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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
SABER BEBER, SABER VIVER:
estudo antropológico sobre as representações e práticas em torno do consumo de vinho
entre degustadores, na cidade de Porto Alegre.
PATRÍCIA DE GOMENSORO MALHEIROS
Porto Alegre, abril de 2006
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1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
SABER BEBER, SABER VIVER:
estudo antropológico sobre as representações e práticas em torno do consumo de vinho
entre degustadores, na cidade de Porto Alegre.
PATRÍCIA DE GOMENSORO MALHEIROS
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
como requisito parcial para obtenção
do título de mestre em Antropologia.
Orientadora:
PROFª DRª. MARIA EUNICE MACIEL
Porto Alegre, abril de 2006
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2
Dedico esta dissertação
ao meu avô Tancredo Guimarães de Gomensoro (in memorian)
e à minha mãe Lúcia.
3
AGRADECIMENTOS
Agradeço à UFRGS, ao programa de pós-graduação em Antropologia Social e a todos
os professores com quem tive a oportunidade de aprender a pensar e a fazer antropologia, ao
longo destes dois anos.
Agradeço à minha orientadora, Maria Eunice Maciel, pela confiança em mim
depositada.
Aos meus informantes da Sociedade Brasileira de Amigos do Vinho (SBAV-RS), pela
gentileza com que me receberam em seu grupo de degustação e a generosidade com que
dividiram comigo taças de vinho e experiências de vida.
Aos meu queridos companheiros de angústias e dúvidas, aprendizado e crescimento:
Lorena, Heloísa, Patrick e Graziele. Esta dissertação deve muito à vocês.
À Luciana e à Clarissa, pela amizade, pelas dicas e pelas rápidas fugidas aos cinemas e
cafés “para desopilar”.
Agradeço sobretudo à Lúcia, Marcelo, Maria, Regina e Paulo: pelo apoio e incentivo
permanentes.
4
RESUMO
Dentro das perspectivas da Antropologia da Alimentação e da Antropologia do
Consumo, este estudo trata das práticas e representações relacionadas ao consumo de vinhos,
entre apreciadores da bebida, da cidade de Porto Alegre. Através da observação participante
em sessões de degustação de vinhos e da entrevista a membros de uma associação dedicada à
congregação de enófilos, buscou-se observar os valores envolvidos nas práticas de degustação
e nos hábitos de consumo adotados em outros contextos. Nas sessões de degustação, buscou-
se observar como, através da organização do espaço, da obediência a determinadas regras de
comportamento, da adoção de determinadas técnicas, são explicitadas representações sobre o
vinho e sobre a “competência” requerida de um bom degustador, bem como são negociados
valores importantes em meio ao grupo.
5
.
ABSTRACT
From the perspective of the Anthropology of Food and the Anthropology of
Consumption, this research studies the practices and social representations related to wine
consumption, among winelovers from the city of Porto Alegre. Through the participant
observation during wine tasting sessions and the interview with members of winetasting
clubs, this study observes the values involved in the winetasting activity and in the
consumption habits of our informants. Within the winetasting sessions, this work notes how,
through the space organization, the obedience to certain behavior rules and the adoption of
specific techniques, important representations related to the wine and to the “competence”
required from a good winetaster are made explicit, and also how significant values among the
group are negotiated
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................7
1 UM POUCO DE HISTÓRIA ................................................................................................. 22
1.1 Consumo de vinho no Ocidente, da Idade Antiga à Idade Média. .........................24
1.2 Consumo de vinho no Ocidente, da Idade Moderna aos nossos dias. ....................28
1.3 Consumo de vinho no Brasil ......................................................................................35
2 TORNAR-SE UM DEGUSTADOR: CONSUMO DE VINHO E ESTILO DE VIDA. ......................42
2.1 Espaços e contextos de consumo ................................................................................42
2.2 As trajetórias dos degustadores e o aprendizado sobre vinhos ..............................54
3 O RITUAL DAS DEGUSTAÇÕES ..........................................................................................65
3.1 O espaço das degustações ...........................................................................................67
3.2 Primeira fase do ritual: a ocupação do espaço. ........................................................ 71
3.3 Segunda fase: comensalidade e troca de informações. ............................................ 72
3.4 Terceira fase: experimentação, conhecimento e reconhecimento dos vinhos. ........78
3.5 Quarta fase: avaliação dos vinhos e negociação de valores. ....................................86
3.6 Encerramento do ritual: desagregação. ....................................................................92
C
ONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................93
REFERÊNCIAS .........................................................................................................................96
A
NEXOS .................................................................................................................................100
7
8
INTRODUÇÃO
Situado nos campos da Antropologia da Alimentação e da Antropologia do Consumo,
este trabalho tem como tema geral o consumo de vinho nas classes médias urbanas brasileiras.
Dentro deste amplo domínio, optei por investigar um grupo mais restrito de apreciadores que,
além de consumir vinho com certa regularidade e de declarar sua preferência por ele em
detrimento de outras bebidas, com freqüência também toma parte em um ritual de consumo
específico, chamado “degustação”.
Os informantes desta pesquisa pertencem todos a uma associação da cidade de Porto
Alegre dedicada a congregar apreciadores de vinho, por meio de encontros periódicos de
degustação da bebida — a Sociedade Brasileira de Amigos do Vinho, SBAV-RS
1
. Meu
universo de pesquisa se construiu no contexto destes encontros, bem como em alguns eventos
relacionados ao vinho (lançamentos de produtos, palestras), promovidos ou não pela mesma
entidade, atendidos por esses informantes. Alguns dos participantes das sessões de
degustação — aqui chamados “degustadores” — foram também entrevistados,
individualmente e fora do ambiente dos encontros
2
. Em todas as oportunidades de contato
com eles, tive como centro de interesse a observação das práticas e representações desses
informantes quanto ao consumo de vinho, de modo mais geral, e quanto à degustação, em
particular.
Meu interesse pelo tema do consumo de vinho no Brasil foi motivado, em grande
parte, pelo fato de eu mesma ser apreciadora da bebida. Tal como muitos de meus
informantes, há alguns anos matriculei-me num curso de degustação (na Associação
Brasileira de Sommeliers, no Rio de Janeiro), interessada que estava em “aprender um pouco
mais” sobre o fermentado de uvas. Pouco tempo depois, trabalhei durante quatro meses em
uma loja especializada, que funcionava dentro de um bar à vins
3
, também na capital
fluminense. Além de funcionar como um bar tradicional, servindo vinhos e aperitivos, o local
também oferecia, eventualmente, sessões de degustação, conduzidas pelo sommelier
4
da casa.
A experiência colocou-me em convivência diária com consumidores que, juntamente
com a paixão declarada pela bebida, partilhavam de preferências e hábitos que apontavam um
estilo de vida comum. Dentro deste estilo de vida, segundo posso hoje avaliar, o consumo do
1
Ao longo de todo este trabalho, esta entidade será chamada apenas de “Sociedade”.
2
Embora não o tenha considerado como parte de meu grupo de informantes, vale mencionar que cheguei a
conversar, em uma oportunidade, também com o enólogo Adolfo Alberto Lona. Seus comentários sobre o
processo de consolidação do consumo mais “informado” de vinho no Rio Grande do Sul e no eixo Rio-São
Paulo, ao longo dos últimos vinte anos (processo esse que ele acompanhou de perto), me foram bastante
esclarecedores, sobretudo para a redação do segundo capítulo deste trabalho.
3
Tipo de bar especializado em vinho. Usualmente, oferece aos clientes uma grande variedade de exemplares
da bebida servidos em taça. Sem a obrigatoriedade de comprar/consumir a garrafa inteira do vinho (como
ocorre nos restaurantes), apenas quantas taças desejar, o cliente tem a possibilidade de experimentar uma
maior quantidade de exemplares e por isso esses bares são muito freqüentados por adeptos das degustações.
4
Profissional responsável pelo serviço e pela seleção dos vinhos que compõem a carta de um restaurante ou
bar.
9
vinho (ou, melhor dizendo, um certo tipo de consumo do vinho) figurava como emblema dos
mais significativos. “O vinho para mim representa qualidade de vida”, resumiu certa vez um
dos freqüentadores assíduos da loja.
Embora na época eu sequer considerasse a possibilidade de realizar um mestrado em
Antropologia (minha formação é em jornalismo), e menos ainda de tomar o conteúdo de
assertivas do gênero como objeto de pesquisa, registrei na memória certas conversas, certas
falas dos enófilos
5
que circulavam pelo local, como apontamentos que talvez me ajudassem a
compreender meu próprio interesse pelo produto. Se em uma série de aspectos eu não poderia
me identificar com aqueles consumidores — notadamente pela diferença de geração (em sua
grande maioria eles tinham mais de cinqüenta anos) e de disponibilidade financeira — por
outro, avalio agora, lidávamos com um mesmo conjunto de representações no que concerne
ao vinho.
Em outras palavras, havíamos todos tomado parte, ainda que por meios distintos e
talvez com propósitos diferenciados, no que o antropólogo Jean-Pierre Albert (1989) chama
de “nova cultura do vinho”, um recente movimento de valorização de um modo de consumo
da bebida pautado pela idéia de um “saber beber” (saber escolher, saber apreciar, saber falar
sobre vinho) que deve ser o símbolo de um “saber viver”. Buscar “aprender” sobre a bebida é
certamente a palavra de ordem nesta cultura.
Em alguns pontos, pelo menos, eu poderia considerar os degustadores que compõem
meu atual quadro de informantes assemelhados aos freqüentadores que conheci na loja/bar
onde trabalhei: são todos consumidores de classe média ou média alta, em sua maioria com
entre 50 e 70 anos, donos de elevado capital cultural e de um capital econômico razoável que
lhes permite freqüentar bons restaurantes semanalmente e despender uma média de 50 a 60
reais em uma noite de degustação. São também moradores de bairros valorizados de sua
cidade e cultivam um estilo de vida que tem na valorização da gastronomia e do turismo
outros dois pontos fortes, juntamente com a valorização do vinho.
Sem a intenção de levar esta comparação adiante, desejo apenas destacar o fato de que,
conquanto me tenha proposto aqui a estudar um contexto de consumo extremamente restrito
— o de um grupo de degustadores pertencentes a uma determinada associação enológica da
cidade de Porto Alegre — e que certamente deve muitas de suas características à sua história
particular e às trajetórias individuais de seus membros, não estaou lidando com um contexto
isolado, mas que é perpassado por idéias que circulam por um universo mais amplo.
Também é importante sublinhar que ao selecionar minha temática de pesquisa para a
dissertação de mestrado, o fiz dentro de um escopo que me era familiar, até um certo ponto.
Ao iniciar minha observação participante na Sociedade, já conhecia razoavelmente as técnicas
5
Termo bastante comum entre consumidores da bebida que quer dizer, literalmente, “amante de vinho”.
10
de degustação, o vocabulário particular acionado nessa atividade e alguns valores presentes
neste tipo de contexto de consumo. Certamente este conhecimento teve implicações
importantes tanto na minha inserção em campo quanto no concomitante trabalho de
interpretação dessa experiência. Por outro lado, eu jamais havia participado propriamente de
um ritual de degustação, como o que é desenvolvido na Sociedade e em confrarias enológicas
em geral. Havia muito o que aprender.
Tendo recentemente me mudado do Rio de Janeiro para Porto Alegre, ao iniciar a
pesquisa eu também não tinha qualquer conhecimento quanto ao cenário enogastronômico
fora do eixo Rio-São Paulo. Comecei buscando me informar, através da Internet, de jornais e
revistas, sobre lojas, bares, cursos ou entidades que promovessem a integração de
apreciadores de vinho no Rio Grande do Sul. Acabei encontrando um website que fornecia
indicações e telefones de associações de enófilos por todo o país
6
. Por conveniência, decidi
entrar primeiramente em contato com a SBAV-RS, uma das poucas instituições da lista
localizadas em Porto Alegre e, ao mesmo tempo, a única sobre a qual eu tinha de antemão
alguma referência, pelo fato de constituir um núcleo regional da Sociedade Brasileira de
Amigos do Vinho fundada em São Paulo, da qual muito já ouvira falar.
Após fazer o primeiro contato por telefone, fui recebida em casa pelo presidente da
Sociedade que, bastante entusiasmado com meu tema de pesquisa, me explicou o
funcionamento da entidade e me franqueou o acesso às suas sessões de degustação, bem como
a vários dos participantes. Saí dessa primeira conversa de posse de uma lista de telefones de
degustadores e na mesma semana dei início a uma série de entrevistas exploratórias que foram
importantes para apontar o caminho a seguir. Alguns meses depois, entre setembro e outubro
de 2004, iniciei a incursão às sessões de degustação na Sociedade, embora de forma ainda
irregular.
Considero esse momento inicial como um período de reconhecimento de campo; eu
estava preocupada em conhecer de modo geral a entidade e as dinâmicas de degustação por
ela promovidas, e obter material que me permitisse estruturar melhor meu objeto e meus
objetivos de pesquisa.
Uma segunda fase em campo, ocorrida entre junho e outubro de 2005 constituiu o que
considero o cerne do meu trabalho: após ter sido “oficialmente” aceita em um dos grupos de
degustação da Sociedade e participando de forma regular dos encontros, pude efetivamente
“conviver” com os degustadores, coletar uma grande quantidade de dados, realizar entrevistas
mais direcionadas em relação ao meu projeto de pesquisa e dar início a uma abordagem mais
densa de toda essa experiência.
6
Website Academia do Vinho: www.academiadovinho.com.br, consultado em 26 de junho de 2004.
11
A Sociedade e a inserção em campo
Como em toda inserção em campo, a minha também se construiu em um permanente
processo de negociação do meu próprio espaço naquele grupo. Antes de comentá-lo, é
necessário me debruçar sobre o funcionamento da entidade em que se deu o trabalho de
observação participante. A Sociedade, segundo define seu estatuto, tem por objetivo principal
“congraçar os estudiosos, apreciadores e amigos do vinho para divulgar os conhecimentos
sobre vinhos, promover e estimular o hábito de sua degustação”.
Embora eventualmente sedie, promova ou apoie cursos, conferências e palestras
dedicadas à discussão de temas ligados à produção e ao consumo de vinho, bem como eventos
de lançamento de produtos e de divulgação da bebida junto ao público em geral, como feiras
especializadas, a Sociedade tem sua principal razão de ser, atualmente, em suas sessões de
degustação. É em função delas que seus cerca de 90 sócios reúnem-se periodicamente, e são
elas o grande atrativo para os novos membros.
Sucintamente, podemos definir as sessões de degustação como encontros semanais
dedicados à prova e avaliação de exemplares de vinho, realizadas segundo algumas técnicas e
normas bem definidas. Dado o contingente de membros da entidade, o restrito espaço físico
de que esta dispõe em sua sede e a própria dinâmica das degustações, os encontros são
realizados em pequenos grupos — os chamados grupos de degustação. Cada grupo, que
comporta em média doze integrantes, tem o direito de ocupar a sede da entidade e realizar
suas respectivas sessões em um dia da semana predeterminado. Durante o período em que
acompanhei reuniões de degustação mais sistematicamente havia quatro destes grupos.
Embora em uma ou mais ocasiões eu tenha participado também de encontros de outros
grupos, a maior parte da observação participante de que resulta este trabalho foi realizada
junto a um mesmo grupo de degustação. Salvo menção explícita, é a ele que me refiro sempre
que mencionar um grupo ou as sessões de degustação realizadas por ele.
É importante destacar que embora essa prova/avaliação tenha uma fundamentação
técnica bem marcada, e siga, em boa parte, a mesma metodologia de análise adotada por
profissionais ligados à produção de vinhos, os degustadores com quem conversei não têm
qualquer relação direta com a indústria da bebida. Esse criterioso ritual de avaliação é para
eles uma atividade de lazer. Comparando-se a Sociedade a um clube, é como se os encontros
de degustação correspondessem às partidas de tênis ou rodadas de pôquer: são atividades que
permitem a seus participantes relaxar (segundo definição dos próprios), reunir-se com pessoas
que compartilham um interesse comum e, ao mesmo tempo, exercitar certos tipos de
habilidade.
Tal como em um clube, também na Sociedade o acesso às suas dependências e a
participação nas atividades promovidas (como a degustação) encontram-se condicionados à
admissão como sócio. Segundo define o estatuto, o candidato a sócio precisa ter sua proposta
12
de admissão endossada por alguém já associado, a qual posteriormente tem de ser aprovada
pela maioria dos membros da Diretoria da entidade. Alguns de meus informantes garantiram
que isto não constitui barreira para quem quer que deseje entrar na Sociedade; uma
informante relatou que, no seu caso, foi suficiente entrar em contato com o então presidente
da entidade e expor seu interesse para receber o convite e participar de uma primeira
degustação — o que lhe abriu a possibilidade de conhecer outros membros e se associar em
definitivo.
Mas há motivos para crer que nem sempre o caminho seja tão simples. O que se espera
de um novo membro da Sociedade é não apenas a adequação às normas de conduta
estabelecidas no estatuto — que proscreve explicitamente o debate de questões político-
partidárias, ideológicas, raciais e religiosas, bem como “comportamento inadequado”, leia-se,
resultante do abuso de bebida — mas, principalmente, a posse de uma “vocação” para a
mesma: um critério que freqüentemente se traduz em características tão pouco precisas quanto
ser considerada uma pessoa “séria” e “interessada”.
Na prática, isto significa que o candidato a degustador precisa despertar a empatia dos
outros sócios e, em especial, do conjunto de membros de um dos grupos de degustação.
Como os grupos possuem dinâmicas de degustação um pouco diferenciadas — cada um deles
se apropria de um modo particular da metodologia técnica, bem como tem critérios próprios
para a seleção dos vinhos a serem degustados, dentre outro fatores — além de basear-se em
certas características de caráter pessoal, tal empatia também se relaciona a uma adequação
entre os objetivos do pretendente a sócio (degustar certos tipos de vinho, analisá-los de uma
determinada maneira) e os do grupo em questão.
Como resultado, os grupos de degustação na Sociedade são relativamente fixos,
registrando-se pouca rotatividade entre os sócios e espaçadas entradas de novos membros.
Esta permanência em muito contribui para a consolidação das dinâmicas particulares de
degustação que se tornam características de cada grupo, e para fortalecer os laços
estabelecidos entre seus participantes.
Receber um primeiro convite para assistir a algumas reuniões de degustação na
Sociedade, como já mencionei, não foi complicado. Assim, como também não o foi ter aceito
meu pedido formal (encaminhado ao presidente) de participação sistemática em um dos
grupos, para realização da pesquisa de campo. De minha parte, a escolha deste grupo
específico se deveu ao fato de ser aquele de que fazia parte o presidente, meu principal ponto
de contato com a Sociedade, e de ser um dos primeiros grupos que tivera oportunidade de
conhecer, e onde acreditei ter chances de ser bem aceita.
De modo geral, o fato de eu estar realizando uma pesquisa acadêmica tendo como
tema o consumo de vinho, tão valorizado entre eles, foi encarado com grande simpatia por
quase todos os membros da Sociedade com quem travei contato. Posso supor que tal simpatia
13
em parte derivou também do fato de uma parcela considerável dos degustadores ser
constituída por acadêmicos, de algum modo solidários com minha condição de jovem
mestranda em processo de pesquisa.
Por outro lado, não posso deixar de comentar que minha presença despertou certa
reticência em alguns degustadores, especialmente dentro do grupo em que realizei grande
parte do trabalho de campo. Embora tenha buscado prestar todos os esclarecimentos
necessários ao presidente antes de entrar em campo (e solicitado que ele o repassasse para o
restante do grupo, de modo que todos soubessem a priori de meus objetivos e aceitassem
minha participação), segui sendo recorrentemente inquirida sobre que tipo de coisa,
exatamente, eu estava buscando observar ali. E recebi de algumas pessoas uma reação de
surpresa (por vezes, de constrangimento) ante o esclarecimento de que meu tema de pesquisa
não era propriamente os vinhos (como alguns de início entenderam ou talvez preferissem
pensar), mas as práticas e representações dos degustadores quanto ao consumo de vinhos.
Lembro-me de alguém ter brincado, exclamando logo em seguida à minha resposta: “Mas
então você vai estar estudando a gente?”. Felizmente, as reações de simpatia foram mais
freqüentes que as de embaraço ou desconfiança, e boa parte dos participantes se colocou à
disposição para fornecer quaisquer “esclarecimentos” que eu precisasse ou mesmo para serem
entrevistados.
Como sabemos, ser “oficialmente” aceita não implica ser assimilada de imediato por
um grupo. Embora eu não estivesse pleiteando integrar de modo definitivo a Sociedade, e
embora em diversos momentos os próprios degustadores tenham se encarregado de frisar que
minha situação ali era “excepcional”, que eu estava ali “só durante a pesquisa”, para que eu
pudesse assumir o que Roberto Cardoso de Oliveira chama de “um papel perfeitamente
digerível pela sociedade observada” (OLIVEIRA, 2000, p.24), eu precisaria tornar-me, para
além da pesquisadora como eles me concebiam, também uma degustadora. E para que isso
acontecesse eu teria de passar pelo mesmo processo a que são submetidos os novatos, nas
degustações: eu precisaria aprender — e, principalmente, demonstrar ter aprendido — uma
série de pequenas regras, implícitas ou explícitas, sobre como me comportar naquele espaço,
o que fazer, quando falar, o que falar etc.
O convite para a “conversão” (LAPLANTINE, 1993), por assim dizer, partiu deles. Já
na primeira sessão a que assisti, fui convidada a deixar a posição de mera observadora em que
timidamente me colocava e a tomar parte no cerne daquele ritual, a prova/avaliação dos
vinhos, dissipando minha dúvidas iniciais quanto ao grau de participação que me seria
permitido ter ali. A partir do primeiro momento em que um dos degustadores perguntou se eu
apreciava vinhos e em seguida encheu uma taça com a bebida e ofereceu-a a mim, entrei em
um ciclo de reciprocidade que exigia movimento equivalente de minha parte. Minha
retribuição viria através do aprendizado dos critérios de avaliação em vigor no grupo e,
14
principalmente, através da execução adequada da performance ritual, os quais, com o tempo,
me permitiram efetivamente tomar parte na avaliação coletiva dos vinhos que tem lugar no
momento clímax das degustações.
Para além dos vinhos, porém, um segundo tipo de partilha foi igualmente significativo
para minha inserção no grupo. É preciso dizer que as sessões de degustação também
prescrevem a partilha dos custos da compra das garrafas. Nas duas primeiras ocasiões em que
participei de encontros, um dos casais presentes se ofereceu para pagar a parcela que caberia a
mim dentro do rateio final, visando, desta maneira, “colaborar com a minha pesquisa, pois nós
já passamos por isso”. Permanecer de fora do rateio significava, contudo, permanecer de fora
de uma parte importante do ritual. Na terceira reunião, antes que se fizesse qualquer
oferecimento, deixei claro que a partir dali eu arcaria com meus próprios custos. E assim o fiz,
tendo essa postura sido muito bem recebida.
Os degustadores
Além da observação participante realizada nas sessões de degustação, também realizei,
como disse, entrevistas com alguns dos degustadores, pertencentes tanto ao grupo que
acompanhei sistematicamente como a outros grupos da Sociedade. As entrevistas foram
extremamente importantes para aprofundar determinados temas postos em jogo nas sessões e
para que eu pudesse conhecer melhor a trajetória de vida e visão de mundo dessas pessoas,
partindo da perspectiva do consumo de vinho, dentro e fora da Sociedade.
A seleção dos entrevistados foi realizada a partir de dois recortes principais: por
indicação espontânea dos próprios degustadores (durante suas respectivas entrevistas) e por
definição minha a partir das observações em campo. À exceção de uma única ocasião, em que
entrevistei um casal conjuntamente (Marta e Ricardo), todas as entrevistas foram individuais.
Também todas elas foram abertas e com recurso a um roteiro de temas de interesse, que foi
sendo refinado à medida em que avançavam as observações em campo. Os depoimentos
foram gravados e integralmente transcritos.
Apresento a seguir breves descrições de cada um de meus entrevistados, centradas em
algumas informações de cunho geral como ocupação, idade e local de moradia, e
principalmente seu contato com as práticas de degustação e entrada na Sociedade. Estas
informações serão úteis para que possamos, ao longo do trabalho, avançar na definição da
relação destes consumidores com o vinho e com as práticas de degustação.
15
Otávio
7
Um dos fundadores da Sociedade, conheci-o em 2004, durante um lançamento de
vinhos de uma vinícola argentina realizado na sede da entidade. Na ocasião, Otávio mostrou-
se bastante gentil e prestativo e, num novo encontro, em um coquetel de lançamento de
vinhos, convidei-o para a entrevista, que ocorreu em sua residência. Otávio é professor
universitário aposentado, tendo ministrado aulas, segundo contou-me, durante 30 anos. Ele é
natural de Porto Alegre, onde reside com a esposa, também degustadora na Sociedade, e tem
69 anos.
Júlio
Foi a primeira pessoa com quem conversei, na fase entre setembro e outubro de 2004.
Natural de Bagé, tem 70 anos de idade, e é também professor aposentado. Conversei com ele
em seu apartamento, onde mora com a esposa. Júlio participa de sessões de degustação e é
membro da Sociedade há cerca de nove anos. Entrou à convite do filho de um grande amigo
seu, logo que o grupo de degustação foi criado, poucos anos depois de ter participado de um
curso de degustação.
É apontado por seus colegas degustadores como um apreciador da bebida bastante
“dedicado”, que gosta de pesquisar e ler muito sobre vinhos. Além da degustação, Júlio
também cultiva como hobbie a culinária. Foi o único informante com quem conversei mais de
uma vez, tendo ambas as entrevistas ocorrido em sua residência. Na segunda ocasião, fez
questão de apresentar-me à sua biblioteca sobre vinhos e chegou a emprestar-me alguns
livros.
Ao longo de todo o campo, foi meu principal contato na Sociedade, sendo o
responsável por confirmar, a cada semana, a possibilidade da minha presença na sessão
seguinte de seu grupo (sempre vinculada à sobra de lugares, ou seja, à não participação de
todos os membros permanentes daquele grupo) e por colocar-me em contato com
degustadores de outros grupos.
Guida
Foi-me indicada como entrevistada por Júlio. Professora universitária aposentada, tem
79 anos e degusta vinhos há mais de vinte. Depois de Otávio, Guida é a informante que há
mais tempo pertence à Sociedade, tendo entrado logo em seus primeiros anos, “por volta de
84 ou 86”, quando ainda não se dispunha de uma sede e os encontros eram realizados na casa
de um dos poucos sócios. Travou contato com a Sociedade através de Isolda Holmer Paes, sua
7
Os nomes dos informantes apresentados nesta pesquisa são fictícios.
16
colega de carreira e famosa enófila gaúcha, que depois tornou-se presidente da entidade. Foi
entrevistada em casa e fez questão de mostrar-me livros com fotos do período em que morou
na região francesa da Alsácia, famosa por sua produção de vinhos.
Lígia
Professora universitária, 60 anos, esposa de Júlio. Começou a se interessar por vinhos
há cerca de dez anos, quando, participando do mesmo curso de degustação que o marido,
descobriu que tinha um nariz bastante sensível para identificar aromas na bebida. Entrou na
Sociedade um pouco depois do marido, mas não tenho claro há exatamente quanto tempo.
Definindo-se como uma pessoa muito ocupada por conta da universidade e com pouco tempo
para outras atividades, como ler sobre vinhos, ela diz aprender sobre a bebida “quase por
osmose” com Júlio, que ela qualifica como “super estudioso”. A entrevista também ocorreu
em sua residência, logo em seguida à segunda entrevista de Júlio. Bastante interessada em
minha pesquisa, foi, juntamente com o marido, meu principal contato na Sociedade.
Edith
Entrevistada indicada por Júlio e Lígia. Na ocasião em que conversei com o casal,
ambos me recomendaram que entrevistasse Edith, membro do mesmo grupo de degustação
que eles, pois se tratava de uma degustadora que “tem opiniões muito independentes sobre
vinhos”, ou seja, geralmente diferenciadas do restante do grupo. Durante as degustações,
freqüentemente eu e Edith sentamos lado a lado, e por isso tivemos chance de conversar
bastante. Ela sempre havia se mostrado bastante entusiasmada com minha pesquisa, em quase
todos os encontros perguntava como estava indo e parecia disposta a colaborar, embora
garantisse “não entender muito de vinho”.
Foi por volta de meados da década de oitenta que Edith começou a freqüentar a
Sociedade, junto de seu marido, a convite de um casal de amigos que havia recém-entrado na
entidade. Entrevistei Edith em seu apartamento. Na ocasião, ela acabara de se aposentar como
professora e dizia estar muito feliz com a nova disponibilidade de tempo que a aposentadoria
lhe concedia. Ela dizia que iria dedicar este tempo para, entre outras atividades de lazer, ler
literatura e estudar mais sobre vinho.
Ricardo
Entrevistado indicado por Júlio. Professor universitário, tem 54 anos. Foi entrevistado
juntamente com sua esposa Marta, no corredor da universidade, em um intervalo de aulas. Em
98, participou de um curso de degustação organizado por Isolda Paes. Entrou na Sociedade
17
somente há dois anos, a convite de Fernando, embora seja, juntamente com Otávio, Fernando
e Guida, um dos degustadores mais antigos do grupo — degusta há vinte e seis anos.
Marta
Também indicada por Júlio. Professora universitária no mesmo departamento que o
marido Ricardo, tem 54 anos. Degusta há cerca de seis anos e participou do mesmo curso
atendido pelo marido. Entrou na Sociedade junto com ele, há dois anos, também a convite de
Fernando.
Ana
Também indicada por Júlio e Lígia, que a definiram como pessoa muito estudiosa e
dedicada em relação aos vinhos, que poderia me fornecer “uma visão jovem” com relação às
práticas de degustação. É a mais jovem degustadora do grupo que acompanhei, com 31 anos.
Esteve viajando durante boa parte do período em que estive em campo e nossa participação
em degustações só coincidiu duas vezes. Advogada com especialização na área tributária, é
catarinense e veio morar em Porto Alegre há pouco mais de quatro anos, após ter passado três
anos em São Paulo. Também é formada em piano clássico e chegou a dar aulas de música
durante algum tempo.
Fernando
Apontado por diversos entrevistados como um dos maiores conhecedores de vinho da
Sociedade. Professor universitário desde 86, nasceu em Porto Alegre mas mora em São
Leopoldo. Tem 52 anos. Participa regularmente das degustações na Sociedade desde 94, mas
já conhecia a entidade antes. Entrou a convite de um conhecido de São Leopoldo, com que
também organizou um grupo de degustação naquela cidade.
Paulo
Tem 42 anos e é empresário. Natural de Porto Alegre, morou muitos anos em Viamão,
mas desde 77 reside na capital gaúcha. Morou durante alguns anos no Rio de Janeiro, onde
fez o curso de degustação na ABS-RJ, há cinco ou seis anos. Neste período também tomou
parte em sessões de degustação organizadas no condomínio onde morava, sob orientação de
um degustador profissional, que lhe indicou que procurasse a Sociedade, quando veio para
Porto Alegre. Entrou na SBAV-RS em 2004.
18
Embora não entrevistadas, outras seis pessoas — três casais — também fizeram parte
do que considero meu grupo principal de informantes. Todas são degustadoras do grupo em
que realizei a observação participante, e portanto estão entre aqueles com quem convivi por
mais tempo em campo. Embora não disponha da mesma quantidade de informações pessoais
de que disponho em relação aos entrevistados é possível caracterizá-los brevemente. Todos
têm entre cinqüenta e sessenta e poucos anos; pelo menos duas entre as três mulheres são
professoras universitárias, um dos homens é engenheiro e o outro arquiteto. Dois dos casais
entraram na Sociedade a convite de Júlio e Lígia, um deles há cerca de dois anos atrás, o
outro, talvez há mais tempo. O marido do terceiro casal entrou a convite de Edith e seu
marido, há mais de nove anos, e foi o responsável pelo convite a Júlio.
Preferências individuais e representações sociais: uma breve discussão.
Antes de passarmos ao primeiro capítulo deste trabalho, gostaríamos de realizar uma
breve discussão teórica a partir de uma pergunta bastante abrangente, a qual permitirá, não
obstante, nos colocarmos dentro da perspectiva que pretendemos adotar aqui: por que
comemos o que comemos (ou bebemos o que bebemos)?
A julgar pelo senso comum não há apenas uma, mas várias explicações possíveis.
Aquela que deposita as escolhas alimentares no arbítrio individualista do “gosto”
provavelmente é a mais disseminada. Comemos, afinal de contas, aquilo de que gostamos;
assim como não comemos o que não gostamos. E gostamos, parece ainda mais óbvio, daquilo
que nos é agradável ao paladar.
Tal consideração aponta simultaneamente para dois aspectos. Em primeiro lugar,
como já observou o sociólogo Claude Fischler (2001), para o consumidor em geral é difícil
não acreditar ser o gosto dos alimentos — entendido, essencialmente, como o conjunto de
suas qualidades gustativas — o fator que atua, primordialmente, sobre a definição de suas
preferências. Em segundo lugar, e ligada ao ponto anterior, está a crença de que tais
preferências dizem respeito exclusivamente ao indivíduo, considerado isoladamente. “One
man’s meat is another man’s poison”, “Chacun à son goût”, “gosto não se discute”; quem já
não ouviu ou proferiu esse tipo de asserção?
8
Mesmo que possam ser tomados como sintomas
de uma perspectiva individualista predominante no pensamento moderno, como aponta o
também sociólogo Stephen Mennell (1996, p.1), esses ditos populares não deixam de ter uma
certa dose de razão. Mas até que ponto?
8
Literalmente, as duas primeiras expressões podem ser traduzidas por “O que é para um homem carne, para
outro pode ser veneno” e “A cada um o seu gosto”. Embora de diferentes proveniências, os ditos citados por
Mennell apresentam a mesma idéia geral: as preferências e aversões alimentares (assim como as preferências
e aversões ligadas ao “gosto” em outras áreas) dizem respeito exclusivamente ao indivíduo.
19
Empiricamente, sabemos que as pessoas têm inclinações particulares quando se trata
de escolher o que preferem comer ou beber e que, em alguma medida, tais inclinações se
ligam às impressões provocadas pelas propriedades sápidas dos alimentos em seus sentidos.
Que a aptidão para sentir e discriminar esses estímulos possa variar consideravelmente de
indivíduo para indivíduo é constatação, inclusive, já bem sedimentada no corpus do estudo da
fisiologia humana. (CHIVA, 1979).
Todavia, isso parece explicar pouco. Se por um lado não foi comprovada a existência
de uma relação direta e unívoca, vinculada a qualquer “lei geral”, entre o limiar perceptivo
individual e o estabelecimento de “preferências”
(CHIVA,1979), por outro, restaria esclarecer
como grupamentos humanos inteiros desenvolvem preferências e aversões comuns por
determinados alimentos
9
. Como já foi demonstrado em outros lugares (FISCHLER, 2001;
MENNELL, 1996), o recurso exclusivo a explicações de cunho ecológico ou econômico —
vinculadas, em última instância, à questão do acesso diferenciado que os grupos
populacionais ao redor do globo têm aos variados tipos de alimento — também não é
suficiente para esgotar a questão. Se é verdade que não podemos apreciar aquilo que não
conhecemos, e que tendemos a preferir aquilo que nos é familiar, também é verdade que não
comemos tudo o que se encontra à nossa disposição e que, por vezes, podemos desenvolver
marcada atração por ingredientes raros e bem pouco acessíveis.
Podemos concluir que a alimentação humana é um fenômeno suficientemente
complexo para se deixar explicar de modo mais profundo por perspectivas restritivas e
excludentes. Enfoques parciais somente podem encontrar repostas também parciais; e não
surpreende que abordagens disciplinares diversas consideradas isoladamente tendam a
encontrar mais zonas de sombra, enquanto buscam iluminar os fatos (FISCHLER, 2001). Em
boa parte, tal complexidade se deve à condição de a alimentação ser, a um só tempo, uma
necessidade fisiológica e um ato social e, portanto, estar imiscuída simultaneamente nas
dimensões da biologia e da cultura, do indivíduo e da sociedade:
Respondendo às exigências do corpo, e determinada nos seus modos pela
maneira particular pela qual, aqui e ali, se efetua a inserção do homem no mundo,
colocada portanto entre a natureza e a cultura, a cozinha representa acima de tudo a
necessária articulação entre ambas. Ela depende de dois domínios, e projeta este
desdobramento sobre cada uma de suas manifestações (LÉVI-STRAUSS, 1968,
p.33).
Sem qualquer intenção de dar conta, aqui, da questão das preferências alimentares de
um modo abrangente — embora, como esperamos ter deixado claro, reconhecendo a
importância de se considerar as diferentes abordagens como necessariamente complementares
— , propomos que um entendimento mais acurado sobre esse aspecto não pode ser alcançado
sem que se leve em conta as pressões simbólicas exercidas sobre ele. Como observa o
9
Como destaca Fischler (2001), mesmo a constatação da existência de certas preferências inatas (como a já
bem comprovada e sempre citada atração pelo sabor doce) não chega a esclarecer muito, uma vez que outras
evidências apontam que predisposições inatas estão sujeitas a remodelagem ao longo da vida.
20
antropólogo Igor de Garine (1997, p.188), “preferências em termos de comida e sabor são
adquiridas dentro de um recorte cultural”, ou seja, sob a chancela de um sistema de atribuição
de valor que é culturalmente construído e partilhado.
O que esse tipo de consideração busca colocar em foco é o fato de que as qualidades
que costumamos atribuir aos diferentes ingredientes, modos de preparo, pratos ou bebidas,
quando chamados a justificar nossas escolhas, podem não estar exatamente aonde acreditamos
que estejam: em suas propriedades (ou vantagens) “concretas” — nutricionais, gustativas,
olfativas, estéticas etc. — per si. Podem estar em um sistema de representações acerca desses
mesmos ingredientes, modos de preparo, pratos ou bebidas — ou acerca exatamente de suas
propriedades nutricionais, gustativas, olfativas, estéticas — que nós, como membros de uma
cultura, necessariamente subscrevemos.
Isto não quer dizer que se possam tomar como dimensões inteiramente apartadas as
considerações simbólicas e as sensações fisiológicas envolvidas na conformação das
preferências e aversões alimentares. O gosto individual encontra-se ligado àquele do grupo
em que se é socializado, pois aprendemos a saborear — tal como aprendemos a ver, sentir,
ouvir e tocar — de uma maneira específica de acordo com a sociedade, ou grupo dentro da
sociedade, a que pertencemos. Podemos, portanto, considerar a hipótese proposta por Garine
(1997) de que exista, em cada cultura (ou subcultura), alguns consensos mais ou menos
explícitos em relação a preferências alimentares e gostos mais prazerosos.
A cultura não sanciona apenas aquilo que é bom para comer; mas também como
devemos comê-lo. As representações construídas em cima de um determinado alimento
remetem tanto a características gustativas e estéticas quanto a técnicas de preparo, estratégias
de compra, modos e ocasiões de consumo. Conforme esclarece Fischler (2001, p.81), os
alimentos
são utilizados em conformidade às representações sociais e usos compartilhados
pelos membros de uma classe, grupo ou cultura; a natureza da ocasião, a qualidade e
o número de convidados, o tipo de ritual em torno do consumo, constituem
elementos ao mesmo tempo necessários, significantes e significativos.
O que essa observação aponta, e é importante reforçar, é que a construção simbólica
envolvida na atribuição de valores aos alimentos não se dá isoladamente; ela encontra-se
profundamente entrelaçada à atribuição de valores às condutas, às pessoas e aos inúmeros
elementos que podem compor cada ocasião de consumo. Em verdade, sendo ao mesmo tempo
significantes e significativos, esses diversos aspectos, quando justapostos em um mesmo
contexto, agem reforçando-se mutuamente. Tentar decifrar o “significado” de um alimento
— ou, como propõem Douglas e Isherwood, de qualquer bem de consumo — isoladamente,
isto é, fora do processo social, seria inútil; ele é construído e somente pode ser apreendido
dentro de seu “espaço de significação” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2004).
21
O que nos leva, finalmente, a considerar a função comunicativa da comida. Como
propôs Douglas (1971; 1977; 1982), a partir de idéia seminal de Lévi-Strauss (1968; 2004), o
fato de os alimentos (e os bens de consumo) comportarem idéias e valores que lhes são
externamente imputados e que são socialmente atribuídos e socialmente reconhecidos, lhes
faculta a possibilidade de servir como suporte para idéias que de outro modo dependeriam da
linguagem verbal para serem comunicadas. “Para continuar a pensar racionalmente, o
indivíduo precisa de um universo inteligível, e essa inteligibilidade precisa ter algumas
marcas visíveis. Conceitos abstratos são sempre difíceis de lembrar, a menos que assumam
alguma aparência física” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2004, p.28).
Emprestando, por assim dizer, essa aparência física que falta, os bens funcionam como
marcadores das categorias racionais, fazendo “afirmações físicas e visíveis sobre a hierarquia
de valores de quem os escolheu” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2004, p.28). Tais afirmações
ficam assim disponíveis para serem lidas por aqueles que conhecem o código.
Observar as preferências e escolhas de um determinado comensal, ou de um grupo de
comensais, pode ser, portanto, uma importante via de acesso aos valores gerais acionados por
eles em sua vivência cotidiana. É dentro desta perspectiva que visamos desenvolver este
trabalho, partindo da observação dos diferentes usos a que o vinho é submetido por nossos
informantes, como meio de perceber as idéias atribuídas a este objeto de consumo e alguns
dos valores importantes em meio ao grupo.
22
23
1 UM POUCO DE HISTÓRIA
A partir da discussão teórica realizada, podemos partir do princípio de que a
preferência pelo vinho (ou por certos tipos de vinho, como veremos mais adiante), bem com
os modos pelos quais ele é consumido por um dado grupo de pessoas, em um dado momento,
são fatores em boa medida culturalmente definidos. Se o vinho é fabricado — e, logo,
imagina-se, consumido — há mais de oito mil anos, como apontam algumas fontes
(PHILLIPS, 2003), devemos considerar que ao longo desse tempo seu consumo sofreu
transformações consideráveis, quantitativa e qualitativamente, segundo as diferentes
sociedades e grupos nos quais foi apropriado no correr das eras.
Tais transformações podem ser relacionadas a uma série de fatores: desenvolvimento
das técnicas de fabrico da bebida, mudanças no comércio entre os povos, guerras,
urbanização, prescrições médicas, imposição de tabus religiosos e sanções morais, mudanças
na composição social etc. O que nos interessa considerar é que ao longo da História e em
relação com esses diferentes fatores, o vinho adquiriu também uma infinidade de valores,
reforçados e expressos nos diferentes usos a que foi submetido. Assim, com o objetivo de
possibilitar um vislumbre das variações nos modos de se tomar, avaliar e pensar os vinhos, ao
longo dos tempos, apresentamos a seguir um brevíssimo panorama da presença da bebida no
mundo ocidental (com enfoque na Europa e no Brasil).
O levantamento baseia-se em fontes secundárias, especialmente Uma Breve História
do Vinho, de Rod Phillips (2003), Histoire Sociale e Culturelle du Vin, de Gilbert Garrier
(1995), Banquete — Uma História Ilustrada da culinária, dos costumes e da fartura à mesa,
de Roy Strong (2004) e A História do Vinho, de Hugh Johnson (1999). As três primeiras são
obras de autoria de historiadores; a última é um trabalho referencial realizado por um
jornalista, considerado dos maiores especialistas da atualidade no universo dos vinhos. Com
relação à história da bebida no Brasil, nossa principal fonte foi A Presença do Vinho no
Brasil, do consultor de vinhos Carlos Cabral (2005).
É preciso mencionar que informações relativas a consumo (hábitos, modos,
preferências) são minoria no conteúdo das publicações sobre a bebida encontradas no Brasil, e
se acham esparsas nas obras sobre a história da alimentação. O grosso dos dados encontrados
trata da evolução técnica e disseminação histórica e geográfica da produção vitivinícola; e
isso é especialmente verdadeiro no que tange às obras especializadas produzidas aqui: não
tendo como foco principal a investigação histórica, quase sempre restringem-na a algumas
páginas em que é repetido um mesmo conjunto de dados, com poucos aprofundamentos.
Informações um pouco mais originais e detalhadas sobre hábitos de consumo foram
encontradas no livro de Cabral que, se por um lado ajuda a cobrir parte da imensa lacuna que
tínhamos, por outro se reconhece como apenas um primeiro esforço, não exaustivo, nesse
sentido.
24
Inevitavelmente parcial e resumido, dada a longuíssima trajetória social do vinho, o
panorama que se segue não tem maiores pretensões além de favorecer uma observação um
pouco mais esclarecida quanto ao cenário contemporâneo em que se situa nosso universo de
pesquisa.
1.1 Consumo de vinho no Ocidente, da Idade Antiga à Idade Média.
Em quase todas as culturas antigas o vinho estava de alguma forma associado a
divindades e rituais religiosos, tendo se tornado símbolo de conceitos fundamentais como a
morte e a ressurreição, e a representação do sangue de algumas divindades. No nível secular,
a escassez e o custo do vinho contribuíram para torná-lo uma bebida de luxo, restrita às elites
(PHILLIPS, 2003).
O desenvolvimento de uma importante cultura vinícola no Egito Antigo deixou-nos os
primeiros registros de padrões de consumo. A cerveja era a bebida alcoólica preferencial (seu
preço era cerca de cinco vezes mais baixo do que o do vinho) e tanto o consumo do
fermentado de uvas quanto a posse de vinhedos estavam restritos aos ricos e poderosos. O
vinho era bebido por reis e nobres nas propriedades reais, por particulares ricos e por
sacerdotes ligados a templos que o produziam e recebiam como pagamento. Também tinha
importante papel nos ritos religiosos, sendo consumido como libação aos deuses ou enterrado
com os mortos para o proveito na posteridade (PHILLIPS, 2003). O consumo moderado era
aprovado e a embriaguez era considerada positiva em determinados contextos, mas sérias
advertências eram feitas contra os excessos. O vinho também eram considerado veículo para
substâncias medicinais, como ervas e especiarias, e elemento dotado de propriedades
terapêuticas próprias.
Foi durante o período do domínio grego sobre o Mediterrâneo que a viticultura ganhou
força e a uva se tornou um dos três mais importantes produtos agrícolas da região, juntamente
com a azeitona e os cereais. Tendo assimilado fortemente o consumo de vinho à sua
sociedade, os gregos foram os responsáveis por estender o hábito a outras partes da Europa,
através do comércio (PHILLIPS, 2003).
Também foi a civilização da Grécia Antiga a responsável pelo desenvolvimento de
uma forma altamente ritualizada de consumo da bebida, que se constitui como referência
obrigatória: o symposion. Tratava-se da última e principal etapa de um jantar comunitário,
dedicada exclusivamente ao vinho. Na sociedade grega, comer e beber junto era uma
expressão de igualdade entre membros de um grupo distinto que partilhava valores e o poder
político. Combinando a apreciação da bebida com apresentações de música popular, poesia
lírica, dança, jogos ou mesmo discussões intelectuais e filosóficas, “o symposion funcionava
como uma expressão ritualizada das paixões, um microuniverso psicológico e cultural, um
25
mundo à parte em que o vinho relaxava as inibições e liberava a imaginação para preservar
antigas formas poéticas e criar novas” (STRONG, 2004, p.23). Sempre realizado em uma sala
reservada, o evento reunia majoritariamente um público masculino. Segundo sugere a
literatura da época, beber vinho não era um hábito aprovado para as mulheres e a embriaguez
era vista como um vício feminino. É importante destacar que o vinho jamais era bebido sem
ser misturado à água e essa prática fazia a distinção simbólica entre consumidores
“civilizados” e “bárbaros” daquele tempo (PHILLIPS, 2003).
Apesar de o consumo de vinho ter se ampliado consideravelmente nessa época, em
paralelo ao florescimento de um comércio de porte na Grécia e na Itália, a “democratização”
da bebida pela sociedade grega era relativa. Mesmo se o vinho era consumido em todo os
estratos sociais, uma distinção entre os consumidores de classes diferentes continuava a existir
pela qualidade de vinho e contexto de consumo em cada grupo (PHILLIPS, 2003).
Muitas das características do symposion grego foram assimiladas pelas elites romanas
e incorporadas em sua própria versão de jantar de gala: o convivium. Este consistia na forma
mais robusta — mais farta e com a presença de convidados — da cena, a terceira e principal
refeição do dia para os romanos ricos. A despeito do ideal de que o evento permitia considerar
iguais todos os convivas presentes, o convivium mantinha uma certa hierarquia refletida no
que era servido a cada um dos presentes, inclusive no que concerne à qualidade do vinho. Em
sua primeira parte, englobava o consumo de comida e bebida, servidas por escravos dirigidos
por uma equipe de serviçais especializados. Dentre eles permanecia a figura do escanção, o
serviçal encarregado do vinho, do qual já se tinha notícia na Grécia. Em geral, os convivas
comiam com a ponta dos dedos ou com o auxílio de facas de ponta e colheres, e bebiam em
taças de formatos diversos fabricadas em cristal, ouro, uma liga de ouro e prata, ou murra,
uma pedra opaca que se acreditava que melhorasse o aroma do vinho (STRONG, 2004).
A apreciação de vinho propriamente dita tinha início apenas na segunda parte da cena
ou do convivium, a commisatio. Ainda que não apresentasse o grau de complexidade ritual
dos symposia, também envolvia certo número de formalidades, incluindo libações
acompanhadas de palavras de bom agouro e a escolha de um responsável pela mistura de água
e vinho. Como reforça Strong (2004), o convivium era visto pelos membros das classes altas
como uma cerimônia de civilidade e ocasião de exibição das realizações pessoais do anfitrião
— talvez pudéssemos considerá-los uma espécie de potlatch antigo. Apesar de a presença de
mulheres ser permitida nos convivia, o consumo de vinho continuava a sofrer restrições de
gênero, assim como de classe.
Phillips (2003) menciona a existência, já na Antigüidade, de estudiosos como Plínio,
o Velho, responsáveis por produzir listas comentadas dos vinhos de seu tempo. De um modo
geral, o vocabulário utilizado para descrever a bebida era muito limitado. A maioria dos
gregos e romanos que comentaram sobre vinhos específicos classificava-os apenas como mais
26
ou menos “doces” e mais ou menos “fortes”, separando-os segundo a região de origem. Ao
que parece, os especialistas do mundo antigo gostavam do vinho doce e forte. Supõe-se que o
ponto de referência para a doçura de um vinho fosse o mel, mas muitos aditivos costumavam
ser acrescentados à bebida, como ervas e água do mar. O aroma e a coloração do vinho eram
considerados importantes e também já se percebia uma relação entre a qualidade do vinho e a
sua idade, embora não esteja claro se isso significava um reconhecimento de que o vinho
ficava melhor com o tempo ou de que apenas os bons vinhos podiam envelhecer. O parâmetro
maior de avaliação de um vinho continuava sendo, contudo, suas propriedades medicinais e
terapêuticas, segundo a teoria hipocrática dos humores.
Havia também as conotações religiosas. A mais duradoura dentre as desenvolvidas
pelo mundo clássico provavelmente foi a associação entre o vinho e o deus grego Dioniso
(posteriormente renomeado Baco, pelos romanos). Fortemente valorizados entre os judeus, as
uvas, as videiras e o vinho permanecem símbolos também da religião Cristã, sendo a bebida
incorporada como parte importante da teologia e do ritual. Através da Igreja Católica o vinho
receberia, especialmente durante a Idade Média, financiamento e estímulo fundamentais à
sua produção e disseminação pelo mundo (PHILLIPS, 2003).
Ao contrário do que se poderia pensar, o colapso do Império Romano e as invasões
germânicas não chegaram a ameaçar o importante status que o vinho havia adquirido na
Europa — a despeito da fama de bebedores de cerveja dos invasores, o consumo de vinho
também fazia parte de sua cultura. De acordo com Phillips (2003), pode-se crer, mesmo, que
tenha havido um crescimento regional da produção de vinho durante os séculos em que as
várias tribos disputavam o controle da Europa, e o surgimento do Império Carolíngeo, no final
do século VIII, foi particularmente positivo para a produção vinícola.
Strong (2004) apresenta o panorama das mesas mais ricas da Europa da Baixa Idade
Média como caracterizado pela oposição entre a frugalidade e ritualidade das mesas
monásticas e o gosto pela festa e pela bebida nas mesas seculares, herdados tanto dos romanos
quanto dos povos bárbaros. Mesmo após a conversão dos vikings ao Cristianismo, o objetivo
dos banquetes era promover a embriaguez. Se nos tempos pré-cristãos o anfitrião iniciava a
refeição com um brinde que era uma libação aos deuses pagãos, mais tarde este se torna uma
homenagem a Cristo, à Virgem e aos santos. Esta postura começa a mudar durante o reinado
de Carlos Magno, entre os séculos VIII e IX. A estrutura senhorial de sua corte estimula a
transformação dos banquetes em cenários de um exercício de hierarquia e expressão dos laços
feudais. Gradualmente o consumo excessivo de bebida sai de cena. A mesa aristocrática
medieval passa a se caracterizar por uma infinidade de preceitos relativos às “boas maneiras”
(que também se estendem por outras áreas da vida pública), os quais deviam tanto à postura
desenvolvida nos mosteiros quanto a uma tradição cortesã, ligada a ideais como
cavalheirismo, benevolência e gentileza.
27
Na Alta Idade Média são estabelecidas as fundações da moderna indústria vinícola
européia. A demanda por vinho aumenta significativamente no período em função do
crescimento populacional no continente e do forte movimento de urbanização. Somados ao
crescimento do comércio, esses fatores impulsionaram o desenvolvimento de uma classe
média de comerciantes e a formação (juntamente com as elites aristocrática e religiosa) de um
importante mercado para artigos de luxo, no qual o vinho já se encaixava muito bem. O
consumo era diário em certas classes sociais e em menor freqüência em outras, enquanto os
mais pobres só tomavam vinho em festividades especiais. É preciso lembrar também que
continuava havendo diferentes tipos de vinho. Pequenos produtores bebiam a piquette, vinho
fraco que era feito adicionando-se água à polpa da fruta que sobrava da prensagem, enquanto
a sociedade burguesa de classe média urbana demandava produtos sofisticados, tanto em
termos de bebida quanto de comida (PHILLIPS, 2003).
Ao final da Idade Média, as regiões especializadas na produção de uvas e vinhos são
mais claramente definidas — entre elas Bordeaux, Borgonha e Alsácia, na França, e Toscana,
na Itália, — ao passo que o público consumidor de maior poder aquisitivo também se torna
mais seletivo. Começava a surgir um conhecimento específico sobre determinados tipos de
vinho (isto é, vinhos de determinadas proveniências), e embora a avaliação ainda fosse feita
muito em função dos supostos efeitos sobre a saúde, começam a aparecer descrições mais
detalhadas acerca das propriedades gustativas de certos vinhos, bem como comentários sobre
a postura de apreciadores e notas sobre uma etiqueta de degustação. Merecem menção alguns
comentários sobre a apreciação de vinhos feitos por Farnese de Eiximenis, citado por Hugh
Johnson. Ao tratar do pecado da gula no terceiro volume da enciclopédia de moral Lo Crestia
(O Cristão), o autor critica os italianos como enófilos esnobes e apresenta regras precisas em
relação à maneira de se tomar vinhos:
[Os italianos] bebem por etapas, ingerindo pequenas quantidades de cada vez.
Examinam e reexaminam o vinho como os médicos fazem com a urina, e provam-
no repetidas vezes, mastigando-o devagar por entre os dentes até acabar de tomá-lo
[...].
Cumpre segurar a taça corretamente, com a mão, levando-a à boca, e não a boca à
taça. [...] alguns bebem sem levantar o cotovelo da mesa [...] assemelhando-se a [...]
porcos (JOHNSON, 1999, p.139).
Durante a Idade Média, a embriaguez permaneceu como uma das maiores
preocupações das autoridades, que passaram a enquadrá-la como comportamento ilegal,
enquanto tentavam regulamentar e restringir o consumo de bebidas alcoólicas em geral.
Apesar disso, escritores da área médica continuaram a enaltecer as propriedades terapêuticas
do vinho, baseados nas tradições grega, romana e árabe. De acordo com as recomendações
feitas por Hipócrates e Galeno, ainda em voga, o vinho era usado como anti-séptico,
antitérmico, para curar ferimentos e tratar problemas gastrointestinais, além de permanecer
como base para remédios diversos feitos com ervas medicinais. (PHILLIPS, 2003).
28
1.2 Consumo de vinho no Ocidente, da Idade Moderna aos nossos dias.
No início da Era Moderna o vinho se consolida como parte da alimentação européia,
passando a ser consumido regularmente por um número maior de pessoas, e não apenas em
ocasiões especiais. Acredita-se que o consumo fosse maior nas cidades do que no campo (os
produtores de vinho preferiam vender do que beber sua própria produção), bem como nas
regiões mais próximas às áreas produtoras, onde a bebida era mais barata. A população do
continente também cresceu, o que fez com que o mercado para os vinhos aumentasse como
um todo. Nessa época, o desenvolvimento e a disseminação das garrafas de vidro e das rolhas
de cortiça permitiram melhorar a conservação dos vinhos e prolongar sua armazenagem. O
aprimoramento dessas duas inovações também favoreceu, a partir do século XVII, o
desenvolvimento de dois novos estilos de vinho: o espumante e o vinho do Porto (PHILLIPS,
2003).
Ao contrário do que se poderia imaginar, a Reforma Protestante não chegou a causar
grande impacto no consumo de vinho. Não apenas porque sua influência foi maior em regiões
que não eram produtoras, mas porque, tal como a Igreja Católica, não condenava o hábito de
beber em si, apenas o consumo excessivo (PHILLIPS, 2003).
No século XVII, o conhecimento enológico se sistematiza, ganhando impulso com a
atenção cada vez maior concedida, tanto por produtores quanto por consumidores, às
diferenças entre os vinhos provenientes de regiões ou sub-regiões distintas. Para JOHNSON
(1999, p.194), o período entre meados do século XVI e princípio de XVII assiste ao fim de
uma “era de inocência” em relação ao conhecimento de vinhos. Segundo este autor, até aquele
momento a variedade se limitava aos tipos leves e refrescantes, que se deterioravam com
rapidez, e os tipos fortes, que alcançavam maior valor por causa do teor alcoólico e da relativa
durabilidade. A partir de então, o mercado passa a oferecer um maior leque de escolhas e a
estimular uma atitude mais preciosista em relação à bebida. Em 1586, na obra Description of
England, o enófilo inglês William Harrison refere-se à existência de mais de oitenta
variedades de vinhos importados na Inglaterra. Ele também destaca a predileção dos
apreciadores de sua época pelos exemplares “mais fortes” e mais caros, e recomenda aos
compradores a escolha de vinhos dotados de “força, beleza, fragrância, frescor e plenitude”
(JOHNSON, 1999, p.195).
Grandes interessados em vinhos, os ingleses endinheirados deixaram um bom número
de análises e comentários sobre o tema, a partir da segunda metade do século XVII. O oficial
da Marinha Inglesa Samuel Pepys (1633-1703) foi um deles, tendo escrito na década de 1660
um diário pessoal que fornece boas indicações quanto ao espaço que o vinho havia adquirido
nas classes mais altas da sociedade inglesa. Em um trecho citado por Rod Phillips, ele se
impressiona ao visitar a adega particular de um alto funcionário governamental, “na qual em
várias prateleiras havia vinhos de todos os tipos, antigos e novos, com rótulos colados em
29
cada garrafa, com uma ordem e em quantidade que nunca vi numa loja de livros” (PHILLIPS,
2003, p. 195). Aumentava cada vez mais o fosso entre uma massa de consumidores para qual
o vinho era um alimento valorizado apenas por seu caráter nutricional e os connaisseurs, para
os quais a bebida proporcionava também uma experiência estética.
É nesta época que o termo “gourmet se desenvolve para designar alguém com
conhecimento especializado da bebida. Ao princípio do século XVII, o gourmet era uma
espécie de corretor ou degustador empregado pelos mercadores de vinho. Em 1679, Richelet o
define como “aquele que prova o vinho no porto de Paris e verifica se este é legal e adequado
para o comércio” (FLANDRIN, 1991, p.294). Alguns anos mais tarde, “gourmet passa a
designar todos aqueles que sabem discernir os bons vinhos, assim como o termo “friand
(embora seja este último um pouco mais abrangente). Segundo destaca Flandrin, a existência
de duas palavras diferentes para designar coisas vizinhas é um signo do interesse que a época
devotava à “delicadeza do gosto”.
Na segunda metade do século XVIII, Voltaire irá definir o gourmet de maneira mais
ampla como aquele que “sente e reconhece prontamente a mistura de dois licores; o homem
de gosto, o connaisseur verá num rápido relance a mistura de dois estilos; verá o defeito ao
lado do ornamento” (FLANDRIN, 1991, p.302).
Os séculos XVII e XVIII, em verdade, assistiram a uma revolução nas maneiras à
mesa, a qual merece aqui uma pequena digressão. Se os manuais de cortesia medievais já
apresentavam um padrão de regras de “bom comportamento”, os séculos seguintes se
encarregaram de desenvolvê-lo, “refinando” as técnicas de comer à medida em que
aumentava o controle social sobre os corpos dos comensais e ganhava força o papel da
conduta diária como instrumento de diferenciação social (ELIAS, 1994). A adoção de pratos,
copos, garfos, facas e colheres individuais nas mesas da elite — um luxo a que os pobres
dificilmente teriam acesso — é talvez o melhor exemplo (FLANDRIN, 1991). Com o tempo,
passou-se também a restringir a classe de convidados autorizados a partilhar das mesas
aristocráticas. Até o princípio do século XVII os membros de classes inferiores eram mais
facilmente admitidos — ainda que sendo servidos com alimentos e bebidas diferenciados —;
no século XVIII espera-se dos convivas sentados em torno de uma mesma mesa uma
“afinidade de cultura, de maneiras e de gostos” (FLANDRIN, 1991, p.273).
A noção mesma de gosto adquire, a partir do século XVII, uma nova importância, e
em um domínio bem mais amplo que o alimentar. Em seu Dicionário Filosófico, em 1764,
Voltaire fala do uso metafórico dessa palavra em referência a um dom de discernimento
especial:
O gosto, esse sentido, esse dom de distinguir nossos alimentos, produziu em
todas as línguas conhecidas a metáfora que com o termo gosto expressa o
sentimento das belezas e dos defeitos em todas as artes: é um discernimento pronto,
como o da língua e do palato, e que como ele antecede a reflexão; como ele é
30
sensível e voluptuoso com relação ao bom; como ele, rejeita o mau com revolta
(FLANDRIN, 1991, p.301)
Possivelmente derivado desse emprego metafórico, o conceito de “bom gosto” aparece
em textos do final do século XVII, tanto para tratar de cozinha e gastronomia quanto em
referência aos domínios literário e artístico. Flandrin se pergunta se tal conceito não seria uma
arma manipulada pela aristocracia para conservar sua premência simbólica em face a uma
burguesia enriquecida
1
. Para esse historiador, a noção de gosto — surgida após a ‘cortesia’
medieval, que subsistiu como ´civilidade´, ´urbanidade´ e ´polidez’, e a ‘eloqüência’
renascentista — é a primeira que se refere ao indivíduo como consumidor. Sem duvida, diz
ele, porque os grandes senhores, a partir do século XVII, perdem a maioria de seus antigos
poderes e passam a ser sobretudo grandes consumidores. E também porque “o campo do
consumo e do luxo é aquele em que as diversas classes componentes da elites sociais nos
séculos XVII e XVIII podem comunicar-se com mais facilidade” (FLANDRIN, 1991, p.308).
Entre médicos e estudiosos o vinho manteve sua posição como fonte de nutrientes e
como remédio, mas a literatura médica passa a incorporar as distinções entre tintos e brancos,
secos e doces, e relacioná-las às supostas necessidades biológicas das diferentes “classes” de
pessoas. Assim, defendia-se que vinhos tintos encorpados eram mais adequados a
trabalhadores e camponeses, enquanto tintos leves e vinhos brancos eram indicados para
consumidores de melhor condição financeira. O consenso em torno dos benefícios do vinho
não duraria para sempre: no final do século XVI já havia sido publicada uma das primeiras
críticas ao uso do vinho para proteger a saúde, escrita por um partidário de outra bebida
fermentada que contestava a posição privilegiada do vinho na literatura médica (PHILLIPS,
2003).
O vinho não era o único produto de luxo a figurar nas mesas mais abastadas. Também
faziam parte dela iguarias como o café, o chocolate e o chá, cujo aumento de consumo no
período era representativo de uma mudança mais ampla na alimentação e no paladar dos
europeus ricos. Bebidas alcoólicas mais fortes como destilados e cervejas pretas adocicadas
também chegaram ao mercado entre o final do século XVII e início do século XVIII,
contribuindo para uma mudança de gosto que, em termos de vinho, também se inclinaria para
os encorpados e para os doces.
Como relata Phillips (2003), uma das tendências do século XVIII foi exatamente a
produção de bebidas alcoólicas nobres para satisfazer a um mercado de luxo, enquanto para as
1
É uma idéia essencialmente semelhante à defendida por Norbert Elias, no primeiro volume de O Processo
Civilizador (ao qual o texto de Flandrin certamente muito deve). Segundo Elias, os tratados do século XVI
sobre as boas maneiras são obra da nova aristocracia de corte que está se aglutinando aos poucos a partir de
elementos de várias origens sociais. O público visado por estes tratados era o da gente da classe alta, a
nobreza provinciana e estrangeiros ilustres que necessitavam se informar sobre o comportamento na corte,
mas Elias frisa que eles devem ter interessado também aos principais extratos burgueses, obrigando os
membros da classe alta a “se esmerarem em mais refinamentos e aprimoramentos de conduta”, de modo a
criar novos sinais de distinção (ELIAS, 1994, p.110).
31
massas continuavam a ser fabricados vinhos mais baratos e de má qualidade. Em meados do
século, um vocabulário descritivo dedicado exclusivamente ao vinho — o que hoje chamamos
“vocabulário de degustação” —, já se disseminava por um público europeu mais amplo e
burguês. Uma das melhores evidências se encontra dentro de um léxico de expressões
idiomáticas em inglês e francês publicado pelo padre (e vendedor de vinhos) Claude Arnoux.
No capítulo intitulado Sobre a compra de bebidas, que data de 1761, Arnoux cita expressões
como: “vin qui a du corps (vinho que tem corpo), “vin qui a du montant (vinho vigoroso),
du vin coulant et aisé à boire (vinho suave e palatável) e “vin dur, fumeux et violent, de
vrais casse tête (vinho duro, forte e que sobe à cabeça) (JOHNSON, 1999, p.300, traduções
de Hildegard Feist).
Nas classes mais pobres o vinho era uma bebida do dia-a-dia. O povo de Paris bebia
nas centenas de tavernas que existiam dentro e fora dos muros da cidade. Do lado de fora a
bebida era mais barata pois não era submetida aos impostos urbanos. Os freqüentadores de
taberna eram geralmente homens de mesma classe social, que costumavam sentar-se juntos de
acordo com a ocupação e nível hierárquico. Mesmo que fossem admitidas, as mulheres
compareciam em número muito reduzido pois sua presença seguia moralmente questionável.
Também continuaram no século XVIII as advertências contra o consumo em excesso:
segundo a Encyclopédie, “a embriaguez é um erro contra o qual deve-se estar sempre alerta, é
uma violação da lei natural que nos manda preservar a razão”(PHILLIPS, 2003, p.269).
A Revolução Francesa deu condições para a expansão tanto da vinicultura quanto dos
mercados consumidores. Por um lado, aboliu muitas das restrições impostas anteriormente ao
uso da terra pelos camponeses, facilitando a expansão da viticultura. Por outro, estimulou a
demanda interna por vinho, a partir da eliminação de impostos aduaneiros que encareciam a
bebida no varejo. Mas os maiores beneficiados com a mudança de mãos de muitas
propriedades vinícolas pertencentes tanto a acusados de crimes políticos quanto à Igreja
(cujos bens foram nacionalizados) foram mesmo os burgueses abastados que viviam nas
cidades. A propriedade de muitas das melhores vinícolas francesas passou a investidores,
empresários e profissionais de cidades próximas (PHILLIPS, 2003).
O século XIX trouxe mudanças aos hábitos de consumo de bebida alcoólica na
Europa. Os destilados industriais se popularizaram e ganharam terreno tanto no centro, leste e
norte do continente, quanto em países produtores de vinho como a França, especialmente
entre os trabalhadores das cidades industriais do norte. Ainda assim, o número de
consumidores de vinho em termos absolutos aumentou com o crescimento populacional na
maior parte dos países. É a partir deste momento que se pode qualificar a produção vinícola
francesa como uma indústria. As plantações de uva se expandiram (a despeito de uma grave
epidemia da praga filoxera), houve um aumento da produtividade dos vinhedos e os mercados
do norte se tornaram mais acessíveis aos vinhos produzidos no sul (PHILLIPS, 2003).
32
Também a maior parte da produção vinícola francesa passou a se dividir entre a de
vinhos premium, feitos em quantidade pequena e para mercados de luxo, e os vinhos
ordinários, produzidos artesanalmente para mercados locais e regionais. Entre um pólo e
outro, a qualificação dos diferentes tipos de vinhos é definida muito em função de seus
apreciadores, dos locais e das formas de consumo: o vinho “de elite” é aquele guardado nas
caves ou exibido nas taças dos homens de “bom gosto”, doravante chamados de “amantes do
vinho” e “connaisseurs” (GARRIER, 1995).
Não se pode deixar de destacar que foi ao longo do século XIX que se desenvolveu a
moderna cultura gastronômica — para não dizer, a própria noção de “gastronomia”—, ou
seja, de valorização irrestrita do prazer de comer e do refinamento do paladar, liberto das
amarras moralistas da Igreja e reducionistas da medicina antiga. Em termos de literatura, é
nesta época que a alimentação entra de vez no rol das artes e ciências dignas da atenção dos
eruditos, a partir do sucesso de A fisiologia do gosto, de Brillat-Savarin, publicado em 1825.
Sua máxima, “Os animais se repastam; o homem come; somente os homens de espíritos
sabem comer” (BRILLAT-SAVARIN, 1995, p.15) expressa bem o pensamento da época. Ao
mesmo tempo, a etiqueta à mesa realiza um retorno aos modos aristocráticos enquanto torna-
se acessível a um número mais amplo de pessoas (ainda assim a uma elite, a nova elite
burguesa), por meio de obras como o Manual dos Anfitriões, de Grimod de la Reynière.
Impulsionada pela adoção do serviço à russa
2
nas mesas abastadas dos novos
restaurantes e das residências burguesas européias, a maneira de consumir vinho entre as
elites também se transforma. Lentamente, no correr do século, o hábito de solicitar a bebida
no início ou final da refeição se modifica para tornar os vinhos não apenas acompanhantes de
todos os serviços, mas parte de alianças específicas com determinados tipos de prato.
Encontramos, assim, os primórdios das atuais regras de “harmonização” em prescrições, na
França, que sugerem que os “vinhos ordinários” devem acompanhar sempre o primeiro
serviço; os “vinhos de entremets
3
” (tintos de Bordeaux ou da Borgonha), as carnes do segundo
serviço; e os “vinhos de sobremesa” (vinhos doces) devem ser servidos no encerramento da
refeição (GARRIER, 1995).
As preocupações com as conseqüências sociais do consumo de bebidas alcoólicas,
contudo, persistiam, e ao final do século ganharam força em movimentos antiálcool
(proibicionistas ou partidários da moderação) mais organizados. É preciso lembrar que foi na
década de 1820 que se provou que bebidas fermentadas, assim como as destiladas, também
continham álcool, ao contrário do que se pensava anteriormente; e foi em 1849 que o
2
Disposição seqüencial de pratos individuais, servidos por garçons. Até o século XIX, o usual era o serviço “à
francesa”, em que todos os pratos eram oferecidos simultaneamente, em travessas comuns manejadas pelos
próprios comensais (GOMENSORO, 1999).
3
Expressão francesa que significa “entre pratos”. Trata-se de um serviço separado, depois do prato principal e
antes da sobremesa (GOMENSORO, 1999).
33
alcoolismo passou a ser reconhecido como doença, passando a ser diretamente
responsabilizado por muitos dos problemas relacionados ao processo de urbanização e
industrialização das cidades. Estes fatores, como destaca PHILLIPS (2003), contribuíram para
desgastar a relativa condescendência com que o consumo de vinho sempre fora agraciado,
embora, de modo geral, ele continuasse sendo concebido como uma bebida menos nociva do
que as outras (especialmente os destilados industrializados).
É interessante mencionar que até o final do século XVIII, os vinhos de Roma e da
Grécia antiga (ou melhor, as informações que se tinha quanto à eles) permaneceram como
referência de qualidade para a bebida. Com freqüência, autores modernos que escreviam
sobre vinho menosprezavam a produção contemporânea enquanto exaltavam os vinhos
antigos como exemplos de padrões a serem retomados. É somente no século XIX que os
vinhos modernos começam a ser levados mais a sério pelos escritores. Na primeira metade do
século, um comerciante de vinhos francês e um jornalista inglês contribuem de modo
fundamental na definição das bases de uma nova literatura enológica. Em 1816, André Jullien
publica Topographie de tous les vignobles connus, um livro abrangente sobre as principais
regiões vinícolas da França e de outras partes da Europa e do mundo, produzido para
proprietários de vinhedos e donos de adegas. Sua importância se deve ao fato de cobrir a
imensa lacuna que havia em termos de informação relativa às características distintivas de
vinhos e vinhedos, e respectivas nuances de qualidade. Em 1833, Cyrus Redding publica
trabalho equivalente, History and Description of Modern Wines, um levantamento geral sobre
vinhos também dotado de informações práticas sobre conservação e adulteração da bebida,
estatísticas, notas sobre costumes locais etc. (PHILLIPS, 2003; JOHNSON, 1999).
Eles não foram os únicos: ao longo do século, foi publicada uma vasta quantidade de
obras sobre vinhos, tratando dos mais variados aspectos — desde técnicas de produção da
bebida, passando por obras históricas, até discussões de cunho estético ou econômico —, no
que pode ser definido como o período de nascimento da literatura especializada tal como a
conhecemos hoje. Como aponta Phillips (2003), o aumento da publicação de trabalhos
voltados para o consumidor foi um sinal da consolidação de uma nova abordagem do vinho
entre as classes média e alta da Europa, num período marcado pelo aumento da prosperidade
burguesa, pela expansão das camadas médias e pela industrialização. Era o início de uma
cultura de consumo que, no que tange ao vinho, ganharia seus contornos mais nítidos a partir
de meados do século XX.
A segunda metade do século XX viu uma expansão considerável de novas práticas e
normas relativas à produção vitivinícola, que tiveram por conseqüência tanto o aumento da
produção de vinho a nível mundial, quanto a melhora generalizada da qualidade da bebida
disponibilizada no mercado. Fatores como a expansão do plantio de uvas e da mecanização
nos vinhedos, controle mais eficaz de doenças e o refinamento da seleção de cepas através da
34
clonagem, contribuíram para o aumento na oferta de vinho; ao passo em que o
estabelecimento, consolidação ou aperfeiçoamento dos sistemas de denominação de origem,
tanto em países de tradição vinícola (como França, Itália e Alemanha) quanto em países de
produção recente (Austrália e Estados Unidos), não apenas ajudou a regular (razoavelmente)
esta produção, mas permitiu aos consumidores obter certas garantias com relação à
procedência daquilo que compram (PHILLIPS, 2003).
Embora os vinhos de melhor reputação permaneçam restritos aos consumidores de
mais alto poder aquisitivo, de modo geral tornou-se possível comprar vinhos considerados de
qualidade dentro de quase todas as faixas de preço, e um contingente cada vez maior de
consumidores passa a se mostrar sensível a esse aspecto. Enquanto os países historicamente
ligados à produção e consumo da bebida viram cair progressivamente o consumo total a partir
do pós-guerra (a França, por exemplo, passou de 150 litros anuais per capita, no começo da
década de 50, para 110 litros nos anos 70 e cerca de 60 litros nos anos 90, segundo Phillips,
2003, p.394), nos países sem essa tradição (como o Brasil) a bebida ganhou mercado e passou
a disputar maior espaço com os outros alcoólicos. Em ambos os casos, no entanto, a mudança
apontou uma tendência similar bastante significativa: a procura cada vez mais acentuada dos
novos consumidores pelos vinhos finos (considerados de qualidade superior), em detrimento
dos vinhos de mesa
4
.
Fundamentalmente, o vinho passou a ocupar um novo lugar na vida dos consumidores,
o que em parte ajuda a explicar a migração nas preferências. Se até então, nos contextos de
consumo tradicional, ele fazia parte da dieta cotidiana, como um de seus alimentos de base
sendo valorizado principalmente pelo que poderia oferecer em termos de nutrição , cada vez
mais ele passa a ser considerado um bem de consumo, ao mesmo tempo nobre e opcional, e
cujos atrativos recaem majoritariamente sobre suas propriedades estéticas (DEMOSSIER,
2005). É interessante destacar que em países como a França, a melhora no abastecimento de
água encanada, bem como a ampliação na oferta de água mineral, tornaram esta a bebida
preferencial para se acompanhar as refeições cotidianas, alijando o vinho de um de seus
principais contextos de consumo. Ao mesmo tempo, a progressiva restrição ao álcool nos
ambientes de trabalho, em função das preocupações com eficiência e produtividade, a partir
da Segunda Guerra Mundial (PHILLIPS, 2003), ajudou a redefinir seu espaço na vida dos
trabalhadores, empurrando-o cada vez mais para as ocasiões de lazer.
Embora a apropriação do vinho como símbolo de bom gosto e distinção social
evidentemente não constitua uma novidade, é interessante observar como ela ganha corpo e
novos contornos ao ser assimilada, ao longo do século XX, pelas classes médias em expansão.
Em boa parte, é em meio a elas que floresce e se consolida essa “nova cultura do vinho”,
4
Os vinhos finos são aqueles produzidos a partir de uvas nobres (p.ex. Cabernet Sauvignon e Merlot), da espécie européia
Vitis vinifera. Em contraposição, estão os vinhos de mesa, produzidos com uvas comuns (p.ex. Isabel e Concord),
considerados de qualidade inferior.
35
como chama Albert (1989). A oferta e a demanda por um rol cada vez mais amplo e mais
aprofundado de informações sobre vinho — que vai desde as técnicas de viticultura e
vinificação, passa pelas diferenças entre as várias cepas de uva, pela história da produção da
bebida nas diferentes regiões do mundo, e chega às principais propriedades organolépticas dos
diferentes tipos de vinho — põe em destaque o fato de que os novos apreciadores estão
interessados em consumir informações sobre vinho tanto quanto a própria bebida.
Segundo Phillips (2003), as evidências apontam que a parcela representada por este
tipo de consumidor vem crescendo de modo constante desde os anos 70, ultrapassando em
muito o âmbito daqueles diretamente ligados à indústria vinícola. Este tipo de interesse
ajudou a fomentar o oferecimento de uma gama variada de produtos e serviços ligados ao
vinho: publicações especializadas dirigidas ao público em geral (revistas, livros, CD-ROMs),
utensílios para o consumo (diferentes tipos de abridores e taças, marcadores de temperatura,
embalagens para transporte de garrafas etc.), cursos de degustação (para amadores e
profissionais), rotas de turismo enológico, e uma cada vez maior quantidade de associações
dedicadas à congregação de enófilos. Segundo Garrier (1995), em 1971 foram recenseadas 78
confrarias de vinho na França, número que o autor calculava que tivesse subido para mais de
cem por volta de 1995. Atualmente, a mais famosa e prestigiada delas é ainda aquela que deu
origem ao movimento de organização de confrarias no século XX: a Chevaliers du Taste Vin,
fundada na Borgonha, em 1934
5
.
1.3 Consumo de vinho no Brasil
Ao Brasil, o vinho chegou pela primeira vez na bagagem de navegadores. Acredita-se
que os primeiros exemplares a desembarcar por aqui tenham sido trazidos na esquadra de
Cabral e fossem provenientes do Alentejo, de uma propriedade próxima a Évora, já então
conhecida como “Pêra Manca”. Naquele tempo, a bebida viajava armazenada em pipas de
madeira, geralmente de castanho português, com capacidade para aproximadamente 500
litros, e ficava estocada no porão dos navios, local mais frio e protegido da luz. Sua presença
à bordo é explicada não apenas porque o vinho servia como poderoso anti-séptico e
medicamento à tripulação, mas porque era elemento fundamental para a celebração da missa
diária pelos frades presentes (CABRAL, 2005).
As primeiras mudas de videira chegaram em 1532, junto com a expedição
colonizadora de Martim Afonso de Souza. Segundo Rodrigues (1972) elas foram trazidas
5
Também segundo GARRIER (1995), é no início da Idade Moderna que se encontram as raízes mais antigas
das confrarias de vinho: a primeira delas, a confraria de Saint-Etienne d'Ammerschwihr, apareceu na Alsácia,
no século XV, tendo permanecida ativa até o começo do século XIX; a segunda delas, a confraria de Corne,
foi fundada em 1586 por um bispo de Estrasburgo, e posteriormente sediada em Saverne. Ao longo do século
XVIII, uma série de outras confrarias, igualmente destinadas a reunir apreciadores de vinho em torno de
rituais de louvação a Baco, nasceu e desapareceu, na Europa. Infelizmente, não conseguimos encontrar mais
informações sobre essas primeiras confrarias ou sobre seus rituais.
36
pelos povoadores do Reino, da Ilha da Madeira e dos Açores, que compunham a tripulação,
juntamente com outras plantas frutíferas, gado e um engenho de açúcar. Fundador da cidade
de Santos, o fidalgo Brás Cubas foi o pioneiro no cultivo ordenado da vide, no Brasil, e
também na produção de vinho, registrada já em 1551. Vitivinicultor experiente, proveniente
da cidade do Porto, Cubas inicia a cultura de uvas viníferas em São Vicente, mas como o
clima do litoral não se mostra muito favorável, é obrigado a subir a serra e transferir o cultivo
para o planalto do Piratininga, na região do Tatuapé. Aquele seria o primeiro vinhedo
produtivo do país, a que o padre Simão de Vasconcelos se refere como “as fecundas vinhas
paulistas” no livro Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil (citado por
CABRAL, 2005, p.33).
Essa produção rudimentar implantada emo Paulo de Piratininga permitiria atender
parcialmente às necessidades dos religiosos locais e da beira-mar, atuantes em Santos e São
Vicente; mas o grosso do vinho consumido ali e em outras regiões do país era importado. Ao
final do século XVI, consumia-se nas casas-grandes de engenho do nordeste da colônia, vinho
de Piratininga, de Portugal e da Espanha (CABRAL, 2005, p.43).
A produção de vinho em terras brasileiras no princípio da colonização não se
restringiu a São Paulo. Foram registradas iniciativas em Pernambuco, a partir da plantação de
videiras na ilha de Itamaracá, em 1542, e na Bahia, na ilha de Itaparica, também durante o
século XVI. (RODRIGUES, 1972). No Rio Grande do Sul, a videira chega em 1626, levada
pelo padre espanhol Roque Gonzáles de Santa Cruz quando da fundação da redução jesuítica
de São Nicolau, na região de Tape (Sete Povos das Missões). As uvas serviriam como
alimento e para a produção de vinho para as missas, e prosperaram por um bom tempo após a
morte de Gonzáles. Em manuscrito redigido na redução de São José, em 1732, o jesuíta tirolês
Anton Sepp relata ter preparado, três anos antes, 26 garrafas da bebida, “sendo 8 de vinho
muito doce e mais de vinho comum” (PAZ; BALDISSEROTO apud CABRAL, 2005, p.181).
No comércio entre o litoral da Capitania de São Vicente e o planalto, instaurado pelas
bandeiras no século XVII, o vinho figura como o segundo produto principal, logo após o
trigo. Comercializava-se, então, tanto o vinho importado que chegava em Santos e era levado
Serra do Mar acima, quanto o proveniente das já abundantes plantações iniciadas por Brás
Cubas. Alguns registros dão conta de que se produzia em São Paulo, ainda no final do século
anterior, duas pipas de vinho ao ano, embora não se saiba em que proporção a bebida era
destinada ao comércio ou reservada para consumo próprio (CABRAL, 2005). Segundo
Rodrigues (1972), nesta época teve início uma relativa expansão da viticultura paulista em
direção ao oeste, alcançando as regiões de Parnaíba e São Roque.
O impacto da descoberta de ouro em Minas Gerais, contudo, foi desastroso para os
parreirais e demais atividades agrícolas no Brasil, e em especial no entorno de São Paulo de
Piratininga. Ainda bastante restrita à produção caseira, a viticultura quase desaparece por
37
completo durante o século XVIII. A “corrida ao ouro” também contribui para inflacionar a
maioria dos produtos comercializados, com destaque para aqueles considerados de luxo, como
os tecidos nobres, as louças, o azeite e o vinho (CABRAL, 2005).
Ao sul do país, a ainda incipiente vitivinicultura rio-grandense ganha nova força a
partir de 1752, com a chegada de casais de açorianos destinados ao povoamento da região dos
Sete Povos, mas que acabam fixando-se às margens do Guaíba, na atual Porto Alegre, e ao
longo da faixa litorânea, até Rio Grande (ALVES, 2000; CABRAL, 2005). Em sua bagagem,
muito provavelmente vieram os exemplares de videiras européias que logo começaram a ser
plantados na nova terra. Como um todo, a atividade vitivinícola brasileira permanecia
circunscrita a pequenas áreas, em diversos pontos do território nacional, e destinada a
produzir para o consumo familiar e um comércio restrito.
Pouco antes da chegada da família real portuguesa ao Brasil, as cidades mais
desenvolvidas da colônia, como Rio de Janeiro, Salvador, Recife e Vila Rica, já estavam
habituadas ao consumo do vinho, tomado em ocasiões especiais e oferecido como símbolo de
hospitalidade. De acordo com Cabral (2005), o gosto pela bebida se fazia presente não apenas
entre as elites, mas nos diversos extratos sociais, ainda que a qualidade e procedência dos
vinhos consumidos pudessem variar bastante.
Após a instalação da Coroa no Rio de Janeiro e a abertura dos portos às nações
amigas, não apenas a oferta de vinho importado aumenta, mas transformam-se os hábitos de
consumo. Seguindo o modelo da família real e sua corte, a elite local incorpora a prática de
beber vinho às refeições, o que ainda não era usual, assim como toda uma parafernália de
utensílios — cristais franceses e da Boêmia, pratas e louças portuguesas e inglesas, toalhas
bordadas da Madeira considerados mais adequados às novas regras de etiqueta à mesa. No
início do século XIX, já era possível encontrar com freqüência adegas para depósito de vinho
nas casas de indivíduos de médias posses. Em geral, a bebida era armazenada em barris de 50
litros, no andar térreo das casas; mas em função de seu alto preço, o consumo usual seguia
bastante parcimonioso.
Durante o Segundo Reinado, o consumo de vinho no Brasil apresenta notável
crescimento. O número de grossistas (atacadistas) e retalhistas (varejistas) de vinho —
responsáveis pelo abastecimento tanto da corte, quanto das grandes cidades nordestinas e,
agora também, das fazendas de café e localidades próximas — passa de meia dúzia, em 1844,
para 150, em 1854. Em sua maior parte, o consumo continuava sendo saciado pelos
importados, e é interessante notar que mesmo entre eles existia uma inequívoca escala de
importância. Baseando-se na documentação referente à Ucharia Imperial, conservada no
Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, Cabral (2005) aponta que os vinhos adquiridos para
consumo diário na corte eram os Portos, os tintos e brancos “de Lisboa”, os rosés e os vinhos
ordinários comuns, comprados com regularidade e em grande quantidade. Já vinhos como
38
Tokay, Moscatel, de Bordeaux, Sauternes e Champanhe, considerados especiais, aparecem
apenas em compras esporádicas, provavelmente sendo reservados a ocasiões festivas
6
.
Apesar de não constarem das relações de compras da Ucharia entre 1838 e 1889
registros relativos à aquisição de vinhos nacionais, a família imperial não os desconhecia. Na
grande viagem que realizou em 1871 pela Europa e Oriente, D. Pedro II teria levado consigo
doze garrafas de vinho produzido no Brasil. (CABRAL, 2005). Bem antes disso, em 1844, a
Princesa Isabel já deixara registrado em diário um comentário — nada elogioso, é verdade —
ao vinho brasileiro. Durante viagem com o Conde D’Eu à São Paulo, ela conta ter
experimentado o melhor vinho produzido na Chácara Califórnia, e garante que “não é mau,
mas tem sempre aquele amère goût resinoso que noto em quase todo o vinho feito no Brasil”
(DAUNT apud CABRAL, 2005, p.98). Conforme especula Cabral, esse “gosto amargo e
resinoso” viria da uva americana Isabel, naquela época já fartamente utilizada como matéria-
prima dos fermentados nacionais, em detrimento das uvas viníferas européias originariamente
empregadas.
A avaliação da princesa quanto à qualidade do vinho então produzido em solo
brasileiro não se diferencia muito da registrada pelo viajante Auguste de Saint-Hilaire duas
décadas antes, durante passagem por Porto Alegre, em 1820:
A vinha prospera bem. Algumas pessoas fabricam vinho, porém de qualidade
inferior e sem aceitação. A elite usa vinhos generosos do Porto e, como o pouco que
se faz no Brasil está muito longe de ser bom, e é desdenhado e até ridicularizado,
isso conduz ao desânimo aqueles que se dedicam à experiência da enologia. É
incontestável, contudo, que o pior vinho nacional é mais apetecível às classes pobres
(impossibilitadas de comprar o produto português) que a água ou a cachaça com
açúcar. Somente vantagens, e grandes, terá a introdução geral de uma espécie de
qualquer fabrico de vinho no Brasil, devendo o governo encorajar, por todos os
meios possíveis, a plantação de videiras e fabricação de vinho de regiões do Brasil
onde possa haver esperanças de sucesso, tais como esta capitania, em Goiás, no
Distrito Diamantino e na comarca de Sabará na Capitania de Minas (CABRAL,
2005, p.130).
Por volta de 1824, a chegada de imigrantes alemães ao Rio Grande do Sul traz para a
província um novo ciclo de desenvolvimento no que diz respeito à vitivinicultura. Muitos
deles provenientes de regiões tradicionalmente produtoras de vinho, como o Reno, esses
colonos obtém bons resultados no cultivo de videiras européias, segundo relata Arséne
Isabelle, em 1834. Em 1839, ocorre a importação de videiras americanas, como a Concord e a
Isabel, tipos bem mais rústicos e resistentes que os de origem européia, mas geradores de
vinhos de qualidade inferior
7
. Elas teria sido enviadas dos Estado Unidos pelo diplomata rio-
grandense José Marques Lisboa (futuro almirante e marquês de Tamandaré) para o
6
É interessante destacar que dentre os vinhos que vinham da metrópole, somente o Porto era realmente da
cidade do Porto: naquela época era o único a corresponder a um local determinado, com produção e
comercialização controladas pela Companhia Geral da Agricultura e das Vinhas do Alto Douro. Os vinhos
“de Lisboa” correspondiam a uma variedade de regiões — Alentejo, Carcavelos, Estremadura, Bucelas,
Setúbal, Ribatejo, Dão etc. — pois eram vinhos referidos pelo nome do porto de despacho.
7
Sobre a Isabel, Celeste Gobbato (1950) comenta: “...uva desarmoniosa, que sempre, ou quase sempre,
necessita de correções para poder propiciar vinhos de qualidades organolépticas apenas normais.”
39
comerciante Thomas Master — ou Thomaz Messiter, segundo algumas fontes —, responsável
por sua implantação na Ilha dos Marinheiros e na fralda da Serra dos Tapes, em Rio Grande.
Segundo algumas fontes, a uva Isabel já teria entrado em São Paulo entre os anos 1830
e 1840, e parecia prometer bons resultados em Mogi das Cruzes e bairros periféricos da
capital paulista (INGLÊS DE SOUZA apud por CABRAL, 2005, p.183). Ainda em meados
do século XIX, a produção vinícola estimulada pelo cultivo das uvas americanas se espalha
pelo Rio Grande do Sul, através da iniciativa de franceses em Pelotas, alemães e suíços em
São Lourenço do Sul, Caí, Santa Cruz do Sul e Estrela, portugueses em Rio Grande (BUNSE,
1978). Apesar de terem permitido a expansão das vinhas, por serem mais fáceis de cultivar e
muito mais produtivas do que as européias, as videiras americanas foram responsáveis pela
disseminação de doenças como a peronóspora, a que elas próprias eram resistentes, e que
acabariam com grande parte da plantação vitícola mais antiga no Rio Grande do Sul.
O grande impulso para o florescimento da produção de vinho brasileira, entretanto,
somente viria com a colonização italiana, ocorrida a partir do terceiro quartel do século XIX.
Como destaca Rodrigues (1972), são os italianos os responsáveis por transformar São Roque
e Jundiaí, estado de São Paulo, em dois grandes centros produtores de uvas e vinhos, já no
século XX. No Rio Grande do Sul, a revolução tem início em 1875, com a chegada dos
primeiros imigrantes. Provenientes do norte da Itália e familiarizados com o cultivo de uva e o
consumo de vinho, rapidamente eles dão início a uma produção artesanal da bebida na região
da Encosta Superior do Nordeste, em local que hoje corresponde aos municípios de Caxias do
Sul, Garibaldi e Bento Gonçalves. Inicialmente, as videiras utilizadas eram de origem italiana,
trazidas da terra natal. Após o extermínio das primeiras plantações pelas doenças fúngicas,
estas foram substituídas pelas americanas, em especial pela Isabel, encontrada na zona de
colonização alemã do vale do Rio dos Sinos (MANFROI, 2004).
Parte da produção de vinho colonial era separada para o consumo familiar durante o
ano e o resto era negociado com comerciantes, em sua maioria alemães. De início vendida
apenas nos grandes centros regionais, como Porto Alegre, São Leopoldo e Montenegro, ainda
no final do século XIX registram-se as primeiras iniciativas de exportação da produção
gaúcha para outros estados.
Com o advento da República, num primeiro momento as importações sofreram baixa
pronunciada, devido às altas taxas cobradas ao vinho, aos portugueses em particular. Tanto os
vinhos nacionais quanto os importados sofrem com as falsificações, que provocam a
mobilização de comerciantes e produtores.
Ao mesmo tempo, surge uma nova clientela para a bebida no baronato do café e na
burguesia urbana paulista. O inventário de D. Veridiana da Silva Prado, magnata das artes, dá
conta de que a mansão em que morava desde 1889 possuía uma adega no porão em que eram
conservados cerca de 300 garrafas de vinho envelhecido, além de porta-garrafas, baldes de
40
gelo e uma grande quantidade de peças de cristal. A preferência das elites continuava sendo
pelos importados, como se depreende, por exemplo, dos registros de um almoço ocorrido em
1915, na Sociedade Hípica Paulista: entre as garrafas servidas figuram apenas exemplares de
aclamados vinhos franceses, como Sauternes, Barsac, Chambertin, Pommery e Moët &
Chandon (CABRAL, 2005).
Dois movimentos principais parecem ter marcado não apenas a evolução qualitativa
dos vinhos produzidos no Rio Grande do Sul, durante o século XX, mas a paulatina (embora
lenta) mudança de mentalidade dos produtores da região e a progressiva ampliação do
mercado interno para os vinhos (nacionais e estrangeiros). O primeiro teve início na década de
30, e se caracterizou pela abertura conjunta de novas frentes de melhoramento do vinho
nacional por parte de plantadores de uvas, cooperativas, negociantes, estações vinícolas e
escolas de agronomia. Enquanto alguns produtores davam os primeiros passos no processo de
divisão de funções em família, especialização e profissionalização — enviando filhos e netos
para cursos de agronomia, enologia, comércio etc. —, do lado de instituições como a Estação
Experimental de Viticultura e Enologia (EEVE), de Caxias do Sul, foi grande o esforço para
disseminar a adoção de técnicas de vitivinicultura mais modernas, bem como o plantio de
uvas viníferas consideradas de maior qualidade.
Neste processo, merece menção especial o nome do enólogo italiano Celeste Gobbato,
que esteve à frente da EEVE entre 1928 e 1938 realizando pesquisas e produzindo extensa
bibliografia técnica. Cabral (2005) também destaca a importância do vinho Granja União:
criação da Companhia Vinícola Riograndense, ele foi o primeiro vinho varietal
8
produzido no
Brasil, tendo alcançado enorme popularidade a partir do final da década de 30.
O segundo movimento teve início no princípio da década de 70 e foi marcado pela
instalação, no Rio Grande do Sul, de multinacionais de bebidas destinadas a produzir vinhos
finos e de mesa em solo brasileiro. Visando aproveitar o decantado “milagre econômico” do
período militar, empresas como Moët & Chandon, Heublein, Seagram’s e Martini & Rossi
trouxeram para o nosso mercado nova tecnologia e enólogos profissionais. As vinícolas
nativas que resistiram ao assédio dos investidores estrangeiros se viram obrigadas a também
se modernizar.
Do lado do consumidor, o período entre os anos 70 e início da década de 80 foi
fundamental para a disseminação da apreciação da bebida entre as classes médias, favorecida
pela progressiva consolidação do vinho como um símbolo de status social (CABRAL, 2005).
É durante este período que a bebida começa a freqüentar com alguma regularidade as páginas
de jornal, em colunas especializadas em gastronomia ou edições especiais de revistas
dedicadas a outras áreas: masculinas, femininas, de decoração etc.
8
Vinhos varietais são aqueles produzidos com uma proporção maior de uma única variedade de uva, cujo
nome consta do rótulo. A percentagem mínima de uma uva necessária para que o vinho seja classificado
como varietal, varia de acordo com a legislação vinícola de cada país. (MANFROI, 2004).
41
Iniciada na década seguinte, a disseminação de sociedades de gastrônomos, enólogos e
enófilos ajuda a consolidar a presença do vinho na mídia e a divulgar as práticas de
degustação. A primeira entidade do gênero formalmente instituída e reconhecida no país foi a
Sociedade Brasileira de Amigos do Vinho (SBAV), fundada em 1980, na cidade de São
Paulo. Resultado de um iniciativa de enófilos sem ligação direta com a produção, seu objetivo
declarado era o de “reunir os estudiosos, apreciadores e amigos do vinho para promover e
estimular o hábito de degustação do vinho” (CABRAL, 2005, p.229). A empreitada não
tardou a estimular outros esforços similares país afora, como a Associação Brasileira de
Sommeliers (ABS), fundada no Rio de Janeiro, em 1983, e a própria Sociedade que
estudamos, fundada em Porto Alegre, em 1982.
A estabilização da economia e a abertura às importações, durante os anos 90,
representaram, por sua vez, um forte impulso para que o consumo de vinhos finos e, junto
com eles, as práticas de degustação — se expandissem entre as classes médias brasileiras e
ganhasse a relativa visibilidade que apresentam hoje
9
.
Atualmente, podem ser encontradas nas bancas e livrarias de grande capitais
brasileiras (como Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre), uma boa quantidade de
publicações dedicadas especificamente aos vinhos ou à enogastronomia.
10
. Ao mesmo tempo,
matérias em jornais e revistas de grande circulação periodicamente têm trazido informações
sobre a bebida. É possível observar a publicação freqüente de reportagens sobre a expansão
do consumo de vinhos finos e de outros produtos culturais a ele relacionados, em meio às
classes médias brasileiras, bem como de reportagens, artigos e pequenos guias destinados ao
público em geral sobre as regras da etiqueta da degustação, os melhores acessórios para
vinhos disponíveis no mercado, os locais onde aprender e exercitar as técnicas de apreciação
ou os pacotes de turismo enológico disponibilizados pelas operadoras
11
.
É em meio a este contexto sócio-histórico que se encontram situados os informantes
desta pesquisa. Os capítulos seguintes são dedicados a descrever e propor uma análise de
suas práticas relacionadas ao consumo de vinho, de modo mais geral, e às degustações de
vinho, de modo particular.
9
Alguns dados bastante interessantes sobre tendências no consumo de vinhos finos e de mesa no Brasil, no
período entre 1990 e 2001, podem ser encontrados em artigo técnico de autoria de Loiva Maria Ribeiro de
Mello, disponível no website da EMBRAPA Uva e Vinho (www.cnpuv.embrapa.br
, consultado em 24 de
fevereiro de 2005.).
10
Atualmente, são publicados no Brasil os seguintes periódicos especializados: Vinho Magazine, Revista do
Vinho, Revista Adega e o jornal Bon Vivant. Embora mais voltadas à gastronomia, as revistas Gula e
Prazeres da Mesa também mantêm colunas e seções dedicadas aos vinhos.
11
No anexo deste trabalho, apresentamos algumas destas matérias, coletadas entre 2004 e 2005.
42
43
2 TORNAR-SE UM DEGUSTADOR: CONSUMO DE VINHO E ESTILO DE VIDA.
2.1 Espaços e contextos de consumo
O vinho figura no cotidiano dos informantes desta pesquisa em uma variedade de
situações, que abarcam não apenas o consumo direto da própria bebida, mas também de
outros produtos culturais a ela relacionados. Na primeira parte deste capítulo, buscaremos
descrever e comentar as principais dentre essas situações, visando apresentar um breve
panorama de contextos e práticas de consumo, observado, principalmente, sob o ângulo das
representações sobre o vinho neles envolvidas.
Convém destacar que não foi objetivo deste trabalho realizar uma pesquisa intensiva
sobre o consumo de vinho fora do contexto das degustações. Como mencionado no capítulo
introdutório, nossa incursão em campo centrou-se nos encontros na Sociedade e, assim, as
descrições sobre o consumo em outros ambientes baseiam-se, em larga medida, nos
comentários feitos pelos informantes durante as entrevistas e em meio às conversas nas
degustações. Não obstante, esses comentários permitem-nos enquadrar os gestos, falas e
atitudes diretamente observados ao longo da pesquisa, em uma rede mais ampla de ações,
opiniões e escolhas, que lhes confere grande parte de sua significação.
Sem contarmos o contato com a bebida que se dá semanalmente durante as sessões de
degustação na Sociedade, podemos classificar nossos informantes, quanto à freqüência de
consumo de vinho, em dois grupos: o dos que tomam a bebida diariamente e o dos que a
consomem de duas a três vezes por semana.
No primeiro caso, o consumo ao longo da
semana se dá majoritariamente em casa e à noite, em meio à refeição que é realizada em
conjunto com a família, após o retorno do trabalho. Nos fins de semana, o consumo pode
ocorrer em almoços ou jantares, em casa, na casa de parentes ou em restaurantes.
No segundo caso, o consumo entre segunda e sexta-feira se dá mais ocasionalmente,
“às vezes, uma simples janta no meio da semana, em que tu tá com vontade de tomar um
vinho, aí toma um vinho mais simples”, ou em datas especiais, quando há algum tipo de
comemoração. Com maior freqüência, restringe-se aos almoços ou jantares de fim-de-semana
e é realizado não em casa, mas em restaurantes ou na casa de amigos e familiares. De todo
modo, em ambos os casos, raramente o consumo de vinho se dá isoladamente (isto é, sem o
acompanhamento de alimentos e fora de um contexto de refeição
1
) e também raramente ele se
dá de modo solitário (sem a companhia de outras pessoas).
1
Utilizamos aqui o termo refeição segundo a definição proposta por NICOD (1974, apud DOUGLAS, 1977)
para o termo meal: ocasião social de tomada alimentar, estruturada segundo regras prescrevendo tempo, lugar
e uma seqüência de ações. O termo “ocorrência alimentar”, por sua vez, refere-se a toda ocasião de tomada
alimentar, estruturada ou não. Dentro desta proposta, as refeições diferenciam-se essencialmente dos snack,
ocorrências alimentares não-estruturadas. A adoção desta classificação aqui tem por objetivo diferenciar o
consumo de vinho que é realizado fora das degustações (geralmente inserido em refeições) do que é realizado
44
Em todas as situações relatadas o consumo de vinho insere-se em ocasiões apontadas
pelos informantes como sendo, de algum modo, “especiais” ou relacionadas ao lazer:
refeições (almoços ou jantares) em fim de semana, realizadas fora de casa e com um círculo
maior de parentes ou amigos, e jantares durante a semana, realizados após o expediente e com
a família. Edith, por exemplo, contou-me que bebe pouco vinho durante a semana, mas que
sempre o toma “aos sábados, quando eu almoço com uma filha e um filho [geralmente em
restaurantes], e aos domingos com a outra [filha], que é quando o genro faz churrasco em
casa”. Fernando relatou que embora beba vinho diariamente, somente o toma “à noite, na
janta, que é quando a família se reúne e conversa”.
Por um lado, é importante observar a dicotomia subjacente entre trabalho e consumo
de bebidas alcoólicas, que certamente não se restringe ao nosso universo de pesquisa e
encontra raízes na transformação das relações entre bebida e trabalho ocorridas entre o século
XIX e início do século XX (ver Capítulo 1). Nenhum dos informantes declarou consumir
vinho durante as refeições em horário de trabalho; considera-se, de modo geral, que as
bebidas alcoólicas podem atrapalhar o desempenho, em função dos efeitos do álcool no
organismo
2
.
Por outro lado, as situações de consumo descritas apontam que o vinho também não é
uma bebida que se considere que possa ser corriqueiramente consumida em qualquer tipo de
ocorrência alimentar. Preferencialmente, ele é reservado a situações marcadas pela forte
sociabilidade e em que a comida que o acompanha e o próprio contexto de consumo
(momento/espaço) denotam uma ruptura com o cotidiano. Este é o caso, especialmente, das
refeições de fim-de-semana, como o churrasco mencionado por Edith — essencialmente um
prato de festividade, cujo processo de preparo e consumo constitui expressão exemplar de um
ritual de comensalidade (MACIEL, 1996) — e os almoços e jantares “fora de casa”. Mesmo
no caso de Fernando e de outros informantes que relataram consumir vinho diariamente (aos
jantares), a presença da bebida à mesa parece atuar como uma espécie de sinalizador da
passagem simbólica entre o tempo do trabalho e o tempo do lazer (GUSFIELD, 1987),
passagem essa marcada sobretudo pela possibilidade da reunião da família à mesa
3
.
O vinho guarda, no entender desses consumidores, um caráter inerentemente festivo,
sendo com freqüência definido como “a bebida da confraternização”. Considera-se que ele,
mais do que qualquer outra bebida, é capaz de relaxar, de facilitar a conversa e de aproximar
as pessoas, sobretudo aquelas que já possuem algum tipo de afinidade. Sua valorização
nas degustações, como veremos no terceiro capítulo deste trabalho.
2
Não desconsideramos que existam situações específicas em que as bebidas alcoólicas adentrem o contexto de
trabalho, como almoços ou jantares de negócios, por exemplo. Mas por não ter sido explicitamente
mencionada por nenhum informante, e também por agregar outros valores e características, trata-se de uma
situação que não nos convêm considerar aqui.
3
Para uma discussão mais ampla sobre o consumo de bebidas alcoólicas como ação ritual de demarcação de
tempos e espaços na vida cotidiana, ver Gusfield, 1987.
45
repousa em grande parte na percepção desse potencial de integração social, que no entanto é
creditado muito menos aos efeitos fisiológicos do álcool do que a alguma propriedade
particular intrínseca ao vinho, que o torna bebida especialmente adequada ao ambiente da
casa, da família, da reunião entre amigos. “O vinho é um agregador!”, foi frase que escutei em
diferentes ocasiões, ao longo de todo o trabalho de campo.
É interessante observar que apenas dois informantes mencionaram o consumo solitário
da bebida. Edith contou-me que
às vezes eu chegava [em casa], na sexta-feira, não tinha aula à noite, e não ia sair
com a minha filha, nem ninguém, pra cinema ou teatro, e chegava e colocava um
cedezinho de música clássica, ou então ligava a tevê em algum programa, e a minha
meia-garrafa, um cálice, e pronto!
Vale destacar que ela costumava consumir vinho com grande freqüência em
restaurantes, boates e na Sociedade, sempre junto ao marido, também grande apreciador da
bebida; o consumo solitário vincula-se, segundo aponta seu relato, ao período da viuvez. Ela
apressou-se em destacar, entretanto, que tendo agora novo namorado, não está mais “tomando
vinho sozinha, graças a Deus!”.
O consumo solitário de vinho certamente guarda algumas conotações negativas. Ao
menos em parte isso se deve à idéia bem disseminada entre os degustadores de que “não há
nada mais triste do que beber um bom vinho sozinho”, conforme me explicou Ricardo. Ele
pode ser plenamente justificável, contudo, em um certo tipo de situação: quando aproximado
do modo de consumo que ocorre nas degustações, isto é, um consumo vagaroso,
extremamente moderado e, principalmente, pautado pela atenção plena àquilo que se bebe. Ao
descrever-me o seu consumo solitário das sextas-feiras, Edith contou que bebia não mais do
que “um calicezinho” e sempre bem devagar, buscando apreciar cada uma das propriedades
do vinho, “ficando”, como ela diz, “muito tempo no buquê...
4
”. A outra menção que ouvi à
situação similar foi feita por Ricardo, ao traçar uma aguda diferença entre o tipo de contato
com a bebida que tivera na infância (em casa, com a família, sempre em meio a refeições) e,
posteriormente, a partir da idade adulta, quando começou a “tomar vinho sozinho” ao mesmo
tempo em que aprendia a degustá-lo.
É importante observar que o reconhecimento de um caráter festivo no vinho, entre
esses consumidores, jamais se confunde com a valorização do exagero, da perda do controle
individual ou com a busca da inversão das normas sociais, como pode ocorrer com o consumo
de bebidas alcoólicas em determinadas circunstâncias ou culturas (FISCHLER, 2001). De par
com as idéias de festividade e agregação sempre vem a idéia de que o vinho, em oposição às
outras bebidas e também por alguma propriedade misteriosa que lhe é exclusiva, estimula a
moderação — mesmo em ocasiões que nada têm a ver com a prática da degustação. Como me
4
Segundo a literatura especializada, trata-se do conjunto de aromas mais complexos existentes apenas em
vinhos envelhecidos.
46
disse Otávio: “Por alguma razão, eu diria que o consumo de vinho meio que se auto limita,
dificilmente alguém passa de pouco mais de meia-garrafa. A pessoa fica meio alegre, mas
dificilmente passa disso”.
Opinião bastante semelhante expressou Júlio, ao me garantir que
em geral, quem bebe muito, não bebe vinho. Porque aí tu bebe cachaça, uísque ou
qualquer outra coisa. Não tem muito sentido por exemplo tomar muito vinho e ficar
bêbado. É muito difícil tu ver pessoa bêbada de vinho. A não ser que seja um cara
doente. Nas festas [da Sociedade] se toma bastante vinho mas eu nunca vi, em jantar
de autógrafo, jantar de aniversário, eu nunca vi alguém bêbado. O vinho não é uma
bebida, realmente, para se tomar em demasia, pela própria característica dele.
Porque tu precisa tomar muito para... claro, o vinho perto de uma cachaça, de um
uísque...
Esses comentários são significativos pois apontam para o que é o princípio norteador
do consumo “adequado” de vinho, tal como o entendem nossos informantes: vinho não é
bebida que se destine à promoção da bebedeira; vinho é bebida que se aprecia, e apreciar
implica, necessariamente, priorizar a preocupação com a qualidade, em detrimento da busca
da quantidade.
Convém esclarecer que embora, até o momento, tenhamos propositadamente falado
apenas no consumo de “vinho”, no singular, talvez fosse mais adequado passarmos a nos
referir ao consumo de “vinhos”, no plural: a percepção de que a palavra vinho corresponda a
uma categoria extremamente abrangente de variedades é uma das idéias centrais no
imaginário de nossos informantes. Considera-se que cada exemplar de vinho é dotado de uma
combinação singular de características (certos traços aromáticos, sabores, tonalidade etc.),
sendo essencialmente dessemelhante com relação a todos os outros. Grande parte do interesse
desses consumidores pelo vinho vincula-se ao interesse pelo desfrute dessa variedade, isto é,
pela experimentação de novas sensações gustativas, olfativas, visuais, a cada garrafa que se
abre.
A apreciação de um vinho, contudo, não se dá apenas pela pura experimentação.
Como me disse Ricardo, “existem muitas variedades de vinho. Então, tu tem que distinguir,
tem que saber o que está bebendo”. Parte considerável da satisfação vinculada ao consumo de
vinhos relaciona-se à busca do reconhecimento (tão preciso quanto possível) das propriedades
distintivas de cada exemplar e à concomitante avaliação dessas propriedades, a partir de
critérios e parâmetros específicos — o que corresponde, em poucas palavras, à apreciação de
sua qualidade.
Entre esses consumidores, beber vinhos jamais se dissocia, portanto, de um saber
beber, competência fundamentada tanto no exercício do autocontrole implicado na
valorização da moderação, quanto no exercício dessa habilidade discriminatória. Em última
instância, saber beber significa saber diferenciar os “bons vinhos” — aqueles que
47
efetivamente merecem ser consumidos porque atendem a certos padrões de exigência — dos
vinhos de menor qualidade
5
.
A importância concedida à esses aspectos expressa-se muito claramente na preferência
por ambientes de compra e consumo da bebida que ofereçam um razoável leque de escolhas,
acima de certo patamar de qualidade. Essas exigências presidem a seleção de um circuito de
lojas e restaurantes preferencialmente freqüentados.
No caso das lojas, nossos informantes optam, quase sempre, pelos estabelecimentos
especializados, quando não por realizar compras diretamente junto a importadoras – é preciso
mencionar que os vinhos importados dominam sua preferência, em detrimento dos nacionais.
Os supermercados são considerados os locais menos adequados para se adquirir vinhos não
apenas pela menor variedade com relação às duas opções anteriores, mas também pela
ausência de funcionários treinados para auxiliar o comprador na escolha
6
. Mesmo entre lojas
especializadas, há a preferência por aquelas que dispõem de atendentes mais capacitados a
fornecer orientação, como mencionou Júlio:
O fundamental numa loja de vinho é alguém que atenda e entenda de vinho,
porque... Em supermercado, eu não conheço um em Porto Alegre que tenha alguém
que atenda a área de vinhos e entenda de vinhos. Então, isso é fundamental, em
qualquer lugar do mundo tu vê lojas de vinho com caras muito entendidos, né,
porque o vinho tem que ter uma orientação, tem que alguém orientar, ainda mais se
o cara é completamente leigo. Mesmo não sendo leigo, a variedade é tão grande, e
tem tantos lançamentos, tantas novidades...
No caso de nossos informantes, podemos dizer, ao contrário do que acredita Júlio, que
a necessidade de alguma orientação não se dá apesar de eles não serem mais “leigos” em
termos de vinhos, mas exatamente pelo fato de não o serem, isto é, de já disporem de uma boa
quantidade de conhecimento quanto ao assunto e concederem grande importância às menores
diferenças que podem existir entre o conteúdo de uma garrafa ou de outra. De fato, comprar
vinhos é atividade dotada de enorme importância para esses consumidores, a ponto de o
processo de seleção e aquisição de cada nova garrafa configurar, para a maioria deles, um
verdadeiro hobbie.
5
Convém reforçar que, inserida no contexto sociocultural que mencionamos no capítulo anterior, esta cultura
de consumo circunscreve-se na preferência por vinho finos, estabelecida como patamar mínimo de qualidade
aceitável. Assim, quando mencionamos, ao longo de todo esses trabalho, o consumo de “vinhos” entre nossos
informantes, deve ficar subentendido (exceto quando explicitamente mencionado) que se trata de vinho fino,
não de vinho de mesa. Mesmo dentro da primeira categoria, não obstante, considera-se a existência de uma
inequívoca hierarquia de graus de qualidade (bem como uma variedade de tipos, definidos pela procedência e
por determinadas características), e é esta percepção o que desejamos destacar aqui.
6
No caso de alguns informantes, como Otávio, os supermercados são definidos como uma boa opção para a
compra de determinados vinhos, os exemplares “bons, mas não excepcionais” que ele adota no consumo
diário. Esta relativização põe em destaque o fato de que diferentes variedades de vinho, dotadas de diferentes
características e graus de qualidade, são consumidas também em diferentes tipos de ocasião. Embora bastante
significativo, este esquema classificatório não será analisado neste trabalho, não apenas porque extrapola os
objetivos do mesmo, mas também porque demandaria uma pesquisa mais específica.
48
Boa quantidade de tempo e esforço é empreendido na tarefa, que costuma envolver o
acionamento de diferentes fontes de informação (consultas a revistas especializadas
7
, guias de
compra, amigos enófilos e às anotações feitas durante as degustações, que também ajudam a
“orientar” as escolhas em meio à variedade disponível no mercado), além da freqüência
regular ao circuito de lojas mencionado e, por vezes, a viagem aos locais de produção de
determinados vinhos. O caso de Fernando talvez seja o mais extremo, uma vez que, “apenas
por lazer”, como frisa, ele abriu, há cerca de quinze anos, uma pequena importadora de
vinhos, para atender às suas demandas e às de seus amigos.
Tanto empenho encontra-se justificado (e ao mesmo tempo ajuda a justificar) pelo fato
de que os vinhos, mais do que uma bebida, são para esses consumidores também objetos
colecionáveis. Seu “consumo” não se restringe ao ato de bebê-los, mas tem início no próprio
processo de escolha e se estende ao longo de todo o período em que as garrafas são guardadas
(e, porque não dizer, exibidas, admiradas, comentadas) em casa. Quase todos os nossos
informantes possuem algum espaço em sua residência, em seu prédio ou em sua casa de
campo, para o armazenamento de seus exemplares prediletos.
O tamanho e a sofisticação do espaço varia com as preferências e com as condições
disponíveis a cada apreciador. Alguns deles gostam de estocar uma maior quantidade de
vinhos e/ou têm preferência por “vinhos de guarda”, isto é, que se prestam a uma “evolução”
8
dentro da garrafa e por isso podem permanecer estocados por longos anos. Em geral, são os
que dispõem de espaços maiores e adaptados à função (um refrigerador próprio para vinhos
ou, em alguns casos, todo um cômodo reservado à bebida), com prateleiras que permitem o
acondicionamento das garrafas deitadas, controle de temperatura e umidade e pouca entrada
de luz. Outros, reservam à bebida não mais do que um armário (em geral sem controle de
temperatura, mas acomodado em local arejado e protegido do calor) e são também os que
compram vinho em menor quantidade e dão preferência aos chamados vinhos “jovens” isto é,
que podem ser consumidos em pouco tempo, e não devem passar por um período longo de
armazenagem.
Em alguns casos, mais do que um simples espaço de estoque de bebidas, a adega é
construída (concreta e simbolicamente) também como um ambiente para se exibir e consumir
os vinhos adquiridos. A adega de Paulo é exemplar nesse sentido. Após nossa entrevista, ele
fez questão de me mostrá-la, levando-me a um amplo cômodo climatizado, construído sob a
garagem de sua casa, onde algumas dezenas de garrafas repousavam em uma grande estante,
projetada especialmente para elas, ocupando toda a extensão de um parede. Em frente à
7
Entre os periódicos mais citados estão o jornal Bon Vivant, a revista brasileira Vinho Magazine e a americana
Wine Spectator. Alguns consultam também a revista inglesa Decanter e a também americana Wine Advocate,
publicada pelo famoso (e influente) crítico de vinhos Robert Parker.
8
Segundo os degustadores e os livros especializados, certos vinhos possuem a potencialidade de modificar-se
quando guardado por longos período em garrafa, adquirindo novas (e melhores) propriedades organolépticas.
49
estante, um conjunto de mesa e cadeiras onde Paulo, segundo me contou, costuma reunir os
amigos.
Quanto aos restaurantes, a imagem cultivada dos estabelecimentos de Porto Alegre é,
de modo geral, a de ambientes inadequados para o consumo de vinho. Quase todos os
degustadores entrevistados reclamaram da escassa variedade oferecida nas cartas de bebida
(o que quer dizer, principalmente, escassa variedade de “bons” exemplares), bem como dos
preços abusivos cobrados pelos vinhos em grande parte dos estabelecimentos da capital
gaúcha. Uma alternativa eventualmente adotada para tentar contornar o inconveniente é levar
por conta própria os vinhos a serem consumidos nos restaurantes, mas a opção esbarra no
fato, também apontado, de muitos deles não aceitarem a prática ou cobrarem um valor muito
alto pela “rolha”
9
.
Em mais de um caso, o conflito entre o nível de exigência do consumidor e as
possibilidades e condições de consumo oferecidas nos espaços públicos foi apontado como
estímulo para que se passasse a sediar em casa os almoços ou jantares com amigos. Ana, por
exemplo, conta que sempre gostou muito de freqüentar restaurantes, mas
aqui [em Porto Alegre] a gente fica bem limitado [...] e depois que a gente comprou
adega, a gente começou a comprar vinho, começa a comprar, e aí você começa a
comprar coisas boas, tem toda a história da compra, que envolve aquele vinho, e aí
fica complicado ir para um restaurante, especialmente aqui em Porto Alegre, onde as
cartas, como diz o meu psicanalista, não são cartas, são rascunhos de vinhos. Isso eu
acho terrível. Então, que acontece, eu comecei a levar o vinho pros restaurantes. [...]
Então, a gente começou a levar e começamos muito a fazer o contrário. Já que a
gente tem adega, né, a gente chama um pessoal, encomenda um tele-entrega, e fica
em casa. E acaba não saindo.
Já Fernando foi um pouco além, e decidiu aprender a cozinhar para poder
“acompanhar”, em refeições em casa, seus vinhos prediletos:
Quando a minha esposa tem plantões na clínica eu cozinho. E eu gosto de ir para a
cozinha, é um bom lazer, é um bom hábito. Eu gosto, não me assusto com a cozinha.
[...] Inclusive, foi uma das coisa que eu aprendi para poder tomar os vinhos. Muitas
vezes tu vai ao restaurante e os vinhos são muito caros, tu vais escolher um vinho de
melhor qualidade, tu vai pagar muito caro. É complicado. Então, é melhor ficar em
casa e fazer uma comida para acompanhar o vinho. Eu tinha, agora parei um pouco,
mas aos sábados, uma vez por mês, em média, eu fazia um almoço, convidava três
amigos e a gente acompanhava os vinhos. O almoço era para acompanhar os
vinhos. Eu escolhia os vinhos que eu queria abrir e fazia os pratos de acordo com os
vinhos. E a gente sentava lá, sem pressa....
O comentário de Fernando põe em relevo a idéia de que quase sempre é o vinho o
elemento que ocupa o lugar de maior relevância à mesa. Por vezes pode ser ele o
determinante para que se jante em casa ou em um restaurante, ou se opte por um tipo de
comida ou outro. Mas isto não quer dizer que se conceda pouca atenção ao que se come. Pelo
contrário, entre nossos informantes, a valorização da competência expressa na noção do
saber beber ao mesmo tempo se confirma e se reforça no tipo de relação cultivada com a
9
Cobrar pela “rolha” significa cobrar do cliente uma taxa fixa que lhe permite consumir no estabelecimento
um vinho adquirido fora dele.
50
comida, baseada nos mesmos princípios da moderação, da valorização da variedade e do
reconhecimento da qualidade.
Como definiu Júlio, “sempre quem degusta vinho, em geral, gosta de comer bem”,
uma preocupação que, não obstante as reclamações mencionadas anteriormente, encontra
expressão na freqüência assídua a restaurantes, bem como na eleição da “boa comida” como
tópico de conversação recorrente, em meio às degustações. Algumas vezes (ao longo de
período em que estive em campo) os encontros de degustação no grupo que acompanhei
foram desmarcados e substituídos por encontros em restaurante, e em quase todas as sessões a
que estive presente escutei conversas em torno do agendamento de jantares para as semanas
seguintes, bem como trocas de opiniões sobre o cenário gastronômico da cidade qual o
melhor restaurante para se comer massas ou frutos do mar, em Porto Alegre, como o
restaurante “X” decaiu em qualidade e não merece mais ser freqüentado, se alguém já teve a
oportunidade de conhecer um estabelecimento recém-inaugurado ou prato novo oferecido por
determinado restaurante. Eventualmente, os degustadores também comparecem em conjunto a
eventos de gastronomia promovidos na cidade, uma oportunidade para se experimentar
“esses jantares bons”, como definiu Lígia, comandados por chefs de cozinha renomados
vindos de outros estados ou países.
Como meio, dizem, de se manter atualizados com relação às novidades no mercado,
experimentar novos exemplares e também de adquirir novas informações sobre vinho, alguns
de nossos informantes costumam participar com regularidade de lançamentos de novos
rótulos de vinho, promovidos por produtores e comerciantes, palestras sobre história do vinho
ou técnicas de produção, lançamento de livros, encontros de degustação organizados por lojas,
importadoras ou também por produtores, ou grandes acontecimentos que reúnem de uma só
vez todos esses elementos. A própria Sociedade costuma tanto promover grandes eventos, em
parceria com outras entidades do setor, quanto sediar os de pequeno porte.
Lígia, por exemplo, comentou com entusiasmo, durante nossa entrevista, sobre evento
do gênero de que havia participado poucos meses antes, em meados de 2005, na cidade de
Bento Gonçalves, na serra gaúcha:
Foi fantástico, o evento! Caríssimo, mas fantástico. Foi um evento de
primeiríssimo quilate. Ela [a organizadora] trouxe as melhores pessoas do Brasil
para falar sobre os vários temas. A degustação que o responsável da [vinícola] M.
Chandon fez foi uma coisa, assim, fantástica! Por que ele comparou um vinho de
confecção européia e o nosso latino-americano. E fez uma análise interessantíssima
desses vinhos.
Também a maioria de nossos informantes dedica-se com regularidade à leitura de
livros sobre vinho e dispõe de várias publicações em casa (alguns chegam mesmo a possuir
uma razoável biblioteca), fato que eu pude constatar ao realizar as entrevistas, pois certos
informantes fizeram questão de me apresentar suas coleções. Pelo que pude observar, estas
coleções se constituem basicamente de títulos sobre técnicas de degustação e história do
51
vinho, quase sempre recentes e amplamente conhecidos dentro do universo dos apreciadores,
além de alguns guias de compras e publicações sobre regiões produtoras específicas
10
.
Conversando sobre o tema, Otávio me chamou a atenção para a rica fonte de informações que
a Internet representa hoje, também para os enófilos. “Existem, inclusive”, destacou ele,
“confrarias de vinho na rede. As pessoas tomam o vinho nas suas casas, ao lado de
computador, e vão trocando impressões”. Ele mesmo costuma participar de duas listas de
discussão, uma das quais promove degustações virtuais, além de encontros “ao vivo” de
apreciadores.
A totalidade dos informantes consultados se não chega a planejar viagens com o
intuito exclusivo de conhecer locais de produção de vinho, em alguma ocasião já aproveitou
viagens com a família ou a trabalho para visitar quintas, bodegas e châteaux
11
. Fernando
contou que viaja com freqüência ao exterior a trabalho, e sempre procura ligar as viagens de
alguma maneira ao vinho. Nos últimos dez anos, também fez vários roteiros pautados
exclusivamente pelo universo de produção e consumo da bebida, especialmente na França.
Já Júlio garante que as suas viagens com a família, desde há alguns anos, “sempre têm
que ter alguma conotação com o vinho. Senão, nem viajo”, afirma. Sua relação com o vinho
mudou bastante a partir do momento em que entrou para a Sociedade, e o interesse pelo
turismo enológico, como me contou, guarda estreita relação com esse fato. Ele certamente não
é o único: a entrada na entidade representou um momento decisivo na trajetória de consumo
da maioria desses informantes. É Edith quem melhor exemplifica, no que tange às viagens, tal
transformação.
Ela conta que depois de terem entrado para a Sociedade, ela e o marido (hoje falecido)
começaram “também a fazer muitos passeios pra vinícolas, a se interessar, e depois, em uma
ocasião, fomos a Mendoza [região vinícola na Argentina] sozinhos”. A grande aventura,
entretanto, foi fazer uma viagem para a Europa “com um plano: fazer as regiões do vinho!”.
Tendo alugado um carro, ela, o marido e o filho (que “sempre foi da cerveja”) saíram de
Portugal, e seguiram pelo litoral
e aí fizemos a costa do sol toda e subimos pela Espanha, fazendo toda Rioja [...]
paramos em Logroño, ficamos lá três dias, visitamos Marquês, que é famosa pelo
[vinho] Marquês do Riscal, aí subimos e entramos por Bordeaux, nos hospedamos
em Bordeaux, e em Bordeaux nós fomos visitar o Château Margaux. [...]. E aí,
fizemos toda essa região, e fomos depois terminar em Champagne, a região de
Champagne, fomos a Reims, que tem ali todo o triângulo de Champagne, e essa
viagem foi com o objetivo de conhecer os vinhos.
10
Merece destaque o livro “Vinhos: degustação, elaboração e serviço”, de Adolfo Alberto Lona, que não
apenas se encontrava presente em todas as coleções observadas, mas foi mencionado por vários informantes
como “leitura obrigatória”. Enólogo argentino radicado no Brasil há mais de trinta anos, Lona é figura
bastante conhecida entre os membros da Sociedade, muitos deles “formados” em cursos de degustação
ministrados por ele no Rio Grande do Sul desde os anos 80. Em outubro de 2005, o enólogo comandou um
curso de degustação para iniciantes, na própria Sociedade.
11
Propriedades de produção vinícola.
52
Conversar com degustadores implica, quase sempre, escutar o relato de intensas e
variadas jornadas ao redor do globo. As mais prestigiadas regiões vinícolas da atualidade
12
foram pontos na trajetória de passeio de pelo menos um dos degustadores com os quais travei
contato, freqüentemente de vários deles, e escutá-los falar sobre elas me demandou trabalho
dobrado: enquanto transcrevia as fitas das entrevistas ou redigia o diário de campo, foi
inevitável ter de consultar mapas e guias de vinhos (quando não livros sobre história do
vinho), para tentar compreender o que poderia significar, para eles, a oportunidade de acesso a
cada um daqueles locais.
Essas viagens não se configuram, para esses consumidores, apenas como boas
oportunidades de compra direta da bebida; como disse Edith, elas são, essencialmente, um
outro meio de se “conhecer os vinhos”. Excursionar por regiões vinícolas permite a esses
consumidores testemunhar as condições específicas de produção de certos exemplares da
bebida, algo extremamente valorizado entre degustadores (e geralmente acessível apenas
pelos livros), uma vez que se considera que tais condições sejam determinantes das
características e da qualidade do que é consumido.
Mais do que isso, todo o processo de se entrar em contato com o local de origem de
um objeto de consumo tão intensamente valorizado como o vinho parece guardar, para esses
informantes, o caráter, quase, de uma experiência sagrada, e o simples fato de se ter estado em
certos locais, ter conversado com um enólogo, ter visto os parreirais ou entrado em uma
propriedade vinícola famosa (e poder contar em detalhes essa experiência), é uma fonte de
grande prestígio dentro do grupo. De fato, não escutei este tipo de relato apenas nas
entrevistas, mas principalmente durante as sessões de degustação. Quase sempre quando se
degustava um vinho proveniente de um local visitado por algum dos degustadores presentes,
este se encarregava de fornecer aos outros detalhes sobre a geografia local, sobre a arquitetura
da vinícola, a cordialidade (ou falta de) do proprietário ou do enólogo que o recebeu etc.
O turismo estritamente enológico não é, no entanto, opção preferencial de todos.
Otávio, um dos degustadores mais antigos, comenta que procura sempre conciliar, durante as
viagens, o interesse pelos vinhos com outros tipos de interesse, como a visita a pontos
turísticos e históricos. Ele garante que não é “dos que viajam só para o vinho”, pois uma tal
viagem ele consideraria “cansativa”.
Este panorama, composto por diferentes situações de consumo de vinho e de produtos
culturais a ele relacionados somente se completa com a consideração da participação regular
desses consumidores nas sessões de degustação. Como dissemos anteriormente, elas
constituem encontros semanais dedicados à prova e avaliação de vinhos, realizadas segundo
uma metodologia específica. Tal como as outras situações de consumo comentadas até aqui,
12
Por exemplo as regiões de Champagne, Bordeaux e Borgonha, na França, Rioja, na Espanha, Douro e
Alentejo em Portugal, Califórnia, nos Estados Unidos.
53
também as sessões são definidas pelos degustadores como “momentos de lazer”. Em grande
medida por ocorrerem sempre durante a semana e ao final do dia, elas são caracterizadas
pelos degustadores como contextos opostos ao do trabalho. Segundo comentou Fernando,
as sessões de degustação são uma fuga, vamos dizer, um momento de lazer, de
alegria, de qualidade, que eu tenho na semana. É uma fuga da minha atividade, para
conversar outro assunto, para ter outros companheiros. Nós somos de várias
profissões e a gente fala só sobre vinho.
Já Lígia, destaca que, mesmo fazendo parte de um grupo de degustação onde grande
parte das pessoas, como ela, “são do mundo acadêmico”, “[as degustações são] um momento
que não tem nada que ver com o acadêmico, é um momento, assim de relax.
A grande maioria deles apontou entre suas principais motivações para participar das
degustações, a dimensão social dos encontros, a possibilidade que eles oferecem de se
partilhar o vinho e conversar com pessoas agradáveis, com as quais, por vezes se estabelecem
“verdadeiras amizades”. Também nesse caso, o potencial agregador do vinho é invocado para
explicar o ambiente cordial e as boas relações estabelecidas entre os degustadores: como
definiu Edith, “nós não entramos na Sociedade para conhecer pessoas, nem para fazer
amizades, nós entramos por causa do vinho. Mas o vinho é um agregador. Depois, nós
continuamos a nos encontrar porque o vínculo humano é muito legal. E o vinho ele une muito
as pessoas”.
A fala de Edith aponta um aspecto fundamental: se o caráter de lazer, a interação
social e as amizades são fatores que conjuntamente contribuem na decisão de continuar
participando das sessões de degustação, o fator que pesou, para a grande maioria destes
informantes, como motivação central na decisão de entrar para a Sociedade (e segue como
motivação também central para a permanência na entidade) diz respeito a algo que, segundo
eles, apenas a dinâmica específica das degustações pode oferecer – a possibilidade de se
experimentar, todas as semanas, novos exemplares de vinho, e de realizar, em grupo, uma
análise detalhada das características de cada um deles, em meio a uma ampla troca de
informações sobre a bebida. Segundo explicou Marta,
a variedade de garrafas que a gente pode provar quando tem várias pessoas é maior.
Você não vai comprar três, quatro, para um pessoa. Mesma que tu seja autodidata,
que tu seja gourmet, tu não vai... Até porque estraga, mesmo, deixar aberta, tu pega,
três, quatro cepas diferentes para distinguir... [...] Então, tu mede, tu coloca e pode
provar uma maior variedade ou de cepas diferentes ou de países diferentes, tipos de
vinho diferentes, para ser didático. A pessoa sozinha tem que abrir três quatro
garrafas para poder comparar e isso não é viável.
As degustações representam, portanto (na ótica destes informantes), um importante
meio de se conhecer o que existe à disposição no mercado e, pela avaliação conjunta dos
exemplares realizada pelo grupo, afinar e refinar os seus valores com relação ao assunto.
Segundo declarou um de meus informantes, “entender de vinho é poder comparar”.
54
Para esses consumidores o contato com o vinho pauta-se pelo exercício de uma certa
competência, estreitamente vinculada às habilidades de reconhecer as diferenças nos vinhos e
saber avaliar suas características. Entretanto, devemos agora considerar que essas idéias, que
se encontram na base do uso social do vinho hoje encampado por esses consumidores – e na
base, portanto, da série de práticas de consumo que observamos até aqui — nem sempre
estiveram presentes para eles. A entrada na Sociedade, bem como a adoção da maioria destes
hábitos relacionados ao vinho — consumo diário da bebida, consulta regular a publicações
especializadas, realização de viagens de turismo enológico e manutenção de uma adega em
casa — constituíram, para esses consumidores, iniciativas significativas dentro de um
processo mais amplo de transformação na relação com a bebida. Em outras palavras, à medida
em que “saber beber” tornou-se um valor importante, passou-se a buscar uma nova postura de
consumo na adoção de certos hábitos e práticas.
Veremos agora como, segundo a percepção destas consumidores, se deu este processo
de mudança e quais as idéias e valores ligados a ela.
2.2 As trajetórias dos degustadores e o aprendizado sobre vinhos
Ao realizar a primeiras entrevistas com os degustadores da Sociedade, ainda em 2004,
despertou-me a atenção a maneira com que eles falavam de sua experiência como
consumidores de vinho: à minha pergunta sobre as motivações para entrar na Sociedade, a
quase totalidade deles respondeu lançando mão do relato de diferentes modos de consumo de
vinho experimentados ao longo de diferentes épocas de suas vidas. O mais interessante é que
todas essas narrativas buscavam organizar a experiência vivida de forma essencialmente
semelhante: como um encadeamento lógico e coerente das transformações nesses modos de
consumo, sempre em um sentido evolutivo, e tendo como marco fundamental uma
experiência crucial com relação ao vinho — um primeiro contato com práticas de degustação
e/ou com uma literatura especializada —, responsável por instaurar o processo de
transformação do (até então) mero consumidor eventual em algo essencialmente diferente
um degustador.
Ao realizar as entrevistas da segunda fase do trabalho de campo, passei a observar
mais diretamente o que essas construções narrativas recorrentes poderiam indicar sobre os
valores fundamentais vigentes no espaço social por onde circulam estes informantes.
Fundamentalmente, elas se ofereciam como uma outra via de acesso ao imaginário
relacionado às práticas de degustação, me permitindo conhecer dimensões menos acessíveis
pela observação durante as sessões: quais as portas de entrada no espaço social e simbólico da
degustação, como se dá o processo de formação do degustador enquanto um consumidor de
vinhos diferenciado, e as idéias fundamentais acionadas quanto a esta figura e quanto a seu
expoente maior — o conhecedor de vinhos.
55
Para isso, foi imprescindível ter em mente, conforme aponta Bourdieu (1998, p.185),
que a história de vida tomada como “o relato coerente de uma seqüência de acontecimentos
com significação e direção” funda-se em uma ilusão retórica, precisamente porque a trajetória
social de qualquer indivíduo — e, consequentemente, o(s) relato(s) produzido(s) para dar
conta dela — não existe como um todo fechado, dotado de um sentido próprio e imutável, que
possa ser rememorado e relatado sempre da mesma maneira. Pelo contrário, temos tantas
vidas quanto pontos de vista, tal como afirma Berger (1976, p.68), e “pelo menos em nossas
próprias consciências, o passado é maleável e flexível, modificando-se constantemente à
medida que nossa memória reinterpreta e re-explica o que acontece”.
Nesse processo de rememoração e seleção de fatos interferem ativamente os valores
em voga no mercado para o qual o discurso é construído. O discurso não se dá no vácuo, ele é
produzido não apenas por alguém, mas para alguém, num dado lugar e num dado momento
de sua trajetória social, o que vai configurar um certo horizonte de possibilidades. Nesse
sentido, seguimos a interpretação de Bourdieu (1998) de que “os acontecimentos biográficos
se definem como colocações e deslocamentos no espaço social, isto é, mais precisamente nos
diferentes estados sucessivos da estrutura da distribuição das diferentes espécies de capital
que estão em jogo no campo considerado.” Neste cenário, “o sentido dos movimentos que
conduzem de uma posição a outra [...] evidentemente se define na relação objetiva entre o
sentido e o valor, no momento considerado, dessas posições num espaço orientado”
(BOURDIEU, 1998, p.190). A cada novo movimento realizado pelo indivíduo dentro do
espaço social, no tempo presente, corresponderá uma reinterpretação de sua biografia passada
e um novo discurso que traga sentido a essa mudança.
Apresento a seguir trechos de quatro relatos emblemáticos que nos permitirão começar
a ilustrar o que vem sendo dito e dar continuidade à nossa análise
13
. Convém mencionar que
esses relatos foram ouvidos dentro do contexto de entrevistas individuais (à exceção da de
Ricardo, realizada em conjunto com a entrevista à Marta) e não-estruturadas, que tinham o
objetivo mais amplo de permitir uma conversa sobre os hábitos de consumo de vinho desses
informantes e sobre sua relação com a Sociedade (motivações para a entrada, tempo de
permanência, participação nas atividades etc.). A entrevista com Júlio foi realizada em sua
residência e todas as outras tiveram lugar nos ambientes de trabalho destes informantes.
Trajetória 1: Ricardo (52 anos, professor universitário).
Eu sou de uma família italiana, por tradição de família sempre teve vinho na refeição. Então,
desde que a gente é criança, eu buscava vinho com o meu pai, participava de colheitas de
13
Convém mencionar que tive como importante referência na realização da análise de trajetórias que se segue o
estudo sobre narrativas e trajetórias empreendido por Isabel Carvalho, em seu trabalho sobre a formação do
campo da educação ambiental, no Brasil (CARVALHO, 2001).
56
uva, às vezes, nas férias, visitava cantinas. Então, o cheiro do vinho, o cheiro de cantina, é
uma coisa que me é familiar. Depois, na adolescência, eu superei rapidamente a coisa da
cerveja e comecei a tomar vinho sozinho e isso evoluiu na direção de não só tomar vinho mas
começar a procurar alguma coisa a mais no vinho, ou seja, uma diferenciação de gosto, uma
diferenciação de qualidade e a busca de mais conhecimento.
Isso coincidiu num dado momento, quando eu já estava com 28 anos, com uma viagem de
cinco anos pela Europa, uma viagem de estudos, onde eu pude conhecer em profundidade,
durante cinco anos, os vinhos europeus. Voltando ao Brasil, eu continuei o estudo de vinhos
brasileiros, de alguma maneira organizada. Inclusive, coletando etiquetas, para ter uma
documentação. E isso continuou com mais um período nos EUA, de dois anos, conhecendo,
então, os vinhos da América do Norte. E voltando, o estudo continuou cada vez mais
organizado, gostos, qualidades, métodos de fabricação, viagens de estudo que nós
começamos a fazer pelo Chile e Argentina. Fora as viagens freqüentes para as regiões
produtoras aqui do Rio Grande do Sul.
E o aparecimento da Sociedade nesse assunto foi incidental, porque por alguma razão eu não
sabia que ela existia, embora eu tivesse um interesse muito anterior à própria existência da
Sociedade. Eu até fiz um curso de vinho, num dado momento, mas esse curso para mim foi
com a finalidade maior de uma certa divulgação de conhecimento e integração com outras
pessoas.
[...] Embora, nos primeiros vinte e cinco anos na atividade, eu não tenha feito nenhum curso
eu tinha um acompanhamento de literatura constante. Então, o conhecimento puramente
autodidata eu acho que seria problemático, porque realmente a coisa importante é tu saber o
que está bebendo e isso vem com a literatura.
Trajetória 2: Fernando (54 anos, professor universitário).
Bom, como bom brasileiro eu era consumidor de cerveja. Eu sou casado com uma
veterinária, [...] e o pai da minha esposa, o meu sogro, tinha o hábito de vinho. Tomava com
alguma regularidade vinho. E quando eu comecei a namorar a Ângela, eu comecei a tomar
vinho com mais freqüência, nos almoços familiares. [...]
E a partir desse momento, vamos dizer, foi o primeiro contato. Isso foi a partir de 76. Em 78
eu fui fazer doutorado na Alemanha. E na Alemanha é que realmente eu me aproximei do
vinho. Lá tem mais propaganda, tem uma cultura, vamos dizer, da mesa, não tão difundida,
mas... lá isso se tornou um hábito nosso, meu e da esposa, o vinho. E foi lá que eu comecei a
ler sobre vinho. Hoje eu tenho uma biblioteca... [...] Eu reuni uma boa biblioteca nesses
últimos meses, e desde 78. E eu tomo regularmente vinho. É difícil o dia em que eu não tomo
vinho. [...]
57
Quando eu voltei da Alemanha, eu fiz os cursos do [enólogo Adolfo] Lona. [...] Todo mundo
passou por eles. Ele tinha antigamente lá em Garibaldi, eu fazia parte da confraria, e faço
ainda, mas não sei como que está hoje, a [vinícola] De Lantier. Foi lá que eu fiz os primeiros
cursos, vamos dizer, bem organizados em termos de formato e tal. [...] Bom, pode dizer que
auxiliou, porque informa, dá uma direção no aspecto de avaliar o vinho e tal, mas isso, de
uma certa maneira, não talvez tão didática, eu já tivesse tido oportunidade de ter acesso a
esse tipo de informação. Mas o Lona contribuiu muito, eu acho, para que as pessoas
consumissem de forma mais esclarecida o vinho. O que mudou na realidade foi o interesse
que eu tinha pelo vinho e a procura pela informação.
Trajetória 3: Ana (32 anos, advogada).
Olha, a iniciação do vinho, eu posso dizer... não tenho ligação com família, assim digamos...
meus pais, não obstante meu pai tomar o vinho, algum coisa assim, mas é... de uma forma
assim mais simples, assim, sem nenhum interesse, pelo menos que tenha nos passado, no
sentido de estudar e tal. Mas, na verdade, foi ainda quando eu morava em Florianópolis,
porque nós tínhamos um grupo de pessoas, primeiro uma pessoa com quem eu trabalhei, que
a gente fazia jantar e normalmente nesses jantares... o foco era o jantar, não a bebida, né,
então, se levava para acompanhar e tal... Mas também no escritório que eu trabalhei lá, tinha
uns outros advogados que faziam também o jantar mas que se preocupavam muito com o
vinho, também. E a partir de lá, digamos, eu comecei a tomar e eventualmente, assim, a
conversar sobre vinho, e gostar de saber. [...]
Aí, lá em São Paulo, como eu ia muito a restaurante, essas coisas, eu comecei também a me
interessar. E uma vez uma amiga minha ia fazer um curso na SBAV, lá em São Paulo e, “tu
não quer fazer o curso?” [...] Aí eu fiz o curso lá na SBAV, em São Paulo. Digamos, a partir
do momento que a gente começa a entender um pouco e a entrar em contato, você vai se
interessando mais em falar a respeito, com essa minha amiga eu falava muito... você já se
preocupa em relação a comida e lá pelas tantas você... aí eu já comecei a ver que era difícil
você acompanhar a comida com outra coisa que não fosse vinho, fica mais complicado, por
exemplo, com refrigerante, essas coisas, cerveja... Fui começando a gostar. [...]
[Alguns anos depois, há cerca de três ou quatro anos, quando Ana já morava em Porto Alegre]
...nós íamos fazer uma viagem para o Chile, mais ou menos na mesma época. E nessa viagem
eu queria visitar algumas regiões vinícolas [...]. Na época, eu mandei um e-mail, daí descobri
o contato do presidente da Sociedade aqui em Porto Alegre e mandei um e-mail pra ele
perguntando se ele tinha alguma dica de alguma vinícola... porque não era necessariamente
uma viagem só sobre vinhos, era uma viagem a passeio, turística, mas que eu gostaria de
incluir alguns momentos... Aí ele me respondeu, me deu algumas dicas [...] e perguntou se eu
não tinha interesse de participar de um grupo de degustação, que aqui funcionava. [...] Aí,
58
eu entrei e assim fui muito... achei legal, interessante, e me empolguei muito porque, para
mim, os melhores hobbies são aqueles onde você consegue aprender.
Trajetória 4: Júlio (70 anos, professor universitário aposentado).
Eu sempre tomava socialmente, sem dar muita importância ao vinho, né. E a partir de mais
ou menos 94, 95, um colega meu lá da engenharia sugeriu tirar o curso do [enólogo Adolfo]
Lona em Garibaldi, na [vinícola] De Lantier. Aí fomos eu e a Lígia [esposa]. Realmente o
curso foi uma abertura porque foi a primeira vez que... ele fazia uma apresentação... um
treinamento de degustação. No dia seguinte, se tomava vinho às cegas, os anteriores, que se
tinha tomado no dia anterior. E realmente foi uma coisa muito interessante. [...]
E depois, um ou dois anos depois, o Henrique, que é do nosso grupo, eles estavam abrindo
um novo grupo na Sociedade, e nos convidou, a mim e à Lígia. Bom, com relação a vinho a
Sociedade realmente foi uma absoluta revolução na minha vida, porque aí, então, comecei a
ler, comecei a me interessar.
O relato de Ricardo é provavelmente o mais explícito de todos os depoimentos
ouvidos quanto ao sentido evolutivo atribuído à trajetória pessoal pregressa, sob a perspectiva
do consumo de vinhos. Muito claramente, ele descreve um processo de formação que o
trouxe à sua atual condição de degustador, mediante a articulação de períodos caracterizados
por contextos de consumo e, sobretudo, expectativas com relação à bebida, essencialmente
diferenciados. De modo mais ou menos claro, a mesma estrutura marca todos os relatos, e é a
sua lógica o que primeiramente gostaríamos de destacar aqui: a idéia de que o consumo ao
longo de um período possa ser reapropriado e definido como um processo de aprendizado é
altamente significativa.
Quase todos os nossos informantes destacam o fato de terem começado a consumir
vinhos muito antes de desenvolverem um “interesse” maior por eles, para usar o termo
empregado por Ana. Em dois dos relatos citados isto aparece de modo claro: embora ambos
os informantes relatem terem começado a tomar vinho ainda na infância, por influência da
família, o que dotou-os de uma certa “familiaridade” com relação à bebida (no caso de
Ricardo não devemos desconsiderar a associação desta familiaridade precoce a uma
identidade e uma tradição italianas
14
), esta não se confunde com a postura que seria adotada
com relação ao vinho mais tarde. Como esclarece Ricardo, de início apenas “tomava-se
14
Nas conversas com os informantes desta pesquisa, bem como com outros consumidores gaúchos,
descendentes ou não de italianos, foi possível observar o quanto o consumo de vinho é, ainda hoje,
marcadamente associado a uma herança italiana, vinculada à colonização que teve início na segunda metade
do século XIX e promoveu a consolidação da produção de vinhos no Rio Grande do Sul e no país.
59
vinho”, mais tarde passa-se a “procurar alguma coisa a mais nele, uma diferenciação de gosto,
uma diferenciação de qualidade e a busca de mais conhecimento”.
A diferença entre um modo e outro de consumo é postulada exatamente da mesma
forma no caso dos informantes — que correspondem à maioria nesta pesquisa — que
começaram a consumir vinho já na idade adulta, e em cujas trajetórias o intervalo de tempo
entre o começar a beber e o começar a “procurar alguma coisa a mais” é significativamente
menor. O que todos eles buscam destacar em seus relatos, é que, em algum ponto de suas
trajetórias, começaram a perceber o vinho de modo inteiramente diferente e a partir de então
viram seus contextos, modos e locais de consumo modificarem-se. Vemos, portanto, que na
retomada da vivência realizada pela construção narrativa desses informantes, não é tanto o
momento do primeiro contato com o vinho, ou mesmo o início de um consumo mais regular,
o que apresenta maior significação, mas o momento em se passa a consumi-lo de modo mais
“esclarecido” (nas palavras de Fernando), isto é, mediado por conhecimentos específicos e
pela prática da degustação.
É interessante observar que, do ponto de vista em que se situam hoje estes
consumidores, mais do que simplesmente uma opção, começar a consumir vinho mediante o
acompanhamento de informações especializadas significa perfazer o que é considerado o
“caminho natural” do enófilo — ou, ao menos, de um certo tipo de enófilo, aquele concebido
como o apreciador “legítimo”, segundo as representações desses informantes. Como disse
Otávio, “a gente começa a tomar vinho esporadicamente, aí lê alguma coisa sobre vinhos ou
conversa com alguém que conhece um pouco mais de vinho e aí começa a se interessar e
procura se informar um pouco mais”.
O que varia ao longo deste “caminho natural” — e não configura fator desprovido de
importância — são os momentos e as vias pelas quais se empreende esta busca de informação.
Os relatos de Ricardo e Fernando, Júlio e Ana não foram selecionados por acaso; mais de
vinte anos separa os momentos de “iniciação” no consumo informado de vinho de cada um
dos pares. São vinte anos que, como pudemos vislumbrar no primeiro capítulo deste trabalho,
representam um importante período na difusão de informações sobre vinho no Brasil, com a
consolidação da presença da bebida na mídia, a disseminação de cursos de degustação e
congregações de enófilos, a publicação de livros especializados, etc.
Ricardo e Fernando são integrantes do que podemos considerar como uma primeira
geração de degustadores de vinho brasileiros não diretamente ligados à indústria; seus
percursos talvez possam ser tomados como emblemáticos da trajetória de outros apreciadores
de vinho que começaram a se embrenhar nesta nova cultura, naquele mesmo momento, entre
fins da década setenta e início da década de oitenta. Entre nossos informantes, Otávio e Guida
têm trajetórias semelhantes. Vale destacar também que tanto Ricardo quanto Fernando, mas
sobretudo este último, me foram apontados por outros membros da Sociedade como grandes
60
“entendedores”, ou “conhecedores” de vinhos, dentro do universo da entidade, e certamente a
antigüidade de seu conhecimento (bem como o fato de terem se tornado degustadores de
modo autodidata) tem peso com relação a isso.
No caso de ambos, a via pela qual se dá a transformação nas práticas e representações
sobre o consumo de vinhos são períodos de vivência na Europa. Segundo põem em destaque
seus depoimentos, essas viagens permitiram a eles ao mesmo tempo travar contato com
vinhos diferenciados com relação aos que conheciam no Brasil e com uma boa quantidade de
informação bibliográfica especializada. Fernando lembra que a literatura sobre vinhos então
disponível no Brasil era ainda muito reduzida, e o local mais próximo daqui para consegui-la
era Buenos Aires.
Essas viagens são recuperadas nas narrativas como uma espécie de período liminar
15
dentro de um longo rito de passagem para o universo da degustação, que se completa somente
com o retorno ao Brasil. É a partir dessas viagens que o vinho passa a ser tomado também
como um objeto de estudo, e esses dois informantes passam a se valer de expedientes como
colecionar etiquetas, anotar sabores, qualidades e métodos de fabricação dos exemplares
provados, e a realizar outras viagens direcionadas a regiões produtoras e importantes centros
de consumo da bebida.
Tanto Ricardo quanto Fernando comentaram que chegaram a fazer cursos de
degustação tempos depois de terem retornado de suas viagens, ao Brasil (pelo menos no caso
do último, já na década de 90). Mas em ambos os depoimentos, essa passagem específica se
configura menos como uma continuidade do processo de aprendizagem sobre os vinhos
iniciado na Europa, do que como uma possibilidade de enquadramento de uma experiência e,
principalmente, de uma bagagem de conhecimento anterior, adquirida de modo autônomo, em
um novo contexto. Ambos destacam que no momento de realização dos cursos, já tinham tido
acesso ao mesmo tipo de informação apresentado neles, e que, portanto, eles representaram
muito mais a possibilidade de “sistematizar” esse conhecimento, como define Fernando, ou de
“divulgá-lo” entre outras pessoas e “integrar-se com outros apreciadores”, como justifica
Ricardo.
A entrada na Sociedade, ocorrida ainda mais recentemente (há dez anos, no caso de
Fernando, e há cerca de dois, no caso de Ricardo) parece ter obedecido, inicialmente, aos
mesmos princípios. Ricardo destaca que “o aparecimento da Sociedade nesse assunto foi
incidental, porque por alguma razão eu não sabia que ela existia, embora eu tivesse um
interesse [na degustação de vinhos] muito anterior à própria existência da Sociedade”. Não
obstante, ambos destacam sua importância atual em termo de treinamento e aprendizado.
15
Entendemos aqui o conceito de liminaridade segundo a definição de Victor Turner (1974), isto é, como uma
fase intermediária dos ritos de passagem, caracterizada pela ambigüidade e indeterminação de seus valores e
normas — já afastados dos valores e normas da fase anterior, mas ainda não totalmente identificados com
aqueles que irão pautar a ordem simbólica seguinte.
61
Em relação a Ricardo e Fernando, Ana e Júlio pertencem a uma nova geração de
degustadores, que adentrou o universo da degustação a partir de meados dos anos 90, em meio
a uma já ampla oferta de vias de acesso às suas técnicas específicas. A principal delas
certamente são os cursos de degustação, como os oferecidos regularmente pela Associação
Brasileira de Sommeliers (no Rio de Janeiro e em São Paulo) e pela Sociedade Brasileira de
Amigos do Vinho (em São Paulo), as duas mais importantes instituições de congregação de
enófilos e de disseminação de informação sobre vinhos no país. Assim como Ana e Júlio,
Lígia, Paulo e Marta também se inseriram no universo da degustação por meio desses cursos,
quase sempre incentivados por amigos que já o tinham feito ou desejavam fazer.
Como apontam as descrições destes informantes e a minha própria experiência em um
curso do gênero (ver Introdução), estes cursos, essencialmente colocam os aspirantes a
degustadores em contato com uma seleção de exemplares de vinho considerados
representativos de certos tipos (isto é de certos conjuntos de propriedades), ao mesmo tempo
em que ensinam quais são e como podem ser percebidas essas propriedades a partir das quais
os vinhos devem ser avaliados (“tonalidade”, “transparência”, “intensidade aromática” etc.) e
fornecem alguns parâmetros para essa avaliação (a tonalidade x ou y indica que o vinho é
jovem, a propriedade w é um indício de qualidade etc.). De modo geral, eles podem ser
considerados como uma espécie de atalho para o conhecimento mais aprofundado de vinhos,
condensando, formatando e apresentando didaticamente aquilo que apreciadores como
Ricardo e Fernando levaram anos para experienciar. Essa percepção aparece, inclusive, de
modo bastante claro no depoimento deste último.
Nos depoimentos de Ana e Júlio são, portanto, os cursos de degustação os momentos
repensados hoje como ritos de passagem. Júlio, o mais entusiasmado dos degustadores ao me
relatar sua trajetória, chega a definir a passagem pelo curso como um momento de “abertura”
quanto à sua relação com o vinho. Em ambos os casos, a entrada na Sociedade é
responsabilizada pelo aprofundamento do “interesse” pela bebida, inscrevendo-se como
movimento fundamental de continuidade do processo educativo iniciado pelo curso.
É interessante destacar que, pelo fato de a maioria dos degustadores com quem
conversei já contar pelo menos alguns anos de estrada no assunto, defende-se que só o
conhecimento adquirido em cursos não é suficiente para se chegar realmente a “saber beber”.
O aprendizado no tema é definido como um processo longo, que se constrói tanto na
aquisição de conhecimentos objetivos (como viemos destacando), quanto no treinamento
contínuo do paladar e do olfato, e o ambiente das degustações é justamente o espaço
privilegiado para ambos. Segundo Edith,
a gente aprende bastante. Aprende e está sempre aprendendo. E eu acho que eu não
sei nada. Apesar de estar sempre aprendendo. Porque é tão grande o universo, e tem
tantas informações, e vem sendo tão atualizado, que eu tenho a sensação de que eu
não sei nada. Claro, dentro do tempo, eu sei hoje mais do que eu sabia na década de
70, que eu não sabia absolutamente nada! [Risos]. Mas, eu sei nada em relação a
62
tudo o que eu preciso saber, entende? E eu vejo nas reuniões, também, eu encontro
muita novidade em tudo. E isso é que também me prende na Sociedade. Porque se
eu não encontrasse, assim, uma perspectiva de crescer, eu já teria saído.
Voltaremos à questão do treinamento dos sentidos mais adiante, neste trabalho
(Capítulo 3). No momento, interessa-nos destacar dois aspectos. Em primeiro lugar, o galgar
de degraus nesse caminho de aprendizado deve representar, segundo propõem os informantes
em seus relatos, também o avanço progressivo em um “caminho natural” de refinamento das
preferências individuais. Assim, considera-se “natural” que um consumidor se inicie pela
preferência aos vinhos mais “honestos” (populares) ou a outras bebidas, como a cerveja, e
evolua (mediante o aprendizado consciente) até passar a “preferir” os vinhos considerados “de
maior qualidade”. Essa “educação” do gosto (que pode ser entendido no duplo sentido, tanto
como paladar, quanto como faculdade de discernimento estético) é postulada, hoje, não
apenas como possível (e acessível a qualquer um, mediante a passagem por uma das vias de
acesso hoje disponíveis), mas como fundamental.
Em segundo lugar, essa evolução nas preferências, percebida como a responsável por
toda a mudança de hábitos com relação ao vinho (e, em parte também com relação à comida,
ao menos no que concerne ao “comer fora”) é exatamente por isso tomada como um símbolo
representativo do estilo de vida hoje encampado pelo grupo — estilo de vida não por acaso
definido por alguns de nossos informantes como um “saber viver”.
Assim, a freqüência de um certo circuito de restaurantes, lojas e eventos na cidade, a
manutenção de uma adega em casa ou as viagens a determinados regiões vinícolas no país ou
no exterior, mais do que simplesmente meios de se obter boas compras ou experimentar novos
exemplares de vinho, estocar garrafas adequadamente ou adquirir informações sobre a bebida,
são fonte de prestígio e satisfação pessoal em meio ao grupo, em grande parte pelo que
representam quanto à adesão a determinadas preferências e modos de consumo e, logo, a um
estilo de vida particular. Para retomar a já citada expressão de Flandrin (1991, p.273), essas
práticas denotam uma “afinidade de cultura, de maneiras e de gostos” que reforça os laços e
ajuda a definir os limites deste grupo de pessoas, para além do pertencimento à Sociedade.
Podemos compreender melhor o que vem sendo dito a partir do comentário de
Featherstone (1995, p.119), para quem a idéia de “estilo de vida”, atualmente tão em voga,
conota, no âmbito da cultura contemporânea,
individualidade, auto-expressão e uma consciência de si estilizada. O corpo, as
roupas, o discurso, os entretenimentos de lazer, as preferências de comida e bebida,
a casa, o carro, a opção de férias etc. de um pessoa são vistos como indicadores da
individualidade do gosto e do senso de estilo do proprietário/consumidor.
Nesta postura parece clara a percepção da função comunicativa que pode ser alcançada
pela exibição dos bens e das experiências de consumo. É em função dela que se busca, de
modo refletido, compor um padrão de escolhas e preferências que possa ser interpretado pelas
outras pessoas como o indício de um “senso de estilo” particular. Estamos falando, portanto,
63
de estilos de vida compostos não pela tradição ou pelo hábito, mas erigidos como “projetos de
vida” (FEATHERSTONE, 1995, p.123) a partir de uma preocupação com a expressão da
individualidade e dos próprios gostos, e também da percepção da possibilidade de auto-
aperfeiçoamento aberta pela renovação constante das possibilidades de escolha oferecidas
pelo mercado
16
.
A questão do aprendizado tem, nesse cenário apontado por Featherstone, um papel
fundamental. Se por um lado é percebida, na atualidade, uma oferta de mercadorias em
constante renovação — o que dá a ilusão da completa trocabilidade dos bens e do acesso
irrestrito a eles (APPADURAI, 1986, p.25) — por outro, permanece a percepção (ao menos
por certos grupos de consumidores) de que certos bens demandam um conhecimento
específico de princípios de classificação e adequação, e, logo, demandam um investimento na
aquisição de uma competência para seu consumo. Não é de outra coisa que estamos falando
ao nos referirmos à preocupação dos degustadores com a questão da “qualidade”.
Devemos aqui considerar, contudo, que não são os bens (no caso, os vinhos) que
demandam uma competência específica para seu uso; são os consumidores que os investem
desse valor, a partir de seus esquemas de percepção, apreciação e ação próprios. Nesse
sentido, devemos considerar a preocupação com o aperfeiçoamento do gosto, com a aquisição
de uma competência específica para lidar com as escolhas, e, em última instância, com a
construção de um estilo de vida distintivo caracterizado por ambos, como disposições
características de um habitus partilhado pelo grupo. Entendido aqui como um princípio
gerador que encontra-se na base do sistema de práticas, preferências e classificações de um
grupo de pessoas (BOURDIEU, 1984), o habitus encontra-se também na base de toda uma
relação particular dessas pessoas com o mundo social. Expressas, segundo observamos aqui,
nas práticas e preferências ligadas ao vinho e ao “comer bem”, tais disposições certamente
não se esgotam nelas.
Por outro lado, sendo fruto de certas condições objetivas de existência, devemos
entender que o habitus gera esquemas de percepção e apreciação que são também produto
destas mesmas condições (ou possibilidades) (BOURDIEU, 1984). Em outras palavras, a
importância concedida à questão do aprendizado, entre nossos informantes, só pode tornar-se
uma disposição porque eles dispõem das condições necessárias ao investimento de longo
prazo na aquisição de capital cultural, demandado pelo processo de aprendizado
17
.
16
Podemos também pensar o caso dos degustadores de vinho à partir da perspectiva teórica proposta por
Gilberto Velho (1981, 1994). A adoção de um estilo de vida particular pelos degustadores corresponderia,
assim, a um projeto elaborado e construído dentro de um certo campo de possibilidades, isto é, dentro de um
contexto histórico específico e “em função de experiências socioculturais, de um código, de vivências e
interações interpretadas ” (VELHO, 1981, p.26).
17
Esse vínculo entre o estabelecimento de seu atual estilo de vida e certas condições objetivas, não escapa,
inclusive, à percepção de certos informantes, que mencionaram a necessidade de se contar com
disponibilidade financeira e de tempo, além de um certo “lastro cultural”, para poder manter a atividade da
degustação.
64
A seguir, trataremos mais especificamente do espaço e da dinâmica das degustações,
tendo por objetivo descrever e analisar as práticas e valores envolvidos nesse ritual.
65
66
3 O RITUAL DAS DEGUSTAÇÕES
Segundo destaca Wilson (2005), locais públicos de consumo de bebidas alcoólicas
podem ser significativos sob dois aspectos. Em primeiro lugar, por serem locações onde
outros comportamentos significativos, não diretamente relacionados com a bebida,
usualmente ocorrem. Podemos pensar nos debates sobre política, no estabelecimento de redes
de contatos profissionais, nas discussões sobre esportes — muitas vezes, ocorridas enquanto
se assiste a jogos na televisão do local — e nas paqueras. Em segundo lugar, porque
freqüentemente são espaços dotados de “regras e dimensões próprias de funcionamento, as
quais podem servir como indicadores de estruturas e ações que são significantes dentro de
suas fronteiras” (WILSON, 2005, p.14, tradução nossa). É precisamente este segundo aspecto
o que nos interessa aqui.
Já tivemos oportunidade de comentar algumas das regras que regem a Sociedade e, por
extensão, os grupos de degustação (ver Introdução). Vimos que ela pode ser definida como
um espaço social relativamente fechado, isto é, acessível à circulação apenas de apreciadores
de vinho “convidados” por algum de seus membros, e que devem ser admitidos por todo o
grupo por meio de um processo em que pesa bastante a afinidade pessoal (ou “empatia”).
A participação nas sessões, por sua vez, demanda dos degustadores a conformidade a
um conjunto de normas estabelecidas no estatuto da entidade, as quais determinam tanto os
direitos e deveres de cada membro com relação à Sociedade, quanto alguns parâmetros do que
seja um comportamento adequado em meio aos encontros (os debates de questões ideológicas,
políticas ou religiosas, como mencionado, são explicitamente vetados). Embora não seja
definido no estatuto, um conhecimento mínimo das técnicas de degustação certamente figura
também como requisito básico, a ser avaliado durante o processo de aceitação do novo
membro.
Grande parte das regras que regem as sessões, não obstante, são regras implícitas. Elas
fundamentam-se na adesão dos degustadores a determinadas idéias e valores que, conquanto
expressos nas escolhas, gestos e códigos de conduta específicos adotados com relação à
apreciação do vinho, não vigoram apenas neste contexto, estando na base de toda a relação
dessas pessoas com o mundo social. A questão da “empatia” buscada entre os membros
antigos e os novos membros da Sociedade, certamente relaciona-se à adesão (ou não) a esses
valores. É essa adesão o que permite que os encontros sigam sendo regularmente realizados, e
sempre dentro de um mesmo padrão, isto é, por meio de um conjunto de atos formalizados.
Assim, podemos definir as sessões de degustação como rituais, tendo por base a
perspectiva teórica proposta por Martine Segalen (2000). Segundo esta autora, os rituais se
caracterizam essencialmente por constituir um conjunto de atos relativamente codificados,
repetitivos, fundados em um determinado suporte corporal e portadores de forte carga
67
simbólica. Dados sempre em uma configuração espaço-temporal específica, eles também se
fundamentam pelo recurso a determinados objetos e a sinais emblemáticos codificados cujo
sentido é partilhado pelo grupo. Principalmente, sua realização exige e fundamenta-se na
adesão mental de cada um dos membros do grupo a “valores relativos de escolhas sociais
tidas como importantes e cuja eficácia esperada não mostra uma lógica puramente empírica
que se esgotaria na instrumentalidade técnica da ligação causa-efeito.” (SEGALEN, 2000,
p.23).
A perspectiva proposta por esta autora nos é útil em grande parte porque deriva de
uma preocupação explícita em cunhar, a partir da consideração da diversidade de posições
teóricas existente na tradição antropológica, uma definição que permita o enquadramento e a
análise de rituais contemporâneos, dados nas sociedades complexas. Como Segalen destaca,
trata-se de uma definição que estende a idéia de ritual para além do campo religioso, ao
mesmo tempo em que busca reter critérios morfológicos e pôr em relevo a questão da eficácia
simbólica. (SEGALEN, 2000, p.23).
Apresentaremos a seguir a descrição dos rituais de degustação. Cabe dizer que,
embora tenhamos participado de degustações em mais de um grupo da Sociedade e, como já
mencionado, as dinâmicas nos diferentes grupos apresentem variações, na descrição e análise
que seguem nos basearemos na estrutura do ritual do grupo acompanhado mais
sistematicamente.
3.1 O espaço das degustações
Antes de iniciarmos a análise mais detalhada das sessões de degustação, convém
apresentar uma breve descrição do espaço em que elas ocorrem, para que possamos, na
seqüência, debruçar- nos sobre os atos simbólicos que a compõem.
Como comentado anteriormente, as sessões ocorrem sempre no espaço da sede da
Sociedade. Esta encontra-se atualmente instalada em imóvel alugado na cobertura de um
prédio de três pavimentos, na esquina de uma rua movimentada, em um bairro residencial de
Porto Alegre. Ela se constitui basicamente de uma sala de cerca de 30 m², uma ampla varanda
em “L” protegida por portas de vidro; cercando esta sala em dois de seus lados, há uma
pequena cozinha anexa à sala, e um lavabo.
Dominando o ambiente principal há uma grande mesa retangular, com tampo de
fórmica branca, posicionada bem ao centro e circundada por catorze cadeiras de espaldar alto.
À primeira vista, parece tratar-se de uma única mesa, mas na realidade são diversas mesas
retangulares pequeninas, de dois lugares cada, que podem ser dispostas tanto em fileiras, à
maneira de uma sala de aulas e para os propósitos de cursos ou palestras (como presenciei
certa vez), quanto, o que é mais usual, conformar uma única grande mesa, para as práticas de
68
degustação. Ao entrar na sala, este conjunto é o primeiro elemento que captura o olhar do
visitante.
Figura 1: Planta baixa da Sociedade Brasileira de Amigos do Vinho, SBAV-RS. Desenho da autora.
Geralmente encontrada pelos degustadores já previamente preparada para a sessão (há
um funcionário encarregado dessa tarefa, bem como da arrumação e limpeza do lugar, no dia
seguinte aos encontros), a mesa chama a atenção por aquilo que comporta: uma quantidade de
taças de cristal que ultrapassa em muito o número de participantes aguardado para cada
evento, ou mesmo o número de lugares à mesa — há sempre cerca de seis taças de vinho
dispostas em fileira ou semicírculo à frente de cada cadeira, além de uma taça menor, para a
água. Um prato pequeno, com um garfo e uma faca cruzados sobre ele, um guardanapo de
papel e um serviço americano de plástico completam a composição.
De frente para esta mesa e ocupando quase toda a parede ao lado da entrada da
cozinha, encontra-se o que provavelmente é o segundo elemento simbolicamente mais
importante do ambiente: um armário de madeira com portas de correr em madeira e vidro,
69
onde se exibe a coleção de publicações sobre vinho que pertenceu à famosa enófila gaúcha
Isolda Holmer Paes
1
(em honra de quem o acervo foi nomeado) e hoje constitui a biblioteca
da instituição.
Fui “apresentada” à essa biblioteca por diferentes degustadores, a cada vez que
chegava para a reunião de um determinado grupo ou para um evento na sede. Recém
adquirida na época em que iniciei o campo, ela já se constituía como motivo de prestígio para
a Sociedade, sendo definida por seus membros como “uma das melhores bibliotecas sobre
vinhos reunidas no país”. Os livros encontram-se distribuídos em três níveis de prateleiras,
classificados por meio de pequenas placas presas a cada uma delas, indicando a temática das
obras: “uvas”, regiões produtoras (“França”, “Itália” etc.), “História”, “gastronomia”, “obras
de referência”
2
.
Ao fundo da sala há uma bancada, com armário em sua parte inferior, onde são
guardadas as taças de degustação, documentos e papéis em geral. Em um dos cantos da
bancada há uma pequena coleção de garrafas de vinhos, resultante da antiga prática de
solicitar aos novos sócios uma contribuição para a enoteca da sociedade.
Não há muitos objetos pendurados nas paredes, mas os poucos existentes são bastante
representativos. No espaço da parede entre a biblioteca e a porta de entrada há um grande e
colorido pôster intitulado “Descriptores aromáticos” (segundo me informaram, de origem
argentina). Antes mesmo que tivesse tido a oportunidade de visitar a sede da Sociedade, já
havia ouvido, durante as primeiras entrevistas, descrições dos informantes quanto a esse
quadro, em sua tentativa de explicar-me alguns aspectos das degustações. Ele apresenta uma
ilustração de 54 taças de vinho contendo, cada uma, ao invés da bebida um tipo de fruta,
vegetal, flor, especiaria ou mineral. Segundo explica a legenda, esses elementos representam
54 dos mais de 150 aromas e sabores que podem ser percebidos nos vinhos e assim, vemos
taças cheias de rosas, trufas, favas de baunilha, folhas de repolho, figos secos, eucalipto,
barras de chocolate, cerejas, castanhas, framboesa, fatias de pão tostado, sementes de
cardamomo, grãos de café, folhas secas, aspargos e pedras (para ficar em apenas alguns
exemplos). A escolha deste pôster não é fortuita: a ilustração que ele veicula expressa o
aspecto mais valorizado de uma das etapas mais importantes da dinâmica de degustaçãoa
identificação de traços aromáticos específicos nas amostras, durante a análise olfativa dos
vinhos
3
.
1
Segundo CABRAL (2005), Isolda Holmer Paes foi uma das mais cultas enófilas brasileiras. Ela chegou a ser
presidente da Sociedade por duas vezes e permanece uma figura constantemente lembrada por muitos de
nossos informantes.
2
A relação completa das obras encontra-se disponível para consulta no website da Sociedade
(www.sbav.com.br) e, a julgar por ela, a coleção inclui itens antigos e raros, tanto nacionais quanto
estrangeiros, perfazendo um total de mais de 300 títulos. Segundo comentaram alguns informantes, essas
publicações muito raramente são retiradas pelos membros da Sociedade, uma vez que “a maioria dos sócios
dispõe de vários desses livros em casa”.
3
O mesmo tipo de ilustração foi encontrado em um cartão afixado em garrafa de uma determinada marca de
70
Em cima da entrada da cozinha há um relógio com o mapa da França (ainda hoje o
país símbolo da tradição na produção e no consumo de vinhos) e ao lado, em cima do balcão
no fundo da sala, um pôster da região vinícola francesa de Bordeaux (uma das mais
prestigiadas do mundo). Completam a decoração da parede fotos da sagração de dois dos
membros da Sociedade como Chevaliers du Taste Vin, a mais tradicional e famosa confraria
de degustação de vinho em atividade (ver capítulo 01).
Finalmente, localizada no lado maior do retângulo da sala, oposta a um dos lados da
varanda e contígua à biblioteca, a entrada da cozinha (larga e sem portas, ao estilo
“americano”) dá acesso a um ambiente simples, dotado apenas do essencial: uma bancada
com pia, uma geladeira e um fogão, além de uma churrasqueira (construção original do
imóvel). É significativo que em todas as sessões de degustação das quais participei, não
cheguei a adentrar esses espaço mais do que duas ou três vezes: embora presente, como
veremos mais adiante, a comida não é elemento fundamental das sessões de degustação e o
preparo de algum tipo de prato na cozinha restringe-se às ocasiões em que se opta por
substituir as degustações por um jantar, ocorrência mais freqüente em alguns grupos do que
em outros.
Mais recentemente, já ao final do meu período em campo, foi comprada uma grande e
moderna televisão, que foi instalada sobre o balcão, no fundo da sala. A presença do aparelho
ali não parece ter agradado a todos os degustadores, e em apenas algumas situações eu a vi ser
ligada (no telejornal) enquanto se aguardava a chegada de todos os participantes da sessão.
De modo geral, podemos definir o ambiente da sede como austero — ou, talvez,
sóbrio, sendo o duplo sentido proposital. Todo o espaço parece construído a partir dos
mesmos valores da temperança, do comedimento, que pauta o consumo de vinho. É
significativo, por exemplo, o fato de que, embora se trate de ambiente dedicado a um certo
tipo de lazer e relaxamento (como definido pelos degustadores), não haja quaisquer lugares
em toda sala onde se possa sentar ou recostar com uma postura mais informal (as cadeiras em
torno da mesa de degustação, de espaldar alto e reto e assento exíguo, certamente não o
permitem).
Em quase tudo (talvez a exceção aqui seja justamente a presença da televisão) o
ambiente parece apontar para um afastamento do mundo exterior — do mundo do trabalho e
da casa, mas também de outros tipos de ambiente ligados ao lazer — ao passo em que aponta,
através de seus poucos móveis, objetos e elementos decorativos, exclusivamente para as
práticas específicas que devem tomar lugar ali. Nesse sentido, a mesa ocupa não apenas o
centro do espaço físico da sede, mas constitui o centro simbólico dela, sendo o espaço em
vinho, vendida em supermercado. Neste cartão, o produtor informa ao consumidor que o chocolate
apresentado dentro da taça, na ilustração, é um aroma típico daquele vinho, e o convida não apenas a buscar
senti-lo quando for consumir a bebida, mas a colecionar outros cartões informativos semelhantes, afixados
nas outras garrafas da marca. Este cartão foi incluídos em nosso anexo, ao final do trabalho.
71
torno do qual as pessoas vão se postar na expectativa do início da sessão, e no qual o ritual
vai se concretizar.
3.2 Primeira fase do ritual: a ocupação do espaço.
Os encontros na Sociedade ocorrem semanalmente, em dias diferenciados para cada
grupo de degustação, e sempre a partir das oito e meia da noite. Cada grupo possui um grau
de tolerância próprio com relação a atrasos, mas no grupo de que participei mais
sistematicamente raras vezes a sessão teve início depois desse horário. Pelo menos a metade
de seus freqüentadores mais regulares costumava chegar à sede com um mínimo de dez
minutos de antecedência, e havia a preocupação explícita entre eles de que os encontros não
começassem atrasados para que também não avançassem até muito tarde, uma vez que as
sessões se dão em meio à semana de trabalho e “é preciso acordar cedo no dia seguinte”.
Idealmente, é o degustador escolhido como “apresentador” da noite quem deve ser o
primeiro a chegar à sede, embora nem sempre isso aconteça. Responsável pela fundamental
tarefa de selecionar e comprar os vinhos que serão degustados, ele tem também a
incumbência de realizar alguns procedimentos básicos de preparação do vinho para a
degustação, de modo que eles sejam provados em seu estado ideal. É preciso abrir as garrafas
com antecedência (ou trasfegar o vinho das garrafas para decanters
4
), para que, em contato
com o ar, seus aromas sejam “liberados” e tornem-se mais perceptíveis, bem como colocar os
vinhos para resfriar na geladeira, de modo que estejam na temperatura adequada no momento
da degustação. Quando o apresentador se atrasa e esses procedimentos deixam de ser
realizados, considera-se que há um certo prejuízo na avaliação dos vinhos, mas nem todos os
degustadores (ou grupos de degustação) se importam com isso num mesmo grau.
Os outros participantes vão chegando aos poucos, os casais quase sempre juntos. Até
que a maior parte deles encontre-se presente à sede, as pessoas permanecem em pé, em torno
da mesa da sala, conversando aos pares ou em pequenos grupos sobre assuntos variados.
Fala-se da reforma que está sendo feita na adega do sítio de um deles, do casamento de uma
das sócias da entidade, que se aproxima, do roteiro de viagem que um casal fará ao exterior,
de um filme interessante que acabou de entrar em cartaz. Quase sempre são assuntos que
dizem respeito a acontecimentos ligados à Sociedade ou a membros dela, ou então
relacionados ao universo dos vinhos, da gastronomia ou do lazer.
É interessante mencionar que em nenhum momento escutei conversas sobre trabalho
ou sobre assuntos que pudessem ser considerados mais delicados ou sérios, como problemas
4
Decanters são recipientes de vidro de base larga e boca estreita, utilizados quando é necessário transferir de
recipiente um vinho que possua sedimentos (de modo a deixá-los na garrafa original). Muitas vezes, como é
o caso aqui, o decanter é também usado para colocar o vinho em maior contato com o ar do que ele teria se
permanecesse em uma garrafa aberta.
72
de saúde, questões financeiras ou mesmo atualidades ligadas a política, esportes etc. Podemos
caracterizar este período inicial do evento como uma fase de separação com relação ao
mundo exterior, expressa claramente nessa restrição dos assuntos postos em pauta – os quais,
progressivamente, vão se centrando exclusivamente nos vinhos. Ao final da sessão, ocorre
exatamente o inverso, e enquanto as pessoas levantam-se da mesa, o escopo temático das
conversas amplia-se até retornar aos temas do início da sessão ou mesmo aos temas
anteriormente proscritos.
O clima reinante na sala, neste primeiro momento, é bastante amistoso, embora guarde
sempre uma certa rigidez formal, aparente no modo como as pessoas se cumprimentam
(aperto de mãos no caso dos homens, beijos no rosto entre mulheres, ou entre homens e
mulheres mais próximos, e apenas acenos de cabeça entre pessoas menos próximas), no tom
de voz moderado de todos os presentes, na movimentação restrita em meio ao espaço da sala
(as pessoas tendem a se concentrar e permanecer em pequenas rodas de conversa até o início
da sessão) e no vestuário (a maioria adota trajes “sociais”: camisa e calça sociais, para os
homens, eventualmente com blazer; calça e blusas em tricô, linho ou malha, para as
mulheres, sapatos sociais de salto baixo, muitas bijuterias e maquiagem leve). Quanto a esse
último aspecto, é interessante comentar que, à exceção daqueles que têm de vir à Sociedade
diretamente do local de trabalho, a maioria parece passar em casa antes da degustação,
preparando-se (pela troca de roupas, retoque na maquiagem etc.) especialmente para os
encontros.
3.3 Segunda fase: comensalidade e troca de informações.
Segundo a ótica dos participantes, o evento propriamente dito somente tem início
quando o coordenador do grupo ou o apresentador da noite finalmente menciona que chegou
o horário e convida os presentes à sentarem-se à mesa.
Comandante do ritual da noite, o “apresentador” ocupa sempre a cabeceira da mesa,
geralmente ladeado por sua esposa/marido ou, eventualmente, pelo “coordenador” do grupo
de degustação
5
. A cabeceira é a posição mais importante, a posição de honra, e a única, em
verdade, pré-determinada. Os outros participantes têm liberdade para distribuir-se pelos
lugares restantes. De modo geral, a distribuição à mesa atende à ordem de chegada à sede, na
medida em que cada participante, ao adentrar a sala, costuma depositar suas bolsas e sacolas
sobre a próxima cadeira vaga, a partir da cabeceira. Poucos degustadores têm preferência por
5
Cargo ocupado por um membro do grupo eleito por seus pares, ao longo de um ano. Suas atribuições incluem
colocar em pauta em meio ao grupo assuntos de interesse geral da Sociedade, responder em nome do grupo
frente à entidade ou a pessoas de fora dela (como foi meu caso) e liderar os degustadores no planejamento de
suas sessões.
73
sentar-se sempre na mesma posição, havendo uma certa rotatividade quanto à ocupação dos
diferentes lugares.
Também é importante mencionar que o tamanho e o formato da mesa estimulam um
tipo de interação específico entre os degustadores: embora de todas as posições seja possível
ver (com maior ou menor dificuldade) os outros degustadores presentes e, quanto a isso,
evidentemente a cabeceira é a posição privilegiada o retângulo estabelecido pela mesa
favorece tanto a visibilidade quanto a conversa entre as pessoas que se encontram lado a lado
ou frente à frente.
Como dissemos, os degustadores encontram sempre a mesa já previamente preparada
para o ritual. Em frente a cada cadeira, o mesmo conjunto de objetos, organizado de modo
padronizado — as taças de vinho e água em frente ao prato, sobre o qual repousam o
guardanapo e os talheres — delimita espaços individualizados para cada degustador, ao
mesmo tempo em que ajuda a marcar, simbolicamente, a perfeita equivalência entre todos os
comensais. Claramente, o elemento mais importante ali são as taças, todas elas em tamanho,
formato e material (cristal, não por acaso um material nobre) considerados ideais para a
apreciação das propriedades dos vinhos. O fato do ser utilizado um prato “de sobremesa”,
pequeno — usualmente adotado para o consumo de doces e lanches — e de material mais
simples (louça branca), ajuda a indicar o status inferior da comida que será consumida ali
(apenas em relação ao vinho, bem entendido).
Logo que se sentam, os degustadores começam a abrir em frente a seus respectivos
pratos sacolas de provisões, trazidas para o consumo durante o evento. De sacos de papelão,
potes ou filmes plásticos costuma ser retirada, quase sempre, a mesma variedade de
alimentos: pães frescos ou fatias de pão de fôrma, geralmente integral; queijos brancos (tipo
minas ou cremoso) e amarelos, fatiados ou em pedaços inteiros (camembert, gorgonzola,
emental); fatias de presunto, peito de peru, pastrami ou outros frios; maçãs inteiras ou já
porcionadas. As justificativas para essas escolhas variam entre defini-las como as mais
“saudáveis”, as mais “leves”, ou, o mais usual, como sendo opções “que combinam bem com
vinhos” (independente de quais sejam eles).
De modo geral, cada degustador consome aquilo que trouxe, mas há sempre o gesto
educado de oferecê-lo aos participantes que se encontram próximos, à mesa (à frente ou ao
lado), ou a algum membro do grupo que não tenha levado nada (como foi o meu caso em
diversas vezes). Nem todos os degustadores gostam de comer durante as sessões. Paulo, por
exemplo, me disse que, tendo a oportunidade, prefere jantar em casa, antes das degustações, a
ficar comendo “muito pão e queijo” durante o evento. De todo modo, a agregação implicada
em todo rito de comensalidade (VAN GENNEP, 1978) — e este momento não deixa de
corresponder a um — é aqui apenas relativa, na medida em que não se partilha os mesmos
alimentos. Ela se consumará apenas com o início da prova dos vinhos.
74
Eventualmente, o responsável pela apresentação pode levar algum tipo de provisão
para ser distribuída a todos os presentes, geralmente algo diferenciado do que é usualmente
consumido: sanduichinhos já prontos, pequenas porções de massa recheada, algum tipo de
salgadinho. Às vezes o cuidado na escolha chega à busca de um certo tipo de “combinação”
(não necessariamente uma “harmonização”), entre a comida e os vinhos selecionados: durante
uma degustação de vinhos portugueses, por exemplo, o casal responsável pela apresentação
serviu conjuntamente bolinhos de bacalhau acompanhados de azeite (também português,
como foi destacado). Levar este tipo de “agrado” aos participantes da sessão expressa
generosidade por parte do apresentador, uma vez que, ao contrário dos vinhos, a comida
levada por ele não entra no rateio realizado ao final da degustação. Trata-se muito claramente
de um dom (MAUSS, 1988), oferecido por aquele que é, de certo modo, o anfitrião da noite.
O oferecimento de um, por sua vez, demanda a reciprocidade de todos, fazendo com que
outros apresentadores, nas sessões seguintes, busquem “superar” os anteriores quanto à
qualidade ou especificidade dos acompanhamentos levados à degustação.
Tanto as provisões trazidas pelo apresentador quanto aquelas trazidas pelos
degustadores, não obstante, obedecem a uma determinação implícita, que parece ser
preponderante sobre as justificativas fornecidas com relação à escolha dos alimentos: trata-se
sempre de comida em pequenos pedaços, que não demanda grande elaboração nem no
preparo e nem no serviço (demandando, no máximo, um leve aquecimento no forno da
cozinha da sede, antes de ir à mesa), que pode ser consumida sem uma ordenação aparente e
tanto com o auxílio de garfo e faca quanto com as mãos. Em suma, trata-se daquilo que
NICOD (1974, apud DOUGLAS,1977, p.64) chama de “self-contained food”, que permite
caracterizar a ocorrência alimentar dada nas degustação não como uma refeição, mas como
um snack, isto é, uma ocorrência alimentar não-estruturada, que prescinde de ordem ou de
uma formalização maior em seu consumo.
A determinação não é casual: embora haja uma evidente preocupação com a qualidade
da comida (o tipo de queijo, a procedência do azeite, o prestígio do estabelecimento em que
foi encomendado o salgadinho ou a massa etc.), também é evidente que ela, neste cenário, não
é o elemento principal seu consumo deve necessariamente prescindir de uma atenção maior
(poderíamos dizer, ritualidade) do que aquela que será dispensada à prova dos vinhos e, que,
usualmente tem lugar durante uma refeição.
Esta observação pode ser corroborada pelo fato de que, nas ocasiões em que se optou
por realizar um jantar durante uma sessão de degustação, este teve lugar apenas após as
provas dos vinhos (realizadas tão somente com o acompanhamento de pão), e fez-se
acompanhar de exemplares da bebida que, embora considerados “muito bons” pelos
presentes, receberam menos atenção — e, importante, muito menos menção — do que a
própria comida.
75
Apesar disso, uma das informantes, Marta, me disse que a questão do
acompanhamento do vinho durante a degustação já foi tema de debates entre os degustadores,
e se chegou à conclusão de que “o vinho com comida fica muito melhor. Já fizemos a mesma
degustação sem comida, e depois tomando os vinhos com comida eles melhoraram”. Os
degustadores também costumam levar garrafas de água para as sessões, elemento importante
pois permite “lavar a boca” entre a prova de um exemplar de vinho e outro, impedindo que o
sabor do vinho anterior “interfira” na experimentação do seguinte.
A partir do momento em que todos os degustadores encontram-se à mesa, e começam
a consumir seus farnéis, as conversas, que seguiam até então, cessam e todas as atenções
voltam-se para o apresentador, que toma a palavra para apresentar aos participantes os
exemplares de vinho selecionados para a prova. Neste momento ele tem por tarefa não apenas
justificar suas escolhas (se foram fruto da indicação de algum outro apreciador, se são rótulos
mencionados em algum guia ou revista especializada, se a escolha foi aleatória etc.) mas,
principalmente, caracterizar os exemplares que serão provados sob algumas perspectivas tidas
como essenciais: sua procedência geográfica — o que implica mencionar as características
gerais do solo e do clima na região onde são plantadas as uvas —, o(s) tipo(s) de uva(s)
empregado(s) em seu fabrico (e suas características específicas), o histórico da vinícola e/ou
as credenciais do enólogo responsável, e os métodos de viticultura e vinificação utilizados.
Para realizar a tarefa, o apresentador tem de realizar uma pequena pesquisa prévia,
valendo-se para isso da consulta a livros especializados, guias de vinhos e da Internet.
Geralmente, ele também se encarrega de resumir esta pesquisa em um texto de duas ou três
páginas que é disponibilizado em cópias impressas aos participantes da sessão, permitindo
que eles acompanhem através da leitura a apresentação oral. As minúcias a que estas
informações podem chegar são impressionantes: por vezes falou-se com detalhes do relevo da
região em que as uvas são plantadas, da grande amplitude térmica
6
na época de seu
amadurecimento, da quantidade de chuvas ao longo do ano, do tipo de solo, das proporções
em que o enólogo combina as diferentes variedades de uva utilizadas em um mesmo vinho,
das inovações (ou tradições) técnicas adotadas por uma vinícola.
Tanto quanto a própria seleção dos vinhos, a preparação dessa explanação prévia
demanda tempo e esforço, que, indiretamente medidos pela “qualidade” da apresentação
(expressa principalmente na especificidade das informações), ajudam a angariar prestígio para
o degustador responsável. Mais do que isso, a grande importância da posição de apresentador,
neste contexto, torna a oportunidade de ocupá-la pela primeira vez o rito de passagem
fundamental na consolidação da aceitação de um novo membro ao grupo. Leva algum tempo
para que seja dado a um novato a oportunidade de empreender a tarefa da apresentação,
6
Diferença de temperatura entre o dia e a noite.
76
certamente não menos do que alguns meses desde o início de sua entrada no grupo, mas ela
representa o momento definitivo de sua inserção.
Enquanto o apresentador fala, é dada aos outros degustadores a oportunidade de fazer
comentários e de acrescentar informações quanto ao que está sendo dito, o que torna este
momento também a primeira ocasião, no ritual, de expressão do saber individual de cada um
dos participantes e de reafirmação da bagagem de conhecimento carregada pelo grupo, como
um todo
7
.
Além de configurar um “prazer extra” com relação àquele que será oferecido pela
prova dos vinhos (como definido por alguns degustadores), essa troca de informações é
pensada como um modo de aprofundar a apreciação que se pode ter deles. Para me explicar
esse argumento, durante sua entrevista, Otávio traçou um significativo paralelo entre os
vinhos e as obras de arte:
Da mesma forma que se tu olhares um quadro de, sei lá, Picasso sem ter tido
qualquer noção de quem foi Pablo Picasso ou qualquer outro expoente da pintura,
não é a mesma coisa do que tu conheceres alguma coisa da vida [dele]. Por exemplo,
um Van Gogh, aquela coisa toda... O Van Gogh esteve num hospício, o Van Gogh
viveu de uma forma... Então, o conhecimento te dá outro sabor e te permite tirar
impressões muito mais profundas e muito mais precisas daquilo que tu estás
observando numa obra de arte. Da mesma forma num vinho. Saber que esse vinho
foi produzido de tal maneira, com aquelas uvas, com o uso de tal tipo de carvalho,
que ficou tantos anos num barril, que vem de uma região tradicional, assim, assim e
assado. Isso, realmente, altera [a apreciação].
É interessante observar o que essa troca de conhecimentos sobre as condições de
produção dos vinhos nos fala sobre o imaginário construído em torno da bebida. Por um lado,
o peso concedido ao reconhecimento das “condições naturais” de sua produção – as
características do solo, as variações climáticas em meio a uma dada safra, as propriedades
típicas de um certo tipo de uva — aponta a noção de que cada vinho é o fruto contingencial
dos caprichos da natureza, em uma determinada região, ao longo de um determinado período.
Por outro lado, a preocupação com os aspectos técnicos da produção, coloca em relevo
o papel crucial do homem — sob as funções de viticultor e enólogo — na criação do vinho.
Assim, cada exemplar de vinho é concebido como uma obra de arte, como algo único, dotado
de aura, a um só tempo pertencente ao domínio da natureza e da cultura.
7
É interessante mencionar quanto a isso que, no grupo em que participei, uma auto-imagem dos degustadores
como pessoas “cultas” era constantemente reafirmada pela repetição, por parte dos apresentadores, de frases
como “não vou entrar em grandes detalhes quanto a este aspecto, porque isso vocês já sabem...”ou “estou só
lembrando alguns fatos, que todo mundo já está cansado de saber...”.
77
O peso de ambos — natureza e cultura — aparece claramente nas falas de Júlio, por
exemplo. Ele defende que
o terroir
8
é muito importante. E os franceses são os campeões de provar isso, né.
Agora, o enólogo, para mim, são duas coisas independentes. Se tu não tiver um
enólogo é muito difícil que tu realmente faça um grande vinho, na minha opinião.
Pode fazer um vinho, que algumas vezes pode dar uma sorte... Porque o vinho tinto
é um vinho que se faz... pode ser feito absolutamente natural, né. Pode não ter a mão
de enólogo nenhum. É simplesmente, tu amassa as uvas que elas fermentam e sai o
vinho, tira o bagaço e sai o vinho. Agora, os caras elaboram isso...
... as coisa ligadas ao vinho não são muito científicas, são mais artísticas. Eu sempre
digo que o grande trabalho do enólogo é mais arte do que ciência, porque tem tantas
variáveis... Eu venho da engenharia, é um problema que tu não tem como resolver.
Não há super computador do mundo que resolva. Tem um monte de variáveis, sabe.
Isso é impossível...E aí vai para a arte. Então, vai pro senso do cara, ele, sei lá, né...
usa as assemblages
9
, que eles chamam... parece muito isso, parece a arte do
enólogo.
É preciso esclarecer que, em todos os grupos da Sociedade, as sessões costumam
obedecer a uma “temática” previamente escolhida, que define as características principais a
partir das quais os vinhos serão selecionados e que permitirão a comparação entre eles. Pode-
se, por exemplo, selecionar exemplares de diferentes procedências, mas produzidos com um
mesmo tipo de uva, vinhos de uma mesma procedência, mas de produtores variados, vinhos
de um mesmo produtor, mas fabricados em diferentes localidades etc.
10
. De acordo com cada
grupo de degustação, pode-se optar por privilegiar sempre um certo tipo de seleção, o que
ajuda (no entender dos próprios membros da Sociedade) a estabelecer um determinado
“perfil” ou “vocação” para o grupo.
O grupo de que participei mais sistematicamente gostava de definir-se como aquele
que “viaja pelo mundo”, estabelecendo as temáticas de suas degustações (e, logo, das
apresentações iniciais) sempre a partir da procedência dos vinhos selecionados. Durante o
período em que estive em campo, degustamos, por exemplo, vinhos fabricados na região de
Friuli-Venezia Giulia (em uma das últimas sessões de um ciclo de reuniões dedicado
inteiramente aos vinhos italianos); depois vinhos norte-americanos da região da costa central
8
O conceito de terroir, bastante caro aos apreciadores de vinho de modo geral, mas aos europeus e aos
franceses em particular, condensa de modo preciso a idéia da filiação direta de um vinho às condições
naturais em que a vitivinicultura se dá. Sem tradução exata fora da língua francesa, ele freqüentemente é
definido como a combinação singular de fatores naturais imutáveis – como solo, subsolo, quantidade de
chuva e vento, inclinação da colina etc. – que caracteriza o terreno onde crescem as videiras, e que é
responsável por influir diretamente nas propriedades das uvas ali cultivadas e, logo, do vinho.
(McCARTHY; EWING-MULLIGAN, 1999, p.60).
9
Assemblages: mistura entre vinhos produzidos com diferentes tipos de uva.
10
As provas tanto podem ser realizadas com o conhecimento prévio, por parte de todos os degustadores, dos
vinhos que serão apreciados na sessão, como podem ser realizadas “às cegas”, sem que ninguém, a não ser o
responsável pela seleção e compra do exemplares, saiba o que será provado. Nesse caso, ao invés de o
apresentador realizar a palestra no início da sessão, ele apenas fornece algumas “pistas” quanto ao que será
degustado – todos os vinhos foram produzidas com a uva “x”, são provenientes de um determinado país ou
região vinícola ou são de um mesmo produtor, embora de uvas diferentes, por exemplo –, restando aos
degustadores “descobrirem” os aspectos restantes ou simplesmente comentarem suas opiniões a respeito de
suas propriedades.
78
e sul da Califórnia, e em seguida exemplares do Nappa Valley, também na Califórnia; nos
dois encontros seguintes, vinhos da região do Douro, dando início a um ciclo de cerca de dois
meses dedicado a Portugal; em seguida exemplares da região da Bairrada; depois vinhos
verdes, da região do Minho etc.
Para os participantes deste grupo, este direcionamento temático é considerado
interessante porque, ao favorecer “o estudo de cada país, de cada região”, permite aos
degustadores realizarem “um outro tipo de viagem”, com relação àquelas que eles já haviam
efetivamente feito às diferentes regiões vinícolas. Segundo explicou Ana,
...você pode conhecer o país por uma viagem ou outra pro exterior... mas ali ainda
que a gente não viajasse fisicamente, você começa a ver características do solo, de
clima, as características e tal... é uma coisa que a gente acaba aprendendo e que você
começa a se questionar, será que realmente faz diferença se a [uva] tempranillo
plantada na Espanha, que é a mesma aragonês de Portugal... o que faz diferença, o
solo é diferente, o que é diferente? Então, você começa a ter vontade de
experimentar, e... Porque realmente, o mundo do vinho é um mundo muito vasto,
tem muita coisa para aprender e para conhecer.
O “princípio da incorporação”, de que nos fala Fischler (1994, p.11), parece atuar aqui
de modo claro. Se quando incorporamos uma comida, incorporamos conjuntamente as
caraterísticas imaginárias da mesma, podemos perceber o quanto se “consomem” aqui, em
paralelo ao próprio vinho, as paisagens onde crescem as uvas, a textura da terra, o calor nos
parreirais veiculados pelas palavras do apresentador, pelas descrições presentes nas obras
consultadas para a pesquisa, nas fotos eventualmente levadas à sessão.
3.4 Terceira fase: experimentação, conhecimento e reconhecimento dos vinhos.
Somente ao final da apresentação, tem início a etapa da degustação propriamente dita.
Até então, as garrafas de vinho permaneciam de pé junto ao apresentador, exibidas apenas aos
olhares dos participantes da sessão. A partir deste momento, elas são finalmente
disponibilizadas para circulação entre os degustadores. Sempre seguindo uma trajetória que
tem início no apresentador e também se encerra nele (e que pode se dar tanto em sentido
horário como anti-horário), elas passam de mão em mão para que cada degustador tenha a
chance de servir-se do vinho e observá-las com mais cuidado. No caso dos vinhos que foram
trasfegados para decanters, as garrafas correspondentes são posta em circulação juntamente
com eles.
De modo geral, a observação das garrafas serve mais ao propósito de propiciar uma
breve apreciação estética das mesmas do que para a leitura dos rótulos, uma vez que todas as
informações gerais sobre o exemplar — incluindo safra e percentagem alcoólica — já terão
sido passadas pelo apresentador, durante sua fala inicial. Mas não se deve subestimar a
importância desta apreciação: a disposição das informações nos rótulos, as ilustrações que
eles veiculam ou os formatos das garrafas (quando fora do padrão) costumam ser comentados
79
em detalhes, configurando parte importante do processo de conhecimento e apreciação de
cada exemplar de vinho.
Manda a etiqueta das degustações que os participantes sirvam-se apenas do
“necessário” para a prova de cada exemplar — uma medida padrão implícita que corresponde
a, mais ou menos, um quarto ou um quinto de taça, e resulta da divisão aproximada do
conteúdo de uma garrafa de vinho (750 ml) em doze porções, número médio de degustadores
presentes em cada sessão. Servir a mais significaria romper com o pacto implícito em todo
ritual de comensalidade que impõe uma pequena renúncia por cada participante em prol do
outro (MILLÁN, 1999). Ao mesmo tempo, servir a mais burla o preceito básico da
moderação, do autocontrole, ainda mais importante e rigoroso dentro das degustações porque
fundamenta a distinção com relação ao consumo de vinho realizado fora dela: trata-se, aqui,
apenas de “provar” o vinho com vistas a avaliá-lo, não de “tomá-lo”, como se faz em outros
contextos
11
.
Tendo finalmente à frente suas cinco ou seis taças já servidas, e dispostas em fileira
segundo a ordem em que circularam pela mesa os exemplares de vinho, os degustadores dão
início ao momento mais esperado da sessão: a experimentação da bebida.
Embora os ritmos individuais possam ser desiguais, o conjunto de degustadores segue
sempre uma mesma seqüência de procedimentos de avaliação, pautada por um conjunto de
gestos convencionados. Primeiro, os degustadores observam o vinho com a taça ainda apoiada
na mesa; em seguida, segurando-a pela haste, inclinam a taça levemente de modo a poder
observar a bebida contra o fundo branco da mesa, ou alçam-na acima da altura dos olhos, de
modo a poder observar o vinho contra a fonte luminosa do ambiente. Depois, cheiram a
bebida uma primeira vez, levando a taça ao nariz e inspirando profundamente dentro dela, e
uma segunda vez, após girar vigorosamente a taça e agitar a bebida, de modo a “liberar seus
aromas”. Por fim, provam o vinho em diversos goles lentos, retendo-o na boca durante algum
tempo, antes de finalmente engoli-lo. Ao terminar o processo com um exemplar, passa-se
imediatamente à taça seguinte, repetindo-se a mesma seqüência gestual. Esses gestos, dizem
os degustadores, são fundamentais para favorecer a percepção das características dos vinhos.
Em cada uma destas três etapas, busca-se perceber e comentar um conjunto de
propriedades (visuais, olfativas e gustativas), que correspondem aos critérios sob os quais
cada amostra deve ser avaliada. Se, como escreveu Millán (19991, p.237), o consumo
compartilhado integra cada um dos comensais ao conjunto, materializando a comunidade pela
incorporação de um mesmo elemento material em cada comensal, podemos dizer que nas
11
Durante reunião de um outro grupo da Sociedade, observei pela primeira e única vez a prática de se
acompanhar as garrafas em circulação por uma taça com uma marcação de nível, destinada a servir de
medidor; de modo geral, a porção individual é medida “no olho”, confiando-se que cada participante saberá
respeitá-la. Também em uma única ocasião, presenciei o caso de faltar vinho para um dos degustadores, mas
a questão foi rapidamente solucionada por dois participantes que se prontificaram a transferir parte da
quantidade servida em suas taças ao colega desfavorecido.
80
degustações essa integração se dá duplamente: em primeiro lugar, pela própria partilha do
vinho; em segundo lugar, pela busca da “partilha” das sensações individuais provocadas por
ele.
É preciso destacar que a relação das propriedades a serem analisadas, os termos
utilizados para descrevê-las e a própria seqüência gestual que acabamos de descrever
correspondem a uma metodologia “básica” de degustação de vinhos, calcada nas degustações
profissionais e apresentada sem grandes variações na maioria dos cursos e livros sobre o
tema
12
. Dependendo do interesse particular dos degustadores, pode-se privilegiar a avaliação
de alguns aspectos em detrimento de outros e é o que ocorre nos encontros de cada um dos
grupos da Sociedade.
Segundo essa metodologia, a primeira etapa (que corresponde ao “exame visual”),
demanda observar no vinho a “intensidade” de sua cor (ou sua “transparência”), a
“tonalidade” de sua cor (o tom específico de vermelho, no caso dos vinhos tintos, de amarelo,
no caso dos brancos ou de rosado, no caso dos rosés), os “reflexos” (a cor aparente na borda
do vinho, não necessariamente de mesmo tom em relação à observada no “meio” da taça), a
presença ou não de gás (ou as bolhas, no caso dos espumantes), o grau de “limpidez”
(ausência de partículas em suspensão), e a “viscosidade” (ou “fluidez”) da bebida.
Na segunda etapa, ou exame olfativo, os aspectos a serem percebidos são: “fineza” (a
“delicadeza do conjunto aromático perceptível”, segundo definição de LONA, 2003, p.34); a
“intensidade” (que corresponde ao “impacto” ou “força” com que os aromas penetram nas
narinas); a “persistência” (o tempo em que os aromas permanecem nas narinas, avaliado pela
contagem dos segundos); e os tipos de aromas apresentados, que podem ser “primários”
(aromas que lembram cheiro de uva ou de certos tipos de frutas e flores), “secundários” (que
se assemelham a aromas de frutas, flores e vegetais) ou “terciários” (também chamado “buquê
do vinho”, aromas mais complexos existentes apenas em vinhos envelhecidos, que podem
lembrar o aroma de elementos como madeira, couro, pelica etc.).
Finalmente, a etapa gustativa, que corresponde à percepção, na boca, de propriedades
como: doçura, acidez, amargor, adstringência (ou “tanicidade”), “sensação térmica” (de
acordo com a temperatura em que o vinho é servido), “alcoolicidade” (sensação de calor na
boca), “persistência” (durabilidade do gosto), “harmonia” (equilíbrio entre as diversas
sensações gustativas, especialmente entre doçura, acidez, adstringência e alcoolicidade),
12
Poucas vezes durante as degustações que acompanhei foram mencionadas explicações a respeito das técnicas
e categorias de avaliação empregadas. Em função disso, tomo por base para todas as descrições e explicações
que seguem, além das observações realizadas em campo, as instruções fornecidas em três livros sobre vinho
(“Vinho” de McCarthy; Ewing-Mulligan, Campus, 1999; “Vinhos: degustação, elaboração e serviço”, de
Adolfo Lona, AGE, 1999; “Tintos e brancos”, de Saul Galvão, Ática, 1993) e na apostila do Curso de
Degustação e Reconhecimento dos Vinhos, da Associação Brasileira de Sommeliers - ABS-RJ, 1999. É
importante mencionar que, à exceção da apostila do curso, as outras fontes foram escolhidas por terem me
sido, em algum momento do campo, indicadas por meus informantes.
81
“corpo” (variadamente definido como “estrutura”, “densidade” ou “força” das sensações
gustativas), “retrogosto” (ou gosto percebido após o vinho ter sido engolido) e
“complexidade” (capacidade de um vinho apresentar “aromas e paladares em diversos
patamares de percepção”, GALVÃO, 1993).
Para dar conta da caracterização das propriedades dos vinhos (que por si só já
constituem um conjunto de termos específicos), os degustadores valem-se de um léxico
particular, igualmente definido dentro da metodologia da degustação e divulgado através de
livros e cursos
13
. Assim, pode-se, por exemplo, definir um vinho adstringente como
“áspero”, um vinho sem muito corpo como um vinho “aguado” ou um vinho harmônico como
“redondo”. A tonalidade dos vinhos é sempre referida dentro de uma escala precisa que vai,
no caso dos tintos, do “violáceo” (vinho novo) ao “granada” (vinho velho), passando pelo
“vermelho-rubi”, e, no caso dos brancos, do “branco” com “reflexos esverdeados” (vinho
novo) ao “amarelo âmbar” (vinho velho), passando pelo “amarelo-palha” e pelo “amarelo-
dourado”.
Já o aroma de um vinho, embora possa ser genericamente definido como “herbáceo”,
“floral”, “frutado” ou “tostado”, por exemplo, costuma ser caracterizado de modo mais
detalhado pelos traços aromáticos percebidos. Neste sentido, alguns traços mais comumente
(ou tradicionalmente) atribuídos a certos tipos de vinho compõem uma espécie de vocabulário
de base para a descrição olfativa dos diferentes exemplares da bebida, sendo comum ouvir,
durante uma degustação, menções a “aroma” (ou “cheiro”) “de flores brancas”, “de flores
secas”, “de frutas vermelhas”, “de pimentão verde”, “de banana”, “de couro”, “de tabaco”,
“de defumado”, “de especiarias”, “amanteigado”, “amadeirado”, etc.
Nas sessões a que assisti, o aroma, particularmente, era o tópico que quase sempre
ocupava a maior parte das discussões, dando também margem para as mais variadas
descrições. Em uma única sessão, por exemplo, ouvi menção à percepção (nos diferentes
vinhos) de traços aromáticos que lembravam aos degustadores enxofre, café, pimentão, tinta,
couro e até um inusitado (ao menos, para mim) “cheiro de cachorro molhado”, definido por
aquele que fez o comentário como elemento “característico dos vinhos de qualidade”.
A tonalidade era a segunda característica mais comentada, tanto em termos puramente
estéticos (“o primeiro vinho tem um lindo tom de vermelho-rubi”) quanto em função do que
ela poderia indicar com relação à idade do vinho em questão; e o sabor geralmente era
caracterizado em função de sua acidez, tanino e, principalmente, equilíbrio e corpo (dois
importantes indicativos de qualidade).
13
O vocabulário da degustação é extenso, as diferentes fontes e as observações de campo apontam uma grande
variedade de termos; mais do que oferecer uma relação vasta deles, interessa-nos aqui apresentar alguns
exemplos que apenas permitam ilustrar a questão.
82
Devemos considerar que tanto a metodologia de base quanto o vocabulário de
degustação são bens comuns do grupo, e sua utilização adequada (isto é, embasada pelo
conhecimento necessário), por si só reforça os laços entre seus membros (servindo como
índice da familiaridade de cada um deles com o saber exigido para o ritual), ao mesmo tempo
em que os distingue de outros consumidores de vinho. Ao me descrever um determinado
encontro entre apreciadores de vinho, fora da Sociedade, Otávio destaca esse último aspecto
de modo bastante claro, ao definir a figura do “enochato”:
O enochato normalmente é alguém que teve, assim, uma ligeira... que fez um
curso de vinhos e se acha muito entendido. Faz questão de despejar aquele
conhecimento todo. E usa até algumas palavras que decorou, e tal. Então, foi
juntando ao vinho, por exemplo, ‘esse vinho aqui tem aroma de arândelo’. Eu não
tenho a menor idéia do que seja arândelo! Será que ele tem idéia do que seja
arândelo? Ele deve ter lido aquilo em algum lugar, sei lá, capaz que seja um
frutinha, que só existe lá na Europa ou não sei aonde... Outra coisa, eu nunca senti o
‘cheiro de uma raposa molhada no bosque, às seis horas da manhã’, eu não sei qual é
esse cheiro, mas de vez em quando vem ‘cheiro de pêlo de raposa molhada’, coisas
desse gênero. Isso é esnobação, vontade de se exibir. Mas existe muito isso. [...] Eu
agora quando eu ouço alguém dizer que sente o cheiro de pelo de cavalo suado eu
sempre pergunto, ‘mas de quê pelagem?’, e aí o sujeito diz, ‘como quê pelagem?’,
não, porque para mim um alazão tem um cheiro completamente diferente de um
cavalo crioulo! [risos]
Se, como escreveram Douglas e Isherwood (2004, p.124), o desfrute do consumo
físico é só uma parte do serviço prestado pelos bens, correspondendo a outra parte ao desfrute
do compartilhamento de nomes, temos aqui um bom exemplo de como esse saber comum
pode ser manejado como instrumento de identificação dos que pertencem (ou não) ao grupo.
Claramente, não basta colecionar uma certa quantidade de termos; o degustador “legítimo”
(por oposição ao “enochato”) é aquele que também sabe como e quando usá-los e,
principalmente, como e quando não usá-los.
É preciso destacar que entre degustadores com alguns anos de estrada, como nossos
informantes, não há falta mais grave do que o esnobismo de se utilizar ostensivamente das
técnicas (ou do vocabulário) de degustação fora do ambiente apropriado para elas, isto é, fora
das sessões de degustação. Mesmo em ambientes mais apropriados, como encontros ou
jantares entre apreciadores, o degustador “legítimo” distingue-se do “enochato” porque sabe
que a etiqueta das degustações prega — como todos os manuais de bom gosto ou boas
maneiras, segundo destaca Featherstone — a “naturalização” das técnicas, que devem parecer
quase “uma segunda natureza” (FEATHERSTONE, 1995, p.40). Quanto a isso, podemos
observar, a partir de Norbert Elias (2001, p.33), que a etiqueta configura-se como “um
indicador altamente sensível e um instrumento de medida bastante confiável do prestígio e
valores dos indivíduos em sua estrutura de relações”.
Segundo nossos informantes, o conhecimento de toda essa metodologia de
degustação, e do vocabulário particular que ela engloba, justifica-se como meio de tornar mais
“objetivas” as discussões sobre a bebida. Por um lado, eles permitem ao apreciador
ultrapassar o mero “beber” vinho, prescrevendo a identificação de determinadas propriedades
83
visuais, olfativas e gustativas, em cada exemplar provado; por outro, permitem traduzir as
sensações em descrições razoavelmente precisas, que podem ser compreendidas e discutidas
em meio ao grupo. Como explicou Marta, ao falar da experiência de começar a degustar:
Tem termos técnicos, tu começa a distinguir, por exemplo, o aroma do gosto,
as características do vinho, acidez... Tu aprende a separar os elementos que
compõem, entende, a degustação como um todo. E isso, uma pessoa leiga não
consegue, né, ela simplesmente vai dizer que é bom, que gosta, que não gosta [...]
Tem que ter um treinamento, né, do olfato, do sabor também, porque você tem que
distinguir o sabor... Isso tudo é um treinamento.
Mas, como destaca a informante, tomar vinhos desta maneira específica e discutir
sobre eles é algo que não se faz sem antes passar por um treinamento. Mencionamos
anteriormente a importância concedida por estes informantes ao empreendimento de um
processo de aprendizado para se passar a apreciar os vinhos “adequadamente”; agora é o
momento de observarmos melhor de que ele consiste e porque o ambiente da Sociedade é
considerado tão importante.
É preciso observar, em primeiro lugar, que as categorias de análise prescritas pelas
metodologia de degustação para o julgamento dos vinhos não correspondem, em sua maioria,
a categorias usualmente acionadas pelos consumidores para avaliar ou descrever aquilo que
comem ou bebem. Termos como “intensidade”, “persistência”, “harmonia” ou “corpo”
apontam para categorias específicas do universo da degustação de vinhos.
Mesmo quando correspondem a categorias acionadas em um universo gustativo mais
amplo — caso por exemplo das avaliações de “doçura”, “acidez” ou “amargor” — elas
remetem a parâmetros de análise que também lhes são particulares. Podemos esperar que um
consumidor “leigo” seja capaz de descrever um vinho em termos desses aspectos,
caracterizando-o como “muito doce” ou “ligeiramente amargo”. Mas sabemos que ele
necessariamente empregará nessa análise as balizas de referência que utiliza para avaliar (ou
podemos dizer, interpretar) o sabor dos alimentos em geral, balizas essas derivadas da
vivência em sua cultura alimentar mais ampla. Para os degustadores, contudo, avaliar um
vinho quanto à sua doçura, por exemplo, implica (ao menos idealmente) remeter o mais
estritamente possível ao universo gustativo dos vinhos e, logo, a parâmetros que lhes são
próprios.
Julgar aspectos como “fineza” do aroma ou “corpo” do vinho, contudo, demanda saber
previamente a que propriedades sensitivas eles correspondem — logo, demanda tanto
conhecer os parâmetros específicos que fundamentam essas categorias quanto aprender a
interpretar os estímulos sensoriais em função desses mesmos parâmetros. Identificar um
vinho como muito ou pouco “adstringente”, por exemplo, implica saber identificar o que seja
a sensação de adstringência em um vinho e já ter tido contato com pelo menos alguns
exemplares com graus de adstringência diferentes, para dispor de termos de comparação.
84
O que vale para o vinho certamente vale também para todo e qualquer alimento: a
experimentação constante garante a familiaridade com suas propriedades e, logo, algumas
referências para futura comparação e avaliação. No universo da degustação de vinhos,
contudo, — e é isso que nos interessa aqui — essa experimentação ganha o peso de uma
exigência básica, constituindo a própria razão de ser da atividade. Ser capaz de “decompor”
um exemplar da bebida em suas diferentes propriedades, ser capaz de avaliar esse vinho a
partir da soma de cada uma delas, é precisamente o que define a apreciação.
Não por acaso os degustadores afirmam que é preciso uma experimentação constante
de vinhos para que se desenvolva a habilidade da degustação: é o exercício da experimentação
que conforma um olhar, um paladar e um olfato mais aguçado para a bebida. O que é
interessante destacar é que, se por um lado é a aquisição desta sensibilidade a condição que
permite a prática da degustação, por outro, as sessões de degustação garantem a possibilidade
do exercício constante da experimentação, o que reforça as condições para a prática da
degustação, e assim infinitamente. Esta é uma das razões pelas quais os encontros de
degustação são considerados, por nossos informantes, contexto privilegiado para o
treinamento dos sentidos. A outra se deve ao fato de que essa experimentação é realizada em
grupo, e a troca das impressões particulares sobre as propriedades dos vinhos é também
crucial para que o degustador aprenda a interpretar as sensações dentro das categorias
prescritas pela metodologia da degustação
14
.
No que concerne especificamente à identificação de aromas — a análise do “nariz do
vinho”, na linguagem dos degustadores — o referencial de que necessita o degustador pode
ser considerado, em parte, menos exclusivo, pois guarda a vantagem de poder ser adquirido
por outros meios, para além do contato com a bebida. Considera-se que a aquisição de um
registro de experiências olfativas particulares (cheiros de flores, frutas, ervas etc.), necessárias
à sensação/interpretação dos aromas presentes nos diferentes tipos de vinho, pode (e deve) ser
realizada em qualquer ambiente que possibilite a sensação desses aromas, como feiras e
mercados. Livros e cursos de degustação chegam mesmo a recomendar uma incursão regular
a estes espaços como parte do treinamento da degustação
15
.
Mas é preciso relativizar a importância da sensibilidade e do conhecimento técnico
neste contexto. O exercício da identificação de propriedades é em muito sustentado por um
conhecimento prévio com relação àquilo que se pode encontrar dentro da taça de um
14
Para uma discussão sobre o papel do grupo no processo de aprendizagem demandado pelo reconhecimento
de sensações dentro de novas categorias, ver VELHO (1998) e BECKER (1963, citado por VELHO, 1998,
p.79-80). Embora lidem com uma temática bastante diversa da nossa — a iniciação no uso da maconha e o
aprendizado da sensação de “barato” —, as descrições do processo apresentam paralelos interessantes.
15
Outro recurso bastante comum entre esses degustadores é o treinamento do olfato através de amostras
artificialmente produzidas. Existe no mercado, uma caixa/livro chamada Le Nez du Vin, que apresenta 54
dos traços aromáticos mais recorrentes em vinhos veiculados em substância líquida e acondicionados em
pequenos vidrinhos. Caixa do gênero me foi mostrada por um de meus informantes como componente
fundamental de sua adega, tanto quanto suas garrafas e taças.
85
determinado vinho, isto é, o conhecimento do conjunto específico de propriedades que
caracterizam seu tipo. Fernando define o “bom degustador” exatamente em função dessa
habilidade de reconhecimento:
O bom degustador é um indivíduo que sabe, ao tomar o vinho, ao degustar o vinho,
apreciar as qualidades. É mais difícil tu enxergar as qualidades que os defeitos. Os
defeitos a gente enxerga logo. Tu tem contato mais rápido. Te chama a atenção. A
qualidade tu tem que procurar, às vezes. E conhecer, vamos dizer assim, a
procedência, as safras... Por exemplo, no meu grupo [de degustação], se tu botar um
[vinho]espanhol, todos vão dizer que é um espanhol. Ninguém erra, é muito difícil.
Ou se é um [vinho elaborado com a uva] tempranillo... As cepas em geral se
conhece bem. Claro que depois o grau de dificuldade aumenta. Hoje tem uma
variedade de vinho extraordinária, então tu não pode exigir, vamos dizer, um
conhecimento maior, a gente conhece uma base (grifo nosso).
Por “apreciar as qualidades” (o que até aqui vínhamos chamando de “propriedades” ou
“características”) podemos entender reconhecer os elementos “típicos” que se considera
emprestados ao vinho por uma combinação de fatores concernentes à sua produção. Como
dizem freqüentemente nossos informantes, é preciso ter a “cultura de um vinho” para poder
apreciá-lo, isto é, é preciso saber “o que esperar” dele, em função de seu tipo particular (por
exemplo, como menciona Fernando, se é um vinho espanhol, produzido em determinada
região, com tal uva) e ter uma certa familiaridade com suas propriedades mais características.
A troca de informações sobre as condições de produção dos vinhos, suas regiões de
origem, as propriedades de diferente tipos de uva etc. que mencionamos anteriormente e que
tem lugar logo antes do ritual de prova, possui em grande medida a função de promover a
construção dessa “cultura” de certos vinhos, estabelecendo entre os degustadores algumas
referências para a avaliação do que será experimentado a seguir, e favorecendo, por assim
dizer, o trabalho dos sentidos.
Como exemplifica Marta:
Vamos supor que a pessoa nunca leu nada que o [vinho feito à base da uva]
chardonnay tem gosto de maracujá, talvez espontaneamente ela não lembre
maracujá. Claro, porque aí no momento em que ela já leu algumas coisa, ela vai
identificar ou não o maracujá. É um pouco diferente. Há pessoas que tem mais
sensibilidade e talvez espontaneamente consigam dizer, olha, eu sinto um gosto de
maracujá aqui ou sinto um gosto que me lembra um fruta cítrica. Isso, sim. Isso eu
acho que a pessoa com sensibilidade consegue identificar, mesmo que não acerte
qual a fruta, mas... A família de frutas, se é mais ácido, se a acidez é maior... porque
tem outros aspectos também, o aspecto visual do vinho, se ele tá límpido, se é
brilhante ou se é mais turvo. E a gente aprende, por exemplo, em um vinho tinto, a
saber de que ano, de que safra que ele é só pela cor. Coloração mais alaranjada é
mais antiga, coloração mais “bordeaux” é mais novo...
Mais do que simplesmente uma ocasião de experimentação e discussão “objetiva”
sobre as propriedades dos vinhos, podemos considerar esta terceira etapa do ritual de
degustação como o início de um certo jogo social entre seus participantes baseado em uma
dialética particular entre conhecimento e reconhecimento, o qual terá continuidade ao longo
da próxima etapa. A legitimação de cada um dos participantes enquanto degustadores — e,
logo, do grupo, como um todo — é aqui negociada através da exibição de uma “sensibilidade”
86
e uma correspondente habilidade para identificar determinadas características, que são tanto
mais favorecidas quanto maior conhecimento se tem sobre o que será provado
16
.
Ao comentar sobre o processo de aprendizado empreendido ao longo dos anos,
Ricardo definiu de modo bastante interessante essa competência cultivada pelo degustador de
vinhos: segundo ele, trata-se de uma sensibilidade “enriquecida com a literatura, com esforço
e com a comunicação entre pessoas” — em poucas palavras, uma “percepção esclarecida”.
3.5 Quarta fase: avaliação dos vinhos e negociação de valores.
O processo de prova dos exemplares, que acabamos de descrever, costuma durar não
mais do que meia-hora, durante a qual, em paralelo à experimentação e à troca de comentários
descritivos, os degustadores também devem preencher fichas padronizadas (as “fichas de
degustação”, ver Anexo) indicando notas, dentro de uma escala preestabelecida, para cada
uma das propriedades examinadas ou para cada vinho como um todo.
Essas notas não são comentadas antes desta quarta fase da degustação, em que, tendo
todos os participantes encerrado a experimentação, tem início uma rodada de comentários
individuais quanto aos vinhos. Cabe, então, ao coordenador do grupo passar a palavra a um
degustador de cada vez (geralmente seguindo a disposição em que eles se encontram à mesa,
restando o próprio coordenador e o apresentador para o final) para que ele apresente e
justifique suas notas e teça as considerações que achar pertinentes.
Para impedir que os comentários de um degustador “influenciem” na apreciação dos
outros, é também somente a partir deste momento que são permitidas considerações sobre
qual exemplar cada participante preferiu, se um vinho foi considerado “excelente” ou “muito
ruim”, e assim por diante etc. As opiniões pessoais são agora livres, e prega a etiqueta do rito
que jamais se julgue o julgamento do outro. Pelo contrário, em grande parte dos encontros a
que assisti, quanto mais variadas as opiniões expressas ao final da degustação, mais se
exaltava o caráter “democrático” da atividade. “Aqui é tudo completamente desarmado”, me
garantiu Júlio; “isso é que é a coisa maravilhosa do vinho, as pessoas às vezes têm opiniões
tão diferentes”, destacou Edith.
16
O jogo é tanto mais explícito, quanto mais ocultas são tornadas todas as “pistas” que podem ajudar na
identificação de certas propriedades, como ocorre no caso das degustações “às cegas”. Muitas vezes esse
caráter de jogo é claramente assumido de modo a transformar os encontros em uma grande “brincadeira”
(que serve, no entanto, também como “momento de aprendizado”, como é sempre destacado). Em uma
reunião de que participei, o apresentador selecionou cinco vinhos varietais (isto é, produzidos apenas ou
majoritariamente com um único tipo de uva) e provenientes de diferentes países das Américas. Tendo apenas
estas duas informações, caberia aos degustadores identificar, apenas pela prova, qual o país de origem, qual a
uva e qual a safra de cada vinho, além de atribuir uma nota (entre um e dez) para cada um deles. Como os
próprios degustadores esperavam, as respostas foram bastante variadas, e apenas um deles (Ricardo, que
acredito ser o degustador mais antigo dentre os daquele grupo) foi capaz de acertar conjuntamente dois ou
mais fatores de um único vinho.
87
Geralmente, cada degustador inicia sua fala mencionando qual o exemplar de que
gostou mais e o porquê, justificando-se a partir da menção às propriedades que mais lhe
agradaram (um certo traço aromático, a beleza da cor, a “evolução”
17
do aroma ao longo da
degustação etc.). Em seguida ele pode mencionar o segundo vinho mais apreciado ou aquele
que achou o pior de todos, e igualmente justificar suas opiniões pelo comentário a certas
propriedades. Alguns degustadores são mais prolixos nessas apresentações, mencionando
também em que tipo de situação ou com que tipo de prato gostaria de tomar os vinhos que
considerou melhores
18
. A apresentação individual termina com a exposição das notas gerais
concedidas a cada um dos vinhos, segundo a ordem de preferência. As notas concedidas por
cada um dos degustadores é anotada pelo coordenador que, ao final do ciclo, realiza o
somatório e estabelece o “ranking final” dos vinhos da noite
19
.
É importante mencionar que o recurso ao vocabulário descritivo mais analítico
prescrito pela metodologia mistura-se, neste momento, a considerações bem menos objetivas
quanto aos vinhos, recorrendo-se, com freqüência, às metáforas. Na tentativa de atribuir a
cada vinho um “caráter” particular fala-se, por exemplo, em vinhos mais “elegantes”,
“refinados” ou “delicados” (adjetivos que indicam exemplares valorizados em meio ao grupo)
e, num outro extremo, em vinhos “rústicos” ou “toscos” (considerados ruins e de baixa
qualidade). Em uma sessão de que participei, por exemplo, o melhor vinho entre os provados
foi qualificado por vários degustadores como “aristocrático”, como um vinho “de salto alto”,
enquanto o pior deles foi definido como um “vinho rústico, de caubói”. Comentando sobre a
seqüência de vinhos daquela noite alguém arrematou, pesarosamente, dizendo que “saímos do
palácio e fomos para o mundo dos caubóis”.
Observar estas definições é significativo para nós pois elas apontam para valores
importantes em meio ao grupo que são articulados através do consumo dos vinhos. Podemos
lembrar quanto a isso o que escreveu Mary Douglas (1987, p.09, tradução nossa): “provar
uma bebida é provar o que acontece a toda uma categoria da vida social”, uma vez que “o que
é categorizado em qualquer reunião familiar ou em uma taverna é parte da ordem social.”
20
17
Segundo apontam os degustadores, os aromas dos vinhos depositados nas taças progressivamente vão sendo
liberados, ao longo de um tempo, em função do contato com o ar, “abrindo-se” ou “evoluindo”, o que os
torna mais perceptíveis.
18
Quanto a essas avaliações é interessante mencionar que, se por uma lado é possível observar certas
inclinações individuais com relação às propriedades preferencialmente avaliadas/mencionadas (alguns
degustadores priorizavam comentários sobre o aroma ou sobre certas propriedades do gosto, por exemplo),
também era possível observar a unidade do grupo em torno da avaliação de um aspecto particular: a idade do
vinho, em função do que ela pode indicar sobre o exemplar estar pronto ou não para ser consumido, era
preocupação presente em quase todas as falas e matéria de intensas discussões ao final da rodada de
comentários.
19
Este ranking pode ser posteriormente enviado a cada um dos degustadores do grupo por meio de correio
eletrônico, ou disponibilizado a todos os membros da Sociedade através de sua página na Internet, passando a
constituir, segundo os informantes, uma referência importante para as compras particulares dos degustadores.
20
No original: Sampling a drink is sampling what is happening to a whole category of social life. [...] what is
being categorized at any tavern meeting or home reunion is a part of a social ordering.”
88
Também no caso de nossos informantes, devemos considerar que há todo um “mundo” sendo
permanentemente “construído” (segundo os termos usados por Douglas, 1987, p. 09) através
da negociação de valores envolvida na classificação dos vinhos, bem como em todas as
práticas ligadas à degustação.
Para os degustadores, essa rodada final de comentários e apresentação de notas é
considerada a etapa mais importante do encontro, o seu clímax, pois é quando expressam-se
os gostos individuais, comentam-se as notas e busca-se, em conjunto, estabelecer juízos
quanto aos vinhos experimentados. Como já foi dito, um dos objetivos finais das sessões de
degustação é, segundo definem nossos informantes, permitir aos participantes o contato com
“o que existe à disposição no mercado”. Mas mais do que isso, elas são importantes porque
permitem o reconhecimento daquilo que, em meio à variedade disponível para escolha, é
dotado de “qualidade” — uma propriedade fundamental para esses consumidores e que deve
ser aferida, nas sessões, sob a chancela do grupo.
É preciso mencionar que o juízo quanto aos vinhos é, por um lado, pautado por
critérios ou padrões de “qualidade” definidos fora do grupo, isto é, estabelecidos e
legitimados por autoridades reconhecidas no universo da enofilia — críticos, enólogos,
jornalistas especializados — e disseminados através de certos canais, como livros, artigos de
jornal ou revista, guias de compras, etc.
21
. As opiniões e avaliações dessas autoridades,
estabelecidas a partir desses critérios, permanecem, portanto, como referência fundamental
dos degustadores para que se possa considerar, com maior convicção, um vinho como “muito
bom”, “bom” ou nada além de “razoável”. Menções a críticos de vinhos ou jornalistas
especializados pontuaram muitas das entrevistas e das conversas ao longo das degustações, e
esse embasamento foi tornado ainda mais claro com a leitura, em meio a vários encontros, das
cotações e comentários apresentados em guias de vinhos sobre os exemplares que estávamos
provando
22
.
Por outro lado, dentro do grupo esses critérios e referências seguem sendo
permanentemente atualizados e negociados durante as sessões, priorizando-se alguns deles,
desconsiderando-se outros, e assim por diante. Certos critérios, talvez mais recorrentes ou
21
Não é intenção deste trabalho fazer uma análise das instâncias e dos processos de definição/ legitimação dos
critérios de avaliação dos vinhos, e nem traçar uma relação dos mesmos. Apenas a título de exemplo,
podemos mencionar que o equilíbrio entre as sensações de doçura, acidez, adstringência e alcoolicidade —
“harmonia” —, a profundidade de aroma e a persistência de gosto são algumas das características que foram
interpretadas, ao longo das reuniões que acompanhei, como índices de qualidade.
22
É interessante mencionar que, se por um lado estes guias buscam conceder às suas avaliações, tanto quanto
possível, o caráter de objetividade, apresentando os critérios para a concessão das notas e utilizando-se de
uma linguagem descritiva analítica, por outro freqüentemente combinam à ela descrições que dificilmente
podemos considerar objetivas. O guia da connaisseur americana Jancis Robinson, por exemplo, lido em voz
alta durante um dos encontros, qualifica determinado vinho como “poderoso e concentrado”, dizendo que
“parece o desabrochar de uma primavera intensa”. Esta linguagem literária, não obstante, parece agradar a
muitos de nossos informantes que, como Lígia, disseram achar “linda a descrição!”. Retomando o que já foi
mencionado, podemos observar aqui o consumo do imaginário construído em torno do vinho (FISCHLER,
1994).
89
consolidados nas diversas fontes de informação utilizadas pelos degustadores, seguiam sendo
utilizados consensualmente, sem jamais terem sido postos em discussão (como por exemplo,
o fato de a persistência do aroma constituir um índice de “qualidade”). Outros,
freqüentemente eram discutidos, como o caráter positivo ou negativo da presença de sabor
forte de madeira (conferida pela utilização de barril de carvalho na produção do vinho). E
outros, ainda, permaneciam muito pouco claros para a maioria dos degustadores — até que
um deles decidisse colocar a questão em pauta.
Tal foi o caso, por exemplo, quando um dos membros mais recentes do grupo quis
saber qual o referencial de base que deveria ser adotado para a concessão das notas aos
vinhos. Júlio disse que para ele o vinho de nota 100 (nota máxima, segundo a ficha de
degustação) seria um imaginário “melhor vinho do mundo”, ao que foi rebatido por outro
degustador: “Acontece que o melhor vinho do mundo eu nunca tomei!”. Um terceiro
participante garantiu sempre usar como referência “o vinho que eu tomei sábado passado”,
enquanto um quarto disse que era melhor “atribuir as notas apenas por comparação entre as
amostras experimentadas dentro de uma mesma sessão”. Não se chegou a um acordo.
Quanto a isso é preciso dizer que, embora a falta de consenso quanto à avaliação das
amostras, quando ocorre, seja exaltada como sinal de uma saudável “variedade de gostos”, ela
não deixa de ser um pouco incômoda. Podemos considerar que é pelo consenso nas opiniões
sobre os vinhos provados que se confirma de modo mais enfático a legitimidade de todo o
processo de degustação, e a ausência deste consenso, ao levar a um questionamento (explícito
ou não) quanto aos parâmetros e refereciais de avaliação empregados pelo grupo, põe em
questão também essa legitimidade.
Embora se conceda grande valor, neste espaço, à particularidade do “gosto” de cada
participante (entendido tanto como paladar quanto como inclinação ou preferência), isto não
quer dizer que ele não permaneça pautado por certos referenciais mantidos em meio ao grupo.
Pelo contrário. Sem grandes problemas, dois degustadores podem eleger como seus vinhos
prediletos, exemplares diferentes considerados “bons” ou dentro de uma escala de qualidade
intermediária; mas considerar o melhor de todos um vinho agraciado com notas baixas pela
maioria do grupo põe em xeque a competência do degustador em questão ou (dependendo da
autoridade que este tenha em meio ao grupo), do grupo como um todo.
Uma situação observada em campo ilustra bem esta situação. Ao final da terceira etapa
de uma sessão de degustação que transcorria particularmente silenciosa, teve início a rodada
de avaliações pessoais. Até aquele momento, poucos comentários haviam sido trocados sobre
os vinhos que estavam sendo provados. O primeiro degustador da roda começa mencionando
o vinho de que mais gostou, e em seguida destaca, negativamente, o quarto vinho provado,
qualificando-o como “muito ruim”, por se tratar (segundo sua percepção) de um vinho cujo
sabor indicava que já havia passado do momento ideal de consumo. Seguem-se os outros
90
degustadores da roda, e os comentários mantêm quase o mesmo padrão: o quarto vinho é
considerado “decadente”, já inadequado para o consumo, desagradável....
Chegada a hora do último degustador da roda se pronunciar, e ele começa dizendo que
“se eu fosse convidar vocês para um jantar hoje, e fosse servir uma carne, o vinho que eu
escolheria para acompanhá-la seria... o quarto vinho, esse de que ninguém parece ter gostado
hoje”. A surpresa foi geral e o degustador se justificou dizendo que concedera sua maior nota
àquele vinho, pois de todos os experimentados era “o único que já se encontra pronto para
beber, é o mais evoluído. Bom vinho velho é isso aí, você não sente nem a acidez e nem o
tanino”. Quase imediatamente todos os degustadores puseram-se a provar novamente o vinho
e a discutir os critérios de avaliação, e muitos passaram a concordar com o degustador
dissidente.
Assim, se definimos anteriormente o ritual de degustação como um jogo social,
baseado na exibição de uma “sensibilidade” e uma correspondente habilidade por parte dos
degustadores para identificar determinadas características, devemos agora acrescentar a esses
elementos mais um: a capacidade de avaliação. Sendo igualmente pautada por um
conhecimento específico (dos critérios e referenciais de avaliação entendidos como autênticos,
em meio ao grupo) que permite um certo tipo de reconhecimento (da “qualidade”, isto é,
daquilo que faz um vinho “bom” e, logo, dos “bons vinhos”), também ela constitui-se como
habilidade fundamental neste espaço, sendo responsável pela legitimação do grupo e de cada
um de seus participantes enquanto “bons apreciadores”. A competência que Ricardo definiu
como “percepção esclarecida” certamente também se constrói através do conhecimento dos
critérios e referenciais de qualidade.
Caracterizar a atividade da degustação, tal como realizada por nossos informantes,
como um “jogo social”, permite-nos colocar em relevo aquilo que mais nos interessa na
observação dessas falas, gestos e regras que caracterizam as sessões: em primeiro lugar, é o
próprio reconhecimento delas como parte de um modelo de comportamento considerado
importante o que traça os limites do grupo e permite que ele se perceba como definido por
uma certa identidade cultural. Ao mesmo tempo, através dessas falas, gestos e regras estamos
“observando” o permanente acionamento e reordenamento de idéias e valores importantes em
meio ao grupo, os quais são traduzidos e retrabalhados por meio das práticas específicas
realizadas neste contexto e, a partir delas, reinvestidos nos próprios degustadores e no grupo.
Dissemos ao início deste capítulo que a realização de todo ritual fundamenta-se na
adesão mental de cada um dos membros do grupo “a valores relativos de escolhas sociais
tidas como importantes, e cuja eficácia esperada não mostra uma lógica puramente empírica
que se esgotaria na instrumentalidade técnica da ligação causa-efeito” (SEGALEN, 2000,
p.23). Devemos, portanto, considerar que a eficácia das práticas de degustação relaciona-se
não apenas ao que estas eventualmente permitem com relação ao treinamento dos sentidos dos
91
participantes, à aquisição de uma “cultura” do vinho, ao “refinamento” de suas preferências
ou à objetivação das discussões e avaliações quanto à bebida (tal como apreendem os
degustadores). Essa eficácia encontra-se também, ou principalmente, na própria reafirmação e
reordenamento de idéias e valores que o ritual de degustação permite.
Nesse sentido, é principalmente através do acionamento de um vocabulário
especializado, do recurso a critérios e referenciais de apreciação específicos e de toda uma
postura corporal codificada (expressa não apenas no gestual técnico mas em toda postura
adotada dentro do espaço-sede) que valores cotidianos como moderação, comedimento,
formalidade, auto-aperfeiçoamento, esforço, erudição e sensibilidade (mencionados
anteriormente) são retomados e traduzidos, dentro do rito, em outras idéias que,
concomitantemente, ajudam a fundamentá-lo.
As idéias da “percepção esclarecida” e do “saber beber”, devem ser entendidas neste
sentido: tratam-se de construções, permanentemente atualizadas no contexto das degustações,
e que têm como base (entre outros fatores) a valorização do aprendizado e do auto-
aperfeiçoamento, por parte destes consumidores. Mais do que o prazer dos sentidos, o que é
afirmado neste espaço, através das práticas e normas de degustação (e sobretudo através do
jogo entre conhecimento e reconhecimento), é o próprio valor do aprendizado, enquanto única
via que permite o acesso a esse mesmo prazer. Ou, antes, o que se constrói é exatamente a
idéia de um prazer obtido no treinamento e no auto-aperfeiçoamento.
Além disso, podemos pensar, a partir de BOURDIEU (1983, 1984), que a
familiarização de cada um dos degustadores com o vocabulário especializado, com os
critérios e referenciais “legítimos” de apreciação e com o gestual técnico, empreendida
através do contínuo treinamento promovido pela prática da degustação, na medida em que
procede à progressiva “naturalização” dessas competências (como pregam, aliás, os manuais
de degustação) procede também ao escamoteamento de seu caráter arbitrário. Esse é o caso,
especialmente, da questão da qualidade, entendida, neste espaço, como um valor intrínseco a
certos vinhos, apenas à espera de reconhecimento pelo “bom apreciador”. É o que podemos
perceber através da fala de Júlio, quando traça a diferença (fundamental para nossos
informantes) entre os vinhos finos (“top”) e os vinhos de mesa (“de garrafão”):
Então, eu não tenho a menor dúvida que o cara tomando às cegas, eu acho que até
um cara sem treinamento nenhum, se ele toma às cegas um cálice de um vinho de
garrafão bem comum... e uma taça de um vinho top [...] tu vai sentir a diferença na
hora, sem ter nenhum conhecimento de vinhos. Por quê? Não tem acidez, ele é um
vinho redondo na boca, porque redondo é quando ele não te agride a boca, ou por
tanino excessivo ou por acidez ou por amargor. Os defeitos do vinho... o vinho de
garrafão não tem aroma. E tem uma coisa pior ainda. Quando o vinho é feito de uva
americana, que era a grande tradição da colônia, uva Isabel, uva Bordô, uva
Concorde, não sou eu que digo, todo mundo diz que é impossível se fazer um bom
vinho dessa uva. Por quê? Porque é uma uva de mesa, tem acentuado gosto de uva.
Para o suco de uva isso é uma grande qualidade ter gosto de uva, para o vinho é uma
péssima qualidade, o vinho não pode ter gosto de uva. Vinho tem que ter gosto de
vinho (grifo nosso).
92
Embora claramente um produto da educação sistemática, o “gosto” por certos tipos de
vinhos que é informado através desses critérios ganha a aparência de um gosto “natural”, e é a
partir dessa naturalização que se constrói uma fronteira específica dentro da qual se encerra o
grupo de degustadores, frente a outros consumidores da bebida. O mesmo informante, durante
uma entrevista, reclamou que tem um cunhado que “não dá a mínima bola para isso. Para ele
os vinhos são todos iguais. Eu nem consigo abrir uma garrafa boa de vinho com ele!”
Devemos, portanto, considerar que é a prática ritualizada da degustação, através da
reafirmação de seus saberes específicos, da importância do gestual e de seu léxico particular,
a responsável por investir certos vinhos (e, logo, os degustadores) de suas propriedades
distintivas. E é nesta quarta e penúltima etapa do ritual que esse investimento se faz mais
claro.
3.6 Encerramento do ritual: desagregação.
Logo depois de anunciado o ranking dos vinhos provados, construído através das notas
finais concedidas por todos os membros do grupo, chega-se ao que um degustador definiu
como “o momento mais triste da noite”: o apresentador anuncia os preços dos vinhos que
foram degustados e é feito o rateio entre todos os participantes do encontro. De modo geral, o
valor per capita em cada encontro se insere em uma média acordada entre todos os membros
do grupo: no grupo de que participei regularmente, por exemplo, as sessões costumavam girar
em torno dos 50 reais por participante; outros grupos de degustação na Sociedade adotavam
médias mais altas ou mais baixas que esta. Cada degustador paga sua parte diretamente ao
apresentador e, sem mais demoras, as pessoas começam a se retirar da sede, cerca de duas
horas depois de terem chegado à ela.
93
94
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Iniciamos este trabalho afirmando, a partir da perspectiva teórica proposta por alguns
autores, a estreita imbricação existente entre as escolhas alimentares e as representações
sociais carregadas por um determinado grupo de pessoas. Afirmamos que os alimentos (assim
como os bens de consumo, de modo mais geral), quando observados dentro de um
determinado contexto social, são sempre portadores de valores atribuídos pelo grupo que
deles se utiliza, e os diferentes aspectos relacionados ao seu consumo — como, quando, onde
e com quem são consumidos — são fatores significantes e significativos quanto às
representações acionadas em meio a este grupo.
Nesse sentido, buscamos aqui apreender as representações construídas em torno do
consumo de vinho por parte de um grupo bastante particular de informantes: apreciadores que
se dedicam a participar de rituais de degustação. Não se trata de um grupo de consumidores
qualquer, mas de consumidores que se consideram portadores de um “saber” específico — e
fundamental — quanto à bebida, o qual é continuamente reforçado pela atividade regular de
experimentação e avaliação. Para compreender sua relação com o vinho, partimos da análise
de uma série de práticas e hábitos de consumo relatados por eles, buscando relacioná-los ao
modo de consumo empreendido dentro do “espaço de significação” (DOUGLAS;
ISHERWOOD, 2004, p.41) construído nas sessões de degustação.
Assim, em todas as escolhas e ações de nossos informantes vinculadas ao consumo de
vinho — o qual não se restringe, como dissemos, à ingestão da bebida, mas tem início no
processo de seleção, compra e armazenagem — pudemos observar uma associação da bebida
com as idéias de lazer, sociabilidade, confraternização, moderação e aprendizado. Sobretudo
estes dois últimos aspectos são importantes, pois sustentam a idéia fundamental de que o
vinho é uma bebida que não deve ser apenas tomada, e sim, apreciada. Para esses
informantes, beber vinhos adequadamente demanda uma certa competência (“saber beber”),
fundamentada tanto no autocontrole, quanto no exercício de uma habilidade discriminatória
particular.
95
As trajetórias relatadas por eles ajudam a sublinhar a centralidade concedida a esses
aspectos. A entrada na Sociedade, a realização de cursos e a adoção da maioria dos hábitos
relacionados ao vinho são significados, hoje, como movimentos fundamentais dentro do que
é pensado como o “caminho natural” do enófilo: travar um primeiro contato com a bebida,
conversar com apreciadores mais experientes, passar a ler sobre ela, experimentar cada vez
mais vinhos e, aos poucos, ir refinando suas preferências. Ao mesmo tempo, o conjunto
desses hábitos e práticas adquiridos a partir da “evolução” no gosto e no modo de se pensar o
vinho são também entendidos como símbolos de um estilo de vida hoje assumido, definido
como um “saber viver”.
No contexto das degustações, os móveis e utensílios selecionados para compor o
cenário e possibilitar a prova dos vinhos, o gestual adotado pelos degustadores ao longo da
sessão, o vocabulário empregado, as normas e técnicas acionadas na experimentação, o
momento de realização dos encontros, suas regras de etiqueta particulares, são todos
elementos significativos não apenas quanto ao modo com que o consumo do vinho é pensado,
mas quanto a idéias e valores mais gerais importantes em meio ao grupo, expressas em sua
relação com a bebida.
É o conjunto desses elementos, e o sentido que adquirem nesse ambiente, o que faz
com que a participação desses consumidores no ritual adquira, para eles, relevância
particular. As sessões de degustação representam importantes ocasiões de lazer e de
sociabilidade. Mas é através do tipo de sociabilidade específica empreendida
naquele espaço, sustentada pelo reconhecimento dos valores implicados em suas
práticas, que elas são construídas como um contexto de consumo especial: um
ambiente privilegiado para o treinamento dos sentidos, o exercício das técnicas e a
aquisição ou atualização dos conhecimentos que permitem o “saber beber”.
As sessões de degustação devem ser entendidas, portanto, como fundamental campo
de reafirmação da própria idéia de uma competência “exigida” pela apreciação adequada da
bebida e, logo, como espaço de legitimação dos degustadores enquanto apreciadores de vinho
essencialmente diferenciados de quaisquer outros consumidores.
96
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