esqueceu por completo. A reação imediata fez aparecer a grande diferença entre
as duas moças, tão parecidas que todos as confundiam. Uma permaneceu fiel,
amando-o desse jeito mesmo, mais distraído que atento; a outra saiu em busca do
amor que já não encontrava em casa. Uma era "para sempre", a outra "enquanto
dure", e quando julgou que já havia durado o bastante disse basta e se juntou a
um fotógrafo, o senhor Foto San, que por motivos profissionais viajava o tempo
todo para a Coréia. Certo dia, durante uma dessas viagens, a família Gota fez
um piquenique sob a chuva, com um grande guarda-sol listrado, várias caixas de
velas Minuto e uma cesta de camarões. Tomaram chá, comeram, admiraram as
silhuetas das árvores recortadas contra o violeta do céu, e depois se
distraíram com um jogo curioso: uma cancha de tênis de papelão, dobrável, do
tamanho de um tabuleiro de xadrez, sobre a qual, com raquetes de ráfia, quatro
rãs vestidas de branco disputavam uma partida de duplas mistas. As rãs eram de
verdade, e não estavam nem vivas nem mortas. Eram acionadas por eletrodos, algo
bastante incômodo. Além disso, como nem o senhor Gota nem suas duas esposas
conheciam as regras do tênis, a partida era bastante caótica. A tragédia se deu
quando uma das rãs, movida por uma sobrecarga, saltou no ombro de Gota San,
meteu a cabeça na orelha do magnata e disse uma palavra: Cucú. Um inconveniente
da bigamia é que, no caso de adultério, se tem de decidir quem é o culpado. Na
raiva que lhe tomou conta, não quis pensar: mataria as duas. Saltou sobre a que
estava mais perto e a estrangulou. Quis a má sorte que fosse justamente a fiel;
a infiel escapou, montada sobre a bolinha das rãs, acreditando estar indo pra
Coréia (na verdade foi pra Osaka), e o cornudo justiceiro ficou contemplando o
cadáver. Sua condição sobrenatural de gota viajante o eximia das conseqüências
realistas, cabíveis a um criminoso convencional. Ao menos era nisso que
acreditava. Mas na verdade nenhum ser, no Universo, é imune ao azar. Uma suave
música melódica se abria lentamente sobre o piquenique, como um segundo guarda-
sol. Com efeito, o perfume das velas era um perfume Débussy.
Em Oaklahoma, bem longe dos crisântemos, uma gota duelou com Trementina,
num combate único. Trementina era um magricela, loiro, bastante parecido com
Kant, muito bem-vestido, na última moda, mas sem exageros. Seu único excesso
era o topete, que por sacanagem e distinção mantinha sem gel, pura escultura de
cabelo, altíssimo: um centímetro. Essa medida, diga-se de passagem, surpreende
só àqueles que não sabem que Trementina media apenas dois centímetros — ou
melhor, três, com o topete. Entre os redemoinhos de poeira levantada pelo vento
da planície, Joe Pete Gota esbravejava: "Ou ele ou eu!" Um dos dois devia
morrer. Sentia, no fundo de sua alma artística a óleo, ter de destruir um ser
tão belo como Trementina, um bibelô vivo, tão decorativo num mundo tão bárbaro,
mas era preciso. O mundo é grande e há lugar pra todos, ninguém sabia isso
melhor que uma gota vagabunda, e no entanto há situações em que o anacrônico se
torna espetacular. Mas não vale a pena chorar por isso. A morte de uns é a vida
de outros. A vida de alguns, aliás, a simples e mera vida que alguém está
levando, cotidiana, chata e sem sentido, tece a morte de algum outro, genial e
romanesco. Talvez o arrependimento desse algum sentido à sua deriva. Confiando
em sua elegância, que até então lhe valera todos os triunfos, Trementina partiu
pra cima da gota com uma pistola de cáctus, descarregando toda a munição. Joe
Pete Gota tinha um nariz escuro e redondo, na verdade uma goma de mascar, que
absorveu as nove balas. O contra-ataque foi um sonho que envolveu o adversário
numa atmosfera bucólica. Ao virem buscá-lo, seus parceiros do clube de bridge
não o encontraram. Nunca mais foi visto. Joe Pete Gota, próspero, satisfeito,
bem-casado, continuou com sua vida de extrativista industrial da flor de
cáctus, que exportava pra Coréia como revelador fotográfico em solução
gelatinosa. De vez em quando lhe aparecia o fantasma do morto, na forma de uma
musiquinha triste. Tentava fugir dizendo que toda música é triste, e que essa
fadiga de viver que se apoderava dele era normal. Em seus momentos mais
sinceros, no entanto, reconhecia ter matado sua própria elegância, que, em si,
já era uma forma de energia.
Ao sinal de chuva, a gota Euforia se acelerava, tornava-se gota cerebral.
Quando todas desanimavam, ela se sobressaía. Gravidade olhava-a pensativo,
perguntava: de que me serve? Que vantagem posso tirar? Euforia atravessava as
nuvens gritando: "Sou uma gota de Extrema Unção!" A água e o azeite nunca se
misturam, seus relacionamentos não dão certo, um divórcio atrás do outro.