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Instituto Materno Infantil Professor Fernando Figueira – IMIP
Mestrado em Saúde Materno Infantil
ABORDAGEM PSICODINÂMICA DA INTERAÇÃO MÃE-CRIANÇA
DESNUTRIDA GRAVE HOSPITALIZADA
LINHA DE PESQUISA: DESNUTRIÇÃO NA INFÂNCIA
Aluna: Marisa Amorim Sampaio
Orientadora: Profa. Ana Rodrigues Falbo
Co-Orientadora: Profa. Maria do Carmo Camarotti
Co-Orientadora: Profa. Maria Gorete Lucena de Vasconcelos
Recife, 2008
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INSTITUTO MATERNO INFANTIL PROF. FERNANDO FIGUEIRA
MESTRADO EM SAÚDE MATERNO INFANTIL
MARISA AMORIM SAMPAIO
ABORDAGEM PSICODINÂMICA DA INTERAÇÃO
MÃE-CRIANÇA DESNUTRIDA GRAVE HOSPITALIZADA
RECIFE
2008
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MARISA AMORIM SAMPAIO
ABORDAGEM PSICODINÂMICA DA INTERAÇÃO
MÃE-CRIANÇA DESNUTRIDA GRAVE HOSPITALIZADA
Linha de pesquisa: Desnutrição na Infância
Dissertação apresentada ao Colegiado do Mestrado
em Saúde Materno Infantil do IMIP como parte
dos requisitos para obtenção do grau de Mestre em
Saúde Materno Infantil
Orientadora: Profa. Ana Rodrigues Falbo
Co-orientadora: Profa. Maria do Carmo Camarotti
Co-orientadora: Profa. Maria Gorete Lucena de Vasconcelos
Recife – 2008
Ficha catalográfica
Preparada pela Biblioteca do Instituto Materno Infantil de Pernambuco, IMIP, Ana
Bove
Sampaio, Marisa Amorim
Abordagem psicodinâmica da interação mãe-criança desnutrida grave
hospitalizada. -- Recife: O autor, 2008.
228 --- p. il. (figuras e quadros)
Dissertação (mestrado) -- Colegiado do Curso de Mestrado em Saúde
Materno Infantil do Instituto Materno Infantil de Pernambuco, IMIP.
Área de concentração: Saúde da criança
Orientadora: Ana Rodrigues Falbo
Co-orientador: Maria do Carmo Camarotti
Co-orientadora: Maria Gorete Lucena de Vasconcelos
1. Relações mãe-filho. 2. Vínculo. 3. Desnutrição. 4. Pesquisa qualitativa. 5.
Psicanálise. 6. Assistência integral à saúde. 7. Pais. 8. Desenvolvimento
infantil. I. Falbo, Ana Rodrigues, orientadora II. Camarotti, Maria do Carmo,
co-orientador. III. Vasconcelos, Maria Gorete Lucena de. IV. Título. V.
Instituto Materno Infantil de Prof. Fernando Figueira, IMIP. NLM WA 310
“O modelo que temos dos bebês influi sobre a
maneira que temos de uma sociedade; o modelo
que temos de uma sociedade influi sobre a
maneira sobre a qual nos ocupamos dos bebês; o
modelo que temos da psicopatologia e o modelo
que temos do papel dos pais influenciam bastante
a maneira com que nos ocupamos de bebês.”
Bernard Golse
“Estamos diante da nova ciência como
estiveram diante da velha positivista nossos
ancestrais: deslumbrados e aflitos.”
Carlos Vogt
“Se procurar bem você acaba encontrando
não a explicação (duvidosa) da vida, mas a
poesia (inexplicável) da vida.”
Carlos Drumond de Andrade
Dedico aos meus pais, a Nossa Senhora de Fátima
e ao meu noivo; amores de natureza diferente,
imprescindíveis e complementares,
essência da minha vida
“Aconchego”
Thereza Christina Dubeux de Amorim Sampaio (Titina Sampaio)
Agradecimentos
Ao meu pai pelo amor incondicional, paciência, incentivo constante e financiamento,
não medindo esforços para me auxiliar na realização desta etapa da minha vida.
Ao meu noivo pelo apoio irrestrito, paciência e compreensão. Léo, seu respeito, amor,
carinho e bom humor são meu porto seguro.
Aos meus irmãos, avó, Tazinha, sogros, cunhados, tias e familiares pela
compreensão, apoio, solidariedade e alegria.
Ao meu querido sobrinho e amigo Edu, pela alegre companhia nas solitárias tardes de
uma pesquisadora iniciante.
A Laís Lins Perreli, por dividir suas impressões iniciais de mãe que também gestava.
Á minha querida e admirada orientadora, Profa. Ana Rodrigues Falbo, pelo auxílio
nesta formação humana e científica. Seu acolhimento, incentivo, solidariedade,
confiança, dedicação, apoio e segurança foram essenciais em todas as etapas deste
verdadeiro processo terapêutico. Seu excepcional carinho e dedicação marcam minha
carreira profissional e estréia acadêmica. Aventuramos-nos, mexemos em nossos
“formigueiros internos”, motivadas pelo re-encontro com nossas mães, com o
inominável, com a Psicanálise em interlocução com a Pediatria. Tenho-a como exemplo
de mãe, mulher e profissional. Receba minha gratidão e reconhecimento através de uma
frase de Bárbara Wootton: “é muito mais aos campeões do impossível do que aos
escravos do possível que a humanidade deve sua evolução”.
Às minhas muito queridas co-orientadoras Profa. Maria do Carmo Camarotti e
Profa. Maria Gorete Lucena de Vasconcelos, por se aventurarem junto conosco, por
compartilharem de modo excepcional seu tempo e experiência, sua atenção aos detalhes,
com muita paciência, além do carinho de mães e colegas, ensinando através do seu amor
pela ciência e profissão. Sem vocês e Dra Ana este trabalho não teria sido possível.
Às onze mães e seus filhos, por sua confiança, que com suas narrativas tornaram
possível meu aprendizado e a realização deste trabalho.
Às minhas chefes e colegas Dra. Geisy Lima, Dra. Taciana Duque e Dra. Andréa
Echeverria, pelo incentivo e apoio.
Às colegas da Unidade Neonatal do IMIP, em especial as amigas do Canguru (Janaína,
Carmen, Rebeca, Ana Luiza, Sandra, Lisania, Diva, Cida, Line, Vilma, Ladjane, Márcia
e Ana) e a alvi-rubra Ozanil, pelo apoio e incentivo, carinhosamente assegurando meu
lugar na equipe.
Aos meus fiéis professores, incentivadores e colaboradores Fátima Caminha e
Edvaldo Souza, por seu carinho e por dividirem comigo sua experiência e a grande
mãe, Dra. Ana.
Às profissionais atuantes na enfermaria “E” do hospital de Pediatria do IMIP, Dra.
Anna Cleide, Vicentina, Alyne, Fabiana, Thaís, Gabriela, Amanda, Marilda,
Cleide, Simone e Ceça, pelo acolhimento, confiança, paciência, colaboração, incentivo
e carinho.
Às queridas amigas da Brinquedoteca do IMIP, Monique e Sueli, por me
proporcionarem incondicional apoio e conforto para a realização deste trabalho.
A professora Maria Lyra (Maninha), por sua influência em minha formação, apoio e
colaboração nesta nova etapa profissional.
Aos professores do curso de Mestrado em Saúde Materno Infantil do IMIP, pelos
ensinamentos, abertura, aposta e confiança.
A Raquel Costa e o Prof. João Guilherme Bezerra Alves por seu apoio e colaboração
inicial a este trabalho.
Às professoras e colegas Deborah Foinquinos, Kátia Feliciano e Maria do Carmo
Duarte por sua essencial colaboração, paciência e cuidado na avaliação do trabalho, em
especial pelas contribuições na fase final de discussão da dissertação.
Aos membros da Banca de Defesa, professores Sílvia Ferreira, Isabella Samico e
Eulálio Cabral Filho, por sua disponibilidade e imprescindível colaboração.
Aos meus colegas do Mestrado, pelas descobertas compartilhadas, prazerosa
convivência e momentos de descontração, além do apoio nas horas de dificuldade.
À minha comadre Elisa Gaspar por sua amizade e por me presentear com minha
querida e meiga afilhada, Irina.
À muito gentil e disponível colega Betinha Cordeiro Fernandes, pelo apoio,
aconselhamento e disponibilidade.
A Maria Arleide da Silva e Natália Banja, pela escuta atenta, disponibilidade e
incentivo.
Às minhas amigas Eduarda Pontual Santos, Eliane Albuquerque, Roberta
Monteiro, Janaína Zoby Viana, Thais Pedrosa e Ana Paula Pedrosa, pela
solidariedade, amizade, incentivo, compreensão e carinho, assumindo parte das minhas
obrigações enquanto realizava o mestrado.
À prima, amiga e colaboradora, Ana Maria Dourado Maciel Groarke, companheira
de todos os momentos, bem como a Michael Groarke, ímpar amigo “brasinglês”, por
sua colaboração e exemplo de ética, companheiro de merecidas caipiroscas.
Às amigas e sócias Cristina Araújo, Katarina Kehrle e Tatiana Lins, incentivadoras
das minhas buscas profissionais e pessoais.
À minha querida amiga Ana Paula, mãe, esposa, psicóloga, gourmet, dona de
restaurante, por me inspirar com sua determinação e energia.
À minha analista Lucia Rodrigues, pelo suporte no reconhecimento e enfrentamento de
minhas angústias, medos e ansiedades frente a esta importante etapa da minha vida.
Às secretárias do Núcleo de Pesquisa e do Mestrado do IMIP, em especial Josefa Lira
de Melo (Dona Zefinha) e Fabiana, pela acolhida carinhosa e ajuda, e a Toinho, fiel
zelador dos recursos acadêmicos, sempre disponível, bem humorado e com um sorriso
para dar.
A Virgínia Guimarães Freire Mariz, bibliotecária do IMIP, pela valiosa ajuda na
elaboração da ficha catalográfica.
Aos funcionários do IMIP que, nas suas variadas funções, facilitaram meu percurso no
mestrado. Em especial Sr. Nildo da xérox.
À CAPES - Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pelo
auxílio bolsa-estudo.
A Cecês que cuidou de mim como uma mãe com muito carinho, mantendo a casa “de
pé”.
A Sandro que passou a ser meu anjo da guarda.
Ao meu querido Astolfo José, por seu companheirismo e fidelidade.
Meu agradecimento a todos que eu involuntariamente não tenha mencionado e que
estiveram presentes na realização deste trabalho.
Lista de Siglas
IMIP – Instituto Materno Infantil Professor Fernando Figueira
DEP – Desnutrição Energético-Protéica
OMS – Organização Mundial de Saúde
PMP – Preocupação Materna Primária
FTT - Failure to Thrive ou Síndrome da Falha no Desenvolvimento
FPRDs – Fatores Micro-Ambientais ou Psicossociais de Risco para a Desnutrição
FPRNs – Fatores Psicossociais de Risco para a Nutrição
HD – Hard Disk (disco rígido)
MP3 Moving Pictures Experts Group ou arquivo comprimido de computador com
formato utilizado para gravação de áudio
CD – Compact Disc ou disco compacto
CEP – Comitê de Ética em Pesquisa
AIDPI – Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância
IDH – Índice de Desenvolvimento Humano
SNG – Sonda Nasogástrica
ReSoMal – Rehidration Solution for Malnutrition (Solução de sais de reidratação oral
para crianças gravemente desnutridas)
GMP – Ganho Médio de Peso
SUS – Sistema Único de Saúde
Lista de Fotos, Figura e Quadros
Página
Foto 1
Brinquedoteca 48
Foto 2
Brinquedoteca
48
Foto 3
Sala onde foram realizadas as entrevistas e algumas filmagens, com
tripé da câmera e cesto com brinquedos (setting de filmagem)
48
Foto 4
Colchonete e cesto com brinquedos
48
Figura 1
Fluxograma de captação dos participantes e execução do estudo 51
Quadro 1
Caracterização das díades segundo procedência, período e tempo de
hospitalização. IMIP, Recife, 2007
121
Quadro 2
Caracterização das mães segundo anos de estudo, ocupação e
situação conjugal. IMIP, Recife, 2007
121
Quadro 3
Caracterização das mães segundo apoio financeiro e emocional,
suporte familiar e número de filhos. IMIP, Recife, 2007
122
Quadro 4
Caracterização das díades quanto ao planejamento da gravidez,
satisfação com o sexo da criança e abortos. IMIP, Recife, 2007
122
Quadro 5
Significados criados pelas mães quanto à doença. IMIP, Recife,
2007
179
Resumo
A desnutrição energético-proteica (DEP) infantil, compreendida como transtorno
alimentar integrado pela economia relacional, oferece-se ao olhar clínico como um
quadro complexo com pelo menos três vertentes: médica, psicológica e social. A DEP
poderia ser associada ao campo da psicossomática, onde a representação que o corpo
assume configura um sintoma que altera o real do órgão, remontando a uma falha no
suporte simbólico da organização do circuito pulsional infantil, considerando-se que a
satisfação afetiva é tão central que sua ausência poderia entravar a própria necessidade
alimentar. Alimento e alimentação estão situados na intersecção da necessidade, da
demanda e do desejo. Buscou-se analisar elementos da psicodinâmica interativa da
díade mãe-criança desnutrida grave no contexto da internação em enfermaria pediátrica,
ancorados na expressão dos registros pulsionais de troca, bem como segundo elementos
da interação fantasmática, comportamental e afetiva. Utilizou-se o método qualitativo,
baseado no referencial psicanalítico. Foram acompanhadas oito ades de crianças entre
seis e 18 meses de idade e sua mãe biológica, internadas no Instituto Materno Infantil
Professor Fernando Figueira (IMIP). As informações foram coletadas por triangulação
de técnicas através de entrevistas semi-estruturadas, observações e filmagens. Foi
empregada a análise de conteúdo, elegendo-se quatro temas representativos: Temática 1
O processo de construção da parentalidade; Temática 2 Vivência e retomada da
parentalidade: interação mãe-criança ao longo da hospitalização; Temática 3
Desnutrição e interação mãe-criança: significados criados em relação à doença; e
Temática 4 Psicodinâmica interativa: indícios compreensivos quanto às perturbações
da interação mãe-criança. Os temas ilustram a importância do processo de parentalidade
na psicodinâmica interativa da díade, fatores que podem ter interferido na
construção/ruptura do vínculo, sua contribuição para a situação de desnutrição e
expressão na hospitalização. Reforça-se a influência mútua de mãe e filho na construção
da interação e a complexidade dos distúrbios funcionais, sugerindo que estados
extremos de desnutrição podem estar associados a faltas e/ou falhas nutricionais, bem
como a vivências de privação ou excesso psicoafetivo. A hospitalização despertou
vivências da mãe e da criança, informando sobre o passado da díade. Em alguns casos o
hospital pareceu ocupar/ser tomado como terceiro da díade, auxiliando na retomada de
aspectos da parentalidade, figurando como lugar potencial de resgate e proteção clínico-
nutricional e funcional (funcionamento materno e filial). A doença pode ser pensada,
portanto, como um limite/apelo ao excesso ou à falta materna/paterna. A observação da
interação mãe-criança em momentos críticos, como desnutrição e hospitalização e o
reconhecimento do lugar ocupado pela criança na problemática psíquica da mãe, do
casal e na história trans e intergeracional podem auxiliar família e equipe de saúde na
compreensão do processo de adoecimento e sobre a integralidade da atenção em saúde.
Palavras-chave: vínculo, relações objetais, relações mãe-filho, desnutrição, pesquisa
qualitativa, psicanálise, pais, desenvolvimento infantil, assistência integral à saúde.
Abstract
Child malnutrition, understood as an eating disorder integrated by the relational
economy, offers to the clinical view as a matter with at least three areas: medical,
psychological and social. Malnutrition could be linked to the field of psychosomatic,
where the representation that the body assumes represents a symptom that changes the
real of the body, referring to a failure in the symbolic support of the infant’s pulsional
circuit, considering that the satisfaction is as affective central that his absence could
hinder the need for food. Food and nutrition are interconnected with need, demand and
the desire. Elements of the interactive psychodynamics from the serious malnourished
hospitalized mother-child pair were analyzed, anchored in the expression of the
pulsional exchange registers, and according to the levels of the fantasmatic, behavioral
and affective interaction. The qualitative methodology was used, based on the
psychoalysis. The research subjects were eight mother-child pairs, consisting of children
aged between six and 18 months and their biological mothers, hospitalized at the
Instituto Materno Infantil Professor Fernando Figueira (IMIP). The data was collected
by triangulation of technics: semi-structured interviews, observations and video
recordings. Content analysis was applied, identifing four themes; Theme 1 - The process
of becoming a parent (parentalization); Theme 2 The experience of and resumption of
parentalization: mother-child interaction during the period of hospitalization; Theme 3 -
Malnutrition and mother-child interaction: meanings created in relation to the
understanding of the illness; Theme 4 Interactive Psychodynamics: comprehensive
evidences about the disruption of the mother-child interaction. The themes illustrate the
importance of the parentalization process in the interactive psychodynamics, factors that
could have interfered in the formation/rupture of the mother-child bond, its
repercussions on the situation of malnutrition and the way it manifests itself in a context
of hospitalization. The mutual influence of mother and the child on the construction of
interaction and the complexity of the functional disturbances is reinforced. This study
also suggests that extreme states of malnutrition may be associated to the nutritional
privation and/or errors, as well as the experiences of psychoaffective deprivation or
excess. Hospitalization seemed to awaken past experiences of the mother and child. In
some cases, the hospital seemed to occupy/be taken as a third within the pair, helping
the pair in the resumption of aspects of the parentalization. The hospital potentially
offers clinical, nutritional and functional (of the mother and son) rescue and protection.
The illness can be thought of as a limit/appeal to the maternal/paternal excess/lack. The
observation of mother-child interaction at critical moments, during the malnutrition and
hospitalization, and the recognition of the role of the child in the mother’s psychic
function, of the couple and at the trans and intergerational history, may help the family
and healthcare professionals in the understanding how the illness develops, as well as
the integral care of the health.
Key words: bond, object relations, mother-son relations, malnutrition, qualitative
research, psychoanalysis, parents, child development, integral assistance to the health.
Sumário
Página
DEDICATÓRIA i
AGRADECIMENTOS ii
LISTA DE SIGLAS v
LISTA DE FOTOS, FIGURA, QUADROS E TABELAS
vi
RESUMO vii
ABSTRACT viii
I INTRODUÇÃO 1
Abordagem do problema 3
Justificativa 4
Objetivos 6
II FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 7
2.1 Aspectos conceituais da interação mãe-criança 7
2.2 Caracterização da interação mãe-criança 10
2.3 Parentalidade 17
2.4 Função materna, função paterna e estruturação infantil 20
2.5 Dinâmica e níveis de interação 27
2.5.1 Interação fantasmática ou segundo as representações mentais
maternas precoces
28
2.5.2 Interação comportamental 30
2.5.3 Interação emocional ou afetiva 32
2.6 As interações nas situações desfavorecidas 34
2.7 Riscos psicossociais para desnutrição (FPRDs) e nutrição (FPRNs) 40
2.8 Risco, plasticidade e prevenção em psicanálise 41
III CAMINHOS DA PESQUISA 45
3.1 Escolha da metodologia 45
3.2 Contexto da investigação 47
3.3 Seleção das díades 48
3.2.1 Critérios de inclusão 49
3.2.2 Critérios de exclusão 50
3.4 Obtenção dos dados 52
3.5 Estruturação e análise dos dados 59
3.6 Controle da qualidade das informações 63
3.7 Aspectos éticos 64
IV RESULTADOS E DISCUSSÃO DOS DADOS 66
4.1 Caracterização das díades 66
Maria e Gabriel 67
Mina e Pandora 73
Ana Maria e Mariana 78
Rosácea e Angélica 83
Bela e Ian 92
Magdala e Renata 99
Izabel e João 108
Eva e Fátima 115
4.2 Temática 1 – O processo de construção da parentalidade 127
Sub-tema: construção da parentalidade ao longo da gestação por
meio da interação mãe-feto
127
Sub-tema: vivência da parentalidade por meio da interação e-
criança no domicílio, enfatizando os sinais interacionais e a
alimentação
145
4.3 Temática 2 Vivência e retomada da parentalidade: interação mãe-
criança ao longo da hospitalização
158
4.4 Temática 3 Desnutrição e interação mãe-criança: significados
criados em relação à doença
174
4.5 Temática 4 Psicodinâmica interativa: indícios compreensivos
quanto às perturbações da interação mãe-criança
192
V CONSIDERACOES FINAIS E RECOMENDAÇÕES 205
VI REFERÊNCIAS 212
ANEXOS E APÊNDICES 228
Anexo 1 – Ficha de Acompanhamento do Desenvolvimento
Apêndice 1 – Roteiro das Entrevistas
Apêndice 2 – Roteiro para Análise das Observações Filmadas
Anexo 2 Parecer de aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa
Envolvendo Seres Humanos do Instituto Materno Infantil Prof. Fernando
Figueira (IMIP)
Apêndice 3 – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (A)
Apêndice 4 – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (B)
I Introdução
A desnutrição infantil
A
é um processo multifatorial que envolve causalidade
complexa, com condicionantes biológicos, emocionais e sociais, incluindo o vínculo
mãe-filho.
2-4
Para a compreensão da situação nutricional da criança, a alimentação deve
ser avaliada para além das necessidades fisiológicas,
3,5
uma vez que os primeiros
conflitos interacionais encontram expressão na esfera da alimentação.
5-8
Buscou-se abordar aspectos da carência (pobreza) no plano real (falta da
comida, falha nutricional) e sua conseqüência biológica (desnutrição), investigando
significados que ilustrassem como a falta/falha real associada à falta/falha simbólica
pode ter influenciado a interação da díade.
A avaliação da interação mãe-criança é um instrumento importante no
acompanhamento do crescimento e desenvolvimento infantil, principalmente em
situações em que risco e descontinuidade desse processo. A interação da díade foi
estudada buscando-se compreender o papel desempenhado por mãe e criança, focando-
se no contexto da desnutrição e hospitalização. A desnutrição foi tomada como uma
situação de risco não apenas sócio-econômico, mas também emocional, observada
enquanto associação complexa de fatores, não numa relação de causa-e-efeito.
A situação de internação evoca um despertar de vivências da mãe e da
criança que podem informar sobre o passado da díade, bem como permite que se
observe essa interação enquanto fator para a instalação e perpetuação da desnutrição. A
A
A desnutrição energético-protéica (DEP) representa uma variedade de condições patológicas decorrentes
da falta de energia e nutrientes.
1
Ocorre quando o organismo não recebe o aporte nutricional necessário
para o seu metabolismo fisiológico, quando a disponibilidade de alimentos é inferior às necessidades
(DEP primária) ou em decorrência do inadequado aproveitamento funcional e biológico dos nutrientes
disponíveis/elevação do gasto energético na presença de doenças associadas (cardiopatias congênitas,
neuropatias, síndrome da imunodeficiência adquirida, pneumopatias crônicas, etc), esta chamada “DEP
secundária”.
1
Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde),
1
crianças cujo indicador peso/altura < -3
escore Z e/ou com presença de edema simétrico envolvendo no mínimo os pés, são diagnosticadas com
desnutrição aguda grave.
abordagem da díade no hospital, por meio de observações, entrevistas e filmagens,
permitiu não só a observação dessa hipótese, como também o questionamento a respeito
de contribuições práticas à equipe de saúde: como a compreensão da interação da díade
hospitalizada pode auxiliar no tratamento da desnutrição?
Interação pode ser definida como a ação recíproca entre dois fenômenos,
9
enfatizando a noção de interdependência, partindo-se do princípio que a relação da
criança com sua mãe (ou cuidador) se em um processo bi-direcional, constituído por
um conjunto de fenômenos dinâmicos que ocorrem ao longo do tempo entre mãe e
filho.
10,11
O estudo da interação mãe-criança abrange extensa gama de abordagens; a
psicanálise traz contribuição importante para o estudo desse fenômeno, uma vez que as
interações envolvem não características manifestas dos envolvidos, como também
elementos representacionais imaginários e fantasmáticos.
10,12
Por elementos
representacionais imaginários e fantasmáticos compreende-se os conteúdos psíquicos
inconscientes, como idealizações representações e valores transmitidos transgeracional e
intergeracionalmente, manifestados através do corpo, da linguagem e seus afetos.
7,14
A psicanálise considera que a interação está no fundamento da subjetivação.
O sofrimento psíquico na primeira infância geralmente está associado a dificuldades no
processo interativo, resultando em desarmonias nos registros pulsionais de troca,
B
ilustrados pela oralidade (pulsão oral, incorporação pela via oral, como no caso da
alimentação), invocação (pulsão invocante: interpelar/ser interpelado, relação com o
outro através da comunicação) e especularidade (pulsão escópica: olhar e ser olhado,
relação através das trocas que envolvem o olhar).
6
B
Pulsão: representante psíquico dos estímulos originados dentro do organismo e que alcançam a mente,
situado na fronteira entre mental e somático; difere substancialmente de instinto.
Nesse sentido, as experiências alimentares no contexto da relação pais-filho
constituem matrizes das modalidades de trocas relacionais vivenciadas pela criança e
base para o contínuo desenvolvimento de suas interações.
15
Considerou-se interação como um processo no qual um conjunto de
fenômenos dinâmicos ocorre entre os atores envolvidos ou implicados, retrospectiva e
prospectivamente.
Supondo-se que a maioria dessas crianças/famílias carrega histórias com um
início de vida multiplamente traumático, a psicanálise pode contribuir com reflexões
que auxiliem na formulação de políticas de atenção à saúde à infância, de modo que
ações que considerem a subjetividade, destinadas a essas famílias evitem reproduzir ou
produzir novos traumatismos provocados por práticas equivocadas.
À luz do referencial teórico adotado a interação será descrita quanto aos
aspectos conceituais e quanto às suas características, para então ser associada ao tema
desnutrição/hospitalização.
Abordagem do Problema
Esta pesquisa reflete a transdisciplinaridade resultante do encontro entre
pediatria, psicanálise e psicologia do desenvolvimento, por meio da pesquisa qualitativa.
A desnutrição pôde ser resignificada pelos profissionais envolvidos nesta
pesquisa. Nas palavras de Kreisler
8
a respeito da transdisciplinaridade:
A desnutrição pôde ser resignificada pelos profissionais envolvidos nesta
pesquisa. Nas palavras de Kreisler
8
a respeito da transdisciplinaridade: “para o pediatra,
a reflexão psicanalítica sentido aos fatos de observações psicossomáticas e evita
submetê-los a catálogos fenomenológicos estéreis; para o psicanalista, a observação do
pediatra pode evitar os desvios e erros cronológicos decorrentes de um bebê mítico
reconstituído pela ‘predição do passado’. É necessário que essa construção
retrospectiva seja ajustada ao presente do bebê tal como ele se oferece ao nosso olhar
na sua realidade corporal e mental (...)”. (1999: 346)
8
O interesse e relevância do tema foram construídos ao longo de experiências
diferentes e complementares a respeito das origens da organização e expressão psíquica
em associação com a patologia orgânica e suas conseqüências ao desenvolvimento
infantil.
Justificativa
A interação mãe-criança é vastamente estudada mediante diferentes
perspectivas teórico conceituais e metodológicas, como constatado nas bases de dados
pesquisadas (Pubmed, Scielo e Lilacs). No entanto, pontua-se a carência de trabalhos
enfocando a compreensão da dinâmica interativa da díade mãe-criança desnutrida grave
no contexto da hospitalização, justificando-se a originalidade e relevância deste
trabalho.
O IMIP (Instituto Materno Infantil Professor Fernando Figueira) vem
aplicando, desde 2001, no tratamento da desnutrição infantil, orientações sugeridas pela
OMS
1
(Organização Mundial de Saúde) em manual sobre o manejo da desnutrição
infantil grave. Apesar de este conter recomendações relativas à estimulação emocional
da criança, não aborda características da psicodinâmica interativa da díade desnutrida
grave.
Essas díades em situação de risco têm sido rara e insuficientemente
pesquisadas em sua singular subjetividade, de modo que esta pesquisa lançou o ousado
desafio de dispor de ferramentas clínico-acadêmicas a serviço da participação social da
pediatria e da psicanálise, sem perder de vista as exigências teóricas e éticas de seus
preceitos básicos, construindo um processo de conhecimento ampliado e coletivo.
Apesar do papel atribuído à mãe no processo de desnutrição infantil, são
escassos os programas dirigidos a essa população.
3,16
Nesta perspectiva, qualquer
programa destinado a desnutridos deve priorizar, dentre outros aspectos, o envolvimento
da família como participante ativo do processo, bem como a observação e avaliação da
relação mãe-filho e os aspectos de saúde mental materna, mediante atenção integral.
17
O reconhecimento das competências da criança e das modalidades
interativas da díade está na base do processo de subjetivação e, portanto na promoção de
saúde e prevenção de perturbações do desenvolvimento.
18
É importante que sejam
observados sinais precoces de saúde e de risco para o desenvolvimento infantil, bem
como de plasticidade (estratégias utilizadas diante do reconhecimento de necessidades e
no cuidado e interação com a criança).
18,19
Este trabalho buscou destacar a importância
do profissional de saúde reconhecer e intervir como forma de promover a saúde e
prevenir distúrbios funcionais e relacionais.
Esse conhecimento tem papel essencial na organização de políticas e
práticas desenvolvidas pelo setor saúde, apontando a necessidade de cuidados integrais
efetuados pelos profissionais, caracterizando intervenções de prevenção primária.
Objetivos
Objetivo Geral
Analisar a psicodinâmica interativa da díade mãe-criança desnutrida grave no
contexto da internação em enfermaria pediátrica.
Objetivos Específicos
Analisar a psicodinâmica interativa da díade mãe-criança a partir de:
1) Elementos da interação fantasmática (experiências e representações mentais
maternas): vínculos familiares da mãe, fantasias e significados maternos em relação
à desnutrição da criança;
2) Elementos da interação comportamental: significado do comportamento da ade
(diálogo tônico: movimentos do feto/bebê e influência de estados tônicos da mãe)
com base nos eventos e sentimentos associados aos períodos gestacional, parto e
puerpério;
3) Elementos da interação emocional: sentimentos maternos diante da interação habitual
da criança no domicílio, da interação e comportamento da criança diante do
processo de internação, e a dinâmica interativa da díade com base na observação das
atividades de alimentação e brincar.
II Fundamentação Teórica
2.1 Aspectos conceituais da interação mãe-criança
O fenômeno interativo é referido como um compartilhar do si mesmo e do
outro
20
; processo de “conversação” entre mãe e bebê, protótipo primitivo de todas as
formas ulteriores de troca;
12
; sistema de feedback mútuo, recíproco entre mãe e bebê
21
segundo a realidade observada e o plano fantasmático - idealizações representações e
valores construídos e transmitidos transgeracional e intergeracionalmente através de
manifestações inconscientes.
22
Os termos interação, inter-relação e interdependência são utilizados por
diversos autores da psicanálise
7,9,12,20,22,23
como sinônimos de ação recíproca,
interpessoal. Esses termos indicam relações de objeto, expressando o investimento
libidinal, representações pertinentes ao relacionamento entre os sujeitos. Por
investimento libidinal compreende-se o deslocamento de energia psíquica, advinda da
pulsão sexual, ou energia fruto da manifestação dinâmica na vida psíquica da pulsão
sexual. A libido pode ser destinada ao próprio organismo (libido narcísica) ou a objetos
externos (libido objetal).
24,25
O termo “relação” se refere ao modo como o sujeito constitui seus objetos e
como estes modelam sua atividade. Objeto é a coisa em relação à qual ou através da
qual a pulsão atinge sua finalidade, ou seja, certo tipo de satisfação. O objeto não
necessariamente é exterior, podendo ser uma parte do corpo do próprio indivíduo.
25
O termo “relação de objeto” reflete o modo de relação do sujeito com seu
mundo, resultado complexo da organização da personalidade, de uma apreensão mais ou
menos fantasmática dos objetos e de certos tipos de defesa psíquica.
25
Quando o bebê suga e mama não apenas sacia a fome fisiológica, pois
incorpora junto com o leite, também o olhar, o cheiro e a voz da mãe. Não é a boca
que é alimentada, mas os ouvidos, os olhos, a pele;
26
a alimentação deve ser
compreendida para além das necessidades fisiológicas, uma vez que está situada na
complexidade da interação entre necessidade do alimento, demanda de amor e desejo do
impossível.
Freud elaborou a noção de apoio para explicar a diferença entre “satisfação
da necessidade” e “satisfação da pulsão”, pontuando que a satisfação da pulsão acontece
por meio da ou se apoiando na satisfação da necessidade (corpo), sem se confundir com
ela. Assim, para que o bebê possa alcançar na relação alimentar a satisfação da pulsão,
precisa experimentar a satisfação da necessidade, bem como se sentir objeto de
satisfação para um outro, ou seja, colocado no lugar de objeto da pulsão para um outro
que se mostra desejante em relação a ele.
6,27,28
Laznik
29
lembra que a satisfação
pulsional se percorrendo os diferentes pontos do circuito pulsional: incorporar/ser
incorporado (pulsão oral), olhar/ser olhado (pulsão escópica), interpelar/ser interpelado
(pulsão invocante).
C
Portanto, é na intercessão entre necessidade, demanda e desejo que
se articula a pulsão. Esse aspecto será retomado mais adiante quando a função materna
for abordada, bem como no que concerne à noção de prevenção e risco.
A psicanálise compreende os sinais de sofrimento psíquico como
dependentes do somático e do relacional, pois o funcionamento interativo é essencial ao
processo de constituição da subjetividade, precedendo o funcionamento mental adulto,
onde se observa que a criança pequena só dispõe do corpo para manifestação do
C
A mudança de necessidade para desejo ocorre em todos os registros da pulsão, em todos os registros de
troca entre um bebê e seu cuidador principal. Os principais registros pulsionais de troca se remetem à
oralidade (pulsão oral, incorporação pela via oral, como no caso da alimentação), especularidade (pulsão
escópica: olhar e ser olhado, relação através das trocas que envolvem o olhar) e invocação (pulsão
invocante: interpelar/ser interpelado, relação com o outro através da comunicação).
6,29
sofrimento.
8
Tem-se, portanto, que o corpo e seu funcionamento são o suporte das
manifestações psíquicas da criança.
8
É por isso que as primeiras dificuldades na
interação mãe-criança encontram expressão na esfera do desenvolvimento oral e da
nutrição, onde a psicopatologia do lactente revela uma grande variedade de doenças e
sintomas.
8
O investimento do bebê na mãe se mostra qualitativamente diferente em
função de seu desenvolvimento psíquico. A criança passa a reconhecer a mãe como
objeto de desejo (sexto ao 18º mês segundo momento na formação da subjetividade)
D
quando a mãe, anteriormente objeto de satisfação, adquire um sentido simbólico, como
aquela de onde vêm as realizações de desejos. Portanto, o objeto da necessidade passa a
ser objeto de demanda dirigida a um outro, simbolizando o amor desse outro.
12,18
A interação será abordada neste estudo com crianças entre seis e 18 meses,
idade em que a criança já tem consciência da mãe, do outro da maternagem. Nesse
período ocorre o desmame, bem como as primeiras manifestações da angústia de
castração, eventos que podem fornecer importantes elementos para análise da dinâmica
interativa.
18
A evolução do estudo sobre a criança reflete uma crescente ênfase na
interação desta com seu parceiro adulto. Anteriormente, focalizava-se o comportamento
da criança, ou do adulto que se ocupava dela, mas pouco se sabia sobre como um reagia
na presença do outro.
13
Se o caráter bidirecional é considerado atualmente parte
implícita no conceito de interação, durante décadas prevaleceu o modelo do parceiro
D
Segundo Kupfer et al,
18
o processo de formação da subjetividade pode ser divido em três momentos:
seis primeiros meses (grito desarticulado); seis a 18 meses (bebê tem consciência da mãe, do outro da
maternagem, numa busca pela imagem corporal via estado do espelho; ocorrem as primeiras
manifestações da angústia de castração); 18 meses em diante (vivência da solução dada aos impasses
gerados pela angústia de castração, momento de separação da díade fusionada com a entrada do terceiro,
função paterna). O segundo momento, representado pelo estado do espelho, ilustra o período inaugural de
constituição do eu da criança, prefigurando uma totalidade corporal por meio da percepção da própria
adulto (em geral a mãe) todo-poderoso e organizador das interações (ao mesmo tempo
ator principal, mas também único culpado em caso de perturbações). Assim, falava-se
em interação (ou relação), mas estudavam-se comportamentos da criança ou da mãe
isolados.
13
A psicanálise traz contribuição importante para o estudo da interação mãe-
criança, uma vez que esta envolve não só características manifestas dos parceiros
envolvidos, mas, também, elementos representacionais imaginários e fantasmáticos
diversos.
10
A psicanálise legitima um método de compreensão de como se articulam
esses elementos, projeções, afetos, desejos e comportamentos no desenrolar das
interações.
13
Utilizando-se do referencial psicanalítico, este trabalho considerou interação
como um processo no qual um conjunto de fenômenos dinâmicos (fantasmas parentais e
projeções maternas) ocorre entre os atores envolvidos ou implicados, retrospectiva e
prospectivamente.
2.2 Caracterização da interação mãe-criança
O bebê não é mais visto como uma massa sem formas, ou tabula rasa, mas
como um ser complexo que interage com os adultos, um parceiro ativo, até mesmo
iniciador,
7
ativo e pré-adaptado.
22
Brazelton
21
menciona o termo “pré-adaptação” ao se referir aos estímulos
maternos que atingem o feto. O autor considera que a experiência intra-uterina pré-
condiciona o feto ao ritmo materno de sono/vigília e ao seu estilo de reatividade. Esse
“treinamento” intra-uterino constitui a base rítmica dos indícios maternos, aos quais o
bebê pode adaptar suas interações após o nascimento.
imagem, quando reconhece e vivencia a imagem de seu corpo no espelho como sendo sua própria
Klaus e Kennell
30
propõem o conceito “período sensível”, relativo ao bebê e
sua mãe, dando importância científica e ênfase aos primeiros instantes (minutos, horas e
dias) que se seguem ao parto, como fundamentais à criação do laço mãe-bebê. Esse
contato inicial entre mãe e filho pode alterar a qualidade da interação ao longo do tempo
(amamentação, troca de olhares, comportamento mais afetivo das mães, etc).
Separar bebê e mãe pode acarretar importantes danos a ambos, pois o
processo de “gestação psíquica” da criança continua após o parto, quando a mãe é capaz
de proteger o bebê das ameaças internas (fome, desconforto) e externas (frio, barulho,
luz, etc), por meio de sua capacidade de rêverie,
E
contendo e organizando física e
psiquicamente o bebê. É através da alimentação e dos outros cuidados maternos que
essa relação é restabelecida. Ao pegar o bebê e colocá-lo no seio, a mãe proporciona
suporte corporal e psíquico.
31,32
A rêverie materna funciona como órgão receptor das sensações que o bebê
obtém de si mesmo e projeta na mãe, no que esta decodifica e devolve ao seu filho de
modo simbolizado. Se a mãe não acolhe as projeções do bebê, este reintrojeta suas
próprias projeções, sendo estas sem significado, por não terem sido metabolizadas pela
mãe.
31
Na falha da rêverie, alerta-se para o risco progressivo de não-estabelecimento de
um laço entre mãe e filho.
31,32
O estado de desamparo original do bebê coloca-o em dependência total do
outro maternal, o qual funciona como um aparelho de pára-excitação, no sentido de
protegê-lo diante de grandes quantidades de excitação interna e externa, para que não
sofra ameaça de aniquilamento, ruptura.
33
imagem.
E
Rêverie: habilidade materna para compreender e interpretar as condutas do bebê, funcionando, a mãe,
como órgão receptor das sensações do filho, através das projeções deste.
31
Quando a angústia originária, traumática, qualificativa do estado de
desamparo do bebê, encontra no outro primordial a excitação necessária e a pára-
excitação suficiente, dá-se a elaboração psíquica em direção à representação, em direção
à constituição do simbólico, humano.
33
“Essa é a condição inicial do funcionamento do aparelho psíquico, no qual
a criança é incapaz de dar fim, por si mesma, ao estado de excitação pelo aumento da
tensão de suas necessidades e, menos ainda, de dar conta, por si da excitação
pulsional necessária e da correspondente pára-excitação pulsional indispensável; este
é o estado de trauma. (...) A vivência da catástrofe é antes de tudo a da catástrofe do
desamparo primordial e a vivência desta catástrofe se ‘através’ da angústia
primordial que ‘passa através’ do corpo, inaugurando um psiquesoma. (...) O trauma é
então a catástrofe necessária sem o qual não fundação de aparelho psíquico, nem
são lançadas as bases da subjetividade.”
(2001)
35
O conceito de “trauma” (psíquico) em psicanálise inclui duas categorias: os
traumas assimiláveis e os traumas inassimiláveis. Os traumas assimiláveis dizem
respeito às experiências constituintes, metabolizáveis, passíveis de, num segundo
tempo, produzir recalques, sintomas, formações de compromisso entre instâncias
psíquicas em conflito. Os quadros relativos ao trauma inassimilável revelam vivências
de perda de si, sensações decorrentes da intromissão de inscrições imetabolizáveis
impostas por um outro adulto, ou um outro adulto substituto que não conseguiu exercer
a função de pára-excitação.
28
Quanto à economia de energia (libido) realizada no parto e pós-parto,
Lebovici
12
esclarece que a mãe precisa re-elaborar o luto de seu estado da gestação e do
filho imaginário (perfeito, ideal, fruto de suas representações inconscientes). Em
seguida, deve fazer o trabalho inverso: “atacar” a criança recém-nascida com desejos e
esperanças, reorganizando seu mundo interno segundo novas linhas, com base numa
criança diferente, agora real, externa.
É em razão desse trabalho de reorganização mental que a mãe do pós-parto
deve ter a oportunidade de cuidar do filho. No caso do bebê e sua mãe precisarem ser
separados no pós-parto e a função materna ser assumida inteiramente pela equipe
hospitalar ou por outros, o aparelho psíquico materno seguirá tendência espontânea a
limitar seus gastos energéticos e a diminuir o trabalho de investimento no bebê real.
12
É nessas condições do final da gestação e no pós-parto que, segundo
Winnicott,
23
a mãe encontra-se mergulhada no estado de “preocupação materna
primária” (PMP). Esse estado predispõe a mãe a cuidar de modo especialmente
disponível do seu bebê, sem se sentir libidinalmente vazia.
F
Se a maternagem não for adequada nesses primeiros meses, a criança
invadida por estímulos do seu próprio corpo e do ambiente externo, cada vez mais
desorganizados, sofre ameaça de aniquilação psíquica.
23
As mães conseguem, de modo variado, perceber e reconhecer os sinais
evocativos de necessidades, preferências e limites dos filhos, a forma peculiar de
comunicação destes, ajustando seu comportamento a esses sinais.
12,37
Por vezes
observa-se mães que o respondem ao filho, não favorecendo seu conforto físico e
psíquico, ou porque não conseguem perceber os sinais, ou porque se recusam a levá-los
em conta, ou os interpretam de maneira inadequada.
12
Estando a mãe num lugar privilegiado à formação psíquica da criança,
cogita-se que sua adaptação às necessidades fisiológicas, bem como suas respostas
F
A PMP é um estado temporário de sensibilidade aumentada geralmente no final da gravidez,
continuando por algumas semanas após o parto. Essa condição possibilita à mãe sentir como se estivesse
no lugar do bebê, antecipando suas reações, respondendo às necessidades dele por meio de uma adaptação
ativa.
23
recíprocas e adequadas, geram harmonia no funcionamento geral da criança, enquanto a
inadequação gera desarmonia e pode resultar em doença.
32,38
A título ilustrativo, Ferreira
11,39
descreve a comunicação diálogica da díade,
quando a e se dirige à criança, atribuindo-lhe um espaço temporal (turno) durante o
qual o filho pode se organizar.
Assim, a mãe executa um trabalho interpretativo dos comportamentos dela
mesma e da criança, num movimento especular, constante e repetido. O bebê é elevado
à categoria de participante da troca interativa (interlocutor, pois seus comportamentos
são compreendidos como “atos de fala”), ao passo que a mãe utiliza-se da
reversibilidade de papéis (ora ela faz o bebê de ouvinte, ora ela faz do bebê o “falante”).
Nesse interjogo dialógico, o diálogo é alimentado tanto pelas identificações maternas,
como pelas manifestações explícitas do bebê.
39
De início, diante das reações basicamente indiferenciadas do bebê, a mãe faz
predominantemente uso de suas identificações pessoais, verbalizando-as. À medida que
o bebê começa a combinar sinais comunicativos (gestos, vocalizações, sorrisos, olhares)
ou a desenvolver ações concretas (pegar e segurar um brinquedo), a interpretação
materna verbalizada é gradualmente omitida. Assim, o diálogo da díade passa ser uma
“co-produção ou texto organizado”, onde se têm as criações da mãe e a participação do
bebê.
39
Para que o diálogo mãe-bebê se configure, precisa haver desejo do outro
materno, ou seja, a crença da mãe de que as manifestações do bebê têm um destinatário
(ela mesma) e um sentido (atribuído e interpretado por ela).
40
Um exemplo de comunicação dialógica é o manhês,
G
no qual estão
presentes os elementos organizadores do texto dialógico: falantes (mãe e bebê), turnos
de fala, seqüência de ações coordenadas e um evento em andamento.
Esses elementos
organizadores configuram o texto como um diálogo, estruturado conjuntamente por mãe
e bebê, uma vez que ambos contribuem para a sua construção, cada um ao seu modo,
porém levando em consideração a contribuição do outro.
40
Cavalcante
41
destaca que as pausas do manhês exercem o papel fundamental
de guardar o lugar locutório do bebê, pois a mãe, ao mesmo tempo em que se coloca no
lugar dele, por meio de sua fala atribuída, atribui voz ao filho, garantindo seu lugar de
falante. As pausas do manhês marcam, portanto, a constituição e o deslocamento de
lugares discursivos entre mãe e bebê.
41
O manhês utilizado ao longo dos cuidados maternos ilustra como o
funcionamento dialógico é parte integrante da organização psíquica infantil, exigindo do
cuidador uma relação ao real (do bebê), ao imaginário (posto sobre o bebê) e ao
simbólico (dirigido ao bebê).
42
A mãe trata o filho operando simultaneamente nesses
três registros, introduzindo o bebê neles, na dimensão do humano. Assim, a
gestualidade, o ritmo e as enunciações do bebê mostram que existe ali uma criança (real
do corpo) em diálogo com a mãe, com reações atribuídas por esta (imaginário), com a
qual se pode falar (simbólico) e esperar um feedback.
42
Pode-se então conceituar o bebê como um sujeito (ainda que em
constituição) afetado pela relação com seus cuidadores, nos veis real, imaginário e
simbólico. A introdução no mundo simbólico se na medida em que o bebê tem suas
G
O manhês (motherese ou baby talk) contém as seguintes características: uso de sentenças gramaticais
curtas; repetições; simplicidade sintática; itens lexicais infantilizados; velocidade de fala rápida;
modificação na articulação de certos segmentos; elevação da altura; entonação exagerada, com voz em
falsetto; grande número de perguntas e imperativos; pausas longas após a fala atribuída.
40
próprias expressões (gestos, vocalizes, tosse), tomadas pela mãe como sinais
comunicativos (fome, satisfação, má conduta).
42
Laznik
29
aponta que essa “loucura” das mães é indispensável à constituição
do sujeito da fala. É preciso que alguém seja capaz de realizar essa ilusão
antecipadora” frente ao bebê, escutando-o como sujeito em sua potencialidade de um
sujeito de fala, ouvindo e interpretando aquilo que o bebê ainda não disse, ver nele
aquilo que ele ainda não é.
29
A autora destaca a importância da construção de um lugar
imaginário ao filho no psiquismo materno, da construção de um todo imaginário que
envolva o organismo da criança com palavras, encontrando, no bebê real, a criança
construída imaginariamente em seu fantasma.
29
O ser falado antes de falar, como se lá já estivesse, numa alienação fundante
necessária, representa o primeiro momento de constituição psíquica do sujeito-criança, a
unificação do seu corpo e o seu eu: antecipação subjetiva que lhe abre possibilidades de
constituição subjetiva.
29
2.3 Parentalidade
Gustav Klimt –O beijo
Segundo Houzel,
42
não basta ser genitor, nem ser designado “mãe” ou “pai
para preencher as condições da parentalidade (ou “processo de transição em direção à
parentalidade”, “processo de parentificação”); o status de filho pode ser atribuído a
partir da subjetividade dos pais.
A parentalidade é um processo co-construído, pois organiza a percepção dos
pais em face deles mesmos e do filho, bem como a percepção que a criança tem a
respeito dos pais (a criança é inscrita e se inscreve).
43
O bebê “anuncia” sua existência
no interior dos pais muito antes do nascimento; os projetos e expectativas parentais que
envolvem a sua chegada preparam o lugar para acolhê-lo, representando a preparação
para o espaço do bebê real.
44
Como destacado anteriormente, autores como Klaus &
Kennell
30
e Brazelton
21
mostraram que o bebê é capaz de estabelecer trocas diádicas e
triádicas, gratificando o narcisismo parental.
A criança está inscrita na transgeracionalidade familiar, na fantasmática
materna e paterna, exercendo papel no jogo dos desejos infantis e das pulsões de seus
pais,
12
produzindo marcas supostamente constituintes na criança.
43
A história dos avós,
os conflitos familiares concentrados no mandato transgeracional são transmitidos à
criança pelos significantes que localizam pais e criança na ordem simbólica familiar.
14,43
Golse
14
faz distinção entre transmissão transgeracional e intergeracional. A
transmissão transgeracional acontece entre gerações à distância, exercida no sentido
descendente (das gerações passadas para as gerações presentes), sobretudo pelas vias da
linguagem, mesmo que por meio de interditos e não-ditos. Transmissão intergeracional
acontece entre as gerações em contato, essencialmente pais e filhos, exercidas nos dois
sentidos, ascendente e descendente, via comunicação verbal e não-verbal.
14
A trans e a intergeracionalidade referem-se à constituição subjetiva da
criança, aos significantes que constituem um lugar para o filho no universo simbólico
familiar e dos pais, aos discursos que têm o poder de designar um sujeito, inclusive de
decisão sobre vida e morte do mesmo, seja ela orgânica ou psíquica, pois o significante
altera a própria mecânica do corpo.
45
Golse
14
ainda destaca que todos os fenômenos de
transmissão encontram-se na dinâmica do conflito ambivalente primário entre pulsão de
vida e pulsão de morte.
Laznik
29
destaca a importância da construção de um lugar imaginário para o
bebê no psiquismo parental, pois é fundamental que, no confronto com o real do corpo
do bebê, os pais possam envolver o organismo da criança com palavras, encontrando, no
bebê real, a criança construída imaginariamente em seu fantasma, que na criança
possam ser encarnadas as marcas familiares, dizeres que a antecederam, havendo o
recobrimento, pelo imaginário dos pais, do real do corpo do filho.
46
uma mãe desejante em toda gestação, mesmo que impere a
ambivalência.
47
Não se sabe a que desejos a gravidez vem corresponder, mas é
identificável a existência de um lugar de expectativas, medos e anseios que lhe dizem
respeito.
47
A chegada de um bebê que possa se constituir como bebê humano pressupõe
sua espera; é na antecipação de sua chegada, tecida a partir de identificações, projeções
e fantasias que algo da ordem psíquica pode ser construído para acolhê-lo. Sem esta
construção de um “berço psíquico” feito pelos pais, o bebê viveria a catastrófica
experiência de queda da construção psíquica, vivendo o puro real do corpo.
47
Houzel
42
considera três eixos em torno dos quais se podem articular o
conjunto das funções adquiridas e desempenhadas ou não pelos pais: exercício da
parentalidade, experiência da parentalidade e prática da parentalidade.
Exercício da parentalidade diz respeito ao sentido jurídico, exercício de um
direito, situando pais e filhos nos seus laços de parentesco e os direitos e deveres
decorrentes destes. Trata-se de um conjunto estruturado por laços complexos de
pertinência (afiliação), filiação e aliança. No plano do desenvolvimento psíquico
individual, o exercício da parentalidade está relacionado aos interditos que organizam o
funcionamento psíquico.
42
Experiência da parentalidade remete à experiência subjetiva consciente e
inconsciente do fato de vir a ser pai/mãe e de preencher papéis parentais. Houzel
42
destaca que este eixo compreende numerosos aspectos, destacando: o desejo pela
criança e o processo de transição em direção à parentalidade (por exemplo,
modificações psíquicas que se produzem nos pais no decorrer da gravidez e pós-parto,
como a PMP e a síndrome de couvade,
H
tendo em vista a transição para a
parentalidade).
42
Prática da parentalidade: designa as tarefas cotidianas que os pais devem
executar junto à criança na área dos cuidados parentais (físicos e psíquicos).
42
Esses três eixos estão presentes no dia-a-dia das interações entre pais e
filhos, remetendo à situação real da criança, à realidade psíquica de cada um dos
H
Síndrome de Couvade: resguardo do pai, representado em algumas culturas como um rito facilitador do
reconhecimento da paternidade, retratando simbolicamente seu envolvimento com a gestação e
comprometimento com o filho. A couvade pode ter início durante o período gestacional, surgindo através
de sintomas como náuseas, vômitos, aumento de peso, cálculo renal.
48
parceiros da constelação familiar e à dimensão simbólica da parentalidade e da
filiação.
42
O conceito de parentalidade ilustra como a formação do vínculo se assenta
sobre as entranhas do psiquismo parental desde sua formação e deve sua potencialidade
ao empréstimo do narcisismo dos pais, de modo que o status de filho pode ser
atribuído a partir da subjetividade da família e dos pais.
43,47
O lugar ocupado pela
criança na problemática psíquica da mãe, do casal e na história transgeracional da
família é, portanto, um aspecto fundamental no interjogo das interações posteriores.
43
2.4 Função materna, função paterna
e estruturação infantil
Giovanni Maria Benzoni - Fuga de Pompéia
À medida que foi sendo reconhecido e explicitado o fato do bebê ser um
parceiro ativo e iniciador nas interações, a função materna passou a não mais ser vista
no sentido de criadora da ordem frente ao caos de um bebê desorganizado, mas de
adaptar-se a uma organização existente no bebê, observando-se a construção e troca
de interações mútuas.
7,9,22
Winnicott
23,49
associa função materna e prevenção, teorizando que as bases
da saúde mental são estabelecidas pelo ambiente facilitador da preocupação materna
primária, pela capacidade de identificação da mãe com seu bebê. Definindo o papel da
mãe, esse autor se refere à mãe devotada como aquela capaz de se adaptar às
necessidades fundamentais do filho, até este ter a conquista da sua unidade
psicossomática.
23,49
Winnicott
49
pontua que o primeiro grande encontro da mãe com o bebê
ocorre pela alimentação. Seguindo por exemplo, o desejo de mamada do filho, e
adaptando-se quase completamente às necessidades deste, a mãe favorece ao bebê a
importante experiência de dependência absoluta, geradora de confiança no outro. Se
nessa fase não uma mãe (ou cuidador) capaz de se conectar com o bebê, este fica
num estado de não-integração, tornando-se apenas um corpo com partes soltas,
ocorrendo as falhas primitivas no desenvolvimento, acarretando o surgimento de
patologias mentais.
50
A dependência do bebê para com a mãe é gradualmente substituída pela
dependência relativa e pela autonomia, na medida em que introduzem falhas e
frustrações necessárias ao processo de subjetivação da criança. Desse modo, a função
materna envolve a alternância “presença e ausência”.
23,29
A psicanálise tem a relação mãe-bebê como fonte das experiências
fundantes do psiquismo, das primeiras relações de objeto da criança. A dor psíquica do
bebê, diferentemente da dor do adulto, é expressa mediante pequenos sinais, estilhaços
de dor bruta presentes nos movimentos abruptos do corpo, gemidos, sobressaltos, gritos
desarticulados, sem significantes.
51
Em sua relação com a mãe, esses sinais tornam-se
mais específicos, onde esta empresta suas próprias palavras, gestos e significados à dor
do bebê, ajudando-o a construir seus próprios significados. Esse trabalho interpretativo
da mãe de seus próprios comportamentos e daqueles da criança, num movimento
especular, constante, repetido e reversível, caracterizará os primórdios da comunicação
dialógica.
38
Às respostas maternas, o bebê reage com uma satisfação tal que também
adquire valor para a mãe.
I
Esse movimento dinâmico e recíproco induz um mais além
que a simples satisfação da necessidade, mais além esse que põe o bebê na posição de
desejante, pois em razão do que é interpretado como demanda pela mãe, o bebê entra no
universo do desejo que se inscreve entre necessidade e demanda. É na reiteração da
experiência de satisfação que o bebê se preso nas malhas do sentido (articulação
entre simbólico e imaginário).
28
Nas palavras de Cullere-Crespin
6
pelo fato de que suas necessidades sejam
entendidas como demandas desejando serem satisfeitas, o bebê humano deixa seu
estatuto de ser de necessidade para se transformar em ser de desejo(negrito meu)
(2004: 24).
6
Assim, a mãe entende como demanda aquilo que o bebê manifesta como
necessidade, e se coloca duplamente frente ao filho: como mãe, desejando satisfazer seu
filho, e como bebê que um dia foi, pondo em prática registros primitivos e inconscientes
sobre a maneira como sua própria mãe cuidou dela como bebê, registros aos quais a
mulher faz apelo ao cuidar do seu próprio filho.
6
I
O texto de Kaufmann
28
refere-se originalmente ao termo lacaniano Outro” (grande outro), não “mãe”,
trazendo-se este para simplificar a compreensão. “Outro” é uma complexa noção lacaniana que diz
respeito ao conjunto dos elementos que compõem o universo simbólico no qual o indivíduo está
mergulhado. Antes da gestação, o recém-nascido está contido no universo simbólico dos seus pais, tanto
no aspecto individual destes, como num sentido mais geral (sociedade, cultura). Essa noção se refere a
algo além de uma pessoa, demarcando a ordem simbólica, representando a lei, a linguagem, a cultura,
tendo uma dimensão de exterioridade em relação ao sujeito, e por isso uma função determinante. O Outro
primordial é a mãe, não enquanto pessoa concreta, mas enquanto função, a função materna. A existência
do Outro está atrelada a um lugar que pode ser ocupado por um substituto e ao cumprimento de uma
função, a do referente estável, denominado “função de mãe”, desempenhado por quem ocupa esse lugar.
Assim, para Lacan, a mãe é para o bebê um pequeno outro servindo de grande Outro, na qualidade de
interlocutora da relação primordial, transmitindo ao bebê aspectos reinterpretados por ela mesma do
Outro que a determina. Assim, o Outro pode atender à demanda de alimento a partir de sua própria
condição desejante. O “pequeno outro”, segundo Fernandes,
45
é o pólo investidor que vai transformar o
corpo biológico em corpo erógeno, dando acesso à simbolização, ao corpo vivido como corpo próprio.
45
O bebê necessita de alguém colocado no lugar de Outro para identificar os
seus sinais de apelo e transformá-los em demanda.
52
Ao longo dessas trocas, a mãe se
remete ao sistema simbólico ao qual pertence (seu universo simbólico individual,
cultura e sociedade) e organiza as respostas ao filho, re-atualizando e re-significando
seu próprio universo simbólico.
29
está a individualidade do termo maternidade, onde
cada mulher reage de maneira diferente ao seu bebê, com base em seu universo
simbólico e em suas próprias representações, mesmo pertencendo a uma mesma cultura,
a uma mesma família.
Para a mãe escutar o corpo do bebê e interpretar os sinais deste, precisa ter a
capacidade de investir libidinalmente esse corpo. De acordo com Fernandes,
45
um
investimento desta magnitude supõe que a mãe consiga experimentar prazer ao ter
contato com o corpo da criança e ao nomear para ela (criança) as partes, funções e
sensações desse corpo. Supõe que a mãe consiga transformar o “corpo de sensações” em
um “corpo falado”.
Desse modo, o papel da mãe não é simplesmente assegurar a conservação da
vida, mas, simultaneamente, permitir o acesso ao prazer através da promoção da
sexualidade. Na falta desse investimento libidinal, a experiência do corpo ficaria ligada
à necessidade, privada da descoberta do corpo de prazer.
29,45
Abordando o papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento
infantil, Winnicott
53
aponta que o bebê a si mesmo quando olha o rosto da mãe. A
mãe reflete no seu olhar os estados emocionais do seu bebê, o modo como o percebe.
“Muitos bebês, contudo, têm uma longa experiência de não receber de volta o que estão
dando. Eles olham e não se vêem a si mesmos.” (1975: 154-155)
53
Destacando a
questão recíproca das interações, Camarotti
54
aponta que a e, por sua vez, ao olhar o
filho, também se refletida, renarcisada ou, pelo contrário, não reconhecida em sua
função.
Para que a criança se veja na mãe (especularmente), precisa reconhecê-la
como objeto de satisfação. No entanto, a e nunca será totalmente satisfatória, pois
para ser reconhecida precisa produzir ciclos de alternância entre presença e ausência
(física e simbólica), precisa “falhar”. A experiência de descontinuidade
(presença/ausência da mãe) é estruturante, pois só assim a criança pode experimentar-se
como sujeito desejante, separado da mãe (castrado).
6,18,29
No seminário IV Lacan
55
refere-se à constituição do sujeito a partir de sua
relação com o objeto, ou seja, a relação com a falta do objeto. Distingue três registros
diferentes da falta do objeto, que se articulam para a constituição do sujeito: privação,
frustração e castração.
J
São três tempos da vivência e transmissão da falta, onde cada
tempo engloba e ressignifica o anterior.
55,56
Num primeiro momento, a criança, sujeito da necessidade, grita, com fome.
A mãe interpreta esse grito como apelo, convocada a satisfazer o filho, oferecendo
alimento, objeto da satisfação da necessidade, acompanhado de desejo. Para a mãe
interpretar esse chamado da criança como uma demanda, é preciso que se apresente
como matriz simbólica, alternando-se entre presença e ausência. A ausência é sentida
pela criança como falta, privação, e incide de modos diferentes para a criança e para a
mãe: a mãe se vê privada da criança como representante do objeto de seu desejo (o falo,
objeto simbólico), enquanto a criança é privada da mãe, objeto real da satisfação de sua
necessidade (leite).
56
J
Castração: operação da lei que regulamenta as trocas humanas, a interdição do incesto, ponto em que a
incompletude é legalizada e a falta ganha o estatuto de motor psíquico, não de vazio a ser preenchido.
25,56
Os objetos que a mãe oferece à criança sofrem uma mudança de estatuto e,
em vez de objetos reais (leite), a mãe passa a ser a possuidora de objetos de “dom”
simbólicos,
K
que podem ser oferecidos ou não à criança (já na ordem da frustração).
56
A transmissão da falta é imprescindível para que o sujeito se constitua. É
próprio do humano que a satisfação não seja alcançada pelo encontro com o objeto,
pois a satisfação pulsional é parcial e promovida pelo exercício do desejo, guardado
pela manutenção da falta” (2004: 127)
56
A falta, em seu estatuto de castração, é pontuada no desenvolvimento da
díade primordialmente com a entrada do pai. Como destacado por Guerra
55
“(...) graças
ao interdito paterno ou castração simbólica, a criança é levada a recalcar sua
identificação primordial ao objeto que satisfazia o desejo da mãe e a renunciar também
ao seu papel de apenas preencher o vazio materno” (1995: 22).
57
O ato castrador é visto pela psicanálise como operação simbólica, pois
representa a lei que incide sobre o vínculo mãe-filho, rompendo a ilusão do ser humano
de se acreditar possuidor ou identificado com a onipotência imaginária.
6,18,29
Essa é a
essência do complexo de Édipo, apesar de geralmente ser enfatizado somente pelo
drama da sexualidade. O complexo de Édipo, entendido como passagem ao simbólico, é
um processo estruturante que se desenvolve em diferentes tempos ou momentos, onde o
primeiro tempo remete ao interdito paterno que leva ao desfusionamento mãe-filho,
base de todo o resto.
57
K
Objetos de domsão objetos mbolo do amor que ganham terreno quando o objeto da necessidade é
tomado pela via simbólica, implicando todo o circuito de trocas (orais, especulares, invocantes, anais), as
possibilidades de substituição do objeto propriamente dito. O dom é aquilo que se pela mãe ao apelo
da criança. A transformação do objeto real em objeto de dom é fundamental para introduzir a criança na
ordem humana.
56
Assim, é através da intervenção do pai (lei) como privador tanto da criança
como da e, instaurador do simbólico, que se configura a possibilidade da criança se
constituir como sujeito e ser introduzido na ordem da cultura.
57
Portanto, a função materna é vivida (1) pela antecipação imaginária do que
ainda não existe e (2) no quadro de uma dicotomia marcada pela presença-ausência da
figura materna, (3) para cuja composição a função paterna tem um lugar decisivo.
41
O pai também tem papel importante nas primeiras experiências de interação
ao evidenciar e comunicar as descobertas interativas do bebê.
9,21
Quando o bebê
responde favoravelmente aos investimentos parentais, isto é, ao se acalmar quando os
pais buscam tranqüilizá-lo, se os segue com o olhar, se alimenta e mostra-se satisfeito,
os pais se sentem renarcisados, elevados à posição de bons pais.
Entretanto, no bebê que
não responde adequadamente aos cuidados parentais, dá-se o oposto: cada aflição do
bebê soa como uma mensagem crítica.
9
Mazet & Stoleru
9
citam também o bebê apático, que se aproximaria do
gravemente desnutrido, desinteressado pelos que o cercam, permanecendo muitos
períodos sonolento ou dormindo, pouco interagindo. Pode acontecer de os pais se
acomodarem a essas reações da criança, acolhendo-as como “naturais”, ou alimentar
mágoas contra o bebê que os frustra.
A equipe de saúde, mais especificamente o pediatra, pode ser crucial nesses
momentos, tanto na busca por novas formas de cuidados e estimulação, como no
reconhecimento das competências do bebê e das modalidades interativas da díade/tríade,
enquanto prevenção de perturbações do desenvolvimento.
9
O pediatra é o profissional
de referência na primeira infância, tendo papel primordial na detecção de sinais
precoces de problemas e no encaminhamento das famílias ao psicólogo/psicanalista, ou
até mesmo no manejo de certas situações clínicas que permitam aos pais se
reposicionarem em relação ao filho.
18
O papel da prevenção que cabe ao psicanalista é restabelecer o laço
transferencial pais/bebê, para que o ambiente possa ser, ou voltar a ser, facilitador.
52
2.5 Dinâmica e níveis de interação
Mannoni
58
questiona o que representa para os pais o nascimento de um
filho: desejam a recompensa ou a repetição de sua própria infância, onde o filho ocupará
um lugar entre os sonhos perdidos dos pais, encarregado de preencher o que ficou vazio
no passado parental, uma imagem fantasmática que se sobrepõe à sua pessoa real. Esse
“filho de sonho” tem por missão reparar o que na história dos pais foi deficiente ou
faltou, ou de prolongar o que eles tiveram que renunciar.
58
Lebovici
12
aborda a questão da parentalidade e dos primórdios da vida
psíquica mediante a construção de representações que os pais criam a respeito do bebê,
antes e depois do nascimento: bebê fantasmático, bebê imaginário e bebê real.
Buscou-se no presente estudo a compreensão do como se articulam essas
representações, fantasmas, projeções, afetos, desejos e comportamentos no desenrolar
das interações, através da observação das díades segundo três níveis de interação
didaticamente divididos interação fantasmática, interação comportamental e
interação emocional ou afetiva. A compreensão do interjogo entre os níveis de
interação, os significados a respeito do bebê, o investimento no bebê real, o qual põe em
questão o bebê fantasmático e o imaginário.
51
2.5.1 Interação fantasmática ou segundo as
representações mentais maternas precoces
Gustav Klimt – Morte e vida
Segundo Golse,
59
a interação fantasmática refere-se às representações
mentais inconscientes precoces da mãe (antes e durante a gestação), inseridas ou não em
seus projetos concretos, as quais podem influenciar sua relação com a criança, o estilo
interativo, e o modo de funcionamento do filho.
A interação fantasmática se define como a influência recíproca da vida
psíquica da mãe, do pai e do bebê. Nesse nível, pontua-se o modo como os conteúdos
psíquicos de ambos os parceiros se manifestam nas interações observáveis e como os
fantasmas de um respondem e/ou modificam os fantasmas do outro.
9,13
É a esta criança profundamente inscrita na vida mental inconsciente e infantil
dos pais que Lebovici
12
atribui o nome criança fantasmática, enquanto criança
imaginária”
L
é aquela que figura nos sistemas pré-consciente/consciente.
9
Na análise das interações fantasmáticas, é importante abordar aspectos
como:
9,10,13,59
Expectativas, antecipações, fantasias e identificações da mãe acerca do
futuro da criança - sexo, escolha do nome e apelido da criança (quem
escolheu, por que, quais as associações e recordações ligadas aos mesmos),
aparência física, saúde, comportamento;
Percepções maternas sobre si própria, como mãe e como pessoa e do seu
parceiro conjugal;
Percepções da mãe sobre seus próprios pais, como pais e como pessoas;
Mudanças nas relações dos pais com a própria mãe a partir do nascimento da
criança;
Atitudes, reações e defesas da mãe e da criança. Neste sentido, Mazet &
Stoleru
9
consideram que uma das modalidades mais importantes da interação
fantasmática é a transmissão à criança, por parte da mãe, de certo sistema
defensivo (mecanismos de defesa).
L
O bebê vivido psiquicamente pela mãe, durante a gravidez, como parte do seu corpo, idealizado,
portador de sonhos e devaneios maternos, bem como de valores transmitidos intergeracionalmente,
segundo Lebovici.
12
2.5.2 Interação comportamental
Gisela Benatti – Série “Madonas Históricas”
Golse
59
considera que este vel de interação engloba elementos da interação
pré-natal (movimentos do bebê no útero, influência de estados tônicos da mãe no feto,
sentimentos relativos a esses movimentos) e o reflexo ou desenvolvimento destes no
pós-natal (influência de estados tônicos da mãe no bebê/criança pequena – diálogo
tônico entre a mãe e a criança ou seja, aconchego tônico da mãe com a criança ao
longo da interação, a posição da cabeça da criança na amamentação, ajuste ao corpo
materno, etc).
O bebê é reconhecido como parceiro ativo nesse diálogo tônico até mesmo
desde o período pré-natal, manifestando comportamentos intra-uterinos de encolhimento
e relaxamento, por exemplo.
9,19
Mazet & Stoleru
9
fazem menção ao conceito de diálogo tônico, esclarecendo
que este designa o conjunto de trocas mediadas pela maneira como a criança é segurada,
agarrada, mantida, e como o bebê responde, isto é, a interação entre as posturas dos
parceiros e o tônus muscular correlativo.
O bebê já está imerso em um universo de linguagem antes mesmo de nascer.
Portanto, é esperado como falante, imaginado como capaz de se expressar, ainda intra-
útero, inserido em um campo de linguagem, submetido desde seu início às suas
incidências.
52
Quanto aos elementos representativos deste nível de interação, destacam-se
aspectos diretamente observáveis como:
9,10,13,59
As ações - a maneira como o bebê é cuidado, segurado e manipulado nas
atividades de rotina (sensibilidade e resposta materna às manifestações de
conforto e desconforto da criança, mudanças de posição);
As interações corporais - toque, contato cutâneo, movimento corporal,
carícias, exploração do corpo, ajustes posturais e motores;
As interações visuais - interação face-a-face, comportamento de esquiva ou
proximidade do contato olho-a-olho;
As interações vocais e/ou verbais - conteúdo das verbalizações maternas,
entonação, linguagem, canto, choro, riso;
Os comportamentos de ternura - beijos, afagos, abraços, sorrisos;
Os ciclos de interação, a sincronicidade - alternância de respostas e dos
ciclos de atenção e desligamento, troca de papéis, reciprocidade, controle no
ritmo interativo.
2.5.3 Interação emocional ou afetiva
Gustav Klimt - As três idades da mulher
As interações afetivas dizem respeito ao clima afetivo das interações e à
influência recíproca da vida emocional do adulto e do bebê. Situações patológicas como
a da mãe deprimida, mostram que o bebê é capaz de perceber e sofrer em conseqüência
dos afetos negativos, da não-contingência ou da inexpressividade materna.
13
A interação afetiva leva em consideração o fato de que cada parceiro percebe de
maneira mais ou menos precisa o estado afetivo do outro, respondendo com um estado
afetivo que produzirá um novo afeto no parceiro.
9
Golse
60
esclarece que este nível de interação se desenvolve durante o primeiro
ano da criança, principalmente no segundo semestre. O bebê, mesmo sem falar,
reconhece os estados afetivos da mãe, e, da mesma forma, a mãe é informada sobre o
estado emocional do seu bebê muito antes que este possa dizer “eu estou triste” ou
“você está triste”.
Quanto aos elementos representativos deste nível, destacam-se os afetos e suas
formas de expressão:
9,10,13,59
Atenção e sensibilidade aos sinais da criança - interpretação dos sinais,
intensidade da estimulação, qualidade das respostas, escolha de atividades
adequadas levando em conta a idade, as condições e o desenvolvimento da
criança assim como a situação;
Responsividade, reciprocidade e os intercâmbios - respostas apropriadas
em tempo compatível, mutualidade;
Tonalidade emocional dominante nas trocas afetivas - sentimentos
manifestos no comportamento, no contato corporal, na linguagem e na
comunicação em geral, o compartilhar das experiências emocionais, a
estabilidade das manifestações afetivas e a sincronia com a situação, a
harmonia nas trocas afetivas;
As transformações da interação - acompanhando o desenvolvimento físico e
psíquico do parceiro;
Destaca-se que mais do que a natureza das palavras do discurso materno é o
afeto expresso pela entonação, ritmo, tom, timbre e o sentido da palavra
materna, bem como as reações da criança a estas, a atenção que ela à mãe,
em particular o modo visual, as vocalizações e os sorrisos que podem
responder aos afetos maternos.
Durante a observação da díade, cabem as seguintes perguntas: a mãe percebe as
mensagens da criança, os sorrisos e gestos dirigidos a ela? De que maneira a mãe os
responde? Reciprocamente, quais são as respostas da criança às comunicações que lhe
dirige sua mãe, às suas palavras, aos seus olhares, aos seus gestos?
9,14
Um último elemento a ser considerado na análise da interação afetiva diz
respeito ao clima emocional percebido pelo pesquisador, “devido em parte à interação
que efetivamente tem lugar diante dele (e que o implica) e em parte às suas próprias
reações psicológicas no interior desta situação” (1990: 122).
9
Cabe ao pesquisador
reconhecer essa dinâmica psicológica, de modo que sua sensibilidade e empatia, ao
invés de atrapalhar a análise dos elementos da observação, constituam instrumentos
essenciais para perceber as diferentes matizes da interação afetiva.
2.6 As interações nas situações
desfavorecidas
Finbarr O'Reilly – O rosto da verdade
Até o momento buscou-se abordar a interação da ade num processo de
desenvolvimento normal. No entanto, como se caracteriza a interação mãe-criança nas
situações desfavorecidas, a saber, nos ambientes inóspitos como em guerras, nos
campos de refugiados, em instituições, na hospitalização, diante da desnutrição?
Buscar-se-á centrar a discussão enfocando a interação mãe-criança
desnutrida grave no contexto da hospitalização. A criança hospitalizada tende a se
deparar com sentimentos como medo, ansiedade, desamparo, percebendo-se frágil
corporal e emocionalmente, tendendo a reações diversas, tais como regressões, estados
depressivos, fobias e transtornos de comportamento. Além disso, vê-se afastada de seu
cotidiano (atividades, rotinas, familiares e amigos, cheiros, gostos, sons).
60
Na internação, a mãe (ou substituto) aparece como figura de apoio à criança,
mas que, por sua vez, também vivencia medos. A reação materna frente à hospitalização
desempenha um papel fundamental na forma como a criança lida com sua própria
situação de internação.
60
Junqueira
60
destaca que a reação da criança à hospitalização depende de
vários fatores, particularmente do tipo de vínculo afetivo mãe-filho estabelecido antes
da internação, a idade, personalidade da criança, suas vivências anteriores assim como
as de sua família frente à internação (a reação da mãe e familiares), tempo de duração da
hospitalização, atitude da equipe hospitalar.
Falbo & Alves
61
destacam que no Nordeste do Brasil, as formas graves de
desnutrição energético-protéica (DEP) chegam a atingir 24,0% das crianças menores de
cinco anos de idade, hospitalizadas.
No tratamento hospitalar da criança gravemente desnutrida, a OMS
1
definiu
diretrizes para reduzir o risco de morte, encurtar o tempo de permanência no hospital e
facilitar a reabilitação e recuperação completa. A OMS
1
recomenda, no contexto
hospitalar, cuidado para evitar a deprivação sensorial, que a mãe (ou cuidador) esteja
com a criança no hospital, e que seja encorajada a alimentá-la, carregá-la, confortá-la e
brincar com ela tanto quanto possível. O número de adultos a interagir com a criança
deve ser pequeno, e após procedimentos médicos como punção venosa, a criança deve
ser carregada e confortada.
1
Na busca por referências bibliográficas em importantes bases de dados
(Pubmed, Scielo e Lilacs), os únicos estudos localizados abordando diretamente a
relação da díade e desnutrição foram os do grupo de Nóbrega,
2,3
Campos et al
16
e
Valenzuela,
62
todos abordando o vínculo ou o apego, mas não a psicodinâmica
interativa. O emprego da observação da interação mãe-criança foi recorrente em estudos
de Psiquiatria e Pediatria enfocando problemas/desordens alimentares e sua associação
com a interação da díade. Entretanto, não foi localizado nenhum estudo sobre interação
mãe-criança desnutrida grave hospitalizada com enfoque na compreensão da dinâmica
interativa da díade.
Valenzuela
62
destaca a importância do ambiente de cuidados à criança
(características de personalidade do cuidador) e das características nutricionais do
ambiente intra-uterino e pós-natal precoce no desenvolvimento do apego. Se a
subnutrição precede distúrbios de apego ou se cuidados inadequados precedem o
aparecimento de déficits no peso, essas relações têm importantes implicações nas
estratégias de intervenção. Déficits no peso podem ao mesmo tempo ser a causa e o
efeito de padrões inadequados de apego.
62
Zavashi et al
63
em artigo sobre a influência de aspectos socioeconômicos
desfavoráveis à interação mãe-bebê, destacam que as conseqüências da pobreza sobre o
desenvolvimento da criança estão relacionadas com a estrutura familiar. Assim, essas
adversidades, somadas às características individuais, funcionam como fatores de risco
adicionais ao relacionamento pais-filhos. Famílias pobres tendem a acumular fatores de
risco, internalizados e reeditados, de modo que a continuidade intergeracional desses
acaba perpetuando a pobreza. Como fatores protetores ao desenvolvimento infantil tem-
se a personalidade dos pais, coesão familiar e o sistema externo de suporte.
63
Há que se considerar os casos em que a desnutrição reflete a extrema
pobreza socioeconômica da díade. Existem também circunstâncias em que a desnutrição
aponta problemas de outra ordem que não socioeconômica. Nóbrega et al
2
pontuam que
os fatores pobreza e falta de comida não bastam para explicar a desnutrição, podendo
a DEP estar relacionada a condições sócio-culturais e emocionais que costumam
acompanhar a pobreza e afetar o estado nutricional, o crescimento e o desenvolvimento
da criança.
Nóbrega et al,
2
abordando a condição nutricional de mães e filhos, destacam
números no mínimo interessantes: das mães de desnutridos, 15,3% eram desnutridas,
30,5% tinham sobrepeso ou eram obesas e 54,2% eram eutróficas. Portanto, 84,7% das
mães de desnutridos não eram desnutridas. Nóbrega montou grupo de estudos e
tratamento da desnutrição, levantando a hipótese de que por trás desses números estava
o fraco vínculo mãe-filho. O grupo chegou a criar um instrumento para avaliação do
vínculo mãe/filho.
3
A OMS
1
e o Departamento de Nutrição da Sociedade Brasileira de
Pediatria
4
consideram que a DEP é uma desordem tanto de natureza médica como social
que tem suas raízes na pobreza. É o resultado final da privação nutricional e,
freqüentemente, emocional por parte daqueles que cuidam da criança, os quais, devido
à falta de entendimento, pobreza ou problemas familiares, são incapazes de prover a
nutrição e o cuidado à criança.
1
Com base em Nóbrega,
2
o Departamento de Nutrição da Sociedade
Brasileira de Pediatria
4
desenvolveu modelo causal da desnutrição na infância, incluindo
o aspecto do fraco vínculo mãe-criança, como importante fator para a instalação e
perpetuação da DEP.
Block & Krebs
64
descrevem a “síndrome da falha no desenvolvimento”
(Failure to Thrive - FTT), pontuando que, apesar da causa fundamental da FTT ser a
deficiência nutricional, a síndrome pode ser multicausal, desde orgânica, a não-
orgânica, e que essas podem estar associadas. Essa síndrome também foi objeto de
estudo de Skuse
62
e Chatoor et al.
66
Esses autores pontuam que o vínculo criança-cuidador pode ser um
componente importante da síndrome, mas que FTT não é sinônimo de distúrbio do
vínculo, uma vez que muitas crianças têm a síndrome sem que tenham problemas
vinculares, bem como nem todas as crianças com problemas de vínculo têm problemas
de crescimento e desenvolvimento.
64-66
Deve-se considerar que muitos fatores
concorrentes para FTT (pobreza, depressão materna, negligência) aumentam o risco de
distúrbios vinculares.
Assim, é recomendado que o clínico considere sua consulta
associada a um profissional de saúde mental, para que este avalie o vínculo cuidador-
criança.
64
Skuse
65
recomenda que a intervenção clínica observe as contribuições feitas
pelo cuidador e pela criança para a dinâmica interativa e assim quebrar o círculo vicioso
de comportamento interativo mal-adaptado. Pontua que a ênfase na culpabilidade
parental como etiologia da FTT, na ausência de evidência direta de negligencia parental,
é inadequada, devendo ser abolida.
65
De acordo com Kerr, Bogues & Kerr,
67
a desnutrição infantil entre
populações empobrecidas e a FTT em sociedades ricas são freqüentemente supostas
como entidades diferentes, com origens diferentes. No entanto, observaram que o perfil
das mães de crianças desnutridas apresenta importante semelhança com o perfil das de
crianças com FTT.
67
Identificaram como características das mães de desnutridos:
condições desorganizadas de moradia e emprego; contatos sociais reduzidos; ausência
ou falta de apoio paterno; relacionamentos esteriotipados e transitórios, focados em
aspectos materiais; preocupações narcísicas maternas precedendo as necessidades da
criança; experiências de privação na infância; comportamento apático e dependente ou
manipulador e evasivo.
67
Esses autores sugerem como intervenções: não culpabilizar a mãe,
identificando responsabilidades e estratégias maternas para a manutenção da saúde da
criança; identificar e estimular recursos comunitários no apoio à mãe; e utilizar
programas de intervenção que priorizem não a distribuição de alimento e as
necessidades nutricionais da criança, mas também prover a família com suporte
emocional continuado, buscando prevenir a perpetuação de outra geração de pais
privados.
67
Ammaniti et al
68
avaliaram os efeitos da idade e presença de patologias
alimentares nos modos de relacionamento mãe-criança durante as refeições. O estudo
confirmou a importância da análise das características individuais da criança, da mãe e
do relacionamento da díade ao longo do desenvolvimento do padrão alimentar nos
primeiros três anos de vida, quanto ao reconhecimento, diagnóstico e tratamento de
desordens alimentares precoces. Os resultados enfatizam a utilidade clínica da pesquisa
na identificação precoce de bebês e crianças em risco para problemas alimentares.
68
Chatoor et al
69
estudaram problemas/desordens alimentares e sua associação
com a interação mãe-criança. Propõem que o termo “desordem alimentar” seja usado
como um “diagnóstico guarda-chuva”, abarcando desordens alimentares mais
específicas, como a anorexia infantil. O uso da observação da interação mãe-criança
durante a alimentação, associada à história clínica, ao desenvolvimento e à história
alimentar, foi considerada crucial.
69
2.7 Fatores psicossociais de risco para a
desnutrição (FPRDs) e para a nutrição
(FPRNs)
Portinari - Retirantes
Solymos,
17
em estudo qualitativo exploratório de abordagem
fenomenológica sobre a experiência da mãe do desnutrido grave e fatores psicossociais,
cita o conceito de “risco para a desnutrição”. É válida de nota a talvez inédita categoria
observada pela autora: identificação da criança desnutrida com a mãe ou algum aspecto
desta que contribua para a desnutrição.
17
Solymos
17
identifica que em alguns casos ao invés do fraco vínculo mãe-
filho, ocorre uma forte ligação entre a díade, na qual o filho se identifica com a situação
materna (alimentar-se pouco, viver sob stress), assumindo a fragilidade da e,
conseqüentemente desnutrindo. No fenômeno apontado por Nóbrega,
2
o distanciamento
afetivo da mãe faz com que a criança fique “desnutrida de amor”, carente de cuidados e
estimulação, afetando seu desenvolvimento psicológico e intelectual.
Campos et al
16
, em trabalho interdisciplinar (nutricionista, psicólogo,
assistente social e pediatra) avaliando mães de desnutridos, identificam que os fatores de
risco para a desnutrição, além de econômicos, nutricionais e sociais, também dizem
respeito ao padrão de interação mãe-filho e às características de personalidade da mãe.
Afirmam que todos esses fatores são tão importantes para a saúde mental da criança,
como são os nutrientes e calorias para a saúde física.
Outros trabalhos identificam como risco para desnutrição aspectos como:
condição mental e psicológica da mãe (depressão e qualidade comprometida do vínculo
com a criança),
2,3
estrutura familiar, situação de trabalho, sintomas de depressão na mãe,
alcoolismo em algum membro da família.
70
Solymos
17,71
ressalta a importância de, mais do que buscar a definição dos
fatores de risco individuais, procurar a compreensão da interação entre esses fatores. É
essa complexidade que pode explicar porque, num mesmo ambiente de risco, a
desnutrição ocorre em algumas famílias e não em outras, ou atinge somente uma criança
na família.
17
A autora propõe ainda a categoria “fatores psicossociais de risco para a
nutrição” (FPRNs), os quais favorecem o enfrentamento das dificuldades vividas pelas
mães, fortalecendo estas, proporcionando recursos adicionais para a solução de seus
problemas.
19
Essa definição aproxima-se da idéia de proteção (combate ao risco), como
uma mudança da trajetória de vida, do risco para a adaptação.
17
Sugere os seguintes fatores psicossociais de risco para a nutrição:
estabilidade na família e no trabalho; filhos como fonte de significado para a vida;
iniciativa para procurar recursos, pedir e aceitar auxílio, buscar soluções; abertura ao
relacionamento com a equipe de trabalho (pesquisadores) a partir dos contatos
surgiam novos recursos, relacionamentos e alternativas de solução para os problemas da
mãe; relacionamentos de ajuda (ter alguém a quem possa recorrer em momentos de
necessidade).
17
2.8 Risco, plasticidade e prevenção em psicanálise
A noção de risco em psicanálise está baseada em dados retrospectivos,
associando aspectos biológicos, socioeconômicos e psicológicos (psicodinâmicos).
Cramer
22
destaca que uma das contribuições da psiquiatria do be é o fato de ter
acrescentado aos fatores de risco na criança ou no seu meio, uma nova dimensão: a
compreensão do sofrimento psíquico por meio de interações de risco, visando à
prevenção.
Risco e prevenção estão interligados em psicanálise, pois é somente na
posterioridade que o sintoma se articula e ganha sentido.
6
A prevenção não consiste em
antecipar a aparição de um sintoma com base no risco previsto, mas em tentar
compreender como estão articulados na ade/família os sinais de risco.
6,14
Estes não
alertam sobre o que acontecerá, mas para o entendimento sobre como se configuram na
díade/família.
6
Prevenir não é antecipar, é intervir a tempo. A prevenção é benéfica, pois
observa e atua com a díade em risco, mas a antecipação ou predição de um sofrimento
psíquico da criança/díade é adoecê-la em seu vir a ser.
14
Rohenkohl
70
aponta que elaborar sinais de risco, marcadores ou indicadores
de dificuldades ou patologias infantis tem suas implicações, remetendo o profissional de
saúde às interações, ao laço da criança com seu cuidador. Dada a unanimidade em
considerar a psicopatologia do bebê como uma psicopatologia da relação do bebê com
quem dele cuida, tornam-se de grande dificuldade as tentativas nosográficas dessa
clínica” (2001).
72
Destacam-se os trabalhos de Kupfer et al,
18
Almeida,
15,73
Cullere-Crespin
6
e
Rohenkhol,
72
todos apontando, com sua própria terminologia, com base na
metapsicologia freudiana, para a condição relacional dos sinais de sofrimento/sinais
positivos do desenvolvimento (Cullere-Crespin), sinais de dificuldades (Rohenkhol),
indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil (Kupfer et al), indicadores
de vulnerabilidade (risco)/plasticidade ou resiliência (Almeida).
As pesquisas para obtenção e validação de indicadores clínicos de risco para
o desenvolvimento infantil costumam ser criticadas junto a alguns psicanalistas em
função de princípios éticos e metodológicos da psicanálise tradicional.
6,74
As críticas
consideram que a tentativa de intervir sem que haja um endereçamento e uma demanda
(demanda do sintoma) está fadada ao fracasso,
74
uma vez que o tratamento psicanalítico
favorece que o sintoma do sujeito possa se constituir e se endereçar a um Outro, na
transferência. Abre-se, desse modo, importante debate a respeito dos indicadores
clínicos.
Kupfer et al
18
destacam que os indicadores clínicos, mais do que sinais de
desdobramentos possíveis do desenvolvimento infantil (prognóstico), são indicadores de
sofrimento no presente, entendidos como demanda de ajuda, viabilizando intervenções
clínicas em saúde coletiva que respeitam os processos singulares de subjetivação. Desse
modo, desenvolvem pesquisa multicêntrica (incluindo o IMIP) para validação de
indicadores de risco psíquico para o desenvolvimento em crianças nos primeiros 18
meses de idade, visando à detecção precoce de transtornos psíquicos na infância. Esses
indicadores remetem a falhas na construção e estruturação do sujeito psíquico, com base
em quatro eixos fundamentais na relação mãe-filho: supor um sujeito, estabelecer a
demanda da criança, alternar presença-ausência, e função paterna (alterização).
18
Cullere-Crespin
6
demonstra que os problemas envolvendo bebês e crianças
pequenas são, sobretudo, perturbações no laço pais-filhos, sendo possível articular
sinais funcionais observáveis no registro pulsional, tendo em vista a prevenção pela
equipe de saúde dos distúrbios relacionais no hospital geral. Identifica sinais de
sofrimento precoce (série barulhenta e série silenciosa) e sinais positivos de
desenvolvimento, relativos ao desenrolar dos registros pulsionais (oralidade,
especularidade e invocação).
6
Rohenkhol
72
sugere a formalização dos sinais de dificuldades entre o bebê e
seu cuidador primordial, considerando diferentes formas de entrelaçar demanda e
desejo, e os lugares ocupados pelo sujeito e Outro. Desse modo, distingue: 1- sinais de
dificuldades que aparecem no corpo do bebê; 2- sinais que apontam para uma função
que foi transbordada; 3- sinais que apontam para uma patologia do laço entre o bebê, os
efeitos dos seus gestos e interesses, e seu cuidador primordial; 4- sinais que apontam
para fracassos nas operações básicas de constituição do sujeito (autismo, psicoses).
72
Almeida,
15,73
traz importante contribuição ao estudo das interações e seu
caráter preventivo na temática alimentação/nutrição, destacando aspectos da
psicodinâmica interativa da díade. Investiga a correspondência entre padrões de
relacionamento pais-bebê e problemas de alimentação infantil, refletindo sobre fatores
facilitadores ou complicadores na superação de dificuldades alimentares. Sugere 15
indicadores de risco/vulnerabilidade e 10 de resiliência/plasticidade frente a problemas
de alimentação infantil, demonstrando como relações alimentares entre bebês e pais
refletem modalidades de “digestão”
M
e processamento de conteúdos emocionais
experienciados no relacionamento pais-criança.
73
A psicopatologia infantil sugere que a criança sinais através daquilo que
dispõe: seu corpo, ainda em construção significante, mas que apresenta expressões
somáticas importantes. Essas expressões por si não são preditivas, somente
indicativas, mas ganham expressão clínica de acordo com outros sinais que se
apresentam, tanto do lado da criança, quanto do lado da mãe.
45
M
Digestão: digerir alimentos, digerir a função simbólica da alimentação e dos alimentadores.
III Caminhos da Pesquisa
3.1 Escolha da metodologia
Considerando teoria e método como os pilares da pesquisa científica, a
psicanálise e o método qualitativo foram os referenciais teórico/metodológicos adotados
frente à natureza do problema estudado, devido ao fato de assumirem que o lugar do
pesquisador é conseqüência de uma co-construção dinâmica, consciente e inconsciente.
Pressupõem escuta diferenciada do sujeito, singular, diferente do proposto pelo método
quantitativo, na medida em que uma escuta diferenciada é propiciada, abrindo-se a
possibilidade do sujeito escutar-se e ser escutado, promovendo dessa forma a
subjetivação.
75
Freud utiliza-se de três sentidos para a psicanálise: como método de
investigação, como modalidade de tratamento e como conhecimento que o método
produz - a teoria psicanalítica.
76
Dentre os diferentes tipos de pesquisa em psicanálise (teórica, clínica e
empírica), pontua-se a pesquisa que se apóia e é orientada pela psicanálise, que visa
responder questões colocadas por esta.
77
Utiliza conceitos psicanalíticos e diferentes
técnicas de investigação com fins de teste e aplicação em outros cenários clínicos ou
teóricos. Assim, clínica e pesquisa estão separadas pelas técnicas respectivas, mas
unidas pelo método.
78
Segundo Minayo,
79
a pesquisa qualitativa trabalha com o universo de
significados, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço profundo das
relações, processos e fenômenos não reduzíveis à operacionalização de variáveis.
Turato
80
considera que o método qualitativo interpreta os significados - de
natureza psicológica e complementarmente sociocultural trazidos por indivíduos
(pacientes, familiares, profissionais de saúde e sujeitos da comunidade) acerca dos
múltiplos fenômenos pertinentes ao campo do processo da saúde-doença.
O método qualitativo busca descrever a complexidade dos fenômenos com base
na apreensão e interpretação dos sentimentos e atitudes, mediante a observação de
situações reais e cotidianas, e da compreensão das significações que as pessoas
trazem.
80
Propõe a construção não-estruturada dos dados, construção de um
conhecimento que possa representar um momento do objeto, susceptível de
enriquecimento no próprio processo histórico de conhecimento.
80
Isto é, propõe recortes
da realidade, que vão depender, necessariamente, do ponto de vista do pesquisador.
81
Os instrumentos da pesquisa qualitativa fornecem flexibilidade na condução do
processo de pesquisa e na avaliação de seus resultados, visto que o entrevistado tem um
papel ativo na construção da interpretação do pesquisador.
80,82
O pesquisador concede
ao entrevistado a oportunidade de opinar sobre sua compreensão, caracterizando o
produto da entrevista como um texto negociado, resultante de um processo interativo e
cooperativo envolvendo o entrevistado e o pesquisador na produção do conhecimento.
81
A relação intersubjetiva entrevistador/entrevistado é fundamental no acesso
aos significados, onde o entrevistador assume papel menos diretivo, favorecendo o
diálogo com o entrevistado e fazendo emergir os aspectos do tema.
81
Turato
80
analisa que no método qualitativo o pesquisador é chamado a usar
um quadro eclético de referenciais teóricos no delineamento da pesquisa e para a
discussão dos resultados, tendo em vista o espírito da interdisciplinaridade. Assim,
sustenta-se em três atitudes identificadas como existencialista, clínica e psicanalítica, as
quais propiciam, respectivamente: postura de acolhida das angústias e ansiedades
inerentes do ser humano; aproximação própria de quem trabalha na ajuda terapêutica;
e a escuta e valorização dos aspectos psicodinâmicos mobilizados na relação afetiva e
direta com os sujeitos sob estudo.
80
Portanto, a pesquisa qualitativa apoiada na psicanálise delineou a abordagem
teórico/metodológica deste estudo, uma vez que se buscou observar, descrever, analisar
e interpretar os elementos da psicodinâmica interativa da díade mãe-criança, tendo em
vista a complexidade do comportamento humano. A psicologia do desenvolvimento
também serviu de referencial à compreensão do fenômeno da interação mãe-criança.
3.2 Contexto da investigação
O estudo foi realizado no IMIP, situado na Região Metropolitana central do
Recife, no estado de Pernambuco, entidade não-governamental, filantrópica, sem fins
lucrativos, tendo como missão precípua assistência médico-social, ensino e pesquisa.
No IMIP são internados anualmente cerca de 19.200 pacientes pediátricos.
Destes, cerca de 50 crianças (0,3%) são admitidas com emagrecimento agudo grave
(peso/altura < -3 escore Z) e cerca de 200 (1,0%) com emagrecimento agudo moderado
(peso/altura < -2 escore Z).
83
A enfermaria “E” de pediatria foi utilizada para coleta dos dados por ser
destinada ao tratamento de crianças com DEP grave. Está localizada no quarto andar do
prédio de pediatria geral do IMIP, contando com nove leitos, podendo as crianças ser
acompanhadas por um adulto.
A brinquedoteca, local onde foram realizadas as entrevistas e parte das
filmagens, fica localizada no sétimo andar do prédio de pediatria do IMIP. A sala
utilizada para entrevistas e filmagens era climatizada e prezou pelo sigilo visual e
auditivo. Algumas filmagens ocorreram no pátio da brinquedoteca (FOTOS 1 e 2).
O setting de filmagem foi composto por colchonete para acomodação da
díade, cesto com brinquedos diversos (bolas, chocalhos, tambor, peças de encaixe,
boneca, fantoches, carros, telefone, panelinhas, pratinhos, caras, mamadeira, pedaço
de tecido) e câmera filmadora ancorada no tripé (FOTOS 3 e 4).
Foto 1 - Brinquedoteca
Foto 2 - Brinquedoteca
Foto 3 - Sala onde foram realizadas as entrevistas e
algumas filmagens; tripé da filmadora e cesto com
brinquedos (setting de filmagem)
Foto 4 Colchonete e cesto com brinquedos
3.3 Seleção das díades
A seleção foi circunstancial, de modo a incluir díades adequadas à aquisição
das informações propostas nos objetivos do estudo. Tendo em vista a representatividade
e a diversidade na investigação, refletindo a totalidade nas múltiplas dimensões,
84,85
buscou-se abordar o fenômeno da interação mãe-criança em díades com o mesmo pano
de fundo socioeconômico, porém que pudessem ilustrar com riqueza as diversas
nuances do processo interativo (díades com/sem dificuldades aparentes na interação,
díades com rede social vasta/precária, díades com dificuldade/facilidade na aquisição de
alimento, dentre outros elementos), nuances essas observadas grosso modo ao longo da
entrevista de contato inicial com a díade e com base nos dados do prontuário da criança.
Uma amostra ideal é capaz de refletir a totalidade nas suas múltiplas
dimensões, propondo os seguintes critérios para a amostragem: (a) definir claramente o
grupo social mais relevante; (b) não esgotamento da amostragem até o completo
delineamento do quadro empírico da pesquisa - saturação; (c) flexibilidade da
amostragem e inclusão progressiva encaminhada pelas descobertas do campo e seu
confronto com a teoria; (d) possibilidade de triangulação.
87
Por triangulação
compreende-se o uso concomitante de várias técnicas de abordagem e modalidades de
análise, de vários informantes e pontos de vista de observação, visando à verificação e
validação da pesquisa.
82,85
3.3.1 Critérios de inclusão
Criança:
- Internada na enfermaria “E” do IMIP;
- Idade entre seis e 18 meses;
- DEP grave primária (indicador peso/altura < -3 escore Z, utilizando o padrão de
referência OMS,
1
e/ou presença de edema simétrico envolvendo no mínimo os pés;
este critério foi avaliado pelo médico, nutricionista e enfermeira – FIGURA 1).
Mãe:
- Acompanhar o(a) filho(a) ao longo da internação, permanecendo com este(a) com
freqüência suficiente para participar da pesquisa (concluir o roteiro de entrevistas e
filmagens).
3.3.2 Critérios de exclusão
Criança:
- Com malformação, síndrome genética, retardo mental grave e/ou transtornos invasivos
do desenvolvimento (autismo, psicose infantil precoce) e com qualquer outra doença
crônica associada. Estimava-se que outra doença pudesse atrapalhar o processo de
vinculação mãe-criança, bem como o próprio desenvolvimento motor e cognitivo da
criança;
- Com DEP secundária;
- Internada sem a mãe biológica;
- Que não vivem ou não mantém contato freqüente (semanal) com a mãe biológica;
- Com extremo atraso do desenvolvimento, (a ponto de inviabilizar experiências
interativas explícitas com base na “Ficha de Acompanhamento do Desenvolvimento”
ANEXO 1, instrumento tomado neste estudo como referência desenvolvimentista,
observando-se marcos do desenvolvimento maturativo, psicomotor, social e
psíquico).
86,87
Mãe:
- Com problemas mentais e/ou cognitivos visíveis que tivessem o discurso (associação
de idéias, compreensão das perguntas) comprometido durante as entrevistas, a ser
observado mediante contato inicial.
Os dados foram obtidos entre Novembro de 2006 a Abril de 2007. Do total
de mães contatadas (11), houve uma desistência logo no início da pesquisa (primeira
mãe abordada); uma mãe foi ponderada como inelegível devido à dificuldade na
fluência do discurso e outra deixou o hospital antes da finalização das entrevistas e
filmagens, deixando o marido como acompanhante da criança. Deste modo,
acompanharam-se oito díades ao longo do processo de hospitalização (dos primeiros
dias à alta hospitalar), atendendo ao critério de saturação das respostas ou reincidência
das informações,
82
ilustrando adequadamente o quadro empírico da pesquisa.
Figura 1 – Fluxograma de captação dos participantes e execução do estudo
Enfermaria Desnutridos (“E”)
Identificação de possíveis participantes: médico, nutricionista, burocrata e pesquisadora
(11 díades abordadas)
Critérios de Inclusão e Exclusão (contato inicial com mãe e criança)
Elegíveis (10) Não Elegíveis (01)
Não aceitou participar (01)
Aceitaram participar (09)
Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido
Análise do prontuário, desenvolvimento
de entrevistas, filmagens e observações
(08) díades acompanhadas até a alta
Mãe saiu do hospital
antes do término das
entrevistas e filmagens,
deixando o marido em
seu lugar (01)
3.4 Obtenção dos dados
Priorizando aspectos do rigor ético e metodológico da pesquisa qualitativa,
como a triangulação, contextualização e auditabilidade
N
, foram utilizadas entrevistas
individuais semi-estruturadas, observações (filmadas ou não) e anotações retiradas do
prontuário médico da criança.
A pesquisa qualitativa prioriza a utilização de mais de um instrumento na
obtenção de dados, de modo a obter maior validação do estudo com a triangulação,
possibilitando melhor compreensão dos significados e subjetividade do fenômeno
estudado.
O estudo permitiu a triangulação de técnicas (entrevistas, observações
livres e através de filmagens, análise do prontuário médico), triangulação da teoria
(utilização de múltiplas perspectivas teóricas para interpretar um único tipo de dado
psicanálise e psicologia do desenvolvimento) e triangulação de pesquisadores.
84
O período de internamento nos casos de desnutrição grave geralmente dura
de uma semana a meses, variando segundo a gravidade e resposta à terapêutica. O
acompanhamento a cada díade durou entre cinco (o mais curto) a trinta e seis dias (mais
longo). O acompanhamento pela pesquisadora foi praticamente diário, passando grande
parte dos dias na enfermaria, fora os períodos em que estava na brinquedoteca com
alguma mãe/díade, buscando diminuir o estranhamento inicial de sua presença. Tendo,
inclusive, permanecido na enfermaria quando as mães saiam para almoçar, de modo a
observar a reação das crianças ao afastamento materno.
N
Compreensão somativa, o verificativa, buscando maior aproximação do objeto de estudo e a
triangulação de olhares. A pesquisa qualitativa realiza uma ciência de viabilidade, pois não pretende a
verificação direta dos resultados e conclusões, mas explicar, apontar para um sentido da realidade, do
fenômeno ou do processo estudado.
88
Curiosamente, à medida que as mães se acostumavam com a pesquisadora,
algumas delas passaram a solicitar que a pesquisadora “desse uma olhada” na criança,
enquanto estavam fora.
Por se acreditar que a estrutura do sujeito é a mesma em todos os lugares,
pois não tem a ver com onde está, mas com a díade mesma, a psicodinâmica da
interação mãe-criança pôde ser acessada e analisada no contexto da hospitalização.
A entrada em campo foi precedida por contato com a equipe de apoio à
enfermaria dos desnutridos graves (enfermeiras, auxiliares de enfermagem, médicos,
nutricionistas e psicóloga), de modo a explicitar os objetivos do estudo e o papel da
pesquisadora, uma vez que esta estaria em contato praticamente diário na enfermaria.
Buscou-se a inserção gradual na enfermaria com um dos equipamentos da
pesquisa: câmera filmadora. No sentido de permitir a familiarização da operadora
(sempre a pesquisadora) com o ambiente e o equipamento, bem como visando à
familiarização das mães da enfermaria (mesmo aquelas que não participaram do estudo)
com a presença da pesquisadora e seu equipamento de obtenção de dados, as mães
foram convidadas a conhecer a filmadora (manusear e visualizar imagens provisórias,
gravadas a título de teste). Algumas delas solicitaram fotos com seus filhos (a filmadora
também era câmera fotográfica), sendo atendidas em sua demanda, fato esse que
facilitou a ambientação da pesquisadora.
A filmadora foi utilizada em sua forma móvel (não fixo, sem o uso de tripé)
na enfermaria, e na brinquedoteca foi utilizada tanto móvel como com suporte do tripé.
Este instrumento foi escolhido em função das necessidades técnicas, qualidade da
imagem e som, bem como tamanho e peso, de modo a interferir o mínimo possível na
realização das filmagens. A pesquisadora fez breve curso (dois dias, 6:00 horas) para
aprender a manusear o equipamento de alta tecnologia (filmagem em HD hard disk ou
disco rígido). A filmadora fazia correção automática da luz, não sendo necessário o uso
de luz auxiliar. O equipamento dispunha de microfone interno, suficiente na captação do
som.
O equipamento utilizado na gravação das entrevistas foi o MP3, o qual
consiste num equipamento com possibilidade para armazenar enorme quantidade de
informações auditivas num espaço mínimo e com qualidade de som semelhante a de um
CD.
O prontuário médico da criança foi utilizado na compreensão do
tratamento e evolução clínica. Comumente, foram encontradas referências da equipe de
saúde quanto a aspectos psicológicos da criança e sua mãe.
A pesquisadora realizou imersão no ambiente hospitalar (enfermaria),
acompanhando as díades quase que diariamente, desde os primeiros dias de internação à
alta, descrevendo o processo de hospitalização no diário de campo. Esse registro
continha descrições do ambiente, da díade, dos sentimentos e percepções da
pesquisadora, recortes de falas de diversos atores, buscando contextualizar a
transferência e contratransferência (esses aspectos serão retomados mais adiante). No
mesmo foram realizadas também, anotações logo após as entrevistas e filmagens,
propiciando afastamento afetivo por parte da pesquisadora, contando como mais um
subsídio na compreensão da transferência e contratransferência, além das principais
observações da equipe quanto ao tratamento e evolução clínica da criança (obtidas no
prontuário médico), de modo que fosse descrito todo o processo de hospitalização da
díade, da admissão à alta.
Foi realizado estudo piloto para averiguar a adequação dos procedimentos
escolhidos no acesso à psicodinâmica da interação mãe-criança, tendo em vista a
validade/confiabilidade na aproximação do objeto.
As observações e filmagens visaram obter imagens inesperadas da díade
(comportamento da criança diante do afastamento materno, ao longo de brincadeiras
inesperadas da díade, alimentação, brincar da díade na brinquedoteca livre e diante do
setting de filmagem – etc), baseadas nos objetivos do estudo e no referencial teórico.
As observações foram utilizadas como complemento das verbalizações da
mãe nas entrevistas a respeito de sua interação com a criança, e na compreensão da
comunicação da díade. Isto é, a observação dos laços dinâmicos entre os sinais e
comunicações da díade - os comportamentos interativos, afetos mobilizados. Assim, as
observações permitiram a comparação e complementação do discurso com as atitudes.
A filmagem foi tomada como complementar na obtenção e análise dos
dados, permitindo a observação de aspectos que não são possíveis por outros
instrumentos, como a entrevista e o prontuário. Neste sentido, autores explicitam que há
elementos que não podem ser apreendidos por meio da fala e da escrita, como o
ambiente, os comportamentos individuais, a linguagem não-verbal, a seqüência, a
temporalidade em que ocorrem os eventos.
89,90
A filmagem é indicada para estudo de ações complexas, difíceis de serem
integralmente captadas e descritas por um único observador, minimizando a seletividade
do pesquisador, uma vez que a possibilidade de rever várias vezes as imagens gravadas
direciona a atenção para aspectos que teriam passado despercebidos, imprimindo maior
credibilidade ao estudo.
89
Optou-se por entrevistas individuais semi-estruturadas, as quais foram a
base da pesquisa, pois o objetivo foi conhecer em profundidade os significados,
motivações e valores que sustentam as representações/visão da mãe (conscientes e
inconscientes). A forma semi-estruturada foi escolhida de modo a permitir a
manifestação da mãe com intervenções delimitadoras por parte da pesquisadora, tendo
em vista o foco do estudo, porém sem cercear o modo, forma e importância das falas e
demais manifestações da entrevistada. Foi utilizada escuta diferenciada, buscando
facilitar a associação livre do fluxo inconsciente, a fluência do discurso e a
espontaneidade da mãe.
A entrevista individual é tida como instrumento útil em estudos de caso,
história oral, histórias de vida e biografias, que demandam um nível maior de
detalhamento. É preferida também quando a investigação aborda assuntos delicados,
difíceis de serem tratados em situação de grupo.
81
As entrevistas buscaram ampliar o papel da entrevistada ao fazer com o que
a pesquisadora mantivesse postura de abertura no processo de interação. Logo, buscou-
se explorar em profundidade o mundo subjetivo da entrevistada, mediante roteiro
norteador (APÊNDICE 1), orientando a condução das entrevistas, sem impedir o
aprofundamento de aspectos que pudessem ser relevantes ao entendimento do
fenômeno.
O roteiro permitiu, portanto, a análise de elementos maternos, paternos,
parentais, da criança e elementos relacionais mãe-criança (também ilustrados pelas
observações e filmagens), dinamicamente interligados.
Com base na seqüência e organização do discurso da entrevistada, bem
como nas lacunas ou pontos pouco explorados, pouco explicitados, e na qualidade dos
dados obtidos, foram realizadas entrevistas complementares, observando-se que o
número de entrevistas foi variável (entre 4 e 7), bem como a duração. Salienta-se que,
por vezes, a criança esteve com a mãe, mediante solicitação desta.
As narrativas decorrentes podem ser vistas como formas de expressão da
interação mãe-pesquisadora, interação mãe-comunidade-sociedade-cultura, num
movimento dialético, co-construído, onde as histórias são elaboradas e estão situadas
entre os autores, narradores e a audiência.
91
Assim, a interação foi vista não somente como tema da pesquisa, mas como
produto da própria pesquisa, num processo de produção e produto: objetivação da
realidade e objetivação do pesquisador, o qual se torna produto de sua própria
produção.
82
Nesse sentido, pode-se estabelecer o seguinte paralelo quanto às ades em
questão: ades objetivas (mãe-criança) e díades subjetivas (pesquisadora-mãe,
pesquisadora-criança).
As entrevistas e observações foram conduzidas, gravadas, filmadas e
transcritas pela pesquisadora.
Numa tentativa de aproximação entre pesquisa qualitativa e psicanálise, a
“transferência” e “contratransferência”, fenômenos explicados pela última, foram
considerados na relação intersubjetiva, sendo esta característica central do método
qualitativo, concebida não como obstáculo, mas instrumento inevitável e clareador.
77
Assim, a escolha por entrevistas se justifica por favorecer a relação intersubjetiva, bem
como na busca por significados às trocas verbais e não-verbais que se estabelecem nesse
processo interativo.
89,90
A transferência é um fenômeno que ocorre em todas as relações humanas.
Trata-se de reedições de experiências, fantasias e conflitos intrapsíquicos oriundos de
relações objetais anteriores, despertadas na relação com o outro, revividas não como
parte do passado, mas como relação atual com a pessoa.
91
Pode ser compreendida como
o momento em que o pesquisador é incluído nos estereótipos, nas séries psíquicas que o
entrevistado construiu ao longo de sua vida. É a partir desse lugar que o pesquisador
pode compreender a trama psicodinâmica das relações de objeto, das interações típicas
do entrevistado, para além do comportamento manifesto.
75
Portanto, a relação intersubjetiva/transferencial foi tratada como essencial na
obtenção e análise dos dados, como um dispositivo ou instrumento inevitável e
clareador. Refletir sobre essa relação significa preocupar-se com o que é transmitido
sobre o funcionamento mental do participante e do pesquisador (contratransferência)
O
,
através do que ocorre nos veis verbal e não-verbal, consciente e inconsciente. Mais
ainda: certos aspectos da participante puderam ser acessados a partir da compreensão
dos sentimentos mobilizados na pesquisadora.
A condução do fenômeno transferencial marca a diferença entre a técnica
como modalidade de tratamento em psicanálise e o uso do método de investigação
orientado por esta. A transferência não foi passível de interpretação, no aspecto
psicanalítico, uma vez que o objetivo foi compreender e não trabalhar o fenômeno
transferencial, diferente da técnica interpretativa no tratamento psicanalítico, que busca
pôr em evidência e modificar o curso das motivações inconscientes das repetições
transferenciais.
92
O método psicanalítico considera o interjogo das reações transferenciais e
contratransferenciais presente na relação pesquisador-participante. Uma vez que esse é
um processo basicamente inconsciente, a necessária isenção e objetividade do
pesquisador tende a ficar comprometida, se a referência for o empirismo positivista.
93
Porém, se adequadamente trabalhado, esse “comprometimento da objetividade do
pesquisador” pode e deve ser um ponto fundamental para legitimar o método
psicanalítico na pesquisa qualitativa, pois é o campo da experiência transferencial que
constitui o campo da empiria freudiana.
76
As observações e filmagens também modificaram, em certo ponto, o objeto
da observação. O observador, quando descreve ou filma uma díade em interação, traz
O
Contratransferência foi entendido neste trabalho como o conjunto das reações inconscientes do
consigo seus afetos, seus modos de comunicação e expressão verbal, gestual e visual,
aos quais os sujeitos observados reagem, fazendo o observador reagir em contrapartida.
Ambos esperam algo do outro nesta relação: o observador procura o objeto de sua
pesquisa e reage face ao que observa (por exemplo, privilegiando ou evitando certos
ângulos de filmagem), enquanto o observado espera uma ajuda, sente-se curioso ou
mesmo inconscientemente estigmatizado ao ser objeto da observação.
89
A própria investigação interfere no objeto a ser investigado e, por isso, não
neutralidade totalmente possível. A pesquisa está sempre associada à realidade e à
subjetividade do pesquisador. Assim, o pesquisador atua sobre o aquilo que pretende
estudar, a partir de uma interação; influências diretas e indiretas do pesquisador na
própria ciência que produz, tendo em vista que sua produção sofre interferências de sua
história e de seu funcionamento psicológico.
88
Nesse sentido, acredita-se toda pesquisa
relacionada com o ser humano é essencialmente autobiográfica.
Ressalta-se, entretanto, que certo distanciamento pode e deve ser buscado
depois que a contratransferência tenha sido experimentada, criando um afastamento das
reações corporais e sensoriais vividas ao longo das entrevistas e filmagens.
92
A escrita
(diário de campo) e a troca de idéias com colegas de pesquisa auxiliaram neste trabalho.
3.5 Estruturação e análise dos dados
O desafio desta pesquisa foi dar sentido a uma grande quantidade de
informações, identificando os aspectos mais significativos que pudessem revelar a
essência do que os dados indicavam.
O processo de análise ocorreu desde o trabalho de campo, formatando a
coleta em andamento e auxiliando na compreensão do papel exercido por pesquisadora
pesquisador à pessoa do entrevistado, especialmente à transferência deste.
e entrevistada. Buscou-se também compreender o lugar que a criança parecia ocupar no
universo materno, em função do discurso da mãe, das demandas da criança, da
psicodinâmica interativa da díade e da transferência e contratransferência.
A análise dos dados buscou a correlação dos elementos obtidos no
prontuário da criança, nas entrevistas, observações, filmagens e diário de campo.
A análise seqüencial auxiliou no desenvolvimento de hipóteses provisórias
acerca do fenômeno em questão e dos papéis desenvolvidos/atribuídos por cada sujeito
da pesquisa (mãe, criança, entrevistadora, hospital).
Os dados relativos ao acompanhamento hospitalar das ades (dados do
prontuário, observações escritas no diário de campo, filmagens na enfermaria e na
brinquedoteca e entrevistas com as mães) foram ordenados e reunidos em dossiês - um
para cada díade.
As falas (entrevistas e filmagens) foram transcritas na íntegra, com uso
mínimo das convenções da língua padrão culta, anotando-se também suspiros, risos,
choros, pausas longas e certos comportamentos (andar pela sala, ninar, acariciar e
amamentar a criança, dentre outros). As transcrições foram analisadas individual e
coletivamente - discussões entre os membros da pesquisa - tendo em vista a
auditabilidade (verificação somativa, não verificativa; triangulação de olhares), a
representatividade dos significados e confiabilidade interna (através do debate interno
com os orientadores e colaboradores da pesquisa, visando à troca de impressões e
informações).
Para análise das observações filmadas, foi utilizado roteiro (APÊNDICE 2).
Na análise dos dados foi utilizada a metodologia “análise de conteúdo”,
associada à técnica de análise da enunciação, descrita por Bardin
94
A análise de
conteúdo é definida como um conjunto de instrumentos metodológicos ou técnicas de
análise da comunicação, visando obter indicadores que permitam a compreensão das
condições de produção/recepção de mensagens.
82,94
A técnica de análise da enunciação apóia-se numa concepção da
comunicação como um processo dinâmico de elaboração, onde se confrontam as
motivações, desejos e investimentos do sujeito, de certo modo acessíveis pela
enunciação.
94
Nessa modalidade, a dinâmica de cada produção é analisada através de
indicadores que reforçam a idéia de singularidade e irredutibilidade de cada sujeito em
sua elaboração individual do discurso. Dentre esses indicadores, destacam-se: a
seqüência e a dinâmica do discurso (a lógica que estrutura cada entrevista e as relações
entre as proposições utilizadas pelo sujeito) e os elementos atípicos (recorrências,
lapsos, recusas, jogos de palavras, dentre outros).
94
A análise da enunciação comporta ainda a dimensão temática, isto é, podem
ser realizados recortes transversais de falas e atos de fala da díade, de modo que
ilustrem temas representativos dos níveis de interação mãe-criança.
94
Portanto, foram
consideradas, não as falas da mãe, como também, atos de fala desta e da criança, isto
é, todas as produções que não perpassam pela fala, como olhares, toques, posições,
gritos, silêncios, balbucios.
A análise posterior à obtenção dos dados seguiu alguns dos passos descritos
por Pope, Ziebland & Mays,
95
e Minayo:
82
Leitura flutuante e familiarização: imersão nos dados brutos, tendo em vista a
compreensão dinâmica de cada caso, tomando contato exaustivo com o material,
deixando-se impregnar por seu conteúdo, listando idéias chave, elementos
recorrentes, hipóteses iniciais e emergentes;
Construção do corpus e de pontos norteadores: aprofundamento
individual/vertical dos casos, identificação de conceitos e pontos norteadores a
partir dos quais os dados foram examinados e referenciados com base nos
objetivos/elementos de análise do estudo;
Estrutura de análise: identificação de aspectos similares entre os casos
(horizontalização), recorrentes, ilustrados por recortes de transcrições, núcleos
de sentido, índices ou indexação e temas centrais com subcategorias;
Análise comparativa e interpretativa dos temas de cada díade, com as devidas
indexações, identificando-se similaridades e singularidades nos casos.
Não havia pressupostos anteriores de temas pré-estabelecidos, conforme os
princípios da psicanálise e da pesquisa qualitativa. O material coletado foi analisado
com base nas categorias analíticas, porém respeitando-se a emergência de novos temas,
assegurando que outros poderiam ser identificados ao longo do processo analítico, em
função das diferentes representações acerca dos fenômenos abordados.
Após a emergência dos núcleos de sentido, seguiu-se à indexação. As
indexações buscaram não associar e sintetizar as falas, mas também contextualizá-las
e relacioná-las aos deos e observações do diário de campo, conjugando-as à teoria,
comparando e contrastando com o conhecimento disponível. Assim, os temas que
desembocaram das indexações emergiram dos diversos dados transcritos.
Os temas emergiram tanto de elementos empíricos (vividos em campo),
como de elementos teóricos (derivados do marco teórico que norteou os objetivos
preliminares). Segundo Bardin,
94
o tema é a unidade de significação que se liberta
naturalmente de um texto analisado segundo critérios relativos à teoria que serve de
guia à leitura” (p. 105).
Os temas de cada díade foram comparados de modo a identificar, a partir da
singularidade, regularidades e desvios, ou seja, falas ou eventos que corroboram ou não
as hipóteses provisórias, refinando-as, ilustrando as diversas modalidades interativas das
díades.
95
Assim, a síntese interpretativa apoiou-se na comparação das interpretações a
respeito dos temas, na revisão da literatura e na experiência da pesquisadora.
Quanto ao tratamento dos dados, Gomes et al
84
estabelecem distinções a
respeito de três perspectivas: descrição (os dados são tratados como fatos, opiniões dos
informantes), análise (expande a descrição, decompondo os dados, buscando relações
entre as partes) e interpretação (busca os sentidos das falas e das ações para alcançar a
compreensão ou explicação para além dos limites da descrição e da análise). Segundo os
autores, essas perspectivas não são mutuamente excludentes e podem ou não coexistir
formalmente.
84
Ao longo do tratamento dos dados foi possível identificar essas três
perspectivas, coexistindo e auxiliando na compreensão das diversas produções.
3.6 Controle da qualidade das informações
Visando o controle da qualidade das informações, buscou-se que a mãe se
sentisse livre para construir seu discurso e apresentar seu ponto de vista, de modo que o
produto final se aproximasse de um texto negociado, resultante de um processo
interativo, envolvendo tanto o entrevistado como o pesquisador na produção do
conhecimento.
81,82,85
Os significados de cada mãe estão inseridos e se referem a um determinado
contexto, só podendo ser compreensíveis mediante aproximação da realidade individual.
A análise contextualizada e complexa desses significados buscou a articulação entre
teoria, método e criatividade diante do objeto, refletindo o critério de objetivação.
82
Considerou-se a singularidade dos sujeitos (díade e pesquisadora), do
contexto das entrevistas e observações, e da transferência desenvolvida, não passíveis de
repetição em sua integralidade.
Nesse sentido, retoma-se a ética do método
psicanalítico, onde sua originalidade aponta a exclusividade do sujeito: o irreproduzível.
O que se passa entre pesquisador, participante e ambiente, via transferência e
contratransferência, enfim, no setting, não se restringe a um manual metodológico.
96
A confiabilidade interna visou avaliações críticas das participantes, de modo
que o produto final se aproximasse de um texto negociado, resultante de um processo
interativo envolvendo tanto o entrevistado como o pesquisador na produção do
conhecimento.
81,82,85
A validade interna buscou homogeneidade e triangulação com o uso das
técnicas de obtenção dos dados e de vários pontos de vista de pesquisadores (na
análise), bem como manutenção dos mesmos instrumentos, ferramentas e pessoa da
pesquisadora (ao longo da coleta e transcrição dos dados).
As inferências com as teorias referenciais – psicanálise e psicologia do
desenvolvimento e com estudos nacionais e internacionais abordando o mesmo
objeto, conferiram validade externa ao estudo. Assim, o questionamento a respeito do
como a teoria está relacionada e é válida ou se aplica ao objeto, como reflete ou se
aplica à sua realidade, foi almejado no sentido de validade do conteúdo/construto.
3.7 Aspectos éticos
A pesquisa está de acordo com a Declaração de Helsinque e com as Normas
da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa e Conselho Nacional
de Saúde. Tendo sido obtida a aprovação prévia do Comitê de Ética em Pesquisa em
Seres Humanos do IMIP (ANEXO 2). A coleta de dados foi realizada com prévia
assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelas mães das crianças
participantes ou pelo seu responsável, quando a mãe era menor de idade (APÊNDICES
3 e 4).
Nos casos em que foi observada importante dificuldade na interação mãe-
criança, a ponto de interferir negativamente na evolução da criança, foi recomendada
consulta com a psicóloga responsável pela enfermaria. O mesmo procedimento foi
válido para os casos em que a mãe solicitou consulta psicológica (para si mesma e/ou
criança) ou solicitação vinda de qualquer outro membro da família ou da equipe
hospitalar.
IV Resultados e Discussão dos Dados
4.1 Caracterização das díades
As mães e crianças acompanhadas serão descritas segundo a ordem
cronológica na obtenção dos dados, com base nas informações fornecidas pelas mães,
obtidas no prontuário médico e observadas ao longo das filmagens. O relato pretende
situar o leitor quanto a aspectos que ilustram as histórias de vida, embasando a
compreensão da interação mãe-criança ao longo da hospitalização.
Durante a transcrição utilizou-se a seguinte padronização para situar as
falas: ... espaço no início da fala ou pausa durante a fala, (...) recortes de outras falas ou
recorte na mesma fala, ( ) observações complementares de conteúdos e comportamentos
não-verbais.
Uma representação iconográfica foi escolhida para ilustrar cada díade,
segundo características afetivas identificadas pela pesquisadora. Os cognomes
escolhidos para as díades se referem a nomes ou eventos destacados pelas mães ou
criados pela pesquisadora em função de questões contratransferenciais.
Maria e Gabriel
A autoria da imagem é desconhecida
O cognome “Gabriel” foi escolhido em função das características físicas
“angelicais” da criança: cabelos loiros e cacheados, pele branca e bochechas
literalmente edematosas. Sua mãe recebe o codinome “Maria” por ter sido a primeira
das mães da pesquisa, associando-se ao nome da mãe soberana.
A díade residia em Tupanatinga, agreste de Pernambuco. Gabriel tinha um
ano e sete meses e Maria 22 anos. Estima-se que essa seja a idade da díade, pois ambos
não eram registrados. Maria dizia guardar mágoa de seus pais por ser a única filha não
batizada nem registrada; declarou ser católica não praticante.
Maria era a quinta de uma prole de oito. Sua irmã gêmea idêntica foi criada
por uma tia. Seus pais eram casados, ambos trabalhavam em roça caseira. Foram
descritos como carinhosos e atenciosos, nunca havendo batido nos filhos, sempre os
aconselhando.
Negou ter passado fome na infância, descrevendo a casa dos pais como um
lugar onde sempre pôde buscar comida. Reconheceu já ter faltado comida em sua
própria casa depois que o marido viajou para São Paulo.
Maria declarou ser casada, apesar de nunca ter casado no civil ou no
religioso. Estudou até a primeira série primária.
Gabriel era filho único. Segundo Maria, não foi planejado, apesar de
reconhecer que seu grande sonho era ter um filho.
O meu sonho da minha vida era ter um filho assim, cabelinho louro (alisa o cabelo da
criança), assim que nem esse... Já realizei o meu sonho. Eu tinha inveja das outras
passeando com os filhos... eu ficava dizendo ‘eu queria ter um filho’, aí pronto, aí Deus me
dei ele.
Maria fez quatro consultas de pré-natal. Gabriel nasceu a termo, com pouco
mais de três quilos. Queria que o nome do filho fosse “Vitor”, mas o marido e a avó
paterna escolheram “Gabriel”.
Maria e seu marido chegaram a ficar separados no final da gravidez e nos
três primeiros meses de Gabriel. Nesse período, Maria permaneceu na casa da mãe.
Reconheceu que seu sonho era casar com o marido e ir morar com ele em São Paulo. No
entanto, para ir a São Paulo precisa tirar os seus documentos e os da criança.
O pai de Gabriel tentou registrá-lo, porém devido ao fato de Maria não ser
registrada, não pôde registrar a criança, pois o cartório não aceitou apenas o nome do
pai.
Descreveu o marido como bom para ela, pois lhe comprava roupas, fazia sua
sobrancelha, dava-lhe coisas que seus pais não puderam dar. O marido não tinha
trabalho certo, fazia bicos. Havia partido três meses para São Paulo em busca de
trabalho e de um terreno para construir sua própria casa. Desde então faltou dinheiro a
Maria, de modo que ela passou a lavar roupas para fora. Aguardava que o marido
enviasse dinheiro; enquanto isso recorria à sua própria família e à do marido, de quem
recebia comida e procurava para fazer refeições.
A casa que morava com o marido e Gabriel era num armazém de um vão
nos fundos da casa do cunhado, sem banheiro. Não tinha onde preparar os alimentos,
cozinhando-os na casa dos pais. Conseqüentemente, Maria parecia comprar basicamente
alimentos que não precisassem de cozimento ou de fácil preparo: bolacha, biscoito,
pipoca, salgadinho, macarrão instantâneo.
Maria foi confusa e contraditória no que concerne à alimentação do filho.
Nos primeiros contatos dizia que Gabriel comia “comida de panela” (arroz, feijão,
macarrão, sopa, carne), papa, leite, bem como pipoca, salgados e balas. Por fim
reconheceu que não dava nada disso a ele, basicamente só o peito.
Chegou a reconhecer que sua família estava certa quando dizia que Gabriel
havia adoecido porque ela o deixava comer a pipoca e os salgados que ele mesmo pedia,
deixando de dar outras comidas por preguiça, dando o peito no lugar. O peito também
foi descrito como o que “sustentou” a criança diante dos vômitos e fastio no auge da
doença.
Mãe ficava brigando pra eu dar comida de panela a ele, mas eu não queria saber de dar
comida de panela, só queria dar mesmo só o peito.
Até o pai dele reclamou, essas pipocas salgadinhas, sabe, era o que eu dava mais a ele, essas
pipoca amarela, num tem?! Que é bem salgada... eu dava a ele. “Mas ô mulher, não compra
dessas pipoca pro teu filho não mulher, tu vai adoecer”, a minha irmã também falava a
mesma coisa, e eu “vai nada, vai nada”, e eu continuava dando a ele. Até o pai dele
reclamou no telefone, ele disse a eu “olhe nega, ta vendo, eu não disse pra você que você não
comprasse aquelas pipocas pra dar pro menino... foi as pipocas que você comprou, eu disse
a você que não comprasse mais nenhuma pipoca”. Eu não compro mais nenhuma pipoca e
não dou a ele, aí pronto (...) eu não dou mais a ele não, nem doce. (...) Ele deixava a comida
para comer delas..., aí ele ficava com fastio, não queria comer, só queria saber daquilo ali...,
foi isso..., mas agora eu to entendendo, agora eu não dou mais esses negócio de pipoca,
salgadinho, vou só ficar cuidando da alimentação, feijão essas coisas, macarrão, essas
coisas, fazendo cumê, né?! Mas pipoca, essas coisas não vou dar mais a ele não.
Os sinais da doença foram percebidos por Maria e sua família
aproximadamente dois meses depois da viagem do marido, um mês antes das
internações: fastio, vômitos, inchaço, abandono da deambulação, do brincar e do riso
ficou triste, não era mais aquele menino mais alegre.
Alguns desses sinais também foram
apresentados por Maria após a viagem do marido:
eu o tava... sei lá. Tava meia... O pai dele
foi embora, passei um tempo sem conseguir dormir, não dava vontade de comer...
Maria atribuiu a doença de Gabriel ao afastamento do marido.
(...) e
le (Gabriel) ficou... acho que ele ficou triste... eu pensei “ele adoeceu também por
modo do pai”, sabe, eu fico pensando... Muito pegado com o pai, às vezes quando eu falo
com ele no telefone eu digo a ele, eu digo “olhe Tonho, o menino ta doente por modo de
tu”, porque eu disse a ele, “eu disse que tu não fosse pra o Paulo porque o menino é
muito pegado a tu”..., dizia a ele.
Gabriel passou por dois internamentos breves em Arco Verde (quatro dias e
um dia), com suspeita de anemia e síndrome renal (devido ao edema generalizado),
sendo então encaminhado ao IMIP, onde permaneceu por 15 dias em 2006.
Os sinais de melhora foram descritos com base nos mesmos “indicadores”
da doença: diminuição do inchaço, retorno do sorriso, deambulação e brincar.
Com relação aos recursos interativos da díade, foram observadas poucas
verbalizações por parte da mãe, porém havia sorrisos, afagos, beijos, troca de olhares.
Maria não fez uso do manhês. A ludicidade esteve pouco presente em seu repertório
interativo. Gabriel fez uso de olhares, sorrisos, choros, gestos (com as mãos, com a
cabeça), movimentos deliberados (derrubar os brinquedos para chamar a atenção da
mãe), mas poucas vocalizações. Não foi observada, por parte de Gabriel, comunicação
verbal do tipo “palavra articulada”, porém crescentes balbucios (vocalizações) e
movimentos da boca sem expressão sonora, principalmente nos últimos dias da
hospitalização. Observou-se intensa troca de olhares da criança, seja com a mãe, seja
com a pesquisadora, como forma de comunicação mais freqüente.
Maria parecia compreender necessidades e demandas de Gabriel, porém não
as decodificava verbalmente. Com relação a esse aspecto, Silva et al
97
destacam que
existe forte correlação entre o vocalizar infantil e a fala infantil materna, ou seja, quanto
mais a criança vocaliza, mais a mãe fala de modo infantil (manhês) e vice-versa. Maria
não atribuía verbalmente, porém gestualmente, significado aos comportamentos da
criança; não comunicava o que percebia, apreendia, mas seus gestos, olhares, atitudes e
mudança de posicionamento, pareciam visar ao acolhimento da criança ao longo da
interação.
Ao ser questionada sobre como percebia o que Gabriel queria, respondeu
mediante três indícios: indução a partir da comunicação da criança
(porque ele aponta e
faz “uhmmm, uhmmm
) ou indução baseada na observação e experiência (
Diário de campo:
Maria
disse que sabia que Gabriel não queria comer porque havia comido pouco - há três horas - e
que ele estava com a barriga cheia - apontando para a barriga da criança
); ou mediante intuição
(porque eu sei, eu conheço
). A indução baseada na observação (barriga cheia da criança)
parecia falha e perigosa, pois sabia que Gabriel ainda estava edematoso.
Gabriel não chegou a apresentar brincar simbólico (faz-de-conta). Utilizou o
corpo da mãe como brinquedo durante as mamadas, acariciando seu seio, bem como sua
própria sonda, manuseando-a ao mamar. Seu brincar foi eminentemente solitário, porém
não ignorou outras crianças quando as teve por perto, chegando a realizar trocas simples
em ocasiões diferentes. Maria não apresentou interesse em aproximar o filho de outras
crianças, chegando até a desconsiderar a aproximação com uma criança, retirando-o de
perto.
Era comum não dar ao filho a oportunidade de escolha, logo sugerindo um
brinquedo, porém diante da recusa de Gabriel, aceitava suas escolhas. Gabriel acolhia os
esforços de apresentação dos objetos por parte da mãe, interessando-se pelo que ela
mostrava, porém exibia vontade própria, por vezes recusando o objeto ou a atividade,
comunicando-se gestualmente (com a cabeça - “não” e “sim”; levantando os braços;
apontando; afastando o objeto com as mãos; chorando ou sorrindo).
Segundo Lebovici & Diatkine,
98
as atividades funcionais, por mais
significativas que sejam, se transformam em brincadeira através da intervenção de
uma outra pessoa, através da relação mãe-filho.
Nas filmagens das atividades de alimentação (mamadas, leite no copinho de
plástico e alimentação AIDPI - Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância),
Maria sequer chegava a anunciar a atividade ou o alimento, agindo “instintivamente”.
Diante das demandas de Gabriel por independência e brincadeira ao longo das
atividades de alimentação, ora o iludia com outra atividade, ora desistia (justamente na
alimentação AIDPI) após fazer uma breve solicitação verbal à criança.
Mostrou-se passiva diante das escolhas do filho, aceitando-as sem
questionamentos. chegou a reclamar e intervir diante da agressividade de Gabriel,
mas demorou até que se expressasse, o que pode indicar que Maria parecia aceitar
passivamente certos comportamentos do filho, como a recusa para comer.
Maria deu diversos indícios de baixa auto-estima, como a dificuldade para
interagir e se “enturmar” com as outras mães, parecendo repetir a rivalidade que tinha
com as irmãs e cunhadas. Não pedia ajuda externa, esperando que a equipe hospitalar ou
a pesquisadora fizessem algo por ela, como de fato ocorreu em algumas ocasiões.
Mina e Pandora
Leonardo da Vinci - Madona Benois
O cognome desta ade remete ao nome pelo qual a e se referia à criança
em seu útero: Pandora, retirado de uma novela da Globo (“O beijo do vampiro”) na qual
a vampira “Mina” se referia à sua vampira bebê (num suposto movimento de rivalidade
com a filha, talvez se sentindo sugada, esvaziada pelo feto).
Provenientes de Pitimbu, litoral sul da Paraíba. Mina tinha 19 anos e
Pandora nove meses. Pandora era a segunda de prole de dois (o mais velho era um
menino de dois anos); nasceu a termo, com pouco mais de três quilos. Mina não
planejou a gravidez nem fez pré-natal. Amamentou Pandora por um mês, alegando que
a criança largou o peito, “não quis mais porque ela não tinha bico”. A alimentação de
Pandora consistia basicamente de leite e massa (engrossante), mas outros alimentos
haviam sido introduzidos (biscoito, macarrão, carne, caldo de carne, suco, iogurte) sem
dificuldades.
Os dois filhos eram do mesmo marido, do qual estava separada sete ou
oito meses. O casal ficou juntou por seis anos e meio. Portanto, Mina passou quatro
anos sem filhos. Foi expulsa de casa pela mãe aos 13 anos, pois esta descobriu sobre sua
perda da virgindade. Mina foi então morar com o namorado na casa da sogra. Quando
engravidou do primeiro filho, sua mãe lhe ofereceu uma casa para morar com o marido,
na qual permaneceu por alguns meses, depois voltando à casa da sogra porque a mãe
precisou alugar a casa.
Apesar de ter descoberto a gravidez no primeiro mês, sentiu a criança
mexer aos seis meses. Relatou que gostava de estar grávida, pois a mãe lhe comprava
tudo o que queria, bem como saía para as festas, mesmo com um “buchão”. No entanto,
sentia-se presa com o nascimento do bebê, impedida de sair.
Quanto ao sexo do feto, sua preferência, bem como a do marido e da mãe,
foi por uma menina. Um mês após o nascimento de Pandora, Mina voltou para a casa da
mãe, deixando o marido porque ele não queria trabalhar, era ciumento, não a deixava
sair para festas, bem como deixava faltar comida para ela e seus filhos. Mina nunca
trabalhou. Revelou ter passado fome ao longo da gestação, enquanto permaneceu na
casa da sogra. Sempre apoiada pela mãe, recebia alimentação desta e era
freqüentemente convidada a ficar em sua casa para não passar fome.
A casa da mãe foi descrita como um lugar onde não falta comida, nem
coisas para si e seus filhos (roupas, brinquedos), onde ela podia sair quando quisesse,
deixando as crianças com a mãe e amigas (estas menores de idade).
Na casa da mãe residiam esta, o padrasto, três irmãos e uma irmã do terceiro
casamento da mãe, Mina e os dois filhos. A casa era de taipa, com dois quartos, sala e
cozinha; com esgoto e água encanada, banheiro do lado de fora.
A mãe de Mina foi descrita como a grande provedora de bens materiais e
afeto. No entanto, recomendou Mina a abortar os dois filhos, imaginando as
dificuldades que Mina (ou ela mesma, a avó) teria para criar as crianças. Mina e o
marido foram contra a orientação da mãe, apesar dessa ter chegado a tomar remédio
para abortar Pandora ao longo do primeiro mês. Declarou não ter religião nem prática
religiosa.
O pai de Mina deixou a esposa quando Mina tinha três meses de vida. De
início disse não conhecer o pai, mas depois contou que poucos anos a mãe a levou
para conhecê-lo, mas que ele as tratou com frieza. Mina voltou a procurá-lo e ele lhe
deu dinheiro por duas vezes; no entanto, se o vir na rua não mais o reconhece. Disse que
não mais o procurou, sendo inclusive proibida por sua mãe.
Mina descreveu sua infância com a mãe como boa, apesar dos três
internamentos pelos quais passou.
Mãe disse que eu dava trabalho, ela disse que eu fui internada bem umas três vezes
quando eu era pequena. Era muito doente, doente mesmo assim magra. Ela disse que por
isso que os meus menino é assim, por isso, porque quando eu era pequena dava muito
trabalho a ela. (...) Ela disse que eu era bem magrinha, bem choxinha, meu Deus do céu,
ficava entre a vida e a morte, ela ficava doidinha.
Pandora e Mina permaneceram no IMIP por 16 dias, no início de 2007.
Após dez dias de hospitalização em Goiana, foram encaminhadas ao IMIP. Pandora teve
um internamento prévio por “cansaço e tosse” dois meses, por quatro dias. Durante
esse primeiro internamento, a avó materna dividiu com Mina os cuidados de
acompanhamento. Chegou também a visitar filha e neta no IMIP. Antes dos
internamentos, Pandora foi levada a uma rezadeira.
Ao longo das trocas interativas da ade, era freqüente Mina mostrar, mas
não oferecer a Pandora os brinquedos que ela mesma escolhia. Pandora aceitava os
brinquedos escolhidos pela mãe, mas nem sempre dava atenção aos mesmos, talvez
devido ao modo como a mãe os apresentava: ora muito próximos ao seu rosto, ora
interrompendo a exploração da criança com outro brinquedo, ora o a deixando
explorar o brinquedo apresentado, sem respeitar o turno da criança. Pouco deixava a
criança explorar os brinquedos, logo lhe apresentando um novo. Assim, Mina
praticamente não demonstrou reciprocidade ao longo do brincar.
Buscava, assim reconheceu, o “bocão” e o sorriso da filha, ora não deixando
que a criança pegasse no objeto que mostrava, ora não respeitando as escolhas de
Pandora, não deixando que explorasse os brinquedos que a própria criança escolhia,
mudando muito de objeto para objeto. Não montou nenhuma brincadeira com a filha.
Quanto às respostas interacionais de Pandora, exibiu freqüentemente
movimentos com a boca, mas sem vocalizações, porém com alguns gritos. Mina falava
muito pouco com a filha.
O manhês de Mina serviu como input para a criança sorrir, abrir a boca e
voltar sua atenção para o brinquedo ou para ela mesma. Depois disso, Mina não
aproveitava a resposta de Pandora para continuar a interação, para criar uma atividade,
uma brincadeira, não atribuindo à criança um lugar de resposta nas trocas.
Diante da possibilidade iminente de alta, Mina retomou o estado em que a
criança chegou ao IMIP e sua evolução:
quando ela chegou tava fraca, ela queria estar assim,
deitada, tava muito inchada, queria ficar muito tempo deitada, nem sentava, queria botar ela de pé e
ela não podia, ficava toda mole. Num tava rindo, só ficava dormindo, triste... Ela não comia.
A narrativa de Mina era cheia de “não sei, sei lá”, parecendo encarar os
eventos da sua vida com muita naturalidade, sem conflitos, o que leva a dois
questionamentos:
Ao não saber explicar ou ao negar situações conflituosas, será que Mina negava
a vivência de conflitos, apontando para uma denegação
P
, de modo a se livrar da
angústia mobilizada pela vivência de conflitos e de culpa?
Será que Mina não parava para refletir sobre certas situações em sua vida, em si,
em seus filhos, seus planos, vivendo mais no sentido de sobrevivência, sem
parar para pensar sobre conflitos, desejos, respaldando-se na materialidade, por
P
Negação no plano consciente de uma experiência psiquicamente existente, porém inaceitável.
25
isso recorrendo aos materialmente provedores? Será que com as entrevistas
passou a questionar certos aspectos de sua vida que nunca refletira mais
efetivamente?
Ana Maria e
Mariana
Leonardo da Vinci - Menino Jesus e Nossa Senhora com João Batista e Santa Anna
Esta ade recebe os cognomes “Ana Maria” e “Mariana” por ter em sua
história de vida a repetição e a suposta tentativa de reparação como fenômenos
marcantes. O nome real de Mariana era o mesmo de uma irmã falecida da mãe.
Ressalte-se que Mariana não recebeu o sobrenome do pai, o da mãe, apesar de ter
sido registrada por este. A exclusão das figuras masculinas também é repetitiva na vida
dessa família.
Ana Maria foi contraditória quanto a quem nomeou a filha: si mesma ou sua
mãe. Disse que o nome foi dado em homenagem à irmã, para lembrá-la. Ana Maria foi
filha única do primeiro casamento da mãe, mas teve ainda outros quatro irmãos pelo
lado materno, dos quais um está vivo. Essas crianças morreram ao longo do primeiro
ano de vida, pelo menos um por anemia.
Disse não ter conhecido o pai, sequer sabia seu nome, pois sua mãe nunca
havia lhe falado sobre ele, não gostando de tocar no assunto. Antes de virem para
Pernambuco, há dois anos, moraram em São Paulo.
Questionada sobre o desejo de conhecer seu pai, Ana Maria respondeu que
teve vontade de procurá-lo, mas que desistiu devido às histórias negativas que ouvira
de vizinhos a respeito dele.
Mariana residia com a mãe, avó materna e tio materno de oito anos, em
Catende (PE), mata meridional. A casa onde moravam tinha três cômodos, sendo
quarto, sala e cozinha, com banheiro dentro, luz, esgoto e água encanada.
A família recebia o benefício do irmão de Ana Maria, o qual era portador de
deficiência física. Ana Maria estudava (segundo grau), vendia Avon e trabalhava dois
dias da semana como embaladora. Seu ex-padrasto e o pai de Mariana ajudavam
ocasionalmente nas despesas. Reconheceu que no final do mês ficavam “apertadas”,
mas que nunca chegou a faltar nada em sua casa, nem mesmo quando viviam em São
Paulo.
Declarou ser católica praticante. Nunca chegou a se casar com o pai da filha.
O pai de Mariana foi morar no Recife pouco tempo depois do seu nascimento, de modo
a trabalhar numa fábrica; desde então, seu contato com a filha e namorada diminuira.
Chegou a visitar filha e namorada no IMIP.
Ana Maria e o namorado moraram juntos por dois meses ao longo da
gestação, mas ela voltou para a casa da mãe de modo a ajudá-la com o irmão portador
de deficiência.
(...) eu fui porque eu vi que mainha num, num tava, é, conseguindo assim, pro mode das
marcação de Bruno (irmão) eu vi que num ia dar pra ela sozinha. Que ela com problema
de coluna, eu disse “não, pra ela ta carregando ele pra um lado, pro outro, pra depois
ta sofrendo da coluna, é melhor eu ajudar ela”, aí eu peguei e fui.
Mariana nasceu prematura (34 semanas, 2200g), porém sem complicações
(permaneceu na maternidade por apenas 24 horas).
(...) Às vezes eu até penso que ela nasceu prematura pro mode isso, pro mode de eu
carregar ele (irmão) pra todo canto. Assim, eu num carregava muito, às vezes mainha
pegava ele pra eu descansar um pouco, mas sempre era eu que carregava ele.
Descreveu a gestação como tranqüila, apesar de não a ter programado.
Chegou a fazer seis consultas de pré-natal. Sua mãe foi quem suspeitou da gravidez,
confirmada aos dois meses. Ana Maria foi confusa quanto à manutenção da gravidez,
relatando que sua mãe chegou a sugerir que abortasse, ao que o namorado foi contra,
inicialmente, e depois ela, Ana Maria.
Quanto à escolha pelo sexo, Ana Maria descreveu como claro o desejo de
sua mãe por uma menina.
Mariana mamou por dois meses.
Foi porque ela não quis mais pegar, eu num sei o que deu nela, porque ela não quis pegar.
Sempre quando eu colocava o peito na boca dela ela botava pra chorar (...) Eu senti triste,
né, porque no meu pensamento eu queria que ela mamasse até, até ela quisesse, seis
meses, o tempo que ela quisesse mamar ela mamava. Mas ela num quis, né, fazer o quê?!
Aí eu ofereci outra coisa a ela.
Ana Maria passou então a seguir as orientações da médica do posto de
saúde.
Ela
disse que eu podia dar a ela, assim de leve, um leitinho bem ralo. (...) Aí nós foi dando
o leite, aí o leite num tava sustentando ela. Aí ela disse “compre, veja qual é a marca mais
fraca que tem, assim, que num seja pesada, e faça um mingau bem ralinho pra dar a ela”.
ela foi tomando o mingau se acostumou-se até hoje. Aí quando ela completou quatro
meses ela mandou engrossar um pouquinho o mingau pra ela tomar. ela toma até hoje
o mingau, parou só agora, esses dias aqui.
Antes de adoecer, Mariana foi descrita como alegre, sorridente, esperta, uma
criança que gostava de brincar sozinha, “rindo do nada”; não vivia chorando, como
passou a ficar depois da doença.
Mariana tinha seis meses de idade quando foi trazida de Catende (PE) para o
internamento no IMIP em decorrência de edema generalizado, dermatite, infecção
cutânea, escabiose, pneumonia e otite, recebendo alta 40 dias depois, em Abril de 2007.
A avó materna foi quem levou a criança ao IMIP, alternando o acompanhamento com
Ana Maria, 15 anos de idade.
Mariana nunca havia sido internada antes. Ana Maria reconheceu os
sintomas da enfermidade (apesar de não concordar com o diagnóstico de desnutrição)
também e principalmente com base na perda de peso e “desânimo” da criança. Observe-
se a ambigüidade e contradição desse parâmetro, pois a criança passou praticamente
todo o internamento lutando contra o edema. Do mesmo modo, a melhora de Mariana
foi percebida pela mãe com base no ganho de peso
.
Ana Maria parecia não acreditar que
os sintomas da filha fossem decorrentes da desnutrição.
(...) Eles sabem o que tão dizendo, mas, assim, por uma parte não foi desnutrição,
porque a desnutrição não ia causar ela ficar toda inchada do jeito que ela ta agora. Eu
acho que uma desnutrição, eu acho que não causa isso o, a criança ficar toda inchada,
ficar com mancha no corpo. (...) Eu acho que desnutrição num é assim não. Eu acho que a
criança vai perdendo peso, perdendo peso. Pode causar outra coisa, mas o chega a
ficar toda inchada, com mancha no corpo, caroço...
Uma prática freqüente de Ana Maria ao longo da internação foi solicitar da
pesquisadora e de membros da equipe de saúde fotos deles com a filha, fotos de
Mariana sozinha, toda arrumada, a cada semana com roupas novas, cada vez mais
enfeitada, como uma boneca. Ana Maria costumava sair muito da enfermaria,
desaparecendo por horas, deixando a filha sozinha ou com outras mães “passando um
olhinho”. Quando retornava, manuseava a filha quase sempre no intuito de enfeitá-la
para tirar fotos. No início Mariana mostrava-se passiva diante desses manuseios
maternos, mas depois passou a vomitar, sujando toda a roupa, como que boicotando a
mãe, reagindo diante dos comportamentos maternos invasivos.
Ana Maria reconheceu que o pai de Mariana foi visitá-las três vezes, mas
nunca o apresentou a ninguém da equipe de saúde, nem à pesquisadora, bem como não
solicitou foto com ele. Quando questionada sobre planos futuros com o namorado,
respondeu:
Eu tenho vontade de ta numa casa com ele, eu ele e a nossa filha. ... na mesma hora eu
penso em mainha, deixar mainha sozinha com meu irmão. ... (...) vem aquele pensamento
“eu o vou deixar minha mãe sozinha com meu irmão porque tem ela e meu irmão e
eu dentro de casa”. Se eu for sair só vai ficar e meu irmão, aí ela vai ter que correr, corre
muito com ele aí vai, num pode ta pegando peso, tem que ter eu pra ajudar. (...)
quando eu vir ele andando numa muleta mesmo, eu, eu penso em sair de casa, mas
agora...
- Você já conversou com sua mãe sobre isso?
Já. ... Ela diz “você que sente”, eu digo “não, mas por enquanto eu vou sair de casa não”.
Ela num aprova assim que eu saia. (...) Ela se vosair você num vai levar a menina
não”, eu digo “por quê?”. Ela diz assim brincando, pra mim, pra ver o que eu digo. eu
digo “não, eu vou levar sim”. Ela fez “aproveita que arruma uma casa do lado da minha,
pra mim ficar vendo ela todo dia”. Eu digo “se for possível eu arrumo”.
Rosácea e Angélica
Rita Valnere - Sleeping Child
Rosácea, cognome atribuído à mãe, é uma flor que muitos frutos, porém
demora 25 anos pra florir. Apesar de a mãe mostrar-se passiva e contraditória diante da
doença e sinais interacionais da filha, criou inúmeros significados relativos à doença.
Coincidentemente, tinha acabado de fazer 25 anos quando da internação da criança.
O cognome atribuído à criança também se refere a uma flor, Angélica, que é
frágil, dura poucos dias, porém marcante em função do perfume que exala.
Rosácea, seus quatro filhos e o marido residiam em Goiana (PE), zona da
mata. A casa da família era de taipa, com três cômodos, água encanada, energia elétrica
e esgoto. Rosácea não trabalhava desde que Angélica nascera. O marido era informal e
estava desempregado, fazendo biscates para manter a família. Não recebiam nenhum
tipo de benefício social, apesar de terem solicitado o Bolsa Família, sem resposta. Era
comum Rosácea fazer refeições na casa da e, onde também costumava deixar os
filhos quando precisava sair.
Declarou-se casada. Ela e o marido estudaram até a terceira série do
primário. Rosácea recebeu formação católica, porém freqüentava a igreja do Reino de
Deus.
Descreveu sua infância como um período alegre, cheio de brincadeiras. O
pai trabalhava num engenho, o qual por vezes atrasava o salário, ao que a família
recorria a vizinhos para comprar comida. Sua mãe era cartomante, estimada como uma
mulher que “sabia de todas as coisas”; acerca do relacionamento com a mãe, respondeu:
Sei lá, acho bom. ... Ela não é ruim pra mim... Nem eu sou ruim pra ela. O que eu peço
assim ela faz, agora só que ela não pode ficar me ajudando totalmente, assim, né?! (...) Eu
gosto, de vez em quando ela fica com meus menino. (Ri).
Disse que a mãe se referia a ela (Rosácea) como uma pessoa fraca, tanto no
sentido físico (doente), como psicológico (tendia à “depressão”).
Rosácea descreveu Angélica como uma criança “doentinha desde o
nascimento”, parecendo que o discurso da avó materna da criança se repetia no de
Rosácea, bem como a história de Rosácea se repetia com a internação de Angélica.
Angélica nasceu a termo, com quase quatro quilos. Entre o último filho e
Angélica, Rosácea estimou ter sofrido um aborto espontâneo no primeiro mês de
gestação, decorrente de uma raiva.
Descobriu a gravidez de Angélica aos dois meses, sentindo os primeiros
movimentos fetais no mesmo período. Fez quatro consultas de pré-natal, relatando ter
sofrido de anemia e infecção urinária, porém a gestação foi descrita como tranqüila.
Disse ter sentido muita fome, ao que o marido comprava o que ela desejava.
A gravidez não foi planejada, apesar de desejada. Ela mesma nomeou a
criança depois de um comercial de TV ou programa infantil televisivo. Angélica foi
registrada pelo pai, recebendo seu sobrenome.
A criança foi amamentada por um mês e dezenove dias, sem complicações.
No entanto, Rosácea achava que a filha não engordava, passando a seguir o conselho
das vizinhas de dar “leite em forte” para a filha. Aos dois meses, a dieta de Angélica
consistia de mingau (leite com massa), papa, vitamina de banana, suco de laranja e
acerola.
(...) Começou com isso, assim, ficando molinha. Tinha vez que ela comia mais ou
menos assim, um tantinho assim... (faz um gesto com os dedos, indicando um volume
na mamadeira, algo perto de 10 ou 20ml). eu disse: “meu Deus do céu, essa
menina num ta querendo, ta sem querer comer”, assim. Mas o povo dizia: “Não, mas
num tas dando de mamar? não precisa, não, mulé, tu levar pro hospital não”. Eu
ficava com ela em casa, é mesmo, porque ela num mama, eu dizia, ela num mama.
começou, começou por três mês em diante esses negócio de diarréia forte, se obrar
muito, foi agora, de três mês. (...) Na mamadeirinha mesmo, eu botava mesmo assim,
porque eu botava na chuquinha, porque ela é muito pequena e eu tinha medo de botar
muito pra a barriga não crescer. Colocava na chuquinha. Botava, é 100 ml para ela
tomar... (...) Ela comia, agora só que num pegava peso, né.
- Porque ela não pegava peso, se comia?
Eu não sei... Alguma coisa tinha e eu não sabia... alguma doença...
Angélica tinha seis meses quando da internação. Chegou ao IMIP com
queixa de diarréia recorrente, edema e anemia, encaminhada de Goiana, onde fora
internada duas vezes nos últimos dois meses. Permaneceram 28 dias no IMIP.
A desnutrição parecia ser compreendida como sinônimo de baixo peso ou
perda de peso
.
Nesse sentido, Rosácea descreveu três dos quatro filhos como
desnutridos, porém alegando que Angélica não tinha saúde, pois nenhum dos outros
teve problema com o leite em pó, e apenas um chegou a ser internado, devido à asma.
Foi contraditória e confusa quanto ao modo de alimentação da criança, tanto
em casa como no hospital, parecendo não compreender os sinais interacionais da filha.
Ora dizia que Angélica passou a não aceitar mais as mamadas, depois que introduzira o
leite em pó, ora dizia que ela queria mamar; ora dizia que a criança alimentava-se
bem, ora que praticamente não queria comer; ora dizia ter medo de dar muita comida à
criança, ou certas comidas (comida de panela) que pudessem matá-la.
Assim, porque em casa ela comia as coisa, né, num comia essas coisa toda, mas tomava
uma vitamina, vitamina de banana, fazia papinha e dava a ela. (Ri) Só num dava comida
que ela ficava batendo a boca, porque quando ela via a gente comer ficava mesmo assim
(imita o gesto com a boca). (Ri) Num dava não, com medo. “Deus me livre dar comida a
essa menina pra matar”, eu dizia.
Rosácea parecia tomar as manifestações da criança de modo unívoco, como
demanda por comida, achando que o choro ou os balbucios da filha relacionavam-se
apenas à necessidade (comida). Esse tipo de “leitura” parecia ocorrer desde a
gestação, diante dos movimentos fetais.
Ao longo da hospitalização, no entanto, Rosácea conseguiu criar novos
significados às demandas e comportamentos da filha, porém nunca os comunicando à
criança. Era de certo modo angustiante assistir às tentativas dela alimentar Angélica.
(Diário de campo) Rosácea não parece saber o que fazer com Angélica em seu colo. A
criança reclama, coloca as mãos na cabeça, mas a mãe não consegue acolhê-la,
balançando-a sem jeito, mudando-a de posição. Não parece tomar a criança como
interlocutora. A criança parece perdida no seu colo, inquieta, com raiva. Rosácea o
peito de modo estranho, não colocando a filha em seu corpo, apenas encaixando a boca
no seio, meio que mirando a boca da criança. certo, Angélica pára de espernear, de
reclamar. Amamenta a criança sem dizer nada, segurando o bracinho dela, não a
deixando explorar seu corpo. Não há troca de olhares. Quando Rosácea tem algo a
comentar quanto às reações da filha, sempre se dirige a mim, nunca à criança.
(Diário de campo) Angélica reclama, mas a mãe não a acolhe, não se comunica com ela.
Rosácea parece não saber o que fazer com a própria filha, não sabe o que ela quer, não a
acolhe em seu corpo, nem a criança se aninha ao corpo da mãe, afastando a cabeça da
direção da mãe, parecendo desconjuntada. Rosácea insiste em mostrar brinquedos à filha,
apesar da repulsa da criança.
(Diário de campo) Em nenhum dos vídeos brincou com o corpo da criança, nem com os
sons dela, nem com nenhuma produção dela. Não parece ter prazer em brincar com a
filha, nem desprazer, apenas passividade, entediando-se. Certa vez comentou comigo: “se
ela andasse... ela olha, repara tudo, mas não anda, não brinca...”
(Diário de campo) Angélica está absolutamente mal posicionada no colo da mãe,
praticamente deitada, com suas pernas e braços presos, enquanto Rosácea tenta achar um
espacinho na boca da criança para despejar um pouco de leite com a seringa. Angélica
reluta, bota o leite pra fora com a língua, vira a cabeça, desvia o olhar da e, enquanto
esta insiste, numa verdadeira luta. Angélica recusa, mas o chora. É angustiante
observar a cena.
(Diário de campo) Novamente, a alimentação se passa como uma luta. Angélica está
contida (braços, pernas) e Rosácea tenta “injetar” o leite com a seringa, sequer deixando
a filha chorar. Angélica fecha os olhos, vira a cabeça, tenta colocar o leite pra fora, finge
dormir. Sua expressão, como sempre, é de sofrimento. (...) Rosácea o chama a atenção
da filha para si, não a estimula com falas, risos, manhês, gestos, não faz o leite ser
atraente. Provei do leite e vi que ele de fato é docinho e quentinho, mas falta outro
atrativo... A criança não está bem acomodada e Rosácea parece o compreender bem os
sinais da filha (quando Angélica quer mais ou quando quer parar).
Fazia praticamente um mês de internação quando Rosácea comentou que
estava muito cansada, precisando ir à sua casa para saber dos outros filhos. Deixou o
marido como acompanhante por três dias. A equipe, bem como a pesquisadora, estava
esperançosa que a presença do pai pudesse animar mais a criança, porque Rosácea
parecia cada vez mais passiva. No entanto, Angélica continuou decaindo, parecendo não
fazer diferença quanto à chegada do pai e a saída de mãe. Seu pai também era muito
passivo.
Ao retornar ao hospital, Rosácea comentou que seus seios haviam inchado
muito em casa, chegando a derramar leite.
(...) Ela fica querendo mamar, aí inchou. Que quando eu cheguei, eu botei ela no peito, ela
mamou que ficou assim, empapachada ela, foi dormir. ... de vez em quando, mas eu
num penso nisso muito mais não, porque ela ta ficando boazinha. Eu penso em que ela
fique boa dos pés (os pés da criança voltaram a ficar edemaciados) pra ir pra casa, eu
penso, e comer, cooomer (dá ênfase ao “comer”), quero que ela coma!
E assim Rosácea voltou a amamentar Angélica, exibindo bom fluxo de leite.
(Diário de campo) Rosácea de mamar à filha, a qual aceita bem, sem retirar a boca do
seio. No entanto, Angélica, apesar de deitada no colo da mãe, o parece acolhida, digo,
seu corpo está distante, só a boca é que está próxima.
Diante da repetição de cenas como essa, a pesquisadora escreveu:
(Diário de campo) Desde que terminei as entrevistas e filmagens com Rosácea e Angélica,
passei a ter uma postura mais ativa, lutando por mãe e filha. Passei o caso para a
psicóloga do andar, explicando-lhe tudo o que observara e sentira. Mas a psicóloga é
muito concorrida e ocupada no andar, pouco podendo dar atenção ao caso. Isso foi me
deixando angustiada e pedi a ela para auxiliá-la, ao que ela concordou. Senti que eu
agora poderia ter mais liberdade, não propriamente ser a psicóloga da díade, mas poderia
oferecer uma escuta diferente da escuta da pesquisa.
(Diário de campo) Noite passada saí do IMIP angustiada. Cheguei à enfermaria e vi Rosácea
com Angélica no colo, a criança toda desajeitada. Como havia sonhado com Geisy (chefe do
Canguru), a lembrança desse sonho logo me veio e sugeri a Rosácea que tentássemos ajeitar
Angélica melhor ao seu corpo. Rosácea não conseguia acomodar a filha, como se elas não se
encaixassem. Ela tinha um lençol ao redor da filha e então o estiquei, fazendo como uma
faixa de contenção do Canguru, amarrando mãe e filha. Angélica pareceu acordar, digo,
viver, acordar para a vida, olhando tudo ao seu redor. Rosácea e eu ficamos surpresas com o
conforto e a reação da criança, com sua carinha mais esperta. Perguntei a Dra. Anna Cleide
se poderia trazer uma faixa do Canguru, ao que ela concordou. Voltei com a faixa e
acomodei mãe e filha. Rosácea pareceu olhar mais para a filha, gostando da novidade;
Angélica ficou mais esperta, com o pescoço bem mais firme, como eu nunca havia visto,
olhando tudo ao seu redor. Ficamos todas animadas. Eu buscava desesperadamente algum
tipo de intervenção simbolizante que interrompesse a pulsão de morte deflagrada nessa
díade, em mim, no hospital!
Alguns dias se passaram e Rosácea pouco usava a faixa com a criança, a
qual virou mais “travesseiro” no bercinho de Angélica que faixa para contato mãe-filha.
A criança continuou definhando, ao que a equipe pontuou:
(Prontuário médico) Paciente apresentando edema bilateral de membros inferiores.
Genitora ainda oferecendo água para a paciente. Expliquei para ela a gravidade de se
oferecer líquidos fora o recomendado. Fiquei sabendo também pela auxiliar de
enfermagem que a mãe está oferecendo o peito (leite materno) sempre antes de
administrar a dieta do protocolo. Também falei para priorizar a dieta. Acompanhante
refere persistente edema em pés e agora pernas. Conduta: comunicar Serviço Social para
conversar com a mãe.
Foi então que Rosácea procurou a pesquisadora, bastante irritada, pedindo
para conversar no lugar onde filmávamos Angélica (brinquedoteca), demandando uma
escuta diferente, autorizada. Conversamos por quase duas horas. Rosácea desabafou
quanto à raiva que estava da equipe por terem ameaçado chamar o Serviço Social caso
ela não parasse de dar água. Disse que três dias não dava água à filha e que dava
porque Angélica chorava, achando que era fome ou sede. Questionei-a sobre o que
sentiu quando a médica ameaçou chamar o Serviço Social,
Q
ao que ela respondeu que
ficou com medo que quisessem tirar a criança dela. Também conseguiu falar sobre
“morte”, abordando o tema e ao mesmo tempo defendendo-se da idéia, negando que a
criança talvez estivesse pior.
Rosácea pediu para conversarmos novamente no dia seguinte. Pedi
permissão para gravar a conversa. Repetiu alguns temas do dia anterior, defendendo-se
cada vez mais da morte, projetando certos conteúdos na equipe.
ela disse que ia chamar o Serviço Social pra dizer isso, pra dizer que eu tava dando
água. Eu fiz “não, vocês tem é que calcular porque a perninha dela ta inchada”, ?! Ela
disse “eu não vou dar alta a essa criança porque quando ela chegar em casa pode
morrer”. Eu fiz “a minha filha num vai morrer não, a minha filha num vai morrer não. Eu
to vendo a melhora dela, a minha filha não vai morrer” O que eu posso fazer, quando ela
ficar boa eu vou fazer de tudo pra ela ficar boa. Só isso.
- Mas pensar sobre morte, falar sobre isso não é a mesma coisa de acontecer. Num pode
pensar e falar sobre isso não?
Num posso não, porque eu sei que ela vai se curar. Ela ta mamando que os meus peito
chagaram cheio de leite!
A interação da díade mudou, observando-se maior esforço da mãe.
(Diário de campo) Rosácea deu de mamar por uns 10 minutos, no máximo, trocando de
peito, até que Angélica dormiu e ela retirou a criança do peito, ficando com ela no colo,
conversando baixinho com ela, mostrando, agitando o brinquedo que deixei no berço de
Angélica na semana passada. Rosácea cantarola baixinho, agitando a criança, que parece
bem acomodada. Gostaria que isso se repetisse mais vezes! Até que enfim algo de afeto
dessa mãe: irritação, iniciativa, carinho. Algo ocorreu... Não sei se foi a faixa do
Canguru, a bronca que a doutoranda deu nela (chamar o Serviço Social), nossos
encontros na brinquedoteca (entrevistas e intervenções da pesquisadora com o término
das entrevistas e filmagens).
Q
Porém não a psicóloga do andar!
(Diário de campo) Hoje presenciei troca de olhares entre mãe e filha; Rosácea falou algo
à filha muito baixinho. Angélica está mal posicionada. Rosácea mostra o brinquedo que
dei a elas e a criança observa a mãe balançar o brinquedo, mas não tenta pegá-lo.
(Diário de campo) Angélica apóia sua cabeça no braço, mas não no ombro da mãe.
Rosácea manuseia o relógio que disse ter comprado para a filha brincar “quando crescer,
quando ficar mais sabida”. Deixa o relógio dentro de um plástico duro, não deixando que
a criança manuseie o objeto, mostrando-o fechado.
(Diário de campo) Angélica reclama, fecha os olhos. Rosácea cria significados, passando
a se dirigir à criança, chegando a usar o manhês mais de uma vez. Colocou a criança de
frente para si, beijando-a, olhando-a nos olhos, mas Angélica o retorna o olhar, não
parecendo reconhecer a mãe. Rosácea está mais afetiva, parece ter evoluído em sua
interação com a filha, mas a criança parece reativa, protegendo a boca. Por fim, consegue
aproximar a filha do seu corpo e Angélica recosta a cabeça, mas ainda protegendo-se com
os braços cruzados diante da boca. Angélica coloca seu braço entre sua cabeça e o ombro
da mãe. Esta foi a última filmagem antes de Angélica morrer.
Na manhã do dia 26 de Fevereiro, Angélica teve uma parada cardio-
respiratória, não respondendo às manobras de reanimação. Passara a madrugada com
distensão abdominal e desconforto respiratório; suspenderam as dietas, inclusive as
mamadas e fizeram lavagem gástrica, mas Angélica morreu.
(Diário de campo) A nutricionista disse que haviam suspendido o peito porque Angélica
estava mais edemaciada. No entanto, Rosácea achou que o leite que veio para ser dado na
sonda não era suficiente e que a criança estava com fome. Acabou dando o peito diversas
vezes, aumentando o edema, o que fez com que Angélica tivesse uma parada cardíaca.
(Diário de campo) A impressão que me dá é que Rosácea, tentando confortar a filha, evitar a
fome, “entupiu” ela de leite, seu leite, leite este que deixou de dar à filha no seu primeiro
mês e meio de vida porque achava que não estava matando a fome nem engordando
Angélica. (...) e assim Angélica adoeceu, lenta e repetidamente. Ao final, foi o leite que
influenciou, de alguma forma, a morte da criança. Angélica morreu por “comida demais”, o
contrário da desnutrição causada pela falta de comida, paradoxal...
(Diário de campo) Sinto que estimulei Rosácea a retomar os primórdios de sua relação com
Angélica, mas que foi justamente esse retorno que no final influenciou de alguma forma a
morte da criança, que talvez tenha feito com que Rosácea se sentisse e, (...) Rosácea ia
levando a faixa do Canguru, mas tive que pedi-la de volta, apesar da dor que isso me causou
naquele momento, como se eu tirasse um pedaço dela.
(Diário de campo) Espero que essa experiência traga fortaleza, atitude e afeto a Rosácea,
que ela se veja mais mulher e mãe e lute pelos outros filhos, contando-lhes sobre o que
passou com Angélica. Disse-lhe: conte a seus filhos, marido, mãe, vizinhos, a história de
Rosácea e Angélica.
(...) Rosácea disse que enterraria a filha em sua cidade. Queria batizá-la, perguntando se era
possível. Disse que veria Angélica quando ela mesma morresse, pois a filha era agora um
anjinho; Angélica dos Santos, esse era o nome dela, não por acaso.
(Diário de campo) Despedi-me dizendo que ela conseguiu ficar com Angélica no hospital,
forte o suficiente para confortar a filha. Rosácea comentou que diria isso à sua mãe, pois
esta dizia que ela era fraca e podia cair numa depressão. Sustentei que ela não foi fraca e
nem sucumbiu à depressão, apesar do sofrimento e cansaço, e que chorar e sentir dor neste
momento não era ser fraca, mas poder viver o luto pela filha.
Bela e Ian
Leonardo da Vinci - Madona Litta
“Ian” é o diminutivo do nome da criança, um dos apelidos utilizados pela
mãe para se referir ao filho. O cognome “Bela” remete ao conto da “A Bela e a Fera”, a
ser explicitado mais adiante. Comunicativa, expressiva, sociável, ativa, sobretudo,
afetuosa, Bela animava a enfermaria. Criava inúmeros apelidos ao filho, como
“neguinho” e “buchinho de guaru”.
R
Ian foi nomeado pela mãe, derivando sua criação
do nome do marido.
Aos quatorze anos Bela saiu de casa, desafiando o desdém dos pais. Foi
morar com o namorado na casa da sogra, onde descobriu que estava grávida. Três meses
após o nascimento da filha, voltou para a casa da mãe. Sem ter como sustentar a criança
entregou-a aos cuidados da sogra, pois tinha o leite do peito para dar à criança.
Continuou em contato com a filha, falando sobre o ciúme de Ian com a irmã.
A fome era velha conhecida de Bela, sua companheira desde o início da
adolescência, quando o pai abandonou a família para viver com uma amante. Bela
narrou um episódio em que, diante do choro de fome da irmã, foi à casa de um vizinho
pegar uma jaca para alimentá-la. Foi nessa situação que conheceu seu segundo marido.
Casou-se mesmo reconhecendo que não o amava,
porque a minha e tava passando situação
R
Guaru: peixe encontrado nos canais da periferia, que quando come muito fica com um “buchinho” ou
barriga grande.
e a minha irmã tava chorando e ele ajudou a gente. (...) Aí ele pegou, foi na minha casa e viu minha irmã
chorando. pegou e arrumou umas coisa pra gente comer. eu peguei, minha mãe disse “porque tu
num fica com ele, menina?!” Aí por causa disso eu fiquei com ele. Aí pronto, eu fiquei com ele por causa
disso, mas que eu tinha amor, aquele amor por um outro eu não tenho não, num tinha não.
Por esse motivo o cognome escolhido para essa mãe foi “Bela”, do conto “A
Bela e a Fera”, associado à filha que casou com a fera para salvar a família. Ajudar a
mãe com comida ainda parecia ser uma prioridade para Bela, mesmo reconhecendo que
seu relacionamento com a mãe era muito ruim, pois esta deixou de ser carinhosa e
atenciosa depois da morte do marido, assassinado pela amante. Bela tirava do pouco que
tinha para comer, contrariando o marido atual.
Ao preencher o termo de consentimento da pesquisa, comentou que ao
registrá-la sua e errou a data do seu nascimento, mas que esse fato não fazia
diferença, uma vez que nunca ninguém comemorou seu aniversário. A pesquisadora a
surpreendeu, trazendo um mini bolo na data correta do seu aniversário. Bela e Ian
apagaram a vela com êxtase e logo depois Bela fechou a tampinha do pequeno
recipiente com o bolo, dizendo que o dividiria com o marido mais tarde, descendo
apressadamente as escadas da brinquedoteca carregando seu “pequeno tesouro”.
Bela, Ian e o marido residiam em Olinda (PE), Região Metropolitana do
Recife. Bela havia concluído sete anos de estudo, destacando sua vasta experiência de
“se virar na vida”, mesmo não tendo estudado muito. Declarou não ter nem seguir
nenhuma prática religiosa.
Os três moravam numa pequena casa de alvenaria nos fundos da casa da avó
paterna de Ian. A casa tinha apenas um cômodo, com uma cozinha improvisada, mas
sem água encanada e esgoto.
Como Bela não trabalhava, a renda do casal vinha do trabalho do marido
como servente. Alegou nunca ter faltado nada ao filho, apesar de faltar para ela e o
marido. Fizeram uma vida na barraca em função da grande quantidade de fraldas
comprada desde o início da doença, eminentemente diarréica. Dentre as estratégias
utilizadas por Bela, estavam a sogra, os vizinhos, a prática do fiado e compras no
atacado. O emprego de servente do marido só veio após o nascimento de Ian.
Às vezes a gente comia, às vezes a gente num comia. Mas ele sempre foi uma pessoa
esforçada, sabe?! Ele tentava, não faltar, né, mas que ele num conseguia evitar essas
coisa. a mãe dele vinha, dava um pratinho de cumê hoje, às vezes num dava, dava
condução hoje, amanhã num dava. Ficava falando (...).
Quando não tinha o que comer, Bela dizia fazer o mesmo que fazia na casa
dos pais: tomava um copo de água com açúcar e ia dormir. Esperava o marido chegar
para irem atrás de comida, pois não gostava de pedir aos outros.
Numa espécie de repetição, reconheceu que não parava de dar o peito ao
filho porque temia que um dia ele adoecesse e não quisesse comer.
No caso dele adoecer, aí tem um alimento pra ele, né?! Apesar que isso num alimenta,
mas pode enganar a barriga dele, até dar muita fome, né, assim, dele voltar a comer
direitinho.
- Vai enganando a fome, assim como você falou que fazia quando era criança, com fome,
que pra dormir ia e tomava água com açúcar pra enganar a fome, é isso pra ele?
É, é... Isso mesmo.
Apesar da melhora financeira do casal, Bela relatou que o emprego do
marido o deixou mais estressado, afastando-os, pois não mais recebia o carinho e
atenção de antes, quando passavam fome na casa da avó. A necessidade de Bela por
atenção do marido e da mãe foram aspectos recorrentes em seu discurso.
Apesar de não ter programado a gestação, Bela sonhava em ter um filho do
sexo masculino, pois perdera um bebê aos oito meses de gestação fruto de seu segundo
casamento, ao qual havia nomeado (ainda na gestação) “Guilherme”. Aos quinze anos
teve uma filha do seu primeiro relacionamento, sendo Ian filho único do terceiro e atual
casamento de Bela, na época da internação com vinte anos.
Sua mãe chegou a recomendar que abortasse Ian, pois o marido de Bela
estava desempregado, ao que Bela e seu marido se opuseram.
Ian nasceu no IMIP, a termo, pesando cerca de três quilos e meio. Ao chegar
em casa, Bela recebeu apoio da sogra
.
A alimentação de Ian consistia basicamente do leite materno, apesar de Bela
ter introduzido à alimentação, aos quatro meses, sem dificuldade, consistências e
sabores diversos. Reconhecia que Ian gostava de comer cuscuz, sopa, inhame, sucos,
mas depois sempre pedia peito, ao que ela não negava.
De cinco em cinco minutos era peito, de cinco em cinco minutos era peito. (...) Sempre que
eu dava comida, quando ele acabava de comer eu dava o peito. (...) Sempre tive vontade,
nunca tirar ele do peito não.
A narrativa a respeito dos cuidados à criança diante do adoecimento era
conflitiva, envolvendo dificuldade dos médicos no diagnóstico e tratamento da
desnutrição, bem como certa busca, retomada de Bela por aspectos do nascimento de
Ian, já que ele nasceu no IMIP.
(...) Eu tava levando ele pro médico. a médica fazia “não, mãe, daqui a pouco passa”.
Aí quando eu levei ele pro pronto socorro, aí passou dois soro, né? Dois soro na veia dele,
ele tomou tudinho. “pode ir mãe, ta de alta. Ta bem, daqui a pouco passa, basta
fazer efeito”, eu “ta certo”. Aí quando foi no outro dia aí ele foi piorando, piorando, levei
ele no Tricentenário, levei lá, passei mais três dia com ele. Aí quando chegou lá, a médica
ficou examinando ele, “não mãe, isso é normal, é porque os dentinho dele ta nascendo”.
Aí eu “ta certo”. Se num é nada grave, ela ta dizendo, né, então pronto. Aí fui pra casa. Aí
eu, quando vi as coisa piorando (...) “essa mulher num sabe é de nada! (...) O menino ta
aqui morrendo, num sei o quê”, fiquei nervosa. Aí pronto, foi quando eu vim pra
(IMIP).
Ao longo de 17 dias, entre Fevereiro e Março de 2007, Ian e Bela,
permaneceram no IMIP. A avó paterna da criança auxiliou Bela nos cuidados,
revezando com a nora por dois dias.
Ian tinha um ano e três meses e havia sido atendido em outro hospital de
Olinda com queixa de diarréia recorrente mais de um mês, vômito e febre onze
dias, bem como edema. No prontuário da criança constava a seguinte informação a
respeito da queixa inicial:
mãe refere que um ano menor vem tendo vômitos
. Fora o
internamento pregresso de poucos dias em outro hospital da região, Ian nunca havia sido
internado antes.
A queixa de Bela a respeito dos vômitos foi conflitiva, freqüentemente
reformulada ao longo das entrevistas. Inicialmente informou que o filho provocava
vômitos, rejeitando os alimentos, solicitando e aceitando apenas ser alimentado ao peito.
(Diário de campo) Ian estava acordado, apontando para tudo que era de comer
(mamadeira, doce da mãe), pedindo com a mão, com o olhar, com balbucios, ao que Bela
dizia “não”. Ian chorou. Perguntei sobre a alimentação do hospital e Bela disse que Ian
come duas colheradas da comida e às vezes vomita depois. Falou que ele provoca o
vômito, pois só queria o peito, repetindo o comportamento de casa.
A equipe de saúde não chegou a dar importância a essa queixa, uma vez que
a criança aceitou bem os alimentos do hospital, por vezes solicitando mais. Em uma das
entrevistas, reconheceu que Ian havia parado de vomitar antes da internação, mas exibiu
ambigüidade na mesma frase:
muito antes de eu vim ele parou. Foi, acho que com uns três dia ele
tinha parado já (...) Acho que ele provocava o vômito era na intenção do peito. A minha sogra disse hoje,
vê, ontem ele comeu tudinho” (e não vomitou).
Apenas um episódio de vômito foi observado, próximo da alta de Ian,
quando Bela “entupiu” a criança de comida, complementando com o peito, de modo que
ele ganhasse logo o peso necessário para a alta hospitalar.
Ao longo da internação, Bela passou a reconhecer que a dificuldade de Ian
para comer estava ligada à sua própria dificuldade em colocar limites na criança. Por
vezes a equipe parecia desejosa por colocar limites à mãe, agindo como inspetora.
A interação entre Bela e Ian transcorreu sempre com muitas trocas de
olhares, vocalizações, diálogos vocais ou gestuais, como os exemplos a seguir. Bela
colocava-se como tradutora, narrando as descobertas e explorações do filho.
Ian interrompe constantemente a mãe. Desta vez ele derruba o carrinho e -se o seguinte
diálogo:
- Uê, uê! (gritando forte)
- Oi, meu amor?
- Nau, nau, nau! (gritando e flexionando muito o rosto, mostrando descontentamento)
- O quê? Quer não o carrinho mais não é?
Bela dá outro brinquedo a Ian e ele emite balbucios suaves, aceitando o novo brinquedo.
(Diário de campo) Ian e Bela brincam com as bolas. Por vezes Bela ameaça ir embora, ao
que Ian reage com raiva; Bela parece achar graça nessa brincadeira. Muitas trocas de
olhares. Exploram bem o ambiente, se movimentando bastante. Bela brinca com ele com o
fantoche. Muita comunicação verbal e sincronia da díade; Bela narra tudo. Bela explora
bem os brinquedos e os mostra a Ian.
(Diário de campo) Bela e Ian estão na brinquedoteca; Ian pede a comida com as mãos. Ele
anuncia com a mão quando quer mais, quando está pronto para mais uma colherada.
Muitas trocas de olhares, numa verdadeira sincronia. Ian está posicionado de frente para
Bela. A criança quer explorar o copo com a comida, mas o copo é muito frágil,
dificultando sua exploração; ele se irrita.
A dificuldade de Ian era ficar só, iniciar uma brincadeira e brincar quando
sozinho. Toda vez que a mãe se ausentava da enfermaria por um período mais longo ele
não se conformava.
Quando Bela ia alimentar Ian a atividade geralmente se passava com muita
dificuldade, pois ele freqüentemente pedia o peito e ela não conseguia dizer “não” ao
filho, cedendo, por vezes até deixando de dar a comida.
(Diário de campo) Bela não consegue botar limite no filho, não conseguindo continuar
com a refeição. Ela não consegue montar um setting alimentar organizado, com regras,
tratando a alimentação ora como uma brincadeira, ora como uma luta. Ian não deixa que
ela se afaste, chorando e chamando-a incessantemente.
(Diário de campo) Bela a comida a Ian, mas ele passa a pedir o peito, puxando a blusa
da mãe com voracidade. Ela se recusa a dar o peito e ele se irrita. Bela não consegue
dizer o “não” com firmeza, beijando o filho e dizendo que o peito está “dodói”. Ele
insiste, ela então diz que se ele comer ela dará o peito. Ele chora e ela aproveita a boca de
choro dele e empurra uma colher de comida, ao que Ian quase se engasga, cuspindo o
alimento. Ela se diverte com a barganha que ofereceu (o resto da comida por peito), mas
Ian se irrita ainda mais, insistindo no peito. Bela beija Ian e diz que eu (pesquisadora) vou
comer a comida dele (o que implicaria que eu recebesse o peito depois!). Ian insiste,
puxando a blusa dela. Bela acaba cedendo, tentando fazer um acordo com Ian (“mainha
da o teito, tu come depois?”, ao que ele não responde, pois pensa no peito, e ela dá).
Ou seja, é Ian quem controla a atividade, a mãe. Enquanto de mamar, comenta “tem
que comer pra ficar forte pra sair daqui, viu?!”. Troca intensa de carinhos e olhares
enquanto amamenta, ao que Bela demonstra muito prazer. Depois de um tempo um
pouquinho de comida, junto com o peito. A muito custo, Bela mais um pouquinho de
comida, alternando com o peito. Insistente, sempre prometendo dar o peito, consegue dar
o resto da comida, numa situação de barganha: “por favorzinho, neném, esse
pouquinho e mainha o teito”, enrolando a criança, pedindo para ele mostrar o
dentinho, brincando de aviãozinho, conseguindo dar o resto do resto da comida,
anunciando “ê, mainha conseguiu!”, olhando para mim, dizendo “É, tem que fazer
cambalacho!”. Por fim, como prometido, dá o peito, porém a criança seque havia pedido.
Quinze dias depois da alta a díade retornou ao hospital para o follow up com
a Nutrição.
S
A nutricionista disse que Ian perdera um pouco de peso, mas que Bela
atribuiu à reação a uma vacina que ele havia tomado. Como era de se esperar, Bela
ainda enfrentava dificuldades para alimentar Ian e conciliar as mamadas, tendo que
deixá-lo com outrem para que ele comesse. A nutricionista comentou como seria bom
um grupo interdisciplinar (Psicologia, Nutrição e Terapia Ocupacional, por exemplo)
para trabalhar díades como esta.
Magdala e Renata
Giovanni Bellini - Madona Willys
Renata (re-nata), aquela que re-nasce. Foi assim que essa garotinha de um
ano e cinco meses pareceu sair da internação no IMIP: re-nascida, não pela
recuperação clinico-nutricional, mas especialmente por sua atitude afetiva frente à e,
e vice-versa.
O cognome da e remete a uma santa da igreja católica. Magdala foi, na
realidade, nomeada por seus pais em homenagem a essa santa, pois quase morreu
quando bebê em função de uma misteriosa doença.
Ao contrário de outras avós do estudo, a mãe de Magdala foi descrita como
incentivadora de sua capacidade materna. Antes de “casar” com o pai de Renata, chegou
a ter uma filha com um namorado, a qual foi criada pela avó, mãe de Magdala, vivendo
até o momento da pesquisa com essa avó, a qual frisou que cuidaria da criança, porém
que os próximos filhos seriam da responsabilidade de Magdala.
quatro meses (contando no período da internação) Magdala passara a
trabalhar formalmente com o marido na função de canavieira, ambos “fichados”,
recebendo também abono pelos seis filhos. Em função da rotina de trabalho, era comum
S
Das oito díades acompanhadas, esta foi a única que compareceu ao retorno da Nutrição, porém nenhuma
das oito foi encaminhada ao ambulatório de Psicologia.
não ver Renata acordada ao longo da semana. Sua filha mais velha (12 anos) tomava
conta das demais crianças na ausência dos pais.
Magdala estava com 33 anos e assim como o marido, não chegou a estudar.
Declarou-se católica, sem prática religiosa. Parecia viver um casamento conturbado,
descrevendo o marido como um homem “muito ignorante, bruto com os filhos e
violento na rua”. Disse que permanecia em casa por causa dos filhos, pois não gostava
mais do marido. A família chegou a se mudar pelo menos três vezes, seguindo o desejo
do marido. A última mudança ocorreu quando Renata era bebê. Magdala disse não
gostar dessa “mania de cigano” do marido:
vende tudo, é um sacrifício pra comprar tudo de
novo! ele diz “se vonão quer ir, pra casa da sua mãe, senão fique em casa, que eu vou me
embora”.
No tempo da internação estavam morando a quatro meses em Escada (PE),
mata meridional. A casa era de alvenaria, com três cômodos, água encanada;
fossa/esgoto.
Magdala afirmou que o dinheiro que recebiam era suficiente para a
subsistência da família, recorrendo ao fiado ou a sua mãe quando falta algo em casa
(comida) ou na época da entressafra:
Mamãe pra mim é boa demais, mamãe. Minha valência no
inverno, quando ele ta parando, minha valência é mamãe
.
Magdala apresentou discurso conformista diante de certas situações de sua
vida, como ao longo da gestação de Renata:
... Ele (marido) num queria não, mas eu também não queria não, queria ficar mesmo
com os quatro, os cinco mesmo. ... Ainda tomei chá, ainda. Tomei chá de um mato
chamado melão pra ver se abortava, aí num abortei, porque num tinha que morrer. É,
porque quando é pra acontecer um negócio a pessoa pode fazer o que quiser! Tomava o
chá de noite, quando eu ia dormir e o resto botava em cima da casa, no sereno.
Os movimentos fetais não pareciam ser tomados como interações, ao que
Magdala dizia não sentir nem pensar nada frente aos mesmos, sequer conversando com
o feto. Reconhecia apenas que ficava contente, pois
(...) sabia que ela tava viva, num tava
morta
. Dizia saber que se tratava de uma criança do sexo feminino, pois queria uma
menina para fazer casal com o filho anterior.
Declarou que Renata nasceu prematura (oito meses), porém tratava-se de
uma estimativa, pois não fez nenhuma consulta de pré-natal (o mesmo fato se repetiu
com suas demais gestações, seis antes de Renata).
Renata passou aproximadamente um mês na maternidade, alguns dias em
companhia da mãe. Renata foi nomeada e registrada pelos pais após sair da
maternidade, depois de ter sobrevivido à prematuridade. Fora dada pelo hospital como
abandonada pela família, pois seus pais haviam mudado de endereço (hábito freqüente
dessa família) e nada informaram à equipe. Esse hospital chegou a acionar o Conselho
Tutelar, mas foi uma vizinha que localizou a família.
Levada para casa, Renata (
...) fazia mais dormir. dava banho, dava cumê a ela,
botava ela na caminha, e pronto.
Foi nesse período que Magdala recorreu à sua mãe para
comprar fraldas e roupinhas para a criança.
Desde seus primeiros meses Renata parecia ser estimulada à auto-
suficiência, mesmo no sentido alimentar:
(...) Tinha erva-doce em casa, eu fui logo, dei um chazinho de erva-doce. era pra ir
educando a barriguinha dela. Depois eu comprei logo o Camponesa. Num acostumei ela a
tomar leite de lata não porque o de lata é muito caro (...), aí depois pra eu acostumar ela a
comer o de lata pra depois num poder comprar, eu disse logo acostumar ela a tomar
o leite mais barato logo, que é o Camponesa.
(Diário de campo) Magdala coloca Renata no colchonete e a criança chora, reclamando
muito. Magdala reclama com ela, dizendo que não vai acostumá-la a ficar no braço, dizendo
ainda: “mas olha! Cala a boca! Quando chegar vou botar vono berço, mais os teus
pano!” Renata pára de chorar, aceitando ficar no colchonete, talvez temendo a ameaça de
ficar sem a mãe lá embaixo, sozinha com seus paninhos.
Renata foi descrita por Magdala como uma criança quieta, que não
costumava chorar, sempre aceitando qualquer tipo comida, sem preferências.
Comunicava-se com a mãe por gestos (aponta para a mamadeira), pois ainda não falava.
Também não andava. A mãe costumava alimentá-la na cama, não na mesa com o resto
da família, pois Renata costumava querer mexer na comida.
Ela come bem, qualquer coisa!
Quando bota ela na mesa ela num quer sair mais não, quer mexer em tudo.
Com exceção da internação quando no nascimento de Renata, nenhum dos
outros seis filhos de Magdala chegou a ser internado. Desde a maternidade, Renata
nunca havia sido levada ao médico; estava com as vacinas atrasadas.
Magdala e Renata estiveram internadas no IMIP ao longo de 12 dias, devido
à falta de apetite da criança por uma semana, bem como tosse, palidez e febre. Magdala
procurou o hospital de Escada, aonde Renata chegou a ser hemotransfundida e
encaminhada a outro hospital do Recife antes de chegar ao IMIP. Magdala não sabia
informar o motivo das duas transferências, questionando a internação.
Tava com fastio e tosse fazia uma semana. Ela comia, mas comia bem pouquinho, eu
disse “vou levar ela pro hospital de pra dar pelo menos umas vitamina”. Quando chegou
lá, mandou pro hospital de cá. (...) Pedi até pra ela num ser internada, porque meu marido
disse assim se for pra ela ficar internada, diga que num queira não, mande os doutor, as
doutora passar uma vitamina que eu compro o remédio dela”. (...) ela disse “não, mãe, é
o jeito de internar ela mesmo”. Aí eu “é, ta bom”.
Por mim ela tava em casa já, oxe! É pra pesar, pra pegar peso na menina... Amanhã eu vou
falar com o doutor, dizer a ele que ela ta boa de ir pra casa. Porque essas coisa que faz
aqui eu posso fazer em casa, que é dar o leite, dar remédio, eu compro lá, meu marido
compra.
Toda vida essa menina foi assim! Desde que essa menina nasceu, que é desse jeito, choxinha
mesmo, sem peso, é do calibre mesmo dela, assim mesmo como a senhora! (refere-se à
pesquisadora). ... Amanhã eu vou perguntar ao doutor se ela ta boa de ir se embora pra
casa, “dê alta a ela que ela ta boa, e eu num tenho ela não, tenho é cinco em casa
ainda! E eu trabalho, pra botar comida em casa, num posso ficar perdendo muito dia não”.
O sentimento de desvalorização da figura materna frente à hospitalização da
criança pareceu se repetir em Magdala no período em que estava com a filha no IMIP,
atribuindo a melhora da criança aos remédios que os médicos estavam dando, acabando
com o fastio que a filha tinha, fazendo-a ter mais vontade de comer.
Magdala parecia estranhar e não se ver como destinatária das demandas da
filha, como observado mais de uma vez.
Ao longo da internação, Renata evoluiu com boa tolerância à dieta,
passando a chorar por mais leite. Esse foi um comportamento marcante: chorar por
comida, chorar pela mãe.
Renata não olhava para os outros, sequer aceitando ser tocada, afastando-se,
irritadiça, chorando. Inibia-se e era inibida pela mãe em suas atitudes exploratórias.
Parecia um “bichinho do mato”, escondida em seus cachinhos desgrenhados, em sua
roupinha surrada e frouxa para o magro corpinho. Aos poucos foi aceitando o leve e
discreto toque da pesquisadora em seu cabelo, em seus dedinhos, passando a não desviar
o olhar, por fim esboçando um leve sorriso, explorando como resposta o corpo da
pesquisadora.
Com sua mãe, no entanto, o comportamento de Renata mostrava um outro
extremo: procurava o olhar da mãe, parecia buscar o toque, aproximando-se da mãe,
porém não chorava, repreendida que era diante da iminência do choro. Quando Renata
chegava a chorar, fato raro, Magdala não a tomava no colo, apenas olhando-a.
(Diário de campo) Percebo que Renata quase não sai do berço, não é retirada de lá.
Magdala não estimula a criança, não brinca com ela, quase não a olha, o mostra nada à
filha, sequer a janela da enfermaria. Pouco conversa com a filha, a retirando do berço
para comer e uma vez perdida dar um banho nela. Às vezes a impressão que mãe e filha
são duas estranhas. (...) Magdala sai para almoçar e Renata fica quieta, no berço, sentada
ou deitada, com a chupeta na boca, acariciando-se com os lençóis. Quase não olha para a
porta e também não chora.
Renata mudou com a mãe e com a pesquisadora. Acompanhe a evolução de
mãe e filha:
(Diário de campo) Renata chorou com muita irritação quando a mãe desceu para almoçar,
fato novo para o que venho acompanhando dela, pois ela quase não reclama quando a mãe
se afasta. Magdala pareceu estranhar, e disse a Renata: “Oxe!”. Desceu e não disse nada a
filha. A criança logo parou de chorar. Ficou tão quieta no berço, brincando com o ursinho
que a mãe de Angélica lhe emprestou / deu, que quando a técnica do laboratório tirou seu
sangue ficou abismada com a quietude e colaboração da criança, me perguntando (eu sequer
havia notado que ela tinha tirado sangue de Renata, pois estava escrevendo no diário) se
Renata era normal. Segundo a técnica, Renata apenas virou de lado e deixou o braço lá para
a técnica trabalhar.
(Diário de campo) Renata estava dormindo no colchonete, junto aos brinquedos e de repente
acorda, chorando. Magdala tentou acalmá-la verbalmente, sem sequer tocar na criança.
Questionei se ela não iria pegar a filha, ao que Magdala disse que não precisava não. Deu
um paninho e a chupeta para a criança e esta logo se acalmou.
(Diário de campo) Magdala não monta brincadeira com a criança. Renata parece
desconfiada; manuseia discretamente objetos; leva um à boca. Magdala praticamente não
fala com ela; o apresenta objetos verbalmente. Tenta brincar com Renata, com seu corpo,
através de um objeto intermediário (carrinho), mas Renata não responde à brincadeira.
(Diário de campo) Magdala parece ausente, quase não olha para Renata. Estimula a criança
a brincar, ou melhor, ordena a ela que brinque, mas o mostra como, o brinca com ela,
apenas mostra a sonoridade dos objetos. Renata parece desconfiada. Magdala explora seu
próprio corpo, ausentando-se cada vez mais do setting de filmagem. Magdala deixa a filha
sentada sozinha, mas Renata não reclama, apesar de esboçar expressão de aflição,
procurando a e pela sala, mas sem dizer nada. Fico aperreada por Renata e tento ir
brincar com ela. Ela me responde negativamente, mostrando que não queria a mim, mas a
sua e: vira de costas para mim e chora quando toco nela. Que bom que ela esboçou isso,
pois sei que deseja a mãe. Magdala nada faz diante do choro da filha; preciso chamá-la para
ocupar seu lugar. Magdala apenas pergunta de longe o que houve, demorando para vir.
Estimulo mãe e filha a brincarem, mas não adianta. Depois de um tempo, Magdala procura
piolhos na cabeça de Renata e eu tento brincar com ela; a mãe destina-se ao real do corpo,
aos cuidados básicos, enquanto eu me dirijo à criança imaginária e tento incluí-la num
diálogo, numa brincadeira. Depois de um tempo Magdala diz a Renata que brinque, mas não
se coloca como parceira da brincadeira, estimulando um brincar solitário da filha.
(Diário de campo) Renata parece com a boca cheia, mas ainda aceita cada vez mais comida
na boca, sem reclamar. Magdala a comida, mas não observa se Renata engoliu.
Praticamente não há troca de olhares entre as colheradas. O alimento e a alimentação não
foram anunciados.
(Diário de campo) Renata sorriu quando me viu e deixou que eu fizesse um carinho em seu
cabelo, sem chorar nem recuar, ao contrário, sorrindo para mim.
(Diário de campo) Magdala Renata e foi conversar com outrae. Depois saiu sem dizer
nada à criança e Renata começou a chorar, resmungando, mas logo depois parou. Quando
Magdala voltou, perguntei a ela se Renata chorava em casa quando ela saía, ao que
Magdala respondeu que Renata não chorava em casa e acha que agora ela está chorando no
hospital quando ela sai porque “está ficando mais sabida, mais desenvolvida”. Disse ainda
que desde que vieram para o hospital Renata passou a beliscá-la quando quer sua atenção,
quando está com raiva ou quando quer acordá-la. Ressalte-se que Renata quase nunca via a
mãe sair de casa, pois Magdala saía para trabalhar no início da manhã, quando Renata
ainda dormia, e só voltava às 16, 18hrs. Dá a impressão que Renata está aprendendo a ver a
mãe sair e voltar, a reconhecer a ausência/presença da mãe.
(Diário de campo) Magdala brinca ou sorri para a filha em poucos momentos, muito
rapidamente, não chegando a montar uma brincadeira com a criança. Nesses últimos dias,
no entanto, conseguimos, Renata e eu, montar várias brincadeiras de esconde-esconde.
Algumas vezes eu incluía Magdala propositalmente, pois tinha vontade de mostra-lhe o
potencial da filha para que ela a estimulasse.
(Diário de campo) No final da tarde, Renata brincava com um chocalho que a e de outra
criança emprestou. Renata deixou o chocalho cair no chão e então vi, pela primeira vez, ela
balbuciar, emitindo um leve som para chamar a mãe, mas Magdala sequer percebeu e
depois pegou o brinquedo, dizendo a Renata que não mais o jogasse no chão. Corri para
pegar minha mera na brinquedoteca e consegui chegar a tempo para filmar o que nomeie
de “fort-da de Renata
T
. Nessa brincadeira, observei que Renata passou a mudar de postura,
T
Fort-da: em “Além do princípio de prazer” (1920),
33
Freud relata a brincadeira de seu neto, com 18
meses, jogando com um carretel, identificando que a criança reconhece a si mesma na presença e na
ausência da mãe. Descobre e pode brincar com a ilusão da ausência, uma referência temporal e espacial
de dentro e fora de si mesmo. Assim, o jogo encena um protesto / satisfação, desaparecimento e retorno.
A criança transforma uma situação na qual estava passiva para outra na qual passa a ser ativa.
33
ficando agora também de joelhos, tentando ficar de pé, não mais sentada. Hoje foi um dia
em que Renata sorriu um bocado, mostrou-se interativa e com comportamentos inéditos.
(Diário de campo) Renata estava sentada no berço, brincando com o ursinho, atenta ao pai
da criança vizinha, que a olhava, curioso. Era uma troca tão intensa de olhares, tão
interativa, que pareciam “conversar”, cada um “falando” sobre suas curiosidades e
trajetórias, narrativas silenciosas.
(Diário de campo) Renata está sorridente, aceitando que eu a toque intensamente e brinque
com ela. Porém, ainda é muito tímida ou retraída, pouco acostumada ao contato social, ao
toque e olhares.
(Diário de campo) Renata continuou a chorar, olhando fixamente para Magdala, até que
Magdala falou em falseto, dizendo “é pra você brincar, mamãe. Chegue, mamãe bota você
no colo”. Renata pára de chorar instantaneamente. Magdala ri. Percebe que a criança está
esquentada “ta com quentura, vou dar um banhinho nela já, a enfermeira mandou”. Renata
e fica no colo da e, brincando com as mãos desta. Percebo que Magdala está mais
afetuosa com a filha, com o passar dos dias, bem como Renata tem reclamado mais o que
quer, não parando de chorar tão rapidamente como fazia antes.
(Diário de campo) Subi com Magdala e Renata à brinquedoteca. Renata ficou encantada com
a brinquedoteca, como se nunca tivesse ido , apesar das quatro sessões anteriores de
filmagem. Brincou tanto e com tanto gosto com o cavalinho! Até falou “me dá”! Quando na
salinha, com os brinquedos, explorou-os e interagiu com mais vigor. Quando descemos,
puxei Magdala para um canto e lhe mostrei a filmagem, destacando que aquela era a filha
que ela um dia acreditou que o morreria, e que de fato essa criança estava viva. Ela ficou
animada com as imagens, orgulhosa da evolução da filha, mostrando às outras mães, rindo
ao ver o filme.
(Diário de campo) Renata brinca no cavalinho. Muitas trocas de olhar, a mãe ensina como se
balançar, imitando com seu próprio corpo e balançando o cavalo. O chocalho veio junto
(mais um objeto intermediário). Renata sorri e gargalha, balbucia, aponta: emite sinais
interacionais não vistos anteriormente. Renata é clara, explícita sobre o que quer: mudar de
brinquedo. Ela aponta, faz movimentos com o corpo, cabeça, tenta sair do brinquedo, diz
“me dá!” (fala pela primeira vez!). Apesar disso, Magdala custa a compreender, apenas
ouvindo a criança, mas ignorando o pedido. Magdala bota Renata para andar pela primeira
vez na vida da criança, mas não exprime qualquer reação – eu que fico atônita!
(Diário de campo) Mostra as bonecas a Renata, mas a criança quer saber de se recostar
no ombro da e parece que quer ser a boneca da mãe, ainda não está pronta para
brincar com as bonecas. Mãe e filha parecem mais cúmplices na exploração da
brinquedoteca. Magdala coloca Renata no cavalinho, comunicando-se mais com a filha. As
duas se divertem. Magdala parece enxergar aos poucos uma criança que deseja se divertir,
não apenas uma criança com um corpo a ser cuidado (alimentar, tirar piolhos).
(Diário de campo) Renata está de alta hoje. Desde ontem que Magdala fez pitozinhos em
Renata e hoje eles ainda estão lá, como que lembrando a todos nós que Renata é uma
criança, não um bichinho do mato.
Izabel e João
Botticelli - Madonna de Pomegranate
A penúltima díade residia em Manari (PE), sertão. Manari é conhecida por
ser a cidade com o menor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do Brasil.
99
Em
compensação, essa era a família que recebia o maior número de auxílios
governamentais: Bolsa Família, programa do leite, incentivo ao pequeno agricultor e
aposentadoria.
Tratava-se de uma família de agricultores que vendia seus produtos na feira
da cidade.
Somos pobre, mas comida nunca faltou não, graças a Deus. Na minha casa, que eu digo
hoje, nunca faltou não.
A agricultura sempre foi o sustento de Izabel, desde seus pais,
afastando a fome de sua vida. Residiam numa casa de alvenaria com seis cômodos, de
modo que cada residente (sete) tinha sua cama.
Izabel tinha 47 anos e João um ano e cinco meses. A díade recebe esse
cognome segundo Santa Izabel, prima de Nossa Senhora, que engravidou quando
achava que não mais seria possível, dando à luz João.
Izabel engravidou do seu 14º filho quando parecia não acreditar que pudesse
ser mãe a essa altura de sua vida. A criança foi nomeada após o nascimento, por uma de
suas filhas mais velhas, já casada e mãe.
Apesar da idade de Izabel, a gestação transcorreu sem intercorrências,
culminando num parto vaginal (peso ao nascer: 2835g). No entanto, dezenove dias após
o nascimento de João, seu marido (setenta anos) teve uma crise decorrente da diabetes,
precisando de cuidados hospitalares intensivos. Mãe e filho ficaram então separados por
um dia, fato este que pareceu ter marcado Izabel, obrigando-a a voltar-se mais para o
marido e a lavoura que cultivavam, fonte do sustento familiar. Associou esses episódios
ao fato do seu leite ter secado, amamentando o filho por apenas dois meses,
diferentemente dos outros filhos, os quais foram todos amamentados por pelo menos
quatro meses.
Impregnada pela culpa, Izabel achava que havia se descuidado com o filho,
pois com a doença do marido passou a ir para a roça, deixando João com as filhas de
oito, nove e 13 anos, temendo que elas tenham passado da hora de alimentá-lo. Ressalte-
se que esta foi a maneira como ela auxiliou sua própria mãe, tomando conta dos irmãos
mais novos.
João passou meses sendo alimentado basicamente por leite de cabra diluído
em água, pão, banana e caldo de feijão. Não aceitava outras comidas e comia tudo aos
poucos.
(...) O negócio dele é que ele num se alimentava bem. foi enfraquecendo, cada vez mais
foi enfraquecendo. (...) Porque comia um pedacinho e depois num queria mais, mais
nada, se abusou-se da comida, tomava o leite e olhe lá, era bem de pouquinho em
pouquinho.
Católica praticante, Izabel falava com resignação e inúmeros detalhes sobre
a morte de quatro dos seus filhos em função da anemia, todos com menos de dois anos
de idade. Apesar de reconhecer que João também tinha anemia e gastro”, descrevia a
doença dele de modo diferente, acreditando em sua recuperação.
Deus e Deus tira, num é isso?! s num temos que enfrentar a morte? Que um dia nós
vamos, pois é! (...) Acho que foi Deus que consentiu e Deus queria ele lá. Eu acho que foi
isso. (...) E eu pedi a Deus assim, pra mim “Meu Deus, se for da sua vontade, me meu
filho com saúde, e se for da sua vontade, leve pra eu morrer tranqüila.” Eu tenho pedido
sempre, peço pra Deus me dar com saúde. Se não é meu, também leve. Mas como vai ser
meu, se Deus quiser, que até agora ta, Deus ta me abençoando, que ele ta melhorando, que é
meu, num é isso?! (...) Eu penso isso, porque eu luto, mas no final, que ele permita eu ir me
embora, né?! (...) Se fosse pra criar os outro tudinho, eu tinha criado tudinho. Deus quem
cria, eu tinha cuidado, né?!
- Que doença é essa que você acha que ele tem?
É gastro, no meu entendimento ela é gastro, porque ela diminui, ela deixa o menino magro,
deixa desnutrido mesmo, ela deixa acabado o menino! Porque ela mata quando deixa ele
só o corinho e o osso. Assim, como ele tava, assim, desmagrecendo, né, cada dia que passava
ia desmagrecendo mais, eu acho que ainda era ele (gastro) que tava incomodando ele. Isso é
o que eu digo, porque eu vi, não meu, um menino dos outro, se acabaram nesse estado.
tinha uma mulher que tinha um menino, um menino não, uma menina, essa menina, ela
morreu com dois anos. Ta com vinte e poucos anos que ela morreu já. Ela era bem magrinha
e ela sempre, num é que, assim, que ela mandava rezar, assim, disse que mandou rezar nove
vezes pra curar essa menina, que num conseguiu. Então quando a menina morreu, ela
morreu o corinho e o osso. Nem carne, assim, nos lábios num ficou pra se ver, os dente
dela ficou tudo de fora. Aí nesse caso dessa menina que to lhe dizendo, ela se acabou dessa
maneira, nem carne pra cobrir os dentinho num ficou, os dentinho dela ficou descoberto. A
gente via todos os ossos dela, ficou o corinho mesmo. (...) No meu entendimento essa
doença é quase como um tipo de câncer, tem câncer que num tem cura, né, então tem
também que não tem cura. Eu acho essa doença chega igual a isso, porque enquanto a
criança tem o sangue e a carnezinha, ela ta resistindo, né, e quando se acaba a carne, fica só
pele e osso, vai embora.
- E o que causa essa doença?
Não sei.
- E falaram que era o quê que ele tinha?
Pois é isso que eu to lhe falando, gastro. Que a infecção dele tava no intestino, não é?! (...)
Quando ele começou foi assim, dando assim umas feridas na boca e dando problema de
disenteria, diarréia. (...) E continua a diarréia muito forte, ela num pára, a gente remédio
e ela vai continuando. Então isso se cura com reza, só cura com reza. (...) Aí ela disse assim,
que eu agradecesse muito a Deus porque o problema dele tava sério, a gente achava que ele
num ia escapar. Tava sério, mas graças a Deus que até hoje ele ta contando história.
- Quanto tempo faz que ele está doente?
Faz um ano que ele tem esse problema. Fica bom, melhora, depois volta de novo. o é
continuado não, sabe?! Se for pra engordar mesmo, ele num engorda. (...) É, vai e volta.
Diarréia, cocozinho mole. eu vou no médico, faço um remedinho, o médico passou um
remedinho pro sangue, e falou pra mim assim “se ele não melhorar com esse tem que ir pra
um lugar mais longe”. Exatamente antes de eu terminar o remedinho que o médico passou,
chegou as enfermeira lá, falou pra as Agentes de Saúde pra eu ir e eu fui. Ela, a
enfermeira, passou uma receitinha de comida pra ele, mas ele não aceitou, que era
batatinha, com ovo, com inhame, feito quase como um purê, né, pra eu dar pra ele, mas ele
não aceitou. E também suco de laranja, ele também não queria. (...) que os médicos lá
tinham passado sulfato ferroso pra ele, mas ele não se deu com sulfato ferroso. Toda vez que
ele tomava, ele vomitava, tomava, vomitava. Aí eu parei, num dei mais. Porque ele tomou
tanto antibiótico, pra parar a, por causa desse problema que ele tinha, né, que o sangue foi
ficando mais fraco. (...) quando foi com seis dias eu voltei e disse “olhe, o remédio que
a enfermeira passou, quando eu dei um dia ele vomitou, no outro dia ele começou a inchar,
os olhos inchados, os pés, as mãos. Vamos ver outra coisa, em outro lugar, porque pra tomar
esse ele num toma mais não, ta ficando inchado”. Elas disse “não, mulher, tu ta maluca,
inchaço não, ele ta é gordo”. Eu disse “gordo não. Tem dias que ele ta mais cheio, tem dias
que ele mais magrinho”. (...) ela encaminhou na quarta e no domingo eu vim, porque
vem carro no domingo.
Izabel e João permaneceram dez dias no IMIP. Inicialmente, devido à
medição e pesagem errônea, João foi diagnosticado e tratado para anemia grave,
recebendo por dois dias alimentação livre para idade. Porém, mediante avaliação da
nutrição, foi então identificado com parâmetros para entrar no protocolo de atendimento
a crianças com DEP grave.
(Diário de campo) A nutricionista comentou que muitas crianças recebem o diagnóstico de
“anemia grave a esclarecer”, mas na verdade trata-se de desnutrição. Essas crianças são
tratadas inadequadamente, muitas morrendo inclusive, justamente por receber comida
demais, tratamento inadequadamente conduzido, tendo uma arritmia ou algo do tipo, e
assim entram para estatísticas erradas, não sendo diagnosticadas como desnutridas.
(diário de campo)
Foi interessante como Izabel conseguiu dar ao filho o que ele precisava, nem
sempre o que ele desejava, aos poucos o incentivando a se adaptar ao hospital. De
início, João não deixava que sua mãe se descolasse dele. Na primeira entrevista, Izabel
permaneceu em pé, balançando o filho por praticamente uma hora e meia, colado em
seu corpo. Disse que João sentia falta do lugar onde dormia em casa: na rede, a qual era
balançada até ele pegar no sono. Mais adiante, passou a embalá-lo no berço,
balançando-o e dando leves tapinhas em seu bum-bum até que a criança dormisse. Por
fim, João passou a se regozijar com o balanço do elevador, com os pulos deste ao parar
nos andares, bem como com o balanço do cavalinho de plástico da brinquedoteca,
aceitando substitutos do corpo materno.
(Diário de campo) Izabel tenta se sentar, mas João começa a chorar. Ela, pela primeira
vez, reclama, gentilmente, mas reclama e acaba sentando, deixando-o chorar um pouco.
Senta-se e continua a balançar o filho no colo, dizendo “vou sentar um pouquinho.
Pronto, pronto, ta bom”. Ele continua reclamando, mas pára aos poucos. Izabel começa a
dar limite à criança.
Stork, Ly & Mota
100
estudando perfis de interação mãe-bebê, com relação
aos estilos de técnicas de maternagem em diversas culturas, destacam, quanto ao
Nordeste do Brasil, o freqüente comportamento das mães de embalar todo o corpo do
bebê ou embalo parcial (um braço, os ombros, o bum-bum) com a ajuda de tapinhas
rítmicas. O balanço na rede é considerado como um tipo de embalo, numa espécie de
continuidade dos movimentos do corpo da mãe, um prolongamento do corpo materno,
utensílio esse que acompanha o sertanejo do nascimento à morte.
No hospital, inicialmente, a comunicação de João consistia basicamente em
choros irritadiços, ao que a criança passou a fazer uso de gestos com as mãos e com a
cabeça, a indícios de palavras.
A interação entre Izabel e João era rica e dialógica:
(Diário de campo) Izabel utiliza-se dos atos de fala de João, complementando-os com suas
falas de modo a construir um diálogo (ex: João diz “hãe Izabel interpreta como um alô
dele ao telefone), respaldando atos de fala do filho.
(Diário de campo) Apresenta os objetos ao filho, nomeando alguns. Senta-se de lado, um
pouco virada para frente da criança. Deixa-o explorar bem os brinquedos. Monta
brincadeira, esperando o turno da criança; João respalda os investimentos da mãe com
vocalizações. Reconhece preferência de João pelo telefone, comunicando seu entendimento à
criança. Estimula que ele explore os objetos, ensinando-o como fazer, porém respaldando as
tentativas da criança.
(Diário de campo) João brinca jogando o tubo de vitamina C para que sua mãe e eu
pegássemos e o devolvêssemos. O brincar de João é basicamente este: jogar e receber, usar
o outro para fazer desaparecer e reaparecer, indício do fort-da. Fica na expectativa de
receber o objeto e dá aquele sorriso quando recebe de volta.
No início da internação Izabel tinha medo de alimentar o filho, temendo que
ele vomitasse, comentando que a barriga dele estava cheia com o pouco de leite que
tinha tomado horas atrás (João foi diagnosticado com parasitose intestinal). Observe-se
a evolução desta díade quanto à alimentação.
(Diário de campo) Izabel o jantar de João, o qual aceita bem a comida. Troca de
olhares e comunicação verbal por parte de Izabel, solicitando respostas da criança.
Apesar de reconhecer que ele come aos poucos, praticamente não insiste, parando logo de
dar a comida, temendo que João vomitasse, pois disse que a barriga dele está muito
grande e cheia, pois ele havia tomado leite antes (às 15 horas e estávamos na dieta das
18). No entanto, João ainda pedia mais comida, explicitamente, e comia bem quando ela
voltava a dar a comida. João continua pedindo comida. Izabel está com certo receio de
dar, temerosa dele vomitar, bem como surpresa com o apetite do filho por comida de
panela. João está no terceiro andar, recebendo alimentação para idade, pois ainda não
conseguiu vaga no quarto andar, apesar de já ter sido diagnosticado como DEP grave.
(Diário de campo) João vê que a comida chegou e olha para o copinho, dizendo “hã, hã”,
pedindo cada vez mais alto, olhando para a mãe. Izabel não anunciou a comida nem a
atividade. A colher é grande para sua boca. (...) Está sentado de frente para a mãe. Indica
com a mão, pede mais comida quando a mãe dá uma paradinha. Come aos poucos, ao que
a e precisa estimulá-lo, chamando-o, virando-o de frente para ela. Quando ele não
quer mais coloca a o na boca ou a chupeta, vira-se de costas para a mãe, deita-se,
afasta a colher, e a e compreende, verbalizando se entendimento, mas insiste mais um
pouco, persistente e pacientemente, sempre verbalizando. Muitas trocas de olhares. o
está mais medrosa de insistir mais um pouco na alimentação, como estava no início. a
impressão que ela nunca tinha alimentado ele como está fazendo no hospital, o sabia
como ele reagiria à comida.
(Diário de campo) João come na brinquedoteca. Troca de olhares, comunicação verbal da
mãe, sincronia da díade, apesar de certa dispersão de João, ao que ele presta atenção
mais ao ambiente que ao alimento. A mãe percebe a dispersão da criança e tenta
compreender o que chama a atenção dele, porém insistindo no alimento. Consegue que ele
coma tudo, colocando limite e tendo paciência.
Apesar do hospital ter auxiliado a díade em seu re-encontro alimentar, a
única perspectiva de Izabel era abandonar a roça, tendo em vista a saúde do filho:
(...) este ano não vamos plantar roça porque ele (marido) não pode trabalhar e eu também
com esse menino agora também não vou trabalhar, eu quero que Deus me ajude, que ele
(João) melhore, pra eu dar mais o conforto dele, cuidar mais dele, eu não vou botar roça.
Que se eu botar as menina não estuda, uma estuda de manhã até o meio-dia, aí pra eu
deixar de novo com a mesma pequena, ela não vai cuidar dele como tem que cuidar, num
é?! Eu já tenho pra mim que este ano nós não vamos trabalhar.
Eva e Fátima
A autoria da imagem é desconhecida
O cognome “Eva” remete à mãe mítica da história humana, expressão da
ambivalência (o bem e o mal) e fonte das possibilidades humanas. Ao longo das
entrevistas, Eva conseguia falar de sua ambivalência materna de modo muito sincero,
quase nu, abrindo-se com muita facilidade. Sua narrativa era cheia de afeto, falando sem
cessar por praticamente duas horas ou mais, demandando um espaço onde pudesse falar
sobre si, retomando lutos supostamente não tão bem resolvidos.
Enquanto Eva estava ocupada em sua narrativa, Fátima explorava
vividamente o ambiente, logo se adaptando e se desvencilhando da mãe, por vezes
fazendo-nos esquecer que se tratava de uma criança frágil e doente. Seu cognome
remete a Nossa Senhora de Fátima, pois gostava muito de uma medalhinha dessa santa
que a pesquisadora usava no pescoço.
A díade era proveniente de Itapissuma (PE), litoral norte.
A infância de Eva foi marcada pela repetição de experiências de fome e
brutalidade física e verbal por parte do pai quando bebia. A mãe de Eva buscava
proteger os filhos do marido bêbado, certa vez chegando a fugir de casa com a prole,
porém retornando ao reconhecer a falta que o mesmo fazia às crianças.
Foi embora uma vez, nós foi tudinho, tudo pequeno, mas a gente tudo apegado a pai. O
mais novo, muito apegado a ele, era chorando direto, direto, queria pai, queria pai, aí nós
voltou pra pai.
Mesmo com toda precariedade dessa família, os pais de Eva continuavam
juntos. O pai parou de beber, assumindo seu lado carinhoso, e a mãe aposentou-se,
realizou o sonho da casa própria, podendo ajudar financeiramente o resto da família.
Fátima tinha dez meses de idade e era a segunda filha de Eva (25 anos),
ambas do mesmo companheiro atual da mãe. Antes da primeira filha, chegou a
engravidar e fazer um aborto. Teve um breve relacionamento anterior, do qual não teve
filhos.
Eva construiu interessante narrativa a respeito desse aborto, o qual pareceu
ter deixado marcas significativas, auxiliando-a na construção da
maternidade/parentalidade. Chegou a tomar remédio para abortar Fátima, porém “caiu
em si” e voltou atrás (vomitou o remédio), também convencendo o marido a aceitar a
criança, ao ponto que ele mesmo escolheu o nome e registrou Fátima. O marido temia
não ter como criar a criança, devido à precária condição financeira da família.
Tanto Eva como o marido preferiam uma criança do sexo masculino para
“fazer par” com a filha mais velha. Ao longo da sua narrativa, se deu conta da repetição
da história da sua mãe, a qual teve nove filhas e apenas um filho, o mais novo.
Ora reconhecia que Fátima havia nascido com saúde (peso ao nascer:
2550g), ora identificava influências externas no ambiente intra-uterino como origem da
desnutrição:
(...) eu fazia mais fumar, era fumar e trabalhando. pronto, aí essa menina acabou
e num deu sustento a ela, por isso que ela nasceu assim desnutrida.
Dentre outros significados criados à doença, destacam-se o tempo que a
criança passou longe do pai (15 dias), “deixando-a desanimada”; os dentes que estavam
nascendo; estilo alimentar da criança e o costume que a criança tinha de pôr o dedo na
boca.
U
A amamentação exclusiva por três meses também foi identificada como
causadora da desnutrição.
(...) ela passou uns três meses no peito. Agora no peito, mulé, isso, ela passou uns
dois meses sem tomar água, só mamando, sem tomar água, sem tomar um suco, sem tomar
nada. Eu digo que é por isso que a menina desnutriu, ficou desnutrida.
O peito foi oferecido até os cinco meses, concomitantemente com leite em
pó, acrescido de massa (engrossante) e alimentos do cardápio familiar, adaptando-se
sem dificuldades à transição alimentar. Eva acreditava que pelo fato dela mesma não
estar se alimentando adequadamente, devido à dificuldade que passavam, seu leite não
estava mais alimentando a criança.
(...) A gente tem mais leite no peito quando a gente ta comendo alguma coisa também,
né?! (...) Num tinha um alimento pra eu sustentar ela de mamar, eu num agüentava. Tinha
dia que ela mamava tanto que chega os meus peito ficava doendo. Que quando a criança
ta mamando, de instante em instante quer mamar. O meu leite num tava mais dando
sustância a ela não porque ela num tava conseguindo encher a barriga
.
V
Reconheceu que houve momentos em que passaram dificuldade também
para comprar comida para as filhas, recorrendo à compra por fiado e à sua mãe. No
entanto, poucos meses depois do nascimento de Fátima, Eva o marido mudaram-se com
as filhas para outra cidade, afastando-se dos familiares.
Se tivesse a família perto era bom, mas eu num tenho. Minha mãe me ajudava antes de eu
ir morar lá, minha mãe era minhas mão e meu pé. (...) Quando tem uma coisinha assim eu
U
Nos primeiros dias de internamento Fátima permanecia freqüentemente com o dedo na boca, a ponto de
feri-lo. Com a evolução, passou a brincar e gradualmente tirar o dedo da boca.
faço e dou, mas quando num tem é muito ruim, mulé! Eu digo, eu tenhoem Deus eu vou
trabalhar, mas pro das duas eu num pude trabalhar, porque se tivesse a família perto,
né, deixava com eles. Pelo menos se eu trabalhasse era pra pagar a casa, comprar
comida, roupa, comida mais melhorzinha...
Apesar da falta que sua família fazia, reconheceu que sua situação financeira
havia melhorado desde a mudança, bem como o marido passou a dar mais atenção a ela
e às filhas.
A família se mantinha com o trabalho do marido de carregador. O casal
tinha poucos anos de estudo, submetendo-se a trabalhos por vezes insalubres. Não
recebiam nenhum tipo de suporte social. A casa era de alvenaria, com água encanada,
esgoto, luz elétrica e banheiro dentro, com dois cômodos.
Eva estava duas semanas com sua mãe e filhas quando percebeu que a
diarréia, vômito e febre de Fátima estavam deixando a criança cada vez mais debilitada.
Eva procurou três rezadores, bem como o hospital. Fátima recebeu soro e remédio para
catarro no hospital local e foi mandada para casa. Diante da piora da filha, Eva resolveu
voltar ao hospital, sendo então encaminhada ao IMIP.
Eva relatou que Fátima vinha perdendo peso desde os cinco meses.
eu disse assim “olhe, doutora, mas só, o que é isso que ela num pega peso?”, ela
disse “não, dando (sulfato ferroso) a ela porque ela falta, ela falta três pontinho pra
desnutrir”, ela falou. eu continuei dando mais, ela voltou mais ao normal. E depois
voltava de novo, mulé, pro mesmo! (...) Num sei por que isso, mas ela aumentava, depois
tava abaixando (...) E eu sempre continuando, dando o que elas mandava, né?! Ia, num
passava remédio porque ela num era doente assim, esse negócio dela era só, ela teve um
catarrinho eu fui lá, passou um remedinho, ficou boa. (...) Mas qualquer coisa de gripe ela
fica com esse catarro.
Mãe e filha permaneceram quatorze dias no IMIP. Diante da evolução
clínica da filha, começou a questionar a permanência no hospital.
V
Eva ainda tinha leite no período da internação, apesar de Fátima raramente pedir ou ser colocada no
(...) as menina diz que falta ela pegar peso e vai passar outro líquido pra ver como ela
fica. Eu digo então eu vou demorar demais aqui, mulé! É melhor eu coisar sem ninguém
me dar alta! (Ri) Eu digo “vou me embora daqui a pouco sem ninguém me dar alta. Se
tivesse pra enterrar eu já tinha passado, que ela já ta boa”, eu disse mesmo assim.
Agora... Eu digo “vocês quer o quê, que ela fique aqui e pegue mais infecção, é?!”.Porque
eu indo pra casa, mulé, ela toma o mingauzinho dela, ela engorda num instante. Porque se
ela tivesse com diarréia, vomitando, eu num ia não, e com febre, né?! (...) Porque em casa
ela come mais, porque em casa ela se anima. (...) Porque sabe que é perto do pai, ela
fica animada. É por isso, se ele tivesse vindo pra cá ela já tava muito mais melhor.
Apesar de reconhecer que Fátima costumava comer em casa “de pouquinho
em pouquinho”, aspecto este também observado no hospital, Eva não era persistente
com a filha ao longo da alimentação, ou, em contraste, forçava a comida a ponto de
fazer a criança chorar e vomitar.
No início da internação, era freqüente observar Fátima com o dedo na boca e
praticamente sem chorar, mesmo diante do afastamento materno.
Eva sai, desta vez avisando que iria ao banheiro, e Fátima chora muito brevemente,
depois coloca o dedo na boca, consolando-se também com um paninho.
No entanto, com o passar dos dias, mãe e filha passaram e agir de modo
diferente.
(Diário de campo) Eva sai para almoçar, mas desta vez Fátima chora muito, passando
depois a se entreter com os objetos do berço: fraldas, boneca, sandália. Ficou de frente
para a porta, para ver o corredor, por vezes olhando se a mãe voltava, suponho. Brincou
comigo, sorridente. O dedo dela está bem melhor. Ela chupa bem menos o dedo e desta
vez usou brinquedos e objetos de consolo, não o dedo e/ou a fraldinha, como fazia antes.
(Diário de campo) Hora do almoço das mães. Estou com as crianças na enfermaria.
(...) Fátima brinca com as borrachinhas que Eva usa no cabelo. Leva-as à boca, as joga
no chão. Entro na brincadeira e ela sorri quando entrego as borrachinhas, repetindo tudo
novamente. Seria esse um fort-da?
peito. Eva não chegou a dar de mamar nenhuma vez no hospital.
(Diário de campo) Reparo que Fátima está mais chorosa quando a e sai (passou a
reclamar mais vezes das saídas da mãe) e perguntei a Eva o que ela achava. Eva
concordou comigo e acrescentou que a filha não quis ir para o pai quando ele veio no fim-
de-semana, ao que Eva chamou de “curioso e engraçado”, pois diz que o marido sempre
teve mais jeito com as crianças, brincando mais com elas. Disse que ficou se sentindo
“mais mãe” diante dessa recusa da filha pelo pai. Fátima também está mais comunicativa,
balbuciando mais, pedindo cada vez mais explicitamente a comida à mãe. Acho que a
comunicação entre mãe e filha ficou mais ativa, fluida, como se algo do início da
maternagem, da interação inicial entre as duas tivesse sido retomado.
(Diário de campo) Eva parece compreender bem os sinais interacionais da filha, mas seu
interesse parece ser ver o desenvolvimento físico e o sorriso da filha, talvez porque estes
estavam sumidos desde que a criança adoeceu. (...) Ultimamente seu brincar com Fátima
tem se resumido a breves jogos orais (balbucios e “mordidas”). Seria um retorno a uma
maternagem, em alguns aspectos, interrompida?
- A internação, você acha que ajudou ou atrapalhou a interação, a relação de vocês?
Acho que ajudou mais porque eu passei esse tempo todinho mais junto dela, né, tendo mais
cuidado com ela, mais do que eu tinha, ficou mais melhor! (Ri) Ficou muito mais
melhor. (...) Ela ta voltando como era antes, né, a falar comigo desse jeito enrolado
(refere-se aos balbucios da criança), pra eu entender as coisa, né?! (...) Ela ta falando
mais. A primeira coisa quando ela começou a ficar melhorzinha, ela chamou logo
“papai”, e “mamãe”. E agora ela ta fazendo “hã”, as mesma coisa que ela fazia
tempos atrás.
Quadro 1 Caracterização das díades segundo procedência, período e tempo de
hospitalização. IMIP, Recife, 2007
Caracterização das Díades
Cognome e idade
da mãe
Cognome e idade da
criança
Procedência Período e tempo de
hospitalização
Maria (22ª ?) Gabriel (1a 8m ?) Tupanatinga (PE)
Agreste
Novembro 2006
(15 dias)
Mina (19a) Pandora (9m) Pitimbu (PB)
Litoral sul
Janeiro de 2007
(16 dias)
Ana Maria (15a) Mariana (6m) Catende (PE)
Mata meridional
Fevereiro a Abril de 2007 (40
dias)
Rosácea (25a) Angélica (6m) Goiana (PE)
Zona da mata
Fevereiro a Março de 2007
(28 dias)
Bela (20a) Ian (1a 3m) Olinda (PE)
Região Metropolitana
do Recife
Fevereiro a Março de 2007
(17 dias)
Magdala (33a) Renata (1a 5m) Escada (PE)
Mata meridional
Março de 2007
(12 dias)
Izabel (47a) João (1a 5m) Manari (PE)
Sertão
Março de 2007
(10 dias)
Eva (25ª) Fátima (10m) Itapissuma (PE)
Litoral norte
Março a Abril de 2007
(14 dias)
Quadro 2 – Caracterização das mães segundo anos de estudo, ocupação e situação
conjugal. IMIP, Recife, 2007
Caracterização das Mães
Mãe Anos de estudo
concluídos
Ocupação Situação conjugal
Maria 2 anos Do lar Casada
Mina 5 anos Do lar Separada
Ana Maria 4 anos Estudante e
embaladora
Solteira
Rosácea 8 anos Do lar Casada
Bela 3 anos Do lar Casada
Magdala
φ
Canavieira Casada
Izabel 3 anos Agricultora Casada
Eva 2 anos Do lar Casada
Quadro 3 Caracterização das mães segundo apoio financeiro e emocional, suporte
familiar e número de filhos. IMIP, Recife, 2007
Caracterização das Mães
Mãe Apoio financeiro e
emocional
Suporte social Número de
filhos
Maria Mãe, padrasto
φ
01
Mina Mãe
φ
02
Ana Maria Mãe, padrasto, pai da
criança, prática do
“fiado”
Benefício INSS do
irmão
01
Rosácea Mãe, família do marido,
prática do “fiado”
Solicitou Bolsa
Família, mas não teve
resposta
04
Bela Sogra, vizinhos, prática
do “fiado”
φ
02
Magdala Mãe Bolsa Escola 07
Izabel Filhas, vizinhos Bolsa Família,
aposentadoria do
marido, programa do
leite, incentivo ao
pequeno agricultor
14
Eva Família materna, família
do marido
φ
02
Quadro 4 Caracterização das díades quanto ao planejamento da gravidez, satisfação
com o sexo da criança e abortos. IMIP, Recife, 2007
Caracterização das Díades
Díade Gravidez
planejada?
Satisfação
diante do sexo
da criança?
Abortos?
Maria (22a ?) e Gabriel (1a 8m ?) Não Sim Não
Mina (19a) e Pandora (9m) Não Sim Não, mas a mãe orientou-a a
abortar Pandora
Ana Maria (15a) e Mariana (6m) Não Sim Não, mas a mãe orientou-a a
abortar Mariana
Rosácea (25a) e Angélica (6m) Não Sim Acha que sim, no primeiro mês;
espontâneo
Bela (20a) e Ian (1a 3m) Não Sim Natimorto aos oito meses;
espontâneo
A mãe orientou-a a abortar Ian
Magdala (33a) e Renata (1a 5m) Não Sim Não, mas tentou abortar Renata
Izabel (47a) e João (1a 5m) Não Não
Eva (25a) e Fátima (10m) Não Não Sim
Provocado
A idade das oito mães estudadas foi entre 15 e 47 anos, e a escolaridade
variou da primeira série do ensino fundamental ao segundo ano do ensino médio.
Apenas uma mãe era estudante e duas exerciam atividade fora do lar, uma em trabalho
informal e outra canavieira com carteira assinada. Uma era solteira e outra separada, as
demais mães coabitavam com o marido (em todos os casos era o pai da criança). Cinco
dessas mulheres tinham um ou dois filhos, enquanto as demais quatro, sete e quatorze
filhos. Em todos os casos, esses filhos eram do mesmo pai da criança em questão.
A maioria das mães tinha condição socioeconômica precária, característica
compatível com o perfil da clientela do hospital estudado. Quanto ao suporte social,
apenas uma recebia o Bolsa Família, outra o Bolsa Escola, uma usufruía o benefício do
INSS de um irmão portador de deficiência, e outra da aposentadoria do marido. A maior
parte dessas famílias não teve acesso a esses programas sociais.
Todas as mães referiram período(s) em que passaram dificuldade financeira,
algumas chegando a passar fome. Diante disso, bem como de outros aspectos referentes
à experiência e prática da parentalidade, a família imediata (avós e tios das crianças), e
vizinhos foram referidos como os responsáveis pelo apoio financeiro e emocional.
Poder recorrer aos recursos de continência na família (campo de continência) foi visto
por Almeida
73
como indicador de resiliência frente a problemas de alimentação infantil.
Solymos
17
também referiu a iniciativa para procurar recursos, pedir e aceitar auxílio
como fator psicossocial de risco para a nutrição (proteção).
Nenhuma das gestações foi planejada, bem como a descoberta da gravidez
trouxe mudanças na vida dos pais, em especial no aspecto financeiro e social. Em cinco
das oito díades o casal ou um dos pais mudou-se, tendo em vista a melhoria do sustento
financeiro da família com a chegada do novo membro. Nos casos em que ocorreu a
mudança do casal, houve a perda do apoio da família imediata (avós e tios da criança),
bem como dificuldade no estabelecimento de nculos com vizinhos e entidades de
apoio social (posto de saúde, associação comunitária). Algumas mães associaram o
adoecimento ou a piora da criança à perda da proximidade geográfica/apoio emocional
da família e/ou diminuição da atenção dispensada pelo marido após o início do novo
emprego. Outro aspecto referido por algumas dessas mães foi a necessidade de buscar
trabalho fora do lar, comprometendo a atenção ao filho.
Dentre as crianças, cinco eram do sexo feminino e três do sexo masculino.
Uma dessas foi a óbito ao longo do estudo. O tempo de internação variou entre 10 e 40
dias. Observa-se que os internamentos mais prolongados ocorreram entre as crianças de
menor idade (Mariana, seis meses, 40 dias de internamento; Angélica, seis meses, 28
dias de internamento).
A maioria dessas díades era do interior do estado de Pernambuco e apenas
uma da Região Metropolitana do Recife. Todas haviam sido encaminhadas de outros
hospitais da rede pública, após insucesso no tratamento da doença, nem sempre
identificada pelo hospital de origem como desnutrição, principalmente nos casos em que
a criança apresentava edema.
Mudança geográfica da família, sazonalidade da lavoura, desemprego e
doença de um dos pais, pareceram ter influenciado no desencadeamento da doença,
interferindo na leitura e resposta da mãe quanto aos sinais interacionais da criança.
Praticamente todas as crianças dormiam na mesma cama com os pais ou
com um dos pais/avó, apesar de referirem espaço físico no domicílio, bem como
algumas terem berço.
A experiência de falta real parecia balizar a constituição dos vínculos
afetivos da maioria dessas famílias, marcados pela precariedade e fragilidade com que
se iniciavam e eram desfeitos, porém não sem prejuízos psíquicos à mãe, expressos na
interação com o filho. Algumas dessas mulheres descreveram diversos relacionamentos
conjugais anteriores, construídos e destruídos de modo breve e superficial, mesmo
havendo gerado filhos. Uma das possíveis origens da precariedade do laço mãe-filho,
destacada tanto pelo excesso quanto pela falta, pode estar na precariedade do casal
parental. Assim como sem a interação homem-mulher não preservação da espécie,
sem a interação pai-mãe, mãe-filho, não há humanidade.
Destacam-se, portanto, o marcante efeito da realidade nas famílias/díades.
As relações, de modo geral, acredita-se, não pareciam, com algumas exceções, ser
investidas, idealizadas, fantasiadas, ocorrendo sem afeto, baseadas no real do corpo, no
real da necessidade.
A pobreza esteve presente em todos os casos, quer seja na vertente do
alimento, do olhar, da verbalização, do investimento, das trocas dialógicas e corporais,
e, em alguns casos, na capacidade de doação. Destaca-se a relação entre pobreza e
desnutrição no sentido simbólico, na desnutrição afetiva mãe-pai-criança-ambiente.
Desse modo, a desnutrição pode ser pensada não somente como uma síndrome
nutricional decorrente da pobreza real, mas também da pobreza simbólica, resultando
numa desnutrição afetiva, simbólica e fantasmática.
Com base nos relatos, foram identificados três temas.
Temática 1 – O processo de construção da parentalidade
Sub-tema: Construção da parentalidade ao longo da gestação por meio da
interação mãe-feto
Sub-tema: Vivência da parentalidade por meio da interação mãe-criança no
domicílio, enfatizando os sinais interacionais e a alimentação
Temática 2 Vivência e retomada da parentalidade: interação mãe-criança ao
longo da hospitalização
- Sinais interacionais percebidos pela mãe, vividos no hospital;
- Adaptação da criança ao hospital em função do relacionamento com a mãe;
- Interação da díade entre si e com a pesquisadora: construção de uma terceira
história.
Temática 3Desnutrição e interação mãe-criança: significados criados em relação
à doença e compreensão desta a partir da interação com a criança e com o hospital
Sub-tema - Psicodinâmica interativa: indícios compreensivos quanto às
perturbações da interação mãe-criança
4.2 Temática 1 – O processo de construção da parentalidade
Sub-tema: construção da parentalidade ao longo da gestação por meio da
interação mãe-feto
O processo de construção da parentalidade envolve uma série de aspectos
relativos a experiências, projetos e expectativas dos pais. A confirmação da gravidez
pareceu envolver a mulher na construção mais ativa desse processo, algumas buscando
criar espaço à futura criança, mesmo diante da ambivalência de sentimentos. Como
destacado por Iaconelli,
47
uma mãe desejante em toda gestação, mesmo que impere a
ambivalência (mesmo que deseje a morte do bebê). Não se sabe a que desejos a
gravidez vem corresponder, mas é identificável a existência de um lugar de
expectativas, medos e anseios que lhe dizem respeito.
47
Não obstante o desejo inconsciente, a programação da gravidez não ocorreu
em nenhum dos oito casos, evidenciando a fragilidade com que os laços conjugais e a
gestação ocorriam:
- Por que você foi morar com ele (segundo marido)?
Porque a minha mãe tava passando situação e a minha irmã tava chorando e ele ajudou a
gente. (...) ele pegou, foi na minha casa e viu minha irmã chorando. Aí pegou e arrumou
umas coisa pra gente comer. eu peguei, minha mãe disse “porque tu num fica com ele,
menina?!” Aí por causa disso eu fiquei com ele. Aí pronto, eu fiquei com ele por causa disso,
mas que eu tinha amor, aquele amor por um outro eu não tenho não, num tinha não. (Bela)
- Por que você queria tanto ter uma menina?
Por que eu acho que é bonito... Botar uns pitozinho no cabelo, mas essa daqui nem cabelo
tem direito pra fazer pitó (Ri). (Mina)
Alguns dos maridos e avós maternas pareceriam rejeitar a gravidez,
chegando a recomendar o aborto, em função da recorrente preocupação com a
alimentação da criança, em função da precária condição socioeconômica, temendo a
repetição da experiência de fome.
Minha mãe que ficou falando, né “toma remédio”.ele (marido) “não, você num vai tomar
não, vai deixar, deixe, eu quero, eu quero, eu quero, eu quero!”, “pronto”, eu disse, “pronto,
agora deixe!” até hoje. Queria uma menina ele, Agora não, quando a gente tiver na nossa
casa, tiver ajeitado as nossas coisa, tudinho, direitinho, aí a gente faz outro.
- Por que sua mãe queria que você tirasse?
Por causa da situação da gente, , que assim, esse neguinho num tinha trabalho, aí ela
pensava que ele não queria nada, assim, sério comigo. (Bela)
- E por que sua mãe queria que você tirasse?
Mas ela queria assim, sei lá, era pra fazer medo a ele... porque ele não queria mais morar
com eu... Essa daqui também, foi o maior aperreio. Ela me dava tanto remédio pra eu dar
pra ela. Eu pegava num tomava não, eu jogava. (...) Minha e disse “se for um menino
eu não vou nem lhe buscar, não toco nem nele”. quem foi me buscar foi ela,
quando ela chegou perto de mim ela fez assim “é o quê?”. Eu fiz “arrumei uma menina”.
Ela chega pegou ela, ela disse que se fosse menino não ia pegar não.
- Por que sua mãe não queria que você tivesse esses filhos?
Sei lá, a dificuldade, né, pra criar... (Mina)
Aí o resultado deu positivo (do teste de gravidez). Até mainha pensou em tirar e ele (pai de
Mariana) achou ruim, num gostou. Quando no começo ela descobriu, que nervosa com as
coisa, pensou logo em tirar, ele (pai da criança) “não, vai tirar o”. Aí eu disse a
mainha “também não vou tirar não”. Aí depois que eu disse a mainha que não ia tirar, ela
foi, foi passando o tempo e ela se acalmando. foi ficando mais alegre, alegre, se
conformou. (...) Aí ela ficou nervosa na hora, mas com o tempo ela foi se acalmando, quer
dizer “vai ter que ser uma menina, se num for uma menina eu num sei o que eu faço não,
mas vai ser uma menina”, ela disse assim, brincando. ‘Tem que ser uma menina pra se
chamar Mariana”. eu disse “é, vai se chamar Mariana mesmo se for”. “Se for uma
menina vai criar, tem que ser bem criada’, ela dizia. Terminou sendo uma menina”. (Ana
Maria)
O anúncio da gravidez de Eva provocou a seguinte reação do marido:
(...) ele
dizia “a situação da gente, a gente num pode nem dar o de comer da Roberta (a outra filha do casal),
como é que tu arrumasse esse?!”.
O aspecto material, o não ter o que dar de comer parecia
dificultar a construção da parentalidade, onde ser pai corresponderia a ser o provedor do
bem material mais básico: comida.
A experiência de Eva de perda do primeiro filho, mediante uso de c
abortivo, pareceu encorajá-la a não desistir de Fátima. Destaca-se a diferença com que
se referiu às duas gestações.
Quando foi dois meses eu tava grávida, mas num foi de Roberta não, foi de outro. que
eu num sabia que eu tava grávida, o povo num dizia que eu era histérica?! (estéril, infértil)
a menstruação num veio, eu pensava que o negócio tava empancado. quando eu fui
pensar “peraí, isso é gravidez”, aí eu peguei e fui. Quando eu cheguei era gravidez, eu
tava com um mês e quinze dias, mas que ele num sustentou porque eu tinha tomado
remédio, aí eu perdi. Eu pensava que tava empancado, eu tava incerta, também eu num tinha
ido no médico, o negócio num tinha vindo ainda, tava empancado, eu tomei um chazinho
pra vim, eu gosto de tomar (...). Eu disse “eu vou tomar pra vim logo”, mas que eu tava
grávida e num sabia não. Aí quando eu fui fazer o teste aí eu parei de tomar o chá, aí, mas já
tinha ofendido ele, eu perdi, um mês e quinze dias. depois, num passou nem um mês,
veio Roberta, foi a maior alegria na minha vida, ter uma criança. pronto, ficou, gerou,
tive Roberta.
A respeito da primeira gravidez (abortada), referiu-se ao feto como “ele”,
uma entidade material, em relação a qual sua subjetividade pouco parecia se colocar,
não implicando simbólico nem imaginário aquilo que não pra saber como era,
“ele”, algo de um mês e 15 dias. Desse modo, tomar um “chazinho” (abortivo) não
assumiu a conotação de aborto, mas “fazer algo para a menstruação vir logo”,
aparentemente não reconhecendo no feto uma criança.
Comparativamente, ao descrever a descoberta da gravidez de Fátima, Eva se
remeteu a uma série de elementos de ambivalência e culpa, reconhecendo no feto uma
criança, a ponto de pedir desculpas à filha intra-útero pelo fato de ter tomado abortivo
também nesta gravidez.
Conversava com ela (feto). Às vezes eu pedia perdão, né, que eu tava dizendo tudo aquilo da
boca pra fora. (...) Aquilo que eu tava dizendo quando ele (pai da criança) dizia que num
queria, aí eu num dizia também, né?! Eu num queria que ele desconfiasse também, entendeu?
que eu, era da boca pra fora, que eu conversava sozinha quando ele saía de casa,
depois as vizinha “é porque tu queres menino mesmo!”, eu disse “não, menina, eu fiquei
porque eu nem sabia que eu tava grávida”. Aí, quando foi um tempo, mas eu ainda tomei
remédio dela, mulé. Que ele fazia muita raiva a mim, dizia que num queria, que ia me
abandonar, ia deixar eu em casa, com o bucho no meio da casa dos outro. Aí eu fui, eu ainda
tomei um remédio aí, mas eu me arrependi, tomei e vomitei tudinho pra fora. Tomei, mas
vomitei tudinho pra fora, mas eu com um medo tão grande, eu digo, eu tomando e pedindo a
Deus que num matasse o menino, assim, tomando porque, pra ele ver que eu tava tomando
mesmo! Mas eu pedindo a Deus assim que não, que não matasse! (...) eu num tomei mais
não. Eu digo “se você quiser tomar, você tome, pra você morrer, agora eu num matar
nosso filho não. Você num quer criar, num crie, então pronto, se vire, amanhã eu crio minha
filha sozinha, eu tomar remédio não”, num tomei mais não. Eu num queria perder não, mulé!
(...).
Em Eva, o movimento de aceitação da filha pareceu começar pelas “palavras
da boca pra fora” e pelo “remédio da boca pra fora”, assumindo que queria a criança e
que tomaria conta dela, mesmo que sozinha. um sujeito desejante em toda gestação,
mesmo que impere a ambivalência.
47
Nem toda gestação é totalmente aceita ou
desejada, e o não desejado não implica ser rejeitado.
100
Não se sabe a que desejos a
gravidez vem corresponder, mas é identificável a existência de um lugar de
expectativas, medos e anseios que lhe dizem respeito.
47
Mina parecia não se dar conta do seu próprio investimento no bebê:
- Mas o nome dela não foi de novela não, ou foi?
Não, foi uma estudante que falava assim, de vereador, assim, na televisão, que passa, que
passava dificuldade pra tar estudando. Aí apareceu e eu me lembrei e eu ia botar o nome
dela.
- O que você achou, imaginou dessa estudante que você quis transmitir para sua filha?
Sei lá... É por causa do nome, eu achei bonito.
- O que essa estudante estava falando, ela defendia, buscava alguma coisa?
Por que ela passava muita dificuldade, não estudava, agora ela tava estudando, não tava
tendo dificuldade. Aí eu vi o nome dela e botei nela.
- Você imaginava, desejava alguma coisa para o seu bebê?
Como assim?
- Você desejava algo para o seu bebê, tipo eu quero que meu bebê seja assim, que faça isso ou
aquilo?
Não...
- Nada?
... Só que ela nascesse com saúde, né, e que o parto fosse bom, né?!
Para Eva, a descoberta da gravidez reflete como a construção da
maternidade passa pelo corpo feminino e pelo imaginário.
44
A gente sente diferença quando ta grávida. Eu senti uma diferença, disse “eu acho que eu to
grávida”. Assim, muda tudo na pessoa, tem enjôo, uma diferença nos seio, né, e na vida da
pessoa, fica diferente também. (Ri) Quando a gente sabe que ta mesmo assim, a gente fica
“eu acho que eu to”, ficava feliz, mesmo que eu num queria, mas eu tava feliz por dentro.
Eva parece não só ter construído a idéia de maternidade, mas também
auxiliado o marido em sua construção. Envolvendo a si e ao marido na parentalidade,
superando o temor da transgeracionalidade da fome e violência, decidindo não mais
violentar o feto, afastou-se do emprego que supostamente agredia ela e o feto, pediu
desculpas a este, parecendo atribuir subjetividade à futura criança. Recorreu à lei,
representada pela figura do médico, evidenciando que a criança era filha do marido (este
duvidava da paternidade, pois o casal recorria ao coito interrompido com método
contraceptivo), bem como buscou o reconhecimento do papel do homem/mulher,
atribuindo culpa/responsabilidade com base no gênero.
“E pra quê tu fosse fazer filho em eu?!” (...) Ele dizia “a situação da gente, a gente num
pode nem dar o de comer da Roberta, como é que tu arrumasse esse (...)”, eu digo “e foi eu
que fiz?! Porque eu faço esperar, você quem faz! E Deus que manda, ?! Mas, eu, oxen,
tu que sois homem, tu quem devia ter evitado é tu, porque tu sabe que eu num posso tomar
remédio, eu já vou tomando três tipo de comprimido e num me dou”.
O marido passou então a enjoar ao longo da gestação, evidenciando sua
participação (Síndrome de Couvade).
Enjoei até os sete mês. Depois passou pra ele, eu digo “oxen, tas grávido também é?!”. (Ri)
A mulher passa pro homem o enjôo também! (Ri)
Diferentemente de Eva, Magdala parece ter aceitado a gravidez com certa
resignação, construindo a idéia de maternidade com pouco investimento.
... Ele (marido) num queria não, mas eu também não queria não, queria ficar mesmo com
os quatro, os cinco mesmo. ... Ainda tomei chá, ainda. Tomei chá de um mato chamado
melão pra ver se abortava, num abortei, porque num tinha que morrer. É, porque quando
é pra acontecer um negócio a pessoa pode fazer o que quiser! Tomava o chá de noite,
quando eu ia dormir e o resto botava em cima da casa, no sereno (...)
- Quando então você viu que o chá (abortivo) não deu certo, imaginou algo com relação a
esse bebê em sua barriga?
Não.
- Pensava, sentia algo para sua bebê?
Não.
- Pensou um nome pra ela quando ela estava na sua barriga?
Não.
- O que você imaginava dela quando ela ainda estava na sua barriga?
Eu só dizia que era uma menina. Num pensava mais nada não, que era uma menina,
somente. (...) Eu queria uma menina para fazer casal com esse de três ano. Agora é tudo os
casal, agora ficou certo.
- Como você se sentia quando percebia sua bebê se mexer na sua barriga?
Eu ficava contente, né?!
- Por quê?
Porque eu sabia que ela tava viva, num tava morta.
- Quando ela se mexia, o que você sentia?
Aquele mexido na minha barriga. (Ri) Eu via isso aqui passar assim (mostra o cotovelo).
Ficava assim de lado. Tinha hora que ela descia tudinho, ficava aqui no da barriga,
ficava tudo aqui em cima, aquela bolinha assim.
- Você conversava com ela?
(Ri) Não.
- Achava que ela sentia o que você sentia ou não?
... Não.
Assim, o que em alguns casos parecia figurar como indicador de
vulnerabilidade frente a problemas de alimentação infantil (gravidez, parto e pós-
parto conflituosos), segundo Almeida,
73
para outros foi vivido como superação, como
no caso de Eva. Essa mãe parece ter utilizado sua capacidade parental para tolerar a
própria dor e se identificar com o bebê, aspecto esse abordado por Almeida
73
como
indicador de resiliência.
Ao longo da gestação, Mina parecia se colocar mais no lugar de
adolescente e filha que de mãe, não chegando a fazer um enxoval para a criança.
- Como você se sentiu quando descobriu que estava grávida?
Sei lá, eu achei bom, mas por outra parte... prende muito a pessoa... Por que eu gosto de
sair, gosto de ir pras danças... Mas assim com eles dois... eu... sempre saio, porque minha
mãe fica com eles dois... Pra onde eu quero ir ela deixa, se for pra praia ela fica com os
dois, pra dança ela também fica.
- Como foi o tempo que você estava grávida de Pandora?
Era bom porque tudo que eu queria minha mãe comprava.
A experiência subjetiva consciente e inconsciente do fato de vir a ser
pai/mãe e de preencher papéis parentais, nomeada por Houzel
42
de “experiência da
parentalidade” compreende aspectos como o desejo pela criança e o processo de
transição em direção à parentalidade (modificações psíquicas que se produzem nos pais
no decorrer da gravidez e pós-parto, como a PMP e a Síndrome de Couvade).
Temendo prejudicar o feto, o reconhecendo como sujeito às influências
internas e externas (ambiente externo, desejos, emoções, sustos, experienciados pela
gestante), algumas mães buscavam proteger a si e ao filho:
Cada vez que eu tinha raiva eu, pra num ofender a bichinha na minha barriga, eu dizia
assim a ela, escondido pra ele num ver “ele num quer, mas pode vir, viu, que mainha quer,
que mainha te ama da barriga!” (ri e olha para a filha, dando um grande suspiro, como
que aliviada). (Eva)
Aí eu passava fome, eu sentia dor... sentia muita dor... passava fome, acho que ela
passava, né?! (...) Quando eu tava perto da minha mãe eu comia, porque ela comprava,
mas quando não tava na minha casa eu não comia não. (Mina)
A fala de Bela reflete como o vínculo mãe-filho fica evidente desde a
gestação, apesar das dificuldades externas (fome, violência, problemas de saúde do
feto), marcando a interação com a futura criança:
A gente brigava muito (Bela e o ex-marido). Aí eu tava arrumando a casa e a estante caiu em
cima da minha barriga. (...) Mas eu fiquei sentindo dor, muita dor, fazia três dia que o
menino tava morto na minha barriga. Aí eu fui pra Encruzilhada, aí acusou que fazia três dia
que ele tava morto. Ele fazia subir, subir, num tava como os bebê normal que fica
embaixo, num é, que mexe. Ele não, ficava subindo e a minha barriga quente. Aí o doutor
disse “olha mãe, vamo ter que fazer o parto agora, urgente”. Eu chorava, pedia a minha
mãe “mainha, num deixa não, num deixa o, doutor, num tirar não!”. fizeram parto
normal. Quando o doutor tirou ele, quando eu vi ele, ele queria que eu pegasse nele, eu num
quero não. Eu disse “num deixa alevar não, mainha, num deixa não”. Era um menino... (...)
Guilherme. Eu que dei esse nome a ele. (...) Eu tava acostumada com ele. O médico disse
também que ele ia nascer doente, ia ter dodói, ele num ia falar, num ia ouvir, e você ia ter
que ficar o tempo todinho batendo nele, ia ter que ficar dando comida de instante em instante
a ele, que se era pra ficar assim então ta bom, foi Deus que levou. Eu digo “mesmo assim eu
quero ele”. foram fazer o exame, abriram ele, e eu querendo levar ele pra casa. Mainha
disse “num pode o, num pode o”. Eu, oxe, tava acostumada com ele. Quando falava
assim, ficava, né, brincando com ele, “cadê o bebê de mamãe?!”, ele ficava mexendo, tava
chutando. Quando eu soube disso foi muito duro. Eu ainda não esqueço. O povo me
pergunta “tu tem quantos filho?”, eu digo “três, um no céu e dois ta aqui!”. “Que três
menina, isso não existe mais não!”, eu digo “pra você num existe, mas pra mim existe,
porque ele era um humano, num era invisível não”. (...) Acho tem vezes que eu nem esqueço,
né, porque ninguém esquece uma coisa dessas. “Vem mainha, vem cá! Vem cá, vem cá,
vem cá!” (Pega Ian e dá um abraço forte nele.) eu grávida de Ian,, eu às vezes chorava,
ficava sonhando com ele, com o menino, chorando, eu dizia “eita amor, deixa eu virar, vou
dar peito ao neném!”, “que neném?”, eu digo “ó ele aqui, dormindo”, falando, dizendo que
o menino tava, eu fazia chorar “mô, cadê ele, me da ele pra mim!”, “me da o quê, mô,
num tem não, o bebê ta no céu, ele ta vendo você”, “mas eu não to vendo ele, eu quero ele,
eu quero ele!”.
Rosácea não parecia creditar subjetividade ao feto que perdera antes de
Angélica, porém aspectos reais e imaginários, sem ficar claro quem causou dor e morte
de quem:
quando eu perdi sentia umas dor muito forte, como se fosse uma dor de barriga, eu sentia
e sentia um negócio fazendo assim na barriga. Parece que era ele, é, se esperniando, a
criança morrendo, esperneando. Inté que chegou a hora de, de, dele num resistir mais. Eu
sentia muita dor, aquela dor muito forte na barriga. Aí comecei a sangrar. Agora que eu
num sabia que era uma gravidez, né? (...) E era uma gravidez que eu tinha perdido, uma
criança.
- Como você soube, se deu conta de que era uma gravidez, uma criança?
Porque eu disse a ela que saiu um bocado de langanho, uns pedacinho feito assim, uns
pedacinho de carne, bem miudinho. eu acho que era... Eu perdi e num sabia. (Ri) eu
fico assim, botando na cabeça, apois eu tive outro filho e num sabia, isso. (Ri) isso
assim que eu fico pensando. eu fico, como é, , será que era femi, que era macho, como
era, isso que eu fico. (...) Eu fico pensando: “meu Deus, eu fui mãe de outro...”. Eu fiquei
assim. (Ri) Num sei se, se ele é um anjo, num sei... Será, hein? (Ri) Ele é um anjinho, mas só
que ele num veio no mundo. Veio e ao mesmo tempo num veio. ... Aí “meu Deus, eu fui mãe
de outro!”
Algumas entrevistadas reconheciam a influência do humor materno no feto,
levando em consideração os movimentos fetais.
Quando eu tava alegre ela ficava alegre na minha barriga, pulando, mexendo na minha
barriga. E quando eu tava triste, que eu tinha uma briga dentro de casa, ela não mexia, ela
passava dois dia, três, sem mexer. quando eu tava assim eu sabia que, né, que chega
ofendia ela, né?! (Ana Maria)
- Por que você acha que ela se mexia na sua barriga?
Eu acho porque tava alegre, porque quando eu tava alegre ela ficava alegre na minha
barriga. Quando eu tava triste ela ficava, nem se mexia. (Eva)
Às vezes quando eu tava bem alegre ela pulava que só. Agora quando eu tava assim, meio
amuada, num canto, ela ficava indo prum lado, o dia todinho. Se eu ficasse o dia todinho
quieta num canto, assim, amuada, ela num mexia prum lado, num mexia pra nenhum canto.
Agora eu ficando alegre, dando risada, ela sempre pulava, sempre dava um chute, sempre
corria pro outro lado. Quando (...) tava bem alto assim, ela. colocava a o ela corria
pra ele. (Ana Maria)
- E qual era o seu sentimento quando ela se mexia?
... Ah, eu ficava alegre, né, em ver ela mexendo assim, quando a gente colocava a mão.
Ficava, o meu sentimento é que ela tava sentindo mesmo que a gente tava mexendo com ela,
que a gente tava amando ela a partir de quando viu que era uma menina mesmo. disse
“ela sente tudo isso”, que s falava, num deixava assim mainha dizendo “mas vovó vai
amar tanto essa menina”, aí ela sentindo, eu ficava, ficava alegre porque saber que ela tava
sentindo que nós tava, o que nós tava dizendo e sentindo que nós tava amando ela.
- Você acha que ela sentia?
Eu acho que ela sentia, porque, assim, ela ficava bem agitada mesmo, pulando de um lado,
do outro, corria pra um lado, corria pro outro. Eu digo “ela ta sentindo que ta conversando
com ela”. (Ana Maria)
Eu dizia assim: “sorri, bebê, tas fazendo o quê, tas chorando é?(Ri) “‘Tas fazendo o quê,
com fome é?”, porque na minha barriga, ela ficava mexendo muito. “É fome?”, eu dizia,
“vou dar de comer a tu”, aí eu botava um prato pra comer, comia muito. (Rosácea)
Eva parecia se comunicar com Fátima mediante o simbólico (dirigido a),
sugerindo indícios de uma comunicação dialógica:
Eu comecei a sentir as dor (do parto) quando o pai dela chegou, que ele tava trabalhando.
Mas foi dor na minha barriga! Eu digo “mas oxen, tu adivinhou que teu pai chegou, foi?!”,
eu disse pra ela na barriga.
A parentalidade parecia desembocar também nos significados à doença,
onde Rosácea implicava a si e ao marido:
Algum pobrema ela nasceu. ... Num sei, com algum pobrema meu... Algum pobrema do pai...
Agora que a maternidade de é muito pequena, assim, se tivesse feito logo os exame,
descubrido logo alguma coisa... Tinha mandado assim trazer pra outro hospital, né? Mas na
maternidade a médica disse que ela tava boa de saúde. Eu truxe. Quando foi de um mês em
diante ela começou a ficar doente. ... Começou. ... Mas sempre, mas sempre eu cuidei, né? ...
Mas ela só andava assim, porque num tem criança que, assim né, tão doente, e ela é
doentinha, tem pobreminha...
O modelo explicativo popular acerca do vínculo mãe-feto é denominado
“impressão materna”, onde o comportamento da mãe, seu estado de humor, atitude
moral, agressões físicas, exposição ao meio ambiente, podendo causar danos à criança
ao nascer.
102
Explicação semelhante é comprovada pela ciência, exemplificada pela
hipótese de Barker (programming), citada por Alves & Figueira,
103
legitimando a
racionalidade popular sobre a “fraqueza de nascença”.
102
Calvasina et al
102
observaram três etnoetiologias da fraqueza de nascença: a
herança biológica da carência nutricional da e (falta de comida e desnutrição da e
durante a infância e adolescência), a “impressão” direta de acontecimentos, desejos e
sofrimentos experienciados pela gestante no feto, e a combinação dessas duas formas na
mesma gestação.
No caso de Rosácea, a fraqueza de nascença” parece ter origens não na
impressão materna intra-uterina, refletindo também a herança intergeracional.
Eu tinha pobrema mesmo. Minha mãe diz que foi desde que eu nasci, tive pobrema de
asma, cansaço, eu tinha pobrema mesmo. (...) Minha mãe até dizia as vez “a menina
(Rosácea) não vai viver não!”. (...)
Outras mães não pareceriam reconhecer no feto sensibilidade e interação,
relacionando-se basicamente ao real do corpo do feto:
- Você acha que ele sentia alguma coisa quando estava na sua barriga ou não?
Se ele sentia alguma coisa? Se eu achava? Naaão... (...) Ah, eu achava que era..., achava que
era..., que o meu menino que tava se mexendo, achava que era isso.
- Por que motivo você acha que ele fazia isso, se mexia?
Ele se mexia?... Porque ele tava sadio, não era?! Na barriga, o tava doente, ele se mexia
bem muito... mexia. Eu via isso aqui (faz gesto com o cotovelo) quando passava assim na
minha barriga, assim (imita o gesto com o cotovelo). Chega passava assim... (volta o olhar
para a criança) Ele se mexia bem muito assim na minha barriga. (Maria)
A história dos avós, os conflitos familiares concentrados nos mandatos trans
e intergeracionais são transmitidos à criança pelos significantes que localizam pais e
criança na ordem simbólica familiar. Os avós têm papel primordial nos efeitos da
história transmitida e reconstruída com a chegada da criança.
43
Ao longo da entrevista,
Eva pareceu se dar conta da repetição familiar no sexo das filhas:
- Você me disse que na sua casa também é assim, não é, nove irmãs...
E num é que é mesmo, mulé?! Eu nunca que tinha pensado nisso! Oxe, ó pra aí!
Ana Maria parecia repetir perigosamente a história da gravidez da mãe e a
história da irmã com a própria filha.
Eu nem cheguei a conhecer não, ele nem... assim, mainha ficou grávida quando separou
dele, grávida de mim. ela disse que, quando ela veio se embora... eu acho que ele nem
sabia que ela tava grávida de mim, porque ele ficou com ela assim por acaso. acho que
ele nem sabia que ela tava grávida de mim porque ela veio se embora de lá pra cá, nem disse
a ele nem nada que já tinha, já tinha se separado já.
- Como foi essa história de ter um filho com quinze anos?
Aí isso aí eu nem, eu nem sei...
- Como assim você não sabe!?
Porque foi por acaso! (Ri) Que eu nem imaginava que ia ficar grávida.
- Como chamava sua irmã?
Mariana.
- Mariana!?
Por isso que eu coloquei o nome da minha de Mariana também.
- Por quê?
Uma homenagem à minha irmã, pra lembrar a minha irmã.
- Então sua irmã chamava Mariana...
É, Mariana Araújo dos Santos.
- E a sua é...
Mariana Maria de Araújo. Eu botei Maria porque quase tudinho na família tem Maria
depois do primeiro nome.
- Você tem?
Eu tenho, Ana Maria.
- Sua mãe tem?
Mainha é Maria José. Aí o resto é tudo, tem Maria Gorete, tem um monte, Maria Lúcia, tudo
com Maria. Quando num é no primeiro, é no segundo nome.
- Sua mãe disse que tinha que ser menina?
Tinha que ser menina. Pra ela tinha que ser menina. começou assim, quando eu tava com
quatro meses ela comprou uma chupeta rosa. eu digo “apois ta com muita certeza”.
Terminou sendo uma menina mesmo.
E as duas se parece muito (Mariana e a tia falecida). Tem gente que chega em casa, que
tem duas foto, tem a dela e tem a de Mariana, a minha e a da minha irmã, uma do lado da
outra. Aí olhando as duas foto, o povo chega lá em casa diz “é a mesma foto?”, aí eu digo “é
não, uma é essa daqui e a outra é a que morreu”.
(Perceba-se o ato falho, falando como se fosse a sua foto e a da irmã)
Seria ingênuo atribuir essas repetições ao acaso, pois, segundo destaca
Hoyer,
104
nenhuma atividade pode ser pensada fora do campo do Outro; é sempre,
necessariamente, uma situação de desejo e de seus extravios. O sujeito-criança não
apenas sofre passivamente seu destino, pois de algum modo contribui para sua aceitação
e inserção no campo do Outro; a maneira pela qual o Outro responde indica que ele
também demanda alguma coisa.
104
O que está em jogo, em todos os acontecimentos na constituição psíquica
de um sujeito, aponta para os processos inconscientes e fantasmáticos como resultado
de elaborações, representações e produções psíquicas do sujeito-criança e daquele que
ocupa, para ele, o lugar de Outro primordial.” (2006)
104
Hoyer
104
retoma algumas das questões inconscientes mais importantes à
constituição psíquica: o que o outro quer de mim? O que minha mãe deseja? O que ela
quer que eu seja para ela? O que é que, nela, deu origem à minha existência? Quem
pode responder a esta demanda? Como situar este encontro, e o lugar onde teve origem
a existência?
104
Mariana não recebeu o sobrenome do pai, assim como Ana Maria, apesar do
pai de Mariana ter, aparentemente, se feito presente nesse processo de nomeação
(escolha do nome e registro formal) e ao longo da gestação e puerpério, chegando a
visitar mãe e criança diversas vezes no IMIP. Ana Maria parecia “boicotá-lo”, não o
excluindo formalmente da sua vida (não queria se casar com ele), e da vida da filha.
Dentre as diversas fotos tiradas no hospital, nenhuma delas incluiu o pai de Mariana,
nem sequer uma figura masculina, apenas mulheres, excluído que parecia estar no
exercício e na prática da parentalidade. Tendo em vista os indicadores clínicos
apontados por Kupfer et al,
18
questiona-se a respeito do lugar destinado à função
paterna na vida de Mariana e suas implicações na interação da díade.
Pontua-se também a suposta repetição de Ana Maria, com a filha, a respeito
do que vivera com seu próprio pai. Assim, Ana Maria não teve o pai ao longo da sua
vida, sequer foi registrada ou até mesmo reconhecida por esse homem. Ao excluir do
nome de Mariana o sobrenome do pai, bem como excluí-lo de outras atribuições,
lugares, Ana Maria parece destinar à filha o mesmo que teve.
A vivência da falta em vez de ser vivida como uma falta-a-ser no registro de
uma castração simbólica, parece ter sido vivida como uma falta-no-ser, na dimensão de
uma verdadeira mutilação.
57
Assim, para amenizar essa mutilação, parece ter recorrido a
uma negação da perda, nomeando a filha de acordo com a perda da irmã e a perda de si
mesma, da sua filiação a ser reconstruída.
As relações afetivas da criança são inicialmente marcadas por laços
fusionais entre mãe e filho, os quais fazem dele um mero preenchedor da falta materna.
Posteriormente, graças ao interdito paterno ou castração simbólica, a criança é levada a
recalcar sua identificação com o objeto que satisfazia o desejo da mãe e a renunciar
também ao seu papel de apenas preencher o vazio materno.
57
Questiona-se se Ana
Maria de fato renunciou esse papel.
O nome de Mariana não parecia representar apenas
uma homenagem à falecida irmã. Será que não se tratava de uma tentativa de
preenchimento do vazio angustiante da morte de um bebê com a vinda de um outro que
o “substituísse”? Destaca-se o grande prejuízo psíquico a Mariana, aparentemente sem
que Ana Maria e sua mãe se dessem conta desse movimento.
- Que idade você tinha quando sua irmã Mariana morreu?
Quando ela morreu? Eu tinha na faixa de uns doze, treze (...) Aí foi de madrugada que ela
acordou chorando, eu levantei pra dar a mamadeira a ela, eu vi que tava gelado, eu
fui correndo chamar mainha. Aí mainha esperou amanhecer, deu sete horas, mainha
pegou e levou ela pro hospital. quando foi, quando foi de duas, três hora, chegou
mainha com a roupinha dela na mão. eu botei pra chorar, chorei tanto, chorei tanto
e mainha lá. Porque mainha saiu com uma, com ela e voltaram só com a roupinha que ela
foi... pra mim ali na hora, pra mim tinha acabado ali na hora. (...) Ela era minha vida
também, ela mainha, meu irmão, por eles eu fazia tudo.
Iaconelli
47
destaca que a morte de um bebê reaviva fantasias da morte do
“bebê maravilhoso” com o qual temos que lidar incessantemente numa permanente
relação de destruição e ressurgimento. “Coloca-se outro bebê no lugar do mesmo.
Operação de risco uma vez que a face mortífera do bebê maravilhoso foi
vislumbrada, sem que o bebê de ‘carne e osso’ possa dar suporte para a perda
narcísica” (2005)
47
Afinal, a serviço do quê ou de quem a repetição de um nome parecia estar?
Numa tentativa de reparação por parte de Ana Maria, a qual poderia ter
inconscientemente desejado a morte da irmã? Será que essas questões estavam
influenciando a prática, exercício e experiência da parentalidade por parte de Ana
Maria? Essas são apenas indagações inatingíveis no âmbito e objetivo deste trabalho.
A dificuldade de um dos pais ou de ambos em inserir o filho na linhagem de
filiação, submetidos inconscientemente a uma determinação simbólica familiar que os
ultrapassa, desloca os pais do lugar de interlocutores privilegiados da criança, resultando
em obstáculos à experiência e prática da parentalidade.
43,54
Por diversas ocasiões a pesquisadora trocou o nome de Ana Maria por
Mariana, e vice-versa, contratransferencialmente sugerindo tanto que e quanto filha
pareciam ocupar o lugar de filha.
Maria parecia sofrer com o fato de ser a única da família que não foi
registrada nem batizada, vendo-se impedida no exercício da parentalidade (do ponto de
vista legal), não podendo registrar o próprio filho, bem como na prática da parentalidade
(não poderia viajar para São Paulo, bem como teve dificuldade para chegar ao hospital
no Recife). No entanto, foi capaz de construir a experiência da parentalidade, assumindo
o lugar de mãe.
Eu guardo uma mágoa (dos pais)... tu sabe porque que eu guardo essa mágoa?! Por causa
que eu não fui registrada, eles nunca me batizaram. (...) Lá é assim, tem que batizar lá pra
ter o batistério pra fazer o registro. (...) Pra eu viajar eu preciso dos documentos, não
posso viajar sem os documentos. Pra eu viajar com ele (Gabriel) tenho que levar os
documentos da minha outra irmã, aí isso é ruim, né?! Eu já queria levar o meu mesmo.
- Você pensa em engravidar novamente?
(balança a cabeça, indicando que não)
- Por que não?
Sabe por quê? Por causa que eu não tenho documento (...). Eu quero registrar ele
(Gabriel), batizar e me batizar também.
- Gabriel não é registrado?
Não. Tonho foi registrar ele, mas disseram a ele que tinha que ter os meus papéis
também... Disseram que não podia só no nome do pai não. Ele saiu foi triste de lá....
No caso de Renata, parece que a “aposta” de vida que sua mãe fez quando
deu à luz foi concretizada com o registro assim que a filha saiu do hospital (exercício da
parentalidade). Pontua-se o aspecto intergeracional da repetição dessa “aposta”, onde o
batismo da própria mãe diante da misteriosa doença parecia representar um tipo de
nascimento, confirmando o registro de vida.
(...) Eu me lembro assim, quando eu era novinha eu quase que morria.
- O que houve?
E eu sei! levaram eu logo pra igreja, pra batizar, foi que botaram esse nome meu, de
Magdala. Diz que Magdala é uma santa, botaram neu esse nome. Porque disse que quando
eu era novinha eu quase que morria sem batizar. pra num morrer pagão, levaram logo pra
batizar. Aí depois que batizou eu num morri.
De modo a garantir um aspecto da prática da parentalidade, alguns pais
precisaram se afastar por motivos econômicos, impossibilitados que pareciam de
assumir o lugar de provedor - a paternidade parecia associada à materialidade, ao
sustento financeiro. Pontua-se, no entanto, que a prática da parentalidade diz respeito
não aos cuidados físicos, mas também psíquicos. Precisando se afastar devido à falta
real, o pai corre o risco de se afastar também em sua presença real, bem como
imaginária e simbolicamente. Destaca-se a dialética: precisar se afastar para garantir a
sobrevivência, correndo o risco de comprometer a existência.
A pobreza, a falta real, pode se associar à falta simbólica e afetar
negativamente a interação da díade e a estruturação infantil (a falta do pai e sua
conseqüência à díade será abordada no terceiro tema). O afastamento paterno pode ser
mais perigoso se ocorrer em momentos cruciais à tríade (por exemplo, no desmame),
principalmente se outra figura não puder assumir a função paterna.
O marido de Eva, pai de Fátima que precisou afastar-se da família por
motivos novamente materiais (sustento da família), dois meses depois do nascimento da
filha, passando a morar só em outra cidade, em busca de trabalho.
De modo análogo, o pai de Gabriel parece ter deixado a díade em pelo
menos duas ocasiões. Maria e Gabriel pareciam ter adoecido juntos.
Quando ele (Gabriel) nasceu eu fiquei na casa da minha mãe por três meses. depois,
depois ele me deixou, sabe, foi pra Petrolândia, aí ficou trabalhando. (...)
- Quanto tempo ele ficou lá em Petrolândia?
Ele tinha me deixado com o menino. Aí eu fiquei na casa de mãe, aí depois de um tempo
ele voltou, cinco meses, ele veio, ficou doidinho pelo menino. A mãe dele ligando:
“olhe, o menino ta sabido, o seu filho é sadio” (a sogra de Maria dizendo ao filho, Tonho);
“ai mãe, to doidinho pra ver meu filho” (Tonho respondendo à mãe). Aí pronto, depois
ele veio. (...) voltemos. Ficou ele, eu e o menino agora. Num instante ele veio. Ele disse
“meu filho é minha vida... meu filho é minha vida”.
- E na época que você e Tonho ficaram separados, como foi para você? Você teve alguma
dificuldade com Gabriel ainda bebê?
Eu fiquei, eu fiquei... tão assim, sei lá... Que eu gosto muito dele... Fiquei sei , não
queria comer. Quando você gosta de alguém, né?! (...) Depois que ele (Gabriel) adoeceu
só queria saber do peito, mas quando ele tava sadio comia tudo de panela... eu dava a ele,
foi logo quando ele adoeceu, sabe, e ele o quis saber mais de comer, não quis saber,
quis saber mais de peito, de peito... (...) Eu dizia a ele (marido) que o menino tava doente,
tudo... e aí ele dizia a mim “como é que eu vou para aí, por causa que aqui eu tô
ganhando bem, tô trabalhando”...
Bela, mesmo tendo passado ou passando fome, dizia preferir a atenção do
marido. Chamam-se atenção para a ausência do marido/pai e sua repercussão à díade
num momento essencial à entrada de um terceiro, por ocasião do desmame.
- Nesses primeiros meses com Ian, você se sentia estressada?
Não me sentia estressada, muito calma, porque meu marido me dava mais atenção, mais
carinho e agora não, ele vem estressado do trabalho, quando chega já é falando.
- Desde quando que isso mudou?
Quando ele começou a trabalhar, estressou muito.
- Faz tempo que ele começou a trabalhar?
Faz não, faz uns sete meses. (...) Ian tinha uns cinco, seis meses, por aí.
- Mas mesmo antes do emprego, quando vocês passavam dificuldades, ele era estressado
ou não?
Era, assim muito pouco, né, muito pouco. Às vezes ele era estressado também assim
porque num tinha trabalho, se aperreava, né. E quando ele tem trabalho ele se aperreia do
mesmo jeito!
- Nesse tempo que faltava trabalho pra ele, quando vocês passavam dificuldades, ele
conseguia lhe dar carinho?
Conseguia. Conseguia, dava carinho, dava atenção.
- Diferente de hoje em dia?
É, muito diferente!
- Então mesmo passando dificuldades, faltando o mais básico, você sentia que havia
carinho entre vocês dois?
Era, e hoje não.
- Como você se sentia, como era o relacionamento de vocês nessa fase em que faltava
comida, trabalho pra ele?
Muito triste, né, porque eu fica pensando assim “será que o meu filho vai nascer e num vai
ter nada pra gente comer ou dar a ele?”, ficava pensando assim... Mas a gente se amava,
mesmo com as dificuldade. Hoje em dia eu num sei mais...
- É isso que eu tento entender, porque você fala como se os problemas de hoje em dia lhe
afetassem mais que os de antigamente!?
(Ri) É, os problemas de hoje em dia me afetam mais que os problemas de antigamente!
- Por que?
Porque eu num, porque assim, eu sabia, que eu acho que ele ia fazer alguma coisa pra
num deixar faltar, né?! Eu ficava assim, eu digo “pôxa, ele tem que ter responsabilidade,
agora ele sabe que ele tem um filho pra cuidar”, né?! Num vai deixar faltar. eu num...,
mas agora é muito diferente.
- Você trocaria o que tinha naquela época, mesmo faltando comida, pelo que tem hoje?
... Trocava.
- Mesmo passando dificuldade?
Mesmo. Eu queria mesmo era o carinho dele, a comida a gente se vira... sempre se virou...
Sub-tema: vivência da parentalidade por meio da interação mãe-criança no
domicílio, enfatizando os sinais interacionais e a alimentação.
Este sub-tema se refere ao lugar que os pais destinam ao futuro bebê,
intimamente relacionado à transgeracionalidade e à parentalidade imaginada antes do
nascimento e exercida com a vinda do bebê real.
46
A construção de um lugar para o filho no psiquismo materno é fundamental
porque no confronto com o real do corpo do bebê, na constatação de sua prematuridade
ou enfermidade, de modo que a mãe possa constituir um todo imaginário que lhe
permita ser um sujeito.
29,46
O destino do bebê, como futuro sujeito, é escrito nas marcas fundantes que
imprimem, sobre o seu corpo no real, os atos dos adultos em relação a ele, atos cujo
conteúdo e qualidade irão apresentar diferenças em função daquilo que significar para o
adulto a imagem que nesse objeto-bebê que tem diante de si.
41
O corpo é
protagonista de uma história que antecede a existência real.
45
Apesar de Renata ter nascido supostamente prematura e frágil, Magdala
apostou na recuperação da filha. Ressalta-se a importância desse movimento, dessa
“aposta”, antecipação de vida, tendo em vista os efeitos constitutivos para Renata.
Jerusalinsky
105
destaca que a necessária ilusão antecipadora criada pela mãe e seus
efeitos constitutivos para o bebê podem estar em risco quando só se espera pela morte.
Era muito pouquinho demais (o peso da criança). A cabecinha da bichinha era, parecia com
um coquinho. Inté meu marido quando foi visitar eu disse que ela num ia nem se criar, de tão
pequenininha que ela nasceu. (...) Eu disse que ela ia se criar. (...) Num sei, eu achava que
ela ia se criar. As mulher tudo em Palmares, no hospital lá, elas dizia pra mim, na
incubadora, elas dizia pra mim “ó, mulé, tua menina, ela num vai se criar assim não, mulé”.
Eu dizia “vai mulé, eu num sei, quem sabe é Deus se ela se cria ou não, quem sabe é Deus se
ela se cria ou não”.
Supostamente “chocada” com o bebê real, sem encontrar um lugar para seus
cuidados com a filha, pois não tinha leite para amamentá-la, Magdala foi mandada para
casa. Questiona-se o papel exercido pela equipe de saúde da maternidade, auxiliando ou
não esta mãe a viver o luto do bebê idealizado e a investir no seu bebê real. Estima-se
que algum tipo de obstáculo tenha sido posto por essa equipe, supostamente não
incluindo a mãe nos cuidados com o bebê, talvez vista como “desnecessária” no/ao
hospital, já que não tinha leite (alimento real).
Eu passei um tempo com ela, depois as enfermeira perguntou por que eu num de
cumê a ela, eu disse que num tinha mais, porque eu num tava cuidando dela não, quem
tava cuidando dela era as enfermeira lá, eu num fazia nada com ela. Elas disse “apois,
mãe, a senhora vai pra casa, tomar conta dos outros na sua casa, quando ela tiver de
alta a gente telefona pro hospital”. Aí eu disse “apois tá certo”, aí eu vim me embora. (...)
Quem tava cuidando dela era as enfermeira. Elas num deixa eu... ela nem dormia
comigo. Ela ficava na incubadora. Assim mesmo eu dava cumê a ela, à noitinha, a ela.
Quem dava banho era as enfermeira mesmo. Quem dava o remédio a ela era as
enfermeira. Eu fazia mesmo era lavar as mão, vestir aquela, aquela bata, lá no
hospital, e entrar e pegar nela bem pouquinho de nada, pegava ela as enfermeira dizia
“ta bom, mãe”. Pegava, botava lá de novo.
Lacan
55
destaca que, embora o objeto real não seja indiferente, não
necessidade de ser específico. Mesmo que não seja o seio da mãe, nem por isso ele
perderá algo do valor de seu lugar na dialética sexual, de onde se origina a erotização
da zona oral. Não é o objeto que desempenha, em seu interior, o papel essencial, mas o
fato de que a atividade assumiu uma função erotizada no plano do desejo, o qual se
ordena na ordem simbólica” (1957: 188).
55
Desse modo, para a criança, não importa o alimento que a mãe oferece, mas
a posição a partir da qual ela faz essa oferta. A mãe pode alimentar a criança a partir de
seu corpo, situada apenas no eixo da necessidade, sem veicular afeto, ou oferecer uma
chupeta e satisfazer a criança, na dimensão do “dom”.
56
Silenciamentos, emudecimentos, repúdio com a morte e imperativos
superegóicos (o que e como devem fazer, sentir) obstaculizam os pais na construção de
significados, não permitindo articular simbolicamente a realidade do recém-nascido e a
representação do trauma.
47
Duradouros e patogênicos são os efeitos que esse trauma
provoca na organização psíquica infantil e familiar,
51,106
marcando-os pela falta de
palavras subjetivantes.
Algo parece ter sido interrompido entre Magdala e Renata nesse início de
vida, sendo de alguma forma retomado, talvez com prejuízo, com a intervenção da lei,
representada pelo Conselho Tutelar.
(...) bem cedo eu fui bater no Conselho (...). eu cheguei lá, eu perguntei, eu disse
“óia, a mãe da menina sou eu, que ta de alta”.
- E o nome dela, foi dado antes dela nascer ou depois?
Depois quando ela nasceu.
- Ainda no hospital ou em casa?
Foi em casa, quando eu fui fazer o registro dela, quando ela chegou. Ficou muito tempo não
pra tirar o registro dela. (...) Ela tinha saído do hospital, mas me deram um papel pra
registrar ela. Quem foi foi o meu marido tirar, eu num fui não. Ele foi no mesmo dia.
- Quem deu o nome?
Fui eu.
Ao contrário de Magdala, Izabel, mãe de João, parecia ressentir por ter tido
que se separar do filho, mesmo que por algumas horas.
(...) E com dezenove dias de resguardo passei esse sufoco todinho. Deixei esse menino em
casa, novinho ainda. ... Aí quando foi à noite, umas onze e pouca da noite,veio um médico
dele pra ficar com ele (marido) no hospital pra poder eu ir pra casa. (...) É, meu peito tava
cheio, ele num podia mamar e eu preocupada comigo e com ele, porque ele era muito
novinho. Eu tava também preocupada com o meu marido porque via a hora dele apagar. (...)
Tinha que ajudar o pai, né, queria tar com os dois, mas que nesse momento eu não podia
ficar com os dois, né?! Tinha que deixar um e vim ficar com ele, deixando ele no estado
como ele tava e vim cuidar do neném porque num tinha quem cuidasse, né?! O dico
ficou com ele (com o marido). (...) Depois disso (internação do marido/separação do filho)
eu só tive leite por mais dois meses, secou.
Nas famílias acompanhadas, as quais tinham condição socioeconômica
precária, a experiência e a prática da parentalidade
incluíram a recorrente preocupação
com a alimentação da criança, e o temor da repetição da experiência de fome. Esse fato
pareceu desembocar em duas atitudes diferentes: obstáculo à criação do filho e/ou
amamentação, ou, pelo contrário, como incentivador do aleitamento. Em relação a esse
último aspecto, no caso de Bela, o leite materno passou a figurar como único alimento
oferecido diante do receio ou da falta real de comida, bem como da perspectiva do
adoecimento infantil.
(...) Quando ele ficar doente, como agora mesmo, agora ele ta meio adoentado, quis o
quê, quis peito, né?! E se eu tirasse ele do peito, ele ia ficar como, ia ser pior ainda,
né?! (...) Todos os menino ficava doente, né?! eu digo, se o meu ficar um dia? (...)
Porque também os meus irmãozinho também, assim, tem uma dor de cabeça, tem uma
febre, uma coisa ou outra, ficava sem comer, dava o peito, aí pronto. Eu nunca vou deixar
de dar o peito a ele. (...) Vou deixar ele mamar até quando ele num quiser mais. Num vou
deixar de dar não.
Algumas mães pareciam delegar a prática da parentalidade (tarefas
cotidianas que os pais devem executar junto à criança na área dos cuidados parentais -
físicos e psíquicos)
42
a outra(s) pessoa(s) (familiar ou não).
(...) Quando quer brincar, brinca, quando num quer botar pra chorar... Paula (irmã de
Renata) bota ela no braço, vai andar, vai brincar com ela, vai andar com ela... (Magdala)
(...) Muita gente pega ela lá, minhas amigas, os tio dela que é pequeno pegava ela... (...)
Eu ia pra dança, quando minha mãe queria ir, eu pagava pra ficar, pros outro ficar com
ela, pra eu sair. Eu pagava cinco Reais, dois, pra eu sair, deixava com minhas amiga...
a gente nunca sabe o que elas faz, né, passava a noite com as criança, né?!
- Era muito comum você fazer isso, deixar ela com outras pessoas?
Eu fazia sempre. Porque, minha mãe fica com ela e com tudinho pra eu sair, que tinha
vez que ela queria sair pra se divertir também né. eu também gosto muito de sair,
não queria ficar em casa. Aí quando eu não tinha dinheiro eu arrumava emprestado...
arrumava emprestado e pagava pra eu ir. (Mina)
(...) Eu ia pra roça e deixava ele com as menina, né, com as menina pequena. (...) Uma
tem oito anos, aliás, nove anos, e a outra tem treze. Deixava elas cuidando dele,
passava muito da hora de dar comidinha dele. Eu ia pra roça, porque desde que meu
marido adoeceu de diabetes e eu tive que ajudar ele. (Izabel)
Mina, diferentemente de Izabel, parecia delegar não somente a prática, mas
também a experiência da parentalidade à sua própria mãe. Ana Maria parecia confusa
quanto ao seu lugar, ora delegando à mãe, ora “correndo atrás do prejuízo”.
Para Mina, a prática da parentalidade parecia estar mais ligada ao aspecto
material. Quando procurou seu pai, a única coisa que parecia querer dele era dinheiro.
Mas eu vi ele (pai) duas vezes. Uma vez fui lá, ele me deu 45 Reais e outra vez ele me deu 30
Real. Mas daqui pra eu não vi ele mais não. Se eu ver ele assim na minha frente eu não
conheço ele mais não.
- E o teu padrasto, como é?
Ele é bom pra mim, né?! Dá as coisa a eu, o que eu quero ele me dá quando eu peço.
- E o pai dela (Pandora) te ajuda de alguma forma?
Não dá nada. (...) eu morava mais a mãe dele, na casa da e dele, ele não queria
trabalhar, aí eu peguei e fui me embora pra casa da minha mãe. Aí quem roupa, calçado,
cumê, tudo, é ele (padrasto) e a minha mãe... a eu também.
(Quando estava grávida) Tudo que eu pedia ela me dava. Ela sempre... faz o que eu quero...
ela é uma mãe muito boa pra mim... Se fosse outra o tava... E ela as coisa a eu, faz
questão, num reclama, nem nada.
- O que você achou diante do fato da sua mãe querer que você tirasse os bebês?
Por que... Ela sabia que eu ficando grávida quem ia criar era ela. Porque o pai deles num
trabalhava. quando eu ficasse grávida era ela quem ia criar. Ela e o meu padrasto, quem
ia dar as coisas era ela. Aí ela achava que eu ia passar dificuldade.
- Você então acha que sua mãe é uma boa mãe, e você, o que pode dizer de você mesma
como mãe? Que tipo de mãe você é?
Sei lá, acho que eu sou boa, né?!... Eu acho ruim assim porque euo dou as coisa pra eles,
não dou as coisa pra eles. o tenho dinheiro pra comprar uma roupa, não tenho dinheiro
pra comprar nada, sempre quem compra é ela, aí eu acho ruim porque não é eu que compro.
Essa idéia de que parentalidade está associada ao aspecto material parecia
também presente em Ceça, mãe de Mina. Uma de suas visitas à filha e neta
hospitalizadas foi documentada no diário de campo:
Ceça falou também que o pai das crianças foi na casa dela, um mês depois que ela o avisou
sobre a internação de Pandora. Em seu discurso bastante emotivo, cheio de gestos, Ceça
disse que ficou com raiva da demora dele para ir e disse a Sandro(pai de Pandora) que a
menina havia morrido, que não haveria missa de dia e que o enterro havia ocorrido.
Sandro disse que era mentira, pois ouvira dos vizinhos que a criança estava internada no
Recife. Ceça disse que deu uma bronca nele e que ele apenas riu (“como sempre”, disse ela,
falando de Sandro e Mina, que nesse sentido eles são iguaizinhos). Por fim, Sandro deixou
R$ 20 para o menino.
Bela passou por experiências diferentes com seus dois filhos, no que
concerne à prática e experiência da maternidade. Quando sua primeira filha tinha meses,
precisou dá-la à ex-sogra. No entanto, com Ian a experiência foi diferente.
Ela (filha) tinha uns dois meses, não, acho que três pra quatro meses. com a situação que
ele (pai da menina) não queria dar nada a ela, não dava nada a ela, ... aí eu peguei, com oito
meses eu dei a ele, quando ela completou oito meses. Eu levei a menina lá, na casa da mãe
dele. Deixei ela lá e depois disse que ia voltar.
- Como foi pra você tomar essa decisão de deixar sua filha lá?
Foi muito dura. Foi, porque ou ela, ou eu bem comia, né, ou a gente bem, assim, ou ela é
bem cuidada ou num é, porque nesse tempo a gente num tinha nem cumê pra gente, como era
alimentar ela? O peito já com oito meses de idade, num dava nada, né, porque mijou,
pronto, foi embora. foi muito ruim, foi muito duro, eu num gostei, não gosto, né, mas num
podia fazer nada. Porque todo dia eu incomodava os povo, os vizinho, né, arruma leite,
arruma açúcar, e os povo ficava falando, (...) mas não sabia eles que a gente não tinha
condições.
- Como foi cuidar dele (Ian) nesses primeiros dias, nesse primeiro mês?
Era muito difícil assim, porque, assim, porque da minha filha muito pouco eu tomei conta,
né, no caso o que, assim, que eu ficava muito complicada, quando era de dia, quando ele
chorando, o que foi, que eu num sabia, ?! ficava muito difícil pra mim cuidar dele
por causa disso. Eu num entendia, né, o que ele sentia, o que ele tinha, essas coisa assim.
- Como foi com sua filha?
Com a minha filha foi muito diferente porque raramente, que quem cuidou dela foi a minha
sogra, quando ela era novinha. Eu fazia dar o peito, . As comidinha que ela dava, a
água, suco, era tudo ela que dava.
- A sua outra sogra?
Era. E essa não, ela que disse “você, você teve filho, você que vai cuidar”. pronto, eu
cuidei. Pedi pro tempo passar muito rápido, mas passou tão rápido que eu nem, assim, tive
tanto tempo de cuidar dele quando era novinho. Num sei se eu deixei, passe logo o tempo,
que esse menino ande, aperreie, mas o quê... Foi, pra mim passou muito rápido. Quando eu
vi, ele já tava grande já.
Rotenberg & de Vargas
107
destacam que a partir de queixas sobre a
alimentação da criança (“ela não come”), as mães forçam o filho a comer de qualquer
maneira ou substituem a comida por mamadeira ou leite. Na ânsia de que a criança fique
alimentada, passam a utilizar práticas alimentares inadequadas, associadas ao consumo
do alimento “básico”, com destaque para os alimentos industrializados (leite em pó,
macarrão instantâneo, achocolatados, iogurtes e biscoitos salgados).
107
Confirmou-se o estudo de Rotenberg & de Vargas,
107
acrescentando-se que
algumas mães passaram a fazer uso de “massas” (engrossantes, farinha da terra)
acrescidas ao leite artificial, mesmo sem queixas de alimentação. Maria e Mina
alimentavam os filhos com macarrão instantâneo, “Danone”, pipoca, salgadinhos,
enquanto a “massa” foi referida por outras mães, como Rosácea, Mina e Eva.
No entanto, além do aspecto cultural/social destacado por Rotenberg & de
Vargas,
107
destaca-se ainda outro possível enfoque por trás dessa prática: o uso do
alimento como resposta ao desconforto do filho, pelo fato da mãe mesma não conseguir
dizer “não” à criança ou não conseguir acalmá-la com outros recursos. Nesses casos, o
alimento parecia deslocado de sua função nutritícia.
(...) Essas pipocas salgadinhas, sabe, era o que eu dava mais a ele. Essas pipoca amarela,
num tem?! Que é bem salgada... eu dava a ele. (...) Pirulito, bala também, essas coisas.
(...) Ele deixava a comida para comer delas..., ele ficava com fastio, não queria comer,
queria saber daquilo ali..., aí foi isso..., mas agora eu entendendo, agora eu não dou
mais esses negócio de pipoca, salgadinho, vou ficar cuidando da alimentação, feijão
essas coisas, macarrão, essas coisas, fazendo cumê, né?! Mas pipoca, essas coisas o
vou dar mais a ele não. (Maria)
Porque em casa eu fazia assim: era mingau, quando ela não queria o mingau eu fazia o
leite com a massa, ela tomava. Tomava mais ou menos dois dedos, assim, bem, a
barriga chega ficava toda estufada. (Rosácea)
- Ele ta com fome?
Ta nada! Mas é assim, toda vez que eu der o leite a ele tem que ter peito, peito.
- Por que você acha que ele pede tanto o peito?
Eu num sei, acho que já é mania, já é costume. (Bela)
- você disse que pra uma criança de oito meses o peito num é suficiente. Continua
pensando assim, você acha que isso também é válido pra Ian?
Com certeza. Com todos, é assim, com todos os bebês é assim, né? Mas acho que nunca
vou deixar não de dar o peito a ele não.
- E se ele continuar nessa dificuldade pra comer, se só quiser o peito?
Eu vou dar só o peito! Vou fazer o quê, se ele vai querer só o peito?! (Bela)
Destaca-se mais um aspecto: o alimento artificial sendo usado diante da
desvalorização da figura materna (em detrimento do leite do peito). Almeida
73
enquadrou este aspecto como um indicador de vulnerabilidade frente a problemas de
alimentação infantil.
É, ela nasceu magrinha, desnutridinha... Ela nasceu assim, daquele jeito, magra, eu
ficava assim olhando “meu Deus, minha filha é tão magra! Eu quero que ela engorde”, eu
dizia. Meu leite tava deixando ela mais magra ainda. (Rosácea)
- Porque você começou a dar o NAN 1?
Porque eu, porque foi mesmo assim (...) “essa menina é maguuuiiinha, dai leite a ela”,
eu ficava assim “não, não, vou dar não porque faz mal a ela”. “Não, pode dar, pode dar”,
eu peguei e fiz. Agora eu não sabia que ia fazer mal, né... que ia dar disenteria... Eu
achei que ia fazer bem a ela, ia engordar... (Rosácea)
Ou, de modo oposto, o leite materno sendo usado diante da suposta recusa
da criança em comer outros alimentos, a mãe aparentemente reforçando a dependência
do filho no peito.
Logo quando ele começou a adoecer... eu dava comida a ele e ele não comia, ele jogava
fora a comida (vomitava), eu tentava, mas ele não sustentava, não sustentava de jeito
nenhum, pronto, ele ficava no peito, no peito. (...) Ele queria saber de mamar,
mamar, mamar, mamar, ele não queria comer nada, eu dava o leite a ele, ele não queria,
dava comida a ele, ele não queria, nada, só mamar, só mamar. (Maria)
- Quando ele não queria comer, você tentava novamente ou não?
Tentava, mas ele começava a chorar, pronto, eu parava. pronto, dava o peito a
ele, ele queria o peito, o peito, mas de comida de panela assim ele come, eu dava
a ele, ele comia... Mas depois que ele começou a inchar ele não quis mais as comida de
panela, só ficou mamando mesmo. (Maria)
- Aí ele ficou só no peito...?
no peito, ele não queria comida, nada de panela, mãe falou assim ‘ta vendo nega, se
você num tivesse dado a comida no peito ele ia morrer de fome’ (...) que ele não quer
comer outra coisa, só quer saber de peito, só do peito mesmo.
- Não entendi, sua mãe achou ruim ou bom você ter posto ele no peito?
Achou bom, por causa que... se eu tivesse tirado do peito né (...) ele tinha morrido, ele não
queria saber de comida de panela, de nada, só de peito, só de peito, foi o que sustentou, foi
a alimentação, foi o peito. (Maria)
Comigo ele num come, que é a mania dele no peito, né?! Ele fica assim, ele sabe que sou
eu, aí se ele num comer eu vou dar o peito a ele. ele sabe e num quer comer. (...)
Com qualquer pessoa que der a comida a ele, ele come, mas comigo ele não come. (Bela)
A amamentação parecia ser reforçada por Bela talvez projetando em Ian
experiências trans e intergeracionais, como o medo da doença ou da fome e o receio de
perder mais um filho diante da falta de comida.
às vezes eu tenho medo de tirar o peito, porque quando fica assim doente quer peito,
né?! Não come nada! eu dou o peito a ele. (...) Sempre tive vontade, nunca tirar ele do
peito não. Quando ele ficar doente, como agora mesmo, agora ele ta meio adoentado,
quis o quê, quis peito, né?! E se eu tirasse ele do peito, ele ia ficar como, ia ser pior
ainda, né? (Bela)
- Será que você temia que o que aconteceu com sua filha pudesse...
É, também! Porque também os meus irmãozinho também, assim, tem uma dor de cabeça,
tem uma febre, uma coisa ou outra, ficava sem comer, dava o peito, pronto. Eu nunca
vou deixar de dar o peito a ele.
- Será que você temia que pudesse faltar alimento para Ian, como você esteve ao longo da
sua vida acostumada a ver?
... , pensei muito nisso. (Nesse momento Ian pede o peito e Bela obedece,
comentando: “Ele só quer peito, ta vendo?!”). (Bela)
O medo de Bela de repetição da experiência de perda de um filho para a
sogra parecia ser vivido de modo ambivalente, pois ora praticamente oferecia a criança
à sogra, se divertindo em ameaçar entregar o filho à avó, ora reforçava a alimentação ao
seio. Ian, em contrapartida, chamava indistintamente mãe e avó de “bó-bó”.
- E se ele continuar nessa dificuldade pra comer, se só quiser o peito?
Eu vou dar o peito! Vou fazer o quê, se ele vai querer o peito?! Mas eu vou tentar muito,
vou passar assim tempo sem dar o peito a ele, pra ver se ele come, vou deixar uns tempo ele na
casa da minha sogra pra ver se ele come.
- Deixar ele uns tempos na casa da sua sogra?
É porque é assim, num é perto da minha casa?! toda hora, toda vez que marcar a hora dele
comer eu vou dou a ela pra ele comer. Depois quando ele parar de comer eu vou e pego ele
de volta. (Bela)
Os sinais interacionais das crianças pareciam na maioria dos casos tender
para aspectos silenciosos,
W
diante dos quais as mães descreveram seus filhos como
“quietinhos”, dormindo muito e solicitando pouco, principalmente depois que
perceberam a criança doente. Este aspecto será retomado no terceiro tema.
Essa menina faz mais dormir. Só faz mais dormir, que ela dorme muito. (...) Ela dorme
muito! (...) Sempre foi assim, desde que nasceu ela é uma menina dorminhoca. É dela
mesmo, sempre que foi assim. (Magdala)
- Na sua como casa, como é que ela faz quando está com fome?
Ela num chora não, é quietinha. (...) Toda vida essa menina foi assim! Desde que essa
menina nasceu, que é desse jeito. ... (...) Vivia mais dormindo dentro de casa.
- E quando ela ta com a fralda com xixi, com cocô?
Aí num diz nada! (Ri)
- Quando ela ta abusada com alguma coisa, como ela lhe diz?
Também num diz nada. (Magdala)
Ficou triste, não era mais aquele menino mais alegre. (...) Num dá risada assim que ele ria
para as pessoas, num, num... alegre mesmo, ficou assim um menino triste. Ia para casa de
mãe e ficava desanimado, num brincava mais direito com os outros meninos, sabe, com
meus sobrinhos. Eu sou tia também, sabe?! Eu tenho outra irmã, eu tenho uma.
num brincava com eles. Ficava tristinho, pra lá, deitado numa cama... Quando passava
pelo quarto para ele assistir um desenho, alguma coisa... ficou triste. Aí pai dizia: “ai meu
Deus do céu, esse menino era tão animado e ta triste desse jeito, num ficava quieto e ta
triste”. “Aí ta vendo, pai, ele ta doente, ele ta mesmo, ta desanimado, ele ta, ta
desanimado demais” (Maria)
W
Remete-se aqui à série silenciosa descrita por Cullere-Crespin.
6
Essa autora pontua que os sinais
silenciosos geralmente são despercebidos ou vividos como positivos (a criança quietinha, que não
reclama, não dá trabalho), mas que representam a falta de apelo da criança, a qual passa a viver na inércia,
no vazio, sem significado, sem apetite. Esse tipo de comportamento geralmente é observado nas crianças
desnutridas, que passam a agir com atonia geral, pouco demando e pouco sendo interpeladas, num círculo
vicioso.
Ela só queria ficar dormindo. Aí acordava, chorava, mas só pra botar a chupeta na boca...
Eu tentava dar mingau a ela, ela não comia... (...) Só fazia dormir, somente... (Mina)
Ela chorava, o que ela fazia era chorar. Assim, ela chorando eu sabia se ela tava com
fome ou se ela tava com sono ou se ela queria que a gente conversasse com ela, ficasse
com ela, brincando com ela, através do choro dela. Sem ela querer nada, ajeitava ela, ela
querer, essas coisa que nós fazia, ela chorando. eu ia testando se ela queria dormir ou
comer, alguma coisa, através do choro. (Ana Maria)
O círculo vicioso “demandar - não ser atendido” aparece na fala de Ana
Maria:
Às vezes ela chora, mas pára depois por ela mesma... Eu acho que ela sente falta, né,
porque quando eu to perto dela ela num chora, chora assim, de vez em quando, mas é
difícil ela chorar, porque sempre quando ela vai chorar eu pego ela, eu acho que ela
chora por isso, porque ela diz assim, é, eu acho que ela fica assim “ela num ta aqui pra
me pegar, toda vez que eu choro ela me pega”, ela bota pra chorar, que ninguém vai
pegar ela, que eu num vou pegar ela, que eu num por perto pra pegar ela, aí ela
termina dormindo. quando eu chego, que ela acorda, ela arregala o olho assim, às
vezes dava aquela risadinha, bem fraquinha, aí eu vou e pego ela, ela fica toda alegre.
A maior parte das mães referia que em casa a criança comia aos poucos,
aspecto esse também observado no hospital. Questionadas sobre como os filhos
comiam, responderam:
Acho que ela come de pouquinho em pouquinho, num é?! Ela num é uma menina de comer
a comida tudinho de uma vez não. Ela é uma menina que sempre a pessoa tem que ta
dando uma coisinha a ela. (...) Ela tem que deixar aquele pouquinho de comida.eu fico
dando de tiquinho em tiquinho, aí ela toma tudinho depois. (Eva)
(...) aceitava daquelas mamadeira bem pequena, tipo chuquinha, eu enchia ela e ele
tomava de duas vez, assim, um pouquinho agora, daí a pouco tomava o outro resto.
(Izabel)
... Quando chegava na hora do almoço, de almoçar, eu botava pra mim e botava pra ele.
Eu pegava, almoçava aí dava a ele. Ele comia duas colher e pronto, pra ele tava cheio.
(...) Muito pouco ele comia. Bem pouquinho, umas duas colher tava bom pra ele. Depois
de uns tempo é que ele queria mais. (Bela)
Algumas mães pareciam usar o corpo da criança como indicador de
fome/saciedade. Destaca-se o perigo desse tipo de leitura, principalmente diante de
sintomas da desnutrição, como o edema, ou até mesmo diante da infestação por vermes.
(...) Eu sempre sei quando ele ta com fome. (...) Pelo choro dele, pela barriguinha
murchinha. (Bela)
Mais ou menos quando eu vejo a barriguinha sequinha eu já to dando (comida). (Eva)
Tomava mais ou menos dois dedos, assim, bem, a barriga chega ficava toda estufada. Mas
a disenteria, aí quando eu olhava a barriga dela chega tava sequinha. (Rosácea)
Observação do diário de campo sobre Izabel e João: apesar de reconhecer que ele come
aos poucos, praticamente não insiste, parando logo de dar a comida, temendo que João
vomitasse, pois disse que a barriga dele está muito grande (inchada, porém a criança está
cheia de vermes) e cheia, pois ele havia tomado leite antes (às 15 horas e estávamos na
dieta das 18), porém, João ainda pedia mais comida, explicitamente, e come bem quando
ela volta a dar a comida. Relata também que a barriga de João está cheia porque ele não
arrota depois de comer, não solta gazes. E João continua pedindo comida.
O primeiro tema ilustra a complexidade trans e intergeracional familiar e a
riqueza de elementos que se conjugam nessa construção. Dentre esses elementos,
destacam-se experiências familiares maternas, o relacionamento com o companheiro, a
descoberta e o desejo com a gravidez, bem como os papéis assumidos pelos pais na
construção da maternidade/paternidade. As sub-categorias ilustram particularidades das
dimensões da parentalidade (exercício, experiência e prática da parentalidade) e seus
reflexos na interação mãe-criança. Enfatiza, portanto, a importância da pré-história do
sujeito e seus efeitos de inscrição significante na interação da díade. Reforça-se também
uma das conclusões de Rotenberg & de Vargas,
107
a qual admite que as práticas
alimentares são construídas a partir de diferentes dimensões que se entrelaçam (de saúde
e de doença, de cuidado, afetiva, econômica, etc).
O processo de parentalidade promove a re-atualização da engrenagem
psíquica dos pais, tomados pelo encontro consigo e com o filho. É necessário um outro,
provido de um aparato psíquico desejante, afetado pelo encontro entre a criança e aquilo
que a partir desta se re-atualiza em seu inconsciente.
104
Como destacado anteriormente,
o Outro só pode atender à demanda de alimento a partir de sua própria condição
desejante.
4.3 Temática 2 Vivência e retomada da parentalidade: interação mãe-criança ao
longo da hospitalização
- Sinais interacionais percebidos pela mãe, vividos no hospital;
- Adaptação da criança ao hospital em função do relacionamento com a mãe;
- Interação da díade entre si e com a pesquisadora: construção de uma terceira
história.
A hospitalização, tomada como processo envolvendo não a internação da
criança, mas todo o processo de pesquisa, a interação com a pesquisadora, pareceu
despertar vivências da mãe e da criança (lutos mal-resolvidos, temores), informando
sobre o passado da díade.
Maria parecia rivalizar com as outras mães da enfermaria do mesmo modo
que rivalizava com as irmãs e cunhadas. Parecia temer que a destituíssem da
maternidade, uma vez que mãe e filho não tinham os documentos de registro. Insistiu
para levar para casa os exames da criança, de modo a mostrar aos familiares, provando
por meio de um documento médico, que havia tomado conta do filho.
No início da hospitalização, Bela não conseguia se afastar de Ian, pois temia
que alguém pudesse levá-lo, roubá-lo. Parecia reviver experiências como a
separação/perda da filha para a ex-sogra, a perda (morte) do bebê no final da gestação, o
medo de perder Ian na sala de parto. Bela chegou a perder peso nos primeiros dias no
hospital, pois sequer descia ao refeitório para se alimentar. Chorou no primeiro contato
com a pesquisadora, falando que aquele era o dia do aniversário da filha que morava
com a ex-sogra, mas que não estaria com ela por estar com Ian. Talvez, em sua
ambivalência de sentimentos, Bela estivesse dividida entre deixar o filho no hospital,
ferida narcisicamente, mais uma vez se vendo implicada (“culpada”) na desnutrição de
um filho, ou, pelo contrário, não querendo largá-lo de modo algum, temendo perdê-lo
como “perdeu” a filha devido, supostamente, à sua “incompetência” materna.
A menina (filha mais velha) tava desnutrida, tava a mesma coisa dele (Ian), desnutrida,
vomitando, com diarréia. (...) Porque assim, eu num tava me alimentando direito, né, e
tinha o peito pra dar a ela. (...) Aí foi que “menina , ao pai dela, o pai dela ta aí, ta
muito bem”. (...) Internei ela, tomou soro, aí parou, né?! os médico passou os negócio
pra ela comer. Eu fiquei pensando “como eu vou dar isso a ela se eu não tenho nada?!”.
eu digo “oxen, num agüento não, mainha, mais não”. Aí minha avó foi, arrumou um
dinheiro pra eu levar ela pra lá. Aí eu levei ela...
- Você viu logo ele quando ele nasceu ou demorou?
Vi, peguei logo, eu tinha medo de alguém levar ele. Eu disse depois “vocês vão deixar ele
aqui, viu?!”
- Você tinha medo de que alguém o tirasse de você?
Tiiinha! (Ênfase) Porque, assim, onde, quando ele nasceu a mulher deu logo o menino
dela, né, e soube ade uma mulher que tinha tirado, pegado um menino daqui, tinha
levado. Aí eu fiquei com medo, né?! eu digo “oxe, o meu filho, Deus me livre! Ninguém
vai levar não!”.
(...) Porque aqui (IMIP) as menina tava comentando que é, pegaram dois menino daqui.
eu fiquei pensando “meu Deus, será que podem pegar vim meu filho também”, né?! “Eu não
vou deixar ele aqui sozinho não”. Quando eu dormindo eu boto assim, a mão por cima
dele pra ninguém vim escondido e pegar ele.
Transferencialmente, Bela parecia repetir com a pesquisadora o movimento
de “dar” o filho:
(Diário de campo) Ontem quando tirei fotos das mães, Bela foi a primeira a me pedir para
tirar uma foto, dizendo que gostaria uma foto comigo, me dando Ian para eu segurar. Ele
choramingou no início, sem entender nada, pois ela bruscamente o jogou em meus braços.
Ela havia me conhecido no dia anterior.
Apesar de reconhecer que Fátima costumava comer, tanto em casa como no
hospital de pouquinho em pouquinho”, bem como diante da emissão de sinais claros
de que a criança queria o resto da comida, Eva ou não os compreendia (hipótese pouco
provável, pois em outras ocasiões que não alimentares lia e respondia sem dificuldades
aos sinais da filha) ou tratava a alimentação com certo descaso. Talvez Eva, como uma
estratégia de defesa diante da falta de comida (em casa), negava os sinais da criança de
pedido por comida. Cogita-se que a violência diante das experiências de fome ao longo
de sua infância pode ter marcado esta mãe de tal modo que a reedição da fome através
da filha estivesse então sendo negada, visando a autoproteção.
(Diário de campo) Fátima toma a água que ae trouxe, mas continua chorando,
tentando pegar novamente a comida e a mamadeira. Eva não dá. A criança chora,
olhando e apontando para a mamadeira e para a comida, mas Eva não faz nada! Depois
de um tempo Fátima pára de chorar, desiste da comida e passa a chupar o machucado
dedinho.
(Diário de campo) Quando se senta com a criança, Eva não anuncia adequadamente o
alimento, nem o torna atrativo, bem como não deixa que Fátima o explore. Em
contraponto, quando diante dos brinquedos, os apresenta à filha, tornando-os atrativos,
estimulando a exploração da criança.. (...) A alimentação não parece ser tomada como
momento para trocas interativas, apesar da díade ter arsenal para isso. (...) Em todos os
filmes (observações filmadas) Eva o conversa com a filha ao longo da alimentação,
apesar de reconhecer os sinais interacionais desta e tomá-la como parceira de diálogos
em outras situações.
Ana Maria e sua mãe pareciam receosas em investir na criança ao longo da
internação, talvez temendo mais uma morte.
(Diário de campo) Falei com a avó de Mariana e ela estava animada com a neta,
achando-a mais sorridente e com a pele “mais limpinha(de fato, também achei isso).
Disse que pediu a Ana Maria para ela trazer dois ursinhos coloridos que Mariana gosta
muito. Finalmente algo para a criança, depois de tanto tempo! Parece que esperavam
Mariana dar um sinal de melhora para poderem investir mais explicitamente na criança,
como alguém que brinca e tem gostos.
Supostamente confusa e assustada com a maternidade, Ana Maria
freqüentemente se ausentava por longos períodos da enfermaria.
(Diário de campo) Ana Maria é muito defensiva e quase nunca está na enfermaria com a
filha. Ontem na entrevista ela foi muito superficial, falando como se não fosse nada cuidar
de uma criança tão doente e ferida, frágil.
(Diário de campo) são 13hrs e Mariana não comeu a mamadeira das 12hrs porque Ana
Maria ainda não apareceu. A auxiliar de enfermagem decidiu então dar o leite, ao que
Mariana aceitou bem, com boa troca de olhares com a auxiliar, parando para respirar e
sugar mais a mamadeira. Ela não vomitou depois da mamada.
Ana Maria é escorregadia, freqüentemente foge dos cuidados com a filha e dos encontros
comigo. É como se ela se protegesse disso tudo, da filha doente, do medo de perder uma
Mariana novamente. (...) Consegui retomar as entrevistas com Ana Maria. Ela me disse
que ficou a manhã quase toda no cabeleireiro e, apesar de saber sobre a febre e a diarréia
da filha que começaram no início da manhã, segundo ela mesma me falou, deixou a
criança aos cuidados de outros (outras mães e auxiliares de enfermagem), solicitando o
ReSoMal e indo para o cabeleireiro. Ela só pode fazer isso por defesa, porque não
acredito que faça isso por descuido nem por falta de interesse na criança, pois o discurso
dela é cheio de preocupações adultas. Às vezes acho que ela quer me chocar, mas sei que
é uma responsabilidade muito grande para alguém muito novo. Talvez ela peça uma
trégua de tudo isso, sem deixar à mostra seus medos. Acho que ela não tem noção de que
sai de perto da criança porque não agüenta, não suporta passar por isso como a mãe
passou com a irmã.
Algumas díades pareciam compreender e responder aos sinais interacionais
do parceiro numa comunicação diálogica,
11
onde a mãe se dirigia à criança atribuindo-
lhe um espaço temporal durante o qual o filho podia se organizar, responder e ser
respaldado. Díades como Izabel e João, Bela e Ian, forneceram importantes exemplos
desse tipo de interação.
No entanto, outras díades pareciam “duelar angustiadamente” ao longo da
alimentação, como Rosácea e Angélica, e por vezes Bela e Ian. A alimentação era uma
atividade tomada na maioria das vezes apenas em seu sentido funcional (ganho de
peso), reforçado pela equipe de saúde e tomado pelas mães como único ou principal
meio para saúde/alta hospitalar (este ponto será mais bem desenvolvido no próximo
tema).
Ansiosas para que a criança comesse logo, não montavam setting para a
alimentação, ou seja, o anunciavam a atividade nem o alimento, muitas vezes não
estavam posicionadas de frente para a criança, dificultando as trocas de olhares.
Também não deixavam que a criança interagisse com o alimento, pois temiam a sujeira
e o desperdício. Além disso, os utensílios para alimentação oferecidos pelo hospital
(colher e copo plásticos) pareciam inadequados ao tamanho da boca da criança e não
favoreciam a exploração do alimento. Assim, pouco se percebia essa atividade como
prazerosa, porém penosa e angustiante.
A hospitalização pareceu representar experiências diferentes para as díades.
Com a saída da mãe para outra atividade fora da enfermaria (refeições, banho), as
crianças reagiam basicamente de dois modos distintos. Algumas reclamavam
continuamente, solicitando a mãe, sem conseguir se distrair com qualquer outra
atividade, enquanto outras ficavam inertes, paralisadas ou acostumadas com a ausência
materna. Nenhuma das mães costumava verbalizar sua saída ao filho.
Algumas díades passaram a interagir de modo diferente ao longo desse
processo, evidenciando-se a construção de novos significados às manifestações do
parceiro, anteriormente não lidas ou sequer percebidas como sinais interacionais.
Evidenciou-se a descoberta de um outro que parecia desconhecido ou afastado. Destaca-
se o reflexo desse movimento na retomada de aspectos da parentalidade e filiação.
A evolução de Renata e Magdala aponta o movimento de passividade para
atividade, onde Renata passou a reclamar a presença materna, colocando-se como
demandante. Renata passou a reconhecer a ausência e a presença da mãe, chegando até
a montar uma brincadeira semelhante ao fort-da descrito por Freud.
33
A ausência materna que antes parecia ser vivenciada por Renata como
“susto” pela ausência abrupta do objeto, aos poucos, com a experiência de ver o
afastamento e o retorno materno no hospital, pôde ser resignificada.
Caminho distinto foi observado no caso de Ian e Bela. O recorte a seguir
ilustra como a criança conseguiu, ao final da internação, brincar só, “desgrudando-se”
da mãe, pelo menos no aspecto lúdico.
(Diário de campo) Bela dorme na cadeira e Ian observa o movimento da enfermaria
sentado no berço, sorrindo. Quando Bela acorda, ele pega a luva inflada que estava no
berço e brinca com a mãe e comigo, jogando a luva para ela e para mim, muito
sorridente, gargalhando. Ele parece melhorar a olhos vistos a interação com a mãe e com
o ambiente, passando a iniciar uma brincadeira, pois antes esperava pela mãe. Por fim,
no dia da alta conseguiu brincar só no berço enquanto sua mãe estava fora da enfermaria,
almoçando.
Pandora passou a estranhar as pessoas, querendo só a mãe:
- Pandora estranha alguém?
Ela?... Agora ela ta estranhando, né, porque hospital, né, só fica com a mãe... a mãe
na frente, né, não tem ninguém pra ficar com ela. Mas sempre quando ela (...) é pra eu,
pra avó dela e pra uma vizinha que tem , que cuida dela também, as coisa a ela...
gosta muito dela, aí ela vai. (Mina)
Mariana passou a “pedir” para ser reconhecida por Ana Maria, “pedindo”
colo:
(...) às vez ela bota pra chorar, eu vou ajeitar ela, ela num quer, às vezes ela quer que
eu pegue ela, num sei se ela ta a fim de ir pra fora, assim, andando, ela quer que eu pegue
ela e fique andando com ela ou senão pegue ela no colo, às vezes quando eu pego mesmo
ela, sentada ou em pé, ela fica quieta, querendo ir pro colo um pouco, porque também
ficar naquela cama, só na cama também, fica com o corpo doído. (AnaMaria)
Evitação e defesas contra entradas externas (João não aceitava outras
comidas, nem a voz de outros nos primeiros dias, Renata não aceitava o olhar e toque
externo), inibição das atividades exploratórias (Renata, Gabriel), tendência da criança
à auto-suficiência (o incessante chupar de dedo de Fátima), estímulo parental à auto-
suficiência do filho (Magdala, Rosácea), foram identificados por Almeida
73
como
indicadores de risco/vulnerabilidade frente a problemas de alimentação.
Esses comportamentos foram modificados em algumas díades ao longo da
hospitalização. Eva, por exemplo, passou a explorar e valorizar mais os sinais
interacionais da filha, aspecto este valorado por Almeida
73
como indicador de
resiliência.
A retomada da parentalidade mediante os sinais interacionais da criança e a
narratividade construída nas entrevistas pareceu ser compreendida/empreendida pelas
mães mediante diferentes aspectos: seja pela via do exercício (1), da experiência (2) ou
da prática (3), geralmente envolvendo culpa e reparação.
(1) Aí eu tenho que ir pra catequese pra me preparar pra me batizar... (...) quando eu
chegar eu vou estudar também. É por isso, menina, que eu quero ir embora logo, eu
tenho que estudar pra me batizar pra tirar os documentos... pra eu viajar eu preciso dos
documentos, não posso viajar sem os documentos. Pra eu viajar com ele (Gabriel) tenho
que levar os documentos da minha outra irmã, isso é ruim, né?! Eu queria levar o
meu mesmo. (Maria)
(2) - E aquilo que sua mãe falou: “Fabrício é meu, Pandora é de Mina”?
(Ri) É dela mesmo, ele.
- E se um dia você se casar?
Mas ela diz assim, mas ela dá. (ri) Mas eu levo só essa (Pandora).
- É? Você deixaria Fabrício com sua mãe?
Deixo! (Soa determinação)
- Por quê?
Porquê quando eu descansei dele eu dei a ela.
- Mas ela mesma não queria que você tivesse ele, não foi?
Não, foi essa (Pandora). Foi essa que ela num queria que eu tivesse.
(3) Eu vou cuidar bem dela agora, né?!
- E você já não cuidava bem antes não?
Cuidava, né, mas assim, sei ... Não deixar ela assim, na mão dos outros. (...) Eu ia pra
dança, quando minha mãe queria ir, eu pagava pra ficar, pros outro ficar com ela, pra eu
sair. Eu pagava cinco Reais, dois, pra eu sair, deixava com minhas amiga... a gente
nunca sabe o que elas faz, né, passava a noite com as criança, né?! agora eu não faço,
não vou fazer isso mais não. (...) Vou cuidar dela bem, vou parar de sair... Parar de sair
mais... Não deixar ela com ninguém mais. (Mina)
(3) - E seus planos são...
(...) Chegar em casa, ajeitar ele bem, cuidar dele.
- O que é “ajeitar, cuidar bem dele”?
Cuidar bem dele, porque de primeiro eu não ajeitava bem ele, não cuidava não.
- E agora, ajeitar ele, cuidar bem dele vai ser fazer o quê?
Ah!... Agora vai ser dar comidinha de panela... (Maria)
(3) - Mas a internação, você acha que ajudou ou atrapalhou a interação, a relação entre
vocês?
Acho que ajudou mais porque eu passei esse tempo todinho mais junto dela, né, tendo mais
cuidado com ela, mais do que eu tinha, ficou mais melhor! (Ri) (...) Foi uma amostra
pra eu cuidar mais do que eu cuidava dela, como eu to dizendo, dar mais atenção a ela,
né, que eu num dava muita (...) Agora vai ser diferente, num vai ser mais como era, vou
dar mais atenção mais a elas do que ao serviço. Depois que ela tiver dormindo, eu vou,
faço as coisa. (...) Assim, porque quando ela tava mais doentinha, mulé, olhava pra mim
assim, muito doentinha mesmo, mulé, e eu chorando perto dela, pedindo a Deus que
num levasse minha filha, muita coisa, mulé! Pedia desculpa assim, que eu achava assim,
será que foi porque eu num cuidei muito bem dela, que eu deixava ela dormindo, ela se
acordava e ia brincar mais a outra e eu num ligava muito, ia fazer mais serviço do que dar
atenção a ela, né?! eu “ai meu Jesus, será que foi isso”. (Fala muito baixinho, quase
sussurrando) Mas agora os serviço fica pra lá. (Ri) (...) Quando chegar eu vou
conversar com ele, a gente tem que comprar a comida certinho, mas, oh mulé, é porque às
vezes a gente num tem condições de comprar não, entendeu? Por mais que a gente queira,
mas... (Eva)
Ana Maria parecia, através das fotos, reconstruir um pedaço da sua história,
bem como a da filha, colocando-se como filha e como mãe. Segundo Celia,
101
quando
entendemos o processo de filiação da mãe para com seu filho (quando a mãe foi
atendida na sua regressão), é que ela consegue assumir um estágio mais maduro e tentar
assumir sua maternagem.
(Diário de campo) Depois de ver a filha vomitando e receber uma bronca da auxiliar, Ana
Maria teve uma crise de choro, dizendo que não queria mais tirar foto com nenhuma
auxiliar. Deixei-a chorar, pois achei que ela realmente precisava botar pra fora e depois fui
lá conversar com ela. Disse-lhe que ela precisava e merecia chorar, devido à extrema
pressão e responsabilidade pelas quais está passando. Emprestei a ela um significado meu,
dizendo que vê-la chorar significava vê-la reconhecendo e enfrentando o medo, a dor e a
incerteza. Depois disso, Ana Maria tomou Mariana nos braços e saiu da enfermaria.
Abraçava e beijava a filha de modo absolutamente sublime e dedicado, olhando e
acariciando carinhosamente a filha. Eu disse a ela que voltaria mais tarde, depois que ela se
recuperasse, e perguntaria novamente se ela gostaria de tirar as fotos que havia pedido
antes com as auxiliares. Mais tarde, voltei à enfermaria e Ana Maria estava melhor, bem
como Mariana. Tiramos várias fotos.
A criança renarcisando a mãe no hospital. Celia
101
destaca o potencial de
interação da criança. Essa competência é referida como fator terapêutico na conquista da
nova etapa na qual se inscreve a parentalidade.
Destacando a questão recíproca das interações, Camarotti
54
aponta que a
mãe também se vê refletida no filho, renarcisada ou, pelo contrário, não reconhecida em
sua função ou em seus desejos. Com exceção de Rosácea, as demais mães pareciam
cada vez mais renascisadas.
(...) Ela ta voltando como era antes, né, a falar comigo desse jeito enrolado (refere-se
aos balbucios da criança), pra eu entender as coisa, ?! (...) Ela ta falando mais. A
primeira coisa quando ela começou a ficar melhorzinha, ela chamou logo “papai”, e
“mamãe”. E agora ela ta fazendo “hã”, as mesma coisa que ela fazia tempos atrás.
(Eva)
(Diário de campo) (...) acrescentou que Fátima não quis ir para o pai quando ele veio no
fim-de-semana, ao que Eva chamou de “curioso e engraçado”, pois diz que o marido
sempre teve mais jeito com as crianças, brincando mais com elas, e ela, Eva, ficou se
sentindo mais “mãe” diante dessa recusa da criança. tima também está comunicativa,
balbuciando mais, pedindo mais explicitamente comida à mãe. Acho que a comunicação
entre mãe e filha ficou mais ativa, fluida, como se algo do início da maternagem, da
interação inicial entre as duas tivesse sido retomado.
- Voacha que esse tempo que vocês ficaram aqui no hospital afetou a forma de Pandora
se comunicar com você?
... Não (fala baixinho). Agora ela vai quere saber de mim, agora, não vai querer ir pra
ninguém. Ontem ela não queria ir pra avó.
- Você acha bom ou ruim isso?
Eu acho bom! (Ri) ... Pro mode de num ficar que nem o outro, só querer saber da avó.
- Você pensa procurar o pai dela quando chegar lá?
(Balança a cabeça negativamente) ... Sei nem quando eu chegar vou deixar ele ver ela...
Quando eu chegar lá vou esconder ela pro mode dele não ver ela.
- Você não quer que ele veja ela?
(Balança a cabeça negativamente)
- E Fabrício (filho mais velho)?
Fabrício pode ver, que Fabrício já conhece ele, gosta dele.
- Será que você tem medo que ele goste dela também?
(Balança a cabeça afirmativamente) Eu tenho medo que ela goste dele.
(Diário de campo) Bela é jeitosa e cuidadosa, comentando que teme que Leandro (outra
criança internada) se engasgue: “com o meu (filho) é fácil, ele abre a boca e engole, mas
com ele (Leandro) é mais difícil...”. Ian ficou desconfiado, depois chorou quando Bela
colocou Leandro no colo. Ian chorava e dizia “mama, mama, mama”, como eu nunca
havia visto ele dizer antes. (...) Depois que Bela saiu para almoçar, Ian continuou
chorando e pedindo por sua “mama, mama”. Ele chorou, chorou e chorou, esperneou,
resmungou, tussiu, sempre chamando pela mãe.
Bela parecia renarcisada não pela melhora do filho, mas também pela
atenção que recebia da equipe e do marido com a melhora de Ian.
Quanto mais (peso) ele ganhar melhor, né?! Assim, porque pelo menos o pai a atenção
que eu to dando mais a ele, né, porque ele dizia que eu era muito relaxada, que num dava
comida ao menino e aquilo tudo. pra ele ver, inté ele ta mais bonitinho, mais gordinho,
num sei o quê, eu digo “Claro! To cuidando bem do meu filho”. ... (Bela)
No que concerne à interação da díade entre si e com a pesquisadora,
observa-se como esses encontros, interações, narrativas, mesmo que não-verbais,
parecem ter influenciado na construção de uma terceira história.
Em todos casos parece ter havido algum tipo de mudança nas interações
mãe-criança-alimento-pesquisadora-hospital. Cogita-se que de algum modo o processo
de pesquisa, a relação intersubjetiva díade-pesquisadora possa ter auxiliado na criação
dessa terceira história, na subjetivação desses sujeitos, promovendo certa melhora na
interação e compreensão do diálogo mãe-criança. Por questões éticas, em alguns casos,
depois de finalizadas as entrevistas e filmagens, a pesquisadora se viu compelida
consciente e inconscientemente, a intervir (não no sentido psicanalítico do termo)
ativamente no diálogo de algumas dessas díades, para além dos objetivos da pesquisa.
Isso ocorreu devido à dificuldade da psicóloga do Serviço em atender a grande demanda
de casos, ou mesmo em decorrência da criação de demanda de algumas mães para com
a pesquisadora.
Questiona-se se essa atitude, associada à própria internação e à participação
da mãe na pesquisa teve repercussões sobre o processo de resgate e proteção do
funcionamento materno-filial pós-hospitalização.
Gomes & Mendonça
91
destacam que essas narrativas podem ser vistas como
formas de expressão da interação mãe-pesquisadora, interação mãe-comunidade-
sociedade-cultura, num movimento dialético, co-construído.
Golse
14
esclarece que através do estilo interativo que cada criança induz nos
adultos, existe uma maneira utilizada por ela de “contar” algo de sua história precoce,
numa mistura entre sua parte pessoal (seu equipamento próprio) e traços da sua história
precoce (inter e transgeracional). Esse movimento provoca no adulto um tipo de
“indução repetitiva”, através do viés daquilo que a criança o faz experimentar,
influenciando seu estilo de interação habitual.
14
Golse
14
lembra que foi justamente o reconhecimento desse movimento que
suscitou acirrado debate entre Lebovici e Cramer a respeito da capacidade transferencial
do bebê. Lebovici
12
posiciona-se, pontuando que o bebê pode transferir diretamente, e
que quando for modificado por essa dinâmica, ele próprio modificará seus pais, atuando,
de certo modo, como “terapeuta” Cramer,
22
ao contrário, defende que quando a mãe for
tocada, algo mudará no bebê.
Com base em Golse,
14
uma questão pode ser colocada: que as crianças
nos contam suas histórias e contam a si mesmas (duplo movimento da narratividade),
será que conseguimos compreender esse movimento numa pesquisa como esta ou no
dia-a-dia clínico do hospital? Será que permitimos à díade/sua família, contar sua
história, facilitando a inscrição de uma terceira história? Ou como questionava Leboyer,
o recém-nascido não fala ou somos nós que não o escutamos?
Para se construir, para nascer e para crescer, mesmo os bebês têm
necessidade de uma história e não somente de uma história biológica ou genética,
mas também de uma história relacional.” (2003: 73)
14
Golse
14
destaca ainda que o terapeuta (acrescento, de qualquer
especialidade), enquanto objeto terceiro, deve dar vazão à sua narratividade, de modo a
auxiliar as díades/tríades a escrever uma história que possa dar coerência existencial ao
sofrimento, recolocando as dificuldades da criança em perspectiva com sua biografia e
com aquela de seu grupo familiar, social e cultural, numa co-construção ativa. É a partir
dessa inscrição que a criança responderá e poderá se re-inscrever, pois está inscrita no
mundo materno/parental. A criança precisa não que relatemos a ela sua história, mas
que possa aos poucos, ela mesma, aprender a relatar sua própria história, si mesma.
14
Nesse sentido, destacam-se os recortes:
(Diário de campo) Ana Maria pediu fotos com outras profissionais da equipe (doutoranda,
nutricionista, etc, todas mulheres). (...) Veste Mariana como quem veste uma boneca e a
retira do berço para a sessão de fotos, mesmo vendo que a criança está molinha. Disse
que quer mostrar a Mariana algo sobre o período no hospital, um dia quando ela crescer.
Vi-me obrigada a fazer um comentário, uma sugestão, na verdade. Sugeri que ela não
esperasse que Mariana crescesse, que contasse e mostrasse as fotos, a história da
internação desde agora, garantindo o presente, plantando o futuro. Ana Maria nada disse,
apenas deixou a criança no berço e desceu. (...) Ana Maria parece fechar os olhos para o
presente, pensando nesse “passado-futuro”, pois as fotos parecem representar aquilo
que ela não teve: fotos de sua própria infância. Ana Maria me mostra o álbum com fotos
de Mariana, Bruno (irmão de Ana Maria), a falecida Mariana (irmã de Ana Maria), etc.
Reparo que não há fotos de Ana Maria quando bebê, nem quando criança pequena,
apenas com uns 10-12 anos, ao contrário de seus irmãos e de Mariana, sua filha. Estimulo
Ana Maria a mostrar o álbum a Mariana e a contar a história desde o começo, incluindo o
pai dela (também não tem fotos dele no álbum...).
(...) conheci meu vô, porque até hoje num conheço minha avó, nem tenho as foto, nem
nada. Minha mãe não tem foto dela não, porque tinha uma foto num quadro bem grandão,
foi passando pras mão das minhas tia e ninguém sabe qual é a tia que ta com ele. (Ana
Maria)
O que eu posso fazer, quando ela ficar boa eu vou fazer de tudo pra ela ficar boa. Só isso.
- Quando ela ficar boa?
Sim, andar com ela, fazer de tudo que eu quero fazer. Quero dar amor, né? Eu dou amor,
Angélica sabe, ela sabe que eu to aqui, mas quando ela for pra casa é que eu vou poder
dar bem muito amor pra ela, bem muito. ... Aqui eu dô, mas num adianta.
Quando ela crescer eu vou dizer tudinho a ela! (Ri) É isso. “Deixe vocrescer que eu
vou dizer tudinho, viu?! Como foi sua vida.” Eu digo assim.
- E por que não dizer agora?
Quando ela crescer eu digo, agora ela num entende ainda não, é muito novinha, ta muito
doentinha. Depois eu digo, né? (Rosácea)
(Diário de campo) Subi com Magdala e Renata à brinquedoteca. Renata ficou encantada
com a brinquedoteca, como se nunca tivesse ido lá, apesar das quatro sessões anteriores
de filmagem. Brincou tanto e com tanto gosto com o cavalinho! Até falou “me dá”! (...)
Quando descemos, puxei Magdala para um canto e lhe mostrei a filmagem, destacando
que aquela era a filha que ela um dia acreditou que não morreria, e que de fato essa
criança estava viva. Ela ficou animada com as imagens, orgulhosa da evolução da filha,
mostrando às outras mães, rindo ao ver o filme.
Este último episódio vivido com Renata e Magdala ilustra como a filmagem
facilitou a construção de uma terceira história, onde a mãe foi incentivada a falar sobre
uma imagem filmada, para que expressasse seus pensamentos e sentimentos, retomando
aspectos supostamente latentes da parentalidade.
Houzel
42
aborda a “parentalidade parcial”, conceito que remete à porção que
os pais podem assumir, pelo menos em parte, com relação a algum eixo da
parentalidade (exercício, experiência, prática), mediante auxílio da equipe de saúde,
garantindo a segurança da criança e melhorando a competência dos pais. Deve-se buscar
valorizar essas parentalidades parciais, permitindo diminuir a ferida narcísica dos pais, e
favorecer a construção, no mundo interno da criança, de imagos parentais de boa
qualidade, bem como a prática mais segura da parentalidade.
42
Retomando aspectos anteriormente abordados, ao cuidar da criança, a mãe
institui entre ela e o filho um estilo interativo específico dessa ade, porém resultante
da história pessoal dela, mãe (fruto do bebê que foi um dia, das suas interações
precoces, expectativas, e do adulto que atualmente é), e do encontro com seu filho (este
com suas características interativas próprias, com sua própria história).
9,12,14
Assim, a mãe faz seu filho funcionar à imagem de suas próprias
representações infantis, induzindo na criança projeções e movimentos identificatórios
ou contra-identificatórios.
Por outro lado, a criança tenta fazer o adulto funcionar
segundo suas primeiras imagos interativas.
14
Esse movimento remete à plasticidade da
criança, na medida em que ela se apropriará dessa capacidade inicialmente oferecida,
baseada na rêverie materna, porém repetindo ou não a certos mandatos inter e
transgeracionais, bem como projeções, mostrando-se como historiadora da própria
história que ela mesma contribui a escrever(2003: 73).
14
Perceba-se que, segundo
Fonagy, história não obrigatoriamente é destino.
Almeida
73
cita que a capacidade do bebê de “reavivar” a relação com a mãe,
bem como a permeabilidade das projeções maternas diante do impacto da realidade, da
experiência com o bebê real, são indicadores de resiliência frente a problemas de
alimentação infantil.
Dessas duas histórias deve nascer uma terceira, enraizada nas duas
primeiras, mas que pode funcionar como um espaço de liberdade.
14
Golse
14
destaca
ainda que a narratividade, fruto da criação interativa, ordena os processos de ligação e
tem função anti-traumática. Não poder contar, não poder se contar, o somente se
soma ao traumatismo, mas é um traumatismo em si.” (2003: 104)
14
A edificação da
narratividade da criança se inicia na forma pré-verbal, sendo continuada na forma
verbal, a partir da interioração progressiva do testemunho e da narração do outro.
14 - X
Assim, João passou a aceitar outras comidas, e Izabel reconheceu que o filho
poderia comê-las:
(...) Até na segunda de tarde lá, ele não sossegava, não tomava nem suco e nem comida,
assim, nem o engrossante no mingau. Mas quando foi na terça-feira ele já pegou um
pouquinho de mingau, na base de dois dedo e pouquinho já. Depois quando chegou aqui em
cima as menina me deu um pouquinho de mingau, eu dou a ele dois dedo, três dedo, ele
toma todinho. (...) A sopa num era um gosto que ele sabia, porque ele tomava leite e pão
em casa. Mas ele aceitou bem, né, que ele gostou, ele tava comendo. Porque da primeira que
veio de ontem ele num gostou muito, mas a da tarde ele já comeu mais e hoje ele comeu toda.
(...) Deu pra ver que ele come, que gosta de comida, um bocado de coisa. A sopinha ele
gostou, o feijão, a verdura, a comidinha assim com cenoura, arroz e feijão ele não gostou
porque ele não comeu. quis depois que passou no liquidificador, ele comeu. (...)
Agora às vezes vinha uma comida doce, jerimum com açúcar, mas nenhuma das vezes ele
comeu, não teve jeito.
Bela parecia resignificar a fome, sendo capaz de suportar a “fome” do filho:
(...) agora aprendi: deixei ele com fome e agora ele come.
Do mesmo modo, Bela pôde, aos poucos, separar-se de Ian, deixando que
ele olhasse o mundo além da mãe, sem temer perdê-lo ou “dá-lo” para outras “sogras”.
- Como é que ele tem reagido quando você sai para se alimentar, o que você faz?
Ele fica chorando. Aí eu tenho que deixar ele chorando pra ir tomar café.
- Então você tem suportado, tem conseguido descer agora, mesmo vendo ele chorar?
Suporto. (...) Antes ficava com fome, fraca, sem poder comer. Eu via ele comer e com pena
dele, de deixar ele só, né? Aí eu desço, deixo ele chorando, vou fazer o quê, né, se tem
que deixar mesmo. Se eu não comer como eu ficar, se eu não desço?
(Diário de campo) Aparece outra criança na porta, que tem uns círculos de vidro, e Ian
fica “paquerando” com a criança do outro lado da porta, dizendo “ei, ei”, parecendo
buscar contato social à medida que se adaptava à sala e à medida que eu fui conquistando
a atenção da mãe para mim.
(Diário de campo) Ian sorriu para mim, me chamando (“ei, ei”), fazendo também gesto
com as mãos, apontando para o meu colar. Ele está cada vez mais interativo, as
brincadeiras surgem rápido e espontaneamente com ele. Manuseou o colar no meu
pescoço mesmo, com muito cuidado e interesse. (...) Iniciou uma brincadeira de esconde-
esconde comigo, arrudiando minha cadeira, procurando o meu rosto e se escondendo,
sorrindo e balbuciando suavemente.
Assim, esse segundo tema traduz a percepção e vivência dos sinais
interacionais e seu papel no auxílio à díade em sua adaptação à hospitalização. Destaca
também a narratividade, decorrente da experiência de hospitalização (processo de
internação e participação na pesquisa), auxiliando na percepção de si e do outro e seu
X
Golse
6
retoma conceitos de Stern,
20
defendendo que a emergência de um si-subjetivo entre sete e 18
meses, e do si-verbal aos 18 meses.
reflexo na retomada e resignificação de aspectos da parentalidade. Ilustra que o
adoecimento e a hospitalização podem favorecer a interação mãe-filho, atuando como
fatores terapêuticos na retomada do vínculo e na experiência e prática da parentalidade.
A escuta e interpretação materna às manifestações do filho é possível
quando existe um investimento da mãe no corpo da criança, transformando um corpo de
sensações em um corpo falado,
45
interpretando esses sinais corporais como atos de fala,
trocas interativas de um sujeito-interlocutor.
11,38,39,41
Destaca-se a importância da promoção de prazer nas trocas mãe-filho,
principalmente em momentos cruciais à interação da díade, como ao longo da doença e
hospitalização, promovendo-se a transformação “corpo de sensações - corpo falado”,
45
alimentado não pelo pão, mas também ora pelas identificações maternas, ora pelas
manifestações explícitas da criança.
38
É necessário que a mãe experimente prazer no
contato com o corpo do filho, nomeando comportamentos, olhares, balbucios, funções e
sensações desse corpo infantil tão sofrido com a doença.
4.4 Temática 3 Desnutrição e interação mãe-criança: significados criados em
relação à doença
O tema remonta aos significados criados diante do complexo processo de
adoecimento, ilustrando a influência da interação mãe-criança e equipe de saúde na
compreensão da desnutrição.
Nenhuma das mães pareceu ter identificado a desnutrição como doença,
apenas considerando como processo mórbido as intercorrências agudas e infecciosas
(diarréia, pneumonia). Não pareciam associar o edema à desnutrição, uma vez que esta
foi, unanimemente referida como sinônimo de baixo peso ou perda de peso, quase como
uma constante da população nordestina. Diante da dificuldade materna em identificar os
sinais dos filhos como resultantes de um processo patológico próprio da desnutrição
infantil, cogita-se que a desnutrição afetiva/simbólica dessas mães tenha dificultado a
identificação dos sinais infantis como integrantes de uma patologia, talvez identificadas
com o estado de desnutrição afetivo/simbólico da criança. Cogita-se que a desnutrição
figurasse, para algumas mães, como algo próprio do nordestino, uma identidade
familiar, grupal.
Toda vida essa menina foi assim! Desde que essa menina nasceu que é desse jeito, choxinha
mesmo, sem peso, é do calibre mesmo dela, assim mesmo como a senhora! (refere-se à
pesquisadora). ... (Magdala)
Destaca-se também que nenhuma das mães pareceu se implicar afetivamente
nos significados da doença. Talvez o fato de não reconhecerem a desnutrição como uma
doença estivesse na ordem de uma defesa, uma vez que essa doença apontaria para a
culpa materna/paterna em não poder “sustentar” o filho.
Em investigação sobre o discurso de mães moradoras da Região
Metropolitana de Belo Horizonte que perderam seus filhos por causas consideradas
evitáveis (diarréia, desnutrição e pneumonia), Hadad et al
108
destacam que as mães
utilizavam o termo “fraqueza” tanto para referir a constituição física da criança, como o
estado nutricional. Assim, a criança ou nascia fraca (natureza da criança, algo pré-
determinado) ou se tornava fraca (a doença enfraquecendo a criança, diminuindo seu
apetite).
Dentre os significados criados ao adoecimento, destacam-se: transmissão
intra-uterina; leite artificial oferecido precoce e inadequadamente como causador dos
sintomas infecciosos; anemia; reumatismo, problema renal (devido ao edema); “tipo de
câncer” – vide tabela com significados criados para a doença.
Assim como no trabalho de Frota & Barroso,
109
as mães não pareciam
considerar a desnutrição como algo que pudesse comprometer o crescimento e
desenvolvimento infantil. Os autores relacionaram esse fato ao nível de escolaridade da
mãe (abandono da escola na adolescência, falta de perspectiva de emprego).
109
- Você acha que o fato dele estar desnutrido teve ou tem alguma conseqüência no
desenvolvimento dele?
... Não assim, no desenvolvimento dele não, né? assim, que ele ta, ele tava vomitando,
com diarréia, aí o peso dele que abaixou, mas o desenvolvimento dele ta muito bem, muito
bem ele ta. (Bela)
A pesquisa atual aponta não para a relação sugerida por Frota &
Barroso,
109
mas também para as possíveis projeções maternas na criança. Cramer
22
destaca a potência considerável das projeções massivas que algumas mães fazem sobre
seu filho, acarretando patologias funcionais na criança. Esse fato também foi registrado
por Zavaschi et al
63
e por Almeida,
73
onde esta identifica projeções maternas (iminência
de morte, culpa e hostilidade) como um indicador de vulnerabilidade frente a problemas
de alimentação infantil.
Talvez projetando algo seu na criança, Maria atribuiu a doença ao
afastamento do marido.
Ele (Gabriel) ficou... acho que ele ficou triste... eu pensei “ele adoeceu também por modo
do pa”’, sabe, eu fico pensando... Muito pegado com o pai, às vezes quando eu falo com
ele no telefone eu digo a ele, eu digo “olhe Tonho, o menino doente por modo de tu, eu
disse que tu não fosse pra São Paulo porque o menino é muito pegado a tu”..., dizia a ele.
Numa importante relação projetiva (projeção de seus temores diante da
fome, perda da criança, etc), Bela foi pontuada (limite) através das regras do hospital,
bem como recebeu atenção da equipe e da pesquisadora, passando a olhar mais para o
filho, projetando a atenção recebida, sendo tratada quanto à sua “desnutrição afetiva”.
(...) Assim, porque eu me sinto diferente, né, porque eu nunca tive uma atenção assim,
ninguém nunca me chamou pra conversar comigo, como que passava em casa, e a senhora
foi a primeira vez, a primeira pessoa. (Ri) (Bela)
- Por que você acha que ele ta diferente, assim?
Acho que é porque quando era em casa era muito estressado, né? Eu com estresse,
descontava nele. Falava gritando com ele, dava umas tapinha nele, eu ficava diferente,
e aqui o, aqui eu to mais calma. Eu o posso dar nele. (Ri) Num falo alto com ele,
porque brigaram comigo embaixo, “mãe, que é isso, mãe, como o seu bebê?!”. (...)
Porque em casa meu marido num me atenção, e aqui não, aqui eu converso com todo
mundo, brinco com todo mundo, em casa sempre tem que ter alguma coisa, meu marido é
muito estressado, arenga muito comigo. (Bela)
- Como, de que forma está sendo essa adaptação de Ian ao hospital?
Se apegando às pessoa, porque as pessoa carinho, né, atenção a ele, brinca com ele. É
o que ele quer, né?! (...) Aí pronto, ele quer carinho, ó, brincando. (Bela)
O estudo atual não tinha como objetivo nem forneceu material suficiente
para identificar se houve por parte da criança, identificação com algum aspecto materno,
suficiente para contribuir para a desnutrição, como destacado no estudo de Solymos.
17
Algumas mães identificaram a doença, dentre outros aspectos, a partir de
alterações no estado de humor do filho, relatando inclusive “pausas” no
desenvolvimento da criança. A melhora/recuperação foi identificada no mesmo sentido,
associada ao “lazer”, contato social ao longo da internação, bem como ao real do corpo.
Quando ela chegou tava fraca, ela queria estar assim, deitada, tava muito inchada,
queria ficar muito tempo deitada, nem sentava, queria botar ela de e ela não podia,
ficava toda mole. Num tava rindo, só ficava dormindo, triste.... (Eva)
Ele parou de falar com um ano. (...) Acho que porque ele foi ficando fraquinho, com o
sangue fraco. (...) Acho assim, que a doença criou assim como um pano, né, quando ele
tinha desenvolvido e acabou, ele meio que esqueceu, como esquecimento, né, que ele
chamava “papai” e esqueceu, “mamãe” ele esqueceu (...) E agora assim, falando assim,
ele já entende só que num ta falando (Izabel)
(Antes dela adoecer) Era gordinha, bem forte, alegre, brincava bastante, mas depois
quando ela começou a inchar ficou num mais, mais inchada mesmo, num queria brincar,
num era alegre. (Ana Maria)
(...) ele melhorou e ta se divertindo mais, , mais do que ele se diverte em casa, porque
em casa ninguém faz isso com ele, né, e aqui o povo chama pra um canto, chama pro outro
(...) e em casa é as menina mesmo que brinca com ele ou então é o pai que chama ele,
mas os outro não, nem eu posso. (...) Ta mais ativo com o povo, dando mais atenção ao
povo, da risada pra um, da pra outro, porque ele num dava, falando com ele, ele
brincando, assim, falando o “não”, porque ele num entende ainda o que é o “não” e o
“sim”, , a gente fala “não”, ele balança a cabeça, a gente fala “sim”, ele balança a
cabeça, né?! (João balança a cabeça afirmativamente, entrando em nosso diálogo). Ele
num fazia isso em casa ainda não, ainda tava começando. Já ta desarnado... (Izabel)
Ta bem melhor, porque ta animado, ta brincando (...), dorme melhor. (Maria)
Eu to achando ela melhor. (...) É que em casa ela num comia. Os remédio que tão dando a
ela, né, que em casa eu botava o cumê a ela e ela num comia. Aqui ela ta com mais
vontade de comer. (Magdala)
Num falava nada. Ela nem sorria, nem... Ela ficou parada mesmo, assim... Difícil! (Eva)
Animado, ta animado demais ele. Diferente, brinca. (...) quando ele via uma bola aí se
animava, mas depois... ficava pra lá, num queria mais saber. Agora não, agora, ó, chega
brinca, demais ele. (...) Acho que ele num era assim, queria braço, dormir... o tempo
todinho. E agora não, agora ele quer brincar, quer morder, quer beliscar, quer andar,
grita... (Bela)
Díade
Quadro 5 - Significados criados pelas mães quanto à doença. IMIP, Recife, 2007
Maria e
Gabriel
A criança adoeceu devido à ausência do pai, pois era muito apegada a ele.
Adoeceu porque só queria mamar, não aceitava comida de panela.
A criança comia muita pipoca salgada e doces, deixando de comer comida de panela, ficando com fastio.
Não estava se alimentando direito, vomitava a comida.
Era gordo e de repente ficou inchado e com fastio.
Adoeceu apesar de ter tomado todas as vacinas.
Achava que a criança estava com problema nos rins/no coração/hepatite. “Pensava tudo isso, mas desnutrição eu não pensava não, não
pensava que era de jeito nenhum.”
Criança desnutrida é aquela que está perdendo peso.
Mina e
Pandora
A criança adoeceu de repente, era gordinha, mas passou a só querer dormir, chorar, ficando sem comer e com diarréia.
Ficou doente por causa do “olhado e vento caído”.
A criança adoeceu porque sua mãe dava muito trabalho quando criança, pois era muito doente (magra).
A criança desnutrida é aquele que é magra.
Ana Maria
e Mariana
A criança era bem tratada em casa, sempre comeu e bebeu bem, na hora, mas de repente (“da noite pro dia”) ficou inchada e com
manchas no corpo, só querendo dormir, sem brincar nem rir. Era gordinha, mas passou a ficar inchada, sem querer comer direito.
A criança adoeceu devido ao inchaço, pois “pegou, foi criando água por dentro, no corpo, mudando de repente”.
Não achava que a desnutrição causasse inchaço, manchas e caroços no corpo, mas que fizesse a criança perder peso. A criança
desnutrida, diferente da sua filha, não come bem e está “fora de peso”.
Rosácea e
Angélica
A criança nasceu desnutrida, magra, sem qualquer explicação causal.
A mãe achava que a criança tinha algum problema, mas não sabia antes da internação.
A anemia fez a criança ficar com diarréia.
O leite fez mal à criança. “O leite que não se deu com ela, né, fez o que fez com ela, infeccionou nela, barriga. (...) A comida que fez
mal ao intestino dela.”
A criança tinha alergia a algum leite, causando infecção no intestino.
A comida de casa (leite e massa) fez mal à criança.
A mistura dos leites artificiais deixou a criança doente, com disenteria.
A criança foi “incorporando” a doença aos poucos, acrescida do “leite que também fez mal”.
A criança comia pouco, não comendo o suficiente para o crescimento normal, por isso ainda não andava nem falava.
Algum problema que a mãe possa ter tido e passado para a criança, como a anemia e o fastio que teve ao longo da gestação, apesar de ter
tomado sulfato ferroso, fazendo a criança nascer doente.
Pelo fato da mãe não ter se alimentado adequadamente ao longo da gestação, devido ao “fastio”, sua barriga era muito pequena,
indicando que a criança nasceria desnutrida.
A mãe pode ter tido algum susto ao longo da gestação, deixando a criança doente.
A criança nasceu com algum problema herdado da mãe ou do pai.
Talvez a criança tenha nascido com anemia, não havendo sido tratada no hospital onde nascera, terminando por adoecer dois
meses depois.
A anemia e a “desintegração no intestino” (disenteria), fizeram a criança perder peso.
A criança comia tudo que a mãe colocava na mamadeiras, mas ainda assim “não pegava peso”.
A criança “pegou” algo, começando por uma gripe, tosse, secreção, catarro, o qual a criança engolia e descia para o intestino: “acho que
foi pegado, porque ela começou assim, com uma gripe, ela tava tussindo bem pouquinho, mas tava, sabe? De vez em quando ela dava
uma tussidinha, aí acho que era secreção, catarro. Aí acho que ia pro intestino, o catarro. Engole o catarrinho que fica ajuntando no peito
e desce pro intestino, é assim”.
A criança estava com algum problema de inchaço ou reumatismo, ocasionando o inchaço das pernas, causando dor. “Ela ta com algum
pobrema de inchaço mesmo, algum reumatismo. Porque tem gente que tem reumatismo, né? Que fica inchando a perna, que dói”.
Criança desnutrida é aquela que nasce “sem peso”/perde peso, e ao invés de crescer, diminui o peso, não crescendo nem engordando.
Classifica dois tipos de criança desnutrida: a que nasce magra, “choxinha e sem peso”, mas que não desenvolve doenças, e
aquela que nasce do mesmo jeito, porém que desenvolve doenças, a ponto de precisar ficar internada.
A criança fica desnutrida porque não come direito.
Bela e Ian A primeira filha desnutriu porque ela, mãe, não estava se alimentando direito, não provendo sustância” pelo leite do peito. Uma criança
de oito meses não deveria mamar apenas, pois só o peito não a sustentaria.
Ficou surpresa com o diagnóstico de desnutrição porque achava que o filho mamava bem, estava gordo e saudável, havia passado
alguns dias com febre e diarréia.
Ian desnutriu porque não tudo o que ele comia, vomitava.
Achava que o filho tinha verme.
O problema da criança não era desnutrição, mas desidratação, falta de líquido, devido à diarréia e vômitos, precisando apenas ganhar
peso.
Não faltou alimentação ao filho, não entendo o porquê da desnutrição, pois a criança desnutrida é aquela que não come.
Magdala e
Renata
O problema da criança é que comia pouco, estava com fastio e tosse, havendo sido levada ao hospital para tomar vitaminas.
“Eu acho que isso num é doença pra menina ficar internada não. ... Eu podia dar lambedor em casa, lambedor de beterraba, lambedor de
tomate. Que dá e fica boa. Mas ela (médica) disse que tinha que ir pro hospital, pra tratar mais...”
Não achava que a criança era desnutrida porque “toda vida ela foi assim mesmo, desde que ela nasceu, choxinha. (...) É o calibre dela que
ela é assim mesmo”.
No entanto, achava que uma criança desnutrida “é choxinha, sem peso”.
Izabel e
João
A doença do filho era “gastro”, a qual “deixa o menino magro, deixa desnutrido mesmo, ela deixa acabado o menino! Porque ela só mata
quando deixa ele só o corinho e o osso. Assim, como ele tava, assim, desmagrecendo, né, cada dia que passava ia desmagrecendo mais,
eu acho que ainda era ele (gastro) que tava incomodando ele. (...) No meu entendimento essa doença é quase como um tipo de câncer,
tem câncer que num tem cura, né, então tem também que não tem cura. Eu acho essa doença chega igual a isso, porque enquanto a
criança tem o sangue e a carnezinha, ela ta resistindo, né, e quando se acaba a carne, fica só pele e osso, vai embora”.
A “gastro” do filho não estava no corpo todo, no intestino, ocasionando a diarréia, por isso a criança estava se recuperando. “É por
causa da ferida que infecção, diarréia. (...) Agora quando fica somente no intestino, fica bom, né?! Mas quando não, vai
consumindo as carne, o menino vai desfalecendo, aí vai embora.”
A criança tinha também anemia, porém diferente da anemia que outros filhos seus tiveram. “A anemia dele (outro filho) era muito forte.
No caso, ainda era mais forte do que a desse (João), porque esse ainda ta reagindo, e o outro não. (...) Porque tem vários tipo, no caso
dele (outro filho) deu convulsão. (...) Era uma anemia diferente, porque quando os menino vinha dar os sintoma, tava indo embora,
né?!”
O leite de gado, acrescido de água, ocasionava a disenteria.
A mãe se culpava, achando que havia se descuidado da criança, deixando-a com as filhas adolescentes, precisando trabalhar na roça.
O problema da criança consistia numa associação entre gastro, anemia, antibióticos que a criança estava tomando, deixando-a mais fraca,
bem como em função da diarréia persistente decorrente dos dentes que estavam nascendo,. “Só que ele tava ficando mais fraco, porque a
gastro come as carne, depois teve os antibiótico e mais depois ainda os dente.”
A criança era desnutrida porque estava com fastio e era magrinha, mas não reconhecia a desnutrição como uma doença. “As enfermeira
que encaminhou ele pra aqui falou ‘é desnutrição’, mas não me falou qual era a doença. (...) Até hoje... esse que eles falaram que é
desnutrição, mas não me explicam o tipo da doença, né?!”
Eva e
Fátima
Culpava-se, achando que o abortivo que havia tomado no início da gravidez ou o ambiente insalubre (produtos químicos) de onde
trabalhara ao longo da gestação talvez pudesse ter “ofendido” a criança, deixando-a doente.
O fumo, o excesso de trabalho e a mal-alimentação materna ao longo da gestação fizeram a criança nascer desnutrida. “Aí pronto, aí essa
menina acabou e num deu sustento a ela, por isso que ela nasceu assim desnutrida.”
As dores de cabeça e a insônia que tinha ao longo da gestação indicavam que era doente da filha: “ela na minha barriga, eu num era
doente, mulé, dela?”.
A criança ficou doente porque não comia bem. A mãe dava comida, mas a criança só comia pouquinho. “(...) Tudo que eu desse a ela, ela
comia, mas tudo de cada coisa um pouquinho de nada. (...) Ela come feijão, ela come macarrão, mas tudo de pouquinho, ela come tudo
de pouquinho. se ela tivesse vontade de comer as coisa, assim, uma vontade boa de comer todinho mesmo, né, ela podia até num ser
desnutrida.”
O fato de a criança viver com o dedo na boca, deixava-a sem vontade de comer.
A criança adoeceu porque ficou 15 dias distante do pai.
A criança não nasceu doente, mas estava com baixo peso e teve diarréia e vômito com o passar do tempo.
Os dois meses que a criança recebeu amamentação exclusiva deixaram-na desnutrida. “(...) Ela passou uns dois meses sem tomar água,
só mamando, sem tomar água, sem tomar um suco, sem tomar nada. Eu digo que é por isso que a menina desnutriu, ficou desnutrida.”
Não entendia o porquê da desnutrição, pois a criança não teve nenhum medo, não caiu.
A criança passou a ter diarréia depois que dois dentinhos começaram a nascer.
A criança adoeceu porque dormiu num colchão no chão, “pegando frieza”.
Apesar das vizinhas terem dito que a criança estava “choxinha”, parecendo desnutrida, a mãe achava que a filha comia normal, era
inteligente, sabida e bebia água à vontade. A doença veio somente depois que a criança teve diarréia e vômito.
Uma criança desnutrida é magra e com baixo peso para a idade.
Desnutrição é “infecção no intestino”. A criança comia, mas não “pegava peso”, perdia peso. Depois de ter tomado o medicamento
passou a comer e “pegar peso”.
Sabe-se que a criança está desnutrida quando passa a perder peso, ficando magra, “sem ar, sem vida”.
Não sabia a causa da desnutrição, pois a criança era bem cuidada, tomava líquido, comia, era banhada, tudo na hora certa, e ainda assim
desnutriu.
Corroborando a visão de Calvasina et al,
102
as narrativas a respeito do
adoecimento sugerem que a enfermidade é a resposta subjetiva às experiências do
paciente, da família e de todo o seu relacionamento. Com base nas narrativas das mães
desta pesquisa, a enfermidade parece ser decorrente não da escolaridade materna,
mas também de experiências pessoais, familiares e sociais, incluindo-se também a
interação com a criança.
Bela, por exemplo, sabia que a amamentação exclusiva a uma criança de
oito meses não era nutricionalmente suficiente, podendo levar à desnutrição, como
ocorrido à primeira filha. No entanto, não reconhecia que isso pudesse ocasionar
desnutrição a Ian, de um ano e três meses.
Por que você acha que ela (filha) desnutriu?
Por causa disso, né, porque tinha o peito pra dar a ela. quando aparecia alguma
coisa pra comer era muito difícil. Aí pronto, eu acho que ela ficou assim, por causa disso,
da desnutrição, da (...) (Bela)
- Você acha que a amamentação interfere na alimentação dele?
Naaaão. Assim, pela uma parte eu acho assim que ... interfere e outra não, né, porque às
vezes ele num come mais porque fica com intenção no peito, de mamar. ... E outra não,
porque ele come bem. Agora eu queria saber por que esses problema que aconteceu
com ele ... somente. É uma coisa que eu ainda num entendi foi isso. (Bela)
Reforçando alguns elementos dos achados de Campos et al,
16
aspectos da
personalidade materna, como a baixa auto-estima, pareceram influenciar na percepção
que a mãe tinha a respeito da desnutrição e do tratamento. A desvalorização da figura
materna foi um aspecto identificado por Almeida
73
como indicador de vulnerabilidade
frente a problemas de alimentação infantil. Assim, para Izabel, diferentemente de
Rosácea, sua permanência no hospital foi importante à recuperação da criança.
- O que facilitou e/ou dificultou a adaptação dele, de vocês ao hospital?
Teve umas coisa que foi difícil e outras que foi descomplicada, porque se eu num tivesse
ficado aqui com ele talvez ele num tava mais nem vivo, se eu num tivesse vindo talvez ele
num tivesse nem vivo, podia tar, né, porque quando Deus quer... aa água do pote dura,
né, quando Deus quer nada é difícil. (Izabel)
Quero dar amor, né? Eu dou amor a ela aqui, mas num adianta, porque a pessoa dentro
daqui, infunizado. (...) Ela (Angélica) sabe, ela sabe que eu to aqui, mas quando ela for
pra casa é que eu vou poder dar bem muito amor pra ela, bem muito. (...) Aqui eu dô, mas
num adianta. (Rosácea)
- Você acha que você tem alguma participação nessa melhora dele?
Eu?... Naão... (Maria)
- Melhor? Por que você acha que Renata está melhor?
Porque eu to achando. Tava mais, tava mais descorada. Tomou sangue. ... Fizeram exame,
não o de urina. (...) Os remédio que ela ta tomando aqui, né, ta abrindo o apetite dela
(...) Aqui ela ta com mais vontade de comer. (Magdala)
Rosácea parecia não se implicar na determinação da doença da filha, bem
como se culpava, apesar de ter realizado o pré-natal e tomado os remédios indicados.
Ao estudar famílias desnutridas, Kerr, Bogues & Kerr
67
sugerem como
intervenções não culpabilizar a mãe, identificando responsabilidades e estratégias
maternas para a manutenção da saúde da criança.
Abordando a culpa materna frente à desnutrição infantil, Calvasina et al
102
destacam que com a legitimação do discurso médico, a mãe pode internalizar a culpa
pela desnutrição do filho. Em vez de motivá-la a cuidar melhor da criança em um
contexto de pobreza, injustiça e desigualdade social, o discurso médico a reprime.
102
Compreende-se que por vezes é necessário à equipe recorrer a atitudes e
instâncias tidas pelas mães como punitivas, como o Serviço Social, porém é preciso
avaliar mais cuidadosamente a indicação de atitudes como essa, pois em alguns casos
podem promover ou acirrar sentimentos de culpa, inferioridade e projeções.
(Prontuário médico de Angélica) Acompanhante refere persistente edema em pés e agora
pernas. Conduta: comunicar Serviço Social para conversar com a mãe.
(Diário de campo) Questionei o que ela sentiu quando a médica ameaçou chamar o
Serviço Social, e Rosácea respondeu que ficou com medo que quisessem tirar a criança
dela. (...) Falou sobre sua falta de confiança na equipe, dizendo que os médicos não estão
cuidando bem da filha dela, mas me pareceu uma projeção dela. Ou seja, ela ouviu dia
desses dos médicos que ela é que não estava cuidando bem da filha, bem como outras
mães disseram que ela o estava cuidando bem da criança porque não lavava as roupas
dela, e acho que a projeção vem daí, como se todos estivessem contra ela, projetando para
eles o que não suportou. Tentei mostrar isso para ela e também a função de cada um, dela
mesma e da equipe. (Rosácea)
ela disse “num água!”, num to dando não, eu num to dando mais água, eu num to
dando. (...) Aí agora eu num to dando mais, faz três dias que eu num to dando. Aí ela disse
que ia chamar o Serviço Social pra dizer isso, pra dizer que eu tava dando água. (...) Eu fiz
“não, tem que calcular porque a perninha dela ta inchada”, né?! Ela disse “eu não vou
dar alta a essa criança porque quando ela chegar em casa pode morrer”. Eu fiz “a minha
filha num vai morrer o, a minha filha num vai morrer o. Eu to vendo a melhora dela,
a minha filha não vai morrer”. (Rosácea)
(Prontuário médico de Ian) Genitora não estava no leito. Conduta: paciente perdendo
peso. Flagrado genitora oferecendo seio materno antes da fórmula.
Um dos elementos presentes no roteiro de entrevista dizia respeito aos
hábitos alimentares familiares (da criança e da família). Foi observado que o discurso de
todas as mães foi modificado ao longo das entrevistas, passando essas a admitir
experiências como fome e dificuldade na compra do alimento. Comparando-se as
anotações nos prontuários com os discursos maternos a respeito dos hábitos alimentares
(referidos na ficha hospitalar como “inquérito alimentar”) foi observada importante
discrepância, onde as mães referiam alimentos que sequer tinham como comprar. A
expressão “inquérito alimentar”, lembra algo de interrogatório, polícia, justiça,
inquisição. É necessário lembrar que se trata de famílias pobres, com dificuldades na
esfera alimentar.
Algumas mães sentiam falta de maior atenção na comunicação com a equipe
de saúde, especialmente com o médico. Esse aspecto parecia influenciar por vezes o
relacionamento da mãe com a equipe e a compreensão do tratamento.
- E aqui no hospital, o que disseram a você?
... Disse que... pra mim num disseram nada não. (...) Eu disse que ela tava tussindo muito e
tava com fastio. “Só isso mesmo?”, eu disse “só”. ... Que eles passasse algum remédio
que eu comprava em casa. Num queria passar muito tempo aqui com ela não. (Magdala)
- Eles não dizem nem perguntam nada?
Eles pergunta, né, eles pergunta como ela ta, se ta fazendo xixi bem, se ta fazendo cocô
direito, bem. Eu digo que ta. Pergunta se ta comendo direito, eu digo que ta. Se ta
vomitando, eu digo que num ta. Se com diarréia, eu digo que não.
- E o que eles dizem sobre ela?
Não, num dizem nada.
- Você pergunta?
Não, pergunto não.
- Por que você não pergunta? Não quer saber porque ela precisou ficar internada?
... É, quando os doutor chegar perto dela eu vou perguntar o que é que ela tem, né?!
(Magdala)
(...) Até hoje ninguém me falou nada. Hoje eu não sei de nada. (...) Tiraram chapa do
pulmão dele, fizeram todo tipo de exame, só que ninguém nunca me falou nada, até hoje eu
num entendo. Se teve algum problema, também ninguém me falou. o que ela me falou é
o que eu lhe disse, que ele tava com uma infecção muito forte e que ele não tinha furado as
tripa, né, foi o que ela falou. Isso foi a enfermeira de que me falou. (...) Agora o tipo
do problema é que ela num me explicou. (Izabel)
- O que pode ter acontecido ou deixado de acontecer pra ele adoecer?
Não sei também. É isso que eu fico somente pensando como foi esse tipo de doença que até
hoje eu não sei lhe explicar exatamente como foi, né?! (Izabel)
- O que fez ela inchar?
... Num sei. ... Acho que ela foi criando água por dentro, e agora porquê eu num sei. Eu
tento entender isso, mas num sei. Eu vejo os médico chegar lá, dizerem, falar tudo, mas eu
num entendo, assim, o que eles fala, que eles fala mais o que vai fazer com ela, de hoje em
diante como vai ser, eu num entendo, pra mim eu tenho vontade de chamar um
médico, assim, que acompanhou ela, chamar pra mandar ele explicar pra mim o que fez
ela ficar assim.
- Você ta há um mês aqui, por que ainda não fez isso?
Porque assim, eu tenho, tenho vergonha e na mesma hora tenho medo de chamar e eles
disser assim “não, é, o que ta acontecendo com ela é...”, esconder alguma coisa de mim,
entendeu? Esconder o que fez, que foi eu que, que, assim, que fiz ela, por algum acaso eu
fiz ela ficar assim desse jeito, se foi alguma coisa que a gente fez dentro de casa, a
amamentação, qualquer coisa, assim, coisa da gente mesmo, eu fico mais é com
vergonha de chamar uma pessoa pra vim me explicar. (...) Por isso que eu tenho vontade
assim, agora eu tenho vergonha. Eu tenho vontade de chamar um médico mesmo,
principalmente o que atende ela, chamar, ou um que atende agora ou o que atendeu, que é
uma dica, chamar e perguntar o que é uma desnutrição mesmo e porquê fez ela ficar
assim do jeito que ela ficou, toda inchada, o que foi que causou ela ficar assim. ... Agora
assim, tem que ter esse tempo pra mim, entendeu? Chamar, assim, numa hora que num
seja, num seja ocupado, assim como a gente ta conversando, pra mim poder entender bem
o que foi isso, o que fez causar e o que é uma desnutrição. Eu tenho vontade, mas tenho
vergonha de chamar. Desde o dia que ele disse, explicou que ela tava desnutrida, é, com o
tal de, é, como é que chama edema, né? (...) O jeito deles falar, eles são médico, a gente
num entende o que eles tão falando. Agora assim, ele fala uns nome assim o diferente
que as mãe mesmo num entende, num sabe o que é aquilo, num sabe o significado (...)
eu tenho vontade de chamar eles num canto, assim, eu e ele, entendeu? Pra mim poder
entender, sem zuada, sem nada, pra poder entender realmente o que é isso. O que é edema,
o que a desnutrição, o que fez causar ela ficar com, perdendo peso, isso tudo que tem
anotado no prontuário dela eu queria entender o que é aquilo. Eu procuro entender o que
eles dizem, o que escrevem, mas num consigo. Só, com uma pessoa explicando mesmo
pra mim. (Ana Maria)
Outro perigo que se corre é o de centrar-se num discurso orgânico,
desviando a mãe da preocupação materna primária, estimulando-a a viver a
“preocupação médica primária”, ou seja, fenômeno ocorrido quando a mãe, em virtude
da doença da criança, passa a se apropriar dos termos técnicos da equipe de saúde, pois
só assim tem a sensação de possuir algum valor ou função,
110,111
vivendo o real do corpo
orgânico do bebê, deixando de lado a relação imaginária com a criança real.
Pronto, eu queria entender o que é isso também, o que é edema. (...) me explicar mesmo o
que era isso, o efeito causal, o que é um edema
, o que é uma desnutrição. (Ana Maria)
Ana Maria parecia particularmente envolvida com a “apuração da verdade”
a respeito da doença da filha. Queria que os médicos sentassem com ela e lhe
explicassem tudo. Ao desejar isso, será que não queria que sua própria mãe sentasse
com ela e lhe explicasse tudo a respeito de si, do seu pai? Parecia ao mesmo tempo
temer que os médicos dissessem que ela era culpada pela desnutrição da filha; como
talvez também temesse que a mãe dissesse que ela era culpada pela separação dos pais.
Ana Maria parecia ter uma dúvida e uma dívida com a mãe, e assim não saía de casa
para ficar com o pai de Mariana, nem perguntava nada à mãe sobre suas origens
paternas.
Será que quando Ana Maria pedia uma explicação para a desnutrição
(racionalização, função paterna), queria o limite da onipotência dessas mulheres (dela
mesma, da mãe), mas parecia temer sair do lugar de onipotente e de inocente (vítima da
mãe), ao mesmo tempo, temendo ser apontada como culpada (pela onipotência, pela
falta, pela repetição)?
Os critérios de alta hospitalar incluem três parâmetros, a saber: superação do
problema médico que motivou a admissão ou em condição de seguimento ambulatorial;
aceitação por via oral da quota calórica prevista para a fase do tratamento em que se
encontra a criança e ganho médio de peso (GMP) 10g/kg/dia. Apesar disso, o GMP
parecia ser tomado por alguns profissionais como o principal critério para alta.
Insistia-se no real da alimentação, no critério de alta com base no peso da
criança. Tomado dessa forma, esse critério não leva em consideração outros aspectos,
como a interação mãe-criança, a atividade alimentar, o suporte social, etc, baseando-se
em “fatias da criança”, desconsiderando a integralidade da atenção em saúde, um dos
preceitos básicos do SUS (Sistema Único de Saúde).
(Diário de campo) Bela tenta dar a mamadeira das 15hrs para Ian, mas ele toma pouco.
Ela o coloca no braço depois de um tempo e passa a tentar a dar o leite da mamadeira,
mas o tem sucesso. Passa então a tentar a dar o leite na seringa.Ian resmunga, grita,
esperneia. Às vezes engole o leite, outras vezes cospe, puxando a blusa da mãe para
mamar. Bela tenta vencê-lo pelo cansaço, insistindo, mas ele é brabo, tosse, esperneia,
cospe o leite. (...) Ela é paciente, persistente, reclama “faça isso não, fique quieto, toma,
senão a gente não vai embora!”. Até que, depois de muita luta, Bela consegue terminar de
dar o leite todo. Após a luta intensa, Bela anuncia que dará um banho nele. Foi ela
terminar de dizer isso que ele vomitou tudo o que comeu. (...) Começou a “entupir” a
criança com comida para que ela ganhasse logo o peso para sair do hospital. Ian parecia
voltar para o suposto esquema comer-vomitar...
- Por que você acha que ele vomitou hoje depois que tomou o leite?
Porque eu tava forçando a ele. ele num tava querendo... Eu tava vendo que ele tava,
tossiu duas vez, né, quando foi a terceira botou pra fora. Mas graças a Deus ele tomou
quase tudo. (Bela)
- Porque ele ainda ta aqui?
Porque elas acham que ele num ta recuperado ainda por causa do peso. (Izabel)
(Prontuário médico de Ian) Aceita bem a dieta. Genitora sem queixas. Conduta: paciente
aguardando critério para alta (ganho de peso por três dias consecutivos).
(Diário de campo) Bela comenta novamente que ainda não foi embora “por causa de
10g”. Interessante que ela só associa a alta a esse único critério. (...) Parece ver a
desnutrição como algo simples e sem demais conseqüências ao desenvolvimento da
criança, repercutindo apenas em seu peso. (...) Alguns médicos também parecem associar
a alta esse único fator (GMP), além, é claro, do estado clínico geral. Nada mais.
Era inquietante a expressão “pegar peso”, como se essas mães não
pegassem peso demais em seu dia-a-dia... Será que a condição de pobreza real, os
próprios filhos, não se constitui um peso excessivo que poderia ser perdido? Porque
não inserir outros indicadores para alta, como a relação mãe-criança? Será que essas
mães não saem com responsabilidade/culpa/peso suficiente? Será esse um dos
motivos pelo qual apenas uma mãe retornou à consulta ambulatorial pós-alta? Certas
práticas hospitalares precisam ser repensadas, uma vez que o hospital pode exercer o
lugar potencial não de tratamento, mas de promoção da saúde materno infantil e
prevenção de distúrbios relacionais e funcionais.
Em alguns momentos, o hospital pareceu proporcionar à criança não a
retomada da adequação nutricional, mas a retomada, em certo sentido, e até certo ponto,
das funções materna e filial. Essas “retomadas” pareciam se relacionar, pois à medida
que a criança se recuperava clinica e nutricionalmente, dava indícios de que saía de um
“estado de sideração”,
6-Y
voltando a ocupar o lugar de filho que demanda uma mãe.
Questiona-se se essa retomada reverberou no pós-alta, auxiliando no tratamento
continuado da desnutrição. Destaca-se que apenas uma das díades (Rosácea e Angélica)
chegou a ser acompanhada pela psicóloga do Serviço. Ainda assim, nenhuma das outras
díades foi encaminhada para acompanhamento psicológico ambulatorial no pós-alta.
Uma importante limitação deste estudo diz respeito ao não acompanhamento
da díade/família, posteriormente à alta hospitalar. Com base no discurso da equipe e em
consulta aos prontuários, observou-se que apenas Ian e Bela retornaram ao hospital.
Bela ainda enfrentava dificuldades para alimentar o filho e conciliar as mamadas, tendo
que deixá-lo com outrem para que ele comesse. Dois dias antes da alta hospitalar,
pesquisadora e mãe tiveram o seguinte diálogo:
- Ele ta mamando mais ou menos?
Menos.
- Por que ele ta mamando menos?
Porque a nutricionista mandou eu dar menos o peito a ele agora.
- E como tem sido para você dar menos o peito?
É ruim! Porque ele chora muito, muito sem o peito, mas eu tenho que dar, né?!
- Se essa não fosse uma orientação da Nutricionista, você continuaria dando o peito como
dava antes?
Eu dava o peito!
Y
Estado de sideração: abatimento súbito das forças vitais.
- Você acha que faz sentido essa orientação dela ou é só porque você ta aqui no hospital?
Faz, muito!
- Por que?
Porque assim, eu dando o peito a ele nem ia comer e nem ia mamar direito, né?! num,
num ia fazer efeito nenhum, ia dar a mesma coisa. E isso o, agora ele ta comendo mais,
experimentando direitinho...
Bela era uma mãe bem orientada quanto aos cuidados com o filho, porém
talvez não tenha sido atendida de modo integral, pois sua dificuldade parecia ser de
ordem afetiva, relacional, bem como social. Esta família não pôde ser trabalhada quanto
à falha da função paterna e suas conseqüências à ade/tríade. Apesar de residir na
Região Metropolitana do Recife, esta díade não foi encaminhada à psicologia
(ambulatório) nem ao Serviço Social que poderia orientá-la quanto a dispositivos sociais
oferecidos pelo governo.
4.5 Temática 4 Psicodinâmica interativa: indícios compreensivos quanto às
perturbações da interação mãe-criança
Com base na psicodinâmica interativa, buscaram-se indícios compreensivos
quanto às perturbações da interação da ade. Questiona-se a respeito dos fatores que
podem ter interferido na construção/ruptura do vínculo mãe-filho, bem como sua
contribuição para a situação de desnutrição, mediante expressão na hospitalização.
Bernardino
52
e Kreisler
8
observam que os distúrbios funcionais infantis
podem estar associados a:
o Insuficiência do investimento afetivo/diminuição do feedback da díade;
o Excesso de excitação/falta de proteção afetiva;
o Incoerência na leitura e resposta às solicitações;
o Inconstância, descontinuidade do investimento materno;
o Interação cronicamente vazia ou bruscamente esvaziada;
o Irregularidades quantitativas e/ou qualitativas do vínculo, condições em
que a criança pode não beneficiar da função materna de pára-excitação
física e psíquica.
Esses movimentos refletem perturbações da interação mãe-criança, podendo
ser observados no âmbito hospitalar, compreendidos mediante o interjogo demanda-
desejo e na expressão e vivência das funções materna e paterna. Cramer
22
propôs que se
utilizasse o termo “interações de risco”, remetendo-se aos fatores de risco na criança e
no meio, tendo em vista a dimensão interativa. Kreisler
8
refletiu sobre as disposições
individuais da criança, inatas e/ou adquiridas por intermédio das experiências
interacionais primárias. Sugere que as diferenças individuais decorrem do equipamento
genético, das condições da vida intra-uterina (dados tanto biológicos como
psicológicos), das condições do nascimento e das circunstâncias físicas e ambientais que
se seguem.
8
É através da alternância e regulação recíproca dos funcionamentos materno
e paterno (mãe: atribuição; pai: corte) que a criança tem seu espaço assegurado,
podendo advir como sujeito.
6
Assim, as operações simbólicas são realizadas
inicialmente pela mãe, atravessada pela função paterna.
112
Cullere-Crespin
6
destaca que os sinais de sofrimento/desenvolvimento
infantil podem ser identificados com base na dupla modalidade (função materna, função
paterna) das trocas da criança em seu laço com o Outro. Desse modo, os sinais
considerados “positivos” aparecem quando as duas funções (materna e paterna) são
desempenhadas e estão representadas de modo equilibrado, enquanto que os sinais de
sofrimento apontam para o desequilíbrio ou não organização de uma dessas funções.
6
É reconhecido o papel do pai na gênese do desenvolvimento infantil, bem
como seu papel determinante no aparecimento de distúrbios relacionais/funcionais, seja
diretamente por seus comportamentos, seja por meio das atitudes maternas, se o pai está
ausente.
6,14,18,29,72
Assim, a criança está inserida, desde antes do nascimento, numa
relação triangular.
O pai real é aquele que se insere na díade para regular o novo (des)encontro
entre mãe, criança e falo, que institui um quarto elemento para operar a castração
materna, libertando a criança do desejo insaciável da mãe. Esse é o terceiro tempo ou
terceiro registro da falta a que Lacan se remeteu, possível pelo complexo de castração.
56
O pai real comparece como agente da introdução de uma falta simbólica de
um objeto imaginário: o falo. Com a castração, a criança sai marcada em relação ao
falo, moeda que possibilitará as futuras trocas da criança com o Outro. Dessa forma, se
estabelece para a criança o que Lacan chamou de “jogo de quem perde, ganha”: a
criança perde a ilusão da completude materna e ganha pertinência social, amplia seu
circuito de trocas.
56
Para que a constituição do sujeito se efetive é preciso que a função paterna
barre, interdite o desejo materno, para que o filho não fique eternamente aprisionado a
ter que responder como objeto do desejo da mãe. A função paterna age como um corte à
complementariedade no jogo imaginário entre a criança e a mãe, abrindo espaço à
humanização do desejo infantil. Se a criança fica fixada em saturar o desejo da mãe
corre o risco de não se constituir como sujeito desejante.
29,57
Como destacado anteriormente, muitos dos pais das crianças estudadas
pareciam excluídos ou se excluírem da função paterna (quarto eixo destacado por
Kupfer et al
18
). Sozinha em sua relação com o filho, a mãe pode passar a exercer sua
função de modo omisso ou, pelo contrário, excessivo. A mãe tende a se mostrar
intrusiva, contrastando com a incapacidade/fraqueza da vertente paterna, conseqüência
de um abatimento secundário ou ausência de inscrição primária dessa função.
6
Os sinais da série “barulhenta” indicam que a criança parece tomar sobre si
mesma o suporte da função paterna fraca ou incapaz, mostrando-se ativa, lutando contra
o excesso materno, na tentativa de colocar limite na onipotência da mãe.
6
Em contraste com a série barulhenta, os sinais “silenciosos” parecem
corresponder à criança que aparentemente deixa de lutar para pôr limite à onipotência
materna, se entregando a uma passividade e atonia que se assemelham à letargia das
crianças desnutridas.
6,8
Cullere-Crespin
6
destaca que esses sinais, diferentemente
daqueles da série barulhenta, tendem a ser vistos com certo conforto, a criança
“quietinha”, adaptada, cil de lidar, que aceita o que vier, ocultando, esses sinais, toda
periculosidade de uma criança que parece se entregar passivamente ao excesso materno.
Do início do adoecimento e ao longo da internação, Mariana pareceu
transitar entre essas duas séries, ora mostrando-se ativa, barulhenta, “dizendo” e
“escolhendo” quando queria comer, bem como vomitando na mãe, a mãe, rejeitando o
excesso materno quando era forçada a aceitar o alimento. Em outros momentos parecia
abandonar a luta, “hibernando” no berço, desistindo de “chamar” a mãe, aceitando
passivamente o leite, o qual escorria sem sentido pelos cantos da sua boca, golfando o
restante logo em seguida. A sonda nasogástrica (SNG) parecia não dar suporte vital
ao corpo, porém reforçar a intrusão, entravar o prazer. Ana Maria parecia se dar conta
de aspectos desse movimento da filha, porém não sabia como se posicionar como mãe.
(...) eu vejo que ela ta com fome hoje em dia quando vou botar a chupeta na boca dela e
ela pega bem forte mesmo a chupeta, chega pega com aquela pressão bem forte, aí eu vejo
que ela ta com fome mesmo. É quando ela ta assim, por isso que colocaram a sonda de
novo nela, porque ela queria comer quando ela tava com fome mesmo, quando ela tava
pegando aquela chupeta bem forte mesmo ela comia a mamadeira todinha, sem reclamar,
sem botar pra fora, sem nada. Agora quando ela num tava com fome eu tinha que dar à
força, foi que colocaram a sonda de novo nela. (...) se apois, se for ficar dando à
força é melhor colocar a sonda, aí colocou a sonda nela. (Ana Maria)
Mariana parecia não ter como se posicionar: chacoalhada, tanto no real do
corpo, como no imaginário e no fantasmático: jogada de um lado para o outro, cuidada
por uma, cuidada por outra, tomada como filha de uma, como filha/boneca de outra.
Contratransferencialmente, a pesquisadora parecia se identificar com
Mariana, ficando “fastiosa”, chegando a perder peso, acolhendo o sofrimento de
Mariana com seu próprio corpo. A pesquisadora praticamente podia oferecer seu
corpo e sua escuta às díades, não suas interpretações (psicanaliticamente falando), de
modo a não fugir do enquadre da pesquisa.
(Diário de campo) dois dias tenho diarréia e estou muito cansada, com “fastio”,
cheguei até a perder peso, talvez dois quilos. Associo meus sintomas aos de Mariana: cada
vez mais rejeito essa situação das fotos que Ana Maria tanto insiste. É como se Mariana e
eu estivéssemos rejeitando essa invasão Mariana por ser tão mexida e remexida pela
mãe para tirar as fotos; eu por ser mexida e remexida do meu lugar de pesquisadora; nem
Mariana nem eu sabemos como reagir, a não ser botar tudo isso para fora e amolecer.
Felizmente Ana Maria foi para casa e deixou a mãe como cuidadora, nos dando uma
trégua. A avó disse que Mariana o vomita desde ontem, e que os vômitos eram sempre
pós-alimentares. Fico pensando se não era o modo como Ana Maria manuseava Mariana
após a dieta, ou sua presença invasiva.
Parece que desde o início Mariana e Ana Maria foram dificultadas na
construção do laço:
- Você viu logo ela quando ela nasceu ou demorou?
Eu vi logo que colocaram num tipo de incubadora com uma luz assim, em cima dela. (...)
Aí dali ela já foi direto pro quarto comigo. Aí deixaram ela do lado, do meu lado. Ela tinha
um bercinho, né, mas entrava muita gente estranha, aí eu disse ‘deixa ela do meu lado’,
ela ficou do meu lado.
- E o que você sentiu...
Quando vi ela? Oxe eu, veio aquele amor assim por dentro por ela, me agarrei logo
nela e disse “não, ela vai ficar do meu lado”. toda hora mexendo com ela, brincando
com ela, conversando com ela assim. E ela mexia a cabecinha pra um lado, mexia pra o
outro e aquela alegria por dentro. (...) quando foi no segundo dia nós saiu e eu fui
direto pra casa, mas quando chegou em casa um monte de visita e eu me agarrando com
ela, as visita querendo pegar ela, eu digo “não, depois você pega”, agarrada com ela.
(...) Aquele monte de presente na cama e eu, eu digo “meu Deus do céu, isso tudinho
querendo pegar a menina! Não, vem amanhã que depois vocês pega, hoje ela é minha”.
mainha “deixa os outro pegar”, eu “não, amanhã eles pega”. só sei que foi uns seis,
sete dia aquele monte de gente todo dia em casa, olhando ela, tudo dizendo “que gracinha,
num sei o quê”, pegando ela. Mainha também naquela empolgação, gritaria, eu quase
num via ela. (Ana Maria)
Dentre os sinais que apontam para o transbordamento da função materna,
Rohenkhol
72
destaca que a criança tenta ler na mãe o que pode atiçar seu olhar, seu
investimento. Quando uma ‘preocupação’, ‘receio’ do cuidador primordial pode ser
lido pelo sujeito como sendo o que o outro quer dele.” (2001)
72
Ian parecia responder ao desejo materno, buscando fisgar a mãe através dos
supostos vômitos, recusando a comida de panela, “colando-se” ao seio materno, seu
objeto primordial e favorito, quase que exclusivo. Ian parecia preso à satisfação
materna, se satisfazendo em ser aquele que satisfaz a mãe. Esse movimento é esperado
em momento anterior do desenvolvimento infantil, quando o investimento do bebê está
essencialmente ligado ao prazer compartilhado.
113
Bela parecia reforçar o movimento do
filho de satisfazê-la continuamente através da constante busca de Ian por seu seio,
assumindo a qualidade de “boa mãe” (aquela que o peito a qualquer hora diante da
demanda da criança). Podia, assim, fazer aquilo do qual fora impedida de fazer com os
outros filhos.
Sales
113
destaca que a restrição dos objetos pode levar a um
empobrecimento do auto-erotismo, atingindo a capacidade da criança de estar e sem
angústia na ausência materna. A ligação excessiva ao real do corpo materno, vivida de
forma erótica, pode interferir na organização sexual da criança. Observe-se um diálogo
entre Bela e Ian ao longo de uma das entrevistas:
Aí quando eu digo “cadê a cococa de mãe, cadê a cococa de mãe?”.
(Dirige-se agora à criança, olhando para ela, iniciando-se um diálogo entre a díade)
- Cadê a cococa de mãe, ta aonde, hein neném?! Óia, a cococa de mainha, ta aonde?
- Ehhh... (Ian balbucia, apontando para o rosto da mãe)
- Oxente, ta aí, é?! Ta aonde? Ta aqui não? (aponta para a cueca do filho) Ta não, aqui
não, a cococa?
- (Ian olha para a mãe e depois olha e aponta para a cueca)
- Ta aqui é? Cadê ela? Amostra a mamãe.
- (Ian aponta para a cueca)
Quando eu digo assim, ele, quando ele ta de cueca, eu deixo ele em casa de cueca, ele bota
a pitoca pra fora, aí fica assim, puxando e deixa a pitoca dura! (Ri) eu digo “eita, quer
pegar a mãe, ó praí, puxou ao pai!”. (Ri) Somente isso. Num entendo mais não, o que ele
fala não.
Bela reconhecia a dificuldade em colocar limites no filho, atestando a falta
de atenção do marido/pai. Supõe-se que o hospital tenha sido tomado como
representante da função paterna, mostrando a Bela que Ian podia ficar quando ela
saía para almoçar (presença-ausência), e que era capaz de comer outras comidas, desde
que ela dissesse “não” ao desejo de mamada (dela e do filho).
Fragelli & Petri
56
destacam que para um objeto ser mbolo do amor precisa
estar necessariamente relacionado à falta. A palavra “não” da mãe assegura à criança
que mesmo que sua demanda não seja atendida, seu desejo é reconhecido, tendo como
efeito o cessar da reivindicação (criança deixando de ser “rei”).
As interações desenvolvidas no hospital refletiam, em alguns casos, apelos
da criança ao desejo da mãe (Renata, João, Fátima, Pandora, Gabriel), ou em outras
crianças a tentativa fracassada de fisgar o desejo e o gozo materno (Angélica, Mariana).
A tentativa de algumas crianças em chamar a atenção da mãe, demandá-la
numa brincadeira, por vezes era interpretada por algumas com desdém, esvaziando de
sentido o apelo da criança, que repetidamente não era escutada em seu sentido
simbólico.
Em certos momentos, algumas ades pareciam ilustrar o “estado de
sideração” descrito por Cullere-Crespin,
6
operando a destituição recíproca (a mãe não
consegue organizar suas respostas ou não as direciona ao filho, e assim a criança não é
“lida” nem tampouco “decodificada”, não enviando mais sinais à mãe, como nos casos
de João e Fátima que deixaram de falar, de Pandora que parou de rir, Gabriel que parou
de brincar).
Assim, reforçando as observações de Cullere-Crespin,
6
os dados desta
pesquisa sugerem que os aparentes estados de sideração/destituição recíproca foram
revertidos nas maior parte das díades. O caso de Rosácea e Angélica sugere que a mãe,
diante do medo de perder a filha para o Serviço Social ou para a morte, buscou ocupar
seu lugar de leitora primordial, talvez nunca ocupado, se dirigindo a uma criança muito
discrepante da real. Apesar de se colocar como “leitora primordial”, Rosácea parecia
não atribuir à filha espaços temporais (turnos) durante os quais a criança pudesse se
organizar, não a elevando à categoria de participante das trocas interativas. Não havia
reversibilidade de papéis, uma mãe desejosa, “cega” diante do medo de perder a
filha, de deixá-la com fome e com sede, entupindo-a de leite. Seque Rosácea de fato
amamentava Angélica, no sentido libidinal do termo? Segundo Sales, a mãe amamenta
o filho quando se deixa mamar pela criança.
113
As manifestações de Angélica pareciam ser lidas de modo unívoco, como
demanda por comida. O oferecimento do alimento como resposta imediata a qualquer
desconforto foi mencionado por Almeida
73
como indicador de vulnerabilidade frente a
problemas de alimentação infantil. Sales
113
também se remeteu a esse aspecto,
pontuando que esse tipo de comportamento materno acaba por produzir uma fusão entre
peito e pele, onde para a mãe o peito parece se transformar numa fonte de leite,
deserotizada, mecânica, e para a criança, como único objeto não para satisfazer sua
fome, mas também para o fazer calar e sedar.
A repetição desse tipo de atividade, tornada mecânica, pode afetar a ação
fundamental do sujeito, dificultando a e em supor em seu filho um sujeito desejante,
que se comunica para além das necessidades orgânicas.
113
Supor um sujeito e
estabelecer a demanda da criança estão entre os eixos fundamentais na relação mãe-
filho destacados por Kupfer et al.
18
No que concerne ao interjogo demanda desejo, foram observados tanto
hipofuncionamentos diádicos (Magdala e Renata, Rosácea e Angélica), como
hiperfuncionamentos (Bela e Ian). Esses quadros refletem a perseguição materna na
realização do seu desejo, sem se dar conta das necessidades do filho
(hiperfuncionamento), ou a pobre demanda libidinal materna frente à criança
(hipofuncionamento).
72
No hipofuncionamento, o grito da criança não parece ecoar na mãe, caindo
no vazio, e é secundariamente a esta ausência de resposta continente que a passividade
se instala.
6
A criança passa a se apresentar aparentemente tranqüila, porém apática, onde
o fenômeno dominante é o retardo no desenvolvimento, bem como atraso de peso e
altura, comumente acompanhado de depressão, o que tende a gerar erros de diagnóstico.
A criança é em geral hipotônica e hipersônica.
6,8
Semelhante ao que Kreisler
8
“anorexia primária ou de inércia”, Lacan
55
utilizou a denominação “anorexia mental” para descrever o estado onde o que impera
não é relativo ao não comer, mas ao comer nada, relativo ao plano simbólico, deixando
evidente a diferença entre necessidade e desejo, pontuando que o corpo marca o
encontro entre Eros e Tanatos.
45
A criança come “nada” para guardar vazio o espaço do
desejo, de modo a não ser tomado pela necessidade do alimento.
55
É no nível do objeto
anulado como simbólico, pela mãe, que a criança põe em xeque a sua dependência, e
precisamente alimentando-se de nada” (1957: 190).
55
Desse modo, a criança utiliza-se de recursos corporais, os únicos de que
dispõe, na tentativa de refisgar o desejo da mãe. Parece não saber se servir do
seio/mamadeira, numa aparente dificuldade motora. A atitude da criança diante do
alimento é de suposta saciedade, avançando os lábios a contragosto, defendendo-se
frouxamente contra o alimento, o qual volta regurgitado, babado, rejeitado. A comida
não parece adquirir sentido à criança, observando-se refeições tristes e infligidoras,
geralmente terminando com vômito sem força. As reações contra a imposição alimentar
são passivas, silenciosas, reduzidas a gemidos queixosos quase inaudíveis. Observa-se a
ausência de atividades auto-eróticas orais, numa inapetência de viver.
8,22
Quadros de anorexia mental/primária podem estar presentes onde se
observam ritmos de sucção e degustação pobres e débeis, acompanhados de
regurgitação passiva.
8,72
O “preenchimento passivo”, sem apetite nem prazer aponta
para a indiferenciação do laço: não importa quando, não importa quem.
6
Tudo se passa como se a raiz mais profunda da pulsão de vida fosse minada,
numa inapetência de viver; a criança encontra-se com dificuldade de estabelecer a
continuidade de existir (risco vital, risco psíquico).
112
(Diário de campo) Angélica está no berço. Seu pai saiu antes de dar a dieta dela. (...)
Perguntei a Dra Ana Falbo porque Angélica não come via oral, esperando uma orientação
e uma explicação absolutamente orgânica. Acho que é duro reconhecer o que Dra Ana
disse como resposta: “parece que Angélica é uma daquelas criancinhas que vêem para cá,
começam o tratamento bem, se adaptam bem, mas falta alguma coisa, talvez a centelha de
vida, e assim vai, pega uma infecção aqui, outra ali...”. É duro admitir, mas ela parece
mesmo ser uma dessas crianças sem a centelha de vida... (...) Conversei depois com a mãe
vizinha ao berço de Angélica, uma e muito ligada e atenta ao seu bebê. Foi incrível o
que ela me disse, tão conectado ao que Dra Ana disse: “essa bebezinha parece aquelas
crianças da África; o olhar dela parece dizer que ela quer viver, mas não sabe como
lutar”. Comento com essa mãe e com a auxiliar que Angélica parece não ter prazer em
comer, por isso, apesar da fome, põe o leite dado para fora, expulsando aquilo que deveria
lhe trazer vida, lhe dar prazer, porque talvez ela queira algo mais básico que o leite: a
mãe, engolir e ter prazer com essa e, com o corpo dela. Parece que Rosácea não
oferece como seu o leite que dá, e assim não o dá com prazer à filha. O pai de Angélica
também é passivo como a esposa. Geralmente está ausente da enfermaria ou dormindo.
Devido ao fato de pôr em risco o prognóstico de vida, esse quadro tende a
ser tratado unicamente no âmbito da urgência médica. Certamente é preciso assegurar
a sobrevida do bebê, mas nem por isso a dimensão simbólica do sintoma deve ser
negligenciada.” (2004: 54)
6
Diante do quadro alimentar de Angélica, a mãe e a equipe se engajavam em
“salvá-la”, satisfazê-la com a oferta de objetos reais (leite, brinquedos, roupas), tomando
a falta/inapetência/pobreza/desnutrição como um vazio a ser preenchido no real, ao
invés de tomar a falta e a própria desnutrição, em seu sentido simbólico, como motor do
funcionamento psíquico desta criança.
A dinâmica conflitiva da díade e os distúrbios funcionais infantis
demonstram que os estados de sofrimento da criança devem ser compreendidos como
dependentes do somático, do relacional
7,8
bem como do social. Estima-se que o
reconhecimento da interação desses elementos conduza a uma melhora no tratamento e
prevenção dos distúrbios relacionais precoces no hospital, antes de chegar às consultas
especializadas. Aponta-se a necessidade de cuidados integrais nas enfermarias,
caracterizando intervenções de prevenção primária.
Este trabalho ilustrou como o hospital é um lugar onde o sofrimento
psíquico é expresso e pode ser observado como intimamente associado ao somático e ao
relacional, podendo se tornar cada vez mais crônico e fatal ou ser re-inscrito,
resignificado. Ações pontuais desenvolvidas na enfermaria atestam que o hospital pode
exercer importante papel na compreensão do adoecimento, na retomada do vínculo mãe-
criança e na experiência e prática da parentalidade.
O sintoma infantil reflete a expressão simbólica do conflito psíquico, através
da interação da criança com o campo dos cuidados maternos, representando a história
do casal parental, encarnando em seu corpo o objeto da fantasia materna/parental.
12
Sintomas clínicos infantis estão próximos ao campo da psicossomática, no qual a
representação que o corpo assume configura um sintoma que altera o real do órgão.
8,106
Poder-se-ia associar a desnutrição ao campo psicossomático, onde os
nutrientes não são organicamente absorvidos, remontando a uma falha no suporte
simbólico da organização do circuito pulsional infantil. Considera-se que a satisfação
afetiva é tão central que sua ausência pode entravar a própria necessidade alimentar.
7
Segundo Cullere-Crespin,
6
estados extremos de desnutrição parecem
corresponder às faltas nutricionais, mas sua potência mortífera pode ser incrementada
pelas vivências de privação ou de excesso do ponto de vista afetivo. Kreisler
8
enfatiza a
importância do investimento libidinal parental como determinante da qualidade da
organização psicossomática da criança, localizando nas vicissitudes desse investimento
as causas precipitantes do adoecimento.
Fazendo um comparativo entre este estudo e o de Nóbrega,
3
observa-se que
tratam-se de abordagens diferentes ao mesmo fenômeno (desnutrição infantil e vínculo
mãe-filho). Nóbrega utilizou uma avaliação mista (quali-quanti), recorrendo a uma
avaliação do vínculo mãe-filho, ao passo que o presente trabalho baseou-se na análise
da psicodinâmica interativa da díade e no discurso materno. Enquanto Nóbrega associou
a DEP ao fraco vínculo mãe-filho, a análise da psicodinâmica interativa das díades
indicou que algumas mães tinham elementos de forte vínculo com o filho, porém
exerciam a maternidade de modo inadequado (ausente ou exagerado). Sugere-se que a
terminologia proposta por Nóbrega
3
“fraco nculo” seja discutida, levando-se com
conta a psicodinâmica interativa da díade/tríade, a qual aponta para aspectos mais
abrangentes do vínculo mãe-filho.
Apesar do presente estudo não fornecer informações completas quanto aos
aspectos causais concorrentes para a desnutrição infantil, recomenda-se que a
terminologia proposta por Nóbrega
3
seja aprofundada em estudos qualitativos visando
compreender como a interação da díade/tríade se associa à etiologia da DEP.
O manejo hospitalar da desnutrição proposto pela OMS
1
e utilizado no IMIP
inclui dez passos, estando o décimo referenciado como “estimulação física e
emocional”.
Z
Propõe-se que a observação da psicodinâmica interativa seja pesquisada
como instrumento complementar a este décimo passo.
Z
Estimulação emocional e física através de programas de brincadeiras que começam durante a
reabilitação e continuam após a alta, podem reduzir substancialmente o risco de retardo mental e
emocional permanentes.
1
V Considerações Finais e Recomendações
Desde a origem, a criança se alimenta tanto de palavras quanto
de pão, e perece por palavras” (Lacan, Seminário IV: 192)
55
Com base nos elementos interacionais, observou-se que apesar de todas as
mães da pesquisa terem características de base semelhantes, configurando situações de
risco, a análise da psicodinâmica interativa das díades evidenciou a inexistência de um
modelo interativo comum. O risco parecia apontar mais para certa vulnerabilidade no
desenvolvimento da tríade.
Confirma-se que o lugar ocupado pela criança na problemática psíquica da
mãe, do casal e na história trans e intergeracional da família é fundamental no interjogo
das interações posteriores, principalmente nas vividas em momentos críticos à díade,
como diante da desnutrição e hospitalização.
A análise dos dados reforça a influência mútua de mãe e filho na construção
da interação e a complexidade dos distúrbios funcionais precoces, sugerindo que estados
extremos de desnutrição podem estar associados não apenas às faltas e/ou falhas
nutricionais, mas também a vivências de privação ou excesso psicoafetivo.
Outro aspecto fundamental a ser considerado na compreensão dessa
dinâmica conflitiva é o desempenho da função paterna enquanto terceiro fundamental à
díade mãe-criança. Cogita-se que em alguns casos o adoecimento da criança tenha
funcionado como reação à falta/excesso materno, como um apelo à entrada de um
terceiro (pai, hospital, pesquisadora) nessa relação. A doença podendo então ser
pensada, portanto, como um limite/apelo ao excesso ou à falta materna/paterna.
A análise dos temas sugere que a hospitalização despertou vivências da mãe
e da criança, informando sobre o passado da díade. Assim, o que em alguns casos
parecia figurar como indicador de vulnerabilidade frente a problemas de alimentação
infantil, para outros foi vivido como resiliência. O hospital pareceu ocupar/ser tomado
por algumas mães como terceiro (acolhendo/colocando limites), auxiliando-as na
retomada de aspectos da parentalidade, figurando como lugar potencial de resgate e
proteção não clínico-nutricional, mas também funcional (funcionamento materno e
filial).
O fato de alguns comportamentos das díades terem sido modificados ao
longo da internação sugere que ações pontuais desenvolvidas na enfermaria
(disponibilidade em escutar e compreender a mãe em seus conflitos internos; busca por
significados quanto à doença e os sinais interacionais da díade; construção de uma
terceira história; evitar condutas que culpabilizem a mãe/família; valorização de
parentalidades parciais, diminuindo a ferida narcísica dos pais e favorecendo imagos
parentais de boa qualidade e a prática mais segura da parentalidade) podem auxiliar a
mãe a tomar consciência de suas dificuldades e habilidades, a retomar e reforçar a
maternagem/aspectos da parentalidade e reconhecer competências do filho. Essas
intervenções dizem respeito não ao tratamento pediátrico e nutricional, mas também
psicológico, ocupacional e assistencial à família.
Estima-se que a escuta oferecida às díades e o lugar de demanda ocupado
pela pesquisadora pode ser desenvolvido/ocupado pela equipe hospitalar, mediante
reflexão a respeito de práticas hospitalares, organização de serviços, enfim, sobre o
modelo de atendimento oferecido pelo hospital, tendo em vista a complexidade do
processo saúde-doença e a integralidade da atenção em saúde.
A capacidade da criança em se adaptar às diferentes circunstâncias
demonstra que em situações complexas não se devem elaborar hipóteses simplistas, pois
é necessário estudar cada caso para propor ajuda adequada às necessidades da criança e
dos pais.
A escuta pode ser trabalhada em equipe, em reuniões clínicas
interdisciplinares onde os profissionais possam trocar percepções, se colocar
transferencial e contratransferencionalmente, de modo a buscar compreensão mais
abrangente da desnutrição, do processo de adoecimento da díade/tríade e intervir a
tempo, trabalhando para que mãe e criança encontrem um meio de dizer de outra forma
o que têm a se dizer, que não pela via do adoecimento.
Estima-se que o reconhecimento das competências da criança, das
modalidades interativas da díade e da função potencial de resgate exercida pelo hospital
esteja associado à promoção da saúde materno infantil e prevenção de perturbações no
desenvolvimento da criança. Esse conhecimento tem papel essencial na organização de
políticas e práticas desenvolvidas pelo setor saúde, apontando a necessidade de cuidados
integrais efetuados pelos profissionais, caracterizando intervenções de prevenção
primária.
O presente estudo sugere também que a narratividade e o significado criado
a respeito da dinâmica interativa e da doença pareceram ter função estruturante às
díades. Reconhecendo-se importante limitação deste estudo, recomendam-se outros
trabalhos que estendam o acompanhamento da díade posteriormente à alta hospitalar.
É inegável que a desnutrição deixa marca importante no corpo pela falta do
pão, mas é necessário reconhecer que essa marca pode ser potencializada pela falta da
mediação da palavra, do simbólico, seja pela ausência do “sim” ou do “não”, seja pelo
excesso de “simou excesso de “não”. As demandas da mãe/criança desnutrida nem
sempre se remetem ao objeto real, pois se demanda também o símbolo do amor, objeto
de dom, simbólico da existência. Precisa-se compreender o corpo em toda sua
complexidade, protagonista de uma história social, familiar, interacional, que demanda
mais que sobrevivência, a existência em si.
A desnutrição infantil, associada ao campo psicossomático, oferece-se ao
olhar clínico como um quadro com pelo menos três vertentes: médica (somático),
psicológica (relacional) e social. A associação dessas vertentes pode fornecer uma
compreensão holística sobre uma das patologias mais comprometedoras do
desenvolvimento infantil. Esse pode ser um sentido potencial aos conceitos de
humanização e integralidade da atenção em saúde.
Com base no questionamento levantado na introdução (como a observação
da interação da ade hospitalizada pode auxiliar no tratamento da desnutrição?),
destacam-se algumas contribuições práticas e recomendações:
1. Estimular as mães a montar o setting para a alimentação e oferecer o
alimento aos poucos, de modo a promover maior comunicação e prazer nas trocas
alimentares.
2. Utilizar utensílios para alimentação adequados à criança, de modo que
favoreçam a ingestão e exploração do alimento.
3. Promover maior discussão dentro da equipe quando for necessário o uso
da sonda nasogástrica e outros procedimentos invasivos, refletindo sobre o momento e
uso desses instrumentos.
4. Estimular que as mães comuniquem ao filho seu afastamento da
enfermaria, bem como que utilizem objeto transitório de modo a auxiliar no conforto à
criança.
5. Estimular a presença da díade na brinquedoteca, bem como a dos
contadores de histórias (Projeto Biblioteca Viva) na enfermaria.
6. Favorecer a mãe, ao longo da visita médica, maior comunicação a
respeito dos aspectos imaginários e simbólicos da sua interação com o filho, não se
restringindo ao real do corpo.
7. Buscar os significados maternos sobre a doença, integrando a visão da
mãe à compreensão científica sobre a enfermidade e o tratamento clínico, promovendo
maior equidade na compreensão do processo saúde-doença e na relação equipe de saúde
- família.
8. Promover e estimular a mãe a ser multiplicadora e agente de
transformação na compreensão e tratamento da desnutrição em sua comunidade.
9. Evitar o atendimento centrado no orgânico, onde o personagem principal
é o corpo, não o sujeito. Esse tipo de atendimento tende a destacar a diferença social da
mãe, inibindo-a, levando-a a se apropriar dos termos técnicos da equipe de saúde,
tentando assim possuir algum valor ou função, afastando-se da sua função materna.
10. Estimular a comunicação entre os profissionais da equipe, promovendo
equidade também nesse relacionamento, opondo-se a que o corpo da criança seja
tomado e lido “aos pedaços”, evitando-se atendimentos segmentados, “fatias da
criança”.
11. Estimular a equipe a trabalhar seus recursos de narratividade, utilizar a
transferência e contratransferência como instrumentos de trabalho, bem como o rapport
com a família, pois a qualidade da relação equipe de saúde – criança pais pode ser um
fator essencial no sucesso ou fracasso terapêutico.
Imperativos superegóicos aos pais (o
que e como devem fazer, sentir) obstacularizam a construção de significados, não
permitindo que articulem simbolicamente a realidade de si mesmos e do filho. Não raro
vê-se a equipe adoecer física e/ou emocionalmente ao ter contato com realidades tão
adversas, mobilizadoras de conteúdos inconscientes arcaicos. Ressalta-se a importância
da equipe se envolver em algum tipo de trabalho de intercontrole, supervisão ou, quando
possível ou desejado, de análise pessoal.
12. Estimular a discussão a respeito da ênfase dada ao critério de alta
baseado no ganho médio de peso, o qual desconsidera a integralidade da atenção em
saúde materno infantil, um dos preceitos básicos do SUS, bem como as próprias
recomendações da OMS.
1
Recomenda-se que outros indicadores, como a relação mãe-
criança, sejam utilizados como critério para a alta.
13. Reforçar a importância das orientações à mãe/família no momento da
alta, bem como a importância das consultas de retorno, tendo em vista não só o
ambulatório de nutrição e pediatria, como também os demais profissionais da rede de
cuidados.
14. Usar na enfermaria a Ficha de Acompanhamento do Desenvolvimento,
instrumento que pode ser utilizado como auxiliar no diagnóstico da interação mãe-
criança
AA
e no critério para alta.
15. Pensar expressão mais adequada que a utilizada “inquérito alimentar”.
Sugere-se também que este não seja mais realizado na consulta de emergência, porém
na enfermaria, depois de a equipe ter estabelecido rapport com a família.
16. Facilitar que os profissionais de saúde, bem como os futuros
profissionais, conheçam a respeito do nascimento psíquico do sujeito, prevenção,
distúrbios da interação mãe-criança e seus reflexos no adoecimento. Compreender,
trabalhar e prevenir os sinais precoces de sofrimento infantil e os distúrbios relacionais,
AA
Kupfer et al
18
desenvolvem pesquisa que pretende, dentre outros objetivos, acrescentar a esse
instrumento a relação mãe-criança.
nas consultas de puericultura e no hospital geral, antes de chegar às consultas
especializadas pode ser uma estratégia eficaz e econômica.
17. Aumentar o quadro de profissionais de psicologia na enfermaria.
18. Oferecer maior atenção à formação dos profissionais de ponta, nas
comunidades, em prol do aperfeiçoamento no diagnóstico precoce e tratamento da
desnutrição, tendo em vista o sistema de referência e contra-referência do SUS.
19. Pesquisar a observação da psicodinâmica interativa como instrumento
complementar ao décimo passo do Manual da OMS.
1
20. Promover pesquisas que estendam o acompanhamento da díade/família
posteriormente à alta hospitalar.
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Anexos e Apêndices
Anexo 1 – Ficha de Acompanhamento do Desenvolvimento
Apêndice 1 – Roteiro das Entrevistas
Apêndice 2 – Roteiro para Análise das Observações Filmadas
Anexo 2 Parecer de aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa
Envolvendo Seres Humanos do Instituto Materno Infantil Prof.
Fernando Figueira (IMIP)
Apêndice 3 – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (A)
Apêndice 4 – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (B)
APÊNDICE 1
ROTEIRO DAS ENTREVISTAS
Elementos Maternos
Características sócio-econômico-demográficas
Vínculos familiares maternos
Vínculo conjugal atual
História clínico-nutricional
Significado da criança no psiquismo materno durante a gestação
Significado da criança no psiquismo materno no parto e puerpério
Significado da criança em seus primeiros meses de vida (cuidados iniciais)
Sentimentos maternos diante da interação habitual da criança (antes da desnutrição e da
internação)
Fantasias e significados maternos quanto à desnutrição
Sentimentos maternos diante da internação (quanto à interação com a criança, com o
hospital e com a equipe de saúde)
Elementos Familiares
Condições sócio-demográficas da família (subsistência, renda, número de habitantes no
domicílio, condições da habitação, suporte social e assistencial)
Características do pai da criança (contato do pai com a criança e mãe, tipo de
participação do pai na dinâmica familiar, ocupação, transtornos mentais e de
comportamento)
Alimentação da família
Elementos Infantis
Desenvolvimento afetivo e psicomotor da criança
História alimentar da criança
A criança internada
Elementos da díade em interação
Sentimento da mãe diante das atividades de interação com a criança (quanto a si mesma
e quanto à criança)
APÊNDICE 2
ROTEIRO PARA ANÁLISE DAS OBSERVAÇÕES FILMADAS
Díade: ____________________________________________
Data: ___________________________ Filmagem: Sim Não
Atividade observada: _______________________________ Local:
__________________
Quem inicia a atividade? Como? Qual o
contexto desta?
Como o outro da díade reage?
Como a criança reagiu diante do anúncio
da atividade (choro, sorriso, balbucio,
intensa movimentação motora, recusa)?
A mãe anuncia, menciona o brinquedo ou
a brincadeira/alimentação? Como?
Montou setting?
A criança está posicionada de frente para a
mãe; como estava posicionada? A mãe
busca acomodar a criança? Caso mame,
como está seu corpo em relação ao da
mãe?
A criança abre a boca, antecipando o
alimento?
Caso a criança antecipe o alimento, qual a
reação da mãe (comentário de aprovação,
reclama)?
A criança recusa o alimento? Como? Por
quê?
Reação da mãe, caso a criança tenha
recusado o alimento:
Conversa com a criança
Usa o lúdico para convencê-la
Tenta novamente
Reclama com a criança
Ameaça a criança
Bate na criança
Chama outra pessoa para ajudar
Simplesmente desiste
Ignora e continua
Reação da criança (choro, sorriso,
balbucio, intensa movimentação motora,
recusa)
A mãe respeita o ritmo da criança ao longo
da alimentação? De que forma respeita
(reciprocamente, esperando algum sinal da
criança) ou não respeita (parece não
perceber os sinais da criança, força, é
agressiva, reclama)
Quanto à responsividade materna,
existiram respostas apropriadas, em tempo
compatível?
A mãe utiliza algum objeto para
intermediar a atividade? Qual? Como?
A criança se interessa ou recusa o
brinquedo/brincadeira/alimento? Como?
Por que?
A mãe dá oportunidade para a criança
escolher o brinquedo/brincadeira/interagir
com o alimento?
Caso a criança busque o
brinquedo/brincadeira/alimento, como a
mãe reage?
A mãe respeita o ritmo da criança ao longo
da atividade? De que forma respeita
(reciprocamente, esperando algum sinal da
criança) ou não respeita (parece não
perceber os sinais da criança, força, é
agressiva, reclama)
Quanto à responsividade materna,
existiram respostas apropriadas, em tempo
compatível?
Observa-se troca de olhares entre a díade?
Como cada uma reage diante dos olhares
da outra?
Caso a criança se desorganize, como a
mãe reage?
Ajuda a criança a se reorganizar,
eficazmente, acolhendo
adequadamente a criança
(correspondendo ao que a criança
necessita)
Ajuda a criança a se reorganizar,
porém de modo ineficaz
(movimenta muito a criança, etc)
Nada faz, só olha
Reclama com a criança
Afasta-se da criança
Pede ajuda
Como a criança, então desorganizada,
reage frente à resposta materna (busca a
mãe, se reorganiza só, chora)?
Recurso utilizado pela criança para se
reorganizar (busca objeto transitório,
chupa o dedo/chupeta, chupa a língua)
Observa-se troca de afagos, beijos,
carícias, cosquinhas, abraços, entre a
díade? Quando (contexto)? Com que
freqüência?
A criança vocaliza, balbucia, diante das
verbalizações maternas?
Impressão da observação
Pontos básicos:
Como se constroem as interações (quem dá início e como)
Em que contexto ocorrem as interações
Recursos utilizados pela díade nas interações (falas, canções, mamanhês,
balbucios, posturas, gestos, choro, sorriso, uso de objetos para intermediar,
auxiliar a interação, se leva os objetos à boca, etc)
Se presença de elementos como ludicidade, mamanhês, atribuição de
significado aos diversos comportamentos (vocalizações, gestos, olhares,
atitudes), mudança de posicionamento tendo em vista acolhimento da criança ao
longo da interação
Observa se a mãe se dirige à criança dialogicamente, atribuindo espaços
temporais de interação e resposta (turno ou tempo durante o qual, em resposta às
mensagens maternas, a criança pode manifestar-se), considerando a criança um
parceiro na interação
Observa-se a presença de uma seqüência de ações coordenadas?
Mãe e criança conseguem comunicar suas intenções?
Como a mãe se sente diante das interações (vê-se eficiente?, sente-se parceira
real de uma interação?, sente que consegue comunicar suas intenções à criança?)
APÊNDICE 3
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (A)
I. Dados de identificação dos sujeitos da pesquisa
Nome da mãe:
Data de nascimento:
Endereço:
Telefone:
Documento de identidade:
Nome da criança:
Sexo:
Data de nascimento:
Número do prontuário:
II. Informações sobre a pesquisa
Título da pesquisa: “Interação Mãe-Criança Desnutrida Grave no Contexto da
Hospitalização”
Pesquisadora: Psicóloga Marisa Amorim Sampaio
Cargo/função: Psicóloga da unidade de neonatologia do IMIP, aluna do Mestrado
em Saúde Materno Infantil do IMIP
Inscrição no Conselho Regional (CRP): 02/10.686
Endereço: Av. 17 de Agosto, 2184 – Casa Forte – Recife-PE
Telefones: 3268-7380 / 9178-4972 FAX: 3441-3283
A pesquisa será realizada no Instituto Materno Infantil Prof. Fernando
Figueira IMIP, buscando compreender a interação da mãe com a sua criança
desnutrida internada no hospital (explicar à mãe em termos acessíveis à sua
compreensão o que se pretende fazer). A realização da pesquisa é importante porque
poucos são os estudos sobre a interação entre mães e crianças desnutridas internadas
num hospital, e os resultados poderão auxiliar a equipe no tratamento da desnutrição.
III. Consentimento da participação do investigado
Eu ____________________________________________________, responsável legal
pela criança ________________________________________________, paciente
matriculado no IMIP, registro ___________________________, declaro que fui
devidamente informada pela pesquisadora Marisa Amorim Sampaio sobre a finalidade
da pesquisa Interação Mãe-Criança Desnutrida Grave no Contexto da Hospitalização”
e estou perfeitamente consciente de que:
1. Concordei em participar da pesquisa, juntamente com meu filho(a), sem que
recebesse nenhuma pressão;
2. Tenho a garantia de receber resposta a qualquer pergunta ou esclarecimento a
qualquer dúvida acerca dos procedimentos, riscos, benefícios e outros
relacionados com a pesquisa;
3. Estou ciente que estou participando de um estudo de observação, não havendo
qualquer interferência na conduta médica adotada;
4. Meu filho(a) continuará sendo submetido(a) aos atendimentos e tratamento
rotineiros deste hospital, independentemente de minha participação na pesquisa;
5. Participarei de um estudo no qual serão realizadas entrevistas e serei observada
com meu filho(a), atividades essas que poderão ser gravadas e/ou filmadas;
6. Concordo em participar de todos os procedimentos da pesquisa (entrevistas e
observações), pois durante os mesmos estarei acompanhando meu filho(a) no
hospital durante sua internação;
7. Dou permissão para que as entrevistas e observações sejam gravadas em cassete
e/ou vídeo. Estou ciente que, ao término da pesquisa os resultados serão
divulgados com fins acadêmicos, porém sem que meu nome ou o do meu
filho(a) seja associado à pesquisa;
8. Estou ciente que as entrevistas serão transcritas (a fala gravada será
transformada em texto de computador) e que alguns colegas pesquisadores
poderão conhecer o conteúdo para discutir os resultados, mas que essas pessoas
estarão submetidas às normas do sigilo profissional;
9. Estou ciente que posso me recusar a dar resposta a determinadas questões das
entrevistas, bem como terminar minha participação na pesquisa em qualquer
tempo, sem penalidades ou prejuízos ao atendimento e tratamento que meu
filho(a) recebe no IMIP;
10. A pesquisadora poderá ter acesso ao prontuário do meu filho, resguardando o
sigilo das informações;
11. Fui informada que a pesquisa não representa risco para mim ou para a criança e
que a mesma pode ajudar na compreensão da interação mãe-criança e da
desnutrição;
12. A pesquisadora se comprometeu a me comunicar qualquer resultado que
implique a necessidade de uma intervenção psicológica ou de qualquer outro
profissional, assim como respeitar o sigilo das informações coletadas, o que
significa a possibilidade de encaminhamento para profissional competente que
oferecerá orientação específica ou suporte emocional, se necessário ou caso eu
solicite;
13. Recebi da pesquisadora uma cópia deste documento
Recife, ________ de ________________ de __________
_________________________________ _______________________________
Participante da Pesquisa Pesquisadora
APÊNDICE 4
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (B)
I. Dados de identificação dos sujeitos da pesquisa
Nome da mãe:
Data de nascimento:
Endereço:
Telefone:
Documento de identidade:
Nome da criança:
Sexo:
Data de nascimento:
Número do prontuário:
II. Informações sobre a pesquisa
Título da pesquisa: “Interação Mãe-Criança Desnutrida Grave no Contexto da
Hospitalização”
Pesquisadora: Psicóloga Marisa Amorim Sampaio
Cargo/função: Psicóloga da unidade de neonatologia do IMIP, aluna do Mestrado
em Saúde Materno Infantil do IMIP
Inscrição no Conselho Regional (CRP): 02/10.686
Endereço: Av. 17 de Agosto, 2184 – Casa Forte – Recife-PE
Telefones: 3268-7380 / 9178-4972 FAX: 3441-3283
A pesquisa será realizada no Instituto Materno Infantil Prof. Fernando
Figueira IMIP, buscando compreender a interação da mãe com a sua criança
desnutrida internada no hospital (explicar à mãe em termos acessíveis à sua
compreensão o que se pretende fazer). A realização da pesquisa é importante porque
poucos são os estudos sobre a interação entre mães e crianças desnutridas internadas
num hospital, e os resultados poderão auxiliar a equipe no tratamento da desnutrição.
III. Consentimento da participação do investigado
Eu ____________________________________________________, responsável legal
pela mãe e pela criança internada
________________________________________________, paciente matriculado no
IMIP, registro ___________________________, declaro que fui devidamente
informada pela pesquisadora Marisa Amorim Sampaio sobre a finalidade da pesquisa
“Interação Mãe-Criança Desnutrida Grave no Contexto da Hospitalização” e estou
perfeitamente consciente de que:
1. Concordei em participar da pesquisa, juntamente com meu filho(a), sem que
recebesse nenhuma pressão;
2. Tenho a garantia de receber resposta a qualquer pergunta ou esclarecimento a
qualquer dúvida acerca dos procedimentos, riscos, benefícios e outros
relacionados com a pesquisa;
3. Estou ciente que estou participando de um estudo de observação, não havendo
qualquer interferência na conduta médica adotada;
4. Meu filho(a) continuará sendo submetido(a) aos atendimentos e tratamento
rotineiros deste hospital, independentemente de minha participação na pesquisa;
5. Participarei de um estudo no qual serão realizadas entrevistas e serei observada
com meu filho(a), atividades essas que poderão ser gravadas e/ou filmadas;
6. Concordo em participar de todos os procedimentos da pesquisa (entrevistas e
observações), pois durante os mesmos estarei acompanhando meu filho(a) no
hospital durante sua internação;
7. Dou permissão para que as entrevistas e observações sejam gravadas em cassete
e/ou vídeo. Estou ciente que, ao término da pesquisa os resultados serão
divulgados com fins acadêmicos, porém sem que meu nome ou o do meu
filho(a) seja associado à pesquisa;
8. Estou ciente que as entrevistas serão transcritas (a fala gravada será
transformada em texto de computador) e que alguns colegas pesquisadores
poderão conhecer o conteúdo para discutir os resultados, mas que essas pessoas
estarão submetidas às normas do sigilo profissional;
9. Estou ciente que posso me recusar a dar resposta a determinadas questões das
entrevistas, bem como terminar minha participação na pesquisa em qualquer
tempo, sem penalidades ou prejuízos ao atendimento e tratamento que meu
filho(a) recebe no IMIP;
10. A pesquisadora poderá ter acesso ao prontuário do meu filho, resguardando o
sigilo das informações;
11. Fui informada que a pesquisa não representa risco para mim ou para a criança e
que a mesma pode ajudar na compreensão da interação mãe-criança e da
desnutrição;
12. A pesquisadora se comprometeu a me comunicar qualquer resultado que
implique a necessidade de uma intervenção psicológica ou de qualquer outro
profissional, assim como respeitar o sigilo das informações coletadas, o que
significa a possibilidade de encaminhamento para profissional competente que
oferecerá orientação específica ou suporte emocional, se necessário ou caso eu
solicite;
13. Recebi da pesquisadora uma cópia deste documento
Recife, ________ de ________________ de __________
_________________________________ _______________________________
Participante da Pesquisa Pesquisadora
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