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As horas se arrastavam enquanto conversávamos sobre os mais diferentes
assuntos, sempre com considerações comparativas, realizadas por Chola, com base
em suas experiências de viagens ou na religião. Almoçamos, siestíamos e nos
levantamos para tomar mais mate e conversar mais ainda. Eventualmente Cristina
lavava um par de louças, ou varria o chão. Estávamos na espera da noite e antes
disso, só podíamos nos entreter. Mãe Chola desfiava suas histórias sobre a sua
infância pobre no meio rural, sobre os seus primeiros anos na religião, sobre o
comportamento de vários dos seus filhos-de-santo e sobre a dinâmica dos seus
terreiros. Sobre os quais teceu esse comentário:
Olha só, eu reparo muito o desenvolvimento dos meus filhos nos diferentes lugares que eu
viajo e vejo que, por exemplo, lá em Livramento estão os meus melhores médiuns. A
corrente de lá é linda! Como eles trabalham bem! Tem a Carina e a Bianca que tu vê como
elas são boas médiuns, apesar de novinhas, mas como são dedicadas; tem o Hugo, a Olgita,
o Fabiano(...), mas como é que eu vou te dizer [ela pára,pensa um pouco e mudando seu
apoio sobre a cadeira, disse] ...mas falta um pouco de ambição nas vidas deles. Acho que
até porque a maioria é gente humilde, que como eu, não puderam estudar. Só que eu vejo
mais longe, tenho ambição. Por um lado, é bom [o nível de instrução baixo] porque o santo
baixa melhor, eles não questionam tanto as coisas, mas, por outro lado, falta esta vontade
de saber mais até sobre o próprio ritual.
Já aqui em Montevidéu, têm a Cristina, tem o Raul, a Miriam e o Mário, meu filho Javier tá
aqui, mas o resto do pessoal, não se organizam, só se reúnem quando eu estou aqui e
mesmo assim não vêm todos. Não sei o que houve, acho que foi porque eu vinha muito
seguido e o pessoal ficou preguiçoso de fazer as coisas por si. Agora eu estou indo mais
para a Argentina e eles reclamam, mas se esforçarem que é bom? Nada. Tão comigo a sei
lá quanto tempo, mas param de me ver um pouquinho e esquecem tudo que eu ensinei.
Minha sorte é que o Javier é linha dura com eles. Mas têm também aqueles que são de fé,
que estão sempre aqui, quando eu venho, estes dá gosto de ter por perto, porque são
aplicados. Como eu falei antes, o Raul, por exemplo, eu não posso me queixar e a Cristina
faz tudo o que eu quero e administra as coisas enquanto eu não volto.
O pessoal de Posadas é o mais trabalhador. Lá eu não faço nada, até pareço o Jorge [o
filho-de-santo de Tucumã], não faço nada. Eles é que organizam tudo. Tu viu quando teve lá
comigo, né? E, assim, não são tão bons médiuns, mas são esforçados e querem aprender e
são ótimas pessoas...por isso, não posso me queixar deles.
Lá em Tucumã [ ela olha para longe e dá uma risadinha] chega até a ser engraçado, porque
o pessoal tem as letras todas decoradas e sabem cantar todos os pontos, mas é uma
vergonha porque não tem o ritmo, porque eles não sabem tocar direito o tambor, não
conhecem os toques e não sabem fazer a variação destes nas horas certas. Mas Jorge tem
as suas qualidades, é muito obediente e muito interessado. Quando ele me procurou, eu lhe
dei duas alternativas: ou o jeito rápido ou o mais devagar, como o pessoal de Livramento,
por exemplo. Mesmo sendo mais custoso [em tempo e em dinheiro] ele preferiu ser como os
outros filhos e ser feito devagar, mas completo, e ai eu vi que ele estava bem intencionado
de aprender as coisas direito e simpatizei com ele.