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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
CHORO PAGÃO DE PIXINGUINHA E CHOROS 2 DE VILLA-LOBOS:
ANÁLISE PARA INTÉRPRETES
Por
Leandro Gaertner
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Apresentada como cumprimento parcial das exigências para a conclusão
do curso de Mestrado em Música do Programa de Pós-Graduação em
Música da Universidade Federal do Paraná.
Curitiba, Paraná
Junho 2008
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
Dissertação apresentada como cumprimento parcial das exigências para a
conclusão do curso de Mestrado em Música do Programa de Pós-
Graduação em Música da Universidade Federal do Paraná.
CHORO PAGÃO DE PIXINGUINHA E CHOROS 2 DE VILLA-LOBOS:
ANÁLISE PARA INTÉRPRETES
Leandro Gaertner
Banca Examinadora:
Dra. Zélia Chueke (Orientadora)
UFPR
Dr. Norton Dudeque
UFPR
Dra. Cristina Capparelli Gerling
UFRGS
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GAERTNER, LEANDRO (Dissertação, Música)
Choro Pagão de Pixinguinha e Choros 2 (Junho 2008)
de Villa-Lobos: Análise para Intérpretes.
Resumo da dissertação de mestrado do PPG-Música UFPR.
Dissertação de mestrado supervisionada pela Professora Dra. Zélia Chueke.
No. de páginas no texto: 83.
Resumo:
Ao estudar uma obra musical, instrumentistas, cantores ou regentes, exploram
seu conteúdo com um enfoque diferente daquele dos estetas, historiadores ou
compositores. Com base nesta afirmação, o principal objetivo deste trabalho é
realizar uma análise do choro Pagão de Pixinguinha (Alfredo Viana da Rocha
Filho: 1897-1973) e do Choros 2 de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) através do
olhar do intérprete. O ponto de partida para esta análise é a abordagem
estilística da partitura, discernindo elementos musicais gerais e particulares -
seções, frases e figuras rítmicas - considerados relevantes para a
interpretação. Busca-se desta forma, estabelecer uma coerência entre o fazer
musical e a literatura existente sobre análise musical, especialmente aquela
que visa a interpretação.
Palavras-chave: Interpretação Musical; Análise Musical; Choro.
Abstract:
Studying music with performance purposes implies a different approach if
compared to that of the aesthetician, historian or composer. With this in mind,
the main objective of this dissertation is to analyze Pixinguinha’s (Alfredo Viana
da Rocha Filho: 1897-1973) choro (Brazilian traditional music) Pagão and Villa-
Lobos’s Choros 2, from a performer’s perspective. Classifying large scale
(general) and small scale (particular) musical elements, among the ones
considered relevant for the interpretation, such as sections, phrases, rhythmic
characters, style, the author wishes to establish a coherent connection between
analysis and performance.
Keywords: Musical Interpretation; Musical Analysis; Choro.
iii
DEDICATÓRIA
Aos meus queridos pais e irmãos.
À la belle au gent corps, Cambacica, que tanto me abriu os olhos.
iv
AGRADECIMENTOS
Aos membros da banca avaliadora pelas preciosas contribuições na
elaboração deste trabalho: em especial a Dra.Zélia Chueke pelas brilhantes
idéias e atenciosa orientação, ao Dr.Norton Dudeque e a Dra.Cristina C.
Gerling.
Aos professores da Universidade Federal do Paraná com os quais tive a
honra de aprender: Dr. José Roberto Braga Portella, Dr. Maurício Dottori, Dra.
Beatriz Ilari, Dra. Rosane Cardoso de Araújo.
Ao Maestro Isaac Chueke, Professor Eusébio Kohler, Professor Renato
Mor, Professora Mônica Zewe Uriarte e a Marcos Venicius Domingos, pela
amizade e apoio.
v
SUMÁRIO
Capítulo Página
1 REFERENCIAL TEÓRICO................................................................ 1
Introdução............................................................................... 1
A Análise para Intérpretes...................................................... 3
A Análise Estilística................................................................ 7
O Choro.................................................................................. 12
2 CHORO PAGÃO............................................................................... 15
Aspectos Gerais..................................................................... 15
Aspectos Particulares............................................................. 22
Seção A........................................................................ 22
Seção B........................................................................ 26
Seção C........................................................................ 30
3 CHOROS 2........................................................................................ 36
Aspectos gerais....................................................................... 38
Seção Pouco movido.................................................... 39
Seção Muito vagaroso.................................................. 42
Seção Pouco movido.................................................... 44
Seção Tempo Primo..................................................... 46
Aspectos Particulares.............................................................. 48
Seqüência de eventos musicais particulares................ 49
Seção Pouco movido.......................................... 49
Seção Muito vagaroso........................................ 54
Seção Pouco Movido.......................................... 56
Seção Tempo Primo........................................... 58
Dificuldades técnicas na flauta...................................... 60
O gato e o canário: a relação do clarinete e a flauta...... 63
vi
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................ 67
BIBLIOGRAFIA.............................................................................................. 72
APÊNDICE: Partituras das obras analisadas................................................. 76
1
Capítulo 1
REFERENCIAL TEÓRICO
Introdução
Em um primeiro olhar a expressão Análise para Intérpretes pode gerar
curiosidade por ser composta de duas palavras abordadas como opções
diferentes de estudo. Durante grande parte o culo XX a análise musical foi
associada às investigações de cunho exclusivamente teórico, uma atividade
distante dos intérpretes e dos palcos. Por outro lado, a figura do intérprete
apenas como sico funcional, vem se transformando pouco a pouco nas
últimas décadas.
1
Outro conceito que também vem sendo alterado é o de que
uma interpretação válida é somente aquela autenticada pelos teóricos. Peter
Paul Fuchs
2
ressalta que, a despeito da confiabilidade do trabalho do
musicólogo, é importante que o intérprete tome suas próprias decisões, de
maneira a refletir seu próprio gosto e inteligência musical.
Atualmente diversas publicações abordam o tema “performance” desde
o processo de preparação, envolvendo leitura, escuta e interpretação
3
,
buscando esclarecer a relação do intérprete contemporâneo com as obras que
1
Donna K. Anderson. “Musicians”. Current Musicology 14 (1972): 84-88; Peter Paul
Fuchs. “Interrelations between Musicology and Musical Performance”. Current Musicology 14
(1972): 104-110; Dina Koston. “Musicology and Performance: The Common Ground”. Current
Musicology 14 (1972): 121-123; Siegfried Landau. Do the findings of Musicology helps the
Performer?” Current Musicology 14 (1972): 124-127; Meredith Ellis Little. “What Questions
should a Performer ask a Musicologist?” Current Musicology 14 (1972): 131-137; Leonard B.
Meyer, “On Rehearing Music,” Journal of the American Musicological Society 14 (1961): 257-
267.
2
Peter Paul Fuchs. “Interrelations between Musicology and Musical Performance”.
Current Musicology 14 (1972): 104-110.
3
Zélia Chueke, Etapes d’Écoute pendant la Préparation et l’Éxecution pianistique
(Paris: Sorbonne OMF, 2004); Jonathan Dunsby, Performing Music: Shared Concerns (New
York: Oxford University Press, 1995); John Rink, ed. “Analysis and (or?) Performance,” Musical
Performance: a Guide to Understanding (Cambridge: CUP, 2002), 35-58.
1
2
fazem parte de seu repertório, incentivando o diálogo com outros intérpretes e
pesquisadores e valorizando o intercâmbio entre análise e interpretação. De
modo geral os estudos e publicações no campo da Análise para Intérpretes tem
se concentrado no repertório tradicional para piano ou em obras sinfônicas;
ainda mais evidente é a escassez deste tipo de análise na literatura acadêmica
brasileira. A partir destas constatações, o objetivo principal deste trabalho é a
investigação de duas obras do repertório brasileiro para flauta transversal,
demonstrando o papel da análise como ferramenta para a elaboração da
interpretação musical.
Para este fim, será realizada uma análise do choro Pagão de Pixinguinha
(Alfredo Viana da Rocha Filho: 1897-1973) e do Choros 2 de Heitor Villa-Lobos
(1887-1959) através do olhar do intérprete, ou seja, visando comunicar o
discurso musical registrado na partitura.
Torna-se necessário algum tipo de delimitação e sistematização para dar
sentido às referências e aos estudos anteriores assim como às considerações
apresentadas. Por esta razão, o presente trabalho está organizado em quatro
capítulos. O primeiro capítulo (Referencial Teórico) contextualiza, a partir da
literatura específica, os conceitos utilizados na Análise para Intérpretes e os
diversos caminhos possíveis nesta prática. O segundo e o terceiro capítulos,
apresentam uma análise detalhada das obras escolhidas - Choro Pagão e
Choros 2 respectivamente - enriquecida por dados sobre seus compositores.
No quarto capítulo são expostas algumas reflexões finais.
O ponto de partida para a análise será uma abordagem estilística da
partitura em três níveis distintos: (a) elementos gerais, (b) intermediários e (c)
3
particulares, de acordo com a proposta de Jan LaRue.
4
O estudo sobre os
elementos gerais aproxima-se da proposta de John Rink
5
sobre análise para
intérpretes, e ganha uma atenção especial. Porém, também serão
observados os elementos de uma “camada” intermediária e particular, como a
estrutura formal específica em cada seção ou com figuras musicais específicas
como as descritas na análise expressiva de Leonard G. Ratner.
6
As análises
das peças de Pixinguinha e de Villa-Lobos foram elaboradas tanto a partir do
enfoque geral como do particular, combinando o referencial teórico (LaRue;
Rink; Ratner) com elementos e terminologia típicos da música brasileira.
A Análise para Intérpretes
A proposta de uma análise voltada para intérpretes deve ser
compreendida dentro de um quadro geral, que abarca diversas formas e/ou
técnicas analíticas. Márta Grabócz
7
enumera dois enfoques analíticos no início
do século XX, um tecnicista, mais preocupado com os aspectos formais e
estruturais (Schenker, Schoenberg) e outro formado por analistas mais
interessados na estética do conteúdo musical, enfocando elementos de
“emoção” e expressão (Schering). Grabócz aponta um olhar analítico
contemporâneo comum que parece surgir após as importantes contribuições de
Charles Rosen e de diferentes teses em semiótica musical.
8
Segundo a autora
os teóricos tentam unir os dois enfoques, analisando a estrutura e a expressão
4
Jan LaRue, Guidelines for Style Analysis (Warren: Harmonie Park Press, 1992).
5
John Rink, ed., “Analysis and (or?) Performance,” Musical Performance: a Guide to
Understanding (Cambridge: CUP, 2002), 35-58.
6
Leonard Ratner. Classic Music Expression, Form and Style (New York: Schirmer
Books, 1980).
7
Márta Grabócz, “Méthodes d’Analyse Concernant la Forme Sonate,” Méthodes
Nouvelles Musiques Nouvelles, Musicologies et Création, ed. Márta Grabócz (Strasbourg:
Presse Universitaire, 1999), 109-134.
8
Grabócz explica a Semiótica Musical no sentido de “significação musical.”
4
musical, em busca de novos modelos capazes de descrever o processo
dinâmico complexo de uma forma musical.
A análise musical é uma investigação com metodologias de pesquisa
específicas e uma ampla linguagem técnica. Para Ian Bent
9
a análise musical é
a parte do estudo da música que tem como ponto de partida a própria música,
ao invés de aspectos externos. Ele também defende que a análise pode servir
como “ferramenta de ensino”
10
, útil na instrução do intérprete, do compositor e
também do ouvinte. Mais especificamente na análise voltada para intérpretes,
os elementos enfocados pela análise compõem a elaboração interpretativa,
enquanto a terminologia específica torna mais clara a comunicação entre os
músicos. Ou seja, a interpretação de trechos específicos de uma obra musical
descrita a partir de expressões relacionadas à notação musical e à terminologia
analítica evita ambigüidades. Isto se aplica a vários contextos musicais, desde
a concepção interpretativa de pequenas células, como os motivos, passando
pelas frases e seções, aa concepção da obra inteira ou de um conjunto de
obras.
ANÁLISE MUSICAL ANÁLISE PARA INTÉRPRETES
“Agora mais suave, a pena caindo bem devagar para algum lugar sem fundo e
então um raio de luz passa pido e vai ao céu...”.
11
Quem nunca teve uma
explicação poético-metafórica durante uma aula de instrumento ou durante um
ensaio com um grupo de música de câmara? A mesma passagem musical
9
Ian Bent, Analysis: The New Grove Handbooks in Music (Ipswich: Ipswich Books
Limited, 1998), 1.
10
Ibid., 2.
11
Descrição metafórica sugerida pelo autor.
5
poderia ser descrita por outro músico, por exemplo, da seguinte forma: “a folha
está caindo da árvore lentamente e antes de tocar o chão macio o vento sopra
de baixo e, impulsionada por uma mola invisível, a folha retoma os ares...”.
12
Esta cena foi inspirada em uma tradicional passagem do repertório camerístico
do século XX: os primeiros compassos da Sonata para flauta e piano de
Francis Poulenc
13
(Fig. 1).
Fig. 1. Excerto da Sonata para flauta e piano de Francis Poulenc (Allegro malinconico).
As descrições metafóricas tornaram-se quase uma regra no estudo da
performance e estas imagens são, sem vida, muito importantes na
preparação da interpretação, estimulando e enriquecendo a escuta interior.
Apesar do caráter essencialmente pessoal desta abordagem, professores e
intérpretes sustentam várias de suas explicações musicais com estes arroubos
da retórica que, sem dúvida funcionam; no entanto permanece sempre a
12
Ibid.
13
Francis Poulenc, Sonata para Flauta e Piano (London: Wilhelm Hansen, 1958).
6
dúvida sobre a contribuição do próprio aluno nas decisões sobre a
interpretação do repertório estudado.
As idéias musicais expostas acima, sobre este pequeno trecho da
sonata de Poulenc, também podem ser entendidas como uma forma de análise
diretamente conectada à performance e objetivando um resultado sonoro
previamente idealizado. A análise para intérpretes relaciona-se com este
processo na medida em que se ocupa primordialmente da compreensão geral
da obra, passando depois ao detalhe, sempre em busca de soluções na
elaboração da performance. Pensando neste mesmo trecho da sonata, agora
sob um enfoque descritivo, presente no processo de uma análise para
intérpretes, “tudo começa com uma anacruse de quatro fusas em direção ao
Mi4, prosseguindo-se descendentemente na frase com trinados curtos,
interrompidos por mais uma grande anacruse ascendente de fusas em direção
ao Dó5”.
A Análise para Intérpretes propõe a resolução de impasses
interpretativos, facilitando e enriquecendo o relacionamento com as idéias
contidas na obra, durante o processo de elaboração da interpretação, trazendo
consistência à própria performance, sustentando-a. Segundo o conceito de
John Rink, é o “estudo da partitura com uma atenção particular às funções
contextuais e às maneiras de projetá-las”.
14
Evidentemente, não se trata aqui
de negar o aporte individual criativo do intérprete. Rink sugere o termo intuição
informada
15
, reconhecendo a importância da intuição, sem deixar de lado o
14
John Rink, ed., “Analysis and (or?) Performance,” Musical Performance: a Guide to
Understanding (Cambridge: CUP, 2002), 36.
15
Expressão no original: informed intuition.
7
aporte do conhecimento ou da experiência. O pianista Peter Hill
16
considera
que o estudo analítico da partitura, até mesmo o estudo regular da música
antes de tocá-la no instrumento pode, em vez de “endurecer” as reações
musicais instintivas do intérprete, liberar a musicalidade.
A Análise Estilística
Na leitura da partitura, no estudo de uma nova música, na elaboração de
uma interpretação ou durante uma performance pública, o estilo ou a
compreensão estilística é um dos fatores que mais atraem a atenção dos
intérpretes. Apesar de ser uma palavra largamente utilizada por músicos e
também por apreciadores de música de um modo geral, um estilo é dificilmente
explicado ou delimitado.
17
O mesmo parece ocorrer nas outras artes, um
romance, uma pintura ou escultura terão sua unidade estilística apreendida
após uma trabalhosa análise comparativa de pesos e medidas. O cuidado aqui
é o de não enquadrar ou classificar de forma limitativa o estilo de um
compositor baseando-nos em apenas algumas características.
Edward T. Cone
18
sugere que as características de um estilo
apareceriam com mais nitidez a partir da comparação e do contraste. O autor
faz uma analogia entre música e artes plásticas, e explica que fica difícil
percebermos uma identidade estilística individual, se compararmos apenas
dois quadros de dois grandes pintores
19
colocados lado a lado. Para
identificarmos com mais acerto aspectos particulares de um ou de outro artista,
16
Peter Hill, “From Score to Sound,” Musical Performance: a Guide to
Understanding, ed. John Rink (Cambridge: CUP, 2002), 129-143.
17
Leonard B. Meyer elaborou um breve conceito de estilo como sendo os “sistemas
finitos e ordenados das relações prováveis.” Ver: Leonard B. Meyer, “On Rehearing Music,”
Journal of the American Musicological Society 14 (1961): 266.
18
Edward T. Cone, Musical Form and Musical Performance (New York: W.W.Norton,
1968).
19
Edward T. Cone exemplifica com os pintores Rembrandt e Maes.
8
seria melhor podermos confrontar várias obras de cada um expostas numa
grande galeria. Da mesma forma, todos os grandes compositores da história da
música também apresentam suas especificidades, que se tornam cada vez
mais evidentes para aqueles que exploraram consistentemente sua produção.
Jan LaRue
20
formula algumas diretrizes referentes à análise estilística;
segundo ele, a primeira preocupação do analista deve ser com as
características fundamentais da obra, como alguns aspectos históricos ou as
características comuns encontradas em outras peças semelhantes. Do
contrário, poderíamos atribuir originalidade e importância às convenções
ordinárias ou corrermos o risco de não conseguir reconhecer a sofisticação de
uma técnica inovadora. Um segundo momento na análise estilística consiste na
seleção dos objetos, o que LaRue chamou de “observação significativa”. O
autor ressalta a importância do equilíbrio entre o detalhe e a generalização.
De maneira mais específica, LaRue sistematiza três grandes dimensões
de análise. Primeiramente o analista aborda a peça através da grande
dimensão (large dimensions), como a mudança de instrumentação entre
movimentos (som), o contraste e a freqüência de tonalidades nos movimentos
(harmonia), o desenvolvimento e a conexão temática (melodia), a métrica e os
andamentos (ritmo) e a variedade de formas empregadas (estrutura).
A segunda, a dimensão intermediária (middle dimensions) não é tão fácil
de determinar, pois fica entre os elementos gerais na escala macro de
observações e os desdobramentos da música. LaRue formula algumas
questões pertinentes a uma análise desta camada intermediária imaginária,
como por exemplo, se o ritmo contribui de maneira decisiva para o contraste
20
Jan LaRue, Guidelines for Style Analysis (Warren: Harmonie Park Press, 1992), 4.
9
temático, quais os meios utilizados pelo compositor para pontuar seu discurso
ou se encontramos em uma melodia características mais instrumentais ou
vocais. Para LaRue, a dimensão intermediária de análise iluminaria a
manipulação dos temas dentro de uma parte ou seção isolada da peça,
enquanto uma investigação a partir da grande dimensão se preocuparia com a
exposição temática e sua recorrência em diferentes seções, como as
recapitulações.
Leonard B. Meyer
21
também sugere uma sistematização da sica em
camadas e explica que a compreensão de uma obra não se restringe à
percepção de sons isolados. Envolve a compreensão de sons relacionados
entre si, de maneira a formar padrões (eventos musicais), que por sua vez,
determinam a formação de diferentes “níveis arquitetônicos” no interior da
composição.
Do ponto de vista do intérprete, a noção da grande dimensão, ou um
nível arquitetônico superior, é bastante relevante, pois é uma maneira de se
definir a peça como um todo. A visão geral da obra segundo John Rink
22
é, em
poucas palavras, a identificação da divisão formal e do plano tonal básico. Ele
sugere que para o intérprete a visualização do contorno musical (musical
shape) precede a estrutura. Partindo deste ponto, os intérpretes podem
visualizar as seções não como uma “seqüência de blocos seccionados”, mas
como um “desdobramento diacrônico”, atribuindo às frases uma relação estável
ou instável, estática ou ativa, ou ainda, uma relação narrativa entre as partes.
21
Leonard B. Meyer, “On Rehearing Music,” Journal of the American Musicological
Society 14 (1961): 257-267.
22
John Rink, ed., “Analysis and (or?) Performance,” Musical Performance: a Guide to
Understanding (Cambridge: CUP, 2002), 35-58.
10
Na mesma direção dos conceitos de contorno musical de Rink e de
grande dimensão de LaRue, explicados pelos autores como uma “visão geral”
que o intérprete tem da obra, Jonathan Dunsby
23
sugere o design musical
(design in music), ou seja, o esboço da obra gerada pelo compositor. Ele
associa ainda o design à estrutura musical, definida como narrativa. Em cada
performance este design deve ser “animado”, o intérprete precisa dar vida e
coerência ao discurso musical, recriando-o.
O último enfoque analítico sugerido por Jan LaRue é o de pequena
dimensão (small dimensions). Ao buscar o particular, o analista pode se
perguntar, por exemplo, se a construção temática acontece através dos
acordes ou do contraponto, se na melodia é predominante um design por graus
conjuntos ou por saltos ou se a fluidez rítmica ocorre através do tratamento
motívico ou em grandes arcos. É importante salientar que o principal objetivo
de uma análise detalhada não é admirar o caráter de um único elemento, mas
descobrir sua contribuição para as estruturas e funções superiores.
O estudo dos elementos musicais particulares pode ser claramente
representado, por exemplo, pela corrente que, a partir dos anos 1960,
impulsiona muitos musicólogos e também intérpretes a voltarem seu interesse
sobre a sica do passado distante, com a intenção e a convicção de
alcançarem a pureza historiográfica, isto é, estudarem e interpretarem a música
dos séculos passados fundamentados em uma história científica. Leonard
Ratner
24
em 1980 publicou um detalhado estudo baseado nos tratados teóricos
de composição e interpretação da música do século XVIII (J.Mattheson,
23
Jonathan Dunsby, Performing Music: Shared Concerns (New York: Oxford
University Press, 1995), 81.
24
Leonard Ratner. Classic Music Expression, Form and Style (New York: Schirmer
Books, 1980).
11
C.P.E.Bach, J.J.Quantz, L.Mozart, D.G.Türk entre outros) e sistematizou
analiticamente suas principais características musicais. O resultado de seu
trabalho foi uma extensa coleta de figuras musicais características, ou seja,
elementos musicais que remetiam a um sentimento, afeto ou aspecto pictórico
característico, como uma caçada, uma cerimônia, danças populares, o
militarismo, o humor, etc.
Este tipo de enfoque sobre os elementos do discurso musical não é
exclusivo dos sicos do século XVIII. Compositores do século XVI, como
Adrian Willaert, Luca Marenzio, Carlo Gesualdo, musicaram os versos do poeta
Petrarca
25
de maneira a associar o discurso musical ao conteúdo/caráter do
texto, através de recursos como o cromatismo, cadências e frases musicais
sincronizadas com as palavras. O próprio Petrarca usou a sonoridade das
palavras como guia nos seus poemas: o ritmo, a estrutura da rima, o número
de sílabas por verso, a acentuação, a duração das sílabas, as propriedades
sonoras de determinadas vogais ou consoantes eram determinantes na
elaboração de um sentimento aprazível (piacevolezza) ou grave (gravità) nos
seus versos.
26
Na doutrina do Etos na Grécia clássica, mais especificamente
explicada pela doutrina da imitação de Aristóteles, a sica representa as
paixões ou estados da alma, como a brandura, ira, coragem, temperança, bem
como os seus opostos e outras qualidades.
27
Com base nisso, é natural que os
músicos de hoje, incluindo os intérpretes de música brasileira, também possam
aproveitar o reconhecimento destas figuras expressivas como forma de
enriquecer sua performance.
25
Francesco Petrarca (1304-1374).
26
Donald J. Grout e Claude V. Palisca, História da Música Ocidental (Lisboa: Gradiva,
2007), 237.
27
Ibid., 20.
12
Este tipo de sistematização, tão precisa e pragmática, nem sempre
ocorre quando o músico estuda uma peça. Os elementos das dimensões geral,
intermediária e pequena se confundem no olhar, muitas vezes rápido, do
intérprete e cada análise poderá variar de acordo com a formação do músico,
com o repertório, tempo disponível para estudo e experiência. Para a análise
do choro Pagão e do Choros 2, que será abordada adiante, os conceitos
discutidos até aqui servirão mais como diretrizes do que regras.
O Choro
Ao explorarmos o Choro analiticamente é relevante que se leve em
consideração algumas implicações históricas. Henrique Cazes
28
destaca entre
as diversas etimologias da palavra choro uma que parece estar mais ligada ao
seu resultado musical percebido ainda hoje. Segundo o autor, choro é o termo
que melhor traduz um jeito “exacerbadamente sentimental” que os músicos
brasileiros tinham de tocar as danças européias no início do século XX e ele só
viria a ser compreendido enquanto gênero musical a partir de 1910, nas
composições do jovem Pixinguinha. José Ramos Tinhorão
29
descreve o Choro
como a “cristalização” de uma maneira frouxa de tocar mesmo as coisas mais
alegres. Uma síntese musical das bandas negras das fazendas com a
interpretação estereotipada que os músicos da classe média carioca tinham do
romantismo europeu.
No final da década de vinte, a formação instrumental do choro estava se
definindo no chamado “regional”, que fundamenta a execução em três
elementos principais: a linha melódica principal (instrumentos solistas como a
28
Henrique Cazes, Choro: do Quintal ao Municipal (Rio de Janeiro: Editora 34, 1998).
29
José Ramos Tinhorão, Música popular: um Tema em Debate (São Paulo: Editora 34,
1997).
13
flauta, o clarinete, o bandolim), o apoio rítmico e desenho das progressões
harmônicas (a percussão, o cavaquinho) e a linha contrapontística do baixo,
que elabora outras figuras melódicas, como segundo sujeito no diálogo musical
(violão de 6 e/ou 7 cordas).
Desde o seu surgimento, o Choro ainda tem apresentado uma forte
característica de improvisação e competição, muito próxima do padrão
jazzístico
30
, com os temas principais expostos em cada parte para depois
serem improvisados entre os músicos. De maneira geral, uma única linha
melódica com cifras que pode ser executada por qualquer instrumento, é
notada em clave de Sol, enquanto as figuras de acompanhamento são criadas
com base nestes dois elementos. Porém, muitas apresentações e gravações
são realizadas a partir de um detalhado arranjo em torno deste conteúdo
original, criando assim uma “versão” bem particular de uma determinada obra
ao estabelecer a instrumentação com vozes específicas. Quando não existe
esta distribuição dos papéis de cada um na música, a performance de um
choro, sendo ela em uma apresentação pública, gravação ou em um encontro
informal (roda de choro), teem seu resultado elementos do acaso bem mais
evidentes.
Estas observações são relevantes para a compreensão da análise
realizada neste trabalho, pois a investigação não estará restrita aos aspectos
da composição, da estética ou da história - embora estes se provem bastante
enriquecedores na construção de uma concepção da obra - mas direcionada à
elaboração da interpretação. Isto quer dizer que, dentre as várias
possibilidades de execução do Choro, neste trabalho em particular no choro
30
Apesar de ser bastante comum ouvirmos que o Choro é o Jazz brasileiro, Henrique
Cazes aponta uma série de características incomuns entre estes dois gêneros no livro Choro:
do quintal ao municipal.
14
Pagão, esta análise esta voltada aos elementos melódicos originais
concebidos e notados para a flauta transversal, excluindo desta forma,
considerações mais aprofundadas sobre as possibilidades de improviso
inerentes a este gênero.
O estudo analítico do Choros 2 de Heitor Villa-Lobos não aborda esta
discussão, pois é uma composição com instrumentação definida (flauta em
e clarinete em Lá), com o texto musical detalhadamente notado na partitura e
sem margem para o improviso, diferente de um choro tradicional, mas
concebido através de elementos estilizados.
15
Capítulo 2
CHORO PAGÃO
Ao estudar uma obra musical, instrumentistas, cantores ou regentes,
exploram seu conteúdo com um enfoque diferente daquele dos estetas,
historiadores ou compositores. A preocupação do intérprete é comunicar a
música registrada por escrito ou em sua memória, através do seu instrumento,
da voz ou de um grupo musical, no caso dos maestros. Um intérprete precisa
decidir o que será realçado ou colocado em segundo plano na sua
performance, e ainda, como isso pode ser feito tecnicamente através de seu
instrumento.
O ponto de partida para esta análise é a abordagem estilística da
partitura, sistematizando os elementos musicais considerados relevantes para
a interpretação em gerais e particulares. A análise dos aspectos gerais tem seu
foco na grande estrutura do choro Pagão, principalmente as especificidades
que diferenciam as seções principais A, B e C. Os aspectos particulares são os
elementos no interior do discurso musical, ou seja, as frases e motivos que
justificam o caráter genérico de uma grande seção.
Aspectos Gerais
Um dos aspectos mais característicos do choro Pagão é a variedade de
elementos expressivos distribuídos em suas três seções. Do ponto de vista do
intérprete, mais especificamente do flautista, Pagão apresenta desafios
técnicos de naturezas diversas, como a articulação em golpe duplo de língua,
15
16
agilidade na digitação e grandes saltos intervalares. Partindo de um enfoque
geral, este choro é estruturado em 3 partes (seções A-B-C) e codeta, todas
com sinal de repetição e indicação para que seja obedecida a forma rondó (A-
B-A-C-A-codeta), ou seja, retornando sempre à seção A (Tabela 1).
Tabela 1. Divisão Formal e Plano Tonal Geral - Forma na execução: (A-B-A-C-A-codeta).
As seções A, B e C são contrastantes entre si, porém existe uma
aproximação entre as seções B e C, em tonalidades maiores (seção B: FáM e
seção C: RéM), destacando-se da seção A, em m. A peça possui alguns
elementos unificadores
31
, como as figuras de valores curtos, principalmente
colcheias e semicolcheias. A edição analisada
32
sugere um andamento rápido
(q= 96-120). As três seções iniciam anacrusticamente (Fig. 2,3 e 4) e
apresentam proporcionalidade na quantidade de compassos: A e B com 16
compassos, C com 32 compassos. O esquema de três semicolcheias
precedendo o tempo forte, como as anacruses das seções A e B (Fig. 2 e 3) é
bastante comum na música tradicional brasileira como o Choro.
33
31
Elementos unificadores são elementos rítmicos ou motivos reiterados ao longo da
peça.
32
Pixinguinha. Pagão. São Paulo: Irmãos Vitale, 1997. (Com revisão de Antonio
Carlos Carrasqueira e cifras de Edmilson Capelupi).
33
Sérgio Azra Barrenechea, “Valorizando a Tradição e a Experimentação: a Flauta na
Música de Câmara de Francisco Mignone,” Três Estudos Analíticos: Villa-Lobos, Mignone e
Camargo GuarnieriSérie Estudos 5, ed. Cristina C. Gerling (Porto Alegre: UFRGS, 2000), 82.
Aspectos Gerais Seção A Seção B Seção C CODETA
Compassos 1-16 17-32 33-64 65 -67
Tonalidades Rém FáM RéM Rém
17
Fig. 2. Anacruse do compasso 1: início da Seção A.
Fig. 3. Anacruse do compasso 17: início da Seção B.
Fig. 4. Anacruse do compasso 33: início da Seção C.
Outro aspecto tradicional presente no Pagão é a possibilidade de
repetição variada. As variações de dinâmica, articulação, fraseado, andamento
ou improviso melódico que podem ser realizadas nas repetições do choro
Pagão são também comuns a outros choros, como se fala entre os chorões, “é
a arte de falar a mesma coisa que de outro jeito”. Esta liberdade
interpretativa é historicamente intrínseca ao gênero Choro e se verifica
inclusive na primeira gravação do Pagão, de 28 de março de 1947, realizada
pelo compositor tocando saxofone tenor e pelo flautista Benedito Lacerda.
Nesta gravação, os intérpretes realizam sutis variações, principalmente de
articulação e andamento, e conseguem manter a atenção do ouvinte nas
18
repetições.
34
Nas versões contemporâneas, em gravações
35
, apresentações ao
vivo ou em rodas de choro, a tradição da repetição variada continua
estimulando a criatividade musical e impulsionando as transformações
interpretativas do repertório do Choro.
É muito comum que o Choro seja associado à linguagem musical
desenvolvida na primeira metade do século XVIII, sobretudo a obras de
J.S.Bach e G.F.Haendel. O musicólogo Adhemar Nóbrega, por exemplo, cita a
Badinerie, último movimento da Suíte em Si menor para flauta e orquestra de
J.S.Bach, como exemplo das semelhanças existentes entre o fraseado
bachiano e o Choro.
36
A seção A, além do contraste tonal, apresenta elementos
composicionais que, de forma geral, se enquadram na descrição de Edward T.
Cone
37
dasica barroca tardia. Cone considera a coerência de Bach e
Haendel fundamentada no pulso como unidade essencial do discurso musical.
O autor refere-se à performance ao explicar que a orientação deve partir mais
do perfil musical de um sujeito monotemático do que da acentuação. Cone
utiliza algumas expressões como “regularidade do movimento através das
tonalidades” e a “aparente inexorabilidade do movimento tonal”
38
para explicar
o que parece refletir a progressão regular do pulso, compasso a compasso,
34
A gravação do Pagão de 1947 foi relançada no CD “Pixinguinha 100 anos” pelo selo
BMG/ARIOLA. Nesta versão o choro aparece na forma AABBACA codeta.
35
O flautista Antonio Carlos Carrasqueira gravou o choro Pagão no CD “Toninho
Carrasqueira toca Pixinguinha e Pattápio Silva” e as variações aparecem principalmente na
instrumentação.
36
Gil Jardim, O Estilo antropofágico de Heitor Villa-Lobos: Bach e Stravinsky na Obra
do Compositor. (São Paulo: Philarmonia Brasileira, 2005), 53.
37
Edward T. Cone, Musical Form and Musical Performance (New York: W.W.Norton,
1968).
38
Ibid., 71.
19
frase a frase (Fig. 5).
39
Estes aspectos descritos por Cone podem ser
transpostos ao plano interpretativo se, por exemplo, pensarmos em uma
execução fluente, confortável, mantendo o pulso, mas sem se retrair e perder a
precisão rítmica, uma característica do Choro que também se verifica na
execução da música barroca tardia. Esta regularidade é bastante evidente na
seção A, onde podemos observar a influência do grafismo, construída com um
sujeito linear de semicolcheias em grau conjunto, dividido em dois momentos
distintos de 8 compassos (Rém – Lá7 e Rém – Lá7 – Rém)
40
(Fig. 6).
Fig. 5. Excerto da Sonata DóM BWV 1033 (Allegro) - J.S.Bach.
39
A Figura 5 é um excerto do Allegro da Sonata M para flauta (BWV 1033) atribuída
a J.S.Bach. O excerto é um exemplo da escrita musical barroca tardia e serve como
comparação com a seção A do choro Pagão (Fig. 6).
40
As cifras são do violonista Edmilson Capelupi.
20
Fig. 6. Seção A do choro Pagão.
Ainda sob um olhar geral, as seções B e C sugerem uma contraposição
ao caráter linear da seção A. Logo no primeiro compasso de B, após a
anacruse, a seqüência de intervalos Dó4 - 4 e Fá4 - Sol3 seguida pela
síncope, deixa evidente que o conteúdo não é mais linear. A seção C inicia de
uma forma ainda mais particular, com a anacruse descendente e sincopada.
Desta forma, Pixinguinha parece sugerir o contraste entre um discurso
tipicamente bachiano na seção A e um conteúdo típico da música popular
brasileira, com uma escrita caracteristicamente sincopada e ornamentada (Fig.
7 e 8).
21
Fig. 7. Síncopes no início da seção B: compassos 17-18.
Fig. 8. Síncopes no início da seção C: compassos 33-34.
Na edição analisada não existe a indicação de dinâmica e a articulação
notada pode ser compreendida apenas como sugestão, apesar de que a
prevalência de figuras rítmicas favoreça o staccato e as notas acentuadas. As
dinâmicas podem ser direcionadas pelo fraseado, como por exemplo, um
crescendo no auge dos arcos e diminuendos nas finalizações. A ornamentação
é livre e de caráter improvisativo, mas fundamentalmente marcada pelo estilo
do Choro, com apogiaturas de semitom. Não existe também qualquer restrição
quanto à oitava escolhida para a execução, embora os flautistas geralmente
prefiram tocar os choros uma oitava acima, para que o som ganhe mais
projeção.
22
Aspectos Particulares
De acordo com a sistematização de Jan LaRue
41
existe uma distinção
entre os enfoques intermediário e pequeno, porém na análise aqui apresentada
foram condensados estes dois enfoques observando-se aspectos particulares
e característicos no interior de cada seção. São principalmente os aspectos
fraseológicos e os tópicos expressivos (figuras características) que não
influenciam diretamente na compreensão da obra como um todo, mas agem na
compreensão de momentos isolados.
Seção A
Esta seção consiste em duas subseções com um período cada, o
primeiro com duas frases e o segundo com apenas uma. Desta maneira, três
frases distintas distribuídas em 16 compassos. As duas frases do primeiro
período podem ser classificadas respectivamente como antecedente ou
“primeiro sujeito” e conseqüente ou “segundo sujeito”. A frase antecedente (c.
1-4.1) resolve em Rém (Fig. 9), separando-se com clareza da conseqüente (c.
4.2-8).
A frase conseqüente inicia-se na pausa de semicolcheia (4.2) e progride
por mais 4 compassos até ficar suspensa em Lá7 (c. 8). A pausa do compasso
9.1 ajuda a “suspender” a frase anterior ao mesmo tempo em que impulsiona a
frase seguinte (Fig. 10). Na performance não é raro que o intérprete possa
contar com duas ou mais opções de fraseado. Neste exemplo, a frase
conseqüente pode ser compreendida até o compasso 8, ou então até a pausa
de semicolcheia no compasso 9.1. A pausa pode ser interpretada tanto como o
ponto final da conseqüente do primeiro período como o início da frase
41
Jan LaRue, Guidelines for Style Analysis (Warren: Harmonie Park Press, 1992).
23
conclusiva do segundo período, o que denota em análise musical, uma
sobreposição. Mesmo que o ouvido seja privado de escutar a tônica na linha
melódica no compasso 9.1, ela poderá ser executada pelo violão ou outro
instrumento que esteja realizando o baixo.
Fig. 9. Frase antecedente da seção A: compassos 1-4.1.
Fig. 10. Frase conseqüente da seção A: compassos 4.2-9.1.
No segundo período da seção A o primeiro sujeito é retomado em Rém,
porém sem a anacruse do início. Devido ao andamento da peça
42
, a
reapresentação do primeiro sujeito no compasso 9 sugere uma anacruse para
a nota mais aguda da escala descendente do compasso 10 (Sib4). O segundo
período apresenta apenas uma frase de caráter conclusivo, unindo elementos
das duas frases anteriores. Esta frase flui do compasso 9 ao compasso 16 com
um leve apoio no compasso 12 e progride através de uma cadência IV-V7-I até
o final da seção no compasso 16. O apoio sugerido na metade da frase se
42
Andamento sugerido na edição analisada (q= 96-120) é coerente com a primeira
gravação do compositor em 1947. A edição foi revisada pelo flautista Antonio Carlos
Carrasqueira.
24
fundamenta sobretudo na intenção do intérprete, sem a interrupção do discurso
(Fig. 11).
Fig. 11. Frase conclusiva da seção A: compassos 9-16.
Compassos 1-4.1 4.2-8 9-16
Períodos
Primeiro
Segundo
Frases Antecedente Conseqüente
Conclusiva
Tonalidades Rém Rém-Lá7 Rém-Lá7-Solm-Lá7-Ré7-Rém
Tabela 2. Divisão Formal e Plano Tonal Particular da seção A.
Na seção A também se observa elementos típicos da música brasileira a
partir do conceito de retórica musical. De maneira semelhante à doutrina do
Etos na Grécia clássica ou à teoria dos afetos na música européia do século
XVIII, o pesquisador Acácio Tadeu Piedade
43
aponta uma série de figuras
características, comuns à musicalidade brasileira e que estão presentes de
modo significativo no Choro. Piedade fala, por exemplo, de um estilo ao mesmo
43
Acácio Tadeu Piedade, Expressão e Sentido na Música Brasileira: Retórica e
Análise Musical,” Revista Eletrônica de Musicologia 11 [revista on-line], disponível em http://
www.rem.ufpr.br.
25
tempo brincalhão e desafiador, que exibe audácia e virtuosismo de forma
graciosa e, principalmente, interesseira, individualista e maliciosa. Trata-se de
um gesto musical profundo, presente em gêneros brasileiros como o Choro, um
conjunto de tópicas denominado por Acácio T. Piedade como brejeiro.
A expressão pica tem origem na noção de topoï, fundamental na
filosofia aristotélica e entendido como lugares-comuns produzidos acerca de
silogismos retóricos e dialéticos. Leonard Ratner
44
, com base em tratados
musicais do século XVIII, chamou as figuras musicais características de topics.
A tópica brejeiro é diferente do gesto conhecido como scherzando por
representar o virtuosismo com um caráter menos infantil, com mais ousadia e
malícia. Piedade ainda enumera uma série de tópicas típicas da musicalidade
brasileira como época de ouro, nordestinas, sulinas, caipiras, afro, ameríndios,
árabe, oriental, experimental, atonal, tropical.
Pode-se identificar o brejeiro na frase conseqüente (compasso 4.2-8) da
seção A, desde o deslocamento rítmico da nota 4 no compasso 5 até a
seqüência de semicolcheias descendentes que sugerem um estado de
precipitação (ou provocação) nos compassos 6 e 7 (Fig. 12).
Fig. 12. Figuras musicais características na frase conseqüente (tópica brejeiro): compassos
5-8.
44
Leonard Ratner. Classic Music – Expression, Form and Style (New York: Schirmer
Books, 1980), 9.
26
A linearidade melódica da seção A abordada pela visão prática do
intérprete sugere uma execução predominantemente em legato, ou então com
uma articulação mais branda, compreendida pelos flautistas com a pronúncia
da letra “D”, em contraste com o staccato (letra “T”). Porém, o intérprete tem
completa liberdade e pode destacar as precipitações do brejeiro através da
articulação, acentuando as notas principais da figura (circuladas na Fig. 12),
com um golpe mais seco de língua a o ponto de mudar o timbre do
instrumento. Este recurso ressalta as características da tópica brejeiro no
interior da linearidade da seção A.
A identificação da tópica brejeiro está intimamente ligada à “tradição
de performance” no Choro. Se um músico o familiarizado com este estilo
simplesmente ler a música escrita na seção A do Pagão, poderá tocar
acentuando as cabeças dos tempos, que nesta edição encontram-se
realçadas pelas ligaduras. No entanto, trata-se aqui de um aspecto que
transcende a leitura acurada. Os acentos deslocados típicos do brejeiro
não estão explícitos na partitura, porém são identificados a partir de
uma prática de performance tradicional na música brasileira.
Seção B
A seção B contrasta com a primeira por duas razões fundamentais:
modula para a tonalidade relativa maior e os saltos prevalecem no design
melódico, ao contrário da seção A onde a melodia é linear em graus conjuntos.
Nestes 16 compassos podem ser destacados dois períodos principais, o
primeiro entre os compassos 17-25.1 e o segundo entre os compassos 25.1-
32. Dentro de cada período, uma subdivisão ainda pode ser sugerida. Douglas
27
M. Green
45
se refere aos aspectos da estrutura melódica da frase e explica a
possibilidade que uma frase típica do sistema tonal tende a subdividir-se. A
estas subdivisões, Green deu o nome de “membros ou fragmentos de frase”.
Assim, o primeiro período da seção B (c. 17-25.1) é formado por duas
frases: antecedente (c. 17-21.1) e conseqüente (c. 21.1-25.1) (Tabela 3), e três
fragmentos de frase, compassos 17-18, 19-21.1 e 21.1-25.1 (Fig. 13). E o
segundo período, composto por duas frases, compassos 25.1-28 e 29-32,
proporcionalmente 4+4 compassos (Tabela 3 e Fig. 14).
Fig. 13. Primeiro período da seção B: compassos 17-25.1.
Figura 14 - Segundo período da seção B: compassos 25.1-32.
45
Douglas M. Green, Form in Tonal Music: an Introduction to Analysis (Austin:
Wadsworth, 1979), 40.
28
Tabela 3: Frases da seção B.
A fragmentação da melodia pode parecer exagerada, porém corrobora o
contraste com a seção A.
46
Ao lermos a melodia como intérpretes, podemos
utilizar a idéia da frase fragmentada como meio de ressaltar o caráter rítmico e
“saltitante” da seção B, porém sem nunca alterar a fluência do discurso. Entre
os fragmentos ou membros de frase pode-se, por exemplo, ocorrer uma
cesura, articulando-os de maneira ainda mais expressiva, como valorizar
agogicamente o intervalo de sétima menor (Ré4-Mi3) entre os fragmentos 1 e 2
nos compassos 18-19. (Fig. 13). De modo semelhante à seção A, a seção B
também apresenta a característica de frases sobrepostas, como a frase
antecedente do primeiro período que sobrepõe-se à frase conseqüente no
compasso 21.1 (Fig. 13). Estes aspectos das frases fragmentadas e
sobrepostas (sobreposição) sugerem algumas possibilidades de interpretação
e, sem a pretensão de estipular uma maneira única de tocar, reforçam a
variação e improvisação típicas do Choro.
Abordar a seção B com uma idéia interpretativa característica, como o
caráter rítmico e articulado em contraste com a linearidade da seção A, facilita
a compreensão da obra como um todo, orientando inclusive os instrumentos
acompanhadores. O pandeirista pode entender as células fragmentadas na
melodia e articular também a “levada” no pandeiro, enquanto um violonista
46
Na gravação de 1947, com Pixinguinha no saxofone tenor realizando uma voz
contrapontística e Benedito Lacerda na flauta com a melodia principal, o contraste entre as
seções é bastante evidenciado pela articulação: a seção A tocada quase toda em legato e a
seção B com a valorização das notas curtas e figuras sincopadas.
Frases Antecedente Conseqüente Antecedente Conseqüente
Compassos 17-21.1 21.1-25.1 25.1-28 29-32
29
pode elaborar seus contrapontos com mais segurança se perceber coerência
no tratamento melódico.
Todas as seções possuem repetição, mas somente a seção B apresenta
uma figura específica na preparação do ritornello (Fig. 15).
Fig. 15. Preparação para o ritornello da seção B: compasso 32.
Outro elemento relevante nesta seção é a figura melódica de um
compasso que marca o início das duas frases principais (Fig. 16). Esta mesma
figura, também aparece alterada no início do terceiro fragmento de frase no
compasso 21 (Fig. 17). Por causa de sua reiteração, a figura pode ganhar
destaque na performance e ser valorizada como um motivo unificador, como
um recurso de ligação.
Fig. 16. Motivo recorrente na seção B: compassos 17 e 25.
Fig. 17. Motivo recorrente alterado na seção B: compasso 21.
30
Compassos 17- 18 19 21.1 21.1-25.1 25.1-28 29-32
Períodos
Primeiro
Segundo
Frases
Antecedente
Conseqüente
Antecedente
Conseqüente
Fragmentos
de Frase
1 2 3 - -
Tonalidades
FáM-Solm7 Dó7-FáM FáM-Dó-
FáM
FáM-Lá7-
Rém
Ré7-Dó7-
FáM
Tabela 4: Divisão Formal e Plano Tonal Particular da seção B.
Seção C
“O samba fazia falar de si e ao mesmo tempo escutar sua voz, que trazia
o corte (a sincopa) da crítica e da ironia.”
47
A principal característica da seção C é a elaboração melódica
sincopada. O discurso se distancia ainda mais da seção A, com elementos
rítmicos que inclusive dão margem à determinação de um caráter específico
com figuras típicas do Samba. Por exemplo, o breque no compasso 39 (Fig.
18) e a seqüência de semicolcheias dos compassos 48-51 (Fig. 19).
Fig. 18. Figura Característica do Samba (breque): compassos 38-40.
47
C.N. Matos, “O malandro no samba: de sinhô a Bezerra da Silva,” Notas Musicais
Cariocas, ed. J.B.M.Vargem (Petrópolis: Vozes, 1986), 40.
31
A seqüência de semicolcheias dos compassos 48-51 (Fig. 19), que
assim se destacam como tópicas, aludindo um instrumento percussivo
tradicional do Samba, o agogô, por serem intercalados dois registros distintos
(Lá3 e Si3; Lá4 e Si4). Esta figura rítmica é significativa, pois Pixinguinha não
costumava utilizar uma instrumentação percussiva muito densa em seus
arranjos, no entanto, estes instrumentos estão sugeridos pela própria melodia.
Fig. 19. Figura Característica Percussiva (imitação do agogô): compassos 48-51.
A execução desta figura na flauta transversal é peculiar, devido às
características de ressonância do instrumento. Se executadas na oitava em
que estão escritas, as notas superiores Lá4 e Si4 serão emitidas com facilidade
como primeiros harmônicos de suas respectivas fundamentais Lá3 e Si3,
obtidos com a passagem mais rápida do ar
48
e sem a mudança da digitação.
Esta característica pode contribuir para algumas liberdades durante a
execução, como segurar por mais tempo a nota grave, emitindo a nota aguda
uma oitava acima no último instante, ou então, executar este intervalo de oitava
com uma articulação em legato imitando um intervalo cantado. Porém, é uma
prática usual dos flautistas tocarem os choros transpondo uma oitava acima. A
mesma passagem executada na oitava superior da flauta transversal assume
outras características, pois o Lá5 e o Si5 são os segundos harmônicos após o
48
Na flauta transversal as alturas são primordialmente definidas pela velocidade do ar.
Quanto mais rápido for o ar, mais aguda será a nota produzida.
32
Lá4 e o Si4, executados também com a passagem mais rápida do ar, mas com
a mudança de digitação como forma de temperar a afinação. Este fator
diferencia a praticidade de execução na oitava superior, onde as respostas
entre os intervalos de oitava tornam-se um pouco mais lentas
49
, limitando as
liberdades possíveis no registro médio. A flauta transversal, como outros
instrumentos e a voz, possue propriedades físicas específicas que também
influenciam as possibilidades e decisões interpretativas.
Ordem dos Harmônicos do Lá3 e Si3 na Flauta Transversal:
Lá3 – Lá4 – Mi5 – Lá5
Si3 – Si4 – Fá#5 – Si5
A seção C possui 32 compassos articulados em dois grandes períodos
de 16 compassos (c. 33-48.1 e c. 48-64). No primeiro (c. 33-48.1) predominam
as figuras rítmicas sincopadas que formam duas frases distintas. A
primeira frase (antecedente) entre os compassos 33-36 com o material
temático característico que irá unificar a seção, em RéM, e a segunda frase
(conseqüente) entre os compassos 37-40, que cadencia para a dominante com
sétima, desta forma destacando o breque (Fig. 18). A frase seguinte deste
período (c. 41-48.1) apresenta um caráter conclusivo ao utilizar material das
duas frases anteriores e, em vez de se concluir previsivelmente fechando os 16
compassos, sobrepõe-se à figura rítmica dos compassos 48-51 (Fig. 20).
49
A extensão básica da flauta é de três oitavas (Dó3-Dó6). A agilidade na mudança de
registro também depende da qualidade do instrumento, como do domínio técnico do
instrumentista.
33
Fig. 20. Primeiro período da seção C: compassos 33-48.1.
Os últimos compassos podem ser descritos como um “esfacelamento”
da figura característica com um breve retorno à linearidade melódica entre os
compassos 52-56 e com a volta da temática sincopada inicial nos últimos 8
compassos (57-64) (Fig. 21). O segundo período da seção C pode também ser
descrito como o aparecimento surpresa de uma “ponte” (figura característica
dos compassos 48-51), uma breve figura de “desenvolvimento” na seqüência
linear de semicolcheias (c. 52-56) e uma frase conclusiva (c. 57-64), que
funciona como a “recapitulação” da frase inicial desta seção (Tabela 5).
Fig. 21. Excerto do segundo período da seção C: compassos 52-64.
34
Compassos 33-36 37-40 41-48.1 48-51 52-56 57-64
Períodos
Primeiro
Segundo
Frases
Antecedente Conseqüente
Breque
Conclusiva
“Ponte”
Figura
Característica
“Desenvolvimento”
Frase de
“Recapitulação”
Tonalidades
RéM Lá7 RéM -
Mim -
Lá7
RéM
RéM Mim-Lá7 RéM-Mim-
Lá7-RéM
Tabela 5: Divisão Formal e Plano Tonal Particular da seção C.
A edição analisada inclui uma indicação de repetição no final da seção
C. No entanto pode-se argumentar que como esta seção possui o dobro de
duração das outras, ela não precisa ser necessariamente repetida. É
justamente o que ocorre na primeira gravação do choro Pagão de 1947 com
Pixinguinha e Benedito Lacerda, que tocam uma vez a seção C e retornam à
seção A.
Sob alguns aspectos, o choro Pagão pode ser considerado uma obra de
difícil execução para o flautista. O andamento rápido e com muitas figuras de
curta duração, ora com um discurso linear ora sincopado, dificulta o equilíbrio
entre o vigor da sonoridade e a clareza de articulação, aspectos que precisam
ser monitorados pelo flautista no momento da performance, para que não se
percam a fluidez e a coerência. A execução na oitava superior ainda dificulta a
segurança de algumas passagens como a seqüência de notas Fá5, Mi5, Ré5,
35
Dó5 e Si4 nos compassos 5 e 6 ou passagens com as notas Sib5, Si5 e 6,
por exemplo, nos compassos 2, 10, 22, 24, 42 e 58.
Apesar dos contrastes entre as seções e das figuras características que
ressaltam um ou outro momento da obra, o choro Pagão é, de forma geral,
virtuosístico e intenso. O flautista, como os outros músicos do grupo e, sem
dúvida, o próprio público, podem vivenciar uma experiência de impacto e
constante surpresa, proporcionada por idéias e cenários que se conectam com
rapidez; mudanças bruscas de direção, como se alguém estivesse falando de
um jeito que nem “desse tempo para respirar!”
36
Capítulo 3
CHOROS 2
A fama internacional que Villa-Lobos adquiriu como compositor exótico,
colecionador de aventuras pela floresta e vindo de uma terra de selvagens
antropófagos deve-se principalmente a um artigo publicado em 1924, no
periódico parisiense Intransigeant. A escritora Lucie Delarue Mardrus tornara-
se amiga do compositor e viu em sua residência um exemplar do livro Viagem
ao Brasil, do explorador Hans Staden.
50
No artigo de Madame Mardrus, Villa-
Lobos aparecia como o próprio protagonista das aventuras de Hans Staden em
pleno século XX. O embuste acabou funcionando como propaganda e os
concertos seguintes foram de grande sucesso financeiro.
51
Apesar desta
divertida e controversa popularidade, Villa-Lobos era um músico urbano e
sempre trabalhou nas grandes cidades. Assim, ao voltarmos nossa atenção às
influências iniciais do compositor, podemos apontar que a sua experiência
como chorão foi determinante.
O Choros 2 faz parte de um ciclo de 14 obras iniciadas em 1920. A
numeração do ciclo não corresponde à ordem cronológica de composição:
Choros 1, 2, 7, 3, 8, 10, 4, 5, 6, Choros bis, 11, 9, 12 e Introdução aos Choros.
Villa-Lobos se apropriou de elementos singulares da prática dos chorões do
início do século XX e os transformou em matéria prima intrínseca nas suas
50
O soldado alemão Hans Staden esteve no Brasil na metade do século XVI e narrou
suas aventuras, em parte verdadeiras, em parte fictícias, no livro Viagem ao Brasil.
51
Vasco Mariz, Heitor Villa-Lobos: Compositor Brasileiro (Brasília: Ministério da
Cultura, 1977), 63.
36
37
composições, de maneira mais sistemática no Ciclo de Choros. Nas palavras
de Mário de Andrade:
52
Os admiráveis Choros de Villa-Lobos, para conjuntos instrumentais de
câmara, todos são verdadeiros mosaicos de constância e elementos
melódicos brasileiros.
53
Abordar uma obra musical com a intenção de interpretá-la apresenta
algumas especificidades, como a de um trabalho criterioso que visa à
compreensão do discurso musical e à resolução de problemas para a
performance. Esta análise do Choros 2 de Villa-Lobos organiza a abordagem
do intérprete em duas partes, seguindo a proposta analítica de Jan LaRue,
sistematizando os elementos musicais em gerais e particulares. Os aspectos
gerais compreendem uma visão da composição como um todo, um enfoque
macro, nas palavras de John Rink
54
, o contorno musical. Os aspectos
particulares, por sua vez, representam mais as estruturas específicas no
interior de cada grande seção da obra, um enfoque micro, como as frases e os
motivos. Para esta análise dos aspectos musicais particulares ainda foi
sistematizada uma subdivisão, no intuito de abranger os problemas
diretamente relacionados à performance:
a) Seqüência de eventos musicais particulares;
b) Dificuldades técnicas na flauta;
c) O gato e o canário: a relação do clarinete e a flauta no Choros 2;
52
Villa-Lobos dedicou o Choros 2 a Mário de Andrade.
53
Mário de Andrade, Ensaio sobre a Música Brasileira (São Paulo: Martins, 1972), 49.
54
John Rink, ed., “Analysis and (or?) Performance,” Musical Performance: a Guide to
Understanding (Cambridge: CUP, 2002), 35-58.
38
Aspectos gerais
O Choros 2 foi composto em 1924 originalmente para flauta transversal
em e clarinete em . A obra possui um único movimento sem tonalidade
definida, tem a duração aproximada de 2:37 minutos
55
e é articulado em
diversos andamentos: Pouco movido q=88 (c. 1-9), No mesmo movimento e
muito ritmado (c. 10-13), Muito vagaroso q=63 (c. 14-23), Pouco movido q=84
(c. 24-45), Pouco meno (c. 46-48), Tempo Primo (c. 49-51.2) e Animando (c.
51.3-54). Estas mudanças de andamento indicadas na partitura o
acompanhadas de outras expressões de andamento como Rall. (c. 13.3 e
20.2), Muito rall. (c. 23) e Pouco rall. (c. 45.2). Na elaboração da interpretação
de um trecho musical curto como o Choros 2, estas variações de andamento
podem ser visualizadas como uma linha de condução, orientando a construção
da imagem de um “mapa” geral da peça. Com base nos andamentos indicados
na partitura a análise está estruturada em 4 seções: Seção 1- Pouco movido (c.
1-13.3.1); Seção 2- Muito vagaroso (c. 13.3.2-23); Seção 3- Pouco movido (c.
24-49.1); Seção 4- Tempo Primo (c. 49.2-54).
O Choros 2 apresenta uma estrutura harmônica geral de referência
tonal, com sobreposição de tonalidades e alguns eventos dissonantes
dispostos em seqüência. O compositor Lorenzo Fernandez explica um
procedimento de Villa-Lobos, que “invariavelmente constrói acordes de tônica e
55
Tempo de duração com base na interpretação de Antonio Carlos Carrasqueira
(flauta) e Paulo Sérgio Santos (clarinete) no CD A Obra de Câmara para Sopros de Heitor Villa-
Lobos (ABM Digital, s/d. Compact Disc).
39
dominante com tons agregados e apojaturas sem resolução”
56
, desta maneira
gerando um discurso caracterizado por sonoridades combinadas e
sobrepostas, incomuns ao vocabulário tonal. Lisa Peppercorn
57
ressalta o
interesse de Villa-Lobos em explorar a cor, o timbre e o som, priorizando estes
elementos no lugar da estrutura harmônica, que encarava mais como uma
conseqüência inevitável.
Seção Pouco movido
Com caráter introdutório, esta seção é formada por elementos de curta
duração - semicolcheias, colcheias pontuadas, apogiaturas duplas e triplas -
acentuados, em staccato e rinforzando. A polifonia entre a flauta e o clarinete
sugere um intenso e insistente diálogo em forma de desafio
58
e provocação,
com a reiteração de gestos curtos e acentuados, sincronizados ou alternados.
O caráter scherzo desta seção é evidente desde o primeiro compasso com a
repetição em ostinato das semicolcheias da flauta (Sol4-Dó4-Fá4-Si4) e do
clarinete (Mib4-Ré4-Dó#4-Dó4 de efeito) ornamentadas pelas apogiaturas, o
que resulta em dois caminhos melódicos distintos, a flauta “para frente” em
saltos intervalares e o clarinete “descendente” em cromatismo, além de uma
sobreposição de tonalidades, com a sugestão de DóM na flauta e LábM no
clarinete (Fig. 22).
56
Lúcia S. Barrenechea e Cristina C. Gerling, Villa-Lobos e Chopin, o Diálogo
Musical das Nacionalidades,” Três Estudos Analíticos: Villa-Lobos,Mignone e Camargo
GuarnieriSérie Estudos 5, ed. Cristina C. Gerling (Porto Alegre: UFRGS, 2000), 43.
57
Ibid., 42.
58
Desafio ao modo dos violeiros, que se enfrentam disputando a capacidade de
improviso e a presença de espírito.
40
Fig. 22. Excerto da seção Pouco movido do Choros 2: compassos 1-3 (Caráter scherzo
corroborado pelas semicolcheias, colcheias pontuadas, apogiaturas, staccato e
rinforzando).
No compasso 10 o clarinete antecipa a figura característica do baixo
brejeiro (Fig. 23) que se revela como elemento unificador da composição. Esta
figura aparece novamente variada no compasso 22 (Seção 2 Muito vagaroso)
(Fig. 24) e finalmente na Seção 3 (Pouco movido), como um elemento musical
típico do Choro (Fig. 25).
Fig. 23. Excerto da seção Pouco movido do Choros 2: compasso 10 (antecipação do baixo
brejeiro).
41
Fig. 24. Excerto da seção Muito vagaroso do Choros 2: compasso 22 (variação do baixo
brejeiro).
Fig. 25. Excerto da seção Pouco movido do Choros 2: compasso 25 (figura final do baixo
brejeiro).
A antecipação do baixo brejeiro também marca o início de um curto
período de transição com quatro compassos (c. 10-13.4), como uma ponte para
a seção seguinte (Muito vagaroso).
O clarinete conclui a figura do baixo brejeiro no compasso 13.4 com a
nota de chegada (Sol#2 de efeito), a flauta anuncia a seção seguinte com uma
figura anacrústica no compasso 13.3.2 (Lá3) (Fig. 26) e continua em
andamento mais lento e em solo, a principal característica do Muito vagaroso.
42
Fig. 26. Excerto da seção Pouco movido do Choros 2: compassos 12-14 (figura anacrústica da
flauta anunciando o Muito vagaroso e fim do baixo brejeiro do clarinete).
Seção Muito vagaroso
Em oposição ao início de figuras rítmicas marcadas e acentuadas, o
trecho que vai do compasso 13.3.2 ao 24 é Muito vagaroso, segundo notação
do compositor, e tem como característica dominante um solo de flauta em
forma de improviso na tonalidade de RébM, com breves intervenções do
clarinete. Nas intervenções, o clarinete cita um fragmento do compasso 10 e
continua, dessa forma, a antecipar o baixo brejeiro (Fig. 27).
Fig. 27. Excerto da seção Muito vagaroso do Choros 2: compassos 17-18 (citação do
compasso 10 - antecipação do baixo brejeiro).
Esta seção sugere um caráter lírico, expressão emprestada da
terminologia operística no sentido mais direto, com o objetivo de estruturar
analiticamente a performance. Apesar de uma escrita tipicamente instrumental,
43
o lirismo da flauta é corroborado pelo relaxamento métrico e inflexões do gesto
musical ao modo das inflexões da voz cantada (Fig. 28). O conceito de gesto
musical utilizado é a de um “gesto mental” que caracteriza uma maneira
simbólica de abstração.
59
Neste exemplo, a inflexão do gesto musical significa
as mudanças rápidas de registro da flauta ao modo das inflexões típicas do
canto.
Fig. 28. Excerto da seção Muito vagaroso do Choros 2: compassos 17-19 (mudança rápida de
registro na flauta ao modo das inflexões do canto).
A princípio esta é uma significação forjada exclusivamente no plano da
interpretação, visto que as melodias folclóricas estão muito mais presentes em
Villa-Lobos do que uma herança melódica operística.
60
Até podemos ir mais
longe e sugerir que as inflexões desta seção são como os elementos de uma
cantiga de ninar brasileira. A linha melódica da flauta como uma voz
melancólica e nostálgica da música portuguesa e as intervenções graves do
clarinete como assombrações provenientes das lendas africanas. Esta
59
Marília Laboissière, Interpretação Musical: a dimensão recriadora da “comunicação”
poética (São Paulo: Annablume, 2007), 90.
60
Lúcia S. Barrenechea e Cristina C. Gerling, Villa-Lobos e Chopin, o Diálogo
Musical das Nacionalidades,” Três Estudos Analíticos: Villa-Lobos,Mignone e Camargo
GuarnieriSérie Estudos 5, ed. Cristina C. Gerling (Porto Alegre: UFRGS, 2000), 32.
44
característica tenebrosa da canção de ninar brasileira foi explicada por Flávio
Apro como “uma confluência das culturas portuguesa e africana”.
61
Seção Pouco movido
Esta seção pode ser entendida como o centro da composição, para onde
convergem todas as figuras do Choro. É também o trecho mais longo da obra
sem alteração de andamento notada na partitura, com o Pouco movido
indicado no compasso 24 até o Pouco rall. indicado no compasso 45.2 e Pouco
meno no compasso 46. Porém, isto não quer dizer que a seção terá um caráter
mais rígido. A estabilidade do pulso corrobora o caráter chorão desta seção e a
experiência dos intérpretes com o repertório do Choro possibilita uma idéia
mais apurada de que maneira as liberdades intrínsecas ao estilo podem ser
equilibradas à regularidade de andamento. A seção ainda prossegue até a
resolução da frase da flauta no compasso 49.1.
O “choro” desta seção central possue três elementos essenciais:
1- A figura do baixo brejeiro, apresentada pelo clarinete no compasso 25
em LáM (Fig. 29) e pela flauta no compasso 39 em LáM (Fig. 30), é
predominante e continua como um ostinato até a seção Tempo Primo.
Fig. 29. Excerto da seção Pouco movido do Choros 2 (figura do baixo brejeiro no clarinete):
compasso 25.
61
Flávio Apro, “Interpretação Musical: um Universo (ainda) em Construção,”
Performance e Interpretação Musical: uma Prática Interdisciplinar, ed. Sonia Albano de Lima
(São Paulo: Musa Editora, 2006), 33.
45
Fig. 30. Excerto da seção Pouco movido do Choros 2 (figura do baixo brejeiro na flauta):
compasso 39.
2- O Tema A em Lám, exposto somente pela flauta nos compassos 31-
33 (Fig. 31).
Fig. 31. Excerto da seção Pouco movido do Choros 2 (Tema A na flauta): compassos 31-33.
3- O Tema B, exposto pelo clarinete em Solm nos compassos 39-41
(Figura 32) e pela flauta em Rém nos compassos 46-48 (Figura 33).
Fig. 32. Excerto da seção Pouco movido do Choros 2 (Tema B no clarinete): compassos 39-41.
46
Fig. 33. Excerto da seção Pouco movido do Choros 2 (Tema B na flauta): compassos 46-48.
A harmonia caracterizada por tonalidades sobrepostas é evidente na
apresentação dos dois temas desta seção Pouco movido. O Tema A na flauta
(c.31) em Lám sobreposto ao baixo brejeiro no clarinete em DóM, o Tema B no
clarinete (c.39) em Solm sobreposto ao baixo brejeiro na flauta em LáM e o
Tema B na flauta (c.46) em Rém sobreposto ao baixo brejeiro em LáM.
Seção Tempo Primo
A mudança de andamento no compasso 49 para Tempo Primo e o
aparecimento de novo material na flauta após concluir o Tema B é o ponto de
partida desta última seção da obra (Fig. 34). A interrupção da figura do baixo
no compasso 50.4 (Fig. 35) coincide com o aumento da expectativa, ressaltada
pela aceleração do andamento (Animando) e pelas novas figuras da flauta, no
registro agudo e com retorno ao ritmo acentuado, e do clarinete, que mantém
um trinado no registro grave. Todos estes elementos contrastantes culminam
no Ré6 da flauta, para chegar ao último compasso num desfecho inesperado,
com os dois instrumentos em pianissimo e em intervalo de quarta justa.
47
Fig. 34. Excerto da seção Tempo Primo do Choros 2 (novo material temático na flauta):
compassos 48-49.
Fig. 35. Excerto da seção Tempo Primo do Choros 2 (fim do baixo brejeiro): compassos 50-51.
CHOROS 2
Pouco movido Muito
vagaroso
Pouco
movido
Tempo Primo
Compassos
1 – 13.3.1 13.3.2 – 23 24 – 49.1 49.2 – 54
Principais
andamentos
Pouco movido
q=88
No mesmo
movimento e
muito ritmado
Muito vagaroso
q=63
A tempo
Pouco movido
q=84
Pouco meno
Tempo Primo
c. q=88
Animando
Principais
características
Seção de caráter
introdutório com
elementos
rítmicos curtos,
acentuados, em
rinforzando e em
staccato.
Solo de flauta
em forma de
improviso, com
breves
intervenções do
clarinete.
Seção central
estruturada
com elementos
típicos do
Choro. Três
figuras
principais:
baixo brejeiro,
Tema A e
Tema B.
Retorno ao ritmo
acentuado,
aceleração do
andamento e
contraste entre
os instrumentos.
Tabela 6 - Aspectos gerais do Choros 2 de Heitor Villa-Lobos.
48
Aspectos Particulares
Através de uma abordagem analítica com ênfase nos aspectos
particulares o intérprete pode focar sua atenção sobre os elementos musicais
diretamente ligados a uma seção ou gesto específicos, como uma continuação
do estudo anterior e um aprofundamento da relação com a obra. lia
Chueke
62
identifica três estágios de escuta na elaboração de uma performance.
Relacionando esta sistematização com a presente análise do Choros 2, a
observação dos aspectos gerais compreende um Primeiro Estágio da Escuta,
explicado pela autora como uma escuta interior ou a definição de um “objetivo
musical” que irá guiar a preparação da performance. A observação dos
aspectos particulares compreende um Segundo e Terceiro Estágio de Escuta
do intérprete, que passa então às conexões entre o que ouviu interiormente e o
que ouve ao tocar seu instrumento, em questões de técnica de execução e da
performance propriamente dita.
Este segundo estágio envolve o estudo prático, com um processo de
repetição e comparação de trechos específicos da obra; são observados
elementos particulares constituintes do discurso musical relacionando-os com
aspectos cnicos específicos do instrumento. O Choros 2, enquanto uma
composição camerística para flauta e clarinete, ainda apresenta
especificidades exclusivas da música em conjunto, com uma série de
elementos identificáveis a partir da relação entre as duas vozes.
A análise dos aspectos particulares no Choros 2 será organizada em
três itens:
62
Zélia Chueke, Estágios de Escuta durante a Preparação e a Execução pianística na
Visão de seis Pianistas de nosso Tempo,” Performance Musical e suas Interfaces, ed. Sonya
Ray (Goiânia: Vieira, 2005), 115-143.
49
1. Seqüência de eventos musicais particulares;
2. Dificuldades técnicas na flauta;
3. O gato e o canário: a relação do clarinete e a flauta no Choros 2;
Seqüência de eventos musicais particulares
Com base na estruturação realizada na análise dos aspectos gerais,
onde a obra foi dividida em quatro seções (Pouco movido Muito vagaroso
Pouco movido Tempo Primo), os eventos musicais particulares são
subdivisões ou articulações do discurso no interior de cada seção, como as
frases e os motivos. Compreendemos as seções como os cenários principais
criados pelo compositor, que podem guiar os intérpretes na construção de sua
performance.
Seção Pouco movido
Nos cinco primeiros compassos ouvem-se duas frases distintas com
características específicas recorrentes até o final da composição. A primeira
frase (c. 1-3.1) é caracterizada pelo desafio implícito na escrita contrapontística
a duas vozes e pela tópica brejeiro no compasso 2.1 e 2.2 do clarinete (Fig.
36).
Fig. 36. Tópica brejeiro no clarinete: compassos 1-3.
50
Esta figura de retórica é corroborada pela ornamentação na cabeça do
compasso 2.1, uma apojatura dupla que ressalta a pausa de semicolcheia,
elemento principal do deslocamento do discurso.
A segunda frase (c. 3.2-5.3) é sincopada pelas figuras rítmicas e pelos
acentos, atributo tradicional da música brasileira que permanece por todas as
seções da obra. O emprego reiterado dos acentos a partir do compasso 3.2
sugere uma intenção stravinskyana de Villa-Lobos, com notas repetidas e
acentuação deslocada ao modo de “dança ritualística” (Fig. 37). Vale a pena
mencionar que o ano de composição do Choros 2 (1924) coincide com o ano
da primeira audição de Villa-Lobos da Sagração da Primavera, onde este
recurso é extensamente explorado (Fig. 38). Nas palavras de Manuel Bandeira
(1924), o próprio Villa-Lobos confessa a impressão que teve ao ouvir pela
primeira vez a Sagração da Primavera em um concerto sinfônico em Paris:
Villa-Lobos acaba de chegar de Paris. Quem chega de Paris espera-se
que venha cheio de Paris. Entretanto Villa-Lobos chegou de cheio de
Villa-Lobos. Todavia uma coisa o abalou perigosamente: o Sacre du
Printemps de Stravinsky. Foi, confessou-me ele, a maior emoção
musical de sua vida. Mas se o ambiente artístico de Paris não afeta em
essência sua arte, influi por outro lado sobre ela com incalculáveis
benefícios em efeitos morais e sociais.
63
Villa-Lobos partiu para Paris em 30 de junho de 1923, retornando ao Rio
de Janeiro pouco mais de um ano depois. Pesquisando as obras compostas
nos anos seguintes ao retorno desta primeira viagem à Europa, a partir de
1924, verifica-se a influência daquela noite no compositor de 37 anos. Neste
sentido, o maestro Gil Jardim
64
aponta o Choros 7, Choros 8 e Rudepoema
63
Vasco Mariz, Heitor Villa-Lobos: Compositor Brasileiro (Brasília: Ministério da
Cultura, 1977), 65.
64
Gil Jardim, O Estilo antropofágico de Heitor Villa-Lobos: Bach e Stravinsky na
Obra do Compositor (São Paulo: Philarmonia Brasileira, 2005), 59.
51
como exemplos concretos das correspondências Villa-Lobos Stravinsky,
encontrando correlações no Sacre du Printemps e Histoire du Soldat.
No entanto, estas relações entre os dois compositores não estão
restritas às obras compostas após 1924. Gil Jardim também assinala
semelhanças entre a Sagração da Primavera de 1913 com o Uirapuru de 1917
e com a Dança dos Mosquitos de 1922. Além disso, a acentuação deslocada,
exemplificada nos compassos 3 e 4 do Choros 2, havia sido explorada por
Villa-Lobos em obras anteriores, como a Dança Característica Africana
Kankikis de 1914.
Fig. 37. Notas repetidas e acentuação deslocada na seção Pouco movido: compassos 3-4.
52
Fig. 38. Excerto da Sagração da Primavera (acentuação deslocada) - Dança das
Adolescentes de Igor Stravinsky.
Uma possível contextualização histórica é considerar, por exemplo, com
que tipos de manifestações artísticas Villa-Lobos entrara em contato até o
período de composição do Choros 2, ou o que ele já havia composto até
aquele período. Já é um fato indiscutível na historiografia musical que os
compositores se alimentam das épocas precedentes ou então são
influenciados por eventos contemporâneos, artísticos ou não. Procurar
associações desta natureza na elaboração de uma interpretação também pode
guiar algumas decisões e deixar as intenções, pelo menos do intérprete, mais
evidentes para o público de uma performance. Marília Laboissière dá ao ato
interpretativo a responsabilidade de levar até o receptor uma experiência
53
estética e sensível e, neste contexto, “conhecimento histórico é sempre um dos
parâmetros para conferir certa fidelidade ao estilo e à estética...”.
65
No compasso 5.3 a flauta inicia uma frase de caráter solo, realizando um
grande arco do Fá3 ao Láb5 e retornando ao Láb3 no compasso 9, como uma
antecipação do lirismo da seção Muito vagaroso, enquanto o clarinete contrasta
com figuras de caráter rítmico no registro grave. Do compasso 10 ao 13.4, o
clarinete antecipa a figura do baixo brejeiro e a flauta reitera um padrão rítmico-
melódico com base em figuras sincopadas em intervalo de quinta justa (Láb3-
Mib4), caracterizando um curto período de transição (Fig. 39).
Fig. 39. Excerto da seção Pouco movido (transição para a seção Muito vagaroso) do Choros 2:
compassos 10-14.
65
Marília Laboissière, Interpretação Musical: a dimensão recriadora da
“comunicação” poética (São Paulo: Annablume, 2007), 88.
54
Seção Muito vagaroso
A principal característica desta seção é o improviso lírico quase solo da
flauta (c. 13.3.2-21) e uma cadência com longos arcos melódicos com duas
curtas intervenções do clarinete. A indicação metronômica mais lenta (q=63), a
expressão de andamento Muito vagaroso e a expressão “mole” na quiáltera do
compasso 15.2 (Fig. 40), sugerem um caráter “quasi a piacere”, onde o flautista
pode explorar a variação tímbrica e realizar com calma os contrastes dinâmicos
(Fig. 41).
Fig. 40 Excerto da seção Muito vagaroso (expressão “mole): compasso 15.
Fig. 41. Excerto da seção Muito vagaroso (contraste de dinâmicas e rall.): compassos 20-21.
O improviso da flauta e as intervenções do clarinete terminam no
compasso 21 em rallentando (Fig. 41). Os dois compassos seguintes em a
55
Tempo sugerem uma frase de ligação para a próxima seção da obra. A flauta
com um gesto linear de figuras rítmicas progressivamente mais curtas
(aceleração agógica), em escala descendente, articulação legato e indicação
de expressivo, o que consiste numa variação dos compassos introdutórios da
obra 1-3.1. O clarinete com um gesto sincopado e acompanhado da expressão
escrita “violento e ritmado” (variação do baixo brejeiro) (Fig. 42 e 43).
Fig. 42. Excerto da seção Pouco movido (flauta: compassos introdutórios da obra): compassos
1-3.
Fig. 43. Excerto da seção Muito vagaroso (frase de ligação: flauta-variação dos compassos
introdutórios da obra e clarinete-variação do baixo brejeiro): compassos 22-23.
A seção Muito vagaroso termina no compasso 24 com a nota de
chegada na flauta (Mi3) sobreposta com o baixo brejeiro do clarinete, que
caracteriza o choro da seção seguinte (Fig. 44).
56
Fig. 44. Excerto da seção Muito vagaroso-Pouco movido (sobreposição das seções: nota de
chegada da flauta Mi3 e início do choro no clarinete): compassos 23-25.
Seção Pouco Movido
O “choro” inicia com a exposição da figura do baixo brejeiro pelo
clarinete no compasso 25. A flauta finaliza a cadência neste mesmo compasso
e retorna no compasso 31 com a figura do Tema A. O baixo brejeiro é
mantido durante toda seção, com a sua execução alternando entre os dois
instrumentos e segue a o compasso 50, onde se transforma no trinado
conclusivo do clarinete. Sobre a base rítmica do baixo são desenhados dois
temas distintos de três compassos, o Tema A exposto pela flauta em Lá m (c.
31-33) e o Tema B pelo clarinete, em Sol m (c. 39-41), reexposto pela flauta,
em forma de variação, uma quarta justa abaixo em Ré m (c. 46-48).
A figura do baixo evidencia-se no solo de clarinete e simultaneamente
prepara a entrada do novo material temático na flauta (Tema A), uma
seqüência de semínimas impulsionadas por apojaturas de décima (Fig. 45).
57
Fig. 45. Excerto da seção Pouco movido (Figura do baixo brejeiro e Tema A): compassos 28-
33.
O Tema B, um grande arco lamentoso e sincopado, é também
preparado pelo baixo, agora pela variação de seu design e pela linha da flauta,
que pontua o fim do Tema A com uma figura característica do “rufo”, sugerido
no compasso 38 pela quiáltera de 14 fusas descendentes (Fig. 46).
Fig. 46. Preparação do Tema B na seção Pouco movido (Figura Característica do Rufo e Tema
B): compassos 38-41.
58
De acordo com a sistematização de Jan LaRue, o caráter de choro da
seção Pouco movido, em conjunto com as três idéias principais (Baixo brejeiro,
Tema A e Tema B) são a base da grande estrutura, ou seja, os aspectos gerais
da análise. Ao detalharmos os componentes do baixo brejeiro e dos temas,
como eles se conectam ou como se diferenciam, estamos falando da micro
estrutura, dos aspectos particulares da análise. Por exemplo, a diferença entre
os materiais temáticos A, apresentado somente pela flauta e de caráter giocoso
corroborado pelas apojaturas de décima e B, apresentado pelos dois
instrumentos e de caráter cantabile corroborado pela frase em graus conjuntos
e articulação portato é um detalhe particular, no interior da grande estrutura.
Porém, estes detalhes não podem atrapalhar o sentido de direção e fluidez do
intérprete na hora da performance. Em outras palavras, o intérprete localiza
uma estrutura menor no interior do discurso musical e “sabe para onde ir”, pois
a compreensão da grande estrutura é justificada pelos elementos musicais
particulares.
Seção Tempo Primo
O início da seção Tempo Primo coincide com o fim da reexposição do
Tema B na flauta e a indicação de retorno ao andamento inicial (Tempo Primo).
O clarinete passa por este momento na realização ininterrupta do baixo
brejeiro, acelerando o andamento no compasso 49.1, enquanto a flauta, ainda
no final da frase anterior com a nota Ré4, confirma o Tempo Primo no
compasso 49.2, esboçando as características de um CODA com novo material
temático (Fig. 47).
59
Fig. 47 Excerto da seção Tempo Primo (Transição entre as seções Pouco movido e Tempo
Primo: novo material temático na flauta e baixo brejeiro no clarinete): compassos 48-49.
A indicação de Animando no compasso 51.3, a seqüência ascendente
de semicolcheias em staccato até o Ré6 na flauta e os trinados no clarinete
compõem um último gesto de tensão da obra e preparam a surpresa do
desfecho: um repouso tranqüilo das duas vozes em registro médio, em
pianissimo, estáticas na fermata (Fig. 48).
Fig. 48. Excerto da seção Tempo Primo (último gesto de tensão e desfecho): compassos 51-
54.
60
Dificuldades técnicas na flauta
A identificação dos aspectos particulares pode ocorrer no momento do
estudo prático da obra, ou seja, no momento da resolução das especificidades
técnicas do instrumento, em como tocar esta ou aquela passagem. Por se
tratar de elementos musicais de caráter mais específico, como uma figura de
retórica em particular ou uma breve citação musical, eles acabam se
evidenciando somente após algumas leituras da partitura. O estudo de uma
nova obra significa muitas vezes uma série de novos desafios técnicos para o
intérprete, que dependerá de seus próprios recursos para resolvê-los. Esta
habilidade de “resolver problemas” foi explicada por Robert J. Sternberg
66
como
estratégias mentais utilizadas para encontrar soluções, denominadas de
heurísticas. Como atalhos mentais, estratégias cognitivas informais, intuitivas e
especulativas que podem levar a uma solução eficaz. A cada fase de
reconhecimento dos elementos musicais associam-se naturalmente as
decisões técnicas, adaptando o gesto ao produto sonoro desejado.
Do ponto de vista do flautista, o Choros 2 apresenta diversas
dificuldades técnicas, destacando as cinco passagens em arpejos e escalas de
quiálteras, fusas e semifusas (c. 8.3, 18.2, 19.2, 38.4 e 51.2) (Fig. 49) e a
emissão do Ré6 durante quase cinco pulsações em andamento um pouco mais
rápido que o Tempo Primo (c. q=88). O Ré6 é uma altura considerada limítrofe
na extensão básica de três oitavas (Dó3-Dó6) da flauta transversal e pode
variar com muita freqüência de um instrumento para outro, de instrumentistas
ou simplesmente depender das condições de resistência física.
66
Robert J. Sternberg, “Resolução de Problemas e Criatividade,” Psicologia cognitiva
(Porto Alegre: Artes Médicas, 2000), 305-338.
61
Fig. 49. Passagens em arpejos e escalas de quiálteras, fusas e semifusas no Choros 2:
compassos 8.3, 18.2, 19.2, 38.4 e 51.2.
As cinco passagens em arpejos e escalas de quiálteras, fusas e
semifusas estão distribuídas pelas quatro seções da obra, sendo duas na
seção Muito vagaroso. Este aspecto unifica a composição no sentido de
caracterizar a linha da flauta como uma voz de eloqüência virtuosística e
coerente com o discurso provocativo e desafiador típico do Choro.
Após o estudo cuidadoso e repetitivo da seqüência de notas, o intérprete
desenvolve um tipo de automatismo na técnica, no exemplo do flautista, um
reflexo mecânico no controle do ar, língua e digitação. No Choros 2, o flautista
62
aproveita esta experiência e automação técnica para realizar passagens como
a do compasso 19, com um arpejo ascendente de oito semifusas em meia
pulsação (Fig. 50).
Fig. 50 Exemplo de passagem de difícil execução (arpejo de 8 semifusas): compassos 19-20.
Como a mecânica desta passagem já foi apreendida através do estudo e
repetição, o flautista pode se concentrar na primeira e na última nota da
quiáltera, como um “atalho cognitivo” para a execução. Outros exemplos do
emprego de heurísticas na resolução de uma passagem no Choros 2 são os
compassos 3.4 e 4.3 (Fig. 51).
Fig. 51. Exemplo de passagem de difícil execução (apojaturas): compassos 3-4.
63
As apojaturas triplas podem ser resolvidas, por exemplo, com o flautista
apoiando o Fá3 colcheia e se concentrando na primeira nota do ornamento
(Si3). Estes exemplos de resoluções técnicas não são normativos e sim opções
dentre tantas outras que o flautista pode se utilizar.
O gato e o canário
67
: a relação do clarinete e a flauta
Quanto à prática de música em conjunto, o Choros 2 apresenta diversos
pontos de tensão rítmica, como as variações de andamento indicadas na
partitura (Rall. c. 3.3 e 20.2, Muito rall. c. 23, Pouco rall. c. 45.2 e Animando c.
51.3), com e sem marcação metronômica ou a simultaneidade de gestos
rítmicos contrastantes, como as breves intervenções do clarinete na cadência
da flauta na seção Muito vagaroso (Fig. 52).
Fig. 52. Contraste entre as figuras rítmicas da flauta e do clarinete na seção Muito vagaroso:
compassos 17-18.
A diversidade rítmica no contraponto também é explorada por Villa-
Lobos nos acentos intercalados entre as duas vozes (Fig. 53) e na quiáltera
“rufo” de 14 fusas descendentes na flauta contra apenas 2 colcheias repetidas
no clarinete (Fig. 54). A execução destes eventos no Choros 2 requer um
67
Alusão ao caráter lúdico implícito no choro O gato e o canário” de Pixinguinha,
gravada pela primeira vez em 1949 por Pixinguinha no saxofone tenor (“O gato”) e Benedito
Lacerda no flautim (“O canário”).
64
esforço dos dois instrumentistas no sentido da precisão do sincronismo. Para a
resolução dos acentos intercalados os instrumentistas devem focar-se
internamente no pulso quaternário ao mesmo tempo em que associam os
acentos às notas individuais, orientando-se pela melodia.
Fig. 53. Acentos intercalados entre as duas vozes na seção Pouco movido: compasso 11.
Na figura do rufo da seção Pouco movido, de 14 fusas da flauta contra 2
colcheias do clarinete, o flautista pode, por exemplo, pensar em dividir a
quiáltera em duas para facilitar que as notas Mi4 (flauta) e Sol4 de efeito
(clarinete) coincidam.
Fig. 54. Contraste entre as figuras rítmicas das duas vozes na seção Pouco movido (quiáltera
de 14 fusas contra 2 colcheias - sugestão: dividir a quiáltera em duas para facilitar o
sincronismo com o clarinete): compasso 38.
65
Apesar das indicações de dinâmica referirem-se aos dois instrumentos,
ao longo da peça, existem passagens que incluem indicações específicas para
flauta e clarinete separadamente. Isto pode ser explorado para o efeito de
contraste do discurso musical, como por exemplo, a intervenção agressiva do
clarinete em oposição à tranqüila conclusão de frase da flauta nos compassos
20 e 21 (Fig. 55) ou então para equilibrar a defasagem de sonoridade que a
flauta tem em relação ao clarinete, como no último compasso da obra.
Fig. 55. Intervenção agressiva do clarinete em oposição à tranqüila conclusão de frase da
flauta na seção Muito vagaroso: compassos 20-21.
Ao observarmos a obra como um todo, tomando-a como uma seqüência
de gestos, podemos discriminar as quatro seções através de alguns padrões.
Na seção introdutória Pouco movido, as figuras rítmicas acentuadas nos dois
instrumentos (c. 3 e 4). No Muito vagaroso, a distinção entre o improviso da
flauta e as intervenções do clarinete, representada pela escrita, figuração
rítmica e expressões dos compassos 17 e 18. A seção central Pouco movido
com o discurso estruturado a partir de três elementos distintos, o Baixo
Brejeiro, o Tema A e o Tema B e a seção Tempo Primo, caracterizada
principalmente por um aumento da tensão rítmica, de andamento e de
dinâmica nos dois instrumentos.
66
Finalmente, além das implicações na performance, decorrentes do
próprio gesto musical ou da delimitação das quatro seções da obra e seus
aspectos particulares, incluem-se nas considerações do intérprete camerista as
nuances de timbre, lembrando a importância deste elemento musical na
concepção artística do século XX. As figuras rítmicas e acentuadas, como as
encontradas na seção introdutória - Pouco movido - e na seção conclusiva -
Tempo Primo -, sugerem de forma dosada, um timbre mais áspero, não tão
“polido” quanto o solo da flauta no Muito vagaroso. A seção central - Pouco
movido -, seção com caráter de choro, pode ganhar três cores para as suas
três figuras, por exemplo, valorizando o peso dos graves na execução do baixo,
um som firme e pouco vibrato com a flauta no Tema A (giocoso) e finalmente
um som brilhante e com bastante vibrato, buscando o máximo de
expressividade no Tema B (cantabile) com os dois instrumentos. O Tema B na
flauta ainda conta com a expressão sempre forte e bem tenso na flauta.
68
É
evidente que qualquer decisão interpretativa quanto ao timbre depende antes
de mais nada da qualidade do instrumento, das possibilidades cnicas e
escolhas individuais dos instrumentistas.
68
Expressão original na partitura (Ed. Eschig, 1927): toujours forte et très rague la
Flûte.
67
Capítulo 4
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Análise para Intérpretes como descrita aqui é primordialmente uma
ferramenta prática para que instrumentistas, cantores, maestros, professores
possam explorar o conteúdo musical e construir uma imagem sonora a partir de
sua experiência com a obra. Assim, uma investigação analítica voltada para a
interpretação não pode se distanciar de sua matéria prima, a própria música.
Jonathan Dunsby
69
discutiu o receio que temos de invadir o mistério da
música, desnudando sua essência com nossos conceitos. Dissecarmos um
discurso musical analiticamente, criando modelos e organizando tabelas para
entender como as coisas funcionam pode parecer brutal num primeiro olhar,
algo inorgânico que porá um fim à mágica. Dunsby, porém argumenta que esta
busca “de como os truques são feitos” é uma cadeia sem fim. Nós até podemos
ver o truque, mas ainda não vamos saber de onde vem sua idéia. A arte não
pode perder o seu mistério.
Deste ponto de vista, a natureza criativa e informal assim como o caráter
de improviso típicos do Choro poderiam estar ameaçados por uma
“formatação”, produzindo chorões em série. Henrique Cazes
70
já expressou sua
preocupação com o futuro do Choro, alertando que a assimilação de sua
linguagem não deveria “cair na burocratização que a metodologia berkleeana
fez com o Jazz”. De fato, o Choro é um dos produtos mais representativos da
69
Jonathan Dunsby, Performing Music: Shared Concerns (New York: Oxford
University Press, 1995), 80.
70
Henrique Cazes, Choro: do Quintal ao Municipal (Rio de Janeiro: Editora 34, 1998),
185.
67
68
cultura e identidade brasileiras, explicado ainda hoje fundamentalmente como
um jeito livre de tocar, onde “não existe nota errada” ou “erre a nota, mas não
erre a música!” No entanto, a proposta da Análise para Intérpretes é justamente
oposta à padronização. O olhar analítico pode, em vez de restringir, estimular a
descoberta, ou a redescoberta da matéria prima dos repertórios mais prolíficos
da literatura musical.
A pesquisa em música não foge a regra de outras modalidades da
investigação e produção de conhecimento e inevitavelmente se depara com
algumas questões práticas: o conhecimento produzido terá alguma validade?
Como este conhecimento será aproveitado?
Ao levarmos em conta que a sica é uma arte performática, não se
justifica a investigação, produção e cultivo de conhecimento teórico, analítico
ou musicológico que não incentive, possibilite ou gere o enriquecimento do
fazer musical.
71
Com base nisto, uma investigação analítica como a
apresentada neste trabalho, é indiscutivelmente prática. É uma ferramenta para
que músicos e professores possam explorar o conteúdo musical e construir
uma imagem sonora a partir de sua experiência com a obra. O exercício da
análise ou a leitura de uma análise pode perfeitamente ampliar a perspectiva
sobre o discurso musical, principalmente por incluir a abordagem interpretativa,
ou seja, um encadeamento de decisões e possibilidades.
Em sua essência, a intenção de uma investigação analítica com vistas à
performance é um ato de busca de conhecimento, aproximando o intérprete de
seu objeto, ou melhor, conduzindo o intérprete pelo mundo de possibilidades
71
Zélia Chueke, “Reading Music: a listening Process, breaking the Barriers of Notation,”
Per Musi 11 (2005): 106-112.
69
inerentes a toda obra de arte. Conduzir a interpretação significa equilibrar, por
meio de reflexão, a simbiose entre compositor, composição, intérprete e
público, considerando que cada um destes sujeitos possui uma independência
temporal intrínseca.
Uma performance será coerente a partir da definição por parte do
intérprete de suas intenções. Pondo em prática o conhecimento adquirido
através da pesquisa e de sua própria experiência enquanto músico, o intérprete
expressa sua compreensão pessoal, o que é algo diferente de interpretar com
base exclusivamente na imitação de uma gravação
72
ou de interpretações
alheias, ou ainda de mera intuição. O equilíbrio destes fatores na interpretação
musical está contido no termo sugerido por John Rink
73
, intuição informada. O
conjunto formado pela experiência do intérprete, as horas de estudo, o
conhecimento adquirido com as pesquisas, o gosto, as influências e a mais
instintiva intuição pode ser bastante eficaz na elaboração de uma interpretação.
Assim, respondendo a segunda questão, é que o conhecimento pode ser
aproveitado.
Seguindo nestas ponderações quanto aos aspectos constituintes da
interpretação musical, chegamos à outra encruzilhada bastante comum, a
dicotomia leitura-escuta musical: qual é o melhor caminho para a
compreensão? A leitura analítica da partitura e a escuta não se anulam, muito
pelo contrário, suas diferenças podem somar forças. Nas palavras de Jacques
72
Flávio Apro, “Interpretação Musical: um Universo (ainda) em Construção,”
Performance e Interpretação Musical: uma Prática Interdisciplinar, ed. Sonia Albano de Lima
(São Paulo: Musa Editora, 2006), 31.
73
John Rink, ed., “Analysis and (or?) Performance,” Musical Performance: a Guide to
Understanding (Cambridge: CUP, 2002), 35-58.
70
Viret
74
, a escuta intuitiva não será jamais obstáculo a um trabalho analítico
realizado a posteriori. Ela é um estímulo que servirá de orientação, caso a meta
da análise seja precisar, explicar ou, eventualmente, corrigir as impressões de
uma escuta. Explicado de forma sintética, a leitura, o espacial/visual/objetivo, é
racional; a idéia musical se mostra de dentro para fora, do detalhe para o todo.
Enquanto a escuta, o temporal/auditivo/subjetivo, é irracional; a música se
mostra primeiramente por inteiro, para ir sendo detalhada do geral para o
particular. Assim, funcionando como um sistema que se retro alimenta na
compreensão do “ser musical”
75
, o racional e o irracional se justapõem,
provando-se proporcionalmente eficazes e legítimos, cada um a sua maneira.
LEITURA De dentro para fora,
Espacial / Visual / Objetivo do detalhe para o todo.
Análise Racional
ESCUTA De fora para dentro,
Temporal / Auditivo / Subjetivo do geral para o particular.
Análise Irracional
Neste debate sobre hermenêutica, podemos associar a busca pela
compreensão da estrutura e do discurso musical com a busca pela
compreensão do “ser musical”, explicado por Viret
76
como a conjugação da
74
Jacques Viret, ed., “Entre Sujet et Objet: l’Herméneutique musicale comme
Méthodologie de l’Écoute,” Approche Herméneutique de la Musique (Strasbourg: Presses de
l’Université, 2001), 283-296.
75
Expressão no original: l’être musical.
76
Jacques Viret, ed., “Entre Sujet et Objet: l’Herméneutique musicale comme
Méthodologie de l’Écoute,” Approche Herméneutique de la Musique (Strasbourg: Presses de
l’Université, 2001), 290.
71
forma e da expressão. Ele compara os aspectos formais ao “corpo” deste ser,
ao lado exterior, e os aspectos expressivos à sua “alma”, ao lado interior. Da
mesma forma que um ser vivo externaliza sua vida psicológica por
manifestações corporais, físicas, materiais, o conteúdo semântico de uma
música será desvelado à nossa escuta por intermédio dos caracteres formais.
De uma parte e de outra existe interação, de maneira que os limites entre a
forma e a expressão musical se confundem.
Quando ouvimos música ou quando tocamos um instrumento, a maior
ou menor compreensão do ser musical, do seu conteúdo formal e expressivo,
implicará diretamente no prazer auditivo ou na qualidade da interpretação.
Um choro tradicional como o Pagão de Pixinguinha e uma composição
estilizada como o Choros 2 de Villa-Lobos encerram uma justificativa de análise
em comum. Leonard B. Meyer
77
explica que a audição musical é uma atividade
artística complexa que envolve sensibilidade de apreensão, intelecto e
memória. Assim sendo, enquanto intérpretes, responsáveis pela comunicação
da mensagem musical contida na partitura, somente após a compreensão e
memorização dos eventos básicos e axiomáticos de uma peça musical por
exemplo, seus motivos, temas e seções é que começamos a de fato apreciar
e expressar toda a riqueza de suas implicações.
77
Leonard B. Meyer, “On Rehearing Music,” Journal of the American Musicological
Society 14 (1961): 257-267.
72
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72
73
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Pixinguinha. Pagão. Pixinguinha, sax-tenor; Benedito Lacerda, flautim.
BMG/ARIOLA, 1947. Compact Disc.
75
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Villa-Lobos, Heitor. Choros 2. Antonio Carlos Carrasqueira, flauta e Paulo
Sérgio Santos, clarinete. ABM Digital, s/d. Compact Disc.
Villa-Lobos, Heitor. Choros 2. Carlos Rato, flauta e José Botelho, clarinete.
EMI-ODEON, s/d. Gravação em LP.
Viret, Jacques, ed. “Entre Sujet et Objet: l’Herméneutique musicale comme
Méthodologie de l’Écoute.” In Approche Herméneutique de la Musique,
283-296. Strasbourg: Presses de l’Université, 2001.
76
APÊNDICE
Partituras das obras analisadas
76
77
PARTITURAS DAS OBRAS ANALISADAS
Partitura do Choro Pagão de Pixinguinha
78
78
Pixinguinha, Pagão (São Paulo: Irmãos Vitale, 1997). Revisão de Antonio Carlos
Carrasqueira e cifras de Edmilson Capelupi.
78
79
Partitura do Choros 2 de Heitor Villa-Lobos
79
79
Partitura editada pelo autor no programa Finale 2006 com base na edição Eschig &
Cie. (Paris, 1927). Nesta edição todas as expressões estão em português. Na edição Eschig &
Cie. algumas expressões aparecem somente em português ou somente em francês, outras
expressões aparecem em ambos os idiomas.
80
81
82
83
CURRICULUM VITAE
Iniciou os estudos musicais em 1985 na Escola de Iniciação Musical
Egon Bohn e Clube Musical São Pedro em Gaspar-SC e flauta transversal com
o Prof. Giampiero Pilatti na Escola de Música de Blumenau. Ingressou no
Curso Superior de Instrumento da Escola de Música e Belas Artes do Paraná
EMBAP (Curitiba) em 1998, formando-se bacharel em flauta transversal sob
orientação do Prof. Giampiero Pilatti em 2001. Em 2006 recebeu o título de
especialista em Educação Musical pela Escola de Música e Belas Artes do
Paraná.
Participou de diversos festivais e oficinas de música no sul do país
desde 1994, atuando em master-classes com professores como: Antônio
Carlos Carrasqueira, Curt Schroeter, Michel Debost, Eduardo Monteiro.
Em 2000 participou como músico convidado no intercâmbio entre
bandas musicais de cidades catarinenses e da Província do Trentino, na Itália.
No ano letivo 2003-2004 estudou na École Normale de Musique de Paris
(França) sob a orientação da Profª. Mme.Patricia Nagle. Neste período também
participou das atividades do Club du Choro de Paris e de La Chorale de
Musiques du Monde (Cité Universitaire). Entre 1998 e 2003 apresentou-se com
o Grupo Antara em diversas salas curitibanas, gravando dois Cds de música
latino – americana de fusão cultural.
Atualmente dedica-se à prática e ensino de música de câmara
instrumental e performances de música brasileira (Choro). É professor na
Escola de Música de Blumenau e no Curso de Música da UNIVALI. Flautista da
Orquestra Filarmônica de Jaraguá do Sul, é regularmente convidado como
solista da Orquestra de Câmara de Blumenau. Email: [email protected]
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