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Maria de Lourdes Silva Barros Cavicchioli
A CULTURA CLÁSSICA E O MAGISTÉRIO DE
PAULO DE TARSO
Maringá-PR
2005
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1
Maria de Lourdes Silva Barros Cavicchioli
A CULTURA CLÁSSICA E O MAGISTÉRIO DE
PAULO DE TARSO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduão em Educação, área de concentração
em Fundamentos da Educação, da Universidade
Estadual de Maringá, como requisito parcial para
a obtenção do título de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. José Joaquim Pereira Melo
Maringá-PR
2005
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Maria de Lourdes Silva Barros Cavicchioli
A CULTURA CLÁSSICA E O MAGITÉRIO DE PAULO DE TARSO
Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção de título de
Mestre no curso de Pós-Graduação em Educação em Fundamentos da
Educação, da Universidade Estadual de Maringá.
Aprovada em: _____________________________
BANCA EXAMINADORORA
___________________________________________
Professor Dr. José Joaquim Pereira Melo (Orientador)
Universidade Estadual de Maringá
___________________________________________
Professora Dra. Ângela Mara de Barros Lara
Universidade Estadual de Maringá
___________________________________________
Professora Dra.
3
Todos fomos efetivamente batizados num único
espírito, para formar um único corpo, sejam judeus,
sejam gregos, sejam escravos, sejam livres
Paulo de Tarso
4
Aos filhos Nelson, Alexandre e Natalia, sonhos que
se transformaram em realidade.
5
AGRADECIMENTOS
A todos que acreditaram em minha caminhada, apoiando-me.
Ao meu esposo Nelson pelo estímulo e ajuda.
Aos meus pais José Pedro e Luisa pela simplicidade e sabedoria em educar.
Aos alunos, funcionários e professores do Mestrado em Educação.
À Universidade Estadual de Maringá e ao Departamento de Fundamentos de
Educação, que possibilitaram condições para a realização desse trabalho.
E, especialmente, ao professor doutor José Joaquim Pereira Melo, pela
incansável dedicação no processo de orientação para que eu pudesse
compreender um pouco a produção histórica dos homens e nela a educação.
6
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo compreender historicamente as relações
estabelecidas entre o cristianismo primitivo e a cultura clássica, no primeiro século
da era cristã. O contado com tal cultura oportunizou ao cristianismo a apropriação
de fundamentos do pensamento filosófico greco-romano, o que possivelmente
contribuiu para o enriquecimento da própria doutrina cristã. Esse contato
estabelecido marcou profundamente a nova religião, provocando mudanças
substantivas no comportamento dos povos pagãos. As transformações sociais
ocorridas no século I d.C., no Império Romano, levaram a filosofia a buscar
amenizar os problemas vividos pelo homem desse momento histórico, criando
alicerces teóricos que deram nova orientação para a sociedade em crise. Assim,
destaque especial teve a filosofia estóica romana, postulada por neca, que
propôs preceitos de uma doutrina moral, que viesse conduzir o homem para um
estado de felicidade, o “bem viver”. Nesse direcionamento, a preocupação deste
estudo foi verificar as possíveis influências recebidas por Paulo de Tarso na
organizão de seu magistério evangelizador que, provavelmente, fundamentado
pelas necessidades que se impunham na prática social em curso, lançou mão de
categorias e de conceitos da filosofia grega, em especial do estoicismo, o que
contribuiu para o enriquecimento da fundamentação da doutrina nascente para a
formação do homem cristão. Em face disso, Paulo de Tarso torna-se uma das
personagens mais importantes desses primeiros momentos do cristianismo
primitivo, pois além de dar maior fundamentação para a formão do corpo
teórico de sua doutrina, foi responsável pelo seu caráter universalista, ao romper
com o particularismo dos grandes apóstolos e ao tornar os ensinamentos de
Jesus uma proposta pedagógica universal.
Palavras-chave: Paulo de Tarso; Cristianismo; Cultura Clássica; Educação.
7
SUMÁRIO
RESUMO..............................................................................................................vi
1. INTRODUÇÃO................................................................................................... 8
1.1. FONTES UTILIZADAS..........................................................................14
2. BASES DO PENSAMENTO CRISTÃO ...........................................................21
2.1. A BASE HELENÍSTICA.........................................................................25
2. 2. A BASE ROMANA................................................................................36
2. 3. A Instância Judaica ..............................................................................42
3. O CRISTIANISMO E A CULTURA CLÁSSICA...............................................51
3. 1. AS PRIMEIRAS COMUNIDADES DE FÉ.............................................52
3. 2. O CRISTIANISMO HELENIZADO........................................................60
3. 3. O DIÁLOGO COM O ESTOICISMO.....................................................63
4. A CONSTRUÇÃO DO MAGISTÉRIO DE PAULO DE TARSO .......................74
4. 1. DE PERSEGUIDOR A FORMADOR DE CRISTÃOS ..........................74
4. 2. A ELABORAÇÃO DO DISCURSO EVANGELIZADOR........................80
4. 3. AS INFLUÊNCIAS DOS ESTÓICOS NO PENSAMENTO PAULINO...86
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................106
FONTES............................................................................................................112
REFERÊNCIAS.................................................................................................113
8
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende refletir sobre as relações estabelecidas entre
proposta formativa do cristianismo primitivo e a cultura greco-romana, em busca
de algumas semelhanças e coincidências decorrentes desse encontro. Em vista
desse encontro e do seu resultado, propôs-se reconstituir aspectos das
transformações ocorridas na antiguidade, particularmente em relação à filosofia
que, possivelmente, criou as condições favoráveis para o desenvolvimento da
nova religião entre os povos que chamavam pagãos.
Em grandes linhas, a afirmação do pensamento cristão pode ser entendida, em
certa medida, no pensamento helênico, pois nele se encontra toda uma rede de
significado que deu condições para a elaboração de um novo tempo.
Nessa perspectiva, papel significativo teve o estoicismo, corrente filosófica da
antiguidade grega (Atenas, por volta de 300 a.C.), e que teria mais tarde uma
grande importância para a cultura romana.
Com a sua doutrina universalista, os estóicos negavam as distinções de raça, de
condição social e de religião e afirmavam que todos os homens são irmãos, como
filhos de um Deus. Chamavam a atenção para a convivência fraterna e
harmônica entre os homens, ensinavam que todos deveriam ser tolerantes e
generosos no trato com os demais. Dessa forma, a filosofia estóica propunha uma
9
relação igualitária, pacífica e humanitarista, voltada para a mitigação das agruras
de seu tempo.
Nessa perspectiva, as categorias e os conceitos estóicos apresentam, de certa
forma, afinidades com a mentalidade dos adeptos cristãos, como a consciência do
dever, o amor universal aos homens, a educação para a virtude, a valorização da
vida interior, espiritual, a renúncia aos bens materiais.
Nessa esteira, segundo Reinholdo A. Ullmann, “[...] com o advento do
cristianismo, muitas das pedras angulares trazem o selo inegável do estoicismo”
(ULLMANN, 1996, p.126).
Assim, o cristianismo não pode ser pensado nem compreendido em sua
totalidade sem as contribuições desse pensamento constituído historicamente; as
quais, contraditoriamente, foram fundamentais para a negação da ppria cultura
greco-romana.
Segundo Werner Jaeguer, o contato criador entre o cristianismo primitivo e a
tradição grega foi desafiador, pois essa religião reivindicava para si a posse da
verdade, lançando a única cultura intelectual do mundo que se propunha
universal, e o conseguiu. Com base nesses termos, o cristianismo primitivo teria
buscado, na tradição grega, a segurança de sua própria universalidade (2002,
p.16).
10
No entanto, deve-se considerar que houve necessidades internas da civilização
grega da época que contribuíram para a expansão cristã; por isso, a helenização
do movimento cristão não deve ser vista de forma unilateral, mas como exigência
apontada pela sociedade, na busca de amenizar os conflitos existentes naquele
momento histórico.
Convém lembrar que, após a dissolução da polis, a tendência das correntes
filosóficas greco-romanas o em busca da espiritualidade, nos termos de uma
necessidade religiosa distante da razão, voltada para a interiorização do homem.
No momento em que surge o cristianismo, a mentalidade pagã parece conduzida
pela necessidade ocasionada pelo vazio deixado no homem, busca examinar a fé
que reúne os seguidores e que tem avançado por todas as terras, utilizando-se
dos recursos intelectuais emprestados da própria tradição clássica para chegar ao
entendimento dos gentios e dos pagãos.
Tendo-se em vista que o cristianismo inaugurou uma nova fase na história da
humanidade, faz-se necessário buscar o entendimento desse processo em sua
especificidade, percebendo afinidades existentes com as doutrinas filosóficas da
época, assim como a oposição entre as duas relações. Vale lembrar que as
transformações o ocorrem com rupturas bruscas, pois os eventos têm ligação
racional com os fatos anteriores. Parece que o encaminhamento dado pelo
cristianismo primitivo exortando a universalidade nas relações é resultado do
encontro das diversas culturas posto pelo helenismo greco-romano.
11
As reflexões aqui desenvolvidas buscam a apreensão dos fundamentos da
filosofia greco-romana, da proposta formativa do cristianismo primitivo e,
particularmente, do direcionamento dado para os aspectos morais da sociedade.
Esses modelos apresentam, em sua doutrina, aspectos que enfatizam a
autodisciplina, a valorização da felicidade pessoal, o humanismo.
Com essa orientação, este trabalho se propõe a identificar a aproximação da
doutrina cristã com o estoicismo de Sêneca, que possivelmente apresentam
profundas semelhanças, o que os aproxima em não poucos aspectos.
O encaminhamento dado por Paulo de Tarso à doutrina cristã apresenta toda uma
tendência do pensamento do fisofo romano, pois, como Paulo de Tarso, Sêneca
tinha como preocupação a moral do homem desse momento histórico.
Provavelmente, muitos dos temas abordados por ele, contendo uma mensagem
de salvação e com indicação de regras práticas de bem viver para que o homem
alcançasse a felicidade, tenham sido assimilados por Paulo de Tarso para a
mensagem do cristianismo nascente.
A doutrina cristã, em seus encaminhamentos, tamm se apresentou
essencialmente com um modo de viver fundamentado no exemplo de Jesus
Cristo. Sem uma grande preocupação teórica, o cristianismo parece ter
selecionado e incorporado uma grande variedade de idéias e de práticas das
doutrinas helenísticas. Vivendo no “mesmo” ambiente cultural do estoicismo, é
12
provável que ele tenha escolhido elementos dessa doutrina para transmitir sua
mensagem. Com um conteúdo “salvacionista”, apresentava-se com característica
de religiosidade, prometendo conduzir o homem para uma vida em harmonia,
tornando-se um abrigo espiritual.
Com essas considerações feitas, levantaram-se algumas questões que
contribram para direcionar o presente trabalho: Quais as bases que
fundamentaram o cristianismo primitivo? Quais as categorias e os conceitos que
identificavam e diferenciavam os cristãos e os pagãos? Qual a relação do
magistério de Paulo de Tarso com o estoicismo?
Objetivando levantar respostas às questões mencionadas, promoveu-se um
diálogo reflexivo com as fontes, para a apreensão resultante do encontro entre a
cultura pagã e o cristianismo, no direcionamento e sua formão de uma nova
sociedade.
Buscou-se, no estudo dos textos, colocar como ponto de referência o que era
essencial para formar o homem ideal, mas também perceber nas relações as
transformações que estavam sendo gestadas e o que foi mantido, no referente a
conceitos e a práticas sociais. Além disso, consideraram-se os procedimentos
adotados pela doutrina crispara eleger os conteúdos da cultura greco-romana
que eram importantes para a fundamentação da , na organizão de um novo
modelo de homem.
13
Na realização do estudo dos textos propostos, elegeu-se uma posição
indagadora, levando-se em conta que os escritos foram resultado de uma
determinada época e que respondiam a situações específicas. No contato com
esses textos, crivaram-se as informações, levando-se em conta os interesses da
sociedade vigente. Mesmo com os possíveis comprometimentos dos textos
estudados, eles contribuíram com importantes informões para o entendimento
da proposta de formação do homem cristão.
Nessa perspectiva, a ação formativa da doutrina crisapresentada por Paulo de
Tarso oferece condições de responder aos questionamentos da época, através de
seus escritos, que postulavam o perfil de homem requisitado pelo cristianismo
primitivo. Assim, o magistério de Paulo de Tarso foi fundamental aos rumos do
pensamento cristão; pensamento esse que influiu, de forma determinante, na
formação religiosa e moral do Ocidente. O fato se explica por ser ele personagem
importante nos primeiros momentos em que o cristianismo buscava a sua
identidade em face da tradição judaica. Acrescente-se a isso ter sido Paulo de
Tarso responsável pelo caráter universalista que a doutrina cristã adquiriu, ao
romper o particularismo dos primeiros apóstolos e ao levar o cristianismo para
lugares distantes.
Assim, pode-se dizer que foi por meio do magistério de Paulo de Tarso que o
cristianismo se firmou perante as outras tradições. Nesse processo, era preciso
conquistar fiéis e, para tanto, Paulo de Tarso acabou fazendo concessões que
eram contrárias ao encaminhamento de evangelização orientado pelos discípulos
14
de Jesus. Provavelmente, respaldado pela sua formão judaico-cristã,
compreendeu que a doutrinação cristã, na forma como a propunham os primeiros
discípulos, não poderia obter sucesso no mundo pagão (VASCONCELOS, 2003,
p.56-58).
Nesse sentido, é oportuno reconhecer que o pensamento de Paulo de Tarso
manifesta uma certa proximidade com o pensamento que estava constituído na
sociedade greco-romana, pois, nascido e educado em um ambiente urbano e
pagão, possivelmente deve ter recebido influência das correntes filosóficas de sua
época, em particular do estoicismo. Tais influências foram possibilitadas por ele
viver em um contexto cultural impregnado dessa cultura. Provavelmente utilizou a
filosofia helenística na construção de sua argumentação, porém procurou usá-la
convenientemente.
1.1. FONTES UTILIZADAS
Na organizão desse trabalho, além da bibliografia utilizada para dar respaldo à
discussão, privilegiaram-se algumas fontes: as Cartas a Lucílio, de Sêneca
1
, e as
1
Nasceu em Córdoba, Espanha, entre o fim da era pagã e o início da era cristã (4 (?) a. C. 65
d.C.), em uma família abastada. Em razão da frágil saúde, foi levado por uma tia, ainda criança,
para Roma. Na cidade Eterna, recebeu esmerada formação, correspondente à sua condição
social, baseada na gramática, na retórica e na filosofia. No ano 20 d.C., Sêneca, muito jovem
ainda, ingressou na política. Mas, aos 25 anos, sua saúde piorou, motivo para retirar-se da vida
pública e dirigir-se para o Egito, onde o clima era favorável e seu tio exercia o cargo de
governador. Em Alexandria, capital intelectual da época, provavelmente entrou em contato com os
filósofos Queremon o lon. Restabelecida a saúde, retornou a Roma, em 31, e logo reassumiu a
carreira política interrompida. De modo geral, os anos 30 marcaram a vida de Sêneca por uma
intensa atividade como orador e senador, o que o investiu de grande presgio, inclusive na corte
imperial. No governo de Cláudio (41 d. C.), Sêneca foi vítima das intrigas de Messalina, o que
15
cartas paulinas, de Paulo de Tarso. Esses documentos sintetizam os principais
conteúdos desenvolvidos pelos autores acima citados.
As Cartas a Lucílio, na edição utilizada, foram publicadas em língua portuguesa
no ano de 1991, pela Fundação Calouste Gulbenkian, de Lisboa. São 124 cartas
de reflexões filosóficas destinadas por neca a Lucílio, seu discípulo preferido.
As cartas são consideradas a obra mais importante de Sêneca, por sua amplitude
e por abordarem uma gama variada de temas. Nelas, predominam as suas
reflexões éticas, pois se revestem de um caráter prático, que contempla situações
concretas do comportamento humano (CAMPOS, 1991, p. V).
Percebe-se, em toda a extensão das 124 cartas, que não houve grande pretensão
especulativa, mas uma clara preocupação de mostrar o caminho correto a ser
seguido por seu amigo, admoestando-o a viver segundo os postulados estóicos,
os quais Sêneca vivia e de cuja eficácia para uma vida feliz dava testemunho
(PRADO, 1947, p. 163).
resultou em um processo de adultério com Júlia Livilla, princesa imperial, irmã de Calígula, fato
que teve como resultado o seu exílio na Córsega. A crise criada em Roma, com a morte de
Messalina e a ascensão da imperatriz Agripina, em 48, fê-lo retornar do exílio para reassumir o
que fora obrigado a abandonar. O período que vai do ano de 49 a 59 representa a plenitude da
sua vida e da sua obra nos âmbitos da filosofia, da política e da pedagogia. Galgou o cargo de
pretor e recebeu de Agripina a responsabilidade de formar o seu filho, o futuro imperador Nero,
que o imperador Cláudio havia adotado. Em 54 d.C., Nero associou a seu governo, a título de
conselheiro, Burrus, chefe da guarda pretoniana, que aproveitou a ocasião para se firmar
definitivamente na vida política. Os cinco primeiros anos do governo de Nero foram inspirados por
Sêneca e Burrus. Após esse período, o governo tomou nova direção, com o imperador assumido o
controle da situação. Com a morte de Burrus, as relações com Nero desgastaram-se, motivo para
Sêneca pedir permissão para retirar-se da vida pública. Com a recusa do imperador, Sêneca viveu
uma semi-reclusão e encontrou tempo para escrever suas obras mais importantes. Em 65d.C., foi
acusado de estar conspirando contra o imperador, o que levou Nero a ordenar sua morte (REALE,
1995).
16
Retirei-me não dos homens, como dos negócios, começando
com os meus próprios: estou trabalhando para a posteridade. Vou
compondo alguma coisa que lhe possa vir a ser útil; passo ao
papel alguns conselhos, salutares como as receitas dos remédios
úteis, - conselhos que sei serem eficazes por tê-los experimentado
nas minhas pprias feridas, as quais, se ainda não eso
completamente saradas, deixaram pelo menos de me torturar
(SÊNECA, 1991, p. 19).
A construção da filosofia pregada pelo filósofo provém mais de sua observação,
da sua experiência acumulada ao longo da vida, que propriamente de um sistema
filosófico complexo. Estava convicto da validade de suas idéias”, não pelo corpo
doutrinário do programa estóico simplesmente, mas porque a vida havia
demonstrado a sua verdade (PRADO, 1947, p. 163).
Indico aos outros o caminho justo, que eu próprio tarde
encontrei, cansado de atalhos (SÊNECA, 1991, p. 19).
Assim, além de transmitir notícias ou trocar informões com o amigo, Sêneca
tinha como objetivo, utilizando-se de seus escritos, converter o amigo à doutrina
estóica e levá-lo a, progressivamente, adquirir o domínio de seus princípios
teóricos, tornando-se habilitado para aplicá-los na vida prática. Isso pressupunha
convencê-lo a libertar-se da ordem social e política e aproximar-se, tanto quanto
possível, do ideal do sábio.
Procura antes um bem que seja de fato duradouro, e o único
nestas condições é aquele que a alma consegue extrair de si
própria. Unicamente a virtude nos proporciona uma alegria perene
e inabalável (SÊNECA, 1991, p. 101).
Apresentando um caráter de exortação espiritual, as Cartas a Lucílio propunham
exercícios de meditação, que tinham como objetivo converter o seu interlocutor
17
(PEREIRA MELO, 20003, p.17). Dessa forma, elas apresentam um pensador que
colocava em destaque a pessoa humana no centro de suas reflexões.
Nós somos como membros de um corpo, a natureza nos fez
unidos, nos fez nascer dos mesmos princípios e para o mesmo fim
(SÊNECA, 1991).
Na busca de preparar o homem para a prática da virtude, a filosofia que aparece
nas cartas é uma espécie de medicina para a alma”, que prepara o homem para
a prática da virtude e convoca a superar os “pré-conceitos” da sociedade.
Para comunicar-se com os habitantes das cidades helenizadas que tinham origem
judaica, mas em educação e cultura eram impregnados da cultura helenística,
Paulo de Tarso utiliza-se de cartas, para o envio de mensagens aos seguidores
da doutrina cristã. Essas cartas eram escritas em grego (koiné), um grego de
vel médio. Essa constatação é reveladora, pois indica que Paulo de Tarso se
movimentava no mundo greco-romano e parece ter usado a linguagem e as
imagens de seu mundo urbanizado, com preferência aos termos filosóficos e aos
da linguagem comercial e administrativa.
Atualmente, constituindo-se uma das melhores traduções na língua portuguesa,
acha-se a Bíblia Jerusalém, de 1995, editada pela editora Paulus, de São Paulo.
As 13 cartas dirigidas às comunidades cristãs, escritas por Paulo de Tarso,
procuravam exortar os neoconvertidos à cristã e a viverem as verdades do
“reinopregadas por Jesus Cristo (MORESCHINI; NORELLI, 2000, p. 31). São
apontadas algumas cartas que não o da autoria do apóstolo; por isso, elas se
18
dividem em dois grupos: as paulinas
2
e as deuteropaulinas
3
. Estas últimas são
classificadas dessa forma porque se supõe que tenham sido escritas por um
discípulo de Paulo de Tarso, em tempos e situações diversas da vivenciada por
Paulo de Tarso.
FIGURA 1 – Paulo escreve as cartas
(Rembrandt. Nuremberg, Germanisches Naticonal Museum) In: FABRIS, 2003
Com o objetivo de estudar o pensamento de Paulo de Tarso, destacaram-se
prioritariamente as cartas paulinas; porém, em alguns momentos, aparecem
2
Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Felipenses, 1 Tessalocenses e Filemon.
3
Efésios, Colossenses, 2 Tessalonicenses, 1 e 2 Timóteo e Tito.
19
citações das cartas deuteropaulinas. As cartas não apresentam um tratado
teológico elaborado ou fundamentado em uma sistematização filosófica, mas elas
se propunham a responder às situações concretas de cada comunidade,
apontando caminhos perante os conflitos cotidianos (BORTOLINI, 2002, p.77).
Realmente, desejo muito ver-vos, para vos comunicar algum Dom
espiritual, que vos possa confirmar, ou melhor, para nos confortar
convosco pela que nos é comum a vós e a mim (BÍBLIA, N.T.,
Romanos, 1:11).
Dirigindo-se às primeiras comunidades, Paulo de Tarso escreve a destinatários
concretos, refletindo sobre as relações existentes nelas; ele buscava promover a
paz no seio das mesmas, exortando as pessoas a viverem como irmãos. Assim,
apontava alternativas para que se organizassem em relação às funções e aos
deveres e para que prestassem “serviço” à “Igreja” e ao seu irmão em Cristo.
O corpo é um e, não obstante, tem muitos membros, mas todos os
membros do corpo, apesar de serem muitos, formam um só corpo.
Assim, tamm acontece com Cristo. Pois fomos todos batizados
num espírito para ser um só corpo [...] (BÍBLIA, N.T., 1
Coríntios, 12:12).
O que se pode subtrair dessa situação e de outras que não convêm ressaltar
neste momento, é que Paulo de Tarso, em suas cartas, lidava com problemas
diversos e, como Sêneca, procurava sa-los a partir de orientações morais ou
éticas, respaldadas nas “verdades” particulares do seu corpo doutrinário.
20
O presente estudo requisitou bibliografia que contribuiu com um lastro de
informações e um respaldo histórico no sentido de preencher as lacunas e de
obter respostas para as questões aqui levantadas.
Para a organizão deste trabalho, o tema sedesenvolvido em três capítulos:
no primeiro, proceder-se-á à reflexão sobre as bases que contribuíram para a
organizão do cristianismo, destacando-se a conjugação dos fatores
helenísticos, romanos e judaicos no seu processo formativo; no segundo, será
estudado o diálogo estabelecido entre o cristianismo primitivo e a cultura clássica,
tendo em vista a fundamentação do seu corpo doutrinário. Nesse processo,
destaque foi dado aos cristãos que viviam em territórios fora da Palestina
(cristãos-helenista), os quais, por seu contato mais próximo com a cultura
clássica, adotaram uma postura de relativização da tradição defendida pelos
cristãos sediados em Jerusalém.
O terceiro capítulo está voltado para a apreensão das possíveis relações
existentes entre o pensamento de Paulo de Tarso e o estoicismo de Sêneca, no
sentido de viabilizar o magistério de Paulo de Tarso, que propôs um ideal de
formação do homem fundado na fé, na solidariedade, na virtude, na humildade,
no amor universal. Em busca desse “tipo ideal”, o apóstolo deu os primeiros
passos ao assumir a responsabilidade de anunciar a chamada “boa nova” no
mundo pagão.
21
2. BASES DO PENSAMENTO CRISTÃO
O cristianismo surgiu na história da humanidade com um caráter original, ao
apresentar uma nova concepção de homem, de mundo e de sociedade. Mesmo
que, em seus primeiros momentos, não ostentasse pretensão de expansão, com
o tempo, foi gestando, em suas entranhas, um universalismo (PEREIRA MELO,
2000). Ao fazer tábua rasa das diferenças étnicas, dirigia-se a todas as nações e
a todos os povos sem exceção.
Na medida em que superou qualquer caráter estreitamente
nacional e caminhou para uma resoluta universalização, na
medida em que aboliu as diferenças espirituais básicas entre os
homens de diferentes nacionalidades, raças ou classes sociais,
declarando que todos os indivíduos – inclusive os escravos
eram filhos de Deus, a religião cristã, do ponto de vista do seu
conteúdo social, assinalou um avanço em relação à perspectiva
da filosofia da antigüidade cssica, que não reconhecia a
condição humana aos escravos (KONDER, 1969, p.69).
Acrescente-se a isso a sua atitude de exclusividade ao se revelar como a única
religião verdadeira, conforme acreditavam, concebida e implantada pelo próprio
Deus a que professavam fé desde suas origens.
Ao abrir as portas do Reino de Deus a gentios e a judeus, a
bárbaros e a helenos, o cristianismo atribuiu-se a missão de
converter a terra sem distinção de raças ou nacionalidades; deste
modo, entrou em conflito com todas as outras religiões, todos os
outros mistérios, todas as outras sabedorias [...] o cristianismo
distingue-se radicalmente das religiões da Antigüidade, impondo
como primeira condição de adesão e salvação a aquiescência a
certas proposições que não são nem regras de conduta, nem
fórmulas rituais, mas que pretendem possuir um valor de
conhecimento, o mais certo dos conhecimentos, pois que são
autenticadas pela própria palavra de Deus (ROUGIER, 1988,
p.73-74).
22
Outra característica diz respeito à sua doutrinação, que não possuía um caráter
revoluciorio, não pretendia uma transformão social neste mundo, ao
contrário, trazia em sua mensagem uma proposta libertadora para além deste
mundo (ENGELS, 1969, p.10), visto que o reino que queria implantar transcendia
as bases materiais e se fundava no domínio espiritual, de acordo com as
palavras, segundo a tradição cristã, do próprio Cristo.
Meu reino não é deste mundo. Se meu reino fosse deste mundo,
meus súditos teriam combatido para que eu não fosse entregue
aos judeus. Mas meu reino não é daqui (BÍBLIA, N. T., João, 18:
36).
Essa preocupação cristã pode ser entendida, em parte, na necessidade de se
criar em seus fiéis (nesses primeiros momentos, compostos basicamente de
escravos, gladiadores, servos, pobres e oprimidos) a esperança de um mundo e
de uma vida melhores. À medida em que a efetivação desse mundo não era
possível no espaço terreno, a solução encontrada foi remeter essa esperança
para a esfera celeste.
Aos servos oprimidos e empobrecidos, a saída foi encontrada, não
neste mundo, mas em um novo mundo. A existência da alma
depois da morte corporal converteu-se paulatinamente em um
artigo de fé, aliás reconhecido no império romano. Além disso, por
toda parte cada dia era mais admitida a existência de penas e de
recompensas para os mortos, segundo as ões que tivessem
cometido em vida (ENGELS, 1969, p.37).
A evolução das idéias mais ou menos materialistas sobre a vida futura, tão
propagadas no meio das massas oprimidas, abria igualmente o caminho ao
23
cristianismo. Essas idéias exprimiam a esperança de que as virtudes e a vida
de trabalho dos humildes preparavam sua vida futura.
Essa promessa de redenção em uma vida futura acalentava esses setores
inferiorizados da sociedade rebaixada à condição de simples coisa e destituída da
dignidade humana, simples instrumentos de trabalho, convertidos em base da
economia romana. À medida que o Império Romano conquistava novos territórios,
transformava em escravos centenas de milhares de estrangeiros prisioneiros,
aumentando consideravelmente o seu número de cativos; o que era realimentado
com as guerras quase incessantes, tendo em vista, também, a expansão da
produção que abastecia o mundo romano.
Destituídos de todos os direitos, com uma existência miserável e submetidos à
feroz exploração que os esgotava em pouco tempo, poucos agüentavam mais de
dez anos em escravatura. Mas a facilidade com que podiam ser substituídos o
favorecia um repensar da situação e fomentava a política dos senhores que era a
de tirar dos escravos o máximo possível de trabalho, para libertá-los e serem
alimentados pelo Estado quando velhos e inúteis.
A manutenção desse quadro explorativo requisitava a coerção que levava à
obediência; os escravos normalmente trabalhavam acorrentados e sob constante
vigilância. Os que se destacavam por sua robustez e impunham temeridade eram
educados para serem gladiadores, com o que Roma conseguia, ao mesmo
tempo, distrair-se e divertir-se. A propriedade de escravos treinados como
24
gladiadores era uma forma lucrativa de investimento para negociantes, pois eram
certas os lucros deles advindos.
Mesmo que o cristianismo tenha dedicado a sua mensagem, conforme já
mencionado, pelo menos nos primeiros tempos, a homens inferiorizados, de uma
sociedade escravista, isso não foi suficiente para obstacularizar o seu rápido
desenvolvimento, o que teve como contraponto a tolerância romana em relação
às religiões orientais e a liberdade desfrutada pelos judeus da Diáspora.
Contribuiu também com a organização das colônias judaicas da Diáspora em
torno das sinagogas, onde se concentrava toda a vida religiosa e social dessas
comunidades.
O que é inegável é que o cristianismo teve uma ascensão
fulminante. Em torno do ano 50, ele já havia atingido praticamente
todas as grandes cidades do Império Romano, atingindo pessoas
de todas grandes cidades de todas as posições sociais. E isso
apesar de todos os empecilhos impostos pelas autoridades
romanas e judaizantes (BIANCHETTI; VILLALOBOS, 1992, p. 8).
O resultado dessa propagação foi a oportunidade que o cristianismo teve de
estabelecer contatos com outras manifestações culturais e religiosas que
contribram para o enriquecimento do seu conteúdo doutrinário. Generoso,
nesse sentido, foi o diálogo estabelecido com as bases em que foi gestado: o
político, o romano; o cultural, o grego; o espiritual, o judeu, fazendo opção por
elementos dessas culturas que melhor poderiam contribuir para a formão do
novo homem: o homem cristão.
25
2.1. A BASE HELENÍSTICA
As conquistas de Alexandre
4
, o Grande, séculos II a.C., inauguraram um novo
modo de organização política, social e cultural no Mundo Antigo. Esse
empreendimento foi em si grandioso, mas a importância decisiva está no fato de
ter criado as condições para o encontro cultural entre o Oriente e o Ocidente, o
que resultou em uma comunidade internacional, na qual a cultura e a língua
gregas desempenhavam papel preponderante. Esse período, convencionalmente
chamado helenismo, foi marcado pelo desaparecimento das fronteiras entre os
diferentes impérios, reinos e culturas. Nesse horizonte alargado, o quadro
tradicional da cidade antiga, a polis grega, tende a desaparecer.
Segundo Friedrich Engels, quando das conquistas, a mão de ferro do
conquistador romano havia destruído tudo: a polis, da qual seus antepassados
haviam sido, em outros tempos, cidadãos
5
livres, passarando a prisioneiros de
guerra, a escravos, tendo sua liberdade anulada (1969, p. 35-36).
A polis, lugar privilegiado, destinado a cidadãos formalmente catalogados, era
constituída de um espaço denominado demos (limitado ordinariamente aos
varões livres e proprietários) e de um conselho citadino (boule), que se
4
Nasceu em 356 a.C. no palácio de Pela, Macedônia. Era filho de Felipe II e desde cedo se
destacou por sua inteligência. Seu pai incumbiu Aristóteles de educá-lo. Alexandre aprendeu as
mais variadas disciplinas: retórica, política, ciências físicas e naturais, medicina e geografia,
interessando-se pela história grega e pela obra de autores como: Eurípedes e Píndoro. Na arte da
guerra, recebeu lições de seu pai, distinguindo-se nas artes marciais. Após o assassínio de seu
pai, em 336 a.C., Alexandre subiu ao trono da Macedônia, empreendendo a expansão territorial do
reino (Encyclopaedia Briitanica do Brasil Publicações Ltda, 1996, p.233).
5
Pertencente à cidade. Forma suprema do Estado entre os gregos. Segundo Aristóteles, a
essência do homem residia na sua capacidade de ser cidadão, porém a cidadania era um
privilégio das classes dirigentes (PONCE, 1991, p.46).
26
preocupava com as questões coletivas. Como exemplo, tem-se Atenas que, em
sua idade de ouro da democracia, dava aos cidadãos o direito de votarem na
reunião da cidade ou na assembléia (ekklesia), sobre temas apresentados pelo
conselho. Considerava-se a vida na cidade como sujeita à lei (nomoi), e
resolviam-se as disputas mediante argumentação e, em Atenas, mediante votos
de jurados perante magistrados. A autonomia e auto-suficiência da cidade, sua
autarkeia, estava no centro do orgulho que seus cidadãos sentiam e incluía,
especialmente, a liberdade da polis para resolver suas querelas dentro de seus
próprios muros (MEEKS, 1996, p.16).
A organizão que impunha uma disciplina fundamental e que dava um sentido
ao mundo e à vida deixa de existir com as transformões causadas pelo
helenismo, resultando em uma profunda crise de identidade nesse homem livre
grego, do cidadão, que encontrava nela a norma, a justificação suprema de toda a
existência, comunitária ou individual, que passa a residir, doravante, no homem,
entendido como personalidade autônoma.
La personalidad del indivíduo era cívica y el hombre despojado de
la dimensión publica no era nadie,pues su identidad se la otorgaba
la polis. No habia distinción clara entre etica y politica, lo que más,
la politica era, en cierto modo, superior a la etica privada. La etica
era una parte de la justicia; ya que era más teoria moral si una
ciudad y el conjunto de los ciudadanos, que seria el fin de la
politica, que procura el bien para una persona particular, objetivos
buscados pela etica (SÁNCHES, 2001, p.22).
6
6
A personalidade do indivíduo era cívica e o homem despojado de sua dimensão pública não era
nada, pois sua identidade outorgava-se na polis. Não havia distinção clara entre ética e política,
ademais, a política era, em certo modo, superior à ética privada. A ética era uma parte da política
e era impossível uma teoria moral conforme uma prática da justiça: que era mais importante
alcançar o bem para uma cidade e o conjunto dos cidadãos, que seria o fim da política, que
procura o bem para uma pessoa particular, objetivos buscados pela ética (SANCHES, 2001, p.22).
27
O ideal de formação grega que era o do homem político, do homem da polis, do
cidadão ligado aos interesses coletivos ganhou um novo perfil, inteiramente
desvinculado do ideal consagrado pela tradição (FONSECA, 2002, p. 9).
Com a preocupação de dar uma resposta imediata aos
problemas de adaptação postas ao indivíduo pelas
transformações sociais elas terão um caráter e uma função
“ideológicas” mais marcadas do que as filosofias da idade
clássica. Por outro lado, em face das provações da vida, diversas
atitudes passíveis da consciência, que aparecerão rapidamente
como outras tantas categorias intemporais ou esteriótipos
culturais propostos ao homem Ocidental (AUBENQUE, 1981,
p.158).
Com esse direcionamento, o homem grego livre deixou de fazer parte de uma
estrutura simples (polis), inserindo-se em uma grande pátria (o império fundado
por Alexandre), não dependendo de sua participação as alterações que por
ventura ocorressem. A sua cidadania foi esvaziada nessa nova estrutura política,
pois os deveres do homem helenístico não eram os deveres cívicos de um
Estado, mas os de todo homem, membro de uma cidade sem fronteiras. As
decisões políticas passaram a ser tomadas, distanciando-se da intervenção do
cidadão, que agora passou a ser súdito. Elas dependiam do soberano, que
detinha o poder e a quem cabia tomar as iniciativas para o bom andamento dessa
cosmópolis (FERREIRA, 1992, p.240).
Organizaram-se novas regras de conduta, artes de viver”, centradas no cidadão
desorientado, tendo em vista possibilitar-lhe alguma paz de espírito, alguma forma
de felicidade interior em meio às tribulações da época.
28
O desaparecimento da polis tamm fez sucumbir a religião oficial grega,
formalista e cívica, que deixou a sua vinculação com a política; os deveres de
cidadão não serviam mais como práticas que aproximavam o homem dos deuses,
visto que as condições para esses exercícios deixaram de existir com a demolição
do seu referencial, a cidade (LEVÊQUE, 1987). Assim, o espírito religioso perdeu
seu caráter de coletividade e voltou-se para a individualidade, para a
subjetividade, pois o homem do Império deveria buscar a sua salvão em seu
interior.
A religião sempre garantiu que o homem grego cumprisse as suas
obrigações para com o Estado; com sua ruína, o homem não
encontra com que satisfazer as suas aspirações, por isso a melhor
devoção não pode estar em cumprir o melhor possível o dever
do cidadão. Assim, a religião passou também por uma
metamorfose e perfez o caminho de coletiva para individualista
(LEVÊQUE, 1987, p.144).
Respondendo a esse novo quadro, as reflexões filosóficas deixariam o âmbito do
público (coletivo) para converterem-se em reflexões sobre a vida privada
(individualista) e prática, para entender o desgaste existencial que o homem
vivenciava.
Com a destruição dos suportes políticos e espirituais, o homem livre grego foi
obrigado a buscar, em si mesmo, novas motivações para viver, bem como,
motivado pelas forças das transformações sociais, a fechar-se em si mesmo.
Afinal, o exercitava o papel de cidadão, mas apenas de indivíduo como
qualquer outro na estrutura de um império e deveria buscar um sentido para sua
29
existência (SÁNCHEZ, 2000). A sua felicidade o dependia mais das coisas
exteriores (políticas), mas do seu encontro consigo mesmo.
O homem livre, descobrindo-se como indivíduo, percebeu a falência dos
costumes clássicos e colocou, na ordem do dia, outras exigências, voltadas para
a formação do indivíduo requisitado pela sociedade.
El sentimento de solidariedad de pertinencia a un pueblo en el
que confluven la mayoria de los intereses individuales , há
desaparecido. Comienza a predominar lo privado, porque la
ciudad-estado, como supremo ambito publico no tiene ya
justificación ni sufuciente entidad como para organizar desde ella,
los destinos que marca la conquista de Alejandro. Los griegos
son un pueblo más entre outros pueblos, y Atenas enpieza a
compreender la inutilidad de sus muralhas reales y de sus
projectos ideales (SÁNCHEZ, 2000, p.23).
7
Essa preocupação pode ser verificada de forma contundente nas concepções
filosóficas que apareceram nesse período para dar suporte e sustentação aos
novos setores privilegiados da sociedade, tais como: o epicurismo
8
, o ceticismo
9
7
O sentimento de solidariedade de pertinência a um povo em que convergem a maioria dos
interesses individuais havia desaparecido. Começa a predominar o privado, porque a cidade-
estado, como supremo âmbito público, o tinha a justificativa nem a entidade suficiente para
organizar, a partir dela, os destinos, que marca a conquista de Alexandre. Os gregos são um povo
a mais entre outros povos, e Atenas começa a compreender a inutilidade de suas muralhas reais e
de seus projetos ideais.
8
Filosofia fundada por Epicuro, em Mitilene, no ano 311 a.C., desenvolvida a partir de
aproximadamente vinte anos após a morte de Aristóteles. O epicurismo ensinava que o prazer é o
principal bem e que uma vida feliz é aquela em que o prazer predomina. A Escola advoga, na
prática, um estilo simples de vida, no qual a tranqüilidade da mente desempenha importante papel,
e se valoriza especialmente a companhia de amigos da mesma opinião. O epicurismo não
pregava o total afastamento da vida cívica, mas não nutria simpatia pela ambição pública (STEAD,
1999, p.46).
9
Escola filosófica fundada por Pirro, herdeira dos sofistas, procurava na negação a sabedoria: não
julgar, o falar, não definir, ser indiferente e conseguir a auncia da perturbação. O ceticismo,
em suma, é, na origem, uma disciplina moral cujo fim é a quietude (BURNS, 1968).
30
e, particularmente, o estoicismo
10
. Essas concepções filosóficas deixaram
transparecer, em suas doutrinas, que o indivíduo pode ser feliz em si mesmo, não
dependendo das condições exteriores para gozar de tranqüilidade e de paz de
espírito.
Desse modo, a filosofia helestica assumiu um universalismo, para explicar a
unidade de raça humana em níveis teóricos. As especulações passaram a
centralizar-se na problemática da liberdade individual. As antigasfilosofias de
Platão
11
e de Aristóteles
12
já não mais conseguiam dar respaldo e sustentação ao
cidadão, que não se reconhecia nesse novo quadro de mudanças, visto que, para
esses filósofos, a vida feliz e digna havia de se realizar na cooperação dos
homens por uma cidade melhor.
Em sua obra, a República, Platão apontou o seu modelo de organização política,
que, em linhas gerais, era uma tentativa de revigoramento de um ethos
13
da
10
Segunda grande escola filosófica da idade helenística, assim denominada por ter a sua sede no
Pórtico de Atenas. Foi seu fundador Zenão de Cítio (332-262 a.C.). O estoicismo foi desenvolvido
e modificado por uma sucessão de hábeis expositores; houve intercâmbio de iias com escolas
platônicas e aristotélicas posteriores. O estoicismo posterior é representado por três escritores
(que se deixaram conduzir pelos interesses morais, chegando a negligenciar a lógica e a filosofia
natural). São eles o renomado literato romano Sêneca (2. a C. – 65 d.C.), o escravo liberto
Epicteto (55
a.C. 135 d.C.) e o imperador Marco Aurélio (nascido em 121, imperador em 161 e
morto em 180) (STEAD, 1999, p.49).
11
Viveu em Atenas (428-347 a.C.), onde fundou uma escola denominada Academia. Nasceu nos
primeiros anos da guerra do Peloponeso. Era um aristocrata abastado. Foi discípulo de Sócrates.
Escreveu a obra a República, que tem como propósito discutir a “justiça(BURNS, 1968, p.174).
12
Viveu entre 384 e 322 a.C., nasceu em Estagira, na Calcídica (região dependente da
Macedônia). Seu pai era médico de Felipe, rei da Macedônia. (mais tarde, Alexandre, filho de
Filipe, foi discípulo de Aristóteles). Aristóteles frequentou a Academia de Platão. Sua extensa obra
forma um dos grandes sistemas filosóficos da antiguidade. Em 340 a.C., funda, em Atenas, o
Liceu, assim chamado por ser vizinho do templo de Apolo Lício (STEAD, 1999).
13
Este termo teve origem na Grécia, por volta do século IV a.C. “O termo Ethos é uma
transliteração dos dois vocábulos gregos (com eta inicial) e Ethos (com épsilon inicial). A primeira
acepção do ethos (com eta inicial) designa a morada do homem (e do animal em geral). O ethos é
31
coletividade. Buscou apontar os limites da democracia grega, mas não conseguiu
ver uma forma de organização política superior à das cidades-Estado.
A construção de uma polis virtuosa era o ideal político da República. Para se
atingir esse propósito, era necessário ter a identificação do político com o filósofo
ou vice-e-versa. Nesse aspecto, o filósofo seria aquele que conhecia o significado
da justiça e do bem e que, por esse motivo, teria condições para governar bem.
Platão acreditava que, sob a liderança de um rei filósofo, dotado do conhecimento
verdadeiro, poder-se-ia levar a Grécia à retomada dos seus ideais políticos, ou
até elevá-los a um ideal de perfeição. O rei filósofo, sendo detentor do saber e
conseqüentemente da arete
14
, podia legislar de forma justa, visando ao bem de
“todos”. E se o povo seguisse as propostas do rei-fisofo, a sociedade (a polis)
teria a possibilidade de se regenerar e suportaria as transformações às quais era
submetida (PLATÃO, 1977).
a casa do homem. O homem habita sobre a terra acolhendo-se ao recesso seguro do ethos. O
ethos é que torna a vida do homem mais aconchegante e torna possível ele viver em comunidade
de forma responsável. “A metáfora da morada e do abrigo indica justamente que, a partir do ethos,
o espo do mundo torna-se habitual para o homem”. O mundo se torna o mundo do homem,
onde ele sente-se em casa, pois nada lhe é estranho, mas sim familiar. “O domínio da physis ou
do reino da necessidade é rompido pela abertura do espaço humano do ethos no qual irão
inscrever-se os costumes, os hábitos, as normas e os interditos”. A segunda forma de
compreensão desse conceito de ethos (com épisilon inicial) “diz respeito ao comportamento que
resulta de um constante repetir-se dos mesmos atos”. O ethos nesse caso representa uma
constância no agir do homem que, superando o reino do natural, vai adquirindo o hábito de fazer o
bem (LIMA VAZ, 1988, p. 12).
14
A palavra areté (h(a) reth/, h=j) designa o mérito ou a qualidade pela qual algo ou alguém se
mostra excelente. Essa qualidade pode referir-se ao corpo e aplicar-se-ás às coisas, como terra,
vaso, móveis; pode referir-se à alma. Pode Ter o sentido particular de coragem ou atos de
coragem ou o sentido moral de virtude. A ela se prende aristós (a)risto/j,h/, o/n), superlativo da
agthós (a) gaqo/j, h/ o/n). Ambas as palavras podem ser usadas no mesmo contexto e para a
mesma finalidade (MARTINS SOUZA, 2003; ABBAGNANO, 1962).
32
Platão tentou formular um novo elo moral para a vida a fim de substituir os antigos
ideais da velha sociedade grega, rejeitados pelo individualismo da nova. A
reflexão de Platão inspirava-se no ideal de construir um Estado livre de
perturbões e de disputas egoístas dos indivíduos e das classes. Os fins que ele
desejava atingir não eram nem a democracia nem a liberdade, mas a harmonia e
a eficiência. De acordo com isso, propôs, na República, o famoso plano de uma
sociedade cuja população se distribuía em três classes principais,
correspondentes às faculdades dos indivíduos: a classe filosófica, devotada à
procura do conhecimento, cuja virtude é a sabedoria; a classe militar, devotada à
guerra, cuja virtude é a honra; a classe industrial, devotada ao comércio e aos
ofícios, cuja virtude é ganhar dinheiro. Se a classe filosófica conseguir governar,
se a classe dos soldados conseguir proteger e defender de acordo com a direção
da primeira e a classe dos artífices, obedecer às outras duas, mantendo-as, então
a justiça social será alcançada (BURNS, 1969, p.175).
A busca de Aristóteles foi caracterizar o homem como um ser político, teorizando
no sentido de aperfeiçoar as estruturas políticas e a ação dos políticos. Em sua
obra a Política, Aristóteles apresenta elementos sobre a estrutura e as funções do
governo, tratando principalmente dos aspectos mais amplos da teoria política.
Considerava o Estado como a instituição suprema para a consecução do bem-
estar dos homens e acreditava que, para a formação de uma sociedade virtuosa,
era necessário que os habitantes da polis tivessem recebido tais virtudes.
33
Aristóteles salienta que a virtude deve voltar-se para a vida prática, para a vida da
polis, para a ação política. Assim, a sociedade será melhor à medida que o
homem for melhor. Para ele, o bem é o alvo da vida feliz e que esse bem se
alcança com a prática das excelências; ninguém nasce virtuoso e o aprendizado
não ocorre teoricamente, ou seja, essa atitude vai sendo incorporada ao ser
humano que se dispõe para a areté. Com o treino e o tempo, o uso da disciplina
poderia levar o homem a tornar-se um ser virtuoso e, em conseqüência, a polis
seria virtuosa (ARISTÓTELES, 2002).
O filósofo baseia a sua ética no conceito de bem-estar ou de felicidade, definida
como atividade de acordo com a virtude. Mesmo tratando a virtude como uma
condição indispensável para a felicidade, considerava outras vantagens (saúde,
prosperidade, boa apancia, etc.) como coisas que contribuem para a sua
efetivação.
Platão e Aristóteles, de maneira geral, centralizavam suas reflexões no campo
especulativo, acreditando que o homem só se realiza verdadeiramente na vida
teórica, indispensável para a regeneração da sociedade, em particular da
realidade material à qual esses pensadores estavam se referindo, a sociedade
grega.
Embora Aristóteles se interessasse tanto quanto Platão pelo conhecimento
absoluto e pelos princípios eternos, sua filosofia apresentava aspectos diferentes.
34
Considere-se que Aristóteles era adepto do concreto e do prático. O corpo teórico
de Aristóteles é objetivo e científico, em oposição ao método filosófico
introspectivo de Platão, que procura a verdade na visão direta da razão, e a
confirmação dessa verdade na consciência do homem. Aristóteles procura a
verdade nos fatos objetivos da natureza e da vida social, tanto quanto na alma do
homem, e busca a confirmão primeiramente na consciência histórica da
espécie.
A atividade prática e material, e particularmente o trabalho, era
considerado no mundo grego como uma atividade indigna dos
homens livres e própria dos escravos. Ao mesmo tempo em que
se aviltava a atividade material manual, exaltava-se a atividade
contemplativa, intelectual. Ao grego antigo interessava
principalmente o domínio do universo humano, a transformação
da matéria social, do homem, para com ela criar e desenvolver
essa peculiar realidade humana, social, que é uma inovação no
mundo antigo: a polis. A polis era a expressão mais alta do
processo, ou “animal político” (VÁSQUEZ, 1977, p.17).
Em contraposição a esse pensar, as novas filosofias pregavam um saber voltado
para as questões individuais, marcando um rompimento com a tradição filosófica
clássica, ao abandonarem a preocupação com as questões puramente
especulativas e coletivas. A filosofia no período helenístico se converteu em uma
fonte espiritual que procurava iluminar as consciências, ajudar o homem
helenístico livre a viver e ensinar-lhe como ser feliz (LEVÊQUE, 1987). Todas as
maiores escolas de filosofia helenística aceitavam essa premissa e afirmavam
que a felicidade (em grego, eudaimonia) é a meta perfeitamente adequada de
uma vida feliz.
35
A filosofia tornou-se um abrigo, em que esse homem deveria encontrar um alento
para suportar as conturbações da vida material. Com um corpo sistematizado de
saberes, essas filosofias garantiam que a sua prática era a condição para uma
vida tranqüila, e o homem, se fosse sábio, observaria os seus preceitos; caso
contrário, estaria condenado a viver perturbado pelas agitações sociais.
A filosofia se apresenta agora como uma proteção contra a
destruição do homem que não encontra mais razões para viver
na sua função de cidadão. Ela pretende primeiramente encontrar
uma solução para o problema da felicidade e, [...] apesar de
diferenças evidentes, a resposta é a mesma: a felicidade está no
domínio sobre si própria de uma alma que contigente, consegue
atingir um estado de que se escapa do mundo, que se liberta da
indiferença (ataraxia para uns, apatia para outros) onde nada
mais a poderá atingir (LEVÊQUE, 1987, p.115).
Essas escolas, mesmo tendo identidade própria e apresentando distinção umas
das outras, assumem tros de proximidade, na medida em que apontavam para
um ideal de vida e de perfeição a ser seguido.
Essa orientação dotou a filosofia de um caráter quase doutrinário; aproximou-se
do espírito religioso ao indicar um caminho de perfeição a ser seguido. Em razão
disso, o filósofo passou a ser pregador moralista de um credo ético, um modelo
de líder a ser seguido, ao mesmo tempo em que se preocupava em inserir o
homem dos setores privilegiados em uma grande estrutura, ensinando-o a se
considerar como integrante desse universo e a viver em coencia com esse
cosmo.
36
A filosofia adquiriu um caráter “sagrado”, destinando-se a ensinar e a preparar,
por meio da pregação e do exemplo, a libertação moral, que encontrava na
renúncia ao mundo e à própria vida uma saída para os impasses da vida
individual na busca da felicidade (PADOVANI, 1968, p.48). O homem voltou-se
para o transcendental e para o eterno; a filosofia tornou-se uma preparação para
a vida e para a morte. Em síntese: de ética, tornou-se ascética.
Desse modo, a filosofia adquiriu um revestimento “espiritual” e “tepico” ao
apresentar elementos necessários à realização dos sonhos frustrados” do
homem e da sociedade em transformão. A filosofia se converte em uma
espécie de refúgio para os seus seguidores, apontando possíveis caminhos para
a serenidade.
2. 2. A BASE ROMANA
As conquistas romanas comam no século V a.C. e, já no século III a.C., toda a
Península Itálica se encontra em poder dos romanos. Esse processo
expansionista atinge maior dimensão quando foram anexadas, em seqüência, as
mais diversas regiões:
[...] Roma domina e inclui a totalidade dos países mediterrânicos,
limitado a leste pelo Eufrates, ao norte pelo Danúbio e pelo Reno,
37
a oeste pelas margens do Atlântico e ao sul pelo deserto do
Saara e pelas cataratas do Nilo. Até que, no século I a.C., o mar
Mediterrânico torna-se domínio romano (LENTSMAN, 1998,
p.72).
Com esse quadro, são grandes as transformões ocorridas, intensificam-se as
relações comerciais e surgem grandes fortunas. Aumenta consideravelmente o
número de escravos. Muitos deles pertencem ao Estado e se ocupam com a
construção de monumentais obras públicas, outros são propriedades de
particulares e trabalham no campo ou na cidade.
Essa expansão altera profundamente as tradições devido à influência estrangeira,
sobretudo do helenismo. A influência oriental também é marcante, fazendo-se
sentir no luxo dos costumes, nos governos cada vez mais personalistas e,
particularmente, na aceitação das suas religiões tidas como exóticas.
Os cultos começaram a penetrar em Roma logo no século III
antes da nossa era. A sua influência acentuou-se fortemente
durante o período da crise da República. O estabelecimento do
Império deu um novo impulso à sua difusão. E esses cultos não
eram professados pelos originários do Oriente. A renúncia à
atividade política e a tendência para o misticismo criavam um
clima favorável a esses cultos mesmo entre os autóctones da
metade ocidental do Império, sobretudo nas cidades. Os seus
habitantes, não apenas escravos e os pobres mas também as
classes dias, encontravam nas religiões orientais, com a sua
mitologia, os seus mistérios, os seus ritos teatralizados, uma
saída mesmo que ilusória para a sua vida sem esperança
(LETSMAN, 1998, p.91).
A anexação da Grécia ao Império, em 146 a.C., implicou a perda de toda a
esperaa de liberdade política para os gregos. Em contrapartida, a cultura grega
38
foi rapidamente assimilada pelos conquistadores, visto que, entre os
desdobramentos que marcaram a conquista desse povo, foi o conhecimento
direto da cultura grega que iria influenciar a cultura romana.
Conquistados pela vida cultural grega, os romanos passaram a buscar uma
formação grega integral. Já no fim da República (31 a.C.), as cidades gregas
tinham-se tornado centros culturais onde jovens romanos iam procurar
conhecimento e a prática da retórica e da filosofia (GRIMAL, 1999, p.24).
Era necessário para o romano saber grego bem: para estar
preparado, para fazer em público um discurso habilidoso com
figuras usadas por Demóstenes na assembléia de Atenas e com
citações de Homero e Eurípedes era essa a marca da pessoa
civilizada. Em parte como resultado da predominância do grego,
a vida civilizada significava vida citadina ainda mais
exclusivamente do que significara em tempos anteriores
(MEEKS, 1996, p.20).
Esse processo logo se fez notar em todas os aspectos da vida romana: na
religião, na política e, em especial, na introdução em Roma de doutrinas
filosóficas, até então pouco conhecidas pelos romanos, por o terem esses uma
tradição “especulativa” e por cultivarem a funcionalidade de suas instituições. Ao
assimilarem a cultura grega, os romanos não fizeram a sua pura reprodução ou
pia, mas demonstraram o seu poder criativo que se manifestou nos contornos
que atribuíram a esses conhecimentos, adequados à sua mentalidade prática
(PEREIRA MELO, 2003).
39
O que explica não terem recorrido às filosofias do período clássico, como as de
Platão e Aristóteles, era o fato de essas serem extremamente contemplativas e
metafísicas. Os romanos procuraram servir-se das filosofias helenísticas,
condizentes com a sua cultura que valorizava a austeridade e o espírito prático
voltado para a ação.
No período republicano (VI a.C.- I a.C.), o estoicismo parece ter sido a filosofia
predominante, pois a sua concepção cosmopolita
15
favorecia o sistema romano
de governo. Em face disso, o estoicismo teve um grande mero de seguidores,
particularmente administradores, afinados com sua doutrina de participação na
vida política.
O seu encarecimento ao dever, a autodisciplina e a sujeição à ordem natural das
coisas harmonizavam-se com as antigas virtudes do romano e com seus hábitos
conservadores. Além disso, sua insistência às obrigações cívicas e sua doutrina
de cosmopolitismo tocavam diretamente a mentalidade política romana e o
orgulho de um império mundial.
[...] a Urbis,
16
voltada desde sempre para a política e o direito,
assimila do Estoicismo [...] principalmente a idéia de virtude
(“autodisciplina, autodomínio”), pedra angular da moral romana
(NOVAK, 1999, p.266).
15
A origem da palavra é grega e significa cidadão do mundo. Em grego, mundo se diz cosmos e
esse período é chamado de cosmopolita (Chaui, 1999, p.43).
16
Significa cidade, em língua latina (Novak, 1999).
40
Com a decadência da República (31 a.C.) e a implantação do Império (27 a.C.), a
estrutura política romana foi levada a reorganizar-se, suprimindo a maioria das
instituições que caracterizavam a primeira. Inaugura-se um novo período da
hisria de Roma, dedicado à organizão de uma vasta burocracia, formada
tanto pela antiga aristocracia patrícia, quanto pelos comerciantes enriquecidos
com a expansão territorial.
O que essencialmente se propunha era criar instituições capazes
de revelar e tornar eficazes as forças reais da cidade romana. [...]
Assim, as reformas empreendidas depois da vitória em que
criavam uma verdadeira reestruturação do Estado parecem ter
sido ditadas por vários princípios: nomear quadros estáveis para
assegurar gestão dos serviços essenciais do Império. [...] Esta
política visava criar uma classe “média” cujo aparecimento viria
modificar profundamente a estrutura da sociedade romana
(GRIMAL, 1999, p.53-54).
Nesse quadro, o imperador assume, de fato, a quase totalidade dos poderes,
sobrepondo-se tanto ao Senado como às demais instituições políticas que
existiam na República. Com novos tempos, promove-se uma alteração na
mentalidade do cidadão romano que, perdendo sua liberdade política e as
atividades próprias do sistema republicano, teve que migrar para sua
individualidade e ao que estava relacionado à sua privacidade.
Segundo Giovanni Reale (1990, p.65), enfraquecidos notavelmente os laços com
o Estado e a sociedade, o indivíduo buscou a própria perfeição na interioridade da
sua consciência, criando assim uma atmosfera intimista.
41
Para atender as características particulares desse momento histórico, o novo
homem livre do Império Romano voltou-se para a esfera do privado, ao mesmo
tempo em que buscou uma filosofia que lhe mostrasse o caminho da salvação e
da libertação espiritual.
Nesse contexto, o epicurismo ganhou espaço entre os romanos, porque se
apresentava com uma marca fundamental: a busca da individualidade, a
preocupação com os interesses da vida interior, apontando caminhos para esse
homem que havia perdido o seu referencial de coletividade.
Paralelamente a esse interesse pelo epicurismo, o estoicismo promove a sua
adaptação aos novos tempos, ao abandonar muitas das instruções de seu
fundador Zenão
17
, para atender as especificidades do quadro que se colocava no
mundo romano desse momento histórico (27 a.C.–200 d.C.). Foi então que a
filosofia romana atingiu sua feição característica. Com isso, o estoicismo perdeu
significativamente sua dimensão política e converteu-se, também, em uma
meditação sobre a morte e um desapego das coisas materiais, com vista a
preparar o homem para o cultivo da alma.
17
Filho de Mnasea, nasceu em Cício, na ilha de Chipre, cidade que recebera colonos fenícios,
cerca de 333-332 a.C. Zenão provavelmente era também de origem semita. Transferiu-se para
Atenas aos 22 anos e começou a ensinar na stoa ou colunata, nome dado à sua escola. Na sua
juventude, foi influenciado pelo filósofo cínico Crates, e essa influência aparece na sua rejeição
das convenções sociais não sustentadas pela razão. O seu ensinamento mereceu grande estima
e respeito, por causa do elevado senso moral, que foi uma marca fundamental de sua filosofia.
Zenão permanece em Atenas até sua morte, em 262 a.C. (MARTINS SOUZA, 2003).
42
2. 3. A Instância Judaica
Com a morte de Alexandre (323 a.C.), houve uma preocupação por parte dos
seus herdeiros de preservar seu império. Tentativa infrutífera, à medida em que o
império foi dividido entre três de seus generais: um obteve as possessões
européias, outro as africanas, e o terceiro as possessões asiáticas. A parte
européia ficou nas mãos de Antígono
18
, Ptolomeu
19
obteve o Egito e fez de
Alexandria a sua capital; Seleuco
20
, que conseguiu a Ásia, após muitas
campanhas, fixa Antioquia como a sua principal cidade.
Inserida nesse contexto político, a Palestina passou a ser submetida ao domínio
de sucessivos governos. Primeiramente, pertenceu aos ptolomeus
21
(321-200
18
Foi um dos generais que sucedeu a Alexandre Magno, na divisão do império. Antígono
Monoftalmos ficou com a parte européia do império. Ele pretendia tornar-se rei do império de
Alexandre, promoveu a união das forças de Ptolomeu, Lisímaco, governante da Trácia, e
Cassandro, que reivindicava a Macedônia. A coalizão resultou na guerra que durou de 315 a 31
a.
.
C. (OTZEN, 2003).
19
Um dos mais influentes generais de Alexandre o Grande, Ptolomeu I Soter (em grego,
“salvador”) foi o fundador da dinastia macedônica. Ptolomeu nasceu na Macedônia por volta de
366 a.C. Acredita-se que foi educado na corte, tornando-se amigo de Alexandre. Exilado em 337,
retornou após a coroação de Alexandre, no ano 336. Posteriormente , Ptolomeu participou de
campanhas na Europa, na Índia, no Afeganistão e no Egito. Após a morte de Alexandre, em 323,
Ptolomeu propôs que as satrapias (províncias do império) fossem divididas entre os generais.
Ptolomeu estendeu seu domínio ao Chipre à Síria e a regiões costeiras da Anatólia. Consolidou e
expandiu seus domínios. Adotou o título de rei do Egito no ano 304 a.C. Morreu no ano 283, no
Egito, e o povo desse país passou a considerá-lo uma divindade (Encyclopaedia Britannica do
Brasil, Publicações LTDA. Vol. 13, C. Melhoramentos, São Paulo: 1997).
20
Seleuco nasceu em Europos, Macedônia, entre 358 e 354 a.C, filho de Antíoco, general de
Felipe II da Macedônia, pai de Alexandre o Grande. Participou da conquista do imrio persa
como oficial de Alexandre e, em 321 a.C, quando o império foi dividido, coube-lhe a satrapia da
Babilônia. Obteve vitórias, com Antígono, com o qual posteriormente se desentendeu. Em 312
a.C., com uma pequena armada, Seleuco reconquistou a babilônia e deu início à dinastia
selêucida. Com o nome de Seleuco I Nicator, o vencedor”, governou segundo modelos
helenísticos. Devido a conflitos com Ptolomeu, por volta de 300 a.C., transferiu a capital do reino
da cidade de Selêucia, no Tigre, para Antioquia, no Oriente (Encyclopedia Britanica do B.P. Ltda,
1997).
21
Povo pertencente ao reino Ptolomaico, no Egito. Entre os anos 300 e 2000 a.C. , a Palestina foi
dominada pelos ptolomeus egípcios. No entanto, os ptolomeus não instalaram um governador na
43
a.C.); em seguida, dependeu dos selêucidas
22
sírios (200-164 a.C.) e, depois,
passou a ser dominada pelos romanos (SÁNCHEZ, 1996, p.10).
Essa agitada vida política não chegou a afetar, pelo menos ao período romano,
a cultura da Palestina, que permaneceu fiel ao seu Deus e à sua tradição que se
fundava no estudo e na prática dos preceitos do Antigo Testamento, fundamentos
da sua existência individual e social.
O quadro começou a se alterar com a Diáspora
23
, que levou aproximadamente
cinco milhões de judeus a se instalaram fora da Palestina.
A Diáspora foi um movimento que se formou longe da Palestina
nos tempos helênico-romanos, vários foram as razões para que
ocorresse: as dificuldades políticas, a perseguição religiosa, os
conflitos entre vários grupos da sociedade judaica, a possível
superpopulação na Palestina e as melhores possibilidades
econômicas no exterior. Com todos estes acontecimentos, as
comunidades sobreviventes da diáspora cresceram nos séculos
que antecederam o início do cristianismo (OTZEN, 2003, p.72).
Palestina, sendo o sumo sacerdote representante dos judeus junto ao rei ptolomaico no Egito. No
ano 220 a. C. , os ptolomeus perderam o domínio na Síria e na Palestina, sendo derrotados pelo
rei selêucida Antíoco III (OTZEN, 2003, p.22-23).
22
Dinastia real síria existente entre 312 a 64 a.C., descendentes de Seleuco, general de
Alexandre. Posteriormente, governado pelo rei selêucida Antíoco III. Por volta do ano 2000 a.C.,
os selêucidas assumiram o poder na Palestina, apoiando o partido helenista em relação ao
domínio da sociedade judaica (OTZEN, 2003, p.25).
23
Originalmente significava conjunto de comunidades de judeus vivendo fora da Judéia, depois da
dispersão. No século I, a população judaica da Diáspora era duas vezes superior à da Judéia. Em
Alexandria, os judeus constituíam aproximadamente 40% da população. Em todo o Egipto, o seu
número eleva-se a mais de um milhão; em Roma, a várias dezenas de milhares. Os judeus,
nesses países e cidades, estavam distribuídos por todas as classes da sociedade. Essa dispersão
dos judeus por território imenso e nas grandes cidades favoreceu muito o desenvolvimento do
cristianismo, sobretudo durante a sua fase inicial (LENTSMAN, 1988, p.106).
44
Esse contato mais próximo com o mundo que os judeus chamavam de pagão foi
decisivo para a assimilação de valores, de conceitos e de categorias alheias à sua
cultura. Por seu turno, os que permaneceram na Palestina Terra Prometida”
(reino do sul), aproximadamente um milhão, mantiveram-se fiéis ao seu Deus
único e às tradições da sua Lei, não aceitando as influências externas. Qualquer
ão contrária a essa posição, como a imposta por Antíoco Epifânio
24
, aliciou
sérias convulsões àquela sociedade.
Una aguda crisis,cuyo eco aparece en el libro de Daniel y en la
que se enfrentaron dramáticamente las fuerzas religiosas de
Israel y el helenismo. Los soberanos seléucidas de Siria
dominaban entonces Palestina; Anoco IV Epífanes (175-164)
aplicó sin contemplaciones la misma política de helenización
radical empleó tanta torpeza como brutalidad, mostrándose
incapaz de comprender la especial posición en que se hallaban
los judíos y las exigencias derivadas de su monoteísmo. Las
divisiones internas del pueblo judío le proporcionaron el pretexto
para una intervención armada; saqueó el Templo y suspendió los
sacrificios del culto; después, prohibió los ritos tradicionales, la
circuncisión y la observancia de la ley; perseguió y dio muerte a
quienes continuaban fieles a ellos y, por último, instaló en el
Templo la abominacón de la desolación”, es decir, el culto
idolátrico a Zeus (BENOIT, 1974, p.6).
25
24
Rei selêucida (175-5 a.C.), tomou o trono de Antíoco III. Ele era simpatizante da cultura
helenística. Possivelmente, Antíoco foi compelido a lidar severamente com elementos
recalcitrantes da população. [...] embora a proibição contra a prática do culto judaico, que está em
I Mc 1, 45-51, tenha sido subscrita pelo sumo sacerdote Menelau e seus adeptos entre judeus
helenizados de Jerusalém (OTZEN, 2003, p.36-47).
25
Uma aguda crise, cujo eco aparece no livro de Daniel e no que se enfrentou dramaticamente as
forças religiosas de Israel e do helenismo. Os soberanos selêucidas da Síria dominavam então a
Palestina; Antíoco Epifânio IV (175-164 a.C.) aplicou sem consideração a mesma política de
helenização radical, empregou tanto torpeza como brutalidade, mostrando-se incapaz de
compreender a especial posição em que se achavam os judeus e as exigências derivadas do seu
monoteísmo. As divisões internas do povo judeu proporcionaram o pretexto para uma intervenção
armada; saqueou o Templo e suspendeu os sacrifícios do culto, depois proibiu os ritos
tradicionais, a circuncio e a observância da lei; perseguiu e deu morte a quem continuava fiel a
eles e, por último, instalou no Templo a abominação da desolação”, a dizer o culto idolátrico a
Zeus (BENOIT, 1974, p. 6).
45
Contra os costumes estrangeiros impostos por Antíoco Epifânio, um povo inteiro
armou-se em uma guerra santa, a dos Macabeus
26
, em defesa das tradições.
Dessa forma, o povo judeu não aceita, de forma pacífica, as mudanças, visto
contrariarem sua tradição.
A partir da deportação para o exílio, o povo judeu teve atitudes
diferentes para com a herança israelita comum. [...] Enquanto os
deportados do reino do norte (Israel) foram simplesmente
incorporados em seu novo ambiente, os de Judá tinham apenas
um objetivo: conservar a herança de seus pais; devotar-se ao
culto do Deus tradicional de Israel, Iahweh; rejeitar toda influência
pagã; e passar o tempo de exílio como uma forma de
compreender sua triste sorte a que pudessem retornar
definitivamente. Ao mesmo tempo, os de Judá que
permaneceram na Palestina estiveram num grau moderado, às
influências religiosas estrangeiras durante esse período crítico
(OTZEN, 2003, p.17).
Apesar da resistência dos setores tradicionais da sociedade judaica, com o
passar do tempo, os judeus acabaram adotando práticas semelhantes às das
cidades helenísticas (PIERRARD, 1983, p.14-15).
Esses novos ares hauridos da helenização não chegaram a afetar a permanência
da sua herança cultural. Exemplifica esse fato Jerusalém estar no coração de
todos, cidade onde se localizava o seu Templo, a morada do seu Deus único, o
refúgio de um monoteísmo ético, que dava a cada hebreu, por mais pobre que
fosse, a consciência de uma superioridade indestrutível. Na relação entre esse
Deus-Iahweh e seu povo, preservaram um laço concreto, a Torá Lei de Moisés
26
Grupo de judeus que não viam com bons olhos a cultura helênica dentro do território de Israel.
Em linhas gerais, esse grupo era tradicionalista e nacionalista, pois pregava a presença das
tradições de seus pais e recusava a cultura grega (NOGUEIRA, 2003).
46
ou Pentateuco, coletâneas de preceitos religiosos e morais, transmitidos
oralmente de geração em geração, e que garantiam a fidelidade à tradição legada
pelos antepassados.
Com o fim do domínio dos selêucidas, no ano 63 a.C., a Palestina passou para a
tutela do Império Romano, que adotou uma política de tolerância às práticas
hebraicas, bem como concedeu vários privilégios, não para aos hebreus da
Diáspora, mas tamm para os da terra natal. A estrutura montada pela
administração romana levou os judeus a terem, além de um maior contato com os
“pagãos”, cargos de certo destaque nessa mesma estrutura, o que oportunizou a
assimilação de aspectos dela.
Significativa nesse sentido era a possibilidade de uma comunidade hebraica, em
uma cidade romana, poder reivindicar a proteção do imperador. E até podia
acontecer que, por recompensa por algum serviço especial prestado ao exército
ou à administração romana, obtivesse a cobiçada civitas romana, sem
comprometer a lealdade à sua religião (MEEKS, 1992, p.29). Em face disso, antes
do século primeiro da era cristã, o Judaísmo já tinha sido beneficiado pelo
entusiasmo dos romanos pelas religiões orientais (JOHNSON, 1999, p.19).
A tolerância das religiões estrangeiras, própria da cultura
helênico-romana, beneficiava os judeus. Além, do mais, as
religiões orientais muitas vezes fascinavam os ocidentais, tanto
que alguns se tornaram prosélitos da judaica (OTZEN, 2003
p.77).
47
Outro fator relevante nesse processo de aproximão foi a língua grega (koiné)
27
,
que era falada em todos os territórios romanos, inclusive na Palestina, embora
mais utilizada entre os da Diáspora, tornando-se um elemento facilitador no
diálogo entre os pagãos e os judeus (JAEGER, 2002, p.16).
Desse modo, os hebreus da Diáspora foram os que primeiro vivenciaram essa
tendência de assimilação dos costumes clássicos. Aos poucos, foram
consolidando e promovendo mudanças na sua maneira de entender a cultura do
outro e, particularmente, o fenômeno religioso. O primeiro grande esforço que se
pode verificar nesse sentido foi a tradução do Antigo Testamento para o grego, a
Versão Setenta
28
, ao que parece, sob o cuidado das autoridades de Jerusalém,
visando às comunidades da Diáspora (SÁCHEZ, 1996, p.38).
Para satisfacer las necesidades religiosas del judaísmo de la
diápora, la biblia fue traducida al griego; ésta es la versión que se
llamó de los Setenta, debido a la creencia tradicional de que
había sido redactada por setenta doctores en el reinado do
Ptolomeo Filadelfo (285-247); de hecho nes una larga obra, que
sin duda se tardó más de un siglo en realizar. La citada versión
se impuso pidamente en la liturgia de las sinagogas de la
diápora, donde gozaba de una autoridad idéntica a la original
hebraico; al mismo tiempo servió par poner el texto sagrado al
alcance de los paganos, convirtiéndose así en un eficaz
instrumento de propaganda religiosa (BENOIT, 1972, p.23).
29
27
Significa “comum” e designa a língua única, comum a todos, que substitui, após as conquistas
de Alexandre Magno, a pluralidade dos dialetos gregos. Essa língua, mais simples do que o grego
clássico e mais flexível na absorção de elementos novos, tornou-se instrumento indispensável
para a comunicação dos povos tão diferenciados que constituíam as monarquias helenísticas
(Biblical Languagens. Página: Biblical Languagem. Htm).
28
Tradução do Antigo Testamento feita em Alexandria no século II a.C. Conta a lenda que nela
trabalharam 70 rabinos com tanta dedicação e precisão que suas respectivas versões preparadas
independentemente coincidiram completamente (OTZEN, 2003).
29
Para satisfazer as necessidades religiosas do judaísmo da diáspora, a Bíblia foi traduzida para o
grego; esta é a versão que se chamou Setenta, devido a crença tradicional de que havia sido
escrita por setenta doutores no reino de Ptolomeu Filadelfo (285-247); de fato é uma grande obra,
48
Segundo Paul Johnson (1999, p.26), pode-se pensar que essa adaptação grega
ao Antigo Testamento tinha uma perspectiva expansionista e missionária
desconhecida na versão original. Encontram-se, em seu texto, reflexos de uma
mente mais aberta, pois, ao utilizar a ngua grega, outros fatores manifestamente
gregos penetraram no mundo judeu.
Para Marcel Simon e André Benoit, essa tradução representa um testamento da
influência grega no pensamento judaico:
Essa tradução constitui um testamento da influência grega no
pensamento judaico: um testamento, da penetração das
categorias de pensamento grego no judaísmo da diáspora, na
medida em que tendia a eliminar ou atenuar tudo que pudesse
chocar um pagão esclarecido, restringindo os antropomorfismos
do texto hebraico, espiritualizando a imagem de Deus ali contida
e exprimindo figuras de estilo e noções especificamente semitas
em termos e conceitos tomadas às escolas filosóficas gregas. -
Dessa forma, abriu caminho a toda uma corrente de pensamento
judaico, caracterizado essencialmente pela ntese original que
combinaram os dados de revelação bíblica e os princípios da
filosofia (BENOIT, 1987, p.74).
Esse processo de helenização da cultura judaica se manifestou não só nessa
tradução do Antigo Testamento, mas, tamm, no pensamento de alguns
teóricos, como Fílon
30
, que empregou, em seus escritos, muitas formas literárias
que sem vida demorou mais de um culo em realizar. A citada versão se impôs rapidamente
na liturgia das sinagogas da diáspora, onde gozava de uma autoridade idêntica ao original
hebraico; ao mesmo tempo serviu para pôr o texto sagrado ao alcance dos pagãos, convertendo-
se assim em um instrumento de propaganda religiosa (BENOIT, 1972, p.23).
30
Era judeu de Alexandria, falava grego, era membro de família nobre que desempenhava papel
nos negócios cívicos; recebera ampla educação e tinha vasto conhecimento da filosofia grega;
49
gregas (MEEKS, 1987, p.74). lon, pertencente a setores privilegiados hebreus
da diáspora em Alexandria, interessado em filosofia grega, enfatizou que a
religião foi seu ponto de partida para a produção dos seus escritos. Por meio de
métodos alegóricos, reinterpretou as narrativas e as leis bíblicas, transformando-
as em idéias abstratas sob a influência da filosofia.
Na elaboração de seu discurso, como foi mencionado, Fílon
usou o método alegórico, para a transmissão dos princípios que
estavam contidos no Pentateuco. Sem abrir mão dos
ensinamentos fundamentais do judaísmo, seguiu, em linhas
gerais, o pensamento das principais correntes filosóficas do
Império Romano (SÁNCHEZ, 1996, p.42).
Seu pensamento foi permeado por um dualismo acentuado, e as idéias platônicas
e as estóicas interpõem-se em suas proposições. Ele se constitui no
representante típico dos hebreus helenizados, que organizaram a doutrina,
extraída das Escrituras em um sistema teológico e filosófico. Esse seria o sistema
que iria preparar o caminho para a teologia cristã.
Os que viviam na Palestina, mesmo com a rejeição aos costumes externos e
mantendo-se fiéis às suas leis, tiveram que aprender a conviver com as
transformações sociais que aconteciam no mundo romano. Por mais apegados
que fossem às suas tradições, não era mais possível permanecer isento
totalmente ao novo, ou seja, ao encontro das culturas Ocidental e Oriental, o que
viveu aproximadamente de 25 a.C. até 45 d.C. Sua vida religiosa era centrada nas escrituras
judaicas, particularmente no Pentateuco, que ele lia em grego, na versão dos Setenta; [...] A maior
parte de seus extensos escritos consiste em comentários alegóricos sobre o Gênesis e o Êxodo,
com alguns tratados sobre tópicos particulares como criação e providência, biografias de alguns
teóricos bíblicos (STEAD, 1999, p.60).
50
iria refletir nas futuras manifestações culturais e religiosas que estavam sendo
gestadas naquela sociedade, a exemplo do cristianismo.
FIGURA 2 – Paulo (mosaico, século VI. Ravena, capela de São Pedro Crisólogo)
In: FABRIS, 2003.
51
3. O CRISTIANISMO E A CULTURA CLÁSSICA
Mesmo tendo surgido em instâncias distintas, o cristianismo, em princípio,
apareceu como um movimento que dizia respeito apenas à vida religiosa hebraica
e que era impraticável fora da sua esfera de ação (GUIGNEBERT, 1988, p. 29).
Não obstante, as influências recebidas acrescentam um dinamismo renovador e
expansionista que possibilitou a superação de suas limitações regionais.
Nesse sentido, na compreensão do nascimento do cristianismo, é conveniente
considerar essa influência, bem como as condições que possibilitaram ao
Kerygma cristão, ou seja, aos contdos básicos da fé cristã, ultrapassar o
isolamento local, penetrando no mundo circundante, que era um mundo unificado
pela civilização romana (JAEGER, 2002, p.15).
Significativas nessa direção o as considerações de Friedrich Engels
31
, ao
apontar a necessidade de, ao proceder a um exame do cristianismo, levantar não
somente elementos hebraicos, mas também os greco-romanos, pois foram eles
que abriram ao cristianismo o caminho de religião universal e independente do
judaísmo que lhe deu origem.
31
Nasceu em Barmen, cidade renana da Prússia, em 28 de novembro de 182. Pertencia a uma
família de abastados industriais, de iias liberais e fé protestante. Protetor e principal colaboraor
de Karl Marx, Engels desempenhou papel de destaque na elaboração da doutrina comunista. De
grande capacidade intelectual, conhecia muitas línguas e especializou-se em temas como as
nacionalidades, política internacional, assuntos militares e ciências. Teve uma brilhante carreira
jornalística. Ingressou no círculo hegeliano de Berlim, onde adquiriu fama de dialético profundo e
incisivo, sobretudo por seus ataques à religião. Friedrich Engels escreveu obras que contribuíram
para a sistematização do materialismo dialético histórico. Engels morreu em Londres, em 5 de
agosto de 1895 (BRITANNICA DO BRASIL, ENCYCLOPPEDIA).
52
Uma lenda querer considerar que o nascimento do cristianismo
dependeu integralmente do judaísmo e foi arrancado da Palestina
para conquistar o mundo por meio de um dogma e uma ética
esboçada em largos traços (ENGELS, 1969, p.20).
Nessa composição, fundamentais foram as comunidades cristãs que receberam
influências helênicas e que se afastaram das orientações doutrinárias da
“comunidade mãe de Jerusalém”, que se julgava depositária dos ensinamentos de
Jesus.
3. 1. AS PRIMEIRAS COMUNIDADES DE FÉ
O processo organizacional cristão esteve profundamente marcado por duas
questões espaciais significativas: a dos cristãos que viviam na Palestina e a
daqueles que viviam fora do berço do cristianismo, esta última a principal
preocupação deste trabalho, espaço decisivo para os destinos da nova fé.
O primeiro grupo, constituído pelos judeus que residiam na Palestina, com pouco
contato com as tradições greco-romanas, eram apegados às tradições do
judaísmo. Esses cristãos constituíam a comunidade mãe de Jerusalém”, que
ficou conhecida como comunidade judaico-cristã. Entre seus principais líderes,
estavam os primeiros discípulos de Jesus, como Pedro, João e Tiago, que eram
os pilares dessa facção, fiéis a algumas práticas judaicas: oração, culto oficial no
templo, circuncisão. Consideravam-se um grupo especial dentro de seita primitiva
53
e reivindicavam a condição de serem os continuadores do movimento de Jesus,
motivo de serem contrários a abandonar totalmente a sua vinculação com o
judaísmo e com as tradições dos seus ancestrais.
Distinguiam-se dos demais cristãos não pelo ritualismo, mas ainda por traços
doutrinários, em particular, por uma cristologia acentuada. Continuavam a cumprir
suas prescrições com rigor e limitavam-se a dar um nome ao Messias anônimo,
objeto da esperança judaica. Segundo Louis Rougier, a primeira comunidade de
Jerusalém não passava de uma pequena seita judaica que aguardava a chegada
da Parusia, ou seja, a segunda vinda de Jesus.
O segundo grupo, que constituía a comunidade cristã-helenista, era formado
pelos hebreus que viviam em territórios fora da Palestina e que haviam tido
contato maior com os costumes pagãos ou, ainda, aqueles que, mesmo na
Palestina, por terem habitado algum tempo fora do seu território, foram sendo
influenciados pelas culturas autóctones (SÁNCHES, 1996, p.13-14). Esse
segundo grupo formava comunidades mais abertas, relativizando a tradição
defendida pelo primeiro grupo. Segundo José Bortolini (2001, p.15), esses
cristãos haviam adotado certa cultura grega e dispunham, em Jerusalém, de
sinagogas particulares, onde os seus textos sagrados eram lidos em grego.
Ao utilizar os recursos da língua grega, o cristianismo assimila
todo um mundo de conceitos, categorias de pensamento,
metáforas herdadas e sutis conotações de sentido. É evidente que
54
existe uma rápida assimilação da língua pela proximidade do
cristianismo desde sua origem (JAEGER, 2002, p.17).
O papel significativo desses cristãos na consolidação da nova fé, a que o autor
dos Atos dos Apóstolos fez menção, relaciona-se às suas características
helenísticas. Era um pequeno núcleo de judeus da diáspora cuja língua ordinária
era grega e que se estabeleceram em Jerusalém.
Naqueles dias, aumentando o número dos discípulos, surgiram
murmurações dos helenistas contra os hebreus, Isto porque,
diziam aqueles, suas viúvas estavam sendo esquecidas na
distribuição diária (BÍBLIA, N. T., Atos dos Apóstolos, 6:1).
O mesmo autor descreveu a influência desse grupo nas comunidades que se
formavam sob os costumes helesticos. Nesse contexto, deve ser entendida a
instituição dos sete diáconos helenistas que tinham bons nomes gregos.
Os doze convocaram a multidão dos discípulos e disseram: “Não
é conveniente que abandonemos a Palavra de Deus para servir
às mesas. Procurai, antes entre vós, irmãos, sete homens de boa
reputação, repletos de espírito e de sabedoria, e nós os
encarregaremos desta tarefa. Quanto a nós, permaneceremos
assíduos à oração e ao ministério da Palavra”. A proposta
agradou a toda multidão. Escolheram Estevão, homem cheio de
e do Espírito Santo, Felipe, Prócoro, Nicanor, Timon,
Pármenas e Nicolau, prosélito de Antioquia (BÍBLIA, N. T., Atos
dos Apóstolos, 6:2-4).
Essa instituição parece ter sido resultado de uma necessidade que se fazia sentir
nas próprias comunidades nascentes, como o problema estabelecido entre os
dois grupos no concernente ao atendimento às viúvas e o anúncio da Palavra
55
entre os helenistas. Esse reconhecimento das comunidades cristã-helênicas
determinou os novos rumos da doutrina nascente.
Encarregados de velar pelos membros das comunidades criss-helênicas, a
maior parte das suas exortações eram feitas na língua grega (koiné)
32
.
A ngua e a cultura constituem, desde o início, o primeiro
elemento de distinção no interior da comunidade dos novos
crentes. [...] De um lado, os judeus-cristãos, isto é, os crentes de
língua hebraica ou aramaica; de outro, os fiéis judeus de língua
grega (PIERINI, 1998, p.52).
Longe de se limitarem ao “serviço das mesas”, da subordinação aos apóstolos,
logo se distinguiram como pregadores revisionistas do cristianismo, o que
despertou a hostilidade de algumas sinagogas de Jerusalém. Outro problema
desencadeado por eles e que atinge dimensões maiores, por se tornar uma
discussão blica, diz respeito à interpretação da Lei mosaica e às prescrições
cultuais do Templo.
Dentre o grupo dos Sete, destaque especial recebeu Estêvão
33
, conforme afirma
o autor dos Atos dos Apóstolos, na sua exortação no Sinédrio
34
, onde fez uma
32
Língua grega simplificada (koiné, língua comum), adotada por Roma como segunda língua. Foi
em grego que se escreveu todo o Novo Testamento, e era em grego que circulavam as epístolas
do apóstolo Paulo e de outros apóstolos. Essa língua veio a ser a primeira da Igreja.
Grande massa do povo judaico se inclinava menos do que outras nações à aprendizagem de
línguas estrangeiras. Era menos em relação aos judeus que viviam na Palestina num meio
helenizado, onde logo o grego se tornou a língua de preferência ao egípcio ou a outras línguas
vernáculas. Mas também na Palestina o grego era entendido e usado no corcio e nos negócios,
mesmo pelos menos educados (S. LIEBERMAM, apud JAEGER, 2002, p.18).
33
Um dos componentes da instituição dos sete diáconos. Ele era um dos representantes do grupo
dos judeus helênicos. Estevão resume a história de Israel, mostrando o projeto de Deus, que se
alia com o povo para construir a história em direção à vida e à liberdade.
56
profissão de fundamentada em sua compreensão do que acreditava ser a
“Sagrada Escritura”, em particular no que se refere à pessoa de Jesus Cristo.
No fundamental, Estevão faz uma retrospectiva da história hebraica desde Abraão
(v. 7,2-8), passando por José (v. 9-19), Moisés (v. 20-44), Josué (v. 45), até Davi
(v. 45-46) e Salomão (v. 47). O tema central da recapitulação é que Deus
peregrina com os patriarcas, caminha com o seu povo no êxodo e só admite
como morada uma tenda, feita conforme dado pelo criador a Moisés (PAULO
NOGUEIRA, 2003, p.107).
Repassando as etapas da história do povo hebreu, Estevão destaca que os
destinatários da lei mosaica de fato não a puseram em prática e, no que diz
respeito à construção do templo, demonstra ser estranho ao plano de Deus
(FABRIS, 2003, p.13), pois o Altíssimo não mora em casa feita por mãos
humanas” (BÍBLIA, N. T., Atos dos Apóstolos, 7: 48). Segundo Josef Holzner
(1994, p.34), baseando-se nos Profetas, Estevão destacou primeiro que o
Messias devia sofrer e morrer e, a seguir, demonstrou que Jesus Crucificado era
justamente o servo sofredor de Javé, descrito por Isaías.
O sumo sacerdote perguntou: As coisas são mesmo assim?” E
ele respondeu: Irmãos e pais ouvi. [...] Homens de dura cerviz,
incircuncisos de coração e de ouvidos, vós sempre resistis ao
Espírito Santo! Como foram vossos pais assim também vós!
Matara os que prediziam a vinda do Justo, de quem vós agora
34
Entre os antigos judeus, tribunal, em Jerusalém, formado por sacerdotes, anciãos e escribas, o
que julgava questões criminais ou administrativas referentes a uma tribo ou a uma cidade, os
crimes políticos importantes, etc.
57
vos tornastes traidores e assassinos, vós, que recebestes a Lei
por intermédio de anjos, e não a guardastes! Ouvindo isto
tremiam de raiva em seus corações e rangiam os dentes contra
ele. Estevão, porém, repleto do Espírito Santo, fitou os olhos no
céu e viu a glória de Deus, e Jesus, de pé, à direita de Deus. Eles
porém, dando grandes gritos, taparam os ouvidos e precipitaram-
se a uma sobre ele. E, arrastando-o para fora da cidade,
começaram a apedrejá-lo (BÍBLIA, N.T., Atos dos Apóstolos, 7:1-
58).
O mesmo Josef Holzner (1994, p.35) enfatiza que Estevão ataca a interpretação
judaica da Lei. A Lei e o Templo, os pilares da nação hebraica, não passavam de
simples etapas passageiras na história, e que eram elementos que consistia em
dificultar todo o acesso a essa perspectiva geral da história da humanidade.
Estevão, nesse momento, apresenta o caráter provisório do Templo e da Lei,
divergindo com a tradição comum e aceita entre os hebreus.
Ao fazer críticas à Lei e aos costumes considerados “sagrados”, Estevão levou
alguns membros da Sinagoga dos Libertos
35
a indignarem-se contra ele. Não
conseguindo sobreporem-se a essa exortação, acusam-no de blasfemar contra
Moisés e contra Deus, motivo para ser levado ao Sinédrio para julgamento.
O autor dos Atos dos Apóstolos (6:13-14) relata da seguinte forma as acusações
a Estevão:
35
A expressão “Sinagoga dos Libertos” não tem sentido claro. Presume-se que sejam
descendentes de judeus que, uma vez escravizados e levados a Roma por Pompeu, em 63 a.C.,
tenham sido libertados, regressando a Jerusalém e formando uma sinagoga. O fato de esses
judeus terem vindo da diáspora não os torna desalinhados em relação ao judaísmo oficial de
Jerusalém (NOGUEIRA, 2003).
58
As testemunhas foram incisivas na acusação contra Estevão:
“Este homem não cessa de falar contra o lugar santo e contra a
Lei; porque o temos ouvido dizer que esse Jesus, o Nazareno,
destruirá este lugar e mudará os costume que Moisés nos deu
(BÍBLIA, N. T., Atos dos Apóstolos, 6: 13-14).
De modo geral, para os grupos tradicionais, a mensagem de Estevão
representava a subversão da Lei, dos costumes, das estruturas consideradas
sagradas (Templo) e a legitimidade pela tradição.
O julgamento de Estevão, em função da sua posição helenista, pode ser
entendido como uma ação das forças reacionárias que o aceitavam as
transformações desencadeadas que o dcono colocava na ordem do dia
(PEREIRA MELO, 2000).
La tensión entre los dos grupos jerosolimitanos se puede explicar
por el consevadurismo de los creyentes hebreos jedocristianos,
que siguen ciertas prácticas de la Ley Frente a éstos, los
jedeocristianos helenistas toman una actitud crítica frente a la Ley
y las tradiciones judias (SÁNCHEZ, 2000, p.238).
36
Esse conflito se resolveu aparentemente com o julgamento e a perseguição do
grupo dos helenistas, que culminou com a morte de Esvão.
El resultado es que las autoridades judias se irritan contra estes.
Helenistas, los persiguen y los expulsan de la ciudad, en la que
se quedan los Apóstoles, lo que quiere dicer que los Apóstolos no
36
A tensão entre os grupos jerosolimitanos se pode explicar pelo conservadorismo dos crentes
hebreus judeus-cristãos, que seguem certas práticas da Lei, isto é, os judeu-cristãos helenistas
tomam uma atitude crítica frente à Lei e às tradições judaicas (SÁNCHEZ, 2000, p.238).
59
piensan como ellos ni se solidarizan com ellos (GUIGNEBERT,
1988, p.90).
37
Em face dessa ação judaico-cristã, os principais líderes helenistas de Jerusalém
tiveram que enveredar para outras regiões, migrar para outros territórios, fato que
proporcionou o anúncio da mensagem da nova religião no mundo pagão
(PIERINI, 1998, p.54). Ao desvincular o cristianismo do culto jerosolimita, os
helenistas haviam criado condições para a sua ampliação em âmbito universal.
Esta primeira Igreja não teria futuro se uma perseguição
fomentada pela autoridade judaica não tivesse dispersado o
pequeno grupo dos que eram chamados helenistas no Acto. [...]
Essa foi a missão que, destacando-se do culto jerusalinista,
conseguiu, a partir de Antioquia, onde o termo cristãoaparece
pela primeira vez, uma difusão universal (ROUGIER, 1995, p.82).
Dessa forma, foram dadas as condições para o cristianismo sair em busca do
mundo pagão e, a partir daí, estabelecer uma relação que mudaria
definitivamente o seu conteúdo doutrinário.
Aqueles que haviam sido dispersos desde a tribulação que
sobrevivera por causa de Estevão espalharam-se até a Fenícia,
Chipre e Antioquia [...] Estes, chegando a Antioquia, falaram
também aos gregos, anunciando-lhes a Boa Nova do Senhor
Jesus (BÍBLIA, N. T., Atos dos Apóstolos, 11: 19-21).
37
O resultado é que as autoridades judaicas se irritam contra estes helenistas, perseguem-nos e
expulsam-nos da cidade na qual ficam os apóstolos, o que quer dizer que os apóstolos não
pensam como eles nem se solidarizam com eles (GUINGNEBERT, 1988, p.90).
60
Os primeiros centros de propaganda cris instalaram-se então em Antioquia,
Éfeso, Tessalônica e Corinto, grandes cidades cosmopolitas e mundiais, onde os
escravos, os artesãos e os imigrados viviam lado a lado com os mercadores e os
pregadores.
3. 2. O CRISTIANISMO HELENIZADO
Longe da tutela do templo, das Leis mosaicas e dos sacerdotes, esses cristãos
dissidentes iniciaram uma ação missionária. Dirigiam-se primeiramente aos
judeus helenizados que habitavam em várias cidades do Mediterrâneo, visto
esses aceitarem com tranqüilidade a mensagem que lhes era dirigida; depois
buscaram o público “pagão” propriamente dito, que, por sua herança
“intelectualista” (racional), mantiveram uma postura de incredulidade diante da
nova doutrina.
Los helenistas expulsados de Jerusalén rios anduvieron hasta
Antioquia y alli predicaron también a los griegos, anunciando al
Senõr Jesús. Entendamos que primeiro se dirigieron a los judios
porque no se concibe que hayan podido, desde el primer instante,
obrar fuera de la sinagoga – y después a los prosélitos, que
debían ser, seguramente, muy numerosos allí (GUIGNEBERT,
1988, p.91).
38
38
Dos helenistas expulsos de Jerusalém, vários foram até Antioquia e ali pregaram também aos
gregos, anunciando o Senhor Jesus. Entendamos que primeiro se dirigiram aos judeus, porque
não se concebe que tenham podido, desde o primeiro instante, falar fora da sinagoga, e depois
aos prosélitos, que deviam ser, seguramente, mais numerosos ali (GUIGNEBERT, 1988, p.91).
61
Acrescente-se a isso a oportunidade que esses cristãos tiveram de formar novos
modelos de comunidades, abrindo o caminho para o cristianismo firmar-se
independentemente dos primeiros apóstolos de Jerusalém.
Lo que sucede em Antioquia tiene uma importância capital para el
desarrollo Del cristianismo posterior , pues supone la ruptura com
el judaísmo; la comunidad cristiana seconfigura como distinta de
la sinagoga, hasta entonces habian predicado siempre el
mensaje a los judios, ahora lo hacen a los paganos,
prácticainsólita dentro y fuera de Palestina. Los paganos se
convierten en ekklesia en el sentido teológico del término; ya no
sólo Jerusalém, sino tambén Atioquia; las dos son iglesia; los
seguidores de Jesús aportan un nuevo género a la humanidad
dividida en judós ni paganos, sino cristianos (PELÁEZ, s/d,
p.274).
39
Para José Bortoloni, as comunidades fundadas por esse grupo dissidente, para
além da Palestina, configuram-se como uma espécie de proposta cristã
alternativa, que se contrapunha aos cristãos reaciorios (2001, p.41), motivo de
se constituírem em um incômodo para os judeus-cristãos, à medida que o
exigiam fidelidade absoluta em relação à Lei Mosaica e ao Templo, bem como
não poupavam as críticas que o próprio Jesus de Nazahavia feito em parte,
ao legalismo e ao ritualismo exagerado dos judeus (PIERINI, 1998, p.53).
Essa orientação, além de desencadear os primeiros atritos no seio da
comunidade cris primitiva, foi o ponto de partida do seu processo de
39
O que sucede em Antioquia tem uma importância capital para o desenvolvimento do
cristianismo posterior, pois supõe a ruptura com o judaísmo; a comunidade cristã se configura
como distinta da sinagoga, até então haviam pregado sempre a mensagem aos judeus, agora o
fazem aos pagãos se convertem em Igreja no sentido teológico do termo; já no solo Jerusalém,
mas também Antioquia; as duas são igreja; os seguidores de Jesus integram um novo gênero da
humanidade dividida em judeus nem pagãos, mas cristãos (PELÁEZ, s/d, p.274).
62
universalização/helenização, ao buscar, na cultura clássica, os elementos
necessários para fundamentar aspectos da sua exortação e conquistar o mundo
pagão.
Com esse diálogo com a cultura cssica, pode-se pensar que grande parte das
concepções de mundo, de homem e de sociedade, já pensadas em outros
momentos e particularmente no mundo greco-romano, foram assimiladas e
adaptadas pela nova doutrina, o que possibilitou um processo de minimização das
diferenças entre cristãos e pagãos (PEREIRA MELO, 2002).
[...] la diferencia entre paganos y cristianos de la Antiguedad
Taedia estaba en la verdad de sus respectiva elecciones, pero
hay coincidencias en la actitud ante la concepción general de la
vida, del hombre y del mundo (MARROU, 1980, p.45).
40
Segundo Etienne Gilson, os pensadores do cristianismo, já nos primeiros anos de
seu nascimento, fizeram concessões ao saber “humano”, substituindo o sentido
religioso das suas reflexões por um sentido filosófico, para tentar explicar a nova
(2001, p.XV). Fato esse que marcou profundamente a nova religião, pois o
estabelecimento de um estreito nexo com a cultura clássica contribuiu para o seu
enriquecimento. Vale enfatizar que esse diálogo oportuniza a instrumentalização
do cristianismo, que, tendo diante de si um mundo elaborado de categorias
filosóficas as quais possibilitavam a sua afirmão, colocou-as a seu serviço, no
intuito de conversão dos pagãos.
40
A diferença entre pagãos e cristãos da Antigüidade Tardia estava, na verdade, em suas
respectivas escolhas, porém coincincias na atitude perante a concepção geral da vida, do
homem e do mundo (MARROU, 1980, p.45).
63
Foi providencial o cristianismo ter nascido em território dominado
pela cultura clássica, pois dela recebeu uma marca indelével para
os seus desdobramentos posteriores e para sua “vitória” sobre
essa mesma cultura (MARROU, 1975, p.85).
Para Gilda Ncia Maciel de Barros, a aparão do cristianismo no solo pagão
despertou a atenção desses povos, os quais examinaram com atenção a nova
que reunia adeptos tão fiéis e avançava por todas as terras e, curiosamente,
usavam recursos intelectuais tomados da sua própria tradição, aplicando-os com
eficiência, de forma que todos entendem sua mensagem (1975, p. 2).
Ante a uma grande diversidade de religiões e de doutrinas filosóficas, o
cristianismo representou uma “nova doutrina, que, reunindo em si elementos
dessas tradições, oferecia-os como alternativa atraente. Nesse processo, papel
significativo teve a sua relação com o estoicismo, que trazia uma preocupação
moral, quase religiosa, voltado para as questões humanísticas.
3. 3. O DIÁLOGO COM O ESTOICISMO
Entre as grandes escolas nascidas na época helenística, o estoicismo foi a que
mais se adaptou aos momentos históricos, motivo de ter renascido todas as vezes
em que os valores de uma sociedade entraram em crise.
64
Como já citado, essa concepção filosófica pregava um saber voltado para as
questões individuais, marcando um rompimento com a tradição filosófica clássica.
A filosofia no período helenista se converteu em uma fonte espiritual, que
iluminava as consciências, ajudava o homem a viver e lhe ensinava a ser feliz.
Nesse sentido, a filosofia se converteu em um abrigo seguro, em que o homem
encontrava um alento para suportar as conturbações materiais. Ela se propunha
a resolver os problemas que afligiam o homem, tendo a preocupação de oferecer
um direcionamento para ele e a sociedade. Sua premissa era a virtude para
alcançar a felicidade, sendo que o mais alto bem é a tranqüilidade do espírito. A
esse respeito, afirma Pierre Lévêque:
A filosofia se apresenta agora como uma proteção contra a
destruição do homem que não encontra mais razões para viver
na sua função de cidadão. Ela pretende primeiramente encontrar
uma solução para o problema da felicidade [...] a felicidade está
no domínio sobre si própria de uma alma que escapa do mundo,
que se liberta do contingente, que consegue atingir um estado de
indiferença (ataraxia paar uns, apatia para outros) onde nada
mais a poderá atingir (LÉVÊQUE, 1987, p.115).
Nessa esteira, o estoicismo concebia como homem ideal aquele que, orientado
pela razão, chegou à indiferença em relação à tristeza e à dor. Nesse sentido, a
filosofia se apresentou com um caráter doutrinário e aproximou-se do espírito
religioso, ao indicar um caminho de perfeição a ser seguido.
65
Essa filosofia nasceu como resposta ao homem em um momento em que esse
indagava sobre suas inquietações, devido a um quadro social conturbado,
propondo-lhe a interiorização enquanto fonte de felicidade e de tranqüilidade da
alma.
Vale lembrar que o estoicismo, desde a sua formação na Grécia, com Zenão de
Citio (332 – 262 a.C.), procurou responder aos apelos do homem, apontando para
a solução dos problemas, propondo salvá-lo dos rigores e dos males da
existência.
Dessa forma o pensamento estóico teve grande repercussão no mundo antigo e,
desde a sua formação, conseguiu alcançar relativo sucesso. O estoicismo foi a
filosofia que teve predominância na sociedade helenística, pois conseguiu
responder aos apelos que a sociedade requisitava naquele momento histórico.
Postulando um cosmopolitismo filosófico, ensinava no Pórtico que todos tinham
uma origem comum. Nesse sentido, pode-se notar o forte apelo dos estóicos em
considerar os homens como concidadãos deste mundo. Tamm era proposto
que o homem deveria encarar a vida na unidade, como um rebanho unido,
buscando um mesmo direcionamento que suprimia as diferenças. (MONDOLFO,
1973, p. 120).
66
Que sejamos governados por cidades ou por nões, cada uma
delas distintas por leis pprias, mas consideremos todos os
homens conacionais e concidadãos, e que a vida seja uma e
um só o mundo, como rebanho unido, criado com uma lei comum
(Plut., De Alex. Virt., I,6, 329).
Apresentando pontos afins com o estoicismo, o cristianismo pregava que todos os
homens pertenciam ao mesmo rebanho, pois seriam filhos do mesmo Pai que
esta no céu. Com esse direcionamento, o cristianismo aproxima-se do estoicismo
e de sua visão cosmopolita, lançando, a partir desse defrontamento, as bases de
uma sociedade futura, fundada na razão divina.
A convivência dos cristãos com os representantes do estoicismo promoveu uma
diversificação na mentalidade dos seguidores de Jesus. Esse encontro foi
fecundo, pois, sem ele, não seria possível entender a evolução do cristianismo
primitivo.
Para formação da imagem de mundo, os cristãos utilizaram-se das lições do
helenismo, indo buscar os elementos que a filosofia pagã continha de verdades
para servir de suporte para o cristianismo. Dessa forma, pontos afins estão
presentes no cristianismo e no estoicismo, como a felicidade que pode ser
encontrada na submissão à benevolente ordem do universo, ou seja, para o
estoicismo, o homem deve submeter-se ao logos: isso representava algo
semelhante quando os cristãos designavam o “sujeitar-se à vontade divina”,
tamm eram postuladas a ajuda ao próximo e a pureza de coração.
67
O cristianismo desenvolveria um universalismo bem próximo ao estóico, na
medida em que suprimia a separão entre os homens e destruía as distinções
sociais entre gregos e bárbaros, entre judeus e gregos (GIORDANI, 1959, p.28-
29).
De sorte que não distinção entre judeu e grego, pois ele é o
Senhor de todos, rico para todos os que o invocam (BÍBLIA, N.T.,
Romanos, 10:12).
Também no estoicismo e no cristianismo havia a crença na vida após a morte,
embora para o cristianismo esta vida era uma sobrevivência pessoal e eterna,
enquanto para os estóicos era uma vida temporal, pois a alma individual se unia
com o fogo divino ou a razão universal.
A suprema razão do universo e dos deuses irei expor-te, revelar-
te a constituição do mundo; donde extrai a natura por fim os
seres dissolve (SÊNECA, 1991, p.505).
Segundo Iakov Lentsman, nas primeiras obras, as Consolões, Sêneca
proclama que aqui em baixo tudo é vão, inculcando a idéia de que a morte é o
bem supremo. Afirma que, depois da morte, a alma do justo vai para o céu, onde
a espera a felicidade (LENTSMAN, 1988, p.85).
Deve ser mencionado que, já no século IV a.C., a filosofia clássica fazia
comparações do Estado com o corpo humano. Posteriormente, a filosofia
68
helenística retoma essa imagem, aplicando-a à humanidade inteira. Nessa
perspectiva, Sêneca, representante do estoicismo romano, além de postular sobre
o corpo como amarras da alma, via que o corpo tamm cumpria a função de
unidade. Em De Ira II 31, diz Sêneca:
O que seria, se as mãos quisessem prejudicar os pés? Ou as
mãos, os ouvidos? [...] nascemos para a comunidade. Uma
unidade não pode funcionar, se as partes não se querem bem e
não se dão atenção recíproca (SÊNECA, apud ULLMANN, 1996,
p.124).
Nas cartas 92 e 95, consta: “Nós somos companheiros de Deus e membros dele”.
E na carta 95: “Somos membros de um grande corpo” (Sêneca apud. Ullmann,
1991, p.124).
Para Sêneca, o bem do todo (bem comum) deve ser a lei suprema para a ão
dos membros individualmente considerados. Portanto cada membro deve ter
como alvo o bem do outro, assim colaborando para o funcionamento do
organismo como totalidade. Partindo dessa premissa, todos os membros devem
sacrificar-se pelo todo, sem visar a seu próprio interesse. Como os membros são
solidários, isso também se aplicaria à vida em sociedade.
Assim, se para Sêneca a sociedade humana estava ligada à natureza do homem,
essa concepção torna-se fundamental para a organizão e a construção do
pensamento de Paulo de Tarso.
69
Influenciado pela concepção estóica, Paulo de Tarso, além de negar o corpo na
sua exterioridade, apenas, como prazer da carne”, assume também a idéia de
organismo em sua concepção de Igreja. Dessa forma, o apóstolo vale-se do
argumento de que a Igreja é um corpo, é um organismo, para exortar os coríntios
para a unidade comunal.
Com efeito, o corpo é um e, não obstante, tem muitos membros,
mas todos os membros do corpo, apesar de serem muitos,
formam um só corpo (BÍBLIA, N. T., 1 Coríntios, 12:12).
O corpo não se compõe de um só membro, mais de muitos. Se o
disser: “Mão eu não sou, logo não pertenço ao corpo”, nem
por isto deixará de fazer parte do corpo. E se a orelha disser:
“Olho eu não sou, logo não pertenço ao corpo”, nem isto deixará
de fazer do corpo. Se o corpo todo fosse olho, onde estaria a
audição? Se fosse todo ouvido onde estaria o olfato?[...] Há
portanto, muitos membros, mas um só corpo. Não pode o olho
dizer a mão: “Não preciso de ti”, nem tampouco pode a cabeça
dizer aos s : “Não preciso de s” (BÍBLIA, N. T., 1 Coríntios,
12: 14-17,20).
Provavelmente, a idéia de corpo da igreja, comparando a comunidade cristã com
o corpo físico, coincide com o estoicismo, ou seja, é uma herança da filosofia
estóica. Vale lembrar que existe diferença entre o corpo como organismo natural,
de que falam os estóicos, e a Igreja, como corpo de Cristo, na linguagem de
Paulo de Tarso. Este é apontado, como que pertencente à esfera sobrenatural, a
partir do batismo, quando o homem se torna “nova criatura”.
70
Podem-se verificar inúmeras semelhanças ou proximidades entre os discursos
cristãos e os estóicos, o que leva a pensar que este último, de alguma forma,
preparou a sociedade pagã para a mentalidade que foi proposta pelos primeiros
cristãos. No entanto, o se deve ignorar que os dois modelos se movimentaram
em zonas diversas: os cristãos argumentavam a partir de revelação e os estóicos
com a razão (ULLMANN, 1996, p.15).
Quanto a nós, não recebemos o espírito do mundo, mas o
espírito que vem de Deus, a fim de que conheçamos os dons da
graça de Deus. Desses dons não falamos segundo a linguagem
ensinada pela sabedoria humana, mas segundo aquela que o
espírito ensina, exprimindo realidades espirituais em termos
espirituais (BÍBLIA, N. T., 1 Coríntios, 2:12-13).
Ninguém, a não ser que formado a partir da base e totalmente
orientado pela razão, pode estar apto a conhecer todos os seus
deveres e saber quando, em que medida, com quem, de que
modo e por que razão deve agir (SÊNECA, 1991, p.503).
Parece que, na organização dos seus argumentos, os cristãos utilizam-se dos
ensinamentos estóicos como fundamentação de seu pensamento, objetivando
formular sua doutrina para catequizar o homem chamado pagão. A esse respeito,
enfatizou Werner Jaeger:
A situação paralela dos filósofos gregos e dos missionários
cristãos levou estes últimos a tirar partido dela. O deus dos
filósofos também era diferente dos deuses do Olimpo pagão
tradicional, e os sistemas filosóficos da época helenística eram
para os seus seguidores uma espécie de abrigo espiritual. Os
missionários cristãos seguiram as pegadas deles e, a crer nos
relatos que se encontram nos Atos dos Apóstolos, iam por vezes
buscar os seus argumentos aos seus predecessores, em especial
71
quando se dirigiam a um público grego culto (JAEGER, 2002,
p.24).
Pode-se inferir que o cristianismo ganhou novas dimensões com o encontro com
a cultura greco-romana, que enriqueceu a sua doutrina com conteúdos filosóficos
indispensáveis para a conversão do próprio mundo pagão. Esse encontro foi
fundamental para a missão cristã, que utilizou formas gregas de literaturas e
discurso, ao dirigir-se aos judeus helenizados encontrados em todas as cidades
do Mediterrâneo. Esses recursos utilizados da cultura greco-romana foram
necessários principalmente quando Paulo de Tarso abordou os gentios e
comou a fazer conversos entre eles.
Segundo Louis Rougier, embora paganizado, o cristianismo impôs uma civilização
original fundada em uma nova escala de valores e em novas motivações. A
preocupação da cidade terrestre foi substituída pela obsessão da salvação
pessoal. O mundo terreno não é, senão, um local de passagem onde o homem se
prepara para uma morte edificante pelas boas obras (1988, p. 91).
Com essa orientação doutrinária, o cristianismo propôs um estilo de vida que
pressupunha a subversão das concepções e dos valores vigentes até aquele
momento histórico. Entretanto, para tal, lançou o da própria tradição clássica,
objetivando dar substância filosófica à sua doutrina, tendo em vista atingir o
mundo pagão. Sobre isso, comentou Friedrich Engels:
72
O germe da religião universal se encontra ali (na mitologia), mas
contém indistintamente as mil possibilidades de desenvolvimento
que se manifestam nas inúmeras seitas ulteriores. [...] Foi
necessária a mediação da religião judia monoteísta para fazer
revestir o monoteísmo erudito da filosofia vulgar grega, a única
forma sobre a qual podia propagar-se entre as massas (ENGELS,
p.51-52).
Assim, observa-se que o cristianismo o se formou apenas pelas influências
religiosas e filosóficas da época, mas aquilo que a mensagem cristã tinha de
novo, tinha ido buscá-lo às condições históricas muito concretas do Oriente
antigo. Importa inferir que acontecimentos históricos deram as condições
necessárias para que o cristianismo trouxesse uma mensagem nova, sem a qual
não poderia ter conquistado as massas e ter-se tornado uma religião dominante.
Em síntese, se os mistérios orientais possibilitaram um amplo acervo de doutrinas
e de práticas em que o cristianismo pôde buscar influências, foi no legado cultural
greco-romano que encontrou a sua maior fonte de inspiração, enfim, todo o
legado filosófico clássico que, devidamente adaptado, cristianizado, contribuiu
com sua base doutrinária (PEREIRA MELO, 2000, p. 3).
Parece que os cristãos valeram-se dos conhecimentos dos filósofos helenistas
para fundamentar em seus argumentos e sua doutrina, objetivando formar o
mundo pagão. Nessa perspectiva, pode-se considerar que o cristianismo primitivo
se formou a partir do encontro com a cultura greco-romana, assumindo, a partir
desse encontro, novo direcionamento em sua doutrina.
73
Esse novo direcionamento assumido pelo cristianismo capacitou-lhe um maior
vigor evangelizador, para incrementar o processo universalista, favorecido pela
ordem posta e impulsionada pelos próprios conflitos internos.
Nesse primeiro momento, papel significativo teve Paulo de Tarso que, assumindo
a missão de “Apóstolo dos Gentios”, anunciou a doutrina de Jesus, tendo em vista
a formação do homem que julgava ideal para compor o novo mundo, o qual,
segundo acreditava, seria organizado pelo cristianismo.
74
4. A CONSTRUÇÃO DO MAGISTÉRIO DE PAULO DE TARSO
Apesar da proposta pedagógico-doutrinária do cristianismo, Cristo não chegou a
expor os fundamentos teóricos da sua “pedagogia”. O primeiro a assumir essa
missão foi Paulo de Tarso, que fez dos ensinamentos de Jesus um fato
pedagógico universal. Sob o direcionamento paulino, a formação do homem
cristão passava necessariamente pela imitação de Cristo, conforme orientação,
segundo o seu magistério, do próprio Redentor (PEREIRA MELO, 2002, p.4).
Sejam imitadores de Deus como filhos queridos. Vivam no amor,
assim como o Cristo nos amou e se entregou a Deus por nós,
como oferta e vítima, como perfume agradável (BÍBLIA, N. T.,
Efésios, 4: 1-2).
Essa prática paulina pode ser entendida a partir das relações por ele
estabelecidas com a cultura cssica, particularmente com o pensamento de
Sêneca, quando lançou mão dos conhecimentos dessa tradição para a
construção do seu discurso evangelizador.
4. 1. DE PERSEGUIDOR A FORMADOR DE CRISTÃOS
Paulo de Tarso nasceu em Tarso da Cilícia, atual Turquia, provavelmente pelo
ano 10 da era cristã, e morreu em Roma, por volta do ano 67. Seu nome judaico
75
era Saulo, descendente da tribo de Benjamim
41
. Embora judeu de raça, por seu
lugar de nascimento e, possivelmente, também por sua posição econômica,
detinha a cidadania romana. Sua primeira formação teve lugar no seio familiar,
em sua cidade natal. Segundo Joseph Holzner, como fariseu
42
, o pai de Saulo era
homem da mais estrita observância em assuntos nacionais e religiosos. Foi ele
quem iniciou o filho na linguagem sagrada da Bíblia (1994, p.19).
Na sua juventude, estudou na escola rabínica de Gamaliel, em Jerusalém, onde
recebeu ampla formação farisaica
43
e, provavelmente, o título de “rabino”, o
equivalente a mestre ou, pelo menos, uma distinção no plano intelectual que lhe
qualificava a receber encargos diretos do Sinédrio. Seus estudos em Jerusalém
levam a supor que, de acordo com as normas rabínicas de sua época, ao concluí-
los já era adulto, provavelmente, casado ou vvo.
Pelo ano 45, a caminho de Damasco a fim de cumprir uma missão contra os
cristãos-helenistas, uma queda do seu cavalo pode o tê-lo levado a uma
41
Último filho de Jacó e Raquel, nascido nas vizinhanças de Éfrata-Belém. Por ocasião da divisão
da terra de Israel, recebe o território central, a oeste do Jordão e ao norte de Jerusalém (FABRIS,
2003, p.48). Benjamim torna-se um dos patriarcas das doze tribos de Israel. Em seu leito de
morte, Jacó faz uma profecia: Benjamim é um lobo devorador: de manhã sai à caça e à noite
distribui a presa (BÍBLIA, N. T., nesis, 49: 27).
42
Representante de um movimento de renovação religiosa e nacional entre os leigos da classe
média e parte do sacerdócio no interior do judaísmo. Como reação popular ao desenvolvimento
geral, o movimento contribuiu para o sucesso da revolta dos macabeus; ao mesmo tempo,
desenvolveu-se consideravelmente e terminou transformando-se em uma luta pela liberdade. O
movimento dos fariseus surgiu por volta dos anos 200; ele foi um movimento que se desenvolveu
por uma reação gradual às tendências helenizantes e, eno, quando o conflito se tornou agudo,
apareceu com grande força. Dentro do judaísmo, os fariseus formam os únicos oponentes
qualificados da Igreja emergente (OTZEN, 2003).
43
Diz respeito a uma formação que tem como princípios a obediência à Lei e ao Templo. Com
bases nos pressupostos da religião judaica, o farisaísmo foi uma tentativa séria de “cumprir a
totalidade da lei” pela simples razão de que a “lei é santa e seus mandamentos o santos e
justos”, usando as palavras do apóstolo Paulo, o fariseu. Paulo de Tarso teve uma formação
farisaica que estava determinada pela prática da Lei e os ritos do Templo (OTZEN, 2003).
76
alucinão e/ou a um transe, no qual, supostamente, teria tido um contato direto
com Jesus, o que motivou a sua conversão.
Estando ele em viagem e aproximando-se de Damasco,
subitamente uma luz vinda do céu o envolveu de claridade.
Caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: “Saulo, Saulo,
porque me persegues?” Ele perguntou: “Quem és Senhor?E a
resposta: “Eu sou Jesus, a quem tu estás perseguindo. Mas
levanta-te, entra na cidade, e te dirão o que deves fazer” (BÍBLIA,
N.T., Atos dos Apóstolos, 9:1).
FIGURA 3 – Conversão de Paulo (Caravaggio. Roma, Santa Maria Del Popolo) In:
FABRIS, 2003.
77
Sua mudança repentina do judaísmo para o cristianismo inquietou tanto aos
judeus quanto aos cristãos, a ponto de os primeiros o perseguirem como
apóstata, e os segundos demorarem em aceitá-lo. Um outro suposto encontro
com o ressuscitado levou Saulo a retirar-se para a Arábia
44
, onde ficou três anos.
FIGURA 4Queda de Paulo (pintura sobre prancha, Escola Baixa Saxônia,
século XV. Alemanha, Hannover) In: FABRIS, 2003.
44
O termo “Arábia” era então um conceito muito lato: aplicava-se a toda a península arábica até
Damasco, e mesmo até o Eufrates. O núcleo era formado pelo reino dos nabateus, a “Abia
Pétrea ou pedregosa, com a suas célebres encruzilhadas de caravanas: Petra, encravada na
montanha selvagem e romântica; Gerasa (hoje Djeraz), cujas ruínas greco-romanas ainda hoje
inspiram grande respeito; Amman Filadélfia, atual capital da Transjordânia; Basra, no Hauran, e
Homs (Emesa). As construções de Petra, capital do reino dos nabateus, imitam o estilo
helenístico, mas são talhadas na rocha calcária viva. É provável que Saulo tenha passado aqui
pelo menos parte da sua estada na Arábia (HOZNER, 1994, p.61).
78
Após esse período de retiro, Saulo começa a pregar a respeito da messianidade
de Jesus, chamando sobre si a hostilidade dos judeus; época em que foge para
Jerusalém, junta-se à comunidade cristã sob a liderança de Barnabé
45
. Nova
polêmica com os judeus, especialmente com os da diáspora, leva-o novamente a
fugir, refugiando-se, primeiro, em Cesaréia
46
e, depois, em Tarso. Por volta do
ano 43-44, por iniciativa de Barnabé, é levado de Tarso para Antioquia
47
(PIERINI,
1998, p.55).
Do ano 44 ao 46, Saulo se transfere pela segunda vez a Jerusalém e, junto com
Barnabé, empreende sua primeira viagem missionária, a Chipre
48
e ao sul da Ásia
Menor. É nesse período que Saulo começa a ser chamado de Paulo. Voltando a
Antioquia, eles anunciam que Deushavia aberto a porta da fé aos gentios”
(BÍBLIA, N. T., Atos dos Apóstolos, 14: 27), iniciando o seu magistério entre os
pagãos.
Durante doze ou treze anos, Paulo de Tarso percorreu as grandes cidades do
Império Romano: Antioquia, Atenas, Corinto, Éfeso, Roma, tendo em vista
conquistá-las para a nova fé. Era um mundo bem diferente do interior da
Palestina. Essas grandes cidades tinham o jeito grego de viver, de pensar e de se
organizar e, por meio delas, a mentalidade grega ou helenista se espalhava pelo
45
Líder dos cristãos helenistas de Antioquia, era um cipriota. Era companheiro de Paulo de Tarso,
partindo com este em uma primeira missão evangelizadora que, depois de fazer escala na ilha de
Chipre, passou por rias regiões da Ásia Menor, inclusive na cidade da Liacônia (MORAIS, 1992,
p.44).
46
Está na fronteira da terra judaica e o mundo pagão. Fronteira que, na verdade, separa mundos e
mentalidade.
47
Cidade importante e com grande número de judeus da diáspora, era também uma das grandes
cidades metrópoles do Oriente e a terceira cidade em importância de todo Imrio Romano,
depois de Roma e Alexandria.
48
A primeira viagem de Paulo de Tarso, de 47-49 d.C., foi para a ilha de Chipre.
79
mundo. O que se chamava “boa nova” vinha do mundo rural, do interior da
Palestina, e precisava ser divulgada no mundo urbano. Essa ação para além das
fronteiras da Palestina, conferiu-lhe o título de o “Apóstolo dos gentios”.
FIGURA 5 – Paulo em viagem (Trento-Longaretti, 1977) In: FABRIS, 2003
80
4. 2. A ELABORAÇÃO DO DISCURSO EVANGELIZADOR
Nesse primeiro momento do seu magistério, Paulo de Tarso, para ensinar os
princípios fundamentais pregados por Jesus, adotou uma postura relativamente
aberta aos costumes de outras culturas.
Cada Sábado, ele discorria na sinagoga, esforçando-se por
persuadir a judeus e gregos [...] Quanto a mim, estou puro, e de
agora em diante vou dirigir-me aos gentios (BÍBLIA, N.T., Atos dos
Apóstolos, 18: 4-6).
FIGURA 6 – Paulo debate com os judeus (mosaico, século XII. Monreale,
Palermo) In: FABRIS, 2003
Esse quadro fica mais claro na visita que fez a Atenas, quando teve a
oportunidade de entrar em contato com filósofos epicureus e estóicos. Pelo que
se pode inferir, Paulo de Tarso se sentiu à vontade frente a esses sábios, pois
81
fora educado em um ambiente imerso na cultura helenística, o que o habilitava
para esse encontro. Convidado pelos sábios, foi ao Areópago expor o que
considerava como “boa nova” de um deus desconhecido, o que foi relatado pelo
autor dos Atos dos Apóstolos da forma seguinte:
De no meio do Areópago, Paulo falou: “Cidadãos atenienses!
Vejo que, sob todos os aspectos, sois os mais religiosos dos
homens. Pois, percorrendo a vossa cidade e observando os
vossos monumentos sagrados, encontrei até um altar com a
inscrição: ao Deus desconhecido”. Ora bem, o que adorais sem
conhecer, isto venho eu anunciar-vos. O deus que fez o mundo e
tudo o que existe, o senhor do céu e da terra, não habita em
templos feitos por mãos humanas . Também não é servido por
mãos humanas, como se precisasse de alguma coisa, ele que a
todos vida, respiração e tudo mais, [..] pois nele vivemos, nos
movemos e existimos, como alguns dos vossos, aliás, já
disseram: “porque somos também de sua raça”. Ora, se somos de
raça divina, não podemos pensar que a divindade seja
semelhante ao ouro, à prata, ou à pedra, à escultura da arte de
engenho humano. Por isso, não levando em conta os tempos da
ignorância, Deus agora notifica aos homens em toda parte que se
arrependam, porque ele fixou um dia no qual julgará o mundo com
justiça [...] (BÍBLIA, N.T., Atos dos Apóstolos, 17: 17-31).
FIGURA 7 – Paulo prega no Areópago (Luca di Tommè, pintura sobre prancha,
século XIV. Sena, Pinacoteca) In: FABRIS, 2003
82
Segundo Jean pin, (1983, p.21), na narrativa do autor dos Atos dos Apóstolos,
verifica-se que a exortação paulina se esforça propositadamente para aproximar a
mensagem cristã das doutrinas representadas naquele auditório pagão, ao
recorrer a formas filosóficas para expressar-se e fazer-se entender pelo público
que queria atingir.
A chamada “Boa Nova” é apresentada não como uma ruptura, mas como um
complemento e um acabamento do pensamento clássico (PÉPIN, 1974, p.24), ao
abordar questões que são preocupação da filosofia, tais como: o Deus verdadeiro,
que a todos vida e alento, não mora nos templos feitos por mãos humanas,
mas o único templo digno dele é o universo, o que não impede de estar próximo
do homem e acessível a todos aqueles que o procuram.
Reinholdo Ullmann (1996, p.115), ao analisar essa passagem, comparou esse
esquema de argumentação com o discurso metafísico do estoicismo,
especificamente de Sêneca (Carta 90 e 95), e esquematizou os seguintes tópicos
comuns:
a) o domínio soberano e absoluto de Deus;
b) Deus como ser transcendente, não-enclausurável em templos e o-
circunscrível a imagens;
c) Deus sumamente perfeito e absolutamente auto-suficiente;
d) a religião tem por objetivo conhecer e buscar a Deus;
83
e) Deus presente em cada pessoa.
Entretanto, no momento em que Paulo de Tarso entra no terreno propriamente
cristão, os sábios atenienseso o compreenderam. A idéia de que Deus enviara
um homem, o seu filho, para julgar o mundo e de que, como prova disso,
ressuscitara esse mesmo homem entre os mortos provocou risos, acabou com a
sessão, suscitando zombaria dos ouvintes, que, em princípio, tinham entendido
Jesus e a ressurreição igual a tantas outras divindades e manifestações que
ocupavam espaço no panteão helênico.
O mesmo autor dos Atos dos Apóstolos termina o seu relato informando que,
entre as zombarias, alguns mostraram desejo de ouvi-lo outra vez, o que o
evitou o fato de ter sido obrigado a retirar-se da cidade.
Essa influência ainda pode tamm se revelar na Carta aos Romanos, quando o
próprio Paulo de Tarso sugere uma certa dívida para com representantes da
cultura pagã, ao mesmo tempo em que propõe retribuir-lhes com a sabedoria
inovadora da “boa nova”.
Eu sou devedor aos gregos [...], aos sábios [...]; assim (quanto de
mim depende) estou pronto para anunciar o Evangelho, também a
s, que estais em Roma (BÍBLIA, N.T., Romanos, 1: 14-15).
Essa informão também sugere que a formação paulina, em suas origens,
realizou-se na fronteira entre dois mundos: o judaico e o greco-romano.
84
É possível que o fracasso de Atenas determinou que Paulo de Tarso desse nova
orientação ao seu magistério, o que pode ser apreendido na sua Primeira Carta
aos Coríntios. Nessa carta, em vez de empregar os argumentos dos filósofos,
como havia feito com os atenienses, muda a argumentação e parte para o
confronto direto com a cultura clássica.
Pois não foi para batizar que Cristo me enviou, mas para anunciar
o Evangelho, sem recorrer à sabedoria da linguagem, a fim de que
não se torne inútil a cruz de Cristo. Com efeito, a linguagem da
cruz é loucura para aqueles que se perdem, mas para aqueles
que se salvam, para nós, é poder de Deus. Pois está escrito:
Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a inteligência dos
inteligentes. Onde está o Sábio? Está o homem culto? (BÍBLIA, N.
T., Contios, 1: 17-19).
Onde es o argumentador deste século? Com efeito, visto que o
mundo por meio da sabedoria não conheceu a Deus na sabedoria
de Deus, aprouve a Deus, pela loucura da pregação, salvar
aqueles que crêem [...] (BÍBLIA, N. T., 1 Coríntios, 1: 20-21).
Eu mesmo, quando fui ao encontro de vocês, não me apresentei
com o prestígio da oratória ou da sabedoria, para anunciar-lhes o
mistério de Deus [...] minha palavra e minha pregação não tinham
brilho nem artifício para seduzir ouvintes, mas a demonstração
residia no poder do espírito, para que vocês acreditassem, não
por causa da sabedoria dos homens, mas por causa do poder de
Deus (BÍBLIA, N. T., 1 Contios, 2: 1,4).
No entanto, é realmente de sabedoria que falamos entre os
perfeitos, sabedoria que não é deste mundo nem dos príncipes
deste mundo, votados a destruição. Ensinamos a sabedoria de
Deus, antes dos séculos, de antemão destinou a nossa glória
(BÍBLIA, N. T., 1 Coríntios, 2: 6-7).
Essa mesma postura é mantida quando se dirige aos colossenses:
Tomai cuidado para que ninguém vos escravize por vãs e
enganosas especulações da filosofia”, segundo a tradição dos
homens, segundo os elementos do mundo, e não segundo Cristo
(BÍBLIA, N. T., 2 Coríntios, 2: 1-4).
85
Não se deixem levar por manias de grandeza, mas se
aperfeiçoem às coisas modestas, não se considerem sábios
(BÍBLIA, N. T., Romanos, 12: 16).
Essa exortação faz um ataque aos métodos de ensino característicos do
pensamento pagão, contra os “artifícios da palavra”, os “discursos da eloquência”,
os “artifícios de uma sabedoria persuasiva”, os “métodos tirados da sabedoria
humana”.
Nesse momento, Paulo de Tarso substitui a retórica tradicional, o pensamento
racional, por uma exortação, segundo acredita, insensata aos olhos dos sábios e
unicamente sujeita ao impulso do Espírito divino. Dessa forma, explicita o método
a ser utilizado doravante. Ele resume, em oposição, as duas concepções de
homem na forma antropológica: o homem “simplesmente racional” (psíquico), que
está apto à oratória, à sabedoria humana, proscrito por ele, e o homem “espiritual”
ou “pneumático”, que seria o único que teria o privilégio de apreciar os dons
divinos (PÉPIN, 1983, p.24).
Paulo de Tarso negava a sabedoria discursiva que, para ele, “tirava a eficácia” da
cruz de Cristo, porque a “esvazia”, extenua”. Nesse momento em que nega a
sabedoria humana, apresenta-se um contraste nítido em seus dois discursos.
Segundo Jean pin (1983, p.25), essas duas atitudes de Paulo de Tarso
impõem-se como protótipo de uma dupla tradição a judaica e a helênica (1983, p.
25).
86
O magistério Paulino, em qualquer das situações, leva ao entendimento da sua
condição de conhecedor da cultura e da filosofia greco-romana, visto ter lançado
mão, em um primeiro momento, das riquezas oferecidas pelo melhor da tradição
clássica, ou para, contraditoriamente, em um segundo momento, negá-lo na
composição do seu novo discurso evangelizador, objetivando modelar o
comportamento do cristão para transformar o mundo que considerava corrompido
(PEREIRA MELO, 2002).
Quanto a nós, não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito
que vem de Deus, a fim de que conheçamos os dons da graça de
Deus. Desses dons não falamos segundo aquela que o Espírito
ensina, exprimindo realidades espirituais em termos espirituais
(Bíblia, N.T., 1 Coríntios, 2: 12-13).
Apesar das diferenças que Paulo de Tarso passava a apontar depois aos
Coríntios, entre o saber clássico e o saber cristão, foi no seu conteúdo que
encontrou os elementos necessários para a composão do seu discurso
evangelizador, conforme fica expresso na sua relação com o estoicismo,
particularmente, com o estoicismo romano, representado por Lúcio Anneu
Sêneca.
4.3. AS INFLUÊNCIAS DOS ESTÓICOS NO PENSAMENTO PAULINO
A relação estabelecida entre Paulo de Tarso e o pensamento estóico de Sêneca,
ao que parece, foi a mais marcante na elaboração do seu magistério, o que pode
87
ser entendido no objetivo nutrido por ambos: o reordenamento da sociedade e a
formação de um novo homem, que respondesse as necessidades do seu tempo.
FIGURA 8 – Sêneca (busto) In: SÊNECA, 1991.
No exercício de seu magistério, Sêneca não se apresentou como os grandes
teóricos que ensinavam reflexões abstratas e especulativas, visto ser uma das
suas grandes preocupações a busca da prática da virtude, condição que o
filósofo, segundo sua ppria informação, teve dificuldades de vivenciar, mas que,
88
quando passou a viver, teve o cuidado de indicá-lo, na certeza de que
proporcionaria tranqüilidade e felicidade para o espírito humano.
Vou compondo alguma coisa que lhe possa vir a ser útil: passo ao
papel alguns conselhos, salutares como as receitas dos remédios
úteis, conselhos que sei serem eficazes por tê-los experimentados
nas minhas próprias feridas [...] Indico aos outros o caminho justo,
que eu próprio tarde encontrei, cansado de atalhos (SÊNECA,
1991, p.19).
Para Sêneca, vivendo virtuosamente, o homem conseguiria o bem para o qual
fora criado, a retidão e a felicidade. A escalada para a virtude supõe luta e
esforço; mas, como ela era possível de ser ensinada, o filósofo julga fundamental
levar o homem a conhecer a verdade, a fim de que possa estar acima dos medos,
dos falsos julgamentos e dos vícios, pois esses levam à deformação da condição
humana (PEREIRA MELO, 2004, p.52).
Para Paulo de Tarso, a formação do homem ideal (o homem cristão) e a
superação do quadro que inviabilizava a organização de uma sociedade justa
tamm passavam por vencer os vícios que degeneravam a humanidade. Daí a
preocupação paulina de exortar os cristãos no sentido de acreditarem que a
vivência das virtudes contidas nos ensinamentos de Cristo eram a garantia da
felicidade.
Ao contrário, o fruto do Espírito é a caridade, o gozo da paz, a
paciência, a benignidade, a bondade, a longanimidade, a
mansidão, a fidelidade, a modéstia, a continência, a castidade.
Contra estas coisas não lei. E os que são de Cristo crucificam
sua própria carne com os vícios e concupiscências (BÍBLIA, N. T.,
Gálatas, 5: 22-24).
89
Esse bem maior deveria ser uma constante entre os cristãos, fator significativo
para a implantação do reino de Jesus ainda aqui na terra.
No que diz respeito ao corpo humano, Sêneca postulou que o corpo era um peso
para a alma. Repetidamente, em seus escritos, aparece enfatizando o seu pouco
valor frente à grandiosidade da natureza, ou seja, do Logos
49
.
Cultiva em primeiro lugar a saúde da alma, e só em segundo lugar
a do corpo [...] O corpo merece atenção, não por ser importante
em si, mas porque a alma depende dele. A dependência de que
fala Sêneca é extrínseca. A alma adquire o conhecimento pelas
sensações. Porém, é mister tratar o corpo com moderação: Pela
superabundância de alimentos, perde-se a sutileza do espírito
(Carta 15). O que quer que faças, afasta tua atenção do corpo e
volta logo tua atenção para o espírito (SÊNECA, 1991, p.50).
Para o pensador, o corpo se constituía em um mulo para a alma, um obstáculo
que o impede de alcançar as alturas da perfeição a que é chamado. Em rigor, a
parte superior e mais nobre da natureza humana se acha submetida e
escravizada, exatamente por aquela parte tida como inferior.
De fato este nosso corpo é para o espírito uma carga e um
tormento; sob o seu peso, o espírito tortura-se, esaprisionado
(SÊNECA, Cartas, 65, 16).
49
Parece que Heráclito foi o primeiro pensador a fazer uso filosófico do termo logos, embora seu
significado não seja fixado com precisão. Ele pode indicar apenas sua própria doutrina, mas
também a ordem racional que ele detecta. A mesma ordem racional pode ser descrita em
contextos apropriados, seja como fogo, seja ainda como logos, seja como Deus, uma vez que,
embora Heráclito tenha sido crítico da religião contemporânea, sua filosofia era teísta (STEAD,
1999, p.17). Conquanto os cristãos denominassem Deus como logos, os cristãos entendiam, por
esse termo, um deus claramente transcendente, pessoal e presente em todas as coisas. É o
panteísmo, pregado por Paulo de Tarso (BÍBLIA, N. T., Atos dos Apóstolos, 17: 28 e 1Coríntios 15:
28). Ademais, logos passou a designar especificamente o Verbo, a Segunda pessoa da Trindade
Santa (ULLMANN, 1996, p.121). Segundo a filosofia estóica, de maneira geral, a alma é parcela
do logos divino, e esse espírito ou razão universal é Deus: portanto eterno (NOVAK, 1999, p.67).
90
Essa era, para Sêneca, a lamentável condição em que se encontrava o ser
humano, cuja difícil existência se radicava não somente na escravidão, mas
tamm na enfermidade provocada pelas paixões aliciadas pelo corpo,
verdadeiras úlceras da alma, pois a alma submetida pelas paixões torna-se uma
alma doente.
Essa mesma contundência em relação ao corpo humano teve lugar em Paulo de
Tarso, ao negá-lo exortando a necessidade da superação dos “prazeres da
carne”, da exterioridade material, da visibilidade do homem cujo corpo era o
instrumento da ação do homem e era contraditoriamente o responsável tanto
pelas debilidades como pela elevação da plenitude humana.
Para Paulo de Tarso, era necessário romper com os prazeres da carne, do corpo,
ou seja, era preciso negar as práticas sensuais por ele requeridas, tendo em vista
a constituição de um “novo tempo” (PEREIRA MELO, 2002, p. 12), o que o levou
a conclamar aos Gálatas:
Conduzi-vos pelo Espírito e não satisfareis os desejos da carne.
Pois a carne tem aspirações contrárias ao espírito e o espírito
contrárias à carne. Eles se opõem reciprocamente, de sorte que
não fazeis o que quereis. Mas se vos deixais guiar pelo Espírito,
não estais debaixo da lei. Ora as obras da carne são
manifestadas: fornificação, impureza, libertinagem, idolatria,
feitaria, ódio, rixas, ciúmes, ira, discussões, discórdia, divisões,
invejas, bebedeiras, orgias e coisas semelhantes a estas, a
respeito das quais eu vos previno, como vos preveni: os que
tais coisas praticam o herdarão o Reino de Deus. Mas o fruto
do Espírito é o amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade,
bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio [...] Pois os que são
de Cristo Jesus crucificaram a carne com suas paixões e seus
desejos (BÍBLIA, N. T., latas, 5: 16-24).
91
Para fechar sua fala concluiu:
Os que vivem segundo a carne desejam as coisas da carne, e os
que vivem segundo o espírito, as coisas que são do espírito. De
fato, o desejo da carne é morte, ao passo que o desejo do espírito
é vida e paz, uma vez que o desejo da carne é inimigo de Deus:
pois ele não se submete à lei de Deus, e nem pode, pois os que
eso na carne não podem agradar a Deus. Vós não estais na
carne, mas no espírito, se é verdade que o Espírito de Deus
habita em vós, pois quem não tem o Espírito de Cristo não
pertence a ele. Se, porém, Cristo está em vós, o corpo está morto,
pelo pecado, mas o Espírito é vida, pela justiça. E se o espírito
daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos dará vida
também a vossos corpos mortais, mediante o seu Espírito que
habita em vós. Portanto, irmãos, somos devedores não à carne
para vivermos segundo a carne. Pois se viverdes segundo a
carne, morrereis, mas, se pelo Espírito fizerdes morrer as obras
do corpo, vivereis (BÌBLIA, N.T., Romanos, 8: 5-13).
Animado por essa crença, Paulo de Tarso foi radical em apresentar a alternativa
entre a vida segundo a carne e a vida segundo o espírito, entre o homem velho,
que era o homem corpóreo, e o homem novo, espiritual. O homem novo nascia na
comunidade dos cristãos, no seio da Igreja, que era o Corpo de Cristo, do qual os
cristãos eram os membros (ABBAGNANO; VISALBERGHI, 1969) e responsáveis
pela vivência e divulgação dessa “boa nova”.
No referente à discussão sobre a morte, neca propôs a superação do medo
que ela incorporava, visto dotá-la de uma dimensão espiritual, a exortação cristã
parece ir ao encontro da reflexão do pensador.
A morte que tanto tememos e rechaçamos interrompe a vida, não
a arrebata. Virá novamente o dia que nos devolvea luz. Tudo
quanto parece perecer apenas é transformado (SÊNECA, 1991,
p.566).
92
Ao entender a morte como passagem, Paulo de Tarso exortou que seria ela a
possibilidade de o cristão iniciar uma nova vida, ou seja, era a porta de entrada
para de uma vida plenificada. Deveria ser encarada sem medo, pois, após esse
dia, todas as coisas seriam reveladas em sua totalidade.
Agora vemos em espelho e de maneira confusa, mas, depois,
veremos face a face. Agora o meu conhecimento é limitado, mas,
depois, conhecerei como sou conhecido (BÍBLIA, N. T.,
1Coríntios, 13: 12).
Segundo o apóstolo, por meio dela, o cristão chegaria à sua pátria de origem e à
libertação de todos os males da vida terrena, conforme promessa do próprio
Cristo.
A preocupação senequeana com a espiritualidade o levou a conclamar que o
homem deveria almejar somente os bens que procedem do alto, o que parece
contraditório, dado os bens que acumulou. Apesar de sua postura frente às
riquezas, ele apresentava uma nova forma de o homem encarar sua existência,
apontando a necessidade da superação dos valores da época e indicando um
novo ideal de formação, pois a condição humana é finita e se devia buscar, pela
vontade disciplinada, a contemplação das coisas mais elevadas. Nessa
contemplação, o homem poderia compreender a sua existência e perceber sua
pequenez perante a grandiosidade da obra dos deuses.
Volta-te par o céu: aí verás deuses despojados, dando tudo ou
nada conservando para si. É, pois, pobre, no teu parecer, ou
semelhante aos deuses imortais o homem que se despoja de
todos os bens que dependem da fortuna (SÊNECA, 1985, p.15).
93
Ao propor esse novo entendimento de “riquezas”, Sêneca, mesmo que
contraditoriamente, torna-se uma dissonância em uma sociedade que tinha, nos
bens materiais, fator de promoção, de realização e de felicidade plena.
Também foi objeto de preocupação paulina a vida concreta e a posição que o
cristão deveria ter em face da sociedade. Nesse sentido, criticou duramente a
sociedade de seu tempo, que sobrevalorizava o “poder” e os “bens terrenos”,
gerando os submetidos ou escravizados por essas coisas. Motivo de apontar o
ideal que deveria ser buscado pelo cristão.
[...] nossa linguagem nunca foi adulação [...] nem buscamos a
glória dos homens [...] (BÍBLIA, N.T., 2 Tessalonicenses, 2: 5).
Para Paulo de Tarso, a riqueza duradoura provinha de Deus, e não das coisas
materiais, razão para o homem não se preocupar com a vida terrena, mas
procurar viver segundo as coisas divinas, acumulando os “bens celestes”.
[...] buscar as coisas que são lá de cima [...], esforçai-vos às
coisas que são lá de cima, não as que estão sobre a terra
(BÍBLIA, N.T., Colossenses, 3: 2-33)
Partindo desse princípio, para os cristãos, o bem maior era a vida eterna, e essa
consistia no conhecimento e no amor de Deus, como princípio do próprio Deus.
Nesse ponto, era importante lembrar que o bem proposto era estritamente
“pessoal”, não um bem “coletivo” ou corporativo (COCHRANE, 1992).
94
Sêneca, sendo produto do mundo romano, conviveu com uma mentalidade que
desprezava o trabalho manual e valorizava o “ócio produtivo” (GIORDANI, 1959,
p.174).
Ao que parece, o filósofo não compartilhou dessa mentalidade que privilegiava
alguns setores dessa sociedade, pelo menos teoricamente, desenvolvendo idéias
que contrariavam a orientação do seu tempo. O filósofo, além de considerar o
trabalho como algo positivo para os homens livres, defendia o respeito ao trabalho
executado pelo escravo e a sua dignidade humana.
São escravos. Não, são homens. São escravos. Não, são
camaradas. o escravos. Não, são amigos mais humildes
escravos. Não, são companheiros de servidão, se pensares
interior (SÊNECA, 1991, p. 156).
Ao defender, pelo menos teoricamente, a igualdade e a não-discriminação,
promoveu e elevou à mesma condição as pessoas que desempenhavam os
trabalhos manuais. Para o filósofo, não era a condição exterior que determinava
se a pessoa era escrava, mas uma condição interior.
É o cúmulo da estupidez julgar um homem pela roupa ou condição
social [...] É escravo. Mas pode ter alma de homem livre. É um
escravo. Mas em que é que isso o diminui? (SÊNECA, 1991,
p.160).
Quando Sêneca declara que os decretos do destino são irrevogáveis, chega a
uma conclusão importante para o seu tempo: igualdade de todos os homens,
incluindo os escravos, frente ao destino. Apesar do conteúdo desse discurso,
Sêneca, enquanto representante dos setores dominantes da sociedade romana,
95
não defendeu ou propôs a liberação do trabalho escravo, que era o responsável
pela produção da vida daquela sociedade.
Nós todos somos formados dos mesmos elementos; temos todos
a mesma origem [...]. A natureza diz-nos para sermos úteis a
todos os homens sem distinção, sejam eles livres ou escravos,
nascidos de pais livres ou libertados (SÊNECA, apud LENTSMAN,
1988, p.85).
Afinal, era o espírito que deveria ser livre; quanto à matéria, o importava se
estivesse submetida, argumentação que legitimava a ordem escravista posta na
Antigüidade.
Coerente com a doutrina cristã, Paulo de Tarso pregava não com as palavras,
mas tamm com a prática. Lembrando que o exemplo era importante, resolveu
pregar o trabalho com o próprio trabalho, mesmo quando estava livre das tarefas
manuais, entregou-se à atividade de fabricar tendas e exortava os fiéis a
proverem o seu próprio sustento (GIORDANI, 1959, p. 182).
Bem sabeis como deveis imitar-nos. Não vivemos de maneira
desordenada em vosso meio nem recebemos de graça o pão que
comemos: antes, no esforço e na fadiga, de noite e de dia,
trabalhando para não sermos pesados a nenhum de vós. o
porque não tivéssemos direito a isso: mas foi para vos dar
exemplo a ser imitado. Quando estávamos entre vós, já vos
demos esta ordem: que não trabalhar não há de comer. Ora,
ouvimos dizer quem alguns dentre vós levam a vida à-toa, muito
atarefados sem nada fazer. A estas pessoas ordenamos e
exortamos, no Senhor Jesus Cristo, que trabalhem na
tranqüilidade para ganhar o pão com o pprio esforço (BÍBLIA,
N.T., 2 Tessalonicenses, 3: 7-12).
Ao que tudo indica, mesmo conscientes da marginalização do trabalho e da
possibilidade de serem desacreditados por não se terem apresentado como
96
bios, há exemplo de muitos da sua época que procuravam agradar suas
platéias para adquirir respeito e notoriedade. Também foi incisivo ao defender a
dignidade humana e prescrevia que os direitos do trabalhador deveriam ser
respeitados, tendo esse que perceber um justo salário pelo seu engenho
(GIORDANI, 1959, p. 182).
O operário é digno de seu salário (BÍBLIA, N.T., 1 Timóteo, 5: 19).
Dada essa importância que Paulo de Tarso atribuía ao trabalho e ao trabalhador,
destinou um dos seus versículos aos ociosos da cidade de Tessalônica.
Procurai viver em serenidade, ocupai-vos dos vossos negócios e
trabalhai com as vossas mãos, como vos ordenamos; procedei
honestamente com os que estão fora (da Igreja) e o cobiceis
coisa alguma de alguém (BÍBLIA, N.T., 1 Tessalonicenses, 4: 11).
Da mesma forma se posicionou em relação ao trabalho escravo ao encontrar
formas de relativizar a escravidão; afinal, muitos dos convertidos ao cristianismo
eram escravos.
Todos nós fomos batizados num Espírito para sermos um só
corpo, judeus e gregos, escravos e livres, e todos bebemos de um
Espírito (BÍBLIA, N. T., 1 Coríntios, 12: 13).
Na mesma esteira, exortou os senhores a tratarem bem seus escravos e os
mesmos a servirem aos senhores.
Servos, obedecei, com temor e tremor, em simplicidade de
coração, a vossos senhores nesta vida, como a Cristo, servindo-
os, não quando vigiados, para agradar a homens, mas como
97
servos de Cristo, que põem a alma em atender à vontade de
Deus. Tende boa vontade em servi-los, como ao Senhor e não
como a homens, sabendo que todo aquele que fizer o bem
receberá o bem do Senhor, seja ele servo ou livre. E vós,
senhores fazei o mesmo para com eles, sem ameaças, sabendo
que o Senhor deles e vosso es nos céus e que ele não faz
acepção de pessoas (BÍBLIA, N.T., Efésios, 6: 5-9).
Como se percebe, Paulo de Tarso não conjeturou o fim da escravidão, nem
conclamou a uma luta de classes, mas sugeriu teoricamente uma transformação
na sociedade a partir do Evangelho. Em face disso, a comunidade cristã deveria
ser revestida de alguns sentimentos fundamentais, como o amor, a generosidade,
a amizade e a caridade (PARRA SÁNCHEZ, 1996, p. 36), para aplacar as dores
da vida.
Esse posicionamento paulino, em si, o constitui nada de revolucionário, pois o
fato de pedir o bom trato para os escravos e inclusive chamá-los de irmãos não é
novidade do cristianismo, mas era uma exortação comum entre as filosofias
helenísticas. É provável, tamm, que a liberação dos escravos e a negação do
modo de produção escravista não fossem a preocupação paulina, visto ter
encontrado na exortação a submissão à ordem posta, um dos caminhos para a
cidadania celeste.
Como forma de amenizar o problema da escravidão, propunha-se transformá-la
em um meio de obter tesouros no céu. A escravio suportada com espírito de
caridade e resignação cristã é fonte de grandes merecimentos e de recompensas
celestiais.
98
Outra preocupação contida na maioria dos filósofos helenistas, particularmente
em Sêneca, foi a vinculação da amizade. Em suas Cartas a Lucílio, destaca que
até o sábio que basta a si mesmo precisava de um amigo.
O sábio, mesmo que se baste, gosta, porém de Ter um amigo,
ainda que seja para por a amizade em prática e não deixar tão
linda virtude sem uso [...] Por conseguinte, mesmo que baste a si
mesmo, ele precisa de amigos (SÊNECA, 1991, p. 24).
Esse ensinamento sequiano a Lucílio, o seu discípulo preferido, é extensivo a
toda a sociedade, é um bem indispensável e deve ser cultivado, por resultar em
bons frutos ao homem e a toda humanidade.
Pense longamente se alguém é digno de que o incluas no número
dos teus amigos; quando decidires incl-lo, então recebe-o de
coração aberto e fala com ele tanto à-vontade como contigo
mesmo [...] compartilha com o teu amigo todos os teus cuidados,
todos os teus pensamentos. Se o considerares um amigo leal, é
isso o que farás (NECA, 1991, p.50).
Nesse sentido, a amizade pura e leal deveria ser uma prática cultivada por todos
os homens, inclusive pelo sábio, que incorpora todos os bens e as virtudes.
A amizade também foi valorizada pelo cristianismo, particularmente por Paulo de
Tarso, nas comunidades por ele fundadas (SANCHEZ, 2000, p. 264), como
expressão da união, da fidelidade e da confiança que deveria unir os irmãos em
Cristo.
Espero, no Senhor Jesus, enviar-vos logo Timóteo, para que eu
tenha também a alegria de receber notícias vossa. Não tenho
ninguém de igual sentimento que tão sinceramente como ele se
99
preocupe com o que vos diz respeito (BÍBLIA, N. T., Filipenses, 2:
19-20).
Na Epístola aos Filipenses, especificou que a verdadeira amizade existe
quando é acompanhada da virtude, ou seja, a amizade comporta um conjunto de
virtudes que deveriam ser vividas nas relações recíprocas.
Finalmente, irmãos, ocupai-vos com tudo o que é
verdadeiramente nobre, justo, puro, amável, honroso, virtuoso ou
de qualquer modo mereça louvor (BÍBLIA, N. T., Filipenses, 4: 8).
Essas atribuições paulinas à amizade, segundo Javier Antolén Sánchez (2000,
p.265), evidenciam a influência grega em suas cartas, bem como esse versículo
acima mencionado se constituí no mais grego das suas cartas.
Nessa perspectiva de relacionamento humano, Sêneca também cotejou a
igualização entre os sexos, em uma sociedade em que a mulher sofria
preconceitos e exclusões. Mesmo sendo resultado de um meio social que
entendia a mulher enquanto objeto de reprodução e responsável pelas atividades
do lar, isso não impediu que Sêneca, no âmbito da moral, promovesse essa
igualdade.
Exigiu tanto do homem como da mulher, casados, a pudicícia
(sentimento de vergonha). Isso constituiu uma total novidade, na
literatura pagã. Perdida a vergonha, tudo se esvazia.
Conseqüentemente, o adultério do homem e da mulher
colocaram-se em plano igual na malícia moral. Por outra, a
igualdade moral do homem e da mulher é ponto indiscutível para o
pensador romano (ULLMANN, 1996, p.27).
100
Basta visitar a carta aos Gálatas (3: 28) para certificar-se de que essa questão
tamm fazia parte das preocupações paulinas, conforme exortação aos gálatas:
“não mais diferença entre grego e judeu, entre escravo e livre, entre homem e
mulher, pois todos vocês são um só em Jesus Cristo”.
Segundo José Bortolini, essa argumentação vai ao encontro da fórmula batismal
das comunidades por ele fundadas. Quando os neófitos eram batizados e
introduzidos na comunidade cristã, deviam viver novas relações e recebiam um
programa de vida a ser seguido, em que estava prescrito que era preciso suprimir
todas as formas de discriminações e de exclusões social, de raça, de cultura e de
sexo, o que contempla o respeito à mulher (BORTOLINI, 2001, p. 98).
FIGURA 9 – Paulo (Miniatura “Bible historiale” de Guyart dês Moulins, século XIV,
Escola francesa. Copenhague, Biblioteca Real) In: FABRIS, 2003.
101
Nesse direcionamento, no pensamento paulino, a mulher foi vista positivamente, e
grande parte delas participava ativamente do seu movimento, no mesmo patamar
que os homens; exerciam funções missionárias, ensinavam os valores do que
chamavam de Reino”. Ao possibilitar essa condição à mulher, Paulo de Tarso
reconheceu o valor feminino e a sua importância na expansão da e na
formação de novas comunidades (BORTOLINI, 2001 p. 99).
Recomendo-vos Febe, nossa irmã, diaconisa da Igreja de
Cencréia, para que a recebais no Senhor de modo digno, como
convêm a santos, e a assistais em tudo o que ela de vós precisar,
porque também ela ajudou a muitos, a mim inclusive. [...] Saudai
Prisca [...] Maria[...] Junia [...] Trifena [...] e Trifosa [...] Querida
Pérside (BÍBLIA, N. T., Romanos, 16: 1-12).
Mesmo com essa orientação, encontram-se algumas contradições em relação à
mulher em seus escritos, o que se torna compreensível, quando se tem em conta
que Paulo de Tarso também vivia na sociedade patriarcal romana. Mas, no geral,
em suas cartas foi enfático em estabelecer a igualdade de direitos entre os
homens e as mulheres.
Para transmitir os seus ensinamentos e manter os seus discípulos persistentes na
busca da perfeição, Sêneca tamm utilizou cartas. Nelas, revela um ardor
apostólico, que resume a tarefa de um professor ou de médico, que aconselha a
virtude e o bem aplicável a todos os homens. Dessa forma, a carta se tornou o
principal instrumento para educar e levar a tranqüilidade da alma.
Paulo de Tarso adotou a mesma solicitude e o mesmo desvelo pastoral para com
os cristãos das comunidades por ele fundadas, reanimando-as na fé por meio das
102
suas cartas e visitas, quando possível e/ou se fazia necessário (PEREIRA MELO,
2002). A partir desse expediente, Paulo de Tarso procurou manter com seus
discípulos uma intensa comunicação, para transmitir suas mensagens e manter
doutrinariamente as comunidades unidas.
Na esteira da cultura cssica, Sêneca em seu magistério, teve a preocupação em
apontar a necessidade de se buscar, na história, um homem cuja a existência
ideal serviria de modelo a ser seguido.
[...] Somente aqueles que desejam estar cotidianamente na
intimidade Zenão, Pitágoras, Demócrito, Aristóteles, Teofrasto, e
os demais mestres de virtude. Nenhum deles deixará de estar à
nossa disposição, nenhum despedira o que o procurar, sem que o
faça mais feliz [...], nenhum permitirá a quem quer que seja partir
de mãos vazias; e eles podem ser encontrados por qualquer
homem, tanto durante o dia como à noite. Nenhum deles forçará
ua morte, todos te ensinarão a morrer, nenhum dissipará teus
anos, mas te oferecerá os seus [...] Costumamos dizer que não
es em nosso poder escolher os pais que a sorte nos dispensou,
mas que nos foram dados ao acaso; contudo é-nos permitido ter
um nascimento segundo a nossa escolha [...] Estes te darão o
acesso à eternidade, te elevarão àquelas alturas de onde ninguém
se precipita, esta é a única maneira de prolongar a existência
mortal e, até mais, convertê-la em imortalidade (SÊNECA, 1998,
XIV, 5 e 15, 1-4).
Paulo de Tarso, tamm no seu magistério mostrou a necessidade da imitação da
vida de Cristo para se tornar verdadeiramente iluminado e livre daquilo que
entendia como a cegueira do coração, ou seja, havia a necessidade da
santificação, conforme escreve aos efésios.
Mas vós não aprendestes assim (a conhecer) Cristo, se é que
ouviste (pregar dele), e fostes ensinados nele, segundo a verdade
que está em Jesus, a vos despojardes, pelo que diz respeito ao
vosso passado, do homem velho, o qual se corrompe pelas
103
paixões enganadores. Revesti-vos do homem novo, criado
segundo Deus na justiça e na santidade verdadeira (BÍBLIA, N. T.,
Efésios, 4: 20-24).
Segundo Paulo de Tarso, à medida que imitava a Cristo, o homem obtinha uma
identificação com o redentor, motivo de seu magistério ter-se organizado para
atingir esse objetivo, conforme o conteúdo de sua fala aos Gálatas: “Filhinhos
meus - por quem eu sinto de novo as dores do parto, até que Jesus Cristo se
firme em vós [...]” (BÍBLIA, N. T., Gálatas, 4: 19).
Para o antigo perseguidor do cristianismo, a formação cristã era necessariamente
um processo de satisfação, que consistia na imitação de Cristo, para poder
elevar-se a Deus, em Cristo e por meio de Cristo, motivo do seu aconselhamento
aos filipenses: “Sede meus imitadores, irmãos, e pondes os olhos naqueles que
andam conforme o modelo que tende em nós” (BÍBLIA, N. T., Filipenses, 3: 17). E
aos coríntios:
De fato, ainda que tenha dez mil preceptores em Cristo não
tendes todavia muitos pais, pois fui eu que vos gerei em Jesus
Cristo por meio do evangelho. Rogo-vos, pois que sejais meus
imitadores, como o sou de Cristo (BÍBLIA, N. T., 1 Coríntios, 4: 15-
16).
Apesar dessas observações, pode-se pensar que Paulo de Tarso não tivesse por
intenção proceder a uma apologia ao seu dote pedagógico, mas destacar,
segundo acreditava, o caráter libertador da doutrina cristã. A vida, os ditos, os
feitos de Jesus e os testemunhos dos cristãos constituíam a referência e o corpo
do conteúdo básico da sua exortação. Para Paulo de Tarso, esse era o único
104
caminho da santificação, visto preparar o homem para seguir o exemplo e a
doutrina de Cristo, em um processo de transformação no próprio Cristo.
[...] irmãos, nós vos rogamos e suplicamos no Senhor Jesus, que,
como aprendestes de nós, de que maneira deveis andar e agradar
a Deus, assim andeis para ir progredindo cada vez mais. Com
efeito, sabeis que preceitos vos dei, por parte de Jesus Cristo.
Porquanto esta é a vontade de Deus, a vossa santificação [...]
(BÍBLIA, N. T., 1 Tessalonicenses, 4: 1-3).
Alcançar a perfeição, ser semelhante a Cristo era a grande preocupação do
magistério paulino, conforme escreveu aos filipenses:
Porém, aquelas coisas que eu considerava como lucro,
considerai-as como perdas por amor de Cristo. E na verdade tudo
isso tenho por perda perante o eminente conhecimento de Jesus
Cristo, meu Senhor, pelo qual renunciei a todas as coisas e as
considero como esterco, para ganhar a Cristo e ser encontrado
nele, não com a minha justiça que vem da lei, mas aquela que
nasce da fé, a fim de o conhecer a ele e a virtude da sua
ressurreição e a participação dos seus mortos; não que eu tenha
já alcançado o prêmio e seja perfeito, mas prossigo para ver se
de algum modo o poderei apreender, porque eu também fui
apreendido por Jesus Cristo. Irmãos, eu não julgo ter alcançado a
meta. Mas somente faço uma coisa: esquecendo-se do que fica
para trás e avançando para as coisas que me estão adiante,
prossigo para a meta, para o prêmio da soberana vocação de
Deus em Jesus Cristo (BÍBLIA, N. T., Filipenses, 3: 7-14).
Essa relação estabelecida entre o cristianismo paulino e o estoicismo senequeano
apresentava concepções de mundo, de homem e de sociedade que foram
assimiladas e adaptadas para exortar os primeiros cristãos helenistas (PEREIRA
MELO, 2002), o que iniciou um processo de minimização das diferenças entre
cristãos e pagãos.
105
[...] la diferencia entre paganos y cristianos de la Antiguedad
Taedia estaba en la verdad de sus respectivas elecciones, pero
hay coincidencias en la actitud ante la concepción general de la
vida, del hombre y del mundo (MARROU, 1980, p. 45).
50
Em grandes linhas, a afirmão do pensamento cristão só pode ser entendida, em
certa medida, no pensamento helênico, pois nele se encontrava toda uma rede de
significados, conceitos e categorias que deram condições para a elaboração do
“novo tempo” que seria coordenado pelo cristianismo. Assim sendo, o cristianismo
não pode ser pensado, nem compreendido em sua totalidade, sem as
contribuições desse pensamento historicamente constituído, que,
contraditoriamente, foram fundamentais para a negação da própria cultura greco-
romana.
50
A diferença entre os pagãos e os cristãos da Antiguidade Tardia estava na verdade de suas
respectivas eleições, porém coincidências na atitude diante da concepção geral da vida, do
homem e do mundo (MARROU, 1980, p.45).
106
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ascensão de Alexandre Magno (334-323 a.C.) contribuiu para a construção de
um novo cenário para o mundo antigo, no qual se desenvolveu a crise do modelo
de organização da sociedade grega (destruição da polis) e a formação de uma
monarquia universalista. A destruição da polis afetou os valores fundamentais da
sociedade grega e da religião dos deuses olímpicos, o que provocou um vazio
existencial no cidadão
51
grego. Vazio que levou as correntes filosóficas
helenísticas a procurar preenchê-lo com proposta doutrinal de ordem prática
espiritual (BARROS, 1975, p. 2).
Nessa perspectiva, as filosofias assumem um caráter de doutrinas religiosas, ao
proporem aos seus adeptos um viver em harmonia e em paz de espírito.
Para Pierre Pierrard (1982, p.13), as doutrinas filosóficas do helenismo se
espalharam amplamente no mundo mediterneo, assim como o gosto pelas
coisas do espírito e uma nova concepção de homem, o qual deve harmonizar a
sua vida de acordo com o cosmos, entendido como um todo animado por uma lei
racional. Pregadores de linguagem realista e plena de imagens falavam de um
deus universal, centro e animador do mundo; proclamavam a igualdade e a
fraternidade dos homens, canonizando o exercício ascético como fonte da única
verdadeira felicidade e da paz de espírito.
51
Pertencente à cidade. Forma suprema do Estado entre os gregos. Segundo Aristóteles, a
essência do homem residia na sua capacidade de ser cidadão, porém a cidadania era privilégio
das classes dirigentes (PONCE, 1991).
107
Assim, integrar-se a uma escola filosófica não era apenas adotar uma teoria, mas
uma opção de vida que envolvia toda uma existência, o que pressupunha uma
mudança radical.
A filosofia aproxima-se de um método espiritual, com exercícios espirituais que
visavam a uma mudança total na maneira de ser que envolvia toda a vida
(SÁNCHEZ, 2000, p.324). Em síntese, a filosofia greco-romana ficou bem próxima
da religião ou da religiosidade em geral.
Filho desse contexto, o contato estabelecido pelo cristianismo com essas
filosofias favoreceu a assimilação dos seus principais direcionamentos, o que
marcou profundamente a nova religião, ao oportunizar a sua instrumentalização
com categorias que possibilitavam a sua afirmação, colocando-as a seu serviço,
no intuito de conversão dos povos pagãos.
Para Henri Marrou (1975, p.485), foi providencial o cristianismo ter nascido em um
terririo dominado pela cultura clássica, pois dela recebeu uma marca indelével
para os seus desdobramentos posteriores e para sua “vitória” sobre essa mesma
cultura. Nada mostra melhor a profundeza desse encontro entre o cristianismo e a
cultura clássica que o exame das culturas criss surgidas nos países “bárbaros.
O cristianismo formado nessas regiões o foi elaborado unicamente a partir da
revelação, mas representava, tecnicamente, uma adaptação, ou síntese, entre a
cultura cristã e a clássica. Nesse sentido, o cristianismo que se apresentou ao
108
“mundo naquele momento histórico de sua afirmação estava impregnado dos
elementos cssicos.
Os primeiros responsáveis por esse novo pensar cristão podem ser encontrados
no seio da dspora. Dado o contato direto que tinham com as manifestações
helenísticas, adotaram uma postura mais aberta em relação às influências
externas. Nesse diálogo cristão-pagão, o mais fecundo, provavelmente, foi o
estabelecido com o estoicismo, especialmente com o estoicismo romano,
representado pelo pensamento de Lúcio Annaeu Sêneca, que centrou sua
reflexão nas queses morais, acreditando que essas levavam à perfeição do
homem e à tranqüilidade da alma.
Apesar das aproximações que caracterizaram esses pensamentos, foram as
diferenças trazidas pelo cristianismo, a sua mensagem, ao responder às
necessidades das massas oprimidas que lhe prepararam o caminho para a
hegemonia, para a condição de religião dominante.
Importa considerar que a incorporação dos elementos culturais greco-romanos
pelo cristianismo se efetivou à luz da nova concepção teocêntrica, ou melhor,
cristocêntrica, tida como princípio norteador da sua doutrina. Em torno dessa
concepção e em função dela, organizaram e transformaram esses elementos, que
passaram a incorporar um novo sentido, um novo objetivo, enfim cristianizados,
objetivando dar substância filosófica à sua doutrina, para atingir o mundo que se
queria conquistar.
109
Com essa orientação doutrinária, o cristianismo propôs um estilo de vida que
pressupunha a subversão das concepções e dos valores vigentes até aquele
momento histórico.
Nesse processo, papel significativo teve Paulo de Tarso, que, a partir de sua
conversão, desenvolveu o seu magistério entre os gentios, o que desencadeou a
expansão cristã no mundo mediterrâneo, dando início ao caráter universalista que
a nova doutrina assumiu por romper com o particularismo regional defendido
pelos grandes discípulos. Esse universalismo desvinculou o cristianismo de uma
raça, de uma nação, de um idioma ou de uma condição social.
Essa postura de Paulo de Tarso pode ser entendida na sua formação judaico-
clássica, que provavelmente o levou a compreender que a doutrina cristã, da
forma como era entendida pelos primeiros cristãos, não poderia obter sucesso
entre os pagãos, motivo de, em um primeiro momento, fazer concessões à cultura
clássica, conforme fica explícito em algumas de suas cartas.
Com a maturidade, o apóstolo dotou o seu magistério, até mesmo em função do
diálogo que estabeleceu com a tradição pagã, de nova orientação, que passava
pelo confronto direto pela negação da cultura que lhe havia possibilitado
elementos necessários para enriquecer a doutrina que qualificava de “boa nova”.
110
Importa enfatizar que, com a atuação de Paulo de Tarso, o cristianismo
ultrapassou as fronteiras da Palestina, para ganhar novos territórios pagãos em
busca do homem que queria conquistar. Essa condição de religião “sem fronteira”
albergou em seu seio homens, mulheres, crianças, humildes e poderosos,
exortando a igualdade de todos no reino anunciado por Jesus.
Com efeito, num mesmo Espírito fomos batizados todos nós, para
sermos um corpo, ou sejamos judeus ou gentios, ou servos ou
livres, e todos temos bebido de um espírito (BÍBLIA, N.T., 1
Coríntios, 12: 13).
O magistério de Paulo de Tarso, ao ensinar o cristianismo como religião universal,
ao mesmo tempo que minimizava as barreiras raciais e sociais, favorecia os
desejos mais recônditos do mundo greco-romano, pois essas questões, conforme
se discutiu ao longo deste trabalho, em parte, estavam postas pela tradição
clássica, particularmente pelo pensamento estóico e de Sêneca.
Assim, a idéia de pertencer a um mundo sem divisões universalista, fundado na
igualdade social: homens, mulheres e escravos era fruto de uma época e não
uma particularidade do cristianismo.
Essa roupagem crisque Paulo de Tarso ajudou a elaborar foi possível pelo
fato de a nova religião ter nascido e se propagado em um espaço dominado pela
cultura helenística.
111
Mesmo tendo recebido essa contribuição, o cristianismo atingiu o interior da
cultura greco-romana e produziu uma renovação nessa cultura. Nesse ideal
formativo, educando de forma informal, o cristianismo pregava um novo homem,
que, segundo Paulo de Tarso, era revestido dos valores do Reino de Deus.
Respaldado por uma produção filosófico-teológica historicamente constituída, o
cristianismo pôde lançar luzes na contemporaneidade, em que os valores
humanísticos estão perdendo o seu conteúdo, o individualismo e a intolerância
social ganham, a cada dia, mais espaço, sendo significativo recorrer ao que foi
produzido em outros momentos para entender o presente e o papel da
“educaçãonesse processo, visto ser ela sempre convocada para responder as
necessidades que se colocam em uma sociedade em transformação.
112
FONTES
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SÊNECA, L. A. Cartas a Lucílio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991.
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