Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
"A lata faz foto? Ah, então a lata é mágica!"
Estudo etnográfico sobre itinerários urbanos e a circulação de imagens e olhares
em oficinas de fotografia
pinhole,
Porto Alegre - RS
Paula de Oliveira Biazus
Orientação: Cornelia Eckert
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial
para a obtenção do grau de mestre em Antropologia
Social.
Porto Alegre, abril de 2006.
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
"A lata faz foto? Ah, então a lata é mágica!"
Estudo etnográfico sobre itinerários urbanos e a circulação de imagens e olhares
em oficinas de fotografia pinhole, Porto Alegre - RS
Paula de Oliveira Biazus
Orientação: Cornelia Eckert
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial
para a obtenção do grau de mestre em Antropologia
Social.
Porto Alegre, abril de 2006.
ads:
3
O ÚLTIMO VIANDANTE
Era um caminho que de tão velhinho, minha filha,
já nem sabia mais aonde ia...
Era um caminho
velhinho,
perdido...
Não havia traços
de passos no dia
em que por acaso o descobri:
pedras e urzes iam cobrindo tudo.
O caminho agonizava, morria
sozinho...
Eu vi...
Porque são os passos que fazem os caminhos
Mario Quintana
In: Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005.
4
Agradecimentos
Agradeço aos meus informantes e alunos pela cumplicidade com que receberam a
proposta de realização deste trabalho e a possibilidade, que me ofereceram, de compartilhar
momentos de suas histórias. Dedico esse trabalho a vocês, pois sem a vivência das histórias aqui
contadas esta dissertação não existiria:
Nidiana, Bianca, Candido, Marta, Jefferson, Carlos, Gabriela, Gustavo, Cristopher,
Osvaldo, Maurício, Cristhiane, Wagner, Márcia, Ana Maria, Jorge, Priscila, Tatiana, Jeferson,
Carla, Marilene, Jackson, Luciano, Gabriela e, em especial, Seu Egídio pelas histórias contadas,
Edgar pela disposição em conversar, Fernanda e Marcelo por andarem na cidade comigo a
fotografar e terem me recebido em suas casas junto a suas famílias.
À Cornelia Eckert, minha orientadora, pelas trocas nos momentos de orientação, por ter
acreditado e me incentivado nas horas mais difíceis da escrita, lendo com dedicação as muitas
versões que deram forma a esta dissertação.
À Ana Luiza Carvalho da Rocha pelas provocações que me fez enfrentar no caminho de
descoberta da Antropologia, pela rica convivência cotidiana de trabalho no BIEV, onde aprender
e ensinar são trocas de experiências que, com certeza, valem para uma vida inteira.
À Cláudia e Elena, minha mãe e minha tia, que estiveram presentes em todos os
momentos da minha trajetória, exemplos para mim, que espero estar retribuindo, um pouco, com
a conclusão desse trabalho.
Ao Leonel, meu pai, que sempre me incentivou a descobrir o mundo pela leitura e
corrigiu com dedicação e cuidado os erros de português de minha escrita.
Ao Grupo Lata Mágica por termos dividido o sonho e o desafio de fotografar com latas
em todas as formas que assumimos, ao longo desses seis anos, Pedro, Guilherme, Maísa e agora
Rafael, meu irmão, nós dois no seguimento dessa jornada.
A todos integrantes do Banco de Imagens e Efeitos Visuais por compartilharem os
desafios que enfrentei em nossas reuniões e no trabalho diário em descobrir a cidade de Porto
Alegre através de suas imagens e suas memórias.
Ao Grupo da Fotografia pelas “artes fotográficas de fazer” e ao Rafael Derois por ter
tratado, pacientemente, as fotografias que compõem as narrativas, aqui, apresentadas.
Em especial, também, a Rafael Devos e Viviane Vedana por terem me incentivado em
todo o percurso do Mestrado e, mesmo da distante Paris, ouviram minhas dúvidas e inquietações
sobre o fazer antropológico.
5
Ao Grupo do Som por ter descoberto comigo as sonoridades da oficina realizada no
Hospital São Pedro. À Viviane pelas dedicadas orientações nos momentos de captação sonora em
campo e nos desafios propostos para a elaboração das narrativas sonoras. À Fernanda por ter
trabalhado com carinho e dedicação junto comigo na construção e montagem das narrativas e
Luciana pelo apoio fundamental no momento de finalização das sonoridades que se apresentam
ao leitor junto a esse trabalho.
À Thaís e Anelise pelas nossas conversas fundamentais nos momentos de dúvidas e
incertezas.
À Ana Paula pelo abstract e pelas visitas nos momentos de escrita e isolamento do mundo.
Ao Wellington e a meus amigos por me “agüentarem” e apoiarem durante a escrita.
À CAPES pela bolsa de financiamento parcial dessa pesquisa.
6
Resumo
Essa dissertação relata, a partir de um estudo etnográfico, a experiência de duas oficinas
de fotografia pinhole de que participei igualmente como pesquisadora e professora da técnica,
realizadas nos bairros Partenon e Lomba do Pinheiro na cidade de Porto Alegre. A partir das
experiências vividas com os alunos dessas atividades, analisam-se aspectos sobre itinerários
urbanos e a troca de olhares e imagens na paisagem urbana. A técnica pinhole consiste na
utilização de câmeras sem lentes que, pelo princípio da câmara escura, permite a obtenção de
imagens de maneira bastante simplificada. As câmeras são construídas a partir de latas de tintas
forradas de preto, onde a passagem da luz é controlada por um pequeno furo de agulha. As
oficinas, ministradas pelo grupo de fotógrafos Lata Mágica, serviram como ponto de partida para
a análise desse ato fotográfico diferenciado abordado a partir das “artes de fazer” dos alunos ao
construírem suas imagens de forma mais artesanal do que na fotografia convencional. Assim, a
fotografia pinhole é considerada enquanto uma ruptura em relação à fotografia que utiliza
câmeras com lentes e é significada pelos alunos das oficinas de acordo com a construção de seus
olhares. Consideram-se suas relações com a imagem que construíram e com o artefato fotografia
enquanto um objeto de apropriações sociais, evocando o trabalho da memória e suas trajetórias
conformadas por visões de mundo e estilos de vida diferenciados. O olhar apresentado nas
imagens possibilita a reflexão sobre os alunos enquanto habitantes do espaço urbano da cidade de
Porto Alegre e suas relações com os locais, nos termos de espaços vividos, e pessoas que
fotografaram.
Palavras-chave: itinerários urbanos, artes de fazer, ato fotográfico, trocas sociais, visão de
mundo, estilo de vida.
7
Abstract
Based on an ethnographic study, this paper tells the experience of two pinhole
photography workshops taken place in the locations of Partenon and Lomba do Pinheiro, in the
city of Porto Alegre. Having taken part of such workshops, both as a researcher and as a teacher
of this technique, I have analysed some aspects of urban itineraries and the trade of sights and
images of the urban landscape considering the experiments lived by the students of such
activities. Pinhole technique consists on the use of lenses-free cameras, which allow the
obtainance of images through the camera obscura principle in a rather simplified manner. These
cameras are manufactured out of black covered paint tins, where the light goes through
controlled by a small hole made with a pin. The workshops, given by a team of photographers
called Lata Mágica (Magic Tin), were taken as start line for the analysis of this differential
photographic act, based on the arts of making of the students while building the images more
hand-craftily than in conventional photography. Thus, pinhole photography is considered to be a
burst related to photography obtained through cameras provided of lenses and it is meant by the
workshop students while building their sights. The relations to the built image and the
photography artefact are considered as an object of social appropriation, evoquing memory work
and its trajectory conformed to different world views and lifestyles. The sight presented in the
images allows the reflection on the students as inhabitants of the urban zone of Porto Alegre and
their relations to the locations, in terms of lived spaces, and the photographed people.
Key-words: urban itineraries, arts of making, photographic act, social trades, world view,
lifestyle.
8
Sumário
Índice de Imagens.................................................................................................................10
Introdução.....................................................................................................................................15
Capítulo 1 A técnica pinhole e o contexto de “nossa” cultura visual: fotografia e “visão de
mundo”. ........................................................................................................................................20
1.1 O início da técnica fotográfica e a conformação da sua linguagem.........................................22
1.2 A ruptura provocada pela técnica pinhole na conformação do olhar.......................................25
Capítulo 2 – A trajetória da pesquisa e considerações metodológicas....................................30
2.1 O percurso de um Grupo..........................................................................................................33
2.2 Neste contexto, a pesquisadora entra em campo......................................................................40
2.3 A oficina no Hospital Psiquiátrico São Pedro..........................................................................44
2.4 A oficina no Centro de Promoção da Criança e do Adolescente.............................................46
2.5 Olhares sobre Porto Alegre e a construção de uma observação participante...........................48
2.6 A descoberta da etnografia pelas suas sonoridades..................................................................52
2.7 As imagens fotográficas no contexto da pesquisa....................................................................55
2.8 Um cruzamento possível entre sonoridades e fotografias........................................................57
Capítulo 3 - A oficina no Hospital Psiquiátrico São Pedro e as “artes de fazer” uma
fotografia pinhole..........................................................................................................................60
3.1 Um novo ato fotográfico se apresenta......................................................................................67
3.2 A construção das primeiras imagens........................................................................................72
3.3 Uma linguagem com características específicas......................................................................78
3.4 É preciso controlar a ansiedade... ............................................................................................82
3.5 O espaço e tempo do laboratório fotográfico...........................................................................86
3.6 Era essa a imagem imaginada?.................................................................................................88
9
3.7 Dois personagens, duas performances...............................................................................93
Capítulo 4 A oficina no Centro de Promoção da Criança e do Adolescente e a circulação
de olhares e imagens.....................................................................................................................98
4.1 Um lugar afastado e alunos vindos de diversos pontos..........................................................100
4.2 A construção das imagens e a presença dos retratos fotográficos..........................................103
4.3 Um cruzamento de imagens da cidade...................................................................................113
4.4 Exposição na Paróquia Santa Clara........................................................................................115
4.5 Retratos em um percurso por Porto Alegre...........................................................................118
4.6 Ocupar a cidade e a relação de gênero...................................................................................120
4.7 Percorrendo distâncias na cidade...........................................................................................122
4.8 Retornando à “Lomba” e construindo sentidos......................................................................130
Capítulo 5 - As trocas sociais e a circulação de olhares sobre a paisagem de Porto
Alegre...........................................................................................................................................136
5.1 O cruzamento entre diversos olhares sobre a cidade a partir da perspectiva das trocas
sociais...........................................................................................................................................137
5.2 Construir uma fotografia pinhole: saberes e práticas negociados na elaboração de um ato
narrativo sobre o espaço urbano...................................................................................................140
5.3 As fotografias significadas a partir do contexto das trajetórias sociais dos
participantes..................................................................................................................................143
5.4 Os itinerários urbanos, a memória e a fotografia....................................................................146
Conclusão....................................................................................................................................150
Referências..................................................................................................................................155
10
Índice de Imagens
Introdução
Im. 1 – p. 16 Camera Obscura. Autor: Gemma Frisius – 1544
Capítulo 1
Im. 2 - p. 23 Camera Obscura. Autor: Athanasius Kircher – 1646
Capítulo 2
Im. 3 – p. 43 Convite exposição HPSP. Arte: Guilherme Galarraga
Im 4 – p. 44 Convite exposição CPCA. Arte: Rafael Johann
Im. 5 – p. 44 Convite exposição Restinga. Arte: Rafael Johann
Im. 6 – p. 45 Convite exposição Ipanema. Arte: Rafael Johann
Im. 7 – p. 50 Mapa de Porto Alegre. Fonte: Lista telefônica de Porto Alegre 2004/2005. Listel/Publicar.
Capítulo 3
Im. 8 – p. 62 Guilherme Galarraga. Jefferson e Nidiana no gramado do HPSP.
Im 9 – p. 62 Fotografia pinhole de Gabriela Sevilla.
Im. 10 – p. 62 Fotografia pinhole de Nidiana Pohl.
Im. 11 – p. 62 Guilherme Galarraga. Memorial HPSP.
Im. 12 – p. 62 Guilherme Galarraga. Memorial HPSP.
Im. 13 – p. 63 Guilherme Galarraga. Sala de aula no Memorial HPSP.
Im. 14 a 21 – p. 66 Guilherme Galarraga. Construção das câmeras.
Im. 22 – p. 67 Guilherme Galarraga. Fotografia da turma.
Im. 23 – p. 67 Guilherme Galarraga. Fotografia pinhole da turma.
Im. 24 – p. 69 Fotografia pinhole de Cristhiane Ferreira.
Im. 25 – p. 69 Guilherme Galarraga. Espaço da Oficina de Criatividade Nise da Silveira.
Im. 26 – p. 69 Fotografia pinhole de Bianca Passuello.
Im. 27 – p. 69 Fotografia pinhole de Cristhiane Ferreira.
Im. 28 – p. 69 Guilherme Galarraga
Im. 29 – p. 69 Fotografia pinhole de Candido de Souza.
Im. 30 – p. 69 Guilherme Galarraga
11
Im. 31 – p. 69 Fotografia pinhole de Gustavo Martins.
Im. 32 – p. 69 Guilherme Galarraga. Seu Egídio em frente à sala do laboratório.
Im. 33 – p . 72 Guilherme Galarraga. Seu Egídio e a fachado do HPSP ao fundo.
Im. 34 – p. 72 Fotografia pinhole de Egídio Emanuelli.
Im. 35 – p. 72 Fotografia pinhole de Egídio Emanuelli.
Im. 36 – p. 73 Fotografia pinhole de Marta Helena Peixoto. Retrato Marta e Candido.
Im. 37 – p. 74 Fotografia pinhole de Osvaldo Vergara. Auto-retrato.
Im. 38 – p. 74 Fotografia pinhole de Cristopher Thomas. Auto-retrato.
Im. 39 – p. 74 Fotografia pinhole de Osvaldo Vergara. Retrato do avô.
Im. 40 – p. 75 Fotografia pinhole de Gabriela Sevilla.
Im. 41 – p. 76 Rafael Johann
Im 42 – p. 76 Fotografia pinhole de Edgar Salla.
Im. 43 – p. 77 Fotografia pinhole de Carlos Alberto Melo.
Im. 44 e 45 – p. 77 Fotografia pinhole de Nidiana Pohl. A caldeira e a caixa d’água.
Im. 46 e 47 – p. 78 Guilherme Galarraga. Candido fotografa.
Im. 48 – p. 78 Fotografia pinhole de Candido de Souza.
Im. 49 – p. 78 Fotografia pinhole de Carlos Alberto Melo.
Im. 50, 51 e 52 – p. 79 Guilherme Galarraga. Jefferson fotografa a porta.
Im. 53 – p. 80 Fotografia pinhole de Jefferson Pinheiro.
Im. 54 – p. 80 Rafael Johann. Jefferson fotografa debaixo do banco.
Im. 55 – p. 80 Fotografia pinhole de Jefferson Pinheiro.
Im. 56 a 60 – p. 82 Guilherme Galarraga. Bianca fotografa.
Im. 61 – p. 82 Fotografia pinhole de Bianca Passuello.
Im. 62 – p. 83 Fotografia pinhole de Maurício Saldanha.
Im. 63 e 64 – p. 84 Fotografias pinhole de Bianca Passuello.
12
Im. 65 – p. 85 Fotografia pinhole de Cristopher Thomas.
Im. 66 – p. 85 Fotografia pinhole de Candido de Souza. Auto-retrato.
Im. 67 – p. 85 Fotografia pinhole de Egídio Emanuelli.
Im. 68 – p. 85 Fotografia pinhole de Edgar Salla. Fotografia antes do conserto da câmera.
Im. 69 – p. 85 Fotografia pinhole de Nidiana Pohl. Auto-retrato.
Im. 70 a 75 – p. 86 Guilherme Galarraga. Laboratório fotográfico.
Im. 76 – p. 89 Fotografia pinhole de Egídio Emanuelli. Auto-retrato.
Im. 77 – p. 90 Fotografia pinhole de Marta Helena Peixoto. Necrotério.
Im. 78 – p. 91 Fotografia pinhole de Edgar Salla.
Im. 79 – p. 92 Fotografia pinhole de Carlos Alberto Melo.
Im. 80, 81 e 82 - p. 92 Rafael Johann. Montagem da exposição.
Im. 83 e 84 – p. 93 Fotografia pinhole de Egídio Emanuelli. Negativo e positivo de fotografia da família.
Im. 85 – p. 95 Fotografia pinhole de Edgar Salla.
Capítulo 4
Im. 86 – p. 100 Fotografia pinhole de Jeferson Patrick Melo. Prédio CPCA.
Im. 87- p. 102 Fotografia pinhole de Fernanda Franciane Rodrigues. Auto-retrato.
Im. 88 – p. 102 Fotografia pinhole de Marcelo Rodrigues da Rosa. Auto-retrato.
Im. 89 – p. 103 Fotografia de família registrada pela pesquisadora em campo. Acervo pessoal Fernanda
Rodrigues.
Im. 90 e 91 – p. 104 Paula Biazus. Saída de campo na parada 15.
Im. 92 – p. 106 Fotografia pinhole de Carla Paiva. Auto-retrato.
Im. 93 a 95 – p. 107 Paula Biazus. Gabriela fotografa.
Im. 96 e 97 – p. 108 Paula Biazus. Gabriela fotografa.
Im. 98 – p. 108 Fotografia pinhole de Gabriela Favalli.
Im. 99 e 100 – p. 109 Paula Biazus. Fernanda e Marcelo se fotografam.
Im. 101 – p. 109 Fotografia pinhole de Fernanda Franciane Rodrigues.
Im. 102 , 103 e 104 – p. 110 Paula Biazus. Wagner fotografa as crianças e a pesquisadora.
13
Im. 105 – p. 110 Fotografia pinhole de Wagner de Moraes.
Im. 106 – p. 111 Fotografia pinhole de Luciano Dias. Parada 15.
Im. 107 – p. 111 Fotografia pinhole de Priscila dos Santos. Parada 15.
Im. 108 – p. 111 Fotografia pinhole de Tatiana de Oliveira. Parada 15.
Im. 109 e 110 – p. 112 Paula Biazus. Jorge e Priscila se fotografam no pátio do CPCA.
Im. 111 – p. 112 Fotografia pinhole de Priscila dos Santos.
Im. 112 – p. 112 Fotografia pinhole de Luciano Dias. Pátio do CPCA.
Im. 113 – p. 112 Fotografia pinhole de Jackson Gon Chu. Pátio do CPCA.
Im. 114 – p. 112 Fotografia pinhole de Fernanda Franciane Rodrigues. Auto-retrato.
Im. 115 - p. 112 Fotografia pinhole de Wagner de Moraes.
Im. 116 – p. 113 Fotografia pinhole de Gabriela Favalli. Igreja Nossa Sra. Das Dores.
Im. 117 - p. 113 Fotografia pinhole de Marcelo Rodrigues da Rosa.
Im. 118 – p. 114 Fotografia pinhole de Marilene Lopes. Colegas de trabalho.
Im. 119 - p. 114 Fotografia pinhole de Carla Paiva.
Im. 120 – p. 114 Fotografia pinhole de Jeferson Patrick Melo. Monumento a Bento Gonçalves.
Im. 121 – p. 114 Fotografia pinhole de Tatiana de Oliveira. Auto-retrato no pátio de casa.
Im. 122 a 126 – p. 117 Paula Biazus. Montagem da exposição.
Im. 127 – p. 117 Fotografia pinhole de Fernanda Franciane Rodrigues.
Im. 128 a 132 – p. 118 Paula Biazus e Rafael Johann. Exposição Paróquia Santa Clara.
Im. 133 – p. 119 Fotografia de família registrada pela pesquisadora em campo. Acervo pessoal Fernanda
Rodrigues.
Im. 134 - p. 119 Fotografia de família registrada pela pesquisadora em campo. Pais da Fernanda,
provavelmente, no Parque Saint Hilaire. Acervo pessoal Fernanda Rodrigues.
Im. 135 – p. 120 Fotografia de família registrada pela pesquisadora em campo. Fotografia da família no
Centro de Porto Alegre. Acervo pessoal Fernanda Rodrigues.
Im. 136 – p. 123 Paula Biazus. Da porta de casa da Fernanda.
14
Im. 137 – p. 124 Fotografia pinhole de Marcelo Rodrigues da Rosa. Parque Saint Hilaire.
Im. 138 e 139 – p. 125 Fotografias pinhole de Fernanda Franciane Rodrigues. Parque da Redenção.
Im. 140 e 141 – p. 127 Fotografias pinhole de Fernanda Franciane Rodrigues. Em casa, Fernanda e as
irmãs.
Im. 142, 143 e 144 - p. 128 Paula Biazus. Retratos na CCMQ.
Im. 145 e 146 – p. 129 Paula Biazus. Fernanda fotografa na CCMQ.
Im. 147 – p. 129 Fotografia pinhole de Fernanda Franciane Rodrigues.
Im. 148 – p. 130 Paula Biazus. Marcelo fotografa na CCMQ.
Im. 149 e 150 – p. 130 Fotografia pinhole de Marcelo Rodrigues da Rosa.
Im. 151 – p. 130 Paula Biazus. Marcelo fotografa na CCMQ.
Im. 152, 153 e 154 – p. 131 Fotografias pinhole de Fernanda Franciane Rodrigues. No Parque Saint
Hilaire e o retrato do tênis na CCMQ em negativo e positivo.
Im. 155 – p. 132 Fotografia pinhole de Fernanda Franciane Rodrigues. Parque da Redenção.
Im. 156 a 159 – p. 133 Paula Biazus. Fotografia de família registrada pela pesquisadora em campo.
Acervo pessoal Fernanda Rodrigues.
Im. 160 – p. 133 Paula Biazus. Retratos.
Im. 161 a 166 – p. 134 Paula Biazus. Retratos.
Capítulo 5
Im. 167 - p. 137 Fotografia pinhole de Gabriela Favalli.
Im. 168 - p. 137 Fotografia pinhole de Luciano Dias.
Im. 169 – p. 140 Fotografia pinhole de Priscila dos Santos.
Im. 170 – p. 140 Fotografia pinhole de Jeferson Patrick Melo.
Im. 171 – p. 142 Fotografia pinhole de Carla Paiva.
Im. 172 – p. 142 Fotografia pinhole de Marcelo Rodrigues da Rosa.
Im. 173 – p. 143 Fotografia pinhole de Tatiana de Oliveira.
Im. 174 – p. 143 Fotografia pinhole de Nidiana Pohl.
Im. 175 – p. 146 Fotografia pinhole de Edgar Salla.
Im. 176 – p. 146 Fotografia pinhole de Fernanda Franciane Rodrigues.
15
Introdução
Apresento, nesta dissertação, um exercício etnográfico realizado na cidade de Porto
Alegre, a partir de duas oficinas de fotografia pinhole ministradas pelo grupo de fotógrafos Lata
Mágica
1
. Duas oficinas: a primeira realizada no Bairro Partenon nos meses de novembro e
dezembro de 2004 e a segunda no Bairro Lomba do Pinheiro nos meses de maio e junho de 2005
que, etnograficamente, são analisadas em duas questões centrais; a relação dos alunos com um
ato fotográfico não convencional e a relação dos alunos enquanto fotógrafos e habitantes de uma
paisagem urbana específica. Essas relações são pensadas e analisadas sob perspectivas teórica e
metodológica de uma Antropologia Urbana e Visual.
A técnica pinhole
2
consiste na utilização de câmeras sem lentes que, pelo princípio da
câmara escura, possibilitam a obtenção de imagens de uma maneira bastante simplificada. A
técnica, traduzida para o português como buraco de alfinete, permite que se construa, a partir de
qualquer recipiente vedado da entrada da luz, uma câmera fotográfica, regulando a passagem
dessa luz através de um pequeno orifício feito com uma agulha. A imagem exterior ao recipiente
1
O grupo de fotógrafos Lata Mágica é formado por mim, Paula Biazus, mestranda em Antropologia Social pela
UFRGS, pela jornalista Maísa Del Frari e pelos artistas plásticos, Rafael Johann e Guilherme Galarraga. O grupo
começou a realizar oficinas de fotografia pinhole em novembro de 1999, quando cursávamos Comunicação Social na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde trabalhei desde 1997 no Núcleo de Fotografia da Faculdade de
Biblioteconomia e Comunicação Fabico. Eu e Maísa concluímos o curso de Jornalismo, enquanto Rafael e
Guilherme deixaram o curso de Publicidade para ingressarem no Instituto de Artes da UFRGS.
2
Para o conhecimento das utilizações da fotografia pinhole ver: www.latamagica.art.br, www.pinholevisions.org,
www.pinholeresource.com
, www.eba.ufmg.br/cfalieri, www.pinhole.org, www.pinholeday.org, www.pinhole.com.
16
será projetada no seu interior de cabeça para baixo e invertida horizontalmente (direita
esquerda).
Im. 1
Esse é o princípio ótico fundamental de todas as câmeras fotográficas - a constatação
de um fenômeno natural que ocorre em espaços variados - baseado na linearidade das ondas
luminosas (conseqüência da sua capacidade de refletir quando atinge alguma barreira
“material”). Portanto, construir e fotografar utilizando
essa técnica são processos simples em
que não é necessário o domínio de nenhuma “máquina” extraordinária. No lugar de grandes
parafernálias tecnológicas e um infindável número de botões, somente uma lata de tinta com o
interior forrado de preto, um minúsculo furo em um de seus lados e uma fita isolante
funcionando como obturador. Isso em relação ao Grupo Lata Mágica, pois é possível construir
câmeras pinhole com caixas, latas de formatos variados, potes pretos de filmes fotográficos ou
qualquer recipiente que possa ser vedado à entrada da luz. Na prática, o funcionamento é
muito mais simples do que procurar descrever a técnica. Qualquer criança brinca e se diverte,
literalmente. Não é preciso saber fotografar com nenhuma outra câmera, pois a câmera escura
é o princípio de todas as fotografias.
O aprendizado de uma técnica fotográfica pouco convencional “provoca a sensação de
estranhamento ao cotidiano” (LANGDON, 1999, p. 25), já que os alunos experimentam
confeccionar artesanalmente seus próprios aparatos de registro de imagens e depois
acompanham o processo de revelação em um laboratório fotográfico. A linguagem fotográfica
deve ser considerada, aqui, como uma técnica para construção de olhares sobre a realidade do
cotidiano e da cidade, pois possui a capacidade de re-significar o ambiente fotografado. Ao
17
recriar um cenário, transpondo-o para as duas dimensões do registro fotográfico, pode
apresentar-se ao observador como uma nova visão sobre um espaço conhecido. A partir do
encontro etnográfico pesquisador-professor e alunos, ocorrido nas oficinas, é possível pensar a
relação dos participantes com o ato fotográfico enquanto uma “arte de fazer” (DE CERTEAU,
2004) - de construir uma imagem de forma mais artesanal - e a relação desses indivíduos como
habitantes do espaço urbano a partir dos espaços vividos enquanto tal. Como a experiência
urbana de indivíduos na cidade de Porto Alegre pode conformar seus olhares sobre o mundo e
refletir na imagem que será vista por outras pessoas, além do próprio fotógrafo que a
construiu.
As histórias reunidas no presente trabalho tratam, também, de transformações de olhares,
tanto dos alunos - que passaram pela experiência de fotografar utilizando uma simples lata de
tinta vazia - quanto da transformação do meu olhar para com essas oficinas, a partir do encontro
com os preceitos da Antropologia Social. Na verdade, são experiências de olhar a realidade sob
outros pontos de vista, a fotografia por um simples buraco de agulha e as oficinas sob um prisma
etnográfico. Essa pesquisa é resultado de uma trajetória de descoberta do exercício antropológico
e, como toda experiência que envolve a ação de descobrir, foram incluídas modificações ao longo
da sua realização como a ampliação da pesquisa de campo para a observação de duas oficinas ao
invés de apenas uma, conforme previsto inicialmente. A pesquisa deve ser vista como um
percurso em que as escolhas foram sendo feitas de acordo com as provocações que meu olhar
encontrava no objeto pesquisado, numa troca estabelecida a partir do encontro etnográfico.
A proposta é refletir sobre a natureza e qualidade do “encontro com o outro” como ponto
de partida fundamental para o exercício da Antropologia Social. Nesse caso, uma experiência é
partilhada no momento do ato fotográfico, marcado pela intersubjetividade dos participantes,
quando se estabelece uma ruptura com o fazer fotográfico convencional e a construção de um
novo olhar, mas que não deixa de ter presente os elementos constitutivos anteriores. Assim, os
itinerários urbanos dos personagens são fundamentais para a compreensão de suas relações com a
imagem que construíram e com o artefato fotografia enquanto um objeto de apropriações sociais.
Não esquecendo as trocas e a circulação de imagens e olhares entre alunos e professores e entre
os próprios alunos no decorrer das atividades envolvendo o ato fotográfico, evocando o trabalho
da memória e suas trajetórias na cidade de Porto Alegre, conformadas por visões de mundo e
estilos de vida diferenciados.
18
Essa pesquisa está inserida em um contexto mais amplo em relação aos estudos sobre a
memória coletiva dos habitantes de Porto Alegre através da inserção da pesquisadora no Banco
de Imagens e Efeitos Visuais
3
LAS - PPGAS ILEA UFRGS coordenado pelas professoras
Cornelia Eckert e Ana Luiza Cravalho da Rocha que desenvolveram o Projeto Integrado, no
âmbito do CNPq
4
, "Estudo Antropológico de Itinerários Urbanos, Memória Coletiva e Formas de
Sociabilidade no Meio Urbano Contemporâneo", onde trabalha-se a produção e pesquisa de
imagens que possibilitem o exercício etnográfico nas diversas camadas temporais que conformam
o meio urbano atual.
A partir dessa proposta teórico-metodológica, foram utilizadas diversas imagens, além da
escrita textual,para a restituição do fenômeno etnografado, procurando evocar os momentos
vividos em campo. As fotografias dos alunos, as fotografias produzidas pelos integrantes do
Grupo Lata Mágica, as fotografias da pesquisadora em campo e, também, um exercício de
etnografia sonora que tentou restituir as sonoridades que marcaram o tempo etnográfico de
compartilhar o ato fotográfico pinhole. Desejo ao leitor que as imagens, evocadas pelo
cruzamento dessas linguagens, permitam o mergulho nessa experiência de muitos olhares
reconstruída a partir de determinado ponto de vista.
Para a compreensão do leitor, explicito algumas convenções utilizadas na construção do texto:
* A fotografia realizada com câmeras que utilizam lentes foi denominada “fotografia
convencional”, ao contrário da técnica pinhole que provoca uma ruptura no sentido da imagem a
ser produzida e das expectativas geradas por esse ato fotográfico. Teoricamente, essa
contraposição é melhor analisada no primeiro capítulo dessa dissertação.
* Os espaços onde ocorreram as oficinas aparecem em diversos momentos sob as siglas
das Instituições que nos abrigaram para o desenvolvimento das atividades. Essa era a maneira que
usávamos para identificar os locais em diversos momentos, tanto entre o Grupo Lata Mágica
quanto com os alunos das oficinas. Assim, por diversas vezes, o Hospital Psiquiátrico São Pedro
aparece como HPSP e o Centro de Promoção da Criança e do Adolescente como CPCA.
* O capítulo etnográfico que trata sobre a oficina no Hospital Psiquiátrico São Pedro é
acompanhado de um cd com pequenas narrativas sonoras. Devem ser ouvidas de acordo com as
3
Inserido junto ao Laboratório de Antropologia Social – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social –
IFCH – UFRGS e sediado junto ao Instituto latino-americano de Estudos Avançados.
4
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
19
indicações do número da faixa, situada junto a determinadas imagens ao longo do texto. As
narrativas contêm informações que, na sua maioria, não são reproduzidas no texto, sendo
fundamental a escuta para melhor compreensão do fenômeno.
* As falas dos informantes e integrantes do Grupo Lata Mágica que aparecem em itálico
foram transpostas das gravações realizadas durante a etnografia no HPSP.
* Os nomes que aparecem aqui são os nomes verdadeiros dos meus informantes.
20
Capítulo 1
A técnica pinhole e o contexto de “nossa” cultura visual: fotografia e “visão de
mundo”.
Para compreender a significação das oficinas de fotografia pinhole na presente pesquisa é
preciso considerá-la dentro de um contexto mais amplo, o da linguagem fotográfica, que implica
nas muitas possibilidades de “escrita com a luz”. Assim, torna-se possível a avaliação das
oficinas de uma técnica fotográfica não-convencional como uma experiência capaz de
desencadear reflexões sobre o olhar e sua conformação social. É importante considerar as
reflexões mostradas aqui enquanto o amadurecimento de uma discussão sobre a linguagem
fotográfica, iniciada juntamente com a minha trajetória pessoal no universo fotográfico. É,
também, conseqüência da pesquisa em torno da linguagem fotográfica pinhole propiciada pelo
trabalho do Grupo Lata Mágica e do meu encontro posterior com a teoria Antropológica,
buscando compreender as implicações sociais na construção de uma linguagem, seja escrita ou,
como nesse caso, figurativa.
21
A reflexão sobre a fotografia como um sistema de representação implica em encará-la
como “fato da cultura” (MACHADO, 1984) pois ela traz, em seus elementos constitutivos, a
história do desenvolvimento burguês, refletindo a “visão de mundo”
5
(GEERTZ, 1989) daqueles
que a instituíram como forma representativa. Segundo Clifford Geertz, “a participação no sistema
particular que chamamos de arte se torna possível através da participação no sistema geral de
formas simbólicas que chamamos de cultura, pois o primeiro sistema nada mais é que um setor
do segundo” (1999, p. 165).
A discussão traçada não tem como intenção discutir sobre a validade da linguagem
fotográfica como forma de expressão artística e, sim, como meio de expressão de uma cultura
sobre o mundo dos objetos, não esquecendo que os fatos sociais levam ao “desenvolvimento de
faculdades e hábitos visuais característicos” (BAXANDALL, 1991, p. 9). A fotografia possui a
trajetória de um estilo figurativo que se tornou predominante na cultura ocidental como meio de
expressão de indivíduos que não precisam ser, necessariamente, artistas e podem estar
interessados apenas em registrar tempos e espaços significativos da sua vida social. Concebendo
esse instrumento de representação, a fotografia, como a “materialização de uma forma de viver”,
segundo a definição de Clifford Geertz (1999, p. 150) para a obra de arte, trazendo “um modelo
específico de pensar para o mundo dos objetos, tornando-o visível”.
O surgimento da técnica fotográfica ocorreu em consonância com o momento em que a
cultura ocidental “civilizada” afirmava sua “visão de mundo” sob uma ótica cartesiana e
estabelecia um profundo dualismo entre o pensamento figurativo e o pensamento abstrato. Mas
essa separação entre figuração e abstração é, no mínimo, problematizada por alguns autores que
procuram por seus entrelaçamentos possíveis. Segundo Gilbert Durand (1988), o pensamento
simbólico é constituído pela ordem das imagens e pelo pensamento conceitual, configurando
“interseções que se solidarizam gerando a unidade do pensamento e das expressões simbólicas”
(p. 142).
Em seus primórdios a fotografia foi vista como uma solução, ao que Gilbert Durand
(1988) alerta serem as ambições atribuídas às artes e à consciência, a partir do século XIII, de não
5
“Se é verdade que os critérios de ‘imitação do mundo’ visível pelos signos figurativos são decorrência da história
do grupo social que os pratica e se é verdade que cada grupo representa o que e o que representa a partir de
certos pressupostos gnosiológicos que conformam o seu modo particular de se impor na sociedade, então o exame
detalhado do código da fotografia e de seus sucedâneos deverá revelar esperamos a estratégia operacional da
burguesia ascendente que o inventou” (MACHADO, 1984, p. 27).
22
mais reconduzir a um sentido mas de “copiar a natureza”
6
(DURAND, 1988, p. 32). Assim, a
linguagem fotográfica foi, muitas vezes, explorada pela sua capacidade de “duplicar o real” e não
por sua capacidade de escrita, que é interpretativa do mundo aparente sob um ponto de vista
construído pelo fotógrafo. Escrever por imagens figuradas não é o mesmo que escrever a partir de
um alfabeto gráfico e deve ser trabalhado nas especificidades de sua própria linguagem, numa
relação diferenciada com o imaginário e a superfície sensível das formas.
As diferentes linguagens configuram formas distintas de representação que fazem usos de
suas especificidades para relacionar o homem às suas experiências e sensações no mundo. A
imagem técnica, realizada através de aparelhos como a câmera fotográfica, sempre carregará
consigo um valor figurativo que remete a um “duplo do real”, podendo facilmente ser
considerada como uma “cópia da realidade”. O comportamento figurativo deriva da mesma
aptidão do homem para refletir a realidade sob a forma de símbolos verbais, gestuais ou
materializados em figuras” (LEROI-GOURHAN, 1965, p. 177).
1.1 O início da técnica fotográfica e a conformação da sua linguagem
Im. 2
6
“Constatou-se que os grandes sistemas de imagens (welbild), de ‘representação do mundo’, se sucedem de maneira
distinta no decorrer da evolução das civilizações humanas (DURAND, 1988, p. 78). Sobre os modelos de
representação que, de maneira arqueológica, vão se sobrepondo e decorrendo uns aos outros ver: FOUCAULT,
Michel. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
23
A perspectiva central e unilocular
7
, criada a partir da ideologia do Renascimento, é a mesma
perspectiva utilizada pela câmera escura e, conseqüentemente, pelas meras fotográficas atuais.
É “decorrência de uma concepção de espaço e de certos deslocamentos gnosiológicos que se
processavam na época”, buscando mais que uma analogia, ou seja, uma homologia que
corresponderia a uma identidade perfeita entre o signo e o seu referente (MACHADO, 1984, p.
27 e 66). A câmera escura
8
e sua perspectiva renascentista serviram para auxiliar a pintura, além
de ser o princípio ótico fundamental que possibilitaria, mais adiante, o registro fotográfico. O
despertar dessa nova utilização da passagem da luz solar por um pequeno orifício partiu das
pesquisas em torno da fotossensibilidade de alguns sais de prata, no início do século XIX, mas
somente em 19 de agosto de 1839, em Paris, o procedimento fotográfico foi apresentado numa
sessão da Academia de Ciências. Surgiram os primeiros daguerreótipos, imagens fotográficas
positivas, gravadas em placas de metal, cuja ausência de negativo não permitia reproduções.
Cada exemplar era único, guardado em estojos de couro como jóias preciosas, perpetuando o
modelo renascentista de codificação da informação visual.
Deve-se considerar que o desenvolvimento da fotografia ocorreu no mesmo período em
que, a partir de 1750, a burguesia se afirmou como classe dominante em uma estrutura social até
então comandada pela aristocracia. Nesse contexto, viu-se o surgimento de uma técnica
fotográfica decorrente desse processo social, pois “os meios que cada grupo social elege para
exprimir as relações em que está mergulhado são como essas próprias relações, derivações da
história desse grupo” (MACHADO, 1984, p. 17). A trajetória da técnica fotográfica transcorreu
rapidamente a partir dos primeiros daguerreótipos e o trabalho artesanal do fotógrafo em realizar
uma fotografia única, utilizando grandes câmeras onde não havia negativo para reproduções, com
ele próprio realizando o processamento no laboratório fotográfico até o atual fotógrafo amador na
busca de seus instantâneos em que é preciso apertar um botão. Essa modificação no ato de
produzir/consumir fotografias corresponderia ao crescimento de uma cultura objetiva e de um
7
De acordo com Arlindo Machado (1984), esse sistema procurava obter uma “sugestão ilusionista de profundidade
com base nas leis ‘objetivas’ do espaço formuladas pela geometria euclidiana” (p.63). “Para que a pesrpectiva
central e unilocular do Renascimento pudesse aparecer como a representação ‘natural’ do mundo, vários aspectos da
percepção tiveram de ser censurados. [...] Isso quer dizer que a visão da perspectiva renascentista é a visão do
Cíclope muito mais do que a do homem. Nós vemos o mundo com dois olhos e com dois olhos em movimento, razão
por que o nosso campo visual toma a forma de uma esferóide e não de um plano” (p. 67).
8
A Câmera Escura consiste na utilização de um princípio físico, onde a passagem dos feixes luminosos por um
pequeno orifício projeta, em um ambiente escuro, a imagem do exterior invertida horizontalmente e verticalmente na
parede oposta à abertura.
24
olhar moderno, pois “quanto mais objetivo e impessoal for um objeto, tanto mais adequado ele
será para mais pessoas” (DODD, 1997, p. 102).
A produção artesanal das pinturas cedeu lugar a uma técnica mais impessoal,
argumentaram alguns artistas do século XIX, como Charles Baudelaire
9
, que acompanhavam o
surgimento das imagens fotográficas, encarando-as como simples reprodução mecânica da
realidade. Assim, a arte estaria liberta de representar o mundo fielmente, em uma concepção que
negava o caráter interpretativo da fotografia, desconsiderando a interferência do aparato ótico,
que organiza os raios luminosos refratando-os através da mudança de meio, na passagem pela
objetiva, refletindo-os na superfície fotossensível. Há, nas câmeras fotográficas, uma força muito
mais formadora do que reprodutora da realidade pois são aparelhos que constroem “suas próprias
configurações simbólicas, de outra forma bem diferenciada dos objetos e seres que povoam o
mundo; mais exatamente, elas fabricam ‘simulacros’, figuras autônomas que significam as coisas
mais que as reproduzem” (MACHADO, 1984, p. 11).
O retrato fotográfico ilustrava a maneira pela qual a burguesia em ascensão por um lado
“imitava” a aristocracia, ao desejar reproduzir sua imagem e, por outro, “funcionava como
formadora do gosto da sociedade” (CAMPBELL, 2001, p. 53), pois saía de “moda” a pintura e
entrava a fotografia como forma de perpetuação da imagem dos membros da família,
possibilitando o desenvolvimento de um novo produto. Já a pintura não satisfazia algumas
necessidades culturais da época como a democratização do acesso ao retrato para a ascendente
classe média, ultrapassando os limites da aristocracia decadente. Da antiga burguesia à atual
classe média, o “retrato fotográfico corresponde a um estado particular da evolução social”,
segundo Gisèle Freund, no livro La Fotografía como Documento Social (1993, p. 15), “na sua
origem e evolução, todas as formas de arte revelam um processo idêntico ao desenvolvimento
interno das formas sociais”.
Existem algumas relações com o retrato fotográfico que são comuns entre a época de hoje
e a da invenção da técnica fotográfica. O retrato ainda é utilizado como uma forma de afirmação
da personalidade aliada ao testemunho referente a uma certa vivência: eu estive lá. Corresponde,
também, para Gisèle Freund (1993), a uma necessidade urgente do homem em dar uma expressão
à sua individualidade. Segundo Boris Kossoy (1980), o retrato fotográfico, na origem do seu
9
Sobre o assunto, ver BENJAMIN, Walter. “A Pequena História da Fotografia”. In: KOTHE, Flávio R. (Org.).
Sociologia. São Paulo: Ática, 1991.
25
desenvolvimento, tornou-se uma necessidade pois o homem o encarava como uma possibilidade
de perpetuação da própria imagem. Consumir fotografias está também ligado a padrões de
diferenciação social, envolvendo a escolha de determinados bens como parte visível da cultura
humana. Deve, portanto, ser tomado como uma atividade ritual em que categorias sociais estão
sendo continuamente redefinidas. Nada é mais regrado e mais convencional, para Pierre Bourdieu
(1965, p. 24 e 25), do que as fotografias dos amadores que seguem uma estética social na
produção de imagens de festas de família e de lembranças de férias. Segundo o autor, as normas
que organizam a temporada fotográfica” do mundo - a oposição entre o “fotografável” e o “não-
fotografável” - são indissociáveis do sistema de valores implícitos, próprios a uma classe ou
profissão.
Ao mesmo tempo em que aumentava a quantidade de imagens circulando e o próprio
acesso a elas, a figura do fotógrafo amador ampliava a inclusão dos retratados no circuito da
produção de imagem. As considerações de Georg Simmel (1976) sobre a vida moderna enfatizam
a fragmentação da cultura subjetiva e a objetivação da cultura, podendo ser apropriadas numa
análise da maneira de se utilizar a linguagem fotográfica como um processo em que o fotógrafo
amador controla o momento de apertar o botão. A compreensão sobre como a imagem se
forma no interior da câmera e como essa mesma imagem se revela aos nossos olhos, em cópias,
fica com os especialistas, os técnicos em fotografia dos laboratórios automatizados. A técnica
fotográfica deixa de ser um instrumento de construção de imagens do mundo visível para ter um
fim em si mesma, através do acúmulo de álbuns fotográficos nas estantes, como coleções de
festas e lugares visitados
10
. O slogan da Kodak - que em 1888 lançou sua câmera utilizando filme
em rolo - transmitia o caráter industrial da fotografia que entraria em vigor. Não era necessário
ter conhecimentos de química para realizar a revelação do negativo ou acesso a um laboratório
fotográfico: You press the button, we do the rest”. O fotógrafo amador colaborou para a
transformação da fotografia em algo que estava na sua origem, pela possibilidade de
reprodução em diversas cópias, objeto de consumo de massa.
1.2 A ruptura provocada pela técnica pinhole na conformação do olhar
10
Na modernidade, “o objeto pode sair de sua posição mediadora”, ganhando uma autonomia própria e rompendo
com o processo cultural, tal como G. Simmel o compreende. Ele não é mais um meio, ele é o próprio fim da corrente
(sujeito-objeto, objeto-sujeito) e com isso o processo cultural fica bloqueado (WAIZBORT, 2000, p. 125).
26
Pensando nesse contexto de desenvolvimento da técnica fotográfica, a oficina de
fotografia pinhole provoca, nos termos de Marshall McLuhan (1957), uma ruptura nos padrões
culturais e nas formas de aprendizado, pois serve para a desconstrução de um olhar fotográfico
originado a partir de uma determinada sociedade moderna, industrial e capitalista (um olhar
iluminista, perspectivado e racional). As mudanças na cultura material, em relação ao que é uma
câmera fotográfica, envolvem a conformação de hábitos mentais diferentes aos previamente
estabelecidos pelos alunos.
A técnica pinhole carrega elementos próprios, decorrentes da linguagem utilizada. Ao ser
feita com uma lata, ela distorce a imagem conforme a curvatura do recipiente. A ausência de
lentes causa um efeito grande-angular, que se traduz no destaque dado ao primeiro plano da
imagem, assim como o tempo de exposição para se obter uma fotografia aumenta
significativamente. A pinhole produz imagens que podem traduzir “a função da fotografia como
forma de exercício do olhar: em posição excêntrica, a perspectiva age explicitamente como
instrumento de deformação e a posição do olho/sujeito se denuncia como agente instaurador de
toda ordem” (MACHADO, 1984, p. 112). As características desse tipo de fotografia denunciam a
seu espectador a “artificialidade” do aparato fotográfico ao tentar reproduzir fielmente a visão do
olho humano. A técnica pinhole traz esse estranhamento visual como elemento constitutivo de
suas imagens.
Na história da comunicação humana, toda mudança nos meios externos de comunicação
levou a formação de choques de transformação social
11
. Fotografar através da técnica pinhole
implica em determinados hábitos mentais diferentes dos envolvidos com a fotografia
convencional, principalmente no que diz respeito às expectativas em torno da imagem a ser
produzida. A pinhole revela-se sempre como uma surpresa no momento do seu surgimento dentro
do laboratório fotográfico: o enquadramento apresenta ângulos inusitados, pela ausência de visor
na câmera e, às vezes, o tempo de exposição não é adequado para determinada situação luminosa,
sendo assim um exercício de paciência. Ao contrário de uma câmera digital, que o resultado pode
ser visto imediatamente, na fotografia pinhole existe um tempo maior de construção da imagem.
11
Em Sight, Sound and Fury”, Marshall McLuhan (1957) analisa a transformação cultural em decorrência das
novas tecnologias da comunicação: a passagem da cultura escrita, mais precisamente da cultura do livro, para uma
cultura da mídia ou audiovisual. Este processo também é comparável à passagem anterior da tradição oral para o
livro impresso conformando uma ruptura nas formas de aprendizado.
27
A técnica pinhole apresenta imagens “fantasmagóricas” devido aos longos tempos de
exposição e deformações - tanto pela ausência de lentes como pela curvatura das câmeras
construídas com latas redondas - que parecem lembrar ao leitor que aquilo é uma re-apresentação
do mundo, transposta para o papel através do uso de uma linguagem específica. Essa fotografia
acentua o potencial do aparelho fotográfico como construtor de realidades, de acordo com a
maneira como organiza os dados luminosos na passagem pelo buraco de agulha e, também, pelo
recorte dado por seu autor. Um aspecto dessa linguagem é não ter como disfarçá-la sob a pretensa
apreensão especular da realidade, pois as deformações características da imagem alertam o seu
espectador. A “grande ironia”, não percebida pela maioria dos consumidores da fotografia
amadora, é o quanto se interfere na construção ótica do aparato para reconstruir uma noção de
realidade sem alterações. Quanto maior o jogo de lentes no interior da objetiva, corrigindo uma as
distorções das outras, maior a impressão do real. A proposta das oficinas de fotografia pinhole é
justamente romper com a “tradiçãofotográfica de apreensão da realidade, imposta antes mesmo
do seu surgimento com a utilização da câmera escura pelos pintores renascentistas.
A fotografia, hoje, desempenha um papel uniformizador, com seus rituais pré-estabelecidos
dos eventos que devem ser fotografados. A fotografia pinhole pode agir como uma forma de
subjetivar essa cultura fotográfica. Subjetivar
12
a imagem, reintegrando o ato fotográfico como
mediador da relação do sujeito com o mundo, afirmando a sua capacidade construtora de imagens
e seu potencial interpretativo de realidades. Na pinhole, as imagens não obedecem a uma estética
de previsibilidade do enquadramento e, conseqüentemente, acaba não produzindo as fotografias
que se repetem nos álbuns de família. Pode-se encontrar nesse ato fotográfico uma relação
diferente com a imagem. O fotógrafo não é aquele que simplesmente coloca a câmera na altura
dos olhos e aperta o botão. Ele pensa a imagem a ser fotografada com todo cuidado porque a
câmera não precisa estar sempre limitada às imagens obtidas do ponto de vista “tradicional”: o
fotógrafo em pé, apoiado, com a câmera no rosto ou controlando a cena pelo visor das digitais.
Aliás, a câmera precisa de um apoio para que não balance durante a obtenção da imagem, não
12
A Tragédia da Cultura”, para G. Simmel (WAIZBORT, 2000, p. 128), ocorre a partir do momento em que os
objetos seguem suas lógicas próprias, independentes do processo que os criou (como espírito subjetivado) e
independentes do fim que lhes é atribuído (meios dos sujeitos), estagnando o processo cultural. À medida que esses
objetos são reincorporados pelos indivíduos na circularidade entre sujeito e objeto, eles passam a ser re-subjetivados
(os objetos), permanecendo como instrumento para o enriquecimento da subjetividade dos sujeitos.
28
sendo possível permanecer segurando a lata porque a imagem sairia tremida conforme o ritmo de
nossa respiração.
Um outro tempo de produção da imagem também está relacionado ao fato das câmeras
pinhole, no caso das oficinas do Grupo Lata Mágica, serem construídas pelos próprios alunos,
permitindo, nos termos de A. Leroi-Gourhan (1965), um diálogo entre o fabricante e a matéria.
Os alunos transformam um objeto do cotidiano, uma lata de tinta, em uma câmera capaz de
produzir imagens fotográficas, pois no sistema da câmara escura fazem-se máquinas usando
coisas que já são outra coisa, que trazem a sua própria semântica” (DIETRICH, 1998).
As técnicas de fabrico” ocorrem no “interior de um ambiente rítmico” conformado pela
“repetição de gestos” (LEROI-GOURHAN, 1965). Nas oficinas de pinhole podemos distinguir
dois ambientes rítmicos produtores de formas: o momento de construção da câmera e o momento
de construção da imagem, o próprio ato fotográfico, ambos com seus gestos específicos. O
resultado depende diretamente da forma da câmera utilizada e essa forma modifica o gesto em
fotografar. Cada câmera fotográfica de formato diferente inclui um gestual específico para a
construção das imagens: uma câmera que utiliza negativos 6x6cm - aquela com duas lentes que
aparece nos filmes antigos - produz uma imagem quadrada e não é levada ao olho na hora de
fotografar. Já a câmera 35mm, a mais comumente utilizada, é levada ao olho para a construção da
imagem como se essa fosse uma extensão do olhar do fotógrafo. O “trajeto de cada forma”
resulta da “qualidade estética do encontro entre função e forma” (LEROI-GOURHAN, 1965), o
resultado fotográfico da câmera pinhole traduz o encontro entre uma lata de tinta e a função
fotográfica. A fabricação da imagem segue na decorrência do ato fotográfico, nos seus gestos
constitutivos para a fabricação de um enquadramento. Para François Soulages (1998) o fotógrafo
é “um homo faber”. “Nós não tiramos uma foto, nós a fazemos”. A fotografia utilizando câmeras
escuras constitui-se como um processo de invenção de olhares técnicos, de construção e
reconstrução de modelos de percepção” (DIETRICH, 1998).
A constituição do olhar do fotógrafo é culturalmente determinada, pois depende do quê
sua cultura permite ver no destaque a certos elementos sensíveis em detrimento de outros. É
possível pensar em uma relação entre indivíduos figurantes e a matéria figurada” (LEROI-
GOURHAN, 1965, p. 178), ou seja, entre o fotógrafo e seu referente fotográfico, aqueles
elementos escolhidos por ele para a composição do quadro fotográfico. Assim, aspectos
29
subjetivos e culturais que conformam “visões de mundo” e “estilos de vida” (GEERTZ, 1989)
acabam refletindo nas imagens fotográficas construídas.
A escolha dos elementos a serem fotografados narra sobre o local onde está ocorrendo a
oficina de fotografia pinhole, inserido em um contexto urbano, bem como sobre a forma como os
participantes se apropriam desse espaço. Ao propor uma nova relação com o espaço a partir de
imagens pensadas, torna-se necessário conhecer melhor essa mediação simbólica através da qual
espaço e tempo participam da estruturação da experiência social, refletindo sobre a força
narrativa dessa imagem como interpretação do aparente. Assim, os participantes da oficina
podem tornar-se narradores de situações e contextos cotidianos, com um tempo de escrita
específico a partir dos longos tempos de exposição, usando a fotografia como uma “conceituação
narrativa”.
A fotografia pinhole expressa determinada construção de sentido para uma estética do
urbano que não é aquela comumente esperada. Na fotografia convencional essa construção é
ligada a uma “noção convencional de espaço e objetividade”, a um “sistema de construção do
espaço particularmente familiar” (SOULAGES, 1998). a técnica pinhole re-significa lugares
ao distorcer as imagens pré-concebidas por seus habitantes e isolá-las do contexto em que estão
inseridas na cidade. Uma nova perspectiva, de olhar lugares e situações na cidade, se estabelece
na troca simbólica entre as imagens e o espaço. A fotografia lida com duas categorias básicas
para a compreensão do ser humano como alguém dotado de consciência: o tempo e o espaço,
sendo por esse mesmo motivo capaz de interpretar sobre o mundo. Trata-se da apropriação do
local fotografado, memória pensada a partir do tempo ou do espaço transformados pela escrita
fotográfica. A cidade como expressão de um imaginário humano capaz de traduzir uma
multiplicidade de encontros de tempos e de espaços.
A partir das rupturas possíveis entre fotografia convencional e a técnica pinhole é que se
torna possível pensar em analisar a relação entre os alunos, a técnica fotográfica e os elementos
escolhidos por eles para fotografar. Para Pierre Bourdieu (1965), a prática fotográfica e a
significação da imagem fotográfica dão matéria à sociologia. Pois, a reflexão weberiana acredita
que o valor de um objeto de pesquisa depende dos interesses do pesquisador, (BOURDIEU et al.,
1965, p. 17).
30
Capítulo 2
A trajetória da pesquisa e considerações metodológicas
Neste capítulo, descrevo o processo e o contexto envolvidos em minha aproximação com o
universo da presente pesquisa em que analiso duas oficinas de fotografia pinhole ministradas pelo
Grupo de Fotógrafos Lata Mágica. Minha participação como professora, desde a formação desse
Grupo, é fundamental para a compreensão da construção do objeto de pesquisa que, agora,
observo e analiso no papel de mestranda em Antropologia Social. As oficinas analisadas integram
um projeto que ainda se encontra em execução, sendo apresentado e considerado nas relações
construídas com as escolhas metodológicas realizadas ao longo da pesquisa.
Algumas questões sobre minha trajetória profissional e acadêmica são importantes, pois é
possível dimensionar minha relação com a linguagem fotográfica convencional e, posteriormente,
com a fotografia pinhole, possibilitando meu encontro, enquanto professora, com os alunos dessa
técnica que acabou me conduzindo ao Mestrado em Antropologia Social na Universidade Federal
do Rio Grande do Sul no ano de 2004. Ao realizar oficinas de fotografia pinhole, juntamente com
as demandas antropológicas sobre o fenômeno do viver na cidade, transformei minha relação
com a cidade de Porto Alegre e os lugares que conheci contribuíram para reflexões que, aqui, se
relacionam com as formas de habitar e olhar a paisagem urbana.
31
A contextualização da pesquisa conduz a uma reflexão sobre a trajetória do Grupo de
fotógrafos Lata Mágica e como essa caminhada conformou uma maneira própria de ensinar uma
linguagem fotográfica particular, influenciando nas escolhas metodológicas realizadas de acordo
com meu posicionamento em campo, como professora e como etnógrafa. Duas experiências com
o ensino da fotografia pinhole na cidade de Porto Alegre, mas que envolvem, sem dúvidas,
minhas experiências anteriores como integrante do Grupo Lata Mágica. As histórias reunidas
durante o desenrolar do trabalho de campo são representativas de tantas outras que me
emocionaram e surpreenderam - agora vistas sob a perspectiva do encontro etnográfico - não
disfarçando o esforço teórico-metodológico para “estranhar o familiar” (DA MATTA, 1978;
VELHO, 1978) nesse objeto de pesquisa tão próximo e caro ao próprio pesquisador.
Segundo Roberto da Matta (1978, p. 30), a subjetividade e a carga afetiva que a acompanha
estão sempre presentes dentro da prática intelectualizada em que consiste a pesquisa
antropológica e, como tal, deve ser considerada um dado sistemático, gerando uma postura
reflexiva sobre esse aspecto do fenômeno estudado. Gilberto Velho (1978) reforça essa
particularidade envolvida no trabalho de campo ao afirmar que, para existir a possibilidade de se
“estranhar o familiar”, devemos ser capazes de “confrontar intelectualmente, e mesmo
emocionalmente, diferentes versões e interpretações existentes a respeito de fatos e situações” (p.
45).
A surpresa dos alunos nas oficinas, ao revelarem suas primeiras fotografias no laboratório
denuncia: “Nossa! A Lata faz Foto!”. Quantas vezes ouvi essa mesma frase ao me perguntar o
quê significava para esses alunos a experiência de descobrir a possibilidade de construir imagens
a partir de câmeras que não são máquinas, ou seja, não são fabricadas pela indústria fotográfica e
nem ao menos possuem lentes. Meus questionamentos a respeito da relação dos alunos com a
fotografia pinhole, suas surpresas e expectativas sobre a imagem a ser produzida, acabaram
proporcionando a construção da presente pesquisa. Acreditava que uma experiência com grande
capacidade de transformar olhares - na medida em que o resultado produzido rompe com a
“ilusão especular”
13
(MACHADO, 1984) da imagem fotográfica convencional, provocando
13
A fotografia pinhole acentua o potencial do aparelho fotográfico como construtor de realidades, de acordo com a
maneira que organiza os dados luminosos na passagem pelo buraco de agulha. Um aspecto dessa linguagem é não ter
como disfarçá-la sob a “pretensa apreensão especular da realidade”, pois as deformações características da imagem
alertam o seu espectador. A proposta das oficinas de fotografia pinhole é justamente romper com a tradição
fotográfica de apreensão da realidade imposta antes mesmo do seu surgimento, com a utilização da câmara escura
pelos pintores renascentistas.
32
questionamentos nos alunos enquanto possíveis fotógrafos das formas sensíveis do mundo -
poderia se transformar em objeto de pesquisa elaborado a partir de preceitos de uma
Antropologia Visual. Além disso, há uma preocupação em analisar o encontro etnográfico a partir
dos lugares que eu ocupo na cidade, como me desloco e me encontro com os alunos das oficinas
de fotografia pinhole, a partir de conceitos próprios à Antropologia Urbana.
Meu envolvimento com o campo de conhecimento da Antropologia Social está diretamente
ligado à pesquisa com o uso de recursos audiovisuais e o fazer etnográfico na cidade, trabalhando
com sociedades consideradas complexas. Como bolsista de apoio técnico do CNPq (2002-2005),
fiz parte do projeto integrado de pesquisa “Estudo antropológico de itinerários urbanos, memória
coletiva e formas de sociabilidade no mundo urbano contemporâneo”
14
, participando, ainda hoje,
como pesquisadora associada ao BIEV (Banco de Imagens e Efeitos Visuais, Laboratório de
Antropologia Social, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social IFCH/UFRGS
15
). O
trabalho em questão desenvolve-se a partir da utilização de coleções etnográficas e apropriação
de imagens (fotográficas, sonoras, textuais e em vídeo) como documentos sobre a cidade de Porto
Alegre. A reunião e catalogação dessas coleções etnográficas em um banco de dados - que utiliza
categorias e palavras-chaves estabelecidas a partir de conceitos antropológicos - permite acessar
construções narrativas sobre a memória coletiva que se estabelece nas camadas temporais da
cidade, construídas pelas trajetórias de seus habitantes. Atualmente, coordeno o Comitê de
Estudos em Coleções Etnográficas em Fotografia no âmbito do BIEV, que discute a produção de
etnografias que se utilizam da linguagem fotográfica como uma forma de escrita particular.
Além do encontro etnográfico apresentado ser representativo da trajetória de um Grupo de
fotógrafos, na busca de uma maneira de ensinar e se relacionar com os alunos que tiveram ao
longo de sua existência, outras questões impulsionaram minhas indagações sobre as implicações
desse fazer fotográfico em uma grande cidade como Porto Alegre. A democratização da
fotografia, o acesso à imagem, a desmistificação do processo fotográfico são questionamentos
que pedem por um posicionamento desde a primeira oficina que realizei até hoje. Mesmo que
fosse difícil imaginar que alguns procedimentos e interrogações, da primeira experiência de
14
Projeto Integrado de Pesquisa CNPq: "Estudo Antropológico de Itinerários Urbanos, Memória Coletiva e Formas
de Sociabilidade no Meio Urbano Contemporâneo". Coordenação: Cornelia Eckert. Pesquisadoras: Cornelia Eckert e
Ana Luiza Carvalho da Rocha.
15
Coordenado por Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert e sediado no ILEA (Instituto Latino-americano
de Estudos Avançados).
33
oficina, se tornariam rotina na continuidade dos trabalhos com o ensino de uma técnica
diferenciada de se obter fotografias. Aliás, não seria possível imaginar que esse trabalho teria
alguma continuidade para além de uma disciplina isolada da Faculdade de Jornalismo, que cursei
entre 1995 e 2000. Não poderia dizer naquela época que conheceria bairros e vilas da cidade de
Porto Alegre justamente por ensinar fotografia e, principalmente, que conheceria os moradores
desses lugares e outros habitantes da cidade que não teria sequer sonhado em conhecer de outra
maneira.
2.1 O percurso de um Grupo
A disciplina de Jornalismo Comunitário previa a elaboração de um projeto de comunicação
relacionado a alguma comunidade específica. O ano era 1999, eu trabalhava no laboratório
fotográfico da Faculdade como monitora, desde 1997 e estava cada vez mais envolvida com a
produção e a discussão sobre a linguagem fotográfica, sendo que a idéia de realizar uma oficina
de fotografia pinhole para as crianças da Vila Planetário
16
parecia uma boa opção como um
“projeto de comunicação”. Na verdade, a pessoa que sabia construir câmeras a partir de latas era
um colega de Faculdade, Guilherme Galarraga, que havia aprendido a técnica com um alemão,
Jochen Dietrich
17
, que desenvolvia seu Doutorado em Educação trabalhando com esse tipo de
oficina e realizava uma parte de seu trabalho de campo em Porto Alegre. Como o grupo com
quem eu deveria montar o projeto para a disciplina da Faculdade não era formado por fotógrafos,
convidei alguns colegas que fotografavam para ajudarem, visto que a oficina se realizaria durante
um sábado pela manhã. Entre essas pessoas estava Maísa Del Frari, minha colega desde o início
16
Como é conhecido o Residencial Jardim Planetário que essituado ao lado do prédio da FABICO, Faculdade de
Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS. Era um antigo amontoado de barracos instalados provisoriamente no
local e que depois se tornou um conjunto habitacional para os mesmos moradores, ou seja, população de baixa renda.
Eu havia realizado um trabalho para disciplina de Radiojornalismo sobre a história e a transformação da Vila
Planetário: a instalação dos barracos, a luta dos moradores pela regulamentação do espaço e a construção do
conjunto de sobrados que hoje constitui o Residencial Jardim Planetário.
17
Infelizmente, a Tese de Doutorado de Jochen Dietrich não estraduzida para o português, impossibilitando o uso
da bibliografia em alemão. Para conhecer seu trabalho: http://www.galerie-gerhard.com/dietrich_biogr.htm,
http://jochendietrich.kulturserver-nrw.de. Bibliografia: Dietrich, Jochen, Helmut M. Hochwald und Thomas Kellner
(Hrg.): Zwischenzeit -Camera obscura im Dialog. Stuttgart, Lindemanns Verlag 1993.
Vom Ansehen der Dinge. Die Camera Obscura als Mittel und Medium in der Lerntätigkeit. Oberhausen, Athena-
Verlag 2001.
34
do curso de Jornalismo e também monitora no Núcleo de Fotografia
18
da FABICO, com quem
tinha realizado diversos trabalhos, inclusive algumas exposições fotográficas
19
.
Acredito que nenhum de nós imaginou a continuidade desse trabalho, mas o sucesso com a
criançada, durante aquela manhã de novembro, foi uma experiência gratificante: perceber a
emoção dos alunos ao entrarem no laboratório e verem a imagem obtida por uma simples lata ser
revelada. Depois da oficina, colamos as cópias fotográficas que resultaram da atividade em
cartolinas pretas, com os nomes dos participantes, e levamos para expor na creche da
comunidade, local que havíamos utilizado para a montagem do laboratório. Por existirem poucas
janelas, facilitando a vedação à entrada da luz, e possuir água corrente - que é um dos itens
básicos para o funcionamento de um laboratório fotográfico - improvisamos o banheiro da creche
como espaço para o processamento dos negativos. Esse procedimento passaria a ser normal para
o Grupo ao transformar espaços improvisados em laboratórios fotográficos, desde pequenos
banheiros até grandes salas envidraçadas, exigindo muita lona preta e, certa vez, até a sala de uma
moradora da Vila Amazonas foi forrada completamente com esse material, incluindo as paredes e
o chão.
Após essa primeira experiência em que várias pessoas participaram, colegas de curso e do
Núcleo de Fotografia, um outro grupo de colegas convidou a mim, Guilherme e Maisa para
realizarmos uma oficina que serviria de “intriga narrativa”
20
(RICOEUR, 1994) para um
documentário da disciplina de Linguagem de Vídeo. E assim, sucessivamente, os convites foram
aparecendo para a realização de outras oficinas, como no Encontro Nacional dos Estudantes de
Comunicação, realizado em São Leopoldo no ano de 2000, a primeira atividade voltada para o
público adulto pois até então trabalhávamos principalmente com crianças. Afinal de contas,
éramos o Grupo Lata Mágica, nome dado por um aluno que perguntou se a lata fazia fotos e,
diante da resposta positiva, afirmou: “Ah, então a Lata é Mágica!”.
18
www.ufrgs.br/fotografia
19
Entre as exposições realizadas, destacam-se aquelas que fizeram parte do projeto Unicultura Unifoto
da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul: Greve / UFRGS - Maio de 1998
(autores: bolsistas do Núcleo de Fotografia/FABICO); Dois cais, Dois olhares - Junho de 1998 (autores: Maisa
Del Frari e Paula Biazus) e A ordem é ninguém passar fome - Novembro de 1998 (autores: Angelita Kasper,
Janis Linda, Maísa Del Frari e Paula Biazus).
20
Narrativa nos termos propostos por Paul Ricoeur em sua obra: “Tempo e Narrativa” (1994) em que a narrativa se
constrói na articulação entre experiências temporais distintas, prefiguradas (tempo pensado), re-figuradas (tempo
vivido) e configuradas (narrativa).
35
No início de 2001 juntaram-se mais dois integrantes ao Grupo, Rafael Johann e Pedro Araújo,
conformando os cinco participantes que trabalhariam no período entre 2001 e 2003, quando
Pedro deixou de laborar conosco. No mesmo ano de 2001, uma oficina na Vila Nossa Senhora de
Fátima poderia ser considerada como a consolidação de um projeto das oficinas de fotografia
pinhole e do grupo Lata Mágica, que se desdobraria em mais de cinqüenta atividades - vinculadas
a projetos distintos e com duração variada - em muitos bairros de Porto Alegre e cidades do
interior, além de um projeto autoral, O Olhar Passageiro - financiado pelo Fumproarte (Fundo
Municipal de Apoio à Produção Artística e Cultural de Porto Alegre) que mostrou fotografias
pinhole, na forma de grandes adesivos, afixados nas janelas dos ônibus da frota urbana da
cidade.
A oficina na Vila Nossa Senhora de Fátima, realizada nos meses de maio a novembro, foi
representativa para o grupo pois teve a duração de sete meses e possibilitou muitas descobertas e
aprendizagens. Foi a primeira oficina em que as crianças confeccionaram as câmeras, utilizando
latas de leite em pó, e foram realizadas todas as etapas do processo fotográfico; obter as imagens,
revelar os negativos e processar as cópias fotográficas, além da montagem da exposição final.
Até então levávamos as latas/câmeras construídas. Todo o processo, desde a confecção das
câmeras, tinha sido realizado com turmas de jovens e adultos, mas as turmas infantis foram
fundamentais para nossas descobertas sobre as aprendizagens dos alunos em relação à linguagem
fotográfica - indo além da técnica pinhole - como forma de desenvolvimento de um olhar.
A partir de 2003 praticamente não houve mais oficinas com crianças, transformando as
perspectivas do Grupo. Deve-se levar em consideração o desenvolvimento do Projeto O Olhar
Passageiro e a constante transformação do formato da oficina - buscando uma nova maneira de
despertar os olhares dos alunos - como influências na mudança de público das atividades do
Grupo, pois com adolescentes e adultos havia possibilidade mais evidente de discutir sobre a
linguagem fotográfica. A estrutura de participação do processo fotográfico se mantém desde o
início da formação do Grupo Lata Mágica, mas as concepções sobre as oficinas se transformaram
juntamente com as trajetórias individuais dos seus integrantes e do Grupo como um todo.
Portanto, meu encontro com a prática e a teoria antropológica foi fundamental para uma
transformação no meu próprio olhar sobre as oficinas ministradas.
A Vila Nossa Senhora de Fátima é contígua à Vila Bom Jesus, conhecido ponto de tráfico de
drogas e violência da Capital, sendo que essa vizinha não destoa muito em termos de pobreza e
36
violência. As notícias acompanhadas nos jornais lembravam a todo momento mortes por brigas e
confronto entre os vendedores de drogas da região. Durante a oficina realizada na Vila Fátima,
aproveitou-se material fotográfico que os integrantes do Grupo tinham em casa, como sobras de
trabalhos anteriores, pois o material necessário, papéis e produtos químicos, tem preço bastante
elevado, apesar das câmeras poderem ser construídas, praticamente, sem custo algum. Utilizava-
se para as aulas a sede de uma Associação que conduzia um sistema de adoção familiar à
distância, em que as famílias recebiam ajuda financeira desde que mantivessem as crianças
freqüentando a escola. Até este momento, todas as oficinas do Grupo haviam sido voluntárias,
inclusive as que foram ministradas por intermédio do Núcleo de Fotografia da FABICO/UFRGS
como, por exemplo, no Salão de Extensão Universitária, em 2000, e no projeto Universidade
Solidária, no início de 2001, no município de Sentinela do Sul.
A possibilidade de realizar uma oficina de fotografia, envolvendo custos relativamente
baixos, encaminhava o Grupo Lata Mágica para trabalhos na periferia de Porto Alegre ou mesmo
no interior do Estado. Assim, através das oficinas de pinhole passei a conhecer lugares da cidade
que antes eram somente pontos dispersos num mapa, ou mesmo lugares que não eram facilmente
identificáveis nesses mesmos mapas, deixando claro o que significa o termo periferia. Vila
Fátima, Vila Amazonas, Vila Tronco, Vila São Miguel, Vila Maria da Conceição, Bairro Mario
Quintana. Ao mesmo tempo, estudantes de comunicação, artes plásticas e arquitetura nos
convidavam para participar de semanas acadêmicas e encontros. Por apresentar uma imagem que
deforma as linhas arquitetônicas, devido à curvatura da lata, muitos estudantes de arquitetura se
interessavam em explorar esteticamente essa maneira de retratar a paisagem urbana. Por mais de
um ano foram realizadas oficinas na semana acadêmica do curso de Arquitetura da UFRGS e, em
certo ano, também na faculdade de Arquitetura da PUC-RS.
Após a conclusão do curso de Jornalismo por mim e pela Maísa, a profissionalização do
Grupo passou a ser uma condição para a sua continuidade e aperfeiçoamento. De algum modo, as
oficinas precisariam ter os custos cobertos e, se possível, reverter algum pró-labore para os
oficineiros, contando que possuíamos um currículo demonstrando experiência considerável no
ensino da técnica pinhole. Durante os primeiros anos da trajetória do Grupo mantivemos como
“tática” (DE CERTEAU, 2004) o trabalho voluntário e a inserção dentro do Núcleo de Fotografia
da FABICO/UFRGS. Segundo Michel de Certeau, a tática é movimento e “deve jogar com o
terreno que lhe é imposto tal como organiza a lei de uma força estranha” (2004, p. 100).
37
Considerando o contexto em que o Grupo estava imerso, os custos do material fotográfico e uma
técnica fotográfica desconhecida para muitos, como ele poderia se mobilizar frente a possíveis
instituições e dessa maneira permitir o seu desenvolvimento profissional?
A estratégia adotada foi a aproximação com projetos desenvolvidos pela Prefeitura Municipal
de Porto Alegre e a realização de algumas oficinas pagas, que ocorreram em Centros Culturais da
área central da cidade, para um público de classe média intelectualizada como profissionais
liberais, estudantes universitários e professores de diversas áreas como física, química e história,
entre outras. O importante é esclarecer quais as soluções adotadas pelo Grupo para executar suas
idéias dentro do quadro da cidade de Porto Alegre, que envolve uma política cultural específica e
que deve ser considerada integrante dessa pesquisa. Compreender o contexto de trabalho do
próprio pesquisador em relação ao grupo Lata Mágica, à cidade, aos moradores de diversas
comunidades e às instituições públicas e privadas, torna-se fundamental para identificar o lugar
de onde pesquiso as aprendizagens dos alunos junto a uma técnica não-convencional de produção
de imagens e, para além disso, suas experiências urbanas relacionadas como configuradoras de
um olhar. Assim como os “agenciamentos” envolvidos na realização das atividades do Grupo
Lata Mágica, por trabalhar muitas vezes em conjunto com instituições públicas e privadas,
visando possibilitar os projetos de ensino da fotografia pinhole.
No ano de 2002, o Grupo Lata Mágica participou, pela primeira vez, de um projeto da
Prefeitura Municipal de Porto Alegre chamado Descentralização da Cultura. Projeto implantado
durante a chamada Administração Popular - maneira como o Partido dos Trabalhadores definia
seus mandatos na Prefeitura da cidade no período compreendido entre os anos de 1989 e 2004 - e
que ainda age de acordo com o Orçamento Participativo, também implantado pelo governo
petista. Mesmo que o PT tenha perdido as eleições de 2004 para outro partido, o PPS, os projetos
citados nessa pesquisa continuam em funcionamento, mesmo que tenham sofrido algumas
modificações. Assim, o Projeto Descentralização da Cultura oferece oficinas de expressões
artísticas variadas de acordo com as 16 regiões em que a cidade é divida pelo Orçamento
Participativo, formando as Comissões de Cultura que fazem a ligação entre as comunidades,
através das lideranças locais, e a Prefeitura que coordena as oficinas e a contratação dos
oficineiros.
Quando me tornei oficineira do projeto pela primeira vez, a coordenação do mesmo, ao
apresentar a proposta, informou-me que o objetivo era realizar oficinas em Centros Comunitários
38
e, com o tempo, transformar esses espaços em núcleos de produção artística, tornando-os
independentes até mesmo dos oficineiros vindos de fora da comunidade para ministrarem aulas.
Seria um projeto de autonomia das regiões em relação a uma política cultural localizada
especificamente na área central da cidade. Na prática, que acompanhei durante dois anos de
maneira bem próxima em oficinas ao longo de todo o período e em um terceiro de maneira mais
distante em algumas oficinas esparsas, o passo definitivo em direção a autonomia das regiões
nunca foi dado em dez anos de implantação do projeto (1993-2003). De acordo com os relatórios
escritos por mim para a coordenação das oficinas de fotografia, a falta de continuidade do projeto
era enfatizada, tanto em relação a constituição de espaços próprios para as atividades como em
relação a formação de oficineiros da comunidade e a criação de núcleos produtores.
Esses aspectos não impediram que o projeto fosse uma maneira de viabilizarmos oficinas em
comunidades que, muitas vezes, não tinham acesso à fotografia como meio de expressão
simbólica. As oficinas eram gratuitas aos interessados e a Prefeitura disponibilizava material e
pró-labore, além de possibilitar o trabalho em um período mais longo, chegando a durar quase um
ano. Com algumas turmas desenvolvemos, também, o ensino da linguagem fotográfica
convencional com câmeras 35mm manuais. No mesmo ano que começaram as atividades ligadas
à Descentralização da Cultura, inscrevemos o primeiro trabalho para participar da seleção de
projetos artísticos e culturais da Secretaria Municipal da Cultura, através do Fumproarte.
O Fundo constitui um mecanismo para viabilizar a produção cultural na cidade de Porto
Alegre, prestando apoio financeiro em até 80% do custo de projetos de natureza artística. As
propostas são analisadas primeiramente pelo Comitê Assessor, formado por funcionários
designados pela Secretaria Municipal da Cultura e responsável pela avaliação formal,
considerando os projetos classificados ou desclassificados. Os projetos classificados são então
avaliados pela Comissão de Avaliação e Seleção (CAS), que considera o mérito segundo critérios
de clareza e coerência, retorno de interesse público, previsão de custos, criatividade e importância
para Porto Alegre. A CAS é composta por representantes da Administração Municipal e das
entidades representantes do setor artístico-cultural.
A idéia era executar um projeto autoral de fotografia pinhole pelos integrantes do Grupo Lata
Mágica, partindo do pressuposto que, ao ensinar a linguagem de uma fotografia não-
convencional, também deveríamos mostrar as imagens que conseguiríamos fabricar. Depois de
alguns anos ensinando fotografia em bairros distantes, na periferia de Porto Alegre, soava
39
estranho realizar uma exposição fotográfica em uma galeria, pois mesmo as pessoas que
freqüentam galerias de arte nem sempre comparecem a exposições fotográficas e muitos de
nossos alunos nunca tinham ido a nenhuma mostra em galerias. Surgiu, então, a idéia de colocar a
exposição fotográfica dentro dos ônibus de Porto Alegre, fazendo da própria cidade o assunto das
fotografias. Nascia O Olhar Passageiro, projeto executado durante o ano de 2003. Cada ônibus
da frota porto-alegrense recebeu um adesivo 30x40cm contendo a imagem pinhole produzida por
um dos integrantes do Grupo Lata Mágica, formando um conjunto de 25 fotografias. Porto
Alegre possuía uma relação entre arte e transporte público devido ao projeto Poemas nos
Ônibus, que mais de dez anos imprime poesias em adesivos que são colados nas janelas
laterais do interior dos coletivos. O Olhar Passageiro tornou-se, então, a versão fotográfica da
idéia, com fotografias pinhole feitas em câmeras que utilizam latas metálicas de panetone e papel
fotográfico preto e branco, tamanho 18x24, cm como negativo.
O projeto ainda incluía uma exposição no Centro Cultural Usina do Gasômetro, o lançamento
de um conjunto de cartões postais com as mesmas fotografias e duas oficinas gratuitas; uma
aberta ao público em geral na Casa de Cultura Mario Quintana e outra para os funcionários da
Companhia Carris de transporte coletivo, realizada em troca da colagem de adesivos feita pelos
trabalhadores da empresa. Observando os projetos aprovados pelo Fumproarte ao longo dos
editais, percebe-se a presença constante de iniciativas que contemplam de alguma maneira a
cidade de Porto Alegre em livros, peças de teatro, cds e também fotografias. O Olhar Passageiro
não fugia a essa regra, pois retratava a cidade dentro dos coletivos e se aproximava da política
cultural exercida de descentralizar as iniciativas artísticas. Levar a exposição fotográfica ao
público e para aqueles que utilizam o transporte público era, de alguma maneira, “descentralizar a
arte”, retirando-a das galerias.
Assim, o Grupo Lata Mágica se tornou conhecido por ser aquele “das fotos nos ônibus” e
muitas pessoas passaram a nos procurar para aprender a técnica. O projeto foi executado durante
o ano de 2003, enquanto éramos novamente oficineiros do Descentralização da Cultura, que
possibilitava as oficinas gratuitas. Com a divulgação do projeto também realizamos algumas
oficinas pagas, em instituições no centro da cidade como a Casa de Cultura Mario Quintana e o
Instituto dos Arquitetos do Brasil, atingindo um público variado em aspectos como gênero, classe
social, profissão, idade, entre outros, conformando o ano em que oferecemos o maior número de
40
oficinas, desde o início do Grupo Lata Mágica, contabilizando atividades com quatorze turmas
diferentes.
A trajetória do Grupo descrita acima serve para esclarecer o envolvimento do ensino da
técnica pinhole com a própria cidade de Porto Alegre e seus habitantes. Muitas vezes, ao
chegarem nas oficinas, alguns alunos já haviam estabelecido contato anterior com o Grupo,
mesmo que fosse através de oficinas curtas, às vezes de apenas um dia. Esse foi o caso das
comemorações do Dia Mundial da Fotografia Pinhole que ocorre, desde 2001, sempre no último
domingo do mês de abril, organizado pelo site www.pinholeday.org. No mundo inteiro, as
pessoas fotografam nesse dia e depois enviam suas imagens para serem publicadas na internet.
Durante três anos, entre 2001 e 2003, o Dia da Pinhole foi comemorado pelo Grupo Lata Mágica
em atividades abertas ao público, quando eram emprestadas latas carregadas e prontas para
fotografar e depois os fotógrafos iniciantes acompanhavam a revelação dos negativos no
laboratório. Após a atividade, os negativos eram scaneados, publicados no site como positivos e
devolvidos aos seus autores. Em 2002, Porto Alegre foi a cidade com o maior número de
participantes do evento, reunindo mais de 100 fotografias. Cabe lembrar que a técnica pinhole é
um meio de expressão artística conhecido e muito utilizado no exterior.
2.2 Neste contexto, a pesquisadora entra em campo...
Depois de um projeto autoral como O Olhar Passageiro, o Lata Mágica decidiu inscrever uma
outra iniciativa, no mesmo Fumproarte, para a realização de novas oficinas que pudessem ser
gratuitas aos participantes, mas administradas e planejadas pelo próprio Grupo, sem a ligação
com projetos como Descentralização da Cultura. Além da autonomia para estabelecer a duração
das oficinas e sua distribuição na cidade, outra idéia levada em consideração era reunir essas
oficinas - que ocorreriam em vários pontos da capital - para a finalização do projeto. Assim, o
Projeto Lata Mágica, com o mesmo nome do Grupo, foi elaborado prevendo quatro oficinas em
lugares “descentralizados” com a realização, ao final de cada edição, de exposição na própria
comunidade e a reunião dos trabalhos das diversas oficinas em uma exposição coletiva, num
Centro Cultural, incluindo a edição de catálogo mostrando fotografias de todos os alunos. A
idéia era o acompanhamento de um processo artístico, a fotografia pinhole, do seu início até o
produto final, exposições e catálogos. Além de confeccionar um livro de fotografias sobre a
41
cidade de Porto Alegre, onde os bairros escolhidos para as oficinas e outros pontos encontrados
no percurso dos alunos estariam retratados em um cruzamento de olhares sobre diversos lugares.
A opção por novamente concorrer ao Fumproarte estava na possível dificuldade em tornar
o projeto “comercializável”. O Olhar Passageiro havia oferecido um espaço dentro dos ônibus
para as empresas colocarem suas logomarcas e, mesmo assim, sua comercialização, ou seja, a
captação dos 20% do custo não coberto pelo Fundo, não havia sido das mais fáceis. Só explicar o
que é fotografia pinhole é difícil, mesmo que se apresente a trajetória e o trabalho executado
pelo Grupo 6 anos. Assim, concorrer ao Fumproarte foi novamente a estratégia estabelecida
pelo Grupo Lata Mágica.
Aqui começa a construção da presente pesquisa sem desconsiderar a trajetória que situa o
lugar de onde posso contar a experiência das oficinas através de um enfoque etnográfico. Não
esquecendo, também, as implicações que se estabelecem a partir de uma política cultural
específica que questionam pelo próprio posicionamento do antropólogo em campo. que levar
em conta, ainda, a presença da teoria e todos antropológicos na transformação do meu próprio
olhar para com as oficinas, pois no momento em que o Projeto estava sendo inscrito no concurso
eu iniciava o Mestrado em Antropologia Social.
Também devem ser consideradas as transformações e rupturas que o projeto Lata Mágica
trouxe para a continuidade do Grupo e na maneira como pensamos as aprendizagens dos alunos.
A oficina estruturada para o novo projeto propunha algumas mudanças importantes na maneira
do Grupo trabalhar a linguagem fotográfica pinhole. Os conteúdos continuavam semelhantes às
oficinas anteriores mas a metodologia havia sido bastante modificada, não durante a fase de
planejamento como durante a execução da primeira oficina, ajudando a estabelecer o todo
adotado nas demais. Entre as mudanças mais significativas estava a duração das atividades, que
seria de um mês, com a realização de duas saídas de campo. As oficinas anteriores duravam em
torno de cinco dias, incluindo a realização de uma saída de campo para a obtenção de fotografias,
com exceção daquelas que eram ligadas a projetos maiores como no caso do Descentralização da
Cultura. Assim, com a expansão da oficina, os mesmos conteúdos poderiam ser trabalhados de
maneira mais tranqüila e os alunos conseguiriam apreender melhor o passo a passo do processo
fotográfico. Chegamos a essa conclusão devido ao aprimoramento das pesquisas e do
conhecimento sobre a linguagem fotográfica pinhole e aos próprios erros e acertos dos trabalhos
42
anteriores. Fotografia, como uma linguagem particular, exige todos e conhecimentos
específicos sobre cada etapa do processo; o princípio da câmera escura, a ordem dos químicos
para revelação, como copiar os negativos transformando-os em positivos. O Grupo sentiu a
necessidade de oferecer os mesmos conteúdos, mas de maneira mais detalhada. Assim, os alunos
teriam tempo de elaborar suas dúvidas de acordo com o desenrolar das etapas do processo
fotográfico, aumentando também o tempo de escuta dos oficineiros para com os alunos,
considerando ainda que minha própria etnografia atravessaria essa nova estrutura de aulas.
As quatro oficinas do Projeto se desenvolveram nos bairros Partenon, Lomba do Pinheiro,
Restinga e Ipanema, pois eram lugares em que havia alguma inserção do Grupo Lata Mágica
através de membros das comunidades ou pessoas ligadas a elas. As oficinas iniciaram em
novembro de 2004 e se estenderam até novembro do ano seguinte. No presente momento, o
catálogo está sendo elaborado para lançamento ainda no primeiro semestre de 2006,
conjuntamente com a exposição que mostrará uma fotografia de cada participante das quatro
atividades. Num primeiro momento, somente uma das oficinas do projeto seria considerada como
trabalho de campo para a dissertação, mas alguns acontecimentos mudaram o rumo da história...
Im. 3
43
Im. 4
Im. 5
44
Im. 6
2.3 A oficina no Hospital Psiquiátrico São Pedro
Iniciei meu trabalho de campo durante a primeira oficina do projeto Lata Mágica, realizada
no período entre 23 de novembro e 21 de dezembro de 2004, nas dependências do prédio
histórico do Hospital Psiquiátrico São Pedro, no bairro Partenon. Inaugurado em 29 de junho de
1884, o Hospício São Pedro (homenagem ao santo do dia e padroeiro da Província), foi o
primeiro hospital psiquiátrico de Porto Alegre e da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul.
Esse prédio, o mais antigo do Hospital, abriga hoje apenas a parte administrativa da Instituição, a
Oficina de Criatividade para os internos e, também, cede seus espaços para oficinas de arte e
ensaios de peças de teatro, servindo de local para os espetáculos ali concebidos. Ao pesquisar
sobre a época de construção do Hospital é possível perceber a referência à localização longe do
Centro da cidade, pois os pacientes eram enviados ao subúrbio e permaneciam “longe dos olhos”
da sociedade porto-alegrense. “O local, afastado do ambiente urbano, entestando ao sul com a
‘Estrada do Mato Grosso’ (atual Av. Bento Gonçalves), Arraial do Partenon, era arborizado, rico
em água potável e ar puro, adequado ao tratamento terapêutico e propício à segregação social da
loucura” (CHEUICHE, 2004, p. 119).
Hoje, o Bairro Partenon está bem mais próximo do Centro devido ao crescimento da cidade e,
principalmente, ao crescimento da periferia para além desse bairro, em direção ao município de
45
Viamão, sendo que a ligação mais antiga com esse município é aquela feita pela Av. Bento
Gonçalves, antiga Estrada de Mato Grosso. O Grupo Lata Mágica havia trabalho no prédio
histórico do Hospital durante o ano de 2002, no Projeto Descentralização da Cultura, realizando
uma oficina de fotografia para a comunidade do bairro com duração de nove meses. Uma de
nossas alunas daquele ano, Neusa, funcionária do Memorial do HPSP, foi quem possibilitou as
negociações para essa nova atividade que previa, desde o início, contemplar o bairro Partenon,
um dos maiores da cidade, sendo o quarto mais populoso conforme o censo do IBGE do ano de
2000. Na região, havíamos trabalhado na Vila São Miguel e na Vila Maria da Conceição,
sendo que nesta a oficina havia ocorrido alguns meses antes, em setembro de 2004.
Ao definirmos o local da primeira oficina, procuramos telefonar para alguns ex-alunos da
época da oficina no HPSP e levei, pessoalmente, na Vila Maria da Conceição cartazes e panfletos
sobre a nova atividade para convidar os alunos que haviam ficado entusiasmados com o
aprendizado das fotografias com latas. Acredito que a distância - pois é preciso pegar um ônibus
para se deslocar da Vila até o Hospital - e o fato das aulas serem à noite, com exceção das saídas
de campo, foram alguns dos fatores que levaram somente um aluno a se inscrever novamente
para a oficina. Considero essa possibilidade, pois a turma realmente parecia disposta a tentar dar
continuidade às fotografias. A maioria dos alunos era mulheres, mães e donas de casa envolvidas
nas atividades comunitárias, com dificuldades de deslocamento para aulas à noite em função dos
filhos e maridos. A oficina realizada na Vila, em setembro, ocorrera no turno da tarde e as
mulheres saíam das aulas e iam, antes de mais nada, buscar seus filhos na creche para retornarem
às suas casas.
As oficinas do Projeto Lata Mágica, que iniciariam no Bairro Partenon, eram abertas a
membros da comunidade maiores de 14 anos e, também, a interessados que não residissem nas
proximidades do Hospital. Distribuímos o material pelo bairro e na UFRGS, onde distribuí
cartazes no Campus do Vale e Rafael e Guilherme colaram no Instituto de Artes e na Faculdade
de Comunicação. O Grupo possui uma lista de correio eletrônico dos antigos alunos e
interessados nas oficinas, assim essas pessoas sempre são avisadas quando acontece um novo
curso. A intenção inicial era atrair participantes do bairro, mas também esperávamos pessoas de
outros lugares que estivessem interessadas em aprender a técnica. Afinal, o lugar escolhido não
era de difícil acesso, mesmo à noite. Uma parada de ônibus está situada defronte ao portão do
46
Hospital e, a pequena distância, passa a Perimetral, grande avenida que atravessa a cidade no
sentido norte-sul e cruza a Av. Bento Gonçalves, também com uma parada de ônibus próxima.
As inscrições para a oficina foram realizadas por nossa ex-aluna Neusa, que nos apoiou
durante toda a atividade, intermediando nossas relações com a administração do HPSP e,
inclusive, cedendo o espaço ocupado pelo Memorial da Instituição para as aulas expositivas, de
construção das câmeras e de avaliação das saídas de campo. Não fazia idéia de quem se
inscreveria na oficina e, como não poderia deixar de ser, era uma surpresa reservada para o
primeiro dia de aula, quando a lista de nomes que Neusa havia nos encaminhado se transformaria
em “pessoas de carne e osso”. A divulgação foi espalhada e não havia o menor controle sobre
quem seriam os alunos, a partir de então também meus informantes. Essa situação foi igual para
todas as oficinas: a imprevisibilidade sobre os inscritos e como lidar com essa surpresa se
configurou como uma das especificidades do meu trabalho de campo.
Sem dúvida, a oficina realizada no HPSP apresentou-se como a mais surpreendente em
termos dos alunos inscritos. Apenas um morador da Vila Maria da Conceição e diversas pessoas
que moravam noutros lugares da cidade, a maioria estudantes universitários, profissionais liberais
e funcionários públicos, como professores da Escola Técnica da UFRGS. Digamos que esse
público se aproximava mais daquele que costumávamos ter em oficinas pagas, realizadas em
instituições culturais na área central da cidade, mas que agora aproveitava a oportunidade de
participar gratuitamente. Funcionários do o Pedro também não se interessaram pela atividade,
somente uma estagiária de fisioterapia do Hospital foi nossa aluna. Mesmo que eu estivesse
esperando uma turma mais “heterogênea” em relação à presença de moradores do bairro, não
desisti de iniciar meu trabalho de campo naquela ocasião.
2.4 A oficina no Centro de Promoção da Criança e do Adolescente
A segunda experiência a ser apresentada ocorreu entre 12 de maio e 17 de junho de 2005, no
Centro de Promoção da Criança e do Adolescente, administrado por Freis Franciscanos, no
Bairro Lomba do Pinheiro. A mesma Av. Bento Gonçalves - que transcorre frente ao HPSP -
possui uma ligação com o Bairro Lomba do Pinheiro através da Avenida do Trabalhador, que
também une o sudeste ao sul da cidade, alcançando o Bairro Restinga e permitindo o acesso ao
Bairro Lami. A “Lombacompreende as atuais vilas São Francisco, Mapa I e II, Chácara das
47
Pêras, das Pedreiras, Beco do Davi, Quinta do Portal, Jardim Lomba do Pinheiro, Residencial São
Claro, Jardim Franciscano, Nova São Carlos, Viçosa, Stellamar, Primeiro de Maio, Nova Serra
Verde, Pinhal, Recreio da Divisa, Panorama, Santa Helena, São Pedro, Santa Filomena e
Bonsucesso. Essas vilas se distribuem ao longo da Avenida do Trabalhador, nos dois lados do
asfalto, formando um bairro esticado, sem uma centralidade definida.
Novamente, contamos com a ajuda de algum conhecido do Grupo Lata Mágica para viabilizar
a oficina no local. Dessa vez, Aline, amiga de integrantes do Grupo e que trabalha junto ao
CPCA, foi quem intermediou os contatos com a administração do Centro e as inscrições foram
realizadas pela própria secretaria da Instituição. O CPCA oferece cursos de informática e
profissionalizantes para jovens da comunidade e possui atividades extraclasse para as crianças.
Esperávamos um bom número de inscritos entre os adolescentes que freqüentavam o Centro e,
novamente, nos enganamos. Dessa vez havia vários moradores da comunidade no curso, mas
adolescentes somente três, sendo que dois deles freqüentavam as aulas de informática do CPCA.
Os outros moradores eram adultos, a maioria mulheres que trabalhavam no próprio bairro. Outra
surpresa foi o número de pessoas que não morava na região e que se inscreveu para realizar a
oficina, pois a “Lomba” é um lugar afastado e bem distante para se chegar, apesar de ter uma
parada de ônibus bem defronte ao CPCA. Representa, em termos de periferia da cidade, o quê o
Partenon deveria ser, na relação da distância com o tempo de percurso desde o Centro, na época
da construção do Hospital Psiquiátrico São Pedro, um lugar afastado, de pequenas chácaras, sítios
e habitações populares. Um arrabalde dos tempos de hoje. Alguns antigos interessados nas
oficinas se deslocaram, inclusive da Zona Sul, para acompanharem as aulas. Sendo assim, essa
segunda oficina do projeto teve uma maior heterogeneidade de alunos, entre os habitantes da
região e aqueles que moravam em outras partes da Capital, enriquecendo as possibilidades de
olhares sobre as imagens produzidas, pois eram os próprios moradores registrando o bairro nas
saídas de campo, além dos “olhares estrangeiros” sobre aquela parte da cidade, talvez
desconhecida para os outros como para mim.
A riqueza de olhares, constituída na oficina realizada no CPCA, mudou os planos iniciais da
pesquisadora em analisar somente a oficina que havia sido realizada no Bairro Partenon. Não
poderia ignorar esse complexo cruzamento de olhares que se apresentava como possibilidade de
transformação em dado etnográfico. Ao mesmo tempo em que havia feito um enorme esforço
para delimitar uma postura de etnógrafa em campo na relação com o seu objeto de pesquisa,
48
durante a oficina no HPSP, havia vivido uma importante experiência de “estranhar o familiar”
(DA MATTA, 1978; VELHO, 1978) ao registrar as sonoridades daquele evento, não
conseguindo imaginar o descarte daquela experiência. Esse mesmo registro sonoro não poderia se
repetir no CPCA devido às diferentes condições de realização entre as oficinas. O espaço do
laboratório e a distribuição das atividades em aula fizeram com que a etnografia sonora não se
repetisse através do seu registro. Em compensação, realizei fotografias em preto e branco durante
todo o processo da oficina, registro que, pela captação do som, eu não havia conseguido realizar
no Hospital São Pedro. Dessa maneira, o desafio era conseguir reunir essas duas experiências
através do que o próprio exercício etnográfico me apresentaria em termos de semelhanças e
diferenças entre elas.
2.5 Olhares sobre Porto Alegre e a construção de uma observação participante
Entre essas duas experiências e pessoas tão diferentes reunidas o que poderia haver em
comum? A demonstração por parte dos alunos - como habitantes da cidade de Porto Alegre - de
olhares diversos, apareceu nas mais diversas imagens que produziram. Na busca pela relação
entre os olhares dos habitantes e a forma da cidade que habitam, estabeleci uma segunda etapa na
pesquisa. Essa previa vivenciar momentos com esses alunos na sua relação como moradores da
cidade e perceber de que maneira circulavam no meio urbano. Os alunos das oficinas de
fotografia pinhole contemplavam a “expressão do múltiplo” (ROCHA, 2001 [1]) das “sociedades
complexas contemporâneas” (VELHO, 1978) pela heterogeneidade das trajetórias ali reunidas.
Entre os participantes, estudantes universitários de cursos variados como fisioterapia, ciências
sociais, agronomia e arquitetura; professores aposentados; funcionários públicos; funcionários de
empresas privadas, um aposentado de 67 anos, adolescentes moradores da Lomba do Pinheiro,
auxiliares de enfermagem, entre outros. Todos articulando essas trajetórias individuais em uma
mesma experiência na cidade: aprender uma técnica fotográfica não-convencional, representando
a multiplicidade de uma cidade urbano-industrial moderna.
Nesse segundo momento, trabalhei com alguns alunos de maneira mais específica na medida
em que formavam uma malha de itinerários na cidade que, em alguns pontos, se aproximavam e,
em outros, se distanciavam. A cidade, nesse contexto, deve ser apreendida como um território
expressivo da experiência temporal contemporânea dos grupos humanos que nela habitam, não
49
sendo suas estruturas espaciais e as formas de vida social que se processam um aspecto banal e
evidente de suas vidas cotidianas” (ECKERT e ROCHA, 2000, p. 5). Considero, como James
Clifford (1990), o trabalho de campo, as oficinas de fotografia e a relação dos alunos com Porto
Alegre - enquanto um trajeto, um deslocamento - onde o encontro etnográfico não pode ser
descontextualizado dos diferentes territórios vividos dentro de uma mesma cidade.
Im. 7
Descrever essas experiências sob o enfoque antropológico permitiu, igualmente, tratar das
transformações vividas pelo meu próprio olhar ao circular pela cidade de Porto Alegre com dois
alunos adolescentes, moradores do Bairro Lomba do Pinheiro, para fotografar em espaços como o
Parque da Redenção e a Casa de Cultura Mario Quintana, assim como o Parque Saint Hilaire,
próximo ao CPCA e defronte suas próprias casas, que são igualmente próximas ao lugar das
oficinas. Nas grandes cidades espaços de contradições vividos pelos seus habitantes que são
refletidos e mediados pela cultura (OLIVEN, 1980, p. 28), possibilitando a pesquisa
antropológica mesmo com a proximidade aparente entre o pesquisador e seu objeto de pesquisa.
Segundo Gilberto Velho (1978, p. 40), “há descontinuidades vigorosas entre o ‘mundo’ do
pesquisador e outros mundos” e essas descontinuidades internas às próprias sociedades
complexas são capazes de provocar situações de estranheza comparável “a de viagens a
sociedades e regiões ‘exóticas’”.
50
A Redenção e a Casa de Cultura Mario Quintana entraram como locais estratégicos. Para se
trabalhar com a fotografia pinhole o ideal é ter um lugar para revelação “a mão”, que as
fotografias são tiradas uma por vez. Não sistema de passagem de filme, após obter uma
fotografia deve-se abrir a lata em um local escuro e trocar o papel fotográfico utilizado por um
novo. Quando estávamos no Parque da Redenção podíamos utilizar o laboratório da FABICO,
cedido pelo Professor Monteiro, seu coordenador, para minha pesquisa e na Casa de Cultura
também existia um laboratório montado que consegui utilizar. Nas ocasiões em que
fotografávamos na Lomba do Pinheiro, utilizávamos um “saco preto” que o Grupo Lata Mágica
construiu no período do Olhar Passageiro e que, na verdade, é uma espécie de saco com mangas.
Colocam-se as caixas de papel e a lata dentro, fechando e inserindo os braços através das
mangas. É possível, então, manipular com segurança o material fotossensível. Eu guardava as
fotografias obtidas em uma embalagem própria para papel fotográfico e esperava para revelarmos
juntos no laboratório, deixando que eles realizassem os procedimentos de revelação e cópia dos
negativos.
Ao entrar em campo, levava comigo além de uma “domesticação teórica do olhar”
(OLIVEIRA, 2000, p. 22) - prisma pelo qual a realidade observada sofre um processo de refração
de acordo com conceitos e métodos “operados” - quatro ou cinco anos de experiência junto ao
grupo de fotógrafos Lata Mágica, dedicados ao ensino dessa técnica fotográfica particular, a
fotografia pinhole. Não era somente uma pesquisadora atenta ao desenrolar de duas oficinas da
técnica pinhole na cidade de Porto Alegre, pois fazia parte dessas atividades ensinando e
trabalhando em fabricar imagens que se diferem daquelas produzidas por câmeras fotográficas
convencionais
21
, tanto amadoras como profissionais. Como não poderia deixar de ser, essa
posição ocupada no trabalho de campo como professora e pesquisadora, em um duplo papel
social”, influenciou uma determinada orientação metodológica em direção à construção de uma
observação participante, em que o compartilhamento do processo fotográfico se fez sempre
presente.
O Método Etnográfico, aqui, é considerado como o instrumento da antropologia em que o
encontro com o outro se realiza através de determinados procedimentos e onde se expressa uma
determinada orientação conceitual. Segundo Roberto Cardoso de Oliveira (2000, p. 22) “as
21
Nesse caso, o emprego do termo “câmeras convencionais” se referem àquelas que possuem lentes para a captação
dos feixes luminosos e podem utilizar filmes fotográficos 35mm ou outros formatos, além de mecanismos que
controlam a passagem desse filme de um fotograma a outro.
51
disciplinas e seus paradigmas são condicionantes tanto do nosso olhar como de nosso ouvir”.
Vemos e ouvimos certas coisas e dispensamos outras tantas em meio a nossas observações, pois a
partir das escolhas teóricas e conceituais nos permitimos acessar uma determinada dimensão do
fenômeno. Um exemplo é a produção de retratos, principalmente auto-retratos, que sempre
questionou o grupo, pois mobilizava os participantes mesmo que fosse para sair com um retrato
todo “mexido” ou “fantasmagórico” devido à linguagem característica da técnica pinhole. E
depois de muito tempo, ao construir o campo desta dissertação, a presença desses retratos
retornou como dado etnográfico, sendo fundamental uma posição analítica para a interpretação
desse fato.
A situação de observação participante esteve presente durante todo o período das oficinas,
pois era a maneira possível de fazer etnografia e partilhar o momento de uma obtenção ou de uma
revelação fotográfica. As situações ocorreram, portanto, bem mais em clima de conversas do que
em entrevistas propriamente ditas. Somente em algumas ocasiões registrei as conversas que tive
com meus informantes, como a gravação em mini-disc que realizei durante a oficina do HPSP.
Nesse sentido, o espaço de discussões proposto pelo BIEV
22
, que inclui o uso de recursos
audiovisuais no fazer antropológico na cidade, tornou-se fundamental para que eu me deslocasse
frente ao meu objeto de pesquisa e fizesse o esforço de trazer essas experiências a partir das
linguagens escrita, fotográfica e “sonora”, na tentativa de contemplar uma narrativa etnográfica.
Exigindo, nesse caso em que o pesquisador precisa se esforçar para “estranhar o familiar”, um
desligamento emocional, “já que a familiaridade do costume não foi obtida via intelecto, mas via
coerção socializadora e , assim, veio do estômago para a cabeça” (DA MATTA, 1978, p. 30).
As oficinas de fotografia pinhole, dentro do Projeto Lata Mágica, possuíram uma estrutura
comum que distribuiu os conteúdos ao longo de nove encontros, além da montagem e abertura da
exposição que marcou o encerramento das atividades. A primeira aula foi construída de forma
mais expositiva, com a intenção de apresentar a nova técnica aos alunos através de diversas
reproduções de fotografias, de antigos alunos do Grupo, que funcionaram como exemplos de
exploração da linguagem fotográfica pinhole. A partir do segundo encontro começaram as
22
A partir do uso de recursos audiovisuais, o Banco de Imagens e Efeitos Visuais propõe a pesquisa etnográfica
refletindo sobre as diferentes escritas possíveis sobre um mesmo fenômeno etnográfico, dependendo dos
instrumentos e metodologias aplicadas em campo. Construindo um Banco de Imagens sobre a cidade de Porto Alegre
que traz a questão da configuração da memória coletiva dos seus habitantes de acordo com cruzamentos realizados
entre imagens textuais, sonoras, fotográficas e videográficas. www.estacaoportoalegre.ufrgs.br
52
atividades práticas da oficina, com a construção das câmeras pelos alunos, seguida das instruções
para realizarem as fotografias na saída de campo. As saídas de campo ocorreram em duas tardes
de sábado enquanto as outras aulas eram à noite, possibilitando a participação daqueles alunos
que trabalhavam durante o dia. Durante as tardes de obtenções, os alunos fotografaram e
processaram os negativos no laboratório. As aulas seguintes foram dedicadas à realização das
cópias positivas, igualmente ocupando o espaço do laboratório com o acompanhamento dos
alunos. Duas novidades eram importantes em relação aos trabalhos anteriores do Grupo; a
realização de duas saídas de campo, permitindo aos alunos se acostumarem melhor com o novo
equipamento fotográfico e as aulas de avaliação, em que comentaram suas dificuldades, intenções
e expectativas em relação às imagens produzidas. No encerramento dos encontros, o Grupo
mostrou imagens produzidas com câmeras construídas com outros recipientes, diferentes daquele
que eles utilizaram, e o uso de outros materiais fotossensíveis para registrar as imagens com a
finalidade de despertar o interesse dos aprendizes pelas múltiplas explorações que essa linguagem
fotográfica permite. A abertura da exposição marcou o final da oficina e os alunos puderam
mostrar aos amigos e familiares as tão famosas fotografias da lata.
De acordo com a estrutura das oficinas, adaptei o fazer etnográfico juntamente com as
tarefas que deveria cumprir no papel de professora. Nesse momento, a utilização de recursos
audiovisuais, como a fotografia e o registro sonoro das oficinas, foi fundamental para a
possibilidade de exercer esse duplo papel, explorando “o caráter constitutivo do olhar, do ouvir e
do escrever, na elaboração do conhecimento próprio das disciplinas sociais” (OLIVEIRA, 2000,
p. 18).
2.6 A descoberta da etnografia pelas suas sonoridades
A possibilidade de registrar as sonoridades da oficina realizada no Hospital Psiquiátrico
São Pedro surgiu a partir da captação que havia realizado, com um simples gravador de fita
cassete, dentro do laboratório durante uma oficina que o Grupo realizou na cidade de
Florianópolis, em agosto de 2004. A idéia do registro sonoro surgiu porque o espaço do
laboratório é um local extremamente marcado” pela ausência de iluminação, o que faz com que
a interação entre aqueles que participam do processo ocorra através do uso da oralidade. A
provocação para a captação sonora nesse espaço específico da oficina partiu da disciplina de
53
Antropologia da Performance, ministrada pela Professora Dra. Maria Elizabeth Lucas (PPGAS
UFRGS) no segundo semestre daquele ano, pois deveríamos explorar questões que envolvessem
a etnografia da fala para um exercício relacionado com nossos campos de pesquisa. Apesar da
precariedade da gravação, o resultado obtido em Florianópolis indicava que havia muitos
aspectos das vivências dos alunos transpostos para a maneira como se expressavam oralmente
sobre a experiência.
Ao iniciar o Projeto no Hospital São Pedro, elaborei um roteiro para a captação de
imagens com câmera de vídeo e também para a captação do som em separado, através de
gravador de mini-disc (MD) e o uso de dois microfones diferentes conforme a ocasião; um
direcional e outro omnidirecional. As gravações em vídeo exigiram muita negociação, dificultada
devido à utilização da câmera nas dependências do HPSP e ao fato dos internos do Hospital
circularem livremente pelo pátio interno, podendo aparecer nas imagens captadas. Cheguei a
realizar as gravações em vídeo durante algumas aulas mas não consegui acompanhar todo o
processo da oficina, o que acabou deixando essas imagens no segundo plano em relação à
captação sonora do evento. A partir da experiência de pesquisa coletiva no BIEV coordenada pela
Professora Dra. Ana Luiza Carvalho da Rocha, os roteiros de gravação foram planejados dentro
de discussões dos comitês de estudo do Biev
23
em Coleções Etnográficas Sonoras e em Vídeo,
não esquecendo que para os registros sonoros eu deveria aprender a operar os equipamentos pois
a captação seria realizada por mim durante o trabalho de campo. Além das questões conceituais
envolvidas no uso dos equipamentos para traduzir, nas sonoridades registradas, determinados
pontos de escuta e posturas dos atores em campo.
No Hospital Psiquiátrico São Pedro, o espaço da fala como elemento de significação da
experiência foi ampliado; do laboratório, um espaço específico e restrito, para a oficina como um
todo. Durante as saídas de campo eu registrava os sons de acordo com os espaços que ocupava na
oficina como professora, devendo revezar, nas revelações dos negativos dentro do laboratório,
com os outros integrantes do Grupo a cada duas rodadas de alunos que acabassem o
processamento. Geralmente, deixava o gravador no laboratório durante os períodos em que estava
23
O Banco de Imagens e Efeitos Visuais está dividido internamente por Comitês de Estudo em Coleções
Etnográficas em fotografia, texto, vídeo e som. Na época de minha pesquisa de campo, os comitês em vídeo e em
som eram coordenados, respectivamente, pelos doutorandos no PPGAS UFRGS, Rafael Devos e Viviane Vedana.
Atualmente, ambos estão realizando bolsa sanduíche para conclusão de seus cursos de Doutorado e quem está me
auxiliando na elaboração da edição dos registros sonoros é a Mestranda do PPGAS-UFRGS, Fernanda Rechenberg,
sob a coordenação da Prof. Dra. Ana Luiza Carvalho da Rocha.
54
também revelando e o levava para rua quando ia acompanhar algum aluno enquanto produzia a
sua fotografia. Assim, acabava provocando algumas conversas conforme a situação de interação
que estava transcorrendo. Perguntava o que estava planejando fotografar, enquanto construía sua
imagem e no laboratório perguntava o que havia registrado, já contando com as suas expectativas
em relação à imagem no revelador. Eu procurava permanecer atenta à minha postura durante a
gravação, a distância entre os personagens e os diferentes “pontos de escuta” possíveis, pois essas
escolhas refletiriam, na edição final, uma intencionalidade interpretativa que eu possuía no
momento da captação. Além de explorar as diversas ambiências da oficina, o laboratório, o pátio
do Hospital, a sala de aula no Memorial da Instituição, para depois poder reunir as diferentes
sonoridades da experiência. Quando ocorria algum problema que eu deveria solucionar e saía
sem o gravador, registrava “sem controle” os alunos interagindo entre eles e, no laboratório
fotográfico, com os outros integrantes do Grupo Latagica.
A preocupação com as sonoridades e seu registro fez com que eu me deslocasse da antiga
posição de fotógrafa, preocupada com aquilo que vejo da situação, e permitiu o estranhamento ao
meu campo de pesquisa. O desafio consistia em etnografar pelo som a prática fotográfica, uma
prática muito próxima a mim, conhecer o lugar e as situações a partir de suas sonoridades. A
presença do equipamento de registro de som foi motivo de muitas brincadeiras ao longo da
oficina no HPSP, pois significava eu estar com fones de ouvidos, microfone em punho e muitos
fios espalhados. Os alunos estavam conscientes sobre quais situações eram registradas e diziam
que eu nunca teria tempo ou paciência para ouvir suas “bobagens” e, em outros momentos, me
pediam para escutar as falas que eu havia registrado naquele dia. O som denunciava de modo
mais eficiente, nesse caso, a presença do pesquisador em campo, pois a fotografia estava presente
em todo o contexto. Nunca alguém chamaria a atenção por estar fotografando as situações em
uma oficina que se dedica justamente ao ensino dessa prática.
As sonoridades registradas, não as falas como as ambiências dos espaços ocupados
dentro do Hospital, serão utilizadas no sentido de levar o leitor a compartilhar do momento da
oficina, enfocando os momentos de aprendizagens dos alunos e do encontro etnográfico. “A
importância de outros elementos sonoros está justamente nesta contextualização do lugar dos
informantes, do pesquisador e do próprio espaço que se está pesquisando como forma de realizar
uma descrição densa necessária à análise e interpretação etnográficas” (ROCHA et al., 2004 [2]).
55
Através do registro da observação participante, a intenção é evocar imagens no leitor que
remetam àquela situação a partir de uma interpretação sobre as sonoridades captadas.
2.7 As imagens fotográficas no contexto da pesquisa
O desafio de registrar o som, na oficina do Hospital Psiquiátrico São Pedro, provocou uma
ausência de registros fotográficos do evento realizados por mim, mas foi uma decisão necessária
ao maior distanciamento do pesquisador em relação ao seu tema de pesquisa. As fotografias,
utilizadas nesse trabalho, foram obtidas através de câmeras digitais pelos integrantes do Grupo
Lata Mágica, Rafael Johann e Guilherme Galarraga e não possuíam uma intenção etnográfica no
momento da construção. As imagens serão apropriadas, na construção do texto etnográfico, de
acordo com as discussões do Banco de Imagens e Efeitos Visuais na utilização de fotografias
como fonte de dados etnográficos de uma época ou situação. A fotografia “permite àquele que a
manuseia traduzir pra si relações pessoais ou políticas, acontecimentos e ambientes de época,
estilos de vida e visões de mundo diferenciados, servindo como fontes visuais de conhecimentos
das formas simbólicas que compõem o patrimônio das culturas humanas” (ROCHA et al., 2004,
p. 6 [1]).
Após a experiência etnográfica no HPSP, me sentia mais distanciada de meu objeto de
pesquisa, o quê possibilitou o registro fotográfico da oficina que ocorreu no Centro de Promoção
da Criança e do Adolescente. Assim, troquei microfones e fios pela câmera fotográfica, minha
antiga conhecida, e registrei as saídas de campo, montagem e abertura da exposição, em filme
fotográfico preto e branco, com a intenção de produzir narrativas fotográficas que pudessem ser
complementadas pelas fotografias pinhole P&B produzidas pelos alunos. Rosane de Andrade
(2002, p. 53) ressalta o papel da fotografia como uma parceira para o trabalho de campo, “assim
como a antropologia, ela [a fotografia] ordena culturalmente, os dados, os fragmentos da
realidade, através da observação”. Durante a oficina do CPCA, ocupei-me em compartilhar o
processo de aprendizagens dos alunos juntamente com o desafio de produzir imagens
intencionalmente etnográficas a partir do encontro etnográfico pesquisador-aluno.
As fotografias pinhole produzidas pelos meus informantes, durante as oficinas do HPSP e
CPCA, foram utilizadas como dados de pesquisa a partir do assunto que eles escolheram como
modelo. Assim, proponho a utilização das imagens obtidas pelos alunos da oficina de fotografia
56
pinhole como uma forma de restituição do fenômeno etnografado, indo ao encontro da
proposição de Arlindo Machado (1984, p. 55) ao defender que a sociologia e a antropologia
poderiam obter resultados mais produtivos se passassem a examinar a maneira como cada
comunidade fotografa e se deixa fotografar”. A reconstituição do fenômeno, em termos visuais,
parte da adoção de um determinado ponto de vista do fotógrafo em relação ao objeto fotografado,
aproximando-se da reflexão de Jean Rouch sobre o uso dos recursos audiovisuais, no seu caso a
câmera de cinema ou de vídeo, pelos próprios informantes. Segundo o autor:
Uma câmera verdadeiramente participante que passará automaticamente às mãos
daqueles que, até então, estavam atrás da câmera. Então, o antropólogo não terá mais o
monopólio da observação, ele mesmo será observado, registrado, ele e sua cultura.
Assim, o filme etnográfico nos ajudará a partilhar a antropologia. (1979, p. 71)
Após o período das oficinas registrei, com o auxílio de uma câmera digital, os percursos
que realizei na cidade de Porto Alegre, juntamente, com dois alunos da Lomba do Pinheiro que
continuaram fotografando com suas câmeras pinhole. A troca pelo equipamento digital ocorreu
devido à agilidade de utilizar uma câmera compacta, pois não haveria mais o Grupo Lata Mágica
para dividir o processo da fotografia pinhole que necessita trocar papel dentro das latas, além de
processar negativos e cópias. Posso afirmar que as fotografias P&B, realizadas na oficina do
CPCA, serviram para destacar o momento em que passei a etnografar o fenômeno através da
produção de documentos fotográficos e essas imagens marcaram visualmente o tempo daquela
oficina.
Depois desse “rito de passagem”, poderia retornar ao contraste das fotografias coloridas x
pinholes em P&B, formando três conjuntos diferenciados de imagens: fotografias digitais dos
integrantes do Grupo Lata Mágica e pinholes feitas pelos alunos no HPSP; fotografias em P&B
obtidas por mim e pinholes feitas pelos alunos no CPCA; além de fotografias digitais realizadas
por mim e fotografias pinhole que os alunos produziram em Porto Alegre. No último conjunto é
possível realizar um percurso que irá passar por áreas centrais da cidade e retornar para a Lomba
do Pinheiro, terminando com o registro da casa dos informantes. Segundo Luiz Eduardo Achutti,
a fotografia apreende o que é da dimensão sensível do fenômeno registrado, possibilitando
aproximar experiências pela emoção contida nas imagens e distanciá-las pelos seus significados,
57
atingindo o objetivo de estruturar corretamente um conjunto de imagens fixas a fim de propô-las
enquanto narração ou relato visual” (ACHUTTI, 2004, p. 84).
2.8 Um cruzamento possível entre sonoridades e fotografias
A partir da restituição do fenômeno pelas imagens fotográficas e sonoras, acabei
construindo o desafio de reunir diversos elementos registrados e organizá-los em narrativas, na
intenção de romper com o tempo cronológico e configurar (RICOEUR, 1994) um texto
etnográfico. Considerando o evento da oficina do HPSP como uma performance cultural
específica, ela apresenta elementos estéticos que devem ser contemplados na transcrição/tradução
de tais narrativas, no intuito de invocar sensações poéticas (LANGDON, 1999) que remetam ao
fenômeno descrito. O fenômeno, nesse caso, pode ser restituído a partir das estéticas; da fala e da
fotografia.
As obtenções sonoras se afirmaram como uma interpretação do momento da oficina
durante a montagem de pequenas histórias. O caráter interpretativo está presente, pois a
pesquisadora faz uma re-configuração daquele evento, deixando as situações representativas, a
recorrência, trabalhando as marcas e os espaços da gravação, reforçando determinados elementos
em função de uma análise interpretativa. Apropriando-me dos elementos necessários a uma
etnografia da fala, ao explorar não o conteúdo do que é dito mas a maneira como é dito,
explorando as formas e as maneiras do falar.
Fotografias e sonoridades: duas linguagens diferenciadas para narrar sobre a experiência
da oficina onde as formas podem refletir o processo de significação. A performance deve ser
encarada como um enquadre do evento que convida a uma reflexão crítica sobre os processos
comunicativos (BAUMAN e BRIGGS, 1990). A fotografia pinhole lida com a estetização do
mundo aparente, enquanto as falas dos alunos lidam com o processo de significação dos mesmos
frente à linguagem fotográfica, caracterizando o uso da linguagem como ação social (Austin apud
BAUMAN e BRIGGS, 1990). A linguagem possui uma posição relevante em relação às
interações sociais e à construção social da realidade. O grupo de alunos, ao vivenciar os
momentos constituintes do ato fotográfico, compartilha, durante esse processo, “de uma definição
comum de realidade, operando em uma mesma província de significado (nos termos de Alfred
58
Schutz apud GUTERRES, 2003) ou interagindo através de uma rede de significados (Clifford
Geertz apud GUTERRES, 2003), de um sistema compartilhado de crenças e valores”
(GUTERRES, 2003, p. 384)
24
.
As narrativas sonoras e fotográficas serão apresentadas em conjunto para o leitor,
aproximando e distanciando as duas linguagens como formas de escrita sobre um certo
fenômeno. As fotografias encerram um sentido por trabalharem com conjuntos e seqüências de
imagens, possibilitando uma
leitura completa, tornando refutável o medo atribuído ao uso da
imagem na construção do texto etnográfico pela abertura de sentidos possíveis. As fotografias
“devem ser objeto de construções sob forma de seqüências e de associações de imagens, tendo
por objetivo treinar o leitor a praticar outras associações para nelas encontrar uma significação”
(ACHUTTI, 2004, p. 117). Assim, a fotografia apresenta-se como uma forma de descrição e
interpretação dos dados obtidos em campo e não apenas como um instrumento de coleta de
informações a fim de realizar um simples inventário da cultura estudada, constituindo verdadeiros
“textos visuais” que o antropólogo constrói para restituir determinada realidade. A fotografia,
segundo Luiz Eduardo Achutti, deve ser encarada como a “materialização de um olhar”, o
“discurso de um olhar” (2004, p. 111).
Na exploração dessas diferentes formas de escrita, envolvendo a construção da narrativa
etnográfica, é preciso considerar que a combinação entre a imagem e o som “produz qualquer
coisa inteiramente específica e nova, análoga a um acorde ou um intervalo em música” (CHION,
1998, p. 220). Portanto, a presente proposta é oferecer ao leitor uma combinação entre as
fotografias e a edição elaborada a partir das sonoridades do evento, onde “a audição é
acompanhada, reforçada, ajudada ou ao contrário deformada ou deturpada, mas em todo caso
transformada por um contexto visual (CHION, 1998, p. 220). E as sonoridades também
24
Liliane Guterres (2003) em sua Tese de Doutorado em Antropologia Social pela UFRGS discute as relações entre
tradição e modernidade sob a ótica da Teoria da Performance ao realizar seu estudo etnográfico no carnaval da
Comparsa de Negros y Lubolos Sinfonía de Ansinaem Montevideo, Uruguai. O trabalho em questão discute a
construção social do cotidiano do Grupo “ao expressar-se performaticamente através de conversações em tom de
brincadeira” (GUTERRES, 2003, p. 383). Essas expressões cotidianas são contempladas nas historietas de campo em
que a autora trabalha a sonoridade (em termos de forma e conteúdo) constitutiva da construção de sentido e
significação daquilo que é comunicado. Essa construção social da realidade, através da fala, pode ser interpretada a
partir dessas conversações em tom de brincadeiras que muitas vezes constituem la joda. “Interagir na calçada
significava comunicar-se com o grupo através de la joda (as zombarias verbais), sentar-se en la vereda, tomar vino,
comer asados, escutar, mirar e compartilhar um cotidiano emergente e pleno de momentos de artisticidade” (2003, p.
383).
59
influenciam a leitura das fotografias apresentadas, fazendo da combinação entre as duas
linguagens uma leitura extremamente particular da situação.
A intenção é criar uma relação, entre as sonoridades e os quadros fotográficos, que
possibilite o mergulho em uma etnografia através da evocação de diferentes linguagens.
Estabelecendo uma “tensão” constante entre imagem e som, onde o recorte da imagem sonora é
mais sutil e o plano sonoro é composto por vários elementos sobrepostos em distâncias diferentes
(VILLAIN, s.d.). A presença de um quadro visível, que é a tela cinematográfica ou o quadro
fotográfico - adaptando o texto de Michel Chion (1998) para o caso da linguagem fotográfica - é
uma das diferenças primordiais ao se trabalhar com a relação entre o áudio e o visual. No
enquadramento sonoro o recorte é bem diferente daquele feito a partir da câmera cinematográfica
ou fotográfica, pois não fora de campo - o microfone capta tudo - e atribuir limites no espaço
ao som pode parecer paradoxal (VILLAIN, s.d., p. 97). O desafio está em estabelecer um
equilíbrio tênue entre as duas linguagens que nos possibilite mergulhar nessa experiência.
60
Capítulo 3
A oficina no Hospital Psiquiátrico São Pedro e as “artes de fazer” uma
fotografia
pinhole
Ao entrar no Hospital Psiquiátrico São Pedro, era preciso atravessar um longo gramado
que separa o portão, na divisa com a Av. Bento Gonçalves, do prédio histórico do Hospital, onde,
nos finais de semanas, aconteciam algumas partidas de futebol como ocorreu nos dias de saídas
de campo da oficina. A construção mais antiga do HPSP parecia um enorme labirinto, separado
em alas e com pequenos pátios internos compartilhados por algumas salas que também podiam
ser acessadas pelo lado de dentro do prédio. Encontra-se nas descrições sobre o Hospital uma
imagem que pode situar espacialmente o leitor frente à construção: “com 12.324 m², o conjunto
arquitetônico centenário é composto por seis pavilhões de dois pavimentos voltados para o sul e
ligados transversalmente por um pavilhão na direção leste-oeste. Com linhas ecléticas, predomina
na área histórica do São Pedro a arquitetura neoclássica” (CHEUICHE, 2004, p. 120).
61
Im. 8 Im. 9
O estado de conservação da construção era desanimador, dependendo dos lugares por
onde se caminhava. Parte da entrada, ocupada pela administração, contrastava com as áreas
condenadas do segundo piso, no interior do pavilhão. Existia uma pequena parcela da
construção que havia sido restaurada e onde funcionava o Memorial da Instituição, no
segundo andar. Um corredor comprido, de pé direito enorme, com pequenas salas de ambos os
lados contendo objetos e livros de registro da história do HPSP. Entre os objetos, diversos
utensílios hospitalares e até o primeiro espelho a que os internos tiveram acesso, pois era um
objeto considerado perigoso e mantido fora do alcance dos pacientes. Olhando no sentido
contrário ao Memorial, havia uma área ainda não restaurada onde era possível ver o estado do
prédio acumulando a passagem do tempo, os corredores de acesso e escadas se encontravam
praticamente em ruínas.
Im.11
Im.11
Im. 10
Im.12
62
Para as aulas teóricas, utilizávamos uma das salas do
Memorial repleta de livros de registro do Hospital,
dispostos em estantes de metal e onde não havia muito
espaço para circulação pois as cadeiras colocadas para os
alunos sentarem ocupavam completamente a área central
da sala.
No primeiro dia, percorremos o trajeto até nossa sala
de aula acompanhados de grande expectativa. O início de
um novo projeto. Mudanças na estrutura da oficina. Um frio na barriga no momento de
revelar quem seria a turma de trabalho pelos próximos encontros. Nesse caso, por estar
começando minha etnografia, eu poderia considerar um frio na barriga em dose dupla. A
primeira aula era um convite aos novatos para passearem pelas possibilidades da linguagem
pinhole, com a apreciação de fotografias feitas por antigos alunos do Grupo. Distorções, efeito
grande-angular, longos tempos de exposição marcando o movimento dos personagens,
enquadramentos perfeitos em uma câmera sem visor, tudo isso constituía uma nova técnica
fotográfica que passava a fazer parte da cultura visual dos participantes. Somente o Seu Egídio
estava presente como nosso ex-aluno de uma região próxima ao HPSP e trazia consigo as
fotografias que havia realizado durante a oficina na Vila Maria da Conceição. Ele não perdeu a
oportunidade de mostrar seu trabalho anterior em pinhole, pois enquanto passávamos os slides
que demonstravam as especificidades da técnica aos alunos, ele, rapidamente, sacou suas
fotografias para explicar a diferença entre um negativo e uma cópia positiva.
Os outros alunos moravam em diversos bairros da cidade, desde os mais próximos aos
mais distantes e três alunos residiam em duas cidades da Região Metropolitana de Porto Alegre.
O casal Marta e Candido morava em São Leopoldo e Cristhiane, aluna de Publicidade e
Propaganda na ESPM e de Artes Plásticas na UFRGS, em Canoas. Gabriela, aluna de Ciências
Sociais, Gustavo, de Agronomia, e Cristopher, aluno de Pós-Graduação em Física, vieram do
interior para estudarem e moravam na CEFAV (Casa do Estudante da UFRGS) que fica no Bairro
Agronomia, próximo ao Bairro Lomba do Pinheiro, situado entre esse último e o Partenon. A
Nidiana, estagiária em Fisioterapia do HPSP, morava em Teresópolis, também um bairro
próximo ao Hospital. Havia os que moravam mais distante como Osvaldo e Edgar, que viviam no
Im. 13
63
Centro, Bianca, no Menino Deus, e Maurício, no Bairro Floresta. A turma, sem dúvidas, era bem
diferente daquilo que havíamos imaginado, pois pensávamos que haveria mais participantes da
comunidade local.
Uma questão nos intrigava; será que Seu Egídio, um senhor aposentado de 67 anos, se
entrosaria com uma turma de alunos mais jovens, na sua maioria com formação universitária?
Marta e Candido estavam na faixa dos cinqüenta, Edgar dos quarenta e os demais, dezessete
alunos, tinham entre vinte e trinta e poucos anos. Comecei a perceber o modo como eles iriam se
relacionar no momento em que Seu Egídio soltou sua primeira piada sobre o momento de
fotografar, “lá na vila, pareciam uns batuqueiros com as latas na encruzilhada”. A turma caiu na
gargalhada e a piada fez tanto sucesso que na aula seguinte, na primeira oportunidade, Seu Egídio
contou-a novamente. Aliás, enquanto um bom contador de histórias, ele cuidava minuciosamente
a hora certa, como se ficasse esperando sua “deixa” no palco para entrar em cena. Quando
percebia ser o momento propício, com a platéia atenta, ele soltava seu repertório.
Alguns alunos também tinham contato anterior com o Grupo Lata gica, Jefferson e
Edgar haviam participado do Dia Mundial da Fotografia Pinhole, em 2002 e, desde então,
tentavam conciliar horários e a localização das oficinas para que pudessem realizar um curso
completo. Edgar queria aprender a fazer fotos em lata desde o colégio, pois, certa vez, o professor
de física havia prometido ensinar aos alunos, mas o ano letivo passou e a foto na lata não saiu da
promessa. “Tinha esperado vinte anos para aprender”, ele contava enquanto dava os últimos
ajustes em sua mais nova câmera, em meio a uma sinfonia de latas sendo marteladas para a
construção dos aparelhos.
Marta havia participado da oficina realizada na Casa de Cultura Mario Quintana, parte do
projeto O Olhar Passageiro, em 2003, uma atividade de quatro dias, mas confessou ter esquecido
as etapas do processo e se inscreveu novamente, pois queria montar um laboratório em casa.
Chegou, juntamente com Candido, seu marido, que veio trazê-la e, como ainda havia lugar na
turma, resolveu aprender pinhole também. Como ele mesmo disse “de motorista a aluno”. Os
dois são professores aposentados na Escola Técnica da UFRGS e Marta se interessava bastante
por trabalhar com arte, conforme ela explicou:
Candido: - A minha (área na Escola técnica da UFRGS) era informática e a área dela era
pedagogia.
Marta: - Na verdade, eu agora tô mais na área das artes, eu faço escultura, trabalho no Atelier
Livre (espaço para produção artística da Secretaria Municipal da Cultura/ Prefeitura de Porto
64
Alegre). Depois que eu aposentei da UFRGS eu ainda trabalhei na educação até dois anos atrás,
trabalhei na Ulbra, dei uns cursos na ESPM, mas daí eu já fazia escultura... assim...
concomitante, mas agora resolvi ficar só...só no que é bom, no que eu gosto mais. Fotografia, eu
também sempre gostei muito. E na Arte, dá pra usar muito isso aí. É isso que eu quero... fazer
essa relação.
Na segunda aula, colocamos uma mesa comprida no corredor do Memorial do HPSP para
que os alunos usassem como apoio na construção das latas. Todos se encontravam ao seu redor,
envolvidos na tarefa de transformar as latas em câmeras enquanto aproveitavam a primeira
oportunidade de conversarem e se conhecerem melhor. Os dois dias iniciais de aula eram uma
primeira aproximação entre os participantes da oficina, tanto entre professores e alunos quanto
entre os alunos. Além de ser o momento para constatar que existe um encantamento da parte de
quem ensina a técnica frente à surpresa do aluno, ao perceber a real possibilidade de fotografar
utilizando uma lata metálica como câmera. Quando a câmera da Bianca ficou pronta, Seu Egídio,
com a experiência de quem havia feito a oficina, entrou em ação e disse que a lata estava
errada porque faltava a fita isolante que ia por fora.
Seu Egídio estava se referindo à ausência do obturador que nada mais é, no caso da
pinhole, que um pedaço de fita isolante na frente do furinho, permitindo a entrada da luz no
momento em que o fotógrafo deseja realizar a sua imagem. Na câmera convencional, esse papel é
desempenhado pelo botão que, ao ser clicado, no instante da fotografia, permite que a luz entre
pela objetiva e atinja o filme fotográfico. Ao trocar um botão por uma fita isolante, pode-se
pensar em uma aproximação da técnica pinhole com as denominadas “artes de fazer” (DE
CERTEAU, 2004), pois construir uma câmera fotográfica é, de certa maneira, lidar com as
“táticas” cotidianas de subversão das expectativas do sistema de produção, com suas câmeras
digitais e suas imagens instantâneas. A fotografia pinhole pode ser considerada como uma das
“‘maneiras de fazer’ que constituem as mil práticas pelas quais os usuários se reapropriam do
espaço organizado pelas técnicas da produção sócio-cultural” (DE CERTEAU, 2004, p. 41).
Nas oficinas do Projeto Lata Mágica, as latas utilizadas para construção das câmeras eram
maiores que as habituais latas de leite em pó usadas nos cursos anteriores do Grupo. Em função
das exposições previstas no projeto, optamos por recipientes que permitissem o uso de negativos
maiores e solicitamos a doação de latas de tinta para uma fábrica da cidade. Assim, o negativo
seria um papel fotográfico preto e branco, 18x24cm, o que possibilitaria uma cópia do mesmo
tamanho, ideal para expor ao final das oficinas. Ao utilizar um papel fotográfico como negativo
65
Im. 14 Im. 15
Im. 16 Im. 17
Im. 18 Im. 19
Im. 20 Im. 21
66
não se pode fazer cópias maiores que a sua matriz, ou seja, não é possível realizar uma ampliação
fotográfica.
O papel, ao contrário do filme fotográfico, não possui uma base transparente que deixe a
luz passar por ele no ampliador e projete uma imagem maior que a original, do tamanho desejado
para a cópia. No caso das pinholes, realizadas com papel fotográfico, o tamanho do negativo é o
mesmo tamanho da cópia final.
67
3.1 Um novo ato fotográfico se apresenta
Escutar faixa sonora n. 1.
Im. 22
Im. 23
68
As saídas de campo são os momentos mais importantes da oficina, afinal de contas, os
alunos transformam a experiência em imagens fotográficas representativas daquilo que viveram
na descoberta da técnica fotográfica pinhole. Muita expectativa em ver uma fotografia que sai de
uma simples lata, fazendo crer que só ao ver, com os próprios olhos, é que se acredita na real
possibilidade do fenômeno. As saídas de campo da oficina ocorreram em dois sábados à tarde, ao
contrário das demais aulas que eram realizadas terças e quintas à noite, pois não é possível fazer
fotografias noturnas em decorrência do longo tempo de exposição
25
para fotografias pinhole que
utilizam papel fotográfico como negativos.
Nas aulas de obtenção de imagens, deveríamos percorrer um trajeto diferenciado para
chegarmos ao espaço da oficina. Ao invés de atravessarmos em diagonal, da guarita de acesso até
a lateral do prédio histórico, subindo a escadaria da parte administrativa, deveríamos percorrer a
fachada da construção que está situada paralelamente ao muro que separa a Instituição da
calçada, na Avenida Bento Gonçalves. Na entrada de um dos pequenos pátios internos, uma placa
indicava o espaço da Oficina de Criatividade Nise da Silveira, homenagem a psiquiatra brasileira
que instaurou no país o uso terapêutico do processo artístico. Um portão de ferro pesado e antigo,
preso por uma corrente com cadeado, controlava a passagem ao pequeno pátio que possuía, no
seu entorno, duas entradas para a área interna do pavilhão. As paredes externas ofereciam
vestígios das expressões artísticas que ali habitavam, pois eram repletas de pinturas à tinta
colorida e escritos deixados por freqüentadores das inúmeras atividades que ocorriam naquela
área. Além das oficinas para os internos, no espaço Nise da Silveira, outras atividades
utilizaram essa estrutura da Instituição, como as oficinas do projeto Descentralização da Cultura.
Após passar pelo portão de ferro, subindo os degraus do pequeno lance de escadas, à
esquerda estava situada a sala ocupada pela Oficina de Criatividade que o Grupo Lata Mágica
usou como sala de aula durante o ano de 2002. no lado contrário à entrada do pátio, estava
uma pequena salinha que antecedia o espaço do nosso laboratório fotográfico. Ao lado do
laboratório, uma sala com uma cama, cadeira de rodas e restos da estrutura daquilo que um dia
deveria ter sido um aparelho de radiografia. A todo tempo, objetos nos lembravam que estávamos
25
O tempo de exposição na fotografia pinhole aumenta conforme três fatores principais: em primeiro lugar, o
tamanho do furo que é muito pequeno para possibilitar a formação da imagem sem o auxílio de lentes e que restringe
a entrada dos feixes luminosos. Em segundo lugar, o material fotossensível utilizado como suporte para a “escrita da
luz” , o papel fotográfico é menos sensível que o filme fotográfico, precisando de mais tempo para a luz seja
impressa. Em terceiro lugar está a condição da luz, pois uma fotografia pinhole com papel fotográfico preto e branco
pode levar de trinta segundos a alguns dias para ser feita, dependendo da situação luminosa.
69
ocupando o espaço de um Hospital Psiquiátrico que possuía todas as dependências que garantiam
a autonomia em relação ao seu funcionamento, inclusive um necrotério situado ao lado do prédio
histórico.
Nosso laboratório fotográfico era a antiga sala de revelação de radiografias do Hospital,
explicando a presença da estranha estrutura na sala ao lado, toda pintada de preto com uma
bancada que ocupava toda a parede defronte à porta. Não precisaríamos improvisar um espaço
vedado à entrada da luz para o manuseio do suporte fotossensível, o papel fotográfico. Para a
revelação das fotografias, as três bandejas de químicos estavam dispostas lado a lado sobre o
tampo metálico, junto da pia, local onde as imagens eram lavadas após serem processadas. Sendo
que o laboratório nessa oficina, por não ser um espaço improvisado, possuía uma marca sonora
constante, a presença de um exaustor que provocava um barulho de motor preenchendo a cena.
Melhor para todos que deveriam permanecer ali dentro durante a revelação dos negativos, em
tardes escaldantes do verão porto-alegrense.
Im. 24 Im. 25 Im. 26
Im. 27 Im. 28 Im. 29
Im. 30 Im. 31 Im. 32
70
No dia 27 de novembro de 2004, finalmente os alunos obteriam suas primeiras “fotos na
lata”, apesar do dia nublado e sem sol que poderia elevar consideravelmente o tempo para se
“tirar” uma fotografia. O tempo nublado fazia com que a luminosidade variasse constantemente,
o sol aparecia por alguns instantes para depois ser coberto pelas nuvens que escureciam ou
clareavam o ambiente em uma infinidade de combinações. Fotografar com uma câmera pinhole
nesses termos pode ser bastante difícil. Os tempos de exposição variam, inclusive, durante a
obtenção de uma única imagem. Se o sol aparece no decorrer da exposição, o tempo da fotografia
deve ser imediatamente corrigido, senão ela pode literalmente “torrar” devido ao excesso de
luminosidade. Essa situação se apresentou durante a primeira e a segunda saídas de campo,
provocando verdadeiros malabarismos dos fotógrafos para driblar a variação do tempo e um
grande exercício de paciência para a obtenção de um resultado satisfatório.
Fotografar também propiciava uma relação de maior proximidade entre alunos e entre
alunos e professores. Ao compartilhar o momento das obtenções fotográficas e das revelações era
possível aprender os nomes dos colegas e conhecer um pouco mais sobre cada um, que as
possibilidades de conversa são maiores e de maneira mais próxima do que em sala de aula. Os
alunos começaram a se aproximar para trocarem idéias sobre as suas fotografias e para fazerem
brincadeiras, que poderiam ser motivadas até pela presença da pesquisadora em campo com o
equipamento de captação de som: microfone, fones de ouvido e fios, muitos fios. Ao me
aproximar com toda aquela parafernália, o Maurício me chamava de “Repórter Esso”, um antigo
programa jornalístico do rádio. Eu, em seguida, respondia: “sem segredos nessa oficina”,
deixando, muitas vezes, eles escutarem as situações registradas. As interações, considerando uma
estrutura participativa do fenômeno social, têm profundas implicações em esculpir relações
sociais e, na oficina de fotografia pinhole, os papéis de aluno e professor são uma construção
negociada ao longo da atividade.
Para saber o tempo de exposição do qual deveríamos partir, na primeira tarde de
atividades, convidamos os alunos para que fizéssemos uma fotografia pinhole da turma, deixando
três vezes o tempo de exposição em um dia de sol forte, trinta segundos. Todos mantiveram a
pose durante a realização da imagem para poderem ser identificados posteriormente. Aqueles que
não permanecessem imóveis durante um minuto e meio sairiam como fantasmas ou borrões na
fotografia devido ao registro dos movimentos na impressão fotográfica. Ao invés de um instante
ser capturado, como em uma câmera fotográfica convencional, um intervalo de tempo maior é
71
registrado em uma única fotografia. O tempo necessário para se obter uma fotografia pinhole
contrasta com os instantes fotográficos da linguagem convencional utilizada pelas atuais câmeras
amadoras e profissionais. Essa experiência de representação do mundo visível oferece um outro
tempo ao produtor e ao objeto retratado. Naquele dia, definimos o tempo após revelarmos o
negativo da fotografia com a turma e descobrirmos que a exposição havia sido correta para a
condição luminosa daquele momento. Após esse primeiro teste, as latas de todos os alunos foram
carregadas com papel fotográfico e eles saíram a procura de assunto para suas primeiras imagens
pinhole.
Na verdade, as imagens captadas traduzem momentos transcorridos em frente à lata, ao
contrário de instantes. Uma cena inteira ocorre diante da câmera fotográfica para depois aparecer
em uma única imagem, propondo uma dilatação temporal que não é possível ao nosso olho e que
se conforma como uma especificidade do aparelho. A “cena real” pode ser vista por quem a
fotografou, pois seu resultado final não contempla uma ilusão especular, que segundo Arlindo
Machado (1984) seria a vocação ideológica da fotografia. A fotografia torna-se, afirmativamente,
uma interpretação do momento contemplado pelo fotógrafo, fazendo valer a consideração de E.
H. Gombrich sobre o artista que “não pode transcrever o que vê, apenas traduzi-lo para os termos
do meio que utiliza” (1995, p. 28).
Assim, iniciaram as tentativas de traduzir as formas do visível para fotografias em preto e
branco, mostrando distorções devido à curvatura da lata e a outros fatores que não estão sob
controle do fotógrafo, como é o caso da ausência de visor para o enquadramento. O ato
fotográfico pinhole implica em decidir o quê fotografar, apoiar a lata em um lugar firme para não
tremer durante o tempo de exposição, retirar a fita isolante que tapa o furinho, contar o tempo de
exposição, fechar a abertura da lata e retornar ao laboratório para revelar o negativo e trocar o
papel fotográfico que funciona como tal. A lata não possui mecanismo para passagem do filme,
sendo assim é preciso fotografar e substituir o papel fotográfico exposto por um virgem para a
produção de uma nova imagem.
72
3.2 A construção das primeiras imagens
Escutar faixa sonora n. 2.
Im. 33 Im. 34
Im. 35
73
Lugares e objetos do Hospital, retratos e formas do prédio histórico começaram a povoar
as imagens produzidas, utilizando os elementos e os cenários disponíveis para a escolha do
assunto das fotografias. Alguns alunos optaram pelo retrato, apesar do tempo de exposição ter
variado entre um e cinco minutos nas duas saídas de campo. Mas o fato de estarmos nas
dependências do HPSP era lembrado mesmo nas imagens que se dedicavam a registrar os
participantes. O prédio do Hospital aparecia no fundo das imagens como um lembrete ao
espectador. Marta e Candido fizeram um retrato dos dois em frente ao prédio histórico do HPSP,
apesar de terem explorado recantos do Hospital como Marta no prédio do necrotério e Candido
com uma palmeira, fotografada com a lata no sentido vertical ao invés de apoiada normalmente
no chão para obter uma imagem horizontal. Sobre sua fotografia, Marta esclarece:
“Eu quis colocar nós os dois aqui. No sentido que o Edgar falou, do humano e não só o prédio, a
arquitetura, enfim, a parte histórica que é bonita e cultural do lugar. Mas, também a gente se
colocar dentro desse tempo e desse espaço aqui.”
Im. 36
Osvaldo, o Vado, também propôs uma leitura do seu retrato no gramado do HPSP, onde
aparecia a Avenida Bento Gonçalves ao fundo. “Mas é que isso aqui seria tipo uma visão do
São Pedro. Não minha do São Pedro. Mas, do São Pedro de mim”. Cristopher fez um retrato
seu sentado à frente da parede lateral do prédio e Seu Egídio posou sentado em dos bancos
dispostos na calçada, junto à fachada da construção.
74
Im. 37 Im. 38
Outra opção era levar a lata para casa, com a última fotografia ainda por bater, trazendo-a
de volta na aula de laboratório em que eram feitos os positivos para que o negativo fosse
revelado. Vado, ao levar a câmera carregada para casa, fotografou o seu avô sentado em um
banco de praça e fez uma cópia para oferecer ao modelo. Era dia do aniversário do retratado e
ele sairia da aula com o presente em mãos. Seu Egídio também queria levar a câmera pra casa
para fotografar a família e trouxe, para revelar em aula, um retrato seu juntamente com a
esposa e um de seus filhos. Sua intenção era registrar sua família, como havia dito em aula,
que é bem numerosa e mora, parte dela, em uma vila da periferia de Porto Alegre, lugar onde
as condições de vida são difíceis, mas que não o fazem desistir de registrar todos os momentos
possíveis, tanto com a câmera convencional quanto com a câmera pinhole. Possui álbuns
fotográficos de inúmeros momentos da sua vida, como relata, levando a mão até a cintura para
mostrar a altura da pilha de fotografias na sua casa. Inclusive, Seu Egídio fazia questão de ser
sempre fotografado pelas câmeras digitais que o Rafael e o Guilherme, parceiros de Grupo,
haviam levado para registrar os bastidores da oficina.
Im. 39
75
A maioria das imagens teve como assunto as dependências do Hospital Psiquiátrico São
Pedro, explorando a arquitetura e os detalhes do prédio mais antigo da Instituição. Assim como
Vado voltou sua câmera para fotografar a visão do Hospital, Gabriela também foi em busca de
lugares pouco explorados pela maioria dos alunos. Colocou a câmera para registrar um mosaico
no chão com a inscrição “HPSPe, em outra oportunidade, fotografou os pavilhões mais novos
do Hospital, ainda em atividade e que não possuem a mesma riqueza arquitetônica. Maísa e os
alunos comentavam a fotografia que ela havia registrado:
Edgar: A Gabí tirou umas fotos muito bonitas...
Maísa (Lata Mágica): Essa tá lindíssima! Eu achei legal bem isso, identificando o hospital
Edgar: O enquadramento ficou bem no centro da foto. Tudo. A distância daqui.
Jefferson: Ficou muito bacana. Ela insistiu naquele lado que o pessoal não tava fotografando
muito. Acho que ela tentou tirar essa foto uma outra vez...
Im. 40
Um Hospital Psiquiátrico não era um lugar cotidiano para a maioria das pessoas que
freqüentavam a oficina. Acredito que somente Nidiana era familiarizada com o ambiente, por
trabalhar no Hospital. Os internos circulavam livremente pelo pátio durante o dia e era deixar
o portão de acesso ao laboratório aberto para que, volta e meia, aparecesse um interno,
geralmente o Paulinho, que acabou conhecido da turma. No início, eu nunca sabia o quê fazer
quando ele resolvia se instalar na ante-sala do laboratório, um lugar perigoso, pois a sala de
revelação não possuía chave e ele poderia interromper o processamento dos negativos colocando
a perder as imagens dos alunos. Depois, aprendi com a Nidi que ele, normalmente, queria estar na
companhia das pessoas, assim era convidá-lo ao sair da sala para que viesse junto, mas se
76
alguém permanecesse no local, provavelmente, ele faria companhia. Ele, ainda, posou junto à
turma na fotografia pinhole realizada na primeira saída de campo e ajudou a Cristhiane a
encontrar o local da oficina. Ela chegou no HPSP sem saber a direção do laboratório, os guardas
não sabiam informá-la, foi que o Paulinho apareceu, puxando-a pela mão e a conduziu até o
espaço da Oficina de Criatividade.
Essa convivência com os internos e os espaços do São Pedro provocou muitas reflexões
que foram transferidas para as fotografias. Edgar, funcionário da PROCERGS (Cia. de
Processamento de Dados do RS) com formação em Informática e Publicidade e Propaganda,
possuía muitos amigos entre artistas plásticos da cidade, mantendo uma proximidade com a arte
tanto pela sua formação como por seu círculo de amizades. A fotografia, para o Edgar, no espaço
do São Pedro, exigia uma composição planejada. Não fotografava um cenário pronto. Ele o
construía de acordo com a idéia que pensava em transmitir. Chinelos dos seus colegas,
amontoados em uma imagem por serem os mesmos que os internos utilizavam; um objeto de
metal retorcido, construído por ele em primeiro plano com o HPSP ao fundo; uma grade
representando a visão dos internos do lado de dentro dos pavilhões e uma cadeira de rodas ao
lado de uma antiga luminária compunham suas fotografias. Nunca havia pessoas em suas
imagens, aliás, creio que a presença humana nas suas fotografias estava, justamente, na ausência.
Carlos, estudante de informática e funcionário de uma empresa de telecomunicações, aproveitou
para também “montar” sua imagem, mas incluiu a presença de uma pessoa para representar a
experiência de estar do lado de dentro de uma Instituição Psiquiátrica, passando a sensação de
uma pessoa aprisionada.
Im. 41 Im. 42
77
Im. 43
Nidi deixava claro seu envolvimento profissional e afetivo em relação à instituição
quando se referia às suas intenções no momento de fotografar. Contava que o Hospital já possuíra
5.000 internos e que, atualmente, havia setecentos. Mencionou não ter ficado receosa de
trabalhar ali, preferindo fazer estágio nesse hospital por ser mais próximo da sua casa. Assim,
imaginava suas imagens de acordo com seu cotidiano:
Nidiana: “Outra foto que eu tirei foi da caldeira que tinha falado, que é um lugar que eu passo
todo dia e sempre quis tirar uma foto. Não achei que ficou muito legal, podia ter ficado melhor,
eu ainda passo por ali e quero ter uma foto. Queria ter tirado mais de perto... não sei... mais pra
madeira. Aí eu fui tirar do galpão, que tão construindo um galpão lá atrás e é bem legal, que
aqui no hospital tem almoço comemorativo pra arrecadar fundos pro galpão, um assunto que tá
bem... tá em alta aqui. O galpão. Tá todo mundo querendo o galpão. Aí eu queria tirar uma foto
da construção do galpão pra depois ficar pra história, como ele tava antes, construindo... mas aí
não ficou legal... Do lado do galpão, tem uma caixa d’água, eu passei do lado dela e resolvi
passar por baixo depois e vi que ia ficar uma foto bem legal. Resolvi tirar e achei que foi a foto
mais legal. A foto mais diferente que eu tirei”.
Im. 44
Im. 45
78
3.3 Uma linguagem com características específicas
Im. 46 Im. 47 Im. 48
Além da ausência de visor influenciar no gesto fotográfico
pinhole
porque muda a relação
com o posicionamento da câmera, a relação com o ambiente do o Pedro refletia na busca dos
participantes por um lugar diferente para apoiar a câmera e ter como resultado um ângulo
inesperado na fotografia. Carlos fotografou uma planta de dentro de um buraco. Ponto de vista
praticamente impossível se ele quisesse manter a câmera na altura dos olhos e tivesse que entrar
no buraco para fotografar.
“Na verdade, eu não tinha visto o buraco. O buraco eu vi depois,
porque do lado dessa palmeira tem...uma outra planta...Eu queria pegar daqui debaixo, mas que
pegasse as duas, só que não tinha como eu deixar apoiado ali, daí eu olhei o buraco ...”
Im. 49
Fotografar com a câmera pinhole não significa apenas escolher um objeto para fotografar.
Se não houver um lugar para apoiar a lata e deixá-la firme, os planos da composição podem ser
alterados. O ato fotográfico e seus gestos constitutivos envolvidos na produção de uma imagem
são igualmente importantes para análise quanto ao resultado fotográfico obtido. A câmera, nesse
79
caso, não é levada ao olho para enquadrar um objeto através do visor porque não existe esse
elemento em sua constituição. O gesto torna-se outro, permitindo uma mudança na concepção
sobre a técnica e o ato de fotografar, pois existe uma outra performance corporal para o fotógrafo
pinhole. Para Pierre Bourdieu (1965, p. 37) uma outra prática supõe um outro equipamento, mas
um outro equipamento supõe uma outra atitude, outra condição de existência.
A ausência do visor e, conseqüentemente, o menor controle sobre o enquadramento da
imagem, fizeram com que alguns alunos perseguissem, implacáveis, a composição que haviam
sonhado. Seu Egídio, uma das vezes que o acompanhei durante a obtenção fotográfica,
atravessou o gramado do HPSP pela segunda vez para repetir a imagem que havia ficado
superexposta. Brincava comigo e com os dois integrantes do BIEV (Banco de Imagens Visuais)
que documentavam a saída com uma câmera de vídeo: “Vão me perseguir é? Não me persegue!
Vou voltar , foi errada. Foi muito tempo. Eu quero aquela frente, igual àquela do alemão
26
”.
Percorreu o extenso gramado para refazer a imagem que desejava obter, apesar do calor intenso
que fazia na tarde da segunda saída de campo e da dor na perna que dificultava seu caminhar.
A insistência do Jefferson em fotografar uma porta do Hospital rendeu mais uma piada no
repertório do Seu Egídio. O fotógrafo estaria apaixonado pela porta e seria encontrado aos beijos
com a “amada” a qualquer instante. Iniciou sua saga na última imagem da primeira tarde de
obtenções - que ficou superexposta - conseguindo aproximar-se da concepção que havia criado só
na terceira tentativa, já na segunda saída de campo. No final, ele mesmo reconhecia sua
insistência:
Jefferson: “No primeiro dia fiz uma foto da porta, depois, no segundo, tentei e enquadrei muito
mal, primeiro fui pra cima, depois fui pra baixo, não tava acertando. Na terceira tentativa ela já
ficou um pouco melhor. Não ficou exatamente o enquadramento que eu queria, mas... é a foto da
exposição... até pela insistência.”
Im. 50 Im. 51 Im. 52
26
Como Seu Egídio se referia ao Edgar.
80
Im. 53
Os alunos deveriam escolher duas imagens para exporem no HPSP e apenas uma para
estar no catálogo e na exposição final do Projeto
Lata Mágica
. Jefferson, entre uma e outra
tentativa de fotografar a porta, fez uma imagem muito boa de um ângulo inusitado. Havia
fotografado debaixo de um banco, em uma perspectiva que deixava a estrutura do banco
emoldurando detalhes do ladrilho antigo do piso que contorna o prédio histórico do Hospital.
Essa fotografia estava escolhida, segundo ele, para as mostras, faltando escolher a sua
companheira para estar na exposição do São Pedro. entrou a relação afetiva, que o autor
admitia, com a tão sonhada fotografia da porta. Optou por ela em comparação com uma terceira
imagem que o havia surpreendido. A insistência e seu envolvimento pesaram na decisão.
Im. 54 Im. 55
Edgar, na busca de suas imagens, refez mais de uma fotografia. A cadeira de rodas ao lado
da luminária precisou ser feita novamente após ter ficado subexposta, ou seja, necessitava de
mais luz para ganhar riqueza de detalhes no negativo. No momento de revelar a segunda versão
para a sua imagem, Edgar ganhou a companhia de outro insistente, Jefferson, que também
81
aguardava pela revelação de uma tentativa em retratar a famosa porta, e admitiu: “só tem os
cabeça dura aqui”. Ao final da rodada no laboratório, o clima era de vitória, pois os dois
venceram, literalmente, na insistência. E não foi somente essa imagem que o Ed, como era
chamado pelos colegas, precisou repetir:
Edgar: Essa é a primeira foto que eu tentei fazer sábado passado.
Rafael (Lata Mágica): Bah! Precisou todo um curso... A grade de frente, o hospital atrás. Me
lembra um pouco aquela do solar paraíso, de dentro da lixeira.
Edgar: Isso! Exatamente... E essa grade também, ela foi o primeiro objeto que eu achei quando
a gente começou o curso aqui. No primeiro dia, eu raspei, limpei, tava toda suja. Daí, eu guardei
num cantinho.
Rafael: Tu fez as fotos e transformou o ambiente. Ficou muito boa. Meus Parabéns! Isso aí,
Grande Sessão!
Os buracos de alfinete das câmeras construídas na oficina podem apresentar defeitos por
serem feitos manualmente. Os furinhos devem ter, em média, meio milímetro de diâmetro. Como
não possuíamos outra maneira de fazê-los, perfuramos em alumínio com a ponta de uma agulha
ou alfinete. Às vezes saía um furo bem maior do que deveria, sendo imediatamente descartado.
Também havia aqueles que pareciam perfeitos e eram, na verdade, menores do que deveriam,
dificultando a formação da imagem. Foi o que ocorreu com Edgar e Nidiana durante a primeira
saída de campo. Edgar tinha feito a fotografia da grade e não havia obtido um bom resultado,
assim como Nidi nas suas imagens. Para piorar, o dia nublado dificultava a situação, pois não
tínhamos certeza se o problema estava no furo ou em acertar o tempo de exposição. Ela
conseguiu fazer sua primeira fotografia depois que consertamos a câmera, já no final do primeiro
dia de saída de campo. Edgar ainda obteve uma única imagem na primeira saída, antes que
arrumássemos a lata que estava produzindo uma imagem defeituosa, confirmando que havia
algum impedimento para que a luz a formasse corretamente. Se fotografar com pinhole envolve
tantas expectativas, imaginem um problema na câmera e um dia inteiro sem conseguir obter
imagens. Em compensação, no segundo dia de fotografias, tanto Edgar como Nidi acertaram
praticamente todas as tentativas.
82
3.4 É preciso controlar a ansiedade...
Escutar faixa sonora n. 3.
Im. 56 Im. 57 Im. 58
Im. 59 Im. 60
Im. 61
83
Todos alunos lidam com a expectativa em torno de suas imagens, desde o momento em
que as planejam até serem reveladas no laboratório. A primeira imagem pode ser aquela mais
aguardada por confirmar a história de que a lata faz fotografias. Vado foi um dos poucos alunos,
ao longo da trajetória do Grupo Lata gica, que parecia não se importar com o erro, um fator
muitas vezes presente no ato fotográfico pinhole. Durante a revelação da sua primeira fotografia,
afirmou uma relação muito específica em relação aos erros e acertos: louco pra ver essa
aqui. Tem gente que vai ficar u m a h o r a procurando a foto ali. É só testar...Quer se formar na
primeira foto. Eu acho legal até não dar certo, sabe? Pra ver assim.: - Oh, não deu certo, então
tem que...” E ao ouvir minha resposta, que essa não era uma atitude comum dos alunos, disse
mais uma vez: “Não. Não, tem que ser... Eu fui ali só pra testar... Fazer. Ver como é”.
Assistir ao Vado conversar com Maurício, seu amigo e colega de oficina, era perceber
essa diferença de ponto de vista. Maurício, que é fotógrafo, colocava uma expectativa muito
grande em relação ao enquadramento das suas imagens, parecendo querer um domínio que não é
possível com a câmera pinhole. Fez uma fotografia do necrotério, onde a cruz que aparecia
entalhada na porta ficou cortada na imagem, se assemelhando a letra “t”. Vado olhou para a
imagem e considerou: “Essa tua ficou muito boa!”. E Maurício, meio duvidoso do colega,
mencionou que a cruz havia sido cortada, ao que Vado respondeu: “Tá, mas é que ficou
legal!”.
Im. 62
Estudante de arquitetura, Bianca também parecia não concordar com a filosofia
“Osvaldiana” de aceitação das imagens. Na primeira oportunidade saiu frustrada com o
enquadramento das imagens. Buscou nas formas da construção do São Pedro inspiração para suas
composições na tentativa de fotografar alguns detalhes simetricamente. Não aceitava facilmente o
portão que saíra deslocado para um dos lados da imagem quando, na sua opinião, deveria ocupar
o centro. Sua fotografia de que mais gostou mostrava um lado da fachada do São Pedro, em um
84
ângulo que a fez deixar a lata praticamente paralela ao assunto a ser fotografado, comprovando a
“capacidade grande-angular” provocada pela ausência de lente, com a conseqüente interferência
na distância focal.“Essa foi a última, pegou chuva, baixou o sol e...eu gostei assim. Botei no
chão, ela ficou quase de pé.Na sua avaliação, acreditava que o nervosismo do primeiro dia
dificultou a produção de suas imagens e, seguindo os conselhos do Seu Egídio de que era ir
e fazer, repensou sua postura em relação às fotografias.
Bianca: “Acho que eu posso dizer assim... que da primeira saída pra segunda, a segunda foi
melhor, fiquei mais satisfeita. E é engraçado que no primeiro sábado quando a gente saía, eu
ficava nervosa. Ah, agora eu vou abrir, agora fechar e enchia a lata de tijolo, pedra em volta, em
cima. Daí a segunda, já não esquentei muito com isso, agora é o momento de abrir e de fechar, e
também deixei ela bem mais solta, então parece que daí... as coisas aconteceram melhores.
Claro, não perfeitas...”
Im. 63 Im. 64
A segunda saída de campo ocorreu num sábado muito quente, dia 04 de dezembro de
2004, que acabou com uma forte chuva no início da noite. Quase ninguém se animava a
permanecer na rua nos momentos em que não estivesse a procura do quê fotografar. Assim, a
sala de espera, que separava o pátio do laboratório, tornou-se o ponto preferido para esperar a fila
do quarto escuro seguir seu curso. Para Seu Egídio, só faltava uma caixa de
Brahma
que
amenizasse a espera. Edgar havia levado bolachas, chocolates e refrigerantes para o lanche da
tarde, fato que chamou atenção do nosso amigo Paulinho que não se afastava por nada dos
“quitutes”. A espera pelo momento de revelar as imagens era marcada pela sociabilidade entre os
participantes que, agora bem próximos, se chamavam por apelidos e caprichavam nas
85
brincadeiras. Seu Egídio parou na porta do laboratório e, com as mãos na cintura, disparou:
“pode entrar que quem manda aqui sou eu”, caindo na gargalhada em seguida.
Não a relação entre os alunos era em tom de descontração mas igualmente com os
professores e, conseqüentemente, com a pesquisadora em campo. Edgar resolveu reunir os
colegas para reivindicarem uma fotografia a mais para cada participante, pois alguns não tinham
comparecido à saída de campo. Nós da Associação dos Profissionais de Pinhole, APP, vamos
conseguir mais uma foto hoje”. Respondemos que nos reuniríamos como Grupo para decidir
sobre a situação e a reposta veio num tom irônico: “Vocês são minoria...A gente também vai se
reunir no lado de fora..” Demonstrando que, na oficina de pinhole, os papéis de aluno e
professor são uma construção negociada e atualizada pela presença das brincadeiras ao longo da
atividade.
Havia explicado minha pesquisa numa das primeiras aulas e todos haviam colaborado na
resposta às minhas perguntas e à presença de equipamentos de registro sonoro e em vídeo como
parte do trabalho. Centrei, durante a oficina do HPSP, minhas atenções na relação dos alunos
com o ato fotográfico e as rupturas provocadas em relação ao ato convencional. Perguntava
sempre o quê haviam fotografado, suas intenções e expectativas em relação às imagens. À
medida que fui encontrando suas especificidades nas relações com a fotografia pinhole, passei a
me preocupar com a constituição dos seus estilos de vida e visões de mundo (GEERTZ, 1989)
como configuradores de olhares.
Im. 65 Im. 66 Im. 67
Im. 68 Im. 69
86
3.5 O espaço e tempo do laboratório fotográfico
Escutar faixa sonora n. 4.
Im. 70 Im. 71
Im. 72 Im. 73
Im. 74 Im. 75
87
O laboratório para o processamento de papel fotográfico preto e branco é um lugar escuro,
iluminado apenas por uma fraca lâmpada vermelha para que nada comprometa o material
sensível à luz. Para muitos fotógrafos é um local familiar, mesmo em laboratórios alheios aos
seus, pela sua escuridão característica em que se observa um determinado roteiro de
procedimentos manuais para executar as tarefas incorporadas ao fazer fotográfico. Para quem
registra apenas festas de família e viagens, com câmeras compactas, a transformação de um rolo
de filme em “imagens reais” se em uma “outra dimensão”, a do laboratório comercial, o mini-
lab, onde o evento da revelação transcorre alheio ao seu controle ou interferência. Durante a
oficina, os quatro integrantes do Grupo Lata Mágica se revezavam nas tarefas de revelação,
permanecendo sempre dois responsáveis no laboratório, um para a manipulação dos químicos e
outro encarregado do papel fotográfico. Eram substituídos a cada duas rodadas que incluíam a
presença de dois alunos para o processamento das fotografias.
O laboratório se apresentava, à maioria dos alunos da oficina, como um espaço não
conhecido e escuro, refletindo esse estranhamento através de mais brincadeiras e piadas.
Acompanhavam o processo ansiosos para saberem se estava tudo certo com suas fotografias. É
sempre emocionante ver a imagem surgir vagarosamente sob a ão do revelador - mesmo para
quem já está acostumado ao processo - pois envolve a expectativa por ser uma nova imagem. Os
movimentos podiam ser acompanhados apenas pelas suas sonoridades; as latas sendo abertas ou
fechadas, o barulho constante do exaustor e a água caindo sobre a bancada de metal, as pinças
metálicas utilizadas para segurar o papel batendo na bancada, o papel sendo retirado da caixa
onde é guardado. Mesmo no escuro, existia uma comunicação verbal baseada na visualização
precária do que estava sendo revelado. As brincadeiras exploravam interjeições e repetições na
fala dos alunos justamente pela ausência de luminosidade no local. As emoções eram
transpassadas através de interjeições bem marcadas de espanto, surpresa ou alegria ao
perceberem a imagem se formando no mergulho do revelador. Depois que colocavam a foto
revelada no fixador e garantiam que ela pudesse ser exposta à luz, chegava a hora de realmente
saberem o que estava registrado sobre o papel fotográfico, momentos em que a comemoração era
grande pelos resultados obtidos.
Após fotografar e passar pelo processamento, era preciso escolher quais imagens
seriam transformadas em positivos. Nas aulas, após as saídas de campo, fazíamos as cópias
das fotografias escolhidas pelos alunos, ocupando novamente o espaço do laboratório.
88
Momentos repetidos de agitação e ansiedade, envolvendo expectativas, com todos falando ao
mesmo tempo sobre as imagens enquanto escolhiam quais seriam copiadas. No negativo, a
imagem aparece ao contrário nas suas cores, o céu preto e as árvores brancas, por exemplo. A
ação da luz escurece o sal de prata presente na superfície fotossensível do papel fotográfico,
fazendo com que as zonas com maior presença luminosa fiquem escuras, como no caso do
céu. Fazer o positivo é simplesmente inverter essa situação, formando as imagens com
tonalidades semelhantes às que enxergamos e com as cores sendo traduzidas através de uma
escala de tons de cinza.
3.6 Era essa a imagem imaginada?
Os alunos geralmente ficavam em dúvida sobre a melhor escolha, procurando, através de
muitas perguntas, antecipar quais negativos responderiam às expectativas quando da
transformação da imagem em positivo. Nesse momento, pesavam aspectos técnicos que
envolviam a quantidade de detalhes presentes no negativo, decorrente do tempo de exposição no
momento da obtenção fotográfica, além das relações afetivas com determinadas imagens. Um
lugar representativo, um retrato que tenha agradado ao seu autor, uma aposta em um
enquadramento, a insistência em produzir uma imagem cuidadosamente planejada foram
elementos considerados nas escolhas.
Para a tarefa de editarem as fotografias da exposição, os professores indicavam a busca da
conciliação entre técnica fotográfica, condição do negativo e intenção estética e narrativa do
autor. Deveriam avaliar, também, o conjunto das imagens de acordo com o que os colegas
fotografaram e escolheram, mas o mais importante seria optarem por aquelas fotografias
significativas do processo da oficina e do aprendizado com a técnica pinhole. Essas aulas se
tornavam o momento propício para que os alunos avaliassem os resultados das saídas e a
produção dos colegas, pois os negativos circulavam livremente pela sala de espera do laboratório
enquanto entravam em duplas para mais uma rodada.
Maurício: Ô Seu Egídio, cadê as tuas fotos?
S. Egídio: As minhas tão aqui...
Maurício: Ah! Não vai mostrar, não?
S. Egídio: Tão muito feias por isso que eu separei.
Maurício:ahammmm
89
...
S. Egídio: Ô curioso, Tá aqui, oh... (entregando as fotografias)
Maurício: Tá bonito! Seu Egídio.
Aqui o senhor se mexeu, S. Egídio, né? Aqui o senhor se mexeu!...O Sr. Piscou! Se
mexeu no banco!
S. Egídio: Tu não entende da coisa e fica falando...Vai dormir... vai dormir...Não sabe nem fazer
isso daqui e tá botando defeito...
Im. 76
Concluído o processo das cópias, os alunos dedicavam as aulas seguintes para avaliarem
suas produções. Eram novidades incluídas no programa da oficina - assim como a segunda saída
de campo - que estariam presentes nas outras atividades do Projeto Lata Mágica. O resultado da
primeira aula nesse formato foi tão positivo que resolvemos repeti-la na seqüência da segunda
saída. Todos os alunos tinham uma história para contar sobre as imagens que produziram. Um
acontecimento engraçado, uma postura em relação à técnica que havia se modificado de uma
saída para outra, um imprevisto no momento da obtenção fotográfica ou uma expectativa,
alcançada ou não, em relação à imagem. Os alunos retomaram seus percursos e contaram também
as histórias das imagens que não deram certo. Mostravam o papel fotográfico, todo branco ou
todo preto, indicativo do excesso ou da falta de luz. Havíamos nos colocado pela primeira vez
numa postura de escuta frente aos alunos, num momento formal da aula, para que eles
elaborassem oralmente, para eles mesmos, para nós e para os colegas suas reflexões a respeito
das intenções fotográficas e relacionamento com a técnica pinhole. Para meu campo de pesquisa
essa nova postura do Grupo era extremamente significativa, pois passamos a escutar os alunos
fora da informalidade do laboratório, das saídas de campo ou depois do término das aulas. A
escuta se fazia presente como planejamento de aula.
90
As reflexões demonstravam diferentes maneiras de relacionamento com o uso de uma
linguagem fotográfica para além da técnica pinhole. A ruptura provocada pela presente técnica
acabou despertando a capacidade narrativa dos alunos, através das possibilidades de construção
de imagens a partir do desafio de pensá-las em todas as etapas de seu processamento. Uma
imagem que leva tanto tempo para ser produzida, desde a construção da câmera até a realização
do positivo, envolve muitas escolhas do autor ao longo do caminho, provocando questionamentos
e reflexões numa outra relação com o tempo para se pensar a imagem. A oficina de fotografia
pinhole pode ser considerada como uma experiência visual, sendo apropriada pelo aluno de
acordo com seu estilo de vida e visão de mundo, incorporada em sua relação com as imagens de
uma maneira mais ampla que extrapola uma técnica específica. Marta, por exemplo, nas suas
palavras refletiu sobre a capacidade de uma imagem comunicar um sentimento ou uma emoção
vividos:
Im. 77
Marta: “A do necrotério. Eu gostei, gostei muito pela parte das tonalidades que ficou bem forte,
a parte...dos tons, semitons, os tons mais fortes. Eu acho, também, que deu assim o peso do
lugar, do prédio. Pelo menos foi o que eu captei do lugar, do assunto e eu acho que o quê eu
passei também. Uma coisa que a gente consegue fazer uma comunhão, eu diria, não sei se o
termo é bem esse...Quando a gente consegue...uma comunicação. Com aquilo que a gente tá
pretendendo fotografar. Expressar. Que nem quando a gente tá criando um quadro, uma
escultura ou coisa assim. Quando dá aquela coisa que cria mesmo...que nasce! Acho que aqui eu
consegui...consegui perceber o peso do lugar, passar do jeito que eu tava sentindo. Parece assim
que eu olho isso aqui e sinto aquilo que eu senti no momento que eu olhei. Bastante a questão do
afetivo.”
A avaliação do Edgar rendeu uma boa discussão sobre o estatuto de veracidade da
fotografia e a autoria que se apresenta na construção de um discurso visual. Ele havia construído
suas imagens em torno de montagens com elementos que encontrou espalhados pelo Hospital,
91
aliados ao cenário constituído pelo prédio e dependências. Edgar tinha como intenção narrativa
fotografar como se fosse um interno pois, segundo ele, não queria fotografar como um olhar de
fora. Claro que essa afirmação representava uma intenção, pois ele não vivia cotidianamente
aquele espaço e, provavelmente, essa condição se apresentava nas suas imagens. Mas o
importante naquele momento era justamente o desejo em conceber e construir uma imagem.
Durante a avaliação final de suas fotografias, Edgar questionou se não estaria criando uma
mentira ou uma farsa por retratar uma cena que foi produzida, criada a partir do seu imaginário
sobre a loucura, o espaço do São Pedro e os pacientes que ali vivem. Sua concepção sobre o olhar
de um interno era imaginada a partir do conhecimento de obras como da Psiquiatra Nise da
Silveira e do artista plástico Arthur Bispo do Rosário, que foi interno de uma instituição
psiquiátrica. Ele os havia citado como referência na construção de suas imagens, assim como
dizia prestar uma homenagem aos trabalhos que de alguma maneira aliavam a criação artística
àquilo que seria vulgarmente chamado de loucura, nome utilizado para designar muitas formas do
pensamento que não se enquadram nos padrões considerados socialmente como normais.
Edgar: “Nas minhas fotos, eu tava criando mentiras. Eu tava criando uma certa mentira, uma
certa farsa. Quando eu vi o negativo pronto, eu pensei será que eu sou um mentiroso, que eu sou
um farsante?”
“Então, até posso ser. Eu nunca tinha pensado nisso antes. E o que eu falo de criar mentira é
porque eu interferi no ambiente que eu ia fotografar”.
Im. 78
As leituras do Edgar sobre o assunto, o conhecimento sobre peças artísticas produzidas
por pessoas na condição de internos em instituições como o HPSP, o costume de freqüentar
exposições de artes e o fato de possuir amigos artistas constituíam uma espécie de subtexto”,
92
conformado pelo seu estilo de vida e visão de mundo, que alimentava seu olhar no momento de
elaborar composições. Aproveitando os questionamentos do Edgar, Guilherme apresentou
algumas considerações sobre o assunto. Refletiam sua posição individual, mas que era
compartilhada pelo Grupo Lata Mágica, sobre nossa relação com o artefato fotográfico e como
acabávamos dividindo-a com os alunos:
Guilherme: “Nunca deixa de ser um recorte, nunca deixa de ser um ângulo. Tu sabe o que tu
quer, tu sabe que não vai sair exatamente como tu pensou, mas tu sabe que tem algumas coisas
que tu não quer na tua foto. A gente não se abstém muito da escolha. Ela pode ser mais
exagerada, tu pode realmente montar teu quadro, mas mesmo a pessoa que largar a lata no
chão, ela tem expectativas, não é qualquer foto... É a apresentação de uma realidade”.
A exposição que finalizou a oficina no HPSP ocorreu num fim de tarde, dia 21 de
dezembro, no saguão do prédio histórico. Havíamos combinado que todos levariam bebida ou
comida para o dia da abertura e distribuímos os convites para os alunos entregarem a quem
quisessem. Edgar convidou os amigos; Marta e Candido levaram a filha que mora em
Florianópolis; Maurício, os pais; Seu Egídio foi acompanhado da sua professora no MOVA
(Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos). Além dos convidados, os internos também
participaram da festa, enchendo os bolsos de salgadinho e querendo muitos copos de refrigerante.
Aliás, um deles parece não ter gostado muito da fotografia do Edgar que mostrava uma cadeira de
rodas, pois quando chegamos no local da exposição a imagem estava rasgada como se tivessem
tentado descolá-la do painel. Lá pelas tantas, como muito internos descobriram que havia
salgadinhos e refrigerantes, os guardas acabaram com a festa e os fizeram deixar o espaço da
exposição. Foi uma confraternização entre todos os participantes das oficinas que mostravam
orgulhosos as imagens para parentes e amigos, explicando detalhadamente como haviam
realizado a fotografia. Porque, como diria o Maurício: “Não pra fugir do princípio da pinhole
que é deixar tudo pinholado!”
Im. 79 Im. 80 Im. 81 Im. 82
93
3.7 Dois personagens, duas performances
Escutar faixa sonora n. 5.
* Essa narrativa ocorreu durante a observação do negativo da imagem.
Im. 83
Im. 84
94
No decorrer do período da oficina, Seu Egídio e Edgar se destacaram como performers do
evento. Seu Egídio, um senhor aposentado que possuía 8 filhos, 22 netos e 9 bisnetos, poderia
estranhar uma oficina com tantos jovens universitários, mas em nenhum momento pareceu
deslocado. Pelo contrário, sua integração com os demais ocorreu, sempre, pelas performances
orais. Houve o reconhecimento, vindo da sua audiência, como um performer pela maneira como
contava suas histórias ou fazia suas piadas. Repetia aquelas de maior sucesso e sempre tinha uma
“tirada” na ponta da língua para aqueles que faziam perguntas na expectativa de uma resposta
bem-humorada. Como no dia em que o Maurício dizia que ele tinha piscado durante o tempo do
retrato. o Edgar tinha sua performance reconhecida no momento de refletir sobre as fotos que
produzia, sempre criando cenários para fotografar e conceituando longamente sobre as idéias que
gostaria de passar através das imagens. Assim, quando foi avaliar suas imagens logo após o
Edgar, Jefferson brincou que não havia sobrado muito para ele dizer.
Outro contraste - visível entre esses dois personagens fundamentais para a compreensão
dos diferentes processos de aprendizagens dos alunos - estava nas suas relações com a fotografia
enquanto um objeto produzido culturalmente. Enquanto Edgar se dizia dono da fotografia
somente durante o período da sua confecção, Seu Egídio preocupava-se em levar a fotografia que
fizera da família para que os retratados pudessem se ver na imagem e guardá-la como recordação.
Em comum, o gosto pela fotografia, independentemente de seus usos, e o fato de não terem
perdido nenhuma aula da oficina. Edgar desabafava sobre suas considerações em torno da
imagem:
“Eu falo essas coisas aqui porque tô me sentindo muito à vontade com vocês e com o grupo.
Porque eu acho que quando a gente tá falando, a gente tá se expondo muito. Mas se eu continuar
com esse trabalho de pinhole, em princípio eu pretendo continuar, nunca mais eu quero falar.
Eu tenho que mostrar minhas fotos e as pessoas que olhem. Eu não tenho que explicar nada.
Enfim, a foto é minha enquanto eu estiver fazendo, depois ela não é minha mais. Mas aqui como
faz parte do processo, eu falo”.
95
Escutar faixa sonora n. 6.
Im. 85
A captação sonora do evento performático possibilitou a descoberta da significação das
fotografias pelos alunos através de suas falas, considerando a importância das mesmas para a
estruturação da experiência com a imagem, o que eles falam sobre as suas fotografias e,
principalmente, como eles falam. Os “atores sociais criam significados através dos processos
da fala” (LANGDON, 1999, p. 19) e a emergência dos significados no uso da arte verbal
ocorre no momento da interação social em que se constitui um jogo entre os atores, não
esquecendo o caráter dinâmico do uso da linguagem e o lugar central ocupado na construção
social da realidade (BAUMAN e BRIGGS, 1990; GOFFMAN, 1998). A oficina, como um
todo, deve ser encarada como um processo em que várias ações na construção da imagem
possibilitaram interações sociais, permitindo a significação da experiência pela fala dos
participantes. Um ato performativo, caracterizado por uma etnografia da fala, está “situado
em um contexto particular e construído pelos participantes” (LANGDON, 1999, p. 25), como
as piadas e as brincadeiras entre os alunos e entre esses e os professores. Os jogos entre os
96
alunos refletiam uma maneira específica de se relacionarem, própria ao evento. As
brincadeiras se referiam ao ato fotográfico, à situação do laboratório ou ao resultado obtido e o
que se poderia falar a partir daí. A apropriação da oficina, a partir da Teoria da Performance,
ocorre por ela se constituir como um evento diferenciado e planejado, apartado da vida
cotidiana, onde os vários participantes e suas ações modelam a performance” (FINNEGAN,
1992, p. 109).
Na etnografia realizada durante a oficina do HPSP, a construção da imagem do outro e a
reconstituição do fenômeno são propostas a partir da análise conjunta das imagens feitas pelos
participantes e suas narrativas orais do evento, trazendo uma reflexão sobre as formas do
mundo que são estetizadas ao serem fotografadas. Para Michel de Certeau, “os atos de
palavra” não podem ser separados das circunstâncias em que ocorreram, pois os
procedimentos enunciativos “articulam intervenções, seja no campo da língua, seja na rede das
práticas sociais” (DE CERTEAU, 2004). Uma fotografia com linguagem diferenciada desperta
o questionamento sobre o quê e como fotografar, numa forma de ação consciente muitas vezes
elaboradas pelo uso da fala entre os participantes da oficina. Possibilita narrar, através do ato
fotográfico, não aquilo que é visível, mas uma interpretação a partir dele.
A fotografia pinhole permite uma re-apropriação do espaço através de sua linguagem
específica, transformando esse espaço para o fotógrafo e constituindo, também, a sua memória
do lugar. O prédio do HPSP aparece distorcido, com formas arredondadas nas imagens
produzidas durante a oficina. Assim, para os alunos, existe a imagem do prédio como ele
realmente é e como ele aparece representado nas imagens. Guardam consigo uma imagem do
HPSP que é de certa forma mediada pela fotografia, o espaço já transformado pela captura da
linguagem fotográfica pinhole com suas características específicas. Portanto, a técnica pinhole
conduz a uma re-apropriação do espaço através de uma prática, nos termos de Michel De
Certeau (2004), que vai configurar a paisagem urbana, ou melhor, o imaginário de habitantes da
cidade por fragmentos produzidos, ou seja, as fotografias. O espaço, para De Certeau, é
constituído pelas práticas que tecem as condições determinantes da vida social” (2004, p. 175).
Ele considera que a rua se transforma em espaço praticado pelo ato dos pedestres em caminhar. A
partir deste exercício etnográfico, posso considerar que o fotógrafo também transforma em
espaço praticado os locais que escolhe para serem registrados. A memória se constitui na re-
97
apropriação do espaço através dos fotógrafos enquanto narradores “fotográficos” de um local de
Porto Alegre.
O espaço para essas re-apropriações, segundo Michel De Certeau (2004), estaria
justamente na cidade como “lugar de transformações” e “objeto de intervenções”. A partir dessa
afirmação, o próximo capítulo buscará construir uma relação entre a ligação dos alunos com a
fotografia e suas experiências urbanas, deslocando meu olhar para além da aprendizagem de uma
técnica fotográfica não-convencional, utilizando-a como ponto de partida para as análises de um
viver na cidade.
98
Capítulo 4
A oficina no Centro de Promoção da Criança e do Adolescente e a circulação
de olhares e imagens na cidade
A oficina realizada no Centro de Promoção da Criança e do Adolescente, no Bairro
Lomba do Pinheiro, significou, para minha etnografia, a busca em unir a prática de uma
fotografia diferenciada e a experiência de indivíduos no meio urbano em suas representações
sobre o viver na cidade. Neste exercício etnográfico, o objetivo consiste em analisar como os
alunos problematizam a cidade a partir da sua narração através de imagens fotográficas não-
convencionais, construindo em suas fotografias a paisagem urbana nascida desta experiência
social. Desvendando a relação dos habitantes em suas especificidades relacionadas à vida urbana,
em suas singularidades de ordenar a vida social através da cultura em uma cidade grande.
A atividade serviu como ponto de partida para uma experiência que envolvia fotografar e
circular pela cidade com os alunos, descobrindo as relações entre a imagem fotográfica produzida
e as “imagens da ambiência urbana. A cidade se apresenta, nesse caso, como um território
expressivo da experiência temporal contemporânea” e deve ser apreendida como “matéria
moldada pelas trajetórias humanas”, refletindo a adesão de seus habitantes “aos tempos e espaços
vividos, ritmados pelos movimentos incessantes das imagens da cidade que habitam seus
pensamentos em constante mutação” (ECKERT e ROCHA, 2001, p. 3 e 5). Minha intenção é
99
analisar a fotografia como obra construída por estes alunos para narrar seus conhecimentos sobre
o espaço urbano da cidade de Porto Alegre.
Como ocorre a relação entre a imagem produzida e o contexto dessa situação enquanto
espaço vivido e experimentado, nos termos de Michel de Certeau (2004)? Não se pode esquecer
que a fotografia é fruto de uma cultura objetiva constituída a partir de uma determinada visão de
mundo “moderna”. Para Guy Bellavance (1996), a mentalidade urbana e a mentalidade
fotográfica se correspondem. Ao serem “elos” da mesma modernidade, a paisagem urbana torna-
se o “gênero fotográfico propriamente dito”, sendo os fotógrafos de subúrbio” do século XX o
correspondente aos pintores de paisagem do século XIX (BELLAVANCE, ano, p. 20 e 21). A
análise das fotografias, a partir da sua relação com a cidade, traz questões sobre os diferentes
itinerários no meio urbano de Porto Alegre. A combinação entre imagens e elementos sobre a
trajetória dos alunos narra sobre habitar um determinado espaço da cidade, isso em relação à
oficina de fotografia pinhole realizada no CPCA, nos meses de maio e junho de 2005.
O deslocamento em direção ao Bairro Lomba do Pinheiro, local da oficina, pela Avenida
Bento Gonçalves provocava um afastamento dos altos edifícios do centro da cidade e o encontro
com uma paisagem de bairro, povoada por casas e prédios mais baixos. Era possível ver uma
cidade com seus arranha-céus se distanciando, fazendo um desenho no horizonte que
corresponderia a definição de uma “cidade grande”, em que, praticamente, não espaço entre
um prédio e outro. Depois, seguindo pela Bento Gonçalves, começavam a aparecer
estabelecimentos que precisavam de espaço ao ar livre para se constituírem, como madeireiras,
funilarias, floriculturas e oficinas mecânicas instaladas ao lado de ferros-velhos.
A ligação da Av. Bento Gonçalves com a Lomba do Pinheiro ocorre através da Avenida
do Trabalhador, que une o sudeste ao sul da cidade, alcançando até a Restinga e possibilitando
continuar em direção ao Lami, bairro situado à beira do Rio Guaíba. O Bairro Lomba do Pinheiro
acompanha essa grande avenida, tomando uma forma “espichada”, onde diversas vilas se formam
em pequenos núcleos de um lado ou de outro da “faixa”. As muitas construções de apenas um
andar, acompanhando a subida “da Lomba”, possibilitam ver a cidade do alto. De um lado, no
primeiro plano, as casas se espalham próximo ao verde dos morros e, de outro, a “cidade grande”
aparece ao fundo. De noite, não se vê o contorno dos prédios ao longe mas as pequenas luzes que
se espalham e iluminam todo o bairro.
100
A localização espacial na Lomba do Pinheiro ocorre pela numeração das paradas de
ônibus na Avenida do Trabalhador, referência para dizer aonde se mora e como se chega a
determinado lugar. O Centro de Promoção da Criança e do Adolescente fica bem em frente à
parada de número 11, num grande pátio que tem um galpão na entrada e uma construção redonda.
Essa abriga uma capela e um salão, chamados de Paróquia Santa Clara. No fundo do terreno,
passando uma quadra de futebol, duas construções de um andar, paralelas uma à outra, lembram
o pátio de uma escola. É lá que ocorrem as atividades do CPCA.
Im. 86
4.1 Um lugar afastado e alunos vindos de diversos pontos
Sob uma chuva torrencial, chegamos para o primeiro dia de aula com aquele velho frio na
barriga, aguçado pela possível dispersão dos interessados devido ao temporal. Aos poucos, os
alunos foram chegando e se acomodando para ouvirem as primeiras informações sobre a “foto na
lata”, descobrindo que a lata se transformava em uma câmera fotográfica mesmo. Não se coloca
uma outra câmera dentro da lata ou se obtém uma fotografia com a câmera normal e essa reflete
na lata, como muitos pensaram inicialmente. A estrutura da oficina se manteve fiel àquela do
Hospital Psiquiátrico São Pedro, com o mesmo número de aulas e a distribuição do conteúdo ao
longo dos encontros.
Em decorrência dessa segunda oficina ter sido ministrada em local bem mais afastado de
outros bairros que o Hospital São Pedro, acreditávamos que haveria menor número de
participantes “estrangeiros” e vários alunos do CPCA inscritos. Novamente estávamos
101
enganados. Mesmo que tivéssemos investido quase todo material de divulgação da oficina no
próprio CPCA e na sede que os Freis Franciscanos também possuem na parada 15, parecia que o
pessoal havia ficado desconfiado desse negócio de “foto na lata”. É claro que havia mais gente da
comunidade dessa vez, mas a divulgação da oficina havia saído no Jornal Diário Gaúcho e atraiu
participantes de várias regiões da cidade que tinham ouvido falar da técnica pinhole. Outros,
ainda, vieram por terem recebido e-mail do Grupo Lata Mágica com o “serviço” da atividade.
Assim, a oficina concentrou moradores da “Lomba” e de diversos bairros de Porto Alegre,
provocando um cruzamento de olhares que, de certa forma, me induziu a considerar esta
pluralidade como parte da minha pesquisa de Mestrado. Os alunos moradores do bairro eram
adolescentes e mulheres e a presença desses jovens conformava outra mudança significativa em
relação ao HPSP. Entre os mais moços da turma estavam os alunos do CPCA, Wagner e
Fernanda, que faziam cursos de informática e Marcelo, primo da Nanda, que não era aluno mas
freqüentava o local. Fernanda tinha aula uma vez por semana na Instituição e Wagner fazia um
curso ligado à FASC (Fundação de Assistência Social e Cidadania) que exigia mais dias da
semana em atividades no CPCA. As mulheres, moradoras da Lomba, eram quase todas ligadas ao
atendimento de saúde comunitário. Tatiana era agente de saúde familiar, visitando as pessoas em
casa para controle e prevenção de doenças. Marilene era auxiliar de enfermagem no posto de
saúde da Lomba. Ana Maria, também auxiliar de enfermagem, não trabalhava mais na área. Na
época da oficina atuava no “marketing” do CPCA, como costumava dizer, organizando os
eventos da Instituição e promovendo cursos de manequim para as meninas da região. Depois
organizava os desfiles nas festas do CPCA, que ela mesmo promovia, reunindo as roupas para
serem exibidas entre as lojistas do bairro.
Entre aqueles alunos que não moravam na Lomba do Pinheiro estavam Jackson e Luciano.
Estudavam no Campus da UFRGS, o que facilitava o deslocamento para participarem das aulas,
indo até a Bento e subindo a Avenida do Trabalhador, pois o primeiro morava na Zona Norte e o
segundo no Centro da cidade. Márcia morava perto do supermercado Carrefour, no bairro
Partenon, e precisava pegar um ônibus, o Pinheiro, para chegar ao CPCA. Os irmãos Jorge e
Priscila moravam na Glória e pegavam dois ônibus para freqüentarem as aulas, assim como
Jeferson, que também precisava de duas conduções por morar na Zona Sul. Ainda havia Carla,
que morava no Bairro Cidade Baixa e Gabriela, que havia sido colega de colégio da Maísa e por
102
isso ficou sabendo do curso. Os alunos que vinham de fora não eram todos universitários, como
no HPSP, porque Márcia, Priscila e Jeferson ainda estavam no ensino médio. Os demais
cursavam alguma universidade ou já eram formados. Jackson fazia Engenharia, Luciano cursava
Ciências da Computação, Carla era formada em Ciências Sociais e Gabriela em Medicina.
Na segunda aula, como de costume, construímos as câmeras e quase todos os alunos posaram
com suas latas para que o Rafael registrasse os bastidores da oficina com a câmera digital, como
havia feito no Hospital. Desde aquele dia, Fernanda e Marcelo demonstraram interesse em
serem fotografados pela câmera digital ou pela minha antiga câmera Pentax. Mesmo que
estivessem super tímidos nas primeiras aulas, ensaiavam alguns sorrisos nos retratos. Tempos
depois, fiquei sabendo que eles não possuíam câmera fotográfica em casa e a oficina significava,
assim, a chance de se retratarem e guardarem momentos das suas adolescências através daquele
que seria a própria expressão de uma individualidade moderna, o retrato.
Im. 87 Im. 88
Fernanda tinha fotos antigas, da época em que morava na Rua Duque de Caxias, no centro de
Porto Alegre. Após o encerramento da oficina, fui com ela até sua casa onde me mostrou as
fotografias guardadas em que apareciam ela, os irmãos e a mãe com “roupas de passeio”, ou seja,
as meninas de vestido e laços de fita na cabeça. Retratados na Praça Matriz, em frente aos
monumentos históricos que se situam ali ou, então, no prédio em que moravam e nas
proximidades. Um dos aspectos a ser salientado é que sua família, nessa época, se afastava de um
“estilo de vida” de classe popular por não estar morando na periferia como os demais parentes,
que se dividiam entre a Lomba do Pinheiro e o Bairro Partenon. Considerando, segundo Geertz
(1989, p.143), estilo de vida enquanto “os aspectos morais (e estéticos) de uma dada cultura, os
elementos valorativos, que foram resumidos sob o termo de ‘ethos’, enquanto os aspectos
103
cognitivos, existenciais, seriam designados pelo termo ‘visão de mundo’”. Depois, iniciaram um
processo de retorno à periferia, afastando-se do Centro para morarem na Avenida Ipiranga, no
Bairro Intercap e, em seguida, mudando-se para a
cidade vizinha de Viamão. Retornando a Porto Alegre,
após esse período, ao Bairro Lomba do Pinheiro onde a
avó da Nanda, por parte de pai, morava quarenta
anos.
4.2 A construção das imagens e a presença dos
retratos fotográficos
Voltando à oficina, mas sempre procurando
considerar - como pano de fundo - a importância do
retrato para esses adolescentes, partimos, na primeira
saída de campo, em busca de obtenções das fotografias
pinhole. O CPCA, assim como o HPSP, ocupava um espaço bem delimitado e significativo,
levando o Grupo Lata Mágica a acreditar que, realizando ali a saída de campo, não haveria a
paisagem do bairro presente nas fotografias. Os Freis possuíam uma outra sede, uma casa em um
terreno bem menor, na parada 15, de onde pensávamos que viriam alguns alunos devido à
divulgação promovida. Acreditávamos que seria interessante promover a saída de campo num
lugar que propiciasse maior contato visual com o bairro e optamos por essa sede da parada 15,
mesmo que os moradores da região não estivessem inscritos na oficina. O local estava situado
numa encosta que desembocava em plena Avenida do Trabalhador. Da Vila, espalhada nesse
barranco, avistavam-se vários morros ainda cobertos de vegetação e, no meio, aparecendo ao
longe, uma ilha de pequenas luzes bem delineada na paisagem, o Bairro Restinga.
Im. 89
104
Im. 90 Im. 91
A saída ocorreu, como sempre, num sábado à tarde, no dia 14 de maio. Um dia nublado, de
um calor infernal que aumentava de pensar em permanecer dentro do laboratório que
havíamos improvisado. Um pequeno banheiro, onde ficávamos bem apertados, para a realização
dos procedimentos de revelação. As conseqüências do calor passaram a ser visíveis nos
resultados, pois não havia como manipular o papel fotográfico sem deixar as digitais de dedos
suados. Havia falta de circulação do ar que a pequena janela estava coberta por uma lona preta
para evitar a entrada da luz. Dizem que Porto Alegre possui um “veranico” em maio, ou seja, dias
de forte calor, mas aquilo era um pouco demais e “veranicosoava como um eufemismo. Com
o dia nublado, as dificuldades encontradas no Hospital Psiquiátrico São Pedro se apresentavam
novamente, não havia como escapar da variação dos tempos de exposição.
Os retratos foram o sucesso da oficina e um dos motivos era o grande número de crianças
na rua que queriam aparecer e ver essa tal de “foto na lata”. As crianças posaram para duas
imagens da Gabriela e junto comigo para uma fotografia do Wagner. Um dos locais escolhidos
para os registros era uma parede situada no pátio, ao lado da entrada do laboratório, com uma
imagem de São Francisco de Assis desenhada. Além da fotografia das crianças que Gabriela fez
ali, Fernanda e Marcelo também produziram retratos um do outro com essa mesma parede ao
fundo. Ana Maria resolveu contrariar as instruções para encontrar um lugar fixo que servisse
105
de apoio para a lata e resolveu segurá-la durante o tempo de exposição da fotografia. O resultado
foi uma imagem bem abstrata, digamos assim, porque nenhuma forma apareceu estável na
imagem, somente o compasso da respiração enquanto segurava a lata. Luciano e Jackson
comentaram que não queriam pessoas figurando em suas fotografias, mas às vezes isso se tornava
uma tarefa difícil pois a criançada da Vila estava disposta a aparecer no maior número de
imagens possíveis. Levei, nas duas saídas de campo dessa oficina, minha câmera reflex e fiz
algumas fotografias em preto e branco ao longo da atividade, procurando registrar os alunos
fotografando e o assunto que haviam escolhido para fotografar.
No início da tarde, quando Ana Maria, Fernanda e Marcelo chegaram, trouxeram uma
notícia que nos lembraria a violência presente no bairro e que não seria esquecida também em
outras ocasiões. Um vizinho deles havia sido morto a tiros na noite anterior e iriam sair antes do
término da aula para irem ao velório, mas não haviam comentado o motivo do crime. Talvez
como uma medida de proteção aos possíveis “desvios de conduta” do morto. Outro fato que
envolveu violência, durante as aulas, estava relacionado ao retorno da Tatiana para casa. Em
alguns dias, à noite, ela precisou sair antes porque sua vizinhança estava sob toque de recolher.
Dois grupos rivais estavam em guerra e era preciso chegar em casa antes de determinado horário
porque depois havia tiro para todos os lados. Não era possível ignorar que essas situações,
estranhas para muitos, faziam parte do cotidiano daqueles moradores. E não era a violência
dos tiros, mas também uma violência que ocorria no trânsito. Certa vez, conversando com
Wagner e Nanda, comentei que tinha visto uma mulher ser atropelada por um ônibus na Bento
Gonçalves. A mulher, que morreu devido ao acidente, tinha acabado de buscar o boletim do filho
na Escola e morava próximo da casa do Wagner, que conhecia a família. Além desse acidente
sabiam contar vários outros, de gente que foi atropelada nas pistas da Bento ou da Avenida do
Trabalhador.
Ao final daquela saída de campo deixamos os alunos levarem a lata com a última
fotografia, para ser obtida até o dia da aula de produção dos positivos, na quinta-feira à noite. A
diferença entre essa oficina e aquela do São Pedro foram os dias dedicados às aulas noturnas. Na
Lomba do Pinheiro tínhamos aulas nas quintas e sextas, pois eram os horários compatíveis entre
os membros do Grupo, que haviam se modificado de um semestre para outro. Com aulas mais
próximas uma da outra e com as saídas aos sábados, o tempo de preparo entre os encontros
tornou-se mais curto devendo ser feito no início da semana, entre segunda e quarta-feira.
106
Para as aulas de laboratório, à noite, transformamos um dos banheiros do CPCA, que por
sinal era bem mais espaçoso que aquele usado na parada 15. Entre uma saída de campo e outra os
alunos pediram para que permanecêssemos na própria sede do CPCA no sábado seguinte.
Acredito que se sentiriam mais a vontade, afinal era um lugar já considerado “familiar”. O Grupo
concluiu, pela ausência na oficina de alunos moradores da Parada 15, que não havia motivo para
continuarmos e optou-se por atender ao pedido. Pela primeira vez desde o início do Projeto, no
dia 21 de maio tivemos um sábado ensolarado - com um friozinho para lembrar que estávamos
em pleno outono - fazendo o tempo de exposição das imagens diminuir e aumentar a quantidade
de fotografias produzidas com uma exposição correta.
Os alunos exploraram as dependências da Instituição e, mais uma vez, a produção de
retratos mereceu destaque. Se para Fernanda e Marcelo era habitual um fotografar o outro, para
Jorge e Priscila essa troca de retratos também se tornou uma prática durante a segunda saída de
campo. Esses dois últimos haviam substituído as fotografias de casas, feitas no sábado anterior,
pelos retratos com a paisagem do CPCA ao fundo. Talvez o fato de utilizarmos as dependências
do Centro, que não era muito rico em elementos para o registro, houvesse feito com que
voltassem as câmeras para eles mesmos. Luciano e Jackson continuaram a fotografar sem a
“influênciade pessoas nas imagens. Juntaram-se à Carla e produziram fotografias a partir de
uma “instalação” que criaram, uma cadeira que calçava um par de tênis.
Im. 92
107
Im. 93 Im. 94
Im. 95
108
Im. 96 Im. 97
Im. 98
109
Im. 99 Im. 100
Im. 101
110
Im. 102 Im. 103
Im. 104
Im. 105
111
Im. 106
Im. 107
Im. 108
112
Im. 109 Im. 110
Im. 111
Im. 112 Im. 113
Im. 114 Im. 115
113
4.3 Um cruzamento de imagens da cidade
Um cruzamento interessante de imagens começou a se formar a partir do ato dos alunos
de levarem suas câmeras para casa com uma fotografia ainda por obter. Os alunos, moradores do
Bairro Lomba do Pinheiro, em geral produziam retratos seus, de familiares ou de amigos e,
muitas vezes, podíamos visualizar suas casas e pátios ao fundo. Imagens fortemente relacionadas
aos seus cotidianos e que revelavam aspectos dos locais onde moravam. Não se viam prédios ou
monumentos da cidade, como ocorreu com as imagens dos alunos que deveriam se deslocar em
um percurso maior para freqüentarem as aulas. Havia um contraste de ambiências urbanas nas
imagens. Na Lomba do Pinheiro uma grande avenida principal, asfaltada e de tráfego intenso,
mas os arredores mudam completamente. Entra-se numa transversal e é possível avistar ruas de
chão batido, casas entre morros e o verde se espalhando para o lado oposto ao do Centro. Muitas
casas e pouquíssimos prédios, inúmeros sítios e pequenas propriedades “rurais”, o olhar
contempla Porto Alegre do alto em uma amplidão de espaço. os alunos que aproveitavam seus
deslocamentos fotografavam elementos representativos da cidade, como o Monumento ao
Expedicionário, no tradicional Parque da Redenção, ou ruas com prédios e casas lado a lado,
conformando uma imagem “mais urbanizada”.
Im. 116 Im. 117
Dessa forma, os alunos se deslocavam através de diversas partes da cidade e pelos próprios
bairros onde ocorriam as oficinas, fazendo com que diferentes experiências urbanas tivessem
como ponto de encontro uma oficina de fotografia pinhole. As oficinas acabavam sendo uma
oportunidade de compartilhar experiências entre pessoas que não se reuniriam de outra maneira,
de conhecer lugares e de trocar histórias. As trajetórias e os movimentos na cidade são
114
importantes, aqui, para a constituição dos personagens e a conformação de seus olhares como
habitantes do espaço urbano. Havia uma troca entre imagens da cidade de Porto Alegre, os
lugares onde cada um viveu e as impressões sobre o viver urbano. Além da imagem fotográfica
se constituir como uma re-apropriação do espaço em que o objeto fotografado está inserido. Eu
olho a cidade pelas fotografias dos alunos, do local onde eles vivem ou daquilo que escolheram
para fotografar. O quê vejo deles pelas suas fotografias? Conheci os colegas de trabalho da
Marilene pelo retrato que ela fez a partir da lata. O pátio da casa da Fernanda eu conhecia antes
mesmo de ter ido até lá, pelas fotografias. o pátio da casa da Tatiana, conheci somente pelas
fotos mas pude ver a casa ao fundo e visualizar um pouco do ambiente em que habitava.
Im. 118 Im. 119
Im. 120 Im. 121
Durante as aulas de avaliação os alunos não falaram tanto quanto os alunos do HPSP. Tatiana
deu um depoimento interessante. Ela era sempre a fotógrafa da família, quem retratava os outros
e agora, com a lata, ela estava aparecendo nas imagens, mesmo que continuasse a ser a fotógrafa.
Levei as fotografias que havia realizado com minha câmera convencional na primeira saída de
115
campo e, claro, ao final daquela aula me deixaram praticamente sem nenhuma cópia. Cada um
pegou aquelas imagens onde aparecia para guardar e mostrar em casa como se fazia para
fotografar com latas.
Após a segunda saída de campo as aulas começaram a esvaziar. Tinha aluno faltando ao
colégio para participar da oficina. Jeferson e Wagner tinham perdido várias aulas desde o
começo do curso e no final da atividade tiveram que retornar à escola, principalmente em dias de
prova. Wagner ainda tinha a mãe como vizinha na sala de aula do EJA (Ensino de Jovens e
Adultos) e, assim, havia alguém que copiava a matéria, servindo como incentivo para que
freqüentasse as aulas de fotografia. O irmão do Wagner fazia faculdade de Arquivologia na
UFRGS e havia cursado a disciplina de Introdução às Técnicas Fotográficas, pela qual todos
alunos da FABICO passavam, inclusive eu e a Maísa. Wagner tinha visto ele manipular uma
câmera manual, assim como minha Pentax - que conseguira emprestado com uma tia da esposa -
despertando seu interesse pelas técnicas fotográficas.
Fernanda precisou voltar aos estudos durante o período da oficina e matriculou-se num
colégio situado na parada 6, no turno da noite. Na antiga escola, onde ela havia estudado desde os
seis anos de idade, havia faltado a um mês de aula e perdido, segundo ela, quinze provas. Era um
colégio perto da sede da CEEE (Companhia Estadual de Energia Elétrica - RS) na Avenida
Ipiranga e começou a estudar quando morava nas proximidades. Ainda segundo ela, todos a
conheciam. Achou que seria mais fácil passar de ano se estudasse no Rafaela Remião, o colégio
atual, mas não estava bem certa disso. Havia mudado de colégio, de turno de estudo e da
avaliação através de conceitos para outra que usava média aritmética. Quanto à mudança de
turno, parecia gostar de estudar à noite. Chegava em casa depois da aula e ainda estudava, se
tivesse prova no dia seguinte ou trabalho para entregar. Com os turnos da manhã e da tarde livres,
exceto nos dias em que tinha aula no CPCA, tentava arrumar um estágio marcando diversas
entrevistas pelo CIEE (Centro de Integração Empresa-Escola).
4.4 Exposição na Paróquia Santa Clara
Márcia, Tatiana e Marcelo assistiram a todas as aulas da oficina, inclusive a da montagem
da exposição que não era uma aula obrigatória. Nesse dia a Nanda o teve aula, pois havia
conselho de classe no colégio e veio ajudar a colocar as fotografias nos painéis que os Freis
116
conseguiram para a exposição final dos trabalhos. Na semana anterior já havíamos distribuído
convites para que os alunos chamassem quem quisessem. Fernanda e Marcelo tinham mudado
bastante das primeiras aulas para esses últimos encontros. No início eram super tímidos, quase
não falavam e riam de nossos comentários. No final, Nanda já fazia piada de que iria colocar à
venda seus convites e negociar com a família como se fossem ingressos de um show musical ou
algo parecido. Fizemos a velha combinação dos salgadinhos e refrigerantes, deixando claro que
trouxessem aquilo que fosse possível para cada um. Demonstrando um certo estranhamento com
exposições, Fernanda combinou com a prima que avisaria pelo celular quando acabassem as
comidas - que ela pensava ser para os participantes da oficina - para que sua convidada se
deslocasse até o local da mostra. Explicamos, então, o propósito de levarmos quitutes para os
convidados comerem enquanto apreciavam as imagens e “pegamos no pé” da Nanda de que, na
verdade, ela só estaria interessada na comida.
Montamos a exposição na paróquia Santa Clara, uma construção redonda que tem um grande
salão e, ao lado, uma cozinha onde podíamos deixar as comidas e bebidas. Todos pareciam
emocionados com o resultado obtido. O conjunto das imagens organizado em forma de
exposição, com muitas fotografias significativas do processo que vivenciamos. Tatiana explicava
para uma convidada que a oficina era Lata Mágica porque era uma verdadeira mágica aquelas
imagens serem feitas com apenas uma lata. Nanda e Marcelo haviam levado vários amigos que
pareciam impressionados com as fotografias dos dois. E aproveitavam o momento para relatar a
história que envolvia cada imagem, onde haviam colocado a câmera, quais problemas
encontraram ao longo da obtenção e o processo de revelação. Nanda escolheu para expor uma
fotografia que possuía um “defeito especial”, pois era um retrato seu que havia tremido durante a
exposição, mas conservou características que permitiam construir uma imagem muito particular e
isso era mais um motivo para seus comentários. Os Freis, Waldemar e Luciano, juntamente com
Aline, responsável pela nossa chegada ao CPCA, também compareceram à exposição e ouviram
dos alunos, com as imagens nas mãos, suas aventuras com as latinhas.
Quando Fernanda e Marcelo estavam deixando o local da exposição me disseram, ao se
despedirem, que eu poderia contar com eles para meu trabalho, que era chamá-los. Durante o
período dessa oficina, havia pensado em convidar alguns alunos para continuarem fotografando
com suas latas, como uma extensão do meu trabalho de campo. Havia comentado o assunto com
eles, que não esqueceram e ainda me lembraram naquele dia, ao final da exposição. Assim,
117
iniciamos uma série de encontros para fotografarmos em diversos espaços da cidade de Porto
Alegre, enquanto eu procurava estabelecer um cruzamento entre suas experiências no meio
urbano e as imagens que construíram.
Im. 122 Im. 123
Im. 124 Im. 125
Im. 126 Im. 127
118
Im. 128 Im. 129 Im. 130
Im. 131 Im. 132
4.5 Retratos em um percurso por Porto Alegre
Fernanda e Marcelo, primeiramente, guiaram meus passos dentro do Bairro Lomba do
Pinheiro, local com o qual mantinham relações desde pequenos por ser a residência de seus avós
e de outros membros da família como tios e primos. Depois, partimos numa exploração conjunta
de outros lugares da cidade para que pudéssemos fotografar em uma diversidade de cenários,
desde ambientes familiares até outros pouco conhecidos por eles. Na Casa de Cultura Mario
Quintana, no Centro da cidade, Nanda tinha estado uma vez com a Escola enquanto Marcelo
não conhecia. Ele havia morado sempre no mesmo bairro, contrastando a relação que a prima
Fernanda mantinha com a cidade. Ela habitou diversos territórios, desde o Centro até a própria
Lomba do Pinheiro, passando pela Av. Ipiranga e pelo município vizinho de Viamão, pensando
sua cidade “atual” a partir de todos esses territórios.
Conforme Nanda, sua avó morava na região
“desde que tudo ali era mato”
, frase repetida
pela própria Dona Teresinha no dia em que a conheci. A família dividia três terrenos, com umas
119
quatro ou cinco casas, numa rua bem abaixo da parte dos fundos do terreno do CPCA. A casa da
avó era a única de material e todas as outras eram construções de madeira. A casa da Fernanda
possuía dois quartos, sala, cozinha e banheiro, onde ela vivia com as irmãs Ana Paula, com 15
anos e Emili, com quatro, o irmão mais velho, com uns vinte e poucos anos e a mãe. O pai
mudou-se para a casa da avó desde que se separou da mulher, havia um ano, morando no terreno
ao lado. A avó da Fernanda e do Marcelo era uma figura importante, não na própria família
como na comunidade do bairro. Era uma mãe de santo conhecida e respeitada na região, que
havia formado muitos filhos de santo, atendendo também muitas crianças a fim de benzê-las.
Quando pegava ônibus, os cobradores e motoristas perguntavam se Nanda não era neta da Dona
Teresinha. Ela tinha, na época da pesquisa, 68 anos e morava quarenta no bairro, dos quais
seis na Parada 13 e os outros trinta e quatro anos na 10, indo para ali quando existiam apenas três
casas no local.
Im. 133 Im. 134
Até os cinco anos de idade, Nanda havia morado no Centro de Porto Alegre, na Rua
Duque de Caxias, bem próximo de onde resido hoje. Mudou-se, a seguir, para a Lomba do
Pinheiro, início da construção de um itinerário diversificado pela cidade e local que sempre
tivera como referência, provavelmente pela casa da avó e pelos parentes que moravam ali. “No
Brasil, contudo, a importância do lugar de residência para a organização social é inegável.
Gerações de pesquisa mostram como, aqui, as redes de vizinhança e de parentesco mantêm-se
relevantes apesar da mobilidade geográfica” (FONSECA, 2000, p. 11). Assim, ela já foi
moradora da “minha cidade”, pois teve a experiência de viver no Centro, que é o bairro aonde
moro atualmente e conhecia bem melhor essa “minha cidade” do que eu “a dela”. O que eu
120
conheci do bairro onde ela morava foi, de certa maneira,
através dos percursos que ela costumava realizar, fazendo
com que seu olhar daquela região guiasse meus passos por
lá. Ela se deslocava ao Centro quase toda semana, mesmo
que o valor da passagem de ônibus custasse quase dois
reais. Conseguia com a mãe ou com o pai para procurar
estágios no CIEE. E, apesar dessa relação antiga com o
Bairro Lomba do Pinheiro, preferia fazer auto–retratos -
mesmo com todas as conseqüências da linguagem
pinhole,- do que fotografar o cenário da região. É claro
que a ausência de outras câmeras em casa deve ser levada
em consideração ao avaliar suas escolhas sobre o quê fotografar.
4.6 Ocupar a cidade e a relação de gênero
A circulação desses dois adolescentes, dentro do Bairro Lomba do Pinheiro e na Cidade,
além da ocupação do espaço público e do espaço privado, ocorria de maneira bem diferenciada.
Enquanto Fernanda, por exemplo, dependia da companhia das amigas para sair à noite – a
maioria delas casada e com filhos - o mesmo não acontecia com Marcelo. Enquanto Nanda,
durante os finais de semana, ficava em casa ou ia até a Usina do Gasômetro, mesmo sozinha,
Marcelo jogava futebol na quadra do CPCA. A jovem certa vez me confessou que não gostava
dos finais de semana porque muitas vezes permanecia em casa enquanto durante a semana havia
sempre o Colégio, o curso no CPCA e a procura por estágios. Na Lomba do Pinheiro ela
dependia muito mais de companhia para ocupar o espaço público do que seu primo Marcelo, que
possuía maior independência. Mas, deixando a esfera do bairro, Fernanda possuía maior
desenvoltura para os trajetos no restante da cidade, se deslocava em busca de estágio e conhecia
os principais locais do Centro de Porto Alegre.
As relações de gênero foram ganhando importância ao longo da pesquisa à medida que os
relatos dos informantes me permitiam identificar relações diferenciadas daquelas que eu própria
vivia cotidianamente. Dona Teresinha, avó de ambos, possuía um lugar de destaque na relação
Im. 135
121
familiar, provavelmente pelo lugar ocupado na comunidade e a ajuda prestada ao cuidar das
crianças da família para as mães que trabalhavam fora. O avô quase nunca era citado nas
conversas sobre os parentes e fiquei sabendo, casualmente, que ainda era vivo e habitava com
a família porque um dia ele acompanhou a Fernanda até a frente do CPCA, onde ela havia
combinado de me encontrar. Outra situação importante para a compreensão das relações de
gênero estava no fato da mãe da Fernanda ter buscado um emprego após a separação do
marido, antes, ele fazia de tudo para que ela não trabalhasse. Certa vez, a mãe teve que abandonar
o emprego por trabalhar aos sábados que era o dia de folga do marido. Cláudia Fonseca (2000) ao
relatar seu trabalho etnográfico sobre relações de gênero na Vila Cachorro Sentado, em Porto
Alegre, descreveu uma situação que poderia ser apropriada aqui: “Os diferentes agentes sociais
alegam que as mulheres não procuram emprego remunerado porque lhes faltam creches,
enquanto as próprias mulheres dizem que estão sem trabalho porque ‘o marido não deixa’”
(FONSECA, 2000, p. 28).
Existia também uma diferença de projeto individual (VELHO, 1997) em relação às irmãs
Fernanda e Ana Paula, pois a segunda era quem ficava em casa com a irmã menor, durante o dia,
enquanto a mãe trabalhava fora e Nanda fazia seus cursos no CPCA ou enfrentava entrevistas de
estágio. Segundo a própria Fernanda, sua irmã não gostava muito de estudar e, assim, não se
importava em ficar em casa com a pequena durante as tardes, que não era seu turno de aula.
Nanda afirmava que sempre que fosse possível ocuparia seu dia com cursos ou estágio,
pretendendo não permanecer no ambiente doméstico. Estava terminando o segundo ano do
Ensino Médio, passando a frente de seu irmão mais velho, que havia parado de estudar na sétima
série, confirmando a diferença de projetos (VELHO, 1997) entre os membros da família. o
fato de não ter filhos, ao contrário de muitas de suas amigas, denotava outra diferença em
relação aos planos que ela traçava para sua vida. Em nosso último encontro, em 2005, contou-me
que havia sido selecionada para um projeto profissionalizante em mecânica na empresa de ônibus
Sudeste. Iria ocupar todas as suas manhãs deste ano de 2006 e teria ainda o curso no CPCA, as
aulas à noite e fazia planos de arrumar o tal estágio que sonhava.
Um estranhamento também ocorria na minha própria relação com o Marcelo, com quem
não tinha estabelecido a mesma proximidade que havia com a Fernanda. Além das questões de
gênero presentes, alguns desencontros marcaram a nossa trajetória e fizeram com que em várias
122
ocasiões não conseguíssemos fotografar. Logo em nossos primeiros encontros depois do término
da oficina, Nanda e Marcelo brigaram por motivos que nunca me esclareceram muito bem e até a
nossa última saída não tinham voltado a se falar. Isso causou alguns transtornos em nossa
comunicação e em alguns encontros o Marcelo acabou não aparecendo, pois eu telefonava para
Fernanda e ela pedia a alguém da família para avisá-lo, que estavam sem se falar. E para
completar, na última vez que eu e ele nos encontramos nada funcionou muito bem.
Nós três havíamos fotografado na Casa de Cultura Mario Quintana e combinamos de
repetir a dose na semana seguinte. Ao chegar no CPCA, não encontrei nenhum dos dois. Esperei
um tempo e, como não apareceram, resolvi “descer” até a casa deles, chegando lá, encontrei o
Marcelo reunido com vizinhos e primos em frente ao pátio. Ele, logo que me viu descendo a rua,
colocou a mão na cabeça fazendo menção de que tinha esquecido nosso encontro. Fernanda
também não estava em casa. Saímos super atrasados para a CCMQ, onde eu havia marcado com
o responsável pela chave do laboratório de chegar até às 15h. Com nossa demora, quando
conseguimos chegar ele havia acabado de sair, impossibilitando nossa tarde fotográfica.
4.7 Percorrendo distâncias na cidade
Um outro desencontro já havia ocorrido na primeira vez que marcamos de fotografar no
Centro da cidade. Havia fornecido passagens de ônibus para que me encontrassem, ao descer do
Pinheiro, na parada que fica atrás do Campus Central da UFRGS e, chegando lá, não os
encontrei. Nanda tinha comparecido adiantada ao encontro e saiu uns dez minutos antes de eu
chegar enquanto Marcelo foi para os lados do Centro, com um outro primo, mas também não o
encontrei. Para fotografar na Redenção ou no Centro, havia, em primeiro lugar, o problema das
passagens que o Marcelo e a Fernanda não possuíam para se deslocarem na cidade para um
“luxo” como fotografar. As passagens, que a Fernanda conseguia com o seu pai, eram para
procurar estágios no CIEE ou ir até alguma entrevista de emprego, para passear havia os
domingos de passe livre ou outras oportunidades semelhantes. Assim, eu deveria providenciar as
passagens de ônibus se pretendia compartilhar com eles o ato de circular na cidade para produzir
imagens. Após todo esse desencontro, resolvi mudar de estratégia e passei a buscá-los para que
fotografássemos em outros lugares, me deslocando de casa ou do Campus do Vale - local bem
mais perto - até a Lomba do Pinheiro.
123
A distância entre a Lomba do Pinheiro e o Centro de Porto Alegre é grande, pois significa
atravessar a cidade de uma ponta à outra. Passei a viver essa distância de maneira mais clara
quando comecei a circular com a Fernanda e o Marcelo na cidade para fotografarmos. Quando
saía da minha casa, ia até o CPCA, me encontrava com eles e pegávamos o ônibus para o Centro,
eu fazia a viagem duas vezes, confirmando o percurso daqueles que percorriam esse trajeto todo
dia para ir e voltar do trabalho. A Lomba do Pinheiro consegue ser mais distante do Centro que o
Campus do Vale, lugar da UFRGS aonde estudo. Ao lado do “Vale” está Viamão e a Lomba
do Pinheiro contorna esse limite da cidade para seguir em direção à zona sul de Porto Alegre,
chegando no bairro Restinga pela chamada Av. do Trabalhador. O nome chega quase a ser
irônico, pois permite que a classe trabalhadora da periferia, principalmente Lomba do Pinheiro e
Restinga, atravesse a cidade para alcançar seus locais de trabalho.
Considerando os percursos na cidade de Porto Alegre de cada personagem presente na
construção dessa etnografia, considero, como James Clifford (1990), o trabalho de campo
enquanto um deslocamento. E, também, como um conjunto de práticas (CLIFFORD, 1990) e,
nesse caso específico, um deslocamento pela cidade envolvendo uma prática fotográfica. Entre os
meses de agosto e novembro mantivemos seis encontros em que conseguimos, efetivamente,
fotografar, sendo três deles na Lomba do Pinheiro e três na área central da cidade. Outras vezes
trabalhávamos somente no laboratório ou nos encontrávamos apenas para conversar. O assunto
escolhido para as fotos - pela Fernanda em praticamente todas as imagens realizadas - era o
retrato. Mesmo quando não retratava seu rosto, Nanda escolhia como assunto um objeto que a
identificasse, como o par de tênis preferido que fotografou na Casa de Cultura Mario Quintana.
No dia em que resolveu fotografar a estátua do Buda, na Redenção, sem que ela também
aparecesse na fotografia, a imagem ficou superexposta e não foi possível aproveitá-la.
Outra dificuldade a ser vencida, além dos
desencontros, era o fator climático, que muitas vezes não
permitia que fotografássemos. Então passávamos nossos
encontros conversando, como ocorreu no dia em que cheguei
no CPCA debaixo de chuva e a Fernanda estava me
esperando, mas não havia condições de fotografarmos. Aliás,
fotografar em pinhole na cidade de Porto Alegre não é das
Im. 136
124
tarefas mais fáceis, dependendo da época do ano e da quantidade de chuvas assolando a cidade.
Diversas vezes o tempo nos pregou uma peça, havendo dia em que combinávamos de fotografar e
aparecia uma grande massa cinzenta no céu. Numa dessas tardes, pesada e cinza escura, a Nanda
nem levou a lata para o nosso encontro no CPCA e, no final das contas, serviu como uma ótima
desculpa para eu finalmente conhecer sua casa e o pátio com as casas do resto da família.
Nesse dia, fomos fotografar, os três, no Parque Saint-Hilaire, que faz uma das divisas da
cidade com Viamão e é lugar de grande sociabilidade para os moradores do bairro nas épocas de
calor, segundo meus alunos. Marcelo contou que a represa existente na área abastece de água
certas localidades do bairro e, mesmo sendo proibido, a “galera” toma banho ali. O Parque fazia
parte do trajeto percorrido pela Fernanda para visitar sua avó nos tempos em que morava em
Viamão. Além de ser o local onde a avó, Dona Teresinha, fazia seus trabalhos de terreira.
Essa ocasião foi uma das poucas vezes em que o Marcelo não se retratou e resolveu
fotografar a quadra de futebol, que acabou ficando meio “tremida” pois a lata deve ter mexido
durante a exposição. Escolheu um assunto do seu agrado, pois ele gostava bastante de jogar
futebol, não de assistir, mas de jogar mesmo. Ele
planejou algumas outras imagens que não
tivessem nas pessoas seus assuntos principais e
que, no final, não se realizaram por algum motivo.
Chegou a fotografar o Colégio, onde cursava a
sétima série, mas não acertou o tempo de
exposição. Planejou fotografar as banheiras com
plantas do Jardim Lutzenberger, da Casa de
Cultura Mario Quintana, mas a última saída tinha
sido aquela cheia de imprevistos.
Para fotografarmos em locais que não possuíam um laboratório por perto, como no Parque
Saint Hilaire, utilizávamos um saco preto que o Grupo Lata Mágica havia construído para a
produção das fotografias do projeto O Olhar Passageiro. Era “um saco com mangas” que
permitia efetuar a troca dos papéis fotográficos, ou seja, um exposto por outro ainda virgem.
Eu guardava as imagens obtidas para que as revelássemos juntos, numa próxima ida ao
laboratório fotográfico.
Im. 137
125
Se quiséssemos fotografar ao alcance de um laboratório, uma das opções era o Parque da
Redenção, pois ficava bem próximo à Faculdade de Comunicação da UFRGS e o coordenador do
Núcleo de Fotografia autorizara a utilização do espaço em companhia dos meus dois alunos.
Fui encontrar-me com eles no CPCA e Marcelo não apareceu. Eu e Nanda ainda “fizemos uma
horinha” para ver se ele chegava e nada. Resolvemos nos deslocar até a Redenção mesmo assim.
Vi que ela estava bem arrumada, havia passado lápis nos olhos e feito várias trancinhas no
cabelo, iguais as que havia se comprometido fazer em uma vizinha na semana anterior, num dia
que eu estava junto. Quando chegamos no Parque, caminhamos até o Monumento ao
Expedicionário que é um local, digamos assim, bem turístico. Ela arrumou a lata para fazer uma
fotografia do monumento e, por alguns instantes, achei que ela não iria aparecer na imagem dessa
vez. Logo que abriu a fita isolante/obturador, saiu correndo para se colocar no quadro com o
monumento ao fundo, como parte do cenário. Fomos sentar num banco para fazer a operação de
troca do papel e, pensando sobre as fotografias que tinha produzido, ela concluiu que aparecia
em quase todas, na maioria das vezes eram retratos. Afirmou, então, que iria fazer uma fotografia
em que não aparecesse que, no caso, foi aquela do Buda que acabou “torrada”.
Im. 138 Im. 139
As pessoas ficavam intrigadas ao nos verem manipular um saco com duas mangas,
completamente prateado - ele é preto por dentro - tirando de dentro uma lata de tinta. Tinha
me esquecido que fotografar nessas situações e utilizar o tal “saco preto” chamava a atenção
daqueles que passavam. Logo depois que carreguei a lata, Nanda avistou uma mesa redonda com
uns bancos à volta, como aqueles brinquedos em pracinhas que giram em torno de um eixo.
Considerou que ali seria um bom lugar para tirar um retrato, ou seja, teria bom apoio para a lata
em uma altura mediana, sem riscos de cortar a cabeça no enquadramento. Quando revelamos a
126
imagem, impressionou-se de como aparecia sentada no banco quase de corpo inteiro e ainda com
um bom pedaço da Redenção atrás, mesmo que a lata estivesse tão próxima.
Saímos do Parque da Redenção para revelarmos as fotografias obtidas naquele dia juntamente
com as que foram produzidas no Parque Saint Hilaire. Entramos no laboratório - era a primeira
vez que iríamos revelar em um local que não fosse um banheiro improvisado - por mais que o da
FABICO estivesse precisando de uma boa reforma. Também era a primeira vez que a Fernanda
entrava em um dos prédios da Universidade Federal e parecia ser um fato bem significativo para
que ela tenha se lembrado de relatar posteriormente. As imagens que tínhamos feito nesse dia
ficaram surperexpostas, mas a maioria poderia ser aproveitada em cópias sem maiores problemas.
Controlamos o processo de revelação, eu no revelador e ela nas bandejas do interruptor e do
fixador. Deixamos as fotografias secando para voltarmos na outra semana e fazermos as pias
positivas. Novamente, Marcelo não apareceu ao nosso encontro e fomos, mesmo assim, fazer as
cópias que combináramos. Fernanda transformou todos seus negativos em positivos, tomando o
controle de todo o processo, inclusive montando o “sanduíche” de vidro com o negativo e o papel
virgem, fazendo uma scara para que a luz atravessasse e produzisse a cópia, exatamente o
inverso de sua matriz.
O dia em que fotografamos nas proximidades do terreno da família foi quando eu conheci a
Dona Teresinha, e de oito filhos, quarenta netos e vinte e dois bisnetos, que se dividiam entre
os que habitavam no mesmo pátio e os moradores do Bairro Partenon. Ela me recebeu na sala da
sua casa que era, na verdade, também a sala onde atendia seus filhos de santo e outras pessoas
que a procuravam com fins religiosos. Um salão com vários bancos compridos de madeira
dispostos um defronte ao outro e, no fundo da sala, à esquerda, ficava o seu congá, repleto de
santos católicos e entidades afro-religiosas. Algumas fotografias antigas estavam dispostas na
parede, inclusive com Dona Teresinha, bem mais nova, em alguns retratos, e diplomas que
atestavam o funcionamento de um Centro Espírita de Umbanda naquele local. Nanda tinha “uma
avó evangélica e outra batuqueira”, como ela mesma dizia. Perguntei se ela costumava ir aos
trabalhos de terreiro que a avó fazia no Parque Saint Hilaire, pois tinha me contado sobre isso
outro dia, quando fomos fotografar. Ela disse que sim e que não teria ido, no ano passado,
porque foi a uma festa na noite anterior e bebeu várias coisas misturadas. Parece que até ônibus
eles alugavam para levar as pessoas e as oferendas ao local do trabalho religioso.
127
Naquele dia em sua casa, Dona Teresinha se recuperava de uma pneumonia que a deixara
vários dias no Hospital e, ao longo do dia, os netos cuidavam para que ela tomasse seus remédios
corretamente. Permaneci, praticamente, todo tempo na parte de dentro da casa em companhia de
Dona Teresinha, mesmo enquanto ela recebia a visita de uma vizinha que desejava saber como
estava a recuperação de nossa anfitriã. Fernanda e Marcelo fotografavam com seus primos nas
imediações da residência, principalmente na parte da frente da casa, próximo ao muro que
separava o pátio da rua. Nesse dia, também, conheci Ana Paula e Emili, irmãs da Nanda, e Cíntia,
uma das irmãs do Marcelo, com seu sobrinho Diogo. Todos estavam empolgados em aparecer
nas fotografias, mas poderiam vê-las depois que as processássemos no laboratório. Nanda
estava craque, inclusive manipulando a troca de papéis fotográficos, com o auxílio do “saco
preto”, sem precisar de ajuda para a tarefa. A única coisa que atrapalhara a qualidade das fotos
tinha sido a presença de alguma sujeira no interior do saco, algo como grãos de areia, que havia
marcado grande parte das imagens. Mas não podíamos negar que esse imprevisto fazia parte da
linguagem pinhole. Enquanto eles fotografavam, Fernanda havia me trazido um saco de
supermercado com muitas fotografias de quando ela e os irmãos eram pequenos e também
algumas onde apareciam seus pais, bem mais novos, provavelmente antes de terem filhos.
Im. 140 Im. 141
Naquele dia, na Lomba, todos queriam ser fotografados e quem não conhece a foto na
lata tem aquela expectativa de uma imagem que possa colocar no “álbum de família”, não uma
fotografia “toda errada”. Quando convidei a Fernanda e o Marcelo para que continuassem
fotografando, perguntei se gostariam de continuar no CPCA ou se gostariam de fotografar no
Parque da Redenção. Eles escolheram mudar de lugar, fotografar no Parque e depois na Casa de
Cultura Mario Quintana, mas continuaram se retratando. Uma espécie de ato simbólico de
128
afirmação da personalidade, tanto pelo fato de estarem na adolescência - confirmando uma
imagem de si próprios - como pela ausência de câmeras fotográficas em casa para registrarem os
seus momentos significativos. Os retratos trazem uma dimensão afetiva das fotografias como
momentos importantes de recordação, pois transformam os retratados em um “objeto-imagem
que mantém presentes momentos da vida” (MOREIRA LEITE, 2001, p. 75). Ainda segundo
Miriam Moreira Leite, “tirar fotografias, conservá-las ou contemplá-las emprestam um teor de
ritual de culto doméstico” (2001, p.87) às imagens.
Somente na primeira vez que fomos à Casa de Cultura Mario Quintana consegui reunir
Fernanda e Marcelo para fotografar fora do Bairro Lomba do Pinheiro. Na CCMQ havia um
facilitador que era o laboratório fotográfico a nossa disposição, ali no terceiro andar, ou seja,
podíamos fotografar e revelar uma fotografia por vez. Fazia um calor insuportável em Porto
Alegre, daqueles dias abafados e nublados em que não chove, fazendo aumentar o calor. Logo na
chegada, levei-os até o último andar, numa das cúpulas do edifício, para uma vista da cidade e do
Rio Guaíba. Ambos fizeram questão de serem retratados naquele “cartão postal” com a câmera
digital que eu havia levado.
Im. 142 Im. 143 Im. 144
Estava com a câmera do Banco de Imagens e Efeitos Visuais (PPGAS-UFRGS) que
possibilitou - pela agilidade do fotografar com equipamento digital - o acompanhamento do
processo fotográfico
pinhole
e a produção de fotografias, que ainda por cima poderiam ser
apreciadas pelos meus ansiosos alunos logo após serem produzidas. Enquanto Nanda realizava
um auto-retrato fiz um instantâneo, não muito convencional, mas ela acabou gostando e se
identificando. Era um retrato das trancinhas no seu cabelo, ou melhor, um retrato seu, de costas,
ressaltando um aspecto de forte identificação da sua imagem que era o cabelo todo dividido em
129
pequenas tranças. Passamos a tarde inteira na CCMQ, absorvidos em fotografar e revelar os
negativos feitos, que nem vimos o tempo passar. Quase que Fernanda perde o horário para pegar
o ônibus, passar em casa e ainda chegar a tempo para a aula no Colégio que iniciava às 19h.
Im. 145 Im. 146
Im. 147
Na outra vez que fui, em companhia da Fernanda, até a CCMQ, fizemos algumas
pinholes
novas mas dedicamos a maior parte do tempo para copiar os negativos das últimas saídas. No
nosso encontro seguinte, no pátio do CPCA, reuni todo o material que havíamos produzido nos
últimos meses para entregar a ela e ao Marcelo, além de ter feito uma cópia das fotografias
digitais em um cd-rom, pois ela poderia abri-lo nos computadores da Instituição. Conversamos
novamente sobre o trabalho que eu estava fazendo para a “Faculdade” e ela demonstrou vontade
de ler quando eu terminasse.
130
Im. 148 Im. 149
Im. 150 Im. 151
4.8 Retornando à “Lomba” e construindo sentidos
Ao avaliar as fotografias produzidas ao longo das saídas de campo, Fernanda elegeu as
suas preferidas. Um retrato feito no Parque Saint-Hilaire em que aparece sentada em um balanço
- eu parecendo um fantasma no balanço ao lado - destacando a distorção causada pela curvatura
da lata, fazendo a barra que sustenta o brinquedo aparecer arredondada na imagem. Havia
gostado da fotografia do tênis, na CCMQ, que apesar de não ser um retrato trazia um elemento
com o qual a fotógrafa se identificava e que gostaria de ser reconhecida por ele. O estranho foi
que afirmou preferir essa imagem em negativo à sua cópia em positivo, porque na matriz da
fotografia a sombra do tênis parece uma luz branca iluminando a parte do sapato que está em
contato com o solo.
131
Im. 152
Im. 153 Im. 154
A terceira fotografia que escolheu, como sua preferida, era o retrato feito no Parque da
Redenção em que aparecia “fantasmagórica”, ladeando um busto em bronze. Seu pai entendeu
como uma imagem sinistra porque parecia ter sido feita num cemitério. Segundo ela,
“meu pai
ficou apavorado com aquela foto que tem uma árvore atrás de mim que ‘reflete’. Parece um
fantasma do lado da estátua na Redenção”
. Ele se perguntava:
“por que ela não tira foto
colorida que não fica tão estranha?”
. Perguntei a ela se também entendia como “coisa de terror”
as fotografias
pinhole
com pessoas que se tornavam fantasmas, devido aos longos tempos de
exposição, ouvindo sua afirmativa de que algumas pareciam trazer consigo fantasmas.
O Pai e a avó sempre contavam algumas histórias misteriosas, como a vez em que ele
abriu a janelinha da porta de casa, à meia-noite, e levou um tapa sem haver viva alma na rua.
Nanda dizia que inclusive sua avó achava o filho exagerado, mas não deixava de confirmar a
versão dele sobre o tapa. Ao retomar a trajetória social dos alunos, podia-se perceber uma visão
de mundo constitutiva do olhar que está presente no cotidiano desses sujeitos ao habitarem a
cidade. Não era de estranhar que Fernanda concordasse em parecer fotografias de cemitério. A
pela ocupação exercida pela avó na umbanda, as histórias de mistério faziam parte do seu
132
cotidiano. No caso das fotografias, “o ato de olhar demonstrou ser uma interação entre
características do objeto e a natureza de quem observa” (MOREIRA LEITE, 2001, p. 145).
Im. 155
Durante nossa conversa no CPCA, perguntei se me levaria novamente à sua casa para
reproduzir algumas das fotografias de família, com o auxílio da câmera digital. Entre as imagens,
fotos do bairro mostrando poucas casinhas iguais, contrastando com a variedade de construções
que se encontram atualmente na sua rua. Festas de aniversário e muitas imagens de família da
época em que viviam na Rua Duque de Caxias. Como foi dito anteriormente, as meninas
apareciam, arrumadas e com fitas nos cabelos, posando em frente a monumentos e prédios do
Centro da cidade. Determinada por sua função familiar, a prática fotográfica é comumente
associada aos tempos fortes da vida familiar (BOURDIEU et al., 1965, p.54). Para as populações
de baixa renda, a fotografia de família, ao ser disposta pela casa, poderia funcionar como “um
distintivo social”, afirmando: “sou de família” (MOREIRA LEITE, 2001, p. 75). Não deixando
de representar uma “memória intencionalmente manipulada” (HO KIM, 2003, p. 230) ao trazer
os retratados com suas melhores roupas e, além disso, fazendo a seleção do cenário e dos
melhores ângulos para as imagens. “É um resíduo, não inserido na ordem cotidiana, mas surgido
nela e, muitas vezes, capturado por ela” (HO KIM, 2003, p. 244)
133
Im. 156 Im. 157
Im. 158 Im. 159
Enquanto eu fotografava, a gurizada que estava por parecia “enlouquecida” para ser
retratada pela câmera digital e, depois, poder ver o resultado de maneira quase imediata. Emili, os
primos e mais alguns vizinhos, que passavam a tarde sob os cuidados da Ana Paula, começaram
uma verdadeira brincadeira defronte a câmera na tentativa de atrair a atenção da fotógrafa. Diante
dessa situação, não havia como não me render ao jogo de fotografá-los em diversas poses e
trejeitos, começando na sala e terminando no pátio da casa da Fernanda.
Im. 160
134
Im. 161 Im. 162
Im. 163 Im. 164
Im. 165 Im. 166
135
Essa circulação de muitas imagens partiu da oficina em um bairro de Porto Alegre, foi
para o Centro da cidade e retornou para dentro da casa de meus informantes. Na verdade, não
deixava de trazer consigo as mudanças que esses encontros provocaram em meu próprio olhar -
ao conhecer seu bairro e suas casas – possibilitando melhor compreensão das relações que
extrapolam as imagens fotográficas e invadem o cotidiano, e que tornam a aparecer nas imagens
formando um fluxo contínuo.
As fotografias, apropriadas como um simulacro da memória, reiteram o
pertencimento a um todo social mais amplo, ainda que imaginário. Opõem-se,
assim, ao tempo linear e são incorporadas em uma temporalidade duradoura que
estabilidade e dimensão às coisas que se perdem na realidade insólita e
fragmentária do cotidiano: buscam resgatar a biografia na sua perspectiva de
‘obra’ do gênero humano, como produção de uma vida, uma trajetória na
história (HO KIM, 2003, p. 244).
A partir desse momento, é preciso pensar nos cruzamentos que esses olhares e imagens
produziram.
136
Capítulo 5
As trocas sociais e a circulação de olhares sobre a paisagem de Porto Alegre
A partir da concepção sobre a cidade - conformada pela ação dos habitantes e por suas
trajetórias - é possível estabelecer algumas considerações sobre habitar o meio urbano e a
significação das fotografias produzidas pelos alunos das oficinas de fotografia pinhole no
contexto da presente pesquisa. A cidade, ao ser moldada pelas trajetórias humanas”, diz respeito
à criação coletiva fundada no comportamento estético (Leroi-Gourhan apud ECKERT e ROCHA,
2005, p. 158). Assim, a cidade, enquanto um território expressivo da experiência temporal
contemporânea (ECKERT e ROCHA, 2001), é criada coletivamente e nos cria individual e
socialmente (ECKERT, 2000, p.10). Essa cidade, expressão e significação do projeto racionalista
de modernidade, é habitada por homens e mulheres, enquanto “sujeitos cognitivos e atores
sociais”, que “agem no mundo se auto-identificando como corpus construtor de significações de
pertencimento e diversidades simbólicas” (ECKERT, 2001, p. 9). Pensando nesse contexto de
produção das fotografias pinhole e encarando-as como uma construção de sentido para o meio
urbano, é preciso refletir sobre o “estatuto cognitivo das representações simbólicas que
configuram os vínculos de identidade e pertencimento dos sujeitos humanos a um território
qualquer, representações cujo poder de evocação de lembranças capacita-os a nele habitar”
(ECKERT e ROCHA, 2005, p. 162).
137
As imagens da cidade residem no pensamento de seus habitantes enquanto uma
significação em relação aos espaços vividos, conformando um ato cognitivo sobre habitar
determinado lugar. As trocas dos olhares sobre a paisagem urbana, construídas a partir da
produção de fotografias pinhole, são vistas enquanto uma construção de conhecimento sobre o
espaço urbano. Nesse capítulo, o objetivo é relacionar a significação das fotografias na
conformação de imagens mentais sobre a cidade que, através de sua circularidade ou de suas
trocas, dão suporte à memória coletiva dos habitantes a partir da análise da construção de
fotografias enquanto um ato de narrar sobre a paisagem urbana. Pretendo considerar os alunos
das oficinas como produtores de imagens que constroem narrativas sobre a cidade e sobre os
assuntos que escolheram para fotografar. Assim, a paisagem urbana é vista como “composição de
olhares” (ECKERT e ROCHA, 2005). Sujeitos que elaboram um olhar, nas fotografias
produzidas, conformado de acordo com suas trajetórias sociais ligadas a determinados estilos de
vida e visões de mundo.
5.1 O cruzamento entre diversos olhares sobre a cidade a partir da perspectiva das trocas
sociais
Im. 167 Im. 168
A intenção é estabelecer os cruzamentos possíveis das experiências e práticas dos
personagens dessas duas oficinas e suas relações com a paisagem de Porto Alegre sob a
perspectiva da noção analítica - das mais caras à antropologia desde seu processo de fundação -
proposta por Marcel Mauss, em sua obra “Ensaio sobre a Dádiva: forma e razão da troca nas
sociedades arcaicas” (2003). O autor considera a análise das “trocas sociais”, em sociedades
tradicionais, enquanto reciprocidade. Trocas aparentemente voluntárias mas, no fundo,
obrigatórias, envolvendo interesses econômicos e que equivaleriam ao que ele denomina como
138
fato social total. “Tudo se mistura, tudo que constitui a vida propriamente social das sociedades
que precederam a nossa. Exprimem-se, de uma vez, as mais diversas instituições: religiosas,
jurídicas e sociais” (MAUSS, 2004, p. 187). Assim, essas trocas carregam inúmeros significados
de valor social e não podem deixar de serem vistas como trocas simbólicas que extrapolam os
aspectos puramente materiais. “Apresentar alguma coisa a alguém é apresentar algo de si” como
uma “parcela de sua natureza e substância” (MAUSS, 2003, p. 200).
Para Marcel Mauss, na referida obra, a análise das trocas sociais, nas chamadas
sociedades arcaicas, enquanto fato social total permite generalizações muito amplas, alcançando
vários setores da vida social. Elas põem em ação, em certos casos, a totalidade da sociedade e de
suas instituições. Mesmo nas sociedades ocidentais, segundo o autor, “uma parte considerável de
nossa moral e de nossa própria vida permanece estacionada nessa mesma atmosfera em que
dádiva, obrigação e liberdade se misturam” (MAUSS, 2003, p. 294). Como o exemplo referido
no “Ensaio sobre a Dádiva” em que não somente devemos aceitar certos convites feitos mas,
também, a obrigação em retribuí-los em uma negociação simbólica a respeito de status e
prestígio frente a certos atores sociais (2003, p. 249).
A apropriação da análise sobre as trocas sociais ocorrerá, na presente pesquisa, ao pensar
a circularidade dos olhares - construídos nas fotografias - enquanto uma significação sobre a
paisagem urbana, estabelecendo uma troca simbólica nos termos de uma “reciprocidade
cognitiva” (ECKERT, 2000, p. 10). As trocas de olhares como construção de sentidos na
conformação da paisagem urbana, considerando o pertencimento a um contexto de sociabilidade,
durante as oficinas em que os atores pensam reflexivamente sua cidade através da elaboração de
fotografias. Os alunos enquanto habitantes que se vêem nesta cidade a partir das imagens
produzidas, mas que se vêem, também, a partir do olhar do outro, revelador da polifonia da
cidade, para citar o titulo do livro de Massimo Canevacci (1993), em que “um flâneur
antropólogo interpreta a cidade como matéria significante” (ECKERT, 2000, p. 11).
As trocas de olhares sobre a cidade a partir das oficinas de fotografia pinhole tiveram seu
começo no primeiro dia de aula, desde a apresentação das primeiras imagens aos alunos.
Estabeleceu-se uma troca de imagens do outro e de si sobre a cidade, fazendo das fotografias uma
forma de socialização em que a construção de imagens articula a relação entre os olhares.
Projetávamos exemplos que reproduziam imagens de antigos alunos, percorrendo a trajetória do
Grupo através dos resultados de outras oficinas. Era uma maneira de revisitar os olhares sobre
139
esses lugares e dizer aos alunos das características que possuíam fotografias confeccionadas em
latas com papel fotográfico sendo utilizado como negativo: a fotografia do portão de uma escola,
produzida pelos moradores na Vila São Miguel; o prédio do Solar Paraíso, Bairro Menino Deus,
visto através das grades de uma lixeira; os retratos dos moradores da Vila Maria da Conceição,
onde Seu Egídio participou da atividade e viu aquelas imagens serem produzidas; os ônibus da
Cia. Carris, enfileirados no estacionamento, sob o ponto de vista dos funcionários da empresa;
prédios do Campus Central da UFRGS sob o olhar de estudantes de Arquitetura. A fotografia
pode ser vista como uma maneira do fotógrafo se inscrever na cidade e inscrever a própria cidade
nesse sujeito a partir da reflexão sobre o quê e como fotografar.
Esses trabalhos, apresentados aos alunos, acabavam por inspirá-los em alguns momentos
das saídas de campo, durante a realização das próprias imagens. Comprovando um cruzamento de
olhares sobre essa cidade em que um olhar interfere em outro sujeito na construção do
pensamento sobre certo espaço da cidade e que será transposto para uma fotografia pinhole. No
momento em que a imagem produzida pelo Edgar - onde o HPSP era visto por detrás de uma
grade - estava sendo revelada, foi comparada pelo Rafael Grupo Lata Mágica - com outra, de
uma aluna que havia fotografado o prédio do Solar Paraíso de dentro de uma lixeira
“quadriculada”, trabalho que havíamos mostrado no primeiro dia de aula. Gabriela também se
inspirou em uma imagem vista naquele dia para compor sua fotografia – em que aparece o
mosaico no chão do São Pedro com o nome da Instituição - e perguntava se as colegas
lembravam da imagem mostrada ao explicar sua intenção.
A “reciprocidade” se concretizou nas influências entre os olhares de alunos que não
chegaram a se conhecer, a não ser pelas imagens que os primeiros produziram e acabaram sendo
apropriadas pelos seguintes. O resultado de uma fotografia está impregnado do olhar, de um
sentido elaborado por aquele que o produziu e, aqui, é visto como uma construção de
conhecimento sobre essa cidade. Ocorre uma troca simbólica entre os envolvidos, a partir não
das imagens obtidas mas, também, dos olhares entre os fotógrafos a partir da significação dessas
imagens para cada um dos envolvidos no processo. “Trata-se, no fundo, de misturas. Misturam-se
as almas nas coisas, misturam-se as coisas nas almas. Misturam-se as vidas, e assim as pessoas e
coisas misturadas saem cada qual de sua esfera e se misturam, o que é precisamente o contrato e a
troca” (MAUSS, 2003, p. 212).
140
Im. 169 Im. 170
5.2 Construir uma fotografia pinhole: saberes e práticas negociados na elaboração de um
ato narrativo sobre o espaço urbano
Durante o processo de construção dessa pesquisa, as concepções sobre o ato fotográfico e
o artefato fotografia estavam em constante negociação entre as diferentes realidades dos
participantes. Essas concepções influenciaram uns aos outros ao longo do processo de
aprendizagem de uma técnica fotográfica não-convencional. As trocas sociais, no âmbito das
oficinas, ocorreram em diversos níveis, não somente entre alunos e professores mas, também,
entre os próprios alunos, nas suas brincadeiras, performances específicas e imagens construídas
que envolviam a significação do aprendizado de um saber-fazer, formando um círculo contínuo.
No momento, darei atenção especial às trocas estabelecidas a partir da circulação das fotografias
vistas e produzidas - enquanto uma forma de ver a cidade pelo olhar do outro, uma troca de
imagens mentais sobre a cidade - pois as brincadeiras e performances estiveram presentes nos
capítulos etnográficos, mais especificamente na etnografia realizada no HPSP. Sem esquecer, no
entanto, o quanto as performances individuais de Edgar e Seu Egídio envolviam o prestígio de
cada um enquanto contador de histórias orais ou através de montagens no momento das
composições fotográficas, levando em consideração a interação com os outros participantes no
contexto da oficina.
Mostrar imagens era, também, uma maneira de demonstrar como pensávamos uma
fotografia pinhole e dizer que estavam diante de nova maneira de fotografar. Uma maneira que
produzia efeitos com retratos fantasmagóricos, primeiros planos engrandecidos, movimentos que
“riscama imagem durante o período de exposição, esquinas inexistentes criadas pela curvatura
do aparelho. Afirmávamos a eles que, para o Grupo Lata Mágica, fotografar com latas era
141
explorar essas características em busca da imagem “diferenciada” e não tentar reproduzir aquela
imagem realizada por uma câmera que possui lentes. Os alunos iniciavam, assim, uma
negociação entre suas expectativas em relação àquelas imagens e as idéias de um Grupo -
transformadas ao longo do tempo - sobre a construção de uma linguagem pinhole.
Assim, a fotografia, enquanto um saber e uma prática, era negociada em relação às
expectativas dos alunos a partir de uma imagem produzida por latas. As concepções que os
alunos traziam consigo sobre a técnica fotográfica e as reflexões que desenvolviam ao longo do
processo de fabricação da pinhole eram colocadas em perspectiva para resultarem na significação
da aprendizagem dessa técnica não-convencional. Nesse contexto, considera-se que:
Nos processos interativos ocorrem complexos e ininterruptos cruzamentos entre a
imaginação, interpretação, reformulação e reinterpretação, neste sentido, o cotidiano não
é constituído apenas dos significados que mediatizam as interpretações interpessoais mas
de um mesmo método de produção que, reinventados continuamente, não são meramente
reproduzidos (GUTERRES, 2003, p. 384).
A partir das situações de interação geradas pelas oficinas, a história do pesquisador e de
seu “nativos”, após o encontro etnográfico, modificou por haverem compartilhado uma
experiência em comum. Na visão tributária de uma Antropologia Compartilhada - nos termos de
Jean Rouch (1979) - o encontro com o outro modifica a vida desses indivíduos ao passarem por
uma experiência diferenciada do seu cotidiano e que, ao mesmo tempo, é re-significado a partir
dela. Na presente pesquisa, as configurações do olhar, e seus aspectos cognitivos influenciaram
pesquisador e “nativos” mutuamente, destacando o fazer etnográfico como “compartilhamento da
riqueza da vida vivida dos nossos nativos. A etnografia é, assim, devedora das histórias vividas
pelo Outro das quais s, antropólogos, apropriamo-nos para produzir teorias e conceitos”
(ECKERT e ROCHA, 2003, p. 413).
Ao pensar a fotografia enquanto uma prática de sujeitos na cidade, considera-se que o
gesto do habitante, nas suas práticas cotidianas, conforma a cidade e a sua experiência urbana se
apresenta nas imagens produzidas por ele, sendo que essas fotografias, por sua vez, também vão
configurar o imaginário dessa mesma cidade. Assim, o gesto de fotografar registra a paisagem
urbana configurada pelas práticas cotidianas dos habitantes da cidade. Para Guy Bellavance
(1997), entre a fotografia e a cidade “algo como uma mentalidade comum moderna” (p. 17),
142
sendo a primeira uma “característica essencial da cidade moderna” (p. 19). A partir desse
pressuposto, fotografar pode ser considerado uma prática ligada a um estilo de vida urbano, pois,
como afirmado anteriormente, a paisagem urbana poderia ser vista como um “gênero
específico da fotografia” (BELLAVANCE, 1997, p. 20). Na pintura, a constituição do olhar está
relacionada a práticas específicas expressas em gestos, segundo Pierre Daimien Huygge (2002).
Apropriando-se dessa consideração para o caso da fotografia, o gesto de fotografar expressa, nas
imagens, as próprias práticas cotidianas que conformam o urbano através da exploração das
formas da cidade. Ao expressar essa paisagem urbana, é possível pensar a construção de
fotografias como a produção de uma narrativa sobre esse meio.
Ao fotografar somos habitados pelo nosso próprio imaginário, sendo que a produção e a
significação dessas imagens - dependendo de suas apropriações - vão nutrir a conformação de
uma memória coletiva, no caso da presente pesquisa, dos habitantes da cidade de Porto Alegre.
Assim, o ato de fotografar, encarado como uma prática, também molda a cidade no momento em
que o fotógrafo enquadra para compor o quadro expressivo de uma fotografia onde existe uma
intenção narrativa que pode estar mais ou menos explícita, inclusive para o seu autor. Fotografar
implica em assinar uma autoria de composição, de pensamento, sobre o assunto fotografado que é
re-significado através da escrita específica da luz sobre o suporte fotossensível. Esse ato depende
de imaginar o quadro visto em sua transposição nos termos das luminosidades e sombreamentos
que utilizam a luz como matéria-prima da escrita. Conformando, na apropriação do objeto
fotografado, uma narrativa sobre espaços ou pessoas retratados em um ato de se inscrever na
cidade através das imagens produzidas.
Im. 171 Im. 172
143
5.3 As fotografias significadas a partir do contexto das trajetórias sociais dos participantes
Im. 173 Im. 174
Ao término das oficinas de pinhole, “minha cidade” se transforma porque os lugares onde
ocorreram passam a fazer parte do meu mapa mental, integrando um itinerário subjetivo da
cidade. A partir disso, é possível concluir que o encontro com a técnica pinhole mudou minha
relação com Porto Alegre. Conheci lugares que, se não fosse pelas oficinas, talvez não tivesse
motivos para ir até lá. Nomes de bairros e vilas que anteriormente diziam de um lugar no
mapa, em pontos distantes daquele onde moro e que, por vezes, nem constavam nos mapas com
as denominações oficiais da cidade. Partindo dessa constatação e considerando a proposta de
James Clifford (1990) - buscando a análise cultural a partir dos objetos em termos de espaço -
como o encontro etnográfico media essas diferentes vivências da cidade, resultado de trajetórias e
itinerários que se encontram nas oficinas? Se alguma estratégia de localização é inevitável
quando maneiras significativamente diferentes de vida são representadas, como se traça essa
diferenciação em termos espaciais?
E pensar que as oficinas provocaram alguns trajetos inesperados. Muita gente se deslocou
para a Lomba do Pinheiro com a intenção de aprender a fotografar com latas e, como eu, acabou
descobrindo um bairro refletido nos olhares que produziram as fotografias. Alunos que habitavam
em diversas regiões da cidade cruzaram suas trajetórias a partir da experiência das oficinas,
conformando uma oportunidade de compartilhar experiências, de conhecer lugares e de trocar
histórias entre pessoas que, provavelmente, não se conheceriam de outra maneira por morarem
muito distantes uma das outras, em “territórios” da cidade que se tocam mas não se interpenetram
(PARK, 1976). Assim, houve uma troca de imagens da cidade, através de novos trajetos no
espaço urbano, entre os alunos das oficinas enquanto habitantes e na suas relações com a
144
paisagem de Porto Alegre. As impressões sobre o espaço urbano estiveram refletidas nas imagens
construídas pois o olhar é constituído pela “visão de mundo” daquele que fotografa. Ao
fotografar, somos habitados pelas imagens mentais que carregam nossos percursos e itinerários
no espaço.
Como se articulam diferentes “fluxos de significados” (CLIFFORD, 1990) em uma
mesma cidade? As práticas dos habitantes participam da manutenção ou alteração de um espaço.
Viver no centro de Porto Alegre, como no caso de Edgar, é conviver com a falta de espaço, ruas
apertadas, árvores que não nos deixam enxergar bem os prédios do outro lado da rua e fazem com
que as construções sejam invisíveis também. Não existe espaço para recuar e admirar o lado
oposto da calçada. Muitos prédios passam desapercebidos e existem lugares que simplesmente
não se vêem, passando-se tão perto deles que não como ter um olhar contemplativo que seja
abrangente em relação ao espaço. o amontoado de prédios, o vai e vem de pessoas
conformando um “mar de gente”, o trânsito intenso de carros e ônibus em ruas inapropriadas para
o volume do fluxo, mas também existe a proximidade do Rio Guaíba.
morar na Lomba do Pinheiro é olhar o contorno da cidade de cima, crescendo em
número de edifícios para os lados do Centro. Existe espaço para um olhar contemplativo, pois a
grande quantidade de casas permite enxergar o horizonte e o verde que ocupa os morros em torno
da Avenida do Trabalhador. Para Arjun Appadurai (1994), as paisagens são formadas por fluxos
imaginários onde existe uma fluidez frente às diferentes combinações e formas de ligação entre
eles. Os panoramas, “interpretações subjetivadas” (APPADURAI, 1994, p. 312), são formas
fluidas e irregulares dessas paisagens. Partindo desses conceitos, uma paisagem pode ser
apropriada como um pensamento abstrato, um estado de contemplação, uma maneira de
conceituar, de pensar sobre o mundo. A paisagem se constrói na relação entre homem e meio,
sendo diferentes, evidentemente, aquela vivida no Centro daquela vivida no Bairro Lomba do
Pinheiro.
Para Fernanda, a área central da cidade é o lugar onde ela procura estágio e gosta de
passear mas, é, também, o lugar das memórias da infância que aparecem nos álbuns de família.
Depois, passou a morar na Lomba do Pinheiro, no mesmo pátio que outros familiares, numa
paisagem muito diferente dos edifícios em que reside a maioria dos habitantes do Centro.
Edgar vive sozinho num desses apartamentos e de sua janela é possível enxergar o Cais do Porto.
Mora ali desde a juventude, uns vinte e poucos anos. Nunca havia pensado antes em morar no
145
Centro, mas foi ficando, ficando e estabelecendo sua vida naquele apartamento que
posteriormente acabou comprando. Logo que se mudou gostava de percorrer demoradamente um
trajeto, da sua casa na Rua dos Andradas até a Salgado Filho, alternando o caminho conforme
observava os casarões da Riachuelo e Duque de Caxias, sendo essa última a mesma rua onde
Fernanda morou. Os espaços, pensados a partir de Michel de Certeau (2004), são lugares
praticados onde os itinerários são marcados pelas adesões simbólicas de seus habitantes.
Na Lomba, a maioria das amigas da Fernanda é casada e tem filhos, assim como os
próprios irmãos do Marcelo. Ele reside, ali, dezessete anos e conhece tudo e todos como a
palma da mão, sabe os caminhos e os atalhos para se viver no Bairro Lomba do Pinheiro. A
cidade, através desses espaços vividos, é tratada como “um repositório de excedente de sentidos
e, em seus territórios, os sujeitos vivem cotidianamente estratégias de negociação de realidades,
de opções de consumo, de escolhas de interação, etc.” (ECKERT e ROCHA, 2000, p. 8). Mesmo
com a briga ocorrida entre os primos durante o período da pesquisa, os dois não escaparam da
convivência diária na casa da avó e até mesmo das conversas entre Cíntia, irmã do Marcelo, e
Fernanda ou entre Ana Paula, irmã da Fernanda, e Marcelo, mantendo uma rede de sociabilidade
entre as famílias. Assim, no dia em que fotografaram na frente de suas casas, fizeram duplas,
entre os primos que não estavam brigados, como se reafirmassem os laços familiares de quem
divide o mesmo pátio para habitar a cidade.
Ao longo das oficinas foi possível constatar que duas maneiras principais de expressão
dos alunos através das fotografias: os retratos e as fotografias do espaço. As diferentes práticas
cotidianas dos habitantes refletem, igualmente, experiências urbanas que contemplam estilos de
vida e visões de mundo, conformando “culturas visuais” que se diferem pelos momentos que
tiveram registrado em suas vidas através de fotografias e o significado atribuído a essas imagens.
Os retratos produzidos trazem uma dimensão mais afetiva das fotografias como momentos
importantes de recordação em uma narrativa, digamos, mais testemunhal da relação com a
cidade, pois afirmam que o retratado realmente esteve no lugar de produção da imagem. Nos
retratos, existe a expectativa de uma fotografia onde os rostos possam ser identificados e que
possam ser guardados como um “objeto-imagem” (MOREIRA LEITE, 2001), uma recordação.
as fotografias de espaço carregam uma intenção estética sobre determinado lugar,
conformando uma interpretação do autor sobre o assunto escolhido, pensando os alunos enquanto
146
narradores do meio urbano. Essas imagens podem ser encaradas como pontos de vista
diferenciados em relação à cidade.
Im. 175 Im. 176
5.4 Os itinerários urbanos, a memória e a fotografia
Fernanda não mora mais no Centro da cidade, mas sempre se refere àquele tempo como
de memórias felizes, numa adesão simbólica ao tempo vivido naquele lugar. A relação de
Fernanda com o Centro de Porto Alegre passa pelas memórias da infância, lembrando-se desse
lugar a partir do tempo presente, em um trabalho da memória, ao olhar suas fotografias de
família. De acordo com Ecléa Bosi (1994, p. 55), no livro Memória e Sociedade, os quadros
sociais da memória se conformam a partir de lembrar - refazer, reconstruir, repensar, com
imagens e idéias de hoje - as experiências do passado. E afirma, “o que rege, em última
instância, a atividade mnêmica é a função social exercida aqui e agora pelo sujeito que lembra”
(BOSI, 1994, p. 63). Nanda diz que preferiria morar no lugar em que passou uma parte da
infância porque as amizades, na sua opinião, eram melhores, mas esquece que o é possível
saber que relação manteria hoje com essas pessoas se tivesse continuado a viver naquele lugar.
Segundo Gaston Bachelard (1988), não se pode reviver o passado sem o encadear num tema
afetivo necessariamente presente. “O passado não é antagônico ao presente, eles se superpõem
ritmicamente e, num processo ondulatório até a sua consolidação, deixam, a descoberto, a matéria
de suas lembranças” (ECKERT e ROCHA, 2005, p. 154).
147
As fotografias produzidas a partir da técnica pinhole podem servir como um suporte
material da memória na relação com os itinerários aos quais os habitantes da cidade aderem e,
ainda, selecioná-la de acordo com o enquadramento e intenção do fotógrafo no momento do
registro. A fotografia se constitui na negociação entre o quadro imaginado pelo fotógrafo, no
sentido de sua imaginação criadora (DURAND, 1997; BACHELARD, 1994), e o registro técnico
possível daquela cena. Condiz com determinada intenção narrativa do fotógrafo, plena de sentido,
sobre a cena fotografada, trazendo consigo elementos da visão de mundo e do estilo de vida
daquele que a produziu. A fotografia, enquanto uma construção simbólica sobre um momento
passado, provoca lembranças, permitindo relembrar de um tempo anterior através da sua
contemplação a partir do tempo presente. Para as autoras do livro A Cidade e o Tempo (ECKERT
e ROCHA, 2005, p. 163), “o progresso da técnica” - no caso presente, a fotográfica - deve ser
visto “como parte constituinte do agenciamento humano do tempo”. Sendo que esse “tempo
torna-se humano na medida em que está articulado de forma narrativa” (ECKERT e ROCHA,
2005, p. 157).
Assim, retratar a cidade é fotografar essa experiência das camadas do tempo construídas e
ordenadas pelos seus moradores. “É através da sobreposição de tempos vividos e de tempos
pensados pelos habitantes das grandes cidades, reencontrados na vida do dia-a-dia, que se pode
pensar o tempo social como durée (duração)
27
(ECKERT e ROCHA, 2000, p. 12). A fotografia
age nas descontinuidades temporais que os indivíduos agenciam na tentativa de permanecerem no
espaço e durarem no tempo (BACHELARD, 1988), trazendo as imagens do passado, mantendo
presente o deslocamento dos indivíduos entre as “províncias” e “territórios” de significação no
meio urbano, ou seja, seus itinerários nesse meio. Ao construir a ligação entre a memória dos
habitantes urbanos e a fotografia, devemos tomar a cidade como “um território expressivo da
experiência temporal contemporânea dos grupos humanos que nela habitam (ECKERT e
ROCHA, 2000, p. 5). Sendo os itinerários urbanos conformados pelo “deslocamento dos
grupos/indivíduos entre as ‘províncias’ e ‘territórios’ de significação nas cidades é uma das
questões cruciais para se compreender o fenômeno da memória coletiva e, por conseqüência, da
estética urbana das modernas sociedades urbano-industriais” (ECKERT e ROCHA, 2000, p. 4).
27
Duração no sentido proposto por Gaston Bachelard em A Dialética da Duração. São Paulo: Ática, 1994.
148
Além de estabelecer o vínculo entre o trabalho da fotografia e da memória a partir da
perspectiva de itinerários urbanos dos habitantes da cidade, é possível pensar outro elo de ligação
partindo da cidade como um conjunto de formas a serem exploradas pela linguagem fotográfica,
servindo, posteriormente, como suporte para a própria memória a partir da significação dessas
imagens por seus espectadores. Uma das possibilidades das oficinas de pinhole é oferecer a
oportunidade de experimentar um outro olhar, a possibilidade de narrar a própria cidade sob um
ponto de vista diferente, através das fotografias que são produzidas na lata de tinta transformada
em câmera. Para Fayga Ostrower (2001), a visão de mundo do artista pode ser capturada através
das imagens figurativas que traduzem espaços vividos em imagens de espaço, sendo essas
últimas a forma ulterior de todas as linguagens. A interpretação dos alunos sobre a cidade onde
habitam, a partir de uma determinada ocupação do espaço, está refletida nas fotografias que são
originadas sob o ponto de vista dos olhares conformados por suas experiências urbanas. As
imagens produzidas pelos alunos devem ser pensadas enquanto uma construção de sentido, em
termos narrativos, sobre o assunto retratado a partir de uma técnica fotográfica diferenciada. A
memória, enquanto aspecto simbólico do pensamento humano, é constituída por imagens que
podem ser elaboradas a partir do processo de significação das fotografias produzidas pelos alunos
das oficinas.
Proponho refletir sobre as experiências dos alunos com a fotografia pinhole a partir do
conceito de “etnografia da duração” (ECKERT e ROCHA, 2005). E, assim, agenciar o
“tratamento da memória como conhecimento de si e do mundo”, a partir do “trabalho de recordar
que parte de uma intenção presente” na construção de narrativas pelos sujeitos (ECKERT e
ROCHA, 2005, p.149). Os alunos, enquanto narradores na produção de imagens desse “objeto
temporal” que é a cidade, significam as fotografias produzidas enquanto imagens mentais que
irão conformar a circularidade de olhares sobre a cidade e a constituição da própria memória
coletiva do grupo como habitantes de Porto Alegre. O significado das imagens é apropriado como
integrante na construção do imaginário onde os trabalhos da memória e da duração são vistos
“como fabricações intelectuais, produtos da inteligência humana que se conduzem reflexivamente
no mundo, ou seja, construtos da imaginação criadora” (ECKERT e ROCHA, 2005, p. 141). Para
Maurice Halbwachs (1990), a memória coletiva deve conter um sentido presente para a existência
do grupo. “A cidade concebida como um objeto temporal possui a capacidade de absorção de
todas as histórias dos grupos humanos que por ali passaram” (ECKERT e ROCHA, 2005, p.
149
161), mesmo considerando o incessante movimento das transformações urbanas. As fotografias,
no contexto do presente trabalho, são capazes de contar e significar histórias dos autores nas suas
relações com os objetos fotografados.
150
Conclusão
Esta dissertação foi construída ao longo do percurso de uma pesquisa, mas não a
considero como ponto de chegada de uma trajetória. Na verdade, muitas possibilidades de
continuidade se apresentam no momento de finalização do presente trabalho. Algumas
considerações permanecem em aberto e deverão ser aprofundadas na ocasião adequada como, por
exemplo, a relação entre a fotografia enquanto objeto construído socialmente e o trabalho da
memória enquanto produção de uma significação. Nestas considerações finais, centrarei meu
olhar nas implicações éticas e políticas que estiveram envolvidas na construção desse texto
etnográfico que se constitui como fruto do encontro entre pesquisador e informantes, mediado
pelos conceitos antropológicos.
Como levar o leitor àquelas experiências das oficinas? Estar naqueles lugares da cidade
com as mesmas pessoas com quem estive. Um Hospital Psiquiátrico Estadual no Bairro Partenon
e um Centro Comunitário, mantido por Freis Franciscanos, na Lomba do Pinheiro. A etnografia
descreve a experiência do encontro entre o antropólogo e o outro, considerando o desafio de
transpor os fatos, as narrativas, para a linguagem escrita e assim fixar em texto o que ocorreu no
fluxo da interação social (Geertz apud Langdon, 1999). Que imagem se formará para o leitor da
experiência vivida em campo? Provavelmente, aquela que o antropólogo conseguir construir com
o jogo das palavras, das fotografias e das sonoridades registradas. No texto (escrito, fotográfico,
151
sonoro ou em vídeo/filme), encontra-se o resultado do exercício da antropologia com a tradução
da realidade para outros meios expressivos.
Segundo Clifford Geertz (2002), a escrita é uma interpretação
28
e se configura como tal a
partir da ação de escolher de que maneira o texto será construído através dessa linguagem. Aqui,
pude somente narrar (RICOEUR, 1994) - a partir de um tempo vivido e re-configurado em uma
narrativa - a respeito de uma relação entre habitantes da cidade, imagens e lugares dessa mesma
cidade, em uma perspectiva teórica contemplada pela Antropologia Urbana e Visual. “A
Antropologia é aquela onde necessariamente se estabelece uma ponte entre dois universos (ou
subuniversos) de significação, e tal ponte entre dois universos é realizada com um mínimo de
aparato institucional ou de instrumentos de mediação” (DA MATTA, 1978, p. 27).
Utilizei, ao longo desse trabalho, as imagens que os alunos construíram durante nossas
experiências com a fotografia pinhole, aproveitando o potencial narrativo delas para reconstituir
esses eventos. Mas, mesmo fazendo uso diretamente das fotografias que eles realizaram, não
posso deixar de refletir sobre a incursão das mesmas em um texto antropológico e na mediação
exercida pelo Antropólogo entre a experiência vivida em campo e a construção etnográfica que
chegará ao leitor. A escrita etnográfica, tanto em texto, em fotografias ou através de sonoridades,
é uma maneira de afirmar a autoridade etnográfica exercida pelo profissional da Antropologia
Social, pois se deve considerar “a arte de narrar em Antropologia como parte integrante da
construção de sua autoridade etnográfica” (ECKERT e ROCHA, 2003, p. 405). Um exercício de
tradução está envolvido ao transformar a experiência vivida em narrativas que utilizam múltiplas
linguagens para restituir determinado fenômeno e, em função desse “poder” de escrita sobre os
acontecimentos, o Antropólogo não pode deixar de se questionar frente às suas responsabilidades
com aqueles que lhe permitiram compartilhar suas vidas.
A etnografia, enquanto forma de escrita, pode ser considerada como a tradução da
experiência para a forma textual. Esse processo, segundo James Clifford (2002), tem como fator
de complexidade a “ação de múltiplas subjetividades” e “constrangimentos políticos”. Em
resposta a essas forças a escrita etnográfica encena uma estratégia específica de autoridade. A
escrita etnográfica é considerada como alegórica, por Clifford, tanto “no nível do seu conteúdo
28
“Mas de que modo as palavras se ligam ao mundo, os textos à experiência e as obras às vidas, essa é uma pergunta
que eles [antropólogos] não estão minimamente acostumados a formular” (GEERTZ, 2002, p. 177).
152
(o que ela diz sobre a cultura e suas histórias) quanto no de sua forma (as implicações de seu
modo de textualização)” (2002 p. 63). Por alegoria entende-se a concessão de especial atenção
ao caráter narrativo das representações culturais e às histórias embutidas no próprio processo de
representação” (CLIFFORD, 2002, p. 66), devendo ser problematizadas enquanto tais no ato da
escrita. As escolhas autorais, realizadas a partir do trabalho com os dados etnográficos recolhidos
em campo, terão suas conseqüências éticas e políticas como decorrentes desse processo, a
começar pelo próprio reconhecimento dos grupos descritos na obra etnográfica como quanto ao
uso e apropriações da mesma pelos próprios informantes.
Além da “autoridade etnográfica” em questão, o envolvimento do próprio Grupo Lata
Mágica na contextualização da presente pesquisa, em políticas culturais que, de alguma forma,
viabilizaram a realização das atividades do Grupo. Assim, a inscrição de projetos no Fundo de
Financiamento da Prefeitura Municipal se configuraria como uma estratégia para a realização de
atividades que necessitam de recursos financeiros para ocorrerem. Mas, ao mandar esses projetos,
o Grupo também agencia uma série de interpretações sobre a significação do termo “cultura”
visto sob diversos ângulos.
De um lado a “cultura” determinada por uma política cultural, implantada pela Secretaria
de Cultura em conformidade com um plano de governo muito mais abrangente do que aquele
relacionado a essa esfera. De outro, a “cultura” que diz respeito a perspectivas das comunidades e
indivíduos que possuem suas próprias concepções sobre o acesso a expressões artísticas e, nesse
caso específico, sobre a própria linguagem fotográfica. Há, ainda, a “cultura” que o próprio
Grupo Lata Mágica reflete na sua relação com o ato fotográfico - dentro de uma cultura
audiovisual em que estamos inseridos - justificando o termo, escolhido por mim, para designar o
encontro dos alunos com a técnica pinhole: ruptura. Portanto, os alunos das oficinas devem ser
considerados enquanto integrantes de um contexto de produção simbólica que não está afastado
de articulações com as demais esferas da vida social.
O agenciamento dessas relações pode estabelecer uma reflexão crítica sobre os papéis de
quem está envolvido no processo. A relação entre a “cultura” pretendida pelas políticas culturais
com a “cultura” concebida pelos próprios moradores das regiões periféricas da cidade demonstra
o limite, muitas vezes, presente no processo em que intelectuais se deslocam até a periferia para
compartilhar suas concepções culturais. Levar o acesso à cultura” pode ser encarado como a
tentativa de submeter essas populações a uma cultura dominante e legitimada a partir dos fazeres
153
acadêmicos e intelectuais
29
. Assim, devemos refletir sobre como se articula a cultura e a cidade
moderna em uma circulação de “conhecimento” na relação centro-periferia.
O Grupo Lata Mágica procurou articular a política cultural vigente com sua produção
artística mas, ao mesmo tempo, propôs a circulação dessas atividades e das próprias imagens
construídas pelos participantes das oficinas. “Descentralizar”, em termos de política cultural, tem
seus aspectos positivos desde que favoreça a interação e a circulação de bens simbólicos, pois
“levar a cultura” até a população não é suficiente se não houver uma troca que considere o
pensamento desta população sobre as diversas formas que a “cultura” pode assumir.
A questão da circulação na cidade é importante, não somente em termos de uma produção
simbólica mas fisicamente, de como se estabelece a separação centro-periferia. Pois “levar à
cultura” pode ser interessante desde que não seja mais um motivo para os habitantes da periferia
não freqüentarem o Centro, além da separação imposta pela distância e pelo preço das
passagens do transporte coletivo. A política cultural é de inclusão ou exclusão, considerando a
circulação das pessoas na cidade e a ocupação dos espaços? E como isso se reflete na apropriação
da cidade, nos termos de uma paisagem urbana “moldada pelas trajetórias humanas” (ECKERT e
ROCHA, 2000)? Inquietações que construí ao longo do fazer etnográfico e que divido com você,
leitor.
Ao considerar os alunos enquanto produtores de imagens - independentemente da
localização geográfica onde se situam como habitantes do meio urbano - é preciso discutir essa
relação centro-periferia para que seja possível a legitimação das muitas imagens possíveis sobre a
cidade que, ao circularem suas significações, conformam a memória coletiva dos porto-
alegrenses. Pois, é justamente no encontro dessas múltiplas leituras sobre a cidade, que se torna
possível a construção de uma verdadeira polifonia, ressaltando as descontinuidades temporais
próprias do trabalho da memória no agenciamento do tempo. Articulando as práticas e trajetórias
desses fotógrafos, enquanto configuradores da paisagem urbana, vista como uma “composição de
olhares” (ECKERT e ROCHA, 2005).
Sendo assim, dentre todas essas discussões possíveis que contextualizam o fazer
antropológico em esferas mais amplas e articuladas da vida social, não se pode entrar e sair de
campo impunemente quanto ao lugar e papel do antropólogo na construção da realidade social.
29
Para uma discussão sobre a cultura e as táticas utilizadas pelas possíveis manifestações versus uma cultura
hegemônica ver: DE CERTEAU, Michel. A Cultura no Plural. Campinas, SP: Papirus, 1995.
154
Para finalizar, espero conseguir, no seguimento da pesquisa, provocar a discussão mais detalhada
sobre as várias escritas envolvidas na construção de um texto etnográfico buscando a produção de
uma intertextualidade. A articulação das linguagens, com intenção de restituir um fenômeno
social, depende da estetização de suas formas para que possa ser significado nos termos de sua
poética e não da sua transposição literal. Até porque não considero que seja possível transcrever
fielmente uma determinada realidade porque escrever, independentemente da linguagem
utilizada, implica na subjetivação da realidade vivida em campo, no caso da tarefa etnográfica.
155
Referências
ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotoetnografia da Biblioteca Jardim. Porto Alegre: Editora
da UFRGS; Tomo Editorial, 2004.
ALVES, André. Os Argonautas do Mangue. Campinas, SP: Editora da Unicamp; São Paulo:
Imprensa Oficial, 2004.
ANDRADE, Rosane de. Fotografia e Antropologia: olhares fora-dentro. São Paulo: Estação
Liberdade; EDUC, 2002.
APPADURAI, Arjun. “Disjunção e Diferença na Economia Cultural Global”. In:
FEATHERSONE, Mike (Coord.). Cultura Global: nacionalismo, globalização e modernidade.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
ATHAYDE, Celso, MV Bill e SOARES, Luiz Eduardo. Cabeça de Porco. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2005.
BACHELARD, Gaston. A Dialética da Duração. São Paulo: Ática, 1994.
. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BATESON, Gregory. “Uma Teoria sobre Brincadeira e Fantasia”. In: RIBEIRO, Branca Telles e
GARCEZ, Pedro M. Sociolingüística Interacional: Antropologia, Lingüística e Sociologia em
Análise do Discurso. Porto Alegre: AGE, 1998.
BAUMAN, Richard e BRIGGS, Charles L. “Poetics and Performance as Critical Perspective on
Language and Social Life”. In: Annual Review of Anthropology, Washington, 1990.
BAXANDALL, Michael. O Olhar Renascente: pintura e experiência social na Itália da
renascença. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
BELLAVANCE, Guy. “Mentalidade Urbana, Mentalidade Fotográfica”. In: Cadernos de
Antropologia e Imagem: a cidade em imagens. Rio de Janeiro, v. 4, 1997. UERJ.
BENJAMIN, Walter. “A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica”. In: LIMA,
Luiz Costa (Org.). Teorias da Cultura de Massa. Rio de Janeiro: Saga, 1969.
. “A Pequena História da Fotografia”. In: KOTHE, Flávio R. (Org.). Sociologia.
São Paulo: Ática, 1991.
. “Charles Baudelaire: Um Lírico no Auge do Capitalismo”. São Paulo:
Brasiliense, 1995.
156
BIAZUS, Paula e DEL FRARI, Maísa. “A Fotografia como Instrumento de Conhecimento de Si
e do Mundo”. Trabalho apresentado durante o I Encontro Foto-Educativo: Intervenção e
Pesquisa. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2004.
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.
BOURDIEU, Pierre et al. Un Art Moyen: essai sur les usages sociaux de la photographie. Paris:
Minuit, 1965.
CANEVACCI, Massimo. A Cidade Polifônica: ensaio sobre a Antropologia da comunicação
urbana. São Paulo: Studio Nobel, 1993.
CHEUICHE, Edson Medeiros. “120 Anos do Hospital Psiquiátrico São Pedro: um pouco de sua
história”. Revista de Psiquiatria do RS. Porto Alegre, n. 26, maio/ago., 2004.
CHION, Michel. Le Son. Paris: Nathan, 1998.
CLIFFORD, James. “Travelling Cultures”. [S.l.]: [S.n.], 1990.
. A Experiência Etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 2002.
DA MATA, Roberto. “O Ofício de Etnólogo ou como ter ‘Anthropological Blues’”. In: NUNES,
Edson de Oliveira. A Aventura Sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na
pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
DE CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. volume 1. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2004.
. A Cultura no Plural. Campinas, SP: Papirus, 1995.
DIETRICH, Jochen. “Câmara Obscura: algumas idéias sobre a fotografia pinhole nas artes, na
estética, na educação”. In: Porto Arte. Revista de Artes Visuais. Porto Alegre, volume 9, número
17, 1998. Instituto de Artes/UFRGS.
DODD, Nigel. “Aspectos Culturais da Economia Monetária Moderna”. In: A Sociologia do
Dinheiro. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997.
DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico. São Paulo: Papirus, 1993.
DURAND, Gilbert. A Imaginação Simbólica. São Paulo: Cultrix; Editora da Universidade de São
Paulo, 1988.
. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia
geral. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
157
. O Imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de
Janeiro: DIFEL, 1998.
ECKERT, Cornelia. “Apresentação”. In: HORIZONTES ANTROPOLÓGICOS. A Cidade
Moderna. Porto Alegre, ano 6, n.13, 2000. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,
IFCH, UFRGS.
ECKERT, Cornelia e ROCHA, Ana Luiza Carvalho da. “Premissas para o estudo da memória
coletiva no mundo urbano contemporâneo sob a ótica dos itinerários de grupos urbanos e suas
formas de sociabilidade”. In: Iluminuras: Série do Banco de Imagens e Efeitos Visuais. Porto
Alegre, número 15, 2000. BIEV- PPGAS/UFRGS.
E . “Imagens do tempo nos meandros da memória: por uma
etnografia da duração”. In: Iluminuras: Série do Banco de Imagens e Efeitos Visuais. Porto
Alegre, número 4, 2000. BIEV- PPGAS/UFRGS.
E . “Etnografia de Rua: Estudo de Antropologia Urbana”. In:
Iluminuras: Série do Banco de Imagens e Efeitos Visuais. Porto Alegre número 44, 2001. BIEV-
PPGAS/UFRGS.
E . “O Antropólogo na Figura do Narrador”. In: Habitus. Revista
do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia da Universidade Católica de Goiás. Goiânia,
vol. 1, n. 2, 2003. Editora da UCG.
E . O Tempo e a Cidade. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005.
FINNEGAN, Ruth. Oral Traditions and the Verbal Arts. London: Ronhedge, 1992.
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.
FREUND, Gisèle. La Fotografía como Documento Social. México, Editorial Gustavo Gili, 1993.
FONSECA, Claudia. Família, Fofoca e Honra: Etnografia de relações gênero e violência em
grupos populares. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2000.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
. O Saber Local: novos ensaios em Antropologia Interpretativa. Petrópolis:
Vozes, 1999.
. Obras e Vidas: o antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.
158
GOFFMAN, Erving. Footing”. In: RIBEIRO, Branca Telles e GARCEZ, Pedro M.
Sociolingüística Interaciona: Antropologia, Lingüística e Sociologia em Análise do Discurso.
Porto Alegre, AGE Editora, 1998.
GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão: um estudo da Psicologia da representação pictórica. São
Paulo, Martins Fontes, 1995.
GUTERRES, Liliane Stanisçuaski. La gente de Ansina : performance, tradição e modernidade
no carnaval da ‘Comparsa de Negros y Lubolos Sinfonía de Ansina’ em Montevideo/Uruguai.
Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, 2003.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice; Editora Revista dos
Tribunais, 1990.
HISTÓRIA ILUSTRADA DE PORTO ALEGRE. Porto Alegre: Já Editores, 1997.
HUYGGE, Pierre Daimien. Avertissement et Regarder”. In: Du Commun: Philosophie pour le
peinture et le cinéma. Paris: Circé, 2002.
HO KIM, Joon. “A Fotografia como projeto de memória”. In: Cadernos de Antropologia e
Imagem: a família em imagens. Rio de Janeiro, v.17 n. 2, 2003. UERJ.
KOSSOY, Boris. Origens e Expansão da Fotografia no Brasil Século XIX. Rio de Janeiro:
Funarte, 1980.
LANGDON, Ester Jean. “A Fixação da Narrativa: do mito para a poética de Literatura Oral”. In:
Horizontes Antropológicos: Cultura Oral e Narrativas. Porto Alegre, n.12, 1999. Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social, IFCH, UFRGS.
LEROI-GOURHAN, André. O gesto e a palavra: técnica e linguagem. volume 1. Lisboa:
Edições 70, 1964.
. O gesto e a palavra: a memória e os ritmos. volume 2. Lisboa: Edições 70,
1965.
. Evolução e Técnicas: o homem e a matéria. Volume 1. Lisboa, Portugal,
Edições 70, 1984.
. Evolução e Técnicas: o meio e as técnicas. Volume 2. Lisboa, Portugal,
Edições 70, 1984.
MACHADO, Arlindo. A Ilusão Especular: introdução à fotografia. São Paulo: Brasiliense, 1984.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
159
McLUHAN, Marshall. “Sight, Sound and de Fury”. In: ROSENBERG, Bernard e WHITE, David
M. (Org.). Mass Culture: The PopularArts in America. Nova Iorque: The Free Press, 1957.
MEIRA, Ana Lúcia. O passado no futuro da cidade: políticas públicas e participação popular na
preservação do patrimônio cultural de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
MOLES, Abraham, ROHMER, Elisabeth. Labyrintes du Vécu. Paris: Librairie des Meridiens,
1982.
MOREIRA LEITE, Miriam. Retratos de Família: leitura da fotografia histórica. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso. O Trabalho do Antropólogo. São Paulo: Ed. da UNESP, 2000.
OLIVEN, Ruben George. “Por uma Antropologia em Cidades Brasileiras”. In: VELHO, Gilberto
(Coord.). O Desafio da Cidade: novas perspectivas da Antropologia Brasileira. Rio de Janeiro:
Campus, 1980.
OSTROWER, Fayga. “A Construção do Olhar”. In: NOVAES, Adauto (Org.). O Olhar. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002.
PARK, Robert Ezra. “A Cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no
meio urbano”. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1976.
PIAGET, Jean. Os Pensadores.o Paulo: Abril Cultural, 1983.
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Tomos I, II e III. Campinas: Papirus, 1994.
ROCHA, Ana Luiza Carvalho et al. Manual de Orientações: Coleções Etnográficas Sonoras.
Banco de Imagens e Efeitos Visuais IFCH LAS UFRGS. Porto Alegre, 2005.
Mimeografado. [1]
ROCHA, Ana Luiza Carvalho et al. Manual de Orientações: Coleções Etnográficas em
Fotografia. Banco de Imagens e Efeitos Visuais IFCH LAS UFRGS. Porto Alegre, 2005.
Mimeografado. [2]
ROCHA, Ana Luiza Carvalho da. “Cidade como lugar do próprio e do absoluto: os dilemas de
uma política de valorização de bens culturais”. In: Iluminuras: Série do Banco de Imagens e
Efeitos Visuais. Porto Alegre , número 31, 2001. BIEV- PPGAS/UFRGS. [1]
160
. "As figurações de lendas e mitos históricos na construção da Cidade tropical".
In: Iluminuras, Série do Banco de Imagens e Efeitos Visuais. Porto Alegre, número 34, 2001.
BIEV- PPGAS/UFRGS. [2]
. “Antropologia visual, um convite à exploração de encruzilhadas conceituais”.
In: ECKERT, Cornelia e MONTE-MÓR, Patrícia (Org.). Imagem em Foco: novas perspectivas
em Antropologia. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1999.
ROUCH, Jean. “La caméra et les hommes”. In: FRANCE, Claudine (Org.). Pour une
anthropologie visuelle. Paris: Mouton, l979.
SANSOT, Pierre. Les Formes Sensibles de la Vie Sociale. Paris: Presses Universitaires de
France, 1986.
SIMMEL, Georg. “A Metrópole e a Vida Mental”. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O
Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.
SOULAGES, François. Esthétique de la Photographie. La perte e le reste. Paris: Nathan, 1998.
SULLIVAN, Lawrence. “Sounds and Senses: toward a hermeneutics of Performance”. In:
History of Religions. Chicago, EUA: Chicago University Press, 1986.
VEDANA, Viviane. "Fazer a Feira" : estudo etnográfico das "artes de fazer" de feirantes e
fregueses da Feira Livre da Epatur no contexto da paisagem urbana de Porto Alegre.
Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, 2004.
VELHO, Gilberto. “Observando o Familiar”. In: NUNES, Edson de Oliveira. A Aventura
Sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar,
1978.
. “O Antropólogo pesquisando em sua cidade: sobre conhecimento e heresia”.
In: VELHO, Gilberto (Coord.). O Desafio da Cidade: Novas Perspectivas da Antropologia
Brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1980.
. Projeto e Metamorfose: Antropologia das Sociedades Complexas. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
. Individualismo e Cultura: Notas para uma Antropologia da Sociedade
Contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
VILLAIN, D. “Le ‘cadrage’ du son”. In: Le cadrage au cinema. L´oeil à la câmera. Paris:
Cahiers du Cinema, [S.d.]. Collections Essais.
WAIZBORT, Leopoldo. As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Ed. 34, 2000.
161
ZALUAR, Alba. Condomínio do Diabo. Rio de Janeiro: Revan; Editora UFRJ, 1994.
. A Máquina e a Revolta: As organizações populares e o significado da pobreza.
São Paulo: Brasiliense, 2000.
Outras fontes consultadas
http://www.nosbairros.com.br/hpartenon.htm
www.pinholeday.org
www. portoalegre.rs.gov.br/cultura/fumproarte
http://www2.portoalegre.rs.gov.br/spm/
http://www.saude.rs.gov.br/hospitais/hospital_sao_pedro.php
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo