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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
DANIELE DE MENEZES PIRES
ALEGORIAS ETNOGRÁFICAS DO MBYÁ REEM CENÁRIOS
INTERÉTNICOS NO RIO GRANDE DO SUL (2003-2007):
DISCURSO, PRÁTICA E HOLISMO MBYÁ FRENTE ÀS
POLÍTICAS PÚBLICAS DIFERENCIADAS
Porto Alegre
2007
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DANIELE DE MENEZES PIRES
ALEGORIAS ETNOGRÁFICAS DO MBYÁ REKÓ EM CENÁRIOS
INTERÉTNICOS NO RIO GRANDE DO SUL (2003-2007):
DISCURSO, PRÁTICA E HOLISMO MBYÁ FRENTE ÀS
POLÍTICAS PÚBLICAS DIFERENCIADAS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
como exigência parcial à obtenção do título de
Mestre em Antropologia Social
Orientador: Prof. Dr. José Otávio Catafesto de Souza
Co-orientador Mbyá-Guarani: Mburuvixá Tenondé Kuaray Nheery (Cacique Geral José Cirilo
Pires Morinico)
Porto Alegre
2007
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DANIELE DE MENEZES PIRES
ALEGORIAS ETNOGRÁFICAS DO MBYÁ REKÓ EM CENÁRIOS
INTERÉTNICOS NO RIO GRANDE DO SUL (2003-2007):
DISCURSO, PRÁTICA E HOLISMO MBYÁ FRENTE ÀS
POLÍTICAS PÚBLICAS DIFERENCIADAS
Porto Alegre
22 de agosto de 2007
Orientador: José Otávio Catafesto de
Souza
Co-orientador Mbyá-Guarani: Mburuvixá
Tenondé Kuaray Nheery (Cacique geral
José Cirilo Pires Morinico)
Banca examinadora
Profª. Dra. Cornelia Eckert (UFRGS)
Prof. Dr. Rogério Reus Rosa (UFPel)
Prof. Dr. Sérgio Baptista da Silva (UFRGS)
4
In memoriam Karaí Juancito
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos atores, co-autores e também àqueles que figuraram nos “bastidores”
desta hisria:
Agostinho Duarte (Karaí Apuá); Alcides Escobar (Ve Miri); Ana Cristina Popp; Ana Elisa
Freitas; Ana cia Meira; Ana Pires (Pa); Basílio Ferreira (Verá); Beatriz Muniz Freire;
Cândice Ballester; Candiño Oliveira; Carlos Eduardo de Moraes; Cláudia Fonseca; Cláudio
Acosta (Verá); Cleni dos Santos; Cristino Franco (Karaí Tataeñdy); Denise Reis (Jachuká
Poty); Dionísio Duarte (Verá Guaçu); Elida Paredes (Kerechu Poty); Elza Ortega (Kerechu
Miri); Elza Chamorro (Pará Reté); Emílio dos Santos; Felipe Brizoela (Karaí); Félix
Martinez (Karaí Tatá); Flávio Gobbi; Floriano Romeu (Verá Xondaro); Guilherme Heurich;
Inácio Kunkel; Isabelino Aguirre (Karaí Nheery); Isabelino Ferreira (Verá Kuaray); Ivonete
Campregher; Jorgelina Duarte (Jachuká Reté); Jo Cirilo Pires Morinico (Kuaray Nheery);
José Otávio Catafesto de Souza; Juancito Oliveira; lio Casseres (Karaí Tataeñdy); Letícia
Bauer; Letícia Thurmann Prudente; Lino Casseres; Luis Cláudio da Silva; Luiz Antônio
Catafesto de Souza; Marcelo Gonçalves (Mbitu); Marcos Freitas; Maria Carolina Vecchio;
Maria Eugênia Ramos (Yvá); Maria Escobar (Kerechu Tatá); Maria Lúcia Nidballa dos
Santos; Mariana Soares; Mariano Aguirre (Karaí Tataeñdy); Martin Tempass; Maurício
Messa; Miguel Duarte (Kuaray Mimbi); Miguelina Romeu (Kerechu Poty); Miriam ssica
Aguirre (Pará Miri); Mônica Arnt; Natália Bombardi; Nauíra Zanardo Zanin; lida
Morinico; Nicanor Benitez (Karaí Tataeñdy); Olavo Ramalho Marques; Osvaldo Paredes
(Karaí Miri); Patrícia Ferreira (Kerechu Reté); Paulina Paredes (Jachuká); Pedro Oliveira
(Karaí Tataeñdy); Rogério Réus Rosa; Sandro Ariel Duarte (Kuaray Poty); Santo Lopes
(Karaí Nheery); Sérgio Baptista da Silva; Teresa Oliveira (Yuá); Thiago Araújo.
6
RESUMO
As comunidades Mbyá-Guarani no Rio Grande do Sul possuem trajetórias que
consolidam seu reconhecimento enquanto grupo culturalmente diferenciado e reforçam sua
autodeterminação étnica, através do jeguatá (caminhada), apesar de viverem hoje reduzidos
em pequenas áreas descontínuas (entre aldeias e acampamentos), mas interligadas
etnicamente, num espaço geográfico dominado pela propriedade privada e pela ocupação por
descendentes de imigrantes europeus que deles se contrastam. A perda de seu território
original e a decomposição ambiental foram fatores que impuseram transformações mais
drásticas – radicalizando os efeitos da sua própria historicidade – no Mbyá rekó (modo
tradicional de vida), obrigando as pessoas Mbyá-Guarani a estabelecerem um convívio cada
vez mais estreito e cotidiano com representantes externos, desde aqueles que fazem
intervenções dentro das Tekoá (aldeias), até suas relações de vizinhança, na participação em
reuniões promovidas pelos poderes públicos e em negociação com diversas instituições,
participando de cenários que geram mudanças no processo de manutenção do Mb rekó, mas
que não substituem os cenários que fundam seu habitus original. Ao mesmo tempo, os
primeiros anos do século XXI estão marcados pela necessidade administrativa do Estado
brasileiro em dar conta das demandas diferenciadas dos diversos grupos que constituem a
sociedade nacional. A pesquisa etnográfica procurou focalizar, inicialmente, algumas
dimenes de interação estabelecidas entre os Mb e os representantes das instituições
governamentais, particularmente demonstrando sua capacidade de se fazerem visíveis e
tornarem-se atores nos espaços abertos pelos mecanismos governamentais, através de
estratégias próprias singularidades do Mb re também trazidas pela etnografia desta
pesquisa –, articulando parceiros que viabilizem o atendimento de suas demandas específicas.
7
Faz-se o registro desse diálogo e da conseqüente costura interinstitucional por ela
gerada, o que possibilita uma maior “sustentabilidade” e valorização do patrimônio cultural
Mbyá.
Palavras-chave: Mbyá rekó, saúde, patrimônio cultural, poticas públicas diferenciadas
8
ABSTRACT
The Mbyá-Guarani communities in Rio Grande do Sul have been through paths which
consolidate their knowledge as a culturally diverse group and confirm their ethnic self-
determination, through jeguatá (walk), despite of the fact that these days they are living in
small discontinued areas (among villages and campings), but ethnically connected, in a
geographic space dominated by private properties and by descendent of European immigrants
that contrast from them. The loss of their original territory and the environmental
decomposition were facts that imposed drastic transformations radicalizing the effects of
their own historic consciousness in Mbyá re (traditional way of life), obligating Mbyá-
Guarani people to establish a conviviality very narrow and daily with external representatives,
from the ones who intervene inside the Tekoá (villages), to their neighborhood relations,
participating of meetings promoted by government authorities and in negotiation with several
institutions, being part of sceneries that generate changes in the process of maintenance of
Mb rekó, but do not replace the sceneries that fund their original habitat. In the other hand,
the first years of the XXI century are marked by the administrative need of the Brazilian State
in matching the different expectations of several groups that constitute the national society.
The ethnographic research intended to focus, initially, some dimensions of interaction
established between the Mb and representatives of government institutions, particularly
demonstrating their capacity to make themselves visible and become actors in spaces opened
by governmental mechanisms, through their own strategies singularities of Mbyá rekó that
were also brought by the ethnography of this research –, joining partners that make the
attendance of their specific demands possible. There is a register of this dialog and of the
consequent interinstitucional sewing generated by it, what makes possible that there is a larger
approach with the Mbyá holism, when actions are taken between institutions as different as
9
the ones that attend rubrics as diverse as “health”, “land”, “sustenance” and “cultural
heritage”.
10
SIGLAS
ACIG – Associação das Comunidades Indígenas Guarani
AIS – Agente Indígena de Saúde
ANAÍ Associão Nacional de Apoio ao Índio
CC – Cargo em Comissão
CEI – Conselho Estadual Indígena
CEPI – Conselho Estadual dos Povos Indígenas
CIMI – Conselho Indigenista Missionário
CODENE – Conselho Estadual de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra
COMIN – Conselho de Missão entre Índios
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
FUNASA - Fundação Nacional de Saúde
HCPA Hospital de Clínicas de Porto Alegre
IPHAN – Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional
IECAM Instituto de Estudos Culturais e Ambientais
ISA – Instituto Sócio-Ambiental
MPE – Ministério Público Estadual
MPF Ministério Público Federal
NIT – Núcleo de Antropologia das sociedades Indígenas e Tradicionais
PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PT – Partido dos Trabalhadores
PTB – Partido Trabalhista Brasileiro
PUC-RS – Ponticia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
RI – Reserva Indígena
RS – Rio Grande do Sul
SJDS – Secretaria da Justiça e do Desenvolvimento Social
STCAS – Secretaria do Trabalho, Cidadania e Assistência Social
TI – Terra Indígena
UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO: VASCULHANDO PONTES INTERINSTITUCIONAIS NAS
FRONTEIRAS COM O HOLISMO MBYÁ....................................................................... 13
CAPÍTULO 1 ETNOGRAFIA DE INCOMPREENSÕES, CENÁRIOS DE
CONTRADIÇÕES................................................................................................................. 22
1.1 O SeminárioSustentabilidade e Diversidade Sócio-Cultural”.................................. 24
1.2 Fronteiras culturais, (des)preparo institucional no reconhecimento à diferença e às
estratégias Mbyá-Guarani..................................................................................................... 35
1.3 “Alianças” e parcerias”................................................................................................. 47
1.4 O Conselho Indigenista Missionário (CIMI)................................................................. 50
1.5 Etnografando desde um cenário privilegiado: o Conselho Estadual dos Povos
Indígenas (CEPI) enquanto espaço de dialogia................................................................... 53
CAPÍTULO 2 SITUANDO O UNIVERSO DE PESQUISA, MERGULHANDO NA
PAISAGEM CULTURAL MBYÁ: ALEGORIAS SOBRE DISCURSOS E PRÁTICAS
EM CENÁRIOS ETNOGRÁFICOS (INTERÉTNICOS E INTRA-ÉTNICOS) NO SUL
DO BRASIL............................................................................................................................ 60
2.1 (Des)ordem, polifonia, fusão de horizontes e alegorias................................................. 60
2.2 Antropologia das práticas e etnografia entre os Mbyá................................................. 69
2.3 Corpos atuando no espaço, compondo paisagens..........................................................76
2.4Cenários etnográficos revelando o cotidiano...................................................82
12
2.4.1 Cenário 1: Cidade de São Miguel das Mises............................................................. 83
2.4.2 Cenário 2: Sítio Arqueológico São Miguel Arcanjo..................................................... 88
2.4.3 Cenário 3: Tekoá Koenju (Aldeia Alvorecer).............................................................. 92
CAPÍTULO 3 A INTEGRALIDADE DA COSMOVISÃO MBYÁ FRENTE À SAÚDE
EM MINISTÉRIO............................................................................................................... 102
3.1 A temática da saúde indígena e os Mbyá...................................................................... 103
3.2 Limites da oposição natureza/cultura ao entendimento do holismo no Mbyá re..107
3.3 “Saúde”: uma categoria biomédica tornada prática.................................................. 118
3.4 A trajetória do cacique Jo Cirilo e a proposta dos guardiões da tradição............ 123
3.5 As Reuniões dos Karaí, caciques e representantes Mbyá-Guarani no Rio Grande do
Sul.......................................................................................................................................... 133
3.5.1 A I Reunião dos Karaí, caciques e representantes Mbyá-Guarani no Rio Grande do
Sul.......................................................................................................................................... 133
3.5.2 A V Reunião dos Karaí, caciques e lideranças Mbyá-Guarani do Rio Grande do
Sul.......................................................................................................................................... 140
CAPÍTULO 4 AVANÇOS DO JEGUATA TAPE PORÃ (BELA CAMINHADA DA
TRADIÇÃO): CAMINHOS POSSÍVEIS AO HOLISMO MBYÁ.................................. 144
4.1 Jeguatá Tape Porã.......................................................................................................... 146
4.1.1 Nhemongaraí............................................................................................................... 148
4.1.2 Nhemboaty Tava Miri py o Miguel ou I Encontro Nacional Patrimônio Cultural e
Povos Indígenas: Os Mbyá e as Missões............................................................................. 156
4.1.3 A morte do xamã.......................................................................................................... 161
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................. 170
REFERÊNCIAS................................................................................................................... 175
13
INTRODUÇÃO:
VASCULHANDO PONTES INTERINSTITUCIONAIS NAS FRONTEIRAS COM O
HOLISMO MBYÁ
Este trabalho faz o registro etnográfico e hisrico de percursos paralelos. A
delimitação desta pesquisa resulta de minha trajetória de participação nos trabalhos
antropológicos realizados pelo Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e
Tradicionais NIT/UFRGS, ao qual faço parte desde o curso de graduação em Ciências
Sociais (1998-2003), e, principalmente, desde 2002, quando estabeleci contato e iniciei
diálogo mais direto com representantes Mbyá-Guarani no Rio Grande do Sul, enquanto era
estagiária de antropologia no Conselho Estadual dos Povos Indígenas (CEPI) do governo do
Estado. Esta experiência e aproximação com os Mbyá fizeram-me redirecionar a pesquisa
acadêmica, na qual tratava, até então, da saúde indígena a partir de etnografia com um grupo
Kaingang, para o tema da saúde Mbyá-Guarani, para, posteriormente, se transformar
novamente. Assim, inclui meu percurso como cientista social e antropóloga em formação, ao
mesmo tempo, vivenciando a realidade Mb em Porto Alegre e em São Miguel das Mises,
no Rio Grande do Sul, e, de forma menos direta, em Santa Catarina e em Misiones,
Argentina.
O percurso da pesquisa acabou entrando em sintonia com todo um movimento teórico
da antropologia contemporânea, fazendo-me reproduzir localmente uma aplicação modesta de
propósitos de pesquisa motivados pelo paradigma de (des)ordem (CARDOSO DE
OLIVEIRA, 2003), fazendo repercutir no meio antropológico os estados de
reflexão/suspensão conceitual a que todo momento me submetiam os interlocutores Mb.
Posição talvez pretensiosa, mas de qualquer maneira honesta em explicitar os princípios
norteadores do trabalho, algo que poderia ter ficado oculto por trás de uma intenção de
objetividade. Este trabalho foi muito instigante, porque permitiu perceber que ele fazia parte
de diversos processos mais amplos de interpretação, incluindo as transformações da
14
antropologia pela hermenêutica com os caminhos da reorganização étnica dos Mb frente ao
Estado brasileiro, que também passou, a partir da Constituição Federal de 1988, por uma
transformação organizativa no sentido de ter que considerar e buscar contemplar as minorias
étnicas.
A hermenêutica forneceu a ferramenta certa para adequar esta pesquisa, quando a
noção de diálogo se impôs na prática etnográfica entre os Mbyá. Eles corrompem qualquer
arrogância científica que os tratem pela noção de incapacidade relativa ou desqualificação
mental, não se encaixando num modelo metodológico positivista, que entende o nativo
enquanto não-reflexivo, como se fossem inconscientes de suas representações sociais.
A etnografia entre os Mbyá traz constantes estranhamentos, experimentados de forma
pessoal, mas que aos poucos podem ser reconhecidos como equivalentes aos estranhamentos
vivenciados por todos aqueles que se colocam a dialogar e a interagir com os Mbyá.
Estranhamentos, confusões, que apresentam como conseqüência desencontros na maneira
como as instituições não-indígenas tratam as demandas diferenciadas por terra, o sustento
tradicional, a saúde, cultura e educação, que nada mais são do que reflexo da vigência local da
ideologia ocidental individualista (DUMONT, 1985).
As comunidades Mb no Rio Grande do Sul convivem com uma realidade bastante
contradiria em todas as suas dimensões, como demonstram os diversos estudos científicos
publicados sobre pesquisa etnográfica com eles desde a década de 1990 (VIETTA, 1992;
LARRICQ, 1993; LITAIF, 1996; GARLET, 1997; SOUZA, 1998; FERREIRA, 2001;
LADEIRA, 2004; TEMPASS, 2005; PRADELLA, 2006; PRATES, 2006). Neste particular, a
literatura sobre os Mbyá reproduz o quadro geral descrito para as comunidades Guarani
existentes em outros estados do Brasil, no Uruguai, na Argentina e no Paraguai.
As comunidades de fala Guarani apenas nas últimas décadas passaram a ter
reconhecimento oficial. Historicamente, no Brasil, os parâmetros da tutela justificaram o
desrespeito oficial por suas tradições culturais, tendo desconsiderada sua diversidade pelas
políticas nacionais. O indigenismo tutelar gerou uma realidade que se pode referir como
quadro de marginalidade sócio-cultural dos Mb, algo que se mostra muito difícil de reverter
na atual conjuntura, ainda que mais favorável ao seu reconhecimento étnico.
As comunidades Mb sofrem contradições que historicamente as mantêm existindo
numa forma específica de marginalidade (marginalidade que é não material,
necessariamente, mas também social, étnica, cultural), procurando manter sua
15
autodeterminação, sem o completo reconhecimento oficial de sua diversidade cultural no
Brasil
1
. Ao mesmo tempo, há grande incompreensão sobre a alteridade radical (SOUZA
LIMA, 1995) dos Mb, que se mantêm indígenas em acampamentos na beira de estradas,
junto de cidades e reduzidos em pequenos lotes de terra, muito diferente daquela imagem do
índio nu e selvagem habitando florestas distantes, como em outros tempos idealizaram o
indigenismo oficial e o senso comum.
Essa realidade contraditória tem direta relação com o registro etnográfico sobre as
reações etnocêntricas manifestas por não-indígenas, quando interagem com os Mbyá. Foi e é
possível registrar contínua manifestação de estereótipos, acionados quando são estabelecidas
relações entre os Mbyá e os jur (termo pelo qual os Mb referem-se aos não-indígenas
2
),
pré-noções das quais os etnógrafos não estão livres. São os mesmos pressupostos que ainda
fundamentam a prática de muitos profissionais responveis pela administração pública e
privada das instituições que interagem com os Mbyá, algo que lentamente sofre transformação
gerada por estes. Deixar o registro etnográfico desse processo de interação e lenta
transformação das formas de efetivação das políticas públicas é uma das justificativas desta
dissertação.
A maior visibilidade étnica dos Mbyá na atualidade é parte de um processo, por isso
entendida como o percurso de sua etnicidade no despontar do século XXI. Sua antiga
invisibilidade ocorria porque suas comunidades se mantinham afastadas do convívio com
representantes da sociedade brasileira e até dos agentes indigenistas. Esse afastamento era
possível, seja pela existência mais antiga de uma maior ocorrência de áreas com florestas
naturais (depois desmatadas ou apropriadas por não-indígenas) e de uma maior tolerância pela
presença Guarani em terras privadas por parte de seus proprietários, seja pela ação policial do
indigenismo oficial brasileiro, que reprimia o livre trânsito das famílias Mb e de outros
índios pelo terririo brasileiro, mantendo-os afastados artificialmente das cidades. As
comunidades Mbyá ficaram contidas no exercício de sua itinerância cultural, quase
impossibilitadas de realizar sua mobilidade tradicional (GARLET, 1997), enquanto os índios
Kaingang
3
passaram a receber atendimentos de saúde, habitação, produção e educação por
1
Ainda, recentemente (2006), Juracilda Veiga, antropóloga a servo da FUNAI, foi capaz de fazer manifestação
blica referindo-se aos Mbyá-Guarani enquanto “índios estrangeiros” e com isso justificando a isenção do
Estado brasileiro em tratá-los como legítimos cidadãos em sua alteridade.
2
Seu equivalente feminino seria señorá.
3
Os Kaingang constituem a segunda etnia indígena existente atualmente no estado do Rio Grande do Sul, cujo
reconhecimento pelas políticas indigenistas foi contínuo desde a segunda década do século XX. Hoje estão
concentrados em Terras Indígenas e em muitos outros acampamentos espalhados principalmente de Porto Alegre
para o norte do Estado. Sua população atual é aproximadamente de vinte mil indivíduos no Estado.
16
parte da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e de outras instituições (como, por exemplo, o
COMIN, órgão da Igreja Luterana no Brasil), sempre dentro das áreas oficialmente
demarcadas.
Paralelamente ao processo de abertura política na década de 1980, em Porto Alegre, se
fundou a Associação Nacional de Apoio ao Índio (ANAÍ/RS), organização não-
governamental criada por um grupo de intelectuais que passou a dar apoio institucional a
algumas das demandas das comunidades Mbyá-Guarani no estado. Este trabalho voluntário,
engajado e precursor deu origem a linhas de atuação assumidas pela FUNAI na mesma
década (questão fundiária) e pelo COMIN na década seguinte. Depois de reconhecido
oficialmente o livre trânsito dos grupos indígenas como de qualquer cidadão brasileiro –,
proliferaram acampamentos e a ocupação de novos espaços, alguns convertidos em Terras
Indígenas pelo indigenismo oficial nas décadas seguintes. Tornou-se cada vez mais freqüente
a presença dos Mbyá em locais com grande fluxo de pessoas, na beira das estradas e nas ruas
e praças dos centros urbanos.
Mesmo que a presença dos Mb produza estranhamento, aos poucos os técnicos e
gestores públicos tiveram que abrir espaço de interlocução com suas comunidades, na
necessidade de adequar a execução dos serviços essenciais a estes indígenas, para subsidiar a
obtenção dos recursos nimos necessários à satisfação de suas demandas específicas. Na
década de 1990 se produziram ensaios de aplicação de políticas diferenciadas dirigidas às
comunidades indígenas no Brasil, algo que passou a ser efetivado para os Mbyá e no Rio
Grande do Sul – no final desta década.
Outro fundamental objetivo desta dissertação é deixar o registro do percurso étnico
dos Mbyá, na forma como os presenciei ao longo da primeira parte da atual cada. Pude
acompanhar o desempenho dos representantes Mbyá, suas falas desconcertantes, seu imenso
esforço em estabelecer dialogia em meio a situações de interação entre dois mundos culturais
diversos muitas vezes antagônicos , seu gradativo engajamento em projetos institucionais
pensados a partir das subdivisões em “gavetas” administrativas isoladas, estranhos à sua
lógica. A participação cada vez maior dos representantes Mbyá nesses projetos gerou um
estímulo para que a integralidade da sua cosmovisão repercutisse na consciência sobre esta
forma fragmentada de tratamento na administração por parte dos profissionais vinculados à
questão indígena.
Embora seja numericamente pequena a população Mb, se comparada à sociedade
brasileira, é uma das parcialidades étnicas importantes entre os grupos de fala Guarani, ngua
17
que faz parte da família Tupi-Guarani, Tronco Tupi, com ampla distribuição na Bacia
Amazônica, na Bacia do rio Paraguai e no litoral atlântico. Talvez nenhum outro povo
indígena tenha recebido tanta atenção etnográfica e etnológica do que o Guarani, numa
tradição que surgiu entre os padres jesuítas dos séculos coloniais, passando por Curt
Nimuendaju (1987); Leon Cadogan (1960); Alfred Metraux (1928); Branislava Susnik
(1989); Egon Schaden (1974) e Bartomeu Meliá (1986) até a atualidade.
No Rio Grande do Sul, os Mbyá vivem somando aproximadamente 1.870 pessoas -
em acampamentos (tataypy rupa) e nas aldeias (Tekoá Kuery), em comunidades compostas
por dezenas e a pouco mais de duas centenas de habitantes. Os acampamentos estão
posicionados preferencialmente na faixa de donio das estradas estaduais e federais, com
condições precárias de sustento. As Tekoá possuem melhor qualidade de vida, a comar pelo
fato do reconhecimento oficial brasileiro como Reserva ou Terra Indígena. Elas também
possuem alguns recursos naturais, mas muito precários para permitir a reprodução adequada
das estratégias tradicionais de caça, pesca e coleta. Algumas delas também possuem roças,
onde cultivam plantas tradicionais (milho, feijão, mandioca, batata-doce, melancia etc.). O
artesanato é a maior fonte de renda das famílias que extraem as matérias-primas das matas,
com as quais confeccionam as peças nas aldeias e acampamentos e vendem seus produtos
principalmente nas cidades. Os recursos obtidos com a venda do artesanato são usados para a
obtenção de gêneros alimentícios, transporte e roupas. programas de assistência à
alimentação e de previncia dirigidos aos mais velhos e às mulheres grávidas, além de
campanhas de doação organizadas por associações não-governamentais e pessoas da
sociedade. Sem estas ações de assistência, a vida dos Mbyá torna-se ainda mais precária, pela
falta de espaço natural disponível para a subsistência.
O percurso desta pesquisa sofreu constantes re-configurações, a começar pela
gradativa mudança do universo a ser definido à observação. Seguindo critérios mais clássicos,
teria sido oportuno centrar o foco sobre uma única comunidade Mbyá e sobre ela produzir
uma monografia. Houve, em certo momento, a utilizão do critério de que o universo desta
pesquisa abarcava apenas uma Tekoá, a da Reserva Indígena do Inhacapetum, na qual fiz
inserção etnográfica pela prestação de serviço de pesquisa antropológica como parte de uma
equipe de pesquisadores do NIT/UFRGS desde agosto de 2004, aplicando o Inventário
Nacional de Referências Culturais (INRC) do IPHAN/MinC, que continua a o momento.
O desenvolvimento paralelo de minha pesquisa etnográfica com o trabalho de pesquisa
do INRC levou-me, em primeiro lugar, a perceber que a realidade Mbyá não se restringe ao
18
espaço geográfico de uma comunidade, nem ao seu reconhecimento oficial como “área
indígena”. O Mbrekó extrapola a independência aparente de comunidades dispersas num
amplo território, num fluxo contínuo entre as Tekoá e acampamentos, para visitas
4
a parentes
e amigos e mesmo para mudança (que para os Mb nunca é definitiva), incluindo a
circulação pelas matas e rios de entorno onde isso é possível
5
. A categoria “caminhada”
(jeguata) revela-se categoria-chave para este grupo, o que é enfatizado mesmo pela literatura
etnológica. É improvável que a pesquisa etnográfica que pretende dar conta da sociabilidade
Mb em toda sua dimensão alcance seus objetivos fixando como foco uma única aldeia, que
apresenta sempre um número oscilante de habitantes e famílias (GARLET, 1997). Essa
mobilidade fundamenta dinâmicas sociais que não se concentram numa única aldeia, mas no
conjunto de aldeias que estão distribuídas na mesma amplitude de seu terririo tradicional,
incluindo a Yvy Mbité (Paraguai), Pará Miri (Argentina) e Pa Guaçu (litoral do Brasil).
Projetar o estudo nesta direção mais ampla é necessário para não reduzir os resultados e
distorcer as disposições sociais que fundamentam a vida Mb. Qualquer comunidade Mbyá
faz parte dessa rede étnica continental.
Devido às próprias características das redes de alianças e de parentesco, aliadas às
contingências de minha inserção etnográfica, acabei estendendo o universo para outras
aldeias, nas quais também realizei pesquisa de campo, ainda que o foco inicial tenha sido a
Tekoá Koenju, em São Miguel. Assim, meu universo de pesquisa foi se redefinindo ao mesmo
tempo em que se modificava o foco de minha atenção etnográfica. Durante dois anos e meio,
tive intensa atuação em pesquisa de campo junto aos Mbyá na aldeia Tekoá Koenju e no Sítio
Arqueológico de São Miguel Arcanjo, o que forneceu muitos dados. No entanto, ao delimitar
a problemática da dialogia dos Mbyá com atores institucionais, tive que incluir e enfatizar
também como parte da pesquisa os espaços de interlocução nos quais eles interagem, fora e
dentro de suas aldeias, nas situações em que eles se voltam a comunicar suas especificidades.
Por outro lado, não se buscou ampliar o universo de maneira a tornar a pesquisa
impraticável. Não se tratava de estender a pesquisa para todas as comunidades Mb do Rio
Grande do Sul, para conseguir mapear e detalhar toda sua dinâmica cultural e étnica. Foi
necessário escolher uma estratégia metodológica para conseguir restringir a amplitude do
campo de pesquisa, surgindo, por fim, como alternativa a seleção de situações de encontro
entre os Mbyá e não-indígenas, dentre aquelas que o percurso desta investigação permitiu
4
Para comentários mais detalhados sobre as visitas Mbyá, veja Garlet, 1997:162-166.
5
Pois na maioria dos casos, o entorno às aldeias é composto por propriedades privadas, fazendas, sítios etc.,
onde o acesso dos índios geralmente não é permitido, salvo algumas exceções.
19
registrar para derivar interpretação antropológica paralelamente à etnografia realizada em
cenários intra-étnicos. Assim, o universo desta pesquisa pode ser definido através do
reconhecimento e da classificação de cenários espaciais, cada um deles retratando situações
etnográficas, que se sucederam no tempo e que demonstram a interação dinâmica da tradição
Mb com a historicidade de seus atores.
As contradições entre os Mbyá e as instituões brasileiras são históricas, reproduzindo
a hegemonia do pensamento ocidental, do modelo de sociedade homogênea, construída pela
neutralização da diversidade, fator marcante na maneira como representantes de ambas as
partes estabelecem mútua interação. Assim, é importante também reconhecer que minha
chegada entre os Mbyá aconteceu através das instituições que eu representava e a reação deles
ocorria a partir dessa posição. Hoje, é possível reconhecer que a ligação com a UFRGS e com
o NIT foi fator de grande importância para conduzir minha positiva - inserção etnográfica,
pois permitiu que eu atuasse dentro e em atividades realizadas por outras instituições, sem que
o elo de ligação com o perfil de engajamento do NIT fosse quebrado pelas decisões poticas e
cnicas que restringem os direitos dirigidos aos indígenas. A história de trabalho do NIT
junto às comunidades indígenas serviu para abrir zonas de acesso que de outra maneira,
talvez, não seriam ultrapassadas, seguindo o rastro de outros etnólogos saídos da UFRGS e
hoje atuantes em diversas instituições, que realizam um trabalho reconhecido pelos Mbyá
6
.
Concluo que apesar da constatação recorrente da dificuldade de acesso aos Mb, minha
inserção e aceitação por parte deles não enfrentaram resistências intransponíveis.
Parte dessa facilidade para minha inserção etnográfica adveio dessa filiação ao NIT e
de uma empatia pessoal mútua estabelecida com os representantes Mbyá, embora quase todos
fossem homens. Porém, meu êxito também resultou da atual postura destes representantes,
que se abrem ao diálogo e que ocupam posições de mediação entre as instituições da
sociedade brasileira e o interior das comunidades em que vivem. De uma posição de
invisibilidade étnica (primeira metade do século XX), passando pela devisibilidade inlita
(últimas décadas daquele século, cf. Souza, 1998), as comunidades Mbyá-Guarani estão cada
vez mais evidentes aos olhos e ouvidos do cidadão comum e aos representantes das
instituições públicas.
6
Cito aqui algumas dessas pessoas: Mariana Soares, antropóloga da EMATER/RS; Ivonete Campregher,
cientista social que há quatro anos e meio ocupa o cargo de coordenadora executiva do CEPI; Lúcio Roberto
Schwingel, antropólogo que atua no COMIN; Luciane Ferreira, antropóloga consultora da FUNASA; Miriam
Chagas, antrologa do Ministério Público Federal; Ana Elisa Freitas, antropóloga da Prefeitura Municipal de
Porto Alegre; afora acadêmicos das ciências sociais que realizam ou realizaram estágios nesses órgãos, como eu
(CEPI); Carlos Eduardo de Moraes (CEPI); Jankiel de Campos (MPF); Ana Cristina Popp (CEPI); Maria Paula
Prates (MPE) etc.
20
Esta dissertação está organizada da seguinte forma: nos capítulos iniciais (I e II),
procurou-se demonstrar a importância de iniciar o esboço de descrições alegóricas (porque
não como fugir da alegoria, cf. CLIFFORD, 2002) da realidade etnográfica dos Mbyá,
encadeando certas histórias específicas que afetaram o percurso da pesquisa para, através
delas, apresentar as opções conceituais adotadas. Isto é, entrelaçando o registro sobre meus
encontros com os Mb em ligação com o das suas narrativas e seu desempenho no cotidiano
e no trato com os representantes das instituições, avaliando isso em diálogo com as idéias
extraídas da antropologia (e das ciências humanas de forma mais geral).
Estas histórias e idéias serviram para introduzir, aos poucos, o entendimento da
alteridade Mbyá-Guarani, construindo-a enquanto configuração de processos
autodeterminados de incorporação dos símbolos culturais diretamente nos corpos e mentes
das crianças, pelas práticas intraétnicas do dia-a-dia (como demonstra a etnografia de Marcelo
Larricq [1993], em comunidades Mbyá-Guarani em Misiones). Trata-se do valor primeiro
dado aos corpos (enquanto a primordial “ferramenta” da humanidade) e ao espaço que os
contêm enquanto deposirios do investimento coletivo através do tempo, para entender de
onde surge esta alteridade. A opção interpretativa escolhida recaiu nas dimensões da práxis na
reprodução de um habitus (BOURDIEU, 2002), ou seja, destacar a “fabricação de corpos”
entre os Mbyá, tecendo alegorias (fazendo uma síntese entre dados empíricos e tricos) sobre
a atualização de filtros perceptivos (HALL, 2005) e sobre fragmentos de reflexões simbólicas
atualizados entre eles. Os dados da etnografia nos espaços de negociação foram integrados a
referências conceituais da antropologia que valorizam a interpretação, enfatizando as
dimenes práticas e comunicativas dos sistemas culturais que interagem e compõem o meio
Mb. Enfatizei os comportamentos dos Mbyá enquanto atuações e expressões de seus
corpos, fazendo parte de suas narrativas e similar à escritura de um discurso étnico, porque as
ações e as palavras são pistas interessantes para se arriscar hipóteses etnográficas sobre a
construção dos Mbyá do meio e das circunstâncias particulares por eles vividas, permitindo
acessar releituras da sua própria cosmologia.
No entanto, o texto chegou a essa configuração depois, reproduzindo a mesma
seqüência que o percurso etnográfico. No começo, foi preciso narrar as histórias dos Mbyá
como elas se revelaram para mim, quando os reconheci participando das fronteiras
interétnicas, construindo conscientemente sua auto-imagem, articulando e negociando,
apresentando reações maleáveis conforme os jogos de espelhamento e as circunstâncias de
interação com outros segmentos da sociedade no Rio Grande do Sul. Descobri os Mbyá em
21
meio a relações de poder, nos pontos de junção com forças externas (agentes indigenistas,
interesse privado sobre a terra e seus recursos econômicos, manipulação política, instituições
governamentais e não-governamentais, ações de tutela etc.) e fazendo alianças com membros
de outras etnias (nhemongue/mobilização), movimentos e entidades indígenas, partidos
políticos, movimentos e entidades populares, além de antropólogos. Quando conceitos como
“fusão de horizontes”, “matriz disciplinar”, “heteroglossia” e as contribuições das teorias de
identidade e de etnicidade foram trabalhados, foi para trazer diversos aspectos que
extrapolassem a noção simples de diálogo (interinstitucional, interdisciplinar e interétnico)
pela idéia de “espaços de negociação”, para reconhecer que os Mbyá estão fazendo sua auto-
imagem na relão com estereótipos genéricos e vigentes no senso comum sobre os índios”,
os “Guarani e os Mbyá”, em suposto estado de menor ou maior grau de decomposição
cultural.
No Capítulo III, A integralidade da cosmovisão Mbyá frente à saúde em ministério”,
relaciono dados etnográficos para explicitar as distâncias existentes entre as concepções
modernas que fundamentam e são reproduzidas pelas práticas governamentais e não-
governamentais sobre “saúde” no Brasil , e as representações cosmológicas Mbyá que
podem ser percebidas das narrativas e práticas daqueles que assim são reconhecidos. Apesar
do limite ao seu conhecimento pela dimensão de mistério que eles nos impõem, se percebe o
quão diferentes o do paradigma fragmentado biomédico através do qual se efetiva o
atendimento à saúde dos Mbyá-Guarani.
Por fim, no Capítulo IV, trago três casos etnográficos que ilustram uma vertente da
mobilização étnica dos Mb no Rio Grande do Sul, que se converteu em projeto elaborado
por lideranças Mbyá o Jeguatá Tape Porã, Caminho Belo da Tradição , mas cuja
identidade recua aos propósitos do Mbyá rekó valorizado por lideranças espirituais-poticas
mais velhas como Karaí Perumi (Mário Acosta), Karaí Tenondé João de Oliveira (Juancito),
Karaí Alex Benitez, Karaí Agostinho Duarte, Kunhã Karaí Laurinda, Karaí Alberto Aguirre
Brizuela etc. O projeto Jeguatá Tape Po é a recuperação do nhemongüé Mbyá kuery
(mobilização Mbyá), numa outra conjuntura histórica, agora, para envolver parceiros juruá no
apoio deste objetivo, provocando ações conjuntas entre instituições que são
administrativamente separadas, fazendo com que recursos destinados ao atendimento
diferenciado das demandas Mbyá promovam a criação de espaços diferenciados de diálogo,
nos quais suas decisões derivem dessa mobilização segundo sua própria tradição.
22
Se a antropologia é, como se diz comumente, um “encontro
com o outro”, ela é, certamente, a disciplina privilegiada para
fazer tamm a análise dos encontros e, por que o dizer, dos
desencontros entre as rias culturas, das estratégias, da
dominação e da resistência que permeiam as relações que se
estabelecem entre diferentes sociedades e mesmo entre
diferentes grupos de uma mesma sociedade (SYLVIA
NOVAES, Jogo de espelhos, 1993:30).
CAPÍTULO 1 ETNOGRAFIA DE INCOMPREENSÕES, CENÁRIOS DE
CONTRADIÇÕES
A etnografia que fundamenta esta dissertação passou por diferentes fases, pois minha
inserção entre os Mbyá aconteceu de maneira gradual. Meu trabalho começou aos poucos,
acompanhando a presença silenciosa ou registrando os pronunciamentos dos representantes
Mbyá-Guarani em reuniões realizadas bem longe de suas aldeias. Pude observar seus
percursos na interlocução que travavam com representantes de diversas instituições
governamentais e o-governamentais no Rio Grande do Sul. Enquanto conquistava maior
intimidade com alguns deles, acompanhava também seu esforço por empreender esse
“diálogo” marcado por incompreensões. Suas falas acusavam de maneira enfática a falta de
entendimento por parte dos administradores que os envolviam nessas reuniões.
De um lado, estavam os administradores e cnicos buscando efetivar as adequações
impostas pelo texto constitucional, procurando atender o aparecimento de demandas
“diferenciadas”. De outro, se evidenciava a emergência de uma grande variedade de grupos
sociais, cada um deles esperando atendimento especial na execução de programas oficiais e
especiais de inclusão. Desdobravam-se outros “diferentes” entre os que pareciam homogêneos
em suas diferenças, forçando constantemente o limite de aceitação da diversidade, colocando
em xeque continuamente práticas homogeneizantes de agentes não-indígenas e suas
instituições.
A diferença genérica e inicial entre índios, negros e brancos tornava-se insuficiente.
Entre os índios, os representantes Mbyá enfrentavam dificuldades para sua plena aceitação,
23
porque os Kaingang e os Xiripá
7
são as etnias que possuem reconhecimento mais antigo por
parte do indigenismo oficial. Pude observar a dificuldade de representantes institucionais em
discernirem e tratarem adequadamente a especificidade de cada uma das muitas minorias
existentes, em meio a essa diversidade. Tal diversidade emergiu abruptamente aos olhos e
ouvidos dos que se apresentavam como os encarregados pelo Estado para atendê-la,
deslocando o tratamento genérico da cidadania para conseguir equacionar a especificidade da
questão indígena em meio a essa multiplicidade étnica e cultural; a especificidade Guarani em
meio aos indígenas; a especificidade dos Mbyá e, mais além, a especificidade de cada
comunidade Mbyá; senão, de cada família Mbyá. Em cada um desses níveis, surgiu a
necessidade de desconstruir estereótipos e superar preconceitos por parte dos que fazem o
papel de representantes do Estado. Na etnografia desta pesquisa acompanhei momentos
ilustrativos desse processo.
O início de minha trajetória na questão indígena se deu durante os últimos semestres
do curso de graduação, quando realizei uma pesquisa etnográfica entre os Kaingang, em 2002,
o que originou o trabalho de conclusão do curso. A partir dessa primeira inserção,
descortinou-se um vasto horizonte de acontecimentos. Coincidentemente, passei a observar
relações estabelecidas em espaços melhor entendidos enquanto de negociação, lugares e
circunstâncias que interligavam (e interligam) comunidades indígenas e a criação e execução
de políticas públicas diferenciadas. Paralelamente à pesquisa de campo realizada nas aldeias
Kaingang, passei a participar de quase todas as reuniões promovidas pelos diferentes órgãos
institucionais sobre as questões pontuais envolvendo as etnias existentes no Rio Grande do
Sul (Kaingang, Mbyá e outros Guarani), que aconteciam em Porto Alegre, onde moro.
Tratava-se de um momento de descoberta para mim, no qual a cada dia tornava-se mais clara
a complexa conjuntura que envolve a realidade indígena e a dificuldade em concretizar o
reconhecimento da diversidade.
A partir desses espaços de negociação, fui entrando em contato com os inúmeros
fatores e personagens envolvidos, desde a esfera jurídica que impôs constitucionalmente o
reconhecimento da pluralidade cultural e étnica do país, à sua (não) efetivação na realidade
empírica dos grupos indígenas, passando pela surpreendente capacidade de argumentação
ainda que não em suas nguas maternas – manifesta pelos representantes indígenas (Kaingang
7
A população indígena no Estado totaliza em torno de trinta e oito mil indivíduos, divididos em quase quarenta
comunidades de fala Kaingang e quase trinta outras de fala Guarani, a grande maioria constituída por Mbyá-
Guarani. Os Kaingang possuem uma interação histórica com os agentes estaduais desde o início do século XX,
assim aconteceu também com algumas comunidades Xiripá que possuem fala Guarani e se diferenciam
etnicamente dos Mbyá.
24
e Mbyá-Guarani). Em suas falas, sempre incisivas, os representantes indígenas deixavam
claro seu descontentamento e crítica às formas pelas quais se efetivavam as poticas públicas
(que se pretendiam diferenciadas) dentro de suas comunidades. Ao mesmo tempo, eu percebia
a angústia e ânsia dos representantes institucionais em pautar suas réplicas para justificar aos
representantes indígenas suas imeras dificuldades em seguir o caminho que estes últimos
procuravam lhes indicar como o mais adequado. Da platéia, mesmo para uma iniciante”
como eu, era possível perceber que não se tratavam exclusivamente de dificuldades
administrativas, burocráticas ou legais, mas principalmente daquelas advindas de um não
entendimento mútuo de ritmos corporais, performances e discursos.
Nessa rotina que assumi, procurando acompanhar os espaços de negociação
interétnicos na cidade, uma das situações que merece destaque para ilustrar as diversas
posições políticas, ideológicas, cosmológicas em conflito neste período é o Seminário
“Sustentabilidade e Diversidade Sócio-Cultural”, que aconteceu entre os dias 9 e 10 de
setembro de 2003. O Seminário foi organizado em parceria entre a Pró-Reitoria de Extensão
da UFRGS e a Secretaria da Agricultura e Abastecimento do estado, com o objetivo principal
de estabelecer diálogo entre as comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas, pescadores,
samambaieiros e artesãos), a universidade e o Ministério Público Federal.
1.1 O SeminárioSustentabilidade e Diversidade Sócio-Cultural”
Era o início do mês de setembro, uma segunda-feira. Saí de casa, na zona central da
cidade de Porto Alegre e fui caminhando até o Campus Central da UFRGS, distante,
aproximadamente, 200 metros. Por ter estudado durante o curso de graduação e de pós-
graduação no Campus do Vale da UFRGS, ir ao Campus Central sempre estimulava meu
exercício de estranhamento o “olhar do etnógrafo” ao imergir num cenário que não fazia
parte de meu cotidiano. Além disso, para mim, aquele cenário representava o centro da
formalidade acadêmica, um espaço mais nobre do que já o é a universidade como um todo,
por concentrar o poder administrativo e os símbolos de autoridade. Ao me aproximar do
prédio da Reitoria, observei uma presença e movimentação ainda mais estranhas do que as
usuais. Representantes Mbyá-Guarani, Kaingang, quilombolas circulavam no saguão do Salão
de Atos, parando por vezes em pequenas rodas de apresentação e conversação com
25
antropólogos, administradores e estudantes como eu. Alguns representantes Mbyá já me eram
conhecidos de outras reuniões e eventos, e os Kaingang conhecia praticamente todos. Os
demais representantes das comunidades tradicionais envolvidas no evento eu tinha total
desconhecimento.
Juntei-me a um grupo de colegas e antropólogos, interando-me sobre a parceria que há
pouco surgira entre a UFRGS e o governo do Estado diante da necessidade de se continuar a
criação e execução de projetos e poticas de sustentabilidade em comunidades “tradicionais”
no território estadual, em adequação aos seus pprios interesses e necessidades culturais
específicas. Foi esta mesma parceria que havia me possibilitado a inserção dentro de duas
aldeias Kaingang no interior do estado, quando participei do Diagnóstico Antropológico no
Projeto Desenvolvimento Etno-sustentável dos Povos Kaingang e Guarani nas Terras
Indígenas de Cacique Doble e Ligeiro, no Rio Grande do Sul, entre maio e setembro de 2002.
Também por isso, além de estar participando de inúmeras reuniões, eu cheguei ao Seminário
já sabendo um pouco sobre as principais divergências e conflitos colocados na execução de
projetos especialmente na área da produção agropecuária nas comunidades indígenas. Eu
previa uma efervescente discussão para os dois pximos dias, pois estariam em confronto e
diálogo posições diversas na forma de inclusão das minorias nas poticas públicas, com seus
protagonistas. Nos bastidores, se comentava as inadequações e incompreensões dos técnicos
em atender as demandas diferenciadas e uma evidente dificuldade de escuta.
A UFRGS e o governo do Estado eram dois parceiros, entre outros, que mobilizavam
recursos e técnicos para tratarem dos problemas indígenas, em paralelo à atuação do
Ministério Público Estadual e Federal. A atuação destes últimos foi anterior ao
comprometimento dos demais parceiros, inclusive, para cobrar da FUNAI, da FUNASA e dos
governos municipais que arcassem com as responsabilidades legais e administrativas que lhes
cabiam. A Constituição Federal destituiu a FUNAI de responsabilidade exclusiva na questão
indígena, diluindo-a entre todas as esferas do Poder blico. Antes da gestão do Governador
Olívio Dutra, o governo do Estado havia criado um órgão consultivo chamado Conselho
Estadual do Índio (CEI), que concretamente pouco operava. Era formado por uma
coordenação não-indígena e não tinha conselheiros que representassem quaisquer das etnias
do Rio Grande do Sul.
A gestão do PT (1999-2002) no governo do Estado fez uma integração de serviços
voltados às “causas difusas”, agregando o atendimento dos direitos diferenciados dentro da
26
Secretaria do Trabalho, Cidadania e Assistência Social (STCAS)
8
, composta por Diretorias às
quais estavam relacionados diversos conselhos deliberativos, incluindo o Conselho da
Mulher, Conselho do Idoso, Conselho do Negro, Conselho do Consumidor e Conselho da
Criança e do Adolescente. Nesse contexto foi criado o Conselho Estadual dos Povos
Indígenas (CEPI), que se tornou deliberativo para a execução de projetos destinados às
comunidades indígenas. Sua composição incluía a nomeação formal (publicada no Diário
Oficial do Estado) de cada conselheiro indígena, representante de cada aldeia, coordenados
por três secretários (um executivo, não-indígena, e dois indígenas, um Kaingang e outro
Guarani) e também conselheiros de cada uma das secretarias do governo que trabalhavam
com as demandas indígenas (planejamento, habitão, agricultura e abastecimento, educação,
saúde, meio ambiente etc.). O CEPI passou a funcionar num sistema tripartido, com número
igual de conselheiros Kaingang, Guarani e institucionais.
Esse governo de Olívio Dutra (PT) obteve recursos do Banco Mundial para a
execução, através do Programa RS Rural, de projetos destinados aos grupos desfavorecidos,
destacando a atenção aos grupos indígenas e negros, e separadamente aos demais movimentos
sociais que davam suporte político ao seu governo. Talvez mais pelo empenho pessoal de
algumas pessoas colocadas em lugares estratégicos, do que de uma plataforma explícita do
Partido dos Trabalhadores destinada às minorias, o governo Olívio Dutra promoveu alguns
avanços no tratamento das questões indígenas no Rio Grande do Sul, abrindo, ao menos,
espaço de diálogo antes inexistente e buscando a capacitação de seus técnicos contando com a
participação cada vez maior dos antropólogos atuantes em universidades (UFRGS, PUCRS,
UNISINOS).
Desse período de “mergulho na observação dos espaços de negociação, a partir de
2002, resultou uma grande quantidade de material etnográfico diários de campo com
exaustivas descrições densas, registros visuais e sonoros e uma forte experiência etnográfica.
Naquele momento, meu objetivo inicial era aproveitar esses espaços (as reuniões, fóruns,
seminários, audiências públicas) como oportunidade de aprofundar meu conhecimento sobre a
realidade que tratavam, colocando em prática elementos apreendidos em minha formação
antropológica. Sem ter muita clareza sobre a riqueza de detalhes e informações que eu
registrava em meu ímpeto em entender “aquilo tudo”, o que, inicialmente, parecia apenas um
8
Atualmente transformada em Secretaria da Justiça e do Desenvolvimento Social (SJDS), a partir do início do
governo de Yeda Crusius, em 2007.
27
exercício etnográfico tornou-se um importante material que não pude ignorar nesta
dissertação.
Voltemos à manhã do dia 9 de setembro de 2003, início do Seminário. O saguão do
Salão de Atos foi se esvaziando lentamente, as pessoas dirigindo-se ao interior da Sala II
daquele mesmo prédio, acomodando-se nas cadeiras. A abertura do evento foi realizada pelo
professor Fernando Meirelles (Pró-Reitor de Extensão – UFRGS) que, dando as boas vindas a
todos, ressaltou a necessidade e importância de iniciativas como esta no sentido de buscar
uma maior aproximação dos vários conhecimentos. A seguir, a professora Renita Klüsener
(vice Pró-Reitora de Extensão UFRGS) saudou a todos, afirmou que o diálogo entre as
comunidades tradicionais, a universidade e o Ministério Público era um dos objetivos
principais daquele Seminário e explicitou quais seriam as atividades programadas para os dois
próximos dias. Em seguida, a Secretária Executiva do RS Rural, Fernanda Corezola,
apresentou-se e reiterou a importância da parceria da universidade com a Secretaria da
Agricultura e Abastecimento do Estado no sentido de realizar este Seminário. Também
nomeou as comunidades cujos representantes estavam presentes no evento: Restinga Seca
(quilombola), Martimianos (quilombola), Riozinho (Mbyá-Guarani), Capivari (Mbyá-
Guarani), Estiva/Viamão (Mbyá-Guarani), Lomba do Pinheiro (Mbyá-Guarani), Passo Grande
(Mbyá-Guarani), Passo da Estância (Mbyá-Guarani), Coxilha da Cruz (Mbyá-Guarani),
Pacheca (Mbyá-Guarani), Tavares (quilombola), Itap (Mbyá-Guarani), Morro Alto
(quilombola), Lomba do Pinheiro (Kaingang), Ilha da Pintada (pescadores artesanais)
9
.
Manifestaram-se representantes dos grupos sociais e das instituições. A diversidade de
grupos e instituições participantes criou diversos contextos de debate, numa profusão de falas
aparentemente heterogêneas, mas que demonstram a riqueza e a amplitude do debate criado
naquele momento.
Saúdo a todos, acadêmicos e painelistas. Devemos olhar daqui para e de lá
para cá. O sistema que está aí exclui a todos aqueles que pensam e vivem diferente,
e devemos nos organizar para nos contrapormos ao sistema neoliberal. (...)
Diferença de tempo para reflorestamento, por exemplo, os índios que nasceram entre
as florestas o vislumbram a idéia de plantar árvores. o devemos apenas
relativizar o olhar mas sermos co-autores.
9
Algumas das informações a respeito deste Seminário foram obtidas junto à secretaria da Pró-Reitoria de
Extensão da UFRGS, a partir de uma Ata produzida por eles sobre o Seminário. Todo o evento foi gravado em
áudio, para posterior transcrição e documentação. No entanto, esse trabalho de transcrição o foi realizado de
maneira integral, de forma que a versão que analisei traz lacunas, além de interpretação de algumas falas, ao
invés das falas literais dos participantes. Procurei complementar as informações resgatando meu registro em
diário de campo sobre o evento.
28
Os guaranis nunca vão plantar florestas, como o branco destruiu e nós vamos plantar
de novo. Os projetos devem ser discutidos dentro das comunidades (cacique,
lideraas e índios guaranis), entre os próprios índios deve haver a discuso dos
seus problemas, os índios não sabem, o estatuto, os programas estão sendo feitos por
outras pessoas que não os índios.
Os quilombolas usam do mesmo rio, o mesmo peixe, a madeira da mata, que fazia a
casa pau a pique, é a mesma. Índios e quilombolas usam o mesmo sistema, a mesma
natureza, então eles também devem ser consultados, o homem que trabalha de
verdade, que o verdadeiro valor da mata nativa. Estes projetos devem ser
repassados e discutidos pelas comunidades que de fato são os maiores interessados.
Os índios guaranis também não estão sendo consultados na solução dos seus
problemas.
Que este espaço sirva não para marcar posições mais que sirva efetivamente para
a construção de uma proposta conjunta de sustentabilidade e desenvolvimento (fala
de Ivonete Carvalho, presidente do CODENE, segundo Ata do Seminário
Sustentabilidade e Diversidade Sócio-Cultural, 2002).
Ivonete é negra, representava ali as comunidades quilombolas, mas falava sobre todos
os grupos ali representados, falava, antes de tudo, dos “diferentes”. Veio em seguida o
pronunciamento (incisivo) de um representante Mbyá-Guarani, liderança da aldeia de
Riozinho, Felipe Brizuela:
(...) Oportunidade de nós indígenas pedir o que nós queremos, muitos me
conhecem, mas o que eu vejo nas reuniões, muitas coisas que não mudam, por mais
que dizem que hoje o povo está conseguindo, mas eu não vejo isto.
Quem vai resolver o que precisamos o é o líder, que sou eu, mas as
comunidades, as famílias. Muitos povos foram destruídos, de formas diferentes, mas
todas com as doenças, com sofrimento. Kaingang, Guarani – um rapidamente, outro
lentamente, mas a mesma dor, e não tem solução. Muito trabalham vocês,
Universidade, estado etc. Muitos se comprometem com os povos, mas não ajudam, e
não ajudaram, não tem forma de trabalho, não tem possibilidade de trabalhar.
“Nós queremos dar ajuda, mas os índios não sabem aproveitar”, mas eu não acho
que seja isto, na verdade vocês se aproveitam de nós. Deixar espaço para o povo se
organizar, para poder deixar o povo se falar, se entender e se organizar. Aí você tem
um trabalho perdido. (...) Não existem mais comunidades, mas acampamentos.
“Vocês têm que se organizar”, isto é certo, mas como vamos nos organizar sem
condições? Precisamos de recursos, de apoio.
Até hoje, vocês não chegaram a entender a necessidade do povo, ainda o
conseguimos trabalhar juntos, porque vocês o foram até lá, ficaram na cidade!
Tem que caminhar para conhecer a realidade, tem que ir até lá.
Se não é esta oportunidade hoje, nós não nos falaríamos, encontrei muitos amigos
aqui. Antigamente, a terra o tinha divisões, não precisava contornar as divisas de
terra, a terra era nossa, caminhávamos livremente.
Vocês são estudiosos, mas pelo papel, o pela consciência e pela realidade.
Se meu filho está doente, não serve mais eu saber das ervas, tem que levar no
dico. Não vejo solução. Temos que nos enxergar, possibilidade de nos
enxergarmos, saberemos o que a comunidade necessita representatividade
correta, verdadeira.
29
Estou vendo pescadores, mas as culturas são diferentes, cada qual acompanha sua
cultura, mas caminhando juntamente. A minha língua não dá para vocês entenderem,
vocês não entendem nossa língua. O que acontece é que vocês acham que sabem o
que nós queremos, mas não sabem, vocês não entendem o que nós estamos falando.
Vocês devem deixar nós nos organizarmos, nós não somos ladrões e o fazemos
maldades para ninguém. Deus fez o mundo para nos ajudarmos, não para nos
destruirmos. Não estamos roubando.
O Guarani não quer pegar tudo que o governo quer dar, quer se organizar.
Enquanto o índio está pensando, vocês se aproveitam vocês decidem. O índio
pensa como quer as coisas, é que quer decidir. Se querem ajudar, oportunidade
para o índio se organizar e depois faz o projeto, em cima do que os índios querem.
Dar espaço pra os índios! (Ibidem).
Esta narrativa, além de sua força (d)enunciadora, é paradigmática da distância entre o
tipo de serviço que as instituições podiam prestar e os critérios diferenciados exigidos pelos
Mb. Ela denuncia que os Mbyá não reconheciam avanços concretos, alertando que muito se
falava a respeito da diferença, mas pouco se fazia. Para os Mbyá, os acadêmicos, técnicos e
administradores estudavam muito no papel e não saíam de dentro das cidades, o que os
impedia de entender a realidade efetiva das aldeias. Eles eram claros ao dizer: apenas
respeitando o espaço de organização interno de cada comunidade, realizando projetos com o
envolvimento efetivo de todas as pessoas implicadas, é que alguma iniciativa do governo
poderia trazer resultados satisfatórios. Essa mensagem, uma vez “ouvida” de fato pelo juruá,
não deve nunca ser esquecida, pois ela aponta para elementos fundamentais do Mbyá rekó e
da possibilidade de verificação do reconhecimento à diversidade cultural, social etc.
Voltando ao contexto do Seminário, a presença, forma de organização e hegemonia
das instituições ficaram evidentes desde o cenário onde tudo se deu. A Reitoria, o espaço
acadêmico e as condições de um plenário composto por cadeiras voltadas para um palco
distante, onde as pessoas não se vêem por estarem umas de costas para as outras, o uso do
microfone para falar, as luzes fortes nos olhos de quem está na mesa de debate; enfim, tudo
isso impôs constrangimentos e estranhamentos aos representantes dos grupos sociais,
acostumados certamente com outros cenários e outros ritmos corporais para dialogar na busca
de respostas aos seus problemas. Isso também ficou demarcado no momento da abertura do
Seminário, na medida em que representantes do governo e da universidade faziam a
coordenação das sessões. O diálogo foi ampliado quando foi aberto às manifestações das
vozes de negros, de índios e demais grupos, como descrito acima. Logo em seguida, os
antropólogos também integraram suas vozes numa espécie de heteroglossia instituída naquele
cenário, demonstrando seu papel de fazer as pontes” e “traduzir” as diversas posições nesse
diálogo:
30
O direito à diferença é garantido por lei para os povos indígenas. O que vem
a ser sustentabilidade para os Guaranis? (...) Como dialogar com estas comunidades?
Tem que vir as demandas da comunidade, mas quem faz o projeto é o Estado, quem
o executa é o Estado, e diz de que maneira o índio tem que usar o recurso “não
pode matar a vaca, tem que suar à enxada, assim, assado” etc.
(...) necessário que se criem] espaços de participação diferenciada, nas aldeias.
Este não é o sistema do Guarani de fazer reunião, de usar a palavra. Eles tiveram que
se adaptar a nossa forma de usar a palavra.
A burocracia sempre se colocando como inviabilizadora da execução de projetos
simples, de custos baixos. Temos que ter humildade de reconhecer que não sabemos
nada sobre estes grupos. Muitas vezes criamos projetos que criam conflitos internos
dentro das comunidades. Em vez de ajudar, criamos mais problemas. Primeiramente,
temos que aprender a ouvir e dar espaço para que se organizem (Palavras de Luciane
Ouriques Ferreira, Ibidem).
Sérgio Baptista da Silva (NIT/UFRGS) foi outro antropólogo a fazer esse papel de
mediação:
[Precisamos] conhecer para respeitar. Este espaço de interlocução tem que se
deslocar, não pode parar por aqui. Precisamos ter interlocução com os diversos
grupos para entendê-los e a partir daí [fazer] políticas de sustentabilidade coerentes
com estas lógicas, de cada grupo, com suas culturas e concepções de mundo.
(...) Sobre cada animal existe uma narrativa, um mito, uma história. Em cada objeto,
estão representadas idéias e identidades. Quando um Kaingang um objeto de
produção sua, ele se vê naquele objeto. A concepção de mundo de cada um destes
grupos, a cosmologia, está vinculada às práticas sociais cotidianas destes grupos
(Ibidem).
(...) Outros (futuros) seminários devem acontecer, porém, de outras formas, nem
sempre devem ser deste modo ocidental de se reunir. Devem acontecer seminários
nas aldeias, junto aos Karaí, à comunidade. Eu pergunto: como este diálogo está se
dando? É uma questão importante a se analisar aqui neste espaço.
(...) Para gerar políticas públicas, é necessário entender em qual comunidade, em que
momento, com que demandas, se quer aplicar tal projeto, tal política. Os projetos
devem ser pensados de acordo não com o tempo ocidental. (...) Respeito àquilo
que as comunidades realmente demandam. Se querem um carro para buscar taquaras
para construir uma casa de orações, é isto que tem que ser considerado.
(...) Não existe o índio genérico. Cada comunidade indígena tem suas
particularidades, possuem diferentes representatividades. (...) A etnicidade desses
grupos se acentua nas cidades e não o contrário. A afirmação étnica na cidade é
exacerbada, é importante que se entenda, se perceba isso (fragmentos do diário de
campo).
O Ministério Público Federal também esteve presente, como ocorria freqüentemente,
reproduzindo a importância de sua atuação naquela conjuntura. Ao longo da década de 1990-
2000, a Procuradoria da República no Rio Grande do Sul consolidou sua atuação através de
31
procuradores como a Doutora Ieda Lamaisson, estabelecendo a rotina de promover reuniões e
audiências públicas integrando as instituições blicas a fim de adequá-las ao atendimento
dos grupos diferenciados formadores da sociedade regional. Em termos nacionais, o quadro
profissional do MPF passou a contar com antropólogos, como exemplifica a nomeação de
Mirian Chagas. De 2000 até hoje, o MPF refoou essa rotina de pressionar os órgãos
públicos para a criação de atendimento diferenciado aos grupos indígenas e negros
10
. A fala
do Procurador da República Marcelo Beckhausen ilustra aspectos desse posicionamento e
atuação:
O diálogo entre os agentes públicos e os antropólogos é fundamental para
criar políticas públicas realmente adequadas. assim a Constituição estará sendo
aplicada e respeitada, representando o direito à diversidade étnica e cultural que lá
consta. Senão, não passará de um texto, um papel. As pressões políticas é que
conseguem fazer com que a Constituição seja cumprida (Ata do Seminário de
Sustentabilidade e Diversidade Sócio-Cultural, 2002).
Um representante Mbyá-Guarani
11
reitera a inadequação dos espaços urbanos de
negociação, criados e disponibilizados para a decisão dos projetos e diretrizes das poticas
diferenciadas:
[Tem que] fazer a reunião com todos, na comunidade. Aqui me sinto outra
pessoa, dentro da comunidade me sinto natural. Se você quer amizade com um povo,
tem que entender. Não é assim a regra, “tem que ser assim”. Pensa o guarani: eu
quero vaca, [o governo] dá. Se não der [para viver], posso matar para comer. Não
pode.
Não é uma ou duas reuniões por ano, é lá na comunidade. Não estamos dizendo que
vocês são mau caráter, mas que vocês têm que entender (Ibidem).
Este Mbyá referia-se à metodologia utilizada pelos técnicos do Programa RS Rural
para elaborar os projetos de geração de renda e produção alimentar nas aldeias indígenas que
consistia em realizar reuniões esporádicas e repentinas (aos olhos dos indígenas), que não
possibilitavam a organização comunitária efetiva, chamando apenas um representante de cada
aldeia para tomar decisões que afetariam toda sua comunidade. Além de tudo, isso gerava
conflitos políticos internos que muitas vezes esses técnicos nem tomavam conhecimento.
era, com certeza, um avanço que as instituições bicas estivessem dirigindo recursos
10
Informações fornecidas por JoOtávio Catafesto de Souza, em outubro de 2006.
11
Seu nome não consta na ata (como o de vários outros) e eu também não o conhecia, de forma que aparece aqui
anônimo.
32
humanos e financeiros e executando projetos destinados a grupos minoritários, segundo os
critérios de uma administração participativa, que pretendia incluir. Porém, mesmo assim, os
representantes indígenas estavam lá para mostrar que havia ainda muito que avançar,
conhecer, relativizar. As falas críticas dos representantes indígenas geraram posições de
“defesa” por parte desses técnicos, como ilustra o pronunciamento de um dos consultores do
RS Rural, André Lima:
Vi que bastante se falou do RS Rural, mas fica difícil debatê-lo sem termos
apresentado o instrumento. Não no sentido de rebater críticas, mas quero trazer o
instrumento. Qualquer instrumento para trabalhar com as diversidades culturais é
totalmente novo em termos de Brasil, porque até hoje o Estado preocupou-se em
desmanchar estas culturas.
Vamos debater o RS Rural, temos todo interesse.
O RS Rural tem um enfoque específico para cada grupo, e não tem estas limitações
de não poder pagar deslocamentos dos índios, porque não chegou esta demanda?
Cirilo, porque não chegou esta demanda? O CEPI é que decide onde pôr o dinheiro.
Em nenhum lugar se obrigou a ter ou não açude. Talvez o técnico da EMATER não
soube dizer isto, talvez nossos tempos de fala sejam diferentes; mas o instrumento
RS Rural sempre teve esta ótica. O RS Rural não presente, faz projetos com as
comunidades.
(...)
Temos algumas liberdades, mas estamos presos às regras do Banco Mundial e do
Estado.
As comunidades também têm que conhecer a cultura do branco, porque se só o
branco conhece, também é dominação.
(...) Temos todo interesse em discutir o instrumento, mas para isto, vamos conhecer
o instrumento e apresentar propostas (Ibidem).
Após esta manifestação, outras se somaram, proferidas por outros técnicos e
consultores do Programa. Eles argumentavam sobre as razões que os levaram a executar os
projetos da maneira como aconteceram. Admitiram falhas, mas, ao mesmo tempo, colocaram
responsabilidade nas comunidades por muitos dos equívocos advindos, de, por exemplo,
disponibilizar vacas de leite para comunidades que não consomem leite; fornecer cavalos para
índios que não sabem lidar com esses animais; entre outros problemas específicos que foram
rapidamente discutidos, naquele momento, entre os representantes de algumas comunidades e
os técnicos do Programa.
Sucessivos séculos de aplicação de políticas indigenistas voltadas à integração e
assimilação dos povos indígenas geraram um evidente despreparo ou baixa capacidade dos
representantes do Poder Público em fazer as adequações às demandas diferenciadas das
33
comunidades indígenas. As mudanças exigidas esbarravam em incompreensões e em
despreparo dos técnicos colocados na ponta do processo de adequação dos projetos com fins
sociais, mas também existiam razões mais estruturais a condicionar tais programas, ao menos
assim argumentavam os antropólogos:
Minha crítica vai aos dirigentes maiores, que não m como sustentar este
tipo de programa com recursos oriundos de fontes internacionais capitalistas, porque
este dinheiro já vem viciado em termos de rubricas e de cronograma. Não é uma
razão puramente humanitária do Banco Mundial em subsidiar recursos, tem
interesses por trás: exige-se que se convençam as comunidades tradicionais, os
chefes das comunidades tradicionais, que eles têm que se integrar à produção, à
grande produção capitalista, oferecerem menos resistência ao mercado. Entretanto, o
mais importante no projeto não é o dinheiro, não é a ótica individualista do ganho ou
de pagar o preço pelo investimento. Como fica a ótica comunitária, social? O
representante indígena é representativo? Quando ele representa a comunidade fora e
se afasta do convívio familiar, ele perde o respaldo da comunidade. A forma de
organização do homem branco tira os representantes indígenas do seu meio
doméstico e aí descaracteriza a sua representatividade. Ele fica em Porto Alegre, três
dias comendo e passando bem e quando volta, sua família passou fome três dias.
Os técnicos chegam nas comunidades e dizem: “Se não fizer o projeto até amanhã, a
comunidade de vocês não será contemplada”. Instaura-se a ótica da pressão. É
preciso equacionar a sustentabilidade fora da lógica do capitalista, entendendo a
sustentabilidade dentro de uma ótica de reciprocidade. O banco do índio é a barriga
(não o Banco Mundial), quando se tem o que dividir, faz-se um grande “banquetee
todos comem. Os índios usam seu sistema tradicional de reciprocidade e aí dizem
que eles são imprevidentes (palavras de José Ovio Catafesto de Souza, Ibidem).
As discussões do evento possibilitaram sistematizar algumas conclusões, que
evidenciavam os principais problemas diagnosticados ao longo dos debates. Foi recorrente a
ressalva de ser fundamental a criação de espaços para que as comunidades se organizassem
em seus tempos específicos, respeitando suas diferentes falas e ritmos. Foi consenso também
que os técnicos e poticos deveriam conhecer mais profundamente as comunidades
contempladas com projetos, indo aos espaços das comunidades o mais freqüente possível para
nesse contato elaborar ações conjuntas e adequadas às especificidades de cada uma delas.
Os debates ficaram entre os parceiros presentes e proponentes do Seminário,
focalizando temáticas de produção rural (cultivo, criação, geração de renda, sustentabilidade,
satisfação alimentar) e antecipando a elaboração de novos projetos a serem realizados no
próximo ano pelo governo do Estado. Houve uma verdadeira negociação, em que os
representantes indígenas se queixaram da maneira como os projetos foram elaborados e
executados pelo RS Rural, mas também deixaram claro que querem continuar recebendo esse
tipo de incentivo, respeitando em primeiro lugar a lógica de cada comunidade a ser
contemplada. Uma das marcantes conclusões finais do Seminário foi a de que propostas de
34
atividades econômicas são formas de inclusão social, desde que pautadas pela noção de
sustentabilidade e pela lógica da reciprocidade que vigora em cada aldeia e em cada
acampamento.
Por um lado, o evento fazia parte de uma situação favorável ao atendimento da
diversidade pelos poderes públicos. Por outro, houve queixa dos índios contra a falta de
preparo dos técnicos da EMATER e do RS Rural em trabalharem junto de suas comunidades.
Houve a manifestação de alguns técnicos, esclarecendo que colonos, caboclos e índios eram
todos tratados de maneira semelhante por eles. Isso gerou a conclusão de que tais cnicos
precisavam fazer cursos de capacitação e adequação ao atendimento para cada uma das etnias
indígenas, para que eles se tornassem aptos a trabalhar com as diferenças existentes entre as
tradições culturais dos Kaingang e dos Guarani.
O índio genérico apresentava-se como estereótipo contra o que representantes
Kaingang e Guarani buscavam se livrar. De um lado, técnicos e administradores começando a
pensar nos índios” enquanto categoria genérica, de outro, aqueles representantes lutando
contra a generalidade desse pensamento. Como a imagem de “índio genérico” parecia
preservada, junto dela estava também presente a noção de que os “verdadeiros índios” são
aqueles que vivem na natureza, afastados da civilização e dentro das áreas indígenas
oficialmente reconhecidas pelo governo federal (atras da FUNAI). Talvez por isso o
Seminário tenha chegado à conclusão de que o Estado deveria atender também as
comunidades indígenas que vivem em áreas urbanizadas (como acontece em Porto Alegre),
cujos representantes reclamaram veementemente ao longo do evento da falta de atenção
por parte dos governos municipais, estadual e federal com relação à sua situação. Essa
discussão sobre o reconhecimento e inclusão dos índios urbanos” nos Programas destinados
às populações indígenas seria cada vez mais intensificada nos espaços de negociação dali para
frente, como pude de fato constatar.
A grande diversidade de situações expostas, nas quais vivem índios, negros,
pescadores, artesãos; a reivindicação reiterada pela realização de diagnósticos micro-locais; o
pedido de que as ações ocorressem através de vínculos efetivos entre os técnicos e as
comunidades em que atuam: todos esses foram fatores que alargaram o horizonte de
atividades a serem realizadas pelos administradores envolvidos, talvez de uma forma muito
além do que esperariam os gestores das políticas públicas, na conjuntura de atenção à
diversidade cultural no Brasil.
35
Embora manifestando a divergência de posições, concepções e papéis, o Seminário
“Sustentabilidade e Diversidade Sócio-Cultural” foi um evento paradigmático para a
interpretação daquele momento. Sua descrição é feita aqui como uma alegoria, no sentido
dado por Clifford (2002), em sua obra “A experiência etnográfica: antropologia e literatura no
culo XX”, da multiplicidade de posições, da diversidade de vozes estabelecidas nesse
diálogo nem sempre harmônico, mas construtivo entre agentes e instituições que ajudam a
compor o Estado brasileiro e a pluralidade étnica que ele representa e deve proteger. Isso foi
expresso pela presidente do CODENE, Ivonete Carvalho, ao final do Seminário:
Este evento atingiu o seu verdadeiro objetivo estamos de parabéns.
Conseguimos aqui abrir nossos baús e colocando nossas dificuldades e diferenças
para avançarmos rumo à inclusão, o quanto temos em comum, a unificação de
nossas lutas. Historicamente as lutas ganharam quando se uniram. Direitos
humanos são universais e inter-relacionados: democracia, inclusão e
desenvolvimento sustentável. Uma não pode existir sem as outras.
(...) Envolvimento a partir das diferenças e ações concretas de inclusão destas
comunidades.
Todo mundo que falou disse a mesma coisa: que o olhar daqui prá lá não dá certo.
Então quem sabe, fazemos o movimento contrário: de lá para . Pensar alternativas
de sustentabilidade a partir destas vivências, dos povos, das suas realidades locais.
Novos horizontes para a sociedade que está aí. Não se tem um sistema preparado
para nos incluir de fato (Ibidem).
1.2 Fronteiras culturais, (des)preparo institucional no reconhecimento à diferença e às
estratégias Mbyá-Guarani
O último depoimento reproduzido acima reconhecia o despreparo do sistema social
mais amplo para que a inclusão ocorresse de fato. Embora reiteradas manifestações sobre a
importância do reconhecimento da diversidade cultural, diversos impedimentos precisavam
ser superados e tornavam-se necessárias iniciativas concretas para fazer tal reconhecimento
institucionalizado. Embora os dispositivos constitucionais se adequassem aos parâmetros
da antropologia que estuda os processos étnicos, por outro lado, parecia que as instituições
não conseguiam assimilar tais parâmetros, como se seus agentes estivessem presos a noções
antropológicas ultrapassadas, daquelas formuladas nos tempos em que os contatos entre a
civilizão e os grupos indígenas eram vistos como inevivel perda cultural por parte dos
últimos. Os direitos originários protegidos na Constituição Federal o pareciam
reconhecidos entre os executores das políticas públicas, um tanto por desconhecimento da
36
realidade indígena, outro tanto talvez por se desacreditar que os índios existissem no Rio
Grande do Sul de maneira legítima, estado tido como de origem basicamente européia e
mestiça (o gaúcho).
Ao mesmo tempo, os Mbyá-Guarani participavam e participam ainda desse
contexto de reuniões, sempre tão silenciosos quanto contundentes e precisos em suas
esporádicas falas, da forma como já ilustrado acima. Quando falavam, os representantes Mbyá
provocavam reações facilmente observadas entre muitos do público não-indígena, fisionomias
de surpresa que eu imaginava provavelmente parecidas com a minha, de admiração por
escutar o alcance simlico do seu pensamento (e do nosso também), das mensagens
transmitidas em alto e bom tom, e, ainda por cima, em Português. Sua forma sutil, mas
marcante de participação, foi se tornando objeto de minha atenção, ponte a partir da qual
comecei a desdobrar minha pesquisa sobre padrões e formas de alteridade manifestas pelos
representantes Mbyá.
Estes acontecimentos locais reproduziam transformações mundiais no tratamento da
diferença, conforme observou João Pacheco de Oliveira (2004):
À diferença do mundo que surgiu com o advento do Iluminismo e da
Revolução Francesa, o mundo globalizado de hoje valoriza bem mais as diferenças
culturais internas às nações formalmente constituídas. O que não significa, é claro,
que chegamos ao paraíso territorial, mas sim que agora as diferenças culturais são
exploradas pela indústria do turismo e do lazer, domesticadas por intermédio de
políticas públicas (como o multiculturalismo), sendo usadas ainda como fermento
gerador de unidades sócio-poticas (em face do enfraquecimento do apelo das
ideologias universalistas) (PACHECO DE OLIVEIRA, 2004:18).
A conjuntura naquele momento parecia favorável à manifestação dos representantes
Mb. Surgiam oportunidades (eventos propostos por diversas organizações governamentais e
não-governamentais) e seus representantes mostraram-se hábeis na manipulação de um
“discurso étnico” denso, voltado à expressão de sua alteridade radical (SOUZA LIMA, 1995),
no contraste com muitas outras a surgir na efervescência de manifestações étnicas no sul do
Brasil. A intenção de escuta por algumas instituições era um indício da nova conjuntura
histórica; vivíamos um novo momento no antigo processo interétnico que nos envolve, índios
e não-índios. Apesar da quase completa marginalização dos Mbyá na sociedade brasileira e
talvez pos isso tudo, eles adotavam uma gradativa “abertura” para demonstrar elementos de
sua cultura, para auto-afirmarem sua identidade antes pouco revelada (NOVAES, 1993).
37
A década de 1990 passou marcada pela crescente manifestação e mobilização de
grupos indígenas por seus direitos originários no Brasil, muitos deles articulados entre si e
lutando por ultrapassar os limites do indigenismo tutelar oficial e do assistencialismo
religioso
12
. Muitas comunidades passaram a receber ateão de organizações não-
governamentais e obtiveram recursos internacionais para a execução de projetos de
valorização cultural, de sustentabilidade e de recuperação de direitos originários. Diversos
grupos indígenas fizeram a publicação de CDs contendo músicas e narrativas tradicionais,
voltadas ao registro e à divulgação entre o público o-indígena, o que também ocorreu para
os Guarani, primeiramente, no estado de São Paulo.
Confirmando ou copiando essa tendência de manifestação étnica, os Mbyá-Guarani no
Rio Grande do Sul também passaram a lançar CDs de músicas (Aldeias Cantagalo, Lomba do
Pinheiro, Inhacapetum, Estiva etc.); a realizar apresentações em universidades, eventos de
municípios e de instituões do estado, escolas, televisão; a fazer apresentações aos turistas
nos sítios arqueológicos missioneiros como é o caso de São Miguel das Missões etc.
Nestas ocasiões, vestem-se de índios”, adornando seus corpos com pintura e usando menos
roupa do que usam geralmente. Assim dão entrevistas, tiram fotos com o público e, logo
depois, voltam a se “vestir normalmente” como qualquer outro cidadão, ali mesmo, com
muita naturalidade. O público muitas vezes desilude-se com suas vestes ocidentais, do tênis
ao celular que ostentam despreocupadamente. Para eles, isto não põe absolutamente em risco
sua identidade indígena, Mb. Por outro lado, ao saírem de suas aldeias para passeio nas
cidades eles manifestam uma preocupação enorme em “estarem bem vestidos”, o que
significa vestirem roupas novas compradas nessas mesmas cidades, seguindo a moda local.
Por mais de uma vez, os vi desistirem de sair, porque sua única “calça boaestava molhada,
ou porque não tinham roupa adequada
13
.
De acordo com as considerações de Sylvia Novaes para o caso das sociedades Bororo
que parecem aplicáveis aos Mbyá , estes signos (os colares, adornos corporais e as roupas
do “branco) remetem a realidades aparentemente opostas. Sendo a cultura indígena, aos
olhos da maioria não-indígena, vista como frágil e transitória, torna-se necessário recriá-la e
demonstrá-la. Por outro lado, há a preocupação em desfazer e se afastar da imagem do índio
atrasado ou incapaz de dominar os códigos do mundo do “branco”. É necessário também
12
Vejam-se as publicações do Instituto Sócio-Ambiental (ISA), Povos indígenas no Brasil: 1991-1995 (editado
por Carlos Alberto Ricardo e publicado em São Paulo em 1996) e Povos indígenas no Brasil: 1996-2000
(mesmo editor, publicado em São Paulo em 2000).
13
Um jovem Mbyá que vivia, na época da pesquisa, na Tekoá Koenju, chegou a desistir de nos acompanhar a
uma viagem a TekPorã (em Salto do Jacuí), porque não tinha roupas boas”.
38
superenfatizar os signos que aproximam os Mb dos não-indígenas. Nas palavras de Novaes,
“(...) os índios precisam demonstrar sua possibilidade de equiparação com o não-índio para,
então, gozarem do direito de reivindicar a diferença e a visibilidade social desta diferença”
(NOVAES, 1993:67).
Os Mb resistiram aos “atestados de extinção” formulados pelos antropólogos
brasileiros de meados do século XX, naquela época, a partir de uma concepção de cultura
como produto acabado, como um estoque de traços culturais e os índios submetidos a uma
desintegração progressiva trazida pelo contato com a civilização (NOVAES, 1993:41). Foi
difícil também para os antropólogos se livrarem do propósito teórico salvacionista pela busca
de uma “essência” ou “substânciadas sociedades “primitivas” ou “selvagens”. No passado,
antropólogos ajudaram a construir falsas idéias sobre isolamento geográfico e fronteiras
culturais rígidas na formão das sociedades humanas; idéias depois ultrapassadas no meio
científico, mas que se faziam ainda presentes ou atualizadas nas reações observadas entre os
agentes institucionais, quando entravam em contato com representantes Mbyá.
Para ter clareza e ultrapassar limites no entendimento sobre a realidade etnográfica dos
Mb é preciso descartar noções das fronteiras culturais como não fluídas e dos grupos
humanos como se fossem unidades fechadas, voltando atenção também para as conseqüências
do contato cultural. Tornou-se inevitável focalizar a questão das fronteiras (individuais e
sociais), para destacar as transformações inerentes às tradições coletivas. A história da
antropologia mostra como surgiram e se transformaram as noções que davam conta da
diferença (raça, cultura, grupo étnico, etnicidade, identidade etc.), até que a historicidade
fosse reconhecida como uma capacidade intrínseca a qualquer cultura e a qualquer sociedade
humana. Idéias clássicas e mais antigas da antropologia não servem ao entendimento do
discurso e da performance Mbyá, nem são adequadas ao seu reconhecimento político numa
situação inevitável de fronteira interétnica.
No século XIX, as únicas fronteiras pensadas eram aquelas que demarcavam os pontos
mais avançados da civilização. Nos tempos do evolucionismo e do difusionismo, a questão
das particularidades culturais nem aparecia; ora porque as manifestações coletivas eram
consideradas “sobrevivências” de comportamentos passados, ora porque eram consideradas
enquanto traços independentes obtidos pela criação e pela aquisição desde grupos vizinhos.
Importava apenas reconhecer leis sociais de evolução, de criação e de transmissão de traços
culturais (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2003).
39
Nos museus, os objetos etnográficos eram associados em sequências evolutivas ou em
esquemas geográficos de dispersão e migração, desconsiderando os contextos sociais em que
tais objetos eram produzidos e utilizados. Em termos ideológicos, pode-se dizer que uma parte
da antropologia servia ao imperialismo europeu, justificando-o pela proposta intelectual de
neutralizar a alteridade que se está dominando fazendo-a passar como inexistente ou mera
sobrevivência fora do tempo. Na etnografia dos espaços institucionais, feita nesta pesquisa,
foi possível reconhecer que essa operação intelectual parece ainda acionada por muitos juruá,
pelas reações observadas entre os cnicos que se voltavam ao atendimento dos Mbyá.
Foram reações empiristas a essas doutrinas na segunda metade do século XIX que
permitiram trazer a análise antropológica sobre a questão da diversidade dos usos e dos
costumes, mas agora entendendo tais usos e costumes enquanto partes de sistemas, de
estruturas ou de arranjos constituídos por dinâmicas internas, havendo em cada um deles
dimenes próprias de organização (espacial, prática, comunicativa, imaginária, simbólica,
lógica etc.) que é preciso reconhecer e traduzir em termos conceituais desde os dados
levantados no campo. Depois da constatação mais antiga de que o meio, a língua e a história
de cada comunidade são fatores mais atuantes do que a fisiologia das “raçasna definição do
comportamento, tornou-se importante buscar a “visão do nativo”, compreender os sentidos
culturais desde a maneira como são vivenciados pelos informantes e por todos aqueles que
o observados e registrados enquanto partes do grupo. A pesquisa de campo permitiu aos
antropólogos acessarem a dimensão das identidades coletivas que se apresentam enquanto
atualizações de tradões culturais herdadas de um passado comum (KUPER, 2002;
CARDOSO DE OLIVEIRA, 2003).
Apesar de sua contínua preocupação pelo inventário exaustivo dos tros culturais,
Franz Boas um dos fundadores da antropologia não se dedicou à construção de modelos
demasiadamente estáticos e materialistas de cultura. Pelo contrário, os apontamentos de Boas
indicam sua atenção constantemente dirigida ao núcleo da intersubjetividade e da
motivação/mobilização coletiva (STOCKING, 2004), daquele mesmo cerne [étnico] que pode
até tornar-se residual depois da integração de uma minoria, mas que se mantém
surpreendentemente irredutível (CARNEIRO DA CUNHA, 1986). Depois dele, qualquer
pesquisador de perceber que o “nativo manipula ativamente os acervos: imaginário,
simbólico, lingüístico, prático, tecnológico todas as dimensões do cultural e do coletivo ,
havendo capacidade de uso ativo e de mobilização comunicativa consciente por parte dos
indivíduos que constituem qualquer agrupamento humano. A história particular de cada
40
coletividade foi vista como estratégia metodológica necessária à definição das fronteiras
sociais e culturais que a definem. Esta constatação trica deve se aplicar também no estudo
junto aos Mbyá, sem desconsiderar a condição de sua historicidade.
Um pouco depois de Boas, Bronislaw Malinowski também contribuiu
significativamente para essa transformação da disciplina através do trabalho de campo,
canalizando as tendências empíricas dos ingleses ao estudo exaustivo de cada grupo pela
observação participante.
Nessa convergência de interesses, os antropólogos passaram a estudar exaustivamente
povos específicos com o propósito de criar um grande acervo de registros sobre eles, abrindo
mercado de trabalho às novas gerações de pesquisadores empenhados na documentação dos
povos primitivos considerados em vias de extinção, legitimando uma produção intelectual
marcada pela alegoria do resgate, nos termos de Clifford (2002:84). O resultado deste trabalho
foi o crescente número de monografias e de dados publicados em paralelo ao grande número
de coleções recolhidas aos museus, até somar o conhecimento de três a quatro mil diferentes
grupos em meados do século XX (POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 1988).
Hoje, surpreende constatar que esse tipo de produção intelectual tenha sido feito muito
enquanto uma espécie de “coleção de borboletas”, partindo do a priori de que cada grupo
humano seria uma unidade independente dos contextos regionais, com fronteiras de
demarcação geográfica precisamente definidas (como se fosse isolado numa redoma). Mesmo
a preocupação histórica de Boas não o possibilitou superar os traços difusionistas, ficando a
história reduzida a um processo local de aquisições e de invenções organizadas pela tradição.
Foram os sucessores de Boas e Malinowski e a repercussão de suas obras que
acabaram por naturalizar o conceito de cultura, entendendo-a como uma categoria com
equivalência potico-sociológica de tribo ou povo. No entanto, o uso da palavra manteve-se
sem uma definição adequada, mas amplamente utilizada. Neste quadro, o conceito de etnia
também passou a ser utilizado como sinônimo de uma cultura específica, sem que se
equacionassem igualmente seus fundamentos enquanto unidade potica válida. A importância
do radical ethnos tornou-o integrado como título das disciplinas “etnografia” e “etnologia”,
definindo a etnia como unidade de trabalho monográfico do antropólogo, embora mantido
sempre como uma espécie de “fantasma de referência”.
Segundo as colocações de Poutignat & Streiff-Fenart, essa simplificação resulta da
dificuldade do pensamento antropológico até meados do século XX em pensar a organização
41
política em “sociedades primitivas”, aquelas cuja vida não se faz na polis e na vigência da
cidadania, como é entendido na modernidade ocidental. A oposição clássica entre mito e
história, entre primitivos e civilizados, manteve o limite de entendimento sobre as sociedades
tradicionais, pensadas enquanto supostamente fora da história e sempre em inevitável
desintegração depois do contato com a civilização européia. A pesquisa etnográfica ocorria
como um empreendimento salvacionista, registrando ao máximo as culturas em processo de
extinção. Eis algo que já não faz mais parte da etnologia Guarani, porque eles sobreviveram a
todas as “previsões fatalistas” da antropologia, inclusive ao pessimismo de Curt Nimuendaju
(VIVEIROS DE CASTRO, In: Nimuendaju, 1987).
Da raça à cultura e à etnia, manteve-se essa tendência de substancializar a diferença
em unidades cujas fronteiras eram supostas como tidas e demarcadoras absolutas entre o “de
dentro” e o “de fora”, sem espaços para a ambigüidade e a mistura seo enquanto sinais
tidos de aculturação e de decomposição cultural. Na tentativa de objetivação do grupo
étnico pelo todo comparativo, os adeptos da antropologia cultural estenderam
arbitrariamente os critérios utilizados na definição potica de nação para a de etnia, como se o
segundo termo fosse equivalente e característico daqueles povos sem história, sem vida
urbana e sem governo, mas possuidores ou de uma língua comum, ou de um território
contínuo, ou compartilhando traços culturais comuns, ou um arranjo conjunto desses fatores
(POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 1988).
Na tentativa de objetivação do grupo étnico, os etnólogos passaram a reincidir sobre
critérios propostos como objetivos, mas ingênuos em suas formulações, aspectos criticados
pela proposição teórica mais adequada e recente desenvolvida, por exemplo, por Edmund
Leach, Abner Cohen e Fredrik Barth. Desde a contribuição destes pesquisadores, tornou-se
inadequado definir grupo étnico enquanto um conjunto de pessoas que compartilham
homogeneamente traços culturais comuns. Considerando também as contribuições recentes
trazidas por Marshall Sahlins (1990), foi necessário demonstrar que os grupos étnicos não são
internamente homogêneos, que sempre está presente a polifonia e a possibilidade de cada
indivíduo ter sua própria consciência e pautar pessoalmente sua ação a partir do mesmo
acervo cultural comum.
Ao mesmo tempo, foi preciso consolidar a diferença entre sociedade e cultura, entre
formas institucionais (papéis e hierarquias) ou estruturas sociais e os sentidos que as pessoas
dão a suas ações e sentimentos, o que permite perceber a situação de contato não como
destruição, mas como construção de “novas formas tradicionais” de vida (NOVAES, 1993:42,
42
retomando Clifford Geertz). Da mesma forma, a teoria de etnicidade veio refutar a tese de que
é o isolamento a circunstância necessária para a constituição ou manutenção de um grupo
étnico. Outra vez, Sahlins retoma este aspecto da mesma forma que o fez Barth, para
argumentar que as motivações de etnicidades crescem conforme avança o processo de
globalização, ao contrário do que supunham os etnólogos marcados por uma perspectiva
salvacionista do mundo primitivo ameaçado pela história. Por fim, foi preciso demonstrar que
a utilização de um rótulo étnico não significa supor que todas as pessoas que com ele se
identificam possuam um modo de vida idêntico. Para melhor entender os processos étnicos, é
preciso compreendê-los enquanto parte de um sentido, de uma lógica e de uma prática
comuns.
Aos poucos, os etnólogos foram confrontados com a permanência o caso dos Mbyá-
Guarani é ilustrativo ou o ressurgimento de grupos étnicos considerados desaparecidos ou
em vias de extinção. Para aqueles que se fixavam em critérios objetivos de raça, cultura,
ngua, território etc., a fim de demarcar a existência de uma etnia, a emergência étnica passou
a ser entendida enquanto uma espécie de heresia, como uma “reinvenção” arbitrária de
tradições, processos vistos apenas como falsos e ideológicos. Na verdade, os antropólogos
precisaram superar o etnocentrismo ocidental que está implícito à idéia de que os grupos
étnicos são grupos fora da história. Como analisa Roberto Cardoso de Oliveira (2003) em sua
perspectivação do paradigma da ordem na matriz da antropologia, foi necessário aprofundar a
influência do paradigma hermenêutico na disciplina, para que os cientistas passassem a
admitir a historicidade como fazendo parte de qualquer indivíduo em qualquer sociedade,
mesmo nas tribos ou etnias tradicionais.
Os primeiros antropólogos menosprezaram essa qualidade de seus “nativos”, supondo
que eles estariam fora do tempo até que a expansão do ocidente civilizado produzisse o
desaparecimento de seus sistemas culturais. De qualquer forma, com o advento da
globalização “transnacional” (HANNERZ, 1997), as mais longínquas comunidades foram
econômica e politicamente integradas às redes de dominação, desaparecendo as condões
ideais de isolamento entendidas como necessárias [nos primórdios da disciplina] para a
correta condução da pesquisa antropológica sobre a “diferença cultural”.
Os Mbyá-Guarani não desapareceram e se tornaram literalmente transnacionais,
porque continuam circulando pelas fronteiras internacionais criadas na América do Sul. Eles
manifestam etnicidade como atualização do horizonte cultural Guarani, reconhecido por eles
como mais antigo que os estados nacionais criados a partir do século XIX na rego. Têm
43
consciência desse pertencimento cultural e histórico remoto, atualizado pela consciência de
serem Mbyá eté í, os verdadeiros Mbyá, sem deixarem de se reconhecer como Avá Nheê, parte
dos falantes das línguas Tupi-Guarani (SUSNIK, 1989).
Talvez pela intensidade existencial do convívio com os grupos indígenas durante a
pesquisa de campo, o que faz brotar no etnógrafo a consciência sobre a historicidade dos seus
informantes nativos, a etnologia indígena é caracterizada desde seus primórdios por seu
engajamento com as populações que pesquisa e por sua postura crítica frente ao avanço
civilizado, a começar pelos trabalhos de Curt Nimuendaju, entre 1905 e 1945, ano de sua
morte. A elaboração teórica da pesquisa etnográfica ocorreu em paralelo ao estudo do
processo histórico de contatos interétnicos que a envolve, procurando interpretar a luta das
minorias pelo reconhecimento de seus direitos originários dentro das sociedades nacionais que
foram criadas. Essa tradição tem se confirmado, como visto na sessão anterior deste trabalho,
servindo os antropólogos como mediadores nesse processo de negociação.
Esta dissertação busca partir da compreensão da realidade vivida pelos Mbyá segundo
as referências colocadas pelos estudos de grupos étnicos e suas fronteiras. Os Mbyá estão
englobados em sistemas pluriétnicos, convivendo com diversos grupos, cada um articulado e
rivalizando enquanto grupo de mobilização, cada um congregando indivíduos na sua
sobrevivência enquanto alteridade e assumindo uma posição tão melhor quão possível na
disputa dos recursos, na ordem social estratificada vigente nos países em que eles habitam
(BARTH, 1988). No entanto, o tratamento do tema precisa centrar sua atenção na capacidade
de manipulação ativa dos sinais diacríticos por cada um dos Mb, das táticas e estratégias
cotidianas (DE CERTEAU, 1996; NOVAES, 1993), inclusive para esconder ou para decidir
revelar tais sinais aos poucos para conhecimento e sensibilização da sociedade mais ampla e
também dos outros grupos étnicos com os quais interagem. Ivori Garlet, ao referir as diversas
estratégias Mbyá frente à pressão interétnica desde o tempo das Reduções Jesuíticas, salienta
que:
(...) Desde o princípio dos contatos, os Mbyá tinham claro que, neste novo
contexto, o que estava em jogo eram dois modos de ser” distintos e opostos. Entre
estas estratégias salientam-se os confrontos, as fugas e as reestruturações culturais
como formas de manutenção deste “modo de ser” em nome e em defesa do qual os
Mbyá vão, continuamente, rearticular-se frente à sociedade ocidental. Observa-se,
também, que as estratégias variam segundo a correlação de forças dispostas entre
ambas as partes envolvidas neste processo, variando, portanto, segundo os contextos
históricos (GARLET, 1997:43).
44
E mais adiante:
Ao negar os princípios, valores, religião e sistema econômico do outro
estavam afirmando sua identidade, ou ñandereko ymaguare/nosso modo de ser
antigo. Neste sentido, as respostas articuladas pelos Mbyá sempre tiveram diante de
si o horizonte produzido a partir das relações com o outro. Se num determinado
contexto, a fuga se apresentava como a estratégia que daria resultados mais positivos
que o confronto, recorriam a ela.
Da mesma forma, repensaram sua postura frente aos brancos a partir da
fragmentação e redução territorial e da depopulação ocasionada pelas epidemias. A
partir deste quadro tiveram que dar muitas e novas respostas para que aspectos
importantes do sistema pudesse ser preservado (Idem, p. 48).
A etnografia permitiu observar que cada um dos representantes Mbyá estabelece
relações cotidianas com uma grande variedade de pessoas de outros segmentos populacionais,
tornando complexa a questão de sua identidade étnica. Por isso, a proposta de Novaes para
que se faça o uso do conceito de auto-imagem também parece ser adequada a este estudo, já
que:
As imagens que uma sociedade forma de si e dos segmentos que toma como
pametro para fazer uma reflexão sobre si mesma não são imagens fixas ou
perenes. Transformam-se continuamente, em função mesmo das relações históricas
entre estes segmentos. São imagens impregnadas de valores, muitos deles
conflitivos. Imagens que implicam a simultaneidade de sistemas culturais em
confronto, onde não há um movimento unívoco que simplesmente afirme ou negue a
identidade do outro (NOVAES, 1993:45).
Assim, a análise das situações concretas de contato não pode ocorrer supondo uma
identidade homogênea nem desconsiderando as relações entre a cultura e o poder, porque os
Mb demonstram contínua e independente capacidade criativa de articulação e de resistência
às forças e aos agentes externos. É preciso reconhecer que cada Mbyá dispõe de “capital
simbólico” para se opor aos elementos impostos de fora, habilitando-o a uma capacidade de
re-interpretação dos processos diários de que participa, refazendo sempre o sentido de sua
ação.
O espaço aberto pela adequação das poticas públicas nas últimas décadas tem
revelado a capacidade de mobilização política de caciques e lideranças espirituais Mbyá. Os
Mb demonstram disposição e crescente interesse em participar do diálogo proposto por
agentes governamentais e não-governamentais (como apresentado anteriormente),
45
posicionam-se através de discursos que remetem à afirmação da sua identidade Guarani
enquanto unidade social e cultural. No entanto, como ressalta Novaes (1993), a identidade de
um grupo – o nós coletivo: “nós índios” é categoria que não se verifica enquanto substância
permanente na realidade, mas que se apresenta mais evidente ao vel do discurso, pois se
sabe, por exemplo, que no caso dos Mb (em nível micro-social) essa unidade não é
absoluta, porque a organização familiar é considerada mais fundamental, em detrimento de
outras unidades sociais maiores. Esse “nós” coletivo mais amplo é acessado como recurso
apenas para o grupo fazer-se representar diante de tantos outros grupos com os quais entra em
contato, ou, nos termos de Novaes, para reivindicar para si o espaço potico da diferença (op.
cit., p. 26). Por isso, muitas das falas dos representantes Mb e antropólogos insistem na
necessidade de se considerar as especificidades de cada comunidade, reforçando o ideal de
que o certo ainda seria dar conta, oficialmente, da particularidade de cada grupo familiar, pois
é assim que se organizam de fato.
A questão das fronteiras é muito complexa e ao mesmo tempo instigante, inevitável
mesmo, porque a pesquisa etnográfica sempre se faz em espaço intermediário, numa situação
limiar entre culturas, sendo um pressuposto metodológico da antropologia. Sua complexidade
esna pluralidade de sentidos que se lhe atribuem, do ontológico ao político-administrativo.
A fronteira é instigante porque é a zona de transição entre o próprio e o distante, entre o “eu”
e o outro”. Recuperando uma clássica abordagem da antropologia, inaugurada por Marcel
Mauss em seu ensaio sobre a noção de pessoa (1938) e hoje amplamente utilizada na
etnologia ameríndia, é possível entender a criação da auto-imagem pelos Mb como
resultante do processo histórico de suas interações cotidianas, vividas por cada um desde a
infância no colo e, depois, junto ora aos parentes, ora aos não-Mbyá. Assim, é adequado fazer
rápida referência ao diálogo e ao confronto da antropologia com a psicologia e a lingüística,
todas marcadas pela investigação de temas comuns, como é o da representação de si e do
corpo individual, da percepção que se tem como pessoa, do indivíduo enquanto ser social, da
relação de si com a natureza e a cultura.
É difícil escolher conceitos para dar conta daquilo que é próprio a cada um, para
designar o que é inerente a “si mesmo” em sua autonomia reflexiva. O “eu” clássico da
psicologia e o “indivíduo” como categoria civil não são universais para dar conta da
construção da pessoa entre os Mbyá, embora para eles também sejam validadas avaliações
sobre a importância da primeira infância no moldar o comportamento do adulto e no caráter
inconsciente de sua linguagem originária.
46
Mesmo no caso da psicologia, as reflexões não giram mais apenas em torno de um
“eu” universal, porque “o outro e o significado deste outro passam a ser vistos cada vez mais
como fundamentais para entendermos não a vida social, como todo o processo de
reorientação do eu na vida cotidiana” (NOVAES, 1993:54). A abordagem interacionista se
impôs também no campo da psicanálise, muitas vezes para apontar o papel preponderante do
“outro” na formação da consciência de si. Essa consciência de si passa a ser vista como
construção resultante das relações interpessoais que cada indivíduo tem ao longo da sua vida,
reconhecendo também a importância de seus contextos sociais e culturais específicos.
Assim, fronteiras são divisões arbitrárias impostas ao meio, demarcações no contexto
em que o “eu” e o “outro” estão colocados. O espaço e os corpos humanos (veja-se o item 2.2
desta dissertação, Capítulo II) formam um contínuo, que as culturas geralmente dividem,
criando fronteiras entre identidades e diferenças (de gênero, de classe social, de profissão, de
ngua etc.) que são, antes de qualquer coisa, referências simbólicas. Buscando atualizar a
noção de pessoa, Sylvia Novaes retoma o conceito de self da psicologia (desde GEORGE
MEAD, 1934 e HENRY WALLON, 1946), por considerá-lo capaz de mudar o diálogo da
antropologia com a psicologia e a lingüística, no sentido de self ser um organismo dotado de
percepção, pensamento eão. “É quando o indivíduo se através dos olhos do outro,
quando ele percebe as diferenças entre ele e o outro, que ele terá condições de desenvolver
uma autoconsciência (...) (idem, p. 56).
A consciência de si é este self, percebido e apreendido conforme o contexto de relação
entre as pessoas que interagem com ele, conforme as referências imaginárias e simbólicas
apreendidas desde a infância, conforme as categorias de pensamento e de ação compartilhadas
ou disputadas, pelas quais os Mbyá percebem o mundo e a “nós” jur kuery, considerando
que eles vivem por gerações em situação de contato e suportando formas de dominação destes
outros.
A perspectiva da identidade é enriquecida pela alegoria do caleidoscópio, porque
permite entendê-la enquanto um eterno jogo de mútuos espelhamentos, de identificação e de
diferenciação, desde o que ocorre entre os filhos com os seus pais, dos homens com as
mulheres, dos Mb com os que não o o; até a demarcação militar das fronteiras entre os
países. É sempre necessário entender esse jogo desde o seu ponto de partida, que é a
existência de sistemas culturais em confronto assimétrico a afetar as concepções e percepções
das pessoas que interagem nesses mesmos sistemas culturais, confrontando diferenças e
assumindo continuidades entre seus papéis. Cultura deixa de ser considerada enquanto padrão
47
comportamental, para ser interpretada como uma matriz que torna possível a percepção do
mundo e permite compartilhar informações e conhecimentos codificados enquanto sistemas
de símbolos. Assim, a identidade é o impacto do social sobre o individual, conforme reproduz
Novaes (idem, p. 58).
As colocações acima servem para comar a situar teoricamente as interpretações
trabalhadas ao longo desta dissertação. Estudar as relações sociais como um jogo de
espelhamentos e de adequação da conduta, de que participam os Mbyá e os representantes de
instituições, é interpretar a atualização de formas de dominão e resistência, é interpretar
imagens e auto-imagens que emergiram também pelo empenho salvacionista da etnografia e
pelas formas de se adequar a elas por parte dos Mbyá. Quero apostar na exisncia de uma
predisposição ao mútuo entendimento, uma abertura na interação entre todos (Mb, atores
institucionais, antropólogos), transformando a fronteira em espaço de diálogo e negociação.
1.3 “Alianças” e “parcerias”
Assim como destacou Ivori Garlet (1997) nos primeiros parágrafos de sua dissertação
de mestrado sobre a mobilidade Mbyá, destaco aqui que uma das razões que influenciou
minha decisão de falar sobre os Mb, ou melhor, de escrever, foi a solicitação recorrente por
parte deles de que algumas pessoas (como os antropólogos, por exemplo) precisam fazer com
que o juruá conheça um pouco a forma de vida Mb, seus pensamentos, técnicas, modos de
fazer, para que os respeitem. Como afirma Garlet, “dar a conhecer é também uma forma de
comprometer a quem conhece. Se os Mbyá confiaram-me algumas informações, certamente o
fizeram com este propósito” (1997:09). Os Mbyá reconhecem, mediante longo tempo de
convivência e certo grau de confiança, quais são aqueles juruá que podem, mais
apropriadamente, falar sobre eles. Essas pessoas são solicitadas a intervir em diversas
situações nos espaços de negociação entre instituições e comunidades Mbyá ou a representá-
los nas situações em que não se fazem presentes (como no âmbito acadêmico). Uma vez
sentindo-se apoiados por estes parceiros, os Mbyá garantem que estão protegidos também por
Nhanderu. “Se está andando ao lado do nosso povo, Nhanderu acompanha”, me dizem os
Mb.
48
Apenas a boa vontade não basta, entretanto, o diálogo, muitas vezes, o evita que se
mantenham incompreensões. O despreparo dos técnicos, profissionais e agentes políticos é
apontado pelos Mb como causa de muitos dos equívocos no tratamento institucional de seus
direitos diferenciados. Incompreensões e equívocos mantidos talvez pela permancia das
idéias distorcidas sobre os sistemas culturais indígenas, como se não fosse legítimo aos Mbyá
participarem do “progresso” segundo sua própria forma de fazê-lo, seguindo a sua própria
tradição.
Nós, os jur, estamos presos às formas como nossa ciência nos capacita a entender
esse outro que é o Mbyá. A retrospectiva teórica da disciplina feita acima serve como
referência para situar as alternativas de percepção e representação até então dispoveis ao
entendimento das reações e narrativas que expressam a alteridade Mbyá, situando os limites
ideológicos a partir dos quais os agentes institucionais motivam sua atenção ao entendimento
dessa diferença. Por outro lado, a etnografia dos espaços institucionais oportunizou constatar,
especialmente a partir de minha experiência no CEPI (relatada na sessão 1.2 deste capítulo),
que os representantes Mbyá não possuem reação padronizada frente às diversas situações a
que são confrontados. As divergências internas são constantes e tornam-se evidentes ainda
mais nas situações em que alguns Mb se colocam como representantes gerais de sua etnia.
Apenas poucos de seus representantes têm disposição ou capacidade para suportar o desgaste
de viver no convívio com atores jur, pois cada encontro é vivido como confronto pela
posição de destaque, pela necessidade de manipular sua identidade e estabelecer parcerias
com instituições ou outros segmentos da sociedade envolvente.
Esse assunto abre um vasto campo de discussão que podefundamentar uma futura
tese, ainda mais porque a autonomia doméstica poderia nos levar a reconhecer cada grupo de
parentesco e aliança (firmados pela residência local) como uma “facção” política. No entanto,
é importante fazer o registro de que as tendências centrífugas familiares são apaziguadas por
certas forças institucionais de coesão, como são as constantes visitas entre comunidades, a
realização de cerimônias tradicionais intercomunitárias (o que hoje inclui campeonatos de
futebol) e o uso contínuo das casas de rezas (entre outros). No campo dos espaços
institucionais onde os Mbyá são quase sempre tratados pelos agentes não-índios como sendo
membros de uma etnia homogênea e coesa foi possível reconhecer que a identidade” Mb
surge também como reação a esse tratamento monolítico, reforçada enquanto espelhamento
da imagem genérica que sobre eles é projetada.
49
É muito difícil que os atores institucionais libertem-se da concepção estereotipada de
“índio genérico”, assim como ainda é mais complicado reconhecerem a diversidade interna
dos Guarani; é quase impossível fazerem-no para dar conta da pluralidade interna dos Mbyá.
O espelhamento é antigo nas situações de contato e os representantes Mbyá convivem por
culos com essa tendência colonial em tratá-los como cultura homogênea, como revela a
história de seu etnônimo, surgido como estigma na situação de contato para depois ser
positivado pelos próprios Mbyá. Mesmo assim, a unidade étnica não se apresenta de forma
evidente, mostrando a utilização de diferentes estratégias e diferentes opções de alianças por
parte de cada um dos representantes Mb. A aliança com os jur é uma das estratégias mais
antigas de sobrevivência marginal dos Mbyá no Rio Grande do Sul, como demonstram as
pesquisas etnográficas realizadas na década de 1990 (VIETTA, 1992; GARLET, 1997,
SOUZA, 1998).
Assim, os Mb escolhem parceiros” (conceito êmico) em função dos “custos e
“benecios” implicados nessa aliança. A antiga aliança com fazendeiros possibilitava e
possibilita o acesso aos locais de mata e margens de rios, deixando-os no compromisso de
ajudar a cuidar da propriedade, do gado, das benfeitorias e de prestar serviços eventuais em
benefício do patrão, quando não ceder mulheres (SOUZA, 1998). Outra antiga aliança é a
feita com religiosos e missionários, trazendo como benefícios a obtenção de ferramentas e a
assistência em saúde, em educação e também acessando recursos de campanhas beneficentes,
o que é motivado pela perspectiva da evangelização que os índios devem suportar. Estes tipos
de alianças serviram por décadas para a sobrevivência dos Mbyá numa situação de
invisibilidade frente aos órgãos oficiais do Estado brasileiro.
A marginalidade frente aos Poderes Públicos foi reconhecida e os Mb se tornaram
visíveis, mas as novas circunstâncias não serviram para neutralizar as conseqüências nefastas
trazidas pelas alianças com não-indígenas. Os Guarani que aceitaram ou foram submetidos à
tutela do antigo indigenismo oficial (do SPI e da FUNAI até a década de 1980) foram
deslocados forçadamente para o interior ou margem de Terras Indígenas Kaingang (Guarita,
Nonoai, Votouro, Cacique Double), ficando dependentes do controle das lideranças dessa
outra etnia
14
. Segundo depoimento de um técnico da própria FUNAI:
14
Ver também as conclusões do Diagnóstico Antropológico Participativo das Comunidades Kaingang e
Guarani na Terra Indígena Ligeiro e Terra Indígena Cacique Doble, RS(2002), em que compartilho autoria
com José Otávio Catafesto de Souza.
50
Os Mbyá sempre resistem à ação da FUNAI, por acreditarem que ela
desconsidera a cultura do grupo, e tem por objetivo “torná-los brancos”. Pensam que
a FUNAI está interessada em dar documentos aos índios, trazer-lhes escolas, igrejas,
salão de baile, caixa d’água, casas ao modo dos brancos, etc. Por considerarem isso
tudo desnecessário, evitam o contato com a FUNAI (GARLET, 1997:181).
Hoje, os Mb perceberam a vantagem da nova conjuntura, em que estão livres da
ação arbitrária da polícia e dos funcionários da FUNAI que os removiam para o interior de
Terras Indígenas oficiais, impedindo-os de circular e de travarem relações com qualquer outro
que não um representante do órgão oficial. Hoje, os Mbyá descobriram a vantagem de somar
os benefícios trazidos por muitos parceiros, para experimentar, no decorrer do tempo, quais os
mais confiáveis e qual é a relação custo-benecio implicada na aliança com cada um deles.
1.4 O Conselho Indigenista Missionário (CIMI)
15
Antigas alianças são renovadas, outras foram e são criadas. Ainda se mantém a aliança
com religiosos e missionários, como exemplifica a ação do CIMI nos últimos anos na
mobilização eventual de grande parcela dos Mbyá em torno da luta popular pela terra
representada na figura de Sepé Tiaraju. Esta entidade tem disponibilizado recursos de
transporte, alimentação e acampamento para centenas de índios Mbyá participarem de eventos
de mobilização (como ocorreu em São Miguel, em São Gabriel e recentemente no Parque
Harmonia, em Porto Alegre), o que é revertido em proveito da sua organização e visibilidade
étnica, mas os têm deixado reféns das manipulações feitas por dirigentes de partidos poticos
e dos mais diversos movimentos e lutas sociais (organizações eclesiais de base, MST, Via
Campesina, Pequenos Agricultores, Sem-Tetos etc.).
Os Mbyá passaram a conviver com um número crescente de “parceiros”, descobrindo
aos poucos a existência de caminhos institucionais para dar conta de seus direitos
diferenciados, muitas vezes, jogando o Ministério Público na intimação de instituições (como
a FUNAI e a FUNASA) para resolver problemas urgentes como doença, morte ou falta de
comida em alguma comunidade. Ao mesmo tempo, seus representantes sendo chamados para
responder por casos de violência doméstica, de alcoolismo, de brigas internas nas
51
comunidades de sua etnia. Os Mbyá passaram a participar intensamente desses cenários de
negociação, espaços fronteiriços que se mostraram férteis ao estudo etnográfico.
A aliança com membros da Igreja Católica é antiga entre os Guarani, como se sabe
desde o tempo da atuação colonial da Companhia de Jesus nos territórios do Brasil e do Rio
da Prata. Hoje, ela ocorre na relação de alguns Mb com agentes dos movimentos sociais
católicos e seus dirigentes, segundo as diretrizes estabelecidas nacionalmente pela direção do
CIMI para os “povos” indígenas. A atuação desses segmentos “populares” segue a lógica do
enfrentamento, promovendo acampamentos, obstrução de estradas, passeatas e outras
iniciativas mais radicais (como a destruição de cultivos particulares de plantas transgênicas)
em defesa dos princípios humanitários de fraternidade e igualdade. Seguidamente, seus
membros fazem barricadas e enfrentam a força policial, atualizando elementos de uma
ideologia revolucionária. A figura de Sepé Tiaraju foi apropriada pelo CIMI e repassada aos
demais movimentos sociais enquanto santo popular”, de alguém que (como Jesus Cristo)
morreu em defesa de seus ideais de igualdade e em prol dos fracos e dos oprimidos.
O mais importante aqui é reconhecer que os Mb foram integrados nesse programa
de lutas populares numa posição “especial”, porque eles são os diretos descendentes daqueles
que protagonizaram a luta traduzida pela frase “Esta terra tem dono!”. Assim, não é demais
interpretar que os Mbyá estão sendo manipulados arbitrariamente por razões ideológicas,
tendo sua imagem como “índio” (refletindo o estereótipo do índio genérico) utilizada na linha
de frente para sensibilizar a opinião pública sobre a questão dos movimentos sociais. Caso
concreto de espelhamentos, porque é bastante difundida em todo o Rio Grande do Sul, a
imagem do bom e humilde Guarani que foi agredido pelo sistema colonial, sendo este tema
inclusive veiculado diariamente no Espetáculo de Som e Luz apresentado no Sítio
Arqueológico de São Miguel das Missões (texto feito na década de 1970, traduzindo, de certa
forma, a ideologia contra a Ditadura Militar).
Essa manipulação do CIMI não deixou de ser percebida por alguns Mbyá-Guarani,
que nos últimos anos têm assumido posição de crítica à intervenção da Igreja Católica sobre
suas comunidades, havendo diversas lideranças espirituais e políticas Mb que sustentam
essa posão. Eles reclamam a contínua interferência sobre sua autodeterminação e fazem
denúncias contra o intervencionismo assistencialista do CIMI. Esse assunto ressurgi um
pouco mais detalhado à frente, mas o importante agora é focar a adoção de estratégias
alternativas por parte de alguns Mbyá, que se tornou cada vez mais evidente pelo
espelhamento em contraste ao caminho da luta e da crucificação proposto pelos padres.
52
Trata-se do “caminho do coração”, expressão usada para definir a alternativa de estabelecer
uma relão de negociação “harmoniosa” com as pessoas e as instituições não-indígenas.
Em poucas palavras, é o que eles têm reiterado ao criticar o CIMI e ao propor que se
construa uma relação positiva com os parceiros institucionais, ganhando o coração dos
agentes pela profusão de suas belas palavras” e, assim, seguindo os desígnios de Nhanderu
ete í (Deus verdadeiro), conquistar a boa vontade dos não-indígenas. O “caminho do coração
é a manifestação atual de uma estratégia tradicional acionada pelos Mbyá em situação de
contato, retomada agora para se afastar do caminho de confronto proposto pelos agentes
indigenistas de dentro e de fora da igreja. Trata-se de outro caso evidente daquele processo
que Roberto Cardoso de Oliveira diagnosticou como “crise do indigenismo no início da
década de 1980 (1982).
Os movimentos indígenas brasileiros já denunciaram a postura retrógrada da Igreja
Calica e do CIMI desde os acontecimentos ocorridos em Coroa Vermelha (Porto Seguro,
Bahia) nas comemorações e contra-comemorações dos 500 anos de descoberta do Brasil. Em
17 de maio de 2000, vinte e cinco entidades indígenas do Brasil assinaram uma carta em
Brasília, intitulada As faces ocultas do indigenismo missionário com as modernas formas de
dominação colonial”, que destaca a autonomia do processo organizativo dos povos indígenas
em contraste ao diagnóstico sobre “a crise de identidade do CIMI”:
Com a dinâmica desse processo organizativo, o papel de articulador do CIMI
passou progressivamente a ser assumido pelos povos indígenas, que foram definindo
novas formas de lutas e de fortalecimento das nossas organizações.
Pouco a pouco o CIMI viu definhar seu papel até então protagonista na defesa dos
direitos indígenas, sem ter traçado claramente estratégias que permitissem definir
uma nova relação com os movimentos indígenas, agarrando-se desesperadamente a
uma prática que, infelizmente, nesta atual conjuntura, não está tão distante da tutela
do Estado através da Fundação Nacional do Índio FUNAI, tão severamente
criticada pelo CIMI (ISA, 2000, p. 73-4).
Os acontecimentos recentes envolvendo os Mb demonstram que o CIMI não
transformou sua estratégia de ação e nem construiu uma nova relação com as comunidades
Mb. Por outro lado, é possível perceber também que o movimento indígena nacional tem
servido como cenário para o espelhamento dos processos étnicos vividos no Rio Grande do
Sul. É possível reconhecer tidas semelhanças entre os caminhos adotados pelos Mb e
aqueles seguidos por outras etnias indígenas divergentes ao indigenismo assistencialista e
tutelar. Entre a opção pela morte e pelo sofrimento, que redimem as almas dos pecados e
53
possibilitam ganhos na luta pelos direitos sociais, e o caminho do coração existe uma
distância razoável, em que os representantes Mbyá têm demonstrado autonomia na escolha de
qual delas serve de maneira mais adequada ao espelhamento para a construção de sua auto-
imagem.
1.5 Etnografando desde um cenário privilegiado: o Conselho Estadual dos Povos
Indígenas (CEPI) enquanto espaço de dialogia
Minha trajetória de envolvimento com as questões indígenas foi enriquecida a partir de
minha experiência como estagiária do CEPI (entre abril e novembro de 2003), oportunidade
de envolvimento diário com todos os tipos de problemas enfrentados pelas comunidades
indígenas do estado naquele período e convívio com representantes e conselheiros indígenas.
Este contrato foi um marco importante em minha atuação profissional, porque me colocava
fazendo parte de um campo de disputas poticas intensas e conturbadas, muito diferente do
ambiente fundamentalmente intelectual da academia ao qual estive exclusivamente ligada até
então. Não foi uma decisão fácil realizar este trabalho, porque me colocaria numa posição de
depenncia aos acordos políticos que davam suporte à organização da Secretaria do
Trabalho, Cidadania e Assistência Social (STCAS), a qual o CEPI estava vinculado. Muito
refleti antes de pretender (e de fato) ocupar esta posição frente às comunidades indígenas.
Porém, penso que a experiência não foi negativa.
Segundo é possível concluir dos documentos disponíveis e dos depoimentos obtidos
sobre aquele período, técnicos e administradores da gestão anterior (do PT) criaram um
espaço de reuniões do CEPI, envolvendo representantes Guarani e Kaingang em rodadas de
discussão com o objetivo de implementar projetos (sustentabilidade, habitação, produção
alimentar e geração de renda) nas áreas indígenas e definir a realização de programas de
ateão diferenciada ao reconhecimento dos direitos originários perdidos sobre a terra,
empenho que mais mobilizava os representantes Mbyá. Os administradores buscaram aplicar
aos índios a mesma estragia de gestão participativa e popular (como, por exemplo, o
orçamento participativo). Foi dentro deste contexto que o governo do Estado assumiu posição
e efetuou a crião de três Reservas Estaduais destinadas aos Mbyá-Guarani, em 2001,
54
(Coxilha da Cruz, Água Grande e Inhacapetum) e iniciou a construção de casas diferenciadas
em muitas comunidades.
Meu estágio no CEPI acompanhou o começo da gestão seguinte do governo do Estado
(PMDB, governador Germano Rigotto, 2003-2006), momento em que a STCAS passou ao
controle do PTB. Independente dos acordos e alianças partidárias, é importante informar que a
coordenação do CEPI foi assumida por uma antropóloga, Ivonete Campregher, que assumiu
essa posição a partir de sua experiência prévia na administração das queses indígenas no
governo do Estado no final da gestão anterior ao PT. Por seu empenho e dedicação pessoal,
tendo experiência administrativa e agregando sua bagagem antropológica, Ivonete conseguiu
ampliar o espaço de reuniões e de envolvimento dos representantes indígenas em diálogo com
os agentes do Estado na composição do Conselho, a partir da definição de diretrizes à
realização de políticas diferenciadas no Rio Grande do Sul.
A partir da minha formação acadêmica, pensava que manter esse nculo, poderia me
causar constrangimentos, ao poder ser identificada com o papel de “estagiária do governo, o
que influenciaria negativamente o contato inicial que passei a ter com os indígenas
conselheiros e com todos os demais que buscavam o CEPI como setor administrativo de
apoio. No entanto, essa expectativa foi se diluindo, na medida em que os Mb (e os demais
indígenas) perceberam que Ivonete, assim como eu e Carlos Eduardo Moraes (colega na
universidade e no estágio no CEPI) fazíamos uma espécie de “frente antropológica” dentro do
Conselho, procurando sempre ultrapassar os limites e interesses partidários
16
, sempre a
argumentar a favor do reconhecimento de outras formas de organização e procurando adequar
o máximo possível àquilo que os representantes indígenas levavam como demanda para o
CEPI. Ao mesmo tempo, minha experiência na rotina administrativa levou-me a constatar
rapidamente que a inexistência de uma plataforma política específica, voltada às comunidades
indígenas pelo governo, criava espaço de indefinição, um vazio que abria oportunidade à
realização de certas “manobras na burocracia e obter certos avanços de outra forma
impossibilitados pelas forças exclusivamente partidárias.
Esse mergulho no cenário político intercultural da questão indígena foi sempre vivido
e experimentado por mim como trabalho de campo etnográfico, aliás, como espaço
privilegiado para a pesquisa etnográfica, até porque Ivonete, como coordenadora do CEPI,
16
Interessante registrar que Ivonete, assim como eu e Carlos éramos uns dos únicos funcionários/estagiários sem
filiação ao PTB a trabalhar na STCAS, o que demonstra uma relativa abertura do governo ao entendimento e
atendimento do “diferenciado” nas questões relacionadas às populões indígenas.
55
sempre me possibilitou e estimulou o exercício da etnografia, idas a campo (tantas, que
conheci a maioria das áreas indígenas do Rio Grande do Sul), participando de reuniões em
outros cenários institucionais, não restringindo minha experiência do estágio apenas ao
“trabalho de escritório”. Além disso, eu fazia questão de inscrever tudo em meus diários, além
da documentação administrativa (atas das reuniões, expedição e recebimento de ofícios) que
ajudei a produzir e os contatos pessoais que mantive com os mais diversos atores, naquela
heteroglossia manifesta nos corredores e portas que davam acesso ao ambiente do CEPI.
Logo percebi que era tudo muito novo para aqueles representantes das diversas
secretarias estaduais que precisavam dar conta da diversidade sócio-cultural do Estado,
especialmente no que diz respeito às populações indígenas. Ningm sabia muito bem quem
eram e muito menos como agir para planejar e executar projetos direcionados às populações
indígenas existentes no Rio Grande do Sul, como Ivonete me fez ver de imediato. O
desconhecimento de administradores e técnicos, independente de serem servidores públicos
ou de ocuparem Cargo em Comissão, com relão aos grupos indígenas de seu estado, era
muito maior do que eu poderia imaginar. Ao chegar ao CEPI, sentia-me completamente
nfita, disposta a apreender o máximo possível, colocando-me sempre em posição de escuta,
acreditando que ainda não estava preparada para dar contribuições relevantes. Aos poucos (ou
talvez rapidamente) percebi que o desconhecimento da realidade indígena é generalizado, é
senso comum, ou, é o mais comum, e não o contrário. Não raras vezes vi Ivonete por horas
e depois eu mesma falando sobre especificidades dos Kaingang ou sobre os Mb para
representantes das secretarias estaduais nas reuniões realizadas no CEPI, que começavam a
perguntar e não paravam mais (perguntas as mais diversas, muitas absurdas, algumas
engraçadas, outras preocupantes...).
Como uma das primeiras atividades no novo estágio, tive oportunidade de participar e
fazer a etnografia da primeira reunião dos conselheiros institucionais no governo de Germano
Rigotto, em abril de 2003. Ivonete, como nova coordenadora executiva do Conselho, chamou
uma reunião com os representantes das secretarias que de alguma forma tinham envolvimento
com as poticas direcionadas às populações indígenas. Nessa reunião estavam presentes
representantes de sete órgãos estaduais (coordenação e planejamento; cultura; reforma
agrária; desenvolvimento; agricultura; EMATER), a coordenadora (Ivonete) e os dois
estagiários (eu e Carlos) do CEPI.
Ivonete deu início à reunião, fazendo um relato sobre o papel do CEPI, explicando que
o Conselho dá as diretrizes para as poticas blicas voltadas às populações indígenas e
56
fiscaliza sua execução. Ivonete comentou sua insatisfação pelo fato de que o Conselho ainda
funcionava por Decreto Estadual, ou seja, não era ainda um espaço garantido completamente.
Explicou que o objetivo principal da reunião era fazer um diagnóstico das ações e dos projetos
previstos ou em andamento nas comunidades indígenas, identificando os recursos e benefícios
disponíveis em cada óro para posterior apresentação e discussão com os conselheiros
indígenas, para pensar os projetos e ações a serem executadas em cada comunidade.
Gilberto Lima, representante da Secretaria de Habitação, descreveu a execução do
projeto de adequação e construção de casas nas áreas indígenas do estado, iniciado durante o
governo anterior e naquele momento em processo de finalizão. Gilberto declarou que ainda
havia recurso previsto na secretaria para a construção das 13 últimas habitações indígenas do
projeto. Como ainda havia muitas aldeias solicitando construção de casas, Gilberto esclareceu
que esse ficit habitacional teria que ser contemplado com uma continuidade do projeto
naquele novo governo, tendo que ser rediscutido no CEPI seu conteúdo e amplitude. Percebi
que Gilberto conhecia um pouco da realidade indígena, que havia tido algum contato com as
comunidades para executar a construção das casas, não imaginava que era um dos únicos
representantes institucionais que tinha um mínimo conhecimento sobre as comunidades
indígenas no estado.
Nessa reunião conheci outros dois personagens importantes do cenário interétnico dos
espaços de negocião entre representantes institucionais e comunidades indígenas, pessoas
que eu já ouvira muito falar por sua atuação na questão indígena no Rio Grande do Sul. Inácio
Kunkel, naquele momento, representava a Secretaria de Agricultura junto com Mariana
Soares, antropóloga da EMATER/RS, órgão vinculado à mesma secretaria. Inácio consolidou
sua trajetória de atuação junto aos Mbyá-Guarani como membro da extinta ANAÍ, na cada
de 1980. Por interesse próprio, Inácio conhece profundamente o Mbyá rekó, a língua Guarani
e as aldeias do estado, acompanhando muitos anos as trajetórias das famílias Mbyá entre o
Paraguai e o Brasil, passando por Misiones (Argentina). Nessa e em inúmeras outras reuniões
vi Inácio atuar como “tradutor” do Mbyá rekó nos termos administrativos das poticas
públicas, aproximando a realidade indígena dos representantes institucionais. O outro
personagem, Mariana Soares, ocupa o único cargo para antropólogos na EMATER, sendo
responsável por projetos voltados às populações indígenas, quilombolas e pescadores
artesanais do estado, ou seja, por todas as comunidades “tradicionais”.
Inácio e Mariana – assim como Ivonete exemplificam a importância fundamental de
pessoas com sensibilidade à realidade específica das comunidades indígenas nos órgãos
57
responsáveis pelas poticas diferenciadas. Algumas de suas participações serão descritas ao
longo deste texto, demonstrando que essas pessoas foram/são elementos-chave para que se
efetivasse/efetive o quesito “diferenciadodessas políticas, o que é amplamente reconhecido
pelos indígenas.
Nesta ocasião no CEPI, ambos foram levados a mudar o rumo da reunião, pois se
viram bombardeados” de perguntas básicas sobre os índios”, feitas exatamente por aqueles
cnicos que deveriam ter algum posicionamento sobre as possibilidades de participação
dos órgãos que representavam. De repente, a reunião transformou-se em aula sobre cultura
indígena. Queriam saber, dentre outras coisas: que índios têm aqui no Rio Grande do Sul?
Qual a diferença entre os Kaingang e os Guarani? Aqueles índios que vendem artesanato no
Brique vivem aonde? Qual deles é mais resistente à cultura branca? Na medida em que Inácio
ia falando, contando um pouco sobre o modo de vida nas comunidades, ressaltando diferenças
de costumes, conhecimentos, as pessoas se interessavam e iam perguntando mais e mais.
Inácio fechou sua fala dizendo que os projetos das políticas públicas devem ser discutidos
com todos os componentes de todos os grupos indígenas. E todos os envolvidos nessas
políticas (secretarias, departamentos etc.) devem participar dessas discuses. Assim, Inácio
estimulava o comprometimento de todos, o que parece ter repercutido, de alguma forma, pela
maneira emocionada como as pessoas saíram da reunião, dizendo-se totalmente dispostas a
aprender mais e apoiar.
As colocações de Inácio, de Mariana e de Ivonete nesta reunião revelaram um
propósito que vi se reproduzir centenas de vezes depois na rotina de atividades do CEPI. Nas
conversas telefônicas, nas reuniões administrativas e de planejamento, nas rápidas visitas e
nos encontros eventuais nos corredores e dependências da secretaria, nas audiências em outros
órgãos e em diversos municípios do interior, sempre percebi a utilização por parte destes
atores daquela estratégia que Garlet (1997) atribui como característica dos Mbyá atuais, i.e.,
sensibilizar e comprometer as pessoas dando-lhes conhecimento sobre a diferença cultural e
sobre a realidade das comunidades indígenas no estado.
O estágio no CEPI foi uma oportunidade singular para etnografar as formas de
funcionamento do serviço público, para entender como as demandas coletivas são
amortecidas e parcialmente atendidas, dos limites colocados pela consciência dos técnicos
envolvidos ao fazer esse trabalho. O Conselho era um local de entrecruzamento dos
problemas indígenas. Ofícios que chegavam alertando sobre problemas, encaminhando
projetos, exigindo pronunciamento ou encaminhamento para os setores administrativos
58
correspondentes ao assunto tratado. Vez por outra, também era possível observar as reações
de políticos que interagiam com os índios visitantes, sempre tão cordiais quanto evasivos, o
que os representantes indígenas sabem reconhecer rapidamente.
Diversos setores da sociedade mais ampla também faziam parte daquele espaço plural,
incluindo repórteres, representantes de entidades e instituições assistenciais preocupadas com
situações específicas de alguma comunidade ou objetivando promoção de campanhas de
alimentos e de agasalho, direção e professores de escolas em busca de informações confiáveis
sobre os indígenas atuais do Rio Grande do Sul etc. Em muitas das vezes, o objeto de
preocupação eram comunidades na beira das estradas (os acampamentos Mbyá) ou com a
situação das criaas indígenas no centro da cidade de Porto Alegre. A procura pela
interferência do CEPI ocorria mais nos meses de inverno e chuva, principalmente, quando
ocorria a morte de alguma criança indígena noticiada pela imprensa.
Entre todos os participantes desse entrecruzamento de posições, os representantes
indígenas tiveram minha maior atenção. A rotina diária me permitiu conversar com eles por
telefone e nas horas em que permaneciam nas dependências da STCAS para participarem de
reuniões ou na espera de recursos para alimentação e para transporte de retorno a suas aldeias.
Observei suas táticas de concentração antes e durante as reuniões. Tornei-me amiga de alguns
deles e aproveitei para estreitar contatos, principalmente, com os Mbyá.
um rico material para alise etnológica, relativo aos seis meses em que estive
exercendo este estágio. Para os propósitos deste trabalho, foi utilizado o registro etnográfico
de uma situação específica para ilustrar um contexto institucional aberto à interlocução com
as minorias indígenas, mas que se firmou pelas motivações étnicas dos representantes
indígenas que passaram a integrar esse cenário de negociação, que se prontificaram a
participar do diálogo nesta nova conjunta marcada pelo multiculturalismo.
O objetivo deste capítulo foi apresentar o envolvimento dos Mbyá nos cenários
institucionais, onde estão mobilizados pela estratégia de sensibilização dos diversos setores da
sociedade juruá, aproveitando para falar, cantar, dançar e, desta forma, “ganhar o coração
das pessoas em prol do reconhecimento de sua alteridade. Enquanto algumas de suas
lideraas assumem posição como atuantes nas lutas sociais”, outras se valem da estratégia
reconhecida com lucidez por Garlet como atitude acionada pelos Mbyá na década de 1990,
repassada ao contexto do CEPI e para diversos outros parceiros na presente década. Esta
dissertação tornou-se, mesmo sem querer, outro instrumento desse propósito, pois fornece
condições para o leitor compreender aspectos do Mbyá rekó e, desta forma, torná-lo sensível e
59
potencial colaborador no processo de reconhecimento oficial de seus direitos originários
(artigo 231 da CF).
60
CAPÍTULO 2 SITUANDO O UNIVERSO DE PESQUISA, MERGULHANDO NA
PAISAGEM CULTURAL MBYÁ: ALEGORIAS SOBRE DISCURSOS E PRÁTICAS
EM CENÁRIOS ETNOGRÁFICOS (INTERÉTNICOS E INTRA-ÉTNICOS) NO SUL
DO BRASIL
O objetivo deste capítulo é continuar e ampliar a aplicão de conceitos que permitam
uma interpretação antropológica adequada, apresentando categorias em coerência aos dados
etnográficos obtidos nesta pesquisa. Aqui, o texto foi organizado a partir de uma tomada de
posição epistemológica, para detalhar melhor o marco teórico-metodológico da pesquisa,
estruturado pela busca de adequação, em termos conceituais, do sentido das falas e das
performances dos atores Mbyá, incluindo a consideração sobre minha participação ativa
(perceptiva e reflexiva) na composição e selão final de cada dado empírico analisado. É
necessário ter consciência sobre a realidade pluriétnica que engloba os Mb e a mim,
reiterando a constatação de que a interação rotineira entre índios e não-índios se faz sempre
dentro de algum campo de disputas (colocando a questão do poder) em processo (colocando a
questão da historicidade), assim como as reuniões relatadas anteriormente foram descritas
como espaços de negociação dos quais os Mbyá participam.
2.1 (Des)ordem, polifonia, fusão de horizontes e alegorias
A interpretação dos dados é posta o mais próximo possível de seu contexto de
inscrição. Cada um dos atores observados precisa ser descrito reconhecendo sua liberdade de
ação, porque age segundo suas próprias táticas e estratégias em meio aos seus referenciais
culturais, desde seu grupo local de origem até a sociedade mais ampla (DE CERTEAU, 1996;
SAHLINS, 1990). É importante reconhecer a multiplicidade de sentidos em jogo em cada
circunstância etnográfica, explorar a divergência de leituras entre suas testemunhas e aceitar
possíveis interpretações diferentes feitas por uma única pessoa em oportunidades diversas.
Não se trata de defender uma pura descrição nominalista da realidade vivida pelos
Mb, mas, sim, trazer elementos empíricos variados, muitas vezes descontínuos e
heterogêneos, mas sempre “transbordando” de significados acumulados e pelo uso e pela
61
incorporação diária enquanto habitus pelos Mb. A base corporal das posições e das
disposições sociais (WEBER, 2004; MAUSS, 1974; BOURDIEU, 1985; WACQUANT, s.d.)
é valorizada na interpretação do Mbyá rekó, ao mesmo tempo, que seus atos e falas são
entendidos como escritas e leituras dos seus contextos vividos; e eu agregando as minhas
leituras e fazendo-as dialogar com as dos Mb e as daqueles que escreveram ou falaram
sobre eles
17
(RICOUER, 1978).
Discorrer a respeito de atos e falas, compreendendo-os como escrituras e leituras de
seus contextos, traduz aquilo que Bruner e Turner (1986) analisam enquanto narrativas, o que
permite pensar a performance dos representantes Mb nessa analogia com o texto. Segundo
esses autores, não interessa ao pesquisador apenas o conteúdo do que se fala, mas as intenções
e os interesses envolvidos nessa fala. As formas perforticas também são textuais, são
também formas narrativas, pois muitas coisas são ditas de formas não-verbais que o
antropólogo deve estar atento para perceber.
Buscando um modelo que se adequasse a tal perspectiva, encontrei na noção de
alegoria a flexibilidade necessária ao entendimento das rupturas observadas nos contextos
etnográficos, refletidas no texto.
A alegoria (do grego allos, ‘outro’ e agoreuein, ‘falar’) normalmente denota
uma prática na qual uma ficção narrativa continuamente se refere a outro padrão de
idéias ou eventos. (...) Focalizar preferencialmente a alegoria etnográfica (...) chama
a atenção para aspectos da descrição cultural que têm sido até recentemente
minimizados. Um reconhecimento da alegoria enfatiza o fato de que retratos
realistas, na medida em que são ‘convincentes’ ou ‘ricos’ são metáforas extensas,
padrões de associações que apontam para significados adicionais coerentes (teóricos,
estéticos e morais). A alegoria (de maneira mais forte que a ‘interpretação’) destaca
a natureza ptica, tradicional e cosmológica de tais processos de escrita
(CLIFFORD, 2002:65-6).
As alegorias mostraram-se menos presunçosas, por deixarem explícitos seus limites
enquanto modelos narrativos, por deixarem abertas sempre possibilidades de outras leituras,
de outras formas de interpretar aquilo que aparece aqui (d)escrito. Sendo possível dizer que a
alegoria é apenas contar histórias particulares dialogando com temas mais gerais, então este
texto quer demarcar sua posição alegórica.
O reconhecimento de que o texto etnográfico é sempre e inevitavelmente alerico
exige que se tragam as imagens e os símbolos recuperados pela observão de campo, não
17
Segundo Bruner e Turner, a antropologia e o nativo tornam suas experiências manifestas e compreensíveis
através do texto etnográfico, porque a experiência sempre exige uma narrativa, pede que se narre, conectando um
tempo passado a um tempo futuro. Assim, a tradição é renovada constantemente, pois é renarrada sempre.
62
para com eles salvar fragmentos do “reino perdido” da tradição Mbyá, mas para utilizá-los na
interpretação situacional de suas vozes e posições, reforçando o reconhecimento de sua força,
autonomia e dinamicidade. Busquei retratar no texto etnográfico o contexto em que foram
feitas as formulões práticas e discursivas dos representantes Mbyá e as minhas,
posicionando quem fala e quem inscreve na realidade e sobre ela, o que não é fácil de mapear
quando a investigação se depara com a mobilidade e dispersão social dos Mb. Na escolha
de uma dimensão capaz de dar maior unidade anatica à complexidade do sistema interétnico
que nos engloba, escolheu-se a alegoria do diálogo e da “polifonia” em contextos pluriétnicos,
para pensar e descrever cada circunstância etnográfica como o encontro-desencontro entre
diversas posições. A alegoria permite o diálogo entre cada situação pontual observada e as
teorias antropológicas mais abstratas (CLIFFORD, 2002). Sobre o método dialógico,
argumenta o autor:
(...) El etnógrafo, por su carácter de fabulador, es un transgresor. El
etnógrafo, o la etnógrafa, pueden mezclar sus propias confusiones, sus violências y
deseos, sus luchas, com la noticia concreta acerca de ciertas transacciones
econômicas observadas, por ejemplo... Tal método, reputado como falto de
disciplina, servido para remover los fundamentos de la etnografía llevándola,
como ciência, mucho más allá de sus propias fronteras. Sólo así la etnografía se
torna capaz de solidificar una teoría menos dogmática. (...) La transcripción de los
diálogos, la fabulación, incluso, a través de los mismos, tiene la virtud de
transformar el texto cultural que comunique las observaciones (ritos, instituciones,
Historia, comportamientos y hábitos de conducta) para convertirlo en un discurso
personal en el que el científico se esfuerza no sólo en contar lo visto sino en
explicarlo a la luz de sus propias inseguridades, de sus propias certezas y de los
conocimientos debidos a su bagage cultural (CLIFFORD, 1991: 44).
Neste quadro, a etnografia é entendida enquanto uma operação de transposição de
sentidos, de traduções e traições que o método procura controlar, sabendo de antemão sobre a
impossibilidade de verificação última do sentido que motiva o outro” observado
18
. Mesmo
assim, a formação científica treina o pesquisador, motivando-o, como se suas técnicas
pudessem fazer o impossível. Ele aprende a observar, ouvir e registrar a realidade
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000), operações que geram os dados etnográficos. As
correntes pós-modernas da antropologia têm constatado que o realismo etnográfico é antes de
tudo um estilo literário. James Clifford (1991) argumenta que as fronteiras entre a
antropologia, a literatura e a história são muito fluídas e que o viés literário do texto
18
Segundo Louis Dumont (1985), uma diferença fundamental na prática antropológica que inevitavelmente
separa o observador, como portador das idéias e valores da sociedade moderna, daqueles que ele observa. Essa
diferença entre “nós” e “eles” se impõe a todo antropólogo e é onipresente na sua prática.
63
etnográfico não compromete o caráter científico da obra, pois o objetivo já não é mais a busca
de objetividade na descrição de uma realidade social. Este autor acredita na absoluta
importância analítica do texto enquanto prática literária, afirmando que é somente a partir da
análise das fronteiras entre o artístico e o científico que se pode apreender no texto
etnográfico sutilezas como intenções, sentidos subjacentes que se relacionam diretamente com
um contexto social, potico e cultural atual mais amplo no qual estão inseridos os atores
sociais.
A atenção para as condições de observação, coleta e registro de dados etnográficos é
uma das formas de exercer o controle dos desvios produzidos pelas pré-compreensões. A
aposta científica na possibilidade da tradução etnográfica, assim como a lingüística, depende
do reconhecimento de que a realidade observada envolvendo o “outro” sempre é uma situação
ao menos dialógica (CLIFFORD, 2002), um com-texto (GEERTZ, 1989) de disputa e poder
pela hegemonia de significados (ORTNER, 1994). Segundo Dumont (1985:13), o observador
deve fazer parte, necessariamente, da observação e o resultado de sua pesquisa não deve ser
compreendido como um quadro objetivo sobre determinada realidade, “mas o quadro de
alguma coisa vista por alguém”. Ele ressalta a necessidade de se relativizar os parâmetros da
ideologia moderna na análise de outras sociedades como é o caso da pesquisa entre os
Mbyá-Guarani – para evitar análises que enquadrem os dados dentro de um sistema ocidental
de pensamento.
Nessa relação de poder que permeia a pesquisa científica , o pesquisador ocupa
sempre uma posição privilegiada, na medida em que a fala de seus interlocutores se reduz em
última instância à formatação teórica do pesquisador e da antropologia, apesar de alternativas
que contemplam mais ou menos a participação dos interlocutores como co-autores das
etnografias (CLIFFORD, 2002). Neste sentido, penso que as estratégias cotidianas dos Mbyá
para manter a dimensão de mistério de sua tradição sejam tamm maneiras de controlar esse
processo de os antropólogos transformarem seus dados de campo, dados sobre a tradição oral
de um povo, em um texto científico, antropológico, que será, antes de mais nada, construção
do antropólogo e uma visão parcial (CLIFFORD, 1991) de um todo muito complexo. Esta é
uma questão ética importante que deve permear as práticas etnográficas e as produções de
conhecimento sobre grupos humanos, principalmente porque eles estão aí hoje.
Esta pesquisa foi feita enfrentando contínuas dificuldades de adequação, buscando
sempre trazer para o texto a complexidade envolvida na observação das realidades vividas e
representadas pelos Mbyá. Em primeiro lugar, foi preciso mapear as alternativas válidas de
64
fundamentação antropológica (teórica e metodológica), fazendo-as interagir com a densidade
dos dados da pesquisa de campo, avaliando o grau de aplicação dos paradigmas de
objetividade que enfatizam o indivíduo em sua singularidade autodeterminada e a
descoberta de leis universais do social e do cultural.
Para o caso dos Mbyá, o como medir a aplicação da iia de objetividade do
indivíduo independente do social, nem encontrar a suposta “exterioridade” deste em relação
aos sujeitos que o constituem. No entanto, além das opções dicotômicas entre o
individualismo e o holismo
19
, clássicas nas ciências sociais até a atualidade, é preciso
considerar outra existente na matriz disciplinar da antropologia (CARDOSO DE OLIVEIRA,
2003). Trata-se do paradigma da (des)ordem que coloca a centralidade da historicidade, da
pessoa e da intersubjetividade. Esta opção fica a meio caminho entre as duas anteriores,
fazendo-as perder suas objetividades independentes na medida em que as torna mutuamente
dependentes. Esse paradigma mostra-se muito adequado para dar conta, no caso, do perfil dos
dados etnográficos inscritos, vistos e ouvidos entre os Mbyá.
Aproximando iias trazidas pelo paradigma hermenêutico
20
, foi possível incluir
minha “participação” na elaboração final dos dados. O modelo da matriz disciplinar da
antropologia e seu correspondente epistemológico trazidos pela iia de “fusão de horizontes”
(GADAMER, 1997) foram fundamentais para o encaminhamento da pesquisa. Através da
ateão central dada à historicidade dos atores Mb e à intersubjetividade que os motiva
(cuja essência fica fora de acesso pleno ao pesquisador, pelo segredo que lhe atribuem e
resguardam), esta pesquisa adota a perspectiva de que o conhecimento científico é feito
através de tendências que se articulam, se oem e se complementam, tal qual a própria
realidade etnográfica, como se fosse um encontro de posições marcado pela polifonia ou pela
heteroglossia
21
. Considerando que, historicamente, o conhecimento antropológico foi
19
Sobre a definição desses dois conceitos, ver “léxico de algumas palavras-chave” em Louis Dumont
(1985:279).
20
Refiro os termos utilizados por Cardoso de Oliveira para designar o paradigma da (des)ordem, mas é
necessário reconhecer a existência de outros termos difundidos na literatura antropológica para designar
tendências tricas semelhantes, como o as: reflexiva, relativista, contextualista, s-moderna, interacionista,
metafórica, alegórica, dialógica, da prática etc. Embora existam diferenças marcantes de cada uma delas em
relação às demais, todas elas demarcam essa dependência inevitável entre o individual e o social mediada pelo
pesquisador.
21
Os termos polifonia e heteroglossia são tomados aqui no sentido radical recuperado por James Clifford da
análise de Bakhtin (no seu trabalho de 1953) sobre o romance polinico. “Para Bakhtin, preocupado com a
representação de todos não-homogêneos, não há nenhum mundo cultural ou linguagem integrado. Todas as
tentativas de propor tais unidades abstratas o constructos do poder monológico. Uma cultura’ é,
concretamente, um diálogo aberto, criativo, de subculturas, de membros e não-membros, de diversas facções.
Uma ‘língua’ é a interação e a luta entre dialetos regionais, jargões profissionais, lugares-comuns genéricos, a
fala de diferentes grupos de idade, indivíduos etc.” (CLIFFORD, 2002:49).
65
constrdo no estudo comparativo das representações sociais obtidas junto aos diversos
grupos étnicos estudados, então é necessário admitir que – como acrescentam os antropólogos
pós-modernos os “informantes” e “observados nativos também são autores que dialogam
(quase sempre anônimos) com nossa matriz científica, através da escrita de seus etnógrafos,
sendo outras vozes que participam da referida polifonia.
Não basta mais fazer teorias distanciadas das representações nativas, porque é preciso
dialogar cientificamente com elas, inscrevendo contextos e os descrevendo enquanto cenários
etnográficos. Abu-Lughod em Writing against culture de 1991, defendendo a idéia de que o
que se verifica no nível sociológico é atualizado constantemente nas práticas cotidianas,
argumenta a favor de uma “etnografia do particular”, através da qual se pode fazer o
particular (cenários e situações específicas) falar de algo mais geral. Ela afirma que não é de
graça que se relacionam, no texto etnográfico, alguns aspectos do particular, mas porque esses
aspectos de certa forma são paradigmáticos da “realidade” que o pesquisador está
pretendendo interpretar e retratar. Porém, como enfatizam John e Jean Comaroff (1992),
deve-se tamm procurar sair desse particular, não centrar a etnografia apenas nos indivíduos,
mas procurar contextualizar as pessoas dentro de seu grupo e o grupo dentro do contexto mais
amplo no qual se encontra. Para esses autores, a etnografia é justamente a junção entre o
“particular” e o “geral”, é a conexão, ou melhor, as conexões entre o micro” e o “macro” da
realidade estudada. Foi essa perspectiva que procurei adotar em minha pesquisa.
Assim, não é adequado retratar os Mb como um todo estável e essencial, mas sim
mostrá-los como sendo produto de uma narrativa da descoberta, em circunstâncias históricas
específicas” (CLIFFORD, 2002:88). Todo trabalho de etnografia sempre é polifônico,
anexando vozes literárias (escritas dos autores e obras lidas) e vozes “nativas” inscritas,
transcritas e traduzidas pela pesquisa, sistematizadas pela narrativa dos pesquisadores. Por
isso, aqui se adota o conceito de diálogo como parâmetro de síntese teórico-metodológica da
pesquisa realizada entre os Mbyá, integrando suas narrativas explícitas e interpretando-as
desde seu contexto de formulação, que se faz no espaço da diversidade em que vivem os
Mb. Este trabalho pretende contribuir na tradução, em termos científicos, aquilo que os
Mb estão nos comunicando, usando como auxílio analítico o enquadramento espacial e
corporal da sua “textualização”, aspectos mais silenciosos ou ocultos” de seu modo de vida
(Mbyá rekó), pano de fundo sobre o qual se faz o sentido das falas e da atuação” que
expressam aos interlocutores jur.
66
Em meio às dificuldades iniciais, o trabalho sofreu oscilações na amplitude de
delimitação do seu campo, o que perturbou inclusive a escolha dos locais a aprofundar minha
inserção etnográfica. No início, busquei um enquadramento geográfico preciso, de maneira a
dar um caráter monográfico a este estudo social, como se espera das pesquisas etnográficas.
No entanto, ficou claro, aos poucos, que o mergulho etnográfico entre os Mbyá exigia a
adoção de marcadores espaciais mais amplos e flexíveis, descartando critérios mais rígidos à
definição das fronteiras do objeto e do universo da investigação. Afinal, os princípios
positivos da ciência e o caráter monográfico que se esperam de uma pesquisa etnográfica
exigiam rigor e precisão nessa tarefa e parecia-me impossível escapar dessas exincias.
No Rio Grande do Sul, os Mbyá vivem em situação muito distinta do isolamento
geográfico, pois apesar de terem algumas aldeias em terras demarcadas, eles vivem também
distribuídos em famílias independentes, dispersos nos espaços existentes entre os lotes de
propriedade privada; entre parentes afastados por até centenas de quilômetros, convivendo
com o ritmo acelerado das rodovias e freqüentando regularmente o burburinho das cidades.
Assim, como descrito no capítulo I, ultrapassei a suposição de isolamento social para
incorporar as noções de redes sociais (BARTH, 1988) e sistemas pluriétnicos. Desta forma,
foi possível compreender melhor a territorialidade Mbyá, em sua contínua mobilidade, em sua
dispersão frente ao domínio civilizado da terra (GARLET, 1997). Como coloca Pacheco de
Oliveira (2004), não como supor fronteiras absolutas entre um “dentroe um fora” das
culturas indígenas pesquisadas, porque todos nós (incluindo os Mbyá) estamos dentro de um
mesmo sistema multicultural e globalizado.
Diálogo é a metáfora metodológica para o estudo dessas mediações interétnicas,
justificando a apresentação de cenários e histórias (particulares), retratando relações
ordinárias observadas entre atores sociais, descrevendo interpretativamente situações
interpessoais que unem e separam os Mbyá daqueles que não o são e tomando tudo isso como
alegorias de temas antropológicos mais gerais. Esta pesquisa etnográfica sempre ocorreu e
continua ocorrendo nesse espaço limiar, constatando e aproveitando a abertura dos Mb
para participarem da interlocução que se criou comigo e com as instituições que atuam entre
eles, com os juruá vivenciando constantemente os limites impostos por sua autodeterminação.
O fenômeno social é um fenômeno espacial, o que se pode estudar desde a noção de
paisagem e seus cenários cotidianos. O espaço está para o cientista social, assim como o
tempo está para o historiador. A análise social precisa situar seu objeto no espaço, justificando
67
que aqui foram adotadas categorias que acredito serem mais adequadas aos padrões culturais
Mb, na organização espacial e funcional das suas relações sociais (HALL, 2005).
Espaço, geografia e território são categorias amplas e interligadas, servindo para o
entendimento de grandes amplitudes nas quais os grupos Mbyá (e outros) estão inseridos
(GARLET, 1997). Lugares, circunstâncias etnográficas, contextos interétnicos e cenários são
as equivalentes para tratar do espaço em pequenas amplitudes, daquelas que estão acessíveis
aos olhos do pesquisador. A intenção aqui é demonstrar que ambas as amplitudes, a macro e a
micro, se complementam e se atualizam para cada um dos atores enquanto paisagem.
Foi quando adotado o quadro teórico e metodológico implicado nas noções de
polissemia, diálogo, textualização, contexto de sentido, cenários, que a pesquisa valorizou
conceitualmente os espaços intermediários, dirigindo o foco também ao registro das
interações com as instituições, situações em que os atores Mbyá demonstram reiterada
capacidade performática, manifestando verbal e ritualmente a manipulação étnica, ativa e
irredutível de uma intencionalidade étnica própria, capaz de mobilizar e ultrapassar
divergências e conflitos internos (NOVAES, 1993).
Entretanto, investigar através da alegoria do diálogo interétnico não significou
menosprezar a importância interpretativa da vivência Mbyá em seu espaço cultural aunomo
e radicalmente diferente do nosso, base de sua alteridade. Ao contrário, foi mantido o
interesse em explorar contextos específicos, inscrever a observação no terreno das interações
entre e intra-comunitárias, incluindo a observação etnográfica do pátio da casa (oká) naquelas
relações concretas que se fazem na beira do fogo (tataypy) enquanto espaço privilegiado de
sociabilidade e comensalidade para os Mbyá. Fazer etnografia no cotidiano de uma
comunidade Mb é observar e inscrever sobre os fundamentos corporais de seu sistema
cultural e também sobre as formas próprias de representação da pessoa
Assim, embora a etnografia do contato evidencie um processo inevitável de
transformações, as narrativas trazidas neste texto fundamentam alegorias com grande força
simbólica, indicando ser antropologicamente necessário preservar o reconhecimento sobre a
irredutibilidade da tradão “praxiológica” (no sentido das “técnicas corporaisde Mauss),
social, cosmológica e cultural dos Mbyá, que se mostra aberta o suficiente para integrar o
novo sem comprometer sua identidade, ao menos de maneira mais evidente para um
observador juruá. Esta conclusão resulta tanto da experiência etnográfica entre os Mbyá nesta
pesquisa, quanto das informações obtidas na literatura etnográfica mais recente sobre os
povos Tupi-Guarani do continente, que são caracterizados por uma grande variabilidade
68
sociológica, fundamentada em uma grande homogeneidade cosmológica (VIVEIROS DE
CASTRO, 1986; HÉLÈNE CLASTRES, 1978). O pessimismo de Curt Nimuendaju quanto ao
futuro dos Guarani na primeira metade do culo XX (cf. Viveiros de Castro à Introdução da
edição brasileira do livro de Curt Nimuendaju [1987] sobre os Apapocuva-Guarani) foi
substitdo pelo reconhecimento científico de sua capacidade de resistência cultural quase um
culo depois, manifesta objetivamente pelo contínuo crescimento das taxas populacionais
dos grupos Mb nas últimas décadas, grupos que mantêm a fundamental importância da
ngua materna entre todos os seus membros.
Apresentar histórias das descobertas da pesquisa e descrever as oportunidades em que
se observou os Mbyá fazendo as suas narrativas sobre si próprios e sobre os juruá (por
exemplo, aprendendo um termo jurídico ou se apropriando de um conceito antropológico,
como tantas vezes os presenciei fazendo) colocam a importância de explicitar o processo de
construção da relação entre eu pesquisadora – e os Mbyá. É válido trazer aqui o comentário
de Renato Rosaldo (1991, p. 20), de que todo etnógrafo é um sujeito situado ou re-situado,
que está preparado (conforme sua idade, sexo, classe social etc.) para ver certas coisas e não
outras.
Pelas diversas razões expostas ao longo desta dissertação, pode-se dizer que sua base
etnográfica transcorreu e transcorre como um encontro de tradições, de historicidades
diversas, cada qual resultado de um horizonte cultural específico. Ou seja, eu enquanto
pesquisadora – dirigi minha consciência para minha historicidade e busquei a abertura à
compreensão da consciência histórica do “outro”. Desta forma, o conceito de fuo de
horizontes de Gadamer é interessante para analisar esse encontro, uma vez que consiste na:
[...] comunicação de distintas tradições, que caracteriza todo ato de compreensão e
através da qual se revelam o significado e a verdade. A fuo de horizontes é um
processo dialético mediante o qual, ao mesmo tempo que vou conhecendo o objeto
cultural em sua radical alteridade, também me vou conhecendo a mim mesmo como
historicamente finito; é dizer historicamente limitado por outras tradições enquanto
formas de compreensão e estar no mundo (ULIN, 1990:144).
Na realidade, a fusão de horizontes acontece dentro do próprio ser que pensa e, no
caso do antropólogo, proporciona uma reflexibilidade sobre si mesmo, sobre sua própria
tradição e não somente sobre o universo do “outro”.
69
Nesse caminho de investigação, fez-se a opção pelo estudo das relações ordinárias e
cotidianas observadas em contextos espaciais específicos (cenários recuperados pela
etnografia), de abrangência micro-social, tornando-as alegorias e relatos, de maneira a fazer a
pesquisa igualmente escapar do comprometimento intelectual com modelos pressupostos
rígidos e abstratos, daqueles que entendem as unidades sociais estudadas enquanto blocos
homogêneos, comunidades supostas como harmônicas e destituídas de contradições. De fato,
a pluralidade é o solo em que se faz a etnografia entre os Mbyá.
A observação etnográfica entre os Mbyá é rica em demonstração de conflitos que se
proliferam dentro das aldeias e dos acampamentos, surgindo divergências evidentes entre
lideraas e entre outros Mbyá envolvidos. Tais divergências fazem parte da realidade
etnográfica, porque elas são estimuladas por fatores exógenos (marginalidade no contexto
brasileiro) e porque é possível reconhecer elementos culturais internos que estimulam os
conflitos e provocam cisões, ao estilo do que Pierre Clastres designou “sociedade contra o
estado” (1978). traços tradicionais dos Mbyá que se organizam de maneira a manter um
nível baixo de cristalização das instituões sociais, reduzidas ao nível do núcleo doméstico
toda vez que ocorre um conflito político ou uma fase de dificuldades no abastecimento
alimentar.
2.2 Antropologia das práticas e etnografia entre os Mbyá
Todo texto antropológico é um movimento narrativo inserido na matriz disciplinar que
o funda, seguindo a linearidade construída pela posição e inserção social do pesquisador que o
escreveu, tão mais interessante quanto mais faz contrapor posições, tão mais rico quanto mais
consegue contrapor tradições e as fazer dialogar em suas contradições (“com tradições”).
Noções mais essencialistas como “sistema”, “estrutura”, “cultura” o se tornam
invalidadas na posição aqui adotada
22
, mas passam a receber uma atenção metodológica
secundária, todas elas entendidas como derivadas da ação humana – esta sim, objeto da
observação direta. Em sua obra “The fate of culture, de 1999, Sherry Ortner recomenda que
22
O propósito desta pesquisa não é dedicar-se à aplicação de uma teoria geral sobre os Mbyá, embora a
consideração sobre “estruturas” seja inevitável, porque elas, como escreveu Geertz, “(...) constituem a própria
matéria de que é feita a antropologia cultural (GEERTZ, 1997, p.10).
70
se fale menos em sistema cultural e se enfatize mais a produção de significados, na medida
em que sistema” sugere a existência de algo estável e fechado. Assim, é mais apropriado
enfatizar os processos de significação. Focando a interpretação antropológica das práticas em
contextos etnográficos, torna-se possível superar a dicotomia clássica estabelecida na filosofia
do ocidente entre idealismo e materialismo. Recupera-se a centralidade da idéia de práxis à
significação humana, principalmente pela vantagem dela ser mais acessível à observação
etnográfica e permitir compreender as posões e disposições duráveis, a imitação
prestigiosa” (habitus na versão de Mauss) que torna possível a ordenação do social.
As metáforas do teatro tornam-se úteis ao entendimento dos processos sociais, da
atuação dos agentes (atores) que acionam e atualizam os mbolos do sistema, da estrutura e
da cultura. Por isso, pode-se dizer que a ênfase está no ator e nas suas práticas cotidianas, não,
na estrutura social. A diferença básica em relação à ênfase dada à estrutura é de que o
cotidiano é entendido como extremamente politizado, havendo, desde o cleo familiar,
disputas por poder. De acordo com Sherry Ortner (1994), todas as relações do dia-a-dia estão
permeadas por relações de poder e de contradição de interesses dos indivíduos, mesmo entre
aqueles que fazem parte de um mesmo grupo, como por exemplo, os Mbyá. Nessa
perspectiva, os atores sociais o podem ser considerados como meros reprodutores de
performances funcionais definidas mecanicamente em coerência aos papéis que
desempenham na estrutura social. Termos como homem e mulher”; “médico e paciente”;
“branco e índioetc. definem-se em relações nas quais, como partes, estão constantemente
presentes questões de poder, autoridade e de controle de definão da realidade.
Na antropologia que valoriza a dimensão da práxis
23
, ao invés de, metodologicamente,
partir das estruturas da sociedade postuladas a priori, procura-se identificar quais são as
práticas dos atores sociais como um meio de encontrar a que pades remetem. Esta é, na
verdade, uma questão de ênfase, mas uma questão importante. Assim, deve-se iniciar a análise
por aquilo que é observável pelas ações mais ordinárias e daí contextualizar o observado. Os
23
Falamos de práxis para se referir àquilo que se tem identificado no meio acadêmico como “teoria da prática”,
que, como salienta Ortner, não se trata propriamente de uma teoria e nem de um método, mas de uma orientação
em torno do qual um conjunto de teorias está em desenvolvimento ou em re-elaboração. Essa abordagem vem se
desenvolvendo desde a década de 1970 em tua influência entre intelectuais da Europa e dos Estados Unidos,
apresentando ampla diversidade de propostas, mas todas elas compartilhando, como elemento básico, a
compreensão da dimensão prática da cultura e da sociedade.
23
Segundo Adam Kuper (2002), os antropólogos pós-modernos tiveram que pensar em uma nova metodologia
para a escrita, uma vez que não se aceita mais o argumento da neutralidade na pesquisa. Assim, começam a
defender a idéia de que o pesquisador deve aparecer no seu texto, pois faz parte dele.
71
teóricos modernos da prática tentam apreender e explicar as relações obtidas entre a ação
humana e o “sistema”. São diversos os trabalhos que apontam nesta direção (BURKE, 1989;
DE CERTEAU, 1996; WACQUANT, 2002; entre outros).
Sherry Ortner (1999) enfatiza a necessidade de se considerar a “visão sociológicana
análise antropológica. Ou seja, o contexto político-econômico do grupo a ser estudado e o
contexto histórico em que vive o grupo e em que vive o etnógrafo devem fazer parte da
análise
24
. Essa “antropologia da prática” tem por objetivo realizar a fusão entre a análise
sociológica e uma abordagem da dimensão simbólica, pois o símbolo existe no momento
em que é posto em prática, ou seja, o questionamento inicial deve ser: o que as pessoas estão
fazendo e como? Pois não se pode reduzir um sistema simbólico do processo de fazer, o que
remete ao papel do ator (GEERTZ, 1989). Em outras palavras, o processo simlico é
observável enquanto está sendo produzido, enquanto alguém o es produzindo (ORTNER,
1999).
A partir de um novo entendimento processual do conceito de cultura, integrando as
noções de poder (dominação, resistência), cria-se a convergência entre antropologia e história,
na medida em que se reconhece a historicidade como qualidade intrínseca da pessoa.
Entretanto, não se trata de integrar a metodologia histórica na prática antropológica,
simplesmente, é preciso que haja a compreensão de que o próprio objeto da antropologia é
histórico. Segundo autores que são identificados com a antropologia da prática,
[Uma] mudança na noção do conceito de cultura tem se manifestado de diversas
formas. No nível da teoria, o conceito de cultura tem se expandido pela noção
foucaultiana de discurso e gramsciana de hegemonia. Ambos enfatizam a cultura
colocada em relões desiguais e diferenciadas, relativas a pessoas e grupos em
diferentes posições sociais. No nível da pesquisa empírica, tem havido uma explosão
de estudos em universos culturais de diferentes classes, grupos étnicos, grupos
sociais e também nas formas como esses universos culturais interagem.
(...) O aspecto central do conceito de cultura tem sido a reclamação de uma
coerência relativa e consistência interna – um “sistema de símbolos”, uma “estrutura
de relações”. Mas uma intrigante linha de discussão na teoria crítica contemporânea
tem agora proposto uma alternativa: cultura como múltiplos discursos, coexistindo
com campos dinâmicos de interação e conflito (tradução da autora, DIRKS; ELEY
& ORTNER, 1994:03).
É possível aproximar uma das dimensões da argumentação de Peter Burke (1989), ao
tratar do tema amplo da cultura popular na Europa na Idade Moderna. O autor situa a
72
elaboração intelectual em torno à idéia de cultura popular como característica desse período,
mas para demonstrar o quanto a intelectualidade moderna esteve limitada para compreender a
diferença cultural das manifestações coletivas, a partir de então, classificadas como populares.
(...) Existiram boas razões literárias e políticas para que os intelectuais
europeus descobrissem a cultura popular no momento em que o fizeram. No entanto,
a descoberta podia ter se mantido puramente literária, não fosse a existência de uma
tradição mais antiga de interesse pelos usos e costumes que remontava à
Renascença, mas que vinha tomando um colorido mais sociológico no século XVIII.
A diversidade de crenças e práticas em diferentes partes do mundo vinha se
mostrando cada vez mais fascinante, como um desafio para revelar a ordem sob o
aparente caos. Do estudo dos usos e costumes no Taiti ou entre os iroqueses, foi
apenas um passo para que os intelectuais franceses passassem a olhar para seus
próprios camponeses, que julgavam quase igualmente distantes em suas crenças e
estilo de vida. (...) A cultura popular de 1800 foi descoberta, ou pelo menos assim
julgavam os descobridores, bem a tempo. O tema de uma cultura em
desaparecimento, que deve ser registrada antes que seja tarde demais, é recorrente
nos textos, fazendo com que eles lembrem a preocupação atual com as sociedades
tribais em extinção (BURKE, 1989:42-3).
Esse empenho intelectual gerou produtos, descrições dos usos e costumes como traços
independentes dos sujeitos que os criam, constituindo uma visão fechada de cultura. A
transcrição literária deu um estatuto permanente ao que se acreditava estar em
desaparecimento, ao que se pensava ser um acervo tradicional incapaz de suportar
transformações sem que perdesse sua identidade. Por outro lado, é preciso demarcar a
distância desde então criada entre a permanência do texto que registra a tradição e a
historicidade daquele que vivencia sua transformação no tempo. Burke coloca que muito da
cultura que se passou a chamar de popular advém da tradição oral ou mesmo de outras
maneiras igualmente eventuais: também na forma de “enunciado”, enquanto processos
práticos (festividades, rituais religiosos compartilhados, apresentações artísticas etc.). Estas
manifestações populares não deixaram muitos registros escritos. A cultura oral quase não era
documentada, dependendo da atividade realizada por alguém letrado. Assim, era registrado
apenas aquilo que interessava às classes altas, de onde vinha a intelectualidade que produzia
estes registros. A curiosidade pelo exótico do povo surgiu como prática de satisfação
intelectual, modificando significados, sentidos etc. O mesmo pode ser pensado, por extensão,
com relação às populações indígenas, na medida em que se caracterizam fundamentalmente
pela tradição oral e manifestações rituais, passando por um processo similar de alienação do
processo de construção de sua própria história e identidade.
73
Loïc Wacquant, em seu texto “Corpo e alma”, de 2002, sobre os lutadores de boxe e o
espaço da academia, trata de questões importantes do ponto de vista desta discussão
antropológica, e interessantes para realizar a leitura da etnografia sobre os Mb. O autor
reivindica uma sociologia do corpo, no sentido de uma necessidade de viver as experiências
(etnográficas) com o próprio corpo, que ficam impressas em nossas representações e
emoções. A partir disso, levanta um questionamento sobre as fronteiras entre o “dizível” e o
“indizível”: como traduzir essas experiências no texto etnográfico? Argumenta que é desafio
da antropologia realizar uma aproximação dessas dimensões da realidade pesquisada. Além
do desafio etnográfico, o desafio da narrativa, da construção do texto, de passar essas
experiências vividas com o corpo, para um texto.
Sua descrição etnográfica sobre o espaço da gym no gueto caracteriza-se por valorizar
a prática, focalizando as práticas corporais, através do testemunho pessoal de sensações e
impressões e também através das descrições e relatos das práticas dos atores sociais de sua
pesquisa. Wacquant contextualiza os atores, os restitui como personagens sociológicas (de
onde vêm, quais suas trajetórias particulares e experiências).
Assim, toda a monografia etnográfica existe enquanto narrativa etnológica, porque o
pesquisador registra interpretando a realidade cultural observada desde a experiência de
campo. Como escreveu Geertz (1989), o etnógrafo não estuda “a” aldeia, mas na” aldeia,
utilizando toda a bagagem apreendida na sua formação acadêmica para definir temas sociais
relevantes. No caso desta pesquisa, os dados etnográficos dos Mbyá são examinados à luz de
parâmetros que reservam destaque ao cerne da diferença cultural, reconhecendo
intencionalidade e autonomia como traços típicos dos interlocutores indígenas, admitindo
existir entre os Mbyá um perfil cultural independente e radicalmente diferente daquele
existente mais amplamente em seu entorno, a partir de padrões culturais que canalizam as
emoções e os sentimentos das pessoas que os compartilham, algo que pôde ser conhecido
por mim por caminhos transversos, comparando os dizeres e as ações dos Mb e assimilando
esse conhecimento na experiência efetiva (e afetiva) da pesquisa, no aprendizado incorporado
pela “participação observante”.
Concentrando sua atenção na interpretação da práxis e do habitus, do corpo enquanto
meio privilegiado de atualização prática dos padrões culturais, do contexto etnográfico
entendido como texto, e a atuação dos nativos enquanto performática de gestos e falas, a
antropologia tornou-se uma ciência do sentido, dialogando com os métodos e teorias da
história, da filosofia, da lingüística, da crítica de arte e da psicanálise.
74
A primazia do vivido também faz parte da “hermenêutica” dos Mb, sendo um dos
tantos pontos de contato com a formulão contemporânea da epistemologia, da consciência
fenomenológica imbricada no ato da interpretação, característica comum à direção analítica
iniciada de dentro da antropologia por trabalhos inovadores como os de Franz Boas e Marcel
Mauss; o primeiro, a equacionar a configuração cultural das capacidades visuais; o segundo,
pelo resgate da dimensão prática da técnica em sua fundamentação corporal. A partir de
então, tornou-se possível ao pesquisador libertar-se da procura exclusiva pela explicação
racional do outro, reconhecendo que a grande força cultural das emoções pode suspender e
anular a ânsia por uma explicação definitiva do mundo (ROSALDO, 1991).
As emoções são uma forma de mergulhar na realidade cultural dos Mb, porque uma
de suas estratégias interculturais é conquistar os não-indígenas pelo “coração”. Suas palavras
o ricas de significados, e assumiram uma dimensão mais marcante quando pude
reconhecer a vivência que esna base de suas formulações discursivas. Isso não resulta de
uma maior sensibilidade minha, como pesquisadora, porque a emoção é bastante recorrente
entre quase todos aqueles que se permitem tocar pela mensagem transmitida pelos Mb, seja
quando se escuta as crianças Guarani cantando em coral, acompanhadas de instrumentos
tradicionais, seja pela força das palavras expressas pelos Mbyá em eventos oficiais. A emoção
e o sentimento organizam as relações ordinárias dentro dos acampamentos e das aldeias
Mb, às vezes canalizados nos rituais coletivos que congregam diversas famílias extensas.
A convergência da antropologia com o movimento hermenêutico tem sintonia com a
necessidade de empreender a busca de sentido aos dados etnográficos deste trabalho. A
pesquisa entre os Mbyá mostra o quanto as “(...) pré-compreensões atuam inevitavelmente nos
bastidores inconscientes em que se engendram as proposições, mesmo as científicas
(SOARES, 1994:12)”. As interações ocorridas comigo em campo, o contato intenso com as
diferenças de sentido manifestas pelo silêncio ou pela fala, pela imobilidade ou pela dança dos
Mb, tudo isso culminou na minha capacidade em reconhecer existencialmente
25
,
empiricamente, aquilo que expõe a dimensão da interpretação, i.e.: o quanto eu e todo o
etnógrafo estamos mergulhados e limitados ao nosso próprio mundo hisrico e cultural,
compartilhando as conseqüências de nossas tradições intelectuais. Ao fazer etnografia e
mergulhar em outro universo simlico, o pesquisador pode ficar inicialmente perdido ao
reconhecer que sua possibilidade de conhecer o “outro” está em direta relação com sua
25
O impacto existencial da pesquisa etnográfica é assunto retomado por muitos antropólogos. Veja-se, por
exemplo, Evans-Pritchard, em Os Nuer (2005: 247) e Roberto da Matta, em O ofício do etnólogo ou como ter
Anthropological Blues (1978).
75
capacidade de vislumbrar convenientemente o seu próprio quadro de referência de sentido,
pelo qual pensamos, compreendemos, comunicamos e agimos no mundo.
Foi nessa “expedição” abstrata ao cerne do meu horizonte cultural e à matriz
disciplinar da antropologia que descobri a centralidade dos conceitos de pluralismo,
polissemia, heteroglossia, divergência de significado, sentido circunstancial e estratégico,
táticas coletivas, adequação cultural do corpo e do movimento no espaço e no tempo;
conceitos adotados para melhor expor e equacionar a participação do “outro” na produção do
meu conhecimento etnográfico, apostando na possibilidade de entendimento entre
“corporalidades” e lógicas tão diversas, partindo da existência de emoções em comum a
conduzir a transmissão de mensagens. Além dos inúmeros paralelismos a mostrar a
possibilidade na fusão” do horizonte antropológico com as referências culturais Mbyá, meu
empreendimento ainda é justificado pela predisposição manifesta pelos Mb em participarem
da interação dialógica comigo e com diversos representantes do “mundo do juruá”.
A centralidade reivindicada pelos Mbyá para o envolvimento emocional como meio de
acesso privilegiado ao seu mundo cultural é oposta à imparcialidade indiferente” formulada
pelas normas clássicas da etnografia. Rosaldo (1991) critica o modelo de trabalho imposto
pela imagem metafórica do “Etnógrafo Solitário”, aquele que buscava produzir um retrato
transparente da cultura estudada, mas reconstituída de tal forma cristalizada que parecia apta a
ser exposta em um museu. A fórmula do etnógrafo solirio vigorou até que ocorresse a re-
configuração do pensamento social a partir do final da década de 1960, quando a atenção
voltou-se mais à interpretação de casos específicos do que a fórmulas e explicações gerais.
O pluralismo de posições corresponde ao reconhecimento antropológico sobre a
diversidade cultural, na atenção diferenciada para cada caso etnográfico trazido ao
reconhecimento mais amplo, assim como os Mbyá tornam-se cada vez mais visíveis na
composição multicultural do Rio Grande do Sul. E, ainda mais, participando ativamente na
construção de uma fusão de horizontes com seus interlocutores não-indígenas.
76
2.3 Corpos atuando no espaço, compondo paisagens
A etnografia é concretamente o envolvimento físico e corporal do pesquisador
(WACQUANT, 2002) em outros contextos coletivos, adquirindo por todos os órgãos do
sentido (visão e audição principalmente, mas também olfato, gustação e tato) informações do
meio e das condutas ordinárias das pessoas com as quais interage. As técnicas de observação
etnográfica dependem da inserção do pesquisador na realidade cotidiana do grupo pesquisado;
inserção de corpo e mente na experimentação dos fenômenos da alteridade onde ela é mais
manifesta. Assim, a experiência etnográfica é inevitavelmente fisiológica, afetiva e
existencial; por isso descrita como resultante do choque cultural” e esse como caminho
inevivel para despertar o estranhamento e motivar o exercício antropológico da alteridade.
O corpo do etnógrafo é a principal ferramenta de acesso ao estudo da alteridade
cultural, porque é através dele que percebemos e apreendemos o comportamento das pessoas.
A observação participante acesso evidente a gestos, falas e simbolismos daqueles que são
pesquisados, mas tanto o etnógrafo quanto estes já se encontram moldados previamente pelas
formas sociais de constituição dos seus corpos e do espaço onde a pesquisa acontece, também
pela maneira como o ambiente se encontra organizado e da maneira como é coletivamente
percebido e representado. O corpo sustenta-se e se move no espaço, mas este não é apenas um
habitat inerte, porque a esncia sica da matéria e a da fisiologia de plantas e de animais não
o substâncias universais acessíveis imediatamente à percepção. A “substância” da matéria
ou da natureza não são fatos em si, são construções típicas da projeção cultural promovida
pela ciência, aquela que supõe a existência de um mundo físico independente do sujeito que
observa.
O corpo e o espaço tornaram-se dois mundos separados, como instâncias distintas e
independentes na metodologia científica moderna, uma como interior e a outra como exterior,
dicotomia que os trabalhos de Émile Durkheim, Franz Boas e Marcel Mauss auxiliaram a
equacionar e a redefinir (em paralelo à fenomenologia, à lingüística e à psicanálise). “Dentro
e fora” perderam um limite rígido, tornando-se permveis e inter-cambiáveis depois que se
tornou amplamente reconhecido que o olho que é o da tradição (BOAS, 2004). Assim,
corpo, espaço e a fronteira entre eles comem uma única realidade, podendo ser
definidos numa relação complementar. A antropologia do espaço (HALL, 2005) considera
essa zona de mediação, analisando a interferência da cultura nas formas de percepção corporal
do ambiente, numa amplitude que ultrapassa o entendimento lógico e remete à construção de
77
imagens sonoras, visuais, tácteis e olfativas, organizadas segundo padrões “ocultos” ao
entendimento apenas racional, discursivo e abstrato.
O espaço sico sempre é percebido segundo as categorias e representações coletivas
incorporadas pelas pessoas de seu meio social imediato, do rculo doméstico ao de
vizinhança. Cada sociedade habilita seus indivíduos para certas capacidades perceptivas, em
detrimento da anulação ou apagamento de outras; estabelece a amplitude de intimidade
corporal ou de proximidade física suportável; e define cririos impcitos de privacidade ou
de compartilhamento no momento de satisfação das necessidades fisiológicas pelos
indivíduos que a comem. Como coloca Edward Hall:
(...) Pessoas de culturas diferentes não apenas falam línguas diferentes mas, o
que possivelmente é mais importante, habitam mundos sensoriais diferentes. Uma
triagem seletiva de dados sensoriais admite alguns dados e exclui outros, de tal
modo que a experiência como é percebida através de um conjunto de filtros
sensoriais determinados pela cultura é totalmente diferente da experiência percebida
através de outro conjunto (2005:3).
O meio sempre esteve presente como fator elucidativo do comportamento humano,
embora antes concebido como fator externo e determinante no nível da fisiologia. Foram os
tempos do determinismo geográfico e das teorias das raças, perspectivas superadas pela
abordagem do social e do cultural que deu origem à antropologia. Depois que a idéia de meio
foi enriquecida pela perspectiva de Boas, os etnógrafos passaram a compreender as
determinações “materiais” da existência humana nos termos em que elas assumem
importância para o grupo em estudo, reconhecendo continuidades entre a ordem natural e a
cultural (EVANS-PRITCHARD, 2005).
Da mesma forma, o habitat o é inerte porque cada grupo humano age sobre o
ambiente alterando tecnicamente os elementos naturais ao longo das gerações, tornando o
espaço sico uma paisagem cultural em extensão às concepções de corpo e de pessoa
atualizadas nas relações interpessoais. A cultura estabelece implícitas formas de descanso e
comensalidade; ordena a distribuição das coisas no espaço, a altura do teto e o tamanho da
casa, a posição e o tamanho do pátio, o local de assentamento do acampamento e a rota dos
caminhos que separam as diversas comunidades; enfim, transforma o meio ambiente em
território. É preciso conectar essas observações teóricas com os dados da experiência
etnográfica entre os Mbyá, marcando características que auxiliem a compreender aspectos do
78
corpo e da percepção Mb de si e do mundo, manifestos e reconhecidos ao longo da
pesquisa.
Uma importante contribuão no sentido de analisar as opções conceituais que
permitem compreender o “meioem relação à etnografia é trazida por Rita Segato (2005), que
faz a distinção entre “espaço”, “território” e “lugar”, para compreendê-los mutuamente
dependentes:
Na realidade, nas definições de território que venho propondo, o espaço da
natureza, como noção de uma paisagem natural e pré-cultural, quase desaparece.
Trata-se de definições muito mais radicais que a formulação clássica entre os
geógrafos humanos para superar o determinismo ambiental do culo XIX. Esta
formulação faz referência a uma interação entre a sociedade e o meio ambiente pré-
existente, e supõe que a cultura trabalha com materiais oferecidos por sua área
natural, originando assim uma paisagem cultural idiossincrática (...). O âmbito
territorial de uma cultura seria, aqui, resultado dessa interação (2005:5).
O conceito de “espaçoé o mais abstrato e sua utilizão serve para manter presente o
referente indeterminado da realidade (o “real”), lembrando que os corpos das pessoas e os
objetos estão colocados compondo o meio que os ultrapassa e os totaliza, pois sempre há uma
parcela do espaço que se torna ofuscada pelo viés da tradição coletiva de que se faz parte (o
território etnicamente imaginado”) e pela “posiçãoadquirida desde o lugar que fundamenta
a experiência pessoal (simbólico). A propriedade desse modelo é grande para o caso dos
Mb, convergindo a observação dos atores em cenários espeficos, em certos lugares que se
ligam a noções próprias de território coletivo e sua atualização como paisagem para cada um
deles.
Paisagem cultural é uma expressão cada vez mais difundida em diversos campos do
conhecimento, incluindo: arquitetura, antropologia, arqueologia, geografia, além do uso por
administradores e políticos. Sua utilização serve aqui para enfatizar a metáfora visual, para
reforçar o entendimento da diferença cultural pelas percepções que cada Mbyá pode ter de seu
“assento junto aos seus fogos”, num ponto de vista que parte dos filtros de percepção
adquiridos no Mbyá re. Paisagem é alegoria para transpor a análise às dimensões “ocultas”
no sentido da antropologia do espaço de Edward Hall. Porém, esta referência não deve ser lida
como uma proposta utópica de fazer o leitor sentir-se como um Mbyá, porque nem mesmo
uma profunda experiência etnográfica pode superar o limite de não-pertencimento ao grupo,
porque o etnógrafo não adquiriu os mesmos filtros perceptivos que os Mbyá recebem desde a
79
infância, embora ele possa chegar mais perto pelo aprendizado da língua e pelo convívio
diário.
Este texto integra informações científicas e dados da etnografia para, assim,
reconstituir um quadro do espaço geográfico mais amplo, buscando retratar as situações
observadas e tendo por hitese que cada um dos atores Mbyá concebem e atualizam sua
percepção do mundo e de si de forma distinta da minha e da nossa tradição ocidental, da qual
a ciência aparece como extensão e continuidade.
O espaço sempre é vivido como paisagem pelos grupos humanos. Os Mb-Guarani
não são um grupo politicamente organizado como nação embora sua etnicidade os fa
“grupo de mobilização” –, pois se constituem como grupos domésticos mais ou menos
independentes, circulando por amplas áreas do continente. Arqueólogos e etnólogos
aprofundaram estudos sobre a ecologia e a distribuição geográfica dos povos, que a hisria e
a antropologia reconhecem como parte dos Guarani. Estes estudos ligam os Mb aos padrões
das sociedades indígenas das Terras Baixas americanas, enfaticamente ao estilo amazônico de
organização técnica, social e econômica (LATHRAP, 1975; BROCHADO, 1989). Os Mbyá
sobreviveram historicamente reforçando a lógica doméstica de produção, dispersos em
famílias que se mantiveram isoladas nos refúgios das florestas e dos vales dos rios até que a
ocupação civilizada impedisse acesso ou destrsse as condições ambientais, reduzindo-os ao
interior de pequenas porções de terra.
É interessante propor uma reflexão sobre a paisagem cultural Mb mais ampla. Há
muitas referências ambientais trazidas por estudos sobre eles e sobre os demais Guarani
(KERN, 1991; SOUZA, 1987; SCHMITZ, 1991). Tais refencias são justapostas às minhas
percepções próprias, à minha experiência e a meu conhecimento direto através de estadias
ou visitas rápidas do ambiente nos quais existem as Tekoá (aldeias) e tataypy rupa
(acampamentos) Mbyá, no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e Misiones (Argentina). As
comunidades Mbyá vivem em condições ecológicas muito variadas, numa variação do próprio
ambiente natural e as modificações impostas pela ocupação territorial e econômica não-
indígena.
Em termos continentais, a ocupação dos Mbyá é predominante abaixo do Trópico de
Caprirnio, em áreas de floresta subtropical distribuídas do litoral atlântico ao interior do
continente. Aproximando aspectos da concepção Mbyá sobre a paisagem, eles consideram que
a presença de mata ou floresta sobre uma área por si é evidência concreta dela como parte
de seu terririo originário. “Onde tem mata, ali é terra de Guarani”, dizia o Karaí Juancito.
80
Os arqueólogos conseguiram detalhar essa relação direta entre os Guarani e as florestas
subtropicais da Região Platina, através do estudo de tios arqueológicos com a presença de
cerâmica Tupi-Guarani. Pedro Ignácio Schmitz e José Proenza Brochado detalharam a relação
ecológica dos Guarani com as várzeas dos rios maiores, onde foram encontrados os tios
maiores e mais antigos, indicando uma ocupação humana mais intensa.
Nas florestas das margens de rio e lagos constituíam aldeias, abriam roças e
praticavam o cultivo de plantas nativas, complementando a alimentação com plantas
silvestres, com a caça e com a pesca. A vida nas aldeias maiores e mais permanentes era
revezada com deslocamentos, pela mobilidade independente das famílias que faziam
incursões sazonais em busca de outros recursos nas matas mais afastadas dos rios e mesmo
freqüentando áreas de campo. A circulação no ambiente era parte da estratégia ecológica de
abastecimento, pois cada família detinha o conhecimento sobre locais com abundância
alimentar segundo a época do ano.
A diversidade ecológica e a maturação sazonal dos recursos impunham um ritmo de
itinerância e mobilidade ao sistema econômico Guarani, padrão acentuado pelos Mbyá frente
à crise de recursos derivada da ocupação juruá e da degradação das áreas de mata (SOUZA,
1987; GARLET, 1997).
A diversidade do ambiente em que vivem transitando os Mbyá é condicionada por
múltiplos fatores. As estações do ano são marcadas pelo contraste climático, no verão,
predominando a permanência das massas tropicais e no inverno, maior interferência das águas
frias do oceano e a conseqüente chegada das massas de ar (frentes frias) vindas do sul e das
encostas dos Andes. Essa variação condicionou o aparecimento de uma transição ecológica
em larga escala, estendendo e adaptando espécies amazônicas e tropicais misturadas às
espécies temperadas e compondo verdadeiros “mosaicos” entre os campos do pampa e as
matas dos vales dos rios e das encostas do Planalto Meridional Brasileiro. A composição
heterogênea do ambiente estimulou a fixação do padrão de mobilidade sazonal entre os índios
das Terras Baixas, padrão este radicalizado com a diminuição do espaço depois da criação do
Brasil.
A territorialidade Mb continua o ampla quanto dispersa, integrando diversos
países e regiões atuais, já que fronteiras poticas nacionais se criaram posteriormente sobre a
antiga área de ocupação Guarani pré-colonial (SOUZA, 1987; GARLET, 1997). A paisagem
Mb está afetada pelo domínio imposto por novos grupos humanos que ocuparam quase
todas as terras e modificaram a fisionomia geral do ambiente (reduzindo drasticamente as
81
áreas de floresta). A dispersão doméstica permitiu aos Mbyá ocuparem pequenos espaços
vagos próximos de alguma mata restante; ou circularem por propriedades particulares onde a
natureza está mais íntegra e não há impedimento formal pela sua presença; ou, ainda, viverem
na beira das estradas ou habitarem as poucas terras regularizadas para seu uso exclusivo no
estado.
É possível conhecer fragmentos da ampla paisagem cultural Mbyá original, como se
observa hoje em diversas áreas Mbyá em Misiones; mas também no Rio Grande do Sul, como
exemplificam a floresta do Rio Turvo (município de Tenente Portela) e o resto das matas em
São Miguel das Missões; em Salto do Jacuí; em Estrela Velha; na Pacheca (município de
Camaquã); em Água Grande (município de Camaquã) e em Itapuã (município de Viamão). É
possível seguir o rastro de deslocamento das famílias e de seus membros, vez por outra
assentados junto às rodovias, mas mesmo assim seguindo o mesmo padrão típico dos Guarani.
É interessante notar que os Mbyá escolhem fazer seus tataypy rupa (acampamentos) na parte
da rodovia que seja atravessada por um arroio ou rio, construindo suas casas junto às matas de
galeria desses cursos de água, como exemplificam bem os acampamentos do Petim, do Passo
Grande e do Passo da Estância, todos às margens da Rodovia Federal BR-116, na margem
ocidental da Lagoa dos Patos.
As considerações sobre a paisagem cultural Mbyá permitem utilizar esta metáfora
visual para tratar daquilo que a tradição sociológica tem atualizado pela noção de habitus,
recuperada aqui pela leitura que Wacquant faz da contribuição teórica de Pierre Bourdieu:
(...) O habitus é uma noção mediadora que ajuda a romper com a dualidade
de senso comum entre indivíduo e sociedade ao captar “a interiorização da
exterioridade e a exteriorização da interioridade”, ou seja, o modo como a sociedade
se torna depositada nas pessoas sob a forma de disposições duráveis, ou capacidades
treinadas e propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de modos
determinados, que então as guiam nas suas respostas criativas aos constrangimentos
e solicitações do seu meio social existente (WACQUANT, s.d., p. 2).
Enquanto exercício hermenêutico, a etnografia entre os Mbyá possibilitou apreendê-
los em suas atuações, ações, atualizando disposições que podem ser lidas como escrituras
(CLIFFORD, 2002) do Mbre nos diversos ambientes em que circulam. A performance
dos atores Mb instiga ao mergulho na interpretação de sua percepção do espaço e da
diferença, permitindo-nos imaginar a perspectiva da qual vislumbram suas paisagens
culturais.
82
2.4 Cenários etnográficos revelando o cotidiano
Na literatura etnológica, os Mbyá são considerados como grupo étnico marcado por
certa homogeneidade na organização de suas comunidades, embora distribuídos numa grande
amplitude geográfica. No Brasil, com exceção de algumas famílias isoladas vivendo em
estados do norte do país (Pará e Tocantins), as famílias Mbyá estão distribuídas
geograficamente em cinqüenta e cinco comunidades
26
que se estendem do litoral do Espírito
Santo até o do Rio Grande do Sul. Neste último estado, as comunidades se distribuem
também pelo interior, interligadas com cinqüenta e oito outras comunidades distribuídas em
Misiones (norte da Argentina) e muitas outras no leste do Paraguai. Essa homogeneidade (o
que não quer dizer uniformidade) é atualizada através de diversos mecanismos de parentesco,
de mobilidade e de alianças, assumindo a interligação freqüente entre comunidades distantes
numa escala internacional e continental.
É difícil que a um pesquisador seja possível conhecer a realidade etnográfica na
totalidade dos espaços em que há a presença Mb, nem existe qualquer projeto que permita
trazer dados detalhados e específicos de todas as suas comunidades. Por outro lado, a grande
mobilidade e as constantes mudanças das famílias entre as Tekoá fazem parte da sociologia
Mb, parecendo inadequado desconsiderar sua importância, escolhendo apenas uma Tekoá
para fazer o mergulho etnográfico e daí tirar conclusões gerais sobre “quem são os Mbyá”.
Sendo inevitável aqui trabalhar com um universo delimitado, adotei a alegoria da sociedade
como um teatro, apoiada no viés da antropologia que aborda o social enquanto relações
mantidas pelos atores em determinados cenários (GEERTZ, 1997; TURNER, 1974).
No Capítulo I, procurei tratar de espaços interétnicos, entendidos como cenários nos
quais os Mbyá figuram e manifestam sua identidade étnica, ou seja, espaços nos quais
interagem com os juruá, em que falam outra língua e dominam códigos, atuando em reflexo
às imagens que os juruá fazem sobre eles. No entanto, tais atuações podem ser melhor
compreendidas quando relacionadas às referências culturais que motivam tais performances,
aquelas que surgem na constituição da pessoa Mbyá.
Apresento a seguir descrições etnográficas de espaços nos quais se constroem as
motivações desses atores, o pano de fundo de sua identidade Mbyá. Aproveitando minha
26
Dados trazidos por Ladeira & Matta, 2004.
83
relativamente longa estadia em São Miguel das Missões
27
e a maior intimidade criada com os
Mb naquela região, optei por descrever três espaços significativos no cotidiano deles,
procurando discorrer sobre aspectos do Mbyá rekó.
2.4.1 Cenário 1: Cidade de São Miguel das Mises
A cidade de São Miguel parece bastante adequada para ilustrar uma dimensão da
ampla realidade etnográfica dos Mb, porque nela existem muitos elementos que traduzem a
riqueza da paisagem cultural em que vivem. A cidade está situada em torno às ruínas e cresce
sobre as estruturas arqueológicas construídas pelos índios Guarani sob a administração dos
padres jesuítas entre 1687 (fundação) e 1768 (expulsão dos missionários). As ruínas de São
Miguel são restos de um dos Sete Povos das Mises, daqueles localizados na Banda Oriental
do rio Uruguai, a mesma região conquistada pelos portugueses definitivamente a partir de
1801. Junto com os sítios de Trinidad (Paraguai) e San Ignácio Mini (Argentina), o Sítio
Arqueológico de São Miguel Arcanjo é declarado Patrimônio da Humanidade pela UNESCO.
A origem da atual cidade é posterior ao período de valorização, pelo Poder Público,
dos remanescentes sicos da igreja e das estruturas próximas (cemirio, cotiguaçu, praça,
colégio, oficinas e quinta) a partir da década de 1920 (pelo governo do Estado). Não é o caso
de detalhar informações hisricas sobre as Missões Jesuíticas, sobre os Sete Povos e sobre
São Miguel, considerando a grande quantidade de documentos e publicações a respeito desses
assuntos
28
. Da mesma forma, diversas pesquisas antropológicas foram realizadas, na última
década, tendo por campo de estudo a região de o Miguel ou os Mbyá que vivem na região
(SOUZA, 1998; SILVEIRA, 2004; ÁVILA, 2005). Fiz a seleção de apenas algumas
informações que permitem descrever e interpretar melhor as práticas/performances dos Mbyá
observadas nos espaços que se integram em torno dessa cidade, porque as situações
etnográficas de apresentam aspectos ilustrativos que, ao que parece, se reproduzem em
outras situações de localização mais distante.
27
Residi em São Miguel, pela primeira vez, entre janeiro e março de 2004, ao realizar trabalho de escavação
arqueológica nos Sítios São Lourenço Mártir e São João Baptista. Depois, novamente, morei na cidade entre
agosto de 2004 e fevereiro de 2005, aplicando a etapa de levantamento preliminar do Inventário Nacional de
Referências Culturais (INRC-IPHAN/RS); e, por fim enquanto fazia o Mestrado na UFRGS –, permaneci por
dez meses (agosto de 2005 a junho de 2006) aplicando o INRC, de forma que passava a maior parte do tempo
em São Miguel, retornando a Porto Alegre apenas para assistir às aulas.
28
Ao longo das etapas de aplicação do INRC entre os Mbyá-Guarani em o Miguel, foi elaborado um extenso
levantamento bibliográfico e documental com mais de 600 títulos ligados a São Miguel e os Guarani. Veja-se
Anexo 1 do Relatório Final INRC – NIT/UFRGS-IPHAN-RS, 2006.
84
A cidade de São Miguel tem um pouco mais de três mil habitantes na área urbana,
sendo sede de um município com grande extensão territorial. Sua economia é baseada no
meio rural (agricultura e pecuária), coexistindo padrões mais antigos de ocupação e de
tecnologia (estâncias para a criação extensiva de gado em campos nativos e minifúdios
familiares para produção de alimentos de subsistência) com formas mais desenvolvidas de
produção rural (rozio de pastagens artificiais, engenharia genética, monocultura intensiva
com insumos industriais, irrigação mecânica etc.). A zona rural do município também abriga
diversos assentamentos de Agricultores Sem Terra, criados na década de 1990 e que
diversificaram a produção primária de alimentos (criação de aves, suínos e cultivo de grãos
como milho e feijão, raízes como mandioca e batatas, legumes, frutas e mais recentemente
verduras), permitindo abastecer a crescente população que se estabeleceu na cidade ao longo
das últimas décadas (MORAES; PIRES & SOUZA, 2006).
A configuração urbana atual reproduz e estende o mesmo traçado original de quadras
criadas pelos jesuítas, com ruas largas e calçamento irregular feito com lascões de pedra para
poupar os transeuntes do incômodo da poeira e do barro vermelhos. A cidade está implantada
no cume de uma ampla coxilha localizada no divisor de águas entre as bacias dos rios Ijuí ao
norte e Piratini ao sul, ambos afluentes da margem esquerda do rio Uruguai. A altitude do
relevo permite uma visão em perspectiva para todas as direções, possibilitando enxergar,
aquém do horizonte, algumas matas nativas ainda existentes em meio a áreas de campos
nativos e extensas lavouras de monocultura principalmente de trigo e soja.
Essa paisagem atual é o resultado da alteração promovida principalmente depois de
implantado o modelo agrícola da “revolão verde” a partir da década de 1950 no noroeste do
Rio Grande do Sul, quando foi estimulada a derrubada de áreas de mata para a criação de
lavouras e foi difundido amplamente o uso de capina química dos cultivos, fatores
responsáveis pela drástica diminuição populacional da fauna nativa e pelo desaparecimento da
diversidade florística (degradada pelo uso intensivo de herbicidas) na região de São Miguel
(SOUZA, 1998). Outrora, os campos nativos, as áreas de floresta e os capões de mato
dominavam completamente a composição da paisagem. A introdução do gado desde o período
das Missões jesuíticas (1626) na Banda Oriental do Rio Uruguai foi um fator que também
reduziu a amplitude de distribuição das áreas de floresta, mas num ritmo nada comparável à
destruição ambiental que ocorreu nos últimos cinenta anos.
Apesar dessas transformações, a região mantém características naturais que se impõem
a qualquer um “de fora” (como eu). Primeiro, o como desconsiderar a cor vermelha e a
85
consistência da terra local, aspectos presentes na vida de qualquer habitante da região. As
estradas do interior e ruas periféricas da cidade ainda o de terra, inundando de poeira (no
estio) e de barro (nas chuvas) automóveis, calçados, roupas e residências. A cor vermelha da
terra contrasta com o verde vivo da vegetação do entorno. As pessoas da cidade conseguem
neutralizar parcialmente tal interferência, mas até a pintura da parte inferior das paredes
externas das casas e prédios recebe uma faixa de cor vermelha para camuflar os respingos da
chuva coloridos com o barro do chão.
A terra vermelha é considerada marca simbólica da tradição regional o “chão
colorado” tantas vezes referido em prosa e verso entre os payadores misioneros e seu nome
cnico é latossolo, considerada resultante da decomposição do basalto e sendo rica em termos
de fertilidade (SOUZA, 1998).
A cidade existe sob tais condições, explicando a vitalidade das plantas que se
proliferam inundando os olhos com diversas tonalidades de verde; de perto, na relva que brota
junto ao passeio público; distante, nos campos e nas matas que se estendem como um manto
por toda a paisagem até o horizonte. O tio de muitas casas possui vegetação nativa rasteira,
não raro havendo roças (milho, mandioca, feijão etc.), árvores frutíferas, galinhas e cabeças
de gado dentro dos quintais, indicando o forte vínculo rural de boa parte da população local.
As construções da cidade de São Miguel não alteraram muito a paisagem natural, porque as
casas são quase exclusivamente térreas e ainda dispersas. Apenas as ruas centrais possuem
asfalto, algumas delas com canteiros de flores e árvores.
É sempre marcante recordar as manhãs, tardes e noites passadas em São Miguel,
convivendo com seus habitantes e com os Mbyá, cruzando com viajantes vindos dos mais
diversos países do mundo e das diversas regiões do Brasil. Por raras vezes e em poucos
horários do dia, as vozes dos animais são abafadas pelo transitar de algum trator ou caminhão.
A observação ampla da paisagem e o ritmo pacato da cidade vez por outra afetado pela
presença de centenas de estudantes e turistas são complementados pelas sensações trazidas
pelas temperaturas, tão quentes e sufocantes nos dias de verão, quanto frias nas noites de
inverno. No ar também circulam muitos aromas de plantas, animais e flores, sendo contínua a
presença do cheiro da fumaça de lenhas aromáticas quando se anda nas ruas, exalado dos
fogões alimentados à lenha presentes em quase todas as resincias.
A economia urbana de São Miguel movimenta-se em torno de serviços e de um
pequeno comércio, que serve ao abastecimento dos moradores com produtos alimentícios,
eletrodomésticos e roupas, principalmente. No centro estão concentrados as agências
86
bancárias, a prefeitura, a câmara de vereadores, o posto de atendimento de saúde, a delegacia
de pocia e lojas. Essa concentração de atividades favorece para que as quadras centrais
sejam “tomadas” de transeuntes nos horários de funcionamento daquelas. A circulação inclui:
crianças e jovens que se deslocam para a escola; homens vestindo bombachas, camisas largas
e chinelos de dedo, trazendo chapéu e alguma ferramenta na mão; mulheres carregando
sacolas, algumas vezes protegendo-se do sol com sombrinhas, muitas delas com cabelos
muito compridos e enrolados na cabeça (indicando sua filiação religiosa); filas no
atendimento bancário (em dias de pagamento) ou no atendimento de saúde.
O ritmo diário segue a mesma rotina, variando as pessoas segundo o horário do dia.
Antes do nascer do sol, é possível observar a movimentação de agricultores que precisam sair
cedo para o trabalho em suas lavouras localizadas fora da cidade. Depois, a circulação de
estudantes que se dirigem à escola, o que se repete ao final da manhã, no início e no final da
tarde. No horário comercial, o movimento atinge apenas o centro e seu entorno, não alterando
o ritmo lento que se preserva durante todo o dia nas demais partes da cidade (com exceção do
tio Arqueológico, na época de visitação). Ao anoitecer, a cidade fica quase deserta, com
apenas poucos adultos circulando ou alguns homens bebendo e assistindo futebol na televisão
dos dois bares que se mantêm abertos até próximo da meia-noite. o sei se existe alguma
razão física, mas é surpreendente a quantidade de estrelas que se pode ver no céu noturno de
São Miguel, que somadas ao fato das poucas pessoas circulando é outra sensação que marca a
experiência de qualquer um que tenha morado em São Miguel.
Esta é uma parte do cenário em que aprofundei minha pesquisa etnográfica. Residindo
na cidade e tendo por trabalho executar o INRC, tive o convívio diário com mulheres,
homens, jovens e crianças Mbyá, que me visitavam no escritório/resincia da equipe do NIT-
IPHAN e que eu encontrava pelas ruas da cidade, no Sítio Arqueológico, dentro dos
estabelecimentos comerciais ou que acompanhava na tramitação de problemas junto à
prefeitura ou no atendimento local de saúde.
Os Mbyá são habitantes presentes no cerio diário de São Miguel desde o final da
década de 1980, naquela época acampados precariamente na periferia da cidade (na Fonte
Jesuítica). Hoje, possuem uma casa de passagem construída dentro da área protegida como
Parque Arqueológico, onde pernoitam quando se encontram na cidade. Mulheres e crianças
Mb transitam por certas ruas da cidade, de pés descaos, indo e vindo para comprar ou
mendigar alimentos. Famílias Mbyá freqüentam os supermercados, gastando os recursos
87
obtidos com o artesanato “fazendo o rancho” da semana, comprando frutas, grãos, erva-mate,
carne de frango e refrigerantes.
Mesmo assim, em São Miguel das Missões os lugares de participação social dos Mbyá
o muito restritos e definidos, tanto os espaciais quanto os sociais e poticos. Apenas um bar
abriga sem constrangimento o público Mbyá (o chamado Bar do Cid), onde realizam
refeições, descansam, jogam sinuca ou baralho e assistem a programas de televisão. Ali
também se concentram esperando finalizar as atividades diárias na tardinha e no início da
noite, antes de retornar para o Sítio ou para a aldeia (localizada no interior do município). O
fato é que em quase todos os dias (com exceção de domingo) é possível encontrar os Mbyá
nessa rotina, algo que de certa forma foi naturalizado pelos moradores locais.
As crianças Mbyá não freqüentam a escola na cidade e é possível ver pequenos grupos
delas circulando por partes da cidade independentes de seus pais, em horário em que as
demais crianças estão estudando. Era possível encontrar os Mbyá também circulando nos
arredores da prefeitura, quando iam fazer alguma reivindicação ou resolver problemas que
exigiam a interferência do Poder Público, ou próximos ao posto de saúde esperando
atendimento, ou caminhando em direção ao hospital da cidade, mais afastado.
As relações interpessoais em São Miguel são muito próximas, a começar pelo fato de
que as pessoas se cumprimentam ao se cruzarem pelas ruas. Os pátios quase nunca possuem
muros altos, ficando vizinhos separados apenas por cercas de arame que nada escondem,
demonstrando pouca preocupação com maior privacidade. As pessoas se chamam pelos
nomes e praticamente todo mundo “sabe” de todo mundo. O conceito “saber” é usado
localmente, valorizado nas conversas, manifesto para revelar o conhecimento sobre a
intimidade de alguém de quem o grupo se põe a falar (especialmente de moradores novos, que
sempre , devido ao caráter tustico e histórico da cidade). No entanto, a proximidade de
relações pessoais serve para exercer também o controle de comportamento, qualquer
diferença ou estranhamento virando fofocas que produzem a criação de imagens coletivas
sobre fulano e ciclano.
Apesar de toda essa proximidade, chama a atenção que os Mb continuem sendo
tratados com distância e desprezo pela quase totalidade dos moradores da cidade. São raras as
exceções, incluindo o inevitável compromisso dos políticos locais.
88
2.4.2 Cenário 2: Sítio Arqueológico São Miguel Arcanjo
Os Mbyá da Tekoá Koenju exem diariamente seu artesanato no alpendre do Museu
das Missões, no Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo, no centro da cidade de São
Miguel, havendo um revezamento entre as famílias devido à falta de espaço para todos
ocuparem-no ao mesmo tempo. O fato é que todos os dias (com exceção de domingo) é
possível encontrar os Mbyá realizando esta atividade. A produção e comercialização do
artesanato é hoje uma das principais formas de subsisncia da comunidade Mb da Tekoá
Koenju.
***
Certo dia do mês de outubro de 2004, período em que eu estava residindo em São
Miguel das Missões e trabalhando junto aos Mbyá da RI Inhacapetum, fiz a primeira
experiência de etnografar o espaço do alpendre do Museu das Missões, no Sítio Arqueológico
de São Miguel Arcanjo, onde os Mbyá desta Tek expõem e comercializam seu artesanato,
passando lá grande parte de seus dias enquanto permanecem na cidade.
Era uma tarde de sol. Preparei o chimarrão (além de costume, elemento sico de
integração social), botei em uma mochila o de sempre para ir a campo: máquina fotográfica,
diário de campo, caneta, algum dinheiro para eventuais compras do artesanato Mbyá (que
acabavam sempre se concretizando) e um pano para sentar na grama. Bati a porta de casa e
segui pela rua de terra vermelha-miguelina. Minha entrada no tio Arqueológico era
“liberada” devido ao meu trabalho com os Mbyá junto ao IPHAN. Cumprimentei o guarda da
guarita do Sítio, que me respondeu: “e aí, vai ver teus índios? (...)”. Respondi qualquer coisa e
me dirigi ao alpendre do Museu, onde estavam reunidos vários Mb
29
.
Fui me aproximando lentamente, cumprimentando um Mb aqui, outro ali e sentei
entre as mulheres e suas crianças pequenas (as demais inúmeras brincavam espalhadas
pelo Sítio). Naquele dia tive a impressão de ter despertado a curiosidade delas, enfim. De
repente começaram um interrogatório, perguntaram se era casada, qual minha idade, onde
estava minha família, onde eu morava, se tinha irmãos/irmãs, porque morava sozinha se tinha
família... A experiência foi muito interessante. As descobertas de ambos os lados se davam a
partir das sensações de alteridade, uma verdadeira antropologia de mão dupla.
29
O número de Mbyá que exem no alpendre do Museu é muito oscilante, mas acentua-se entre os meses de
outubro e novembro, por causa das inúmeras visitas de escolas de todo o estado, nesse período, ao Sítio
Arqueológico de São Miguel.
89
A tarde no alpendre do Museu foi também uma excelente oportunidade para observar
como acontece a interação entre os Mb e os turistas e como se dá a venda de seu artesanato.
Ouvi, durante aquela tarde, comentários absurdos que fiz questão de registrar imediatamente
em diário de campo
30
.
Uma das coisas que mais me chamou a atenção foram as crianças Mb naquele
espaço. havia constatado a independência e tranqüilidade das crianças dentro da Tekoá, ou
seja, em seu lugar mais familiar e seguro. Mas surpreendeu-me ver a independência delas
também em outros espaços, onde a presença nada sutil do juruá. As diferenças entre
elas e as criaas juruá são evidentes. Os pequenos Mbyá, junto com os mais velhos,
brincavam livremente pelo Sítio, escapando muitas vezes dos olhares das mães, que não
demonstravam preocupação. Recordo rassimas vezes em que vi crianças Mbyá brigando
entre si. Quando chegavam os ônibus escolares para visita ao tio e aquele amontoado de
crianças invadia o alpendre, falando todas ao mesmo tempo, correndo; as crianças Mbyá
mantinham-se inabaláveis, como se nada estivesse acontecendo, continuando suas
brincadeiras. Elas pareciam alheias e pouco interessadas nas outras crianças que ali passavam
e compravam tantos arcos-e-flechas de seus pais
31
.
Levei algum tempo até descobrir o que os Mb viam, volta e meia, no horizonte
daquela paisagem de “campos de soja” que causava certo alvoroço neles. Durante várias
vezes naquela tarde – e em outras posteriores no Sítio, percebi que de repente eles
começavam a apontar para o norte e falar em Guarani, movimentando-se. Acontece que os
Mb vêem de longe quando os ônibus de turistas aproximam-se, ainda na estrada de acesso a
São Miguel. Quando o ônibus chega ao estacionamento do tio, eles estão novamente
organizados, cada um localizado atrás do seu respectivo “panocom suas peças artesanais. Ao
encontrarem-se sozinhos novamente, juntam-se em pequenos grupos para conversar, tomar
chimarrão, cuidar dos bebês. E assim, recomeça diversas vezes, durante o dia, o ritual da
30
Um dos comentários que ouvi naquela tarde foi de um homem que passava rapidamente pelos panos com o
artesanato exposto, acompanhado de sua filha. O homem apontou para uma onça talhada em madeira curupi e
disse à filha, indignado: “Olha que absurdo, isso tu encontra nas [lojas] R$ 1,99 e esses índios querendo R$
10,00!!. Outra “pérolaveio de um menino de aproximadamente 8 anos que acompanhava sua turma em visita
ao Sítio Arqueológico. O menino, logo depois de adquirir um arco-e-flecha, virou-se para seu coleguinha com o
arco apontado para frente, como se mirasse algo e disse: “Olha para mim! Sou um índio, só que mais
civilizado!”.
31
Acontece um fenômeno interessante com todos os ônibus escolares que chegam ao Sítio. Em todas as turmas
visitantes, o que mais as crianças especialmente os meninos compram dos Mb são os arcos-e-flechas; e,
invariavelmente, à compra se segue sempre a mesma cena, que na primeira vez que se vê, é no mínimo
engraçada: todas as crianças compram arcos-e-flechas e se põem a mirar e atirar (ou tentar) para todos os lados,
gritando, exaltando-se, empolgados “por sentirem-se índios”, como disse o outro menino... Os guardas, diversas
vezes por dia, têm de intervir para organizar e exigir que, ao menos, apontem todos para a mesma direção, onde
o há pessoas. À esta cena, os Mbyá assistem dando boas risadas dos juruá.
90
venda do artesanato Mbyá no alpendre do Museu das Missões. Ao entardecer, vão lentamente
juntando suas coisas e retirando-se em direção aos fundos das ruínas da igreja, o que gera uma
imagem interessante da caminhada dos Mbyá em direção à igreja, geralmente ao som de sua
própria música
32
.
Sentada ali entre as mulheres, percebi que elas eram maioria no alpendre. Refletindo
sobre isso, questionei a Elza Chamorro (Pará Reté) artesã Mbyá que estava sentada entre
seu marido e eu, Isabelino Ferreira (Verá Kuaray) se minha impressão estava correta e se
sim, porque as mulheres eram maioria na realização dessa atividade ali no Museu. Isabelino
riu e o disse nada, parecendo um pouco envergonhado. Elza riu também, depois disse: É
porque a mulher sabe vender melhor, eles não sabem vender”. Seguiu-se um instante de
silêncio e Elza continuou, parecendo ter resolvido me contar o motivo de fato: “(...) e também
porque se vai o homem para a cidade vender, eles bebem tudo com o dinheiro da venda e já a
mulher não. A mulher compra comida para ela comer e para levar pra casa”. Olhei para
Isabelino para ver se esboçava alguma reação ao que Elza acabava de revelar. Ele acenou
positivamente com a cabeça, confirmando o que sua esposa dizia, transparecendo
preocupação com este problema da bebida.
Passei longo tempo ali, sentada junto às mulheres um ou outro Mbyá se aproximava,
conversava um pouco e logo se afastava novamente , conversando, enquanto tomávamos
chimarrão e as Mb ensinavam-me o Guarani, dando risadas de minhas tentativas frustradas
em repetir o que diziam e vibrando a cada acerto na pronúncia das palavras. Todos os
momentos que passava (passo) junto aos Mb, seja nas Tekoá ou não, eram permeados por
intensos ensinamentos da língua Guarani. A partir do momento em que percebiam minha
imensa disposição e desejo de aprender sua língua, os Mbyá punham-se a falar Guarani
comigo, corrigir minha pronúncia e escrever em meu diário palavras ou frases que eu não
compreendia ou que pretendia registrar. Depois de algum tempo, me cumprimentavam em
Guarani, sempre tentando continuar o diálogo, que conseguia acompanhar até certo ponto,
depois não compreendia mais nada... Ganhei, inclusive, um nome Mbyá-Guarani, Kerechu
Poty, pelo qual sou chamada, identificada. Atualmente, ao menos na Tekoá Koenju
(Inhacapetum), poucos Mbyá usam meu nome juruá.
Muitas turmas escolares que visitam o Sítio levam roupas, brinquedos e alimentos para
doar aos Mbyá. Em diversas oportunidades em que eu estava no alpendre do Museu, vi as
32
Pois o Sítio tem sistema de som durante o dia e no fim da tarde, onde costumava-se – na época desta pesquisa
– reproduzir o cd do Coral Mbyá-Guarani do Inhacapetum.
91
entregas dessas doações. A forma como os Mbyá (as mulheres, geralmente) faziam a divisão
das coisas demonstrava o que historicamente se sabe sobre os Mbyá, isto é, que sua
organização social é baseada no grupo familiar e que, como discutido no Capítulo I, a
identidade coletiva Mbyá surge mais evidente como unidade frente ao “outro”. A divisão das
doações acontecia muito rápido, ao estilo quem pode mais, chora menos” e, de fato, quem
não se adianta, não leva nada. Uma das moças Mb que ali estava expondo seu artesanato
naquele dia, Élida Paredes (Kerechu Poty), por exemplo, não foi rápida o suficiente quando as
professoras entregaram as sacolas e acabou assistindo de longe as mulheres tirando tudo para
fora. Élida ganhou uma calça de moletom e duas bonecas para sua filha, porque sua mãe
pegou para ela.
Na tarde seguinte, voltei ao Sítio, com os mesmos “apetrechos de campo(chimarrão
etc.). De longe já pude perceber que o tio estava cheio, muitos ônibus escolares chegando e
saindo, gerando até certo movimento nas calmas ruas de São Miguel. Logo imaginei a
confusão que estaria no alpendre do Museu e que os Mbyá deveriam estar vendendo bem. De
fato, muitos Mbyá haviam me falado que outubro é mês de muitas visitas e época de fartura.
Chegou ao tio uma equipe do Canal Futura para gravar uma entrevista sobre as
Missões junto às ruínas da igreja. Ao constatar a presença dos Mb no alpendre do Museu,
ficaram surpresos e interessados em incluí-los no programa e em conhecer sua aldeia. A
repórter dirigiu-se a mim, em vez de falar diretamente com os Mbyá
33
, explicando que ela e
seus colegas gostariam de conhecer a aldeia e gravar algumas imagens, se possível. Depois de
os Mbyá terem concordado com a visita à Tekoá, a equipe solicitou que eu os acompanhasse.
Uma hora e meia depois, avistávamos a Tekoá Koenju da estrada de terra.
Chegamos à Tek bem no fim do dia, o sol se pondo. Paramos com a caminhonete
em frente à casa do então Uvixá Ve Xondaro (Cacique Floriano Romeu). Ao ser solicitado
que desse uma entrevista para o Canal Futura, Floriano pediu para que esperassem um
instante. Entrou em sua casa e ornamentou-se: voltou sem a camisa que usava, com dois
colares atravessados no corpo, uma faixa feita de pele de algum animal que Floriano usa na
cabeça nas apresentações do Coral Jerojy, e sem sapatos. Depois da entrevista gravada, o
Coral Jerojy, organizado por Floriano, apresentou-se aos visitantes, cantando e dançando em
frente à casa do cacique, emocionando-os, como geralmente acontece quando os corais Mbyá
33
Este comportamento é recorrente entre os juruá que pretendem se aproximar dos Mbyá, mas que por
constrangimento e às vezes por pensarem que os Mbyá não falam o Português ou que não os entenderão
solicitam a intermediação de outro juruá que esteja presente e que demonstre intimidade com os Mb.
92
se apresentam aos juruá. O pessoal comprou um monte de artesanato e foi embora,
agradecendo a abertura dos Mbyá em recebê-los.
2.4.3 Cenário 3: Tekoá Koenju (Aldeia Alvorecer)
Apesar de ser traduzida correntemente como “aldeia” para o Português, a concepção
êmica de Tekoá não respeita limite físico exato, não reconhece a cerca de arame farpado como
demarcação de propriedade exclusiva. A Tekoá é o lugar onde se reproduz o modo de ser
Mbyá-Guarani. Os ambientes mais favoráveis à instalação da Tekoá são semelhantes àqueles
apontados como os verdadeiros lugares os lugares dos primórdios do mundo com água
boa, terra boa para o plantio, mata para necessidades materiais e espirituais etc. (CADOGAN,
1960; MELIÁ, 1989; LÈNE CLASTRES, 1978). As Tekoá são interligadas e a circulação
dos Mbyá entre elas é constante e intensa, não apenas entre as localizadas em território
brasileiro, mas entre as Tekoá localizadas na Argentina e Paraguai. Nas palavras de Marcelo
Larricq,
La palabra tekoa o tekoha patentiza esta condición del asentamiento Mbyá. Teko,
normalmente se traduce como costumbre y es común que nuestros informantes se
refieran al mbya reko, como “nuestro sistema”, el modo de vida mbya. Pero teko
tanbién puede ser entendido comovida” (Cadogan, L.: 1959, p. 208), o como
“naturaleza” o ser essencial” (Guasch, A.; Ortiz, D.: 1986, p. 760). Por outro lado,
a o há, puede ser traducido como fruto, producto de, pero también como el âmbito
de (realización). Tekoa resumiria la idea del lugar em el que la costumbre se realiza,
ocurre y, por outra parte, fruto de la costumbre, producto de ella (LARRICQ,
1993:96).
Os Mbyá-Guarani possuem uma forte característica de mobilidade
34
, migrando
constantemente de Tekoá para Tekoá ou para os tataypy rupa (acampamentos/local onde se
assenta o fogo). Mesmo quando não migram com o objetivo de se estabelecer em outra Tek,
eles mantêm uma constante circulação entre as Tekoá em função de casamentos, mortes,
34
As motivações históricas da mobilidade Mb foram tratadas neste capítulo. Também, conforme Ivori
Garlet, essa característica de mobilidade fazia parte do Mbrekó, ainda que assumindo outras formas, mas
foi acentuada com a pressão ocidental de avanço sobre suas terras originais, forçando-os a se deslocar cada vez
mais em busca de novos lugares e de escapar” da intenção de dominação do juruá. “A mobilidade espacial dos
Mb nos moldes contemporâneos não se constitui em um ‘vício de caráter ou instinto migratóriocomo afirmou
Muller (Cf. GARLET, 1997:47). Embora houvesse uma predisposição cultural para esta dinâmica, a mesma foi
superdimensionada e intensificada pela situação de contato interétnico.
93
visitas a parentes, conflitos poticos e motivações religiosas (CADOGAN, 1960; MELIÁ,
1986). Esses deslocamentos também se explicam pela busca de melhores áreas para viver,
sendo preferenciais as áreas de yvy porã (mata boa). Habitar esses lugares significa para os
Mb estar mais próximo da yvy maey (Terra Sem Mal), onde podem viver mais de acordo
com sua tradição (HÉLÈNE CLASTRES, 1978).
A etnologia Guarani tem apontado que a religiosidade ocupa lugar central na
organização de toda vida social Mbyá-Guarani, sendo mantida em uma dimensão de
“mistériocomo estratégia de resistência cultural e como forma de (re)afirmação étnica. É
através da religiosidade que os Mbyá mais manifestam seu Mbyá rekó, que pode ser traduzido
como “nosso modo de ser, nosso modo de estar, nosso sistema, nossa lei, nossa cultura, nossa
norma, nosso comportamento (...), nossos costumes” (BARTOMEU MELIÁ, 1989, p. 293). O
lugar e o meio em que é possível reproduzir o Mbyá rekó é a Tek.
O Mbyá rekó é hoje associado no discurso dos Mbyá a um modo de vida em contraste
ao “modo de vida do branco”, dos costumes do branco. É possível perceber que o discurso
sobre o Mbyá rekó, muito presente no diálogo dos Mbyá com os brancos, está inserido dentro
de um espectro de interações de etnicidade distintivas, servindo à dicotomização revelada pelo
nós/eles. O Mbyá rekó serve como traço de distinção do grupo Mbyá-Guarani com outros
grupos não-indígenas e indígenas. Nas palavras do Karaí Juancito Oliveira:
Na beira da estrada vendendo ajaka, desse jeito não vai existir o Mbyareko
(modo de ser). A criança cresce sem ver os pais fazerem opy, não mais reza, o
mais roça, não vê mais monde. Só vai ver o carro passando, a cachaça, o baile do
jurua e a comida do armazém. Não é esse o sistema que Ñanderu deixou para nós
vivermos (GARLET, 1997:112).
Com a perda do seu espaço-território original, os Mb vêem-se cada vez mais
inseridos nos contextos dos juruá. Sendo a maioria das prescrições do Mbyá rekó enquanto
modo de vida ideal, porém praticamente irrealizável na sua totalidade, atualmente
resultantes da proibição de hábitos adquiridos com o contato com grupos não-indígenas, o
indivíduo Mbyá vive constantemente entre esse ideal e seu cotidiano que o impele a não
seguir tais preceitos de forma absoluta.
Na Tekoá Koenju vivem, aproximadamente, 32 famílias e 200 pessoas (números em
constante oscilação), em 264 hectares. A Tekoá localiza-se a aproximadamente 26 Km do
município de São Miguel das Missões. Os Mbyá deslocam-se entre a Tekoá e esta cidade
94
principalmente de ônibus (algumas vezes, de carona com o carro da Secretaria Municipal de
Saúde e outros não-indígenas), para venderem seu artesanato no alpendre do Museu das
Missões. Sua composição populacional muda constantemente por razão da grande mobilidade
e independência das famílias Mb, muitas delas vindas da Argentina, para onde voltam ou,
pelo contrário, seguem caminho em direção ao litoral atlântico brasileiro, para ocuparem
algum acampamento ou serem aceitas por parentes dentro de alguma Tekoá no interior do Rio
Grande do Sul.
Muitos Mbyá que hoje vivem no Inhacapetum, creio que a maioria, não nasceram no
Brasil; vieram de aldeias espalhadas por toda a Província de Misiones, às quais retornam
constantemente durante o ano, pois muitos de seus parentes ainda vivem lá. Da mesma forma,
recebem muitas visitas de parentes que vêm visitar o Brasil. Este intercâmbio que atravessa a
“nossa fronteira” Brasil/Argentina é mais intenso para os Mbyá da Tekoá Koenju do que
com as próprias aldeias dentro do Rio Grande do Sul. Por ser uma Tekoá composta por
famílias de diversas proveniências, os conflitos entre famílias e facções são constantes.
Apesar disso, o sentimento de unidade do grupo enquanto “Mbyá-Guarani” é evidente e muito
forte nos casos de contato ou confronto com o juruá.
A área da Fazenda do Inhacapetum é relativamente recente, tendo sido adquirida pelo
governo do Estado e transformada em Reserva Indígena dos Mbyá-Guarani em 2001. A
comunidade Mbyá que vivia até então acampada na cidade de São Miguel, próxima à Fonte
Jesuítica (local de visitação turística do município), mudou-se para a nova área,
denominando-a em sua língua, Tekoá Koenju. Neste período, o cacique do grupo era Osvaldo
Paredes (Karaí Miri).
Dentre os membros desta comunidade, destaco aqui, como personagem importante
deste grupo social que pesquisei, este representante Mb. Osvaldo nasceu na Terra Indígena
Guarita, município de Tenente Portela/RS, em 16 de maio de 1962. Depois, acompanhando
sua família, viveu em outras aldeias no Rio Grande do Sul e em Misiones, na Argentina. Em
1996, Osvaldo veio para São Miguel com sua esposa Teresa Oliveira (Yuá) e seus dois filhos,
passando a viver junto à comunidade Mbyá na Fonte Jesuítica, tornando-se cacique, até a
aquisição da Reserva, quando se mudou junto com a comunidade para lá. Ao deslocarem-se
para a nova área, Osvaldo deixou de ser o cacique do grupo, atendendo a um pedido de
Floriano Romeu (Verá Xondaro), que gostaria de sê-lo (assim relatou-me Osvaldo).
Desde minha aproximação com os Mbyá-Guarani e com os representantes das
instituições responsáveis pelas poticas blicas direcionadas aos primeiros, ouvi diversas
95
vezes comenrios de que Osvaldo é um grande conhecedor da tradição Mb, que é um
exímio dançador do tangará (dança tradicional e sagrada), que é um “Guarani tradicional
mesmo” ou “Mbyá ete í” (Mbyá verdadeiro), como disseram muitas vezes.
Nos discursos dos Mb de uma forma geral, torna-se claro uma distinção que fazem
entre: a) aqueles Mbyá que têm interesse em conhecer a forma de vida do branco, de interagir
mais diretamente com os juruá, que acabam muitas vezes realizando uma “antropologia de
o-dupla”, procurando conhecer cada vez mais o universo juruá e sendo tratados como
aqueles que nasceram para fazer essa mediação cultural entre esses dois universos simbólicos
“que não é cil, não é pra qualquer um”; e b) aqueles que preferem ficar na Tekoá, entre os
seus, com o nimo contato com o branco, que não têm muito interesse pelo juruá e que se
sentem muito pouco à vontade entre estes, nas cidades, bares, supermercados, hospitais. A
partir dessa perspectiva, percebo Osvaldo como um Mb com as características do segundo
grupo.
Osvaldo tem domínio da ngua portuguesa, como a grande maioria dos Guarani, mas
não se dispõe muito a conversar neste idioma, a não ser que esteja apenas ele de Mbyá
presente em companhia do juruá. Se, por exemplo, tem um grupo de Mbyá conversando com
não-indígenas, a posição que Osvaldo assume é a de falar em Guarani com os outros da
comunidade e algum Mb traduz o que ele diz. Dificilmente ele toma a iniciativa de falar
diretamente em Português com o juruá. Certa vez, eu conversava com ele e mais dois outros
Mb (ambos bem jovens) sobre o mito do sol e da lua. Os dois meninos contavam-me
empolgados a hisria em Português, consultando Osvaldo a cada momento para confirmar a
versão do mito, ao que ele respondia, prontamente, em Guarani. Apesar de Osvaldo falar
Português, me conhecer e ter certa proximidade comigo, ele praticamente só se manifestou em
Guarani nesta ocasião.
Acompanhei Osvaldo durante alguns dias que passou em Porto Alegre por ocasião da
internação de sua filha Paulina no Hospital de Clínicas
35
em 2005 e pude confirmar minha
impressão a respeito do incômodo deste homem em conviver no mundo jur. A FUNASA
fornecia recurso para ele realizar suas alimentações no refeirio do Hospital. Osvaldo fez as
refeições poucas vezes, sempre me falando que não se sentia bem em comer “onde tem
muito juruá na volta”. Depois de alguns dias, ele contou-me que não estava mais almoçando
porque ficava nervoso no refeitório e um dia quebrou um prato, ficou com tanta vergonha que
não voltou mais. Disse que preferia ficar com fome a fazer suas refeições no refeirio do
35
Este acontecimento está descrito em maior profundidade no Capítulo III.
96
hospital. Depois de mais alguns dias em Porto Alegre, Osvaldo já não queria permanecer no
hotel (pago pela FUNASA) nos momentos em que não houvesse algum outro Mbyá
hospedado lá, como aconteceu nos primeiros dias de sua estadia no hotel (quando pernoitou
em companhia de outro Mb, Cláudio Acosta). Ele então ficava na minha casa ou na de
colegas do NIT (reconhecidos como seus parceiros), desde o fim da tarde até a hora em que
outro Mbyá chegasse ao hotel. Foi assim, até Osvaldo o agüentar mais e solicitar que um
parente seu viesse da Tekoá Koenju para acompanhar a menina, pois ele estava “ficando
doente aqui na cidade” e precisava ir para a Tekoá, para a Opy (casa de rezas).
Do ponto de vista político, a aldeia encontrava-se, na época da pesquisa, dividida em
dois grupos: os que apoiavam o então cacique Floriano Romeu (Verá Xondaro) em suas
práticas de cooptar-se com poticos da região, aceitar recursos deles em troca de votos dos
indígenas, de não dividir com todos os recursos destinados a toda comunidade etc.; e os que
se revoltavam e posicionavam-se contra o cacique e seus apoiadores devido a estas práticas.
Estes últimos se diziam mais voltados ao Mbyá rekó no modo de tratar o povo, não tendo
interesse em acumular dinheiro, procurando estar sempre próximos a Nhanderu (deus/nosso
pai), afirmando que a ganância por dinheiro é coisa do jur e que o Mbyá que entra nesse
jogo está se afastando de Nhanderu, está perdido, está doente.
Essas “tendências” recuam a importantes líderes espirituais e poticos (às vezes em
uma mesma pessoa), exemplificando conflitos internos históricos entre os Mbyá, como
Juancito Oliverira
36
e Dionísio Duarte (Verá Guaçu)
37
. Juancito foi um der que saiu da
Argentina na década de setenta, devido a divergências com seu cunhado e seu xondaro
ruvicha (chefe dos xondaro) Verá Guaçu, causadas pela pressão potica do governo
argentino. Muitas famílias seguiram Juancito no jegua (caminhada), vindo para o RS.
Juancito e seus seguidores acusavam Verá de ter vendido “o sistema Mbyá para o branco”,
por aceitar os projetos estatais dentro das comunidades (construção de casas ao estilo dos
brancos, construção de escolas, igrejas, instalação de luz elétrica etc.) que tinham por objetivo
“padronizar os índios”. Assim conta Garlet:
36
Importante liderança espiritual entre os Mbyá-Guarani no RS.
37
Importante liderança espiritual e política em Misiones. Tive a oportunidade de conhecer Verá Guaçu quando
fui visitar algumas aldeias em Misiones, em julho de 2006, acompanhada por dois amigos Mb: Patrícia
Ferreira (Kerechu Reté), Tek Koenju; e Sandro Ariel Ortega (Kuaray Poty), Tekoá Porã (Salto do Jacuí).
Ambos nasceram e m família em Misiones. Esta experiência nas Tekoá de Misiones, por si só, poderia render
uma dissertação, mas, infelizmente, tive que deixá-la de fora nesse momento.
97
Juancito negou-se a pactuar com o Governo, alegando que a forma Mbyá de
viver não se adaptava às propostas que lhes eram apresentadas. Mas a oferta
governamental encontrou aceitação por parte de Dionísio Duarte (...), que recebe do
Governo da Província o título de cacique. Diante disso, Juancito se sente traído e,
para evitar confrontos violentos entre as facções Mbyá, cruza o rio Uruguai. Ou seja,
a saída de Juancito possui causas relacionadas a esta potica estatal, provocando o
confronto entre as lideranças políticas internas, cuja resolução se dá com a migração
de um deles (1997:68).
Assim Garlet analisa o posicionamento do grupo de Juancito:
Juancito é identificado enquanto uma liderança carismática, que conseguira
manter o equilíbrio e a unidade interna dos Mbyá na Argentina; seu poder brotava de
dentro da sociedade, na qual sempre fora um agente dinamizador da economia da
reciprocidade. Duarte, por sua vez, teve que negociar sua autoridade com os
brancos, “vendendo o sistemae tendo que se impor para ser reconhecido enquanto
tal. Passou a beneficiar exclusivamente a sua parentela com os resultados de suas
barganhas, exercendo uma reciprocidade negativa segundo definição de Sahlins
(1983) na medida em que restringiu a circulação de bens e produtos, beneficiando
apenas seu grupo familiar (1997:69).
Na Tekoá Koenju, Floriano parece reproduzir os métodos de Verá Guaçu. Nesse
contexto, Osvaldo é visto pela comunidade como aquele que não se deixou seduzir pelo
mundo do juruá, que não abandonou a forma de vida Mbyá, que o quer guardar dinheiro”.
Ele remete a si mesmo desta forma e se compara a Floriano afirmando que já esteve na
posição de cacique e nunca agiu como ele. Disse-me uma vez que não imaginava que Floriano
fosse trabalhar contra seu próprio povo quando lhe passou o cargo de cacique. Osvaldo se
mostra sempre muito preocupado com este caminho escolhido por Floriano e outros Mb e
revoltado por se sentir prejudicado com a desigualdade que se cria na comunidade. É possível
perceber esta discrepância de que fala Osvaldo: a casa de Floriano e de seus parentes uma
vez que entre os Mb o apoio político está diretamente relacionado com o parentesco são
as únicas que possuem televisão e antena parabólica e foram eles os primeiros a receberem a
instalação de luz elétrica.
De uma forma geral, Osvaldo não se envolve em reuniões com brancos que acontecem
fora da aldeia e nunca ocupou cargos como agente de saúde, professor, ou seja, cargos que
exigem um contanto permanente com instituições não-indígenas e formas de trabalho alheias
às formas de organização Mbyá, que exigem tantas horas de trabalho por semana etc. Porém,
durante o mês de outubro de 2006, ocorreram reuniões na aldeia para formação de uma equipe
Mb que discutiria internamente questões relacionadas à saúde/doença para serem
98
posteriormente levadas à FUNASA, em Brasília, como forma de repensar o atendimento
diferenciado à saúde Mbyá e avaliar os conflitos e tensões oriundos da aplicação deste
atendimento por parte das equipes dicas. Nestas reuniões, Osvaldo foi indicado pela
comunidade como coordenador deste grupo de discussão e aceitou realizar a tarefa,
enfatizando que aceitava o “cargo” porque não precisaria trabalhar fora da Tekoá, mas
apenas com os Mbyá.
Na aldeia, sua casa localizava-se em um ponto de certa forma distante da entrada da
área, em meio a muitas árvores e bem próxima ao ka’aguy (mato). Os visitantes dificilmente
chegam até o pátio (oká) da casa de Osvaldo, porque são antes geralmente recebidos pelo
cacique Floriano, cuja casa fica estrategicamente colocada em frente à estrada de acesso ao
interior da Reserva do Inhacapetum. Osvaldo tem orgulho de viver afastado, como registra a
letra de uma de suas músicas:
Osvaldo cazador vive en el monte,
En el o, de la costa, Inhacapetum
Tengo un rancho de taquara con el techo de pindó!
Na verdade, a casa de Osvaldo já era feita em toras de madeira e coberta com telhas de
cerâmicas, segundo projeto instituído junto à Secretaria Estadual de Habitação, mas realmente
localizada na margem do mato e junto ao campo de futebol utilizado por meninos, rapazes e
adultos Mbyá da aldeia quase diariamente nos meses quentes do ano.
Durante o dia, sua esposa e filhos (eles têm 8 filhos) circulavam pelo o (tio) e
arredores do mato próximo, junto aos animais domésticos – as uru e os jaguá (as galinhas e os
cães), ou embaixo das copas das árvores por onde circulavam filhotes domesticados de chi’y
(quati). A filha mais velha do casal, Élida Paredes, de dezoito anos, é casada, tem um bebê e
mora em uma casa bem próxima à de Osvaldo e Teresa, onde ela e o marido realizam as
refeições. Os outros filhos vivem todos com eles, de forma que o oká da casa está sempre
cheio de crianças.
Logo se percebe que aos mais velhos é delegada a tarefa de cuidar dos menores,
enquanto Teresa realiza as atividades diárias (produção dos alimentos, cuidado com os bebês,
produção do artesanato, manutenção da roça). É impressionante como as es Mbyá são
acostumadas a fazer diversas atividades sem largar seus bebês. Certa vez em que eu
99
conversava com Osvaldo em frente à sua casa, embaixo das árvores, Teresa foi ao ka’aguy
buscar taquara para a produção de cestaria, acompanhada de dois de seus filhos (8 e 12 anos)
e, ao contrário do que imaginei, levou consigo seu bebê junto a seu corpo no mitãryru (pano
amarrado à mãe que os Mbyá usam para carregar o bebê). Outras vezes, vi Teresa trançando
taquara ou esculpindo um pedaço de madeira, com o bebê em seu colo. Assim como vi tantas
outras mulheres lavarem roupa no rio ao mesmo tempo em que levavam seus bebês junto ao
corpo.
De uma forma geral, sempre que chegava à aldeia encontrava Osvaldo realizando as
mesmas atividades, junto à sua família: fazendo artesanato à beira do fogo, cuidando da roça
(kokué), voltando do mato (ka’aguy) às vezes com alguma caça tomando chimarrão ou
descansando. Foi Osvaldo quem levou-nos certa vez a uma expedição pelo ka’guy da Tekoá
Koenju, mostrando-nos as diversas armadilhas espalhadas, demonstrando o funcionamento de
cada uma, apontando espécies vegetais utilizadas pelos Mbyá nos processos terapêuticos.
Osvaldo também foi um importante ator para que meus olhos se voltassem à
observação das relações mais íntimas do núcleo familiar. Ele e todos os demais pais Mbyá
demonstram muito afeto e dedicação no trato com sua prole mais nova, estando ao lado da
mulher no cuidado e na supervisão atenta das crianças. Os Mb ainda hoje respeitam regras
de couvade, que inclui jejum de alguns alimentos e resguardo do pai nos primeiros dias depois
do nascimento de seu filho
38
, o que parece também atingir a mãe e outros parentes próximos.
Comecei a perceber a existência de técnicas corporais empregadas no cuidado das crianças, na
amamentação, nas formas de preparo dos alimentos, colocando a centralidade do corpo e da
produção da pessoa humana na constituição das relações sociais e na atualização da
cosmologia. Neste ponto, os Mbyá reproduzem as características culturais das sociedades
indígenas das Terras Baixas da América do Sul, onde o corpo não é simples suporte de
identidades e papéis sociais, mas é uma matriz de símbolos e instrumentos que articula
significações sociais e cosmológicas:
Na maioria das sociedades indígenas do Brasil, esta matriz ocupa posição
organizadora central. A fabricação, decoração, transformação e destruição dos
corpos são temas em torno dos quais giram as mitologias, a vida cerimonial e a
organização social. Uma fisiológica dos fluidos corporais sangue, men e dos
processos de comunicação do corpo com o mundo (alimentação, sexualidade, fala e
demais sentidos) parece subjazer às variações consideráveis que existem entre as
38
Tive oportunidade de presenciar isso quando nasceu um dos filhos do cacique Floriano, que não saiu da Tek
durante uma semana, a fim de resguardar sua saúde e a da criança.
100
sociedades sul-americanas sob outros aspectos (SEEGER; DA MATTA &
VIVEIROS DE CASTRO, 1987:20-1).
A intimidade corporal é uma constante do pai em relação aos seus filhos, o que é
reproduzido na relação dos irmãos mais velhos para com os mais novos (mas principalmente
no caso das meninas). As atividades domésticas todas são distribuídas entre os familiares, o
que inclui o trabalho dos genros na roça, na pesca e na caça em favor dos sogros. A residência
uxorilocal faz com que o novo casal more junto aos pais da noiva até que tenha autonomia de
sobrevivência.
A observação do mundo infantil é uma estratégia importante para compreender as
formas de atualização do habitus segundo os preceitos do Mbyá re. Embora os bebês
permaneçam constantemente no colo de algum familiar, mais próximos das mães na fase de
amamentação, desde cedo eles arriscam expedições engatinhando pelo pátio, quase sempre
nus e brincando com folhas, galhos, terra e fazendo carinho nos filhotes de cães. Eles
possuem completa intimidade com o chão, de uma maneira que nossos pades de higiene e
limpeza considerariam inadequados para uma criança. Suas peles ficam completamente sujas
de terra, incluindo faces e bordas da boca, muitas vezes marcadas de coriza. Na proximidade
do fogo, eles permanecem sem qualquer controle repressivo dos pais a brincar com a cinza e
os galhos incandescentes.
As relações familiares ocorrem sempre através de conversas exclusivamente na língua
Guarani, inclusive nas falas entre as próprias crianças (aprendi muito de sua língua com as
crianças). Em dias de sol (e às vezes nos de chuva também), as crianças se reúnem em grupos
de idade para inventarem brincadeiras como pega-pega, peteca, futebol, cantar e dançar, catar
plumas ao vento e imitar expedições de caça. As crianças não têm quase brinquedos enquanto
tal, brincando com as coisas que estão na natureza, transformando-as, misturando com objetos
dos juruá, compondo seus próprios brinquedos. Os meninos brincam com arco-e-flechas
miniaturas e praticamente não bonecas de pano ou plástico espalhadas pelo chão (e se ,
estão no chão. o recordo de ter visto nenhuma menina Mb brincando de boneca em todas
as vezes que estive nas Tekoá). Ao crescerem um pouco, as meninas já começam a carregar os
bebês de suas mães, tias, avós, primas, desenvolvendo rapidamente a técnica corporal da
mulher Mbyá de flexionar um pouco o quadril para um lado e levar o bebê apoiado em seu
próprio corpo, diminuindo a força que se tem que fazer com os braços.
101
A trajeria de Osvaldo demonstra o traço de mobilidade das famílias Mbyá entre as
aldeias e os acampamentos e algumas de suas causas. Enquanto a pesquisa estava em
andamento, acompanhei diversas situações de conflito interno na Tekoá Koenju, de caráter
político, que acabou culminando com a saída da família de Osvaldo daquela Tekoá, a
mudança de cacique, entre outras conseqüências internas. Por oposição a Floriano e situações
difíceis oriundas desse posicionamento contrário, Osvaldo mudou-se com toda sua família
para o Petim (acampamento na BR-116), onde permanecem até agora.
102
CAPÍTULO 3 A INTEGRALIDADE DA COSMOVISÃO MBYÁ FRENTE À SAÚDE
EM MINISTÉRIO
A temática da saúde em sua ligação com os povos indígenas se consolidou
inicialmente como femeno administrativo e legal a partir dos artigos da Constituição
Federal promulgada em 1988. Ela também se tornou problemática científica da antropologia,
norteando discussões teóricas a partir de dados etnográficos obtidos com as mais diversas
comunidades indígenas espalhadas no território brasileiro (LANGDON & GARNELO, 2004).
A produção antropológica brasileira sobre a saúde dos povos indígenas apresenta um perfil
acentuadamente participativo, como expressam os cientistas que pensam e publicam sobre o
assunto nos últimos anos. Isso quer dizer algo além do engajamento do “etnógrafo de índios”;
isso quer dizer que os antropólogos convivem com o mal-estar” (PACHECO DE
OLIVEIRA, 2004) de não conseguirem mais reproduzir a objetividade científica pretendida
segundo o modelo das ciências físicas e naturais, de constatarem sempre os condicionamentos
do campo em que se cria e se faz sua pesquisa etnográfica.
Isso é muito evidente no caso do debate sobre a saúde dos povos indígenas no Brasil,
recorte científico que resulta das categorias estabelecidas pelos saberes e pelas práticas
instituídas na administração do Estado Brasileiro. O Poder Público da União, dos Estados e
dos Municípios tem sua longa hisria de formação e sua transformação é lenta, carregada de
preconceitos étnicos nas ões que gradativamente tiveram que dar conta do atendimento
diferenciado às minorias existentes dentro do território brasileiro. As categorias
constitucionais definem hoje a sociedade brasileira como pluriétnica e multicultural, estando
os “Índios” contemplados com um capítulo especial na Constituição de 1988. Da mesma
forma, o conceito de “saúde” está institucionalizado como Ministério, Secretarias, Institutos,
fundações e tantos outros óros, criando uma certa autonomia em relação às demais questões
consideradas fora da “saúde” e elas também instituídas em sua autonomia (Agricultura,
Desenvolvimento Agrário, Economia, Educação, Meio Ambiente, Administração etc). Porém,
as nossas categorias mais gerais aplicam-se mal às outras sociedades (não-ocidentais) e
devem ser utilizadas de forma proviria (DUMONT, 1985:13). Compartilho com Louis
Dumont o ponto de vista de que o aparelho conceitual de que dispomos está muito longe
ainda de responder às exigências de uma antropologia social de forma satisfatória e que o
caminho consiste em substituir pouco a pouco os nossos conceitos por outros mais adequados,
ou seja, mais libertos dos controles modernos e mais capazes de abranger os dados que
103
obtemos em campo. No caso de minha pesquisa entre os Mb, percebo que fui tentando
trilhar esse caminho, na medida em que meu entendimento do que significava pesquisar
saúde” entre eles foi se modificando e ampliando gradativa e consideravelmente.
Por isso, a perspectiva hermenêutica, enquanto instrumento analítico ou caminho
possível para refletir sobre o fazer antropológico, parece adequar-se a meu percurso de
formação antropológica e de pesquisa etnográfica entre os Mbyá-Guarani. Durante esse
período minha relação com os Mbyá foi se constituindo, e paralelamente minha pesquisa
passava por reformulações diversas, mantendo-se, porém, em diálogo com questões
relacionadas à antropologia do corpo e da saúde.
A pesquisa etnográfica entre os Mb não é uma tarefa de fácil realização. A história
dos contatos mostra que eles estão entre os índios com maior intenção de manutenção de seus
tros culturais, estrategicamente resguardados ao conhecimento dos jur. Todos os
pesquisadores se confrontam com a resistência dos Mbyá, pois não falam abertamente sobre
os mitos e princípios cosmológicos de sua tradição.
3.1 A temática da saúde indígena e os Mbyá
Neste capítulo, procuro detalhar a interpretação da alteridade Mb retomando os
referenciais teóricos trabalhados nos capítulos anteriores, agora utilizando alegorias extrdas
deste outro importante campo de interações que se abriu nas três últimas décadas para o
reconhecimento oficial da diversidade Mb no Brasil. Trata-se de um espaço de negociações
que se criou pela necessidade administrativa do Estado brasileiro em prestar atendimento
biomédico “diferenciado” às comunidades indígenas, o que significa dizer tamm reconhecer
e estimular oficialmente os conhecimentos e as terapias tradicionais em todo o território
nacional.
A inclusão da temática da saúde indígena aqui é justificada também pela trajetória
desta pesquisa, já que até a elaboração de meu projeto de mestrado trabalhei com a proposta
de fazer etnografia dos processos terapêuticos em algumas comunidades Mbyá no Estado,
tendo iniciado meu envolvimento com essa temática desde o curso de graduação. Ao mesmo
tempo, reproduz um processo que ocorre em escala nacional, que passou a canalizar a atenção
104
dos administradores públicos há mais ou menos vinte e cinco anos, como registra Jean
Langdon:
No caso do Brasil, o modelo de atenção em saúde indígena se
caracteriza por ser processo em construção, cuja especificidade é o resultado
do cruzamento de fatores históricos e políticos postos em movimento desde a
década de 1980, como a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), a
Constituão Brasileira de 1988, que reconhece o caráter pluriétnico do país,
e o crescimento das organizações indígenas. Desde a Conferência
Nacional de Saúde Indígena, o Ministério da Saúde vem se esforçando por
estruturar um subsistema de saúde indígena diferenciado, porém integrado
ao SUS, e considerar os princípios de controle social e participação
comunitária do órgão, ao mesmo tempo que respeita e se articula com as
especificidades étnicas dos grupos atendidos (2004:34).
Essa transformação é contemporânea ao desenvolvimento da antropologia da saúde no
Brasil, que auxiliou a estabelecer uma leitura crítica das práticas administrativas até então
utilizadas no atendimento de saúde, dirigido às comunidades indígenas, quando as poticas
eram dominadas pela crença na exclusividade da biomedicina. Como alerta Pacheco de
Oliveira:
É importante reiterar que os estudos e os programas de intervenção
referidos à saúde indígena tornam como universais vários pressupostos
culturais que, em geral, colidem frontalmente com princípios do universo
indígena. Nessa área de invisibilidade cultural reside todo um extenso e
complexo sistema de idéias relativas ao nascimento e à morte, à saúde e à
doença, ao corpo e ao espírito, totalmente distintas das categorias pelas quais
os indígenas classificam esses fenômenos, bem como das formas de
tratamento que costumam propor para eles (PACHECO DE OLIVEIRA,
2004:27).
105
O recorte administrativo “saúde dos povos indígenas”
39
é o enquadramento
institucional produzido pelo Estado Brasileiro que reproduz a hegemonia da ideologia
moderna, porque os dados etnográficos dos Mbyá-Guarani revelam o quão distante nossas
categorias e práticas administrativas estão dos sentidos culturais e das percepções corporais e
mentais destes indígenas, sobre quais seriam as definições de “saúde”, de “corpo”, de
“natureza”, de meio ambiente” ou de outra qualquer categoria que configure nosso cosmos.
O funcionamento dos órgãos administrativos reproduz a vigência generalizada das categorias
e práticas do saber científico moderno, originalmente europeu e hoje global, mantendo
campos autônomos do fazer científico (as disciplinas), que se fizeram base de instituições
sociais. A criação do sistema de “saúde” (com seus especialistas, com a indústria farmacêutica
e o atendimento em hospitais e enfermarias) é um exemplo claro da criação de um campo sob
o controle hegemônico exercido pelos profissionais da biomedicina, que se tornaram os
detentores das verdades sobre os processos fisiológicos da vida humana, percebendo o corpo
como entidade quase completamente autônoma do meio (inclusive cultural) em que vive.
Embora aqui não seja feita a análise na profundidade que o assunto mereça, é possível
propor a hipótese de que o campo da “saúde indígena” firmou-se por causa da grande
visibilidade das ocorrências de doença e morte entre indígenas, particularmente no caso de
crianças atingidas pelas precárias condições de abrigo e alimentação
40
. Casos locais podem se
tornar escândalo público quando envolvem grupos indígenas (foi o que aconteceu, por
exemplo, com o elevado índice de mortalidade infantil na Terra Indígena Guarita, na década
de 1990), além da marcante atuação do Ministério Público em gerar processos de
39
A partir de 1999 foram criados 34 Distritos Sanitários Especiais Ingenas (DSEI) no Brasil, cada um deles
caracterizado como uma unidade de organização sob responsabilidade da FUNASA e destinado para uma
população e um território definido por diversos critérios (culturais, geográficos, de acesso aos serviços). Os
DSEIs implantaram uma rede de serviços nas Terras Indígenas para as ações de atenção básica à saúde,
articulada com a rede regional para procedimentos mais complexos. Consolidou-se também a participação
paritária de representantes indígenas dentro dos Conselhos Distritais de Saúde (CDS) para planejar, avaliar a
aplicação dos serviços e as contas dos prestadores de servos em cada DSEI.
O Senado Federal aprovou a Lei nº 9.836/99 em 31 de agosto de 1999, segundo o projeto apresentado pelo
Deputado Sérgio Arouca em 1994, baseado nos princípios gerais do relatório final da II Conferência Nacional de
Saúde para os Povos Indígenas, que complementa a Lei Orgânica da Saúde (Lei ns. 8.080/90 e 8.142/90). Esta
lei determina que o modelo adotado para a atenção à saúde indígena deve se pautar por uma abordagem
diferenciada e global, contemplando aspectos da assistência à saúde, saneamento básico, nutrição, habitão,
meio ambiente, demarcação de terras, educação sanitária e integração institucional”. (site do Instituto
Socioambiental – ISA, www.socioambiental.org/pib/portugues/indenos/polit_saude.shtm.)
40
No momento em que fazia a revisão final deste texto, ocorreu o falecimento de um bebê na comunidade
Kaingang de Guarita (noroeste do RS), devido ao frio do inverno sul-rio-grandense. O acontecimento foi
manchete em todos os jornais de Porto Alegre e o CEPI foi acionado para centralizar campanhas de agasalho e
alimentação, vindas de diversos setores da sociedade do Rio Grande do Sul o que até então o havia sido
providenciado no Governo atual de Yeda Crusius. (Cf. Ana Popp, atual estagiária do CEPI).
106
responsabilidade de danos, julgamentos por preconceitos raciais e cobrança por adequação
dos serviços prestados aos públicos indígenas.
Conhecer melhor a realidade dessa complexa e vasta temática foi mergulhar ainda
mais na alteridade Mb. Através da categoria “saúde” abriu-se um campo de interações a ser
interpretado, porque existe a mobilização inclusive dos próprios Mbyá, alguns deles
envolvidos direta (agentes de saúde contratados) ou indiretamente no processo de
institucionalização do atendimento diferenciado promovido pelo Ministério da Saúde, através
das secretarias estaduais e municipais.
Na década de 1990-2000, foi criado um Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI)
para organizar o atendimento dos serviços de saúde para as comunidades Guarani no sul do
Brasil, tendo por nome “Litoral Sul”, incluindo a atenção para o caso dos Mbyá no Rio
Grande do Sul, atingindo mesmo aquelas comunidades mais afastadas do litoral, como são a
TI Salto Grande do Jacuí e a RI Inhacapetum. Através deste DSEI, estruturaram-se cursos de
capacitação e seminários para agentes indígenas de saúde, depois integrados como membros
efetivos das equipes regionais de saúde que passaram a atuar regularmente no tratamento e
prevenção de doenças nas comunidades Mbyá.
O interessante desse processo é que através dele abriu-se um contexto antes inexistente
de negociação e de engajamento efetivo dos Mbyá. Antes disso, a administração tutelar da
FUNAI detinha o monolio também no atendimento à saúde dos grupos indígenas,
submetendo os Mbyá aos serviços das enfermarias em terras Kaingang ou lhes
disponibilizando atendimento na rede hospitalar da cidade mais próxima. A presença incisiva
da FUNASA ao longo dessa década criou um contexto de participação, não apenas incluindo
os Mbyá, mas também as comunidades locais, pelos critérios de descentralização e
municipalização da saúde, colocados pelo Programa SUS
41
e sua aplicação aos indígenas pelo
VIGISUS
42
.
40
Conforme o site oficial do SUS: O Sistema Único de Saúde – SUS – foi criado pela Constituição Federal de
1988 e regulamentado pelas Leis ns. 8.080/90 (Lei Orgânica da Saúde) e 8.142/90, com a finalidade de alterar
a situação de desigualdade na assistência à saúde da população, tornando obrigatório o atendimento público a
qualquer cidadão, sendo proibidas cobranças de dinheiro sob qualquer pretexto. (...) Através do Sistema Único
de Saúde, todos os cidadãos têm direito a consultas, exames, internações e tratamentos nas Unidades de Saúde
vinculadas ao SUS, sejam públicas (da esfera municipal, estadual e federal), ou privadas, contratadas pelo
gestor público de saúde. O SUS é destinado a todos os cidadãos e é financiado com recursos arrecadados
através de impostos e contribuições sociais pagos pela população e compõem os recursos do governo federal,
estadual e municipal” (http://www.sespa.pa.gov.br/Sus/sus/sus_oquee.htm).
42
Conforme o site do Conselho Nacional de Municípios (CNM): “O projeto VIGISUS teve início em 1999 e está
sendo desenvolvido em três fases. A primeira fase, VIGISUS I, foi dedicada à estruturação do sistema nacional
de vigilância em saúde e ocorreu de 1999 a 2004. A segunda fase do projeto teve início em 2005 e será
107
Foi dessa maneira que a “saúde” foi incorporada como categoria recorrente nos
discursos dos representantes Mb na década seguinte, porque através dessa palavra deveriam
expressar seu entendimento diferenciado e reivindicar formas próprias de tratamento dos
problemas que prejudicam o seu bem-estar corporal e espiritual, segundo definem suas
referências culturais próprias.
3.2 Limites da oposição natureza/cultura ao entendimento do holismo no Mbyá re
No Rio Grande do Sul, a participação dos Mb nesse processo de adequação dos
serviços de saúde se faz, como dito, através da abertura de contextos de negociação e de
incorporação efetiva ao “sistema de saúde” (agentes Mbyá contratados), mostrando que eles
estão diretamente envolvidos por interesse e por cobrança do Poder Público. Desde os tempos
de meu estágio no CEPI, questões de saúde foram discutidas em quase todas as reuniões que
presenciei. Essa é outra das razões que justificam a abordagem dessa temática, pois o
envolvimento dos Mbyá nos debates sobre critérios de cura e de terapia serviu, no percurso da
pesquisa, para começar a esclarecer sobre a existência de diferenças marcantes entre
concepções de “natureza”, “corpo”, “cultura”, pessoa”, “saúde” e doença”. As concepções
culturais expressas nesses contextos de “saúde indígena” pelos representantes Mbyá (sabendo-
as fundamentadas no habitus) permitiram detalhar o reconhecimento sobre as diferenças
evidentes entre os sistemas culturais/médicos em contato.
A compreensão integrada da existência e do cosmos é uma das características mais
marcantes dos dados etnográficos obtidos junto aos representantes Mb, algo que a literatura
etnológica dos Guarani também reitera. Os Mbyá produzem e reproduzem para a sde ao
corpo e à pessoa, melhor dito certas representações que se tornam melhor compreendidas
desde o tplice ponto de vista definido por Marcel Mauss como parte da abordagem sobre o
“homem totale que se traduz pela idéia de habitus enquanto imitação prestigiosa:
finalizado em 2008, se voltando à modernização do Sistema Nacional de Vigilância em Saúde. A terceira fase, o
VIGISUS III, está prevista para ser executada entre os anos de 2009 e 2011 e servirá para consolidar o sistema”
Disponível em: http://www.serratalhada.pe.gov.br/003/00301009.asp?ttCD_CHAVE=16575. Acessado em:
15.maio.2007.
108
É precisamente nesta noção de prestígio da pessoa que torna o ato ordenador,
autorizado e provado, em relação ao indivíduo imitador, que se encontra todo o
elemento social. No ato imitador que se segue, encontra-se todo o elemento
psicológico e o elemento biológico (MAUSS, 1974:215).
Constantemente, os discursos dos informantes Mbyá reforçam a idéia de que sua
tradição cultural não entende a saúde do corpo como algo separado da terra, do alimento, da
festa, do nome. Isso já foi reconhecido no trabalho de Luciane Ferreira, por exemplo, na
aplicação do projeto para a redução do uso abusivo de bebidas alcoólicas entre os Mbyá-
Guarani do Rio Grande do Sul (FERREIRA In: LANGDON & GARNELO, 2004, p. 89-
110). Ao contrário do que afirmam tantos representantes da biomedicina, para os Mb não
há, por exemplo, o alcoolismo no sentido consagrado pela medicina. O uso de bebidas
alcoólicas não é considerado causa, mas, sim, conseqüência de fatores espirituais, mágicos e
religiosos, além de ser reconhecido também como fruto da opressão, marginalidade e perda do
espaço territorial para a criação das sociedades nacionais que fazem parte da Região Platina
(BUCHILLET, 1991). Como demonstra Ivori Garlet, tratando da relação histórica dos Mb
com as Reduções Jesuíticas, a noção de saúde/doença para eles é muito ampla e seu
entendimento transcende o corpo do indivíduo:
Entre os motivos das freqüentes evasões dos antigos Mbyá conduzidos às
reduções destacam-se as doenças. Para um povo da floresta, como os Mbyá,
os espaços das reduções, compreendidos enquanto antítese da selva,
possivelmente identificados como o domínio de espíritos estranhos e
portanto perigosos, deveriam ser evitados. O mesmo comportamento pode
ser visto em relação às aldeias, que eram abandonadas por ocasião das
epidemias. Seus habitantes deveriam associar a doença ao espaço, como
procedem os Mbyá no presente. Se a doença se manifesta é porque também o
espaço se tornou doente, sendo necessário abandoná-lo em substituição a
outros, onde pudessem novamente encontrar equilíbrio e segurança
(GARLET, 1997:40).
diferenças marcantes nas disposições corporais e nas concepções de pessoa dos
Mb, noções muito diversas e que se aproximam mais dos parâmetros descritos para o
xamanismo ameríndio (LANGDON, 1996), que considera o corpo e a pessoa partes de um
sistema cosmológico, religioso e social amplo. Considerar o Mbyá rekó parte de um sistema
xamânico é marcar sua radical diferença epistemológica em relação à clássica oposição
filofica colocada entre natureza e cultura e que fundamenta a biomedicina. A análise desse
tema é retomada por diversos etnólogos a partir de pesquisas sobre povos ameríndios,
109
demonstrando que as noções não se equivalem e que só tomam sentido como parte de
cosmovisões diferenciadas.
A oposição entre natureza e cultura remonta aos primórdios do pensamento científico,
respondida desde a Idade Média pela falsa noção de um homem natural”, como se o ser
humano tivesse surgido como criação espontânea. Essa falsa idéia vigorou camuflada durante
muito tempo até mesmo como teoria antropológica (dos evolucionistas), anulada pelos
achados da paleontologia humana e da etologia dos primatas superiores – que apontam para a
idéia de que há comportamento apreendido entre os animais. No entanto, ainda hoje, as
práticas administrativas voltadas aos povos indígenas no sul do Brasil reproduzem esta
arcaica noção, o que explica parcialmente a vigência da tutela aplicada por profissionais da
saúde, do meio ambiente, da justiça, do executivo e de tantos outros setores.
Através dos últimos séculos, as fronteiras entre natureza e cultura ficaram
crescentemente difusas, diluídas, tornando complexa a condição de “humanidade” agora
situada ao mesmo tempo nesses dois pólos. Uma clássica abordagem sociológica surgiu a
partir da dicotomia rígida entre estes dois los, o que exige transformação para que se possa
trabalhar com os parâmetros visualizados na etnografia Mbyá.
implicações ideológicas, poticas e culturais dessa gradativa recuperação teórica
da “natureza humana”, da constatação sobre os fundamentos fisiológicos e psicológicos da
imaginação e do simbolismo humanos. As lutas ecológicas e os movimentos ambientalistas
tentam barrar o ímpeto utilitarista da lógica do mercado mundial, sem se libertarem
completamente da suposição sobre uma natureza bruta presente no comportamento dos
“primitivos”, que ficam colocados como parte da natureza. Por outro lado, a natureza
dinâmica e a historicidade das sociedades tradicionais não são reconhecidas como legítimas,
sendo qualquer integração econômica ao mercado apresentada como aculturação completa e
também como justificativa para remover comunidades tradicionais ocupantes do território que
se quer reconhecer como área de proteção ambiental. Reitera-se o mito da natureza intocada
(LATOUR, 2004). Índio que usa telefone celular o é mais índio. Este argumento aparece
extremamente adequado como forma de impedimento da retomada de seus territórios: essa
terra até pode ter sido dos índios, mas esses que estão aí não são mais índios, perderam sua
cultura.
Sabe-se que a passagem da natureza à cultura é tema clássico na antropologia
estruturalista, herança re-elaborada do funcionalismo de Malinowski e da psicanálise de
Sigmund Freud. Desde a elaboração de As estruturas elementares de parentesco por vi-
110
Strauss, o tabu do incesto caracterizou o ponto de transposição para a cultura, porque nele se
estruturariam todas as demais dimensões simbólicas e imaginárias da sociedade humana
(parentesco, linguagem, cosmologia, instituições). Depois disso, Lévi-Strauss fez a aplicação
de tal constatação na forma como ela estaria manifesta nas cosmologias ameríndias (nas
Mitológicas), propondo modelos que integram natureza, cultura e, às vezes, sobrenatureza.
A atualidade do tema natureza/cultura é identificada nas obras de muitos etnólogos
brasileiros, particularmente nos trabalhos mais recentes de Eduardo Viveiros de Castro. Em
seu estudo sobre a fabricação do corpo na sociedade xinguana, este autor utilizou o modelo
observado nos Yawalapiti para propor um universo tripartido, onde a reclusão, a praça de
exposição e a área de floresta fora da aldeia equivaleriam às esferas cosmológicas da natureza,
da cultura e da sobrenatureza
43
.
Essa dicotomia também tem aparecido (algumas vezes indiretamente) em publicações
de antropólogos estrangeiros, como exemplificam os trabalhos de Phillipe Descola entre os
Achuar (Jivaro) do Equador e do Peru (1998) e os de Michael Taussig (1993) a partir de sua
etnografia no rio Putumayo e na Colômbia
44
. No caso de Descola, a análise da cosmologia
ameríndia é feita identificando que as representações ingenas utilizam metáforas simbólicas
para o entendimento do ambiente natural do qual dependem para se reproduzirem como
grupo, representado como um jardim (ao estilo de suas roças) dos deuses. A natureza aparece
como um produto da sobrenatureza, dos espíritos que habitam a floresta e garantem a
proliferação das espécies vegetais e animais. A oposição entre tais esferas aparece muito vaga
e indefinida, na medida em que a floresta virgem é representada também como uma natureza
domesticada”.
Em trabalhos mais recentes, Viveiros de Castro (2002) retoma a discussão sobre
natureza e cultura, porém para inverter as análises realizadas pelos estruturalistas sobre as
cosmologias ameríndias. É neste sentido que ele faz a proposição do que intitula o
“perspectivismo” ou o “multinaturalismo ameríndio. Segundo este autor, as sociedades
nativas americanas invertem a lógica ocidental; para estas, a natureza é o fundo geral sobre o
43
“Como se vê, portanto, há um sistema de três termos: a fabricação do corpo, a decoração, a exibição do corpo
e as metamorfoses. A mim parece que estes três processos poderiam ser articulados com a tríade Natureza/
Cultura/Sobrenatureza desde que com isso não se retire deles seu caráter fundamental o de serem processo,
que, na verdade, fazem mediações entre os domínios da tríade mencionada” (VIVEIROS DE CASTRO,
1987:39, nota 7).
44
Taussig (1993) tem uma abordagem inovadora no entendimento deste assunto ao demonstrar que existiam
“fragmentos de contemplação filosófica” (expressão obtida de Walter Benjamin) no pensamento dos
colonizadores que vieram da Europa, que os fizeram associar a selva americana ao reino do demônio e seus
habitantes a terríveis canibais perdidos na exuberância sensual da floresta. O horror sentido pela selva virgem
transformou o colonizador num protagonista da economia do terror, se valendo do medo imposto ao nativo como
forma de reagir ao sentimento de terror que tinham da natureza amazônica.
111
qual se proliferam as culturas em suas especificidades, origem da idéia de
“multiculturalismo”. Ao contrário, a lógica ameríndia entenderia a cultura como o fundo geral
compartilhado por todos os seres do cosmos, sendo cada animal e o ser humano manifestações
singulares da natureza. Isso fundamentaria a idéia de multinaturalismo. A base das
cosmologias seria o perspectivismo, na crença de que é possível uma transfiguração da
corporalidade, de um homem virar jaguar ou de um xamã se transformar no espírito dos seus
animais aliados. A tese de Viveiros de Castro lhe rendeu reconhecimento internacional, com
manifestação pública do próprio Lévi-Strauss lhe atribuindo papel de destaque no
desdobramento teórico sobre a lógica ameríndia e, por outro lado, críticas
45
.
Outro exemplo clássico, mas mais antigo, é o estudo de Evans-Pritchard sobre os
Nuer, onde aparecem relações para demonstrar vínculos estruturais e recorrentes entre a
ecologia, as estratégias de sustento, o parentesco, as instituições sociais e as poticas daquele
povo nilota. Ao invés de enfatizar as rupturas trazidas pela cultura, Evans-Pritchard
argumenta que complementaridade entre o ciclo natural e o ciclo social, embora não tenha
detalhado uma elaboração maior sobre como tal dicotomia estaria elaborada pelo pensamento
nuer.
Enfim, independente dos limites trazidos pela dicotomia natureza/cultura existem
trabalhos antropológicos que a conseguiram equacionar de maneira não reducionista e
obtiveram resultados de pesquisa interessantes com os quais me identifico como proposta de
viés interpretativo.
O cosmos da sociedade Mbyá, e das sociedades indígenas de uma forma geral, inclui a
natureza, a sociedade e a sobrenatureza, sem fronteiras rígidas entre estas três instâncias.
Ainda conforme Descola (1998), os “ocidentais” e os “pré-modernos” estabelecem relações
muito diversas com a natureza. Na perspectiva pré-moderna”, a natureza não é uma esfera
autônoma, separada do universo da cultura, onde os animais e as plantas são também sujeitos
sociais, possuidores de sentidos simbólicos que os aproximam dos humanos. Nestas
sociedades, a diferença entre humanos e não-humanos é apenas de grau. A natureza e a
sociedade pertencem a um mundo.
Bruno Latour (2004) mostra que, na realidade, a concepção de natureza é social, é um
constructo cultural. O conhecimento da natureza é constrdo a partir de tradições e
45
Recentemente (02/07/2007), o antropólogo Terence Turner esteve palestrando no Campus do Vale da UFRGS
(Porto Alegre/RS), qualificando o perspectivismo como um “modismo do Museu Nacional” e uma grande
“bobagem”, uma vez que seus dados de campo entre os Kayapó e outras etnias na Amazônia o levaram a
concluir sobre a existência de recortes cosmogicos de caráter diferenciador da natureza (cf. relato de meu
orientador em 05/07/2007, pois eu o estava presente na ocasião).
112
historicidades particulares, não sendo isento de interpretações culturais, sociais, políticas.
Com isso, propõe ir além da dicotomia natureza x cultura na análise das coletividades
humanas, afirmando que é impossível separar o que é natural do que é cultural. Neste ponto,
Latour critica uma antropologia que busca no “outroas formas de compreensão da natureza,
pois diz que temos que procurar perceber a não dicotomização entre natureza e cultura dentro
da nossa própria sociedade. Mostra, assim, que aquilo que teórica e cientificamente separamos
está junto, mesmo na nossa sociedade, ou seja, a natureza e o homem. Não existe uma
natureza pura. Latour insiste que a antropologia tem importante papel na ruptura com essa
dicotomização.
Exatamente por causa dessa confusão, não é o mais adequado apenas considerar o
sistema religioso Mb como predominante sobre os demais níveis culturais, é preciso pensar
tal fenômeno como englobado por um sistema xamânico, pois as fronteiras existentes entre as
esferas da cultura Mbyá são fluídas e não se encaixam em demarcações precisas, nem a
natureza aparece como uma esfera afastada do que é humano. É impossível, por exemplo,
delimitar onde termina o sistema religioso e onde começa o “sistema médico tradicional”
Mb.
Percebe-se (...) que os Mb possuem uma concepção integradora do
mundo, onde o desequilíbrio de um dos seus componentes afeta os demais
(Fogel, 1993:30). Assim, a destruão das matas, a redução ou
indisponibilidade de espos, não geraram uma série de conseqüências a
nível material e físico, como aumentaram a dificuldade para que os homens
possam viver em plenitude e de acordo com as aspirações mais sublimes
(GARLET, 1997:155).
A partir da perspectiva Mb, primeiramente, a saúde é reconhecida enquanto
realização da felicidade coletiva, na medida em que é possível reproduzir a Tekoá e o Mbyá
repela íntima associação entre a esfera da cultura” e a da “sobrenatureza”, sem que a da
“natureza” esteja excluída. A “natureza” fornece a base material necessária à saúde, exigindo
condições físicas à reprodução cultural daquilo que os Mbyá buscam obter da terra: a mata,
todos seus recursos e o espaço para criação da Tekoá, composta pelas (casas tradicionais
constrdas em barro e taquara), as kokué (roças) e a Opy (casa de reza). Portanto é necessário
ter terra com natureza preservada para se ter saúde, o que é pensado coletivamente. Nesta
perspectiva, o processo saúde/doença abarca a dimensão natural considerada em sua ligação
principalmente com a ordem cosmológica e com as forças invisíveis as forças da natureza e
113
as forças humanas justificando sua caracterização como sistema xamânico (FERREIRA,
2001). A dimensão terrena a “natureza” da saúde/doença é extensão do universo
cosmológico/xamânico Mbyá, em que o lo da animalidade está intimamente relacionado ao
modo de vida imperfeita, ao teko axy (ou vida doente/imperfeita), enquanto que a reprodução
plena do Mb rekó aparece como acesso à realizão da saúde plena (aguyije). A saúde
Mbacontece em deslocamento, no andar pelo caminho belo da tradição, pelo Jeguata Tape
Porã
46
. Mesmo quando não migram com o objetivo de se estabelecer em outra Tekoá, eles
mantêm uma constante circulação entre as Tekoá, como referido no Capítulo II.
Abordo as relações interétnicas estabelecidas na interação entre o sistema xamânico”
Mbyá-Guarani e o “sistema médico ocidentala partir da “teoria da hierarquia” (DUMONT,
1985), avaliando a relação interétnica enquanto uma relação situacional de “englobamento do
contrário”. Trata-se de uma relação estabelecida entre um conjunto/todo e um elemento/parte
desse todo. Este último é, ao mesmo tempo, parte do conjunto, sendo idêntico a ele, e se
diferencia ou a mesmo se oe ao mesmo. Corroborando essa idéia, segundo Dominique
Buchillet (1991), um fenômeno que atesta o caráter dinâmico, inovador e englobante das
medicinas tradicionais indígenas é a integração de práticas terapêuticas juruá nas formas de
interpretação das doenças e seus tratamentos. Além disso, esse englobamento demonstra uma
dimensão de resistência cultural. Não se trata mais de estudar a “assimilação dos índios entre
os brancos”, mas, sim, analisar os fenômenos de incorporação simbólica dos juruá, seus bens
e suas práticas terapêuticas suscetíveis de serem utilizadas, manipuladas e controladas pelos
curadores tradicionais e demais membros dos grupos indígenas, no caso, dos Mbyá.
Como referido no Capítulo II de forma mais geral, pode-se afirmar também que os
parâmetros da biomedicina estão fundamentados no individualismo moderno, que
transformou o fenômeno concreto indivíduo” num valor ideológico absoluto (DUMONT,
1985). Os Mbyá convivem com as práticas individualistas aplicadas na saúde, estabelecendo
limites claros contrários a sua influência dentro do espaço tradicional. A concepção de
igualdade individual, da unidade biológica que nos constitui enquanto “humanos”, é muito
estranha à cosmologia dos Mbyá, considerando que seu xamanismo concebe ser possível a
transmutação de corpos e inclui os animais como seres culturais.
Para os Mb não existe uma humanidade como marca de unidade e de distinção do
reino natural, já que ocorre um circuito de transmutação entre espíritos de animais, de pessoas
e de mortos. Entre eles é mais correto reconhecer o estabelecimento de um universo dividido
46
Sobre o Jeguatá Tape Porã, ver Capítulo IV.
114
em níveis superpostos, hierarquicamente estabelecidos, ao estilo do que a literatura
antropológica indica existir no seio das sociedades não-modernas.
A consideração sobre a “saúde Mbyádeve partir dessa discussão conceitual, para não
se tratar de uma naturalização das nossas categorias e práticas científico-administrativas, e
reconhecer, nessa discussão, que a cosmologia e os processos rituasticos destes indígenas
apontam para outras esferas de representação, quando se referem ao estado de aguyije,
traduzível como alegria suprema, vigor sico e realização interior, saúde espiritual e corporal,
imortalidade (HÉLÈNE CLASTRES, 1978). Da mesma forma, não oportunidade em que
os diálogos com os informantes Mbyá deixem de ir, quando abordando “saúde”, para o tema
da terra (yvy), dos pontos cardeais, da itinerância e da territorialidade livre, da necessidade
que o seu modo de ser Mbyá (Mbyá rekó) tem por ocupar espaços naturais recobertos de
florestas, habitados por plantas, animais e espíritos (CADOGAN, 1960).
Assim, o holismo Mbyá trata da saúde em sua compreensão cosmológica e terrena, ao
mesmo tempo ligada ao mundo espiritual e à existência de condições ambientais para sua
reprodução. Como podeocorrer um tratamento diferenciado de “saúde” aos Mb, se para
eles o tratamento terapêutico mais eficaz é o retorno à ocupação das matas e aos seus recursos
naturais cada vez mais escassos? Como fazer as instituões de saúde trabalharem lado a lado
com as instituões ambientais, para que a cura exigida pelos Mbyá se efetive como prática
administrativa? A integração das práticas institucionais torna-se fundamental, mas nossos
paradigmas científico-administrativos esbarram em entraves conceituais que possuem
milênios de existência. Louis Dumont adverte:
Em última análise, para verdadeiramente compreender, cumpre
investigar no campo todo, pondo de lado, se necessário, esses
compartimentos, aquilo que corresponde neles ao que conhecemos, e em nós
ao que eles conhecem; por outras palavras, é imprescindível esforçar-se por
construir aqui e lá fatos comparáveis (1985:13).
As palavras do cacique geral do Rio Grande do Sul, José Cirilo Pires Morinico
47
(Kuaray Nheery), exemplificam essa compreensão que estou chamando de holista da
47
Palavras proferidas em 25 de abril de 2006, no Prédio da Faculdade de Educação (Campus Central da
UFRGS), em Porto Alegre, quando José Cirilo foi convidado para falar junto a outros representantes indígenas
das questões culturais de sua etnia aos estudantes. Eventos como estes o, antes de mais nada, espaços de
espelhamento, onde os representantes Mbyá falam de si ao juruá, trocam experiência com representantes
indígenas de outras etnias e dialogam com intelectuais e estudantes do meio acadêmico.
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saúde, da vida Mbyá. Segue abaixo trechos da manifestação oral de José Cirilo que registrei
em diário de campo na ocasião:
É importante que os estudantes estejam se aproximando das
populações indígenas, isso é importante para nós, mas é importante para
vocês tamm, saber como que a gente vive. Por causa dessa aproximação,
hoje está melhor. Por exemplo, em 94, a gente ficava na fila do SUS, mas
agora o atendimento de saúde é diferencial. O médico tem que ser formado
também para atender as populações indígenas, não pode só trazer o seu
conhecimento de fora, tem que saber trabalhar também com o índio, para
fazer o atendimento diferenciado.
(...) Às vezes a doença não é para o médico do branco, é para o Karaí. Às
vezes o espírito está fraco, eno precisa estar perto do fogo, da fumaça, do
cachimbo sagrado. Às vezes tem uma tontura e não é para o médico do
branco. Por isso, é importante fortalecer o médico do branco, a saúde, e
também o líder religioso Guarani, fortalecer os dois.
Desde 94, quando comecei a trabalhar na luta indígena, melhorou muito,
porque agora os brancos, os estudantes têm interesse em saber, conhecer,
ouvir as lideranças indígenas mesmo. Agora espaço. Para trabalhar com
os indígenas tem que conhecer o dia-a-dia na aldeia, como nós vivemos.
Às vezes, a criança não quer ir para a escola e isso tem que ser respeitado
pelos pais. Brincando, pescando, a criança também aprende. Às vezes, se
sonhou, se está bem, não quer ir na escola, e os pais tem que respeitar.
Tomando o chimarrão, tem que respeitar a erva-mate, não pode ir pegando,
tem que rezar primeiro. A mesma coisa o cachimbo. Ele é nossa arma,
fazemos cura, proteção. A fumaça afasta o espírito mau. O mato também
cura, a pedra, a água, a chuva, o trovão, se sabe, eles o cura pra s
também.
(...) De manhã, os pais, os mais velhos passam os conhecimentos, dão
conselhos de como tem que se viver.
A universidade e o Estado hoje estão se envolvendo mais. Hoje avançou em
algumas partes. 5 anos, eu vivia embaixo de lona, hoje, graças a deus,
temos casa que a Secretaria de Habitação fez.
A escola eu não entendo dentro da sala de aula, se for dentro da casa de reza,
eu entendo, tem o cachimbo... Mas na sala de aula qual é o instrumento? Não
tem.
A música tradicional também ajuda a curar o uso da bebida alcoólica. A
fumaça também, conversar também ajuda. A roça também tem que ter,
plantar o milho. Isso é saúde diferencial.
(...) Essa coisa de escola é muito nova para nós. A nossa formação tem que
ser diferencial, tem que ser reconhecida. Nós também somos formados, eu
sou antropólogo, mas não é reconhecido porque eu o tenho estudo. Nós
não podemos sofrer vinte, trinta anos para se formar como vocês. Eu aqui, já
estou cansado!
Nós temos que viver no mato, mas agora não tem mato. destruíram tudo,
para medicina precisamos de medicamento do branco porque às vezes não
tem mais na natureza. O branco separa muito as coisas, o índio não, ele fala
da saúde, da natureza, da vida, de tudo. Para o branco tudo é em caixinha:
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secretaria de educação, secretaria de saúde, secretaria de habitação. É tudo
separado em caixinha. Para nós, as coisas não se separam no conhecimento.
Já estou cansado de falar, falar. O branco muitas vezes escuta, mas o
entende,o escuta de verdade.
Nossa saúde é ter uma casa tradicional com barro. De noite estar na casa de
reza. Essa é nossa vida. É ali que s recebemos as mensagens dos mais
velhos. Esse é o nosso costume.
Na cidade tem muito perigo, espírito ruim, por isso tem que ter proteção, por
isso os Karaí protegem. Fui escolhido como Cacique Geral pelos mais
velhinhos, que me batizaram e me protegem porque eu ando muito na
cidade.
(...) Não se fala só com a cabeça, se fala com o coração.
A questão da universidade, nós os Guarani, temos ainda que amadurecer. É
muito novo para nós. Porque o queremos cair na armadilha. Usamos as
roupas do branco porque nossas roupas eram de algodão e hoje não tem mais
algodão.
Quando estou fumando cachimbo, as pessoas não gostam. Eu tenho que
saber as letras onde diz “proibido fumar”. Tem que aprender a ngua para
saber isso. Hoje em dia as populações indígenas falam da diferença: os
Xavante, os Tucano, os Xingu. Esse intercâmbio entre as etnias também é
importante, como aconteceu agora na Conferência Nacional dos Povos
Indígenas, em Brasília.
Hoje eu não preciso ir na universidade porque eu aprendi tudo, mas um
dia meu filho vai. Mas não pode estudar para trabalhar para o branco. Não
pode abandonar a família, a aldeia, a cultura. Meu irmão ganhou o salário de
professor para ele, mas comprou farinha para toda a família. Porque para nós
tudo é muito comunitário. Se eu não planto, mas minha mãe planta, eno eu
planto também, porque é para todos. Cada um já nasce para fazer alguma
coisa: para pescar, para ser Karaí, para ser cacique. Isso o Karaí sabe dentro
da Opy, o que aquela criança vai ser. Já nasce para uma coisa.
Pude constatar que as concepções Mb sobre sde/doença atingem outras dimensões
da realidade social, dimensões distantes daquelas classicamente definidas pelos parâmetros
específicos da biomedicina. A observação das práticas e o registro das narrativas sobre as
concepções dos Mbyá revelaram que em todos os campos e temáticas suas posturas estão
condicionadas pelas mesmas motivações holistas de reprodução do Mbrekó, fazendo com
que eu passasse a reconhecer a grande amplitude êmica dos seus processos terapêuticos
(DUMONT, 1985). Conforme Ivori Garlet,
O Mbyá entende a doença como resultante de uma situação de crise no corpo
da sociedade e/ou do indivíduo. Ao mesmo tempo existe uma relação direta
entre saúde física, social e as condições ecológicas e ambientais. Um espaço
desequilibrado é um espaço doente e esta situação acaba refletindo-se sobre
as pessoas. Ao estabelecer-se sobre um local onde identifica as condições
117
necessárias à garantia deste equilíbrio o Mbyá costuma dizer: che avy’a apy/
estou alegre aqui. Mas este estar alegre resulta de uma profunda empatia
entre pessoa e espaço. Existindo esta empatia, as pessoas vivem felizes e em
harmonia, o que identificam como indícios de saúde (1997:117).
Assim, entendo que é necessário ter uma escuta aberta, que “ouça” muito além do que
é expresso em palavras, mas investigar qual o sentido nelas expresso. Trata-se de uma escuta
que ultrapassa o exercício de ouvir, é uma escuta da percepção, do sentido e do contexto. O
sentido da linguagem falada perde muito se não houver a percepção do sentido do todo, ainda
mais que, para o Mbyá,o existe a dicotomia entre ser, sentir, existir e a palavra
48
.
Desta forma, penso que a etnografia entre os Mbyá não pode ocorrer adequadamente
partindo dos propósitos de uma antropologia clássica, dirigida ao conhecimento de uma
“estrutura”, de uma “função”, de uma “cultura”, de uma “cosmologia” ou ainda de um
“sistema médico Mbyá”, sendo estes dificilmente alcançados quando os “nativospossuem
uma história de resistência sócio-cultural, vivendo inseridos mas marginalizados no
contexto da sociedade ocidental, como é o caso dos Mbyá-Guarani no Rio Grande do Sul.
Trata-se neste caso, fundamentalmente, de uma situação hisrica de relações marcadas por
fronteiras étnicas, num conflito radical entre concepções e práticas relacionadas aos processos
de saúde/doença. Pretendo evitar uma investigação que essencialize a priori categorias como
“sistema cosmológico”, “cultura Mbyá, exatamente porque não o entidades observáveis
concretamente na interação etnográfica. Até porque, de qualquer forma, o próprio acontecer
de minha pesquisa esteve influenciando a (re)construção da tradição Mb em um contexto
específico, com alguns Mbyá e outros o, em um dado momento histórico e em determinado
espaço vivido pelos atores sociais envolvidos. Não é possível fixar essências, mas vasculhar
exatamente as fronteiras de mistura e de interação entre atores e instituições sociais, como
sugerem os antropólogos hermeneutas.
48
James Clifford (2002:20), reconhecendo as limitações da técnica da observação participante, ressalva que
mesmo que o Ocidente não possa mais ser reconhecido como o único provedor do conhecimento antropológico
sobre o “outro”, ao menos, “a observação participante obriga seus praticantes a experimentar, tanto em termos
físicos quanto intelectuais, as vicissitudes da tradução”.
118
3.3 “Saúde”: uma categoria biomédica tornada prática
(...) Onde está nosso remédio? Cada um sabe qual é o tipo de
erva para a doença, mas onde é que está o remédio? Onde está
nossa farmácia? Nossa farmácia é o mato e o nosso hospital é a
Opy (Félix Brizuela, 1995; In: Garlet, 1997:115).
A apresentação de casos etnográficos pode ser uma forma de abordar temas de caráter
mais trico. Neste momento do texto, a descrição de circunstâncias concretas observadas em
campo serve para ilustrar como acontecem os dilemas colocados pela distância, comentada
anteriormente, entre os cririos do Mbyá rekó e o tipo de atendimento de saúde
disponibilizado pelo SUS, que se mantém no controle dos especialistas do sistema biodico.
Os casos extraordirios são mais ilustrativos, porque explicitam melhor a diferença de
compreensões sobre os sintomas das doenças e suas formas de tratamento. A ocorrência de
doenças mais graves motiva o deslocamento dos pacientes indígenas para fora de suas aldeias,
quando os sintomas ultrapassam a capacidade de tratamento pelos procedimentos normais
conhecidos por enfermeiros e dicos colocados nos postos de saúde ou nos hospitais
municipais mais próximos, exigindo então o diagnóstico e a intervenção, realizados em
centros hospitalares mais aparelhados.
Apresento aqui o breve relato de um caso de doença que exigiu a internação hospitalar
de uma criança Mbyá-Guarani, na época residindo na Tekoá Koenju, (RI Inhacapetum), em
São Miguel das Missões. Esses fatos ocorreram entre agosto e outubro de 2005, situações que
acompanhei junto à equipe de pesquisa do NIT enquanto realizávamos a aplicação do
INRC. O caso da menina começou com sintoma agudo de hemorragia gastro-intestinal, o que
levou à sua internação no Hospital de Caridade de Ijuí (RS) e posteriormente no Hospital de
Clínicas de Porto Alegre. Este caso trouxe questões fundamentais e polêmicas a respeito da
ateão diferenciada à saúde, do respeito efetivo à autodeterminação das populações
indígenas e do reconhecimento do caráter pluriétnico da sociedade brasileira, entre outras
queses.
Em uma de nossas idas à Tekoá Koenju durante o mês de agosto de 2005, nossa equipe
deparou-se com o problema envolvendo Paulina Paredes (Jachuká), a filha de sete anos de
Osvaldo Paredes (Karaí Miri): a menina havia sido levada às pressas ao Hospital de Caridade
de Ijuí, devido ao contínuo sangramento, por iniciativa dos enfermeiros juruá que comem a
equipe de saúde que atua naquela aldeia. Esse procedimento foi realizado rapidamente, sem
119
dar chance para que se efetivasse antes a consulta ao Karaí, o que levou Osvaldo e outros
Mb daquela Tekoá a se questionarem se aquele havia sido o procedimento mais adequado.
havia passado algum tempo desde a internação da menina, quando fomos
informados sobre a solicitação expressa, por Osvaldo e outros Mbyá-Guarani da Tekoá
Koenju, para a efetivação da alta do Hospital de Caridade de Ijuí, da paciente Paulina Paredes,
internada na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) Pediátrica deste hospital. Seu estado de
saúde foi considerado grave, diagnosticado inicialmente como leucemia linfática”, quadro
descrito pelos médicos daquele hospital como tendo poucas perspectivas de cura pelo
conhecimento atual da medicina. O pessimismo médico foi o motivo principal que levou o pai
da paciente a pedir sua alta hospitalar, o que não foi atendido pelos médicos responsáveis pelo
caso. Na interpretação dos dicos, a situação crítica de saúde da menina exigia que se
adotassem cuidados especiais, o que inexistiria na aldeia. Por falta de compreensão da
cidadania plena dos índios, a administração do hospital negou o pedido do pai e acionou a
intervenção de “algum órgão que fosse tutor dos índios neste caso”. Esta também foi a
posição assumida pelo Procurador da República locado em Santo Ângelo, na época. Por outro
lado, a solicitação dos Mbyá tinha motivações étnicas e sociais próprias, estando, portanto,
respaldada nos dispositivos constitucionais que resguardam a autodeterminação das
comunidades indígenas em território brasileiro.
É necessário ressaltar que os Mbyá estão num processo de reconhecimento oficial de
suas instituições tradicionais, incluindo o papel terapêutico dos rituais realizados dentro da
casa de reza (Opy) e em cerimônias executadas por um curador-rezador (Karaí) e, como é
característico nos sistemas xamânicos, realizadas em meio à fumaça do tabaco (pety) e com a
presença do fogo (tatá)
49
.
São muitos os casos em que a hospitalização é entendida pelos Mbyá como uma forma
de agressão realizada pelos juruá, através de técnicas invasivas (agulhas, sondas, transfusões
etc.) da biomedicina, que diferem radicalmente de suas técnicas terapêuticas. Do ponto de
vista dos Mb, os sintomas das doenças não estão apenas ligados ao mal-funcionamento de
um corpo entendido como um mero conjunto de órgãos ou um sistema orgânico, porque sobre
ele incidem as forças mágicas e espirituais do mundo, de onde surgem as causas primeiras das
doenças. Em sua cosmologia, a alma-espírito não está separada do corpo físico, não sendo
possível tratar a doença como algo localizado num “órgão” (como o câncer no sangue, por
exemplo). Esta dimensão espiritual da doença não é reconhecida nos tratamentos hospitalares,
49
Este assunto será tratado na seso 3.5 deste capítulo.
120
razão que explica a recorrente solicitação dos Mbyá para que os doentes terminais sejam
tratados na aldeia, onde existem as condões necessárias ao pleno exercício de suas técnicas
terapêuticas consideradas mais adequadas por eles, além de terem a possibilidade do convívio
com suas famílias, no espaço da Tek.
É dentro deste quadro que se explica a solicitação da própria criança para voltar à sua
aldeia, demonstrando-se amedrontada pela longa permanência no ambiente da UTI e
submetida a tantos procedimentos hospitalares agressivos sobre seu corpo. Osvaldo relatou-
nos, indignado, que estavam negando à sua filha “até água e comida” (Paulina estava sendo
nutrida através do uso de sonda, que na compreensão deles não era alimento). A falta de uma
perspectiva de cura pelos próprios dicos agravava o ânimo da menina e de seu pai, fazendo
com que escolhessem a alternativa terapêutica de removê-la para sua comunidade indígena,
i.e., buscando o tratamento dado pelo Karaí, que inevitavelmente deve ocorrer dentro da Opy.
Paulina expressou essa vontade a seu pai, que a transmitiu ao cacique geral Mbyá, José Cirilo,
que estava presente na visita ao hospital no dia 19 de agosto de 2005, acompanhado por nossa
equipe (ou nós é que estávamos o acompanhando?).
A equipe do NIT-UFRGS/INRC (incluindo-me) acabou envolvida porque estava em
visita à comunidade Mbyá da Tek Koenju naquela semana (de 15 a 19 de agosto),
realizando trabalhos de levantamento de campo na Etapa de Identificão do Inventário
Nacional de Referências Culturais (INRC) em São Miguel. Lá chegando, constatamos a
ausência de Osvaldo e soubemos da internação e grave situação de saúde de Paulina.
Quando saíamos da Tekoá Koenju, o então cacique Nicanor Benitez (uvixá Karaí
Tataendy) e outros membros desta comunidade fizeram questão de manifestar em discurso
falado em Português o desejo e o pedido para que Paulina Paredes fosse liberada do hospital
e que fosse trazida à aldeia para se submeter aos seus métodos terapêuticos tradicionais.
Assim, fomos com Jo Cirilo até o município de Ijuí e acompanhamos a conversa
entre este e o pai da criança, que reproduziu o pedido da menina para sair do hospital e ir para
casa. A conversa entre Osvaldo e Jo Cirilo foi permeada pela emoção, pois Osvaldo
demonstrava nitidamente cansaço, preocupação e sofrimento, e ficou muito satisfeito em ter o
apoio de outro Mbyá naquele momento. Osvaldo falava em Guarani com José Cirilo e este
traduzia para nós (parte) do que lhe dizia Osvaldo. À medida em que ouvia as palavras de
Osvaldo, José Cirilo ficava cada vez mais indignado com o caso, atingindo o máximo de
preocupação quando Osvaldo lhe contou que haviam feito transfusão de sangue juruá em
Paulina. José Cirilo virou-se para nós e conseguiu dizer apenas: Não pode... isso é muito
rio para nós!...”.
121
Naquele momento, a pedido dos dois, entramos em contato (telefônico) com o
enfermeiro responsável pela comunidade do Inhacapetum e logo obtivemos o retorno do Setor
de Saúde Indígena da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) sediada em Porto Alegre.
Nossa posão foi a de defender o direito à autodeterminação dos Mb, do pai da criança e
dela própria, ou seja, a “vontade diferenciada” dos Mbyá-Guarani neste caso específico de
hospitalização, independente do que decidissem. Os Mbyá reclamavam o respeito pelos seus
costumes consuetudinários, não sendo, por exemplo, contrários à transfusão de sangue, desde
que o paciente Mbyá receba sangue Mbyá; não sendo contrários ao transplante em princípio,
desde que o transplantado receba óro de outro Mb.
Elaboramos, então, um documento e o enviamos ao enfermeiro da equipe de São
Miguel para ser encaminhado ao Procurador da República de Santo Ângelo, respaldando a
posição dos Mbyá em pedir alta da paciente, trazendo elementos cnico-antropológicos, o
que não foi atendido (o hospital argumentava que Paulina estava em estado grave e não podia
dispensar os cuidados dicos). A situação foi apaziguada pela relativa melhora no quadro
clínico da menina (ela pôde sair da UTI), somado ao fato de que os Mb receberam a
informação de que o diagnóstico drástico inicial de Paulina poderia estar errado e de que ela
precisava ser encaminhada a Porto Alegre para avaliação médica mais detalhada, com
melhores condições técnicas. Tendo superado os sintomas mais críticos (e o precisando
mais de soro intravenoso e de transfusão sangüínea) e agora com alguma esperança, os Mb
aceitaram deslocar Paulina para o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) para
submetê-la aos exames.
Paulina foi deslocada para Porto Alegre com seu pai e ficou internada no HCPA
durante dois meses. Depois de uma grande bateria de testes clínicos, foi descoberto que ela
possui uma doença rara e de origem congênita (seu diagnóstico foi o de “varizes no esôfago”,
causa da crise de hemorragia), que inspira cuidados especiais e cujo tratamento ainda é pouco
conhecido pela medicina. Nesse período, fiz diversas visitas à Paulina no hospital, às vezes
lhe fazendo companhia enquanto seu pai fazia algumas saídas rápidas para mudar de ambiente
e escapar um pouco da cansativa paisagem do hospital. Nas diversas tentativas de diálogo que
procurei estabelecer com os profissionais de saúde que cuidavam de Paulina nunca obtive
reciprocidade e clareza de informações, resultado menos da boa-vontade de cada profissional,
talvez, e, mais, do tipo de atendimento que se faz de forma impessoal, pois cada profissional é
responsável por um número de pacientes e dentro de seu turno de trabalho, desconhecendo os
quadros clínicos dos internados mais aprofundadamente e apenas seguindo mecanicamente as
prescrições médicas na aplicação de medicamento e tipo de dieta para cada pessoa/paciente.
122
Mesmo para mim, que moro em Porto Alegre e que conheço bastante os cenários das
instituições de saúde (por utilizá-las desde o nascimento), foi difícil conviver com aquele
ambiente de acepcia nas poucas horas em que eram permitidas as visita externas; fico
imaginando a dificuldade enfrentada por Paulina e Osvaldo, compartilhando o mesmo quarto
com outros pacientes e seus familiares ao longo de meses, tendo que se comunicar
sumariamente através de algumas palavras em Português e sem conseguir entender bem o
conteúdo do que os atendentes e os médicos pouco lhes diziam. Nunca, por exemplo, Osvaldo
soube reproduzir qualquer informação que porventura lhe tivesse sido repassada pelos
profissionais de saúde sobre o quadro clínico de Paulina. Exemplo claro da deficiência
(inexistência?) de diálogo, talvez porque médicos e enfermeiros não se dispusessem a dizer
qualquer coisa para um “índio” considerado incapaz de compreender pensamento tão
elaborado
50
.
Este caso mostra um cenário singular de junção entre, de um lado, os parâmetros mais
avançados da biomedicina, organizada enquanto estrutura hospitalar e, de outro, o “público
diferenciado” Mbyá. É possível interpretar as diversas reações dos atores em contato,
entendendo silêncios e performances como indicativos das incompreensões inevitáveis nessa
junção de horizontes culturais tão diversos. O atendimento de saúde prestado à Paulina no
HCPA pode ser comparado aos padrões de atendimento nos países desenvolvidos, ainda mais
porque a raridade de sua patologia a transformou em oportunidade de pesquisa científica por
parte dos especialistas e estudantes daquela instituição. Mesmo com todo esse esforço
científico, o sistema biomédico está organizado segundo os valores do indivíduo diluído na
impessoalidade das relações “profissionais”. Os técnicos envolvidos no atendimento
hospitalar acabam por transmitir, às relações sociais entre si e com os pacientes, a mesma
acepcia que praticam no combate aos fatores patogênicos.
Do ponto de vista dos Mbyá, a internação, os procedimentos clínicos invasivos e o
convívio no cenário hospitalar foram experimentados como situações de conflito, mas ao
mesmo tempo, de conformação. Conflito criado pela forma impositiva como o sistema de
saúde apartou Paulina do meio de sua família e a manteve “refém” dentro de um hospital (e
suas técnicas). Sentimento de conformação, misturado com o de resignação, por
50
A falta de preocupação dos atendentes e médicos para travar diálogo com Osvaldo resulta, parcialmente, do
fato de que ele chegou muitas vezes alcoolizado para ficar com Paulina no hospital, o que indispôs os
profissionais de saúde e lhes deu argumento para se manterem impessoais. Entretanto, a observação etnográfica
deste caso reforça mais a hipótese de que Osvaldo abusou da bebida como meio para sobreviver durantes os dias
em que se viu obrigado a enfrentar a impessoalidade típica da paisagem urbana de Porto Alegre e o convívio
recluso no cenário hospitalar, além da distância e saudade dos familiares que ficaram em São Miguel e da
preocupação com o estado de saúde da filha.
123
reconhecerem que o tratamento dico surtiu efeito ao restabelecimento da saúde de Paulina,
sem que ela ficasse psicologicamente afetada por toda sua experiência de internação. Este
caso mostra, assim, que os Mbyá dão crédito aos efeitos positivos do sistema de saúde no
tratamento de doenças que os atingem
51
, acreditando que os mal-entendidos podem ser
desfeitos aos poucos, de maneira a diminuir as incompreensões sobre seu sistema integrado de
vida e conquistar a sensibilidade dos juruá para adequarem a prestação de serviços básicos
respeitando seus modos culturais.
3.4 A trajetória do cacique Jo Cirilo e a proposta dos guardiões da tradição
A aceitação de tratamento hospitalar para Paulina demonstra uma relativa confiança
conquistada pelo “sistema de saúde” junto aos Mb. A resistência inicial ao tratamento juruá
existiu porque foi desencadeada pela própria criança e seu estado grave, que pediu ao pai para
sair do hospital (em Ijuí), o que foi comunicado ao cacique da comunidade em que ela residia,
que pediu a intervenção da equipe do NIT e do cacique geral José Cirilo, solicitando para que
fizéssemos repercutir junto aos órgãos oficiais os suplícios da menina e se obtivesse sua alta. Foi
interessante constatar empiricamente aquilo que a literatura etnográfica reconhece como
característica marcante da “pedagogia” e da “educação” das comunidades Guarani, que é o
grande respeito dedicado às crianças pelos adultos. Um fato pontual numa família acabou
desencadeando a mobilização dos adultos em torno ao sofrimento da criança, fazendo-o
repercutir enquanto estratégia de mobilização coletiva em situação interétnica.
Houve a intervenção de José Cirilo no convencimento de Osvaldo e de sua família para
se conformarem com a internação prolongada da menina. Este fato ilustra a criação de um novo
patamar de negociação criado entre os representantes Mbyá e as instituições oficiais. José Cirilo
tem atuado neste cenário de maneira cada vez mais incisiva, aparecendo como uma das
lideraas que se destaca nesse papel de mediação com os responsáveis pelos serviços básicos
que se pretendem diferenciados”. A “saúde” tornou-se uma marca apropriada no discurso desta
lideraa, sempre relacionada à dimensão cosmológica mais ampla, lançando as questões da
biomedicina associadas aos problemas enfrentados em outros níveis tão básicos quanto este,
51
Neste caso específico, a confiança dos Mbyá também foi reforçada pelo apoio que a equipe do NIT deu para
Osvaldo e Paulina durante o período da internação, incluindo visitas minhas e as feitas por Maria Lúcia Nidballa,
Carlos Eduardo de Moraes e José Otávio Catafesto. Maria Lúcia também disponibilizou sua residência a
Osvaldo, para eventuais descansos, visitas e refeições.
124
como são a falta de terras, de recursos naturais e de muitos dos demais elementos ecológicos
necessários à reprodução do Mbyá re.
O registro de um caso de doença ilustrou acima os limites instituídos pelos representantes
da biomedicina no trato com o holismo das crianças e adultos Mbyá. Um caso, como outros
tantos, a produzir o cruzamento de múltiplas histórias paralelas, de atores profissionais nos
corredores e dependências hospitalares, nas ruas e lancherias das cidades; também de pacientes,
familiares e lideranças Mbyá circulando quase “presas a esses mesmos cenários, convivendo
com as normas de conduta características de nossa configuração individualista e sob olhares e
julgamentos a partir dessas normas.
Diversas trajetórias pessoais de indígenas e não-indígenas que se interligam, cada uma
rica em elementos que, uma vez analisados pela perspectiva etnográfica, podem ilustrar ainda
melhor os aspectos sociais implicados nos cenários de que participam os Mb e pelos quais eles
vão (re)construindo sua auto-imagem. Algumas dessas trajetórias são mais paradigmáticas e a
referência a uma delas em particular, através desta narrativa etnográfica, pode agregar mais
elementos, enriquecendo a interpretação sobre os fundamentos” da alteridade Mbyá e para
entender as razões que motivam suas atuações em cada um dos cenários de que participam.
Numa escolha por razões etnológicas e por circunstâncias de proximidade
52
, o caso da trajetória
de vida de JoCirilo se presta para tal propósito, evidenciando outros aspectos implicados nas
motivações étnicas dos Mbyá-Guarani; motivações na hisria de vida de uma liderança jovem
Mb, que se apresenta como porta-voz da tradição e conta com aprovação de muitos velhos,
adultos, mulheres e crianças Mbyá. Uma liderança que é respeitada entre todos os juruá que
atuam nas instituições que prestam serviços aos Mbyá neste estado e fora dele
53
.
José Cirilo nasceu na aldeia de Salto Tavaí, em Porto Leone (Província de Misiones,
Argentina), em 12 de abril de 1974, onde viveu até os oito anos. Segundo conta ele próprio,
durante toda sua infância viveu exclusivamente na aldeia e na mata, seguindo o caminho e
orientação dos mais velhos e frequentando a casa de rezas (Opy). Recorda que não costumava ir
nos bailes dos brancos, prática de muitos Mbyá de diversas aldeias.
Depois, José Cirilo foi morar na aldeia Tekoá Txapy, onde tentou fazer sua escolarização.
Foi matriculado e frequentou uma escola blica para crianças juruá durante um mês, desistindo
52
Além do fato de José Cirilo ter o cargo (questionado por outros Mbyá) de cacique geral no Rio Grande do Sul,
algo que por si justifica a utilização da narrativa de sua trajetória como objeto de atenção etnográfica, tive
(tenho) oportunidade de compartilhar com ele diversas circunstâncias de campo, desde quando ele participou da
etapa de Identificação do INRC em São Miguel, no Salto do Jacuí, em Porto Alegre e na Granja Vargas.
53
Seu nome foi recentemente aprovado pelo IPHAN para concorrer ao título de Honra ao Mérito Cultural na
edição 2007, homenagem prestada pelo Governo Federal aos nomes que se destacam por suas atuações
reconhecidas pelo Ministério da Cultura. O ex-cacique da Tekoá Koenju, Floriano Romeu (Verá Xondaro),
recebeu esta mesma homenagem, pelo Coral Jerojy.
125
por causa do preconceito que as criaas Guarani sofriam, o que experenciou pessoalmente.
Desde essa época, assumiu para si o compromisso de buscar outras formas de relação com os
juruá, seguindo as orientações dos deuses que os Mbyá recebem através dos Karaí e Kuña-
Karaí, e o caminho da sensibilização dos juruá, “o caminho do coração”.
Tendo optado por se afastar da educação formal argentina desde sua infância, José Cirilo
assumiu o propósito de “estudar” o conhecimento do sistema de vida tradicional Mb e lutar
pelo reconhecimento e respeito do Mbyá re por parte dos juruá. Aos quatorze anos, com esses
posicionamentos, José Cirilo tornou-se cacique da Tekoá Sapucaí (na Municipalidad de Hipólito
Herigógine), onde viviam aproximadamente dezoito famílias na época.
Uma personagem importante em sua trajetória foi o professor Mbyá-Guarani Lourenço
Ramos. Jo Cirilo diz que seu empenho na defesa do Mbyá re foi muito estimulado por
Lourenço no tempo em que viveu na aldeia Tekoá Marangatu. Esse professor Mbyá tem grande
importância na história dos Mbyá em Misiones. José Cirilo tornou-se segurança (“cabo”) nessa
aldeia, primeira posição que o transformou em xondaro (guardião do sistema tradicional) desde
esta época. Com Lourenço, aprendeu que os próprios Mbyá podem deter o controle da relação
com os membros das instituições o-indígenas, pois esse professor Guarani defendia sua
posição enquanto der ao mesmo tempo potico e religioso, professor, além de se reconhecer e
valorizar como antropólogo Mb.
Desde criança, quando vivia nas Tekoá da Argentina, Jo Cirilo acompanhou a
realização de projetos executados dentro das comunidade Mbyá, feitos principalmente por
iniciativa do governo de Misiones, de padres calicos e de outras instituões não-
governamentais. Desde muito cedo, aprendeu a estabelecer diálogo e fazer negociações com os
representantes não-indígenas, característica que sustentou a indicação de seu nome,
posteriormente, como cacique geral no Rio Grande do Sul, na III Reunião dos Karaí, caciques e
representantes Mbyá-Guarani no Rio Grande do Sul, em 2003. Dentre os projetos que
acompanhou na Argentina, estão projetos para construção de habitações, cursos de formação dos
agentes indígenas de saúde, implantação de escolas bilíngües etc.
Casou-se cedo, aos quinze anos, e logo teve seu primeiro filho. Assim ele conta:
Quando tinha quinze anos casei. Casei novo e tive o primeiro filho... Eu o
adorava, brincávamos juntos na Aldeia. Naquela época eu não preocupava-
me com nada, apenas vivia... Quando nasceu meu filho eu concentrei-me
mais... Comecei a pensar em como se tem que viver; o que é a terra, o que é
o mundo. Naquela época sempre tinha Opy, meu irmão sempre sabia o que
iríamos passar no futuro, o que iríamos encontrar e ver. Meu irmão mais a
minha mãe me davam conselho e educação, ensinando-me como temos que
viver. Quando vivia na Argentina, não saía para fora da aldeia, para ir a
126
bailes (...). E aí meu filho, que eu adorava e levantava cedo para brincar com
ele, tinha saúde. o sei o que aconteceu, meu filho faleceu... Sofri muito,
fiquei doente, todo o dia chorava... Saía da comunidade e ia para o mato
para chorar, para lembrar. Andei um s chorando e lembrando...
Depois de um mês, saí para o mato novamente, foi aí que ouvi um canto e eu
tinha esse canto, cantando no mato... Esse canto era deus enviou a mim para
acalmar a dor de ter perdido um filho. Esse canto enviado para mim é secreto
poraí mara’eÿ – canto sagrado!
Todos os parentes ficaram lembrando de meu filho, de como ele brincava no
pátio da aldeia. Todos ficaram mal: a vovó, o tio, a tia... Depois que ele
morreu, todos nós ficamos 15 dias sem comer... Foi por isso nós viemos para
cá, para o Brasil! (...) Então viemos para cá... Deus mostrou o caminho para
que nós ficássemos perto de Pará Guaçu. Primeiro passamos por Santa Rosa
e ali ficamos no trevo. Todo mundo começou a aparecer; apareceu o branco.
Então chegou a RBS, eu não sabia falar português e eles queriam fazer
entrevista perguntando-nos porque viemos, porque estávamos ali. Eu
respondi em espanhol. Ali também conheci o Dr. Marcelo Beckhausen,
Procurador da República.
Dali nós fomos à Varzinha, morarmos lá junto ao irmão de minha mãe.
Moramos embaixo de lona durante oito meses: eu, minha esposa e minha
mãe. Durante o primeiro mês que ali estávamos, fiquei quieto. Aí chegou o
momento novamente de lembrar de meu filho... Então cantei o canto que
Deus deixou para mim e recebi força, mais força... Ali eu vi o que eu teria
que fazer. Dentro da mata fiz oração para pedir ajuda de Deus! Eu falei
assim:
- Meu Pai, porque estou sofrendo?
Repeti três vezes estas palavras e então escutei as palavras de Deus:
- Meu filho, tu não estás sofrendo, estou te ensinando para que aprenda mais!
Agora tu vais conhecer o que são as pessoas!
O que significa “conhecer as pessoas”? Significa que eu iria conhecer os
brancos, ficar ligado a eles. Também significa que, daí em diante eu devo ir
na frente do meu povo: os Mbyá-Guarani.
(...)
Quando chegamos a Porto Alegre, conheci Ivori Garlet e também Inácio
Kunkel. Conversei com Ivori sobre a situação da vida do índio Guarani aqui
no Estado do rio Grande do Sul. Vi que meus parentes estavam morando
mal, que não tinha terra garantida, nem saúde e nem alimentação. Porque
nós, índios Guarani temos o direito de reclamar, falei para Ivori.
ele me levou na universidade (PUC) para apresentar-me a Cristina
54
, que
depois de me olhar, ligou o computador para saber se eu estava falando a
verdade... Perguntou-me porque vim para cá. Expliquei que o Guarani não
tem fronteira! Não adianta para quem trabalha com índio querer organizá-lo.
Importante é nós nos organizarmos e fazermos reunião. Não precisa o branco
orientar o índio Guarani. Cristina falou para mim:
- Tu tem bom coração, é tudo verdade, tu vais conseguir o que tu quiser.
Virá todo tipo de atrapalhação, mas vai passar e igual tu irás conseguir!
54
José Cirilo refere-se à Professora de História da PUC-RS, Dra. Maria Cristina dos Santos.
127
Depois Ivori convidou-me para ir a São Leopoldo, eu e o Karaí José. eu
conheci Mozart e Marinês do COMIM, perguntaram-me o que eu queria,
então eu disse:
- s queremos fazer uma reunião para que cada comunidade apresente o
seu problema e a sua proposta.
(...)
Falei com outras lideranças Mbyá-Guarani, explicando a eles o que estava
vendo, qual era o problema, dando minha opinião:
-Tem muita entidade que trabalha com índio, eles não vão fazer o que
estamos querendo. Nós temos que nos organizar, criar uma Organização
Mbyá-Guarani com todos juntos... Nós próprios temos que nos organizar!
Então passei a coordenação para outra liderança, eu mesmo tinha aberto
um caminho para o Guarani. Eles começaram a participar em várias reunes
e eu parei.
Então fiquei doente, três meses na cama... Outros Guarani fizeram mal para
mim, não gostavam de mim porque eu tinha muita experiência. Mandaram
um palito que instalou-se em minha coluna (lombar). Tinham o objetivo de
me matar, mas meu Deus está sempre me cuidando. Uma Kuña-Karaí me
salvou e falou-me:
- Agora tu vais viver sempre com saúde!
Até hoje estou bem!
Voltei a morar em Passo da Estância, eu mesmo fiz Opy para poder rezar.
Ali comecei a ver o trabalho de algumas lideranças percebendo que o
estava andando bem... Então voltei a trabalhar na frente do povo.
Depois criamos a Associação das Comunidades Indígenas Guarani (ACIG),
e a partir d passamos a conhecer mais pessoas do povo branco e então
começou a melhorar. Fui abrindo o caminho, tirando o que não presta e
limpando o caminho para o futuro de nossas crianças! Fiquei contente,
agradecendo a Meu Pai Verdadeiro que sempre está me cuidando!
Não tenho vergonha de dizer, falo a verdade, aqueles que acreditam o
passar bem!
(...)
Hoje tenho cinco filhos, o menor foi mandado para me acompanhar. Seu
espírito veio para me proteger e ele se chama Karaí Verá o que possui o
poder brilhante dos raios em suas mãos. Ele nasceu para fazer com que eu
esquecesse a tristeza que já passei na vida, é ele que me dá força para que eu
possa trabalhar junto do branco.
Agora quando o branco me olha, percebe que não sou qualquer pessoa...
Alguns brancos começam a respeitar o trabalho e a experiência do Guarani.
Eu mesmo quando olho para as pessoas, sei se ela tem bom coração ou o
(FERREIRA & MORINICO, 2001
55
).
Como demonstra esse trecho de uma riquíssima narrativa sobre sua hisria de vida,
José Cirilo aprendeu a falar o Português, ao mesmo tempo em que desenvolveu habilidade em
55
Documento não-publicado, obtido diretamente com José Cirilo. Trata-se de um relato de sua trajeria
registrado com o apoio da antropóloga Luciane Ferreira.
128
reconhecer as oportunidades que se criavam para sensibilizar os setores da sociedade não-
indígena sobre os direitos originários dos Mb. Passou a dar entrevistas a jornais impressos,
canais de televisão e rádio. Descobriu a existência do Ministério Público e das universidades,
tornando-os, gradualmente, parceiros no diálogo que ele e outros Mb passaram a realizar
com as demais instituões brasileiras, a fim de implantar atendimento diferenciado nas áreas
de sustentabilidade, saúde, habitação e educação.
No Brasil, ele e sua família residiram em diversos acampamentos e aldeias, a que
viessem a ocupar um espaço na Lomba do Pinheiro, onde se criou a Tekoá Anhetenguá
(Aldeia Verdadeira). Embora vivendo na dificuldade dos acampamentos e aldeias com poucos
recursos naturais e condições para reproduzir o Mbyá rekó, seu objetivo sempre foi (e ainda é)
manter o sistema tradicional de sua cultura, sempre procurando o contato com o ka’aguy
(mato), num cenário em que os fundamentos do Mbre sejam repassados aos seus filhos e
às outras crianças, considerando sempre e respeitando a importância e o ensinamento dos
mais velhos.
Como ele próprio refere, aos poucos se transformou em interlocutor reconhecido por
diversos agentes institucionais, sendo procurado constantemente para fazer a mediação entre
profissionais e as comunidades Mb atingidas por projetos e interferências externos. Na área
da saúde, tornou-se mediador fundamental de projetos desenvolvidos pela Fundação Nacional
de Saúde (FUNASA) e pela Secretaria Estadual, sendo chamado para representar os Mbyá do
Estado em diversos eventos estaduais e nacionais que abordaram a saúde indígena (Fóruns
Nacionais e Estaduais), além de outros seminários promovidos por organizações não-
governamentais (por exemplo, os do CIMI e os do COMIN). Essa atuação se verifica
atualmente, como demonstra, por exemplo, sua participação no mês de maio deste ano,
enquanto representante Mbyá, no curso de “Formação Universitária Indígena de Saúde”,
realizado em Porto Seguro (Bahia).
Em todos esses eventos as palavras (ayvu) de José Cirilo impactam as pessoas,
sensibilizando o público sobre a grande distância que existe entre os critérios burocráticos
brasileiros e a cosmologia Mbyá-Guarani e como isso se reflete na vida dos Mb. Jo Cirilo
relata que, neste último evento que participou, sua fala sensibilizou aos representantes das
outras etnias indígenas, ao reforçar a importância da reprodução do modo de vida tradicional e
refletir sobre as conseqüências resultantes do afastamento da vida na aldeia em busca da
formação universitária, por exemplo.
Seu empenho na área da saúde” é bem ilustrado pelo período em que esteve
coordenando ou participando da execução do projeto de Diagnóstico e Redução de Danos
129
pelo Uso Abusivo de Bebidas Alcoólicas entre as comunidades Mbyá-Guarani no RS (2000-
2005)
56
. Sua postura transformou esse projeto específico em oportunidade de aprendizado
tuo na negociação com o Estado Brasileiro, fazendo reconhecer-se cada vez mais os
critérios de autodeterminação das comunidades Mbyá e procurando explicitar aos outros
Mb o funcionamento do sistema juruá de saúde. Enquanto mediador Mbyá (“representante”
frente aos não-índios), passou a lutar pela flexibilização da postura administrativa oficial,
fundada no atendimento curativo (de emergência), especializado (biomédico) e indiferenciado
(padronizado), em favor do incentivo aos métodos tradicionais de profilaxia e de cura,
envolvendo seus especialistas, já que mais adequados aos propósitos de uma medicina
preventiva e não apenas curativa.
Assim, lideranças espirituais e poticas Mbyá, junto à figura de Jo Cirilo,
conseguiram convencer os administradores a destinar recursos da “saúde indígena” para seu
uso no reforço do Mbyá rekó, projetando a discussão da “saúde” sobre o pano de fundo da
tradição e de valorização do conhecimento dos mais velhos, ligando-a também ao tema da
recuperação de áreas de terra e mata no Rio Grande do Sul. Foram estimuladas viagens de
visitas às aldeias e organizadas sucessivas reuniões as Reuniões dos Karaí, caciques e
lideraas Mbyá-Guarani no Rio Grande do Sul, apresentadas a seguir congregando
lideraas espirituais e poticas, velhos, mulheres, homens, jovens e crianças em torno da
valorização do seu sistema tradicional de vida.
José Cirilo está diretamente envolvido no processo que culminou na realização das
sucessivas reuniões das lideranças espirituais Mbyá, oportunidades em que os velhos e as
velhas (tujá kuery) foram concentrados e respeitados enquanto detentores do conhecimento
tradicional sobre cerimônias, mitologias e sabedores do caminho verdadeiro de contato com
os espíritos dos deuses, valorizando seu papel como videntes, curadores e emissários das
palavras sagradas para os demais membros das comunidades Mbyá. Nesse processo, os Mb
passaram a exigir o apoio crescente dos óros governamentais para a continuidade desse
processo de organização (sobre essas reuniões, ver sessão 3.5 deste capítulo).
Desde então, José Cirilo tem se colocado como ferrenho defensor das posições tiradas
nessas reuniões, para sustentar a estrutura tradicional de organização dos Mbyá enraizada no
papel central dos Karaí e Kunhã-Karaí e na atuação contínua deles nas casas de rezas (Opy),
designando guardiões e emissários (xondaro) do Mb rekó para todas as comunidades e
promovendo a segurança espiritual de todos Mbyá.
56
Este projeto será retomado na sessão 3.5 deste capítulo.
130
Nestas reuniões, José Cirilo teve importante participação, sempre traduzindo e
apontando para a importância da fala dos mais velhos, reproduzindo um discurso enfático ao
fazer exigências pelo direito ao reconhecimento oficial dos conhecimentos tradicionais,
cobrando estímulo oficial às terapias próprias dos Guarani, criticando a forma burocrática da
administração pública, que divide toda a realidade em “caixinhas” independentes, o que traz
como prejuízo segundo ele diz a falta de complementação entre as ações das diversas
instituições que atuam nas comunidades Mb, que muitas vezes entram em conflito e
competição em detrimento à satisfação das necessidades para que são destinadas.
O reconhecimento de seu trabalho pode ser demonstrado pelo fato de ele ter sido
ritualmente consagrado nessas reuniões, pelas lideranças espirituais, como Mburuvixá
Tenondé (cacique geral Mbyá-Guarani) no Estado do Rio Grande do Sul. Esse papel é
exercido por ele até hoje, demonstrando o reconhecimento de sua importância na valorização
do Mbyá rekó, tanto pelos Mb (o que não quer dizer que seja apoiado por todos eles) quanto
pelos representantes das instituições não-indígenas.
A partir de seu aprendizado sobre o “sistema do branco” e sobre as formas de
organização administrativa no Brasil, Jo Cirilo assumiu a postura de procurar superar as
divergências entre os agentes e instituições, estabelecendo a “costura” na aliança entre os
diversos parceiros que se apresentavam, impondo a todos eles a adequação aos padrões
culturais Mbyá e a exigência de projetos e ações que se efetivassem inter-institucionalmente.
As conclusões formalizadas nas sucessivas reuniões das lideranças espirituais e
políticas Mbyá foram repassadas a outras instituições que atuam entre eles. A vitória mais
marcante neste aspecto é a construção e manutenção de casas de rezas (Opy) nas
comunidades, a partir de recursos disponibilizados pela Secretaria da Agricultura e pela
EMATER-RS para projetos de sustentabilidade, através do apoio fundamental da antropóloga
da EMATER, Mariana Soares. José Cirilo foi mediador no convencimento dos técnicos e
administradores sobre a importância deste “investimento”, porque todo o sucesso da vida
Mb é atribuído ao empenho da concentração espiritual dos Karaí e dos membros da sua
comunidade; ao ponto das sementes das plantas tradicionais precisarem passar por cerimônias
especiais dentro da casa de rezas antes de serem plantadas (TEMPASS, 2005). José Cirilo
coloca-se como alguém que procura traduzir o holismo Mbyá para os termos burocráticos e
científicos, no intuito de adequar o máximo possível as intervenções direcionadas aos Mbyá.
Uma das lutas de José Cirilo tem sido denunciar a atuação inadequada de alguns juruá
que se tornaram aliados a algumas lideranças Mbyá em diferentes comunidades, o que tem
provocado sérias desavenças e conflitos entre os Mbyá. Um exemplo é a atuação de José
131
Cirilo no controle da intervenção de instituições e dessas alianças dentro da Reserva do
Inhacapetum (São Miguel das Missões) e sua cada vez mais enfática crítica ao Conselho
Indigenista Missionário (CIMI), óro da Igreja Católica que tem usado os Mb e sua
imagem em torno da luta popular pela terra, através da figura de Sepé Tiaraju.
Recentemente, Jo Cirilo tornou-se parceiro fundamental na discussão sobre o
processo de registro do Patrimônio Imaterial pelo Governo Federal, tendo central papel no
embate entre a gestão pública do Patrimônio das Missões Jesuítico-Guarani (por exemplo, em
São Miguel) e o direito dos Mb no acesso aos bens protegidos, através de sua participação
na execução do INRC. Teve atuação marcante em dezembro de 2004, quando ele e os
representantes Mb em São Miguel obtiveram o direito reconhecido pelo IPHAN para
construção de uma casa de passagem dentro da área protegida do Parque Arqueológico, além
de preservarem o direito de continuarem a venda do artesanato junto ao Museu das Missões,
ou seja, dentro do Sítio.
Através de um sonho em que lhe apareceu Sepé Tiaraju, JoCirilo tomou a decisão
de se envolver amplamente na aplicação do INRC junto aos Mb em São Miguel,
acompanhando nossa equipe. A ligação de José Cirilo com a tetica das Missões é muito
antiga, pois ele viveu na Tekoá existente junto ao Parque Arqueológico de San Ignácio Mini
(outro monumento reconhecido pela UNESCO, na Argentina) uma parte de sua juventude, e
onde até hoje vive seu pai.
Organizou um grupo de canto e dança composto por jovens e crianças da comunidade
da Tekoá Anhetenguá (Lomba do Pinheiro/Porto Alegre), destinado a apresentações ao
público não-indígena, como manifestação cultural e étnica e como forma de sensibilização
pelos seus direitos diferenciados. Essa atividade rendeu-lhe a publicação de um CD de
sicas tradicionais, com circulação ampla no público não-indígena. Ele é atualmente, além
de cacique de sua comunidade e de cacique geral no Estado, também Presidente da
Associação Mbyá-Guarani (AMG) e conselheiro do CEPI (onde também foi coordenador
Mb em anos passados).
José Cirilo define seu papel como um guardião (xondaro) do Mbyá rekó, através do
uso das palavras (ayvu) como instrumento de luta, colocando-se como emissário dos deuses,
tendo orgulho de expressar “palavras vivas e afinadas com a natureza”. Diferencia-se de
grande parte das lideranças indígenas brasileiras, porque não luta pela igualdade e nem
concorda com o discurso recorrente que diz que um dia os índios vão se tornar políticos e
presidentes. Para ele, o objetivo é consolidar o reconhecimento da diferença cultural de seu
povo, onde o existem escola, igreja, partidos poticos e saúde como categorias separadas
132
do resto da vida; e ao mesmo tempo defender a igualdade no atendimento a seus direitos, mas
diferenciados, específicos.
A inclusão da narrativa sobre a trajeria desse representante Mbyá reitera que esta
etnografia é o resultado de uma mistura de experiências nas relações entre alguns Mbyá e eu,
sem que com isso esteja querendo dizer que este texto tem completa autoria plural (seja
porque fui eu, em última instância, que o escrevi e editei; seja porque seria demasiadamente
audacioso “desafiar a profunda identificação ocidental de qualquer organização de texto com
a intenção de um único autor”) (CLIFFORD, 2002:55). Mas, não é mais possível negar que
“(...) o controle nativo sobre o conhecimento adquirido no campo pode ser considerável, e
mesmo determinante. A escrita etnográfica atual está procurando novos meios de representar
adequadamente a autoridade dos informantes(idem, p. 48). Queira ou não se admitir, José
Cirilo principalmente e outros Mbyá negociaram ativa e constantemente, enquanto
interlocutores em processo dialógico na construção de uma visão compartilhada da realidade
(ou uma “antropologia de mão dupla”), que aqui procuro apresentar.
Na medida em que as experiências de vida de José Cirilo o aproximaram da
antropologia (afinal, um dos seus grandes mestres Mb se diz, como ele também,
antropólogo), a trajetória desta pesquisa me fez perceber a fundamental importância de sua
atuação nesse sentido, ao ponto de compreender que sua participação em minha pesquisa
servia ao propósito de construção compartilhada da realidade que procurava analisar. Sendo
assim, e levando em conta as considerações de James Clifford sobre a necessidade de se
reconhecer de fato a co-autoria/participação dos nativos nos textos etnográficos
57
, justifico
sua apresentação formal como co-orientador desta dissertação (papel que ele próprio
assumiu). Essa co-orientação se fez de fato presente e efetiva no processo da pesquisa
etnográfica, além de se fazer presente mesmo depois, no momento da elaboração do texto
(José Cirilo acompanhou e participou de minhas (re)formulações antropológicas sobre a
realidade pesquisada, e se dispôs a ler uma versão preliminar da dissertação, na sua aldeia).
57
Os antropólogos terão cada vez mais de partilhar seus textos, e por vezes, as folhas de rosto dos livros, com
aqueles colaboradores nativos para os quais o termo informante não é mais adequado, se é que um dia foi
(CLIFFORD, 2002:55).
133
3.5 As Reuniões dos Karaí, caciques e representantes Mbyá-Guarani no Rio Grande do
Sul
As Reuniões dos Karaí, caciques e representantes Mbyá-Guarani no Rio Grande do
Sul surgiram como demanda de lideranças poticas e espirituais (os Karaí) de diversas aldeias
Mb, com o objetivo de reuni-los para tratarem do problema do uso abusivo de bebidas
alcoólicas, em 2000. A partir do Diagnóstico Participativo cio-Histórico e Antropológico
sobre a Manifestação do Alcoolismo entre os Povos Indígenas no RS
58
, os Mb apontaram a
reunião de seu povo para ouvirem as palavras dos Karaí e Kuña-Karaí como o caminho mais
adequado para tratar da questão. Desde então, já foram realizadas cinco Reuniões dos Karaí,
mas tratarei mais aprofundadamente da primeira, a partir, fundamentalmente, dos dados do
Relario Etnográfico sobre a reunião, produzido pela antropóloga Luciane Ferreira (2001a).
3.5.1 A I Reunião dos Karaí, caciques e representantes Mbyá-Guarani no Rio Grande do
Sul
A I Reunião Geral dos Karaí, caciques e representantes Mbyá-Guarani no Rio Grande
do Sul sobre o uso abusivo de Bebidas Alcoólicas e Alcoolismo
59
aconteceu em dezembro de
2000, na Tekoá Po/TI Salto Grande do Jacuí. Esta reunião foi realizada através de uma
parceria entre a FUNASA, o NIT/UFRGS e a ACIG. A proposta então era incentivar e
fortalecer a forma de organização tradicional Mb, com seus processos rituais próprios, que
m como centro a Opy, a figura do Karaí e as ñe’e porã (belas palavras); reconhecer o direito
aos Mb à autodeterminação para viverem e resolverem seus problemas segundo seus
padrões tradicionais, mas contando com o apoio dos jur que representam as instituições
responsáveis pela questão indígena; valorizar o conhecimento tradicional Mbyá na
manutenção da saúde, a partir de suas próprias concepções de saúde, doença, corporalidade,
processos terapêuticos, com a participação de seus especialistas de cura (os Karaí); e, por fim,
sensibilizar os profissionais de saúde para as dimensões simbólicas relacionadas ao uso
abusivo de bebidas entre os Mbyá-Guarani, assim como a outras doenças. Um ponto mais
geral da reunião, mas não menos importante, era o objetivo de “capacitar os não-indígenas
participantes da Reunião para o diálogo intercultural necessário às ações de preservação e
58
Este foi um projeto desenvolvido em parceria pelo NIT/UFRGS, a FUNASA e a Associação das Comunidades
Indígenas Guarani (ACIG-RS) em 2000.
59
Não estive presente na I Reunião, de forma que as informações a respeito foram obtidas com José Cirilo e no
Relatório Etnográfico sobre a reunião.
134
intervenção da biomedicina que visam a melhoria da saúde Mbyá-Guarani (FERREIRA,
2001a:05). É mais precisamente por causa deste objetivo geral que trago como referência a I
Reunião, na medida em que ela demonstra a intenção e mobilização Mb no intuito de
adequar à sua realidade e especificidade as poticas públicas destinadas a eles, direcionando-
as sempre ao Mbyá re.
O Relario da I Reunião ressalta um de seus principais objetivos: a necessidade de
fazer com que os juruá compreendessem a centralidade da figura do Karaí na manutenção do
Mb rekó, e consequentemente da saúde Mb, percebendo-o como ator central nos
processos terapêuticos. Os Mbyá têm hoje a perspectiva de que a existência dos Karaí está
ameaçada, posto que está cada vez mais difícil viver no Mbyá rekó e tornar-se Karaí. E
quanto menos Karaí existirem, mais difícil andar como Mb eteí (Mb verdadeiro). Uma
coisa leva à outra. Como pontua Meliá (1988:59), o Karaí é como “un catalisador de
mediaciones espirituales em el campo de la salud, de la agicultura y del gobierno”, sendo
indispensável para a organização social e expressão cultural do grupo. O Karaí é o
conhecedor e o guardião das belas palavras
60
, que expressam aos outros Mbyá através dos
cantos (poraí), das rezas e dos conselhos.
Segundo diversos Mb, existem três especialidades de Karaí que se complementam,
às vezes sendo encontradas mais de uma especialidade na mesma pessoa, sendo todas
fundamentais para a manutenção ou recuperação da saúde Mbyá. o elas: o opyguá
(rezador/dono da casa de reza); o pita’i vae (curador de doenças/o que tira feitiço) e o
nhemongaraí vae (batizador). Uma vez que a concepção êmica de saúde é ampla, como
referido anteriormente, o papel do Karaí estende-se ao âmbito da vida social como um todo,
na medida em que sua atuação influencia as atividades econômicas, de subsistência, poticas
etc. O Nhemongaraí é uma das mais importantes atribuições do Karaí, ou seja, receber por
revelação o nome da pessoa Mb (ou, de que paraíso divino provém o espírito que está
encarnando na Terra).
A capacidade espiritual dos Karaí lhes permite conhecer os caminhos a serem
seguidos, e suas palavras traduzem a forma certa de andar no mundo com alegria e saúde. Os
ensinamentos e conselhos dos Karaí, através das ñe’e porã, por si só constituem-se em
processo terapêutico. Se a pessoa seguir o caminho de Nhanderu, ela se previne de doenças,
se fortalece, na medida em que não deixa seu espírito divino se afastar. Assim, Ferreira
60
Segundo Hélène Clastres (978:86-87), as belas palavras são as palavras sagradas e verdadeiras (...); são a
linguagem comum a homens e deuses; palavras que o profeta (Karaí) diz aos deuses ou, o que no mesmo, que
os deuses dirigem a quem sabe ouvi-los”.
135
argumenta que as mensagens espirituais manifestas nos sonhos, os pensamentos inspirados e
as vies enviadas por Nhanderu aos Kar constituem o caráter preventivo do sistema
dico, pois garantem uma vida plena e previnem as doenças anunciadas. É deste aspecto que
provém muito do poder dos Karaí, pois ele avisa as pessoas para se cuidarem, para não
fazerem algo ou não irem a algum lugar. Antes de realizarem alguma mudança ou tomarem
alguma decisão importante, os Mbyá costumam consultar o Karaí. É por isso, também, que as
aldeias e acampamentos em que não Opy e Karaí, os Mbyá consideram sem proteção e
mais suscetíveis a doenças, ao uso abusivo de bebida alclica, a acidentes. Não havendo Opy
na comunidade, as pessoas o podem viver de acordo com o Mbrekó, afastam-se de seu
espírito divino e ficam vulneráveis aos males do mundo.
Então, para os Mbyá, a boa saúde depende também dos rituais sagrados orientados
pelos Karaí na Opy, quando garantem a manutenção da relação da pessoa Mbyá com o seu
espírito de origem divina. Segundo Ferreira (2001a), os pilares do sistema médico e cultural
dos Mbyá são a Yvy (terra), a Opy e o Karaí, sendo que a existência de um depende da
existência dos outros, pois são interdependentes e complementares.
Na I Reunião dos Karaí, participaram 56 Mbyá e 17 jur. Entre os jur estavam os
representantes de algumas instituições: grupo técnico da FUNASA, profissionais das equipes
multidisciplinares de saúde, antropólogos do NIT, representantes da Secretaria Estadual de
Saúde, da Secretaria Estadual da Agricultura e representantes da Prefeitura Municipal de Salto
do Jacuí. o fato de haver mais Mb do que juruá participando da Reunião, já demonstra
seu caráter diferenciado, se comparada às reuniões descritas anteriormente, a iniciar por ter
como cenário uma aldeia e não salas de prédios administrativos dos centros urbanos. Neste
caso, foram os representantes das instituições que se deslocaram, indo até os Mbyá, muitos
colocando os pés numa aldeia pela primeira vez.
Foram os Mbyá que organizaram e coordenaram a Reunião, sentindo-se, desta forma,
parte do processo de discussão que se instituiu. Sendo assim, a Reunião teve duas etapas: os
primeiros três dias, sob a coordenação de Jo Cirilo Morinico, foram destinados a reunir
apenas os Mbyá, para conversarem entre si sobre o tema proposto e ouvirem os conselhos e as
palavras dos Karaí. Estes dias foram preenchidos pelo uso do petyngua (cachimbo sagrado),
do ka’ay (chimarrão) e do ta (fogo); a segunda etapa durou dois dias e incluía os
representantes juruá convidados. Foi nesse momento que os Mbyá repassaram a estes suas
impressões e conclusões levantadas nos três primeiros dias, solicitando o apoio às suas
decisões e formas de encararem o problema do uso abusivo de bebidas alcoólicas. Primeiro
falavam os representantes Mbyá, depois abriam espaço para os juruá manifestarem-se.
136
Falavam em Guarani durante longo tempo e posteriormente traduziam para o Português
aquilo que gostariam que os juruá escutassem.
Na realidade, a segunda etapa da Reunião não aconteceu na aldeia, mas no Salão
Paroquial do Município de Salto do Jacuí, devido a dificuldades burocráticas (Ferreira 2001a),
contra a vontade dos Karaí. Os Karaí deslocaram-se até lá, no início da reunião, para
receberem os convidados juruá e voltaram para a TekPorã, lhes deram as boas vindas e
comunicaram-lhes que permaneceriam na Aldeia e que se alguém quisesse conversar com eles
teriam que ir alá” (idem, p.15). O trabalho espiritual dos Karaí não cessava nem mesmo à
noite, quando permaneciam na Opy cantando, dançando e rezando para que Nhanderu guiasse
seu povo na resolução de seus males, até aproximadamente duas horas da madrugada. A
estratégia prática de reunião Mbyá interconecta as dimensões ritual, potica e terapêutica,
através da ayvu
61
, como demonstra:
A orientação dada pelos Karaí, foi que tal Reunião acontecesse através das
boas palavras, palavras inspiradas, concentradas no espírito. Por serem
verdadeiras tem o poder de emocionar e tocar o coração das pessoas, logo
possuem um caráter terapêutico e têm o poder de curar (FERREIRA,
2001a:18).
naquele momento os Mb começaram a discutir a possibilidade de elegerem um
cacique geral Mbyá-Guarani no Rio Grande do Sul (posição que viria a ser ocupada por Jo
Cirilo a partir da III Reunião dos Kar, em 2003), como forma de organização política
interna Mbyá. Os nomes apontados na época eram apenas de lideranças religiosas (Karaí):
Juancito de Oliveira, aldeia Salto do Jacuí; Mário Acosta (Perumi), aldeia de Varzinha; Alex
Benitez, aldeia Água Grande; Feliciano Duarte, aldeia de Guarita; Avelino, aldeia Campo
Molhado; Tito, aldeia Cantagalo. A eleão acabou não acontecendo, pois os Mb
61
Ayvu designa uma forma de expressão oral muito característica dos Mb, que ocorre enquanto discurso
ritmado, acompanhado de uma performance corporal de quem professa as palavras (caminhando) e que provoca
reações verbais do público (Mb), sentado em volta. A ayvu torna-se manifesta em toda vez que ocorre uma
reunião de representantes Mb, organizada de maneira ritual com uma sessão de abertura, onde cada um que
chega deve, em fila, passar por um círculo formado pelos anfitriões e cumprimentá-los de forma tradicional
proferindo o termo guarani aguyjevete’. Muitas vezes essa abertura é acompanhada pelo som de instrumentos
musicais compassados. Ayvu, enquanto fala e performance, é uma das qualidades mais valorizadas no prestígio
político de um Mbyá, na medida em que ela é a representação secular das nhe’e po (belas palavras ou palavras
divinas), sustentáculo da cosmo-ecologia Mbyá. O efeito positivo da ayvu pode ser medido pela reação da
assistência, emocionando a platéia, que expressa palavras a cada intervalo da fala, constituindo uma espécie de
diálogo simbólico e performático. A ayvu, como as nhe’e po, possui centralidade na cosmologia Mbyá porque
ela remete à noção de alma-palavra, melhor definição êmica da pessoa Mbyá-Guarani” (MORAES; PIRES &
SOUZA, 2006).
137
concluíram que o assunto não havia sido debatido o suficiente ainda, sendo postergado para o
futuro.
Um dos aspectos mais citados pelos Mbyá foi a necessidade de continuidade dessas
formas de reunião e de que as instituições públicas apóiem (política e financeiramente) as
demandas específicas e decisões tomadas pelos Mbyá. Assim refere o Karaí Juancito e outras
lideraas:
Os antepassados não precisavam recursos para encontrarem-se, mas hoje as
comunidades estão isoladas, estão espacialmente distantes umas das outras.
(...) A gente precisa muito este encontro, há muitos anos eu tenho essa
preocupação e agora estou velho (Palavras do Karaí Juancito Oliveira,
FERREIRA, 2001a:19).
Se a gente faz proposta pro branco e fechamos, que tem muito branco e
índio que o sabe direito ainda, por isso é importante que a gente continue
fazendo reunião geral dos Karaí. uma reunião não vamos resolver, tem
que ter quatro cinco reunião para podermos resolver isso (Palavras do
cacique Avelino Gimenez, idem, p. 20).
Para continuar esse trabalho precisa de recurso, se não tem recurso não
vamos resolver tudo o que a gente precisa. O branco tem que ficar aberto
para o que a gente precisa (Palavras de Santiago Franco, Ibidem, p. 26).
Uma parte nós temos que explicar o que é Kar pro branco saber, porque
hoje em dia s ficamos assim de longe um do outro, não era assim como
antes. Antes nós tamo vivendo no mato, não precisa passagem pra levar o
doente, era chegar no Karaí, na Opy. Só que hoje em dia nós estamos
morando longe de cada um, precisa de passagem, carro, pra levar pro Karaí.
Por isso que é importante isso aí, se a gente precisa de Karaí, a gente precisa
de carro pra chegar até o Karaí. Eno o branco precisa ajudar, não é ele
deixar tudo de s. Não, não é assim (Palavras do cacique José Cirilo
Morinico, Ibidem, p. 30).
Assim concluem os Mb em documento escrito como resultado parcial da I Reunião,
declarando que aquela era a primeira vez que viam os juruá respeitando seu modo de pensar e
viver:
(...) É preciso darmos continuidade a este trabalho. Precisamos que
estas reunes tenham continuação, uma reunião só não vai resolver. As
138
outras reuniões devem ser em outras aldeias Mbyá-Guarani, com o objetivo
de organizar internamente as comunidades (Ibidem, p. 34).
A descrição das informações da I Reunião dos Karaí mais uma vez remete à noção de
alegoria etnográfica, porque sua forma de realização se reproduziu em mais quatro ocasiões
(até hoje foram realizadas cinco Reuniões dos Karaí, em aldeias distintas, as três últimas
tendo sido etnografadas por mim) e porque ela traduz a discussão sobre novos cenários de
negociação que os Mbyá conquistaram na dialogia com as instituições. É alegoria também
sobre os pontos divergentes e convergentes sobre a definição e práticas de saúde”.
Retornamos ao pico da “saúde” enquanto prática do saber biomédico versus as práticas que
traduzem o holismo do Mbyá rekó.
Essa última discuso foi objetivada ao final da I Reunião, quando se tornou
necessário que os Mbyá se posicionassem quanto ao melhor tratamento a ser dado aos c
(bebedores). Algumas posições aparecem expressas nos depoimentos a seguir:
Nós temos que pensar junto, cada um dar sua idéia pra gente pensar junto e escolher o
melhor pra s. (...) A FUNASA tem preocupação porque se vai dar remédio do
branco pra aquele bebedor pode levar ele a morte também, porque ele vai continuar
bebendo. Não é que ela não quer ajudar. Agora a FUNASA também propôs pro Karaí
pensar para diminuir o uso de álcool nas comunidades e agora vocês Karaí têm que
pensar em como fazer pra diminuir. A FUNASA quer que o Karaí trabalhe com esse
problema do álcool, porque o Karaí usa cachimbo e faz fumaça pra curar essa doença.
Por isso que a FUNASA vai ajudar. s temos que achar uma proposta pra dar a
FUNASA que vai chegar hoje ou amanhã. Nós temos que saber se vamos curar com a
nossa medicina tradicional ou vamos usar a medicina do branco. Nós temos que
colocar a proposta para FUNASA e ela tem que colocar pra nós tamm o
pensamento dela (Palavras de Avelino Gimenez, Ibidem).
Nós não estamos falando de medicina nossa. Não temos que pensar só na medicina do
branco. Nós também temos conhecimento de medicina tradicional, como Karaí tem
(...). Através da Opy nós temos como saber o remédio pra aquele que tá bebendo. (...)
O Karaí tem que continuar seguindo, rezando, pra que as crianças sempre continuem
lembrando nosso sistema. (...) As lideranças devem ficar unidas, apoiando uma a outra
e mantendo sua organização interna. Se a gente, com nossos Deuses que está olhando
pra nós, nós temos que achar uma solução pros nossos filhos, nossos parentes,
fortalecendo nossa medicina tradicional, tem ainda mato virgem pra nós poder fazer
remédio.
(...)
Nós temos que caminhar junto, guarani e branco. O médico branco tem que ajudar
junto com o médico Guarani pra poder acompanhar bem o bebedor, só o médico
Guarani o adianta, o médico branco não adianta, tem que trabalhar junto
(Palavras de José Cirilo Morinico, Ibidem, p. 31).
139
Segundo os Mbyá, não os medicamentos (guarani ou do branco”) que curam, mas
também a reza e o conselho do Karaí possuem poder terapêutico. Por isso, um dos
encaminhamentos desta Reunião é que todas as comunidades devem ter Opy, porque
através da reza e do conselho do Karaí, o uso de bebidas alcoólicas pode diminuir
(FERREIRA, 2001a:32).
Em síntese, as manifestações das lideranças Mb apontaram para a utilização de
ambos os sistemas médicos no tratamento do uso abusivo de bebidas alcoólicas,
exemplificando seu posicionamento mais geral sobre o atendimento diferenciado à saúde que
pretendem receber – respeitando a prioridade hierárquica de seu sistema médico,
(...) que a bebida faz mal não só ao corpo, mas também na relação da
pessoa com o seu espírito divino. Sendo assim, primeiro o cau será tratado
pelo Karaí, se o especialista de cura tradicional não conseguir resultado,
então o cau será encaminhado para o tratamento biomédico. Neste caso, o
cau deverá ser acompanhado pelo Karaí, para que seu espírito seja
fortalecido e ele não volte a beber (FERREIRA, 2001a:30-31)
As reuniões dos Karaí demarcaram a criação de uma conjuntura, na qual os cenários
de negociação foram (re)criados respeitando as especificidades de organização social, ritual e
terapêutica dos Mb, às quais tiveram que se adequar os representantes institucionais, que se
deslocaram aos espaços das Tekoá, entrando em contato com os velhos, as crianças e
mulheres que saem pouco das aldeias; com a existência das Opy, com o uso do cachimbo, a
presença constante do fogo, a forma ritual e performática da comunicação Mb etc. O
fechamento da I Reunião aconteceu ritualmente, com os Mbyá dançando o tangará (uma de
suas daas tradicionais) no pátio da Opy do Karaí Juancito Oliveira.
***
O enfoque sobre a “saúde” e o (des)empenho que os Mb demonstram no diálogo
com esta categoria institucional foram abordados através de algumas histórias particulares,
tomadas como alegorias das “ações criativas dos sujeitos”, pois “as circunstâncias
contingentes da ação exigem constantes reformulações criativas nos esquemas convencionais”
(SAHLINS, 1990:8). A referência a este autor é importante porque destaca que a mudança
cultural, mesmo quando induzida por forças externas como é o caso das práticas da
biomedicina , é orquestrada a partir das refencias sócio-culturais próprias do grupo em
140
interação. Assim, foi possível reconhecer na etnografia entre os Mbyá aquilo que Sahlins
enfatiza:
O evento é a forma empírica da estrutura: a ordem cultural (conjunto
de relações entre categorias) é apenas virtual. O significado de qualquer
forma cultural específica consiste em seus usos particulares na comunidade
como um todo. Mas esse significado é realizado apenas como eventos do
discurso ou da ação (idem, p. 190).
Todas as situações etnográficas trazidas neste capítulo (um caso de doença, uma
trajetória de vida e parte de uma trajeria étnica) dialogam com as idéias que derivam dos
referenciais que oem a cultura da natureza. É certo que as referências culturais Mbyá são
um constante desafio antropológico na abordagem de temas tão centrais como são a
construção do “corpo”, da “pessoa”, mas exigindo uma reinvenção desta oposição.
3.5.2 A V Reunião dos Karaí, caciques e lideraas Mbyá-Guarani do Rio Grande do Sul
A V Reunião dos Karaí, caciques e lideranças Mbyá-Guarani do Rio Grande do Sul
aconteceu na aldeia da Pacheca, município de Camaquã, entre os dias 19 e 23 de agosto de
2006, financiada através da parceria entre a FUNASA (VIGISUS II) e a ONG IECAM. O
objetivo principal do encontro mantinha-se, desde a I Reunião, o de valorizar o Mbyá rekó e
trabalhar no sentido de diminuir o consumo de bebidas alcoólicas nas comunidades, através,
principalmente, das belas palavras (nhe’e porã) dos Karaí (lembrando que isso engloba
muitas dimensões). Uma das constatações positivas dos Mbyá foi de que aumentou,
gradualmente, o número de pessoas e comunidades a aderir a este trabalho, pois participaram
desta última reunião, aproximadamente 120 representantes Mbyá (12 Kar de diversas
aldeias do RS)
62
.
Durante os quatro dias da V Reunião dos Karaí, pela primeira vez os jovens Mb
organizaram-se e realizaram a I Reunião dos Jovens, que se consideraram honrados pelas
lideraas Mbyá por lhes permitir ter um espaço para falar com os Karaí e participar das
discussões e decisões de seu povo. Esta iniciativa dos jovens emocionou seus parentes mais
62
Esses meros foram obtidos na Ata da V Reunião dos Karaí, caciques e lideranças Mbyá-Guarani do Rio
Grande do Sul, elaborada em parceria por José Cirilo Morinico, José Exequiel Basini (antropólogo/IECAM) e
Guilherme Heurich (auxiliar de pesquisa antropológica/NIT/IECAM). Nos registros não consta o número de
participantes juruá, porém, eu participei da reunião e acredito que havia aproximadamente 40 representantes de
diversas instituições governamentais e não-governamentais (CEPI; EMATER; FUNASA; FUNAI; UFRGS;
MPF; MPE; diversas Secretarias do Governo do Estado; ONG IECAM).
141
velhos, pois os Mb reiteram incansavelmente que é muito importante que os jovens não se
distanciem do Karaí, do Mbyá rekó etc. Como está registrado na Ata da reunião:
(...) O percurso dos xondaro marãgatu e as reuniões de karaí levaram a muitos jovens,
que ainda não haviam escutado as boas palavras, que gostassem delas. Hoje, são os
próprios jovens que levantam neste I Encontro, a necessidade de que o percurso dos
xondaro e a reunião dos karaí se mantenham, bem como uma forma das boas palavras
chegarem principalmente às aldeias onde não têm karaí. Eles não começaram a se
treinar nas boas palavras como estão fazendo uso delas. Neste sentido, o
conhecimento dos karaí e das cunhã karaí está mais manifesto, sendo particularmente
valorizado (Carta Mbyá-Guarani da V Reunião dos Karaí, 2006).
Os Mb relataram que a nomeação de novos xondaro (inclusive mulheres, as
xondarias) estimulou o conhecimento desse papel social entre os jovens, ao mesmo tempo em
que contribuiu para a transmissão das boas palavras e dos conselhos das lideranças espirituais
para outras mulheres e seus filhos.
A reunião seguiu as mesmas formas organizacionais e performáticas da I Reunião e
subseqüentes reuniões dos Karaí: os (três) primeiros dias foram destinados à interação,
discussão e realização de rituais apenas entre os Mbyá; e no último dia os Mb receberam,
no espaço da Tekoá, os representantes juruá, com o ritual de chegada Mbyá. Neste dia, o
cacique geral José Cirilo Morinico realizou a abertura do evento e pediu às lideranças Mbyá
que se apresentassem. Como sempre acontece quando são os Mb que organizam um
encontro, as manifestações foram feitas, primeiro, na língua Guarani e em seguida, traduzida
(parte delas) para o Português.
As lideranças Mbyá relataram aos juruá que durante os três primeiros dias em que
estiveram reunidos, fizeram uma avaliação dos seis anos de trabalho dos Karaí na diminuição
do uso abusivo de bebidas alcoólicas (mas não só, que essa questão remete a tantas outras
da vida Mbyá); da atuação dos Xondaro Marãgatu
63
(guardiões da tradição) e dos caciques, na
qual destacaram a relevância do percurso terapêutico que todos eles vêm realizando e os bons
resultados obtidos (como por exemplo, ter diminuído as festas e os bailes, caracterizados
pelos Mb como encontros para o abuso de bebidas; assim como não houve nenhum acidente
nas estradas relacionado ao uso da bebida, como vinha acontecendo em anos anteriores a este
trabalho).
63
Os Xondaro Marãgatu visitaram todas as aldeias e acampamentos Mbyá do RS, independente de tratar-se de
comunidades onde havia ou não problemas derivados do uso abusivo do álcool, conforme demanda encaminhada
na IV Reunião dos Karaí, realizada em fevereiro de 2006, na Tekoá Yryapú (aldeia da Granja Vargas).
142
Os Mb reafirmaram, como uma das principais avaliações da V Reunião, a
importância e eficácia da organização étnica do grupo, ou seja, reiteraram a fundamental
necessidade de se garantir com apoio institucional a interação sócio-cultural e política
entre todos os segmentos das comunidades nas diversas aldeias Mb no Estado a partir de
uma metodologia e temporalidade próprias, garantindo, assim, a atualização e permanência do
Mbyá rekó. Assim consta na Carta:
A medicina tradicional atualiza-se nas rodas de fogo, no uso do petyngua e da fuma
exalada que chega a Ñanderu. Desta forma, cria-se um espaço de espiritualidade
para todos fazerem o uso das boas palavras. Esta constitui a forma terapêutica
tradicional que possuem os Guarani, para preparar e desenvolver com saúde seus
encontros e seus planos, já que contam com a força que vêem de Ñanderu (ídem)
E mais adiante:
Deve-se, ainda, reconhecer a reunião dos karaí como espaço espiritual que nutre e
valoriza a cultura mbyá, como meio de transmissão de saberes e conhecimentos dos
velhos para os jovens, dos karpara os xondaro. É um espaço onde se discute não
os problemas vinculados ao alcoolismo, como também a saúde, a medicina
tradicional, a alimentação, a educação e os valores culturais. A Reunião dos Kar
valoriza todos seus atores: karaí, caciques, xondaros, jovens e agentes de saúde,
porque sabe que desta forma o ñande-reko fica fortalecido. Este tipo de organização já
constitui, por si mesmo, uma ação preventiva de saúde, através da força de ñanderu
que transmite esperança e coragem, emocionando aos presentes por meio das boas
palavras e transformando pela pureza de sentimentos e pelo amor o coração dos
presentes (idem).
Um dos avanços percebidos pelos Mbyá é que desde a I Reunião até aquele momento,
o projeto estava conseguindo manter sua continuidade, não sendo interrompido por
inconvenientes derivados de gestões políticas (como geralmente acontece) ou qualquer outra
razão. Ainda assim, os Mb demarcaram como demanda essencial a garantia efetiva de
recursos ininterruptos para as reuniões dos Karaí, i.e., uma garantia mais permanente.
Apesar da importância dos resultados obtidos até então, porque resumem um longo
processo de trabalho e luta das lideranças Mbyá no âmbito da saúde e para além dela, os Mbyá
continuam tendo dificuldades para o tratamento dos pacientes que bebem. Primeiro e em
parte, pela falta de apoio institucional na procura de um local apropriado para este tipo de
tratamento, que, segundo os Mbyá, não é o hospital. Diante disso, nesta última Reunião dos
Karaí, os Mbyá propuseram que as próprias aldeias servissem como centros de referência e
locais de internação”, como, por exemplo, a aldeia de Granja Vargas, “pois acreditamos na
143
terapia resultante do acompanhamento da comunidade, dos parentes, da própria organização
Mbyá-Guarani: Karaí, caciques, xondaros e agentes de saúde indígenas” (idem). Para tanto,
solicitaram o apoio institucional para dar condições para que as aldeias possam oferecer um
tratamento adequado ao cau (bebedor) e sua família. Mesmo assim, frisaram que as equipes
de saúde devem estar capacitadas para acompanhá-lo na aldeia e atuar junto aos AIS, sua
família e aos Karaí que são os responsáveis pelo seu cuidado espiritual.
Foi relatado aos jur a constatação dos Mbyá de que ainda algumas aldeias nas
quais o “atendimento diferenciado à saúde” não se efetiva, apesar de terem sido inclusive
notificadas através de representações no Ministério blico. Um desses casos, considerado
muito grave, era a situação de Salto de Jacuí, onde já houve muitas reclamações por parte dos
Mb pela negligência no atendimento à comunidade (ou mau atendimento) que infelizmente
resultou, inclusive, no falecimento do Karaí Juancito Oliveira, em março de 2006. Por fim,
ficou decidido que a VI Reunião dos Karaí deve acontecer na aldeia do Cantagalo (Viamão).
144
CAPÍTULO 4 AVANÇOS DO JEGUATA TAPE PORÃ (BELA CAMINHADA DA
TRADIÇÃO): CAMINHOS POSSÍVEIS AO HOLISMO MBYÁ
Como tratado no capítulo anterior, o cenário criado pelo debate em torno do tema da
saúde mobilizou representantes Mbyá, que se apropriaram da categoria “saúde” e a colocaram
no pano de fundo de sua própria tradição, compreendendo-a relacionada à integralidade da
existência. Esta mesma estratégia Mbyá apareceu, de forma evidente, a partir da aplicação do
Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) entre algumas de suas comunidades.
As duas primeiras etapas (Levantamento Preliminar e Identificação) do INRC
permitiram intensos trabalhos de campo; a primeira, realizada em cinco meses em 2004-5,
período em que nossa equipe residiu em São Miguel. Este fato possibilitou convívio quase
diário com os Mbyá, tanto na aldeia quanto na cidade de São Miguel, principalmente no Sítio
Arqueológico de São Miguel e em nossa residência-escririo em uma casa na cidade (mais
para o fim do período da pesquisa de campo em São Miguel, o havia dia em que não tivesse
ao menos um [geralmente mais] Mb pousando ou passando o dia nessa casa).
Desde o início deste trabalho, a nossa interação com os Mbyá foi marcada pela criação
de um espaço de interlocução para tratar dos propósitos da pesquisa a ser realizada para a
elaboração do inventário. As negociações resultantes do encontro etnográfico entre a equipe e
os representantes Mbyá permitiram adequar os propósitos e métodos do INRC aos seus
interesses e à sua mobilização étnica, muitas vezes, encontrando resistência institucional na
aceitação das adequações e reformulações metodológicas
64
.
No segundo semestre de 2006, teve início a segunda etapa de aplicação do INRC, na
qual mantive minha participão como pesquisadora. Esta etapa teve duração de dez meses,
período em que me dividi entre as atividades do mestrado, em Porto Alegre, e a pesquisa e
aplicação do INRC em São Miguel. Residir na cidade de São Miguel me possibilitou,
também, intenso trabalho de campo e intensa vivência nos espaços da Tekoá, o que foi
fundamental nesse processo.
Naquele momento, a temática do patrimônio não parecia estar na pauta de
prioridade dos Mbyá, o que também me levou a desconsiderá-la enquanto parte de minha
investigação acadêmica durante algum tempo. Porém, de forma surpreendente, os Mbyá
assumiram outra postura, mostrando terem criado interesse por todo o processo de inventário
de suas referências culturais, porque se apropriaram da discussão envolvendo os vestígios
64
Por exemplo, foi difícil convencer o setor jurídico do IPHAN/Brasília a aceitar a contratação de um
pesquisador Mbyá, o que argumenvamos ser imprescindível.
145
artísticos, documentais e arquitetônicos dos sítios arqueológicos das Missões Jesuítico-
Guarani para ligá-los às suas demandas culturais atuais. Retornando aos meus diários de
campo, constatei que, desde o início, a discussão sobre patrimônio imaterial foi apropriada
pelos representantes Mb em extensão ao que já vinham propondo nas negociações de saúde;
inclusive porque a possibilidade de intervenção do Estado brasileiro em garantia de suas
referências culturais também passou a ser entendida como uma necessidade no âmbito da
saúde, costurando as diferentes “gavetas” criadas pelas instituições para ter reconhecido e
respeitado o holismo fundamental do Mbyá rekó.
Essa capacidade de “costurar” rupturas tornou-se o tema mais enfático no fechamento
deste trabalho. Assim como as concepções biomédicas de terapêutica e de corpo tiveram (e
m) que sofrer relativização por parte dos profissionais (médicos, enfermeiros etc.) e
administradores para dar conta das demandas diferenciadas exigidas pelos Mbyá na
negociação com os órgãos de saúde (no sentido discutido no capítulo anterior), a identificação
das referências culturais Mbyá enquanto patrimônio imaterial nas Missões também
exerceu impacto, exigindo dos profissionais (arquitetos, muslogos, historiadores e
antropólogos) abertura para escutar as colocações dos interlocutores Mbyá e sua versão sobre
a forma de nculo étnico com os remanescentes materiais das Missões Jesuítico-Guarani.
Neste capítulo, continuo trazendo alegorias sobre o Mbyá rekó, agora a partir da
experiência etnográfica acumulada no processo de execução do INRC. O trânsito da “sde’”
ao “patrimônio” permitiu perceber a existência de motivações étnicas independentes destas
categorias, intenções coletivas que se tornaram ainda mais evidentes quando transpostas à
linguagem escrita; experiência etnográfica que tive ao acompanhar o processo de elaboração
de um projeto organizado por alguns representantes Mbyá no Rio Grande do Sul, que será
apresentado a seguir. Uma vez que apreenderam o “caminho ritual da burocracia juruá ao
circular pelos cenários institucionais, essas lideranças se mobilizaram para formular uma
proposta própria e mais integral, organizada como projeto, mas em correspondência ao seu
sistema cosmológico e xamânico e à sua cosmovisão (que chamo aqui de) holística.
Esse empenho coletivo procura apresentar as referências culturais mais importantes do
Mbre, colocadas no papel a fim de servir como marco das ações que venham a receber
incentivos por parte das instituições. Trata-se do projeto Jeguatá Tape Porã, ou “Belo
Caminho da Tradição”, proposta que estava implícita em todas as iniciativas anteriores dos
Mb, todas as vezes em que participaram do diálogo com as mais diversas instituições,
porque fundamentada no habitus e nas motivações latentes do Mbyá rekó. Através desse
146
projeto, agora, os Mbyá imem a costura” institucional entre órgãos que os atingem de
forma separada, aqueles que tratam da “saúde”, do “patrimônio”, da “sustentabilidade” e de
todas as demais “gavetas” que definem as atribuições institucionais, mas sempre esperadas em
adequação à sua alteridade social e cultural.
4.1 Jeguatá Tape Porã
Participando dos jogos de espelhamentos refletidos nos cenários institucionais,
diversos representantes Mb englobam algumas das lógicas que constituem as relações
interétnicas que experimentam, tornando-se hábeis na aplicação de estratégias na constituão
de sua auto-imagem, aproximando aliados, analisando e cobrando cada vez mais de perto
ações e poticas dos diferentes órgãos que os assistem. Constataram que as instituições juruá
funcionam através de projetos que não se sustentam de maneira mais permanente, submetidas
à inconstância administrativa das gestões de diferentes partidos e atores sociais eventualmente
envolvidos. Descobriram, também, que elas funcionam de maneira separada e propõem
superar essa fragmentação, aplicando na interação com elas uma extensão do seu sistema
integrador de vida. Aprenderam ainda que é importante formalizar, junto aos juruá, suas
motivações étnicas, traduzindo-as e conformando-as como textos escritos elaborados pelo
mesmo padrão dos projetos institucionais que antes só os atingiam de fora.
Nesse quadro é que se encaixa a formalização
65
do Jeguatá Tape Porá, que se deu a
partir da iniciativa de algumas lideraas Mb (Jo Cirilo, Cláudio Acosta e Agostinho
Duarte) ao solicitar nosso apoio (equipe INRC) para elaborar um projeto escrito que abarcasse
os propósitos impcitos do que eles chamaram de Belo Caminho da Tradição”. Esta
solicitação surgiu da necessidade dos Mbyá ultrapassarem os limites burocráticos dos projetos
institucionais, que sempre são parciais e efêmeros e pensados de fora das comunidades onde
o executados.
Este projeto transforma em objetivo formal aquilo que já registrei acontecendo nas
Reuniões dos Karaí: os Mbyá se mobilizam para garantir condições ao restabelecimento de
suas antigas práticas de organização social, recuperando a centralidade da posição dos líderes
espirituais mais velhos, realizando visitas intercomunitárias freqüentes, articulando parentelas
e comunidades em torno do propósito de valorização das tradições cosmo-sócio-ecológicas
65
Em 08/04/2005, na Tekoá Anhetenguá.
147
dos Mbyá. O Jegua Tape Porã formula e solicita o apoio oficial à salvaguarda dos
mecanismos de identificação e integração étnica. Na prática, objetivam consolidar o apoio aos
guardiões da tradição Mbyá, mantendo condições à realização de viagens periódicas de uma
comitiva desses agentes (Mbyá xondaro), que residem no Rio Grande do Sul, para realizarem
visitas às comunidades neste Estado e também em Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Espírito
Santo, na Argentina, no Paraguai e no Uruguai. Esses membros Mbyá apontam a necessidade,
portanto, de obter condições materiais para que o projeto étnico do Jeguatá Tape Porã possa
ser mais amplamente compartilhado, reforçando as condições de manutenção do Mbyá rekó
para além das fronteiras poticas do Rio Grande do Sul e do Brasil, interligando Yvy Mbyté
(Paraguai), Pará Miri (Argentina) e Pará Guaçu (Brasil).
A importância deste projeto é que ele faz uma ponte capaz de interligar as ações das
diversas instituições, valorizando prioritariamente a recuperação de antigas estratégias sociais
e poticas, através da possibilidade de os Mb se reunirem, obtendo apoio dessas instituições
para a retomada das visitações interaldeãs, segundo a tradição original dos Mb, fazendo
com que a comitiva de xondaro seja acompanhada por recursos alimentares destinados à
realização da recepção festiva dos emissários Mb em cada aldeia (atualizando o ciclo de
festas, uma das tantas estratégias que os Mbyá reproduzem do estilo de vida dos grupos
indígenas amanicos; sobre isso, ver LATHRAP, 1977).
A partir de então, todos os projetos específicos e todos os parceiros são vistos como
partes integrantes desse projeto mais amplo, que valoriza o holismo através das caminhadas e
encontros que integram Karaí, Kunhã-Karaí, caciques, xondaros, jovens, mulheres e crianças,
ou seja, todo o povo Guarani; e reproduzem a conexão entre todas as esferas da vida Mbyá.
Como diz José Cirilo, “tudo é Jeguatá”.
Apresento a seguir três situações etnográficas para fechar este trabalho, cada uma
delas composta por uma seqüência de acontecimentos que demonstram como circunstâncias
específicas são apropriadas e direcionadas pela intenção étnica de alguns representantes
Mb, aproveitando o apoio de parceiros institucionais. Estas situações exemplificam como
o colocados em prática os propósitos do Jeguatá Tape Porã. Todas ocorreram
paralelamente ao processo de realização desta pesquisa etnográfica, interpretadas como
eventos significativos, ou seja, enquanto manifestação empírica e reatualizão do Mbyá rekó.
148
4.1.1 Nhemongaraí
66
O principal propósito do INRC é fazer o inventário das ocorrências culturais dos Mbyá
para registro, valorização e discussão sobre sua proteção como Patrimônio Nacional
(Imaterial), segundo a metodologia do IPHAN, que estabelece diferentes livros de registro
(Celebrações, Lugares, Edificações, Formas de Expressão e Modos de Fazer). No início, foi
difícil para nossa equipe assimilar (vindos de um treinamento científico de pesquisa
etnográfica para agora aplicar um instrumento genérico de registro) e repassar aos
representantes Mbyá a lógica do Inventário, problema gradualmente superado por interesse
deles na atenção oficial às suas referências culturais. Dentre as diversas opções dialogadas
com os Mb, surgiu a escolha do Nhemongaraí como cerimônia a ser transformada em
objeto de atenção para toda sociedade brasileira (enquanto Celebração), ingressando no
processo para ser proposta enquanto “bem cultural que precisa da salvaguarda do Poder
Público brasileiro, já que sua realização torna-se cada vez mais difícil, por diversas razões. A
opção por salvaguarda e suas formas de proteção (do Nhemongaraí ou qualquer outra
referência cultural que venha a ser indicada para isso) devem ser objeto de muita reflexão, que
ainda precisam ser discutidas entre os próprios Mbyá e dentro do IPHAN.
Para o início da segunda etapa de execução do INRC a Etapa de Identificação, nossa
equipe
67
procurou os Mbyá para consultá-los sobre os caminhos a seguir na continuidade do
trabalho. Realizamos uma reunião na Tekoá Anhetenguá, aldeia Mb da Lomba do Pinheiro,
em Porto Alegre, no dia 11 de novembro de 2005, com o cacique desta aldeia e cacique geral,
José Cirilo, e o cacique da Aldeia de Estrela Velha, Cláudio Acosta (Xondaro Marãgatu e um
dos filhos do Karaí Perumi).
Logo no início da conversa, José Cirilo lembrou a proximidade do Natal, mostrando-se
indignado com a adesão de alguns Mb às festividades natalinas, dizendo que Natal não
significa nada para os índios. “Festa para mim, festa sagrada é Nhemongaraí! Festa do
batismo, do milho. As festas do branco trazem bebida alcoólica”, disse José Cirilo. Ele
lembrou o caso de Candiño Oliveira (Tekoá Porã/Aldeia Salto do Jacuí) que estava
66
na literatura antropológica algumas referências a este ritual, ainda que escassas. A antropóloga Graciela
Chamorro (Revista Diálogos, vol. 01/02), por exemplo, teve oportunidade de etnografar, em 1998, um ritual de
batismo numa aldeia Mbyá no sudoeste do Paraná. Outra referência (clássica) é a descrição deixada por Curt
Nimuendaju (1987) sobre o ritual Nimongaraí entre os Apapocuva-Guarani, que apresenta muitos pontos em
comum com os discursos e as práticas deste ritual entre os Mbyá na atualidade.
67
A equipe era, naquele momento, composta por: José Otávio Catafesto de Souza, coordenador da execução do
INRC, Adrián Campaña, Carlos Eduardo Moraes e eu. Hoje, passou por algumas modificações, mantendo a
coordenação.
149
hospitalizado em Porto Alegre por causa do alcoolismo. José Cirilo e Cláudio comaram
então a falar sobre o Nhemongaraí. A festa do batismo acontece em duas etapas: a primeira,
no início de janeiro e a segunda, no fim. Durante os dias de ritual, os participantes comem
apenas comidas tradicionais, a orerembiú
68
(nossa comida): avati eteí (milho verdadeiro), jety
(batata doce), comandá (feijão), avati cuí (milho macerado/pilado), mbojapé (bolo de farinha
de milho), mbytá (bolo de milho enrolado na palha e assado na brasa), kaguijy (bebida
fermentada da farinha do milho). “Daí a gente a fica forte, o corpo e o espírito. Isso é saúde”,
concluiu José Cirilo.
A partir dessa conversa, os Mb nos apontaram esse ritual como uma de suas
referências culturais mais importantes e de certa forma ameaçada, pois segundo Cláudio é
preocupante o fato de que hoje as comunidades não estão mais fazendo com tanta freqüência
o Nhemongaraí e por isso as crianças ficam doentes. Cláudio afirmou que é preciso mexer
nisso, falar pros Guarani relembrarem a importância do Nhemongaraí”. José Cirilo, então,
constatou que esta celebração fundamental faz parte necessariamente do INRC, assim como
de projetos de saúde. Perguntou de que formas o juruá pode colaborar para fazer acontecer o
ritual, ou seja, como pode apoiar para a manutenção dessa referência cultural, ou, se se
preferir, para a salvaguarda desta referência cultural. Para mostrar-nos mais uma vez que para
o Mbyá tudo está interligado, que não subdivisões possíveis para se tratar do Mbyá rekó,
José Cirilo concluiu que uma das demandas dos Mbyá para a continuidade do trabalho do
INRC, pauta inicial daquela reunião, era o apoio para a realização do ritual e seu registro.
Assim, o incentivo e a elaboração da proposta para a realização do Nhemongaraí ao
IPHAN foram o resultado da mobilização articulada em torno ao grupo de parentela e aliança
de Jo Cirilo (conectando as Tekoá Anhetenguá, em Porto Alegre e Tekoá Yryapu, em
Palmares do Sul), botando em prática o projeto Jeguatá Tape Porã, no cenário criado pela
execução do INRC.
A idéia inicial era que todas as aldeias ou ao menos muitas delas deste Estado
pudessem participar do Nhemongaraí. Porém, o recurso que pôde ser disponibilizado para o
ritual garantia a participação das famílias de duas aldeias (e um ou outro Mbyá de outras
Tekoá). Por outro lado, os próprios Mbyá envolvidos na organização do Nhemongaraí
(Cláudio Acosta e o Karaí Agostinho Duarte, além de José Cirilo) optaram por realizar
naquele momento um ritual “menor”, e organizar-se melhor, com mais tempo, para um
“maior” no próximo ano. Não foi um desafio apenas para nós que tivemos que argumentar
68
Sobre a alimentação tradicional dos Mbyá, ver Tempass, 2005.
150
junto ao IPHAN em favor do gasto de parte dos recursos do INRC na realização do ritual
mas também para os Mb, por terem que se organizar de forma rápida (quando surgiu a
proposta, já era mês de dezembro e o Nhemongar tinha que acontecer no início de janeiro).
Percebemos que o Nhemongaraí é uma cerimônia fundamental na vida de toda pessoa
Mb, caracterizando-se como prática ritual central do Mbyá rekó. É nesse ritual que se
recebe ou confirma o nhe’ê (alma-palavra) de cada criança ou pessoa, atribuído desde a idade
em que se passa a falar, e também a adultos que tenham recebido nomes errados em seu
primeiro batismo, o que pode acarretar na doença da pessoa e até em sua morte. Ao explicar
sobre a importância do Nhemongaraí para a pessoa Mbyá, assim me contou Floriano Romeu
(Verá Xondaro):
Meu netinho, filho do Marcelo, estava grandinho, mas ainda não tinha nome
Guarani. Ele não andava bem, sabe, e daí eu falei para os pais dele que estava na
hora dele ter um nome. O Mbyá dá o nome Guarani depois da festa avati, com
mbojapé, mas como era, assim, emergência, levaram a criança no [Karaí] Solano e ele
deu nome. Depois tem que levar na Opy, na hora certa mesmo, para pegar mais força
o nome, mas pelo menos agora ele está bem, andando bem (registro em diário de
campo em 29/10/2004).
Outro caso é o da filha de Isabelino Aguirre (KarNheery), que recebeu do [Karaí]
Solano Almada (Karaí Tataeñdy) o nome errado, e então ela não ficava bem. “Daí eu levei ela
no [Karaí] Santo Lopes, onde ela recebeu o nome certo e então ficou bem, até agora”
69
,
contou-me Isabelino no pátio da casa de Osvaldo Paredes (Karaí Miri), onde conversávamos,
enquanto ele talhava um pedaço de madeira (curupi), na TekKoenju. Isabelino explicou que
quando a criança está com o nome errado, os pais logo desconfiam, pois ela chora muito, “não
fica feliz, não fica bem”, e então a levam ao Karaí para que ele indique a que divindade
pertence e seja feita a troca de seu nome, se o erro for espiritualmente diagnosticado.
A grande importância desse ritual se deve ao fato de que através do nome, ou “alma-
palavra”
70
, é possível garantir ou re-estabelecer a saúde dos indivíduos. A “alma-palavra” é a
garantia de saúde sica e espiritual e mesmo de vida para cada um dos Mbyá, mas ela
deve ser celebrada coletivamente seguindo todos os preceitos, e constitda de todos os
elementos previstos na tradição Mbyá. As doenças e a fraqueza das crianças são
compreendidas como conseqüências da pequena freqüência com que esta prática ritual tem
ocorrido na última década no Estado do Rio Grande do Sul, o que resulta no distanciamento
69
Registro em diário de campo em 25/10/2004.
70
É possível estender aos Mbyá aquilo que Nimuendaju registrou para os Apapocuva-Guarani: o nome Guarani
o é para designar uma pessoa, ele é a própria pessoa (1987).
151
da pessoa em relação a Nhanderu (deus; nosso pai”) e à sua alma divina. As dificuldades de
sobrevivência do grupo étnico frente à marginalização social e à degradação/transformação
ambiental tornaram mais rara sua ocorrência, substituída muitas vezes, de forma provisória,
pela nominação realizada pelo pai da criança (que sempre pode estar errada, pois quem tem
dom espiritual, para receber de Nhanderu o nome da pessoa Mbyá, é o Karaí Nhemongar
vae).
Em janeiro de 2006, apoiei a realização e fiz a observação etnográfica da atualização
do Nhemongaraí, durante cinco dias
71
na Tekoá Yryapu, aldeia da Granja Vargas (município
de Palmares do Sul). Neste Nhemongaraí, participaram famílias Mb de duas aldeias
principalmente, mas contando com a presença de outros de algumas aldeias do Rio Grande do
Sul e da Argentina.
Antes disso, foi necessário obter recursos para transporte, alojamento e alimentação
para que os familiares daqueles que seriam batizados estivessem reunidos durante duas
semanas na aldeia da Granja Vargas. Neste processo de apoio à organização desta celebração,
nossa equipe, acompanhada do cacique geral José Cirilo, visitou durante o mês de dezembro a
aldeia Mbyá da Pacheca (município de Camaquã) com o objetivo de incluí-los no
Nhemongar. Mas esta comunidade já estava se organizando, junto com a aldeia de Água
Grande (mesmo município), para sua realização, pois eles possuem a casa de reza (Opy) e o
rezador (Karaí), imprescindíveis para o processo ritual da nominação. A falta destes dois
“elementos sagrados” em algumas aldeias tem sido a principal razão para a não realização do
ritual, pois algumas comunidades ainda não têm Opy, e muitas vezes quando Opy, não
Karaí vivendo na aldeia.
No caso da aldeia da Pacheca, os Mb solicitaram-nos apenas a obtenção do fruto do
guembé, elemento ritual associado à nominação masculina. Essa planta tem ocorrência natural
mais intensa na região do rio Uruguai, sendo observada no município de São Miguel das
Missões (inclusive no interior do tio Arqueológico, local de onde os Mbyá do Inhacapetum
também o coletam para realizar o Nhemongaraí). O uso do guembé, entretanto, não se
restringe à esfera ritual (fruto), pois das mudas, que se desenvolvem sobre as árvores, extraem
a casca de suas longas raízes para produzirem o artesanato (cestaria, anéis, pulseiras,
armadilhas de caça etc.).
71
A princípio os Mb indicaram que o ritual deveria ter duas semanas (14 dias) de duração, o que não foi
possível atender, devido à insuficiência de recursos. Assim, a celebração do Nhemongar aconteceu em cinco
dias.
152
No início de dezembro
72
, acompanhamos Jo Cirilo em visita aos acampamentos
localizados na beira da estrada (BR-116) no município de Barra do Ribeiro para realizar o
mesmo convite de participação no Nhemongaraí. Assim como ocorreu na visita à aldeia da
Pacheca, nestes acampamentos, José Cirilo introduzia o diálogo com as lideranças locais
falando em Guarani, atuando enquanto mediador entre os Mbyá e nós juruá, explicando nossa
participação e, ao mesmo tempo, passando a nós as demandas e anseios de cada grupo
relativos ao ritual. Mais uma vez, o papel do mediador Mbyá mostrou-se imprescindível para
o sucesso do diálogo interétnico, o que já havíamos constatado desde o início dos trabalhos de
campo do INRC em São Miguel.
Estes acontecimentos demonstram como os Mbyá articularam apoios institucionais na
concretização de passos de sua bela caminhada. A organização do ritual na Granja Vargas
ocorreu interligando atores profissionais de diversas procedências. O ônibus para transportar
os Mbyá da Tekoá Anhetenguá à Tekoá Yryapu, onde aconteceria o Nhemongaraí, foi locado
com recursos da FUNASA e saiu de Porto Alegre, da Lomba do Pinheiro, às nove horas da
manhã do dia 6 de janeiro de 2006. Dois dias antes do encontro, nossa equipe realizou a
compra dos alimentos (a maior parte, mas algumas coisas eram compradas diariamente numa
localidade próxima à aldeia) para os dias da celebração. Os Mbyá ressaltaram a importância
de chegar à outra Tekoá com alimentos, propondo a festa, a comensalidade. “Assim faziam os
antigos, quando se visitavam entre as Tekoá”, explicou José Cirilo.
Chegamos na Tekoá Yryapu algumas horas depois da chegada do ônibus dos Mbyá.
Imaginávamos que estariam todos com fome, pois eles estavam com os alimentos, mas nós
levávamos as panelas e outros utensílios “de cozinha”. Ao contrário de nossa expectativa, os
Mb nos receberam tranqüilos, dizendo que havíamos chegado “na hora certa”.
Nesta aldeia as casas são iguais às casas da RI Inhacapetum, em São Miguel das
Missões, construídas com recursos da Secretaria Estadual da Habitação e com madeira cedida
pela CEEE. A nós foi destinada uma dessas casas de madeira para pernoitarmos durante o
72
Ainda no mês de dezembro, participamos da reunião do Conselho dos Xondaro realizada na Tekoá
Anhenteg (aldeia da Lomba do Pinheiro, município de Porto Alegre) e promovida com recursos do
VIGISUS/Fundação Nacional de Saúde FUNASA para a organização da IV Reunião Geral dos Karaí, caciques
e lideranças Mbyá-Guarani, que aconteceu em fevereiro de 2006, na aldeia da Granja Vargas, município de
Palmares do Sul. O cacique geral, José Cirilo, convidou-nos a participar da reunião para apresentarmos aos
xondaro o trabalho do INRC, entendendo todas essas frentes de trabalho como um único movimento de
integração e fortalecimento Mbyá. Além disso, foi discutida a possível canonização de Sepé Tiaraju, ao que os
xondaro colocaram-se contrários e muito preocupados com as conseqüências de uma apropriação desta figura
histórica pela Igreja Católica. Ainda nesta ocasião, tratou-se do tema do Nhemongaraí.
153
Nhemongar. Até onde andamos pela área da Tekoá e pudemos ver, além da Opy,apenas
uma oga (casa tradicional feita em barro e taquara), a casa do Kar Agostinho Duarte.
A organização das refeições coletivas e dos alimentos foi incrível. Não houve
nenhuma espécie de conflito ou problema relacionado à alimentação. Creio que isso se deveu
à forma com que lidamos, nós e os Mbyá, com essa questão. Perguntamos a eles o que
comeriam nesses dias e, baseando-nos nessas informações, realizamos as compras dos
ingredientes. O avati etei (milho verdadeiro) foi por conta dos próprios Mbyá, é claro.
Ouvimos, algumas vezes, pessoas dizendo que não devíamos entregar todos os alimentos para
os Mbyá de uma vez, pois eles acabariam com tudo no primeiro dia. Não vimos isso
acontecer. No primeiro dia, de fato se comeu fartamente, afinal, era a festa que abria a
celebração. Mas não se seguiu da mesma forma. Ao fim do ritual, sobraram alimentos e os
Mb dividiram-se, cada família levando um pouco para sua casa ou aldeia.
No primeiro dia, comecei a estranhar, a certa altura, que as mulheres não paravam
mais de cozinhar, de fazer comidas diferentes. o existe uma hora mais ou menos fixa para
uma refeição como o “almoço”, mas uma sucessão de produção de diferentes alimentos ao
longo do dia. Primeiro, faziam algo como arroz com galinha, ou churrasco, ou carreteiro, que
servia de base da alimentação da primeira parte do dia. Depois, pelo meio da tarde,
começavam as mulheres a produzir a orerembiiú
73
, a comida Mb tradicional, e paravam
somente no fim do dia, quando o sol começava a se r, para ir para a Opy, onde
permaneciam até o início da madrugada.
Logo da nossa chegada à aldeia, José Cirilo veio conversar com a gente sobre como
eles estavam se organizando para o ritual e queria saber como estava a nossa organização para
participar. Na verdade, pensei, ninguém sabia muito bem, nem nós nem eles, como
aconteceria aquele Nhemongaraí com a presença e participação de juruá. Dissemos que não
tínhamos planos e que não queríamos atrapalhar. José Cirilo contou o que tinha acertado com
os outros Mb, principalmente com o Karaí Agostinho, anfitrião da cerimônia: havia uma
primeira tataypy rupa (fogueira) localizada logo na entrada do pátio das primeiras casas,
destinada a todos, inclusive a nós, jur (éramos sete
74
). Foi nessa fogueira que se prepararam
todas as refeições coletivas e o a oreremb, e em torno à qual todos comiam. Próximo dali
havia um galpão que serviu naqueles dias para armazenar os alimentos e utensílios
73
Tivemos o privilégio de experimentar todos os pratos tradicionais que foram preparados durante os dias do
ritual, com exceção dos mbojapé que foram levados à Opy para a nominação das meninas.
74
Adrián Campana (NIT/INRC); Andréia Ottero (auxiliar de pesquisa antropológica NIT/FUNASA); Carlos
Eduardo de Moraes (NIT/INRC); Daniele Pires (NIT/INRC); José Bassini (antropólogo/FUNASA); José Otávio
Catafesto de Souza (NIT/INRC); Mônica Arnt (NIT/INRC).
154
domésticos. Um pouco mais ao fundo da área, ficava a segunda fogueira, em frente à casa do
Karaí Agostinho, que era freqüentada por sua família e alguns Mb que sentavam-se ali
junto ao Karaí. Nenhum de nós se aproximou deste espaço ou sentou próximo a essa fogueira
durante o Nhemongaraí. Apenas passávamos na frente, seguindo a trilha para a lagoa, que
passa também na frente dotio da Opy. De fato, só passamos a fazer esse trajeto para a lagoa
pela casa do Karaí e pátio da Opy no segundo ou terceiro dia, depois de os Mb de alguma
forma sinalizarem que não havia problema, desde que até o fim da tarde. A princípio,
fazíamos outro caminho, mais longo, para evitar ultrapassar limites implícitos, mas os
próprios Mbyá disseram que não havia necessidade.
Ao cair do sol, os Mb começavam a se movimentar, sutilmente, como lhes é
peculiar, abandonando o fogo, guardando as coisas da “cozinha e direcionando-se para o
pátio da Opy. Todos os dias, repetia-se a mesma cena: os últimos Mbyá entrando na Opy,
restando nós, ali em volta da fogueira, o sol se escondendo. Depois disso, costumávamos nos
recolher também, evitando circular muito. À noite, ouvíamos, da casa onde estávamos
hospedados, um pouco distante dali, os cantos vindos da Opy, em volta a uma terceira
fogueira (“tataypy rupa juruá”). No primeiro dia, a comilança foi tanta durante todo o dia
(“compreendendo a comensalidade”) que o tínhamos fome à noite e entramos no ritmo dos
Mb. Comemos naquela noite, por exemplo, apenas algumas batatas-doce que peguei com
eles.
O Karaí Agostinho manteve-se concentrado, calado e geralmente distante das outras
pessoas, durante o Nhemongaraí. Eu nunca havia participado desse ou de outro ritual Mbyá,
mas acredito que os Karaí demonstrem atitude singular enquanto estão espiritualmente
concentrados. Eu falei com ele raras vezes durante esses dias e mesmo Jo Cirilo também
estava de poucas palavras, muitos pensamentos, concentração. Ao mesmo tempo, transparecia
serenidade, felicidade. Em nenhum momento senti que os Mbyá estavam incomodados com
nossa presença ou com o fato de estarmos na Tekoá, comprometendo de alguma forma o
Nhemongar. Dos relatos deles foi possível perceber, ao final, que de fato não interferiu
negativamente nossa presença.
José Cirilo explicou que eles tomariam café da manhã e almoçariam com a gente e que
no fim da tarde iniciariam uma espécie de jejum (não absoluto) e se recolheriam para se
concentrar. Ele nos deixou à vontade para cozinharmos à noite, se quissemos.
As manhãs e as tardes eram liberadas” para a diversão, a sociabilidade, os banhos de
lagoa, as brincadeiras das crianças, as rodas de chimarrão em volta da fogueira. Os dias foram
muito quentes (aku remá!). Em determinado momento, senti falta da água encanada, de uma
155
torneirinha, uma mangueirinha... À noite o calor era intenso, difícil dormir. Na barraca, calor.
Fora dela, mosquitos.
Toda manhã, seguíamos o mesmo movimento: alguns de nós, bem cedo, iam a
Quintão, balneário próximo à Tekoá Yryapu. Quintão era a possibilidade mais próxima com
comércio. A localidade de Granja Vargas, outra referência da Tekoá, é uma localidade rural e
pequena, distribuída na extensão da estreita estrada de terra que é o acesso principal à Tekoá.
Íamos a Quintão para comprar o pão para o café de todos. Pão, mortadela, queijo, alguma
fruta, algum refrigerante, de acordo com o que os Mb apontavam ou que nós verificávamos
que estava faltando.
Na segunda manhã, dia 07, José Cirilo nos avisou que alguns Mbyá (homens e
mulheres) iriam realizar expedição ao ka’aguy (mato) para coletar frutos de guembé para uso
ritual na Opy na nominação dos meninos. O grupo saiu de barco na Lagoa da Lavagem. O
Karaí guiava a expedição. Por volta do meio-dia, o grupo voltou com os guembé. Almamos
à beira do fogo, como todos os dias, e à tarde as mulheres passaram fazendo mbojapé para o
Nhemongar. Os homens produziram raladores fazendo pequenos furos com pregos em latas
de embalagens de óleo vegetal, enquanto as mulheres ralavam o avati eteí para fazer o
mbojapé. No fim da tarde, os Mbyá foram pouco a pouco se dirigindo para a Opy, ficando
apenas a gente ali, em frente ao fogo. Foi possível ver as famílias carregando consigo para
dentro da Opy os frutos do guembé ou os mbojapé, de acordo com o gênero do filho a receber
nome.
O fechamento do ritual aconteceu no pátio da Tekoá, próximo à fogueira, com todos os
participantes formando um grande círculo em volta do Karaí Agostinho. Ele falou em
Guarani aos Mbyá, e, em seguida, dirigiu-se a nós dizendo que aquela havia sido a primeira
vez que os juruá colaboraram e participaram de um ritual sagrado como aquele, ressaltando a
demonstração de respeito que tivemos aoo tentar ultrapassar as fronteiras simlicas
colocadas por eles e agradecendo o apoio às suas formas culturais próprias.
Uma de nossas conclusões, ao sair de lá, foi a necessidade de estimular o
envolvimento de diversos setores do Poder Público e de diversos parceiros governamentais e
não-governamentais na salvaguarda do Nhemongaraí entre os Mbyá do Brasil.
156
4.1.2 Nhemboaty Tava Miri py São Miguel ou I Encontro Nacional Patrimônio Cultural e
Povos Indígenas: Os Mbyá e as Missões
Esta pesquisa percorreu uma trajetória singular, sempre seguindo em paralelo os
percursos da “caminhada étnica” de alguns representantes Mbyá. Parti da participação em
reuniões e eventos públicos que reuniam representantes Mbyá, mas o caminho da investigação
acabou incluindo diversas viagens feitas na companhia de algumas lideranças, algumas vezes
de Karaí e Kuña-Karaí, para, depois, conviver de forma muito intensa com eles e suas
famílias e amigos, nos espaços das Tekoá, i.e., nos espaços dos Mbyá. No início, comecei
observando aqueles encontros que ocorreram limitados aos cenários institucionais em prédios
urbanos, onde os Mbyá submetiam-se, tal qual um processo inicial, aos padrões prescritivos e
performáticos da burocracia. Depois, continuei participando de reuniões deslocadas ao
interior das aldeias, no pátio da Tekoá convertido em palco de celebrações ritualizadas
segundo o sistema de organização dos Mbyá, contando agora com o apoio e a participação de
algumas das mesmas instituições que antes requisitavam suas lideranças exclusivamente fora
do espaço tradicional, separando-as da comunidade. A metodologia das reuniões também
marcou o trabalho da equipe “interétnica” que executava o INRC, tanto nas atividades
efetuadas dentro quanto fora das aldeias. Pude fazer inserção etnográfica nos cenários íntimos
dos “encontros” mais típicos na vida Mbyá, integrada às rodas de comensalidade em torno ao
fogo doméstico das famílias que me hospedaram dentro das Tekoá, além de dormir e acordar
junto às crianças.
As observações etnográficas permitem dizer que o modo de vida Mbyá é constituído
por veis de sociabilidade, que se dão na forma de encontros e “reuniões”, a começar pelo
mais imediato, da família em volta do fogo, no pátio de cada cleo doméstico; estendo-se
para os rituais no pátio da casa de rezas; aos jogos de futebol que integram homens e jovens e
a platéia feminina e infantil; às visitas entre parentes e amigos dentro de cada aldeia e entre
aldeias e acampamentos etc. Em cada um dessesveis há formas apropriadas (mas não
rígidas) de comportamento.
Há, por um lado, uma pré-disposição dos Mbyá para a ritualização dos encontros entre
as pessoas, oportunidades em que valorizam as belas palavras, a cooperação coletiva
(mboraiu) e a comensalidade, dentro do possível (como demonstrei ao tratar do
Nhemongar); essas motivões sociais têm servido também aos propósitos de representantes
institucionais, como, por exemplo, a FUNASA, o CEPI, a Universidade, a EMATER e o
CIMI, conforme ilustrado nos catulos anteriores.
157
Porém, é importante frisar que o apoio externo não gera apenas coesão étnica, mas
também provoca conflitos (de origens hisricas muitas vezes) entre parentelas e entre as
diversas lideranças emergentes. As lideranças Mb utilizam o apoio institucional para
afirmar seu prestígio, obtendo recursos na forma de “reuniões para integrar o maior número
possível de participantes. Assim, a reunião é apropriada etnicamente como uma forma de
“festa” e o seu articulador Mbyá beneficia-se do reconhecimento trazido pelas demonstrações
de articulação e de generosidade, características esperadas dos chefes Guarani (CLASTRES,
1978; SOUZA, 1987). Assim, nos últimos anos se difundiu o conceito de Nhemboaty
(reunião, encontro, assembléia), utilizado para designar diversos eventos, inclusive aqueles
em que os Mbyá tantas vezes foram (são) incluídos apenas como figurantes (bom exemplo
disso são as reuniões promovidas pelo CIMI para canonização popular de Sepé Tiaraju).
A fim de se colocarem contrários às manipulações feitas por instituições como o
CIMI, que chamam os Mbyá para participarem de reuniões a fim de legitimar objetivos que
não condizem com o Mbyá rekó, as lideranças articuladas no Jeguatá Tape Porã aproveitaram
o processo de execução do INRC para propor a realização de uma grande reunião (Nhemboaty
Mb Kuery) em São Miguel das Missões, para discutir todo o processo de registro e
salvaguarda de suas referências culturais pelo Governo brasileiro. Em resposta à iniciativa da
Igreja Católica, que promoveu, em setembro de 2005, uma reunião de apenas um dia, com
mais de cem Mbyá no tio Arqueológico em torno do tema “luta popular pela terra”, José
Cirilo e seus aliados propuseram realizar uma outra, e discutir efetivamente a questão da bela
caminhada Mbyá e sua ligação com a Tava Miri.
Solicitaram, para tanto, recursos para duzentos Mb ao longo de quatro dias de
reunião, seguindo o mesmo modelo experimentado na organização do Nhemongaraí na
Granja Vargas, em janeiro de 2006. A reunião precisaria ocorrer segundo o sistema
tradicional de encontro, com a presença de jovens, mulheres e crianças; no ritmo das festas
tradicionais, realizando a comensalidade, a celebração e a realização de assembléias
contínuas.
A proposta da reunião Mbyá foi relatada – por nós – aos representantes do IPHAN-RS
envolvidos na aplicação do INRC, que tiveram que adequar o plano orçamentário da ação de
trabalho e formalizar o projeto do evento segundo os critérios institucionais. Assim, surgiram
dois eventos paralelos, um, idealizado pelos Mbyá (Nhemboaty Tava Miri py São Miguel) e
outro, formatado pelos técnicos do IPHAN (I Encontro Nacional Patrimônio Cultural e Povos
Indígenas: os Mbyá-Guarani e as Missões). Ambos acabaram ocorrendo de maneira
158
complementar, ficando nossa equipe no papel de mediação entre os Mbyá e o IPHAN, e com
a proposição de organizar o evento no formato exigido pelos índios.
Assim, representantes Mbyá-Guarani do Rio Grande do Sul, da Argentina e do
Paraguai reuniram-se, entre os dias 03 e 07 de dezembro de 2006, em São Miguel das
Missões, realizando a Nhemboaty Tava Miri py São Miguel”, ou, “I Encontro Nacional
Patrimônio Cultural e Povos Indígenas: os Mbyá-Guarani e as Missões”
75
.
Os Mb chegaram à cidade e acamparam dentro do Parque Arqueológico de São
Miguel Arcanjo, junto às ruínas da Tava onde viveram e morreram seus ancestrais Guarani,
como frisaram, ao lado da casa de passagem Mbyá. Por esse motivo, o Sítio foi palco para
momentos intensos de convívio, discussão e escuta das palavras sagradas dos mais velhos.
Participaram as crianças, os jovens, as mulheres, os adultos, as lideranças políticas e
espirituais vindos de mais de vinte comunidades. Foi um momento vivido pelos Mb e não
com muita emoção. Muitos estavam conhecendo as ruínas da Tava. Além disso, aquela
era uma oportunidade singular de encontro dos Mbyá, ligando, inclusive (segundo disseram),
os vivos com os espíritos dos mortos e dos deuses.
Esse encontro foi possível, em grande parte, devido à situação favorável criada pelo
apoio do Governo Federal brasileiro através do IPHAN e da UFRGS, integrando também o
apoio dado pela FUNAI de Passo Fundo. A mobilização em torno à figura do cacique geral,
representada por José Cirilo, conquistou a continuidade de mobilização dos parentes pelo
respeito ao Mbyá rekó (modo de estar Mbyá) e pelo apoio às reuniões que integrem todas as
faixas etárias centralizadas pela liderança dos Karaí e Kunhã-Karaí no espaço espiritualizado
da Opy, de seu pátio (o), da Tekoá. Através do Jeguatá Tape Poocorreu o envolvimento
dos Mb com a vontade do Governo Federal em criar poticas concretas para salvaguardar o
Mbyá rekó e iniciar a discussão sobre a ligação de suas referências culturais com o patrimônio
paisagístico, arqueológico, arquitetônico, histórico e artístico das Missões Jesuítico-Guarani.
O processo de aplicação do INRC, procurando acompanhar e apoiar a caminhada dos
Mb, integrou ao menos quatro diferentes comunidades no processo de identificação e
valorização de suas referências culturais. Enquanto a Tekoá Koenju (RI Inhacapetum)
localiza-se na proximidade da Argentina e convive com os diversos tios do Patrimônio das
Missões; a Tekoá Anhetenguá fica a leste, em posição estratégica de ligação entre as
comunidades de Porto Alegre e do litoral do sul do Brasil. A distância entre elas reconstitui o
antigo Tape (caminho), pelo qual antigos e atuais Guarani circulavam e circulam ligando o
75
Participaram aproximadamente 200 Mbyá de diversas aldeias do Rio Grande do Sul.
159
centro do mundo (Yvy Mbité, no Paraguai) ao Oceano Atlântico. A meio caminho entre elas
fica a Tekoá Porã, localizada no Salto Grande do Jacuí, terceira comunidade contemplada no
INRC pela importância da liderança política e espiritual do falecido Karaí Juancito Oliveira,
considerado como um dos principais responsáveis pela proteção e pelo estímulo à manuteão
das verdadeiras tradições, do Mbyá rekó ete’í.
A quarta comunidade envolvida no INRC foi a Tekoá Yryapu, localizada junto a Pará
Guaçu (litoral/água grande/oceano). Foi nessa Tekoá que aproveitamos o convite do Karaí
Agostinho Duarte para que apoiássemos a realização do Nhemongaraí conforme já descrito
acima.
A maior parte dos participantes chegou em São Miguel no fim da tarde do dia 03 de
dezembro, colocando suas coisas na grama do Sítio Arqueológico. Todos ficaram muito
emocionados ao pisar ali, e imediatamente foram visitar as ruínas e se emocionaram mais
ainda com a hisria dos Guarani mortos contada no espetáculo “Som & Luz”. Os Mbyá
estavam claramente despreocupados com as precárias condições de acampamento e a noite
passou sem que muitos dormissem, aproveitando a oportunidade de confraternizar na Tava
Miri.
Na manhã do dia 04 os três ônibus fretados levaram os Mbyá para visitar a Tekoá
Koenju. O ritual de chegada na aldeia aconteceu segundo o sistema Mbyá, organizados em fila
pelos xondaro, ao som da jerojy (música tradicional). Da formão em fila (enorme, pois
estavam visitando a aldeia aproximadamente 200 Mb), formou-se um rculo onde os Mbyá
visitantes e os anfitriões confraternizaram juntos dançando o tangará. Depois da dança,
representantes das diversas comunidades manifestaram suas belas palavras” em homenagem
ao momento. Foi oportunidade para muitos conhecerem aquela Tekoá, para outros
reencontrarem amigos e parentes, tomarem banho no rio Inhacapetum etc. No meio da tarde,
todos se deslocaram novamente para junto da Tava Miri.
Muitos dos Mbyá que estiveram na Tekoá Koenju saíram da aldeia preocupados com
as reações do então cacique Floriano Romeu (Verá Xondaro), o que foi reforçado pelas
reclamações de alguns descontentes com o comportamento autoritário e excludente desta
lideraa.
Àquela noite, dormimos junto aos Mb no Sítio. A madrugada do dia 05 foi marcada
por conversas ininterruptas de diversos grupos, contando histórias dos antigos, dando notícias
dos parentes e conhecidos, tocando violão e dançando, dando risadas, discutindo os problemas
identificados na liderança de Floriano, avaliando a importância daquele momento e relatando
160
aos mais novos as histórias contadas pelos velhos sobre a Tava; tudo isso sendo motivo de
muita alegria para os participantes.
Na manhã do mesmo dia, os Mbyá dividiram os participantes em três grupos: um de
mulheres e crianças, outro de jovens e um terceiro de homens; todos passaram a trabalhar
nesta disposição, nos fundos das ruínas da Tava. Ali os Mbyá permaneceram durante a manhã
inteira, e, em cada grupo, debateram sobre o INRC e sobre a seleção de algumas de suas
referências culturais para ser salvaguardada pelo Governo Federal brasileiro. Este assunto
remeteu a muitos outros que fazem parte da vida dos Mb.
Foi unânime entre eles a opinião de que o encontro em São Miguel foi uma vitória dos
Mb, integrando representantes das mais diferentes idades, de ambos os sexos e vindos de
grande parte das comunidades do Estado, permitindo a visita e a realização de cerimônias
tradicionais dentro do espaço da Tava, atualizando as histórias contadas pelos antigos sobre
sua ligação com a terra e as ruínas das missões e atualizando suas formas de organização
política.
Na noite do dia 5 de dezembro todos os Mbyá-Guarani presentes participaram de uma
reunião geral realizada na quinta do Parque Arqueológico, a fim de auxiliar na resolução dos
conflitos internos da Tekoá Koenju. Esta reunião acabou culminando na deposição de Floriano
Romeu como cacique daquela Tekoá, ficando em seu lugar Nicanor Benitez (seu cunhado).
Por solicitação dos Mbyá, que queriam apoio na decisão, participamos da reunião/ritual na
qual Nicanor foi reconhecido como novo cacique. Tudo foi falado quase exclusivamente em
Guarani.
A noite novamente foi marcada por conversas, vozes a contar histórias e por
momentos de alegria. Quando o sol nasceu, a maioria dos Mb já estava em pé, conversando,
tomando chimarrão, andando de um lado a outro. Nestes dias todos, o trabalho dos xondaro
foi incessante e sua presença de ser percebida amesmo pelos moradores de São Miguel,
pois circulavam por todos os lugares o tempo todo, não só dentro do Sítio.
Nos dias 6 e 7 de dezembro, os Mbyá debateram com os juruá, representantes de
diversas instituições, sobre os propósitos do Governo Federal em destinar ações de
reconhecimento, valorização e proteção para suas referências culturais. Foram apresentados
um breve relato da história de criação e aplicação do INRC no Brasil, exemplos de aplicação
deste inventário em outras comunidades indígenas e alguns resultados da aplicação do INRC
junto aos Mbyá no Rio Grande do Sul, através da descrição feita por nossa equipe e assistindo
a um audiovisual sobre os resultados daquela etapa.
161
A apresentação das imagens e de cantos relacionados ao Mbyá re foi apontada por
diversos representantes Mbyá como um dos momentos mais importantes do Semirio,
especialmente para os jovens, porque eles puderam assistir coisas (como as armadilhas
tradicionais, o pari, a caça, a vida na beira do rio e dentro da mata) que muitos não
conheciam mais, pela dificuldade da vida que enfrentam em suas atuais comunidades.
Na sessão final deste Seminário, os Mb apresentaram três diferentes atas, cada uma
delas com as conclusões tiradas em cada um dos grupos de trabalho criados nos primeiros dias
do encontro (apenas entre os Mbyá). Na sessão plenária final, ficou decidido planejar e
realizar a segunda edição do evento novamente em São Miguel no ano de 2007, dando
continuidade ao processo iniciado com o INRC. Os Mbyá demonstravam satisfação pelos dias
de convívio e pelos acontecimentos e sentimentos presenciados.
Depois disso tudo, o discurso dos representantes Mbyá passou a criticar a idéia de que
São Miguel tenha sido uma criação dos jesuítas. Para eles, São Miguel existia como Tekoá
dos antigos Guarani e foram eles que convidaram os padres e lhes ensinaram a trabalhar a
pedra das ruínas. Ao combater a versão que os historiadores e cientistas divulgam (que os
padres católicos vieram para retirar os índios da selvageria e lhes introduzir na civilização), os
Mb se contrapõem às apropriações feitas sobre a Tava Miri São Miguel Marangatu, que
servem para deslegitimar a especificidade étnica deste símbolo (amplamente reconhecido) na
luta por direitos diferenciados. Esse assunto ainda i render muitos debates, inclusive
podendo fundamentar futuras pesquisas etnográficas.
4.1.3 A morte do xamã
É legítimo a um texto etnográfico se converter em uma junção de fragmentos e de
casos particulares, para dessa forma também reproduzir na narrativa as desordens do mundo e
da vida, conforme elas foram acontecendo na pesquisa de campo? Pode este texto trazer agora
outra descrição pontual, registrada em diário de campo, para demonstrar, atras de sua
reprodução, uma última alegoria sobre as ações e reações étnicas geradas por um evento
histórico dramático e inesperado, por si reprodutor de rupturas? Talvez não haja
circunstância com maior efeito de desordem sobre a rotina diária, nem capaz de despertar
melhor a consciência de historicidade, do que a morte de uma pessoa importante. Uma grande
perda que gera descontinuidades.
162
A fim de demarcar o paralelismo entre as divergências colocadas nos imponderáveis
da vida diária e a constituição heterogênea deste texto etnográfico, é trazida a descrição das
circunstâncias de morte e velamento ao corpo do Karaí Juancito Oliveira, evento que gerou
impacto entre diversas parentelas Mbyá no Rio Grande do Sul e que ilustra os níveis de
entendimento e desentendimento entre todos os atores envolvidos, entre os Mbyá e destes com
os representantes das instituições que os apóiam (ou o contrário).
A começar pelas circunstâncias que levaram ao falecimento de Juancito, onde fica
exemplificada a falta de entendimento ou de vontade por parte dos atendentes de “sde” no
tratamento dos sintomas que levaram a sua morte; o relato apresentado abaixo é ilustrativo de
muitos dos conceitos e abordagens trabalhados nesta dissertação. Embora o cenário e as
circunstâncias criadas e vividas por causa desse acontecimento sejam reproduzidas sem uma
maior elaboração neste texto propositalmente para dar ao leitor acesso em primeira mão ao
evento etnográfico na forma bruta como o experimentei e registrei em meu diário de campo –,
fica evidente ao longo de sua leitura a conexão entre as temáticas abordadas anteriormente.
A morte de Juancito ocorreu em circunstâncias um tanto absurdas, porque ele recebeu
alta hospitalar e não teve o acompanhamento terapêutico que precisava na aldeia. O fato
sintetiza o quão difícil é aplicar na prática aquilo que a legislação atual exige, ao garantir
respeito aos “direitos diferenciados”. A noção de diálogo, talvez, deva ser aqui substituída
pela de “polifonia divergente”, onde as pessoas não estão se entendendo, evidenciando que os
Mb sofrem num quadro de confusão interétnica em meio às práticas terapêuticas
oficialmente implantadas. É um paradoxo constatar que o sistema de “saúde” tenha se
mostrado incapaz de reter a vitalidade de uma das mais importantes lideranças Mbyá do
culo XX, num caso simples como parece ter sido o de Juancito.
A morte de Juancito provocou a mobilização das lideranças Mb e de algumas
instituições do Estado do RS. O impacto dessa perda levou ao empenho de algumas lideranças
na mobilização imediata de recursos, a fim de mais uma vez permitir a (re)união dos
representantes do maior número possível de comunidades, em respeito à memória do falecido
e para participarem das celebrações rituais em respeito ao morto e aos seus familiares.
Assim, o relato abaixo traz, a meu ver, um pouco de tudo o que foi tratado
anteriormente, numa situação tão alegórica quanto paradigmática. A Tekoá Porã se converteu
em cenário de referências culturais e de espelhamentos mútuos; em palco resultante dos
conflitos interétnicos e dos espaços de espelhamento e de construção da auto-imagem. Esta
situação também reiterou a proposição dos Mb em fazer a integração das ações
institucionais (“costurando” o apoio dos órgãos governamentais e não-governamentais), em
163
obter prestígio no respeito às tradições, em exigir a investigação sobre as circunstâncias da
morte de Juancito.
Os acontecimentos permitem concluir que uma grande perda, a partir de um acaso do
destino (um tanto resultante do descomprometimento profissional), pode ser revertida, por
outro lado, em ganho no processo de mobilização étnica. Esse jogo de gangorra entre perdas e
ganhos é uma das lições trazidas por este caso etnográfico, permitindo recuperar a noção de
diálogo e a das vivências interétnicas como um “cenárioem que sempre o “último ato” é a
próxima jogada, porque morrem os homens, mas continuam atuando suas comunidades,
através de outros homens.
***
Diário de campo29 de março a 01 de abril de 2006
Karaí Juancito Oliveira 1912 – 2006
uma semana, estávamos (equipe do INRC) às voltas com a elaboração de uma
apresentação de slides em PowerPoint para prestar contas ao IPHAN sobre nosso trabalho
realizado aentão. Dia 29 de março, enquanto produzíamos os slides, recebemos a notícia do
falecimento do Juancito, ou, do Karaí João de Oliveira, de Salto do Jacuí, uma das principais
lideraas espirituais dos Mbyá no Rio Grande do Sul. JoCirilo, como cacique geral dos
Mb no RS, nos pedia apoio para ir à aldeia do Salto do Jacuí urgentemente. Desde o
momento em que recebemos a notícia, percebemos a imporncia dessa perda para os Mb.
Exatamente no momento em que se fortaleciam a tradicionalidade Mbyá e a mobilização
calcadas na figura do Karaí, dos líderes espirituais, além dos líderes políticos, os Mbyá
perdem essa força simbólica e efetiva que é Juancito. A notícia de sua morte se espalhou
absurdamente rápido.
Como de costume, diante da diversidade de demanda relacionada aos Mbyá, nossa
equipe precisou dividir-se: duas pessoas iriam a Salto do Jacuí com o carro alugado para
nosso trabalho no INRC, e dois permaneceriam em Porto Alegre e apresentariam nosso
trabalho em São Miguel das Missões, no escritório do IPHAN. Eu era uma das pessoas que
foi para Salto do Jacuí, o que me proporcionou experiência única, marcante e transformadora.
À manhã de 30 de março, passamos fazendo os slides sobre as Refencias Culturais
dos Mbyá, atordoados com a notícia recebida. À tarde, eu e Adrián, colega de trabalho,
começamos a tentar sair de Porto Alegre, rumo a Salto do Jacuí. Primeiro, fomos à aldeia da
164
Lomba do Pinheiro, onde vive JoCirilo com sua família. Ele nos disse que Jo Acosta
Mb que viveu durante muitos anos com sua esposa e seu filho em São Miguel, antes de
haver a comunidade ou a Reserva, e que teve fundamental importância no processo de
abertura do Sítio Arqueológico ao livre trânsito dos Mb estava na aldeia e gostaria de ir
junto ao Salto despedir-se de Juancito. Conversamos um pouco, esperando José Acosta, mas
não o encontraram, teria saído, talvez, ninguém sabia. Como ainda havia lugar no carro, foram
com a gente, além de José Cirilo, mais dois Mbyá: uma menina de 15 anos e um rapaz de 17,
iros e parentes de Jo Cirilo.
Logo que entramos no carro, José Cirilo manifestou sua insatisfação com a equipe do
Projeto que tratava da questão do uso abusivo de bebidas alcoólicas, porque ele havia
solicitado apoio (recurso) para a alimentação dos Mb que se dirigiam de diversas aldeias do
Rio Grande do Sul para Salto do Jacuí, e também carona para ele. A coordenadora do Projeto
teria dito que não poderia gastar o dinheiro do projeto para isso porque depois faltaria. José
Cirilo contra-argumentou que Juancito foi um dos grandes responsáveis e companheiro de
luta no combate ao alcoolismo entre os Mbyá e que participou, legitimando, das reuniões dos
Karaí, caciques e lideranças Mbyá-Guarani e que agora “não podia ser abandonado”. Ao final
dessa negociação, a coordenadora concordou e repassou a José Cirilo R$ 300,00 para a
alimentação dos Mbyá. A carona nós já daríamos. JoCirilo conseguiu ainda com o CEPI,
através da coordenadora deste Conselho, mais R$ 100,00. Depois de negociar e arrecadar
daqui e dali esses recursos, saímos de Porto Alegre e fomos a Salto do Jacuí.
Durante a viagem, José Cirilo ainda não sabia detalhes sobre a morte de Juancito e
nem como seria o enterro. Havia ficado sabendo apenas que muitos Mbyá haviam recebido
a notícia e que de diversas aldeias começavam a se deslocar parentes. Eu controlava minha
curiosidade e euforia diante do que acompanhava. Conformei-me em perguntar algumas
poucas coisas: onde são enterrados os Karaí, como e depois de quanto tempo? José Cirilo nos
contou que Perumi (líder espiritual Mbyá, já falecido) foi enterrado dentro da Opy “porque ele
era o dono, né, da Opy, era o Opyguá”, justificou. Perumi faleceu no hospital, em Porto
Alegre, e foi levado para ser enterrado na Opy da aldeia da Varzinha, no município de Caraá.
Naquele momento, José Cirilo limitou-se a nos contar que o corpo permanece dentro da Opy
alguns dias e que as pessoas rezam muito, cantam, dançam e fumam petyngua.
Chegamos à cidade de Salto do Jacuí tarde da noite e achamos melhor passar a noite
em um hotel e chegar à aldeia no outro dia de manhã. Assim foi feito e, depois do café da
manhã no hotel, nos dirigimos à aldeia Salto Grande do Jacuí. Chegamos no meio da
manhã e ouvimos imediatamente os cantos vindos da Opy, em volta a muita fumaça. Alguém
165
confirmou que o corpo de Juancito estava lá dentro. Para mim, que chegava, dava a impressão
de que, desde o momento de sua morte, os Mbyá não haviam parado de cantar, de rezar. Essa
sensação me acompanhou durante todo o tempo em que permaneci na aldeia: ao acordar, ao
dormir, ao voltar do rio, ao retornar da cidade, ao me aproximar do pátio da Opy.
Foi possível perceber de imediato uma atmosfera diferente para dizer o mínimo
entre os Mbyá. Havia aproximadamente trinta pessoas vindas, em um ônibus financiado pelo
CIMI, das aldeias de Itapuã, Estiva e Cantagalo.
Assim que colocamos os pés na aldeia, seu Adolfo (Karaí de Itapuã) veio reclamar
para José Cirilo que eles estavam com fome, pois o CIMI teria cedido o ônibus, mas não
providenciara alimentação. Maurício Gonçalves (liderança Mbyá que trabalha com o CIMI)
estava entre eles, mas não tomou qualquer providência quanto a isso. José Cirilo respondeu
a seu Adolfo que isso não era com ele. José Cirilo, pelo contrário, chegou trazendo alimento
para ele e para os outros Mbyá com os quais havia feito contato, e para os que tinha
conhecimento que deslocavam-se para o Salto: eram três homens de Barra do Ouro e uma
mulher da Lomba do Pinheiro, irmã de JoCirilo. Além deles, vieram os dois jovens Mbyá
com a gente no carro. Da FUNASA, José Cirilo conseguiu uma carona para levar os Mb da
Barra do Ouro para Salto do Jacuí. Pelo telefone, falou com Cláudio Acosta (liderança Mbyá
da aldeia de Estrela Velha; filho de Perumi) que solicitou que buscássemos alguns Mbyá de
Estrela Velha. Para toda essa gente, Jo Cirilo tinha levado alimento, enquanto o ônibus
organizado pelo CIMI levava de volta para suas aldeias os Mbyá com fome”, reclamou mais
uma vez seu Adolfo a José Cirilo, ao entrar no ônibus para o retorno.
Antes de sair o ônibus, todos os Mbyá que iriam embora dirigiram-se ao pátio da Opy
e despediram-se dos Mbyá que ficavam, deslocando-se em um grande círculo,
cumprimentando os parentes de forma ritual tradicional: levantavam as mãos e os braços na
frente de cada Mb que passavam ao percorrer o rculo formado pelas pessoas. Neste
momento de despedida, eu estava um pouco longe, mas acredito que falavam, como de
costume, a palavra aguyjevete, que pode ser traduzida como uma saudação de plenitude.
Quando voltamos à aldeia do Salto com os Mbyá que havíamos buscado em Estrela
Velha, naquela manhã, JoCirilo não sabia exatamente como agir, percebi. O fato de ser
Mb e até cacique geral não evita que seja, de certa forma, um “de fora quando em outra
aldeia que não a que vive. Quando tiramos do carro os alimentos para aqueles dias, José Cirilo
olhou para mim (para mim!) e perguntou: “e agora, onde a gente descarrega a comida e faz o
fogo para fazer o almoço?”. Nesse momento, lembrei da construção compartilhada da
realidadee percebi que ele não tem (e nem qualquer outro Mbyá) todas as respostas, ainda
166
que os questionamentos versem sobre seu modo de vida, sua cultura etc. Nem sempre eles
sabem como agir, ainda que entre os seus, e nem como os outros Mbyá vão pensar ou reagir.
As ações, atitudes, impressões e decisões vão se constituindo na medida em que vão
acontecendo. Não são poucas as ocasiões em que nós, jur, solicitamos respostas e
posicionamentos dos Mbyá sobre seu grupo, que nem mesmo eles sabem dar, que nem mesmo
eles têm clareza. Ao perguntar a Jo Círio, em diversas situações: Cirilo, então, como
devemos agir?A resposta que obtive foi: “pois é, também não sei....
Conversando entre si, em Guarani, os Mbyá visitantes decidiram levar os alimentos
para um local longe do pátio da Opy, em direção ao interior da aldeia. Rapidamente fizeram
uma tataypy rupa (fogueira), e as mulheres presentes iniciaram o preparo da refeição. Depois
de comermos arroz com galinha e chipá, permanecemos um tempo ainda em volta à fogueira,
fazendo a digestão. José Cirilo conversava com algumas lideranças do Salto, em Guarani, mas
entendi que era sobre as causas da morte de Juancito que José Cirilo investigava. O que nós,
juruá, ficamos sabendo foi que Juancito estava bem e passou a ter vômitos e diarréia. Foi
levado ao hospital de Salto do Jacuí no dia 25 de março. Ficou internado até o outro dia,
quando recebeu alta. Como era domingo, Juancito foi liberado para voltar à aldeia sem levar a
medicação prescrita. No dia seguinte, permaneceu com os sintomas e na quarta-feira, dia 29,
faleceu durante a madrugada. A possível causa foi a desidratação, uma questão banal de
evitar. Os Mbyá ficavam cada vez mais indignados à medida que iam reconstituindo os fatos
para Jo Cirilo e para si próprios. Falaram que iriam processar o hospital e o médico por
neglincia. José Cirilo telefonou para a FUNASA, em Brasília, e falou com a antropóloga
Luciane Ferreira para se informar sobre quais providências tomar. Luciane disse que apenas
fazer um documento, como havia sido pensado, não resolveria nada, e que era necessário
tomar atitude mais radical: contratar advogado e entrar com processo. JoCirilo disse que o
atendimento de saúde aos Mbyá do Salto do Jacuí é muito problemático e que ocorreram
outros problemas. Irônico que, enquanto os Mbyá discutiam isso, chegou ali na aldeia o carro
da equipe de saúde da Prefeitura. O funciorio desceu do carro bem em frente ao posto de
saúde e o abriu. Atendeu um menino que havia machucado o joelho, fazendo-lhe um curativo.
Fechou o posto e foi embora. Não o vi falando com ninguém na aldeia, com exceção de
algumas poucas palavras que trocou com a mãe do menino com o joelho machucado. Os
Mb observaram aquilo em silêncio. Depois, continuaram a conversa, revoltados.
No meio da tarde, os Mbyá anfitriões convidaram-nos a voltar para o pátio da Opy.
Desmontamos o “acampamento armado para o preparo do almoço e fomos. Fiquei
conversando com os homens, enquanto as mulheres ficaram sentadas um pouco mais distantes
167
de nós, fumando petynguá. Eles falavam em Guarani, mas compreendi que comentavam a
respeito do CIMI ter deixado os Mbyá sem alimentação e outro fato que os indignou: a falta
de respeito que representou a saída dos Mb antes do fim do ritual nebre. Aquela atitude
foi recebida pelos parentes de Juancito como descaso, por “virarem as costas a ele”, ainda que
compreendessem que não era vontade dos Mbyá ir embora, mas imposição do CIMI.
Fomos convidados a tomar kaay (chimarrão) no tio da antiga Opy, local onde vivia
Juancito com sua esposa quando faleceu. Eu era a única mulher do grupo, mas essa situação já
não me causava estranhamento quando me encontrava entre os Mb, e acredito que para eles
também já era algo, de certa forma, naturalizado.
O sol começou a baixar e iniciou-se aquela movimentação sutil, quase imperceptível
dos Mbyá: eles preparavam-se para entrar na Opy e sair tarde da noite. Candiño Oliveira,
filho de Juancito e liderança anfitrda aldeia naquele momento, buscou cobertores em um
galpão, uma lona grande e entregou aos Mb visitantes. Rapidamente, estava montada uma
“cama de 5 hectares”, como chamaram os Mbyá, e alguns cobertores distribuídos sobre ela.
Ao lado da “cama”, acenderam uma fogueira. Deixaram tudo pronto para quando voltassem
cansados da Opy e para nós, que permaneceríamos ali, do lado de fora.
Sentei ali, em volta ao fogo, e fiquei a observar os Mbyá chegando de todos os lados
da aldeia com seus popygua (os homens), seus taquapu (as mulheres), e todos com seus
petynguá. Passavam por mim, que estava no pátio da Opy e, portanto, no caminho, e me
cumprimentavam tranqüilos e parecendo à vontade (ou indiferentes) com minha presença.
José Cirilo entregou-me seus dois aparelhos celulares, despediu-se (“nos encontramos mais
tarde”) e dirigiu-se à Opy. A última cena que vi, antes de todos adentrarem a Opy, foi o
movimento que têm de fazer, abaixando-se um pouco, para passar por sua pequena porta
76
. Na
frente da Opy ficou apenas a fogueira que permaneceu acesa durante os cinco dias que durou
o ritual fúnebre do Karaí Juancito, e que durante o dia reunia os Mbyá à sua volta. Havia
permanentemente um ou outro Mbyá andando em volta à Opy e cuidando do fogo. De dentro
da Opy saía muita fumaça, criando uma espécie de nuvem que a envolvia.
Veio a noite, escura (segundo dia de lua crescente) e muito estrelada. De repente,
estávamos nós dois, eu e meu colega, apenas com a luz do fogo. Permaneci ali deitada,
olhando para o u. Então, os Mb começaram a cantar/rezar. Primeiro, ouvia-se uma voz
masculina. Um rezador, um Karaí. Os taquapu marcavam a batida no chão. Depois, as vozes
femininas. Repetia-se a mesma seqüência homens-mulheres/taquapu sempre, por horas e
76
A porta da Opy é geralmente mais baixa do que um Mb adulto.
168
horas. Todo aquele cenário tirava-me a consciência por momentos, como se dormisse e
despertasse de repente, voltando a ver as estrelas e a ouvir os cantos vindos da Opy de
Juancito. Fiquei pensando muito na força que os Mbyá manifestam e concentração também
– dentro da Opy, dançando e cantando horas sem parar, inclusive as crianças.
Nessa noite, os Mbyá saíram
77
da Opy perto da meia-noite. Dirigiram-se diretamente
para a fogueira onde estávamos, próxima à “cama”. Logo todos adormeceram, mulheres,
velhos, crianças, rapazes, meninas.
01 de abril de 2006
Abri os olhos e ouvi os cantos vindos da Opy. Eram sete horas da manhã. Lembrei,
então, que havia dormido no tio da Opy da Tek Porã (Aldeia Bela). Adrián contou-me
que despertou às cinco da mane já se ouviam os cantos. Durante a manhã toda, os Mbyá
rezaram e cantaram na Opy. O sol começou a esquentar. O fogo já (ou ainda?) estava aceso e
os Mbyá que despertavam iam reunindo-se à sua volta. Juntei-me a eles. Ficamos sabendo que
o enterro seria naquele dia, perto do meio-dia. Disseram-nos que poderíamos acompanhar o
enterro, que seria feito no cemitério que há dentro da Tek.
Fui tomar um banho no que imaginava ser um simples riozinho. Surpreendi-me com
um imenso poço natural e uma cachoeira, um lugar lindo ao fundo da Tekoá. Quando voltei
ao pátio da Opy, onde estavam concentrados os Mb durante aqueles dias, José Cirilo deu a
notícia de que o enterro o seria mais naquele dia, e, sim, amanhã. Perguntei o motivo, e ele
respondeu que não sabia, pois era uma decisão da comunidade de lá, de Salto. Fiquei sem
entender nada, pois esta era a terceira vez que mudava a data do enterro de Juancito: todos os
dias, a certa altura, decidia-se que seria “amanhã”. Sendo assim, José Cirilo nos disse que não
poderíamos ir embora, voltar para Porto Alegre, pois o ritual não acabara e teríamos que
esperar até amanhã. Havia também outro problema: os Mb, que foram de Barra do Ouro
para o Salto de carona no carro da FUNASA, conseguiriam carona de volta na segunda-
feira (era sábado), pois durante o fim de semana era impossível contatar qualquer funcionário
da FUNASA. JoCirilo acrescentou que ele também não podia ir embora com a gente, pois
“se um Guarani for embora, todos vão querer ir também, mas não pode, porque seria falta de
respeito com Juancito. Os Guarani tem que ficar sofrendo todos juntos, uns não podem
abandonar os outros. Então, tem que ficar todo mundo”. (Registro das palavras de Jo Cirilo
Morinico em drio de campo). Nós, eu e Adrián, precisávamos retornar. Debatemos por um
77
Alguns, não todos ao mesmo tempo. A esposa de Juancito, por exemplo, praticamente não saiu de dentro da
Opy durante o ritual fúnebre. Eu a vi poucas vezes naqueles dias e sempre saindo ou entrando na Opy.
169
tempo com os Mbyá (José Cirilo e outras lideranças), em uma negociação séria, porém
tranqüila, em que todos procuravam achar a melhor solução. Falamos a eles que nós, juruá,
precisávamos voltar. Eles disseram que precisavam ficar, mas que compreenderiam se nós
fôssemos, apesar de desejarem que fissemos. Acertamos que nós daríamos todo o apoio
necessário para a permanência deles em Salto do Jacuí até segunda-feira, depois de realizado
o enterro, e para o retorno às suas aldeias, e só então iríamos embora. Fomos à cidade de Salto
do Jacuí com José Cirilo e compramos alimentos para deixar aos Mbyá para as próximas
refeições asua partida. Informamo-nos na rodoviária sobre o valor da passagem para Porto
Alegre e deixamos o valor referente para José Cirilo e os dois jovens que vieram em nosso
carro. Deixamos também o valor das passagens de cinco Mbyá de Estrela Velha, que
havíamos buscado no primeiro dia. Comprometemo-nos em fazer contato com a FUNASA, na
segunda-feira pela manhã, para solicitar que buscassem os Mbyá que haviam levado ao Salto
do Jacuí, pois os telefones celulares não funcionam muito bem na aldeia e eles poderiam ficar
sem possibilidade de comunicação.
Acertado tudo isso, eu e Adrián nos despedimos dos Mbyá e voltamos a Porto Alegre.
Quando deixávamos o pátio da Opy, os cantos continuavam sendo ouvidos, e, naquele
momento, despedi-me de Juancito.
170
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora esta dissertação talvez tenha se estendido além do que se espera para um
trabalho deste tipo, muitas questões ficaram de fora e muitas elaborações podem ainda ser
feitas sobre as inúmeras temáticas exploradas. Procurei escapar da redução intelectual dos
parâmetros do Etnógrafo Solitário e dos propósitos de uma “alegoria do resgate” do texto
etnográfico, misturando minhas constatões empíricas e elaborações teóricas com as ações,
falas e reações de inúmeros atores registrados nos espaços de observação. Tentei fazer deste
texto uma ilustração, numa metáfora que interliga as formas de polifonia, de polissemia, ou
seja, de diálogo em que se dão as manifestações empíricas de pessoas colocadas, segundo
seus próprios propósitos, como participantes dos espaços de interlocução.
A metáfora do diálogo é utilizada aqui de maneira alegórica para ilustrar um aspecto
importante das relações interpessoais presentes na vida de cada um dos Mbyá, em seu
convívio diário com os laços de subordinação impostos pelos representantes não-Mbyá
(juruá). Muitos podem contestar esta escolha e reconhecer a falta de diálogo como aspecto
preponderante nas relações que os Mbyá estabelecem com atores externos. Por isso, utilizei a
idéia de diálogo no seu sentido alegórico, entendendo-o mais pelo viés das análises teóricas de
Émile Durkheim sobre as relações sociais, na versão adequada para a etnologia a partir dos
trabalhos de seus seguidores. Recordando a análise de Lévi-Strauss (1988) sobre as relações
humanas, entendidas ao mesmo tempo como trocas econômicas (dádivas), sociais
(parentesco) e simbólicas (lingüísticas) – incluindo os casos de reciprocidade negativa como o
roubo, a guerra e a incompreensão lingüística , a idéia de diálogo pode também conter a
noção de “polifonia divergente”, para enfatizar os casos de maior ou completa confusão e
incompreensão entre os interlocutores.
A insistência na noção de diálogo se justifica porque ela demonstra o entendimento de
uma postura tornada hegemônica nos campos de relão que englobam os atores Mbyá no Rio
171
Grande do Sul. A atual conjuntura política enfatiza as relações democráticas,
igualirias, participativas, que respeitam as diferenças culturais. Teoricamente, todos estão
aderindo aos propósitos do “vamos conversar”, o que explica o surgimento de sucessivas
reuniões integrando atores institucionais e atores Mbyá. Neste caso, como no de qualquer
diálogo (mesmo aquele travado entre pessoas íntimas), há sempre um vel de entendimento
complementado por outros de desentendimentos, e, nem por isso, as pessoas desistem de
conversar. Inspirando-me nos hermeneutas, quero apostar nas possibilidades de entendimento.
O ato de conversar exige dos interlocutores o propósito de fazê-lo. Neste particular, os Mbyá
se mostram incansáveis praticantes.
Como procurei demonstrar, nos últimos anos, ocorreu, no Rio Grande do Sul, a
criação de espaços ainda que eventuais, i.e., derivados das circunstâncias históricas e dos
fatores locais no processo de reconhecimento administrativo da diversidade cultural , ou de
cenários, nos quais ocorrem constantes negociações entre os Mbyá e as instituições, mas que
não estão consolidados enquanto prática sistemática e que também não têm êxito todas as
vezes. Situações etnográficas foram apresentadas e analisadas como forma de exemplificar e
registrar alguns avanços e tamm recorrentes inadequações nesse processo.
Discorrendo sobre estórias e alegorias, este texto poderia ainda ser explorado em
diversas direções, tantas quantas são as oões do jeguatá Mbyá. Minha intensa experiência
de campo trouxe-me uma constante impressão de que o registro das situações etnográficas se
mostrava sempre reducionista, na medida em que restringia inevitavelmente a riqueza das
experiências vividas e da complexidade das realidades que eu procurava narrar textualmente.
A atenção em um detalhe da cena ou a compreensão dos acontecimentos desde
algumas das versões em disputa me causou constante desconforto, porque condicionava a
construção do texto e desconsiderava as inúmeras outras posições, pontos de vista e
posicionamentos sobre os assuntos que tratei. As experiências vividas intelectual e
fisicamente procuraram ser transpostas ao texto na forma de pequenas narrativas, alegorias
que são uma parte da história, ou melhor, uma forma de contá-la
78
.
Desde antes e para além deste texto estão os Mbyá, protagonistas do seu próprio
destino, a atualizar seu habitus através de suas práticas e discursos. Isto sim é que deve ser
entendido como o horizonte que interliga e sentido a todos os fragmentos selecionados,
78
Talvez o caso mais evidente seja a falta que se faz sentir, neste texto, de outros pontos de vista das diversas
parentelas e grupos de aliança Mbyá sobre os temas tratados, particularmente o caso das alianças de alguns com
a Igreja Católica e os movimentos e partidos sociais.
172
dentre os quais: as vozes dos representantes Mbyá ecoando nos cenários institucionais [juruá],
em meio ao que chamei de “polifonia divergente”; narrativas sobre as práticas dos
profissionais (médicos, enfermeiros, técnicos agrícolas etc.) que atendem mais diretamente as
comunidades Mbyá e que reproduzem, muitas vezes, pré-conceitos históricos do
etnocentrismo ocidental; a realização de encontros periódicos de líderes espirituais e de todos
os demais membros das comunidades Mb, com o apoio de instituições governamentais e
não-governamentais; a construção de casas tradicionais de rezas (Opy) em quase todas as
comunidades Mbyá do Rio Grande do Sul, subsidiadas com recursos públicos e de agências
internacionais de financiamento (Banco Mundial); as estratégias de apropriação por parte dos
Mb das categorias biomédicas de saúde, propondo dialogar com a integralidade de sua
cosmovisão; a criação e execução do Jeguatá Tape Porã como um projeto baseado na
motivação étnica Mbyá e no Mbyá rekó e sua transformação em uma referência para poticas
públicas a serem implantadas nas comunidades Mbyá; a construção de casa de passagem
Mbyá-Guarani dentro do tio Arqueológico de São Miguel, direito exclusivo de ocupação
dentro de uma área que é protegida como Parque Federal; a emergência da discussão sobre o
Patrimônio das Missões entre os Mbyá etc.
O tratamento de processos coletivos pelo viés de algumas entre as múltiplas possíveis
versões dos acontecimentos – o que parece inevitável – gera polêmica, assim como querer dar
um estatuto universal a uma pesquisa etnográfica que se baseia, na realidade, em histórias
específicas e com todos os condicionantes discutidos ao longo do texto, parece ilusório,
podendo, da mesma forma, tornar-se polêmico. Esta pesquisa é mais um exemplo da
impossibilidade de escapar das verdades parciais (CLIFFORD, 1991), mas creio, ainda assim,
traz verdades parciais bastante significativas.
A trajetória da pesquisa acabou acompanhando muito de perto uma das formas de
mobilização e de reconstrução da auto-imagem enquanto Mb no RS, aquela que se agrega
em torno do “Belo Caminho da Tradição”, através do trabalho dos xondaro (guardiões)
guiados pelos deres espirituais, com o objetivo de valorizar e reforçar constantemente o
Mbyá rekó.
Outra postura assumida por representantes Mb na reconstrução de sua auto-imagem
enquanto grupo étnico enfatiza a identidade mais geral Guarani, ressemantizada pela figura de
Sepé Tiaraju. As lideranças que se manifestam a favor desta posição (principalmente através
de Maurício Gonçalves) colocam-se incisivamente contra a existência de um der Mbyá geral
(críticos à posição ocupada atualmente por José Cirilo como cacique geral) e definem como
173
objetivo prioritário de luta de seu grupo étnico a “luta pela terra”, numa identificação com os
propósitos de outros grupos minoritários da sociedade brasileira.
Pesquisas futuras poderão analisar este assunto, partindo da informação hisrica de
que os Guarani antigos “não reconheciam outro líder que o pajé-principal” (NIMUENDAJU,
1987:75). Enquanto que a posição representada por Maurício enfatiza a independência
decisória dos caciques de cada aldeia e não os vincula diretamente às lideranças espirituais e
às formas do Mbyá re; a postura assumida por José Cirilo e outros Mbyá focaliza paradoxal
a partir dessa posição potica que ele ocupa e que é questionada e exatamente esta ênfase
histórica no poder e controle dos Karaí, na medida em que sua trajetória de vida demonstra
reiteradamente o quanto ele canaliza motivações coletivas fundamentadas no Mbyá rekó,
valorizando o papel social dos velhos (tu kuery). Minha hipótese é a de que sua posição
como cacique geral se sustenta porque é legitimada pelas lideranças espirituais e não as
políticas, geralmente reconhecidas apenas pela habilidade no trato com o juruá ou
reconhecidas apenas “de fora” –, o que demonstra a criatividade dos Mbyá em adaptar suas
“instituições mais periféricas” para que elas se tornem instrumentos da instituição mais
fundamental que é a liderança espiritual.
Por fim, é necessário apontar uma das principais constatões deste trabalho, num
sentido mais potico e prático, que é a importância de se reconhecer que a construção de
políticas públicas diferenciadas depende da superação das práticas intervencionistas e
assistencialistas, que sobrevivem como marcas do sistema tutelar, atualizadas por
atores/profissionais que nem se propõem a conhecer ou respeitar as formas próprias de vida e
organização Mb.
Não basta pensar as poticas diferenciadas, criando leis que garantam este tipo de
atendimento às populações indígenas, sem se (re)conhecer as especificidades de cada grupo.
Os problemas na aplicação dessas poticas se colocam na medida em que elas são elaboradas
longe de onde são executadas. Quem es na ponta, relacionando-se diariamente com as
comunidades Mbyá, geralmente o tem noção desses preceitos garantidos por lei; e não
aceita na prática o “caráter multicultural da sociedade brasileira”. Por exemplo, os médicos e
enfermeiros que trabalham nos postos de saúde dentro das áreas indígenas entre outras
pessoas envolvidas nesse processo não demonstram ter, de uma forma geral, conhecimento
suficiente nem dessas leis de sua ppria sociedade, quanto menos conhecimento das formas
culturais e de organização daqueles Mbyá com os quais interagem. Assim, as incompreensões,
incompatibilidades e os conflitos são inevitáveis.
174
Tomar consciência destes e de outros problemas não é recair no pessimismo, mas, sim,
provocar e tensionar as posições dos atores em interação para um equilíbrio maior das
relações de poder, para que a polifonia divergente se transforme em heteroglossia e para que a
reciprocidade não seja tão negativa para os Mbyá.
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