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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO: MESTRADO
Área de concentração: Fundamentos da Educação
A PROPOSTA EDUCACIONAL DE ROSVITA DE GANDERSHEIM
NO SÉCULO X
ZENAIDE ZAGO CAMPOS POLIDO BOVOLIM
MARIN
2005
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO: MESTRADO
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1
Área de concentração: Fundamentos da Educação
A PROPOSTA EDUCACIONAL DE ROVITA DE GANDERSHEIM NO
SÉCULO X
ZENAIDE ZAGO CAMPOS POLIDO BOVOLIM
MARIN
2005
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO: MESTRADO
Área de concentração: Fundamentos da Educação
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A PROPOSTA EDUCACIONAL DE ROSVITA DE GANDERSHEIM NO
SÈCULO X
Dissertação apresentada por Zenaide Zago
Campos Polido Bovolim, ao Programa de Pós-
Graduação em Educação, Área de
Concentração: Fundamentos da Educação, da
Universidade Estadual de Maringá, como um dos
requisitos para a obtenção do título de Mestre
em Educão.
Orientadora:
Profª. Dra.: Terezinha Oliveira
MARINGÁ
2005
3
A PROPOSTA EDUCACIONAL DE ROSVITA DE GANDERSHEIM NO
SÉCULO X
BANCA EXAMINADORA
Profª. Dra. Terezinha Oliveira – UEM
Prof. Dr. Ivan Esperança Rocha – UNESP – Assis
Prof. Dr. Célio Juvenal Costa - UEM
16 DE DEZEMBRO DE 2005
4
Este trabalho é dedicado:
Á meu esposo,
Moacir Bovolim
companheiro que sempre me incentivou.
As minhas filhas:
Gisleine Bovolim
Graziele Bovolim
Jaqueline Bovolim
A razão da minha luta nesta vida.
Aos meus pais:
Antonio Campos Polido
Helena Zago Campos
pela minha existência.
A minha professora:
Terezinha Oliveira
a grande responsável por esta vitória.
5
AGRADECIMENTOS
Reconheço que esta pesquisa não foi produto apenas do meu esforço. Muitas
pessoas colaboraram, de alguma forma, para o êxito deste trabalho. Expresso
meu profundo agradecimento a meu esposo e minhas filhas, porque
demonstraram muita paciência e souberam compreender o motivo da minha
ausência durante o período dedicado a este estudo.
Especialmente a minha orientadora Prof. Terezinha Oliveira, que durante o
processo, com muita sensatez me apontou falhas e me mostrou o caminho que
eu deveria percorrer. Suas indicações de leitura e o estímulo ao exercício da
escrita, ajudaram enriquecer à minha formação humana e intelectual.
Estendo meus agradecimentos aos professores da banca examinadora, pela
disponibilidade em ler está dissertação. As preciosas sugestões e observações
que fizeram foram de enorme importância e ajudaram à complementar o trabalho.
Agradeço tamm toda equipe de professores e demais profissionais do curso de
Pós-graduação em Fundamentos da Educação dessa instituição. O apoio
oferecido por este programa tornou possível o desenvolvimento desta pesquisa.
Expresso meu muito obrigado a minha filha Gisleine Bovolim por ter pesquisado
nas livrarias de Paris autores que estudaram e traduziram obras escritas por
Rosvita de Gandersheim do latim para o francês.
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BOVOLIM, Zenaide, Z. C. Polido. A PROPOSTA EDUCACIONAL DE ROSVITA DE
GANDERSHEIM NO SÉCULO X. 165 f. Dissertação (Mestrado em Educação)
Universidade Estadual de Maringá. Orientadora: Profª. Dra. Terezinha Oliveira.
Maringá, 2005.
RESUMO
A proposta deste trabalho é analisar as peças teatrais e um poema produzidos pela
canonisa Rosvita de Gandersheim, que viveu no século X, no mosteiro de
Gandersheim situado na Alemanha. Considera-se que essas produções foram
importantes para a formação educacional das mulheres nobres e das religiosas que
freqüentavam os mosteiros naquele século. Ela produziu suas obras em um
momento marcado pela desconstrução do Império Carolíngio e pela consolidação do
sistema Feudal. Durante o século IX e final do X assiste-se à migração dos povos do
norte em direção ao Ocidente e, para se defender das invasões e das devastações, os
homens protegeram com muralhas as partes habitadas dos grandes domínios e se
aglomeraram no interior dos feudos. Com o isolamento, vê-se despontar nos grandes
domínios o espírito de família. A mulher passou a exercer um papel fundamental na
educação, uma vez que, na ausência do esposo, a ela competia a instrução dos filhos
e a administração do feudo; no caso de religiosas, cabia-lhes a gerência dos
mosteiros. Essa nova atuação feminina justifica, de nosso ponto de vista, as razões
pelas quais Rosvita educou as mulheres e ensinou-lhes questões práticas do cotidiano
e, como o poderia deixar de ser, os princípios morais e religiosos que norteavam a
sociedade naquele momento. Seu papel foi importanteo apenas pelo aspecto
educacional. Ela retomou o teatro, que até então havia sido criticado pelos setores
eclessticos e utilizou-o como instrumento pedagógico, para debater valores que
estavam desaparecendo naquela sociedade. O modelo de suas peças teatrais foram
as comédias latinas escritas por Plauto e Terêncio, autores pagãos da Antigüidade
Grega. Embora tenha imitado o estilo terenciano, os conteúdos e os temas de suas
peças teatrais eram totalmente cristãos. Ela utilizou seus amplos conhecimentos para
inculcar o amor aos valores do cristianismo, retomando o pensamento dos primeiros
teólogos cristãos e defendendo os mesmos princípios. Analisamos alguns autores
desse peodo, como Paulo de Tarso, Tertuliano e Santo Agostinho, porque a
compreensão de seu pensamento foi fundamental para a análise das peças teatrais
de Rosvita, nas quais ela deu vida dramática a temas relacionados à preservação da
castidade, à defesa do martírio, à na sobrevivência da alma após a morte, ao
desprendimento dos bens materiais, à prática da caridade. Além da pregação
religiosa, a autora recolheu algumas noções do trivium e do quadrivium e colocou seu
público em contato com essa arte. Assim, ela uniu o saber pagão aos ensinamentos
cristãos e buscou no saber herdado da Antigüidade cssica uma direção para a sua
sociedade. Desse modo, para compreender o que Rosvita queria ensinar, foi
necessário descrever o desenvolvimento histórico da religião cristã desde os primeiros
séculos até o momento em que a autora produziu suas obras.
Palavras-chave: Rosvita de Gandersheim, Educação, Idade Média.
7
BOVOLIM, Zenaide Z. C. Polido. THE EDUCATIONAL PROPOSAL OF ROSVITA DE
GANDERSHEIM IN THE 10
th
CENTURY. 165 f. Dissertation (Master in Education)
State Univercity of Maringá. Supervisor: Dra.Terezinha Oliveira. Maringá, 2005.
ABSTRACT
The proposal of this research is to analize the theatrical plays and a poem both
produced by the canonisa Rosvita de Gandersheim that lived in the 10
th
century in the
Gandersheim monastery in Germany. We consider these productions were important
to the educational formation of rich women and religious women that took part of the
monasteries at that century . She produced her work in a moment marked by the
destruction of the Carolingy Empire an by the consolidation of the Feudal system.
During the 9
th
century and the end of the 10
th
century we watched the migration of the
north peoples toward the occident and to defend themselves from invasions and the
devastation. Men protected with walls the lived parts of the big domain and they
agglomerated in the fief. With the isolation. We can see the family spirit come up in the
big domain. The women started to have a fundmental hole in education once that the
husband is absent she had to instruct the children and the administration of the fief; in
case of the religious they had to take care of the monasteries. This new female action
justify, from our point of view, the reasons for what Rosvita educated the women and
taught them the practical everyday questions and how it could not let to be the moral
and religious principles that steers northwards at that moment. Her hole was important
not only by the educational aspect . She retook the theater that so far had been
criticized by the ecclesiastic sectors and used it like a pedagogical instrument to debate
the values that were desappearing at that society. The model of her theatrical plays
were latin comedies by Plauto and Terêncio pagan authors of the Greek antiquity.
Although She had imitated the Terêncio´s style the contents and the themes of her
theatrical plays were totally christian. She used her wide knowkedge to inculcate the
love to the christian values, retaking the thoughts of the first christian theologians and
defending the same principles. We analize some authors of this piriod, like Paulo de
Tarso, Tertuliano and Santo Agostinho, because the comprehension of their thoughts
was fundmental to the analisis of Rosvita´s Theatrical play in which she gave
dramatical life to themes related to chastity preservation, defense of the martyrdom, to
the faith to soul surviving after death, to the indifference of material properties, to the
practice of the charity. Besides the religious preaching the author took some notions of
the trivium and quadrivium and put her public in touch with this art. This way she joined
the pagan knowledge to the christian teaching and she got from the inheried
knowledge from the classical antiquity a direction to their society. This way to
understand what Rosvita wanted to teach, it was necessary to describe the historical
development of Christian Religion since the first centuries until the moment in which
the author made her works.
Keywords: Rosvita de Gandersheim, Education , Middle Age.
8
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................. 10
2. O CRISTIANISMO PRIMITIVO COMO BASE CULTURAL E HISTÓRICA DOS
ESCRITOS DE ROSVITA ........................................... ......................................... 19
2.1. Cristianismo Primitivo......................................................................................21
2.2. Paulo de Tarso................................................................................................30
2.3. Tertuliano....................................................................................................... 34
2.4. Santo Agostinho..............................................................................................43
3. O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA EDUCAÇÃO MONÁSTICA.................53
3.1. A trajetória dos mosteiros............................................................................... 54
3.2. Os primeiros fisofos escolásticos................................................................ 63
3.3. A desconstrução do Império Carolíngio e a consolidação do sistema
Feudal................................................................................................................... 72
4.VIDA E OBRA DE ROSVITA DE GANDERSHEIM ........................................... 81
4.1. Breve comentário da vida de Rosvita de Gandersheim................................. 82
4.2. O teatro: Instrumento pedagógico...................................................................89
4.3. Celebração do martírio................................................................................... 96
4.4. Defesa da virgindade.................................................................................... 98
4.5. A beleza feminina..........................................................................................103
4.6. As disciplinas do quadrivium: Aritmética e Música.......................................104
4.7. O conteúdo teológico....................................................................................110
4.8. Pobreza e caridade: valores cultivados pelos cristãos.................................112
4.9. Os elementos da natureza............................................................................115
4.10. O cômico em suas peças............................................................................118
5. CONCLUSÂO ................................................................................................ 121
6. REFERÊNCIAS ...............................................................................................124
9
7. ÍNDICE ONOMÁSTICO...................................................................................128
8. ANEXO I
Peça teatral: Conversion de la meretriz Taide.....................................................129
9. ANEXO II
Poesia: Passion du saint et très précieux martyr contemporain Pélage, couronné à
Cordoue………………………………….…………………………………………….145
10. ANEXO III
Poesia traduzida: Paixão do santo e muito precioso mártir contemporâneo Pelage,
coroado em Córdoba...........................................................................................155
10
INTRODUÇÃO
Nesta dissertação, utilizando como fonte principal de análise obras escritas no
século X por Rosvita de Gandersheim, temos como objetivo detectar alguns elementos
educacionais que contribuíram para a alteração das idéias, do comportamento e dos
costumes dos homens naquele século.
Partimos do pressuposto de que a compreensão destes elementos elucida as
relações entre a educação cristã e as mudanças sociais ocorridas naquele momento,
marcado pela desestruturação do Império Carolíngio e pelo início das relações
feudais.
A importância dos escritos dessa canonisa reside na originalidade com que ela
retomou o pensamento de autores clássicos da Antigüidade, principalmente o teatro
pagão, tão criticado e condenado pela Igreja e por seus quadros teóricos. Ao
fundamentar suas peças e seus ensinamentos em escritores clássicos greco-romanos,
em padres da Igreja, na Escritura Sagrada, especialmente o Novo Testamento, ela
transpôs para o seu tempo valores sociais que estavam se perdendo, tornando-se,
assim, uma autora inovadora.
Neste trabalho sobre a canonisa Rosvita, serão utilizadas
como fontes suas peças teatrais, traduzidas para o
português por Jean Lauand e para o espanhol por Andrés
José Pociña López, além dos poemas traduzidos do latim
para o francês por Monique Goullet. Estes tradutores, foram
tamm fundamentais para que pudéssemos compreender
e conhecer melhor alguns aspectos da obra dessa religiosa
e autora literária.
Uma vez que suas obras são fortemente influenciadas por
autores antigos, pagãos e crisos, considera-se necessário
expor os resultados de um estudo sobre os escritos de
alguns teóricos da Antigüidade e do Medievo, que viveram
séculos antes dela e a influenciaram. O objetivo deste
estudo foi entender o lugar que eles ocuparam em seus
textos e como ela se apropriou do conhecimento clássico
antigo e medieval. Para representar o período
caracterizado como Antigüidade cristã selecionamos os
seguintes teóricos: Paulo de Tarso, Tertuliano e Santo
Agostinho. Essas leituras chamaram-nos a atenção para o
fato de que, muitas vezes, para transmitir a doutrina cristã e
justificar seus discursos, esses pensadores cristãos
retomaram elementos da cultura grega.
Considera-se necessário também expor os
resultados de um estudo sobre a época em que viveram
esses autores. Durante os séculos que eles representaram,
em função da fusão entre dois povos: os que migraram do
norte e os romanos, foi despontando, aos poucos, uma
nova sociedade. De um lado, os grupos que se
estabeleceram no território romano formaram uma classe
social com leis, costumes e mentalidades diferentes. De
11
outro, em meio à desordem e às invaes, os povos que
vieram do norte incorporaram muito do que o Império
Romano deixou, sobretudo, a cultura.
Estudar o que ocorreu na seqüência desse período
foi também fundamental para nossa análise. Assim,
mostraremos a importância da Regra de São Bento para
organizar a vida dos monges no interior dos mosteiros.
Vamos destacar a importância dessas instituições como
locais de preservação da cultura e da transmissão do saber
antigo e cristão. Não podemos deixar de destacar autores
como Boécio, que viveu durante o século VI, e Alcuíno no
século IX. Estes pensadores inquietaram-se com a falta de
conhecimento dos seus ouvintes, com o ensino, com o
conhecimento filosófico e com a preservação da cultura
antiga.
A discussão desses dois núcleos de autores, os
antigos e os da Alta Idade Média, é de fundamental
importância para se entender os textos de Rosvita, uma vez
que, nas obras da canonisa, reflete-se a necessidade que
ela teve de buscar um recurso pedagógico diferente para
ensinar o modo de ser cristão e o saber. Assim, ela retoma
o teatro, e suas peças desempenham um papel importante
no processo educativo, porque ela trata de temas que
considera relevantes para a formão das religiosas e das
mulheres que freqüentavam os mosteiros. Ao nosso ver ao
retomar o modelo literário do teatro pagão produzido por
Terêncio durante a Antigüidade clássica, ela se torna uma
autora original.
Como referencial teórico da análise das obras de
Rosvita, temos a idéia de que sua interpretação passa pela
compreensão da história. É essa concepção que nos
possibilita entendermos as razões pelas quais Rosvita foi
buscar em séculos passados uma referência para ensinar
no seu presente. Mas isso não implica uma proposta de
análise contextual de caráter genérico e atemporal. Não
faremos um estudo no qual dez séculos de história estarão
presentes (século I até século X), mas um recorte com
base nos autores desse longo período que foram
retomados por Rosvita. A organização de aspectos teóricos
e contextuais tem, portanto, a função de focalizar o objeto
específico do trabalho: os escritos de Rosvita no século X.
Para fundamentar a pesquisa levamos em
consideração as reflexões de vários historiadores
medievalistas, como François Guizot, Marc Bloch, Georges
Duby, Etienne Gilson, Jaques Le Goff, Peter Brown, entre
outros. Como autoridades medievais, eles mostram que o
desenvolvimento do cristianismo, a organização da Igreja e
o estabelecimento do regime feudal refletiram e
construíram, concomitantemente, a sociedade medieval. A
12
historiografia nos permite retomar informões
fundamentais para que possamos entender como as
instituições, os costumes, a luta política e a economia
interferiram no quadro social do século X.
Os escritos dos historiadores contemporâneos
contribuíram para que tivéssemos uma noção dos fatos do
passado, livres de qualquer preconceito com relação aos
períodos estudados. Como nosso objeto de pesquisa é a
composição teatral de Rosvita de Gandersheim no século
X, a compreensão dos acontecimentos anteriores nos
ajudou a mostrar que ela estabeleceu um diálogo com o
passado, com o conhecimento da humanidade antiga e,
desta forma, garantiu uma certa continuidade da tradição
antiga.
Segundo Le Goff, [...] “na história das civilizações,
como na dos indivíduos, a infância é decisiva. E muito,
senão tudo, ali se decide. Entre os séculos 5º e 10º,
nascem modos de pensar e de sentir, temas e obras que
formam e informam as futuras estruturas das mentalidades
e das sensibilidades medievais” (LE GOFF, 2005, p.107).
Mesmo que essas tenham sido épocas distantes e com
culturas diferentes percebem-se os nexos entre a herança
cultural pagã e a literatura cristã.
De acordo com Le Goff, por diversas vezes as elites
intelectuais cristãs sentiram a necessidade de voltar às
fontes antigas. Segundo ele, [...] “a atitude fundamental foi
fixada pelos pais da Igreja e perfeitamente definida por
Santo Agostinho ao declarar que os cristãos deviam utilizar
a cultura antiga assim como os judeus tinham usado os
despojos dos egípcios” (LE GOFF, 2005, p.108). Nesse
sentido, nossa hipótese é de que Rosvita luta com os
instrumentos que possui, ou seja, com o conhecimento da
cultura greco-romana e cristã para conservar os princípios
e os valores defendidos pelos primeiros teólogos.
Nesta introdução, considera-se necessário ainda expor alguns dados sobre a
descoberta dos escritos de Rosvita, bem como sobre o mosteiro em que viveu e sobre
seu nome. Foi no mosteiro de Gandersheim, situado na Alemanha, no Reino
Germânico Saxônico, nome da França Oriental a partir de 911, que Rosvita passou a
maior parte de sua vida. Segundo Pautrat, as suas obras originais, escritas em latim,
foram encontradas casualmente em janeiro de 1494 pelo humanista alemão Conrad
Celtis, que, em 1501, publicou uma edição completa delas ( PAUTRAT, 2002 ). Pode-
se afirmar, portanto, que, após sua morte, ela permaneceu esquecida por mais de
cinco séculos.
13
Sobre seu nome chama atenção a enorme quantidade de formas e ortografias
diferentes adotadas pelos estudiosos de suas obras, segundo as edições e a língua
própria de cada um. Segundo Bernard Pautrat, existe pelo menos 22 denominações
de seu nome, entre eles podemos encontrar variadas formas como, Hrotswitha, ou
Roswitha, ou Hrosvitha, ou Hrotsvit” (PAUTRAT, 2002, p. 07). Neste trabalho optamos
por adotar Rosvita, considerando que esta é a forma que mais se adapta ao sistema
ortográfico do português.
De acordo com Andrés López, as informações sobre seu nome são
transmitidas por ela mesma no Prefácio” do livro onde se encontram os dramas,
quando o denomina em latim de Clamor Validus Gandeshemensis, que pode ser
traduzido como O Grito Enérgico de Gandersheim”. Para López, embora este não
seja seu nome próprio de batismo, pode refletir a personalidade da autora. Ele afirma
ainda que Peter Dronke e Maria Milagros Rivera Garretas coincidem ao admitir que
esse nome foi assumido pela própria autora como expressão de uma missão profética
à qual ela foi chamada. O tema Clamor Validus é a tradução do nome Hrotsuith, que
deriva do saxon antigo Hrôthsuith. Estes autores apontam ainda que este nome está
relacionado com o nome ego uox clamantis, nome este utilizado por São João Batista
(LÓPEZ, 2003, p.8-9).
Quanto ao sobrenome Gandersheim, ela o teria adotado provavelmente porque
entrou ainda adolescente nesta rica e potente abadia, que se conserva até hoje no
mesmo local. O mosteiro foi fundado no ano de 852, pelo duque da Saxônia, Ludolfo,
bisavô do Imperador Oto I. Os Otônidas, no século X, contribuíram para o
fortalecimento do Sacro Império Romano-Germânico. Os territórios indicados no mapa
mostram como estava instaurado o Império germânico dos Otônidas.
14
IMPÉRIO GERMÂNICO DOS OTÔNIDAS
Disponível em http://www.pais-global.com.ar/mapas/mapa23.htm
LEGENDA:
1) Território da monarquia germânica antes de Oto;
2) Marcas fronteiriças entre os Eslavos;
3) Territórios imperiais em Bohemia, França e Itália;
4) Estados protegidos pelo Império germânico;
5) Limites do Império Otônida.
No ano 962, Oto I, o Grande, foi coroado Imperador e, encontrando forte apoio
no papado, construiu com ele uma aliança que fortaleceu a união entre a Igreja e o
poder temporal. Em Gandersheim, que estava fortemente ligado à aristocracia e
depois ao governo Imperial, as [...] “abadesas eran elegidas a menudo entre miembros
15
de la família reinante” (LÓPEZ, 2003, p.11). Esta rica e potente abadia de
Gandersheim era dirigida pela abadessa Gerberga, parente da família Otônida.
Com estas breves informações sobre Rosvita, podemos retomar nossas
considerações sobre suas obras. Queremos destacar sua importância para se
entender o processo educativo que se organiza no mundo medievo do Ocidente no
século X. Neste período, os intelectuais tiveram duas importantes missões: preservar a
herança cultural e transmitir conhecimentos aos povos iletrados. De nosso ponto de
vista, este é o caso de Rosvita, a qual, ao mesmo tempo em que cumpriu sua função
pedagógica, reintroduziu no Ocidente a composição teatral que tinha sido esquecida
por muitos séculos. Assim, vemos que, além de exaltar os ideais religiosos, ela
transmitiu aos ocupantes dos mosteiros ensinamentos mínimos sobre a civilização
clássica e sobre as artes liberais o trivium (Gramática, Retórica e Dialética) e o
quadrivium (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia).
Portanto, para analisarmos sua produção, como mencionamos
anteriormente, é necessário compreender como seu deu o florescimento do
cristianismo primitivo e acompanhar o pensamento dos primeiros Padres da
Igreja, importante teólogos que aplicaram ao Cristianismo algumas características
espirituais que faltavam no conteúdo religioso e moral do paganismo tardio. Essa
retomada compõe o primeiro capítulo, no qual pretendemos mostrar a relação
entre a nova doutrina religiosa que emergia, o cristianismo, e as correntes
filosóficas greco-romanas. De acordo com Paratore, essas correntes filosóficas
tinham alguns pontos em comum com o cristianismo.
[...] o ideal da renúncia, o culto da castidade e da pureza interior,
o desinteresse pelos valores da vida prática, o amor pela virtude,
o aborrecimento da violência e da passionalidade desenfreada, o
sentido do pecado, inculcado pelos inumeráveis rituais
mistéricos, a numa divindade inefável, transcendente, da qual
dependia a vida do cosmos e do homem, a aspiração a elevar-se
a contemplar, como o ímpeto de todo ser, a majestade sobre-
humana da essência divina, esforçando-se por conformar a
própria vida íntima espiritual aos seus modos: mas o que
permanecia incompreensível aos sábios pagãos era o fervor
desorientador com que os mártires cristãos se exortavam
mutuamente a enfrentarem juntos o martírio e o sofriam com um
arroubo de heróica dedicação coletiva (PARATORE, 1983, p.
845)
16
A nova mensagem cristã trouxe, em seu conteúdo religioso, um ideal de vida
mais transcendental. Entre os membros da nova fé, princípios de fraternidade e o
exemplo do sacrifício que Jesus praticou por toda a humanidade em nome de um
amor, é o fermento que provoca reviravoltas por vários séculos. (PARATORE, 1983).
Esta concepção mística do cristianismo se firmou graças ao empenho de alguns
autores cristãos, como o Apóstolo Paulo de Tarso (Séc.I), Tertuliano (Séc.II-III) e
Santo Agostinho (Séc.IV-V). Esses autores, nos seus debates teóricos, vivenciaram as
transformações históricas que caracterizaram esses diversos momentos e souberam
filtrar do conhecimento que possuíam da tradição romana uma retórica para a defesa
da fé cris.
Segundo Brown (1972), lançando mão da cultura intelectual helênica, o
cristianismo buscava segurança para sua universalização. Em função das crises
internas ao próprio Império e das migrações de hordas mades, foram se agregando
novos valores às crenças religiosas então existentes. A antiga religião dos deuses
principiou a ser questionada e as antigas correntes filosóficas foram substituídas por
uma não racional. A nova avançava, os costumes, as leis e as crenças religiosas
eram discutidas, construindo-se, então, uma religião fundada na revelação divina.
“Não surpreende, nestas condições, que pagãos e cristãos lutem tão violentamente,
através do século IV, por saber qual devia ser a verdadeira Paidéia, a verdadeira
educação, se a literatura, se o cristianismo; ambos os partidos esperavam salvar-se
mediante a educação” (BROWN, 1971, p.34).
A pregação doutrinária baseava-se na palavra de Cristo, e era profundamente
diferente dos valores cultivados pela tradição romana. Segundo Cardoso, “[...] os
cristãos, em suas reuniões rituais, oravam, cantavam, ouviam pregões, homilias e
leitura (CARDOSO, 2003, p. 180). Sua vida estava, assim, voltada para o
entendimento e o conhecimento do texto bíblico, o qual iria modelar o seu novo modo
de vida, centrado na espiritualidade.
No segundo capítulo, levando-se em consideração que Rosvita viveu em
Gandersheim, um mosteiro da ordem beneditina, realizaremos uma análise sobre o
papel destes centros do saber em dois momentos específicos do medievo. O primeiro
diz respeito ao século VI, quando da fundação do mosteiro de São Bento e da difusão
da Regra, instrumento necessário e fundamental para organizar a vida dos monges.O
17
segundo refere-se aos fins do século IX e início do X, momento em que, no contexto
de reforma da vida monástica e da fundação do mosteiro de Cluny, Rosvita escreveu
sua obra literária.
Torna-se imprescindível compreender o modelo de vida contemplativa nos
conventos e o princípio do trabalho manual e intelectual concebido por São Bento
como fundamento da sua Regra. Consideramos importante mencionar o modo de vida
que os monges ocuparam nestes espaços, porque Rosvita viveu em um mosteiro que
adotou a Regra da ordem beneditina. Em várias passagens de suas peças, ela dá
exemplos do quanto é necessário afastar-se da vida mundana, dedicar-se às verdades
divinas e buscar um maior entendimento da fé para alcançar a conversão. Assim como
a Igreja, os mosteiros desempenharam um importante papel na educação medieval.
Destacamos ainda nesse capítulo a importância de educadores como Boécio e
Alcuíno, que se preocuparam em conservar o conhecimento. Lauand afirma que
Boécio [...] “assume a tarefa de selecionar, traduzir, dar em forma de bê-a-bá os
grandes tesouros culturais da Antigüidade” (LAUAND, 1986, p.23). Vamos observar
que os problemas do período de Rosvita guardam certa semelhança com os
problemas que Boécio e Alcuíno
1
enfrentaram, por isso seus textos estão carregados
dos conhecimentos das disciplinas do trivium e do quadrivium, dos quais ela destacou
a música, a astronomia e a aritmética.
Por fim no terceiro capítulo trataremos mais especificamente da vida dessa
canonisa e de algumas de suas obras. Faremos uma pequena introdução sobre
alguns aspectos importantes relacionados à formação religiosa e cultural que
concebeu no mosteiro de Gandersheim em meio à corte otônida, onde se
encontravam renomados autores literários. Posteriormente, vamos apresentar partes
de seus escritos destacando os principais temas discutidos pela autora. A celebração
do martírio, a defesa da virgindade, o conhecimento das artes liberais, o ensinamento
de valores morais e religiosos serão os pilares que amparam o seu discurso nas
peças. Pretendemos mostrar como Rosvita considerava importante orientar as damas
do seu tempo, mostrando para elas exemplos e modelo de comportamento.
1
No momento em que Rosvita escreveu suas obras o Ocidente sofrera novas ondas de migrações como as dos
Normandos e dos Vickings. Além disso, do Império Carolíngio restaram alguns poucos resquícios. O sistema
feudal ainda o havia se constituído e se apresentava apenas como uma tendência de organização das relações
sociais.
18
Neste momento, o desafio de Rosvita é salvar e transmitir alguns valores
clássicos para aquelas mulheres que viviam no mosteiro. A autora coloca suas
ouvintes em contato com o saber. Inspirada em valores morais e religiosos ela busca
dar uma direção para os homens do século X. Nesse sentido, é o seu exemplo de
mestra, de pedagoga, de mulher inquieta com os problemas de sua época, que nos
permite entender um pouco mais da história da educação no Ocidente medievo.
19
CAPÍTULO I
O CRISTIANISMO PRIMITIVO COMO BASE CULTURAL E HISTÓRICA DOS
ESCRITOS DE ROSVITA
Uma das características dos pensadores cristãos foi buscar, nos escritos
gregos e romanos, o saber que consideravam necessário ou interessante preservar e
transmitir. Assim, os textos antigos, no decorrer do tempo, foram sendo adaptados e
utilizados para justificar a cristã. Em acordo com esta tendência e com as
necessidades e preocupações de seu momento, Rosvita contrapôs-se à forma
negativa como o teatro vinha sendo rechaçado no medievo ocidental e, por meio dele,
uniu o saber antigo aos ensinamentos cristãos.
Uma vez que Rosvita defendia os mesmos princípios do cristianismo primitivo,
ou seja, dos primeiros teólogos cristãos, vamos retomar esse pensamento em
correlação com os importantes acontecimentos que estavam ocorrendo no mundo
romano nos primeiros séculos da era cristã, principalmente os resultados das
constantes migrações e invasões. De nosso ponto de vista, Rosvita também viveu, no
século X, um momento bastante conturbado da história, e exatamente por isso
retomou esses autores.
Quando ela escreveu suas peças teatrais, a sociedade passava por importantes
transformações gerais que alteravam o modo de pensar e agir. A partir do século IX, o
mundo carolíngio tinha sido assolado por invasões, cujo resultado foi um retrocesso
em seu desenvolvimento intelectual. O ensino, o saber, a crença, a moral e os
costumes estavam se perdendo. A impressão era de que a sociedade tinha voltado
aos tempos em que os povos do norte conquistavam a civilização romana. No entanto,
segundo Thierry, o transcorrer do culo X mostrou que a fusão das raças deu vida a
um novo estado social. Nos grandes espaços de terra inculta, multiplicaram-se, cada
vez mais, agricultores, artesões e escravos que se tornaram servos da gleba, sob a
influência dos costumes germânicos.
Estes prevaleceram definitivamente e da sua vitória saiu o regime
feudal, isto é, uma nova forma de Estado, uma nova constituição da
propriedade e da família, o desmembramento da soberania e da
jurisdição, todos os poderes públicos transformados em privilégios
20
dominiais, a idéia de nobreza vinculada ao exercício das armas e a de
ignobilidade à indústria e ao trabalho (THIERRY, 2005, p.90 ).
Com a desestruturação do Império Carolíngio, assistimos ao surgimento de um
novo quadro social, o início das relações feudais. Nesse momento, as lutas
diminuiram, a população se aglomerou nos campos sob o domínio de um senhor, os
servos encontraram condições para formar uma família: [...] foi sob seu império que o
isolamento da servio cessou no campo, substituído pelo espírito de família e de
associação, e à sombra do solar senhorial formaram-se tribos agrícolas destinadas a
se tornarem a base de grandes comunidades civis” (THIERRY, 2005, p.92-93). A
organizão das famílias no interior dos feudos propiciava condições para o
desenvolvimento de novas relações sociais, produzia laços de sentimentos mais
afetivos, mudava hábitos, valores e costumes que aentão pareciam imutáveis. Em
suma, alterou-se o modo de vida dos habitantes, que foram despertados para laços
familiares mais intensos.
Como cristã e educadora, Rosvita procurava dar um novo enfoque à educação.
O teatro, que até então era visto como pecado, tornou-se com ela um instrumento de
aprendizagem, por meio do qual, fundamentada no conhecimento que possuía dos
autores cristãos e da antigüidade clássica greco-romana, ela ensinou os valores e
doutrinas da religião cris, como a fé, a caridade e o desprendimento dos bens
materiais. Ao mesmo tempo, ensinou noções de matemática e música, cujo objetivo
era o desenvolvimento da capacidade reflexiva e da habilidade para tratar questões
práticas do cotidiano. Convém observar que, em seus dramas, ela enaltecia a
virgindade e orientava as meninas dos mosteiros a seguirem o modelo de Maria, além
de destacar que, por meio do martírio, o cristão estaria imitando o modelo de vida de
Cristo.
Pressupondo que essa inovação nos ensinamentos teve origem remota na
forma como os primeiros teólogos cristãos uniram a cultura greco-romana com a
doutrina cristã e considerando as transformações sociais ocorridas nesse período,
analisaremos a concepção de educação proposta pelo Apóstolo Paulo, por Tertuliano
e por Santo Agostinho, os quais viveram durante os primeiros séculos do cristianismo.
O Apóstolo Paulo foi contemporâneo de Cristo e o primeiro a assumir a missão
de transmitir os ensinamentos de Jesus. De acordo com suas orientações, o modelo
de educação passava pela imitação de Cristo, ou seja, o homem deveria imitar aquilo
21
que Jesus ensinou por meio de seus atos e palavras. Portanto, em seu modo de agir e
de viver, os homens deveriam vencer os vícios que degradavam o mundo. Ele sugeria
a prática da caridade, da bondade, da fidelidade, da modéstia e da castidade. Mesmo
sendo de uma época distinta, os escritos de Rosvita veiculam mensagens
semelhantes.
As obras escritas por Tertuliano durante o século III também oferecem
elementos que podem ter influenciado a formação do pensamento de Rosvita. Ele
lutava contra as heresias e as perseguições contra os cristãos. Sua defesa da era
fortalecida pela admiração dos mártires que morreram para ir ao encontro de Jesus.
Em termos semelhantes, na peça O martírio das santas virgens Fé, Esperança e
Caridade, a personagem Sabedoria, que é a mãe, conduz as filhas a se entregarem à
morte em defesa da fé, imitando o exemplo de Cristo na busca da santificação.
Quando Sabedoria, cheia de força e determinação, aconselha as filhas a aceitarem o
martírio, afirmando que isso deveria servir de modelo e exemplo a ser seguido pelos
cristãos, es expressando esses ensinamentos defendidos por Tertuliano.
Os escritos de Santo Agostinho, do século IV, também oferecem elementos que
Rosvita parece ter utilizado para compor suas obras. A maior preocupação de Santo
Agostinho, segundo estudiosos, consistia em orientar o comportamento dos homens
por meio da razão e da fé, difundir a mensagem crise, retomando os princípios da
filosofia platônica, discutir questões referentes ao corpo e à alma. Rosvita, ao utilizar o
teatro como apoio didático e pedagógico, inclui em seus diálogos essas discussões.
Ela afirmava que o homem, assim como a natureza, tinha sido criado por Deus e foi
formado de corpo e alma. No entanto, a alma, ao contrário do corpo, não era mortal.
A seguir, iremos destacar como cada um desses autores, representantes do
pensamento cristão primitivo em diferentes momentos, souberam apropriar-se do
saber antigo para transmitir e defender a doutrina cristã, apresentando uma nova
concepção de mundo e contribuindo para a formação tanto dos homens do seu tempo
como das gerações futuras.
2.1 - CRISTIANISMO PRIMITIVO
Os primeiros séculos da era cristã, marcados por constantes migrações e
invasões, tornavam a vida do homem insegura e economicamente difícil. O Império
Romano vivia uma profunda crise e a estrutura descentralizada do poder passava por
22
importantes transformações. Formavam-se numerosos reinos bárbaros, que traziam
consigo seus usos e costumes.
[...] coexistem em seu seio todas as formas, todos os princípios de
organização social; n’ella se confundem e se amontoam o poder
espiritual e o temporal, os elementos theocrático, monárquico,
aristocrático e democrático, as classes todas, as situações sociais
todas; notam-se ne’ella graus infinitos na liberdade, na riqueza e na
influência. Lutam constantemente entre si estas forças diversas, e
nenhuma consegue dominar as outras e apoderar-se exclusivamente
da sociedade ( GUIZOT, 1907, p.58).
As instituições romanas encontravam-se fragilizadas, destituídas de poderes,
não conseguiam responder às dificuldades desse novo tempo e nenhuma delas
conseguia estabelecer a ordem. Segundo Guizot, coexistiam no seio dessa sociedade
diversas formas de organização: a realeza, as instituições aristocráticas e as
assembléias de homens livres, todas lutando constantemente entre si pelo poder, mas
nenhuma conseguindo impor o seu domínio na sociedade. Por toda parte encontrava-
se a dissolução “[...] o caos de todos os elementos, a inncia de todos os sistemas,
um tumultuar universal em que nem sequer há luta permanente e sistemática
(GUIZOT, 1907, p. 96).
A causa principal desse caos eram as constantes mudanças e a inexistência de
leis que regulamentassem e fixassem a ordem. Os princípios que norteavam a
sociedade estavam se desestruturando. Por toda parte encontravam-se diferentes
línguas, culturas, religiões e raças. Os problemas internos eram muitos: miséria,
guerra, fome e insegurança afetavam a vida em sociedade, produzindo um terreno
fértil para a propagação de novos valores sociais e para a apresentação da figura de
Cristo como modelo educacional.
A comunidade cristã vem, repentinamente, ao encontro dos homens
que se sentem desamparados. Numa altura de inflação, os cristãos
investem largas somas de capital líquido no povo; num tempo de
crescente brutalidade, a coragem dos mártires cristãos é
impressionante; durante as calamidades públicas, como as epidemias
ou as sedições, o clero cristão é o único agrupamento unido da cidade
que trata do enterro dos mortos e organiza os socorros alimentares
(BROWN, 1972, p.72).
Assim, novas questões foram colocadas pela doutrina cristã em relação às
crenças, aos valores e à moral. Brown esclarece, ainda, que, além desse gesto de
“benevolência” da Igreja cristã, ela se distinguia e aumentava sua importância devido
23
ao rigorismo da sua vida interior (BROWN, 1972). Pregava-se uma mudança nos
costumes e no comportamento que apontava para uma nova concepção de mundo
baseada na fé em Cristo.
De acordo com Guizot, a sociedade cristã, nos seus primórdios, apresentava-se
como uma associação de regras, de disciplinas e de doutrina essencialmente religiosa,
baseada em crenças e sentimentos comuns, que eram pregados pelos apóstolos em
diversas comunidades cristãs.
As congregações particulares estavam, na verdade, bastante isoladas;
mas tendiam a se reunir, a viver sob uma fé, sob uma disciplina
comum; é o esforço natural de toda sociedade que se forma; é a
condição necessária do seu crescimento, da sua consolidação. A
aproximação, a assimilação de elementos diversos, o movimento para
a unidade, tal é o curso da criação. Os primeiros propagadores do
cristianismo, os apóstolos ou os seus discípulos, conservam aliás,
sobre as próprias congregações das quais se afastavam, uma certa
autoridade, uma supervisão longínqua, mais eficaz. Tinha o cuidado de
formar, ou de manter, entre as igrejas particulares, laços não somente
de fraternidade moral, mas de organização (GUIZOT, apud OLIVEIRA,
1999, p.12).
Nessas diversas comunidades religiosas, isoladas uma das outras, competia
aos apóstolos transmitir a seus discípulos os princípios da doutrina cristã. Ainda
segundo Guizot, nos primeiros tempos, os cristãos se reuniam porque compartilhavam
as mesmas convicções religiosas. Eles ensinavam e pregavam princípios morais,
religiosos e de conduta importantes para a organização da sociedade (GUIZOT, 1907);
à medida que a sociedade romana se desintegrava, o cristianismo assumia
gradualmente o papel de dirigente do mundo.
Para lutar contra o caos instaurado na sociedade, o cristianismo propunha uma
formação, cujos princípios sustentavam-se no Evangelho e na força do poder
espiritual. Os ideais de caridade, solidariedade e igualdade estruturavam um tripé que
alimentava os valores fundamentais da doutrina cristã. Ou seja, buscava-se formar um
ser humano mais espiritualizado e caritativo, estabelecendo-se uma profunda
revolução educativa. De acordo com Cambi, houve uma inversão de valores, “[...] uma
nítida ruptura em relação ao mundo antigo, sua mentalidade, sua organização social,
sua política e sua cultura” (CAMBI, 1999, p.122). Os dirigentes religiosos pregavam a
mensagem do Evangelho de forma espontânea e simples, por meio de parábolas, para
que as pessoas pudessem compreendê-la melhor. A mensagem crisdifundiu-se e
24
anunciou para a sociedade um modelo de educação centrado na igualdade entre os
homens. Os princípios religiosos deram vida a um novo modelo de civilização. Brown
afirma que num momento de desamparo os dirigentes religiosos por meio de
parábolas simples e mandamentos ensinavam as pessoas a viver no mundo terreno
(BROWN, 1972).
Embora formassem um pequeno grupo os missionários faziam reuniões,
recordando os ensinamentos de Cristo e disseminando seus princípios religiosos.
Nesse período, nos primeiros séculos depois de Cristo, o havia ainda um clero
instituído, o cristianismo ainda não havia sido oficializado como religião. No entanto,
segundo Guizot, havia um como de instituição, em cujo centro estava o povo cristão,
ou seja, eram os fiéis que influenciavam e exerciam um papel importante na sociedade
(GUIZOT, 1907).
À medida que o cristianismo crescia, formava-se um corpo de doutrina, de
regras e de magistrados escolhidos pelos fiéis (GUIZOT, 1907) e, desta forma, a
religião cristã foi divulgada pelos evangelistas e apóstolos por toda parte do
mediterrâneo. Este processo revolucionário induziu os poderes constituídos, entre eles
os imperadores não cristãos, a perseguir os cultos que desprezavam sua tradição,
principalmente os fiéis à doutrina cristã. Por isso, muitos seguidores de Cristo, por
testemunharem ardentemente a própria fé, sofreram o martírio.
No ano 313, alguns decretos foram publicados pelos imperadores Constantino e
Licínio, beneficiando os cristãos. Constantino dirigiu aos governadores das províncias
instruções prescrevendo o fim das perseguições e a concessão da liberdade religiosa.
Por conseguinte, quando eu, Constantino Augusto, e eu, Licínio
Augusto, chegamos felizmente a Milão e procurávamos tudo o que
importava à utilidade e ao bem comum, entre outras coisas que nos
pareciam proveitosas em geral, de vários pontos de vista, resolvemos
em primeiro lugar e antes de tudo, dar ordens para assegurar o
respeito e a honra à divindade, isto é, decidimos conceder aos cristãos
e a todos os outros a livre escolha de seguir a religião que quisessem,
de tal modo que tudo possa haver de divindade e de poder celeste nos
seja propício, a nós e a todos os que vivem sob nossa autoridade
(apud CESARÉIA, 2000, p.492).
Com essas medidas, a sociedade religiosa adquiriu mais legitimidade, o que
ajudou os dirigentes a definir e organizar sua doutrina interna.
Nos séculos posteriores, o cristianismo expandiu-se e, lentamente, a hierarquia
da Igreja foi sendo constituída. O corpo cristão era então formado pelos padres,
25
encarregados da parte espiritual, pelos bispos, que vigiavam a integridade do culto e a
prática fiel da doutrina cristã, e pelos diáconos, encarregados de distribuir esmolas.
Este corpo eclesiástico exercia influência sobre o povo cristão e tamm tomava parte
nos assuntos que competiam ao governo municipal. Brown postula, no entanto, que
“[...] o expansionismo cristão não foi um processo gradual, irresistível, começado com
S. Paulo e terminado com a conversão de Constantino, em 312” (BROWN, 1972,
p.68). Segundo ele, a religião cristã enraizou-se em todas as cidades do mediterrâneo
graças à capacidade de seus missionários para envolver toda a sociedade,
oferecendo proteção aos que se sentiam desamparados.
No decorrer dos tempos, o cristianismo foi ganhando força, tomando para si o
governo da sociedade e assumindo o papel de formador dos homens. Para Guizot, no
fim do século IV e no início do século V a Igreja crisestava instituída. Já não era
apenas uma crença, mas possuía um governo, um clero e uma hierarquia organizada,
era uma instituição que se fortificava, crescia e, cada vez mais, infiltrava-se na
sociedade (GUIZOT, 1907). Esse florescimento deveu-se ao empenho de homens
hábeis, amantes do saber, e que, ao longo dos séculos, empregaram em seus escritos
elementos da cultura cssica antiga.
Os Apóstolos, Apologistas e Padres da Igreja exerceram grande influência
nesse processo, parte do legado cultural dos pensadores gregos foi absorvida e
contribuiu para a formação da doutrina cristã. Utilizando em suas argumentações o
discurso da cultura helenística, os representantes da Igreja foram expandindo suas
práticas educativas por toda a comunidade. Eles adaptaram ao Cristianismo
categorias espirituais da cultura grega e reconheceram, nela, semelhanças com a
doutrina cristã.
Segundo Pereira Melo, do mundo romano o cristianismo serviu-se da
organizão administrativa, das estruturas políticas, da língua de amplo alcance, da
segurança garantida pela lei romana e da sua postura em relação à tolerância
religiosa. Do mundo judeu recebeu inspiração da doutrina fundada no Antigo
Testamento. Em relação à herança grega, o cristianismo, para defender a
universalidade da sua doutrina, buscou no legado cultural clássico elementos para
consolidar a liderança espiritual da doutrina cristã (PEREIRA MELO, 2002).
Dessa forma, a educação cristã apropriou-se da cultura helenística para
organizar suas práticas educativas e a própria estrutura da religião cristã. Da
26
concepção que o grego tinha da literatura, ela adaptou aos escritos sagrados aquilo
que era essencial para compor seus fundamentos.
O cristianismo criou um perfil de homem mais espiritualizado, cuja vida terrena
seria conduzida com simplicidade. Ou seja, renunciando aos prazeres da carne e aos
bens materiais e preocupando-se com a salvação da alma, os homens passariam por
uma regeneração interior que elevaria a alma humana para um encontro definitivo com
Deus.
Para defender o cristianismo e aprofundar seus conhecimentos, os Padres
recorreram ao pensamento helenístico e colocaram a filosofia a serviço da . Eles
pretendiam estabelecer regras de conduta moral e religiosa, defender a doutrina da
Igreja Cristã contra as heresias, converter os povos bárbaros e defender-se dos
ataques dos adversários. Tendo em vista esse procedimento dos primeiros Padres,
consideramos importante retomar os princípios gerais de algumas correntes filosóficas
greco-romanas.
Segundo Reale, a filosofia do período helenístico soube transmitir uma
mensagem positiva, buscando uma solução para os problemas humanos.
A filosofia torna-se efetivamente a fonte da qual o homem helenístico
extrai os valores que antes extraía da polis e da religião da polis:
oferece novos conteúdos de vida espiritual, ilumina as consciências,
ajuda o homem a viver e lhe ensina como ser feliz mesmo na época
trágica em que vive, na qual todos os antigos valores parecem
subvertidos (REALE, 1994, p.11).
Ainda segundo ele, as correntes filosóficas do período helenístico, ou seja, o
epicurismo, o estoicismo e o ceticismo, deixaram explícito um modelo de pedagogia,
de educação e de vida no qual os homens continuaram a se inspirar por séculos
inteiros. Souberam dizer aos homens de sua época palavras que eles tinham
necessidade de ouvir diante da crise em que vivia a sociedade (REALE,1994).
Como o estoicismo e o epicurismo tiveram papéis significativos na formação
dos pensadores cristãos, é importante compreendermos qual a relação que se
estabeleceu entre o cristianismo primitivo e o pensamento de Epicuro e Sêneca.
A doutrina epicurista foi produzida numa época em que a polis estava em
decadência, por isso pregava a busca da saúde espiritual. Esse prazer seria
conseguido por meio do conhecimento da filosofia, uma vez que este conduziria à
27
sabedoria. Os epicuristas propunham que, para alcançar a felicidade, a salvação
pessoal, o homem vivesse e organizasse sua vida por meio do esforço próprio: “[...] é
necessário, portanto, cuidar das coisas que trazem a felicidade, já que, estando esta
presente, tudo temos, e sem ela, tudo fazemos para alcançá-la” (EPICURO, 1996,
p.23).
Segundo Epicuro, era preciso buscar, encontrar em si aquilo de que a pessoa
precisasse para resolver os problemas da vida cotidiana e achar o caminho que
conduziria à verdadeira felicidade. Ele considerava desnecessário ter medo da morte e
dos deuses, pregava o abandono das coisas terrenas, o cultivo de uma vida simples e
a busca do prazer. Essa busca consistia em determinar aquilo que seria bom e o que
precisaria ser evitado para ser feliz. Afirmava ele: “[...] o fim último é o prazer, não nos
referimos aos prazeres dos intemperantes ou aos que consistem no gozo dos
sentidos, [...]; mas ao prazer que é a ausência de sofrimentos físicos e de
perturbações da alma” (EPICURO, 1996, p. 43). Nesse sentido, ele ensinava que, para
ser feliz, era necessário ter prudência e saber renunciar aos prazeres da paixão.
Com os epicuristas, o cultivo da verdadeira amizade, a busca da paz e a
tranqüilidade da alma foram praticados de maneira quase religiosa. “O lema de
Epicuro e dos epicuristas é, exatamente, “vive escondido”. Essa é a expressão da
mais completa inversão do sentimento clássico(REALE, 1994, p.15). Epicuro estava
preocupado em formar um homem mais individualizado, por isso negava a sociedade
que estava posta, uma sociedade infeliz e desorganizada, e buscava afastar os
homens dos perigos que a cidade oferecia. Nesse sentido, com Epicuro, o homem,
que a então era um cidadão público, preocupado em resolver os problemas da
cidade, transformou-se e tornou-se mais interiorizado.
Segundo Reale, as novas concepções filosóficas apresentavam como um dos
traços comuns a valorização do indivíduo no entanto “[...] essa descoberta e esse novo
senhorio do indivíduo degeneram também no individualismo e no egoísmo, dois quais
veremos exemplos paradigmáticos sobretudo na ética de Epicuro e de Pirro
2
(REALE,
1994, p. 8). De acordo com este autor, quando o homem se descobre como indivíduo,
não se sente mais cidadão da polis, porque, com a revolução de Alexandre, todas as
decisões públicas são tomadas sem a sua participação (REALE, 1994).
2
Pirro de Êlis (365 275 a.C. mais ou menos), filósofo que iniciou o ceticismo, corrente de pensamento que se
manifesta no período helenístico.
28
A esse respeito, Sêneca, um dos principais representantes do pensamento
estóico, delineou um modelo de pedagogia, cujo destaque era o importante papel que
o homem ocupava como integrante do todo social. No estoicismo, ao contrário do
epicurismo, o homem deveria viver em sociedade: Epicuro diz: “Não participará da
vida pública o sábio, a não ser que sobrevenha alguma circunstância considerável”.
Zenão diz: “Participada vida pública, a não ser que o impeça alguma circunsncia
considerável” (SÊNECA, 1998 p. 81). Assim, para Sêneca, a participação do cidadão
na vida pública e política da cidade era importante. A pessoa tinha, por obrigação,
servir à pátria, ser útil a si mesma e aos outros. Isso significava agir em comum,
beneficiando toda a humanidade.
Ele concebia que todo processo de transformação dependia do próprio homem.
Este nasceu para ser feliz, lutar e encontrar esta felicidade. Enquanto cidadão do
mundo tinha que ser livre para optar por aquilo que fosse melhor para si mesmo e para
o outro. neca afirmava, em sua obra Sobre a tranqüilidade da alma e sobre o ócio,
que cada um devia agir em benefício da humanidade: “Isto seguramente se exige do
homem: que seja útil a homens. Se possível a muitos; quando não, a poucos; quando
não, aos parentes; quando não a si. Pois, quando se faz útil aos demais, ele serve ao
interesse geral” (SÊNECA, 1998, p.83). Sêneca, diferentemente de Epicuro, propunha
a inserção dos homens na sociedade. Ele buscava formar o homem para a vida
pública, para o exercício da cidadania.
Como representante do pensamento estóico vamos encontrar em Sêneca uma
reflexão filosófica que explicitava sua doutrina pedagógica. Ele propunha um modelo
de formação, cujo destaque era a capacidade do homem viver de acordo com a
natureza. Pereira Melo define que “viver segundo a natureza” significava para Sêneca
viver de acordo com a razão e o bem, isto é, em harmonia uns com os outros, procurar
ser útil (PEREIRA MELO, 2003).
[...] portanto, vivo segundo a natureza se todo a ela me dei, se dela sou
admirador e cultor. E a natureza quis que eu fizesse uma e outra coisa:
tanto agir como ter tempo para a contemplação; faço uma e outra,
porque a contemplação nem sequer existe sem ação (SÊNECA, 1998,
p.89).
Dessa forma, vamos encontrar em Sêneca uma das concepções de vida com a
qual o cristianismo em parte se identificou. A educação cristã assemelhou-se aos
29
princípios de formação dos estóicos. O cristianismo tinha, como modelo formativo, um
homem mais espiritualizado, cuja felicidade eterna seria alcançada por meio do
esforço, da luta e do sacrifício pessoal. No mesmo sentido, segundo a filosofia estóica,
a conduta do homem devia estar voltada para viver em harmonia, fazer benefícios,
ensinar e meditar.
Quando delinearam um modelo de pedagogia, cujos princípios éticos e morais
visavam fazer do indivíduo um ser virtuoso e feliz, o epicurismo e o estoicismo
traçaram o papel significativo que teriam na educação dos homens de sua época e do
futuro. Eles buscavam ensinar os homens a viver bem, colocando na ordem do dia o
interesse pelos problemas da vida interior e exterior. Desta forma, eles deixaram um
legado que permitiu à educação cris apropriar-se de suas concepções para dar
sustentação ao seu discurso teológico.
Esse processo de junção entre o cristianismo e a cultura greco-romana, nos
primeiros séculos da era cristã, foi árduo e complexo. Ao mesmo tempo em que os
cristãos negavam a cultura grega, utilizaram alguns de seus elementos para
disseminar a nova fé. Suas marcas fixaram-se no interior do discurso cristão. Em
outros termos, uma infinidade de conceitos e de argumentos foi assimilada para
justificar o pensamento cristão, que, assim, buscou no conhecimento greco-romano os
elementos para a construção de sua própria universalidade.
O discurso dos cristãos foi propagado pelos apóstolos no primeiro século as
o nascimento de Cristo, tendo como base a idéia de absoluta dependência do homem
em relação à Providência Divina. Segundo Guizot, “[...] os primeiros instrumentos da
fundação do cristianismo, os apóstolos, olhavam-se como investidos de uma missão
especial, recebida do alto e, por seu turno, transmitiam aos seus discípulos, pela
imposição das mãos ou sob qualquer outra forma, o direito de ensinar e pregar”
(GUIZOT, apud OLIVEIRA, 1999, p.12).
As Epístolas Paulinas foram as que mais influenciaram o desenvolvimento do
cristianismo, deixando um importante legado para o pensamento medieval. Por isso,
as contribuições de Paulo de Tarso ocupam o primeiro lugar em nossa análise; em
seguida, abordaremos tamm o pensamento de outros teólogos cristãos, como
Tertuliano e Santo Agostinho, que muito lutaram em defesa da cristã e se
preocuparam em oferecer, à sociedade, modelos e regras de comportamento
importantes para a formação do homem medieval.
30
2.2 - PAULO DE TARSO
De acordo com a documentação neotestamentária
3
, Paulo nasceu em Tarso, na
Cilícia, cidade helenística com um notável vel cultural. Era filho de judeu, mas, ao
converter-se ao cristianismo, tornou-se o grande responsável pela difusão da doutrina
cristã no culo I, proclamando-o como religião universal. Nas comunidades onde
pregava, mostrava a necessidade da imitação do modelo de vida de Cristo.
Seu objetivo era reorganizar a sociedade romana, abalada por crises internas.
Baseava sua doutrina no saber humilde de Jesus, visando a formação de uma
sociedade cristã. Para ele, a vida eterna seria resultado do processo de imitação da
conduta de Cristo enquanto pessoa. Paulo declarava em sua carta aos Gálatas: [...] o
Evangelho por mim anunciado não é invenção humana. E, além disso, não o recebi
nem aprendi através de um homem, mas por revelação de Jesus Cristo” (Gl 1, 11-12).
Segundo os princípios cristãos, todo conhecimento emana da sabedoria Divina.
Em consonância com esses princípios, Paulo afirmava que todos os ensinamentos
que ele pregava nas comunidades eram recebidos da providência divina, pois Cristo
era o verdadeiro e grande mestre.
Ele escrevia e transmitia oralmente os ensinamentos de Jesus para uma
sociedade que possuía valores, morais e religiosos diferentes da mensagem Cristã.
Paulo precisava ensinar novos conceitos e incentivar a cristã perante este grupo
social. Como homem culto e esclarecido, que conhecia a cultura clássica e sabia ler o
grego, utilizava-a, em suas pregações, para convencer os não convertidos a
acreditarem que a levava à cidadania celeste. A preocupação de Paulo era
proclamar a palavra divina, levando o homem a refletir sobre a sua presença no
mundo.
Cristo perpetuou sua presença, especialmente no mundo ocidental, mantendo-
se vivo exclusivamente por meio da dos cristãos. Em suas cartas, Paulo ensinava a
comunidade a receber a palavra divina e a viver aquilo que Jesus falou. “De fato,
vocês todos são filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo, pois todos vocês, que foram
batizados em Cristo, se revestiram de Cristo” (Gl 3, 26-27). Segundo ele acreditava, se
todos eram filhos de Deus, portanto, iguais, as diferenças culturais e sociais ficariam
suprimidas. “Não há mais diferenças entre judeu e grego, entre escravo e homem livre,
3
São o conjunto de documentos que formam o Novo Testamento: Cartas, Evangelhos, Atos dos Apóstolos e Apocalipse.
31
entre homem e mulher, todos vós sois um só em Jesus Cristo” (Gl 3, 28). O discurso
evangelizador desse Apóstolo tinha como objetivo unir todas as raças, culturas e
valores de forma a eliminar as diferenças entre os povos. Com essa interação, ele
pretendia dar unicidade a proposta de universalidade do cristianismo.
Convicto da necessidade da expansão do cristianismo, Paulo tentava convencer
os cristãos de que era preciso unir a comunidade pela fé, pois existiam muitas
divergências em torno da Ressurreição de Cristo: os gregos e os judeus não cristãos
consideravam loucura acreditar que Jesus crucificado tinha ressuscitado e exigiam
provas, sinais e explicações filosóficas desse fenômeno. Contrapondo-se a eles, Paulo
proclamava que estes conhecimentos não tinham valor, pois o verdadeiro
conhecimento emanava de Deus e o homem só adquiriria a cidadania celeste se
vivesse o ideal cristão, isto é, de acordo com ensinamentos de Cristo.
que vocês aceitaram Jesus Cristo como Senhor, vivam como
cristãos: enraizados nele, vocês se edificam sobre ele e se apóiam na
que lhes foi ensinada, transbordando em ações de graça. Cuidando
para que ninguém escravize vocês através de filosofias enganosas e
s, de acordo com tradições humanas, que se baseiam nos elementos
do mundo, e não em Cristo (Cl 2, 6-8).
Conforme a concepção educacional de Paulo, os conteúdos da filosofia eram
incompatíveis com a doutrina e com a prática cristã, pois eram baseados no uso da
razão e na investigação racional. Por isso ela deveria ser combatida. As heresias,
segundo ele, que questionavam as verdades da fé, eram decorrentes da Filosofia.
Durante sua missão apostólica, em suas cartas ou pregações destinadas a
combater as heresias, ele propunha novos rumos, novas relações e novas regras
morais para a vida das pessoas das comunidades. Segundo o Apóstolo, Cristo veio
para trazer uma mensagem de e esperança, ensinar a viver em santidade, levar o
indivíduo a renunciar a certos comportamentos, especialmente no que se referia ao
corpo. Sua pedagogia implicava o controle dos prazeres da carne, pois, segundo ele, o
corpo exterior, visível, era responsável pelas fraquezas humanas. Dessa forma, ele
orientava o cristão a se comportar e viver de acordo com o esrito e a verdade,
deixando de buscar os prazeres sensuais.
[...] a vontade de Deus é que vivam consagrados a ele, que se afastem
da libertinagem, que cada um saiba usar o próprio corpo na santidade
32
e no respeito, sem deixar-se arrastar por paixões libidinosas, como os
pagãos que não conhecem a Deus (1 Ts 4, 3-5).
Sua preocupação com a pureza do corpo e com a castidade é recorrente em
todos os seus escritos. No capítulo VII da primeira Epístola aos Coríntios, por
exemplo, ele recomendava a privão carnal e fazia críticas ao casamento,
considerando-o uma escolha inferior. Impressionado com a liberalidade sexual dos
romanos não cristãos, ele enfatizava a necessidade de se adotar uma prática de
abstinência carnal. As relações sexuais deveriam ser mantidas apenas para a
reprodução: a busca do prazer neste ato era considerada pecado.
Segundo o magistério paulino, viver em santidade, renunciar aos prazeres da
carne e ao modo de vida terreno significava libertar o corpo do mundo decadente: era
uma garantia para a salvação da alma.
Além desses princípios referentes à pureza do corpo, a educação cristã era
edificada sobre os pilares da fé, da esperança e da caridade. Tratava-se de formar um
ser humano voltado para o exercício desses valores crisos. De acordo com Paulo, a
conversão à cristã era a principal garantia da vida eterna e a solidariedade e a
assisncia eram umas das principais virtudes cristãs. Acreditar nesses ideais era
importante para enfrentar aquele momento em que as instituições romanas o
conseguiam mais responder às angústias das pessoas e em que a promiscuidade, as
injustiças sociais, a guerra, a luta pela sobrevivência eram constantes.
Estejam sempre alegres, rezem sem cessar. Dêem graças em todas as
circunstâncias, porque esta é a vontade de Deus a respeito de vocês
em Jesus Cristo. Não extingam o Espírito, não desprezem as profecias;
examinem tudo e fiquem com o que é bom. Fiquem longe de toda
espécie de mal (1Ts 5, 16-22).
A educação proposta por Paulo não era apenas um instrumento de formação
religiosa. Cabia ao cristão buscar inspiração divina e, de acordo com sua consciência
e vocação, contribuir para a edificão pessoal e comunitária. Ou seja, o cristão
precisava ter um ofício, ser útil à sociedade. Segundo a carta escrita à comunidade de
Coríntios, “[...] cada um recebe o dom de manifestar o Espírito para a utilidade de
todos” (1 Cor Cap. 12, 7). Isto é, todo conhecimento recebido emanava de uma força
divina; portanto, seu saber ou sua vocação, que não eram adquiridos pelo
intelectualismo, deviam servir para a construção de um mundo mais humano.
33
Assim, nesse momento de dissolução social e de decadência moral, marcado
por muitas diverncias, Paulo propunha acabar com as diferenças, unir gregos,
bios, judeus e cristãos e apresentava, de forma didática, a questão teológica sobre a
unidade, diversidade e solidariedade que caracterizava os cristãos. Por meio de uma
analogia entre as partes do corpo humano e os membros da comunidade, ele
mostrava que nenhum deles merecia mais atenção ou destaque do que os outros.
Todos eram indispensáveis para a construção e a formão de uma sociedade unida
em torno dos mesmos princípios.
De fato, o corpo é um só, mas tem muitos membros; e no entanto,
apesar de serem muitos, todos os membros do corpo formam um só
corpo. Assim acontece também com Cristo. Pois todos fomos batizados
num só Espírito para sermos um só corpo, quer sejamos judeus ou
gregos, quer escravos ou livres. E todos bebemos de um Espírito
(1 Cor 12, 12-13).
Segundo Paulo, Jesus atribuía a todos o papel de coadjuvantes na organização
de uma sociedade mais justa, livre dos males sociais, da imoralidade, da vida fútil e
das injustiças. Ao se unirem em defesa da doutrina cristã, todos poderiam contribuir
para formar indivíduos capazes de enfrentar os complexos problemas sociais
existentes naquele momento: fome, medo, epidemias, guerras, destruição,
marginalização, enfim muito sofrimento e morte.
A principal preocupação de Paulo era a proclamação da “Palavra” de Deus,
cujos ensinamentos atrairiam os ouvintes a seguir a justiça e a fé, o amor e a paz. O
comprometimento dos cristãos com Deus era o cleo fundamental da fé. Por meio da
fé, era possível alcançar a santificação e o aperfeiçoamento humano. Para se tornar
herdeiro da vida eterna, era preciso viver interiorizado, ou seja, voltado para si mesmo,
lembrando-se de que isso seria possível apenas por meio de Cristo.
Portanto, meus amados, obedecendo como sempre, não como
tempo em que eu estava presente, mas muito mais agora que estou
longe, continuem trabalhando com temor e tremor, para a salvação de
vocês. De fato, é Deus que desperta em vocês a vontade e a ação,
conforme sua benevolência (Fl 2, 12-13).
A prática da vida cristã, do sacrifício pessoal e da santificação era essencial
para alguém ser digno da salvação eterna. Este processo educativo, que visava o
34
destino da alma e a salvação, direcionava o indivíduo a viver de acordo com os
ensinamentos do mestre. Analisando o pensamento de Rosvita no século X, percebe-
se que ela retoma os princípios paulinos e, com base neles, constrói um discurso
evangelizador para as mulheres nobres e monjas do mosteiro onde vivia. Seus
personagens encarnam o ideal cristão que defendia. Em sua trajetória doutrinal, ela
menciona as principais virtudes que definem e caracterizam o cristão, como a , a
conversão, a volta para Deus e a consagração à virgindade, mostrando que se
apropria dos valores e conceitos defendidos pela educação paulina.
É possível perceber que ambos definem o modo de ser cristão e deixam
evidente que o único modelo a ser seguido era Cristo. Apesar de viverem em épocas
diferentes e distantes uma da outra, eles apontam o modo de ser cristão que a
humanidade deveria adotar e, desta forma, contribuíram para a construção e a
reorganização da sociedade.
Posteriormente ao Apóstolo Paulo, encontramos nos escritos de grandes
pensadores da Igreja essas mesmas concepções de vida e de mundo. Apontamos a
seguir alguns aspectos doutrinários e disciplinares da produção de Tertuliano e
Agostinho, que assimilaram conceitos da filosofia greco-romana para enriquecer e
afirmar a doutrina cristã.
2.3 – TERTULIANO
Tertuliano, que viveu aproximadamente entre os anos 150 e 250, é considerado
um dos principais escritores latinos e um grande defensor do cristianismo. Ao
revelarem sua contribuição para a transmiso e a conservação da cultura clássica
durante toda a Idade Média como algo inerente ao pensamento cristão, suas obras
oferecem-nos subsídios para compreender o processo de cristianização e expansão
da doutrina cristã nos primeiros séculos da era cristã.
As freqüentes invasões bárbaras, a violência, a peste, a fome, a insegurança, a
perseguição e as injustiças praticadas pelos governadores das províncias contra os
cristãos eram o pano de fundo de suas obras. Dedicados aos problemas da vida
prática, seus escritos eram sempre polêmicos. Ele combatia de forma ardente e
rigorosa todas as seitas e doutrinas que proliferaram no século III e que levantavam
vidas em torno do mistério da morte e da ressurreição de Cristo. Do mesmo modo
que Paulo, o apóstolo, ele apresentou regras de comportamento, preceitos morais e
35
religiosos e defendeu os princípios cristãos, contribuindo para modelar o homem
cristão e reordenar a sociedade.
Sua obra, Apologética
4
foi escrita no referido período de guerra e de violência
no interior do Império Romano. A proliferação das seitas e das doutrinas gnósticas
constituía uma das grandes preocupações de Tertuliano. O conteúdo da Apologética,
segundo Moreschini, era baseado na “[...] defesa do cristianismo, no destaque dado à
antigüidade dos pressupostos judaicos e à pureza da nova religião”
(MORESCHINI,1996, p.448). Segundo esse autor, nesta obra Tertuliano apresentava
um pido sumário da doutrina cristã, demonstrando que o comportamento adotado
por aqueles que negavam a em Cristo era um desvio, cujos princípios eram
diferentes daqueles defendidos pelos cristãos. Censurava o procedimento dos
governadores em sua perseguição anticristã, destacando a necessidade o de
insubordinação, mas de obediência ao Império enquanto instituição, uma vez que este
tinha sido aprovado por Deus para orientar e conduzir a humanidade (MORESCHINI,
1996 ).
Mesmo contendo críticas à filosofia greco-romana, a Apologética foi elaborada
com base nos “elementos filosóficos de origem estóica” (MORESCHINI, 1996, p. 448),
nos quais Tertuliano encontrou argumentos que considerou verdadeiros para justificar
e completar seu discurso religioso.
Defendia a necessidade de uma instituição que desse uma direção aos homens
do seu tempo, estabelecendo princípios e regras de comportamento. No século III a
sociedade religiosa ainda não possuía nenhum poder, não estava organizada
enquanto instituição. Para ele, o Imrio era eno a única instituição que possuía
meios para intervir na sociedade e fazer cumprir regras. Ao poder temporal cabia a
participação constante nas tomadas de decisão e nas deliberações. Ao poder
espiritual cabia intervir nas decisões e caminhar ao lado do governo civil, mas cada um
em sua própria esfera. Aos poucos, o discurso dos padres foi adquirindo confiança e
embrenhando-se cada vez mais na sociedade e, assim, a Igreja foi adquirindo
gradativamente maior importância social. Com o decorrer do tempo, sua tendência foi
seguir a forma de organização e administração do Império Romano.
4
Vamos usar o conceito Apologética, mas não desconhecemos que MORESCHINI utiliza a expressão Apologético e
VIDAL/PASQUOTO ao traduzir a obra para o português usou o termo Apologia.
36
Tertuliano reconhecia que a instituição imperial, tendo sido aprovada por Deus,
era válida para organizar a sociedade. Ele destacava sempre a importância do homem
orar pelo imperador e participar de toda a vida social. Como cidadão, o cristão devia
fidelidade e respeito ao imperador, pois este era o representante de Deus na terra.
Essa atitude de Tertuliano exprimia a necessidade da obediência, apesar das
perseguições.
Invocamos, para a salvação dos imperadores, o Deus eterno, o Deus
verdadeiro, o Deus vivo cuja benevolência é preferida à de todos os
outros pelos próprios imperadores. Eles sabem quem lhes deu o
império; sabem, como homens, quem lhes deu a vida; sentem que
esse é Deus, sob cuja autoridade única eles se encontram na segunda
categoria, os primeiros depois dele...O imperador só é grande na
medida que é inferior ao céu; de fato, ele mesmo é coisa daquele a
quem pertencem o céu e toda criatura. É imperador por aquele que o
fez homem, antes de fazê-lo imperador; seu poder tem a mesma
origem que o sopro que o anima. É para esse Deus que nós, cristãos,
elevamos os olhos, as mãos estendidas, porque são puras, a cabeça
descoberta, porque não temos de nos envergonhar, sem ninguém que
nos dite as palavras, soprando-as, porque oramos com o coração. E
por meio de orações incessantes, pedimos para os imperadores vida
longa, reinado tranqüilo, palácio seguro, tropas valorosas, senado fiel,
povo leal, universo calmo, enfim, tudo o que um homem e um sar
possam desejar [...] (TERTULIANO, apud LIÉRBAERT, 2000, p.77).
Esta atitude de Tertuliano, exaltando a majestade imperial e recomendando que
os cristãos orassem, decorria de sua crença de que o poder do Imperador neste
mundo pertencia a Deus e não ao Império. Para ele, o poder espiritual estava acima
de qualquer hierarquia e o imperador tinha recebido da providência divina o poder de
governar para o bem de toda comunidade. Na sua concepção, a comunidade cristã
era formada por um grupo de pessoas reunidas em torno de um mesmo objetivo, ou
seja, como um corpo.
Com esta concepção, ele afirmava, na Apologética, que a comunidade cristã,
formada pela união de todos os homens, deveria ter a “[...] consciência de professar a
mesma religião, de ter uma única disciplina e um pacto próprio de esperança”
(TERTULIANO, apud MORESCHINI, 1996 p. 463). De acordo com Moreschine,
repercute nesta sentença de Tertuliano o tripé de princípios sobre o qual se assentava
o discurso cristão de Paulo, o Apóstolo e, muito tempo depois, também os escritos de
Rosvita: fé, caridade e esperança. Tertuliano mostrava aos não convertidos que estes
eram os princípios que norteavam as práticas da comunidade cristã.
37
Ao se referir às perseguições contra os cristãos, Tertuliano mostrava-se
preocupado com as injustiças sociais e com os marginalizados e, segundo Gilson,
sabiamente, ele organizou, por meio de argumentos jurídicos, um discurso em defesa
dos cristãos, apelando para o seu direito de liberdade religiosa (GILSON, 1998).
Questionou as normas e as leis dos governadores das províncias contra os cristãos e
o fato de eles serem condenados simplesmente por possuírem este nome. Tertuliano
proclamava os princípios da liberdade religiosa, considerava que nenhum culto poderia
ser imposto e declarava a absoluta igualdade dos homens diante de Deus. De acordo
com o autor no tratado da “Apologética” , ele afirmava:
[...] de fato é contra a lei condenar alguém sem defesa e sem
audiência. Somente os cristãos são proibidos de dizerem algo em sua
defesa, na salvaguarda da verdade, para ajudar ao juiz numa decisão
de direito. Tudo o que é levado em conta é que o blico, com ódio,
pede a confissão de um nome”, não o exame da acusação, enquanto
em vossas investigações ordinárias judiciais, no caso de um homem
que confessa assassinato, ou sacrilégio, ou incesto, ou traição para
se ter idéia do crime que são acusados s não vos contestais em
imediatamente emitir uma sentença. Não o fazeis até que o examinais
as circunstâncias da confissão, qual é o tipo do crime, quantas vezes,
onde, de que maneira, quando ele o fez, quem estava com ele e quem
tomou parte com ele no crime (TERTULIANO, 2005, cap. II, p.4).
Apesar das numerosas perseguições, o número de cristãos aumentava e
diversos casos de martírios foram praticados em nome da fé. Essa prática era
vista como modelo para outros cristãos, era uma forma de imitar o modelo de vida
de Cristo durante sua passagem pela terra. Portanto, era de fundamental
importância para o cristão dar sua vida em nome de Cristo, isto é, morrer por
Cristo. “Pois quem quiser salvar a sua vida , vai perdê-la; mas, quem perde a sua
vida por causa de mim, vai encontrá-la ”(Mt 16, 25). Tertuliano escreveu um
tratado dedicado a esta prática: A los mártires. Nesse tratado, comentado por
Pasalodos, ele procurava consolar e confortar os cristãos encarcerados.
Les escribe a la cárcel asegurándoles que el apartamiento actual es
comparable con el de un atleta, al igual que su abstinencia, si bien
mientras éstos persiguen una corona para la gloria en el mundo, los
cristianos buscan una corona inmarcesible, la vida eterna
(PASALODOS, 2001, p.17).
38
Tipicamente cristão, este elemento relacionado à exortação do martírio tinha por
objetivo levar o homem à “[...] convicção cristã, da imitação de Cristo”, pela qual o
mártir reproduz a paixão de Cristo e Cristo está presente nele” (MORESCHINI, 1996,
511-512). A morte não deveria ser um motivo de medo, pois não representava um fim,
mas sim o início de uma nova vida, a vida eterna prometida por Cristo.
Dessa forma, em todo o Império Romano, por várias décadas, empreendeu-se
uma campanha anticristã. Durante o mandato dos Imperadores, produziram-se vários
editos contra cristãos. Muitos escritores não cristãos também faziam críticas e
ridicularizam o martírio.
[...] acusa a los seguidores de Jesús de plagiadores de los siete sabios
de Grecia y concluye poniendo de manifesto que la actitud política de
los cristianos es deleznable por propugnar un apartamiento de la vida
pública dentro de su continua "irracionalidad" que les lleva a creer
simplemente por la fe (PASALODOS, 2001, p.10).
Por sua vez, rios autores cristãos lutavam contra as calúnias dirigidas aos
cristãos e defendiam os princípios da cristã, entre eles Tertuliano. Apesar de adotar
uma atitude de hostilidade com relação à filosofia, ele mesclou alguns princípios da
cultura clássica pagã que adquirira durante sua formão, empregando-a na luta a
favor daquela doutrina. Segundo ele, os filósofos estavam mais preocupados em
realizar discursos nascidos da sabedoria humana para agradar aos homens,
interpretando e manipulando a verdade de acordo com os elementos do mundo e
opondo-se freqüentemente à doutrina cristã.
La filosofía, al hallar esto, lo exaltó para gloria de su propia disciplina
(no es nada sorprendente si me atrevo a decir lo tal cual) por su afán
de construir y destruir lo concerniente a la elocuencia, más expertos en
persuadir expresándose elegantemente que en enseñar.
La filosofía impone las leys a las cosas, unas veces las equipara, otras
las elimina, obtiene conclusiones inciertas de cosas ciertas, gusta del
ejemplo, como se hubiera de compararse todo; define todo, incluso con
propriedades opuestas entre lo semejante, no deja nada a la voluntad
divina, y hace de sus propias opiniones leyes naturales; lo podría
tolerar si siendo ella misma natural, se mostrara como dueña de la
naturaleza por su participación en la condición divina (TERTULIANO,
2001, p.42-43).
Segundo Alfred, outro argumento que Tertuliano utilizava contra a filosofia era o
de que ela era vista como aliada das heresias. Para ele, estas tinham sua origem na
39
filosofia e, com freqüência, questionavam as verdades pregadas pela fé em Cristo. Os
hereges não tem direito algum de precisar o sentido das Sagradas Escrituras”
(ALFRED/ BERTHOLD, 1972, p.161). Ele considerava como verdadeira apenas a
doutrina pregada pelos Apóstolos, os quais tinham recebido de Cristo a missão de
propagar por todas as nações a fé nos ensinamentos cristãos. Desta forma, apenas as
Igrejas apostólicas eram consideradas verdadeiras, uma vez que tinham recebido a
doutrina dos Apóstolos e apenas elas podiam precisar o sentido das Sagradas
Escrituras.
Contudo, os cristãos, os padres e teólogos necessitavam se abrir cada vez mais
para a filosofia greco-romana, pois precisavam discorrer sobre as verdades da fé.
Tertuliano, mesmo negando teoricamente a essa filosofia, adotou, na prática, alguns
conceitos que o auxiliaram a formar seu pensamento, principalmente no que se refere
ao corpo e alma. Segundo Moreschine, ele se aproximou, sobretudo, do estoicismo, o
que pode ser confirmado em seu tratado Acerca da alma.
[...] sino que más bien hago alusión a los estoicos, los cuales afirman a
nuestra manera que el alma es espíritu por la afinidad entre sí del soplo
y del espíritu. Por lo menos persuadirán fácilmente de que el alma es
cuerpo.
[...] por último, Zénon toma de este modo el alma definiéndola como
“espíritu inseminado”. “Lo que se disgrega cuando muere el animal”,
dice, “es el cuerpo”; ahora bien, “una vez disgregado el espíritu
inseminado, muere el animal”; el espíritu inseminado, es cuerpo, luego
el cuerpo es alma” (TERTULIANO, 2001, p. 49).
Alguns pontos da doutrina do estoicismo facilitaram sua tarefa de convencer os
que não possuíam em Cristo a aceitarem a doutrina cristã. Um deles foi a idéia de
que Deus era uma entidade corpórea e racional, de fato, alcançável, e que a alma
humana era material “[...] porque tudo que existe deve ter um corpo ainda que sui
generis, diz ele no Contra Práxeas” (TERTULIANO, apud MORESCHINI p.456). Na
concepção de Tertuliano, alma e corpo estavam estritamente ligados, podendo a alma
agir sobre a matéria, isto é, sobre o corpo.
Naquele momento em que as lutas e as perseguições contra os cristãos eram
constantes, era fundamental que Tertuliano se ocupasse em incentivar a na
sobrevivência da alma. O homem precisava acreditar que, para a exisncia da alma, o
corpo era necessário, assim como o alimento que sustentava este corpo. Na
40
sociedade que estava sendo construída, a prova de que a alma sobrevive após a
morte tinha por finalidade mostrar ao homem que o precisava temê-la porque ela
não representava o fim e, sim, o início da vida eterna. Era necessário acreditar em
uma força sobrenatural que fazia mover nosso corpo e que vinha de uma força
interior, da fé em Deus.
De donde, aunque sea próprio de um cuerpo ser movido por alguien
desde fuera, no obstante hemos mostrado anteriormente que el alma
puede ser movida por otro cuando vaticina, cuando entra en delírio;
ciertamente es movida exteriormente cuando lo es por otro.
Roconoceré, com razón, como cuerpo, lo que sea movido desde fuera,
de acuerdo con la premisa mayor. Ahora bien, si es propio de un
cuerpo ser movido por otro, con cuànta más razón será mover a otro?
Sin duda alguna, el alma mueve al cuerpo, y sus impulsos se muestran
exteriormente, por fuera. A causa de ella se mueven los pies al andar,
las manos al tocar, los ojos a ver, la lengua a hablar, como en una
marioneta el movimiento interior agita lo de fuera. De dónde procede
esa fuerza incorporal del alma? Como es posible que cosas
inconsistentes sean capaces de mover cuerpos sólidos?
(TERTULIANO, 2001, p.51, VI.3).
Para justificar e aprofundar sua discussão sobre o problema da essência da
alma, Tertuliano buscou argumentos na Sagrada Escritura: eles é que elucidavam a
corporeidade da alma. Dentre várias passagens na Bíblia, ele utilizou a parábola do
rico que possa uma vida generosa, enquanto Lázaro passava por privações. No
final, após a morte dos dois, a alma do rico, atormentada pelo fogo do inferno,
implorava a Lázaro por um pouco de água (Lc 16, 22-31). Esta parábola era
considerada por Tertuliano como uma prova da corporeidade da alma: “[...] pues se
alma no tuviera corpo, no tomaria la parábola Del alma la imagen del cuerpo, ni
mentiria la Escritura, hablando de miembros corporales si no lo eran” (TERTULIANO,
p.55, 2001). Os cristãos precisavam acreditar que a alma recebia o prêmio ou o
castigo de Deus imediatamente após a morte. Nesta crença residia a única esperança
dos homens crisos daquela época.
Tertuliano professava que a fé consistia apenas na crença, sem qualquer
necessidade de compreensão racional. Ao ser acusado pelos não convertidos a fé em
Cristo de defender dogmas absurdos e contrários à razão, ele respondia com a frase
“credo quia absurdum”, (creio mesmo que seja absurdo) com a qual, segundo
Moreschini, ele queria apenas salientar “[...] que a implica uma realidade
41
incompreensível e que em tal situação é preciso crer, mais que raciocinar”
(MORESCHINI,1996, p.466).
Assim, de um lado, com base na autoridade da Sagrada Escritura, ele
assegurava que no Evangelho os cristãos encontrariam explicão para todas as suas
indagações. Por outro lado, os próprios conflitos que permeavam a sociedade romana
colocavam a necessidade da partilha de alguns pontos em comum com os filósofos, e
o cristianismo abriu-se cada vez mais à filosofia greco-romana, fixando as relações
entre o reino mundano e o reino de Deus.
Esto, sin Duda, nos puede llevar a un conflicto con los filósofos,
principalmente en este tema, por el hecho de que a menudo revisten
máximas comunes con argumentaciones propias, contrarias en algún
punto a nestra regla de fe. Otras veces parapetan sus sentencias con
algunas argumentaciones comunes, conformes en algún punto con su
doctrina, de tal modo que la verdad queda prácticamente excluida por
causa de la filosofía, debido a sus venenos dirigidos contra ella, así que
por los dos motivos interrelacionados que se oponem a la verdad nos
vemos obligados a liberar las ximas comunes de las
argumentaciones de los filósofos, y a separar las comunes
argumentaciones de sus opiniones con la intención de retomar los
asuntos de la Palabra de Dios: se nos permitirá a modo de excepción,
como simple prueba, servirnos de aquellas que carezcan del lazo de
algún prejuicio, porque as veces el testimonio de los enemigos es
necesario si les beneficia a los que no son enemigos (TERTULIANO,
2001, p.44. II,5).
Os escritos de Tertuliano lembravam que o mundo desmoronava e que a
sociedade romana, enfraquecida, revivia o perigo da influência dos hereges sobre os
cristãos. Os homens enfrentavam muitos problemas, dentre eles, a própria convivência
entre os que acreditavam e os que negavam a em Cristo. Assim,
contraditoriamente, preocupado com a fraqueza e a carência humana, Tertuliano
encontrou auxílio no pensamento de alguns filósofos gregos e romanos para escrever
alguns tratados a respeito da moral e dos costumes e definir algumas regras de
comportamento social.
Entre 198 e 200 ele escreveu um tratado denominado Os espetáculos, no qual,
segundo Paratore, condenava rigorosamente a freqüência dos crentes a qualquer
escie de espetáculo pagão (PARATORE,1996). As comédias teatrais, os jogos dos
gladiadores eram comuns naquela época e atraíam a atenção do público por serem
42
agraveis aos olhos e aos ouvidos. Eles tinham sido instituídos pelos romanos e
difundiam-se por várias cidades. No entanto, a doutrina cristã condenava
absolutamente todos os tipos de espetáculos públicos, por causa da sua imoralidade e
da estreita ligação com o culto dos ídolos.
Portanto, após a conversão, os cristãos deveriam abandonar todos os tipos de
espetáculos teatrais, considerados como pecado, porque “[...] eram postos sob a
proteção de um deus pagão, devendo ser considerado como uma manifestação da
idolatria, e freqüentá-los significava um ato de adoração dos ídolos” (MORESCHINI,
1996, p. 458).
De acordo com o cristianismo, as cenas apresentadas corrompiam a sociedade.
Os costumes públicos, segundo Tertuliano, estavam impregnados de atos imorais. Era
preciso separar os homens da vida comunitária pagã. Nesse sentido, o escritor
advertia os cristãos sobre a qualidade do seu conteúdo e sobre a necessidade de
afastar os jovens dos espetáculos teatrais.
O teatro é, sem tirar nem pôr, o santuário de Vênus. Dgolfou a
impureza por esse mundo além [...] O que é mais próprio e peculiar da
cena, a malícia do gesto e dos requebros corporais disso fazem
oferenda a Baco e Vênus: à deusa, pelo desbragamento sexual e a
Baco, pelas copiosas libações. Cumpre-te ter em asco, ó cristão, as
coisas cujos autores não podes deixar de odiar etc. (TERTULIANO,
apud LAUAND, 1986, p.31)
Observamos, portanto, que Tertuliano protestava e era totalmente
intransigente em relação à moral e aos costumes instituídos pelo mundo romano na
sociedade do século III. Procurando direcionar a conduta e a atitude dos cristãos em
relação à cultura profana e tendo em vista que a Igreja e os crisos estavam
envolvidos em diversas atividades públicas, ele propunha preceitos morais importantes
para a formação dos jovens.
Ele não condenava somente os espetáculos públicos. Segundo Liébaert,
ao abordar determinados temas, revelava uma crescente intransigência moral: “[...]
poderão eles assistir aos espetáculos públicos, exercer as profissões de soldado, de
mestre-escola, de funcionário ou de magistrado?” (LIÉBAERT, 2000, p. 83). De acordo
com este autor, Tertuliano não condenava totalmente a execução de atividades
públicas, porém estabelecia normas que dificultavam o exercício delas: “[...] autoriza
os cristãos a receber o ensinamento da cultura profana, mas não exercer o magistério,
43
pois o docente é levado a implicar-se nele, muito mais que o aluno” (LIÉBAERT, 2000,
p. 83). Seguindo com rigor as interpretações da Escritura Sagrada, ele protestava
contra a conduta daqueles que aderiam à cultura profana.
Tertuliano, como apologista cristão da Antigüidade latina, esteve entre os
primeiros que sistematizaram o conjunto de idéias criss em latim. Apoiado nas
traduções da Bíblia existentes, ele construiu sua linguagem teológica sobre Deus,
contribuindo para a expansão da cristã. Conheceu a cultura literária clássica da
época e teve uma sólida formação na cultura filosófica e jurídica. Por ser capaz de ler
o grego com perfeição, teve acesso aos escritos antigos. Dessa forma, a teologia
cristã defendida por Tertuliano foi uma síntese da influência da filosofia greco-romana
e da Escritura Sagrada, que era a principal fonte utilizada para ilustrar e ensinar os
conceitos fundamentais do cristianismo.
Podemos considerar que os escritos de Tertuliano influenciaram o pensamento
de Rosvita, principalmente no que se refere à aceitação do martírio em defesa da Fé
em Cristo e à demonstração de que o corpo era capaz de suportar todos os
sofrimentos terrenos para que a alma recebesse vida eterna.
2.4 - SANTO AGOSTINHO
Os escritos de Agostinho (354 430), considerado um dos grandes
representantes da Igreja e da religião cristã nos séculos IV e V, o fontes importantes
para esta tentativa de reconstruir a forma como o pensamento cristão se apropriou da
tradição filosófica greco-romana, dela recebendo um enorme impulso.
Naquele período da historia, fim da Antigüidade e início da Idade Média, a
sociedade como um todo parecia se desmoronar. Fragilizada, Roma tinha sido
saqueada por grandes grupos nômades. Naquele ambiente conturbado, Agostinho,
elaborou e sistematizou seu pensamento com base na cultura antiga, especialmente
em Platão e nos escritos sagrados. Seus ensinamentos e reflexões, presentes nos
conselhos, sugestões e sermões, voltados para os princípios da fé cristã, foram
extremamente importantes para a formão educacional na Idade Média.
No plano pedagógico, ele discutiu questões relacionadas ao processo de
conhecimento e aprendizagem, à razão humana, à busca da felicidade, ao corpo e à
alma. Ao mesmo tempo em que formava pessoas, ele divulgava o cristianismo e
conduzia a sociedade, do seu tempo, a buscar a cidadania celeste.
44
Agostinho, como cidadão romano, presenciava e não deixava de refletir sobre o
trágico desmoronamento do mundo romano. Recorria às escrituras para demonstrar
que Deus poderia, de fato, conduzir o ser humano para o caminho da justiça e que
somente a na providência divina poderia amenizar os sofrimentos que afligiam o
Império.
Assim, ruínas, homicídios, pilhagem, desolação, incêndio, horrores
cometidos no recente desastre de Roma, tudo se deve as usanças
guerreiras. Mas o fato estranho, o fato novo, a ferocidade dos bárbaros
transformada nesse prodígio de clemência que escolhe, que designa ao
povo as mais amplas basílicas como refúgio onde ninguém será ferido,
donde pessoa alguma searrancada, para onde os vencedores mais
humanos levarão os cativos a fim de assegurar-lhes a liberdade, donde
os mais cruéis não poderão tirá-los a fim de reduzi-los a escravos,
devem-no ao nome do Cristo, à era cristã. Quem o é cego; quem
o em silêncio, ingrato; quem se insurge contra as ões de graças,
louco. Ninguém de bom senso o atribui aos costumes ferozes dos
bárbaros. Quem lhes assombrou, freou, admiravelmente abrandou as
mentes assim truculentas e ferozes foi Ele, que por boca do profeta
longo tempo dissera: Castigar-lhes-ei as iniqüidades com o cajado e os
pecados com os flagelos, mas não os privarei de minha misericórdia
(AGOSTINHO, 2003, p. 34).
O teólogo propunha, por meio da mensagem Cris, educar as pessoas daquele
período para conviverem e se comportarem de acordo com os ensinamentos de Cristo,
buscando o crescimento espiritual e a salvação eterna. Naquele momento, sua grande
preocupação era encontrar formas de organizar a sociedade, e o processo
educacional, de formação do pensamento cristão, apresentava-se como uma delas.
Algumas dessas idéias foram expostas ao longo do livro a Cidade de Deus.
Para abordar os graves problemas que a sociedade enfrentava com a devastação do
Império, ele desenvolveu um raciocínio com base na relação entre o modo de viver da
cidade de Deus e o da cidade terrena. Para este pensador, o ser humano, por possuir
um só corpo e um só espírito, seria, ao mesmo tempo, cidadão deste mundo e da
cidade celestial.
Agostinho partia do princípio de que a salvação se encontrava no reino de Deus,
isto é, na cidade celeste. Segundo ele, nesse sentido, a vida na sociedade terrena é
passageira e precisaria estar apoiada no modelo divino e nos valores religiosos
cristãos, ao passo que a sociedade de Deus representa a morada eterna após a morte.
De acordo com Agostinho [...] “a morte não representa nenhum mal, se sucede a vida
45
santa; não pode ser mal, senão pelo acontecimento que a segue” (AGOSTINHO, 2003,
p. 41)
Assim, o bispo de Hipona estava mostrando para aquela sociedade que Deus
existia. Era preciso crer, sobretudo, que existia algo superior que conduziria à
felicidade eterna. Somente a conversão e a obediência às leis cristãs poderiam
contribuir para orientar as pessoas. O Império Romano era a cidade terrena; por isso
era necessário que acreditassem que a fome, a miséria, as doenças, os saques, as
guerras e todos os males que Roma sofreu faziam parte do mundo o espiritual. Por
isso, ele dizia:
[...] quem na ruína de Roma, perdeu as riquezas terrenas, se as
possuía conforme o ensinamento desse pobre por fora, mas rico por
dentro, isto é, usando o mundo como se não o fizesse, pôde exclamar
com o homem invulnerável às tentações mais rudes: Nu saí do seio de
minha mãe e nu voltarei para o da terra. O senhor deu-me tudo, o
senhor tirou-me tudo. O que me aconteceu aconteceu porque aprouve
a Deus. Bendito seja seu nome (Idem, p. 38).
Diante desse cenário, cabia-lhe orientar as pessoas a ter fé, a acreditar que
Deus existia e que a morte não era o fim de tudo, mas sim o começo da vida eterna, o
encontro com Deus. As dificuldades enfrentadas eram muitas e a vida na terra
somente seria possível com base na crença na salvação. Portanto, ele pregava a
renúncia aos bens materiais. A preocupação deveria ser a busca da felicidade interior,
assim a humanidade se aproximaria de Cristo.
Dessa forma, ele procurava levar o cristão a tomar consciência de sua vida
neste mundo e encaminhar-se por meio da fé à cidade celestial, para encontrar a fonte
máxima da felicidade. Em razão disso, como outros doutores da Igreja, ele também
desenvolveu argumentos para afastar a sociedade daquela atividade que era
considerada pelos cristãos como uma das mais perniciosas, o teatro.
Como expusemos, a arte teatral, considerada pagã, era rejeitada pelos
cristãos, pois os jogos cênicos, introduzidos pelos gregos, eram consagrados aos
deuses. São João Crisóstomo, em Sobre a Vanglória e a Educão dos Filhos,
advertia “[...] é preciso afastar o menino dos espetáculos desonestos, pois uma criança
livre (em oposição à escrava) não deve jamais comparecer ao teatro” (CRISÓSTOMO,
apud NUNES, 1978 p.166). Tertuliano tamm se exprimia contra a arte e os jogos
46
nicos. Para ele, estes especulos eram desprezíveis, pois apresentavam cenas
prejudiciais à formação dos crisos. Em sua obra Sobre os Espetáculos, [...] declara
que o teatro está a serviço do diabo, de suas pompas e dos seus anjos, devido à
idolatria, ao passo que os cristãos renunciaram a eles na pia batismal” (TERTULIANO,
apud NUNES, 1978, p.166). Sobre os espetáculos teatrais e jogosnicos, Agostinho
fez as seguintes considerações:
Ficai sabendo, vós que os ignorais, vós que fingis ignorar e, livres de
semelhantes tiranos, murmurais de vosso libertador, ficai sabendo que
os jogos cênicos, espetáculos de infâmia, libertinagem de vaidades,
não foram instituídos em Roma pelo vícios dos homens, mas por ordem
de vossos deuses. Não valeria mais decretar honras divinas a Cipião
que tributá-las a deuses assim? Tinham o mesmo valor do pontífice?
Escutai, se a razão, de há muito embriagada pelas beberagens do erro,
ainda vos permite alguns instantes de lucidez, escutai: é para aplacar a
peste, assassina dos corpos, que vossos deuses reclamam os jogos
nicos, para conjurar a peste moral é que vosso pontífice se opõe a
construção de teatro. Se ainda vos resta algum vislumbre de
inteligência para preferir a alma ao corpo, escolhei vossas divindades
(AGOSTINHO, 2003, p. 62).
Ao condenar os espetáculos teatrais, Agostinho estava preocupado com a
degradação moral que assolava o Império. Ao assistirem às cenas funestas e trágicas
representadas no teatro, a sociedade romana poderia se deixar corromper. Era
preciso, portanto, afastar o público dos espetáculos e diversões teatrais. Ele esclarecia
que esta arte, da forma como estava sendo representada, era própria dos que eram
dominados pelas paixões, que se divertiam no seio da corrupção e das cenas
obscenas expostas no palco. Para ele, uma vez que os conteúdos dos espetáculos
eram incompatíveis com os princípios pregados pelo cristianismo, os valores morais e
religiosos, cuja conservação era imprescindível para a sociedade, poderiam ser
corrompidos.
Tanto Santo Agostinho como outros teólogos da Igreja, que viveram em meio à
inevitável ruína e à degradação moral de sua época, entendiam que a atitude que lhes
restava era apontar caminhos e apresentar soluções.
Por isso, Agostinho recomendava que se evitassem os espetáculos teatrais,
pois eles fascinavam as multidões. Após a conversão, o cristão deveria permanecer
afastado dos espetáculos considerados mundanos. Em contrapartida, em suas
pregações e sermões, ele ensinava o conteúdo da Sagrada Escritura, indicando que
47
os ensinamentos de Cristo, num momento em que as esperanças terrenas pareciam
vãs, eram adequados para dar fortaleza.
Esta era uma forma de responder às necessidades e angústias da população do
seu tempo, cuja vida social era marcada por muitas lutas internas, pela proliferação
dos conflitos entre paganismo e cristianismo. Para justificar a Fé cristã diante de
inúmeras doutrinas que ameaçavam a Igreja, ele fundamentava suas idéias nos
princípios da filosofia platônica, dando assim substância teórica ao cristianismo.
Ao escrever sobre corpo e alma, ele mantinha a concepção platônica que
definia o ser humano como uma alma que se servia de um corpo. Sendo a alma
superior ao corpo, somente ela poderia agir sobre ele sem nada sofrer. Agostinho
também se aproximava da doutrina platônica para explicar que a inteligência humana
era assistida pela ação iluminadora e imediata de Deus. Isto é, para ele, o processo do
conhecimento estava submetido a Deus, que era a fonte de toda verdade. Era essa,
portanto, a filosofia que mais se aproximava da verdade da cristã, segundo o bispo
de Hipona.
Todos os filósofos, pois, que a respeito do verdadeiro e supremo Deus
pensaram ser o autor da Criação, a Luz das inteligências, o fim das
ões, que dele nos vêm o princípio da natureza, a verdade da doutrina
e a felicidade da vida, quer sejam justamente chamados platônicos,
quer de outras escolas recebam outro nome, quer tais opiniões tenham
sido professadas apenas pelos chefes da escola jônica, como Platão e
os que compreenderam bem, quer Pitágoras, seus discípulos e talvez
outros a tenham difundido nas escolas italianas, quer essas verdades
tenham sido conhecidas e ensinadas pelos sábios ou filósofos das
nações estrangeiras, além dos Atlas, na Líbia, no Egito, na Índia, na
Pérsia, na Caldeia, na Cítia, nas Gálias e na Espanha, todos esses
filósofos, repetimos, preferimo-los a todos os outros e confessamos que
nos tocam de perto (Idem, p. 311).
Dessa forma, para explicar o processo do conhecimento, Agostinho adotou a
teoria da reminiscência, que era mais compatível com a pregação da doutrina Cristã.
Segundo ele, por meio da alegoria da caverna, Platão queria mostrar que, para atingir
o conhecimento, era preciso chegar à contemplão das idéias, a essências maiores
do que as que a luz física da realidade podia mostrar.
Esta teoria filosófica de Platão foi substituída por Agostinho pela doutrina da
Iluminação. Ele não adotou inteiramente a concepção platônica da reminiscência, já
que, após o batismo, enquanto cristão, ele não poderia admitir a existência da alma
48
antes do corpo, nem a contemplação das idéias numa vida anterior (PEREIRA MELO,
2002, p.67). para o fisofo grego, a alma existia antes do corpo e os
conhecimentos atuais eram simples recordações.
Para Agostinho, o processo de conhecimento só podia ser explicado por uma
iluminação divina. De alguma maneira, as verdades eram depositadas por Deus na
mente. A “iluminação” tinha alguma relão com a idéia platônica de felicidade. Dessa
forma, a luz do Sol, que iluminava as coisas, equivalia à iluminação divina sobre o
homem na busca do conhecimento: “Deus é o Sol, e a alma a Lua, porque, segundo
eles, a presença do Sol ilumina a Lua” (AGOSTINHO, 2003, p.372). Assim, para
sustentar sua teoria, além de Platão, ele buscou apoio no Evangelho de São João:
[...] Houve certo homem enviado de Deus; chamava-se João. Veio
como testemunha, para dar testemunho da Luz, a fim de que todos por
meio dele cressem. Ele mesmo não era a Luz, mas vinha dar
testemunho da Luz. Era a Luz verdadeira, que ilumina todo homem que
vem a este mundo. Tal distinção mostra claramente que a alma racional
ou intelectual, como era a de João, não podia ser a Luz para si mesma,
mas luzia pela participação de outra Luz verdadeira. É o que o próprio
João confessa, quando, dando testemunho da Luz, declara: De sua
plenitude todos recebemos (Idem, p. 372).
Segundo Agostinho, o verdadeiro conhecimento residia na alma. Esta recebia a
iluminação de Deus, o único que possuía a luz da inteligência. De acordo com esta
concepção, o homem chegaria ao conhecimento por meio da iluminação divina. O
professor direcionava, acalentava e proporcionava a iluminação, mas o processo era
dirigido por Deus, por intermédio de Cristo, único Mestre da Verdade.
Portanto, o processo de formão da alma cristã e de crescimento interior
deveria ser guiado pela razão. A educação deveria ser transcendente, sair de dentro,
do interior, da alma. O conhecimento que a ela foi ensinado seria transmitido por meio
dos sentidos exteriores.
[...] Servem-me um corpo e uma alma; o primeiro é exterior, a outra
interior. Destas duas substâncias, a qual eu deveria perguntar quem é o
meu Deus, que tinha procurado com o corpo, desde a terra ao céu,
até onde pude enviar, como mensageiro os raios dos meus olhos?Na
parte interior que é a melhor (AGOSTINHO, 1996, p.265).
49
Nesta concepção, o ser humano era dotado de corpo e alma, e a alma é que
dava vida ao corpo. Para Agostinho, a essência era a alma e ela se unia a um corpo
para lhe dar vida. Para ele, a alma comunicava ao corpo as idéias divinas:
“compreende-se assim que a alma tenha grandes responsabilidades para com o
corpo” (BOEHNER&GILSON, 1988, p.183). Neste processo, a alma humana era
responsável por todas as ações do homem. Em sua obra De Magistro, na qual discutia
questões fundamentais sobre a aprendizagem, Agostinho revelou as conseqüências
dessa concepção no campo educacional.
[...] erram, pois, os homens ao chamarem de mestre os que não o são,
porque a maioria das vezes entre o tempo da audição e o tempo da
cognição nenhum intervalo se interpõe; e porque, como depois da
admoestação do professor, logo aprendem interiormente, julgam que
aprenderam pelo mestre exterior, que nada mais faz que admoestar
(AGOSTINHO, 1987, p.323).
Do ponto de vista de Agostinho, ninguém devia ser chamado de mestre na
terra, pois, segundo o evangelho de Mateus, “O verdadeiro e único Mestre de todos
está no céu” (Mt 23, 8-10).
Outro aspecto do pensamento de Agostinho é a relação que ele estabeleceu
entre linguagem, memória e dom divino. Segundo ele, a linguagem era um instrumento
necessário que permitia o ensinar e o aprender. De acordo com o Mestre de Hipona,
as palavras serviam para instruir ou recordar algo. Aprender ou recordar algo era
operar descobertas que permitiam a aprendizagem.
[...] mesmo sem emitir som algum, nós falamos enquanto intimamente
pensamos as próprias palavras em nossa mente; assim, com as
palavras nada mais fazemos do que chamar a atenção; entretanto, a
memória, a que as palavras aderem, em as agitando, faz com que
venham à mente as próprias coisas, das quais as palavras são sinais
(AGOSTINHO, 1987, p. 292).
Para Agostinho, todo processo de aprendizagem dependia da memória e,
adotando em parte a teoria platônica das idéias, ele entendia que o homem é um ser
que esquece e todas as imagens percebidas pelos sentidos são recordadas pela
memória. Ele próprio, como educador da época, ao fazer seus discursos, apoiava-se
50
na memória de seus ouvintes. Como todos os grandes medievalistas, ele sabia
reconhecer e valorizar essa habilidade como um precioso dom de Deus.
[...] Quando entro mando comparecer diante de mim todas as
imagens que quero. Umas apresentam-se imediatamente, outras
fazem-me esperar por mais tempo, até serem extraídas, por assim
dizer, de certos receptáculos ainda mais recônditos. Outras irrompem
aos turbilhões e, enquanto se pede e se procura uma outra, saltam
para o meio, como que a dizerem: “Não seremos s?” Eu, então, com
a mão do espírito, afasto-as do rosto da memória, até que se desanuvie
o que quero e do seu esconderijo a imagem apareça à vista. Outras
imagens ocorrem-me com facilidade e em série ordenada, à medida
que as chamo. Então as precedentes cedem o lugar às seguintes, e, ao
cedê-lo, escondem-se, para de novo avançarem quando eu quiser. É o
que acontece, quando digo alguma coisa decorada ( AGOSTINHO,
1996, p. 267).
Portanto, concebendo a memória como o principal instrumento de quem
aprendia, Agostinho, como teólogo, por meio dos sermões, transmitia passagens da
Escritura ao povo. Como educador, seus ensinamentos incidiam sobre a formação
moral e humana. Com sua proposta de santificação, buscava uma aproximação com
Deus, visto ser este o principal caminho e a luz para encontrar a verdade, a felicidade
e o conhecimento.
O pensamento de Agostinho foi composto por uma mistura de platonismo,
filosofia plotiniana e cristianismo paulino. Essas filosofias forneceram-lhe meios para
justificar e explicar a fé Cristã e ajudaram-no a esclarecer, no sentido cristão, as
vidas e as incertezas da sociedade do século V.
Em resumo, podemos afirmar que o cristianismo, em geral, encontrou respostas
para as angústias humanas; respostas baseadas precisamente na fé, segundo a qual
Deus se revelou por meio de Cristo. Este tornou-se homem, habitou a terra e pregou
os princípios da sua doutrina: fé, amor, esperança, fraternidade e caridade. À medida
que o cristianismo foi se difundindo, surgiu a necessidade de dialogar com os que não
acreditavam em Cristo a fim de convertê-los. Dessa forma, Agostinho, como tantos
outros cristãos, por possuir um profundo conhecimento da filosofia, utilizou as
doutrinas filoficas greco-romanas para divulgar os ensinamentos cristãos.
Muitas dificuldades foram encontradas nesse período do cristianismo primitivo e
grandes pensadores da Igreja lutaram para divulgar e defender a cristã. Rosvita,
embora tenha vivido um período bem posterior, também vivenciou profundas
51
transformações na sociedade e também lutou para defender a fé cristã. As instituições,
os costumes e os valores tradicionais tinham comado a se alterar, influenciando o
pensamento das pessoas. Rosvita, como educadora, percebeu as alterações que
estavam ocorrendo e empregou sabiamente todo o conhecimento cssico que possa
para ensinar e educar. Ela retomou os escritos de pensadores dos primeiros culos
da era cristã e, por isso, a concepção de mundo, resultante da adaptação da filosofia
grega à doutrina cristã, tamm é encontrada em suas obras.
Em suas peças, ela retomou queses já discutidas por Agostinho referentes ao
corpo e alma, matéria e espírito, para demonstrar que era importante se preocupar
com o destino da alma e que a vida terrena era passageira.
O modelo disciplinar que buscava o controle dos desejos do corpo e a
dominação dos seus instintos era um dos princípios defendido por Paulo e também por
Rosvita. Como ela precisava orientar as mulheres e as monjas do mosteiro,
estabeleceu um modelo de vida a ser seguido: viver de acordo com os ensinamentos
cristãos e renunciar aos prazeres do corpo.
Na peça O Martírio das Santas virgens Fé, Esperança e Caridade, ela
representa uma situação em que demonstra o emprego desta virtude. Na cena, o
Imperador, ameaçando Sabedoria por defender a prática da religião cristã, convida a
mãe e as filhas a prestarem culto aos deuses e apresenta a imagem da deusa Diana
como modelo a ser seguido. A autora resolve o conflito dramático com a
representação das monjas triunfando diante de todas as provocações e fazendo uma
defesa rigorosa da cristã. Para Rosvita, era necessário que o verdadeiro cristão
renunciasse à vida na sociedade pagã e, nesse sentido, induzia as mães a
incentivarem a vocação religiosa das filhas.
Acreditamos que Rosvita bebeu também nas fontes escritas por Tertuliano,
especialmente quando ela exorta ao martírio. Na época clássica romana o martírio era
usado para expressar a em Cristo e, no século X, a escritora se serve deste tema
e, no enredo de suas peças, cria inúmeras cenas, nas quais aconselha as
personagens a suportarem as torturas e a morte.
Segundo Lauand, foi apenas no século X que o teatro medieval passou a ter o
objetivo de instruir e, como no medievo a religiosidade exercia uma grande influência
na sociedade, ele foi contagiado pelo elemento religioso. Para esse autor, Rosvita, “[...]
é figura de extraordinária importância para a história do teatro: é a responsávelapós
52
séculos de ausência – pelo restabelecimento da composão teatral no Ocidente”
(LAUAND, 1998, p.169). No mosteiro beneditino, Rosvita recriou o teatro e transs
para o enredo de suas peças os mesmos princípios pregados pelos teólogos do
cristianismo primitivo.
Entendemos que muitos teólogos, como Tertuliano e Agostinho, estavam
preocupados com a formão educacional, moral e religiosa, por isso condenavam
todos os tipos de espetáculos cênicos que fossem violentos, ridicularizassem os
cristãos ou fossem lascivos. É interessante que, com uma preocupação similar
relacionada à disciplina, aos costumes e aos valores morais e religiosos que estavam
se perdendo, ela tenha retomado o teatro como instrumento didático. Dramatizando
temas considerados importantes para a preservação da mensagem cristã na
sociedade feudal, ela destacou o martírio, a virgindade, os princípios religiosos, os
conhecimentos das disciplinas do trivium e do quadrivium e transformou o teatro em
uma fonte de extraordinário valor para o conhecimento da sociedade naquela época.
Enfim, Rosvita procedeu como outros pensadores cristãos que exerceram o
papel de pedagogos e souberam apropriar-se da filosofia clássica para transmitir a
doutrina cristã e, apresentando uma nova concepção de mundo, por meios de cartas,
sermões, discursos tratados ou peças de teatro, contribuíram para o processo
educativo.
No próximo capítulo, procederemos a uma análise das transformações ocorridas
no campo filosófico, educacional e social, com destaque para a organização do
sistema feudal após o final do Império Carolíngio, quando os escritos de Rosvita foram
produzidos.
53
CAPÍTULO II
O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA EDUCACÃO MONÁSTICA
No primeiro capítulo, analisamos as propostas filosóficas e religiosas motivadas
pelas várias transformações que ocorreram na sociedade durante os primeiros séculos
da Antigüidade cris( século I ao V). O estudo desse período foi importante porque
ajudou a compreender o caminho que a Igreja percorreu e os esforços que ela
promoveu para ordenar uma sociedade em crise. Ao basear-se em escritos clássicos,
na Escritura Sagrada e em outros autores pagãos, muitos pensadores, como os
Padres da Igreja e os Apologistas, desenvolveram todo um pensamento que
possibilitou a reorganização da sociedade e a difusão do cristianismo. Demonstramos
que esse pensamento constituiu um dos legados culturais que influenciaram os
escritos de Rosvita, no século X, momento em que as relações feudais se
estabeleciam.
Os escritos dessa canonisa foram produzidos no mosteiro de Gandersheim na
Alemanha, fato que revela uma diferença fundamental entre fase inicial da
estruturação da Igreja, o momento do cristianismo primitivo, e a complexa organizão
por ela atingida no século X.
Neste capítulo, abordaremos aspectos que julgamos fundamentais para
compreendermos o processo de construção da educação monástica anteriormente à
época de Rosvita, tendo em vista que ela produziu suas peças teatrais e suas poesias
no mosteiro de Gandersheim. Nesse importante centro cultural as abadessas, as
damas nobres e as canonisas tinham a oportunidade de desenvolver uma formação
intelectual voltada para a prática da leitura e da escrita. Em um primeiro momento,
analisaremos a importância da fundação do mosteiro de Bento de Núrsia no século VI,
e, em seguida, trataremos da reforma de Cluny em fins do século IX e início do X,
quando Rosvita elaborou seus escritos. A seguir, faremos uma exposição dos
principais pensadores cristãos que estruturaram as bases sobre as quais se
organizaria a igreja após a fase do cristianismo primitivo bem como um estudo da
época histórica e das questões vividas pelos homens após a desestruturação do
Império Carolíngio, quando se tornaram mais evidentes as relações feudais.
54
3.1 – A TRAJETÓRIA DOS MOSTEIROS
Ao analisarmos a fundação do mosteiro de Bento de Núrsia, é necessário
considerar que, no século VI, em oposição ao desmoronamento social resultante da
decadência do Império e das invasões bárbaras, a Igreja e os mosteiros são
importantes instâncias de preservação do conhecimento cultural e intelectual
produzido na Antigüidade greco-romana.
As escolas monásticas, am de preservar obras da Antigüidade, transmitiram o
pensamento cristão e tornaram-se importantes centros educativos. Assim, muitos
pensadores e escritores cristãos tiveram, no mosteiro, a oportunidade de receber uma
formação clássica. Considerando que a canonisa Rosvita viveu parte da sua vida em
um mosteiro beneditino, esse fato contribuiu para sua formão intelectual.
Acreditamos que ela tenha estudado os escritos de Tertuliano, Santo Agostinho e
Boécio, pois suas idéias parecem tê-la marcado profundamente, no entanto, podemos
afirmar que a Vulgata, os Evangelhos Apócrifos e a Vida dos Santos a inspiraram.
Bento de Núrsia (480 547) exerceu um papel significativo no mosteiro por ele
fundado. Formado em Roma, Bento modificou drasticamente a prática religiosa dos
cristãos que se dedicavam integralmente à religião. Em sua Regra, estabeleceu
rigorosas normas para o convívio dos monges. Determinou a adoção, no interior do
mosteiro, de um comportamento pautado no cristianismo, na disciplina, na
subordinação, na oração, no trabalho, no estudo, no respeito a Deus, na caridade e na
humildade. Sua obra é composta por setenta e três preceitos básicos que definem e
organizam as tarefas diárias no interior do mosteiro. Em seu prólogo, Bento uma
indicão da finalidade dessa regra:
Devemos, pois, constituir uma escola de serviço do Senhor.
Nesta instituição esperamos nada estabelecer de áspero ou de pesado.
Mas se aparecer alguma coisa um pouco mais rigorosa, ditada por
motivo de eqüidade, para emenda dos vícios ou conservação da
caridade não fujas logo, tomado de pavor, do caminho da salvação, que
nunca se abre senão por estreito início. Mas, com o progresso da vida
monástica e da fé, dilata-se o coração e com inenarrável doçura de
amor é percorrido o caminho dos mandamentos de Deus. De modo que
não nos separando jamais do seu magistério e perseverando no
mosteiro, sob a sua doutrina, até a morte, participemos, pela paciência,
dos sofrimentos do Cristo a fim de também merecermos ser co-
herdeiros de seu reino. Amém (REGRA DE SÃO BENTO, 1993, p.1).
55
Essas Regras influenciaram intensamente toda a comunidade cristã, ao longo
da Idade Média. De acordo com Cambi: [...] cada mosteiro devia ser auto-suficiente e
cada monge era submetido a uma intensa vida de ascese e ao princípio do ora et
labora, que atribuía ao trabalho manual um papel crucial (sete horas por dia) na
formação individual e na vida da comunidade” (CAMBI, 1999, p. 132). Sendo assim, o
lema da vida beneditina era rezar, trabalhar e descansar.
Segundo a Regra beneditina, os monges deveriam seguir os preceitos
determinados e, como cristãos, deveriam comprometer-se também com os
ensinamentos do Evangelho. Para isso, eles deviam abandonar tudo o que dissesse
respeito a sua vida anterior, como bens terrenos, vida conjugal e comprometer-se a
obedecer ao Abade, que era a figura central do mosteiro. Este, um representante de
Cristo, deveria governar mais com o exemplo do que com as palavras: “[...] o Abade
digno de presidir ao mosteiro deve lembrar-se sempre daquilo que é chamado, e
corresponder pelas ões ao nome do superior” (REGRA DE SÃO BENTO, 1993, p. 2).
Assim, Bento propunha aos jovens o voto de obediência, castidade e pobreza.
Esses ideais tamm foram defendidos por Rosvita, que procurava afastar as
pessoas da vida considerada mundana. Em várias cenas e diálogos de suas peças,
ela transmitiu esses valores preconizados pelo cristianismo, a exemplo da seguinte
passagem da obra Conversión de la meretriz Taide, na qual fica claro que era
fundamental se desfazer dos bens terrenos porque um dos ideais cristãos era
permanecer pobre:
TAIDE: Dame um poquitín de tiempo, para que reúna las riquezas que,
adquiridas de mala manera, he ido conservado durante tanto tiempo.[...]
[...]TAIDE: No me esforzaré em querer conservalas para mi o en
dárselas a los amigos; antes bien, ni siquiera intentaré distribuirlas
entre los mendigos, porque no creo que el preciso de tal sacrificio sea
bueno para emplearlo en obras de caridad.[...]
[...]TAIDE: Arrojarlo al fuego y redurcilo a cenizas.[...]
[...]TAIDE: No lo temas, que muy distintas cosas me ocupan la mente;
pues dispongo libremente de mi patrimonio familiar, según mi voluntad,
y he renunciado públicamente a mis amantes (ROSVITA, 2003, p.99-
101).
As palavras de Rosvita evidenciam o quanto era importante para o cristão
afastar-se das coisas mundanas e dedicar-se às coisas interiores da alma. Neste
56
sentido, o mosteiro era o local adequado para vivenciar a e praticar a conversão.
Em conformidade com Bento, o trabalho manual ocupava a mente, afastando o
homem da vida “desregrada”. Neste sentido, os monges deveriam despender algumas
horas diárias com o trabalho manual, com a cultura dos campos, e outras, com a
leitura espiritual. Os monges não podiam viver na ociosidade, precisavam se ocupar
sempre com alguma atividade: “[...] trabalhar significa renunciar voluntariamente à
liberdade, à nobreza, significa descer até a terra, até a condição de escravo, significa
humilhar-se” (DUBY, 1982, p.183). Dessa forma, quem ingressava no mosteiro estava
decidido a se dedicar ao trabalho e à obediência a Deus. Porém, apesar do grande
tempo dedicado ao trabalho corporal, os poucos momentos dedicados à vida
intelectual e às atividades de escrita foram importantes para a formação espiritual e
cultural de muitos pensadores cristãos.
Oliveira pontua que em todos os momentos da hisria os homens procuraram
criar e reservar um espaço para o saber. Com o início da Idade Média, uma forma de
saber deixou de existir, mas abriu-se um novo espaço, com características diferentes
em relação ao “esrito e ao local do saber antigo”.
É o momento em que se fecham as portas de uma forma de saber e, ao
mesmo tempo, um novo espaço é aberto. Seguramente este novo
espaço possui características distintas, tem preocupações diferentes e
novas em relação ao saber antigo. No entanto, é o local em que se
tornou possível salvaguardar e produzir um novo conhecimento. Assim,
o fechamento da Academia de Platão por Justiniano e a fundação do
mosteiro por Bento de Núrsia expressariam o final de uma forma de
filosofar e o nascimento de uma outra forma. Isso se deve ao fato de
que, na academia de Platão, o filosofar dava-se de acordo com uma
natureza vinculada ao mundo e tradições greco-romanas, e nos
mosteiros, o filosofar ocorre no âmbito da cristandade (OLIVEIRA,
2005, p.17).
Podemos asseverar que foi no espaço ocupado pelos monges que se tornou
possível conservar e produzir conhecimentos. É importante salientar que, durante a
Idade Média, desenvolveu-se nos mosteiros um sistema educacional que, ao mesmo
tempo em que era eclesiástico, promovia um largo desenvolvimento no âmbito
intelectual. Assim, segundo Oliveira, o mosteiro não pode ser considerado apenas
como um local de preservação da cultura:
57
[...] acima de tudo, nele preserva-se a vida a partir de uma nova
perspectiva, a do cristianismo. Assim, não é o local, o espaço que é
novo. Também o que será ensinado e vivido é novo. Trata-se de uma
nova filosofia, imbuída antes de tudo pelo princípio da conversão
(OLIVEIRA, 2005, p.18).
Do século VI até o século IX, ocorreu uma proliferação de mosteiros que
seguiram o modelo e as regras estabelecidas por Bento. No entanto, a partir do século
IX, quando a Europa ocidental foi assolada por novas ondas de invasões, um novo
processo de crise instalou-se nos mosteiros. Os primeiros ataques foram os dos
normandos, cujo alvo principal eram os mosteiros localizados nas proximidades da
costa do norte da Europa, e, como estes eram os principais locais onde se podia
buscar o conhecimento e a cultura, o impacto das invasões repercutiu negativamente
na produção e reprodução do saber. Os invasores espalhavam pânico e desordem por
toda parte, levando consigo os tesouros encontrados. A população local também se
aproveitava da desordem para levar o que podia. O prejuízo o era apenas material:
bibliotecas foram destruídas, acarretando uma interrupção dos estudos.
De acordo com Marc Bloch, a partir desse momento, o monaquismo
decaiu profundamente e, conseqüentemente, a vida intelectual também foi
comprometida (BLOCH, 1987). Muitos monges fugiram, levando consigo os costumes
monásticos. Dessa desordem originaram-se algumas modificações, algum progresso,
principalmente em relação à disseminação da fé cristã.
[...] melhor do que as peregrinações dos leigos, conhecemos as
dos monges. Como ao longo dos caminhos do exílio eles
transportavam, com as suas relíquias, as suas piedosas tradições,
seguiu-se toda uma fabricação de lendas, muito adequada ao
fortalecimento da unidade católica, ao mesmo tempo que a do culto dos
santos (BLOCH, 1987, p. 59).
Nesse contexto, os mosteiros, a maior estrutura educativa fundada por homens
devotos da religião, apesar das destruições, foram fundamentais para que os
ensinamentos blicos fossem ouvidos pelo povo. Na passagem citada, Bloch observa
que os monges, durante as longas caminhadas em busca de refúgios mais seguros,
58
contavam histórias sobre a vida dos santos e isto proporcionava o fortalecimento da
unidade católica.
Por volta do século X, após a onda de invasões e saques, uma “certa paz
principiou a prevalecer no Ocidente Medievo, possibilitando a reorganização dos
mosteiros e da própria sociedade. Apesar das profundas comoções sociais que
permeavam a Europa no começo do século X, os mosteiros, por sua própria
constituição, foram os primeiros a se recuperar. Situados em grandes propriedades,
eles continuaram a ser culturalmente importantes. Eram centros difusores da literatura,
da arte e da educação; organizados, tinham disciplina, regras e prosperavam. Ali os
monges se responsabilizavam em manter as tradições dos séculos precedentes.
Assim, mais uma vez, foram os mosteiros que conseguiram preservar um pouco do
conhecimento literário copiado com grande esforço pelos monges anteriores.
Nesses ilustres centros de estudos, grandes pensadores, como Bento de
Núrsia, Alcuíno, Beda, Rosvita, entre outros, viveram ou passaram parte de suas
vidas.
As cortes episcopais, os grandes mosteiros, as capelas dos
soberanos, em resumo, todos os estados-maiores do exército
eclesstico, contaram sempre (sic) clérigos instruídos, os quais, aliás
muitas vezes, de origem baronal ou cavaleiresca, haviam sido
formados nas escolas monásticas e sobretudo nas escolas das
catedrais (BLOCH, 1987, p. 97).
As instituições monásticas foram, deste modo, centros de poder do
conhecimento e do saber. Nesse período, atentos às transformações sociais que
ocorriam, os mosteiros, reformulavam-se e continuavam atuando e intervindo na
sociedade. Um exemplo dessa adaptação foi a reforma monástica de Cluny, em fins do
século IX. Essa importante instituição inaugurou um monaquismo de “espírito novo”.
Duby assinala que esse foi um dos maiores projetos monásticos de todos os tempos:
“Beneditinos sempre, mas interpretando a regra à sua própria maneira e sonhando
com outra coisa” (DUBY, 1982, p.163). Os cluniacenses, embora com uma ênfase
diferente, com regras demasiado brandas com relação ao trabalho diário dos monges,
desejavam fazer renascer a Regra de São Bento e buscavam um modo de vida
59
totalmente harmonizado com os desígnios da religião cristã. Foi na abadia de Cluny
que se deu uma especial atenção para a liturgia.
Desde sua fundação, em 910, na Borgonha, a abadia não parava de crescer.
Com a reforma proposta no interior do mosteiro de Cluny, pregava-se um retorno aos
valores espirituais e sonhava-se com uma sociedade mais pura e conduzida para os
ideais que o cristianismo pregava. Os monges queriam afastar os homens do apego
aos bens materiais, pois eles estavam se distanciando cada vez mais dos valores
cristãos pregados pelos primeiros apóstolos. Por meio de preces e súplicas, devia-se
criar um elo de ligação com o reino dos céus.
A principal tarefa dos monges era “[...] cantar em coro o louvor ao Senhor,
identificando-se assim ao coro dos anjos (DUBY,1982, p.164). Em meio à turbulência
do século X, os cluniacenses sonhavam com um mundo inteiramente liberto dos
perigos terrenos. Por meio do canto, os monges tentavam se aproximar do além,
acreditavam que podiam salvar as almas do povo e protegê-las contra os perigos e os
horrores do fim dos tempos.
Por esse motivo, os monges não deveriam mais executar quase nenhum
trabalho manual, devendo dedicar maior tempo às orações e à liturgia. Os monges
não eram trabalhadores manuais nem intermediários: estavam ao serviço de Deus e
cumpririam melhor o seu dever se estivessem libertos de todas as preocupações
terrenas (DUBY, 1980, p. 230).
É importante relembrar que, nos mosteiros do início da Idade Média, de acordo
com a Regra de São Bento, os homens deveriam dedicar-se ao trabalho manual. Com
a reforma do século X, os monges consagravam seu tempo quase que exclusivamente
à oração. A sobrevivência material dos monges passou a ser suprida pelo trabalho dos
servos e pelas doações dos nobres.
Oferecer ao Senhor a primeira colheita ou cada décimo feixe após a
colheita era também uma diva propiciatória. No entanto, estes bens
consagrados não eram destruídos e mais uma vez esta alteração teve
conseqüências de longo alcance. Eram entregues a homens
encarregados de uma tarefa específica – rezar. Assim, a penetração do
cristianismo levou ao estabelecimento dentro da comunidade de um
grande grupo de especialistas, que não tomavam parte nem no trabalho
da terra nem em expedições guerreiras de pilhagem e que formavam
um dos sectores mais importantes do sistema econômico. Não
produziam nada. Viviam de subvenções sobre o trabalho dos outros.
60
Em troca destes pagamentos, ofereciam orações e outros gestos
sagrados pelo bem estar da comunidade (DUBY, 1980, p. 68-69).
Assim, promoveu-se uma nova interpretação da Regra. Preocupados com a
degradação espiritual, os monges cluniacenses que ali viviam deveriam se
comprometer em cumprir estritamente as normas beneditinas. Para realizar as
mudanças e renovar a disciplina monástica, precisavam se libertar das tarefas ligadas
à reprodução da vida material, porque só assim teriam mais tempo livre para se
dedicar à liturgia, às orações e às súplicas.
Cluny tornou-se conhecido e o movimento de reforma por ele inaugurado
desencadeou uma renovação no interior dos demais mosteiros, a qual representou, de
fato, a expano cluniacense. Qualquer mosteiro que solicitasse uma reforma deveria
ser incorporado à abadia de Cluny. Com isso o número de congregações e de monges
multiplicou-se; os cluniacenses tornaram-se ricos, aumentaram seus ganhos, tiveram
muito dinheiro disponível e adquiriram muitas terras.
Segundo Duby, uma parte da riqueza foi utilizada para embelezar a Igreja, pois
a casa de Deus deveria ser semelhante à luz exuberante no céu. As despesas nos
mosteiros aumentaram consideravelmente, pois era preciso assegurar conforto, boa
alimentação e vestes mais requintadas para os monges.
Era imperativo exaltar a glória de Deus e assim conferir maior
esplendor à liturgia; reconstruir os santuários e decorá-los
profusamente; instalar os monges com um grau de conforto que os
tornasse perfeitamente disponíveis para o Ofício Divino e que
patenteasse sua superioridade sobre os vários estados’ (status) do
mundo. Era-lhes servido abundante alimento de grande qualidade. As
suas vestes eram renovadas anualmente. O trabalho manual prescrito
pela regra foi reduzido a tarefas totalmente simbólicas nas cozinhas. Os
monges viviam como senhores: quando viajava, o abade aparecia em
público escoltado, como um governante, por um séquito a cavalo
(DUBY, 1980, p. 232).
A partir de então, os monges formavam uma congregação e deveriam se
comprometer a cumprir as normas beneditinas, entre elas, eleger livremente seu
abade, o qual, até então, era, na maioria das vezes, indicado pelos senhores feudais,
que interferiam na vida dos mosteiros que ficavam em seus domínios. A autonomia
61
desobrigava os cluniacenses de se submeter à jurisdição de qualquer poder terreno,
príncipe secular, conde ou bispo.
Segundo Duby, em 1024, o papa estendeu esse privilégio a toda jurisdição
episcopal, ou seja, em todos os priorados da congregação de Cluny, a autoridade
máxima passou a ser exercida pelo abade (DUBY, 1980), que dirigia todos os
mosteiros que solicitavam a reforma. Com essa expansão, naturalmente, as despesas
também aumentaram e, para mantê-las e assegurá-las, era necessário conseguir
muitas doações em espécie e em dinheiro. Era comum grandes senhores e reis
emprestarem dinheiro e fazerem generosas doações para sustentar os mosteiros e
Igrejas, pois essa ajuda tinha um significado religioso: “[...] todos tinham de servir a
Deus para a sua própria salvação e para a salvação das pessoas sob a sua protecção
(DUBY, 1980, p. 249). Ao consagrar sua riqueza ao serviço de Deus, os grandes
senhores recebiam, em troca, orações.
Em 1088, chegou-se a construir a maior Igreja de toda cristandade latina: “[...]
para fornecer os refeitórios, faziam-se cada vez mais compras. Cerca de 1122, menos
de um quarto do consumo de Cluny era produzido nas suas terras. Despendia muito
dinheiro em pão e vinho” (DUBY, 1980 p. 232). Assim, era necessário comprar
provisões dos agricultores e isto estimulou a produção local. Os camponeses
prosperavam vendendo sua mercadoria para os monges e também trabalhando nas
obras de construção da imensa Igreja.
O atendimento às necessidades dos mosteiros propiciou a circulação do
dinheiro. Portanto, eles “[...] causavam a infiltração de moeda numa comunidade
essencialmente camponesa, através dos pagamentos aos carregadores, mineiros e
grupos de trabalhadores à peça (sic) empregados na construção da igreja, e pela
compra de provisões” (DUBY, 1980, p. 233). O Ocidente medieval viu-se coberto de
Igrejas por toda parte. Os camponeses podiam ganhar dinheiro, pois recebiam
pagamento de acordo com os serviços prestados. O trabalho dos camponeses passou
a ser explorado de outra forma. Lentamente, a agricultura prosperou e a produção
abriu-se à circulação monetária. As trocas comerciais incentivaram o surgimento das
cidades. Todos esses fatos, conjuntamente, conduziram o homem a uma profunda
mudança de comportamento. Ele procurava produzir e comercializar cada vez mais.
A riqueza de Cluny impulsionou a economia, mas em contrapartida essa riqueza
provocou uma crise nos valores morais da Igreja e do próprio cristianismo. Foram
62
surgindo muitas críticas, a ponto de a Igreja ser acusada de corrupção, luxo, opulência
e degeneração.
Com o enriquecimento, os mosteiros esqueceram o princípio da ordem
beneditina que eram a obediência, a pobreza, a humildade e o trabalho manual. Os
monges passaram a viver das rendas e das doações dos homens de posse, os quais,
por sua vez, doavam suas riquezas aos mosteiros para que os monges rezassem por
sua alma. Duby assevera que os servos de Deus estavam preocupados, em demasia,
com os bens materiais (DUBY, 1980).
Foi, pois, nesse cenário contraditório de fortalecimento e de gradativa corrupção
dos austeros costumes dos beneditinos que surgiram os escritos de Rosvita, cujos
poemas e peças foram inspirados em histórias de natureza hagiográfica do século IV e
V. Ou seja, foi nesse contexto de crítica à riqueza e à opulência que predominava nos
mosteiros que suas obras adquiriam sentido. Por isso, para se compreender a atuação
reformadora de Rosvita, é interessante fornecer um quadro do desvirtuamento dos
mosteiros em relação à proposta inicial, o papel que eles tiveram na formação dos
homens e na construção da sociedade do século X.
Os escritos de Rosvita chamavam a atenção para o abandono das coisas
terrenas, da riqueza, do luxo e da opulência. Esses vícios, segundo os valores
cristãos, degeneravam a alma. Por isso, enquanto educadora, ela tinha uma proposta
pedagógica de vida.
De um lado, ela se antecipou aos cistercienses
5
e, de outro lado, recuperou os
princípios defendidos por Bento de Núrsia, ensinando que os fiéis deveriam retornar
aos hábitos do primeiro momento do cristianismo, à vida pobre; ou seja, viver como
Cristo, como os Apóstolos. Tal como Bento de Núrcia, ela lutou contra o estilo de vida
de muitos fiéis. Assim como ele, para recuperar conceitos doutrinários cristãos, ela
estabeleceu normas, valores e regras de comportamento para uma nova forma de
sociedade que, em meio à crise de valores do século X, estava emergindo.
Os escritos da canonisa são exemplos da importância que os mosteiros
exerceram na educação e na formão dos homens durante a primeira fase da Idade
5
É nesse contexto também que, tempos depois, vai adquirir sentido a Reforma de Cister. São Bernardo (1090-
1153), um dos maiores pregadores cistercienses do seu tempo, fez uma crítica rígida e austera aos costumes
corrompidos de Cluny. A expansão e o enriquecimento dessa ordem tinha provocado a decadência moral. Esses
fatos despertaram a ira de muitos eclesiásticos que propuseram o regresso às origens da Regra de São Bento, a
partir do movimento cisterciense. “Os cistercienses rejeitavam as atitudes senhoriais de Cluny, recusavam-se a
viver de rendas ou do trabalho de outros. Possuíam apenas terra - mas não tinham servos, rendeiros, moinhos ou
dízimas – e trabalhavam-nas eles próprios” (DUBY, 1980, p. 235).
63
Média. Foram esses locais que possibilitaram o desenvolvimento da escrita, da leitura,
da reflexão, além do trabalho e da oração. Os monges submetidos a uma regra de vida
coletiva desempenharam um importante papel no medievo. O estudo da Sagrada
Escritura e dos clássicos greco-latinos, por um lado, e a firmeza das regras de
comportamento, por outro, tornaram os mosteiros medievais, especialmente o de
Bento de Núrsia e de Cluny, verdadeiros espos educativos.
As diferentes interpretações dadas à regra beneditina, no decorrer dos séculos
V ao XI, foram resultantes das transformações sociais ocorridas em cada momento
hisrico e exerceram influência na vida dos homens. Por isso, nesse breve panorama
sobre a trajetória dos mosteiros, consideramos necessário também uma breve
exposição sobre o pensamento dos primeiros filósofos escosticos o que implica, para
se ter noção do processo, recuar a um tempo anterior.
3.2 - OS PRIMEIROS FILÓSOFOS ESCOLÁTICOS
Um quadro social de insegurança e decadência caracterizou a fase final do
Império Romano e o início da Idade Média. Com a invasão dos povos do norte, o
Império Romano desmoronou e sobre suas ruínas fundaram-se vários reinos
povoados por hordas, em geral, independentes entre si. A sociedade não possuía leis
gerais que a norteassem. Cada comunidade tinha seus próprios costumes, não havia
um governo único que as organizasse. Este era o estado em que se encontrava a
Europa entre os séculos V e VIII, ou seja, um verdadeiro caos, uma desordem total.
As populações andavam sempre deslocadas e atropelando-se
mutuamente; não podia estabelecer-se cousa alguma que fosse fixa e
por toda a parte recomeçava a vida errante. [...] Mas a sociedade não
podia em parte alguma nem tomar assento nem adotar regras;
prolongava-se por toda parte a barbárie pela mesma razão porque
havia nascido (GUIZOT, 1907, p.101-102).
A sociedade como um todo passou a conviver com os valores, os costumes e o
modo de vida desses povos novos. Aos poucos, ao longo dos séculos VII e VIII, os
hábitos dos dois povos, suas idéias e pensamentos foram se mesclando naquela
64
Europa ocidental “rústica”. Do confronto, de acordo com Duby, surgiu uma situação em
que a cultura “[...] romana, num processo de decadência, fundiu-se com outra, a
germânica em fase de ascensão” (DUBY, 1980, p. 30). Essa fusão entre as duas
culturas influenciou profundamente a formação e a educação dos homens,
prevalecendo entre eles o domínio da força, o gosto da aventura, a incerteza e a
instabilidade dos povos.
Segundo Guizot, o aspecto mais visível desta sociedade, nos primeiros séculos
da Idade Média, é a vida errante, nômade. A guerra entre os homens era uma
constante. Os príncipes desses novos povos e seus companheiros aliavam-se e
formavam bandos para promover saques. “Em nenhum systema ha cousa alguma fixa,
todas as instituições são como as situações sociais; coexistem, confundem-se e
mudam constantemente” (GUIZOT, 1907, p. 98).
É importante observar, seguindo a ordem de idéias do autor, que os
sentimentos e as idéias não eram controlados por um governo ou razão social. As
pessoas agiam de acordo com a sua própria vontade, paixão e interesse. Em sua
rudeza, encontravam-se dispersas, indiferentes entre si. Não existiam princípios e
sentimentos comuns. Com a falta desses elementos, tornava-se impossível
estabelecer vínculos e isto dificultava a convivência e as relações entre os diferentes
segmentos dessa sociedade.
No entanto, apesar da violência, várias tentativas foram feitas para melhorar o
quadro intelectual e educacional dos povos bárbaros que invadiram e passaram a
habitar as regiões do que fora o antigo Império Romano a partir do século V. De
acordo com Thierry “[...] a Igreja teve a iniciativa nesta retomada do movimento de
vida e de progresso;” (THIERRY, 2005, p. 89), graças aos mosteiros, que se cercaram
de muralhas para se protegerem das invasões, se tornaram importantes centros
educacionais de fundamental importância para o desenvolvimento dos séculos
seguintes. Nesses mosteiros, como vimos, pensadores, padres da Igreja,
educadores como Boécio, Alcuíno, Cassiodoro, Isidoro de Sevilha, Beda, Rosvita,
entre outros, preservaram inúmeras obras da cultura antiga, a língua, a tradição e a
religião, as quais foram assimiladas pelos povos que invadiram o Ocidente europeu
deste período.
Um dos nomes mais expressivos dessa primeira Idade Média foi Boécio,
nascido em Roma cerca de 470 e falecido em torno do ano 525. Tendo vivido no
65
fim da Antigüidade e no início da Idade Média, seus escritos revelam um contexto
de profundas transformões sociais. Boécio “[...] em meio da barbárie
dominante, realizar (na medida do possível....) a salvação e transmissão da
cultura antiga para os novos ocupantes do Ocidente, instalados onde florescera o
Império Romano” (LAUAND, 1998, p.76).
Boécio percebeu a gravidade do momento e o quanto era importante conservar
o saber antigo, pois, com as invaes, a cultura greco-romana corria o risco de
desaparecer. Seu maior projeto era traduzir para o latim todos os tratados de
Aristóteles e todos os diálogos de Platão; no entanto, ele não conseguiu transmitir o
que idealizou, devido a sua trágica morte. Segundo Lauand, ele “[...] traduzia à risca e
selecionava o melhor que os seus bárbaros podiam assimilar” (LAUAND,1986, p.25).
Como educador, Boécio contribuiu de forma inovadora para a constituição do
método escolástico e para a organização do programa educativo na Idade Média.
Lauand afirma que, com o surgimento do De Trinitate, no início do século VI, pode-se
dizer que Boécio foi considerado o primeiro escolástico (LAUAND, 1998). Seus
escritos sobre teologia possibilitaram um maior entendimento da relação entre e
razão e influenciaram os pensadores posteriores na composição da escolástica.
Ainda segundo Lauand, os opúsculos teológicos de Boécio, principalmente De
Trinitate, exerceram profunda influência sobre o pensamento de um dos maiores
teólogos do século XIII, S. Tomás de Aquino, que se apoiou nas teses boecianas para
escrever a parte sobre a Trindade da Suma Teológica. Por isso, Boécio, cujos
opúsculos contêm as “primícias do método escolástico”, é considerado por Stewart e
Rand “um precursor de S. Tomás” ( LAUAND,1998, p. 78).
Lauand comenta que, em De Trinitate, conforme o próprio Boécio declarava, ele
tinha se proposto a discutir e a esclarecer as verdades da por meio da razão com
base nas idéias platônicas de Santo Agostinho, às quais acrescentou os ensinamentos
aristotélicos. A necessidade de conjugar a e a razão por meio da filosofia pagã era
justificada por ele pelo fato de que só a religião não conseguiria aplacar a anstia
humana (LAUAND, 1998).
Os Opúsculos de Boécio o o exemplo de uma teologia que se constituiria
como ciência e que investigaria os princípios filosóficos da fé. O núcleo central da sua
discussão teológica residia em explicar a questão da Trindade, estabelecendo a
unidade entre “Pai, Filho e Espírito Santo”.
66
muitos que usurpam a dignidade da religião cristã, mas a que é
lida principal e exclusivamente é aquela que, tanto pelo caráter
universal de seus preceitos – que dão a medida da autoridade da
religião – quanto pelo seu culto, se espalhou por quase todo o mundo e
é chamada católica ou universal. Dessa fé, a sentença da unidade da
Trindade é: “O Pai é Deus, o Filho é Deus, o Espírito Santo é Deus.” E,
portanto, Pai, Filho e Espírito Santo são um Deus e não três deuses
(BOÉCIO, apud LAUAND, 1998, p.84).
Na passagem anterior, Boécio revela-se preocupado com a natureza, com Deus
e com a religião cristã. Ele aponta que não se podem estabelecer graus de diferenças
hierárquicas entre Pai, Filho e Espírito Santo e, no entanto, alguns hereges os
colocam em posições diferentes. Outra obra produzida por Boécio de extrema
importância para a História da Educação é a Consolação da Filosofia”. Esobra foi
redigida em um momento muito conturbado de sua vida. Foi escrita na prisão após ter
caído em desgraça e ter sido preso por motivos políticos.
Na prisão, Boécio, por meio de um diálogo com a filosofia (personagem fictícia),
revoltava-se contra o estado em que se encontrava a sociedade, a reflexão e a cultura.
Mostrava que os homens tinham aberto mão da filosofia, por isso ela estava sendo
esquecida. Ponderava que era preciso despertar novamente nos homens a
capacidade de abstração e do pensamento racional, enfim recuperar tudo que
diferenciava os homens dos animais, para que pudessem exercer o controle dos seus
atos.
Percebes essas coisas e as pões em teu coração? Ou és como o asno
diante da lira? Por que choras? Donde vêm essas lágrimas? Fala
francamente e do fundo de tua alma. Se esperas a cura do médico,
deves mostrar-lhe a doença. Recuperei então a coragem e disse: Por
acaso é necessário que venhas com tuas admoestações contemplar a
crueldade com que a Fortuna me tratou? O aspecto deste lugar já não
te diz tudo? Por acaso vês aqui a biblioteca que me deste tu mesma
para que fosse uma prova certíssima de tua sabedoria? Nela muitas
vezes, junto a mim, discorrias sobre a ciência das coisas humanas e
divinas. Tinha eu as mesmas feições e a mesma expressão quando
desvendava contigo os segredos da Natureza, quando tu me traçavas
o curso dos astros, e dirigias minha conduta e todos os meus princípios
de vida segundo a órbita dos astros? É esta a recompensa que tenho
por ter aderido a ti? E no entanto foste tu que ditaste pela voz de Platão
que seriam felizes os estados governados pelos sábios ou que se
consagrassem à sabedoria. Tu, pela boca do mesmo filósofo, me
persuadiste de que os sábios deveriam governar os estados, para
67
impedir que o governo caísse nas os de pessoas sem escrúpulos e
sem a palavra, e que fosse uma praga para os bons (BOÉCIO, 1998,
p.10-11).
Boécio angustiava-se, lamentava o fim da filosofia, queixava-se por ter
sido castigado quando, na verdade, era inocente. Considerava que a grande cegueira
da humanidade era resultado da ignorância. Segundo ele, os homens erravam em
seus julgamentos, porque se preocupavam com a fortuna, isto é, com os bens
terrenos, e esqueciam-se de que esta riqueza não se ocupava de oferecer a
verdadeira sabedoria que era o conhecimento filosófico.
Se é verdade que a felicidade é o supremo bem de uma natureza
guiada pela razão, fica claro que a instabilidade da Fortuna não tem
nenhum conhecimento da natureza da felicidade. Além disso, aquele
que se abandona a essa efêmera felicidade pode saber ou não se ela é
vovel. Se não sabe, como poderíamos chamar de feliz alguém tão
cego pela ignorância? (BOÉCIO, 1998, p. 36).
A riqueza não era o elemento mais importante para a sociedade. Ela não
produzia reflexão, não deveria ser o motor dos sentimentos dos homens. Para se
tornarem humanos, de acordo com Boécio, eles não deveriam depender da riqueza,
pois ela amesquinhava o espírito. Esta era a maior angústia da filosofia. Os homens
estavam perdendo a essência, aquilo que dava razão à vida, à capacidade reflexiva.
[...] As riquezas têm valor por si mesmas ou porque pertencem a ti?
Qual delas tem maior valor? O ouro? Ou uma profusão de objetos?
Ora, as riquezas parecem ter mais valor quando se vão do que quando
o adquiridas. É por isso que a avareza é causa de antipatia, e a
generosidade, de louvores. Uma vez que não é possível manter algo
que tem valor se for trocado, o dinheiro tem valor quando muda
de mãos e deixamos de possuí-lo. Por outro lado, se todo dinheiro do
mundo estivesse concentrado nas mãos de uma pessoa, ninguém
mais o teria (BOÉCIO, 1998, p.38).
Por isso, Boécio mostrava que a preocupação excessiva com a Fortuna o era
benéfica aos homens. Desprovidos do conhecimento, considerado por ele como a
maior das riquezas, os homens não atingiriam o verdadeiro bem que era a sabedoria,
o desenvolvimento do esrito.
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Boécio escreveu ainda alguns tratados de Música, de Artimética e um de
Geometria, no qual reproduzia as definições e proposições de Euclides, fazia
demonstrações de alguns teoremas. Graças à tradução dessas obras para o latim, a
matemática também pôde ser preservada no Ocidente. Segundo Lauand, ele procurou
apresentar, para seus leitores, os bárbaros, três teoremas simples, do livro I de
Euclides, a fim de [...] não deixá-los numa treva o total e, algum dia, as sementes
poderem florescer: que se saiba pelo menos o que é demonstrar um teorema e que
isso é belo, importante e formativo” (LAUAND,1986, p.25).
Os escritos e as traduções desse grande educador muito contribuíram para que
Rosvita pudesse exercer sua tarefa pedagógica. Em seus escritos, ela demonstrava
ter preocupações semelhantes com o desenvolvimento do saber, do conhecimento e
da ciência.
Podemos observar que Rosvita utilizou em seus textos os conhecimentos que
possuía sobre Boécio. Na peça Sabedoria, ela estabeleceu esta ponte no momento
que ensinava a Artimética (já observado anteriormente). Em outra peça de sua autoria
Conversión de la meretriz Taide, ela demonstrava o conhecimento que possuía das
Artes Liberais, especialmente da música. Ao explicar o significado do quadrivium,
Rosvita, em meio ao diálogo, diz claramente: ”[...] porque, igual que uma senda a partir
de cuatro caminos, así también a partir de único princípio filosófico se van encontrando
entre si las rectas progresiones de estas disciplinas” (ROSVITA, 2003, p.93). Nesta
passagem observamos que a canonisa tinha conhecimento dos escritos de Boécio e
os utilizava para ensinar. Segundo Gilson, Boécio dava esse mesmo sentido ao termo,
“quádruplo caminho para a sabedoria”, e considerava de fato essas ciências o
caminho para a sabedoria ( GILSON, 1995, p. 162).
Portanto, Boécio e Rosvita, mesmo vivendo em culos distintos, tiveram uma
experiência de vida semelhante: o processo de transição de uma forma social para
outra. Boécio viveu em um contexto de anarquia social, num momento de intensas
invasões de diferentes povos. Rosvita assistiu ao princípio da organização e da
sistematização da vida no interior dos feudos. Ambos, como educadores e teóricos, ao
perceberem a gravidade do momento histórico em que viviam, ofereceram para os
homens os tesouros da cultura antiga. Dedicaram-se ao trabalho de salvação e
preservação das obras clássicas. Retomando o pensamento filosófico de grandes
pensadores da Antigüidade, estes dois autores buscaram recuperar valores e
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conhecimentos que a sociedade estava perdendo. Por meio de suas obras, eles
apontaram que era possível recuperar grande parte do saber antigo. Assumiram a
tarefa de traduzir e adaptar obras que contribuíram para um maior desenvolvimento e
aprimoramento do pensamento reflexivo.
Entre os séculos VIII e IX, surgiu um outro grande homem que se tornou
fundamental para educação na Idade Média: Alcuíno. Como mestre, ele ocupou um
lugar de destaque no período em que Carlos Magno foi Imperador (771 - 814). Neste
período, que ficou conhecido como Renascimento Carolíngio, foram dados grandes
incentivos e estímulos às atividades culturais, as quais tiveram um papel fundamental
para a transmissão e conservação da cultura clássica durante toda a Idade Média.
Carlos Magno, para administrar o seu Império, contava com o auxílio de condes e
bispos. No entanto, uma das grandes preocupações do Imperador era o estado de
instrução destes administradores. Ele considerava importante formar bons dirigentes e
bons eclesiásticos, instruídos e aptos a administrar com desempenho o “Estado”. De
acordo com Guizot, seu desejo dominante foi o de civilizar os povos sob seu domínio.
Tentou, durante o seu governo, introduzir ordem e unidade na administração de todos
os territórios que administrava (GUIZOT, 1907).
Em sua administração, multiplicaram-se escolas monásticas e catedrais, que
possibilitaram o renascimento da escrita e despertaram a curiosidade intelectual e
cultural dos homens. Portanto, não podemos deixar de ressaltar que o movimento e os
esforços de Carlos Magno, no sentido de melhorar o estado intelectual e moral da
sociedade, foram de fundamental importância para os séculos posteriores. A luta
contra o estado social vigente animou o Imperador a fundar escolas, mosteiros,
proteger os eclesiásticos e apoiar os sábios, assegurando, desta forma, o
desenvolvimento cultural. Ele não hesitou em criar condições favoráveis para a
instrução do clero, monges, governantes e filhos dos fiéis.
Este impulso impresso por Carlos Magno ao movimento de estudos
que começou em seu reinado foi, portanto, duradouro; ele nunca
cessou de se acelerar no decorrer dos séculos seguintes e é, em
primeiro lugar, ao imperador que cabe o mérito disso (GILSON, 1995,
p.227).
70
Como Imperador, o papel de Carlos Magno foi de fundamental importância. O
estímulo dado à cultura e à educação durante seu reinado contribuiu para a
sobrevivência da cultura clássica. Gilson afirma que “[...] foi da vontade de civilizar
seus povos, cristianizando-os, que partiu todo esse movimento de reforma” (GILSON,
1995, p.227). Além das preocupações políticas, seu pensamento estava imbuído do
espírito cristão. Ele considerava, de acordo com a concepção da época, ter recebido
de Deus a missão de conduzir seu povo no caminho do Senhor.
De acordo com Gilson, para promover essa renovação cultural, Carlos Magno
cercou-se de homens cultos que representavam a “elite dos letrados”: mestres de
gramática, retórica, filosofia e matemática, assim como poetas e teólogos. Entre esses
professores e homens de letras, destacou-se Alcuíno, um missionário da cultura latina
cristã da escola de York, na Inglaterra.
Ainda segundo Gilson, a importância desse grande colaborador de Carlos
Magno decorreu muito mais de sua pessoa e de sua obra civilizadora do que de seus
livros. Todavia, em todas as suas cartas e tratados, ele revelou uma verdadeira
admiração pela cultura antiga e uma vontade de mantê-la. Como mestre e teólogo,
deixou algumas obras que contribuíram para o estudo das artes liberais.
[...] uma Grammatica, um De Orthografhia, um De dealectica e um
Dialogus de rhetorica et virtutibus. Quanto ao único escrito
verdadeiramente filosófico de Alcuíno, seu tratado Da natureza da alma
(De animae ratione), cujas idéias principais são tomadas de Santo
Agostinho (GILSON, 1995, p.228).
De acordo com esse autor, ele foi influenciado pelas idéias plotinianas de Santo
Agostinho sobre as sensações, afirmando que estas eram um ato da alma e os
sentidos eram os mensageiros que informavam ao corpo o que acontecia à nossa
volta.
Sua formação moral e intelectual, recebida dos mestres de York, escola repleta
de livros cssicos, baseava-se na cultura antiga e também nas Escrituras Sagradas.
Tal como outros pensadores cristãos de sua época, ele ensinava que Deus existia e
estava presente em todas as circunstâncias da vida das pessoas. Sua concepção de
“que tudo nos homens tinha sua origem em Deus” (OLIVEIRA, 2002, p. 52) e de que
toda sabedoria deste mundo era enriquecida pelos ensinamentos de Cristo, ou seja,
71
de que todo conhecimento era aprendido e ensinado com base na fé, tinha origem
hisrica no momento anárquico em que viveu.
Como mestre no Império Carolíngio, seu principal obstáculo para executar sua
missão era a falta de livros. Em uma de suas cartas a Carlos Magno menciona
claramente esta dificuldade.
Infelizmente, encontro-me agora privado de muitos livros que tinha a
minha disposição em meu país natal e que aí haviam sido reunidos
pelos cuidados de meu mestre Elberto ou pelos meus. Digo-o a Vossa
Senhoria para que vosso constante amor pela sabedoria vos inspire
enviar alguns de meus alunos à Grã-Betanha, de onde trarão para a
França todas essas flores britânicas. Assim, o jardim do Éden não
ficará mais apenas em York como um jardim fechado (bortus
conclusus), mas ver-se-á nesta Touraine de França, como que um
broto da árvore do paraíso. Que o vento do Leste sopre então sobre os
jardins do Loire e todos serão tomados por seu perfume ( ALCUÍNO,
apud GILSON, 1995, p. 228).
Assim, para ensinar na França, Alcuíno tentou criar as mesmas condições de
trabalho intelectual que tinha na Inglaterra. Sua maior ambição era “[...] construir na
França uma nova Atenas, superior à antiga, e enobrecida pelo ensinamento de Cristo,
Nosso Senhor” (GILSON, 1995, p.230). Para isso fundou inúmeras escolas, fez trazer
livros clássicos e promoveu o retorno da cultura antiga, desenvolvendo o estudo e a
pia de antigos manuscritos. Como diz Manitius: “O que possuímos hoje em matéria
de manuscritos pré-carolíngios dos clássicos é insignificante, em comparação com
aqueles cuja conservação se deve a atividade dos copistas e dos críticos dos séculos
VIII e IX” (MANITIUS, apud GILSON, 1995, p.232). Esse trabalho foi fundamental para
a preservação da cultura cssica durante toda a Idade Média. Dessa forma, a cultura
dos gregos e romanos foi preservada e transmitida para as gerações futuras com a
ajuda dos monges que escreveram, copiaram e preservaram. Graças a eles tamm
hoje sabemos algo a respeito desse tempo.
Naquele período difícil e turbulento, a maioria das pessoas o sabia ler nem
escrever, os monges eram, portanto, os únicos letrados. No entanto, segundo Gilson,
os monges copiavam as obras, mas o a saboreavam (GILSON, 1995), ou seja, não
as interpretavam. Muitas vezes, os escritos não tinham o menor significado para eles,
tratava-se apenas de uma árdua e mecânica tarefa de cópia.
72
Contudo, se isso acontecia com os monges copistas, o mesmo não ocorria com
pensadores de grande importância como Bento de Núrsia, Boécio, Alcuíno e Rosvita,
que estavam preocupados e comprometidos com os conteúdos. Eles traduziam obras
para o latim, adaptavam as poesias e a literatura profana dos clássicos latinos para
falar de coisas cristãs e reinterpretavam, à luz do cristianismo, os escritos clássicos
pagãos que se encontravam nas bibliotecas dos mosteiros. Assim, segundo Gilson,
este trabalho conjugado dos monges copistas e dos pensadores cristãos foi importante
para a conservação da cultura antiga (GILSON, 1995).
Durante o seu reinado, Carlos Magno não cessou de lutar contra o estado
bárbaro, efetuando uma reforma ampla dos estudos, cuja estrutura pedagógica foi
organizada por Alcno. Segundo Gilson, o Imperador “[...] manteve Alcuíno perto de
si, orgulhava-se de se dizer seu aluno e de chamá-lo seu mestre” (GILSON,1995, p.
230).
Em síntese, é importante destacar que, ao longo de toda a Idade Média, mesmo
que em épocas diferentes, os grandes pensadores até aqui abordados tiveram acesso
à cultura antiga e agregaram-lhe suas concepções cristãs. Foi com essa base e com o
fim de levar os cristãos a adquirir a sabedoria que eles sistematizaram o ensino nas
escolas monásticas, conservando a cultura pagã antiga e os valores religiosos cristãos
e organizando as disciplinas do trivium e do quadrivium.
3.3 - A DESCONSTRUÇÃO DO IMPÉRIO CARONGIO E A CONSOLIDAÇÃO DO
SISTEMA FEUDAL
Quando a canonisa Rosvita produziu seus escritos, especialmente suas peças
teatrais, o Império Carolíngio se havia desfeito. Após a morte de Carlos Magno, em
814, com a disputa entre os herdeiros pela divio do Império, uma nova realidade
despontou: a sociedade com base em relações feudais. Foi neste momento de
transformação social, de desconstrução do que se denominou período carolíngio que
Rosvita produziu toda sua obra. Para entendermos a construção de seu pensamento é
importante, pois, compreendermos este momento hisrico.
Os conflitos entre os herdeiros de Carlos Magno deram origem ao Tratado de
Verdum, por meio do qual o Império Carolíngio foi desmembrado em três reinos. Com
isso, o poder dos novos reis foi diminuindo progressivamente. A divisão dos reinos e
73
as concessões de terras pelos reis em troca de defesa fizeram com que os novos
proprietários se tornassem mais independentes. O senhor de terras não prestava mais
contas ao Imperador, e sim ao senhor mais poderoso ao qual ele estava ligado. Desta
forma, o poder tornou-se cada vez mais descentralizado.
Neste quadro, os sucessores de Carlos Magno o conseguiram continuar sua
obra. À medida que os proprietários de terra se tornaram mais independentes de um
“poder central”, criaram suas próprias regras, leis, tribunais, pesos, medidas e
exércitos.
Estes acontecimentos comprometeram o desenvolvimento cultural adquirido
durante o período Carolíngio, ou seja, entre os séculos VIII e IX. Na concepção de
Guizot, todas as tentativas de organização e regulamentação das leis impostas por
Carlos Magno, dissolveram-se, não prosperaram, porque os homens dessa época
ainda não estavam amadurecidos para viverem sob leis e governos gerais.
Em Hespanha não conseguia a Igreja enraizar o princípio theocrático.
Em Itália no sul das Gálias, apesar das tentativas feitas pela civilização
romana para se levantar, foi mais tarde, pelos fins do século X, que
ela se robusteceu algum tanto. Até então foram malogrados todos os
esforços para acabar a barbárie porque não encontravam tão
adiantados os homens como haviam mister; buscavam todos ainda que
debaixo de formas variadas, uma sociedade mais extensa e mais
regular de que o permitiam a distribuição das forças e o estado dos
espíritos (GUIZOT, 1907, p.111).
A subdivisão dos reinos em unidades territoriais cada vez menores
proporcionou o isolamento dos homens no interior das suas propriedades, contribuindo
assim para o fortalecimento das relações feudais. Segundo Guizot, este sistema era
necessário, era o único estado social que podia existir. Tudo tinha se adaptado à
forma feudal (GUIZOT, 1907, p.119-120).
Além da decadência da autoridade real, a dissolução do Império resultou
da incapacidade dos carongios para conter as invasões e os ataques vindos do sul
pelos árabes e fiéis do Islã, a leste pelos húngaros e ao norte pelos escandinavos
(BLOCH, 1987 ). Aparentemente a sociedade retornava ao estado de caos dos
terríveis tempos dos séculos V e VI, quando a migração dos germanos ameaçara a
civilização romana. A dispersão do poder no decurso do século IX fez surgir vários
74
reinos bárbaros, “tão conflituosos etnicamente e o insveis politicamente” (CAMBI,
1999, p.156) que era impossível qualquer tentativa de poder centralizado.
Nessa nova situação, os reis apenas mantinham o seu título: na prática
“reinavam”, mas não “governavam”. Os proprietários de terras reconheciam os reis,
davam-lhes um tratamento especial, mas não obedeciam às suas ordens. Cada
unidade territorial era como se fosse um pequeno reino.
No começo parecia que triunfava o caos. Desaparecia
inteiramente a unidade e a civilização geral; a sociedade
desconjuntava-se por todos os lados; por toda parte se levantava um
cem número de pequenas sociedades obscuras, isoladas incoerentes.
Julgavam os contemporâneos que este estado era a dissolução de
tudo, a anarquia universal (GUIZOT, 1907, p. 120).
Segundo Guizot, este novo modo de viver dos homens produziu um novo
estado social. Uma nova sociedade estava surgindo. Tudo se adaptou e se
transformou na forma feudal, tudo era dado em forma de feudo como pagamento do
benefício recebido. Não bens imóveis, como a terra, mas tudo o que servisse para
sustentar o vassalo: os rendimentos, as colheitas, os castelos, o direito de cobrança
de um imposto, igrejas, abadias, altares, inclusive cargos públicos (GUIZOT, 1907).
Os homens passaram a requerer uma nova educação. A vida errante e a
barbárie comaram a ser abandonadas. Com o feudalismo alguns hábitos mudaram.
A preocupação com a segurança fez com que as famílias se isolassem nos campos,
numa distância muito grande uma das outras, cada uma com a sua exploração
agrícola.
[...] alterou a distribuição da população sobre a face do solo. Até
então os senhores do território, a população soberana vivia reunida em
massas mais ou menos numerosas que, ou eram sedentárias no
interior das cidades ou vagavam em bandos pelo país. O feudalismo
fez com que estes homens vivessem isolados, cada um na sua
habitação, e a grandes distâncias uns dos outros (GUIZOT, 1907,
p.123).
Esse isolamento nos castelos ou em suas mediações, de acordo com Guizot,
teve uma forma de organização política correspondente. Era o senhor feudal quem
75
possuía o direito de comandar a paz e a justiça e exercer sua autoridade nessas
unidades territoriais.
Ainda segundo este autor, esta condição de vida propiciou o desenvolvimento
da família. Nesses locais, onde se usufruía de certa paz e segurança, os homens
encontravam-se mais próximos. Pela primeira vez, o senhor feudal e seus familiares
mais íntimos, a esposa, o marido e os filhos, encontravam-se isolados. Nas
imediações do castelo, viviam alguns homens de sua confiança e seus servos. Essa
nova forma de viver desenvolveu relações mais estreitas entre os familiares; novos
hábitos e costumes foram desenvolvidos.
[...] a brutalidade das paixões, o costume em que está o chefe
de empregar na guerra ou na caça grande parte do seu tempo, não
podem deixar de pôr grande estorvo ao desenvolvimento da vida
familiar. Mas será vencido este estorvo; é nisto que o chefe volte
habitualmente a casa; ali encontrará sempre sua mulher e seus filhos,
e sua sociedade permanente; eles serão sempre os seus interesses, o
seu destino (GUIZOT, 1907, p. 128).
Esse autor observa, ainda, que foi no interior das famílias feudais que a
mulher passou a desempenhar papel preponderante. A vida doméstica no seio familiar
permitiu às mulheres exercerem fuões distintas das ocupadas nas sociedades
antigas. Quando os homens voltavam da guerra ou da caça, encontravam sempre sua
mulher e seus filhos. Era a mulher que permanecia na administração do feudo,
representando o marido. Para Guizot, “[...] esta mudança, este progresso na sua
situação deve-se sobretudo ao desenvolvimento, à preponderância necessária dos
costumes domésticos no feudalismo” (GUIZOT, 1907, p. 129). A aproximão entre o
senhor feudal, a mulher e os filhos no interior dos castelos produziu sentimentos de
proteção e afeto, houve a possibilidade da família se desenvolver.
O maior estreitamento das relações familiares e o isolamento dos
homens em feudos não significam, entretanto, que os homens daquele período
vivessem em perfeita paz e harmonia: “[...] em tempo do regime feudal a força era a
garantia verdadeira e habitual do direito se é que se pode dar a força o nome de
garantia” (GUIZOT, 1907, p.138). Ocorriam lutas entre os feudos, e o senhor feudal,
por uma necessidade de defesa, fazia alianças com outros senhores, cuja situação era
idêntica.
76
Formou-se, assim, uma relação de poder baseada na proteção do mais
forte. Os senhores feudais exerciam um poder inteiramente individual, não existia
acima deles nenhum representante, nem leis que limitassem o seu poder. Segundo
Guizot, “[...] o possuidor do feudo, no seu domínio, tinha sobre os homens que ali
habitavam todos os direitos da soberania, porque eram inerentes ao domínio e
assunto de propriedade particular” (GUIZOT, 1907, p.137). Esse poder era exercido e
reconhecido, muitas vezes, por meio da força e da guerra. Os senhores feudais
presidiam os tribunais e, de acordo com suas concepções, formavam em suas
propriedades sistemas autônomos de aplicação da justiça.
Dessa forma, o poder político tornou-se local. Os homens que trabalhavam num
determinado domínio doavam parte da colheita em troca da proteção contra os
ataques, a violência e as guerras. Cada vez mais, os camponeses buscavam proteção
nos castelos dos senhores feudais.
[...] por toda parte os fracos sentiam a necessidade de se
aproximar de alguém mais poderoso do que eles. Os poderosos, por
sua vez, apenas podiam manter o seu prestígio e a sua fortuna, ou até
garantir a sua segurança, angariando, por meio da persuasão ou da
força, o apoio de inferiores obrigados a ajudarem-nos. De um lado,
situava-se a fuga para junto de um chefe; do outro, atitudes de
comando, por vezes brutais. E, porque as noções de fraqueza e de
força são sempre relativas, em muitos casos, o mesmo homem era
simultaneamente dependente de um mais forte e protector de outros
mais humildes do que ele. Assim começou a instituir-se um vasto
sistema de relações pessoais, cujos fios cruzados percorriam todos os
andares do edifício social (BLOCH,1987, p.162).
Este auxílio e esta proteção oferecida pelos senhores feudais fizeram surgir
obrigações recíprocas entre o chefe e os homens que trabalhavam em sua
propriedade. Como os senhores feudais também necessitavam de segurança, foi
preciso estabelecer um contrato para definir as obrigações entre os proprietários de
terra e servos, especialmente quanto aos encargos do subordinado. O ato simbólico
destinado a assegurar o acordo foi denominado por Bloch de contrato de homenagem.
[...] eis dois homens a frente: um, que quer servir; o outro, que
aceita, ou deseja ser chefe. O primeiro une as mãos e, assim juntas,
coloca-as nas mãos do segundo: claro símbolo de submissão, cujo
sentido, por vezes, era ainda acentuado pela genuflexão. Ao mesmo
77
tempo, a personagem que oferece as mãos pronuncia algumas
palavras, muito breves, pelas quais se reconhece “o homem” de quem
esna sua frente. Depois, chefe e subordinado beijam-se na boca:
símbolo de acordo e de amizade (BLOCH, 1987, p. 160).
Como nessa sociedade a e a religiosidade cristã imperavam, a promessa
tinha valor quando o juramento de fidelidade fosse feito com as mãos estendidas
sobre a blia. Durante a vigência do contrato de homenagem, em troca de lealdade,
fidelidade e proteção nas guerras, as pessoas ligadas ao senhor feudal recebiam
partes de suas terras, tornando-se seus vassalos. Além da guerra, estes tinham
muitas outras obrigações. De acordo com Bloch, a impunha ao vassalo “ajudar” o
seu senhor em todas as coisas. Com a sua espada, com o seu conselho: conforme era
necessário(BLOCH, 1987, p.236). Contudo, a relação entre vassalos e suseranos
exigia aliança e socorro de ambas as partes, pois delas dependiam a proteção e a
segurança.
Evidentemente, a Igreja integrou-se ao sistema feudal. Os nobres e os fiéis,
devido à mentalidade religiosa da época, faziam grandes doações de feudos para
obter a intercessão dos santos e o perdão dos pecados. Dessa forma, a Igreja tornou-
se grande proprietária de feudos.
[...] nunca na história da Igreja cristã do Ocidente foram as
dádivas dos laicos tão avultadas como durante as cinco ou seis
décadas depois do ano 1000. Os fiéis davam no dia a dia, para remir
os pecados que acabavam de cometer e que poriam em perigo as
suas almas. Davam ainda mais generosamente no leito de morte
mesmo com o risco de deixar os herdeiros em situação para o
funeral e para obter a intercessão dos santos antes do juízo final
(DUBY, 1980, p.181).
Durante toda a Idade Média, os valores e as crenças emanavam dos
ensinamentos cristãos. Este forte sentimento religioso fazia o homem acreditar que a
sua alma só seria salva pela oferta ou compra do perdão divino.
A Igreja, enquanto uma instituição que, no decorrer dos séculos, foi se
fortalecendo, organizando e ocupando espaço significativo na vida dos homens,
estabeleceu ordem e regras de conduta para aquela sociedade em condições caóticas
e teve um papel fundamental na educação daqueles homens. Por meio dos padres e
78
teólogos cristãos que se apropriaram do conhecimento criso e pagão, ela se
aproximou do povo e transmitiu os ensinamentos bíblicos. Segundo Oliveira “[...] a Igreja
deu aos homens uma possibilidade de convivência baseada nas diferenças e é isso
que dá a ela o papel civilizatório; que permite a criação de uma filosofia explicativa das
relações humanas. Se assim podemos nos expressar, foi esse cater democrático da
Igreja que a tornou a grande norteadora da sociedade” ( OLIVEIRA, 2005, p.19).
A luta contra a desordem, a guerra, os assassinatos fazia parte das
preocupações das autoridades eclessticas, as quais consideravam dever da Igreja
proteger os seus próprios membros, estabelecendo regras de conduta baseadas em
princípios morais e espirituais.
Como os feudos eram constantemente atacados por invasores, a luta e a guerra
eram atividades consideradas “normais”. Nesse sentido, a Igreja fixou alguns limites,
estabelecendo o que se chamou a “Paz de Deus”. Definiu ações para conter os
confrontos militares, protegendo os cristãos e as Igrejas contra os ataques. Os
homens da guerra eram obrigados a obedecer e respeitar algumas proibições.
De agora em diante, e de acordo com os preceitos dos
concílios de paz, já não era permitido lutar(nem manipular dinheiro, ou
ter relações sexuais) a não ser dentro de limites específicos.
Definiram-se campos de aão fora dos quais o recurso às armas era
condenado como mal contrário aos desígnios de Deus e à ordenação
natural do mundo. Toda a violência militar foi proibida em certas
áreas(perto dos locais de culto, marcado pelas cruzes erguidas nas
estradas), durante certos períodos, correspondentes às ocasiões mais
sagradas do calendário litúrgico e contra certos grupos sociais
considerados vulneráveis ( os clérigos e os “pobres”, ou massas
populares) (DUBY, 1980, p.179-180).
Dessa forma, em tese, a violência ficava proibida. A Igreja argumentava
com a idéia de que a ambição de conquistar territórios alheios era um perigo para a
salvação da alma. Na verdade, a guerra inviabilizava a organização da sociedade e a
Igreja pretendia organizá-la. Assim, ela o era contra a guerra em si, mas contra a
desorganizão da sociedade. Exatamente por isso, ela legitimou e estimulou a guerra
contra os infiéis do Oriente.
A instituição da “Paz de Deus foi uma tentativa de por ordem no caos e,
ao mesmo tempo, um meio de justificar a posição que a Igreja ocupava nas relações
79
senhoriais, pois os senhores eclesiásticos possuíam fortalezas, terras, e necessitavam
da proteção dos demais senhores e guerreiros.
Dessa forma, precisavam transformar a ousadia dos guerreiros em um ato
cristão, legitimando assim a posição que eles ocupavam na sociedade feudal. De
acordo com Duby, a ética da Paz de Deus tamm legitimou a exploração senhorial.
Os representantes religiosos e os mosteiros mantinham com seus vassalos o mesmo
tipo de relações que os senhores leigos. Este sistema dava segurança aos
trabalhadores, mas, para pagar por esta proteção, os camponeses deviam alimentar,
com o seu trabalho, os homens da Igreja, que oravam, e os guerreiros, que lutavam e
defendiam o povo (DUBY, 1980).
Assim, em correlação com sua importância política e econômica, a Igreja
e os mosteiros exerceram uma influência fundamental no pensamento e nas
concepções de vida dos homens que habitavam a Europa ocidental, durante o século
X.
A situação gerada pela nova organização social e familiar requeria uma nova
educação e uma nova forma de comportamento. Esse contexto em que a mulher
passou a exercer um importante papel na educação, porque,na ausência do marido,
competia a ela a educação dos filhos, elucida as razões pelas quais Rosvita educa as
mulheres. Ela lhes ensina elementos fundamentais para o processo de construção do
pensamento reflexivo e transmite-lhes os princípios morais e religiosos que norteavam
a sociedade naquele momento. Como foi afirmado, o espírito de família tinha se
desenvolvido de forma intensa, cabendo a ela ensinar, além das religiosas, as filhas
dos nobres, futuras educadoras dos castelos feudais. Considerando que as mulheres
seriam futuras esposas e mães e que seriam, assim, responsáveis pela educação dos
filhos e pelo futuro da sociedade, Rosvita procurou dar-lhes uma direção, um norte.
Explorou dessa forma a potencialidade do teatro para debater questões
teológicas, modelos de comportamento, temas relacionados à castidade, ao martírio, à
matemática, para refletir sobre as questões do cotidiano. Seu objetivo era recuperar
princípios religiosos e morais que estavam se perdendo com a organização feudal.
Ferruccio Bertini, estudioso dos escritos desta autora, aponta que a obra da canonisa
possui um admirável diálogo entre a Antigüidade pagã clássica e a moral própria da
religião cristã e considera os escritos de Rosvita uma tradução da poética clássica
(BERTINI, apud LÓPEZ, 2003. p.12). Com este elo, Rosvita compôs seus textos, de
80
maneira similar às comédias teatrais terencianas, ou sejam, comédias pagãs, que
tinham sido produzidas na Antigüidade. Desta forma, por meio de seus escritos,
proporcionou, ao seu público, leituras que ela considerava menos perigosas e cujo
conteúdo versava sobre os valores difundidos pelo cristianismo.
Ao retomar os valores primitivos pregados pelos pensadores e teólogos
cristãos, a canonisa pretendia que eles fossem incorporados novamente pela
sociedade ou, ao menos, fossem modelos para aqueles homens que estavam se
modificando. Como Guizot afirmou, após o estabelecimento do sistema feudal, os
homens isolados no interior dos feudos passaram a se preocupar mais com o
desenvolvimento cultural e intelectual, com hábitos e atitudes mais refinadas,
despontando entre eles sentimentos afetivos mais nobres (GUIZOT, 1907).
Neste capítulo foram abordados os acontecimentos que antecederam e
permearam o século X. Em primeiro lugar, demonstramos o papel que os mosteiros
ocuparam no seio da sociedade, ao se tornarem importantes centros culturais de
preservação do conhecimento profano e sagrado da Antigüidade e, acima de tudo, em
locais destinados à expansão da nova forma do pensamento, a religião. Em segundo
lugar, focalizamos alguns filósofos que sistematizaram as bases da escolástica e, ao
final, mostramos a necessidade de organização de uma educação frente à violência,
às invasões e ao estabelecimento do sistema feudal.
No próximo capítulo faremos uma análise mais detalhada da vida de Rosvita, tal
como es descrita em seus prefácios, prólogos e dedicatórias. Vamos destacar,
principalmente por meio da análise de suas obras, o importante papel que ela
desempenhou como educadora no mosteiro onde viveu.
81
CAPÍTULO III
VIDA E OBRA DE ROSVITA DE GANDERSHEIM
Este capítulo é dedicado à análise da vida de Rosvita e de alguns aspectos de
sua obra entendidos como elementos essenciais para explicar os princípios e os
valores educacionais defendidos por ela no contexto do século X. Num primeiro
instante, faremos uma interpretação das obras que nos informam sobre sua formão
e atuação como educadora e descreveremos o meio cultural da corte otônida, na qual
ela viveu. Em seguida, analisaremos alguns dos seus escritos, destacando os
principais temas que dão base e sustentam suas idéias e seus princípios educativos.
Como já afirmamos, ela se utiliza do teatro para inculcar valores cristãos e discutir
questões, como a celebração do martírio, a defesa da virgindade, a sabedoria
feminina, o conteúdo teológico, os elementos da natureza e os conhecimentos das
disciplinas do quadrivium, entre elas, a aritmética e a música.
Na análise dos dramas de Rosvita, utilizaremos as traduções de López, o qual
reconhece como autênticos e válidos os seguintes títulos: Conversión de Galicano,
general de los ejércitos; Martírio de las santas virgens Ágape, Quionia e Hirena;
Martírio de las santas virgens Fé, Esperança e Caridade; Resurrección de Drusiana y
Calímaco; Caída y conversión de Maria, sobrina del eremita Abraham;Conversión de
la meretriz Taide. A maioria dessas obras estão organizadas e selecionadas por
Andrés López. Cumpre ressaltar, no entanto, que também utilizaremos as traduções
que Lauand fez de alguns deles. Assim, as referências às obras de Rosvita serão
feitas com base na seleção, organização e tradução desses dois autores.
Além dos dramas acima mencionados, utilizaremos também o poema de
Rosvita intitulado Passion du saint et très précieux martyr contemporain Pélage,
couronné à Cordoue (Paixão do santo e muito precioso mártir contemporâneo Pelage,
coroado em Córdova), que foi traduzido do latim para o francês por Monique Goullet.
Em nossa análise, mencionaremos o título Paixão de Santo Pelágio.
82
4.1- BREVE COMETÁRIO DA VIDA DE ROSVITA DE GANDERSHEIM
Ao retomar os valores da Igreja primitiva cristã Rosvita pretendia que eles
fossem novamente incorporados ou, ao menos, fossem modelos para aquela
sociedade que estava se modificando. Com a desestruturação do Império Carolíngio
foi necessário que os homens se isolassem em seus castelos para se protegerem dos
ataques e das guerras dos povos vindos do norte. Este novo modo de vida fez
renascer novos sentimentos alterando o comportamento da família feudal. Entre as
modificações que se operavam encontrava-se a preocupão com a formação cultural
e intelectual dos homens, o que despertou nas mulheres a preocupação com a
aquisão e a transmissão de conhecimento.
Com as guerras, na ausência dos maridos, elas assumiram a direção dos
feudos e a educação dos filhos. Além dos ensinamentos religiosos, tornou-se
importante o conhecimento prático e filosófico, que chegavam aos castelos por meio
das mulheres que habitavam os mosteiros e dos clérigos que habitavam os feudos.
Durante toda Idade Média, além de um ambiente para orações, os mosteiros
tinham-se tornado os principais centros de difusão da cultura. De acordo com Pernoud
[...] não nos devemos surpreender com a tradição de alta cultura que se estabelece
desde então. As monjas oram, lêem, estudam;” [...] (PERNOUD, 1993, p.30). Do ponto
de vista cultural e educacional, “[...] um dos principais centros de difusão da cultura é
o mosteiro, em companhia das mulheres existia um tipo original de abadessa, que
tinha o costume de chamar capítulo de damas nobres, povoado de canonisas da mais
alta linhagem: é este o caso de Gandersheim, cuja abadessa é na época de Rosvita,
uma sobrinha do Imperador Oton I” (GOULLET, 2000, p. 17).
6
De acordo com Goullet, este espaço cultural era governado por mulheres que
se ocupavam das tarefas religiosas e intelectuais. Todas de cultura nobre, elas
possuíam grande poder e responsabilidades administrativas e foi neste contexto que a
canonisa Rosvita preocupou-se em transmitir aquilo que as mulheres precisavam
saber naquele momento. No mosteiro de Gandersheim, ela encontrou condições para
6
L’un des principaux outils de diffusion de la culture est le monasre, avec, pour les femmes, l’existence
d’un type original d’abbaye, quon a coutume d’appeler chapitre de dames nobles, peuplé de chanoinesses de la
plus haute extraction: c’est le cas de Gandersheim, dont l’abbesse est, à lépoque où vit Hrotsvita, une nièce de
lempereur Otton I (GOULLET, 2000, p. 17).
83
pesquisar e produzir suas peças teatrais, poemas e crônicas, nos quais ela retomou o
pensamento dos teóricos pagãos e teólogos cristãos. Foram as condições existentes
nesse mosteiro que lhe deram condições para contribuir para a transmissão do saber,
a preservação da cultura e a conservação dos valores cristãos e pagãos no Ocidente
medieval.
Os escritos de Rosvita fornecem-nos dados importantes para apreendermos
que o conteúdo educacional por ela proposto correspondia às novas ocupações da
mulher no interior dos feudos no período imediatamente posterior ao Império
Carolíngio.
Peter Dronke menciona a seguinte teoria sobre sua formação e sua atuação
enquanto educadora:
[...] Rosvita tal vez llegase a canonisa a una edad no tan joven,
después de haber pasado por unos buenos años de formación cultural
y “social” en medio del ambiente refinado y cosmopolita de la Corte de
los Otones, donde debió de llegar a compartir las aspiraciones
literarias, artísticas y políticas de estos últimos titulares autenticos del
Império romano, cuyo sueño glorioso de recomponer la antigua unidad
perdida del magno Império se vio dolorosamente truncado con la
prematura muerte de Otón III en el año 1002 (DRONKE, apud LÓPEZ,
2003, p. 10).
Na intensa vida cultural da corte otônida era comum a leitura dos clássicos
gregos e romanos. Nesse sentido, era possível que, no mosteiro de Gandersheim,
dirigido durante 50 anos, por Gerberge, sobrinha de Oton I, primeira mestra de
Rosvita, ela fosse incentivada a produzir seus escritos: [...] em torno de Gerberge, com a
qual Rosvita tinha um contato estreito no cotidiano, gravitavam figuras eruditas, que também
encorajaram seus escritos GOULLET, 2000, p.21).
7
Em homenagem ao convento,
depois da morte de Óton I, Rosvita coms a obra Primordia coenobii
Gandeshemensis, que conta a história de sua fundação.
Nesta obra, ela descreve a construção do mosteiro e relata que ele foi fundado
pelo duque da Saxônia, Liudolf, a pedido de sua esposa, Oda. Segundo Rosvita,
Aeda, mãe de Oda, nobre dama dedicada à fé cristã, fez votos de construir um local
onde pudesse abrigar as mulheres de sua descendência. A construção de um
7
[...] autour de Gerberge, avec laquelle Hrotsvita était en contact étroit et quotidien, gravitaient des figures d’érudits,
qui ont eux aussi encouragé son oeuvre (GOULLET, 2000, p.21).
84
mosteiro assegurava uma educação mais sólida e completa para suas filhas. Era uma
garantia de que as mulheres da sua família pudessem ocupar um espaço em que os
princípios e os valores defendidos pelo cristianismo fossem preservados e transmitidos
para todas as gerações futuras.
[...] Já que tu nos venerastes assiduamente.
Eu te digo, pelas virgens consagradas tua ilustre descendência
Fundarás uma abadia, paz e triunfo do reino
Enquanto que, com firmeza continuarás teu piedoso fervor.
Então tua família, nos séculos que virão,
Brilhará com a honra de uma suprema glória,
Ao ponto que nenhum entre os reis terrestres deste tempo
Poderá ser comparado pela extensão do teu poder (HROTSVITA,
2000, p.209)
8
.
O poema a mesma visão teológica apresentada por Rosvita em todas as
suas obras. Ela apresenta o local como um desabrochar da vocação feminina.
Podemos dizer que, naquela época, o mosteiro era o único espaço dedicado ao
caminho das letras. O projeto de Aeda foi cumprido por Oda. Com a ajuda de Liudolf,
ela construiu o local. Rosvita descreve o lugar escolhido para ser o mosteiro como um
refúgio em meio à floresta.
[...] Havia junto do monasrio uma pequena floresta, circulada
De colinas sombreadas as quais nos rodeavam também;
No meio da floresta, se encontrava um pequeno domínio,
Onde os guardiões de porcos de Liudolf, tinham o hábito de se refugiar,
No abrigo de um pacato camponês
Entregando ao repouso da noite seus corpos cansados,
Quando eles deviam pastar seus rebanhos de porcos.
Lá, um dia, durante a festa venerável de todos os santos,
Quando se preparavam para celebrar em dois dias,
A escuridão da noite, os guardiões de porcos viram brilhar
Numerosas luzes em meio à floresta (HROTSVITA, 2000, p.
214).
9
8
[...] Puisque tu nous as vénéré assiment,
Je te le dis, pour des vierges consacrées ton illustre descendance
Fondera une abbaye, paix et triomphe du royaume
Tant qu’avec fermete demeurera as pieuse ferveur.
Alors ta famille, dans les siècles qui viendront,
Brillera de l’honneur d’une supme gloire,
Au point que nul parmi les rois terrestres de ce temps
Ne pourra lui être comparé par l’étendue de sa puissance (HROTSVITA, 2000, p.209).
9
[...] Il y avait alors auprès du monastère une petite forêt, ceinte
Des collines ombragees qui nous entourent aussi;
Dans la forêt, il se trouvait un tout petit domaine,
Où les porchers de Liudolf, habitués à s’y réfugier,
Dans l enclos d’un paisible campagnard
Livraient au repos de la nuit leurs corps épuisés,
Quand ils devaient paitre leurs troupeaux de porcs
85
A escolha de um lugar afastado e isolado para construção do mosteiro estava
de acordo com a idéia de que o recolhimento era uma forma de afastar as monjas da
deterioração crescente das cidades, para poderem cultivar o saber divino e se dedicar
à meditação. Assim, o mosteiro de Gandersheim, como outras instituições monásticas,
foi organizado para assegurar a busca, a guarda e a multiplicação do saber.
Segundo López, os grandes mosteiros da Alemanha, no século X, inclusive
Gandersheim, estavam repletos de obras de autores clássicos, personalidades
culturais e autores literários reconhecidos, que desempenharam um papel importante
na formação das mulheres nobres e das religiosas que freqüentavam os mosteiros da
Alemanha.
[...] como el arzobispo Bruno de Colonia, el arzobispo Guillermo,
la abadesa Gerberga II de Gandersheim, la duquesa Edvige de
Baviera, Ekkeardo II, Liutprando, Raterio de Verona, Gunzo de Novara
[...], maestros todos ellos de quienes parece que habría aprendido algo,
ya fuera en el plano de la cultura general, ya en el propiamente literario,
la canonisa Rosvita de Gandersheim (LÓPEZ, 2003, p.11).
Ainda de acordo com Andrés López, todas as religiosas do mosteiro de
Gandersheim, tanto monjas quanto canonisas, eram de origem nobre. Segundo ele, as
canonisas faziam votos de castidade e obediência, mas não de pobreza e, desse
modo, podiam dispor do patrimônio pessoal para adquirir bens, sair e voltar ao
convento e relacionar-se com o resto da sociedade. Assim, ao passo que as monjas
não tinham essa liberdade.(LÓPEZ, 2003), Rosvita beneficiou-se da condição de
poder entrar e sair no mosteiro de Gandersheim, onde viveu.
Como nos outros grandes mosteiros da Alta Idade Média, no de Gandersheim,
as monjas seguiam os princípios da regra beneditina e o lema ora e labora: [...] uma
grande diversidade de interesses: ao mesmo tempo colégio, universidade, lugar de
Là, un jour, durant la fête vénérable de tous les saints,
Qu’on s’apprêtait à célébrer le surlendemain,
Au plus noir de la nuit, les porchers virent briller
Des lumières nombreuses au milieu de la forêt (HROTSVITA, 2000, p.214).
86
peregrinação, asilo, albergue, hospital, conservatório de música, biblioteca, centro
cultural, e um lugar de vida para as santas mulheres (PAUTRAT, 2002, p.8)
10
.
As monjas que ali viviam dedicavam-se à oração, à meditação, ao trabalho
social e, como os mosteiros eram os locais em que a cultura se estabelecia,
dedicavam-se tamm à leitura dos clássicos gregos e romanos. Rosvita, no entanto,
por ser canonisa, beneficiava-se de um regime menos rígido que a regra beneditina,
[...] “tenía aún más facilidades de cara a una formación intelectual plena e brillante:
podía comprar sus propios libros, tener invitados (podemos suponer cierta preferencia
por invitados de un alto grado de formación y de vasta cultura) y, además, salir y entrar
al convento sin demasiadas trabas” (DRONKE, apud LÓPEZ, 2003, p.14).
Assim, nestas condições especiais, Rosvita pode educar-se, atuar como
educadora e tornar-se conhecida por sua produção literária, tanto no campo religioso
como no secular. Ela pertenceu a um grupo de mulheres e monjas medievais
detentoras do conhecimento, situação pouco comum na época, exercendo um
importante papel na formação das mulheres que, futuramente, seriam mães, esposas
ou religiosas.
Como escritora, ela precisava dedicar-se à escrita, conhecer obras clássicas da
Antigüidade, aprender o grego e o hebreu, discutir questões teológicas, atividades não
muito comum entre as mulheres. Dessa forma, ela passou a ocupar espaços e a
realizar atividades até então restritos aos homens. Talvez por isso, ao ler e escrever
peças de teatro, imitando a cnica e o estilo cômico de Terêncio, ela demonstrasse
uma certa timidez ao descrever paixões e conversas entre amantes. Segundo as
palavras de Aurora López, a autora descreve este sentimento da seguinte forma:
“vergüenza interna que se manifiesta externamente en el intenso rubor que la invade,
y en el pudor que siente su oído antes las conversaciones de los amantes. Ahora bien,
eso lo siente la persona, la mujer, la canonisa, que vive según unas reglas” (LÓPEZ,
1998, p. 180). Ainda de acordo com a autora, Rosvita precisava justificar o
conhecimento que possuía das comédias pagãs. Essas leituras, na opinião de muitos
teólogos, eram consideradas perigosas para os cristãos. Porém, para atuar contra este
mal era preciso conhecê-lo e ela se impôs a obrigação de escrever sobre ele e
10
[...] un intense carrefour d’intérêts, tout à la fois collège, université, lieu de lerinage, asile, auberge, hôpital,
conservatoire de musique, bibliothèque, centre culturel, et un lieu de vie pour de saintes femmes (PAUTRAT, 2002,
p.8).
87
recorreu ao exercício do magistério e da argumentação cris para justificar os meios
de que se utilizava.
Ainda segundo Aurora Lopez, Rosvita, assustada com sua ousadia, adotava
uma atitude de humildade em sua própria pessoa para diminuir o efeito de seus
escritos sobre os críticos masculinos. Para poder seguir pensando e escrevendo, ela
demonstrava uma certa prudência, um tom de humildade perante os escritores mais
“sábios” que ela. Confessava que não se estimava tanto e que tinha recebido esta
inspiração de Deus. “[...] y nos encontramos con una nueva reafirmación femenina que
se repetien muchos místicos, que emana de Dios, sin intermediarios masculinos”
(LÓPEZ, 1999, p.180). A autora considera este comportamento de Rosvita como uma
estratégia para que os escritos de uma mulher fossem aceitos por seus
contemporâneos.
Neste sentido, em uma carta escrita a certos sábios defensores de sua obra,
Rosvita, numa atitude de humildade, desculpava-se e ao mesmo tempo alegrava-se
por receber o apoio e a atenção dos que possuíam o conhecimento filosófico.
Apoiando-se estrategicamente em um retórico pedido de desculpas, ela deixava claro
que era consciente de que Deus dava o talento a cada um e ela não podia se negar a
exercer os dons gratuitos que tinha recebido.
[...] hicisteis digna de vuestra admiración mi obrita de vil mujercilla y
alabasteis a Aquel que da la gracia operante en mí, congratulándome
con fraternal afecto, juzgando que existe en mí un pouquitín de la
ciencia de aquellas artes cuya sutileza largamente sobrepasa a mi
ingenio femenino (ROSVITA, 2003, p.57).
Com base no conhecimento que recebeu, ela considerava que a capacidade
era dada tanto para o homem como para a mulher e desejava que o valor fosse
atribuído de acordo com o talento manifestado nos escritos de cada um. Sobre o seu
trabalho como escritora, Dronke faz um comentário muito interessante sobre Rosvita,
afirmando que ela se manifestava autenticamente feminina.
Roswitha sabía, por experiencia propia, que las cosas se mediam por
un doble rasero. En primer lugar, no cabía esperar lo mismo de un
hombre que de una mujer, como tampoco de sus aptitudes. Aquí la
coqueteria de Roswitha se encargaba de subrayar cómicamente la
debilidad de la mujer, sin minimizarla jamás, pero de tal modo que se
88
frustran nuestras expectativas y, paradójicamente, se revela la fortaleza
femenina (DRONKE, apud LÓPEZ, 1999, p.181).
Rosvita manifestava uma atitude muito sábia perante o sexo oposto, ela
procurava agradar destacando a debilidade da mulher e, ao mesmo tempo, exaltando
toda a força, inteligência, coragem e o conhecimento que ela possuía. Esses modelos
e sentimentos femininos estão representados em seus escritos.
Segundo Aurora López, as obras de Rosvita estão divididas em três livros. O
livro I contém uma dedicatória em dísticos a Gerberga, abadessa de Gandersheim, e
oito poemas de temas e conteúdos hagiográficos; o livro II, um prefácio em prosa
rimada destinado aos sábios conhecedores do livro e seis dramas segundo o modelo
de Terêncio; o livro III, uma carta a Gerberga II, duas crônicas contando as façanhas
do Imperador Óton I e do seu filho Óton II e as Primordia Coenobii Gandeshemensis,
que relata as origens do mosteiro onde passou a maior parte de sua vida.
Porém, para outro estudioso de suas obras, Peter Dronke, citado por Andrés
López, a obra de Rosvita limita-se a dois livros: Líber Primus (Livro Primeiro) e Líber
Secundus (Livro Segundo), o qual culmina com sua versão do Apocalipsis. Ele
comprova este fato com uma passagem de Rosvita encontrada entre ambos os livros:
Explicit ber primus, incipit secundus( Explicado no livro primeiro, início do segundo).
(DRONKE, apud LÓPEZ, 2003, p. 21).
Temas como a celebração do martírio e a defesa da virgindade foram os
fundamentos básicos da obra de Rosvita. Goullet aponta que [...] as obras
dramáticas, com efeito, ao número de seis, se inspiraram todas em narrações
hagiográficas do século IV e do V, e seus temas celebram também as virtudes dos
mártires na defesa da virgindade” [...] (GOULLET, 2000, p.18)
11
.
Esse autor afirma também que os escritos de Terêncio faziam sucesso perante a
sociedade do seu tempo, por isso ela teria se servido da sua forma dramática para
tratar de temas mais religiosos: “a inspiração de suas obras é sempre de natureza
hagiográfica” (Ibid. 2000, p. 19)
12
.
11
[...] “les oeuvres dramatiques, en effet, au nombre de six, s’inspirent toutes de récits hagiographiques du IV ou du
V siècle, et leur tmatique célèbre elle aussi les vertus de martyrs défendant leur virginité” [...] (GOULLET, 2000,
p.18).
12
“la veine de ces ouevres est toujours de nature hagiographique” (Ibid. 2000, p. 19).
89
Nesse sentido, Rosvita, como religiosa e educadora cristã, aproveitou-se dessa
forma literária para inovar. Reconhecida como primeira dramaturga em toda Europa,
ela retoma o teatro que havia se eclipsado durante séculos. Ela escreveu sobre temas
que considerava importantes de serem ensinados e preservados, privilegiando a forma
dramática deixada pelos clássicos, Plauto e Terêncio, autores de comédias teatrais
latinas. Rosvita procurava aproximar os homens ilustres da corte dos Otones e as
religiosas do seu convento. O propósito desta leitura era reforçar os princípios da
cristã.
4.2 - O TEATRO: INSTRUMENTO PEDAGÓGICO
Rosvita escreveu suas peças e fez uso do estilo e da forma literária de Terêncio
(nascido no ano 185 a.C.), autor pagão de comédias latinas, porque considerava o
teatro como instrumento apropriado para explicar a religião, o conhecimento clássico e
os prinpios morais de sua época. Representando personagens bíblicas, Rosvita
sintetizou grande parte da sabedoria antiga e abordou temas que instruíam e
explicavam diversas situações subjetivas de sua época.
A sociedade romana, nos primeiros séculos, assimilou elementos da cultura
grega e transmitiu estes ensinamentos aos povos que se estabeleceram no Império.
Os costumes e as tradições anteriores continuavam a alimentar a literatura, a arte, e a
cultura. Segundo Hauser “[...] o máximo que se pode dizer é que uma reorientação da
vida abalou a coerência original das formas da antiga cultura; essas formas, porém,
ainda subsistiram como o único veículo de expressão disponível, o qual tinha de ser
forçosamente utilizado por quem desejasse ser entendido” (HAUSER, 2000, p.128). A
atitude da Igreja com relação à arte, à filosofia e à poesia foi a de incorporar um
significado mais cristão.
Na opinião dos primeiros tempos da Idade Média, a arte seria supérflua
se todos pudessem ler e acompanhar uma cadeia abstrata de
raciocínios; a arte era vista originalmente como uma simples
concessão feita às massas ignorantes que tão facilmente são
influenciadas por impressões dos sentidos. Não era certamente
permitido que fosse “um mero prazer para os olhos”, como afirmou São
Nilo. O caráter didático é a mais típica das características da arte cristã,
quando comparada com as antigas [...] (HAUSER, 2000, p.129);
90
A arte teatral sofreu alterações já na Antigüidade tardia. Na Grécia eram
comuns duas formas de drama, a comédia e a tragédia, que eram consideradas como
parte da educação de um grego. Esses gêneros teatrais foram assimilados pelos
romanos, que tamm gostavam dessa encantadora arte. No entanto, segundo
Cardoso, no século I da nossa era esses antigos dramas sofreram alterações e, em
seu lugar, apareceu um tipo de espetáculo puramente visual, com formas dramáticas
mais embrutecidas e pouco refinadas, que agradavam as classes menos formadas
intelectualmente.
Os mimos, com sua leveza e alegria, com danças, música, presença de
mulheres e cenas de nudez, eram muito mais apreciados do que as
antigas comédias e as austeras tragédias. Além disso, os espetáculos
circenses, grandiosos e violentos, expandiam-se cada vez mais,
disputando com o teatro a preferência do público (CARDOSO, 2003, p.
43).
Nem mesmo com a chegada do Cristianismo e a derrocada de Roma, o gosto
por esse tipo de especulo mudou. As autoridades eclessticas adotaram críticas
severas com relação a este nero dramático. Andrés López supõe que uma das
causas fundamentais que levou a Igreja a proibir encenações das comédias e
tragédias antigas é o fato de que os espetáculos teatrais foram reduzidos a uma série
de cenas e gestos degradantes (LÓPEZ, 2003, p. 36). As cenas apresentadas eram
grotescas e relacionavam-se a mortes e lutas sangrentas.
Assim, com o cristianismo florescendo em Roma, surgiram os primeiros
escritores cristãos empenhados em redigir discursos apologéticos nos quais
manifestavam suas preocupações com o comportamento dos cristãos. Ao mesmo
tempo, a hierarquia da Igreja repugnava e intervinha contra os espetáculos teatrais
acima mencionados:
Los gustos del público romano se degradaron a extremos tales que se
prefirieron, al final, los juegos de anfiteatro, las ejecuciones públicas o
estos nuevos tipos de representaciones, que no pueden, en rigor, ser
llamadas “teatro”, y se dejaron atrás la comedia y tragedia clásicas
(LÓPEZ, 2003, p.36);
Neste sentido, podemos afirmar que a representação de tragédias e comédias
clássicas foi praticamente abandonada entre o fim da Antigüidade e o começo da
91
Idade Média. Os apologistas cristãos não foram contra o cultivo dos grandes gêneros
dramáticos da antigüidade clássica, mas se posicionaram contra seus excessos. López
afirma que “los poderes eclesiásticos, por tanto, no lucharan, no prohibieron el cultivo
de los grandes géneros dramáticos grecorromanos, que hacía tiempo que no se
usaban, sino este tipo de formas degradadas que sobrevivían en la escena” (LÓPEZ,
2003, p. 36).
A brutalidade das cenas fez com que, além das autoridades eclesiásticas, as
autoridades laicas também se preocupassem com os excessos praticados nas
festividades.
Ya en época de Augusto, las opiniones de Ovidio, Horacio y otros
escritores nos dibujan un panorama teatral en el que se percibe el
desplazamiento que la elaboración del texto dratico había acabado
sufriendo en favor de un espectáculo puramente visual, cada vez más
embrutecido y alejado de toda sensibilidad refinada, afectando los
nuevos gustos incluso entre las clases mejor formadas
intelectualmente, lo cual lleva a un poeta como Horacio a pensar en la
imposibilidad de que el antiguo drama clásico se recupere (LÓPEZ,
2003, p. 36-37).
É evidente que, no período em que nossa autora escreveu suas peças, a idéia
de teatro era muito diferente da que temos hoje em dia. É possível que seus dramas
não tenham sido destinados a representações no século X, que o teatro era uma
atividade condenada pelas autoridades eclesiásticas. De acordo com Andrés López,
podemos dizer que Rosvita, por viver no espaço monacal, ao imitar o escritor latino,
considerou apenas o modelo de composição, mas não as técnicas de representação.
Esse autor supõe que os diálogos dramáticos de Rosvita não foram escritos
para serem encenados como vemos atualmente. É possível que na corte dos otônidas
se fizessem leituras em voz alta, leituras dialogadas, das obras de Rosvita (LÓPEZ,
2003). Pouco se sabe se os seus diálogos dramáticos foram ou o representados;
não se pode afirmar isto com certeza, pois existem poucos documentos a este
respeito. Segundo outro estudioso de suas obras, Monique Goullet, seus textos foram
apenas lidos em voz alta e Rosvita afirma este fato em seu prefácio dramático:
Pois se minha piedade tem a felicidade de agradar, eu serei feliz; mas
se ela não seduz a ninguém por causa de minha mediocridade e da
92
grosseria de uma língua incorreta, eu não serei menos feliz pelo que
fiz, por que, em executar com cuidado a forma de minha escrita
modesta, rodeada, dos outros opúsculos, produtos da minha
ignorância, de um diadema heróico, ornado aqui de uma corrente de
obras dramáticas, eu evitei assim, fugindo, as perigosas delícias dos
pagãos (HROTSVITA, 2000, p.18 )
13
.
Contudo, em épocas recentes, os seus diálogos chegaram a ser representados
por algumas companhias teatrais profissionais e foram utilizados como textos
acadêmicos em algumas Universidades. De qualquer forma, podemos afirmar que,
“Rosvita es la primeira mujer europea que, en el período medieval europeo, escribió
teatro” (GARRETAS, apud. LÓPEZ, 2003, p. 40).
Durante o medievo, ao longo do processo de transmissão do legado cssico,
os antigos textos dramáticos latinos serviram de modelo para muitos escritores,
especialmente as comédias de Plauto e Terêncio. Rosvita utilizou-se dessas fontes
porque percebeu que, por serem sensuais e agradáveis, sua leitura despertava o
interesse do público. Muitos abandonavam os livros clássicos e sacros, passando a
servir-se das leituras teatrais terencianas. Em toda Idade Média, o teatro e outros
espetáculos de massa eram proibidos pela Igreja, mas Terêncio “[...] nos aparece
como un autor clásico imprescindible para la formación de cualquier buen letrado
medieval” (LÓPEZ, 2003, p.23)
14
.
Possivelmente seja por isso que Rosvita transformou o teatro em um
instrumento apropriado para explicar a religião, o conhecimento clássico, os valores
morais e as virtudes cristãs. A forma dramática dos escritos de Rosvita teve um
importante papel didático e doutrinário, porque ela propunha discussões de temas com
base em uma argumentação filosófica cristã. E, dessa forma, ela veiculava temas que
considerava essenciais para a formação dos homens da corte otônida e das monjas
do seu mosteiro.
É interessante observar que, mesmo com a condenação do teatro pelos setores
eclessticos durante a Idade Média, era comum que os dirigentes da Igreja, além da
14
Ainda de acordo com este autor, as obras de Terêncio eram apreciadas pelo arcebispo Bruno, irmão
de Otón I e seus amigos, entre eles Raterio de Verona e Liutprando de Cremona, homens de ampla
cultura, que desempenhavam um papel importante na corte como educador e que após terem lido e
apreciado alguns dramas escritos por Rosvita, outorgaram sua opinião favorável sobre a obra,
provavelmente, porque satisfaziam seus gostos. (LÓPEZ, 2003, p.24)
93
leitura obrigatória das escrituras sagradas, aproveitassem as obras dos autores
clássicos gregos e romanos para a formão das pessoas. Segundo pez, a leitura
de autores latinos nas escolas foi muito incentivada e recomendada desde o Império
Romano. o Jerônimo, por exemplo, que muito influenciou o desenvolvimento da
cultura na Alta Idade Média, “[...] conoció bien la obra de Plauto y Terencio, a pesar de
su oposición a los espectáculos teatrales; también admiraba a Lucrecio, Cicerón,
Salustio, Virgilio, Horacio, Pérsio, Lucano...” (LÓPEZ, 2003 p. 23). Este teólogo,
naqueles tempos de insegurança, criou condições favoráveis para os estudos de
autores latinos.
Diante deste quadro, não devemos estranhar que, durante a época otônida, a
preocupação com a formão cultural e com uma boa educação escolar tenha levado
a se admitir a leitura de autores gregos e romanos além dos cristãos nas escolas
catedráticas e monásticas. Assim, Terêncio despertou o interesse de grandes
personalidades e passou a ocupar um lugar de destaque: [...] era uno de los escritores
romanos más copiados entre los siglos IX y XII, tanto en manuscritos de lectura y
trabajo de escuela, en glosas o comentários, como en dices de lujo, aparte de ser,
ciertamente, uno de los escritores romanos clássicos más leídos durante toda la Edad
Media ( Ibid. p. 25).
As comédias de Terêncio parecem ter sido apreciadas durante toda Idade
Média e, segundo Souza, são obras de elevado nível arstico, possuem uma
linguagem elegante e depurada, demonstrando que foram escritas para um publico
mais refinado e culto.
Terêncio é, sem dúvida, o mais correto dos escritores latinos do
primeiro período. Como poeta cômico manteve uma disciplina artística
e moral que reflete o ambiente em que se desenvolvia o seu talento,
manifestada pela nobreza e decoro de expressão e pela ternura de
sentimentos. Com essa orientação aproxima-se dos modelos gregos,
que se caracterizam pelo controle das paixões e a delicadeza da arte
(SOUZA, 1977, p.106).
O conhecimento de Terêncio é nítido em Rosvita. Em seus dramas, ela utilizou
o estilo e algumas características desse dramaturgo clássico. Para Dronke, suas obras
o parecidas na forma como ambos representam os homens e as mulheres. Os
personagens masculinos são sempre poderosos e ameaçadores; no entanto, sempre
94
acabam por reconhecer o absurdo de suas pretensões. Os femininos são sempre
depreciados e ameaçados pela violência dos tiranos, porém acabam por triunfar e
vencer por meio de seus argumentos (DRONKE, apud LÓPEZ, 2003, p. 25). Contudo,
as semelhanças temáticaso apenas essas. Ao contrário de Terêncio, Rosvita
escreveu um teatro fundamentalmente religioso. Ela apreendeu de Terêncio sua forma
dramática de composição, mas a correlação de conteúdo é praticamente inexistente.
Andrés López afirma que a autora, além de imitar as obras pagãs de Terêncio,
empregava em seus dramas diálogos da escolástica e de outras fontes da literatura
religiosa, tanto ortodoxas como heréticas. Para escrever a história da Ressurreição de
Drusiana e Calímaco, ela utilizou o livro Hechos de Juan, traducido al latín hacia el
siglo IV, apócrifo neotestamentario, herético, de fuertes matices docetistas e
inspiración gnóstica” (ASTEY, apud LÓPEZ, 2003, p. 30) que versa sobre a Assunção
da Virgem Maria.
O Senhor então dirigiu-se à sua mãe dizendo: Maria”. Ela respondeu:
“Aqui me tens, Senhor!” Ele disse-lhe: “Não te aflijas; alegre-se teu
coração e sinta o gozo, pois encontraste graça para poder contemplar
a glória que me foi dada por meu Pai”. Então a santa mãe de Deus
levantou seus olhos e viu nele uma tal glória, que é inefável para a
boca do homem e incompreensível.
O Senhor permaneceu ao seu lado e prosseguiu dizendo: “Eis que a
partir deste momento teu corpo será transportado ao paraíso, enquanto
tua santa alma estará nos céus, entre os tesouros de meu Pai, coroada
de um extraordinário resplendor, onde paz e alegria própria dos
santos anjos e mais ainda” (SÂO JOÃO EVANGELISTA, 2004, p. 235).
De acordo com Andrés López, o tema do mistério de Maria despertava fascínio
em Rosvita, por isso ele considera que a ressurreição de Drusiana foi fundamentada
nesta fonte apócrifa (LÓPEZ, 2003, p. 30).
É importante salientar que a Igreja Católica considera apócrifos os Evangelhos
que, apesar de terem sido atribuídos a um autor sagrado, não eram aceitos como
canônicos.
Na Antiguidade, chamavam-se apócrifos os livros destinados ao uso
privado dos iniciados numa seita. Etimologicamente, apócrifo significa
“coisa escondida, oculta”. Entre os romanos, neste sentido, os Sibilinos
e os Ius Pontificum eram apócrifos. Mais tarde designaram-se
apócrifos livros de origem duvidosa. Assim, entre os cristãos,
95
designaram-se apócrifos um conjunto de livros que desenvolvem temas
religiosos, cuja autoria é falsamente atribuída a importantes
personagens bíblicos, para lhes garantir maior autoridade e um caráter
sagrado. Tais obras, muitas vezes, se tornaram suspeitas de heresia,
ou seja, não de acordo com o ensinamento oficial. Por isso passaram a
ser excluídos não da leitura nas celebrações litúrgicas, mas
considerados pouco recomendáveis nas mãos dos fiéis (ZILLES, 2004,
p.10).
Segundo o autor, os evangelhos apócrifos exerceram muita influência na
liturgia, na arte e na literatura medieval e boa parte disso se deve à curiosidade para
conhecer detalhes do acontecimento da vida de Jesus, de Maria e dos apóstolos
( ZILLES, 2004 ). É possível que a leitura de documentos acrifos tenha influenciado
Rosvita na composição de seus dramas.
Assim como a Igreja excluiu os apócrifos do cânon, o teatro clássico, na forma
como era representado na Antigüidade, também foi proibido na época medieval pelos
pensadores cristãos, mas Rosvita teve acesso a essa literatura dos primeiros séculos
e por isso pode fazer do teatro o suporte para transmitir sua mensagem. No mundo
ocidental de hoje, ela é compreendida de diferentes maneiras. Segundo Goullet, entre
os alemães ela é considerada a primeira poetisa, porém é na Itália que a tradução dos
seus trabalhos foram mais numerosos e se tornaram claramente consagrados. “A
poetisa sempre foi aí considerada como um elo da corrente literária que vai da
Antigüidade até o fim da Idade Média, sem que não se esqueça contudo, de destacar a
originalidade de seu talento pessoal” (GOULLET, 2000, p.16)
15
.
Ainda segundo ele, os seus escritos são bem recebidos pelos italianos porque a
língua e a cultura italiana moderna estão estreitamente relacionadas com o latim da
Antigüidade e da Idade Média. Seus textos atraíram também a atenção dos franceses.
Destacados como importantes obras, foram inseridos no programa de história literária
em Sorbone. [...] tem-se também a imagem romântica da monja frágil, enclausurada
no mosteiro de Gandersheim, que distraía suas irmãs com representações teatrais
(GOULLET, 2000, p.17)
16
.
15
“La poétese y a toujours été perçue comme un maillon de la chaîne littéraire qui va de l”Antiquijusqu’à la fin du
Moyen Age, sans qu’on oublie néanmoins de souligner loriginalité de son talent personel(GOULLET, 2000,
p.16).
16
“[...] on leur doit aussi limagerie romantique de la nonne fragile, clôitrée à Gandersheim, et distrayant ses soeurs
par des représentations théâtrales “ (GOULLET, 2000, p.17).
96
Após termos fornecido essas informações sobre a vida de Rosvita e sobre as
condições em que ela criou suas peças dramáticas, vamos analisar seus dramas e um
poema. A análise será feita com base nas principais questões tratadas pela autora e
que se tornaram propostas educativas naquele momento em que, com o início das
relações feudais, a sociedade passava por intensas transformões sociais.
4.3 - CELEBRAÇÃO DO MARTÍRIO
No Martírio das Santas Virgens Fé, Esperança e Caridade, Rosvita retrata o
tempo de Adriano. O enredo da peça baseia-se, como o próprio título indica, no
martírio dessas virgens, Fé, Esperança e Caridade, e de sua mãe Santa Sabedoria, as
quais, acusadas de praticar a religião cristã, o denunciadas por Antíoco ao
Imperador Adriano. As santas virgens sofrem opressão do tirano, que mostra uma
considerável criatividade na diversidade de instrumentos, técnicas e procedimentos de
tortura destinados a provar e vencer a dos cristãos. Elas se livram de todas as
torturas, mas reconhecem que somente por meio da morte podem alcançar o estado
de graça eterna.
Como elas admitem a existência de um Deus único, decidem seguir o que seria
para os cristãos o caminho da virtude. Em várias cenas, o Imperador insiste para que
a mãe e as filhas prestem culto aos seus deuses; no entanto, em todos os momentos,
mesmo diante dos castigos, elas se negam veementemente a adorar os deuses
pagãos:
ADR.: Ilustre matrona, com bons modos convido-te a dar culto aos
deuses, para que possas gozar de nosso favor.
SAB.: Não pretendo de modo algum prestar culto a teus deuses, nem
morro de vontade de ganhar o teu favor[...] (ROSVITA, 1986, p.49)
[...] ADR.: Fé, olha para aquela venerável imagem de Diana e oferece
libações à deusa, para que possas valer-te da graça que ela dispensa.
FÉ.: Que então seria mais tolo; que mais insensato pode haver do que
nos exortar a desprezar o Criador do Universo e a adorar o metal?
(Ibid. p. 55)
O fato de Rosvita articular a trama de sua peça com base nesse tipo de
enfrentamento demonstra que ela tinha conhecimento das perseguições
desencadeadas pelos governadores das províncias contra os cristãos como uma
forma de minar a prática da em Cristo. As perseguições eram comuns durante os
97
primeiros séculos do cristianismo, quando os padres da Igreja e os apologistas, como
Tertuliano, escreveram opúsculos e lutaram contra os que não acreditavam em Cristo.
Ao dar, no século X, força dramática aos sofrimentos dos primeiros cristãos em defesa
da e, assim, relacionar os acontecimentos passados com o seu momento histórico,
ela pretendia ensinar que o sacricio, ou seja, o martírio, garantia o retorno vitorioso
para o seio do Senhor. Por isso, esse tema é recorrente em quase todos os seus
escritos. É o caso do drama Dulcício ou Martírio das santas virgens Ágape, Quiônia e
Irene. No enredo desta peça ela descreve o martírio dessas três jovens cristãs que se
negaram a prestar culto aos deuses. O Imperador, muito intrigado com a atitude das
moças, manda que Sisínio as torture. No entanto, como elas desejavam sofrer pelo
amor de Cristo, Ágape e Quiônia foram queimadas e Irene trespassada por uma
flecha.
SISÍNIO: Soldados, sem demora, levai estas blasfemas e lançai-as
vivas nas chamas ardentes.
SOLDADOS: Armamos imediatamente a fogueira, senhor, e nela
lançamos estas blasfemas para acabar com tantos insultos!
ÁGAPE: Senhor, sabemos que, por Teu poder, não é inusitado que o
fogo esqueça a sua natureza. Mas, por favor, deixa-o agir, pois
aborrece-nos a espera de nosso espírito ir para Ti e cantar o Teu
louvor no céu, sem vínculos deste corpo terreno.
SOLDADOS: Que milagre espantoso! Olhem! As almas estão saindo e
não há, nos corpos delas, o menor sinal de ferimento: seus cabelos
não se queimam, nem suas roupas e nem seus corpos [...] (ROSVITA,
1998, p.184).
Irene não é morta da mesma forma que as irmãs. O rei, com intenção de
torturá-la determina que seja levada para um prostíbulo, porém, no caminho, por
acreditar que recebeu a proteção dos anjos, ela é levada para a montanha e se
entrega à morte.
[...] IRENE: Sisínio, seu pobre coitado! Reconhece que foste
vergonhosamente derrotado, pois não és capaz de enfrentar uma
garotinha sem armamento.
SISÍNIO: Qualquer vergonha se tolerável quando tu tiveres morrido.
IRENE: Esta flecha para mim será causa de grande alegria; para ti,
perdição. Por causa dela, tu serás levado ao inferno; eu receberei a
palma do martírio e a coroa da virgindade; serei levada ao tálamo do
meu Esposo, o eterno rei celestial, para Ele a glória pelos séculos dos
culos (ROSVITA, 1998, p.190).
98
Nos seus dramas, Rosvita queria mostrar cenas de personagens que
pertencem ao mundo sagrado. Por isso não é de se estranhar que a monja adote
motivos cristãos como tema de suas composições e se utilize de uma forma alegórica
para transmitir suas idéias. Na peça, Martírio das santas virgens Fé, Esperança e
Caridade, Rosvita procura representar as três virtudes teologais da cristã, ou seja,
os três pilares da Igreja, por meio dos nomes de suas filhas: ADR: Dize os nomes
delas. SAB.: A primeira se chama Fé; a segunda, Esperança; a terceira, Caridade
(ROSVITA, 1986, p. 50). Estes princípios, pregados pelo cristianismo nos primeiros
tempos, são o principal fundamento da doutrina cristã, ou seja, quem tem ,
esperança e caridade estará cumprindo os ensinamentos básicos pregados por Cristo
nos primeiros tempos e transmitidos por seus Apóstolos. Segundo Lauand, na
comédia Dulcício, de forma alegórica, também estão presentes nos nomes das virgens
mártires as virtudes do cristão: caridade (Ágape), pureza (Quiônia nívea) e a paz
(Irene) (LAUAND, 1998, p.171).
4.4 - DEFESA DA VIRGINDADE
As cenas destinadas à defesa de uma vida recolhida para as mulheres, como a
preservação da virgindade, tinham um sentido moral para a época. A virgem Maria,
por exemplo, é utilizada por ela como o modelo de conduta, virtude e pureza, atributos
fundamentais para as mulheres do século X.
Em várias cenas, contrapondo-as ao modelo da pecadora, Rosvita reforçava a
importância das mulheres se consagrarem espiritualmente a Cristo. Isso pode ser
observado na Cena V, do drama O martírio das virgens Fé, Esperança e Caridade, em
que a mãe exorta as filhas a praticarem a virgindade.
SAB.: Isto eu desejo: que pela vossa virgindade seja eu
coroada; pelo vosso martírio seja eu glorificada (ROSVITA, 1986, p.
54).
[...]
SAB.: Ó caridade, excelsa esperança de meu ventre, ilustre filha
minha, não defraudes as esperanças de tua mãe de que combates
bem. Desdenha as ofertas do Imperador e assim atingirás a alegria
sem fim: a refulgente coroa da virgindade sem mancha que tuas irmãs
conquistaram (Ibid, 1986, p.62).
99
Em sua peça, Conversion de Galicano, general de los ejércitos, esta mesma
situação é retratada por Rosvita. O enredo é composto pelos esforços de Galicano,
general dos exércitos, para defender a pátria e receber um prêmio do Imperador
Constantino. Como ele tinha o direito de escolha, pediu ao Imperador para se casar
com a filha do mesmo, a donzela Constanza. Porém, ela havia feito votos de castidade
e o casamento não era seu desejo.
CONSTANTINO: El duque Galicano, que ha tenido frecuentes éxitos y
triunfos y que ha adquirido la medalla al mérito antes que los demás
generales, y cuyas obras muy a menudo estamos necesitados para la
defensa de la patria.
CONSTANZA: Qué pasa con él?
CONSTANTINO: Desea tenerte como esposa.
CONSTANZA: A mi?
CONSTANTINO: A ti.
CONSTANZA: Prefiero morir.
CONSTANTINO: Lo suponía.
CONSTANZA: Y no es nada asombroso, pues con tu aprobación y tu
permiso me consagré a la virginidade por servir a Dios.
CONSTANTINO: Lo recuerdo.
CONSTANZA: Y nunca, por ningún tormento, podré ser forzada a dejar
de observar mi custodia Del Inviolado Sacramento (ROSVITA, 2003,
p.61).
Para evitar o perigo das monjas e mulheres que freqüentavam os mosteiros se
entregarem aos prazeres do corpo, Rosvita glorificava a continência das virgens
cristãs e afirmava que esta era fundamental na vida monástica, pois era o caminho
que conduziria ao encontro de Cristo, esposo celestial. O objetivo de Rosvita, ao
pregar esta norma de comportamento, como a preservação da castidade, era
assegurar a pureza do corpo e da alma. Deste modo, percebemos que mais uma vez
ela retoma os conceitos pregados pelo apóstolo Paulo e que eram a base da difusão
do cristianismo.
Por isso, em alguns dos seus dramas ela coloca em cena a conversão de
mulheres pecadoras. Podemos notar que ela trata de mostrar outro caminho para as
mulheres que, segundo a concepção cristã, cometeram atos impuros. Rosvita
apresenta mulheres que souberam elevar-se moralmente após terem sucumbido à
fraqueza humana. Ela precisava mostrar este modelo de comportamento para explicar
os valores e as virtudes que estavam sendo abandonados.
100
No drama intitulado Caída y conversión de Maria, sobrina del eremita Abraham,
Rosvita descreve como o monge Abraão conseguiu reabilitar sua sobrinha Maria, que
era órfã. Ele a tinha recolhido, cuidado e instruído de acordo com os princípios cristãos
e, correspondendo a esta educação, ela vivera solitária durante muitos anos. Contudo,
um dia, atraída pelo pecado, ela saiu de casa para se entregar aos prazeres dos que a
queriam como amante. Abraão dispôs-se a encontrá-la. Por meio de um amigo
localizou sua sobrinha, que estava vivendo em uma casa de meretrizes. Ela enriquecia
entregando seu corpo para amantes em troca de favores. Abraão disfarçou-se de
militar e fingiu ser um amante que a solicitava. Quando se descobriram, Maria se
arrependeu por ter-se entregado ao vício. Disse a Abraão que tinha sido seduzida pelo
pecado, mas sentia vergonha de aproximar-se da santidade. Ele a perdoou e a
recebeu novamente, encaminhando-a para um mosteiro onde ela permaneceu durante
muitos anos em vigília e orações para eliminar as manchas de suas faltas.
[...] ABRAHAM: Es cierto que tus pecados son graves, lo confieso; pero
la Piedad Suprema es mayor que cualquier criatura. Por lo cual, acaba
con el desaliento y no dejes, entregándote a la pereza, de dar lugar a la
penitencia hasta que te sobre la gracia divina allí donde sobró lo
abominable de tus delitos.
MARÍA: Si hubiese alguna esperanza de merecer el perdón, de ningún
modo dejaa de dedicarme por entero a mi penitencia.
ABRAHAM: Apiádate de las fatigas que por ti he pasado, y abandona
esa deseperación perniciosa, que no ignoramos que será más grave
que todo lo que hayas cometido! Ciertamente, aquel que desespera de
que Dios quiera apiadarse de los pecadores, está irremediablemente
pecando, porque, así como la chispa de un pedernal no puede envolver
el océano en llamas, la terquedad de nuestros actos pecaminosos no
es capaz de alterar la dulzura de la benignidad divina.
MARIA: No niego en absoluto la magnificencia de la Piedad Suprema,
pero considerando la enormidad de mi propria falta, temo no poder
alcanzar la satisfacción de una penitencia digna.
ABRAHAM: Que contra se vuelva tu iniquidad! Regresa tan lo al
lugar de donde saliste y emprende de nuevo aquellas meditaciones que
abandonaste [...] (ROSVITA, 2003, p.87).
Assim, ao mesmo tempo em que prega a pureza e a conversão, Rosvita
também apresenta o comportamento magnânimo do perdão. Guerra, discórdia e
violência o marcas negativas na sociedade, a educação cristã deve criar um clima
de reconciliação e de perdão. Tentando um abrandamento da violência social, Rosvita
mostra um outro princípio do cristianismo, o ato de perdoar que para o cristão é
101
esquecer e arrepender-se de todo comportamento e todas as ações praticadas que
arrastam as pessoas para o mal. É o que expressa Rosvita ao oferecer estas imagens
para a sociedade. O perdão, o arrependimento e a conversão são recomendações que
devem ser percorridas pelos que têm fé.
Certamente Rosvita demonstrava o sexo masculino ocupando um lugar
importante, evidenciando a imagem de varão, de homem santo que a ajudou. Porém
sua ajuda não teria servido de nada se, por sua vontade, a mulher não estivesse
disposta a viver de acordo com a lei cristã, abandonando os falsos prazeres. De certa
forma, ela enaltecia a mulher como sujeito de virtudes, tanto intelectuais como morais,
e, de acordo com esta cena, ela mostrava o caminho que as mulheres deveriam seguir
após terem caído no pecado. Afinal, a forma de ser da sociedade estava baseada no
cristianismo.
Em um de seus poemas, Paixão do Santo Pelágio, Rosvita discute ainda um
outro tema importante no momento: o homossexualismo. Ela conta a história do
martírio deste santo, seu contemporâneo. Córdoba, na Espanha, tinha sido invadida
pelos Sarracenos e, durante o combate, o povo cristão foi submetido à cultura
mulçumana. Pelágio, um jovem cristão de corpo belo e resplandecente, oriundo de
Galícia, com pouca idade, ainda adolescente, preferiu permanecer preso em Córdoba
em troca da liberdade do seu pai, chefe cristão que se encontrava na prisão, enfermo
e velho. Depois de trancado no calabouço pelas ordens do rei Abd-al-Rhaman, atraiu a
simpatia e o respeito de alguns poderosos, que intercederam por ele junto ao califa,
porque sabiam que o tirano se sentia atraído por sua figura.
Sabem que o orgulhoso tirano da opulenta cidade
É corrompido pelo vício dos homens de Sodoma,
Amando os jovens de graciosa aparência,
E desejosos de uni-los ao seu amor.
E, lembrando-se disso, tomados por piedade
Pleiteiam nestes termos a causa de Pélage:
“Príncipe todo poderoso, não se entregue à tua posição
De fazer punir tão duramente esta magnífica criança,
E de submeter à tortura um refém inocente.
Tão somente tu querias ver seu maravilhoso rosto,
E provar uma vez a palavra de mel:
Como tu desejarias ligar-te a este jovem homem
Dando-lhe na tua milícia um cargo de alto posto,
102
Afim de que ele te sirva a corte com sua beleza delicada!
(HROTSVITA, 2000, p. 101)
17
Suspenso dos castigos e adornado com vestes luxuosas, Pelágio foi conduzido
até o palácio do rei, que ficou admirado com a beleza daquele jovem.
Desde o primeiro olhar, o tirano foi cativado
E pôis-se a queimar pela amável beleza desse filho do rei.
Enfim ele perguntou se o gracioso Pélage
Seria colocado perto dele sobre o trono real,
Querendo unir estreitamente a ele o objeto de seu desejo.
Em seguida ele baixou a fronte para lhe dar um beijo
E amorosamente colocou seu braço em torno do seu pescoço.
(HROTSVITA, 2000, p. 102)
18
.
No entanto, Pelágio não suportou o amor do rei pagão, não se deixou seduzir
pelas palavras do tirano e em nome da em Cristo, preferiu o martírio. Então o rei,
muito nervoso porque Pelágio tinha rechaçado suas propostas sodomíticas, o fez
martirizar no dia 26 de junho de 925. Certamente Rosvita estava preocupada com a
vida cotidiana da sociedade, que proporcionava abundantes exemplos de aceitação
destas práticas sexuais, que contrastam com a tendência intolerante existente nos
reinos cristãos. Diante desta situação, considerando ser preciso dignificar e elogiar a
atitude dos cristãos, ela reflete em seus versos o comportamento e a atitude de Santo
17
[...] Ils savent que le fier tyran de l’opulente ville
Est corrompu du vice des hommes de Sodome,
Aimant les jeunes gens au gracieux visage,
Et désireux de les unir à son amour.
Ils se souviennent de la chose, et pris par la pitié
Plaident en ces termes la cause de Pélage:
“Prince tout-puissant, il ne sied pas à ton rang
De faire punir trop durement ce magnifique enfant,
Et de soumettre à la torture un otage innocent.
Si seulement tu voulais voir son merveilleux visage,
Et gôuter une fois sa parole de miel:
Comme tu désirerais t’attacher ce jeune homme
En lui donnant dans ta milice un grade de premier rang,
Afin qu’il te serve à la cour avec sa beauté délicate!” (HROTSVITA, 2000, p. 101).
18
[...] Des le premier regard le tyran fut captivé
Et se mit à brûler pour l’aimable beauté de ce fils de roi.
Enfin il demanda que le gracieux lage
Soit placé près de lui sur le trône royal,
Voulant unir étroitement à lui l’objet de son désir.
Puis il baissa le front pour lui prendre un baiser
Et amoureusement lui mit sés brás autour du cou (HROTSVITA, 2000, p. 102).
103
Pelágio, mostrando para os jovens que o homossexualismo devia ser visto como falta
de fé, como uma situação típica de um mundo profano.
4.5 - A BELEZA FEMININA
Rosvita destacava, também, a feminilidade das mulheres, apresentando-as
fortes, belas e inteligentes frente aos homens que exerciam o poder. É essa a forma
como ela procede em Martírio das santas virgens Fé, Esperança e Caridade.
Sab: Não tenho receio de, na nobre companhia de minhas filhas, ir ao
palácio e não tremo ante a ameaça de defrontar-me cara a cara com o
Imperador (ROSVITA, 1986, p.47).
[...]
Adr: Estou estupefato diante da beleza de cada uma delas, e não sou
capaz de deixar de admirar seu porte pleno de dignidade (Ibid. p.48).
Com uma visão mais voltada para uma leitura do gênero feminino, Maria
Milagros Rivera tece as seguintes considerações:
19
1. Las cuatro mujeres llegan a Roma, sin hombres que las protejan. 2.
Se dedican a predicar, y su labor es subversiva, por cuanto incintan
(sic) a las mujeres a rechazar a sus maridos. 3. Son todas ellas
única y exclusivamente prototipos. 4. Representan un mundo de
mujeres que se dan apoyo, frente al de los hombres, obscenos y
ruidosos (RIVERA, apud LÓPEZ, 1998, p.181).
Em o Dulcício, Rosvita representa o mesmo arquétipo e, quando descreve as
jovens, ela enaltece a figura feminina:
DULCÍCIO: Trazei, soldados, as prisioneiras.
SOLDADOS: Aqui estão, senhor.
DULCÍCIO: Uau! Que lindas, que graciosas, que admiráveis garotas!
SOLDADOS: Sim, são um espetáculo!
19
Não pretendemos neste estudo destacar a questão do gênero, vamos apenas abordar a sensibilidade feminina
de Rosvita ao se remeter às mulheres.
104
DULCÍCIO: Estou cativado pela beleza delas.
SOLDADOS:E não é para menos, senhor (ROSVITA, 1998, p.175).
De nosso ponto de vista, as reflexões em torno da sua obra e da sua pessoa
mostram que a representação feminina, em seus diálogos, emana da em Deus,
considerada por Rosvita como a única responsável pela nossa capacidade de dispor
do conhecimento.
4.6 - AS DISCIPLINAS DO QUADRIVIUM – ARITMÉTICA E MÚSICA
Suas personagens femininas, mesmo sofrendo a ameaça e a opressão dos
tiranos, acabavam triunfando na defesa de suas idéias. Na comédia Martírio das
santas virgens Fé, Esperança e Caridade, a personagem Sabedoria, como o próprio
nome indica, é extremamente sábia e, além de ministrar a educação religiosa cristã,
transmite conceitos importantes para a formação intelectual. Ao revelar a idade das
filhas, Sabedoria ministra uma aula de Aritmética, demonstrando que Rosvita tinha
grande domínio das Artes Liberais e da formulação boeciana. Dronke afirma que
estamos diante de um nome simbólico e que Sapientia é[...] la madre que encarna la
sabiduría incluso en su próprio nombre y que se burla de su juez, el emperador
Adriano, con los enigmas de las matemáticas de Boecio” ( DRONKE, apud LÓPEZ,
2003 p. 31). A mãe das mártires encarna este ideal de mulher sábia, tão querido por
Rosvita, e deixa o Imperador surpreso com tal demonstração de conhecimento. Os
conceitos de matemática desenvolvidos por Rosvita, por meio da personagem de sua
peça, segundo Lauand, foram extraídos do De Arithmetica de Boécio.
número parmente par: que são as nossas potências de 2[...]
parmente ímpar: o dobro de um ímpar[...]
imparmente par: produto de um ímpar por um parmente par [...]
denominação e quantidade: são os fatores de um produtos;
número perfeito: é um número n cuja soma de seus divisores (a
menos do próprio n) dá n. Se essa soma for maior que n, o
número diz-se excedente; se menor, deficiente (LAUAND, 1986,
p.42).
A nosso ver, a autora queria ensinar para aquela sociedade, além dos conceitos
religiosos e morais, a matemática. Esta aula era muito importante para a época, pois
105
era uma forma de desenvolver a capacidade reflexiva de suas alunas. Na passagem
seguinte, a partir da idade das filhas, Sabedoria coloca em prática seu conhecimento
dos conceitos matemáticos boecianos:
ADR.: Quantos anos têm?
SAB.: (sussurrando) Agrada-vos, ó filha que perturbe com um
problema aritmético a este tolo?
FÉ.: Claro mamãe. Porque nós também ouviremos de bom
grado:
SAB.: Ó Imperador, se tu perguntas a idade das meninas:
Caridade tem por idade um número deficiente que é parmente par;
Esperança, também um número deficiente, mas parmente ímpar; e Fé,
um número excedente mas imparmente par.
ADR.: Tal resposta me deixou na mesma: não sei que números
o!
SAB.: Não admira, pois, tal como respondi, podem ser diversos
números e não uma única resposta.
ADR.: Explica de modo mais claro, senão não entendo
(ROSVITA, 1986, p. 50).
Nas cenas citadas a seguir, a pedido do Imperador, Sabedoria faz uma
explicação mais detalhada dos conceitos matemáticos.
SAB.: Caridade completou 2 olimpíadas; Esperança, 2
lustros; Fé, 3 olimpíadas.
ADR.: E por que o número 8, que é 2 olímpiadas, e o 10 que é 2
lustros o números deficientes? E por que 12 que completa 3
olimpíadas se diz número excedente?
SAB.: Por que todo mero cuja soma de suas partes (isto é,
seus divisores) menor que esse número chama-se deficiente, como
é o caso do 8. Pois os divisores de 8 são: sua metade 4, sua quarta
parte 2, e sua oitava parte 1; que somados dão 7. Assim também o
10, cuja metade é 5; sua quinta parte é 2; e sua décima parte, 1. A
soma das partes do 10 é portanto, 8, que é menor que 10. Já o
contrário, se diz número excedente, como é o caso do 12. Pois sua
metade é de 6; sua terça parte, 4; a quarta parte, 3; a sexta parte, 2; e
a duodécima parte, 1. Somadas as partes dão 16.
Quando porém o número não é excedido nem inferado pela
soma de suas diversas partes, então esse número é chamado número
perfeito.
É o caso do 6, cujas partes3, 2 e 1 somadas dão o próprio
6. Do mesmo modo, o 28, 496 e 8128 também o chamados números
perfeitos.
ADR.: E quanto aos outros números?
SAB.: São todos excedentes ou deficientes.
ADR.: E o que é um número parmente par?
SAB.: É o que se pode dividir em duas partes iguais e essas
partes em duas iguais, e assim por diante até que não se possa mais
dividir por 2 porque se atingiu o 1 indivisível. 8 e 16, por exemplo, e
106
todos que se obtenham a partir da multiplicação por 2 são parmente
pares.
ADR.: E o que é parmente ímpar?
SAB.: É o que se pode dividir em partes iguais, mas essas
partes não admitem divisão (por 2). É o caso do 10 e de todos os
que se obtêm multiplicando um número ímpar por 2. Difere, pois, do
tipo de mero anterior, porque naquele caso, o termo menor da
divisão é também divisível; neste, só o termo maior é apto para a
divisão.
No caso anterior, tanto a denominação como a quantidade são
parmente pares; já aqui, se a denominação for par, a quantidade será
ímpar; se quantidade par, a denominação ímpar.
ADR.: Não sei o que é isto de denominação e quantidade.
SAB.: Quando os números estão em “boa ordem”, o primeiro se
diz menor e o último, maior. Quando, porém, se trata da divisão;
denominação é quantas vezes o número se der. o que constitui
cada parte, é o que chamamos quantidade.
ADR.: E o que é imparmente par?
SAB.: É o que tal como o parmente par pode ser dividido
não só uma vez, mas duas e, por vezes, até mais. No entanto, atinge a
indivisibilidade (por 2) sem chegar ao 1.
ADR. Oh! Que minuciosa e complicada questão surgiu a partir
da idade destas menininhas! (Ibid. p.50, 51).
Naquele momento histórico, tornava-se necessário que, em sua educação, a
mulher adquirisse conhecimento dessa arte. Quando se tinha um feudo e o homem ia
para a guerra, era a mulher quem devia cuidar da propriedade, receber corvéias,
administrar os feudos e, se religiosa, cuidar e administrar os mosteiros. De acordo com
Duby, os administradores dos mosteiros precisavam garantir que a casa estivesse
sempre fornecida de alimentos e de dinheiro, pois recebiam muitas doações. (1980,
p.230) Ou seja, os administradores das abadias precisavam ter domínio da arte de
administrar, devendo fazer contas, lidar com números, calcular rendas e perdas.
Por isso, Rosvita procurava ensinar às mulheres, com detalhes e de
forma clara, oslculos de matemática, as diferenças entre meros pares e ímpares,
perfeitos e imperfeitos, as potências de base dois, a divisão, adição, multiplicação e a
subtração para que pudessem aplicar esses conhecimentos na administração dos
mosteiros dirigidos por elas ou em seus feudos, quando da ausência de seus maridos.
Como vimos, anteriormente, na Regra de São Bento, os números tinham
relação com a natureza criada por Deus; por isso a aritmética era considerada uma
disciplina sagrada. Rosvita ao ensinar a Aritmética, uma das disciplinas que
compunham o quadrivium, reconhecia que esta ciência da natureza emanava da
107
crião Divina. Assim, como uma pessoa religiosa, ela precisava mostrar também que
seu conhecimento de Aritmética e toda a sabedoria que possuía não eram dela,
procediam da Sabedoria Divina. Era necessário, portanto, admirar a criação e glorificar
o seu Criador. A Cena III do Martírio das santas virgens , Esperança e Caridade
demonstra esta afirmação.
SAB.: Nisto deve-se louvar a supereminente sabedoria do
Criador e a Ciência admirável do Artífice do mundo: pois não no
princípio criou o mundo do nada, dispondo tudo com mero peso e
medida; como também nos deu a capacidade de poder dispor de
admirável conhecimento das artes liberais até mesmo sobre o suceder-
se do tempo e das idades dos homens (ROSVITA, 1986, p. 51,52).
O ensino, na primeira fase da Idade Média, era ministrado quase
exclusivamente nos mosteiros. As matérias ensinadas eram constitdas pelas sete
artes liberais, entre elas a aritmética. Cumpre ressaltar que nesse momento todas as
relações e, especialmente as que diziam respeito à educação, estavam vinculadas à
idéia cristã de sociedade, ou seja, da primazia de Deus.
Essa estreita relação entre o ensino e a religião, em Rosvita, aparece
também em outro drama, Conversión de la meretriz Taide. Nele, ao tratar de questões
da natureza, a canonisa destaca claramente seu conhecimento sobre a música, a
harmonia entre as esferas celestes e os planetas, o macrocosmos e o microcosmos.
Ao explicar o significado de Macrocosmos e Microcosmos, ela relaciona o homem com
o mundo menor, o microcosmos, e mostra que, assim como o mundo foi criado a partir
da harmonia dos quatro elementos naturais, o homem contido neste mundo seria um
reflexo constituído de corpo, alma e espírito. Pafnúcio, personagem cristão do drama,
fazendo uma explicação sobre o Macrocosmos e Microcosmos, discute tamm a
condição do homem frente ao criador
DISCÍPULOS: Qué es el Microcosmos?
PAFNUCIO: El ser humano.
DISCÍPULOS: El ser humano?
PAFNUCIO: Por supuesto.
DISICÍPULOS: Qué ser humano?
PAFNUCIO: Todos.
DISCÍPULOS: Cómo ha podido eso suceder?
PAFNUCIO: Según le agradó al Creador.
DISCÍPULOS: No lo entendemos.
PAFNUCIO: Para la mayoría no está muy claro.
108
DISCÍPULOS: Explícanoslo.
PAFNUCIO: Atended.
DISCÍPULOS: Con el entendimiento bien dispuesto!
PAFNUCIO: En verdad os digo que, a como el Macrocosmos fue
edificado a partir de cuatro elementos contrarios, pero que fueron
combinándose, a los mandatos del Creador, siguiendo unas
proporciones armónicas, así tambiém el ser humano fue el resultado
de un ensamblaje, no ya sólo de esos mismos elementos, sino incluso
de partes aún más contrarias entre sí.[...] (ROSVITA, 2003, p.92)
Este tema, a nosso ver, é tratado por Rosvita porque ela precisa mostrar
a fragilidade do ser humano diante das coisas materiais. Sua dignidade torna-se
manchada quando ele incorre no vício e na miséria moral. É o que ocorreu com Taíde,
que vivia como meretriz, entregue à luxuria e à ambição. Pafnucio se aproxima dela
para que se arrependa do pecado e aceite o Deus verdadeiro. Este personagem,
assim como Abraão, finge ser um dos seus amantes e exige satisfação de seus atos.
Ele escuta suas razões e pede para ela trocar de vida. Convencida por seus
argumentos, Taíde dedica-se a uma penitência severa, buscando a perfeição
espiritual. Neste momento da pa, ela elucida a existência de dois mundos, o mundo
invisível criado por Deus, ordenado e perfeito, e o mundo terreno no qual atuam a
desordem e o conflito. Ela faz uma reflexão sobre o universo no qual vivemos,
afirmando que ambos constituem um só mundo, apesar das diferenças que cada um
possui em sua substância e em sua natureza
20
.
Nesta mesma obra, existe uma passagem muita ilustrativa e importante
para a época. Como Rosvita está preocupada em ensinar uma das disciplinas do
quadrivium, faz, por meio de Pafnucio, uma admirável explicação, comparando as
proporções harmônicas da natureza com a música:
PAFNUCIO: Poquísimo saba deciros de ella, porque es una
desconecida de los ermitaños.
DISCÍPULOS: De qué se ocupa?
PAFNUCIO: La música?
20
Nesse mesmo sentido, Morin, autor de nossa época, interroga nossa condição humana e a nossa
posição no mundo e afirma que: “Somos originários do cosmos, da natureza, da vida, mas devido a própria
humanidade, à nossa cultura, à nossa mente, à nossa consciência, tornamo-nos estranhos a este cosmos, que nos
parece secretamente íntimo. Nosso pensamento e nossa consciência fazem-nos conhecer o mundo físico e
distanciam-nos dele. O próprio fato de considerar racional e cientificamente o universo separa-nos dele.
Desenvolvemo-nos além do mundo físico e vivo. É neste “além” que tem lugar a plenitude da humanidade” (
MORIN, 2002, p.51). Como Rosvita, ele aponta que no homem estão refletidas todas as coisas do universo, as
materiais e as espirituais. Porém a valorização das coisas materiais muitas vezes provoca grandes transtornos,
causando a degradação da natureza humana e esta ação negativa causa o desmembramento do ser humano, que
passa a ser visto como um ser fragmentado, fora do cosmo. Isso acontece quando compartimentamos os saberes.
Assim, o objetivo principal da educação é promover um conhecimento do todo dentro de uma concepção global.
109
DISCÍPULOS: La misma.
PAFNUCIO: De organizar racionalmente los sonidos.
DISCÍPULOS: Y hay una sola o son varias?
PAFNUCIO: Se reconoce la existencia de tres, aunque la razón
proporcional de cada una armoniza de tal forma con las otras, que
aquello mismo que afecta a una no les falta a las demás.
DISCÍPULOS: Y qué distancia hay entre las tres?
PAFNUCIO: A la primera se le llama “cósmica” o “celeste”; a la
segunda, “humana”, y la tercera es la qué se encarga de los
instrumentos.
DISCÍPULOS: De qué se compone la celeste?
PAFNUCIO: De los siete planetas y de la esfera celeste.
DISCÍPULOS: De qué modo?
PAFNUCIO: Del mismo modo que sucede con los instrumentos,
así también, entre los planetas, se encuentran tantos intervalos,
parejo número de notas e igual concordancia qué entre las
cuerdas de tales instrumentos.
DISCÍPULOS: Qué son los intervalos?
PAFNUCIO: Son las medidas qué se cuentan entre los planetas, o
bien entre las cuerdas.
DISCÍPULOS: Y qué son las notas?
PAFNUCIO: Lo mismo qué los tonos.
DISCÍPULOS: Tampoco de éstos nos ha llegado noticia.
PAFNUCIO: El tono se construye a partir de dos sonidos y posee
una proporción de número epothoi, que es como decir “de nueve
octavas”.
DISCÍPULOS: Cuanto más rápidamente intentamos ir superando
estas observaciones con nuestro entendimiento, nos vas
presentando, sin parar, temas tanto más diciles.
PAFNUCIO: Eso es algo qué exigen las conversaciones de este
tipo.
DISCÍPULOS: Explícanos, como mucho, un poquitín sobre las
armonías, para qué conozcamos por lo menos el significado de su
nombre.
PAFNUCIO: Armonía se llama a la combinación proporcionada de
los ritmos.
DISCÍPULOS: Por qué?
PAFNUCIO: Porque se realiza a partir ora de cuatro, ora de cinco,
ora de ocho sonidos.
DISCÍPULOS: Como sabemos que son tres, desearíamos
distinguir los nombres de cada concordancia.
PAFNUCIO: La primera es llamada diatéseron, que quiere decir “a
partir de cuatro”, y posee la proporción epítrita, que es de una
entera y un tercio. La segunda es la diapente, “que consta de
cinco”, y lleva la proporción emiolea, esto es, de una entera y
media. La tercera es el diapasón; ésta se hace en doble y se
compone de ocho notas.
DISCÍPULOS: Entonces, la esfera celeste y los planetas producen
un sonido, para qué merezcan ser comparados a las cuerdas?
PAFNUCIO: Y grande!
DISCÍPULOS: Por qué no se oye?
PAFNUCIO: Eso se explica mediante diversos argumentos.
Algunos piensan que no se puede oír a causa de su continua
repetición; otros,que por la espesura del aire; algunos, sin
110
embargo, aducen el hecho de qué tal enormidad de sonido no
puede entrar por el estrecho conducto de los oídos; hay además
quienes dicen qué la esfera celeste es tan placentera, y que
produce un sonido tan dulce que, si se oyese, toda la gente en
común, abandonada para siempre de misma, relegaría
cualquier trabajo, a no ser dedicarse únicamente a seguir el
recorrido de tal música desde el Oriente al Occidente.
DISCÍPULOS: Entonces, es preferible que no se oiga!
PAFNUCIO: Todo esto era conocido de antemano por el Creador
(ROSVITA, 2003, p. 93 - 95).
No texto acima, ela discute um ponto importante em relação ao
conhecimento neste período. Assim como Boécio e Alcuíno, Rosvita enfrenta
problemas em relação ao desaparecimento da cultura clássica. Como educadora, ela
coloca à disposição das monjas e das mulheres que viviam no mosteiro um contato
especial com o complexo tema estudado em uma das disciplinas das artes liberais e
discute a importância da Música e sua relação com a Aritmética e a Astronomia,
destacando que tudo é criação Divina.
O desafio de Rosvita é transmitir um mínimo dos valores clássicos numa época
em que estes ensinamentos estavam desaparecendo. Podemos dizer que as monjas
se encerravam nos conventos por amor a Deus e também para se dedicar ao saber.
Naquela época, o caminho das letras ocupava um espaço importante nos mosteiros,
tanto para os homens como para as mulheres.
4.7 - O CONTEÚDO TEOLÓGICO
Rosvita retrata em suas peças um modelo de perseverança e fé. A presença do
conteúdo teológico, demonstrando a esperança de vida e o retorno da alma para além
da existência terrena depois da morte, faz com que os cristãos aceitem que devem
vivenciar esse momento com alegria. O encontro com Deus é a retribuição por
suportarem os sacrifícios da vida terrena. Na peça O martírio das Santas virgens Fé,
Esperança e Caridade, a mãe propõe às filhas suportarem todos os castigos da carne
e, por amor a Cristo, prontificarem-se a enfrentar a morte. Esta demonstração de
está presente na cena IV:
FÉ.: Pelo Seu amor, estamos prontas a enfrentar a morte.
111
SAB.: Quanto me delicia, mais que o doce sabor do néctar,
ouvir-vos.
ESP.:Leva-nos diante do juiz e verás quanto o Amor Dele nos
coragem (ROSVITA, 1986, p.54).
Na história da Ressurreição de Drusiana e Calímaco, são representados
fatos semelhantes. Rosvita precisava reforçar a dos cristãos e por isso procura
convencê-los de que a escolha da morte é um privilégio, uma atitude que permite o
encontro com Cristo e constitui o melhor caminho para uma vida feliz. Calímaco amou
demais Drusiana e resolveu confessar seu sentimento; ela, por sua vez, considerava
este amor ilícito porque já era casada. Ao saber que outro homem a amava ficou
entristecida e, por amor a Cristo, preferiu entregar-se à morte.
DRUSIANA: Ay, ay! Señor Jesucristo, de qué me vale haberme
consagrado al voto de castidade, si este loco me ha descarriado de la
virtud? Atiende, Señor, mis temores; atiende el dolor que padezco!
Ignoro lo que se habrá de hacer, lo que se habrá de hacer conmigo: si
descubro esto, se armará por mi culpa una discordia civil; si lo oculto,
no pod, sin Ti, luchar contra las asechanzas diabólicas. Concédeme,
Cristo, morir pronto en Ti, para no conducir a la ruina a ese muchacho
voluptuoso! (ROSVITA, 2003, p. 138)
As orações nos momentos próximos da morte foram uma prática constante na
vida dos cristãos e, de certa forma, eram uma evidência de sua esperança em relação
ao momento que se aproximava. Na verdade, expressavam um conceito que integrava
o quadro mental do homem da Idade Média quanto ao acesso à Divindade.
De acordo com os princípios cristãos, o homem é formado por um corpo
que se serve de uma alma, a qual, por sua vez, após a morte, retorna a Deus. Este
conceito defendido por Santo Agostinho está também representado na oração feita
pelo personagem de Rosvita (Pafnucio) na peça Conversión de la meretriz Taide, na
hora da morte de sua sobrinha.
PAFNUCIO: Tú que fuiste hecho de la nada, que eres realmente
forma sin matéria, cuyo ser indivisible hizo tener consistencia, a
partir de esto y de aquello, a la persona humana, que no es lo que es,
permite que las diversas partes de la descomposición de la propria
persona retornen prósperamente al principio de su origen, para que, por
un lado, el alma, introducida en el Cielo, participe de los gozos celestes
112
y, por otro, el cuerpo sea pacíficamente abrigado en el tierno seno de la
tierra, de su materia, hasta que, volviendo a reunirse la cenizas
polvorientas y entrando de nuevo el soplo devida en los miembros
redivivos, esta misma Taíde resurja perfecta como fue, como persona,
y como quien ha de ser colocada entre las blanquecinas ovejas e
introducida en el gozo de la eternidad. Tú, que eres el único que eres el
que es, en la unidad de la Trindad, pues Tú reinas y eres glorificado por
los infinitos siglos de los siglos (ROSVITA, 2003, p. 108).
Nesta mesma peça, de acordo com os fundamentos platônicos de Santo
Agostinho, Pafnucio, em acordo com os mesmos princípios, explica que a alma, ao
contrário do corpo, é imortal.
PAFNUCIO: El cuerpo y el alma: porque, aunque aquéllos sean
contrarios, sin embargo, son todos materiales; el alma, en cambio,
no es mortal como el cuerpo, y tampoco el cuerpo es espiritual
como el alma (ROSVITA, 2003, p.92).
Nesta atitude, esimplícita a idéia de que fazia parte da educação cristã seguir
Jesus, aceitar a sua doutrina e imitar o seu exemplo. O cultivo da espiritualidade
incentiva as monjas e monges a participarem da mesma vida de Deus. Por esta razão,
em todos os momentos de tortura a que os personagens de Rosvita o submetidos,
eles invocavam, em preces, Deus.
SAB.: Abraçada à cabeça de minha filha morta, e, repetidas vezes
beijando-lhe os lábios, agradeço-te, Cristo por concederes o
triunfo a uma criança tão pequena. [...] (ROSVITA, 1986, p.58)
SAB.:Invoco ao Criador que não deixe de dar a Esperança às
mesmas forças que deu a Fé.[...] (Ibid.p.60)
SAB.:Rezo muito para que sejas consolidada na fé a o fim;
estou certa de que também a ti será outorgada a eterna
alegria.[...](Ibid.p. 62)
SAB.: Adeus, ó dulcíssima filhinha, e quando estiveres com Cristo
no Céu, lembra-te da mamãe, já exaurida por te gerar para a Vida
[...] (Ibid.p.65).
Essa passagem mostra claramente as características do pensamento cristão. A
era o grande referencial educativo e marca o panorama religioso da Idade Média.
São os ensinamentos cristãos que prevalecem e isto aparece claramente em suas
peças.
113
4.8 - POBREZA E CARIDADE: VALORES CULTIVADOS PELOS CRISTÃOS
Outro elemento discutido por Rosvita com relação aos ensinamentos cristãos é
sobre o lugar que o homem ocupa no seio da sociedade. Na peça Martírio das santas
virgens Fé, Esperança e Caridade, a mãe Sabedoria, ao ser questionada sobre sua
origem, revela que foi filha de gregos, mas que não atribui importância à nobreza do
seu sangue. Perante os cristãos, esses valores não m significado. “SAB: Embora a
altivez do sangue seja entre nós de pouca importância, no entanto, não nego ter uma
origem ilustre” (ROSVITA, 1986, p. 49).
Na peça Dulcício, o Imperador Diocleciano, ao se dirigir às jovens Ágape,
Quiônia e Irene, destaca a importância desses valores, mas elas manifestam que a
linhagem, a inteligência e a beleza são qualidades desvalorizadas pelos cristãos.
DIOCLECIANO: A nobreza de tua família, a distinção de tua
estirpe e o fulgor de tua beleza impõem que tu te cases com um
dos principais de minha corte. E isto se fará, de acordo com
minhas ordens, se negares a Cristo e ofereceres sacrifício a
nossos deuses.
ÁGAPE: Não te preocupes nem te incomodes em preparar nossas
bodas, pois não podemos ser coagidas a negar a Cristo nem a
abdicar de nossa virgindade (ROSVITA, 1998, p.171).
Este tema também é discutido por Rosvita no poema Paixão do Santo Pelágio.
Em Córdoba, em troca de altos cargos, terra e ouro, muitos jovens trocavam de
religião e prestavam serviços ao rei Abd-al-Rhaman. O jovem Pelágio não cedeu às
promessas do rei, que prometia riqueza e poder, porque, como cristão, não valorizava
as riquezas. Dizia-lhe o rei:
[...] Eu tenho grande apreço por ti, e desejo que te venerem
Mais que todos os ministros do palácio, com grande admiração
Que eu te igualarei a mim no mesmo nível de poder [...]
21
Pelágio respondia:
[...] Mas a testemunha do Cristo se esquivou com esperteza
Brandindo de repente o soco, visando a figura do rei
21
[...] J’ai grand souci de toi, et veux qu’on te vénère
Plus que tous les ministres du palais, avec si grand éclat
Que je t’égalerai à moi dans mon pouvoir altier [...]
114
E em pleno rosto lhe acerta um golpe violento
Que o sangue jorrou imediatamente do ferimento,
Sujando sua barba e molhando sua vestimenta [...]
(HROTSVITA, 2000, p. 103)
22
.
Viver de forma simples, sem ostentação e opulência, era um valor moral regido
pela doutrina religiosa cristã. As riquezas deviam ser repartidas e distribuídas entre os
mais necessitados. Neste sentido, reforçava-se a caridade, um dos princípios
defendidos pelo Apóstolo Paulo quando ensinava que os cristãos deviam seguir o
modelo de vida de Cristo na terra. Nas passagens abaixo, Rosvita recomenda esta
atitude por meio do diálogo entre Efren e Abraham, quando este descreve como e
quem era sua sobrinha María.
[...] EFREM: Dónde vive?
ABRAHAM: En mi cabaña: Pues a petición de sus parientes la
recogí para alimentarla, pero decidí que sus riquezas fuesen
distribuidas entre los pobres.
EFREM: El desprecio de los bienes temporales permite al alma
alcanzar el Cielo [...] (ROSVITA, 2003, p. 78).
Maria se arrepende e desfaz-se de tudo que adquiriu com atos pecaminosos.
[...] MARÍA: Poseo un pouquitín de oro y vestidos; aguardo lo que
decida tu autoridad sobre todo eso.
ABRAHAM: Los que has adquirido mediante el pecado debe ser
abandonado junto con los propios pecados.
MARÍA: Estaba pensando en repartirlo todo entre los pobres o en
que sea ofrecido a los sagrados altares.
ABRAHAM: No parece que sea demasiado aceptable dar a Dios el
dinero que se adquiere por medio de delitos [...] (ROSVITA, 2003,
p. 88).
O mesmo ensinamento aparece no diálogo entre Pafnucio e Taide,
quando ela e fogo em todas as riquezas que conseguiu conspurcando-se no
pecado.
22
[...] Mais le témoin du Christ déjoua sa fourberie,
Brandit soudain le poing, visa le roi à la figure,
Et en plein visage lui porta un coup si violent
Que le sang jaillit aussitôt de la blessure,
Souillant sa barbe et mouillant ses vêtements […] (HROTSVITA, 2000, p. 103).
115
TAIDE: Dame un pouquitín de tiempo, para que reúna las riquezas
que, adquiridas de mala manera, he ido conservando durante
tanto tiempo.
PAFNUCIO: No te esfuerces en buscarlas. No faltagente que,
encontrándolas, se aproveche de ellas.
TAIDE: No me esforzaré en querer conservarlas para o en
dárselas a los amigos; antes bien, ni siquiera intentaré distribuirlas
entre los mendigos, porque no creo que el precio de tal sacrificio
sea bueno para emplearlo en obras de caridad.
PAFNUCIO: Discurres con rectitud. Y qué piensas hacer con todo
lo que has reunido?
TAIDE: Arrojarlo al fuego y reducirlo a cenizas.
PAFNUCIO: Por qué?
TAIDE: Para que no permanezcan en este mundo las cosas que
he adquirido de mala manera y no sin perjuicio para el Creador
Del Mundo (ROSVITA, 2003, p. 99).
Rosvita retoma estes procedimentos emuladores da fé, revitalizando,
com ênfase, a idéia de humildade e caridade, princípios utilizados por antigas
autoridades do cristianismo para instituir e defender uma disciplina em favor da
obediência e da submissão, concepção dogmática que determinava o conceito de
bondade na Idade Média.
Quando a canonisa escreve estas passagens, antecipa-se ao movimento de
reforma monástica desencadeado em Cluny. Os mosteiros eram domínios importantes
e imponentes, os abades e bispos vinculados ao sistema feudal possuíam poder
econômico e político.
As ordens monásticas, cujos abades possuíam enormes riquezas
e legiões de subordinados a sua disposição, e de cujas fileiras
saíam os mais poderosos papas, os mais influentes conselheiros
e os mais perigosos rivais dos imperadores, mantinham-se tão
soberbamente distantes das massas quanto os senhores
seculares (HAUSER, 2000, p.178).
É, portanto, compreensível que a canonisa expresse idéias contra os privilégios
que os monges recebiam. Com o enriquecimento, eles estavam perdendo os valores
pregados pelo discurso cristão quanto ao desprendimento dos bens materiais. Era
necessário, portanto, reativar nos monges e monjas dos mosteiros esses pressupostos
defendidos pelo cristianismo.
4.9 - OS ELEMENTOS DA NATUREZA
116
Durante o martírio, as jovens, Fé, Esperança e Caridade, foram submetidas à
tortura e a inúmeros castigos e resistiram a todos. Nenhum elemento da natureza
como a água, o ar e o fogo eram capazes de r fim à sua vida; apenas a espada
poderia levá-las à morte. A Natureza tinha sido criada por Deus e estes três
elementos, que deram vida ao homem, como criação Divina não lhe deviam fazer mal
nenhum. Rosvita expõe, nas seguintes cenas, os momentos do sacrifício de cada
uma, os quais eram assistidos pela mãe. Eis com que elementos da natureza ela
encena o martírio da Fé:
ADR. : Que seja posta na grelha, sobre o fogo. Que morra pela
força das chamas. [...]
FÉ.: Tudo que preparas para atormentar, torna-se para mim
sereno repouso, por isso tranqüilamente vou para a caldeira como
se fosse uma plácida barquinha.[...]
ADR.: Que se ponha sobre o fogo um tacho cheio de iche e cera
ardentes, e nesse líquido fervente lançai a rebelde.[...]
FÉ.: Onde estão tuas ameaças? Eis que ilesa brinco nadando no
meio deste líquido fervente e, em lugar de calor escaldante sinto
como que um refrescante orvalho da manhã.[...]
ADR.: Seja lhe cortada a cabeça. [...]
FÉ.: Agora sim me alegro, agora em Deus exulto [..] (ROSVITA,
1986, p. 57-58).
Os mesmos elementos da natureza são usados durante o martírio da
Esperança:
ADR.: Que seja dilacerada com ganchos e suspendei-a no ar até
que lhe jorrem as vísceras e com os ossos expostos desfaleça e
seus membros se rachem.[...]
ESP.: o ocorrerá como esperas, mas haverá desconcerto para
ti e para teu Imperador.[...]
ADR.: Que é este doce aroma? Que magnífica suavidade é esta
que sinto?
ESP.: Os golpes que em balde caíram no meu dilacerado corpo
produzem este aroma de fragrância paradisíaca, com quem,
embora sem querer, és obrigado a confessar que não posso ser
prejudicada pelos tormentos.[...]
ADR.: Jogai-a amarrada num vaso de cobre cheio de óleo,
gordura, cera e breu e ponde-o sobre o fogo.[...]
ESP.: Este poder em Cristo não é incomum: que o fogo
transforme sua natureza e se torne suave.[...]
ANT.: O calor da ebulição quebrou o vaso e queimou os nossos
servidores, enquanto aquela menina ficou ilesa.[...]
ESP.: De bom grado recebo a espada. Tu, Cristo, recebe esta
alma que por confessar o teu nome é arrancada à sua habitação
corporal (ROSVITA, 1986, p. 60-62).
117
E tamm durante o martírio da Caridade:
ADR.: Toma-a, ó Antíoco, e faz com que, pendurada no cavalete,
seja atrozmente chicoteada.[...]
ADR.: Se não adiantar, manda que continuamente por três dias e
três noites se acenda o forno e lança-a entre as chamas
furiosas.[...]
CAR.: Ó juiz impotente, que temes enfrentar uma criança de 8
anos sem a arma do fogo.
CAR.: Tuas torturas certamente estão bem preparadas, mas não
me causarão mal, pois nem os chicotes podem rasgar meu corpo
nem as chamas queimar meus membros ou vestes. [...]
ANT.: Aquela gozadora daquela menina, que me entregaste para
que fosse atormentada, foi chicoteada na minha presença, mas
sua fina pele nem sequer de leve se cortou. Depois a lancei na
fornalha, que estava da cor do fogo, por causa do extremo
calor.[...]
ANT.: A chama transbordou violentamente e queimou 5.000
homens.[...]
ANT.: Andava brincando entre os vapores que vomitavam chamas
e cantava louvores a seu Deus. E mais: quem olhasse
atentamente, veria três jovens radiosos de claridade que a
acompanhavam.[...]
ANT.: Só nos resta matá-la à espada. (ROSVITA, 1986, p. 63-65)
No poema Paixão do Santo Pelágio, ela demonstra novamente que os
cristãos, durante o martírio, se entregavam à morte após serem executados com a
espada, ou seja, com algum instrumento criado pelas mãos dos homens. O corpo de
Santo Pelágio, depois de arremessado sobre as rochas por uma catapulta no rio, não
sofreu nenhum ferimento. Então, o rei pagão ordenou aos seus súditos que lhe
cortassem a cabeça com uma espada e que abandonassem seus restos no rio.
Quando seu corpo, separado da cabeça, foi encontrado pelos pescadores, estes
sabiam que se tratava de um cristão. No poema, Rosvita assinala o seguinte:
Pois os pescadores abrindo, o rio com seus remos
E capturando nos seus delgados bancos de areia a gente
aquática,
Viviam, no ângulo extremo da costa,
Os restos do mártir, oscilando nas ondas revoltas
Eles o tinham visto de longe, com seus olhos atentos:
Eles deram a volta e recolheram o corpo
Sem reconhecer nele o venerado mártir,
Pois ele estava coberto da púrpura do sangue,
E sua preciosa cabeça boiava muito mais longe.
Mas eles sabem no entanto e ressentem em seu coração.
Que este homem, qual ele seja, tombou por Cristo,
118
Porque apenas eram sacrificado desta forma
Os homens purificados pela água santa do batismo
Os quais, sem medo, provocavam os ídolos do rei (HROTSVITA,
2000, p.105)
23
.
Esses elementos da natureza, usados como recursos estéticos na peça,
indicam a possibilidade de Rosvita conhecer as discussões dos Pré-socráticos. Estes
filósofos buscavam uma resposta para o ato da criação e acreditavam que estas
explicações estavam nas coisas materiais, físicas: a água, o ar, o fogo. Considerando
que estes elementos da natureza estavam presentes na criação e foram a matéria
prima que constituiu o cosmo, como poderiam afinal destruir o homem?
4.10 - O CÔMICO EM SUAS PEÇAS
Rosvita faz uma associação, que parece não ser usual na Idade Média, entre as
idéias de caridade e humildade e cenas cômicas. No entanto, autores como Lauand e
López afirmam que o humor e a comédia aparecem com freqüência na prosa e na
poesia deste período. Segundo Robert Curtius “[...] a entrada de elementos cômicos
na prosa e na poesia foi facilitada pelo fato de, no começo da época imperial de
Roma, estarem extintas a comédia grega e a romana (CURTIUS, 1996, p. 509). Ainda
de acordo com este autor, desaparecendo a cena dramática, o riso invadiu outros
gêneros que se conservaram até o fim da Antigüidade e mesmo depois, apesar dos
inúmeros ataques dos filósofos e da Igreja.
Considerando que o riso é algo que está associado à necessidade humana,
este tema continuou presente nos diferentes gêneros literários que se desenvolveram
no meio eclesiástico da Idade Média. Temas referentes ao culto dos mártires e à vida
23
Car des pêcheurs, fendant , le fleuve de leurs rames
Et capturant dans leurs filets les bancs de la gent aquatique,
Virent, dans un coin extrême du rivage,
Les restes du martyr, que ballottaient les ondes rugissantes.
Ils l’avaient vu de loin, de leurs yeux attentifs:
Ils donnèrent de la voiele et recueillirent le corps
Sans reconnaître en lui le vénéré martyr,
Car il était couvert de la pourpre du sang,
Et sa precieuse tête gisait beacoup plus loin.
Mais ils savent pourtant, et ressentent en leur coeur,
Que cet homme, quel quil soit, est tombé pour le Christ,
Car seuls etaient passibles de la peine de mort
Les hommes purifiés par leau sainte du baptême
Qui sans peur harcelaient les idoles du roi (HROTSVITA, 2000, p.105).
119
dos santos tornaram-se gêneros literários da Igreja. De acordo com Curtius, exemplos
de humor grotesco na poesia sacra aparecem especialmente nas poesias
martirológicas de Prudêncio (cerca do ano 400), mas quando o martírio deixou de ser
coisa presente. O culto dos mártires alcança, então, plena florescência e produz um
sem-número de narrativas da paixão, sempre marcadas por um caráter convencional e
legendário [...] ”(CURTIUS, 1996, p.519). As narrativas sobre os martírios foram
completadas com a vida dos santos: “como na passio (paixão), encontra-se também o
mico nas hagiografias ” (Ibid.p.521).
Esta característica foi acolhida posteriormente por Rosvita. Ao escrever
narrativas hagiográficas soube inserir o humor como prática educativa para atrair e
informar o seu público. No enredo da peça Dulcício, existem cenas grotescas do
governador Dulcício com as panelas. Ele aproximou-se do local onde as moças
estavam encarceradas e sentiu um forte desejo de abraçá-las. Contudo, ao entrar na
cozinha, ele enlouqueceu e começou a beijar e a abraçar panelas e caldeirões,
pensando que fossem as moças e ficou com o rosto e as vestes todas manchadas de
negrume.
DULCÍCIO: Que é que eso fazendo nossas prisioneiras a esta
hora da noite?
SOLDADOS: Entoam hinos, senhor.
DULCÍCIO: Vamos dar uma olhada lá.
SOLDADOS: Ouvimos muito bem suas vozes de longe.
DULCÍCIO: Ficai aqui com tochas. Eu vou entrar e satisfazer meu
desejo de afagá-las.
SOLDADOS: Esperaremos aqui, senhor.
ÁGAPE: Que barulho é este lá fora?
IRENE: É aquele desgraçado do Dulcício que está entrando.
QUIÔNIA: Que Deus nos proteja!
ÁGAPE: Amém.
QUIÕNIA: O que é este barulho de panelas, frigideiras e
caldeirões?
IRENE: Eu vou verificar. Venham, venham, olhem aqui pelas
frestas.
ÁGAPE: O quê?
IRENE: Há, há! Vejam, o idiota enlouqueceu e está abraçando as
panelas, pensando que somos nós!
ÁGAPE: O que ele está fazendo?
IRENE: Agora ele abraça e acaricia caldeirões e frigideiras e dá
doces beijos nas panelas.
QUIÔNIA: Ridículo!
IRENE: Ele ficou com a cara, a mão e a roupa tão completamente
sujas, tão imundas, que o negrume parece ser-lhe inerente: mais
parece um etíope.
120
ÁGAPE: É um corpo assim combina com a mente, possuída pelo
diabo, que ele tem.
IRENE: Ei, vejam! Ele está saindo. Vamos ver como é que os
soldados, lá fora, vão recebe-lo, estando ele desse jeito.
SOLDADOS: Ei, quem é que está saindo? É um demônio. Não, é
o diabo em pessoa. Fujamos!
DULCÍCIO: Soldados, por que fugis? Voltai. Conduzi-me com as
tochas até meus aposentos.
SOLDADOS: Essa voz é a do nosso senhor, mas o aspecto é do
diabo. É melhor fugir antes que o mau espírito nos pegue!
DULCÍCIO: Vou para o palácio dar queixa à corte dos insultos que
recebi (ROSVITA, 1998, p.176-179).
Nas soluções de suas tramas, ela ridiculariza os personagens masculinos,
apresentando-os sempre como pessoas grotescas, demoníacas e malvadas. Curtius
diz que isto não é algo novo e original; a ridicularização pode ser encontrada em
qualquer literatura hagiográfica medieval. Segundo ele, Esses exemplos são típicos.
Os pagãos, os demônios e os homens maus podem comportar-se como quiserem: são
os tolos e serão afugentados, desmascarados e reduzidos ad absurdum pelos santos
(CURTIUS, 1996, p. 522). Em Rosvita, os santos que vencem os maus são quase
sempre mulheres.
Podemos dizer que os escritos de Rosvita têm função educativa, porque
encontramos nas suas obras os traços principais da educação cristã medieval. No
entanto, é necessário ressaltar que ela foi além das discussões teológicas; mesclou
elementos bíblicos com temas profanos e populares da vida do homem e ensinou, por
meio dos dramas, que a mulher era um elemento chave para a organização e
sistematização da sociedade. Às meninas que eram educadas nos monastérios cabia
o papel de ensinar os homens, uma vez que seriam mães e esposas nos castelos
feudais.
Assim, um dos meios de ensino de Rosvita foi o teatro, em cujas cenas
ela colocou vários elementos educativos. Indubitavelmente, a essência de sua
proposta era a valorização dos princípios cristãos; no entanto, concomitantemente à
religião, ela ensinou matemática, música, astronomia. Destacou o valor da virgindade
consagrada, a fé, a humildade, a obediência e a caridade, virtudes consideradas
fundamentais para o exercício pedagógico do cristianismo no seu tempo. Em síntese,
por meio da educação das mulheres de seu monastério, ela estabeleceu caminhos
para os homens de sua época.
121
CONCLUO
Neste trabalho, com base nas peças teatrais escritas pela canonisa
Rosvita de Gandersheim, procuramos analisar alguns aspectos da educação no
Ocidente Medieval durante o século X. Ao conhecermos detalhes da obra e da vida de
Rosvita, percebemos o valor pedagógico de seus escritos na sociedade em que ela
viveu.
Segundo os autores analisados, ela retomou a composição teatral, após
séculos em que essa arte permaneceu desaparecida no Ocidente, e assim, de forma
lúdica, encontrou um meio para transmitir o conhecimento nas escolas monásticas.
Sempre com o objetivo de ensinar, suas composições estavam voltadas para a
educação das monjas e das mulheres que freqüentavam os mosteiros.
Como demonstramos no decorrer do trabalho, estes locais foram centros de
saber destinados ao ensino. Com a finalidade de ajudar na formão humana e moral
da população, foi necessário que os educadores da Idade Média, entre eles Rosvita,
desenvolvessem estratégias para manter o ouvinte atento, e fizeram uso de diversos
recursos entre eles a poesia, rimas e acrósticos, adaptando seu conteúdo por temas
religiosos.
Naquela época, era comum que o conhecimento fosse transmitido por meio
de discursos e sermões. Esses instrumentos, utilizados para reforçar os valores
morais e religiosos, atraíam os ouvintes e, durante as pregações, a atenção era
essencial, a memória era muito valorizada, então foi preciso encontrar recursos e
desenvolver formas de ensino que facilitassem a memorização.
Com base na análise exposta nos três capítulos deste trabalho, podemos
afirmar que Rosvita, na sua tarefa educadora, compôs dramas teatrais de alto
valor educacional e, como seus contemporâneos, também fez uso da memória e
da atenção.
Para cumprir sua função pedagógica, abordou temas importantes do
pensamento do homem medieval. Ao abordar assuntos, como a celebração do
martírio, a defesa da virgindade, a beleza feminina, a aritmética e a música, o
conteúdo teológico, os ideais religiosos defendidos pelos cristãos, os elementos
da natureza, o riso, ela tinha como objetivo contribuir, em diversos sentidos, para
a formação educativa das mulheres de sua época.
122
O estudo das peças teatrais e das poesias produzidas pela canonisa
permitiu uma melhor compreensão do período histórico, dos hábitos, das atitudes e
dos costumes da época em que viveram os homens no século X e também do
pensamento do homem medieval. Além disso, a investigação histórica colocou-nos em
contato com o conhecimento da humanidade mais antiga, ou seja, com os tesouros
produzidos na Antigüidade, e tornou possível rever nosso presente por meio de fatos
cronologicamente distantes de nós, pois é o período que melhor nos permite entender
que o encontro com o passado enriquece nossa existência porque, de certa forma,
falamos de nós mesmos.
Nesse mesmo sentido, Rosvita, como estudiosa, dedicou-se à difícil
tarefa de transmitir para a sua época os conhecimentos e as informações que extraiu
dos documentos encontrados no mosteiro onde viveu. Por meio deles, ela refletiu
sobre sua época, quando a sociedade estava cada vez mais voltada para costumes e
hábitos rudes, onde imperavam a força, a violência e a falta de regras.
Como vimos, o início do sistema feudal, no século IX e princípio do século X, foi
marcado pelas invasões bárbaras e pelos momentos de crise a elas relacionados.
Invasores chegavam de todos os lados, para pilhar. Este quadro de insegurança e
fragilidade provocou um recuo, um atraso cultural e intelectual, parecido com as
invasões do século IV e V quando da queda do mundo romano.
Com efeito, as invasões do século IX deixaram marcas de destruição. No
entanto, no final do século X, um progresso é nitidamente perceptível, principalmente
porque uma relativa paz se estabeleceu. Com o fim das invasões e o estabelecimento
do regime feudal, criam-se laços mais estreitos entre os membros ocupantes do
castelo feudal. Este regime permite a formação de agrupamentos familiares no interior
dos feudos, nos quais as mulheres passam a ocupar um espaço diferente. Enquanto
os homens vão para a guerra, elas m a responsabilidade de cuidar da educação dos
filhos e de administrar os feudos. Desta forma, o ensino nas escolas monásticas, que
as mulheres nobres freqüentam, precisa estar de acordo com essa realidade.
Por isso, foi importante a pesquisa que realizamos sobre o papel dos mosteiros.
Conforme demonstramos, o modelo monástico favoreceu o desenvolvimento cultural.
Não era um local destinado apenas as preces, neste refúgio podia-se encontrar
proteção contra os invasores além de garantir segurança para os livros e o saber.
123
Ou seja, os mosteiros apresentavam-se como instituições que podiam diminuir
os efeitos das invasões, afastando o perigo do desaparecimento da cultura greco-
romana, dos princípios adotados pela doutrina cristã e dos conhecimentos da música e
da aritmética. É nesse sentido que as peças e a poesia de Rosvita se tornaram, no
campo da educação medieval, um importante instrumento de formão para as
mulheres que freqüentavam os mosteiros.
Rosvita, na sua condição de educadora, tomou como tarefa transmitir alguns
rudimentos do pensamento de grandes autoridades, como os padres da Igreja,
mestres da filosofia escolástica, especialmente Boécio e Alcuíno. Podemos concluir,
assim, que Rosvita, como uma grande mestra do seu tempo, soube, com uma
pedagogia de caráter acentuadamente popular, não só preservar a cultura antiga, mas
também produzir uma nova forma de conhecimento.
Cabe observar ainda que, em nosso século, vivemos um efeito semelhante ao
que Rosvita vivenciou no século X e semelhante também ao que ocorreu com a
invasão dos povos vindos do norte que se instalaram no Império Romano durante os
séculos V e VI. E, parafraseando o Prof. Jean Lauand, devemos reconhecer que os
problemas educacionais que vivemos no Brasil contemporâneo não é muito diferente.
Partindo desse pressuposto, acreditamos que é tarefa do educador estimular essa
pratica educativa, na educação das crianças e dos jovens. É nesse sentido que
Rosvita, no seu tempo, retomou autoridades religiosas e greco-romanas da
Antigüidade cssica.
Assim no decorrer da pesquisa, houve a necessidade de analisarmos o que era
ensinado pelos primeiros pensadores cristãos e pagãos, pois isso permitiria entender
melhor a proposta de Rosvita. A compressão de como se deu o florescimento e o
triunfo do cristianismo ajudou-nos a compreender porque Rosvita, no século X,
retomou esses pensadores em seus textos e porque, em nossa época, também é
necessário retomarmos autores do passado.
Enfim, queremos ressaltar que Rosvita, durante o culo em que viveu,
preocupou-se com a educação e, com essa preocupação, dedicou-se à arte de
escrever poesia e teatro. Representou, assim, os sentimentos de alegria, medo,
curiosidade e coragem que caracterizavam a sociedade medieval do seu tempo.
124
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