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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
PARA A CIÊNCIA E O ENSINO DE MATEMÁTIC
MÁRCIA CRISTINA AMARAL DA SILVA
A ESCRITA NUMÉRICA POR CRIANÇAS SURDAS BILÍNGÜES
MARINGÁ
2008
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MÁRCIA CRISTINA AMARAL DA SILVA
A ESCRITA NUMÉRICA POR CRIANÇAS SURDAS BILÍNGÜES
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação para a Ciência e o
Ensino de Matemática da Universidade Estadual
de Maringá, como requisito parcial para obtenção
do título de Mestre em Educação para a Ciência
e o Ensino de Matemática.
Orientadora: Profª. Drª. Clélia Maria Ignatius
Nogueira.
Co-Orientadora: Profª Drª Eliane Sebeika
Rapchan
MARINGÁ
2008
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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
(Biblioteca Central - UEM, Maringá – PR., Brasil)
Silva, Márcia Cristina Amaral da
S586e A escrita numérica por crianças surdas bilíngües
/ Márcia Cristina Amaral da Silva. -- Maringá :
[s.n.], 2008.
226 f. : il. (algumas color.)
Orientadora : Profª Drª Clélia Maria Ignatius
Nogueira.
Co-orientadora : Profª Drª Eliane Sebeika
Rapchan.
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de
Maringá. Programa de Pós-graduação em Educação para
a Ciência e o Ensino de Matemática, 2008.
1. Educação de surdos. 2. Surdos - Educação
matemática. 3. Surdos - Escrita numérica. 4.
Educação matemática. 5. Escrita numérica. 6.
Educação especial. I. Universidade Estadual de
Maringá. Programa de Pós-graduação em Educação para
a Ciência e o Ensino de Matemática. II. Título.
CDD 21.ed. 371.912
4
Dedico este trabalho
Àqueles que me deram a vida e a oportunidade de buscar o conhecimento: Maria
Zoraida e “Paina”
Àquele com quem compartilho o que sou: Renato
5
AGRADECIMENTOS
À Profª. Drª. Clélia Maria Ignatius Nogueira, por me aceitar como sua orientanda e
por me ensinar a ver a educação matemática com outros olhos, bem como a
compreendê-la no processo de desenvolvimento humano de modo a promovê-lo.
À Profª. Drª. Eliane Sebeika Rapchan pela colaboração imprescindível na construção
e elaboração de nossa concepção do sujeito surdo.
À Profª Drª Maria Lúcia Faria Moro pela disposição em participar da Banca e pelas
contribuições valiosas à integralização da pesquisa.
Às Profª. Drª. Luzia Marta Belinni e Profª Drª Regina Pavanello, pelas análises
parcimoniosas e importantes sugestões quando do exame de qualificação.
À Profª Drª Edna de Lourdes Machado pelo aceite em participar da Banca.
À Escola de Educação Especial de Maringá-PR, que permitiu a investigação nas
suas dependências, bem como à equipe de direção, professores, e funcionários que
tornaram possível a realização desta etapa do trabalho.
Às crianças participantes da pesquisa e aos seus pais e responsáveis que
autorizaram a sua participação, sem o que este trabalho seria inviável.
À Profª Lívia Franco da Silva Nascimento, pela cuidadosa correção ortográfica.
Aos meus pais, Maria Zoraida e “Paina” (in memoriam), por me conduzirem
amorosamente ao que hoje sou.
Ao meu irmão Afonso, por dividir comigo as minhas angústias e a incentivar-me nos
momentos de desânimo.
6
Ao Renato, companheiro e amigo, com quem sonho os meus sonhos e compartilho
as minhas conquistas.
Aos meus filhos, Lívia, Renato e Isabela, que sempre me incentivaram e acreditaram
nas minhas possibilidades.
Aos meus netos, Lorenzo, Ana Clara e Laura, que repartem comigo sua alegria
constante.
Aos amigos que fiz durante esta formação e aos que conquistei em minha vida, pelo
carinho e compreensão dispensados nesta caminhada.
A Deus, presente em todos os momentos de meu viver, motivo de meu louvor e de
minha gratidão.
7
[...] a educação tem a ver com o talvez de uma vida que nunca
poderemos possuir, com o talvez de um tempo no qual nunca
possamos permanecer, com o talvez de uma palavra que não
compreenderemos, com o talvez de um pensamento que nunca
poderemos pensar, com o talvez de um homem que o se
um de nós. Mas que, ao mesmo tempo, para que sua
possibilidade surja, talvez, do interior do impossível, precisa de
nossa vida, de nosso tempo, de nossas palavras, de nossos
pensamentos e de nossa humanidade (Jorge Larrosa).
8
RESUMO
O presente estudo tem como objeto a construção da escrita numérica por crianças
surdas bilíngües. O propósito é compreender como ocorre esta construção, os
fatores e as relações nela implicados, bem como as hipóteses elaboradas pelas
crianças acerca deste conhecimento. Este estudo tem como subsídio teórico-
metodológico trabalhos de autores que tratam de alguns aspectos da escrita
numérica por crianças ouvintes. As informações foram coletadas por meio de
entrevistas com onze crianças surdas de cinco a nove anos de idade, alunas de uma
escola de Educação Especial de Surdos, mediante o emprego do método clínico-
crítico piagetiano. Os resultados da pesquisa demonstram que a criança surda
elabora hipóteses sobre a escrita numérica semelhantes às identificadas nas
crianças ouvintes. Demonstram, ainda, que a LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais)
se constitui como um fator fundamental para a efetivação desta construção e aponta
para o fato de ser a escola um espaço privilegiado para tal, dado que é nela que
ocorre o uso constante desta língua, o que vem a favorecer as trocas simbólicas
necessárias para a construção conceitual por estes sujeitos.
Palavras-chave: Educação Matemática. Escrita numérica. Educação de Surdos.
9
ABSTRACT
This work intends to analyse how bilingual deaf children construct numerical writing;
the factors and relations connected to it, as well as the hypothesis children have
about this subject. The research is based on authors that deal with some aspects of
numerical writing by hearing children. The information were collected through
interviews with eleven deaf children from five to nine year olds in a special school for
the deaf children. The method used in the interviews was the Piaget’s critical-clinical.
The results of this research show that deaf children have similar numerical writing
hypothesis to those identified in hearing children. They also tell us that LIBRAS
(Brazilians sign Language) is a fundamental factor in this construction so the school
as a space where its use is continuous, can be considered as a very special place of
promoting symbolic changes, necessary to these children’s conceptual construction.
Key words: Mathematical education, Numerical writing, Education for the Deaf.
10
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.............................................................................................11
2 O SUJEITO SURDO – UMA CONSTRUÇÃO SÓCIO-CULTURAL............23
3 A LINGUAGEM E AS NOTAÇÕES NUMÉRICAS......................................38
4 EM ESTADO DE ESCUTA... ......................................................................54
5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS....................................................95
5.1 OS SUJEITOS.............................................................................................96
5.2 A ESCOLA...................................................................................................99
5.3 AS PROVAS...............................................................................................102
5.3.1 Investigação do repertório numérico.....................................................106
5.3.2 Investigação da contagem, da cardinalidade, da ordinalidade, da
classificação, da seriação e dos tipos de notação...............................108
5.3.3 Investigação da seqüência numérica, da comparação, da seriação,
da cardinalidade, da ordinalidade e do valor posicional......................115
6 RESULTADOS DA PESQUISA ................................................................125
6.1 O REPERTÓRIO NUMÉRICO....................................................................125
6.2 AS CATEGORIAS DE ANÁLISE................................................................145
6.2.1 Categoria das relações simples..............................................................146
6.2.1.1 Relações simples de contagem.................................................................147
6.2.1.2 Relações simples de cardinalidade...........................................................153
6.2.1.3 Relações simples de classificação e seriação...........................................160
6.2.1.4 Relações simples com os “números especiais”: o zero e os “nós”............172
6.2.2 Categoria de relações refletidas............................................................175
6.2.2.1 Relações refletidas de contagem, de cardinalidade e de ordinalidade.....175
6.2.2.2 Relações refletidas de classificação e seriação........................................187
6.2.2.3 Relações refletidas com os “números especiais”: o zero e os “nós”.........199
6.2.2.4 Relações refletidas e o valor posicional....................................................205
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................210
REFERÊNCIAS.........................................................................................216
APÊNDICES..............................................................................................221
ANEXOS....................................................................................................224
11
11
1 INTRODUÇÃO
Durante vinte e quatro anos de minha vida trabalhei com surdos. Desde a formação
na área de Fonoaudiologia, em 1982 e, posteriormente, nos atendimentos clínicos,
interessou-me, sempre, compreender como se dava o desenvolvimento cognitivo
destes sujeitos. Pelo contato com os pacientes surdos e seus pais e mediante as
suas queixas em relação ao desempenho de seus filhos na escola, entendi que a
realidade educacional a que estavam expostos não era favorável às especificidades
de sua aprendizagem. Apesar de um discurso político educacional hegemônico
sobre inclusão, a escola que temos é excludente em sua essência.
Muito embora minha formação fosse direcionada para reabilitação clínico-
terapêutica, defendo o ensino bilíngüe e não compactuo com aqueles que desejam
transformar os surdos em ouvintes que não ouvem e impõem a língua majoritária
como único meio de comunicação viável. Vejo os surdos como sujeitos que
necessitam de uma adaptação quanto à estruturação curricular do sistema
educacional no que se refere às suas particularidades lingüísticas. Vejo a surdez
como uma “experiência visual”:
Ao definir a surdez como uma experiência ‘visual’, que constitui e
especifica a diferença, não estou restringindo o visual a uma
capacidade de produção e compreensão especificamente lingüística
ou a uma modalidade singular de processamento cognitivo.
Experiência visual envolve todo tipo de significações, representações
e/ou produções, seja no campo intelectual, lingüístico, ético, estético,
artístico, cognitivo, cultural, etc. (SKLIAR, 1999, v. 1, p.11).
Em uma sociedade ouvinte, constato que os surdos se encontram em desvantagem,
vivem na terra de outrem; não têm oportunidades igualitárias para desenvolver seu
potencial cognitivo, não vêem respeitada sua alteridade. Skliar (1999) afirma que,
por mais que o discurso político-educacional acene com a possibilidade da inclusão,
a realidade nos mostra que esta se encontra distante e inviável, pelas condições das
instituições de ensino brasileiras e da formação profissional ofertada aos
professores.
12
Realizar um trabalho que adentre os meandros da escola apresenta-se como uma
maneira de contribuir para que os surdos tenham oportunidades objetivas de
superação de suas condições reais de existência. Percebi que deveria, então,
envolver-me com o universo da pesquisa científica, com o objetivo de compreender
como se este processo. Incomodou-me a constatação de que, se os alunos
ouvintes, parcela majoritária da população, experimentam uma “pseudo-educação”
calcada na insuficiência material, humana e teórica (SKLIAR, 1999), como se
estabeleceria a educação do surdo num contexto em que a manutenção do status
quo se sobrepõe à transformação das relações vigentes?
Além de atuar como fonoaudióloga, minhas inquietações direcionavam-me para um
horizonte mais amplo, com possibilidades mais abrangentes que o trabalho
particularizado em clínica. Fiz especializações em Psicopedagogia, Docência do
Ensino Superior e Pesquisa Educacional. Ingressei no curso de Pedagogia e,
subsidiada pelas disciplinas ministradas nesta graduação, iniciei uma caminhada
sem volta, à procura de respostas aos meus questionamentos. Saíra da “caverna de
Platão” (PLATÃO, 1999) e para lá não mais voltaria.
Das disciplinas cursadas, a denominada Metodologia e Prática de Ensino da
Matemática convenceu-me de que o processo de ensino e aprendizagem de seus
conteúdos era complexo, mas instigante. A lógica e as operações mentais que
subjazem à matemática o essenciais para o cotidiano, arma de luta e instrumento
de autonomia para muitos. Ao pensar nos sujeitos de minha pesquisa, optei pela
matemática como um dos temas centrais de meu estudo. Mas qual área de ensino
escolar, especificamente? Recortes teriam que ser efetuados.
Busquei, então, o curso de mestrado. Era uma parte do caminho que teria de trilhar
a fim de atingir meus objetivos. Ao me apresentar à orientadora tive a surpresa de
constatar que, além de pesquisadora e matemática, ela é também mãe de duas
surdas. Depois desse encontro, sabia que uma gama de possibilidades estava posta
ao meu alcance. Os interesses comuns e o contato cotidiano com os surdos seriam
um dos pilares para que a pesquisa tomasse uma direção objetiva.
13
Na tentativa de efetuar os necessários recortes que resultassem em um projeto de
pesquisa que contemplasse nossos dois interesses igualmente importantes,
procuramos por estudos realizados que investigassem senão as relações entre a
surdez e a elaboração dos conceitos matemáticos, os que pelo menos abordassem
aspectos da educação de surdos.
Nos estudos que realizamos para a elaboração de nosso projeto de pesquisa
constatamos que, no Brasil, mais especificamente no Paraná, nas décadas de 1950
e 1960, praticamente inexistiam trabalhos científicos acerca dos surdos na área
educacional, pois não se acreditavam em suas possibilidades e, portanto, não havia
a preocupação com sua formação acadêmica ou profissional. A principal, senão a
única, forma de atendimento desses sujeitos tinha características assistencialistas e
era fornecida por instituições filantrópicas (STROBEL, 2000).
Essa situação começa a mudar a partir do final da década de 1960 e início da
década de 1970, quando a surdez passa a ser concebida não mais como uma
“doença incapacitante”, mas como deficiência. Inicia-se uma nova fase, na qual os
surdos recebem atenção dos segmentos institucionais organizados, inclusive da
educação caracterizada, nesse período, pelo predomínio de modelos clínicos em
detrimento dos objetivos educacionais.
Estudos realizados nesse período, como os de Furth (1968), demonstram que existe
compatibilidade entre o desenvolvimento cognitivo dos surdos e dos ouvintes.
Apesar do avanço que esta constatação acarreta na visão que o ouvinte tem do
surdo por acreditar em suas possibilidades cognitivas, o caminho educacional
adotado foi o oralismo, baseado, geralmente em métodos estrangeiros, na busca de
estratégias de ensino que pudessem transformar em realidade o desejo de ver o
surdo falar e ouvir, com auxílio de próteses. Eram vistos como deficientes e
proibidos de utilizar sinais para se comunicar; na Escola Especial eram poupados
dos conteúdos escolares mais complexos e, quando matriculados no ensino regular,
eram empurrados de uma série para outra (STROBEL, 2000).
14
Segundo Nogueira e Machado (2007), a constatação das limitações educacionais
dos métodos exclusivamente orais fez com que as atenções se voltassem para
formas de comunicações mais adaptadas às possibilidades dos surdos, o que
promoveu o “[...] resgate teórico da linguagem de sinais” (MARCHESI, 1995, p. 219).
Para Goldfeld (1997), “[...] a língua de sinais seria a única língua que o surdo poderia
dominar plenamente e que serviria para todas as suas necessidades de
comunicação e cognitivas” (GOLDFELD, 1997, p. 41).
Da década de 1990 até nossos dias, a surdez é vista muito mais como “diferença”
do que como “deficiência”. E como autodenominação dada pelos próprios surdos a
expressão utilizada neste contexto é surdo, e o deficiente auditivo (STROBEL,
2000). O estágio em que nos encontramos hoje é conseqüência de muita luta dos
surdos, seus familiares, professores e profissionais da área, que resultaram em
conquistas fundamentais, tais como: o reconhecimento da diferença lingüística do
surdo; a oficialização da LIBRAS
1
, nas esferas municipal (Lei 512); estadual (Lei
12095/98) ambas em 1998 e federal (Lei 10.436) em 2002; a potencialização
do aspecto pedagógico em detrimento do clínico na educação; a possibilidade da
educação bilíngüe numa dimensão política; o apoio ao fortalecimento e qualificação
da comunidade surda; a formação e capacitação do professor e instrutor surdo; a
formação de intérpretes de LIBRAS e Língua Portuguesa e, particularmente, um
crescente número de pesquisas na área da surdez .
Assim, as discussões e reflexões atuais acerca da educação dos surdos perpassa
pela LIBRAS, ora pela manutenção dessas crianças em escolas de Educação
Especial que utilizam a língua de sinais como via de acesso privilegiada à
comunicação e ao conhecimento, ora pela inclusão dos surdos em escolas de
Educação Regular, inclusão esta justificada como forma de propalar a alteridade
surda. Como explicita Machado (2000), essas reflexões:
1
LIBRAS – língua brasileira de sinais-denominação estabelecida em Assembléia convocada pela FENEIS
(Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos), em outubro de 1993, adotada pela World
Federation of the Deaf, pelo MEC e por pesquisadores e educadores (SOUZA, 1998, p.1).
15
[...] foram geradas a partir de uma mudança na visão do surdo e de
surdez: da concepção de surdez como deficiência a uma concepção
de surdez como diferença; da concepção de uma educação clínico-
terapêutica, com o objetivo de ‘curar’ por meio do ensino da língua
oral, à concepção de uma educação que respeite a língua natural do
surdo: a língua de sinais (MACHADO, 2000, p.2).
Sem dúvida, a adoção da língua universal dos surdos, a língua de sinais, é um
avanço na concepção da surdez e, com certeza, permite ao surdo ampliar seu
universo de relações afetivas e sociais com seus pares. Este fato possibilitou que
inúmeras pesquisas fossem realizadas como as de Skliar (1997), Rodrigues (1993),
Moura (1993), Quadros (1997), entre outros, no sentido de mostrar que a língua de
sinais, no Brasil a LIBRAS, desempenha o mesmo papel no desenvolvimento
cognitivo do surdo que a língua oral para o ouvinte.
Alguns autores argumentam que “[...] os estudos lingüísticos e neurológicos são
irrefutáveis e contundentes no sentido de provar que a organização cerebral da
linguagem quer oral, quer gestual, é exatamente a mesma(RODRIGUES, 1993,
p.34), e ainda que “[...] sabe-se que as línguas de sinais possuem uma estrutura
lingüística, princípios de organização e propriedades formais similares às línguas
orais” (SKLIAR, 1997, p.125).
Nogueira e Machado (2007) afirmam que, apesar desses estudiosos se
posicionarem, até com alguma veemência, na defesa das possibilidades da LIBRAS,
estamos ainda longe de uma posição definitiva acerca dos diferentes tipos de
relação que podem ser estabelecidos entre pensamento e linguagem, a partir do uso
de uma ngua de organização espaço-visual como a de sinais, o que demanda
estudos diversificados, como, por exemplo, o papel desempenhado pela LIBRAS na
psicogênese da leitura e da escrita destas crianças tanto em sua língua materna,
como na Matemática.
Apesar das dificuldades enfrentadas pelo surdo no que se refere à comunicação
com o meio ambiente, estudos desenvolvidos por Nogueira e Machado (2007) sobre
o desenvolvimento cognitivo dos surdos e, especificamente o estudo de Machado
(2000) sobre a psicogênese da leitura e da escrita na criança surda, apontam para
uma similaridade na sua construção do conhecimento com a efetivada pelos
16
ouvintes. Seria, então, legítimo supormos que o mesmo aconteceria com a
construção da escrita numérica.
Cientes de que, da mesma forma que com os estudos relacionados à construção da
escrita por crianças ouvintes, como afirma Ferreiro (2001, p. 18) “[...] muitos campos
ainda ficam por explorar [...] nosso conhecimento da psicogênese das notações
matemáticas ainda é incipiente [...]”, decidimos investigar como se processa a
construção da escrita numérica pelos surdos subsidiada pela LIBRAS.
Dadas as constatações sobre a carência de pesquisas na área da escrita numérica
pelos surdos, bem como as discussões vigentes nos campos políticos e
educacionais sobre a concepção do surdo decidimos, orientadora e orientanda,
percorrer esse caminho em busca deste conhecimento. Cientes de que não
poderíamos negar as relações existentes entre os elementos culturais, sociais e
cognitivos, alguns questionamentos sobre a forma de pensar e representar os
números, pelas crianças surdas, foram elaborados à medida que nossas reflexões
amadureciam.
Como nossa intenção era investigar a construção da escrita numérica por esses
sujeitos, um processo tido como geral e válido para os mais diferentes grupos
culturais constituídos por ouvintes ao redor do mundo, nos questionamos como se
efetivaria esta construção, haja vista que a primeira língua dos surdos constitui-se
numa língua de sinais, minoritária e desconhecida pela maioria da população.
Compreendemos que, apesar de os surdos estarem expostos aos números em seu
cotidiano, a maioria deles não se favorece da oralidade dominante devido à sua
língua específica. Logo, quais seriam as hipóteses em relação à escrita dos números
que eles constroem? Se a função de comunicação da linguagem repousa sobre a
função de representação, seria a LIBRAS um auxílio ou um obstáculo para os
surdos, no que se refere à notação dos símbolos matemáticos?
As pessoas poderiam pensar que a história e o estudo das pessoas
surdas e de sua língua é algo de interesse extremamente restrito.
Porém, a meu ver, essa idéia é absolutamente equivocada [...]. O
estudo dos surdos mostra-nos que boa parte do que é
17
distintivamente humano em nós – nossas capacidades de linguagem,
pensamento, comunicação e cultura – não se desenvolve de maneira
automática, não se compõe apenas de funções biológicas, mas
também tem origem social e histórica; essas capacidades são um
presente - o mais maravilhosos dos presentes de uma geração
para outra. Percebemos que a cultura é tão importante quanto a
natureza (SACKS, 1998, p.10 - 11).
Se, de acordo com Cuche (1999), a cultura ocupa lugar de destaque na formação
dos homens, não podemos deixar de ressaltar que, na contemporaneidade, uma das
faces que marca as relações sociais é a urbanização. E uma de suas principais
características - a necessidade de comunicação - é satisfeita por meio de
mecanismos tecnológicos que se aperfeiçoam com o constante desenvolvimento
científico.
As cartas foram substituídas por telefonemas, mais recentemente, por e-mails e por
mensagens escritas no celular. As ruas estão repletas de fotos, logotipos e cartazes;
nossas casas contêm uma diversidade de objetos que se oferecem à leitura; os
estabelecimentos comerciais estão estruturados sobre sistemas de notações
lingüísticas e numéricas.
Os homens estão expostos, passiva ou ativamente, a todas essas informações.
Assim também acontece com as crianças que, de acordo com pesquisas de
Ferreiro, Teberosky (1985) e Goodman (1987), chegam à escola com concepções
elaboradas sobre a escrita, advindas de suas interações com o meio repleto de
informações gráficas.
Mesmo com um impedimento sensorial que inviabiliza um contato mais efetivo com
o meio, acreditamos que o surdo, assim como o ouvinte, recebe influências sociais e
ambientais que interferem em sua construção conceitual, bem como na sua
elaboração das notações numéricas.
Procuramos, então, estudos que tratam deste tema para nos fundamentarmos
teoricamente. Como não encontramos trabalhos sobre a escrita numérica por surdos
e, subsidiadas pelos resultados das pesquisas que apontam para a similaridade do
desenvolvimento cognitivo e da psicogênese da leitura e da escrita de surdos e
18
ouvintes, investigamos as pesquisas realizadas sobre as notações numéricas com
crianças ouvintes como as de Sinclair (1990), Lerner, Sadovsky (1996), Danyluk
(1998), Brizuela (2006), Orozco (2005) e Teixeira (2005).
Estas pesquisas demonstram que, apesar de ser um objeto de uso social e cultural
e, por isso mesmo, instigar o pensamento infantil acerca de suas especificidades,
estabelecer relações entre a grafia do número e seu correspondente verbal é algo
complexo para as crianças, distinto do também complexo processo de
desenvolvimento da escrita alfabética:
Cada algarismo é um ideograma; cada algarismo corresponde a um
conceito (ou uma palavra), e o algarismo não tem nenhuma ligação -
seja ela icônica ou sonora – com o conceito ou palavra representada.
A significação de um algarismo depende da relação de posição que
ele conserva com outros algarismos. Por isso, a correspondência
entre o que é dito, o que é escrito e o que isso significa é de uma
natureza bem distinta da existente entre a palavra, sua significação e
sua escrita alfabética (SINCLAIR, 1990, p. 73).
Conforme explicita Sinclair (1990), a escrita numérica, assim como a escrita
alfabética, constitui-se em um sistema caracterizado pela diversidade de
configurações gráficas e de seus significados, que perpassa os aspectos sociais,
históricos, culturais e comunicacionais das crianças, antes mesmo de elas
freqüentarem o ensino formal.
Sinclair (1990) afirma, ainda, que o contato com os números se evidencia nas
múltiplas interações do sujeito com o meio, como nas situações de contagens,
páginas de livros, preços em etiquetas, pesos, medidas, identificações de casas,
edifícios, telefones, ônibus. Esses contatos, muitas vezes intencionais, outras
casuais, são permeados por significações efetivadas pela comunicação oral, visual
e, mais especificamente, pela linguagem.
As pesquisas de Sinclair (1990) expõem que não se trata apenas de saber contar,
assinalar com os dedos das mãos a idade, ou até mesmo traçar alguns algarismos
relacionados a fatos cotidianos. Para a criança apreender a escrita numérica ela
precisa compreender, interpretar e sentir a necessidade de comunicar essa
19
idealidade matemática, constituída por um conjunto de ações mentais que não se
constrói de forma linear ou seqüencial. Ao contrário, essa construção ocorre
mediante um movimento dialético no qual, ao mesmo tempo em que é influenciada
pelos números do cotidiano, a criança exerce influências sobre estes, emprestando-
lhes significados e representando-os de acordo com as hipóteses que elabora sobre
esta escrita específica.
Guardadas as devidas proporções quanto às particularidades de cada estudo e
quanto à nacionalidade das crianças pesquisadas pelas autoras citadas
anteriormente, podemos afirmar que todas são ouvintes, expostas à língua utilizada
pela maioria da comunidade lingüística do meio sócio-cultural em que vivem. No
entanto, a presente pesquisa envolve um sujeito singular o surdo - e tem como
escopo analisar seu “repertório numérico”, as hipóteses que elabora sobre as
representações dos números, as relações que estabelece entre o número, a
cardinalidade, a ordinalidade e as convenções, a fim de compreender o processo de
construção da escrita numérica mediado pela LIBRAS.
Entendemos que urgência em se suplantar os limites da teorização unicamente
pedagógica que, embora necessária, é insuficiente por si . A escassez de
materiais sobre como os surdos pensam os números, como compreendem sua
utilização em diversos contextos, como os comunicam socialmente; sua condição
lingüística minoritária, a exclusão sofrida cotidianamente e a consciência da
necessidade de respostas, de práticas que permitam uma compreensão mais clara
dos limites e das possibilidades do processo de ensino e aprendizagem destes
sujeitos foram as alavancas dessa pesquisa.
A rigorosidade, enquanto aproximação metódica do objeto qual nos
oferece um saber cabal, não nasce de repente. Forja-se a história e
implica uma prática em cuja intimidade sempre a possibilidade de
superação de um procedimento ingênuo anterior, tido, porém, porque
válido, como crítico. A natureza histórica da rigorosidade e da
exatidão dos achados, sem as quais não ciência, explica, por
outro lado, a historicidade do conhecimento. O que pode ocorrer é
que algumas pessoas se sintam inseguras quando descobrem que a
ciência não lhes dá um conhecimento definitivo e se perguntam:
‘Sendo assim, o que é que eu faço?’ Para mim, no momento em que
20
se experimenta essa obviedade, cresce a curiosidade e a busca de
um maior rigor na procura de achados mais exatos (FREIRE, 1995,
p. 56 - 57).
Acreditamos que desenvolver uma pesquisa que se debruce sobre as questões
envolvidas nos aspectos psicogenéticos, relacionados às experiências de leitura de
mundo dos sujeitos surdos, especificamente no que diz respeito à escrita numérica,
contribuirá para entendermos um pouco mais sobre como pensa este sujeito.
Gostaríamos de enfatizar nossa preocupação com o termo bilíngüe, utilizado para
caracterizar as crianças que nos auxiliaram neste trabalho. Fernandes (2003)
explicita que a opção educacional para surdos, calcada no bilingüismo, se constitui
em uma proposta veiculada por meio de duas línguas com hierarquias pré-
estabelecidas: a Língua de Sinais como uma língua natural, portanto a primeira a ser
aprendida, e a ngua utilizada pela comunidade ouvinte como a segunda língua a
ser priorizada, quer na modalidade oral, quer na modalidade escrita.
Chama a atenção, no entanto, o uso às vezes simplificado e descomprometido da
expressão “Educação Bilíngüe”, que sugere apenas a utilização de duas línguas no
processo educacional. Para a autora, o bilingüismo na educação de surdos não
pode estar dissociado de um projeto educacional e pedagógico amplo, com vistas ao
reconhecimento da totalidade desse sujeito no meio social e cultural em que se
encontra “[...] que envolve a comunidade de surdos e inclui não os educadores,
mas os familiares, quer sejam surdos ou ouvintes, e que se estende ao meio social
em que vive este indivíduo [...]” (FERNANDES, 2003, p. 54).
Fundamentadas nas concepções de Fernandes (2003), fomos para a escola cientes
de que a educação dos sujeitos surdos, numa proposta bilíngüe, está além do uso
de duas línguas comunicacionais. Este esclarecimento nos possibilitou mais
criticidade e cautela em nossas observações e nas análises dos dados coletados.
De forma a priorizar os objetivos do presente trabalho, tratamos de organizá-lo e
sistematizá-lo em sete seções estabelecidas de forma não linear, mas coerente com
os aspectos que pretendemos enfocar.
21
Nesta primeira seção Introdução - explicitamos o sujeito da pesquisa, sua
especificidade sensorial, seu estar-no-mundo e as implicações educacionais que
perpassam sua trajetória, bem como o nosso interesse em compreender seu
processo de aprendizagem e de desenvolvimento da escrita numérica.
Esclarecemos os objetivos principais, justificamos a opção pelo tema e citamos
algumas pesquisas que serviriam de referencial teórico-metodológico para a
realização deste trabalho.
A segunda seção intitulada O Sujeito Surdo Uma Construção Sócio-Cultural é
dedicada a esclarecer nossa concepção acerca do sujeito da pesquisa, um sujeito
psicológico, cultural, cognoscente e sua língua específica: a LIBRAS, de maneira a
justificar a adoção de referenciais teóricos construídos a partir de investigações com
crianças ouvintes. Com a finalidade de conceber este sujeito, fazemos uso das
contribuições dos antropólogos Mauss (1974) e Duarte (1983), dos filósofos
Vásquez (2002) e Santos (1988) e dos educadores Silva (2002) e Skliar (2003).
A terceira seção, A Linguagem e as Notações Numéricas, trata da relação entre a
linguagem e a notação numérica. A opção pelas proposições de Palladino (2004) e
Zorzi (1999) se deu pelo fato de os pesquisadores terem sua formação voltada para
a área da fonoaudiologia e especificamente para a linguagem, o que possibilita
discussões que julgamos pertinentes sobre questões que se intercambiam com o
foco desta pesquisa. Incluímos as concepções sobre notações numéricas e sua
estreita relação com a linguagem, com vistas a enfatizar a dialeticidade desta
vinculação e a inoperância em cindi-las.
Na seção seguinte, Em Estado de Escuta..., detalhamos algumas pesquisas
relevantes que subsidiam este trabalho e fornecem a fundamentação teórico-
metodológica para que o rigor científico seja alcançado. Nesse sentido, estudos
como os de Sinclair (1990), Brizuela (2006), Lerner, Sadovsky (1996), Danyluk
(1998), Orozco (2005) e Teixeira (2005) são analisados e compreendidos à luz dos
referenciais teóricos e dos resultados obtidos por essas pesquisadoras, haja vista as
contribuições para nossa pesquisa.
22
Procedimentos Metodológicos é o título da quinta seção em que tratamos da
descrição detalhada dos instrumentos utilizados na pesquisa. Apresentamos a
caracterização dos sujeitos selecionados para o trabalho: onze crianças com idades
entre cinco e nove anos, alunas de uma Escola Especial para Surdos.
Especificamos o roteiro elaborado para a coleta de informações sobre a escola e os
protocolos usados nas provas, o interrogatório clínico-crítico, os materiais e a forma
como foram empregados nas verificações das elaborações destes sujeitos.
Na sexta seção, intitulada Resultados da Pesquisa, relatamos as particularidades
da escola e explicitamos os resultados obtidos na investigação com as crianças.
Efetivamos, então, as análises das informações coletadas por meio de categorias
pré-estabelecidas, elaboradas de acordo com os pressupostos do nosso referencial
teórico-metodológico.
Por fim, na sétima seção, Considerações Finais, discutimos os resultados
encontrados e procuramos apontar contribuições de nosso estudo para a educação
dos surdos especificamente no que se refere à compreensão da escrita numérica
que elaboram.
23
2 O SUJEITO SURDO – UMA CONSTRUÇÃO SÓCIO-CULTURAL
As pesquisas que consultamos acerca do desenvolvimento cognitivo dos surdos,
quando da caracterização do sujeito, o faziam pela definição da surdez de acordo
com os padrões estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde OMS, com a
classificação as perdas auditivas segundo graus ou localização, enfim, se prendiam
aos aspectos fisiológicos da surdez.
Como nosso objetivo foi investigar como se dá o processo de construção da notação
numérica pelas crianças surdas, precisávamos conhecer o repertório numérico e as
hipóteses que elas elaboram sobre esta escrita. Ora, tal repertório e as hipóteses
que procurávamos de acordo com pesquisas realizadas com crianças ouvintes são
constituídas principalmente “fora da escola”, na interação social e cultural.
Questionamo-nos então como isso aconteceria com as crianças surdas, que
possuem esta interação prejudicada não apenas pela dificuldade ou impossibilidade
de ouvir, mas no que concerne à comunicação. Ao aprofundar nossas reflexões,
entendemos que os fatores que dificultam a interação social e cultural do surdo não
se esgotam nas suas limitações em ouvir ou se comunicar, mas envolvem também
os preconceitos e estigmas, ou dito de outra forma, as concepções que os “outros”
que participam do mundo no qual o surdo está inserido possuem dele.
Como pretendíamos adentrar a esse mundo, interagir com o surdo e tentar
compreender um aspecto de seu desenvolvimento cognitivo, entendemos que seria
fundamental termos clareza de nossas próprias concepções acerca destes sujeitos.
E, ainda mais, por compreendermos que a escrita numérica é um conhecimento que,
para ser construído pelas crianças ouvintes, conforme atestam diversas pesquisas,
se apóia na interação social e cultural (a qual é senão prejudicada, pelo menos
diferenciada no que se refere à criança surda), seria legítimo fundamentarmos
teoricamente nossa investigação nestas pesquisas.
24
Desta forma, o objetivo desejado nesta seção do trabalho nada mais é do que reunir
e apresentar elementos que delineiem e esclareçam nossas concepções sobre o
sujeito desta pesquisa e discutir como elaboram os objetos sociais, de maneira a
justificar a adoção de referenciais teóricos construídos a partir de investigações com
crianças ouvintes.
Estamos cientes, no entanto, que tarefas desse tipo são impossíveis de realizar na
sua completude, pois sujeitos sociais sempre serão objetos de investigação
complexos e fluidos, contraditórios e históricos. Por isso, a estratégia que adotamos
orienta-se por apresentá-lo a partir dos matizes de sua o-normalização, de seus
mistérios na condição de ser o “outro”, de sua “metamorfose” em detrimento da
“metástase”, de seu não-lugar da cura (SKLIAR, 2003).
Questionamo-nos, para isto, se seria o surdo apenas o sujeito que não tem a
percepção auditiva dos sons, que ouve apenas ruídos de freqüências sonoras
específicas, que tem um “defeito” no ouvido; que não fala; que usa gestos para se
comunicar; que faz leitura labial, comunicação total; usa LIBRAS; faz
fonoaudioterapia; usa aparelho de amplificação sonora individual (AASI); fez
transplante coclear; é aluno de uma escola especial ou encontra-se numa escola
regular.
Muitas destas conjecturas, se aprofundadas e subsidiadas por referenciais teóricos
cientificamente comprovados, poderiam responder a essas questões de forma a
esclarecer a fisiologia do ouvido, os graus das perdas auditivas, os tipos de
reabilitações existentes e pertinentes, assim como a situação educacional a que está
exposto este sujeito.
Acreditamos, no entanto, que a surdez, tratada apenas pela perspectiva clínica,
expõe uma alteridade desmobilizada, tendo em vista a abordagem do surdo pelo
que lhe falta, pela carência, pela deficiência, por sua incompletude. Tal definição nos
é profundamente insatisfatória, porque opera como se as características
hegemônicas dos ouvintes fossem a perfeição e a plenitude.
25
Para escaparmos desse equívoco, optamos por articular algumas das concepções
de autores das áreas da antropologia, sociologia, filosofia e educação, a fim de que
a compreensão do surdo se num patamar diverso ao da visão clínica e
terapêutica; optamos, então, pelo viés da totalidade: mergulhamos numa discussão
que perpassa as categorias de indivíduo, de pessoa e de sujeito.
Verificamos que para a efetivação do pressuposto de uma concepção sócio-
antropológica do surdo, categorias centrais para essa reflexão precisam ser
trabalhadas e compreendidas em sua completude. O “indivíduo”, a “pessoa” e o
“sujeito” devem ter suas definições explicitadas e para tal, recorremos,
primeiramente, ao dicionário, com o objetivo de encontrarmos os significados desses
“termos”.
Para “indivíduo”, temos as seguintes definições: “2. Pessoa considerada
isoladamente, em relação a uma coletividade [...] adj. Que não admite divisão sem
perder seu caráter peculiar; indiviso” (INDIVÍDUO..., 1999, p. 521). “Pessoa”, por sua
vez, é definida como: “1. Ser humano, sem distinção de sexo; indivíduo. - 2.
Indivíduo considerado por si mesmo. 3. Indivíduo considerado enquanto ser
particular, físico e moral” (PESSOA..., 1999, p. 712). E “sujeito” é definido como: “1.
Pessoa, indivíduo, homem” (SUJEITO..., 1999, p. 847).
Ao analisarmos estas definições, vemos que elas se mesclam e não expõem com
nitidez a diversidade existente entre esses vocábulos como categorias sócio-
históricas distintas. Percebemos, então, que precisávamos de um “estofo” teórico
consistente para que pudéssemos esclarecer esta questão.
Para tratarmos da concepção de indivíduo, recorremos a Silva (2002) que aborda a
questão da hegemonização da ideologia individualista, erigida na Idade Moderna por
meio da implantação de instituições políticas comprometidas com os valores da
liberdade e da igualdade. A proposta moderna se consubstanciava em um projeto
emancipatório e apontava para um sujeito racional, autônomo, livre, centrado no
cerne das ações sociais, unitário, indivisível e identitário, pleno de uma existência
coincidente com seus pensamentos. Portanto, a categoria “indivíduoseria o modo
26
hegemônico de organização da subjetividade na era moderna.
Vásquez (2002) afirma ser necessária a compreensão das bases históricas e sociais
do advento moderno, responsáveis por sua concepção. De acordo com esse autor, a
Modernidade se fez como um momento pautado pela apologia da razão em
detrimento dos dogmas e valores subordinados ao irracionalismo da fé medieval e
das tradições.
Uma quadra histórica que, caracterizou-se, ainda, segundo aquele autor, pela
ampliação e radicalização da defesa dos direitos universais de todos os indivíduos e
por uma dinâmica individualista subsidiada pela negação das hierarquias, com vistas
à igualdade e à liberdade, à secularização dos costumes e à laicização e
universalização do conhecimento. A Modernidade pode, então, ser entendida como:
[...] o processo histórico que se abre com o projeto iluminista burguês
de emancipação humana, com a Revolução Francesa que pretende
levá-lo à prática e com a Revolução Industrial que vai desenvolver
imensamente as forças produtivas [...] é uma sociedade dinâmica,
em constante desenvolvimento, orientada para o futuro, uma
sociedade que não conhece limites (VÁSQUEZ, 2002, p. 410).
As explicações de Duarte (1983) mostram que a exigência humanista de autonomia,
expressa pela noção de indivíduo, contribuiu, sobremaneira, para que o suporte da
cultura ocidental assumisse uma construção conceitual dada por acabada; o
indivíduo seria a fonte original de doação de sentido ao mundo e a si mesmo.
Duarte (1983) enfatiza, ainda, a possibilidade de que, à dessacralização do mundo,
ocorrida após o período feudal, correspondeu uma espécie de “sacralização do eu”.
Considera o fato com um “culto secular” do eu, elevado à condição de sede das
significações fundamentais do ser humano em que “[...] todos os homens aqui e
agora poderiam aceder à plenitude individual contra os laços e correntes que os
aprisionavam em seus estatutos sociais originários” (DUARTE, 1983, p. 58).
O mesmo autor afirma que a concepção de indivíduo apresentada revela-se,
contudo, problemática quando se trata da análise da psique - a moderna dimensão
psicológica individual - pois, por mais que a apologia à autonomia seja veiculada, no
27
plano psicológico o irracional e o inconsciente fazem do homem um ser vulnerável.
“Os impedimentos à plena hegemonia do Sujeito da Razão (aqui sob suas formas de
Sujeito da História e de Ego) não mais se encontravam fora do Sujeito” (DUARTE,
1983, p. 16).
Outro problema que essa concepção de indivíduo traz, conforme explica Duarte
(1983), é que este homem, instado a ser o centro do mundo, promoveu sua própria
pulverização ao propor a cisão entre as esferas pública e privada. O autor explica
que esta situação perpassa por um período de transição entre organizações sociais
pautadas na tradição e sociedades como a nossa, que não é holística e tampouco
privada. Skliar (2003) define esta instabilidade como uma situação em que, “à ordem
estável da modernidade não sucedeu outra ordem [...] senão sua única e possível
alternativa: o caos, isto é, a desordem” (SKLIAR, 2003, p. 45).
Vásquez (2002) afirma que a divisão do trabalho e a conseqüente perda da
totalidade do processo produtivo contribuíram para a fragmentação, para a
coisificação, para a perda da singularidade e da subjetividade do homem. O
indivíduo contemporâneo é híbrido, fato que suscita a crença atual na morte do
sujeito. No entanto, existem correntes de pensamento que contradizem esta (única)
certeza e alegam que “[...] se este mundo se puser fora da história se tornará
impossível o resgate do sujeito” (VÁSQUEZ, 2002, p. 418).
Santos (1988), entretanto, alerta que vivemos hoje uma época de mudanças e
transformações aceleradas, que não ocorrem apenas ao nosso redor. Ocorrem
também em nosso interior, em nossa forma de conceber e representar o mundo. A
subjetividade humana transforma-se profundamente mediante as novas mediações
sociais.
Embora mudanças históricas sempre ocorram, Santos (1988) afirma que há
períodos em que elas acontecem de forma ímpar, provocando não evolução e
transformação, mas rupturas com princípios e valores que nos serviam de
referência. Um exemplo disso são os duzentos anos de fidelidade ao paradigma do
princípio dinâmico da ciência moderna. Ele estava orientado por pressupostos de
28
ordem, estabilidade, racionalidade e verdades contestáveis apenas pela emergência
de um novo paradigma dominante. No contexto atual, esse corolário entra em crise,
pois, de acordo com Santos (1988), torna-se necessário considerar as flutuações e a
instabilidades dos fatos, características que levam a ciência a manifestar dúvidas
sobre o caminho da certeza.
A ênfase de Santos (1988) se encontra no regresso do sujeito, anunciado pela
mecânica quântica: o objeto do conhecimento passa a ser compreendido como uma
continuação do sujeito e este, a continuação do primeiro. Fato que se devido à
quebra do paradigma moderno que representa o ápice das tendências para a
especialização e diferenciação funcional dos distintos campos de racionalidade
humana. Disso resulta que todo processo de conhecimento é, também, um processo
de autoconhecimento.
As nossas crenças e valores são partes integrantes da explicação científica da
natureza ou da sociedade, embora permaneçam escondidos entre os “[...] não-ditos
dos nossos trabalhos científicos” (SANTOS, 1988, p. 68, grifo do autor). Aquilo que
conhecemos e a forma como conhecemos interfere em nossa trajetória pessoal e é
influenciado por ela. A relação sujeito/objeto contém um movimento de construção
mútua.
Skliar (2003) afirma que o homem do nosso tempo apresenta uma identidade
fragmentada, atomizada, múltipla, descentrada, voltada à dúvida, à incerteza, à
subjetividade das interpretações, ao hibridismo. Segundo esse autor, a quadra
histórica em que vivemos pulveriza e dissemina idéias como o fim da história, a
inutilidade das grandes narrativas e do alcance restrito dos fundamentos gerais,
universais ou totalizantes. Consubstancia-se, portanto, em um contexto no qual se
pretende decretar o fim do indivíduo erigido na Modernidade e favorecer a inserção
de um homem flexível, volátil, indefinido, relativo.
O mesmo autor explica, ainda, que o sujeito do nosso tempo não pensa, fala ou
produz; ele é pensado, falado e produzido, é dirigido pela história, pelas relações
sociais, pelo seu exterior, pelas estruturas, pelas instituições, pelo discurso. Nesse
29
caso, existe uma concepção de história, mas não uma história tal como foi
concebida pela Modernidade, pensada “[...] muito mais como um tempo de ordem,
estabilidade e precisão da história” (SKLIAR, 2003, p. 52). Existe a possibilidade de
uma concepção de ser humano forjada pelas formas de poder instituídas na
sociedade, como o estado, as escolas, as mídias...
De acordo com as proposições desses pesquisadores, não podemos negar as
divergências entre as concepções do indivíduo moderno e homem atual. Ambas são
evidentes e excludentes. Entretanto, o objetivo principal de recuperarmos, nesta
seção, este diálogo é que os argumentos e as questões debatidas favoreçam a
desconstrução de alguns discursos naturalizados sobre essas concepções,
contrapondo-lhes alternativas de reflexão com vistas às possibilidades que são
apresentadas aos surdos como sujeitos de suas vidas.
Nossa pretensão, então, é compreender a situação do surdo num contexto sócio-
cultural plural e multifacetado. Por hora, frisamos que acreditamos ser por meio de
paradoxos, de contradições e de discussões que podemos rever algumas de nossas
certezas tão sedimentadas e arraigadas em nossas consciências. Daí o aspecto
estimulante de nossa proposição.
Toda esta discussão em torno da categoria “indivíduo” encontra outro viés nos
estudos de Mauss (1974). O pesquisador trabalha com a categoria “pessoa” e
realiza um estudo etnológico com o objetivo de oferecer conteúdos para uma
compreensão mais sutil e profunda dos valores, princípios e práticas culturais
constitutivos dos sujeitos.
Mauss (1974) reitera que este conceito é considerado pelos homens como natural
em suas consciências. Uma concepção ingênua, porque particular e específica, que
precisa ser substituída por outra mais completa, inteira, que trate de questões do
tipo “Como, no curso dos séculos, através de numerosas sociedades, elaborou-se,
lentamente, não o sentido do ‘eu’, mas a noção, o conceito respectivo que os
homens das diversas épocas criaram”? (MAUSS, 1974, p. 211).
30
Ao buscar os fundamentos e as interfaces manifestas na noção de pessoa, Mauss
(1974) trata de seu significado como uma “categoria do espírito humano”, uma
categoria não inata; construída histórica e socialmente, logo, algo que prima pela
diversidade e expressa a pluralidade das culturas humanas sem, contudo,
desconstruir a unidade do homem.
Por procurar agregar suas proposições advindas de seus estudos antropológicos
sobre povos da Antigüidade e de outros grupos tribais não ocidentais, Mauss (1974)
nos propõe elementos de reflexão, questões e dúvidas decorrentes da
desconstrução da perspectiva que apresenta o período moderno como ponto de
partida para o estudo da concepção de homem. Mauss (1974) nos mostra que a
noção de “pessoa” é intrinsecamente relacional, tem características, status,
compromissos e benefícios próprios do “lugar” social que ocupa.
O autor explicita a amplitude da noção de pessoa e sua estreita vinculação com as
diversas culturas e momentos históricos específicos. O caráter antropológico dos
conceitos é, por isso, provisório, pois inserido em contextos dados, definidos pelo
tempo e pelo espaço. Essas características garantem o reconhecimento da
alteridade e a produção da identidade e manifestam a expectativa de uma reflexão
teórica consistente. Mauss (1974) expressa uma concepção objetiva e plural das
sociedades, sem, no entanto, desmerecer a unidade humana.
Todas as civilizações, com suas especificidades, oferecem suporte relevante para a
totalidade humana, o que reforça, para Mauss (1974), a concepção de que não
diferenças entre povos primitivos e civilizados e lhe permite afirmar, ainda, que a
civilização de um povo se constitui em um conjunto de fenômenos sociais e, por
isso, não procede tratar da diversidade social de forma a classificá-la como inculta,
isenta de civilização, natural...
Subsidiados por essas idéias é que podemos perceber que a noção de pessoa pode
promover a articulação gradual e lenta entre a nossa sociedade e suas alteridades,
sem hierarquização, possibilitando uma análise em que “venceu-se o percurso”
(MAUSS, 1974, p. 241).
31
Ao tratar dos índios pueblo, Mauss (1974) explicita a sua configuração na unidade
da formação do clã, por meio da descrição e análise de personagens, de seus
rituais, do uso de máscaras, do papel que ocupam na comunidade tribal, do nome
que recebem e que se estende aos seus descendentes. O autor acentua o
despontar de uma noção de pessoa que se caracteriza pelo reconhecimento desses
fenômenos a partir de uma perspectiva de totalidade, na qual a pessoa aparece
como um elemento relacional.
No que se refere a um grupo indígena da América do Norte, os Kwakiutl, Mauss
(1974) reafirma a noção de pessoa nos interstícios das relações entre os
componentes desta sociedade que, como os pueblo e como qualquer outro grupo
humano que nos seja contemporâneo, não pode ser considerada primitiva, haja vista
a língua falada por eles e o sistema social e religioso em que:
[...] numa vasta troca de direitos, de prestações, de bens, de danças,
de cerimônias, de privilégios, de posições, satisfazem-se as pessoas
ao mesmo tempo que os grupos sociais. Vê-se nitidamente como, a
partir de classes e de clãs, compõem-se as ‘pessoas humanas’ [...]
(MAUSS, 1974, p. 217).
Ao se reportar a grupos australianos, à época de Mauss (1974) considerados
erroneamente mais primitivos que os pueblo e os Kwakiutl, o pesquisador ratifica
suas considerações sobre a formação da noção sutil de pessoa, mostrando que os
aborígines, por meio de máscaras, reencarnações espirituais e nomes que se
perpetuam por gerações, estabeleceram a articulação entre as personagens, os
papéis desempenhados pelos indivíduos nos seus rituais, bem como seu papel na
família.
Para desvincular o conceito de personagem da noção de pessoa, Mauss (1974)
caminha no sentido de esclarecer de que forma o conceito de persona latina se
tornou referencial para as sociedades sob influência do pensamento ocidental e da
modernidade. Para tal, o autor se reporta à Índia budista e à China antiga. A primeira
se caracteriza por ser a civilização mais antiga a manifestar a consciência do ser
singular, fato observado nos significados das palavras que utilizavam em seus rituais
para designar as funções do “eu” nos aspectos metafísicos.
32
A segunda civilização mencionada por este autor, a China antiga, tem em conta o
ser humano singular como ser social; seu nome caracteriza sua individualidade,
mas, ao mesmo tempo, o relaciona à coletividade, pois este nome foi de seu
ancestral e será o de seu descendente, “[...] a ordem dos nascimentos, a posição e o
jogo das classes sociais fixam os nomes, a forma de vida do indivíduo, sua
‘aparência’ [...]” (MAUSS, 1974, p. 226).
Para Mauss (1974), a Roma antiga produziu uma noção de “pessoa” bastante plena.
O romano tinha direito a um pré-nome (referente à ordem de seu nascimento), a um
nome e a um sobrenome (referente aos seus antepassados). Essa particularidade
dava ao cidadão o direito ao status de pessoa, elemento considerado como a
essência do eu. As exceções eram os escravos que, para os romanos, não tinham
corpo, antepassados, nome... Somente com o advento do cristianismo é que os
escravos passaram a ter alma, pela perspectiva dos próprios cristãos.
É a partir da noção de um que a noção de pessoa foi criada, penso
que a propósito das pessoas divinas, mas, ao mesmo tempo, a
propósito da pessoa humana, substância e forma, corpo e alma,
consciência e ação [...] a pessoa é uma substância racional
indivisível, individual [...] uma consciência e uma categoria (MAUSS,
1974, p. 236).
Duarte (1983) corrobora Mauss (1974) ao explicar que esta nova temporalidade o
cristianismo trouxe outra concepção de pessoa: a pessoa cristã. relevância ao
movimento reformista que proporcionou ao homem moderno o livre acesso a Deus,
sem a intermediação da igreja. Neste momento o ser humano foi elevado a um
patamar de autonomia que lhe pôs às os o movimento da História, na condição
indiscutível de sujeito. No entanto, a categoria “pessoa” não se vincula apenas à
singularidade; estabelece estreita relação, ainda, com o entorno coletivo que a
acompanha e lhe confere consistência.
No que se refere à consciência, a noção de pessoa foi questionada e dissociada das
questões puramente racionais. Mauss (1974) explica que Kant
2
, representante ímpar
do iluminismo, elaborou a idéia de autonomia, que transforma o homem em uma
2
Marcel Mauss (1974) não faz referência a qual, ou quais obras de Kant utilizou para sua fundamentação
teórica.
33
subjetividade apta a atribuir sentido ao mundo. O indivíduo racional tem condições
críticas, pensa, se examina e avalia os fatos; alcança sua maioridade, é livre: torna-
se sujeito responsável pelo uso da razão. Neste caso, percebemos uma fusão das
noções tratadas: pessoa, indivíduo e sujeito se agregam, sem que se definam
suas particularidades.
Mas é Fitche
3
, filósofo alemão, o responsável por esclarecer e subsidiar a ciência e a
ação sobre o “eu” quando afirma que “[...] todo fato de consciência é um fato do ‘eu’
[...], a condição da consciência e da ciência, da razão pura” (MAUSS, 1974, p. 239).
Uma transformação das idéias que nos disponibiliza saber que cada qual representa
a especificidade de ser pessoa, de ter uma consciência e ser parte de uma
categoria, aspectos fundamentais para se pensar a pessoa surda.
Certamente, as categorias tratadas ao momento apresentam características que
devem ser enfatizadas para pensarmos nossa própria sociedade e o lugar do surdo
nela. A categoria “indivíduo” surgiu com a Modernidade, advinda dos processos
sócio-históricos envolvidos naquele contexto. Portanto, a autonomia e a liberdade
propaladas no advento moderno são direitos, em princípio, garantidos a todos,
inclusive aos surdos, mesmo que façamos, legitimamente, questionamentos sobre
as reais possibilidades de sermos (todos) plenamente livres e autônomos em nossa
sociedade.
Skliar (2003) deixa claro que, por viver em sociedade, o indivíduo, diferentemente da
pessoa, é só, único, indiviso. Se, por um lado, o indivíduo vê garantidos seus direitos
e conhece seus deveres, por outro se encontra privado de uma convivência
comunitária com seus pares. Experimenta uma convivência global, cosmopolita,
distante, atomizada, isenta de responsabilidades pessoais. Sua socialização se
em um universo individualista que proporciona a privacidade, o isolamento, a
suposta autonomia e liberdade, ao mesmo tempo em que suprime a construção de
relacionamentos marcados pela proximidade, pela intimidade, pela comunidade. A
vida em sociedade forja e socializa os seres humanos de modo típico e distinto da
vida em comunidade.
3
LÉON, X. Fichte et son temps. [S. l.: s.n., 18 - -] v. 3, p. 161 – 169.
34
A categoria “pessoa, como nos esclarece Mauss (1974), é encontrada nos
diferentes grupos e diz respeito à construção do ser humano como sujeito social
produzido pelas relações com os seus pares e produtor/reprodutor das mesmas. É
uma categoria relacional que depende da posição que ocupa nessa comunidade, de
sua opção sexual, sua faixa etária, seu status, seus estigmas e suas particularidades
que permitem sua classificação no interior dessas relações. A categoria “pessoa”,
aliás, não se aplica apenas aos seres humanos vivos: antepassados, entes míticos
e/ou totêmicos, objetos sagrados ou simbólicos podem ocupar o lugar de pessoa,
instituído pelo grupo que determina as regras adequadas para o convívio coletivo.
Enfim, a categoria “sujeito, que está implícita nas anteriores é, de acordo com Skliar
(2003), compreendida como aquela que transita entre a consciência singular e suas
ações, entre a consciência particular e as ações coletivas, entre a consciência do
lugar no mundo e as possibilidades de luta, de transgressões de valores, de
transformação do que está posto. O sujeito tem uma função singular: mudar o que
está posto como imutável. Isto porque sua consciência lhe adverte acerca das
injustiças, da exploração do homem pelo homem, da exclusão do outro e da inclusão
tolerante e hospedeira (SKLIAR, 2003).
Se considerarmos que o surdo apresenta uma inserção peculiar na vida social,
compreendemos que ele possui uma consciência particular, própria, imbricada com
suas ações. Para fornecer subsídios ao nosso trabalho e sustentar essa discussão
particular, julgamos ser válido e viável elaborar uma análise da condição relacional
do grupo de surdos que enfocamos nessa pesquisa, na comunidade surda e na
sociedade hegemonicamente ouvinte no que se refere à escrita numérica, objeto de
nosso estudo.
No âmbito das relações comunitárias, que ocorrem prioritariamente no ambiente de
educação formal, os surdos se agrupam com seus pares e fazem uso de uma língua
própria; a comunicação se pelo uso das mãos, pela leitura labial, pelas
expressões faciais. É um grupo diferente que se caracteriza pela busca da
alteridade, da identidade, da subjetividade que o faz representar-se. Essa forma
específica de agrupamento social, advinda da ruptura de um permanente contato
35
com o meio ambiente causada pela surdez, aponta para um processo de construção
da escrita numérica que tem na escola um ponto de apoio insubstituível, pois é
nesse espaço que a LIBRAS é utilizada como forma de comunicação por todos os
sujeitos envolvidos.
Ao mesmo tempo, não podemos desconsiderar que o surdo é membro de uma
família que o é formada exclusivamente por surdos, é uma criança que vive numa
sociedade de ouvintes, na qual os símbolos são produzidos, reproduzidos e
compartilhados pela maioria das pessoas. No entanto, a integração desse sujeito em
um meio ambiente sonoro não lhe garante o acesso a todas as informações
necessárias para suas construções conceituais.
É neste sentido que compreendemos, então, o surdo como um “sujeito/pessoa”,
alguém que traz em sua experiência vivida características relacionais da categoria
pessoa, referentes ao grupo de surdos constituído na escola, juntamente com as
possibilidades de sujeito, agente da história. Reconhecemos a importância dos
contextos mais imediatos de sociabilidade que articulam a comunidade surda e a
sociedade, ao mesmo tempo em que demarcam uma cisão sutil entre uma e outra,
pelo fato da especificidade lingüística, da forma de ver, interpretar, explicar e
compreender o mundo.
Por outro prisma, um intercâmbio entre esses espaços, pelo fato de o surdo
transitar por ambos. Isto ocorre pela necessidade de trabalho, da convivência
familiar quase nunca todos os membros da família são surdos -, da religião, do
lazer, do consumo, da cidadania, enfim, a comunidade surda, por si só, não dá conta
de prover todas as necessidades do surdo.
Por transitar entre estes dois espaços, compreendemos, então o surdo situado em
um não-lugar, e é sob essa perspectiva que pensamos acerca das possibilidades de
realização de sua subjetividade e de sua autonomia. Neste não-lugar, um território
simbólico em que se a consciência identitária e o sentimento de pertencimento a
um grupo, entendemos que o surdo tem possibilidades de lutar pela legitimidade do
uso da língua de sinais como sua forma de comunicação por excelência, haja vista a
36
necessidade desta língua como um dos importantes instrumentos que contribuem
para o seu pleno desenvolvimento cognitivo.
Cuche (1999) propõe um outro prisma para observar este não-lugar. Explica que
nem sempre os grupos dominantes subjugam, simbolicamente, os grupos
minoritários, pois os momentos de confronto são raros se comparados ao tempo de
momentos “a s” que os grupos dominados usufruem. Esse isolamento, tido
geralmente como marginalização, ao contrário de ser negativo é o que garante o
esquecimento da dominação social e permite o exercício da alteridade, bem como a
produção de simbolizações autônomas e originais. Conforme esta concepção, o
estar num grupo de iguais favorece construções conceituais próprias,
elaborações de hipóteses e “invenções”, acordadas com as possibilidades dos
sujeitos envolvidos nesse processo.
Se Cuche (1999) afirma os benefícios do isolamento, compreendemos que o surdo
experimenta uma vantagem em relação ao ouvinte no que se refere à condição de
ser “sujeito/pessoa” e vivenciar este isolamento social. Isto porque, mesmo à
margem, como são vistos por muitos, os surdos articulam as especificidades da
sociedade ouvinte com as particularidades da comunidade surda escolar, o que lhes
garante a autonomia, a alteridade e uma multiplicidade de informações advindas de
ambientes distintos, porém complementares.
Fundamentadas nessas concepções, compreendemos que o “sujeito/pessoa” surdo
faz parte de um contexto histórico determinado e integra uma rede específica de
relações sociais em que ocupa um “não-lugar”, no qual encontra possibilidades de
construção de representações e objetos sociais mediante um movimento dialético
estabelecido com a sociedade ouvinte, caracterizado como um percurso que não
requer a redução de um ao outro, mas de intercâmbio.
A escrita numérica nada mais é do que um objeto social, pois o sistema de
numeração decimal que a rege é um conjunto de símbolos e regras arbitrários,
culturalmente construído e socialmente aceito, que permite a representação de
qualquer número de maneira econômica e eficaz.
37
Isto posto, e com a concepção do surdo como um “sujeito/pessoa”, que intercambia
com os ouvintes representações e objetos sociais, entendemos ser pertinente e
justificável fundamentarmos teoricamente nossa investigação em pesquisas
realizadas com crianças ouvintes.
38
3 A LINGUAGEM E AS NOTAÇÕES NUMÉRICAS
Nesta seção procuramos estabelecer relações possíveis entre a linguagem em geral
e a notação dos números. Isto porque, subsidiadas pelos referenciais teórico-
metodológicos selecionados para a pesquisa, pudemos constatar que as
“representações externas” notações numéricas são também comunicações das
idéias matemáticas construídas internamente pelo sujeito, em um processo
integrado pela complementaridade e interdependência do desenvolvimento
cognitivo. Portanto, faz-se necessária a compreensão do que é a linguagem em
geral, uma vez que ela se constitui em um dos pilares deste trabalho.
Estamos cientes de que nem todos os conteúdos da matemática se relacionam
diretamente com a linguagem comum; uma independência, num primeiro
momento, entre eles. A matemática utiliza uma linguagem específica, com uma
simbologia própria, universal, abstrata e generalista; necessita do efeito formal que
os signos
4
possibilitam; devido sua característica universalista, requer a
padronização, a rigorosidade e a precisão.
A linguagem comum também se vale de signos, no entanto, redundante, ambígua e
local; aceita padrões informais e, mesmo quando opta pela versão formal, não se
afasta do vivido, dada sua função primordial que é a comunicação. Mas, apesar de
suas particularidades, quando falamos em notação numérica, conforme afirmam
Brizuela (2006) e Sinclair (1990), não podemos nos esquivar da linguagem
matemática e da linguagem comum; uma não substitui a outra, ambas coexistem e
têm como alvo a comunicação. A primeira tem sentido quando subsidiada pela
relação com a segunda e, como foi afirmado anteriormente, estão alicerçadas no
mesmo fundamento, qual seja, a representação.
Para atingirmos nosso objetivo nesta seção, optamos por tratar, primeiramente, das
teorias que regem o campo científico do desenvolvimento da linguagem, de forma a
4
Signo é um significante arbitrário enquanto que o símbolo é um significante motivado, que guarda alguma
semelhança com o objeto ou evento representado (NOGUEIRA; MACHADO, 2007, no prelo).
39
descortinar algumas das visões sobre uma área do conhecimento deveras
complexa; conjuntamente faremos o entrelaçamento dessas concepções com o
desenvolvimento da notação numérica, a fim de tornar compreensíveis sua natureza
e função de acordo com as condutas simbólicas, a interação social e a cognição.
Desta feita, se tratamos de linguagem, quer seja ela comum ou matemática,
tratamos de representações e, por conseguinte, de símbolos e signos. Precisamos,
então, compreender esses conceitos, por sua relevância no desenvolvimento da
linguagem.
Piaget (1990) é claro ao explicar a diferença entre símbolo e signo. O pesquisador
afirma que o termo “símbolo” deve ser utilizado para “significantes motivados”
(PIAGET, 1990, p. 88) que apresentam relação de semelhança com o significado,
enquanto “signo” é imposto pelo contexto social, portanto arbitrário. Para entender
estas especificidades precisamos compreender os termos “significado” e
“significante”, interligados ao emprego do termo representação.
Num sentido amplo, a representação confunde-se com o pensamento subsidiado
pelos esquemas mentais; num sentido mais estrito “[...] ela reduz-se [...] à evocação
simbólica das realidades ausentes” (PIAGET, 1990, p. 87). O epistemólogo explica
que esses dois tipos de representação se intercambiam, pois, embora o pensamento
não seja um apanhado de imagens ele “[...] se faz acompanhar de imagens,
portanto, se pensar consiste em interligar significações, a imagem será um
‘significante’ e o conceito um ‘significado’ [...]” (PIAGET, 1990, p. 87).
De maneira a exemplificar o que foi explicitado por Piaget (1990), tomemos um
objeto - real ou imaginário. Pela abstração, podemos generalizar suas qualidades
comuns aos demais objetos semelhantes, e, por isso, transformá-las em uma
qualidade geral. Este conceito particular, de natureza abstrata, se constitui no
significado enquanto sua imagem, formada pela transposição dos elementos
particulares para o geral, se constitui em um símbolo concreto ou um significante.
Como exemplo, o vocábulo “cadeira” pode se referir a uma determinada cadeira,
40
mas, por abstração, generalizamos as qualidades comuns à cadeira tem quatro
pernas, tem encosto, serve para sentar para todos os tipos de cadeira. Temos,
assim, o conceito (significado), acompanhado da imagem ou símbolo (significante).
Desta forma, para que os conceitos sejam comunicados, que se
representá-los por mbolos no que se refere à representação no
sentido estrito e por signos quando ‘a inteligência sensório-motora se
prolonga em representação conceptual e em que a imitação se
converte em representação simbólica, o sistema de signos sociais
também aparece, sob as espécies da linguagem falada’ (PIAGET,
1990, p. 88).
Concluímos que, para Piaget (1990), a representação simbólica advém da conduta
imitativa, conduta esta que é consciente, voluntária e subsidia a formação das
imagens mentais e o aparecimento da linguagem. Este assunto será abordado de
modo mais detalhado adiante, quando tratarmos das concepções elaboradas por
Zorzi (1999) acerca do desenvolvimento da linguagem.
Outro conceito necessário a ser tratado é a linguagem. De acordo com o “Dicionário
de Comunicação”, a linguagem está ligada à lingüística e pode ser
[...] qualquer sistema de signos não vocais ou escritos, como
também visuais, fisionômicos, sonoros e gestuais capaz de servir à
comunicação entre indivíduos. A linguagem articulada é apenas um
desses sistemas. Pode ser ainda o recurso usado pelo homem para
se comunicar. Instrumento pelo qual os homens estabelecem
vínculos no tempo e determinam os tipos de relações que mantêm
entre si (RABAÇA; BARBOSA, 1995, p. 363 - 364).
Corrobora a concepção dos autores acima, com vistas a contribuir para uma
definição mais abrangente deste conceito deveras complexo, Valmaseda (1995),
que afirma ser a linguagem “[…] uma representação interna da realidade, construída
através de um meio de comunicação socialmente aceito” (VALMASEDA, 1995, p.
85). De forma explícita, constata que a linguagem seria um conjunto de símbolos
organizados de forma arbitrária, partilhado por um grupo social para se comunicar,
subsidiado pelas possibilidades de representações do mundo real, mesmo na
ausência desta realidade.
Com a finalidade de especificar ainda mais este conceito, Fernandes (2003) afirma
41
ser a linguagem uma forma de organização da comunicação humana ou das
relações dos humanos com a natureza:
[...] podemos nos referir a qualquer meio de comunicação, como a
linguagem corporal, as expressões faciais, a maneira de nos
vestirmos, as reações de nosso organismo (tanto aos estímulos do
meio, como de nosso pensamento ou, mesmo, dos aspectos
fisiológicos) ou a linguagem de outros animais, os sinais de trânsito,
a música, a pintura, enfim, todos os meios de comunicação, sejam
cognitivos (internos), socioculturais (relativos ao meio) ou da
natureza, como um todo (FERNANDES, 2003, p. 16).
Dada a natureza deste trabalho - pesquisa sobre notações numéricas - e os sujeitos
que serão analisados - crianças surdas bilíngües consideramos que as definições
de linguagem elencadas anteriormente se ajustam ao objetivo proposto, portanto é a
elas que nos reportaremos durante as possíveis considerações.
Como afirma Sacks (1998), um sujeito desprovido de uma língua se encontra restrito
ao seu próprio pensamento, interligado apenas ao que lhe é imediato, próximo,
presente... Mesmo que o pensamento transcenda a linguagem oral, escrita,
gestual, icônica, ideográfica, corpórea é ele, o pensamento, quem a cria, quem lhe
vida, pois precisa dela para se desenvolver, para ser comunicado, para não ficar
aprisionado na mente humana, para atuar entre o passado e o futuro, para inventar
no presente sem o manuseio, sem a presença física do objeto. Seria como se a
linguagem fosse o meio de libertação do pensamento do invólucro de nossas
mentes. Com a linguagem podemos “[...] simbolicamente virar do avesso o universo”
(SACKS, 1998, p. 56).
Para complementar as concepções elencadas anteriormente, Fernandes (2005)
deixa claro que a linguagem é intrínseca ao homem e, ainda, que a apreensão de
uma ngua em sua plenitude é fundamental para que ocorra a compreensão, a
produção e a combinação de signos, com vistas não somente à comunicação, como
também ao desenvolvimento cognitivo.
[...] A atividade humana é mediada por signos, incluindo linguagem,
sistemas de contagem, gráficos, trabalhos de arte, mapas, etc. esses
‘meios semióticos’ são tanto instrumentos que facilitam a construção
coletiva do conhecimento, quanto os próprios meios de internalização
42
que vão auxiliar o desenvolvimento do pensamento autônomo, crítico
e criativo (FERNANDES, 2005, p. 91 - 92).
Essas considerações nos remetem aos surdos e suas necessidades lingüísticas,
pois, de acordo com esta autora, eles não devem ser privados de sua língua natural:
a exposição à língua de sinais deve acontecer o mais cedo possível na vida destas
crianças, a fim de que construam os recursos instrumentais para o processo de
significação que “[...] se apresenta como uma competência específica para a
operação, produção e decodificação dos signos, permitindo, através dessa
faculdade, a produção dos significados” (FERNANDES, 2005, p. 18).
Uma das pesquisadoras que consideramos de vanguarda sobre a linguagem, a ser
referida por tratá-la com a amplitude necessária, é Palladino (2004). Ela tece
considerações sobre o desenvolvimento da linguagem subsidiada pelas diversas
teorias, denominadas por ela de tradições, que regem os diferentes campos
científicos, inclusive o campo cnico da Fonoaudiologia. Para tal, Palladino (2004)
apresenta três faces tradicionais que versam sobre o desenvolvimento da
linguagem.
A primeira, mais antiga e preservada de todas, é a empirista – de base skinneriana
5
-
que considera a linguagem como a representação manifesta de um conhecimento
pré-estabelecido, advinda da aprendizagem por imitação e subsidiada pela
maturação biológica, pelo desenvolvimento psicológico e por estímulos do meio
ambiente. O desenvolvimento da linguagem, para os empiristas, obedece a uma
ordem gradual, seqüencial e universal em que a função comunicativa pragmática -
ocupa um caráter secundário. Estas características demonstram que há, segundo a
pesquisadora, um desenvolvimento “estranho e anterior à linguagem”, que a
subsidia.
[...] o desenvolvimento é um caminho que vai da criança real para o
adulto ideal, o que implica a suposição de um processo de acréscimo
e outro de decréscimo, ou seja, ganhos para a criança e perdas para
o adulto, já que a aprendizagem tem um limite que qualifica o
comportamento como operante. Quando criança, o indivíduo vai
5
Skinner, B. F.: estudioso da análise experimental do comportamento (PALLADINO, 2004).
43
aprendendo, rumo ao limite; quando idoso, ele vai esquecendo o que
aprendeu, rumo à inoperância do comportamento (PALLADINO,
2004, p. 763).
Mediante as características da tradição empirista, nos perguntamos como as
notações numéricas seriam construídas. Danyluk (1991) atesta sobre a necessidade
que a criança tem de compreender o discurso matemático em sua totalidade, bem
como seus signos que o expressos por uma linguagem de abstração completa.
Pelo fato dessa tradição postular um mecanismo de ensino e aprendizagem
fundamentado em unidades fragmentadas, na imitação de padrões e no
comportamento operante, como a criança poderia construir hipóteses a respeito
desse processo se lhe é subtraída a visão da totalidade e a possibilidade de
estabelecer relações significativas entre os elementos desse conjunto?
Palladino (2004) nos subsídios para responder a esse questionamento quando
explica que os conceitos, nessa tradição, são apreendidos pelas crianças por meio
do contato com modelos adequados, fornecidos por alguém que se mostre mais
capacitado a escolher procedimentos e a qualificar resultados, quer seja para
detectar desvios de um caminho traçado previamente como ideal, quer seja para
reorientar o esquema imitativo com vistas a proporcionar as condições necessárias
para o sucesso da aprendizagem. Esta, por sua vez, segue um modelo operante -
uma ação casual é recompensada e, devido à recompensa é repetida, novamente
recompensada até que se torne parte integrante do repertório comportamental do
indivíduo.
A pesquisadora esclarece que é esperada, no empirismo, a ordenação de atividades
a serem seguidas, mediante uma hierarquia do que é mais fácil para o mais difícil,
do concreto para o abstrato, do previsto para ser adquirido inicialmente ao que se
adquire mais além. Se houver desvios na aprendizagem, estes são decorrentes de
falhas no desenvolvimento anterior à linguagem ou no processo de modelagem e de
estimulação. Para sanar essas inadequações o recomendados exercícios de
repetição, orientações aos professores e familiares, uma nova ordenação de
atividades baseada nas habilidades da criança e uma busca da etiologia do
transtorno.
44
Podemos, então, concluir que, no que se refere às notações numéricas, a tradição
empirista não possibilita a construção do conhecimento pelo sujeito. Pelo contrário, o
conhecimento está pronto, dado como acabado, há modelos e estímulos que
devem ser copiados e impressos na mente da criança, tal qual se lhe apresenta, do
exterior para seu interior, sem reinvenções, reconstruções ou questionamentos.
Outra perspectiva sobre a linguagem advém da tradição racionalista. De acordo com
Palladino (2004), esta difere fundamentalmente da anterior e apresenta uma
concepção baseada na visão inatista, que tem o cérebro como órgão central e
determinante do desenvolvimento da linguagem. Palladino (2004) afirma que esta
tradição é a mais aceita pelos pesquisadores da atualidade e declara que a
linguagem seria um elemento integrador biológico da espécie, definida por
representações mentais e atualizações de saberes prévios, estruturados
biologicamente. Isto se daria por meio do entrelaçamento entre a maturação e o
input
6
.
Palladino (2004) explica que, subsidiada pelos referenciais chomskyanos
7
, a
formação dos idiomas se por uma gramática considerada universal, definida por
regras comuns a todas as línguas. Esta tradição, em função de especificar que a
criança é analítica, capaz de verificar no seu exterior o que coincide com seu
conteúdo interno, processar o que ouve e produzir sua própria competência
gramatical, defende a idéia de aquisição em detrimento da aprendizagem.
Conforme as particularidades da tradição racionalista, compreendemos que as
notações numéricas não o aprendidas, como na tradição empirista. Elas fariam
parte de uma competência intrínseca da criança, que possibilitaria, com base na
ordem biológica, que elas adquirissem os dados que lhes são geneticamente
acessíveis. Palladino (2004) afirma que , na estruturação dos procedimentos de
ensino, o uso de técnicas e atividades que se assemelham às da tradição empirista,
6
“[...] uma situação qualquer de fala (são exemplos de língua) ou uma situação que não envolve apenas a
própria fala, ou seja, é um contexto qualquer” (PALLADINO, 2004, p. 764).
7
Refere-se a Noam A. Chomsky: lingüista americano, um dos expoentes da teoria racionalista da linguagem,
defensor da teoria da gramática gerativa, a qual expressa que “[...] o indivíduo nasce com capacidades inatas [...]
existem universais lingüísticos e cognitivos inerentes a todos os indivíduos e cabe ao meio apenas estimular
esse potencial já existente” (FERNANDES, 2003, p. 28).
45
com ênfase, entretanto, na atualização do saber, não da aprendizagem:
[...] estruturas inatas altamente específicas, sumamente
complexas, efetivamente postas à disposição do organismo. Em
outros termos, a tradição racionalista forneceu subsídios para a
elaboração de teses apresentadas nas neurociências, nas
abordagens modulares e nas abordagens conexionistas, as quais
recortam o cérebro em áreas específicas e cujo funcionamento
autônomo articula a própria inter-relação que se entre elas
(PALLADINO, 2004, p. 765).
Outra tradição tratada por Palladino (2004) e que se postula como possibilidade de
compreensão da linguagem é a dialética. Sua principal característica é a rejeição da
idéia de aquisição, quer seja por atualização, quer por aprendizagem, e a defesa da
idéia de interação e construção. Em linhas gerais, preconiza a idéia de que o uso
antecede e subsidia o saber, portanto, a relação entre sujeito e objeto e a mediação
são características dessa tradição que se articula em um pólo diverso ao das
tradições empiristas e racionalistas. Seus principais representantes são Piaget,
Vygotsky e Wallon.
A partir dos anos de 1990, conforme afirma Palladino (2004), surgem trabalhos
inovadores sobre a linguagem com bases interacionistas, inseridos na tradição
dialética. Esses estudos apresentam um sujeito instrumentalizado pela linguagem
que, ao mesmo tempo em que a determina, é determinado por ela. Desta feita,
considera-se que o diálogo, assim como o discurso, faz da linguagem um processo
de subjetivação, de resignificação contínuos; uma relação do sujeito com a língua,
que passa, num primeiro momento, pela alienação o retorno dos enunciados do
outro na fala infantil -; num momento posterior, pela violação a criança não se
apercebe de seu erro e não o escuta no outro e, por fim, pelo estranhamento a
criança passa a escutar o outro e a si própria; ouve a diferença e entende sua dupla
posição como sujeito: a criança que fala e a que escuta.
A incursão nessa estrutura simbólica se mediante “um movimento de captura”
(PALLADINO, 2004, p. 769). Esta metáfora pode ser mais bem compreendida se
aceitarmos que os adultos, ao se depararem com um recém-nascido, “apostam” -
uma aposta determinada pela memória, pelo inconsciente - em sua constituição de
sujeito. Isto porque, se eles, adultos, estão imersos em uma existência simbólica, os
46
bebês podem estar submetidos a esta mesma ordem simbólica. A autora explica
que as potencialidades da criança são consideradas como factíveis e que esta
captura se efetiva por meio da fala:
[...] o olho é o primeiro ‘órgão da fala’, ou seja, trata-se de instalar a
cena em que o recém-nascido é incluído no espaço da fala que se
cria; a voz é o segundo órgão, pois ela é a cesura significante mais
apta a levar a criança à vida; além disso, o terceiro órgão é a palavra
mesma, que recobre a ‘carne’ e a faz corpo [...] A posição subjetiva é
uma condição existencial bastante diversa daquela difundida por
outras tradições que supõem a repetição como modo de vida [...]
Nessa posição, ao contrário, fica evidente a idéia de que essa
relação é mediada, pois o escutar/falar não é um fenômeno sensório-
motor, mas sim um acontecimento simbólico (PALLADINO, 2004, p.
769 - 770).
Na perspectiva desta tradição, trazemos o sujeito de nossa pesquisa; o
“sujeito/pessoa”, abordado na seção anterior, com suas particularidades e
especificidades; aquele que tem os olhos como um dos seus primeiros instrumentos
de contato com o meio, como seu primeiro “órgão da fala”. Aquele que possui a voz
nas mãos, sinais que lhe facultam a comunicação e a troca simbólica com seus
pares; possibilita-lhe a incursão pelo “mundo” dos signos, significantes e
significados.
Corroboram tais concepções de Palladino (2004), os lingüistas Fiorin, Geraldi e
Abaurre. Em relatos de entrevistas dadas por eles a Xavier e Cortez (2003), Fiorin
declara que “A linguagem ao homem uma possibilidade de criar mundos, de criar
realidades, de evocar realidades não presentes” (XAVIER; CORTEZ, 2003, p. 72).
Geraldi afirma que “[...] o processo de construção da linguagem permite a
construção do pensamento, que por seu turno, funciona como um instrumento de
produção de discursos [...]” (XAVIER; CORTEZ, 2003, p. 79). Abaurre, ao ser
questionada sobre a existência ou não de um sujeito na linguagem, esclarece que
(XAVIER; CORTEZ, 2003, p. 16):
Não seria possível a existência da linguagem, não fosse a existência
de sujeitos. Por outro lado, é também importante pensar no papel da
própria linguagem na constituição da subjetividade, pois é através do
exercício da linguagem que damos forma à nossas experiências e as
individualizamos. [...] uma outra maneira de ver a questão é pensar
que é através do exercício da linguagem que se definem identidades.
47
É nesse lugar que o Sujeito se como diferente de um Outro. Que
com ele participa constantemente de situações de interlocução. [...]
sujeitos historicamente situados que, por sua vez, se constituem em
parte graças ao exercício constante da linguagem.
Para Palladino (2004), a tradição dialética propõe a adoção de uma perspectiva
pautada na diversidade no que se refere ao uso conhecimento construído. Pelos
pressupostos da visão dialética, os erros, elementos correntes no contexto do ensino
e aprendizagem formal, definidos pelas convenções adotadas em determinado
contexto sócio-histórico, são interpretados por esta tradição como um não-saber,
parte integrante de um sujeito que se encontra distante da visão inatista de
programação hereditária e da idéia empirista de “papel em branco”. Palladino (2004)
comenta que o erro passa a ser considerado como um uso isento de saber, uma
apropriação inadequada da palavra do outro. Portanto, se o “outro”, interação,
há diálogo, argumentação.
Com o intuito de especificar nossa posição em relação à tradição dialética, tratada
pela autora em questão, julgamos necessária a visão de um outro pesquisador -
Zorzi (1999) -, pois entendemos que esta colaboração esclarece, com maior rigor, os
mecanismos operatórios da inteligência no que se refere ao desenvolvimento da
linguagem.
Baseado nas proposições piagetianas, Zorzi (1999) explica que, para Piaget, a
linguagem é uma função cognitiva, semiótica, advinda da evolução do período
sensório-motor, por um processo contínuo que envolve dois elementos formadores
de esquemas: a assimilação e a acomodação.
Zorzi (1999) argumenta que, no final do segundo ano de vida da criança, surgem as
representações mentais, calcadas pelas condutas pré-simbólicas e simbólicas. As
primeiras o marcadas pelo jogo simbólico: o uso convencional dos objetos
subsidiado pela imitação diferida. Como exemplo, uma criança que a mãe
pentear o cabelo, num outro momento, pega o pente e realiza a mesma ação. Para
tal, a criança observou o comportamento da mãe (assimilação) e desejou reproduzi-
lo pela imitação (acomodação).
48
De acordo com a evolução das condutas pré-simbólicas, Zorzi (1999) aponta para os
esquemas simbólicos jogo e imitação integrados, em equilíbrio que formam o
conjunto das adaptações. Sua principal característica é a ação da criança na
ausência do modelo. Para exemplificar, uma criança, de posse de objetos reais ou
miniaturas, faz-de-conta que os utiliza, porém, como foi explicado, fora do contexto
real. Esses esquemas simbólicos, presentes nas ações realizadas no corpo da
criança, se estendem para os bonecos ou pessoas, dado que se constitui em uma
generalização do simbolismo que deixa de ser dirigido apenas à criança para ser
dirigido, também, aos outros.
Esta generalização, de acordo com Zorzi (1999), marca o início das condutas
simbólicas, segunda forma de representação a ser tratada. Inicia-se, então, uma
sistematização da aplicação de ações em outros, considerados como parceiros do
brinquedo. Conforme a criança concede aos outros capacidades de ações
semelhantes às suas, ocorre uma cisão entre o símbolo e a ação. Os bonecos o
considerados parceiros, com poder de decisão, sentimentos e intenções.
Para este autor, a criança, na evolução do brinquedo simbólico, passa a coordenar
as ações simbólicas quando antecipa, organiza, planeja e ordena no tempo e
espaço os atos que executa. Conjuntamente às imagens mentais, formadas pela
imitação interior, surgem as condições para que a função simbólica se efetive;
aparecem as primeiras palavras ligadas ao desenvolvimento da linguagem, o que
comprova a capacidade de representação de fatos e objetos ausentes. Logo, “[...]
experimentar o mundo por meio de ações sensório-motoras, ou práticas, começa a
dar lugar a um modo mais complexo de explorar que corresponde à manipulação e
organização simbólicas da realidade” (ZORZI, 1999, p. 4).
Zorzi (1999) alerta para o fato que o simbolismo se efetiva quando a criança
atinge um nível mais independente de representação e passa ela própria a criar
símbolos. Como exemplo, quando quer brincar de “carrinho” e, na falta de uma
miniatura, usa um pedaço de madeira e atribui a ele o status de um carro de
brinquedo. O mesmo se com as palavras ou gestos, que sustentam ou criam,
ficticiamente, um fato ausente: para dar banho no bebê a criança simula um chuveiro
49
de “mentirinha” e imita o barulho da água. Para o autor:
[...] a linguagem está carregada de significados que correspondem a
um conhecimento social, geral, mas que não é compreendido pela
criança somente por meio da exposição à informações lingüísticas.
Se bem que desde muito cedo comece a dominar a gramática e a
usar os mesmos termos da linguagem dos adultos, isso não quer
dizer que a criança possua os mesmos significados que eles. Os
significados da linguagem da criança estão restritos à compreensão
ainda limitada de mundo que ela tem (ZORZI, 1999, p. 27).
Para Zorzi (1999), a linguagem se constitui em “[...] um meio de interação, de
relação e de construção de conhecimentos, por outro lado, algo que a criança
precisa conhecer e dominar: linguagem como meio e objetivo do conhecimento, ao
mesmo tempo” (ZORZI, 1999, p. 28).
Poderiam essas constatações nos levar a refletir, novamente, sobre as notações
numéricas? Partimos do pressuposto, de acordo com a tradição dialética, que elas
assumem um papel fulcral no que se refere à construção do conhecimento
matemático, que se constituem, a nosso ver, em uma dimensão da linguagem em
intercâmbio com as estruturas conceituais. Com estatuto de linguagem, a notação se
vale de signos e convenções, conforme a discussão a seguir:
A simbologia universal da Matemática serve como fonte de referência
para a elaboração da objetividade, mas sua aprendizagem requer
esse consórcio com outras formas de comunicação: língua falada ou
língua escrita, ícones, desenhos [...] os símbolos lingüísticos têm
uma função de fazer a interface na interatividade prevista entre o
aluno e o objeto do conhecimento. Interface, mediação, suporte
material e recurso didático são termos e expressões que têm em
comum a função pedagógica de contribuir no processo de abstração
conceitual (PAIS, 2006, p. 70 - 75).
Pela complexidade do exposto, Pais (2006) esclarece que conceito e notação se
constroem juntos e que o sujeito atribui notações a conceitos que ainda não foram
cognitivamente construídos por ele. Portanto, o autor é contrário à idéia de que os
signos possam ser utilizados após a formação conceitual. Pais (2006) deixa claro
que os signos podem se utilizados em função de sua crença no subsídio da
comunicação para a criação de proposições.
50
Pais (2006) mostra, então, a necessidade de articulações entre as representações,
pois estas possibilitam a expansão do conhecimento. A linguagem, seus múltiplos
recursos representacionais e o desenvolvimento cognitivo, imbricados, apresentam-
se como aspectos constitutivos da abstração conceitual.
Powell (2006) afirma que a escrita é um instrumento relevante de reflexão sobre o
pensamento e acrescenta que, no caso das notações numéricas, o interesse maior
está centrado no desenvolvimento cognitivo da matemática, em que a escrita tem
possibilidades de representar um “contexto reflexivo de caráter mais livre, expressivo
e individualizado”. Desta forma, as notações matemáticas devem suplantar os limites
da pura expressão, inserir o exercício do senso crítico e priorizar os “[...] processos
colaborativos de diferentes dimensões e de tomada de consciência sobre as
experiências individuais ou coletivas [...]” (POWELL, 2006, p. 53).
A conduta crítica e reflexiva apontada por Powell (2006) é posta em evidência
quando a interação se dá no sentido da busca de condutas cognitivas do tipo
semióticas, em que se reforça o fato de que mesmo a prática determinada pode
sofrer alterações. A escrita, como uma alternativa de representação conceitual,
cumpre este papel: desenvolve-se imersa em um contexto histórico, social e cultural
como uma forma de prática social, além de ser uma importante estratégia para a
didática no processo de ensino e aprendizagem da matemática.
Consideramos necessário enfatizar a metáfora da captura, tratada por Palladino
(2004), que no caso do desenvolvimento das notações numéricas se faz presente na
aposta de um sujeito que está no mundo ouvinte ou surdo -, em contato constante
com números escritos, falados, gesticulados; um sujeito pressupostamente apto a se
relacionar com a grafia, concebido como parte de uma mesma cultura, num contexto
tal que, de acordo com Skliar (2003), os aspectos de alteridade permanecem, na
maioria das vezes, escamoteados, camuflados, ocultos ou esquecidos.
Cabe ainda ressaltar as considerações de Zorzi (1999), subsidiadas pelos estudos
piagetianos. O autor aponta para o fato de que, apesar de as crianças estarem
expostas a uma linguagem imersa em conhecimentos construídos, mesmo que
51
façam uso dessa linguagem, precisam reconstruir esses conhecimentos a fim de
apreendê-los. Conforme explica Palladino (2004), o uso precede o saber, logo, no
caso das notações numéricas, mesmo que realizadas distantes dos referentes
conceituais, podem, como afirmam Pais (2006) e Powell (2006), propiciar a incursão
para a apreensão das operações mentais.
As tradições sobre a linguagem explicitadas nessa seção são subsídios para nossa
pesquisa, pois direcionam nosso olhar para as diferentes formas de compreensão do
desenvolvimento da linguagem na criança, como a representação da escrita da
matemática.
No que se refere à tradição dialética, gostaríamos de enfatizar que, de acordo com
Palladino (2004), trouxe conseqüências importantes para o campo educacional, pois
supera as tradições anteriores quando permite a adoção de condutas que
reconheçam uma mobilidade do sujeito, a ausência de ordenações e de apreensões
graduais, herméticas, submetidas a uma hierarquia pré-determinada biologicamente.
Abre-se um leque de oportunidades educacionais de acordo com esta visão, o que
justifica nossa opção por esta tradição no estudo da pesquisa como um todo.
Gostaríamos, ainda, de ressaltar que acreditamos na seguinte concepção:
[...] pensamento e linguagem possuem origens (biológicas)
absolutamente separadas; [...] Um ser humano não é desprovido de
mente ou mentalmente deficiente sem uma língua, porém está
gravemente restrito ao alcance de seus pensamentos, confinado, de
fato, a um mundo imediato, pequeno (SACKS, 1998, p. 52).
Para concluir as considerações feitas sobre o tema, é preciso atentar para o que diz
Danyluk (1991) acerca da necessidade de um equilíbrio entre o desenvolvimento da
escrita, quer das notações da linguagem alfabética, quer das notações da linguagem
matemática. Segundo esta pesquisadora, avança-se muito pouco no
desenvolvimento da escrita quando se prioriza uma forma de linguagem, no caso a
alfabética, em detrimento de outra: a matemática.
Danyluk (1991) reconhece que as pesquisas sobre as notações numéricas são
incipientes e deixam a desejar se comparadas com as pesquisas realizadas sobre
52
as notações alfabéticas. Reconhecimento corroborado por Fayol (1996) ao afirmar
que somente no início da década de 1980 é que os estudos sobre os sistemas de
numeração foram tratados sob um prisma lingüístico.
Fayol (1996) relata, ainda, que esta carência deixou inúmeras lacunas no
conhecimento acerca da apreensão da escrita numérica e sugere ser preocupante o
fato de nada sabermos acerca das implicações da codificação superficial sobre os
processos cognitivos estabelecidos. Tal preocupação se manifesta em seu trabalho
A Criança e o Número: da contagem à resolução de problemas (FAYOL, 1996).
De uma maneira ampla, as conclusões das pesquisas de Palladino (2004), Zorzi
(1999), Pais (2006), Powell (2006), Danyluk (1991) e Fayol (1996) trazem à tona o
fato de este sistema representativo ser um dos sustentáculos do pensamento, “[...]
pensamento não é língua, ou simbolismo, ou representação por imagens, ou música
– mas sem estes ele pode extinguir-se, natimorto, na mente” (SACKS, 1998, p. 54).
Tratar das relações entre a linguagem oral, escrita, de sinais e suas manifestações
notacionais é, de todo, pertinente e necessário, dada a sua colaboração para a
compreensão do pensamento. Entretanto, a linguagem não se consubstancia na
origem da lógica do pensamento (NOGUEIRA; MACHADO, 2007), e não dá conta da
construção das estruturas cognitivas das crianças, quer sejam elas ouvintes,
usuárias da língua majoritária, quer sejam elas surdas, usuárias da LIBRAS.
Nogueira e Machado (2007) realizaram uma interessante pesquisa que trata das
relações entre a língua de sinais e os aspectos do desenvolvimento cognitivo de
surdos. De suas análises destacamos que:
[...]
a representação possibilita a passagem do saber fazer em atos
para o saber fazer em pensamento. Mas, saber fazer em atos
significa, em última instância, obter êxito na ação realizada de modo
a alcançar os fins propostos, é compreender no plano da ação.
Assim, é a ação e não a linguagem a origem das operações [...]
(NOGUEIRA; MACHADO, 2007, no prelo).
Nogueira e Machado (2007), subsidiadas pelas proposições piagetianas, explicam
que a função da linguagem se consubstancia em estender as possibilidades das
53
operações para a flexibilidade e generalizações, mas advertem que “[...] a origem
do pensamento deve ser procurada na função simbólica, que é mais ampla do que a
linguagem, pois engloba, além do sistema dos signos verbais, o do símbolo no
sentido estrito” (NOGUEIRA; MACHADO, 2007, no prelo). Esta afirmação nos deixa
confortáveis em tratar desse tema que se constitui fundamental para a compreensão
da relação entre pensamento e linguagem, dadas as suas especificidades.
Sem dúvida, a adoção da língua natural dos surdos, a ngua de
sinais, é um avanço na concepção da surdez e, com certeza, permite
ao surdo ampliar seu universo de relações afetivas e sociais com
seus pares. Mas [...] a adoção da abordagem bilíngüe não é a
solução definitiva para a educação dos surdos. Apesar de ser
imprescindível que os surdos aprendam, o mais cedo possível, a
língua de sinais de sua comunidade, a sua educação, nos parece,
necessita ainda de um cuidado especial. [...]. É preciso continuar
investindo na ampliação das possibilidades de experiência do surdo.
Mais do que o ouvinte, o surdo precisa de um ‘método ativo’ de
educação para compensar a ausência de um canal importante de
contato com o mundo (NOGUEIRA; MACHADO, 2007, p. 23).
Subsidiadas pelas reflexões de Nogueira e Machado (2007), compreendemos as
insuficiências e as potencialidades da linguagem: insuficiências no que se refere à
construção das estruturas cognitivas; potencialidades no que tange à ampliação do
pensamento, contudo, cindida de sua estruturação.
54
4 EM ESTADO DE ESCUTA...
Ao iniciarmos este capítulo, a primeira preocupação foi intitulá-lo de maneira a
traduzir o que significou o período de análise dos trabalhos de Sinclair (1990),
Lerner, Sadovsky (1996), Brizuela (2006), Orozco (2005) e das brasileiras Teixeira
(2005) e Danyluk (1998). Procuramos captar suas intenções, suas metodologias, a
cientificidade responsável e, principalmente, o ideário de servir ao avanço e à
disseminação do conhecimento, especificidades que contribuíram para que esta
presente pesquisa tivesse fundamentação teórica suficiente.
Para muitos, os verbos escutar e ouvir o sinônimos. Skliar (1999) explica que,
para alguns, ouvir é uma característica fisiológica ligada ao sentido da audição; o
escutar envolve o pensamento, a reflexão e os sentimentos, independe dos órgãos
sensoriais. Podemos escutar com nossas mentes, com nossos olhos, com o tato!
Pensamos como estes últimos, que vêem a escuta como algo além da aparência
primeira, reflexa, instintiva, biológica.
O ato de escutar tem em si uma dimensão que ultrapassa o ouvir, que delega
àqueles que o fazem uma ação complementar crítica e autônoma, característica
essencial aos que se dedicam à pesquisa científica. Portanto, foi com estas
concepções que os trabalhos citados acima, que perpassam pelo tema deste
estudo, foram analisados e, sinteticamente, descritos a seguir.
Hermine Sinclair (1990) traz em seu livro A produção de notações na criança:
linguagem, número, ritmos e melodias”, resultados das pesquisas de Emília Ferreiro
e Anne Sinclair, dados fundamentais para o desenvolvimento deste trabalho. A
primeira se debruça sobre as hipóteses da escrita infantil; a segunda sobre a escrita
numérica. São estudos que trazem seus resultados específicos no que se refere à
construção e ao desenvolvimento destes conteúdos. Entretanto, são pesquisas que
têm uma característica comum: a questão da representação.
Tanto Ferreiro (2001) como Sinclair (1990) trazem à tona o sujeito ativo, integrado
55
ao processo de ensino e aprendizagem, com vistas à construção progressiva do
conhecimento no sentido da superação de si mesmo. Afirmam as pesquisadoras que
as notações infantis, alfabéticas e numéricas, não são vistas como transmissões
vinculadas às habilidades técnicas, perceptivo-motoras ou instaladas por associação
de estímulos. Não têm caráter depositário, independentes da ação do sujeito
cognoscente.
Ferreiro (2001) e Sinclair (1990) constatam que as crianças pensam sobre a escrita
muito antes do ensino formal; estão em contato diário com letras e números; as
representações gráficas circundam o cotidiano e são utilizadas pelos pequenos
antes de estes saberem seus significados. Apertam os números dos botões dos
elevadores, reconhecem o número do ônibus que vai levá-los para casa, sabem qual
a marca de sabão em é usada para lavar suas roupas, conhecem o número do
canal de T.V. que mais lhes interessa, reconhecem os nomes das lojas...
Frente às informações advindas do meio, as crianças atuam sobre elas e elaboram
hipóteses sobre a construção da escrita, são sujeitos ativos e partícipes
incondicionais do processo de ensino e aprendizagem. As marcas grafadas trazem,
em sua essência, a linguagem produzida que:
[...] somente as práticas sociais de interpretação permitem descobrir
que essas marcas sobre uma superfície são objetos simbólicos;
somente as práticas sociais de interpretação transformam-nas em
objetos lingüísticos (FERREIRO, 2001, p.11).
As proposições piagetianas se constituíram nos subsídios para que Sinclair (1990) e
Ferreiro (2001) desenvolvessem seus trabalhos e concluíssem que os sistemas das
notações alfabéticas ou numéricas são construídos simultaneamente. A relação
entre o número e a quantidade que o representa está presente na criança antes
mesmo da hipótese silábica
8
se completar, pois se a criança realiza a
correspondência entre a quantidade de letras de um vocábulo e as partes de sua
8
Hipótese silábica: [...] cada parte de um nome escrito pode corresponder a uma parte de um nome falado. [...]
trata-se agora da consideração das relações entre duas totalidades diferentes: de um lado as partes da palavra
falada – suas sílabas – e a própria palavra; de outro lado, as partes da palavra escrita – suas letras – e a série de
letras como um todo. A busca de correspondência um a um tem, no domínio da leitura e escrita, exatamente as
mesmas propriedades do tipo de correspondência que está na base da equivalência numérica (FERREIRO,
1998, p. 16).
56
emissão oral, expressa também a compreensão da relação entre outras duas
totalidades: o número e sua magnitude.
As constatações dos estudos de Ferreiro (2001) demonstram que as crianças
constroem a escrita psicogeneticamente, bem como o fazem com a noção de
quantidade, implícita na construção desta mesma escrita. No entanto, as notações
numéricas representam operações mentais efetuadas mediante ações sobre os
objetos, enquanto as notações alfabéticas representam outra organização da
linguagem.
Explicando melhor, quando efetuamos uma notação, quer seja alfabética ou
numérica, antes de representá-la por meio de um código lingüístico convencional,
buscamos, primeiramente, seu aspecto conceitual. No que se refere à escrita
alfabética, correntes que a interligam a associação fonema/grafema; a uma
representação convencional da fala. Para Ferreiro (2001), as diversas modalidades
de comunicação - oral, escrita, gestual - nada mais são que organizações
específicas e particularizadas de linguagem, isentas de uma hierarquia.
No que se refere à escrita numérica, Sinclair (1990) afirma que esta se constitui em
uma representação imediata do conceito, desvinculada de aspectos fonêmicos. Não
relação entre o ideograma 4 e o vocábulo quatro; entre os aspectos icônico e o
fonêmico. Se escrevo 4, 14, 40, 423, cada algarismo 4 apresenta um valor posicional
diverso, logo uma definição conceitual variável.
O que sobressai de nossos resultados é que o caminho para a
primeira compreensão da numeração escrita parece ser bem mais
direto para as crianças pequenas do que o observado na sua
reconstrução da escrita alfabética. A razão disso deveria ser buscada
na maior transparência da numeração escrita, na universalidade de
seus princípios e em sua ligação não arbitrária com os conceitos
numéricos? (SINCLAIR, 1990, p. 73).
A pesquisadora afirma que o algarismo não estabelece relações com as
características sonoras, icônicas ou conceituais do vocábulo utilizado para sua
representação. A significação de um número está estreitamente ligada à relação de
posição que ocupa conjuntamente a outros números.
57
Em suas pesquisas realizadas em Genebra, Sinclair (1990) enfatiza a função social
da escrita numérica e afirma a insuficiência de estudos sobre as hipóteses infantis
acerca desta notação. Com o objetivo de contribuir para uma melhor compreensão
deste sistema, de construção progressiva, destaca seis tipos hierárquicos de
notações de cardinalidades abaixo de 10, obtidas com quarenta e cinco crianças de
jardins de infância, de idades entre quatro e seis anos, que constituíram o primeiro
grupo da pesquisa; e vinte crianças de creches, com idades entre três anos e um
mês a quatro anos e seis meses, perfazendo o segundo grupo do estudo. Os tipos
de notações por ela encontrados obedecem a uma hierarquia, o que confirma a
psicogênese das notações numéricas e estão descritos a seguir:
- Notação 1 - representação global de quantidade: a criança não estabelece relação
entre a grafia, a cardinalidade e a forma dos objetos propostos. Suas notações são
garatujas, grafismos, interpretadas como uma relação firmada entre os advérbios de
quantidade muito, pouco, vários... e estes objetos.
- Notação 2 - uma figura: algumas crianças trazem o aspecto icônico,
características dos objetos, como forma de representar a cardinalidade proposta (por
exemplo: três bolas; a criança “escreve” uma bola). As crianças mais velhas utilizam
o que conhecem do alfabeto e relacionam uma letra ao nome do objeto;
estabelecem uma representação gráfica para a quantidade proposta (por exemplo:
três bolas; a criança “escreve” B). Porém, neste caso, a criança pesquisada sabe
que a cardinalidade não está presente, pois explica que sua notação não permite
este conhecimento.
- Notação 3 - correspondência termo a termo: as crianças utilizam grafismos icônicos
ou abstratos com a finalidade de estabelecer uma correspondência entre a
quantidade de objetos solicitados e sua representação escrita. Logo, para cada
objeto, um grafismo correspondente e a cardinalidade torna-se presente neste
momento.
- Notação 4 aparecimento dos algarismos: as crianças representam a quantidade
de objetos por uma seqüência numérica que pode ser, por exemplo, no caso de seis
58
objetos 1 2 3 4 5 6 ou 6 6 6 6 6 6 . Se questionada pela pesquisadora onde se pode
ler o número 6, a criança aponta o último número da seqüência e quer apagar o
restante.
- Notação 5 - o cardinal sozinho: neste caso a criança escreve o mero referente à
quantidade de objetos solicitados, quer seja o ideograma numérico, quer seja sua
representação alfabética: 5 ou cinco.
- Notação 6 - cardinal acompanhado do nome dos objetos: além de escrever o
número referente à quantidade de objetos solicitados, a criança especifica,
alfabeticamente, dentro de suas possibilidades na psicogênese da língua escrita,
quais são estes objetos: 6 balas, por exemplo.
De acordo com seus resultados, pôde Sinclair (1990) concluir que as crianças
utilizam vários sistemas de notação numérica, simultaneamente. No entanto, há uma
relação estreita entre o tipo de notação utilizado e a idade da criança. Isto se deve à
complexidade do sistema de numeração escrita, que envolve conceitos de números,
contagem, os padrões da escrita numérica e, principalmente, à ação da criança,
soberana na construção dos valores posicionais numéricos.
Sinclair reitera que o conhecimento dos símbolos convencionais não é suficiente
para garantir o conhecimento conceitual da notação; este “[...] deve ser combinado
com elementos cognitivos que permitam a compreensão e a utilização do sistema de
numeração escrita [...]” (SINCLAIR, 1990, p. 89). Logo, podemos concluir que a
psicogênese da língua escrita fornece elementos que nos possibilitam conhecer o
pensamento das crianças e as hipóteses que aventam para a construção destas
notações.
O estudo de Delia Lerner e Patrícia Sadovsky (1996) envolveu cinqüenta crianças
com idades entre quatro e oito anos. Concomitantemente à pesquisa, as autoras
utilizaram algumas de suas provas e pressupostos teórico-metodológicos em sala de
aula, pois tinham como objetivo elaborar uma proposta didática diferente da que
vinha sendo utilizada, até então, nas escolas em que as pesquisadoras trabalhavam.
59
Partiam do princípio que as representações são um “[...] produto cultural”, logo a
notação numérica “[...] se oferece à indagação infantil” cotidianamente (LERNER;
SADOVSKY, 1996, p. 74 - 75). A investigação de Lerner e Sadovsky (1996) centrou-
se na reflexão sobre a aprendizagem do conceito de dezena e sua possível
influência no conhecimento das notações numéricas. Cogitavam, ainda, a
possibilidade de ser a escrita dos números o fator determinante para a compreensão
deste conceito.
As pesquisadoras fizeram uso do método clínico-crítico, com entrevistas semi-
estruturadas aplicadas em duplas de crianças pertencentes à mesma série escolar.
A proposta das autoras baseou-se em atividades que envolviam a comparação de
números e “a escrita de um número muito alto” para as crianças o número 9 é
“alto” enquanto que o número 2 não o é. As ações lúdicas realizadas com jogos
permitiram que as crianças fossem espontâneas e deixassem fluir as hipóteses
construídas por elas sobre as notações numéricas, as quais estão expostas abaixo
(LERNER; SADOVSKY, 1996):
Hipótese: Quanto maior a quantidade de algarismos de um número, maior é o
número”;
Esta é uma conjectura que as crianças tecem explicitando que, de acordo com a
quantidade de algarismos de um número, podemos determinar sua magnitude. Após
se apresentar a uma criança os números 32 e 6, ao compará-los ela afirma que 32 é
maior que 6, pois está constituído por uma quantidade maior de algarismos. As
respostas dadas independem da nomenclatura oral dos números, o que torna esta
hipótese um instrumento relevante no que se refere à notação numérica, tendo em
vista que possibilita comparações entre números que tenham quantidades de
algarismos diferentes.
As pesquisadoras investigaram crianças e encontraram regularidades em suas
respostas, assim como justificativas que delineiam o caminho que fazem para
construir a representação numérica. No entanto, a generalização desta primeira
hipótese se de maneira aleatória, não segue um padrão pré-estabelecido de
60
organização lógica e temporal. As crianças enfrentam conflitos como o de Pablo, um
dos meninos que fizeram parte do estudo:
Pablo mostra um problema que provavelmente todas as crianças
formulam, em determinado momento da construção: como se pode
explicar que um número cujos algarismos são todos ‘baixinhos’
(1110, por exemplo) seja maior que outro formado por algarismos
‘muito altos’ (999, por exemplo)? (LERNER; SADOVSKY, 1996, p.
80).
Neste caso, percebemos o conflito cognitivo pelo qual passa a criança, fenômeno
responsável pela busca de novo patamar a partir da desestabilização de seus
esquemas formulados sobre o tema. Surge, então, uma necessidade premente de
se adaptar às novas situações provocadas por este “desconforto”, por meio de
assimilações que conduzam ao equilíbrio das estruturas adjacentes. Como afirmam
as autoras, “[...] não existe dúvida que sua elaboração constitui um passo relevante
para a compreensão da numeração escrita” (LERNER; SADOVSKY, 1996, p. 81).
2ª Hipótese: “A posição dos algarismos como critério de comparação ou ‘o primeiro é
quem manda’ ”;
Quando analisam as justificativas das crianças sobre o valor posicional dos
algarismos, as autoras compreendem que as mesmas não se apercebem que “[...] ‘o
primeiro é quem manda’ porque representa agrupamentos de 10 se o mero tem
dois algarismos, de 100 se tem três... enquanto que as seguintes representam
potências menores de base 10” (LERNER; SADOVSKY, 1996, p. 84).
As crianças demonstram compreender que o valor dos algarismos, no sistema de
numeração decimal, depende do lugar que ocupam na seqüência numérica. A
afirmação pode ser constatada por um dos exemplos da pesquisa de Lerner e
Sadovsky (1996), no qual duas crianças devem decidir qual número é maior: 12 ou
21. Após várias argumentações, elas concordam que, apesar dos números serem
formados pelos mesmos algarismos, o que tem maior valor é o que está “na frente”.
As crianças citadas descobriram além do nculo entre a
quantidade de algarismos e a magnitude do número outra
característica específica dos sistemas posicionais: o valor que um
algarismo representa, apesar de ser sempre o mesmo, depende do
61
lugar em que está localizado com respeito aos outros que constituem
o número. [...] Além disso, sabem que, quando o primeiro algarismo
das duas quantidades é o mesmo, é preciso se apelar ao segundo
para decidir qual é o maior (LERNER; SADOVSKY, 1996, p. 83).
Uma das formas que colaboram para a apreensão dos valores dos algarismos pelas
crianças é a oralidade numérica. A seqüência oral se apresenta como fator
desencadeante no estabelecimento de agrupamentos numéricos de base 10 (vinte,
trinta...), o que corrobora o estabelecimento de uma nova hipótese na construção
das representações numéricas.
Novamente atentamos para o sujeito de nossa pesquisa e sua língua. Se as autoras
Lerner e Sadovsky (1996) afirmam a relevância da oralidade na apreensão dos
números de base 10, como se efetivaria esta aprendizagem em LIBRAS, uma língua
que possibilita uma transparência
9
aos números e que indica como devem ser
escritos de forma direta? Como os surdos trabalham com estes agrupamentos
numéricos na relação entre a LIBRAS e a escrita?
3ª Hipótese: “Alguns números especiais: o papel dos ‘nós’”;
Lerner e Sadovsky (1996) constataram que os números exatos, caracterizados pelas
potências de base 10 e denominados de “nós”, fazem parte das primeiras aquisições
de escrita numérica pelas crianças. Os números existentes entre os “nós” têm uma
aquisição mais tardia (102, 1050, 10200 etc.). Assinalam, ainda, que a construção
das notações dos outros “nós” das centenas (200, 300, 400 etc.) se realiza mediante
a crença das crianças na conservação das características da escrita do 100; desta
forma o número 400 é escrito como 104.
De acordo com as considerações das pesquisadoras, como a criança fará a
distinção entre a notação de quatrocentos e a de cento e quatro? Certamente, este
se constitui em um conflito que se apresenta à hipótese elaborada pela criança. “A
busca de diferenciação seguramente a conduzirá a descobrir que nos casos de nós
(200, 300, etc.) o que varia em relação à escrita do cem é o primeiro número,
9
“[…] os números transparentes serão aqueles que seguem, na escrita e na fala, a ordem temporal maior +
menor, assim como aqueles em que os elementos dos números escritos podem ser identificados a partir dos
números falados (BRIZUELA, 2006, p. 36).
62
enquanto que no caso de 101...109, o que varia é o último número (LERNER;
SADOVSKY, 1996, p. 92).
4ª Hipótese: “O papel da numeração falada”;
As autoras observaram que a numeração falada não é posicional; a notação escrita,
fundamentada na oralidade, se produz, então, de forma não-convencional e
pluridirecional. Sua relevância se refere ao conceito de número, da sua
representação notacional e da influência desta nos juízos comparativos entre a
emissão numérica. Explicando melhor, quando falamos mil e quatro, temos uma
operação aritmética 1000 + 4 (soma); se falamos oitocentos, temos outra
operação aritmética 8 x 100 (multiplicação). Se combinarmos números como
cinco mil e quatrocentos temos as duas operações aritméticas juntas 5 x 1000 + 4
x 100.
A numeração escrita é ao mesmo tempo mais regular, mais
hermética que a numeração falada. É mais regular porque a soma e
a multiplicação são utilizadas sempre da mesma maneira: se
multiplica cada algarismo pela potência da base que corresponde, se
somam os produtos que resultaram dessas multiplicações. É
hermética porque nela não existe nenhum vestígio das operações
aritméticas racionais envolvidas e porque – de modo diferente do que
acontece com a numeração falada as potências da base não são
representadas através de símbolos particulares, mas podem ser
deduzidas a partir da posição que ocupam os algarismos (LERNER;
SADOVSKY, 1996, p. 95).
As escritas convencionais e não convencionais fazem parte do repertório das
notações numéricas das crianças; de forma construtiva elas se apropriam da escrita
convencional sempre subsidiadas pelas hipóteses que elaboram.
A apresentação dos números em LIBRAS segue um padrão diverso da dos números
orais. A língua de sinais é posicional, no sentido de ser “ler” exatamente o que se
escreve, isto é, 1245 é lido um, dois, quatro, cinco e não mil duzentos e quarenta e
cinco. Desta forma, o número em LIBRAS é dado de forma convencional; neste
caso, a apreensão das operações descritas anteriormente pode vir a ser objeto de
futuras pesquisas sobre como o surdo apreende o valor de posição.
63
5ª Hipótese: “Do conflito à notação convencional”
Esta hipótese trata do conflito pelo qual passa a criança durante a construção da
notação convencional. Ao mesmo tempo em que supõe que a numeração escrita se
vincula estritamente à numeração falada, sabe-se que no sistema de numeração
utilizado, a quantidade de algarismos relaciona-se à magnitude do número
representado. Por exemplo, se uma criança é solicitada a escrever o número dois
mil, pode fazê-lo utilizando quatro algarismos 2000 -, porém, quando tem que
escrever dois mil setecentos e oitenta e dois, baseada na oralidade, utiliza-se, para
tal, de mais que 4 algarismos- 200070082.
Neste caso o conflito cognitivo ainda não se faz presente, tendo em vista que o
segundo número é maior que o primeiro, até porque “quem tem mais números é
maior”. Entretanto, quando é solicitada a escrever três mil 3000 e compara sua
notação com a do número anterior percebe que a magnitude dos números é
contraditória às hipóteses que teceu. Logo, esse conflito cognitivo aflora entre a
notação convencional e sua notação. A solução que encontra, primeiramente, é
diminuir a quantidade de números escritos.
[...] as escritas que correspondem à numeração falada entram em
contradição com as hipóteses vinculadas à quantidade de algarismos
das notações numéricas. Tomar consciência deste conflito e elaborar
ferramentas para superá-lo parecem ser passos necessários para
progredir até a notação convencional (LERNER; SADOVSKY, 1996,
p. 108).
A busca de regularidades leva a criança a se aproximar da notação convencional.
De posse das regularidades, ela pode analisar e recompor a escrita baseada na
correspondência com a numeração falada. Para as pesquisadoras, é necessária a
aproximação entre o uso escolar e o social da notação numérica, dado que para a
construção do conhecimento, esta relação dialética torna-se imprescindível.
[...] a relação numeração falada/numeração escrita é um caminho
que as crianças transitam em ambas as direções: não a
seqüência oral é um recurso importante na hora de compreender ou
anotar as escritas numéricas, como também recorrer à seqüência
escrita é um recurso para reconstruir o nome do número (LERNER;
SADOVSKY, 1996, p. 128 - 129).
64
Estas constatações nos levam, mais uma vez, a questionar a situação do surdo e da
numeração digital a que está exposto. Isto porque, quando “falamos” um número em
língua de sinais, mostramos como este número deve ser escrito: dezesseis em
LIBRAS é “um seis”; trezentos e vinte e quatro em língua de sinais é “três dois
quatro”. As crianças surdas escrevem os números de forma convencional. Desta
feita, seria justo indagarmos quais hipóteses elas elaboram para compreender a
cardinalidade, a ordinalidade e o valor posicional dos números.
Outra pesquisa que subsidiou nosso trabalho foi a realizada por Brizuela (2006) que
investigou as hipóteses sobre as notações numéricas infantis antes da exposição
das crianças ao ensino formal. Por meio do método clínico-crítico, aborda,
conjuntamente, os aspectos evidenciados pela pesquisa de Sinclair (1990) – o
estudo das notações como ferramentas referencial-comunicativas - e pela pesquisa
de Lerner e Sadovsky (1996) – notações como domínios do conhecimento.
Brizuela (2006), assim como Sinclair (1990), se fundamenta nas constatações de
Ferreiro (1985) sobre as hipóteses das notações alfabéticas infantis. Uma das
características relevantes que acompanha estas conjecturas é a rejeição das
crianças por representações escritas que contenham várias letras iguais: nanaaa.
No entanto, no que se refere à representação numérica de quantidades, elas se
valem de seqüências de um mesmo grafismo: 4 4 4 4. Por isso, Brizuela (2006)
afirma que a idéia corrente entre os pesquisadores de que os pequenos não fazem a
distinção entre letras e números deve ser revista, pois as notações têm
especificidades que são percebidas durante a construção infantil destes objetos
conceituais.
Pela análise de suas pesquisas, Brizuela (2006) constata que desde tenra idade as
crianças não confundem letras e números e sabem diferenciar as notações
alfabéticas das numéricas. Relata, ainda que, crianças de idades inferiores a dez
anos compreendem a diferença entre a primeira e a última letra de seus nomes.
Logo, têm a possibilidade de saber a diferença entre a posição dos algarismos na
composição numérica: valor posicional. Este fato é comprovado com o estudo de
caso do menino George, descrito em detalhes, mais adiante.
65
Comenta, ainda, acerca dos “números transparentes”, “[...] que seguem, na escrita e
na fala, a ordem temporal maior + menor, assim como aqueles em que os elementos
dos números escritos podem ser identificados a partir dos números falados”
(BRIZUELA, 2006, p. 36). No caso da numeração em português, os números que
sucedem o 15 são os que seguem este sistema dezesseis = dez + seis = 16.
Coincidem fala e escrita numéricas em seu valor posicional, o que facilita a
compreensão da criança sobre este conceito e sua relevância na ordem e posição
das representações da escrita dos números.
Esta afirmação da autora nos reporta aos números na LIBRAS. Será que, ao
indicarmos ao surdo o número dezesseis (em LIBRAS os sinais indicam o número 1,
a seguir, o número 6), fica-lhe clara a construção dez + seis? Como se dá a
compreensão do valor posicional se os “números transparentes” não têm esta
característica na LIBRAS?
As relações efetuadas entre a lógica do sistema da escrita alfabética e a da escrita
dos números são evidenciadas pela busca de regularidades, de re-equilibração e de
formulação de hipóteses pelos sujeitos que fizeram parte dos estudos da
pesquisadora. Trataremos aqui dos capítulos 2, 3 e 4 das pesquisas de Brizuela
(2006), que apresentam, cada qual, George, Paula e Thomas em processo de
construção das representações das notações numéricas, com suas especificidades.
George é um menino de cinco anos, aluno de uma escola pública em um bairro de
periferia de uma cidade norte americana. Suas habilidades perceptivo-motoras finas,
próprias de uma criança de pré-escola, estão aquém de se fazerem suficientes para
a compreensão dos traçados dos ideogramas numéricos; entretanto, não podem ser
o limite para a análise de seu conhecimento sobre o conceito e a representação
escrita dos números.
Brizuela (2006) deixa claras as “invenções” de George no decorrer das entrevistas
quando, ao ser requerido para grafar o número 19, diz que sabe, pelo menos,
escrever o 9, o que indica que ele percebe que sua escrita está incompleta.
Questionado pela pesquisadora sobre o que falta para que o número seja dezenove,
66
diz que é a dezena; acrescenta, então, o 0 depois da escrita do 9: 90.
Como George ainda não construiu ferramentas que facilitem sua compreensão
sobre o valor posicional do número, utiliza o zero, denominado pela pesquisadora de
“número coringa”: número escrito pela criança quando ela percebe que a
necessidade da inclusão de um algarismo; no entanto, ela não está certa de qual
algarismo deve incluir (BRIZUELA, 2006).
George conhece os números de 1 a 9 e demonstra saber que existem números com
um e com dois algarismos. Além disso, compreende que, de acordo com o nome do
número, uma escrita referente. Comprova, ainda, que o zero pode complementar
os números de dois algarismos. Quando é solicitado a comparar números
compostos pela mesma quantidade de elementos, o menino passa a se importar
com o lugar ocupado pelos algarismos isolados que se situam na mesma posição
dos números escritos. Por exemplo, ao comparar 134 e 573, diz ser o primeiro
número maior que o segundo, pois o 4 é “mais alto” que o 3 na posição da unidade
(BRIZUELA, 2006).
Ao ser questionado quanto à possibilidade de inventar um novo número, George
demonstra acreditar que o sistema de numeração é formado por um conjunto
limitado de elementos que podem ser combinados para formar infinitos números.
Devido aos limites impostos pelo sistema de numeração, George apresenta, então,
números com diferenças figurativas: traçado em espelho, no caso do número 7 e na
horizontal, no caso do número 8 (BRIZUELA, 2006).
[...] uma vez que aspectos figurativos
10
e operativos
11
não podem ser
isolados uns dos outros no pensamento [...], nós podemos supor que
havia um conhecimento sobre o sistema numérico escrito que
apoiava essa transformação figurativa dos números: ele conhecia os
elementos do sistema numérico escrito; portanto, descobriu que
apenas transformações figurativas deles podiam resultar em ‘novos’
números. A fim de criar um ‘novo’ número, George trabalhou sobre o
conjunto de números que ele já conhecia (BRIZUELA, 2006, p. 41).
Essas constatações nos levam a pensar sobre a questão da LIBRAS e das notações
10
Aspectos figurativos dos números: referentes à forma, à iconicidade, ao ideograma.
11
Aspectos operativos dos números: referentes ao valor, à quantidade que o número representa
.
67
dos surdos e suscita questões para nosso trabalho. Se Brizuela (2006) afirma que
uma escrita específica para o nome de cada número em função dos aspectos
operativos, como se efetiva a notação numérica para os surdos se a LIBRAS é uma
língua áfona e se os números, ao serem “denominados” com signos, explicitam as
transformações figurativas?
As crianças procuram se ajustar às convenções para ler e escrever os números;
assim suas “idéiassobre este processo precisam ser consideradas e analisadas.
Paula, cinco anos, aluna de uma escola pública norte americana, que também
participou do trabalho de investigação das notações numéricas de Brizuela (2006),
vem confirmar para a autora e complementar o que foi constatado pela pesquisa
com George: as crianças elaboram hipóteses sobre a escrita dos números muito
antes de estarem expostas ao ensino formal.
Brizuela (2006) relata que Paula participou de quatro entrevistas em que demonstrou
conhecer a escrita numérica de 1 a 12, devido à associação que fez com os
números do relógio de sua casa. Reconheceu o número 100 por relacioná-lo a um
livro seu que “diz cem”. Também nomeou corretamente o número 34, pois era
referente ao canal de televisão que costumava assistir.
Devido à seqüência da contagem numérica, segundo Brizuela (2006), Paula
elaborou a hipótese de que uma ordem que rege os números e que precisa ser
obedecida; explica que o número falado por último é maior que seus antecessores.
Informações advindas do “mundo de verdade” são os objetos com os quais a criança
se relaciona para “pensar em sua cabeça e construir suas “invenções”.
Paula interpreta números de dois algarismos convencionalmente por elaborar a
“idéia” de que, por estar em posição inicial, o primeiro algarismo é um número
maiúsculo”, assim como as letras dos nomes das pessoas. Por ser maiúsculo, deve
ser nomeado de forma diferente da unidade. Então, por exemplo, ao ser requerida a
ler o número 31, Paula diz: três um; depois se corrige e diz que o três é maiúsculo,
então é trinta, trinta e um.
68
A idéia dos números maiúsculos foi inventada com base nas
informações e nos conhecimentos que Paula tinha sobre os
números, e no conhecimento que tinha a respeito das letras
maiúsculas: Paula sabia que as letras maiúsculas eram uma
diferenciação gráfica das letras minúsculas; portanto, em certo
sentido, uma letra maiúscula era o mesmo que uma letra minúscula,
mas era também diferente. De igual modo, já que ela era capaz de
escrever seu nome convencionalmente, podemos supor que ela
sabia que certos tipos de letras (que para nós são letras maiúsculas)
precedem e são colocadas à esquerda da escrita de certas palavras
(como o nome dela). O desequilíbrio de não ser capaz de fazer uma
leitura convencional de números de dois algarismos acima de 12
incitou Paula a ir ‘em busca de novas soluções’ [...] a saber, a idéia
dos números maiúsculos ( BRIZUELA, 2006, p. 51).
As respostas de Paula demonstram, segundo Brizuela (2006), que ela estabelece
relações entre a lógica da escrita alfabética e a da escrita numérica; que sabe haver
diferenças entre letras e números e que, com apenas cinco anos, começa a
entender a relevância do valor posicional numérico para a nomenclatura e para a
quantidade representada.
A menina utiliza o conhecimento convencional e o integra aos seus esquemas pré-
existentes. Desta forma, a interação entre sujeito e objeto possibilita a criação de
regras infantis, invenções que se relacionam com as convenções, dialeticamente e,
juntas, subordinadas aos aspectos assimilatórios do pensamento, auxiliam o
desenvolvimento cognitivo e o estabelecimento do conhecimento matemático
(BRIZUELA, 2006).
Thomas é a última criança da pesquisa de Brizuela (2006) que vamos enfocar. Com
seis anos, termina a pré-escola. Nas entrevistas realizadas, a autora explicita a
tentativa do menino em organizar as representações numéricas com o uso de
pontos, vírgulas e espaços. Trabalha com “lotes” de zeros, uma ferramenta que o
auxilia a determinar as dezenas, centenas e milhares. Isto se comprova quando
grafa um cartão com o número 10.00 e diz que estão escritas dez centenas” e
acrescenta: “é mil, porque não existe o número dez centenas, então tem de ser mil”
(BRIZUELA, 2006, p. 66).
Em outra sessão, Thomas opta por vírgulas na escrita do número e afirma que
1,000,000 é lido como “mais três zeros do que mil” ou “um mil mil”. Nas palavras da
69
pesquisadora, se pensarmos em termos de quantidade, um milhão é um mil mil.
Numa nova situação, o menino escreve o número dez mil - 10 000 - com um
espaço entre os dois primeiros algarismos e seus sucessores.
Ao ser questionado do por que da utilização de pontos, vírgulas e espaços nas
escritas dos números, Thomas justifica suas opções e diz que “[...] ‘O ponto nos
diz para parar... É como uma luz vermelha. Ele nos diz para ler aquilo’ [...]”
(BRIZUELA, 2006, p. 63). Para o menino, os sinais de pontuação demarcam quais
as partes do número deveriam ser emitidas e quais poderiam ou não fazer parte da
emissão. Assim, por exemplo, os números 10.000 ou 10, 000 poderiam ser lidos
dez e parar”.
[...] embora o objeto de estudo de Thomas fosse de natureza
figurativa, sua aprendizagem foi operativa ou construtiva. Portanto,
estou afirmando que pode haver um processo operativo e construtivo
envolvido na apropriação de um objeto de conhecimento
essencialmente figurativo, como o sistema numérico escrito. [...] os
pontos e as vírgulas nos números tornaram-se objetos conceituais
para ele (BRIZUELA, 2006, p. 70).
Com suas pesquisas, Brizuela (2006) evidencia que o desenvolvimento do sistema
numérico em seu aspecto conceitual não se processa independente de suas
representações escritas e reitera que as crianças elaboram hipóteses, inventam, têm
idéias e suposições a respeito das notações numéricas antes de se submeterem ao
ensino formal. São, portanto, agentes de seu processo de construção do
conhecimento.
O estudo que vamos relatar a seguir foi realizado com crianças ouvintes
escolarizadas; no entanto, traz resultados importantes para a análise das
representações escritas de números dos nossos sujeitos. Orozco (2005) trata das
notações numéricas de base dez de alunos colombianos de 1ª, e séries do
ensino fundamental, conseguidas por meio de ditados. Convém ressaltar que, na
Colômbia, a relação entre intervalo de numerais enfocados nas séries escolares é
determinada da seguinte forma: série, numerais de 1 a 100; série, numerais de
101 a 1000; 3ª série, numerais de 1001 a 10.000.
70
O que torna o conteúdo deste trabalho relevante para o desenvolvimento de nossa
pesquisa é que a autora defende a tese de que regras que regulam a escrita dos
números, assim como as suas expressões verbais. No entanto, comprova que as
crianças as desconsideram quando se trata de números que estão num intervalo
superior ao que é trabalhado na série que freqüentam. Tecem suas próprias normas
e cometem erros, denominados pela autora de “erros sintáticos” e erros “léxicos”.
Os erros léxicos
12
são encontrados na escrita das crianças após a série e não
serão tratados neste trabalho. Os erros sintáticos são aqueles que aparecem em
crianças das séries iniciais, e 2ª, e podem se estender aa rie do ensino
fundamental. As características destes últimos, que mais nos interessam, se
estabelecem pelas dificuldades na inclusão de algarismos em um todo numérico. Se
a criança é solicitada a escrever 325, por exemplo, escreve 30025.
Com o intuito de esclarecer seus argumentos sobre as hipóteses infantis, Orozco
(2005) delineia as regras operatórias que regem a escrita numérica arábica, as
regras operatórias que sustentam as expressões verbais e as dificuldades
encontradas pelas crianças quando se deparam com a associação entre a fala e seu
referencial escrito na atividade do ditado.
Quanto às regras sobre a especificidade operatória dos números, a autora reforça o
valor posicional e o caráter de potenciação, tendo em vista que sua proposta é o
trabalho com notações de base 10. Afirma que “A escrita de qualquer numeral é
então produto da composição multiplicativa e aditiva das diferentes unidades que lhe
dão forma” (OROZCO, 2005, p. 81). Uma expressão verbal como “nove mil e
setenta” terá grafado apenas os operadores de potência: 9 x 10³ + 0 x 10 ² + 7 x 10¹
+ 0 x 10°. Se nos ativermos apenas ao enunciado ver bal, podemos ter a seguinte
expressão: 9 x 1000 + 0 x 100 + 7 x 10 + 0.
As características operatórias das expressões verbais são definidas pela autora pelo
12
Erros léxicos são aqueles advindos de equívocos na escrita dos elementos de um número, ou seja, em vez de
34.223, escrevem 34.233, 34.323 ou 30.223. Falhas de memória a curto prazo podem explicar este tipo de erro
(OROZCO, 2005, p.79).
71
viés morfonológico
13
, que trata de prefixos, por exemplo, a palavra numérica quatro
tem o prefixo qua, a parte que expressa quantidade; e sufixos, por exemplo, a
palavra sessenta tem o sufixo enta, a parte que denota potência de dez. Também é
considerado o aspecto sintático, que evidencia a forma ordenada pela qual as partes
numéricas se concatenam umas as outras. A pesquisadora conclui que:
[...] tanto as expressões numéricas verbais como as arábicas têm em
comum uma estrutura operatória de adições e multiplicações. Apesar
disso, diferenciam-se em seus componentes e em sua sintaxe. As
expressões verbais estão compostas por partículas de quantidade e
de potência; as arábicas, por dígitos e regras de composição. Para
passar do formato verbal ao arábico, apenas são escritas as
partículas de quantidade, as quais são codificadas com os dígitos no
numeral. E as marcas de potência são traduzidas pela posição do
dígito no numeral (OROZCO, 2005, p. 86).
Portanto, o ditado exige que as crianças façam uma transposição das regras das
expressões verbais para as das expressões escritas. Essa “transcodificação”, como
é denominada por Orozco (2005), exige que, além de executarem a ação descrita
acima, as crianças considerem o valor de posição dos números. Ressalta que elas
se baseiam nas “regularidades lingüísticas” das expressões verbais, que têm
supremacia no caso das notações numéricas; por isso o fragmentam a expressão
numérica verbal em partes referentes à quantidade ou ao valor posicional.
Isto leva à ocorrência dos ditos erros sintáticos, que podem se dar por justaposição
(trezentos e vinte e cinco, escrevem cada fragmento do número: 300205) ou por
compactação (trezentos e vinte e cinco, escrevem 3025),
[...] o numeral arábico correspondente à palavra numérica que
designa a unidade de ordem superior; porém, abrevia-a e sobrepõe
25, o outro numeral, que codifica a segunda palavra numérica, a qual
expressa a unidade de ordem inferior, no espaço que corresponde ao
último zero do numeral que escreve (OROZCO, 2005, p. 94).
A conclusão da pesquisa é a de que as crianças procuram regularidades que
expliquem a construção do conhecimento. No caso das expressões numéricas
verbais, que têm uma sintaxe marcada pelos elementos de quantidade e pelos
elementos que enunciam a potência de dez; e seus referenciais grafados que
13
Morfofonologia: 2. Em gramática gerativa, descrição das operações que conduzem à representação fonética
dos enunciados (MORFOFONOLOGIA...,1999, p. 638).
72
correspondem aos elementos de quantidade e o valor posicional, as crianças não
seguem as normas dos padrões convencionais.
Fragmentam as expressões verbais de acordo com uma lógica própria e as
associam aos números escritos de forma que a distância entre as convenções e as
invenções é evidente. Redefinir esta lógica vem a ser o ponto fundamental do
processo de ensino e aprendizagem.
Mais uma vez trazemos para a discussão a questão da LIBRAS e de suas
especificidades. De que forma o surdo estabelece relações com as regras
operatórias da escrita numérica arábica o valor de posição e a potenciação - e os
sinais que representam os números? Seria a LIBRAS uma língua que facilita ou
dificulta esta apreensão?
Teixeira (2005), pesquisadora brasileira, realizou um estudo que trata das
representações da escrita dos números. Para isto, utiliza as concepções que alguns
autores têm sobre o conceito de representação antes de introduzir os resultados de
sua pesquisa acerca das dificuldades de aprendizagem da notação numérica de
alunos da 3ª e 4ª séries do ensino fundamental de escolas públicas. As conclusões e
análises efetuadas pela pesquisadora o fundamentais para a compreensão do
pensamento das crianças, o que pode ser estendido para nossas avaliações quanto
ao desempenho de nossos sujeitos.
A pesquisadora esclarece, ainda, que a noção de representação é um elemento
essencial para a compreensão do desenvolvimento cognitivo, pois efetiva sua
ligação com o objeto representado. Acrescenta que a apreensão dos conceitos
matemáticos se constitui em um rico material que se oferece como um caminho
privilegiado para se estudar o que é a representação, haja vista a característica da
matemática, fundamentada nas ações mentais e na necessidade de símbolos para
que ocorra a aprendizagem quando da integração entre os objetos mentais e os
matemáticos.
De acordo com os subsídios teórico-metodológicos que utiliza como Wittgenstein,
73
Duval, Vergnaud e Karmiloff-Smith, Teixeira (2005) trata da diferença entre as
representações internas (ações mentais) e as representações externas (signos,
figuras, notações). Esclarece que estas últimas são tidas como um suporte para o
pensamento; elas auxiliam a comunicação das idéias que se construíram na mente
do sujeito em um processo cognitivo. O pensamento matemático precisa se
materializar para que possa ser entendido; esta ação se por meio da
manipulação das representações.
Acrescenta que as representações devem ser consideradas de acordo com seu
aspecto semântico. Explica que os conteúdos matemáticos
14
são distintos de suas
representações convencionais; necessitam de um sistema de representação
semiótica que favoreça um intercâmbio entre as ações mentais e os sistemas de
notações. Isto ocasiona um paradoxo no que se refere ao processo de ensino e
aprendizagem, visto que:
[...] a apreensão do objeto matemático pode ser conceitual e, ao
mesmo tempo, é possível uma atividade sobre o objeto
matemático por meio de uma representação semiótica. [...] Parece, à
primeira vista, que as representações semióticas são apenas um
meio de exteriorizar as representações mentais. No entanto, além da
função de comunicação, as representações semióticas exercem
papel fundamental para a atividade cognitiva do pensamento [...]
facultam o desenvolvimento das representações mentais, a produção
de conhecimentos, na medida em que possibilitam diferentes
representações de um mesmo objeto e permitem, ainda, a realização
de funções cognitivas como as de objetivação ou expressão do que é
representado, bem como sua forma de tratamento (TEIXEIRA, 2005,
p. 22 - 23).
Teixeira (2005) alerta que essa diferenciação entre as representações mentais e as
semióticas é imprescindível para que se compreenda que a miosis
representação semiótica – e a noésis - conceito do objeto representado – são
processos inseparáveis, indissociáveis, facilitadores da aprendizagem matemática.
Neste caso, afirma que a representação é necessária, mas não essencial. A
semiótica sim, se constitui imprescindível.
14
Denomina-se conteúdo aquilo que em uma representação a torna viável. Assim, de um enunciado se diz que o
conteúdo é uma proposição ou condição de verdade; de um termo se diz que tem um conceito como conteúdo;
de um gráfico o conteúdo é a relação adequada entre seus componentes (TEIXEIRA, 2005, p. 21).
74
Teixeira (2005) aborda, ainda, uma gama de situações que envolvem conceitos
invariavelmente ligados às suas representações, o que é sistematizado pela teoria
dos campos conceituais de Vergnaud
15
. Exemplifica essa concepção com o sistema
de numeração, tido como um campo conceitual:
[...] um conjunto organizado de gestos, de percepções e emissões
vocais comuns a uma classe de situações dadas, ou seja, que
apresentam unidades a serem contadas. Sua estabilidade repousa
sobre dois princípios essenciais: o da bijeção e o da cardinalidade ou
adição e de outros como o da indiferença da ordem e da abstração
dos atributos dos objetos (TEIXEIRA, 2005, p. 25).
Teixeira (2005) relata que nas práticas escolares a representação é primordial. Pela
experiência em várias situações as crianças demonstram, por meio de verbalizações
e de representações, que a relação entre significados e significantes faz parte do
processo de aprendizagem de forma simbiótica. Tanto os conceitos quanto suas
representações têm relevância e não devem ser desprezados no que se refere à
aquisição de conhecimentos, “Embora os conceitos de esquema e situação
permitam considerar os fenômenos cognitivos independentemente da linguagem e
de outras formas simbólicas” (TEIXEIRA, 2005, p. 24).
Teixeira (2005) aborda, ainda, a questão da representação e faz a distinção entre
este conceito e a notação, sem, no entanto, deixar de enfatizar o caráter “dinâmico e
interativo” existente entre estes. A representação seria calcada nas atividades
mentais; uma ferramenta que nos auxilia na compreensão das etapas dos processos
cognitivos envolvidas na construção do conhecimento. A notação é entendida pelas
suas especificidades no que se refere à condição de base para o intercâmbio entre
um referente conceitual e um signo.
De posse das concepções destes autores, Teixeira (2005) apresenta seu trabalho e
explicita que, para a parcela de crianças que foram analisadas, “[...] a numeração
escrita é aprendida de forma dicotômica [...] uma independência entre os
significados das composições e decomposições numéricas e dos signos que as
representam” (TEIXEIRA, 2005, p. 33). Faz um agrupamento das seguintes
15
VERGNAUD, G. Concepts et schèmes dans une theórie opératoire de la representation. Psychologie
Française, v. 30, n. 3/4, p. 245 - 252, 1985.
75
dificuldades observadas nos alunos, a fim de obter um padrão:
Dissociação entre o número visto como quantidade, sua composição aditiva e
a escrita numérica que o representa.
As crianças pesquisadas desconsideram o aspecto quantitativo dos números,
expresso na sua representação gráfica. Desta forma, quando são solicitadas a
escrever o número “18 dezenas e 5 unidades”, somam suas partes e apresentam
como resultado: 23. No caso das dezenas, as respostas foram variadas, calcadas
numa dicotomia entre a notação numérica, a forma aditiva e a quantidade expressa
pelo número.
De maneira a elucidar o que foi dito, quando a autora solicita às crianças que digam
quantas dezenas no número “120”, algumas dizem que 1 dezena, pois
um algarismo na “casa das dezenas”. Outras dizem que 2 dezenas; se referem
ao número 2 que ocupa este valor posicional. as crianças que afirmam que 3
dezenas e se baseiam na quantidade de algarismos do número citado. Por fim, 120
dezenas, o que se estabelece pela quantidade de unidades.
Indiferenciação entre os critérios da numeração falada e da escrita.
Neste caso ocorre a transposição imediata da fala para a escrita, fato que evidencia
as dificuldades infantis frente ao valor posicional. É ressaltado o fato da apreensão
primeira das dezenas, centenas, e unidades de milhar exatas, antes dos números
que compõem os intervalos. Por exemplo: o número 2700 escrito como 2000700 ou
o número 1040 escrito como 10040.
Dificuldade em perceber equivalência entre as diferentes formas de escrever
o número.
Aparece na circunstância em que a educação formal, no que se refere ao ensino da
matemática, lança mão de tabelas (C. D. U.) para que as crianças acomodem as
partes dos números em suas “casas” correspondentes. Quando solicitadas para a
76
leitura de um número, elas o arrumam em suas “casas” e realizam a leitura tal como
está definido pelo valor posicional: “8 C., 5 D. e 6 U. Esta é considerada por elas a
única forma de escrita deste número. Se questionadas sobre qual a quantidade de
dezenas respondem: são 5.
Compreender a ambigüidade da notação numérica.
As relações entre a fala e o valor posicional da escrita dos números se mostram
distantes ainda da construção da notação numérica convencional. Quando
requeridas a escreverem 1 dezena, escrevem 1.
Indissociação entre a lógica dos agrupamentos e a forma de expressá-la por
meio de um sistema coletivo de signos, representado pela escrita numérica
convencional.
No que se refere aos agrupamentos, uma tendência de interpretação numérica
pelas crianças baseada nas unidades, sem que levem em conta os aspectos
multiplicativos, aditivos ou quantitativos dos números. Quando solicitadas a
representar o número “25”, consideram os algarismos isolados - 2 e 5 - para
realizarem o agrupamento necessário; neste caso, 2 bolas para o 20 e 5 bolas para
o 5. Portanto, torna-se necessário, na prática pedagógica:
[...] trabalhar ao mesmo tempo com a escrita numérica juntamente
com os agrupamentos, ou partir da exploração de números do
cotidiano da criança, levando-a a explicitar as suas representações,
parecem ser caminhos que garantem a via de mão dupla que rege as
representações (TEIXEIRA, 2005, p. 38).
A conclusão de Teixeira (2005) está alicerçada nos pressupostos dos autores por
ela elencados e nos resultados de sua pesquisa. Para ela, notação (“ponte” entre o
signo e a representação) e representação (atividades mentais) são conceitos
fundamentais para a construção e o desenvolvimento do conhecimento matemático
e para compreensão da relação destes conceitos com a fala. Não há como dissociá-
los, de modo que as crianças precisam utilizá-los concomitantemente no processo
de ensino e aprendizagem.
77
Danyluk (1998) realiza um trabalho original sobre a escrita numérica em crianças
pré-escolares. Utiliza a fenomenologia como metodologia de pesquisa, o que
possibilita um olhar direcionado às ações da criança, ao fenômeno em foco, sem
considerar as relações da dinâmica escolar. Seu interesse se estabelece na
compreensão do pensamento e da linguagem matemáticos.
Considerada como ciência, a matemática mostra-se mediante uma
linguagem, a qual possui uma disposição convencional de idéias que
são expressas por signos com significados. Um exemplo disso é o
próprio sistema de numeração, em que cada símbolo representa uma
idéia que diz sobre uma quantidade. Quer dizer, são signos
transcritos pelos diferentes numerais, que podem ser tomados como
parte do alfabeto da matemática (DANYLUK, 1998, p. 20).
A questão feita pela pesquisadora e que procura responder no desenvolver de seu
trabalho é como a criança entra no mundo da escrita da linguagem matemática?”
Fundamenta-se em autores vinculados às áreas da educação e psicologia como
Piaget, Ferreiro, Luria, Goodman, Cohen e Gilabert, Sinclair, Machado, Ramirez e
Garcia, e da filosofia como Ricoeur e Husserl que tratam do processo da aquisição
da escrita, sua relação com o desenvolvimento cognitivo, sócio-cultural e afetivo em
sua complexidade.
O objetivo da autora é o de analisar como se efetiva a construção da idealidade
matemática “quantidade numérica” e como se dá sua comunicação pela relação
estabelecida entre a fala e a escrita. Sua expectativa é compreender: as idéias
primeiras que as crianças formulam sobre os algarismos utilizados no sistema de
numeração decimal, a maneira de elas perceberem a ordem e a classe, noções
imprescindíveis para a construção numérica. Pretende, ainda, verificar se dominam
a conservação de quantidades e se realizam a correspondência e a equivalência
(DANYLUK, 1998).
As crianças que participam da pesquisa têm entre quatro e cinco anos de idade e
freqüentam um Centro Comunitário Infantil onde se envolvem com atividades como
pintar, desenhar, leituras de histórias infantis, dormir... Durante um semestre,
Danyluk (1998) realizou quinze encontros com estas crianças, de periodicidade
semanal, com aproximadamente duas horas de duração cada; eles foram filmados
78
para serem examinados num momento posterior.
Baseada nos estudos de Piaget, a autora considera que este grupo de crianças se
encontra no período pré-operatório no que se refere ao desenvolvimento cognitivo.
Reitera que existe a possibilidade de um movimento em direção ao período ulterior,
operações concretas, por conta da reversibilidade do pensamento.
Para atingir seus objetivos, Danyluk (1998) utiliza materiais como sucatas, palitos,
tampinhas de garrafas, copos plásticos, contas que possibilitam a interação entre as
crianças e a veiculação da linguagem matemática usada por elas. Por meio da fala e
de gestos, os alunos revelam muito dos significados que atribuem aos números.
Após as atividades orais, a pesquisadora solicitou-lhes o registro escrito.
As análises dos dados do trabalho foram feitas de duas formas: uma análise
idiográfica ou individual e uma análise nomotética ou geral. A primeira se ampara na
descrição dos encontros e na interpretação das performances de cada criança sobre
as notações numéricas. O segundo tipo de análise se caracteriza pela observação
do maior número de convergências e pela busca de generalidade do fenômeno em
questão.
Mais do que explicitar o dito pelas crianças pesquisadas, é preciso
realizar o trabalho dialético de ir além do que é compreendido e
interpretado. Na tentativa de encontrar o que o texto não disse, o
pesquisador com seu olhar atento revisita as Unidades de
Significado, buscando evidências nas análises realizadas, e trama
uma rede de novas significações, enfocando as convergências. É
dessa forma que se constrói uma compreensão fenomenológica do
que se busca; vai-se do individual ao geral e volta-se num movimento
reflexivo, realizando o pensar meditativo (DANYLUK, 1998, p. 65)
.
Para efetivar a análise idiográfica, a autora apresenta o resultado de alguns
encontros efetuados: o primeiro; o terceiro e o décimo terceiro.
Encontro I: Danyluk (1998) constata que as crianças estabelecem uma relação com
o tempo intermediada por símbolos. No caso específico dos dias da semana, a
escola, convencionalmente, representa a quarta-feira como o dia da lua; elas sabem,
79
então, que os encontros com a pesquisadora ocorrerão neste dia. Devido às
convenções sociais, percebem que o tempo se concatena com o “real vivido”;
afirmam que “uma criança com sete meses de idade é pequena”, “é um nenê”;
“uma criança com sete anos deve freqüentar a escola”.
Enquanto manipulam os brinquedos realizam a comparação entre os que são
“novos” e os que são “velhos”, uma atividade classificatória relevante para o
desenvolvimento do pensamento das crianças, de acordo com os pressupostos
piagetianos. Durante a organização das brincadeiras, deixam visíveis as influências
do contexto social ao assumirem papéis familiares demarcados pelo gênero. O gesto
é uma das ferramentas de que as crianças se valem para demonstrar como
compreendem os números, os tamanhos e as alturas:
Marjane: Cinco (mostra a mão direita). [...] Taiane: Eu tenho assim
(mostra 4 dedos) [...] Marjane: Eu tenho uma irmã que era pequena e
um irmão que é grande. [...] Ocsana: Como? Marjane: Assim (levanta
o braço e fica de o mais alto que pode). Michel: (vai ajudar e diz
do chão até aqui; aponta para o alto) (DANYLUK, 1998, p. 70 - 71).
Para atestarem a veracidade do que dizem, comprovam, por demonstração, que
entre eles há mais crianças de cinco anos que de quatro anos: a idéia de quantidade
está latente ao expressarem a relação “mais que”. A percepção dos signos torna-se
evidente quando reconhecem e diferenciam letras e números. No entanto, o
desenho é tido por elas como escrita.
Encontro III: Nesta situação a autora observa que a ordenação encontra-se presente
entre as crianças. Elas se organizam em filas em ordem crescente e estabelecem
quem será o primeiro e o último por meio da comparação de suas alturas. A ordem
decrescente é considerada como outra forma de organização.
Quanto ao conceito “meio”, no que se refere à posição no espaço, elas só o
compreendem quando relação de proximidade entre três crianças, uma no
começo, outra no fim, e uma no meio. A escrita aparece como necessidade de
comunicar o vivido; algumas desenham os objetos e outras “fazem” o algarismo
acompanhado do desenho do objeto.
80
Encontro XIII: De acordo com o que as crianças apresentaram nos encontros
descritos anteriormente, a relação de ordem é balizada, neste encontro, pelos
termos “maior” e “menor” para aqueles que são os mais altos e mais baixos do
grupo. demonstram o conceito de cardinalidade quando contam os elementos de
um conjunto mentalmente e verbalizam apenas o total.
Alguns realizam a contagem conjuntamente com a correspondência termo a termo.
Mostram interesse pelos símbolos e “inventam” sinais para separar os números e
indicar diferenças entre os mesmos. A escrita de alguns algarismos é espelhada;
outras vezes se processa pelo desenho dos objetos, acompanhada ou não pelos
respectivos números; sabem que letras e números têm especificidades próprias,
logo, são diferentes.
Após a descrição dos encontros, Danyluk (1998) analisa a escrita das quinze
crianças que participaram da pesquisa, individualmente. Nestas análises, a autora
se debruça sobre as características de desenvolvimento por ela observadas nos
quinze encontros realizados e confecciona dois quadros; no primeiro assinala as
Unidades de Significados e no segundo os elementos específicos elaborados por
cada criança nos momentos de registro.
As Unidades de Significados (quadro 1) são demarcadas pelas produções
notacionais das crianças e suas relações com os elementos que circundam os
desenvolvimentos cognitivo, perceptual e comportamental, com vistas a encontrar
pontos de convergência que serão examinados posteriormente na análise
nomotética.
O Quadro Individual dos Momentos de Registro (quadro 2) traz as performances das
crianças, distribuídas nos quinze encontros e especificadas de acordo com as
características individuais de cada uma no que diz respeito às notações numéricas e
à alfabetização matemática como um todo.
O entrelaçamento entre estes dois tipos de registros - o idiográfico e o nomotético -
faz com que a pesquisadora tenha uma visão factual do fenômeno em questão e
81
possa justificar suas afirmações e conclusões sobre o processo da escrita numérica
dialeticamente. Danyluk (1998) passa da análise individual para a análise geral e,
após refletir sobre as convergências, retorna ao ponto de partida de maneira a
contribuir com a compreensão deste tema.
82
Quadro 1: Apresentação do Quadro das Unidades de Significados.
FONTE: Danyluk (1998, p. 167).
83
Quadro 2: Apresentação do Quadro Individual dos Momentos de Registro.
FONTE: Danyluk (1998, p. 122).
84
CONTINUAÇÃO...
Quadro 2: Quadro Individual dos Momentos de Registro.
FONTE: Danyluk (1998, p. 123).
85
Após as considerações tecidas sobre a análise idiográfica, abordaremos agora como
a autora se comporta ao realizar a análise nomotética. Neste caso, as
convergências advindas das interpretações das ações de cada criança,
individualmente e em grupo, se articulam com os elementos que prevalecem no
quadro de Unidades de Significados. São denominadas de “Categorias Abertas” e
trazem aspectos sobre “o como”, “o porquê” e “o que” as crianças escrevem quando
constroem as notações matemáticas referentes à quantidade numérica (DANYLUK,
1998).
Como as crianças realizam suas escritas:
- Percepção de letras e números: conhecem o que é letra e o que é número, de
acordo com as suas especificidades, no entanto, não conhecem as letras do alfabeto
e os números do sistema de numeração arábico na sua integralidade. Escrevem
seus nomes e suas idades convencionalmente; alguém as ensinou e elas
reproduzem o aprendido, “[...] tanto o desenho quanto a cópia são formas de registro
que contribuem para que a criança construa a sua escrita. A escrita é mostrada pelo
gesto, pelo desenho, por signos e pela escrita espelhada” (DANYLUK, 1998, p. 172 -
173). Exemplos disto são encontrados no Quadro Individual dos Momentos de
Registros, no primeiro encontro, no material coletado das meninas Taiane Grande e
Taís:
- Gesto: usado para comunicar a noção de quantidade, a compreensão de como se
escreve determinado algarismo e para fazer referência à altura e ao tamanho.
- Desenho: apesar de não utilizarem o vocábulo “escrever” para suas produções -
usam “fazer” ou “desenhar” - admitem que letras e números não são desenhados e
sim escritos. Para exemplificar, basta observar o Quadro Individual dos Momentos
86
de Registros o desempenho de João, no primeiro encontro, que diz ter escrito o sol
(desenho) e seu nome (letras); quando solicitado a ler o que escreveu, somente o
que tem letras:
- Desenho ligado à forma do objeto: para registrar os números referentes às
quantidades numéricas, muitas vezes as crianças fazem desenhos dos objetos, uma
escrita de aspecto icônico. De volta ao Quadro de Registros, podemos observar que
Pâmila, no segundo encontro, desenha uma escada e demarca o local que ela
ocupa com a escrita de seu nome:
- Desenho-cópia do objeto: algumas vezes põem o objeto sobre a folha e realizam
seu contorno; se a quantidade for de cinco botões, contornam os cinco botões para
representar a noção desejada. Como exemplo, temos as atividades de Taiane
Grande, Pâmila, Eloísa e João, no terceiro encontro:
Taiane Grande Pâmila Eloísa João
87
- Número e desenho do objeto: registram a totalidade com o número acompanhado
do desenho do objeto. É o caso de Eloísa, no encontro quatro, que grafa o número
dois de forma espelhada acompanhado dos desenhos dos dois cubos referentes:
- Desenho sem semelhança com o objeto: neste caso a criação como forma de
representar a quantidade de elementos desejada por meio da correspondência
termo a termo e da correspondência biunívoca. Quando o número é maior que cinco
utilizam o advérbio “muito” (um monte) e representam a quantidade com um
desenho “grande”. Veja o que faz João, no sétimo encontro, ao representar os seis
elementos:
- Desenho-grafia criado pelas crianças: sabem que para escrever precisam das
letras, conhecem algumas e dominam as garatujas. A fim de representarem as
quantidades determinadas, fazem uso desse conhecimento para o registro gráfico. É
o que faz Juliana, no encontro três, para escrever a quantidade de palitos que
possui:
- Série de números: partem da unidade até o número que se refere à totalidade do
conjunto de objetos; isto pode ser entendido como comprovação de apreensão da
relação de ordem pelas crianças. Como exemplo, temos os registros de Bruna e
Marjane, no sétimo encontro:
88
Bruna Marjane
- Série de algarismos e desenhos: neste caso, além de registrarem os algarismos da
unidade até a totalidade, acrescentam desenhos referentes aos objetos. Algumas
crianças desenham e registram os números no interior dos desenhos. Como fizeram
Marjane e Taís, no décimo quarto encontro:
Marjane Taís
- Um mero: registram a cardinalidade referente à quantidade numérica. No sétimo
encontro temos exemplos dessas notações com Michel e Eloísa:
Michel Eloísa
- Números espelhados: o espelhamento é uma característica peculiar da faixa etária
privilegiada pela pesquisa 4/5 anos. crianças que percebem o erro e explicam
que sua notação está “virada”, o que demonstra sua consciência em relação à
inadequação quanto à escrita numérica convencional. Exemplos de escrita
89
espelhada são encontrados no Quadro Individual dos Momentos de Registros.
O quê as crianças escrevem:
Ao tratar sobre o conteúdo em construção pelas crianças, Danyluk (1998) enfatiza
os conceitos de agrupamento, contagem e correspondência, comparação,
percepção de tamanho, altura, quantidade, diferença, peso, sentido, direção e
ordem. Por meio de verbalizações, os pequenos expõem essas relações que num
momento posterior serão registradas com o uso de garatujas, desenhos, números e
letras. Conclui a autora que a fala transforma os registros em significantes; as
crianças lêem o que grafam; logo, estabelecem um intercâmbio entre o que
compreendem oralmente e o que anotam graficamente (DANYLUK, 1998).
A escrita infantil seus “primeiros passos” de forma adversa do que está posto,
convencionalmente, como uma escrita correta. E as crianças percebem suas
inadequações e procuram corrigi-las de acordo com o padrão da norma culta. E o
erro se estampa de forma construtiva, como um auxiliar para a compreensão de
como se estrutura o pensamento e a cognição infantis.
- Desenvolvendo a noção de quantidade: o uso de desenhos, gestos, expressões
como “mais que”, “menos que”, “um monte”, “um milhão de coisas” é bastante, “um
centavo” é pouco, comprovam que as crianças estão em processo de construção
deste conceito, imprescindível para a educação matemática.
- Desenvolvendo a relação de ordem: pela comparação das alturas, as crianças
formam filas; contam histórias e obedecem a uma seqüência lógico-temporal, fato
considerado como um princípio da seriação
16
. Oralmente, expressam a cardinalidade
e a ordinalidade de pequenas quantidades numéricas. Nos registros dos encontros
podemos perceber este desenvolvimento nas performances das crianças no
encontro XII.
16
A seriação consiste na organização mental de um conjunto de elementos, observando a ordem crescente ou
decrescente dos elementos de acordo com um atributo. As relações que envolvem seriação, portanto, implicam
o domínio da transitividade (DANYLUK, 1998, p. 193).
90
- Desenvolvendo a retenção do todo: apesar desta unidade estar implícita na
noção de quantidade, Danyluk (1998) assinala que não há, num primeiro momento,
a retenção da cardinalidade. Os registros trazem todos os números referentes à
quantidade de elementos de um conjunto. Num outro encontro, a pesquisadora
observa que:
A totalidade de uma determinada quantidade é conservada na mente
das crianças. Muitas não precisam mais realizar a contagem e a
correspondência para afirmarem o número total de objetos. Outras,
contam e, no final da contagem, reafirmam a totalidade pronunciada
escrevendo o número que a mesma representa (DANYLUK, 1998, p.
198).
- Desenvolvendo símbolos: a criança define a lua como forma de representação do
dia da semana quarta-feira e o sinal de = para representar a diferença entre dois
algarismos. Este último pode ser verificado no encontro XIII, com a criação da
menina Eloísa:
- Desenvolvendo contagem e correspondência: as crianças mostram facilidade na
contagem até dez. Após esta quantidade, sugerem um apoio no aspecto sócio-
cultural no que se refere à compreensão de que palavras específicas utilizadas
para contagem. Realizam a correspondência biunívoca e estabelecem relação entre
o nome do número e o objeto do conjunto. Marjane e João, no encontro IV, são
exemplos deste desenvolvimento:
Marjane João
91
[...] estão a caminho da construção do conceito de número. Isto não
significa que a contagem e a correspondência garantam o conceito
do número, mas tais atos contribuem para a construção desse
conceito. Além desses atos existem outros fatores, como o critério da
conservação, a classe, a ordem, a equivalência, a compreensão e a
manipulação de sinais no papel e ainda, a ajuda dos ambientes
familiar e escolar [...] (DANYLUK, 1998, p. 200).
- Desenvolvendo a compreensão de comparação: esta unidade de significado foi
verificada em todos os encontros realizados na pesquisa de Danyluk (1998). As
crianças trazem elementos de seu cotidiano e estabelecem relações de
semelhanças, diferenças, classificações e associações; condições importantes para
a construção dos conceitos matemáticos. As notações de Michel e João, no
encontro XI, demonstram as equiparações que efetuam:
Michel João
O porquê as crianças escrevem:
Os motivos que levam as crianças a perceberem a escrita como algo relevante para
suas vidas e que merece uma atenção especial, portanto, esforços no sentido de
construir hipóteses sobre sua gênese, é o fato de seu valor social implícito na
identificação das próprias crianças nome e idade -, como função utilitária no que
se refere a gravar informações que devem ser revistas num outro momento, como
auxílio para recordação de dados, como meio de informação e atos de solicitude.
Idiossincrasias: são apontadas em ambas as análises realizadas pela autora.
- Noção de verdade: as crianças fundamentam a informação e comprovam o que
disseram no que diz respeito à quantidade numérica. Utilizam gestos e o próprio
corpo para realçar a veracidade de suas hipóteses.
92
- Tempo vivido: demonstram uma iniciação na percepção de tempo velho/ novo,
sete meses/ sete anos. “É somente com a construção lógica das operações tais
como: comparações, seriações e imbricações que a noção de tempo vai se
estabelecendo” (DANYLUK, 1998, p. 209 - 210).
- Percepção de direção e sentido: de acordo com as idades das crianças
selecionadas para a pesquisa (4/5 anos), elas não apresentam, ainda, em seu
vocabulário, as palavras “esquerda” e “direita”. Tampouco construíram seu
significado. Segundo Piaget (1973), isto ocorre devido à fase egocêntrica em que se
encontram. Somente por volta dos 9/10 anos abandonam o egocentrismo e
formulam os conceitos citados e utilizam a linguagem convencional adequada.
Mesmo assim, comunicam suas percepções de acordo com suas possibilidades.
- Causa e efeito: as crianças buscam explicações para os fatos cotidianos. No caso
da pesquisa de Danyluk (1998), ao jogar o dado e este cair com a face virada no
número cinco, é explicado pela criança como: “tirei cinco porque tenho cinco anos”.
Isto sugere que a criança empresta ao dado o sentimento de “vontade, desejo e
atividade consciente”.
- Afetividade: é evidenciada nas relações entre as crianças e se torna relevante dada
a sua necessidade no processo de ensino e aprendizagem escolar.
A conclusão da pesquisa de Danyluk (1998) esclarece que o processo de
construção da escrita matemática é demarcado por uma característica sócio-
histórica permeada por instabilidades, por momentos diversificados, não-lineares,
sem padronização, espontâneos, ora grafado por garatujas, ora por desenhos, ora
por sinais, ora por notações numéricas para representar a quantidade de elementos
desejada. As invenções infantis permeiam este caminho e descortinam o
pensamento das crianças, suas individualidades e especificidades. São atores e
autores deste conhecimento.
Mediante os estudos relatados e os resultados advindos dessas pesquisas,
estabelecemos uma síntese geral das suas principais contribuições com o intuito de
93
encaminhar a questão proposta para este trabalho, qual seja: como os surdos
realizam as notações numéricas mediados pela LIBRAS?; e esclarecer os aspectos
que são considerados para esta pesquisa.
Dos resultados de Sinclair (1990), averiguamos a psicogênese da escrita encontrada
por ela em sua pesquisa nos tipos de notações das crianças analisadas por nós. As
notações são:
1ª: representação global de quantidade;
2ª: uma só figura;
3ª: correspondência termo a termo;
4ª: aparecimento dos algarismos;
5ª: o cardinal sozinho;
6ª: cardinal acompanhado do nome dos objetos.
Dos estudos de Lerner e Sadovsky (1996), observamos em nossos sujeitos algumas
das hipóteses infantis elencadas por elas com base em suas pesquisas:
1ª: Quanto maior a quantidade de algarismos de um número, maior é o número;
A posição dos algarismos como critério de comparação ou “o primeiro é quem
manda”;
3ª Alguns números especiais: o papel dos “nós”.
Brizuela (2006) apresenta contribuições importantes para o nosso trabalho, pois
relata as invenções das crianças baseadas nas hipóteses das notações alfabéticas
que realizam. Subsidiadas por suas análises, verificamos se as crianças surdas:
1ª: sabem a diferença entre letras e números;
2ª: fazem uso do zero como um “número coringa”;
3ª: estabelecem relações entre os aspectos figurativos e operativos dos números;
4ª: compreendem o valor de posição.
As colaborações de Orozco (2005) nos auxiliam no sentido de averiguarmos se os
94
sujeitos surdos cometem erros similares aos denominados pela autora de léxicos
e/ou sintáticos, mesmo na ausência da oralidade. o lançamos mão do ditado,
como o fez a pesquisadora, haja vista a característica da língua de sinais em definir
a escrita convencional dos números, mas investigamos quais seriam os erros das
crianças surdas ao associarem as expressões numéricas da LIBRAS com as regras
operatórias que regem o sistema de escrita da numeração arábica.
Dos agrupamentos elaborados por Teixeira (2005), com base nas dificuldades
observadas nos alunos que participaram de sua pesquisa, utilizamos a indissociação
entre a lógica dos agrupamentos e a forma de expressá-la por meio de um sistema
coletivo de signos, representado pela escrita numérica convencional.
A contribuição de Danyluk (1998) é com a relação das crianças com a quantidade
numérica e sua notação. Para tal, utilizamos materiais semelhantes aos que ela
lança mão em seu trabalho como jogos, fichas, palitos e bonecos. Debruçamo-nos
sobre suas análises idiográfica e nomotética e selecionamos as características
que julgamos pertinentes para nossa pesquisa, quais sejam:
1ª: atividades classificatórias;
2ª: noção de quantidade;
3ª: noção de ordem (maior/menor);
4ª: contagem;
5ª: notações numéricas com desenhos, desenhos ligados à forma do objeto, à cópia
do objeto, sem semelhança com o objeto;
6ª: número e desenho do objeto, série de números, série de algarismos e desenhos,
um só número, números espelhados.
Concluído o exame dos estudos teóricos que subsidiam nosso trabalho e o resumo
dos aspectos relevantes destas pesquisas que nos servem de referenciais,
cuidamos de apresentar, a partir deste momento, nossa investigação e a análise dos
dados obtidos, norteadas pelas categorias descritas pelos autores explorados nessa
seção.
95
5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Durante nossos estudos sobre a construção das notações numéricas por crianças
ouvintes, emergiram diversas questões acerca das possibilidades do nosso sujeito
particular, que nos acompanharam nesse percurso de análise e escuta do nosso
referencial teórico. Julgamos pertinente elencar as questões suscitadas que foram
fundamentais para estabelecer os procedimentos metodológicos adotados:
Como esses sujeitos efetivam o processo de escrita numérica, tido como
geral e válido para os mais diferentes grupos culturais constituídos por
ouvintes ao redor do mundo, haja vista que a primeira língua dos surdos
constitui-se numa língua de sinais, minoritária e desconhecida pela maioria
da população?
Se a função de comunicação da linguagem repousa sobre a função de
representação, como a LIBRAS influencia a construção da notação dos
símbolos matemáticos?
Como os surdos trabalham com os agrupamentos numéricos na ausência da
relação explicitada entre fala e escrita?
As crianças surdas escrevem os números de forma convencional. Desta feita,
quais hipóteses elaboram para compreender a cardinalidade, a ordinalidade
e o valor posicional?
Como se a compreensão do valor posicional se os números transparentes
não têm esta característica na LIBRAS?
Como se efetiva a notação numérica para os surdos se a LIBRAS é uma
língua áfona e se os números, ao serem “denominados” com signos,
explicitam as transformações figurativas?
96
De que forma o surdo estabelece relações com as regras operatórias da
escrita numérica arábica o valor de posição e a potenciação e os sinais
que representam o número? Seria a LIBRAS uma língua que facilita ou
dificulta esta apreensão?
Estabelecemos, então, diversas questões para a pesquisa, contudo,
compreendemos ser necessário condensá-las em um problema único, incisivo, que
abrangesse todas as nossas interrogações: Como os surdos elaboram as notações
numéricas mediados pela LIBRAS?
Para dar conta deste problema, adotamos os procedimentos metodológicos
explicitados nessa seção. Descrevemos a pesquisa no que se refere aos sujeitos
participantes, à metodologia empregada e aos materiais adotados para a coleta de
informações. A pesquisa de campo ocorreu em duas etapas. A primeira tratou da
coleta de dados sobre a organização da escola e seus alunos. Na segunda etapa,
realizamos as entrevistas com onze crianças surdas bilíngües.
5.1 OS SUJEITOS
As crianças surdas que participaram da pesquisa foram selecionadas de acordo com
os seguintes critérios:
Ter idade ente 5 e 9 anos. A opção pela faixa etária explicitada se deu pelo
fato de que a mesma abrange as idades das crianças ouvintes, analisadas
nas pesquisas que nos servem de referencial teórico-metodológico.
Usar LIBRAS.
Não apresentarem comprometimento mental.
Pensamos ser conveniente que o estabelecimento do nível de fluência em LIBRAS
97
das crianças fosse estabelecido pelos profissionais da instituição, devido ao seu
envolvimento com o processo de ensino e aprendizagem, a convivência com os
alunos, pais e professores, bem como a língua em comum e a riqueza advinda
dessa situação. A fonoaudióloga escolar e a coordenadora pedagógica se
dispuseram a realizar este trabalho, que é explicitado e pode ser conferido no
quadro a seguir.
98
Sujeito Sexo Idade Tempo de
escolarização
Fluência
em
LIBRAS
J1 Masculino 5 anos 3 anos e 9 meses
Fluente
J2 Masculino 5 anos 1ano e 7 meses
Faz uso de
LIBRAS e
gestos
J3
Feminino
Completou 6
anos no
decorrer da
pesquisa
4 anos
Fluente
(faz uso de
gestos)
J4 Feminino 5 anos 2 anos e 4 meses
Fluente
(faz uso de
gestos)
P1 Masculino
Completou 7
anos no
decorrer da
pesquisa
1 ano e 10 meses
(nesta escola)
4 anos e 2 meses
(em outra escola)
Bilíngüe
P2 Feminino 7 anos 4 meses
Faz uso de
LIBRAS e
gestos
P3 Feminino 7 anos 9 meses
Faz uso de
LIBRAS e
da fala
S1 Masculino 7 anos
5 anos e 10
meses
Fluente
S2 Masculino
Completou 8
anos no
decorrer da
pesquisa
2 anos e 4 meses
Fluente
S3 Feminino 8 anos
6 anos e 11
meses
Fluente
T1 Feminino
Completou 9
anos no
decorrer da
pesquisa
3 anos
Fluente
Quadro 3 - Caracterização das crianças participantes da pesquisa: o sexo, idade, tempo de
escolarização e fluência em LIBRAS.
Legenda 1: Os códigos J se referem aos alunos da Educação Infantil; os códigos P aos alunos da
primeira série; os S aos alunos da segunda série e o código T à criança da terceira
série, todos do ensino fundamental.
FONTE: A autora.
99
5.2 A ESCOLA
Com o objetivo de conhecer a organização da escola, elaboramos um roteiro que
nos direcionou nas entrevistas com a equipe pedagógica constituída pela
coordenadora pedagógica e pela fonoaudióloga. Procuramos obter dados sobre os
atendimentos oferecidos pela escola, o número de alunos, a abordagem
educacional, bem como os dados iniciais sobre os alunos participantes de nossa
investigação. Segue abaixo o roteiro utilizado:
1- Dados gerais da escola.
2 - Atendimentos oferecidos pela escola.
3 – Número de alunos.
4 – A abordagem educacional
5 – Alunos na faixa etária entre 5 e 9 anos
6 – A forma de comunicação das crianças
Quadro 4 - Roteiro realizado para a obtenção de dados sobre a escola.
FONTE: A autora.
Com a finalidade de efetivarmos esta etapa do trabalho, entramos em contato com a
orientadora e a fonoaudióloga escolar para que respondessem aos nossos
questionamentos, explicitados anteriormente. As mesmas nos propiciaram uma
análise do projeto político-pedagógico da instituição.
A escola de Educação Especial está localizada no interior de uma universidade de
um município do norte do estado do Paraná
17
, criada em 1981. Constitui-se de uma
associação civil, de caráter filantrópico, sem fins lucrativos, com prazo de
funcionamento indeterminado.
No momento atende, gratuitamente, a cento e vinte e um alunos surdos da cidade e
17
Em outubro de 2006, efetivamos um contato com os profissionais responsáveis pela direção da escola para
entregar um requerimento solicitando a permissão para o desenvolvimento da pesquisa naquela instituição de
ensino. A cópia deste documento encontra-se no Apêndice A. Obtivemos a autorização e a cópia deste
documento encontra-se no Anexo A. Para iniciarmos a pesquisa, solicitamos o parecer do Comitê de Ética em
Pesquisa Envolvendo Seres Humanos. A autorização do COPEP
encontra-se no Anexo B.
100
região, matriculados na Educação Infantil, nos Ensino Fundamental e Médio e em
programas específicos para a área da surdez. As turmas de Ensino Infantil e do
Ensino Fundamental funcionam com até doze alunos por série.
De acordo com a análise do projeto político-pedagógico da instituição (2007), a
proposta pedagógica adotada está inserida na dimensão “sócio-histórico-cultural”. A
explicação dada pela orientadora da escola sobre a concepção contida na
expressão “sócio-histórico-cultural” seria a de que os processos de ensino e
aprendizagem são subsidiados pela teoria educacional, de base materialista-
histórica, de Vygotsky
18
.
A entidade desenvolve diversos projetos com os alunos no período de contra turno.
São eles: laboratório de Português como segunda língua; teatro; laboratório de
redação para alunos do Ensino Médio; laboratório de comunicação oral; informática
educacional; fotografia; educação para o trabalho; desenho e aquarela; dança e
inglês.
A escola apresenta uma filosofia educacional diferenciada de trabalho, pelo uso de
duas línguas no processo de ensino e aprendizagem: a LIBRAS como primeira
língua e a língua portuguesa escrita como segunda. Essa filosofia, denominada de
Bilingüismo/Biculturalismo, se constitui como o suporte para a proposta educacional
e comunicacional da instituição, subsidiada por autores como Skliar
19
, Góes
20
,
Quadros
21
e Lacerda
22
.
Um dos principais objetivos dos gestores da escola é a capacitação dos professores,
portanto, proporcionam-lhes oportunidades de oitenta horas por ano de formação
18
Vygotsky, Leontiev e Luria elaboraram a Teoria Histórico-Cultural que resume ser o comportamento humano
determinado pela cultura em que o indivíduo se encontra. “[...] a hominização resultou da passagem à vida numa
sociedade organizada na base do trabalho e que esta passagem modificou a natureza do homem, marcando o
início de um novo tipo de desenvolvimento, diferente do desenvolvimento dos animais, passando a submeter-se
não mais às leis biológicas, mas às leis sócio-históricas” (TULESKI, 2002, p. 101, grifo do autor).
19
SKLIAR, C. Uma proposta sócio-histórica sobre a psicologia e a educação de surdos. In: SKLIAR, C. (Org.).
Educação e exclusão: abordagens sócio-antropológicas em educação especial. Porto Alegre: Mediação, 1997.
20
GÓES, M. C. R. Linguagem, surdez e educação. Campinas, SP: Autores Associados, 1996.
21
QUADROS, R. Políticas lingüísticas e a educação dos surdos no Brasil.. São Carlos: UFSCAR, 1995.
Trabalho apresentado no II Congresso Nacional de Educação Especial.
22
LACERDA, C. B. F. É preciso falar bem para escrever bem? In: SMOLKA, A. L.; GÓES, C. (Org.). A linguagem
e o outro no espaço escolar: Vygotski e a construção do conhecimento. Campinas, SP: Papirus, 1993.
101
continuada, com incentivos para participação de eventos nacionais e internacionais,
bem como a manutenção de grupos de estudos quinzenais sobre a educação de
surdos.
No que se refere aos sujeitos que participaram da pesquisa, precisávamos obter
informações sobre suas atividades em seus contextos familiares, conhecer as
influências da educação informal e os conceitos prévios oriundos de experiências
desvinculadas dos processos e ensino e aprendizagem formais. Entretanto, ao
solicitarmos entrevistas com os familiares dos nossos sujeitos, fomos aconselhadas
pelos dirigentes da instituição de que esta seria uma atividade com resultados pouco
confiáveis.
Segundo a orientadora educacional, alguns pais afirmam aos profissionais da escola
usar a LIBRAS com a criança em casa, mas no decorrer do cotidiano escolar esses
profissionais constatam que isto não acontece, fato comprovado pelo desempenho
aquém do esperado desses alunos em fluência na língua de sinais. Procuramos,
então, coletar informações sobre o contexto familiar dos nossos sujeitos pelo ponto
de vista da orientadora e da fonoaudióloga escolares, resultado este que se
encontra detalhado no Quadro 3.
102
5.3 AS PROVAS
Para que as provas se efetivassem, foi necessária a presença e participação de um
intérprete de LIBRAS. Conhecíamos algumas expressões, vocábulos e o alfabeto
digital, insuficientes, porém, para se estabelecer uma comunicação integral, requisito
primordial para a coleta das informações. Tivemos, então, o cuidado de procurar um
profissional experiente, que atuasse na escola e mantivesse contato com algumas
das crianças, que estivesse ciente da dinâmica, das regras e das normas de
funcionamento escolar. Essa opção se constituía, a nosso ver, na mais adequada à
visão antropológica do sujeito surdo, explicitada em seção anterior.
Num primeiro momento pensamos que esta escolha teria suas limitações; melhor
seria se a interação fosse entre o pesquisador e as crianças, sem a intermediação
do “outro”. E foi com esta certeza que nos debruçamos sobre as considerações
desse “outro” na pesquisa em questão. Neste caso, o “outro” do ouvinte é o surdo; o
“outro” do surdo é o ouvinte. Somos o “outro” dos surdos na situação da coleta das
informações. E a intérprete, de posse do conhecimento da língua de sinais, é o
“outro” da pesquisadora.
Dado que tanto os sujeitos da pesquisa como a pesquisadora estavam em uma
mesma condição - a de ser o “outro” -, fomos a campo com esta certeza: a falta de
conhecimento em LIBRAS nos proporcionou uma identificação com os sujeitos a
serem pesquisados, que não conhecem o português oralizado.
A coleta das informações se deu de forma que intérprete, pesquisadora e sujeitos se
encontravam em uma interação constante. As crianças foram solidárias à nossa
situação de “outro” na relação com elas. Ensinavam-nos os sinais, corrigiam nossos
erros, o nosso “não-saber” de acordo com Palladino (2004).
Os encontros foram filmados, a fim de que pudéssemos focar nossa atenção à
LIBRAS, às expressões faciais, corporais e gestuais das crianças. Tivemos, ainda,
que gravá-los, pois a filmadora oferecida a nós pela escola, não captava sons de
fala. Somente funcionava para sons intensos e emitidos próximos a ela, o que não
103
atrapalhava sua utilização pela escola, afinal, todos usam LIBRAS cotidianamente.
Pelo fato de não termos fluência em língua de sinais, somente os dados advindos
das filmagens não eram suficientes para a apreensão de toda a situação das
entrevistas. Precisávamos do áudio para compreender a tradução da intérprete no
que se referia às falas das crianças, suas respostas, seus argumentos e suas
considerações sobre os questionamentos a que eram expostas.
Levamos, então, um gravador de bolso, que ligávamos no momento em que
acionávamos a filmadora. Assim, pudemos gravar o áudio dos encontros. Essa
circunstância fez com que nosso trabalho de transcrição das entrevistas fosse
moroso. Tivemos que ser criteriosos com a sincronia entre o áudio e o vídeo,
provenientes de equipamentos distintos, a fim de obtermos, com fidelidade, as
respostas dadas pelas crianças.
Dado o fato de que as crianças criam hipóteses e teorias originais sobre as noções
conceituais a que estão expostas, a versão clínico-crítica concebida por Piaget em
suas pesquisas constitui uma via de acesso privilegiada para a coleta de
informações, quer no que se refere à organização mental, quer acerca da
perspectiva de construção do conhecimento pelos sujeitos.
Esta abordagem qualitativa permite ao pesquisador seguir o raciocínio da criança,
aproximar-se de suas idéias pela liberdade de expressão, pela dialogicidade que
permeia a interação e pela flexibilidade no encaminhamento das perguntas
elaboradas pelo examinador “[...] a partir de idéias, diretrizes precisas, Piaget
adaptava as expressões e, às vezes, as situações às respostas, às atitudes e ao
vocabulário do próprio sujeito” (CASTRO, 1996, p. 166).
O método clínico-crítico exige um experimentador que conheça a epistemologia
genética, atento, observador, pronto a formular hipóteses sobre a capacidade
conceitual dos sujeitos, a ouvir suas explicações e, se preciso, contra argumentá-las;
a manter a flexibilidade, quer no que se refere à linguagem utilizada durante os
encontros, quer no que diz respeito ao seu roteiro de trabalho (CASTRO, 1996).
104
Castorina (1998) enfatiza que a verificação das informações coletadas na pesquisa
deve ser criteriosa; as questões devem ser refeitas se necessário, muitas vezes,
travestidas de outras “roupagens”, até que se tenha certeza da nese do
conhecimento estudado. Somente a observação não é suficiente para o sucesso
deste tipo de abordagem. Castro (1996) alerta que Piaget destaca dois fatores
preocupantes, que devem ser levados em conta na análise dos dados coletados
durante a interação com os sujeitos.
O primeiro é o pensamento egocêntrico, característica que dificulta a exposição das
hipóteses infantis pela suposição de que “[...] todos têm conhecimento delas, ou por
pudor, ou por medo de se enganar, [...] suas explicações, porque são suas, são as
únicas possíveis e, portanto, não há porque explicitá-las” (CASTRO, 1996, p. 168).
O segundo obstáculo que se apresenta à observação é a dificuldade em se discernir
entre o jogo (brincadeiras), a fabulação (invenções) e a verdadeira crença (crenças
espontâneas). Os dois primeiros devem ser detectados e desprezados; o último
deve ser considerado como o mais importante na produção infantil, devido a sua
estreita relação com o desenvolvimento genuíno do pensamento (LA TAILLE, 1992).
O todo clínico-crítico “[...] pressupõe a coordenação das operações de dois ou
mais sujeitos [...] não assimetria, imposição, repetição, crença etc. discussão,
troca de pontos de vista, controle mútuo dos argumentos e das provas” (LA TAILLE,
1992, p. 19 - 20). Torna-se fundamental que o experimentador proporcione às
crianças situações conflitantes, desafiadoras, encadeadas de forma a dirigir o
momento da pesquisa.
Para atender aos requisitos de controle mútuo dos argumentos e das provas e a
necessária dialogicidade, sem, contudo perder de vista o foco da investigação é que
o conhecimento profundo acerca dos fundamentos teóricos do processo de
construção da notação numérica na criança ouvinte é essencial.
O diálogo entre os sujeitos e a pesquisadora durante a aplicação das provas deve
ser natural, o que não ocorre devido à orientação efetivada pelo conhecimento da
105
pesquisadora sobre as “possíveis respostas” dos sujeitos às situações-problema.
Estas últimas devem contemplar dois aspectos: evidenciar se o sujeito compreendeu
a tarefa que lhe foi proposta e estabelecer relações entre as respostas das crianças
para as “categorias previamente determinadas”. Dolle (1975) afirma que:
[...] o método clínico consiste em conversar livremente com a criança
sobre um tema dirigido, em seguir, por conseguinte, os desvios
tomados por seu pensamento para reconduzi-lo ao tema para obter
justificações e testar a constância, e em fazer contra-sugestões.
Oposto às questões padronizadas, ele prefere, a partir de idéias
diretrizes prévias, adaptar tanto as expressões quanto o vocabulário
e as próprias situações às respostas, às atitudes e ao vocabulário do
próprio sujeito (DOLLE, 1975, p. 26).
Dadas as especificidades da metodologia a ser utilizada, julgamos necessário
realizar um estudo piloto com nove crianças ouvintes, com idades entre quatro e
cinco anos, alunas da Educação Infantil da rede particular de ensino, para, num
momento posterior iniciarmos o trabalho com as crianças surdas. Pelo mesmo
motivo, aplicamos ainda, previamente, outro estudo piloto com três adolescentes
surdos, alunos da escola de educação especial em que desenvolvemos a pesquisa
de fato. Estes procedimentos ratificaram e apontaram para a viabilidade do uso da
mesma metodologia empregada em nosso trabalho.
Para a aplicação das provas desta pesquisa foram necessários quinze encontros,
efetivados entre os meses de maio a agosto de 2007, com um grupo de onze
sujeitos, crianças surdas, distribuídos em duas sessões semanais individuais, com
duração de aproximadamente uma hora cada uma.
No início das atividades, explicamo-lhes que desenvolvíamos um estudo para “saber
como o surdo pensa os números”. Também deixamos claro que precisávamos de
uma intérprete, pois não conhecíamos a LIBRAS. Falamos da necessidade de filmar
e gravar os encontros; seriam muitos e não lembraríamos de todas as situações.
Perguntamos se aceitavam nos ajudar; ao que todos responderam afirmativamente.
Utilizamos seis fitas para o vídeo, num total de doze horas, e cinco para o som, num
total de dez horas, além das anotações feitas nos intervalos dos encontros.
Quanto aos protocolos utilizados, esclarecemos que, pela própria característica do
106
método clínico, sofreram retificações sempre que os sujeitos indicaram caminhos
não previstos inicialmente. Apesar de não serem rígidos, os protocolos apresentam
um direcionamento do desenvolvimento das entrevistas, de maneira a possibilitar a
investigação pretendida.
Por compreendermos que a escrita numérica e o conceito de número podem se
efetivar de forma independente, mas que, dialeticamente, ambos se intercambiam
de forma a favorecer suas elaborações, abordamos nos protocolos das provas
aplicadas algumas qualidades do número, haja vista que a sua construção não é
linear, não apresenta “[...] um ponto de partida absoluto” (NOGUEIRA, 2002, p. 192).
É uma construção sincrônica e solidária entre os elementos que, necessariamente,
partilham a existência do número: a conservação de quantidade, a correspondência
termo a termo, a cardinalidade e a ordinalidade numéricas.
5.3.1 Investigação do repertório numérico
Como o que nos interessa, particularmente, são as hipóteses estabelecidas pelas
crianças surdas bilíngües sobre a construção da escrita dos números na ausência
da oralidade e da relação entre a fala e a escrita, é fundamental conhecermos seu
repertório numérico. Para isso, iniciamos nossa investigação com as crianças com
pequenas entrevistas semi-estruturadas, orientadas pelas seguintes questões,
dentre outras, que foram determinadas no decorrer dos contatos.
107
1 – Qual é o seu nome?
2 – Quantos anos você tem?
3 – Em qual série você estuda?
4 – Você conhece números? Quais?
5 – Você já viu números na rua?
6 – Você mora em casa ou apartamento?
7 – Onde você mora tem números?
8 – Você conhece o número da sua casa?
9 – Na sua casa tem telefone?
10 – Você sabe qual é o número?
11 – Você tem irmãos?
12 – Quantos são?
13 – Você sabe a idade deles?
14 – Quem é o mais velho?
15 – Quem é o mais novo?
16 – Você tem mamãe?
17 – Você sabe a idade dela?
18 – Você tem papai?
19 – Você sabe a idade dele?
20 – Qual é o número do seu sapato?
21 – Na sua casa tem televisão?
22 – Qual é o número do canal que você mais gosta de assistir?
23 – Você conhece outros canais da televisão? Quais?
24 – Na sua casa tem relógio?
25 – Têm números no relógio? Quais?
26 – Como você vem para a escola?
27 Na van, no carro, no ônibus, na Kombi ou na rua, tem número? Você pode me
dizer qual número você vê?
28 – Você aprende números na escola? Quais?
Quadro 5: Roteiro prévio para investigação do repertório numérico das crianças.
FONTE: A autora.
108
5.3.2 Investigação da contagem, da cardinalidade, da ordinalidade, da
classificação, da seriação e dos tipos de notação.
As crianças, de acordo com as hipóteses que elaboram durante a construção da
escrita numérica, realizam diferentes tipos de notações que são coincidentes com
seu pensamento sobre o conceito de número. Lerner e Sadovsky (1996) afirmam
que a noção da contagem é necessária para que a criança estabeleça relações
entre a notação numérica e a numeração falada.
Não podemos deixar de enfatizar que, no caso dos surdos, a relação se entre a
notação numérica e os sinais dos números, devido a ausência da oralidade. Há,
segundo as autoras, uma dialeticidade entre a escrita e a fala - no caso dos nossos
sujeitos, nos permitimos generalizar esta constatação entre a escrita e a LIBRAS -
que se traduz pela interdependência entre elas.
A escrita das crianças, de acordo com Danyluk (1998), está relacionada à
lembrança, à informação, à identificação e à solicitude. A primeira refere-se ao
desejo de não esquecer o número de determinada quantidade (cardinal); a seguinte,
à urgência em informar suas necessidades e suas habilidades na escrita; a
identificação é percebida como forma de registrar suas características específicas
como o nome e a idade; a solicitude representa a ajuda que elas prestam ou
recebem de seus pares, crianças ou adultos.
As constatações de Orozco (2005) esclarecem que as crianças aprendem e
escrevem os números de forma espontânea, sem a participação do ensino formal.
Elaboram hipóteses sobre as notações mediadas pelas características das
expressões numéricas verbais (no caso dos surdos dessa pesquisa pelas
expressões numéricas sinalizadas).
Subsidiadas pelas pesquisas de Danyluk (1998), que atestam o interesse das
crianças pela contagem, e pelas pesquisas de Sinclair (1990), que exploram a
versatilidade dos registros infantis sobre as quantidades, objetivamos analisar os
109
tipos de notação, conforme os descritores a seguir:
Contam ou não com correspondência;
Estabelecem relações de ordem;
Realizam a retenção da totalidade;
Fazem uso de signos para registrar as quantidades, quer em situações de
contagem, quer em situações de informação.
Elaboram notações constituídas por desenhos, quer sejam ou não ligados à
forma do objeto, quer sejam ou não uma cópia dele;
Utilizam a representação global de quantidade;
Fazem uso de uma só figura para representar a cardinalidade;
Realizam a correspondência termo a termo;
Usam algarismos aleatórios;
Usam o cardinal sozinho ou acompanhado do desenho do objeto ou de seu
nome;
Utilizam série de algarismos até chegar ao número que representa a
totalidade da contagem;
Utilizam um número apenas, que representa a cardinalidade.
Os materiais selecionados foram:
Jogo “Bola na boca do palhaço”: composto por um palhaço de isopor com a
boca vazada que contém, na parte posterior, um saco para o anteparo de
doze bolas plásticas coloridas, com diâmetros menores que o da boca.
Jogo de Boliche: composto por doze pinos plásticos coloridos e quatro bolas.
Colamos, em cada pino, um número ou uma letra. Os números utilizados
foram as unidades de zero a nove, as dezenas, as centenas e os milhares. As
letras usadas foram todas as consoantes e vogais do nosso alfabeto.
“Os Bonecos”: composto por bonecos de madeira que representam pessoas -
um casal de idosos, um casal mais jovem, uma adolescente, um menino e um
bebê. Não utilizamos essa nomenclatura quando da apresentação do material
110
para as crianças; deixamos que a designação dos papéis de cada boneco
fosse feita de acordo com as suas próprias experiências de vida.
Cartelas com números: unidades, dezenas, algumas centenas e alguns
milhares. Confeccionamos, ainda, cartelas com as letras do alfabeto em
“caixa alta”. Os números e as letras foram feitos no computador, com o
objetivo de padronizar os tamanhos e as cores, e impressos em papel sulfite.
Em seguida, colamos esse papel em cartolina e o recobrimos com plástico
aderente, a fim de facilitar o manuseio e proporcionar um material padrão
para todas as crianças participantes.
Materiais auxiliares: cem palitos de madeira e cinqüenta fichas plásticas
coloridas como suporte para as atividades.
Papel, lápis de cor, borracha e quadro de giz.
111
Situações de verificação Descrição das ações da pesquisadora e
ações e justificativas das crianças
Objetivos: Contagem, cardinalidade e
tipos de notação.
Material:
Jogo da bola na boca do palhaço
Convido a criança a jogar.
P: Quer jogar as bolas na boca do palhaço?
S:
P: Pode contar quantas bolas você acertou?
S:
P: No próximo encontro trarei balas na
mesma quantidade de bolas que você
acertou. Como vou saber quantas balas devo
trazer?
S:
P: O que você pode fazer para não esquecer
quantas bolas acertou?
S:
P: Uma criança disse que poderia anotar em
uma folha de papel? O que você pensa
sobre isso?
S:
P: Pode anotar?
S:
Quadro 6: Provas de investigação da contagem, cardinalidade e tipos de notação.
FONTE: A autora.
112
Situações de verificação Descrição das ações da pesquisadora e
ações e justificativas das crianças
Objetivos: Contagem, cardinalidade,
ordinalidade, classificação, seriação e tipos
de notação.
Materiais:
Jogo de Boliche
Materiais auxiliares
Convido a criança a jogar.
P: Vamos jogar a bola e derrubar os
pinos?
S:
P: Quantos pinos você derrubou?
S:
P: Pode anotar?
S:
P: Quantos pinos eu derrubei?
S:
P: Pode anotar?
S:
P: Observe que nos pinos uma
etiqueta com algo escrito.
S:
P: O que está escrito?
S:
P: Vamos anotar, então, os números
referentes a cada pino?
S:
P: Pode anotar o seu total e o meu?
Quantos pontos nós fizemos?
S:
Após cada pergunta sobre a quantidade,
eram oferecidos às crianças os materiais
auxiliares, para apoio nas situações de
contagem ou como forma de contra-
argumentação às suas respostas.
Quadro 7: Provas de investigação de contagem, cardinalidade, ordinalidade, classificação, seriação e
tipos de notação.
FONTE: A autora
.
113
Situações de verificação
Descrição das ações da pesquisadora e
ações e justificativas das crianças
Objetivos: Contagem, classificação, seriação,
ordinalidade e cardinalidade.
Materiais:
Bonecos
Cartelas com as unidades
Apresento os bonecos às crianças.
P: Quem são eles?
S:
P: Uma outra criança disse que os
bonecos representam pessoas da sua
família. O que você acha disso?
S:
P: Você sabe quantos anos eles têm?
S:
P: Pode anotar?
S:
P: Quem tem mais idade?
S:
P: Como você sabe? Pode me explicar?
S:
P: Quem tem menos idade?
S:
P: Como você sabe? Pode me explicar?
Distribuo cartelas com as unidades
impressas.
P: Você pode dar idades aos “bonecos”
com essas cartelas?
S:
Quadro 8: Provas de investigação de contagem, classificação, seriação, ordinalidade e cardinalidade.
FONTE: A autora.
114
CONTINUAÇÃO...
Cartelas com algumas dezenas, centenas e
unidades de milhar
Matérias auxiliares
P: Quem tem mais idade?
S:
P: Como você sabe? Pode me explicar?
S:
P: Quem tem menos idade?
S:
P: Como você sabe? Pode me explicar?
S:
Acrescento às cartelas das unidades, as
cartelas das dezenas. Refaço as
perguntas acima.
Repito as mesmas operações com as
cartelas das centenas, acrescidas das
dezenas e unidades.
Trago, por fim, as cartelas dos milhares,
somadas às anteriores. Faço,
novamente, os questionamentos
descritos anteriormente.
Obs: Os materiais auxiliares, descritos
na situação de verificação, foram
utilizados para confirmação das
quantidades relatadas pelas crianças e,
principalmente, como apoio para contra-
argumentações efetuadas quando
precisávamos das comparações entre as
idades e as relações entre mais/menos e
velho/jovem.
Quadro 8: Provas de investigação de contagem, classificação, seriação, ordinalidade e cardinalidade.
FONTE: A autora.
115
5.3.3 Investigação da seqüência numérica, da comparação, da seriação, da
cardinalidade, da ordinalidade e do valor posicional.
A pesquisadora Orozco (2005) alerta para o fato de que as crianças precisam
compreender as características operatórias do sistema de numeração e empregar as
regras do valor de posição, a fim de transformarem suas notações espontâneas em
convencionais.
Ao retomarmos os estudos de Lerner, Sadovsky (1996), Danyluk (1998) e Brizuela
(2006), estudos estes que esclarecem que as crianças constroem representações
simultâneas de números “pequenos” e “grandes”, compreendemos que as cartelas
com números e letras seriam essenciais para atingirmos nossos objetivos, quais
sejam investigar se as crianças apresentam:
noção de ordem;
noção de cardinalidade;
noção de comparação - maior/menor, mais/menos, muito/pouco;
noção de classificação em relação à magnitude do número;
noção do valor posicional;
a diferença entre o sistema numérico e o sistema alfabético, bem como se
estabelecem relações entre esses sistemas.
A relevância destas últimas dimensões está na possibilidade de interpretação de
grafias e leitura de algarismos, haja vista os resultados das pesquisas de Danyluk
(1998) e de Brizuela (2006), que esclarecem a gênese da língua escrita considerada
como fator de referência para a compreensão da gênese numérica. Precisávamos
saber se nossos sujeitos conheciam signos que representam letras e signos que
representam números.
Outro dado que compôs nossa intervenção é a ordenação da seqüência da escrita
numérica. Particularmente, Danyluk (1998) explica que a organização da série
numérica de zero a nove é um conhecimento pré-reflexivo, construído nas relações
116
sociais. No entanto, a continuidade desta “seriação” em nossa pesquisa, alcança as
dezenas, centenas e unidades de milhar. Para estas últimas – dezenas, centenas ou
unidades de mil exatas averiguamos a questão dos “nós” (LERNER; SADOVSKY,
1996).
Procuramos, ainda, verificar a construção de critérios pelos surdos para a
comparação de números baseada na escrita numérica, pois, segundo estudos de
Lerner e Sadovsky (1996), crianças ouvintes estabelecem relações entre a posição
do algarismo e o valor que eles representam. Afirmam essas autoras, que o critério
de comparação numérica independe do conhecimento do nome do número (no caso
dos surdos fazemos a transposição dessa conclusão para o sinal dos números), da
seqüência dos mesmos e das regras do sistema de numeração escrita.
Lerner e Sadovsky (1996) garantem que a comparação é uma “ferramenta
poderosa” no que se refere à compreensão da notação numérica, pois possibilita à
criança refletir sobre a escrita de dois números com quantidades de algarismos
diferentes e a elaborar hipóteses advindas dessa ação.
Subsidiadas pelos estudos de Lerner, Sadovsky (1996), Brizuela (2006), Orozco
(2005), Teixeira (2005) e Danyluk (1998), utilizamos como critérios de análise para
as informações coletadas algumas das hipóteses infantis elencadas por elas, com
base em suas pesquisas:
Quanto maior a quantidade de algarismos de um número, maior é o número;
A posição dos algarismos como critério de comparação ou “o primeiro é quem
manda”;
Alguns números especiais: o papel dos “nós”;
Sabem a diferença entre letras e números;
Uso do zero como um “número coringa”;
117
Estabelecem relações entre os aspectos figurativos e operativos dos
números;
Compreendem o valor de posição se a LIBRAS não proporciona a
caracterização dos números transparentes;
Quais seriam os “erros” (OROZCO, 2005) das crianças surdas ao associarem
as expressões numéricas da LIBRAS com as regras operatórias que regem o
sistema de escrita da numeração arábica;
A indissociação entre a gica dos agrupamentos e a forma de expressá-la
por meio de um sistema coletivo de signos, representado pela escrita
numérica convencional;
Noção de ordem (maior/menor).
Utilizamos as cartelas com as letras do alfabeto e as cartelas com as unidades,
dezenas, centenas e unidades de milhar, o jogo de boliche e o jogo da bola na boca
do palhaço.
118
Situações de verificação
Descrição das ações da pesquisadora e ações
e justificativas das crianças
Objetivos: Verificação da seqüência
numérica ordenação numérica
crescente e comparação entre a
magnitude dos números, seriação,
cardinalidade, ordinalidade e valor
de posição.
Material:
Cartelas com as unidades.
Cartelas com as dezenas,
centenas e milhares.
Antes de iniciar a aplicação das provas,
averiguamos se as crianças conheciam os
sinais dos números em LIBRAS.
Distribuímos as cartelas das unidades,
aleatoriamente sobre a mesa.
P: Você pode arrumar?
S:
P: Você sabe arrumar do menor para o maior?
S:
P: Uma criança ensinou-me que posso
começar assim: 1, 2 ........ O que você acha?
S:
P: Você quer mais números além desses?
S:
P: E o zero?
S:
P: Você sabe qual desses números é o maior?
Pode me explicar como você sabe?
S:
P: E o menor? Pode me ajudar a entender o
por quê?
S:
P: Podemos usar as fichas ou os palitos para
confirmar.
Quadro 9: Provas de investigação da seqüência numérica, comparação, seriação, cardinalidade,
ordinalidade e valor posicional.
FONTE: A autora.
119
CONTINUAÇÃO...
S:
P: Você ainda pensa que este número é
o maior? Por quê?
S:
P: Onde tem mais fichas?
S:
P: Qual número tem mais? Qual é o
maior, então?
S:
P: Qual é o número menor? 72 ou 70
S:
P: Explique sua resposta.
S:
Repetimos a operação de comparação
com todas as unidades. Com as crianças
que conheciam além, realizamos as
atividades com as dezenas, centenas e
milhares.
Quadro 9: Provas de investigação da seqüência numérica, comparação, seriação, cardinalidade,
ordinalidade e valor posicional.
FONTE: A autora.
120
Situações de verificação
Descrição das ações da pesquisadora e
ações e justificativas das crianças
1ª Situação: Com as Cartelas
Objetivos: observar a contagem, a
seqüência numérica, a comparação, a
seriação, a cardinalidade, ordinalidade e
o valor posicional.
Materiais:
Cartelas com unidades, dezenas,
centenas e milhares.
P: Você conhece este número (20)?
S:
P: Qual é o sinal dele?
S:
P: Você pode pegar a mesma
quantidade de palitos que esse número
representa?
S:
P: Você pode contar os palitos?
S:
Obs: A atividade foi realizada com
algumas dezenas, centenas e milhares.
P: Você conhece este número (3458)?
S:
P: Qual é o sinal dele?
S:
P: Vo pode pegar a quantidade de
fichas que esse número representa?
S:
P: Olhe os números 34 e 63. Quanto
vale o algarismo 3 nos dois números?
S:
P: Você pode me explicar sua resposta?
S:
Quadro 10: Provas de investigação da contagem, da seqüência numérica, da comparação, da
seriação, da cardinalidade, da ordinalidade e do valor posicional.
FONTE: A autora.
121
CONTINUAÇÃO...
Situação: Jogo da bola na boca do
palhaço.
Objetivos: observar a contagem, a
seqüência numérica, a comparação, a
seriação, a cardinalidade, ordinalidade e
o valor de posição.
Material:
Jogo da bola na boca do palhaço
P: Você sabe quantas bolas jogou?
S:
P: Pode marcar o total de bolas?
S:
P: Eu acertei 10 bolas, você 20. Quem
acertou mais?
S:
P: Você pode me explicar como sabe
essa resposta?
S:
P Eu acertei 2 bolas, você acertou 12.
Quanto vale o algarismo 2 nesses dois
números?
S:
P: Você pode me explicar sua resposta?
S:
Quadro 10: Provas de investigação da contagem, da seqüência numérica, da comparação, da
seriação, da cardinalidade, da ordinalidade e do valor posicional.
FONTE: A autora
122
CONTINUAÇÃO...
3ª Situação: Jogo de Boliche
Objetivos: observar a contagem, a
seqüência numérica, a comparação, a
seriação, a cardinalidade, ordinalidade e
o valor de posição.
Materiais:
Jogo de boliche
Materiais auxiliares
P: Você derrubou alguns pinos que têm
quantidades marcadas neles. Qual foi o
total que você derrubou?
S:
P: Você quer os palitos e as fichas para
ajudar a contar?
S:
P: Eu não derrubei pinos. Posso colocar
zero no quadro de giz?
S:
P: Você pode me explicar porque eu
devo usar o zero dessa forma?
S:
P: Eu fiz 35 pontos, você fez 43. Quem
fez mais?
S:
P: Você pode me explicar como você
sabe a resposta?
S:
P: Quanto vale o algarismo 3 nos dois
números referentes aos pontos que
fizemos no jogo?
S:
P: Você pode me explicar sua resposta?
S:
Quadro 10: Provas de investigação da contagem, da seqüência numérica, da comparação, da
seriação, da cardinalidade, da ordinalidade e do valor posicional.
FONTE: A autora.
123
Situações de verificação
Descrição das ações da pesquisadora e
ações e justificativas das crianças
Situação: Cartelas com números e
letras do alfabeto.
Objetivos: seqüência numérica,
classificação, seriação, cardinalidade,
ordinalidade e valor posicional.
Materiais:
Cartelas com os números
Cartelas com as letras do alfabeto
Disponibilizo sobre a mesa as letras do
alfabeto e os números, aleatoriamente.
P: Você conhece letras? E números?
S:
P: Letra é igual número?
S:
P: Você pode escrever palavras com
números? Como?
S:
P: Você pode escrever sua idade com
letras? De que forma?
S:
P: Faço os sinais de letra e de número
em LIBRAS. São iguais?
S:
P: Ele disse que letra é para escrever
nomes e número a idade. O que você
pensa?
S:
P: Pode separar as letras dos números?
S:
P: Mostro o zero. Qual é o sinal?
S:
P: É letra ou número?
S:
P: Por quê?
S:
Quadro 11: Provas de investigação da seqüência numérica, classificação, seriação, cardinalidade,
ordinalidade e valor posicional.
FONTE: A autora.
124
CONTINUAÇÃO...
2ª Situação: Com o jogo de boliche
Objetivos: seqüência numérica,
classificação, seriação, cardinalidade,
ordinalidade e valor posicional.
Material:
Jogo de Boliche
Convido a criança a jogar. Peço-lhe qie
anote em um papel os números ou letras
impressas nas etiquetas coladas nos
pinos do boliche.
P: Vamos anotar o que está impresso
nas etiquetas dos pinos que você
derrubou?
S:
P: B é número? Tem que anotar?
S:
P: Como vou somar a letra B aos
números?
S:
P: 2 + 8 + A + L + 18. Como vou somar
esses signos?
S:
Quadro 11: Provas de investigação da seqüência numérica, classificação, seriação, cardinalidade,
ordinalidade e valor posicional.
FONTE: A autora.
125
6 RESULTADOS DA PESQUISA
Nesta seção apresentamos os dados acerca da identificação de algarismos da lecto-
escrita pelos sujeitos pesquisados seu repertório numérico. Elaboramos as
categorias de análise que serviram de parâmetros aos critérios estabelecidos para a
coleta de informações, com vistas à discussão dos resultados da investigação sobre
a escrita numérica por crianças surdas bilíngües. Queremos esclarecer que nossa
intenção não se consubstancia em analisar os sujeitos individualmente; procuramos
efetuar as observações por provas, muito embora há momentos em que fazemos
referências às particularidades de algumas crianças, de acordo com suas
argumentações e idiossincrasias durante a realização das entrevistas.
6.1 O REPERTÓRIO NUMÉRICO
O repertório numérico das crianças foi a nossa primeira investigação de fato.
Fundamentadas nesse conhecimento demos seqüência à nossa pesquisa. Ao
efetuarmos as questões do Quadro 5, levamos em conta que as respostas dadas
mantinham relação com os conteúdos abordados na série freqüentada pela criança,
com suas experiências vividas fora da escola e com a sua compreensão sobre o que
foi questionado, dado este relevante devido à variação do tempo de exposição das
crianças à LIBRAS.
Sinclair (1990) afirma que estabelecer relações entre as expressões numéricas
verbais e as expressões numéricas escritas não é algo fácil para as crianças. No
que se refere aos surdos, entendemos que eles têm que realizar a ligação entre os
sinais dos números e sua grafia correspondente. Compreendemos que o percurso
do surdo é o mesmo feito pelo ouvinte, ou seja, transpor um tipo de representação a
outro. No entanto uma diferença importante nas formas de representação dos
surdos e dos ouvintes.
De acordo com Lerner e Sadovsky (1996), as expressões numéricas verbais não
126
são posicionais e a justaposição das palavras prevê operações aritméticas como a
adição – cento e dois quer dizer 100 + 2 - e a multiplicação – seiscentos quer dizer 6
x 100. Diferentemente ocorre com as expressões numéricas escritas que, conforme
afirmam as pesquisadoras, é “mais hermética que a numeração falada [...] as
potências da base não são representadas através de símbolos particulares, mas
podem ser deduzidas a partir da posição que ocupam os algarismos” (LERNER;
SADOVSKY, 1996, p. 95).
Concluímos que analogamente às notações escritas convencionais são os sinais
dos números em LIBRAS, pois apresentam uma organização posicional, ou seja, o
número 3547 é sinalizado como três, cinco, quatro, sete. Logo, para o surdo, basta
conhecer os algarismos do sistema de numeração indo-arábico para escrever os
números convencionalmente, o que não implica dizer que, desta forma eles
compreendam os conceitos envolvidos. Entretanto, como esclarece Brizuela (2006),
é possível que ocorra “um processo operativo e construtivo na apropriação de um
objeto de conhecimento essencialmente figurativo, como o sistema numérico escrito”
(BRIZUELA, 2006, p. 70).
Subsidiadas por este raciocínio e, ainda, pelas proposições de Sinclair (1990),
Lerner, Sadovsky (1996) e Brizuela (2006), compreendemos que as crianças surdas,
assim como as ouvintes analisadas nessas pesquisas, apresentam condutas
similares no que se refere ao uso de seu repertório numérico. O mesmo se
caracteriza pelo conhecimento de “números da escola” e “números do cotidiano”,
assim como as situações em que são utilizados. Verificamos que a escrita
espelhada se constitui em uma especificidade constante desses números e, no que
se refere aos “números do cotidiano”, observamos que se relacionam com situações
concretas e com indicação de localização.
Para que possamos compreender essas variações de referência, optamos por
estabelecê-las como categorias, quais sejam: números da escola; números do
cotidiano e números de localização.
Com o propósito, ainda, de facilitar a compreensão acerca das respostas dadas por
127
nossos sujeitos e a conseqüente análise feita, especificamos, ao lado da indicação
de cada criança, sua idade aproximada e, em seguida, o tempo de escolaridade em
anos, o que revela o tempo de contato freqüente com a LIBRAS. Assim, por
exemplo, J3 (~6; ~4), indica uma criança da Educação Infantil, com
aproximadamente seis anos de idade e aproximadamente quatro anos de
escolarização e utilização da LIBRAS. A seguir, tratamos de exemplos de respostas
dadas por algumas das crianças participantes da pesquisa às questões feitas:
Números da escola
P: Você conhece números?
J3 (~ 6, ~ 4): Faz o sinal dos números 0 e 5 e os escreve convencionalmente. A
criança explica que 0 é a série que freqüenta e 5 é a sua idade.
Apesar de conhecer outros números, fato que verificamos no decorrer das
entrevistas, ao ser solicitada a escrevê-los, a criança opta pela repetição dos
números que lhe são significativos:
As crianças têm contato com informações numéricas advindas do meio social em
que se encontram (LERNER; SADOVSKY, 1996). Entretanto, este conhecimento
social não garante que J3 reconheça o número como um signo, pois para isso é
necessário que construa suas “quatro qualidades”, quais sejam: a conservação de
quantidade, a correspondência termo a termo; a cardinalidade e a ordinalidade
(PIAGET; SZEMINSKA, 1975).
128
J1 (~5, ~4): Escreve números de forma aleatória e espelhada:
A criança freqüenta a escola mais de 3 anos e está exposta à língua de sinais
em casa. Verificamos que suas notações tendem a se aproximar dos símbolos
convencionais – no caso dos números 1, 2, 7 e 8 –, são influenciadas pelas
convenções, mas não apresentam uma sistematização. Constatamos a tentativa de
J1 em escrever a seqüência numérica, fato que demonstra que as interações
sociais favorecem a elaboração de conceitos pela criança, conceitos estes que
subsidiarão a construção de uma conceitualização mais elaborada, um esquema
conceitual que possibilite a interpretação dos dados da realidade (FERREIRO,
1998). Pedimos, ainda, que escrevesse outros números. J1 fez o sinal do número 4
e o escreveu; fez o mesmo com os números 0 e 3 :
Fez o sinal do número cinco e o sinal de idade; então escreveu:
129
S2 (~8, ~2,5): A criança faz o sinal do número 2 em LIBRAS, que se refere à série
que freqüenta. Solicitada a escrever os números que conhece, o faz desta forma,
e afirma que vai aprender outros números na série. A resposta dada
demonstra que a criança percebe a relação de ordem (DANYLUK, 1998): primeiro
se aprende um pouco, depois se aprende mais. Na série o conteúdo dos
números é menor, na série esse conteúdo será maior. De acordo com a sua
resposta, verificamos, ainda, que ela sabe da existência de outros números além
desses que especificou.
S1(~7, ~6): Como S2, S1 responde ao questionamento com o sinal do número 2,
e
explica que se refere à série em que estuda. Pedimo-lhe que escreva os números
conhecidos:
Observamos que S1 inicia suas notações pelo número 2, referente à sua resposta
ao questionamento da pesquisadora. Mas continua a seqüência numérica até o
número 30, de forma convencional. S1 freqüenta a 2ª série do ensino fundamental e
recebe influências significativas do ambiente escolar, pois exposição à LIBRAS
tanto na escola quanto em casa tem um irmão surdo, fluente em LIBRAS.
Pedimos que escrevesse outros números, o que faz em escrita espelhada, na
tentativa de dar continuidade à seqüência numérica que iniciou anteriormente.
130
Para esta criança, a seqüência numérica se constitui como resposta a todas as
perguntas feitas sobre os números conhecidos, o que indica uma influência
significativa do processo de ensino e aprendizagem vivenciado na escola:
Constatamos que a interação social com os números contribui para a construção
deste sistema de representação (LERNER, SADOVSKY, 1996), pois mesmo que
ainda não consigam justificar suas produções gráficas de acordo com as regras
constitutivas do sistema de numeração decimal, as crianças elaboram e
interpretam, a seu modo, as escritas convencionais.
Segundo Orozco (2005), durante a construção das “[...] expressões verbais
correspondentes à seqüência numérica dos números entre dez e cem” (OROZCO,
2005, p. 90) as crianças identificam a regularidade que lhes é implícita, ou seja,
compreendem que as palavras vinte”, “trinta”, “quarenta”, “oitenta” vêm
acompanhadas das unidades de zero a nove. No entanto, alerta que nesse percurso
as crianças cometem o erro de, ao chegar ao final da seqüência – vinte e nove, trinta
e nove -, denominar o número seguinte de vinte e dez, trinta e dez, por exemplo.
Para a pesquisadora, quando analisamos os erros cometidos pelas crianças na
escrita dos numerais verificamos “as correspondências entre a fragmentação da
expressão verbal e os numerais que escrevem” (OROZCO, 2005, p. 90). Esta
constatação é importante para compreendermos que a oralidade numérica promove
um distanciamento da escrita convencional dos números.
131
No caso das respostas dadas por S1, constatamos que a LIBRAS oportuniza ao
surdo uma escrita numérica mais próxima da escrita convencional, dada sua
característica lingüística que remete a cada algarismo de um número um sinal, sem
a fragmentação que acontece na linguagem oral. Se o surdo escreve o número trinta
e nove, os sinais que representam esse número são o três e o nove; o próximo
número da seqüência numérica tem os sinais quatro e zero, referentes ao número
quarenta. Desta forma, ao pensar sobre a escrita numérica, S1 utiliza subsídios da
escrita convencional, implícitos na língua de sinais.
A nosso ver, os números da escola, elaborados pelos surdos, apontam para uma
influência da educação matemática exercida pelas instituições de ensino, quer de
surdos, quer de ouvintes, que se caracteriza pela repetição da escrita da seqüência
numérica como um processo mnemônico, desprovido de significado. Observamos
que as crianças procuram significar suas leituras e escritas numéricas ao relacioná-
las com particularidades de seu cotidiano.
Números do cotidiano
P: Qual é a sua idade? Pode escrever?
J2 (~5, ~2): Faz o sinal do número 5 e escreve:
132
T1 (~9, ~3): É para fazer grande?
J4 (~5, ~2,5):
J4 (~5, ~2,5): A criança faz sinais dos números que conhece - 1ª série, feira e
feira. Pedimo-lhe que escrevesse um número conhecido. J4 faz o sinal do número 7
e o escreve espelhado:
Perguntamo-lhe se conhecia mais números. J4 faz o sinal do número 9 e escreve o
ideograma referente ao número 6:
A pesquisadora pergunta se J4 escreveu o 9, ao que responde afirmativamente.
133
P2 (~7, ~4 meses): A criança faz o sinal do número 7, referente à sua idade. Depois
o escreve:
S3 (~8, ~7): Faz os sinais dos números 9 e 10. Explica que tem 8 anos e que fará 9
anos, depois 10 (vai ao calendário e mostra o 10, que é o dia de seu aniversário.
Aponta meses aleatórios e explica que ainda não sabe qual é o mês).
A resposta da criança esboça a noção de tempo pelo uso do advérbio “depois” e ao
relacioná-la com a realidade de sua vivência. Uma possível explicação para esta
conduta encontra-se em Danyluk (1998), que se refere a essa noção como “tempo
vivido” e afirma que a construção do tempo na criança é considerada “[...]
fundamental à alfabetização matemática” (Danyluk, 1998, p. 210).
Consideramos ainda, que a ação de S3 demonstra que conhecimentos
informados por pessoas partícipes do meio social em que a criança está imersa. De
acordo com Piaget (1995), este é um conhecimento social e cultural, que exige da
criança uma abstração empírica que “[...] tira suas informações dos objetos como
tais, ou das ações do sujeito sobre suas características materiais (PIAGET, 1995, p.
274).
P1 (~7, ~6): Responde que os números que conhece são a 1ª série, o número 6
(mostra o sinal de sua idade), o número 9 e o 10 (mostra os sinais das idades dos
irmãos). No entanto, suas notações divergem de suas respostas quando afirma que
134
9 e 9 são as idades de seus irmãos e 8 é a sua idade:
Complementa sua resposta com a idade dos pais:
As respostas de P1 mostram sua compreensão sobre a necessidade das notações
como marcas, ou seja, os números têm um significado, um sentido, uma utilidade.
P1 explica que tem dois cachorros, um preto com 021 anos de idade e um marrom
com 9080 anos de idade.
P: Você sabe o nome de seus cachorros? Pode escrevê-los?
P1: O nome é cachorro! (com expressão de admiração pela questão feita). Escreve
e atribui as idades a cada um deles:
P: Qual cachorro é mais velho?
P1: Aponta para o número 9080. Esse é jovem (aponta para o número 021).
135
P: Como você sabe que 9080 é velho e que 021 é jovem?
P1: Conta os algarismos dos números e mostra que 9080 “tem mais”, é velho !” –
“quanto maior a quantidade de algarismos de um número, maior é o número”
(LERNER; SADOVSKY, 1996).
A relação que a criança estabelece entre a quantidade de algarismos e a idade dos
cachorros quanto mais velho o cão mais algarismos são escritos; quanto mais
novo o cão, menos algarismos são necessários é um dado importantíssimo que
nos sugere um processo de elaboração da escrita numérica similar ao que ocorre
com as crianças ouvintes, analisadas nas pesquisas que nos serviram de
referencial teórico-metodológico.
Outro dado que queremos salientar é que a conduta da criança corrobora a
constatação da dificuldade de acesso dos surdos às informações do cotidiano
devido a sua privação sensorial. Em geral os cachorros recebem nomes e as
crianças os conhecem por sua identificação nominal, entretanto, a P1 não foi dada a
oportunidade de saber que seus cachorros têm nomes. Isto sugere que o mesmo se
em relação à escrita dos números. Portanto, concluímos que a língua é um fator
preponderante nesta elaboração e deve ser priorizada para que os surdos
construam seus conhecimentos mediados pelas interações com o meio ambiente e
possam estabelecer relações com conhecimentos elaborados previamente, os quais
subsidiam as novas construções.
Observamos que, nestas situações, os alunos procuram associar as respostas ao
que Danyluk (1998, p. 212) denomina de “causa e efeito”. De acordo com esta
pesquisadora, as crianças procuram as causas para os fatos que acontecem em
suas vidas. Seria uma “causalidade perceptiva”, que se manifesta na sua tentativa
em explicar as situações de maneira a atribuir intenção àquilo que é externo ao seu
psiquismo (DANYLUK, 1998, p. 212). Se questionadas sobre o conhecimento dos
números, num primeiro momento respondem com a série escolar que freqüentam,
136
com suas idades, com os dias da semana, com o dia do aniversário. Portanto, de
acordo com essas respostas, existem causas que mobilizam os meros ou, no
pensamento infantil, os números existem por algum motivo concreto.
Verificamos ainda que, mesmo sem o domínio do sistema de numeração, além
desse sentido causa/efeito tratado por Danyluk (1998), encontramos nessas
respostas “[...] um processo de construção, de intercâmbio, atribuindo sentido aos
números com os quais deparam em situações diversas de seus cotidianos”
(DANYLUK, 1998, p. 224). Os números escritos utilizados como etiquetas.
Essa constatação nos remete à relação explicitada por Brizuela (2006) entre o
conhecimento numérico convencional e as idéias idiossincráticas elaboradas pelas
crianças durante a construção do conceito de número. Para Brizuela (2006), as
invenções notacionais das crianças contribuem sobremaneira para a aprendizagem
conceitual e convencional da escrita numérica, do mesmo modo que estas últimas
se constituem em um suporte para as primeiras, pois “[...] são subordinadas às
invenções e aos aspectos assimilatórios do pensamento” (BRIZUELA, 2006, p. 43)
Podemos observar estas características evidenciadas nas produções das crianças,
em resposta à questão feita, expostas a seguir:
P: Você sabe o número do telefone da sua casa? Pode anotar?
J3 (~6, ~4):
137
Desenha o telefone, sem, no entanto, fornecer seu número específico. Sabe que os
telefones têm números em suas teclas, então as representa com a seqüência
numérica de 1 a 10.
A criança seguinte explica que o telefone pertence a sua mãe e que sua cor é
amarela. Diz que é perigoso usá-lo porque está quebrado. Concluímos que, apesar
de um acesso restrito ao aparelho devido à surdez, J1 observa as pessoas de seu
meio ambiente e quer utilizá-lo como elas o fazem. Sua conduta é semelhante a de
J3 no que se refere ao conhecimento de que telefones têm números.
J1 (~5, ~4):
J1 desenha um telefone celular e anota alguns números em suas teclas. Explica
que as demais estão vazias, em decorrência de seu desconhecimento de outros
números, fato que evidencia a constatação de ser, seu conhecimento acerca das
notações numéricas, insuficiente para responder à questão. Esta conduta
demonstra que J1 reconhece que os números o são apenas marcas, mas que
estão impregnados de significados.
138
S2 (~8, ~2,5):
S2 escreve os dois últimos números de seu telefone, na tentativa de fornecer,
convencionalmente, os dados que lhe foram requeridos. Mediante a sua resposta,
nos reportamos às considerações de Brizuela (2006) que afirma serem as notações
matemáticas um objeto conceitual, entendido pela autora como “[...] socialmente
constituído com certas características e uma lógica que o caracteriza” (BRIZUELA,
2006, p. 18), o que, no caso de nosso exemplo, é o número do telefone. A ênfase
dada pela resposta da criança às dezenas separadas pelo hífen, retrata o que afirma
Brizuela (2006) sobre as hipóteses infantis “[...] relativas a sistemas de notação
matemática e como elas funcionam” (BRIZUELA, 2006, p. 18),
Os demais sujeitos responderam à questão de forma diversificada. J4 (~ 5, ~ 2,5),
S1 (~ 7, ~ 6), S3 (~ 8, ~ 7), P3 (~ 7, ~ 9 meses), P2 (~ 7, ~ 4 meses) e P1(~ 7, ~ 6)
dizem que têm telefone, mas que não sabem o número ou que o esqueceram. T1(~
9, ~ 3) e J2 (~ 5, ~ 2) dizem que não tem telefone em suas casas.
P: Na sua casa tem número?
139
J3 (~6, ~4):
A criança desenha a casa e conta as portas e as janelas. Diz que tem 4. Sua
constatação se baseia naquilo que julgou provável contar em sua casa, do real
vivido como bem explica Danyluk (1998). Número significa quantidade de coisas,
Acrescenta, ainda, que na sua casa tem muita gente”, faz desenhos para
representá-las e conta:
cinco pessoas duas pessoas
Constatamos que as respostas de J3 demonstram a relevância da interação com o
meio para o seu desenvolvimento. No entanto, verificamos que as informações
coletadas nessa interação são transformadas pela criança por seus esquemas de
ação, o que possibilita uma significação cognitiva. Portanto, concluímos que os
conceitos oriundos da interação social e as estruturas cognitivas do sujeito se
constituem na base para o desenvolvimento infantil.
140
Condutas semelhantes têm as crianças S3 e J4:
S3 (~8, ~7):
Explica que na sua casa tem muito mero, tem papai, mamãe, eu
”.
A fala da
criança demonstra a organização que subjaz em seu pensamento sobre número: a
quantidade de pessoas de sua casa é a resposta para a questão. S3 faz uso, para
demonstrar que números em sua casa, de um referencial concreto sua família,
no caso – que expresse uma representação numérica. O mesmo princípio se repete
ao questionarmo-lhe sobre o número do seu sapato:
S3: 4, tenho 4 sapatos.
Como meu objetivo é averiguar se S3 sabe quanto calça, explico:
P: O número do meu sapato é 36 (mostro-lhe a sola do sapato). E o seu?
A criança pensa e responde:
S3: 1,2,3,4,5,6
A resposta dada por S3 denota uma memorização, o que nos permite supor que a
escola trabalhe esse conteúdo com ênfase na seqüência numérica.
141
J4 (~5, ~2,5): Muito, muito número! Na minha casa tem televisão, tem banheiro, tem
telefone de abrir e fechar... muito, muito número! Então, desenha:
Televisão Menina no banho Telefone
P: Qual é o número do seu sapato? Pode escrever?
P3 (~7, ~9 meses): - É vinte e oito. Escreve:
As respostas dadas por P3 evidenciam o que conclui Brizuela (2006) em suas
pesquisas sobre a construção das notações numéricas: “[...] as crianças não
desenvolvem primeiro suas idéias sobre os aspectos conceituais dos números e
depois compreendem e aprendem os aspectos escritos dos números” (BRIZUELA,
2006, p. 70). Apesar de não estabelecer relações entre a expressão numérica oral e
a notação escrita, P3 demonstra compreender o número como uma marca e sabe
que as respostas dadas às perguntas feitas pela pesquisadora se consubstanciam
em números e que os números falados são dezenas, bem como os números que
escreveu.
142
Números de localização
No caso das crianças S2 e P1, observamos o uso da escrita convencional em suas
respostas.
S2 (~8, ~ 2,5): Desenha sua casa e escreve o número que a identifica, o que
demonstra sua compreensão sobre a questão feita, pois não responde com objetos
do interior da casa que podem ser contados.
Perguntamo-lhe se viu algum número na Kombi que o traz para a escola. Faz o
desenho a seguir, o que indica a mesma compreensão descrita anteriormente:
Verificamos que S2 traz, do cotidiano, informações sobre a escrita numérica e a
associa com a questão do número como etiqueta, como uma marca.
143
P1 (~7, ~6): A criança afirma que esse é o número da sua casa.
Ao questionarmo-lhe sobre números que vê na Kombi, P1 escreve:
P: Você pode me explicar em que local da Kombi você viu este número?
P1: No painel! (usa o gesto com o dedo indicador como referência ao marcador de
velocidade).
P: Qual é o número do canal de televisão que você gosta de assistir? Pode
escrever?
P3 (~7, ~9 meses): - É o trinta e quatro. Escreve:
Essa criança tem resíduo auditivo, usa a fala e está em fase de aprendizagem da
LIBRAS. De acordo com a análise de sua resposta, verificamos que P3 não
estabelece relação entre a expressão numérica oral e a grafia do ideograma
correspondente, mas usa o número como uma marca, o número como etiqueta.
144
Observamos que a escrita de alguns números, efetuada pelas crianças J2 (~5, ~2),
S1 (~7, ~6), J1 (~5, ~4) e J3 (~6, ~4) é espelhada. Ao se deparar com as cartelas
das unidades, J2 (~5, ~2) faz o mesmo sinal para os números 2 e 5. Perguntamos
se esses números são iguais, ao que J2 responde afirmativamente. Danyluk (1998)
explica que a escrita das quantidades numéricas em espelho é comum nesta idade
(5/6 anos). As crianças, em algumas situações, verbalizam que o mero foi escrito
“virado”, mas em outras, não se autocorrigem.
No caso dos nossos sujeitos, compreendemos que essa escrita de algarismos em
espelho se deve ao fato de que eles ainda estão em processo de aprendizagem e
têm dificuldades para grafar convencionalmente os números. Condemarin e
Blomquist (1986) advertem que basear-se apenas na idade cronológica da criança
como critério para sua inclusão nas séries iniciais da alfabetização pode acarretar
prejuízos ao desempenho dos alunos e um diagnóstico equivocado com relação aos
“erros” cometidos por eles. As autoras afirmam que os educadores devem estar
atentos à “idade visual” dos educandos, pois que “[...] o olho da criança de seis anos
possui freqüentemente uma hipermetropia; ela não pode ver com clareza objetos tão
pequenos como uma palavra” (CONDEMARIN; BLOMQUIST, 1986, p. 17).
Ferreiro (1985) corrobora Condemarin e Blomquist (1986) ao enfatizar que as
alterações de orientação espacial de números e letras “[...] não pode ser tomada
como índice patológico (prenúncio de dislexia ou disgrafia), mas como algo
totalmente normal” (FERREIRO, 1985, p.188). Esclarece que muitas vezes as
crianças, propositadamente, invertem suas notações como experiência exploratória
“[...] ativa dessas formas dificilmente assimiláveis” (FERREIRO, 1985, p.188).
O sujeito P3 (~7, ~9 meses), ao responder às questões da pesquisadora, demonstra
conhecer o nome de alguns números, sem, no entanto, estabelecer a relação desse
nome com a escrita correspondente, fato que confirma a afirmação de Sinclair
(1990) que “[...] um conhecimento dos símbolos convencionais [...] o é suficiente
para se poder utilizar essas grafias de maneira apropriada” (SINCLAIR, 1990, p. 88).
A autora explica que somente a combinação dessas notações com elementos
cognitivos possibilita o uso do sistema de numeração escrita de forma global, ou
145
seja, que contemple tanto o conceito de número quanto sua escrita.
Em síntese, o que sugere esta investigação, é que os sujeitos da pesquisa
apresentam um repertório numérico coincidente ao referido pelas pesquisadoras,
que nos subsidiam teoricamente neste trabalho, sobre as crianças ouvintes de
mesma idade. Os surdos expressam um conhecimento da leitura e da escrita dos
números baseados em suas experiências de vida, bem como nas experiências de
ensino e aprendizagem efetivadas no ambiente escolar. No entanto, o fator
preponderante para a construção e para a construção da escrita matemática não é a
idade das crianças, mas a fluência em LIBRAS. A apropriação de uma língua, pela
criança, favorece a intermediação e a interação com o meio, fatores primordiais para
a construção do conhecimento.
No caso dos sujeitos J1(~5, ~4), J3 (~6, ~4) e J4 (~5, ~2,5), alunos da Educação
Infantil, dos sujeitos S1 (~7, ~6), S2 (~8, ~2,5), S3 (~8, ~7), alunos da segunda série;
do sujeito P1 (~7, ~6), aluno da primeira série e do sujeito T1 (~9, ~3), aluno da
terceira rie, todos do Ensino Fundamental, fluentes em língua de sinais,
observamos que o conhecimento dos números se desenvolve em consonância com
o das crianças ouvintes, como as analisadas nas pesquisas de Danyluk (1998),
Brizuela (2006), Sinclair (1990), Lerner e Sadovsky (1996). Em contrapartida, os
sujeitos J2 (~5, ~2), P2 (~7, ~4 meses) e P3 (~7, ~9 meses) apresentam um
desempenho aquém, em função de seu pouco contato com a LIBRAS.
6.2 AS CATEGORIAS DE ANÁLISE
Como o nosso referencial teórico-metodológico está alicerçado em pesquisas sobre
notação numérica em crianças ouvintes, julgamos interessante, neste momento do
trabalho, acrescentar alguns elementos obtidos em uma pesquisa efetivada com
sujeitos surdos com idades entre quatro e seis anos, cujo tema trata da construção
da noção de números por esses sujeitos. As pesquisadoras realizaram seu trabalho
por meio da investigação do desenvolvimento das estruturas de classificação,
seriação e conservação de quantidade numérica (NOGUEIRA; MACHADO, 2007), e
146
constataram que:
Não havia defasagem significativa entre os resultados com as
crianças surdas e aqueles resultados relatados pela literatura com as
crianças ouvintes. As crianças surdas apresentavam os mesmos
níveis de classificação e seriação que as crianças ouvintes nessa
faixa etária. [...] na prova de conservação do número, não foi
possível, naquele momento, avançar além da correspondência termo
a termo. [...] a limitação de comunicação não permitia que
fizéssemos a questão adequada: ‘há mais fichas amarelas ou mais
fichas azuis’? (
NOGUEIRA e MACHADO, 2007, p.4).
Subsidiadas pelos resultados desta pesquisa, consideramos a necessidade de
estabelecermos categorias de análise que dêem conta de explicar os critérios
verificados nas entrevistas com as crianças surdas no que se refere às notações
numéricas, objeto de nosso estudo. Distinguimos, então, duas categorias
abrangentes: a primeira, denominamos de Categoria das Relações Simples, e a
segunda das Relações Refletidas. Procuramos sistematizar nessas categorias os
critérios utilizados nas entrevistas, no entanto, na descrição das análises,
compreendemos a necessidade de fragmentação na forma de exposição das
respostas, pois que o conteúdo das interações é composto por uma mescla dos
mesmos critérios.
6.2.1 Categoria das relações simples
Essa categoria apresenta as construções do sujeito elaboradas num patamar mais
primitivo, empírico, prático e concreto de seu desenvolvimento. As estratégias não
exigem um nível elevado de abstração e se estabelecem pelo contato direto com o
real. A presença do realismo nominal
23
, tratado por Ferreiro (1985) e Carraher
23
Carraher (1999) afirma que Piaget demonstrou que num determinado estágio do seu desenvolvimento
cognitivo, a criança não consegue conceber a palavra e o objeto a que esta se refere como duas realidades
distintas. Ele denominou este fenômeno de realismo nominal. Ferreiro (1985) explica que o realismo nominal se
consubstancia em uma concepção realística da palavra que se oferece à leitura. A criança não estabelece
relações entre as letras e seus respectivos sons e associa as características do objeto à sua forma física,
independente de sua forma lingüística. Como exemplo, podemos citar uma das atividades de Ferreiro com a
menina Mariana. A pesquisadora mostra-lhe a palavra “gallo” e pergunta-lhe se não necessárias mais ou
menos letras para se escrever a palavra “gallina”. “Mariana responde “Menos. Porque a galinha é menor.[...]
escreve GALL” (FERREIRO, 1998, p. 56). Ferreiro prossegue a investigação e solicita que a criança escreva a
palavra “pintinho”, ao que ela responde que deve ser escrita “ ‘Com as mesmas letras, mas com menos’[...] e
escreve
GAL” (FERREIRO, 1998, p. 56).
147
(1999) em relação às escritas das palavras, pode ser estendida para as hipóteses
sobre as notações numéricas, construídas pelos sujeitos desta pesquisa.
As crianças que se enquadram nessa categoria são: J1, J2, J3, J4 e P2. Os critérios
que utilizaremos para as análises são as relações que envolvem:
Contagem;
Cardinalidade;
Classificação e seriação;
Os “números especiais”: o zero e os “nós”.
6.2.1.1 Relações simples de contagem
As atividades descritas nos protocolos dos Quadros 6, 9 e 10 (1ª e 2ªsituações)
descrevem a maneira como investigamos a escrita dos números após a situação de
contagem nos nossos sujeitos. Utilizamos o jogo da “bola na boca do palhaço”, as
cartelas com as unidades, e os materiais auxiliares, com o objetivo de
compreendermos como as crianças surdas reagem em situação de contagem diante
de números de diferentes magnitudes e compostos por quantidades de algarismos
diversas. No caso das relações simples de contagem, observamos que a ação de
contar não segue a seqüência de palavras-número convencional; constitui-se de
uma construção baseada na relação entre os sinais em LIBRAS e a escrita
convencional. A seguir apresentamos alguns momentos que envolveram esta
questão:
Jogo da bola na boca do palhaço
148
P: Vamos contar quantas bolas você acertou? (acerta doze bolas)
J1 (~5, ~4) realiza a contagem aleatoriamente e a interrompe no número 7.
P: Quantas bolas você acertou?
J1: Faz o sinal do número 8.
P: Você pode escrever?
J1:
A representação escrita da criança, neste caso, pode ser considerada como uma
representação global de quantidade, conforme as pesquisas de Sinclair (1990) e
Danyluk (1998), dada a distância entre a quantidade de bolas arremessadas e a
notação referente. Entretanto, notamos a especificidade de a criança tentar utilizar
um algarismo, o que denota a influência dos aspectos sociais nas concepções
infantis sobre a escrita dos números, bem como sua função: uma marca e seu
significado. A seguir temos outro exemplo de contagem que nos possibilita analisar
como a criança se vale de uma ação social para elaborar notações numéricas:
149
P2 (~7, ~4 meses): Acertou doze bolas na boca do palhaço.
P: Vamos contar quantas bolas você acertou?
P2: Conta do número 1 ao número 5 e recomeça até que as bolas se acabem.
P: Quantas bolas você acertou?
P2: Faz o sinal do número cinco (sabe contar até cinco).
P: Você pode escrever?
P2:
A criança escreve a seqüência dos algarismos corretamente, uma escrita linear e
ordenada, apesar dos algarismos espelhados. Como nas pesquisas de Sinclair
(1990) e Danyluk (1998), esse tipo de notação indica a correspondência termo a
termo e o aparecimento dos algarismos, pois escreve uma seqüência de cinco
números para representar cinco objetos, fato que indica a não compreensão de que
apenas o último número da seqüência representa a totalidade das bolas
arremessadas. Podemos observar como J2 realiza a atividade proposta:
J2 (~5, ~2): Acertou dez bolas; conta as bolas até quatro e faz o sinal da cor de
cada bola; depois do número quatro usa o advérbio “muito” para dar seqüência à
contagem:
150
1 verde
2 azul
3 vermelha
4 roxa
Muito vermelha
Muito amarela...
Cartelas com as unidades
Mostro a cartela com o número dois e me certifico que J2 sabe o sinal do número. A
criança faz o sinal do número cinco. Pergunto-lhe se pode pegar a quantidade de
palitos expressa na cartela
J2 (~5, ~2): Pega dois palitos para o número dois, o que sugere a leitura do código
numérico e a compreensão desta representação notacional.
Repito a atividade com os números um, três, quatro e cinco. J2 pega a quantidade
de palitos correta para esses números, com exceção dos números quatro pega
sete palitos e diz “muito” - e cinco, ao qual atribui dois palitos.
P: Qual é a sua idade?
J2: Faz o sinal do número cinco.
Pego a cartela com o número cinco e os dois palitos colocados por J2. Pergunto:
151
P: Você tem dois “palitos” de idade?
J2: Sim
Apresento-lhe as duas cartelas com os números 2 e 5. Peço-lhe que faça os sinais
dos números. J2 faz o sinal do número cinco para ambos os números mostrados.
Peço que coloque os palitos referentes a cada uma delas.
J2: 2 5
II II
J2: Viu! Os números são iguais!
Observamos que J2 está em processo de construção da contagem. Tanto no jogo
da bola na boca do palhaço como na manipulação das cartelas, conta até quatro e
em algumas situações a três, enunciando para as demais unidades o advérbio
“muito”. Espelha os números dois e cinco e acredita que representam o mesmo
ideograma e a mesma quantidade: duas. A conduta da criança revela como se
estrutura seu pensamento: para suas necessidades imediatas, mais que três objetos
são desnecessários, logo os denomina de “muitos”.
Mostro a cartela com o número seis e peço à criança que faça o sinal do número.
Em vez de fazer o sinal, J4 faz a contagem da seguinte forma:
J4 (~5, ~2,5): 1, 2, 3, 4, 6, 5.
P: Você pode pegar seis palitos?
152
Após pegar corretamente o número de palitos que lhe foi solicitado, peço a J4 que
escreva essa seqüência numérica.
J4: Escreve o número seis como a letra P. Analisa e, imediatamente apaga sua
produção e escreve o número seis convencionalmente. Complementa sua escrita
com o número um, em espelho, à esquerda; após, escreve o número cinco à direita,
seguido do número três, em espelho, e, por fim, o número quatro, conforme a
ilustração a seguir:
P: Você escreveu a seqüência de um a seis? Então vamos pegar os seis palitos
para conferir. Conte os palitos antes.
J4: Certifica-se que tem seis palitos nas mãos. Coloca um palito para cada número,
mas sobra um palito!
P: Acho que falta um número ou tem palito demais. O que você acha?
J4: Não”. Junta os seis palitos no espaço que ocupou para escrever os números.
“Você viu? Tem seis!”
As respostas de J4 indicam que, primeiramente, tenta realizar a contagem e,
posteriormente, a correspondência termo a termo. Entretanto, sua contagem não
segue a seqüência de palavras-número convencional, bem como a escrita
correspondente à seqüência. No que se refere à correspondência termo a termo, o
que prevalece para J4 é o aspecto figurativo da sua escrita, dada a sua opção por
agrupar os seis palitos no espaço ocupado por essa escrita em vez de realizar a
153
correspondência biunívoca. Observamos, ainda, que não a conservação de
quantidade. No nosso entendimento, são os esquemas envolvidos na produção e
interpretação de suas notações que subsidiam as condutas da criança.
Sinclair (1990) deixa claro em suas pesquisas que a correspondência termo a termo
é utilizada pelas crianças a partir dos três anos de idade e esta prática se estende
até os seis anos, uma concepção que a autora explicita pela afirmação de que “[...]
fazer uma marca para cada ‘coisa’ é primitiva mas poderosa [...] um procedimento
adequado para a resolução de problemas variados, tanto quanto a classificação ou a
seriação” (SINCLAIR, 1990, p. 91).
Para a pesquisadora, a notação seria “[...] uma simbolização escrita da contagem,
conservando todas as características desta última” (SINCLAIR, 1990, p.94),
portanto, seria a contagem uma atividade implícita ao conceito de número e a certas
especificidades das notações numéricas. No caso de nossos sujeitos podemos
supor que estas proposições são adequadas, ainda que a representação dos objetos
contados tenha sido feita, em algumas situações, idiossincraticamente.
Podemos verificar, então, que no caso destes sujeitos, as relações de contagem se
consubstanciam pelas influências dos aspectos sociais sobre suas concepções
acerca da escrita numérica, imbricados com suas ações substanciais no processo
dessa construção. Constatamos ainda que a correspondência termo a termo se
constitui, nesta fase, em um subsídio importante para a contagem.
6.2.1.2 Relações simples de cardinalidade
Utilizamos as atividades detalhadas no Quadro 9 e as atividades com o jogo “bola na
boca do palhaço” dos protocolos dos Quadros 6 e 10 (2ª situação). Um dos nossos
objetivos foi verificar como se efetivava a cardinalidade nos sujeitos pesquisados. Na
categoria das relações simples, constatamos que, para representar as quantidades,
as crianças utilizam os advérbios (muito/pouco), os adjetivos (grande/pequeno,
igual/diferente), gestos, desenhos e ideogramas. Questionamos as crianças sobre
154
quantas bolas haviam acertado e o que deveriam fazer para não esquecer a
quantidade de acertos.
Para as que respondiam com a necessidade de registro, entregamos uma folha de
papel, a fim de que anotassem ao seu modo. Para as crianças que não optaram pelo
registro, elaboramos perguntas e sugerimos alternativas como: “guardar as bolas
numa sacola?”, “levar as bolas para casa”, “mas, como as outras crianças poderiam
brincar sem as bolas?”, “confiar na memória?”, “será que não esqueceríamos?”,
“pedir para a professora lembrar”, “mas ela tem muitos alunos! Será que não
esqueceria?”, “usar os palitos de madeira ou as fichas e guardá-los numa sacola?”
ou “usá-los com a finalidade de marcar a quantidade numa folha de papel?”. Essas
questões foram feitas com a intenção de suscitar nas crianças a necessidade de
anotar, cada qual à sua maneira, a quantidade de bolas que acertaram. A seguir
temos alguns exemplos de suas respostas:
P: Pode escrever quantas bolas você acertou?
J2 (~5, ~2): Pega o lápis vermelho e faz muitos círculos.
J2: Faz o sinal de muito e explica que são muitas bolas vermelhas! (o ponto de
exclamação caracteriza a expressão da criança). Neste caso, constatamos a
representação global de quantidade (SINCLAIR, 1990).
P: E as outras bolas? A criança olha dentro da boca do palhaço e diz:
155
J2: Uma amarela! Duas verdes! (novamente,
a expressão de exclamação).
J2: Três azuis: um azul escuro e dois azuis claros!
Com quantidades pequenas notamos a correspondência termo a termo: para cada
bola um desenho (SINCLAIR, 1990).
Disponibilizo, então, os materiais auxiliares sobre a mesa. Coloco em um canto
doze fichas e no outro canto, três.
P: Quantas fichas têm aqui? (mostro o monte com doze fichas).
J2: Muito
P: E aqui? (mostro o monte com três fichas).
J2: Três
156
P: Qual o monte que tem poucas fichas?
J2: Não sei. Esse tem muito! (mostra o monte de doze fichas).
Faço as mesmas perguntas para J1(~5, ~4) e peço-lhe que escreva a sua resposta.
Constatamos que a criança utiliza a representação global de quantidade (SINCLAIR,
1990), como o fez J2.
J1 (~5, ~4): Muitas bolas!
Convido J4 (~5, ~2,5) a escrever quantas bolas acertou. A criança responde com o
desenho de uma bola e as notações de alguns algarismos aleatoriamente, assim
como fez a contagem 10, 7, 6, 9, 5, 1 e 0. A conduta da criança ao desenhar uma
bola para representar a quantidade de bolas jogadas indica o que Sinclair (1990) e
Danyluk (1998) constatam em suas pesquisas: a representação da quantidade por
meio de uma figura. As explicações dadas pela criança podem ser conferidas a
seguir:
157
P: Você pode fazer os sinais dos números que escreveu?
J4 (~5, ~2,5): Faz os sinais.
P: Mostro o número zero e pergunto quantas bolas ele representa.
J4: O zero é nada. Apaga o número zero e escreve o número três em seu lugar.
Coloco as fichas e os palitos sobre a mesa e peço a J4 que pegue a quantidade de
fichas referentes à quantidade de bolas que acertou na boca do palhaço. A criança
pega algumas fichas e estabelece uma correspondência termo a termo com os
números escritos por ela. Sobram quatro fichas azuis. J4 escreve:
J4 (~5, ~2,5):
Dou-lhe duas fichas amarelas e peço que escreva:
J4:
158
As condutas de J4 demonstram o aparecimento dos algarismos, o tipo de Notação 4:
aparecimento dos algarismos: as crianças representam a quantidade de objetos por
uma seqüência numérica que pode ser, por exemplo, no caso de seis objetos 1 2 3 4
5 6 ou 6 6 6 6 6 6. Se questionada pela pesquisadora onde se pode ler o número 6,
a criança aponta o último número da seqüência e quer apagar o restante. Como
explicitado nas pesquisas de Sinclair (1990).
Compreendemos, ainda, que a criança, além de representar a quantidade de fichas
pela seqüência numérica, considera necessário estabelecer uma grafia para cada
objeto quando utiliza as cores para reforçar sua resposta. Neste caso, J4 realiza o
que Sinclair (1990) denomina de Notação 3: correspondência termo a termo. As
respostas da criança sugerem que ela se encontra em um estágio intermediário da
psicogênese descrita por Sinclair (1990), pois transita, ao mesmo tempo, entre
noções mais elaboradas e elementares de notações e manifesta a necessidade de
que a representação tenha uma relação imediata com o objeto representado.
Sinclair (1990) afirma que situações em que a criança escreve o “[...] cardinal
tantas vezes quantos forem os objetos da coleção” (SINCLAIR, 1990, p. 85). A
pesquisadora afirma que este tipo de notação é construído pela criança sem a
necessidade de modelo do meio e possibilita um desequilíbrio no pensamento
infantil quando a criança descobre que não precisa escrever todos os algarismos,
pois somente um dá conta da cardinalidade requerida.
Diferentemente ocorre com o exemplo a seguir, coletado com a mesma criança e
que demonstra que a construção das notações numéricas se estabelece em um
vaivém de ações mentais, ora mais elaboradas no sentido conceitual, ora menos.
Isto não significa que a criança está “atrasada” em seu desenvolvimento cognitivo,
mas sim que ela retorna ao patamar anterior para resgatar elementos que a auxiliem
a lidar com ações mentais do patamar mais elevado em que ela se encontra.
Para a nova situação, disponibilizo os palitos sobre a mesa e peço a J4 (~5, ~2,5)
que me cinco palitos (o cinco é um número conhecido da criança, além de
representar sua idade). Para cada palito que J4 (~5, ~2,5) coloca em minha mão, faz
159
o sinal do número cinco; colocou oito palitos. Peço-lhe, então, que escreva o número
de palitos que me deu. Realiza a tarefa com a correspondência termo a termo (para
cada número 5, um palito):
J4 (~5, ~2,5):
A criança escreve oito vezes o número cinco e tem a mesma conduta ao ser
solicitada a pegar um só palito. Pega dez palitos e os representa como dez vezes o
número um.
J4:
Peço-lhe que pegue “zero palitos”. J4 escreve onze zeros no papel, depois pega
alguns palitos e faz corresponder a cada zero escrito um palito. Sobra um zero, falta
um palito. Pergunto-lhe o que pode ser feito: apagar um zero ou pegar outro palito?
J4 pega outro palito.
Neste caso, J4 estabeleceu, na notação, a correspondência termo a termo
(SINCLAIR, 1990) sem considerar a cardinalidade requerida. Pega uma quantidade
aleatória de palitos e representa cada um com o número pedido pela pesquisadora,
o que corrobora o uso do esquema para sustentar a representação produzida.
Em outra situação, peço para P2 (~7, ~4 meses) pegar a quantidade de palitos
referente ao número dois da cartela. A criança pega sete palitos para o número dois.
160
Repito a atividade com o número um. P2 pega os mesmos sete palitos para o
número um, conduta que, a princípio, nos leva a pensar em seu desconhecimento
de quantidades pequenas como um e dois. Não podemos deixar de frisar que a
criança o tem ainda o domínio da LIBRAS e freqüenta a escola pouco mais de
quatro meses. Nossa comunicação se efetivou por meio do conhecimento da
LIBRAS da criança, sinais (mímica) e gestos. Compreendemos que a escolha da
quantidade sete para os números um e dois se deva ao fato de a criança ter sete
anos, logo, um número que lhe é significativo - número etiqueta.
Compreendemos que os sujeitos surdos pesquisados percorrem o mesmo caminho
das crianças ouvintes no caso das notações de quantidades com significados
relacionados às relações cardinais. Constatamos que as respostas dadas pelas
crianças às questões propostas apontam para um desenvolvimento notacional
numérico coincidente com o verificado nas situações das pesquisas utilizadas como
nosso referencial teórico-metodológico.
6.2.1.3 Relações simples de classificação e seriação
Com a finalidade de verificarmos de que forma nossos sujeitos pensam as notações
numéricas, julgamos importante compreender como realizam as classificações e
seriações numéricas. Para isto, analisamos seus desempenhos durante as
atividades com as cartelas de números e letras, com o jogo de boliche, os bonecos e
os materiais de apoio (Quadro 7, 8, 9,11).
Nosso principal objetivo nas atividades do Quadro 8 foi analisar se as crianças, pela
comparação entre os bonecos e os números das cartelas, compreendem a relação
de ordem no sistema de escrita numérica. Sabemos que, de acordo com as
pesquisas de Lerner, Sadovsky (1996), Danyluk (1998) e Brizuela (2006), ao usar
critérios de comparação como suporte para a ordenação, a criança tem a
possibilidade de compreender a organização do sistema de numeração com maior
amplitude. Portanto, a relação de ordem é fundamental para a produção e
interpretação das notações numéricas.
161
Objetivamos, ainda, analisar se as crianças surdas estabelecem relação entre a
cardinalidade numérica e as idades dos bonecos, bem como se realizam atividades
de classificação e agrupamento (Quadros 7, 9, 11). Lerner e Sadovsky (1996)
afirmam que os critérios de comparações numéricas são construídos pelas crianças
antes de elas se depararem com o ensino formal. Mesmo sem conhecerem as
centenas, dezenas e unidades, as crianças pensam sobre as posições dos
algarismos e os seus valores.
Atividades com o jogo de boliche e com as cartelas de números e letras
Nossa proposta com o jogo de boliche (Quadro 7, 11) foi realizar uma competição de
arremessos de bola nos pinos entre a criança e a pesquisadora, com a finalidade de
que, após a discriminação e notação dos números referentes aos pinos derrubados,
a criança efetuasse a soma e aquele que mais pontuasse seria o vencedor. Para
isto, deixamos à sua disposição o quadro de giz, folhas de papel e os materiais
auxiliares. As letras foram utilizadas com o objetivo de averiguar se as crianças
sabiam diferenciá-las dos números. Queríamos, ainda, observar suas reações ao se
depararem com as letras numa situação de contagem e soma de pontos.
A atividade com as cartelas que contém as unidades (Quadro 9) consistiu em
distribuí-las aleatoriamente sobre a mesa. Pedimos, então, às crianças que as
“arrumassem” do menor número para o maior, não sem antes nos certificarmos de
que elas conheciam os sinais desses números.
O que pudemos verificar nas atividades com as cartelas e com o jogo de boliche é
que J2 (~5, ~2) conhece as unidades de um a cinco, mas não obedece à sua
ordenação convencional; J1 (~5, ~4) ordena os números 1 ao 7 seguidos do 0, 9 e 8;
P2 (~ 7, ~4) desenvolve a ordenação dos números de 1 a 5 seguidos do 8, 7, 8, 6 e
J4 (~5, ~2,5) conhece os sinais dos números, mas não os ordena.
Oferecemos aos sujeitos incluídos na categoria de relações simples, cartelas com as
letras do alfabeto, juntamente com as cartelas dos números (Quadro 11). Jogamos
boliche com as crianças, que deveriam marcar os pontos feitos de acordo com os
pinos derrubados. Nosso objetivo era observar se elas diferenciavam “o que serve
162
para contar” e “o que serve para escrever”. J2 não fez diferenciação entre números e
letras e agrupou-os como uma única categoria de signos. J1 e J4 consideraram que
as letras também “servem para contar” e determinaram para cada letra o valor de
um palito. No caso das letras B, M, N, U, V e W, que têm os sinais em LIBRAS como
exposto a seguir:
B M N U V W
J1 e J4 colocam 4 palitos para a letra B, 3 palitos para a letra M e para a letra W, 2
palitos para a letra N, U e V. Compreendemos que a relação feita pelas crianças
entre os sinais do alfabeto manual e a quantidade numérica se caracteriza por uma
associação primária das unidades menores com os sinais que trazem em sua
conformação indícios dessas quantidades. Este fato não descarta a suspeição de
que elas conhecem as especificidades das letras e dos números, haja vista a
utilização do alfabeto manual na nomeação de objetos durante a pesquisa.
No que se refere aos números maiores, não associação entre os mesmos e as
letras. Os números “grandes” são representados por palitos de acordo com a
quantidade de algarismos. Por exemplo, J4 3 palitos para o número 100 e 4
palitos para o número 3487. P2 e J2 colocam “muitos” palitos para números que
representam as centenas e os milhares.
Atividade com os bonecos
Disponibilizamos os bonecos sobre a mesa, conforme explicitado no Quadro 8, e
pedimos às crianças que esclarecessem seus papéis. Depois, de acordo com suas
denominações, verificamos se elas realizam classificações, agrupamentos e
ordenações, bem como quais critérios são utilizados. Em seguida, oferecemos as
163
cartelas com as unidades e solicitamo-lhes que fizessem a relação entre os bonecos
e os números. Sugerimos que essa relação fosse feita com base nas possíveis
idades de cada boneco.
Prosseguimos a atividade com as cartelas das dezenas, centenas e unidades de
milhar. Durante a atividade a criança poderia solicitar os números que quisesse, a
fim de estabelecer a relação desejada. Queríamos avaliar se elas ordenavam os
valores por meio da comparação.
A ordenação poderia ser encontrada na comparação entre as alturas dos bonecos, o
tamanho, as diferenças, as idades, o peso e o grau de importância conferido aos
bonecos pelas crianças. Piaget e Szeminska (1975, p. 17) afirmam que “[...] muito
antes de aprender a classificar e a seriar os objetos, os percebem segundo certas
relações de semelhança e de diferença”. No caso da atividade com os bonecos,
objetivamos compreender a relação entre a ordenação e a magnitude dos números.
A maioria das crianças associou os bonecos às pessoas da família, com algumas
variações de acordo com as particularidades de cada composição familiar.
Ilustração 1: bebê, vovó, papai, menino,
moça, vovô, mamãe
164
J2 (~5, ~2): compara o bebê e o vovô. Afirma:
O vovô é velho, o bebê é jovem!
P: Como você sabe? Pode me explicar?
J2 pega os bonecos vovô e bebê e compara suas alturas. Explica:
O vovô é muito alto, o bebê é pequenininho!
Apresento a cartela que tem o número 5. Pergunto a J2 quem tem cinco anos.
J2: Papai.
P: E você?
J2: Cinco anos.
P: Você tem a mesma idade do papai? Igual?
J2: Não! (fica em pé e mostra seu tamanho). Eu sou pequeno, o papai é grande!
P: Então, quantos anos ele tem?
J2: Mais que cinco!
P: Quanto é mais que cinco?
J2: Muito, muito! (faz gestos com as mãos)
P: Uma menina me disse que 9 é mais que 5. O que você acha disso?
J2: Não sei. Só vou aprender depois.
165
As respostas da criança sugerem que a construção dos números por ela se
mediante a sua relação com o objeto e, neste caso, com o objeto concreto, do qual
destaca qualidades observáveis como a altura, os adjetivos velho/jovem, os
advérbios mais, muito e depois, como se fosse a descoberta de algo pré-existente.
Realiza a coordenação das semelhanças e diferenças entre os bonecos e, ainda,
das semelhanças e diferenças entre as cardinalidades numéricas e a possível
relação dessas com os bonecos, como uma correspondência termo a termo. O
exemplo da criança seguinte trata da mesma situação e aponta algumas
especificidades acerca da construção do conceito de números.
J1 (~5, ~4): Põe a cartela com o número 5 para o menino (J1 tem 5 anos).
P: Você sabe a idade do bebê?
J1: Eu sou grande, ele é pequeno. Eu já fui assim, comi muito e hoje sou grande!
Mostro-lhe as cartelas com o 1 e o 5 e sugiro-lhe que coloque a quantidade de
palitos de cada número. J1 distribui os palitos corretamente.
P: Qual número tem mais?
J1: 5.
P: Você disse que o menino tem 5 anos. Uma criança me falou que o papai tem 1
ano. Você concorda com ela?
J1: Não, o papai é gordo, come muito. O bebê tem 1 ano, é pequenininho!
P: Pego a cartela do número 7 e J1 coloca a quantidade de palitos exata.
J1: 7 é muito, é um número gordo! O papai tem 7 anos! A mamãe, o vovô e a vovó
166
também. Todos os adultos têm 7 anos.
P: E a moça?
J1: Tem dois anos (ela é maior que o bebê).
P: Quem tem mais, o menino ou a moça?
J1: O menino tem mais (pega os bonecos do menino e da moça e compara suas
alturas). A moça é mais, é grande!
P: Quantos anos ela tem?
J1: 2.
P: O menino tem 5 anos e a moça tem 2 anos. Qual é mais: 2 ou 5?
J1: Pega os palitos para confirmar as quantidades.
2 5
II IIIII
Mede o espaço ocupado pelos palitos e afirma que 5 é mais que 2. Despreza a
contagem em detrimento da comprovação do espaço ocupado, o que lhe é mais
significativo nesse período intuitivo. No que se refere à idade da moça, reconsidera
sua resposta e explica:
A moça tem 7 anos, igual papai, mamãe, vovó e vovô.
Neste caso, J1 classifica os adultos quando generaliza uma idade para eles 7
anos. As crianças têm idades próprias; o menino tem 5 anos, o bebê tem 1 ano e a
167
moça 2 anos, o que comprova que J1 conhece a magnitude das unidades até 7.
Enfatizamos que a questão das vivências do mundo real do entorno infantil
propiciam elaborações que se complexificam no decorrer do desenvolvimento
cognitivo. J1 elaborou a hipótese de ser 7 o maior número que conhece a idade
de todos os adultos que o cercam. O menor mero é o 1, portanto a idade da
criança menor o bebê e a moça tem 2 anos, um número maior que 1, que ela
é maior que o bebê. Para J1 sua idade é inquestionável. Na situação a seguir
notamos outro exemplo da classificação simples.
J4 (~5, ~2,5) classifica os bonecos por gênero: 3 mulheres e 4 homens.
P: Quem é mais velho?
J4: O papai e o vovô.
P: E os mais jovens?
J4: Os dois meninos.
A criança realiza outra classificação: velhos e jovens.
P: Pode colocar suas idades e os palitos correspondentes?
J4:
Vovô papai menino bebê
2 5 4 0
II IIIIII IIII I
Para a idade do papai, J4 coloca seis palitos e realiza a contagem da seguinte
forma:
168
J4: 1, 2, 3, 4, 6, 5.
Concluímos que a criança, apesar de se equivocar na seqüência numérica,
compreende que o último número desta seqüência representa o total da quantidade
posta. Se o papai tem cinco anos, a contagem deve terminar no mero cinco. J4,
então, desconsidera a correspondência termo a termo, uma atividade mais simples
que domina e utiliza (usou seis palitos, um para cada algarismo) para construir outra
hipótese, com a finalidade de compreender as notações numéricas: a de que o
último número da contagem representa a totalidade.
Faz os sinais dos números e explica:
J4: O menino é pequeno, mas o bebê é menorzinho (compara as alturas dos
bonecos). O menino tem mais, tem 4. O bebê tem menos, tem zero. O papai é
grande, alto, muito (infla as bochechas). O vovô também, igual ao papai.
P: Você deu 5 anos para o papai e 2 anos para o vovô.
J4: Observa os palitos do vovô e os do papai. Afirma que “2 é pouco”.
Troca a cartela do número 2, posta como a idade do vovô, pela cartela do número
6. Coloca seis palitos, da mesma forma que colocou para o número 5, dado como a
idade do papai. Conta 1 2 3 4 6 5. São 6 palitos.
J4: Papai e vovô são grandes, têm 6 anos! (J4 retorna à correspondência termo a
termo somente, e desconsidera a hipótese de que o último número da contagem
representa a totalidade).
O último número da seqüência não corresponde à totalidade dos palitos, fato que
indica que, no caso da idade do vovô a criança faz a contagem por um padrão
intuitivo, desordenado: para a idade do papai 5 anos J4 atribui 6 palitos, de
acordo com a maneira da sua contagem que finaliza em 5. Para a idade do vovô – 6
169
anos – J4 atribui 6 palitos. Apesar de a contagem finalizar em 5, a quantidade posta
confere a precisão da cardinalidade utilizada.
Atividades das cartelas com números
De acordo com as atividades propostas no Quadro 9, pedimos às crianças que
comparassem os números selecionados pela pesquisadora. Procuramos utilizar as
unidades primeiramente e, de acordo com os seus desempenhos, passamos a
utilizar as dezenas, as centenas e os milhares para a leitura dos números.
P: Disponibilizo os números 1 e 5 sobre a mesa e pergunto qual é o número maior.
1 5
J1 (~5, ~4): São dois números; 1 é pouco, não tem. 5 é grande (é a idade de J1).
A criança pega os palitos e põe um palito para cada número.
P: Cada número vale um palito?
J1: São dois números, tem que ter um palito cada um.
J1 compreende que cada número representa uma quantidade (na atividade descrita
anteriormente, J1 demonstra saber quais as quantidades do 1 e do 5), mas nessa
situação realiza mentalmente a comparação e marca cada número com um palito
como forma de classificá-los como uma categoria: a categoria daqueles que “servem
para contar”. Observe a conduta da criança J3, que traz novas situações de
comparação de números mais “altos”.
170
J3 (~6, ~4):
300 100
Grande, alto Pequeno
J3 acrescenta: Os números o diferentes. O 1 e o 3 são diferentes; os zeros são
iguais.
Percebemos que a criança se vale da posição dos algarismos como critério de
comparação ou “o primeiro é quem manda” (LERNER; SADOVSKY, 1996).
Entretanto, na situação a seguir, vemos que ela deixa esta hipótese de lado em
favor do número que lhe é significativo, no caso o número dez.
J3: 10 30
Pouco... pouco (Aponta ambas as cartelas, com os números 10 e 30).
P: Os números 10 e 30 representam pouca quantidade? Não entendi, você pode me
explicar?
J3: O 1 e o 3 são números diferentes, os zeros são iguais.
O 10 é muito, é muito alto! O 30 é pouco!
Olha, fica vendo, conta até 10 e complementa: O 10 é magro, é pouco. O trinta é
gordo, tem mais! - hipótese do “primeiro é quem manda” (LERNER; SADOVSKY,
1996).
A princípio, como J3 havia se deparado com números “altos” como o 100 e o 300,
classificou o 10 e o 30 como números de poucas quantidades em comparação aos
primeiros. Mas, ao questionarmo-lhe sobre o valor real de ambos, pensou e optou
pelo 10 como o número mais alto. Não podemos deixar de enfatizar que esta
criança conta e conhece quantidades até 10.
171
Mostro-lhe, então, as cartelas com 1000 e 3000, números maiores que os
anteriores. J3 analisa-os e explica:
1000 3000
Muito alto Mais ou menos alto
J3: Fica vendo, o 1 e o 3 são diferentes; os zeros são iguais.
Aponta a cartela com o número 1000 e explica: baixo, magro. Aponta a cartela com
o número 3000: alto, gordo.
Em todas as situações descritas, percebemos J3 como um sujeito em ação. Pensa,
responde e repensa suas respostas como se “desse um passo atrás” no seu
processo de formação conceitual para avançar “um passo à frente” nesse mesmo
processo. Ao constatar as diferenças e as igualdades entre os algarismos, J3
consegue analisar a numeração escrita de forma a atribuir-lhes a real condição de
magnitude. Entendemos que esta situação, apesar de ser considerada como de
relações simples, traz evidências das relações refletidas pelo fato de a criança
construir um novo arranjo para o que foi previamente observado. Logo, J3 passa por
um nível de transição das relações simples para as relações refletidas.
No que se refere às relações simples de classificação e seriação, constatamos que
as crianças de nossa pesquisa, incluídas na categoria de relações simples, utilizam
a comparação como subsídio para a ordenação numérica, bem como para a
classificação e os agrupamentos, tal qual as crianças ouvintes analisadas nas
pesquisas que nos serviram de referencial teórico-metodológico. De acordo com as
características desse tipo de categoria, nossos sujeitos estabelecem relações de
semelhança e de diferença entre as figuras que representam pessoas familiares, um
referencial concreto, empírico, concatenado ao real vivido, que fornece elementos
observáveis como altura, peso, idade e vínculos afetivos.
172
6.2.1.4 Relações simples com os “números especiais”: o zero e os “nós”
Para realizarmos esta investigação, utilizamos as cartelas numeradas de acordo
com o que se encontra descrito no Quadro 9 e na primeira situação do Quadro 10,
bem como associamos as mesmas cartelas com os bonecos, de acordo com as
atividades propostas no Quadro 8. Como nosso objetivo era verificar a construção
dos “nós”, propositadamente oferecemos às crianças as cartelas com o 10, 100 e
1000. Ao se deparar com o número 100, J2 procura as cartelas com o zero e o um e
mostra que os algarismos são iguais. Tem a mesma conduta para os “nós” dez e mil.
Isto comprova que a criança ainda não construiu a noção dos “nós”, conforme tratam
em sua pesquisa as autoras Lerner e Sadovsky (1996). Convém ressaltar que as
mesmas afirmam ser esta uma construção advinda da influência do meio, uma
influência fortemente marcada pela oralidade.
No que se refere aos surdos, o conceito dos “nós” não partilha desta influência, o
que nos leva a supor que eles não se estabelecem como números especiais
(LERNER; SADOVSKY, 1996) para as crianças com idades entre 5 e 6 anos.
Números especiais para esta faixa etária são os que representam “coisas da vida”
como as idades dos familiares, as ries em que estudam, o dia de seu aniversário,
dentre outras.
Descrevemos a situação de J1 que elucida de que forma essa criança compreende
os “nós”. De posse das cartelas com os números 0, 10, 100 e 1000, J1 atribui 0
como a idade do bebê, 10 como a idade do menino, 100 como a idade do vovô e
1000 como a idade do papai e explica:
J1 (~5, ~4): O papai é forte, tem muito! O vovô é alto, tem mais ou menos, mas o
papai é muito forte (infla as bochechas). O bebê é pequenininho, é nada, é zero.
P: E o menino?
J1: Pouco.
173
Observamos que J1 utiliza os “nós” de forma a demonstrar a magnitude das
potências de dez. No entanto, constatamos durante toda a pesquisa que a criança
reconhece as cardinalidades até o número 7, o que nos leva a inferir que J1 utiliza
os “nós”, mesmo sem saber sua real magnitude, pois elabora a hipótese de “quanto
maior a quantidade de algarismos de um mero, maior é o número” (LERNER;
SADOVSKY, 1996). Associam, então, o número mais alto à pessoa “mais forte”
neste caso o papai – e o número mais baixo à pessoa “pequenininha” - neste caso o
bebê. Podemos concluir, ainda, que este processo pode estar ligado ao realismo
nominal (FERREIRO, 1985), explicitado na página 146 deste trabalho. Uma outra
situação pode ser verificada a seguir:
P: Mostro a cartela com o “nó” 100.
J3: É importante! Muito, muito alto!
P: Mostro o 10.
J3: É alto.
P: Qual dos números é maior?
J3: Gordo, alto. Gordo, alto (aponta as duas cartelas, de 10 e de 100).
A criança pega as mãos da intérprete e ergue-as para mostrar que os dois números
são “altos” e “gordos”.
P: Uma criança me disse que o 100 é maior que o 10. O que você pensa sobre
isso?
J3: Conta a quantidade de algarismos dos números 10 e 100 e concorda.
Complementa sua resposta:
174
J3: O 100 é maior! Quanto maior a quantidade de algarismos de um número, maior
é o número (LERNER; SADOVSKY, 1996).
J3: Gordo, alto (aponta a cartela do número 10). Magro, baixo (aponta a cartela do
número 1000).
P: Uma criança me disse que o 1000 é maior, é um número alto. O que você pensa
sobre isso?
J3: Conta os algarismos dos números 10 e 1000. Afirma: O 1000 é gordo, é alto!
Observamos que a hipótese que J3 elabora sobre as potências de 10 se
consubstancia na verificação da quantidade de algarismos que cada número
contém, a fim de estabelecer sua magnitude. Não observamos, neste caso, a
relevância dos “nós” como explicitada nas pesquisas de Lerner e Sadovsky (1996).
No que se refere ao zero, as condutas da maior parte das crianças incluídas na
categoria de relações simples sugerem ele é um número, mas não tem valor
quantitativo. Para J2, J1, P2 e J4 o número zero é nada. J4 coloca um palito para o
zero, pois admite que, mesmo que indique nenhum elemento o zero é um número e,
por isso, tem que ser representado com uma marca, que no caso é um palito. O zero
é considerado por estas crianças como um marcador de posição.
Nas relações simples com os “números especiais”: o zero e os “nós”, constatamos
que os sujeitos dessa pesquisa, apesar de não conhecerem totalmente a função do
zero e dos “nós” no sistema de numeração decimal, elaboram hipóteses acerca de
suas funções, pois, observam as diversas representações escritas dos usos dos
números e constroem, por meio de “invenções” e convenções, sua maneira de
compreender essa representação gráfica.
175
6.2.2 Categoria de Relações Refletidas
Essa categoria apresenta as construções do sujeito elaboradas por abstrações e
pelo estabelecimento de relações e combinações entre os seus conhecimentos
construídos ou por construir. As crianças que se enquadram nessa categoria são J3,
P1, P2, P3, S1, S2, S3 e T1. Da mesma forma que conduzimos a categoria anterior -
a de relações simples -, procuramos compreender as hipóteses elaboradas pelas
crianças e sistematizá-las pelos critérios de análise de relações que envolvem:
Contagem;
Cardinalidade;
Ordinalidade;
Classificação;
Seriação;
Os “números especiais”: o zero e os “nós”;
Valor posicional.
6.2.2.1 Relações refletidas de contagem, de cardinalidade e de ordinalidade
Compreendemos que, ao tratar dessa categoria, deveríamos tratar conjuntamente
as noções de contagem, cardinalidade e ordinalidade, haja vista a estreita ligação
entre elas no processo de construção da notação numérica, conforme constatou
Brizuela (2006).
No que se refere, especificamente, às noções de contagem e de quantidade,
convém enfatizar que, nas relações refletidas, compreendemos que a contagem vai
além da forma mnemônica da série numérica, pois se estende para o domínio do
conceito de quantidade. A contagem evidencia uma ordem existente na numeração,
uma ordem estabelecida pelas convenções sociais e que deve ser respeitada
(BRIZUELA, 2006, p. 45). De acordo com esta ordenação, algumas hipóteses
podem ser elaboradas como a de que os últimos números de uma seqüência o
maiores que os primeiros, ou que o último número da seqüência representa a
176
totalidade contada. Estas hipóteses se imbricam com a noção quantitativa, logo
devem ser analisadas conjuntamente.
Conforme as atividades propostas nos Quadros 6, 7, 9, 10 utilizamos o jogo da bola
na boca do palhaço, o jogo de boliche, as cartelas numeradas e os materiais
auxiliares para a coleta de informações acerca desta categoria. Observamos que as
crianças analisadas realizam a contagem convencionalmente, conforme a série
escolar em que se encontram e o tempo de contato com a LIBRAS. Quanto mais
avançada é a rie e quanto maior é o tempo em que estão expostas à língua de
sinais, melhor se torna o desempenho das crianças no que se refere à contagem, à
cardinalidade e à ordinalidade.
Brizuela (2006) explica que a compreensão das notações como um objeto e sua
representação correspondente se consubstanciam em um fator preponderante para
o desenvolvimento e a aprendizagem da matemática. As crianças contam
mentalmente quantidades pequenas e expressam a totalidade apenas pela
cardinalidade, ou pela cardinalidade acompanhada do nome ou desenho do objeto a
que se refere. Para as quantidades maiores utilizam os materiais auxiliares ou riscos
no papel ou na lousa.
Jogo da bola na boca do palhaço
Alguns dos números foram escritos em espelho como o 2, 4, 7 e o 9 -
acompanhados da tentativa de representação escrita do nome dos objetos e de um
desenho-cópia de uma das bolas. Não entendemos que esta última notação se
caracterize como uma representação global de quantidade (SINCLAIR, 1990), dada
a seqüência numérica grafada inicialmente pela criança. O que pudemos observar
nessa interação foi que, mediante a dúvida sobre o que havia escrito como o nome
dos objetos, J3 preferiu desenhá-lo, a fim de garantir uma resposta adequada ao seu
pensamento.
177
J3 (~6, ~4):
A seguir tratamos de outros exemplos de representação numérica, elaborados por
S1, S3 e P1 - Cardinal acompanhado do nome do objeto (SINCLAIR, 1990):
S1 (~7, ~6):
S3 (~8, ~7):
P1 (~7, ~6):
178
S2 (~8, ~2,5): Série numérica na qual o último algarismo representa a totalidade dos
objetos tratados.
P3 (~7, ~9 meses) e T1 (~9, ~3): Cardinal acompanhado dos desenhos ligados à
cópia dos objetos, o que configura a correspondência termo a termo da parte
icônica representada (DANYLUK, 1998).
P3 (~7, ~9 meses):
T1 (~9, ~3):
179
No que se refere à ordinalidade numérica, consideramos as expressões
maior/menor/mais ou menos, alto/baixo/mais ou menos, gordo/magro/mais ou
menos. Compreendemos que, ao utilizarem essas relações, as crianças têm a
possibilidade de construírem a idéia da hierarquia existente entre a magnitude dos
números, os antecessores e os sucessores de uma seqüência numérica, bem como
suas cardinalidades. Mas, podem apresentar apenas a posição antes/depois na
série automatizada. Logo, não podemos afirmar que o esquema de “mais um” e
“menos um” esteja compreendido na seqüência numérica.
Cartelas numeradas
Coloco sobre a mesa, aleatoriamente, as unidades de zero a nove.
P: Você pode arrumar os números do menor para o maior?
J3 (~6, ~4) executa a atividade e ordena as unidades em seqüência crescente. Ao
se deparar com o zero pergunta: Cadê o 1? Quero o 10!
P: Forneço o número 10 e pergunto sobre o zero.
J3: É nada.
P: De todos estes números qual é o maior? Qual é mais? Qual é muito?
J3: 5 (idade da criança).
P: E qual é menor? Qual é pouco? É menos?
J3: 4, 3, 2, 1, diminui (faz o gesto com os dedos polegar e indicador e,
concomitantemente, murcha as bochechas, o que denota a diminuição dos
números). 6, 7, 8, 9, 10, aumenta (faz o gesto com os dedos polegar e indicador e,
concomitantemente, infla as bochechas, o que denota o aumento dos números).
180
J3 estabelece o número 5 como um “divisor de águas” entre os números maiores e
os menores. Apesar de afirmar que o 5 é o número maior entre as unidades,
complementa sua constatação ao explicar que os números que o antecedem, na
ordenação da seqüência numérica, diminuem, ao passo que os números que o
sucedem, aumentam. Concluímos que a criança sabe a magnitude das unidades e
anuncia o 5 como a maior unidade por relacioná-lo à sua idade e não à
cardinalidade. Interessante é observar como J3 constrói a noção de maior e menor.
A criança precisa de um parâmetro para definir esses conceitos e utiliza a sua idade,
o que consideramos como um “nó móvel”, pois funcionam como os “nós” descritos
por Lerner e Sadovsky (1996) em suas pesquisas. A idade seria um nó por ser um
número especial, uma das primeiras aquisições da criança que facilita a construção
da escrita numérica, e móvel, porque, ao se limitar à idade, muda a cada ano de vida
da criança.
Pensamos, ainda, que a idade da criança funciona como se fosse o zero de uma
régua: os números abaixo dele o negativos e os acima são positivos. O
pensamento ativo de J3 nos leva à reflexão de Brizuela (2006, p. 18):
[...] acredito que o conhecimento convencional baseia-se em
entendimentos anteriores. Dessa perspectiva, as idéias das crianças
sobre notações matemáticas podem ser constitutivas de seus
entendimentos convencionais posteriores sobre formas mais
complexas de notação e sobre a matemática em geral. E, como
Sinclair (1988), acredito que as idéias das crianças, anteriores ao seu
entendimento convencional das notações matemáticas, fazem
sentido no contexto de sua visão da matemática, embora possam
parecer ingênuas ou absurdas para os adultos.
A nosso ver, a criança se apropria do sistema de notação numérica e busca
compreender como se dá seu funcionamento: posiciona-se como agente ao
reconstruir o sistema de notação social. Uma outra situação que contribui para que
compreendamos como a relação refletida de contagem e quantidade se explicita
entre as crianças está descrita a seguir:
181
Disponibilizo as unidades de zero a nove sobre a mesa, aleatoriamente. Peço à S2
que “arrume” os números do menor para o maior, o que realiza de forma correta.
P: Qual é o número maior?
S2 (~8, ~2,5): 0 é pouco; 9 é muito; 8 é muito (idade da criança).
P: Vamos comparar os números 8 e 9. Qual deles é o maior?
8 9
S2: Muito, muito (aponta ambas as cartelas, dos números 8 e 9).
P: Você pode colocar palitos para esses números?
Após colocar os palitos corretamente para cada número, a criança explica:
S2: Pouco (diz apontando a cartela do número 8). Muito (aponta a cartela do
número 9).
Podemos afirmar que S2 conhece as quantidades de zero a nove e, da mesma
forma que J3, valoriza a quantidade que representa sua idade. Logo, a idade da
criança se consubstancia em um “nó”, que tem mobilidade, pois a cada ano é
substituído pelo número subseqüente. Entretanto, ao realizar a contagem com o
material concreto, re-elabora sua idéia e aceita que o número 9 é maior que o 8.
Concluímos que S2 estabelece estreita relação entre as ações mentais e os objetos,
tendência esta que se esvazia na proporção em elabora relações mais abstratas
(PIAGET; SZEMINSKA, 1975).
182
P: Mostro as cartelas de 10 e 90.
P3 (~7, ~9 meses): Pequeno (aponta a cartela do número 10). Alto (aponta a
cartela do número 9).
P: Você pode me explicar?
P3: Esse é 9 de “ô”, é maior que 1 de “10”.
P: Mostrei o “zero do número 10” e perguntei - Que número é esse?
P3: É a letra “ô”. É 10. Eu vi o 10 dentro do carro. Vi o 89 também!
P: Você pode escrever?
P3:
Mostro os números 20 e 15 e peço a P3 que diga seus nomes.
P3:
20 15
Dois Um, cinco
Mostro os números 1000 e 3000 e pergunto seus nomes.
P3 lê os números da seguinte forma:
1000 3000
Um ô ô ô Três ô ô ô
183
P: Qual deles é maior?
P3: 3000 é maior porque o 1 é pequeno e o 3 é grande! - “o primeiro é quem
manda” (LERNER; SADOVSKY, 1996).
P: Mostro as cartelas de 3000 e de 300. Qual desses números é maior?
P3: 3000 é alto, grande! Tem 1, 2, 3, 4 “números”. 300 é pequeno, tem 1, 2, 3
“números” - quanto maior a quantidade de algarismos de um número, maior é o
número (LERNER; SADOVSKY, 1996).
P: Mostro as cartelas de 33 e de 31. Qual desses números é menor?
P3: O 33 é alto, o 31 é pequeno porque o 1 é menor que o 3 (compara algarismos
que estão na mesma posição).
Nesta situação observamos a hipótese de que a posição dos algarismos é tida como
critério de comparação ou “o primeiro é quem manda” (LERNER; SADOVSKY,
1996). P3 sabe que 90 é maior que 10 porque o 9 é maior que o 1. Entretanto,
observamos que a criança conhece o número 10 e não conhece o número 90, haja
vista a denominação do zero dessa dezena como a letra “O”. Ocorre o que Teixeira
(2005) denomina de indissociação entre a lógica dos agrupamentos e a forma de
expressá-la por meio de um sistema coletivo de signos, representado pela escrita
numérica convencional. O que demonstra que as dezenas são apreendidas por P3
como unidades justapostas, ou até como uma unidade justaposta a uma letra.
Em outra situação, frente aos números 3 e 30, por exemplo, S1 afirma ser o número
30 maior - “quanto maior a quantidade de algarismos maior é o número” (LERNER;
SADOVSKY, 1996). Ao comparar os números 30 e 13, a criança aponta o 30 como
maior e explica que é muito, enquanto o 13 é pouco. Vemos a hipótese do “primeiro
é quem manda” explícita na escolha da criança. Em relação aos números 36 e 33 S1
184
afirma que 36 é maior porque o 6 vale mais. Compreendemos a mobilidade do
pensamento infantil nas comparações realizadas, uma mobilidade precedida de
construções de hipóteses coerentes.
A situação a seguir esclarece com mais precisão as afirmações anteriores.
P: Mostro as cartelas dos números 3 e 13 e pergunto qual é o número maior.
T1 (~9, ~3): Menor (aponta a cartela do número 3).
Maior (aponta a cartela do número 13).
P: Mostro as cartelas dos números 33 e13 e pergunto: - Qual número é menor?
T1: O 3 é diferente, é mais alto (aponta para o primeiro 3 do número 33). O 33 é
maior, o 13 é menor.
P: 38 33
T1: O 8 é diferente, é mais alto. O 38 é maior, o 33 é menor.
P: 324 384
T1: 324 é maior, 384 é maior. Os dois são grandes. Os números são diferentes, os
números 3 são iguais.
P: Não entendi. Você pode me explicar melhor? Qual é a diferença entre os
números?
T1: A diferença é o 2 e o 8.
P: Qual é mais?
185
T1: 8
P: Qual número é maior, então?
T1: 384
Jogo de boliche
Nossa proposta foi a de realizar uma competição de arremessos de bola nos pinos
entre a criança e a pesquisadora, com a finalidade de que, após a discriminação e
notação dos números referentes aos pinos derrubados, a criança efetuasse a soma
e aquele que mais pontuasse seria o vencedor. Para tal, deixamos à disposição o
quadro de giz, folhas de papel e os materiais auxiliares. Nestas entrevistas
desprezamos os pinos do jogo que continham as letras do alfabeto. Jogamos
apenas com os pinos numerados.
A situação descrita a seguir explicita a conduta de S1 diante das suas notações,
feitas no quadro de giz, acerca dos números impressos nos pinos do boliche
derrubados pela criança e pela pesquisadora.
P S1
7 3
4 8
10 1
2 4
6 2
3 10
3
1
186
P: Quem ganhou?
S1 (~7, ~6): Eu! Derrubei 8 pinos e você 6.
P: Vamos contar os números impressos nos pinos?
S1 distribui palitos de acordo com a cardinalidade dos números, numa ação termo a
termo (SINCLAIR, 1990). Conta os palitos com os sinais da LIBRAS. Surpreende-se
com o resultado e exclama:
S1: Igual! Eu 32 e você 32.
Consideramos a surpresa de S1 pelo empate uma reação ligada à fase intuitiva de
seu desenvolvimento, pois sua percepção visual volta-se para o tamanho das
colunas e sua reação é desconsiderar as cardinalidades e optar pela coluna maior.
Apesar de S1 apresentar o conceito de número em processo de construção
avançado, nesta situação se apóia na sua fase intuitiva. Compreendemos que esta
conduta se deva à competição proposta e à facilidade que a criança encontrou em
vencer com base nas regras gerais do boliche em que o vencedor é aquele que
derruba mais pinos. No entanto, nossas regras determinavam que a criança
considerasse os números impressos nos pinos e não a sua quantidade. As condutas
de S2 e S3 são coincidentes com as de S1 neste tipo de atividade.
Concluímos que as relações refletidas de contagem, de cardinalidade e de
ordinalidade, elaboradas pelos sujeitos desta pesquisa, se consubstanciam pela
compreensão de que as mesmas se efetivam por meio de um processo pessoal que
envolve conjecturas, hipóteses, invenções, conflitos, re-elaboração de idéias e
análise das regras e símbolos convencionais do sistema de numeração decimal. Tal
como as crianças ouvintes analisadas nas pesquisas que nos serviram de
referencial teórico-metodológico, as crianças surdas se relacionam com um meio
187
onde há sistemas simbólicos socialmente elaborados, percebem a notação
matemática e, para apreendê-la em sua totalidade, exercem uma ação intelectual
ativa sobre estes símbolos e sua escrita correspondente. Entretanto, para que este
processo ocorra da maneira descrita, é necessário o domínio da LIBRAS, um objeto
social imprescindível também para a construção conceitual.
6.2.2.2 Relações refletidas de classificação e seriação
A investigação dessas relações foi feita por meio de comparações entre números,
letras e “pessoas”. Para tanto, utilizamos as cartelas numeradas, os bonecos, o jogo
de boliche e os materiais auxiliares, conforme as descrições dos Quadros 7, 8, 9, 10,
11. Citamos, novamente, Lerner e Sadovsky (1996) acerca da importância do critério
de comparação na construção das notações numéricas. Afirmam as autoras que o
critério de comparação pelas crianças:
[...] funciona ainda quando elas não conhecem a denominação oral
dos números que estão comparando. Trata-se, então, de um critério
elaborado fundamentalmente a partir da interação com a numeração
escrita e de maneira relativamente independente da manipulação da
seqüência dos nomes dos números. Trata-se também de uma
ferramenta poderosa no âmbito da notação numérica, que permite
comparar qualquer par de números cuja quantidade de algarismos
seja diferente (LERNER; SADOVSKY, 1996, p. 79).
Compreendemos, então, que a ação de comparar meros é construída e requer
uma generalização e um enfrentamento de conflitos pela criança. No entanto, é
válida, até mesmo para as que ainda não conhecem os nomes dos números
(LERNER; SADOVSKY, 1996), ou, de forma a generalizar a afirmação das
pesquisadoras, validade para as nossas crianças surdas, que não conhecem os
sinais dos números e sua seqüência na contagem.
Atividades das cartelas com números
Utilizamos o recurso da comparação entre os números, conforme explicitado
anteriormente nas relações simples.
Como J3 mostrou estar em um nível de transição entre a categoria de relações
188
simples e a categoria de relações refletidas, consideramos a necessidade de
explorar as condutas da criança em situações que exigissem estruturas de
pensamento mais elaboradas.
J3 (~6, ~ 4):
9 5
Pouco Muito
Alto (infla as bochechas) Alto (não infla as bochechas)
Gordo Gordo
J3 conclui que os dois números são altos, mas reconsidera e afirma que o 5 é “mais
gordo” que o 9 (5 é a idade da criança).
P: Peço-lhe que coloque a quantidade de palitos referentes a cada número.
J3: 5 9
IIIII IIIIIIIII
O 9 tem muito, é maior! O 5 é menor, é magro! (a criança observa os tamanhos das
fileiras)
Concluímos que a percepção predomina no pensamento de J3, neste momento.
Entretanto, nas situações a seguir, constatamos um raciocínio mais elaborado:
J3 compara os pares numéricos:
31 38
Gordo Gordo
Mais magro Muito
Menos Muito alto!
189
J3 compara as três dezenas apresentadas:
18 38 31
Magrinho Gordo Gordo
Menos Mais Muito
J3 explica: o 18 é pequenininho (faz sinal de insignificância). O 38 é mais, é gordo
(infla as bochechas e faz sinal de maior). O 31 é mais ou menos grande.
P: Qual é o maior deles?
J3: 38
P: E o menor?
J3: 18
P: Uma menina me disse que o 31 é menor. O que você pensa sobre isso?
J3: Está errado! O 31 é gordo, o 18 é menor!
P: E o 38?
Reflete e responde:
J3: Lembra? (a criança faz referência à comparação solicitada anteriormente entre
os números 31 e 38). Fica vendo:
38 31 18
Gordo! Mais ou menos gordo Pequenininho
190
P: Qual número é maior?
J3: 324 31
Muito gordo Magro, pouco
Explica:
4 é muito, 1 é pouco.
324 é muito, 31 é pouco (Conta a quantidade de algarismos de cada número).
Concluímos, mediante as respostas dadas por essa criança, que a percepção de
qualquer ato de inteligência envolve, compulsoriamente, construções anteriores do
sujeito. J3 utiliza elementos de comparação, baseia-se nos conceitos que lhe são
mais significativos no que se refere às experiências do cotidiano. Os advérbios
mais/menos, muito/pouco e os adjetivos gordo/magro e alto mantém estreita relação
com as comparações feitas entre as coisas e as pessoas, fato que a criança
generaliza na comparação entre os números. Essa capacidade em coordenar
semelhanças e diferenças entre as coisas e as pessoas vai além da classificação,
presente no período intuitivo (PIAGET, 1990); pode ser considerada uma seriação,
pois a criança considera a dupla propriedade de um mesmo número, o 31 ser maior
e menor que outro, simultaneamente.
No nosso entendimento, a idade da criança, explorada em atividades anteriores, é
vista por ela, de imediato, como o número de maior magnitude. Sinclair (1990)
explica que a “conceitualização dos sistemas de notação está intimamente ligada à
conceitualização do que é representado” (SINCLAIR, 1990, p. 16). Logo, a criança
em questão conhece o ideograma que representa sua idade, no entanto, para lidar
com o conceito de número precisou entrar em contato com a quantidade de palitos
que ele representa, a fim de estabelecer a seriação de forma assertiva.
191
A situação descrita a seguir, apresenta outra especificidade da seriação que
esclarece um pouco mais sobre as hipóteses elaboradas pelos sujeitos desta
pesquisa acerca dos valores numéricos envolvidos nas notações.
P: Mostro as cartelas dos números 2 e 7. Qual é o maior número?
A criança junta as duas unidades e responde:
S3 (~8, ~7): 27 é mais!
Coloco todas unidades sobre a mesa, aleatoriamente e pergunto:
P: Qual é maior?
S3 pega o número 9 (boca cheia de ar). Junta o 2 e o 9 29 - e sinaliza que esse
número é o maior (boca mais cheia de ar).
P: Qual número é mais?
90 20
S3: Pouco Muito pouco, é mais que 10, é 20!
P: Você pode me explicar melhor a comparação feita entre esses números?
90 20
S3: É pouco, não é 100, é 90! É pouquinho, é mais que 10, é 20!
192
Nesta situação percebemos que S3 constrói as dezenas com as unidades, o que
nos permite concluir que sabe serem as primeiras maiores que as últimas.
Constatamos, ainda que, ao comparar as duas dezenas - 90 e 20 -, a criança utiliza
o advérbio “pouco” para a quantidade maior, a locução adverbial “muito pouco” e o
diminutivo do advérbio “pouco” para a quantidade menor. Sua linguagem deixa
transparecer a carência dos vocábulos “mais que”, “menos que”, “maior que”, “menor
que”, indispensáveis para a compreensão das relações assimétricas de seriação dos
processos lógicos matemáticos de adição e subtração (FRAGA, 1988). Entretanto, a
LIBRAS propiciou a S3 outros mecanismos lingüísticos eficientes para a realização
dessas comparações.
Outra especificidade da análise das informações colhidas nessa entrevista foi a de
que S3 utiliza os “nós” 10 e 100 como subsídios imprescindíveis para a comparação
entre as cardinalidades propostas. A partir dos “nós” é que a criança pensa,
compara e determina a magnitude das dezenas 20 e 90. Ela realiza duas
comparações: a primeira entre as dezenas e os “nós”; a segunda, conseqüência da
anterior, entre as dezenas.
Constatamos, ainda, que S3 trata dos aspectos figurativos e operativos dos números
de forma específica, tal como George, criança analisada por Brizuela (2006) em sua
pesquisa explicitada na quarta seção, página 59 deste trabalho. No entanto, S3
apresenta um pensamento mais elaborado, pois realiza transformações figurativas
nos números com a finalidade de criar um novo número. S3 transforma os
elementos do sistema de numeração escrita em seus aspectos figurativos e
operativos, para construir outros números, fato que se comprova quando a criança
junta os algarismos isolados 2 e 7 num único número: o 27.
Atividade com os bonecos
A mesma criança, na situação dos bonecos, colabora com a nossa pesquisa de
maneira a constatarmos sua dificuldade em lidar com a lógica do agrupamento
numérico e sua notação convencional (TEIXEIRA, 2006), bem como com o realismo
nominal ao comparar as idades da mãe e da avó.
193
P: Qual é a idade da sua mãe?
S3 (~8, ~7) faz o sinal do número 27.
P: Você pode escrever?
S3:
P: Você pode pegar a quantidade de palitos que representa a idade da mamãe?
S3: 7 2
IIIIIII II
Realiza a indissociação entre a lógica desse agrupamento e a sua notação
(TEIXEIRA, 2005). A inversão dos algarismos sugere que a sua representação
escrita não traz qualquer idéia de valo posicional.
P: Qual a idade da vovó?
S3: Vovó tem 21 anos (faz o sinal do número 21).
P: Você pode escrever?
S3:
P: Você pode pegar a quantidade de palitos que representa a idade da vovó?
S3: 12
IIIIIIIIIIII
194
P: Quem tem mais idade, a mamãe ou a vovó?
S3: A mamãe tem mais idade, é forte, jovem. A vovozinha é velha, coitadinha, está
cansada, trêmula (ficou em pé e imitou a vovó).
Observamos nas respostas de S1, pelos registros escritos do numeral
correspondente, características semelhantes às respostas dadas por S3, porém a
estruturação do pensamento de S1 mostra-se mais elaborada com elementos de
ordenação numérica e seriação.
P: Qual a sua idade?
S1 (~7, ~6): Faz o sinal do número 7
P: Pode escrever?
S1:
P: E o dia do seu aniversário?
S1: Faz o sinal do número 25.
P: Pode escrever?
S1:
195
P: Qual é a idade das pessoas de sua família?
S1: Faz os sinais das idades:
Papai – 33 anos
Mamãe – 14 anos
Irmão – 13 anos
S1 – 7 anos
P: A mamãe tem 14 anos e seu irmão tem 13 anos?
S1 explica: A mamãe é baixinha e meu irmão está quase da altura dela!
P: Você pode escrever as idades das pessoas da sua família?
S1 utiliza os números acompanhados do desenho das pessoas:
Papai mamãe irmão S1
Pelo desenho feito pela criança observamos que a altura da mamãe está longe da
altura do seu irmão. Inclusive, a mamãe é a figura de maior tamanho no seu
desenho. Concluímos que, por não saber a idade real da mãe e por entender sua
posição em relação aos demais membros da família, opta pela proximidade das
dezenas 13/14 para atribuir-lhe a idade, de acordo com a hipótese de que o pai é
mais velho, em seguida a mãe, o irmão e, por fim, S1.
196
Solicitamos a S1 que dê idades aos bonecos.
vovô papai
22 90
P: Qual número é maior?
S1: 22 90
Pequeno Grande
P: Quem tem mais idade?
S1: O papai porque ele é mais forte. O vovô é fraquinho!
As respostas de S1 evidenciam sua capacidade de ordenação de valores escritos
conforme suas diferenças, dadas as relações que estabelece entre a grandeza dos
números que representam as idades de seus familiares e sua compreensão de que
um mesmo número pode ser maior que seu antecessor e menor que seu sucessor.
Fica clara esta construção na identificação que a criança à idade da mãe: ela é
mais velha que seu irmão e mais nova que seu pai.
Cartelas com letras e números e jogo de boliche
Com a finalidade de investigar se as crianças sabiam a diferença entre números e
letras, utilizamos as cartelas com letras e números e o jogo de boliche.
Tanto P2, quanto J3 e S3 desconheciam o sinal em LIBRAS de LETRA. Ensinamos
às crianças e, logo após pedimo-lhes que separassem as cartelas dos números das
que tinham grafadas as letras. Todas realizaram a atividade adequadamente, no
entanto queremos registrar algumas de suas notações e observações, pois
demonstram que a ação do sujeito sobre os objetos propicia a compreensão de sua
197
experiência e a conseqüente construção conceitual.
P2 (~7, ~4 meses) afirma que Letras não é de contar. Escreve algumas letras do
nosso alfabeto.
P2: Números é de contar. Escreve alguns números que conhece.
Os números escritos pela criança não obedecem a seqüência numérica e alguns
deles estão espelhados, fato que também observamos na escrita da letra R.
Na situação do jogo de boliche, J3 derruba os pinos com o número 100 e com a
letra B. Anota-os na lousa.
P: Podemos contar seus pontos com os palitos?
J3 (~6, ~4) responde afirmativamente e coloca os palitos como explicitado a seguir:
100 B
III I
198
P: B é número?
J3: Conta os dedos do sinal da letra B em LIBRAS. Coloca 4 palitos.
P: Então a letra B é igual ao número 4?
J3: Não, 4 é de contar, B é de escrever BOLA (escreve a palavra no quadro de giz).
Retira, então, os palitos atribuídos à letra B.
A criança conhece as funções dos números e das letras, mas atribui palitos à letra
um valor arbitrário - porque acredita que todo pino derrubado deve ser marcado.
S3 (~8, ~7) afirma: Letras é para escrever nomes.
A letra A no boliche recebe a marca de um palito, mas inclinado (todos os números
recebem marcas de palito na vertical), o que indica ser a letra diferente do número.
Para somar os pontos, S3 não considera o palito atribuído à letra:
4 7 A 10
IIII IIIIIII / IIIIIIIIII
S3: Números é para escrever as idades.
O registro da criança sugere que a passagem de uma marca a outra aponta para a
presença do esquema de cardinalidade.
P: Disponibilizo o número 5 e pergunto se posso escrever nome com esse número.
S3: Sim. Faz os sinais das letras da palavra CINCO.
199
Essas crianças estabeleceram a diferença entre letras e números muito antes de
saberem seus sinais em LIBRAS. Afirmamos isto devido ao fato de que, apesar da
dificuldade encontrada por elas ao serem solicitadas a separar números de letras,
logo que compreenderam a nossa solicitação realizaram de pronto a atividade.
Convém refletir sobre a seguinte constatação que corrobora as condutas dos nossos
sujeitos frente à comparação entre dois símbolos distintos:
Tolchinsky e Karmiloff-Smith (1992)
24
examinam como as crianças
decidem quais combinações de elementos pertencem a ‘escrever’ e
‘contar’ e quais não pertencem a ‘escrever’ e ‘contar’. O que eles se
perguntam é que controles as crianças empregam para que os
números sejam números, para que as letras sejam letras e para que
as palavras sejam palavras. [...] Seu estudo mostra que as crianças
muito pequenas não confundem a linguagem escrita com números e
que empregam diferentes controles para decidir qual notação é qual
(BRIZUELA, 2006, p. 21).
No caso das relações refletidas de classificação e seriação, podemos verificar que
as comparações se encaminham para generalizações das hipóteses infantis, o que
nos permite concluir que a abstração se encontra mais presente no pensamento e
mais próxima das invenções elaboradas pelos surdos pesquisados, que seguem a
mesma trajetória das crianças ouvintes.
6.2.2.3 Relações refletidas com os “números especiais”: o zero e os “nós”
Para investigarmos as relações refletidas com os “Nós” e o zero, utilizamos as
atividades propostas nos Quadros 7, 9, 10, 11. Nossa expectativa era de que,
diferentemente das relações simples, as crianças apresentassem respostas que
indicassem a apropriação das notações convencionais dos “nós” antes das escritas
de números posicionados entre estes “nós” na seqüência numérica. Mesmo sem as
influências da linguagem oral, acreditávamos que os surdos constroem,
precocemente:
24
TOLCHINSKY, L.; KARMILOFF-SMITH, A. Children’s understanding of notations as domains of knowledge
versus referential-communicative tools. Cognitive development, v.7, p. 287-300, 1992.
200
[...] critérios para comparar números; pensávamos que muito antes
de suspeitar da existência de centenas, dezenas e unidades
alguma relação elas deveriam estabelecer entre a posição dos
algarismos e o valor que eles representam; acreditávamos que as
crianças detectavam regularidades ao interagir com a escrita de
fragmentos da seqüência numérica (LERNER; SADOVSKY, 1996, p.
76).
Atividades das cartelas com números
Nas situações de comparação entre os números, observamos nas respostas dadas
por S2 e P1, nessa categoria de análise, que a apreensão das dezenas, centenas e
unidades de mil exatas - “nós” - é anterior à dos números que estão nos intervalos
entre esses “nós”. Nossa investigação, neste caso, se pautou pela averigüação da
construção conceitual pela criança da magnitude desses números, haja vista a
característica da LIBRAS que inviabiliza o ditado numérico para uma pesquisa dessa
especificidade.
S2 (~8, ~2,5):
10 1
Mais, maior Pequeno
10 13
Mais, grande Pequeno
10 20
Mais, maior, grande Pequeno
10 100
Pouco Muito
201
3000 1000
Pouco Muito
3 1
Muito Pouco
3000 1000
Pouco Muito
As respostas da criança sugerem a apreensão dos “nós” das dezenas, centenas e
unidades de milhar exatas. S2 despreza a hipótese do “primeiro é quem manda”
(LERNER; SADOVSKY, 1996) nas comparações.
Atividades com o jogo de boliche
P P1
4 7
0 58
100 9
80 46
33 1
2 5
16
28
P: Quem ganhou?
A criança respondeu antes mesmo de contar o se importando com o tamanho
das colunas de pontos, tampouco com a possibilidade de contar esses pontos. O
“nó” da centena exata é conhecido por P1 em sua magnitude.
202
P1 (~7, ~6): Você ganhou! Você tem 100.
Nas situações a seguir, tratamos das condutas das crianças no que se refere ao
número “zero”.
Atividades das cartelas com números
Disponibilizo as unidades sobre a mesa. Peço a S3 que faça os sinais dos números
e os coloque em ordem crescente. A criança realiza a atividade e, ao se deparar
com o zero, denomina-o de letra “ô”. Pega a cartela do zero e pede o número 1, fato
que sugere que a criança não compreende a dezena.
S3 (~8, ~7): Quero o 10.
P: E o zero?
S3: É nada!
Peço para que a criança compare estes dois números e coloque os palitos
referentes às suas quantidades:
0 1
I I
P: Os números zero e um têm a mesma quantidade?
S3 aponta para o zero e explica: Não, está errado! Tem que tirar!
Retiro o palito do zero.
203
S3: Está errado. É para tirar o zero, ele não é nada! Não pode ser comparado com
outros números!
Apesar de afirmar que o zero é nada, que não é número, constatamos que a criança
sabe que ele é um marcador de posição, pois o solicita para construir o número dez.
Atividades das cartelas com números e letras
Disponibilizo sobre a mesa as cartelas com os números e as letras. P1 ordena as
unidades até 9 e para o zero pede o 1, quer o 10.
P: E o zero?
P1 (~7, ~6): É nada!
P: E essas cartelas? (mostro as cartelas com as letras).
P1: É para escrever nomes!
Faz uma espécie de correspondência termo a termo entre as unidades ordenadas e
as letras, conforme descrito a seguir:
X B I A G O D E Z H
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Para o zero, P1 coloca uma cartela com a letra virada para baixo. Pergunto-lhe
porque agiu dessa forma.
P1: O zero é nada, não pode ter letra!
204
Atividade com o jogo de boliche
Em um dos arremessos a pesquisadora não derrubou pinos.
P: O que eu vou marcar?
S3 (~8, ~7): Não sei.
P: Uma criança me disse que se eu não derrubo pinos tenho que marcar zero.
S3: Não! Está errado! Zero é nada; você não derrubou pinos, mas não pode marcar
com o zero porque você não derrubou pinos! Você não marca desta vez.
No caso das relações refletidas com os “números especiais”: o zero o os “nós”,
observamos que as respostas dadas pelos sujeitos desta pesquisa corroboram as
constatações efetuadas por Brizuela (2006), que afirma ser a notação do zero
utilizada na atualidade como o número zero e como marcador de posição, “uma
invenção relativamente recente (em algum momento após o século VI, mas antes do
XII)” (BRIZUELA, 2006, p. 28). Portanto, as crianças surdas, assim como as
ouvintes, repetem a estreita relação entre a construção do número pela humanidade
e as suas necessidades. No caso específico de S3, esta enfatiza que não é preciso
representar a “ausência de quantidade” na pontuação do jogo; para ela basta,
apenas, não marcar “desta vez”.
Concluímos, então, mais uma vez, que o desenvolvimento notacional dos surdos
segue a mesma trajetória que o dos ouvintes, com a ressalva de que necessitam de
um apoio incondicional da LIBRAS para que possam elaborar a escrita numérica.
205
6.2.2.4 Relações refletidas e o valor posicional
Ao tratar das pesquisas realizadas sobre a notação numérica em crianças, Sinclair
(1990) cita Kamii (1980)
25
e sua afirmação de que “o sistema do valor de posição
não é ainda compreendido por grande número de crianças no terceiro ano da escola
primária (oito ou nove anos de idade) sem problemas escolares(SINCLAIR, 1990,
p. 75).
Orozco (2005) explica que a ação de somar, quer seja com os números, quer com
os materiais de apoio, no caso dessa atividade, propicia à criança o contato com
números grandes. A pesquisadora confirma que as expressões numéricas arábicas
escritas, usadas por nós, ocidentais, são estruturadas por regras operatórias que
determinam as notações dos numerais. O valor de posição é determinado por essas
regras e, de acordo com a quantidade, o número arábico se constitui “da soma de
unidades de diferentes ordens; cada símbolo incluído na expressão arábica deve ser
interpretado como a multiplicação do dígito que representa a quantidade, pela
potência de 10” (OROZCO, 2005, p. 81), que determina a posição deste número na
expressão.
Optamos pelas cartelas numeradas (Quadros 9, 10– 1ª situação) pelo fato de que os
números poderiam ser trocados de acordo com as necessidades de cada sujeito,
que nos daria subsídios para compreendermos seu pensamento sobre as notações
numéricas. Objetivamos, ainda, verificar se eles entendem o valor posicional dos
algarismos de números maiores que as unidades; se estabelecem relações entre a
numeração escrita e os sinais, entre a lógica das potências de base 10 e sua
notação convencional. Queríamos observar se essas crianças cometeriam erros
sintáticos e erros léxicos (OROZCO, 2005).
A seguir trazemos alguns exemplos de situações que evidenciam como os sujeitos,
incluídos na categoria de relações refletidas, pensam o valor posicional numérico:
25
KAMII, M. Place Value: children’s efforts to find a correspondence between digit and number of objects.
Filadélfia: [s.n.], 1980. Trabalho apresentado no Décimo Simpósio Anual da Sociedade Jean Piaget.
206
P: 396 36 3
S1 (~7, ~6): Maior Menor Menorzinho
P: Você pode me ajudar a entender?
S1: 3 é um número (mostra o sinal).
396 é muito, grande, alto.
36 é mais ou menos.
P: 396 393
S1: Muito Pouco
P: 100 10
P1 (~7, ~6): Os dois números são grandes, mas o 100 é mais.
P: 3421 1759
P1: É mais, muito mais! É mais, muito!
(faz sinal com as mãos e infla as bochechas) (faz sinal com as mãos)
P: 33 30
P1: Olha os números e pega a cartela com o 1000. Esse é maior que os dois.
207
As crianças surdas analisadas neste tipo de relação estabelecem a leitura e a
representação escrita dos dígitos de forma direta, com seu valor isolado, sem
considerar o valo posicional.
As constatações de Lerner e Sadovsky (1996) são relevantes no que se refere ao
sistema posicional, considerado por elas como mais econômico e menos
transparente que o sistema aditivo. Explicam que a transparência é ofuscada porque
“o valor de cada símbolo depende da posição que ocupa, e porque essa posição é o
único vestígio da presença de uma potência da base” (LERNER; SADOVSKY, 1996,
p. 111). Esclarecem, ainda, que a economia do sistema posicional está no fato de
“uma quantidade finita de símbolos dez – em nosso caso – é suficiente para registrar
qualquer número” (LERNER; SADOVSKY, 1996, p. 111). Entretanto, afirmam que,
quanto mais econômico é um sistema de numeração, menos transparente ele se
apresenta.
Compreendemos que a LIBRAS apresenta uma peculiaridade com relação aos
sinais dos números: a característica da transparência. Brizuela (2006) afirma que os
números transparentes são “aqueles em que os elementos dos números escritos
podem ser identificados a partir dos números falados” (BRIZUELA, 2006, p. 36). No
que se refere aos sujeitos de nossa pesquisa e à sua particularidade lingüística, nos
permitimos generalizar a afirmação da autora aos sinais: os elementos dos números
escritos podem ser identificados a partir dos sinais em LIBRAS. Como discutido
anteriormente, se temos que representar por sinais um número como 379 (trezentos
e setenta e nove) fazemos da seguinte forma:
Esse número é interpretado, em LIBRAS, pela justaposição dos símbolos utilizados.
Diferente do que ocorre com a numeração falada, que não coincide com a
numeração escrita e obriga à criança a “determinar quais são as informações
208
fornecidas pela numeração falada que resulta pertinente aplicar à numeração escrita
e quais não” (LERNER; SADOVSKY, 1996, p. 97). Os surdos não se deparam com
esta situação. Eles se apropriam de imediato da escrita convencional dos números
para, num outro momento, compreenderem que em nosso sistema de numeração a
quantidade de algarismos se vincula à magnitude do número representado e que o
valor do mero é determinado pela posição que cada algarismo ocupa valor
posicional. Seria esse um processo facilitador da compreensão do conceito
numérico? Responder a esta questão não é o foco deste trabalho, no entanto,
direciona-nos a refletir sobre um assunto que merece, certamente, um estudo mais
aprofundado, pois:
[...] nem tudo é posicional na vida das crianças. A numeração falada
se interpõe no caminho da posicionalidade e origem a produções
‘aditivas’. Estas produções são facilmente interpretadas não pelos
adultos, como também pelos colegas que escrevem
convencionalmente os números em questão, o que coloca em
evidência uma indubitável vantagem dos sistemas aditivos: sua
transparência (LERNER; SADOVSKY, 1996, p. 110).
Outra observação que nos permitimos fazer é a de que essa propriedade da LIBRAS
de proporcionar a apreensão dos números na sua forma “transparente”, inviabiliza o
que Orozco (2005) denomina de “erros sintáticos”
26
, encontrados por ela em sua
pesquisa, nas crianças das séries iniciais do ensino fundamental. No caso dos
surdos, esses erros não ocorrem, pois eles não tratam das regras operatórias que
sustentam as expressões verbais, compostas por elementos de potência, tampouco
das regras operatórias específicas da escrita numérica arábica composta por dígitos
e regras de composição multiplicativa e aditiva das diversas unidades. Estas últimas
terão sua conceitualização formulada de outra maneira, num outro momento, fato
que merece uma investigação.
Os erros que os surdos podem apresentar seriam os “erros léxicos”, constatados por
Orozco (2005) nas escritas dos alunos ouvintes da terceira rie em diante.
Compreendemos que, como explica a pesquisadora, esses erros ocorrem por falha
da memória em curto prazo e advém de “[...] equívocos na escrita dos elementos de
26
Erros sintáticos são aqueles que se estabelecem pelas dificuldades na inclusão de algarismos em um todo
numérico. Se uma criança é solicitada a escrever o número 596, escreve 500906 (OROZCO, 2005).
209
um número, ou seja, em vez de 34.223, escrevem 34.233, 34.323 ou 30.223”
(OROZCO, 2005, p. 79). Desta forma, acreditamos que os surdos poderiam
apresentar este tipo de erro em uma idade mais precoce que as crianças ouvintes,
devido aos seus contatos com a escrita numérica convencional, isentos de
influências que regem as regras operatórias das expressões numéricas orais. No
entanto, não afirmamos que estes erros realmente ocorram. É preciso que se
pesquise mais sobre este aspecto.
Os dados coletados nos sugerem que, para os surdos todos os algarismos o
transparentes, no sentido de que “se escreve como se fala”, isto é, os sinais
referentes aos algarismos são expressos na mesma ordem em que são escritos.
Esta transparência numérica se consubstancia em um fator que possibilita e
desencadeia o pensamento e a construção dos elementos conceituais subsidiados
por ela, fato que favorece os surdos em detrimento dos ouvintes, pois estes últimos
recebem a interferência da linguagem numérica oral não posicional e devem realizar
uma transcodificação, de acordo com Orozco (2005) para a escrita numérica
posicional.
210
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta seção cabe-nos discutir os resultados encontrados, bem como apontar as
contribuições desta pesquisa para a educação no que se refere às representações
da escrita numérica pelos surdos bilíngües. Primeiramente gostaríamos de explicitar
nossas impressões acerca dos sujeitos que colaboraram com nosso trabalho:
crianças generosas, surdas à nossa voz, aos ruídos, à balbúrdia que se avoluma na
contemporaneidade; porém “ouvintes” atentas das necessidades e das carências do
“outro”, da voz interna que escutam no rosto do “outro”...
Outro fator relevante que gostaríamos de assinalar é que, ao nos relacionarmos com
essas crianças concebidas por nós como “sujeitos/pessoa”, pudemos ver além da
aparência clínica. Compreendemos que nossas crianças são sujeitos cognoscentes,
que elaboram suas idéias e o apenas absorvem informações. o ativos,
autônomos; buscam a ressignificação de seus conhecimentos. Crianças que
argumentam, explicam suas hipóteses, criam, transformam, questionam, discordam,
aceitam, resistem, se contradizem... Sujeitos em ação com vistas à aprendizagem.
Ao serem concebidas por nós, pesquisadoras, como o “outro” em suas diferenças,
em suas especificidades lingüísticas e principalmente em sua alteridade, deixaram
que antevíssemos a sua essência, o seu potencial latente que muitas vezes é
aprisionado pelo “outro” em um corpo surdo. Por meio de uma aposta neste
potencial é que objetivamos uma captura das possibilidades desses sujeitos.
Neste trabalho, este movimento de captura se deu pela busca da compreensão de
como se efetiva a construção das notações numéricas pelos surdos, que
apresentam sua interação social e cultural prejudicada pela dificuldade de
comunicação e audição. De acordo com os resultados de diversas pesquisas
realizadas com estes sujeitos, como as explicitadas na introdução deste trabalho, o
desenvolvimento cognitivo e a construção da leitura e da escrita ocorre da mesma
forma que com os ouvintes, o que torna legítima nossa suposição de que o mesmo
acontece com a construção da escrita numérica. Reforçamos esta possibilidade com
211
os estudos da segunda seção: O Sujeito Surdo- Uma Construção Sócio-Cultural.
Confiantes na legitimidade dos estudos que elegemos como nossa fundamentação
teórico-metodológica, nos encaminhamos para a sua “escuta”, a fim de delinearmos
os elementos necessários para a realização da pesquisa. Verificamos, então, que
teríamos que investigar, entre outros aspectos, o repertório numérico de nossos
sujeitos.
Para esta investigação, realizamos entrevistas semi-estruturadas e das suas
análises pudemos constatar que os surdos, a exemplo dos ouvintes, apresentam um
repertório numérico baseado em suas experiências de vida, bem como nas
experiências de ensino e aprendizagem efetivadas no ambiente escolar.
Embora a literatura especializada aponte que as possibilidades da criança surda e
da ouvinte sejam as mesmas, em diferentes aspectos do desenvolvimento, e de
nossa investigação demonstrar que os surdos também constroem seu repertório
numérico tanto na interação com o meio social quanto com o escolar, o isolamento
causado pela surdez (a audição é o sentido que mantém o ser humano em
permanente contato com o mundo) torna o surdo praticamente dependente da
escola, espaço no qual a ngua de sinais é utilizada constantemente. Portanto,
concluímos ser a fluência em LIBRAS o fator preponderante para a construção deste
repertório e não a idade das crianças, pois entendemos que a apropriação de uma
língua favorece a intermediação e a interação com o meio, fatores primordiais para a
construção do conhecimento.
Outro fator importante para a compreensão do processo de construção da escrita
numérica pelas crianças surdas foi estabelecer quais aspectos seriam investigados.
Procuramos, então, abordar os mesmos itens estudados pelas pesquisas de nossa
“escuta”: noções de contagem classificação e seriação, cardinalidade, ordinalidade,
os números especiais, o zero e os “nós” e o valor posicional.
O passo seguinte foi estabelecer categorias de análise para compreendermos as
informações advindas das intervenções com nossos sujeitos, quais sejam:
212
Categoria de relações simples: apresenta as construções do sujeito
elaboradas num patamar mais primitivo, empírico, prático e concreto de seu
desenvolvimento.
Categoria de relações refletidas: apresenta as construções do sujeito
elaboradas por abstrações e pelo estabelecimento de relações e
combinações entre seus conhecimentos construídos ou por construir.
No que se refere à categoria de relações simples, verificamos as notações das
crianças relacionadas às noções de contagem, cardinalidade, classificação e
seriação e os números especiais: o zero e os “nós”. Constatamos que:
A contagem e a cardinalidade apresentam as influências dos aspectos sociais
sobre as concepções do surdo acerca da escrita numérica, imbricados com
suas ações substanciais no processo dessa construção. As respostas das
crianças apontam para um desenvolvimento notacional numérico coincidente
com o verificado nas situações das pesquisas utilizadas como nosso
referencial teórico-metodológico.
Na classificação e seriação, as crianças de nossa pesquisa utilizam a
comparação como subsídio para a ordenação numérica, bem como para a
classificação e os agrupamentos e suas respectivas notações, tal como as
crianças ouvintes. De acordo com as características desse tipo de categoria,
nossos sujeitos estabelecem relações de semelhança e de diferença entre as
figuras que representam pessoas familiares, um referencial concreto,
empírico, concatenado ao real vivido, que fornece elementos observáveis
como altura, peso, idade e vínculos afetivos.
Com os “números especiais”: o zero e os “nós”, as crianças surdas, desta
categoria, apesar de não conhecerem totalmente a função do zero e dos
“nós” no sistema de numeração decimal, elaboram hipóteses acerca de suas
funções, pois, observam as diversas representações escritas dos usos dos
números e constroem, por meio de “invenções” e convenções, sua maneira
de compreender essa representação gráfica.
213
No que se refere á categoria de relações refletidas, verificamos as noções de
contagem, de cardinalidade, de ordinalidade, de classificação, de seriação, os
“números especiais”: o zero e os “nós” e o valor posicional. Compreendemos que:
A contagem, a cardinalidade e a ordinalidade proporcionam notações que se
efetivam por meio de um processo pessoal que envolve conjecturas,
hipóteses, invenções, conflitos, re-elaboração de idéias e análise das regras e
símbolos convencionais do sistema de numeração decimal. Tal como as
crianças ouvintes analisadas nas pesquisas que nos serviram de referencial
teórico-metodológico, as crianças surdas se relacionam com um meio onde
sistemas simbólicos socialmente elaborados, percebem a escrita
matemática e, para apreendê-la em sua totalidade, exercem uma ação
intelectual ativa sobre estes símbolos e sua escrita correspondente.
Entretanto, para que este processo ocorra da maneira descrita, é necessário
o domínio da LIBRAS, um objeto social imprescindível também para a
construção conceitual.
Na classificação, seriação e com os números especiais: o zero e os “nós”, as
notações infantis são elaboradas de acordo com comparações que se
encaminham para generalizações das hipóteses infantis, o que nos permite
supor que a abstração se encontra presente no pensamento e próxima das
invenções elaboradas pelos surdos pesquisados. A nosso ver, o
desenvolvimento notacional destas crianças segue a mesma trajetória que a
das crianças ouvintes, desde que tenham fluência em LIBRAS.
O valor posicional pode ser compreendido quando observamos que os
surdos, devido às especificidades da LIBRAS, se apropriam de imediato da
escrita convencional dos números para, num outro momento, compreenderem
que em nosso sistema de numeração a quantidade de algarismos se vincula
à magnitude do número representado e que o valor do número é determinado
pela posição que cada algarismo ocupa valor posicional. Esta característica
lingüística favorece um distanciamento dos erros sintáticos, comuns entre as
crianças das ries iniciais do Ensino Fundamental, pois eles não tratam das
214
regras operatórias que sustentam as expressões verbais, compostas por
elementos de potência, tampouco das regras operatórias específicas da
escrita numérica arábica composta por dígitos e regras de composição
multiplicativa e aditiva das diversas unidades. Estas últimas terão sua
conceitualização formulada de outra maneira, num outro momento, fato que, a
nosso ver, merece uma investigação em outro estudo.
Outro fator relevante no que se refere ao valor posicional é que, para os
surdos todos os números são transparentes, no sentido de que “se escreve
como se fala”, ou dito de outra forma, os sinais referentes aos algarismos são
expressos na mesma ordem em que são escritos. Esta transparência
numérica se consubstancia em um fator que possibilita e desencadeia o
pensamento e a construção dos elementos conceituais subsidiados por ela,
fato que pode favorecer os surdos em detrimento dos ouvintes, pois estes
últimos recebem a interferência da linguagem numérica oral não posicional e
devem realizar uma transcodificação para a escrita numérica posicional.
Concluímos que a contribuição de nosso trabalho é a de agregar, aos estudos
anteriores, as particularidades e as contribuições da LIBRAS no que se refere à
escrita numérica pelos surdos, haja vista as condutas das crianças fluentes nesta
língua analisadas nesta pesquisa, em detrimento àquelas que pouco contato têm
com a língua de sinais. Compreendemos que a LIBRAS é uma língua como qualquer
outra e que as notações numéricas elaboradas pelos surdos bilíngües podem ser
consideradas coincidentes com as escritas dos números efetivadas pelas crianças
ouvintes.
Os resultados relatados nesta pesquisa vem ao encontro dos estudos que apontam
para o fato de ser o papel desempenhado pela LIBRAS, no desenvolvimento global
do surdo, similar ao da língua oral em relação ao ouvinte. No caso da criança
ouvinte, seu desenvolvimento cognitivo não depende apenas das atividades
escolares, haja vista sua interação com o meio. Entretanto, se esta for rudimentar,
podemos encontrar defasagens em seu desenvolvimento. No caso dos surdos, o
contato com o meio não acontece de maneira natural. Julgamos, então, que cabe à
215
escola a realização de atividades que reproduzam, em seu interior, ações que
acontecem naturalmente em seu exterior, a fim de proporcionar uma maior
participação na construção coletiva do conhecimento.
A nosso ver, o espaço privilegiado para que as trocas simbólicas ocorram de forma
efetiva e construtiva para estes sujeitos é a escola, na qual a língua de sinais é
utilizada constante e consistentemente, e as experiências de que são privados na
sociedade ouvinte podem ser vivenciadas com riqueza na comunidade surda.
Portanto, a educação do surdo deve ser pensada por este viés, de oportunizar
situações que favoreçam a ação da criança no e com os objetos do meio ambiente,
intermediadas por sua língua natural.
A fluência em LIBRAS e o contato com seus pares, também fluentes nesta língua,
bem como condições educacionais favoráveis às construções conceituais, são
elementos decisivos para a aprendizagem dos surdos, o que corrobora nossa
afirmação de que o espaço da educação formal se constitui em um propulsor de
experiências que pode diminuir a lacuna social vivenciada por eles.
Compreendemos que a incompletude deste trabalho aponta para a importância de
se prosseguir com estudos dessa natureza, pois acreditamos nas muitas
contribuições de uma pesquisa com surdos no que tange ao processo de ensino e
aprendizagem como um todo.
Finalizando, gostaríamos de enfatizar que este estudo possibilitou-nos, além do
contato com os dados científicos, uma riqueza da relação humana que se
estabelece pelo reconhecimento das diferenças e das semelhanças. Suscitou-nos
um forte desejo de prosseguir por este caminho, de buscar, com maior profundidade,
a compreensão do pensamento do surdo.
216
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infantil. Rio de Janeiro: RevinteR, 1999.
221
APÊNDICES
222
APÊNDICE A
SOLICITAÇÃO
Eu, Márcia Cristina Amaral da Silva, R.A. 43024, acadêmica da Universidade
Estadual de Maringá, no Programa de Pós- graduação em Educação para a Ciência
e o ensino da Matemática, solicito à exma diretora da
Associação Norte Paranaense
de Áudio Comunicação Infantil, Centro Educacional para Surdos, Colégio Modelo de
Maringá: Educação Infantil e Ensino Fundamental e Médio, a permissão para
desenvolver minha pesquisa de campo na instituição de ensino, realizando
entrevistas com crianças da Educação Infantil e séries iniciais do Ensino
fundamental.
Comprometo-me, ao término do desenvolvimento da pesquisa, entregar uma
cópia do trabalho para que os profissionais da instituição possam conhecer como os
dados coletados foram compreendidos e analisados na pesquisa em questão.
Atenciosamente
Maringá, 26 de outubro de 2006
___________________________
Márcia Cristina Amaral da Silva
À diretora
Yara Maria de Oliveira Felipe
223
APÊNDICE B
TERMO DE CONSENTIMENTO
PARA MENORES DE 18 ANOS
Título do Projeto: A escrita dos números por crianças surdas bilíngües
Seguem abaixo os esclarecimentos necessários aos responsáveis pela criança que
participará da pesquisa:
Estamos convidando-o/a para uma conversa, com a finalidade de pedir sua
autorização para que seu/sua filho (a) participe de uma pesquisa com o objetivo de estudar
a construção da escrita numérica da criança surda educada numa abordagem bilíngüe. Para
tanto, aplicaremos algumas situações-problema pré-determinadas a um grupo de crianças
que estão iniciando a alfabetização, de que seu filho (a) faz parte. Informamos que no
desenvolvimento dessas atividades será feita a filmagem a fim de que tenhamos subsídios
para analisar os dados, sendo que, apenas terão acesso a estas imagens os pesquisadores
envolvidos no projeto.
Estaremos prestando esclarecimentos, antes e durante a pesquisa, sobre a
metodologia utilizada ou qualquer outra dúvida. Para tanto, favor entrar em contato com:
Profª Clélia Maria Ignatius Nogueira ou com a pós-graduanda Márcia Cristina Amaral da
Silva pelo telefone: (44) 3261 -4827.
Destacamos alguns aspectos importantes sobre a participação de seu/sua filho (a) na
pesquisa: a) que, durante o desenvolvimento da mesma, o (a) senhor (a) responsável pelo
adolescente tem toda a liberdade de recusar ou retirar o consentimento; b) que a identidade
do adolescente será preservada, garantido assim sigilo e privacidade; c) que os dados
coletados serão utilizados restritamente para responder aos objetivos da pesquisa.
Eu, __________________________________________, (responsável
pelo menor) após ter lido e entendido as informações e esclarecido todas as minhas
dúvidas referentes a este estudo com a Pós-graduanda Márcia Cristina Amaral da
Silva, CONCORDO VOLUNTARIAMENTE, que o(a) meu(minha
filho(a)_____________________________________________ participe do
mesmo.
_______________________________________________ Data: ___/____/______
Assinatura (do pesquisado ou responsável) ou impressão datiloscópica
Eu, Pós-graduanda Márcia Cristina Amaral da Silva, declaro que forneci todas as
informações referentes ao estudo ao responsável do pesquisando.
Equipe (Incluindo pesquisador responsável):
1- Nome: Profª Dra Clélia Maria Ignatius Nogueira Telefone: (44) 3261 - 4827
Endereço Completo: UEM, PCM – Av. Colombo 5790 – Campus Universitário, bloco F 67, sala 9
2- Nome: Márcia Cristina Amaral da Silva Telefone: (44) 261 - 4827
Endereço Completo: UEM, PCM – Av. Colombo 5790 – Campus Universitário, bloco F 67, sala 9
Qualquer dúvida ou maiores esclarecimentos procurar um dos membros da equipe do
projeto ou o Comitê Permanente de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos
(COPEP) da Universidade Estadual de Maringá Bloco 035 Campus Central Telefone:
(44) 3261-4444.
224
ANEXOS
225
ANEXO A
ASSOCIAÇÃO NORTE PARANAENSE DE ÁUDIO
COMUNICAÇÃO INFANTIL
CENTRO EDUCACIONAL PARA SURDOS
COLÉGIO MODELO DE MARINGÁ: EDUCAÇÃO INFANTIL E
ENSINO FUNDAMENTAL E MÉDIO
Colégio Modelo de Maringá
Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio.
Avenida Colombo, 5790 – Bloco J-13
Campus Universitário Fone: (44) 224-7545
CEP 87020-900 – Maringá - Paraná
AUTORIZAÇÃO
Eu, Yara Maria de Oliveira Felipe, diretora do Colégio Modelo de Maringá -
Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio, autorizo a acadêmica da
Universidade Estadual de MarinMárcia Cristina Amaral da Silva, R.A. n° 43024,
do Programa de Pós-graduação em Educação para a Ciência e o Ensino de
Matemática, a desenvolver sua pesquisa de campo nesta instituição de ensino,
realizando entrevistas com crianças da Educação Infantil - pré-escolar e crianças das
séries iniciais do Ensino Fundamental.
Atenciosamente
__________________________________________
_
Yara Maria de Oliveira Felipe
Diretora - R.G. 1.141.906 – 2 / PR
Portaria nº 01 / 99 - ANPACIN
226
ANEXO B
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo