Aí eu passava fome, eu sentia dor... sentia muita dor... passava fome, acho que ela
passava, né?! (...) Quando eu tava perto da minha mãe eu comia, porque ela comprava,
mas quando não tava na minha casa eu não comia não. (Mina)
A fala de Bela reflete como o vínculo mãe-filho fica evidente já desde a
gestação, apesar das dificuldades externas (fome, violência, problemas de saúde do
feto), marcando a interação com a futura criança:
A gente brigava muito (Bela e o ex-marido). Aí eu tava arrumando a casa e a estante caiu em
cima da minha barriga. (...) Mas eu fiquei sentindo dor, muita dor, fazia três dia que o
menino tava morto na minha barriga. Aí eu fui pra Encruzilhada, aí acusou que fazia três dia
que ele já tava morto. Ele só fazia subir, subir, num tava como os bebê normal que só fica
embaixo, num é, que mexe. Ele não, só ficava subindo e a minha barriga quente. Aí o doutor
disse “olha mãe, vamo ter que fazer o parto agora, urgente”. Eu chorava, pedia a minha
mãe “mainha, num deixa não, num deixa não, doutor, num tirar não!”. Aí fizeram parto
normal. Quando o doutor tirou ele, quando eu vi ele, ele queria que eu pegasse nele, eu num
quero não. Eu disse “num deixa alevar não, mainha, num deixa não”. Era um menino... (...)
Guilherme. Eu que dei esse nome a ele. (...) Eu já tava acostumada com ele. O médico disse
também que ele ia nascer doente, ia ter dodói, ele num ia falar, num ia ouvir, e você ia ter
que ficar o tempo todinho batendo nele, ia ter que ficar dando comida de instante em instante
a ele, que se era pra ficar assim então ta bom, foi Deus que levou. Eu digo “mesmo assim eu
quero ele”. Aí foram fazer o exame, abriram ele, e eu querendo levar ele pra casa. Mainha
disse “num pode não, num pode não”. Eu, oxe, já tava acostumada com ele. Quando falava
assim, ficava, né, brincando com ele, “cadê o bebê de mamãe?!”, ele ficava mexendo, tava
chutando. Quando eu soube disso aí foi muito duro. Eu ainda não esqueço. O povo me
pergunta “tu tem quantos filho?”, eu digo “três, um no céu e dois ta aqui!”. “Que três
menina, isso não existe mais não!”, eu digo “pra você num existe, mas pra mim existe,
porque ele era um humano, num era invisível não”. (...) Acho tem vezes que eu nem esqueço,
né, porque ninguém esquece uma coisa dessas. “Vem cá mainha, vem cá! Vem cá, vem cá,
vem cá!” (Pega Ian e dá um abraço forte nele.) Aí eu já grávida de Ian,, eu às vezes chorava,
ficava sonhando com ele, com o menino, chorando, eu dizia “eita amor, deixa eu virar, vou
dar peito ao neném!”, “que neném?”, eu digo “ó ele aqui, dormindo”, falando, dizendo que
o menino tava, eu só fazia chorar “mô, cadê ele, me da ele pra mim!”, “me da o quê, mô,
num tem não, o bebê ta no céu, ele ta vendo você”, “mas eu não to vendo ele, eu quero ele,
eu quero ele!”.