. 15-9.
269
IDEM — Ibidem, p. 18.
270
IDEM — Ibidem.
95
traduzibilidade é inerente a certas obras, conquanto não queira isso dizer que
sua tradução seja essencial para elas mesmas, "mas que um determinado
significado inerente aos originais se exprime na sua traduzibilidade".
271
Benjamin expõe que, por melhor que seja, uma tradução "jamais poderá ser capaz
de significar algo para o original" (e aqui poderíamos perguntar: caso uma
tradução pudesse desejar algo, para quê faria isso?). Entretanto, graças à sua
traduzibilidade, ela se encontra numa relação muito próxima àquele, uma relação
"tanto mais íntima quanto nada mais significa para o próprio original". É um
processo natural, diz Benjamin, mas também, mais precisamente, uma relação de
vida, porque nesse deslize, nesse nada significar à sua origem, nesse novo
texto que brota, com maior ou menor grau de semelhança, a tradução garante a
sobrevivência do original via adaptação, sua continuação biológica, processo
cuja maior provação será resistir à ética supersticiosa do leitor.
Susan Sontag, num famoso ensaio estampado nas páginas da Evergreen
Review, em 1964, manifestava-se "contra a interpretação". Pontuava a crítica
que "a interpretação, baseada na teoria extremamente duvidosa de que uma obra
de arte é composta de elementos de conteúdo, constitui uma violação da arte.
Torna a arte um artigo de uso, a ser encaixado num esquema mental de
categorias".
272
Digamos que a interpretação se vale de um uso compacto da
escritura, um mandato, que nos diz "Está tudo aí, veja", e que em nada difere
do fascismo da língua, i.e., não nos impede violentar o código, mas caso
queiramos permanecer na esfera do entendimento se necessário acatá-lo e
permanecer sob sua tutela. Diante do impasse, Sontag aponta o vanguardismo
programático como saída; roga, no entanto, não ser esta a única defesa da arte,
pois, caso contrário, ela estaria condenada a uma fuga perpétua.
Pois bem, reivindicar a vanguarda equivale, aqui, a um exercício de
desvio, i.e., de sabotagem ao que Barthes chama linguagem encrática: aquela que
se produz e se espalha sob a proteção do poder. "Todas as instituições oficiais
da linguagem são máquinas repisadoras: a escola, o esporte, a publicidade, a
obra de massa, a canção, a informação, redizem sempre a mesma estrutura, o
mesmo sentido, amiúde as mesmas palavras: o estereótipo é um fato político, a
figura principal da ideologia."
273
Todavia não será uma reivindicação do objeto,
da obra, porque pouco interessa o objeto. Interessa o procedimento, aquilo pelo
qual um pensamento se dá. Contra a manutenção do mesmo, contra uma concepção de
literatura pautada pelo valor, pela qualidade, emerge uma escritura ambivalente
(uma arte, uma literatura, caso assim se queira), que não poderemos entender
271
BENJAMIN, Walter A tarefa. Renúncia do tradutor. Trad. Susana Kampff Lages. In
HEIDERMANN, Werner (org.) Clássicos da teoria da tradução. Volume I. Op. cit., p. 193. (Os
fragmentos citados a seguir referem-se à mesma página.)
272
SONTAG, Susan — Contra a interpretação. Op. cit., p. 19. — César Aira, por sua vez, diz que
"O trabalho do escritor, conquanto se estende por sua vida e responde com essa felicidade à do
leitor (já se sabe que a única coisa que um leitor quer é continuar lendo), vai de encontro à
interpretação. Lembre-se da frase de Jasper Johns: 'A arte é fazer uma coisa, depois outra,
depois outra...'" (AIRA, César — Copi. Op. cit., p. 31).
273
BARTHES, Roland — O prazer do texto. Op. cit., p. 55.
96
nem somente como ficção (se por esse termo entendermos a aparência de uma
verdade), nem apenas como teoria (caso por isso se desenhe um agenciamento
extrínseco aos objetos, que existiriam em anterioridade aos postulados
esboçados). Trata-se de uma escritura ficcional no sentido reto do termo: uma
construção imaginária, que expõe o real em sua condição de contínuo. Ou seja: o
real nunca é, está sempre além. Se a escritura tenta apreendê-lo, ele se
transforma, se amplia. Porque o real é fundamentalmente anfótero: este composto
que ora é ácido, ora é base; que ora dilui, ora é diluído.
274
Contra o encratismo, fugir para frente. César Aira esboça um lema a
partir de um postulado barthesiano: "Para escapar à alienação da sociedade
presente, existe este meio: fuga para frente: toda linguagem antiga é
imediatamente comprometida, e toda linguagem se torna antiga desde que é
repetida."
275
Como vimos, em vários de seus textos aparecerá a constante
huida hacia adelante. Como criadoras de procedimentos, as vanguardas permanecem
vivas, sendo essa fuga perpétua, tão temida por Susan Sontag, justamente a
possibilidade, inerente à arte, de continuar a acontecer. Tal como propunha
Alain Badiou, a escritura de Aira, derramada numa quantidade surpreendente de
textos, exercita essa espécie de fidelidade ao incerto, questionando
insistentemente a representação, i.e., primando por aquilo que nunca se mostra
de todo. O nome disso, paradoxalmente, não é outro senão realismo. Um realismo
ainda capaz, processo fiel de uma verdade a cada vez inteiramente inventado,
como diria Badiou.
Fugir para frente se a ética da literatura, partindo-se do abandono
como premissa. Contra a "página perfeita" descrita por Borges, a proliferação
dos textos de César Aira abole a correção, pondo em seu lugar um automatismo do
discurso que não constitui obra, mas um único texto, um mesmo relato, com
desenlaces sempre temporários. Já aquele que escreve — arremata Alberto
Giordano (quem assina A experiência narrativa, e personagem que abre a série de
equívocos que constituem Os mistérios de Rosário, de Aira) "experimenta a
impossibilidade de permanecer no acontecimento da escritura, de ser seu
guardião, seu autor".
276
Susan Sontag, desdobrando seu argumento contra a interpretação, frisava
que "O que importa agora é recuperarmos nossos sentidos. Devemos aprender a ver
mais, ouvir mais, sentir mais. [...] Em vez de uma hermenêutica, precisamos de
uma erótica da arte".
277
Uma erótica da arte/huir hacia adelante, fugir para
frente, fugir para sempre. Abandonar o discurso para dar-lhe continuidade,
perpetuando o gozo. Bataille entendia que "do erotismo pode dizer-se que é a
274
Devo esta analogia às conversas com a química Gizelle Bedendo, a quem agradeço.
275
BARTHES, Roland — O prazer do texto. Op. cit., p. 54-5.
276
GIORDANO, Alberto — Entre el ser y la nada. La experiencia narrativa. Op. cit., p. 24.
277
SONTAG, Susan Sontag — Contra a interpretação. Op. cit., p. 23.
97
aprovação da vida até na própria morte".
278
É desta morte, a da Arte, que fala
Aira: "Deveríamos deixar de nos mentir. Talvez saiamos ganhando ao perder
tudo".
279
Desse sacrifício
280
do já-sabido brotará o novo, o incalculado, o
impossuído; perder tudo, a essa altura, é começar do ponto em que nenhuma
instância verídica é superior às demais; quando nenhuma escritura é permanente,
e toda hermenêutica provisória.
"Se alguém se decide pela literatura", diz o autor das Nouvelles
Impressions du Petit Maroc, com este fim: sair de uma lógica de exclusão dos
contrários que qualifica de falso a um dos membros do par. Não para fazê-los
falsos ou verdadeiros, mas para colocá-los numa teoria falsa que torna
irrelevante a classificação."
281
Assumir o falso, potencializá-lo, aparece então
como única instância de honestidade para com a arte, pois "ao que de mais
perigoso um artista pode chegar", diz Aira, a crença na importância daquilo
que ele fez, ao valor de sua obra. O valor é o sério; a seriedade, a verdade.
Desde que falamos em verdade sobre a arte, nós a traímos".
282
Deste incerto, dessa não-substância que preenche a arte (o pensamento),
deste nada não-negativo, as imagens da escritura permanecem como elementos
neutros. Seria este, talvez, o gesto mais ousado da linguagem: abandonar a
língua. O resultado desse abandono, que a princípio poderíamos entender como
traição, o nada, uma aberração, seria, ao contrário, a produção de mais
linguagem, do porvir. Eis a ética da ficção. Eis a ética da literatura.
278
BATAILLE, Georges — O erotismo. 3ª ed. Trad. José Bénard da Costa. Lisboa: Antígona, 1988, p. 11.
279
AIRA, César — O a-ban-do-no. Cf. Arquivo, p. 199.
280
"Um presente é sempre um sacrifício" Cf. TARKOVSKI, Andrei — Sacrifício, 1986.
281
AIRA, César — Nouvelles impressions du Petit Maroc. Op. cit., p. 42.
282
IDEM Entretien avec Cesar Aira par Bernard Bretonnière. Ibidem, p. 71 (trad. Fernanda
Guedes).
98
CAPÍTULO 3
Vimos a agora alguns desdobramentos peças da escritura de César
Aira. A saber, de como seu nome implica numa desorganização na cena literária
argentina ao fim do século XX, tornando trivial o mero processo de estar
escrevendo e publicando tudo o que escreve, ou praticamente tudo; de como
Borges aparece como uma espécie de sombra na produção dos escritores que lhe
são posteriores, e de como César Aira momentaneamente se afasta e passa à
vereda de outro escritor, Rimbaud. Desse gesto brota o procedimento que
julgamos articulador de todos os demais: o abandono. A bem dizer, não se
trataria de um procedimento, mas de uma ética de escritura pela qual tudo se
dá: o contínuo do pensamento, seu uso da Literatura e da História, a
singularidade de seu manuseio com fontes de distinta natureza, i.e., de como o
processo de escritura implica na tradução de elementos anteriores, sejam textos
ou imagens, resultando uma estética indiciária que remete o sentido sempre para
adiante, porém marcada pelo desejo de fabricação de um realismo intenso.
Dessa máquina sempre incompleta, pois novas peças sempre podem ser
acopladas, ao infinito (trata-se de um devir; daí que toda máquina seja máquina
de quina), interessa agora descrever um outro elemento; não se trata, porém,
de um elemento à parte. Pode já estar disperso ou pressuposto na argumentação,
porque se refere a um modo de como o pensamento se dá: a prosopopéia. Para
desdobrar esse dispositivo, será preciso antes retomar a condição da arte na
contemporaneidade, ou melhor, sua "utilidade"; em seguida, pensar o processo
pelo qual essa utilidade é confeccionada, bem como que artifício confecciona
para gerar isso a que se chamou "realismo intenso" — ou, simplesmente, verdade.
O resultado disso, como veremos a seguir, é nada mais nada menos que um
monstro.
3.1 CAIXAS-PRETAS E DISPOSITIVOS
um ensaio de 1983, A filosofia da caixa-preta, em que Vilém Flusser
estuda o estatuto da imagem no século XX como um dispositivo que reconfigura o
pensamento na sociedade pós-industrial. Grosso modo, na passagem da imagem
tradicional (em que o agente humano transfere a imagem nele processada para uma
superfície) à imagem técnica (em que o agente passa a comandar o aparelho
processador da imagem) emerge um vão no qual o saber se esconde. Para Flusser,
na sociedade pós-industrial já não é preciso conhecer o processo pelo qual uma
99
imagem ou um bem são gerados, porque se trata de um saber especializado que
pouco ou em nada auxiliaria na tarefa. Basta ao condutor saber utilizar o
aparelho, ativá-lo em seu input e desligá-lo em seu output. O saber que fica
entre essas duas ações se esconde dentro daquilo que Flusser passará a chamar
caixa-preta.
283
À função desse saber ocultado, César Aira dedicará um ensaio, "A
utilidade da arte",
284
no qual retoma o argumento de Flusser, a partir de um
testemunho de sua juventude, quando vivia em Coronel Pringles: lembra de certas
figuras que se gabavam por desmontar aparelhos até o último parafuso, fossem
máquinas ou carros, e voltar a montá-los, por necessidade ou passatempo. Talvez
a escassez de especialistas, naquela época, propiciasse a disposição desses
bricoleurs de bairro, cujo procedimento atuava como uma espécie de descoberta,
de desarticulação do objeto para enfim conhecê-lo. Com o passar do século XX e
a mudança das tecnologias, esse saber foi pouco a pouco relegado, deslocando-se
para o uso, ou seja, sabem-se quais os procedimentos para utilizar a máquina e
realizar a tarefa a que se propõe, mas do processo interno, pelo qual o bem é
gerado, o que se tem é apenas mistério, cujo segredo se torna uma agência de
postos de emprego para especialistas de toda natureza. Haveria, segundo Aira,
um perfil contemporâneo desses bricoleurs na figura dos meninos que tudo sabem
sobre computadores; a diferença, entretanto, estaria no fato de que sabem tudo
sobre o funcionamento do uso, não sobre os meandros que fazem com que a máquina
funcione. A utilização dos artefatos, hoje, arremata Aira, se como se fossem
todos caixas-pretas (in/out), sem que tenhamos qualquer conhecimento do que
acontece entre esses dois pólos. Em suma, poder fazer, hoje, não significa
saber como se faz, porque há um abismo entre causas e efeitos.
O problema, entretanto, é maior. A idéia da caixa-preta se estende e
invade tudo: o se trata apenas da relação com aparelhos elétricos, porque a
sociedade inteira tornou-se uma caixa-preta: a economia, os deslocamentos
populacionais, os fluxos de informação. uma cegueira generalizada, diz Aira,
e se acertam os prognósticos por casualidade (tal como a lógica do
procedimento em Music of changes, de John Cage, para utilizar do exemplo
desenvolvido pelo próprio escritor, em ensaio anterior).
285
Os mundos se
sobrepõem, alguns padecem, e a inteligência, um instrumento de adaptação, pouco
ou de nada serve para um mundo que deixou de existir.
Num começo possível da série a que estes dois ensaios se vinculam, pode-
se ver o texto de Walter Benjamin, "Experiência e pobreza". Relembremos. Em
1933, Benjamin desenhava a baixa da experiência transmitida de geração em
283
Cf. FLUSSER, Vilém A filosofia da caixa-preta. Ensaios para uma futura filosofia da
fotografia. Op. cit.
284
AIRA, César La utilidad del arte. Ramona Revista de Artes Visuales. Buenos Aires, n.
15, ago. 2001. O texto foi lido em português pelo autor na quinta edição da Festa Literária
Internacional de Parati, 7 de julho de 2007, em mesa conjunta com Silviano Santiago e Carlito
Azevedo. Cf. Arquivo, p. 257.
285
Cf. AIRA, César — A nova escritura. Cf. Arquivo, p. 222.
100
geração através da perda da capacidade do relato. A aceleração da modernidade,
o rápido distanciamento entre uma geração e outra, a experiência dos campos de
batalha, nada contribui para a formação de um sujeito (entendamos por sujeito o
suporte de um processo de verdade, um subjétil, um suporte e uma superfície).
286
Da técnica, diz Benjamin, emerge uma nova forma de pobreza, na qual a riqueza
das novas idéias plantadas pelo século XIX não atua como reaproveitamento do
patrimônio cultural para uma renovação autêntica, e sim sua galvanização. Pelos
quadros de James Ensor, na figura de uma burguesia que passeia cadavérica pelas
ruas, Benjamin visualiza o rosto dessa nova pobreza; não se trata de algo
privado, mas que assola toda a humanidade. Daí surge uma nova barbárie. E isso
é bom. A pobreza impele o novo bárbaro "a partir para a frente, a começar de
novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a
esquerda nem para a direita".
287
(Digamos que a semelhança com a constante
fuga para frente é notória. Há, no entanto, uma diferença sutil, mas radical:
se em meio às ruínas da modernidade, ou da ZONA, o Angelus Novus de Paul Klee
ainda tenta olhar para trás, quando uma rajada de vento, de repente, o impele
adiante, na constante de Aira se desistiu do passado muito; daquilo que
se fez, tudo foi abandonado.) A forma negativa da barbárie assim
residiria em não aspirar à experiência alguma, a libertar-se de toda
experiência e nisso se conformar. A técnica, de que fala Benjamin, produziu uma
série de aparatos (i.e., caixas-pretas) que devolvem o sujeito à condição
animal que meramente utiliza e ocupa o Aberto com "gadgets, bugigangas e
tecnologias de todo tipo".
288
O contemporâneo esnu, diz Benjamin, e seu maior
desafio será, doravante, sobreviver à cultura, ou, em outros termos, saber
extrair a si mesmo da situação.
Rearticular a experiência, fabricar um relato para si mesmo, extrair-se
da situação, ir além do mero uso das coisas que povoam o mundo, adentrar a
composição de um sujeito, tudo isso concerne à ética de que vimos falando no
capítulo anterior. Nesse cenário de proliferação de dispositivos ("qualquer
coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar,
interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões
e os discursos dos seres viventes"),
289
a arte, dirá Aira, continua sendo o
melhor campo para a prática da experimentação da velha inteligência, que
impunha a si a tarefa de saber como fazer e como funciona o mundo. Porque a
arte pode desenvolver um saber que em todos os demais campos se encontra em
extinção. Dada a radicalidade que lhe é inerente, a arte desmonta a linguagem
286
Cf. DERRIDA, Jacques Enlouquecer o subjétil. Trad. Geraldo Gerson de Souza. Desenhos e
recortes Lea Bergstein. São Paulo: Ateliê Editorial; Editora da UNESP; Imprensa Oficial do
Estado, 1998.
287
BENJAMIN, Walter Experiência e pobreza. Magia e técnica, arte e política. Obras
escolhidas v. 1. Op. cit., p. 116.
288
AGAMBEN, Giorgio O que é um dispositivo? Trad. Nilcéia Valdati. Outra Travessia n. 5: A
exceção e o excesso. Ilha de Santa Catarina: Programa de Pós-Graduação em Literatura da UFSC,
2005/2, p. 14.
289
IDEM — Ibidem, p. 13.
101
com que opera e volta a montá-la. Pouco importa que o resultado desse desmonte
e remonte volte ao ponto de partida ou ao mesmo objeto do qual se partiu. Pouco
interessa a obra, o objeto (esse valor apontará, sempre, a uma especulação de
cunho mercenário), porque a finalidade deste seria a produção de uma
habilidade, de um saber cujo fim não reside no uso ou em si mesmo (se o fosse,
isso também equivaleria a devolver o acontecimento à situação, o que é natural,
porém concedendo-lhe potência total, estatuto final de verdade), mas num
desafio constante (trata-se do contínuo, em Aira, e da ética perseverante, em
Badiou).
Todavia, a energia posta nesta máquina-pensamento, na qual a arte se
mantém como procedimento, não produzirá necessariamente um bem; seu produto
será novamente energia, ou potência-de-não, e o que se tem daí é exatamente o
novo, o incompreensível, o incalculado, o impossuído, que, por sua vez, nada
são além da recombinação do já-existente, como vimos antes.
3.2 DERIVA E DOCUMENTAÇÃO
Sandra Contreras leu no ritmo febril de invenção de César Aira uma
espécie de resistência, pela qual a faculdade de relatar, distribuída na série
de textos que vincula periodicamente em espaços distintos e em distintas
editoras, desenha uma ética "que coloca o relato em movimento para se conectar
com algo que está por fora dele e a que chama, com maiúsculas emblemáticas,
Vida ou Realidade".
290
É um modo de se forjar a experiência, para ir além do uso
da linguagem como caixa-preta, de forjar subjetividade e processar um sujeito,
devolvendo potência àquilo que se julgava inócuo. Trata-se da deriva como
estratégia,
291
termo que Ida Vitale detecta tanto no imenso pampa quanto no
labirinto rococó desenhado nessas narrativas. "Todas as personagens de Aira
praticam a deriva de distintos modos", diz a comentadora.
292
290
CONTRERAS, Sandra — César Aira, la estricta ética de la invención. Op. cit., p. 20.
291
Refiro-me ao conceito tal como praticado pelos situacionistas e formalizado por Guy Debord,
em "Teoria da deriva" (DEBORD, Guy et al. La creación abierta y sus enemigos. Op. cit., p.
61-9). Relembrando, poderíamos dizer que os situacionistas partem de uma total descrença nos
suportes artísticos tradicionais, adotando o espaço urbano como único locus possível de uma
ação experimental que se distancie da condição de morte a que a arte se sujeita no espaço do
mercado, e que no homem se manifesta ao vender sua força de trabalho, abdicando da vida em seu
valor de uso. O espetáculo, assim, sujeita o homem a trajetos específicos e com destinos de-
limitados, na compra da sobrevivência; nesse sentido é que a deriva emerge como um ócio ne-
cessário e casual, e que Debord não hesita em denominar como "passatempo", todavia diferido do
que comumente entendemos por viagem ou passeio. Enquanto "modo de comportamento experimental
ligado às condições da sociedade urbana: técnica de passo apressado através de ambientes
distintos", "indissoluvelmente ligado ao reconhecimento de efeitos de natureza psicogeográfica
e à afirmação de um comportamento lúdico-construtivo", a deriva expõe um indivíduo ou um
pequeno grupo ao estudo de um terreno, de um bairro, de uma estação, de uma cidade por tempo
indeterminado, de forma a criar novos mapas do espaço, enxergá-los de modos inusitados, ou
seja, de modos que o caminhar ordinário, ou o passeio, não possibilitam.
292
VITALE, Ida — Un vestido rosa y después: César Aira. Letras Libres, ago. 1990, p. 45.
102
Na literatura, a forma mais rápida de se enxergar a deriva como
estratégia de tergiversação do encratismo seja talvez o uso de uma linguagem
hermética, figurativa, que faça estranhar a relação significante/significado, o
que colocaria a linguagem por fora do fascismo do uso da língua, rompendo os
hábitos da percepção em seu código comunicativo. Para ilustar isso, entre
parênteses, façamos uma breve digressão.
uma resenha que C.E. Feiling
293
redige para Retrato de un albañil
adolescente & Telones zurcidos para títeres con hímen, de Arturo Carrera e
Emeterio Cerro, na revista Babel, em março de 1989. Na ocasião, pasmo pela
incompreensibilidade de todas as peças que compunham o livro, Feiling mostrava
não entender "o que possa ter movido Arturo Carrera, o poeta de Arturo y yo, um
dos melhores livros dos últimos quarenta anos, a entrar em associação ilícita
com Emeterio Cerro para escrever Retrato... y Telones... Mais difícil ainda é
compreender por que Severo Sarduy (que tampouco brilha muito) lhes escreveu um
laudatório prefácio".
294
O livro continha frases como "Carecen de significado todas las
proposiciones que etcétera", dentre outros experimentos que não vem a caso
elencar. A frase, hoje, parece irretocável, se levarmos em conta que o
significado nunca é parte do objeto; pode ser um suplemento e, como suplemento,
será sempre passível de alteração ou agenciamento. Daí que a carência de
significado das "proposições que etcétera" seja nada mais que uma constatação.
Por outro lado, caso se entendesse Retrato... y Telones... como obra-prima,
supra-sumo de qualidade, garantindo assim seu lugar no cânone da literatura,
enfim, não sairíamos da premissa da arte como estranhamento, caracterizado,
fundamentalmente, através da forma. Não se trataria de um argumento muito
convincente porque o movimento desse possível hermetismo, a rigor um indício
inequívoco de literatura, acabaria equivalendo ao da linguagem encrática, a
linguagem do entendimento, porém ordenando agora que para a literatura (ou para
a arte) também há um idioma, cuja apreensão é sempre difícil.
Mais de um ano após a resenha, César Aira responderá a Feiling (quem
poderá saber o motivo desse atraso ou espera —; certamente os escárnios se
multiplicaram, ou não; talvez se trate apenas de "ler com atraso"),
295
293
Charlie Feiling (Rosario, 1961-Buenos Aires, 1997). Licenciado em Letras pela Universidade
de Buenos Aires (UBA), dedicou-se durante algum tempo à docência universitária no país e no
exterior. Foi professor de Latim e Lingüística na UBA, de Filosofia na Universidade de Lomas
de Zamora y San Andrés, e de Literatura Hispano-Americana na Universidade de Nottingham
(Inglaterra). Em 1990, deixou a vida acadêmica para se dedicar completamente à literatura e ao
jornalismo cultural. Publicou, dentre outros, El agua electrizada (romance, 1992); Un poeta
nacional (romance, 1993) e Amor a Roma (poemas, 1995). El mal menor acabou finalista do Prêmio
Planeta Biblioteca del Sur 1995. Deixou inconcluso seu quarto romance.
294
FEILING, C. E. Retrato de un albañil adolescente & Telones zurcidos para títeres con
himen. Arturo Carrera y Emeterio Cerro. Buenos Aires: Último Reino, 1988. Babel Revista de
libros a. I, n. 8, mar. 1989, p. 36.
295
Trata-se do retard, de Duchamp (cf. DUCHAMP, Marcel Notas. ed. Trad. Dolores Díaz
Vaillagou. Madrid: Tecnos, 1998). "Essa distância móvel, espaço-temporal, desloca-se inclusive
à percepção. Duchamp propôs chamar aos quadros 'atraso', e ao Grande Vidro, 'atraso em vidro'.
A trama e o sentido, o romanesco e a explicação, são objeto de uma defasagem temporal." (AIRA,
César — Arlt. Cf. Arquivo, p. 205.)
103
argumentando que essas "glossolalias taradas" são, antes de qualquer outra
coisa, um teste.
Uma pedra-de-toque ou prova de fogo revelada àqueles que crêem que a
literatura pode ser uma atividade inócua, um dever escolar bem-feito ou um
instrumento de prestígio; aos que crêem que possa não ser um extremismo, ou
que se pode ser artista e continuar pertencendo à sociedade, inclusive gozar
do melhor de dois mundos. Que se pode ser um grande artista e não sofrer
escárnios (que espertos!). A prova funciona num automatismo de chip. Aquele
que não ama Emeterio Cerro não ama a literatura, simples assim. É claro que
amar a literatura não é obrigatório, sequer aconselhável. Mas aqueles que
riem de Emeterio Cerro em nome da literatura cometem um grande engano. O que
é literatura para eles então? Algo apresentável, sério, que possa agradar às
senhoras? Nabokov, Marguerite Yorcenar, Octavio Paz? Se é assim, é preciso
dizer-lhes que estão equivocados. E não se trata de um engano que se possa
dissipar com esforço e boa vontade. A literatura é algo incompreensível. Isso
é absoluto. Mas não se trata de um incompreensível hermético, esotérico, ou,
em geral, "fino". Incompreensível deve ser o escritor, não a obra.
Incompreensível por não se ajustar à etiqueta social da linguagem, como um
palhaço num velório. E, sobretudo, incompreensível não para os demais, mas
para ele mesmo. Emeterio é o grande obus no coração da elite, aquela que está
sempre pensando: isso é escandaloso para os demais, é incompreensível para os
demais, que sorte eu estar do lado bom! Pois bem: não. Estão do lado mau. É a
eles justamente que a literatura transforma em "os demais", a quem
escandaliza e descoloca. É preciso ir à profunda e desalentadora verdade do
óbvio: incompreensível é aquilo que não compreendo. É certo que com tempo se
fará compreensível, mas o que importa é sua qualidade de presente.
296
É importante observar que em momento algum César Aira ressalta a
qualidade ou não desses experimentos, e parece ser desse lugar, o do crítico
legislador, de onde Feiling se pronuncia. Colocar-se nesse lugar é adentrar uma
armadilha, pois implica querer gozar no presente o surgimento de objetos
artísticos que nos devolvam um acontecimento único, experimentado na primeira
juventude, a partir do qual tudo acaba sendo irremediavelmente inferior. A
armadilha, no entanto, se estende caso atestemos a qualidade deste objeto,
porque "para que algo seja considerado 'bom', terá de se ajustar a paradigmas
preexistentes, e a função da arte é criar paradigmas novos. Não criar objetos
belos, mas criar objetos a partir dos quais se possa medir uma beleza que até
então não existia".
297
Fechando a digressão, Feiling responderá a sar Aira,
298
seguindo-se uma intevenção de Ana Maria Shua.
299
Contrário à confecção de uma escritura metafórica,
300
digamos assim, para
sermos breves, a deriva de César Aira se arma por "uma prosa transparente, não-
296
AIRA, César — El test. Una defensa de Emeterio Cerro. Cf. Arquivo, p. 198.
297
IDEM — Asimetrías. Op. cit.
298
Cf. FEILING, C. E. El cencerro y las vacas. Reflexiones de un bienpensante. Babel
Revista de Libros a. III, n. 20, nov. 1990, p. 7.
299
Cf. SHUA, Ana Maria — Contra todo test. Sobre la defensia de Aira a Emeterio Cerro. Babel
Revista de Libros a. III, n. 20, nov. 1990, p. 7.
300
Cf. entrevista concedida a Bernard Bretonnière: "Em sua primeira obra traduzida e publicada
em francês, La robe rose, o senhor fala do objeto de fetiche deste conto nos seguintes termos:
'Almejamos incluir a eternidade como se ela estivesse concluída: isso não permite ver os
traços do trabalho, caso tenham entrado no jogo'. Poderíamos dizer a mesma coisa de todas
as obras de arte, desta vontade que pode galgar e diluir os traços do trabalho, libertando-se
do tempo?". Diz Aira: "Não pensei nessa metáfora (nem em nenhuma outra: me esforcei muito para
evitar o pensamento metafórico). Sobretudo, acredito no contrário, que o trabalho artístico
104
artística, informativa".
301
Trata-se de um testemunho, de um documento, de uma
prosa de código civil, em que preciso a maior claridade para se explicar
bem, sobretudo para explicar o inexplicável".
302
Mas ao cultivar exclusivamente
a explicação, dirá Aira, o que cresce é justamente o inexplicável, que invade
tudo. É necessário que o escritor, do sobreentendido, lance-se ao mal-
entendido, e a negociação escorregadia entre ambos os campos não poderá ser
feita senão com a prosa mais informativa e prosaica. A isso, Aira chamará tão-
somente documentação.
Talvez seja esse seu único procedimento, muito semelhante ao do Rugendas
desenhado em Um acontecimento na vida do pintor-viajante: a pintura de gênero,
uma técnica à qual não é necessário talento (teria de se redefinir o termo) mas
simplicidade e uma compreensão eminente. A relação é no entanto paradoxal, e o
próprio relato sobre a experiência do pintor-viajante registra esse paradoxo:
quando de passagem pela geografia esquizofrênica do Chile, em conversa com seu
assistente, Krause, ambos se perguntam pela possibilidade de algum dia tais
espaços abrigarem cidades, misturas étnicas, mosteiros. "Deveríamos desenhar
isso, diziam. Mas quem acreditaria?"
303
Não é estranho, assim, que Aira veja em
Rugendas e na prática por ele iniciada, o esboço a óleo, nero malvisto pelo
que mostrava de uma obra mal-acabada ("pequenos rascunhos de pastosidade
exagerada e cores ácidas discordantes"),
304
um precursor bem como a base do
Impressionismo.
Por essa documentação, uma via de mão dupla que é ao mesmo tempo
confecção e abertura da caixa-preta (longe de se considerar isso uma espécie de
esclarecimento), é que a deriva tergiversa a mais-valia do sentido, ou, por
outra, a mais-valia do encratismo. A documentação seria um exercício contínuo e
sem fim a priori, cuja pulsão seria registrar a cifra, i.e., a constelação
única e irrepetível de leituras e experiências que constituem um homem. Talvez
sob esse viés se possa compreender o esforço filológico (sem filologia) armado
no Dicionário de autores latino-americanos.
305
Mas também se pode vê-la de outra forma. mencionamos a fuga para
frente, mecanismo que rege a escritura sem correção de César Aira. Em
entrevista à revista 3 Puntos, que destaca, naquele momento, novembro de 2001,
a tradução de Um acontecimento na vida do pintor-viajante ao francês, Eduardo
Berti pergunta ao escritor se essa recusa à correção não viria questionar o
deve permitir os traços. A obra de arte não é outra coisa que não os traços do trabalho".
(Entretien avec Cesar Aira par Bernard Bretonnière. In AIRA, César Nouvelles impressions du
Petit Maroc. Op. cit., p. 76. Trad. Fernanda Guedes.)
301
AIRA, César — Por que escrevi. Cf. Arquivo, p. 287.
302
IDEM — Ibidem.
303
IDEM Um acontecimento na vida do pintor-viajante. Trad. Paulo Andrade Lemos. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 24.
304
IDEM — Ibidem, p. 25.
305
Cf. IDEM Diccionario de autores latinoamericanos. Buenos Aires: Emecé; Ada Korn Editora,
2001.
105
postulado flaubertiano da perfeição. A resposta de Aira, que re-evoca o
argumento de Borges sobre a ética supersticiosa do leitor, é a seguinte:
Eu improviso. Tudo sai página após página, dia após dia, e não volto sobre o
que já escrevi porque acredito que a correção esteriliza. Aquilo que
escrevemos num primeiro impulso, ou num segundo ou terceiro impulso, possui
grandes possibilidades de nos causar vergonha. Mas acredito também que a
vergonha é uma das coisas que nos permitem viver, que nos lembram o risco de
viver. Um sistema de correção levado às suas últimas conseqüências conduziria
a uma impossibilidade de escritura ou a não escrever mais que uma página em
toda a vida. Gosto de escrever, saia o que sair. E meu modo de correção é
seguir escrevendo as páginas, os próximos livros.
306
Se a deriva emerge como estratégia lúdica de elaboração de novos mapas,
e, por conseqüência, novos territórios, a correção seria exatamente seu
anverso. Corrigir seria retornar pelos caminhos percorridos, buscar atalhos,
refazer conexões, sinalizar a estrada para o conforto dos próximos transeuntes.
A correção seria o contrário da barbárie, primando ordem, esclarecimento,
perfeição.
307
O exercício de deriva numa escritura corriqueira, ao contrário,
insere no discurso uma espécie de vírus que o impede de se cristalizar como
obra. Deve-se precaver de um erro freqüente, diz Aira no relato que abre a
série A trombeta de vime: "o perfeccionismo. Se esperarmos dispor dos materiais
adequados para a construção dos elementos e da tecnologia para fazê-los
funcionar, nunca faremos. Mas basta sucata: madeira, papelão, papel, barbante,
trapos. Pouco importa que fique um engendro: o que importa é fazê-lo".
308
A noção de defeito salva, a essa altura, um argumento que poderia ser
contraditório, caso contrapuséssemos dois textos distintos de César Aira. Se em
"Por que escrevi" afirma ser sua escritura elaborada essencialmente a partir da
explicação, ou seja, uma prosa vulgar, de tempo comum, compartilhado com a
humanidade, onde o verdade, apenas seu postergar, em Copi, ao analisar El
uruguayo, primeiro experimento puramente narrativo de Raul Damonte, de 1972, a
explicação assume outra conotação. Aira lembra o ensaio de Walter Benjamin
sobre Leskov, quando o filósofo diz que o relato na civilização contemporânea
foi usurpado pela informação. Porque a informação é o relato explicado, por
contextualização, verossimilização etc. O relato do qual a contemporaneidade se
desvinculou é quimicamente limpo de explicação, tal como a fábula de Esopo em
que um senhor, no leito de morte, diz aos filhos haver no campo um tesouro
escondido, embora não saiba em que parte. A história é bem conhecida: os filhos
306
IDEM "Quisiera ser un salvaje" Entrevista a Eduardo Berti. 3puntos.com n. 227, 1 nov.
2001. Disponível em: http://www.3puntos.com/seccion.php3?numero=227&seccion=protagonista.
Acesso: 29 ago. 2004.
307
Um exemplo nesse aspecto seria Raduan Nassar, escritor paulista; em Lavoura arcaica, sua
estréia, entre a edição de 1975, lançada pela Livraria José Olympio, e a de 1989, da Companhia
das Letras, uma lista enorme de correções, períodos cortados, enfim, cujo resultado é um
texto hermético e musical, "para ser lido em voz alta". Não surpreende que Nassar não tenha
escrito mais que dois livros, e quando homenageado pela série Cadernos de Literatura, para a
qual redigiu o conto "Mãozinhas de seda", tenha solicitado que o texto não fosse incluído na
publicação.
308
AIRA, César — "Todo homem..." A trombeta de vime. Op. cit., p. 20.
106
trabalham na terra sem descobrir qualquer vestígio; com a chegada do outono, no
entanto, a safra é maior que qualquer outra. Revela-se o segredo, a
experiência que o pai transmitia repleta de mistério: a felicidade estava no
trabalho, não no ouro. A fábula foi retomada por Diderot, em Páginas
filosóficas; por Benjamin, em "Experiência e pobreza", e quem saberá quantas
vezes mais. Trata-se de um relato enigmático, cujo desfecho produz alguma
espécie de moral, fechando o círculo alegórico como gênero demonstrativo de uma
verdade que não é dita, mas vista por todos que lêem o relato.
309
Para que o
relato funcione, arremata Aira, em Copi, tem de possuir sempre algo de
inexplicável, e a arte da narração decai em nossa época justamente por
incorporar a explicação.
Graciela Montaldo, ao analisar Os dois palhaços,
310
nessa novelinha a
alegoria de dois escritores, dois palhaços de circo, dois escritores-idiotas
que levam as palavras a rio, literalmente: ao redigir uma carta a uma mulher
chamada "Beba", ditada por seu companheiro, o palhaço que escreve bebe licor;
ao escutar uma "coma", ou seja, uma vírgula, come salsichas. Entre "comas" e
"bebas", o palhaço-escritor acabará inflado, torpe, bêbado, castigado por não
entender o mecanismo da ficção. Montaldo aqui uma alegoria do realismo, o
pai de todas as fantasias. Por outro viés, Raúl Antelo pontifica que Aira não
pratica a alegoria, antes pelo contrário, "desdenha toda permanência estrutural
que garanta a determinabilidade do sentido ou aponte, em última análise, a um
valor central e definitivo, incapaz de ser alterado sem abalar todo o
sistema".
311
Diríamos que, nesse sentido, o próprio Aira desenhará a mudança operada
na contemporaneidade: a explicação como paralisia sensório-motor das
personagens do relato (na crítica literária como gênero); a falta de explicação
como destruição do relato (Robbe-Grillet, p. ex.), ou ainda a explicação como
alternativa causal, tal como em Proust, quando enumera durante ginas inteiras
os possíveis motivos que alguém pode ter tido para fazer o que fez. Em todos
esses últimos casos se a força motriz do relato em sua forma contemporânea:
ele não encerra um mandato de significado que, todavia, contém mas não
mostra; trata-se de uma vulgarização, sem que isso configure uma perda. À prosa
de linguagem simples e direta, praticada por Aira, não interessa a moral, mas
continuar as explicações possíveis, os relatos possíveis. Não se trata de um
renascimento; não estamos diante de um bom contador de histórias, porque a
moral, o desfecho do círculo alegórico sempre se esvai pelas linhas.
312
309
A esse respeito, cf. IDEM — Kafka, Duchamp (Arquivo, p. 236.)
310
Cf. MONTALDO, Graciela Um caso para o esquecimento: estéticas bizarras na Argentina
(livros, indústrias culturais e ficções). Op. cit., p. 91-3.
311
Cf. aba da tradução brasileira de Um acontecimento na vida do pinto-viajante.
312
"Em geral, os escritores não manejamos muito bem todo o valor agregado que um livro pode
alcançar. Eu sigo meu argumento o melhor que posso, mas uma vez terminado, o livro pode
adquirir outro sentido que sequer pensava existir. É o milagre da leitura" (AIRA, César La
literatura realista, lucro con la miséria. Entrevista a Jorge Luis Espinosa. Milenio. México,
18 jun. 2007).
107
Mas há, certamente, duas naturezas distintas da explicação: por um lado,
trata-se de esclarecimento, de contextualizar um fato em determinada fração de
tempo e história; aqui se tem a morte da narrativa, o surgimento da notícia.
Por outro, trata-se de se utilizar da explicação para seguir adiante, sem
deixar que uma verdade venha por fim à tona. É um vislumbre. O que fica, daí, é
o contínuo, e por esse defeito a escritura pode lançar-se sempre adiante, como
arqueologia de um passado sempre em reativação, ao qual o escritor sobrevive
para dar testemunho.
313
"Escreve-se a partir desse mínimo, mas pelo fato de
escrevê-lo já se torna um máximo."
314
Bernard Bretonnière, em entrevista anexada ao fim da edição de Nouvelles
impressions du Petit Maroc, questiona César Aira a respeito de "O vestido cor-
de-rosa", tentando extrair do autor o possível conteúdo filosófico do texto.
Diz: "O senhor afirma que 'Em certo ponto de qualquer narrativa real existe uma
outra, virtual'. E por isso me refiro a conto filosófico, fábula".
Ah! Eu escrevi isso! responde Aira. Bem, eu não poderia explicar-lhe
hoje, e quem sabe jamais. É importante para mim, é a história da minha vida:
ter dito coisas e não poder explicá-las mais... O escritor faz perguntas,
porém jamais as verdadeiras respostas, ele inventa outros discursos que
por si necessitarão de outras explicações. Tudo cessa quando a verdade é
dita. O escritor continua e deve se proteger da crença na verdade, a única
coisa que poderia interromper seu trabalho.
315
E caso disso reste ainda alguma contradição, não haverá problema algum:
mais adiante, Bretonnière pasma e indaga se o que Aira acabara de dizer não
contradiria exatamente o que falara minutos antes. "Sei que é seu direito, mas
agora o senhor se encontra perto das armadilhas de seus próprios paradoxos".
verdade!", diz Aira. "Veja, a prova de que nós [os escritores] não procuramos
atender a uma verdade. Eu não uso da necessidade de sustentar as teses."
316
3.3 APARELHO, PROCEDIMENTO, CIFRA
Mencionamos no capítulo 1 um dos ensaios mais conhecidos de César Aira,
"A nova escritura". Relembremos: nesse texto aparece formalizada sua teoria do
procedimento como o elemento restante da vanguarda, uma espécie de artifício
que permite continuar a arte sem necessariamente se ter a obra, ou, por outro
313
"Poderíamos dizer que o passado se faz presente", diz Beatriz Sarlo. "E a lembrança precisa
do presente porque, como assinalou Deleuze a respeito de Bergson, o tempo próprio da lembrança
é o presente: isto é, o único tempo apropriado para lembrar e, também, o tempo do qual a
lembrança se apodera, tornando-o próprio." (SARLO, Beatriz — Tempo passado. Cultura da memória
e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire d'Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 10.)
314
AIRA, César — Por que escrevi. Cf. Arquivo, p. 287.
315
IDEM — Entretien avec Cesar Aira par Bernard Bretonnière. Op. cit., p. 76.
316
IDEM — Ibidem.
108
viés, o procedimento permite à obra permanecer aberta, disseminando-se em
possibilidade infinita. Poderíamos, assim, grosso modo, relacionar o
procedimento a uma espécie de técnica, de mecanismo, movido a corda ou a
qualquer outra forma de energia, que uma vez acionado produzirá enunciados, tal
qual uma máquina fotográfica ou um projetor, disparados por um simples botão de
start ou play. Seria um aparelho, ou seja, um "brinquedo que simula um tipo de
pensamento".
317
Em "O ensaio e seu tema", publicado em 2001, César Aira esboça uma dessas
máquinas. Fala de uma estratégia particular para a escolha do tema, bastante
simples, que se constitui da junção de dois termos, A e B. Um assunto apenas
não se sustentaria, que talvez por aí adviesse uma vontade de esgotamento,
sempre enganosa. A junção de dois termos, por outro lado, delimita e especifica
o confronto, de modo que o que se tem a dizer possui seu ponto mais alto
exatamente no título, ao qual toda a reflexão posterior fica remetida. Dada a
simplicidade da estratégia, Aira esboça um testemunho de seus tempos de
faculdade:
Nos anos setenta [este esquema] era algo quase obrigatório, tanto que com
alguns amigos tínhamos pensado em oferecer às usinas editoriais de ensaios um
procedimento simples para produzir títulos. Consistia num diagrama feito a
partir de duas linhas em ângulo reto, sobre as quais se escrevia duas vezes,
na vertical e na horizontal, a mesma série de termos extraídos da base comum
de interesses da época; digamos: Liberação, Colonialismo, Classe Operária,
Peronismo, Imperialismo, Inconsciente, Psicanálise, Estruturalismo, Sexo etc.
Bastava pôr o dedo num dos quadrinhos assim formados, remeter-se à abscissa e
à coordenada, e se obtinha um tema: Imperialismo e Psicanálise, Mais-valia e
Luta Operária, ou o que fosse. Tinha-se, é claro, de tomar a precaução de não
eleger uma casa da diagonal central, nesse caso poderia sair algo como
Capitalismo e Capitalismo. O que, pensando bem, teria sua originalidade.
318
O esquema, o procedimento, seria então um aparelho. Todavia, o aparelho
não vê, não age por si. Se o aparelho é máquina produtora de imagens ou
enunciados, seu condutor é quem nestes insere informações não previstas por
aquele. Trata-se da definição de Flusser para o fotógrafo mas que, aqui,
entenderemos como sujeito. Convém perguntar, a essa altura, se uma vez acionado
à revelia do condutor, o procedimento não produziria sempre o mesmo, numa
repetição indefinida. Não. Se o procedimento é o mesmo, a diferença residiria
na intensidade do gesto, modulado pela aspereza ou ondulação do terreno onde o
sujeito se projeta, no composto de misturas que antecipam o apertar do botão
ou, ainda, no próprio lugar onde a operação se dá. Mais que isso, o
procedimento se estende e atravessa o receptor, que deve vaguear sobre a
superfície da imagem e fazer scanning, um movimento de varredura que "decifra"
uma situação.
319
Longe de esclarecer os digos, o que se tem novamente é
317
FLUSSER, Vilém — Glossário para uma futura filosofia da fotografia. Op. cit., p. 77.
318
AIRA, César — O ensaio e seu tema. Cf. Arquivo, p. 265.
319
Cf. FLUSSER, Vilém — Glossário para uma futura filosofia da fotografia. Op. cit., p. 78.
109
proliferação de procedimentos. Porque não decifragem que não produza novos
códigos, novas cifras, tanto particulares quanto irrepetíveis.
César Aira de fato pratica a fórmula A e B em alguns de seus textos ("A
cidade e o campo", "Best-seller e literatura", A costureira e o vento, Dante e
a rainha, Mãe e filho) como exercício de tensão entre duas forças, cuja
potência descansaria no volume onde estão inseridas. Reposicionando-as, a
potência é também remodulada.
320
A combinatória, porém, se estende e concerne à
formulação singular e irrepetível que constitui tanto o escritor como o leitor.
Trata-se de uma cifra, elaborada pela somatória das leituras de uma vida
inteira. Mas apesar dessa condição única, dessa particularidade absoluta (que
poderíamos remeter àquilo que Aira denomina estilo
321
ou "mito pessoal do
escritor"),
322
os resultados da combinatória são comuns, porque a literatura
forma um sistema que, como todo sistema, está completo de antemão, tornando
supérflua toda e qualquer adição. O argumento é duro pois, para a literatura,
os livros por vir serão invariavelmente dispensáveis, acessórios,
suplementares, porque aquilo que produzem já está feito por aqueles que o
antecedem. obras o bastante. um dos argumentos de "A nova escritura",
em que impera o processo sobre o resultado, ou seja, se se sabe com o fazer
uma obra, a execução se torna inútil, porque "serviria apenas para alimentar o
consumo ou sanar uma satisfação narcisista".)
323
Somente na História se
justifica a multiplicação dos livros, dirá Aira, porque nesse campo se
multiplicam as essências da literatura, os efeitos contingentes do tempo.
A essa altura, cada novo livro constitui também um aparelho a mais,
anexado à grande máquina, que reinventa e dissolve a literatura com seus
próprios ácidos. Borges renunciou a essa postura de ator no presente histórico,
dotando o leitor de poderes inusitados, tal como Pierre Menard, para quem a
História é confirmatória, não criadora. "O sujeito histórico que assumiu a
máscara do leitor se converte em livros apenas para atualizar uma essência
trans-histórica, livros estes que servirão como exemplos intercambiáveis de um
sentido que já estava antes e que estará depois."
324
Sylvia Molloy repara que se todos os contos de Borges repetem
incansavelmente que toda a literatura é releitura e exercício de repetição de
320
O gesto assemelha-se ao que Aira reconhece como uma das estratégias da escritura borgiana,
ou seja, "extrair esses elementos que tornam a literatura sistemática (elementos que
sobreviveram, meio ao acaso, como ruínas) do 'volume' onde estão, na maior parte das vezes
ocultos ou dissimulados num mal-entendido, ou simplesmente inadvertidos, para serem expostos
em fórmulas simples e despojadas do aparato com o qual uma idéia se torna um livro. Essa
extração não é apenas epistemológica, mas também moral, que tais elementos são despojados
de sua implicação psicológica, pessoal e patética. Antes, claro, são despojados de seu volume"
(AIRA, César — A cifra. Cf. Arquivo, p. 231).
321
"Um estilo é uma civilização unipessoal que faz de todos os demais homens, passados,
presentes e futuros, epifenômenos de um universo imaginativo" (IDEM — Ibidem).
322
"A essa língua estrangeira dentro da língua materna se chama, genericamente, 'estilo'. Eu,
ao estilo tenho chamado 'mito pessoal' do escritor, porque acredito que termina por abarcar
tudo, a vida e a obra, num contínuo incessante" (IDEM — O incompreensível. Cf. Arquivo, p. 240).
323
IDEM — A nova escritura. Cf. Arquivo, p. 222.
324
IDEM — A cifra. Cf. Arquivo, p. 231.
110
um texto, perpetuamente diferente (dentre os quais "Pierre Menard" seria
apenas o mais citado), "O Evangelho segundo Marcos"
325
vai mais longe porque as
personagens que Borges nele apresenta o são letrados europeus, como
Menard, mas criollos, com sangue europeu e hispano-americano, que não sabem
ler nem escrever. "Indigentes culturais, não perderam, apesar de tudo, o
deslumbrado respeito pelas Escrituras; mas, ao carecer de letras, conseguem
dramatizar, de maneira atroz, sua intenção desviada."
326
Seria este um aspecto
fundamental da literatura hispano-americana: a capacidade de distorção
criadora. Trata-se do famoso argumento de Silviano Santiago em "O entre-lugar
do discurso latino-americano", quando sublinha o abandono dos métodos da
crítica policial "em benefício de um novo discurso crítico, o qual por sua vez
esquecerá e negligenciará a caça às fontes e às influências e estabelecerá como
único valor crítico a diferença".
327
O caminho, sabemos, prevê a transformação
do leitor consumidor em leitor produtor de textos, pela distinção barthesiana
entre textos legíveis (os clássicos por excelência) e textos escrevíveis,
aqueles que despertam o cliente pagante à práxis da expressão da própria
experiência. Tal expressão seria aquilo que pouco vimos como os "efeitos
contingentes do tempo", fundamentais para a História, porém acessórios para a
Literatura. Os mapas e territórios produzidos constituem, por sua vez, um ponto
de indecibilidade porque jamais será possível saber se o mapa concerne à
leitura que cobre todo o escrito, ou à escritura que chegará a cobrir uma
leitura que foi anterior.
Ao estudar a escrita autobiográfica na América Hispânica,
328
Molloy
elabora essa imagem expondo o argumento de que a autobiografia, o testemunho ou
os relatórios de viagem (formas representacionais que a rigor estariam marcadas
pela idéia de fazer crer o leitor estar diante de relatos diretos, "sem
ficção", ou seja, extraídos da vida real, por indivíduos reais, e que não
obedeceriam, como articula James Olney,
329
a quaisquer requisitos formais dados
de antemão) na verdade apenas mascaram em negativo, poderíamos acrescentar
uma prefiguração textual dada pela combinação, por vezes incongruente, de todos
os textos que funcionam como impulso literário ao escritor, o aparelho que se
acopla à máquina Literatura. Daí que, conforme a perspectiva, todo novo texto,
todo novo escritor não seja mais que scanning, varredura de toda a combinatória
que o atinge e que lhe é anterior, mas que até então permanece em estado bruto,
325
Cf. BORGES, Jorge Luis O informe de Brodie. ed. Trad. Hermilo Borba Filho. Porto
Alegre; Rio de Janeiro: Globo, 1983, p. 105-14.
326
MOLLOY, Sylvia Vale o escrito. A escritura autobiográfica na América Hispânica. Trad.
Antônio Carlos Santos. Chapecó: Argos, 2004, p. 31.
327
SANTIAGO, Silviano Uma literatura nos trópicos. Ensaios sobre dependência cultural. São
Paulo: Perspectiva, 1978, p. 21.
328
Cf. nota anterior.
329
"Não há regras nem requisitos formais que limitem o autobiográfico; não existem restrições,
nem modelos ineludíveis, nem práticas obrigatórias que gradualmente tenham surgido de uma
longa tradição" (OLNEY, James (comp.) Autobiography: Essays Theoretical and Critical.
Princeton University Press, 1980, p. 3, apud MOLLOY, Sylvia Vale o escrito. Op. cit., p.
32.)
111
sem recombinação. Ao modo de agenciamento dessa operação também se pode chamar
estilo, com a ressalva, porém, de que o se trata de uma estratégia consciente
e controlada:
Todo escritor vai em direção à claridade perfeita, mas o caminho é um rodeio
pelo incompreensível. Caso se dirija ao claro pelo caminho do claro, poderá
ficar no óbvio, que é a forma mais derrotada da melancolia em literatura. O
escritor faz um longo e tortuoso passeio pelas sombras antes de chegar à luz,
e a claridade final fica impregnada pelo incompreensível, como as brancuras
de neon do paraíso dantesco ficaram marcadas pelas assustadoras espirais das
cavernas do inferno. A claridade definitiva da obra triunfante volta a ser
escura, mais escura quanto mais clara for, e isso assegura a eterna juventude
da obra de arte.
330
E disso resta, talvez, que não haja agenciamento algum.
O mesmo mecanismo é armado por sar Aira através da figura de Borges,
cuja estratégia de escritura a crítica muitas vezes presunçosamente desenha
pela combinação casual de se "tomar ao acaso dois artigos da Enciclopédia
Britânica, resumi-los em prosa elegante, e buscar uma relação que, a favor do
acaso, não poderia deixar de indicar inteligência e erudição".
331
Para Aira, a
literatura é o único sistema apto para um homem só, aquele que tudo elabora sem
sair de seu mito biográfico singular. Daí que o estilo conflua numa civilização
unipessoal, que faz de tudo e de todos os homens epifenômenos de um universo
imaginativo particular, cujos mapas desenhados (a escritura) jamais saberemos,
como dissemos pouco, tratar-se de um todo irredutível que cobre o trajeto
percorrido, ou de um esboço do trajeto que conta dos meios percorridos para
se chegar até ali.
A proliferação de aparelhos é infinita. Em todos eles verdade,
processos de verdade, sujeitos que se constituem e se dissolvem. Todos eles
demandam acontecimentos. Se anexados à máquina Literatura, adentram o contínuo
e, ainda que munidos de sua singularidade, sua particularidade absoluta, serão
supérfluos. Se anexados à máquina História, também adentrarão o contínuo, porém
se trata de um contínuo regido pela situação, que administra os discursos e,
por uma espécie de "seleção natural", forma aquilo que Lyotard julgava
encerrado: os metarrelatos.
332
O contínuo da História é fundamentalmente seleção
e, por conseguinte, inserção no texto escolhido para o cânone de um quê de
sentido que passará a orientar a significação deste mesmo texto, ou melhor,
garantirá significação no campo aberto do discurso.
Nesse gesto de exclusão, uma série de aparelhos, de mundos, ficarão à
margem. Mas é essa exclusão o que possibilitará, mais tarde, que o próprio
contínuo da História siga adiante. Porque ainda que seletiva, a História
reserva para si uma ferramenta importante, a reconsideração, pela qual pode
330
AIRA, César — O incompreensível. Cf. Arquivo, p. 240.
331
IDEM — A cifra. Cf. Arquivo, p. 231.
332
Cf. LYOTARD, Jean-François O pós-moderno. Trad. Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1986.
112
reformular a si sem deixar de lado princípio legislador.
333
para a
Literatura, a reconsideração não existe, pois o sistema que ela desenha, na
verdade, não lhe pertence, nem é por ela esboçado; trata-se de mais um
agenciamento da História. Não se volta atrás na Literatura.
3.4 MAQUETE
Mas se em todos os aparelhos verdade, como isso se dá? Como se forja
uma verdade? Do que se constitui e como se chega ao realismo? são perguntas
que os textos de César Aira dificilmente deixam de enunciar ou responder.
No capítulo 1, mencionamos um ensaio em que o escritor fala de como a
ficção se torna, especialmente a partir do século XVIII, com Montesquieu, um
procedimento indispensável do pensamento para se atingir e tocar o novo.
334
As
Cartas persas, por exemplo, desenham um mecanismo pelas figuras de Rica e
Usbek, cuja condição de estrangeiros permite um olhar (uma escopia, una mirada)
sobre a Europa que os europeus jamais teriam. O que se tem é uma literatura
menor, não a de uma língua menor, mas a que uma minoria faz em uma língua
maior.
335
Trata-se, portanto, de um uso estranho desse mecanismo.
Mas para produzir uma escopia, um olhar, é necessário passar pela
instância ficcional do "como se", ou seja, para que se veja a Europa, no caso,
é necessário um dispositivo de distanciamento do fenômeno, algo que nele
esbarre por um processo de estranhamento. Mas essa, reparará Aira, é a condição
própria do escritor que, para ver a sociedade que o rodeia, deverá supor a si
mesmo como estrangeiro, louco, ingênuo, gigante, artista etc. Dessa simbiose
entre ficção e realidade, de um eu que se mostra por uma imagem em negativo a
partir de um outro hipotético, resulta o romance exótico, sob o signo da
inversão: para que a realidade revele o real, deverá antes se tornar ficção.
Essa passagem gera uma nova condição para o pensamento: a ficção passa a atuar
como uma espécie de seu auxiliar.
Para pensar este dispositivo, o como se, na escritura de César Aira,
passemos a um dos relatos de A trombeta de vime, intitulado "Introdução e
ensaio", datado de julho de 1995. Nesse texto, Aira nos mostra a digressão de
um escritor que, ao fim de um dia perdido, um dia de pequenos fracassos, volta
à sua casa de metrô, após uma ida ao centro da cidade em busca de um disco. Um
333
Cf. BAUMAN, Zygmunt Legisladores e intérpretes. Sobre la modernidad, la posmodernidad y
los intelectuales. Trad. Horacio Pons. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 1997.
334
Ou, para utilizar de um outro termo seu, o "incompreensível". Cf. Arquivo, p. 240.
335
Cf. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, lix O que é uma literatura menor? Kafka. Por uma
literatura menor. Op. cit., p. 25.
113
sujeito entediado sem tédio não experiência, dirá Benjamin
336
que, da
melancolia que constata e divide com aqueles à sua volta ("fora inútil sair",
diz, "se bem que ficar teria sido pior"), entende que a procura de uma causa
orgânica, de um centro que distribua sentido ao mundo, não é mais que um pobre
consolo porque, a seu ver, "os giros de meus pensamentos no vazio, como a
mecânica da cidade e da sociedade, numa palavra, tudo, responde a pequenos
estímulos esparsos e incoerentes".
337
É portanto esse narrador entediado, que volta para casa sem conseguir
nada, nada além de perder o dia, quem nos dará um esquema de como se faz uma
verdade, pela premissa de que "toda obra de arte é a introdução aos sistemas
precários em movimento".
338
Todo artifício, a literatura portanto, surge "como
uma correção marginal à crueldade implícita do pensamento criativo",
339
um
dispositivo que ordena o discurso, e que mesmo não sendo ele próprio a regra
(por vezes será objeto de sua quebra), "estende a ponte para o jardim do
inofensivo, onde qualquer um pode cortar suas rosas sem temor de prejudicar
quem quer que seja".
340
O nome literatura é aquilo que apazigua os
discursos; o dispositivo que insere o caos, embalado a vácuo, dentro da ordem,
que por sua vez o distribui e entrega "ao puro e livre-arbítrio de cada um".
341
Durante a viagem, o narrador, um narrador de si, espécie de escritor-
idiota, pensa a Literatura (assim se refere) como o espaço de uma iluminação
privada, trabalho intelectual fecundo, promessa de felicidade. "Não poderia
dizer do que se tratava exatamente. Ou, melhor dizendo: tratava-se da
Literatura",
342
algo que pode ser tanto uma partícula subatômica quanto uma
"instituição grandiosa e pesadíssima".
343
É o luxo do mundo, mas, ao mesmo
tempo, é o luxo que transforma o mundo. Fechando a digressão, o narrador
entende duas espécies de riquezas: a européia e a americana. De um lado, no
velho continente, tudo parece se repetir, de modo que nada pode ser mexido sem
que se subtraia de algo ou alguém parte de sua propriedade, ao passo que na
América a riqueza se cria do nada, dos grandes espaços vazios, num crescimento
constante e ilimitado.
344
É a partir desse lugar, portanto, uma terra baldia,
que nosso narrador se manifesta. Dessas divagações a viagem se encurta, e nosso
narrador não hesita, nem bem chega em casa, senta-se a escrever um ensaio.
336
"O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência." (BENJAMIN, Walter O
narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Op. cit., p. 204.)
337
AIRA, César — Introdução e ensaio. Op. cit., p. 65.
338
IDEM — Ibidem, p. 68.
339
IDEM — Ibidem.
340
IDEM — Ibidem.
341
IDEM — Ibidem.
342
IDEM — Ibidem, p. 66.
343
Cf., a esse respeito, IDEM — O que fazer com a literatura? Arquivo, p. 285.
344
Lembremos: trata-se da leitura de Sylvia Molloy para o conto "O Evangelho segundo Marcos",
de Borges (cf. MOLLOY, Sylvia O leitor com o livro na mão. Vale o escrito. Op. cit., p. 30-
1), e da teoria do entre-lugar de Silviano Santiago (cf. Uma literatura nos trópicos. Op.
cit., p. 21).
114
O tema do ensaio não vem muito a caso, está intitulado simplesmente
"Ensaio", e mesmo porque se trata de um álibi e também de um doppelgänger. Não
é, pois, o tema que a argumentação levará adiante: fala do fim do ofício da
prostituição, de como esse ofício é substituído por uma nova ordem sociosexual,
não tardando o dia em que será apenas um dado histórico, reconstituível somente
por meio de documentos. Fala também, pessoalmente, que por uma questão de
timidez jamais recorreu às putas ("ninguém mais desprovido do que eu da
habilidade de decodificar, traduzir e improvisar necessária para aproveitar as
chances sutis que estão no ar, que são o ar [...] Sou um inadaptado"),
345
e que
o espanta a idéia de que um sujeito, com apenas alguns trocados, possa dispor
daquela moça que mais lhe agrada, com todo o seu consentimento, e no dia
seguinte outra.
Não é um conto de fadas? É quase uma fantasia diurna, um sonho acordado, e
desse tipo de sonhos verossímeis e com elasticidade para abrigar todos os
detalhes, e a mais breve experiência ensina que essas fantasias nunca se
realizam.
E, no entanto, deve ter sido assim, a julgar pela documentação de que
dispomos. Mas deixemos de lado os papéis, que podem mentir. Tomemos a única
coisa que confirma nos fatos a realidade da prostituição: os restos que
sobrevivem. A partir deles deveríamos poder reconstruir o que a coisa em si
foi no passado.
346
E aqui a pergunta inicial retorna: como se faz uma verdade? Nosso
narrador percebe que desse passado andrajoso, cuja presença, no caso, são
apenas putas velhas, desdentadas, caolhas, vovozinhas, pode-se no entanto
imaginar perfeitamente sua juventude, "deve ser minha imaginação que atua como
um raio aniquilador e faz a juventude de todas elas, coletivamente, se
desvanecer no giro de uma frase, num instante, como numa sinapse. Talvez aqui
opere o 'princípio da incerteza', sendo um desses fenômenos que ninguém pode
observar sem modificá-los".
347
Sobre esse passado emerge um sujeito de outra
dimensão, um indivíduo formado, com gostos e experiências, todo esse aparato
necessário de que uma verdade bem forjada precisa para se pôr de pé.
"A experiência me ensinou", diz, "que o único procedimento que realmente
ajuda a resolver problemas desse tipo é dispor seus dados de tal modo que
fiquem todos visíveis a um olhar."
348
Mas nisso emergem alguns problemas:
como lidar com a heterogeneidade dos dados, sua forma e origem, que são as
mais variadas, uns são reais, outros fictícios, uns permanecem, outros são
não dizem nada, uns são próprios, outros alheios, outros ainda dizem respeito a
problemas correlatos. "Podem ser casuais, soltos, temporais, a priori,
biográficos, coincidentes, substantivos, adjetivos, modais, ricos, pobres
345
AIRA, César — Introdução e ensaio. Op. cit., p. 70.
346
IDEM — Ibidem, p. 70-1
347
IDEM — Ibidem, p. 71.
348
IDEM — Ibidem.
115
estéticos, qualquer coisa."
349
E com o detalhe, é certo, de que um elemento só
se mostra ocultando outros. Por isso, diz o narrador, é preciso montar uma
espécie de "maquete"; nela tudo aparece ao mesmo tempo. A maquete é um ponto
nevrálgico, mas não o centro do relato, é bom esclarecer. Constitui o estofo
por onde os enunciados passeiam, a superfície na qual se joga com eles. Nela se
lançam os dados mais variados, e o procedimento seguinte será isto que nosso
narrador chama amplificação (e também equalização, dizemos nós), ou seja, dar
"espaço suficiente para mover-se entre eles, manipulá-los com comodidade,
deslocá-los, modificá-los".
350
"Se se tratasse de uma célula, bastaria
amplificá-la no microscópio. Mas um problema como o que nos ocupa costuma
incluir como dados uma célula, por exemplo, uma lula de vaca, mas também a
oscilação de preços no mercado de gado da bolsa de Chicago."
351
Para demonstrar o método, nosso narrador decide reunir, num mesmo salão,
todos os presidentes argentinos vivos em 1900. (E o ensaio sobre o declínio da
prostituição não interessa mais.) Mitre, Roca, Juárez Celman, Pellegrini,
Luis Sáenz Peña, E. Uriburu, Quintana, Figueroa Alcorta, Yrigoyen, Perón. São
21. "Em 1900 uns eram velhos, outros jovens, alguns crianças; não importa.
Tomamos todos em sua idade presidencial, a do retrato oficial [...] A escolha é
para efeitos da demonstração, nada mais."
352
Postos todos no salão, é hora dos
pormenores, os objetos, a mobília, a iluminação. Estão sentados aqui e ali,
jogando baralho, bebendo um cálice de xerez. Com a roupa não maiores
problemas, o guarda-roupa masculino é atemporal. Muitos não se conhecem; mas
haverá tempo para isso.
Do salão, diz haver uma grande escada. A varanda possui uma série de
portas (esse detalhe é o mais importante) que, ao se abrirem, avançam um pouco
sobre a varanda, em direção à balaustrada, "como se quisessem dar uma olhada no
que se passa embaixo, para depois voltarem a seu lugar. Se isso fosse uma
comédia, poderia se chamar As portas curiosas".
353
Pronto. Tem-se aqui a maquete; tem-se aqui um dos métodos Aira, senão o
método. (Mais adiante discutiremos a presença/ausência do procedimento na sua
escritura.) O cenário está montado, o ambiente decorado, as personagens em
movimento, basta adentrar o salão. Torna-se um mecanismo fácil, "movido à
corda", uma vez acionado, funcionará sozinho. Mas o detalhe que mais nos
interessa, as "portas curiosas", tinha sua maquinária funcionando desde
algum tempo. As portas deslizantes, que ao se recolherem saem a espiar o que
acontece e se insinuam sobre as personagens, constituem um narrador que
certamente terá muito mais a dizer do que qualquer um dos presidentes do salão,
349
IDEM — Ibidem, p. 72.
350
IDEM — Ibidem.
351
IDEM — Ibidem.
352
IDEM — Ibidem, p. 73.
353
IDEM — Ibidem, p. 74.
116
porque não têm quaisquer interesses implicados no relato. Para pensarmos isso,
será necessário dar alguns passos atrás e retomar outro ensaio de César Aira.
3.5 A PROSOPOPÉIA
A prosopopéia constitui-se de um recurso artificial que concede discurso
a algum objeto inanimado, animal, qualidade abstrata ou pessoa morta, ausente
ou imaginária. É a definição que César Aira nos dá no ensaio de mesmo título,
"A prosopopéia", datado de 1994.
354
Tais objetos podem ser testemunhas presenciais, tão inúteis quanto
insubstituíveis, uma vez que estando certos de que jamais virão a falar,
realizamos em sua presença nossos atos mais secretos, revelamos nossos maiores
segredos. Pela prosopopéia se elabora um lugar de fala inusitado, estranho,
infame, através de figuras que não estão inclusas nos ciclos da vida orgânica.
Dada essa qualidade, tais objetos podem durar gerações, atravessá-las,
guardando uma experiência única. De modo mais radical, a prosopopéia como
objeto inerte representaria pura e simplesmente a obra de arte, que nada é além
de objeto falante.
A mecânica prosopopéica é única: com ela se extrai um saber próprio
("caso se ponha a falar uma parede, podemos esperar que seja para dizer algo
muito específico e muito bem pensado; supõe-se que houve tempo para pensá-
lo"),
355
de algo inusitado ("toma a palavra um sujeito não destinado a falar, a
que todos os participantes das histórias implicadas tiveram por mudo;
por isso, a ele entregaram todos os seus segredos"),
356
e cuja maior
característica é sua superpotência narrativa ("o que fala está isento das
limitações temporais das personagens, atravessando suas vidas de um lado a
outro").
357
Mas não se trata de mero uso retórico. São vários os casos de uso da
prosopopéia na literatura, diz Aira. Dentre eles está Carta ao Pai, relato pelo
qual fala o "homem-parede", e cujo discurso está formulado tal qual uma
alegação jurídica, "o que, aliás, é bastante característico da prosopopéia:
sempre possui algo de ajuste de contas ou ato de justiça".
358
Além disso, trata-
se de um texto que possui a qualidade de atravessar as gerações.
A prosopopéia, em Kafka, se derrama desde "Josefina, a cantora ou A
cidade dos ratos", até "A construção", perpassando textos tais como
354
Ao que consta, a primeira aparição do texto se dá em Zunino & Zungri, revista eletrônica de
Beatriz Viterbo Editora (cf. http://www.beatrizviterbo.com.ar/zunino/zz_ part.php?id=237&
sec=Ineditos. Acesso: 30 nov. 2007).
355
AIRA, César — A prosopopéia. Cf. Arquivo, p. 215.
356
IDEM — Ibidem.
357
IDEM — Ibidem, p. 215.
358
IDEM — Ibidem.
117
"Recordações da estação dos caminhos-de-ferro de Kalda",
359
quando fala o homem-
ferrovia, que trabalha e vive nesse local ermo, dando-lhe voz, dividindo seu
tempo entre as tarefas de sua função e a observação das ratazanas de seu
tabique de madeira. A imagem dessa personagem retorna num dos contos de Sérgio
Sant'Anna (escritor carioca, 1941, cujo romance Um crime delicado César Aira
traduz em 2007), "O homem sozinho numa estação ferroviária",
360
cuja descrição
inicial nos coloca no mesmo ambiente montado por Kafka, a plantação, os colonos
que bem poderiam ser as visitas com quem a personagem de Kafka conversa
brevemente, a vaca que desejava comprar. Terminada a descrição no conto de
Sant'Anna, acabamos sabendo tratar-se na verdade de um quadro de autoria
anônima, pendurado numa das paredes da biblioteca de uma cidade paulista
interiorana. No terceiro grau da narrativa (o primeiro era a descrição do
cenário; o segundo, a revelação do cenário enquanto quadro), surgem duas
personagens ilustres, Mário e Oswald de Andrade, em visita à cidade por ocasião
da inauguração da biblioteca pública. O mecanismo prosopopéico então se
desdobra e se multiplica: do objeto falante quadro, que põe em cena "o mais
cinza dos cidadãos",
361
concede-se voz a dois escritores, que diante do quadro
passam a discutir suas possibilidades: não se trataria de um pintor, mas de uma
pintora que retratara a partida de seu companheiro a um sanatório de
tuberculosos. Oswald julgava tratar-se de um abandono, pelo que na verdade a
tuberculosa seria a pintora, que teria elaborado a imagem de memória, no
sanatório. Mário, por sua vez, incentivado por uma professora que acompanhava a
ambos os escritores, pensa ser um auto-retrato, Auto-retrato do suicida
momentos antes de atirar-se sob as rodas da composição...
A máquina ganha potência em Um acontecimento na vida do pintor-viajante,
quando surge Johan Moritz Rugendas, o pintor de gênero que, com seu assistente,
viaja pela América Latina retratando paisagens, tipos. Esse romance é um dos
casos mais emblemáticos do mecanismo prosopopéico na escritura de César Aira.
Tal qual o conto de Sant'Anna, aqui se faz com que os desenhos falem; pelas
imagens se elabora a trajetória do pintor pelo pampa argentino, em seu
procedimento de documentação, bem como a fatalidade de um raio que o atinge
nesse espaço baldio, experiência que ocasionará uma complexa alteração em sua
sensibilidade e percepção.
362
Voltemos ao ensaio.
359
Cf. KAFKA, Franz — Os aeroplanos em Brescia e outros textos. Trad. Ana Maria Freire Damião.
Lisboa: Livros do Brasil, 1988, p. 35-58.
360
Cf. SANT'ANNA, SérgioA senhorita Simpson. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 79-86.
361
Cf. AIRA, César — A prosopopéia. Cf. Arquivo, p. 215.
362
"Naqueles anos, Rugendas havia iniciado uma prática nova, a do esboço a óleo. Isto
constituía uma inovação que a história da arte registrou como tal. Somente uns cinqüenta anos
depois os impressionistas o praticaram de modo sistemático. Naquele momento, o jovem artista
alemão não tinha outros antecedentes, a não ser alguns excêntricos ingleses, tendo Turner como
modelo. Malvisto, considerava-se o esboço a óleo como uma obra mal-acabada. No trabalho
cotidiano, seu efeito era a inserção de peças únicas no fluxo constante de notas preparatórias
para a gravura ou o óleo em série. Krause não seguia por este caminho. Limitava-se a
contemplar a produção frenética daqueles pequenos rascunhos de pastosidade exagerada e cores
ácidas discordantes." (IDEM — Um acontecimento na vida do pintor-viajante. Trad. Paulo Andrade
Lemos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 25.)
118
Antes de Kafka, Diderot é o caso que Aira julga mais forte: As jóias
indiscretas, A religiosa, Jacques, o fatalista e O sobrinho de Rameau.
363
Depois
de Kafka, Puig. Nele, a prosopopéia se desenvolve com traços próprios, de Puig
e de seu tempo. Aira reconhece em seus livros algo que chama de "interesse
intrínseco das personagens". No romance popular, policial, as personagens
seguem sua curiosidade e por ela são delimitadas, ao mesmo tempo em que possuem
interesses vitais implicados no relato. No romance de entretenimento, o best-
seller, o interesse queima; a identificação do leitor é puramente fantasmática
com os interesses internos da ficção. É o contrário do romance obra de arte,
diz Aira, em que o interesse está posto fora, no leitor e na operação estética
de sua leitura. "Daí que, para acentuar o contraste, o romance moderno tenha
posto de lado o aventureiro e o gênio, especializando-se no mais cinza e
medíocre dos cidadãos."
364
A proeza de Puig, arremata Aira, reside na
recuperação do interesse interno, para o que o leitor simplesmente inexiste.
Em ensaio posterior, Aira observa que a profissionalização dos escritores
limitou a prática da arte a um setor social mínimo de especialistas, gerando
uma perda considerável de experiências com relação a todo o restante da
sociedade. Dque os artistas tenham passado a "dar voz àqueles que não têm
voz":
365
a prosopopéia invade a arte do século XX, convertendo-se numa espécie
serviço social. O romance realista, clamado por Lukács, estaria imbricado.
366
O gesto, no entanto, constitui para Aira uma lamentável caricatura da
363
"Para começar, em As jóias indiscretas, a prosopopéia aparece diante da consternação de
todo um reino, afortunadamente imaginário: os genitais femininos decidem falar. Aquilo que
jamais se imaginaria falando, que por definição detém os segredos que se acreditaria melhores
guardados, toma a palavra. Não é uma prosopopéia, mas sua tematização ou narrativização. O
acento está posto sobre a organização intencional do discurso: as 'jóias' abrem suas bocas por
motivos muito concretos, e fazem isso com uma eficácia surpreendente. Trata-se de algo típico
da mentalidade iluminista, da qual seria difícil encontrar um modelo mais bem acabado que
Diderot. Sua qualidade como expoente da época deriva da originalidade sem parâmetro, adquirida
pela reinvenção do dispositivo prosopopéia. O racionalismo mencionado como ajuste de contas
está mais desenvolvido em A religiosa: quem fala agora é uma monja enclausurada, cujo voto de
silêncio e obediência foi feito somente para melhor enunciar sua alegação fanática. Jacques, o
fatalista, e sobretudo O sobrinho de Rameau tomam a direção contrária, seus protagonistas são
tagarelas compulsivos. E por isso mesmo neles a prosopopéia triunfa. Nada pode surpreender
menos que escutar o sobrinho de Rameau, uma espécie de charlatão profissional; a surpresa
perene que se produz, no entanto, é que ele diz a verdade, sua loucura e marginalidade
coisificaram-no como objeto falante capaz de testemunhar o juízo da civilização. Jacques, o
fatalista, por sua vez, é o monumento à digressão proliferante do romance. Diria, aliás, que
aqui existe uma arqueologia da prosopopéia. O modelo seguido por Diderot foi Cervantes. Toda a
originalidade do Quixote, originalidade fundadora do romance, está no fato de que suas
personagens falam. Mediante o simples recurso de dar voz às personagens de um romance de
cavalaria, este explode, e seus códigos se dissolvem. A ficção não resiste à prova da palavra
falada, a realidade atua com um ácido, e o realismo nasce. Ao me referir ao "triunfo da
prosopopéia", quero dizer sua superação. Algo tão néscio como a prosopopéia se torna
literatura apenas ao cair por seu próprio peso. A outra influência de Diderot, em sua ficção,
foi Tristan Shandy. A peculiaridade insólita do romance de Sterne consiste em dar palavra a
uma personagem, sem condicionamentos, para que esta se perca em seu próprio discurso
incontrolável, e acabe contando uma história diferente daquela que o autor havia proposto.
Salvo então que se tem de coisificar essa personagem, ou seja, despojá-la de uma psicologia
que não poderia deixar de se contaminar pela do autor, dando-lhe a imprevisibilidade de uma
parede que desanda a falar." (IDEM — A prosopopéia. Cf. Arquivo, p. 215.)
364
IDEM — Ibidem, p. 216.
365
IDEM — A nova escritura. Cf. Arquivo, p. 222.
366
Sempre conforme a tipologia esboçada por Roman Jakobson, em "Do realismo artístico" (In
EIKHENBAUM, B. et al. Teoria da literatura: formalistas russos. Op. cit., p. 120-1). Cf.,
também, LUKÁCS, Georg et al.Realismo: ¿mito, doctrina o tendéncia histórica? Op. cit.
119
prosopopéia, ou seja, trata-se de ventriloquia e não prosopopéia, "que é também
ventriloquia, mas sem ilusionismo".
367
"Dar voz àqueles que não têm voz" poderia resumir o programa de Michel
Foucault, em "A vida dos homens infames", quando se detém sobre registros de
internações do século XVIII para elaborar uma espécie de herbário. O material
que analisa se constitui puramente de documentos, que nunca almejaram o terreno
da literatura; Foucault diz, entretanto, que "Agradar-me-ia designá-los com o
termo 'novelas', pela dupla referência que ele comporta: ao desembaraço da
narrativa e à realidade dos acontecimentos relatados; pois é tal a coesão das
coisas ditas, nestes textos, que ficamos sem saber se a intensidade que os
percorre vem mais do fulgor das palavras ou da violência dos fatos de que eles
estão repletos".
368
A posição de Aira, embora não corrobore, também não é
adversa ao argumento de Michel Foucault, porque não "intenção social" nesses
relatos escolhidos pelo teórico francês. É algo distinto de um romance como Dom
Segundo Sombra, de Ricardo Güiraldes, que, para Aira, seria modelo do mecanismo
natural da literatura com essa intenção sociológica.
369
"Se na gauchesca o autor
culto falava com a voz real ou suposta do homem do campo, Güiraldes uma
volta de parafuso, fazendo com que este fale como ele, numa transcendência da
ventriloquia, recuperando sua própria voz culta mediante a mágica genética.
Pela migração dentro de um mesmo sujeito, antecipa o gênero fantástico: o seu é
uma metamorfose terrorista intrasubjetiva", arremata Aira, em "A cidade e o
campo".
370
Sylvia Molloy lembra a tese de Paul De Man de que a prosopopéia é a
figura que rege a escritura de si. "Escrever sobre si mesmo seria essa
tentativa, sempre renovada e sempre fracassada, de dar voz àquilo que não fala,
de trazer o que está morto à vida, dotando-o de uma máscara (textual)".
371
Tais
textos pretenderiam a façanha de fazer o impossível, narrar a história de uma
367
AIRA, César — A prosopopéia. Cf. Arquivo, p. 215.
368
FOUCAULT, Michel A vida dos homens infames. O que é um autor? Trad. António Fernando
Cascais; Edmundo Cordeiro. Lisboa: Vega, s.d., p. 90.
369
Graciela Montaldo relembra o argumento do romance de Güiraldes: "um jovem gaúcho da
província de Buenos Aires, só, desconhecendo por completo sua origem, narra sua própria
história desde seus 14 anos até os 22. Conta como chegou na casa de umas tias, como estas em
princípio o acolhem, para em seguida abandoná-lo na vida à toa das ruas de um povoado rural;
conta ainda que um padrinho seu, o fazendeiro Dom Fábio Cáceres, um belo dia deixa de aparecer
com as habituais dádivas para o afilhado. O narrador ainda nos revela como acabou por se
tornar um vigarista: frauda, engana, age no submundo do povoado fazendo-se especialista em
todos os mecanismos da vida fácil (chamam-no 'perdidinho'). Ninguém lhe pressagia um bom
caminho, até que, certa noite, regressando de uma lagoa em direção às casas, dá-se o encontro
que muda sua vida: a figura fantasmática de um gaúcho, na escuridão, que lhe revela a
possibilidade de um destino. O rapaz, obedecendo a um impulso irresistível, segue esse homem
que cumprirá todas as funções do pai que não conheceu: educa, ensina como ganhar a vida, dá-
lhe, por fim, uma formação, no sentido mais completo da palavra. Dom Segundo é um gaúcho
tropeiro, e ensina seu ofício ao rapaz. Todo o romance será, assim, o relato de como esse
rapaz forma seu corpo e seu caráter, e, no sentido mais literal, transforma-se num homem.
Quando esse processo se cumpre, o gaúcho tropeiro descobre que o pai do rapaz era Dom Fábio,
que acabara de morrer; dele o rapaz recebe uma herança, torna-se fazendeiro e pouco tempo
depois, com dor, mas com resignação, separa-se de seu mestre, Dom Segundo" (MONTALDO, Graciela
Um clássico da vanguarda. A propriedade da cultura. Ensaios sobre literatura e indústria
cultural na América latina. Op. cit., p. 190-1).
370
AIRA, César — A cidade e o campo. Cf. Arquivo, p. 226.
371
MOLLOY, Sylvia — Vale o escrito. Op. cit., p. 13.
120
primeira pessoa que existe apenas no presente de sua enunciação. Porque fazer
falar a si mesmo, a certa altura da vida orgânica, equivale a assumir o lugar
de uma testemunha de si, a única possível talvez, dando voz àquilo que o
pode mais se expressar por conta, quando o eu que lhe compete está morto, e
muito. Todo processo autobiográfico seria portanto testemunhal, e toda
testemunha realiza, por princípio, o ato de justiça imbricado no mecanismo
prosopopéico.
Radicalizando o argumento, nada existiria, na linguagem, por fora do
dispositivo prosopopéia, pelo simples motivo de que aquele que narra nunca é
quem de fato agiu. Entre ação e enunciação reside a experiência, trabalhada
pela linguagem, constituindo uma série indefinida de eus distanciados, e cuja
unidade seria tão-somente o suporte corpo, nada mais. César Aira desenvolve
idéia semelhante ao comentar o ensaio "O nada da personalidade", em que Borges
não nega o indivíduo, mas sim sua "constância" no tempo. O Eu é momentâneo e
presente, está sempre por se reconstruir; o eu como personagem constante
seria uma soma impossível, "nunca realizada, nem realizável". No centro desse
texto uma anedota probatória, de espécie reveladora ou iluminadora: ao se
despedir de um amigo em Mallorca, no instante em que o espírito se desdobra
sobre si mesmo, reunindo forças para se colocar à altura do outro, compreende
tratar-se de uma tarefa tanto quanto impossível. Reunir todos os eus
sucessivos da experiência individual num eu genérico seria como tentar reunir
todos os instantes do tempo "num instante pleno, absoluto, possuidor de todos
os demais", ou seja, um Aleph biográfico, no qual não mais que um Aleph
universal da rua Garay.
A esse texto de 1922 responde, quase quarenta anos depois, a famosa
página de O fazedor, "Borges e eu", em que do outro lado de sua obra,
feita, Borges adverte existir, de qualquer modo, uma personagem totalizante,
elaborada às próprias custas, por sua própria atividade; com esse eu apenas
aparentemente definitivo interage o outro, o eu atenuado e momentâneo, cujas
armas continuam sendo a evasão e o esquecimento: "Minha vida é uma fuga,
perco tudo e tudo é do esquecimento, do outro". Nessa frase acrescenta-se,
trazido por esse "outro" inapreensível, o dispositivo que, no fim das contas,
é o habitat natural da vida de escritor: a leitura. E duas linhas antes,
falando da obra de Borges, Borges diz: "Me reconheço menos nos seus que em
muitos outros livros".
372
Sim, acabamos vendo prosopopéias em toda parte. Através dela, a obra de
arte se constitui como objeto falante. A imagem plasmada pelo artista aos
objetos nela inseridos esse estatuto mas, para torná-la legível, depois, o
procedimento prosopopéico é ativado novamente, porque agora, com toda e
qualquer intenção artística já diluída, para o leitor é preciso conceder voz a
esse objeto e fazê-lo falar em seu presente. Daí que todo agenciamento produtor
(seja do autor ou do leitor) se dê, por princípio, através da prosopopéia. Mais
ainda: toda operação de leitura é, por princípio, prosopopéica.
Daí também que a mecânica da prosopopéia difira de seu uso meramente
retórico, manejado essencialmente pelos fabulistas, quando "punham a falar
burros, papagaios, cães, moscas, cadeiras, reis, nuvens".
373
O ensaio de Aira
372
AIRA, César — A cifra. Cf. Arquivo, p. 231.
373
IDEM — A nova escritura. Cf. Arquivo, p. 222.
121
não se refere a aparições, sequer somadas, de seus três traços ("o escândalo de
que fale quem não pode falar, a intencionalidade justiceira de seu discurso, o
excesso sobre o tempo orgânico"
374
), porque o mecanismo faz atuá-los numa
máquina que, por sua vez, "produz a originalidade pessoalíssima de um autor, do
autor no qual volta a se manifestar, pela primeira vez no mundo e sem o saber,
a ocorrência da prosopopéia."
375
Caberia indagar, agora, pela função da prosopopéia em sua própria
escritura.
3.6 CONEXÃO E ABANDONO
Daniel Link, em resenha para o ensaio Alejandra Pizarnik, chamou atenção
para o valor destilado dos títulos em César Aira.
376
Mas além da linguagem
cotidiana que os encilha, a prosopopéia conecta estes textos avulsos a um mesmo
exercício de pensamento. Um pensamento sempre em decantação, de modo tal que,
após os títulos, a escritura também prefira uma brevidade cada vez maior. Em
seus últimos trabalhos, não há o fôlego descritivo de O sonho,
377
ou mesmo de
"O vestido cor-de-rosa", mas uma vontade de síntese, que Carlito Azevedo
reparará como uma espécie de segunda infância.
378
Nessa órbita se pode entrever
Mil gotas, mas também A princesa primavera ou O pequeno monge budista.
Antes, porém, a prosopopéia articula textos tais como As ovelhas, que em
meio ao nada do pampa ("O pensamento é uma estância") descobrem a morte e
filosoficamente discutem um modo de encará-la. Moussy é idealista; Cathy
articula Schopenhauer, Dorothy, monista. Em "O vestido cor-de-rosa", um objeto
de fetiche é o que faz personagens tais como o bobo Asís (cujo nome "sequer era
374
IDEM — A prosopopéia. Cf. Arquivo, p. 215.
375
IDEM — Ibidem. Cf. Arquivo, p. 215.
376
"Em algum momento se verá a coerência na obra de César Aira e o papel que nela ocupam seus
escritos críticos (seu artigo "Exotismo", Copi, este Alejandra Pizarnik). A simplicidade
esmagadora dos títulos não é um traço menor: Aira está obcecado em 'destilar' sua prosa até
levá-la a niveis de pureza extremamente altos. Ao mesmo tempo, este traço não digamos de
estilo, porque Aira abominaria precisamente 'o estilo' como carta de apresentação arrasta
todo o sistema argumentativo: nem o mais obsessivo leitor adverso poderá encontrar no libro
senão palavras da língua cotidiana." (LINK, Daniel — En breve cárcel. Radar Libros, suplemento
de Página/12, 1998.)
377
Redigida algum tempo, esta afirmação, caso tenha, está prestes a perder validade,
dado que uma de suas editoras espanholas prepara um grosso livro, de aventuras, a ser lançado
no início de 2008 (atesta o próprio escritor em correspondência eletrônica).
378
Cf. AZEVEDO, Carlito — 13 variações sobre César Aira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007,
p. 11. O próprio Aira reitera: "É algo natural, nunca coloco as intenções à frente, deixo irem
saindo. Bem, o meu vai saindo, vai-se fazendo assim. Também agora que estive em Barcelona, meu
editor me pediu uma novela, queriam lançá-la no fim do ano, uma novela nova, mas adverti, 'Vai
estar muito absurda'. Já não posso evitar. É uma evolução natural, não? Deveria ser o
contrário — agora que estou maduro, me aproximando da velhice, teria de me pôr sério, mas não.
gente que na mina idade entra numa segunda infância, semelhante ao que está acontecendo
comigo" (AIRA, César Cualquier cosa: un encuentro con César Aira. Entrevista a Craig Epplin
e Phillip Penix-Tadsen. Buenos Aires, 4 jul. 2005. Disponível em: http://www.lehman.cuny.edu/
ciberletras/v15/epplin.html. Acesso: 19 junho 2007).
122
um nome e sim a onomatopéia pueril de um espirro")
379
armarem o relato: trata-se
de um vestido que existia e tinha sumido sem qualquer razão. Feito para uma
recém-nascida, "passa de mão em mão, seja por roubo, perda, abandono ou morte
de seu possuidor; atravessa os anos, a passagem da barbárie à civilização",
380
e
suscita fatos, azares que sempre impulsionam a argumentação adiante. A luz
argentina mostra um casal, Kitty e Reinaldo, vivendo trancados no último andar
de um edifício alto, em Buenos Aires. Não são exatamente sujeitos, mas bonecos
limitados a representar os apólogos da indiferença, nem romances nem fábulas,
mas historinhas, desenhos animados. Canto castrato põe em cena Micchino, o
melhor castrato do setecentos, a figura irreprodutível, cujas apresentações são
disputadas por todas as cortes, de Nápoles a o Petersburgo; mas quem fala na
verdade é o século XVIII, sua atmosfera. Em Uma novela chinesa talvez não
interesse tanto a saga de Lu Hsin, mas sim a China, o Império da Porcelana.
(Ida Vitale diz que Aira propõe um romance de amor em que o amor é o motivo
sempre postergado, a voz em off que ocupará a cena quando, após a última
página, começa a narrativa virtual que podemos imaginar a partir de suas
indicações precisas.)
381
Em O panfleto, também não é Norma Traversini, a
protagonista, quem ganha foco, mas o panfleto que deseja redigir brevemente, em
linguagem precisa e convidativa para seus possíveis alunos de expressão
artística do bairro Flores. O panfleto se estende, se autonomiza e se converte,
às dobras, no relato de um romance que o preexiste, Aparências, e que, por sua
vez, também encerra dentro de sua narrativa o relato de outro romance, o qual
todas as personagens desejam ler: Náufragos à deriva. Em Como me tornei freira,
numa lembrança dos seis anos de idade, um menino percebe o mundo como uma
menina, e talvez também não interessem tanto as lembranças, mas sim a
androgênese que o relato expõe e pela qual se arma: o autor surge e nos diz que
sua infância foi na verdade o tempo andrógino por excelência. Já em Aniversário
fala o escritor de cinqüenta anos, nenhum outro, nem mesmo César Aira, mas
exatamente o de cinqüenta, em sua singularidade irrepetível. Trata-se de um
testemunho sobre o procedimento, sobre o ato de escrever, que demanda mais
escritura. Em A tília (relato prefigurado por um texto breve, "Adeus, Natal",
publicado no México,
382
à mesma época em que Aira entrega sua tradução de
Farewell, My Lovely, ou seja, Adiós, muñeca, de Raymond Chandler, à editora
Emecé),
383
tudo se dá em torno à árvore-monstro que habitava o parque em frente
à sua casa, em Pringles. Quem ganha voz, no entanto, são seus pais, aqueles a
quem ninguém imaginaria poder ouvir.
384
Mas mais: os livros de Flores (A
prova, quando falam as meninas darks do Pumper Nic; O sonho, em que tudo
379
AIRA, César — O vestido cor-de-rosa. Trad. Sérgio Molina; Rubia Prates Goldoni. In: ALCALÁ,
May Lorenzo (org.) — Nova narrativa argentina. São Paulo: Iluminuras, 1990, p. 174.
380
VITALE, Ida — Un vestido rosa y después: César Aira. Op. cit., p. 44.
381
IDEM — Ibidem, p. 45.
382
Cf. AIRA, César — Adiós, Navidad. Reforma. Ciudad de Mexico, 22 dez. 2002. Cf. Arquivo, p. 291.
383
Cf. CHANDLER, RaymondAdiós, muñeca. Trad. César Aira. Buenos Aires: Emecé, 2003.
384
Em "Adeus, Natal" será o contrário: quem fala, o que ninguém julgaria possível, é o menino
César, em seus três anos de idade. Cf. Arquivo, p. 291.
123
circula em volta de uma banca de jornais, o dispositivo distribuidor de
realidade; A mendiga; A guerra das academias; A vila; O todo que sulca o nada
e, precisamente, As noites de Flores), nos quais, sobre toda e qualquer
personagem, quem fala é sempre o bairro. E também os ensaios, nos quais se
voz a personagens mortas, a quem é preciso fazer falar, tal como em
qualquer gesto de leitura: Copi, Alejandra Pizarnik, Edward Lear (os "romances
de artista", como define Sandra Contreras).
385
Nesse sentido, talvez Os dois
palhaços não seja tanto a história de Gordo Balón e Pibe, mas a de Osvaldo
Lamborghini, que ao final da narrativa surge em forma de assinatura: Osvaldo
Malvón.
386
E também casos mais bem localizados, tal como Cecil Taylor, em que
se voz ao músico eternamente fracassado pela atonalidade de seus acordes, e
o Rugendas, de Um acontecimento na vida do pintor-viajante. A lista de casos
é extensa e está longe de terminar.
A prosopopéia, em Aira, articula-se como procedimento de conexão. Mas não
se trata da elaboração de um dispositivo (in/out) para que a obra execute a si
mesma em possibilidade infinita sem que aquele que põe o mecanismo em
funcionamento saiba do processo oculto na caixa-preta esse seria o movimento
de Music of Changes, de John Cage, mote de que Aira se vale para formalizar sua
teoria do procedimento, como vimos antes. Não procedimentos dessa natureza
em sua escritura. Aira monta-os, tal como esem "O ensaio e seu tema", mas
não necessariamente os utiliza.
387
Olhando suas novelinhas retrospectivamente, o
procedimento aparece por repetição não de um gesto que simplesmente aciona uma
máquina, mas como algo imbricado no próprio pensamento, algo do qual parte e
para o qual vai, rumo ao livro por vir. O mecanismo se repete, a fissiparidade
dos textos, com a ressalva, porém, de que o mesmo não é sempre o mesmo
388
o
esquema de "Duchamp no México", quando, grosso modo, o narrador nos conta a
aquisição de dez exemplares de um livro sobre Duchamp, cada um dos volumes por
um preço sempre menor).
389
385
Cf. CONTRERAS, Sandra — La novela del artista. Las vueltas de César Aira. Op. cit., p. 235-
86.
386
"Tudo se dá, poder-se-ia dizer, sob o signo lamborghiniano, porque todo Lamborghini está
aí: Osvaldo, Nal, o Pibe Barulo, as vítimas e vitimários de Las hijas de Hegel, o célebre
ditado do mestre ('Muchachos, eu não sou pai, sou um destino', de Sebregondi retrocede).
Sobretudo o final: atravessado pelo ponto de vista da morte, do 'Gran Final' que com sua
qualidade de definitivo determina tudo, todo o intermediário é narrado, desde o começo, desde
o 'ângulo de agonia' lamborghiniano, a 'necessidade do final', o 'Gran Teatro'. Por isso,
quando a assinatura diz 'Osvaldo Malvón' e então não resta nada por dizer, revela-se e
confirma-se que a única função 'desse deus distante e cruel' era 'fazer-se de morto', que essa
voz foi toda ao longo do ditado 'uma voz de além-túmulo', que toda a cena estivera correndo,
de pressa, rumo ao nada, 'com algo de fúnebre, de artificial, como de vida após a morte."
(IDEM — La muerte del Maestro. Las vueltas de César Aira. Op. cit., p. 241.)
387
"Em algum momento de minhas fantasias teóricas me entusiasmei com a idéia dos
'procedimentos', como os de Raymond Roussel, que geraram automaticamente os relatos. Era um
modo de liberar-se da subjetividade burguesa, de toda a velha máquina psicológica. Mas nunca
utilizei procedimento algum. E, olhando para trás, me dou conta de que quase tudo o que
escrevi é subjetivo, psicológico, autobiográfico e nasceu da mais velha e tradicional
inspiração. A moral é que não se deve acreditar muito nos escritores quando teorizam." (AIRA,
César Procedimento do prazer. Entrevista a Sergio Fonseca. Prosa & Verso, suplemento de O
Globo, 30 jun. 2007.)
388
Cf. BLANCHOT, MauriceO livro por vir. Op. cit., p. 327.
389
Cf. AIRA, César — Taxol. Precedido de Duchamp en Mexico y La broma. Op. cit.
124
Não é gratuito, portanto, que pouco tempo após a escritura de "A
prosopopéia", César Aira redija um texto intitulado "Pobreza". Nele, um senhor
poderá ser o próprio escritor (o texto razões para se entender assim), ou
não, pois boa parte dos textos de Aira em primeira pessoa induzem ao erro
relata sua frustração diante de uma vida inteira de necessidades, de como a
pobreza lhe acompanha desde menino, em Pringles, a seus atuais 46 anos de
idade. Trata-se de uma carência monetária, que lhe impede consumir à revelia,
tal como para muitos ocorre poder. Seu monólogo, por fim, faz com que a
interlocutora surja em sua frente, de mal humor e farta de suas reclamações.
Pobreza aparece para dizer aquilo que ninguém mais poderia: mesmo cansada,
mostra a seu interlocutor os dons todos que sua companhia até então
possibilitara, dons que a frivolidade não lhe permitia ver.
Pobreza mostra ter dado, essencialmente, a possibilidade de uma melhora
constante. "Por acaso teria escrito algo não fosse eu velando a seu lado,
espiando seus cadernos por cima do ombro? Por que faria isso? E caso tivesse
feito, teria saído pior ainda do que saiu. Muito pior! Mas isso também tenho de
explicar."
390
Sua explicação versa que a distância entre ricos e pobres supera a
possibilidade ou não de consumo. Porque aos ricos é possível se colocar a um
passo mais adiante no processo: exatamente no fim, onde não nada a ser
feito. Do pobre, pelo contrário, tudo se exige. Se não há dinheiro para comprar
madeira, ele vai à floresta e corta uma árvore. Da necessidade se faz dom; pela
pobreza se exige elaboração. Ao bárbaro é entregue o dom da pobreza; mas não se
trata de um dom exclusivo. É um dom que opera diretamente proporcional à
quantidade em questão. Ao comprar pronto, operação que pouco a pouco invade
o entendimento, o rico fica fora do processo: está no ponto final. Mais que
isso, o rico fica sem realidade. Porque a realidade, conclui Pobreza, é
justamente um processo. "Sem mim, teria faltado a seus livros a única modesta
virtude que lhes há de reconhecer: o realismo."
391
"Eu poderia ser uma desculpa
de sua parte, mas sua originalidade está aí, e dada a sua inadequação, sem
originalidade você não é nada. Fiz-lhe artista, porque a arte é processo, o
resultado."
392
E para finalizar a intervenção, Pobreza tripudia: "Vou embora. Se
é o que tanto queria, poderá se dar por satisfeito: não me verá mais. Vou a
Arturito Carrera, onde estou certa de ser apreciada como mereço".
393
O texto, datado de 19 de novembro de 1995, está circunscrito num momento
que César Aira muitas vezes se refere como rimbaudiano em sua escritura,
incluindo certamente o Diário da hepatite, O pranto (quando aparece um Aira do
instante, de corte clariceano), bem como muitos dos relatos de A trombeta de
vime, o ensaio sobre Arlt, a conferência sobre "Como ser escritor", no Centro
390
IDEM — Pobreza. Cf. Arquivo, p. 219.
391
IDEM — Ibidem.
392
IDEM — Ibidem, p. 220.
393
IDEM — Ibidem.
125
Cultural Ricardo Rojas. Também não é gratuito, portanto, que a última frase de
"Pobreza", quando o protagonista acata o discurso antagônico, vislumbre um
abandono do frívolo mas, ao mesmo tempo, um abandono abortado. "E desde então a
Pobreza viveu comigo, e nem por um dia abandonou minha casa." Porque o
abandono, como vimos antes, não se relaciona a uma rejeição sofrida; o abandono
não é objeto. É agente, exige um sujeito. Exige o processo. Abandonar por
pobreza, a essa altura, não é desistir por impossibilidade, mas persistir rumo
àquilo que Badiou chama ética perseverante. àquele que se coloca por fora do
processo, o abandono é de fato negatividade, porque implica em perda dos bens,
perda da vida, tal como se acreditava. Na pobreza, o abandono é um nada não-
negativo, ou seja, possibilidade imanente, singularidade bárbara de fazer a si
próprio às próprias custas, seja em que terreno for.
Em texto bastante posterior, "Rimbaud, um mistério intacto", de 2002,
quando examina o livro de Charles Nicholl, Rimbaud na África, o interesse de
Aira pelo dispositivo abandono aparece diluído.
394
não é um programa, como
se poderia ler na conferência no Centro Ricardo Rojas, mas tão-só um movimento,
parte do mecanismo. nesse texto um comentário conclusivo, digamos assim,
pelo valor de decantação adquirido: aquilo que em "Pobreza" ainda possui uma
enunciação longa e alegórica sintetiza-se, aqui, em três linhas: "Admite-se
poder abandonar a literatura quem a tomou em bloco, como uma forma unitária de
expressão; aquele que a praticou por dentro sabe que se pode abandonar um
estilo ou um formato, porque sempre haverá outros com que possa recomeçar."
395
Porque da pobreza como dom assimilado, tem-se agora que o que se enlaça pelo
abandono é, na verdade, uma vida nova
396
que, como bem lembra Pobreza, é
processo, não resultado.
394
Sobre essa desistência, pode-se confrontar as entrevistas "El mejor Cortázar es un mal
Borges", concedida a Carlos Alfieri (Revista Ñ, suplemento de Clarín, out. 2004), bem como a
do programa Off the Record, da TV chilena Arcoiris, em 2002, conduzida por Fernando Villagrán
(disponível em: http://chile.arcoiris.tv/modules.php?name=Unique&id=261. Acesso: 12 nov.
2006).
395
IDEM "Rimbaud, un misterio intacto" Revista Ñ, suplemento de Clarín.com, 13 abr. 2002.
Cf. Arquivo, p. 278.
396
Um dos textos mais recentes de Aira é A vida nova, em que narra a negociação e publicação,
sempre protelada, de seu primeiro livro com Horacio Achával, seu primeiro editor. A capa,
assinada por Javier Barilaro, é bastante sugestiva: nela aparece um casal, sendo que um dos
componentes, sentado, vislumbra a barriga do outro, em estado de espera, na qual a imagem
da própria cena performada, que se duplica e reduplica infinitamente. É o argumento da
novelinha, o editor que retém o original consigo e prepara o nascimento do livro, o escritor
que aguarda esse nascimento para que enfim se torne escritor de verdade. Seu primeiro livro,
Moreira, é de fato publicado por Achával Solo Editora, em 1975, embora o texto não vislumbre
esse parto. Nas últimas linhas (o texto se compõe de um parágrafo único, de 77 páginas),
documenta-se o movimento de abandono a que estamos referindo. Veja-se: "Quando pensava em
Achával, coisa que, como disse, fiz numa freqüência crescente, via-o cada vez mais distante,
mais pequeno, num passado que retrocedia. E a impressão não era só quantitativa; além de vê-lo
menor e mais distante, via-o distinto, ele e o ambiente literário que tão cabalmente
representava. Talvez por uma contaminação interfantaseios, esse ambiente de editoras e livros
me parecia falido, empoeirado, um pouco sórdido, um mundo alternativo onde acabam os
fracassados da vida real, e ali são empregados 'por caridade', 'por compromisso familiar',
'para varrer', 'para dar recados'... Todo o passado assumia essa cor, que era a cor 'do que
não havia sido'. O presente tinha me capturado e dado seus valores e modos. Tinha me
transformado num realista, com tudo o que há de pragmático, concreto e até brutal no realismo.
Mas seria culpa minha? Alguma responsabilidade correspondia a Achával, a suas lições no uso do
tempo. Por minha parte, ainda sem ter nascido para os negócios, adotei de boa vontade as
regras de sua etiqueta, nas quais reinava suprema a pontualidade. Nunca cheguei tarde a um
126
compromisso; tampouco teria me permitido qualquer uma das sucessivas secretárias que tive.
Nenhuma delas soube da existência de Achával, nem anotou em suas prolixas agendas seus números
de telefone, que tanto tinham ocupado meu pensamento. Esses números, por fim eu mesmo os
esqueci, ou perdi ou não os procurei mais, quando soube que não havia a quem chamar. A
notícia de sua morte não chegou a mim, e eu preferi não averiguar. De algum modo esquisito,
sentia-o vivo, um fantasma amável, protetor, presidindo minha juventude, ou a juventude do
escritor que não fui, um limite que marcava o começo de minha antiga vida nova" (IDEM La
vida nueva. Buenos Aires: Mansalva, 2007, p. 76-7).
127
SEM MÃE
— Vamos por este caminho.
— Qual?
— Este: o que não existe.
César Aira — A Princesa Primavera
Determinadas séries compõem-se de termos especiais, anotam Gilles Deleuze
e Félix Guattari.
397
São termos notáveis, distribuídos nas séries textuais
ordinárias, no fim ou no começo, desempenhando o papel de conectores: aumentam
a cada vez as conexões do desejo no campo de imanência.
398
Em outros termos, por séries entendamos textos, por séries ordinárias,
textos também; desejo, porvir; imanência, possibilidade/imagem do pensamento;
termos e conectores, por fim, procedimento.
Numa de suas entrevistas a David Sylvester, entre 1982 e 1984, Francis
Bacon
399
comenta sobre alguns de seus experimentos na pintura, dentre os quais
destaca os realizados entre 1976 e 1983, e que certamente compõem uma série. Os
trabalhos estão intitulados Figura em movimento, 1976; Paisagem, 1978, e Duna
de areia, 1983. O procedimento comum a todos eles, no entanto, se estende para
trás e para frente em outros trabalhos, tais como os retratos do Papa, um
tríptico, feitos em 1951, bem como o Estudo para um retrato, de 1949.
Todas essas imagens estão, dentro do quadro, postas sob redomas de vidro,
ou simplesmente caixas, como o próprio pintor se refere.
400
Em Paisagem e Duna
de areia, a artificialidade esteja talvez mais declarada, não havendo a
sensação de movimento que impera em Cabeça VI, de 1949, um dos casos mais
emblemáticos: o quadro nos coloca dentro de uma galeria, mirando
perpendicularmente a escultura em seu movimento registrado, um grito, dentro da
caixa.
397
Cf. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix Os conectores. Kafka. Por uma literatura menor. Op.
cit., p. 93.
398
Deleuze e Guattari esboçam a idéia a partir de certas personagens femininas nos textos de
Kafka: "Parece que essas jovens estão ligadas a tal ou tal segmento: Elsa, a pequena amiga de
K. antes da prisão, é tão ligada ao segmento bancário que ela nada sabe do processo e K., indo
encontrá-la, não pensa mais nesse processo, se ocupando do banco; a lavadeira está ligada
ao segmento dos funcionários subalternos, do oficial de justiça ao juiz de instrução; Leni, ao
segmento dos advogados. No Catelo, Frieda, ao segmento das secretárias e funcionários. Olga,
ao das domésticas. Mas o papel notável que essas jovens têm, cada uma em sua série respectiva,
faz com que elas constituam todas juntas uma série extraordinária, proliferando por conta
própria, e que atravessa e percute todos os segmentos. Não somente cada uma está na charneira
de vários segmentos (assim Leni, que acaricia ao mesmo tempo o advogado, o acusado Block e
K.), mas mais: cada uma, de seu ponto de vista em tal ou tal segmento, está em 'contato',
em 'ligação', em 'contigüidade' com o essencial: isto é, com o Castelo, com o Processo como
potências ilimitadas do contínuo" (IDEM — Ibidem).
399
Cf. SYLVESTER, David Entrevistas com Francis Bacon. Op. cit.
400
Cf. IDEM — Ibidem, p. 161.
128
Seria este componente, a caixa, o que denota aquilo que Deleuze e
Guattari entendem por termos notáveis. É o elemento que vincula objetos sempre
distintos a uma mesma vontade, um mesmo interesse, um mesmo desejo no campo de
imanência, ou seja, da possibilidade. Cabeça VI é um de seus estudos para
reproduzir o quadro de Velázquez, Papa Inocêncio X (1650), desdobrado numa
série de tentativas, algumas das quais inutilizadas pelo próprio pintor. Sobre
Paisagem, Bacon fala de uma vontade de reproduzir algo que fosse, mas que não
parecesse uma paisagem: no acúmulo de fotografias espalhadas em seu ateliê,
descobre então um postal pisoteado, muito danificado, e pinta a partir desses
indícios. A parte branca faz pensar numa pequena porção de areia que se insinua
sobre a vegetação; sua origem, no entanto, são as porções deterioradas do
retrato.
Em Bacon, a redoma de vidro (a caixa) é um suporte, não do quadro, mas
do instante. São instantes guardados a vácuo, armazenados na galeria de
movimentos do pintor.
No caso de César Aira, a caixa é invisível, ou se transforma: é o livro
como suporte, a caixa imaginária que abriga suas pequenas criaturas, ou
máquinas (Os fantasmas, O vestido cor-de-rosa, A lebre, A tília, A fonte, O
infinito, O panfleto, A abelha, A serpente, A mendiga, A vila, mas também cada
um dos nomes abrigados no seu Dicionário de autores latino-americanos, ou seus
ensaios: Copi, Alejandra Pizarnik, Edward Lear, Cecil Taylor, Picasso), que
funcionam como objetos primais que movimentam o mundo, separadamente.
Sob essas caixas pode-se observar cada um de seus relatos. (O vidro pode
inclusive estar revelando o conteúdo da caixa-preta, o como saber.) São
ficções independentes, mas permeadas por um procedimento-chave, a prosopopéia,
que assume a condição de termo especial a que Deleuze e Guattari se referem:
aquilo pelo qual um pensamento se dá. Através da prosopopéia aparece o triunfo
Francis Bacon — Paisagem, 1978. Francis BaconDuna de areia,
1983.
Francis Bacon — Cabeça VI, 1949.
129
da literatura, sua liberdade, sua inorganicidade, sua irresponsabilidade.
401
Mas a definição do discurso que esses relatos, armados via documentação
(um processo de deriva que implica no abandono como premissa para continuar
escrevendo), deliberam nunca será algo além de um vislumbre. Ao mesmo tempo,
mudança de registro alguma pode ocultá-la completamente: trata-se de um
Zeitgeist unipessoal.
A soma destas peças talvez forme uma galeria de tipos, expostos em alguma
sala, a da literatura, como memórias abandonadas à visitação blica. Cada
texto é "um e muitos"; cada exemplar constitui uma particularidade absoluta.
Por essa irredutibilidade, a galeria César Aira se arma, pouco a pouco, como
verbetes de seu Livro dos seres imaginários. São tipos curiosos, mas não
estranhos, porque neles algo que nos traga sempre a uma identificação
inusitada. Dentre essas pequenas criaturas, uma, por fim, que vale a pena
ver em detalhe: "O carrinho".
É um relato curto. Seu narrador, que pode ser o próprio Aira, ou o,
pouco importa, nos conta que no maior supermercado do bairro onde morava havia
um carrinho de compras, como tantos outros, mas que andava sozinho, e ao qual
reservava sua preferência sempre que adentrava o estabelecimento. Sabia
reconhecê-lo em função de uma marca que possuía na barra, mas o passar do tempo
caracterizara uma familiaridade tal que não era necessário buscá-la, de
longe sabia tratar-se dele.
Sabia também que esse dom, o de andar por si mesmo, não era algo
claramente visível. No desenrolar da jornada cotidiana isso passava
despercebido, e duvidava, inclusive, que alguém mais tivesse reparado nesse
aspecto tão particular. O movimento era discretíssimo, perceptível somente à
noite, na calma avessa a um lugar tão movimentado. Acontecia, eventualmente,
pela manhã, de algum repositor encontrá-lo no meio do caminho, porém era
perfeitamente plausível que tivesse ficado ali, esquecido, com o que se dava o
caso por encerrado. Caso essa movimentação fosse visível, seria mais razoável
atribuí-la a um desnível no piso, a uma corrente de ar, jamais como um ato
voluntário, quando, na verdade, "o carrinho passara a noite dando voltas pelos
corredores, entre as gôndolas, lento e silencioso como um astro, sem nunca
tropeçar ou parar. Percorria seu domínio, misterioso, inexplicável, sua
essência milagrosa dissimulada na trivialidade de um carrinho de supermercado
como outro qualquer".
402
Nosso narrador conta alegrar-se ao imaginá-lo circulando na penumbra,
buscando sabe-se o que ("o que poderia encontrar nessa paisagem banal, entre
verduras, frangos, refrigerantes, latas de ervilha?..."), tal como
401
"A literatura é mesmo um perigo", diz Bataille. "Sendo inorgânica, ela é irresponsável.
Nada se apóia nela. Ela pode dizer tudo." (BATAILLE, Georges A literatura, a liberdade e a
experiência mística. A literatura e o mal. Op. cit., p. 22.)
402
AIRA, César — O carrinho. Cf. Arquivo, p. 320.
130
aquele que sabe que tudo é vão e ainda assim insiste. Insiste porque confia
na transformação da vulgaridade cotidiana em sonho e prodígio. Acho que me
identificava com ele, por fim, e que essa identificação o fizera visível. É
paradoxal, mas eu, que me sinto tão longe e distinto de meus colegas
escritores, me sentia próximo de um carrinho de supermercado. Até nossas
respectivas técnicas se pareciam: o avanço imperceptível que leva longe, a
restrição a um horizonte limitado, a temática urbana. Ele, no entanto, fazia
melhor: era mais reservado, mais radical, mais desinteressado.
403
Um fato, no entanto, torce completamente a harmonia da relação. O
carrinho decide falar. Mas o gesto não chega a surpreender nosso narrador. Não
mais que a frase dita. A afirmação altera não sua simpatia pelo objeto, mas
a "simpatia que me unia a mim mesmo", a simpatia pelo milagre. Tratava-se, sem
dúvida, de um amadurecimento da relação, e nosso narrador aguarda portanto um
afago, um sinal de admiração, desejo, que dissesse estar a seu lado etc. Então
se abaixa, fingindo amarrar o cadarço do sapato, para ouvir seu interlocutor.
"Num sussurro que vinha do reverso do mundo e ainda assim soava perfeitamente
claro e articulado", o carrinho disse:
"— Eu sou o Mal."
Assim como todas as outras criaturas de César Aira, o carrinho é um
monstro, espécie que consiste de um exemplar.
404
O mal do monstro, em tese,
reside em sua impossibilidade de reprodução: está condenado a uma fuga
perpétua, ou à busca perpétua por um semelhante. Na literatura, o habitat do
monstro costuma ser o mar, a máquina monstruificadora por excelência, diz Aira,
onde vão apenas os homens, sem mulheres: ali os homens se afastam da espécie e
se condenam a uma solidão eterna.
405
"Em seu grande espelho opaco e ameaçador, a
reprodução se volta sobre si mesma, internando-se no mundo do imaginário, rumo
à alucinação."
406
Mas reproduzir não é necessariamente gerar um novo ser à imagem e
semelhança. Ser de impossível reprodução é ser impossível de sentido, de ser
entendido, porque o sentido seria a nêmesis do monstro, sua contraface, seu
doppelgänger: o caçador, e deste, o monstro é o objeto de uma obsessão, pois é
o que vida a seu algoz, tal como Moby Dick vida a Ahab, tal como Mil
gotas vida ao Grande vidro, e vice-versa. O encontro de ambos está marcado
por uma extinção eminente: duas solidões absolutas se enfrentam, duas espécies
se extinguem. E o que quer que se produza desse encontro sela, na verdade, a
morte de ambos: alcançar o sentido (a produção dos elementos implicados) é
desaparecer. "Reproduzir-se é desaparecer", relembremos Bataille, que diz que
os seres assexuados se sutilizam ao se reproduzirem. "Eles não morrem, se pela
403
IDEM — Ibidem, p. 317-8.
404
IDEM — Duas notas sobre Moby Dick. Cf. Arquivo, p. 254.
405
Esse mar poderá ser a selva, em Quiroga; o deserto, em Rimbaud; o pampa, em Rugendas.
406
IDEM — Ibidem.
131
morte se entende a passagem da vida à decomposição, mas aquele que existia, ao
se reproduzir, deixa de ser aquele que era."
407
Em entrevista recente, quando indagado sobre seu ofício de tradutor, que,
como vimos, perpassa autores os mais variados, Kafka, Stephen King ou um
tratado de economia,
408
Aira diz que traduzir é uma boa forma de se aprender a
escrever.
409
Daí talvez o porquê de no ensaio que dedica à tradução, na revista
Xul, em 1982,
410
Aira iniciar assim: "A tradução é a mãe do estilo".
A frase é categórica. Talvez se espere pelo desenvolvimento da tese, mas
isso não acontece. Fala de como o nosso século carece de estilo, e que isso se
deve à posição de certos artistas, sempre adversa à tradução. Fala de como os
estímulos plásticos da realidade não são passados a uma linguagem unificada,
permanecendo em estado bruto, ou à meia tradução. "Um artista encontra estímulo
na natureza, p. ex., e longe de elaborá-lo até o estágio do quadro pintado, faz
uma obra com árvores e coelhos reais."
411
Basta pensar em Duchamp, o carrasco da
tradução, diz. Mas sobre a frase inicial não fala nada. É apenas isso, a
tradução é mãe do estilo, nada mais.
Oito anos mais tarde, o termo reaparece, como personagem, numa peça de
teatro intitulada Mãe e filho.
412
Nesse texto, tudo se numa conversa, em que
o filho, chamado César, pede atenção à mãe porque precisa comunicar uma
decisão: irá se casar. O fato termina sem ganhar muita importância, mas não sem
que antes a mãe possa mostrar seu assombro (mas como casar, não está casado,
e Liliana, e as crianças, divórcio?), porque a sucessão de assuntos, de
intervenções, a hora que passa, tudo ganha espaço e adquire volume. A hora da
janta se aproxima e tudo acaba com um frango tendo o pescoço degolado.
413
Mas será preciso mais algum tempo para que o termo retorne como função
(tal como no texto de 1982), quando a mãe reaparece no ensaio sobre a
prosopopéia, em 1994. Quase ao fim, quando Aira passa a comentar a presença
deste procedimento na escritura de Manuel Puig, a mãe não se refere à
tradução, diretamente. Agora, a mãe é o sentido, a chave da organização do
discurso. "A mãe é a produção; em sua sanha com o produto filho, segue
produzindo-o eternamente".
414
407
BATAILLE, Georges O erotismo é a aprovação da vida até na morte. A literatura e o mal.
Op. cit., p. 12.
408
BROWN, W. B.; HOGENDORN, J. S. Nueva economia internacional. Trad. César Aira. S.l.:
Editorial Fraterna, 1979.
409
Cf. TEBU La traducción. Disponível em: http://tebu.blogspot.com/?answer=110. Acesso: 30
out. 2007.
410
Cf. IDEM Encuesta: La traducción poética. Xul Revista de Poesía n. 4. Buenos Aires:
Gráfica Pinter, ago. 1982. (Arquivo, p. 173.)
411
IDEM — Ibidem.
412
IDEM — Madre e hijo (Una pieza en un acto). [1990] Rosario: Bajo la Luna, 1993.
413
Este movimento diz respeito à famosa "mudança de tema" que Aira formaliza no prefácio que
escreve a ¡Esa cabeza toba!, de Lucio V. Mansilla. Cf. IDEM Mutilación narcisista. Prefácio
a MANSILLA, Lucio V. — Esa cabeza toba y otros textos. Buenos Aires: Mate, 2001. (Arquivo, p. 270.)
414
IDEM — A prosopopéia. Cf. Arquivo, p. 215.
132
Se a mãe é o sentido, seu nome poderia ser Tradução. Porque a tradução é
quem ensina o mundo. Nela se fundamenta a soberania estatal: a compreensão, o
valor, a ordem, o senso, a disciplina. A tradução é a garantia do sentido, e o
sentido nos faz dóceis à lei. Desde que a ordem seja compreendida, será
necessário acatá-la.
O que a mãe transmite a seu filho é o estilo; nisso o produz eternamente,
por sua mera presença. Se desejar assumir o risco das fatalidades do mundo e
fazer algo às próprias custas, se almejar uma vida nova, ou apenas saber de seu
presente, o filho tede abandonar o sentido, fugir para frente, arriscar o
processo de uma singularidade.
Mas a tradução é também um mito. Se não o fosse, sua origem seria
igualmente seu fim: aconteceria uma única vez e a linguagem pararia, muda. É um
mito, em suma, porque sua prática não é o sentido, mas a literatura.
Abandonar o mundo da mãe, impondo e assumindo o destino do filho,
constituirá o Mal do monstro: a reprodução impossível, a deriva. Este Mal, no
entanto, é o Bem do pensamento: deixar-se aberto à amplidão positiva dos
possíveis. Sem a matriz, a sucessão de abandonos será perpétua. E não se
trata de um programa, torna-se uma ética.
Porque o abandono chama uma nova escritura. Para frente.
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Nahuel Vecino, Leo Chiachio e Daniel Giannone, Fernanda Laguna, Roberto Jacoby
y Syd Krochmalny, Alfredo Londaibere, Pablo Rosales, Mariela Scafati, Diego
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167
ARQUIVO
168
TEXTOS ESPARSOS DE CÉSAR AIRA
Tradução Eduard Marquardt
169
ROMANCE ARGENTINO: NADA ALÉM DE UMA IDÉIA
*
O romance argentino atual, quem duvida, é uma espécie raquítica e
fracassada. Em linhas gerais, o que define uma produção narrativa pobre é o mau
uso, o uso oportunista, bruto, do material mítico-social disponível, ou seja,
dos sentidos sobre os quais vive uma sociedade num certo momento histórico. A
transposição literária de uma realidade exige a presença de uma paixão bastante
precisa: a da literatura. Um exame rápido e provisório, nada exaustivo, dos
romancistas argentinos recentes revela uma ausência completa dessa paixão e de
seu epifenômeno, o talento.
O primeiro exemplo é Como en la guerra (Sudamericana, 1977), de Luisa
Valenzuela. Trata-se de um confuso pesadelo; um psicanalista argentino radicado
em Barcelona, ninguém sabe por quê, viaja ao México e da Buenos Aires atrás
de uma mulher enigmática, que talvez represente o eterno feminino, talvez a
Luisa Valenzuela, e que por fim encontra (ou não) num ataúde de cristal. Esse
resumo é uma suposição: nem Barthes teria conseguido retirar algo claro de
tanto ocultismo. O romance propriamente dito ocupa umas três páginas, o resto é
esse tipo de recheio que se produz ao alinhar por um livro inteiro, a qualquer
preço, os mitos que o autor considera de maior prestígio. Não basta, porém,
aludir todo o tempo a Evita, Gaudí, aos cogumelos alucinógenos, à matança de
Ezeida, à psicanálise para que a energia destes temas vida a uma narrativa.
Bastaria encarnar qualquer um deles, mas com o entusiasmo necessário.
A complicação insensata que torna ilegíveis a tantos desses romances é um
efeito, mais exatamente sua falta de paixão. Escreve-se por escrever, e na
errância subseqüente se perdem autor e leitores. Tomemos outros dois casos: La
niña bonita (Corregidor, 1977), de Carlos Arcidiácono, e Salvar la cabeza
(Sudamericana, 1979), de Ramón Plaza. O primeiro acumula tramas que não são
tramas e que também não se relacionam entre si: três mulheres viajam num carro
até Bariloche, uma velha lembra de sua vida, um jovem lembra de sua infância,
personagens ad hoc dialogam sobre temas artísticos, literários e filosóficos,
além de muitas outras coisas em escassas duzentas páginas. O relato es em
vários tempos verbais, em primeira, segunda e terceira pessoa, e um dos
narradores é... uma parede. Salvar la cabeza alterna capítulos, nos quais se
elenca: a campanha de Aníbal contra Roma, as desventuras de um portenho míope
que cometeu um crime, as etapas metamórficas de certas espécies imaginárias da
pré-história, diálogos gauchescos soltos, as andanças dos fantasmas, as
habituais lembranças infantis, e, lógico, o guerreiro em apuros, que aparece em
todos os romances argentinos dos últimos anos como elemento decorativo (deve-se
reconhecer, no entanto, que freqüentemente a fellatio o supera). O relato está
em tempos verbais distintos, mesclando sonhos, fantasias, reflexões do autor,
personagens, exercícios de estilo (a exemplo, um parágrafo onde as frases
iniciam com um advérbio terminado em "mente"). Um dos narradores é... uma
nuvem.
Por que tanta complicação? Sadismo? Incompetência? Por que essa prosa
sempre confusa? Por que intercalar parágrafos vazios e charlatães por toda
parte, até nos diálogos (entre o "como vai" e o "bem", vinte linhas de
galimatias sobre a angústia, Flaubert, o tango, os gregos, o inimaginável)?
Essa técnica aceitaria, prima facie, uma explicação sociológica: como os
romancistas argentinos não vivem de seu ofício, vendo-se obrigados a escrever
em seus momentos de ócio, esta seria a única forma de fazer um romance: por
fragmentos distraídos.
Mas um erro de cálculo, fatal para um romancista (o romancista é o
engenheiro da literatura): ao construir um romance com cinco argumentos
simultâneos, atenta-se contra o interesse (para não dizer da paciência) do
leitor, jogando fora sua atenção. Além disso, para não deixar que flutuem
*
"Novela argentina: nada más que una idea" Vigencia n. 51. Buenos Aires: Universidad de
Belgrano, 1981.
170
projetos tão endiabradamente complexos, é necessário um talento e técnica que
estes autores não têm, e nem podem ter, porque estragam seu aprendizado com os
horríveis livros que publicam.
É difícil justificar estes romances diante do leitor potencial. As
contracapas, esses santuários do ditirambo, tentativas patéticas de se fazer da
necessidade virtude, de coagular como romances, através de alguma palavrinha
salvadora, aquilo que é mais que caos ou mesquinha grafomania, abundam em
termos como "polifacético", "bonecas russas", "galeria de espelhos", e, claro,
"anti-romance". Numa delas se chega a propor que o leitor se torne "anti-
leitor", o que, se não fosse uma mera insensatez de editor entediado, seria
divertido. Os anti-leitores, sabemos, pululam.
Copyright (Sudamericana, 1979), de J. C. Martini Real, parece,
entretanto, bastante legível. Estando melhor escrito que os anteriores,
ressalta a falha do projeto que lhe origem. Trata-se de um romance
despretensioso, para se entreter por um momento, mas dirigido ao minúsculo
setor de leitores com excelente informação literária. Não é contraditório?
Esses leitores não conseguem buscar nos livros um mero passatempo, é
inaceitável após terem lido Gogol, Swift ou Borges; e os leitores que de fato
buscam por isso não entenderiam as alusões e paródias de Copyright. De qualquer
modo, é um bom produto dessa retaguarda da vanguarda que, hoje em dia, é a
única vanguarda de que dispõem aqueles que praticam literatura a sério. Em
nosso século, a vanguarda artística passou por três momentos: primeiro a
prática, depois a teoria, e agora a prática que obedece a teoria. É certo que
essa teoria foi tão prolífica e exaustiva que hoje parece impensável uma
literatura que ela não tenha previsto. Mas esse impensável é o desafio que
constitui a essência própria da literatura, e a essência própria do ignorado
pelos romancistas argentinos, para quem o já trilhado é a única alternativa.
É claro que em Copyright o vanguardismo é uma ironia a mais. Como
tantos outros romances deste curioso período de nossa história literária, este
se encontra muito bem equipado contra as críticas. Pode-se dizer que foram
escritas com o único fim de se antecipar a elas (como se na Argentina existisse
a crítica literária). Diante de qualquer objeção, o autor pode, sarcático,
dizer: "Mas isso era brincadeira!". O vanguardismo de Copyright está posto de
brincadeira, de fato. Assim como todo o resto. (Essa é a cartada menor. A maior
é a política, tão multiforme e intrincada que pode ser aplicada a qualquer
ocasião. Estes romancistas, tão desencantados da política de escrever, quando
se trata de defender o escrito recuperam-na numa presteza surpreendente, como o
macaco que volta a morder a banana a que antes dera as costas.)
Ao dedicar o prolongado esforço de um romance para o entretenimento
frugal de um grupo mínimo de entendidos, Martini Real é um exemplo do projeto
mais generalizado, e, lamentavelmente, mais justificado: o da modéstia. Ernesto
Schóó anuncia seu Baile de los guerreros (Corregidor, 1978) como um mero
roteiro de cinema, e com efeito se trata de um romance que não existe. Fernando
Sorrentino, em Sanitarios centenarios (Plus Ultra, 1979), esboça uma historinha
boba, sem pretender nada além disso. Rubén Tizziani (El desquite, Emecé, 1978)
embarca num gênero, por assim dizer fora da literatura, e o resultado, como não
poderia ser de outro modo, é mais um romance policial. Pacho O'Donnel, em El
tigrecito de Monpracén (Galerna, 1980), passa o romance adiante: sua intenção é
fazer sentir o aroma dos temps perdu argentino, sem levar em conta que o leitor
pode não se mostrar grato em passar todo o livro cheirando, sem poder fincar o
dente em nada. Além do mais... Puig fez isso em seu primeiro romance.
Fernando Sánchez Sorondo, em Risas y aplausos (Sudamericana, 1980), conforma-se
em seguir os passos de Salinger sem fazer nada além, como se não fosse uma
carga extra de embromação sentimental; falha, inclusive, como tradução ao
argentino de El cazador oculto, porque traduz como um mal Bianco. (A propósito,
por que não se tornou a escrever entre nós um romance como Las ratas? Em sua
neutralidade e eficácia merecia melhor sorte como modelo para romancistas que a
obtida por Rayuela, uma experiência, depois de tudo, pessoal e irrepetível.)
Rodolfo Rabanal, em Un día perfecto (Pomaire, 1978), se propõe a escrever, não
com pouco trabalho, aliás, um romance de Onetti: seu erro consiste em que
Onetti não é uma técnica, mas uma textura valorizada por um talento poético-
narrativo único, e como Rabanal carece profundamente desse talento peculiar, de
qualquer outro, seu romance cai no nada.
171
Em geral, a modéstia é, aqui, um atributo da falta de originalidade.
Quase todos estes romances salvo aqueles que, de tão ruins, podem mostrar-se
inovadores no execrável ou no irrisório dão a impressão de experiências
repetidas. E isso é justamente o contrário do ser que é próprio à literatura.
Entre parênteses, digamos que seus autores são praticantes obstinados do famoso
abrir guarda-chuva: Sánchez Sorondo cita Holden Caufield na segunda página,
O'Donnell chama Rita Hayworth pelo nome, Martini Real se esvai em epígrafes. E
assim a "imitação" se torna homenagem. Desnecessário dizer, portanto, que isso
não resolve nada.
Risas y aplausos é exemplar noutro sentido. Começa dizendo: "O problema
de escrever é enorme...". Brincadeiras à parte, essa dificuldade se produz pela
falta de um código respeitável, e de utilização possível, da narração direta em
nosso idioma literário. A partir de Rayuela, a narração em terceira pessoa
enfraqueceu na Argentina, até se extinguir por completo. Todos os romances
comentados aqui, bem como as demais, estão escritos em primeira pessoa, com o
que o "eu" narrador deixa de ser um recurso estilístico para se tornar a
linguagem obrigatória do romance. A primeira pessoa é uma espécie de muleta
tanto para a organização da matéria narrativa como para a manutenção de um tom
que, sem ela, seria muito difícil. Hoje em dia existem escritores de quarenta
ou cinqüenta anos, com vários romances ou livros de contos publicados, que
teriam a surpresa de sua vida se se vissem obrigados a escrever uma página
de narração direta em terceira pessoa: não saberiam, literalmente, por onde
começar. E escrever todo um romance sem o socorro da oscilação da memória e do
humor de um protagonista-narrador é algo que jamais lhes passaria pela cabeça.
Paradoxalmente, este fato atenta contra a propensão realista inerente ao
romance. Podem servir de exemplo as celebradas Flores robadas en los jardines
de Quilmes (Losada, 1979), de Jorge Asís. Entre o leitor deste romance e a
realidade supostamente descrita erige, como um véu impenetrável, o alter-ego do
autor, esse indivíduo que sempre sabe tudo e gentleman, por mais gafes que
cometa. O alter-ego impede a chegada do autor em suas personagens, paisagens e
cenários, absorvendo todas as suas energias de invenção e estilo; os demais
personagens ficam reduzidos a mínimas macchietas. Curiosamente, Asís se refere
a seu protagonista como "vampiro", com o que dá no nada, sem querer.
Este romance, claro, foge do realismo. Por mais que este tenha motivado-o
em seu afã de criar algo legível, crível, compreensível, Asís viu-se obrigado a
recorrer ao estilo costumbrista tipológico, em sua época imposto pelas revistas
Patoruzú e Rico Tipo, e hoje persiste na charge El Loco Chávez. Ao fim das
contas, Rodolfo Asís não é mais que um Loco Chávez que pode dizer palavrões e
dar-nos o detalhe das modestas perversões que exerce com suas senhoritas-tipo.
O best-seller, como fenômeno e técnica, provocou diversas e discretas
reações na produção local. Uma delas é a adoção cega de formas e temas, como é
o caso de Silvina Bullrich. Outra seria a sua utilização como recombinação
temática: é o caso do último romance de Beatriz Guido (La invitación, Losada,
1979), muito bem documentado acerca de um tema bastante caprichoso e absurdo, a
caça do veado colorido, embora conserve a linha de seu romance anterior. Outra,
a adaptação do best-seller à mentalidade argentina: é o que faz Asís. Outra
ainda, a paródia, praticada por Fontanarrosa em Best-seller (Pomaire, 1980), na
verdade um pouco mais divertido que desdobra uma desenvoltura e um prazer de
leitura totalmente raros em nosso horizonte. Um obstáculo para aqueles que
tentam o best-seller na Argentina é a convenção inflexível segundo a qual um
romance deve ser desagradável, difícil de ler, repugnante em todos os sentidos.
A justificativa que esgrimem os autores é a de que apenas assim podem dar um
reflexo da realidade argentina, no que, aliás, não estão muito equivocados.
Ricardo Piglia consegue, com Respiración artificial (Pomaire, 1980), um
dos piores romances de sua geração, graças, em parte, à sordidez profissional
que nele deriva do medo infantil de não o compararem a Arlt (a outra face dessa
identificação é a escritura vigiada até a aridez, pelo medo de que sim o
comparem a Arlt). No fundo, Piglia não provém absolutamente de Arlt, que foi um
verdadeiro romancista, com tudo o que esse termo implica de invenção
miliumanoitesca. Seu mestre é Sábato. Dele, toma o velho truque de montar um
romance com duas ou três situações tópicas (a viagem ao interior para encontrar
o pai agonizante originalidade de Piglia: não é pai, mas tio, e não agoniza,
mas estão por prendê-lo —, a conversa até o amanhecer, a visita do jovem ao
172
ancião que vive entre seus fantasmas), alguns personagens bem conhecidos (o
intelectual desencantado, o policial que fuma, o velho europeu fracassado, a
ovelha-negra que, na verdade, é o único são da família), e todos os demais
juízos, ajustes de contas, discussões ganhas de antemão porque o autor fabrica
os interlocutores adequados, e tanta opinião quanto tenha passado por sua
cabeça nos últimos anos. Eis aqui como a mathesis, que é a chave do romance,
tal como o inventara Cervantes, e que triunfa na exuberância de Best-seller,
pode aniquilar uma ficção. Porque a mathesis, no romance, deve ser um saber de
ninguém, não do autor.
Mas a falha de Piglia, embora bastante temperada, é paradigmática: para
que a literatura sirva para algo, a uma comunidade, deverá ser boa literatura,
e é impossível fazê-la se não se é um bom escritor. Ninguém conseguiu ser um
bom escritor sem ser escritor. E que romancista, hoje e aqui, se compromete
seriamente, sem ironias ou cálculos, com a literatura? A resposta é óbvia: os
bons romancistas. O que dizer deles? Puig e Saer entram em sua maturidade longe
do país que os expulsou. Peyceré é um segredo guardado por vinte ou trinta
leitores. E Osvaldo Lamborghini não parece ter intenções de escrever outro
Sebregondi. Pelos demais, resta apenas esperar.
173
A TRADUÇÃO
*
A tradução é a mãe do estilo. O fato de o nosso século carecer de estilo
se deve à posição dos melhores artistas, a saber, adversa à tradução, patente
sobretudo nas artes visuais. Hoje em dia os estímulos plásticos da realidade
não são traduzidos a uma linguagem unificada, permanecendo em estado bruto, ou
à meia tradução, deliberadamente. Um artista encontra estímulo na natureza, por
exemplo, e longe de elaborá-lo até o estágio do quadro pintado, faz uma obra
com árvores e coelhos reais. Duchamp foi o carrasco da tradução.
A tradução é um mito. Seu ritual é a literatura, não a tradução
propriamente dita. Traduzir poesia é o mais néscio dos passatempos
adolescentes. Se alguém deseja ler Baudelaire sem se dar ao trabalho de
aprender francês... então deve, de fato, ficar com as traduções. A tradução de
poesia só ganha interesse quando se uma passagem de tonalidade, como na
tradução de Marianne Moore das fábulas de La Fontaine. (É preciso reconhecer,
de qualquer modo, que o idioma inglês pratica com empenho a arte da tradução
poética, ocasionalmente com bons resultados, tais como a versão de Eugenio
Oneguin, por Sir Charles Johnston. Que eu saiba, não se pratica essa arte em
castelhano.)
Mas o se perdeu nada. Podemos viver sem estilo, ou com espelhismos de
estilo. Talvez seja melhor assim.
Os escritores devem aprender línguas estrangeiras, tantas quantas
puderem, não para traduzir, mas para ler. O ideal é que um escritor leia
somente em línguas que não a sua. Assim criará em sua cabeça, em sua boca e em
seu ouvido o clima propício para que cresçam as frases, esses dispositivos
alheios à linguagem comum, sem os quais não há literatura.
Estendendo o conceito de tradução literária, na idéia geral de tradução
se fundamenta a soberania estatal. O sentido, cujo respaldo e garantia é a
tradução, nos faz dóceis à lei. Desde que a ordem seja compreendida, será
necessário acatá-la. Daí o valor liberador da literatura, que opera contra o
sentido. Nessa direção aponta, vagamente, o famoso ensaio de Benjamin sobre a
tradução. Mas há um livro argentino que desenvolve o tema completamente e que
me permito recomendar aos leitores: El evangelio apócrifo de Hadattah, de
Nicolás Peyceré.
*
"Encuesta: La traducción poética" Xul Revista de Poesía n. 4. Buenos Aires: Gráfica
Pinter, ago. 1982.
174
ERA UMA VEZ...
*
A história em questão é a seguinte: Oliverio e sua esposa, muito
aficionados às festas, ofereceram uma para que ele, já muito doente, se
despedisse de seus amigos. de madrugada, quando os convidados iam embora,
Girondo os detinha na porta e perguntava, confidencialmente e com o maior
interesse: Que acha de La masmédula? Supõe-se que queria a verdade, a verdade
íntima e definitiva. Quando todas as palavras morriam... Ao mesmo tempo, devia
saber que punha os convidados na mais incômoda posição. A cena revela um
narrador hábil, muito mais que o de Interlunio, porque nos contos (e esse
intercâmbio era seu próprio conto antecipado) o que importa é se colocar na boa
posição sádica; de repente, criar uma multiplicidade: os convidados de Girondo
são como as esposas de Harún-al-Rashid ou as conquistas de Dom Juan, a única
coisa que se lhes exige é passar um a um. Há, é claro, um ausente: aquele que
pudesse dizer a verdade impossível. Girondo a compôs com os "cada um" que iam
se afastando, no mais sombrio final de uma festa sinistra e obviamente
alcoolizada. Seria preciso muito ódio para lhe dizer que o livro era "ruim", e
no país dos bons modos, onde as anedotas se escondem cuidadosamente dos ouvidos
do público, a possibilidade era remota. Ainda que existisse para isso seguia
ou precedia outro interrogado. Teria podido? Se o autor em pessoa não estava
seguro, afinal de contas, quem garantiria que esses balbucios, esses yolleos e
lubidulias não foram o desatino-mor de um bêbado, um lamentável erro de
cálculo? Pelo que, agora, deveriam dizer uma mentirinha leve para recompensar
tamanha hospitalidade festiva. E se, pelo contrário, não era uma mentira? Se
esse condenado livro era uma obra-prima, imortal? Tanto mais ridícula era sua
posição em não saber se mentiam ou diziam a verdade. Sequer a sinceridade podia
salvá-los, a índole do jogo excluía as intenções. Talvez... não tinha tanta
importância e a única coisa que contava era responder algo, qualquer coisa,
como para, precisamente, inaugurar uma dessas séries tolas, "sei que ele sabe
que eu sei..." uma catálise infinita para postergar a morte.
Pois bem, a anedota é nosso trabalho, veremos porquê. Para começar,
não devemos nos perguntar pelo motivo da dúvida que Girondo sentiu no último
momento, mas por sua função no sistema-Girondo. Com efeito, por que motivos um
escritor poderia duvidar ou não da imortalidade de sua obra? Não nada além
de motivos desprezivelmente narcisistas, nos quais o narcisismo não se
incorporou ao dispositivo literário. E Girondo, podemos partir daí, não tinha
motivos, não duvidava por gosto psicológico. Se tivermos de pôr na anedota o
título "A dúvida final...", teremos de fazer tanto da dúvida quanto do epíteto
elementos flagrantes de uma máquina. A função da dúvida foi "fazer algo mais"
com a Masmédula, dar-lhe um toque extra, talvez sugerir um processo
interminável de apostas sucessivas. Por mais volátil que pudesse ser, sobretudo
num país sem filologia, a anedota podia colaborar na ação infinita da poesia:
fazer uma coisa; fazer algo mais; fazer algo mais... De modo que estava o
velho Hamlet, agonizante, e sua dúvida. Girondo tinha cultivado desde sempre a
imagem do artista noturno ainda que mais não fosse pela trivial razão de
preferir a noite ao dia. Daí a "abandonar a sociedade" não mais que um
passo, um passo imaginário. Basta inventar um trabalho que não aporte luz. "O
homem é esta noite, este Nada vazio que contém tudo em sua simplicidade
indivisível... Aqui surgiu bruscamente uma cabeça ensangüentada; ali outra
aparição branca; e desaparecem, não menos bruscamente. É a noite que se
percebe, caso se olhe um homem nos olhos; seus olhares submergem numa noite que
se torna horripilante: é a noite do mundo a que então somos apresentados."
(Hegel) A luz de verdade que Girondo simulava pedir com a pergunta está
ofuscada desde antes, por toda sua colocação em cena, tão longa e complicada
que momentaneamente parece exceder o livro por todos os lados. A anedota e o
*
"Había una vez... (fragmento)" Xul Revista de Poesia n. 6. Buenos Aires: Gráfica Litodar,
maio 1984. Reproduzido em GIRONDO, Oliverio Obra completa. Ed. crítica. Coord. Raúl Antelo.
Col. Archivos v. 38. Madrid: ALLCA XX, 1999.
175
livro estão unidos por um de seus ouropéis cenográficos: a angústia. Implícita
no livro, explícita na cabeça ensangüentada que sai a olhar os olhos dos
convidados. A angústia é, segundo os autores, ou bem a impossibilidade de Deus
de perguntar por si mesmo, ou bem o Significado que ficou sem Significante:
no mesmo, e de todo modo carece da menor importância. As palavras se
deslocaram, fugiram, e não ficou nada além do sentido. Supõe-se que isso seja a
angústia, e por vezes alguém deveria se angustiar, ou simular. La masmédula é a
angústia; aqui as palavras fugiram das palavras e os significados ficaram nus,
olhando nos olhos de nossos significados, portanto inomináveis. A angústia se
formula dizendo se isso era bom e valia a pena. Ou não era bom, nem valia a
pena? A angústia em forma de dúvida, o botão em forma de casa, orifício;
falando, balbuciando quando não devia; apostava a vida contra esse livro.
Mas por que fazer uma aposta, ao invés de não fazê-la? Para ter angústia?
Ora! Todos os sentimentos metafísicos são desconversa, passagens com as quais
se paga a literatura, e sabemos o que vale o dinheiro — ainda que Girondo, é
certo, desfrutou da bélle epoque do dinheiro. A dúvida, a angústia, a agonia
são elementos radicalmente alheios à literatura, que é uma atividade hedônica,
de origem epicúria e antiprodutiva. A angústia ocupa lugar por uma
superprodução de sentido (o sentido desborda as palavras, a água alusiva
consome tudo), a angústia se sustenta na produção como uma sombra num corpo. A
literatura, modo de vida contrário à produção, move-se em outra órbita.
Não. A angústia aqui é puro papel pintado. Da angústia deduzimos a
aposta, e a função da aposta é criar o medo, a única coisa que importa e que
torna todo o resto circunstância teatral, mascaramento. O medo é imenso, a
chave, o ouro que respalda todas as nossas pantomimas, e bem se poderia dizer
(como se disse, aliás) ser "a única paixão" na vida dos escritores. Grandes
fingidores de todo o resto, mas não do medo, que é inteiro ficção, do direito e
do contrário, os artistas são sempre artistas do medo, artistas a seu serviço,
inventores do medo pelos caminhos mais tortuosos. A arte ganha corpo graças ao
medo, sem o que é um passatempo. (Quase sempre é um passatempo.) O medo é a
pedra-de-toque da arte genuína. E teme, precisamente, pelo genuíno de seu ser.
Com o que arrasta o temeroso a um corredor de raciocínios antiquados sobre o
Ser e a Verdade, e o feedback fica completo... alguém tem a certeza de ter se
tornado imbecil, a literatura se dissolve como fumaça no ar... a catástrofe se
completa... fomos amputados! De imediato: somos um velhinhos néscios, e
morremos.
176
BEST-SELLER E LITERATURA
*
Sobretudo, e mesmo que não seja para atenuar a habitual confusão que
reina sobre a matéria, conviria levantar uma diferença entre dois usos da
palavra best-seller: o primeiro e mais natural, que se poderia dizer
"etimológico", o do livro mais vendido. Sobre isso, obviamente, não nada o
que dizer: qualquer livro pode, em determinado momento, vender mais que outro,
ou mais que todos os outros. As circunstâncias mais diversas, a moda, a
atualidade, a casualidade podem levar a esse resultado. O outro sentido, sobre
o qual sim conviria pensar um pouco, é o do best-seller como gênero específico:
o livro, geralmente em forma de romance, confeccionado com vistas ao consumo de
um público imediato.
Na realidade, ambos os sentidos da palavra podem se reconciliar se
afinamos um pouco a tradução. Best-seller não é exatamente o mais vendido, mas
o que vende melhor. Porque não conta apenas a quantidade, mas uma qualidade
capital da venda: a velocidade. Daí ser um equívoco dizer que os maiores best-
sellers são a Bíblia e o Quixote. É certo que esses livros foram vendidos numa
quantidade incalculável (ainda que no caso da Bíblia, para sermos justos, teria
de se descontar os exemplares presenteados com fins de evangelização), mas se a
venda se realiza ao longo de mil anos, ou de quinhentos, o negócio se dilui.
Ficaríamos, assim, com uma definição unificadora de best-seller: o livro que se
propõe, e consegue, ser vendido muito e rápido.
Nessas condições, falar de best-seller equivaleria a falar de qualquer
outro produto. Outra consideração sobre o assunto, no entanto, realizada em
termos mais estritamente literários, pode sim interessar.
Os termos literários, convém esclarecer, não o termos morais que, de
modo geral, se ocupam do best-seller. O moralismo, que ao falar do best-seller
desemboca bem rápido no alarme, é completamente injustificado aqui. A
literatura sempre foi uma atividade minoritária, por mais que façam escritores
ou editores. É difícil, na realidade, ver o que os escritores ganhariam caso
sua atividade deixasse de ser minoritária; essa fantasia sim contém motivos de
alarme, se pensarmos às custas do que poderia dar-se a ampliação social da
literatura.
O best-seller é a idéia, frutificada em países da área anglofalante, de
se montar um entretenimento massivo que tenha a literatura como "suporte". É
algo assim como literatura destinada à gente que não literatura, nem quer (e
a quem, é bom lembrar, não se tem de reprovar nada: seria como reprovar a
abstenção de quem não pratica caça submarina; além disso, entre aqueles que não
se interessam por literatura, conta-se noventa e nove por cento dos grandes
homens da humanidade: heróis, santos, descobridores, estadistas, cientistas,
artistas; a literatura é de fato uma atividade muito minoritária, mesmo que não
pareça). O best-seller é material de leitura para gente que, caso não existisse
esse material, não leria nada. Daí se deduz a falta de justificativa dos
alarmes. Acreditar que alguém possa deixar de ler Henry James para ler Harold
Robbins é uma ingenuidade; e caso não existisse Harold Robbins, seus leitores
desocupados não leriam Henry James. Não leriam nada, simplesmente.
A reflexão a que o best-seller convida é outra. Esses romances fáceis e
massivos são a mistura perfeita para fazer visível esse algo o misterioso que
é a literatura propriamente dita, o literário da literatura. Ao apresentar um
produto literário semelhante, quimicamente "limpo" de literatura, o best-seller
é um detector impagável do literário. Vejamos algumas das diferenças
significativas.
O livro literário é sempre parte de uma biblioteca. Separado, vale muito
pouco em termos de prazer e saber. O símbolo genuíno do aficionado pela
*
"Anatomía del best-seller" Creación n. 3. S.l.: ago.-set. 1986. Reentitulado posteriormente
"Best-seller y literatura, vigencia de un debate" La NaciónLine. Buenos Aires, 29 dez. 2003.
177
literatura não é o livro, mas a biblioteca. E isso se deve porque a literatura
faz sistema. Se alguém , digamos, As asas da pomba, e gosta, o mais provável
é que leia outros livros de Henry James, e quando terminar lerá suas cartas,
prefácios, conferências, uma biografia, a de Leon Edel, por exemplo, d
passando aos contemporâneos de James, seus discípulos ou mestres, Flaubert,
Turguéniev, The Ring and the Book, Proust... em círculos concêntricos que
terminarão por abarcar a literatura toda.
Em contrapartida, se alguém um best-seller, um romance sobre o
contrabando de material radioativo no Báltico, por exemplo, e gosta, e mesmo
que seja o livro que mais tenha gostado em sua vida, é muito provável que esse
alguém tenha desejos de ler outro romance sobre contrabando de material
radioativo no ltico sequer outro romance sobre material radioativo, ou
sobre contrabando, ou sobre o Báltico. Lembradessa leitura como um momento
prazeroso, e acaba a história. E quanto ao autor, quem será o autor desse
livro? No gênero best-seller importa mais o livro que seu autor (e aqui
descobrimos, por contraste, que na literatura acontece o oposto).
Esta é uma das vantagens do best-seller, uma de suas vantagens de
mercado, poderíamos dizer: apresenta-se autônomo, sedutor em si mesmo. Para
alguém não interessado em literatura, que deva fazer uma tediosa viagem de
trem, ou sofra de gripe e não possa mudar a televisão para o quarto, o que pode
haver de melhor que um romance desses? Um romance chamado Reféns na catedral,
por exemplo, não precisa de mais nada para atrair o leitor, de entrada ele já
pode imaginar tudo: o grupo terrorista com seu líder, seu psicopata, aquele que
está em dúvida e sua menina, as beatas assustadas, o bispo mediador, as tropas
rodeando o templo, o jornalista audacioso... Por outro lado, um livro chamado
As asas da pomba é uma pura aposta, um understatement para universitários, um
enigma de demorada resolução. (Pelo inverso, aqui se tem uma das virtudes da
literatura: constituir uma promessa de leituras inesgotáveis para toda a vida,
a entrada na autêntica Biblioteca de Babel.)
Mas a pedra-de-toque na diferença entre best-seller e literatura é a
sinceridade. De um lado estão os usos diretos e verazes da palavra, o
transcurso utilitário do verbo na sociedade: aqui confluem os "Bons dias", "Amo
você", "Passo te pegar às oito" e o best-seller. De outro, esse peculiar
questionamento da significação a que chamamos Literatura. A incompatibilidade é
absoluta. A literatura é falaz em dois planos: utiliza-se de uma palavra cujo
valor de troca deixa de ser seu sentido direto, pondo em cena o teatro desse
uso perverso. O best-seller, por sua vez, é simetricamente veraz em dois
planos: diz o que quer dizer, e oferece isso como aquilo que é.
Pois bem: a literatura, que é experimentação, poderia fazer o experimento
de praticar uma escritura totalmente sincera, não mais próxima e sim mais
distante de sua falácia constitutiva. Assim, dando uma volta completa, poderia
dar um aceitável simulacro do best-seller. Esse experimento foi realizado
alguns anos, e com excelente resultado: O amante, de Marguerite Duras.
com O nome da rosa, de Umberto Eco, aconteceu algo diferente, e bem
mais instrutivo. Esse romance é um autêntico best-seller do princípio ao fim;
para começar, é totalmente sincero, seu autor é um reputado catedrático,
profissional da expressão exata de seu pensamento. Mas além disso, ilumina dois
contrastes precisos entre best-seller e literatura: o primeiro deles é a
intenção. A literatura é sempre uma intenção desviada; o best-seller, uma
intenção realizada. O próprio Eco declara: propôs-se a fazer "um romance
policial que se desenvolvesse num mosteiro do século XII". A verdadeira
literatura resulta, em comparação, num labirinto de propósitos falidos e
resultados inesperados. A que se propôs Cervantes ao escrever o Quixote, Byron
o Dom Juan, Kafka A metamorfose? Certamente, suas intenções não caberiam, mesmo
quando pudessem ser expressadas claramente (mesmo se existissem!), numa límpida
frase satisfeita como a de Eco. O best-seller é "um sonho realizado", enquanto
a literatura é um sonho em processo; e é também um sonho realizado enquanto
torna real o sonho dos escritores de serem ricos, detalhe que a publicidade não
deixa de destacar.
O segundo contraste está na mathesis, o saber ou a informação
incorporados ao romance. Na literatura, esse saber sempre foi grande, mas
também sempre desvalorizado ao se subordinar a um mecanismo artístico, no qual
178
a verdade é submetida a uma perspectiva. O saber abundante que veicula O nome
da rosa não es desvalorizado totalmente, muito pelo contrário, está
ressaltado pela amenidade e pelo bom didatismo. Tanto, que esse romance seria
ideal para quem desejasse se iniciar no estudo da cultura medieval. O mesmo
acontece com qualquer best-seller bem feito. (A exemplo, os romances seguintes
de Eco.) E com isso podemos terminar denunciando outro equívoco freqüente, o
daqueles que afirmam que o best-seller é um atentado contra a cultura. Tudo ao
contrário. Lendo-os se aprende história, economia, política, geografia, sempre
à escolha e de forma divertida e variada. Lendo-se literatura genuína, no
entanto, não se adquire nada além de cultura literária, a mais inofensiva de
todas.
179
O DESEJO REAL DE VIAJAR
*
Este delicioso romance de Jorge Di Paola, ¡Minga!, é uma história de
deslocamentos, contigüidades, separações e simultaneidades. Numa palavra, é uma
viagem, mas uma viagem que não tem por medida nossos sonhos mais exorbitantes,
e sim as fantasias mais possíveis, uma viagem de ônibus, camionete, a pé, por
um círculo nada exótico do centro-sul da província de Buenos Aires. O ponto de
partida e chegada é um povoado desses que por aí, ao qual as personagens
chamam Huyamos-de aquí, que bem poderia ser a tradução do nome aborígene de,
por exemplo (e para dar um exemplo qualquer, ao acaso), "Tandil". Mais ainda
que uma viagem, Minga é um desejo de viajar, de se desprender, de ser feliz
(por que não?; um desejo que se desloca entre autor e leitor, e não descansa em
nenhum). Nesse sentido, é um experimento, muito bem realizado, de realismo. Com
efeito, se uma história nunca chega, por definição, ao real, o desejo que cria
é de fato real. Quase real demais, como a nostalgia de algo que tivéssemos
perdido.
O romance argentino (e advirto isso ao recém ler Minga) foi uma topologia
da imobilidade, uma saga de fixações. Nossos heróis foram, caracteristicamente,
aqueles que preferiram morrer antes de mudar de lugar. Pensemos em Arlt, no
final desolado de El juguete rabioso, em que a esperança de sair é um sarcasmo;
no círculo conspirativo, de exacerbada fixação em que vive Erdosain, no mundo
estatuário de El amor brujo. Na crucificação dos destinos operada por Puig. Ou
em todos os romances, bons ou ruins, com que podemos identificar o romanesco
argentino; qualquer um deles nos demonstrará a impossibilidade de mudar de
lugar: Marechal, Sábato, Mallea, Viñas, Cortázar. O tema do exílio, nos últimos
anos, levou à apoteose essa característica. E acredito que exemplos anteriores
que parecem desmentir a regra, na verdade não o fazem, por exemplo Excursión a
los indios raquelles, de Mansilla, que, apesar do tema, estabelece uma fixação
de ordem ainda mais radical, que é a voz do narrador, cravado empiedosamente em
sua poltrona de expositor de clube, de onde não se pode mover um milímetro.
Aqui, em contrapartida, algo muito novo, um efeito (que é o mais
literário dos efeitos) de "outra" literatura. A identificação de Di Paola com
Gombrowicz tornou-o uma espécie de estrangeiro de partida dupla (e nula), um
homem de fábula, como seu mestre, um descobridor de esquisitices que torna
visível o invisível, uma classe de homens que encontra o estilo numa mudança de
lugar, e que não o encontrará em nenhuma outra parte. Pablo von Paulus, o
protagonista de Minga, um matemático, pensa e viaja ao mesmo tempo, e nenhuma
das duas atividades interrompe a obra: ao contrário, chegam a se confundir. Von
Paulus e o pensamento de Di Paola vagabundeiam por igual: não se pode estranhar
que, na distração do segundo, o primeiro perca sua Teoria. Essa simultaneidade,
muito de Gombrowicz, está levada ao relato em dois planos. Por um lado,
assistimos o tempo todo ao que acontece, "nessa mesma hora" no mundinho do
povoado que constitui o pensamento da personagem (sua bem-amada, seu
pretendente rico, um casamento amigo, uma empregada doméstica). Por outro, a
prosa do relato funciona como um relógio de não-ação (um relógio análogo,
assinala o sutilíssimo autor, mas que mostra a hora de modo digital); é uma
prosa da simultaneidade, da continuidade-contigüidade, da felicidade-
facilidade. Diante de um estilo tão brilhante como este, pode-se falar das
"felicidades de expressão" que, por se manifestarem na forma de um corte, podem
ser o contrário da felicidade em ler (o plural é suspeito). A única
felicidade em ler é poder continuar lendo, e algo disso, ou talvez muito, em
Minga.
O ponto de partida é uma telha. Pablo sai a viajar no espanto que lhe
produz a notícia de que seu melhor amigo foi morto por uma telha. É difícil
levar a sério a morte de alguém decapitado por uma telha (assim simplesmente,
*
"El deseo de viajar" (sobre ¡Minga!, de Jorge Di Paola). Fin de Siglo a. II, n. 8, fev.
1988.
180
sem explicações; supõe-se ter sido uma telha que voou por um vento forte). É
quase um atentado à verossimilhança, um deslocamento da língua à ação como se
teja [telha] fosse um performativo (e poderia ser: o imperativo do verbo tejer
[tecer], para regozijo dos textualistas). A solução de um Raymond Roussel teria
sido construir uma exatíssima trama na qual a telha se tornaria necessária. Di
Paola parte na direção oposta, a de uma contingência máxima. Simplesmente, não
se ocupa mais da telha. Segue a linha do "procedimento-teja", ou seja, o
deslocamento, a passagem entre língua e realidade, entre camadas de verossímil.
Parte sem bagagem, foge para frente, para o suave desejo de viajar do leitor.
Ao final, uma fuga na noite. O começo e o fim de Minga são ambos homenagens
a Gombrowicz: a telha, algo assim como a servilleta de Los hechizados e o
memorável desfecho de Ferdydurke. Num ponto eqüidistante, no preciso centro do
romance, uma homenagem a Miguel Briante, outro grande escritor que também se
ocupou de contínuas passagens, demoras, reflexos e visibilidades. Na verdade,
não deveria falar de "homenagens" e sim "contínuos", "passagens" e todo o
demais. Di Paola não é um discípulo, mas parte de uma maestria genérica,
impessoal, errática e divertida, a Literatura, que seu trabalho nos permite
voltar a desfrutar. Agradecemos.
181
CECIL TAYLOR
*
Amanhecer em Manhattan. Com as primeiras luzes, bastante incertas, cruza
as últimas ruas uma prostituta negra que volta a seu quarto após uma noite de
trabalho. Despenteada, com olheiras, o frio da madrugada faz da bebedeira uma
lucidez estúpida, num lugar esquecido do mundo. Não tinha saído de seu bairro
habitual, e por isso não lhe faltava muito caminho. O passo é lento, poderia
estar retrocedendo. Qualquer distração poderia dissolver o tempo no espaço.
Ainda que no fundo queira dormir, a essa altura sequer lembra disso. bem
pouca gente na rua; os que saem a essa hora (ou aqueles que não têm de onde
sair) a conhecem e por isso não reparam seus sapatos altíssimos, violeta, sua
saia apertada com uma longa fenda, nem os olhos, que de qualquer modo não
cruzariam outros, vidrados ou brandos. Trata-se de uma rua estreita, de um
número qualquer e com casas velhas. Na seqüência, duas quadras de construções
um pouco mais modernas, porém em condições ainda piores; comércios, condomínios
vagos dos quais se desprende uma escada de incêndio, a cornija suja. Passando
uma esquina fica o edifício onde dorme até tarde, num quarto que divide com
dois meninos, seus irmãos. Mas antes acontece algo: formou-se um grupo de
tresnoitados. Meia-dúzia de homens reunidos na metade desse corredor olham por
uma vidraça. Fica curiosa por essas estátuas cinzentas. Nada se move neles,
sequer a fumaça do cigarro. Ela, aliás, não tem mais nenhum. Segue olhando, e
como se este fosse o ponto necessário para enganchar no fio que a sustenta, seu
passo fica mais leve, mais suspenso. Quando chega, os homens continuam sem lhe
dar atenção. Precisa de alguns instantes para entender do que se trata. Estão
em frente a uma loja abandonada. Por trás da vidraça suja penumbra;
dentro, caixas empoeiradas e entulhos. Mas além disso um gato, e na frente
dele, de costas para o vidro, um rato. Ambos se olham sem se mover, a caça
chegou ao fim e a vítima não tem como fugir. O gato, com parcimônia, estica
todos os seus nervos. Os espectadores se tornaram seres de pedra, não
estátuas, mas planetas, o próprio frio do universo... A puta bate com a
carteira na vidraça, o gato se distrai por uma fração de segundo e isso basta
para que o rato fuja. Os homens despertam, olham desencantados a cúmplice, um
bêbado cospe, dois a perseguem... antes que a escuridão se desfaça, dá-se algum
gesto de violência.
Depois de um conto vem outro. Vertigem. Vertigens retrospectivas.
Bastaria um elemento qualquer da série para que o seguinte a fizesse
interminável. A vertigem produz a angústia. A angústia paraliza e nos evita o
perigo que justificaria a vertigem; aproximar-se da margem, por exemplo, da
falha profunda que separa um elemento de outro. A paralisia é a arte no
artista, que transcorrerem os acontecimentos. A noite acaba, o dia também:
algo embaraçoso no trabalho em curso. Os crepúsculos opostos caem como
lâminas num sulco de gelo. Olhos que se fecham definitivamente, sempre e noutro
lugar. Paz. Contudo, existe, e bem mais perceptível do que poderíamos desejar,
um movimento descontrolado, que gera angústia nos outros e o modelo
impossível da angústia em si mesmo. Chama-se arte também. A arte é uma
multiplicação: estilos, bibliotecas, metáforas, disputas, o quadro e seu
crítico, o romance e sua época... Tem-se de aceitar isso tal como a existência
dos insetos. Há restos por toda parte. Mas a vida, sabemos, "é uma só". Daí que
a biografia de um artista seja algo impossível; modos de se provar isso:
esses modos se confundem na possibilidade da biografia, com o que volta a
nascer a literatura, e a situação insuportável de novo se instala no
pensamento, o operador se inquieta e não a sucessão de escrúpulos mas uma
proliferação de modelos de difícil aplicação. A biografia, como gênero
literário, deriva da hagiografia; mas os santos o, ou foram santos,
justamente por renunciar aos benefícios biográficos, recolhendo apenas os
restos descartáveis. Por outro lado, as hagiografias nunca estão sós, sempre
fazem parte de uma espécie de coleção. A biografia tenderia ao contrário, ainda
*
"Cecil Taylor" Fin de Siglo a. II, n. 14, ago. 1988.
182
que o resultado fosse exatamente o mesmo. Quem se orgulharia em saber o que é
um resto, e de poder diferenciá-lo do contrário? Ninguém que escreva, ao menos.
Tomemos as biografias de artistas. Vêm a caso perfeitamente. Os
adolescentes lêem as vidas dos músicos célebres, que sempre foram meninos
musicais; logo, trata-se de uma success story, o relato de um triunfo, com sua
estratégia espetacular ou secreta, suas vinganças, a transparência de suas
lágrimas de crocodilo. São mecanismos sutis, dentro de sua idiotice essencial,
que não permanecem por muito tempo na memória (salvo algum detalhe), mas sem
por isso deformá-la menos: nela injetam grandes escorregadores, formando um
panorama tão pitoresco que a vítima chega a se considerar um Proust o que,
aliás, seria um falso triunfo da vida. Impossível não desconfiar desses livros,
sobretudo se foram o alimento primeiro de nossas infantilidades passadas, e das
que virão. "Antes" estava o sucesso futuro, "depois" suas recompensas
deliciosas, tanto mais por terem sido objeto de pontualíssimas profecias. Os
maus augúrios têm a cor nacarada de uma perfeição. Já os bons levantam o mundo
nas mãos, oferecendo-o aos astros. A Rainha da Noite, numa palavra, canta de
dia.
Examinemos um caso mais próximo. O de um grande músico de nosso tempo,
qualquer um deles (são tantos). Cecil Taylor. Bem se poderia dizer tratar-se do
principal músico do século.
Engendrado de corpo e alma numa música de tipo popular, o jazz, desde o
princípio seu vigor pela renovação o fez universal, talvez o único gênio que
pôde ir além de Debussy: aquele que pôde consumar a música como torção sexual
da matéria, o atomista fluido de todos os sentidos e sem-sentidos que
constituem o jogo do pensamento no mundo. Também não deixa de ser o melhor
representante da cidade do jazz; ele é de fato Nova York, a subimpressão do
perfil dos grandes edifícios na imagem do pianista concentrado, a música como
enlace. Que outra coisa pode ser o realismo? Uma época em que determinada gente
viveu. O jazz, uma brisa eterna. A cidade minituarizada num diamante. É o
Egito, mas também uma pequena tribo à espreita. Nossa civilização antropológica
produz (ou ao menos poderia, numa arte adequada à narração) histórias nas
quais, digamos, dois negros nus fazem a guerra na selva, perseguindo-se com os
signos mais sutis: o acaso, a mobilidade pura. E o jazz. Uma ação de sonhos:
situações. Tudo são situações, êxtase romanesco (não de conceitos). Segundo
a lenda, Cecil fez a primeira gravação atonal de jazz, em 1956, duas semanas
antes de Sun Ra, por conta, fazer também. (Ou foi o contrário?) Não se
conheciam, nem conheciam Ornette Coleman, que trabalhava no mesmo do outro lado
do país. A história, é claro, registra os momentos sem dar um valor per se, já
que todos eles (e Eric Dolphy, Albert Ayler, Coltrane, quem sabe quantos mais)
demonstraram seu gênio persistentemente no transcurso das décadas seguintes.
De qualquer jeito, a História tem sua importância, porque nos permite
interromper o tempo. Na realidade, o que se interrompe com o procedimento são
as séries; mais precisamente, a série infinita, qualidade esta que anula toda e
qualquer importância que a interrupção possa ter. Torna-a frívola, redundante,
leve, como uma tussidinha num funeral. Nesse ponto se a segunda quebra, e o
que era nada além de um pensamento de repente gira, mostrando um rosto
inusitado: a Necessidade se lança, patente, soberana, imprescindível e ao
mesmo tempo microscópica, volúvel, estúpida, neutra. A interrupção é
necessária, mas é a necessidade momentânea. Da ampliação da necessidade nasce a
"atmosfera", de fato essencial no peso específico de uma história. Nunca se
encarecerá o bastante a importância da atmosfera na literatura. É a idéia que
nos permite trabalhar com forças livres, inoperantes, com movimentos num espaço
que, ao fim, deixa de ser este ou aquele, um espaço que consegue desfazer as
entidades do escritor e do escrito, o grande e múltiplo túnel a pleno sol...
Pois bem, a atmosfera é a condição tridimensional do regionalismo, bem como o
meio da música. A música não interrompe o tempo. Exatamente o contrário.
1956. Comecemos de novo. Para esse Cecil Taylor, genial músico negro de
pouco mais de trinta anos, prodigioso pianista e sutil estudioso da avant-garde
musical do século, consolidara-se seu estilo, ou, por outra, sua invenção. À
exceção de dois jazzmen, cujo trabalho era semelhante, ninguém fazia a menor
idéia do que Cecil estava realizando. Como isso se dava? Sua originalidade
residia na transmutação do piano, que, em suas mãos, de instrumento passara a
ser um método composicional livre, instantâneo. Os chamados "conjuntos tonais"
183
com que desenvolvia sua escritura momentânea tinham sido utilizados
anteriormente por um músico, Henry Cowell, mas Cecil levara o procedimento a um
ponto tal que, por suas complicações harmônicas, e sobretudo pela
sistematização da corrente sonora atonal em fluxos tonais, era impossível
compará-lo com o que quer que fosse. Suponhamos que vivia (é o tipo de dado que
as biografias nos dão) num prédio barulhento da East End de Manhattan. Ratos,
daqueles que amam os norte-americanos, uma quantidade indefinida e constante de
baratas, a embotada promiscuidade de uma casa velha com escadas estreitas, são,
todos, o panorama original. A atmosfera. O inecessário. Em seu quarto havia um
piano, nem sempre afinado, pela falta de catorze dólares para o serviço. Era um
móvel quase póstumo. Dormia ali pela manhã e parte da tarde. Saía ao anoitecer.
Lavava copos num bar. tinha gravado um disco (In Transition) e esperava por
trabalhos temporários em piano-bares.
Sabia que era preciso descartar a idéia de um reconhecimento bito, é
claro, inclusive de um triunfo gradual, à maneira de círculos concêntricos. o
era tão ingênuo. Mas esperava sim, e tinha todo o direito, que cedo ou tarde
seu talento chegaria a ser reconhecido. (Aqui há uma verdade e um erro: é certo
que hoje Cecil é apreciado no mundo todo, e nós que escutamos seus discos
durante anos com amor e uma admiração sem limite seríamos os últimos a duvidar
disso. Mas também um erro, de tipo lógico, e esta história tentará mostrar,
sem ênfase, a propriedade do erro. Claro que nada confirma a necessidade dessa
história, que não é mais que um capricho literário. Acontece que, uma vez
imaginada, ela se torna de certo modo necessária. A história da prostituta que
espantou o rato não é, o que não quer dizer que a grande série virtual das
histórias seja inecessária em seu conjunto e, no entanto, é. A de Cecil
Taylor é uma antiga fábula: o que lhe convém é o modo de aplicação. A atmosfera
não é necessária... Mas como ouvir a música fora de uma atmosfera?)
O piano-bar em questão era um lugar freqüentado por músicos e drogados. O
artista se predispôs a uma acolhida flutuante entre a indiferença e o
interesse; descartava o escândalo nesse ambiente. Predispôs-se a que a
indiferença fosse o plano, e o interesse, o ponto: o plano poderia cobrir o
mundo como um toldo de papel, o interesse era pontual e verdadeiro como um "bom
dia" entre peixes. Preparava-se para a incongruência inerente às grandes
geometrias. O acaso da concorrência poderia muni-lo de um quê de atenção:
ninguém sabe o que prospera à noite (ele tocaria depois das doze, na verdade,
no dia seguinte), e o que alguém faz nunca passa completamente despercebido.
Mas dessa vez passou. Para sua grande surpresa, a oportunidade não se mostrou,
precisamente, "nunca". Escárnio invisível diluído em risadinhas inaudíveis.
Assim transcorreu a sessão, e o gerente cancelou a apresentação da noite
seguinte. Cecil, claro, não discutiu com ele sua música. Não viu nisso nenhuma
utilidade. Limitou-se a voltar para os ratos.
Dois meses depois, sua distraída rotina de trabalho (já não lavava copos;
era empregado de uma repartição pública) foi realçada mais uma vez por um
contrato verbal, para atuar num bar, uma noite só, no meio da semana. O bar
parecia com o anterior, embora fosse talvez um pouco pior, e a concorrência não
diferisse. Era possível, aliás, que alguns dos presentes daquela noite se
repetissem ali. Chegou a pensar isso, o grande iludido. Sua música soou nos
ouvidos de uma dezena e meia de músicos, drogados e alcoólatras, talvez até nas
belas orelhas negras de uma mulher vestida em seda, sustentada pela heroína.
Não houve aplausos, alguém riu pesadamente (de outra coisa, com toda certeza),
e o dono do bar sequer se deu ao trabalho de lhe dizer boa noite. E por que
faria isso? momentos assim, em que a música fica sem comentários. Sem
motivo, prometeu a si mesmo vir ao bar noutra oportunidade (freqüentara-o
eventualmente como ouvinte) para imaginar comodamente a posição do ser humano
diante da música: o pianista consumado, a sucessão de velhas melodias, lentas e
espaçadas. Mas nunca foi, achava que não valia a pena. Considerava-se uma
pessoa desprovida de imaginação. Transcorrida uma semana, a representação desse
fracasso fundiu-se à do anterior, o que lhe causou um certo estranhamento. Era
uma repetição? Não havia motivos para acreditar nisso, e no entanto a realidade
se mostrava assim, simplesmente.
Certa feita encontrou-se na rua com um ex-discípulo da Advanced School of
Music de Boston, um neoclassicista. Cecil, em segredo, fazia troça de
Stravinsky. Todos os negros desprezam os russos, não? Duas frases apenas, e o
184
outro ficara vagamente impressionado pelo tom sibilino da voz de seu conhecido,
o sussurro, o gorro de lã. (Se ao invés de ser uma nulidade, o ex-discípulo
tivesse chegado a algo, teria anotado isso em sua autobiografia, muitíssimos
anos depois.)
Três meses mais tarde, uma conversa de madrugada, numa mesa do Village
Vanguard, terminou numa oferta para ali se apresentar por uma noite, como
complemento de um grupo renomado. Abandonou seu emprego na repartição e
trabalhou dez horas diárias em seu piano (mudara-se para um dos quartos de uma
velha casa de proxenetas, em Bleeker Street) durante a semana que antecedia a
apresentação. Al V.V. assistia a flor e a nata do mundinho do jazz. Estava
convencido de que nesse momento se formaria o primeiro círculo, nem que fosse
pequeno como um ponto, do qual irradiaria a compreensão de sua atividade
musical, e, conseqüentemente, a própria atividade.
Chegou a noite em questão, quando solicitado subiu a tarimba onde ficava
o piano, e atacou...
Não houve mais que alguns aplausos condescendentes: "ao menos suou". Isso
o desconcertava. Na parte posterior do palco estavam alguns músicos, que
desviaram o olhar com um risinho amarelo. Foi sentar-se à mesa onde estavam
seus conhecidos, que falavam de outra coisa. Um deles tocou-lhe o cotovelo e,
inclinando-se em sua direção, sacudiu lentamente a cabeça de um lado para
outro. Com uma grande gargalhada, alguém suspirou um "Enfim, acabou". O
crítico de jazz mais proeminente da época estava sentado a algumas mesas dali.
O que sacudira a cabeça foi até lá conversar com ele, e voltou com este recado:
Sinhué assim chamavam o crítico entre eles fez um silogismo claro
como um céu sem nuvens: o jazz é uma forma de música, e é, assim, uma parte da
música. Como aquilo que nosso bom Cecil faz não é música, tampouco pode aspirar
à categoria jazz. Segundo ele, conforme o que entendo eu, que sou um
autodidata, não se pode avançar no jazz senão por um desvio do genérico, ou
seja, não há particularidades que possam se relacionar, por analogia, ao jazz.
Não tentou nenhuma resposta. Evidentemente, esse imbecil não entendia
nada de música, o que não o surpreendia. Ele, por sua vez, não entendia uma
palavra de suas razões, ou, melhor dizendo, da convicção que sustentava suas
razões. Zonzo, esperou que algum dos músicos que vira por ali dissesse algo.
Mas não foi assim. De fato não podia estar certo de haver algum dos músicos que
acreditava ter visto, era muito míope e usava uns óculos escuros que, na
escassa luz do salão, ofuscavam todo reconhecimento. Quando voltou a pensar na
situação nos dias seguintes, compreendeu que de ninguém deveria esperar menos
reconhecimento explícito do que de seus colegas. Seria obrigado a escutar
infinitamente a música alheia a reconhecer uma nota, um pequeno solfejo
amistoso, um "Hi", como aqueles que se cruzavam ao voltar do banheiro, depois
de uma dose? Não fizera outra coisa em sua vida, e amava o jazz.
Passaram-se várias semanas. Trabalhou de faxineiro num banco, de vigia
noturno num edifício de escritórios e num estacionamento. Certa noite lhe
apresentaram alguém que se dirigiu a Cecil pelo mais fútil dos motivos: a
senhora Vanderbilt contratava pianistas para seus chás. E de fato foi chamado
em poucos dias: parecia que suas credenciais de estudo tinham sido investigadas
e aprovadas. Às seis da tarde foi à mansão de Long Island e tomou uma xícara de
café com os criados, que, à impressão, faziam uma idéia esquisita de seu
trabalho. Um valet por fim veio avisá-lo de que poderia iniciar sua
interpretação. Posicionou-se diante de um autêntico Steinway entreaberto, numa
sala onde uma elegante quantidade de pessoas de ambos os sexos bebia e
conversava. Sua atuação não durou mais de vinte segundos, pois a senhora
Vanderbilt em pessoa, num gesto que os entendidos qualificaram de esnobe,
aproximou-se (o esnobe do assunto estava em não ter solicitado ao valet que o
fizesse) e com toda calma fechou a tampa do piano sobre as teclas. Cecil
havia tirado as mãos.
Prescindiremos de sua companhia disse, estalando as pérolas. Não é
tão difícil quanto se pensa estalar pérolas.
Os convidados aplaudiram Gloria.
Devia ter imaginado acontecer algo assim dizia Cecil à sua amante
dessa noite. Mas devia ter suposto também que o próprio estranhamento, ao
185
invés de atravessar a couraça de ignorância dessa gente, pudesse servir como um
lubrificante para que a impenetrabilidade da casca voltasse sobre si mesma e se
tornasse inútil. Minha música tem muitos aspectos, conheço apenas os musicais.
A vida está cheia de surpresas.
Na primavera teve um novo contrato, desta vez por uma semana inteira, num
bar cujas características mais visíveis eram as rajadas de importância nula
conferida à música que soava dele. Velhas negras, ex-escravas deviam tocar ali
durante a madrugada, em seus pianos roídos. O dono estava ocupado
exclusivamente pelo tráfico de heroína, era um rapaz qualquer quem tratava com
os pianistas. Cecil tocaria à meia-noite, por duas horas. Todo mundo entrava e
saía, não se podia confiar que alguém, entre compra e venda, entre aquisição e
uso tivesse ânimo desperto o bastante para apreciar uma forma genuinamente nova
de música. E nessa composição do lugar sentou-se ao piano.
Passaram-se dois ou três minutos de sua execução quando o dono do bar se
aproximou dele por trás, agitando a mão que segurava o cigarro.
Shh, shh disse quando já estava a seu lado. Preferiria que não
continuasses, filho. Cecil retirou as mãos do teclado. Alguns fregueses
aplaudiram, rindo. Logo subiu uma senhora negra que começou a tocar Body &
Soul. O dono estendeu uma nota de dez dólares ao músico alterado, mas quando
este iria pegá-lo, tirou a mão:
— Era gozação?
Era um indivíduo perigoso. Pesaria noventa quilos, cinqüenta a mais que
Cecil, que se foi sem esperar mais reprovações.
Cecil era uma espécie de duende, elegante a pesar de sua miséria, sempre
em veludo ou couro branco, sapatos bico-fino tal como correspondia a seu corpo
pequeno, musculoso. Podia chegar a perder dois quilos numa tarde de
improvisações em seu piano velho. Extraordinariamente distraído, leve, volátil,
ao se sentar e cruzar as pernas (calças largas, camisa impecável, colete de
tecido) era excessivo como um bibelô; o mesmo quando acendia um cigarro, ou
seja, quase o tempo todo. O fumo era o bosque onde esse duende fazia sua
morada, à sombra de uma teia-de-aranha úmida.
Nessa noite, caminhou pelas ruas profundas do sul da ilha, pensando.
Havia algo curioso: a atitude do irlandês espaçoso que vendia heroína não
diferia muito do que pouco antes demonstrara a senhora Vanderbilt. Mas ambas as
personagens em nada se pareciam. Com exceção disso. Passaria por aí, pelo ato
de interrompê-lo, o denominador comum da espécie humana? Por outro lado, nas
últimas palavras do sujeito encontrava algo mais, algo que agora reconstruía na
lembrança de todas as suas apresentações fracassadas. Sempre lhe perguntavam se
fazia por brincadeira ou não. É claro que a senhora Vanderbilt, por exemplo,
não se rebaixara em perguntar, mas de modo geral pressupunha a existência da
pergunta; mais que isso, sua indignação não se dava senão pela insolência da
necessidade de perguntar isso a um negro. Dissera "Não sei, nem me interessa".
Mas de certo modo mostrara que importava sim. Cecil se perguntou por que era
possível perguntar isso a ele; se a mesma pergunta não era pertinente em
relação aos demais. Ele, por exemplo, jamais perguntaria à senhora V. se fazia
o que fazia (fosse o que fosse) a sério ou de brincadeira. O mesmo ao dono do
bar desta noite. Havia algo inerente a seu trabalho que provocava a
interrogação.
A senhora Vanderbilt, por outro lado, participava de uma famosa anedota,
citada em quase todos os livros de psicologia escritos nos últimos anos. Em
certa ocasião, quis ambientar uma ceia com música de violino. Perguntou quem
era o melhor violinista do mundo: o que menos poderia ela pagar? Fritz
Kreisler, disseram-lhe. Chamou-o pelo telefone. Não faço concertos
particulares, disse ele: meus honorários são muitos caros. Isso não é problema,
respondeu a senhora: quanto? Dez mil dólares. Perfeito, aguardo-o esta noite.
Mas mais um detalhe, senhor Kreisler: o senhor jantará na cozinha, com a
criadagem, não se juntará a meus convidados. Nesse caso, disse ele, meus
honorários são outros. Problema nenhum, quanto? Dois mil dólares, respondeu o
violinista.
Os maestros amavam esse conto e continuariam amando pelo resto da vida,
contando incansavelmente entre si e transcrevendo-o em seus livros e artigos...
186
Mas e a anedota dele, de Cecil, alguém amaria, contaria a alguém? Não teriam
também de triunfar as anedotas para que alguém as repetisse?
Nesse verão foi convidado, junto com uma legião de músicos, a participar
no festival de Newport, que dedicaria duas jornadas, à tarde, para apresentar
artistas novos. Cecil pensou: sua música, essencialmente nova, seria um desafio
nesse marco. Pela primeira vez seria ouvido num concerto, não no ambiente
desagradável e distraído dos bares (por mais que todos os grandes músicos de
jazz tivessem triunfado nos bares). Pois bem, chegada a hora, sua apresentação
se deu num clima de muita frieza. Não houve aplausos e os poucos críticos
presentes se retiraram ao corredor para fumar um cigarro, à espera do número
seguinte. Poucas crônicas o mencionaram, apenas como uma extravagância. "Não é
música", diziam, lacônicos, os entendidos. Enquanto os demais se perguntavam se
não teria sido uma gozação. O cronista de Down Beat propunha a questão
(ironicamente, está claro) como um paradoxo: se batemos o teclado de um piano
ao acaso... Em resumo, uma reedição do paradoxo conhecido como "do cretense". A
música, Cecil pensava, não é paradoxal, mas o que acontece comigo é, de certo
modo, um paradoxo. Mas não paradoxos de estilo, não pode haver. Isso é
paradoxal no meu caso.
No curso dos meses que se seguiram, apresentou-se em meia dúzia de bares,
sempre diferentes que o resultado era igual em todos os casos, e recebeu
dois convites: primeiro para uma universidade, depois num ciclo de artistas de
vanguarda na Copper Union. No primeiro caso, Cecil foi com a esperança
flutuante que acabou desperdiçada (a sala se esvaziou poucos minutos depois de
iniciada a atuação; o professor que o convidara precisou de um difícil
malabarismo para se justificar, odiando-o daí em diante), embora servisse ao
menos para comprovar outro pequeno detalhe. Um público seleto é um público
esnobe. O esnobismo é um segredo explícito que se cala. O público universitário
não tinha motivos para "entender" a música; não digamos "apreciá-la", porque
isso não lhes dizia respeito. Mas, ao mesmo tempo, atuava uma pressão (eles
mesmos eram essa pressão) para que sim a entendessem. A mentira encontrava sua
difícil atmosfera ideal, o mal-entendido poderia viver para sempre nessas
salas-de-aula. Um pequeno percentual de mentira, por menor que fosse, poderia
afiançar a verdade indiscutível do real. Quem nos garante, afinal, que
realmente estamos vestidos no sentido correto, que as calças, camisas e
gravatas não são obscenos? Pois bem, sua atuação não produziu nada disso. Então
o esnobismo não existia? Se era assim, todo o edifício mental acessório de
Cecil vinha abaixo. Já não poderia nunca entender o mundo.
Na Copper Union a experiência foi ainda menos gratificante. Os músicos
vanguardistas, que também apresentavam suas obras, estavam na posição ideal de
determinar o que era música e o que não era, uma vez que eles mesmos se
encontravam, precisamente, na margem interna da música, em sua área de
ampliação sistemática. Mas tampouco aqui a posição ideal deu lugar ao juízo
correto. Da obra do jazzman negro puderam dizer apenas duas coisas: que naquele
momento não era música (ou seja, que não seria nunca), e que casualmente lhes
ocorria a pergunta de se não estariam diante de um tipo de brincadeira.
Cecil abandonou um de seus empregos habituais e com algumas economias
passou os meses de inverno estudando e compondo. Na primavera surgiu um
contrato, de alguns dias, num bar do Brooklin, onde se repetiu o de sempre, o
daquela primeira noite. Quando voltava de trem à sua casa, os movimentos, a
passagem pelas estações imóveis produziu nele um estado propício ao pensar.
Concluiu então que a lógica do assunto todo era perfeitamente clara, perguntou-
se por que não se dera conta disso antes: com efeito, em todas as histórias de
Hollywood com que havia lavado seu cérebro sempre um músico que a princípio
não apreciam e no final sim. estava o engano: na passagem do fracasso ao
triunfo, como se fossem os pontos A e B que unem uma linha. Na realidade, o
fracasso é infinito, porque é infinitamente divisível, coisa que não acontece
com o sucesso.
Suponhamos, dizia-se Cecil no vagão vazio às três da manhã, que para
chegar a ser reconhecido deva atuar para um público cujo coeficiente de
sensibilidade e inteligência tenha superado um limite X. Pois bem, se começo
atuando, digamos, diante de um público cujo coeficiente seja uma centésima
parte de X, terei depois de "passar" por um público cujo coeficiente seja de
187
uma qüinquagésima parte de X, depois por um de uma vigésima quinta parte de
X... e assim ad infinitum.
"De modo que, enquanto continuar a rie, fracassarei sempre, porque
nunca terei o público com a qualidade mínima necessária. É tão óbvio!"
Seis meses depois foi contratado para tocar numa taverna, a que assistiam
turistas franceses.
Apresentou-se pouco depois da meia-noite. Sentado no tamborete, estirou
as mãos em direção às teclas, atacou com uma série de acordes... Algumas
risadas soaram sem força. O maître fazia sinais para que diminuísse, com gesto
alegre. Teria decidido tratar-se de uma brincadeira? Não, estavam
razoavelmente incomodados. Para tapar o mau momento, imediatamente subiu um
pianista negro de uns quarenta anos. Ninguém dirigiu a palavra a Cecil, mas de
qualquer modo esperou que lhe pagassem uma parte do prometido (o que sempre
faziam), olhando e ouvindo o pianista. Reconhecia o estilo, algo de Monk, de
Bud Powell. A música o emocionava. Um pianista convencional, pensou, sempre
trata a sica em sua forma mais genérica. Efetivamente, deram-lhe vinte
dólares, com a condição de nunca voltar a lhes pedir trabalho.
9 de agosto de 1981
188
OSVALDO LAMBORGHINI E SUA OBRA
*
A primeira publicação de Osvaldo Lamborghini (Buenos Aires 1940-Barcelona
1985), pouco antes de completar os trinta anos, é El fiord; apareceu em 1969 e
foi escrito alguns anos antes. Era um livrinho encorpado que se vendeu por
muito tempo mediante o trâmite de solicitá-lo diretamente ao vendedor, numa
livraria de Buenos Aires. Mesmo não tendo sido nunca reeditado, percorreu um
longo caminho e cumpriu a incumbência dos grandes livros: fundar um mito.
Tratava-se, e continua tratando-se, de algo inusitadamente novo.
Antecipava toda a literatura política da década de setenta, superando,
tornando-a inútil. Incorporava toda a tradição literária argentina, mas dando
um matiz novo, muito distinto. Parecia estar encavalgado entre duas
puerilidades: a anterior, fundada na meia-língua infantil da gauchesca e o
acartonamento de funcionários de nossos pró-homens literários, e a posterior,
com seus rompantes revolucionários, sempre ingênuos. De repente descobríamos
que inclusive Borges, muito na linha inglesa, tinha se autolimitado à
literatura "para a juventude". Os únicos antecedentes que valia a pena
mencionar eram Arlt e Gombrowicz. Mas à diferença deles, Osvaldo não se ocupava
do problema da imaturidade; parecia ter nascido adulto. Secreto, mas não
ignorado (ninguém pode ignorá-lo), o autor conheceu a glória sem ter gozado o
menor vislumbre da fama. Desde o começo foi lido como um mestre.
Em 1973 apareceu seu segundo livro, Sebregondi retrocede, um romance que
originalmente foi um livro de poemas. A capa tinha o mesmo emblema que a de El
fiord: um dedo apontando para cima, entre fálico e tipográfico. Deste venderam-
se uns mil exemplares, e Osvaldo comentava, filosófico: "Efeitos do boom. De
seu primeiro livro, Borges vendeu sessenta e quatro".
Pouco depois fez parte da direção de uma revista de avant-garde, Literal,
onde publicou alguns textos críticos e poemas. Por algum motivo, seus poemas
causaram uma impressão ainda mais enfática de gênio que sua prosa.
Durante o resto da década suas publicações foram casuais, ou diretamente
extravagantes (seus dois grandes poemas, Los Tadeys e Die Verneinung [A
negação], apareceram em revistas norte-americanas). Alguns poucos relatos,
algum poema e escassos manuscritos circularam entre seus nomerosos admiradores.
Passou então vários anos fora de Buenos Aires, em Mar del Plata ou em Pringles.
Em 1980 saiu seu terceiro e último livro, Poemas. Pouco depois foi a Barcelona,
de onde regressou, doente, em 1982. Convalescente em Mar del Plata, escreveu um
romance, Las hijas de Hegel, por cuja publicação não se preocupou (não se
preocupou sequer em mecanografá-lo). E tornou a ir a Barcelona, onde morreu em
1985, aos quarenta e cinco anos de idade.
Estes últimos três anos, que passou em reclusão quase absoluta, foram
incrivelmente fecundos. Coisa que seus amigos não suspeitávamos, dele apenas
recebemos manuscrito de uma novelinha, La causa justa. Seu espólio revelou uma
obra ampla e surpreendente, que culmina no ciclo Tadeys (três romances, o
último interrompido, e um volumoso dossier de notas e relatos adventícios) e os
sete tomos de Teatro proletario de mara, uma experiência poética-narrativa-
gráfica em que trabalhava ao morrer.
A primeira e última pergunta que surge diante de suas páginas, diante de
qualquer uma delas, é: como é possível escrever o bem? Creio que um para-
além da qualidade estilística, para-além do simulacro de perfeição que pode
luzir uma boa prosa. Em Osvaldo uma alusão ao perfeito de verdade, que
escapa ao trabalho. Trata-se, ao contrário, da facilidade, uma sorte de
escritura automática. Entre seus papéis não um rascunho, não versões
corrigidas, e quase não há, de fato, tachaduras. Tudo saía bem de entrada. Não
*
"Osvaldo Lamborghini y su obra" Prefácio a LAMBORGHINI, Osvaldo Novelas y cuentos.
Barcelona: Ediciones del Serbal, 1988.
189
havia parto. Em todo caso, tinha ocorrido. Tratei de explicar a mim mesmo a
partir do descobrimento póstumo da versão original, em verso, de Sebregondi
retrocede, como uma oscilação-tradução. Esse nacarado de perfeição tão sujo
poderia explicar-se talvez como o efeito de uma tradução virtual: nem prosa nem
verso, nem uma combinação de ambos, mas uma passagem. uma arqueologia
poética na prosa, e vice-versa; uma dupla-inversão, cuja marca é aquilo no que
muitos viram o mais característico do estilo de Osvaldo: a pontuação. Por outro
lado, ele mesmo disse: "Enquanto poeta, zás!, romacista".
Devido a Sebregondi retrocede ter realmente passado por essa tradução,
mostra o procedimento com especial claridade. Aqui vemos a nu a mecânica
deliciosamente límpida das frases; assistimos ao nascimento das palavras. (Quem
ouviu, por exemplo, a palavra "tento", antes de ler a frase "... El Sebregondi
con plata es un Sebregondi con-tento"?) Mas, e está o peculiaríssimo
paradoxo desta escritura, esse nascimento tem algo de definitivo. Conjugam-se a
fluidez e a fixidez, e isso se dá no brilho.
Toda a escritura de Osvaldo está dominada pelo signo do quido; e menos
pela água que pelo álcool, cujo brilho e fluidez passam à mente, e a partir
dela transformam o mundo; ao mesmo tempo, produzem a fixidez repetitiva do
hábito.
Em certa ocasião, Osvado trabalhava numa livraria e comentava com
assombro o respeito a priori que as pessoas mostravam ao manipular livros muito
grossos. Ele nunca se beneficiaria, dizia, com essa superstição: "minha obra",
e mostrava alguns folhetos magérrimos, "será dois ou três desses, nada mais".
Mas a brevidade nele não era um mero acidente bibliográfico. Como se podia
esperar, tinha fundo duplo.
Lembro de algo que me contou depois de uma temporada que havia passado na
casa de seus pais. Havia recuperado e voltado a ler os livros de sua infância,
dentre eles os de Dickens. David Copperfield tinha lhe agradado tanto quanto
antes, mas com uma ressalva (uma ressalva que tinha feito em sua primeira
leitura, trinta anos atrás): havia uma passagem em que David acompanhava sua
nutriz Peggoty para alimentar as galinhas; ela jogava cereal e as aves
ciscavam... Mas o menino olhava os braços sardentos da mulher e se maravilhava
de que não preferissem ciscar ali. Essa passagem lhe encantava. Mais que isso,
achava que todo o romance se tornava redundante por essa cena. Não lamentava
que Dickens o tivesse escrito, claro. Estava bem que existisse, não podia ser
de outro modo; mas era como o cereal inumerável que se pode lançar às galinhas
para que tenham (ou não, isso no mesmo) a iluminação de ir bicar o ponto
verdadeiro, a representação. Ele não era Dickens.
O que Osvaldo era é difícil dizer. Tinha uma teoria sobre os romances
longos: dizia que davam por resultado uma frase, uma pequena frase "muito
linda". Exemplificava com Crime e castigo: "Para demonstrar que é Napoleão, um
estudante deve assassinar uma velha usurária". Degustava essa frase, repetia.
Dava a entender, creio, que o seu era essa frase, sem o romance.
Mas não se tratava só do resultado; da matéria própria do romance também.
Insistia que todos os grandes romances estão percorridos por uma pequena
melodia, uma "musiquinha". O romance se fazia com frases providas de sentido,
mas a frase, por sua vez, para ser, tinha de ser pura música ("música porque
sí, música vana"), a citação do famoso soneto, que repetia tanto. É a passagem
paradoxal do verso à prosa.
Provavelmente daí vem a inclusão, em Sebregondi retrocede, de Porchia,
que tinha para se encantar: um velho operário aposentado, cuja obra (as Vozes)
está composta exclusivamente de frases zen, do tipo "Antes de percorrer meu
caminho, eu era meu caminho". Pois bem: Porchia estava louco.
Incidentalmente, lembro que Osvaldo tinha um método para escrever quando,
por alguma razão, "não podia escrever": consistia simplesmente em redigir uma
pequena frase qualquer, depois outra, e outra, até preencher várias ginas.
Alguns de seus melhores textos (como La mañana) estão escritos assim; e se
poderia pensar que tudo está escrito assim.
El fiord, como a mônada de Leibnitz, reflete todo o universo
lamborghiano; o mesmo faz qualquer um de seus escritos. Suponho que ele
190
insistia no monádico desse texto inaugural mais por comodidade, porque
acontecia ter sido o primeiro. E talvez por outros motivos também. As
interpretações tecidas ao redor de El fiord (por exemplo, a de considerá-lo um
"objeto fractal" e aplicar a idéia ao resto de sua obra enquanto fragmentação
linear, periferia infinita de um sentido, a "ilusión de cosa grande redonda"
com que começa Sebregondi retrocede) não fazem mais que destacar sua densidade
literária, sua qualidade de ininterpretável. Mas as chaves para uma
interpretação o muito visíveis, quase demais. Estas iniciais estão pontuando
a narração: CGT que à luz ATV, Augusto Timoteo Vandor, o der sindical que
rebelou-se contra Perón... mas este último parecia ser "el Loco Rodríguez", e
aqui as iniciais não correspondem a nada; por outro lado, Sebastián (Sebas)
alude às "bases" através de outro procedimento lingüístico...
El fiord é uma alegoria, mas, muito além disso, é uma solução ao enigma
literário que esboça a alegoria, que tanto intrigou Borges. A solução proposta
por Osvaldo, tão sutil que, ao menos para mim, parece quase inapreensível,
consiste em extrair sentido alegórico de sua posição vertical, paradigmática, e
estendê-lo num contínuo no qual deixa de ser o mesmo (disso se trata o sentido,
todo sentido, de um abandono de um termo por outro), e depois voltar a sê-lo,
indefinidamente.
A colocação em cena desse contínuo, do qual faz parte a passagem do verso
à prosa, a transexualidade e, diria eu, tudo na obra de Osvaldo, é a própria
literatura. Seu trabalho de chargista, ao incluir a imagem na linha (ou "no
gancho"), é parte do mesmo, o que se acentuaria em sua obra gráfica dos últimos
anos, nos livros artesanais que fez (ainda que estes participem de outra idéia
bem sua, a de "primeiro publicar, depois escrever") e sobretudo no Teatro
proletario de cámara. Era inesgotável na invenção de contínuos; lembro de um,
ao acaso, no conto Matinales, que ele mesmo contava às gargalhadas (encontrava-
o uma trouvaille): o menino que para se tornar louco faz o gesto, que
representa familiarmente a loucura, de r um dedo na têmpora e girar. Todo o
Sebregondi pode considerar-se um tratado do contínuo.
É claro que o mesmo se poderia dizer de Las hijas de Hegel, em que também
aparecem elementos novos. A novelinha é um curioso Aufhebung em processo. A
primeira e a terceira parte, datadas em torno do 17 de Outubro, efeméride
central da classe operária argentina, estão escritas em cadernos; a segunda,
datada um pouco antes e escrita pelo procedimento frase-por-frase, numa
caderneta pequena. Aqui o contínuo se torna simultaneidade (mas de quê? de
escritura? de escritura e leitura? de literatura e história?), ritual ou
fatalidade.
Caso se interroguem cem pessoas que o tenham conhecido, noventa e nove
definirão Osvaldo por seu amor às mulheres. Aí, e aí, parecia exceder a
literatura. Não é que fosse feminista (esquivou-se disso numa lapidária
declaração de princípios: buscava "mulheres de verdade, não a estúpida verdade
da mulher"). Seu amor pelas mulheres brilhava com a mesma luz de sua
inteligência; quase se confundiam.
Nisso era sincero, claro, e sua biografia é o testemunho mais fidedigno.
E, no entanto... o contínuo atuava também sobre a sinceridade, sobre a verdade,
pondo-as numa mesma linha, com o demais.
Bem ao contrário de Hegel, para Osvaldo a realidade culminava nas
mulheres e na classe operária. Mas ali, nesse cume, começava a representação. E
essa representação tinha um nome: a Argentina. Por isso a Argentina era
"¡Albánia, Albánia!" ou "¡Alemania, Alemania!". A Argentina valia "por seu
grande poder de representação". Vale a pena lembrar das circunstâncias em que
certa vez lhe ouvi repetir isso. Diante de um viajante que elogiava a beleza
rotunda e sem pudor das mulheres brasileiras, Osvaldo disse seu consabido "mas
a Argentina tem um grande poder de representação". E explicou-se assim: "lá,
uma mulher não é mais que uma mulher, aqui, em contrapartida, é uma operária
que passa a caminho da brica...". E seguia o argumento político: "... porque
o peronismo deu dignidade à classe operária argentina etc. etc. etc.". Essa
recorrência política era nele uma constante, e às vezes parecia tão fora de
lugar que levou alguns a pensarem ter algo de cínico. Acredito que respondia
mais a seu complexo sistema formal.
191
A Argentina laborghiniana é o país da representação. O peronismo foi a
emergência histórica da representação. A Argentina peronista é a literatura. O
operário é o homem por fim real que cria sua própria literatura ao se fazer
representar pelo sindicalista. Daí o regresso da figura de Vandor (em cuja
morte via, com toda coerência, "o assassinato simbílico da classe operária
argentina"), de seus primeiros a seus últimos escritos.
Mas no mesmo movimento em que o operário se torna sindicalista, o homem
se torna mulher. Eis o avatar extremo da transexualidade lamborghiana.
"Gostaria de ser operária têxtil, mas para chegar... a secretária do
sindicato."
O sistema era de apreensão ao mesmo tempo muito difícil e muito fácil.
Era, como todo estilo, um campo gravitacional, no qual se caía.
Lembro que uma noite caminhávamos pelo centro e cruzamos uma prostituta
das que, por então, vinte anos, ainda podiam ser vistas em Buenos Aires:
pintada como um mascarão, carregada de jóias baratas, roupas berrantes, gorda,
velha. Osvaldo, pensativo, disse: "Não acredite. Veja Mao Tsé Tung". Deteve-se,
estupefato, e me dirigiu um olhar esquisito. Por um instante, o mal-entendido
abarcou toda a literatura, e mais. Foram necessários tantos anos e tantas
coisas para que eu pudesse ler nesse olhar, ou no próprio passado, o que quis
me dizer: "Por fim entendeu alguma coisa".
Uma lembrança mais, para terminar. Osvaldo conhecia Hegel principalmente
através de Kojeve, a cuja interpretação aderia ao mesmo tempo em que não levava
muito a sério (a mesma ambigüidade tinha com Sartre, em cujos livros
encontrava, quem saberá por que, uma fonte inesgotável de piadas). Mas também
tinha lido Hegel, e na última vez que o vi , tinha nas mãos as Lições sobre a
filosofia da história; tinha escolhido para ler no avião, coisa que me explicou
assim: abriu ao acaso, numa livraria, e nessa página casual Hegel falava do...
Afeganistão. (¡Afganistán, Afganistán!) Isso lhe bastou.
Nestes últimos anos, a lenda fez de Osvaldo um "maldito", mas as bases
reais não vão além de certa irregularidade em seus costumes, dos quais o mais
grave foi apenas a freqüente mudança de domicílio. Para algumas normas muito
estritas pode ter sido um marginal, mas nunca, de nenhuma maneira, o
esperpêntico fantasma que um leitor ingênuo poderia deduzir.
Osvaldo era um senhor gentil, elegante, de modos aristocráticos, um pouco
altivo mas também muito afável. Sua conversa deslumbrava invariavelmente.
Ninguém que tenha falado com ele ainda que fosse por poucos minutos deixa
de lembrar, para sempre, alguma ironia, uma réplica perfeita, um retrato de
insuperável feitio; não só nisso se parecia com Borges: tinha algo de
cavalheiro antiquado, com ângulos um tanto ladinos, de gaucho, cobertos por uma
severa cortesia. Além disso, tinha lido tudo, sua inteligência era maravilhosa,
dominadora. Foi venerado por seus amigos, amado (com uma constância que parece
não existir) pelas mulheres, e respeitado em geral como o maior escritor
argentino. Viveu rodeado de admiração, carinho, respeito e bons livros, uma das
coisas que nunca lhe faltaram. Não foi objeto de repúdios nem exclusões;
simplesmente se manteve à margem da cultura oficial, com o que não perdeu
grande coisa.
192
O DISTRAÍDO
*
Poucos livros são o deliciosos e reconfortantes como as "memórias do
letrado pobre" Chen Fu (1763-c. 1820), autobiografia estritamente privada,
escrita porque sim, por gosto, em torno de 1816, imediatamente perdida e
deixada de lado. Um erudito provinciano encontrou, por acaso, quatro de suas
seis cadernetas e as imprimiu em 1877. Mas só em 1924, exumada por Yu P'ing Po,
chegou a público; desde então se tornou um clássico da literatura chinesa, não
menos apreciado em sua pátria que na Europa. Que eu saiba, não foi traduzido ao
castelhano, mas sim ao inglês, por Lin Yu-Tang (Six Chapters of a Floating Life
I, 1935) e por Shirley Black (Chapters from a Floating Life, 1935), ao
italiano, por Lionello Lanciotti e Tsui Tao Lu (Sel racconti di vita irreale,
1955) e ao francês, por Pierre Ryckmans (Six récits au fil inconstant des
jours, 1966) e por Jacques Reclus (Récits d'une vie fugitive, 1967). Esta
última é a que li. O título significa algo assim como "seis cadernos sobre uma
vida à deriva". Sua organização não é cronológica mas temática, a mesma
utilizada por Svevo para seu Zeno. O primeiro caderno ou capítulo está dedicado
ao amor conjugal, centro da vida de Chen Fu e característica que o torna único
em sua época; o segundo, aos "pequenos prazeres da vida"; o terceiro, às
"desditas da vida", ou seja, à morte de sua esposa; o quarto, às viagens. Os
dois capítulos perdidos se ocupavam de uma viagem à ilha de Okinawa e da
filosofia do autor. Não grandes motivos para se lamentar o extravio, que em
algum momento pode ser corrigido. O que ficou, pouco mais de cem páginas, basta
para sonhar interminavelmente.
Chen Fu nasceu numa família de funcionários acomodados, em cuja altura
não pôde se manter. Não foi brilhante, sequer inteligente. Declara no livro que
a chave de sua vida foi uma "educação incompleta" que o obrigou a subsistir em
postos obtidos pelo acaso de recomendações circunstanciais, em distintas
prefeituras da China oriental. Amava a poesia e a pintura, as flores e as
paisagens, mas era um senhor convencional, bastante frívolo e desorientado,
esnobe, sabrista, desprovido de talentos práticos e de outros também. foi
eficaz em banalidades: organizar piqueniques à luz da lua (passou a vida
fazendo isso), confeccionar jardins em miniatura, pôr flores em jarros,
contemplar paisagens de fama pitoresca... E mesmo nesse campo cuidou para não
ser totalmente eficaz. Era muito suscetível; tinha algo de solteirona. Uma de
suas paixões era o bonsai, mas punha tantos requisitos que em toda sua vida
viu dois que valessem a pena, sendo que um deles viu de passagem, numa vitrine.
Outra paixão, as orquídeas. Tinha uma planta excelente, mas um de seus
muitíssimos cunhados, por inveja, regou-a com água fervente e murchou. Jurou
então nunca mais voltar a se ocupar de orquídeas. A passagem faz lembrar um
caso das memórias de Mario Praz, paradigma do colecionador, que certa vez fez
com que lhe enviassem algumas tacinhas de porcelana pelo correio e que chegaram
quebradas; jurou então não se ocupar jamais de porcelanas, com as mesmas
palavras de Chen Fu. Talvez a função do juramento seja esta em todos os casos:
excluir da vida as coisas frágeis.
Foi incrivelmente chinês, até a paródia, até a cor local. Salvo numa
coisa, na qual se mostrou contemporâneo cabal de Goethe, ainda que ao estilo
chinês: seu casamento. É o único traço que o redime: o amor sincero, tão fora
de lugar na China do século dezoito, por sua esposa, com quem conviveu durante
vinte e três anos de êxtase ininterrupto. Mas não pôde evitar que ela morresse
ao ser abandonada por uma cortesã, pela qual estava apaixonada. Chen Fu
alcança o amor perfeito depois de sua morte, quando invoca, e aparece, seu
fantasma. Porque nos fantasmas é preciso acreditar para vê-los, e muito; é a
única intensidade a que se permitiu, para cair imediatamente na crença branda
dos jardins, das noites de lua, dos poemas de Li Po e da etiqueta.
*
"El distraído. Una columna flotante de César Aira" Babel Revista de Libros a. II, n. 9.
Buenos Aires, jun. 1989.
193
Chen Fu não foi escritor; seu nível intelectual, sua sensibilidade, sua
formação, estavam muito abaixo do mínimo absoluto exigível para a tarefa. Sua
vida foi das que se absorvem em si mesmas totalmente, até a última gota. Foi um
superficial, além de ser um dom ninguém.
E no entanto fez a única coisa pela qual vale a pena ser um escritor:
escreveu uma obra-prima. Mais que isso: fez com que sua vida se absorvesse pela
segunda vez, num livro; criou um sistema. Porque todo o deprecatório que
sabemos dele, sabemos por ele mesmo, e isso é uma transfiguração. Chen Fu, que
não esteve à altura de nada, esteve à altura de seu livro, que também é sua
vida, e que está entre o mais perfeito a que pode aspirar a literatura.
E sempre sem ser um escritor. Porque esse paradoxo é a chave do seu
triunfo, ou o próprio triunfo, o que o cobre de glória. Chen Fu é o reverso
iluminado da figura nefasta e deprimente do "escritor", tal como o
reconhecemos, por exemplo, em Nabokov ou Octavio Paz. Eles são o escritor em
sua forma plena: o escritor "bom", de ritos indiscutíveis; porque ao ser a
literatura uma atividade eminentemente qualitativa, somente a qualidade e as
qualidades pessoais das quais provém a qualidade da obra concedem o título;
falar de um "bom escritor" ou de "escritor distinto" é redundante.
Chen Fu não é um escritor. E ao mesmo tempo é a única classe de escritor
a que podemos aderir, a única em que a literatura pode se estender por toda a
vida, por toda a sociedade, pelo mundo, e colori-lo de felicidade. O demais é
um elitismo agressivo e destruidor, vitórias de uns apoiadas no fracasso de
outros, egoísmo, senilidade, prestígio.
Talvez seja possível objetar que triunfos como o de Chen Fu podem se
dar em culturas peculiares, que não tenham reificado a arte. Mas a China da
dinastia Ts'ing não se ajusta de todo a esse modelo. Além do mais, a cultura
ocidental hoje é todas as culturas à escolha. É certo que a China é um campo de
experimentação privilegiado; mas é justamente para nós, que podemos ser nossa
própria China apenas por desejar isso.
194
UMA MÁQUINA DE GUERRA CONTRA A PENA
*
Laiseca é um macrocopista: as coisas grandes e de muito perto. Por
exemplo, a História, que é imensa e está cheia de pirâmides, muralhas chinesas,
torres de Babel, campanhas à Rússia e outras desmesuras de estilo. Quanto maior
é a coisa, maior o enigma: para que construir uma pirâmide altíssima e enorme?
Para que fazer enormidades em geral? Por que houve História? Ou ainda,
começando por onde cabe: por que escrever um romance? Para este último, uma
filologia doméstica.
La hija de Kheops provém de uma anedota que Laiseca paladeou fruidamente
durante anos. A filha do Faraó, para contribuir com o financiamento da grande
obra pública empreendida por seu pai, praticou a prostituição. Além do
pagamento habitual por seus préstimos, que era remetido na íntegra ao fundo
pró-pirâmide, exigia de cada um de seus clientes a doação extra de uma pedra,
destinada a levantar a sua própria. A piada está em que ao fim de sua vida
tinha conseguido elevar uma, não tão alta quanto a oficial, mas de dimensões
respeitáveis.
Quando estava a ponto de começar a escrever (fui testemunha do processo),
Laiseca enfrentou um dilema que lhe exigiu fartas reflexões: a Pirâmide, a
"jóia magna" que protegeria o Egito durante toda a eternidade, era o melhor que
o Faraó podia fazer, disso Laiseca não tinha dúvida. Mas para fazê-la, tinha de
fazer bem, e isso significava um longo sacrifício, uma geração ou duas de
egípcios que viveriam na maior austeridade, sem poder sequer tomar uma cerveja.
A cerveja era o ponto-chave. Durante meses Laiseca deu voltas no assunto, num
bar da Onze, chamado El Rubí, diante de geladas garrafas de, exatamente,
cerveja. Valem a pena os sacrifícios? Pode-se viver sem felicidade? Por acaso a
vida tem resultados? Kheops, em seu justificado esforço de ser um Mozart, não
haveria terminado sendo um chichi? Um faraó místico tem o direito de privar o
mais pobre de seus súditos deste prazer?, perguntava-se Laiseca mortalmente
sério e pensativo, com o copo de cerveja na mão.
Eram perguntas grandes demais para responder com palavras. O romance
faria isso. E um dia o romance estava em marcha. Depois de tudo, o trabalho
de Laiseca não é a História, mas sua contraface, a Felicidade. Laiseca é como
Rousseau (são duas gotas de água), mas enquanto para Jean Jacques a História
deu a oportunidade de criar um mundo, o mundo em que vivemos, a Laiseca deixou
o malogro de ser um criador de mundo, num mundo feito. Daí que nele a
literatura seja uma necessidade. É uma máquina de guerra contra a Pena; se não
pode construir pirâmides, pode criar exorcismos, e ele sabe fazê-los grandes de
verdade e eficazes.
"Estou na página quatrocentos e agora começo com o que queria dizer",
afirma tipicamente Laiseca quando se põe a escrever. Isso é de uma fatalidade
que o admite exceções. Com La hija de Kheops, no entanto, aplicou um truque
muito eficaz para ir diretamente ao grão: as quatrocentas, ou quinhentas, ou
mil páginas prévias, escreveu Mika Walatari, e são as que constituem Sinhué el
Egípcio, seu romance favorito. Isso não deveria nos surpreender, porque
aproximar a leitura e a escritura até que se confundam é talvez a operação
literária por excelência (além disso, Laiseca havia praticado nos Poemas
chinos).
La hija de Kheops é uma odisséia da contigüidade. Não são apenas a
leitura e a escritura que se aproximam: todo o resto também, desde a própria
idéia de se fazer a pirâmide, que se num sonho, com a consciência
exageradamente apegada a s i mesma, até o amor, passando pela magia. A
contigüidade contamina tudo. Egito e Argentina se aproximam ase tocarem, o
porque haja anacronismos (eles não existem neste romance), mas pela lógica da
*
"Uma máquina de guerra contra la pena" Babel — Revista de Libros a. II, n. 12. Buenos Aires,
out. 1989.
195
Felicidade que torna contíguos a possibilidade e o ato. A própria história se
ilumina a partir daqui: como puderam acontecer tantas enormidades? Muito fácil:
aconteceram porque a alguém ocorreu serem possíveis. A literatura toma o relevo
da realidade, mas sem suprimi-la, longe disso. O "realismo delirante" de
Laiseca é muito real.
Os casais contíguos em Laiseca são de dois tipos. Em primeiro lugar está
o casal de amantes, a proximidade absoluta do amor, aqui magnificada pelo
incesto. Em segundo lugar, o casal constituído pelo Chefe de Estado e seu
primeiro ministro (ou conselheiro, general, grande sacerdote). Aqui
contigüidades intermediárias: o Saber, o Mito, a História. Em contrapartida o
Poder, que à primeira vista parece tema excludente da ficção laisequiana, na
realidade é lateral e auxiliar. O poder é a vontade (que um vagabundo tem tanto
quanto um imperador) e a vontade o é mais que o movimento, que Laiseca pensa
sempre como uma estratégia bélica, rumo à felicidade. A felicidade será, ao fim
das contas, a aproximação do todo, a morte das distâncias, a precipitação de
todos os possíveis no Acontecimento. O tempo então desaparecerá, comprimido num
instante adâmeo no qual se pode celebrar as núpcias cósmicas de Kheops e sua
filha. Os anos que a construção da Pirâmide leva não são senão o pagamento do
resgate do tempo, seqüestrado pelos chichis, que nunca faltam. E quando tudo
fazia esperar austeridade, sacrifício e esperança, acaba que esses anos são os
da mais intensa felicidade. Porque neles se reflete algo mais, um futuro quase
impensável de tão luminoso. A gente é feliz porque será feliz, e vice-versa. E
quando essa grande geometria se consumar, quando a autora nietzschiana da
eternidade iluminar a jóia suprema do deserto... então Laiseca cala, com um
sorriso misterioso. Não se propôs a dizer tudo, nem muito menos. E além disso,
não é um adolescente à espera da glória; é um artista maduro e consumado; é
o autor de Los Sorias, um dos maiores romances do Século XX, e não tem nada
que esperar. E os leitores, por nossa parte, que com todo este manejo ficamos
excessivamente perto de nosso desejo, o que podemos esperar? Devemos esperar
algo? Uma coisa só, talvez: que não nos faltem nunca as obras-primas que
renovam nossa suspeita da consumação do tempo. E quem poderia duvidar que La
hija de Kheops é uma obra-prima?
196
UM BARROCO DO NOSSO TEMPO
*
Copi exerceu seu gênio em três ou quatro áreas: a história em quadrinhos,
a narrativa e o teatro como autor e ator. Não é raro um autor mostrar sorte em
distintos gêneros, por vezes com igual êxito, ou que um pintor escreva, um
romancista faça cinema, ou qualquer outra combinação. Não é impossível que o
futuro imediato da arte resida nessas passagens. A grandeza singular de Copi
reside em ter posto funcionar uma máquina artística geral que poderia alcançar
suas metas, mas ali, no deslizamento interior de uma forma a outra. Alguns
críticos notaram que suas HQs constituíam um minúsculo teatro: mantêm um
ponto de vista fixo, de espectador sentado diante das personagens em cena. Do
mesmo modo, seu teatro tem o estilo sucessivo da HQ, sua narrativa tem a
unidade temporal do teatro, e seu uso da língua o mesmo minimalismo semiótico
de seus desenhos, o que, por sua vez, se repete nas situações de suas obras
teatrais... Estes cós, claro, podem ser explicados pela persistência de um
estilo, mas no seu caso isso seria simplificar as coisas. Porque o estilo de
Copi, ou ele próprio, não é uma forma que atua sobre conteúdos indiscriminados,
mas uma continuidade de transformações de forma a fundo e vice-versa. Por haver
passagem, há aceleração; e o que primeiro atrai em Copi é sua enorme
velocidade, uma velocidade que produz transformações, após ter sido produzida
por elas. Copi era consciente desse dispositivo que inventara (era, pois, um
refinado teórico de si mesmo, a despeito da imagem que cultivava de artista
selvagem), e diz isso em seu penúltimo drama, Lês escallers du Sacré-Coeur,
auto-sacramental em verso que pode ser lido como seu testamento:
Est si je m'exprime em vers
c'est parce que lê temps m'incite
a parler toujours plus vite.
Je suis prise d'un vertige
qui frisse l'imaginaire.
(E se me expresso em verso/ é porque o tempo me incita/ a falar cada vez
mais rápido./ Sou presa de uma vertigem/ que frissa o imaginário.) Com efeito,
uma velocidade sobre-humana desemboca na imagem, não para ali fazer lugar, mas
para iniciar a vida, a transmutação natural da arte. A imagem, para Copi, é o
transexual em ação, ou seja, a Mulher. O mundinho gay de Paris foi, para ele, o
palco de transformações que tornou sua arte possível; mas diferente de grandes
sacadas anteriores no mesmo terreno, como Zazie, de Queneau, ou os romances de
Genet, que no fim das contas se limitam em utilizá-lo como tema, Copi criou um
contínuo multidimensional que inclui a passagem arte/realidade num sistema
muito mais amplo, uma passagem generalizada. Sua obra é um catálogo de
transmutações; sobre o suporte de uma rapidez frenética, passamos do desejo ao
ato, do instante à eternidade, do homem à mulher, da vida à morte, do humano ao
animal, da memória ao esquecimento, de um idioma a outro etc. O único
antecedente que vale a pena mencionar é o dos grandes barrocos: Shakespeare,
Cervantes, Velázquez. Acredito que Copi foi o maior artista barroco de nosso
tempo, um cidadão do Grande Teatro do Mundo, salvo que esse Teatro (e esse
Mundo), o ambiente travesti em que viveu, saiu da realidade, tal como um objet
trouvé duchampiano, pronto para entrar na fita infinita das mudanças. E,
entretanto, não foi um pós-moderno: basta compará-lo ao filme de Almodóvar, La
ley del desejo, uma ilustração da temática de Copi, para ver o abismo que os
separa; o argentino foi uma das últimas encarnações do grande artista
modernista, que assume a grande responsabilidade de inventar uma história e
colocá-la no mundo como algo que acontece de verdade. A partir daí, e a
partir daí, abriam-se as perspectivas barrocas do Sistema das Artes. No que
*
"Un barroco de nuestro tiempo" Babel Revista de Libros a. II, n. 15. Buenos Aires, mar.
1990.
197
toca à invenção, Copi era muito restrito; certa ocasião, quando se tentou
filiá-lo a alguma corrente gestual ou espontânea, reagiu energicamente: "O
happening é algo que me dá calafrios. É como se alguém entrasse aqui e mijasse
na pia. É odioso e vazio de história. O happening é o que não acontece". A
propósito do cinema, deve-se dizer que foi o que este homem renascentista não
praticou; mais que isso, Copi odiava o cinema, e, segundo ele, "por lealdade ao
teatro", mas na verdade porque seu sistema de acelerações até a imagem tornava-
o desnecessário; algo parecido pode ser dito da música, impossível em Copi,
que não concebia o "tempo real", suporte exclusivo da música, desprovido de uma
história, ou seja, da possibilidade de se tornar instante na memória-
esquecimento. Porque esses dois termos se identificam, num dos passes mais
assombrosos do mago literário que Copi é; isso acontece sobretudo em seus dois
melhores trabalhos, La cité des rats, em que desenvolve explicitamente sua
teoria da consciência e do acontecimento, e nesse grande festival de amnésias
operativas que é El baile de las locas, por onde o leitor deveria começar.
Deveria também começar por El uruguayo, seu primeiro relato mas não sua
primeira grande obra, já que a peça Eva Perón data de alguns anos antes. De seu
teatro, lamentavelmente ainda sem tradução, o ponto mais alto acredito ser Las
cuatro gemelas, que funciona do início ao fim a golpes de ressurreição. Não são
inferiores El homosexual o la dificuldad de expresarse (a preferida de Copi), a
incrível Loretta Strong, ou La noche de Mme. Lucienne, em que o perspectivismo
barroco alcança uma tensão tal que mesmo o mais entusiasta leitor de El
vergonzoso en Palacio ou La vida es sueño poderia suspeitar. Quanto às
narrativas coligidas em Virginia Woolf ataca de nuevo, são tão boas que saem do
sistema Copi; com elas, num último grau do contínuo, entra para o universal e
anônimo, Sherazade poderia tê-las contado ao sultão, ou um pai para fazer
adormecer seus filhos. Em seu último romance e em sua última peça, La
Internacional Argentina e Una visita inesperada, perdeu-se o impulso
paroxístico que dominava sua criação, o que não é de estranhar, pois em ambos o
movimento está obstruído por um tema; que sejam temas tão melancólicos como a
Argentina ou a AIDS é coerente com o cansaço ou o desengano de fim de linha, a
doença e a morte, pois o contínuo de Copi o foi uma invenção flutuante, mas o
mito de uma vida real, uma "verdadeira história", daquelas que ele mesmo
julgava imprescindíveis para que houvesse arte.
198
UM TESTE
*
A aparição de um novo livro de Emeterio Cerro, Los teros del Danubio, no
que pode certamente incitar a gozação e o silêncio que vêm se alternando contra
esse autor, é uma boa ocasião para dizer duas palavras sobre ele. Não com
intenção polêmica, nem querendo convencer ninguém (seria inútil ou
contraproducente). Trata-se de definir o que Emeterio Cerro representa para
nós, ou melhor: o que é um escritor genial para seus contemporâneos. O que são
estes livrinhos sem nem cabeça, que todo mundo se apressa em descartar como
glossolalias taradas, e que sempre fazem pensar no traje novo do imperador e no
esnobismo pueril dos incapazes? Antes de qualquer outra coisa, são um teste.
Uma pedra-de-toque ou prova de fogo revelada àqueles que crêem que a literatura
pode ser uma atividade inócua, um dever escolar bem-feito ou um instrumento de
prestígio; aos que crêem que possa não ser um extremismo, ou que se pode ser
artista e continuar pertencendo à sociedade, inclusive gozar do melhor de dois
mundos. Que se pode ser um grande artista e não sofrer escárnios (que
espertos!). A prova funciona num automatismo de chip. Aquele que o ama
Emeterio Cerro não ama a literatura, simples assim. É claro que amar a
literatura não é obrigatório, sequer aconselhável. Mas aqueles que riem de
Emeterio Cerro em nome da literatura cometem um grande engano. O que é
literatura para eles então? Algo apresentável, sério, que possa agradar às
senhoras? Nabokov, Marguerite Yorcenar, Octavio Paz? Se é assim, é preciso
dizer-lhes que estão equivocados. E não se trata de um engano que se possa
dissipar com esforço e boa vontade. A literatura é algo incompreensível. Isso é
absoluto. Mas não se trata de um incompreensível hermético, esotérico, ou, em
geral, "fino". Incompreensível deve ser o escritor, não a obra. Incompreensível
por não se ajustar à etiqueta social da linguagem, como um palhaço num velório.
E, sobretudo, incompreensível não para os demais, mas para ele mesmo. Emeterio
é o grande obus no coração da elite, aquela que está sempre pensando: isso é
escandaloso para os demais, é incompreensível para os demais, que sorte eu
estar do lado bom! Pois bem: não. Estão do lado mau. É a eles justamente que a
literatura transforma em "os demais", a quem escandaliza e descoloca. É preciso
ir à profunda e desalentadora verdade do óbvio: incompreensível é aquilo que
não compreendo. É certo que com tempo se fará compreensível, mas o que importa
é sua qualidade de presente. O abuso da história está nos confundindo
terrivelmente; os contemporâneos de Raymond Roussel não o compreendiam, mas o
compreendemos s, oitenta anos depois; imediatamente fazemos um pequeno passe-
de-mágica e nos acreditamos os contemporâneos de Roussel, porém compreendendo-
o, fraternais, iluminados, conspirativos, justos. E é mentira, porque a
condição para ser contemporâneo de Roussel é não compreendê-lo. Em sua época,
Roussel passou por louco, charlatão, equivocado e esnobe: nenhum exercício de
boa consciência pode apagar isso porque é o que aconteceu. O que mais se pôde
fazer naquele momento, e houve vários que o fizeram, foi reconhecer que
Roussel, ao fim das contas, era literatura. A História é um parque de diversões
de pedra, imóvel e fatal. Acreditar em outra coisa é como acreditar em
extraterrestres. Poder-se-á objetar que com esse critério qualquer galimatia
petardista tem mais direito à eternidade que o trabalho honesto de tantos
escritores que se ajustam ao gosto e às expectativas dos leitores. Pois bem:
sim! É assim, acredite-se ou não. Quem disse que a literatura era uma profissão
para bem-pensantes?
*
"El test. Una defensa de Emeterio Cerro" Babel — Revista de Libros n. 18. Buenos Aires, ago.
1990.
199
O A-BAN-DO-NO
*
No princípio está a renúncia. Dela nasce tudo o que podemos amar em nosso
ofício; sem ela nos veremos reduzidos ao velho, ao superado, às misérias do
tempo, à cegueira do hábito, às promessas melancólicas da decadência. Trata-se
da condição do início: terminar de uma vez, deixar tudo para trás, de uma vez
por todas. A renúncia é nossa utopia, a de todos os artistas, mesmo os mais
persistentes. Balzac fez seu o lema da inscrição em pedra nos muros da Grande
Cartuxa: Tace, late, fuge (cala, abandona, foge).
Uma generalização bem óbvia é a de que todos os escritores, quando
jovens, desejamos ser escritores. Não menos óbvio é termos sido todos jovens:
fomos o tempo todo em que desejamos ser escritores, em tudo aquilo que nos
levou a aprender que, para ser escritor, teríamos de encontrar um modo de
renunciar a sê-lo. E não a apenas isso, mas a ser "escritor bom" ou "escritor
ruim", a ser poeta, romancista, crítico, filósofo, e renunciar a mais, muito
mais, se possível a tudo. Claro que descobrir o que era esse "mais" e esse
"tudo" já não se mostrou tão simples. Investigar é entrar no território da
invenção, do estilo, do destino. O que mais devemos abandonar? Que outra coisa
devemos calar? De que novos giros de tempo ainda devemos fugir? Chega de
perguntar e estaremos no coração do romanesco, nas ilhas, montanhas, selvas,
castelos, trens, barcos, rumo ao acaso. É quase como se voltássemos a ser
jovens, e qualquer um sabe, por experiência própria, que todos os jovens
quiseram ser escritores.
Por sorte não somos tão ingênuos, e se aprendemos algo, é que o
abandono e a liberação não sobrevirão por um mero cessar. O antigo resiste a
morrer: fulmina-o o raio do inesperado, burlando suas mais sutis precauções,
uma legião. Tudo deve ser inventado, inclusive a renúncia a seguir inventando.
Sobretudo a renúncia. A literatura inteira, o sistema das artes em sua
fantástica variedade se revela nessa tarefa, se põe de pé (até agora víamos
isso ao contrário, num reflexo desluzido).
Abandonar é permitir que o mesmo se torne outro, que o novo comece. E
assim nunca abandonaremos o bastante, tão grande é nossa sede de desconhecido.
(Por isso nos fizemos escritores.) Buscamos algo mais para abandonar, outra
coisa, outra além, nos esforçamos como nunca nos esforçamos em nenhum dos
trabalhos que empreendemos, mobilizamos toda nossa invenção, até mesmo a
alheia, em busca de novas renúncias. E não se trata de abandonar técnicas,
gêneros, uma profissão, nossas velhas mesquinharias... O que aparece, afinal,
como objeto digno de nosso abandono é a vida em que vínhamos acreditando até
agora. "Já vi, tive, vivi." descobrimos que a literatura ainda nos
serve, a literatura posta do direito, instrumento perfeito para negar a si
própria, levando consigo tudo, em seu reflexo aniquilador.
É a euforia, enfim, o entusiasmo, a vocação, o êxtase prometido... Mas é
uma euforia da melancolia. Porque nossa vida passou... Teve de passar para que
aprendêssemos. Parece como se fosse muito tarde, como se o houvesse outro
momento além deste, póstumo, para começar. Então, "do fundo do naufrágio",
voltamos em busca de consolo nos poetas que amamos em nossa juventude, quando
queríamos ser escritores. Primeiro Baudelaire. Depois todos os outros. E depois
Rimbaud. Nele nos detemos, perplexos, no presente. Chegamos. Podemos começar.
Podemos terminar. De Rimbaud, o poeta mais amado, sempre se diz ser mais que um
poeta amado. Deve ser isso, porque não começamos sequer com ele. Não começamos,
aliás, sequer com nós mesmos. Nos escapa como um mau projeto. Foge para frente,
e não vale a pena persegui-lo. É o mito de nossas vidas, nossa juventude em
pessoa. Certa vez perguntei a um poeta, o que mais amei, por que o havia
terminado o secundário. Por que não havia seguido o caminho. Me respondeu, com
*
"El a-ban-do-no" La Hoja del Rojas n. 39. Buenos Aires: Centro Cultural Ricardo Rojas, set.
1992. Também em Hojas del Rojas n. 1: El fin del arte. Buenos Aires: Centro Cultural Ricardo
Rojas, nov. 2000.
200
toda naturalidade, como se fosse óbvio: "Pra que, se o que eu queria era ser
Rimbaud". É óbvio, realmente, todos poderíamos responder o mesmo. Mas
ultimamente começo a me perguntar se essa frase não estará além das precisões
biográficas, repetindo para sempre o mito que pretendemos encarar. Para que
viver, com efeito, por que querermos ser escritores, se o que desejamos é ser
Rimbaud? Deveríamos deixar de nos mentir. Talvez saiamos ganhando ao perder
tudo. O tempo, em sua transparência inofensiva, contém a promessa do instante,
e a alquimia se realiza no caderno de um menino. E digo "se realiza" em sentido
literal. Se faz realidade, tal como se faz real a realidade: no presente, em
nós, definitivamente. Nossos mais loucos e irrealizáveis desejos estão se
fazendo realidade em nossas vidas, ou seja, em Rimbaud. Não é história, nem
filologia, nem crítica literária; é um procedimento para fazer do mundo, mundo.
Por isso, este curso, que originalmente se chamaria "Como ser escritor", irá se
chamar, ao fim das contas, "Como ser Rimbaud".
201
EXOTISMO
*
A prosa cristalina do Século Clássico é o comentário perene de uma imagem
luminosa, um cristal, que nos diz o que será possível ver sempre: o Homem. Os
Universais concentram-se nessa figura, todo o resto descende do mundo sublunar.
"Sou homem antes de francês, e francês apenas por casualidade", dizia
Montesquieu. A Razão coloca a nacionalidade sob o signo da contingência e do
acaso. O necessário, a transparência do Homem se difunde no movimento
ondulatório do Saber absoluto a partir de um centro diamantino. Montesquieu
continua: "Se conhecesse algo que fosse útil a mim e prejudicial à minha
família, tiraria isso da cabeça. Se conhecesse algo útil à minha família, mas
não à minha pátria, procuraria esquecer. Se conhecesse algo útil à minha pátria
e prejudicial à Europa, ou que fosse útil à Europa e prejudicial ao gênero
humano, consideraria um crime". Esse diagrama de inclusões progressivas é o
emblema do Homem; a figura se desenha no céu das idéias (seu desdobramento não
é astronômico, mas geográfico), tendo no centro a Europa, mais exatamente
Paris, a linha de sua espiral correndo sobre mares e terras, cuja realidade se
constituirá, precisamente por esse dispositivo, num enigma permanente.
Montesquieu, um dos pais fundadores do Homem, assenta as bases racionais
do estudo das instituições do mundo moderno, cria as ciências sociais e durante
o processo inventa um gênero literário, o "romance exótico". Rica e Usbek,
protagonistas de suas Cartas persas, podem ver a Europa como ninguém viu antes
como, aliás, não podem vê-la os próprios europeus, que são parte inseparável
do fenômeno Europa. Sua condição de estrangeiros permite aos persas passarem do
"ver" ao "enxergar", com o que poderão fundamentar um precedente. Depois deles,
o pressuposto ineludível da ciência e das artes será a escopia.
Mas os persas não são reais; são o dispositivo que Montesquieu inventa
para gerar a escopia. Com esse dispositivo nasce algo novo: a ficção como
auxiliar do pensamento. Daí em diante, para pensar será preciso impor uma
ficção, um "como se..." a partir do qual a modernidade desdobrará todas as suas
cores. Dele nasce o romance moderno, mas também as chamadas "ciências sociais",
cuja origem comum não foi suficientemente destacada. O uso da hipótese, da
experimentação, tem sua origem no "como se...", do qual o romance nasce.
Como ver a sociedade que me rodeia sem supor a mim mesmo como
estrangeiro, louco, ingênuo, gigante, artista...? Devo fazer "como se" fosse
outro. E assim o romance se apodera a tal ponto de mim que na realidade acabo
sendo outro, irremediavelmente marginal. A transformação se completa num dos
mais belos romances dessa tradição, O ingênuo, de Voltaire, quando, no fundo de
um calabouço, o hurão descobre o mundo dos livros, tornando-se um estrangeiro
definitivo: o sábio, o leitor.
O gênero exótico provém dessa colaboração entre ficção e realidade, sob o
signo da inversão: para que a realidade revele o real, deverá se tornar ficção.
A inversão se naturalmente e o persa, na França, não demora em ser francês
na Pérsia. O "estrangeiro" vira "viajante".
Estes dois estágios não fazem mais que colocar em imagens processos
inerentes à literatura. O "estrangeiro" que contempla meu mundo habitual não é
senão eu mesmo enquanto escritor, fazendo meu trabalho de estranhamento e
descobrimento. E o "viajante", por sua vez, não é outro senão aquele que
regressa contando o que viu nas ilhas curiosas de sua fantasia, seu destino,
seu estilo. Mas, de repente... (e esse inesperado tem data, o século XVIII,
quando a viagem, imemorial nos fatos e livros, começa a se articular em formato
de Razão, entre fatos e livros...) de repente essas terras longínquas estão no
mundo, Pérsia, África, América, Taiti, China... Estão realmente no mundo, são
literatura ready-made; basta apenas ir vê-las.
*
"Exotismo" Boletín del Grupo de Estudios de Teoría Literaria n. 3. Rosario, set. 1993.
202
O país distante é um cenário de fantasia, criado... Um objet trouvé.
Um procedimento vanguardista, poderíamos dizer, que deveria valer apenas por
sua invenção e ser utilizado uma vez. Quando os romances com o mesmo
mecanismo se multiplicam (e isso se num volume considerável), seu mérito
perde valor; disso se tem o gênero exótico tal como o conhecemos: o exotismo
como moda, frivolidade, tolice.
Pior que isso: o exotismo se torna comercial. no século XIX, é o tipo
de iniciativa tomada apenas por dinheiro. Não deveria nos surpreender que o
gênero ocupe a zaga da expansão capitalista. Do primeiro estágio (o persa em
Paris) ao segundo (o francês na Pérsia), uma passagem da produção ao
produto. O primeiro era uma metáfora do escritor em seu trabalho, estranhando a
si próprio para fabricar um olhar; o segundo é a máquina de fazer literatura
sem esforço, saltando para além da invenção, deixando-a a cargo do mundo.
Trata-se da transformação do livro em mercadoria e da conseguinte aparição em
cena do leitor, o consumidor.
Com a entrada do leitor se cristaliza o terceiro estágio do exotismo: o
persa que vende aos leitores franceses uma Pérsia "persa", colorida, diferente,
exótica. O escritor se utiliza de um estranhamento ready-made. Um duplo ready-
made: não a matéria, mas também o sujeito que a expressa. O procedimento se
completa. não é preciso viajar nem importar nativos. O persa em Paris e o
francês na Pérsia convergem no mexicano serviçal, a quem não falta a
consciência de estar vendendo seu país por trinta moedas. Mas não devemos nos
apressar no julgamento: se fizéssemos isso, estaríamos caindo no jogo da sua
má-consciência.
E assim chegamos à nossa situação atual. Em nosso clima de exigência e de
consciência exacerbada (que é sempre má-consciência), no que se transformaram
esses três exotismos? O primeiro, do estrangeiro em nosso mundo cotidiano,
tornou-se ciência, abandonando o campo da literatura. O segundo, do "viajante",
no simples transcorrer das fronteiras degenerou em gênero, no pior sentido da
palavra: literatura de gênero, literatura comercial, ficção científica ou
fenômenos paranormais, viagens no tempo ou regressos da morte. As viagens,
simplesmente, tornaram-se cada vez mais distantes, a lógica do consumo fez com
que o público pedisse exotismos cada vez mais esquisitos.
E o terceiro, do "persa profissional"? É o mais incandescente porque, em
boa medida, é o que nos qualifica. Internou-se nos labirintos da nacionalidade
e ali permanece.
Todo esse processo é um epifenômeno da criação de novas nacionalidades,
tendo lugar durante o século passado. Uma vez criadas, as nacionalidades se
fetichizam como mercadorias (essa, aliás, poderia ser a fórmula definitiva do
exotismo: a fetichização da nacionalidade), exibindo-se num mercado global
cujas técnicas de promoção e venda, cujo "marketing" tem um nome: exotismo.
Como vive e opera o escritor nesse mercado? A má-consciência faz hora
extra. Os escandinavos reclamam bens tropicais. O que fazer? Dá-los ou não?
É bem conhecida a postura de Borges nesse ponto. Exprimiu-a na famosa
parábola dos camelos do Alcorão: no Alcorão não camelos porque Maomé era um
árabe autêntico (não um francês disfarçado de Maomé), ou seja, os camelos não
chamavam sua atenção; não os via diretamente e por isso não os registrava, não
tinha olhar. A moral seria a de que o árabe autêntico expressaria uma Arábia
autêntica, enquanto o "árabe profissional" poria no mercado uma Árabia embalada
a vácuo. Vale dizer, uma que pudéssemos reconhecer.
Mas a má-consciência está na base do raciocínio de Borges. Sua receita,
em última análise, não faz mais que separar o bom do mau profissional, o sério
e confiável do incompetente.
E assim suspeitamos que ser um bom profissional da arte não equivale a
ser um bom artista. Depois de tudo isso, não podemos raciocinar muito bem a
questão porque se trata, justamente, de escurecer o cristal da Razão. Não
podemos ser tão sérios sem renunciar a literatura. Se no fundo temos de
confessar que a literatura é uma espécie de perversão, de jogo louco, nossos
melhores silogismos invariavelmente se deslocam. Mesmo esta história do
exotismo parte de uma brincadeira, de um quebrar as regras do jogo limpo. Quem
mandou os escritores utilizarem os países distantes como ready-made literário?
203
Ninguém, é gico. É o vanguardismo como tentação, como jogo perigoso que
atenta contra a persistência do próprio jogo. Mas é também aquilo que torna
interessante continuar jogando.
algo mesquinho no veto borgiano aos camelos. O que se exige do
escritor é autenticidade, dando por certo se tratar de um valor positivo (e
deve ser, com certeza). que o artista é artista justamente da transmutação
dos valores. E se ele prefere ser inautêntico? Ninguém pode impedi-lo. Do
contrário, estaríamos confundindo as virtudes cívicas com as artísticas.
O mito que subjaz toda essa dialética é o do Homem, o Homem que por
acaso é francês ou persa ou argentino, bem como o único suporte de predicados,
como a Autenticidade. Acredito que em algum ponto do caminho descobrimos que um
escritor pode ser apenas francês ou persa ou argentino, nunca Homem. A
literatura se apóia nesse acaso, e o exotismo, essa velharia da má-consciência,
manteve com vida o jogo precário da literatura.
Com a ajuda de alguns exemplos vejamos essa velharia, o exotismo, em sua
pior forma mas que é, por efeito da transmutação dos valores, também a
melhor. A primeira e última coisa que a boa consciência tem de reprovar no
exotismo é sua superficialidade. Por outra: sua frivolidade. Na superfície não
há expectativas de pertinência, o trivial está no mesmo plano do importante, as
estruturas de parentesco valem tanto como um arranjo de flores, um terremoto é
substituível por um arco-íris no céu crepuscular. A escolha de dados é
esteticizante, irresponsável, desordenada. É quase o limite da provocação num
autor paradigmático do exotismo decimonônico, Pierre Loti, em qualquer um de
seus muitos romances, Mme. Chrysantheme, por exemplo. Loti viaja ao Japão e nos
fala do mobiliário, indumentária, decoração, comidas, cores... O que brota daí
é um Japão de estampa... bem diferente, ao fim das contas, do Japão
"semiológico" de Barthes, cujos elogios à irresponsabilidade militante do
artista subscrevera Loti. É lógico que para dar um retrato pertinente do Japão
se tem de partir das estruturas sócio-econômicas, históricas... Mas Loti não
tem tempo: o exotismo é o instante da constituição do olhar; seu Japão é
instantâneo, como o sertão do bobo em "O recado do morro": suas descrições são
tão inúteis para os viajantes quanto as de Loti são para os inversores.
Houve autores, contemporâneos de Loti, que trataram de contradizer essa
fama. É o caso de Segalem. Sua estratégia se aproxima à da ciência, sem
contudo passar por ela. Segalem legitima a si mesmo tornando-se chinês. A
diferença aqui está entre o sinólogo e o chinês. Diante da acumulação de
chinoiseries praticada pelo exotista, tudo indica que o melhor caminho é se
tornar sinólogo. Tornar-se chinês, ao contrário, é o caminho artístico, aquele
que ninguém apontaria como "bom". A busca de legitimação do artista perante a
ciência ou a filosofia se manifesta na afirmação de seus direitos. O direito à
inautenticidade, por exemplo, ou à transmutação dos valores em geral. A
legitimação tem em vista o lugar do artista na sociedade. O exotismo, por sua
vez, ocupa-se especificamente de posições: começa inventando um indivíduo único
e heterogêneo numa sociedade funcional, e por um mecanismo inverso e
complementário, inventa logo uma sociedade "artista" (o Japão de Loti, ou o de
Barthes) onde o único elemento heterogêneo é o estranhamento do olhar que a
expressa.
Virar chinês é se tornar escritor. Quem esse passo é um terceiro
contemporâneo, Raymond Roussel. Roussel vai mais longe que Segalem ao rechaçar
seu espiritualismo, sua profundidade. Entre Segalem (que se instala na China,
aprende chinês, vira chinês...) e Roussel (que a volta ao mundo fechado no
camarote do barco) corre toda a distância existente entre a profundidade e o
deslizamento. É um regresso que se desvia da superficialidade de Loti (a quem
Roussel admirava imensamente, a ponto de afirmar que "seu nome podia ser
pronunciado de joelhos").
Caradec, biógrafo de Roussel, considerava-o "desprovido de todo e
qualquer poder de observação", ao comprovar não existir descrições realistas em
qualquer relato cujo ambiente fosse uma das localidades onde Roussel veraneava.
Notável absurdo. Acontece que Roussel deu toda a volta, convertendo em genuíno
saber literário o reconhecimento pelo qual fica cifrada toda a miséria do
exotismo, seu pecado original.
204
Porque a pobreza final do exotismo está aí: no ponto mais afastado de sua
viagem, nos antípodas, o exotista se limita a reconhecer aquilo que vê, que
tinha visto, que sabe, e nada mais. Levada às suas últimas conseqüências, a
lógica do exotismo deveria revelar um estranhamento radical, que não entrasse
nos moldes mentais ou lingüísticos do autor. Ao chegar lá, no trópico ou na
ilha perdida, não deveria encontrar o que conhece, mas algo tão diferente
que uma nova língua, um novo saber poderia dar conta. Ou, em todo caso,
deveria se reduzir ao silêncio ou balbucio, que é o que acontece a Stendhal ao
chegar na Itália, no final de Vida de Henry Brulard.
Mas vejamos um exemplo do outro lado, do nosso lado, para aplicar estes
meus balbucios. Tomemos um de nossos livros sagrados, cujo nome o podemos
pronunciar senão de joelhos: Macunaíma. Aqui também reina a superfície, a
imensa desorganização do pertinente e do insignificante, o riso que desorganiza
os saberes, o capricho estético. Diria-se que se trata de um Loti no Brasil,
mas um Loti sonhado por Roussel, pois o reconhecimento foi suplantado pela
invenção total. E Mário não teve de ir a lado algum, sequer fechado em seu
camarote. O americano não precisa viajar tanto como o europeu; em seus países
desconexos, por fazer, encontra metades exóticas olhando pela janela. A esse
outro país, dentro do seu, pode-se atribuir um sinal negativo (a barbárie, como
em Euclides ou Sarmiento) ou positivo (a selva edênica de O guarani). Seja como
for, esse outro país se torna "outro" absoluto, literatura, tal como a
infância, o amor.
Que diferença há entre Macunaíma e Mme. Chrysantheme? Deixemos de lado as
intenções, que nos desencaminham num labirinto de suposições. Tampouco seria
correto apelar de entrada à qualidade; é óbvio que Macunaíma é uma obra-prima e
Mme. Chrysantheme um romancezinho vulgar de consumo; mas o juízo de qualidade
deveria vir no final, como um resultado.
A diferença se resume neste fato misterioso: Mário é brasileiro, Loti
não é japonês.
Pois bem, isso não deveria assinalar uma vantagem para Loti? Não seria
Mário quem manipula um ready-made, ou em todo caso um fait accompli, como sua
"brasilidade"? Acho que não, toda a vantagem permanece do lado de Mário por um
detalhe-chave: Loti, em seu rol de produtor de livros para leitores que os
reivindicam, pôs a literatura ao lado do status quo, utilizando-a para não se
tornar japonês e continuar sendo francês, enquanto Mário fez de sua obra uma
máquina para se tornar brasileiro. É claro que ele era brasileiro, mas isso
é o que a modernidade lançou à contingência e ao acaso; para tornar esse dado
inteligível, o brasileiro deve fazer "como se" fosse brasileiro. Na realidade
não outro modo de sê-lo. As certezas do pensamento tingem-se de ficção para
entrar na vida. E esta é a última definição com que trabalho: a literatura é o
meio pelo qual um brasileiro se torna brasileiro, um argentino um argentino. É
o necessário para que o Brasil se transforme em Brasil, para que a Argentina
chegue a ser a Argentina. Em última instância, para que o mundo se transforme
em mundo.
E não falo de chegar a ser um brasileiro ou um argentino de verdade,
genuíno. A autenticidade não é um valor dado de antemão, à espera do indivíduo
para ocupá-lo. Ao contrário, trata-se de uma construção tal como o destino, ou
o estilo. Não se trata apenas de ser argentino ou brasileiro, mas de inventar o
dispositivo pelo qual valha a pena sê-lo e viver uma vida sendo.
Não se pode negar que países como os nossos, historicamente novos,
oferecem melhores condições para pôr em marcha esse mecanismo ao conservarem um
quantum de o-inventado. Isso também foi feito em países mais velhos, em
nações encerradas em seu universalismo. Na própria pátria do Homem, aliás.
Mme. Bovary, por exemplo, romance tão parecido com Macunaíma: o mesmo rastreio
da nacionalidade a partir de mitos, o mesmo tratamento científico dos
estereótipos... Mas fica uma diferença essencial: Flaubert se torna francês no
desprezo, enquanto Mário se faz brasileiro no amor. O exotismo horroroso das
cidades francesas de província se enclausura com a idiotice, a morte. E assim
volta a se abrir o caminho para novas superfícies, novos deslizamentos, que
estão longe de parar.
205
ARLT
*
O expressionismo funciona pela participação do autor em sua matéria, a
intromissão do autor no mundo, gesto que não pode se dar sem uma certa
violência. A distinção clássica entre impressionismo e expressionismo diz que
no primeiro o mundo é que vem ao artista, em forma de percepções; no segundo, o
artista um passo adiante, coloca a si mesmo dentro da matéria com que fará
sua obra. Não é que no impressionismo o mundo tome a iniciativa, nem que o
artista expressionista seja mais ativo; todo artista, seja qual for a
modalidade adotada, faz parte de uma atividade globalizante, a ação perpétua
que constitui a arte. Trata-se de dois métodos, que em última instância se
equivalem, tal como projeção e introjeção para a teoria psicológica. Salvo que
a projeção expressionista acontece no campo simbólico, mediante palavras, e a
introjeção impressionista no campo imaginário. Por esse ou outro motivo, o
expressionismo é amaldiçoado, o impressionismo, feliz. Remeto-me a uma citação
de Goethe, que esclarece: "Os alemães são gente esquisita. Com seu pensamento
profundo, com idéias que estão constantemente buscando e que em tudo
introduzem, tornam a vida dura demais. Eia! Tendeis o valor de se deixar levar
por vossas impressões... e não penseis que será sempre vão tudo o que for uma
idéia, algum pensamento abstrato". Aqui estão agrupados, por um lado:
Impressionismo, introjeção, imaginário e felicidade, e em seguida
Expressionismo, projeção, simbólico e maldição ("a vida dura", ou melhor, "a
vida infame").
O expressionista, então, torturado e pensativo como um alemão, um
passo adiante, salta ao mundo, montado nas palavras. Faz isso sem sair de si
mesmo, pois a eficácia do método está em se adiantar em bloco, sem reservar
nada antes. Uma vez realizado o salto, o artista se em meio à matéria, que,
em termos mais producentes, deveria ter tratado de ver à distância, ao mínimo
de distância necessário para poder representá-la. Vê-a perto demais, sem
perspectiva, ao seu redor, ou, melhor dizendo, não a vê, mas toca-a, numa
situação verdadeiramente pré-natal, envolvendo-se nela...
O mundo perdeu sua natureza cristalina, ficou viscoso, opaco, de barro.
Um mundo de contato, que se deforma para brincar com ele, o intruso, esticando,
achatando-se em anamorfoses aterrorizantes. Obstinado pela inadequação, o
artista insiste apesar de todos os padrões visuais da representação (não
existem outros), e sua obra fica cheia de monstros. Acha lamentável essa
situação (não lhe faltam motivos), acha o mundo horrível, e ainda assim
persiste. Bastaria voltar um passo, recuperar a perspectiva, voltar a
enfocar... Não é absurdo, tratar de ver aquilo que está tocando o olho? É sim,
e o absurdo contamina tudo, piorando aquilo que era horrível. O passo
anterior, a fuga, seria tão fácil... Mas deixa pra lá. E não por obstinação
no erro; deu-se uma transmutação, operou-se uma química, e agora a inadequação
é método. Retroceder equivaleria a renunciar à sua arte, porque seria sair do
presente e entrar no tempo, uma perspectiva, uma distância. O artista, virtuoso
na renúncia, jamais renuncia a seu presente. Abandona todo o resto; isso,
nunca.
Não é uma questão existencial ou afetiva, ainda que pareça.
Originalmente, é uma questão formal. No começo de toda essa peripécia um
projeto artístico, não outra coisa. A representação cotidiana e utilitarista,
que liga e desliga conforme nossa necessidade, é recolocada por outra,
deliberada, coerente, contínua e difícil. A dificuldade de viver, identificada
com a maldição, transmutou-se na felicidade de uma arte refinada, num
virtuosismo alquímico que converte em triunfos estéticos o tropeço, a fealdade
e a miséria.
O artista está projetado no mundo, colorindo-o, deformando-o por sua mera
presença, atuando como um reagente químico sobre as formas. E as formas são
*
"Arlt" Paradoxa 7. Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 1993.
206
importantes, porque constituem a substância dos signos. Sem elas não haveria
arte, e o mal do mundo não teria cura. Cito Ponge:
"Creeis que as formas (dos menores objetos, essas formas que limitam e
separam, seus contornos) não têm importância? Ora, sem brincadeiras! Têm a
maior importância.
certo que podemos embrulhá-las a gosto. Claro que sim. Podemos
deformá-las por nossa mera presença, nossa mera inserção na paisagem, a mera
inserção de nossa temperatura (cf. Temperamento) em sua proximidade.
retirando-nos daí, esfriando a atmosfera com nosso afastamento, nosso
retiro (na medida do possível), que podemos devolver a cada objeto sua coesão
vital (seu funcionamento). É como se nossa presença, nossa proximidade, nosso
mero olhar abrandasse os mecanismos dos relógios, de modo que não pudessem
soar. Seria necessário que nos retirássemos daí para que os mecanismos
esfriassem e o funcionamento se restabelecesse, para que os tique-taques e as
campainhas das horas se fizessem ouvir de novo."
Reconhece-se aí o princípio de Heisenberg, segundo o qual o observador,
ou a própria observação, modifica as condições objetivas do fato. Mais ainda:
dissolve a possibilidade de que o fato tenha condições objetivas, torna-o
observação, transformação, singularidade absoluta. A arte não precisou esperar
o descobrimento das partículas subatômicas para ver atuar o princípio de
Heisenberg, pois se tratava da condição original de seu funcionamento, assim
como do da linguagem: as palavras são delegações nossas no mundo, na natureza,
e ali se ocupam de alterar o contorno das coisas, ou de lhes dar contorno. Em
geral, poder-se-ia dizer que o princípio de Heisenberg é a condição primeira do
funcionamento da consciência; não a inimaginável consciência em si, mas a feita
de linguagem.
A literatura é a épica desse transtorno. A literatura é essa
escotomização, esse rebrandecimento daliniano dos relógios, esse
expressionismo.
Em Arlt, o mundo expressionista, de contigüidades excessivas e
deformações por falta de espaço num âmbito limitado, um interior (seu mundo é
um interior), é uma opção formal. É inútil pensá-lo em termos psicológicos,
sócio-históricos ou o que for. A opção formal cria seu mundo, e de um mundo
podem fluir todas as explicações que alguém possa querer.
Dou um exemplo. Um qualquer, mas central. (A escolha de exemplos é uma
armadilha que se deveria evitar.) A traição. Todos os críticos dão ouvidos ao
consenso que na traição a última das baixezas, e dão por certo que Arlt a
coloca em cena como representante de uma faceta do Mal.
Mas quem diz isso? Por que devemos aceitar que a traição é tão má? Que
imperativo vital ou moral exige isso?
A condenação suprema à traição se fortalece ali onde persevera uma
concepção orgânica da sociedade, ou de qualquer comunidade incluída na
sociedade. Num organismo, a traição é inconcebível, imperdoável, escandalosa;
se um órgão se coloca contra os demais, arruína o todo e a si mesmo... Uma vez
liberados dessa concepção orgânica do todo social, a traição não é tão grave,
podemos vê-la mais como um aval do bom e do mau.
Pois bem, o mundo expressionista de Arlt é o interior de um organismo, de
um corpo. Não que seja de fato: parece ser, o que em termos de representação
no mesmo. O Monstro é um organismo. Ou, ao contrário, o organismo é o Monstro.
Mais adiante tratarei de fazer a gênese do Monstro arltiano. O olhar que não
pode funcionar por falta de espaço anula toda transparência e instaura uma
contigüidade táctil, obscena e horrível, vermelho contra vermelho, num ambiente
de sangue onde tudo se toca. O Monstro é o homem invertido, que nos acompanha
como um doppelgänger horripilante.
A traição em Arlt possui uma determinação formal. Não poderia ser de
outro modo. Também possui uma determinação formal, mas outra, em Genet; é
bobagem equiparar a traição em Arlt e em Genet apenas por ambas serem traição.
Esta fábula do expressionismo pode ser vista mais de perto. Disse antes
que o artista se projeta no mundo e opera dentro dele... Mas acontece que o
2
07
homem é linguagem, seu olhar é linguagem, seu modo de se projetar no mundo é
lingüístico. A atividade simbólica é projeção do homem no mundo assim como a
atividade imaginária é a maré do mundo adentrando o homem. Como a linguagem é o
instrumento do artista, identificam-se o objeto e o método, e na arte tudo
acaba sendo questão de método. Esse objeto posto em meio ao mundo, feito mundo,
a linguagem, é também aquilo que dá conta de sua posição. A linguagem é a forma
da consciência; envolve-a, conforma-a, dando o modelo daquilo que se chamara
forma/conteúdo, e nesse friso se torna autoconsciência.
Antes disso, antes de o método se pôr a andar, parece ter acontecido
algo. É como se antes do salto, antes da intromissão que faz do mundo, mundo,
houvesse um instante inconcebível, o momento em que o homem se fez artista. É
algo que pode parecer misterioso, mas talvez não seja tanto... Talvez poder-se-
ia entendê-lo nos termos de um pequeno drama: la condénela, uma Virgem
imprudente, sente a tentação de assistir seu próprio trabalho... e descobre que
não é tão fácil; que, em última instância, é impossível. Porque a consciência
não tem nada além de si mesma para contemplar, e a parte que contempla
permanecerá invisível. O pensamento que se quer pensar, a consciência que quer
ser consciência de si mesma deve fazer uma torção, no que perde uma parte de
sua visibilidade. Qual parte? Não podemos evitar a suspeita de se tartar da
parte mais importante, a mais genuína. Assim mutilada, com um fragmento oculto,
a consciência apresenta-se como um monstro, é o Monstro.
Um pouco mais além, a tentação se transforma em ambição; o homem, em
artista profissional. ("Tentação", "ambição" são termos mais apropriados que
"intenção". Quando alguém se pergunta pelas intenções de um artista, é
inevitável perder-se num labirinto.)
O nascimento do artista situa-se neste momento da tentação. fica um
resto obscuro, um vazio, um esquecimento. Tratamos de reconstruí-lo, mas nunca
conseguimos. O que aconteceu? O que havia antes? O mundo. Nós. Mas por que a
consciência não pôde se limitar a refletir o mundo, em toda a sua imensa
variedade e novidade? Por que voltar-se sobre si mesma, revelando-se mutilada
e monstruosa? O artista trata de responder a posteriori mediante um longo
rodeio, sua obra, seu estilo, seu mito pessoal. As próprias culturas tentaram
explicar isso com mitos ou bulas, a temática inextinguível da "sede de
conhecimento", a "ânsia do saber"... É como se uma vida não bastasse e
quiséssemos agenciar outra mediante uma maquinação secreta e complicada que o
artista encarna biograficamente.
Mas essa máquina poderia funcionar sem Monstro? Poderia a consciência se
limitar a refletir o mundo, pacificamente e sem ambições? Ao que parece, sim,
pode (ainda que isso possa ser outro mito), e esse trabalho constitui a vida
cotidiana e real das pessoas. Mas a consciência está veiculada a uma vida que,
em suas voltas, organiza tudo para que não falte o momento da tentação.
A tentação é a de abandobar a espécie, tornar-se indivíduo absoluto,
monstro. Depois, a tentação se consolida em ambição, e no trabalho de
dissimular e disfarçar se torna estilo, mito, obra... Mas não perde totalmente
seu caráter original de tentação, de opção perigosa. Esse matiz persiste, dando
à obra toda um tom de contingência, de jogo dos possíveis. Em sua origem mítica
todo artista enfrentou uma disjuntiva, pelo sim ou pelo não, mas ao modo do
destino, como disse Kierkegaard sobre o matrimônio: se te casas, te
arrependerás, se não, também.
Entre parênteses, e para tomar outro exemplo que tampouco é um exemplo,
digamos que Arlt desenvolveu exaustivamente essa opção kierkegaardiana. Suas
personagens estão casadas, ou não se casam nunca. O matrimônio em si fica
oculto em uma dobra da realização dos possíveis. O matrimônio, em Arlt, é um
ready-made. Isso também procede da lógica do Monstro. A necessidade sente a
tentação de necessitar de si mesma, e nisso se torce, deixando fora de seu
alcance um fragmento, um vazio de necessidade absoluta no seio do contingente:
esse vazio é o ready-made.
Ao se falar sobre literatura, oscila-se o tempo todo, incontrolavelmente,
entre o geral e o particular. A própria literatura, a arte, obrigam a essa
oscilação ao operar com particularidades universalizadas pela beleza, tornando
eterno o fugaz, necessário o contingente... O perigo reside em se tomar o
208
artista como exemplo particular de algo genérico. Não é. Mas nem por isso deixa
de ser. O artista tem uma vontade louca e destrutiva de generalidade, mas não
renuncia à sua singularidade irrepetível. Quer ser o exemplo universal. pode
intervir uma tentação nefasta: a de se identificar com a Verdade, com o Bem, e
se tornar universal por esse rumo. Não é o caso de Arlt, é claro, a quem
ninguém poderia tomar por um bem-pensante. Sua estratégia consiste, ao
contrário, em radicalizar a lógica do exemplo, até torná-la lógica do Monstro.
O Monstro é a individualidade absoluta. A singularidade nua que floresce
no espaço-tempo. Toma o quantum de generalidade necessário para persistir de
seu criador, a quem vampiriza. Torna-se mito, shifter entre o geral e o
particular. Mas o mito é mito "do escritor", de modo que deve existir um
escritor real, um homem, vivendo num idioma, num país, numa época que o
sustentem. Para criar a si como mito, o escritor deve morrer. Enquanto um fato
persiste no presente, é generalizável. Isso constitui o escritor enquanto vive.
Vivo, faz parte de uma vertente, um viés, uma teoria; é um exemplo das leis
gerais que o conformam; morto, torna-se particularidade universal, mito. Isso
explica, ao custo de tornar verdadeiramente ineficaz a explicação, que Arlt
tenha morrido aos 42 anos, não as 41 nem aos 43. Aos 42 anos, nasce o
Monstro... Seria possível dar outro nome, é claro, mas Arlt o chamou Monstro.
"De onde terão saído tantos monstros", pergunta-se.
Para responder isso é necessário voltar à consciência da qual Arlt nunca
se afasta. Mas é claro também que sua obra define a palavra "consciência" de
modo peculiar. Toda consideração filosófica habitual da consciência o serve
em seu caso, porque a filosofia pensa a consciência como uma mecânica de
espelhos, remissões, mensagens... que Arlt não tem imaginação mecânica,
todas as suas máquinas são de índole química. Nele a consciência não opera à
distância, como numa mecânica, mas por contigüidade absoluta e contaminação:
uma química.
É como se sua consciência, em extremos do discurso, tivesse emigrado do
mundo, protagonizando um nascimento constante. Um nascimento enquanto
nascimento, mas sem que nada nasça, sem que haja desprendimento. A consciência
eficaz deve renunciar a seu trabalho em algum momento para que seus frutos se
façam reais. Isso nunca acontece em Arlt.
A literatura chamada de "fluxo de consciência" propõe uma unidade,
tomando a seu cargo sucessivamente a pluralidade do mundo. Para isso tem de
estabelecer uma fuga constante, um abandono, e os objetos se vão dispondo em
certa perspectiva. Em contraste, Arlt propõe uma consciência estancada, na qual
não unidade alguma que possa tomar a iniciativa de um movimento, mas de uma
multiplicidade que se quer amorfa, uma acumulação de Monstros.
Repito que "consciência" é uma palavra. "Linguagem" poderia dizer o
mesmo, ou qualquer outra coisa. Trata-se do dispositivo para fazer monstro. É
tão eficaz, tão diabolicamente eficaz, que pode fazê-lo com qualquer material.
Todas as aporias arltianas, da sinceridade, da ingenuidade, da qualidade da
prosa se explicam nesse dispositivo da consciência que pretende assistir a seu
próprio espetáculo, a linguagem que quer falar para si mesma, numa palavra, o
Monstro. O próprio dispositivo é o Monstro.
"Monstro" é também uma palavra. É como "Deus". Com Deus, pode-se tratá-la
de dois modos: pode-se iniciar com um sistema de idéias que conta do mundo,
do pensamento, de tudo, e sair do discurso por algum conceito, do qual se diz:
"a isso chamamos Deus". o que a filosofia faz, e o filósofo dos filósofos,
Leibnitz.) Ou também se pode começar com ele: "Deus, certo dia, estava...". É o
que fazem as religiões e as mitologias. No fundo é o mesmo, apenas com métodos
distintos; do segundo método advém o que chamamos ficção.
O romance de Arlt começa: "O Monstro, certo dia, estava...".
Ao que segue, torrencial, a explicação. De repente, tudo se torna
explicação. O discurso quer sair dela e não consegue. A explicação se torce
para explicar a si mesma, deixando sem explicar seu membro ativo, com o que
vacila, mutilada e deforme como um paradoxo infernal.
209
O Monstro cria sua própria necessidade no discurso, sua necessidade de se
explicar ou expressar. Daí procede o volume do romance. O Monstro é loquaz, é
um monstro de loquacidade; afetada pela mesma loucura proliferante, a expressão
quer expressar a si mesma, e volta para dentro para fazer isso... está o
Monstro. Encontramo-lo a cada passo. Basta abrir a boca. Pelo demais, o homem
em ritmo de explicação é o Monstro.
Cito Paulhan:
"Caracteriza a estranheza de nossa condição a facilidade de encontrar
razões para os atos singulares, a dificuldade para os atos correntes. Um homem
que come carne de vaca não sabe por que come carne de vaca; mas se abandona
definitivamente a carne de vaca em favor dos salsifies ou das rãs, não fará
isso sem inventar mil razões, dentre as quais uma será mais razoável. Um
revolucionário nos aborrece seis horas seguidas com exemplos, argumentos e
leis; mas o burguês ou o operário corrente podem calar-se durante seis horas
sobre o que os torna operário ou burguês. É como se houvesse segredos para as
ações banais, e razões para os atos estranhos. E realmente vemos que as pessoas
comuns são misteriosas e inexplicáveis, como se pertencessem a uma sociedade
secreta".
O avanço da explicação, que vemos na passagem de Los siete locos a Los
lanzallamas, é assintótico. O Monstro e a explicação progridem juntos até o
infinito. Sempre haverá necessidade de um suplemento de explicação, ao menos
enquanto houver tempo. E é como se o tempo, ele também, quisesse assistir a
seu próprio processo, e também se torcesse para esperar a si, alcançar a si, e
um fragmento seu, essencial, ficasse oculto de sua própria vista: essa parte em
sombras é a vida individual, a "vida infame". As personagens de Arlt ganham um
suplemento de tempo explicando-se, literalmente; sobrevivem em sua essência de
Monstros, e fazem do Monstro a figura humana da explicação.
Mas não é a explicação que gera o Monstro, longe disso. É razoável demais
para fazê-lo. O monstro nasce do romanesco puro, que Arlt encontrou no folhetim
truculento. Mais que isso: para dar lugar à explicação, a invenção deve estar
quimicamente limpa de explicações a priori, deve nascer de um autêntico vau de
pensamento ou discurso. Esse vau é o romanesco.
está a diferença com o romance ideológico, o falso romance, praticado
por Mallea, por exemplo, que parte da explicação, da História ou da sociologia,
e desemboca no silêncio. É a diferença entre o gentleman e o Monstro.
uma tensão: o romanesco não pode persistir em sua pureza de invenção
para mais de um instante, pois é a singularidade nua no espaço-tempo; a
explicação deve imediatamente se manifestar. O romanesco, o Monstro em si, é um
exemplo fugaz de humanidade, que tende à explicação como todo exemplo tende
àquilo do que é exemplo. Mas a essência não necessita encarnar para sentir a
tentação. O humano também quer assistir ao humano, e não dispõe de nada além de
si mesmo para efetuar a coincidência, o que significa que uma parte ficará à
sombra. "O humano, algum dia, encontrará o humano", disse Gombrowicz, e é óbvio
que isso se dará pela mediação de alguma espécie de monstro. O momento não
parece estar próximo, enquanto a explicação nunca avança o suficiente para dar
conta do Monstro, que corre adiante...
Costuma-se dizer "Arlt, nosso Flaubert". Acho a aproximação inepta, e não
pelo abismo que entre um escritor maduro e burguês, e o adolescente
visionário que foi Arlt. Flaubert se esgota na forma, Arlt nunca chega à forma,
termina no formal. Diria eu "nosso Lautreamont". A menção a Flaubert provém da
analogia de funções numa hipotética história do romance. Em Flaubert, a
narração infinita e torrencial do romance primitivo cristaliza-se em forma
artística autônoma, o que continuará sendo até hoje (porque a mesma narração
infinita passou a ser um gênero da forma romance). O que no romance europeu se
fez ao longo de quinhentos anos e mil escritores, na Argentina Arlt fez
sozinho, em cinco anos. Desde as profundezas do folhetim amorfo, desde Amadís
de Gaula, até Flaubert.
Mas limita-se em "chegar" até aqui? uma meta, uma classificação de
chegada? Toda essa analogia é pouco realista. Em primeiro lugar porque a
aceleração é tamanha, a velocidade tão fantástica, que deveria alterar a
210
natureza do objeto. Não é uma travessia rápida pelo gênero, mas uma detenção
nessa velocidade impossível. O movimento em Arlt o se detém ao chegar à meta
porque sempre esteve detido. Isso está tematizado: é a imobilidade
característica de Arlt, a cãimbra do pesadelo, a catatonia do desmemoriado. Ao
se lançar na carreira paralizado, como uma múmia posta em órbita pelo viés
projetivo expressionista, assegura-se de não se deter jamais. Onde terminam os
caminhos, no sancta sanctorum da angústia, no fundo da miséria... Ainda ali o
movimento continua, ainda quando o fugitivo es em frente ao muro
intransponível...
Tudo está tematizado, e não poderia ser de outro modo, pela lei do
contínuo. Os romances de Arlt são histórias da imobilidade, romances dos quais
não se sai, mas que ao mesmo tempo não se explicam senão como romances de
viagem. O protagonista, para sê-lo, para que haja história, despojou-se de
tudo, queimou as naves, está disposto a empreender a viagem às antípodas. Nunca
tem assuntos pendentes, e se tem, mostra-se bastante disposto a abandoná-los.
Nesse despojamento está todo o exotismo de Arlt.
E realmente suas personagens estão viajando, embarcadas numa velocidade
de ondas de rádio. Estão se afastando, de trem, de barco... Sobretudo de trem,
esse fetiche arltiano. Mas os demais as vêem ali onde ficaram. Vêem como Poe
o inseto que está a centímetros dos olhos, como um monstro do tamanho de um
prédio subindo a montanha. É o revés romanesco da estratégia do homem comum, o
homem insignificante, sentado a nosso lado enquanto sua alma abre caminho no
céu, afastando os astros.
Balzac deu o modelo do "romance urbano" criando o mito da grande cidade
como único teatro na medida da ambição do homem moderno — e como disse antes, a
ambição é o desenvolvimento da tentação que deseja assistir a seu próprio
processo. Mas todo fato tem duas caras: a possível e a real. A dúvida é
justamente o labirinto onde se bifurcam os possíveis do destino. O romancista
assume a prerrogativa de descartar os possíveis e desenhar o caminho para o
centro, onde se agarra o Monstro. A complicação psicológica e sua
radicalização, a ruptura da cadeia causal, o "derrube sensório-motor", resultam
desse traçado do labirinto.
Fora do encaminhamento ao centro, resta a saída, o abandono, o
desagradável sorriso do gentleman. Fuge, late, tace ("foge, abandona, cala"),
como na inscrição dos muros da Grande Cartuxa, que tanto impressionou Balzac.
Talvez pareça mera provocação exemplificar Balzac como abandono da literatura,
justo ele, acamação da vontade de tornar infinita a escritura. E no entanto não
é tão absurdo. O impulso de Balzac, o segredo de sua força, está em ser um
impulso segundo, um relançamento, uma força que aparece para além de um
desfalecimento sempre latente. Um comentarista de sua obra (Pierre Barbéris)
repara o momento em que a Lucien Rubempre ocorre, rapidamente, a idéia de
abandonar todo o complô e fugir com Esther: "Aqui Lucien é tentado pela idéia
do retiro e da renúncia, solução aos problemas do intenso e do absoluto para
mais de um herói balzaquiano". O que retém a personagem balzaquiana na
hesitação, e portanto no romance, é a ambição, o absoluto da ambição, que
renasce sempre das relatividades do dinheiro; por sua causa é necessário
sacrificar progressivamente o verossímil (porque o verossímil da ambição é o
dinheiro). Desse sacrifício progressivo nasce o folhetim truculento, o
romanesco puro, cume onde chega a arte de Balzac, não seu ponto de partida.
Cito outra vez Ponge: "O verossímil é que o parece inverossímil à gente sem
ambição". E se a ambição, como vimos, é o status quo que fabrica para si a
tentação da autoconsciência, aí temos em germe todo o romance moderno.
O que fica oculto no processo de autoconsciência é um fragmento da
consciência onde cabe toda a realidade, o fragmento que nos faria a realidade
compreensível e normal como sob uma perspectiva bem desenhada. Esse fragmento
faltante, em cujo vazio se fundirá a explicação invariavelmente, como num
buraco negro, dispersa o olhar também com a evasiva do visível em excesso, como
em "A carta roubada", de Poe (Arlt fez sua versão no conto dos contrabandistas
de metralhadoras de El criador de gorilas). É mais uma vez o paradoxo do
corriqueiro e do estranho. O Monstro salta à vista, mas também pode se
dissimular no habitual, fazer-se invisível por rotina, como aquilo que vemos
211
todos os dias. Os formalistas russos basearam sua teoria nessa percepção
adormecida, da qual a arte nos desperta mediante manobras de estranhamento. É
claro que antes de iniciar essas manobras o artista deve se distanciar de sua
própria percepção, para averiguar onde cede. Nesse ponto é onde Arlt se
identifica com suas personagens, faz do Monstro um protoartista. Arlt e o
Monstro estão no mesmo contínuo. Astier, Erdosain, Balder, são monstros de
percepção. A percepção quer perceber a si mesma, dobra-se para fazê-lo, e então
lhe escapa todo um giro de espaço-tempo, diante do qual fica boquiaberta.
Vejamos como Balder reage:
"Estávamos na sala de jantar, e mais uma vez nascia o sortilégio da
estranheza. Eu permanecia ali, com a consciência suspensa na estranheza de ver
móveis e utensílios de uso comum a todos os seres humanos, postos em distintos
lugares.
"Em minha casa estava tão familiarizado com os objetos que só se faziam
visíveis quando precisava deles.
"Na casa de Irene, minha atenção permanecia suspensa numa atmosfera de
incerteza pelos contínuos choques com seus hábitos, ou afastada de seu eixo, em
algumas polegadas. Qualquer movimento que efetuasse ali me deixava a sensação
de desarmonia. É como se respirasse o ar de uma densidade distinta.
"Queria familiarizar-me com os objetos que rodeavam Irene..."
O "bruxo" de El amor brujo parece ser justamente um feitiço perceptivo. A
percepção em Arlt transborda o instante, escapa do sujeito, está achatada,
deformada, seus membros se apóiam em vidas alheias, são lembranças que ninguém
assume. Balder e Irene se reconhecem na primeira vez que se vêem, na estação
Retiro. Ao mesmo tempo, nessa origem há um esquecimento: Balder jamais
lembraria o que viera fazer em Retiro nesse dia: "tinha sido permanente o
esquecimento da causa que aquela tarde o arrastara preocupadíssimo a a
plataforma número um da estação Retiro".
É que, em arte, a percepção é ação, não contemplação; não tem quase nada
a ver com o conhecimento, como nessa aberração artística, o gênero policial. A
percepção é o grito de horror, a gargalhada do louco, o raio destruidor, o
crime. Antes, está o que Arlt chama "o esquecimento da causa"; depois, resta
"a vontade perversa".
A tentação também afeta a vontade, que quer mover a si mesma. E como
dispõe apenas de si para fazê-lo, uma parte fica imóvel, fazendo mancar o
resto: é a vontade monstro, a vontade perversa.
A perversão da vontade, diz Arlt, consiste em se esquivar do estímulo. O
mundo proporciona o estímulo, o homem se faz invisível e o deixa passar à
distância. O Monstro é invisível. Nada pode acontecer com ele. A cadeia causal
se quebra. Ao mesmo tempo, algo acontecerá porque está num mundo onde só
ação. "Algo extraordinário vai me acontecer", diz Balder o tempo todo,
contemplando o tempo com a mesma estranheza que o espaço lhe causa. Com efeito,
o fato será extraordinário enquanto a ão estiver liberada da cadeia estímulo-
reação. O que chegar a acontecer não poderá ser explicado pelo estímulo. Se a
causa não atua, pelo "esquecimento" que a informa o efeito se apresentará
desprovido de explicação, como romanesco puro.
A recolocação da causalidade, que move o homem a uma velocidade
previsível, estabelece um movimento instável e suspeito, para o qual Arlt
encontra, como sempre, uma formulação perfeita: "nos movíamos num círculo de
fatores enigmáticos". É o círculo paranóico, onde a explicação será sempre
insuficiente ou excessiva. "Parece", diz Balder, "que os homens do mundo fazem
um círculo à minha volta. Todos vêem o que vou fazer...".
No encontro de Balder e Irene, em sua atmosfera de mito e pantomima
expressionista, constitui-se o primeiro casal do mundo de Arlt, seu Adão e Eva:
o Monstro e a Virgem. Ambas as figuras são ainda imperfeitas. A virgindade de
Irene será negada ao final, e a monstruosidade de Balder é discreta, ainda que
alguns traços já apontem ao monstro completo:
"Seu rosto brilhava em gracilidade cutânea. Estava bem encurvado, o
tronco torcido, o traseiro pesado, a caixa toráxica encolhida, os braços
212
inertes, os movimentos torpes... grossas rugas começaram se desenhar em seu
rosto. Ao caminhar, arrastava os pés. Visto de trás parecia corcunda,
caminhando de frente diria-se que avançava sobre um plano ondulado, e assim se
balançava por inércia. O cabelo escapava pelas têmporas até cobrir as orelhas,
vestia-se mal, era sempre visto com a barba por fazer e as unhas sujas de
tinta."
O Monstro não é um sujeito, não pode ser. A chave da inadequação de
Balder é se restringir à subjetividade, da qual poderá sair mediante uma
exacerbação do romanesco, ou seja, quando o Monstro lhe acompanhar como um
doppelgänger. Dissemos que o escurecimento pardal da consciência criava uma
figura mutilada, contrafeita, pela qual o artista emigra do mundo, colorindo-o
de horror. então o sujeito perde sua transparência; explode o invisível
habitual com ajuda de um "testemunho ocultista", que naquele momento Baldes
procura às cegas. Mas se esforça, com uma tenacidade quase científica. A
mancada final, quando renega a Virgem, não é senão um despojamento estratégico
para poder recomeçar a tarefa sob os auspícios da Repetição. De todo modo, o
movimento, a que Arlt chama "a odisséia de sua inércia", leva-o muito longe.
O Monstro não se constitui sem a interseção com a Virgem. Nela o homem
encontra um ensejo de representação. A Virgem não tem planos. É uma superfície
pura de beleza. Não contém tempo; é o Instante. É um enigma, mas por não
ocultar enigmas. "Virgem" é uma palavra, é claro, o nome que damos à negação a
se reproduzir. A Virgem faz o Monstro confirmando o homem na eternidade do
indivíduo, fechando ou tornando invisíveis por transparência os caminhos
perspectivísticos da espécie. A representação é um fenômeno da perspectiva.
A aparição da Virgem, tal como em Arlt, acontece no Grande vidro de
Duchamp. Pintada sobre vidro, vidro sem pintar em sua maior parte, com um
grande vazio no centro ou ponto de fuga, esta obra se propõe, segundo o próprio
Duchamp, como o altar da Deusa Perspectiva. Os solteiros, os "oito moldes
macho", projetam-se no céu da Noiva por efeito do "gás de iluminação" (os sete
loucos concluirão, por sua vez, com a ajuda de gases letais). E no alto, a
Virgem, a "peça fêmea", realiza sua pirueta. É a última e definitiva torção. A
virgem quer assistir à sua própria virgindade, como se o Instante quisesse
coincidir com seu desenvolvimento, ou a unidimensionalidade dobrar-se sobre si
mesma. Consegue apenas parcialmente, no acontecimento cósmico de seu
desnudamento, porque não dispõe de nada além de sua essência como instrumento
para ser, e da torção impossível resta uma fenda, uma transparência onde a
perspectiva se ausenta. Com ela, também o artista.
Ninguém nunca disse que Duchamp foi um expressionista, mas eu acredito
que foi, e que com ele o expressionismo chega à sua culminação e se evapora. A
linhagem expressionista pode ser rastreada por vários caminhos. Um deles é o
seguinte: no cinema expressionista, derivado em boa medida do teatro de Max
Reinhardt, o essencial é a criação do espaço, que nunca se por certo. Seus
autores falam do "beseelt Landschaft", paisagem com alma, isto é, um espaço
psicológico, projetivo (evidentemente Einstein tomou daí sua concepção da
"Natureza não-indiferente"). Esse espaço se cria mediante luzes, como uma
ilusão do olho do espectador, ou mediante as perspectivas manipuladas nos
telões, ou inclusive mediante os movimentos do ator; o bom ator expressionista
"constrói o espaço". Isso explica o abuso de escadas de todo tipo no cinema
expressionista: porque a escada favorece "a expansão do dinamismo do ator",
permitindo-lhe criar mais espaço, em mais direções. A esse mecanismo responde o
Nu descendo a escada, a obra com que Duchamp abandonou a pintura aos vinte e
quatro anos. Não deixaria de abandoná-la pelo resto de sua vida. Tinha
conseguido criar um interstício, que daí em diante não se fecharia, no mesclado
espaço mental expressionista, e por ele fugiria sem cessar. A criação da
distância, na lógica das contingüidades indestrutíveis do expressionismo,
significa uma válvula de escape.
Essa distância móvel, espaço-temporal, desloca-se inclusive à percepção
da obra. Duchamp propôs chamar aos quadros "atraso", e ao Grande Vidro, "atraso
em vidro". A trama e o sentido, o romanesco e a explicação, são objeto de uma
defasagem temporal. Acontece o mesmo com o abandono, ao que se sobrepõe a obra
num ir-e-vir transtemporal, que é a vida e o mito de Duchamp.
213
O Grande vidro foi abandonado pela metade. Arlt deixou de escrever
romances aos trinta anos, dado este que não deveria passar por alto. É o Fuge,
late, tace dos cartuxos, emblema de toda a arte do nosso tempo, em que o que
importa não é tanto fazer quanto encontrar o modo de deixar de fazer, sem
deixar de ser artista.
O Monstro tinha nascido de uma manobra imprudente da consciência, que na
ocasião move a "vontade perversa", retirando-a do encadeamento linear de causas
e efeitos para colocá-la em "um círculo de fatores enigmáticos". Imprudente,
perversa, enigmática, la condénela se identifica com a Virgem. Na dobra sombria
que se produz então, a que nunca pode chegar escopia alguma, a Virgem à luz
o Monstro e o extravia em meio à dúvida, esse pesadelo de arquiteturas apegadas
e deformes em que será necessário criar espaço mediante os procedimentos da
arte.
O Monstro é a única personagem. No drama expressionista uma
personagem, o protagonista, e os demais são "Ausstrahiungen seiner
Innerlichkeit" (irradiações de sua essência íntima). Mas o único necessita
companhia, ainda que não seja mais do que para projetar sua solidão. É aquilo
que Balzac chamou "essa superstição alemã", o duplo. Não é necessário buscá-lo
muito longe: a consciência é uma acompanhante do homem, um socius, uma sombra
projetada contra o mundo. É uma espécie de anão, de duende imprevisível. Arlt
chamou-o "jorobadito", esse cúmulo de sua arte quando narra o episódio do
monstro, pondo-o a seu lado numa carreira louca: "o maldito me perseguia...
Semelhante a meu gênio ruim, semelhante ao malvado de mim mesmo, que, para se
concretizar, tinha se revestido com a figura abominável do corcunda".
A persecução ocupa lugar numa passagem tipicamente expressionista, uma
paisagem da alma, pura criação de espaço:
"Não se via viv'alma pelas ruas, e uma claridade espectral caída do
segundo céu que continha as nuvens pesadas encantava e fazia mais nítidos os
contornos das fachadas e suas cornijas funerárias.
"Não restava sequer um pedaço de papel pelo chão. Parecia que a cidade
tinha sido apagada por uma tropa de fantasmas. E apesar de me encontrar nela,
acreditava estar perdido num bosque.
"O vento dobrava violentamente a copa das árvores..."
O vento arrasta, a velocidade aumenta sem limite, a invenção e a
explicação trançam-se num redemoinho a trezentos e sessenta mil quilômetros por
segundo. Arlt exulta-se num otimismo sinistro, seu rosto se dilata numa
gargalhada assassina. E não é para menos: encontrou o Monstro em formato
manual, levando-o depressa ao campo de batalha do habitual, como instrumento de
liberação. É a bomba anti-sogra, que tanto buscou. Haverá uma explosão, e as
lascas do mundo tornar-se-ão constelações, nas quais se poderá ler o Destino...
Mas, ao chegar, acontece algo surpreendente. Materializa-se a Virgem
pendente no alto da transparência. "Fina e alta, apareceu minha noiva na sala
dourada." O Monstro e a Virgem se enfrentam, por fim. Entre ambos se abre uma
distância, a monstruosidade da Virgem ou a virgindade do Monstro, espaço
paradoxal onde a explicação se dissolve em seus próprios ácidos. Acontece o
inexplicável. E, ao mesmo tempo, acontece a obra-prima, Arlt se torna real e
foge, renuncia, cala. Consuma-se. A explicação e o romanesco, o expressionismo
e o impressionismo, o simbólico e o imaginário, longe de se enfrentarem, vinham
correndo pelo mesmo contínuo, que se consuma no real, e o real e a consumação
também montam nele. Arlt morre, aos 42 anos, e passa ele próprio ao status de
objeto da consciência, que o hábito tornará imperceptível e misterioso.
Dito de outro modo: a explicação e o romanesco são igualmente infinitos.
Ambos proliferam na velocidade. O Monstro se desloca na crista da onda, como um
surfista experiente, mas a explicação é o mar. Depois mudam de lugar. Qualquer
um dos dois pode ser a velocidade sobre a qual se desliza o outro. A persecução
cria a velocidade, e a velocidade cria a distância. Então a contigüidade que
torna monstruoso o Monstro, por falta de perspectiva, cede à criação de um
espaço. Nele se efetua a literatura, nos anos, nos livros, na vida... Mas não
para sempre: um momento em que tudo pára. A explicação cala e lugar ao
romanesco segundo, transcendental: o mito pessoal do escritor, seu matrimônio
214
místico. É o Instante, no qual tudo se torna real de repente, começando pelo
mais misterioso, ou pelo único a que temos direito de chamar Mistério em nossa
profissão: a qualidade, aquilo que torna grande uma obra ou um escritor, o que
é definitivamente inexplicável porque o contínuo tomou outros rumos, deixando
atrás, para sempre, a explicação. É inexplicável ao ponto de que todo o
explicável numa obra de arte não faça parte de sua qualidade, podendo ser
eliminado sem que deixássemos de amar essa obra.
Eu mesmo, propondo-me como exemplo da singularidade extenuada do tempo,
monto no contínuo e corro atrás do Monstro revestido pela figura irrisória da
explicação. posso escolher entre os possíveis do real, e, sem qualquer
razão, escolho apenas para fazer girar o "círculo de fatores enigmáticos", a
crítica "impressionista". não a projeção miserável do simbólico, mas a
introjeção feliz do imaginário, a recepção do cinema mudo de Arlt, que me
alcança em rajadas de luz sombria, em visões deliciosamente assustadoras: o
moinho dos Monstros em seu carrossel congelado, a Virgem suspensa no ar;
Duchamp chamou-a Perspectiva, eu a chamo Inspiração. Saio buscá-la todos os
dias, numa rotina imutável, na perfeita transparência do habitual, nas ruas de
meu bairro, que é o de Arlt, Flores, nos cafés em volta da praça e da estação,
onde vou todas as manhãs para escrever.
1991
215
A PROSOPOPÉIA
*
Chama-se "prosopopéia" o recurso artificial de conceder discurso a algum
objeto inanimado, animal, qualidade abstrata ou pessoa morta, ausente,
imaginária. Nestes últimos casos, a tendência é confundi-los com algo como o
romance ou teatro históricos; nos primeiros, com o gênero fantástico. O próprio
da prosopopéia, no entanto, é que esse falante impossível não seja bem uma
personagem, mas o sujeito de um discurso completo, que constitui a obra ou
passagem literária em sua integridade. Mais característico ainda é que esse
discurso possua uma intenção determinada, que se realiza mediante o uso da
prosopopéia. Essa intenção responde à classe de desejos que expressa frases
tais como "Se estas paredes falassem...". Os objetos podem ser testemunhas
presenciais, tão inúteis como insubstituíveis, por duas razões básicas: a
primeira é que, na certeza que temos (não são poucos os motivos) de que jamais
abrirão a boca, não vacilamos em realizar em sua presença nossos atos mais
secretos; a segunda é que, não estando afetados pelos ciclos da vida orgânica,
tais objetos duram mais que qualquer outro ser vivo as "paredes" em questão
podem muito bem ter presenciado as evoluções, secretas ou não, de vinte ou
trinta gerações consecutivas.
O objeto inerte fornece o modelo completo da prosopopéia; o resto é
parcial; o discurso de um gato pode revelar interessantes segredos que passaram
despercebidos a seus olhos fosforescentes, mas não tem nada a dizer sobre o
discurso das gerações (uma árvore estaria numa situação intermediária, digamos,
entre gato e parede); o que poderia dizer a Justiça, ou a Primavera, seria
genérico demais para nos interessar; e as revelações de Manuelita Rosas ou de
Napoleão nos chegariam através do tempo, mas diriam apenas seus próprios
segredos, não os alheios: ninguém teria se comportado diante de Napoleão como
diante de uma parede, ou de um gato; além disso, nesse caso haveria distintas
opções, como fazer falar a alma de Napoleão, sua estátua ou seu retrato. Este
último, bastante comum (basta pensar nos últimos solilóquios da Gioconda que
foram escritos), propõe uma mistura: o retrato ou estátua como objeto que
atravessa o tempo, mais a psicologia da personagem. Entre parênteses, acredito
que essa versão mista aponta a intuição que se esconde no fundo de um recurso
que nos parece tão pueril: a prosopopéia representaria simplesmente a obra de
arte, que também é objeto inerte e suporte do discurso ou seja, objeto
falante.
Apresso-me em destacar que não conheço nenhuma obra literária realmente
boa que faça uso da prosopopéia. É muito limitadora e artificial para se
sobrepor ao engenho fácil. Entretanto, tenho acreditado sentir sua maquinária
elementar operando como modelo ou motor de alguns grandes romances.
Seria bom começar por distinguir a prosopopéia como figura descrita nos
manuais de retórica, da prosopopéia no momento da invenção, utilizada pela
primeira e única vez, quando triunfa a liberdade geradora da literatura. E como
em todos os bons inventos na arte, deste se pode recuperar o impulso original.
Para ver como, é preciso dirigir o olhar aos motivos que levaram à sua invenção
e ativá-los novamente. sugeri os motivos da prosopopéia: o de fundo, diria,
é tematizar a coisificação ambígua (falante) da obra de arte. Este podemos
deixar de lado, pois se esgota em si mesmo, é um pouco seu mito de origem. Os
demais poderiam se resumir em três:
1) a organização intencional do discurso: caso se ponha a falar uma
parede, podemos esperar que seja para dizer algo muito específico e muito bem
pensado (supõe-se que houve tempo para pensá-lo);
2) toma a palavra um sujeito não destinado a falar, a que todos os
participantes das histórias implicadas tiveram por mudo, e com bons motivos;
por isso, a ele entregaram todos os seus segredos;
*
"La prosopopeya" [1994] Zunino & Zungri. Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 30 dez. 2003.
216
3) o que fala está isento das limitações temporais das personagens,
atravessando suas vidas de um lado a outro.
Esse mecanismo tríplice corrobora, parece-me, a obra de alguns escritores
insuspeitáveis de manipulações retóricas. Os três impulsos funcionam em Carta
ao Pai, de Kafka. Aí fala o afetado pelo tabu do silêncio, o homem-parede, para
seu interlocutor paterno, o último a esperar que aquele se pusesse a falar; seu
discurso está severamente organizado como uma alegação jurídica, o que, aliás,
é bastante característico da prosopopéia: sempre possui algo de ajuste de
contas ou ato de justiça; e, por último, a Carta ao Pai também compartilha com
a prosopopéia o "comprimento de onda" necessário para sulcar as gerações, por
mais que aqui se tivesse de deslocar o olhar a outros pontos da obra de Kafka,
para ver com todo alcance: ao otimismo da espécie para além do indivíduo, à
multidão de ratos e, sobretudo, ao animal subterrâneo do último relato, quando
se chega ao indivíduo que já não necessita da espécie para sobreviver.
Seria, talvez, bastante fácil continuar esboçando analogias deste tipo.
Terminaríamos vendo prosopopéias em toda parte. Mas não me referia a aparições,
sequer somadas, de seus três traços. A mecânica da prosopopéia faz atuá-los num
mecanismo: não o mudo, nem o ajuste de contas, nem o triunfo sobre o tempo,
mas as três coisas coordenadas de modo que queiram significar algo distinto.
Esse "algo distinto" é o que produz a originalidade pessoalíssima de um autor,
do autor no qual volta a se manifestar, pela primeira vez no mundo e sem o
saber, a ocorrência da prosopopéia.
Isso poderia ser melhor contemplado recorrendo-se a outro autor, no qual
também identifico esse mecanismo em ação, e que para meu propósito leva
vantagem sobre Kafka por estar muito mais longe de Puig. Faço a advertência,
porém, de que não se trata de exemplos; não poderiam -los, porque cada caso
constitui a origem absoluta de uma primeira vez histórica que, por essência,
não admite um modelo anterior.
Este outro é Diderot. Mesmo limitando-me a seus quatro romances, creio
neles fazer-se visível a mecânica da prosopopéia. Para começar, em As jóias
indiscretas, a prosopopéia aparece diante da consternação de todo um reino,
afortunadamente imaginário: os genitais femininos decidem falar. Aquilo que
jamais se imaginaria falando, que por definição detém os segredos que se
acreditaria melhores guardados, toma a palavra. Não é uma prosopopéia, mas sua
tematização ou narrativização. O acento está posto sobre a organização
intencional do discurso: as "jóias" abrem suas bocas por motivos muito
concretos, e fazem isso com uma eficácia surpreendente. Trata-se de algo típico
da mentalidade iluminista, da qual seria difícil encontrar um modelo mais bem
acabado que Diderot. Sua qualidade como expoente da época deriva da
originalidade sem parâmetro, adquirida pela reinvenção do dispositivo
prosopopéia. O racionalismo mencionado como ajuste de contas está mais
desenvolvido em A religiosa: quem fala agora é uma monja enclausurada, cujo
voto de silêncio e obediência foi feito somente para melhor enunciar sua
alegação fanática. Jacques, o fatalista, e sobretudo O sobrinho de Rameau tomam
a direção contrária, seus protagonistas são tagarelas compulsivos. E por isso
mesmo neles a prosopopéia triunfa. Nada pode surpreender menos que escutar o
sobrinho de Rameau, uma espécie de charlatão profissional; a surpresa perene
que se produz, no entanto, é que ele diz a verdade, sua loucura e marginalidade
coisificaram-no como objeto falante capaz de testemunhar o juízo da
civilização.
Jacques, o fatalista, por sua vez, é o monumento à digressão proliferante
do romance. Diria, aliás, que aqui existe uma arqueologia da prosopopéia. O
modelo seguido por Diderot foi Cervantes. Toda a originalidade do Quixote,
originalidade fundadora do romance, está no fato de que suas personagens falam.
Mediante o simples recurso de dar voz às personagens de um romance de
cavalaria, este explode, e seus códigos se dissolvem. A ficção não resiste à
prova da palavra falada, a realidade atua com um ácido, e o realismo nasce. Ao
me referir ao "triunfo da prosopopéia", quero dizer sua superação. Algo tão
néscio como a prosopopéia se torna literatura apenas ao cair por seu próprio
peso. A outra influência de Diderot, em sua ficção, foi Tristan Shandy. A
peculiaridade insólita do romance de Sterne consiste em dar palavra a uma
personagem, sem condicionamentos, para que esta se perca em seu próprio
discurso incontrolável, e acabe contando uma história diferente daquela que o
217
autor havia proposto. Salvo então que se tem de coisificar essa personagem, ou
seja, despojá-la de uma psicologia que não poderia deixar de se contaminar pela
do autor, dando-lhe a imprevisibilidade de uma parede que desanda a falar.
Bom, para também não me perder nas digressões, volto à prosopopéia.
Suspeito de uma estrutura profunda que se pode somar à superfície como formação
retórica, a prosopopéia propriamente dita, ou bem prosseguir sua travessia
subterrânea e emergir, atualizada pela história, como obra romanesca inovadora
e única. A estrutura profunda seria seu mito de origem, do que não vale a pena
falar caso pretendesse formulá-lo, este sairia atualizado e deformado por
minha posição. Limito-me, então, aos três traços que destaquei (o escândalo de
que fale quem não pode falar, a intencionalidade justiceira de seu discurso, o
excesso sobre o tempo orgânico), tomados em sua maior abstração. A emergência,
isto é, a elaboração histórica destes elementos, é a literatura e,
inevitavelmente, o histórico de uma literatura.
Pois bem, em Puig o mito da prosopopéia se atualizará com traços
próprios, próprios de Puig e de seu tempo. Acredito que a exploração de sua
obra, encarada sob esse aspecto, pode trazer à luz alguns pontos de interesse.
Se nos perguntamos qual o segredo de Puig, que o torna tão diferente e
superior a todos os romancistas argentinos seus contemporâneos, creio que a
resposta está em que os romances de Puig se beneficiam pelo movimento de um
interesse intrínseco, não ou não em primeiro plano, vale dizer aquele que
pode despertar nos leitores, mas o que move seus atores. As personagens de Puig
surgem e retiram sua razão de ser do interesse frenético em suas histórias.
"Interesse", aqui, deve ser tomado em seu duplo sentido, como curiosidade
intelectual e como implicação. Essa é a marca do romance popular, ou do gênero
por excelência, o policial: as personagens seguem os avatares de sua
curiosidade e por eles são delimitadas, ao mesmo tempo em que possuem
interesses vitais postos na história. Mas no romance de entretenimento o
interesse queima e se consome por inteiro em seu próprio círculo, seu triunfo
consiste precisamente em não deixar resto algum. O interesse do leitor é
puramente vicário, seu suporte é a identificação fantasmática, por essência
efêmera, com os interesses internos da ficção. Enquanto o romance obra de arte,
tal como inventou Flaubert, inverte esses termos: todo seu interesse está posto
fora, no leitor e na operação estética da leitura. Daí que, para acentuar o
contraste, o romance moderno tenha posto de lado o aventureiro e o gênio,
especializando-se no mais cinza e medíocre dos cidadãos. Puig, por um golpe de
gênio, que se poderia atribuir à sua sensatez humilde ou a seu gosto pelo
antigo cinema de Hollywood, conseguiu recuperar, na mais artística das formas
romanescas, a dinâmica do interesse interno.
Minha hipótese é de que isso se deu sob o signo da prosopopéia, ao menos
nos primeiros romances, que puseram em marcha todo o processo. Ali está a mudez
ou o tabu do silêncio, que acumula todos os segredos alheios, a
intencionalidade justiceira do texto, bem como a passagem das gerações que
sentido a toda a operação. O sentido é a mãe, chave da organização do discurso.
A mãe é a primeira pessoa, para além do jogo das palavras, pois é a única que
pode falar, mesmo não sendo ela quem fala. Também é a chave da temática: com
ela inicia seu primeiro romance, e nela o último termina, ao fim de um longo
desvio. A mãe é a produção; em sua sanha com o produto filho, segue produzindo-
o eternamente. É a introdução do mecanismo da prosopopéia o que interrompe esse
processo, cristalizando-o em arte.
Mas quem fala não é exatamente a mãe. Não poderia fazê-lo, ou teria muito
pouco a dizer. É preciso lembrar que a mãe é um sujeito relativo; é mãe apenas
para seu filho, e mesmo que a homossexualidade congele a mulher na figura
materna exclusiva, para esta ou aquela mãe houve, e teve necessariamente de
existir, um momento em que foi parte de uma multiplicidade. Daí a aparente
polifonia da prosopopéia de Puig. O sujeito a que dá a palavra é plural: eu o
chamaria "a época da juventude de minha mãe".
A empresa de Puig, de fazer falar uma determinada época histórica, parece
o que hoje se chama cultural studies; o período da civilização enfocado é "a
juventude da mãe". Trata-se de uma espécie de reconstrução, mas diferente da
feita pelo romance histórico ou pela filologia, que aqui o estilo está
implicado. É a diferença entre o discurso científico sobre a constituição
218
atômica de uma parede e o solilóquio da parede pela prosopopéia, com a
diferença adicional de que a parede não possui um estilo próprio, a época sim.
Mas além disso, aqui o estilo está implicado por dentro. Disse antes que a
única coisa que uma e realmente transmite a seu filho é o estilo; e daí
compete, de um modo ambíguo e inextricável, com a época de formação do filho.
Junto com a primeira pessoa, a personalidade de um Zeitgeist. De modo que mais
que uma reconstrução, é uma auto-produção. E deve-se fazê-la por um método
historiográfico peculiar: não o "paternalista" dos documentos, mas um oral,
fragmentário, suspeito, frívolo. Mesmo com esses defeitos, é o único método
totalizante, porque dá conta de tudo, imagens, valores e gestos, uma estética
geral.
A aventura que acontece nessa época é a abertura das possibilidades da
mãe: os homens que teve para escolher, ou aqueles que deixou de escolher. É um
reino de imensa liberdade. É como no adágio do Direito Romano: "a paternidade é
sempre incerta, a maternidade é certíssima". Mas esse "sempre incerta" é a
abertura infinita dos possíveis que, depois, hão-se de fechar, e esse fechar se
acentua pelo destino da arte. Inerte, se desloca; forma-se um zeugma, a máquina
narrativa de Puig: um passado vivo, vibrante de cor e som, e um presente
inexorável, amortizado na inadequação e na desdita; ao mesmo tempo, um passado
que se fecha, apesar de tudo, e um presente que se abre no trabalho da
escritura. Nessas condições, escrever deveria produzir certa culpa, pois
equivale a coisificar ou matar o passado, como um vampirismo transtemporal.
Matá-lo para fazê-lo falar.
A superioridade de Puig reside nessa opção. A política do romance se
resume na alternativa de falar por si ou pelos demais; os colegas de Puig
fizeram o curto-circuito mediante a consignação abjeta de "dar voz àqueles que
não têm voz", lamentável caricatura da prosopopéia; melhor dizendo,
ventriloquia e não prosopopéia que é também ventriloquia, mas sem
ilusionismo. A primeira pessoa se reverte sobre si mesma quando não se toma o
cuidado da prosopopéia. "Dar voz àqueles que não têm voz" sem as virtudes que
encarnou Puig (a sede de justiça, a experiência do segredo, o trânsito materno
do estilo) equivale a uma farsa bastante confusa. E quando existe boa
consciência ingênua, como classe alta, a prosopopéia resultados como La
casa, de Mujica Láinez, ou o inefável Habla el Alagarrobo, de Victoria Ocampo.
A emergência da prosopopéia na arte narrativa de Puig é extraída do
realismo ilusionista, ativando plenamente a máquina literária. Para o que (e em
cujo processo se cria um contínuo de realidade e romance) é preciso coisificar
e afastar o mundo da mãe, impondo e assumindo o destino do filho, tornando-o
objeto de uma fatalidade absoluta. E trancando todas as saídas.
1994
219
POBREZA
*
Sou mais pobre que os pobres, e mais tempo; uma eternidade de
privações se desdobra em minha fantasia ressentida, que não se limita em medir
a duração do mal. A magnitude da catástrofe também a ocupa. É tanto o que eu
poderia ter, bastaria saber os meios de procurar em mim. Tantas coisas, tantas
experiências, tantas comodidades. O trabalho quase obsessivo de enumerá-las,
calcular em mim seu potencial de gozo, organizá-las, me deixa exausto e com a
idéia de que por isso merecia tê-las. Mas a experiência real me afasta
cada vez mais do bem-estar que o dinheiro poderia me dar, ao mesmo tempo em que
intensifica minha percepção de suas vantagens.
Aí a fantasia não é necessária; basta olhar ao redor. A gente em que vivo
se torna mais rica a cada ano. Na verdade eram ricos desde o início; no meu
caso, a pobreza nunca foi uma comunidade, mas um estigma de distanciamento. Não
soube fazer amigos pobres; para ser sincero, não quis fazê-los. Porque tudo me
afasta deles: meus gostos, meus hábitos, meus interesses. Não teríamos o que
falar; o futebol me deprime, no Clarín não toco. Se é por estreiteza mental, a
minha basta e sobra. A gente refinada com que posso manter uma conversação
tem dinheiro de sobra, a quem, é claro, sequer passa pela cabeça compartilhar
comigo. Por que fariam isso? Em sua frívola inocência, acreditam-me um grande
escritor, um testemunho vivo e antecipado de história literária. E na realidade
sou um necessitado. Vejo-os circular em órbitas que os tornam mais e mais
inacessíveis, meu ressentimento cresce. Fico amargo, deprimido, me torno
excêntrico por um compreensível reflexo de autodefesa, e também para
dissimular. me dão vergonha meus sapatos pontudos, meu eterno guarda-roupa
inadequado, meu desalinho e falta de higiene, produto de um desespero surdo.
Vivo encerrado em meu escritório, ao qual não posso convidar ninguém de tão
estragados estão os móveis, tantas manchas de umidade nas paredes, tão medidas
são nossas porções de arroz, salsichas, fideos baratos. Pelas janelas vejo meus
vizinhos do Bairro Rivadavia (uma vila miserável) e comprovo não serem tão
pobres como eu, porque sempre lhes sobra algo, enquanto a mim falta tudo. Vejo
suas comilanças, suas bebedeiras, seus domingos ao sol e a quando saem
arrastando seus rickshaws a remexer na lixeira são mais ricos que eu, porque
encontram algo. A mim, em contrapartida, um esforço esgotador nos trabalhos
mais abjetos, nas mais humilhantes mendicidades de classe média, alcança apenas
manter meus filhos com vida, que devem fazer esforços heróicos para relevar a
comparação com seus amigos, considerando-me, com toda razão, um fracassado.
Quanto tempo faz que não compro um livro, um disco, que não vou ao cinema? Meu
computador está obsoleto, funciona por milagre, mas sequer posso sonhar em
trocá-lo. E a meu redor todos compram, gastam, renovam, mudam, progridem. Com
crise ou sem crise, em minha pátria fases periódicas de consumismo a que
todos se prendem. Todos menos eu. Com o que iria comprar algo, se tenho o bolso
vazio? Sequer tenho cartão de crédito. Vi-me obrigado a ser um evasor
impositivo, por falta de meios. E quando todos os meus conhecidos, cansados
de acumular objetos novos e sensações enriquecedoras, saem de férias a praias
tropicais ou fazem viagens culturais por belas cidades antigas, fico eu
ruminando o rancor em minha pocilga. um milagre poderia prover-me de algo
supérfluo que ilumine minha existência sórdida, mas gastei o milagre por
conseguir o necessário para sobreviver, e não é razoável pretender que a um
beneficiem dois milagres sucessivos.
Por que sempre teve de ser assim? Por que não pôde acontecer de outro
modo se, afinal de contas, para a ordem geral do Universo dava no mesmo uma
coisa ou outra? Por que fui objeto de sua furiosa perseguição, Pobreza? Por que
eu? Quando era menino, em Pringles, se fixaras em mim, quem sabe o
porquê, por meus lindos olhos, que fez míopes, somando a miséria física à
econômica, tornando-me complexado além da conta. então começamos a viver em
*
"Pobreza" La Muela de Juicio a. X, n. 6, La Plata, 1996.
220
estreita comunidade, você e eu. Minha casa repleta de escassez era a sua. Ali
aprendi a lhe conhecer, nas eternas discussões por dinheiro que meus pais
mantinham, quando mostrava seu idioma e meu futuro. E se saía de minha casa,
você ia comigo, minha mão dada a uma das suas, enquanto com a outra me mostrava
a caixa de lápis-de-cores de meus companheiros de escola, seus blocos de papel
para copiar, os sorvetes que tomavam, as bicicletas em que circulavam... De
onde tiravam o dinheiro? Por que eu não tinha? Nunca me disse.
O que realmente chama a atenção é que quando parti, vo veio comigo,
como se não pudesse suportar minha ausência. Minha mãe acatava a separação,
você não. Veio a Buenos Aires junto comigo, instalou-se no meu canto, e nenhuma
de minhas manobras serviu para afastar sua obstinada companhia. Se tentava
trabalhar, ia comigo ao trabalho, no coletivo; se perdia o emprego, você ficava
em casa me olhando ler alguns volumes tristes. Quando me casei, você foi o
único presente que pude dar à minha esposa, a única fada que se inclinou sobre
o berço de meus filhos. Foi a sinistra árvore de meu Natal, o único número de
minha roleta psíquica, a confidente de minhas efusões mais óbvias. Virando-me
na cama, presa de atormentadas insônias, elucubrei todo tipo de fuga até o
cérebro secar. Você sempre me deu grande latitude de ação, mas no último
momento embarcava comigo. Como nesses desenhos animados obsessivos, pude cruzar
mares e continentes, e acreditar que sequer por um instante tinha me livrado de
sua perseguição... para acabar lhe vendo em meu quarto, afanada em pequenas
mesquinharias. Era automático. Acabei me tornando o mais sedentário dos homens.
As evasões da esperança, as mudanças de ocupação, as resoluções, o auto-
hipnotismo funcionaram menos ainda, o que era previsível: quando o literal não
nos serve, as metáforas são menos que inúteis.
Chega. É o bastante. Quarenta e seis anos de condenação não se dão sequer
a um assassino, e nunca faltei com a lei, ao contrário, sou tão bem
intencionado e inofensivo que às vezes me julgo um santo. Não pode me deixar em
paz? Não mereço uma trégua sequer? Mesmo sabendo que a culpa é minha, acho
injusto. Quero ficar só, livre de minhas forças, se é que ainda tenho alguma;
quero ser um a mais na multidão sobre a qual se exercitam as leis do acaso, e
ter a probabilidade, ainda que remota, de ser favorecido pela sorte. Sua
assistência inexorável me deixa farto. Estou doente de sua homeopatia, Pobreza,
queria desinfentá-la... Se houvesse uma possibilidade de me escutar, eu
ameaçaria com suicídio, ainda que nem isso tivesse efeito.
Nesse ponto de meu monólogo vi aparecer, diante de meus olhos, a figura
esquálida, puída, mas em pé, tesa, majestosa a seu modo, da Pobreza. Minhas
palavras deviam ter produzido algum efeito, porque seu aspecto de falsa
submissão perdera lugar para uma fúria genuína, os olhos em chamas, os punhos
fechados, os lábios se movendo violentos:
"Néscio! Desorientado! Imbecil! Fiquei em silêncio todos estes anos,
agüentando suas queixas, seus acessos imaturos, sua inadaptação, sua ingratidão
aos dons que vim derramando sobre você, desde que nasceu. Mas não agüento
mais. Agora você tem de me ouvir, mesmo sem acreditar que lhe sirva de alguma
coisa, porque há gente que não aprende nunca.
"Quem lhe disse que minha companhia era um incoveniente? Acreditar nisso
por ser o que todos diziam a medida de sua frivolidade incurável. Foi para
lhe salvar desse defeito, especificamente, que me dediquei a você, numa
constância que agora vejo desperdiçada. Ter de lhe fazer, a essa altura, a
lista de meus benefícios! Não sei por onde começar, porque fui eu que lhe dei
tudo. Mais que isso, lhe dei o suporte para receber. Dei variação e cor àquilo
que sem minha intervenção teria sido uma rotina amorfa. Dei a alegria de poder
sempre esperar algo melhor: conhecendo você, o que poderia esperar no caso de
não ter conseguido algo, e sim perder? Tal como foram as coisas, suas
expectativas foram sempre de melhora. Medroso e tímido como é, e como teria
sido de qualquer modo, fosse qual fosse seu salário, viveria assustado por medo
de ladrões e vigaristas que sempre lhe ganhariam em astúcia. Dei a você um
motivo para continuar vivendo, o único que teve. Por acaso teria escrito algo
não fosse eu velando a seu lado, espiando seus cadernos por cima do ombro? Por
que faria isso? E caso tivesse feito, teria saído pior ainda do que saiu. Muito
pior! Mas isso também tenho de explicar. Farei pela primeira e única vez,
talvez assim preste atenção.
221
"Você deve ter notado, mesmo com suas limitações, que os ricos são
diferentes. São pelo simples motivo de que enquanto o pobre tem de fazer as
coisas, o rico pode comprá-las prontas; o dinheiro permite se colocar de
entrada num ponto mais avançado do processo, idealmente no ponto final. Onde o
pobre compra a madeira e faz a mesa, o rico vai à loja e compra. uma
progressão: se é menos rico, compra a mesa e pinta ele mesmo; se é mais, compra
pintada. Se o pobre é mais pobre, não compra sequer a madeira, vai ao
bosque, corta uma árvore, etcétera. A pobreza, ou seja, eu, é diretamente
proporcional à quantidade em processo. O rico consegue tudo feito, e isso
inclui tanto serviços quanto bens. Ou seja que o rico fica sem a realidade,
porque a realidade é um processo. Pior ainda, essa disponibilidade de coisas
feitas e prontas para serem usadas se torna uma segunda natureza, aplicando-se
ao entendimento. É por isso que os ricos usam idéias feitas, opiniões
alheias, gostos produzidos pelos demais. Deixam o processo nas mãos dos outros.
Até com seus sentimentos acontece o mesmo, o que os torna tão estereotipados e
superficiais, fazendo mais escandaloso o paradoxo de que aqueles que mais
oportunidades de educação têm, sejam os mais ignorantes e banais. Teria gostado
de ser assim? Percebe que não sabe o que diz? Sem mim, teria faltado a seus
livros a única modesta virtude que lhes de reconhecer: o realismo. E faz a
desfeita de me reprovar?
"Suma, se quiser. Seu primeiro pensamento ao acordar é uma investida
contra mim; o último, ao se deitar, também. Em meio a isso, tudo se reduz a
queixas, esbravejos, recriminações. o ignoro que o avanço da civilização leva
o mundo rumo ao sistema dos ricos, que com o tempo se generalizará; deve ser
isso o que o faz sentir-se marginal e fora de moda, como se eu fosse um lastro
que lhe arrasta a um passado artesanal e esforçado. Poderia ser uma desculpa de
sua parte, mas sua originalidade está aí, e dada a sua inadequação, sem
originalidade você não é nada. Fiz-lhe artista, porque a arte é processo, o
resultado.
"Seja como for, já não lhe sirvo mais de desculpa. Estou farta de ser sua
besta escura, dos insultos, de sua educação. Não agüento mais. Vou embora.
Se é o que tanto queria, poderá se dar por satisfeito: não me verá mais. Vou a
Arturito Carrera, onde estou certa de ser apreciada como mereço."
E sem mais se levantou, dirigindo-se à porta, ofendida, dura de
indignação. Era isso. Ia embora. Mais um passo e estaria fora. Senti uma
vertigem de irrealidade. A angústia encheu-me o peito, intolerável como um
infarto. Todos os discursos me convencem, e este mais que qualquer outro,
porque de certo modo tinha nascido de meu próprio coração e pronunciara-o eu
mesmo (as figuras alegóricas operam assim). Levantei da poltrona num salto e
gritei:
Não! Não vá, Pobreza! Faz de conta que não disse nada, eu suplico. Faz
surdos os ouvidos, agora e no porvir, porque me conheço e sei que não vou
deixar de me queixar. Na verdade não quero que me deixe. Depois de tudo,
estou acostumado. Seria quase como se me deixasse minha esposa. Não poderia
suportar a humilhação. Não nasci para órfão. Fica comigo e me recomponho.
Não faça caso. Reconheço que sou mal educado e que não lhe mereço, mas por
favor, por favor, não vá.
Imóvel, com o na soleira, deixou passar um momento de intolerável
suspense. E depois voltou muito devagar. Tinha no rosto um sorriso sério. Soube
então que me perdoara. Veio até mim com passos ceremoniosos de noiva avançando
rumo ao altar.
E desde então a Pobreza viveu comigo, e nem por um dia abandonou minha
casa.
19 de novembro de 1995
222
A NOVA ESCRITURA
*
A meu ver, as vanguardas apareceram quando se deu por encerrada a
profissionalização dos artistas, sendo necessário começar de novo. Quando a
arte estava inventada, restando apenas continuar fazendo obras, o mito da
vanguarda veio repor a possibilidade de se fazer o caminho a partir da origem.
Se o processo real havia levado dois ou três mil anos, o proposto pela
vanguarda o pôde funcionar senão como um simulacro ou pantomima, daí o ar
lúdico, ou em todo caso "pouco sério" atribuído às vanguardas, em sua
instabilidade carnavalesca. Mas a História abomina as situações estáveis e a
vanguarda foi a resposta de uma prática social, a arte, para recriar uma
dinâmica evolutiva.
Com efeito, e limitando-nos ao campo do romance, uma vez que o romance
"profissional" existe numa perfeição insuperável dentro de suas premissas,
isto é, o romance de Balzac, Dickens, Tolstói, Manzoni, a situação corre o
risco de congelar. Alguém poderia resumir que, se o perigo é de os romancistas
continuarem a escrever como Balzac, estamos dispostos a corrê-lo e com gosto.
Mas seria otimista demais falar de um mero "perigo", a situação de fato
congelou e milhares de romancistas continuaram escrevendo o romance balzaquiano
durante o século XX: é a torrente inacabável de romances passadistas, de
entretenimento ou ideológicos, a commercial fiction. Para dar um passo além,
como fez Proust, é preciso um esforço descomunal e o sacrifício de toda uma
vida. Atua a lei dos rendimentos decrescentes, pela qual o inovador cobre quase
todo o campo no gesto inicial, deixando a seus sucessores um espaço cada vez
mais reduzido, onde é difícil avançar.
Uma vez constituído o romancista profissional, as alternativas são duas,
igualmente melancólicas: seguir escrevendo os velhos romances em cenários
atualizados, ou tentar, heroicamente, um ou dois passos adiante. Em pouco tempo
essa última possibilidade se mostra um beco sem saída: enquanto Balzac escreveu
cinqüenta romances, sobrando tempo para viver, Flaubert escreveu cinco,
sangrando; Joyce, dois; Proust, um só. E foi um trabalho que invadiu a vida,
absorveu-a, num hiperprofissionalismo inumano. Ser profissional da literatura
foi um estado momentâneo e precário, que pôde funcionar em determinado
momento histórico diria, aliás, que pôde funcionar como promessa, no
processo de sua constituição; quando cristalizou, era hora de procurar outra
coisa.
Por sorte, uma terceira alternativa: a vanguarda, que, a meu ver, é
uma tentativa de recuperar o gesto entusiasmado num nível mais alto de síntese
histórica. Ou seja, fincar o num campo autônomo e validado socialmente,
nele inventando novas práticas que devolvam à arte a facilidade de fatura tida
em suas origens.
A profissionalização implica uma especialização. Por isso as vanguardas
retomam, eventualmente e em distintas modulações, a frase de Lautréamont: "A
poesia deve ser feita por todos, não por apenas um". Parece-me equivocado
interpretar essa frase num sentido puramente quantitativo e democrático, o das
boas intenções utópicas. Talvez seja o contrário: quando a poesia for algo que
todos possam fazer, então o poeta podeser um homem qualquer, livrando-se de
toda essa miséria psicológica a que vimos chamando talento, estilo, missão,
trabalho e outras torturas mais. não precisará ser um maldito, nem sofrer,
escravizar-se por um trabalho que a sociedade aprecia cada vez menos.
A profissionalização pôs em risco a historicidade da arte; encerrou o
histórico ao conteúdo, deixando a forma petrificada. Equivale dizer que se
rompeu a dialética forma-conteúdo, que origina o artístico da arte.
*
"La nueva escritura" La Jornada Semanal, 12 abr. 1998. Também em Boletín del Grupo de
Estudios de Teoría Literaria n. 8. Rosario, out. 2000.
223
Mais que isso, a profissionalização restringiu a prática da arte a um
minúsculo setor social de especialistas, perdendo a riqueza de experiências de
todo o restante da sociedade. Os artistas viram-se obrigados a "dar voz àqueles
que o têm voz", como haviam feito os fabulistas, que punham a falar burros,
papagaios, cães, moscas, cadeiras, reis, nuvens. A prosopopéia invadiu a arte
do século XX.
A ferramenta das vanguardas, sempre conforme essa minha visão pessoal, é
o procedimento. Para uma visão negativa, o procedimento é um simulacro
enganador do processo pelo qual uma cultura estabelece o modus operandi do
artista; já para os vanguardistas, trata-se da única possibilidade para
reconstruir a radicalidade constitutiva da arte. Na verdade, o juízo não
importa. A vanguarda, por sua própria natureza, incorpora o escárnio, tornando-
o um dado a mais de trabalho.
Neste sentido, entendidas como articuladoras de procedimentos, as
vanguardas permanecem vigentes, carregando o século de mapas do tesouro que
aguardam serem explorados. Construtivismo, escritura automática, ready-made,
dodecafonismo, cut-up, acaso, indeterminação. Os grandes artistas do século XX
não são os que fizeram obra, mas aqueles que inventaram procedimentos para que
a obra se fizesse sozinha, ou não se fizesse. Para que precisamos de obras?
Quem quer outro romance, outro quadro, outra sinfonia? Como se já não
existissem o bastante!
Uma obra sempre terá o valor de um exemplo e um exemplo vale por outro,
variando apenas em seu poder persuasivo mas, de qualquer modo, estamos
convencidos.
A questão é decidir se uma obra de arte é o caso particular de algo
genérico, que viria a ser essa arte, esse gênero. Se dissermos "Li muitos
romances. O Quixote, por exemplo", talvez o estejamos fazendo justiça.
Retiramos essa obra da História para colocá-la na estante de um museu, de um
supermercado. O Quixote não é um romance entre outros, mas o fenômeno único e
irrepetível ou seja, histórico do qual deriva a definição da palavra
"romance". Na arte, os exemplos não são exemplos; são invenções
particularíssimas as quais generalidade alguma gerencia.
Quando uma civilização envelhece, a alternativa é permanecer fazendo
obras ou reinventar a arte. Mas a medida do envelhecimento de uma civilização é
dada pela quantidade de invenções feitas e exploradas. Então essa segunda
alternativa vai se tornando mais e mais difícil, mais trabalhosa e menos
gratificante. A não ser que se torne o atalho, o que sempre parecerá um tanto
bárbaro ou irresponsável, para se recorrer ao procedimento. E isso é o que as
vanguardas fizeram.
Se a arte tornou-se uma mera produção de obras a cargo daqueles que
sabiam e podiam produzi-las, as vanguardas intervieram para reativar o processo
a partir de suas raízes, sendo que o modo de fazer isso foi repor o processo
ali onde se havia entronizado o resultado. Essa intenção, em si mesma, arrasta
os outros pontos: que possa ser feita por todos, que se desvincule das
restrições psicológicas e, para dizer tudo de uma vez, que a "obra" seja o
procedimento para se fazer obras, sem a obra. Ou com a obra, mas como um
apêndice documental que sirva apenas para deduzir o processo do qual saiu.
Quero ilustrar isso com um artista favorito, um músico norte-americano,
John Cage, cuja obra é uma mina inesgotável de procedimentos. E não deixo de
falar de literatura por Cage ser um músico. Ao contrário. Que "a poesia seja
feita por todos, não por um" significa também que esse "um", ao se pôr em ação,
fará todas as artes, não uma. O procedimento estabelece uma comunicação
entre elas; diria, aliás, ser esta a marca de um sistema edênico, no qual todas
formam uma só, o artista sendo o homem sem qualidades profissionais
especializadas. Ao mesmo tempo, falar de John Cage a essa altura não é trazer
um exemplo. Não é de um exemplo, mas da coisa em si que estou falando.
Sua história é conhecida: um jovem que queria ser artista, que não tinha
condições para ser músico, e que, portanto, chegou a ser músico... um
defeito na causalidade, pelo qual se infiltra o vanguardista. Antigamente, a
vida dos artistas era o oposto, tendo por cânone a de Mozart: a predisposição
era tão importante, a causa tão determinante, que o relato deveria sempre
retroceder mais na biografia, a a primeira infância, o berço, antes ainda,
224
até os pais e avós para ter um início. Em Cage, a causa flutua incerta e segue
avançando nos fatos até a velhice. Seria justo colocá-la em seus últimos anos
de vida, nas famosas peças intituladas com números, compostas entre 1987 e
1992, ano de sua morte. O benefício dessa postergação da causa é a necessidade
de inventá-la a cada vez: Cage nunca teve um motivo prévio e definitivo para
ser sico; se tivesse, teria se limitado a fabricar obras. Tal como foram as
coisas, teve de fazer algo diferente. Pode-se esclarecer essa diferença através
do exame sucinto de uma de suas invenções, Music of Changes, de 1951.
Music of Changes é uma peça para piano solo; no método de elaboração,
Cage utilizou os hexagramas do I Ching, ou Livro das mutações. Foi criada
mediante o acaso. Não se pode dizer que foi composta, porque este verbo aponta
uma disposição deliberada de seus distintos elementos. Aqui, a composição foi
objeto de uma metódica anulação.
Cage utilizou três tabelas quadriculadas, de oito casas cada lado, ou
seja, sessenta e quatro por tabela, que é a quantidade de hexagramas do I
Ching. A primeira tabela continha os sons; cada casa possuía um "evento
sonoro", com uma ou várias notas; na verdade, apenas as casas ímpares o tinham,
as pares estavam vazias e indicavam silêncios. A segunda tabela, também com
sessenta e quatro casas, servia para as durações, não dispostas dentro de um
marco métrico. Aqui, as sessenta e quatro casas estão ocupadas, pois a duração
serve tanto para o som como para o silêncio. A terceira tabela, na qual se
utiliza apenas uma a cada quatro casas, é para a dinâmica, que vai de
pianíssimo a fortíssimo, utilizados separadamente ou em combinação, isto é, de
uma notação a outra.
Lançando seis vezes duas moedas determinava-se um hexagrama o I Ching. O
número desse hexagrama remetia a uma das casas na tabela de sons. Outros seis
lançamentos, outro hexagrama; determinava-se aí a duração a ser aplicada ao som
antes sorteado. A terceira série de lançamentos determinava a dinâmica. (Havia
ainda uma quarta tabela, de densidades: também pelo acaso se determinava
quantas camadas de som teria cada momento; essas camadas podiam oscilar de um a
oito.) A extensão de suas quatro partes, a estrutura destas e a duração total
também saíam do acaso.
O trabalho metódico e puramente automático de se deliberar uma nota após
outra faz a peça do princípio ao fim. A que soa essa peça? Das premissas de
construção se conclui que soará a qualquer coisa. Não haverá nem melodias,
ritmos, progressão, tonalidade, nem nada. Salvo aquelas que saírem ao acaso.
Isto é, se o acaso assim desejar, haverá tudo isso.
É curioso, mas seria possível afirmar que, dado o procedimento, a peça
deveria soar completamente atemporal, impessoal e sem-lugar, mas soa
intensamente a 1951, à obra de um discípulo norte-americano de Schöenberg,
sendo muito característica de John Cage. Mas de que jeito? A única coisa que
fez Cage, em 1951, foi decidir o procedimento; nem bem começou a escritura,
suspendeu-se a data e a personalidade, bem como a civilização que as envolvia.
Se a data, a personalidade e a civilização seguem presentes no produto final,
significa que estamos equivocados ao assinalar sua presença em processos
psicológicos no ato da composição.
Suponhamos que os Noturnos de Chopin tivessem sido escritos sob o mesmo
procedimento. Não necessariamente com o I Ching, mas sim com tabelas de
elementos, uma seleção deles conforme o acaso. Não é tão tresloucado, pois
essas tabelas sempre existiram, ainda que em estado virtual, e a atualização de
seus elementos sempre se fez mais ou menos ao acaso, salvo que esse acaso
poderia se chamar inspiração, capricho ou inclusive necessidade. Para manter a
tonalidade ou a métrica, não seria preciso preparar tabelas ad hoc.
Logicamente, o romantismo não podia renunciar às prerrogativas do eu sem
corromper sua fábula. O construtivismo a que se opunha tendia à impessoalidade
e não estranha ter experimentado com o acaso. Na época imediatamente posterior
a Bach, compôs-se ocasionalmente através do acaso, com dados; fizeram isso
Mozart, Haydn, Carl Philip Emmanuel Bach, dentre outros. O ingresso da
personalidade do artista, de sua sensibilidade, bem como das complicações
políticas do eu, inicia com o romantismo, demorando um século para se esgotar.
O grande mecânico Schöenberg uma volta de parafuso na profissionalização do
músico, preparando a entrada de um novo tipo de artista: o músico que não é
225
músico, o pintor que não é pintor, o escritor que não é escritor. em 1913,
Marcel Duchamp fizera um experimento no mesmo sentido, determinar as notas ao
acaso, mas sem executá-lo; considerava a execução "bastante inútil". Com
efeito, para que realizar a obra, se se sabe como fazê-la? A obra serviria
apenas para alimentar o consumo ou sanar uma satisfação narcisista.
Cage justifica o uso do acaso argumentando que "assim é possível uma
composição musical cuja continuidade está livre do gosto e da memória
individuais, bem como da bibliografia e das 'tradições' da arte". Isso a que
chama "bibliografia" e "tradições da arte" não é senão um modo canônico de se
fazer arte, que se atualiza naquilo que denomina "o gosto e a memória
individuais". O vanguardista cria um procedimento próprio, um cânone próprio,
um modo individual de recomeçar do zero o trabalho da arte. Faz isso porque em
sua época, a nossa, os procedimentos tradicionais se mostraram concluídos,
feitos; o trabalho do artista se deslocou da criação artística para a produção
de obras, perdendo algo essencial. E isso não é nenhuma novidade. Santo
Agostinho disse que apenas Deus conhece o mundo, porque ele o fez. Nós não,
porque não o fizemos. A arte seria, então, a tentativa de se chegar ao
conhecimento através da construção do objeto por conhecer; e esse objeto não é
outro senão o mundo. O mundo entendido como uma linguagem. o se trata,
portanto, de conhecer, mas de atuar. E acredito que o elemento mais são das
vanguardas, daquelas cujo epítome é Cage, é devolver a ação ao primeiro plano,
não importando que pareça frenética, lúdica, sem direção, desinteressada dos
resultados. Tem de se desinteressar dos resultados para permanecer sendo ação.
O procedimento das tabelas de elementos utilizado por Cage poderia servir
para qualquer arte. Na pintura seria preciso fazer tabelas de formas básicas,
cores, tamanhos e utilizar algum método de azar para ir escolhendo quais
atualizar no quadro. A arquitetura também poderia ser praticada assim. O
teatro. A cerâmica. Qualquer arte. A literatura também, é claro.
Ao compartilharem o procedimento, todas as artes se comunicam entre si:
comunicam-se por sua origem ou por sua geração. E ao remontar às raízes, o jogo
começa de novo.
O procedimento, seja qual for, em geral consiste em remontar às raízes.
Daí que a arte que não utiliza de um procedimento, hoje em dia, não seja arte
de verdade. Pois o que distingue a arte autêntica do mero uso da linguagem é
justamente essa radicalidade.
226
A CIDADE E O CAMPO
*
Encontrar um cenário onde situar a ficção é a metade (ou mais) do
trabalho do narrador. A cena física estabelece a cena humana, e a coincidência
das duas ocasiona a peripécia. Em grande parte, o trabalho de escrever uma
ficção consiste em criar as condições para que a ficção se faça sozinha. E esse
trabalho de criação, vale dizer, é feito sob condições que põem o autor na
História.
O histórico opera como um marco regulador da verdade. E em se tratando da
verdade, a ficção (isto é, a anedota, objeto do trabalho do narrador) tornará
particular o geral (o cenário escolhido). Assim, o relato se beneficia de uma
"verdade" prévia, embora sempre corra o risco de se tornar um exemplo. Um
escritor, com todos os seus livros, pode ser um exemplo de uma verdade, ou uma
verdade em si ou seja, uma verdade nova, o que vem a ser uma espécie de
oxímoro que define a peculiaridade da literatura.
Há cem anos, os escritores latino-americanos estavam aprendendo o ofício;
por outra, talvez se devesse dizer que as sociedades latino-americanas estavam
aprendendo a produzir escritores. Pela lei do menor esforço, nesses casos a
tendência é tomar cenários sistematizados aos pares, cujo contraste dita os
traços pertinentes: cidade/campo, ricos/pobres, passado/presente, Europa/
América, liberais/conservadores etc.
Em cada literatura nacional latino-americana, do México à Argentina,
esses pares se modularam de forma distinta.
Tomemos o par cidade/campo, um dos mais produtivos de todo o continente.
O campo e a cidade são cenários formalizados e com longa tradição, que
remonta ao "menosprezo de corte e alabança de aldeia",
**
e, antes disso, à
literatura greco-latina.
Para torná-lo operacional, é preciso elencar quatro termos, campo,
cidade, homem do campo, homem da cidade, e combiná-los, de modo a formar os
quatro temas básicos. Há, é claro, dois níveis de produtividade distintos. Se o
cidadão está na cidade e o camponês no campo, a peripécia fica por inventar, e
para isso se recorre a elementos psicológicos ou sociais. Se as personagens
circulam e passam ao campo oposto, isso é uma peripécia e, de certo modo,
uma ficção, ou arquificcção, talvez o modelo original de toda ficção possível.
O tema do camponês na cidade é o mais tradicional, e também o mais
"normal", que possui por referente um processo histórico de urbanização ou
migração às cidades que realmente se deu e que continua acontecendo. Seu
oposto, o cidadão no campo, de preferência acentuado como pedante e
intelectual, é, pelo contrário, uma inversão, e como depende de referentes
menos universais, bem mais interessante historicamente: é preciso sempre
verossimilizá-lo em particular. No primeiro caso, simplesmente se aplica o mito
e o trabalho está feito, como na comédia dell'arte. No segundo, trata-se de
mitos novos, ou seja, de História.
No Rio da Prata, o contraste campo/cidade foi mais forte que em qualquer
outro país do continente, isso pela existência de grandes cidades européias, o
peso social da classe média que as habitava e pelo tipo de exploração extensiva
do campo. Campo e cidade foram duas civilizações distintas com culturas
autônomas.
Sobre as décadas 1870-1880, o dispositivo cidade/campo ocupa toda a
literatura do Prata, a ponto de podermos afirmar tratar-se da face literária do
processo de criação da nacionalidade. Por definição, o romantismo trabalhava
com pares míticos; nessas décadas, a literatura séria, obrigada a tomar
*
"La ciudad y el campo" Conferência, Colegio de México, 1998.
**
Referência ao livro de Antonio de Guevara (1480-1545), Menosprecio de corte y alabanza de
aldea, Valladolid, 1539. (Nota do Tradutor.)
227
distância do romantismo, começa a dar realidade aos termos da combinatória.
O velho tema do camponês na cidade aparece classicamente no Fausto, de
Estanislao del Campo, de mito a mito. O ready-made exime-o de recorrer à cor
social reivindicatória que deve sim utilizar contemporaneamente o tema do
camponês no campo, cujo modelo é fixado em Martín Fierro.
O equivalente urbano da literatura gauchesca é o naturalismo, ao fazer do
objeto de seu olhar um sistema cultural completo e alheio. Em Zola, figura e
fundo interagem num estilo que obtém toda a sua poesia das ressonâncias entre
as vibrações de cada um. Em seus discípulos, o método não poderia senão
degenerar na colagem e na caricatura; as personagens acabam desfilando seus
dramas genéticos por cenários escolhidos ao acaso, e os sucessivos lances de
dados esboçam o mapa ideológico do autor. É o caso de Eugenio Cambaceres, que
preenche, com breves romances dos anos 1880, os arquivos do homem da cidade, no
campo e na cidade. Em Sin rumbo, o homem da cidade traslada ao campo seu dio
e seus maus modos simplesmente porque pode: o campo é seu, e o único modo de
anular esse dado, à espera da Revolução, é o suicídio. En la sangre, em
contrapartida, tem por protagonista um homem da cidade que o é proprietário
do campo, e essa circunstância, dadas as condições do naturalismo adaptado à
Argentina, deixa-o definitivamente fora de lugar. Daí que o único caminho que
lhe reste seja a violência genética, sob a forma da sedução de uma herdeira de
propriedades rurais.
Uma vez estabelecida a nacionalidade e dividido o campo por toda a
eternidade de uma belle époque, a ausência dos fazendeiros, somada à grande
latitude do Prata no contraste campo/cidade, a esse par um semblante
abstrato que, a meu ver, é responsável pelo tom intelectual e especulativo que
singulariza a literatura do Prata no contexto latino-americano.
Vejamos como evoluiu cada um dos arquivos cinqüenta anos depois. Um deles
se extinguiu, o do homem do campo no campo: era insustentável, ficando a cargo
das chamadas literaturas regionais, que existiram justamente com esse objeto.
Do Uruguai, que não é tão grande a ponto de possuir regiões, sobreviveu o
"crioulismo". Se em Juan José Morosoli a vida rural tinge-se de um melancólico
fatalismo oriental (todo o encanto desse autor está nessa redundância de homem
do campo que vive no campo), nessa peça culminante que é "¡Qué lástima!", de
Espínola (1933), a tensão cidade/campo (embora a cidade tenha sido relegada aos
confins quase impensáveis de uma nostalgia infinita) se reproduz em outra
tensão de opostos bastante reveladora: a ironia comovente. Todos os crioulistas
uruguaios apontaram seu trabalho à experimentação com a emoção profunda, o que
os reduzia a uma repetição da paisagem no homem. Mesmo sendo um programa
minimalista, teve um desenvolvimento prolongado, que suas premissas
orientavam uma elaboração minuciosa, e o próprio Espínola tomaria de si nada
menos que vinte e cinco anos, depois de "¡Qué lástima!", para dar por
encerradas as três ou quatro páginas de sua transcendental obra-prima,
"Rodríguez", na qual reescreve o Fausto, crioulo ou não-crioulo, encerrando com
o triunfo do camponês a identidade campo-campo.
O outro arquivo do homem do campo, de sua visita à cidade, também se
extinguiu enquanto tal para os anos 1920. Transformou-se no "provinciano na
cidade", ou seja, em Buenos Aires, e também no imigrante na cidade (do campo à
cidade, mas o campo, no caso, são as aldeias de Galicia e Abruzzos). Nessas
condições, a cidade é a máquina de moer carne, carne nova, segundo o modelo
brutal e da literatura popular de El mal metafísico, de José Gálvez.
Quanto aos outros arquivos, do homem da cidade, suas mutações geram
grande parte da literatura argentina do século XX. Na realidade, fundem-se num
rótulo. O homem da cidade vive na cidade definitivamente, o campo sendo
um espaço imaginário de fuga e redenção. O modelo ficou estabelecido por El
juguete rabioso, de Arlt, em que o campo é "o Sul", instância puramente
direcional ou, em todo caso, climática.
Don Segundo Sombra é outro modelo, desta vez da prosopopéia e da
ventriloquia, mecanismo natural da literatura de intenção social (segundo a
sinistra voz de ordem: "dar voz aos que não m voz"). Se na gauchesca o autor
culto falava com a voz real ou suposta do homem do campo, Güiraldes uma
volta de parafuso, fazendo com que este fale como ele, numa transcendência da
ventriloquia, recuperando sua própria voz culta mediante a mágica genética.
228
Pela migração dentro de um mesmo sujeito, antecipa o gênero fantástico: o seu é
uma metamorfose terrorrista intrasubjetiva.
A dicotomia romance bom/romance ruim, de Macedonio Fernández, guarda
parentesco com o par campo/cidade. No "primeiro romance bom", as personagens da
cidade vão ao campo preparar o assalto angélico à cidade; no "último romance
ruim", personagens da cidade, que não saem dela, criaram as condições de
bondade propostas no outro modelo. No vel das histórias, Adriana Buenos Aires
é posterior à Novela de la Eterna. Mas por que este é "bom" e aquele "ruim"?
Porque o que torna ruim a literatura é a aceitação do cenário e das condições
que este lhe impõe, e o que a torna boa é o processo de sua gênese; isso
deveria ser levado a sério, coisa que nem sempre acontece com essa dicotomia
macedoniana.
O matiz intelectual, especulativo, que é a peculiaridade da literatura
argentina e do qual Macedonio assinala o limite a que Borges teria de transpor,
se reflete nesta frase: "Se pudesse passar uma hora deitado no chão, de boca
para cima, em pleno campo, desvendaria o enigma do Universo".
O projeto de "volta ao campo" sofre uma mutação igualmente (ou mais)
especulativa no romance El paisano Aguilar, de Amorim: o homem da cidade que se
embrutece no campo onde, a rigor, teria ido se refinar. O livro fracassa,
mesmo sendo legível, porque a idéia de "camponificação" é cômica; Amorim,
aliás, era um homem resistente ao humor, apesar de encarnar (ou justamente por
isso) o paradoxo essencialmente cômico do milionário comunista. Também tinha
reservas ao humor o argentino Benito Lynch, que desenvolveu o projeto de
escrever um Martín Fierro romance, no Romance de un gaucho, assumindo a
prosopopéia sem mudança genética; no seu caso, o resultado é ilegível.
Bioy Casares tocou no tema da camponificação, num conto em que um jovem
escritor se retira ao campo, em busca de sossego e da concentração de que
necessita para compor sua obra filosófica; em alguns poucos anos acaba por se
transformar num camponês rude e semi-analfabeto. Aqui, o tratamento é
humorístico: não no relato em si, que é bem mais melancólico, mas no projeto,
que ao retomar o formato conto, conatural a Bioy, pode se limitar tão-somente à
idéia que o gerencia, uma espécie de chiste.
O humor sempre indica um esgotamento. E, com efeito, a partir dos anos
trinta a relação campo/cidade deixa de ser produtiva na literatura argentina,
em sua corrente principal. Mas como nem sempre se necessitam elementos
previamente sistematizados para sustentar a economia da imaginação, o fim da
civilização de contraste, o arquivo do campo, do gaúcho, de sua linguagem e da
conseguinte possibilidade da prosopopéia não pode ficar vazio. E está
efetivamente ocupado pela classe média, como demonstra o próprio Bioy Casares.
Bioy Casares é um caso raríssimo, ainda que não o único, de um autor
pertencente à classe alta que não renuncia nem e em dúvida, um instante que
seja, esse pertencimento que ambientou seus romances da fase adulta, sem
exceção, na classe média baixa, classe que não conhecia sequer remotamente; na
exibição desse desconhecimento baseia seu estilo. Teve de inventá-la a partir
de informações soltas, recolhidas ao acaso, prejuízos e contrastes, exatamente
como se fazia no par cidade/campo. Que nos contos tenha se permitido alguns
quês da classe alta à que pertencia, isso se deve porque, no conto, o cenário
não tem tanta importância, a anedota podendo ir além. no romance o cenário
cresce, a ponto de ser necessária a migração: são tantos os detalhes da
realidade com os quais é preciso lidar que não seria possível fazê-lo na
ausência de seu par contrastante, pelo qual se identificam os elementos
pertinentes.
Entre parênteses, digamos que a literatura argentina pode exibir o caso
oposto, justificável mais pelo esnobismo e pela torpeza de um escritor de
classe média, Sábato, cuja obra romanesca está centrada exclusivamente em
protagonistas da classe alta, com sobrenomes patrícios. Em Sábato, o desdém
paternalista de Bioy Casares se transforma em ódio, concentrado nos sobrenomes
italianos de suas personagens patéticas.
É claro que não é necessário pertencer à classe alta para recorrer à
mitologia da classe média como termo migratório na ficção. É o caso de
Cortázar, biograficamente membro da classe média, que ao efetuar a prosopopéia
se vê levado a uma descorporização total do autor.
229
Aqui é onde intervém o fantástico. Trata-se, com efeito, de uma
literatura de fantasmas. O fantástico não é uma opção genérica dentre outras,
mas o mecanismo obrigatório com o qual se deve fazer avançar a ficção quando o
cenário deixa de ser topográfico para passar à luta de classes. As classes
sociais são um agravante especulativo do cenário: são mundos distintos,
escritos sempre a partir de fora. Aí atua o exemplo representativo porque, para
colocar uma simples réplica na boca de uma personagem, ou a ela atribuir
determinada reação, tem-se de imaginar a totalidade que esse detalhe
representa, ou que qualquer outro detalhe poderia representar. O fantástico é o
mecanismo natural desses mundos alternativos.
É um pouco abusivo, sem dúvida, tomar como exemplo esses autores
derivados como Bioy Casares ou Cortázar. Mas o que os faz indefensáveis
ideológica ou esteticamente é também aquilo que os torna exemplos, ou seja,
peças intercambiáveis numa demonstração. Tornam-se exemplos ao representar um
processo histórico, mas isso os coloca à margem da história, porque um fato
histórico nunca é apenas um exemplo, mas a coisa em si, da qual todo o resto
será exemplo confirmatório.
Bioy Casares e Cortázar derivam de Borges exatamente como Cambaceres
deriva de Zola, porém, com uma diferença-base. Enquanto Borges emprega o
fantástico para representar com elementos de ficção os mecanismos constitutivos
da literatura, seus discípulos empregam-no para dar voz a um sujeito
fantasmagórico. É isso o que os torna exemplos ou sintomas do processo
histórico, desponjando-os, contudo, de realidade histórica. Borges preencheu o
vazio entre cidade e campo com a literatura em si mesma, com a possibilidade
inesgotável de uma prática.
Pediram-me tentar esboçar um paralelo entre o Rio da Prata e o México.
Seria muito arriscado fazê-lo nesse aspecto, ou em qualquer outro, mas é
possível tentar, ao modo de um jogo pueril de equivalências, a partir da
suposição, demonstrável talvez, de que no México não houve um vazio entre
cidade e campo, mas sim um contínuo, cujo veículo foi a violência. Sem o vazio,
não espaço para especulação intelectual na literatura, e esta, por isso,
assumiu uma tonalidade mais sensorial. O camponês não visita a cidade num trem
humorístico; nela entra a sangue e fogo. Caso queira fazer a visita
convencional, deve desencarnar-se como manequim abstrato de "primo do campo" em
Nueva grandeza mexicana, de Salvador Novo. O camponês armado de Mariano Azuela
é o Martín Fierro mexicano. O equivalente da versificação em Los de abajo é a
sucessão de situações revolucionárias, as quais se tornam paradigma do gênero;
por isso adquirem a monumentalidade equivalente ao verso. Não sei se terão
reparado nas curiosas semelhanças entre Los de abajo e Martín Fierro, que em
certas passagens chegam ao decalque por exemplo, quando Demetrio Macías
repete quase literalmente uma estrofe de Hernández: "Yo soy de Limón... Tenía
mi casa, mis vacas, y un pedazo de tierra para sembrar...". São nostalgias
universais, concordo, mas para que o universal aconteça, deve haver sujeitos
históricos que o manifestem em ocasiões pertinentes, o que justifica, de algum
modo, a busca de equivalências.
No México, uma vez preso o camponês à quina histórica da cidade, a
oligarquia vencedora celebra seu triunfo fazendo-o participar de uma dança de
fantasmas. Pedro Páramo é o Don Segundo Sombra mexicano (os dois são típicas
"pontes de prata"), salvo que na Argentina (onde, na realidade, não haveria
nada o que festejar) a operação é menos truculenta. (Ou seja, de Güiraldes se
pode dizer tratar-se de um escritor de segunda.)
Faltaria o Borges mexicano. Poria nesse lugar Elena Garro. Tanto num como
noutra a mesma superação transcendente do par campo/cidade. (O mesmo em
Espínola.) A reinvenção da literatura em Borges se transpõe em Elena Garro na
prática do romance codificado, que esta levou à expressão xima, uma
privatização biográfica da violência nacional.
E aqui poderia terminar, na alusão a um dispositivo mediador de cidade e
campo: o piquenique. Tal como a de Denton Welch, poeta e mártir do piquenique,
a obra de Elena Garro é a revelação detalhada, quase obsessiva, dessas saídas
da cidade em busca do "dia memorável", que será a matéria e a forma da
literatura. Com duas diferenças. A primeira, de índole geral, é que enquanto
230
para um inglês o piquenique pôde ser uma bucólica individual, na América teve
de ser uma épica político-histórica, como mostram, aliás, muitas jornadas
realmente memoráveis, de Una excursión a los Indios Raqueles (Lucio V.
Mansilla) a Os sertões, ou, pelo contrário, desde El cautiverio feliz, de
Bascuñan, a Antes que anochezca, de Reinaldo Arenas. A segunda diferença,
própria e peculiaríssima de Elena Garro, é que nela os piqueniques são
irreversíveis, ou seja, que uma vez abandonando a cidade, é impossível voltar a
ela. Nunca. Após efetuar, mediante o romance em clave, a superação do
individual e do coletivo, da experiência biográfica e da luta de classes, Elena
Garro impõe a essa dialética a direção única da tragédia, com o que entra na
História, e fecha, momentaneamente, o ciclo de transformações do par
cidade/campo.
231
A CIFRA
*
Os que tínhamos vinte anos na década de sessenta e que havíamos
encontrado o caminho da literatura em Borges, nele reprovávamos sua assombrosa
falta de curiosidade intelectual. Poderíamos acrescentar a soberba, a
provocação ou ainda uma genuína limitação, tanto mais surpreendente num gênio.
O certo é que descartara quase tudo de antemão, antes mesmo de saber do que se
tratava. O círculo de seus interesses se fechara na infância, em sua primeira
juventude talvez, e não voltou a se abrir, mesmo a despeito das provas mais
exigentes a que teve de se submeter. Essa carência, exibida de modo quase
militante, chocava mais por contradizer o magistério peculiar que Borges
exercia sobre nós, e nos era especialmente notória já que os anos sessenta
foram, em grande medida, uma espécie de inventário e de relançamento da
modernidade, de um século que havia passado sem praticamente se fazer notar por
um homem inteligente e culto, a quem, para completar nossa perplexidade,
tomávamos como modelo de inteligência e cultura. Seja como for, Borges não
soube nem quis saber nada de seu tempo: nem as ciências, as artes, as
humanidades, a sociedade, sequer a História. Nem Marx nem Freud tinham nada o
que lhe dizer, mas tampouco Schoenberg, Picasso, Eisenstein (a seu ver, o
cinema parece uma arte do século XIX) ou Brecht, para não falar de
Wittgenstein, Lévi-Strauss, Jakobson ou Duchamp.
A primeira justificativa para este curioso estado de coisas é a do
pagamento. Tudo se paga, até o gênio, e se Borges teve de pagar o gênio
literário com a curiosidade intelectual, tem-se de admitir que lhe saiu barato.
De fato, não porque se espantar: muitos dos grandes escritores foram homens
incrivelmente limitados em seus interesses culturais, e a curiosidade
intelectual é uma virtude a mais entre outras, talvez sobrevalorizada (assim
era ao menos naqueles anos, e seria esse um dos parâmetros com que podemos
medir o quanto mudaram as coisas).
No embalo por buscar justificativas, poderíamos falar de concentração, de
intensidade. Talvez o interesse de Borges desenhasse o círculo de suas
necessidades para escrever sua obra, não se diluindo um centímetro além.
Exemplo disso é sua relação com a filosofia, de onde extraiu vários temas e que
tão congenial era à sua inspiração: num antigo manual encontrou tudo o que
precisava, jamais tendo de se incomodar em abrir qualquer livro de filósofo,
talvez apenas com as duvidosas exceções de Schopenhauer e algum diálogo de
Platão.
Por outro lado, não era tão grave quanto nos parecia, em nosso
radicalismo jovem e nossa presunção com a atualidade. Era seu estilo, um estilo
de saber, assistemático, caprichoso; hoje, poderíamos dizer até que adiantou-se
à sua época, exibindo um tipo de saber que, décadas mais tarde, a televisão e a
Internet poriam em voga. Daí, talvez, a fascinação irresistível, um pouco
inexplicável também, que Borges produz na era da informática.
Caso alguém se disponha a montar uma lista de suas exclusões, permanece
como um dado intrigante sua aversão ao conhecimento sistemático, bem como à
atualização do saber. Hoje acredito poder explicá-las em seu conjunto como uma
coisa só, remontando a aversão à sua raiz comum, que não é outra senão a do
saber coletivo, interpessoal. Tanto o conhecimento sistemático como o do
presente se desenvolvem numa empresa coletiva. Apenas o capricho e o passado
asseguram um saber individual, inteiramente próprio. Talvez o passado baste,
sem o capricho: a escolha de informação e de leituras, no passado, nos fornece
um vasto campo para evitar todo e qualquer compromisso intelectual que ameace a
mais perfeita autonomia pessoal. No famoso parágrafo de "Valéry como símbolo",
que tanto julgamos imperdoável, o que de comum entre nazismo, marxismo,
psicanálise e surrealismo para que Borges pudesse descartar todos como
*
"La cifra" Conferência. Homenaje a Jorge Luis Borges. Alianza Francesa Buenos Aires, out.
1999.
232
melancólicas aberrações? que acontecem no século XX, diz. Mas isso não seria
o suficiente, porque no fim das contas Valéry também acontece no século XX. O
que os posiciona no lado do mal é que são iniciativas coletivas, feitas o
para apenas um.
em Borges uma recusa visceral a ser apenas mais um na criação da
cultura, nas continuidades acadêmicas, na acumulação do saber ou ao menos na
acumulação sistemática do saber. A única cultura que admite é aquela que, ab
initio, um só homem pode pensar. Um exemplo quase exagerado é seu livro sobre o
Budismo, em que contrasta o aparato filosófico mínimo, de base, razoável e ao
qual guarda respeito, com os ridículos bestiários da tradição coletiva. (Trata-
se literalmente do contraste entre o Hinayana e o Mahayana: Borges foi um homem
do pequeno veículo.) Aqui aparece a anglofilia, a celebrada insularidade do
estilo inglês, a predileção quase excludente dos ingleses pela "literatura para
a juventude", pois na Inglaterra toda filogenia é tratada como experiência
individual, devendo ser iniciada na infância.
Este agnosticismo cultural deveria apoiar-se numa valorização do eu
autônomo, da personalidade característica, da personagem atuando como paradigma
individual e ditando temas, formas e afeições. E isso de fato se dá, porém em
dois níveis heterogêneos, numa dialética incompleta que permanece constituindo
o enigma e o encanto de Borges. Os termos dessa dialética foram demarcados num
texto juvenil, "O nada da personalidade", em que não nega o indivíduo, mas sim
sua "constância" no tempo. O Eu é momentâneo e presente, está sempre por se
reconstruir; o eu como personagem constante seria uma soma impossível, "nunca
realizada, nem realizável". No centro desse texto uma anedota probatória, de
espécie reveladora ou iluminadora: ao se despedir de um amigo em Mallorca, no
instante em que o espírito se desdobra sobre si mesmo, reunindo forças para se
colocar à altura do outro, compreende tratar-se de uma tarefa tanto vã quanto
impossível. Reunir todos os eus sucessivos da experiência individual num eu
genérico seria como tentar reunir todos os instantes do tempo "num instante
pleno, absoluto, possuidor de todos os demais", ou seja, um Aleph biográfico,
no qual não há mais que um Aleph universal da rua Garay.
A esse texto de 1922 responde, quase quarenta anos depois, a famosa
página de O fazedor, "Borges e eu", em que do outro lado de sua obra, feita,
Borges adverte existir, de qualquer modo, uma personagem totalizante, elaborada
às próprias custas, por sua própria atividade; com esse eu apenas aparentemente
definitivo interage o outro, o eu atenuado e momentâneo, cujas armas continuam
sendo a evasão e o esquecimento: "Minha vida é uma fuga, perco tudo e tudo é do
esquecimento, do outro". Nessa frase acrescenta-se, trazido por esse "outro"
inapreensível, o dispositivo que, no fim das contas, é o habitat natural da
vida de escritor: a leitura. E duas linhas antes, falando da obra de Borges,
Borges diz: "Me reconheço menos nos seus que em muitos outros livros".
Tal como acontece a tantos leitores, o gosto pela literatura levou Borges
a achar o trabalho de escrever inútil, insano até, ao menos o de escrever
livros. Aqui também se manifesta sua preferência pelo passado, se por ler
entendemos a atualização do passado num presente inofensivo, e, por escrever,
fazer o presente diretamente, sem mediações. Sempre que se referiu à dicotomia
ler/escrever, foi para descartar sua preferência pela leitura ou para expressar
sua desconfiança para com a vaidade ou quase descortesia de escrever. Era como
se visse nos livros novos uma ameaça paradoxal à leitura. Nessa ameaça, poder-
se-ia ver o valor que atribuía à leitura: nela deveria reconhecer a
possibilidade de um eu atenuado, menos suscetível aos pesos, responsabilidades
e recriminações da História; um eu atenuado mas não ilusório, no qual poderia
fincar o pé, com infinita discrição, para existir e protestar.
Mas sua razão para ler, ou seja, para ser um adulto que continuasse
lendo, residia em sua condição social de escritor. Por algum mandato ancestral
desconhecido, precisava justificar a prática da leitura que, se despojada de
alguma função, lhe parecia ociosa, hedonista, até decadente. É inútil especular
a hipótese de um Borges rico que pudesse trancafiar-se, lendo tudo o que
quisesse, por querer. Tal como foram as coisas, leu (tudo o que quis, e
porque quis, é certo) para cumprir alguma das funções com as quais a sociedade
justifica mais ou menos a leitura literária nos adultos: a de crítico, de
professor, de editor.
233
Pois bem, Borges foi crítico, professor e editor apenas acidentalmente e
a partir de seu prestígio como escritor. Segundo ele, era escritor apenas por
acaso, como um epifenômeno de suas vigílias de leitor. Mas nem sempre foi
assim. De jovem, aceitou naturalmente sua função social de escritor no
presente, o das vanguardas do século XX, e foi um poeta como os demais. Uma vez
constituído seu eu de escritor, deu-se uma reviravolta e começou de novo:
afastou-se de todos os seus companheiros juvenis, rompeu com seus antigos
livros, desligou-se da atualidade, dando início à estranha jornada da
metamorfose do leitor em escritor, dessa vez um escritor com um eu atenuado, o
mesmo eu de um leitor.
Essa metamorfose é toda a obra e o mito de Borges, e percorrê-la em
detalhe vai muito além do que posso fazer. Mas acredito poder dar um modelo
simplificado, um modelo na escala da intimidade da consciência, em que o
comércio com os livros se torna um teatro fantasmagórico e secreto.
A passagem de leitor a escritor lugar a duas ilusões: a primeira é
querer contribuir com o tesouro existente de leituras através dos próprios
livros; a segunda, postular a intenção de recuperar potencializado o prazer de
ler os livros, escrevendo-os a partir da hipótese de que em ambas as atividades
acontece o mesmo, em seus modos passivo e ativo; este tem de potencializar o
mesmo prazer que aquele, conforme o modelo de consumir pornografia e praticar o
sexo. Louváveis, por vezes casualmente fecundas, são ilusões porque implicam
uma duplicação do sujeito, no primeiro caso como porvir, no segundo como
realidade objetiva, ou seja, como outro. Criam um sujeito fantasma, seja
próprio ou alheio: em ambos os casos o leitor deve morrer para dar passagem ao
escritor, que fica afastado do sujeito biográfico com quem se iniciara o
processo.
Nessas armadilhas da fantasia cai apenas o mau leitor, o leitor
ocasional, que não deixa de ser ocasional por mais que as ocasiões se repitam
ao longo de toda a sua vida. O bom leitor (e partimos da idéia de que Borges
foi o modelo do bom leitor) é aquele que descobriu que a literatura forma um
sistema, e que, como todo sistema, está completo, tornando portanto supérfluas
as adições. O prazer não provém deste ou daquele livro, mas dos elementos que
fazem com que este livro ou aquele faça parte do sistema da literatura.
Aqui, o grande assistemático se choca com seu limite interno. Ou talvez
alcance sua meta, que é a literatura como o único sistema cultural apto para um
homem, o único que se pode construir do início ao fim, dos alicerces às
almenaras das torres, sem sair de um mito biográfico singular. Homero,
Shakespeare, De Quincey, Kafka, cada um modulando a seu modo, são todos os
homens; um estilo é uma civilização unipessoal que faz de todos os demais
homens, passados, presentes e futuros, epifenômenos de um universo imaginativo.
Surpreendentemente, nesse ponto Borges é um homem de seu tempo, um
modernista. pouco li a crítica de um livro de T. J. Clark, expressivamente
intitulado Farewell To An Idea, livro que constitui um balanço do fracasso do
projeto utópico do modernismo de criar um grande sistema artístico que desse
conta do sistema do mundo. Era quase inevitável que o autor da resenha citasse
Borges, e citava, nas primeiras linhas, com muita perspicácia: o projeto
sistematizador da arte moderna estava condenado ao mesmo fracasso ambíguo do
mapa borgiano, tão vasto quanto o território que deveria representar.
Mapa e território, realidade e representação, são também leitura e
escritura, salvo que nunca chegaremos a saber se o mapa extraordinário e
absurdo é a leitura que cobre todo o escrito, ou a escritura que chegará a
cobrir por inteiro uma leitura que foi anterior, biográfica e logicamente.
Remontando essa escalada de substituições até um ponto metafísico para além de
toda experiência, ambas as operações se confundem, num núcleo do qual emanam
conjuntamente o sistema do mundo e o da literatura. A função da escritura
borgiana é extrair esses elementos que tornam a literatura sistemática
(elementos que sobreviveram, meio ao acaso, como ruínas) do "volume" onde
estão, na maior parte das vezes ocultos ou dissimulados num mal-entendido, ou
simplesmente inadvertidos, para serem expostos em fórmulas simples e despojadas
do aparato com o qual uma idéia se torna um livro. Essa extração não é apenas
epistemológica, mas também moral, já que tais elementos são despojados de sua
implicação psicológica, pessoal e patética. Antes, claro, são despojados de seu
234
volume. Com isso se ataca, de passagem, uma das angústias mais recorrentes no
leitor: a acumulação inumerável de livros e a impossibilidade de ler todos em
uma vida.
Este é o alfa e o ômega da estratégia de Borges: ao se expor o mecanismo
genérico da literatura, em seus elementos constitutivos, evita-se a exposição
de um sujeito patético a mais, isto é, nos poupamos da existência de mais um
autor na atestada galeria de "casos", a história da literatura. A escritura
não é a exibição de uma psicologia individual e, ao mesmo tempo, a leitura
deixa de ser um trajeto angustiante perdido de antemão, pois o é
necessário ler todos os livros; a leitura se torna uma prazeirosa confirmação a
partir de exemplos ao acaso, exemplos os quais serão sempre confirmatórios.
Pôr essa estratégia em prática acaba revelando um traço surpreendente dos
livros escritos: sua inutilidade. Mesmo sendo bons, e exatamente por isso,
estão a mais na realidade: o que os torna bons exemplos de literatura também os
torna inúteis, porque a essência da literatura que realizam foi efetivada
por todos os bons livros da literatura do passado. Para encontrar um livro que
realmente se justifique, é preciso retroceder até um hipotético Livro Primeiro.
(E na mitologia de Borges convivem, na tensão de um paradoxo em aberto, a
Biblioteca e o Livro, exatamente como convivem o leitor e o escritor.)
A multiplicação dos livros só se justifica na História, onde se
multiplicam as essências da literatura, revelando com isso não serem essências
imutáveis, mas efeitos contingentes do tempo. No presente do ator histórico,
cada livro reinventa a literatura e dissolve uma suposta essência; para
renunciar a essa postura de ator, como desejou Borges, é preciso reinvestir na
figura do leitor, dotando-a de poderes insólitos, cujo modelo seria Pierre
Menard. Nessa invenção transmutadora estão os limites da imaginação de Borges:
nele a História é confirmatória, não criadora. O sujeito histórico que assumiu
a máscara do leitor se converte em livros apenas para atualizar uma essência
trans-histórica, livros estes que servirão como exemplos intercambiáveis de um
sentido que já estava antes e que estará depois.
O que justifica nossa prevenção juvenil, e que no triunfo de Borges
confirma o naufrágio de nossos sonhos, é essa derrota que em suas mãos sofre a
função criadora da História. Ele a transformou numa combinatória, num museu de
exemplos temáticos, cuja mera reunião ao acaso originava o sujeito presente. E
permanecia uma questão de leitura, literalmente. O segredo do eu estava na
cifra combinatória que resultava da soma de suas experiências, e a experiência,
passada a limpo, seria a quantidade de livros lidos. Daí sua insistência "na
descoberta de afinidades secretas e remotas, como se todo o ouvido ou lido
estivesse presente, numa sorte de eternidade mágica" (a citação é de seu artigo
sobre Alfonso Reyes, de 1960). Esse presente convertido em "mágica eternidade"
é a memória, salvo que o peso da definição está invertido: não é que com a
memória se recordem as leituras; as leituras criaram esse outro presente, um
presente a-histórico e combinatório, ou seja, a memória borgiana. se disse,
alguma vez, numa tentativa presunçosa de explicar a originalidade paradoxal de
Borges, que seus ensaios eram feitos por um procedimento automático: tomar ao
acaso dois artigos da Enciclopédia Britânica, resumi-los em prosa elegante, e
buscar uma relação que, a favor do acaso, não poderia deixar de indicar
inteligência e erudição. Quem dera fosse o fácil. Mas a calúnia é
iluminadora, pois aponta a essas "afinidades secretas e remotas" que tornam
inútil a curiosidade intelectual. De fato, esta não pode operar senão desde uma
vontade individual, projetada a partir do presente histórico, carente de um eu
psicológico constituído pela História, do qual talvez os últimos espécimes
fomos aqueles adolescentes dos anos sessenta. Num salto mágico, o sujeito
incapacitado para a curiosidade intelectual se torna objeto desta, da qual
estamos dando testemunho.
Uma vez que o eu se torna uma cifra do acaso combinatório, a ação cessa
e, com ela, numa ataraxia de leitor satisfeito, cessa também a dor. Tudo reside
em gerar a cifra, e o modo mais econômico de se fazer isso é a leitura. Com
isso chegamos, por fim, a um bom motivo para se tornar leitor. Os livros são
ideais para se gerar a cifra, porque de um livro a outro se pode dar toda a
latitude possível do espaço e do tempo, alcançando-se o resultado com o menor
gasto possível. Alguns poucos livros, proporcionados pelo acaso da biblioteca
paterna ou por qualquer encontro casual. Não é necessário serem todos, nem os
235
melhores, nem os mais importantes. Quem poderia julgar isso? O sujeito
histórico, mas este, porém, foi eliminado. O peso da definição se inverte
também aqui: os livros não necessitam ser os melhores no presente, já que sua
escolha casual no passado foi aquilo que os definiu como os melhores para
cumprir sua função. Bastaria estarem afastados uns dos outros para que sua
conjunção resultasse uma entidade única e sem comparação. O acaso biográfico
arranja para que esses poucos livros formem uma constelação distinta em cada
leitor, e o resultado, essa cifra não compartilhada com ninguém, constitui o
super-homem secreto que, por ser único, tem um poder único. E quem pode dizer
até onde chega o poder de uma particularidade absoluta? A espécie humana ainda
não chegou a conceber a potência do novo. Em nossa frivolidade infinita, vimos
usando-o apenas para nos tornar artistas.
236
KAFKA, DUCHAMP
*
A fábula como forma literária breve, de Esopo e La Fontaine, é um gênero
demonstrativo, isto é, pretende demonstrar uma verdade moral, histórica ou
política. Os gêneros didáticos, ou todo discurso que em geral pretenda
demonstrar uma verdade, necessitam dos "tipos", dos indivíduos universalizados,
que os indivíduos individuais possuem contingências demais para funcionar
como blocos eficazes numa demonstração. O que os tipos sociais ou históricos
são no romance realista, na antiga fábula foram os animais, e a passagem do
indivíduo à espécie, nestes, é tranqüila. A espécie funciona como tipo na
sociedade da fábula, o "reino" animal, onde o Leão é Rei; o Macaco, Ministro do
Interior; o Coelho, proletário e a Raposa, conspiradora. sempre apenas um de
cada, porque com um já basta para fazer a ação avançar, isto é, chegar à moral.
Onde fábula, animais, e vice-versa; ou ao menos fábula onde
animais como protagonistas da história. Quando se trata de animais e a intenção
não era escrever uma fábula, tal como nos relatos de Kafka, vale a pena
investigar se não estará justificada nossa suspeita de que mesmo assim, no fim
das contas, ainda sejam fábulas. Nesse sentido, quero examinar o conto
"Josefina, a cantora ou A cidade dos ratos", em cujo título se demarca o
duplo status dos animais na fábula, como indivíduo e como espécie.
Mas, em se tratando de uma bula, o que quer dizer "demonstrar"? Não
uma moral visível, é claro, mas desde que recebeu leitores, todos viram nesse
conto o esboço de alguma lição sobre a situação do artista na sociedade. O que
me parece que ninguém notou é a classe particular de artista e obra de arte que
se desenha no texto, que não é outra coisa senão o ready-made, tal como o
inventou Duchamp. Ou seja, a obra de arte como um objeto qualquer, eleito
dentre o universo dos objetos com expressa indiferença estética e ética, e
promovido a obra de arte pela decisão do artista. O ruído de Josefina é um
ready-made completo. E do ready-made Kafka descreve, ao início do conto, num
parágrafo, a sua caracterização perfeita:
O que ela produz é um simples ruído. Caso alguém se coloque a uma boa
distância e a escute, ou, melhor ainda, caso queira colocar à prova seu
discernimento e procure reconhecer a voz de Josefina quando ela canta,
digamos, em coro, esse alguém invariavelmente não identificará mais que um
chiado vulgar e corriqueiro que, caso se destaque por algo, é por sua
fragilidade ou falta de força. Mas quando se está diante dela, não é um
simples ruído; para entender sua arte não basta ouvi-la, é preciso também vê-
la. Mesmo que não fosse nada além de nosso ruído cotidiano, algo
especial em alguém que surge solenemente para executar o que é apenas normal.
Quebrar uma noz é uma atividade a que ninguém chamaria arte;
conseqüentemente, ninguém se atreveria em reunir um auditório para entretê-lo
fazendo isso. Mas se ainda assim o faz, e consegue seu propósito, tem de
haver um jogo que vai além do quebrar as nozes. Mas talvez se trate apenas
disso. O que acontece, porém, é que temos passado essa arte por alto, mesmo
sendo mestres nela, e que foi preciso esse novo quebrador de nozes para nos
mostrar do que se tratava essa arte na realidade, a ponto de que poderia
convir-lhe, para um maior efeito, ser um quebrador menos hábil que a maioria
de nós.
No caso de Josefina, não se trata de invenção da música (nesse caso seria
um mito, não uma fábula), assim como o mictório de Duchamp não é uma invenção
da escultura. A música já existia entre os ratos:
*
"Kafka, Duchamp" Tigre n. 10: La fable (I). S.l.: Centre d'Études et de Recherches
Hispaniques de l'Université Stendhal (CERHIUS), 1999.
237
Podemos ser pouco musicais, mas temos nossas tradições de canto; o canto não
foi desconhecido para nosso povo nos tempos antigos, é mencionado em lendas,
havendo inclusive canções que chegaram até nós, mesmo que ninguém as
cante. Temos alguma idéia do que é o canto e, falando especificamente, essa
idéia não coincide, absolutamente, com o que Josefina faz.
Do mesmo modo, os ready-mades de Duchamp "não coincidem" com a idéia
tradicional que fazemos de pintura ou escultura.
O ready-made tem algo de fábula, isto é, de demonstração "divertida", um
tanto artesanal e doméstica, tal como eram a física ou a química "divertidas"
de antigamente, quando ainda estavam ao alcance de todos. Daí que a brevidade
seja um traço que ready-made e fábula compartilham. Por ser demonstrativo, e
dado que a essência da demonstração é justamente demonstrar-se, e pelo caminho
mais curto, a fábula é necessariamente breve: podendo-se supor o leitor
razoavelmente convencido, a fábula acaba; estendê-la seria correr o risco de
fragilizar essa convicção.
A brevidade, em geral, está em função daquilo que se tem de dizer: nos
gêneros breves não se escreve para ocupar o tempo do leitor, como no romance,
mas para ocupar sua inteligência. Isso pode ser questão de um instante ou,
melhor dizendo, sempre é. Quanto mais breve, mais eficaz.
O ready-made também tende, e pela mesma razão, à brevidade. Seu próprio
nome diz: "já feito", isto é, com o tempo incluso. Por mais tempo que tenha
levado para elaborar o mictório ou o porta-garrafas (que além de tudo são
objetos industriais, nos quais a relação tempo-fatura que regia os objetos
artesanais tinha sido transformada), sua transmutação em obra de arte é
coisa de um instante, do instante psicológico da decisão do artista.
Nesse sentido, no sentido em que funciona como uma fábula, o ready-made é
um modelo de toda a arte do século XX, que é experimento de arte ou arte
experimental. O experimento é breve, que busca chegar o quanto antes à
conclusão: "... eis o que gostaríamos de demonstrar". O Nu descendo a escada
foi uma prefiguração dessa relação transfigurada com o tempo.
Kafka, por sua vez, teve uma questão pendente durante toda a sua vida, a
respeito da extensão dos seus escritos. É conhecida a sua idéia de quepodia
escrever bem se o fizesse "de uma vez só", numa única sessão, e o que se pode
escrever numa jornada (uma noite, em seu caso) tem limite. Daí que
tendesse naturalmente à escritura de fábulas. Para ele, as coisas se estendiam
mais que para Esopo, dado seu estilo jurídico de verossimilização. Necessitava
examinar a ação microscopicamente, dar-lhe razão, não tanto com finais
"psicológicos" mas, pelo contrário, como casuísticas, e as espécies animais
(poderiam também ter sido vegetais; e foram humanas, sociais) obedecem ao
complexo de causas a que melhor se adapta seu estilo. "Josefina, a cantora..."
é o caso perfeito de uma fábula de Esopo reescrita por Kafka.
Mas qual a moral dessa fábula? Creio que é preciso buscá-la na distância
entre a obra de arte produzida por Josefina, o canto, e a invenção enigmática
de Duchamp. Kafka descreve o ready-made até suas últimas conseqüências: em sua
produção e em sua recepção.
Primeiro, em sua produção. Isto é, em seu tipo peculiar de produção:
está feito. É o ruído ancestral de todos os ratos, tal qual. Não se acrescenta
nem se retira nada; poderia ser qualquer outra característica da espécie, seus
movimentos, por exemplo (e, nesse caso, teria sido dança, o canto), a cor da
pele ou o contorno do corpo (desenho e pintura), as reações (teatro) ou a
acumulação de provisões ou dejetos (escultura), o que for. Essa produção
"negativa" tem seu inverso positivo: a arte é assumida enquanto tal; Josefina
inventa-se "artista", e sua arte é "alta": nada a ver com as velhas canções
populares de ratos. Que seja uma artista de caricatura é efeito do gênero
fábula, como o leão é uma caricatura do rei, ou a formiga uma caricatura do bom
camponês precavido.
Segundo, na recepção, que também é peculiar. Na fábula de Kafka, a
comunidade, a cidade dos ratos, tem a reação "correta" ao ready-made, se é que
tal coisa pode se dar. Talvez por serem ratos, ou por funcionarem como espécie,
põem-se à altura de um impossível: um ato deliberado e ao mesmo tempo coletivo.
238
(Aí está, seja dito entre parênteses, o núcleo do conceito da evolução segundo
Darwin, tão difícil de captar.) A cidade dos ratos decide, em perfeita
sincronia com o artista, que esse objeto eleito mais ou menos ao azar, e
indiferente esteticamente, é uma obra de arte, atuando em conseqüência disso. O
indivíduo e a comunidade coincidem num ponto, e nada além de um, mas é um ponto
sem volta. Kafka, ou o narrador-rato do conto, coloca-o nestes termos: o canto
de Josefina é "a mensagem da comunidade ao indivíduo". Um discurso qualquer, ou
inclusive uma obra de arte convencional, seria o contrário: uma mensagem do
indivíduo à comunidade. Mas essa obra, esse canto, o ready-made, transmutou o
individual em coletivo por efeito da decisão compartilhada, e ao mesmo tempo
fez do receptor um indivíduo separado e incomunicável, porque não língua por
fora da operação para compartilhar a classe de gozo que esse tipo de arte
proporciona. (Apollinaire disse no começo da carreira de Duchamp que este seria
o homem destinado "a reconciliar o artista com a sociedade", coisa que ninguém
conseguiu entender, ainda que o próprio Duchamp, em sua velhice, tenha dado uma
interpretação muito sensata: "Apollinaire queria dizer algo amável sobre
mim, e isso foi o que lhe ocorreu naquele momento".)
Para nos aproximarmos mais da moral dessa fábula, é preciso examinar um
traço dos contos de Kafka: são quase sempre dois contos, encaixados um no
outro. É algo especialmente notório em textos como "A colônia penal", em que a
história que chama a atenção é a da máquina de torturar-escrever, que tanto deu
o que fazer a críticos e intérpretes. Essa história, contudo, está emoldurada
noutra, a do problema administrativo gerado na Colônia. Como se advertisse que
o assunto "interno" podia monopolizar em excesso a atenção do leitor, Kafka fez
crescer em outros relatos o "marco", mas também excluindo-o em alguns textos,
tais como "O professor escolar". E de fato romances como O castelo e O processo
são descrições do marco de um centro que fica vazio. Talvez aqui esteja o
segredo da inovação de Kafka, a chave do "kafkiano". Desde sempre na literatura
dos relatos, longos ou curtos, utilizou-se uma segunda história, ocasional,
para emoldurar, presentear ou pôr em cena a invenção principal. Kafka acabou
eliminando essa invenção, ainda que desenhando em oco com a invenção
secundária. Ao não dizer nada sobre este centro (sobre o que acontece dentro do
castelo, ou do conteúdo do processo), criou um universo peculiar, que soa a
formalista, vazio, e desse vazio irradia um sentimento angustiante de
inutilidade que contamina a atividade das personagens.
Em "Josefina...", o relato-marco, na realidade o único tema de que se
propõe falar o narrador (o do canto ready-made é uma preliminar para que se
entenda o resto), é a questão do pagamento que Josefina reclama por suas
contribuições artísticas, pagamento que a cidade dos ratos se nega, bem
razoavelmente, a fazer. É como se, nesse caso, a partir do relato periférico
fosse possível detectar o vazio essencial do núcleo; mas, diferentemente do que
acontecia em O castelo ou em O processo, esse núcleo central está habitado por
Josefina, que insiste em reclamar seu reconhecimento, que outra coisa não é
além de seu pagamento.
Neste ponto devemos nos voltar ao "conteúdo", isto é, desmascarar as
personagens da fábula. Ver por trás de Josefina o artista do culo XX, e por
trás da cidade dos ratos a sociedade contemporânea. A partir de Duchamp, o
artista abandona a artesanalidade do fabricante de objetos, e ao renunciar ao
trabalho, deve também renunciar a toda retribuição que não seja abstrata ou
intelectual. Isso os ratos estão dispostos a conceder. Mas o artista pede,
além, um pagamento em dinheiro, e se inicia um caminho sem volta; não pode
deixar de exigir o pagamento, mesmo, sobretudo, quando ficou evidente que não
lhe pagariam. Seu único recurso é legitimar-se historicamente; sem isso, é como
se sua arte não se tornasse realidade.
Aqui vemos que nesse conto (o último terminado por Kafka, talvez o último
que escreveu) a relação entre o que chamei "invenção inicial" e "marco" se
altera, quase some. Em "A colônia penal" havia um equilíbrio perfeito entre
ambos; em "O professor escolar" a invenção inicial (a topeira gigante)
desaparece, mas conserva seus contornos (inconfundíveis, em se tratando de uma
topeira gigante); nos romances, por sua vez, desaparece sem deixar vestígio,
pois o marco devora tudo. Aqui, em "Josefina", ele reaparece, não como o
conteúdo de um recipiente, mas quase como o efeito de uma causa: os ratos se
negam a pagar porque o canto é um ready-made, isto é, algo que incorporou
239
tematicamente o vazio. É um vazio de trabalho, e logicamente não querem pagar
por ele. Se Josefina insiste a despeito dessa lógica, é porque descobriu que a
falta de trabalho não equivale à falta de arte.
A conclusão seria de que o trabalho habita o tempo e o constitui; o
trabalho, de um modo ou outro, sempre é o trabalho de criar efeitos a partir de
causas. Mas em certo momento da história é possível supor o efeito pela causa,
até mesmo adiantá-lo, e isso pode receber o nome "arte".
Kafka não era um crítico de arte, e evidentemente não sabia da existência
de Duchamp e dos ready-mades. Mas vivia a mesma História e estava exposto aos
mesmos estímulos. O formato que deu à sua invenção simultânea foi o da fábula,
com o que a literatura, tal como fizera outras vezes no passado, utilizou
suas expansões pelo sistema das artes para criar realidade. Talvez aí
encontraremos a razão mais antiga das velhas fábulas, que não deveria ser a
repetição estéril, mas a repetição evolutiva. Para que haja criação, é
necessário passar a outro nível. E que outro nível resta senão o da realidade?
Se fosse uma fábula, a moral do conto de Josefina seria precisamente a história
da arte do século XX, tal como aconteceu. A moral das fábulas, se são fábulas
cabais, é redundante: repete o que foi dito e oferece apenas a modesta
gratificação do reconhecimento. Para sair do redundante, para que haja algo
novo, é preciso que se ponha em marcha a História, e a História é real. Na
eternidade (a espécie) da cidade dos ratos, o canto de Josefina foi um fato
histórico, assim como o foram a fábula, o ready-made, Duchamp e Kafka.
240
O INCOMPREENSÍVEL
*
Primeiro vem a língua da fala, a língua universal e perfeita com que se
pode fazer entender, e que realmente se entende, porque ainda não há estranhos.
É o estágio infantil da linguagem e, ao mesmo tempo, do mundo. Dentro desse
mundo transparente, a comunicação consegue sua eficácia máxima, ao preço de ser
um mundo unipessoal. A infância é sempre infância de uma criança. Para que
haja outro, é preciso a triangulação com um adulto, ou com o tempo. Não é um
mundo pequeno, porque é o mundo todo. Suas dimensões estão neutralizadas, não
perspectiva que conta de medi-las. É um mundo cheio de linguagem: não
vazios com que se possa criar uma perspectiva e dar uma explicação. À criança
não ocorre que possam entendê-la; seu mundo está ocupado por ele mesmo, e essa
ocupação é sua língua.
poetas que fizeram dessa situação seu estilo. Poetas obscuros, mas
obscuros por excesso de claridade. É o que diz Chesterton, no livro que dedicou
ao mais obscuro dos poetas ingleses. Browning, diz Chesterton, é obscuro porque
considera aquilo que deseja dizer tão claro que não vê razões para explicá-lo.
A exegese de cada verso seu seria uma dessas piadas que mostram os pais sob as
expressões de seus filhos pequenos, nas quais se tem de contar uma longa
história de microscopias domésticas para que o sentido no fim desponte, como um
parto risonho das montanhas.
Em 1840, quando se publica o primeiro poema de Browning, Sordello
provocou uma comoção enorme entre os leitores: resistia não à interpretação,
mas à compreensão mais elementar. Era como se estivesse em chinês, todos
queriam lê-lo, todos corriam às livrarias para comprá-lo entusiasmo este que
um livro realmente escrito em chinês não despertaria. Dessa temporada, uma das
histórias que ficaram registradas, não sei se verdadeira (nem sei se a lembro
bem), diz que um senhor doente, em seu leito-de-morte, grande leitor de toda a
vida, ficou sabendo da aparição de Sordello e de sua fama de incompreensível,
mostrando assim um grande desejo de conhecê-lo. Um parente bem-intencionado foi
comprá-lo, e então o leram. Suas últimas palavras (pois expirou imediatamente
depois de terminada a leitura) foram: "Não entendi nada, mas nada!". É matéria
de especulação se morreu desesperado ou exatamente o contrário, cheio de
esperança. Talvez tenha querido dizer: "Finalmente não entendi algo!". Porque
entender pode ser uma condenação. E não entender, a porta que se abre.
John Cage, numa rememoração de suas leituras juvenis, dizia existir uma
chave bastante simples para saber do que gostava e do que não: gostava daquilo
que não entendia. Se entendia, abandonava desiludido. Pode parecer uma
provocação a mais, mas acredito que todos tivemos a mesma experiência, e que
alguns continuamos tendo. Podemos ao menos reconhecê-la, aqueles que tiveram a
sorte de ser criança antes de existir a literatura infantil, e quando os
romances de Dickens ou Julio Verne vinham em boas traduções, repletas de
palavras incompreensíveis, outras tantas portas abertas ao desconhecido. E
quando se tratava de romances de piratas (os de Salgari, meus favoritos), com
seu vocabulário náutico, era chinês mesmo, esse chinês-castelhano, puro prazer
de leitor, como deveria ser o chinês-inglês de Sordello. Proust,
inesquecivelmente, foi quem disse: "Os livros que amamos parecem escritos numa
língua estrangeira". Nada mais acertado. Além disso, entra na lógica da arte
se é que é verdade, como acredito ser —, cuja primeira função é estranhar,
romper os hábitos da percepção, fazendo novo o velho. A linguagem em nós
envelhece rápido, e os escritores que amamos a renovam. Por isso os amamos. A
essa língua estrangeira dentro da língua materna se chama, genericamente,
"estilo".
Eu, ao estilo tenho chamado "mito pessoal" do escritor, porque acredito
que termina por abarcar tudo, a vida e a obra, num contínuo incessante. O
*
"Lo incomprensible" ABC Cultural n. 422, 26 fev. 2000; posteriormente em El Malpensante n.
24, 1 ago.-15 set. 2000.
241
último resultado da contemplação desse contínuo é a transparência. Todo
escritor vai em direção à claridade perfeita, mas o caminho é um rodeio pelo
incompreensível. Caso se dirija ao claro pelo caminho do claro, poderá ficar no
óbvio, que é a forma mais derrotada da melancolia em literatura. O escritor faz
um longo e tortuoso passeio pelas sombras antes de chegar à luz, e a claridade
final fica impregnada pelo incompreensível, como as brancuras de neon do
paraíso dantesco ficaram marcadas pelas assustadoras espirais das cavernas do
inferno. A claridade definitiva da obra triunfante volta a ser escura, mais
escura quanto mais clara for, e isso assegura a eterna juventude da obra de
arte.
A frase de Proust é de um funcionamento surpreendente nos países hispano-
americanos. Se algo houve de bom em nossa balcanização, foi gerar vinte ou
trinta línguas estrangeiras dentro da mesma língua. Os livros cubanos que nós
argentinos amamos parecem escritos numa língua estrangeira; claro que para o
bom leitor argentino, Borges também parece escrito numa língua estrangeira. O
continente, suas distâncias e suas histórias, reduplica o trabalho do escritor
individual, e o próprio continente se torna escritor; sua língua, ao mesmo
tempo igual e diferente, torna-se literatura ready-made. O tesouro acumulado da
literatura hispano-americana é a grande pedra Rosetta dessa situação paradoxal
de estrangeiros que falam a mesma língua. Mas uma pedra Rosetta ao contrário:
serve para destraduzir. Podemos de fato sentir a tentação de acreditar tratar-
se realmente da mesma língua, ou seja, que cubanos e argentinos dizemos o mesmo
quando pronunciamos as mesmas palavras. Uma jactância perfeitamente anti-
histórica, sobretudo nestes tempos de decadência do sentimento histórico, pode
nos levar a essa ilusão. E intervém a literatura, para recolocar o
incompreensível em seu lugar. Isso se a cada vez em que começamos a entender
demais.
Pois bem, voltemos ao início. A criança fala a língua universal, e em
suas brincadeiras desprende a dialética do compreensível e do incompreensível,
cuja síntese é a literatura. O problema é que não se pode viver para sempre na
infância. É o que aconteceu na China (para retornar mais uma vez à China, se é
que por acaso saímos dela), no século V antes de Cristo. O taoísmo é muito
gratificante, com seus absurdos iluminadores, suas alquimias de contos de fadas
e suas felizes anarquias; mas cedo ou tarde se tem de recorrer a Confúcio, se
quisermos que a sociedade continue funcionando. E o sistema de Confúcio se
baseia no que os tradutores (do chinês) chamam "a retificação dos vocábulos",
princípio e fim de uma política que seja realmente política. O êxito do sábio
confuciano, e do político em geral, é medido pelo quantum de claridade que se
pode incutir à comunicação que cimenta a sociedade.
Retificar as palavras significa, em linguagem mais atual, colocá-las de
acordo com as definições. É uma antiga utopia, que permanece entre as mais
freqüentes, que portátil e embalada a vácuo. Por algum motivo, no entanto, é
tão irrealizável quanto as demais. Taoísmo e confucionismo, em outros nomes
literatura e política, permanecem em confronto e irreconciliáveis; sequer na
definição de seus nomes conseguimos colocá-las em acordo.
Isso, acredito, se deve por só se infundir a claridade de fora para
dentro. O político inicia retificando os vocábulos do Estado, impondo as
grandes definições com as quais a comunidade poderá se entender. A partir daí,
pode avançar numa direção: para dentro, rumo às classes, aos grupos, às
famílias, ao indivíduo, até chegar à noz secreta da consciência do indivíduo. E
quando concluir sua tarefa, quando tiver conseguido que a claridade reine até
nos mais íntimos sonhos de cada cidadão, não terá feito mais que plantar a
semente para que se inicie um movimento contrário, de dentro para fora,
movimento do qual a literatura é ao mesmo tempo o modelo e a realização.
A essa altura, a dialética do compreensível e do incompreensível se
transforma na dialética do subentendido e do mal-entendido. Os dois movimentos
são simultâneos, e suas sobreposições esboçam a história dos livros que amamos.
Dentro de uma comunidade histórica, um livro é forçosamente subentendido,
porque o movimento centrípeto em direção à claridade faz com que esse livro
sendo escrito por seus primeiros leitores, aqueles que habitam o bairro do
autor, e estes, por sua vez, não podem interpretá-lo senão como um esforço
extra para dar luz à comunicação. Até entendemos demais, e o livro oscila
perigosamente no abismo do óbvio. Temos a desgraça de compartilhar suas
242
condições de produção. (Digamos, entre parênteses, que até aqui chega toda a
literatura comercial; e diria mais: que este é o horizonte de toda a cultura
popular, sua condenação à redundância perpétua.)
Mas com os livros que amamos se inicia imediatamente uma criação de
distâncias. O tempo de repente começa a passar, o que é inevitável, e essa
distância não vai parar de crescer. Além disso, os livros se deslocam no
espaço, saem do bairro, da cidade, da sociedade que os produziu; vão parar em
outras línguas, outros mundos, numa viagem sem fim, rumo ao incompreensível.
O barco que os transporta é o mal-entendido. Para um argentino, pensar
que um cubano acredite entender Borges ou Arlt soa tão irrisório como para um
cubano deve soar a pretensão de um argentino de entender Lezama Lima.
Despojados do subentendido, aos livros se pode amar. A frase "amar pelas
razões erradas" é o que os lógicos chamam "uma proposição carente de sentido",
qualquer um que tenha amado sabe.
Nesse barco, de contrabando vão as grandes definições confucianas: para
não dar mais de um exemplo, porque todo exemplo na verdade não é um exemplo,
mas a própria coisa de que estou falando, veja-se a definição de "civilização e
barbárie", que pode ser apenas levemente entendida, subentendida, no dia e na
hora em que foi cunhada pela primeira vez: um minuto depois ficou internada no
mais intrincado oceano de mal-entendidos, sob a forma de interpretações,
atualizações, contextualizações, cada uma delas subentendida por um instante,
antes de empreender sua própria travessia. O revisionismo não consegue ser mais
que redefinição ou transvaloração de palavras.
Seja como for, no fim o mal-entendido triunfa. Essa é a última lição, e é
também uma lição de Proust. Está, se não me engano, no segundo volume da
Recherche, quando, num balneário onde veraneia o narrador com sua avó, aparece
uma senhora, a princesa de Luxemburgo. Seus atavios chamativos fazem com que as
burguesas do Grande Hotel pensem tratar-se de uma prostituta que usa o título
como nom de guerre. Acontece que a senhora é de fato quem diz ser, mas isso
não tem importância. Proust comenta: "Passou-se todo o verão e o mal-entendido
não se desfez, como teria sido no quarto ato de um vaudeville".
Quando li isso, aos quinze anos, minha vida mudou. Um véu caiu sobre meus
olhos, para sempre. A realidade não possui quarto ato. Não tem desenlace. O
mal-entendido não se resolve jamais. o se resolve porque não é esse seu
destino. Para resolvê-lo seria preciso voltar atrás, rebobinar, e se sabe
que por fora da ficção não se volta ao passado. O destino do mal-entendido é
justamente o contrário: fazer avançar o tempo, arquitetar outros mal-
entendidos, multiplicá-los e torná-los mais eficazes, deles fazendo verdades
que sirvam para viver e criar. A criança vive no subentendido; o adulto, no
mal-entendido. Mas deveria ser algo mais que esses dois velhos estados
biológicos e sociais. Talvez exista, e nesse caso eu o chamaria de "o novo".
Ou, por ora, de o incompreensível.
243
O INGÊNUO
*
Sobre Puig, a princípio, dizia-se a palavra "ingênuo". Lembro muito bem,
no ano de 68... Todos líamos freneticamente os estruturalistas, éramos
maoístas, pop, consumíamos Tel Quel, McLuhan, Marcuse, clamávamos para que
florescessem dois, três, cem Di Tellas... Anunciava-se uma nova literatura,
descrita por antecipação, em detalhes até. Era preciso apenas escrevê-la, e de
fato parecia fácil, as receitas pairavam no ar, seus modelos eram convincentes
e a recompensa alta, nada menos que a Revolução... Se a palavra "ingênuo" fosse
uma acusação, seria fácil tomá-la contra aqueles, nós, que a pronunciavam. Mas
não era. Pelo contrário, era a garantia de que estávamos diante de um artigo
genuíno, diante do autor que não seguira a receita como pretendíamos fazer, mas
que coincidia com ela pelo autêntico acaso objetivo a que chamávamos História,
ou, num pleonasmo otimista, Revolução.
Era um caso de poesia e poética, ou de teoria e prática, também presente
em nossas bibliografias. A consciência se tornava autoconsciência na práxis. A
prática sem a consciência de si era um estado marcado pelo anterior: pelo
passado, pela infância, pelo segredo pessoal pequeno-burguês. Mas a teoria sem
a prática, a predicação a que nos condenava nossa entrada na História nesse
momento específico, era um vazio que repugnava nossos instintos mais sadios;
além disso, também estava proscrita pela mesma teoria, que não era menos
pequeno-burguesa — na verdade, era muito mais.
Se algo iria acontecer, seria por fora de nossa vontade. "Voluntarismo"
era um termo obscuro. Mas o que ficava por fora de nossa vontade, que era
nossa vocação? Era um jogo no qual se perdia sempre, é incrível que não o
entendêssemos, sequer diante uma aparição tão indiscutível e indiscutida como a
de Puig. Em meu caso, posso explicar pela aparição em meu horizonte pessoal,
quase na mesma época, de Osvaldo Lamborghini, o não-ingênuo por excelência. Os
dois se pareciam muito para não exibir essa diferença de base. Uma muleta de
Osvaldo, quando surgia alguma questão prática problemática, era a citação
modificada de Ergueta: "Só falta me dizer que porque leio Lacan sou um babaca".
A ingenuidade se deslocava, se invertia. Encontrava sua genuína essência
ambígua e inapreensível. A citação estava incompleta; o vocativo ficava tácito,
mas perfeitamente audível: "Cai fora, picareta!". Ouvi tanto, que daí deve vir
o movimento de fuga que me domina desde então, bastante justificável, aliás,
dadas as premissas paralisantes que o movimento histórico havia imposto. Em
minha inocência adolescente acreditava, de tanto ler Barthes, ter perdido a
inocência, e acreditava existir uma barreira intransponível. Não se podia
voltar atrás, simplesmente porque a História não volta atrás, e, além disso,
porque essa casa anterior à partida estava ocupada pelo ingênuo. Na
literatura, as coisas se fazem uma única vez.
Agora, volto a pensar a mesma palavra quando trato de me esclarecer sobre
Puig e seu mistério que não se esgota. Tudo mudou, menos o sentido derradeiro
dessa palavra escorregadia. Venho pensando nisso, sobretudo alguns meses,
quando reli o famoso artigo de Michel Leiris sobre outro autor favorito meu,
Raymond Roussel, outro autor fundacional que eu começava a ler por aqueles
anos. "Roussel é ingênuo": após refletir durante trinta anos sobre Roussel,
cheguei a me convencer de que está a chave de tudo o que nunca saberei sobre
ele.
O paralelo entre Roussel e Puig é fácil de montar: ambos partem de uma
matéria cultural que não aquela cultivada pelos escritores sérios; a ambos se
impõe uma genealogia, uma filogenia e uma ontogenia fora do mainstream no qual
operam seus colegas. Isso acontece porque ao mesmo tempo emerge um
vanguardismo, ou se uma mudança de paradigma, aparição na qual o ingênuo não
tem nenhuma participação, sequer se conta dela. No caso de Roussel, foi o
surrealismo; no de Puig, o pop ou as chamadas teorias "do texto", em suas
*
"El ingenuo" Conferência, Colóquio Manuel Puig. General Villegas, 2000.
244
diversas hibridações e modelações. A obra do ingênuo, sobrenaturalmente pontual
à citação, é reivindicada de imediato por aqueles que sustentam o novo
paradigma, pelo qual a relação entre o ingênuo e seus leitores assume a forma
de um mal-entendido.
Até aí, e até aí, chega o paralelismo. Porque a História é uma só, a
mesma que transporta Roussel e Puig, e que teve de seguir correndo entre um e
outro. A ingenuidade não se repete, ao menos sem perder a essência que a
define. O autêntico ingênuo é o primeiro e definitivo, o único, Roussel. Em sua
época, entre o ano de publicação de seu primeiro poema, 1897, e o de sua morte,
1933, dão-se todos os vanguardismos e mudanças de paradigmas que marcarão a
cultura do século XX, dos quais os posteriores serão apenas acentuações ou
atualizações. Daí que Roussel, um homem formado no ancien régime, tenha se
mantido irredutível. Foi ingênuo porque foi sincero, e vice-versa, porque a
História permitiu. A ele e a mais ninguém.
O incomparável mérito crítico de Leiris, devido a seu conhecimento íntimo
e apaixonado pelo homem, é ter estabelecido, sem lugar para dúvidas, que
Roussel amava sinceramente a Verne, Loti, Massenet, Copé, a pintura acadêmica,
o teatro de boulevard... Não é preciso duvidar dessa sinceridade para duvidar
de seu gênio. Roussel nunca se interessou pelo cubismo ou pelo surrealismo, em
nada mesmo, sequer por inovações de qualquer espécie. Poderia se permitir isso,
não por ser muito rico e estar bastante louco, mas sobretudo porque não
existira nenhum ingênuo antes dele, ou seja: não se configuraram antes as
condições para escolher entre distintos níveis de valor cultural ou entre
distintos públicos. A ele, a História oportunizava ser o primeiro, e se sabe
que o primeiro pode tudo. A obra, e a própria figura do ingênuo, são
intrinsecamente históricas.
Digamos, entre parênteses, que o surrealismo aí estabeleceu outra
premissa que falharia, em virtude da irreversibilidade que rege esses
mecanismos. Ao criar, no ardor proselitista, a tradição retrospectiva dos
"loucos literários", Breton caiu numa armadilha sem saída, que ele mesmo teve
de revalidar: o verdadeiro surrealismo era o malgré lui feito por aqueles que
não sabiam o que era o surrealismo, e a quem pouco interessava saber. De todas
as vanguardas do século XX, oscilantes entre a erudição e a selvageria, essa
foi a hipoteca mais difícil de levantar.
Do mesmo modo, mutatis mutandi, Puig gostava sinceramente, sem ironia, do
melodrama de Hollywood, e permaneceu gostando sempre. Não acredito que
escutasse com simpatia os críticos que, após lhe cobrirem de elogios, pondo sua
obra à altura de Joyce ou Faulkner, falavam dos "materiais degradados" com que
havia sido construída. Para estender um pouco mais essa comparação impossível
com Roussel, é preciso assinalar uma diferença-chave: enquanto o "material
degradado" ou anacrônico que Roussel tomava por modelo era literário, Verne,
Loti ou Copée, e, em todo caso, as ilustrações de seus livros, em Puig houve
uma alteração de meio, do cinema que não pôde fazer da literatura ersatz ou
prolegômenos. Se Puig tivesse feito cinema, sua intenção original, teria feito
um melodrama aggiornado sem ironia, tal como o de Visconti. Não teria sido um
ingênuo, mas um retardatário. Ao entrar, talvez apesar dele mesmo, nas
engrenagens da literatura, cuja evolução histórica ignorava e o deixava
indiferente, adotou a figura do ingênuo.
A máscara do ingênuo serviu-lhe para manter intacto seu mundo imaginário,
seu gesto estético. Mas, diferentemente do ingênuo original, incorporou sim,
desde o início, a recepção de que sua obra era objeto. Desde antes do começo,
antes de haver recepção. E no momento em que o áudio de um de seus filmes
sonhados se agarrou ao papel, coagulando-se em dispositivo literário, não pôde
ignorar que seu território era o da literatura experimental, pop, vanguardista,
o que quiserem. Não ignorou, nem se importou. Era o instrumento perfeito para
conservar sua liberdade. Houve uma oportunidade histórica a que soube
aproveitar. Dez anos antes, numa atmosfera sartreana, não teria conseguido o
trunfo que o pop ou o camp viriam lhe oferecer.
É certo que, ao falar de "materiais degradados", os críticos se referiam
menos aos refinados filmes de Von Sternberg que aos radioteatros ou aos
consultórios sentimentais das revistas femininas, que também foram matéria-
245
prima de Puig. Mas aqui intervém outro deslocamento de grandes conseqüências. É
o que vai, para dizer em termos compreensíveis, do consumo à produção.
O menino Puig contava os filmes de que havia gostado; todas as crianças
fazem isso. Quando quis fazer seus próprios filmes, deu de encontro com uma
curiosa alternativa: mesmo passando do cinema à escritura, podia continuar no
campo do consumo escolha de tantos escritores —, isto é, mimetizar-se com
quem fez esses filmes, repetir seus termos formais e temáticos, ou retroceder
um passo e incluir no campo a quem consumia tais filmes. Se tivesse optado pelo
primeiro, teria sido um Bianciotti, ou, no melhor dos casos, um Mallea. Ao se
decidir pela segunda opção, foi um Arlt. Esse é o pequeno deslocamento; um
passo atrás, a inclusão de uma personagem a mais, o espectador, arrasta
consigo a construção da fábula evasiva na consciência que se quer evadir, e
essa construção se faz no terreno da luta de classes, que, por esse
deslocamento, entra maciçamente em páginas originalmente destinadas a conter os
soberbos melodramas do amor e da traição. Mais que isso, a construção traz
consigo o dispositivo de construção, que não é outro senão a literatura. E a
literatura, como a História, é uma só. A partir daí, ingênuo ou não, Puig é um
escritor.
Uma vez surgido o escritor, surge também o mistério, e o mistério de
Puig, do qual tratei de me aproximar por esse vinco da ingenuidade, permanece
vigente. É claro que "mistério" é uma palavra vaga, a que se pode atribuir
qualquer significado. Defino-a como o oposto de "segredo": um segredo, por mais
protegido que esteja, sempre acabará por se revelar; o mistério, ao contrário,
é insolúvel, implica as próprias categorias mentais que poderiam elucidá-lo. O
exemplo clássico é o do tempo, definitivamente misterioso; trata-se de uma das
categorias de que nossa mente se compõe, não podemos vê-lo de fora; não podemos
conceber o que vem antes ou depois, nossa mente está feita de tempo e,
portanto, também jamais poderemos vê-lo de dentro. A esse inconcebível "fora"
do pensamento temos chamado "mistério", adornando-o com as invenções mais
românticas. O tempo, apesar de ser um dos mistérios mais sugestivos, não é o
único. O espaço é outro, desde já. Outro, a linguagem. Basta pensar do que
estamos feitos para tocar a matéria do mistério. É paradoxal: o mais próximo e
íntimo é o que ficará para sempre fora do nosso alcance.
Este paradoxo está no centro do trabalho do escritor. Se a elucidação do
sentido é uma anulação, uma "soma zero", como acredito ser, o escritor assegura
sua permanência graças ao mistério. De minha parte, segui amando um autor
quando permaneci diante de um mistério. Puig é um caso pontual. Todos nos
perguntamos o que torna um escritor bom ou grande, o que faz de alguns
escritores de verdade e de outros não. O enigma da qualidade, de que raramente
se fala parte dos bons modos acadêmicos), está no centro de nosso interesse
pela leitura. De minha parte, cheguei a me convencer de que depende
simplesmente do mistério. Se o escritor é feito de literatura, ele não pode ver
o que há por fora dela; a literatura é um mistério que o escritor encarna.
Operando como a Natureza segundo Darwin, com uma intuição que pode ser
diabolicamente exata, os escritores procuram o mistério que os fasobreviver.
Buscam no campo plice que têm à sua disposição: sua obra e sua vida. As
linhas que seguem nesses campos são respectivamente as da ambigüidade e da dor,
por outros nomes forma e conteúdo. Não são duas estantes distintas onde se
escolhem os elementos mais eficazes para gerar mistério, mas uma espiral de
transformações em que a dor, ou a vergonha da vida, aproveita o impulso da
ambigüidade da literatura, e a ambigüidade, por sua vez, com a dor ganha peso e
substância, até se tornar vingança ou exorcismo. Sempre haverá uma volta de
parafuso a mais.
Os críticos, depois, tomarão o mesmo caminho, que pelo avesso:
admitindo o mistério que torna grande o escritor de que se ocupam, partem em
busca dos segredos que ali habitam. Desse modo, asseguram-se de alcançar
resultados. Sabem que, mais cedo ou mais tarde, os segredos acabarão por se
revelar, na medida que desentranharem pacientemente as ambigüidades de que se
revestiram.
Segredo e mistério estão relacionados. O mistério emprega o segredo como
instrumento para seu estabelecimento. E do mesmo modo estão relacionados
246
ambigüidade e dor: um emprega o outro como instrumento ou invólucro, mesmo que
não esteja claro quem usa quem.
A inevitabilidade do uso do segredo para criar o mistério torna
inevitável também a utilização do material autobiográfico. A dor é inseparável
da experiência, e em sua experiência o escritor encontrará os segredos que
valham a pena, ou seja, os únicos e intransferíveis que lhe permitirão dar, com
sua obra, algo novo ao mundo. Mas todos os segredos, sem exceção, serão postos
à luz pelos eruditos do futuro. Todos serão "anulados". De modo que, a certo
ponto do futuro, poderá não restar nada, caso não haja mistério ou, por
outra, caso não haja o irredutível. O mistério vai além do autobiográfico; é a
essência ambígua e inapreensível da literatura: a Grande Ambigüidade.
O escritor procura o mistério tal como o animal, o organismo biológico,
busca a perpetuação de sua espécie. O mistério de um autor é sua garantia de
pertencer à essência interna da literatura, misteriosa porque não possui
exterior. Daí que se possa identificar o mistério a essa incógnita dos estudos
literários: a qualidade. A qualidade é uma reserva de futuro (se não, por que
os escritores se dariam tanto ao trabalho de tentar escrever bem?) E por que
querer esse futuro? Para dar tempo, para que todos os seus segredos sejam
revelados, mote pelo qual o círculo se fecha em perfeita economia.
Pois então, quando a História tem por bem prover uma oportuna mudança de
paradigma, a figura do ingênuo provê a ambigüidade. O curioso é que não pode
haver mais de um por vez (não uma escola da ingenuidade, nem um estilo
ingênuo: é sempre uma particularidade biográfica), e, mais que isso, em toda a
História não pôde haver mais de um. Daí que Leiris possa sim dizer,
definitivamente, "Roussel, o ingênuo". nós não podemos dizer "Puig, o
ingênuo". E se apesar de tudo fazemos isso, é elevando a potência do quantum da
ambigüidade.
A passagem da História à biografia, da sociedade ao indivíduo, se
mediante a dor da experiência. É uma passagem temporal: do presente oportuno,
quase oportunista, que usufrui do ingênuo para se presentear com anacronismo e
enigma, ao passado, onde estão escondidos os segredos vergonhosos da dor. Dadas
as premissas com que opera, como mediador anacrônico entre sociedade e
indivíduo, entre geral e particular, o ingênuo adota a figura de luxuosa
indiferença do dândi. Aí se pode estender o paralelo entre Roussel e Puig:
ambos eram belos, corteses, distantes, vestiam-se perfeitamente. Em seus
livros, Roussel camuflou a dor sob uma retorcida maquinária sadomasoquista, até
não deixar nada visível; Puig pôs tudo à mostra, e seu formato predileto foi o
do destino e do fracasso. Tomava a distância que gerava seu próprio êxito.
Nesse aspecto, Roussel se parece mais a uma personagem de Puig que com Puig; em
seu livro-testamento não fala de outra coisa. E, objetivamente, fica o
testemunho de sua autodestruição. Em seu caso apenas uma anedota que fala de
dor, contada por Leiris, que, numa conversa, para se referir a algo de mau
gosto, trivial ou insignificante, lhe disse: "Isso é Copée". Houve uma reação
imediata de Roussel, como se o tivesse tocado num ponto sensível, que murmurou:
"Mas Copée é um grande poeta". Leiris disse então: "Notei que o atingi", e
registra isso justamente por ser tão raro o dândi autômata, distante e drogado,
mostrar uma emoção.
A ambigüidade e a dor se tocam apenas nesse ponto da conversa, quando se
que seus interlocutores estão em mundos distintos. Algo semelhante não
poderia acontecer com Puig. Não porque no intervalo o ingênuo aprendera a se
proteger; mais que isso, porque no intervalo se produz uma transformação das
premissas, em grande parte pela ação do ingênuo. Essa transformação pode ser
resumida dizendo-se que o único público apto a julgar e classificar toda a
cultura está segmentado, relativizando os juízos. Os leitores, ao se
aproximarem de Puig, faziam isso para elogiar Bette Davis ou Errol Flynn, não
para zombar. O equivalente de Copée, em Puig, é a Argentina, o único vão que
sentia em seu êxito e, portanto, em sua distância. Até o fim, quando já não
havia argumento objetivo, continuou se queixando de não ser apreciado em seu
país. O que poderia parecer coqueteria ou capricho de exigência, tem a ver com
o mecanismo profundo do qual provém toda a sua obra, dessa distância que se
abre entre o subentendido e o mal-entendido.
247
Outra diferença: o ingênuo já não necessita ser um extravagante. Roussel
pôde manter sua ingenuidade com uma pesada couraça de extravagância, ou seja,
de mecanismos de sentido, sem os quais este teria de se apoiar em elementos
não-ingênuos (freudianos, por exemplo). A dor, o cair da máscara têm por função
proteger, como sinal de alarme, a singularidade do único mundo cultural, dentro
do qual o ingênuo pode operar plenamente. Tomemos o assunto da mãe, sempre tão
central. É verossímil que Roussel tenha sentido dor quando da morte de sua mãe.
É verossímil também que, sendo um ndi, não tenha mostrado nenhum sinal
exterior. Ao contrário, o único sinal que deu poderia passar pelo viés de uma
crueldade macabra, como uma irrupção sumamente inoportuna da obra no ponto de
vista mais vital da vida: fez instalar uma pequena janela de vidro no ataúde,
para vigiar o avanço da decomposição.
Hoje, não pode haver esse nível de ingenuidade. Mas na formação da
anedota do ingênuo um mecanismo que consiste em negar a verticalidade do
significado, pelo qual esta é lida como neurose ou exacerbação selvagem de
Édipo, e passar a uma horizontalidade, ou seja, a outras anedotas da vida de
Roussel, ou à sua obra. Certa ocasião, a única em que Roussel foi convidado a
tomar chá na casa de um de seus heróis intelectuais, o astrônomo Camille
Flammarion, receberam-no com um biscoito em forma de estrela. Guardou-o no
bolso como souvenir, mandando fazer, em seguida, um porta-jóia para conservá-
lo, uma caixinha também em forma de estrela, em ouro e diamantes, com tampa de
cristal. (Curiosamente, por heranças sucessivas, chegou a ser propriedade do
doutor Lacan.) Os romances de Roussel, por sua vez, estão repletos de jaulas de
vidro para cadáveres. Sem contar o fato de que a mãe de Roussel viajava sempre
com seu próprio ataúde, para qualquer imprevisto, ao que Roussel respondeu, em
seu testamento literário, dizendo que em suas numerosas viagens "não via nada",
que todos os locais exóticos de seus livros deviam-se ao puro jogo da
imaginação.
Esta negação à verticalidade do sentido, bem como seu transporte à
horizontalidade da obra-vida são a chave do ingênuo ou a chave da sua
ambigüidade: ingênuo na vertical, sábio na horizontal. Muitos conflitos de
interpretação, em Puig, resolvem-se nessa passagem.
E, no entanto, a verticalidade persiste. Essa é a forma da ambigüidade de
Puig, enquanto ingênuo segundo, ingênuo trabalhado pela história do século XX:
o sentido se constrói na horizontalidade da obra e da vida, mas também subsiste
na verticalidade dos sentidos correntes em forma de realismo, de um realismo
sem comparação na literatura argentina. É o retorno do realismo, impulso
inicial de todo escritor e sempre à mercê das transformações da História. de
se levar em conta que a realidade também é um mistério, que engloba todos os
demais. Somos reais, estamos feitos de realidade, e não podemos vê-la de fora.
Todas as manobras individuais para criar mistério confluem num desejo geral de
realismo, que sempre é outro, não o realismo vigente segundo os paradigmas
recebidos.
Osvaldo Lamborghini, que sentia uma grande identificação com Puig
(totalmente unilateral, pois essa é outra característica do ingênuo: todos
podem se identificar com ele; ele, porém, não se identifica com ninguém), dizia
que toda sua obra, a de Puig, poderia ser entendida com auxílio de uma fórmula
nietzschiana: "a emoção profunda". Com efeito, para os que lemos Puig ao longo
de nossa juventude, ao longo de sua vida, não mais o que dizer. Se alguém
fez o realismo da emoção profunda, foi ele. Mas estaremos sempre à margem da
ambigüidade. Emoção profunda era o que sentiam nossas mães ou tias quando
ouviam radioteatros... e o mais curioso, entretanto, é que elas também estavam
à margem da ambigüidade. Porque o radioteatro era ficção; elas não acreditavam,
ou faziam isso entre parênteses, acreditavam como se acredita numa mentira. Não
eram tão ingênuas. É como se a emoção profunda fosse sempre uma mentira, e a
mentira sempre fosse verdade, ou se tornasse verdade no retorno do mesmo o
que diz Nietzsche, por outro viés). É preciso a mediação de um ingênuo para que
haja efeito.
Desse efeito, a figura adotada em nossa civilização é a da mãe com o
filho morto nos braços. seria, como se costuma dizer, "onde morrem as
palavras": no mito, o eterno retorno do mesmo relato, o grau zero ou limiar de
toda experiência possível. É o outro lado da mentira, a emoção profunda
248
propriamente dita. Mas a literatura vem depois, quando o vertical da
profundidade se desvia nas associações horizontais da experiência.
Em seus romances, Puig envolveu a emoção profunda sobre si mesmo; foi
sublime ao permanecer fiel a esse reflexo (ou seja, quase sempre). Desviá-la de
um próprio, apontá-la aos congêneres, tinge de sadismo ou comiseração (dá no
mesmo) o realismo, sendo também um dos motivos pelos quais este pode não se
dar, ou porquê esse almejado realismo seja, por fim, tão deprimente.
Parece-me agora ver Osvaldo pronunciando a fórmula, depois de uma pausa
muito acentuada, entre a nuvem de fumo do cigarro... "a emoção profunda".
Utilizando suas próprias palavras, seria bom acrescentar a rubrica: "fortes
aspas, e uma música soa". Não era ironia, mas uma um tipo de nostalgia de sua
parte. Logo ele, que tinha motivos para saber do que estava falando. Não se
retorna à ingenuidade. Salvo que o caminho de ida seja também o caminho de
volta. Na verdade, existe um caminho, assim como uma única História e
apenas uma literatura. O desejo de se tornar mulher, por ser o primeiro e
último desejo de transformação, incorpora todas as transformações e adota todas
as formas. Quando se esgotarem as formas e não perigo de isso acontecer
tão cedo, pois toda a combinatória da cultura está em jogo —, tornará a se
repetir a Dolorosa, não havendo mais nada a dizer. Assim interpreto uma
frase que eventualmente retorna nos papéis póstumos de Osvaldo, sempre sozinha
em meio à página, não se sabe se como título ou moral de algo que nunca
escreveu, e que, na verdade, é tudo o que escreveu: "A Virgem Maria não voltou
a descolar os lábios".
Parece como se tivéssemos nos afastado muito da ingenuidade. Mas é como
nas escadas irracionais de Escher, em que se sobe e desce ao mesmo tempo,
deixando ou alcançando sempre o mesmo andar. O ingênuo explora a força do
anacronismo latente na História para se tornar único, e como único e desapegado
das generalidades, pode encarnar todas as contradições: o ingênuo sábio, o
dândi doloroso, o reacionário vanguardista.
249
BRAULIO ARENAS: POR UMA LITERATURA MODULAR
*
Um dos mais extraordinários escritores chilenos e hispano-americanos,
Braulio Arenas (1913-88), parece condenado a um definitivo desconhecimento e
menosprezo. As causas dessa notória injustiça são várias. Uma delas é a
classificação, que o coloca na condição fácil de "poeta surrealista" (coisa que
foi, e com firme entusiasmo), e desalenta a leitura. Outra é a dispersão de sua
obra: escreveu poesia, romances, contos, teatro, ensaios, crônicas. Não se
deteve nunca para capitalizar o feito, mas avançou numa atitude
experimental, de fato acentuada em sua velhice. Também conspiram contra ele a
falta de drama de sua vida, bem como certo verniz oficial e até pinochetista
que o cobriu nos últimos anos. Para culminar, o saiu nunca do circuito das
editoras chilenas; e como se ainda faltasse algo, teve a curiosa e
desafortunada idéia de reescrever em sua velhice alguns de seus romances
juvenis, estragando-os sem dó.
Todos estes, no entanto, são motivos circunstanciais que poderiam ter
sido superados. outro mais decisivo, inerente à obra e ao autor: a cortesia
de fazer o leitor pensar que ele teria feito melhor. Com efeito, tomados um a
um, seus livros são defeituosos, parecem realizações imperfeitas de boas
idéias, acontecimentos provisórios num transcurso em que o importante está em
outro lugar. Os sentidos estão suspensos, ganham corpo no sistema geral de
sua obra. E quem se dará o trabalho, hoje, de ler os trinta ou quarenta livros
de Braulio Arenas?
Toda tentativa de interpretação prestigiosa cai diante dos embates
vitoriosos da leitura. Arenas foi desses escritores felizes em poder continuar
escrevendo, e se de reconhecer que o segredo das grandes famas literárias
com freqüência esteve em não escrever. Caso ele tivesse se abstido depois de
seus primeiros dois ou três romances (Adiós a la familia, La endemoniada de
Santiago), estaríamos celebrando-o como o autor supremamente original que
dedicou toda a sua obra ao relato de um dia, um dia do ano de 1929, em que
seu protagonista de dezesseis anos, sempre distinto e sempre o mesmo, descobre
o amor, espia o mistério, morre e renasce.
Mas esse foi apenas o começo de sua carreira. O dia ficou atrás, e houve
muitos outros livros sobre outros dias, sobre outras mortes e renascimentos. Em
alguns dos últimos acreditei ter encontrado uma pista para desentranhar o
segredo dessa obra intrigante e da "fuga para frente" de seu autor.
Um de seus melhores romances, El castillo de Perth (1969), o único que
conseguiu alguma difusão fora do Chile, que houve uma edição espanhola (Seix
Barral, 1978), é um raro triunfo sobre um gênero habitualmente condenado ao
fracasso: o romance onírico. Com efeito, é o relato de um longo sonho de um
jovem provinciano de vinte e um anos, provavelmente em La Serena, cidade natal
do autor, em 2 de junho de 1934, após se inteirar da morte de uma jovem de quem
havia sido colega em brincadeiras infantis. Essa menina, Beatriz Perth, tinha
vivido no povoado enquanto seu pai, o engenheiro Carlos Perth, construía uma
ponte. A família ficava completa com a mãe, Isabel, uma senhora insignificante
de quem o jovem lembra apenas o gesto de levar as duas mãos à cabeça para
ajeitar o penteado. Desde que a família do engenheiro tinha voltado à capital,
o jovem (que se chamava Dagoberto) não sabia mais deles. Dez anos depois, no
jornal o obituário de Isabel. Na comoção, sai ao jardim, de camisa e pantufas,
toma frio, volta a entrar, febril, recosta-se num divã e adormece.
O sonho, que é todo o romance, acontece em 2 de junho de 1134, no castelo
do pérfido Conde de Perth. O elenco de personagens é reduzido: o conde, a
condessa Isabel e a bela Beatriz, que em alguns momentos se desdobram.
Dagoberto, sempre de camisa e pantufas, sempre recuperando a posição reclinada
no divã, é ao mesmo tempo testemunha e ator, também desdobrado em outro
*
"Braulio Arenas: por una literatura modular" Milenio n. 178. México, 12 fev. 2001.
250
Dagoberto, o Imperador da Ásia, que invade o castelo com suas tropas,
terminando por destruí-lo. As aventuras são esplêndidas, surpreendentes, muito
visuais. Uma de suas invenções mais felizes é a que explica a pouca
expressividade do conde de Perth (quer dizer, do insosso engenheiro, pai da
amiga do sonhador); em realidade era uma estátua, dotada de vida por erro de
uma fada desastrada. Certa ocasião, um feitiço transformou em estátuas de pedra
um grupo de cavaleiros que se encontrava numa igreja, onde havia uma estátua
deitada; veio a fada executar o contra-feitiço que devolveria vida aos
encantados, não lhe ocorrendo que nele iria incluir uma estátua verdadeira...
Mas o encanto do livro vai além da invenção romanesca, são necessárias várias
leituras para captar seu segredo.
Este se encontra, parece-me, na construção modular. Com efeito, tudo o
que acontece no romance é uma combinatória de uma dezena de gestos e atitudes
que se repetem mudando o contexto, e com ele o sentido, porém mantendo intacta
a forma. A condessa, por exemplo, em cada uma de suas aparições termina, ou
começa, levando as mãos à cabeça (na vida real, tratava-se da insignificante
esposa do engenheiro, de quem o sonhador lembra apenas esse gesto), e, segundo
o curso da aventura, faz isso para pôr ou tirar uma coroa ou um véu, para
arrancar uma peruca, para espantar um falcão que a ataca, para extrair da
cabeleira uma pomba, com a qual enviará um pedido de socorro... Com tudo
acontece o mesmo; trata-se de um Lego gico cujas peças sempre admitem uma
posição nova, e o prazer do reconhecimento potencializa a surpresa, ao imitá-
la. Esse método é o que permite ao autor triunfar sobre o tédio quase
inevitável aos relatos de sonhos: a sucessão desconexa do "vale tudo" onírico
encontra em El castillo de Perth (e se trata de uma expressão raríssima) a Via
Régia para se tornar obra de arte.
E, de passagem, em sua esquisita artificialidade, o procedimento recupera
o realismo, porque é assim como os sonhos são gerados, nada são além de uma
combinatória, guiada pelo desejo, de uns poucos "restos diurnos". Para
reposicioná-los, inventa-se um relato.
Essa construção modular se revela como o denominador comum de toda a obra
de Braulio Arenas, nos distintos gêneros que praticou. Um denominador comum
difícil de ser percebido porque, dada a sua própria natureza, inclina-se à
metamorfose e ao enigma. Contudo, uma vez localizado, explica algumas de suas
preferências, tais como o xadrez, a colagem, a música... Mais que isso, explica
sua filiação surrealista, escola em que a re-contextualização de dulos
narrativos ou visuais é um conceito-chave. Diria eu que chega até a explicar
porque tenha escrito tanto, pois se sabe que nos jogos da combinatória tudo
é começar, e não se acaba nunca.
O procedimento modular chega à sua culminação no mais estranho dos
romances de Arenas, e meu favorito, Los esclavos de sus pasiones (1975). Também
é o mais desconhecido, pois não teve mais que uma edição, desaparecendo
décadas das livrarias. É um romance que o autor não escreveu, mas montou. O
texto é recortado de folhetins chilenos do século passado em fragmentos curtos,
de meia-frase a um parágrafo, e com eles se encaixa uma nova história. A única
intervenção que se permite o autor é uniformizar os nomes. O efeito é
semelhante ao dos romances gráficos de Max Ernst, também feitos com colagens. A
originalidade de Arenas, que acentua a estrutura modular, consiste em repetir
os fragmentos recortados, situando-os em circunstâncias distintas, o que cria
uma atmosfera mecânica de indescritível estranhamento.
Borges montou a teoria extrema da literatura como combinatória, em "A
Biblioteca de Babel": vinte e oito letras, e dois ou três sinais de pontuação,
misturados e re-misturados, resultam em todos os livros possíveis. Um livro
determinado é a razão de um divido por um número enorme. Esse número diminui se
no lugar de empregar letras como unidades se empreguem palavras, as que estão
no Dicionário. A progressão pode continuar: em lugar de palavras podem-se
empregar frases, as que estão nos livros escritos. A cifra continua sendo
enorme, mas já entra no campo da intuição.
Nesse romance, o último que escreveu, Braulio Arenas fez algo assim como
o modelo da economia modular na literatura, restringindo-se, para maior
claridade, ao padrão lingüístico. Mas antes, em todos os seus livros, não
limitou a modulação a palavras ou frases; aplicou a gestos (como em El castillo
251
de Perth), datas, lembranças, sentimentos e êxtases poéticos. Blocos de
experiência, aos quais o jogo artístico transforma em sonho ou mito. Talvez a
literatura seja isso, ao fim das contas. Nesse caso, talvez devêssemos prestar
mais atenção a esse chileno obscuro e esquecido.
252
NOSSAS IMPROBABILIDADES
*
Muitas vezes me perguntei por que motivo existem tão poucos escritores
realmente bons, por que são tão excepcionais, quando tanta gente que
escreve, quando o chamado da vocação soa com tanta sinceridade e urgência em
tantas consciências juvenis. Uma resposta, parcial e certamente questionável,
seria a seguinte: para ser um grande escritor é preciso dispor de traços de
caráter opostos e excludentes entre si. Reduzidos ao básico, esses traços são a
razão e a desrazão, o método e o caos. Para construir uma obra literária, como
para qualquer outra tarefa intelectual, necessita-se prudência, organização e
lucidez: é preciso aprender a fazer isso, escolher o caminho certo, administrar
suas forças, entender do que se trata. Não falo de qualidades etéreas, mas das
mais terrenas, que para existir uma obra é preciso haver um escritor em
condições materiais de escrevê-la, de publicá-la e, sobretudo, de continuar
escrevendo. O escritor necessita colocar em ação toda uma política de pequenas
astúcias que não diferem das que tornam viável qualquer empregado, comerciante
ou dona de casa.
Mas, para que valha a pena, a obra tem de provir de um fundo de loucura
irredutível a qualquer disciplina. A arte se alimenta do novo, o razoável é tão
velho quanto a civilização, tão repetido e previsível quanto as tábuas de
multiplicar.
Nada mais triste que uma pretensiosa criação artística que se esgota no
sentido comum, no óbvio e no bem-pensante. Ou, pensando melhor, sim algo
mais triste: tantas loucuras esplêndidas que não podem chegar a obra de arte
por falta de prudência de seus donos.
É contraditório, concordo, quase impossível. Em todo caso, é altamente
improvável, o que explica a rareza extremada do grande escritor. Extraviado de
sua própria lógica aberrante, intratável, incorruptível na lealdade à sua
loucura, e ao mesmo tempo sensato, organizado, diplomático. Uma coisa não vale
sem a outra. Se somente loucura, não vale mais que qualquer louco solto por
aí, com os quais tropeçamos todos os dias; se método, é a chatice
melancólica da rotina, mesmo se advinda em formato de romance ou poema.
Onde encontrar a quimera completa? Existem esses homens feitos de duas
metades contraditórias? Enfim, é assim como comecei: são raríssimos, e dadas as
suas condições tão improváveis, deveríamos nos felicitar por aparecer um a cada
cinqüenta ou cem anos.
Não menos raro que um bom escritor é um bom leitor. A quantidade de
leitores realmente bons é mais difícil de medir porque se trata de entes
privados, quase sempre secretos. À diferença da escritura, a leitura não se
publica; um crítico é um escritor, não conta. Mas um amplo contato com leitores
de todo tipo me convenceu de que a excelência nessa face oculta da literatura é
raríssima. E me ocorre que a causa dessa escassez obedece a causas que também
encerram uma contradição externa.
Por um lado, um leitor, para ser um bom leitor, deve ler muito. A
literatura é um sistema com suas próprias leis, e esse sistema se constituiu ao
longo da história com a acumulação de uma enorme quantidade de livros. Ninguém
poderia ler todos, mas ainda assim a totalidade é latente no projeto de uma
leitura bem-feita. O leitor parcial não está à altura de sua tarefa, porque
julgar ou entender um livro (ou um autor) apenas pelo que esse livro é,
mutilado de suas ressonâncias em toda a literatura, equivale a cometer uma
grave injustiça, ou a se condenar a não entender nada. Justamente, o que
diferencia um bom de um mau leitor é que este acredita no que está lendo,
enquanto aquele sabe que todo o sentido está na tradução daquilo que ao
peculiar idioma da literatura, e para aprender esse idioma é preciso ter lido
tudo, ou o bastante para se fazer uma idéia da totalidade.
*
"Nuestras improbabilidades" Milenio n. 188. México, 23 abr. 2001.
253
Mas, por outro lado, um bom leitor deve saber parar. Os sentidos de cada
signo na literatura irradiam em muitas direções distintas para que sua
assimilação seja imediata e automática. Na linguagem corrente, o significado de
cada palavra numa frase, ou de cada frase num discurso, cai em seu lugar de
forma automática, e podemos seguir adiante. Na literatura não é assim. Cada
parágrafo, cada frase, por vezes cada palavra, se abre a uma multiplicidade de
significados diferentes, e se não os exploramos, a leitura não é boa.
O que fazer então? Avançar ou parar? Ler ou o ler? Temos muito direito
em nos perguntar como é possível haver bons leitores apesar dessa
impossibilidade paralisante. E, no entanto, é. Como na parábola dos sete homens
justos que sustentam o mundo, um punhado de bons leitores secretos mantém em
alerta a literatura.
De modo que parece tão impossível para os escritores quanto para os
leitores. Dois milagres complementários, cuja emergência histórica seria
interessante explorar nos termos do paradoxo que os constitui. O perigo seria
vê-los como exemplos, isto é, representantes de uma generalidade ilusória. Cada
caso é único, e deriva de uma constelação de circunstâncias históricas
irrepetíveis. O que impõe uma terceira improbalidade. O grande escritor, o
grande leitor, ambos se dão dentro e fora da história, ao mesmo tempo. Hoje
tudo se resolve com estatísticas, mas o milagre contradiz toda e qualquer
estatística ao se colocar num para além do improvável.
algum tempo, um jovem de pouco mais de vinte anos me deu um
manuscrito, um romance seu, cuja leitura me deslumbrou. Era uma máquina
assombrosa de invenção, uma receita muito pessoal de gótico, surrealismo,
psicodelia, cinema bizarro, Julio Verne e Marquês de Sade. Também era um caos
impublicável, sem ortografia, sintaxe ou pontuação. Tudo se sustentava na
tensão da selvageria que a punha em marcha, e seu jovem autor, tímido e rosado
filho de boa família, era um selvagem, um autêntico Adão das letras. Nunca
tinha ouvido falar de Julio Verne ou do Marquês de Sade, nem de Freud nem do
surrealismo, sequer mesmo de Lautréamont, que era com o que mais se parecia.
Recomendei alguns livros (comecei recomendando o objeto livro), primeiro passo
imprescindível a alguém que queira ser romancista; expliquei o básico sobre a
organização de um texto e tive esperança de presenciar o nascimento de um
grande escritor.
Nos vimos bastante nos meses e anos que se seguiram. Continuou escrevendo
romances e entregando-os a mim; eram cada vez melhores e, ao mesmo tempo, cada
vez piores; sua imaginação escalava novos cumes, mas o caos se tornava mais
irremediável; ao dispor de um leitor cativo, e cativado, e em sua pressa por
tornar a me deslumbrar, abandonou completamente seu pobre simulacro de
normalidade. Pensei que meu entusiasmo poderia estar prejudicando-o e então me
recusei a continuar lendo seus manuscritos, disse que deveria apresentá-los a
editoras. Em sua falta infinita de sentido comum, levou os disquetes, sem
imprimir, a editoras médicas, jurídicas ou de manuais escolares. Não houve um
segundo leitor, continuei sendo o único, e mesmo eu acabei renunciando. Lembro
com melancolia das longas sessões em que lhe explicava, eventualmente, o que
era um ponto à parte, um roteiro de diálogo ou o mau efeito que produziam as
grafias "nuve", "olio", "cadera". Ou detalhes ainda mais básicos, como numerar
as páginas e prendê-las de algum modo para montar uma pasta. Assentia com tudo,
na docilidade de um escolar repleto de boas intenções, mas na verdade não me
ouvia: estava apurado para que eu terminasse com minhas instruções prosaicas
para que então pudesse me contar suas novas fantasias...
Um escritor visionário, alguém que tenha algo realmente novo a dizer, é
um milagre infreqüente. Este menino era um milagre. O problema é que era só a
metade de um milagre, com o que perdia valor. Desses meios-milagres muitos,
tanto no campo da escritura como no da leitura. Para completar o quadro, teria
de apresentar o retrato de algum escritor laborioso e organizado, consciente
dos aspectos práticos de seu trabalho; o de um leitor que leia muito e também o
de um leitor que não leia nada, porque uma só frase lida material suficiente
para anos de reflexão. Mas não vale a pena, são muitos. Apenas quando as quatro
personagens se conjugam numa um Borges, um Lezama Lima temos motivos
genuínos para esperar algo.
254
DUAS NOTAS SOBRE MOBY DICK
*
1
Moby Dick, a baleia branca, é, quem duvida, um monstro, ou seja, uma
espécie que consiste de um exemplar. Quando há monstro, é infalível que haja
um caçador obcecado por ele: sua sombra, seu gêmeo humano, sua nêmesis. A morte
do monstro é a extinção de sua espécie, e Moby Dick, o romance, é o relato de
uma extinção.
Por ser único, o monstro não pode se reproduzir, embora compense sua
solidão com uma diabólica capacidade de se reduplicar num meio alheio à
Natureza, como imagem, signo ou miniatura. Ninguém que o tenha visto, uma vez
que seja, poderá esquecê-lo, nem resistirá à tentação de contar ou pintá-lo.
Por isso as crianças amam os monstros: porque com eles se fazem as melhores
brincadeiras. O fascínio que os dinossauros exercem sobre a infância deriva de
um aperfeiçoamento formidável e irrepetível desse mecanismo. Os dinossauros
cobriam o mundo, eram uma pitoresca sociedade organizada e hierarquizada que se
extinguiu: ao escapar dos ciclos da reprodução substancial, multiplicaram sua
potência de reprodução formal.
É preciso ser adulto para perceber toda a melancolia do monstro. nos
acostumamos às respectivas idéias da morte dos indivíduos e da extinção das
espécies, mas quando se dão juntas não consolo. No entanto, sempre
consolo; o adulto pode dar um passo além em sua própria evolução, tornar-se
artista, e assim voltar a amar o monstro, sua personagem favorita, a única a
que pode despregar todo vigor e riqueza da imagem. Ele mesmo se torna monstro,
numa fecunda identificação; seu poder de reprodução se desloca a mundos
imaginários. Até a melancolia deixa então de ser uma tarefa pessimista,
passando à inspiração, ou ao menos se convertendo em instrumento de trabalho.
A extinção é uma intervenção da História na Natureza. De repente o único
se revela, no justo momento em que morre: o processo é análogo ao da
literatura, que pretende criar uma particularidade absoluta sem anular o curso
das repetições e reproduções que constituem a Vida por fora da Obra,
destacando-a por contraste. O escritor é um especialista em monstros, e toda
grande obra literária está banhada pela atmosfera melancólica de uma extinção
eminente.
Ortega y Gasset nunca foi tão lúcido como quando disse que "O mundo está
composto por monstros e idiotas". É uma boa definição para Moby Dick e toda a
obra de Melville. Mas temos motivos para duvidar da realidade de seu monstro
mais trabalhado. Mesmo dentro do sistema do romance, Moby Dick existe? A grande
baleia branca funciona como um objeto de obsessão, que por reflexo constitui a
Ahab, não menos único que ela. A existência de Moby Dick, sua existência
"real", quando somada à superfície do romance, é uma existência segunda,
confirmatória de sua lenda. Como tal, o pode sobreviver senão na aniquilação,
que arrasta a quem dela fez seu único objeto de pensamento, sua melhor idéia.
Ahab vive na pendência de que seu pensamento se torne realidade, e a única
coisa que sabe é que isso se dará quando menos esperar.
Para sustentar essa suspensão, Melville desenrolou a cena sobre o
misterioso plano do mar, superfície e volume ao mesmo tempo. Ao mar vão os
homens (ou iam), segundo explicam as primeiras páginas do livro, quando o sem-
sentido da vida os torna insuportáveis. O mar é a máquina monstruificadora por
excelência, pois nela vão apenas os homens, sem mulheres: no mar, os homens se
afastam da espécie e se condenam a ser indivíduos por toda a eternidade. Em seu
grande espelho opaco e ameaçador, a reprodução se volta sobre si mesma,
internando-se no mundo do imaginário, rumo à alucinação.
*
"Dos notas sobre Moby Dick" Babelia, suplemento de El País. Madrid, 12 maio 2001.
255
Igual ao mar, o romance esconde e revela formas estranhas. Ao menos um
romance como este. Acontece que os romances muito longos não são relidos com
freqüência. Se são clássicos como Moby Dick, se foram lidos na juventude e
depois lembrados, o esquecimento os enriquece infatigavelmente. Os acidentes da
memória engendram todo tipo de quimera. Por vezes nos lançamos a reler um
desses livros longuíssimos apenas para encontrar um detalhe estranho,
misterioso, sugestivo que volta sem parar em nosso pensamento durante vinte ou
trinta anos. Tipicamente, não o encontramos, simplesmente porque não existia.
Tipicamente, resistimos em acreditar. O mecanismo é parecido ao de Ahab,
lançando-se no mar em busca de sua baleia branca.
Moby Dick, o romance, também ficou como um gênero de um exemplar.
Muitos lamentaram (Alberto Girri, por exemplo, num belo poema) que esse
magnífico exemplo de liberdade, de um romance aberto a todos os temas e
registros não tenha sido aproveitado pelos romancistas que vieram depois. Mas
talvez seja esse o destino, o melancólico destino do monstro, de toda
verdadeira obra de arte.
2
A primeira frase de Moby Dick, "Call me Ishmael", é o "era uma vez" do
romance moderno. A tradição popular a tornou célebre como modelo de começo
eloqüente, insuperável e, sobretudo, inimitável. Um bom testemunho de sua fama
está no HQ Charlie Brown, de Charles Schulz: a certa altura, Snoopy decide
escrever um romance; depois de trabalhar muito, com a máquina de escrever sobre
o teto de sua casa, chega a uma primeira versão, e pede a Lucy, a amiga
hipercrítica de Charlie, que leia. Ela devolve com um elogio de compromisso e
um sério reparo: o começo era frouxo, precisava algo mais forte... O cachorro
põe então uma nova folha na máquina, pensa um instante, e recomeça: "Call me
Snoopy".
Esse começo é um eterno problema para os tradutores. quem diga que
essa frase sozinha mais trabalho que todo o resto, que o é pouco. Enrique
Pezzoni, na muito bem elaborada tradução que fez na década de 1960 para o Fundo
Nacional das Artes argentino optou por uma formulação curiosa: "Pueden ustedes
llamarme Ismael". Quando lhe perguntei o motivo dessa escolha, disse-me que
após experimentar cem alternativas, todas insatisfatórias, tinha ficado com
essa apenas por se tratar de um endecassílabo de gaita galaica.
A dificuldade está em saber o que quer dizer essa pequena frase. É um
desses casos em que não contexto para decidir e em que, ao mesmo tempo,
contexto demais. Uma possibilidade seria o narrador preferir não revelar sua
identidade, propondo assim um nome qualquer, para tornar mais cômoda a
conversa. A não ser que não se trate de uma conversa, mas de um relato contado
por uma voz; então a cortesia estaria dirigida à imaginação dos leitores,
que disporiam de um nome-chave para quando contarem a si mesmos a história, ou
a outro. Como se Em busca do tempo perdido começasse "Podem me chamar Marcel"
ou, melhor, "Digamos que me chamo Marcel". Nessa mesma linha, mas com uma volta
de parafuso a mais, poder-se-ia pensar que assume a enunciação o próprio
Melville, e pede que o chamem Ismael porque utilizará, por motivos cnicos, a
primeira pessoa...
Tenho outra solução, na realidade tão óbvia que me surpreenderia alguém
não tê-la proposto: "Podem tutear-me" (ou "Pode tutear-me", porque outra
ambigüidade sem solução é a do singular ou plural do interlocutor). O idioma
inglês, ao conjugar os verbos e com um único pronome para a segunda pessoa, não
possui níveis distintos para familiaridade e respeito, carência suprida com a
discriminação de nomes e sobrenomes. Quando alguém se dirige a um interlocutor
mais velho ou mais importante, diz "Mr. Melville...". Caso este prefira abolir
a distância, proporá "Call me Herman", assim como nós dizemos "Podes tutear-
me".
*
É preciso, claro, ter algum direito para dizê-lo, de modo que se Ismael
diz isso, pode significar ser um ancião, ou que chegou a presidente do
*
"Pode usar o tu" ou "Pode me chamar de você". (Nota do Tradutor.)
256
diretório de uma empresa naval. Mas, ao dizê-lo, adverte-nos que pelo momento
renuncia a toda superioridade, postulando-se como o rapaz que foi no momento em
que se deu a aventura. O que teria conseqüências na interpretação de todo o
romance: não se trata de uma dessas aventuras do mar lidas por crianças, mas
sim do conto de uma criança, a história de uma inocência que se extinguiu, tal
como podem ler os adultos.
257
A UTILIDADE DA ARTE
*
Quando era novo, em Pringles, havia donos de automóveis que se gabavam,
sem mentir, de tê-los desmontado "até o último parafuso" e depois montá-los
novamente. Era uma proeza bem comum, e tal como eram os carros então, bastante
necessária para manter uma relação boa e confiável com o veículo. Numa viagem
longa era preciso levantar o capô várias vezes, sempre que o carro falhava,
para ver o que estava errado. Antes, na era heróica do automobilismo, ao lado
do piloto ia o mecânico, depois rebaixado a co-piloto. Lembro que quando as
mulheres começaram a dirigir, um dos argumentos contrários mais fortes era o de
que não entendiam nada de mecânica: podiam apenas aspirar a "usar" o carro.
Na realidade, os bricoleurs de vila ou de bairro não se limitavam aos
carros, trabalhavam com qualquer tipo de máquinas: relógios, rádios, bombas
d'água, cofres. Até dez anos atrás meu sogro desmontava periodicamente a
máquina de lavar roupas e montava de novo, por garantia; ao comprarem uma
com programação automática não pôde continuar fazendo isso. Desnecessário
dizer, assim, que desde que os carros vêm com circuitos eletrônicos, o famoso
"até o último parafuso" perdeu vigência.
Houve um momento, neste último meio século, em que a humanidade deixou de
saber como funcionavam as máquinas que utiliza. De forma parcial e
fragmentária, sabem apenas alguns engenheiros dos laboratórios de Pesquisa e
Desenvolvimento de algumas grandes empresas, mas o cidadão comum, por mais
hábil e entendido que seja, perdeu a pista muito. Hoje em dia todos usamos
os artefatos tal como as damas de antigamente usavam os automóveis: como
"caixas-pretas", com um Input (apertar um botão) e um Output (desliga-se o
motor), na mais completa ignorância do que acontece entre esses dois pólos.
O exemplo do carro não é por acaso, acredito ter sido a máquina de maior
complexidade aonde chegou o saber do cidadão comum. Até a década de 1950,
antes do grande salto, quando ainda se desmontavam carros e geladeiras no
pátio, circulava uma profusa bibliografia com tentativas patéticas de seguir o
rastro do progresso. Nas páginas de Mecânica Popular, ou da semelhante Hobby,
gastavam-se os últimos cartuchos com artigos sobre o funcionamento da propulsão
a jato ou do televisor; mas os leitores se rendiam desalentados.
Hoje vivemos num mundo de caixas-pretas. Ninguém se assusta por não saber
o que acontece dentro do mais simples dos aparelhos de que nos servimos para
viver. Interessa apenas que funcione, como um pequeno milagre doméstico. Quem
sabe de verdade como funciona um telefone? Tenho uma teoria: a cada vez que
discamos um número e nos atendem, é porque Deus intervém, pondo em ação sua
onipotência para fazer acontecer algo que em termos naturais não poderia
acontecer. No século XVII, o filósofo francês Nicolás Malebranche elaborou uma
curiosa teoria, segundo a qual entre cada causa e efeito Deus participava para
efetuar a conexão. Desteologizando esse "Deus", temos uma boa explicação geral
do mundo contemporâneo.
O saber dos bricoleurs domésticos se deslocou para o uso. O equivalente
daqueles engenhosos "entendidos" que desmontavam carros são os jovens que sabem
tudo sobre computadores. Com a exceção de que esses jovens, por mais que
desmontem os computadores (gesto enfeitado com um conteúdo já puramente
simbólico), sabem tudo sobre o uso, não sobre o funcionamento. Em todo caso,
podem se gabar por saber sobre o funcionamento do uso, não sobre os meandros
que fazem com que a máquina funcione. O mesmo se pode dizer dos profissionais
que consertam fornos de microondas ou televisores.
O que aconteceu com as máquinas é apenas um indício concreto do que
aconteceu com tudo. A sociedade inteira virou uma caixa-preta. A complicação da
economia, os deslocamentos populacionais, os fluxos de informação traçando
caprichosas espirais num mundo de estatísticas contraditórias, acabaram por
*
"La utilidad del arte" Ramona — Revista de Artes Visuales n. 15. Buenos Aires, ago. 2001.
258
produzir uma cegueira resignada cuja única moral é a de que ninguém sabe "o que
pode acontecer"; ninguém acerta os prognósticos, ou acerta por casualidade.
Antes isso acontecia apenas com o clima, mas à imprevisibilidade do clima o
homem respondeu com a civilização. Agora a própria civilização, dando toda a
volta, se tornou imprevisível.
É como se tivesse esgotado a possibilidade lógica de que haja alguém
lúcido ou inteligente. o haveria sobre o que empregar sua clarividência,
porque não nada o que desmontar e montar de novo. A ciência continua
empenhada nesse trabalho, que agora requer um alto financiamento, levando
uma elite dócil ao poder, assim como admite fechar-se sobre si mesma e
funcionar, com relação ao resto da sociedade, como uma caixa-preta. Acreditamos
que apertando um botão podemos colocar a nosso serviço as partículas do átomo
ou clonar vacas, e é bem provável que possamos fazer isso mesmo, que esse
gesto não nos ensinará como se faz. Cresce o abismo entre causas e efeitos.
Deus avança.
Diminuir o campo de ação da inteligência não deveria parecer tão grave se
pudermos continuar sendo felizes. Ao fim das contas, o que estaria em vias de
desaparecimento não é nada além de um tipo de inteligência, que será reposto
por outro, talvez até com vantagem. A inteligência é um instrumento de
adaptação, mas de pouca serventia para um mundo que deixou de existir.
Não obstante, toda e qualquer atrofia que nos diminua, mesmo com a melhor
desculpa evolutiva, nos inquieta. Talvez tenhamos um motivo de preocupação. Se
a humanidade fez todo seu caminho sabendo do que se tratava, a promessa de
felicidade que encerra a ignorância acaba suspeita. Primeiro, porque o se
mostra a face descoberta como ignorância; pelo contrário, a contra-oferta tenta
nos convencer de que sabemos mais do que nunca. Mais do que como ignorância,
apresenta-se numa forma ditosa de impotência eficaz. Não sabemos como funciona
a câmera de vídeo. E daí? Não podemos usá-la para registrar nossas festas de
aniversário ou férias? Não podemos usá-la para dar mais sentido a nossas vidas?
O que se perdeu, em todo caso, foi uma ilusão de virilidade e auto-suficiência,
bem mais ilusória porque antes estávamos tão subjugados aos poderes quanto
estamos agora. A Revolução, em última instância, era a idéia de se desmontar a
sociedade "até o último parafuso" e voltar a montá-la, que a idéia de
Revolução caducou. Talvez possamos nos consolar pensando que a sociedade
rearmada seria tão injusta e alienante quanto a anterior. Ao fim das contas,
quando voltavam a montar o automóvel, os bricoleurs domésticos obtinham o mesmo
carro do qual tinham partido, não um avião.
Mas esse conhecimento era mais que circular. Talvez não tanto pelo
conhecimento em si como pelo tipo de inteligência posta em ação. A inteligência
bem poderia ser dessas coisas que não funcionam caso não estejam completas. A
mutilação de um ramo marginal poderia secar a árvore toda, ou, para empregar
uma metáfora menos orgânica, arrancar um ladrilho pode fazer cair o edifício
inteiro.
Seja como for, valeria a pena preservar, por prudência, esse instrumento
da evolução. Poderia ser útil aos países não desenvolvidos, pois é preciso
lembrar que o mundo está longe de alcançar um desenvolvimento homogêneo.
Pois bem, o que queria dizer é isto: a arte continua sendo o melhor campo
para a prática e experimentação da velha inteligência, que se impunha o
objetivo de saber como funcionavam as coisas e como funcionava o mundo.
Pode-se objetar que isso equivale a dar entidade à velha metáfora
anuladora da arte como entretenimento (hoje deveríamos dizer "jogo"); mas se
trata de um entretenimento pedagógico, não meramente hedônico. Na realidade,
não tão pedagógico quanto prático ou preparatório, ou ainda, pelo contrário,
preservador. Com efeito, a prática da arte é a única de consenso social que
pode desenvolver um saber que em todos os demais âmbitos está em acelerado
processo de extinção.
Isso se deve à radicalidade inerente à arte, que não difere dos
artesanatos e da manufatura utilitária, mas por sua capacidade (sem a qual não
seria arte) de desmontar por inteiro a linguagem com que opera e montá-la de
novo, segundo outras premissas. Se não retorna ao ponto de partida, não é arte,
mesmo que pareça. Todo artista de verdade sabe disso, intuitivamente talvez, e
o faz a cada vez que põe mãos à obra.
259
Vanguardas de todo tipo exploraram essa radicalidade mais ou menos
sistematicamente. E isso explica por que não houve vanguardas antes de se
esboçar a era das "caixas-pretas". Durante dois ou três mil anos a humanidade
pôde fazer arte autêntica limitando-se a aprender o ofício daqueles que o
fizeram antes. A arte estava no mesmo vel de qualquer outra atividade, que
todas colocavam em prática um saber completo e sem saltos em suas cadeias
causais. O artista não necessitava se postular como detentor de uma
inteligência sem zonas obscuras, porque esse tipo de inteligência era usado por
todos.
Das vanguardas, o Construtivismo russo foi mais longe nessa direção.
Opondo-se ao conceito de "composição", próprio do usuário da prática artística,
o de "construção" significava que a obra de arte deveria exibir seu processo de
fatura a partir do zero, de modo que não o artista mas também o espectador
pudesse desmontar a peça, "até o último parafuso", e montá-la novamente, tal
como a tinha diante dos olhos.
O Construtivismo não pôde se sustentar no tempo: teria necessitado uma
Revolução (era o que seus membros acreditavam estar fazendo). Mas suas
premissas persistem, mil vezes transformadas, até hoje.
Essas premissas dão o fio condutor do sentido da obra do artista mais
representativo do século, Duchamp. É o conceito de base da chamada "arte
conceitual": conceito próprio da arte. A mais famosa obra de Duchamp, que
encerra todas as outras, o Grande vidro, se propõe como "máquina transparente",
a máquina-modelo da qual se pode ver a olho nu o modo como foi feita, o
antídoto definitivo a todas as "caixas-pretas" que proliferam de forma
crescente à nossa volta. Poeticamente, o que tomo como uma homenagem aos
bricoleurs domésticos de minha infância, Duchamp dizia que o Grande vidro, A
noiva despida por seus celibatários deveria ser visto "como o capô de um
automóvel".
Minha conclusão é de que a arte, essa atividade que pode ser vista como
decadente ou em decadência, hoje tem uma função. E não é uma função retrógrada
ou conservadora, como poderiam induzir minhas próprias evocações juvenis.
Porque, na realidade, as caixas-pretas entre as quais vivemos não são tão
escuras assim. Ou admitem rodeios para passar ao outro lado de sua escuridão,
colocando-se a nosso favor. Em nossa sociedade, o artista é o único cidadão
comum, o financiado pelo poder, que trabalha com uma matéria sofisticada e
atual que não é uma caixa-preta, ou seja, que pode ser desmontada e
reconstruída totalmente. É o único que usa um tipo de inteligência que está se
atrofiando no resto da sociedade. Mas essa atividade atua também sobre as
"caixas-pretas", retirando-lhes funcionalidade (e portanto mistério) ao mostrar
de que modo funcionam na máquina social englobadora.
Não importa que os artistas sejam fraudes. Essa conceitualização
generalizada parece incrementar a probabilidade de fraude, e de fato faz isso,
mas não importa. Ao contrário, quanto mais fraudulentos forem os artistas, mais
enérgica será a colocação em marcha desse mecanismo de radicalização.
Quanto ao uso de formatos artísticos feito pela cultura popular, por
exemplo o cinema ou a sica, é preciso dizer que cede miseravelmente à lógica
da caixa-preta: aperta-se um botão (isto é, usa-se às cegas uma linguagem
artística sem desarticulá-la previamente) e se espera um resultado, que não é
outro senão o sucesso e a venda. Todos que buscaram o sucesso sabem que, por
definição, este resulta de um processo misterioso e imprevisível fora de nossa
vista, dentro da caixa-preta.
260
A OBRA-PRIMA SECRETA
*
Antes de qualquer coisa, o autor polaco foi um homem de amigos. A prova
está na Argentina, onde viveu sua maturidade e escreveu o melhor de sua obra.
O mundo todo reconhece que a Argentina, povoada com a imigração,
periodicamente despovoada pela emigração, território de estranhos e de
ausentes, é um país que teve de inventar a si, e a literatura que inventou para
se inventar foi duplamente literária, uma literatura ao quadrado. Fantasmal,
deu toda a volta em sua própria estranheza até se fazer entranhável, evocadora,
intransferível. Esse sistema, expulsor por um lado, foi acolhedor por outro, e
não surpreende ninguém que um mestre da prosa especificamente argentina tenha
sido um francês (Groussac), ou que a metafísica da paisagem pampeana tenha sido
feita por um inglês (Hudson). Nos limites do auto-exotismo, o mais argentino
dos escritores argentinos acabou sendo um suposto conde polaco que chegou a
Buenos Aires por acaso, e ficou por acidente. Ficou por um motivo ou por outro,
mas um desses motivos foi os amigos que teve. Sarcástico, briguento, arrogante,
intratável, Gombrowicz foi, antes de qualquer outra coisa, um homem de amigos,
o que talvez não seja tão paradoxal quanto parece.
[Na Argentina fez] o melhor de sua obra, coisa que também não surpreende,
pois ficou no país durante toda a sua maturidade, entre os 35 e os 59 anos:
Pornografía, Transatlántico, Cosmos, o teatro, o Diario; este último, na
verdade, não é um diário, mas artigos em formato de diário: quando Kultura, a
revista dos emigrados polacos em Paris, ofereceu-lhe uma seção fixa, Gombrowicz
este vacilante por um tempo quanto à forma a empregar, artigos unitários,
cartas, crônicas... Decidiu-se pelo diário, que lhe dava liberdade para
escrever o que quisesse, e mudar de tema quando quisesse, com o simples
expediente de colocar ponto à parte e encabeçar o novo parágrafo com a palavra
"quarta-feira" ou "sábado". O que tinha escrito antes, argentinizou a seu modo:
Ferdydurke, com uma inovadora tradução; os contos, com um título, Bakakay, que
comemora uma rua do bairro de Flores. E do que escreveu depois, o melhor são as
cartas que seguiu escrevendo aos amigos argentinos.
Mas poder-se-ia sustentar que sua obra-prima secreta foi a confraria de
amigos que formou a seu redor. A segunda, porque houve um primeiro grupo, que
participou da tradução de Ferdydurke, e o segundo, que ficou de suas tentativas
desenganadas de se acomodar no establishment literário portenho: Virgilio
Piñera, Rodríguez Tomeu, cubanos os dois, Mastronardi, González Lanuza... Por
volta de 1956, esse grupo tinha se dissolvido, basicamente por uma questão
de idade: os trabalhos e as famílias os dispersaram, e Gombrowicz se viu no
transe de uma renovação. Para ele iniciava sua melhor época: tinha renunciado a
seu emprego no Banco Polaco, e com as prudentes mudanças que fez com a
indenização, mais a bolsa que recebeu de uma instituição anticomunista (Free
Europe) e alguns direitos que começava a cobrar, de se virar. Com o tempo
todo à sua disposição e seu gosto pela conversação e a vida dos cafés (a
abundância sobrenatural de cafés em Buenos Aires), não lhe restava senão voltar
a se rodear de amigos.
A formação desse segundo grupo se tornou um mito argentino. A escolha se
deu ao acaso, mas foi um acaso rigoroso. Todos beiravam os vinte anos
(Gombrowicz tinha passado dos cinqüenta), todos receberam sua alcunha ou nome-
chave, e todos foram fiéis. O primeiro foi Juan Carlos Gómez, Goma, que foi
fiel por antonomásia, e continua sendo, "o fiel Goma". O mais jovem foi Jorge
di Paola, Dipi ou El Asno. A integração de Dipi ao grupo é um bom exemplo do
método de recrutamento: em certa ocasião, Gombrowicz foi de veraneio a Tandil,
um povoado da província de Buenos Aires com o modesto atrativo e algo descabido
de umas serras (e uma Pedra Movediça que caiu e quebrou). A primeira coisa que
fez foi ir à prefeitura perguntar se entre a população havia gente inteligente.
Os funcionários, desconcertados, puderam apenas encaminhá-lo a um grupo
*
"La obra maestra secreta" Babelia, suplemento de El País. Madrid, 26 nov. 2001.
261
teatral... E ali estava Dipi, que aos 15 anos tinha lido Ferdydurke.
(Acidentalmente: nessa estância, em Tandil, nasceu Cosmos.)
Talvez tenha oprimido e aniquilado a todos esses jovens, condenando-os ao
desconcerto e à esterilidade ao longo da vida. Dipi era a prova vivente de que
isso não é de todo certo, pois fez uma brilhante carreira e escreveu belos
livros. Goma, o sumo sacerdote do culto gombrowicziano, é mais razoável na
interpretação do mito: "Não é que Gombrowicz nos tenha desorientado; valorizou-
nos por desorientados". Pelo demais, Goma desconsidera o pretensioso mistério
da sedução: "Era um bom amigo, simplesmente, um amigo sempre disponível,
afetuoso, compreensivo, sensato".
Numa das últimas páginas do Diario, de volta à Europa, Gombrowicz
lamenta-se de não ter sabido cultivar sua lenda lá, "na Pátria" (palavra que
reservava para a Argentina): quem lembraria de sua figura, suas anedotas, suas
frases? quem poderia escrever sobre ele? Seus amigos tinham sido jovens demais,
imaturos demais, tontos demais. Isso era uma convenção necessária ao teatro
íntimo que tinha estabelecido, em que um coro de burguesinhos terceiromundistas
era infalivelmente esmagado pela dialética e pelos epigramas do Gênio. Na
verdade, não eram tontos: prova isso o fato de terem aceito o papel. E prova
ainda mais o fato de que hoje, quarenta anos depois, continuem sendo fragmentos
do Gênio, que se arma e desarma nos cafés de Buenos Aires. É curioso que este
mestre da lucidez tenha se equivocado o radicalmente neste ponto-chave. A não
ser que se trate de uma manobra a mais. Talvez devêssemos concluir que o grande
escritor que soube tão bem analisar e avaliar sua própria obra foi superado
pela criação que a respaldava: o grupo de amigos, o punhado de vidas que
iluminou, o triunfo secreto sobre a ausência.
262
OS QUADROS DE PRIOR
*
Os quadros de Alfredo Prior encontram
uma história em qualquer parte. quadros
para que haja história, e as histórias nada
mais são que as respostas aos "por quê": "por
que quadro", "por que este quadro e o
outro" etc. Num segundo estágio a pintura se
oferece ao deleite e ao hábito, mas o pintor
permanece no primeiro momento: é um primitivo
da percepção pictórica.
"Ninguém pode viver sem uma história",
um pintor abstrato menos ainda. Se é que
pintores abstratos. Prior cria histórias na
pintura, faz correr pela superfície resvaladia
do espaço um furacão de tempo.
Nos quadros, o gesto costuma
representar o tempo, o gesto de pintar, por
exemplo. Os cenários das personagens de Prior
criam pintura em sua mobilidade
fixa; difundem na superfície pintada um espaço
temporal, pois algo teve de passar para que chegassem ali. Por sua mera
presença, o coelho, o boneco de neve, são todos pintores. Fazem bosques,
pântanos, cavernas, mares, desertos, mundos... Operam a transmutação do plano
em volume de relato, e permanecem fazendo isso mesmo ao se retirarem do quadro.
Em todos os quadros abstratos do mundo poderiam encontrar sua casinha
acolhedora. Nesse transporte virtual da figura algo de escultórico, de
bibelô levado de lá pra cá.
E dessa sugestão de escultura provém um dos fetiches prediletos de Prior,
o boneco de neve. (O coelho atarefado é outra versão do mesmo, talvez por sua
multiplicação proverbial; os coelhos, velozes escultores de coelhos clones...
Salvo que o coelho de Prior é celibatário.)
Outra alusão à escultura está na relação de tamanhos. Em realidade,
sempre houve uma equivalência nos contrastes de abstração e figuração por um
lado, miniatura e desmedida por outro. Além de serem representadas, as
personagens de Prior representam algo, como a formiga, na fórmula, representa a
atividade. Isso os torna cosa mentale, ou
seja, miniatura, papel onde se encontram para
narrar suas fábulas dimensionais.
Tudo é questão de trabalho, dedicação,
porém colocados sobre um fundo de dom
absoluto, para que desde o princípio não se
trate, nunca, de "pintar melhor".
A lição do Oriente salvou Prior da
trivialidade da "pintura dentro da pintura".
Nele, a pintura sempre derivou do
relato, do exotismo perplexo das perguntas; à
monotonia de ser um "colorista nato" preferiu
a pergunta: De que cor era o cavalo branco de
Napoleão? Interrogar-se começa com o tique de
levantar as sobrancelhas, pôr rendondos os
olhos, entreabrir a boca... Em Prior, o gesto
começou a se manifestar como uma
fisiognomonia, em diminutos retratos de
*
"Los cuadros de Prior" Vox Virtual n. 5. Bahía Blanca, nov. 2001.
2El perro de Sabato, 1995.
3Vulcano, 2000.
263
ursos...
Uma pintura gestual, poder-se-ia dizer. O gesto de um barco atravessando
o mar, de um macaco trepado numa palmeira, de Napoleão com a mão no peito... O
gesto de Napoleão é o oposto de acreditar-se Napoleão, e com esse gesto criar
espaço, Europa, Egito: o gesto de escutar música. Ou, mais genérico, o tique de
ter uma história para contar.
Alucinação artesanal que, vista na perspectiva de uma vida de artista, é
certeza. Certeza louca, certeza impossível e ao mesmo tempo muito real.
Napoleão esconde uma mão no casaco...
"Isto é uma mão", diz a proposição sobre a qual Wittgenstein arma suas
razões sobre a certeza: "Se sabes que aqui uma mão, conceder-te-emos todo o
resto". Mas hoje sabemos que era uma alusão a seu irmão pianista, a quem
faltava uma das mãos e que no entanto podia sentir cada um dos dedos,
calculando a melhor digitação para as paisagens difíceis dessa mão ausente.
Pois bem, suponhamos um pintor a quem falte uma das mãos. Cándido López,
por exemplo. Caso a tivesse, usaria-a para pintar. E o mais extraordinário é
que a tem, e do fundo da alucinação, da simetria dos espelhos, acaba que um
pintor.
Atlas
(detalhe), s.d.
En cada sueño habita una pena, 1985.
264
CONTRA A LITERATURA INFANTIL
*
Foi famosa a aversão de Borges pela literatura infantil. Homem de outra
época, era natural que a visse como uma aberração, conseqüência deplorável da
expansão da indústria editorial e da segmentação interessada dos mercados. Pôde
ter outros motivos, o mais patente, a formação de seu gosto literário na
tradição inglesa, a principal danificada pela indústria do infantil. Muitos
clássicos ingleses pareciam predestinados à puerilização; Gulliver, Robinson
Crusoé, Alice, A ilha do tesouro, Dickens, Wells, foram objeto de adaptações
criminosas, simplificações, continuações, que não podiam deixar de ferir a
suscetilibilidade de um leitor agradecido. Afundando um pouco nesse sentimento,
ter-se-ia de perguntar pela relação intrínseca entre leitura e infância,
relação original e persistente, mesmo num leitor tão civilizado como Borges.
Começa-se a ler porque se é criança, porque não se tem outra coisa para fazer,
porque se está disponível para os sonhos alheios; esses motivos se mantêm
intactos no leitor adulto, dando-lhe uma boa razão para respeitar a criança que
foi. Os livros continuam sendo os mesmos, a biblioteca estabelece uma
continuidade sem rupturas dos sonhos, das histórias e do destino. Até que de
repente, em algum momento do século XX, uma bifurcação e o contínuo se
rompe. Por abjetos motivos comerciais (não outros, na realidade) começam a
aparecer, para o escandalizado desconcerto de Borges, livros para os meninos
que já não lerão os de adultos.
Até Borges, ou a reconstrução hipotética de seu rechaço. Podemos
coincidir em que o pecado original da literatura infantil, mais indústria que
gênero, está neste corte e separação dos domínios da infância e da vida adulta.
Pensando minha própria aversão à literatura infantil, agregaria que o que a
subliteratura faz o é inventar seu leitor, operação definidora da literatura
genuína, mas dá-lo por inventado e concluído, com traços determinados pela
suspeitosa raça dos psicopedagogos: de 3 a 5 anos, de 5 a 8, de 8 a 12, para
pré-adolescentes, adolescentes, meninos, meninas; seus interesses se dão por
sabidos, suas reações estão calculadas. Fica obstruída de entrada a grande
liberdade criativa da literatura, que é em primeiro lugar a liberdade de criar
o leitor e fazê-lo criança e adulto ao mesmo tempo, homem e mulher, um e
muitos.
A esta separação atribuo uma conseqüência que lamento especialmente: que
a indústria editorial tenha reservado para o ramo infantil as melhores flores
de engenho e invenção no aspecto físico dos livros. Os de adultos, que compro e
leio (e, ai!, escrevo), são objetos convencionais e chatos, sempre iguais,
páginas e capas; as inovações e surpresas encontraremos só na seção infantil
das livrarias, onde, claro, não encontraremos nada que valha a pena ler. (Não
conto os livros de arte, caros, pesados, incômodos e também convencionais.)
Aí, desperdiçados nas crianças, que têm seus próprios jogos, estão os
jogos que nos agradaria ter: livros-acordeão, livros de tela, com janelinhas
nas páginas, desmontáveis, transparentes, com som, transformáveis (como os que
fez o genial Lothar Meggendorfer), livros impressos com tinta invisível, livros
origami, elásticos, e os maravilhosos flip-books ou folioscópios.
Alguém poderá dizer que a literatura, a boa literatura, faz tudo isso e mais, sem
a necessidade de recorrer a manipulações do papel ou cartão. Que esses truques são
"coisas de criança". Concordo. Mas isso quer dizer que as crianças ficaram implícitas na
literatura, e que é sua presença como origem persistente o que faz a boa literatura. A
técnica pode deixar para trás sua origem, a arte não. A literatura está brotando sempre
de sua fonte primordial, a infância, e toda separação é nefasta. O livro como objeto
mágico é a pré-história da literatura, mas deveríamos nos afastar de nossa pré-história.
Na tarefa de reintegrar a origem, uma preliminar necessária é a reunificação dos
estágios da vida, ou a devolução da infância ao leitor adulto, que é onde deve estar.
*
"Contra la literatura infantil" Babelia, suplemento de El País. Madrid, 22 dez. 2001.
265
O ENSAIO E SEU TEMA
*
Uma diferença entre ensaio e romance está no lugar ocupado pelo tema num
e noutro. No romance, o tema se revela no final, como a figura que desenha o
que foi escrito, figura que é independente das intenções do autor, e que quase
sempre, caso tenha existido alguma intenção, a contradiz. O literário do
romance está no adiamento do tema e na alteração das intenções; quando o tema
se antecipa e a intenção se realiza, suspeitamos, com bons motivos, de uma
deliberação de tipo comercial ou mercenária.
No ensaio, é o contrário: o tema vem antes, e é esse lugar que assegura o
literário do resultado. A separação entre intenção e resultado que a literatura
opera no romance, no ensaio se por uma generalização do prévio; tudo se
transfere ao dia que antecede a escritura, quando se escolhe o tema; caso se
acerte na escolha, o ensaio está escrito, antes mesmo de escrevê-lo; é isso
que o objetiviza diante dos mecanismos psicológicos de seu autor, fazendo do
ensaio algo além de uma exposição de opiniões.
Quero falar da escolha do tema para o ensaio a partir de uma estratégia
particular, não muito difícil de detectar porque fica declarada no título:
refiro-me aos dois termos conjugados, A e B: "A muralha e os livros", "As
palavras e as coisas", "A sociedade aberta e seus inimigos". É um formato
bastante comum suspeito, aliás, de que não haja outro, mesmo dissimulado. Nos
anos setenta era algo quase obrigatório, tanto que com alguns amigos tínhamos
pensado em oferecer às usinas editoriais de ensaios um procedimento simples
para produzir títulos. Consistia num diagrama feito a partir de duas linhas em
ângulo reto, sobre as quais se escrevia duas vezes, na vertical e na
horizontal, a mesma série de termos extraídos da base comum de interesses da
época; digamos: Liberação, Colonialismo, Classe Operária, Peronismo,
Imperialismo, Inconsciente, Psicanálise, Estruturalismo, Sexo etc. Bastava pôr
o dedo num dos quadrinhos assim formados, remeter-se à abscissa e à coordenada,
e se obtinha um tema: Imperialismo e Psicanálise, Mais-valia e Luta Operária,
ou o que fosse. Tinha-se, é claro, de tomar a precaução de não eleger uma casa
da diagonal central, nesse caso poderia sair algo como Capitalismo e
Capitalismo. O que, pensando bem, teria sua originalidade.
Os anos setenta foram os anos da não-ficção. Uma não-ficção que hoje
pareceria um tanto selvagem. A monografia acadêmica ainda não tinha feito sua
irrupção nas livrarias; aqueles que escreviam eram generalistas de formação
mais ou menos marxista, e faziam isso sobre uma base de leituras hoje quase
inimagináveis por sua amplitude e tenacidade. Era a idade do ouro das chamadas
"ciências humanas", cuja difusão se dava em termos políticos. esse fato já
exigia os dois termos. "A Lingüística", muito bem; mas a Lingüística e o quê?
Sozinha, não interessava a quase ninguém (aos lingüistas profissionais);
deveria vir acompanhada de Literatura, Sociedade, Inconsciente, Antropologia ou
de qualquer outra coisa. E qualquer uma dessas coisas, por sua vez, também
requeria companhia. A Lingüística, sobretudo, sempre vinha acompanhada por um
"e", pois era o modelo com o qual se devia estudar aquilo que nos importava de
verdade. Para além do modelo epistemológico, isso impunha um modelo tático, e
tudo terminava conjugado com outra coisa. O arquitítulo era, claro, Marxismo e
Psicanálise; à sua sombra estavam os demais pares da combinatória; creio que
todos se tornaram realidade, se não em livros, ao menos em artigos de revistas.
Entre parênteses, o diagrama hoje poderia ser atualizado estendendo-se as
coordenadas e agregando os mesmos termos com o prefixo "pós".
trinta ou quarenta anos, esses títulos duplos respondiam a uma
circunstância histórica precisa. Qualquer que fosse o tema sobre o qual se
queria predicar, era preciso remetê-lo imediatamente a outro, por ação de uma
conjunção audaz. A totalização começava com uma passagem, e não poderia ser de
*
"El ensayo y su tema" Boletín del Grupo de Estudios de Teoría Literaria n. 9. Rosario, dez.
2001.
266
outro modo. A passagem já era a ação, e se não a fizéssemos, ficávamos no sonho
intelectual ou na torre de marfim. Havia uma espécie de ansiedade, que hoje
podemos ver com um sorriso comovido, na pressa com que todo tema saltava a
outro, numa deriva sem fim, sempre provisória, assim como eram provisórias as
vidas revolucionárias. Tudo isso, enfim, passou. A própria História se ocupou
de dar fim, porque a des-historização é um fenômeno tão histórico como outro
qualquer.
Antes e depois disso, muitos ensaios foram escritos com título no formato
"A e B". É um formato eterno, inerente ao ensaio, que permanece por mais que se
alterem as determinações que a cada vez o justificam. Minha hipótese é de que o
tema do ensaio são dois. Um não é um bom tema para o ensaio. Caso seja um
tema só, não vale a pena escrevê-lo porque alguém, antes, o terá escrito, e
podemos apostar tê-lo feito melhor que nós. Mesmo o autor do primeiro ensaio do
mundo teve de enfrentar este problema. Com isso voltamos maciçamente à questão
do prévio que destaquei no início. O ensaio é a peça literária que se escreve
antes de escrevê-la, quando se encontra o tema. E esse encontro se no seio
de uma combinatória: não é o encontro de um autor com um tema, mas sim de dois
temas entre si.
Se uma combinatória se esgota ou satura, resta esperar que a História
a renove. O tesouro coletivo de interesses se transforma o tempo todo. Mas o
interesse sozinho, por mais atual e urgente que seja, nunca é suficiente para
se tornar arte, es demasiadamente comprometido com sua funcionalidade
biológica. O interesse é o fio de Ariadne com que nos orientamos para
continuarmos vivos, e com isso não se brinca. Para existir arte, deve haver um
desvio (uma perversão, caso se queira) do interesse, e o modo mais econômico de
se tomar esse desvio é juntá-lo abruptamente com outro interesse. Inócua como
parece, a operação é radicalmente subversiva, pois o interesse se define em seu
afastamento obsessivo, por ser único e não admitir competência. Na origem dessa
subversão está a origem da arte de fazer ou de pensar. Disso poder-se-ia
deduzir uma receita para fazer literatura. Se escrevo sobre corrupção, será
jornalismo ou sermão; se acrescento um segundo item, digamos arqueologia ou
artrite, alguma possibilidade de ser literatura. E assim com tudo. Se faço
um jarro, por melhor que faça, nunca deixará de ser um trivial artesanato
decorativo; se o acoplo a um suplemento inesperado, como a genética ou a
televisão, pode então ser arte.
Mas não se trata de insistir tanto no ensaio como forma artística, porque
o ensaio se apresenta melhor como conteúdo. A forma fica submetida às
generalidades da lei de distorção das intenções, e sempre se admitiu que o
melhor ensaio é aquele que menos atenção à forma, que aposta na
espontaneidade com um elegante descuido. Ao contrário do romance o mesmo
quiasma que destaquei antes), a forma, no ensaio, é o artístico que se revela
no final, contradizendo as intenções, quase como uma surpresa.
A exigência de espontaneidade não é um capricho. Além do que, pode-se
rastreá-la genealogicamente nas origens do ensaio como gênero, seja na
antigüidade, como derivado da conversa ou da carta, seja nos ingleses do século
XVIII, como leitura casual de jornais. Foi sempre julgado com parâmetros de
imediatez, de divagação reveladora, de chapa instantânea do pensamento. No
nascimento do ensaio propriamente dito, em Bacon ou Montaigne, tais parâmetros
sistematizaram-se como conjunção de um segundo tema, "Eu", o sujeito em busca
de objetos, aderindo-se a todos os temas. A forma A e B, mesmo que não esteja
no título, é onipresente, pois sempre se trata, para ser um ensaio, disto ou
daquilo... e eu. Caso contrário, é ciência ou filosofia.
Diferentemente do romancista, que se debate com os temas do mundo como
uma personagem interposta, o ensaísta encara-os diretamente. Isso não quer
dizer que não uma personagem, ou que o ensaísta realiza sua atividade antes
da irrupção da personagem. Diria, ao contrário, que faz isso depois. Para
iniciar um ensaio é preciso uma operação específica e bem delicada: a
extirpação da personagem. Uma cirurgia perigosa, de alta tecnologia, pois ao
mesmo tempo se tem de incluir o eu na conjunção com o segundo tema, deixando
oco o rastro do prévio. É como se cada ensaio tivesse por premissa tácita um
episódio anulado, que poderíamos formular nestes termos: "Acabo de assassinar
minha esposa. Não suportava mais seu mau-caráter e suas exigências desmedidas.
Estrangulei-a, num acesso de raiva. Passada a comoção do crime, invadiu-me uma
267
estranha calma e uma lucidez singular, graças à qual pude decidir ser inútil
tentar fugir do castigo que mereço. Para que ingressar nos embaraçosos trâmites
convencionais de esconder o cadáver, buscar um álibi, mentir, atuar, se o
astuto detetive me descobrirá no fim? Também se pode ser feliz no cárcere, com
bons livros e tempo livre para lê-los. Assim que acionei a polícia, sentei,
esperando. Enquanto não chegam, penso na relação conflituosa entre marxismo e
psicanálise..." Etcétera.
Esconder o cadáver e buscar um álibi, ou seja, dispor o espaço e o tempo,
são os "trâmites embaraçosos" da ficção, que fica para trás. Ou se faz isso
resignado, ou se aceita o castigo por não tê-lo feito, e assim se abre, diante
de nós, o vasto e gratificante campo da não-ficção. Para ampliar um pouco mais
a metáfora, devemos dizer que a vítima tem por destino retornar como fantasma.
Qualquer um que se tenha educado lendo romances policiais sabe que a
espontaneidade é um atributo do leitor. Fazer isso bem é colocar a
espontaneidade para trabalhar como mediadora da qualidade, sob o que vale a
pena o autor se revelar: a inteligência. Essa é a qualidade própria do ensaio.
O contista deve conhecer seu ofício, o poeta deve ser original, o romancista
deve alquimizar a experiência... o ensaísta deve ser inteligente. Um resultado
da falta de mediação seria que a inteligência não se predica tanto pelo texto
quanto pelo que escreve. não a tela objetiva na qual podiam se manifestar
o ofício, a originalidade, a experiência. A subjetividade direta se justifica
como inteligência, que encontra na espontaneidade o único modo de não se
mostrar ofensiva.
O ofensivo, perigo sempre latente, é ficar como um sabe-tudo. Esse
mecanismo de subjetivação se verossimiliza nos fatos com uma exigência de
elegância. Na realidade, o ensaio tem funcionado no sistema da literatura como
um paradigma ou pedra-de-toque, não tanto da inteligência, mas por sua
elegância. O ensaísta deve ser inteligente, mas não muito; deve ser original,
mas não muito, deve dizer algo novo, fazendo, porém, com que passe por velho.
O ensaio tem algo de enunciação, algo que o narrador moderno se esforça
por anular. Essas formulações antiquadas como "deixáramos nosso herói em tal ou
qual questão...", ou "mas os leitores estarão se perguntando...", que já não se
usam mais, no ensaio persistem, pois são inerentes ao gênero. A imediatez do
autor com seu tema impõe os protocolos da enunciação. Na ficção, a personagem
serve para anular ou neutralizar a enunciação, convertendo tudo em enunciado.
Ao se livrar desse apoio na comédia do discurso, o romance adota, esnobe, com
riso de parvenue, todas as inovações e vanguardismos; enquanto o ensaio, gênero
dândi, prefere esse sabor aristocrático alheio às modas.
A chave para se conseguir essa elegância espontânea é o prévio. Para não
revelar o esforço é preciso tê-lo deixado para trás. Tudo o que é importante
aconteceu antes; o ensaísta pode inserir uma certa distância com sua matéria;
costuma-se dizer que a chave dos bons modos à mesa é ter fome; os bons modos do
ensaísta dependem de não ter de pôr muito afinco na busca da verdade.
É bom lembrar que o ensaísta autêntico, não predicador nem publicitário,
deve buscar, antes, qual verdade dizer. Mas há, então, mais de uma? Não seria
contraditório com a definição da verdade, seja ela qual for? No campo do
prévio, uma verdade para cada objeto; nele, o objeto ainda não está
determinado. Pois bem, ao objeto vimos chamando "tema", e dissemos que todo o
trabalho do ensaísta se resume na sua descoberta, antes de se pôr a escrever.
Mas, justamente, são necessários dois termos para formar um tema. Um
termo só o basta para o tema de um ensaio, a julgar pela proliferação de
títulos bimembres. Se for um só, deve-se escrevê-lo, deve-se fazer o esforço,
porém arriscando a elegância. Com um termo só, o ensaio ficará muito próximo da
verdade, de uma verdade dada que subtrairia méritos de novidade ao autor. É
como se todos os ensaios com um tema único tivessem sido escritos por
outrem. Com efeito, o ensaio é um gênero histórico, iniciado em algum momento,
por mais que não entremos em acordo sobre quando foi. E se começou,
necessariamente ali, no primeiro momento, no momento em que dominou seu
inventor, também ali se esgotou. Seu inventor, mítico ou real, não tinha
motivos para se deter na metade do caminho, para dizer a verdade final sobre
algumas coisas e sobre outras o. Podemos supor tranqüilamente ter dito toda a
268
verdade sobre todas as coisas as quais valia a pena dizer. Esse esgotamento
livrou de compromissos aos ensaístas que vieram depois, ou seja, a todos eles.
Aqui devo dizer que o prévio na literatura tem duas faces: uma boa, que
nos lança ao trabalho de escrever, outra má, que torna inútil tudo o que se
escreve, banhando-se na luz divina da redundância. Em seu lado bom, o ensaio é
o gênero mais feliz. A felicidade existe em razão direta com a liberdade que
nos permite exercer num momento dado. Ao não ser obrigatória, por sorte, a
literatura guarda em sua origem a livre escolha. Depois, a margem de liberdade
se estreita. Aquele que escreve durante um longo período, inevitavelmente verá
sua liberdade se reduzir cada vez mais. Mas está o ensaio, para nos devolver
a fortuna das origens, ao julgar-se no campo da escolha prévia, onde está o
tema. (Entre parênteses, creio que o tema não se escolhe, mas o contrário: onde
ainda há tema, continua havendo escolha e, portanto, liberdade.)
Um convidado de última hora, a essa altura, é o crítico. Mas ele não
esteve ausente em tudo o que disse até agora, porque o crítico é essencialmente
ensaísta. O crítico que deseja ir além da descrição e explicar de onde saíram
os livros que leu, terá de retroceder à sociedade e à História que os
produziram. E a regra, a que obedece a felicidade de nosso ofício, deseja que a
cada vez que da literatura se retorne ao prévio, que se faça isso escrevendo
ensaios.
269
A POESIA DO SUPORTE
*
A galerista, em seu papel de mediadora entre artistas e compradores,
mostra-se preocupada pela displicência dos primeiros no uso de suportes mais
atrativos para os segundos. Ouço-a discutir com um jovem artista, obstinado em
fazer seus desenhos em folhas de papel corriqueiro, sempre o primeiro que lhe
cai nas mãos. De fato, esses papéis ordinários, leves e frágeis, incômodos de
se manipular, têm um inconveniente-chave para o comprador em potencial: são
pouco duráveis. Basta um ano e estarão amarelos, caso não estejam amassados
ou rasgados; para evitar isso, terão de passar por um enfadonho processo de
enquadramento. Quem compra arte, compra eternidade, e a quer pronta, sem
poréns.
A posição do artista também é relevante. Rechaça com razão os bons modos
da arte comercial ou do comércio da arte; sua indiferença às convenções do
packaging é parte de sua atitude artística, não quer renunciar a ela.
Um modo de conciliá-los seria reivindicar, ou inventar, a "poesia do
suporte", a aura própria do suporte antes de receber a inscrição de obra de
arte. Um antecedente bem persuasivo é Paul Klee. Todos sabem que Klee dava mais
importância, e dedicava mais trabalho, ao suporte que à obra, fosse esta
pintura ou desenho. Preparava interminavelmente a tela, cartão, papel ou
madeira em que iria pintar ou desenhar, fazendo isso de um modo sempre
diferente. um livro que compila suas receitas; tal como um menino fazendo
"experiências", tentava com tudo que pudesse conseguir: colas, azeites, pastas,
pós, giz moído, vernizes, farinhas... Mas diferente dos meninos, anotava
meticulosamente os ingredientes e proporções de cada mistura. Parecia mais um
cientista caseiro ou sábio louco em busca de receitas insólitas. Também anotava
o procedimento: com a mistura obtida, dava uma demão mais ou menos carregada na
tela ou no papel, deixava secar por uma semana, três dias, dava uma segunda
demão com a mesma ou com outra mistura, mais fina ou mais espessa, repetia a
secagem etc. Tinha desenvolvido uma sensibilidade especial para os resultados,
ou seja, para a superfície a ser obtida: mais branca ou amarelada, marfínea,
lustrosa, opaca, granulada, lisa, resvaladiça, aderente...
Uma vez que o suporte deixava o laboratório do Doutor Klee, o artista
Klee pintava ou desenhava sobre ele por alguns minutos, "já que estava", quase
como uma desculpa para justificar o trabalho anterior, no qual evidentemente
tinha posto toda sua libido criativa.
Suponho que o procedimento leve alguma vantagem psicológica, porque
não importância ao momento convencional da criação. Põe de cabeça para baixo
a história tal qual a conhecemos o que, como qualquer outra inversão, uma
ilusão de liberdade, e que pode ser apenas isso, uma ilusão. que nesse
terreno, o nada que não seja feito de ilusão. A vantagem está, creio, na
idéia de que o compromisso com o objeto, com o resultado, foi resolvido
antes. E o trabalho artístico propriamente dito se com essa gratuidade
utópica, que dá livre curso ao aberto.
E um benefício ainda mais prático, com a cara exposta à esquiva
clientela da galeria. Porque aqueles que compram uma obra de arte, compram um
suporte, o uma obra de arte. Não poderia ser de outro modo, o jovem artista
terá de reconhecer isso, como terá de reconhecer também que está equivocado
caso espere virem até ele comprar sua obra. Ninguém leva uma obra de arte para
casa, porque isso equivaleria a levar o artista, seu trabalho, sua vida. Apenas
se desdobrando em Sábio Louco, em engenheiro secreto de suportes, o artista
pode continuar sendo artista e vender convenientemente suas obras. Assim todos
ficam contentes.
*
"La poesía del soporte" Ramona — Revista de Artes Visuales n. 19-20. Buenos Aires: Fundación
Start, dez. 2001.
270
MUTILAÇÃO NARCISISTA
*
Ao que parece, Mansilla viveu com o temor de se desagregar. Não saía
caminhar à noite por medo dos cães soltos, que o estavam esperando para
separar-lhe braços e pernas a dentadas. Acariciava o curioso terror de perder
os dedos um a um. Se ficava dez minutos sozinho, via flutuando no ar uma cabeça
de índio. A digressão, acaçapada como uma besta em sua decisão de se pôr a
falar, era implacável no descalabro do discurso; e como sua única defesa contra
a desagregação era se pôr a falar e seguir falando, teve de fazer da
necessidade virtude: a mudança de tema foi seu estilo e sua elegância. Havia um
antecedente familiar-político, não nas degolações, nem na inevitável
dispersão de membros que produz a intervenção da política na família. Seu tio,
o Restaurador, inflando seus anões com fole, havia proposto um modelo de
explosão criadora; pode-se dizer que os fragmentos de anões incrustaram-se na
imaginação de Mansilla; quando ele mesmo foi objeto de uma variante do
experimento, com o arroz com leite, viu-se obrigado a escrever suas melhores
páginas, ele que punha todo seu refinamento em não escrever bem demais, com
demasiado afinco. Foi a única vez em que todos os seus temas confluíram, no
medo que precede e torna nítidas as catástrofes. Enquanto Rosas inflava
sistematicamente a bexiga e o estômago do menino, observando de esguelha à
espera do estalo, solidificava o tempo lendo-lhe uma longuíssima Mensagem à
Legislatura, uma e sem digressões, porque não havia mudança possível do tema
único, a conservação do poder. A soma do Poder Público, por ser "soma", já
aludia a uma mutilação prévia, como viu Ascasubi ao pôr Isidora, la Mazorquera,
a admirar a coleção de orelhas de unitários que Manuelita possuía. Mansilla não
escreveu poesia, que era o que convinha a esse momento histórico de cortes
abruptos e restauração do sentido; o equivalente na prosa da sucessão dos
versos é a mudança de tema, e essa foi a sua especialidade. Daí que fosse um
homem "disperso", como disseram todos. Isso lhe impediu chegar a Presidente, e
quando atenuou suas pretensões como aspirante a Ministro, tampouco pôde. Ficou
como conversador brilhante, brilho consolatório que ninguém fez reservas em
reconhecer e elogiar, porque era inofensivo. O poder é o único que congrega
todos os temas num emissor; quando a realidade não se condescende em dar
poder ao emissor, este se obrigado a manipular a dispersão como um sonho de
poder: poder mudar de tema. Foi uma época curiosa na Argentina, na qual um
escritor tinha de chegar a Presidente, ou ficava à margem da anarquia pessoal.
A época se chamava: a Organização Nacional. Os membros dispersos restituíam-se
com violência o seu lugar. Era o contrário de uma mutilação, mas no espelho
narcisista acontecia ao revés: a Desorganização Pessoal. O único modo de
apreender a si que Mansilla encontrou foi a autobiografia, e como havia
fracassado em levar sua vida a um ápice de domínio unificador, não pôde contar
mais que duas anedotas; lamentavelmente, as anedotas terminam logo, de modo que
para que não se desse o silêncio, teve de passar de uma a outra com a
velocidade do frenesi. Estabeleceu-se um curioso círculo vicioso: para
justificar a mudança de tema, é preciso rebaixar a importância do tema que se
abandona; mas o único tema de Mansilla era ele mesmo, e se chegasse apenas a
sugerir que seu interesse havia diminuído o suficiente para se r a falar de
outra coisa, abria-se um vazio e o dândi se desarmava num torvelinho de medo.
Condenado a não mudar nunca de tema, devia mudar todo o tempo, como os teólogos
que estão sempre falando de Deus mas não podem dizer mais que a variedade
desconcertante de Suas manifestações.
*
"Mutilación narcisista" Prefácio a MANSILLA, Lucio V. Esa cabeza toba y otros textos.
Buenos Aires: Mate, 2001.
271
ENTRE PRESIDENTE E PRESIDENTE
*
Não se pode viver de notícias. É certo que, até determinado ponto,
necessitamos delas, não apenas por uma nostalgia da História que parece estar
nos genes, mas porque agora, mais do que nunca, as notícias nos afetam na vida
cotidiana: o famoso bater as asas da borboleta produz, infalivelmente, um
furacão nos antípodas, porque os computadores funcionam à força de vôos de
borboleta. Mas tampouco podemos viver de notícias, e nisso falha a metáfora da
alimentação com que se justificam. A notícia como omelette surprise que se
saboreia, se avalia, digere e deixa satisfeito, ou ligeiramente asqueado,
tornou-se anacrônica. O tempo real é adverso ao trabalho de sentido da
metáfora.
A notícia acaba logo. Notamos isso com a Grande Notícia do 11 de setembro
passado. Meia hora depois tinha acabado, e na continuação se desencadeou uma
redundância abrumadora que durou semanas, e que de fato dura até agora. A
imagem extraordinária dos aviões se estilhaçando contra as torres foi notícia
demais para permitir um desenvolvimento narrativo. restava a repetição,
acompanhada de uma fala tão vazia que alguns canais de televisão optaram,
reveladoramente, em substituí-la por música funeral.
É certo que uma notícia assim acontece uma vez a cada vinte anos, ou cem.
Mas a lógica que a torna notícia exige que aconteça o tempo todo. Se aderimos a
essa lógica, e o parece difícil aderir, terminamos num estado de impaciência
difícil de controlar. E como as notícias, por sua própria natureza, são más
notícias, nos tornamos pessimistas ou, pior ainda, pessimistas frustrados.
O recente festival de presidentes que os argentinos tivemos foi uma
instrutiva inversão das premissas. Primeiro tivemos a redundância, o
comentário, a música fúnebre durante os quatro intermináveis anos que durou "a
crise", e depois veio a notícia, sob a forma de renúncia presidencial e
substituição. O caráter inerte da especulação interpretativa ficou demonstrado
pelo fato de que, mesmo posta antes, não só serviu para não explicar nada, como
sequer amenizou a surpresa da notícia. E uma vez que esta se deu, o anticlímax
foi duplo, pois tudo o que deveria segui-la tinha passado. Foi como o
naufrágio do Titanic vivido de trás para a frente: primeiro a filmagem da
película, a construção da lenda, os relatos dos sobreviventes, seu resgate, o
afogamento dos passageiros, um a um, a inundação das comportas… e ao final,
quando já estavam todos entediados da velha história, o choque com o iceberg.
Mas o choque, ao silenciar os discursos, despertou a História: fecharam-
se os bancos, as multidões saíram a apedrejar a polícia, começamos a viver
precariamente. Os que falavam do fim da História não estariam pensando, na
realidade, nos inconvenientes da História? Sempre que se anuncia o fim de algo,
faz-se isso para anunciar o começo de outra coisa que reposiciona o anterior.
Estes profetas deviam estar postulando uma nova História, acomodada e
impassível, sem acidentes. Nesse caso, os cidadãos que saem à rua com paus e
pedras manifestam sua indignação porque são obrigados a viver horas históricas.
E seu rugido de fúria produz História. O ponto de inflexão deste círculo é a
notícia.
As notícias costumam acontecer àqueles dispostos a sacrificar algo, ou
muito, para protagonizá-las e para que se fale deles. Nesse sentido, o campeão
mundial é Cuba, nação que deu tudo, literalmente, em troca de sair nos jornais
e ser tema de discussão durante quarenta anos. Depois, com boa distância,
viemos os argentinos, que tanto temos em comum com os cubanos. (O vínculo se
materializou em Maradona, que não retrocedeu diante da imolação de sua saúde, a
ponto de continuar nas primeiras páginas, e acabar indo viver em Cuba,
supostamente para recuperar essa saúde.) Povos afetados de megalomania, todos
dizem isso, e temos motivos para dizer. Nós mesmos reconhecemos. Mas no fundo
*
"Entre presidente y presidente" El País. Madrid, 22 jan. 2002.
272
desse reconhecimento persiste uma certeza secreta: uma megalomania moderada. A
convicção de nossa superioridade permanece no fundo intacta, como o Primeiro
Móvel de nossa interpretação das notícias. O que nos fica por averiguar então é
por que os argentinos somos tão inteligentes, tão dotados, de que fonte surge
nossa indiscutida vantagem relativa. Nos inclinamos, sinceramente perplexos,
sobre este enigma; todas as respostas ficam curtas, porque é como a pergunta
pela existência de Deus: os únicos interessados em respondê-la são os crentes,
e eles têm argumentos demais. Uma das respostas, que um peronista, também
grande escritor, deu muitos anos, continua sendo a minha favorita, pois
conta ao mesmo tempo de nosso privilégio e da existência de Deus: "A Argentina
tem um grande poder de representação".
Certo ou não, recorremos a isso nesta ocasião, e reconvertemos todos os
nossos problemas, grandes e pequenos, numa crise de representatividade. As
multidões saíram à rua, pondo-se em frente às câmeras de televisão, batendo
palmas, renegando seus representantes, os de todos, sem exceção. Por um momento
pareceu como se fôssemos rumo aos velhos sonhos surrealistas da anarquia
coroada. Sumam todos! Uma diligência política inepta até o paroxismo
verossimilizava o clamor popular. Não pode surpreender ter havido cinco
presidentes em dez dias; surpreende mais não ter havido cinqüenta. Mas como
dizia um senhor de minha cidade: para que haja anarquia em paz é preciso um
governo forte. Senão, é guerra. E com a guerra tudo teria sido notícia, as
vinte e quatro horas do dia.
Com cinco governos fracos nos bastou, por enquanto. A representação,
afinal de contas, é uma convenção, e no fundo no mesmo um presidente ou
outro. Após o relâmpago fugaz da notícia, só nos restou sua repetição, cada vez
mais pálida. E como já disse, não se pode viver de notícias.
273
O DÂNDI DE UM TRAJE SÓ
*
Eu estava na França quando os aviões derrubaram as Torres Gêmeas, e quase
que imediatamente começaram a circular piadas a respeito. Não fato tão
mágico que não origine piadas; é como se a invenção circulasse por um trilho
paralelo ao da piedade e da dor e seus frutos fossem irreprimíveis, mesmo para
um povo tão civilizado como o francês. Anônimas, são criações da linguagem,
como a linguagem em si. Uma delas era esta: Bin Laden e Bush fazem uma maratona
por Manhattan. Quem ganha? Bin Laden. Porque leva "deux tours d'avantage".
Tours, em francês, quer dizer tanto "torre" quanto "volta". Que vaga tristeza
me dá uma piada intraduzível. É como se traísse o que mais amo no mundo. Não
porque não posso contá-la, de volta a Buenos Aires; é como se não pudesse
contá-la a mim mesmo, ou tivesse de explicá-la ao contar, com o que a graça se
perde, confundida nos momentos heterogêneos da piada e da explicação. O humor
ou o engenho dependem absolutamente do tempo, da oportunidade, e não sobrevivem
aos acidentes de uma sucessão ordenada. Ou, talvez, tenha eu transferido para
a tristeza que tanta morte e destruição deveriam ter-me causado. A piada
compensa a perda com um sorriso, mas a piada intraduzível me devolve ao
intratável e imanejável da realidade.
Todo mundo está de acordo de que os terroristas tiveram sorte. Saiu-lhes
diabolicamente bem. Derrubar uma torre era difícil, o êxito estava sujeito a
mil condições e azares. Mas as duas... Esse é outro ponto intrigante: que
houvesse duas. Os gêmeos são um bloco de irrealidade dentro da realidade, uma
espécie de garantia cerebral reificada para se precaver contra a fragilidade do
real. ("Ver duplo" é sempre uma aberração perceptiva.) Todas as coisas estão
sujeitas à fugacidade deste "mundo flutuante", mas algunas, por duplas, têm
dupla chance de sobreviver. No entanto, os gêmeos podem morrer juntos,
produzindo uma tensão da realidade que cerca a ficção. "Essas coisam
acontecem na realidade", dizia Borges, referindo-se ao romanesco.
Mais triste ainda, muito mais, para mim, foi começar a comprovar, nos
dias que se seguiram, quantos tinham se adiantado aos fatos, em filmes,
novelas, letras de músicas, capas de discos; e que poucos iriam escrever algo
que valesse a pena ler sobre o que havia passado; uma vez gerado o fato, a
produção representativa seca, a arte se desvia em outras direções. O triste é
que diante dos grandes fatos históricos, surpreendentes e espetaculares, que
acontecem diante de nossos olhos e mudam o mundo, os escritores se vejam
reduzidos a dizer "isso eu escrevi". Pior ainda é que se mostrem muito
contentes com isso, como se tivessem quites com sua ficção. Em lugar do prazer
e da excitação de encontrar seus temas e formas na História, satisfazem-se com
o melancólico e inútil trabalho de reivindicar sua qualidade de profetas.
Isso é também uma traição, porque a função social do artista, e seu
desejo mais profunso, é fazer realismo. Mas se tem de reconhecer que
tecnicamente é mais fácil, muitíssimo mais fácil, fazer profecias a se fazer
realismo.
Não me refiro ao velho realismo positivista, bode expiatório ou inimigo
útil de todo vanguardismo, mas ao realismo sempre novo e distinto, sempre em
estado de nascimento, estímulo e ponto de partida da condição de escritor.
Lukács quem o descreveu bem, falando de Balzac ou Tolstói: não é a posição
daquele que de fora da realidade, mas do que se instalou no núcleo que a
gera, falando e atuando dali. Para fazê-lo é preciso praticar o amor fati dos
antigos deuses, a identificação com a realidade enquanto História. E como fazer
isso em nossos tempos de des-historização e jornalismo? Como inventar novos
realismos se se quebrou o vínculo criativo entre o real e o artista? A des-
historização, em resumidas contas, consiste em inverter o curso do tempo e
recolocar a variedade incontrolável do que acontece pelas tranquilizantes
previsões do que pode acontecer. Nesses cálculos, está-se limitado pelas
*
"El dandi con un solo traje" Babelia, suplemento de El País. Madrid, 31 jan. 2002.
274
pequenezas da personalidade. Livre de sua psicologia, o escritor fica diante do
mundo como quem quer se vestir bem em qualquer ocasião, dispondo de um traje
só.
Deslizando-nos a uma consideração mais frívola, é notável como foi
perdendo hierarquia, ao longo da história, a representação artística da guerra.
Paolo Ucello o Leonardo ainda sustentavam a comparação com os guerreiros da
Antigüidade, de todas as Antigüidades, orientais, ocidentais e americanas. As
guerras napoleônicas viram o deslocamento da arte que comemora as guerras à
pintura ou à escultura de gênero. Na Primeira Guerra Mundial houve um fugaz e
local retorno à grande arte, com os expressionistas. A Segunda deu chance a um
último golpe, com uma geração de bons fotógrafos-repórteres, cujo cânone
continua vigente, por falta de outro; as fotos em cor do Vietnã não foram o
mesmo. Hoje, não temos mais que imagens televisivas em estado bruto. O apuro em
saber comprimiu o tempo até fazê-lo desaparecer, coisa que se festeja como
Simultaneidade; e como tanto a arte quanto a História se fazem com tempo,
ficamos sem as duas. Ou melhor: ficamos sem essa confluência de História e arte
a que chamamos realismo.
275
OS POETAS DO 31 DE DEZEMBRO DE 2001
*
Na Argentina, o Estado não teve quase nunca a iniciativa de manter os
escritores. Algumas raríssimas exceções não invalidam o dado de que os bons
escritores argentinos não tiveram nada a agradecer ao poder, e o o fizeram.
Não obstante, a pressão do grêmio, onde certamente predominam os medíocres e
ávidos (os bons escritores são também uma exceção raríssima), faz com que algum
funcionário, por demagogia ou falta de melhores idéias, lance de vez em quando
algum tipo de Plano de Apoio à Cultura, carregado de maiúsculas e boas
intenções, que inevitavelmente termina em fiasco. Houve um recente, que
consistiu em subsidiar a edição de livros e revistas de poesia, conto e ensaio.
Não pôde ser mais inoportuno, além do mais, seu mecanismo foi o complicado
que ninguém entendeu completamente como operava. O que não impediu que todos se
candidatassem, e todos os candidatos foram aprovados de modo automático. A
idéia básica consistia em que o dinheiro do subsídio seria pago mediante
contra-entrega dos livros e revistas impressos. Imprimiram-se centenas de
livros dos poetas mais improváveis (contos e ensaios foram uma exígua minoria),
com as gráficas trabalhando por conta, e enquanto isso mudou o Governo,
secretário de Cultura inclusive, mudaram seus substitutos, voltaram a mudar...
Como parece muito provável que ninguém pague, as gráficas retêm os livros (o
que se proporão a fazer com eles?), mas os editores e autores discutem,
mediante diversas chantagens e promessas, para conseguir alguns exemplares de
cada título, que circulam alegremente. um antecedente prestigioso, o de
Rimbaud, que fez imprimir por conta seu Temporada no inferno, levou uma dezena
de exemplares e não voltou nunca para pagar. A isso chamamos "não levantar o
morto", e tal como estão as coisas no país, teria de se dar razão a Cocteau: "A
diferença entre o teatro e a realidade é que na realidade os mortos não se
levantam ao fim da obra". Mas para que querem os poetas uma edição completa de
seus livros? A quem interessa senão a eles mesmos?
Alguns chegaram a meu poder, e durante esses dias turbulentos estive
lendo-os e conversando com seus jovens autores e editores, que podem coincidir
numa mesma pessoa. Essas leituras, não tive remédio a não ser alterná-las com
as especulações jornalísticas, que proliferaram, e que repetem todas a mesma
pergunta: o que aconteceu com a Argentina? o que aconteceu com aquele país
culto, próspero, sofisticado, o taste-maker sul-americano? A mim ocorreu que,
se a resposta poderia estar em qualquer parte, poderia também estar nesses
livrinhos gratuitos e fantasmáticos, acidentes da História que ilustram
exemplarmente.
Pois bem, se a História está onde sempre esteve, a Argentina também está
onde sempre esteve. Os nostálgicos têm dificuldade para entender a
transformação, que é a regra do jogo, porque o que se transforma, mais do que
as coisas e os fatos, são os valores com os quais se julgam coisas e fatos. A
literatura é um dos laboratórios onde se criam novos valores, novos paradigmas,
e a poesia é o setor do laboratório onde se esboçam os novos paradigmas da
literatura.
Esta poesia em especial, que não teria visto a luz não fosse o erro de
cálculo de um funcionário imprudente, lida num momento convulsivo que faz
cambalear os pressupostos nacionais, é ideal para pôr à prova nossa adaptação.
Para alguém que tenha tomado o chá com Victoria Ocampo, ou aderido ao
compromisso sartreano dos anos cinqüenta, ou lido Marx e Lacan, ou inclusive
para quem fez alguma idéia da trangressão a partir de Jim Morrison ou John
Lennon, estes meninos semi-analfabetos formados pela televisão podem lhes
parecer barbárie pura, e sua poesia uma fraude. Mas isso se se enfoca a
partir do passado, com valores prontos. E os valores, por mais que pretendam
ser eternos, são sempre históricos. Com um pouco de imaginação, e adotando-se o
*
"Los poetas del 31 de diciembre de 2001" Babelia, suplemento de El País. Madrid, 7 fev.
2002.
276
ponto de vista do presente, estes poemas assumem uma cor de necessidade: são os
elos inevitáveis que levarão ao futuro, e o mundo futuro terá sua cultura, em
cujos arquivos estarão os livros publicados pela metade em 1 de dezembro do ano
2001, graças a um subsídio interrompido, enquanto sucediam fatos históricos
pela metade.
Uma destas editoras, minha favorita, chama-se Belleza y Felicidad. O nome
é todo um programa de resistência. Começou sendo uma tendazinha de souvenirs,
dessas de "tudo por 1,99", propriedade de duas moças de pouco mais de vinte
anos, Cecilia e Fernanda. Em dois cantos armaram minúsculas salas de
exposições, tão pequenas que entra uma pessoa por vez; e uma terceira no
sótão. Começaram a expor jovens artistas, para os quais se tem de adaptar a
expressão "artista", e houve também uma revista, que evoluiu para a edição de
livros, o que também é preciso redefinir: feitos com fotocópias, sem capas, e
tão magros que alguns têm uma folha. Mas a magia do lugar está na
redefinição, como sugere o próprio nome: outra classe de beleza e
felicidade, assim como outra classe de arte e de literatura. Nesta, o
catálogo foi se expandindo pelo viés alucinatório, com os "livros" de Lírio
Violetsky, Martín García, Margarita Bomero ou da deliciosa Dalia Rosetti. (São
todos pseudônimos.)
Três anos depois de inaugurada, Belleza y Felicidad parece chegar ao
final de seu ciclo. A situação econômica não ajuda; nos últimos três meses não
venderam nada; de fato, vários colecionadores foram devolver obras que tinham
comprado. Mas na verdade nunca venderam. Ao dizer que o lugar é mágico, quase
não estou fazendo uma metáfora. É uma bolha, um sonho, igual à realidade. Pela
recessão e falta de demanda, o aluguel do local lhes sai de presente, e não têm
gastos. Basta querer, querer ter uma galeria de arte, uma editora, um fliperama
bizarro. Agora talvez Cecilia e Fernanda não queiram mais: a experiência se
consumou. (Mas a palavra "experiência" também se tem de redefinir.)
São as definições que cumprem seus ciclos. A cultura é a máquina de
definições de uma sociedade, é um erro avaliá-la pelo que se definiu, em
forma de livro, quadros ou artistas. A nova cultura, a cultura que nasce, não
devemos buscá-la nas obras, mas no processo do qual as obras são apenas um
momento, sequer o mais importante.
Depois de tudo isso, quem pode julgar? quem pode se atrever a julgar?
277
VOZES ENTRE A SELVA
*
Nas histórias do tabaco, costuma-se narrar a anedota do lorde inglês que
apostou com seus amigos de clube que podia pesar o fumo de um cigarro. Ganhou a
aposta pesando o cigarro antes de fumá-lo, depois a bituca e as cinzas: a
diferença era o peso do fumo. Diria-se que com seus dois últimos romances,
Nuria Amat entregou-se a um experimento semelhante: El país del alma (1999) é a
consumação de um estilo liso, sonâmbulo, perfeitamente adequado às minúcias de
sentido do destino de uma mulher da burguesia catalã, numa dessas edênicas
modernidades que são a especialidade das burguesias. Neste surpreendente Reina
de América, esse estilo é submetido à prova de fogo de uma guerra real e atual,
uma guerra cooptada pelo discurso jornalístico. O inglês se torna Phileas Fogg,
que sai de viagem, ganhando dias pelo mundo. O peso da diferença deve ser
computado entre uma mulher que compra suas lembranças felizes com a morte, e
outra que sobrevive ao preço de transformar a vida num acontecimento.
Uma jovem espanhola acompanha um escritor-jornalista colombiano à selva,
levando vida de náugrafos sem ilha; ele foge de uma condenação à morte, o que
na guerra é ubíquo; foge, ou vai buscá-la: no mesmo, porque da Europa à
América o planeta girou e os rumos se confundiram. O antecedente é um clássico
colombiano, La vorágine, de José Eustasio Rivera, romance de fugas tão
exacerbadas que o protagonista acaba fugindo de sua fuga. Nuria Amat desloca o
espaço e o tempo da selva e do relato, fazendo do escape um epifenômeno do
regresso, estendendo os círculos concêntricos da aventura ao redor da voz que
conta: La vorágine reescrito por Marguerite Duras.
Pelas aventuras, deseja que o homem se enfrente sozinho, liberto a seus
próprios recursos, às forças adversas da natureza e da história, em trópicos
incompreensíveis. O incompreensível torna a literatura necessária, que cria
seus próprios padrões de sentido. Reina de América propõe uma mudança marginal,
mas decisiva: o homem acredita estar só, mas rodeia-o uma constelação de
mulheres, negras, brancas, índias, tias, primas, vivas, mortas dentre elas, a
própria Rainha da América, uma caveira que levam numa cesta. E como costuma
acontecer, as mulheres acabam ajustando tudo entre si, sobre o cadáver deste
Kurz, morto pela curiosidade.
Uma guerra pode ser narrada por um estrategista, sobre o mapa, o que se
assemelha a uma explicação; ou por um soldado, a partir do campo de batalha, e
nesse caso o estrondo e o pranto obstruem a comunicação. A seda da prosa de
Nuria Amat nos faz suspeitar existir um terceiro modo, o dos mapas borgeanos do
tamanho do território, ou seja, do tamanho da linguagem. Nem explicação nem
lamentos; além do mais, a guerra colombiana é muito complicada, com muitos
bandos, e mesmo quando a equação se esclarece nos termos mais simples, timas
e vitimários, ninguém terminará de entendê-la nunca (aqueles que entenderem
estarão mortos). De qualquer modo, necessita-se de um sobrevivente para contá-
la, e reside a originalidade definitiva e última ironia deste romance. A
autora, por força do estilo, torna-se também sobrevivente, não para cobrar uma
aposta vã, mas para dar resposta à carência pela qual uma mulher se torna
escritora: o "quarto próprio". Partiu de viagem em sua busca, encontrando-o nas
mansões verdes do Novo Mundo, em meio a uma guerra real e atual. A cena do
descobrimento, quando as árvores da selva se deslocam e abrem um clarão para a
festa, é um tour de force wagneriano a que poucos romancistas se atrevem: não
se trata de uma citação literária (ainda que tenha mais de Macbeth que de
García Márquez) mas da impávida confirmação de que essas coisas acontecem, e de
que é preciso muito para poder escrevê-lo.
*
"Voces entre la selva" Babelia, suplemento de El País. Madrid, 30 mar. 2002.
278
RIMBAUD, UM MISTÉRIO INTACTO
*
A vida de Rimbaud foi, na verdade, duas vidas distintas, tão claramente
diferenciadas que é quase impossível não especular sobre aquilo que as uniu e
separou. Na primeira, que cobre seus primeiros vinte anos, entre 1854 e 1874,
escreveu toda sua obra poética; seguiu-se um intervalo de vagabundagens
desorientadas e, logo, entre 1880 e 1891, ano de sua morte, a etapa de
comerciante no chifre africano, em ambos os lados do Mar Vermelho, entre Aden,
Harar e o planalto da Abissínia. Desses onze anos se ocupa Charles Nicholl em
Rimbaud en Africa, e não é o primeiro a fazê-lo. Uma legião de eruditos
rimbaudianos estudou essa década durante todo o século XX; na realidade,
começaram a fazer isso com Rimbaud ainda em vida, e não parece que as
descobertas ou a curiosidade que as promove estejam perto de terminar.
O caso Rimbaud é especialmente intrigante pela definição do corte; uma
vez que deixou a literatura para trás não houve a menor reincidência, o menor
sinal de interesse sequer; não deixou apenas de escrever, mas de ler
literatura, moderna ou antiga, cortou toda e qualquer relação com seus amigos
escritores, desligando-se da sorte de seus velhos escritos. Na África, durante
a única ocasião documentada em que falaram com ele sobre sua obra poética e
fama crescente, mostrou um irritado desdém: "Já não me ocupo disso", negando-se
a mencionar a poesia pelo seu nome.
Segundo traço peculiar: a idade. Nunca houve um caso de abandono tão
precoce. A seus últimos poemas, as Iluminações, costuma-se pôr datas que iriam,
em todo caso, até 1874, ou seja, seus vinte anos. Mas nada impede pensar terem
sido escritos bastante antes, e na realidade é muito provável que estivessem
terminados em 1871 ou 1872.
Terceiro, a qualidade desta obra. Não apenas sua qualidade poética, por
si só já surpreendente, mas seu desenvolvimento e inserção na história
literária européia. Contra aquilo que uma visão anedótica do mito Rimbaud
poderia fazer acreditar, sua poesia não é a expressão selvagem do coração de um
adolescente superdotado. Pierre Brunel demonstrou, em análise extraordinária,
que os "projetos e realizações" de Rimbaud poeta passam por etapas distintas,
marcadas por distintas influências e intenções que o levam de Baudelaire aa
dissolução do simbolismo. Em pouco mais de um qüinqüênio de exercício de
escritura explorou poéticas distintas, por vezes contraditórias, levando todas
às suas últimas conseqüências. Esse compromisso profissional e a perspicácia
crítica em que se apoiava tornam ainda mais estranha sua atitude posterior.
Admite-se poder abandonar a literatura quem a tomou em bloco, como uma forma
unitária de expressão; aquele que a praticou por dentro sabe que se pode
abandonar um estilo ou um formato, porque sempre haverá outros com que possa
recomeçar.
Isso faz dos anos africanos de Rimbaud um enigma literário sem
precedentes. Foram examinados com microscópio, reconstruídos quase dia por dia,
cotejou-se testemunhos até dos garçons analfabetos mais improváveis, não ficou
arquivo público ou privado na África por revisar, fez-se edições críticas de
memórias, diários, correspondência e até mesmo livros de contabilidade, de
todos os seus sócios, colegas e conhecidos; publicações fac-similares de
listas de mercado, fotos, desenhos, mapas, registros de hotéis e aduanas. A
última contribuição de importância, tão importante que se teve de começar tudo
de novo, foi a descoberta, na década de 1960, de correspondência completa entre
Rimbaud e Alfred Ilg, um suíço que assessorava o imperador Menelik. A
bibliografia acumulada é imensurável. O mais inteligente e melhor escrito é o
belo livro de Alain Borer, Rimbaud en Absinia (há tradução castelhana, FCE,
México, 1991). O recente Rimbaud en Africa do jornalista Charles Nicholl é um
bom resumo dos bados básicos, legível e sensato, pensado para o grande público.
*
"Rimbaud, un misterio intacto" Revista Ñ, suplemento de Clarín.com, 13 abr. 2002.
279
Desta extraordinária empresa coletiva de erudição resulta em definitivo a
imagem de um comerciante europeu na África da grande "divisão" colonial da
segunda metade do século XIX. Um comerciante mais ou menos honesto, mais ou
menos astuto, esforçado, como tantos outros, por imposição das circunstâncias,
explorador, poliglota, pioneiro e político. Teria dado no mesmo tomar qualquer
um de seus colegas, sobretudo a suspeita de que isso é o que foi feito, pois
houve outro Rimbaud pelas mesmas regiões e na mesma época (por vezes a
correspondência lhes cruzava). A única coisa digna do trabalho dos biógrafos é
que em sua vida anterior, repudiada, tinha escrito uma obra literária de
destaque. Todo o trabalho de persuasão centra-se em nos convencer de que se
trata do mesmo homem, o desterrado que passava meses tentando cobrar alguns
rifles de algum pequeno rei somali e o autor de "Barco ébrio". Podemos aceitar
isso perfeitamente, e toda a argumentação se torna redundante. Que possuía
bonitos olhos azuis sabíamos por Verlaine, e a solene confirmação de um
missionário ou militar na verdade não garante nada. Nos perguntamos se não se
dará o mesmo com todos os escritores: homens comuns e ordinários, homens de seu
tempo como todos os demais, sua obra como um suplemento bastante autônomo, com
a qual os biógrafos não sabem bem o que fazer. Rimbaud é apenas o caso-limite,
o modelo, e aí pode estar o segredo de sua atração perene.
Os biógrafos do Rimbaud africano não têm grande coisa a fazer com a obra
do Rimbaud poeta. Lançam mão do recurso fácil de tomá-la como antecipações
mágicas das experiências posteriores de seu autor, tanto mais fácil uma vez que
a poesia de Rimbaud se presta, como ele mesmo disse à sua mãe, a ser
interpretada "literalmente e em todos os sentidos". Ou também buscar as chaves
de uma vida na outra. O livro de Nicholl é um catálogo desses recursos,
forçando sem cessar o sentido de dados que em qualquer outro sujeito se
explicariam por si mesmos. Um exemplo, dentre muitos: Rimbaud compra uma câmera
fotográfica. O que poderia ser mais normal num viajante em terras exóticas?
Aqui todo um capítulo sobre o objetivismo de sua poesia, as peculiaridades
da percepção visual do poeta, a descrição da alucinação em Iluminações, a
alucinação da descrição e mil coisas mais, todo intercalado de citações dos
poemas, mais ou menos bem escolhidas.
Seria injusto condenar Nicholl por não cumprir uma promessa impossível.
Faz um trabalho honesto e informativo, e podem passar por alto alguns toques de
humor involuntário, como chamar Rimbaud e Verlaine de "os Laurel e Hardy
existencialistas". Prejudica-se por seu desconhecimento do contexto literário,
mas pode se desculpar pelo fato de que Rimbaud chegou a desconhecê-lo
voluntariamente tanto ou mais que ele. Como todo jornalista que encara um
grande artista, por certo o gênio de seu biografado, assumindo a notoriedade
em seu valor nominal. Isso também é um pouco fácil demais no caso de Rimbaud. E
pesando-se fama com fama, Nicholl chega à conclusão de que o mérito principal
de sua poesia é ter inspirado Bob Dylan. O que é coerente com suas premissas de
difusão, e dentro do possível tem o mérito de deixar intacto o mistério.
280
SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS ENTRE COLÔMBIA E ARGENTINA
*
Em Bogotá abundam os mendigos. Em Buenos Aires também. Em Bogotá
muitos que são também loucos, ou parecem, por seu discurso incoerente, suas
repetições, além do traje e dos modos. Em Buenos Aires também há muitos desses.
Outra coisa é quando o pedido tem um matiz, mais ou menos notório, de
ameaça. E sempre tem, tanto em Bogotá quanto em Buenos Aires — tem até quando o
pedido é submisso e cortês; talvez seja quando mais se sente a ameaça. De fato,
a ameaça é a premissa de todo o assunto. Os indigentes deveriam nos roubar e
matar, se tivessem a dignidade e ousadia necessárias.
Esta manhã, numa esquina da Candelária, uma mendiga me abordou
oferecendo-me em venda algo que tinha entre as mãos, um animal. Detive-me para
olhar acreditando ser um cachorrinho, mas era um ssaro, um pássaro pequeno,
como um pardal, em mal estado, quase sem penas. Tinha a cor dos pardais mas o
bico era longo demais.
— Olha que bonito.
Neguei com um balbucio e um pouco de asco. Ela insistiu:
— Me dá uma moeda e vou embora.
Então, já refeito da surpresa, respondi de forma mais articulada:
— Não, obrigado; não teria onde guardá-lo.
(Entre parênteses, depois me ocorreu que poderia tê-lo adquirido para
soltá-lo. No momento, tive um relâmpago de pensamentos aglomerados com imagens
do hotel, do aeroporto, no avião, comigo escondendo o pássaro etc., um pesadelo
instantâneo.)
Segui meu caminho, mas a mulher se pôs a meu lado:
— Agradeço que ao menos tenha me respondido com amabilidade. Outros dão a
volta sem dizer nada, ou dizem "Cai fora, doida!". Também sou um ser humano,
mas tive a desgraça de viver a vida toda na rua.
Era uma mulher jovem, muito bonita e nem tão malvestida, ainda que fosse
evidente ser uma habitante da rua e que estava um pouco desequilibrada. A
dentadura estava boa, embora lhe faltassem alguns dentes.
E além disso, continuou, sofri duas operações, veja. Começou a mexer
na cintura da calça. A essa altura eu tinha posto a mão no bolso onde
carrego as moedas, mas esse bolso é tão estreito que tenho de meter um dedo só,
empurrar as moedas a um canto e arrancá-las por pressão, o que me toma bastante
tempo. Ela tinha baixado a calça e estava me mostrando uma longa cicatriz
preta em linha reta que ia desde o umbigo ao sexo deste último tive um
vislumbre involuntário.
Fiz cara de "que feio, que desagradável", mas ela não levou a mal,
certamente porque interpretou no sentido que eu queria dar: que mal passarem
essas coisas com as pessoas.
Que estranha é a mente; o que me pus a pensar nesse momento era o cúmulo
da frivolidade, a saber, como podia ser que lhe tivessem feito duas operações e
tivesse uma cicatriz. Ou teriam aberto as duas no mesmo lugar, ou uma foi
acima ou abaixo da outra e simplesmente se teve de estender o corte. Enfim, a
doença é um argumento bastante corrente nesse tipo de transações. Uns minutos
antes, ao entrar na Catedral, um mendigo com a mão estendida me disse: "Não
peço dinheiro. Tenho fome. Estive em terapia". E repetiu textualmente quando
saí.
Enquanto isso, dei todas as moedas que tinha à mulher, que para pegá-las
voltou a subir a calça. Não olhei o que tinha feito com o pássaro, que a
*
"Parecidos y diferencias entre Colombia y la Argentina" [2002] Zunino & Zungri. Rosario:
Beatriz Viterbo Editora, 30 dez. 2003.
281
princípio mantinha no vão das mãos; provavelmente continuava segurando-o com a
esquerda. Agradeceu-me, dizendo:
Que Dios te bendiga, a ti y a todos tus canas.
Esta última palavra, não sei se a ouvi bem. "Canas", em Buenos Aires, são
os policiais, mas não podia se referir a isso; e em sentido literal são os fios
de cabelo, que tenho em abundância, mas nesse sentido a palavra é feminina.
Decidi que se referia a meus filhos. Mesmo que não fosse isso, porque repetiu,
amplificando:
Que Dios te bendiga y te proteja a ti y a toda tu família... y a todos
tus canas.
Seguíamos caminhando pela calçada estreita, entre uma multidão de
estudantes. Eu, com esse reflexo pequeno-burguês típico de mim e de todos os
que são como eu, queria me despedir e continuar sozinho.
— Muito obrigado, agradeço sinceramente o desejo.
Mas você não é daqui! exclamou ela ao me ouvir, num estalo de
alegria.
— Não, não sou daqui.
Eu conhecia um homem que não era daqui, era inglês, vivia justamente
aqui na esquina. Eu gostava muito dele. Todos os dias levava-lhe flores, rosas
não, flores como essas e apontou às flores que levava na mão um jovem
corpulento que nesse preciso instante nos cruzava na direção contrária, e que
nos lançou um olhar inquisitivo. Eu gostava muito dele porque foi meu
professor.
"De quê?", queria lhe perguntar, mas não perguntei por mais razões que as
que poderia enumerar. Ela continuava:
— Ele as levava não pelo dinheiro, mas pelo carinho.
— Ah, sim?
Este último lhe disse de um modo que é muito peculiar em mim. Tenho o dom
de fazer crer a meu interlocutor que me interessa sobremaneira aquilo que está
dizendo, mesmo que não me interesse nada. É um dom de que me orgulho, sobretudo
porque surte efeito ainda quando aquilo que estão me dizendo sim me interessa.
— E de onde você é? Também é inglês?
— Não. Sou argentino.
— Argentino! — exclamou com outra explosão de alegria. Eu vinha
observando-a e tinha descoberto ser uma mulher realmente bonita, de não mais
que trinta anos. — Eu tenho um amigo argentino, que é escritor...
Minha curiosidade se despertou de um salto milagroso. De repente tive a
certeza de que esse escritor eu o conhecia, senão pessoalmente, de nome. Tinha
de lhe perguntar. Se a deixasse falar sozinha, ia dizer tudo menos o nome. Isso
é algo que acontece igual entre loucos e sãos: nunca dizem o que realmente nos
interessa.
Quando ia fazer isso, e já tinha a pergunta nos lábios, aconteceu algo.
Tínhamos chegado à outra esquina, e no chão, justo à nossa frente, havia a
maior poça de sangue que vi em minha vida. Mais que uma poça, era uma porção de
sangue coagulado, brilhante e vermelho. A louca me advertiu de sua presença,
graças a isso não pisei. Disse:
— Aqui mataram alguém.
Passamos um por cada lado da poça, eu pela esquerda, ela pela direita,
abrindo passagem entre a gente. Ouvi o que ela dizia a alguém que olhava:
— Mataram esse velho aqui, à noite.
Ao passar pela esquerda, desci à rua e atravessei. Ela, ao contrário,
tinha dobrado, sem atravessar, e já se afastava, com o cachorro. Porque esqueci
de dizer que um cachorro acompanhava-a, nem pequeno nem grande, de olhar muito
expressivo, tal como costumam ter os cachorros de rua, e todo o tempo tinha ido
meio corpo adiantado de nós e dobrando a cabeça, como se acompanhasse a
conversação.
282
Agora fui eu que me dobrei a olhá-la, e ela também, e me saudou agitando
uma mão, com um grande sorriso.
— ¡Que Dios te bendiga, a ti y a todos tus canas...!
30 de abril de 2002
283
O MEDO CRIADOR
*
O medo não pode ser tão ruim, se nos foi dado pela Mãe Natureza; e nos
deu uma provisão inesgotável e variada; aos mais indefesos deu mais, e tomou
cuidado para que nada faltasse a ninguém, ou a quase ninguém: aos temerários
temos motivos para admirá-los, mas em geral não queremos ser como eles. Além
disso, cultivamos o medo, e quanto mais civilizados nos tornamos, mais cuidado
temos em mantê-lo vivo. Hoje que vivemos rodeados de guarda-costas de alta
tecnologia, o medo se tornou um ramo próspero da indústria cultural. Há aí um
paradoxo; a civilização que se ocupou, com um enorme gesto de engenho e
trabalho, em dissipar os medos da humanidade, usa os mais sofisticados recursos
da arte para recuperar o medo mais primitivo, numa espécie de carreira contra
si mesma.
Teria-se de reconhecer a utilidade do medo e colocá-lo na lista dos
instrumentos de adaptação e conservação da espécie. Serve para nos afastar
daquilo que nos danifica, antes que o dano se produza. Compartilhamos o medo
com todos os animais, e neles essa antecipação é um índice de pensamento,
talvez a própria essência do pensamento. Como os homens dispomos do pensamento
propriamente dito para antecipar circunstâncias perigosas, o medo se torna
supérfluo; sua função deveria ficar a cargo da Razão, que realmente o assume,
ao menos na gente razoável; mas ainda assim persiste e se torna um hóspede
incômodo, com o qual convivemos por força da vergonha, culpa e desculpas.
[...]
**
para que carreguemos com esse resto arqueológico do pensamento em
funções. Creio que o medo nos serve para combater as incertezas do porvir. Ao
se adiantar ao dano futuro, o medo cria o futuro. A mordida de um cão nos fere,
pode até nos matar; mas com o medo dos cães nos adiantamos à dor e à desgraça,
transformamo-los num evento da imaginação, e de certo modo nos colocamos no
comando. Aí também um paradoxo, e mais escandaloso: usamos o medo para
combater o medo. Deve ser, porque o tempo, esse mistério que derrota nosso
pensamento, nos produz um medo superior a todos os medos. Graças ao medo damos
forma ao desconhecido que nos cerca, e o que possui forma já não é tão
terrível. Com o medo colocamos limite à proliferação dos possíveis, e se
escolhemos os piores é para exorcizá-los. Essas ficções exigem um trabalho de
imaginação e verossimilhança que nos torna artistas, artistas do medo, artistas
brutos. estamos fazendo literatura. E a criação literária por sua vez se
contamina pelas ambigüidades desejantes do medo.
Foi uma poeta, Alejandra Pizarnik, quem levou mais longe esta lógica ao
escrever seu próprio epitáfio: "Aconteceu o que eu mais temia". E não se
referia à morte, que se deu pelas próprias mãos, mas a outra coisa, da qual
buscou o nome e a forma ao longo de toda sua vida e sua poesia. o encontrou,
porque justamente o segredo dessa combinatória pessimista é o de que não possui
nome nem forma, é a paixão do medo em estado puro. A marca dessa busca foi sua
encantadora e irrepetível obra poética, e me pergunto se todo ato criador,
quando surge de uma experiência autêntica, não será uma aliança com as
potências demiúrgicas do medo.
[...]
***
cubrir a vida inteira, desde suas origens. O medo da escuridão, do
qual tenho larga experiência, remonta-me sempre à infância. De criança tive
medo, e é bastante lógico que o tivesse. De fato, me pergunto como não tive
mais, como fiz para sobreviver ao medo. Mas uma vez que sobrevivi, para que
continuar tendo? O anacronismo uma volta perversa, e ao mesmo tempo em que
se adianta ao porvir, retrocede ao substrato infantil da personalidade. Creio
que se pode generalizar: em todas as suas formas, o medo é algo que se
conserva. o está no presente onde o sentimos, é um efeito flutuante cujas
*
"El miedo creador" Babelia, suplemento de El País. Madrid, 17 ago. 2002.
**
Suprimido.
***
Suprimido.
284
causas estão em outra parte, latentes e insituáveis, dando-nos uma perspectiva
deformada da extensão da vida.
Cada calafrio é um gesto de lealdade à criança que fomos. O que mais
tememos, ao fim das contas, é não poder inventar medos novos. Cada vez que
encontramos um, rastreamos até o começo de nossa existência, e o
encontramos, implacável e intempestivo, como uma confirmação de identidade. É
como se o círculo se tivesse fechado, e toda invenção não fizesse mais que
completar uma figura decidida de antemão. A morte não terá problemas em nos
reconhecer quando chegar o momento, porque através de todas as idas e vindas
pelo labirinto do tempo, e de todas as transformações do capricho e da
fantasia, essa fidelidade nos delata.
285
O QUE FAZER COM A LITERATURA?
*
Literatura é uma palavra que, diga o que disser o dicionário, admite três
acepções:
1) a acumulação de obras escritas que fazem parte daquilo que se chama
"literatura argentina", "literatura francesa" ou "os tesouros da literatura
universal". O que fazer com essa literatura? Lê-la, evidentemente. Mas por que
lê-la? Quem deve lê-la?
É preciso distinguir a literatura dos livros em geral. Estes são o
repositório do saber, ainda hoje o mais eficaz, completo e ordenado. Daí vem a
pressão social para que se leia, bem como o prestígio da literatura. Essa
pressão e esse prestígio transbordam dos livros, beneficiando a literatura
propriamente dita. Mas esse benefício é um mixed blessing. A literatura é um
ramo peculiaríssimo do saber, que pode muito bem estar contra o saber comum.
Começa onde o saber termina, podendo ir em direção oposta, desvirtuando as
certezas que este pôde fornecer.
Daí que eu, não hesitando em recomendar aos jovens lerem livros, bons
livros de história, filosofia, ciências, não me apresse em recomendar lerem
literatura. Não sei, aliás, por que se faz tão genericamente e com tanto afinco
essa recomendação.
Diria, então, que deve ler literatura quem quiser fazer isso, por sua
própria vontade, sabendo, porém, que não irá obter nenhum proveito prático, e
que, fazendo isso, estará embarcando numa atividade anti-social, ociosa e
solitária.
A literatura não é obrigatória. Podemos prescindir dela e levar uma vida
útil e feliz. De fato, é uma das poucas coisas não obrigatórias que ainda
restam, e, nesse sentido, se assemelha mais a um gesto de resistência que à
contribuição de um bom cidadão ao bem social. Daí ser um tanto incongruente a
promoção da leitura feita a partir do poder estabelecido, incongruência
atenuada pela suspeita de que aqueles que exercem o poder não fazem o que
predicam, e graças a isso exercem o poder.
2) A segunda acepção de "literatura" é a instituição que acolhe
escritores, leitores, professores, críticos, editores, congressos. O que fazer
com essa "literatura"? É o que deveríamos responder aqui, que estamos numa
manifestação deste aspecto institucional.
No cerne dessa questão uma ambigüidade, uma contradição, ou, em todo
caso, uma dialética. A literatura é feita e consumida na sociedade individual,
com os elementos mais íntimos do indivíduo. Isso vale tanto para a forma como
para o conteúdo, para as intenções como para os resultados, para as
experiências a serem expressadas como para os elementos de expressão. A língua,
que é a máquina compartilhada por excelência, se torna literária ao sofrer a
torção pessoal que rege o capricho e o gosto. A experiência histórica, o mesmo.
Seria quase possível definir a literatura como essa individualização ou
personalização daquilo que nasceu para ser compartilhado.
O que causa um certo desconforto. Quanto mais compartilhamos, mais
estamos nos afastando das fontes solitárias das quais emerge isso que
compartilhamos. Proust cria sua obra fechado em seu quarto. Passam-se cem anos
e Proust é uma agência de colocações que emprega professores, tradutores,
editores, biógrafos, historiadores. Talvez isso seja bom.
*
"Qué hacer con la literatura" Encuentro Internacional de Escritores ¿Qué Hacer con la
Literatura? Universidad de Lima, Peru, 26-28 out. 2002.
286
O que fazer, então, com a instituição "literatura"? Não sei. o tenho
por que saber. Se me perguntarem, eu diria: nada. Porque, nesse sentido, a
pergunta tem uma ressonância inquietante, como quando se pergunta "o que fazer
com os judeus", ou "o que fazer com o sexo", como se se tratasse de coisas com
as quais se tivesse de fazer algo, e o que tivesse de ser feito fosse um poder
difuso e benéfico que viria pôr ordem onde não há, indicando direções àquilo
que está à deriva.
3) A terceira acepção é a de "literatura" como arte, a arte praticada
pelos escritores, tal como fazem música os músicos, pintura os pintores, cinema
Godard. Todos sabemos mais ou menos o que é a literatura nesse sentido, ou
acreditamos saber, e poderíamos passar a vida discutindo sem entrar em acordo.
De fato, é o que fazemos. Essa é a acepção em jogo quando dizemos, por exemplo,
ao nos referirmos a Isabel Allende ou Harry Potter, "isso não é literatura". E
infalivelmente opinamos "sim, isso é literatura" acerca do que fazemos nós, o
que desvaloriza bastante a classificação. Essa acepção é também o que serve de
garantia e pedra-de-toque para as outras duas, porque supomos que as
acumulações canônicas da "literatura argentina", ou dos "tesouros da literatura
universal" serão feitas de genuína literatura-arte, sendo esta, não a outra, a
matéria da qual se ocuparão professores, críticos e demais funcionários da
instituição "literatura".
Pois bem, o que fazer como esta "literatura" da terceira acepção, a
literatura-arte? Escrevê-la, evidentemente.
Mas aí, quando fica a cargo dos escritores, a pergunta começa a se
transformar, e acredito ser esta a resposta, ao fim das contas: novas
perguntas, que por sua vez se respondem com outras perguntas, num circuito
interrogativo que morde a própria cauda, e que também é a mandala que nos
mantém afastados, para não dizer protegidos, de toda e qualquer certeza. Por
que escrever? Como escrever? O que escrever?
287
POR QUE ESCREVI
*
Se me ponho a pensar por que escrevo, por que escrevi, por que poderia
continuar escrevendo... Bem, como todo aquele que pensa em sua vida, em
retrospectiva, não posso vê-la senão como um conjunto de acasos e conjunções
acidentais. Diria que escrevi por descarte, porque para escrever não
necessitava de um talento especial como para a pintura ou para a música. Com o
tempo, muito demoradamente, na realidade agora, este ano, cheguei a admitir que
a literatura é a arte suprema. Passei a vida inteira acreditando no contrário;
que era um simulacro de arte, um exterior da arte.
Atrás dessa aceitação tardia veio outra, vacilando ainda mais e mais
intrigante. tinha imaginado uma resposta à pergunta pela finalidade última
de meu trabalho de escritor. Segundo ela, eu escreveria para que, caso a
Argentina desaparecesse, os habitantes de um futuro hipotético sem a Argentina
pudessem reconstruí-la a partir de meus livros.
Mas se achei isso, foi sem a menor convicção, como um acontecimento a
mais, mais ou menos engenhoso, e de resto não muito original... Mas agora, ao
admitir a supremacia da literatura, começo a vê-la sob outra luz, levando-a
mais a sério.
Dois esclarecimentos, antes de começar a me explicar. O primeiro, de que
para a literatura não se necessita nenhum talento especial. Não é bem assim, a
julgar pela escassez extrema de bons escritores. Mas nisso um fundo de
verdade. Comprovei, ainda criança, ser surdo à música e cego à pintura, e
simplesmente aceitei isso. Muito bem, ficava com a poesia. Começamos então a
escrever, com Arturito,
**
e pude verificar, no contraste com ele, que eu
tampouco servia para isso; como ele, não tinha nascido poeta, e tudo a que
podia aspirar seria uma boa imitação. Daí deve vir minha convicção de que a
literatura era uma espécie de simulacro, feito com prosa. E me dediquei a
escrevê-la, laboriosamente. Uma prosa transparente, não-artística,
informativa... Era preciso a maior claridade para se explicar bem, sobretudo
para explicar o inexplicável. Mas essa técnica podia ser adquirida. No meu
caso, levou quase vinte anos, escrevendo todos os dias, sem praticamente fazer
outra coisa, como uma ginástica cega. Se tinha de escolher entre escrever e
viver, escolhi escrever, o que era bastante inexplicável para um jovem. Mas ao
cultivar exclusivamente a explicação, deixava crescer o inexplicável, que
invadia tudo, e acabava sendo necessário aperfeiçoar a técnica mais e mais.
Tinha algo de louco nisso, que hoje me deixa perplexo. Quando, nessa época, li
Barthes, e vi a diferença entre écrivain e écrivant, me identifiquei sem dúvida
com o écrivant... Arturito era o escritor, eu, o escrevente.
Segundo esclarecimento: onde e quando cheguei a admitir que a literatura
era a arte suprema. Foi pouco, como disse, faz alguns meses. Li num livro
(sou desses que precisam que as grandes verdades sejam ditas por outros). A
frase foi dita por Paul Léautaud, no volume em que se transcreve as
conversações dele com Robert Mallet. Não teria o mesmo efeito se fosse dita por
outro, não porque Léautaud é um de meus escritores favoritos, mas porque
esse livro, que era o último dele que me faltava ler, completou, ou acreditei
completar, minha imagem de Léautaud, podendo assim unir todas as peças. O
elogio da literatura ganhava sentido em seu sistema geral.
*
"Por qué escribí" Conferência. Rosario, 2003. Nueve Perros n. 2-3, dez. 2002-jan. 2003.
**
Arturo Carrera (Coronel Pringles, 1948), poeta, autor de, entre outros, Escrito con un
nictógrafo (1972), aA. Momento de simetría (1973), Oro (1975), La partera canta (1982), Ciudad
del colibrí (1982), Mi padre (1983), Arturo y yo (1983), Animaciones suspendidas (1986),
Children's Corner (1989), Nacen los otros (1993), La banda oscura de Alejandro (1994), El
vespertillo de las parcas (1997), Tratado de las sensaciones (2001), Carpe diem (2003), El
coco (2003), Potlatch (2004), Pizarrón (2004), Noche y día (com epílogo-haicai de César Aira)
e La inocencia (2006). É também editor de Monstruos. Antología de la joven poesía argentina
(2001). (Nota do Tradutor.)
288
Léautaud foi, como disse num ensaio, desses escritores que não podem
inventar, que escrevem exclusivamente sobre sua experiência. Sua obra se quer
apenas como testemunho, documento. É o primeiro dado com que se monta sua
figura. O segundo seria sua pregação por uma linguagem simples e direta, sem
adornos, uma prosa de Código Civil (seu escritor favorito era Stendhal). E o
terceiro: escrever era seu maior prazer; também diz isso a Robert Mallet,
respondendo a uma pergunta: do que mais gostou na vida? "Escrever, e sentar
numa poltrona para fumar."
Mas o que advém desses três dados (escrever a partir da experiência,
escrever sem arte e ter prazer em escrever), e como esse resultado leva à
conclusão de que escrever é a arte suprema? Os dois primeiros pontos são na
realidade um só, ou se deduz um do outro: a um testemunho verídico não cabem
metáforas e aliterações. Teria de acrescentar que o prazer que autaud obtém
da escritura é apenas privado, nada tem a ver com as gratificações públicas da
literatura.
Há uma frase, que deve ter sido dita pelo próprio Léautaud, citada sempre
como uma cifra de sua idéia de vantagem e finalidade da literatura: "escrever é
viver duas vezes". Mas acredito que não seja bem isso. Se o disse, foi para se
fazer entender. Escrever é viver, simplesmente, sob a condição de se acreditar
não ter vivido. Léautaud também poderia dizer que não tinha vivido, culpando
sua pobreza, sua timidez, o tempo roubado por seu amor aos animais... Porém,
mesmo para ele aconteciam coisas, ainda que marginalmente. A quem não
acontecem? E as escrevia em seus diários, suas crônicas, suas cartas. Com a
escritura, as coisas que tinham acontecido ganhavam forma, tornavam-se
definitivas, transformavam-se em vida. O marginal se tornava central. Escritos,
os fatos ganhavam o que não tinham no acaso da experiência — e ganhavam isso no
trabalho de escrever, que por sua vez ganhava a importância suprema de se estar
realizando a experiência.
se vê, dadas essas premissas, quão fora de lugar estaria o écrivain
barthesiano, o gosto pela textura da linguagem, o jogo dos timbres, matizes e
rugosidades do discurso poético.
A língua pode conseguir tão-somente uma sombra imperfeita e árdua das
sensações plenas dadas pela música, pela pintura ou pela arte em geral. É o
escritor artista quem pode, com justiça, sentir nostalgia da arte e do talento
para fazê-la. É ele quem não conseguiu ser músico ou pintor. O poeta, por sua
vez, não tem o direito de acreditar que a literatura seja a arte suprema. o
escritor da prosa de Código Civil, de prosa informativa vulgar, é quem se
beneficia, sim, do poder máximo da literatura.
Precisamente, porque o que se pode fazer com esse tipo de prosa é um
simulacro, e o simulacro bem-feito obriga a um longo rodeio, na realidade
longuíssimo, porque dura a vida toda, a volta na experiência e nas leituras,
na memória e no esquecimento. Em contraste com o relâmpago instantâneo em que
se consuma a arte da verdade, o simulacro abre a possibilidade de um tempo
comum, compartilhado com a humanidade.
Uma vez que se reconhece poder à literatura, tem-se de perguntar pelo que
pode esse poder. Aqui, o mínimo coincide com o máximo. O mínimo: continuar
vivo. Mesmo em más condições, doente, pobre, decrépito, ter sobrevivido aos
fatos para poder dar testemunho. Escreve-se a partir desse mínimo, mas pelo
fato de escrevê-lo se torna um máximo. A transformação do sujeito em
testemunha cria o indivíduo, ou seja, a particularidade histórica
intransferível. O escritor se investe dos superpoderes do único.
O único, por ser único, por estar fora de todo paradigma, ninguém sabe o
quanto pode, o que pode. É esse o verossímil que sustenta o contraste entre o
indivíduo que sobrevive e o mundo que morre.
Um efeito marginal da individualização, ou da história, é a inteligência.
Stendhal disse: "A humanidade corre atrás da felicidade". Isso é algo que se
tem de entender em termos individuais. E dizê-lo, como fez Stendhal, corre por
conta de uma lucidez que se pode expressar no cinismo, como o oposto da
hipocrisia que rege a linguagem compartilhada.
"Os homens correm atrás da felicidade." A isso se reduz tudo, no fim das
contas, e é algo que se tem de reconhecer quando caem por terra todas as
289
mentiras e auto-enganos. Se é que caem. E o que pode fazê-las cair? Uma vontade
de verdade, uma obstinação militante no sentido comum, uma certa radicalidade,
tudo muito característico de Léautaud. E tudo aquilo que poderia reposicionar a
inteligência e a lucidez não concedidas ao mundo todo, mas muitíssimo perigosas
se dadas como certas em alguém.
Qual era o maior prazer de Léautaud? mencionei: "escrever". Mas a
menção se completa com isto: "e sentar numa poltrona para fumar". Como
interpretar? Como prazer privado, improdutivo, não-participativo. Como uma
negação a trabalhar, a ser útil. começa, ou termina, a resistência à
mentira. Se a humanidade corre atrás da felicidade, não é atrás da felicidade
dos outros, mas da própria. Reconhecer isso é implodir todo um castelo de
hipocrisia, e junto cai todo o mecanismo da linguagem comum da comunicação; a
partir daí se tem de falar sozinho, ou seja, escrever.
Depois de todos esses poréns, volto à intenção original: escrever para
poder reconstruir a Argentina, caso ela desapareça. Ocorrem-me três perguntas.
A primeira é esta: de onde saiu esta idéia tão peregrina de que a
Argentina vai desaparecer? E se desaparecesse, quem teria interesse em
reconstruí-la tal como foi? O razoável, nesse caso, seria fazer uma Argentina
nova, melhor, mais eficaz. Minha idéia, no entanto, é a de uma reconstrução
idêntica, exata, microscópica, até o último detalhe.
A isso se pode responder dizendo que o que desaparece, aquilo que leva
quem morre, não é o mundo comum, mas o mundo de sua felicidade individual. É a
única coisa que importa na reconstrução. E ninguém sabe do que depende sua
felicidade; de modo que, preventivamente, deve fazer uma reconstrução completa,
com cada átomo em seu devido lugar, porque a menor diferença poderia causar uma
divergência catastrófica.
Quanto à desaparição em si, não importa quão improvável seja. Porque esta
está no começo, não no final. É a premissa do prazer. No que me diz respeito,
devo fazer um adendo à listagem de Léautaud: o que mais me prazer é ler. E o
prazer da leitura está todo na reconstrução daquilo que desapareceu.
A segunda pergunta: por que a Argentina, e não o mundo? Se levarmos o
caso adiante, o mundo poderia desaparecer tanto quanto a Argentina... E os
objetos de minha nostalgia antecipada, aqueles que gostaria de preservar (uma
árvore, um sorriso, o canto de um galo), pertencem mais ao mundo que à
Argentina. Acontece que o mundo se organiza como Argentina para ser posto em
linguagem. O mundo assume uma configuração nacional para tornar-se inteligível
historicamente, e essa configuração é, justamente, uma linguagem. Pois bem, o
que importa numa linguagem é o que entendem seus usuários; compartilhar uma
linguagem faz uma nação; mas ao compartilhar uma linguagem, esta é entendida
muito bem, assim como de fora da nação, é entendida mal. uma oscilação entre
excessos, sem meios-termos, um jogo entre subentendido e mal-entendido. A
linguagem que fala uma comunidade é um balbuceio todo feito de subentendidos; e
nem bem a linguagem se torna arte, nas mãos de um poeta (o écrivain
barthesiano), ela se universaliza, pela radicalidade própria da arte, caindo no
campo do mal-entendido, resultado inevitável da mais-valia de sentido, a
transcendência etc. A prosa que tenho praticado, a de écrivant, é mediadora do
subentendido e do mal-entendido, e essa negociação é sua razão de ser. O pólo
do particular está ocupado pela Argentina.
Terceira pergunta: como é possível dar eu tanta importância, tanto poder
taumatúrgico a minha obra, a meus livros, aos quais não me faltam motivos para
ver como uma coleção imperfeita, incompleta, casual, que me representa mais ao
modo de uma adivinhação freudiana que ao modo de um documento? Tem-se,
evidentemente, de redefinir "documento". Para explicar essa redefinição, devo
fazer um pequeno rodeio.
Recentemente, pus-me a pensar, não sem um certo desalento, aliás, na
impossibilidade de contar tudo. Acontecem muitas coisas, e todas elas têm
muitas relações com outras coisas, outros fatos, para, enfim, poder contar
tudo. De fato, agora que escrevo isso, advirto que "contar", além de "narrar",
quer dizer "enumerar", e ainda nesse sentido, simplificados no quantitativo, os
fatos são inabarcáveis. Na realidade, o que mais me desanima é a proliferação;
290
dentro de um fato outros fatos, é difícil chegar aos fatos primários ou
atômicos. E o que é pior: à medida que se desce rumo ao primário, se torna mais
difícil contar. Uma revolução pode ser contada numa frase, um adultério leva
três ou quatro, e a manobra de espetar uma ervilha com o garfo requer uma
página inteira, uma página de prosa bastante precisa e trabalhosa.
A velha solução tradicional para esse problema é uma mudança de
perspectiva, ou seja, uma mudança de pergunta: passa-se de "como contar" a "por
que contar", e uma vez que esta última é respondida, de um modo ou outro o
campo dos fatos por contar fica automaticamente restringido, sendo possível
então pôr mãos à obra.
Pois bem, por que contar? Ou, melhor dizendo, por que escrever? No
discurso oral, as causas não se apresentam como um problema porque estão dadas
no intercâmbio, no diálogo. Não se fala sozinho, salvo em se tratando de um
louco. A forma prudente de falar sozinho é escrever, e aí sim se tem de buscar,
supor ou inventar motivos.
Não é fácil, e acredito na realidade não ser possível responder por
antecipação. Responde-se em retrospectiva: por que escrevi. (Daí ser tão
difícil continuar escrevendo; os motivos funcionam para trás, não para frente.)
E contar por que se escreveu cai nas generalidades da lei: cria uma
proliferação de sobredeterminações, encontra fatos dentro de fatos, não acaba
nunca.
Todas as respostas se equivalem conquanto permaneçam como ficções
benéficas que limitem o campo da inumerável quantidade de fatos conexos que
constituem a realidade, e até mesmo a experiência da realidade.
Praticamente nunca se pergunta por que ler, talvez porque os benefícios
da leitura se dêem por indiscutíveis; em contrapartida, sempre se pergunta o
que ler. Com a escritura se o contrário: a pergunta por que escrever retorna
sempre, enquanto praticamente ninguém se pergunta o que escrever. Esta última
questão é vista com desconfiança, quase como um sintoma de neurose, um
desdobramento da síndrome da página em branco. Supõe-se que, uma vez tomada a
decisão de escrever, o material para cumprir a tarefa se apresentará por si
mesmo.
Eu não me pergunto por que leio; não encontraria resposta; mas me
pergunto por que leio o que leio. Por que leio os chamados "clássicos", por que
me atrai a literatura do passado, ou melhor, por que não leio meus
contemporâneos. E sim tenho respostas. Não sei se é a melhor, ou a mais
verdadeira, mas a resposta que mais se satisfaz é esta: leio os livros do
passado porque neles encontro o sabor e o aroma de mundos que desapareceram.
Mundos humanos, nações, mundos subentendidos que passaram e que podem
reviver no fraguar da leitura. A mim consta que quase todos os leitores de
clássicos buscam nestes o contrário, ou seja, as questões eternas do homem e do
mundo, o permanente, aquilo que se sedimenta das contingências históricas. Isso
não me interessa, e de fato acredito estarem equivocados. Esse resíduo de
eternidade a-histórica, caso exista, poderia ser melhor encontrado na
literatura contemporânea.
O escritor, se conseguiu encontrar a felicidade escrevendo, ao morrer
leva o mundo consigo. Não pôde encontrar a felicidade senão na rede
microscópica de particularidades históricas que constituíam sua nacionalidade;
mas ao escrever, dando um passo além, no ponto onde a nacionalidade se desfaz,
porque para contar é preciso ter sobrevivido (o escritor é póstumo por
natureza), retira um do subentendido, colocando-o no mal-entendido. A
negociação escorregadia entre ambos os campos não pode ser feita senão com a
prosa mais simples e clara, mais informativa e prosaica. A isso chamo
"documentação".
291
ADEUS, NATAL
*
Quando eu era menino, em Pringles, havia exatamente em frente à minha
casa uma árvore gigantesca, mas gigantesca de verdade. Passava por ser a árvore
mais alta do povoado, tanto que os aviadores do aeroclube a utilizavam como
ponto de referência para dar a volta durante os vôos de batismo que faziam nos
domingos. Estava em meio a um parque abandonado, que pertencia a uma casa muito
antiga, quase abandonada; havia sido uma espécie de hotel, quando essa parte do
povoado ainda era campo, e na minha época habitavam-na duas famílias, que por
algum motivo estranho ocupavam cada uma um quarto, dos muitos que tinha o
edifício, estando todos vazios. Essa árvore era uma espécie de conífera, seria
difícil para eu dizer qual. Araucária, será? Vem-me esse nome na memória, mas
não sei por quê. Como no parque, em cujo centro estava plantada, eu não entrava
nunca (e apesar do fato de que os dois filhos das duas famílias que habitavam
as ruínas eram meus dois melhores amigos), levei muitos anos em descobrir que
na verdade eram duas árvores gêmeas, coladas. Por cima do muro, de minha casa
via levantar-se uma espécie de grande triângulo do verde mais escuro. Para o
menino que eu era, tratava-se da coisa mais alta que se podia imaginar. Ainda
sigo vendo esse triângulo, recortado contra os céus invariavelmente azuis de
Pringles.
Todo Natal meu pai pedia permissão, entrava no parque em frente com uma
escada, e serrava um galho da árvore gigantesca. Essa era nossa árvore
natalina. Naquele tempo não se vendiam pinheirinhos de plásticos montáveis,
todo mundo fazia com ramos de coníferas, as mais parecidas com pinheiros que
houvesse, ou pinheiros mesmo, caso pudessem encontrar. A nossa sempre era um
galho dessa grande árvore. Ainda que seguramente meu pai buscasse o ramo com
formato mais simétrico, nunca ficava totalmente triangular como os pinheiros
clássicos de Natal. Na verdade, lembro de umas arvorezinhas de Natal, com seus
globos de cores e velas, totalmente deformados, projetando-se em lugares
distintos da sala. É possível que meu pai, de enérgicos sentimentos
anticlericais e dono de um peculiar sentido de humor, fizesse de propósito.
Seja como for, assim foram as árvores de todos os natais de minha infância.
Seguiram assim mesmo depois de algo que aconteceu quando eu tinha dois ou três
anos, um incêndio.
Foi um incêndio que fez história em Pringles. A Cooperativa pegou fogo,
ficava a cem metros de minha casa; o conjunto que nos separava dela era o que
continha o parque com a grande árvore. A Cooperativa vendia combustível aos
colonos da área, e o que pegou fogo foi exatamente isso, os tanques de
combustível. As explosões sacudiram o bairro, o povoado inteiro, depois as
chamas alcançavam o céu. Era dantesco. Os bombeiros não podiam fazer nada além
de olhar, e nós também olhávamos. Suponho que meus pais, especialmente minha
mãe, exagerada por natureza, tenham sofrido algum temor, porque a coisa
aconteceu muito perto. Lembro estarmos todos na calçada, assistindo; era pleno
dia (de noite teria sido mais espetacular) mas essas chamas negras cujas
línguas se metiam entre as órbitas dos planetas eram perfeitramente visíveis.
Todos gritavam, corriam, choravam, suponho. Eu não. Esta é uma lembrança
muito antiga, uma das mais antigas que tenho, mas tenho. Eu estava pensando.
Como disse, não tinha mais de três anos. E então era assim exibicionista e
"original". Estava pensando em algum epigrama memorável para dizer. Não se pode
culpar, muitas crianças que são assim. Por fim me ocorreu. Dei uns passos à
frente, de modo a me assegurar que todos me vissem bem, levantei uma das mãos e
agitei num gesto afetado, muito teatral, de despedida, cantarolando:
— Adeus, Natal... Adeus, Natal...
Minha mãe, coitada, acostumada a minhas demonstrações de engenho, soube
interpretar a arriscada elipse, e explicá-la aos vizinhos reunidos, ainda que
*
"Adiós, Navidad" Reforma. Ciudad de México, 22 dez. 2002.
292
nesse momento tivessem outras coisas em que pensar. E depois seguiu contando a
todos os parentes e conhecidos, durante meses, anos; acredito que continua
fazendo isso, meio século depois. Eu era um menino muito inteligente. Apenas de
meus poucos anos, sabia ver as conseqüências distantes dos fatos presentes. Se
as chamas devorassem a grande árvore de que tirávamos as arvorezinhas de Natal,
não haveria mais natais...
— Adeus, Natal...
Na verdade, a árvore não estava ameaçada. Apenas se viam as chamas
justamente atrás dela, emoldurando-a. O grande triângulo de folhagem, que eu
havia tido sempre como o maior objeto do mundo, agora ficava recortado sobre um
fundo de chamas negras maiores, muito maiores. Era um caso semelhante àquele
conto de Poe em que alguém sentado na sacada de sua casa descer pela
montanha um monstro horrível, que na verdade é uma pequena aranha, pendurada em
sua teia, muito perto do olho do contempaldor. Esse conto, que eu leria muito
poucos anos depois, porque também fui leitor precoce, nunca me pareceu bem
pensado: porque omite o mecanismo do foco, que para mim é tudo no olhar. O meu,
ao fim das contas, era mais plausível.
— Adeus, Natal...
Natal de 2002
293
A HORA AZUL
*
No terraço do Gallo, E. e eu esperamos "a hora azul"; tradutores
experimentados os dois, ela ao alemão, eu ao castelhano, queremos comprovar com
os fatos, com a cor da realidade, se nossas respectivas traduções da "l'heure
bleu" francesa coincidem com o azul do céu de cristal de Buenos Aires. Temo não
acompanhar bem a conversa de um minuto atrás, quando E. citava Kafka: "Um livro
deveria ser como o machado que rompe o mar de gelo que cobre nosso coração". Me
perco numa fantasia. A frase pode soar um tanto patética, pode parecer quase o
protótipo das intenções com as quais se faz literatura. E, no entanto, me
emociona e exalta. De repente, sinto-a como a única verdade que estava
esperando no centro do labirinto do ofício de escritor. É um programa, uma
razão secreta, uma esperança. Quero escrever um livro assim!
Mas escrevê-lo como? Para começar, é preciso ser bom escritor, porque um
livro assim não se faz sozinho. Um escritor chega a ser bom quando aprendeu
muitas coisas e leu muitos livros. Não um bom escritor selvagem, estou
convencido disso, pelo menos não em nossa época. É preciso um longo caminho de
estudo, leitura, reflexão. Esse caminho inevitavelmente nos afasta das fontes
do sentimento. Cada passo dado nessa direção agrega um centímetro à casca de
asceticismo e ironia que envolve nossos antigos sonhos. É esse o gelo que se
deve quebrar com o machado, que o machado, no entanto, também é de gelo. É
um paradoxo insuperável. Toda a força que podemos reunir em nossa aprendizagem
é uma força fria, a força de que necessitamos para demolir crenças ingênuas ou
gregárias, idéias feitas, sentimentalismos. Assim como o coração se cobre de um
mar de gelo.
A prova de que Kafka tinha razão é o próprio paradoxo, a armadilha que
torna impossível a realização do desejo. O livro-machado é um milagre, e não
temos o direito de esperar milagres. Mas ainda assim podemos esperá-lo. Temos
feito tantas coisas irracionais que uma a mais não nos fará mal. No fundo do
paradoxo talvez haja algo real e possível, um velho jovem, um civilizado
selvagem, um mentiroso que diz a verdade. Por que não? A literatura é um
laboratório de onde podem sair seres mais estranhos ainda. Ninguém sabe qual
será o resultado final de tantas manipulações da sinceridade e da ironia.
É como se depois de aprender tivesse de desaparecer ou recuperar uma
selvageria e uma violência que os bons modos da cultura nos fizeram perder.
Kafka não gostava de metáforas. Suspeitava, com razão, ser um recurso a
mais do simulacro para se fazer passar por realidade. Deveríamos imitar essa
desconfiança. Se alguém se deixa seduzir pelas belas imagens, acaba acreditando
nelas. Corremos o risco de acordar um dia, após ter escrito cinqüenta livros, e
nos dar conta de nunca ter dito nada do que nos estava acontecendo, mas sim de
seus equivalentes em palavras. Nesse caso talvez a metáfora seja justa, que
parece uma metáfora "de volta", de retorno ao real. A imagem "de ida" com que
um amigo da metáfora descrevera esse livro ideal era a do fogo que derrete o
gelo, o amor que vence a indiferença. Mas permaneceríamos no campo da
retórica bem-intencionada, e o gelo aproveitaria esse auto-engano para
continuar engrossando. O machado da revelação começa abrindo um furo pelo qual
sai nossa presunção literária, e então podemos empunhá-la para quebrar o
grande espelho polar.
Claro que é também preciso perguntar de que isso serviria. Uma vez que o
machado quebra o gelo, e daí? Amar de novo? Acender novamente o fogo juvenil
das ilusões, alimentá-lo com jovens metáforas? Seria um resultado muito
decepcionante, mas não nos apressemos com a decepção, pois continuamos falando
por metáforas. Até a palavra "amor" é uma. Não sabemos, nem podemos conceber, o
que acontecerá quando a hora azul do céu chegar.
*
"La hora azul" Babelia, suplemento de El País. Madrid, 8 fev. 2003.
294
CONTOS DE FANTASMAS
*
Descobrir Adolfo Couve tornou-se uma tarefa de certa urgência: seu
fantasma começa a passear pelos quartos da literatura com uma insistência que
ameaça ser clamorosa.
Esta edição de sua narrativa completa torna desnecessária, salvo para
bibliófilos e colecionadores, a procura de seus minúsculos livros. Ou talvez
não: aqui faltam prefácios, e não uma história das edições e recompilações,
detalhes que merecem importância num escritor fantasma cujas materializações em
papel impresso foram acidentais, difíceis e sempre envoltas numa discrição de
meia-noite.
A releitura completa e contínua que agora é possível mostra que,
definitivamente, tudo o que este fantasma escreveu foram contos de fantasmas.
Não foi preciso aguardar a compilação póstuma de sua obra narrativa para vê-la
em retrospectiva, a partir do lado da morte, porque toda a sua obra foi
póstuma. Nele, o anacronismo foi anterior ao tempo, e o tempo se desprendeu em
linhas enroscadas e imprevisíveis, num jogo de antecipações e atrasos que
tornam tão perplexa e apaixonante a leitura deste volume.
Parte do encanto tenaz do escrito por Couve está em sua condição marginal
à literatura "profissional": é a obra de um amateur afortunado, de um pintor a
quem entre um quadro e outro ocorriam histórias, contando-as com as ferramentas
interpoladas da luz, da linha, do enquadramento, da composição. Diria-se que
tudo é experimentação com uma matéria alheia. Provas, exercícios nos quais se
obstinou um homem que não pretendia ser escritor, e que por isso mesmo seguia
perguntando a si mesmo: Como escrever? Escrever, o que é isso? A resposta fica
suspensa ao final. Mas o exercício de principiante deliberado alterna com o
polimento da grande obra, desordenando com sabedoria o antes e o depois. É
difícil dizer se Couve aprendeu ou desaprendeu. Adriana Valdés, a compiladora
deste Narrativa completa, propõe um itinerário que vai do fragmento ao
contínuo, e retorna ao fragmento. É um bom ponto de partida, ainda que talvez
restringido às aparências formais.
Os dois primeiros livros, Alamiro (1965) e En los desórdenes de junio
(1970), o primeiro uma breve série de estampas separadas; o segundo, contos ou
vinetas, fazem da fragmentação um efeito do laboratório da prosa. Mas muito de
repente, em El picadero (datado entre 1971 e 1973), sob o formato de um
contínuo sem costuras, a fragmentação muda de vel, tematizando-se em solidão,
incomunicação, em reposicionamentos e troca de papéis. Uma e que perdeu seu
filho adota outro em seu lugar, e numa sucessão veloz se armam outros casais,
todos igualmente mediados por uma ausência: a senhora e seu marido, o menino
morto e seu namorado, o namorado e a mãe, a senhora e sua irmã, a irmã e seu
marido, o menino morto e o menino vivo... Cada personagem necessita outra na
qual possa se projetar, mas assim como para os vampiros da lenda, o reflexo
lhes devolve um quarto vazio.
A El picadero seguiram-se El tren de cuerda (1976), La lección de pintura
(1979) e El pasage (1989), os quatro reunidos em 1996 sob o título de Cuarteto
de infância. São outras tantas variações do tema do "órfão com pais"; os pais e
mães proliferam ao redor desses meninos, numa ronda de substituições que deixa
intacta a autonomia desses Angelinos, Anselmos, Augustos, meninos-príncipes,
impávidos como bibelôs, figuras recortadas de um catálogo de aristocracias
legendárias, e coladas sobre um fundo de vulgaridade realista.
A marca de classe é muito forte em Couve. Como em Silvina Ocampo ou L. P.
Hartley, as aporias do privilégio se neutralizam nos meninos. A inocência da
percepção infantil naturaliza a inserção num estrato determinado da sociedade,
e essa naturalidade estabelece uma distância com a elaborada, esforçada,
experimental voz do autor: nessa distância está todo o feitiço do
* "
Cuentos de fantasmas" Artes y Letras, suplemento de El Mercurio, 1 jun. 2003.
295
neoclassicismo desses relatos. O deslocamento de pontos de vista sugere uma
vacilação a respeito da realidade, efeito incômodo de pertencimento de classe.
Os estereótipos psicológicos sociais aparecem, no vazio aberto entre inocência
e consciência, como ex-votos, numa intensa visualidade, cada um iluminado com
sua própria luz.
A identificação (marcada pelo A inicial dos nomes) faz desses meninos
adultos metamorfoseados, em reflexo do qual os adultos se infantilizam. A
relação nunca é natural como não é natural a relação entre o amo e o escravo:
uma relação que de tão cultural deve ser aprendida, exercitada, escrita. O
gesto patrício de Couve se reflete em sua escritura ocasional, de aficionado,
que se nega a terminar de aprender, talvez por fazer isso bem demais.
A percepção original do menino se transforma insensivelmente na percepção
do artista (sem passar pela do adulto), e esta uma segunda cartada na
neutralidade da guerra de classes, que aparece sob a aparência da guerra do
gosto. "Camondo desceu vários degraus de categoria... O açucareiro de plástico
sobre a janela frente ao mar, adquirido em um mercadão de Santo Antonio, tinha
um peso, uma projeção que jamais alcançaram seus jogos de porcelana e pratarias
finas".
Nos quatro romances "de infância" um crescente na composição, bem
observado por Adriana Valdés. Culmina em El pasaje, quando o menino
protagonista não necessita ter a inicial do autor (chama-se Rogério), e suas
três ou quatro mães esquisitíssimas se desvanecem numa recuperação do pai.
Na perfeição de El pasaje se esgota o primeiro projeto literário de
Couve, e daí em diante não retorna ao tema da infância. em La lección de
pintura se abre um caminho alternativo, que não é outro senão o da maturidade
artística do autor. O privilégio social, traduzido em privilégio do talento,
dissimula-se sob a metáfora do destino.
Os relatos que seguem, dos primeiros anos noventa, El Cumpleaños del
Señor Balande, Balneario, Infortunio de los Almagro, apontam em direções
distintas, tentativas, mais ou menos falidas; é outra vez a aprendizagem, a
busca, depois de conquistada a maestria. Em todos se vai conformando, com
necessária laboriosidade, a temática da exclusão. Os meninos se tornaram
senhoras maduras insatisfeitas, velhas caquéticas que buscam o amor num mundo
vulgar, onde a aristocracia ficou reduzida à caricatura.
As premissas exigentes da arte de Couve fazem com que a única
historização a seu alcance seja o anacronismo, em que o tempo de desprende
diante dos olhos como uma espécie de paisagem tipologicamente irracional.
Seguramente os críticos que se inclinarão no futuro sobre a obra de Couve (e
suspeito que farão isso assiduamente) buscarão chaves na relação texto-pintura.
A espacialização do tempo narrativo é muito patente em seus procedimentos. As
descrições, tão abundantes como extraordinárias, são um bom exemplo. Enquanto
no romance clássico a descrição cumpre uma função temporal quando recuperada
mais adiante para significar alguma motivação (o romance policial é o paradigma
desse uso), em Couve a descrição permanece ancorada onde foi produzida, numa
gratuidade esplêndida.
Um relato dessa época, Mamparas del Sagrado Corazón, propõe uma volta de
parafuso: um jovem que termina seus estudos em Santiago retorna ao fundo
familiar em Concepción, e o próprio relato do regresso se erige como um painel
translúcido entre passado e futuro, entre as andanças estudantis e o
conformismo do adulto agrário. Alienado de sua família pela descoberta do
mundo, o jovem protagonista acaba alienado do mundo pelo abraço familiar. A
exclusão também pode tomar a forma de uma inclusão. O indivíduo, dessa maneira,
perde em todos os casos.
Essa dialética do fracasso encontra sua expressão plena no final, em La
comedia del arte (1995), e sua continuação, Cuando pienso em mi falta de
cabeza. O salto é muito longo, desde o descobrimento da vocação em La lección
de pintura: toda a carreira do pintor ficou para trás. Cansado das alternâncias
da lembrança e do esquecimento, Couve parte de dentro do anacronismo, inclusive
no próprio trabalho de escritura. O romance se apresenta como a reconstrução de
outro anterior, que pôde ser escrito. a terceira vez que tento este
relato... Antes fracassei." E a confissão que segue é reveladora das intenções
que conduziram o aprendiz Couve em sua escritura: "me esforço em... ligar
296
linguagem e conteúdo com muito cuidado para alcançar um todo harmônico". As
velhas receitas de fusão de forma e fundo pareciam ter dado resultado nos
romances da infância, mas a longo prazo esgotaram sua eficácia. E então "o
tema... ficou latente, intacto, como que aguardando uma nova oportunidade". O
tema à espera da forma será o argumento deste romance.
O protagonista, Camondo (Alonso Camondo, para que as iniciais não deixem
espaço para dúvidas) é um pintor encalhado em Cartagena com sua modelo,
Marieta. A arte passou para ele; a vulgaridade estridente do balneário é a
fronteira entre a arte que o justifica e o que vem depois de seu abandono. O
nobre ofício da pintura, do que não conserva nada além de "duvidosos"
conhecimentos técnicos, desloca-se à invenção de um retábulo com marionetes
imprevisíveis. Pili, Helena, a louca da praia, Bombilín, o gigolô, Sandro, o
jovem universitário, o fotógrafo Aosta, San Tarcisio, desfilam envoltos na luz
terna de uma criação em miniatura do mundo. Não faltam sequer os deuses do
Olimpo, e uma ambígua musa que se e materializa como Mulher Barbuda. Camondo e
Marieta, santíssima trindade de dois, unem-se e separam-se como o corpo e a
alma, o artista e sua obra, o tempo e o espaço. Na maravilhosa invenção que
leva o romance para além de si mesmo, Camondo perde a cabeça literalmente,
depois de tanto perdê-la na metáfora, com o que se completa a vingança da
realidade.
O flanco autobiográfico é um pouco óbvio demais para ser levado a sério.
Resvala para a alegoria burlesca, como se o autor tivesse querido incluir a si
em de igualdade na galeria de tipos da "comédia da arte". Talvez tenha
acabado buscando aí, no grotesco de uma fantasia carnavalesca, uma última
proteção contra a realidade. Couve não foi o primeiro artista, nem será o
último, a encontrar a vida impossível; a arte se faz com os paradoxos desse
impossível que, apesar de tudo, acontece.
O fantasma é a única personagem que se adapta à dobra do tempo que impõe
a vida impossível, e Couve foi um insuperável artesão de fantasmas. Os meninos
de seus primeiros romances retornavam do outro lado da vida, espectros
radiantes de beleza, figuras da pintura rearticulando-se na linguagem. Sua
última empreitada redobrou a aposta, sem modificar as regras do jogo; os
decadentes fantoches de La comedia del arte saltam da linguagem à pintura,
escapando também às leis da evolução realista.
297
O MÉTODO DA CANETA-TINTEIRO
*
Dizem que a análise de DNA é o método de identificação mais sutil e
definitivo; pode ser, mas é difícil e jurídico, e só podem realizá-lo
especialistas de guarda-pó branco em modernos laboratórios. O método da caneta-
tinteiro é igualmente probatório, estando ao alcance de qualquer Sherlock
Holmes doméstico. A pluma da caneta, como todo mundo sabe, vai se deformando
conforme seu dono escreve, conforme a pressão que faz, a posição da mão, a
inclinação da letra. Uma pluma utilizada durante vários anos assume uma forma
única, não duas iguais. A operação de escritura é muito complicada, põe em
jogo movimentos e posições demais para que seu efeito sobre a pluma não seja
particularíssimo. Torna-se uma impressão digital, mais difícil de falsificar
que uma impressão digital. Daí que seus donos não emprestem a caneta-tinteiro
como se emprestam as esferográficas: aquele que toma emprestado tem
dificuldades para conseguir um traço contínuo, e aquele que empresta corre o
perigo de que essas dificuldades provoquem uma forçação que a estrague.
Outro motivo pelo qual não se emprestam as canetas-tinteiro é que
costumam ser muito caras. Costumam ser um símbolo de status, mas acredito que
sua condição de objeto de luxo tem por função serem cuidadas como um bem, para
que durem muito tempo em posse de seu dono, e que com o tempo se deformem
sutilmente até se tornarem diferentes de todas as demais canetas do mundo.
Apreciamos sobremaneira nossa própria condição de únicos e insubstituíveis, e
suponho pretendermos reproduzir essa unicidade nos objetos. Portadora dessa
possibilidade, a caneta-tinteiro persiste quase sem alterações no formato em
que foi inventada, mais de um século, e segue triunfando sobre instrumentos
de escrituras mais modernos e práticos. Diante dos poderosos processadores de
texto, anônimos e sem mais história que não a de sua novidade, novos ricos da
memória, a caneta-tinteiro persiste.
É claro que não se trata do único objeto que se personaliza com o uso.
Mas não conviria tomá-lo como um a mais. Por extensão, a pluma representa o
escritor, e no escritor a busca da singularidade cristaliza como vocação e
destino. Todos os homens querem se sentir únicos e intransferíveis, mas o
escritor é o que trabalha especificamente com esse sentimento. Nele os
trabalhos da experiência e os acasos da biografia se conjugam na construção de
uma qualidade de único a que todos aspiram, e que o escritor expressa.
Triunfa quando sua identidade se torna uma peça no grande modelo para armar o
mundo, quando a falta dessa peça deixa um buraco, o buraco de uma agulha.
A analogia entre os dois termos da metonímia, entre pluma e escritor,
pode se estender. O escritor aspira a se tornar um "homem de luxo", aspiração
que nos fatos se degrada em êxito e fama, ainda que mantendo um fundo mais
digno: igual à caneta cara, o luxo que adorna o escritor não se restringe ao
status social, é um signo de seu valor, do trabalho que custou fazê-lo; esse
custo se mede na mais valiosa das moedas, o tempo da vida, e o que se gastou
para produzi-lo é tão exorbitante que induz a conservá-lo, apreciá-lo, guardá-
lo como um bem.
O artista em geral é alquimista do tempo e da experiência, documentador
de sua civilização e daquilo que a civilização faz aos homens. A história se
acumula sobre si mesma, a cultura se torna mais complexa, o progresso se
infiltra até naquilo que se pretende eterno. Tal como acontece com os instrumentos
de escritura, o modelo do artista se diversificou e modernizou. Mas o antigo modelo
de escritor, igual ao da pluma, persiste, pela vantagem sobre os demais de operar uma
individualizão infavel, e a baixo custo. Oculto e obscuro, o escritor destila os
fastos do mundo e os expressa com humilde obstinação, transformando-se pouco a pouco.
Sua ferramenta e talismã, a pluma, acompanha-o na transformão e realiza o paradoxo
de ser um modesto objeto de luxo, modesto ainda que de ouro, sobretudo se de ouro.
*
"El método de la lapicera" Babelia, suplemento de El País. Madrid, 11 out. 2003.
298
CHILENO, FLORENTINO, CHINÊS
*
Um dos tantos livros que gostaria de escrever, ou melhor, ler, seria uma
compilação de histórias curiosas da pedagogia. Haveria abundantes pontos de
identificação, porque todos passamos por uma forma ou outra de educação, e a
forma de passar é mediante episódios memoráveis. São histórias que fazem pensar
e sonhar, que inspiram mais que outras, talvez porque de todas as histórias
alguém quer aprender algo, e estas mostram como fazer. Eis aqui três, que
encontrei no acaso de algumas leituras ociosas.
No catálogo da retrospectiva do pintor chileno Adolfo Couve, também
extraordinário escritor, uma ex-aluna e ajudante em sua cátedra universitária
(acredito que de Teoria da Pintura) conta o curioso método a que Couve tinha
chegado para abreviar o pesado trâmite dos exames. Fazia ao aluno uma
pergunta: "Sabe?". O aluno tinha de responder sim ou não. E não era uma
brincadeira: àquele que dizia "sim", aprovava, ao que dizia "não", fazia
repetir o curso. Ou sim, era uma brincadeira? Se alguém resolve pensar nisso, é
bastante infernal. Mais infernal devia ser para os alunos que não tinham uma
resposta preparada (e mesmo porque, prepará-la como?).
A narradora desta anedota, da qual foi testemunha presencial diversas
vezes, deixa registrada a angustiada impotência dos auxiliares da cátedra ao
verem reprovados excelentes alunos, que apostavam na auto-exigência, e
aprovados os falazes simuladores que não tinham aberto um livro o ano todo.
Couve era um homem extravagante, neurastênico, irritável e imprevisível.
A presença do gênio numa obra resgata os defeitos, esquisitices e injustiças do
homem que a criou. Pelo mesmo mecanismo, seus descobrimentos práticos mais
valiosos costumam ser depreciados como engrenagens de um sistema
idiossincrático que vale dentro do mito pessoal desse mesmo gênio. Suponho
que nenhum professor que não fosse Couve se atreveria a empregar seu brutal
questionário de tudo-ou-nada. E, no entanto, deveria pensar nisso.
O protagonista da segunda história também é um pintor que não foi
pintor, mas não se refere ao pesadelo adolescente do exame e sim ao sonho
adolescente de saber tudo. Em certo momento de sua vida, perto dos quarenta
anos, Leonardo da Vinci quis aprender latim, língua cujo domínio necessitava
para consultar fontes em seus estudos científicos. Leonardo não havia feito
suas humanidades com professores, era um autodidata, e como tal, inclinado às
soluções artesanais, do tipo "curto-circuito". A que lhe ocorreu nesse caso é
chamativa, e coerente com seus hábitos de anotador compulsivo: copiou, da
primeira à última página, com sua prolixa escritura em espelho, uma gramática
latina, a melhor disponível então. Depois (e aqui pasmamos), copiou também
completamente um dicionário latino, palavra por palavra. Com admirável intuição
lingüística, soube que uma língua consiste de uma gramática e de um léxico, e
com a lógica sucinta das crianças e dos sábios, deu-se à tarefa de aprendê-los.
Mas é claro que gramática e léxico não se articulam sozinhos. A originalidade
de Leonardo esteve em supor que a cópia manuscrita, com sua coordenação de
olho, mão e mente, podia atuar como sistema.
A pedagogia moderna e os modernos métodos de aprendizagem de idiomas em
particular afinaram muito os atrativos e facilidades, em tom com a demagogia
geral que chegou a se confundir com a vocação pedagógica. Mas fiz o experimento
de contar essa história a vários jovens, formados nas seduções de uma didática
feita à medida de quem não quer aprender
... e todos se mostraram entusiasmados. Aqui também: deveria-se pensar
nisso.
Terceira fábula, tão rigorosamente histórica como as anteriores. A
burocracia imperial chinesa havia instaurado na promoção de mandarins um severo
*
"Chileno, florentino, chino" Babelia, suplemento de El Pais. Madrid, 15 nov. 2003.
299
sistema de exames, que as burocracias modernas fariam bem em imitar. Mas seria
difícil imitar o modo com que se tomavam estes exames. Fechava-se o candidato
num quarto, com papel, tinta e pincel, e a consigna era: "Escrever tudo o que
soubesse".
Os que teriam se entusiasmado com o método chinês seriam, por distintos
motivos, Couve e Leonardo. O chileno queria saber se os outros sabiam ou não
sabiam, e não lhe interessava o que sabiam. Ao florentino, pelo contrário,
importava o conteúdo e não a comprovação; queria saber tudo, mas ele era seu
próprio outro. A impaciência de um, a paciência do outro, expulsavam a arte,
que não era o que compartilhavam os dois, e que os chineses voltavam a pôr em
seu lugar. Com efeito, a que saber apela aquele que escreve um poema ou pinta
um quadro? A tudo, evidentemente, a tudo o que viveu, leu, viu e pensou. O
candidato chinês, com seu pincel e tinta, não tinha mais que escrever uma
frase, palavra ou signo. Na menor marca que alguém deixa sobre o papel está
cifrado tudo o que sabe, o mesmo todo cifrado, para quem soubesse ouvir, no
"sim" ou "não" dos estudantes chilenos.
300
MIL GOTAS
*
Um dia a Gioconda sumiu do Louvre, para desespero dos turistas, escândalo
nacional, rebuliço midiático. Não era a primeira vez, porque quase cem anos
antes, em 1911, um jovem imigrante italiano, Vicenzo Peruggia, pintor decorador
que havia estado trabalhando na manutenção do museu, com livre acesso, levou-a
por baixo do avental de servente. Escondeu-a por dois anos em seu ateliê, e em
1913 foi com o quadro até Florença, a fim de vendê-lo à galeria dos Uffizi,
dando ao roubo uma justificativa patriótica de recuperação de um tesouro
nacional. A polícia o esperava, a Gioconda voltou ao Louvre, enquanto o ladrão,
que então assinava Leonardo Peruggia, ia preso por uns poucos anos (morreu em
1947).
A segunda vez foi pior porque o que desapareceu foi a pintura
literalmente falando —, a fina camada de pintura a óleo que constituía a
celebrada obra-prima. A tábua suporte continuava em seu lugar, assim como a
moldura: a tábua em branco, como antes de ser pintada. Levaram-na ao
laboratório, fizeram todo tipo de exames: não mostrava sinais de raspagem, nem
da ação de qualquer ácido, nem nada, estava intacta. A pintura tinha evaporado.
O único sinal de violência eram uns furinhos perfeitamente circulares, de um
milímetro de diâmetro, no vidro blindado que separava o retrato de seus
espectadores. Esses furos também foram investigados, ainda que não houvesse
nada o que investigar. Não mostravam rastros de nenhuma substância e ninguém
sabia dizer com que instrumento tinham sido feitos. Disso resultaram
especulações jornalísticas sobre extraterrestres, tais como um ser gelatinoso
que ali teria posto suas ventas perfurantes etc. O público é muito inocente,
nem um pouco racional. E a explicação do que havia acontecido era tão simples!
A pintura havia retornado ao estado de gotas vivas de tinta, que, sem mais,
resolveram correr pelo mundo. Carregadas com a energia de cinco séculos de
obra-prima, não seria um vidro que as deteria, por mais blindado que fosse. Nem
muros, montanhas, mares ou distâncias. Podiam ir onde bem entendessem, eram
gotas coloridas com superpoderes. Se alguém tivesse contado os furinhos no
vidro, saberia quantas eram. Mil. Mas ninguém se deu o modesto trabalho de
contar, todos ocupados em propor teorias tão descabeladas quanto incompatíveis.
Atrás de aventuras, de ação e de experiência, as gotas se dispersaram
pelos cinco continentes. Durante um tempo, a princípio, permaneceram nos
limites da luz do dia, dando voltas pelo planeta na mesma direção, se abrindo
em leque, devagar ou mais rápido. Algumas nos finos raios da aurora, outras nos
apaixonados tons rosa do entardecer. Muitas delas nas manhãs difíceis das
grandes cidades, nas sestas sonolentas do campo, na primavera das pradarias ou
no outono dos bosques; também nas geleiras polares, nos desertos ardentes ou
sobre uma abelha no jardim. Até que uma delas, por acaso, descobriu as
profundezas da noite, depois outra, e mais outra. Logo não havia limite para
suas viagens e descobertas. Ao se extinguir a compulsão pelo movimento, puderam
se estabelecer onde queriam, cintilando sua ilimitada máquina criadora.
Uma foi pro Japão, onde montou uma fábrica de velas perfumadas. Chamavam-
se Velas Minuto, e exalavam a Lua. Protegida por severas patentes de
exclusividade e beneficiada pela noite, essa gota teve um sucesso fora do
comum. Imensas discotecas aderiram às velas Minuto e assim também templos,
montanhas, bosques, shogunados inteiros. Eram vendidas em caixas de seis, doze,
vinte e quatro e mil (todos compravam as de mil). Multiplicadas, suas chamas
rosadas criavam uma penumbra sem sombra, onde não se distinguia o perto e o
longe, o antes e o depois. Até as mais prolongadas noites de inverno se
mostravam incapazes de conter tanta intimidade. Gota San, rico como um Creso,
possuía duas esposas gueixas que transportavam feixes de espadas e, para a
diversão do marido, organizavam sessões dançantes de esgrima. Absorto em
estudos de balística, Gota San cada vez lhes dava menos atenção, até que as
*
"Mil gotas" Buenos Aires: Eloisa Cartonera, 2003.
301
esqueceu por completo. A reação imediata fez aparecer a grande diferença entre
as duas moças, tão parecidas que todos as confundiam. Uma permaneceu fiel,
amando-o desse jeito mesmo, mais distraído que atento; a outra saiu em busca do
amor que não encontrava em casa. Uma era "para sempre", a outra "enquanto
dure", e quando julgou que já havia durado o bastante disse basta e se juntou a
um fotógrafo, o senhor Foto San, que por motivos profissionais viajava o tempo
todo para a Coréia. Certo dia, durante uma dessas viagens, a família Gota fez
um piquenique sob a chuva, com um grande guarda-sol listrado, várias caixas de
velas Minuto e uma cesta de camarões. Tomaram chá, comeram, admiraram as
silhuetas das árvores recortadas contra o violeta do céu, e depois se
distraíram com um jogo curioso: uma cancha de tênis de papelão, dobrável, do
tamanho de um tabuleiro de xadrez, sobre a qual, com raquetes de ráfia, quatro
rãs vestidas de branco disputavam uma partida de duplas mistas. As rãs eram de
verdade, e não estavam nem vivas nem mortas. Eram acionadas por eletrodos, algo
bastante incômodo. Além disso, como nem o senhor Gota nem suas duas esposas
conheciam as regras do tênis, a partida era bastante caótica. A tragédia se deu
quando uma das rãs, movida por uma sobrecarga, saltou no ombro de Gota San,
meteu a cabeça na orelha do magnata e disse uma palavra: Cucú. Um inconveniente
da bigamia é que, no caso de adultério, se tem de decidir quem é o culpado. Na
raiva que lhe tomou conta, não quis pensar: mataria as duas. Saltou sobre a que
estava mais perto e a estrangulou. Quis a má sorte que fosse justamente a fiel;
a infiel escapou, montada sobre a bolinha das rãs, acreditando estar indo pra
Coréia (na verdade foi pra Osaka), e o cornudo justiceiro ficou contemplando o
cadáver. Sua condição sobrenatural de gota viajante o eximia das conseqüências
realistas, cabíveis a um criminoso convencional. Ao menos era nisso que
acreditava. Mas na verdade nenhum ser, no Universo, é imune ao azar. Uma suave
música melódica se abria lentamente sobre o piquenique, como um segundo guarda-
sol. Com efeito, o perfume das velas era um perfume Débussy.
Em Oaklahoma, bem longe dos crisântemos, uma gota duelou com Trementina,
num combate único. Trementina era um magricela, loiro, bastante parecido com
Kant, muito bem-vestido, na última moda, mas sem exageros. Seu único excesso
era o topete, que por sacanagem e distinção mantinha sem gel, pura escultura de
cabelo, altíssimo: um centímetro. Essa medida, diga-se de passagem, surpreende
àqueles que não sabem que Trementina media apenas dois centímetros ou
melhor, três, com o topete. Entre os redemoinhos de poeira levantada pelo vento
da planície, Joe Pete Gota esbravejava: "Ou ele ou eu!" Um dos dois devia
morrer. Sentia, no fundo de sua alma artística a óleo, ter de destruir um ser
tão belo como Trementina, um bibelô vivo, tão decorativo num mundo tão bárbaro,
mas era preciso. O mundo é grande e lugar pra todos, ninguém sabia isso
melhor que uma gota vagabunda, e no entanto situações em que o anacrônico se
torna espetacular. Mas não vale a pena chorar por isso. A morte de uns é a vida
de outros. A vida de alguns, aliás, a simples e mera vida que alguém es
levando, cotidiana, chata e sem sentido, tece a morte de algum outro, genial e
romanesco. Talvez o arrependimento desse algum sentido à sua deriva. Confiando
em sua elegância, que até então lhe valera todos os triunfos, Trementina partiu
pra cima da gota com uma pistola de cáctus, descarregando toda a munição. Joe
Pete Gota tinha um nariz escuro e redondo, na verdade uma goma de mascar, que
absorveu as nove balas. O contra-ataque foi um sonho que envolveu o adversário
numa atmosfera bucólica. Ao virem buscá-lo, seus parceiros do clube de bridge
não o encontraram. Nunca mais foi visto. Joe Pete Gota, próspero, satisfeito,
bem-casado, continuou com sua vida de extrativista industrial da flor de
cáctus, que exportava pra Coréia como revelador fotográfico em solução
gelatinosa. De vez em quando lhe aparecia o fantasma do morto, na forma de uma
musiquinha triste. Tentava fugir dizendo que toda música é triste, e que essa
fadiga de viver que se apoderava dele era normal. Em seus momentos mais
sinceros, no entanto, reconhecia ter matado sua própria elegância, que, em si,
já era uma forma de energia.
Ao sinal de chuva, a gota Euforia se acelerava, tornava-se gota cerebral.
Quando todas desanimavam, ela se sobressaía. Gravidade olhava-a pensativo,
perguntava: de que me serve? Que vantagem posso tirar? Euforia atravessava as
nuvens gritando: "Sou uma gota de Extrema Unção!" A água e o azeite nunca se
misturam, seus relacionamentos não dão certo, um divórcio atrás do outro.
302
Quando chovia sobre o Papa, o Solteirão, Gravidade se prestava a baixar a
escada, mandando pra terra sua irmã demente, Mística.
Saltando de chuva em chuva, uma gota se infiltrou no Vaticano, na
Vaticova e no Ânus, e queria mais: adentrar a mais santa das precipitações.
Teve um affaire com o Papa, um romance apaixonado condenado a não durar. O Papa
lhe ofereceu o Primado da Turquia, a fim de que preparasse sua visita, a
primeira de um pontífice ao planalto da Anatólia. Planejaram com todo cuidado,
o que não deixava de ser uma desculpa pra tirá-lo da vista: o Papa estava farto
da gota. Depois do sexo anal, o homem fica triste.
Uma vez, em Ankara, a gota inaugurou um colégio, requerendo à Associação
Cooperadora, em convenção, que fosse montada uma fábrica de pis para a compra
de material pedagógico. Em sua correspondência ao Concílio Eucarístico, deixou
subentendida a possibilidade de um golpe de Estado. A data firmada era 13 de
julho, dia em que Gravidade anualmente celebrava o aniversário de seu
Compromisso simbólico com o Papa. Dava uma festa e convidava as gotas da chuva.
Não todas, porque não havia tantas taças. as representantes de cada
chuvisco. Para a escolha das representantes, a cada 12 de julho havia eleições.
Os votos eram depositados nas lágrimas de uma menina, Rosa Edmunda González.
Na Turquia, as suspeitas de que o Vaticano nomeara uma gota como Cardeal
Superior causou perplexidade. Circulavam rumores de que a gota tinha vivido um
ano inteiro dentro do cólon do Papa: sua forma e tamanho eram semelhantes à
espécie. Os acontecimentos se precipitaram e a gota decidiu se autocanonizar,
sem a visita do Papa. Minutos antes de sua ascensão, ditou um memorando
dispondo o modo de comercialização dos lápis: haveria caixas de seis, para os
estudantes pobres, de doze para a classe média, e de vinte e quatro para os
ricos. Em edição especial, a caixa de mil seria para os filhos dos chefes de
Estado. Num determinado momento, para terror e desconsolo dos meninos pobres,
seus lápis se transformaram em velas Minuto, acesas. Rosa Edmunda González,
filha de um humilde barbeiro que fizera um sacrifício enorme para adquirir a
caixa menor, foi a que mais sofreu.
Pouco tempo depois foram publicadas fotos comprometedoras, tiradas por
Foto San, um japonês delinqüente, e reveladas à base de rosa: fotos do Papa
beijando a Gota, fotos de cubismo esférico.
Irresponsável, desumana, a gota — agora mil gotas, das cores mais belas
estava por toda parte. O Fim da Arte!, exclamavam os alarmistas de sempre,
profetizando que no futuro restaria nos trancarmos numa sala, recortando
fotos de revistas, à luz de uma vela Minuto, fazendo colagens. que as peças
jamais se encaixariam. Nunca mais haveria uma Gioconda, porque as gotas, depois
de provarem o gosto da liberdade, jamais voltariam ao Louvre. E se voltassem,
na mais remota possibilidade, qual seria a chance de voltarem à mesma posição,
pelo mesmo furinho onde haviam passado?
Na cidade de Bogohavia um cachorro enorme, preto, muito grande, feito
de baunilhas escuras, que andava solto pela rua. Procurava comida nas lixeiras,
dormia ao sol e se protegia da chuva sob uma marquise. Seu tamanho era
assustador e ninguém se aproximava dele, embora fosse manso. Todos os cães
abandonados andam atrás de um dono. O deste seria uma gota que se deu o
trabalho de conhecer a fria e chuvosa capital. Tornaram-se amigos. Obedeciam um
ao outro, ninguém lhes dava ordens. Era uma relação amo-escravo sem amo e sem
escravo. Mais que uma amizade, era um casamento. Compraram um Fiat 147 e toda
sexta-feira partiam pra sua cabana no Lago da Vela Perfumada. Por efeito de
seus hábitos pequeno-burgueses, o Fim da Arte se transformou em Fim de Semana.
Uma gota foi parar na natureza exuberante de um país tropical, entre
folhagens de esmeralda cobertas de orvalho, malvas, funchos e acelgas. As bolas
de orvalho, com que jogava bilhar, tinham o coração de gelo e os cabelos de
sol. E parece que a gota tinha sofrido uma adaptação: cresceram nela umas
antenas de borracha, dois pares, as de cima longas, as de baixo curtas, todas
redobráveis. Caminhava pelas folhas, comia uma célula verde, que digeria na
velocidade da luz, e defecava um ponto negro, um ponto suspenso. Assumiu uma
cor cinzenta, quase transparente, uma forma comprida na qual se insinuava uma
cabeça (com as antenas) e terminava numa cauda pontuda, no meio uma corcunda.
Pela corcunda começou a secretar, com o excesso das substâncias assimiladas não
303
gastas no movimento, um rígido verniz amarelado, que acabou assumindo uma forma
espiral, oca, onde se recolhia pra descansar.
Algumas crianças a descobriram por acaso e levaram a gota pra casa.
Colocaram-na num pote de maionese e a adotaram como animal de estimação. Com um
alfinete abriram furos na tampa para que pudesse respirar. Chamaram-na
Caracolito e a cada instante se perguntavam: O que será que Caracolito está
fazendo? E iam ver. Supunham ou inventavam estados de ânimo, desejos, sonhos e
aventuras para a gota em sua vida minimalista dentro do plástico transparente.
Alimentavam-na com fibras ao molho de ervas, aipo e polenta.
Até que um dia, foram ver, tinha sumido. Voltara a ser a gota de óleo da
Gioconda e se fora por um dos furinhos, repetindo seu gesto ancestral. Era uma
prova de que não uma Vida no mundo, e sim muitas, que obedecem a lógicas
distintas, e de que a evolução não basta para unificá-las.
Outros meninos, agora urbanos, brincando no living de um apartamento do
sexto andar, viram uma gota que em seu vôo sem rumo caiu na sacada, sem
conseguir sair. A sacada tinha uma dessas proteções de arame quadriculado que
os pais instalam quando têm filhos pequenos.
— Paiêêêê! Um passarinho de bigode!
Remexia-se meio assustada no pequeno espaço repleto de vasos com plantas,
ia e voltava, fazia oitos, dava loopings, ondulava sem acertar a saída. Por
dentro, no outro ladro da vidraça, os meninos não se agitavam menos. Previam
que essa mosca fantástica não duraria muito por ali, e mesmo pra eles, que
viviam na fugacidade dos seus momentos de atenção, surpreendia a eternidade da
fuga. Queriam tê-la por mascote. Teriam feito uma casinha de papel com portas e
janelas, um iglu, uma oca, uma bicicleta do mesmo tamanho.
De repente, tinha ido embora.
— Escapou! Pai, mãe, escapou! Era redondo, bem bonito!
E, é lógico, ninguém acreditou.
Enquanto isso, na Noruega, uma gota se dirigia ao norte em busca do
rouxinol das neves. Avançava num grande dia sem fim, em busca de uma lenda
incerta. Contínuas auroras rosadas se refletiam num lago cristalino, em cujo
fundo uma vela Minuto com escafandro ardia sem se consumir. Águias indiferentes
com cabeças de cavalo planavam sobre um campo gelado interminável. A gota
viajava num tanque Sherman, as esteiras firmes sobre a geada deixando um forte
rastro. Os nativos se espantavam. Toda a Noruega se alarmava com o avanço da
Gota Artilhada. Até onde iria? Conforme as lendas do país, nunca desmentidas,
se o rouxinol cantasse, a vela no fundo do lago se apagaria e, com ela, se
extinguiria toda a inspiração dos artistas. No entanto, teriam o perfume da
eterna melancolia.
Houve uma guerra inevitável. O tanque se multiplicou em mil, cada qual
num hexágono de cristal, avançando sobre a transparência do gelo. Foi uma
guerra toda feita de espelhamentos e fantasmagorias. A Neve também se
multiplicou. Era uma princesa branca e gorda, filha do Rei Pólo, e através de
sua mão se desencadearam as hostilidades entre as potências escandinavas. Sua
linhagem era muito valiosa. Com a proliferação das Princesas Neve, no entanto,
a confusão tomou conta das paisagens do branco planalto. O General Panzer Gota
Bota dirigia as operações, fechado num conta-gotas adaptado. As batalhas eram
um espetáculo incrível, milhões de soldados de bicicleta arando o gelo. E tudo
por causa de uma gota!
Tudo isso aque uma rachadura no vidro deixou o conta-gotas se encher
de bruma. O Primeiro Ministro da Noruega ordenou sumir com tudo, ativando uma
bomba. E descobriram que a gota não estava dentro. Reapareceu no fundo do
lago, suspensa sobre a ponta da chama da vela. O calor abrandava e deformava,
fazia cintilar suas cores, desprendendo um estranho odor de flores antigas.
Nas grandes pradarias da China uma gota montou uma agência de notícias. A
vida da aldeia, em seus ciclos imutáveis de yin e yang, se sacudiu com o
estrondo das transmissões. A agência Gotatual adquiriu um equipamento de
basquete, e a partida de inauguração (do equipamento e do luxuoso estádio
construído às margens da Mongólia) seria contra um conjunto de estrelas da NBA.
Os americanos estavam ansiosos por conquistar o grande mercado desportivo do
304
Império Amarelo. O Departamento de Estado, por sua vez, conduziu a visita. O
Papa se comprometeu em assistir o evento. A equipe era formada com os chineses
mais altos e fortes, e para os treinos, o senhor Gota, que tinha assumido a
direção técnica, adotou um procedimento inovador. Ou nem tão inovador assim,
pois os antigos romanos o haviam utilizado, e uma versão atual vinha sendo
usada pelos surfistas do Hawaii. Na prática, consistia em utilizar no lugar da
bola uma esfera de bronze pesadíssima. Assim os atletas desenvolveriam reflexos
de peso, que durante a partida de verdade os faria manipular a bola como num
sonho. No primeiro dia utilizaram a bola de vinte quilos, no segundo a de vinte
e cinco, no terceiro a de trinta. Os gigantes chineses se duplicavam sob o peso
do magnífico projétil. Gota aumentou a aposta: fez com que se exercitassem numa
cancha de dez quilômetros de comprimento e três de largura. As dimensões
estavam de acordo com o peso da bola de bronze — Gota era muito bom em cálculos
de proporção, sem precisar de nenhuma planilha. Usava da mesma habilidade com
as notícias: dava importância conforme as proporções. E a isso se devia o
sucesso de sua agência, que havia popularizado no mundo a rmula da "notícia
chinesa".
É desnecessário especificar que o exercício, nessas proporções, fazia
suar a gota gorda dos atletas. As constantes corridas de um lado pro outro,
lançando a bola, eram desumanas. Sem se preocupar com gastos, Gota havia
contratado Gravidade como assessor, que fora à China aguardar o Papa, com quem
estreitaria laços a notícia do século. Os jornais estampavam na primeira
página a expressão de Gravidade, o Playboy Universal, ao se despedir do Supremo
Pontífice, depois de sua primeira noite de amor: "Nos vemos no Báltico!"
Começaram a construção de um muro de mármore vermelho para isolar esse mar
nórdico; uma das alas dessa parede se uniria à Grande Muralha, num choque
estrondoso.
Gota levou as coisas tão longe que, na noite anterior à disputa, tirou da
cama os cinco gigantes titulares para levá-los a um último treino, clandestino,
à luz da lua. E de caminhão foram até os confins da Mongólia. Pararam num
deserto prateado, desembarcaram e olharam ao redor. Uma tabela lançava-se no
horizonte, a quarenta metros de altura. Em frente, sobre o horizonte oposto,
mais uma, um tanto oculta pela curvatura do planeta. Nesse momento chegou uma
moto barulhenta que os vinha seguindo. Fixaram o olhar no motoqueiro, que agora
punha o pé no chão e tirava o capacete. Era Gravidade. Os cinco chineses altos,
que somente o conheciam pela televisão, estavam boquiabertos. E tal como
costuma acontecer com as celebridades da mídia, é difícil acreditar na sua
existência real. O senhor Gota flutuou no ar a a moto, e entre os dois se
desataram as correntes que sustentavam atrás do assento um grande cofre, com o
escudo do Vaticano talhado na tampa. Dentro do cofre havia uma cabeça de foca
em ouro, pesando cinqüenta quilos. Com ela deveriam fazer o último treino,
levando suas forças ao limite, e em troca recebendo seus prestigiosos poderes.
"Passes longos", ordenou Gota. Começaram. Duplicavam-se pressionados pelo
peso; ao receberem a bola davam um passo atrás, as veias inchavam, mostrando
sinais de dor. Gota berrava, pedindo mais velocidade, mais precisão, e para
Gravidade, que olhava a seu lado, com uma cara de preocupação, disse: "Duas ou
três gotas de altura não poderão contra a barbárie". O suor que caía dos
jogadores encharcava toda a Mongólia.
A cabeça de foca foi esquentando com o movimento e o manuseio, o ouro
começou a brilhar, os miolos da foca se derretiam, corriam entre os dedos dos
chineses. O grande projétil escorregava, aumentando a dificuldade.
Ao fim, o conjunto se exaltou numa espécie de cone cujo vértice era a
cabeça de foca, jorrando gordura, mais brilhante que a lua. Na base, estirados
como filamentos, os cinco jogadores. Foram ganhando velocidade, rumo ao céu
escuro, sem estrelas. Atrás, numa atração irresistível, vinha Gravidade, e
depois a moto. Gota observou-os diminuindo, cada vez mais altos, até
desaparecerem. A única coisa que lhe passou pela cabeça foi que o casamento
teria de ser suspenso mais uma vez.
Mais tarde acabariam por recriminar a extravagância e o equívoco desse
exercício. Ele próprio chegou a se perguntar se não havia exagerado.
No entanto, uma diferença maior se impunha. Tudo se neutralizava no jogo
próprio do realismo. A própria invenção, a que as gotas em sua dispersão se
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entregavam freneticamente, atuava retroativa sobre o realismo. Era possível
dizer que cada mutação era escrita com uma gota de tinta, num desejo maníaco
pelo verossímil. Cada gota se fechava sobre si mesma, no frágil equilíbrio de
sua tensão superficial. Não havia contexto: pura irradiação.
Para a gota não existiam portas nem janelas. A história possuía várias
versões. Havia uma gota, virginal e vaginal, em partes iguais, que por um
milagre da cirurgia da sesta tinha assumido o gênero feminino, adotando o nome
de Auréola. (Antes atendia por Doutor Auréola.) De repente, uma suspensão:
Auréola ficou presa no ar...
Um romantismo sublime surgiu daí. Auréola, de camisola, estava na sacada
do seu castelo, sobre o agitado jardim noturno de insetos e fontes, perdida em
seus sonhos, em suas teias de aranha. O castelo queimava, o fogo também
suspenso. A gota estava em outra dimensão. E podia lhe ocorrer isso: mais
uma manifestação de indiferença, verossimilizada pela máquina do realismo.
De repente, num terceiro nível da história, três sombras emboçadas se
desprenderam das telhas, descendo pela calha e caindo juntas na sacada.
Retirada violentamente de seus sonhos, Auréola começou a girar sobre si própria
com um grito de angústia. Tentou vários movimentos de desmaio para escapar das
mãos de seus seqüestradores, mas era como se flutuasse sobre mercúrio.
Conseguiu apenas que rasgassem a camisola e a despenteassem toda. Assustada,
chorosa, as três sombras juntas colocaram-na num estojo, que se fechou com um
sonoro "clac". A multidão reunida em volta do castelo, contemplando o incêndio,
não viu nada disso, e menos ainda os bombeiros, ocupados em estender as
escadas, como piratas se preparando para a pilhagem. Os seqüestradores
aproveitaram a confusão pra fugir. Um carro os esperava do outro lado do fosso.
Viajaram por um longo tempo entre as colinas, e antes que a lua saísse
adentraram o parque de uma chácara abandonada. Abriram a casa pela porta dos
fundos, trancando a prisioneira no porão.
Só depois disso relaxaram, tirando o capuz. Eram três criminosas
assustadoras: Torneira, Ducha e Mangueira. muito planejavam seqüestrar uma
gota. Corpulentas e cromadas, dançavam como mênades sobre uma mesa, esboçando
ruídos metálicos. Beberam uma garrafa de conhaque e telefonaram para Gravidade,
exigindo o resgate.
Ring... ring... ring...
A campainha tocava entre as montanhas. O eco ressoando de cume em cume,
numa espécie de sucessão.
Os documentos do eco foram publicados pela editora Gota. O avanço técnico
da fotografia e da impressão tornara possíveis os museus de bolso. Aqui
precisamos dar um passo atrás, num estágio anterior da história, pra completar
o "quadro". O emblema da reprodução mecânica (fotográfica, impressa,
eletrônica) da obra de arte é justamente a Gioconda. Sem negar os méritos desse
retrato esplêndido, é preciso mencionar alguns fatos históricos que o colocaram
no lugar de honra que chegou a ocupar. Existem outros retratos de mulher, da
mão de Leonardo, que poderiam perfeitamente ocupar o primeiro plano. Dentre
eles está o de Cecilia Galleriani, "a dama do arminho", que não poucos críticos
elogiaram como o mais belo quadro jamais pintado, o mais perfeito. Também o de
Ginebra de Benci, essa menina-mulher de rosto melancólico e redondo. A nenhum
dos dois falta mistério para despertar a imaginação... Por que então da
popularidade incomparável da Gioconda? Acontece que, ao longo do século XIX,
quando o turismo nascia e os livros que sustentariam o cânone ocidental estavam
sendo escritos, a Gioconda estava no Louvre à vista de todo o mundo, enquanto
Cecilia e Ginebra empoeiravam em pinacotecas obscuras da Cracóvia e de
Lichtenstein.
O roubo de 1911 pôs a Gioconda na primeira página dos jornais, e a data,
justamente, era a do início da reprodução fotográfica impressa, em massa, da
obra de arte. O impulso dado pela notícia seguiu atuando de forma natural, e a
Gioconda, reproduzida infinitamente, se tornou um ícone indestrutível.
Mas aconteceu algo além, outra inauguração civilizatória que colaborou no
processo: a invenção da notícia planetária. O jornalismo havia alcançado sua
maioridade industrial, e no lapso de uns poucos meses se deram os dois fatos
que justificavam essa maturidade, fazendo-a frutificar: o roubo da Gioconda e o
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naufrágio do Titanic. Ambos fundaram-se como mitos. Por serem as primeiras,
foram as notícias maiores e mais fecundas. Todas as que se seguiram ficaram
subordinadas às condições de existência da substituição. Foi, assim, por pura
justiça poética que uma das gotas fugitivas da Gioconda montou uma agência de
notícias, e justo na China, o grande quebra-cabeças da humanidade.
A agência Gotatual se especializou na busca do novo Graal, a cabeça de
foca em ouro e gordura que passara a pensar pelos homens. A pista a seguir era
o tremendo melodrama de Gravidade, vagando pelos desertos do mundo após deixar
o Papa no altar, vestido de noiva e com um calo na mão. Não havia como
perseguir Gravidade, mas era possível calcular seus deslocamentos mediante
logaritmos geográficos. Outra pista era o rastro de saliva que deixava.
Estudada em laboratórios, essa baba mostrou ser composta essencialmente por uma
substância orgânica, a newtonia, cujas células possuíam a capacidade de inchar
por ação do desejo sexual. A expansão era praticamente ilimitada, sendo que a
membrana da lula tinha propriedades de flexibilidade e resistência que
revolucionariam a indústria têxtil. Daí em diante passaria a ser utilizada na
confecção de camisetas para jogadores de basquete, que continuavam se tornando
mais altos e corpulentos.
Chispita, a gota graciosa, dedicou-se ao humor. Montou uma série de
piadas antigas e se apresentava todas as noites num bar de Baden Baden, anexo
ao cassino. Após a atuação de um duo de sopranos, e antes da do Rode Aço
Sensível, o mestre de cerimônia lhe apresentava como "a gota mais engraçada do
mundo". As piadas eram lamentáveis, mas a graça estava justo no contraste entre
seu tamanho insignificante e sua voz potente, entre o desamparo de uma gota que
a ponta de dois dedos bastaria pra esmagar e seu ímpeto de galã sedutor,
lançando olhares às gordas russas da Nomenklatura, que dilapidavam no balneário
os rublos que seus maridos haviam extraído das tetas soviéticas da corrupção.
seu aspecto, antes de abrir a boca, lhe valia uma certa indulgência: chapéu
de copa, fraque entalhado, monóculo, bengala — tudo adaptado às formas
esféricas, sem braços nem pernas. Não eram poucos os que pagavam por uma
reprodução, pra levar como souvenir.
A temporada no cassino durava três meses. O resto do ano Chispita
hibernava num chalé de troncos em meio ao bosque, levando uma vida de ermitão,
sem trabalho doméstico e sem vizinhos. Assim como tantos outros comediantes,
era um melancólico e um misantropo. Para Chispita, o humor acabava tão logo
terminasse de contar as piadas, ficando com um enorme vazio. Seria do seu
agrado se chamar "Chispita, a Gota de Fel". De ano em ano não revia as piadas,
como se se dispusesse a ver quanto tempo resistiam, roídas, desfiadas, caindo
em pedaços de tão usadas. De noite elas apareciam, querendo assustar, flutuando
sobre a cama de dossel. E quando se convenciam de que nada adiantava, fugiam
pela planície, soluçando.
Voz melódica, voz do bosque.
Belos entardeceres clássicos dos países budistas. Homens e mulheres
caminhavam pelos bairros humildes, levando na mão uma jarrinha de prata cheia
de água. Na eternidade da pobreza, nenhuma novidade permanente poderia
intervir. A única permanência era a eternidade cotidiana. E no entanto... De
repente, todos lançaram os olhos ao céu. Nele havia uma gota, a gota que
decidiu se exibir. Era vermelha, rosa, esverdeada, açafrão, alaranjada, azul-
turquesa, um pouco fosforescente, aveludada, tensa, e tinha uma ruga. Baixou
devagar, chegou ao nível do solo antes que a noite caísse. Os budistas mais
pobres quiseram se apoderar dela. Em seu formato fluido, era uma engrenagem
entre o público e o privado. A existência das massas indigentes asiáticas havia
assumido um caráter público estadístico e social; a privacidade e o segredo
estavam limitados à vida dos ricos. As jarras de prata, adquiridas com muita
economia e cuidadas como tesouros pessoais ou familiares, eram um antecedente
da articulação blico-privado. E a gota as fez anacrônicas. No fim ninguém se
atreveu a tocar nela, ao redor da qual floresceu um bonito parque, que por seu
caráter sagrado serviu de refúgio aos pequenos charlatães que, de outro modo,
teriam se extinguido.
Mas a selva permanecia avançando sobre os países budistas. E com ela as
serpentes, que se aventuravam nas aldeias, bebendo o leite das cabras e o
sangue das crianças. Enroscavam-se nas pernas desprotegidas dos devotos, que
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esperneavam sem parar. Um contratempo lendário que resultou numa solução
histórica: desde o momento em que os pobres renunciaram a transportar a
jarrinha de prata, tiveram as duas mãos livres para combater com as serpentes
escorregadias.
A gota, no trono ao centro do parque dos zorros, foi chamada Deus
Próspero Brilhantim. Não se movia, não falava, não gesticulava. Mas todos os
pensamentos se dirigiam a ela. Os antropólogos do chá estudaram seus efeitos
sociais, bem como sua substância. Era de gel? De gesso? Torrone? Não souberam
dizer. Pelo cheiro, pensaram se tratar de uma partícula da Lua. Com os efeitos
não foram mais longe, pois sempre eram indiretos, muito indiretos. O povo
humilde criou a tradição de confeccionar bonés de seda para os zorros, cada
família de uma cor e com estampa característica. Tal como acontecera com as
jarras, não economizavam pra conseguir as melhores sedas, mesmo se tivessem de
se privar da comida. Os antropólogos ficavam perplexos. Sentiam tocar o segredo
da pobreza, mas tocavam de longe, com controle remoto.
Uma gota se radicou num país enevoado. Vivia numa mansão afrancesada de
três andares, construída no alto de um rochedo, desproporcional e
aristocrático. Instalou um telefone em seu escritório, no último andar, e de
lá, afastado, vestindo um roupão de arlequim, três cachimbos na boca e olhando
o movimento das ondas, administrava suas empresas e investimentos financeiros
pelo mundo todo. Nenhum de seus rios empregados, em escritórios das grandes
capitais, suspeitava que o gênio a quem acatavam as ordens era uma gota.
Achavam-no extravagante, misantropo, um pouco louco talvez. Tinha adotado um
sistema de comunicação à base de imagens, nem um pouco econômico, que utilizava
milhares delas para significar cada palavra (as confusões eram freqüentes),
decodificadas por computador. Dada a natureza confidencial de suas mensagens, o
método se justificava por razões de segurança, mas no fundo não era mais que
uma desculpa: seu verdadeiro propósito era camuflar o inverossímil de que um
grande financista pudesse ser uma gota de azeite renascentista.
Nem todas as gotas adotaram modos de vida tão caprichosos, nem viveram
aventuras ou invenções tão memoráveis. De fato, a maioria se adaptou ao estilo
classe média, ao conformismo cético da maioria, às pequenas satisfações
domésticas ou profissionais de uma rotina tranqüila. Seus sonhos eram os de
todos, suas opiniões permaneciam no senso comum. E quando tinham de votar (pois
a democracia avançava no mundo) se perguntavam, como todos nos perguntamos,
qual era afinal o sentido da vida.
Todas as gotas eram a Gioconda, sem que nenhuma o fosse. A deusa
submarina do Louvre não existia, nem nem em nenhuma outra parte, e, no
entanto, se refletia em mil membranas da memória de uma humanidade sem ilusões,
mas não sem imagens. O déjà-vu saía do coração de todos os seres, fumaça sem
chama, flor sem fruto. No mundo (o cálculo foi confirmado) não duas pessoas
que estejam separadas por mais de seis conhecidos. Vivos e mortos podem
igualmente servir de elos. E a lei da entropia social faz com que a cadeia
sempre encurte. A tendência irreversível se sobre o reconhecimento. As
explosões demográficas são, na verdade, implosões. Chegará o momento em que um
homem, o contra-Adão, se cruzará consigo mesmo e se encontrará idêntico,
"como duas gotas de água", ou, melhor dizendo, como uma só.
Uma gota resolveu viver na Argentina, o país da representação. Adotou o
nome bastante típico de Nélido, dando-se o trabalho de procurar uma noiva. Pra
qualquer outro teria sido uma questão de horas. Pra ele, que era tímido, torpe,
sem conversa, foi preciso anos, aliás, os anos se passaram sem que achasse
ninguém. Parecia uma maldição, uma sorte ruim, mas nem ele poderia deixar de
ver que a sorte, boa ou má, havia ficado pra trás. Comparecia a todas as festas
ou reuniões de que recebia convite, discotecas, yoga, oficina de pintura,
marchas e procissões, buscava desesperadamente, quase como um cachorro com a
língua pra fora, sabia que a ocasião lançaria o vôo, que tudo podia depender de
um instante e, pra isso, propiciava sua espontaneidade, ensaiava sua simpatia.
Não que não fosse sincero, justamente o contrário. Desejava, desejava mais
que um desejo, necessitava disso. Depois de mais um dia sem que a porcelana
divina de seu celibato fosse quebrada, a amargura do fracasso contraía sua
minúscula alma de gota.
308
Pensou aem se prostituir. Casal era casal, amor era amor. Numa gota,
talvez isso nem se reparasse. Mas logo descartou a idéia, o por escrúpulos
morais ou estéticos, mas simplesmente porque era mais difícil. E além do mais,
Nélido não queria cometer extravagâncias, e sim fazer o que todo mundo fazia:
ter uma mulher pra abraçar e beijar, passar com ela as noites frias de
inverno... Mais normal que isso, impossível. É o impulso original de todo ser
vivo, o motor da eternidade que move a carruagem do tempo.
Talvez esteja o problema: ele não desanimava. Depois de tudo, em seus
momentos de sinceridade consigo mesmo, tinha de reconhecer que havia uma
diferença entre uma gota de óleo e um homem jovem, ao menos no ponto de vista
de uma mulher. Notava isso todos os dias, não durante suas caçadas
infrutíferas, mas em todas as suas atividades. Os dois planos não deveriam
estar separados, justamente o contrário: tinha lido numa revista que oitenta
por cento das relações afetivas se davam no ambiente de trabalho. Nélido
trabalhava numa fábrica de caixas de papelão, mas ali não havia nenhuma
possibilidade de relação porque ficava o tempo todo sozinho, afastado da
pequena tipografia da fábrica, e mesmo não havia mulheres. (Fora contratado
para untar com seu corpo redondo o selo que estampava nas caixas a legenda
"Indústria Argentina".) De modo que toda e qualquer chance ficava limitada a
seu outro emprego, no qual entrava à meia-tarde, após deixar a fábrica: atendia
num quiosque de doces e cigarros, das dezesseis às vinte e duas horas. Ali sim
poderiam surgir várias oportunidades, e de fato apareciam, que não eram
boas. Os clientes de um quiosque vêm de todos os cantos, e no último
instante, despreparados, notam o empregado. Não têm, portanto, outra
expectativa (sobretudo por se tratar de algo tão trivial quanto a compra de um
chocolate ou de um maço de cigarros) senão a prevista pela espécie humana
corrente e seu trato cotidiano para com o próximo. Ao dar de cara com uma gota
colorida, de um milímetro de diâmetro, e não com o semblante familiar de um
homem, os clientes se sentiam desagradavelmente surpresos. Alguns nem se
preocupavam em disfarçar. O contato se tornava incômodo logo de início, e assim
permanecia. Os clientes habituais, por sua vez, deixavam de reparar e faziam a
transação de forma mecânica e distraída.
Com o tempo, Nélido acreditava encontrar "na doença o remédio". Porque
lhe ocorreu algo bastante óbvio. Se não era um homem, ou seja, se era uma gota,
e uma gota proveniente da mais famosa obra de arte do mundo, nenhuma lei humana
o legislava. Podia tudo. Uma gota de tinta num quadro não pode nada, depende
totalmente do restante de matéria que a cerca, das intenções do artista, do
efeito e de mil outras coisas. Mas tendo uma vez se tornado independente, saído
ao mundo a fim de provar o sabor estranho da liberdade, tudo mudava.
E, no entanto, não foi assim. Nada mudou. Curioso. Talvez porque ao
cruzar o limiar da realidade, as leis comuns a todos os seres, do mais complexo
organismo até o átomo, atuavam da mesma forma. A realidade da gota fantástica
era igual à realidade do homem.
Num outro nível, essa mesma confirmação, experimentada por um humilde
quiosqueiro argentino, funcionava para todo o cosmos. Algumas gotas,
ultrapassando a última fronteira, saíram do planeta. Chegaram à conclusão de
que se tinham permanecido dando voltas pelo mundo dos homens era por puro
hábito, não lhes passara pela cabeça experimentar os confins insondáveis do
Universo. Tendo uma gota se atrevido, outras foram atrás. Era muito fácil pra
elas. Não precisavam respirar, e sequer eram afetadas pelas condições adversas
do éter e da radiação. Esmoreciam um pouco nas zonas de calor, endureciam nas
regiões abaixo de zero, quando muito. As distâncias também não eram um
problema. Podiam percorrer trezentos mil anos-luz num segundo, graças à divisão
do tempo dada durante a dispersão. As galáxias assistiam suas passagens como se
fossem flechas. Sob a vermelhidão desses crepúsculos do nada, as gotas levavam
consigo a organização da matéria, deixando boquiabertos átomos e partículas.
Ninguém se entediava no cosmos. Pode-se dizer que nesses abismos vazios
se decidiam os resultados de trajetórias ferozes, meteoritos luminosos de
mecânica complexa, em circuitos sem limites. A escuridão se abria por trás dos
biombos de luz pintada no nada, luz sem sombra, mas não sem figuras. E um
ponto-cego nos biombos abria novos universos que tornavam a ser o Universo.
Curvas rugiam, faces de luz dos faróis examinando o volume de porões titânicos,
paredões de nebulosas.
309
Duas gotas se encontraram nesses termos inconcebíveis do paralelo. Num
planeta distante, numa bola de gás, em férias de densidade, uma gota projetava
sombra sobre um chão de átomos rochosos. Devido à sua forma perfeitamente
esférica, a sombra era sempre igual, estivessem onde estivessem os sóis e as
luas. Outra gota vinha na direção oposta, num foguete. Comunicavam-se por
microfones. A sombra da astronave formava leques de dois foles. O céu escuro
mostrava curiosos saca-rolhas de hélio.
Desembarcaram para explorar. As duas gotas, em seus escafandros, se
balançavam nas catorze mil densas atmosferas do planeta Carumba. Parada no
horizonte, sobre uma espécie de pernas-de-pau com colares de pérolas eram
carteira amarela e cabeleira branca que se agitavam em redemoinhos de quarks —,
se encontrava Perspectiva. Parecia indiferente. Não olhava ninguém, sabia que
todos olhavam pra ela. Era também o que as gotas faziam, estupefatas. Desde que
se desprenderam do quadro, sentiam-se órfãs dessa bela divindade. Gostariam de
poder voltar a se abrigar sob suas asas invisíveis. Mas ela não as via. Seus
olhos estavam fixos no além. Seria este desamparo o preço que deveriam pagar
pela liberdade que lhes permitira chegar tão longe? Sem se dar conta,
alinharam-se numa figura em perfeita simetria.
Então aconteceu algo. Um trovão fez rachar a concavidade escura do éter,
aparecendo Gravidade, com sua capa plástica carmesim e seus sapatos bico-fino.
As gotas se assustaram, supondo que cairia por cima, esmagando tudo. Para
alívio das duas, Gravidade deu um sobrevôo, pousando sobre a linha do
horizonte, que se encurvou pra baixo. Perspectiva, que estava na mesma linha,
resvalou e caiu nos braços de Gravidade, que a esperava de braços abertos e com
o pau duro. Ela se encaixou como um coração numa lança. Do contato se fez um
estalar de beijo, difundindo em todas as direções uma forte luz, em linhas,
sobre as quais se inclinaram as constelações. O que havia acontecido?
Simplesmente que, ao se encontrarem duas gotas, Perspectiva, sempre distante,
havia tocado a si própria. E Gravidade, que desde incontáveis milênios
aguardava essa ocasião, não a deixou escapar. Reconhecendo a gentileza,
dirigiu-se às duas, e, sem soltar Perspectiva, piscou um dos olhos, cúmplice.
As duas gotas astronautas maravilharam-se com a idéia de que sua presença, ao
acaso, num lugar que parecia Qualquer Lugar, pudesse resultar num efeito tão
transcendental. Tinham se acostumado, desde que abandonaram a tábua, no
Louvre, a não causar efeito. O abraço continuava, operando uma transformação.
Gravidade, tão severo e redundante, tornava-se esbelto e delicado; Perspectiva
perdia seu ar habitualmente desprendido, fazendo-se compacta e palpável. As
núpcias foram celebradas numa festa instantânea, sem que fosse preciso mandar
convites (os convites, desde o Big Bang, tinham estado viajando).
As duas gotas se olharam, como se dissessem "Veja você". Às duas ocorria
o mesmo, ao mesmo tempo: agora sim o Papa ficaria solteiro pra sempre. E o
imaginaram plantado no altar, lá no Vaticano, em seu vestido branco, os calos
na mão e uma lágrima correndo pela velha bochecha enrugada. Foi a última
fantasia, a mais realista.
Os recém-casados partiram num carro, arrastando latinhas pelo firmamento.
Seria uma Lua-de-Mel combativa, pois dariam um fim na Evolução, a eterna
celibatária, que desta vez, rompido o equilíbrio das forças (divide e
reinarás), seria derrotada.
Mas as gotas que pisavam os limites fantásticos da realidade...
prosseguiam na realidade, e não podiam evitar a melancolia.
Fim
310
A ONDA QUE LÊ
*
1
O flipbook, caderno de desenhos ou fotos em série que ao folhear-se
rapidamente a sensação de movimento, é minha forma favorita de livro. Se eu
fosse editor, minha editora se especializaria em flipbooks; se tivesse uma
livraria, venderia apenas flipbooks. Se fosse colecionador, me dedicaria a
eles. É o livro que se mais rápido (em três ou quatro segundos, calculo); a
velocidade é essencial: lento, não funciona. Esse é um dos motivos de minha
preferência. Não são dos livros que se acumulam à espera de que alguém tenha
tempo e vontade. Não se olha o número da página onde se está, nem se calcula
quando falta para acabá-lo.
E a ilusão. Estão feitos de ilusão e velocidade. O tempo e a magia, tão
aleatórios nos livros convencionais, incorporaram-se nos flipbooks à técnica de
sua fabricação, à sua razão de ser.
Os livros pequenos sempre me agradaram; o flipbook deve ser pequeno para
que se possa manejá-lo com o polegar. Precisamente: Pulgarcito.
Com quanta inveja contemplamos, os aficionados pelos flipbooks, essas
máquinas que os bancos possuem para contar notas. É concebível a existência de
especialistas na manipulação dos flipbooks, homens os quais uma longa prática
ou um dom natural deu-lhes a habilidade de fazer fluir o movimento com um
realismo especial. Do mesmo modo como existem especialistas na leitura. E
poderia também haver seus analfabetos.
Porque não deixam de ser livros. Têm tudo o que os livros têm,
simplificado, acentuado, concentrado. Objetivam a vida, e a irradiam de volta,
enriquecida. Tal como acontece com os bons livros, a realidade assume o formato
pequeno e encantador do flipbook. No ginásio, por exemplo, onde alguém se
acomoda num aparelho com pesos e inicia o exercício, seguindo um ritmo
constante. Todo o corpo se torna polegar, tal como o polegar concentra o corpo
todo. A figurinha anatômica articulada, em seu vai-e-vem contido num quadro.
Uma breve digressão sobre o polegar. Quando criança, li em alguma parte
que esse dedo, tão importante no processo de hominização, tem mais força que os
outros quatro dedos da mão juntos. Ponho isso à prova a cada vez que vou ao
supermercado, onde, na seção de frutas e verduras, uma balança eletrônica:
apoio primeiro os quatro dedos juntos e faço toda força que posso, depois
repetindo a operação com o polegar. No primeiro caso o visor marca nove quilos
e novecentos, no segundo, nove e novecentos e cinqüenta.
2
A onda se mexe, os braços esticados para a frente, nas mãos um livro
aberto. Ela toda é uma linha ondulante, suas extremidades comunicadas pelo
movimento. Elegantíssima, modern style, uma chicotada de sedas em metamorfose.
Um braço de deusa. Seu corpo é todo mar, ou parte do mar com que se funde.
Emerge apenas a linha, que desenha num contínuo bastante volúvel a cabeça e o
braço. A cabeça na ponta, grossa e trêmula, habitada por uma atividade secreta,
um trabalho molecular incessante e criador. O braço tenso em sua maior
extensão, como se quisesse alcançar algo que possui: o livro. Mantém-no
erguido, tomando-o pelos lados, embaixo, com dedos feitos de gotas que se
rompem, se deslocam, correm como contas de um rosário de pérolas ocas, dedos
que se rearmam em mil formas e que nunca soltam sua presa. O livro se sacode
*
"La ola que lee" Plebella — Poesía Actual n. 1. Buenos Aires, abr. 2004.
311
imperceptivelmente sem perder sua posição, aberto num ângulo de cento e setenta
e cinco graus. Fixos nele estão os dois grandes olhos de água da cabeça da
onda, e todo o conjunto avança em direção à praia.
A distância entre os olhos e as páginas nem sempre é a mesma. Em alguns
momentos o braço está quase esticado demais, como estaria um leitor afetado
pela presbiopia. Em outros aproxima, sem que o braço (do qual vemos parte
superior) se dobre por um cotovelo que não existe, parecendo então um míope.
Mas a diferença nunca é grande. É preciso olhar com atenção para perceber as
mudanças. O mesmo se pode dizer da oscilação do livro, do tamborilar dos dedos,
do balançar da cabeça e da desacomodação assimétrica dos olhos; tudo participa
na agitação pestanejante da cena. É um cenário de água, que se desloca num
equilíbrio instável. Com exceção do livro, tudo é água. O centro de gravitação
da massa muda o tempo todo de lugar. Pura tensão de superfície, o centro não é
um centro, nem está em nenhum lado. A enervação das linhas de força da onda
obedece a dinâmica dos fluidos, seu volume gigantesco se manifesta em linhas
muito finas, de traço caprichoso e espontâneo.
O movimento, envolto numa luz muito branca, uma luz de leitura, se esgota
em si mesmo como uma queda, mas que milagrosamente se renova. O livro se
endireita, e os olhos da onda, que tinham se desviado, voltam a se abrir
redondos e fixos, fixos na página.
312
A BONECA VIAJANTE
*
Ano passado, depois de vencer os detectores de metais num aeroporto, ouvi
alguns gritos rasgantes que fizeram com que todos olhassem para trás. Era uma
menininha, de três ou quatro anos, chorando desesperada. A mãe pegara-a no colo
e em vão tentava acalmá-la. Os gritos aumentavam de volume, carregados de uma
angústia que a menina, evidentemente, empenhava-se em tornar blica. Abraçava
uma boneca, gesto que me fazia deduzir o acontecido: os seguranças tinham
revistado o brinquedo. Confirmei quando passaram ao meu lado e ouvi a mãe
dizendo: "Juro que não fizeram nada, juro...". Alguém me disse depois, quando
contei a história, que bonecas e brinquedos são especialmente temidos nessas
circunstâncias, porque os seqüestradores de aviões os utilizaram mais de uma
vez para introduzir armas. Quem saberá o que passou pela cabeça dessa menina ao
ver sua boneca nas mãos dos policiais; talvez tivessem espetado agulhas ou
apalpado de um modo ameaçador; talvez uma espécie de violação vicária; enfim,
as meninas depositam muitos sentimentos em suas bonecas. Seja como for, a
boneca passara o exame, mesmo às custas das lágrimas de sua dona, e já estava
"em trânsito". A situação me fez lembrar de uma história pouco conhecida da
vida de Kafka.
Em 1923, vivendo em Berlim, Kafka costumava ir a um parque, o Steglitz,
que ainda existe. Certo dia encontrou uma menina chorando, tinha perdido sua
boneca. Kafka naquele instante inventou uma história: a boneca não estava
perdida, apenas tinha saído de viagem para conhecer o mundo. Tinha escrito uma
carta, que ele possuía em sua casa e lhe traria no dia seguinte. E assim foi:
dedicou aquela noite a escrever a carta, com toda sinceridade. (Dora Diamant,
quem conta a história, diz: "Entrou no mesmo estado de tensão nervosa que o
possuía a cada vez que se sentava em seu escritório, fosse para escrever uma
carta ou um cartão-postal".) No dia seguinte, a menina esperava-o no parque, e
a "correspondência" prosseguiu à razão de uma carta por dia, durante três
semanas. A boneca nunca esquecia de enviar seu amor à menina, de quem lembrava
e a quem abandonava. Suas aventuras no estrangeiro a mantinham longe, e com a
aceleração própria do mundo da fantasia, tais aventuras acabaram em noivado,
compromisso, casamento e filhos, de modo que a volta era adiada
indefinidamente. Isso para que então a menina, leitora fascinada desse romance
epistolar, se conformasse com a perda, a que por fim acabou vendo como uma
ganância.
Privilegiada menina berlinense, única leitora do livro mais belo de
Kafka. Contaram-me, e quero acreditar ser verdade, que o grande estudioso de
Kafka, Klaus Wagenbach, procurou essa menina durante anos, interrogou vizinhos
do parque, consultou o cadastramento da área, pôs avisos nos jornais, tudo em
vão. E até o dia de hoje visita periodicamente o parque Steglitz, examinando as
senhoras mais velhas que vão até brincar com seus netos... A menina já deve
passar a casa dos noventa anos, será muito difícil encontrá-la. Mas o esforço
vale a pena. Essas cartas de uma boneca têm tudo para fazer sonhar não a um
editor como Klaus Wagenbach.
O pranto de minha menina no aeroporto se enlaçava ao da menina no parque
Steglitz, a oitenta anos de distância. Tendemos a sorrir diante do choro das
crianças, seus dramas nos parecem menores e fáceis de solucionar. Mas para elas
não o. Fazer o esforço de entrar nas relatividades de seu mundo equivale ao
trabalho de entrar no mundo de um artista, onde tudo é signo.
O contrato de uma menina com sua boneca é um contrato semiótico, uma
criação de sentido, sustentada pela tensão do verossímil com a fantasia. Daí
que a anedota não seja casual: Kafka foi o maior descobridor de signos da vida
moderna. Reiner Stach, em sua biografia de Kafka, assinala com muita
pertinência que para o escritor não se trata apenas de saber observar, é
preciso descobrir os signos ocultos naquilo que se observa. A elogiada precisão
*
"La muñeca viajera" Babelia, suplemento de El País. Madrid, 8 maio 2004.
313
cirúrgica do olhar de Kafka se tornava escritura na transmutação do visível em
signo.
O desaparecimento do livro das cartas à boneca, por mais que lamentemos,
deveria ser visto como um signo positivo. É o elemento que, por sua ausência,
sentido ao resto da obra, ou seja, uma saga de desaparecimentos cuja
presença em forma de relatos, de escritura, tem por função cicatrizar a ferida
da perda.
Por menor que seja nossa atenção, foi essa função o que deu origem às
histórias contadas às crianças para ensinar-lhes temer o mundo e, ao mesmo
tempo, para que aprendessem que o mundo existia antes e que continuaria
existindo sem elas. Foi essa função terapêutica e didática que a obra de Kafka
realizou, e por isso com ele se fecha o ciclo histórico da literatura infantil.
Seus contos de fadas tornaram anacrônicos todos os demais, e o século XX, por
sua causa, não teve seus Perrault nem seus Andersen (nem seu Dickens). Mas teve
Kafka, e é o bastante.
314
A ILHA DESERTA
*
Não me perguntem de novo: não quero saber de escolher um livro para levar
a uma ilha deserta. Quando fantasia as condições de sua paixão pela leitura, o
bom leitor nunca pensa num livro. Pensa numa biblioteca. Porque a leitura
começa a valer a pena, como alimento e consolo dos dias e noites do náufrago
que somos, quando forma sistema, ou seja, quando a promessa de um livro se
cumpre em outro, e a deste em outro mais. A biblioteca é o sistema do leitor.
Mas como salvar toda uma biblioteca de um naufrágio? Salvá-la durante uma
mudança já é bastante difícil.
Irrita-me um pouco a ignorância que essa pergunta revela, a
insensibilidade às delicadas dobras da alma de um leitor. De que me serviria um
livro? Mesmo que fosse um favorito, mesmo que fosse o Quixote, acabaria
odiando-o na falta da base tranqüilizadora de uma estante cheia. Alonso
Quijano, sem ir mais longe, era homem de biblioteca, não de livro. É um bom
exemplo, e mais que exemplo um modelo inaugural da índole sistemática do hábito
da leitura.
Como me conheço, sei que ao ouvir a pergunta acabaria fazendo piada:
escolheria um livro que fosse muitos livros, as obras completas, por exemplo as
de Borges (Borges teria sido mais piadista ainda: teria escolhido a
Enciclopédia Britânica, décima primeira edição). Não me agrada fazer piada
porque a leitura, justamente, habitou-me ao fair play. Ler é um jogo cujas
regras são claras; obedece-as por puro prazer. Além disso, o adiantaria nada.
Um autor, mesmo o preferido de todos, não basta. O prazer da leitura se
alimenta da deriva, dos ecos, das descobertas. O próprio Borges, enquanto um
cosmos que pode tomar a vida de um leitor, ficaria mutilado sem De Quincey,
para nomear apenas um de seus afluentes.
A partir daí, basta pensar um momento para se dar conta de que uma
biblioteca tampouco seria o bastante. Ou sim? Não quero ser injusto com esse
perfeito instrumento de felicidade que uma biblioteca é. São inesgotáveis, e a
equação vida-livros define os limites. Mesmo em se tratando do mais voraz dos
leitores, mesmo exagerando, a dois livros por dia, trinta mil livros dariam de
sobra (cinqüenta anos contêm dezoito mil dias). Na realidade, alcançaria um
terço.
Mas não. Uma biblioteca não basta porque na ilha deserta não teria
como se ampliar, e à sua esplêndida acumulação de clássicos e modernos, por
mais seleta de fosse, faltaria algo essencial: esse outro livro, talvez ruim,
talvez insignificante, com cujo desejo expressamos a liberdade da gana ou do
capricho. Com efeito, é preciso levar em conta a veleidade caprichosa, que é
parte da etologia do leitor, a curiosidade repentina e irrefreável pela rareza
bibliográfica, a última novidade ou a antigüidade mais remota. O que se deseja
é, por definição, o que não se sente. Para esse marco o leitor dispõe das
livrarias, as do antigo e as do novo. E nas ilhas desertas não livrarias,
nem chega o carteiro com a assinatura das revistas com que o leitor se inteira
do que queria ler e não sabia. Também seriam necessárias outras bibliotecas
para comparar com a nossa, bibliotecas não tão boas como a nossa (claro!), mas
úteis para determinar ausências e presenças. Lembro de uma frase tão famosa
quanto injusta de Mark Twain: "Uma biblioteca que o contenha livros de Jane
Austen será sempre superior a uma biblioteca que contenha livros de Jane
Austen". (Mas na minha biblioteca estarão todos os romances da querida Jane
Austen.) Como uma biblioteca nos exprimiria se não outras para se examinar,
invejar e criticar? Como saber se alguém é bom leitor se não outros leitores
com quem discutir gostos e preferências?
Com certo alarme, que começa a se justificar, advirto que sequer assim
bastaria. Mesmo superpopulando a ilha deserta com uma grande biblioteca e
*
"La isla desierta" Babelia, suplemento de El País. Madrid, 12 jun. 2004.
315
outras de contraste, boas livrarias e carteiros, não seria o suficiente. Porque
a leitura é uma aprendizagem; mesmo que a pratiquemos sem nenhum propósito
utilitário, está nos ensinando a ver o mundo, a entendê-lo e a nele nos
orientarmos. Sem mundo, a leitura daria voltas sobre si mesma no vazio,
tornaria-se fantasmagórica, talvez angustiante. De modo que teria de haver
cidades, trens, aviões, selvas, elefantes, senhoras ricas e crianças pobres, um
gato dormindo no parapeito da janela, um vulcão em irupção, astronautas,
filatelistas, supermercados... Nos livros está tudo, mas está como num prisma
que recebe a realidade e a devolve. E esse antes e depois também é parte da
leitura.
O mais grave é que na ilha deserta faltaria a História. Mesmo que
estivessem todos os livros escritos pelos historiadores, faltaria o processo de
que participaram no tempo humano que conforma as civilizações das quais nascem
os livros. O ponto de vista histórico, mesmo na patética intranscendência da
atualidade, coloca em perspectiva o exercício da leitura e lhe sentido. Ou
seja que também seria preciso pensar, se não em guerras e revolução, ao menos
em jornais, e até na televisão. E uma vez que chega a televisão, já não mais
ilha deserta.
E ainda assim continuarão me perguntando, e perguntando: que livro
levaria a uma ilha deserta? O pior é que têm certo direito em fazê-lo. Porque
depois de minhas mais exuberantes fantasias de povoamento, a ilha se recompõe,
solitária na imensidade do oceano, símbolo perene da leitura e do leitor. O
problema da pergunta consabida está em não ser uma pergunta mas uma metáfora;
não pede uma resposta mas uma interpretação, ou seja, uma leitura; com isso o
círculo se fecha onde tinha começado, na revelação de sua redundância. Não é
necessário escolher livro algum para ir a ilha alguma; o leitor é essa ilha
deserta superpopulada, essa metáfora do humano.
316
A INTIMIDADE
*
Para definir o íntimo, é preciso buscar o termo a que se opõe, e não me
ocorre outro que não público. No entanto, o que se opõe diretamente a público é
privado, o que deixaria o íntimo como um suplemento recôndito do privado.
Gostaria de enfocar esses contrastes assimétricos em dois gêneros literários,
as Memórias e o Diário íntimo, ou, mais precisamente, as Memórias e o Diário de
dois autores franceses, Chateaubriand e Victor Hugo.
Em suas Memórias de além-túmulo, ao preço de eliminar todo e qualquer
dado de sua intimidade, Chateaubriand retoma sem parar a diferença entre
público e privado. A alternância entre a história de um homem e a história da
Europa se dá em suas três mil páginas, exemplificada em cada uma delas: o homem
busca a solidão com afinco, evita os cargos políticos, não pede mais que o
isolamento para desenvolver suas fantasias religiosas e seu culto à natureza,
ao mesmo tempo em que a Europa obstina-se em produzir guerras, revoluções e
nacionalidades. A alternância é tematizada na própria extensão, a ponto de
gerar o cálculo explícito: "Na escala dos acontecimentos públicos", diz
Chateaubriand, "os fatos de uma vida privada poderiam reivindicar não mais que
uma linha". A imagem que propõe a continuação é a do barco, que poderia ser o
barco da Humanidade sulcando o oceano da História, mas tripulado por
marinheiros que possuem, cada um, sua pequena história pessoal, e que não se
privam de contá-la entre si durante os longos ócios da navegação. "Cada homem",
diz Chateaubriand, "encerra em si um mundo à parte, alheio às leis e aos
destinos gerais dos séculos". Antes, porém, contraditoriamente justifica o
cálculo das extensões não pela mera importância do público, mas em sua
particularidade. Com efeito, o público é singularíssimo e irrepetível, enquanto
o privado é generalizante. Quem não perdeu um ser querido? Quem não amou,
sofreu injustiças ou conseguiu sucesso? Todos fizemos isso mais ou menos nos
mesmos termos. Enquanto a Revolução Francesa ou o descobrimento da América se
deram uma vez e para sempre. Chateaubriand resolve a contradição lembrando
que a história pública é feita por homens privados, e que o único advém
misteriosamente do múltiplo: "todos, um a um", diz, "trabalhamos na cadeia da
história comum. De todas essas existências individuais se compõe o universo
humano aos olhos de Deus". Os atores centrais do multitudinário elenco de suas
Memórias de além-túmulo são Napoleão, Madame Récamier e o próprio
Chateaubriand. Em Napoleão, claro, está a transmutação suprema do privado em
público, já que sua história privada é a história do mundo. E foi a
contemporaneidade de Chateaubriand com Napoleão o que propiciou sua reflexão. O
próprio Chateaubriand se constitui em unidade blico-privada sobre o grandioso
fundo napoleônico, como legista de duas linhagens monárquicas: somente na
cadeia dinástica pôde encontrar o argumento que conciliaria o homem individual
com a História, conciliação ameaçada pelo excesso imperial. Mas Chateaubriand,
tal como os marinheiros de sua metáfora, não se priva de contar sua própria
história. E se nesta se constantemente ameaçado pelo perigo de dar demasiada
importância a si próprio, perigo bastante real porque, ao fim das contas, foi
ele quem consolidou a sensibilidade romântica, assegurou a restauração
borbônica, levou adiante a guerra com a Espanha, dispõe lateralmente da figura
de Madame Récamier, sua amante, para fazer de ponte entre o público e o
privado. A mulher é a figura privada por excelência, mas Madame Récamier cobre
todas as combinatórias históricas do público e do privado, ao menos nas
Memórias de além-túmulo.
Mas, por se tratar de um livro, estamos no campo da exposição, e
deveríamos ver seu reverso. A privacidade também se esconde deliberadamente, e
aqui é onde a palavra "intimidade" funciona no uso comum como seu sinônimo.
"Defendo minha privacidade" é mais ou menos permutável com "defendo minha
*
"La intimidad" Conferência. IV Congreso Internacional Razones de la Crítica. Rosario: Centro
de Estudios de Teoría y Crítica Literaria, ago. 2004.
317
intimidade". Mas mais ou menos. Pois o privado continua no campo do público,
que se um "direito à privacidade", tem de ser um direito reconhecido
publicamente.
Por fora desse reconhecimento, na margem interna do destino individual
que escapa à fatura geral da História, estaria a especificidade do íntimo, numa
espécie de suplemento do privado, um campo extra de formato indefinido que
apela aos afetos, sentimentos, desejos.
Na intimidade assim definida há uma resistência à linguagem. A fronteira
da intimidade retrocede tanto quanto avança a vontade de contá-la. É co-
extensiva ao segredo, mas o segredo existe enquanto efeito da revelação, e
esta, feita de linguagem, é por essência pública. Duas formas degradadas de
linguagem pressionam sobre o campo amorfo do íntimo: de um lado o
exibicionismo, de outro a curiosidade. Antes e depois de adquirir uma forma
estável, a intimidade se dissolve, como uma intenção, ou pior: como uma boa
intenção, não deixando como resto mais que um balbuceio falido daquilo que não
se podia dizer e que no entanto se disse.
Ainda assim, não haveria de se destacar o conceito, que, ao fim das
contas e apesar de sua precariedade, permanece atuando. O informe do conceito
replica-se no informe do idioma da intimidade. Se a articulação xima da
linguagem es no público, o mínimo se refugia na intimidade. Os íntimos se
entendem "com meias-palavras", ou melhor, "sem palavras". Essa economia
transporta a busca utópica, ou em todo caso desejante, da comunicação
impossível consigo mesmo, porque a intimidade culmina num só. Utopia do
comunicável, que iria do segredo ao segredo, sem passar pela revelação e sem se
rebaixar aos mandatos do exibicionismo e da curiosidade.
Seja como for, a intimidade não é uma nata fluida da vida social, mas um
princípio de separação. Zelosa, exclusiva, a intimidade de alguém termina onde
começa a do vizinho, talvez um pouco antes. Mesmo que não se trate tanto de
limites quanto de círculos concêntricos. um díctico em jogo, um shifter, um
ocasionalismo: "entre nós", e esse plural pode ser tão amplo quanto estreito,
ou dar lugar: a intimidade dos amantes, da família, dos amigos, da profissão,
da cidade, da nação... O modelo, o "entre nós" definitivo, é a redução do
plural ao singular que se amplia para formá-lo, o "eu", a consciência, o
chamado "foro íntimo", eu comigo, a intimidade portátil, levada aonde faz
falta. Supõe-se aí estar o núcleo das grandes verdades: onde não é necessário
falar.
O público é um tecido de crenças, sobre as quais se exerce o processo do
"foro íntimo". Que o Sol nasça pelo Oriente e se ponha pelo Ocidente, ou que os
pobres sejam mais simpáticos que os ricos, são proposições sujeitas à crença,
mesmo depois de sua confirmação pelos fatos. Antes ou após a confirmação, a
decisão de crer ou não crer constitui a intimidade do homem. Na realidade não
alternativa: a decisão pode ser decisão de não crer. Crer é o público,
não crer é o íntimo, e se dentro da intimidade ainda há algo no que não se crê,
é inevitável que sua negação produza, mesmo a contragosto das melhores
intenções do sujeito, uma segunda intimidade, mais íntima, e logo uma terceira
e uma quarta.
Minha hipótese é de que a figura última da intimidade é a do cura que não
crê em Deus. A vantagem metodológica dessa figura é a de nos levar aos extremos
da prova. O cura é uma instituição; todos nós o somos, em nosso funcionamento
social; todos somos instituições de crença. Mas o cura é potencializado por sua
especialização na crença de base, Deus. Ele não possui pontos de fuga laterais
como todos possuímos, pois está no fundo do beco; daí que se possa dizer que um
cura que crê em Deus não tenha intimidade. Como estamos no terreno do preto-e-
branco, dos absolutos, para ter intimidade o cura deve passar a um nível no
qual se desprenda de sua crença em Deus.
Essa incredulidade, terá de "confessá-la a si", no sigilo de sua
consciência, para o que é necessário que a linguagem intervenha: como diria se
não interviesse? A semiose da ação, dos fatos, e a dos gestos lhe está
proibida caso queira conservar o emprego de cura. De modo que a linguagem
retorna em sua mais pura e quinta-essenciada matéria lingüística.
Isso contradiz a descrição anterior do íntimo como o reino do balbuceio e
das meias-palavras. Creio que o que acontece é que no caminho em direção ao
318
singular, ao ir se despovoando o "nós" íntimo em sua passagem da nação ao
grupo, do grupo à família, da família ao casal, sempre rumo ao "eu" secreto e
talvez inalcançável, vai-se esgotando a carga de linguagem acumulada, e quando
a consciência está consigo mesma deve recomeçar, outra vez com um máximo de
articulação, com uma sintaxe precisa e frases bem cunhadas sobre a matriz do
Sujeito e do Predicado.
A elas o cura deve recorrer em sua necessidade imperiosa de criar uma
intimidade. Pois bem, resta agora explicar essa necessidade. Para que serve a
intimidade? Quem necessita dela? Eu diria que sua utilidade está na inversão da
função da verdade na linguagem. A intimidade é algo assim como o laboratório da
verdade.
A linguagem como instituição, ou, ao contrário, como instrumento público,
tende ao lugar comum. Mesmo quando se trata do mais engenhoso epigrama ou do
paradoxo mais arriscado, ainda quando tomada no momento mais original de seu
nascimento, a enunciação lingüística é refém da mecânica senilizante da
obviedade. Os sujeitos nela coincidem fatalmente. Mesmo patente, seu quantum de
verdade degrada-se em crença, pelo simples fato de ser compartilhada. A
estreita margem de manobra que resta à negação é o que chamamos cinismo. Na
extinção da linguagem, que ganha lugar no fundo da intimidade, e seu
renascimento imediato, nesse ponto último de rebote em que os amantes abraçados
se transformam num cura está a origem do cinismo.
É bastante evidente que a criação de intimidade, segundo os termos que
apresentei, se parece muito à criação da literatura. Isso torna um pouco
difícil continuar falando do tema, e para não sair dele a reflexão se
obrigada a remontar o já-criado à criação, de modo que remeter-se aos
documentos não é suficiente, pois quase de imediato estes se contaminam com o
processo de documentação.
A intimidade, na medida em que temos acesso a ela, foi objeto de uma
documentação. O mito da intimidade tem por suporte documental a mitologia dos
segredos e sua revelação, cujo meio é a literatura.
O paradoxo dos diários íntimos se desdobra no rebote que mencionei. São
escritos para quem escreve, para articular o informe, mas a própria articulação
transporta o esboço de um interlocutor. São escritos para que outro leia,
ainda que esse outro, no momento, seja si mesmo. A articulação da linguagem em
Diário Íntimo tem como fundo de contraste e para contrastar com ele um
balbuceio amorfo de pensamento secreto.
Não nos diários, o paradoxo consegue ser resolvido na escritura
cifrada, que é o idioma próprio da documentação. A técnica de registro da
contabilidade, a chamada "dupla entrada", inventada na Itália mais ou menos na
época em que Maquiavel criava a "dupla entrada" política, de hipocrisia e
cinismo, pela qual continuamos nos movimentando, é o modelo do cifrado.
Victor Hugo, que mantinha uma grande família, uma dezena de amantes, ex-
amantes, numerosa criadagem, secretários, amanuenses e protegidos, descobriu em
determinado momento que o lugar mais a mão para anotar todos os seus gastos,
para homologá-los com seus ingressos, era seu Diário Íntimo. Mas não tinha
tempo nem paciência para fazer as contas. A senhora Hugo, que não devia ter
cabeça para os números, delegou a tarefa à amante oficial de seu marido,
Juliette Drouett, a quem, no fim do mês, Hugo passava os cadernos de seu
Diário, onde registrara escrupulosamente até o último centavo que saíra de seu
bolso. Além disso, o poeta recorria cotidianamente aos serviços de prostitutas,
que também lhe cobravam. Esses pagamentos ficavam anotados: quinze francos,
doze francos, precedidos da letra P, de prostituta. Se Juliette perguntava, a
explicação era de que o P correspondia a "proscrito", explicação verossímil já
que Hugo financiava numerosos proscritos (ele também o fora) do Segundo
Império. O verossímil se fortalecia pelas palavras também cifradas que seguiam
o número, lembrança das fantasias, em geral fetichistas, que apimentavam a
sessão, por exemplo "t.n.", que significava toute nue, "nudez total", ou letras
em código que representavam "pezinho" ou "na frente e atrás" ou mil coisas mais
que hoje servem de quebra-cabeças para "hugólogos" (muitas ainda não foram
decifradas), e que deveriam intrigar Madame Drouett.
Vejamos os três lances da anotação. No centro está o número, "15
francos". não código, quinze francos são quinze francos, nem catorze nem
319
dezesseis (nessa ocasião). a leitora deve ler o que está escrito, para
manter em ordem a contabilidade. O "P" anterior, em contrapartida, apela ao
poeta tanto quanto à leitora, e na conjunção está a posteridade, que também
começa com P. A atividade sexual do velho poeta, por então prócer, fica
marcada com um P no calendário, por debaixo de sua generosidade com os
numerosos companheiros de exílio, generosidade comprovadamente documentada em
outros lugares, e, de certo modo, aqui também, mesmo no tênue verossímil
destinado a Juliette: se ela acreditava, se acreditava que o P correspondia a
"proscrito", e mesmo se não acreditava, era porque a ajuda aos proscritos
existia.
Quanto ao terceiro lance, o "pezinho" ou "toda nua", disfarçado num par
de letras herméticas, o diarista passa à linguagem privada, que ele
poderá decodificar, por exemplo, numa tarde de chuva que estimulasse a evocação
de lembranças nostálgicas; ou, com um fim mais prático, quando num apuro
revisasse o caderno antes de sair ao bordel para não repetir o "pezinho", ou
para repeti-lo. Mas como decodificar? A prudência exige que os códigos ou
equivalências não fiquem anotados em parte alguma, assim como no banco nos
recomendam não escrever a senha de nosso cartão do caixa eletrônico mas confiá-
la à pura memória imaterial. O decodificador deve voltar-se sobre si mesmo e
fechar o círculo do sujeito como indivíduo feito de passado e memória. A poesia
não funciona de um modo muito distinto, e a poesia de Victor Hugo pode
recorrer, sobretudo em suas peças proféticas (mas também nas políticas), à voz
de inspiração que entreabre as válvulas herméticas do sujeito para ditar os
códigos esquecidos: "O que disse a Boca de Sombra". Por intermédio da escritura
cifrada, a intimidade se torna literatura.
Como a literatura, a escritura cifrada é uma intensificação da linguagem.
Tanto uma quanto outra utilizam dos véus da intimidade para criar valor. Mas o
valor depende do interesse e, ao apontar nessa direção, o interesse pode vir
acompanhado do adjetivo "mórbido". Os estudiosos da literatura francesa que se
dedicam à decodificação das anotações crípticas do diário de Victor Hugo se
esquivam do adjetivo por muito pouco, mas têm sérias justificativas. Seu
principal argumento, claro, é o de que Victor Hugo é uma figura importante
demais na literatura e na história francesa para não se darem ao trabalho. O
conhecimento em detalhe de suas condutas privadíssimas na cama poderia dar uma
pista à leitura de seus poemas ou romances. Um argumento que não utilizariam,
mesmo se estivesse implícito, é o de que se não fizerem eles, outros o farão, e
me parece que isso serve para terminar de definir a intimidade: aquilo que se
passa com um e que interessa a muitos. Assim como na redação das memórias
uma construção mútua do particular e do geral, sob as figuras do público e do
privado, na leitura dos Diários essa construção se entre o interesse e a
intimidade.
Nesse caso, o interesse pode ser interesse em saber, ou interesse em que
não se saiba. A repartição dos sujeitos, utilizando por instrumento a escritura
cifrada, distribui ambos os interesses a um lado e outro do saber. Mas os dois
interesses são um e o mesmo; mesmo que sigam em direções opostas, não
terminam de se separar porque são o anverso e o reverso da mesma moeda com que
se compra o saber.
320
O CARRINHO
*
Um dos carrinhos de um grande supermercado do bairro onde eu morava
andava sozinho, sem que ninguém o empurrasse. Era um carrinho igual a todos os
outros: de arame espesso, com quatro rodinhas de silicone (as da frente um
pouco mais juntas que as de trás, o que dava sua forma característica) e um
cano coberto de plástico vermelho brilhante, pelo qual era manejado. Tão igual
aos demais que não se distinguiria por nada. Era um supermercado enorme, o
maior do bairro, também o mais concorrido, e assim tinha mais de duzentos
carrinhos. O que me refiro, porém, era o único que se movia por si mesmo. Fazia
isso com infinita discrição: na vertigem que dominava o estabelecimento, do
momento que abria até fechar, e não falemos dos horários de pico, seu movimento
passava despercebido. Era utilizado como todos os demais, carregavam-no de
comida, bebidas e artigos de limpeza, descarregavam no caixa, empurravam
depressa de gôndola em gôndola, e se em algum momento o soltavam, vendo-o se
deslizar um milímetro ou dois, acreditavam ser por inércia. à noite, na
calma tão avessa a esse lugar atarefadíssimo, era perceptível o prodígio, mas
não havia ninguém para admirá-lo. Apenas se de vez em quando algum
repositor, desses que iniciam seu trabalho ao amanhecer, surpreendia-se em
encontrá-lo perdido no fundo, junto ao congelador, ou entre as escuras
estantes de vinhos. Supunha, naturalmente, que o haviam esquecido ali na noite
anterior. O supermercado era tão grande e labiríntico que não havia nada de
mais nesse esquecimento. Se nessa ocasião, ao encontrá-lo, vissem-no avançar,
se é que notavam esse avanço, tão pouco perceptível como o ponteiro dos minutos
de um relógio, explicavam o fato pensando num desnível do piso ou numa corrente
de ar.
Na realidade, o carrinho passara a noite dando voltas pelos corredores,
entre as gôndolas, lento e silencioso como um astro, sem nunca tropeçar ou
parar. Percorria seu domínio, misterioso, inexplicável, sua essência milagrosa
dissimulada na trivialidade de um carrinho de supermercado como outro qualquer.
Tanto os funcionários como os clientes estavam ocupados demais para
apreciar esse fenômeno secreto, que no geral não afetava nada nem ninguém. Fui
o único a descobri-lo, acredito. Ou melhor, tenho certeza: a atenção é um bem
escasso entre os humanos, e nesse assunto era preciso muita. Não contei a
ninguém, pois se parecia muito com uma dessas fantasias que costumam me
acontecer e que me deram fama de louco. De tantos anos fazendo compras nesse
lugar aprendi a reconhecê-lo, meu carrinho, por uma pequena marca que possuía
na alavanca, com a ressalva de que não precisava procurá-la, de longe
algo me dizia ser ele. Um sopro de alegria e confiança corria em mim ao
identificá-lo. Considerava-o uma espécie de amigo, um objeto-amigo, talvez
porque a natureza inerte da coisa carrinho tivesse incorporado esse abalo
mínimo de vida a partir do qual todas as fantasias se tornavam possíveis.
Talvez, em algum canto de meu subconsciente, estivesse agradecido por sua
diferença com todos os demais carrinhos do mundo civilizado, e por tê-la
revelado a mim e a mais ninguém. Gostava de imaginá-lo na solidão e no silêncio
da meia-noite, rodando devagar na penumbra, como um pequeno barco esburacado
que partia em busca de aventuras, de conhecimento, de amor (por que não?). Mas
o que poderia encontrar nessa paisagem banal, que era todo o seu mundo, de
laticínios, verduras, massas, refrigerantes e latas de ervilha? E ainda assim
não perdia a esperança, retomava suas navegações, ou, melhor dizendo, não as
interrompia nunca, como aquele que sabe que tudo é vão e ainda assim insiste.
Insiste porque confia na transformação da vulgaridade cotidiana em sonho e
prodígio. Acho que me identificava com ele, por fim, e que essa identificação o
fizera visível. É paradoxal, mas eu, que me sinto tão longe e distinto de meus
colegas escritores, me sentia próximo de um carrinho de supermercado. Até
nossas respectivas técnicas se pareciam: o avanço imperceptível que leva longe,
*
"El carrito" CanecalónLa Revista de Comunicación de Peluca Films n. 1, 2005.
321
a restrição a um horizonte limitado, a temática urbana. Ele, no entanto, fazia
melhor: era mais reservado, mais radical, mais desinteressado.
Com esses antecedentes, poder-se-á imaginar minha surpresa quando o ouvi
falar, ou, para ser mais preciso, quando ouvi o que disse. Teria esperado
qualquer coisa que não sua declaração. Suas palavras me atravessaram como uma
lança de gelo, fazendo-me reconsiderar toda a situação, começando pela simpatia
que me unia ao carrinho, até a simpatia que me unia a mim mesmo ou, de modo
geral, a simpatia pelo milagre. O fato de falar, em si, não me surpreendeu,
porque esperava isso. De repente senti que nossa relação tinha amadurecido
até o nível do signo lingüístico. Soube que havia chegado o momento de me dizer
algo (por exemplo, que me admirava, me queria bem, que estava do meu lado) e me
inclinei, simulando amarrar o cadarço do sapato, de modo a colocar a orelha
contra a grade arame traseira, podendo então ouvir sua voz, num sussurro que
vinha do outro lado do mundo e que ainda assim soava perfeitamente claro e
articulado:
— Eu sou o Mal.
17 de março de 2004
322
PEQUENOS DELITOS, GRANDES OBRAS
*
Em visita recente ao Chile contaram-me de um caso que por esses dias, e
por falta de notícias mais importantes, mantinha em suspenso a opinião pública
do país: um grupo de jovens chilenos, em viagem às ruínas incas do Peru, tinha
manchado com inscrições as veneráveis pedras do Cusco, com tanta imprudência
que os pegaram. Foram presos, saíram a reluzir leis sobre a preservação do
patrimônio cultural e plantou-se a ameaça de anos de presídio. O incidente
agitou ancestrais ressentimentos entre chilenos e peruanos, a televisão
explorou a angústia dos pais desses meninos malcriados, chegando-se ao ponto em
que tiveram de intercambiar mensagens de pacificação os presidentes dos dois
países.
Lembrei de um caso semelhante de vandalismo, acontecido em épocas em que
se cuidava muito menos dos monumentos históricos. Arthur Rimbaud, quando
estava vivendo na Abissínia, fez durante algumas férias uma excursão pelo Nilo,
e num templo de Luxor, no santuário de Ammón, talhou seu sobrenome no sílex.
Não houve acidente diplomático em seu caso, ainda que estivesse justificado; ao
que parece, todos os turistas faziam coisas parecidas, ou piores. Esta "firma"
do poeta, seu "ultimo hieróglifo", foi descoberta por Jean Cocteau em 1949, e
deu lugar a muitas especulações, mas a erudição rimbaudiana decidiu que era
autêntica. Desde então peregrinos que vão a Luxor menos interessados em
Akhenatones ou Nerfetitis que nesse gesto destrutivo de um jovem malcriado que
fez do gesto destrutivo o mito fundacional da poesia moderna. O que demonstra
que o vandalismo pode também se tornar momento. É certo que neste caso, para
operar a transformação, foram necessários a Temporada no inferno, o "Barco
ébrio" e a lenda da vida-obra do maior dos poetas. Chile é um país de poetas,
mas talvez se tenha de estender a corda do otimismo para imaginar que chegará o
dia em que esses graffiti do Cusco se tornem uma meca de peregrinação para
amantes da literatura.
Como a memória de um leitor está cheia de escritores, esta "transmutação
dos valores" me fez lembrar outra. Em certa ocasião, o jovem Marcel Proust se
encontrava na casa da condessa de Noialles, e num descuido, apoiando o cotovelo
no suporte da chaminé, lançou ao chão uma estatueta de Tanagra, que, lógico,
quebrou. Quebrar uma rara e valiosa cerâmica de dois ou três mil anos é um
acidente penosamente irreversível e tem de provocar um remorso pelo menos tão
durável quanto o rancor do proprietário lesado. Deve ter sido especialmente
embaraçoso para o jovem Proust, fundamentalista do esnobismo. O som da
estatueta ao quebrar contra o piso, deve tê-lo sentido como uma mancha
indelével em seu histórico mundano. Enfim, a coisa não tinha remédio. Talvez
sequer os bons modos que se podem pressupor num salão da aristocracia
conseguiram amenizar o golpe.
E no entanto... Cem anos depois, fez-se num museu uma exposição da
coleção de Tanagras da condessa de Noailles, e dentre elas figurava uma
quebrada e colada. Um cartãozinho indicava ser a que Proust havia quebrado. O
público, ou certa parte letrada do público, detinha-se emocionada a contemplá-
la, se não tivesse ido à exposição para vê-la. Aposto que se tivessem
saído a leilão, o preço da quebrada teria sido o duplo, senão o triplo das
inteiras. Nenhum proustiano desconhece a história, e a vida-obra do Mestre tem
status lendário suficiente para fazer dessa figurinha remendada o monumento de
um instante.
Embora este caso seja semelhante em seus efeitos ao anterior, seu
funcionamento é distinto. A obra de Rimbaud estava escrita quando visitou
Luxor, e a transmutação foi levada a cabo não sobre as iniciais talhadas,
mas também sobre coisas e fatos ainda mais significantes, mais sórdidos e
banais: seus deslocamentos de comerciante e agente-viajante, as cartas de
negócios e até a amputação da perna. A obra de Proust, em contrapartida, estava
*
"Pequeños delitos, grandes obras" Babelia, suplemento de El País. Madrid, 12 mar. 2005.
323
por ser escrita quando quebrou a estatueta. E, por mais improvável que seja,
nos atrai a dúvida de se não terá escrito essa obra para justificar
retrospectivamente o acidente. Ninguém sabia melhor que Proust que o pequeno
pode fazer-se grande, o ínfimo, imenso, por ação da memória e da poesia do
tempo. Parece exagerado, concordo. Escrever o maior romance, o mais ambicioso,
morrer escrevendo-o (porque não terminou, que logicamente não cabia numa
vida), apenas para r de costas o instante em que se quebrava um frágil
adorno. Não seria tão absurdo se pensamos que depois de tudo Proust fez
realmente se desprender a vastidão inumerável do mundo pelo sabor de uma
madeleine molhada no chá
...
Mas é absurdo, claro. E no entanto... não será sempre assim? Não se farão
grandes obras para pagar pequenas dívidas? outro modo de pagá-las, se não
podemos voltar atrás no tempo e corrigir o momento em que as contraímos? E,
visto pelo outro lado, não encontro melhor destino à obra de arte que não lavar
a culpa e a vergonha dos pequenos acidentes e baixezas, dos quais está tecida a
vida. Isso explicaria o fato tão intrigante, desde sempre, de que o homem se
faça artista, acabe renunciando à vida, e se feche a trabalhar até morrer.
324
VERNE E O LEITOR
*
Como pode um comerciante das letras ter se transformado num clássico, e
que se celebrem seus centenários e proliferem as biografias, estudos, que se
publiquem até seus cadernos de rascunho? Sua literatura é tão acolhedora assim?
Tão indiferente aos méritos? Ninguém se faz essas perguntas, e todos respondem-
nas com uma cita pressuposição de antigüidade, de primitivismo, que fazem de
Verne no inconsciente coletivo um escritor auroral, uma espécie de Homero do
romance. As datas no entanto colocam-no não entre os primeiros, mas entre os
últimos e definitivos romancistas. O ano em que saía à venda Vinte mil léguas
submarinas era o ano da publicação de A educação sentimental e Guerra e paz. E
sua obra, graças ao trabalho póstumo de seu filho, se estendeu até a época de
Proust e Kafka.
Ou se terá de concluir que a literatura é traída sistematicamente por sua
história? As datas no caso de Julio Verne são um detalhe marginal. Seus
romances chegaram a funcionar como formações naturais, como montanhas, mares e
bosques da literatura, paisagens que não estão na história mas na história
vital de cada leitor. Diria-se que Verne é um fenômeno da recepção ou, em
termos menos acadêmicos, da leitura. Fez sua aprendizagem no teatro (escreveu e
estreiou uma dezena de obras antes de começar com os romances), que era
recepção pura e imediata. Ao passar ao romance, e para recuperar a imediatez da
resposta, Verne recorreu ao anacronismo biográfico do leitor.
Com freqüência, para não dizer quase sempre, a leitura de seus livros é
difícil de suportar. É preciso saltar páginas, capítulos inteiros, fatigantes
recheios de descrições topográficas ou turísticas, enjoativas cenas familiares,
explicações desnecessárias, desmedidas preparações do previsível... Não
obstante, esses saltos têm certo encanto nostálgico porque enquanto salta, o
leitor está pensando: "Tudo isso eu lia linha por linha, religiosamente, quando
era pequeno, e acreditava em tudo". O que acreditava, segundo a conjetura
autobiográfica, é que estava diante da literatura; e nunca terminará de se
convencer de que era um erro, porque es convencido de antemão de que com
Verne adquiriu o hábito da leitura, que o levou a livros bons de verdade. Todos
necessitamos de uma história, e o começo de uma história não pode ser menos
verdadeiro que seu desenlace.
[...]
**
porque o muitos leitores sérios que leiam Julio Verne. Em
geral, a Verne não se lê, se leu. A lembrança, que também costuma ser uma
lembrança virtual, simplifica a torpe confusão, ficando-se com a fórmula da
aventura.
A fórmula que cunha o esquecimento do leitor é mais ou menos a mesma com
que começou o autor. De uma a outra se elimina piedosamente o trabalhoso
desenvolvimento romanesco, ou seja, a escritura, com o que Verne fica inteiro
no campo da leitura.
Na realidade, ninguém disse que os livros de Julio Verne pretendiam ser
romances. São mais roteiros para fantasias infantis, fórmulas de sonhos.
uma economia que podemos admirar, e nos perguntamos se não teremos errado o
caminho em algum ponto. Em 1869, quando se publicavam A educação sentimental e
Guerra e paz, terminava uma década que Flaubert e Tolstói tinham dedicado
inteiramente a escrever seus respectivos romances, e no mesmo lapso Verne tinha
escrito e publicado quinze, dentre eles vários de seus mais famosos. A
leviandade veloz e eficaz da fórmula alça-se com um sorriso de triunfo diante
do esforço sobrehumano com o qual acabou se identificando a literatura.
Há, claro, um argumento contundente: foram dirigidas a públicos
diferentes. Os de Verne estavam explicitamente dirigidos juventude". Mas o
é tão certo que crianças ou adolescentes tenham gozado ou sonhado tanto com
*
"Verne y el lector" Babelia, suplemento de El País. Madrid, 19 mar. 2005.
**
Suprimido.
325
seus livros. Nesse ponto, é preciso acreditar nos testemunhos dos leitores
adultos, em suas lembranças; e nunca estaria tão justificado como aqui o dogma
freudiano de que toda lembrança é dissimuladora. O único comprovável é o fato
de que os leitores necessitam um mito de origem para sua paixão de leitores. Ao
longo de todo o século XX, esse mito teve em Julio Verne sua figura mais
concorrida.
[...]
***
muitos motivos para se ocupar de Verne a despeito da qualidade.
São dados pela oportunidade de escrever de um modo inventivo e poético, como
seria perigoso fazê-lo sobre um bom escritor. É que com Verne não um texto
que possa desmenti-los, rmulas, células ticas a partir das quais a
pluma pode ir rápido e longe.
Outro motivo de atração para críticos é seu caráter sintomático, sua
ingenuidade para consigo mesmo. O burguês europeu da expansão colonialista, a
que Verne representa com a fidelidade de um exemplo manual, teve segurança na
solidez universal de seu pensamento e ação como ninguém teve depois.
Essa segurança teve como pilar a ciência, a que Verne recorreu como
armazém temático e também como ideologia de um positivismo otimista que apelava
ao progresso e à história. Mas fiel ao anacronsimo que a constitui, a ciência
verniana é doméstica, recreativa, adânica, eternamente primitiva. Os veículos,
personagens, invenções e utopias que povoam seus romances expressam a convicção
de que a ciência de sua época realizou o futuro, e de que a civilização chegou
a um grau de perfeição insuperável. A ciência se tornou em seus livros a
ciência da literatura. Era o presente, e permancece sendo no mito pessoal do
leitor.
***
Suprimido.
326
PROVEMOS COM VENENO
*
Nus est un autre, o livro de Michel Lafon e Benoît Peeters sobre
"inquisições sobre duetos de escritores" que acaba de aparecer na França
(Flammarion), é um acontecimento de primeira ordem no mundo dos estudos
literários, além de ser uma leitura deliciosa e absorvente. Ocupa-se da
escritura em colaboração, e é a primeira vez que o tema é encarnado
sistematicamente e por extenso. Os autores observam isso na primeira página:
"Um estranho tabu percorre a história da literatura: a escritura em
colaboração. Embora as escolas, as influências e as correntes tenham mantido
muito ocupados professores, críticos e biógrafos, persiste a idéia de que uma
obra digna de consideração deve emanar de uma só pessoa. O autor único continua
sendo parte do dogma. Os duetos literários são ignorados ou desdenhados". É
certo, e devemos nos felicitar de que se abra por fim um campo de investigação
de enorme riqueza.
Não se trata de um livro teórico, mas de uma coleção de histórias. Cada
um de seus 17 capítulos examina um desses "casais ímpares", que nem sempre são
de dois. Vão desde os irmãos Goncourt até Deleuze e Guattari, passando por
Flaubert/Maxime Du Camp, Willy/Colette, Erckmann/Chatrian, Marx/Engels,
Borges/Bioy, Boileau/Narcejac, dentre outros. conglomerados mais complexos,
como o de Alexandre Dumas e seus negros, Freud e seus discípulos, Romain Gary e
ele mesmo; também incursões fora da literatura: Carné e Prévert no cinema,
Hergé e Jacob no comic, ambos os casos apenas testemunhos de gêneros onde a
colaboração é a norma, o a exceção. Digressões e notas abrem perspectivas
para muitos outros autores, de todas as línguas e todas as épocas, que acabam
nos convencendo de que a "escritura por várias mãos" é um fenômeno mais extenso
do que acreditávamos.
Todas as histórias são distintas. Não regras fixas neste raro negócio.
Quase todas terminam mal, quando a morte de um dos sócios o a interrompe. A
de Borges e Bioy Casares é uma exceção, mas porque um era muito rico e o
outro muito cortês para encontrar motivos de discórdia. Tampouco se desmentiu a
amizade de Marx e Engels, ainda que o papel de Engels tenha sido mais de
procurador que colaborador. Este casal, por outro lado, mostra uma das curiosas
simetrias nas quais abundam a marca: Engels, rico, estava a par das realidades
da vida proletária e orientava Marx, quem, pobríssimo, vivia no mundo da teoria
e dos livros.
O leitor que sustentar a desconfiança de que os escritores não são gente
completamente normal encontrará aqui um catálogo de patologias que a escritura
solitária dissimula, e que a colaboração traz à luz de maneira clamorosa. Mas
uma ligeira mudança de ótica mostra que o que sai à luz é o mais humano da
condição humana: vaidade, cobiça, cálculo, manipulação...
[...]
**
como qualquer filho de vizinho, não importa que sejam gênios. E
junto com o mau, é claro, se revela o bom, porque no fundo, e apesar dos finais
turbulentos, sempre são histórias de amizade.
Quase todos os leitores somos ávidos por informação sobre a vida dos
escritores. Ao ler este livro, senti um interesse que ia muito além do que
sinto habitualmente pelo material biográfico. E me pergunto se a chave da
colaboração literária não estará precisamente aí. Os escritores fazem
sociedades para dar mais interesse às suas biografias, para enriquecê-las com
outros personagens e aventuras, para complicá-las com manobras secretas (ou
públicas), com intrigas e acidentes que não faltarão, uma vez tenham saído da
solidão de seus escritórios. Parece como se quisessem se adiantar aos seus
biógrafos e começar desde já a envolver seus livros com experiências vitais.
*
"Probemos con veneno" Babelia, suplemento de El País. Madrid, 8 abr. 2006.
**
Suprimido.
327
algo assim como uma inversão: quando alguém sobre a vida de um
escritor, encontra (ou apenas busca) complexidades psicológicas, sexo, amores,
hábitos, traumas, e como de tudo isso sai a literatura. Quando sobre a
vida de dois escritores associados, encontra literatura, e dela sai a
psicologia, o sexo, os amores, os hábitos e todo o resto.
É que o dueto põe em primeiro plano o processo de trabalho, a mecânica da
criação. Para isso foi formado. O estudo da escritura em colaboração oferece,
então, as vantagens de um laboratório (o "colaboratório") onde se explica o que
na escritura solitária fica oculto e muitas vezes inconsciente. Os duetos de
escritores incorporam o leitor, pois a razão de ser de sua conformação é a
escritura e leitura mútua, e fecham o círculo da produção literária. Mas ao
mesmo tempo, paradoxalmente, o abrem: os escritores se associam sempre em vista
de um público, das vendas, da indústria editorial. (Como não regras fixas,
aqui também exceções: os experimentos surrealistas do "cadáver esquisito" e
da escritura automática). Daí pode provir, e se justificar até certo ponto, o
desdém da crítica pela escritura em colaboração: esta nunca aponta à criação de
novos paradigmas de qualidade; remete-se sempre aos estabelecidos. Por isso
pratica majoritariamente a literatura de gênero ou o humor, e quanto mais
codificado está um gênero, mais duetos se encontrarão nele, como é o caso do
romance policial.
O casal que ilustra os muitos duetos dedicados ao romance policial é
Boileau/Narcejac. Boileau vivia em Paris, era ele quem idealizava as tramas;
Narcejac, num povoado da Bretanha, redigia. Comunicavam-se por carta, mas por
vezes era urgente resolver um episódio e, como as comunicações telefônicas de
longa distância na década de quarenta eram difíceis e incômodas, recorriam ao
telégrafo. Em certa ocasião, Narcejac descobriu no curso da escritura que o
barulho que faria uma arma de fogo complicava o argumento; de Paris, seu sócio
respondeu, esquecendo-se de que o telegrama é um documento semipúblico:
"Descartemos o revólver. Provemos com veneno". Uma hora depois, a polícia tinha
cercado sua casa.
328
EXPERIÊNCIA VITAL
*
De acordo com a lei dos rendimentos decrescentes, aquele que inventa um
gênero literário explora todos os seus benefícios, deixando apenas restos
marginais e redundantes aos futuros cultivadores do formato. Mas seria
arriscado, claro, postular um único inventor para qualquer gênero literário. O
único que me ocorre é Montaigne, mas a esse exemplo inexemplar e sem comparação
a lei dos rendimentos decrescentes não se aplica.
Porque o ensaio, tal como Montaigne o inventou, cobre um campo virgem
para cada novo escritor que o percorra, que esse campo será ele mesmo, sua
própria história, suas leituras, suas idéias. Ainda assim, permanece sendo um
gênero literário, tão venerável e reconhecível como outro qualquer. Sobre as
ruínas dos caóticos centões, pelos quais se sucediam sem ordem a crônica de uma
guerra, a fisiologia de uma baleia, os compartimentos do Purgatório e os
perigos da navegação, Montaigne edificou uma sutil construção, em que a unidade
estava assegurada, paradoxalmente, pela mesma diversidade que alentava os
recompiladores medievais. O homem está feito de tudo aquilo que lhe aconteceu,
leu e pensou, seja relevante ou não; o ensaio atendeu pontualmente à citação
para registrar essa conjunção irrepetível, e por irrepetível, preciosa e digna
de se preservar com o que, fechando o círculo, justifica-se o trabalho de se
escrever ensaios.
Nesta antropologia do indivíduo está o encanto do livro de Pedro
Gandolfo. Na surpresa repetida de que o Senhor-Todo-Mundo seja um só, e que o
mundo todo tenha posto algo para fazê-lo. O auto-retrato de todos vale por ser
único. Outra vez pontual, o ensaio volta a ser inventado, agora como épica
chilena do habitual, redescoberto e escrito. A experiência vital do leitor, a
que se faz uma constante apelação, conflui com o trabalho da escritura,
trabalho imperceptível por sua naturalidade, oculto na modéstia de suas razões
compartilhadas. É com modéstia que o autor me descreve seus ensaios "São
apenas um catálogo de opiniões recebidas" —, desmentida pela sinuosa precisão
com que se revela sua perspicácia, sua inteligência. Mas por acaso idéias
que não tenham sido recebidas, de um jeito ou outro? O que não se poderia
receber é o conjunto de todas elas, o quadro completo, que é completo porque se
dispersa nas mil inconclusões de um pensamento dotado de curiosidade e
sensibilidade.
O paradoxo do um que é todos, porque continua sendo um, se repete ao
longo do livro, em suaves metamorfoses. Anoto uma, que volta a estar no
centro. Gandolfo confessa-se distraído, e como não tem motivos para mentir,
devemos acreditar. Apesar disso, ou por isso mesmo, seu livro é um tratado da
atenção. Nesse ponto recorre a Montaigne, que defendeu o distraído como o único
em condições de atender à protéica multiplicidade do único. "Deus nos deu a
atenção, e a atenção tudo pode", disse Leibnitz, delegando-nos, com essa
perversa cortesia dos filósofos, a tarefa de interpretá-lo. O único que pode
tudo é Deus, ao menos enquanto construção intelectual. O escritor imita-o com
modéstia e um sorriso de desculpa. Seu todo é menor, mas continua sendo todo.
Talvez Leibnitz tenha querido dizer que Deus e o Todo, existam ou não,
são um expediente inútil para fundamentar nossa atenção, aprender as lições e
escrever nossos ensaios.
*
"Experiencia vital" El Mercurio, Santiago, Chile, 12 maio 2006. Prefácio a GANDOLFO, Pedro
Artes menores. Santiago, Chile: El Mercurio-Aguilar, 2006.
329
IMAGENS
330
Festa Literária Internacional de Parati, RJ, 2007.
(foto: Walter Craveiro)
331
Secretaria de Cultura do Estado do Paraná, Curitiba,
Auditório Brasílio Itiberê, 25 de maio de 2007.
(fotos 1 e 2: Tita Blister; foto 3: Adriana de Assis)
332
Livraria Arte & Letra, Curitiba, 24 maio 2007.
333
por Loredano, s.d.
334
César Aira Sem título, Exposição Ouro Sentimental, Museu de Niterói, 2007.
3
35
APÊNDICE
336
A ÉTICA DO ABANDONO. CÉSAR AIRA E A NOVA ESCRITURA
Eduard Marquardt
Defesa de Doutoramento, Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de
Comunicação e Expressão, Prédio B, Sala Drummond, 6 de junho de 2008, 9h.
Bom dia. Gostaria, antes de qualquer coisa, agradecer aos Srs. Professores
terem aceito o convite, dedicando parte de seu tempo para analisar este
trabalho. Profª. Sandra Contreras, cuja presença me deixa especialmente
honrado, Prof. Nelson Schapochnik, Profª. Alai Garcia Diniz, Prof. Sérgio
Medeiros, Prof. João Hernesto Weber; Profª. Ana Luiza, minha orientadora, no
período final desta empreitada, e Profª. Tânia Ramos, coordenadora deste
Programa de Pós-Graduação. Muito obrigado a todos. Tentarei ser breve, e, de
início, gostaria, com a licença dos Srs., relatar o desejo do qual, imagino,
este trabalho partiu.
A origem desta investigação es marcada pelo abandono de outra. De 1996 a
2003, frequentei o Núcleo de Estudos Literários e Culturais, desta
Universidade, onde tentei aprender o ofício de pesquisador. Sob a orientação da
Profª. Maria Lucia de Barros Camargo, redigi minha dissertação de Mestrado, em
que me dedico ao estudo da seção Tendências e Cultura, do jornal carioca
Opinião. Findado este trabalho, em março de 2003, apresentei a este programa um
projeto de doutoramento que pretendia estudar a passagem da equipe deste jornal
a outra publicação, Beijo, em função da série de embates com a censura. Mantive
este projeto até dezembro de 2005, período em que cursei as disciplinas do
programa, e no qual também traduzi um livro, da Profª. Graciela Montaldo,
intitulado A propriedade da cultura. Neste livro um ensaio, "Um caso para o
esquecimento: estéticas bizarras na Argentina (livros, indústrias culturais e
ficções)", em que a crítica se dedica ao estudo de um observador da vida
contemporânea: César Aira. Este foi meu primeiro contato com o objeto da
presente investigação. Devo dizer que neste período que antecede a mudança de
projeto, persistia em mim um grande desejo de mudança, não de bibliografia,
mas mudança de espaço-tempo. O trabalho com os jornais Opinião e Beijo estava
circunscrito na década de 70; mais exatamente, Opinião terminava no ano em que
eu nascia, 1977, e se tratava de um período difícil de ser revisitado porque,
criado nas décadas de 80 e 90, o que eu experimentara da década de 70 na
verdade não era mais que alguns discos, nem Stones nem Zeppelin, mas Killing
Joke, The Clash ou The Damned. Minha experiência era essa e, de resto, podia
apenas revisitar bibliografia, cuja marca, muitas vezes, era o tom de
depoimento dos anos de chumbo. Da bibliografia escolar de segundo grau pouco
trazia, porque até muito recentemente o estudo fundamental de literatura no
Brasil pautava-se pelos estilos de época, e quando se chegava a 1922, na Semana
de Arte Moderna, ou a 1945, quando se utilizava o termo s-modernismo, de um
modo, talvez, que sequer fosse moderno, era hora de se dedicar aos livros
indicados para o vestibular. O desejo de mudança de projeto a que me refiro,
portanto, era o desejo de tocar estéticas da década de 80, relegadas por sua
condição alternativa, e que também não adentravam o grande mercado aberto nessa
década. Cheguei a fazer isso, timidamente, num breve texto, "Poesia em tilt",
apresentado em colóquio promovido pelo NELIC, em 2001, quando analisava letras
de canções de grupos como Varsóvia, Akira S & As Garotas que Erraram, Finis
Africæ, dentre outros. Enfim. Gostaria com isso de apenas dizer que meu desejo
pelo estudo da literatura vem da música, e do contato com dois livros
esquecidos, Fliperama sem creme, de Teixeira Coelho, e O movimento punk na
cidade, de Janice Caiafa, que encontrei, no fim dos anos 80, na estante de
meu irmão punk. É a partir deste lugar da infância que leio um romance como A
prova, de César Aira.
O livro narra um acontecimento na vida de Mao e Lenin, duas meninas que, na
rua, com motivos passionais, abordam Marcia, uma atendente de loja de
armarinhos, e que culminará na destruição de um supermercado. Antes disso,
porém, sentadas numa lanchonete de franchising, o Pumper Nic, espécie de
MacDonalds portenho, Marcia, a partir do clichê, julga ambas serem punks.
"Vocês não gostam de The Cure?"
"O que é isso?"
337
"A banda inglesa, os músicos. Eu gosto. Robert Smith é um gênio."
"Nunca ouvi."
esse cretino que pinta os lábios e enche a cara de de arroz. Vi na
capa de uma revista."
"Que pelotudo."
"Mas é teatral, é... a provocação, nada além. Não acho que pinte a cara
porque goste. O look é parte da filosofia que ele representa..."
"Pelotudo do mesmo jeito."
"Preferem o heavy metal?"
"Não preferimos nada, Marcia."
Este é um dos elementos que também compõem a narrativa de César Aira:
documentação. Naquele momento, 1989, é a data firmada ao final da narrativa, o
punk, de fato, tinha morrido, sobrando apenas o niilismo do nada querer, de
que trata Alain Badiou, em Ética: um ensaio sobre a consciência do Mal.
A tese que ora se apresenta foi escrita sob o postulado de que toda máquina é
máquina de máquina. A idéia está em um livro de Deleuze e Guattari, O anti-
Édipo, cuja leitura permanece sempre incompleta um desafio. Mas permanece
incompleta porque a escritura assim deseja; porque escritura e leitura demandam
um ultrapassamento cujo caminho prevê sua própria diluição; porque sua condição
de verdade é a condição da própria verdade: não poder se revelar, seguir
adiante, primar pelo que ainda não foi possível e, numa palavra, "Continuar!",
simplesmente, tal como figura a máxima da ética perseverante, a ética das
verdades, de que trata o mesmo Badiou. A verdade persevera, porque o que dela
se mostra, o resultado, é sempre outra coisa que não ela mesma: é um indício,
um momento.
Dividida em capítulos, a tese possui três ou quatro movimentos. O primeiro
deles tenta esboçar uma imagem da figura de César Aira: uma nota mais
bibliográfica que biográfica, talvez por ser quase impossível montar sua figura
desvinculando-a da literatura. Articulador de uma escritura ambivalente (ao
mesmo tempo frívola e de uma seriedade que queima), Aira desdobra-se em
novelista, romancista, tradutor, conferencista e até mesmo artista plástico,
como atesta a exposição Belleza y Felicidad, apresentada em Niterói, em 2007.
Sua escritura, no entanto, não guarda quaisquer vínculos institucionais;
prescinde, aliás, de qualquer institucionalização prévia, seja do mercado, seja
da academia, embora atue em ambos os ambientes.
Aira escreve caso tudo se perca; escreve para dar testemunho (ainda que se
trate de um ato involuntário: o é um testemunho para a História, mas a
História se constrói, posteriormente, também a partir desse testemunho). E a
pulsão desta escritura não é nada mais, nada menos, que a confecção de um
intenso e verossímil realismo. Porque a verdade deste realismo é sua condição
mutante: nunca se saberá do que o realismo será capaz, pois o contínuo do
pensamento, de acidente em acidente, remete-o para frente, inexoravelmente. O
texto é a interrupção, mas também é máquina que movimenta a linguagem.
Na sequência, tento seguir o argumento de Graciela Montaldo, discutindo de que
modo a máquina Borges atua como uma espécie de sombra na literatura argentina
que lhe é posterior. A questão aqui seria "Como escrever depois de Borges?" e,
para isso, tento, por um esforço de contigüidade hipotética, pensar as posturas
de Ricardo Piglia e Juan José Saer diante do famoso ensaio, "O escritor
argentino e a tradição". Tento perceber no que delas difere a posição de Aira.
Piglia tenta se desvencilhar de Borges via Roberto Arlt; sua resposta à
pergunta "como escapar do nacionalismo sem ser nacional" seria esta: via
falsificação. Saer, por sua vez, trabalha com a alegoria, expõe "a outra face
do real", revelando uma história não contada, ou, por outro viés, mostra como o
real não é mais que irrealidade negada, como diria Blanchot. No que diz
respeito a César Aira, o que nele persiste de Borges talvez seja a descrição
dos movimentos do acaso, o ensaísmo, a marca de uma escritura híbrida. Quanto à
questão do ensaio de Borges, Aira simplesmente diz "O artista é artista da
transmutação dos valores. E se ele prefere ser inautêntico?" A habilidade do
artista não reside na confecção de um produto com a marca nação, mas no modo
como lida com o acaso: se o mundo necessita de uma forma nacional para ser
338
inteligível historicamente, o que se tem não é nada menos, nada mais, que
linguagem. E propagar essa linguagem, simplesmente, constitui, em si, a
nação.
Renunciar a essa tarefa hipotética, construir a nação, é o primeiro abandono do
escritor: partir sem metas. Porque permanecer na esfera deste compromisso é
reincidir no velho, no esperado, nas misérias do tempo, na cegueira do hábito,
nas promessas melancólicas da decadência. A Aira parece não interessar a
suspeita do real. Porque o real não se constata nunca, o real se fabrica, por
meio de uma ficção.
Onde terminam as metas, os projetos, começa a literatura. Mas arbitrar esse
movimento não é possível; é possível demonstrá-lo, como fez Lucio Fontana, mas
não mostrá-lo, revelá-lo de uma vez por todas. Sob esse viés, sempre que se
busca o sentido, a explicatio, o que se tem é teoria, história, sociologia, mas
não literatura, porque se trata de um esforço que tenta absorver o
acontecimento na ordem da situação, e a literatura, sabemos, permanece como o
elemento (se é que podemos chamar assim) irredutível e incompreensível, para
usar deste outro termo de Aira.
Permitir deixar-se atravessar por um acontecimento, portanto, implica no
abandono. Não como uma opção destrutiva, mas como possibilidade do porvir. E
nesse gesto, curiosamente, não transgressão alguma, pois não resta lei
que identifique essa transgressão. Trata-se do seu avatar seguinte: não
permanência no mundo abandonado, mas a fabricação de novas verdades, pelas
quais nada resta do sistema anterior. É remeter-se para frente, a um lugar
inexistente, um neutro talvez: um fora que não o fora-da-lei. Um fora que se
dilui, porque nele nada há além de superfície: é o Aberto, o livre-do-ser.
Por essa abertura se esvai toda representação, pois não resta objeto em
anterioridade ao procedimento; e caso esse objeto exista, seu nome seria Tudo.
O mais curioso é que este gesto de abandono não implica no fim da
representação; é através dele que esta ganhará potência. E nisso, o realismo se
refaz: ele demanda todas as ficções possíveis, demanda que, após o acidente, se
enlace novamente a melancolia do contínuo que nada tem a ver com
continuidade. (A continuidade seria a repetição do mesmo, a elaboração, em
certo momento do tempo, de uma doutrina, algo que concede a uma verdade
potência total, que derrete e petrifica essa verdade, e que daí por diante
deverá ser repassada às gerações na forma de um saber inconteste.)
Nesse sentido, a obra de César Aira nunca termina. Seu trabalho é o processo de
continuar escrevendo, e revelando as páginas de um diário sempre incompleto.
Sua escritura é uma instalação, uma máquina propulsora de outras máquinas, de
séries, cujo procedimento é a tradução. Esse procedimento, sabemos, não
garante a permanência do objeto anterior em um novo sistema; resta apenas o
nome, porque o processo reinventa objeto, tal como Mil gotas, uma assemblage,
reinventa o Grande vidro, bem como os trabalhos de Víctor Grippo, e mesmo, Os
sete loucos. O que se tem aí é a propulsão de singularidades, de novos mundos.
Dentre os mecanismos que conectam tais singularidades a um mesmo exercício de
pensamento, a uma mesma vontade (isso a que Deleuze e Guattari localizaram na
narrativa de Kafka como termos notáveis que aumentam as conexões do desejo no
campo de imanência), está a prosopopéia, cuja teoria César Aira formaliza em
1994, mas que é possível reconhecer em sua escritura desde muito antes, e que
continua vigente nos textos mais recentes. Pela prosopopéia se concede discurso
àquilo que se julgaria nunca poder falar; através dela a vida se instala onde
antes havia inércia. Através dela se vida tanto às ovelhas do pampa
quanto ao carrinho de supermercado; tanto à Pobreza, interlocutora do escritor
num dos seus solilóquios, quanto à lia, a árvore-monstro que habita sua
infância. Através da prosopopéia o Bairro Flores fala, suas personagens
cotidianas, desde os entregadores de pizza, os mendigos, os meninos da academia
de ginástica, até as meninas darks do Pumper Nic; desde as personagens dos
ensaios, Copi, Edward Lear, Alejandra Pizarnik, Picasso, Rugendas, até César
Aira. Porque, como lembra Sylvia Molloy, via Paul de Man, é a prosopopéia a
figura que rege a escritura de si, essa tentativa sempre renovada e sempre
339
fracassada de dar voz àquilo que não fala, de trazer o que está morto à vida.
Através da prosopopéia, em última análise, se vida ao conteúdo oculto na
caixa-preta. Aí reside a utilidade da arte: desmontar as estruturas, voltar a
montá-las, rearticular a experiência, fabricar um relato para si mesmo, ir além
do mero uso das coisas que povoam o mundo, adentrar a composição de um sujeito.
Fazer e saber como o mundo funciona, como o mundo se faz mundo. Pela
prosopopéia, por fim, o realismo se renova. E para isso, basta uma maquete.
Alberto Giordano, num livro que dedicou à análise da escritura de Manuel Puig,
diz que este escritor não pode ser inserido em tradição literária alguma. "Para
mim há", diz o crítico, "um parentesco anterior com Arlt, e posterior com César
Aira. Mas se trata se algo relacionado a efeitos de leitura, não às convenções
da história literária". E continua: "Porque a escritura de Puig é literatura
que está por fora da literatura, que é absorvida pela instituição cultural
'literatura', mas que mantém uma imensa reserva de resistência à instituição.
Tudo isso tem efeitos infinitos: um deles é este livro que escrevi; outro é o
de que seus romances podem ser lidos até por minha mãe". Penso que a mesma
idéia pode ser lançada para a escritura de César Aira: não há, em seus textos,
um jogo de linguagem, uma palavra que não faça parte da rede discursiva
de nossa jornada cotidiana.
Manuel Puig, aliás, em depoimento a Joaquín Soler Serrano, para o programa A
fondo, da Radiotelevisión Española, em 1980, ao narrar seus fracassos tentando
fazer cinema, em Roma, nos anos 60, dizia ter fugido deste porque jamais
conseguiria ordenar o caos de um set de filmagem. "Eu, se me dizem que tenho
de fazer algo que não posso corrigir", diz Puig, "já me sinto paralisado. Se
faço algo é sob a idéia de que vou corrigir, repensar, sou muito inseguro por
natureza. o acredito no que saia de primeira intenção." Se a narrativa de
Puig pode ser lida como uma forma de abandono da literatura por sua aderência
aos materiais daquilo que se convencionou chamar cultura de massa, sua postura
com relação à construção do texto difere em muito da de César Aira: "Daquilo
que se escreveu um dia terá de se reivindicar para o seguinte, sem voltar atrás
para corrigir inútil), mas avançando, dando sentido àquilo que não possuía
força para avançar. As histórias, por fim, vão empurrando para frente a
consumação da arte que as justifica", diz o escritor, em Cumpleaños.
No espaço que encerra a entrega da tese aos Srs. e este momento, assisti a um
velho filme de Wim Wenders, Quarto 666. A primeira imagem é a de uma grande
árvore, um cedro libanês, posicionado ao lado do aeroporto de Paris, em meio à
autopista e os trilhos do trem, que o cineasta diz marcar, muito tempo, suas
chegadas e partidas à cidade francesa. Na última vez, porém, Wenders comenta
que a grande árvore passou uma mensagem diferente: dada a sua idade, tinha
assistido ao surgimento da fotografia e do cinema, podendo inclusive sobreviver
ao fim deste. A partir então deste dispositivo, a grande árvore, que pode muito
bem ser El tilo, a tília, a árvore-monstro de César Aira, Wenders chega a
Cannes com uma questão a seus colegas cineastas sobre o futuro da sétima arte.
Na primeira das entrevistas de Quarto 666, portanto, Jean-Luc Godard, que
sabemos ser uma das maiores influências na escolha de César Aira pela
literatura, diz o seguinte: "Os filmes são criados quando não ninguém
olhando. Eles são o invisível. Aquilo que não se pode ver, é o inacreditável...
E a tarefa do cinema é mostrar isso. Mostrar o que não se pode ver".
Este, penso, é o maior feito da escritura de sar Aira e suas criaturas, seu
livro dos seres imaginários: mostrar aquilo que não se pode ver. Este é o seu
realismo, cujo procedimento básico conforma uma ética: do abandono para uma
nova escritura.
Gostaria, por último, de firmar meu agradecimento a uma série de pessoas que
estão neste trabalho: meu filho Eduardo; meus pais Rolf e Neli; meus irmãos
Evandro, Dayana e Nilson; os amigos Marco Antonio Chaga, Simone Dias, Felipe
Lins, Widomar Carpes Jr., Fernando Massignam, Daniela Pedroso, Guilherme
Peixoto, Frank Marcon; os professores Maria Lucia de Barros Camargo e Raúl
Antelo, cujas bibliotecas amparam boa parte da base teórica desta pesquisa;
este Programa de Pós-Graduação, nas figuras de Dona Elba Maria Ribeiro e Profª.
Tânia Ramos; os Srs. Professores que compõem esta banca, em especial à Profª.
340
Ana Luiza Andrade, com quem durante muito tempo trabalhei na elaboração da
revista Travessia e com quem tive o privilégio de voltar a conviver na etapa
final desta investigação. Por fim, a César Aira agradeço sua generosidade e
confiança. Muito obrigado a todos.
341
A
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