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UNIJUÍ - UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS
CONVIVENDO COM O COTIDIANO DE UMA
ESCOLA DE EDUCAÇÃO INFANTIL: O BRINCAR E O
EDUCAR NA SUA DIMENSÃO CULTURAL
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Raquel Pigatto Trevisan
Ijuí, RS, Brasil
2007
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CONVIVENDO COM O COTIDIANO DE UMA
ESCOLA DE EDUCAÇÃO INFANTIL: O BRINCAR E O
EDUCAR NA SUA DIMENSÃO CULTURAL
por
Raquel Pigatto Trevisan
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de
Pós-Graduação em Educação nas Ciências, da Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ - RS), como requisito parcial para
obtenção do grau de
Mestre em Educação.
Orientador: Prof. Dra. Noeli Valentina Weschenfelder
Ijuí, RS, Brasil
2007
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Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
Centro de Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências
A Comissão Examinadora, abaixo assinada,
aprova a Dissertação de Mestrado
CONVIVENDO COM O COTIDIANO DE UMA ESCOLA DE EDUCAÇÃO
INFANTIL: O BRINCAR E O EDUCAR NA SUA DIMENSÃO CULTURAL
elaborada por
Raquel Pigatto Trevisan
como requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Educação
COMISSÃO EXAMINADORA:
Noeli Valentina Weschenfelder, Dra. (UNIJUÍ)
(Presidente/Orientador)
Paulo Evaldo Fenstenseifer, Dr. (UNIJUÍ)
Waléria Fortes de Oliveira, Dra.(OMEP)
Cláudia Ribeiro Bellochio, Dra. (UFSM)
Ijuí, 06 de dezembro de 2007.
3
AGRADECIMENTOS
Por muito tempo, achei que os agradecimentos de um trabalho, como este de dissertação,
fazia parte de um roteiro de praxe que ficava no final de uma folha quase em branco. Depois, li
alguns agradecimentos de trabalhos comoventes, nos quais se podia ter contato com uma parte da
vida de quem escrevia: uns melancólicos, uns saudosistas, outros aliviados, outros ainda de
pedidos de desculpas. Agora, chegou a vez de escrever o meu agradecimento, o que me uma
sensação de aperto, de alívio, de saudade, uma sensação boa de sentir. Então, tenho a certeza de
que não é praxe, é parte desta história.
À Professora Orientadora, Noeli Valentina Weschenfelder, pela atenção conferida à
orientação e, para além da orientação, a preocupação que dispensou com apoio nas horas difíceis,
com os cuidados nas viagens, enfim, foste bem mais que orientadora, és uma pessoa especial.
À Professora Waléria Fortes de Oliveira, um agradecimento especial pela colaboração
incansável que tem dedicado a neste trabalho.
Ao Professor Paulo Evaldo Fensterseifer, por ter acompanhado e contribuído para este
trabalho desde o seu princípio.
À Professora Cláudia Ribeiro Bellochio, por ter aceito ler a dissertação trazendo seu
parecer.
Ao corpo de professores do Curso, pela contribuição para despertar uma forma diferente e
instigante de “ver o mundo”.
À Escola Municipal de Educação Infantil Carinho, de Santo Ângelo RS, à Profª
Coordenadora Tatiana pela confiança e amizade que construímos nesta caminhada, da mesma
forma para a Marcia, a Vere, a Mana e a Nadir.
As crianças da escola. Ah, crianças que saudades! Levo todos vocês com muito carinho na
minha lembrança.
Aos meus filhos Pedro Artur e Maria Luísa: é muito difícil dizer algo para vocês em poucas
palavras, se é que poderia dizê-las. Mas estudar o brincar e as culturas infantis com vocês,
enquanto crianças, foi muito instigante, apesar de ter que sacrificar o nosso tempo de brincar e de
convívio.
4
Ao Maurício, obrigada por não ter me deixado desistir; assim concretizo um grande sonho.
Também pela ajuda de toda a caminhada.
À minha irmã Daniela, por ter estado sempre ao meu lado, mostrando-se minha grande
companheira.
À minha colega e companheira de estudo e de estrada, Maria do Carmo: foi muito bom te
conhecer no Mestrado e agora tê-la como amiga.
Aos colegas de turma: foi uma alegria conhecê-los e tê-los como colegas nesta trajetória, da
mesma forma, à Angélica, Secretária do Mestrado em Educação nas Ciências.
RESUMO
Esta dissertação, intitulada “Convivendo com o cotidiano de uma Escola de Educação
Infantil: o brincar e o educar na sua dimensão cultural”, aborda a questão do brincar e do educar,
no contexto dos seus “praticantes ordinários” da escola, atravessada pelas suas culturas. O
trabalho foi constituído a partir de pesquisa colaborativa, em uma escola de Educação Infantil da
rede municipal de ensino na cidade de Santo Ângelo/RS. Convivi com os atores dessa escola
(crianças, professoras, funcionárias, pais e vizinhos), num primeiro momento observando o
cotidiano, posteriormente interagindo e sendo uma praticante juntamente com o grupo,
possibilidade esta proporcionada pela pesquisa colaborativa. A análise de convívio sustentou-se
em três verbos: conhecer, compreender e diferir, interagindo e conhecendo as culturas do brincar
que atravessam a cultura escolar, fazendo parte dos planejamentos escolares; educar, portanto, ora
rentabiliza a cultura infantil com a cultura escolar, outras vezes não. A reflexão seguiu a
perspectiva do brincar na dimensão cultural, enriquecida com a vivacidade das crianças e os
desvios promovidos por elas (micro-resistências para microliberdades), e na possibilidade de
considerá-las nos planejamentos da escola. Organizei a escrita de modo que pudesse mostrar
cenas do cotidiano cruzadas com fontes teóricas como: Michel de Certeau, com o cotidiano dos
“praticantes ordinários” que fundam “micro-resistências”; Gilles Brougère, com a questão do
brincar e a cultura; Tânia Ramos Fortuna, na sua dimensão de “brincar viver aprender”; Manuel
Jacinto Sarmento, na perspectiva da Sociologia da Infância, as culturas produzidas paras crianças
e as produzidas pelas crianças; Ana Cristina Coll Delgado e Fernanda Müller, tratando das
culturas (escolar, pares, societal e local). Além de estabelecer laços de solidariedade, foi possível
através da pesquisa, perceber que o brincar é próprio da cultura infantil, mas atravessando a
cultura escolar e imersa na cultura global do seu tempo. A convivência junto à escola pesquisada
me permite afirmar que a importância que ela ao brincar, desde nos espaços organizados e
planejados até nos não organizados, porém burlados pelas crianças, é significativa e pode ser
potencializada, quando faz parte dos planejamentos e propostas escolares. Possibilidade esta
concretizada pelo fato de a escola, alvo de pesquisa, passar a dar mais espaço para a cultura
infantil e seu brincar. Das interações feitas no decorrer da dissertação, entre falas registradas no
caderno de campo e fotografias vividas no cotidiano da escola, em torno das possibilidades da
6
cultura infantil, representadas pelas brincadeiras, arrisco afirmar ter constatado algumas
possibilidades de microresistências que fundam microliberdades, do brincar e da cultura infantil.
PALAVRAS-CHAVE: Educação infantil; Brincar; Educar; Cultura e Proposta
Pedagógica.
ABSTRACT
The Dissertation titled "Live together with the daily of a School of Children's Education:
the play and the educate in they cultural dimension", attend the question of the play and of the
educate in the context of the "ordinary practicants" of the school, permeated by their cultures. The
work was constituted for a collaborative research in a school of Children's Education of the
municipal network of teaching in the city of Santo Ângelo/RS. I lived together with the "ordinary
practicants" of the school (children, female teachers, worker women and neighbors), in a first
moment looking the daily, after interacting and being a practicant amongst the group, possibility
which was provided by the collaborative research. The analysis of experience was based in tree
verbs: to know, to understand and to differ, interacting and knowing the cultures of the play that
pass over the school culture, being part of the school planning; so, educate, sometimes boosting
the school culture, other times not. The reflection trended on the perspective of the play on the
cultural dimension with the children's vivacity and the digression promoted by them (micro-
resistances to micro-liberties), and in the possibility of boost it in the school plannings. I
organized the writing someway I could show scenes of the daily intersect with historical sources
like Michel de Certeau, with the daily of the "ordinary practicants", that found "micro-
resistances"; Gilles Brougère, with the question of the play and the culture; Sarmento, on the
perspective of the Sociology of Infancy, the cultures produced to the children and the cultures
produced by the children; Ana Cristina Coll Delgado and Fernanda Müller, attending the cultures
(educational, pairs, societal and local). I could to establish ties of solidarity, percepting thar the
play belong to the children's culture, but it's permeated by the school culture and it's immersed in
the global culture of his time. Live together with the researched school permit to me assert that
the importance which it gives to the play, from the spaces organized and planned to the
disorganized, but mocked by the children, it's significative and can be potentiated when it's a part
of the planning and purposes of the school. This possibility was realised because the school that
was target of the research gave more space to the children’s culture and it’s play. By way of the
interactions made on the course of this dissertation, between speechs registered on the diary of
field and photos lived on the daily of the school, around the possibilities of the children’s culture,
represented by games, based on Michel De Certeau, I assert that I’ve noted some possibilities of
8
micro-resistances which founds micro-liberties of the play and of the children’s culture.
KEY WORDS: Children’s Education; Play; Educate; Culture and Proposal Pedagogical.
9
LISTA DE FIGURAS
Figura 2.3.1 ............................................................................................................................. 27
Figura 2.4.1 ............................................................................................................................. 33
Figura 2.4.2 ............................................................................................................................. 34
Figura 2.4.3 ............................................................................................................................. 39
Figura 2.7.1 ............................................................................................................................. 61
Figura 2.7.2 ............................................................................................................................. 66
Figura 2.7.3 ............................................................................................................................. 67
Figura 3.1 ................................................................................................................................ 78
Figura 3.1.1 ............................................................................................................................. 82
Figura 3.1.2 ............................................................................................................................. 83
Figura 3.1.3 ............................................................................................................................. 84
Figura 3.1.4 ............................................................................................................................. 89
Figura 3.2.1 ............................................................................................................................. 92
Figura 3.2.2 ............................................................................................................................. 93
Figura 3.2.3 ............................................................................................................................. 95
SUMÁRIO
1 TRAJETÓRIA ........................................................................................................................... 12
2 O CAMINHO PARA A E DA ESCOLA .................................................................................. 22
2.1 Por que as escolas de rede municipal de Educação Infantil de Santo Ângelo – RS?.............. 22
2.2 O caminho percorrido para a chegada na escola ..................................................................... 23
2.3 A minha chegada à escola como pesquisadora ....................................................................... 26
2.4 “Como é nossa escola?” A escola na visão dos “praticantes ordinários” ............................... 32
2.5 Por que usei o termo brincar? ................................................................................................. 39
2.5.1 A organização do espaço e do Plano Político Pedagógico, como duas etapas conectadas e o
brincar neste cotidiano escolar ...................................................................................................... 44
2.5.2 Organização dos espaços ..................................................................................................... 45
2.5.3 O Plano Político Pedagógico desta escola ........................................................................... 48
2.6 Elementos teóricos que orientam esta reflexão com o cotidiano da escola de Educação
Infantil............................................................................................................................................ 52
2.7 Como brincam as crianças com o cotidiano deste “barco” (escola) ....................................... 56
3. AS CULTURAS INFANTIS REPRESENTADAS NAS BRINCADEIRAS E INSERIDAS NO
FAZER ESCOLAR ....................................................................................................................... 70
3.1 As interações culturais nas brincadeiras e no fazer do cotidiano escolar................................ 79
3.2 Identidades, culturas locais e as influências das culturas societais nas brincadeiras e no fazer
escolar............................................................................................................................................ 90
4. UMA PAUSA, NENHUM PONTO FINAL: UM RECOMEÇO... .........................................100
11
REFERÊNCIAS ......................................................................................................................... 104
ANEXOS .................................................................................................................................... 110
1 A TRAJETÓRIA
É chegado o momento de apresentar o trabalho, de registrar o que motivou fazê-lo e o que
fizemos
1
e, ainda, momento de pensar novas questões que ficaram ou, então, outros caminhos que
se abriram e/ou foram deixados de lado por algumas escolhas interessadas.
Duas razões principais me levaram a optar pela temática. Eu acreditava que o brincar se
aproximava da minha área de formação, qual seja, Licenciatura Plena em Educação Física. Além
disso, encantava-me com a Educação Infantil (embora na minha época acadêmica não se
mencionasse a criança na faixa etária que compreende a Educação Infantil). Com a jornada em
andamento, os motivos que me levaram a pesquisar o brincar na Educação Infantil deixaram de
serem os norteadores absolutos dos rumos do trabalho. Acho que tem muito da minha infância,
ou da falta de infância. Hoje, o que importa é que faço com amor, o amor que possa servir de
andaime”, como mencionou Anísio Teixeira: “Os sonhos não se realizam sem que primeiro se
armem os andaimes. E uma construção em andaimes pede imaginação e amor para ser
compreendida”. (Teixeira apud NUNES, 1999, p. 14)
O brincar, parte do cotidiano escolar, passou a ser efetivamente motivo de estudo e
comprometimento quando fui convidada a ministrar a Disciplina de Teoria e Metodologia da
Educação Física, para alunas do Curso Normal Educação Infantil e Anos Iniciais, no ano de
2001, e essa motivação vem (re) atualizando minha trajetória de professora.
Comecei trabalhando as questões do brincar quase intuitivamente, que, como recém
registrei, a Educação Infantil não fez parte da minha bagagem acadêmica, tive que ir à busca de
material para estudo. O primeiro enfoque foi psicomotor, com o brincar estudado e “aplicado”
dentro da disciplina de Educação Física. A seguir, busquei um curso de especialização em
Educação Especial na Educação Infantil, no qual pesquisei algumas questões do brincar, em
1
Faz-se necessário esclarecer que me propus fazer uma pesquisa colaborativa (BUENO, 1998) junto à escola infantil.
Para tanto, além dos referenciais relativos ao campo específico do brincar como parte da cultura infantil, utilizei a
concepção de cotidiano de Certeau (1994; 1995), bem como de cotidiano escolar, com que trabalha Ferraço (2004;
2005). Para enfatizar o pertencimento na pesquisa, no texto que ora apresento, será freqüente o uso da expressão
"com" os sujeitos. Sendo assim, em determinados momentos emprego a pessoa do singular (eu”, pesquisadora) e,
em outros, me valho da 1ª pessoa do plural (nós”, atuantes e pertencentes da escola).
13
trabalho intituladoProcesso de interação da criança surda com a criança ouvinte, nos espaços
escolares, durante brincadeiras livres”.
A presente pesquisa, ainda enquanto proposta de estudo para seleção de Mestrado
contemplava o brincar na Educação Infantil, com a idéia de compromisso, responsabilidade e
renovação. Não havia o intuito de simplesmente fazer críticas, em um discurso de denúncia, de
falta, mas havia, sim, o interesse em ver possibilidades, contemplar o que se faz e o que se pode
fazer com o brincar, numa dimensão de otimismo em relação à escola e seus sujeitos (nós).
Devo marcar, desde já, que não lancei olhar sobre o brincar como algo utilitário, mas sim
como “um fio” que perpassa o cotidiano da escola como parte da cultura escolar infantil,
dimensionando as possibilidades de tempo e de espaço de ser criança, bem como brincar e
educar, nesse contexto. Barbosa e Horn referem em Organização do Espaço e do Tempo na
Educação Infantil que educar e cuidar não são duas tarefas desconectadas. Ao mencionar que as
ações das crianças estão conectadas com o cotidiano da Educação Infantil, aproveito a concepção
das autoras, de que as coisas não acontecem isoladamente dentro de um mesmo contexto. Na
mesma linha de pensamento, trago Fortuna, que enfatiza o tema do brincar em A formação lúdica
do educador: O estudo do brincar, escrevendo:
[...] volto a insistir, é importante formar educadores capazes de brincar e valorizar o
brincar. Como propõe Cerisara (1998, p. 137) para as instituições infantis, é preciso
pensar estratégias tanto de formação continuada, quanto de formação inicial, que
possibilitem a recuperação do lúdico e da criatividade (2005, p. 110).
Com as referências das autoras acima, também quero trazer para a discussão os outros
aspectos do brincar dentro do contexto escolar: espaços, tempos, projetos escolares, bem como o
brincar burlado pelas crianças da escola observada.
Vislumbrando as possibilidades do brincar, agreguei à pesquisa a proposta de FERRAÇO,
de assumirmo-nos, os professores, como o próprio problema de pesquisa; sim, pois quando nos
referimos aos professores, somos nós os (as) professores (as); quando referimos às escolas, nós
somos os integrantes das escolas. Foi surgindo, então, uma possibilidade de estudo que se
engajava com uma expectativa de refletir sobre o brincar no cotidiano da Educação Infantil, a fim
de compreendê-lo sem ter de apresentar um julgamento da realidade da escola, pertencente a um
mundo global e ao seu local. Segundo o autor recém referido,
14
Ao nos assumirmos como nosso próprio objeto de estudo, coloca-se para nós a
impossibilidade de pesquisa ou de falar sobre” os cotidianos das escolas. Se estamos
incluídos, mergulhados, em nosso objeto, chegando, às vezes, a nos confundir com ele,
no lugar dos estudos sobre”, de fato, acontecem os estudos com os cotidianos. (2004,
p. 81).
Pesquisar o brincar não é novidade. Ao contrário, vemos constantemente trabalhos
apresentando o tema. Então, por que trazê-lo novamente para estudo? Trago esse tema com uma
expectativa de otimismo, provinda de uma postura de continuar a história em seu contexto,
deixando de lado o discurso no singular e saudosista, adotando um discurso de pertencimento que
tem inventado a escola com os sujeitos, que brincam e oportunizam o brincar, em específico na
Escola Educação Infantil.
Sendo assim, a problematização do brincar no cotidiano escolar é recolocada frente às
novas gerações, que também são velhas na medida em que tiram os significados do mundo velho,
e são novas porque acabam de chegar (ARENDT, 2003). Essas significações são igualmente
recriadas a partir do que se lhes apresenta como necessidades do mundo contemporâneo:
“Vivemos em um mundo complexo, marcado na ordem material pela multiplicidade incessante
do número de objetos e na ordem imaterial pela infinidade de relações que os objetos nos unem”
(SANTOS, 2000, p. 171).
Marcados pela “contemporaneidade, um lugar de mudança” (Sarmento apud DELGADO e
LLER, 2006, p. 17), reconstruímo-nos a cada dia, por meio de relações, através de interações
das culturas societal, local, de pares e escolares (interações estas nomeadas por Sarmento, as
quais serão consideradas com especificidade no item 2.6), compreendendo as relações que
acontecem permanentemente entre nós, sujeitos que na escola nos colocamos pertencentes ao
processo de criar o novo, de constante renovação.
Nesta perspectiva, quero salientar o cotidiano da Educação Infantil, permeado pela
dimensão cultural, através do brincar. O objetivo é problematizar o brincar na escola de Educação
Infantil, no seu cotidiano, enquanto processo atravessado por influências culturais, considerando
possibilidades, as quais são pedagógicas, no sentido de trazer aquelas influências não como fatos
15
acabados, mas, através delas, perceber as micro-resistências que fundam microliberdades
2
, como
um processo em constante criar e recriar da cultura e do aprendizado. Quero considerar, também,
o brincar trazido pelas crianças no momento histórico vivido, para avaliar como podemos
perceber e ajudar as crianças a se constituírem como sujeitos, bem como qual o significado que
nós, enquanto constituintes da escola, damos ao brincar, nessa constituição de sujeitos, tendo em
vista que o brincar está inserido no Plano Político Pedagógico da escola pesquisada.
Esse objetivo amplo é explicitado no item 2.6 do corpo do trabalho, que tem relação direta
“com os sujeitos” do cotidiano escolar, na condição de pertencimento, autoria e responsabilidade
com os envolvidos.
O estudo também se desdobra em considerações de outra ordem, a exemplo do capítulo II,
“O Caminho Para A e Da Escola”, relatando a caminhada da pesquisa de campo, como ela foi
sendo estruturada até assumir a feição de pesquisa colaborativa, passando pelo olhar à escola que
somos e ao cotidiano vivido, com as brincadeiras que ali acontecem.
A seguir, no capítulo III, ofereço uma reflexão em torno das “Possibilidades da Cultura
Infantil, permeada pelas brincadeiras na escola” e, ainda, para efeito de registro, a escrita do
Plano Político Pedagógico, produto de um trabalho que caminhou paralelo à pesquisa.
A fim de mergulhar nos movimentos com o cotidiano da escola, acredito como Alves,
que:
Não outra maneira de se compreender a lógica do cotidiano senão sabendo que nela
estamos inteiramente mergulhados. [...] Buscar entender, de maneira diferente do
aprendido, as atividades do cotidiano escolar ou do cotidiano comum, exige que
estejamos dispostos a ver além daquilo que os outros já viram e muito mais: que sejamos
capazes de mergulhar inteiramente em uma determinada realidade buscando referências
de sons, sendo capazes de engolir sentindo variedades de gostos, caminhar tocando
coisas e pessoas e se deixando tocar por elas, cheirando os cheiros que a realidade vai
colocando a cada ponto do caminho diário (apud FERRAÇO, 2004, p. 85).
2
Micro-resistências e microliberdades são termos usados por Michel de CERTEAU, em A Invenção do Cotidiano -
1. Artes de Fazer (1994, p. 18-19). Refere-se a seu estilo”, aquilo que especifica um modo de estar-no-mundo e de
tornar o mundo inteligível a si mesmo. Para Certeau, são sempre perceptíveis um elã otimista e uma generosidade da
inteligência e da confiança depositada no outro, de sorte que nenhuma situação lhe parece, a priori, fixa ou
desesperadora.
Micro-resistência é a possibilidade de crer firmemente na liberdade gazeteira das práticas. Assim, nelas é natural
perceber as micro-diferenças onde tantos outros só vêem obediência e uniformização.
Micro-liberdade se refere à liberdade interior dos não-conformistas que, mesmo reduzidos ao silêncio, modificam ou
desviam as liberdades impostas por toda resistência, ainda que mínima, e por toda forma de mobilidade aberta.
16
O caminho percorrido para a escolha da escola e os primeiros contatos com essa foram
importantes para delinear a viabilidade da pesquisa e as opções metodológicas. Assim, o processo
da pesquisa foi sendo construído no próprio decorrer dela. Queria tomar a questão do brincar,
“com o cotidiano”
3
, como possibilidade, numa condição de pertencimento, responsabilidade e
renovação, em relação aos contextos de sujeitos contemporâneos, como “praticantes ordinários”
4
(CERTEAU, 1994). Por isso, a aceitação e o envolvimento com este trabalho tinham de serem
consensuais com os tais praticantes, neste caso: nós, as crianças, as professoras, as funcionárias
5
,
a pesquisadora, os vizinhos e os pais.
Para tanto, vali-me de uma investigação colaborativa. Tal forma de pesquisa reverencia a
ruptura de barreiras metodológicas, para se caminhar numa direção participativa. Este método de
investigação é apontado no campo da educação pela Profª Belmira Oliveira BUENO (1998), bem
como de outros autores (CATANI, 1998), a qual propõe que se estabeleça uma relação mais
orgânica entre as atividades de pesquisa e o ensino realizado nas escolas. A leitura do trabalho
desta autora, no Projeto de Educação Continuada do Grupo de Estudos “Docência, Memória e
Gênero”, da FEUSP, foi bastante elucidativa para a definição da abordagem metodológica
desenvolvida, pois, num primeiro momento, acreditava que seria uma pesquisa etnográfica com
crianças.
Com as leituras que realizei, percebi que a pesquisa colaborativa e o estudo com o
cotidiano se aproximavam da forma como se constituiu minha investigação, no Projeto de
Mestrado. Busquei, então, amparo teórico especialmente em trabalhos desenvolvidos pelo grupo
de Nilda Alves e Carlos Eduardo Ferraço. Percebi que, na vida cotidiana da escola infantil
estudada, pesquisadora epraticantes ordinários”, ou seja, crianças, professoras, família, enfim,
a comunidade escolar
6
, compartilhavam a história, o conhecimento e a experiência, assim como
trabalhavam e estudavam juntas. Com base nisto, razão parece assistir a Bueno: “seria um
trabalho construído em parceria, com propostas que partiriam tanto delas (professoras) como de
3
Na expressão com os cotidianos”, trata-se da condição de pertencimento, autoria e responsabilidade dos sujeitos
encarnados por esses estudos (FERRAÇO, 2004, p. 81).
4
Com praticantes ordinários”, CERTEAU aponta para as pessoas que vivenciam e experiências comuns, agentes
sociais, animadores, formadores, gente do campo, nos lugares mais diversos, os regulares (1996, p. 25; 1995, p. 40).
5
Nesta pesquisa será usada a referência sempre no feminino, para professoras e funcionárias, pois na escola se
encontram, na sua totalidade, mulheres trabalhando nestas funções.
6
Para fins desta pesquisa, este termo comunidade escolar designa, de forma abrangente, todos aqueles que de
uma forma ou outra constituem a escola (vizinhos, funcionários, colaboradores com a escola, assim como pais,
professores e as crianças).
17
nós (pesquisadoras), com a perspectiva de se buscar formas alternativas de formação” (1998, p.
14).
Para melhor esclarecer a proposta metodológica colaborativa, é importante salientar o que
aquela autora enfatiza sobre a vida cotidiana e as produtivas trocas que acontecem numa
pesquisa, na qual o benefício do diálogo traz contribuições para todos envolvidos, ou seja, para
ambas as partes.
Na vida cotidiana as pessoas conversam trocando suas histórias, enquanto que na
situação da pesquisa tradicional aquele que entrevista não acrescenta efetivamente
conteúdo e informação aos entrevistados. O professor, por exemplo, conta tudo o que
pode ao pesquisador, este, entretanto apenas o parafraseia. Assim, ao se comportar como
autosensor, o pesquisador conta relativamente muito pouco sobre suas histórias e, em
conseqüência, acaba por quase nunca dizer o que realmente quer. Essa situação, segundo
Erickson, impede que um verdadeiro diálogo se estabeleça entre ambos, o que no entanto
é condição necessária para se levar o cabo a pesquisa em colaboração. A idéia de
colaboração implícita é, pois, a de algo que beneficia e traz contribuições para ambas
as partes (BUENO, 1998, p. 12).
No exercício de problematizar e de investigar o cotidiano escolar, coloquei-me frente a
muitas escolhas difíceis e de envolvimento, pois, conforme assinalado, não possuía uma
metodologia definida, ao início da caminhada pela escola. PÉREZ observa que “o pesquisador, tal
como o artesão, puxa fios, desdobra significados e elimina fronteiras que tradicionalmente têm
marcado os diferentes campos da pesquisa em educação, tecendo uma nova configuração para a
compreensão do conhecimento humano” (2003, p. 97).
Então, mesmo sem uma metodologia definida, a pesquisa de campo começou a ser tecida,
tendo, como fase inicial, a escolha da escola. Na segunda fase, realizei um estudo exploratório do
cotidiano da escola escolhida, com o objetivo de melhor definir a problemática a ser pesquisada.
A partir daí, numa terceira fase, permaneci no ambiente escolar no período de novembro e
dezembro de 2005 e todo o ano de 2006, compartilhando a vida da escola e de sua comunidade.
Com um diário de campo em mãos, registrava falas e algumas ações das crianças, professoras,
coordenadora e funcionários. Produzi fotografias, registrando algumas imagens que despertaram a
atenção. Em alguns momentos, tentei utilizar uma máquina filmadora; porém, a meu ver, não
daria certo a utilização desse equipamento, pois era um motivo de curiosidade total para as
crianças, ao passo que, para os professores e funcionários, era razão de constrangimento.
18
No decorrer do ano letivo de 2006, houve a elaboração e o estudo, com a equipe de
professores, do Plano Político Pedagógico da escola (PPP), documento que as professoras
sentiram a necessidade de dispor, e então fui convidada a participar.
No percurso recém relatado, dispus-me a conhecer a história da escola. Ao buscar
documentação a respeito, constatei que são quase inexistentes registros até 2004. Então, tentei
fazer um resgate histórico por intermédio de entrevista com a Coordenadora e Diretora da escola;
meu objetivo nesta tarefa foi o de possibilitar algumas relações entre o passado e o presente da
escola, que eram constantes as falas sobre como era antes, como estava durante a pesquisa e
como se queria que fosse posteriormente.
Conforme mencionei, fui a campo sem delimitações prévias. A pesquisa foi
constituindo-se na medida em que eu traçava uma trajetória de envolvimento escolar e
comunitário. Assim, é necessário listar alguns acontecimentos cotidianos reveladores de
envolvimento prático, que identificam esta pesquisa como colaborativa. Foi um trabalho de mão
dupla, de pequenas parcerias, formas de participações que aconteceram no cotidiano da escola,
gerando certa cumplicidade entre pesquisadora e pesquisados, por exemplo: reorganização dos
espaços físicos; arrecadação de fundos; mutirão para construção da divisória da sala de aula;
construção da casa de bonecas e da caixa de areia; compra do ventilador e dos brinquedos. Em
etapa posterior: o estudo e a escrita do Plano Político Pedagógico, com a troca de textos para
estudo; promoção de eventos na comunidade escolar; entre outras atividades realizadas.
Pela postura que tomei, de comprometimento e de levantar possibilidades com o brincar, a
história deste trabalho foi se compondo no plural, “nós, nossa escola”, e teve dois momentos
distintos: o primeiro, de recepção e aceitação que tive na escola por crianças, professoras e
funcionárias, o que não me permitiria simplesmente entrar num terreno, colher e ir embora,
postura de irresponsabilidade para quem quer buscar possibilidades e comprometimento com a
educação; o segundo, de leituras que foram ocorrendo no curso desta jornada, de obras escritas
por autores como Certeau (1994 e 1996), Ferraço (2004 e 2005), Bueno (1998), Tavares (2003) e
outros pesquisadores (as) que me fizeram companhia nesta tarefa investigativa.
Para além de escolher e chegar a um lugar para servir de campo à pesquisa, coloquei-me
na possibilidade de pertencer a um coletivo, de estar com os sujeitos cotidianos, de ser aceita
naquela escola e comunidade, não apenas como pesquisadora, mas sim pertencendo ao grupo dos
19
“praticantes ordinários”. Não são raras as idas e vindas de pesquisas nas quais escolas se tornam
meros campos de coleta de dados, e professores (as) apenas se sentem avaliados (as). Nesse
sentido Bueno alerta:
[...] vimo-nos constantemente compelidas a efetuar questões cruciais sobre a vida e o
trabalho dos professores, sobre os processos de sua formação, sobre a pesquisa e o
conhecimento do ensino, e outras tantas que nos levaram a pôr em xeque a concepção
corrente de que o conhecimento é primeiramente gerado nas universidades para depois
ser utilizado nas escolas, como se os docentes fossem apenas consumidores e
implementadores daquilo que é produzido no meio acadêmico. (1998, p. 9).
Por concordar com tais considerações, não me contive em somente observar e registrar
dados sobre a escola infantil e seus sujeitos. Dispus-me, pelo contrário, a colaborar com a vida
escolar de mulheres-mães, de pais, de professoras e, principalmente, das crianças. Mais uma vez,
valho-me das palavras de Bueno, quando afirma:
Em oposição, defendemos a idéia de que, na pesquisa, o conhecimento dos professores é
tão importante quanto o dos pesquisadores, entendendo ser este um processo de mão
dupla que vai de dentro para fora e de fora para dentro das escolas (1998, pp. 9 e 10).
A proposta que encampei foi de pertencimento, responsabilidade, e de contemplar o que
se faz e se pode fazer no cotidiano escolar, estando em meio às redes tecidas pelos sujeitos da
escola, nas quais as interações ocorrem a todo o momento, com todos os envolvidos, os
“praticantes ordinários”. Havia, também, o desejo de ser entendida fazendo parte do grupo, estar
com os sujeitos da escola. Assim, problematizei o brincar vivenciado na escola pesquisada e
referido pelos autores citados nesta pesquisa, assim como parte do Referencial Curricular
Nacional da Educação Infantil, não como forma de avaliação e rotulação, mas como uma
proposta a ser compreendida por todos os envolvidos.
Falar sobre os sujeitos das escolas requer de nós pesquisadores com o cotidiano assumir
a necessidade de falar com esses sujeitos. De fato, estamos defendendo a idéia da
impossibilidade de falar sobre os sujeitos das escolas se não nos dispomos a falar com
eles (FERRAÇO, 2004, p. 77).
Importa registrar também que, para este modo de pesquisar, de muito valeram leituras
realizadas especialmente após o Seminário Temático do semestre de 2005, promovido pelo
20
Programa de Pós-Graduação Mestrado em Educação nas Ciências UNIJUÍ, com a
participação do Professor Carlos Eduardo Ferraço.
As preocupações que se colocaram para esta pesquisa, depois de certo tempo de convívio
com os praticantes ordinários, foram:
tomar contato e, num processo de envolvimento, conviver com o cotidiano da escola,
para analisá-lo como parte que “inventa a escola”
7
e, então, conhecer, compreender e
diferir
8
;
considerar todo o contexto do brincar no cotidiano escolar da Educação Infantil
(espaço, tempo, projetos), como também perceber as brincadeiras além do instituído
pela escola, do programado pela professora, conhecer e compreender as brincadeiras
inventadas, burladas pelas micro-resistências das crianças, como praticantes ordinários;
por fim, ao perceber essa totalidade contextual do brincar, inserido no processo de
cuidar e educar, levar em conta as marcas culturais que perpassam as brincadeiras: as
programadas para acontecer na escola (culturas escolares); as decorrentes da
industrialização e da mídia (culturas societais); enfim, as diferentes relações de culturas
(de pares e locais) perceptíveis que se estabelecem no ato de brincar, a fim de levantar
possibilidade de rentabilizar
9
a construção, social e cultural ordinária.
As preocupações listadas para esta pesquisa tentam considerar o que SILVA nomeia como
“desafios” quando está em jogo pesquisa com crianças.
[...] pensar os ambientes como campo de pesquisa partir de elementos dialógicos;
redimensionar o conceito de participação; realizar permanentemente, a reflexão
epistemológica sobre a relação sujeito-objeto no processo do conhecimento; realizar a
indagação epistemológica sobre o conceito de criança e infância, visando a superação da
concepção de criança, tal como sugerida por Locke, como uma folha em branco ou
tabula rasa” ou da idéia de in-fans” (aquele que não deve falar) (SILVA, 2006, p 10).
7
Expressão usada por Ferraço, dando a interpretação de que os sujeitos da escola são praticantes que inventam a
escola a cada dia no seu cotidiano (2004, p. 78).
8
A intenção de trabalhar com os três aspectos por último citados, conhecer, compreender e diferir, veio da obra
Currículo: pensar, sentir e diferir, da qual faz parte artigo do professor Carlos Eduardo Ferraço, utilizado nesta
pesquisa. Os verbos referidos são impregnados dos sentidos dados por Certeau e Ferraço: inventa-se com o cotidiano
e, portanto, as coisas não são acabadas. Assim, o cotidiano da escola é inventado pela cultura ordinária dos seus
praticantes, com suas micro-resistências para as suas microliberdades.
9
Termo emprestado de DELGADO e MÜLLER (2005, p. 13), que exprime o sentido de participação das crianças na
construção do conhecimento de seus mundos sociais e culturais.
21
Enfim, este trabalho tentará relatar a história de uma desacomodação relativa ao que se
pensa e se faz com o brincar na escola de Educação Infantil, para além das brincadeiras propostas
pelas professoras na forma de atividade pedagógica, bem como considerar o que constitui cada
um de nós, dos vários lugares onde vivemos. Os registros objetivam mostrar a caminhada do
trabalho de pesquisa para a escola e a da escola no cotidiano, implicada com seus sujeitos, seus
“praticantes ordinários”, que são locais e, concomitantemente, globais, por isso manifestam
culturas em ambos os níveis.
Particularmente, como professora e pesquisadora, penso que fazemos muito enquanto
escola, porém ainda temos muito a aprender e a fazer. Por isso, optei por não apontar faltas ou
erros, mas sim considerar o que fazemos de positivo e o que poderíamos compreender melhor,
para então, quem sabe, diferir, fazer diferente.
2 O CAMINHO PARA A E DA ESCOLA
2.1 Por que as escolas da rede municipal de Educação Infantil de Santo Ângelo-RS?
Optei por priorizar investigar com as escolas da rede municipal porque a Constituição da
República Federativa do Brasil prevê atribuição para a educação pré-escolar aos Municípios, no
artigo 30, inciso VI
10
, e também por entender que a educação infantil da rede pública municipal
de Santo Ângelo, Rio Grande do Sul, merece ser vista e sonhada pelos envolvidos (escola e
comunidade), numa dimensão diferenciada de comprometimento e de otimismo, para dar
melhores condições de educação para as crianças e de trabalho para os professores, funcionários e
pais.
Com essa visão de pertencimento, comprometimento e otimismo em relação às questões
da educação, acabei por me engajar numa pesquisa colaborativa, perspectiva surgida depois de
certo tempo de convivência, pois, inicialmente, minha opção metodológica era outra. Acredito
que a escolha de uma pesquisa colaborativa ocorreu também porque fui acolhida e, de certo
modo, escolhida pelos sujeitos da escola.
Priorizar as escolas de educação infantil da rede municipal tem uma dimensão que, como
pesquisadora, considero importante, pelas opções teóricas feitas para este trabalho, que são
possibilidades desenvolvidas em obras de Michel de CERTEAU (1994; 1996) e Carlos Eduardo
FERRAÇO (2004; 2005), resultantes de pesquisas com escolas e com cotidiano.
A preocupação com as crianças não é recente. Muitos estudos se engajaram, numa
caminhada acenada, no Brasil, ainda na década de trinta, por Anísio Teixeira, quando defendia e
priorizava a escola primária para todos, popular de qualidade: “a filosofia da escola visa oferecer
à criança um retrato da vida em sociedade, com as suas atividades diversificadas e o seu ritmo de
‘preparação’ e ‘execução’, dando-lhe as experiências de estudo e de ação responsáveis”
(TEIXEIRA, 1994, p. 165).
10
O Art.30, inciso VI, impõe manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de
educação pré-escolar e de ensino fundamental. A Resolução n. 71, de 10-6-2001, do Conselho Nacional de Direitos
da Criança e do Adolescente.
23
Trago tais contribuições para reforçar a razão da minha escolha do objeto da pesquisa, ou
seja, uma escola da rede municipal de educação infantil. Na perspectiva anisiana, o Município é
a base local de operação, por poder assim ser considerado e planejado de acordo com o regional:
“[...] tem de ser instituição essencialmente regional, enraizada no meio local, dirigida e servida
por professores da região, identificada com os seus mores, seus costumes” (TEIXEIRA, 1994, p.
64). Ainda hoje, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) atribui aos Municípios a educação de base, no
caso, a Educação Infantil, pela possibilidade de estar perto, de conhecer a realidade e tratá-la na
mesma forma local.
2.2 O caminho percorrido para a chegada na escola
Após decidir-me pela rede municipal, a primeira iniciativa foi dirigir-me até a Secretaria
Municipal de Educação (SMED) de Santo Ângelo, no mês de setembro de 2005, para tratar da
possibilidade e da autorização para a realização do Projeto de Pesquisa, bem como a fim de
conhecer as escolas e, posteriormente, optar por uma delas para efetivar a pesquisa de campo, a
ser protagonizada pelos sujeitos da escola.
Fui acolhida pela Secretária Municipal de Educação e sua equipe, tendo recebido a
autorização (ANEXO 1) para a realização da Pesquisa. Foi-me entregue a listagem das escolas da
rede municipal de Educação Infantil daquele município, com seus respectivos endereços, número
de telefone e nome das professoras coordenadoras responsáveis por cada uma delas (ANEXO 2).
A rede municipal de Educação Infantil de Santo Ângelo contava com vinte e duas (22)
escolas, dentre as quais: três (3) atendendo crianças de zero a seis (0 a 6) anos de idade; duas (2)
escolas atendendo crianças de quatro a seis (4 a 6) anos de idade; as demais escolas, em sua
maioria, em número de dezessete (17), estava atendendo crianças de dois a seis (02 a 06) anos de
idade. As escolas de Educação Infantil do Município de Santo Ângelo estão todas localizadas no
perímetro urbano, ou seja, nos bairros e no centro.
A identificação dessas escolas aconteceu a partir de visitas realizadas por mim a cada
instituição, considerando a localização, a estrutura (espaços físicos) e o público atendido;
momento, pois, de reconhecimento da realidade externa das escolas. Foi possível identificar, por
essa breve visita, o que as escolas tinham em comum (localização, estrutura e público), não se
24
considerando, então, o trabalho desenvolvido no cotidiano delas, como ações e relações
pedagógicas.
Tive a intenção de trabalhar com o que poderia ser uma amostra da rede municipal de
educação infantil do Município de Santo Ângelo. Duas escolas foram de pronto eliminadas,
sequer sendo objeto das observações, por serem consideradas pela SMED como “modelo”, tendo
passado por reformas nas instalações e ficado com ótimas condições de funcionamento; não
serviriam, portanto, para representar aquela rede.
Duas escolas não continuaram na amostra por funcionarem em locais improvisados ou,
melhor dizendo, emprestados. Uma delas era instalada em uma igreja de um dos bairros, havendo
a necessidade de, aos finais de semana, o material de uso da escola ser recolhido para dar espaço
aos cultos religiosos. Outra funcionava em espaço em que antes funcionava uma padaria.
Segundo contaram algumas pessoas da comunidade, as crianças foram “se achegando” nesta
suposta padaria para ganhar pão, acabavam ficando e brincando umas com as outras. As relações
foram se estabelecendo, de forma que aquele local passou a ser o lugar onde as mães deixavam as
crianças. Passado algum tempo, o Município passou a destinar funcionários para atender essas
crianças, dando forma de creche ao local, evoluindo para uma escola de Educação Infantil.
As demais instituições, que constituem a rede de Educação Infantil do Município, são
escolas pequenas que possuem uma estrutura com salas, que funcionam ora como sala de aula,
ora como refeitório, senão como dormitório; possuem, ainda, cozinha, banheiro e pátio. Com a
observação dessas escolas remanescentes, outras mais foram descartadas, pois não se encaixaram
nos critérios por mim estabelecidos para investigação preliminar da proposta de Pesquisa.
O primeiro critério para a escolha foi o atendimento de crianças na faixa de dois a seis (2 a
6) anos de idade. Com isso, ficaram excluídas três escolas com berçário. Esse critério acabou
sendo parcialmente afetado pela entrada em vigor da Lei 11.274/2006, que limitou o acesso às
escolas de Educação Infantil aos cinco (5) anos de idade.
O segundo critério foi a localização das escolas. Como a maioria delas se localiza em
bairros, sendo apenas duas (2) centrais, a escolha recaiu em escola situada em um dos bairros do
Município de Santo Ângelo.
25
Quanto ao terceiro, ao visitar as escolas dos bairros, observei e segui também o critério
das instalações, dos espaços disponíveis para o funcionamento das escolas. Com isso, outras mais
foram excluídas da pesquisa.
Por fim, considerei um critério que teve relação com a classe social dos usuários, dos
sujeitos que compunham as escolas da rede municipal. As escolas ficam localizadas em bairros
que atendem as crianças de classes populares. As crianças que, de modo geral, são filhas de pais e
mães trabalhadores, constituíam uma população de interesse, que esse é um dos critérios que as
escolas de Educação Infantil do município adotavam, havendo prioridade para as famílias mais
carentes, depois para as mães trabalhadoras e, por fim, para aqueles em situação de proximidade
de residência com a escola. É relevante que se mencione aqui que o bairro onde a escola
escolhida está localizada conta com mais outras duas escolas para atender a demanda, sendo que
uma delas é da rede municipal e atende inclusive berçário, e a outra é da rede estadual. Assim,
não há falta de vagas nesta realidade pesquisada.
Dados obtidos nas fichas das crianças da escola demonstram que três pais estavam
desempregados e, no momento, as mães sustentavam essas famílias trabalhando como
empregadas domésticas. Os demais trabalhavam em: auxiliar de serviços gerais, vigilante,
padeiro, motorista, eletricista, policial, papeleiro e um cumpre pena com liberdade provisória.
Quanto às mães, a maioria trabalha como empregada doméstica e faxineira, sendo que
parte delas não tem carteira de trabalho regulamentar. Ainda assim, a vaga na escola fica
assegurada, pois a escola não exige atestado de trabalho reconhecido em cartório, como em geral
se faz, uma vez que reconhece a realidade das famílias. O que se requisita, sim, é apenas o
preenchimento de uma ficha com endereço do trabalho.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), consultado na data de 02
de agosto de 2007, revelam que 29,73% das pessoas maiores de 10 anos, no município de Santo
Ângelo, não possuem rendimentos. Porém, tais dados não esclarecem a questão da carteira de
trabalho regularizada e da faixa etária, portanto, é possível apenas supor que neste percentual
estão inclusas as pessoas que não têm carteira de trabalho assinada.
Com esse elenco de critérios, acredito ter chegado ao que, na minha leitura da realidade,
representa a média das escolas de educação infantil de Santo Ângelo. São instituições localizadas
em bairros populares da cidade, que atendem crianças de dois a cinco (2 a 5) anos de idade. São
26
escolas que apresentam uma razoável estrutura física (com sala, cozinha, banheiro e pátio, bem
como uma equipe mínima de pessoal: coordenadora pedagógica, professora, atendente e pessoal
de serviços gerais). Tais características são semelhantes entre as escolas, constituindo a maioria
do município.
Chegou-se, então, à amostra, e a opção foi pela Escola Municipal de Educação Infantil
Carinho, localizada no bairro Rogowski. A direção da escola manifestou o desejo de que o nome
da escola ficasse registrado no trabalho, pois entendem que a pesquisa foi produtiva para ambas
as partes – pesquisador/pesquisados –, não tendo, pois, motivos para se usar nome fictício.
2.3. A minha chegada à escola como pesquisadora.
“Tia, tu qué entrá no meu barco?”
11
Com essa pergunta fui convidada, por uma das crianças, para brincar. Foi gico, um
sonho. O barco a que o menino se referia era um desenho de tal figura, feito por ele na calçada da
rua em frente à escola. Era uma tarde ensolarada e a professora os levou para brincar à sombra de
uma árvore no local. A escola está localizada em uma travessa sem saída, onde pouco
movimento, o que permite que as crianças circulem nas calçadas e na rua. A Figura 2.3 ilustra a
cena descrita.
Muitas eram as preocupações que me envolviam, como pesquisadora, especialmente com
a chegada à escola: a receptividade dos sujeitos que estavam (coordenadora, professoras,
atendentes, merendeira, servente, estagiária e, principalmente, as crianças); a viabilidade de o
tema ser pesquisado naquele espaço; a legitimidade teórico-metodológica; a vigilância de um
olhar pesquisador, dentre outras.
11
Convite feito por Davi, nome fictício de menino de 5 anos de idade. Optei por não fazer a correção da redação da
fala do menino, mantendo-a em sua forma original: qué =queres” e entrá = entrar”.
27
Figura 2.3.1. Registro das crianças brincando, em horário de aula, com a professora, na calçada
da rua, à sombra da árvore.
Os desafios que eu vislumbrava eram muitos. A entrada na escola escolhida se constituiu
em um dos momentos mais importantes da pesquisa: a procura era de mais do que uma
autorização da escola para coleta de dados; era, antes, por um espaço de aceitação e de acolhida.
A esse respeito, TAVARES discorre:
Desejava conhecer a escola, compreendê-la em seus diferentes movimentos, perceber se
as redes de significações, seus processos constitutivos, enxergando-a como um espaço
sociocultural, atravessado pela ótica da(s) diferente(s) cultura(s) presentes em uma
sociedade multicultural como a nossa. (2003, p. 45)
Ao tratar das questões éticas da Pesquisa, referentes à minha incursão naquele ambiente,
tratei de obter o consentimento da equipe da Escola, na pessoa da Coordenadora, bem como a dos
pais, conforme expõe o ANEXO 3 e o ANEXO 4, respectivamente.
Iniciei o trabalho de pesquisa na escola sem saber muito bem como realizar a
investigação; era uma grande preocupação que me acompanhava. Tive, no entanto, sempre a
expectativa de um “abrir-me” para poder perceber a escola e seus atores. Freqüentei a escola por
dois meses, com a finalidade de verificar os movimentos da casa, conhecer e ser conhecida. Foi aí
28
que tive acesso a um artigo de Maria Tereza Goudard Tavares (2003) intitulado Uma escola:
texto e contexto, referindo-se às tensões que envolvem o pesquisador. Inspirada também nesse
escrito, passei a desenrolar a minha Pesquisa.
A “chegada da estranha”
12
na escola provocou, mesmo sem a intenção, mudanças de
comportamento entre as crianças. Todas queriam se mostrar e, por um determinado tempo, tornei-
me o centro das atenções; todos queriam brincar comigo e mostrar suas habilidades. Com o
passar dos dias, a situação foi voltando à normalidade. Também precisava me preparar para a
operação de “caça”
13
voltada aos objetivos da pesquisa, buscar estratégias metodológicas que me
possibilitassem ter uma escuta e um olhar sensível e interessado, de modo que não me perdesse
pelo vasto campo em que acabava de me inserir. Esse campo era a escola, espaço privilegiado,
que pode ter uma definição bastante intrigante: “A escola, etimologicamente do grego skholé
(lugar do ócio), isto é, espaço de reflexão desinteressada sobre as coisas do mundo, é
ressignificada em nosso trabalho como um espaço sociocultural, permeado pelo confronto de
interesses” (TAVARES, 2003, p.58).
No exercício de investigar a escola e na busca de uma metodologia que me permitisse
circular, viver com o cotidiano, num trabalho construído em parceria, como refere Belmira
Bueno, encontrei suporte na pesquisa colaborativa, como já mencionado.
É importante ressaltar que o propósito não era o de eliminar diferenças, em si mesmo
impossível, mas sim o de favorecer trocas e compartilhar conhecimento. Efetivamente,
admitimos desde o início que as diferenças que nos marcaram constituíam-se nos
elementos que poderiam favorecer a colaboração na pesquisa, criando uma interação
entre nossos dois profissionais (BUENO, 1998, p. 13).
Guiada pela “pretensão de caça” no espaço da escola, com seus protagonistas, tive como
objetivo inicial conhecê-la, compreendê-la em seus diferentes movimentos, perceber o modo pelo
qual o brincar se estabelece como processo, num espaço sociocultural que é definido, permeado
pelas diferentes culturas
14
em comunicação. Relatar toda a minha trajetória de pesquisadora nessa
escola é praticamente impossível, pois são várias as vivências. A intenção da pesquisa não é
12
Expressão usada por TAVARES (2003, p.47).
13
Expressão usada por CERTEAU (1994, p. 259) e por TAVARES (2003, p. 44), fazendo alusão a operações
demandadas no movimento de pesquisa, que podem vigiar, não no sentido de controle, mas de abertura à pesquisa.
14
Por diferentes culturas”, faço referência às culturas societal, local, de pares e escolares, de acordo com Sarmento,
citado por DELGADO e MÜLLER (2005, p. 7).
29
contar tudo, mas dar ênfase aos aspectos que me interessavam de acordo com os objetivos da
pesquisa.
Na pesquisa relato algumas situações que considerei importantes: a aceitação da minha
presença por todos, passando pela Secretaria Municipal de Educação (ANEXO 1), direção da
escola (ANEXO 3), professoras, crianças, funcionárias e familiares (ANEXO 4); as conversas
informais que fazíamos (com professoras, funcionárias, crianças, familiares); as interações com as
crianças (de um modo diferente daquele que estavam acostumadas:tu é tia ou profe?”, uma
profe que brinca junto, que não é a responsável pela orientação e organização); e assim por
diante. Para os pais, num primeiro momento, até que as conversas informais e o pedido de
autorização individualizado não se concretizasse, eu era uma professora estranha na escola (“ela
não é do Município mas trabalha aqui, ou vem de vez em quando”), uma “profe” que “não
aulas, mas está aqui na escola ajudando”. Relato e analiso também os momentos em que tratamos
do Plano Político Pedagógico, em que trocamos experiências e idéias. Muitas trocas foram
acontecendo, algumas terei a oportunidade de registrar, conforme referi acima, de acordo com a
proposta da Pesquisa.
Enquanto o trabalho de campo se constituía com os sujeitos, muitas relações foram se
estabelecendo, tendo merecido o registro, pela sua relevância, as relações nas redes de
fazeressaberes
15
tecidas no cotidiano da escola. Nessa perspectiva, no cotidiano, quero trazer para
a pesquisa a escuta dos sujeitos, dos protagonistas da escola, dos que praticam a realidade, para, a
partir dessa escuta, perceber no cotidiano escolar “os processos contra-hegemônicos” de políticas
educacionais, como sugere SANTOS (2000).
Considerando todas as relações que estabeleci com as crianças, com a equipe de
professores, funcionários e familiares, relações essas de proximidade, questionamento e
compromisso com tais protagonistas da educação, em determinado momento surgiu-me
preocupação e dúvida sobre “objetividade científica”: precisaria eu manter neutralidade em
relação aos sujeitos da pesquisa? Tal questão, para mim, como pesquisadora, estava posta, que
eu me dispunha a participar do/no cotidiano da escola para investigar o brincar. Para a resposta,
15
Termo usado por Ferraço (2005, p.15). O autor faz a junção das palavras inspirado em Nilda Alves (1998), na
tentativa de, ao unir palavras, inventar significados decorrentes da junção.
30
encontrei suporte e apoio no trabalho de FERRAÇO (2005), em Cotidiano escolar, formação de
professores(as) e currículo, ao sustentar que:
Em nosso entender, não outro modo possível de pesquisar a complexidade da
realidade educacional se não nos dispusermos a estabelecer relações horizontais,
democráticas e de compromisso e autoria dos conhecimentos tecidos nas pesquisas com
os educadores e estudantes que habitam a escola. Ou seja, para os pesquisadores
no/do/com o cotidiano, os sujeitos pesquisadores não se reduzem a um objeto de
conhecimento compartimentado em categorias a serem traduzidas em instrumento de
coleta de dados para posterior análise quantitativa, ou mesmo qualitativa, que os colocam
como citações ou como exemplos da deficiência ou da eficiência, da falta ou da
presença, do compromisso ou do descompromisso, entre tantos outros binários possíveis,
aventados pelo “marco teórico” adotado pelo pesquisador (2005, p. 9).
Essa possibilidade de proximidade entre pesquisador e pesquisados permitiu-me uma
responsabilidade e também certa tranqüilidade para trabalhar o cotidiano escolar, as “relações nas
redes de fazeressaberes nele tecidas, como refere o autor. Estando mais próximo e
compromissado, ao pesquisador é possível pensar as questões da escola com mais abrangência,
no campo empírico e teórico.
O que trouxe à tona a preocupação do meu envolvimento com as questões atinentes ao
dia-a-dia da escola foi o fato de, desde o primeiro dia de entrada na escola, as crianças terem
percebido minha presença e me chamarem para interagir com elas.Professora, vem comigo!
Professora, brinca comigo! Vem com a gente! Vamos faze casinha!, Onde tu mora?, Tu tem
filho?, Tu vem amanhã?, Me ajuda? Qué conhece onde eu moro?”. Era praticamente impossível
permanecer distante das crianças e de sua vida cotidiana.
Com a equipe das professoras e funcionárias ocorriam conversas periódicas, com trocas de
opiniões variadas, por exemplo: colocação de uma parede divisória em uma sala de aula, plantio
de árvores nas proximidades da escola e na própria, disponibilidade de brinquedos, discussão
quanto ao planejamento pedagógico, intercâmbio de livros e textos e organização de eventos
(Páscoa, Dia das Mães, Festa Junina etc.). Também seria difícil ficar alheia ao contato informal
com os familiares, quando estes trazem ou buscam as crianças na escola. Há, portanto, uma série
de fatos e relações que envolvem uma pesquisa no âmbito escolar e que não podem ser tomadas
fora desse contexto.
31
FERRAÇO (2005) traz a questão do envolvimento dosujeitopesquisador
16
com o
cotidiano, na dimensão derealizadofaladopensado”, de aquele se assumir como pertencente a
diferentes redes, e que os momentos que passamos dentro da escola sirvam não apenas para
observar, mas interagir das mais diferentes formas, como grande contribuição da pesquisa para os
nossos “fazeressaberes”.
O que era e é preocupação com essa proximidade relativa ao campo pesquisado parece ter
apontado para questões importantes, a serem refletidas neste trabalho e que propõe problematizar
o brincar com o cotidiano escolar da educação infantil. A escola, a que nos referimos nos dias de
hoje, é parte do presente e também do passado da sociedade; assim, não está isenta das
influências capitalistas e de consumo, que vêm com a modernidade e a industrialização. É de se
ponderar, ainda, que a geração infantil”
17
deve ser considerada, conforme propõe SARMENTO
(2005, p. 363), “uma categoria estrutural relevante” na constituição da sociedade.
Estratégias de mídia e de consumo são lançadas diariamente para diferentes faixas etárias,
e aqui se inclui o público infantil. É nesse contexto que quero perceber suas micro-resistências,
suas formas de se valer dos brinquedos produzidos pela indústria, frente aos respectivos ensinos
pela mídia sobre como fazer, percebendo, portanto, como inventam suas maneiras próprias de
brincar. Também quero considerar a interação do adulto com a cultura infantil, na passagem das
brincadeiras de gerações, na influência para com os artefatos infantis que são produzidos pelos
adultos, entre outras formas de interação.
Conforme enfatiza SILVA,
[...] as crianças e os adultos devem ser vistos como uma multiplicidade de seres em
formação, incompletos e dependentes, que é preciso superar o mito da pessoa autônoma
e independente, como se fosse possível não pertencermos a uma complexa teia de
interdependência, superar os reducionismos sociológico e psicológico, assim como no já
citado dualismo adulto-criança, com vistas a intensificar a interdisciplinaridade dos
estudos da infância, incluindo neste processo a psicologia crítica, na busca de um diálogo
(mediações) que explore pontos em comum e diferença, como tamm um envolvimento
com as ciências médicas e biológicas; aprofundar os conceitos de imaginário e
representação social e, por fim, o conceito de etnografia e seus métodos aplicativos às
pesquisas com crianças (2006, p. 10 e 11).
16
Ferraço utiliza expressões unindo palavras na tentativa de, ao unir palavras, buscando não superar a dicotomia
presente mas, sobretudo, inventar outros tantos significados decorrentes da junção das mesmas (2005).
17
geração infantil” – termo usado pela sociologia da infância.
32
Essa é a perspectiva de tratar a interação do adulto e da criança, no sentido de criticar o
dualismo criança-adulto.
2.4 “Como é nossa escola?” A escola na visão dos “praticantes ordinários”.
O dia-a-dia se acha semeado de maravilhas, escuma tão
brilhante (...)” (CERTEAU, 1994, p. 18).
Nesta dissertação trago a descrição da escola através do olhar das crianças, das
professoras, das funcionárias, dos pais, mostrando como a escola é hoje e como ela era. Meu
olhar para esse movimento, como pesquisadora, esteve marcado pelo comprometimento e
otimização das relações entre os sujeitos que fazem o cotidiano escolar.
Para que eu pudesse captar dos envolvidos crianças, professoras, funcionárias e pais
como é a escola, houve um trabalho realizado pelas professoras junto aos alunos, com o objetivo
de que eles pudessem expressar como se sentem na escola. Minha observação foi participante,
tive uma conversa com uma das professoras e com uma das funcionárias a respeito da
possibilidade de registros práticos por parte das crianças.
O trabalho com as crianças consistiu em uma expressão de como vêem sua escola e o que
gostam de fazer nela, através de representação gráfica e de suas falas. Logo que a professora
disponibilizou algumas folhas em branco e lápis colorido, as crianças foram logo desenhando
aquilo de que mais gostavam de brincar na escola. Quase todas se desenharam brincando no
parquinho, com complementações do tipo: “eu e minha boneca no parquinho”, “eu e os powers
no parquinho”. Algumas, num segundo plano do desenho, se colocaram fazendo trabalhos em
sala de aula.
33
Figura 2.4. 1 Desenho de uma das crianças que se desenhou brincando no parquinho, com sua boneca
As crianças foram, ainda, questionadas pela professora: “Mas e a nossa escola como é?”,
pergunta que suscitava que as crianças manifestassem outras “coisas”, além do gosto e da escolha
pelo parquinho. Prontamente, todos passaram a desenhar o prédio da escola, seus detalhes de
portas, janelas e telhado, com acentuada preocupação para que a obra ficasse muito colorida:
"bem bonita, pofe" (expressão usada pelas crianças). Tanto na fala da professora quanto na
representação gráfica dos alunos, ficou nítida a relevância por eles posta do espaço escolar como
uma expressão cultural e material. Nesse sentido, põe-se em relevo estudo realizado no Rio de
Janeiro, por TAVARES:
Com efeito, a arquitetura escolar é um elemento cultural e pedagógico do currículo
escolar, não pelos efeitos que suas estruturas induzem, mas, sobretudo, pelo papel
simbólico que desempenha na vida individual e social de cada sujeito e de um grupo
social (2003, p. 49).
34
Figura 2.4.2. Desenho de uma criança que representa a escola (prédio) em seus detalhes de janelas,
telhado, portas e outros.
Após a realização da atividade das crianças questionadas pela professora, eu, como
pesquisadora, questionei a professora perguntando: “Como é a nossa escola para ti?” A resposta:
trabalhei em outras escolas e sei como é, gosto daqui porque a escola é
pequena, não tem competição, o que tem é parceria e amizade entre as colegas.
Os pais são motivadores, elogiam o nosso trabalho, nas apresentações da
escola eles valorizam e participam. Aqui, quando a gente precisa, os pais
ajudam, estão sempre dispostos. E as crianças, tu sabes, elas são ótimas, não
temos problemas (2006).
Nessa fala, a professora faz uma consideração importante, ao se referir à sua escola como
sendo diferente das outras pelas quais ela passou, por ser uma escola pequena. Ao atribuir
como qualidade o fato de “ser pequena”, acredito que elegeu ela a proximidade entre pais,
professores e crianças como sendo um elemento facilitador das relações e do andamento dos
trabalhos. Aqui vêm à mente os escritos de Milton Santos, aludindo a ser cidadão num lugar: “a
possibilidade de cidadania plena das pessoas depende de soluções a serem buscadas localmente,
35
desde que, dentro da noção, seja instituída uma federação de lugares, uma nova estruturação
político-territorial” (SANTOS, 2000, p. 113).
A funcionária
18
, em uma conversa ao redor do fogão da escola, de forma despretensiosa
contou: “Aqui eu me achei, fiz muita coisa na vida, sempre gostei de criança, tenho uma coisa
com elas, não sei explicar, e gosto de cozinhar, então deu certo, me achei, gosto de trabalhar
aqui, estar no meio da gurizada, de ajudar”. Nas observações, tive a oportunidade de constatar
que a funcionária, ao servir as refeições para as crianças, tinha como hábito rezar em
agradecimento junto com elas (“Papai do céu, obrigado por nosso lanche café da manhã,
almoço; em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém”). Esse fato revela o envolvimento
da funcionária com o que faz, pois, além de trabalhar com dedicação, o fazia transmitindo “seus
valores e culturas”, integrando-se à constituição do dia-a-dia vivido pelas crianças.
Nesse episódio que descrevi, como em outros semelhantes vividos na escola, por crianças
e adultos, entrelaçam-se em relações de consenso, de negociação, de desencontros e reencontros,
de cultura, de relações sociais. As histórias de vida de cada um se entrelaçam pelo convívio. A
história de vida e de religiosidade da funcionária é estendida para a vida dos demais que
compartilham aqueles momentos, de oração antes das refeições.
De forma bastante sucinta, essa é a narrativa de como é fazer parte dessa escola, o
sentimento de pertencimento de algumas pessoas que, cotidianamente, constituem sua história.
Evoca-se aqui a idéia de Ferraço, dando importância à dimensão do que é vivido nesse cotidiano
escolar, em meio às situações do dia-a-dia, por entre os fragmentos das vidas vividas:
Essa dimensão do que é, de fato, realizadopensadofalado no mundinho dos cotidianos
das escolas nos permite, enquanto sujeito-pesquisador, além de poder afirmar que o local
tem importância, poder pertencer a diferentes redes que expressam o entremeado desses
saberfazer cotidianos, associados aos diferentes espaçotempos vividos pelos sujeitos
(FERRAÇO, 2003, p. 83).
Percebi, enquanto sujeito-pesquisadora, que as relações estabelecidas no dia-a-dia dessa
escola (a partir do engajamento dos profissionais para além daquilo que suas profissões
exigiriam) constituíam diferenciais importantes, situados no compromisso e no envolvimento,
que passa pelos valores culturais vividos na escola, enquanto instituição pertencente à
comunidade ou ao bairro que, de uma forma ou outra, estão envolvidos com o dia-a-dia da escola.
36
A escola pesquisada funciona em turno integral, das sete horas e trinta minutos (7h30min)
às dezoito horas (18h). As crianças, nesse período, recebem atendimentos educacionais e
cuidados gerais (alimentação, higiene, soninho e médico, quando necessário). É importante
considerar, nessa sistemática, a desmistificação do educar e cuidar, o que a coordenadora fez
questão de esclarecer em suas falas e nos registros da escola.
Todos os momentos podem ser pedagógicos e de cuidados no trabalho com crianças de
zero a seis anos . Tudo dependerá da forma como se pensam e se procedam às ações. Ao
promovê-las proporcionamos cuidados básicos, ao mesmo tempo em que atentamos para
construção da autonomia, dos conceitos, das habilidades, do conhecimento físico e social
(BARBOSA e HORN, 2001, p. 70).
As crianças são agrupadas em: uma turma do maternal, em turno integral, com idades de
dois e três anos, número total de 21 (vinte e uma); uma turma da pré-escola, no turno da manhã,
com idades de quatro e cinco anos, totalizando 14 (catorze) crianças; e uma turma da pré-escola,
no turno da tarde, com 16 (dezesseis) crianças. Tal divisão procura atender a demanda decorrente
da Lei 11.114, de 16 de maio de 2005, que determina alteração nos artigos 6º, 32 e 87 da Lei de
Diretrizes Básicas da Educação Nacional (LDBEN), instituindo a matrícula dos alunos de seis
anos de idade no ensino fundamental.
Ao tentar descrever como é a escola, inevitavelmente se narra como são organizados os
tempos e espaços dela, o que pressupõe pensar, planejar e organizar. A escola pertence ao e é
atravessada pelo mundo contemporâneo, no qual as crianças participam e partilham culturas da
infância e dos adultos. Portanto, ela necessita de uma organização que comporte a gama de
necessidades que as crianças requerem. As autoras Barbosa e Horn esboçam esse princípio em
Organização do espaço e do tempo na Educação Infantil”:
Organizar o cotidiano das crianças na Escola Infantil pressupõe pensar que o
estabelecimento de uma seqüência básica de atividades diárias é, antes de mais nada, o
resultado da leitura que fazemos do nosso grupo de crianças, a partir, principalmente, de
suas necessidades. É importante que o educador observe o que as crianças brincam,
como estas brincadeiras se desenvolvem, o que mais gostam de fazer, em que espaço
preferem ficar, o que lhes chama mais atenção, em que momento do dia estão mais
tranqüilos ou mais agitados. Este conhecimento é fundamental para que a estruturação
espaço-tempo tenha significado. Ao longo disso, tamm é importante considerar o
contexto sociocultural no qual se insere a proposta pedagógica da instituição, que lhe
deverá dar suporte (BARBOSA e HORN, 2001, p. 67).
18
A escola conta com duas funcionárias; na citação acima, refiro-me a uma delas, a que realiza os trabalhos de copa.
37
Esta organização e planejamento, para as autoras, são a garantia de que as atividades
realizadas não se transformarão numa monótona seqüência, que nada tem a ver com o grupo de
crianças.
A escola que fora objeto da Pesquisa não trazia um projeto político pedagógico registrado
pela própria equipe pedagógica, o que demonstrava que as integrantes dessa buscavam organizá-
lo de acordo com a sua realidade. O que existia era um acompanhamento sem adequações ao
Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, conforme revelaram os depoimentos da
coordenadora e das professoras.
Pelas observações que fiz, a organização recomendada pelas autoras citadas é observada e
feita na medida em que os espaços escolares permitem. Tal aspecto aponta para um brincar que
considera o educar, questão que trago para reflexão no decorrer do trabalho. Durante as
observações desta Pesquisa, no primeiro semestre do ano de 2006 foi elaborado um Projeto
Político Pedagógico para a escola, no qual eu, pesquisadora, tive a alegria de poder participar.
Num primeiro momento, apenas dei sugestões; posteriormente, participei dos estudos relativos ao
Projeto. Creio ter recebido essa abertura por parte da Coordenadora não pela amizade que
fizemos, mas especialmente por termos nos entregue a um trabalho sério, de comprometimento
com a educação das crianças que à instituição estavam confiadas. Então, pude confirmar o que o
Professor Ferraço falava em uma palestra, numa ocasião em que veio à UNIJUÍ: o quanto a
pesquisa pode trazer contribuições para a escola pesquisada, em seu desenvolvimento, e não ao se
encerrar para apresentação da dissertação. “Acontece tudo ao mesmo tempo e com todos!”
(FERRAÇO, 2005, p. 39). Acredito que este engajamento em prol da escola tenha sido
importante na caminhada de campo.
Voltando a relatar a história e a visão da nossa escola pelos seus “participantes
ordinários”, registro a referência da Coordenadora que, ao assumir a escola, em fevereiro do ano
de 2005, teve de fazer grandes mudanças em sua organização pedagógica e em sua estrutura
física:Teríamos de romper hábitos antigos e também mudar totalmente o ambiente da escola,
que estava suja, mal cuidada, sendo necessárias diversas adequações nas instalações e na
proposta de trabalho”. Essa fala, em tom de desabafo, revelou sua preocupação e seu
comprometimento, ao mesmo tempo em que anunciou um trabalho entrelaçando passado,
38
presente e futuro. “Memórias, histórias e narrativas refletem e refratam o mundo cotidiano,
criando na experiência e recriando na rememoração” (PÉREZ, 2003, p. 105).
A partir da gestão da referida Coordenadora, passaram a ser previstos, no cotidiano da
escola, momentos de convivência e de diversas atividades, envolvendo a jornada diária das
crianças e dos adultos que estavam: o horário de chegada, a alimentação, a higiene, o repouso,
as brincadeiras (jogos, faz-de-conta, imitativos, motores, exploratórios gráficos e plásticos, etc.),
livros de história, entre outros momentos desenvolvidos, fossem eles em espaços abertos ou
fechados. Todos esses momentos evidenciavam, dali em diante, as crianças como preocupação
central.
Essa preocupação está demonstrada pela equipe que trabalhava, oferecendo às crianças
atividades que atendiam suas necessidades biológicas e psicológicas. Disse-me a coordenadora:
Introduzimos outras atividades como a escovação dentária com orientação de profissional,
instigando o hábito, montamos o cantinho da leitura, o cantinho dos brinquedos”. Houve
também a preocupação de planejar atividades que envolvessem os familiares das crianças, como,
num primeiro momento, reformas no prédio para melhorias estruturais.Os pais se prontificaram
a pintar a escola e combinamos a data foram necessários dois finais de semana para pintar
tudo”. Para um segundo momento, relatou a coordenadora, a escola passou a proporcionar
possibilidades de informação para as famílias, organizando palestras sobre, por exemplo,
planejamento familiar, atendimento, informações e orientações com oftalmologista, trazendo,
também, a família para a escola, em datas comemorativas e em atividades extracurriculares.
A partir disso, deduz-se a necessidade de dar ênfase ao pertencimento a um local no
mundo, considerando o cotidiano. Faz-se, aqui, uso dos escritos de SANTOS (1996, p. 252), que
referem uma “redescoberta da dimensão local”, uma possibilidade de reconhecermo-nos enquanto
sujeitos de um sistema social, que tem unidade e se opõe ao individualismo e a uma idéia de
globalização massificadora e uniforme.
Para aprender essa nova realidade do lugar, não basta adotar um tratamento localista, já
que o mundo se encontra em toda a parte. Tamm devemos evitar o risco de nos
perder em uma significação cega”, a partir de uma noção de particularidade que apenas
leva em conta os fenômenos gerais dominados pelas forças sociais globais” (GEORGES
BENKO apud SANTOS, 1996, p. 252).
39
O presente trabalho também observou naquela comunidade o sentimento de
pertencimento, no sentido de que crianças, professoras, funcionárias e pais pudessem considerar a
escola como um espaço de todos, de modo a se sentirem bem ao vir até ela, reconhecendo sua
função e preservando as dependências.
Figura 2.4.3. Umas das ocasiões que os pais se reuniram para organizar novos espaços da
escola a fazer a divisória das salas.
2.5 Por que usei o termo brincar
Neste ponto da escrita, creio que seja importante explicar tanto a razão pela qual optei por
usar o termo “brincar”, ao invés de usar as expressões “jogo” ou “atividades lúdicas”, usadas por
alguns autores que referenciei no trabalho, bem como a opção pelas próprias referências ao
brincar, às vezes um brincar planejado, dando a idéia de brincar/educar, outras de um brincar
burlado. O principal motivo é a proposta de Pesquisa.
40
Propus-me a conviver com o cotidiano da escola pesquisada. Nessa, fala-se de brincar e se
percebe sua presença na fala das crianças:tia vamo brincá?”,eu brincá de power (caderno
de campo). Também a partir falas das professoras e das funcionárias se tem tal percepção, bem
como das falas das famílias:hoje vocês brincaram bastante? (caderno de campo). Se me dispus
a viver esse cotidiano como “praticante ordinária”, para conhecer, compreender e diferir, entendo
ser coerente com minha proposta a alusão ao “brincar”. Poderia ainda me inspirar em Alves e
Ferraço, unindo palavras para dar um sentido maior a elas, chegando a um “brincareducar”. Acho
que a idéia é desafiadora, mas para ser explorada noutro momento, para seguir fiel à proposta de
pesquisa. Considerei, ainda, a possibilidade a que BROUGÈRE alude (2000, p. 3), de “conhecer a
cultura infantil”, bem como a de SARMENTO, quando referencia a linguagem como base da
cultura infantil: “a relação que as crianças estabelecem com a linguagem, pela aquisição dos
códigos que configuram o real (nas interações familiares) e sua utilização criativa constitui a base
da especificidade das culturas infantis” (2003, p. 3).
Ao fazer essa escolha pelo termo “brincar”, não quer dizer que estou me opondo a
referenciais importantes, que são parte da história da conceituação do “jogo” e do “brincar”;
estou, sim, dando o significado na cultura dos participantes. A intenção do trabalho não está
centrada em torno da discussão dos termos “jogo” e “brincar”. O que quero pontuar aqui é a
denominação que usarei neste trabalho, haja vista que autores clássicos fazem referência aos dois
termos. Por exemplo, em Vigotski se pode ler que “no jogo, ela age de maneira contrária à que
gostaria de agir. O maior autocontrole da criança ocorre na situação de brinquedo” (1998, p. 131).
O autor, ao discorrer sobreO papel do brinquedo no desenvolvimento”, usa “jogo”, “brincar”,
“brincadeira”, “brinquedo”.
Por sua vez, CAILLOIS escreve que “a criança não fica por aí. Gosta de brincar com a sua
própria dor, tocando, por exemplo, num dente dolorido” (1990, p. 49). Faz uso, assim, do termo
brincar no contexto da sua obra “Os Jogos e os Homens”.
Ainda, dentro dessa postura de utilizar o termo brincar, uma questão que preciso pontuar é
a perspectiva do brincar na dimensão do educar. A visão de cotidiano, na escola que participei
como campo da Pesquisa, traz tal questão e não posso me isentar das discussões que se fez e se
faz em torno do brincar e do educar.
41
Um dos objetivos da pesquisa é a perspectiva de levar em conta as marcas culturais que
perpassam as brincadeiras, a fim de levantar possibilidades de rentabilizar a construção social e
cultural ordinária. Muitas discussões em torno do que é brincadeira e até onde ela vai, bem como
o que é a atividade dirigida pelo adulto, foram travadas. O que vi na escola e o que se escrito
em obras como:Jogo e Educação (1998);Brinquedo e Cultura (2004) eBrinquedos e
Companhia (2004) de BROUGÈRE; “A formação lúdica do educador”, de FORTUNA (2005a);
Sabores, cores, sons, aromas: a organização dos espaços na educação infantil”, de HORN
(2004). Alguns artigos incrementam a listagem:Vamos dar a meia-volta, volta e meia vamos
dar: o brincar na creche de ANDRADE (2000);Na escola infantil todo mundo brinca se você
brinca”, de DORNELLES (2001); e os Parâmetros Curriculares. São alguns exemplos de como o
brincar está institucionalizado na educação de crianças. E, com base nisto e nas observações feitas
na escola, quero perceber as possibilidades de rentabilizar o brincar, conhecendo o que circula
entre as crianças, de que elas brincam e com o quê elas brincam. Considerando a cultura adulta e
a cultura infantil como algo que não está desconectado, exclusivo e inatingível, mas sim, que elas
possam se cruzar.
Referencia clássica de HUIZINGA (1996), em “Homo Ludens”, define:
[...] o jogo é mais do que um fenômeno fisiológico ou um reflexo psicológico. Ultrapassa
os limites da atividade puramente física ou biológica. É uma função significante, isto é,
encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa em jogo” que transcende
as necessidades imediatas da vida e confere um sentido de ação. Todo jogo significa
alguma coisa (1996, p. 3-4).
A partir do autor referido, ao tratar do jogo na sua definição, permito-me interpretar uma
possibilidade importante, além de reconhecer a diferença entre as principais línguas européias,
que “significam tanto jogar como brincar” (1996, p. 3). A língua, ao “transcender as necessidades
imediatas”, “confere um sentido de ação”, sentido o qual não faz parte de vida animal, mas sim
dos humanos, de humanizar; e, se humanizamos, passamos pela dimensão do educar, de
rentabilizar aprendizados, sejam eles entre pares ou não.
CAILLOIS (1990, p. 29), na obraOs jogos e os homens”, analisa o jogo como atividade,
categorizando-a de livre, delimitada, incerta, improdutiva, regulamentada e fictícia. Ao trazer a
regra e a ficção, ele aponta a discussão em torno do brincar livre, uma vez que “não existem
regras, pelo menos em termos fixos e gidos para brincar” (1990, p. 28) de boneca, de policial,
42
etc., o que supõe uma ação de livre criação, de maneira que “em si mesma a regra cria uma
ficção” (1990, p. 28). Já quanto aos jogos que sugerem a regra, como o xadrez, a trilha, o resta
um, etc., o autor faz a conceituação de que esses são jogos de ficção e de regulamentação,
passando por uma discussão no “interior do círculo dos jogadores” (1990, p. 29), o que pode
levar-nos a considerar a socialização como componente do Referencial Curricular Nacional.
O que quero aqui justificar, além do uso do termo brincar com o mesmo sentido de jogo, é
que o brincar e suas interpelações são dignos de um educar, no que é pertinente às instituições de
Educação Infantil.
O brincar nas instituições tem sido objeto de estudo contemplado, entre outros autores,
pela Profª Tânia Ramos FORTUNA, a qual trago para aliar-me e argumentar a perspectiva de
análise da minha pesquisa, enfocando o cotidiano, a Educação Infantil, o brincar.
[...] a brincadeira aqui defendida não se reduz a um tipo de brincar institucionalizado, no
sentido de instituído, dado, estabelecido e, por isso mesmo, estagnado, obtido através de
fórmulas prontas. Ao contrário, trata-se de um brincar criativo, transformador e reiteradamente
transformado, o que requer ousadia e coragem de inventar, tanto quanto disposição de se abrir
para o novo e o diferente de todos os dias (2005, p. 109a).
A dimensão dada pela autora é pertinente ao olhar que lancei para perceber o brincar do
cotidiano da escola, considerando a organização dos espaços, o tempo destinado para o brincar,
assim como os espaços e tempos não destinados pelo planejamento das professoras, mas criativos
das próprias crianças, burlados por eles. Esses espaços e tempos são planejados, como a hora do
parquinho, manifestado com agrado pelas crianças e registrado no desenho 2.4.1. São burlados,
como os que registrei em vários momentos no caderno de campo, na escrita presente, nas figuras
de n
os
2.7.1 e 3.2.1., demonstrando as dimensões que o brincar assume, nesta escola pesquisada.
Da mesma forma, a contemplação do lúdico criativo, enfocado pela Professora Waléria
Fortes de OLIVEIRA, em sua tese Cenários Lúdicos O Protagonismo Infantil em Distintos
Ambientes de Uma Vila de Invasão, nos faz referir que “a situação lúdica é considerada, portanto,
como geradora potencial de desenvolvimento, na medida em que envolve a criança em graus
maiores de consciência das regras de condutas, e nos comportamentos previsíveis ou verossímeis
dentro do cenário constitutivo” (2002, p. 52).
No convívio com o cotidiano da escola, pude observar, em várias situações, que as
professoras tinham a idéia do brincar como gerador de desenvolvimento, dentro da compreensão
43
que elas davam e, também, considerando espaços e tempos para o brincar, dentro da rotina de
planejamento, bem como nos registros de planejamento de aula e falas. Eis um exemplo, em
trecho de fala da coordenadora:
A nossa proposta, a nossa idéia de trabalho esta embasada no lúdico criativo”,e
“...importante é desenvolver um trabalho onde as crianças possam conviver neste
ambiente escolar com alegria e que seja prazeroso para elas e que ao mesmo tempo elas
possam fazer descobertas e se desenvolverem” (registro de campo, 2006).
Ciente de que não basta ter planejamentos que registrem a contemplação do brincar e do
lúdico criativo, que, tendo em vista que o brincar dirigido passa a tomar outra finalidade que
costumamos denominar de “trabalhinho” ou “atividade”, a minha pesquisa não olhou, ou melhor,
não considerou, para a proposta a ser discutida, as atividades dirigidas. Por outro lado, considerou
os espaços e os tempos que a escola destinou para o brincar e as possibilidades que foram além,
aquelas motivadas pelas crianças, “burladas e as autorizadas mesmo estando fora do planejado”,
mas que fazem parte do mundo daquelas crianças”. Os batons, a coroa de princesa, o CD de funk,
o carrinho, entre outros artefatos que foram colocados nas mochilas, as brincadeiras que surgiram
como escravo e capitão, escorregar de ponta cabeça no escorregador do parquinho, brincar de
mamãe e filhinha e tantas outras presenciadas, além daquelas que brinquei junto com as crianças.
É provável que essas brincadeiras tenham sido potencializadas pela minha presença, pesquisando
o brincar; presença essa que, acredito, tenha garantido as brincadeiras vindas das crianças.
O que me motivou estar lá, na escola, brincando e olhando brincar, passa pela
compreensão que FORTUNA atribui à mediação dos brinquedos e das brincadeiras como parte
para aprender a viver numa ordem social. Para a referida autora,
Brincar é uma atividade dinâmica que produz e resulta de transformações. Os brinquedos
acumulam significados atribuídos não pelo indivíduo que com ele brinca, naquele
instante, mas tamm por várias gerações e povos, ao longo da história da humanidade.
Ao mesmo tempo, as brincadeiras e os brinquedos, como mediadores da relação do
homem com o mundo, modificam a percepção e a compreensão que dele tem,
constituindo-se em genuínas ferramentas para aprender a viver. Viver inclusive, em
sociedade, já que brincar é tamm uma atividade social que tem a especial característica
de permitir a reconstrução das relações sociais em fim utilitário direto enquanto ensina a
viver numa ordem social e num mundo culturalmente simbólico (2007, p. 4).
44
Atendo-me ao brincar como componente do desenvolvimento, interessante mencionar que
“é enorme a influência do brinquedo no desenvolvimento de uma criança” (VIGOTSKI, 1998,
p.126). Fatores como inclusão social, ludicidade, criatividade, liberdade, ficção são tidos como
importantes nos primeiros dias de uma criança na escola, perpetuando-se nas relações vindouras.
Seja sob o título de jogo, de brincar, de atividade lúdica, na escola de Educação Infantil,
importou-me aqui considerar o espaço, o tempo, o planejamento no seu cotidiano e o não
planejado. Assim, me permiti fazer a leitura daquele cotidiano.
2.5.1 A organização do espaço e do Plano Político Pedagógico como duas etapas
conectadas e o brincar neste cotidiano escolar
No decorrer das observações realizadas e vivenciadas em um ano e dois meses na escola, e
a partir da história contada pela Coordenadora, é possível identificar dois grandes momentos, ou
melhor, especificando, dois projetos de trabalho: a organização do espaço físico, tendo o ano de
2005 como período marcante de mudanças estruturais, que ainda continuam; e a elaboração do
Plano Político Pedagógico da Escola, no ano de 2006 embora tenha sido dito, pela
Coordenadora, que havia, desde o princípio, uma proposta a ser implantada e adequada à
realidade da escola. Aquela, em um de seus depoimentos, fez a seguinte afirmação:
“Elaborei uma estratégia de como agir com o quadro de funcionárias e com os
pais, organizei a minha proposta de trabalho em conjunto, porque entendia que
a escola precisava de mudanças radicais”. Em outro momento, ela acrescentou:
“Em reunião foi colocado que o objetivo maior do trabalho era bem atender às
crianças, tudo que se iria fazer eram com esse propósito, elas são o foco
principal do trabalho” (2006).
Com o propósito de organizar da escola, o desafio estava posto. Entretanto, sabe-se que
não basta “organizar” coisas, objetos e hora relógio; é necessário, sim, incluir as crianças, como
afirma SILVA:
Deve ser enfatizado que as crianças sejam incluídas no planejamento e execução das
atividades nas instituições de educação infantil, de acordo com a idade e maturidade e
que elas podem obter experiências na articulação entre influências e responsabilidades
no plano pessoal e social (2006, p. 11).
45
2.5.2 Organização dos espaços
Num primeiro momento, foram feitos alguns consertos, estruturando-se uma rotina para
viabilizar o início do ano letivo de 2005. Com o passar do tempo, estabeleceu-se metas, com
planejamentos e arrumações de acordo com as necessidades e a realidade das crianças,
considerando a estrutura da escola. O processo foi acontecendo, pelo cotidiano, sem ser imposto
por alguém, mas estimulado pelas necessidades que se apresentavam nesta comunidade escolar.
O espaço físico da escola se tornou alvo de constantes melhorias e reorganizações. Desde
que a direção da escola foi assumida pela coordenação, gestora à época da Pesquisa, passou por
reformas e organização de novos espaços, envolvendo toda a comunidade escolar, avançando no
ano de 2006 para atividades como construção de uma caixa de areia, pintura das grades, obtenção
de ventilador para a sala do maternal e aquisição de computador através de doação. Essas
informações foram obtidas com a Coordenadora, com professoras e funcionárias. Justifico a
posse de tais informações porque passei a conviver com o grupo a partir de outubro de 2005 e, até
este período, muitas coisas tinham acontecido e eu, pesquisadora, não presenciei, mas ouvi a
história sendo contada.
Quanto ao espaço externo da escola, há um pátio com uma parte gramada e outra com piso
de pedras britadas, onde fica o parquinho com balanços, gangorra, gira-gira, escorregador, casinha
e trenzinho. A escola se utiliza de parte da calçada da rua para as crianças brincarem; elas são
levadas a brincar no passeio público porque ali está a única sombra disponível durante a tarde.
Quanto a isso, vale registrar que uma das nossas preocupações, com relação à melhoria do pátio,
foi o plantio de mudas de árvores, para futura sombra no parquinho. Existe, por fim, uma pequena
horta utilizada pela instituição.
Em se tratando do espaço físico interno, a casa de alvenaria possuía duas salas de aula,
uma pequena e outra maior. Em março de 2006, construímos uma parede de madeira para dividir
o espaço de uma delas, passando a contar-se com sala de aula e dormitório para a turma do
maternal, além de outra sala como o refeitório. também uma secretaria, uma cozinha e
banheiros adequados às crianças. Em regime de mutirão de pais e professores, todas as
dependências receberam pintura nova, aliando-se a mão-de-obra daqueles às tintas obtidas em
46
campanha de arrecadação feita na cidade. Depois, mesas, cadeiras e armários passaram por
melhorias, no mesmo sistema de mutirão. Isso mostra, merecendo ênfase, que a escola não espera
melhorias e novos espaços somente do poder público.
Para ilustrar o envolvimento de toda a equipe, professoras e funcionárias, além dos
familiares das crianças, nas constantes melhorias acontecidas, trago o depoimento da
coordenadora: “O envolvimento com a escola tomou dimensão que até meus familiares se
envolveram com pintura, costura, plantio e restauração de brinquedos”; quanto aos familiares
das crianças, em vários momentos ela fez referência: disse que ajudaram na pintura do prédio, na
arrumação dos banheiros, ao serrar madeira para bancos, entre outros afazeres. Acompanhei,
ainda, o empenho de todos na arrecadação de fundos para consertar um ventilador e para
aquisição de um aparelho televisor, através de uma rifa, como exemplo de meio para buscar
recursos.
Desde o princípio, as declarações da equipe são em favor de um ambiente adequado para
as crianças; freqüentemente nas palavras da coordenadora ouviam-se adjetivos qualificando o
espaço comobonito, agradável, colorido, espaçoso, ventilado, que as crianças se sintam bem e
gostem de ficarem aqui”.
O relato do cenário da escola pelos que estão nela envolvidos vem ao encontro do que
autores contemporâneos têm escrito; propõe-se o seguinte texto, a fim de constatar que uma
boa convivência com vistas a uma vida social e pedagógica:
No mobiliário e nas cores. Os mobiliários devem ser adequados às necessidades das
pessoas que deles fazem uso e deve acompanhar o tamanho do usuário; não é necessário
fazer um mundo miniaturizado, mas o trabalho deve ter como meta a co-habitação, com
o desenvolvimento de hábitos de vida social do seu grupo de pertinência (BARBOSA e
HORN, 2001, pp. 73 e 74).
Considero, pois, importante a preocupação das pessoas que se envolvem, explicitada
em seus discursos, de oportunizar um espaço apropriado para as necessidades das crianças,
levando-se em consideração que o ambiente é composto por gosto, toque, sons e palavras, regras
de uso do espaço, luzes e cores, odores, mobílias, equipamentos e ritmo de vida. As aquisições
sensoriais e cognitivas das crianças têm relação com o meio físico e social; ajudam a estruturar as
funções motoras, sensoriais, simbólicas, lúdicas e relacionais. CARVALHO e RUBIANO (2000,
47
p. 107) referem que “recentemente tem havido um reconhecimento crescente da importância de
componentes de ambiente sobre o desenvolvimento da criança.”
Ainda aquelas autoras, na obra citada (p. 108) lançam crítica acentuada ao que consideram
de “pobremente planejado” para as instituições pré-escolares, pois os planos são feitos pelos
adultos para adultos, desconsiderando as necessidades próprias das crianças. As autoras citadas
defendem que todo ambiente construído para crianças deveria atender funções relativas ao
desenvolvimento infantil no sentido de promover identidade pessoal (momento histórico-social),
desenvolvimento de competências (sem assistência constante), oportunidade de crescimento
(cognitivo, social e motor), sensação de segurança e confiança, e contato social e privacidade.
Constatei e acompanhei a preocupação, com a concepção de desenvolvimento, na
organização dos espaços, seja para cuidados físicos, sejam educacionais. Esta é a preocupação
dos adultos para com as crianças. Apoio para tanto pode ser encontrado em autores como
Vigotski (2000), o qual propõe que o desenvolvimento humano ocorre na e através da interação
social, em que a criança constrói seu conhecimento e a si mesma enquanto sujeito. Neste sentido,
percebeu-se a atenção dedicada aos ambientes, para favorecer a ocorrência de interações. Daí a
preocupação com os “arranjos espaciais” e a relação “bidirecional” entre pessoa e ambiente, na
lição de Carvalho e Rubiano.
A criança participa ativamente em seu desenvolvimento através de suas relações com o
ambiente, especialmente pelas suas interações com adultos e demais crianças, dentro de
um contexto sócio-histórico específico. Ela explora, descobre e inicia ações em seu
ambiente; selecionam parceiros, objetos, equipamentos e área para realização de
atividades, mudando ambiente através de seus comportamentos. Entretanto, por outro
lado, é necessário salientar que os comportamentos infantis são influenciados pelo
ambiente fornecido pelo adulto de acordo com seus objetivos pessoais, construídos com
base em suas expectativas culturais relativas aos comportamentos e desenvolvimento
infantis (2000, pp. 116-117).
Como referenciado, notou-se o empenho neste sentido ao observarem-se os espaços
escolares, o cenário, o lugar onde ocorrem os fatos e onde se situam os atores envolvidos,
buscando qualidade para as crianças da escola, bem como para seus familiares.
Consideramos que, para atender com qualidade as crianças, é importante o contato com
as famílias, com seu lugar de moradia e lazer para pensar formas de organização do
ambiente e estabelecer princípios quanto ao uso deste ambiente. Conhecer para
preservar, dar continuidade ou transformar certos hábitos do modo de vida das famílias.
Desta forma, a escola pode levar até a família outros hábitos, costumes, modos de tratar
48
com as crianças, criando interação entre os dois ambientes. Nesta perspectiva, o objetivo
principal é o de criar para cada espaço uma identidade (BARBOSA e HORN, 2001, p.
74).
2.5.3. O Plano Político Pedagógico da Escola
A escrita do Plano Político Pedagógico (PPP)
19
veio no segundo momento, pois, no
primeiro, conforme explanado, tinhamos preocupações mais com a organização dos espaços
físicos, que se encontravam em precárias condições. Porém, o PPP não foi elaborado
desconectado disto. Construir e reorganizar os espaços, conhecer as crianças, suas realidades e
necessidades bem como os referencias culturais da comunidade foi relevante para a elaboração do
plano. O que realmente ficou reservado para uma segunda etapa foram os registros escritos.
Esta articulação do PPP deu-se pelas próprias professoras, num movimento do cotidiano
que trouxe a necessidade de planejamento e organização de suas concepções, de seus princípios e
de suas teorias. Chamou-me a atenção destacadamente foi a iniciativa e o despertar para a
necessidade de se criar o plano sem que houvesse uma cobrança nem assessoria técnica por parte
do poder público municipal. A SMED restringe-se a apontar alguns projetos a serem trabalhados
com as crianças em todas as escolas de sua rede, e de forma bem abrangente, como por exemplo,
“Semana do Município” e “Animais e Plantas”, determinando que se devam seguir os
Referenciais Curriculares Nacionais de Educação Infantil, os quais a escola não dispunha.
A reflexão é interessante, sobre a influência, ou não, do poder público municipal em
relação à existência e/ou elaboração do PPP nas escolas. A não-exigência oficial abre
oportunidade a cada escola de organizar espontaneamente o seu próprio PPP, e não ser mera
executora de tarefas preestabelecidas. Permite às professoras a construção de um elo de coerência
e responsabilidade frente ao seu próprio fazer; ao mesmo tempo, leva a questionar o porquê de
não haver orientação e até cobrança para que às escolas no tocante aos PPP, muito embora acabe
ocorrendo interferência quando alguma escola toma a iniciativa. Interferência que, a par de
constituir nesse contexto um paradoxo, que acaba funcionando como forma de controle e
19
PPP - no decorrer do trabalho o Plano Político Pedagógico da escola será referido na sigla PPP.
49
direcionamento de alguns projetos, numa perspectiva que Angotti denomina de moldes de
“receituário”
20
.
A escrita do PPP constituiu uma caminhada coletiva de atuação e observação com o
cotidiano, com as necessidades e interesses que envolviam aquela comunidade escolar, além de
um ideal de proposta a ser perseguido pela equipe que integrava a escola nesta época. Para a
professora coordenadora, isto significou:
Um trabalho embasado no lúdico criativo, fundamentado no pensamento de
vários teóricos sem seguir nenhum ‘ao da letra’, pegando o que entendemos
melhor para nossa escola de cada autor. O mais importante é desenvolver um
trabalho em que a criança possa conviver com alegria no ambiente escolar, que
este seja prazeroso para ela, e que ao mesmo tempo ela possa fazer descobertas
e se desenvolver (2006).
O depoimento da coordenadora, com preocupações atinentes ao seu contexto, permite que
se traga para a composição do texto alguns conceitos importantes para discutir a Educação
Infantil, a que objetivos ela se propõe, educar e cuidar. Para Bujes (2001, p. 16), “O que se tem
verificado, na prática, é que tanto os cuidados como a educação têm sido entendidos de forma
muito estreita”. Pondera, também, que:
A criança vive um momento fecundo, em que a interação com as pessoas e as coisas do
mundo vai levando-a a atribuir significados àquilo que a cerca. Este processo que faz
com que a criança passe a participar de uma experiência cultural que é própria de seu
grupo social é o que chamamos de educação. No entanto, esta participação na
experiência cultural não ocorre isolada, fora de um ambiente de cuidados, de uma
experiência de vida afetiva e de um contexto material que lhes suporte (BUJES, 2001,
p. 16).
Inspiradas em tais reflexões, fizemos nós, professores, um exercício de compreensão para
que a proposta de organizar um PPP da escola não resvalasse em estreitamento de interpretação
do educar e cuidar; também para que ele possa servir como instrumento de permanente manuseio
(uma vez que o quadro de professoras se altera com freqüência), estudo, reflexão, leitura das
necessidades das crianças, e, quando necessário, mudança. Um instrumento que possibilite
refazer planejamentos e projetos da escola, e que esteja aberto a mudanças.
20
receituário - de Angotti, em Semeando o Trabalho Docente, 2000, p. 58.
50
Aspectos de cultura, de economia e sociopolíticos, levantados por Ferraço (2005, pp. 96-
97) ao escrever sobre currículo praticado, foram e estão presentes no cotidiano da escola, em
todos os passos a serem dados; o autor convoca a considerar fatores como as diferenças e as
semelhanças culturais entre crianças, professoras, funcionárias e pais, as dificuldades econômicas
que se apresentam tanto da instituição escola quanto nas famílias das crianças e assim por diante.
Questões estas pensadas e resistidas na perspectiva otimista de buscar movimentos de micro-
resistências, as quais fundam microliberdades, a que se refere Certeau. Sentiu-se, por exemplo, a
precariedade de materiais e instalações da escola, e a falta de vontade política para oportunizar
tais condições; mas nem por isso o abalo e o conformismo tomaram conta, saiu-se à busca; a
própria escrita do PPP ilustra este aspecto. É a “capacidade de se maravilhar”, de Certeau (p. 18,
1994), de acreditar na inteligência do outro.
O brincar, neste cotidiano, foi percebido como componente relevante, tanto na
estruturação dos espaços, quanto no PPP. Fica, então, um registro de que o brincar desta escola,
das crianças que estão nesta escola, não se concentram no, brincar pelo brincar, em todos os
momentos, é sim um brincar intencionado. Deu-se uma abertura para o brincar planejado que
podemos considerar “brincar e educar” através de brincadeiras e o brincar livre.
Na organização dos espaços físicos, foram perceptíveis as preocupações com espaços
livres para movimentação: caixa de areia, casinha, parquinho, arrecadação e restauração de
brinquedos de vários tipos, casinha para fantoche, sombra para brincar ao ar livre, cuidados que a
equipe da escola tomou, num processo que não se encerra. Uma busca, portanto, de oportunizar o
ato de brincar em várias situações e momentos dentro do espaço escolar. Preocupações
importantes, pois fazem parte da proposta no Referencial Curricular, o qual abrange condições
internas e externas.
A atenção ao brincar no PPP mostrou-se constante, desde a explanação dos objetivos,
através de capacidades, e não de comportamentos; passando pela organização dos conteúdos,
jogos e brincadeiras, identidade de gênero, auto-estima etc.; chegando ao tempo e espaço, à
organização dos ambientes e do tempo com atividades permanentes. O ato de brincar ficou
expresso na escrita do PPP em referências ao lúdico, à linguagem, ao “faz-de-conta”, como
constituidor de regras, atividade para o desenvolvimento, entre outras, pois:
51
O brincar é importantíssimo para o desenvolvimento infantil. Priorizarmos o
brincar nas diversas atividades diárias, assim ele pode acontecer de diversas
formas e lugares, as relações podem acontecer entre crianças X crianças,
crianças X professora, crianças X funcionárias, com brinquedos, jogos,
fantoches, na sala, no pátio, no parque, brincadeiras orientadas, brincadeiras
livres e etc.” (p. 17 do PPP da escola).
Toda essa significação dada ao brincar na escola tem apoio nos Referenciais Curriculares
Nacionais da Educação Infantil (o Referencial Curricular Nacional traz o brincar como
“linguagem infantil”, p. 27) e em teóricos como: Vigotski(1998), Freire(1992), Barbosa(2001),
Oliveira(2002), Craidy(2001) e entre outros.
Escrito o PPP da escola, considerando a comunidade à qual ela pertence e os recursos que
se dispunha, apontaram-se outras situações que deveriam ser trabalhadas: a troca de algumas
professoras pela escola e também a necessidade de estudo para manter a proposta viva. Então,
surgiu um grupo de estudo, que se manteve, do qual eu, pesquisadora, tomei parte, pois como
afirmei, a pesquisa tornou-se de cunho colaborativo.
O grupo apresentou-se como uma forma de prosseguirmos com nossas trocas e termos um
momento para compartilhar as “histórias de vida da escola”
21
; com isso, as incertezas e as
inseguranças foram dando lugar a outros sentimentos, como expectativa, união de grupo e até
entusiasmo.
No segundo semestre de 2006, o grupo organizou-se para estudar as terças-feiras, após o
horário de expediente da escola. Nos primeiros encontros foi reservado espaço para o PPP que
acabara de ser escrito, a fim de mantê-lo ativo na prática diária, abrindo-se novas discussões
sobre ele; mas também vieram outros temas, como os textos A Gestão Democrática e a
Construção de Processos Coletivos de Participação e Decisão na Escola, de Luiz Fernando
Dourado, e O brincar, o letramento e o papel do professor, de Nigel Hall.
A inquietação do grupo explica-se em Angotti (2000), quando sente que é necessário mais
que um documento burocrático para encher pastas e gavetas, na ilusão de um trabalho realizado.
É preciso ser parte de um processo vivo, real, produto constituído para ser executado ao longo de
um período de trabalho, em harmonia com o que veio antes e o que virá depois.
21
Referência de BUENO (1998, p. 16), ao escrever: Pesquisa em Colaboração.
52
As cenas cotidianas de um trabalho docente executado à luz de um ideário pedagógico
bem constituído e organicamente planejado, se não forem as idéias (dadas as inúmeras
variáveis que interferem neste fazer), pelo menos serão parte de um corpo com alcances
bem positivos e profícuos de realização docentes e discentes. Não serão necessárias, em
muitos casos, novas atividades, porém será prudente a análise dos como” e dos
porquês” do fazer docente, para que se evite a seqüência desenfreada de atividades que
se justificam como preenchedoras do tempo a ser passado na instituição, sem que sigam
uma lógica de pré-requisitos ou de aproveitamento de habilidades em temas na atividade
seguinte ou na seqüência das atividades (ANGOTTI, 2002, p. 66).
Assim, se constituiu uma rotina implicada com o cotidiano da escola, a fim de organizar o
trabalho docente e discente realizado. As observações e conversas ocorridas permitiram-me
perceber que o cotidiano e a rotina da escola eram: ao chegar, café da manhã com todas as
crianças que a freqüentam; logo após, atividades pedagógicas de sala de aula nas respectivas
turmas; em torno das dez horas, lanche da manhã nas salas; em seqüência, atividades mais livres
de pátio, passeios, de brincar na sala livre ou com orientação; às onze horas e trinta minutos é
servido o almoço, seguido de higienização. A turma do pré-escolar da manhã vai, então, para
casa. Para a turma do maternal, a sala de aula transforma-se em sala do soninho, até em torno de
quatorze horas e trinta minutos, quando chega a hora de arrumar-se (fazer xixi, lavar o rosto,
escovar o cabelo) para o lanche da tarde; depois dele, atividades pedagógicas dirigidas ou livres.
À tarde, outra turma da pré-escola, que inicia as atividades às treze horas e trinta
minutos; num primeiro momento, até que todos cheguem e a professora organize as atividades
programadas para aquele dia, as crianças brincam no espaço da sala de aula com brinquedos
disponibilizados (massa de modelar, jogos etc.); após, vêm às atividades pedagógicas de sala de
aula, até o horário do lanche da tarde; feito este, atividades de pátio livres ou orientadas,
obviamente quando o clima assim o permite.
2.6. Elementos teóricos que orientam esta reflexão com o cotidiano da escola de
Educação Infantil.
Neste momento do trabalho, faz-se necessário elencar elementos teóricos que
fundamentem os significados de “cotidiano” e “rotina”, a serem considerados na pesquisa.
Para o cotidiano, cabe invocar conceitos de CERTEAU (1996) e BARBOSA (2000).
Aquele, em seus estudos da Invenção do Cotidiano, define-o como a intenção de empreitada
53
sobre a cultura ordinária, apontando a vivacidade que rompe e que marca o desvio do que é dado
como posto: “o cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história
a meio-caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada” (1996, p. 31). “O cotidiano
se inventa com mil maneiras de caça não autorizada” (1994, p. 38).
BARBOSA (2000) em sua tese, intitulada Por Amor & Por Força: rotinas na educação
infantil conceitua rotina e cotidiano, podendo-se daí importar para esta pesquisa uma elucidação
importante, que aponta a “possibilidade”, comum aos dois autores aqui referidos, e o “locus”,
abrindo caminhos para inovações, possibilidades outras.
As rotinas podem ser vistas como produtos culturais criados, produzidos e reproduzidos
no dia-a-dia, tendo como objetivo a organização da continuidade. É preciso aprender
certas ações que, no decorrer do tempo, tornaram-se automatizadas, pois é preciso ter
modos de organização de vida. Do contrário, seria muito difícil viver se, todos os dias,
fosse necessário refletir sobre todos os aspectos dos atos cotidianos. Em contraposição à
rotina, o cotidiano é mais abrangente e refere-se a um espaço-tempo fundamental para a
vida humana, pois é nela que acontecem tanto as atividades repetitivas, rotineiras,
triviais, como tamm é o locus onde a possibilidade de encontrar o inesperado, onde
margem para a inovação (BARBOSA, 2000. p 43).
É intenção, nesta Pesquisa, estudar o cotidiano de uma escola de Educação Infantil, a fim
de contemplar o brincar das crianças e suas possibilidades, inclusive aquilo que foge da rotina
escolar. Acolher aqui o conceito de cotidiano dado pelos autores citados é considerar, também,
aquele brincar que acontece sem a permissão, burlado, do desvio
22
, que não está contemplado na
rotina das crianças. Dá-se margem, assim, ao movimento, à não-alienação, a possibilidades para
os praticantes ordinários: professoras, crianças, funcionárias, pais e vizinhos. Retoma-se, aqui, o
conceito de brincar, que tem a mesma atribuição de “jogo”. CAILLOIS (1990, p. 12) contribui
com sua argumentação: Jogo, significa, portanto, a liberdade que deve permanecer no seio do
próprio rigor, para que este último adquira ou conserve a sua eficácia”. Ainda, salienta que as
variadas acepções do termo enriquecem o sentido do jogo e, assim, permite-nos levantar
hipóteses sobre a maleabilidade do termo brincar no âmbito escolar, em especial quando
relacionado à Educação Infantil.
[...] as variadas e ricas acepções que mostram em que medida, não o jogo em si, mas as
disposições psicológicas que ele traduz e fomenta, podem efetivamente construir
22
Burlado e do desvio” são termos usados por CERTEAU (1996, p. 21).
54
importantes fatores civilizacionais. Globalmente, estes diferentes sentidos implicam
noções de totalidade, regra e liberdade. Um deles associa a existência de limites à
faculdade de inventar dentro destes limites (CAILLOIS, 1990, p. 12).
Em tal contexto, tornou-se possível refletir sobre o processo social, histórico e cultural
que envolve a escola observada, a fim de marcar teoricamente a forma pela qual pretendi ver,
refletir e problematizar as questões atinentes ao trabalho. Assim, não ficar atrelado às rotinas e
àquilo que é posto, mas sim estender o horizonte para as possibilidades que o cotidiano, enseja o
que vai além, através de micro-resistências que resultam em microliberdades.
Esta Pesquisa, com o propósito de convívio com os praticantes ordinários, centrou-se em
três preocupações, já referidas nas primeiras páginas desta dissertação, e que representaram:
- conviver com o cotidiano da escola, como parte que “inventa a escola” e então:
conhecer, compreender e diferir;
- conhecer e compreender as brincadeiras inventadas, burladas pelas micro-resistências
das crianças, como praticantes ordinários, considerando o contexto do brincar (espaço,
tempo e projetos);
- perceber as marcas culturais que perpassam as brincadeiras da cultura escolar, da
cultura societal, da cultura de pares e da cultura local, que se estabelecem no ato de
brincar, a fim de levantar possibilidade de rentabilizar a construção social e cultural
ordinária.
Considerando essas preocupações, fiz a opção de me referir ao cotidiano escolar em seu
todo contextual, sendo otimista ao apontar possibilidades a serviço dos “praticantes ordinários”,
os praticantes normais, regulares, a que se refere CERTEAU. E, quanto à expressão “com o
cotidiano”, de FERRAÇO, pelo seu sentido de estar envolvido nas relações do mundo, com
práticas transformadoras dos produtos culturais postos aos consumidores, geradas pela
criatividade, pela “maneira própria” de caminhar. Assim, busco investigar o brincar como
possibilidade de troca e de aprendizado, entre as culturas.
Para tanto, busquei nas palavras de GIARD, pesquisadora da equipe do próprio Certeau, a
interpretação dada por este às práticas culturais contemporâneas:
Em vez de uma suposta passividade dos consumidores, ele está convicto (e fundamenta
com argumentos esta convicção) da criatividade das pessoas ordinárias. Uma
criatividade que se esconde num emaranhado de astúcias silenciosas e sutis, eficazes,
55
pelas quais cada um inventa para si mesmo uma “maneira própria” de caminhar pela
floresta dos produtos impostos (1996, p. 13)
É preciso trabalhar “com o cotidiano” referido pelos autores acima citados, ou seja, fazer
nas escolas algo a mais, além daquilo que a obrigação profissional estabelece, o que demanda um
comprometimento “a partir do interior”
23
. Da mesma maneira, é necessário deixar de lado o
discurso singular, o olhar apressado sobre as escolas e seus sujeitos (crianças, professores,
funcionários, familiares, enfim comunidade escolar), discurso e olhar que, segundo FERRAÇO
(2004, p. 78), “não têm conseguido dar conta da diversidade da vida. Não têm conseguido falar
com os sujeitos que praticam os cotidianos das escolas. Não têm conseguido ajudar a inventar a
escola”.
Ao conviver na escola pesquisada, observei que várias formas de influência de consumo e
de mídia permeiam as brincadeiras, as falas, as vestes, os comportamentos das crianças e dos
adultos, por influência do meio ou mesmo pela passividade da condição de consumidor. Contudo,
verifiquei também que, em outros momentos, repúdio à imposição de consumo, oportunidades
em que aqueles atores do cotidiano escolar fazem valer seus costumes ou convicções. No decorrer
da explanação desta dissertação, cenas serão apresentadas a que demonstrarão tais influências
distintas.
SARMENTO, em entrevista concedida a Delgado e Müller, ao referir-se à “norma”
moderna da infância, pretendendo dar outra interpretação que não seja o saudosismo dos “bons
velhos tempos” e do fim da infância, diz: “as crianças permanecem e é incorreto escamotear
suas diferenças” (2006, p. 18). No decorrer de seu escrito, enfatiza que não é uma categoria
geracional a desaparecer, mas sim outra norma a se apresentar. Esta colocação de Sarmento
soma-se à proposta de perceber outros elementos e influências no brincar das crianças, outras
culturas que não apenas a escolar institucionalmente aceita.
Para aprofundar as reflexões propostas nas questões atinentes ao cotidiano escolar e ao
brincar como possibilidade, usados pelos autores até aqui apresentados, agregam-se importantes
contribuições de Gilles Brougère, francês que, atualmente, pesquisa no Brasil, junto à Faculdade
de Educação da USP, com foco no brinquedo e nas relações entre as brincadeiras, a educação e a
23
Expressão usada por CERTEAU (1996, p. 31), É uma história a meio-caminho de nós mesmos”, o invisível,
memória olfativa, memória dos lugares da infância, memória do corpo, dos prazeres”, a história invisível do
cotidiano.
56
pedagogia pré-escolar. Brougère tem publicado escritos questionadores para nós, professores,
acerca do que podemos fazer com as brincadeiras aprendidas fora do âmbito escolar e que entram
para a escola, mesmo sem autorização, na “prática do desvio”
24
, através dos produtos de consumo
que se multiplicam e/ou por “culturas lúdicas que não pertencem ao meio escolar”:
A cultura lúdica como toda a cultura é o produto da interação social que lança suas
raízes, como já foi dito, na interação precoce entre a mãe o bebê. Isso significa que essa
experiência não é transferida para o indivíduo. Ele é um co-construtor (BROUGÈRE,
1998, p. 4).
Para o autor recém citado, o sujeito (criança) reproduz, por um lado, a cultura, e por outro,
trata-se de uma construção social, que estabelece novas visões de criança, que caracteriza a
relação da criança com o mundo, seu engajamento no universo cultural em que vive. Não se pode
desvincular tal construção social do cotidiano escolar; por isso, a importância de considerarmos e
questionarmos, além do programado pedagogicamente, o não-programado pedagogicamente, que
é também co-construtor.
2.7. Como brincam as crianças no cotidiano deste “barco” (escola)
No ciclo da vida sempre de ser assim. No começo, a
criança é seu próprio brinquedo, a mãe é seu brinquedo,
o espaço que a cerca, tudo é brinquedo, tudo é
brincadeira. (ALTMAN, 1999, p. 231)
Com vistas à contextualização, trago um breve relembrar histórico a partir de Ariès,
Brougère e Altman, buscando explanar como foi tratado o brincar das crianças na escola, como as
necessidades foram sendo colocadas no decorrer da história, em relação à valorização do brincar.
Com isso, busco possibilitar a compreensão das necessidades postas hoje e o que a sociedade, a
escola e os aparatos tecnológicos contemporâneos transmitem, bem como quais as perspectivas
para se criarem novas possibilidades às crianças.
A partir das referências de ARIÈS (1978) e ALTMAN (1999), é possível tomar
conhecimento de que as crianças, na Antigüidade e na Idade Média, não eram concebidas como
24
Termo usado por Certeau (1994, p. 13).
57
diferentes dos adultos. Todos eram tidos como pertencentes ao mesmo grupo social. Não havia
atendimento diferenciado a elas e não lhes eram atribuídas necessidades específicas à sua
condição peculiar; acompanhavam, enfim, a vida adulta. Essa postura era adotada por índios “[...]
uma divertida brincadeira para as crianças que, céleres, correm atrás dos pais, imitando suas
atividades e gestos, preparando-se para a vida adulta”, conforme Altman (1999, p. 234), bem
como por europeus, negros, entre tantos outros povos. ARIÈS (1978), em A História Social da
Criança e da Família, pondera que as crianças não eram nem queridas nem odiadas;
simplesmente participavam junto com os adultos das atividades lúdicas, educacionais e
produtivas com a mesma responsabilidade.
Esse autor salienta que as crianças recebiam influência dos adultos, sendo a cultura e o
conhecimento partes de uma tradição oral, cabendo a elas brincar de faz-de-conta, imitando seus
antecessores. Com o passar do tempo, segundo o que a história registra, as necessidades sociais
foram mudando e o caminho da educação dos pequenos também precisou passar por mudanças,
institucionalizar-se. A família, sozinha, não dava mais conta da educação dos filhos. Primeiro,
veio à educação da nobreza; mais tarde, a educação para todos de Comenius, a educação de
caridade, como na França; depois, a educação popular, nos idos de 1800.
As instituições de educação tinham dupla finalidade, de filantropia e de educação, com
uma resolução que fornecia elementos quanto ao programa de um ensino estruturado, pois se
tratava de escolas maternais. E o jogo, nessa perspectiva, segundo Brougère, estava colocado sob
duas formas tradicionais, de recreação e de estratagema. Os manuais tratavam do jogo apenas
como recreação. Em relação ao Comenius, “a edição de 1833 não fazia alusão alguma ao jogo.
Mas se nota que essas recreações são estritamente vigiadas, e os jogos, freqüentemente, mais
organizados do que livres” (1998, p. 107).
Com o advento do cristianismo, a prática do jogo decresce, impondo-se uma educação
disciplinadora. Durante o Renascimento, com a idéia de desenvolvimento dos corpos, o jogo
deixa de ser objeto de reprovação e se incorpora ao cotidiano, como tendência natural do ser
humano. No século XVI, grande destaque ao jogo educativo é dado por Inácio de Loyola, da
Companhia de Jesus. O jogo educativo surgiu como suporte da atividade didática, visando à
aquisição de conhecimento e conquista um espaço definitivo na educação infantil (BROUGÈRE,
1998a). Em seqüência, no século XVII, Comenius mostra a relevância das imagens para a
58
educação infantil. Após, no século XVIII, com a eclosão dos movimentos científicos, veio a
popularização dos jogos. Já no século XIX, com o fim da Revolução Francesa e o surgimento de
inovações pedagógicas, fez-se um esforço para colocar em prática os princípios de Rousseau,
Pestalozzi e Froebel. Com este último, o jogo passa a ser entendido como objeto e como ação de
brincar, caracterizado pela liberdade e espontaneidade, passando a fazer parte da história da
educação infantil.
A orientação romântica de Froebel dominou a Educação Infantil até o advento do
progressivismo. Dewey modificou a tradição froebeliana, concebendo a experiência direta com os
elementos do ambiente e os interesses da criança como novos eixos, e o jogo como atividade
livre, como forma de apreensão dos problemas do cotidiano. Paralelamente, na Europa,
escolanovistas como Montessori divulgaram a importância de materiais pedagógicos explorados,
assim como Decroly, que expandiu a noção de jogos educativos.
Pauline Kergomard, no fim do século XIX (BROUGÈRE, 1998b, p. 203), consolidou-se
como porta-voz da ruptura romântica, legitimando o valor educativo do jogo, como nova forma
de estratagema; diferenciou-o, portanto, de como era visto pelo romantismo, que depositava a
confiança na natureza, pela manutenção do domínio de conteúdo pelo professor.
A ruptura romântica
25
produziu um novo nível nas relações entre o jogo e a educação, um
discurso mais complexo, às vezes ambíguo ou contraditório. Contudo, “na prática, não mudou”,
“continuamos românticos”, afirma BROUGÈRE (1998, p. 203) em Jogo e Educação, a partir de
seus estudos na França e no Brasil.
Estudiosos atuais, como Brougère e Fortuna, trazem à discussão a ação do brincar
enquanto processo educativo: as relações entre o jogo e a educação; o brincar como recreação; a
utilização do jogo como artifício pedagógico; a importância do interesse da criança na realização
da atividade; e o interesse da escola em propor um trabalho que priorize o brincar. Além dos
nominados, cabe elencar também Candal (2006), Sarmento (2003), Delgado e Müller (2005),
entre outros, produzem obras no campo da Pedagogia da Educação Infantil, apresentando-a como
um campo de conhecimento em construção e procurando mostrar sua importância, assim como os
25
A ruptura romântica tem como grande bandeira o movimento do modernismo. Ver em
http:www.universal.pt/scripts/hlp/hlp.exe/epocas?tipo=1&p=4.
59
aspectos significativos do desenvolvimento de uma sociologia da infância, com suas implicações
no campo educacional.
No Brasil, o aparecimento da Pré-escola teve como base a herança dos precursores
europeus, apresentando a educação da criança através dos “jardins de infância”, propostos por
Froebel. Modelos como o de Montessori e Decroly também fizeram parte do aparecimento da
pré-escola, já na década de sessenta (CANDAL, 2000).
BROUGÈRE considera que as pesquisas contemporâneas, por detrás do lugar atribuído ao
jogo, levam a descobertas sobre a importância do investimento pedagógico de que ele é objeto. A
presença do jogo não basta para garantir um projeto educativo; este teria de ser reconstruído no
quadro de um investimento pedagógico voluntário. “Em um caso, a natureza é onipotente, no
outro, trata-se de salientar um universo de encontro entre a natureza e a cultura, meio que abre à
criança as experiências que vão lhe permitir progredir” (1998b, p. 206).
Outros teóricos relevantes subsidiam a perspectiva oriunda do meio sócio-cultural, como
Wallon, Piaget, Vigotski, Bruner, dentre outros, que mostram a importância do jogo para o
desenvolvimento infantil, ao propiciar a descentralização das crianças, a aquisição de regras, a
expressão do imaginário e a apropriação do conhecimento.
Para Candal, no momento histórico em que vivemos, a Pedagogia da Infância tem como
objeto a preocupação com própria criança. Portanto,
[...] a dimensão que os conhecimentos assumem na educação coloca-se numa relação
vinculada aos processos gerais de constituição da criança: a expressão, o afeto, a
sexualidade, a socialização, o brincar, a linguagem, o movimento, a fantasia, o
imaginário, ...as suas cem linguagens. Não é, portanto o objeto final da educação da
criança pequena, muito menos em sua versão escolar, mas apenas parte e conseqüência
das relações que a criança estabelece com o meio natural e social, pelas relações sociais
múltiplas entre as crianças e destas com diferentes adultos e destes entre si (2000, p. 6).
Pesquisadores da área têm veiculado o discurso referente ao valor do brincar, na forma de
jogo, que se fez e se faz presente, ora direcionado como proposta de atividade pelo professor,
estratagema, como mencionado anteriormente, ora como atividade livre, confiando na natureza,
como afirma Brougère. Para além disso, pretendo problematizar o brincar da criança na escola, no
seu cotidiano, considerando que a criança carrega suas marcas e/ou referências culturais passadas
pela família, pela sociedade, pelos pares, pela mídia e pela tecnologia (de informática) com a qual
convive.
60
Então, tenho a intenção de questionar se o brincar que perpassa o cotidiano pode ser
autorizado, planejado pela professora e pela escola como organização de espaço e de tempo o
brincar não planejado, que acontece nos entremeios, e em momentos nos quais a criança
manifesta sua carga cultural, compartilhada com os pares no cotidiano. Assim, será possível
invocar a cultura infantil, de Brougère, e a “norma” moderna da infância, de Sarmento?
Trazer a idéia de cotidiano, para “ver, compreender e diferir o brincar”, com um olhar
diferenciado no dia-a-dia da criança na escola, é permitir a possibilidade de participação, de
relação com o mundo, de realização, de liberdade, de consciência, de imaginação e das diversas
formas de sociabilidade dos sujeitos do cotidiano da educação infantil. Nessa perspectiva,
FERRAÇO (2005, p. 33), em suas pesquisas com o cotidiano, faz importante referência aos
“enredamentos” que nele acontecem, não havendo como separá-los, pesá-los de forma isolada.
Ele traz a idéia de que acontece tudo ao mesmo tempo e com todos os sujeitos da escola nas
redes
26
cotidianas, tecidas pelos sujeitos.
Nessas “redes de relações produzidas nas próprias relações” (FERRAÇO, 2005, p. 33),
emerge uma dinamicidade de condições de relações percebidas e às vezes despercebidas, como de
amizade, de solidariedade, de interações entre as crianças, crianças/professoras, crianças/vizinhos,
entre outras.
Como possibilidade de perceber os mencionados “enredamentos”, duas situações
vivenciadas merecem ser especificamente referidas. A primeira foi a manifestação das crianças ao
me conhecer, quando cheguei à escola. Elas expressaram a curiosidade de saber onde eu morava,
se tinha criança na minha casa, bem como a vontade de mostrarem onde moravam e de contarem
quem eram as crianças do círculo de amizade deles, além dos colegas de escola (vizinhos, primos,
irmãos). Os questionamentos eram tantos que uma das professoras organizou um passeio pelo
bairro com a minha presença, para que as próprias crianças apresentassem a mim as suas casas, os
vizinhos, os animais que circulavam (cachorro e gato), alguns locais em que se reuniam para
brincar, as bicicletas e outras apresentações que ocorreram nesta ocasião. A segunda situação é
vivida por duas meninas, Juliana e Sandra (nomes fictícios), uma de melhores condições
financeiras que a outra. Amigas “inseparáveis” na escola, participam juntas do lanche, das
atividades de sala, de pátio etc. A que tinha melhores condições financeiras trazia, de forma
26
Redes: relações produzidas nas próprias relações. FERRAÇO (2005, p.33).
61
discreta, roupas, calçados, guloseimas e brinquedos para a amiga; saliento a forma discreta
porque não havia cobrança nenhuma, pois não pedia nada em troca para a amiga, ao mesmo
tempo em que, agindo discretamente, a preservava de constrangimentos.
Figura 2.7.1 As relações de amizade e de vizinhança que se estendem para o espaço
escolar e o batom que veio na mochila e autorização da professora para brincar.
Nestes dois fatos observados e relatados a partir do cotidiano dos praticantes, muitas
relações de sociabilidade se fizeram presentes: amizade, conhecimento, interação, necessidades,
lazer, convívio. Poder-se-ia enumerar, ainda, outras redes de relações produzidas nas próprias
relações que nos permeavam, assim como a dupla de amigas.
A visão teórica que embasa as presentes considerações permite que consideremos aquilo
que os sujeitos vivenciam no brincar e nas suas práticas cotidianas. CERTEAU define tais atos
como “movimentos de micro-resistências, os quais fundam, por sua vez, microliberdades,
mobilizam recursos insuspeitos, e, assim, deslocam as fronteiras verdadeiras da dominação dos
poderes sobre a multidão anônima” (1994, p. 18). Seguindo, ele afirma que o “dia-a-dia se acha
semeado de maravilhas, escumas tão brilhantes”, na medida em que os sujeitos desse processo
62
exprimem capacidades de criar alternativas, implementar mudanças no cotidiano escolar. Assim,
fica posta a intenção da pesquisa, destacando com isso a necessidade de perceber como
brincamos (crianças e adultos) no cotidiano escolar.
Brincar é uma atividade fascinante; até quando ocorre entre os animais desperta
curiosidade e interesse nos humanos. Quando observada nos seres humanos, comove,
emociona, intriga e diverte, quer pelo mistério que surge, dada a aparência cifrada que
possui, quer pelas lembranças infantis que suscita no observador e pela surpresa que
oferece, fazendo rir (FORTUNA, 2005, p. 107)
Essas sustentações levam-nos a questionar os espaços dados ao brincar, o que fazemos
com ele enquanto escola e, sobretudo, a observar as marcas contemporâneas que se fazem
presentes no brincar das crianças. Significam, também, a necessidade de estarmos abertos às
possibilidades de intervenção das crianças, como sujeitos ativos, os quais, a partir do mundo em
que estão inseridos, têm necessidades, razão pela qual interagem e são capazes de burlar as regras
dos adultos. Para exemplificar, cito situações observadas na escola: brincar de professora na hora
de esperar os colegas; pular em cima das cadeiras imitando prédios, mesmo sabendo que podem
se machucar; brincar de cantor com peças de montar, mesclando canções do folclore infantil com
músicas pop que fazem sucesso no momento.
Em função do mundo tecnologizado, dos lançamentos tecnológicos, muitas mudanças
foram acontecendo na vida das pessoas, tanto dos adultos (cartões eletromagnéticos, telefones
com multimídia etc.) como das crianças (CDs, DVDs, jogos eletrônicos, acessórios, bonecos que
são lançados através de filmes etc.). Senão de forma direta, indiretamente o frisson do mercado
chega, até mesmo pela “pirataria” (falsificação). “Provas desta drástica mudança cultural estão
por todos os lados, mas muitos ainda não se deram conta disso” (STEINBERG e KINCHELOE,
2004, p. 11). A mudança a que os autores se referem é que novas possibilidades se apresentaram
com o desenvolvimento tecnológico e, por conseqüência, novas necessidades surgem no universo
social e cultural. Daí advém, também, a nova “era da infância”.
Os autores recém referidos (2004) realizaram estudos sobre a cultura da infância e seus
impactos nas crianças, tendo como temática os novos tempos por elas vividos. Defendem, ainda,
(STEINBERG apud, DELGADO e LLER 2005) a idéia de ouvir as vozes infantis; neste
sentido, em seu artigo Abordagens Etnográficas nas Pesquisas com Crianças e suas Culturas,
referem que a educação não está limitada somente à escola, e sim pode advir de bibliotecas,
63
brinquedos, televisão, videogame, anúncios, alimentos, filmes, entre outros, que também se
constituem em um espaço pedagógico. No passado, o número de informações e, portanto, de
necessidades para as crianças era outro, menor. Porém, elas tinham mais espaço físico para
brincar que em nossos dias. Na atualidade, passa-se por um processo de interesse a serviço do
consumo, com o mercado de brinquedos sendo ampliado na medida em que os espaços físicos
para brincar diminuíram.
A preocupação com o grande número de informações e influências que nossas crianças
têm recebido desde que a industrialização se instalou vem levantando questionamentos e posturas
pelo mundo. STEINBERG e KINCHELOE tratam dessa questão em tópico denominado “Anjo ou
Demônio? Os impulsos democráticos e comerciais da TV” (2004, p. 23); que detalha como as
corporações produtoras da cultura infantil da América são influentes e como a tecnologia de
consumo promete redenção e felicidade, satisfação imediata, através do ato de consumir.
Brougère, em uma entrevista concedida à revista Aprende Brasil (2000), intitulada “O
interesse de estudar os Pokémons é para demonstrar que, às vezes, as crianças têm competências
extraordinárias para aprender”, deixa explícito que a crítica pela crítica sobre produtos
comerciais como Pokémons, Disney ou outros quaisquer não basta. Defende que, como
educadores, devemos ir além, conhecer melhor essa forma de cultura infantil, não nos atendo ao
aspecto comercial, mas estendendo um olhar sensível ao conteúdo deles, que, segundo o
pesquisador, é muito mais rico que se imagina.
Concebe-se que nossas crianças tomam conhecimento do mundo que a hiper-realidade
lhes torna acessíveis. Na pesquisa, não pretendi entrar na discussão sobre ser a infância brasileira
hiper-realizada ou não realizada, mas sim, por mais que essa incumbência fosse difícil e
trabalhosa, pontuar a realidade das crianças pesquisadas, brasileiras/gaúchas/santoangelenses,
com acesso a parte do que o mundo tecnologizado disponibiliza, hoje, através de canais abertos
de TV, brinquedos reproduzidos a partir de filmes e desenhos animados, réplicas vendidas
abertamente no comércio local e, mais recentemente, o acesso a computadores doados para a
escola. Além disso, quis pontuar que também é importantecompreender e diferir com
educadores. Trata-se de uma tarefa de interação, de conhecer o que se produz para as crianças
64
consumir e brincar. Não mais como ignorar, não temos “caixas de vidro”
27
, redomas para
colocar nossas crianças. A sedução feita a elas provoca curto-circuito entre pais e educadores.
Chocam-se cultura familiar, escolar e local; ou entra outra cultura, e precisamos dar conta?
Este curto-circuito, FERRAÇO trata como embate cultural e se utiliza de Bhabha para
argumentar:
[...] os embates de fronteiras acerca da diferença cultural m tanta possibilidade de
serem consensuais quanto conflituosos; podem confundir nossas definições de tradição e
modernidade, realinhar as fronteiras habituais entre o público e o privado, o alto e o
baixo, assim como desafiar as expectativas normativas de desenvolvimento e progresso
(2005, p. 38).
Subestimar a cultura infantil contemporânea não é o caminho, segundo vários estudiosos
do assunto. Ao contrário, é necessário entendê-la, tendo a escola importante papel neste debate.
Para STEINBERG e KINCHELOE (2004, p. 35), “neste contexto, as escolas vêm a ser não
apenas a instituição de repasse de informações, num local de hermenêutica, mas também um
lugar onde o pensamento é formado, onde a compreensão e a interpretação são engendradas”. No
mesmo rumo de entendimento, encontramos DELGADO e LLER comInfância, tempo e
espaço” (2006), e BROUGÈRE, em “A criança e a cultura lúdica” (1998), entre outros.
Toda essa bagagem de informações e acessos que as crianças possuem, umas mais, outras
menos, tem tido influência significativa em suas brincadeiras. As situações imaginárias e de “faz-
de-conta” que elas vivenciam têm-se manifestado, podemos assim dizer, com mais diversidade.
As crianças, hoje, brincam de papai, mamãe, professora, motorista, cavalinho, carrinho, mas
também de power rangers, de polly, de “meninas superpoderosas”, de Barbie, de pokémons, de
“rebelde”, entre outras (personagens que se apresentam com ações violentas, precoces e
gananciosas). Essas influências midiáticas têm entrado no dia-a-dia das escolas através da
“cultura de pares”
28
, verificada a partir de articulações entre as próprias crianças.
Na linha da sustentação apresentada por Florestan FERNANDES
29
, ao penetrar no círculo
da cultura infantil, vivendo o brinquedo junto com as crianças emAs Trocinhas do Bom Retiro”,
27
Expressão extraída de BROUGÈRE (2000, p. 4), dando a idéia de que não temos como evitar que as crianças
tomem contato com as coisas.
28
Expressão utilizada na sociologia da infância por Sarmento e citado por DELGADO e MÜLLER (2005, p. 7).
Texto publicado na 28ª Reunião Anual da ANPED.
29
Sociólogo que se dedicou ao folclore em bairros populares da cidade de São Paulo, em 1941.
65
entendo que a criança aprende na convivência com os outros, alargando suas experiências e a sua
rede de conhecimentos, assim como no processo de organização e de funcionamento (portanto, no
desenvolvimento) dos jogos e brincadeiras, assim estabelecendo uma possibilidade de cultura
infantil, que está imbricada na cultura adulta, como a sociologia da infância tem abordado.
Concebendo a educação como um sistema de aquisição de elementos culturais, podemos
estudar a educação das crianças tamm como um processo de seus próprios grupos,
através de atualizações da cultura infantil (nos folguedos em geral). Mas não se trata,
simplesmente, da aquisição de elementos culturais. O importante, para o sociólogo, é que
seus elementos, adquiridos pelas crianças em seus próprios grupos, são justamente os
padronizados pelo grupo social, correspondendo aos usos e costumes das pessoas adultas
(FERNANDES, 2004, p. 468).
Em observação feita na pesquisa e registrada no diário de campo, verifiquei a seguinte
situação, que trago para reafirmar as palavras deste autor:
Integrantes da turma da tarde, Pré-Escolar de 4 e 5 anos de idade, brincavam livremente
na sala até que todos os colegas cheguem e a professora organize as atividades do dia. A
professora disponibilizara brinquedos: bonecas, violões, panelinhas, pratinhos, carrinhos.
Sandra, Juliana e Viviane
30
estavam com os violões e um batom que uma delas havia
levado para a aula; fizeram suas maquiagens e cantavam cheias de pose.
Pesquisadora: Quem são vocês? O que estão cantando?
Riram envergonhadas, mas logo responderam: Somos as Rebelde”
31
.
Sandra: Eu sei cantar a música das Rebelde, quer ver? Eu sou Rebelde, quando te quero
mais e mais. Eu sou Rebelde...”
Juliana: Não, Sandra, temos que cantar em espanhol, o meu CD é em espanhol, vamos
cantar aquela dos cinco minutos.”
Viviane: Em espanhol não.”
Juliana (dirigindo-se para Sandra): Está bom, é tua vez.”
Sandra: Cinco minutos, eu preciso deste tempo. Só cinco minutos eu preciso...”
Juliana: Profe, profe, eu sei cantar funk, quer ver? Piririm piririm, alguém ligou pra
mim, piririm piririm, alguém ligou pra mim..."
Enquanto isso a música chama a atenção de outras crianças que também querem cantar e
trazem outras letras de músicas funk.
30
São dados nomes fictícios.
31
Rebelde é uma novela para adolescentes, transmitida em canal aberto de televisão. Um grupo intitulado Rebelde”,
de seis adolescentes, três rapazes e três moças, além de serem os atores principais da novela, formam um grupo
musical de tem CDs e DVDs gravados em espanhol e português.
66
Figura 2.7.2 As crianças
cantam e dançam em sala de aula, por motivações próprias, musicas
funk, trazidas de casa.
A cena cotidiana ilustra a argumentação feita anteriormente, de que as crianças têm
trazido para os seus mundos de “faz-de-conta” elementos da cultura da mídia; têm “atualizado a
cultura infantil nos folguedos em geral”, como refere Florestan FERNANDES (2004, p. 468).
Contudo, isso não quer dizer que elas tenham deixado de lado brincadeiras do passado como
cantigas de roda, brincar de casinha, de caçador etc. “que representam uma função social de modo
genérico”, segundo o mesmo autor (2004, p. 269).
A representação social a que Florestan Fernandes faz referência também se verificou no
brincar das crianças da escola, representação esta como parte de uma estrutura social e cultural
maior. Exemplo marcante foi o de uma menina que vivia desde muito pequena em um abrigo da
cidade e freqüentava a escola. Clara
32
tinha como uma das brincadeiras favoritas brincar de
casinha. Em várias ocasiões, observei e fui convidada a brincar de casinha com ela, no pátio, na
sala, com brinquedos industrializados ou criados pela sua imaginação a partir de pedrinhas,
32
Nome fictício.
67
galhos, etc. Como desde pouca idade ela morava em um abrigo público e, mesmo antes, quando
morava com seus pais, provavelmente sem uma casa estruturada como a que ela montava em seus
“faz-de-conta”. Por certo, estava a imitar um modelo de casa, talvez diferente da casa de sua mãe,
podemos dizer que o imaginário infantil se constitui a partir de vivências variadas, com influência
da cultura local, familiar, de pares e midiática.
Figura 2.7.3 Brincam de casinha com artefatos industrializados no canto da sala.
Enquanto professora, pesquisadora e mãe que circula pelo ambiente das escolas de
Educação Infantil, observei a preocupação, por parte dos pais e educadoras, em como lidar com
tantas informações e influências recebidas do meio social e cultural por nossas crianças. Estas
influências, nós adultos podemos até não entender, mas, no entanto, fazem-se presentes no
cotidiano da escola e da família.
BROUGÈRE contribui para o debate acerca da necessidade da conquista de um espaço
para a cultura infantil nas escolas, dizendo, textualmente, que:
68
[...] os adultos, e educadores em particular, não conhecem a cultura infantil; [...] o que
penso, fundamentalmente, é que uma enorme distância - quem sabe uma oposição -,
que não se pode subestimar, entre a cultura infantil contemporânea e a escola (2000, p.
3).
O autor recém mencionado concebe o brincar como um grande tema romântico,
merecedor de retomada, pois nele “o espaço de criação cultural por excelência” (1998a, p. 1).
Esta conexão que Brougère faz entre o brincar, a cultura e os artefatos culturais contemporâneos
(brinquedos lançados no mercado) diz mais que a aceitação passiva, em decorrência do mercado,
dos brinquedos e das brincadeiras na escola, como elemento cultural. Diz, sim, da importância de
se conhecer essa cultura infantil que nos escapa totalmente. Prossegue afirmando que:
...um projeto educacional pode ter a estratégia de partir do interesse da criança, se apoiar
na cultura infantil, para ir além. Afinal, não faz sentido que um projeto educacional seja
a mesma coisa que um projeto de entretenimento da mídia (BROUGÈRE, 2000, p. 3).
Na trajetória de campo desta pesquisa, os artefatos culturais infantis que estavam
circulando na mídia interessavam também para a observação feita. As professoras sabiam que, de
certa forma, tais artefatos tinham um aval positivo de minha parte. No decorrer do tempo, o
assunto interessou e se passamos a discutir a respeito. Então, propus levar o texto da entrevista de
Brougère, mencionado anteriormente, de título “O interesse de estudar os Pokémons é para
demonstrar que, às vezes, as crianças têm competência extraordinária para aprender”, para que
se tomasse conhecimento do que pesquisador tem entendido sobre o tema.
A leitura dos textos, feita pelas professoras,bem como a minha presença, surtiu um efeito
de autorização para brincar com tais artefatos de “faz-de-conta” com maior liberdade. O que antes
era velado, tido como algo que não faz parte do meio escolar e que entrava ali de modo burlado
33
pelas crianças, agora era autorizado. A partir de então, podia-se brincar sem esconder, brincar em
horários a isso destinados especificamente, não mais nos intervalos entre uma atividade e outra.
Contudo, não se atingiu por inteiro a idéia de Brougère de “um projeto educacional”.
Com estas reflexões, não tenho por objetivo trazer receitas, mas provocar que pensemos a
perspectiva de nos aproximarmos da realidade infantil, da cultura infantil que os/as
pesquisadores/as vêm abordando. Esta aproximação tende a levar a que coloquemos o assunto em
33
Termo usado por CERTEAU (1994, p. 20) para dizer que a ordem é exercida por uma arte e, ao mesmo tempo,
exercida e burlada.
69
pauta para melhor entendimento, possibilitando espaços para seu trato dentro do cotidiano escolar
e considerando as necessidades infantis como conhecimento, com possibilidades pedagógicas
correspondentes aos objetivos do ensino. Em síntese, como definem DELGADO e LLER
(2005, p. 13), oportunizando a “... possibilidade de rentabilizar a participação das crianças na
construção do conhecimento de seus mundos sociais e culturais".
Queiramos ou não, as “redes” cotidianas estão atravessadas por diferentes contextos de
vida e valores, e a tarefa/missão da educação escolar que defendemos pode ser rica, porque é
vivida e renovada a cada dia.
3 AS CULTURAS INFANTIS REPRESENTADAS NAS BRINCADEIRAS E INSERIDAS
NO FAZER ESCOLAR
É preciso, pois, que os educandos descubram e sintam a
alegria nele embutida, que dele faz parte e que está sempre
disposta a tomar todos quantos a ele se entreguem (PAULO
FREIRE, 1992, p. 83).
Ao iniciar o capítulo, escrevendo sobre as possibilidades da cultura infantil, é importante
considerar que a cultura infantil e a cultura adulta não são divididas ou separadas de forma gida.
Ao contrário, tal cisão é tênue, em vista de o adulto produzir os artefatos e os espaços para as
crianças brincarem. A criança, penso, passa a fazer parte da socialização ainda com pouca idade,
sendo que aquela se dá, em parte, fora do contexto familiar.
DELGADO e LLER fazem referência à postura de Prout, com relação a tal dualidade,
nos seguintes termos:
Para Prout (2004) não necessidade de separar arbitrariamente as crianças dos adultos,
como se pertencessem a espécies diferentes, e ele propõe o uso da metáfora rede”,
baseado em Latour (1993), sugerindo que a infância pode ser vista como uma coleção de
ordens sociais diferentes, por vezes competitivas, outras vezes conflituosas. (2005, p.
352)
Assim como os autores mencionados, SILVA também vem somar à idéia de rompimento
do dualismo criança-adulto, sugerindo a mediação e explorando os pontos em comum e as
diferenças:
É preciso criticar o dualismo criança-adulto entendendo que as crianças e os adultos
devem ser vistos como uma multiplicidade de seres em formação, incompletos e
dependentes, que é preciso superar o mito da pessoa autônoma e independente, como se
fosse possível não pertencermos a uma complexa teia de interdependências,superar os
reducionismos sociológicos e psicológicos (2006, pp. 10-11).
A pesquisa com crianças, segundo DELGADO e MÜLLER (2005), tem apontado para que
se pense e se investigue as crianças em contextos específicos. Neste trabalho o foco é para a
escola de Educação Infantil, considerando a cultura infantil e a cultura adulta a partir de uma
72
possibilidade de “multiplicidade de seres em formação”. de se considerar, ainda, o que temos
para nos orientar enquanto professoras, além da formação acadêmica: o Referencial Curricular
Nacional para a Educação Infantil. Destaca-se que o referencial enfatiza para que as instituições
de Educação Infantil garantam tempo e espaço para brincar.
A possibilidade da “dualidade da infância” vem aportar neste capitulo da dissertação,
também, porque temos ciência de que nossas crianças estão freqüentando as escolas de Educação
Infantil cada vez mais cedo, por uma série de fatores (familiares, educacionais, sociais e outros).
A escola deve ser, por isso, “o lugar da infância, nos nossos tempos” (QUINTEIRO, 2002, p. 20).
E a escola pesquisada não foge a esta realidade.
Ainda que seja essa a origem do vínculo escolar, pode-se encontrar possibilidades de
brincar com espaço, tempo, segurança, com outras crianças para interagir, e assim por diante, o
que representa o otimismo e o comprometimento almejados pelo “lugar da infância, dos nossos
tempos”.
Ao narrarem a evolução na concepção de infância na história da humanidade, ARIÈS
(1981), PINTO (1997) e SARMENTO (1997), entre outros autores, deixam claro que a
preocupação e o investimento da sociedade em Educação Infantil passa a ser percebida com o
surgimento da modernidade, quando a infância passa a ser considerada categoria social. A
infância foi consolidada na escola com o correr dos tempos, sendo que, nessa trajetória, essa
instituição recebeu várias nomenclaturas: asilo, jardim de infância, creche, pré-escola e escola.
As brincadeiras que a escola deixa acontecer, na sua estrutura, são tidas como um dos
grandes temas românticos (BROUGÈRE, 1998a), no curso de sua história, tem sido concebidas
ora como parte da natureza da criança, ora como estratagema. O autor tem trabalhado com o
seguinte conceito: “o brincar não é uma dinâmica interna do indivíduo, mas uma atividade dotada
de uma significação social precisa que, como outras, necessitam de aprendizagem” (1998b, p.1),
em contrapartida aos que não levam em conta a dimensão social da atividade humana. É nesta
perspectiva o esforço dissertativo, ou seja, de conhecer, compreender e diferir tem considerado o
brincar: uma atividade dotada de significação social.
O brincar, desde as brincadeiras que nos remetem à nossa própria infância até as
brincadeiras da contemporaneidade, faz parte do cotidiano das escolas de educação infantil. As
crianças, na escola e fora dela, estão marcadas pelo mundo que as circunda, em processos de
73
hibridização
34
, superposição. CANDAU elenca vários fatores atuais que acabam por influir e
interferir também na educação:
Globalização, multiculturalismo, pós-modernidade, questões de gênero e raça, novas
formas de comunicação, manifestações culturais dos adolescentes e jovens, sociedade
virtual, movimentos culturais e religiosos, diversas formas de violência e exclusão social
configuram novos e diferentes cenários sociais, políticos e culturais presentes nas
sociedades contemporâneas (CANDAU, 2002, p. 9).
A educação não está imune à realidade, mas é, sim, parte dela. A dinâmica referida está,
portanto, presente também no cotidiano da escola pesquisada. Pude perceber tais inserções pelos
interesses das crianças por alguns brinquedos e brincadeiras: falam ao celular, imitam estrelas de
grupos musicais, fogem e perseguem bandidos e policiais, constroem supermáquinas velozes,
manifestam preferência por roupas, calçados, alimentos e outros produtos que circulam no
mercado de consumo. Algumas pesquisas demonstram isso bem, como em STEINBERG e
KINCHELOE (2003). Vários ou mesmo todos esses traços foram constatados no cotidiano da
escola pesquisada.
BROUGÈRE, ao escrever sobre a criança e a cultura lúdica
35
, no brincar o espaço da
criação cultural por excelência, que se diversifica conforme o meio social. Destaca que, na cultura
lúdica contemporânea, isso se mostra enriquecido e, portanto, aumenta em importância:
Pode-se analisar nossa época destacando as especificidades da cultura lúdica
contemporânea, ligadas às características da experiência lúdica em relação, entre outros,
com o meio-ambiente e os suportes de que a criança dispõe. Assim desenvolvem-se
formas solitárias de jogos, na realidade interações sociais diferidas através de objetos
portadores de ações e de significações. Uma das características de nossos tempos é a
multiplicação de brinquedos (BROUGÈRE, 1998a, p. 3).
A importância dos artefatos culturais, na constituição da cultura lúdica contemporânea, é
um aspecto para o qual o autor recém citado chama a atenção. O mesmo afirma, ainda, que “o
34
O termo hibridização” é utilizado por Candau em seus escritos, embora tenha origem em Bhabha (1998), com o
sentido de superposição”.
35
“A cultura lúdica como toda cultura é o produto da interação social que lança suas raízes” (BROUGÈRE, 1998, p.
4)
74
jogo
36
, como qualquer atividade humana, se desenvolve e tem sentido no contexto das
interações simbólicas, da cultura” (1998a, p. 5). SARMENTO vem se somar nesta dimensão, ao
escrever sobre as formas culturais produzidas para as crianças: “os mundos culturais da infância
constituem-se no vai e vem entre as culturas produzidas para as crianças e as desenvolvidas na
interação entre as crianças, no mútuo reflexo entre uma e outra produção cultural” (2003, p. 2).
Ambos os autores sustentam a idéia de que os artefatos culturais, bem como as
brincadeiras, são dotados de significados, de esquemas, em estruturas que a criança constrói, no
contexto da interação social a que tem acesso. As interações se distinguem de acordo com o
interesse do momento: tipo de brincadeira, sexo, idade, meio social. O boneco que era soldado
passa a ser noivo, o microfone passa a ser telefone celular, o gato passa a ser o capitão, e assim
por diante.
Ao tratar de culturas da infância, consideradas com relevância pelos Sociólogos da
Infância como elemento distintivo da categoria geracional, SARMENTO refere:
As culturas da infância, sendo socialmente produzidas, constituem-se
historicamente e são alteradas pelo processo histórico de recomposição das
condições sociais em que vivem as crianças e que regem as possibilidades de
interações entre si e com os outros membros da sociedade. Transportam as marcas
dos tempos, exprimem a sociedade nas suas condições, nos seus extratos e na sua
complexidade (2003, p. 2).
As séries de relações estabelecidas pelas crianças, em interações familiares, escolares,
enfim, nas mais variadas formas relacionais, constituem-se a partir das informações e
aprendizados que integram o cotidiano delas e de suas brincadeiras. Assim, quero considerá-las
para reflexão, na vivacidade e na criação com que as crianças interagem e de acordo com o
contexto e o interesse.
As produções escritas em torno do tema escola nos levam a perceber e a pensar a
educação como algo vivido no espaço escolar, apenas. Escapa-nos, contudo, pensarmos a
educação que acontece fora da escola, na rua, na sociedade, na televisão, nos jogos, enfim, em
tantos outros espaços informais, onde interagem culturas escolares com outras formas de culturas
36
Para o autor, jogo tem o sentido de brincar, possuindo significações diferentes em diferentes culturas. Nascida no
romantismo, nossa cultura parece ter designado o brincar como uma atividade que se opõe ao trabalho, caracterizado
por uma futilidade e em oposição ao que é sério. Jogo é o modo como se brinca (1998a, p. 2), sentido o qual
assumimos nesta pesquisa.
75
(pares, societais, locais etc.), em um processo que entra para o espaço escolar através dos seus
praticantes, que estão em recomposição, de acordo com suas condições, ao que enfatizou
SARMENTO. Percebo que tais recomposições (reinvenções) de brincadeiras são levadas pelas
crianças a entrar na escola e a serem compartilhadas, ensinadas aos seus pares.
Fora do espaço escolar, as relações de brincar que as crianças estabelecem com os outros –
adultos e crianças se incorporam como experiência social e cultural. Ao observá-las brincando,
pude constatar que assumem possibilidades de mudança e de renovação de experiência humana
que nós, professores e adultos, muitas vezes não vislumbramos. Não entendemos algumas
brincadeiras porque, talvez, queiramos ver acontecendo somente as nossas brincadeiras de
quando crianças, naquele mesmo formato, com o que acabamos – ou acabaríamos – por reduzir as
experiências das atuais crianças às nossas próprias. Ao vermo-nas correndo pelo pátio da escola,
brincando de “escravos e capitão”
37
, se achamos aquela correria perigosa e agressiva, é porque
não enxergamos ali a nossa conhecida e tradicional brincadeira de gato e rato”; quando vemos as
crianças brincarem de perseguições de carros polícia, bandido, telefones celulares, aparatos que
fazem parte da atualidade, tendemos a fazer uma leitura de brincadeira perigosa e não nos
permitimos entrar nesse jogo, esquecendo que brincava-mos de “guerrinha de limão”.
Para ilustrar tais influências de marcas dos tempos, relato uma cena observada:
Era o horário de chegada na escola; enquanto chegavam, as crianças brincavam livres,
dispondo uma caixa de brinquedos (carrinhos, bonecos, telefones, potes,...); Nelson e
Davi brincavam no chão da sala com carros; Nelson volta à caixa e pega um telefone:
Nelson: Davi, alô, alô, estou atrás dos bandidos, andando muito forte.”
Davi rapidamente pega um microfone confeccionado por ele e, usando como se fosse um
telefone celular, responde:
Davi: Já tô indo, brrrrrrr...”
O barulho e a agitação estabeleceram-se.
Cuidado assim não dá, tem que ter mais calma para brincar”, disse a professora.
Nesta breve cena, registrada no DIÁRIO DE CAMPO, observamos elementos vividos pela
sociedade atual: telefone celular (tecnologia de ponta), veículos em velocidade e violência.
Meninos brincando de carrinho faz parte de um contexto que nos é costumeiro; entretanto, as
37
escravo e capitão” - esta brincadeira foi influenciada por uma novela de época (da escravidão no Brasil) que
passava em canal aberto de TV, na época da observação.
76
marcas da atualidade estão presentes como novos elementos, interessantes para análise, no que
diz respeito ao brincar: tecnologia (telefone celular e carros velozes) e violência.
A exemplificada possibilidade do brincar não direcionado pela professora, mas trazido
pelas crianças, espelhando o momento histórico vivido, remete-nos a refletir sobre como
podemos “puxar e tecer fios”, a fim de entender e conhecer o momento vivido pelas crianças, as
suas criações de brincadeiras e, assim, ajudá-las a se constituírem como sujeitos.
Com tal questionamento, não se pretende trazer um discurso generalizado em torno da
importância do brincar; quero, apenas, indagar sobre a maneira como temos tratado o brincar nos
processos de constituição do sujeito, tanto pelas experiências vividas na escola como por aquelas
trazidas para a escola pelos seus atores
38
. Talvez demos, apenas, o espaço para elas acontecerem,
sem possibilidade de ir além e avançar na compreensão dos fatos.
Conforme BORBA, a criança:
[...] incorpora a experiência social e cultural do brincar por meio das relações que
estabelece com os outros - adultos e crianças. Mas essa experiência não é simplesmente
reproduzida, e sim recriada a partir do que a criança traz de novo, com o seu poder de
imaginar, criar, reinventar e produzir cultura (2006, pp. 33-34).
Buscando apoio na autora citada, trago para reflexão a questão levantada na pesquisa, de
considerar o brincar no cotidiano, pelas diferentes relações culturais, a fim de percebê-las como
possibilidades, e de rentabilizar aquele na construção social e cultural dos seus praticantes
ordinários. Isso sem lamentar sua não-utilização, senão sua utilização equivocada ou falha, mas
considerando uma possibilidade de engajamento dos envolvidos em uma proposta de trabalho a
partir da cultura infantil; uma possibilidade de os adultos o conhecerem, para interagir.
SARMENTO, ao escrever sobre as formas culturais produzidas para as crianças e aquelas
desenvolvidas na interação entre as crianças, também enfatiza que não podemos ignorar o
imaginário infantil advindo do mercado de consumo, através de interpretação singular, mas
“reinvestindo essas interpretações no seu cotidiano, nos seus jogos e brincadeiras e nas suas
interações com os outros” (2003, p. 3).
38
A sociologia da infância apresenta as crianças como atores, tanto na construção de suas vidas sociais como das
vidas dos que os rodeiam (MONTANDON, 2001, p. 51).
77
Ao considerarmos o cotidiano escolar como criado pelos seus praticantes ordinários,
temos de perceber o ato de brincar das crianças como objeto de estudo e reflexão. Nas palavras de
CERTEAU, “[...] é preciso interessar-se não só pelos produtos culturais oferecidos no mercado de
bens dos seus usuários”; é mister ocupar-se com “as maneiras diferentes de marcar socialmente o
desvio operado num dado por uma prática”; logo adiante, acrescenta: “[...] é necessário voltar-se
para a ‘proliferação disseminada’ de criações anônimas e ‘perecíveis’, que irrompem com a
vivacidade e não se capitalizam” (1994, p. 13).
Essas frases inspiram o rompimento com a passividade que pode advir do mero consumo
de produtos recebidos, inspirando a prática do desvio da “micro-resistência” (CERTEAU, 1994,
p. 18), da arte de fazer, na invenção do cotidiano. Exemplifica-se a micro-resistência no ato de
brincar, ou a não-entrega a uma generalização: o boneco Power Rangers passa a ser o noivo
caipira, um giz de cera pode ser um batom, uma pedra se constitui num carrinho, o muro da
escola se transforma em uma pista; cenas, estas, vistas e vividas no brincar das crianças. Podemos
perceber, assim, a vivacidade, o desvio e a cultura delas, produzidos pelos seus cotidianos e em
suas realidades.
No exemplo dado pela Figura 3.1, a realidade e a cultura local se mostram, revelando a
vivacidade e a criatividade da criança, sem acesso direto aos brinquedos do mercado de consumo
atual, superando essa falta de acesso, criando assim possibilidades de também brincarem com
esses objetos. Apesar de sabermos que tais artefatos têm constituído a cultura lúdica
contemporânea, a criança supera a falta, fazendo sua interação com outro objeto e, com ele
brincando, constrói sua própria cultura lúdica.
Na “arte de fazer”, de CERTEAU, é considerada outra produção que não a dominante,
exemplificando o “sucesso” dos colonizadores espanhóis entre os indígenas:
[...] submetidos e mesmo consentindo na dominação, muitas vezes esses indígenas
faziam das ações rituais, representações ou leis que lhes eram impostas, outras coisas que
não aquelas que o conquistador julgava obter por elas. Os indígenas as subvertiam, não
rejeitando-as diretamente, mas pela sua maneira de usá-las para fins e em função de
referências estranhas ao sistema do qual não podiam fugir (1994, p. 39).
78
Figura 3.1. Foto de menino brincando no muro da escola com uma pedra”.
O muro é a pista e a pedra é o carrinho. O mercado de consumo no momento
produz e põe em evidência carrinhos de Hot Wheels
39
.
A idéia de subverter, no fato descrito acima, é similar à manifestada no casamento caipira
dos power rangers, demonstrando que o mundo globalizado não homogeneiza a cultura,
mantendo-se traços daquilo que é próprio de um país, de uma região, ou de um local ainda menor.
Neste sentido, CANDAU refere que
[...] a homogeneização cultural seria impossível, uma vez que cada grupo social
receberia e recriaria as influências recebidas. É no bojo destes movimentos inerentes ao
processo de globalização que cresce a visibilidade das diferenças e acentua-se a
consciência da diversidade cultural (2002, p. 17).
39
Marca de carrinhos miniaturizados, lançados no mercado tamm como desenho animado.
79
Na escola pesquisada, as crianças, às vésperas das festas juninas, ensaiavam o popular
“casamento caipira”. Ao tomarem contato com bonecos e robôs, prontamente usaram tais
bonecos, que aparentemente não tinham traços de caipiras, para fazerem um “casamento caipira”
com eles, usando-os como instrumentos dos seus “faz-de-conta”. “Essas maneiras de fazer
constituem as mil práticas pelas quais usuários se reapropriam do espaço organizado pelas
técnicas da produção sócio cultural” (CERTEAU, 1994, p. 41).
3.1 As interações culturais nas brincadeiras no fazer do cotidiano escolar
Com a intenção de melhor compreender as interações culturais das crianças, nas
brincadeiras implicadas com o cotidiano escolar, trago questionamentos lançados por
QUINTEIRO, em seu estudo nominado Infância e Educação no Brasil”, sobre as culturas
infantis:
Afinal, o que sabemos sobre as culturas infantis? O que conhecemos sobre os modos de
vida das crianças indígenas, negras, brancas? O que sabemos sobre as crianças que
freqüentam a escola pública? Como aprendem? O que sentem? O que pensam? (2002, p.
22)
Nesse amplo tema, ainda segundo a autora, muitos avanços e conquistas foram
alcançados, mas restam também lacunas. Ora, se constatamos que lacunas, é porque nos
importamos com o tema e, se nos importamos, diferimos. Sermos diferentes uns dos outros se
apresenta como possibilidade de avanços, de mudanças. Ao me dispor a vivenciar a instituição
que pesquisei, a fim de conhecer a realidade local, trazendo à tona a discussão, no sentido plural,
fui me dando conta de que precisamos conhecer melhor a realidade da cultura das crianças,
brasileira e regional. Compreendo, também, que, através das brincadeiras, as expressões estão
presentes; entretanto, precisamos dar espaço para que elas, as crianças, possam se manifestar,
apesar de reconhecer que as escolas de Educação Infantil têm uma característica importante que
tem de ser considerada, que é o cuidado e a educação. A respeito disso, espelho-me em
BARBOSA (2006, p. 64), ao referir: “As pedagogias das instituições de cuidar e educar das
crianças pequenas devem observar que tais espaços de educação coletiva também são lugares para
80
formular pedagogias onde se pode criar e recriar, reinventar polir, refrescar a cultura de cada
geração”.
Para tratar das interações culturais que permeiam as brincadeiras, vivenciadas na escola
pesquisada, adotamos uma categorização feita por DELGADO e LLER, a partir de
informações por elas obtidas em Sarmento, que aborda cultura societal, cultura local, cultura de
pares e cultura escolar. As autoras referidas trabalham com a definição de “culturas” como:
[...] sistemas simbólicos organizados, ou seja, conjuntos articulados
relativamente estáveis de idéias, normas de comportamento. É o resultado de um
processo de sedimentação de relações entre seres humanos. Dessa forma, culturas
infantis são sistemas simbólicos distintos dos demais, com um recorte geracional que
mantém cruzamentos com recortes de classes, gênero, raça, entre outros (2005, p. 5).
Na mesma direção, CERTEAU assim se manifesta: “para que haja verdadeiramente
cultura, não basta ser autor de práticas sociais; é preciso que essas práticas sociais tenham
significado para aquele que a realiza” (1995, p. 141). Para ele, cultura requer atividade,
apropriação, adoção, transformação, intercâmbio em um grupo social.
A construção das relações estabelecidas nas brincadeiras das crianças em seu dia-a-dia, na
escola e no cotidiano escolar, apresenta estrutura consolidada e organizada num sistema
classificatório de diferentes contextos e atores. Tal construção não acontece apenas no Brasil,
como ilustra PRADO, em sua obra “A gente gosta é de brincar com os outros meninos!”, com
alusão à pesquisa portuguesa sobre relações sociais entre crianças num jardim de infância:
[...] o cotidiano da instituição, sua organização espacial, temporal, o planejamento das
atividades, as regras instituídas, os materiais e brincadeiras, evidenciando, assim como
nas pesquisas brasileiras, uma rotina pré-determinada pelos profissionais e neles
centrada, com regras prescritivas que orientam as ações e usos dos espaços e tempos, em
que o encontro das crianças com outros de turmas diferentes é previsto somente nos
momentos livres ou no recreio’ (2005, p. 684).
A proposta, neste ponto, é refletir sobre a possibilidade do brincar no contexto instituído
pela escola e os resultantes de instituintes pelos praticantes ordinários; nestes, os atores abrem
espaço para microliberdades, transgressões através das suas culturas, daí se podendo perceber a
cultura infantil. Segundo BROUGÈRE:
81
[...] considerar a presença de uma cultura preexistente que define o jogo, torna-o possível
e faz dele, mesmo em sua forma solitária, uma atividade cultural que supõe a aquisição
de estruturas que a criança vai assimilar de maneira mais ou menos personalizada para
cada nova atividade lúdica (1998b, p. 2).
Apresenta-se, então, a cultura de pares, da relação entre crianças, maiores e menores,
durante as brincadeiras, mesmo em momentos curtos e livres (recreio, parquinho); também a
cultura local, aquela em cujo interior a criança nasce e que se funde com a cultura escolar, com a
erudita e ainda com a societal, que é a cultura de mídia.
Trata-se de considerar o brincar autorizado, instituído pela escola (parquinho, ovo choco,
belo anel), bem como as outras modalidades de brincadeiras que chegam até ela, muitas vezes
escondidas nas mochilas (batons, bonecos), ou nas mentes das crianças, na imaginação (policial,
cantor, mamãe). É preciso considerar, ainda, as redes de socialização, de amizades que se
estabelecem durante o brincar, as quais, importante salientar, são parte do cotidiano da escola,
pala além das rotinas.
Na escola pesquisada, verifiquei que a hora do parquinho é tida pelas crianças como um
grande momento, o que foi manifestado quando se pediu que desenhassem sua escola, e a maioria
delas se desenhou brincando naquele local. Ao brincarem no parquinho as duas turmas juntas,
maiores e menores, pude observar a interação dos grupos de pares, o que permitiu analisar as
trocas. No decorrer da permanência na escola, em outros momentos, várias cenas mostraram tais
trocas nas brincadeiras: mamãe brincando no balanço com a filha (colega menor ou boneca),
crianças maiores ensinando às menores canções infantis aprendidas anteriormente na sala com a
professora (a canoa virou, papagaio louro), dentre outras.
82
Figura 3.1.1. As meninas brincam de mamãe e filha no parquinho.
Observando os grupos de pares das crianças brincando, percebi que elas se relacionam
umas com as outras envolvendo emoções e controle, no contexto de interações. Nessa relação,
para BROUGÈRE (1998b), alguns elementos influem para que o relacionamento aconteça:
partilha da cultura (ensinar a brincadeira), produto da interação social.
Como recém anotado, na pesquisa, quando foi pedido para as crianças representarem
(desenharem) sua escola, elas foram logo se desenhando no parquinho, com as demais crianças e
brinquedos, evidenciando que esse momento é muito intenso e aguardado. Nesta hora, as crianças
do maternal e do pré-escolar se encontram para brincarem juntas no mesmo espaço. É um
momento em que a transgressão é permitida, ao menos até a hora de encerrar a interação.
83
PRADO, em pesquisa anteriormente mencionada, afirma que:
Assim como temos observado, aqui no Brasil, a capacidade de transgressão das crianças,
a pesquisa tamm revela esta capacidade das crianças pequenas portuguesas
investigadas, quando lançam mão de estratégias de resistência aos poderes arbitrários
impostos pelas profissionais como, por exemplo, prolongando as brincadeiras,
arrumando e desarrumando inúmeras vezes os espaços de brincadeiras e os próprios
brinquedos e materiais - por hora tamm se recusando à ordem de arrumar, por hora
inventando uma nova brincadeira de brincar de arrumar, mas com outro sentido,
diferente daquele estabelecido (2005, pp. 684 e 685).
Assim como a transgressão aparece na brincadeira de pátio, quando as crianças ficam
livres, na sala de aula tal fenômeno se desencadeia nos processos sociais, apoiados em culturas de
pares, no plural, advindas de outros interesses.
Cabe apontar, a seguir, uma cena que vivemos na escola, sem a intenção de discutir sua
pertinência ou não. A professora distribuiu brinquedos em sala de aula; caixa de bonecas, roupas,
panelinhas, fogões e caminhas para as meninas; caixa de bonecos, robôs, carros e aviões para os
meninos. Ocorreu que, no decorrer das brincadeiras, as crianças trocaram brinquedos e
brincadeiras, apesar dos brinquedos serem para grupos distintos.
Figura 3.1.2 Menino brinca com brinquedos tidos como sendo de meninas.
84
Figura 3.1.3 Menina brinca com brinquedos tidos como de meninos.
Brincadeiras e ações como essas demonstram o quanto nós, adultos, tentamos fazer
separações, mesmo que não intencionais, a exemplo de “meninos com meninos” e “meninas com
meninas”, numa categorização de cultura de gênero. A partir daqueles desvios e resistências, que
possibilidades podemos considerar na pedagogia da infância, no ato de brincar produzido nos
espaços escolares, a partir das relações estabelecidas na educação e cultura?
CERTEAU critica as instituições incluída a instituição escola –, quando as práticas
tendem à uniformização e à obediência, apontando a liberdade gazeteira como possibilidade.
Sua não-credulidade diante da ordem dogmática que as autoridades e instituições querem
sempre organizar, sua atenção à liberdade interior dos não-conformistas, mesmo
reduzidos ao silêncio, que modificam ou desviam a verdade imposta, seu respeito por
toda resistência, ainda que mínima, e por toda forma de mobilidade aberta por essa
resistência (1994, p. 19).
85
Assim, ao brincarem, ao circularem entre brinquedos que, a princípio, fazem parte de uma
categoria classificatória e uniforme, negando as exigências do formal, às vezes até de modo não
expresso, as crianças manifestam suas liberdades e diferenças.
Referindo-se à interação que se quando as crianças brincam juntas (maternal e pré-
escolar), também GARCEZ (apud DELGADO e LLER) tece crítica à classificação e à
uniformização, afirmando que, “em nome da ‘ordem natural da vida’, a sociedade contemporânea
divide as pessoas em gerações e ignora a importância da experiência intergeracional” (2005, p. 3).
As recém citadas autoras apontam para a importância da troca entre as turmas de
diferentes idades, considerando a cultura infantil de pares como um espaço de interação
importante. A escola pesquisada permite essa interação na hora do parquinho, embora mais como
fruto das circunstâncias e do espaço disponível do que deliberadamente.
Com as considerações feitas acima, sugiro refletir e tentar distinguir como o trabalho
pedagógico vem sendo feito na escola, através das culturas. Que possibilidades existem, na
interação da cultura escolar com as demais culturas (familiar, local, societal, de pares),
raciocinando com o cotidiano escolar, permeado pelas influências carregadas e criadas por cada
um que na escola convive?
Nessa linha, PRADO propõe:
[...] uma pedagogia da infância que leve em conta a capacidade de as crianças
estabelecerem relações diversas na diversidade (de gênero, de classe social, de idade, de
tamanho...), assim como de produzirem saberes e construírem culturas infantis próprias
dos grupos infantis no convívio coletivo (2005, p. 685).
Enquanto instituição, a escola cumpre uma rotina organizacional. Entretanto, para além
desta organização, está o “locus” do seu cotidiano e, nesse espaço e tempo
40
, estabelecem-se uma
série de relações, mesmo sem serem planejadas ou percebidas pelos envolvidos, em vários
momentos do dia-a-dia, como as horas de chegada e saída, as refeições, as idas e vindas até o
banheiro, e o próprio parquinho. Nesses cenários, as crianças e adultos, praticantes ordinários,
encontram-se e protagonizam relações de liberdade, de transgressão, de cumprimento de regras,
40
Espaço e tempo” são denominações utilizadas por CASTELLS (1999, p. 403) como sendo as principais
dimensões materiais da vida humana.
86
dentre outras, fazendo também daí advir, para além do planejamento pedagógico, o aprendizado e
a cultura.
Para ilustrar as transgressões e as reconstruções feitas pelas crianças, descrevo trecho de
um jogo imaginário de duas meninas, brincando no espaço escolar, que revela alguns aspectos de
como o imaginário e o faz-de-conta trabalham o contexto escolar, a cultura etc., elementos que
nos permitem compreender, levantar possibilidades e problematizar as situações vividas e
contextualizadas na escola.
Enquanto a professora ia encerrando a atividade que desenvolviam (colagem) e pedia
para as crianças sentarem na rodinha em silêncio, duas meninas saíram para um canto da
sala e começaram a brincar de professora.
Elisa: Eu sou a professora daqui até aqui” (sinalizou).
Paula: É, e eu sou para cá.”
(Até pouco tempo antes, as professoras da escola dividiam uma sala em dois ambientes).
Elisa: “Agora vamos trabalhar! (olhou para o espaço vago como se estivesse falando
com seus alunos).”
Paula: Em silêncio, tá!”
Logo a professora as chamou para a próxima atividade e a brincadeira se encerrou.
Os próprios atos e planejamentos organizacionais da escola são apreendidos e elaborados
pelas crianças como culturas e/ou resistências. Como cultura, há o aprendizado de reinterpretarem
uma situação vivida, que tinha representação no contexto da escola, assim como o de dividirem a
sala de aula, de organizarem o ambiente e de promoverem silêncio para o trabalho imaginário que
viria (Agora vamos trabalhar!; Em silêncio, tá!). Enquanto resistência, o desvio, ao
descumprirem a ordem da professora de ficar na rodinha e ao aproveitarem o tempo para brincar
de algo que tinha significação para elas, as crianças.
Também as culturas locais, aquelas nas quais a criança nasce em seu interior, que são
parte da vida, dos costumes da cidade ou do bairro, estão presentes nestes momentos planejados e
não planejados na escola.
A prática do bairro é desde a infância uma técnica do reconhecimento do espaço
enquanto social; deve-se, então, tomar o seu lugar: uma pessoa mora na ..., assim
como pode chamar-se Pedro ou Paulo. Assinatura que atesta sua origem, o bairro se
inscreve na história do sujeito como a marca de uma pertença indelével na medida em
que é a configuração primeira, o arquétipo de todo o processo de apropriação do espaço
como lugar da vida cotidiana pública (CERTEAU, 1996, pp. 43-44).
87
Partindo da idéia de apropriação do espaço social, as crianças se constituem nesse
pertencimento, levando para o brincar, no cotidiano escolar, cenas vividas fora da escola, nas suas
vizinhanças, acontecimentos os quais se tornam enredo para um brincar cotidiano no espaço
escolar, como Ana e Viviane nos mostram, em registro de diário de campo:
Viviane e Ana (nomes fictícios) brincavam com bonecas, vestiam-nas, davam-lhes
mamadeiras etc.
Ana dirige-se a Viviane e diz: Hoje eu preciso ir no centro fazer umas coisas. Tu vai ter
que cuidar da minha filha”
Viviane: Eu tamm tenho que ir, no baile.”
Ana: Tá bom, eu vou primeiro, depois tu vais no baile.”
A relação de vida em vizinhança, no bairro, manifesta-se expressando as relações de
ajuda, os hábitos e os próprios costumes de lazer e cultura, como é o caso do baile. Através destas
relações de brincar, as crianças trocam suas culturas de convivência, aquilo que é próprio do
local, do lugar onde vivem. Sobre esta convivência, CERTEAU escreve:
Representa, no nível dos comportamentos, um compromisso pelo qual cada pessoa,
renunciando à anarquia das pulsões individuais, contribui com sua cota para a vida
coletiva, com o fito de retirar daí benefícios simbólicos necessariamente protelados. Por
esse preço a pagar” (saber comportar-se”, ser conveniente”) o usuário se torna
parceiro de um contrato social que ele se obriga a respeitar para que seja possível a vida
cotidiana (1996, p. 39).
A cultura é trazida pelas crianças das suas relações familiares, de vizinhança, e também
apresentada pelas professoras através da cultura pela, sendo transmitida pela tradição oral e pelo
brincar, ao exemplo das brincadeiras do folclore infantil.
Em Florestan Fernandes, podemos verificar que uma profunda e intensa ligação entre
nós e o nosso passado, ainda vivido nas diversas peças da tradição oral ou, pelo menos no folclore
infantil: “[...] elementos que constituem grande parte do patrimônio lúdico das crianças, são todos
tradicionais, o que quer dizer que são valores vindos de nosso passado de nossa formação,
constituindo um ambiente moral em que nos formamos” (2004, p. 309). É importante referir não
ter sido possível identificar, na pesquisa, quais brincadeiras do folclore eram trazidas para a
escola pelas crianças, do seu conhecimento de rua, e quais eram ali aprendidas, de modo a
permitir a afirmação de que estamos todos envolvidos nesse processo de tradição oral, do passado
e do presente. A verdade é que tais brincadeiras do folclore infantil vinham pelas duas veias,
88
sendo que uma puxava a outra. Se uma criança brincava, as demais também, e sucessivamente
veriam outras do estilo; se a professora propunha uma das brincadeiras como atividade, da mesma
forma, outras surgiam.Profe, profe, eu sei outra (Babalu, Quando as caveiras saem às ruas,
Escravos de Jó).
Ciranda, cirandinha,
Vamos todos cirandar,
Vamos dar a meia-volta,
Volta e meia vamos dar ...”
Logo as crianças iam lembrando de outras, como:
Borboletinha, tá na cozinha,
Fazendo chocolate para a madrinha
Poti, Poti, perna de pau,
Olho de vidro, nariz de pica-pau
Tchau, tchau!”
Passa passará
Quem de traz ficará
A porteira está aberta
Para quem quiser passar.
Passa um,
Passa dois
Passa três
É com este que eu vou ficar.”
Ensinar a brincar, a cantar: esse discurso volta novamente, nesta pesquisa, como se fosse
estabelecer um duelo entre o aprender e o brincar, na divergência de posições. Esclareço que a
intenção não é resolver esta questão, mas sim, refletir, “encontrar no brincar um novo paradigma
para sua relação pedagógica com a vida, enfim” (FORTUNA, 2005a, p. 112).
89
Figura 3.1.4 As crianças brincam de roda em sala de aula, brincadeiras essas algumas propostas
pela professora, outras pelas crianças.
A realidade da escola mostra que este “tipo” de brincar ensinado é parte, também, do
cotidiano. Assim, ao propor esse tipo de brincadeira, ela sucessivamente surgia com grande
alegria e entusiasmo e as crianças brincavam. Isso nos permite pensar que esta cultura, passada de
geração em geração, tem aceitação e espaço no brincar das crianças da nossa época, e que não
fomos massificados pelos brinquedos e brincadeiras do mundo do consumismo e materialismo. É
o que Milton Santos refere como a possibilidade de uma revanche da cultura popular sobre a
cultura de massa “de baixo”.
Um esquema grosseiro, a partir de uma classificação arbitrária, mostraria, em toda a
parte, a presença e a influência de uma cultura de massa buscando homogeneizar e
impor-se sobre a cultura popular; mas tamm, e paralelamente, as reações desta cultura
popular. Um primeiro movimento é resultado do empenho vertical unificador,
homogeneizador, conduzido por um mercado cego, indiferente às heranças e às
realidades atuais dos lugares e das sociedades.
Constituem-se, assim, formas mistas sincréticas, dentre as quais, oferecida como
espetáculo, uma cultura popular domesticada associando um fundo genuíno a formas
exóticas que incluem novas técnicas” (SANTOS, 2000, pp. 143-144)
90
O impacto cultural de massas não é simplesmente posto e tudo fica acabado, como refere
o autor acima; poder-se-ia fazer, aqui, o elo das forças e argumentação com as micro-resistências,
afirmadas por Certeau. Relativamente à produção e ao consumismo, as resistências se
manifestam, mesmo disfarçadas, dependendo do uso feito das novidades deles advindas, dos
“modos de perceber da criatividade cotidiana” (CERTEAU, 1994, p. 41). Eis, portanto, as
questões de como as crianças usam os meios que o mundo do consumo produziu, sem perderem a
identidade e a cultural local.
3.2 Identidades, culturas locais e as influências das culturas societais nas
brincadeiras e no fazer escolar
Ao se referir às formas culturais produzidas para as crianças e pelas crianças,
SARMENTO (2003) enfatiza que não basta analisar as produções somente, mas a recepção destas
pelas crianças e a interação delas com os adultos e com a natureza. Inspirada nesta análise,
proponho-me a compreender tais interações, com os artefatos culturais produzidos e que as
crianças da escola têm acesso.
Quando, por outro lado, indago sobre a produção e a recepção cultural na infância, com
um olhar sobre as práticas pedagógicas no cotidiano, uso o termo “artefatos culturais”, na
perspectiva sociológica. Porém, BROUGÈRE usa o termo “brinquedos”, com o mesmo sentido.
Se tratamos do que é produzido para as crianças e pelas crianças, logo vêm à mente os
artefatos culturais (brinquedos) que são lançados no mercado, além de alimentos, roupas e outros
produtos para consumo das crianças. E quem os consome? Apenas as crianças? E nós adultos?
Os artefatos culturais estão inseridos na cultura familiar, por exemplo, na forma de um
presente; este, segundo BROUGÈRE (2004, p. 173), “representa forte dimensão afetiva e
relacional”. Para ele, é na família que a criança vai construir o seu universo material de
brinquedos. O autor, na sua obra Brinquedos e Companhia, traz dados significativos, no sentido
de que o ato de dar brinquedos é primeiramente do adulto, instituído em rituais: nascimento,
natal, aniversário etc. Lembra ele que a criança começa a ganhar presentes ainda antes de nascer,
sendo que o primeiro ano de vida da criança é o período em que o percentual de presentes
brinquedos é maior (op. cit., p. 184).
91
Essa ritualização de festejar a criança com brinquedos é feita pelos adultos a fim de
reverenciar a infância, ao que acaba por se tornar impregnada de industrialização, de marketing.
“Quer se trate do Natal ou do aniversário, o brinquedo serve para festejar a criança, para
introduzir o prazer, que na nossa sociedade está fortemente ligado ao consumo - damos presentes
às crianças e a nós mesmos” (BROUGÈRE, 2004, p. 182).
O brinquedo, ligado a rituais sociais e a festejos que fazem parte da cultura, também
entrou na escola de educação infantil pesquisada. As pessoas que têm algum contato com as
escolas sabem que, de alguma forma, costuma-se festejar datas como Natal, Páscoa, Dia da
Criança e o próprio aniversário com algum agrado, na forma de presente, com artefatos culturais
da infância e/ou doces.
A intenção não é de argumentar contra ou a favor destas comemorações, mas de
compreender que a escola de Educação Infantil, com o seu cotidiano, também abraçou esta
dimensão afetiva e relacional de comemorar rituais sociais através do presente, do brinquedo,
com brincadeiras e atividades diferenciadas das que ocorrem nos demais dias da escola.
A escola pesquisada também assumiu esta posição de contemplar suas crianças nos
festejos e rituais sociais em que a comunidade estava inserida. Durante o ano letivo, em datas de
Páscoa, Dia da Criança e Natal, eram organizadas atividades festivas variadas (passeios,
piqueniques, idas a teatro, etc.) e alcançados presentes para as crianças, arrecadados por
voluntariado no meio comunitário, já que a escola atende classes populares.
92
Figura 3.2.1 Confraternização de Natal na escola, com distribuição de presentes aos alunos
artefatos culturais infantis”.
São eventos esperados pelas crianças e familiares, como também pelos professores e
funcionários da escola, que se engajam com entusiasmo para organizá-los. Ao final, alegria de
todos. Eu própria fui presenteada na escola, em algumas ocasiões. Um dos presentes que recebi,
“O livro da Professora Raquel”
41
, foi confeccionado pelas crianças, cada uma representou, por
desenho, o que gostaria de me dar. Ganhei flores, abraços, brinquedos, filhos, roupas, livros,
telefones, sapatos, entre outros. Um presente para sempre. E, provavelmente, esses são os
presentes que o meio deles mais ilustra, ou seja, os presentes que eles dariam e vêem dar.
Os artefatos culturais têm espaço na escola de educação infantil não na forma de
presentes, mas, também, em sala de aula e no pátio, como componentes do espaço escolar. Estão
nos denominados “cantos” de bonecas, de jogos, do supermercado, do cabeleireiro, entre outros,
denominações essas extraídas de CRAIDY e KAERCHER (2001), ao se referirem à organização
dos espaços na educação infantil. Estes espaços e artefatos culturais permitem que os pequenos
41
O livro” foi-me dado na Páscoa, como um agradecimento pelo meu empenho em arrecadar brinquedos para a
escola e para festejar a data.
93
interajam entre si, com seus outros pares, com os adultos e com os brinquedos, possibilitando
integração da criança à vida da comunidade ou da cidade.
Observei a concepção das professoras acerca do papel do brincar e dos artefatos culturais,
nessa escola, enquanto meios de propagação e criação de cultura, e constatei que concebem o
brinquedo como objeto de ensino, de criação, de partilha, de desabafo, de cuidado, de destruição,
etc. O trabalho de ANDRADE (2000), intitulado “Era uma Vez”, chegou a resultados e reflexões
semelhantes. Outro ponto coincidente entre a presente pesquisa e a desta autora diz da
necessidade de diversificação do acervo de artefatos culturais infantis. Na escola pesquisada, era
constante a busca de renovação e aquisição de novos brinquedos, através de parcerias com a
comunidade, fazendo-se arrecadações, arrumações e eventos para obter recursos financeiros um
exemplo prático foi a casa de bonecas, adquirida com dinheiro de vendas na Festa Junina da
escola.
Figura 3.2.2 A professora e as crianças brincam em sala de aula, com brinquedos arrecadados.
Na escola infantil todo mundo brinca se você brinca”CRAIDY e KAERCHER (2001).
94
Nas arrecadações que fizemos, vieram muitos brinquedos industrializados que a mídia
mostrava em comerciais e desenhos animados, aos quais algumas crianças tinham acesso em casa
e, por isso, chamaram a atenção delas. Isso não foge da percepção dos profissionais da educação e
da própria indústria de brinquedos, como CRAIDY e KAERCHER apontam:
Hoje as grandes corporações m tomado conta de garantir às crianças seu lazer, não
importa de que camada social elas provenham. Se fazem parte da camada mais pobre da
população, sempre é lançado no mercado uma imitação do brinquedo, assim todas elas
são de alguma forma atingidas. A mídia, as novas tecnologias são os que de mais forte
incide nas brincadeiras e brinquedos das crianças.
As grandes indústrias se deram conta do quanto as crianças pequenas são ótimas
consumidoras (2001, p. 107).
Também tem relevo no ato de brincar das crianças, na escola pesquisada, o modo como
elas interagem com os artefatos. Não se limitam a repetir o que, a princípio, o brinquedo traz
propagandeado pelo mercado. Muitas vezes, constroem brincadeiras pertencentes à realidade da
vida comunitária e cultural delas, utilizando este tipo de brinquedo para saborear o brincar no seu
desejo e realidade, permitindo viajar na imaginação e, assim, construindo o seu mundo de
microliberdades.
As manifestações televisivas, através de desenhos animados, programas infantis,
comerciais, novelas, por exemplo, estão presentes nas vidas familiares e são carregadas para
outros segmentos da vida em sociedade, como a escola. As crianças têm se mostrado ativas e
interativas, enquanto participantes dessas inter-relações, recebendo influências diversas e,
também, acrescentando suas experiências infantis, suas maneiras de interagir e recriar idéias e
histórias. Junto com seu cotidiano familiar e/ou escolar, participam de uma grande teia. A foto
ilustra o que fora dito:
95
Figura 3.2.3 O menino brinca com bonecos Power Rangers, encontrados na caixa, para num
segundo momento realizar outras interações com os demais.
Interessante, ainda, relatar uma cena que observei e registrei em diário de campo: Davi
acha, na caixa de brinquedos, bonecos Power Ranger; Elton e Nelson vêem, passam a também
querer e procuram na caixa; os carrinhos com que os dois brincavam ficaram de lado; enquanto
isso, os bonecos saltavam e faziam grandes manobras no ar.
Davi: Os Powers agora são noivo e noiva e vão-se casar.”
As crianças estão em fase de ensaio do casamento caipira para as festas juninas.
Entoam a marcha nupcial (tan tan tan tan), enquanto os noivos entram na igreja.
Beto: Que nomes eles têm?
Nelson: O meu é Miguel.”
Davi: Então o meu é Paola.”
Nelson: Miguel, recebe a tua esposa?
Beto: “Agora eles se beijam.”
Davi: Eu vou levar com a Limusine, vão esperar lá no hotel.”
Nessa história, está envolvido um produto de consumo (bonecos Power Rangers) e
consumidores (as crianças). O produto é lançado no mercado de consumo globalizado, e abrange
desde os bonecos ditos originais, encontrados em lojas especializadas e de custo elevado, até os
encontrados em lojas de preços mais acessíveis; está, além disso, nos canais de televisão abertos,
96
em forma de desenho animado. Circulando entre os pequenos, os ditos Power Rangers são
figuras conhecidas, que fazem parte do seu brincar no dia-a-dia, do seu cotidiano, da sua cultura.
O objetivo, aqui, não é dissertar sobre a possibilidade de brincar de Power, no sentido de ser
considerada adequada ou não, mas sim perceber as possibilidades do “fazer” com os produtos de
consumo, no meio social dos envolvidos no ato de brincar.
Remeto a outra cena observei e registrei em diário de campo: as crianças corriam no
parquinho como se estivessem fugindo, e uma delas, com um pequeno galho na mão, corria atrás
das demais. A princípio, poderíamos dizer que é uma brincadeira de “pega”, que é tradicional,
uma brincadeira que vem passando de gerações a gerações.
Pesquisadora: (Aproximei-me e perguntei) Do que estão brincando, Davi?
Davi: Brincando de escravo, profe. Eu sou o ‘capitão do mato’
42
. Profe, vou trazer os
meus escravos ‘pra ti ver’”.
Os colegas faziam expressões de sofrimento e angústia, enquanto o capitão do mato” os
conduzia com o galho sob ameaças, estando um amordaçado e com os braços para trás.
Davi: Vamos escravos, vamos! Agora chega, vão trabalhar.”
Logo em seguida, a brincadeira de escravos transformou-se na tradicional brincadeira de
pega: quem é pego sai atrás dos demais para pegá-los e assim sucessivamente.
BROUGÈRE refere que, na tentativa de descrição da cultura lúdica pelos adultos, a
dificuldade de percepção se apresenta devido à falta de referências intersubjetivas de
interpretação que as crianças dão, e que o adulto só entra ao se dispor a brincar junto.
Dispor de uma cultura lúdica é dispor de um certo mero de referências que permitem
interpretar como jogo atividades que poderiam não ser vistas como tais por outras
pessoas. Assim é que são raras as crianças que se enganam quando se trata de discriminar
no recreio uma briga de verdade e uma briga de brincadeira. Isso não é fácil para os
adultos, sobretudo para aqueles em que suas atividades quotidianas se encontram mais
afastadas das crianças. Não dispormos dessas referências é não poder brincar (1998a, p.
3).
Na escola percebi que havia esta vontade de brincar e de possibilitar o brincar, mas que,
em alguns momentos se confundia conforme a brincadeira. Pareceu-me que o elemento medo
entrava em cena, com o temor, por exemplo, de machucarem-se e de não estar em conformidade
com o ambiente escolar. Algumas cenas foram observadas e brincadas com certo receio: dançar
42
Nessa época, em um canal de TV aberta, estava passando novela denominada Sinhá Moça”, que retratava a
história de vida dos escravos no Brasil.
97
funk; simulações de lutas (Power Rangers); resvalar no escorregador, de cabeça para baixo; jogar
pedras; brincar com pequenas sementes, correndo o risco de colocarem na boca; brincadeiras na
hora do soninho para os menores, assim como na hora de escovação e das refeições; dentre
outras.
Assim, devo considerar que havia preocupação com cotidiano de hoje, que propõe novas
necessidades e desafios por influências midiáticas e tecnológicas (cantar e dançar funk, lutar
Power, etc.), sobre as quais nos questionamos, enquanto educadores e pais, por apresentarem
características de agressividade, de subordinação, de alienação, de consumismo. Será que o que
nossas crianças têm brincado e trazido para dentro do cotidiano escolar e familiar são as vivências
a elas postas e reinventadas (bafo/taz; pião/blayblade; pega/escravo; barbie/polly)? A partir dessas
“novidades”, que nos preocupam, como nós, educadores, trabalharemos com tais questões, que,
aparentemente, são novas e perigosas para um contexto escolar?
BROUGÈRE, em entrevista para a Revista Aprende Brasil, lamentou que adultos e, em
particular, educadores, não conheçam a cultura infantil e tenham, por causa de sua estrutura
comercial, uma visão exclusivamente negativa dela, esquecendo-se de analisar o conteúdo, que é
mais rico do que imaginam. Aquele referiu, também, que a cultura infantil tem escapado
totalmente do controle do adulto: “A cultura infantil de hoje é ligada à gica da audiência, da
sedução da criança, provocando um curto-circuito entre pais e educadores” (2000, p. 2).
Sendo o brincar influenciado por possibilidades como as culturas de pares, de mídia, local
e escolar, proponho refletirmos e, então, nos permitirmos entender a cultura criada pelas crianças
e para as crianças.
O discurso de SARMENTO se soma ao de BROUGÈRE, com relação à produção de
mercado e a recepção da cultura infantil pelas práticas pedagógicas, como uma espécie de alerta:
O estudo das relações entre a produção e recepção cultural na infância poderá abrir
novos olhares sobre as práticas pedagógicas correntes e poderá levar a considerar o
insucesso escolar” como um fenômeno de desadaptação do discurso didático à recepção
infantil, ao contrário das teorias correntes, segundo as quais o insucesso se deve às
condições individuais ou sociais de recepção da cultura escolar pelos alunos ou aos
meios de transmissão”, sem questionar a natureza dos conteúdos da cultura escolar.
(2003, p. 4)
Com a perspectiva de conhecer e entender as brincadeiras das crianças dos dias de hoje, de
conhecer ou tentar conhecer a cultura infantil e os “novos” jeitos de brincar, da
98
recontextualização como processo interativo que cria novas significações, merece atenção uma
passagem de WAJSKOP:
Os adultos e as crianças mais velhas m um papel importante nesta aprendizagem
quando se dispõem a brincar. Brincar é imaginar e comunicar de uma forma específica
que uma coisa pode ser outra, que uma pessoa pode ser um personagem, que uma criança
pode ser um objeto ou um animal, que um lugar faz-de-conta que é outro... Brincar é
manipular o sentido da palavra, dos sentimentos e da realidade, tendo consciência de que
é uma simulação. Brincar é construir e construir-se numa linguagem. Brincar é, portanto,
uma atividade imaginativa e interpretativa (1996, p. 81).
Temos o desafio de “conhecer, compreender e diferir”, podendo, assim, problematizar
algo, em termos do paradoxo inerente ao processo de brincar, especialmente quando está em
nossas mãos a possibilidade de permitir o brincar rentabilizado, na perspectiva que Delgado e
Müller propõem na possibilidade que venho tratando neste trabalho: enquanto Educação Infantil,
consideramos o brincar também na dimensão de educar, relevando a participação das crianças no
espaço escolar, visto serem implicadas com o cotidiano escolar. Neste contexto de desafio, cabe
reconhecer o processo de brincar como promoção, conforme BORBA relata:
Para essa discussão das relações entre o brincar e a cultura, alguns autores - como
Vygotsky, Brougère, Sutton-Smith, Corsaro, Kishimoto, Góes - m contribuído para a
compreensão da problemática abordada, apontando-a como paradoxo inerente ao
processo do brincar, uma vez que promove tanto a incorporação da cultura dominante,
através da assimilação dos valores, conhecimentos e hábitos que a caracterizam, como
tamm a sua renovação por meio de processos de reconstrução e de reinvenção de
novas formas de compreender e de agir sobre a realidade (2005, p. 131).
Subestimar a cultura infantil não parece ser o caminho mais adequado, segundo os autores
que tenho referenciado: BROUGÈRE (2000), SARMENTO (2003), DELGADO E LLER
(2006), BORBA (2006). Na mesma via, STEINBERG e KINCHELOE sustentam que “[...] as
escolas vêm a ser não apenas a instituição de repasse de informações, mas também um local de
hermenêutica onde o pensamento é formado, onde a compreensão e a interpretação são
engendradas” (2004, p. 35). Precisamos dispor-nos a conhecer a cultura infantil contemporânea e
a discuti-la, a fim de que possamos diferir, não permitindo que o debate se encerre como algo
posto, mas em constante renovação. A escola tem, sim, um importante papel neste debate.
Nos últimos dois anos tive o privilégio de ler muitos trabalhos de pesquisa com diferentes
enfoques e posicionamentos. Encontrei discursos de denúncia, de falta, de embate e de dualidade,
99
no entanto, não fizeram parte das minhas escolhas, do meu desejo nesta pesquisa. Minha opção
reflexiva foi em direção de fazer uma análises otimista; quis usar outros óculos, quis enxergar o
que fazemos e vivemos na escola, a fim de refletir sobre possibilidades. Meu esforço como
pesquisadora foi de permitir-me vivenciar o cotidiano de uma escola de Educação Infantil,
considerando os planejamentos e as culturas que a cercam, rentabilizando o educar da Educação
Infantil pelo brincar.
Assim, acredito que possamos nos aproximar da intenção de STEINBERG e
KINCHELOE, de pensarmos a escola para além da instituição de repasse de informações. É
necessário conhecer, então, a cultura infantil e a hiper-realidade existente no mundo
contemporâneo. Também é fundamental, enquanto escola de Educação Infantil, nos permitir
repensar, a partir do cotidiano, as tensões entre (brincar, jogo e trabalho) o que é livre, o que é
dirigido, o que é permitido, o que é proibido e por que é proibido, no âmbito da sua realidade
escolar e social.
4 UMA PAUSA, NENHUM PONTO FINAL: UM RECOMEÇO...
Ao encerrar este trabalho de dissertação, posso afirmar que não sou mais a mesma pessoa de
dois anos e meio atrás. Hoje, consigo entender coisas que vivi e que fazem parte de minha história,
que até então não sabia: o otimismo de ver a escola, de ser professora e de ser parte desse cotidiano,
pois só posso ser responsável com aquilo que me pertence e a que pertenço.
Assumi um posicionamento bastante otimista e, principalmente, estive disponível para
conhecer, compreender e poder diferir com responsabilidade, em momentos e ações vivenciados no
cotidiano escolar. Neste momento do estudo e de vida, não me satisfazem apenas as idéias que
apontam faltas somente. Aprendi com autores que devemos ir além, concordando com BUENO,
quando afirma que somos constantemente “[...] desafiados a propor formas de investigação que
possam estabelecer uma relação mais orgânica entre suas atividades de pesquisa e o ensino que é
realizado nas escolas”. (1998, p. 7)
“Tia tu qué entrá no meu barco? Com este convite, no primeiro dia que cheguei à escola, fui
acolhida por uma das crianças e este mesmo chamamento senti das demais, que estavam. Com
relação aos adultos (professoras, funcionárias e mais tarde os pais) também senti acolhimento e
espaço, no sentido de que eles teriam mais uma pessoa para acompanhar, participar e estar junto
daquela escola. Este espaço que tive foi fundamental para poder ser um “praticante ordinário” e
perceber as redes de significações como um espaço sociocultural.
Vivemos em uma época em que as disparidades, as desigualdades, além de visíveis, são
gritantes. As mudanças ocorridas na sociedade contemporânea, nas últimas décadas, têm atingido a
todos, e aqui se chama atenção em especial para as escolas de Educação Infantil, objeto deste estudo.
A infância, os direitos das crianças e os interesses e estratégias econômico-políticas fazem parte do
processo de transformação que a globalização está a incitar.
Em tal processo de globalização, é impossível não perceber a infância. Discutimos a infância
como uma categoria histórica e cultural e não nos prendemos mais a uma categoria natural. Os
escritos de ARIÈS (1986) revelam a idéia de uma infância no sentido de diferenciação do adulto. No
Brasil, KRAMER (1996) alerta para as marcas da diversidade no processo de socialização de adultos
e de crianças, pela diversidade inferida na nossa formação (índios, escravos, migrantes,
101
colonialismo, império). Refletir sobre o cotidiano da Educação Infantil, atravessado pelas influências
culturais contemporâneas, foi o cenário para observar e mostrar como o brincar traz as marcas de
nossos tempos e permite possibilidades vivenciadas na atualidade, que venham a ser pontuadas para
tal reflexão.
Nesta dissertação pretendi realizar uma pesquisa colaborativa com o cotidiano escolar, com o
propósito de convívio com os “praticantes ordinários”. O objetivo foi conhecer o brincar como
experiência cultural que perpassa as culturas (societais, de pares, local e escolar) e que, através das
brincadeiras, permite às crianças apresentar suas microresistências constituintes, suas capacidades e
vivacidades. Quis, também, considerar como possibilidades as construções sociais e culturais dos
“praticantes ordinários”, a fim de rentabilizar juntamente com a cultura escolar, podendo assim
marcar a diferença naquilo que por vezes possa parecer homogeneizador.
A reflexão se encaminhou na perspectiva do brincar na dimensão cultural: primeiro, como
desvio e vivacidade do cotidiano através das micro-resistências que fundam microliberdades, de
Certeau; e, segundo, como possibilidade de conhecer a cultura infantil de Brougère, dentro de uma
proposta pedagógica.
Para chegar a essas duas perspectivas, a trajetória se compôs de muitas idas e vindas para o e
com o cotidiano da escola, a partir dos referenciais bibliográficos e das orientações. A proposição de
conhecer o cotidiano da Educação Infantil, de compreender as relações que se estabelecem neste
cotidiano e de poder então diferir, no sentido divergir para possibilidade, constituí uma caminhada
de muitas descobertas e envolvimento. Muitas idéias e questionamentos surgiram, mas o objeto de
estudo não podia se perder entre as tantas situações vividas.
O objetivo principal da pesquisa, desde o princípio, era de considerar o brincar das crianças
na escola de Educação Infantil pesquisada, atravessadas por influências de relações culturais outras
que não só as oferecidas pela cultura escolar.
Ao acompanhar a vida da escola “Carinho”, tomando emprestadas lentes teóricas dos autores
utilizados nesta pesquisa, foi-me possível construir uma caminhada por dentro do cotidiano da
escola, compreendendo as marcas da cultura escolar, da cultura societal, da cultura local e, de modo
especial, da cultura infantil, da cultura de pares.
Assim, pude, além de estabelecer laços de solidariedade, perceber que o brincar é próprio da
cultura infantil, mas atravessado pela cultura escolar e imerso na cultura global do seu tempo. A
102
convivência de um ano e três meses junto à escola me permite afirmar que a importância que se
ao brincar, naquela escola, desde os espaços organizados e planejados até os não organizados, porém
burlados pelas crianças, é significativo e pode ser potencializado, quando faz parte dos
planejamentos e propostas da escola. Essa possibilidade, pelo fato de a escola ser alvo de pesquisa,
passou a dar mais espaço para a cultura infantil e seu brincar.
As interações feitas no decorrer da pesquisa, entre anotações de caderno de campo e registros
fotográficos, convívio e participação, revelaram o cotidiano da escola, em muitas possibilidades da
cultura infantil. Estas possibilidades da cultura infantil estão representadas nas brincadeiras, as
autorizadas e as burladas, e a investigação aponta que estas burladas seriam algumas possibilidades
de micro-resistências que fundam microliberdades do brincar e da cultura infantil, com base em
Michel De Certeau
A investigação demonstrou que a escola enfatiza o brincar na perspectiva do educar, pois o
brincar está presente nos espaços, nos tempos, nos planejamentos e nos espaços burlados pelas
crianças, bem como nos Parâmetros Curriculares Nacionais da Educação Infantil. Esse argumento
pode ser vislumbrado em autores como: Delgado e Müller (2005, p. 13), “possibilidade de
rentabilizar a participação das crianças”; Brougère (2000, p. 3) “conhecer a cultura infantil”; Fortuna
(2005, p. 109) “um brincar criativo, transformador e reiteradamente transformado, o que requer
ousadia e coragem de inventar”; Huizinga (1996, p. 4) “jogo confere um sentido de ação”; Caillois
(1990, p. 26) “o domínio do jogo é um autêntico espaço”; Oliveira (2002, p. 52) “situação lúdica é
considerada, portanto, como geradora potencial de desenvolvimento”; Prado (2005, p. 686) Jardim
de Infância como espaço presente de cidadania através da garantia do direito da criança de brincar”;
dentre outros autores referidos na Pesquisa ou não.
Ao encaminhar este trabalho para sua finalização, tenho a responsabilidade de considerar
que, ao entrar na pesquisa de campo, tive a intenção de selecionar uma escola de Educação Infantil
do Município de Santo Ângelo - RS que representasse a média das escolas. Ao chegar ao final, posso
afirmar: a pesquisa mostrou que a vivência na escola foi um trabalho comunitário/local admirável.
Escrevo admirável porque considero que não é fácil, nos tempos de hoje, encontrar pessoas que se
dispõe a trabalhar pela escola voluntariamente, após a jornada de trabalho.
Compartilhei do comprometimento e otimismo das professoras e funcionárias que
trabalham:vou pedir para o meu marido fazer um tempero gostoso pra nossa comida, ele usa: sal,
103
salsinha, coentro, cebola. É um tempero bem bom.” (fala da funcionária, registro no caderno de
campo);Gurias, o que vocês acham de nós fazermos uma surpresa e viemos vestidas de super-
herói (fala de uma das professoras, ao planejar a Semana da Criança, registro do caderno de
campo);Amanhã eu e o Cleber vamos vim pra pintar o que falta. e plantar as mudas de flores”,
este amanhã era um domingo (fala de uma das professoras, registro de caderno de campo). É
importante ressaltar que ali um envolvimento além do instituído no âmbito profissional. Não
obstante, no tempo de convívio que tivemos, não presenciei cenas de enfrentamento difíceis ou
complicadas entre adultos e crianças.
A intenção não foi mostrar que a escola investigada é uma perfeição, mas registrar o que
senti: o empenho e a vontade por parte de seus “praticantes ordinários”. Considerando isto, concluo
que tal envolvimento se constitui em um modo de significar o cotidiano da escola infantil, na
perspectiva de ser o melhor para a educação das crianças que se encontram, com responsabilidade
e amor.
Entendo que, depois da minha convivência na escola com as crianças e com os adultos,
também ressignifiquei tal experiência: passei a acreditar na força local, percebendo as dificuldades
que enfrenta uma escola pública, mas compreendendo, sobretudo, as muitas possibilidades sociais e
culturais potencializadas pelos “praticantes ordinários”. Encerro, assim, minha dissertação
acreditando que é possível viver o cotidiano de uma escola de Educação Infantil digna, para todos os
que queiram.
104
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110
ANEXO 1
111
ANEXO 2
112
ANEXO 3
UNIJUÍ - DEPARTAMENTO DE PEDAGOGIA
MESTRADO EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS
Prezada Professora Coordenadora Tatiana Joara Maica Warpechowski
Venho por meio deste solicitar-lhe consentimento para realizar pesquisa de campo, na
Escola Municipal de Educação Infantil, em que V. Sa. exerce o cargo aludido. Após esclarecida
sobre as informações a seguir, no caso de aceitar autorizar o presente estudo solicito-lhe assinar
este documento, que está em duas vias. Uma delas é sua e a outra da pesquisadora responsável. Se
houver dúvidas V. Sa. poderá buscar esclarecimento pessoalmente com a própria pesquisadora ou
pelo telefone (55) 3313-4910.
Informações sobre a Pesquisa:
Está em execução o projeto de pesquisa intitulado: “A Pedagogização do Brincar e suas
Implicações na Proposta Político-Pedagógica da Educação Infantil”. A pesquisa está sendo
realizada pela Mestranda Raquel Pigatto Trevisan, do Curso de Mestrado em Educação Nas
Ciências, sob orientação da profª Dra. Noeli Valentina Weschenfelder.
Serão feitas observações, entrevistas e fotografias sobre o cotidiano da escola, a fim de que
sejam analisados e sintetizados para a utilização na pesquisa de Mestrado, e em outras formas de
publicações e apresentações de caráter científico, de forma sigilosa, garantidos o anonimato e
privacidade dos/das participantes e da instituição à qual pertencem.
Os resultados estarão à disposição da escola tanto na forma de material impresso como na
forma de apresentação e debate com a pesquisadora. Acredita-se que o produto do trabalho
poderá contribuir para a ação docente nas escolas de educação infantil, bem como nos cursos de
formação de professores da universidade.
Consentimento da Participação:
113
Eu_______________________________________RG__________________, abaixo
assinada, ciente das informações recebidas, autorizo o trabalho de campo acima mencionado,
pesquisa “A Pedagogização do Brincar e suas Implicações na Proposta Político-Pedagógica da
Educação Infantil”, concordando com que a pesquisadora Raquel Pigatto Trevisan o faça
utilizando as informações, sem restrição de prazos ou citações.
_____________________________ ___________________________
Nome da Coordenadora Assinatura da Coordenadora
_____________________________ ___________________________
Nome da Pesquisadora Assinatura da Pesquisadora
114
ANEXO 4
CONSENTIMENTO DOS PAIS DAS CRIANÇAS QUE FREQÜENTAM A ESCOLA.
Vimos, por meio deste, solicitar seu consentimento, senhores pais (pai ou mãe), para
utilizarmos fotografias de seu (sua) filha no cotidiano da escola. A utilização das fotografias será
de caráter científico, de forma sigilosa (sem identificação de nomes), para a pesquisa de
Mestrado, e em outras formas de publicação e apresentações científicas .
A pesquisa intitula-se: “A Pedagogização do Brincar e suas Implicações na Proposta
Político-Pedagógica da Educação Infantil”, e está sendo realizada pela Mestranda Raquel Pigatto
Trevisan, sob orientação da profª Dra. Noeli Valentina Weschenfelder.
__________________________ __________________________
Nome do/a pai/mãe Assinatura
___________________________ _________________________
Nome da pesquisadora Assinatura
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