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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
E METODOLOGIA DAS CIÊNCIAS
EXPERIÊNCIA PRIMEIRA E ESTRUTURA: Uma abordagem sobre o
comportamento na obra de Merleau-Ponty
ERICSON FALABRETTI
SÃO CARLOS
2006
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
E METODOLOGIA DAS CIÊNCIAS
EXPERIÊNCIA PRIMEIRA E ESTRUTURA: Uma abordagem sobre o
comportamento na obra de Merleau-Ponty
ERICSON FALABRETTI
Trabalho apresentado ao Centro de Educação
e Ciências Humanas, programa de Pós-
graduação em Filosofia e Metodologia das
Ciências, da Universidade Federal de São
Carlos, como parte dos requisitos para
obtenção do título de doutor em Filosofia
.
Orientador: Prof. Dr. Richard T.
Simanke
SÃO CARLOS
2006
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Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da
Biblioteca Comunitária/UFSCar
F177ep
Falabretti, Ericson.
Experiência primeira e estrutura: uma abordagem sobre o
comportamento na obra de Merleau-Ponty / Ericson
Falabretti. -- São Carlos : UFSCar, 2007.
309 p.
Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de São Carlos,
2006.
1. Filosofia francesa. 2. Filosofia contemporânea. 3.
Merleau-Ponty, Maurice, 1908-1961. 4. Comportamento. 5.
Estrutura. 6. Percepção. I. Título.
CDD: 194 (20
a
)
Para Cristina e Nina
pelo enfrentamento do tempo
que nos aproxima.
“A distinção que tínhamos feito alhures entre
estrutura e significação doravante se esclarece: o
que faz a diferença entre a Gestalt do círculo e a
significação do círculo é que a segunda é
reconhecida por um entendimento que a engendra
como o lugar dos pontos eqüidistantes de um
centro, a primeira por um sujeito familiar ao seu
mundo e capaz de apreendê-la como uma
modulação deste mundo, como fisionomia
circular. Não temos outra maneira de saber o que
é um quadro ou uma coisa senão olhá-los, e a
significação deles só se revela se nós os olhamos
de um certo sentido; em uma palavra, se
colocamos a nossa convivência com o mundo a
serviço do espetáculo”.
MERLEAU-PONTY
RESUMO
Este trabalho procura esclarecer o alcance das considerações merleau-
pontyanas sobre o comportamento. Fizemos, antes de tudo, o inventário crítico do
comportamento como está sugerido em A Estrutura do Comportamento. Nesse
caso, buscamos mostrar que as escolas clássicas de Psicologia, na explicação do
comportamento, encontram-se, em geral, diante de duas posições: a
intelectualista, que preconiza uma psicologia analítica da consciência como causa
produtora e a sua antítese empirista que se mantém fiel ao pensamento causal
quando determinou ao psíquico uma realidade material e exterior. São, portanto,
duas posições antitéticas sobre a relação consciência-natureza: a filosofia
intelectualista, que faz da natureza uma unidade constituída pela consciência e a
ciência empirista, que separa natureza e consciência como duas realidades da
mesma categoria substancial, ligadas por relações de causa e efeito. Depois, num
segundo momento, tendo em vista os problemas decorrentes dessas teorias
clássicas, apontamos os fundamentos para uma nova descrição do
comportamento: as idéias de experiência direta e de estrutura. Finalmente,
procuramos através de uma leitura da Fenomenologia da Percepção mostrar
como uma concepção fenomênica do comportamento é possível, desde que
mantidas as categorias de experiência direta e de estrutura para que possamos,
por meio de uma abordagem fenomênica do corpo, elaborar uma nova leitura das
relações entre consciência e natureza.
Merleau-Ponty, comportamento, experiência direta, estrutura, percepção.
Résumé
Ce travail a l’intention d’éclarcir la portée des considérations de Merleau-
Ponty sur le comportément. On a fait l’inventaire critique sur le
comportément, tel que cet notion est presentée dans l’oeuvre « La
Structure du Comportément ». On a cherché de montrer que lesécoles
classiques de psychologie, se trouvent devent deux positions :
l’intellectualiste, que préconise une psychologie analytique de la
conscience comme sa cause productrice et son antithèse empiriste,
laquelle se mantient fidèle a la pensée causalle, lorsque elle a
determinée pour le psychisme une realité matérielle extérieur. Ce sont,
deux positions antithétiques vis a vis la relation entre conscience-
nature : la philosohie intellectualiste que fait de la nature une unité
constitué par la conscience et la science empirique, que separe la
conscience et la nature comme si elles étaient deux réalités que
appartiennent à la même catégorie substantielle, liée par des rélations
de cause et effet. Dans la séquence, ayant en vue les conséquences de
ces théories classiques, on va dans la diréction d’une nouvelle
description du comportément : les idées de expérience directe et de
structure. Finalement, on a cherché, a travers une lecture de la
« Phénomenologie de la Perception », montrer comment une conception
phenomenique du comportémentl est elle possible, si on mantient les
catégories de expérience directe et de structure, pour qu’on puisse, a
traves une approche phénomenique du corps, élaborer une nouvelle
lecture des relations entre conscience et nature.
Merleau-Ponty, Comportement, expérience directe, strutucture,
perception.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................... p. 8
I A CIÊNCIA DO COMPORTAMENTO
1.1 O Pensamento Moderno: abstracionismo e introspectivismo...................... p. 13
1.2 A teoria do reflexo e o comportamento........................................................ p. 31
1.2.1 A teoria das localizações........................................................................... p.47
1.3 O Behaviorismo e o comportamento........................................................... p. 63
II A EXPERIÊNCIA DIRETA E O MEIO COMPORTAMENTAL.........................p.84
III A PERCEPÇÃO E O LOCUS FENOMENAL................................................p.117
IV A ESTRUTURA............................................................................................ p.144
4.1 As Estruturas Psicológicas... ......................................................................p.152
4.2 As Formas e o Comportamento...................................................................p.171
V O COMPORTAMENTO ESTRUTURAL:OPACIDADE E TRANSPARÊNCIA
5.1 A consciência perceptiva e a estrutura corporal.............................................193
5.2 As coisas......................................................................................................p.211
5.3 O Outro....................................................................................................... p.230
5.4.O Eu.............................................................................................................p.240
VI O ESPAÇO, O TEMPO E O COMPORTAMENTO.
6.1 O espaço......................................................................................................p.254
62 O tempo........................................................................................................p.275
CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................p.289
REFERÊNCIAS.................................................................................................p.303
8
INTRODUÇÃO
Poder-se-ia descrever, imanente ao comportamento, uma espécie
de física animal, mas a originalidade não poderia ser
compreendida senão por uma psicologia e uma filosofia que
soubessem criar um lugar ao indeterminado como tal e
compreender que um comportamento ou uma experiência pode ter
uma significação vaga e aberta sem ter uma significação nula.
Merleau-Ponty
O elogio sobre a possibilidade e o alcance da indeterminação e da
abertura como categorias descritivas de uma Filosofia e de uma Psicologia nova,
elegidos nas palavras de Merleau-Ponty que dão abertura a este trabalho, é um
sólido indício sobre o conjunto das idéias do autor e, de certo modo, anuncia as
pretensões que envolvem esse texto. No primeiro caso, podemos afirmar com
uma boa dose de segurança que a filosofia merleau-pontyana transparece quase
que intensamente nesse belo fragmento recortado de A Estrutura do
Comportamento. A busca pelo caráter fundante do “indeterminado” e o
reconhecimento da experiência como algo “aberto” e de “significação vaga”, são
motivos que animam o pensamento de Merleau-Ponty desde os seus primeiros
textos – os projetos dos anos 30 – até as suas últimas obras.
A pretensão deste trabalho não é analisar como essas categorias da
experiência pré-flexiva são significativas na medida que estão presentes em todas
as obras de Merleau-Ponty e, desse modo, apontam para a fundação de uma
nova Filosofia no século XX. O nosso objetivo é mais parcimonioso. Entretanto,
ainda que não seja o nosso desígnio principal, caminhamos naturalmente para
reconhecer, mesmo através de uma leitura restrita, a fundação dessa nova
Filosofia, pois basta o enfrentamento com A Estrutura do Comportamento e com
9
a Fenomenologia da Percepção para nos depararmos com a consecução de um
original e rigoroso pensamento, que renova sistematicamente a compreensão da
existência. Nessas duas primeiras obras temos a abertura para uma descrição
marginal, opaca e transparente do comportamento, algo que buscamos entender.
Ainda na sua primeira obra – fundado nas noções de experiência direta
e estrutura – Merleau-Ponty estabelece uma nova perspectiva teórica para a
interpretação do comportamento que, com o advento das Ciências Humanas,
principalmente da Psicologia, passou a ser marcada por posições ontológicas
antitéticas. Em A Estrutura do Comportamento nos deparamos, de imediato,
com a idéia de que o comportamento não é compreendido em todo seu significado
quando nos limitamos a interpretá-lo situando-o no mesmo lugar, empregando a
mesma metodologia e as mesmas categorias sustentadas pelas teorias clássicas.
Corpo e alma, exterior e interior, associacionismo e inatismo, por exemplo, são
concepções que foram contrapostas como base de diferentes filosofias que não
são satisfatórias na descrição do comportamento porque, nomeadamente, não
abarcam esse fenômeno em sua totalidade. Assim como arco-reflexo, reflexo
condicionado, experiência direta e meio comportamental se, por um lado, são
categorias consistentes que merecem atenção, por outro, empobrecem a noção
de comportamento quando nos restringimos a elas. Portanto, se quisermos ter
uma visão mais profunda e rica do comportamento, precisamos fazer um exame
dessas categorias e dos sistemas que se estruturaram a partir delas. Desse modo,
as questões que interessam a Merleau-Ponty estão nas fronteiras da Biologia, da
Fisiologia das Psicologias e, mesmo, do empirismo e do intelectualismo.
10
É começar a luta entre a expressão e o expresso, é aceitar a condição
de uma reflexão iniciante. O que nos encoraja é que não há vida pura
e absolutamente inexpressiva no homem, é que o irrefletido só
começa a existir para nós através da reflexão. Entrar nessas
contradições, como o senhor dizia a pouco, parece-me que isto faz
parte do inventário crítico de nossa vida, que é a filosofia.
1
Portanto, está dado, desde muito cedo, nas preocupações de Merleau-
Ponty que uma perspectiva geral da fenomenologia como um método, que uma
teoria da percepção como um dado fundamental e uma noção do corpo como
existência fenomenal, por exemplo, somente poderiam encontram razão de ser
após o pensamento clássico e o advento das ciências experimentais. Assim a
filosofia merleau-pontyana parece se instalar nas fronteiras, no espaço que
somente pôde se abrir após as teorias clássicas terem se situado.
Merleau-Ponty, por meio do exame do comportamento, busca a
compreensão de uma das questões centrais do debate filosófico pós-cartesiano: a
caracterização da relação entre consciência e natureza. Por isso mesmo é fácil
reconhecer que o trabalho realizado em A Estrutura do Comportamento é de
natureza filosófica e, sobretudo, na orientação metodológica da fenomenologia. O
que fundamentalmente está em discussão em A Estrutura do Comportamento é
todo um conjunto de reflexões temáticas que relacionam, opõem, enraízam ou
reduzem o sujeito ao objeto, a consciência à natureza, o espírito ao corpo.
Questões como essas circundam todo o horizonte filosófico da modernidade e
formam a base ontológica das Psicologias contemporâneas. A emergência do
sujeito e a sua inerência ou não ao mundo converge, por exemplo, para filosofia
de Descartes, Locke, Hume, Kant e Husserl. Porém, a tradição não parece ter
1
MERLEAU-PONTY. O primado da percepção e suas conseqüências filosóficas, p. 72.
11
levantado todas as questões ou, muito menos, fornecido todas as respostas para
pôr fim ao debate. Nas primeiras linhas de A Estrutura do Comportamento,
Merleau-Ponty já deixa evidente que também tomará parte nessa discussão:
“Nosso objetivo é compreender as relações entre a consciência e a natureza (...)”.
2
A natureza orgânica, considerada pela filiação realista do empirismo, é
concebida como uma massa material disposta partes extra partes. Ao contrário da
teoria clássica do reflexo, da reflexologia de Pavlov e das teorias behavioristas
como a de Watson, Merleau-Ponty considera que o comportamento humano deve
ser compreendido como possuindo intenções e significações e não
exclusivamente como sendo resultado de uma relação determinista de excitações
e reações. Mas isso não significa que Merleau-Ponty assumiu os pressupostos do
introspectivismo, pois as intenções e as significações não estão alojadas, não são
funções exclusivas de um ego interior. Merleau-Ponty, com indicaremos no
decorrer do trabalho, supera essas posições antagônicas mostrando que
comportar-se, diferente do que estabeleceu a Psicologia empirista, é ter o sentido
da situação que se está e, além disso, contrariando o introspectivismo, mostra que
o comportamento não tem o modo de ser da consciência, pois ele também é feito
de gestos significativos que se expressam no mundo. Desse modo, incluída a
discussão direta com as Psicologias, já se esboça de modo evidente em A
Estrutura do Comportamento a preocupação merleau-pontyana com as
questões mais fundamentais do existencialismo: a condição do homem no mundo,
a tarefa de superar a antinomia do “em si e do para si”. Na busca de compreender
a unidade significativa do homem no mundo, de superar a dicotomia da existência
2
MERLEAU-PONTY. La Structure du Comportement, p. 4.
12
como coisa e da existência como consciência, Merleau-Ponty entende que é
fundamental considerar, conjuntamente aos dados da experiência (empíricos e
científicos) do comportamento, uma análise das categorias interpretativas desses
mesmos dados. Essa via supõe, de antemão, o estabelecimento de uma visão de
conjunto acerca do comportamento que, como indicaremos, ganha sentido a partir
das idéias de experiência direta e de estrutura. Já encontramos, desse modo, em
A Estrutura do Comportamento, como que antecipando o trabalho da
Fenomenologia da Percepção, a importância de um exame da percepção para a
compreensão do comportamento, condição essencial para superar os postulados
conceituais associacionistas e intelectualistas, que opõem sensação à percepção
e, ainda, as posições fisicalistas que reduzem o comportamento a centros
coordenadores anatomicamente localizados.
Portanto, como já havíamos anunciado no início desse texto, o exame
crítico das teorias do comportamento e das nas noções de experiência direta e de
estrutura apontam para uma terceira via: nem empirismo e nem intelectualismo. O
que Merleau-Ponty realiza conjuntamente em A Estrutura do Comportamento e
na Fenomenologia da Percepção é estabelecer uma nova possibilidade de
entendimento do comportamento que, por um lado, exclui as posições antitéticas
clássicas e, por outro, conduz à elaboração de uma nova filosofia. Filosofia que,
como pretendemos mostrar, traz em si os fundamentos de uma abordagem
fenomenológica do comportamento que se afirma na descrição da riqueza, da
indeterminação e da opacidade de um comportamento esquecido que, como por
uma necessidade lógica, está alojado nas fronteiras do esquematismo, do
determinismo, da transparência e da opacidade.
13
I - A CIÊNCIA DO COMPORTAMENTO
1.1 O Pensamento Moderno: abstracionismo e
introspectivismo
Eis-me, portanto, sozinho na terra, tendo apenas a mim mesmo
como irmão, próximo, amigo, companhia. (....) Mas eu, afastado
deles e de tudo, que sou eu mesmo? Eis o que me falta
procurar. Infelizmente, essa procura deve ser precedida por um
exame de minha situação. É uma idéia por que devo
necessariamente passar para chegar deles a mim.
ROUSSEAU
Wolfgang Köhler estabeleceu muito claramente que o primeiro
problema da Psicologia consistiu em determinar o seu objeto. A sua origem foi
marcada por essa tarefa metodológica impositiva, uma espécie de pré-requisito
científico do qual ela, como todas as outras ciências, não pôde fugir. Coube aos
primeiros psicólogos tentar, antes de tudo, separar o material que deveriam deixar
de lado, daquele que se mostraria mais adequado aos interesses da ciência. Em
outras palavras, foi muito significativo para a realização científica da Psicologia
comprometer-se inicialmente com um trabalho de tipo taxonômico e abstracionista.
A oposição entre os diferentes sistemas de psicologia – introspectivista, fisicalista
e behaviorista - foi forjada, principalmente, pelas divergências estruturais dessas
escolas, que tomaram ora os processos fisiológicos, ora o comportamento
observável ou, ainda, a controversa noção de consciência interior como sendo o
material psicológico definitivo. Essa determinação clássica parece ser a razão
mais plausível para a indefinição do objeto e, por conseqüência, para a má
definição da ciência e do seu precário caráter metodológico, ainda quando
pensamos no tempo e nos argumentos de Köhler.
14
Apesar das divergências é interessante notar que, entre as escolas de
Psicologia, uma mesma postura epistemológica se mostra presente. Se, por um
lado, a oposição sempre recorrente, entre as diversas escolas de psicologia –
fisicalismo, behaviorismo e introspectivismo – é explicada pela definição singular
do objeto, pela determinação específica do dado real a ser investigado é preciso,
por outro lado, também reconhecer que as escolhas desses fundamentos que as
separaram em campos opostos forjaram uma mesma postura: a abstração da
experiência direta. Há, então, antes de tudo, um trabalho de base convergente
determinado pelas fixações, ainda que distintas, de campo e de objeto.
Convergente na medida em que, considerando ou não o substrato psicológico
como o fisiológico, ou como a noção de consciência interior ou, ainda, como
comportamento observável, é sempre a experiência perceptiva que está perdida.
Independente da filosofia – racionalista ou empirista – ou da escola de Psicologia
– fisicalista, comportamentalista ou introspectivista – é o mundo objetivo que
interessa e nunca o mundo fenomênico.
De acordo com os cientistas, nenhum objeto e nenhum fato da
Natureza possui características de valor. Não importa se a referência é
feita aos valores em geral ou aos compromissos; toda espécie está
excluída da descrição da Natureza. Os objetos físicos meramente
existem, e os fatos meramente ocorrem; tal é o veredicto das ciências
naturais.
3
Conforme as palavras de Köhler, ao recusar qualquer determinação de
valor, a da ciência moderna decretou o fim da experiência direta como fonte do
conhecimento. A grande mudança ocorreu quando foi estabelecido que o
3
KÖHLER. Psicologia, p 110.
15
verdadeiro mundo, o científico - não é o mesmo mundo que se apresenta aos
nossos olhos. Se o real é o exterior ou o mental interior, ele não é,
nomeadamente, observável na mesma medida em que são, como se poderia
supor, os fenômenos dados à percepção direta. Podemos, nessa perspectiva,
concluir que uma dicotomia ontológica, conforme as palavras abaixo de Descartes,
marcou o início da ciência moderna:
(...) encontro em meu espírito duas idéias do sol inteiramente diversas:
uma toma a sua origem nos sentidos (...) e pela qual o sol me parece
extremamente pequeno; a outra é tomada nas razões da Astronomia,
(...) e pela qual sol me parece muitas vezes maior do que a terra
inteira. Por certo, essas duas idéias que concebo do sol não podem
ser ambas semelhantes ao mesmo sol: e a razão me faz crer que
aquela que vem imediatamente de sua aparência é a que lhe é mais
dessemelhante.
4
Existe o sol dado aos sentidos e o outro sol, esse verdadeiro, na
medida em que é alcançado pelo juízo. O conhecimento genuíno, em oposição ao
vulgar, com a tradição moderna passou a ser encarado como aquele que não é
feito de coisas, de propriedades, de qualidades e de transformações que existem
e operam de modo independente da subjetividade. Apreendemos, sobretudo com
os primeiros filósofos modernos, que as qualidades (cor, ruído, cheiros etc) não
existem em si mesmas. São apenas produtos da influência do ambiente sobre o
homem e, por isso mesmo, não devem parte do mundo objetivo da ciência.
Seguindo a mesma lógica, destituímos ainda mais a nossa vivência direta de
sentido de realidade quando levamos a abstração ao seu limite extremo.
Passamos a desconsiderar também os aspectos aparentes das qualidades
4
DESCARTES, Meditações Metafísicas, p 180.
16
primárias (peso, figura e movimento), julgando-as tanto sem significado de
realidade quanto as secundárias. Como resultado, todas as propriedades
dependem do organismo que as experimenta e o mundo, de modo geral, passou a
ser considerado como desprovido de sabor, de textura e de cores. Desse modo se
mostrou fundamental abstrair das sensações, limpar a percepção das influências
do meio obscuro e desconstruir a visão subjetiva fundada na experiência direta –
na vivência imediata. Assim, somos constantemente alertados pela filosofia da
modernidade a buscar a verdade do mundo fora da própria experiência do mundo.
O que nos legaram os modernos como Bacon, Descartes e Galileu, por
exemplo, é a idéia geral de que o verdadeiro conhecimento não se estrutura a
partir do modo como o mundo se apresenta aos nossos sentidos. A experiência
direta deve ser descartada como obscura e confusa. Na clássica passagem crítica
dos ídolos, na obra Novum Organum, Bacon já proclamava a necessidade de
uma grande reforma capaz de corrigir os sentidos, de guiar melhor o intelecto, de
purificar a linguagem e de transformar a sociedade. Essa grande reforma
baconiana começou por separar o cientista do homem comum, por distinguir o
mundo objetivo da ciência do mundo fenomênico da experiência. Bacon
estabeleceu de modo evidente que o mundo da experiência científica não é o
mesmo que se apresenta como vivência. O caminho da ciência e o caminho da
experiência direta não seguem a mesma direção, não têm a mesma lógica, não
vêem o mesmo mundo. Nessa concepção clássica da modernidade, a realização
do primeiro caminho – a via científica - somente é possível com a superação da
experiência direta. Por isso mesmo, é central na teoria da indução baconiana a
distinção entre a experiência vulgar e a estruturada. Enquanto a primeira via, típica
17
dos empíricos e dos metafísicos, é mediada por um observador que opera ao
acaso deixando-se guiar pela paisagem ou pelas abstrações a priori de uma razão
contaminada pelo princípio de autoridade, a segunda via, a experiência
estruturada, supõe um observador metódico e preparado intelectualmente, livre de
preconceitos e suficientemente instrumentalizado para lidar sistematicamente com
os dados da natureza. E isso, porque os caracteres da experiência direta – vulgar
- não nos fornecem a imagem exata das coisas, daquilo que realmente ocorre na
natureza. Segundo nos indica Bacon, as qualidades dadas como certas na
experiência direta não passam de ilusões ídolos – que precisam ser afastadas
da via do conhecimento genuíno, uma vez que a verdade sobre o mundo natural
está mascarada pelas propriedades a que a experiência vulgar se atém:
Não há nenhuma solidez nas noções lógicas ou físicas. Substância,
qualidade, ação, paixão, nem mesmo ser são noções seguras. Muito
menos, ainda as de pesado, leve, denso, raro, úmido, seco, geração,
corrupção, atração, repulsão, elemento, matéria, forma e outras do
gênero. Todas são fantásticas e mal definidas.
5
Descartes, ao seu modo, também esteve atento a esse tipo de
separação e foi, muito provavelmente, o mais radical dos abstracionistas da
modernidade. As quatro regras do método – evidência, análise, ordem e
enumeração - manifestam claramente a tentativa do sujeito em se desfazer da
experiência direta para, ao mesmo tempo, buscar conduzir-se diante de uma
experiência arranjada pelo entendimento. As regras do método impõe que a única
experiência a ser considerada é aquela que se mostra indubitável ao juízo, que
pode ser dividida em tantas partes quanto for possível, que de pode ser
5
BACON. Novum Organum, I, xv, p.35.
18
classificada do simples ao complexo e, finalmente, que se apresenta como
passível de ser revisada para, desse modo, o sujeito estabelecer, com segurança,
uma verdade que não deixou escapar nada à razão. Assim temos, de modo bem
definido, as regras que nos permitem supor como nos conduzir com segurança
para apreender diante da experiência.
A verdadeira filosofia, como nos revelam as confissões autobiográficas
do Discurso do Método e os primeiros parágrafos das Meditações Metafísicas,
se faz no recolhimento. É preciso, alerta Descartes, isolar-se, distanciar-se,
colocar-se longe das perturbações do mundo cotidiano se quisermos refletir com
clareza: “Agora, pois, que meu espírito está livre de todos os cuidados, e que
consegui um repouso assegurado numa pacífica solidão (...)”.
6
O inventário crítico
da dúvida metódica não determinou apenas um novo modo de diferenciar o falso
do verdadeiro. Com o advento da dúvida metódica, o mundo corpóreo e a
experiência direta, especialmente ela, foram de uma vez por todas abalados. No
itinerário cartesiano, o retorno do sujeito ao mundo da experiência não supõe mais
as mesmas cores, as mesmas formas, a mesma paisagem. A espontaneidade da
percepção perdeu lugar para uma razão metodicamente estruturada, para as
exigências do conhecimento verdadeiro - claro e distinto - e, sobretudo, para o
sujeito pensante, pois ele se apresenta sempre como um guardião, disposto a
corrigir a nossa relação com o mundo. Nunca, nesse caso, é demais retomar as
conseqüências do clássico episódio de análise do pedaço de cera na segunda
Meditação Metafísica, que opõem o julgamento dos sentidos ao do
entendimento:
6
DESCARTES, Meditações Metafísicas, p. 167.
19
O que é, pois, que se conhecia deste pedaço de cera com tanta
distinção? Certamente não pode ser nada de tudo o que notei nela por
intermédio dos sentidos, posto que todas as coisas que se apresentam
ao paladar, ao olfato, ou à visão, ou no tato, ou à audição, encontram-
se mudadas e, no entanto, a mesma cera permanece. Talvez fosse
como penso atualmente, a saber, que a cera não era nem essa doçura
do mel, nem esse agradável odor das flores, nem essa brancura, nem
essa figura, nem esse som, mas somente um corpo que um pouco
antes me aparecia sob certas formas e que agora me faz notar sob
outras.
7
O corte epistemológico cartesiano, como sugere o texto acima, é claro:
sujeito de um lado e mundo de outro. Enquanto a experiência direta se faz o
pensamento a julga e a supera. Tudo deve passar pelo crivo do entendimento. O
mundo da experiência fundado no nosso contato sensível com as coisas é confuso
e cambiante na medida em que somente retém propriedades que são efêmeras e
obscuras. A cera continua a mesma independente das qualidades que se
apresentam ou não à percepção, pois a certeza, segundo a lição cartesiana,
encontra o seu lugar, não nas idéias provenientes dos sentidos, mas em uma
subjetividade transcendente que comporta somente idéias claras e distintas. A
despeito das cores que vemos, do som que ouvimos, do cheiro que sentimos, da
textura que experimentamos e do gosto que provamos da cera, o julgamento a ser
considerado, o verdadeiro juízo sobre a essência da cera ou sobre a dimensão do
sol, se faz através do pensamento e não dos sentidos.
A mesma lógica preconizada por Bacon e Descartes está presente nas
pesquisas e nas descobertas de Galileu. A observação da superfície irregular da
lua, a constatação das manchas solares exige um olhar sofisticado e
suficientemente capaz de purificar e ultrapassar os limites da experiência direta,
7
DESCARTES, Meditações Metafísicas, p. 178.
20
porque não é sob o olhar nu do homem comum que os astros mostram as suas
verdadeiras faces. Só há uma verdade sobre os astros: aquela visada pelo olhar
investido do poder do telescópio e, ainda, metodicamente estruturada pelo
entendimento. No fim, a experiência que interessa é somente aquela estruturada
pelo cientista, já que essa é a única que se mostra adequada para revelar o que
está além da percepção ambígua das propriedades sensíveis e, ainda, de
converter as coisas, as cores, os sons, as figuras em caracteres universais.
A filosofia se encontra escrita nesse grande livro que continuamente
se abre perante nossos olhos, que não se pode compreender antes de
entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito.
Ele está escrito em linguagem matemática, os caracteres são
triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos
meios é impossível entender humanamente as palavras; sem eles nos
vagamos perdidos de um obscuro labirinto.
8
Apreendemos com Galileu que o conhecimento científico é o
conhecimento racional que recusa, na mesma medida, tanto a verdade que resulta
de uma profissão de fé como, também, aquelas fundadas em um empirismo
natural. A geometrização do cosmos, a matematização do saber e a depuração
instrumentalizada da experiência impuseram-se absolutas na relação do cientista
com o mundo a partir de Galileu. O espaço deixou de ser concreto e qualitativo,
para ser homogêneo e abstrato e a paisagem definitivamente não pertence mais
aos sentidos e à percepção, pois a explicação de Galileu para o universo nasceu
de uma observação que diz não ao substancialismo e à vivência e que, por
conseqüência, se estrutura em uma linguagem constituída de signos que não são
os mesmos que conferem sentido à nossa experiência cotidiana.
8
GALILEU. O Ensaiador, p. 119.
21
Herdeira do pensamento clássico, a Psicologia, enquanto ciência do
comportamento, deu os primeiros passos reproduzindo a mesma metodologia
abstracionista dos filósofos modernos. Como que fiel à metodologia baconiana, à
necessidade abstracionista cartesiana e às exigências de cientificidade afirmadas
por Galileu, a Psicologia – como indicam as interpretações de Köhler e de Koffka
se estruturou quase que inteiramente pautada pelas idéias de que nenhum
aspecto da experiência direta, de que nenhuma afirmação relativa e, ainda, de que
nenhum testemunho subjetivo poderia ser considerado como parte do mundo real.
Num breve exame da história da ciência, como aqueles realizados pelas obras de
Köhler, de Koffka, de Merleau-Ponty e de Skinner, por exemplo, essa perspectiva
abstracionista aparece como uma escolha determinante tanto para a noção de
ciência em geral como, por extensão, para a definição de uma ciência do
comportamento. Conforme Köhler, assim como a ciência moderna, as primeiras
escolas científicas de psicologia também procuraram se estruturar em “um mundo
objetivo e independente de coisas físicas, de espaço físico, de tempo e de
movimento físico, afirmando que tal mundo não aparece na experiência direta”.
9
Foi, precisamente, como referência fundamental – como modelo a ser imitado -
que os princípios epistemológicos da ciência moderna foram marcantes para a
fundação de uma psicologia.
A escola de Psicologia introspectivista, a primeira a ser considerada,
recusa a idéia, conforme já estabelecemos ao comentar o pensamento de
Descartes, de que a partir da experiência exterior temos acesso direto às coisas.
9
KÖHLER. Psicologia da Gestalt, p. 11.
22
O intelecto tem, nesse caso, a função primordial depurar a experiência de todo
conteúdo dado através dos sentidos. Realiza, portanto, uma tarefa muito mais
extensa do que apenas promover a ligação entre sensações e percepções.
Conforme o exame crítico de Köhler os introspectivistas se caracterizam, antes de
tudo, por negar a possibilidade de conhecermos verdadeiramente qualquer coisa
pelos sentidos: “Não podemos ver um livro – diz-no a introspecção – porque esta
expressão implica conhecimento acerca de certa classe de objetos (...) A simples
visão nada tem a ver com isso”.
10
Essa mesma perspectiva crítica sobre a postura abstracionista acerca
da sensação e da percepção por parte do introspectivismo encontramos em
Merleau-Ponty. Logo no primeiro capítulo da Fenomenologia da Percepção, já
nos deparamos com a afirmação de que as interpretações clássicas -
intelectualista, empirista e kantiana - sobre a sensação estão na base da filiação
ontológica que nos separa do mundo e, ainda, toma a percepção como um
acontecimento secundário: Todavia, vamos ver que ela – a sensação – é a mais
confusa que existe, e que, por tê-la admitido, as análises clássicas deixaram
escapar o fenômeno da percepção”.
11
Esse movimento de separação apresenta-se no próprio uso da
linguagem; quando nos referimos ao sentir, são somente propriedades que
dependem do eu e não do mundo que invocamos. Considero as propriedades
como existências distintas das coisas, ambas se apresentam na forma de um
10
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p. 45.
11
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p. 23.
23
espetáculo que encontra a sua significação na atividade reflexionante do sujeito:
“eu vejo as coisas e sinto o vermelho e o quente”. Essa noção, como indica
Merleau-Ponty ao comentar a teoria da sensação proposta pelo cartesianismo,
supõe que o juízo é o que torna possível o processo de construção cognitiva que
nos faz passar da sensação à percepção ou, ainda, a síntese objetiva que une as
propriedades às coisas. O juízo, como no exemplo do pedaço de cera, constitui o
princípio explicativo e sintético da experiência sensitiva. E o juízo é o fator do
sentir e do perceber verdadeiros. Por isso, para os intelectualistas podemos, de
modo geral, pressupor uma espécie de “puro sentir” como uma faculdade do
entendimento que, ao que tudo indica, não se refere ao mesmo sentir da
experiência direta. Essa idéia nos diz que não conhecemos as coisas por meio
dos sentidos ou da percepção, pois, como descreve o texto de Descartes, não
temos como reconhecer a essência das coisas através do que sentimos mas,
antes de tudo, por meio do julgamento do que sentimos.
(...) se por acaso não olhasse pela janela homens que passam pela
rua, à vista dos quais não deixo de dizer que vejo homens da mesma
maneira que digo que vejo a cera; e, entretanto, que vejo desta janela,
senão chapéus e casacos que podem cobrir espectros ou homens
fictícios que se movem apenas por molas? Mas julgo que são homens
verdadeiros e assim compreendo, somente pelo poder de julgar que
reside em meu espírito, aquilo que acreditava ver com meus olhos.
12
Para os partidários da introspecção filiados à tradição cartesiana, muito
pouco da nossa experiência sensorial pode ser considerado como um fato objetivo
e verdadeiro em si mesmo. As observações diretas aparecem como ilusões, seja
12
DESCARTES. Meditações Metafísicas, p. 179.
24
em função das experiências perceptivas que nos apresentam o mundo como algo
confuso, seja em função dos hábitos que nos orientam a ver coisas sempre do
mesmo modo ou, ainda, da aprendizagem que construiu um discurso sobre uma
realidade que em si mesma não tem sentido. Os verdadeiros objetos para o
introspectivista não são fornecidos pelos dados sensoriais, existem quando
superamos os dados da experiência em direção a uma significação universal
fundada em postulados racionais da subjetividade. É preciso superar as
aparências e ir além do visível. Nessa perspectiva o segredo do mundo e de todas
as vivências está na consciência que, em última análise, é quem torna possível
uma vivência dirigida e a apreensão de um mundo que sempre permanece
transcendente à consciência.
Apreendemos com a tradição introspectivista, desde Descartes, que o
conhecimento objetivo encerrado na consciência supõe que todos os aspectos da
experiência direta, que todo caráter sensorial e, sobretudo, essa mesma
experiência deve ser abstraída e ultrapassada. Como um evento confuso, é
preciso depurar a experiência e buscar encontrar o que nela pode ser significativo
é o que não é, pois, como já indicamos, não podemos atribuir um caráter confiável
a nossa experiência sensível sem recorrer a uma referência interior: a consciência
reflexionante. Por isso mesmo, como nos lembra Köhler, não é muito difícil de
imaginar a natureza da tarefa que cabe ao psicólogo introspectivista: encontrar,
para além das sensações e da experiência, num exame do sujeito os verdadeiros
dados – da consciência - que conferem sentido à experiência: “A significação
representa um acidente de nossa experiência. Em psicologia deveremos, portanto,
25
procurar deixá-la de lado e concentrar a nossa atenção nas sensações reais. O
processo graças ao qual se consegue isso é chamado de introspecção”.
13
Conforme a visão geral, através das sensações temos acesso às
qualidades enquanto, por meio da percepção são os objetos que se apresentam,
ainda que não sejam aqueles da ciência. Enquanto a sensação nos coloca diante
de dados elementares e primários a percepção nos fornece, por seu turno, um
conjunto de substâncias – coisas - carregadas de sensação. Nesse sentido, entre
a sensação e a percepção, mesmo para os intelectualistas, é a lógica
associacionista que opera. Através da sensação abstraímos dos objetos, por meio
da distinção entre as diferentes qualidades simples. Já com a percepção, temos a
possibilidade de recompor o objeto como um todo. Portanto, conforme a lógica
associacionista, as escolas de Psicologia introspectivista realizaram o trabalho de
base que mencionamos no início do capítulo. Promoveram, antes de tudo, a
separação entre sensação e percepção como operações distintas sem, no
entanto, deixar de tomá-las como complementares e estéreis, quando
consideradas em si mesmas, para o processo de entendimento do
comportamento, já que essa é uma tarefa da consciência. Não podemos deixar de
reconhecer que para o introspectivismo, muito semelhante ao behaviorismo, é
sempre uma perspectiva elementarista que se impõe na consideração, tanto da
sensação como da percepção e, por extensão, do comportamento. Sensação e
percepção nos fornecem o todo como resultado de uma montagem de fragmentos,
sejam de qualidades ou de coisas. Por isso mesmo, cabe ao intelecto a tarefa de,
13
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p. 46.
26
a partir de fragmentos de cores, de sons, de situações e de materiais dispersos,
refazer o elo que liga sensação e percepção.
As pesquisas realizadas pela Gestalttheorie, relativas aos fenômenos
perceptivos, conduzem a uma recusa da posição ontológica intelectualista de que
os fenômenos ou são apenas referências externas de nossas representações
subjetivas ou, então, não se referem diretamente às nossas experiências, mas
apenas à nossa capacidade para representá-los. Se a sensação, por exemplo,
não deve ser reduzida a uma simples resposta, como um reflexo fisiológico a um
estímulo externo pontual, a percepção também, não deve ser considerada como
resultado de uma atividade sintética realizada pelo pensamento, como concebem
os pensadores tributários do intelectualismo.
O behaviorismo, conforme ainda iremos descrever, partidário dessa
separação que opõe o mundo objetivo ao da experiência, também considera o
objeto da psicologia na perspectiva clássica dos filósofos da modernidade. No
entanto, censura uma concepção de psicologia que se dirija ao mental quando
esse é considerado na mesma categoria da substância pensante cartesiana;
estabelece, de modo geral, não ser viável formular leis sobre a vida mental
interior, como também não é possível fazer um levantamento da experiência
direta. No fundo o behaviorismo reduziu as duas perspectivas, introspectivismo e
experiência direta, a uma só; enquanto o substrato do introspectivismo, sendo
interior, não pode ser observado, a experiência direta, por sua vez, sendo relativa
a cada indivíduo, é incapaz de fornecer um exame objetivo. É justamente nesse
sentido que o behaviorismo estabelece que o introspectivismo e a experiência
27
direta se equivalem. Em ambas não há abstração, não há observação estruturada
e, por conseqüência, não podem ser matematizadas. Sobre essa crítica é muito
elucidativa a análise de Skinner sobre os processos mentais: não se trata, nos diz
Skinner, de negar que esses processos existem. Aliás, quem afirma que o
behaviorismo nega a existência de processos mentais, ainda segundo Skinner,
está alimentando um preconceito típico daqueles que desconhecem os princípios
da verdadeira “filosofia behaviorista”
14
e todas as questões que ela se propõe a
resolver. A Psicologia behaviorista, conforme nos indica Skinner, é uma escola de
pensamento que se ocupa da consciência, dos sentimentos, das intenções e que
não ignora a existência e o sentido das motivações. Portanto, é possível afirmar
que as divergências entre o introspectivismo e o behaviorismo se pautam
primeiramente por considerações de natureza ontológica. Não está dado nessa
oposição, de maneira clara, o problema da existência ou não de estados mentais,
se a consciência existe ou não, se é uma realidade ou uma ficção. Mas, em última
medida, o fator determinante que coloca essas filosofias em campos opostos é a
consideração sobre o tipo de existência da consciência, sobre a natureza
substancial da consciência e o seu próprio lugar. É preciso considerar a
consciência a partir daquilo que se mostra visível, já que o seu lugar é o mesmo
do comportamento observável. O maior problema apontado pelo behaviorismo,
acerca das psicologias introspectivistas, consiste justamente na tentativa de
abandonar o comportamento observável e considerar os processos mentais como
sendo interiores, algo que beira, nos termos de Skinner, o campo da “fantasia”.
14
CF. SKINNER. Sobre o Behaviorismo.
28
Muitas supostas causas internas de comportamento, tais como
atitudes, opiniões, traços de caráter e filosofias permanecem quase
que inteiramente ilativas. Que uma pessoa seja a favor do trabalhismo,
que pretenda votar num determinado candidato, que seja inteligente,
liberal ou pragmática, é algo que sabemos, não a partir do que ela
sente, mas do que ela diz ou faz. Não obstante, termos referentes a
traços de caráter são livremente usados na explicação do
comportamento. Um político continua a candidatar-se por causa de
sua “ambição”, faz negócios escusos por causa se sua “ganância”,
opõe-se a medidas que visam a eliminar a discriminação por causa de
sua “insensibilidade moral”, mantém o apoio de seus seguidores por
causa de suas “qualidades de liderança”, e assim por diante, em
situações em que não há provas disponíveis de causas internas, a não
ser o comportamento a elas atribuído.
15
Essa análise do introspectivismo, como realizada pelo behaviorismo,
pode ser compreendida como resultado da consideração de uma dupla tendência
por parte do introspectivismo: filiação a noção de consciência interior e à Filosofia.
Primeiro, é sempre necessário considerar que a experiência da consciência
interior está carregada de subjetivismo. Os fatos, que se passam na consciência,
são tão variados como são os sujeitos. No caso, por exemplo, de uma psicologia
introspectivista temos a evidente falta de objetivismo metodológico – o observador
está situado no próprio sistema que observa. O método, ou melhor, a falta de um
método experimental, leva ainda mais longe o excesso de subjetivismo. Isso
explica, por exemplo, por que em uma análise fundada no introspectivismo é muito
comum que duas pessoas tenham, sobre um mesmo evento, duas leituras
distintas. Pior, ainda, conforme a leitura de Köhler, o comprometimento ao
subjetivismo impossibilita qualquer tipo de análise pública, no sentido de se
afirmar verificável. Estamos, quando abandonados ao subjetivismo condenados a
falar somente do eu para o próprio eu.
15
SKINNER. Sobre o Behaviorismo, p. 138.
29
Assim é o subjetivismo em sua forma extrema. Se cada um de nós tem
sua própria experiência direta, e está excluído da experiência direta, e
está irremediavelmente excluído da experiência de todas as demais
pessoas, essa experiência é um assunto particular de cada um de nós
e não é possível, baseando-se nela, criar-se uma ciência.
16
Desde Sócrates e Platão a filosofia tem trabalhado com categorias –
consciência, corpo, alma, intuição, paixões, sensação – da experiência direta e da
vida interior e, ainda, tem afirmado com freqüência o valor dessas categorias na
explicação da existência. A exploração da experiência subjetiva – “Assim leitor sou
eu mesmo a matéria deste livro” –
17
juntamente com os métodos de auto-análise
– “(...) manter um registro fiel de minhas caminhadas solitárias e dos devaneios
que a preenchem...
18
- compõe um vasto e recorrente campo de explicação do
comportamento humano por parte das mais diferentes filosofias. Estamos, nesse
caso, diante de um legado histórico de categorias que não podemos simplesmente
ignorar. Por isso, conforme nos sugere a crítica da Psicologia behaviorista e de
Köhler, encontramos tanta insistência na validade dessas noções que não se
aplicam às leis da física e da biologia. Mas é preciso descartá-las, pois não são e
não obedecem às exigências mínimas para compor um dado científico sobre o
comportamento. Novamente é interessante fazer intervir os argumentos de
Skinner: o recorte epistemológico sknneriano que dá origem à ciência do
comportamento - as relações entre o organismo e o ambiente – parece sugerir que
não é na filosofia que encontraremos o material adequado da ciência. Skinner
pressupõe, fundamentalmente quando destaca os materiais e os métodos da
ciência do comportamento, o texto abaixo assim indica, que a nova ciência do
16
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p. 15.
17
MONTAIGNE. Ensaios, p. 11.
18
ROUSSSEAU. Devaneios de um caminhante solitário, p 31.
30
comportamento pressupõe uma recusa da filosofia: dos seus materiais – a
experiência subjetiva – e dos seus métodos – a auto-análise:
O material a ser analisado por uma ciência do comportamento provém
de muitas fontes: (1) As observações causais...Generalizações
baseadas nelas...fornecem indicações para um estudo posterior. (2)
Na observação de campo controlada...(3) A observação clínica...(4)
Observações amplas...pesquisas industriais, militares...(5) Estudos em
laboratórios do comportamento humano...(6) Os resultados dos
estudos de laboratório do comportamento de animais abaixo do nível
humano também são úteis.
19
Portanto, o behaviorismo critica uma concepção introspectivista de
psicologia como, de maneira análoga, rejeita a possibilidade de uma ciência do
comportamento fundada na noção de experiência direta. Köhler, como principal
interlocutor da Gestalttheorie nos escritos de Merleau-Ponty, partilha com o
behaviorismo, como o próprio Merleau-Ponty também, da restrição ao método
instrospectivo.
A grande questão que se impõe aos introspectivistas, sugere Köhler,
está em responder qual seria o critério mais adequado para definir quando uma
experiência é um legítimo fato sensorial distinto de outros produtos como, por
exemplo, da aprendizagem. Será preciso treinar para reconhecer? Dependemos
de condições especiais ou, mesmo, de uma atitude de desconfiança para
reconhecer um genuíno fato sensorial? Como, de modo geral, devemos proceder
para julgar satisfatoriamente as nossas experiências sensoriais? Resumidamente,
o problema é mais abrangente do que inicialmente se insinuava. As respostas
dadas às questões anteriores dependem tanto no tipo de consideração
19
SKINNER. Ciência e Comportamento Humano, p.47.
31
metodológica que deve ser dispensada aos fatos sensoriais para distinguí-los
como válidos como, por conseqüência, do exame posterior desses mesmos fatos.
Segundo Köhler a escola introspectiva responde a essas questões de forma
presunçosa e, à primeira vista, estranhamente próxima de uma perspectiva
fisicalista da sensação, pois se os introspectivistas, de modo geral, não
consideram a verdadeira experiência sensorial como algo que deva ser
relacionado ao ambiente também, curiosamente, como se fossem partidários do
fisicalismo, recorrem a uma explicação de tipo local. Nos termos de köhler a
presunção é justamente essa espécie de imprecisão das estimulações: “os fatos
realmente sensoriais são fenômenos locais que dependem de estímulo local, mas
de modo algum das condições estimulantes de seu ambiente”.
20
Na interpretação
de Köhler a introspecção considera a verdadeira experiência sensorial a partir dos
seguintes argumentos: i - a sensação local depende do estímulo local (1ª parte da
teoria do reflexo); ii – em um nível mais elevado do sistema nervoso podem ser
formadas novas conexões que não existiam ( condicionamento). Nesse sentido, as
críticas de Köhler e de Merleau-Ponty mostram que a introspecção comporta
vícios semelhantes àqueles preconizados pela teoria clássica do reflexo e pelo
empirismo psicológico, como veremos a seguir.
20
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p. 58.
32
1.2 A teoria do reflexo e o comportamento.
Winston sentiu contrair-se o diafragma. Nunca
podia ver a face de Goldstein sem uma dolorosa
mistura de emoções.
GEORGE ORWELL
Em A Estrutura do Comportamento, Merleau-Ponty estabelece um
intenso diálogo com as teorias clássicas da Fisiologia e da Psicologia
experimental. Procura, inicialmente, entender como essas ciências constituíram
uma teoria atomista do comportamento e, depois, busca no interior da própria
Fisiologia e da Psicologia as razões que nos conduzem a rejeitar uma teoria dessa
natureza, ainda que ela pretenda ser mais confiável do que a abordagem
introspectivista, na medida em que se apresenta como a única científica. O que
interessa a Merleau-Ponty, num primeiro momento, é o tipo de descrição científica
que a Fisiologia e a Psicologia experimental fazem do comportamento e, também,
os problemas de fundamentação da Psicologia associacionista, os seus princípios
epistemológicos, as suas escolhas metodológicas adotadas para se
estabelecerem dentro do quadro da epistemé moderna como mais uma ciência.
Esses princípios, essas escolhas que forjaram o modelo de uma ciência
psicológica experimental estão, como veremos, no centro da crítica de Merleau-
Ponty. A crítica se dirige, sobretudo, contra a tentativa de estabelecer uma espécie
similaridade metodológica entre a representação científica dos fenômenos da
natureza e a compreensão do comportamento. Merleau-Ponty, desde A Estrutura
do Comportamento, visa, fundamentalmente, demonstrar as incongruências
metodológicas e as limitações ontológicas que cercam todo e qualquer estudo
33
científico sobre o comportamento comprometido com o viés epistemológico do tipo
abstracionista que, conforme vimos acerca do pensamento moderno e do
introspectivismo, opõe um comportamento aparente a um comportamento
científico.
O estudo científico do comportamento com o qual Merleau-Ponty se
defronta está na origem da Psicologia como ciência e, inicialmente amparado na
teoria clássica do reflexo, pressupõe o fim de todas as noções de intenção, de
utilidade, de valor e de vivência. Rejeita, desse modo, tanto os pressupostos
introspectivistas como também as noções de experiência direta e campo
fenomenal, que mais adiante comentaremos.
Logo no primeiro capítulo da A Estrutura do Comportamento,
Merleau-Ponty recorre ao exemplo de uma mancha de luz para nos mostrar como
a ciência em geral insiste em nos abstrair do mundo da experiência direta e negar
os caracteres da nossa relação primeira com o mundo. Quando somos, de algum
modo, atraídos por uma mancha luminosa para a ciência não há motivação
interior, não há intenção ou sentido no nosso olhar que explique essa atração.
Tudo é exterior. A luz é compreendida apenas como um movimento vibratório,
como um agente físico que age sobre a retina. A ciência decompõe a luz e a
considera como uma realidade além da minha consciência, como uma sucessão
de fatos físicos que agem sobre o meu organismo. Nessa perspectiva, quando
acompanhamos o deslocamento da mancha de luz em uma parede, por exemplo,
o fazemos unicamente como reação a um estímulo que se fez presente na nossa
retina. Se a mancha de luz se movimenta e meu olho a segue, isso ocorre
unicamente determinado por relações exteriores dispostas no tempo e no espaço.
34
Assim, somente há para a física “lumière rélle” como, também, para teoria clássica
do reflexo somente há relações físicas lineares na explicação do comportamento.
A ciência exige que rejeitemos como aparências aqueles caracteres fundados
numa vivência subjetiva; não há para a ciência “lumière phénomenale”, não há no
comportamento - para a teoria clássica do reflexo e para psicologia empirista -
caracteres de natureza distinta dos eventos físicos. Nos termos de Merleau-Ponty
as coisas se dão assim:
No estudo científico do comportamento (...) Se tenho fome e se,
absorvido por meu trabalho, levo a mão para um fruto posto por acaso
próximo de mim e o levo a boca, o fruto não é considerado como um
objeto investido de um certo valor; o que deslancha a minha reação
motora, é um conjunto de cores e de luzes, o estímulo físico e químico.
21
De modo análogo a todas as ciências empíricas, a Psicologia científica
amparada nas descobertas dos reflexos condicionados recorre, para ilustrar o
comportamento, a métodos de análise do real e de explicação causal fundados
num exame das funções fisiológicas. Procedimentos que pareciam, pelo menos
enquanto compartilhávamos da confiança cientificista herdada dos modernos,
como os únicos capazes de constituir uma reflexão objetiva do comportamento.
Isso ocorre na medida em que o comportamento, primeiro, foi concebido como
localizado no substrato neurofisiológico e, depois, teve desvendado a sua lógica
operacional através do estabelecimento de conexões universais – estímulo e
resposta – que, não seria muito difícil de supor, estão de acordo com causas de
natureza exclusivamente material motriz.
21
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.7.
35
A teoria clássica do reflexo afirma que o reflexo pode ser compreendido
como um processo causal resultante de uma operação que envolve o arranjo
nervoso do organismo. O reflexo, como nos sugerem as palavras de Pavlov, é a
ocorrência mais simples da estrutura fisiológica e deve servir de fundamento para
a explicação do comportamento:
Eis um esquema geral e fundamental do reflexo: o aparelho receptor
(órgãos dos sentidos ou terminações sensíveis dos nervos), o nervo
aferente (é por estes nervos que a excitação caminha em direção ao
sistema nervoso central), a estação central e o nervo eferente
(centrífugos, conduzem os impulsos do sistema nervoso central ao órgão
efetuador, músculos e glândulas) com seu órgão efetuador.
22
Concebido como responsável pela manifestação de movimentos
espontâneos e involuntários em todos os organismos, o arco-reflexo explica o
desencadeamento de uma resposta como resultado de uma operação linear que,
conforme os termos de Pavolv, envolve elementos anatômicos distintos, mas
interligados. Não há na realização do reflexo nenhuma intervenção direta de
qualquer aspecto de ordem subjetiva ou, mesmo, não fisiológico. O psiquismo, por
exemplo, não participa da resposta que será dada em função da excitação dos
nervos terminais – aferentes - através dos estímulos proporcionados pelas vias
eferentes reflexas. Assim, estabelece-se o arco reflexo: o nervo aferente recebe o
estímulo e o conduz até o sistema nervoso central para, então, o componente
eferente que conduz o estímulo desde o sistema nervoso até o músculo
esquelético e daí para o centro reflexo, decodificar a mensagem e produzir a
resposta adequada. Esse mesmo mecanismo pressupõe que o reflexo é uma
22
PAVLOV, Ivan. Textos Escolhidos, p.108.
36
composição rígida, ainda que esteja sujeito, em menor ou maior grau, ao concurso
de excitações inesperadas que se impõem ao conjunto dos receptores reflexos.
Estabelece-se, então, que o reflexo ocorre determinado sempre por um
estímulo que pode ser anatomicamente circunscrito que a excitação, na condição
de causa, não faz outra coisa senão ativar um mecanismo nervoso no qual todas
as reações já estão como que pré-determinadas por um circuito de relações que
operam em conexão no tempo e no espaço fisiológico. Desse modo, toda reação a
uma excitação é, no fundo, apenas o resultado de um processo físico ou químico
sempre passível de ser definido, de ser reduzido a um padrão de medida
elementar, isto é a uma lei.
Ao encerrar o comportamento no arco-reflexo estamos em Psicologia,
conforme indica Pavlov, sendo fiel à lógica científica naturalista que, seja por uma
questão de método ou de contingência histórica, estruturou o campo de análise do
comportamento prescindindo de toda categoria de ordem metafísica:
Para o naturalista, as probabilidades de chegar a uma verdade firme e
duradoura residem no método e, deste ponto de vista, obrigatório para
ele, a concepção da alma, como princípio natural, não só não é
necessária, que digo que poderia chegar a ser prejudicial para o seu
trabalho, limitando inutilmente a pesquisa e a profundidade de suas
análises.
23
A recusa de qualquer participação de natureza subjetiva ou intelectual
fica evidente quando temos em vista que a teoria clássica do reflexo decompõe a
excitação e a reação em processos parciais e exteriores uns aos outros, no tempo
e no espaço. O reflexo é um fenômeno longitudinal que ocorre como a operação
23
PAVLOV. Los reflejos condicionados aplicados a la psicopatologia y psiquiatria, p.18.
37
de um agente físico definido sobre um receptor, espacialmente localizado, que
provoca através de um trajeto definido, uma resposta ajustada às condições da
excitação e do substratato neurofisiológico. Dessa forma, o reflexo é tomado como
um mecanismo neural relativamente simples e responsável por reações
automáticas e não voluntárias no homem e no animal. Pavlov, como já
estabelecemos acima, não deixa de buscar na fisiologia os fundamentos para a
Psicologia, seja, num certo sentido, concebendo o córtex como centro de
coordenação e integração do comportamento ou, mesmo, atribuindo ao processo
de associação de idéias e sentimentos a mesma dinâmica lógica que orienta as
funções neurofisiológicas.
No caso de Pavlov, fundamentalmente, não se mantém a idéia de que
um determinado comportamento possa resultar de uma consciência isenta de
qualquer material fisiológico. São as conexões anatômicas – os processos de
irradiação cortical e inibição, por exemplo – como indicam as pesquisas sobre os
reflexos condicionados com cães, que devem explicar os tremores, um acesso de
raiva ou, ainda, um comportamento histérico:
Opino que temos o direito de supor, baseando-nos no que temos dito,
que no fundo da, como assim dizemos, covardia e temores normais e,
sobretudo, como base de todas as fobias patológicas, encontramos
um simples predomínio do processo fisiológico de inibição; predomínio
que expressa a debilidade das células corticais.
24
O que Pavlov procura estabelecer, é uma Psicologia fundada na
Fisiologia, na medida em que todo o processo de associação está encerrado em
conexões nervosas. Como conseqüência, o comportamento passa ser concebido
24
PAVLOV. Los reflejos condicionados aplicados a la psicopatologia y psiquiatria, p.81.
38
como resultado de uma cadeia de acontecimentos determinados por um ou mais
estímulos pontuais. Esses estímulos agem sobre um receptor nervoso e
desencadeiam assim uma série de relações neuro-motoras, que naturalmente
conduzem a uma resposta arranjada conforme o circuito-reflexo. A teoria clássica
do reflexo estabeleceu a noção de que toda resposta é uma conseqüência direta
da armação dos órgãos terminais e do sistema nervoso central. Por isso mesmo,
na descrição científica do comportamento, essa teoria pressupõe a exclusão de
qualquer conceito de auto-determinação, de qualquer idéia que, por exemplo,
possa sugerir que tal comportamento, de tal organismo foi resultado de um
propósito intencional desse mesmo organismo sem qualquer correlação
necessária com um evento causal do tipo partes extra partes. Nesse sentido,
como as palavras de Pavlov muito claramente indicam, a nova Psicologia
científica, amparada na teoria do reflexo, estabeleceu como princípios gerais da
Psicologia que o comportamento, como já dissemos, é efeito de uma intervenção
material localizada na armação fisiológica do organismo e, também, uma
conseqüência determinada por um processo mecânico, segmentado e fundado na
lógica das conexões nervosas do organismo. Nada escapa a essa lógica
associacionista. Com Pavlov idéias, sentimentos, intenções e valores morais
passaram, assim como a fome, a sede e o apetite sexual, a fazer parte dos
fenômenos naturais perfeitamente compreensíveis à luz da teoria dos reflexos
condicionados:
Vamos mais longe e detenhamo-nos no que se chama o “saber viver”,
capacidade que nos assegura uma situação favorável na sociedade.
(...) Naturalmente, esse saber viver pode vir ou não acompanhado do
39
sentimento de dignidade pessoal, e respeitar, ou não, o amor-próprio
dos outros, mas, do ponto de vista fisiológico, estas são, em ambos os
casos, relações temporárias, reflexos condicionados. Deste modo, a
relação nervosa temporária é um fenômeno fisiológico universal, um
fenômeno psíquico, que os psicólogos chamam uma associação, quer
seja a combinação de ações, de impressões, quer de letras, de
palavras, de pensamentos. Teríamos alguma razão para distinguir ou
separar o que o fisiólogo chama de conexão temporária, e o psicólogo,
associação?
25
Logo nas primeiras páginas de A Estrutura do Comportamento,
Merleau-Ponty já deixa claro que não é preciso estabelecer uma nova teoria do
comportamento para abdicar da teoria clássica do reflexo e da noção de
comportamento condicionado, pois as suas definições construídas a partir de
considerações topográficas, biológicas e, ainda, o desenvolvimento da ciência,
fundamentalmente da fisiologia, parecem não legitimá-las como teorias de base na
explicação do comportamento. Leitor atento dos estudos de fisiologia, sobretudo
de Goldstein
26
, Merleau-Ponty aponta dois argumentos suficientemente fortes para
recusar a teoria clássica do reflexo como uma teoria de base. Primeiro, as
conclusões da própria fisiologia fomentam uma recusa da teoria do reflexo.
Segundo, o reflexo tal como descrito por Pavlov, por exemplo, não é um
comportamento natural, é um evento provocado em condições especiais pelo
homem não sendo facilmente encontrado na natureza. “Ora, é um fato que a teoria
clássica do reflexo é superada pela fisiologia contemporânea. (...) Ora, sabe-se faz
muito tempo que o reflexo assim definido é muito raramente observável”.
27
Se os problemas para aceitação da teoria clássica do reflexo estão no
cerne da sua construção é necessário, então, relacioná-los. E, ainda, se as
25
PAVLOV.”O Reflexo Condicionado”. In: Textos Escolhidos. p.54.
26
GOLDSTEIN, Kurt. La Structure de l´organisme – Introduction à la biologie à partir de la
pathologie humaine. 7 ed. Paris: Gallimard, 1951.
27
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.8.
40
pesquisas da fisiologia contemporânea são conhecidas quando sugerem
interpretações novas para o comportamento é preciso, do mesmo modo, apontar
as suas conseqüências para as noções tanto de reflexo como de comportamento
de condicionado e, ainda, de comportamento em geral.
Merleau-Ponty não se furta a descrever como as novas concepções da
fisiologia acerca dos elementos constitutivos mais caros à teoria clássica do
reflexo, conduzem a uma recusa dessa teoria. As contradições já se apresentam
desde o início do arco reflexo. Então, tudo deve começar por uma análise do
estímulo. Contra a redução do complexo ao simples na explicação do
comportamento e recusando a afirmação de que elementos constantes e
ordenados fazem o comportamento, Merleau-Ponty recorre às idéias de forma ou
de totalidade de estímulos implicadas na noção de intenção. Mostra, primeiro, que
o estímulo age menos em função dos elementos que o compõem do que da
intensidade, do lugar e do ritmo do excitante. “Uma excitação dolorosa no pênis,
mesmo sendo fraca, inibe o reflexo de ereção”.
28
No entanto, mais do que a
intensidade, o lugar ou natureza é a forma do estímulo que determina o reflexo
resultante. Os conteúdos dos estímulos podem variar sem que a resposta mude,
caso sejam da mesma forma espaço-temporal.
O comportamento do organismo, segundo o que sugerem as pesquisas
de Weizsacker e Goldstein, também não se reduz unicamente às influências do
meio. Os estudos dos fisiologistas estabeleceram “que todas as estimulações que
o organismo recebe só foram possíveis em função dos movimentos precedentes...
pode-se dizer que o comportamento é a causa primeira de todas as estimulações.
28
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 9
41
Assim a forma do excitante é criada pelo próprio organismo, por sua maneira
própria de se oferecer às ações de fora”.
29
Ao descrever diversos experimentos realizados pelas pesquisas de
Goldstein, Merleau-Ponty reforça a idéia de que, para a ocorrência do estímulo,
importa uma unidade complexa. Esses experimentos mostram como a resposta
aos excitantes está relacionada muito mais a condições exteriores ao estímulo que
se apresenta, do que à própria natureza do estímulo. Merleau-Ponty faz intervir,
ainda que precocemente, a noção de forma quando sustenta que é também no
organismo que devemos buscar o que faz um estímulo não ser algo
metamerizado.
No entanto, é preciso ter em conta que, se admitimos que o organismo
contribui decisivamente para a constituição do estímulo, não estamos, também,
pendendo para uma perspectiva introspectivista, pois essas observações sobre a
noção de forma ou de totalidade do estímulo não nos autorizam a supor, de
acordo com a psicologia intelectualista, uma espécie ego autônomo. Isso seria
retroceder e não entender a verdadeira acepção do caráter estrutural que permeia
as inter-relações do organismo e, do mesmo modo, as relações do organismo com
o mundo.
Uma outra noção, muito importante à teoria clássica do reflexo que
parece não se sustentar diante da fisiologia, é aquela que afirma o valor do lugar
da excitação. Não há localização, anatomicamente estabelecida como campo
receptor, que seja capaz de determinar relações constantes de excitação e
reação. Os experimentos demonstram, primeiro, que a excitação de um receptor
29
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.12
42
pode provocar diferentes reflexos e, ainda, que a excitação de dois pontos
distintos pode levar a um mesmo reflexo.
Se o reflexo não acontece apenas em função de processos exteriores
deve-se, também, considerar que o circuito reflexo depende de condições
anteriores ou simultâneas. Merleau-Ponty relaciona à análise do circuito reflexo
esta outra variável ignorada pela teoria clássica: “Um choque embaixo da rótula
provoca no homem uma reação de extensão se a perna interessada estiver
cruzada sobre a outra, - uma reação de flexão, se ela está estendida
passivamente”.
30
O exemplo ilustra bem como condições exteriores ao arco
reflexo importam na composição da forma como o excitante se apresenta e, ainda,
como a resposta ocorre. É o caso desses reflexos antagônicos – flexores e
extensores -, quando somente um se realiza e o outro é inibido.
Mas resta ainda perguntar sobre as reações. Está evidente que as
reações se manifestam coerentemente, na medida em que se adaptam aos
estímulos. Agora, se tudo depende de uma série de relações complexas que
envolvem o organismo e o meio, como essa coerência é possível? Serão o
organismo e as suas condições intra-orgânicas responsáveis pela reação? Será
somente o meio externo?
Para responder a essas questões Merleau-Ponty recorre às indicações
da Gestalttheorie, fundamentalmente, ao conceito de estrutura. As pesquisas
realizadas pela Gestalttheorie contra a explicação atomística do comportamento
fornecem, a Merleau-Ponty a categoria fundamental para de imediato elaborar
uma nova compreensão sobre a reação. A noção de estrutura introduziu a idéia de
30
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.21.
43
que, no comportamento, intervêm processos globais dotados de maleabilidade.
Esses processos, conforme veremos com mais cuidado nas próximas páginas,
são responsáveis tanto pela noção de conjunto, quanto pelo princípio de
diferenciação interna dos elementos constitutivos do comportamento.
Apoiado nas pesquisas de Köhler, Merleau-Ponty indica que a
coerência das reações sugere a idéia da existência de um fator geral – uma
estrutura - capaz de orientar o comportamento do organismo. Esse fator geral,
ainda na primeira parte da Estrutura do Comportamento, já aparece conforme
aquela noção que é, sem dúvida, a mais fundamental desenvolvida na
Fenomenologia da Percepção, quando se trata de compreender a nossa
condição existencial: a idéia de corpo.
Porém, sem ainda antecipar totalmente como o corpo estrutura uma
reação coerente, Merleau-Ponty recorre novamente a uma análise da visão, mais
precisamente ao exame da teoria de fixação ocular.
A teoria clássica do reflexo considera a fixação ocular como resultado
de uma seqüência de eventos anatômicos. Os movimentos dos olhos são
determinados quando, diante de uma mancha de luz, num quarto escuro, por
exemplo, a retina em conexão com nervos motores pré-estabelecidos é afetada
por raios luminosos. Segundo esse esquema, todos os movimentos oculares são
reflexos, pois essa perspectiva concebe “que os pontos da retina afetados pelos
raios de luz estão em conexão central com os nervos motores capazes, fazendo
oscilar o olho, de trazer a impressão luminosa sobre a mácula”.
31
Esses
31
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.33.
44
movimentos oculares nada mais são do que o resultado de eventos causais neuro-
motores, desencadeados por um acontecimento de natureza físico-química: a luz.
Novamente, Merleau-Ponty sustenta que esse mecanismo atomista
estabelecido conforme os postulados da teoria das localizações não é satisfatório
para a explicação do fenômeno de fixação ocular. Contra essa perspectiva, o autor
apresenta um estudo muito simples acerca do movimento dos olhos indicando
como, diante de manchas luminosas que formam, alternadamente, um quadrante,
os olhos respondem com a fixação. O que, fundamentalmente está em questão,
conforme o exemplo descrito logo abaixo, é a noção de que a fixação resulta de
um processo complexo, no qual não é possível determinar o que se refere ao
exterior e o que diz respeito ao interior.
A’* B’*
B* A*
Suponhamos que o olho do sujeito fixado sobre A’ se desloque em
direção a A, e que em seguida, sem nenhum movimento da cabeça,
se desloque em direção a B. O ponto B se reflete sobre a retina no
mesmo lugar onde o ponto A refletia antes, um e outro servem
alternadamente de ponto de fixação ao olho. E, quando o olho do
sujeito esta fixado sobre B, o ponto B’ se reflete no mesmo lugar onde
se refletia A’ quando o olho fixava A. Assim o mesmo lugar da retina é
excitado alternadamente pelos dois pontos luminosos A’ e B’.
32
O exemplo mostra, principalmente, que diferentes posições de uma
mancha luminosa são capazes de excitar o mesmo ponto da retina exigindo, no
entanto, movimentos musculares distintos do aparelho motor ocular. Ao contrário
da idéia da teoria clássica do reflexo que afirma pela necessidade de conexões
32
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 34
45
elementares pré-estabelecidas entre as condições anatômicas as excitações de
ordem exteroceptiva, o exemplo destacado por Merleau-Ponty, conforme as suas
palavras abaixo, aponta que a fixação ocorre como resultado de uma interação
total entre as a anatomia do olho, as excitações retinianas e as estimulações
proprioceptivas. “Nada nos obriga a conservar aqui a hipótese das conexões pré-
estabelecidas, nem a tratar as impressões retinianas e as estimulações
proprioceptivas como componentes realmente diferentes da excitação total.
33
A discussão do fenômeno de fixação ocular nos diz, assim como outras
em reações, que devemos considerar a parte motora e a parte receptora do
sistema nervoso como indiscerníveis em um só órgão. E, como já sugerimos
acima, é de certo modo a teoria do corpo merleau-pontyana que intervém desde
cedo no debate, mesmo que até, esse momento, timidamente.
Se, na Estrutura do Comportamento, ainda não podemos falar de
uma existência totalmente encarnada, a noção de totalidade e o papel do corpo na
composição dos mecanismos de excitação e reação apresentam-se de forma
ainda mais evidentes quando são relacionados ao conceito de equilíbrio. Como
que antecipando de maneira consistente a discussão sobre o corpo, empreendida
na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty, ainda que recorra sob alguns
aspectos à linguagem e as pesquisas da fisiologia, já ilustra o papel
preponderante e ativo do corpo.
Em resumo, a crítica à teoria do reflexo e a análise de alguns exemplos
mostram que se deveria considerar o setor aferente do sistema nervoso
como um campo de forças que exprimem concorrentemente o estado
intra-orgânico e a influência dos agentes externos; essas forças tendem
33
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 34
46
a se equilibrar segundo certos modos de distribuição privilegiados e
obtêm das partes móveis do corpo os movimentos próprios a esses
efeitos.
34
A própria fisiologia, a partir dos seus experimentos como, por exemplo,
os de ablação de membros e as pesquisas sobre hemianópsia, já demonstra como
o organismo tende a compensar os déficits decorrentes de órgãos que faltam ou
estão prejudicados por uma lesão. Vejamos o caso da ablação de um membro:
nessa situação ocorre, conforme as descrições de Merleau-Ponty, não apenas
uma substituição da função do membro extirpado por outro. O que se mostra
relevante é que, nesses casos, acontece, quase sempre, uma reorganização do
funcionamento do organismo como uma totalidade. “(...) depois da extirpação de
uma ou várias falanges, o besouro é capaz de prosseguir imediatamente a sua
marcha. Mas os movimentos do coto que subsiste e os do conjunto do corpo não
são uma simples preservação dos da marcha normal; representam um novo modo
de locomoção, uma solução inédita do problema colocado pela extirpação”.
35
Mas,
ainda, essa reorganização não é apenas resultado de uma demanda
proprioceptiva. O meio também interfere e sujeita essa reorganização às suas
condições. São, como no exemplo do besouro, exigências de topografia aliadas a
necessidades vitais. A reorganização não se dá automaticamente, é um processo
desencadeado por relações intra-orgânicas e exteriores que visam restabelecer o
equilíbrio entre o organismo e o meio.
Então, pelo que foi exposto até o momento contra a teoria clássica do
reflexo, segundo as pesquisas da fisiologia, as indicações de Goldstein e da
34
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 48.
35
MERLEAU-PONTY, La structure du comportement, p. 39
47
Gestalttheorie, tudo decorre, basicamente, de relações estabelecidas entre o
organismo e o meio, entre o organismo e os estímulos e as condições de posição
do organismo, como depende, enfim, das condições intra-orgânicas e do modo
como o organismo se oferece e interage com o meio, ou seja, de uma estrutura,
da composição de vários elementos ou variáveis que estão intrinsecamente
ligados.
1.2.1 A teoria das localizações.
Merleau-Ponty, contra a teoria atomista das localizações, pressuposto
fundamental para uma teoria do reflexo, opõe três princípios que, de modo geral,
apontam para a presença de uma organização estrutural nas relações que
envolvem os nervos terminais, o córtex e a reação. Organização que permitirá,
como ainda veremos, concluir que o comportamento do organismo não se reduz a
localizações anatômicas específicas ou, mesmo, obedece a funções superiores.
Para além da simples capacidade de ordenar relações de reflexógenas, a
neurofisiologia e os estudos de Goldstein têm demonstrado que as funções que
comumente atribuímos ao córtex são mais complexas e extensas: como, por
exemplo, a sua capacidade quase que indeterminável de coordenar o
comportamento.
O primeiro desses princípios diz o seguinte: “Uma lesão mesmo
localizada pode determinar perturbações de estrutura que interessam ao conjunto
48
do comportamento e perturbações de estrutura análogas podem ser provocadas
por lesões situadas em diferentes regiões do córtex”.
36
A teoria clássica do reflexo, ao tratar do comportamento recorreu à
noção de localização e, segundo Merleau-Ponty, desprezou três dificuldades
básicas: i - a determinação da localização da lesão; ii - localização da função; iii -
definição da doença estudada e a sua função normal correspondente.
Uma análise dos estudos de patologia em geral nos revela que a
ciência quando, fundamentalmente, trata de deficiências recorrentes a um grande
número de casos, não tem muitas dificuldades em fazer uma taxonomia das
doenças. É comum, nos sugere a leitura de Merleau-Ponty, no caso de
deficiências massivas doença se relevar sem mistério. O método usual baseado
na noção de conexões pontuais é relativamente simples quando se trata de casos
recorrentes. Consiste, basicamente, para designar uma doença, em religar
sintomas, em estabelecer conexões observáveis de causa e efeito e em distinguir
no comportamento patológico “reações conservadas e reações abolidas”.
37
Opera, assim, de modo simples estabelecendo a origem causal da doença e
localizado-a no corpo.
O problema que nos interessa atualmente é que esse mesmo método –
“de análise real e explicação causal”
38
- foi requisitado pela patologia mental. Note-
se, por exemplo, a consideração das afasias e das agnosias como deficiências
localizadas, como comportamento determinado pela ausência de conteúdo.
36
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 66.
37
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 67.
38
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 67.
49
Seguindo as indicações nosológicas das ciências naturais, os estudos de
patologia mental, inicialmente, consideravam que as perturbações, como a afasia
e a amnésia, deviam ser definidas como a perda de controle de certos conjuntos
de estados psíquicos. Na direção contrária, os estudos de Goldstein sobre lesões
no córtex, sobre os afásicos, os apráxicos, os aléxicos e os casos de hemiplegia
39
sustentam que a doença não se limita a uma certa localização, mas, ainda, que
ela deverá ser sempre tomada no conjunto do comportamento.
Lesões no córtex raramente ocasionam perturbações eletivas que
interessariam a certos fragmentos do comportamento normal. (...) na
alexia o doente pode ler o seu nome como palavra, mas não as letras
que o compõem tomadas a parte; na afasia motora, que possa
pronunciar uma palavra inserida em um conjunto verbal, mas não se
ela está isolada. Na hemiplegia, os movimentos de conjunto, o
<legato>, permanecem as vezes possíveis , enquanto os movimentos
distribuídos, o <sccato>, são comprometidos.
Ignorou-se a partir da teoria clássica das localizações que o sintoma é
uma resposta do organismo a uma questão do meio, que uma perturbação deverá
ser tomada no comportamento de conjunto. No caso da alexia nota-se de maneira
evidente que o doente não revela total incapacidade de ler, mas incapacidade de
ler fora de um determinado contexto. Nesse sentido, é necessária uma nova
consideração do patológico. É preciso ter em conta que a doença não se refere ao
conteúdo do comportamento, mas à sua estrutura e que, em conseqüência disso,
ela não é alguma coisa circunscrita que se observa, mas, sobretudo, que se
compreende. O que ocorre é sempre uma alteração qualitativa, uma significação
39
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 70.
50
nova. É, ainda, um arranjo de conjunto que se estabelece tanto frente à patologia
como ao comportamento do normal.
O segundo princípio é enunciado por Merleau-Ponty nos seguintes
termos: “(...) não se deve tratar o funcionamento nervoso como um processo
global onde todas as partes do sistema interferem igualmente. A função nunca é
indiferente ao substrato pelo qual ela se realiza.”
40
Numa primeira leitura, as palavras de Merleau-Ponty estão de acordo
com o atomismo da teoria das localizações. Não se pode negar o que as
pesquisas de Goldstein, Gelb e de outros fisiologistas indicam: o caráter local das
lesões como um fator preferencial na determinação e na ocorrência de patologias.
Uma lesão, por exemplo, na região posterior do córtex determina uma deficiência
de natureza perceptiva. Já lesões localizadas na região anterior do córtex
conduzem a deficiências de linguagem. Porém, se as regiões cerebrais são
especializadas, elas também, as pesquisas assim indicam, não estão isentas das
relações de conjunto quando se pensa no funcionamento do organismo com vistas
a realizar uma função. E, ainda, como sugerem os casos de reorganização e
suplências que foram observados nos pacientes lesados na guerra e as patologias
examinadas por Goldstein, as regiões do cérebro são especializadas na
organização de certos conteúdos sem, contudo, interferir diretamente na recepção
dos conteúdos: “Não se pode atribuir à região occipital (...) a constituição das
formas visuais, como se ela não pedisse a colaboração de um centro, nem
40
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 76.
51
localizar na atividade central a apreensão dos conjuntos simultâneos, como se ela
nada devesse aos materiais especializados da zona ótica.”
41
Assim, como sugere a intervenção de Merleau-Ponty sustentada pela
pesquisas de Goldstein e Gelb, deve-se reconhecer o papel privilegiado das
regiões do cérebro na organização da função. Porém, isso não nos autoriza a
reduzir uma função a uma determinada região, pois essas mesmas pesquisas
recomendam que as diferentes regiões do cérebro não podem ser tomadas como
sendo um campo específico e único responsável por uma função. Se assim fosse,
as atividades de suplências e reorganização não seriam possíveis. Merleau-Ponty
ao reconhecer no cérebro a ligação entre funções e regiões específicas busca, por
um lado, apontar para a ocorrência de atividades de organização de conteúdos e
funções sem, por outro lado, reduzir as funções a uma região anatomicamente
localizada. E isto porque, mesmo quando admitimos que há regiões
especializadas no córtex, a ocorrência de patologias estruturais aponta para a
noção de uma função geral do comportamento. O terceiro princípio nos ajudará a
compreender melhor os dois primeiros:
“O lugar da substância nervosa tem em conseqüência uma significação
equívoca. Só pode admitir uma concepção mista das localizações e uma
concepção funcional do paralelismo
42
”.
Se, até o momento, conforme os princípios anteriores indicam, o
problema foi a tentativa de fazer corresponder um comportamento específico a
uma atividade localizada anatomicamente no córtex, agora, com este terceiro
41
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 78.
42
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 79.
52
princípio, são noções como a de localização, de funcionamento e de centro de
coordenação cortical que se mostram inaceitáveis quando aplicadas ao próprio
córtex. Se certos comportamentos se relacionam, funcionam e dependem das
atividades que ocorrem no córtex, conforme a fisiologia
43
já demonstrou, isso não
nos autoriza a conceber o comportamento como um evento causado
mecanicamente por atividades cerebrais. Assim como se, de algum modo,
queremos evitar localizar o comportamento superior no cérebro, não podemos,
também, considerá-lo exclusivamente como mais uma massa de células, como
mais um órgão ligado ao corpo por condutores. É preciso admitir, antes de tudo,
que o cérebro está no espaço, como o corpo está. Não seria, ainda, demais dizer
que o córtex é corpo, que ele não coordena o comportamento, porque o seu
funcionamento, como o coração, também opera fisiologicamente e é estrutural.
Nesse sentido, é fácil aceitar que o seu arranjo anatômico e, principalmente, as
suas funções e a sua inserção no corpo não se explicam por essa lógica da
elementarista de partes-extra-partes. Ainda que não ignoremos a validade da
afirmação da linearidade das conexões que levam estímulos dos sentidos ao
cérebro e desses ao tecido nervoso é preciso salvaguardar, diferentemente dessa
perspectiva atomista, a idéia de que as excitações quando chegam ao córtex, se
inserem numa lógica de atividades que não se deixam explicar unicamente pelos
postulados da fisiologia atomista. Assim, parece interferir a noção mista de
localização – vertical e horizontal - enunciada no princípio apresentado acima. A
leitura correta dos distúrbios de visão, por exemplo, é a que considera que eles
43
Na análise desse terceiro princípio, assim como dos anteriores, Merleau-Ponty recorre,
seguidamente, para a análise do córtex e da localização de suas atividades correspondentes às
descrições feitas por Piéron. Conf. PIÉRON, H. Le Cerveau et la Pensée. Paris: Alcan, 1927.
53
não são explicados por lesões que ocorrem em órgãos ligados à região occipital
ou, de modo similar, nas regiões do córtex que coordenam a função da visão. As
lesões no cérebro produzem geralmente, conforme as descrições de Piéron,
conseqüências observadas que não podem ser localizadas somente nas células
nervosas ou nos conectores, mas, ainda, devem ser tomadas como
acontecimentos de substrato orgânico e humano.
E reencontramos nas perturbações da visão elementar (cores e luz)
não um déficit que depende do lugar da lesão, mas uma destruição
sistemática da função visual, que vai da visão das cores, mais
integrada e mais frágil, à visão da luz, menos integrada e mais sólida.
É preciso então admitir no interior da área visual que, estando
entendido que ela está ligada ao centro no funcionamento, se define
como localização horizontal, localizações verticais subordinadas.
44
A noção de localização mista, referendada pelas pesquisas de Piéron e
Goldstein, conduz, primeiro, a um novo entendimento sobre o papel
desempenhado pelo córtex como coordenador das atividades para, em seguida,
renovar a noção clássica do paralelismo entre a consciência e o cérebro. Esse
paralelismo, estabelecido de comum acordo entre a fisiologia e a psicologia
atomista, pautava-se por explicar a vida da consciência em função das categorias
do córtex. À associação dos processos nervosos correspondiam os atos de
consciência. Conjunção funcional específica entre sensações isoladas e
excitações locais, entre conexões neuro-motoras e a vida da consciência. Contra
esse paralelismo atomista de elementos que justapõe o físico e psicológico
linearmente, Merleau-Ponty faz intervir, como veremos mais adiante, uma
interação estrutural entre comportamento-corpo-consciência, isto é,
44
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 80.
54
indecomponível em partes. Como sempre, são as questões clássicas da filosofia e
as categorias do discurso filosófico que intervêm no debate merleau-pontyano.
Reconhece-se que a vida da consciência e do organismo não é feita
de uma poeira de acontecimentos exteriores uns aos outros, que
psicologia e fisiologia buscam uma e outra os modos de organização
do comportamento e os graus de sua integração, a primeira para
descrevê-los, a segunda para designar-lhes o suporte corporal.
45
No entanto, é preciso reconhecer que essa interação estrutural não
parece segura mesmo quando considerada à luz dos avanços da fisiologia.
Forçosamente, as mesmas pesquisas
46
de fisiologia que forneceram os principais
argumentos até aqui destacados contra o a teoria do comportamento reflexo e do
condicionado buscam, inversamente, salvaguardar os atomismos fisiológico e
psicológico corrigindo-os sob a tutela de duas noções: integração e coordenação.
São noções que devem ser combatidas, na medida em que devolvem o
comportamento a um esquematismo mecânico causal recheado de valores
espaciais.
Essas questões são discutidas por Merleau-Ponty a partir do exame de
processos fisiológicos que se relacionam à percepção de uma cor, à apreensão de
uma posição e, ainda, à compreensão de uma palavra. O que não podemos fazer
é, através das noções de coordenação e integração, restringir esses processos
fisiológicos à ação de mecanismos anatômicos fixos, que agem de antemão
quando recebem estímulos do exterior. A perspectiva atomista considera, por
exemplo, que o evento disparação de imagens ocorre na medida em que os
45
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 84.
46
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 85.
55
diferentes pontos que afetam a retina são integrados, como um mesmo ponto, por
meio de um circuito associativo. Supõe, desse modo, que há previamente um
substrato fisiológico, um centro de integração, que nos faz ver que as duas
imagens são similares e correspondem ao mesmo objeto. No entanto, o processo
que nos permite perceber um arranjo espacial, conforme a ensaio de Jaensch
47
mostra, ocorre concomitantemente à experiência, e depende mais do arranjo do
conjunto de campo do que de processos de integração e coordenação
determinados por órgãos anatomicamente circunscritos.
Os diferentes exemplos destacados por Merleau-Ponty apontam que
essas noções de integração e coordenação nada mais são do que o resultado de
um fenômeno de estrutura ou de forma.
48
Fora dessa perspectiva de conjunto,
essas noções somente servem a um automatismo rígido. Esse é o caso das
noções de integração e coordenação na perspectiva atomista, quando aplicadas à
linguagem. Os centros coordenadores desempenham uma função que, na sua
disposição, é comparada à tarefa de um pianista. Porém, de um pianista que é
incapaz de improvisar, na medida em que realiza somente o que já está
potencialmente pré-determinado. A sua margem de ação é restrita, não há
inovação ou improviso. Pode alterar alguns aspectos da melodia, só não pode
executar uma outra melodia. “O que propriamente lhe pertence, como ao pianista,
é então, acredita-se, a distribuição das intensidades dos intervalos, a escolha das
notas e a determinação da ordem de sua sucessão, em uma palavra a elaboração
47
“ (...) interpretada por Koffka, mostra que dois fios luminosos, sobre um fundo escuro, mesmo
quando estão desigualmente distantes do sujeito, são vistos como situados no mesmo plano. Mas
desde que os apresentemos em plena luz, eles são escalonados em profundidade.” Cf. MERLEAU-
PONTY. La structure du comportement, p. 86.
48
Cf.MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 88.
56
das propriedades estruturais da percepção ou do movimento”.
49
Além disso, o que
parece menos satisfatório é, principalmente, a suposição de que há uma
circunscrição neural das funções de coordenação e integração como espécies de
centros de arranjo funcional.
Notemos a natureza e o significado dos termos de que se serve Piéron,
por exemplo, para designar esses centros tão significativos para uma perspectiva
que procura manter-se firme diante do postulado atomista: “teclas”, “fichas” e
outros termos típicos de um esquematismo mecânico, são com freqüência
enunciados para designar os centros nervosos como coordenadores. O verdadeiro
nome desta coordenação, conforme Merleau-Ponty, é automatismo: “Tal é o
mecanismo que assegura o desencadeamento de um sinal de partida quando
todas as portas de um trem estão fechadas”.
50
Nessa perspectiva, os fonemas
nunca são improvisados, nunca se encontram numa relação de estrutura ou de
campo, são sempre articulados conforme dispositivos encerrados em centros
coordenadores, como se, para cada palavra, já houvesse de antemão traços
cerebrais correspondentes. Nesse sentido, é a antiga teoria das localizações e o
paralelismo psicofísico intervindo novamente a favor do atomismo.
Através do exame de exemplos que remontam à fisiologia da linguagem
e às percepções de natureza espacial e cromática, Merleau-Ponty apresenta a
idéia de que os conceitos de integração e coordenação somente são válidos
quando são considerados numa perspectiva estrutural ou funcional. É conveniente
ter em conta um outro ponto de vista de coordenação, diferente desse
49
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 94.
50
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 95.
57
preconizado pelo atomismo fisiológico que busca uma recomposição do mundo da
percepção por meio de uma análise fisiológica do sistema nervoso. Assim como
uma frase se organiza de modo concomitante e livre na fala do orador, a
coordenação não é simplesmente o resultado de elementos dirigidos que estão
conectados uns aos outros como fios de uma máquina. Contrariamente à teoria
das localizações, Merleau-Ponty nos mostra que, desde a excitação até a reação,
é uma totalidade que se compõe, que se manifesta como comportamento. Temos
que aceitar o caráter estrutural que envolve os nervos terminais, o córtex e a
reação para, além das noções de integração e coordenação resumidas ao
substrato fisiológico e à adição de processos locais, encontramos o sentido de um
comportamento que se apresenta como totalidade.
Por isso, até mesmo os conceitos de excitação, de estímulo e reação
devem ser vistos sob outra perspectiva. É o que, por exemplo, nos sugerem
alguns estudos sobre a aprendizagem. Conforme o arranjo estrutural da teoria da
aprendizagem é preciso despojá-los – a excitação, o estímulo e a reação - de uma
perspectiva meramente elementarista, porque se eles concorrem para a
aprendizagem, isso não se esgota numa correlação espacial ou, ainda, em
conexões neurofisiológicas que ligam, por exemplo, uma determinada excitação a
uma reação específica. Assim como a excitação, de certo modo, não se resume a
um fluxo de elementos físicos e químicos.
O percurso que até aqui fizemos nos permite, de modo geral, contra a
perspectiva atomista da teoria clássica do reflexo e a sua teoria do comportamento
condicionado supor que: 1- o organismo contribui para a constituição do estímulo;
2- a reação é um resultado muito mais complexo do que pode nos sugerir um
58
exame das propriedades materiais do excitante; 3- as propriedades do objeto e as
intenções do sujeito formam um todo; 4 - as relações entre o organismo e o meio
não são de causalidade linear, mas circular
51
; 5- não há localização universal,
anatomicamente circunscrita, para o excitante. Diante dessas conclusões
preliminares pode-se perguntar se ainda é possível pensar que há um trajeto
definido quando se vai da excitação à reação. Ou, de maneira mais criteriosa, se é
possível manter a idéia de circuito reflexo.
A fisiologia contemporânea parece responder não para as duas
questões. Até por que a resposta da primeira questão implica a da segunda. Pois,
conforme já indicamos, todas as pesquisas e experimentos sugerem que não
existe reflexo exteroceptivo puro, dado que nenhum reflexo existe tendo apenas
como causa uma intervenção de um estímulo externo. Nesse sentido, a ocorrência
do reflexo exige a aceitação de processos distintos e, ainda, mais amplos do que
aqueles exclusivamente exigidos pela teoria do arco reflexo, processos esses que
determinam a necessidade de uma ampliação da noção de excitação, isto é, além
de uma perspectiva meramente causal. Esse alargamento causal que parece
romper com todo atomismo objetivista do circuito reflexo considera, primeiro, que
há eventos intra-orgânicos que concorrem para o reflexo, juntamente com os
estímulos do tipo exteroceptivos. Exemplos elencados por Goldstein apontam que
o aparelho reflexo não está isolado nem anatomicamente e nem fisiologicamente:
“(...) lesões do cérebro, observadas como causa de ferimentos de guerra,
determinaram modificações da pressão sangüínea, do pulso, da inervação
51
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.13.
59
pupilar.”
52
Os experimentos, então, indicam que modificações intra-orgânicas
concorrem para produzir respostas distintas diante do mesmo excitante.
A teoria dos reflexos condicionados errou, sobretudo, quando privilegiou
o “átomo e não a estrutura”
53
, recorda-nos Merleau-Ponty. A tese pavloviana sobre
o comportamento condicionado se estabeleceu, de modo geral, como resultado da
teoria clássica do reflexo. Uma linearidade epistemológica se impôs da física à
biologia e, finalmente, chegou à psicologia. Assim fazemos uso, quase como um
hábito, como um desdobramento espontâneo e natural, das mesmas categorias
explicativas que serviram inicialmente aos fenômenos físicos, depois ao
funcionamento nervoso e, como conseqüência direta, ao comportamento superior.
“A análise do comportamento perceptivo se desenvolveu inicialmente como
complemento e prolongamento da teoria do reflexo”.
54
Nesse sentido, o
comportamento superior não seria senão uma extensão do comportamento
reflexo. Tudo se dá pela associação de estímulos proprioceptivos e
exteroceptivos.
Para dar conta da noção de reflexo condicionado quando relacionada a
situações nas quais o organismo interage “com um meio mais extenso e rico do
que aquele que age por meio de estimulações físicas e químicas”
55
, Pavlov
recorreu, conforme Merleau-Ponty, a hipóteses que mascaram o desacordo entre
a teoria e a experiência. As categorias permaneceram sempre as mesmas e o
comportamento superior foi tomado como resultado de um processo parte extra
52
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.16.
53
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 64.
54
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 55.
55
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 55.
60
parte. Merleau-Ponty analisa as limitações da teoria pavloviana quando considera
as relações entre estímulos condicionados e incondicionados. Comentando o
usual exemplo do cão salivando
56
Merleau-Ponty mostra, primeiro, que a lei de
irradiação
57
não se sustenta por si mesma, para, então, deixar evidente que o
postulado atomista da teoria dos reflexos condicionados “pertence a um período
ultrapassado da fisiologia e da psicologia”.
Para que a lei de irradiação, conforme elaborada por Pavlov, explique,
por exemplo, a acomodação do nosso comportamento aos aspectos essenciais de
uma circunstância, precisa-se apóias em pressupostos exteriores e em outras leis.
Uma análise, isenta de preconceitos, sobre os ganhos com a experimentação do
cão salivando demonstra que a função de inibição dos excitantes, por exemplo,
varia conforme são considerados isoladamente ou em conjunto. Nesse sentido, o
excitante não pode ser precisamente localizado. Quando, arbitrariamente, busca-
se estabelecer uma localização, o excitante não é nada, seja quando considerado
56
Segue-se, resumidamente, o experimento que coloca em questão a lei de irradiação e, de modo
mais geral, a validade do comportamento condicionado. Excitantes: S (som incondicionado -
inibidor), L (excitante luminoso condicionado de secreção gástrica) e M (batidas de um metrônomo
– contra-inibidor).
situação: S e L são apresentados conjuntamente: 1- inicialmente, S adquire um fraco poder
reflexógeno; 2- S ( tornado inibidor condicional) freia totalmente a secreção gástrica.
situação: S,L e M são associados a um pedaço de carne. Resultado: obtém-se, num primeiro
momento, secreção gástrica, porém inferior a 1ª situação. Repetida a experiência, obtém-se
secreção gástrica total.
Outras situações: Somente M= 40% de secreção; Somente S= 0% secreção; S+M= 40%; L+S= 0%
de secreção.
Conf. - PAVLOV, Ivan.– “A Psicologia e a Psicopatologia experimentais dos animais. In: Textos
Escolhidos, p. 15- 27.
Conf. MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 57.
57
“(...) os processos de excitação e de inibição, uma vez que se desenvolveram nos hemisférios,
começam a estender-se e a irradiar-se nos mesmos, para depois, concentrarem-se e reunirem-se
no ponto de partida. Está é uma das leis fundamentais do sistema nervoso central, lei que, nos
grandes hemisférios, se manifesta com toda a mobilidade e a complexidade que lhes são próprias”.
Conf. - PAVLOV, Ivan.“O Reflexo condicionado”. In: Textos Escolhidos, p. 57.
61
isoladamente nas reações condicionadas ou, ainda, quando tomado como
resultado de uma somatória de elementos.
Os postulados fisiológicos de Pavlov, estabelecidos conforme
pressupostos atomistas, conduzem a uma recusa de conceitos de conjunto tais
como: coordenação receptora; coordenação motora. Essas noções de conjunto,
contra as noções de conexões e disjunções fisiológicas pontuais, sugerem a
possibilidade de o organismo mudar a sua reação qualitativamente. A resposta, ou
mesmo a adaptação, não seria apenas uma reação automática comandada pelo
ponto de inervação, uma vez que um mesmo excitante físico pode produzir
diferentes reações, ou não produzir nenhuma.
A noção associacionista de Pavlov – o excitante complexo é uma soma
dos excitantes simples –fundamenta-se em um modelo de ação nervosa que
unifica uma reação simples a um processo isolado: “Em particular o sistema
nervoso dirigiria o comportamento através de uma ação comparável à do leme de
um barco ou do volante de um automóvel”.
58
Por isso mesmo, segundo Merleau-
Ponty, Pavlov não fez uma descrição fiel do comportamento quando reduziu a
explicação da conduta perceptiva a um conjunto de categorias do tipo físicas e
fisiológicas, que operam segundo preceitos semelhantes aos afirmados pelo
mecanicismo mais estrito.
No exemplo anterior, sobre o processo de condicionamento da
secreção gástrica do cão, ficaram evidentes as dificuldades inerentes ao conceito
de reflexo condicionado. A teoria dos reflexos condicionados não encontrou, para
a explicação do comportamento, qualquer justificativa experimental. A tese central
58
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 66.
62
de Pavlov está de acordo com a antiga concepção das localizações, que
estabeleceu que os fenômenos nervosos constituem um mosaico sem ser jamais
uma atividade ou um processo autônomo de distribuição.
Novamente, a mesma postura tomada diante da teoria clássica do
reflexo intervém. Seguindo as indicações de Gelb e Goldstein, Merleau-Ponty
busca novos postulados sobre o sistema orgânico e a sua interação com o meio,
para discutir a relação entre os reflexos condicionados e incondicionados. Os
estudos de Gelb e Goldstein sobre o córtex, como indica Merleau-Ponty, força-nos
a reconhecer que, antes de tudo, não é necessário recusar o comportamento
condicionado, mas, sobretudo, é importante evitar reduzir o comportamento a uma
atividade condicionada. Assim como o comportamento reflexo, o comportamento
condicionado somente se dá em condições especiais e não parece reproduzir-se
facilmente na natureza. Pavlov quis fundar uma ciência do comportamento
“recorrendo aos conceitos da velha ciência psicológica”
59
sem levar em conta e
admitir que as novas explicações fisiológicas já haviam, primeiro, apontado as
incongruências da teoria clássica do reflexo e, depois, as dificuldades teóricas dos
postulados da concepção da teoria das localizações. Por isso mesmo, torna-se
fundamental, na abordagem merleau-pontyana ter em conta os ganhos obtidos
pela nova fisiologia para, então, dar conta do objetivo o mais importante:
“conhecer o setor central do comportamento e compreender sua inserção no
corpo”.
60
59
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 58.
60
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 66.
63
1.3 O Behaviorismo e o comportamento.
Sim, antes de sermos interior somos exterior.
Por isso somos exterior essencialmente.
ALBERTO CAEIRO
Convergindo teoricamente, em linhas gerais, com a fisiologia clássica, a
Psicologia comportamentalista procurou na dinâmica das relações de causalidade
a razão explicativa para o fenômeno do comportamento. No seu início,
fundamentalmente quando pensamos nos trabalhos de Watson, o behaviorismo
não rejeitou em absoluto o caminho da fisiologia indicado por Pavlov: “A Psicologia
comportamentalista se funda sobre reflexos tais como aqueles estudados pelo
neurofisiologista.”
61
No entanto, é preciso ter em conta que Pavlov e Watson
recusaram, cada um a seu modo, a idéia de uma consciência interior no sentido
de uma alma e de um espírito como o cogito de Descartes havia estabelecido.
Watson, uma leitura atenta de Merleau-Ponty, nega a realidade interior e
não substancialista da consciência e, de modo análogo ao viés naturalista de
Pavlov, reduz o comportamento a uma soma de reflexos condicionados. A
excitação e a reação, os estímulos e as respostas, são concebidos como
processos parciais e exteriores uns aos outros e linearmente dispostos no tempo e
no espaço. O comportamento seria apenas resultado dessas funções implicadas
em conexões causais: um agente físico determinado – interno ou externo,
orgânico ou não – que age sobre um receptor espacialmente localizado e provoca,
61
WATSON, El conductismo, p 292.
64
através de um trajeto também pré-estruturado, uma determinada resposta que, em
última análise, nada mais é do que o produto de uma relação objetiva. Categorias
como as de exterioridade, de relações físicas com correlação de causa e efeito e
fenômenos de natureza longitudinal, como o reflexo e, sobretudo, noções como as
de estímulo condicionados e resposta tornaram-se conceitos centrais na
explicação do comportamento fundada por Watson:
Comprovamos, pois, que o organismo está continuamente submetido
a ação de estímulos – que chegam pelos olhos, pelos ouvidos, pelo
nariz e boca – que são denominados como objetos do nosso meio; ao
mesmo tempo, também o interior do nosso corpo se acha a todo
instante submetido a ação de estímulos nascidos em trocas nos
próprios tecidos. Por favor, não pense que o interior do corpo é distinto
e mais misterioso que seu exterior.
62
Portanto, o comportamentalismo metodológico estabelecido pela
psicologia associacionista de Watson colocou em questão a natureza subjetiva da
introspecção e, como o texto acima indica, suprimir os processos internos do
corpo – fundamentais para a explicação do comportamento – às ocorrências
exteriores. Num futuro próximo, dizia insistentemente Pavlov, o estudo dos
grandes hemisférios cerebrais acabará com todas as duvidas sobre o fundo
neurofisiológico do comportamento. No caso de Watson, que de certo modo se
esquivou dessa esperança e dos desafios enfrentados que esse tipo de confiança
demanda, tudo se dá pela recusa da noção de consciência interior em favor de
uma análise de categorias objetivas, dadas exteriormente, que parecem eliciar um
comportamento perfeitamente compreensível pelas suas conexões de causalidade
que envolvem processos físico-químicos, secreções glandulares e movimentos
62
WATSON, El conductismo, p 31.
65
motores. Ainda, conforme Watson, se temos que reconhecer o papel da rede
nervosa na armação mecânica do comportamento, não podemos, do mesmo
modo, explicá-lo por meio de uma adesão irrestrita ao substrato fisiológico. “Cabe
fundar todas os nossos problemas psicológicos e suas respectivas soluções em
termos de estímulo e resposta.”
63
Nesse sentido, enquanto Pavlov, de certo modo,
reduziu a consciência ao cérebro e buscou fundar a explicação do comportamento
num estudo da anatomia e das funções neurais, Watson, por outro lado, apesar
de preservar a lógica pavloviana de conexões lineares entre estímulos e
respostas, se recusou explicar essa lógica em função de categorias
exclusivamente neuro-fisiológicas. O comportamento está no exterior, é suscitado
por um radical determinismo no qual toda resposta se dá em função de um
estímulo precedente. Assim, para a explicação do comportamento, não há interior
a ser visto, seja o fisiológico ou, ainda, a “fantasia” do puro pensamento. Nesse
sentido a Psicologia, como o texto abaixo sugere, está isenta de toda concepção
subjetivista e introspectiva como, por exemplo, a mais “indefinível" e presente de
todas as concepções, a noção de consciência:
São impressas, literalmente, milhares de páginas acerca de análises
minuciosas deste algo inatingível denominado “consciência”. Está
bem, como trabalhar sobre ela? Não a analisando como
procederíamos quando se trata de uma composição química ou do
crescimento de uma planta. Não, essas são coisas materiais. A coisa
que chamamos de consciência somente pode ser analisada por
introspecção, voltando-se sobre nós mesmos e explorando o que
acontece no nosso interior. Em outras palavras, em lugar de se dirigir
aos bosques, as árvores, as pontes e aos objetos devemos mirar esse
algo indefinido e indefinível que chamamos consciência.
64
63
WATSON, El conductismo, p 39.
64
WATSON. El Conductismo, p. 290.
66
Então, se não temos mais a consciência como fonte que se interroga
sobre a existência e que, de certo modo, também explicaria o comportamento
temos que perguntar: o que podemos colocar em seu lugar? A resposta de
Watson, como já sugerimos anteriormente, é clara e objetiva. “Para compreender
o comportamento é necessário começar pela observação das pessoas.”
65
Podemos supor, amparado nas palavras de Watson, que se a consciência é
“indefinível”, todas as categorias que freqüentemente são tomadas como estados
de consciência também o são. Intenção, vontade e medo, por exemplo, somente
podem ser definidas na medida em que deixaram de ser estados de consciência
interiores e, então, como conseqüência lógica, são concebidos na descrição do
comportamento como parte, como resultado daquilo que constitui o estritamente
observável e mensurável: “(...) em primeiro lugar devemos observar o
comportamento do neonato e enumerar as respostas incondicionadas e os
estímulos incondicionados que as provocam”.
66
O comportamento, desse modo,
se refere exclusivamente as relações que podem ser expiadas no organismo, isto
é, aos elementos de resposta que são os únicos, conforme Watson, que podem
ser examinados por um método científico: observação, experimentação e
previsão. Por isso mesmo, para Watson, qualquer observador pode mensurar o
comportamento na medida em que este é um evento acessível como um
fenômeno natural. O recorte metodológico de Watson recusou para a Psicologia
todo e qualquer postulado livre de exterioridade. Ao contrário dos processos da
consciência que são eventos interiores - se é que existem desse modo quando
65
WATSON. El Conductismo, p. 29.
66
WATSON. El Conductismo, p. 295.
67
pensamos no ponto de vista da psicologia behaviorista - o comportamento é
público e, segundo a interpretação de Watson, constitui o verdadeiro material da
Psicologia:
Porque não fazer do que podemos observar o verdadeiro campo da
psicologia? Limitemos a observá-lo e restrinjamo-nos em formular
somente sobre estas coisas. Sendo assim, que é que podemos
observar? A conduta – o que o organismo faz e diz. E apressamo-nos
a assinalar que falar e agir – isto é comportar-se. O falar em forma
explícita ou silenciosa representa um tipo de conduta exatamente tão
objetiva como o beisebol.
67
Há, desse modo, por parte do ponto de vista watsoniano um processo
de objetivação no qual a situação do homem é semelhante à das coisas. O
comportamento é um fenômeno secundário observável e causado por outro
fenômeno de mesma categoria. Impõe-se assim o conexionismo associacionista
na explicação do comportamento. Não há psiquismo no sentido do “eu penso”
cartesiano, como não há uma resposta que não seja dada em função da natureza,
da intensidade e do lugar de um estímulo. A lógica explicativa watsoniana é
radical: quanto mais o comportamento dos organismos é explicado em termos de
estímulos, mais e mais se reduz o território das explicações não estritamente
pautadas em eventos observáveis e de natureza linear. Como, de modo
semelhante, quanto mais avançamos no terreno da exterioridade, menor é o
campo dos eventos interiores.
As pesquisas sobre o medo, conforme descreve Watson, exemplificam
como se dá o abandono de uma explicação introspectivista, fundada em noções
como consciência e intenção, em função de uma perspectiva mais naturalista
67
WATSON. El Conductismo, p. 291.
68
fundadas nas noções de associacionista de estímulo e resposta. Nesse caso,
conforme o exemplo abaixo, o medo deixou de ser um sentimento passível de
uma significação subjetiva. Nessa perspectiva o medo nada mais é do que uma
reação universal e objetiva, na media em que, como estabelece Watson, a
“vivência do medo” obedece a um circuito reflexo uniforme, pois o mesmo estímulo
incondicionado, para todas as crianças, supõe a mesma resposta:
Consideremos o medo. Nossos experimentos têm demonstrado que o
estímulo incondicionado que provoca uma reação de medo é um som
forte ou a perda da base de sustentação. Todas as crianças que
examinamos, com uma exceção em aproximadamente mil, quando se
produz um ruído forte atrás de sua cabeça, ou quando se tira
intempestivamente o suporte sobre o qual se acham, retêm a
respiração, apertam os lábios, choram, ou, quando são maiores,
afastam-se engatinhando. Isso, nada mais é, o que suscita o medo
durante a primeira infância em todas as crianças do mundo.
68
Com Skinner, de modo mais enfático do que para Watson, o
comportamento, absolutamente, não está no cérebro ou, ainda, deva ser explicado
por um recurso ao substrato e a lógica da ciência pavloviana. Em 1938, no seu
livro O Comportamento do Organismo, Skinner busca fundar uma Psicologia
científica livre dos pressupostos fisicalistas e da influência introspectivista. Nesse
caso, podemos dizer, que estamos diante de uma conseqüência indireta da
posição fisicalista estabelecida pela teoria clássica do reflexo e, ainda, como todo
exame crítico da história da Psicologia estabelece, mais sofisticada do que a teoria
do comportamento condicionado de Watson. No entanto, uma teoria que não
podemos supor isenta de um comprometimento atomista e de uma atitude
reducionista. Com Skinner o material do psicólogo é substancialmente distinto da
68
WATSON. El Conductismo, p. 296.
69
consciência introspectivista e do objeto do fisiologista. É preciso ter em conta que
o que determina o comportamento, independentemente dos fatores
neurofisiológicos do organismo, são as relações operacionais que se apresentam
entre o organismo e o ambiente que devem ser consideradas. Skinner, por
exemplo, sugere de modo análogo com o primeiro behaviorismo, como na
consideração do comportamento, categorias de subjetividade e interioridade
perderam lugar para um esquematismo explicativo fundado na descrição e na
mensuração do comportamento observável - exterior. Nas suas palavras, se ainda
podemos atribuir ao comportamento algo de volitivo isso jamais se dará de um
ponto vista moral, intencional ou, mesmo, neurofisiológico. Uma vontade ou um
sentimento, na perspectiva funcional skinneriana, nada mais seriam do que o
resultado de propriedades ambientais – exteriores – como estímulo e o reforço
que desencadeiam uma série de respostas linearmente dispostas.
“A” “vontade” bateu em retirada pela espinha dorsal primeiro das
partes inferiores e depois das partes superiores do cérebro e,
finalmente, com o reflexo condicionado, escapou pela fronte. A cada
estágio, parte do controle do organismo passou de uma entidade
interior hipotética para o meio exterior.
69
Podemos também dizer, ainda conforme Skinner que se existe uma
consciência ela, por sua vez, é incapaz de um “querer” independentemente das
relações e das condições de existência que se supõe entre o organismo e o
ambiente. Como, de modo análogo, não se exprime em toda a sua integridade por
um exame dos processos fisiológicos. O que mais interessa não é uma discussão
acerca da natureza substancial da consciência ou do comportamento, mas,
69
SKINNER, Ciência e Comportamento Humano, p.58.
70
sobretudo, o fato de que através do comportamento a consciência somente se
revela como uma categoria natural, exterior e observável. Com Watson e,
sobretudo, com Skinner não é mais a consciência como pensamento ou, mesmo,
como sistema neural que elucidam o comportamento. Agora se quisermos
compreender algo sobre o comportamento precisamos agir num sentido inverso
ao introspectivismo sem, contudo, aderir irrestritamente a uma explicação
fisiológica:
Aceitar aquilo que uma pessoa sente ou observa introspectivamente são
as condições de seu próprio corpo é um passo na direção certa. É um
passo na direção de uma análise tanto da visão quanto da visão que se vê
em termos puramente físicos. Após substituir mente por cérebro, podemos
em seguida substituir cérebro por pessoa e remodelar a análise de acordo
com os fatos observados. Mas aquilo que é sentido ou observado
introspectivamente não constitui parte importante da fisiologia capaz de
preencher a lacuna temporal de uma análise histórica.
70
Foi nesse sentido – o da filiação a uma exterioridade isenta de
intencionalidade, de valores e de determinações anatômicas - que a Psicologia
comportamentalista procurou se estabelecer como mais uma ciência entre as
ciências naturais. Observar, mensurar, controlar, prever e formular leis são
categorias que, conforme os objetivos do primeiro behaviorismo, deixaram de se
fazer presentes exclusivamente no universo natural, para se inserirem no que
podemos provisoriamente chamar de comportamento humano. Tudo indica, se
prestarmos atenção nas palavras de Skinner, que estamos diante de uma tentativa
metodológica radical de encerrar o comportamento entre as coisas naturais e
aprisionar o homem ao ambiente exterior: “A pesquisa básica, na ciência do
70
SKINNER, Ciência e Comportamento Humano, p.183.
71
comportamento, é essencialmente manipuladora; o experimentador organiza
condições nas quais o sujeito se comporta de uma certa maneira, ao fazer isto ele
controla o comportamento”.
71
A teoria da aprendizagem tem sido, freqüentemente, usada pelos
teóricos do associacionismo, desde Pavlov, para legitimar essa concepção
“manipuladora” do comportamento. De certo modo, tem corroborado a explicação
do comportamento com os postulados da teoria do reflexo e do comportamento
condicionado. Partindo da idéia de progresso do comportamento, as concepções
psicológicas associacionistas estabeleceram, genericamente, uma teoria da
aprendizagem pautada nas noções de abandono e continuidade correspondentes
às experiências – ensaios - de fracasso e de sucesso. Após uma porção de
tentativas, realizadas ao acaso, o progresso se manifesta tanto como continuidade
quanto como abandono. Quando o sujeito se encontra diante de tentativas que
não dão conta dos objetivos, isto é, mostram-se fracassadas, ele as abandona. Já,
diante de tentativas que são realizadas com sucesso, o sujeito torna-se capaz de
fixá-las e, como conseqüência, em situações semelhantes, pode dar continuidade
a essas mesmas tentativas, reproduzindo-as. “O privilégio da reação adquirida se
confirmará pela repetição, visto que ela é mais freqüente que nenhuma outra
(Watson), vindo fechar cada série de experiências e algumas vezes desde seu
início”.
72
O behaviorismo, como já mencionamos, assim como rejeita as noções
de interioridade também, fiel à lógica dos fatos observáveis, recusa no processo
71
SKINNER, Ciência e Comportamento Humano, p. 59.
72
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.104.
72
de aprendizagem à idéia de intenção, pois analisa o comportamento objetivamente
partes por partes, de momento em momento para estabelecer ‘contigüidades de
fato’ isto é, sucessão causal no tempo e no espaço. “(...) no quadro dos estímulos
reais que o desencadeiam – o comportamento -, não nos defrontamos senão com
estímulos particulares respondendo a excitações particulares; qualquer outra
linguagem seria antropomórfica.”
73
Por isso mesmo, o automatismo proposto pelos
reflexos condicionados não compreende a idéia de um comportamento orientado
para um fim, ainda mais se esta noção de intencionalidade se traduz por uma
visão de tipo antropomórfica.
Ancorado em vários exemplos, Merleau-Ponty demonstra que essa
teoria da aprendizagem associacionista não se sustenta. Do mesmo modo que os
postulados de Pavlov não resistem aos progressos da Fisiologia, a teoria da
aprendizagem não parece conciliável com uma descrição da própria
aprendizagem. Primeiramente, na medida em que a aprendizagem não ocorre
pela simples ampliação de comportamentos novos. Da mesma forma, a
aprendizagem também não se estabelece com a habilidade de um sujeito em
repetir os mesmos gestos. A repetição não é necessariamente um ganho, como
não significa progresso ou mudança de comportamento. Conforme as palavras de
Koffka “(...) a repetição pode levar tanto a maus como a bons hábitos; assim, é
muito difícil aprender a pronunciar uma palavra corretamente depois que se
adquiriu o hábito de pronunciá-la incorretamente, fato que conheço bem pela
minha própria experiência”.
74
73
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.112.
74
KOFFKA. Princípios da Psicologia da Gestalt, p. 544.
73
Ainda, a aprendizagem não se resume à capacidade de um sujeito em
fornecer uma mesma resposta, previamente definida, diante de uma experiência
que já se mostrou satisfatória. E, finalmente, ela não se mostra, quando
adequadamente descrita, como troca – sobreposição - de um antigo
comportamento por um novo. Depois, é preciso considerar que a aprendizagem
não se restringe a uma alteração – seja de continuidade ou abandono - diante da
conquista do sucesso em uma situação específica. A aprendizagem envolve
processos mais complexos e extensos, relaciona-se mais à conquista de
habilidades transversais do que lineares, revela-se mais como aptidão para
responder de maneira inédita do que pela capacidade de repetir o usual:
Um gato treinado a obter o seu alimento puxando um cordão, o puxará,
na primeira tentativa bem sucedida com sua pata, mas, na segunda,
como seus dentes. Se a primeira tentativa feliz foi, como acontece com
freqüência, mista de movimentos inúteis ou de erros parciais, esses
acidentes desapareceram nas reações posteriores. Aprender, não é
jamais se tornar capaz de repetir o mesmo gesto, mas de fornecer à
situação uma resposta adaptada por diferentes meios.
75
A própria consideração de um progresso do comportamento nos conduz
a uma visão distinta do behaviorismo na consideração da aprendizagem e, de
modo mais amplo, na compreensão do comportamento. É preciso considerar o
organismo e a sua disposição para fornecer à experiência, aos ensaios, um
sentido, uma significação. Deve-se levar em conta as suas características
orgânicas, a variabilidade entre as espécies, a sua estrutura corporal, o modo
como o organismo interage e se oferece ao ambiente. Do contrário, como nos
lembra Merleau-Ponty, se a aprendizagem consistisse em uma sucessão de
75
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.106.
74
ensaios vitoriosos e, também, considerando que todas os tipos de animais são
providos de vias receptoras e centros nervosos, não seria estranho presumir que,
de maneira geral, todas as espécies “estariam aptas a toda espécie de
aprendizagem”.
76
Ao contrário da interpretação associacionista, que concebe a
aprendizagem como a aquisição de respostas de maneira cumulativa, a Teoria da
Gestalt centra a aprendizagem na percepção de uma estrutura de campo.
Remete-nos à idéia que a aprendizagem se dá como vivência – experiência direta
– que pressupõe a percepção de estruturas significativas que se apresentam num
determinado contexto. Para tanto, não é demais lembrar a clássica experiência de
Köhler com os símios e o processo de empilhamento de caixas. As experiências
de Köhler nos mostram que a aprendizagem não se constitui em uma resposta
objetiva e, muito menos, em uma mudança pontual desencadeada por estímulos
definidos. Os ensaios, a repetição e as tentativas são operações que devem ser
explicadas pela aprendizagem e não, como o exemplo abaixo descreve, expressar
o caráter da aprendizagem:
Em Tenerife, um dos meus chimpanzés era quase estúpido (...) Viu
muitas vezes alguns chimpanzés utilizarem uma caixa para
alcançarem frutas dependuradas bem alto.(...) Quando o experimentei
na situação descrita – alimento dependurado no teto e caixa deslocada
em relação a ele – o animal dirigiu-se para a caixa, subiu nela, sem
primeiramente deslocá-la para debaixo do alimento, e começou a dar
pulos inúteis no ar. Depois, começou a pular debaixo das bananas,
mas diretamente do chão, abandonando a caixa. Várias vezes outros
animais procederam corretamente na sua frente, mas ele não
conseguia imitá-los. Apenas conseguia copiar partes do
comportamento dos seus companheiros, o que, evidentemente, não
resolvia o problema. Ele subia na caixa, corria da caixa para debaixo
das bananas, e pulava para elas, diretamente do chão. Estava claro
76
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.110.
75
que o animal ainda não havia conseguido estabelecer a conexão
correta entre caixa e alimento. Algumas vezes ele deslocava a caixa
do lugar, mas o fazia a esmo, isto é, tanto para perto como para longe
da comida. Somente depois de inúmeras observações do
comportamento dos seus companheiros é que ele aprendeu a resolver
o problema(...). Observando o comportamento de um companheiro
que sabe resolver o problema, um chimpanzé inteligente percebe logo
que, por exemplo, mover a caixa significa deslocá-la para debaixo da
comida. O movimento é percebido como um deslocamento com essa
orientação essencial. Por outro lado, um animal estúpido vê o
movimento da caixa como algo isolado, isto é, não o relaciona
imediatamente com o local da comida. Ele verá fases isoladas do
desempenho todo, não as percebendo como partes relacionadas com
a estrutura essencial da situação, como partes da solução. É claro que
essa organização correta não é simplesmente transmitida na
seqüência de imagens retinianas que ação do animal-modelo produz.
Com o imitar acontece o mesmo que o ensinar. Ao ensinarmos as
crianças, apenas podemos propiciar a elas condições ou “sinais”
favoráveis para as novas coisas que a criança tem de “apreender”; é
sempre necessário que a criança também contribua com algo, algo
esse que poderíamos chamar de “entendimento”, e que, às vezes,
surge de repente. Não podemos simplesmente despejá-lo dentro da
criança.
77
O experimento de Köhler indica muito claramente, nesse caso, que não
parece ser mais possível sustentar a idéia central do associacionismo de que a
aprendizagem se dá como realização, como “visão” pontual de habilidades e de
coisas isoladas que, quando adequadamente associadas, fornecem objetivamente
uma resposta a uma situação-problema específica. A aprendizagem, também, não
pode ser considerada como resultado de uma simples repetição ou, mesmo, da
imitação. Esses processos, como o experimento de Köhler destaca, para serem
bem sucedidos, dependem de operações mais complexas e, ainda, da percepção
não linear de todos os elementos envolvidos na situação. Repetir e imitar um
determinado comportamento pressupõe, antes de tudo, apreender a situação.
Então, nesse caso, não é a imitação que leva à aprendizagem, mas a imitação já
supõe a aprendizagem. Mais corretamente, podemos dizer com Köhler, que a
77
KÖHLER. Psicologia, p.53.
76
aprendizagem se constitui não como a percepção dos elementos, mas, sobretudo,
como percepção do conjunto, da estrutura. É o corpo, é o ambiente, é o objetivo,
como também indica Merleau-Ponty juntamente com os teóricos da Gestalt, que
intervém no sentido do equilíbrio. Somente quando essas categorias constituem
uma estrutura as caixas empilhadas ganham estabilidade e o animal consegue
aprender e dar conta do objetivo. É o que Koffka, muito claramente, conclui
dizendo que a aprendizagem vai muito além da aquisição de uma capacidade para
responder objetivamente a uma circunstância específica, num determinado
momento:
Aplicado ao empilhamento das caixas, isso significa que o progresso
só pode ocorrer na direção da maior estabilidade das estruturas
criadas quando, numa fase da série de atividades construtivas, o
próprio processo, tem algo haver com a estabilidade, de modo que o
traço por ele deixado pode influenciar o desempenho seguinte.
78
A análise da teoria da aprendizagem, conforme sugere a Teoria da
Gestalt contra os dados da Psicologia empirista, mostra que o progresso do
comportamento não se explica por relações de linearidade causal ligadas ao
sucesso de uma situação. Apreender não se resume a reproduzir respostas. A
aprendizagem remete a uma transformação total do comportamento e, mais
importante, relaciona-se com a capacidade e a forma encontrada pelo sujeito para
responder a uma dada situação, desconhecida ou não, arranjada artificialmente ou
não. O que, sobretudo, temos que reconhecer, conforme as palavras de Merleau-
Ponty, é que o processo de aprendizagem é mais rico, é mais complexo do modo
como, freqüentemente, as teorias clássicas o tem definido:
78
KOFFKA. Princípios da Psicologia da Gestalt, p.547.
77
O verdadeiro estímulo não é aquele que a física e a química definem,
a reação não é tal série de movimentos, a conexão entre um e outro
não é simples coincidência de dois acontecimentos sucessivos. É
preciso que haja no organismo um princípio que assegure à
experiência da aprendizagem um alcance geral.
79
Mas, se o comportamento não pode ser reduzido, como entenderam os
intelectualistas a uma representação, também não se resume a uma coisa objetiva
e exterior como sustenta genericamente o behaviorismo. Se, por um lado, foi
muito importante para uma ciência do comportamento o duplo rompimento
operado pelo behaviorismo – a recusa da noção de consciência interior e do
conceito de ação reflexa (inclusive os reflexos das secreções internas) da
fisiologia – também foi, por outro lado, decepcionante a atribuição de funções
determinantes e quase universais às idéias de condicionamento e reforço para
explicar a manifestação de novas modalidades de comportamento.
Decepcionante, sobretudo, quando pensamos na possibilidade de construção de
uma psicologia que, mesmo sem aderir ao intelectualismo, seria livre dos
pressupostos atomistas – linearidade, causalidade etc - das ciências da natureza.
Segundo Köhler, ao restringir o comportamento fundamentalmente às
funções de reflexos e reflexos condicionados, a psicologia empírica mostrou toda
a sua estreiteza e conservadorismo científico. Fundamentada em conceitos como
os de reflexo condicionado e de reforço o behaviorismo, por exemplo, limitou o
complexo sistema nervoso à condição dos sistemas físicos mais simples: “como
79
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 109.
78
uma bolha de sabão”.
80
De modo coerente, restringiu o comportamento aos
reflexos e, por conseqüência, limitou a análise do comportamento à observação de
algumas reações pré-determinadas dentro de um contexto determinado ou já
estabelecido: “Desse modo a estreiteza da observação protege a estreiteza da
teoria.”
81
Köhler estabeleceu que os problemas de uma psicologia empírica – ele
está se referindo sobretudo ao behaviorismo, se dão mais ou menos nos
seguintes termos: primeiro, ao interrogar a teoria nos seus aspectos internos,
deve-se perguntar, por exemplo, como é possível estabelecer com segurança
funções de conexão entre as condições observáveis do estímulo e as reações
observáveis. Ainda, referindo-se sobre aquilo que foi descartado pelo
behaviorismo como fantasioso, é plausível indagar quais seriam as hipóteses que
dariam conta do largo campo – os processos fisiológicos e a experiência direta -
ignorado pelo behaviorismo. A resposta do behaviorismo, destacada por Köhler se
estrutura, resumidamente, nos seguintes argumentos. (1º) O cientista deve
sempre permanecer atento aos avanços da fisiologia e da endocrinologia. Pois é
sempre possível que novas descobertas sobre a fisiologia do sistema nervoso –
como confiava Pavlov - possam fornecer novos dados importantes para se
incorporar ao padrão explicativo sobre como o organismo reage às estimulações
do ambiente. Note-se que não estamos falando de uma nova teoria explicativa,
mas apenas nos referimos a novos dados que podem ser incorporados à teoria.
(2º) No processo de observação do comportamento de animais e homens, o
pesquisador não tem acesso à experiência direta que, por seu lado, não interfere
80
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p. 34.
81
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p. 36.
79
nos processos fisiológicos e nas estimulações do meio. Sendo assim, é muito
razoável desconsiderá-la como algo relevante. (3º) Por outro lado, o pesquisador
não deve excluir totalmente a sua própria experiência direta quando observa o
comportamento, porque há situações em que a experiência direta serve de
fundamento às orientações teóricas. Como já citamos anteriormente, Skinner não
deixa de reconhecer o quanto, por exemplo, pode ser importante não recusar
integralmente como um argumento de base às observações causais e às
generalizações.
Apesar das posições ontológicas de bases divergentes – neurofisiologia
de um lado e ambiente de outro – instaurou-se, definitivamente, tanto com a teoria
clássica do reflexo como com a Psicologia comportamentalista do tipo watsoniana,
amparadas pela concepção atomista referente a toda e qualquer excitação, um
objetivismo científico do tipo comteano na consideração do comportamento.
Podemos dizer, por exemplo, conforme as teorias fisicalistas do tipo pavloviana,
que a relação excitação-reação é uma necessidade causal semelhante àquela
elaborada por Newton acerca do movimento dos corpos celestes. Como nos indica
a crítica de Merleau-Ponty, não seria do ponto vista da teoria clássica do reflexo,
um anacronismo usar a mesma linguagem, os mesmos procedimentos
metodológicos para descrever, tanto os fenômenos da natureza física inanimada,
como aqueles referentes ao universo do comportamento humano. Então,
conforme esse raciocínio, somos autorizados, sem necessariamente fazer um mau
uso da linguagem, a falar sobre o comportamento das esferas celestes de modo
similar, isto é usando as mesmas categorias para interpretação dos fenômenos,
quando nos referimos ao movimento físico-químico do sistema nervoso, já que
80
tanto num caso como no outro o que interessa é determinar as relações
necessárias e, por que não, universais que regulam o comportamento dos corpos
celestes ou o movimento causal dos órgãos aferentes e eferentes.
A Psicologia comportamentalista de Watson e a Psicologia fisiologista
clássica buscaram, cada uma a seu modo, nas relações de causalidade material a
explicação para os eventos psicológicos. Enquanto com a teoria do reflexo
aprisionamos o psicológico ao fisiológico mecânico, com o comportamentalismo,
por sua vez, o psicológico não deixou de ser estritamente considerado entre as
coisas naturais e observáveis. Nesse processo de objetivação, o sujeito passou a
ter o mesmo status do que as coisas: fenômeno secundário causado por outro
fenômeno. A crítica de Merleau-Ponty diz que é preciso renunciar a essas teorias,
na medida em que não reconhecem, na relação organismo-ambiente, a
capacidade intrínseca do organismo em estruturar originalmente sua reação a um
dado estímulo. Assim como é preciso evitar explicar o conceito de comportamento
através do conceito de reflexo é, também, necessário desviar-se da noção geral
dessas teorias de que o comportamento seria simples efeito da ação determinante
que o mundo externo ou fisiológico efetua sobre o organismo, colocando em
movimento um circuito de funções e operações redutíveis a localização anatômica
ou, no caso de Watson, a mensuração.
Mas, nos alerta Merleau-Ponty, também devemos reconhecer os
ganhos operados pelo atomismo na explicação do comportamento. Se, para
Merleau-Ponty, por um lado, parece problemática a redução operada pela
psicologia empirista do comportamento a uma soma de reflexos condicionados,
por outro, não deixa de ser interessante quando essa mesma psicologia funda o
81
postulado científico do comportamento na negação da realidade interior à
consciência. Isto porque, a perspectiva pavloviana de que o comportamento dos
organismos complexos responde a situações que estão de acordo com sua rede
nervosa e, principalmente, o viés de Watson que sugere uma interpretação do
comportamento a partir de uma descrição dos atos exteriores do sujeito, já
indicam com muita consistência a Merleau-Ponty, conforme veremos mais adiante,
a idéia de um comportamento que existe não como conseqüência de uma
realidade psíquica distinta do físico, mas como um acontecimento visível fundado
numa experiência estrutural que não se reduz nem ao físico e, mesmo, ao mental.
No entanto, a filiação irrestrita da Psicologia empirista ao visível e às
determinações do ambiente e, principalmente, o seu descaso com a validade da
experiência direta formam o núcleo das críticas de Merleau-Ponty, de Köhler e de
KoffKa a essa escola. De modo específico, essa crítica atribui ao behaviorismo
uma grande pobreza de conceitos funcionais e uma aridez científica singular a
quem se recusa a fazer ciência até o fim. Constata, entre outras coisas, que falta a
essa escola vocação para a investigação; pois se a psicologia empírica não
suprimiu completamente a vida subjetiva, como insiste com certa freqüência
Skinner, fez dela, pelo menos antes de considerá-la atentamente, um fator
secundário – quase irreconhecível – que não se origina de nenhuma experiência
direta. Aliás, esse tipo de experiência, mesmo quando se dedica a considerar a
vida subjetiva, deve ser suprimida em favor de uma experiência objetiva: o
comportamento visível abstraído dos elementos da experiência direta. Não são
poucas as passagens e os escritos nos quais Skinner aborda, por exemplo, os
82
esforços empreendidos pela Psicologia do comportamento para, de certo modo,
incluir em suas pesquisas a vida privada. No entanto, a inclusão do interior – a
vida privada da consciência - por parte de Skinner é sempre de modo indireto.
Assim, e as palavras de Skinner abaixo parecem indicar isso, a análise da vida
privada no contexto da psicologia empírica não passa de um rescaldo do exame
objetivo do comportamento.
O problema da privacidade pode ser abordado numa nova direção ao
se iniciar com o comportamento ao invés de partir da experiência
imediata. A estratégia não será certamente mais circular ou arbitrária
do que as práticas anteriores, e tem resultados surpreendentes. Ao
invés de concluir que o homem pode conhecer apenas as suas
experiências subjetivas – que está sendo atado para sempre a seu
mundo privado e que o mundo externo é apenas um constructo – uma
teoria comportamental do conhecimento sugere que é o mundo
privado que, se não for inteiramente incognoscível, pelos menos tem
poucas probabilidades de ser bem conhecido.
82
Nesse sentido o que, sobretudo, tornou mais crítica a posição
behaviorista foi, sem dúvida, a supressão da experiência direta. Uma
conseqüência evidente e problemática que resultou tanto da sua filiação radical ao
empirismo científico como, também, do excesso de zelo contra o subjetivismo. A
lição é simples. Se não é possível descartar completamente o subjetivismo
podemos, pelo menos, livrá-lo da experiência direta e considerá-lo a partir das
categorias da psicologia empírica: “As relações entre o organismo e o ambiente,
envolvidas no conhecimento, são de tal sorte que a privacidade do mundo dentro
dos limites da pele impõe limitações mais sérias ao conhecimento do que ao
82
SKINNER. Contingências do reforço, p.346.
83
acesso deste mundo pelo cientista”.
83
O que Skinner propõe, claramente dito no
texto acima, é o mesmo viés metodológico abstracionista e instrumentalista
preconizado pelos filósofos modernos. Como o sol, que aparece verdadeiramente
somente quando é visto por meio do telescópio, a vida interior, por seu turno,
apenas tem significado quando é resgatada pela ciência do comportamento. Mas,
nesse caso, é sempre preciso lembrar que o maior problema não parece ser a
recusa de uma consciência interior. É preciso estar atento ao fato de que o
behaviorismo acabou recusando, como também fizeram os tributários do
intelectualismo e da teoria clássica do reflexo o que se interpõe entre o estímulo e
a reação: a experiência direta, a consciência e o corpo fenomenal.
83
SKINNER. Contingências do reforço, p.346.
84
II A EXPERIÊNCIA DIRETA E O MEIO COMPORTAMENTAL
Quando falo a respeito de uma cadeira,
refiro-me à cadeira de minha vida quotidiana
e não a um fenômeno subjetivo.
KÖHLER
“Mas por onde começar? Qual é o nosso ponto de partida?” Essas
questões colocadas por Koffka, logo no início do segundo capítulo da sua obra
Princípios da Psicologia da Gestalt, mostram o tipo de tarefa fundamental que
se impõe a uma Psicologia que recusa as soluções antitéticas clássicas. No
entendimento dos pensadores da psicologia da Gestalt, para fugir aos embaraços
teóricos do introspectivismo e do behaviorismo é fundamental, antes de tudo,
realizar um trabalho de base, determinar exatamente sobre o que a Psicologia
deve se debruçar. Dito desse modo isso só pode significar que estamos diante de
um trabalho de ontologia. Nesse sentido, a tarefa primeira é, necessariamente, de
natureza filosófica. A questão - “Mas por onde começar?” – converte-se, de
imediato no seguinte problema: sobre o que devemos falar? A primeira lição da
Gestalt, a mais significativa - os textos de Köhler e Koffka nos remetem a isso -
afirma que tudo deve ser iniciado em um momento – tempo - e em um mundo –
espaço - anterior àquele já fixado, recortado e devidamente explorado pela
ciência. Para Gestalttheorie, em linhas gerais, trata-se de buscar o instante
primeiro e o espaço original dados na experiência direta e no meio
comportamental. Na interpretação de Köhler, devemos começar por admitir o
caráter original e fundante da experiência direta, sem, contudo esquecermos o
quanto é desafiadora a tarefa de conferir, a essa mesma experiência, um estatuto
85
objetivo. Algo de que não devemos descuidar, a objetividade é uma exigência, um
fator necessário a ser atingido se quisermos fazer da Psicologia uma ciência, nos
lembra Koffka. Mas é inegável, repete Köhler com insistência, que precisamos
considerar objetivamente aquilo que as escolas clássicas antitéticas
paradoxalmente - como vimos anteriormente – negaram conjuntamente. A ciência
psicológica encontra apenas um ponto de partida: o mundo tal como se manifesta
ao sujeito. É dele, principalmente, que devemos falar como recomendam as
palavras da Köhler:
Parece haver, para a Psicologia, exatamente como para todas as
demais ciências, um único ponto de partida: o mundo tal como o
descobrimos, de maneira simples e desprovida de crítica. A simplicidade
tende a desaparecer à medida que avançamos. Surgem problemas a
princípio completamente ocultos aos nossos olhos, para cuja solução
pode tornar-se necessário aventar idéias que pouca relação pareça
apresentar com a experiência primária e direta. De qualquer maneira,
porém, tudo tem que começar com uma simples e cândida imagem do
mundo. Essa origem é necessária, já que não existe outro alicerce em
que a ciência possa firmar-se.
84
Köhler sustenta que o mundo da experiência direta é o que primeiro
conhecemos – contatamos, vivenciamos etc - e, desse modo, estabelece o
primado fundamental dessa experiência perceptiva na consideração do
comportamento, restituindo, por assim dizer, a essa mesma experiência o seu
lugar privilegiado na aquisição do conhecimento e na fundação da ciência. Esse
apreço tão relevante pela experiência – o primeiro dado fundamental – não
significa, como num primeiro momento poderíamos supor, uma adesão às teses
do subjetivismo introspectivista ou, mesmo, do empirismo psicológico vulgar. Muito
pelo contrário, pois, nesse caso, a idéia de experiência tem agora contornos e
84
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p.9.
86
significações próprias e objetivas. Está assentada num campo: o meio
comportamental.
É interessante ter em conta que tanto Köhler como Merleau-Ponty não
deixam de reconhecer os ganhos operados pela crítica behaviorista à idéia de
consciência interior. Nesse aspecto da crítica não podemos esquecer que a
experiência em geral comporta tanto experiências do tipo objetivas (coisas que
existem e ocorrem exteriormente e independentemente de nós) como subjetivas
(medo, felicidade, sentimentos, paixões etc). A experiência direta que Köhler
busca legitimar se dirige a coisas que, sem qualquer dúvida, existem
independentemente do organismo. Coisas que sou capaz de experimentar como
algo distinto de mim, que tenho certeza que são exteriores e independentes
quando se apresentam à minha percepção. Como descreve Köhler, “em uma
experiência objetiva, uma cadeira será sempre algo externo, sólido, estável e
pesado”.
85
Consideração, essa, da exterioridade essencial para o alcance da
objetividade.
Antes de tudo precisamos ter em conta que a opção pela experiência
direta como fundamento da análise científica não era algo inédito. Talvez tenha
sido para a Psicologia no tempo de Köhler um expediente novo, mas não para a
ciência em geral, como o texto de Köhler, logo acima, já havia deixado claro: “De
qualquer maneira, porém, tudo tem que começar com uma simples e cândida
imagem do mundo. Essa origem é necessária, já que não existe outro alicerce em
que a ciência possa firmar-se.”
86
Se olharmos com atenção para a história da
85
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p. 18.
86
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p.9.
87
Física, nos diz Köhler, teremos a oportunidade de compreender o alcance –
universalidade - e o uso – fundamento ontológico - da experiência direta para a
ciência. São vários os motivos sólidos que parecem sustentar a tentativa de Köhler
de levar em conta as lições da Física para pensar a relação da experiência direta
com a Psicologia. Primeiramente a analogia com a Física foi para Köhler uma
atitude espontânea, pois está foi a sua primeira formação. Depois, quando
reconhecemos o valor e a natureza das pesquisas físicas podemos, cada vez
mais, afastar-nos dos perigos do subjetivismo. E, também, - o motivo principal -
temos através da Física, pelo menos na perspectiva de Köhler, as melhores
condições de definir como a experiência direta serve de base para uma
experiência objetiva. Por último - um ganho muito importante nessa aproximação -
tendo os princípios daquela disciplina como referência é possível com mais solidez
metodológica, definir o lugar da Psicologia no quadro da epistemé.
No entanto, se quisermos ter bem claro os ganhos metodológicos de
uma aproximação com a Física é imprescindível descrever um pouco da natureza
dessa ciência. Köhler, então, destaca algumas características da ciência Física
que, de certo modo, já comentamos anteriormente quando nos referimos à obra
de Galileu. Primeiro, o físico é um cientista extremamente criterioso quando não
deixa de fazer intervir o necessário e clássico processo abstracionista. Após
cuidadosa seleção de fatos, ele sempre descartará as experiências tomadas como
subjetivas em proveito daquelas consideradas objetivas. Depois, as observações
são sempre de natureza quantitativa e, ainda, são de modo evidente
transformadas em medições quantitativas. Também, todas as observações e
medições são feitas sempre através de procedimentos indiretos, para, enfim,
88
produzir experimentos estruturados em princípios que estão continuamente sendo
reduzidos a poucos tipos. Na medida do possível, restringidos a um padrão único.
Com a Física, nos lembra Köhler, ”chega-se quase a ter a impressão de que a
mesma escala e o mesmo ponteiro estão sendo usados universalmente”.
87
Porém, se temos algo a apreender, em Psicologia, com a Física é
preciso saber definir exatamente o quê. Estabelecer os limites de contato,
determinar, por exemplo, até que ponto a busca de analogias metodológicas com
a Física pode ser viável e proveitoso para a Psicologia. É possível à Psicologia
imitar os procedimentos das ciências físicas? A matematização dos resultados é
um expediente válido para a Psicologia? A Psicologia como ciência do
comportamento, deve usar dos mesmos métodos que a Física? Teremos, ainda,
no capítulo sobre estrutura a chance de discutir um pouco mais a aproximação
estabelecida pela Gestalttheorie entre essas duas ciências. De modo evidente, as
primeiras escolas fisicalistas e empiristas de Psicologia não deixaram de trilhar
esse caminho de justaposição. São exemplos que devem ser recusados,
sobretudo, porque denotam uma exagerada e extemporânea filiação, pois, como
ainda discutiremos, as Psicologias assumiram pressupostos da Física adulta
quando, ainda, estavam num estado inicial. Por isso mesmo a resposta de Köhler
a essas questões não deixa de ser aparentemente imprecisa, pois a opção por
uma aproximação somente parece razoável se, ao mesmo tempo, comportar um
distanciamento entre Física e Psicologia. Nesse sentido, vários são os motivos,
elencados por Köhler, dessa precaução que deve orientar o psicólogo a, antes de
87
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p. 27.
89
se aproximar da Física, fazer um trabalho mediação que preserve, como ainda
indicaremos, a especificidade das análises da Psicologia.
Em primeiro lugar, se podemos apreender e devemos apreender algo
com a Física, não será como apressadamente poderíamos concluir, permitido
formar uma ciência do comportamento assumindo irrestritamente o mesmo
arcabouço epistemológico – métodos, critérios de validade - das Ciências Naturais
e das Matemáticas ou, ainda, supondo para o objeto da Psicologia a mesma
natureza ontológica do objeto que encontramos na Física. Num ensaio sobre as
categorias valor e fato
88
Köhler, ao discutir a natureza do valor e a sua
importância para Psicologia, mostra muito claramente como as Ciências Naturais
e a Física moderna muito solidamente recusaram essa categoria presente no
modelo físico de Aristóteles: ‘’(...) nos tempos atuais, um físico arriscaria a sua
reputação se usasse conceitos de valor em relação ao seu campo de estudos”.
89
O discurso ortodoxo que se mostra presente, da Física à Biologia, sustenta que
nenhum fato, nenhum objeto natural comporta propriedades que indicam noções
de valor, relações de finalidade. Por isso mesmo, não há objetos naturais, para o
cientista da natureza, que possam satisfatoriamente serem explicados fora da
perspectiva de conexões causais dos tipos materiais e motrizes: “Segundo Darwin,
as características da vida orgânica, que parecem implicar o valor, podem ser
explicadas, todavia, em termos de fatos neutros”
90
. No entanto, conforme Köhler, a
conduta humana - particular ou pública - principal interesse do psicólogo, “implica
88
88
KÖHLER, W. “Value and Fact.” Jornal of Philosophy, v.41, p. 197-212, 1944.
89
KÖHLER, Psicologia, p. 110.
90
KÖHLER, Psicologia, p. 110.
90
o valor como o seu conteúdo mais importante.”
91
O que Köhler propõe, nesse
excelente ensaio de 1944 - Value and Fact - não é restaurar como princípio
explicativo à noção de causa final para as Ciências Naturais. O que precisamos,
de imediato, é reconhecer que se não é permitido atribuir ao campo da física
qualquer noção explicativa de valor podemos, por outro lado, significar o trabalho
do físico – do cientista – a partir dessa categoria. São, por exemplo, questões de
valor, conforme Köhler, a objetividade da ciência, a honestidade no tratamento
dos dados etc. Uma Psicologia da conduta humana, pelo menos na perspectiva de
Köhler, tem na categoria de valor o seu conteúdo mais importante. Portanto,
enquanto a Física exclui essa categoria e permanece no exame das relações de
fato, impõe-se à Psicologia, por sua vez, determinar como apreender, como
significar e descrever a conduta humana tendo por base o valor. Outro ponto que
parece não permitir uma aproximação irrestrita entre a Física e a Psicologia se
refere à consideração das vivências subjetivas. Também, nesse caso, Física e
Psicologia caminham em direções opostas. Antes de tudo, não está totalmente
descartada a possibilidade de que o comportamento dos homens e dos animais
poderá no futuro, com o progresso constante da ciência, ser observado por meio
de experiências subjetivas. Procedimento que parece integralmente fora da Física,
mas nunca deve ser excluído definitivamente da Psicologia. E isto porque, por
mais controverso que seja, é interessante reconhecer a importância e a
possibilidade futura de uma abordagem mais criteriosa desse tipo de experiência
para uma determinação mais integral dos motivos do comportamento. Mas, o
aspecto mais fundamental que não torna razoável uma adesão irrestrita à Física é
91
KÖHLER, Psicologia, p. 110.
91
quase uma noção de senso comum: o tipo de método a ser empregado depende,
e muito, do tipo de objeto a ser examinado, pois o método não deve ser avaliado
como bom em si mesmo, deve ser ajustado ao objeto examinado. Ainda, o
procedimento da Física de indicação e representação dos eventos através da
matemática não pode ser generalizado de maneira indiscriminada para o campo
da Psicologia. A inadequação desse viés físico-matemático se verifica, por
exemplo, quando estamos diante de um exame de problemas evidentemente
qualitativos que ainda não foram corretamente descritos. No mais, os
procedimentos indiretos que procuram fazer registros e classificações – tabelas,
gráficos, fórmulas e quantificações de todos os tipos - não se mostram precisos
quando buscam, por exemplo, investigar as razões ou mesmo a natureza de um
comportamento de tipo emocional. “De um modo geral, o processo mais fácil e
mais seguro continua a ser observar a cólera no comportamento de um sujeito
como tal do que, por exemplo, medir a adrenalina em seu sangue”.
92
No entender de Köhler, é fundamental para toda disciplina científica
percorrer um itinerário, construir uma história e passar pelas etapas pré-científicas,
até se consolidar como ciência. Ao contrário da Física, a Psicologia é uma ciência
jovem, sem um amplo apoio de informações que permitem a passagem das
observações qualitativas para métodos indiretos e quantitativos. A Psicologia não
dispõe da base instrumental com a qual a Física pode contar. Nesse sentido, a
aproximação é ainda mais problemática. Segundo Köhler a razão mais evidente
dessa distinção é o próprio tempo da Psicologia. Falta, portanto, à Psicologia
história, trilhar um caminho de desenvolvimento semelhante na dinâmica, nas
92
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p. 29.
92
etapas ao que foi trilhado pelas ciências físicas e, então, talvez, constituir uma
história como a Física o fez, percorrer os seus passos iniciais seja a melhor lição a
apreender com ela. “Se quisermos imitar as ciências físicas, não poderemos imitá-
la em sua forma contemporânea, altamente desenvolvida, mas, sim, em sua
juventude histórica, quando o seu estado de desenvolvimento era comparável ao
da própria Psicologia atualmente”.
93
Outra dificuldade, sem dúvida a mais evidente, que se apresenta no
processo de aproximação, está dada pela natureza dos objetos. Sem esquecer,
como já dissemos anteriormente, que é justamente em função do objeto que as
questões de método deverão ser resolvidas. Pelo menos essa é opção de Koffka
quando discute desde a definição da Psicologia até a fixação do seu campo.
“Como os métodos dependem do objeto de estudo, concentrar-nos-emos primeiro
numa definição ou, melhor, num delineamento da nossa ciência”.
94
Mais adiante
comentaremos, com mais atenção, os pressupostos metodológicos destacados
por Koffka. Por ora basta dizer que o princípio adotado pelos gestaltistas
pressupõe que a fixação do objeto antecede e determina o próprio método. Nesse
sentido temos mais um obstáculo considerável que impede uma adesão irrestrita
aos fundamentos da Física. Tudo se confirma quando confrontamos os objetos. O
resultado dessa aproximação é confuso e ambíguo. Ainda, veremos, como é
possível aproximar as formas que atuam em um organismo, daquelas que operam
em um sistema físico. Mas, por enquanto, é preciso ter em conta que um
organismo não é em quase nada semelhante a um sistema físico, sobretudo,
93
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p.30.
94
KOFFKA. Princípios da Psicologia da Gestalt, p.37.
93
quando pensamos nas distinções de natureza substancial – o que é óbvio – e,
ainda, nos processos e funções que habitam a existência de um organismo e de
um sistema fisco. Mais complexo, o funcionamento orgânico é determinado por
uma quantidade quase incontável de processos físico-químicos. “Uma ameba, nos
diz Köhler, é um sistema mais complicado do que todos os sistemas do mundo
inanimado”.
95
Se a aproximação metodológica irrestrita não é possível a questão
permanece em aberto. Qual o método adequado à Psicologia? A definição dos
métodos pressupõe, antes de tudo, como nos alertou Koffka, a aquisição de uma
base a partir da consideração das experiências que poderão ser convertidas em
dados científicos. Permanece a questão: o que reter da Física? Quiçá, como
indicaremos, a lógica que determina a genealogia do seu discurso. Primeiro o
físico se pergunta pela natureza dos fenômenos. O que é força? O que
aceleração? O que é gravitação? O que é velocidade? O que é massa? Depois
recorre, necessariamente, a procedimentos de mensuração para responder a
essas questões. Newton, por exemplo, antes de elaborar a sua teoria da
gravitação desenvolveu uma ciência das forças e dos movimentos: nomeou essa
ciência de Mecânica. Quando, em 1687, Newton propôs a sua lei da gravitação e
estabeleceu que a força gravitacional entre dois objetos pode ser expressa por
uma equação (F=GMm/d2), já havia, de antemão, investigado e estabelecido
noções como a de movimento, de força, de massa e de velocidade constante.
tinha então, como nos referimos anteriormente, realizado o trabalho de base:
determinado a natureza dos fenômenos a serem considerados.
95
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p.32.
94
Deveríamos, antes de tudo, em Psicologia também indagar pela
natureza dos fenômenos. Eis uma boa lição, nos adverte Köhler, a aprender coma
Física. Eis o trabalho de base filosófica o qual chamamos atenção anteriormente.
No entanto, ignoramos essa lógica, já que em psicologia, por exemplo, usamos
testes para medir a inteligência sem antes nos perguntar sobre a natureza
significativa da inteligência. Köhler não poupa críticas aos primeiros psicólogos, a
quem acusa de ignorar esse trabalho de base. Fechner, por exemplo, em sua obra
Elementos de Psicofísica, para escapar do introspectivismo reduziu o psíquico
ao físico e estabeleceu uma lei – de natureza mecânica - para explicar as relações
entre excitação e sensação. Físico de formação, como o próprio Köhler, Fechner
e outros psicólogos empiristas são reconhecidos como os primeiros teóricos em
Psicologia a copiar a Física adulta. Fechner, conforme pensa Köhler, desprezando
o que deveria servir de fundamento as suas doutrinas recorreu a procedimentos
de mensuração, à metodologia da Física e das ciências experimentais e
transformou a Psicologia em ciência experimental. Contribui, então, juntamente
com outros para afastar a Psicologia do seu verdadeiro campo inicial: a
experiência direta.
Em lugar de convidarmos um indivíduo a observar e descrever a sua
experiência direta, nós o colocamos em uma situação bem definida, à
qual ele reagirá de um modo ou de outro. Podemos, então, observar e
medir as suas reações, sem que ele nos ofereça qualquer descrição
de suas experiências.
96
96
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p.15.
95
Desse tipo de metodologia, indica Köhler, nasceu a lei de Weber
97
que
sustenta a dependência da sensação aos processos fisiológico ao considerar, de
modo geral, que a mensuração objetiva desses processos está, assim como as
causas físicas que os produzem, em equilíbrio com os resultados psicológicos.
Deste modo, por extensão, os procedimentos para mesurar as mais diferentes
expressões de comportamento entraram de uma vez por todas no campo da
Psicologia. As indicações são todas da Física adulta. “O comportamento, isto é, a
reação dos sistemas vivos aos fatores ambientais, é o único assunto referente ao
sujeito que pode ser investigado na Psicologia científica; e o comportamento de
modo algum envolve a experiência direta”.
98
Assim, inteligência, linguagem,
memória e o pensamento, conforme já nos referimos no capítulo sobre a teoria do
reflexo, mesmo não sendo fatos físicos passam, por sua vez, a serem explicados
unicamente à luz dos princípios da Física.
Na contramão da Psicologia experimental e dos psicólogos fisicalistas,
é preciso reconhecer o alcance e o interesse da observação qualitativa em
Psicologia. Há, sobretudo, uma perspectiva de compreensão do comportamento
que somente pode ser expressa por informações do tipo qualitativas. Na visão de
Köhler, ao recusar absolutamente esse tipo de informação, a Psicologia se torna
estéril e falsamente exata. É o caso dos estudos dedicados a indicar e encerrar a
inteligência a partir de escalas matemáticas. Determina-se, antes de tudo, um
certo sistema a ser investigado (criança, adulto, homem, mulher ou animal).
97
Afirmação de que o alcance do limiar diferencial – quantidade que tem de ser acrescentada ou
subtraída a um dado estímulo para que um sujeito possa percepcionar a diferença apenas
perceptível. –é proporcional à intensidade do estímulo. Conf. GLEITAMAN; FRIDLUND e
REISBERG. Psicologia, p. 1244.
98
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p.16.
96
Depois de estabelecido o sistema, é fundamental se assegurar e controlar de
maneira objetiva todas as condições do processo experimental. Especialmente as
mais importantes: aquelas referentes aos estímulos externos e as reações. Só
então a reação do sujeito, resultante da experiência, é registrada ou medida
exatamente como são as reações na Física ou na Química. No entanto, a medição
da inteligência, de modo preciso, somente tem valor do ponto de vista prático.
Ainda assim, possui uma aplicação muito restrita, já que aponta de maneira
reduzida uma capacidade especifica para certas tarefas particulares. A medição
da inteligência não passa de um procedimento razoável, incapaz –
paradoxalmente - de fornecer uma noção realmente representativa do significado
da inteligência. Admite-se, ainda, que os testes matemáticos tenham algo de
significativo a nos dizer sobre, por exemplo, a possibilidade de dois indivíduos
realizarem com graus de satisfação distintos um determinado trabalho ou, ainda,
dedicarem-se a diferentes áreas de produção e pesquisa. O que não parece
razoável é aceitar que os resultados dos testes aplicados aos indivíduos são, em
última análise, o fator determinante da inteligência desses mesmos indivíduos.
Além do mais os testes encobrem todos processos peculiares que permeiam um
comportamento e, além disso, não se deve esquecer que os números são
suscetíveis das mais variadas interpretações e que apenas apresentam uma
impressão específica da situação. “Alguns psicólogos irão até o ponto de sugerir
que a inteligência deve ser definida como o X que é medido no teste e que, na
ciência, a medição é mais importante que todas as indagações dos fenômenos”.
99
Köhler, na contramão dessa perspectiva positivista da Psicologia, procura
99
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p.32.
97
compreender a inteligência levando em conta as noções, que ainda melhor
definiremos, de estrutura e campo fenomenal. São, sobretudo as relações de
conjunto que, numa determinada experiência, o animal é capaz de incorporar que,
na interpretação da Gestalttheorie, passam a representar um comportamento
inteligente. A resposta específica, numa situação particular a um problema
também reduzido à natureza das questões lógicas não pode funcionar como
critério suficiente e definitivo da inteligência. É fundamental alargarmos as
condições, os fatores e os critérios de significação da inteligência, eis uma lição
fundamental que apreendemos com Köhler, com Koffka e com Merleau-Ponty. “Na
realidade, além de aos “estímulos”, o animal está submetido a um mundo de
dados sensoriais originários do seu próprio organismo e também do ambiente que
o cerca.”
100
Um comportamento inteligente se dá, como as pesquisas de Köhler
com chimpanzés mostram, quando todos os elementos envolvidos numa situação
– o corpo, o alimento, os materiais, o espaço – são percebidos como
intrinsecamente ligados. Nesse sentido, a inteligência é a abertura para visão mais
complexa e extensa – da totalidade - que, em última análise, está dada na
experiência perceptiva do campo fenomenal e da estrutura. A inteligência, nesse
caso, é vivida e é considerada como aquilo que se desenrola no lócus fenomenal.
Nesse sentido a inteligência, passou a ser entendida por Köhler, como as palavras
de Merleau-Ponty indicam, como “a gênese de uma solução de conjunto em
função da estrutura de campo e aparição de um comportamento cujas partes
constituintes são consideradas no processo total”.
101
100
KÖHLER, Psicologia, p. 44.
101
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 149.
98
Ao contrário do que pensam o behaviorismo e o intelectualismo, não
podemos esquecer que tudo passa pela experiência direta: ela é o solo de tudo,
fundamento anterior ao mundo objetivo. No entanto, para tirar conclusões
científicas é preciso dar a essa experiência direta um caráter objetivo. No caso da
Física as definições que se referem à experiência direta são rigorosas na medida
em que compartilham procedimentos, por exemplo, típicos das ciências exatas. O
mundo da experiência é objetivo na medida em que os fenômenos que o cercam,
apesar de recorrermos a eles e sermos constantemente por eles afetados, sempre
tendem a permanecer fora de nós, pois na Física não confundimos a nossa
experiência com os objetos que a influenciam.
As lições do estudo da Física nos dizem, ainda, que o mundo quando
interpretado é distinto do mundo meramente experimentado de maneira direta.
Mas essa ciência não recusa, de imediato, o mundo da experiência. A sua história,
como nos contou Köhler, começa justamente com ele. O que a Física fez foi
objetivá-lo e não dispensá-lo, até porque nessa disciplina, de um certo modo, a
experiência objetivada não deixa de se expressar através de elementos que são
comumente reconhecidos na experiência direta. Nela, por exemplo, conforme
apreendemos com a teoria da relatividade, a observação por parte de duas
pessoas não é universalmente e rigorosamente a do mesmo fenômeno.
Aceitamos, desse modo, que no mesmo sistema físico também ocorre com
freqüência a intersecção de uma experiência na qual os fatos observados são, em
certo sentido, a visão do observador. A experiência direta tem seu lugar e o seu
sentido na Física, mesmo que na forma de um subjetivismo genético: o sujeito
está necessariamente incluído no sistema que observa, mas, em hipótese alguma,
99
se confunde com o sistema: eis a chave que melhor pode explicar a aproximação
da Psicologia com a Física.
A resposta de Köhler para a Psicologia, sobre o problema acima
colocado – a objetivação da experiência direta - não deixa de lado a velha
confiança no avanço da ciência. Primeiramente devemos ser otimistas, é
fundamental estarmos sempre atentos aos avanços da fisiologia e da
endocrinologia. Quem sabe, num futuro não muito distante, as funções de
conexão dadas no meio comportamental poderão ser mais objetivamente
conhecidas quando, de modo mais significativo, avançarmos na descrição dos
processos nervosos ocultos e da própria natureza orgânica como um todo. Em
segundo lugar, no processo de observação do comportamento de animais e
homens, o pesquisador não tem acesso à experiência direta própria dos homens e
dos animais observados que, por seu turno, não interfere nos processos
fisiológicos. Por outro lado, o pesquisador não deve excluir a sua própria
experiência direta quando observa o comportamento, pois há casos em que a
experiência direta serve de fundamento às orientações teóricas. O próprio Köhler
recorre a ela na condição de teórico da Psicologia e é interessante pressupor que
a nossa própria experiência direta permite conceber, ainda que de modo limitado,
como se dão as relações de conexão no campo comportamental. Isto é, podemos
a partir de nós mesmos, da nossa própria experiência, reconhecer os caracteres
objetivos de um determinado fenômeno. É, por exemplo, o que parece ocorrer
quando Köhler leva a cabo as pesquisas para investigar a percepção das galinhas
acerca de diferentes matizes de cinza. As conclusões de Köhler tiradas desse
experimento – exaustivamente comentado por praticamente toda a bibliografia
100
crítica da Gestalttheorie, não deixam de ser, de certo modo, referendadas pelas
conclusões da sua própria experiência com as cores, com os diferentes matizes
de cinza. Ao considerar a experiência direta Köhler, a seu modo, faz intervir, ainda
que timidamente, procedimentos típicos de uma filosofia subjetivista rejeitados
pela psicologia empirista. Não se trata, nesse caso, de validar uma auto-descrição,
por exemplo, como aquelas empreendidas por Santo Agostinho e Rousseau. Na
tentativa de descrever os ganhos da experiência direta podemos apelar para a
descrição na nossa própria vida. Já que a nossa história é uma sucessão de
eventos que não se construíram independentes de um primeiro contato com o
mundo. A experiência direta vivenciamos desde criança, nos relata Köhler, e a
experimentamos cotidianamente. Ela concentra a nossa primeira vivência.
Portanto, temos que não apenas reconhecer a função da experiência direta e das
nossas escolhas privadas, mas recorrer a elas – sem estarmos de todo
equivocados – não como um princípio socrático, mas como um campo capaz de
significar muito mais do que a nossa inserção privada no mundo. “Descreverei a
minha própria maneira de proceder, quando investigo as propriedades de um
corpo físico ou químico”.
102
Por isso mesmo Köhler remonta tanto às suas
experiências pessoais – a descrição de eventos da sua infância – como apela aos
episódios públicos de sua vida: a sua formação de físico. Já que a experiência
direta faz também, como já indicamos anteriormente, parte da ciência Física assim
como é, inegavelmente, validada pela Física.
Mas o argumento final, o mais significativo, é a própria definição do
campo comportamental em Psicologia para a Gestalt. A experiência objetiva
102
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p. 21.
101
depende tanto de fenômenos físicos como de fenômenos fisiológicos e ambos são
exteriores. Mas a Psicologia, diferente da Física, se interessou tradicionalmente e
de maneira vigorosa pelo segundo tipo de fenômeno. Vale a pena, nesse
momento, retomar as contribuições de Koffka, sobretudo a de noção de meio
comportamental, para compreender como Gestalttheorie articulou a noção de
campo.
As descobertas da Gestalttheorie já apontam para a necessidade de
uma distinção entre processos elementares de natureza puramente física para
aqueles que se apresentam com sentido imanente. Esse é o caso do
comportamento no seu aspecto fenomênico. Num breve exame da curta história
da Psicologia, KoffKa observa que não faz muito tempo que ela começou
efetivamente a dedicar-se aos fatos, isto é, que se iniciou no caminho da ciência.
E, de modo evidente, não foram poucos os fatos descobertos pela Psicologia.
Enquanto permaneceu estritamente como uma ciência empírica, a Psicologia
sempre se ocupou da relação entre a natureza animada e inanimada. Dedicada
especialmente ao mental, demorou a atribuir ao sistema nervoso central o ponto
de confluência dessas categorias. Mas foi somente quando a Psicologia, na
concepção geral de Koffka, deteve-se sobre o comportamento molar que ela
descobriu os dados mais fundamentais da sua curta história: a natureza, a vida e a
mente.
Rejeitando as concepções tradicionais como o materialismo, o vitalismo
e o espiritualismo, a psicologia da Gestalt, por sua vez, trouxe uma solução nova
para os problemas que envolvem o significado e as relações entre a natureza, o
fisiológico e o mental. Essa solução está dada a partir de uma dupla suposição
102
que pesam sobre as noções de experiência direta ou, ainda, de meio
comportamental: integração e psicoisomorfismo.
É fundamental, antes tudo, ter em conta que na perspectiva da
Gestalttheorie integração e psicoisomorfismo são noções fundamentais e
indissociáveis. Veremos, ainda, que esse não é o caso de Merleau-Ponty. Em A
Estrutura do Comportamento Merleau-Ponty admite a integração das três
categorias – matéria, vida e mente - mas por razões distintas da Gestalttheorie.
De modo evidente, Merleau-Ponty recusa esse psicoisomorfismo que se constitui
no argumento basilar do processo de integração das categorias, pelo menos nas
perspectivas de Köhler e Koffka. Mas é justamente a adoção desse princípio que
desvia a Gestalttheorie de um viés filosófico para uma direção materialista das
formas.
Porém, antes de consideramos as críticas merleau-pontyanas, vejamos
o que a Gestalttheorie tem a dizer sobre o processo de integração das categorias.
Tudo começa pela aceitação irrestrita do caráter unificador da Psicologia. A
Gestalttheorie, ao contrário das outras ciências e das escolas clássicas de filosofia
– empirismo e intelectualismo –, procura evidenciar uma conexão estrutural entre
as categorias das ciências da natureza, da vida e da mente. São, em primeiro
lugar, os modos de representação da realidade dessas categorias que parecem
dar consistência à noção de integração. Quantidade, ordem e significação não
são, na perspectiva de Koffka, modos específicos e exclusivos da natureza, da
vida ou da mente como tradicionalmente se supõe. Em nome das formas são,
sobretudo, as fronteiras entre essas três categorias e os seus modos de
103
representação que são derrubadas nas perspectivas da Gestalttheorie e de
Merleau-Ponty.
Para tanto, não é preciso negar que os juízos do tipo quantitativos
encontram na física o seu lugar mais adequado. Mas, como Köhler já nos havia
sugerido, isso não significa que a Física exclua a noção de qualidade na
consideração de seus eventos. As descrições quantitativas, sejam aquelas
estabelecidas pela Física, pela Química ou, ainda, pelas matemáticas, não deixam
de ser modos específicos de expressar também uma qualidade. Segundo Koffka a
medição traz sempre consigo uma série de aspectos qualitativos. E o caso, por
exemplo, de “um corpo deslocando-se a uma velocidade constante; genuinamente
quantitativa, mas também qualitativa, e o mesmo acontece seja qual for a espécie
de velocidade que atribuirmos ao corpo”.
103
São as concepções estritamente topográficas que tradicionalmente têm
invalidado a aplicação do conceito de ordem, para efeito de uma compreensão da
realidade natural. Para o mecanicismo, os acontecimentos físicos são
essencialmente necessários. Os eventos estão dispostos numa determinada
seqüência temporal e as coisas ocupam lugares determinados em função de
princípios e de leis invariáveis e universais. A ordem, nesse caso, é apenas uma
função lógica e necessária, mas completamente desprovida de um sentido interno.
As coisas, por exemplo, ocupam um determinado lugar porque simplesmente não
poderiam estar em outro. Ocorrem numa seqüência específica unicamente pelo
fato de estarem dispostas para essa seqüência. Para o vitalismo, de modo geral,
ao contrário da natureza inanimada – desprovida de qualquer sentido imanente –
103
KOFFKA. Princípios da Psicologia da Gestalt, p. 26.
104
a vida encontra em si e por si mesma uma ordem. Na vida, conforme o vitalismo
descrito por Koffka, não há lugar para eventos fortuitos e sem sentido imanente.
Todos os fenômenos que envolvem a vida ocorrem e estão colocados, de modo
geral, conforme um desígnio arranjado, são sustentados e dirigidos por uma força
ordenadora que é, em última análise, sempre significativa.
No entanto, se é possível inserir no universo da Física noções
qualitativas, também é, de modo semelhante, viável buscar na natureza
evidências de uma perspectiva vitalista. Isto é, a noção de ordem também explica
os acontecimentos físicos. Assim a Gestalttheorie, segundo Koffka diferente do
vitalismo e do mecanicismo, promove ainda mais sua vocação de integração, ao
abrir um espaço para a noção de ordem na compreensão dos eventos da
natureza. Trata-se de um movimento contrário daquele, por exemplo, percorrido
pelo fisicalismo psicológico. No caso da Gestalttheorie é possível buscar, pelo
menos em parte, nos modos de representação da vida uma explicação da
natureza, pois é a vida, em última análise, conforme o texto de Koffka, quem
garante à natureza uma significação aberta e uma direção comprometida com
objetivos: “(...) na natureza inorgânica, você nada mais encontra senão a interação
de forças inorgânicas cegas, mas quando se trata da vida, encontramos ordem e
isto significa uma nova força que dirige as atividades da natureza inorgânica,
dando aos seus impulsos cegos finalidade e rumo, portanto, ordem”.
104
Mas a Gestalttheorie concebe a integração entre a natureza e a vida
como uma via de duas mãos. Como o texto de Koffka acima sugere, a noção de
ordem, quando aliada à idéia de integração não pode mais ser tomada como
104
KOFFKA. Princípios da Psicologia da Gestalt, p. 28.
105
sendo exclusiva das ciências da vida. Apesar do conceito derivar da observação
de seres vivos, não se aplica mais somente ao domínio da Biologia. Deve ser
estendido para o conjunto dos eventos naturais e, nesse sentido, pode muito bem
encontrar-se entre as categorias interpretativas da Física. Condição, aliás,
essencial para a Gestalttheorie superar os problemas de uma adesão, ainda que
parcial, às categorias do vitalismo.
As vantagens desse alargamento são múltiplas. Antes de tudo o próprio
conceito de ordem torna-se mais sofisticado. Alia as noções de qualidade à de
quantidade. Mais dinâmico esse conceito, restringe por parte das ciências da vida
uma filiação essencialmente metafísica ao vitalismo como, também, nos livra de
uma visão limitada e determinista da natureza. No processo de integração,
natureza e vida, conforme Koffka, saem ganhando. São, agora, categorias mais
ricas e complexas que estão em pauta. Capazes, como o texto a seguir indica, de
modificar até mesmo a nossa compreensão da vida e da natureza. Pois o
entendimento de uma pressupõe a consideração da outra:
Mas é oportuno sublinhar desde já a função integradora da solução
gestaltista. A vida e a natureza não são reunidas pela negação de uma
das mais destacadas características da primeira, mas pela
demonstração de que essa característica também pertence à segunda.
(...) Mas se a natureza inanimada compartilha com a vida do aspecto
de ordem, então o respeito que sentimos direta e irrefletidamente pela
vida, estender-se-á também à natureza inanimada.
105
Mas a Psicologia da Gestalt não se resumiu a um campo de integração
a partir dos modos de representação típicos das ciências naturais e da vida, uma
vez que a integração restrita às noções de quantidade e de ordem poderia, mais
105
KOFFKA. Princípios da Psicologia da Gestalt, p. 29.
106
uma vez, nos aproximar perigosamente do atomismo psicológico. Seria ainda,
nesse caso, uma integração feita pela metade. Além do mais a Gestalttheorie
supõe um campo de aplicação da psicologia muito mais amplo do que aquele
recortado pela psicologia experimental. Se, por um lado, as idéias básicas da
psicologia experimental davam conta de comportamentos específicos ignoravam,
por outro, o mundo da cultura, da arte, da história e da filosofia. De modo evidente,
os psicólogos experimentais e os filósofos em geral estavam, por razões distintas,
de comum acordo sobre a impossibilidade de uma analogia científica entre a
psicologia e o mental. Enquanto os primeiros desconsideravam o mental sobre a
perspectiva de qualquer atributo de valor ou de significado – o mental não passa
de uma quimera - os filósofos, por sua vez, não admitiam a competência de uma
psicologia científica em fornecer respostas sobre os motivos mais íntimos e mais
significativos de uma escolha. “Assim o historiador estava certo quando insistia
que nenhuma lei da sensação, associação ou percepção – de prazer ou desprazer
– poderia explicar a decisão de Julio César para cruzar o Rubicão (...)”
106
A
psicologia científica, conforme Koffka, estava até o advento da Gestalttheorie
diante de um dilema: enquanto tinha posse dos métodos e dos materiais
científicos e se mantinha fiel aos seus princípios explicativos desprezava os
verdadeiros motivos do comportamento.
Foi preciso, então, procurar um ponto de ligação entre a natureza, a
vida e o mental. E, obrigatoriamente, o conceito de significado teve de entrar em
cena. Nascido da Filosofia essa noção tornou possível o processo completo de
integração. Se a teoria da Gestalt fez intervir a idéia de significado para não
106
KOFFKA. Princípios da Psicologia da Gestalt, p. 30.
107
compartilhar das teses do atomismo psicológico e, desse modo, aproximou-se da
Filosofia, ela também quis, com essa noção, evitar aderir ao vitalismo. No lugar da
explicação estabelece a busca pelo sentido da compreensão, pois continuar refém
da pura e simples explicação é, ainda, aceitar os postulados do atomismo
psicológico. Perguntas do tipo “como é?”; “como ocorrem?” foram substituídas
pela abordagem do “por que é?”. Então, o trabalho pautado pela busca do
significado supõe a compreensão de todas as categorias que se apresentam
relevantes no processo dinâmico do comportamento. Noções como as de
finalidade, intenção, totalidade foram definitivamente, com a Gestalttheorie,
incorporadas à psicologia. Mas a vocação universalista e integradora da
Gestalttheorie não procurou modificar apenas a Psicologia. A sua ambição foi
digna de um projeto cartesiano. Pretendeu, semelhante à teoria das causas de
Aristóteles, poderíamos quase afirmar, levar à natureza e à vida os motivos e os
princípios de explicação do comportamento. Com a Gestalttheorie o significado, a
ordem e a quantidade tornaram-se fatores dinâmicos. Transitam em todas as
áreas. E, diferente das conclusões da Psicologia experimental e da Física, a
Gestalttheorie supôs que é coerente na mesma medida compreender a natureza e
explicar o comportamento. “Explicar e compreender não são formas diferentes de
lidar com o conhecimento, mas fundamentalmente idênticas. E isso significa: uma
conexão causal não é uma simples seqüência factual a ser memorizada, como a
ligação entre um nome e um número de telefone, mas é inteligível”.
107
No entanto, a adesão à noção de significado não impõe, em absoluto,
um abandono das causas materiais e eficientes. Elas ainda têm, como todo o
107
KOFFKA. Princípios da Psicologia da Gestalt, p. 32
108
pensamento positivista, o seu lugar. Mas precisamos ter em conta que a
integração das categorias - natureza, vida e mente levada ao seu extremo é a
possibilidade de superarmos as antinomias em favor de uma consideração mais
complexa não apenas do comportamento, mas, fundamentalmente, como as
palavras de Koffka abaixo indicam, de toda a existência. A Psicologia da Gestalt
fornece, então, uma base sólida para a construção de uma filosofia das formas.
A ciência encontrará gestaltes de diferente ordem e diferentes
domínios, mas nós afirmamos que toda e qualquer gestalt tem ordem
e significado, em maior ou menor grau, e que, para uma Gestalt
quantidade e qualidade são a mesma coisa.Ora ninguém negaria hoje
que, de todas as gestaltes que conhecemos, as mais ricas sejam da
mente humana; portanto, é sumamente difícil e, na maioria dos casos,
ainda possível expressar sua qualidade em termos quantitativos mas,
ao mesmo tempo, o aspecto de significado, torna-se mais manifesto aí
que em qualquer outra parte do universo.
108
Do mesmo modo que aceitamos a possibilidade de integração das três
categorias precisamos, também, indagar como esse processo garante a afirmação
de uma Psicologia científica. Por isso é fundamental explorar a passagem, da
Filosofia da Gestalt, para a Psicologia da Gestalt. Então, como se dá
objetivamente, na perspectiva da Psicologia da Gestalt, a integração da natureza,
da vida e da mente? Nesse sentido, estamos ainda por dar cabo da tarefa
fundamental da psicológica, a de determinar o seu ponto de partida enquanto
ciência. Como a psicologia experimental, Koffka também assumiu que tudo deve
começar pelo comportamento, é nele que as categorias se inter-cruzam e abrem o
espaço para uma psicologia científica. Mas, ainda, de qual comportamento
precisamente estamos falando? Do comportamento reflexo ou do comportamento
108
KOFFKA. Princípios da Psicologia da Gestalt, p. 34.
109
intencional? Existe um tipo de comportamento específico para a Psicologia da
Gestalt? Sim, conforme Koffka, estamos falando do comportamento molar. No
caso da Psicologia da Gestalt, sem esquecer a sua vocação integradora, o
objetivo é descrever um comportamento que seja capaz de reunir as posições
antitéticas. Assim como, indica Köhler, encontrar um lugar para o comportamento
molecular num sistema que começa e acaba com a noção de comportamento
molar”.
109
O comportamento molecular, único interesse do behaviorismo, ocorre
no organismo e somente é iniciado por motivos físicos que, comumente,
chamamos de estímulos. Já o comportamento molar está representado pelos mais
variados eventos que ocorrem na nossa vida diária num meio externo. Por
exemplo: “o desempenho do estudante ocorre na sala de aula, na qual o professor
leciona (...) o galgo e a lebre correm ambos pelo campo(...)”
110
Mas se o comportamento molar ocorre num meio externo e, ainda, é
regulado por este fator exterior devemos, também, perguntar de que meio
precisamente estamos falando? Do meio geográfico? Na perspectiva da
Gestalttheorie, certamente não. A primeira posição assumida por Koffka
pressupõe que o meio do psicólogo não é o mesmo do geógrafo. Enquanto este
considera o meio geográfico – as condições topográficas - o psicólogo, por sua
vez, sem excluir totalmente estas condições, trabalha com o meio comportamental
que é, evidentemente, diferente do primeiro. “Vivemos todos na mesma cidade?
109
KOFFKA. Princípios da Psicologia da Gestalt, p.39.
110
KOFFKA. Princípios da Psicologia da Gestalt, p.39.
110
Sim, quando nos referimos ao geográfico; não quando nos referimos ao “em”
comportamental.”
111
Para a Gestalttheorie, no ponto de vista de Koffka, o meio
comportamental está implicado tanto com o meio geográfico como com o
organismo. Exerce uma função de ligação entre o corpo – as funções de estímulo
e resposta – e comportamento e, de modo análogo, entre este último e o meio
geográfico. O comportamento é, então, regulado pelo meio comportamental – que,
por seu turno, resulta do modo como percebemos e interagimos com o meio
geográfico. A definição de comportamento elaborada por Koffka supõe que ele
ocorre exclusivamente no meio comportamental: “só devem ser chamados de
comportamento aqueles movimentos dos organismos que ocorrem num meio
comportamental”.
112
Então o lócus do comportamento é o meio comportamental
que, em última instância, é uma região de relações que não se equivalem, não se
reduzem nem ao organismo e nem ao meio geográfico.“ É no meio
comportamental e não no geográfico que, por exemplo, uma das figuras Muller-
Lyer aparece menor do que a outra. Como essa relação não existe, certamente,
no meio geográfico, ela deve estar presente alhures; e é esse alhures que
chamamos de meio comportamental”.
113
111
KOFFKA. Princípios da Psicologia da Gestalt, p.40.
112
KOFFKA. Princípios da Psicologia da Gestalt, p.43.
113
KOFFKA. Princípios da Psicologia da Gestalt, p.45.
111
As experiências como as ilusões de ótica, o fenômeno estroboscópico e
as relações entre figura e fundo remetem-nos a idéia de que as diferenças entre o
meio geográfico e o comportamental coincidem com as diferenças entre as coisas
como realmente são e as coisas como nos parecem ser – a diferença entre
realidade e aparência. É o caso, ressalta koffka, dos experimentos
114
nos quais
aparecem comportamentos diferentes apesar da ocorrência de estímulos idênticos
ou, ainda conforme a hipótese de constância, daqueles comportamentos que
permanecem idênticos apesar de serem postos em causa por estímulos
diferentes. A questão é que somente podemos explicar essas incongruências se
aceitarmos a idéia de que o comportamento não ocorre preferencialmente num
meio geográfico. Não dá mais para explicá-lo, conforme Koffka, pela recorrência
às noções de estímulo e ambiente geográfico. Ambos, nesse caso, operam no
meio comportamental e não são, para efeito do comportamento, necessariamente
iguais ou diferentes em essência, mas sim conforme o modo como se apresentam
114
Segue, resumidamente, o experimento de Révész que, como outros, permitiu a Koffka concluir
que o lócus do comportamento é o meio comportamental. Révész treinou pintos para debicar
sempre a menor de duas figuras apresentadas conjuntamente. Foram várias figuras sempre
apresentadas em ordens distintas. Em alguns casos, a menor figura vinha primeiro – no alto – já,
em outros, aparecia antes a maior. Depois de um tempo de treinamento, Révész apresentou aos
pintos a figura conhecida como a ilusão de Jastrow. Os pintos continuaram a escolher a figura que
parecia menor. Se fossem colocados diante da figura de Muller-Lyer, como exposta acima, os
pintos continuarem a debicar o segundo segmento de reta, o menor. Conf. KOFFKA. Princípios
da Psicologia da Gestalt, p.44.
112
à percepção. Ai estão, de modo evidente, o ser do meio geográfico e o parecer do
meio comportamental. Ou, inversamente, o parecer do meio geográfico se
constitui no ser do meio comportamental.
O processo de mediação realizado pelo meio comportamental ocorre
sustentado, de modo geral, por duas ordens de relações: a primeira, entre o meio
geográfico e o meio comportamental e, a segunda, entre o meio comportamental e
o próprio comportamento. Koffka não pretende estabelecer o campo de
comportamento fora das condições do meio físico como, de modo evidente, não
supõe que esse meio funcione ou se caracterize como causa imediata e
homogênea do comportamento molar. O meio geográfico sempre está presente,
podemos dizer que envolve o meio comportamental, mas, em última análise, como
na experiência de Révész, não o define. Nesse sentido, conforme as indicações
de Koffka, o meio comportamental designa também uma noção de consciência.
Koffka não deixa de reconhecer as dificuldades em recorrer à noção de
consciência: a imprecisão intelectualista e a recusa empirista. Porém, é preciso
admitir que não podemos simplesmente recusá-la. A consciência está no centro
das investigações da Psicologia e, agora, ela adquire todo o seu significado na
junção direta com as idéias de experiência direta e de meio comportamental.
Somente nessa junção, conforme a Gestalttheorie, a noção de consciência tem
sentido. “Assim, a consciência do cão que persegue a lebre seria <uma lebre a
correr pelo campo>; a consciência do símio ao tentar apanhar a banana suspensa
seria <um tamborete situado naquele canto> etc”.
115
Então, a consciência
identificada com o meio comportamental, tem uma dupla vantagem: livra essa
115
KOFFKA. Princípios da Psicologia da Gestalt, p.47.
113
noção dos preconceitos intelectualista e behavioristas, nesse sentido, ela não
pode mais ser concebida como aquele “algo que está dentro”. Depois, também
não podemos, como o behaviorismo faz comumente, negar a noção de
consciência ou mesmo situar o comportamento no meio geográfico. Quando
identificada com o meio comportamental, ela possibilita, ainda, a construção de
uma teoria do comportamento livre dos pressupostos rígidos do atomismo
psicológico. Então, é fácil entender que o comportamento é algo muito mais rico
do que como foi concebido pelo behaviorismo e, ainda, mais visível do que a
descrição proporcionada pelo intelectualismo. Ao contrário da noção de realização
preconizada pelo behaviorismo, com Koffka o comportamento passa a ser
pensado como algo que designa, entre outras coisas, intencionalidade e valor. O
problema maior do empirismo psicológico foi, na interpretação de Koffka, ter-se
limitado a descrever a conduta tomando unicamente o meio geográfico como
referência. Nesse caso, na verdade, não era o comportamento que estava em
cena, mas um processo mecânico, uma realização objetiva. E o meio
comportamental como equivalente da experiência direta vai, segundo os termos
de Koffka, muito além de disso:
O meio é sempre um meio de algo, de modo que o meu meio
comportamental é o meio de mim e do meu comportamento nesse
meio. Somente se incluirmos esse conhecimento no meio
comportamental teremos adquirido um equivalente completo daquilo a
que Köhler chama de experiência direta, ou do que é chamado de
consciência. Esse conhecimento incluí, para enumerarmos alguns
itens, meus desejos e intenções, meus êxitos e desapontamentos,
minhas alegrias e tristezas, amizades e inimizades, mas também eu
fazer isto e não aquilo.
116
116
KOFFKA. Princípios da Psicologia da Gestalt, p.51.
114
Pensados a partir das noções de consciência e experiência direta, o
comportamento fenomênico representa o meu comportamento no meu meio
comportamental e, ainda de modo semelhante, o comportamento do outro em seu
meio comportamental. Já o comportamento aparente é o meu comportamento no
meio comportamental de outro ou, ainda, o comportamento do outro no meu meio
comportamental. Koffka não deixa de reconhecer que o comportamento aparente
e o fenomênico podem ser enganosos em relação ao comportamento molar, mas
ainda assim não devem ser descartados, pois constituem bons indicadores e,
ainda, são pontos de referência importantes para o nosso conhecimento da
conduta real. Nesse sentido, conforme Koffka, tanto o comportamento aparente
como o real, devem ser utilizados, ainda que sejam indicações parciais, para a
compreensão do comportamento molar real. Para melhor entender essa armação
do comportamento, vejamos a ilustração
117
construída por Koffka:
117
G: meio geográfico que produz o MC;
OR: organismo real;
MC: meio comportamental que encerra, produz e regula o CR;
CR: comportamento real que releva em suas partes o CF;
CF: comportamento fenomenal.
“(...) MC,CR e CF ocorrem dentro de OR ...., mas no Ego fenomenal, que pertence a CF. OR é
diferentemente afetado G e, por sua vez, afeta o meio geográfica através de CR.”
Conf. KOFFKA. Princípios da Psicologia da Gestalt, p.52.
115
Portanto, conforme a figura acima, o esquema geral do comportamento,
para Koffka, pode ser descrito desse modo: primeiro, temos o meio geográfico no
qual o meio comportamental está inserido. É nesse meio (M. C.) que podemos
encontrar o comportamento real, que é, por sua vez, revelado em partes através
do comportamento fenomênico e do comportamento aparente. Finalmente,
adverte Koffka, tudo se passa na relação entre o organismo e o meio geográfico,
pois o meio comportamental, como o comportamento real e o fenomênico ocorrem
no organismo, este, por sua vez, é afetado pelo meio geográfico e, através do
comportamento real, também modifica esse meio. Assim, nos lembra Koffka,
quando comenta os experimentos de köhler com os símios: “Quando o chimpanzé
está comendo o fruto, seu meio comportamental tornou-se sem fruto e o próprio
animal passou a estar satisfeito”.
118
Portanto, as relações entre o comportamento,
o organismo e o meio geográfico e comportamental são de implicações mútuas
dinâmicas. Ainda que reconheçamos que o comportamento ocorre
preferencialmente num meio comportamental que, de modo evidente, está ligada
às condições do meio geográfico e do organismo é, além disso, muito importante
entender que o comportamento não se reduz ao comportamento molar aparente
ou, ainda, ao comportamento fenomenal. Como bem lembra Koffka, todas essas
análises somente significam que, por ora, “lançamos os alicerces de uma
psicologia como ciência do comportamento molar”.
119
A Gestalttheorie propõe, através das noções de experiência direta e
meio comportamental a idéia do dado sensorial original, mostrando que o que
118
KOFFKA. Princípios da Psicologia da Gestalt, p.52.
119
KOFFKA. Princípios da Psicologia da Gestalt, p.51.
116
importa é a estrutura do campo. Nas teorias tradicionais o campo é a soma dos
elementos locais e independentes. Para perceber o campo, na perspectiva do
behaviorismo e do intelectualismo, é preciso, antes de tudo, um sujeito que reúna
os elementos distintos, isto é a ação de centros coordenadores capazes de
integrar os elementos justapostos linearmente. Com Köhler e Koffka temos uma
nova noção de campo, uma significação distinta das noções fisicalistas de
integração e coordenação. Porque, como ainda melhor estabeleceremos, é
preciso considerar com Merleau-Ponty que há uma estrutura que atua na própria
percepção, de maneira dinâmica auto-regulando e edificando o nosso contato
primeiro com o mundo e a nossa resposta a essa relação sem a necessidade de
recorrer, como fizeram os pensadores da Gestalttheorie, a um substrato físico.
117
III – A PERCEPÇÃO E O LOCUS FENOMENAL
Eu disse que o caminho da filosofia passa pela ingenuidade. Este é o
começo para criticar o tão altamente celebrado irracionalismo e, ao
mesmo tempo, o lugar para denunciar a ingenuidade daquele
racionalismo que é considerado como racionalidade filosófica pura e
simples mas que, a rigor, caracteriza a filosofia de toda a Idade
Moderna, a partir do Renascimento, e que se considera o racionalismo
verdadeiro, portanto, universal.
HUSSERL
A lição mais fundamental da teoria da Gestalt foi, como vimos
anteriormente, considerar a análise do comportamento concomitantemente ao
próprio fenômeno da experiência definindo, assim, a experiência direta como o
campo original da Psicologia. Com Köhler e Koffka ficou assentado, sobretudo,
que é preciso buscar compreender o comportamento tal como ele se apresenta,
antes de qualquer determinação positiva. Portanto, o percurso que fizemos até
agora estabeleceu, de acordo com as críticas de Merleau-Ponty, de Köhler e de
Koffka, que as teorias tradicionais da Psicologia, conforme exposição acerca dos
limites próprios à metodologia dessas doutrinas, suportam uma falha de base.
Apontamos, desse modo, que o problema inerente mais visível ao intelectualismo
e à psicologia experimental, no processo de descrição do comportamento é, antes
de qualquer outro, de caráter ontológico. Essas doutrinas negam justamente a
base sob a qual elas se fundamentam: a experiência direta, o meio
comportamental ou, ainda, com Merleau-Ponty, a experiência ingênua e a própria
percepção. Logo no início de A Estrutura do Comportamento, Merleau-Ponty já
118
observa esse desvio: “A análise científica do comportamento é definida
inicialmente contra os dados da consciência ingênua”.
120
Porém, a aproximação de Merleau-Ponty com a Gestalttheorie não é
sem restrições. Diante de uma teoria da percepção, construída entre uma análise
da consciência na Estrutura do Comportamento e a da expressividade corporal,
elaborada na Fenomenologia da Percepção, são as filosofias e as escolas
clássicas de psicologia e, como não poderia deixar ser, a própria Gestalttheorie
que aparecem como o contra-ponto mais significativo das indagações merleau-
pontyanas. Assim como os postulados da teoria dos reflexos condicionados não
se sustentam diante dos desenvolvimentos e das descobertas da fisiologia, os
argumentos de base para uma teoria comportamento do empirismo, do
intelectualismo são, por razões semelhantes, recusados por Merleau-Ponty
quando pensados à luz de uma descrição da percepção,: “Não são os estímulos
que fazem as reações ou que determinam o conteúdo da percepção. Não é o
mundo real que faz o mundo percebido (...) Só se pode conhecer a fisiologia do
sistema nervoso partindo de dados fenomenais”.
121
Também, precisamos ter muito claro, que Merleau-Ponty tratou de ir
além da Gestalttheorie e radicalizou as noções de base. Podemos afirmar que, de
modo necessário, somente conhecemos o comportamento quando o incluímos no
interior do campo fenomenal. Se o empirismo e o intelectualismo não o admitiram
assim, a Gestalttheorie, por sua vez, não radicou as suas análises nesse campo
com a profundidade que se esperava de uma teoria que teve o mérito de descobrir
120
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.5.
121
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 97.
119
o lócus basilar do comportamento. Por isso mesmo, como Merleau-Ponty bem
estabeleceu, na estrutura lógica e argumentativa da Fenomenologia da
Percepção é preciso desconstruir os “prejuízos clássicos” – sensação,
associação, projeção de recordações, atenção e juízo – para, então, abrir-se ao
campo fenomenal e deixar o fenômeno se expressar.
Só que é importante, antes de tudo, considerar que o campo fenomenal
já está delineado desde A Estrutura do Comportamento. Um breve esboço da
teoria da percepção, ainda no segundo capítulo de A Estrutura do
Comportamento, remete a três tópicos muito elucidativos para a compreensão
tanto da noção forma, como um elemento de totalidade como, também, do
significado merleau-pontyano de experiência ingênua. Primeiro, indica Merleau-
Ponty, não percebo somente coisas, mas objetos de uso. Estou inserido num
mundo cultural, no qual é impossível se referir a qualquer coisa sem que ela me
revele um sentido imanente. Segundo, é preciso ter em conta o alcance do
funcionamento do sistema nervoso como algo que também distribui valores
simbólicos. Se as coisas se oferecem para mim de maneira significativa eu, sujeito
corporal e consciência ativa, também me debruço sobre elas investindo-as de
valores. O meu corpo, o meu sistema físico não consiste apenas em um
receptáculo de sensações ou, ainda, em uma fonte do qual emanam
mecanicamente estímulos e reflexos. O meu corpo e as minhas funções
fisiológicas se comunicam espontaneamente com o mundo e, então, mesmo
nessa comunicação não lingüística convencional, dão um sentido simbólico às
coisas, uma significação à experiência que envolve a mim e o mundo. Esses dois
primeiros princípios, juntamente com o terceiro, não excluem o subjetivismo e o
120
objetivismo do nosso contato direto com as coisas. as coisas estão lá, sempre
exteriores, estranhas a nós, apresentando-se objetivamente e oferecendo a nós o
que possuem de imanente em seu ser como sempre supôs o realismo. No
entanto, elas não se apresentam indiferentes ao modo como são subjetivamente
percebidas. Uma situação percebida, conforme o terceiro princípio, depende de
um conjunto de estímulos, tanto proprioceptivos como exteroceptivos, isto é de
fatores internos e externos, do corpo – dos reflexos – e do ambiente. Nada é, por
si só, inteiramente determinante sem, contudo, deixar de ser relevante como, por
seu turno, o todo – o eu e o mundo - considerado na sua unidade essencial é
sempre mais significativo do que visto sob a forma associada de coisas e eventos
isolados. Coerente com a crítica da teoria das localizações, Merleau-Ponty reforça
a idéia de que não há regiões cerebrais específicas responsáveis pela ocorrência
e coordenação dos fatos psíquicos. “Se é impossível constituir o campo espacial
do comportamento ou da percepção a partir de “reflexos localizadores” ou de
sinais locais pontuais, também não é permitido relacionar a sua organização a
uma instância superior.”
122
Tudo está dado ao mesmo tempo, todas as funções e
categorias operam conjuntamente na medida em que a experiência perceptiva é o
resultado significativo desse conjunto estrutural e indissociável.
A ocorrência da percepção no campo espacial, por exemplo, manifesta
bem o caráter estrutural desses três pressupostos. Na percepção de uma posição,
nos relata Merleau-Ponty, importam sempre duas variáveis: “as excitações
oculares aferentes e o conjunto das excitações que representam no córtex a
122
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.100.
121
posição atual de meu corpo”.
123
Evitamos os riscos do fisiologismo, do empirismo
psicológico e do intelectualismo quando não mais concebemos que a percepção
se organiza do superior para o inferior, quando desconsideramos a idéia de que
há uma instância superior responsável por tudo e quando rompermos,
definitivamente, com a noção de que ela resulta de um processo causal linear.
Enfim, quando atribuímos à percepção um caráter estrutural ressaltamos,
sobretudo, que ela não é coisa, que não está localizada num órgão e que não é
exclusivamente exterior ou interior. O que deve ser considerado é que a
percepção, como ocorre com o campo visual, por exemplo, não se dá parte por
parte, não acontece momento por momento. Além disso, como cada posição
percebida somente tem sentido quando se encontra inserida num meio, verifica-se
que toda mudança de posição do meu corpo ocorre concomitantemente com uma
mudança do campo espacial.
No último capítulo de A Estrutura do Comportamento Merleau-Ponty
se dedica a uma análise da consciência ingênua e indica precisamente, ainda
nessa primeira obra, o lugar “indeterminado do comportamento”. Primeiro,
estabelece, que é preciso livrar a consciência da determinação realista e distinguí-
la das opiniões do senso comum, que a concebem como algo superior e
localizada, também, num grau elevado. E a razão mais fundamental disso está no
fato de que separamos, para efeito de análise, o ato de perceber da consciência
desse ato. Ele, por sua vez, se encontra ainda mais distante quando a concepção
realista o separa também da experiência simbólica. São os abismos que se
123
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.99.
122
interpõem entre a experiência, a expressividade e a consciência, presentes, por
exemplo, nas perspectivas realistas de Locke e de Descartes. Concebemos
comumente a experiência da fala como um acontecimento sempre distinto da
experiência perceptiva: seja porque através da fala há sempre algo a esclarecer e
a acrescentar à experiência perceptiva ou, simplesmente, porque a própria fala
deriva da experiência como uma função posterior. Mais bem acabada, a
experiência da fala, na concepção realista do empirismo de Locke, por exemplo,
não é imediata e não está, desde sempre, localizada no nosso primeiro contato
com o mundo. Como se a descrição, a nossa experiência perceptiva falada
devesse à experiência imediata apenas a condição de se constituir como o
material precedente.
Os sentidos inicialmente tratam com idéias particulares, preenchendo o
gabinete ainda vazio, e a mente se familiariza gradativamente com
algumas delas, depositando-as na memória e designando-as por nomes.
Mais tarde, a mente prosseguindo em sua marcha, as vai abstraindo,
apreendendo gradualmente o uso dos nomes gerais. Por este meio a
mente vai se enriquecendo com idéias e linguagem, materiais com que
exercita a sua faculdade discursiva.
124
Merleau-Ponty inverte o jogo. Mostra antes de tudo, que se com
Descartes e Kant a percepção foi, por um lado, pensada sob a perspectiva da sua
função basilar não foi, do mesmo modo, assumida integramente. “O
cartesianismo, assim como o kantismo, teria visto plenamente o problema da
percepção, que consiste em que ela é um conhecimento originário”.
125
Essa
consideração não foi suficiente para estruturar, ainda no período clássico, uma
124
LOCKE. Ensaio acerca do entendimento humano, p.165.
125
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção, p. 76.
123
filosofia da percepção e, então, o que parece evidente é que a experiência
perceptiva foi vista mais como um obstáculo para o conhecimento, na medida em
que ela se inseria entre a consciência e as coisas. O problema, resumido no mal
papel desempenhado pela experiência perceptiva, tanto do empirismo quanto do
intelectualismo está, fundamentalmente, dado na má elaboração da relação sujeito
e objeto ou, por analogia, da relação entre consciência e natureza. Na verdade,
nos sugere Merleau-Ponty, faltou a esses sistemas assumirem o problema da
relação em toda a sua dimensão. Não bastou, portanto, reconhecer o caráter
originário da percepção era preciso, também, assumi-la e forjar um discurso
filosófico que incluísse, junto aos conceitos puros e abstratos do entendimento, o
material do nosso contato primeiro com as coisas. Seja em Descartes, Locke,
Hume ou em Kant o que faltou, sobretudo, foi uma exposição convincente de que
a percepção - enquanto um desvio que nos conduz à uma zona cinzenta – não
deve ser tomada entre os processos que levam o sujeito a constituir ou, mesmo,
receber os objetos. As saídas clássicas consentiram, nos diz Merleau-Ponty, em
recorrer às noções de atenção e juízo como se elas pudessem dar conta do
grande hiato que esses mesmos sistemas forjaram para a relação entre a
consciência e o mundo e elaboraram uma noção limitada sobre esses conceitos.
Ignoraram também, nesse aspecto, o que há de indeterminado nesses processos.
E, por fim, fundamentam nessas categorias – espécie de pontes ontológicas - a
conexão entre aquilo que sentimos e o modo como julgamos. Como se fosse
possível, através dessas noções romper o abismo dos sistemas que opõem em
campos diversos o percebido, a percepção e o percepiente. As teorias clássicas
cavaram os seus próprios dilemas, os seus vazios ontológicos.
124
O intelectualismo, na leitura de Merleau-Ponty, concebeu o juízo como
uma função capaz de fornecer à sensação aquilo que falta para torná-la uma
percepção. Não passa, nesse caso, de um princípio explicativo que tirou da
sensação todo e qualquer conteúdo. O sentir, para o intelectualismo, não se basta.
Conforme o texto a seguir, de Descartes, sentimos como julgamos, percebemos
como julgamos. Isto é, sempre temos que recorrer a uma instância superior para
termos certeza não apenas se o que sentimos é verdadeiro mas, ainda, para
verificarmos se realmente estamos sentindo:
Ora, essa natureza me ensina realmente a fugir das coisas que
causam em mim o sentimento da dor e a dirigir-me para aquelas que
me comunicam algum sentimento de prazer; mas não vejo que, além
disso, ela me ensine que dessas diversas percepções dos sentidos
devêssemos jamais concluir algo a respeito das coisas que existem
fora de nós, sem que o espírito as tenha examinado cuidadosamente e
maduramente. Pois é, ao que me parece, somente ao espírito, e não
ao composto espírito corpo, que compete conhecer a verdade dessas
coisas.
126
Para Descartes, então, se os sentidos merecem algum crédito é
somente enquanto são afirmados pelo juízo e, então, podemos com o
cartesianismo supor que o aspecto originário da nossa relação com as coisas não
constitui a base do nosso entendimento sobre o mundo. Por meio dos sentidos
recebemos as coisas exteriores que, então, excitam a alma a percebê-las. A
percepção nada mais seria do que um evento secundário, uma imitação das
coisas, opera como se tivesse que atualizar no espírito alguma coisa que estava
previamente dada no sensível exterior. Porém, dada somente como uma
possibilidade porque, a ultima impressão, o significado derradeiro do percebido, é
126
DESCARTES. Meditações Metafísicas, p 219.
125
sempre uma ação do pensamento. Isso porque, conforme o texto acima das
Meditações Metafísicas, é sempre um trabalho do juízo que confere sentido e
existência aquilo que, confusamente, foi percebido.
Já o empirismo elabora a noção de atenção, contando basicamente
com a hipótese de constância. Podemos quase dizer que a atenção somente
ocorre na medida em que é sustentada pelas operações que dão funcionalidade à
hipótese de constância. É a atenção, por exemplo, que nos faz tomar consciência
dos estímulos. Considerando que essa hipótese estabelece, de modo geral, que
existe apenas uma sensação para cada estímulo, a atenção, então, nada mais
seria do que uma função capaz de tornar claras sensações, então despercebidas.
Mas sem a hipótese de constância, o trabalho da atenção seria praticamente
impossível e, por conseqüência, a nossa experiência, considerando a lógica
associacionista, seria sempre vazia de sentido.
Se, para o intelectualismo por meio dessas noções – juízo e atenção –
infere-se a verdade do objeto, para o empirismo elas representam a possibilidade
de uma espécie de estado de consciência. Em primeiro lugar, é graças à atenção
que podemos passar da sensação à reflexão. Depois, então, através do trabalho
de uma consciência sempre alerta, podemos investigar todos os seus conteúdos e
clarificar, para a própria consciência, tudo o que foi dado por intermédio da
confusão dos sentidos.
O realismo de Locke, podemos ariscar a dizer, é o mesmo de
Descartes. Coerente com a noção de um ego constituinte das coisas, o
cartesianismo supõe uma ação posterior – o pensar, o dizer - desse mesmo ego
como se fosse o demiurgo de si mesmo, único capaz de conferir à experiência
126
uma significação. Se a certeza da existência da coisa pensante em Descartes,
supõe a consciência dessa certeza ou, como nos diz o texto abaixo, supõe até
mesmo um ato de linguagem é, sobretudo, porque o pensamento para o
cartesianismo não pode subsistir somente a partir do ato de pensar. A experiência
do pensamento não basta a si mesma, pois a experiência da existência e a
certeza do existir ganham sentido somente através da consciência da existência
que, também, precisa ser constantemente afirmada por uma operação lingüística.
É necessário pensar para poder existir é, ainda, fundamental expressar-se
simbolicamente para permanecer existindo: “(...) cumpre enfim concluir e ter por
constante que esta proposição eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira
todas as vezes que a enuncio ou a concebo em meu espírito”.
127
No entanto, temos que distinguir essas funções da consciência, do ato
de perceber. Não se trata de negar que a consciência seja capaz de julgar, de
sonhar, de imaginar e, ainda, de conferir ou de retirar das coisas ornamentos que
necessariamente não são dados na experiência perceptiva. Perceber não é a
mesma coisa que julgar e, também, não se realiza, na consideração merleau-
pontyana, seguindo a mesma dinâmica dessas funções da consciência. É
fundamental levar em conta as críticas à teoria das localizações e às hipóteses de
constância e evitar conceber, tanto um lugar específico, como, de modo análogo,
uma operação associacionista para a ocorrência da percepção. Assim, se a
percepção se relaciona com a atenção, nesse caso, tenhamos, talvez, que
concebê-la – a atenção - não como uma função posterior e distinta da percepção,
mas como algo dado concomitantemente á experiência perceptiva. Desde o seu
127
DESCARTES. Meditações Metafísicas, p.174.
127
início, a percepção já é apreensão de algo, já é, como o texto abaixo de Merleau-
Ponty sugere, atenção: “A atenção não é nem uma associação de imagens, nem o
retorno a si de um pensamento já senhor dos seus objetos, mas a constituição
ativa de um objeto novo que explicita e tematiza aquilo que até então só se
oferecera como horizonte indeterminado”.
128
A Psicologia da Gestalt, por sua vez, não se manteve fiel aos
pressupostos clássicos acerca da noção de atenção. Mesmo que ainda
permaneça sendo pensada como um despertar ativo diante dos objetos, a atenção
não aparece, entre os teóricos da Gestalt como uma ação da consciência capaz
de reter os objetos indistintamente. Nesse sentido, nos indica Merleau-Ponty, a
sua função mais originária na perspectiva da Gestalttheorie, é justamente abrir
espaço para a percepção. Certamente, uma inversão dos postulados clássicos.
Cabe à atenção criar, como indica Köhler, um campo perceptivo, no qual a
concentração em um determinado objeto é também uma fixação vaga e aberta:
“Na realidade a atenção como referência a coisas particulares, é experimentada
em sua forma mais pura quando, embora fixando-nos em determinado ponto,
concentrando a nossa atenção em um objeto depois do outro na periferia do
campo.”
129
As intervenções de Köhler e de Koffka, com as noções de experiência
direta e de meio comportamental levaram, é verdade, ao fim da “hipótese da
constância” e, por conseqüência, a idéia do juízo como explicação da percepção
perdeu definitivamente o seu o lugar. “A Gestalttheorie faz compreender que a
128
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção, p. 59.
129
KÖHLER. Psicologia da Gestalt, p.172.
128
percepção da posição dos objetos não passa pelo meandro de uma consciência
expressa do corpo;(...)”
130
No entanto, a Gestalttheorie manteve-se fiel aos
pressupostos básicos da ciência clássica. Talvez por excesso de cumplicidade
ontológica com a Física e, ainda, pelas tentativas de localizar objetivamente o
campo da Psicologia a Gestalttheorie até se abriu ao campo fenomenal mas, por
outro lado, parece ter se recusado a permanecer nele. O fundamental, segundo,
Merleau-Ponty, é que a Gestalttheorie não notou o alcance filosófico do retorno à
experiência perceptiva e, desse modo, não radicalizou a psicologia das formas em
uma filosofia. O princípio do psicoisomorfismo, que ainda comentaremos mais
atentamente, parece nos dizer tudo. Mostra que a Gestalttheorie manteve-se
sempre fiel ao naturalismo e nunca chegou a abandonar efetivamente o realismo:
(...) falta à Gestalttheorie uma renovação das categorias: ela admitiu
seu princípio, aplicou-o a alguns casos particulares, mas não percebeu
que toda uma reforma do entendimento é necessária se queremos
traduzir exatamente os fenômenos, e que é preciso, para chegar a
isso, recolocar em questão o pensamento objetivo da lógica e da
filosofia clássicas, pôr em suspenso as categorias do mundo, pôr em
dúvida, no sentido cartesiano, as pretensas evidências do realismo, e
proceder a uma verdadeira “redução fenomenológica”.
131
Admitindo a experiência primordial não há, definitivamente, mais lugar
para antinomias da consciência e para os abismos funcionais – perceber, falar e
pensar – que descrevem o homem como uma máquina preparada, para executar
linearmente e atomisticamente um considerável número de operações, sempre
dependentes entre si. Como, então, proceder diante do realismo empírico e do
idealismo transcendental? Temos que recusar a noção da consciência ingênua
130
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção, p.78.
131
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção, p. 80
129
com sua certeza de uma experiência externa, que não hesita em sair de si mesma
para aderir aos objetos? Ou, ainda, abandonar a noção kantiana de consciência,
que sustenta que as coisas materiais são como as causas inapreensíveis de
representações unicamente dadas em si mesmas? Ou melhor, as duas estão com
razão e sem razão ao mesmo tempo.
Ao contrário de Descartes, a consciência deixou de ser algo a mais ou,
mesmo, uma substância distinta do nosso corpo. Também, de uma perspectiva
diferente do kantismo, não é a consciência uma instância superior “doadora de
sentido”. No nosso contato com o mundo, a consciência perceptiva é um
acontecimento sempre presente, é consciência imediata. Na freqüentação
primitiva com as coisas, nos diz Merleau-Ponty, não há lugar para “metáforas
realistas”. Todos os objetos que me cercam (a escrivaninha, a cadeira e as
estantes de livros, por exemplo) não aparecem como causa da minha percepção.
Ao contrário, a minha percepção é que parece revelá-los, como se ela fosse a
razão da aparição dos objetos. “Que perceba a mim mesmo ou considere um
outro sujeito percebendo, parece-me que o olhar “se põe” sobre os objetos e os
atinge à distância, como bem exprime o uso latino da palavra “lumina”para olhar.”
132
Mas os objetos estão sempre ali, fora de mim e carregam um sentido imanente
que não é, em última análise como supõe Kant, conferido pelas categorias a priori
da sensibilidade, do entendimento ou, mesmo, pela minha consciência.
A consciência perceptiva, a iluminação instantânea não supõe, por sua
vez, uma percepção – iluminação – acabada das coisas. É sempre um
conhecimento perspectivo que resulta dessa relação perceptiva com o mundo.
132
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.219
130
Mas que não é, como poderia supor o realismo, uma falta, um acidente ou uma
imperfeição relativa. Não pode, ainda, ser considerado como um conhecimento
menor diante da possibilidade de um conhecimento total. “A perspectiva não me
aparece como uma deformação subjetiva das coisas mas, ao contrário, como uma
de suas propriedades, talvez sua propriedade essencial.”
133
Por isso mesmo
precisamos abandonar o ponto de vista realista. Devemos, antes de tudo,
entender a dinâmica da imediatez e da instantaneidade na nossa relação com as
coisas. Somente assim, reconheceremos, na perspectiva, a situação privilegiada
na qual o objeto seja uma coisa que tenha sempre algo a revelar. Assim, a
percepção, como entende Merleau-Ponty, é um acontecimento repentino e
permanente, é quase um susto e uma obviedade que vivenciamos, diante do novo
que esteve sempre presente. Essa percepção perspectiva, oblíqua e singular nos
proporciona a possibilidade de comunicação com um mundo mais rico do aquele
dado pelo conhecimento realista. “O percebido é apreendido de uma maneira
individual como ‘em si’, isto é, como dotado de interior que eu não acabaria nunca
de explorar, e como ‘para mim’, isto é, como dado em pessoa através de seus
aspectos momentâneos.”
134
Precisamos superar a crença da consciência realista ingênua de que
percebemos não uma representação ou um aspecto do real, mas a coisa em si.
Esse realismo ignora, sobretudo, que o corpo e as representações mentais são
obstáculos entre a consciência mesma e a realidade. Somente quando aceitamos
a riqueza da experiência direta com toda a sua opacidade, temos uma outra
133
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.220.
134
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.220.
131
forma, diferente do racionalismo e do empirismo, de conceber a relação entre a
consciência e a realidade. É fundamental, se quisermos compreender o ponto de
vista de Merleau-Ponty, considerar o que há de obscuro, de não mensurável, de
não dizível nessa relação. Temos, ainda, que assumir, fiel aos termos de Merleau-
Ponty, como “é mágico” o modo como se produz a relação entre a coisa percebida
e a percepção, entre a intenção e o gesto. Na minha relação com o mundo são
“seres perspectivos” que são percebidos. Ambíguos, sobretudo, pois se mostram
pouco a pouco e nunca completamente. Uma percepção do perspectivo é
somente um aspecto do possível, do percebível. A experiência perceptível é um
fluir inesgotável da própria coisa que a transcende. Então, não é, de maneira
definitiva, a consciência que dá sentido às coisas nem mesmo o contrário, como
considera a doutrinas positivas, que a consciência apreende as coisas em si
mesmas. O sentido é sempre ambíguo e inacabado. O perspectivismo merleau-
pontyano quer significar isso mesmo: a ambigüidade permanece, antes de tudo,
porque o projeto de uma redução ao mundo das essências, de uma apreensão
das coisas acabadas pela consciência jamais se realizará integralmente. O mundo
e a consciência não estão em lados opostos. Nesse sentido, o que não há, na
perspectiva de Merleau-Ponty, é espaço para a inclusão e para exclusão
absoluta do corpo, da consciência e das coisas. Os postulados associacionistas
ainda continuam vigentes, mas somente, na medida em que reconhecem o valor
simbólico do mundo, como, também, as afirmações do kantismo, apenas enquanto
estabelecem que cabe um papel para a consciência perceptiva na significação das
coisas. Mas, note-se, não um papel isento da ligação intrínseca – carnal – da
consciência perceptiva com o mundo:
132
Nem a consecução dos estados de consciência, nem a organização
lógica do pensamento percebem a realidade mesma da percepção: a
primeira porque é uma relação exterior (...), a segunda porque supõe
um espírito de posse de seu objeto (...). Assim, para justificar nossa
experiência direta das coisas, seria preciso manter, ao mesmo tempo,
contra o empirismo, que elas estão além de manifestações sensíveis
e, contra o intelectualismo, que elas não são unidades da ordem do
juízo e que elas se encarnam em suas aparições.
135
Então é a consciência ingênua que habita as coisas e, por sua vez, - a
metáfora favorita de Merleau-Ponty -, é o sujeito que o percebe mundo a partir da
sua ligação carnal. Cabe ao corpo mediar a nossa relação com o mundo. Trabalho
espontâneo e incessante que me faz querer o mundo, mesmo sem desejá-lo. Por
mais que não queira mais me dirigir ao mundo e que, estranhamente, deseje por
fim a experiência perceptiva é, ainda, por uma disposição natural que continuo a
perceber.
Ao contrário do cogito cartesiano, quando assumimos a experiência
perceptiva como um contato direto entre o eu e o mundo, ou mesmo a nossa
experiência como significativa em si mesma a afirmação da percepção não se dá
pela consciência do ato de perceber. Não precisamos, nesse caso, recorrer a uma
hipótese ou a uma ação anterior, na medida em que, perceber já é, desde sempre,
consciência da percepção: do percepiente e do percebido.
Assim como não preciso apelar para uma consciência da percepção
para afirmá-la, para Merleau-Ponty, também a significação do percebido não
resulta de uma associação, nem está escondida numa ação posterior, não
depende de uma decisão do ato de perceber, nem mesmo de um arranjo a priori
135
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.221.
133
de categorias que garantiriam a sua inteligibilidade. A experiência passada só
pode restituir conexões extrínsecas. Diferente do associacionismo, o
conhecimento perceptivo não se dá como um processo de substituições em que
uma impressão se soma a outras. Também, ao contrario do kantismo, o percebido
não é resultado de uma constelação de imagens reunidas pelo juízo. A
significação da percepção – aquilo que ela representa - não nasce de uma
projeção, nem mesmo de uma recordação que encontra no sensível, ou no juízo,
uma referência. A significação como uma conquista posterior e exterior à
experiência perceptiva, localizada em uma instância superior é justamente a
posição de Locke, de Descartes e de Kant que precisamos evitar. Devemos fugir
do raciocínio cartesiano que afirma, com a convicção da luz natural, que a
significação do percebido não está dada na percepção. Merleau-Ponty supõe que
não é necessário recorrermos a nenhum a priori para afirmar a significação e a
existência concreta da experiência perceptiva. Como, também, não precisamos
depurá-la na alma para significá-la. O campo perceptivo, como nos diz a
Fenomenologia da Percepção, “é feito de coisas e vazio de coisas” e, ainda,
assim a experiência perceptiva já comporta em si mesma a significação própria do
percebido.
Se quisermos, então, compreender o verdadeiro significado da
percepção temos que retornar à experiência que a designa e, ainda, evitar o
esquematismo psicologista, quase que totalmente reflexionante, que se
estabeleceu de Descartes a Kant. Temos, fundamentalmente, que parar concebê-
la a partir de uma instância superior e de instituí-la artificialmente como uma
operação posterior que deve ser ultrapassada. O seu significado supõe que
134
abriremos, ao sentir, um espaço no domínio pré-objetivo anterior a qualquer
exame abstracionista. Só assim podemos, de algum modo, querer defini-la.
Porém, sabendo que nunca conseguiremos isso de maneira integral. Essa foi à
pretensão mais ingênua do associacionismo e do intelectualismo: a idéia de um
ser capaz de fazer coincidir a experiência do sentir com a representação
intelectual da experiência. Essa volta, essa abertura ao pré-objetivo nos diz que o
sentir é ambíguo justamente porque nunca é vazio, porque nunca é definitivo e
porque é, em si mesmo, completo e indeterminado, definível e, ao mesmo tempo,
indefinível.
A clássica análise da figura sobre um fundo nos diz que a ambigüidade,
nesse caso, não se refere a imperfeições, mas à possibilidade de uma percepção
que nunca esgota o próprio percebido ou o ato de perceber. Nesse sentido, a
experiência da percepção é reveladora de um sentimento que é, ao mesmo
tempo, carregado de significações e de lacunas em toda a sua extensão. A
percepção, por um lado, me diz confessadamente o que é figura e o que é fundo
135
como, por outro, não permite distinguir onde termina o fundo e começa a figura. A
percepção é movimento, é fluxo que interpõe, quase que permanentemente, todos
os contrastes da relação figura e fundo, pois, nesse caso, a figura é fundo e,
ainda, o fundo é figura. Estamos, como melhor ainda indicaremos, no domínio das
estruturas, a percepção do todo – da figura e do fundo - não se dá como uma
montagem de partes. O todo está lá desde sempre, é percebido como se
independesse do exame particular dos elementos. Acompanhemos, ainda, a
análise de Merleau-Ponty sobre essa relação figura e fundo:
Seja uma mancha branca sobre um fundo homogêneo. Todos os
pontos da mancha têm em comum uma certa ‘função’ que faz deles
uma ‘figura’. A cor da figura é mais densa e como que mais resistente;
as bordas da mancha branca lhe “pertencem” e não são solidárias ao
fundo contíguo; a mancha parece colocada sobre o fundo e não o
interrompe. Cada parte anuncia mais do que ela contém, e essa
percepção elementar já está portanto carregada de um sentido.
136
Nesse texto, indica Merleau-Ponty, a cor do fundo, o vermelho - não é
apenas um matiz com qualidades: “quente”, “intenso” etc. “Anunciar alguma coisa
sem a conter”, como o diz texto, é exercer uma função de conhecimento que
representa algo que não está somente nas coisas, que não é possuído como
parte real da minha percepção, mas como parte intencional. Ao contrário do que
estabeleceram as teorias clássicas da sensação, o sentido que advém do nosso
contato com o sensível consiste em significações tanto presentes como virtuais.
Nesse aspecto a visão, por exemplo, é mais do que uma soma de sensações
pontuais e locais. Oferece mais do que está no quadro perceptivo e, quando assim
o faz, também deixa de apreender um universo inteiro.
136
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção, p.24.
136
O empirismo se instalou nas coisas e ignorou o próprio eu, o mundo
cultural e humano. Mas, muito além disso, com o empirismo a percepção foi
empobrecida. O nosso contato com as coisas perdeu o que há de nebuloso e
certo, ou que tem de indeterminado e intenso, de sensível e sublime. Como
entrevemos nas palavras de Merleau-Ponty, a nossa experiência, quando
submetida ao julgo do empirismo foi, quase podemos dizer completamente,
desumanizada: “Excluiu - o empirismo - da percepção a cólera ou a dor que
todavia eu leio em um rosto, a religião cuja essência todavia eu apreendo em uma
hesitação ou em uma reticência, ou a cidade que todavia eu conheço em uma
atitude de um funcionário ou em um monumento.”
137
A crítica aos preconceitos clássicos, a derrubada pela Gestalttheorie da
hipótese de constância e, mais fundamental, a restituição da experiência
perceptiva como abertura para um campo fenomenal determinam uma nova
consideração do eu (cogito), do outro e do mundo. Não há mais como ignorar o
campo fenomenal. É preciso interrogá-lo, deixar que ele se expresse com todas as
suas nuances e perspectivas. Pois o retorno ao contato original, à adesão
imediata e a ligação bruta e irrefletida que permeia todas as relações do campo
fenomenal representam, ao mesmo tempo, a saída e a condição necessária para
a renovação de todas as categorias, para construção de uma nova filosofia.
A própria ciência positiva, o seu desenvolvimento “pré-histórico”, nas
palavras de Husserl, trouxe em si e por si mesmo uma crise que também parece
exigir uma volta ao campo fenomenal. Perdemos, com o avanço da ciência, a
esperança ingênua na objetividade necessária e indefectível: eis a conclusão
137
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção, p.50.
137
crítica acerca da ciência contemporânea que não podemos deixar de assumir. Não
há mais porque aderir, como faz o senso comum e o dogmatismo científico, às
noções universais e transparentes, aos conceitos únicos como o de espaço, por
exemplo. Com a ciência atual, a noção de um espaço homogêneo e límpido, no
qual as coisas estão depositadas, deixou de ter sentido: “O espaço virtual está
integrado no espaço concreto. Podemos ser desorientados no espaço virtual sem
sê-lo no espaço concreto”.
138
O campo fenomenal, a nossa ligação ordinária
oferece-nos um espaço heterogêneo que se confunde com as coisas. O espaço
deixou de ser o receptáculo das coisas, sabemos o que é espaço e o que é coisa
como também aceitamos, como no exemplo da figura e fundo, uma
indeterminação sobre quando acaba o espaço e começam as coisas. Nesse
sentido os objetos da Física, da Biologia e das Humanidades, por sua vez, não se
mostram mais transparentes e localizados com a certeza e precisão que até então
conferíamos ao mundo. Não é, então, possível continuar a concebê-los - a
matéria, a vida e o espírito - como conceitos puros ou, ainda, quando isso não é
possível simplesmente rejeitá-los, como é o caso do espírito. Como de modo
semelhante, fundamentalmente quando se trata do comportamento, a distinção
entre a matéria, a vida e o espírito – como melhor indicaremos no próximo
capítulo - não deve mais ser feita por uma simples justaposição excludente dessas
categorias.
Não fosse apenas isso, com Husserl ainda ganhamos uma dimensão
da crise que não se limita à ciência. É preciso reconhecer que a crise está,
sobretudo, centrada na própria humanidade, carrega em si um apelo moral, um
138
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.145.
138
conjunto de interesses que esqueceu da existência ética. Ainda que essa crise da
humanidade, talvez possamos assim considerar, seja tão somente a conseqüência
lógica da crise da ciência. Não foi esse o itinerário do próprio Husserl? O primeiro
Husserl – das Investigações Lógicas – diante do fim dos grandes sistemas
filosóficos não se dedica a enfrentar uma crise que é filosófica como, também,
eminentemente científica? A ciência ocupou o lugar que sempre foi da filosofia é a
verdade que principia já no século XIX. O que resta a filosofia? Agora, então, é à
ciência que dirigimos as exigências da verdade. É possível uma ciência em si
mesma, tal como a lógica, com autonomia e valor específico? Mas a ciência,
diferente da lógica, não pode ser vazia de conteúdo, ela é feita de coisas, de
qualidades e uma ciência sem conteúdo, terminantemente se não for matemática,
não é mais ciência. A crise está instalada. Afeta, sobretudo, as ciências humanas
e a sua ilusão positivista. É sintomático, o caso da Psicologia que, como já
destacamos anteriormente, busca nas ciências exatas e naturais um modelo de
saber. Converteu-se inicialmente, como William James e o próprio Husserl de
certo modo analisaram, em psicologismo. E, mais fundamental, não forneceu com
isso a saída da crise, ao contrário, aprofundou-a. Nesse sentido a humanidade
não deixa de encontrar na própria ciência as suas mais profundas razões para a
crise: incerteza, excesso de fatos, coisificação da vida humana, desprezo pela
vida concreta traduzida no esquecimento total do Lebenswelt. É o que nos diz
Husserl quando considera que as razões da crise remontam ao descaso e ao
malogro das ciências - fundamentalmente da Psicologia científica - que na
tentativa de explicar o homem, permanecem radicadas unicamente no viés
positivista e dogmático nascido com o pensamento moderno. A crise da
139
humanidade, nesse sentido, encontra no psicologismo o seu motivo mais
aparente. Acompanhemos a descrição da crise nas palavras de Husserl: “A crise
então pode ser esclarecida como fracasso aparente do racionalismo. O motivo do
fracasso de uma cultura racional não se encontra – como já se disse – na
essência do próprio racionalismo, mas só em sua alienação, no fato de sua
absorção dentro do ‘naturalismo’ e do ‘objetivismo’.
139
A consciência do caos, o advento das ciências humanas no século XIX
e a crise proclamada por Husserl impõem a tarefa de considerar o racionalismo
num contexto histórico. Precisamos, nos indica Husserl, abandonar a interpretação
objetiva da humanidade em favor de uma consideração teleológica. É a saída da
crise, que somente se realizará quando, assim o último Husserl dos anos 30
indica, nos libertamos do apego partidário, passional e cego ao racionalismo e
recuperarmos o lugar da consciência ingênua. É necessário se dirigir às vivências
intencionais do sujeito - Lebenswelt - e abrir para ele um espaço interpretativo de
liberdade, de intencionalidade. Se a ciência clássica, como nos diz Merleau-Ponty,
“é uma percepção que esqueceu suas origens e se acha acabada”
140
cabe à
fenomenologia, ainda fiel ao projeto husserliano, recuperar o mundo vivido. Por
isso mesmo, o primeiro ato filosófico é quase uma exigência salvadora: devemos
retornar ao mundo vivido. Colocar-se na fronteira, ultrapassar a margem do
objetivismo realista que insiste em excluí-lo. É imprescindível buscá-lo no seu
estado nascente, recuperar o que ele tem de bruto antes de qualquer abstração,
antes de qualquer estado de consciência. É uma exigência que não deixa de
139
HUSSERL. A crise da humanidade européia e a filosofia, p.85.
140
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção, p. 89.
140
perturbar toda obra de Merleau-Ponty. Nesse caso, a saída da crise repercute
numa resposta positiva aos preconceitos clássicos, em uma nova concepção da
inserção do sujeito no mundo, em filosofia transcendental que não deixará, por
sua vez, de fundamentar uma Psicologia do mundo fenomênico. Mas antes
precisamos, ainda, verificar como permanecemos no mundo depois que
descobrimos essa nova relação, esse novo instante, essa autêntica existência que
havia sido suprimida pelo pensamento clássico.
O primeiro ato filosófico seria de retornar ao mundo vivido aquém do
mundo objetivo, já que é nele que poderemos compreender tanto os
direitos como o limite do mundo objetivo, restituir à coisa sua
fisionomia concreta, aos organismos sua maneira própria de tratar o
mundo, à subjetividade a sua inerência histórica, reencontrar os
fenômenos, a camada da experiência viva através da qual
primeiramente o outro e as coisas nos são dados, o sistema “Eu-
Outro-as coisas” no estado nascente, despertar a percepção e
desfazer a astúcia pela qual ela se deixa esquecer enquanto fato e
enquanto percepção, em benefício do objeto que nos entrega e da
tradição racional que funda.
141
As palavras de Merleau-Ponty, acima, são muito claras. O campo
fenomenal não é um mundo interior, não se reduz a uma tomada de consciência
do exterior. Mais radical do que o meio comportamental de Koffka, ou, ainda, do
que a experiência direta de Köhler, o campo fenomenal, merleau-pontyano, é
como uma composição indecomponível em partes justapostas. Pois o sistema
“Eu-Outro-as coisas” é mais do que uma associação, é uma junção essencial dada
de imediato como sentido, como estrutura, como arranjo espontâneo das partes.
Aí está, juntamente com Husserl, a grande contribuição da Gestalttheorie, o pré-
objetivo, o pré-reflexivo a qual precisamos voltar. Trata-se da vida pré-científica da
141
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção, p. 91.
141
consciência, onde as gestalten se realizam, trata-se do lócus preciso e, ao mesmo
tempo, indefinido de uma psicologia fenomenológica que a Gestalttheorie,
lamentavelmente, não soube ocupar, não soube explorar.
É verdade que a Gestalttheorie rompeu com o psicologismo. Que,
evidentemente, cabe a ela, entre todas as psicologias, o mérito de ter reconhecido
a originalidade e a anterioridade dos fenômenos da percepção diante do mundo
objetivo. Foi a Gestalttheorie, desde as primeiras pesquisas de Wertheimer, quem
buscou compreender como o objeto se constitui através dos fenômenos da
percepção. Porém, ela permaneceu ainda, de certo modo, fiel aos postulados de
uma psicologia positiva, pois o cogito, mesmo que precariamente, continuou,
como o único sujeito verdadeiro. Como filosofia contemporânea, indica Merleau-
Ponty, a Gestalttheorie não deixou de reconhecer no outro um problema, mas,
mesmo assim, preferiu como o pensamento clássico objetivar o outro. “O animal é
parte do nosso meio comportamental, nós somos o centro do nosso meio, embora
não dele”.
142
Incapaz de mudar definitivamente para o campo fenomenal ela
participou, pelo menos parcialmente, do desvio clássico do objetivismo
racionalista. Nesse sentido, a Gestalttheorie não deixou adotar o sistema “eu-
outro-mundo” como um objeto de análise ao estilo das ciências experimentais.
Para escapar de aderir ao objetivismo, é fundamental considerar o
campo fenomenal livre das determinações que faziam dele um objeto sustentado
por uma série de processos justapostos e mecânicos. A abertura para o campo
fenomenal passa, antes de tudo, por um rompimento com o que Merleau-Ponty
chama de “tese muda da percepção”. A Ciência e a Filosofia nunca reconheceram
142
KOFFKA. Princípios de psicologia da gestalt, p.47.
142
a caráter expressivo da percepção. Dogmáticas, acreditando com o senso comum,
no fim das contradições e na possibilidade do conhecimento claro e distinto,
universal e necessário se fundamentaram, na maioria das vezes, sempre por uma
lógica temporal e objetiva na consideração das experiências, na ligação entre a
consciência e o mundo. Nessa lógica os fenômenos nunca fizeram parte do
campo fenomenal, sobretudo, porque o pensamento clássico nunca se dispôs a
fazer a genealogia do ser. O procedimento nunca foi de se dedicar às coisas
postas espontaneamente, mas, somente, ao modo como as coisas se
apresentavam já devidamente depuradas à consciência:
Torna-se transcendental, quer dizer, radical, não se instalando na
consciência absoluta sem mencionar os passos que conduzem a ela,
mas considerando-se a si mesma como um problema, não postulando
a explicitação total do saber, mas reconhecendo esta presunção da
razão como problema filosófico fundamental.”
143
Não é para se surpreender que na negação completa do campo
perceptivo, e o raciocínio de Merleau-Ponty nos convence disso, o corpo tenha
sido, evidentemente, relegado a uma condição menor: a de um objeto mudo entre
outros objetos. Já que admitir a força perceptiva e expressiva do corpo seria fugir
à lógica abstracionista, que deve permanecer ligada somente aos eventos que se
apresentam à consciência. Seria, ainda, fazer a verdadeira genealogia do ser. Não
é difícil, nesse sentido, conceber por que o corpo foi pensado, freqüentemente
pela tradição filosófica ocidental, como um exterior sem interior, como uma
máquina incapaz de perceber verdadeiramente o outro e, muito menos, de ser
capaz de expressar uma significação de si mesmo. “O naturalismo da ciência e o
143
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção, p. 98.
143
espiritualismo do sujeito constituinte universal, ao qual chegava a reflexão sobre a
ciência, tinham em comum o fato de nivelarem a experiência: diante de Eu
constituinte, os Eus empíricos são objetos.”
144
No pensamento clássico, portanto, o corpo está dado nas funções do
cogito. Não percebe e não se comunica. Não ouve e não fala, não sente e não se
expressa. O corpo vivo é, então, quase um corpo morto. Se quisermos
compreender todo o alcance do sistema “eu-outro-mundo” é fundamental, antes
de tudo, admitir a nossa anterioridade corporal a toda atividade neuro-física ou da
consciência. É preciso reconhecer, nos termos de Merleau-Ponty, “a nossa
existência encarnada” que, primeiro, supõe em vez de uma associação neuro-
física de processos lineares e, também, no lugar de uma consciência constituinte
um corpo que se comunica e se expressa estruturalmente. Somente assim,
poderemos integrar o físico e o mental e, ainda, compreender a primeira questão
posta em A Estrutura do Comportamento: a relação entre a consciência e a
natureza. Para tanto precisamos, fundamentalmente, estabelecer como essa
relação se mostra presente a partir das nossas experiências perceptivas. Para,
então, compreender como uma relação engendrada no domínio pré-objetivo –
originário – é capaz de expressar um ser, uma significação existencial e, o mais
importante, um comportamento.
144
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção, p. 88.
144
IV A ESTRUTURA
Em primeiro lugar, uma estrutura oferece um caráter
de sistema. Ela consiste em elementos tais que uma
modificação qualquer de um deles acarreta uma
modificação de todos os outros.
LÉVI-STRAUSS
Estabelecido, conforme a crítica que descrevemos até o momento, que
o comportamento não se reduz a um funcionamento mecânico do nosso arranjo
fisiológico (teoria do reflexo), não é uma coisa (psicologia empirista) e nem uma
idéia (intelectualista) é, ainda, necessário descrê-lo na perspectiva de Merleau-
Ponty. E se, como vimos anteriormente, o comportamento está dado na vivência
do campo fenomenal, na percepção original do ser no mundo, onde não há
distinção absoluta – no sentido clássico - entre o vivido e o pensado, entre o que
é sentido e o que é representado é preciso, do mesmo modo, revelar os motivos e
os desdobramentos dessa noção de campo fenomenal para uma significação do
comportamento. Temos que determinar como, através dessa existência
encarnada, é possível uma superação dos problemas clássicos sem, ao mesmo
tempo, aderir ao fisicalismo, ao psicologismo ou, mesmo, ao psicoisomorfismo da
Gestalttheorie. Como essa nossa experiência original é capaz de engendrar
fenômenos? De que modo o sistema “eu-outro-mundo” produz significações
diferentemente da lógica representacional preconizada pelo associacionismo e
pelo intelectualismo? E então, a favor dos dados da experiência ingênua, o que é
o comportamento?
145
Para responder a essas questões o caminho a ser seguido é aquele
que descreve o sistema “eu-outro-mundo”, a percepção, o corpo, a consciência e
as coisas e, por fim, o comportamento como parte de uma filosofia da estrutura. É,
portanto, nesse sentido que o comportamento passará, com Merleau-Ponty, a ser
pensado como uma estrutura determinada por intenções e significações. Mas,
então, o que é uma estrutura?
Antes de fixarmos o sentido preciso e os desdobramentos do termo
estrutura em Merleau-Ponty, é importante reconhecer o grande alcance dessa
noção na ordem do conhecimento. Aplicada largamente a vários ramos do saber,
o conceito de estrutura parece muito caro, não poucas vezes, às descrições do
tipo lógicas, físicas, biológicas, psicológicas, sociais, antropológicas ou
lingüísticas.
145
Por isso mesmo não é difícil conceber, por exemplo, que uma
estrutura possa ser remetida a uma equação matemática e sirva, também de
fundamento para um modelo explicativo em Biologia ou, então, estruture o
discurso descritivo de uma sociedade.
Marcel Mauss, lembra Merleau-Ponty no ensaio De Mauss a Claude
Lévi-Strauss, nos fornece um bom exemplo de como se processa uma análise
estruturalista em sociologia. Durkheim, ao discutir os fundamentos científicos da
sociologia estabeleceu a concepção do fato social, comparável aos objetos do
cientista da natureza, como algo desprovido de interioridade e de subjetividade.
Assim, conforme o texto Regras do Método Sociológico
146
, é o viés
145
Cf. BASTIDE, Roger (coord.). Usos e Sentidos do Termo Estrutura – Nas ciências Humanas
e Sociais. São Paulo: Herder, 1971.
146
Durkheim, Emile. Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
146
metodológico abstracionista dos modernos que parece intervir no trabalho do
sociólogo. Interioridade, subjetividade, vivência e proximidade são noções pré-
científicas que devem ser descartadas quando pensamos, de acordo com
Durkheim, em uma ciência sociológica. Já Marcel Mauss, ao considerar o fato
social naquilo que ele tem de ligação intima com a sua origem e com o seu solo
primitivo, recusou pelo menos em parte, conforme a interpretação de Merleau-
Ponty, o ideário cientificista e metodológico proposto por Durkheim. Seria, então, o
caso de indicarmos que com Mauss é a abertura de uma sociologia ao campo
fenomenal que se processa. Os trabalhos de Mauss foram, a seu modo,
elaborados sob a égide dos conceitos de experiência primeira e estrutura, na
medida em que a própria sociedade não deixou de ser pensada por esse grande
teórico, adverte Merleau-Ponty, como uma estrutura das estruturas:
Assim aparece no fundo dos sistemas sociais uma infra-estrutura
formal, somos tentados a dizer um pensamento inconsciente, uma
antecipação do espírito humano, como se a nossa ciência já estivesse
feita nas coisas, e como se ordem humana da cultura fosse uma
segunda ordem natural, dominada por outros invariantes.
147
Porém, se a aplicação da noção de estrutura pode ser tão extensa
quanto a distribuição das ciências no quadro da epistemé, independente disso ela
se define, freqüentemente, conforme nos indica Piaget, por três aspectos
fundamentais: totalidade, transformação e auto-regulação. Essas três categorias
são encontradas concomitantemente em praticamente todas as descrições que
recorrem à idéia de estrutura. Não há possibilidade de construção de um modelo
de estrutura, conforme a descrição de Piaget, independente do tipo de ciência
147
MERLEAU-PONTY, Maurice. Signos, p. 128.
147
requerida, que não comporte ao mesmo tempo e na mesma situação essas três
categorias. Mas, afinal de contas, como essas categorias operam?
A noção de totalidade faz com que todos os estruturalistas admitam,
para além das diferentes matérias, que uma estrutura apesar de formada por
elementos distintos, não se realiza pela simples agregação ou somatório desses
elementos. A totalidade, nesse sentido, pode ser compreendida conforme o
seguinte enunciado já muito bem conhecido: “O todo não se explica pelo exame
isolado das partes”. Foi, nesse sentido, por exemplo, que Saussure
148
opondo-se
à consideração puramente histórica da língua, que a dissociava em elementos
isolados usou o termo sistema, no sentido comum de estrutura a que estamos nos
referindo, para descrever a língua como uma totalidade equilibrada e dinâmica. Na
perspectiva de Saussure, conforme o texto do Curso de Lingüística Geral, a
compreensão correta da linguagem passa necessariamente pela aceitação da sua
condição sistêmica – estrutural. Isso significa, e as palavras do Curso de
Lingüística Geral assim indicam, que devemos ater-nos primeiramente a uma
análise do conjunto e não das partes. Atenção que se impõe como uma espécie
de regra metodológica, pois somente podemos conhecer a língua em todo o seu
alcance e os próprios termos que a compõe, quando a consideramos como uma
estrutura única, na qual as suas partes específicas ganham o verdadeiro sentido
quando não são dissociadas do todo. É o todo, como o texto do Curso está
indicando, que explica as partes e, então, temos que aceitar com Saussure que é
148
Cf. BENVENISTE, Émile. “Estrutura em lingüística”. IN: BASTIDE, Roger (coord.) Usos e
sentidos do termo estrutura – Nas ciências Humanas e Sociais -. São Paulo: Herder, 1971.
148
por meio de uma consideração estrutural que se compreende a língua, o signo, o
significante e o significado.
É uma grande ilusão considerar um termo simplesmente como a união
de um certo som com um certo conceito. Defini-lo assim seria isolá-lo do
sistema que faz parte; seria crer que se pode começar pelos termos e
construir o sistema somando-os; pelo contrário, deve-se partir do todo
solidário para obter, por análise, os elementos que ele engloba.
149
O conceito da totalidade garante integridade substancial à estrutura e,
assim, remete ao reconhecimento do caráter positivo, singular e único dessa
noção. Nesse caso, diferentemente de uma perspectiva elementarista, o que
importa é a idéia de que somente a adoção de um viés metodológico estrutural
garante inteligibilidade às análises: seja do próprio todo ou das partes que o
compõe. Para Saussure, a língua é um sistema convencional de sinais no qual os
elementos devem ser considerados em solidariedade sincrônica.
150
A estrutura
tem preferência sobre os elementos. Saussure, portanto, inaugurou o
estruturalismo lingüístico ao privilegiar a noção de totalidade no exame da língua
em lugar do elementarismo histórico-analítico até então dominante.
O segundo aspecto característico das estruturas, ainda de acordo com
Piaget, é ser um sistema de transformações. Mesmo quando nos referimos às
descrições pouco dinâmicas das formas físicas, fisiológicas e perceptivas da
Gestalttheorie, como veremos mais adiante, não podemos deixar de reconhecer
que toda estrutura comporta um sistema vivo de mudanças e movimento. As
149
SASSURE. Curso de Lingüística Geral, p
150
“A sincronia conhece somente uma perspectiva, a das pessoas que falam, todo o seu método
consiste em recolher-lhes o testemunho; para saber em que medida uma coisa é uma realidade,
será necessário averiguar em que ela existe para a consciência de tais pessoas.” SASSURE.
Curso de Lingüística Geral, p. 106.
149
totalidades estruturadas estão em constante atividade e admitem uma dinâmica de
transposição bipolar. São, nesse aspecto, “estruturadas e estruturantes”. Esse
seria o caso, conforme a interpretação de Merleau-Ponty, muito visível que pesa a
respeito da noção de estrutura preconizada pela obra de Lévi-Strauss. Os fatos
sociais, para o antropólogo francês, não são coisas e nem idéias. São, antes de
tudo, estruturas. Essas estruturas - num sentido interior - organizam os elementos
que a compõem e, de modo variável, também se organizam conforme o exterior. A
estrutura, na perspectiva de Lévi-Strauss seria, então, concebida, conforme as
palavras de Merleau-Ponty, “como a maneira simples pela qual a troca é
organizada num setor da sociedade, ou na sociedade inteira.”
151
Nesse aspecto,
apreendemos com Lévi-Strauss que se as estruturas, por um lado, são modelos
explicativos construídos pelos cientistas para desvelar as relações complexas do
real não, são, por outro lado, isentas de elementos exteriores:
Deve ficar entendido que a criança representa talvez tanto a criança
nascida como a nascer. Mas dito isto, a criança é indispensável para
atestar o caráter dinâmico e teleológico do procedimento inicial, que
funda o parentesco na e através da aliança. O parentesco não é um
fenômeno estático; só existe para se perpetuar (...) Mesmo a estrutura
de parentesco mais elementar existe simultaneamente na ordem
sincrônica e na ordem diacrônica.
152
Exemplos, como esse apresentado por Lévi-Strauss, que remontam às
descrições da etnologia sobre as relações de parentescos, conforme a
interpretação de Merleau-Ponty, confirmam esse ponto vista dinâmico, quando
pressupõem a construção de diferentes modelos conforme a variabilidade das
151
MERLEAU-PONTY, Signos, p. 127.
152
LÉVI-STRAUSS. Antropologia Estrutural, p.64
150
relações. A sociedade, diz Merleau-Ponty, “como estrutura permanece uma
realidade com facetas, possível de vários enfoques”.
153
Nesse caso, a estrutura
comporta uma variabilidade de relações com a sociedade que vão, por exemplo,
da proximidade à incompatibilidade, do universal ao particular. A noção de
estrutura ganha, na abordagem preconizada por Lévi-Strauss, um sentido
dinâmico, ao mesmo tempo em que afirma a sua abrangência e o seu
entendimento por meio do seu próprio emprego.
O terceiro aspecto fundamental da noção de estrutura, a auto-
regulação, garante às estruturas autonomia e independência. Conforme as
indicações de Piaget, esse terceiro princípio se refere à relação das estruturas
com tudo aquilo que lhe é exterior, seja, nesse caso, com outras estruturas. A
regra geral, nas palavras de Piaget, estabelece que na relação entre estruturas
“não há anexação e sim confederação e as leis de uma subestrutura não são
alteradas e sim conservadas, de maneira tal que uma mudança interposta é um
enriquecimento”.
154
Há um fechamento, uma espécie de soberania no qual as
transformações são reguladas por leis que não vão além das fronteiras próprias da
estrutura em questão. Os elementos externos e internos estão separados, mesmo
quando pensamos no contato entre duas estruturas. Os elementos de uma
estrutura não interferem na organização interna de outra estrutura. Podem, sim,
associar-se e formar uma outra estrutura, mas os caracteres das primeiras
estruturas permanecem os mesmos. Seria, por exemplo, o caso dos fatores
153
MERLEAU-PONTY, Signos, p. 127.
154
PIAGET, Jean. O estruturalismo.p.15.
151
dinâmicos que operam nas estruturas, como foram concebidas por Köhler. Para a
Gestalttheorie, de modo geral, uma estrutura remete a uma organização do campo
perceptivo no qual todos os eventos e todos os fenômenos têm seus valores locais
independentes. De modo semelhante, a noção de estrutura empregada pela
lingüística não deixa de mostrar como esse processo de auto-regulação opera,
pois a linguagem sempre se apresenta como um sistema concreto e autônomo em
toda a sua extensão. Já que a concepção sincrônica do signo supõe, na
perspectiva saussuriana, que a linguagem é estruturada antes mesmo de
conhecermos a sua forma acabada. O verdadeiro significado da linguagem, nesse
caso, não se reduz a uma análise diacrônica, já que, antes de tudo, é preciso
compreendê-la a partir do seu arranjo interno, da sua própria estrutura.
O exercício descritivo dessas ciências – da antropologia, da sociologia
e da lingüítista - exige um o trabalho arraigado à realidade primeira. Portanto, são
ciências que só se deparam com a estrutura enquanto permanecem ligadas à
vivência. As tentativas de explicação da mitologia, adverte Merleau-Ponty,
somente foram decepcionantes porque ignoraram essa exigência. Não seriam,
talvez, se tentassem compreender o mito in loco: “tom, o andamento, o ritmo, as
recorrências”. Mauss, interpreta Merleau-Ponty, destitui o fato social de um
pretenso caráter objetivo e isolado da realidade para, então, considerá-lo como um
acontecimento estrutural engajado à própria experiência. Essa é, essencialmente,
a relação com a qual a noção de estrutura não pode ser dissociada. Por isso
mesmo, uma estrutura não pode ser uma idéia platônica, não se resume a um
conceito a priori, não se realiza com uma projeção mental ou, mesmo, como uma
coisa entre outras. Mas, afinal, se o comportamento deve ser pensado a partir de
152
uma filosofia da estrutura, como assim concebeu a Gestalttheorie o que, na
perspectiva da própria Gestalttheorie e, fundamentalmente, na de Merleau-Ponty é
uma estrutura?
4.1 As Estruturas Psicológicas
Toda organização perceptual é organização dentro de uma estrutura
Koffka.
O surgimento da psicologia das formas já foi exaustivamente
estabelecido por uma quantidade considerável de publicações.
155
Além dos
extensos manuais de psicologia, a genealogia da psicologia da Gestalt se
encontra, muito bem descrita, nas elaborações de Köhler, de Koffka, de Paul
Guillaume e, em certa medida, nos escritos de Merleau-Ponty. Em função disso,
para não sermos enfadonhos, não convém aqui repetir essa mesma história em
todos os seus pormenores.
A primeira coisa a ser levada em conta é que um breve exame do
desenvolvimento da Gestalttheorie – da descoberta das formas - nos permite, de
imediato, compreender com mais clareza os liames que sustentam a relação
intrínseca entre a noção de experiência primeira com as próprias formas e, ainda,
a articulação dessas categorias com a função da percepção. Foi somente depois
de considerar as formas a partir da sua própria significação que os teóricos da
155
O termo estrutura em psicologia designa a idéia de que as partes que se podem distinguir num
conjunto mental – o comportamento, a experiência consciente – mantém entre si relações
definidas.
cf. LAGACHE, Daniel. “Estrutura em psicologia”. IN: BASTIDE, Roger (coord.) Usos e sentidos do
termo estrutura – Nas ciências Humanas e Sociais -. São Paulo: Herder, 1971.
153
gestalt passaram a dar uma atenção consistente ao papel desempenhado pela
percepção e, então, juntamente com as noções de experiência direta e de meio
comportamental elaboraram uma nova psicologia. Por isso mesmo, aquilo que
mais nos interessa nesse momento, além de evidenciar como as pesquisas com
as Gestaltqualitäten modificaram as noções associacionistas e intelectualistas
sobre as relações entre o organismo e a natureza, construídas desde de Locke e
Descartes é, sobretudo, precisar como a noção de forma, desenvolvida pela
Gestalttheorie, está implicada na obra de Merleau-Ponty, seja por aquilo que foi
mantido ou recusado por essa obra, já que a relação de Merleau-Ponty com a
Gestalttheorie nunca deixou de ser crítica.
Foi a partir das pesquisas com as Gestalttqualitäten, inaugurada com os
experimentos de Ehrenfels, que se abriu, definitivamente, a possibilidade de fixar
que aquilo que ocorre às sensações, consideradas isoladamente, não
corresponde ao que é dado na percepção, pois – conforme estabelece mais
vigorosamente Merleau-Ponty - o que é dado à percepção o é sempre como uma
estrutura. Sobre isso, o recorrente exemplo acerca da apreensão de uma música
se mostra muito elucidativo. Quando diante de uma composição musical qualquer
substituímos algumas notas dessa composição não podemos mais dizer, nesse
caso, que se trata da mesma peça musical. No entanto, quando essa mesma peça
é arranjada – transposta – em outro tom permanece, ainda, sendo a mesma
música. Mais importante, somos capazes de reconhecê-la, isto é de percebê-la
integralmente e sem a necessidade de recorremos à função de atenção. Essa é,
resumidamente, a lógica pela qual as gestaltes nos são dadas. Isto é, aquilo que é
percebido o é sempre como uma totalidade e, na maioria das vezes, de maneira
154
espontânea. E essa estrutura, as pesquisas de Ehrenfels já apontam para isso, é
uma realidade singular e autônoma em relação às partes que a compõe. Se assim
não fosse, não seriamos capazes de reconhecer a mesma melodia quando
arranjada em outro tom ou, mesmo, de perceber com uma só visada uma
paisagem. Na maioria das situações não percebemos o todo através de uma soma
das partes, pois o todo – como já nos referimos anteriormente - não é essa
reunião de partes justapostas. Ele possui uma identidade própria e autônoma.
Uma música não resulta de uma adição de notas, uma figura, assim como uma
paisagem, não se reduz a uma disposição de coisas. A música, a paisagem, e a
figuras são gestaltes enquanto são percebidas independentemente da disposição
isolada dos elementos que a compõe. Essas gestalten se apresentam primeiro
como unidades indivisíveis e dinâmicas: tudo está, nesse sentido, conforme os
princípios de totalidade, de auto-regulação e de transposição considerados por
Piaget, como vimos acima. O fato de reconhecermos a mesma melodia é o que
nos leva muito fortemente a concluir com Ehrenfels, de acordo com as palavras
abaixo de Penna, sobre a existência das Gestalttqualitäten:
(...)Ehrenfels introduziu o conceito de Gestalttqualitäten, ou seja, a
estrutura como conjunto não somativo ou não aditivo. Ehrenfels
ilustrou-o com o exemplo da melodia. A possibilidade de defini-la como
simples adição dos sons musicais revela-se excluída pela presença de
uma propriedade: a da transposição. A mesma melodia poderia ser
executada, sem a perda da sua identidade, em diferentes tons. A
melodia seria, pois uma estrutura não somativa, ou melhor,
Gestalttqualitäten.
156
156
PENNA, Introdução ao gestaltismo, p17.
155
Mas afinal, o que são formas? São coisas? São fenômenos físicos,
fisiológicos ou mentais? São eventos? É possível conceber as Gestalttqualitäten
como algo diferente de um estado de consciência? E, depois, devemos perguntar
como, precisamente, apreendemos as formas. Dado que o todo é uma realidade
como são os seus elementos é necessário, do mesmo modo, investigar como ele
– o todo - se apresenta desse modo. Qual o papel da percepção na apreensão
das formas? Resumidamente, as questões que se impõem de imediato estão
ligadas, primeiro, ao modo como podemos apreender e, depois, como podemos
determinar a natureza daquilo que Ehrenfels denominou como Gestalttqualitäten.
Responder a essas questões passou a ser o principal objetivo dos representantes
das primeiras escolas da psicologia da Gestalt. Portanto, foi nesse sentido:
enquanto a teoria da percepção das formas parecia ganhar corpo, o problema que
habita as fronteiras das relações entre o sujeito e o mundo começou, por sua vez,
a ser elaborado e respondido de forma inédita.
Descoberta as Gestalttqualitäten foi preciso, como já dissemos,
determinar qual seria a natureza substancial das estruturas. Podemos, conforme o
raciocino de Guillaume, dizer que os problemas mais visíveis da teoria de
Ehrenfels se referiam, basicamente, à posição adotada pelo psicólogo vienense
acerca da natureza das formas e, ainda, a um certo desconhecimento da noção de
percepção, já que o viés do sensualismo jamais foi abandonado por completo em
Ehrenfels. Os trabalhos de Ehrenfels foram muito importantes na medida em que
deram início as pesquisas da Gestalttheorie. Mas ele, assim como os psicólogos
da escola de Graz, Meinong e Benussi, conforme descreve a tradição crítica da
Gestalttheorie representada pela escola de Berlim, não responderam de maneira
156
convincente aos problemas que rodeavam a noção de Gestalttqualitäten. O maior
erro foi permanecerem, como indicam as críticas de Köhler e de Koffka muito
presos à noção de sensação. Vejamos como Guillaume, por sua vez, resume as
críticas da escola de Berlim aos trabalhos de Ehrenfels:
Ehrenfels tinha tido o mérito de propor um problema: não o tinha
resolvido e seu pensamento permanecia confuso. Não rejeitava a idéia
de sensação. Admitia duas espécies de realidades psíquicas:
qualidades sensíveis e qualidades formais (Gestalttqualitäten); eram,
para ele, dois estados de consciência distintos: os primeiros eram o
substrato (Grundlage) dos segundos; podiam existir sem eles, ao
passo que a recíproca não era verdadeira.
157
Portanto, a conclusão mais visível, quando nos deparamos com as
críticas aos trabalhos de Ehrenfels, é que ao promover a separação entre
qualidades sensíveis (Grundlage) e as qualidades formais (Gestalttqualitäten), o
psicólogo vienense introduziu uma nova espécie de dualismo, não mais entre
corpo e alma, mas, nesse caso, um dualismo eminentemente psíquico. No caso
da apreensão das qualidades sensíveis a concepção do associacionismo foi
preservada quase que integralmente. Essa relação não constituiu, de imediato, um
problema. Não é difícil conceber o modo pelo qual as qualidades sensíveis seriam
apreendidas, pois evidentemente isso já estava muito bem estabelecido pela
tradição. Desde Locke argumenta-se em favor da idéia que as qualidades
sensíveis específicas têm origem em excitações provocadas por estímulos físicos
determinados. Seria o caso, por exemplo, de percepção das cores ocasionadas
pela apresentação aos órgãos occipitais de um objeto. E quanto às qualidades
formais, qual seria a sua origem? Como sou sensivelmente afetado quando
157
GUILLAUME. Psicologia da forma, p.9.
157
percebo uma gestalt? Não parece que as Gestalttqualitäten possam ser
concebidas da mesma maneira do associacionismo, na medida em que é muito
difícil ligá-las a causas específicas. Não parece razoável querer, por exemplo,
explicar a apreensão de uma gestalt através de uma determinada função
anatômica ou, ainda, supor que um excitante característico seja a única razão
dessa mesma gestalt. Ainda que os estudos de Ehrenfels propusessem que a
unidade perceptiva antecede a um somatório de sensações ele não foi
suficientemente longe para se livrar dos postulados associacionistas, é o que o
texto de Köhler, logo abaixo, parece indicar:
As qualidades de Ehrenfels, que correspondem aos fenômenos
dinâmicos mais amplos que a cor, originam-se na mesma ocasião em
que a cor se origina. (...) Teria constituído uma façanha sobre-humana
se Ehrenfels tivesse chagado até o ponto de dar, desse modo, às suas
novas características a mesma posição que tem as qualidades
sensoriais comuns. Para ele, suas qualidades representam
experiências que eram acrescentadas às “sensações”, quando estas
surgiram. Na escola de Graz ( Von Meinong, Witasek, Benussi),
discutiu-se muito, na ocasião, o fundierte Inbalte, concepção que
implica não apenas prioridade das sensações em comparação com as
características de Ehrenfels, como também uma produção destas
últimas por meio de processos intelectuais. Evidentemente, mesmo
aqueles que se mostravam particularmente interessados pelo assunto
tiveram, de pronto, enorme dificuldade em reconhecer desde logo suas
conseqüências radicais para a teoria psicológica.
158
A teoria da Gestalt, preconizada por Köhler e Koffka, mais radical, vai
além das interpretações das primeiras escolas da Gestalt, nega a ocorrência das
formas como elementos psicológicos. Os teóricos da Gestalt, ao contrário de
Ehrenfels, não concebem as estruturas como uma espécie de conteúdo mental
reunido por uma função de atenção. Se as formas se referem a uma atividade
158
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p.105.
158
psicológica é, sobretudo, como resultado de um processo de integração – como já
indicamos anteriormente - entre o campo fenomenal e o físico.
A opção que escola de Berlim buscou, desde o início, foi a de escapar a
qualquer filiação associacionista recusando a idéia de que as qualidades formais
resultariam de excitação dos órgãos dos sentidos e, então, seriam reunidas por
um aparelho superior. Para Köhler, a forma não pode ser concebida ao modo da
teoria da localização e, muito menos, pode ser situada como resultado de uma
função superior. As pesquisas sobre o campo fenomenal, com macacos e com
galinhas, por exemplo, estabelecem que há uma consideração imanente à
articulação percebida. Nesse sentido, procurando se afastar das concepções
intelectualistas, Köhler e Koffka jamais conceberam que a noção de forma
pudesse se apresentar como um evento puramente mental. Isto é, a forma não
resulta de um processo de associação assim como não é uma representação
intelectual. O mais fundamental, é que tanto Köhler como Koffka reconheceram
que a descoberta das Gestalttqualitäten, enquanto totalidades singulares, originais
e independentes dos elementos que as compõem, revelam uma nova face da
realidade como, evidentemente, indicam uma nova consideração acerca da
relação entre o sujeito e o mundo. Foi, mais precisamente, nesse sentido, que
essas descobertas, ao mesmo tempo em que trouxeram à luz esse conceito
basilar de forma, abriram a possibilidade de uma série de indagações novas em
psicologia. Se a partir das observações do psicólogo vienense, conforme indica
Guillaume,
159
pudemos descobrir as Gestalttqualitäten foi, sobretudo, com a
159
GUILLAUME. PAUL. Psicologia da forma.São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1960.
159
Gestalttheorie, conforme as palavras de Köhler, que ficou estabelecido que a
organização do campo sensorial, responsável pela apreensão das gestaltes, opera
de maneira distinta das teorias tradicionais e não comporta, como se acreditava,
processos complementares, sejam de natureza inata ou adquirida.
Há em primeiro lugar, o que é geralmente chamado de organização da
experiência sensorial. A expressão refere-se ao fato de campos
sensoriais terem, de certo modo, sua própria psicologia social. Tais
campos não se apresentam nem como contínuos, uniformemente
coerentes, nem como modelos de elementos reciprocamente
indiferentes. O que realmente percebemos consiste, antes de mais
nada, em entidades específicas, tais como coisas, figuras, etc., e
também grupos de que essas entidades fazem parte. Isto demonstra a
operação de processos em que o conteúdo de certas áreas é unificado
e, ao mesmo tempo, relativamente segregado de seu ambiente. A
teoria mecanicista, com seu mosaico de elementos separados, é,
naturalmente, incapaz de explicar uma organização nesse sentido.
160
O ponto central do estruturalismo psicológico, proposto
fundamentalmente nos trabalhos de Köhler e de Koffka, manifesta a idéia de que é
a nossa percepção que apreende as formas a partir de alguns aspectos
fundamentais. Primeiro, enquanto totalidades organizadas. Depois, num segundo
aspecto, essa concepção de totalidade é referendada pela idéia de campo e,
ainda, a forma é percebida num só golpe, de modo instantâneo. Por fim, como as
formas não são constituídas pelo sujeito e não são elementos psicológicos, são
concebidas num viés naturalista. Para compreender melhor esse ponto de vista
Köhler faz, novamente, intervir os exemplos da Física. Admite que ocorre no
sistema nervosos algo semelhante ao que ocorre num sistema elétrico. A
comparação com os sistemas físicos, por parte da Gestalttheorie, busca explicar
160
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p. 73.
160
esses aspectos essenciais para a Psicologia das formas que foram, de certo
modo, bem trabalhados pela Física através das noções gerais de campo, de força
e de causalidade.
Apreendemos com a Física, fundamentalmente a partir das pesquisas
sobre a teoria da gravitação e sobre tensões eletromagnéticas, que o campo e o
comportamento de um corpo estão integrados. Numa perspectiva correlativa,
podemos concluir com Koffka, que entre ambos – comportamento e campo –,
manifestam-se relações cambiantes de causalidade e determinação. Se o
comportamento está encerrado num campo, esse, por sua vez, também se mostra
através do comportamento. “Assim descobrimos o campo magnético da terra
observando o comportamento das agulhas magnéticas em diferentes lugares, sua
declinação e inclinação; do mesmo modo, descobrimos o campo gravitacional da
terra medindo o período de um pêndulo de certo comprimento em diferentes
lugares”.
161
Nesse caso, podemos nos referir ao comportamento de um organismo
participando da mesma base ontológica da linguagem Física. Nele se apresentam
sistemas de forças, circuitos elétricos interferem no seu funcionamento e, como
todo sistema, que se encontra encerrado num determinado campo, um organismo
opera em função de relações de equilíbrio. A mesma experiência objetiva - a sua
lógica - que possibilitou uma exposição do mundo físico deve também, em
Psicologia, permitir que apresentemos uma descrição do mundo fisiológico e do
comportamento. A noção de campo em psicologia é fundamental no entendimento
161
KOFFKA. Princípios da Psicologia da Gestalt, p.54.
161
de Koffka. Pois essa noção possibilitará a conquista de uma categoria objetiva que
determinará o conjunto das explicações.
No entanto, se é à física que devemos recorrer o que, precisamente,
um sistema físico pode nos dizer sobre o campo da Psicologia? Antes de tudo, em
que, propriamente, consiste um sistema – estrutura - físico? No entender de
Köhler, num sistema físico os fenômenos são determinados por duas espécies de
fatores: os dinâmicos e os topográficos. À primeira categoria pertencem as forças
que atuam no interior do sistema. São, de modo geral, todos aqueles elementos
que não constituem os materiais dos sistemas, mas que operam nos sistemas,
com menos ou mais liberdade em função da disposição desses materiais. Já à
segunda categoria, concernem às características dos sistemas que sujeitam seus
processos a condições restritivas. São, de modo geral, o arranjo substancial e
espacial do sistema. “Em uma rede condutora, por exemplo, as forças
eletrostáticas de corrente representam o aspecto dinâmico. Por outro lado, a
configuração geométrica e a constituição química da rede são as condições
topográficas que restringem o jogo daquelas forças”.
162
Numa máquina a vapor,
num pistão, num circuito elétrico ou em qualquer outro sistema, por exemplo, a
direção, a intensidade, a quantidade, o tempo e a distribuição das funções e a
ocorrência das atividades dinâmicas estão, de modo quase que determinante,
dependentes da presença, da distribuição e do alcance restritivo das condições
topográficas. Nesse sentido, os fatores topográficos interferem naturalmente na
ordem do sistema, na organização sempre como condições limitadoras de função.
162
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p.66.
162
Assim como não há sistema sem a intervenção desses dois fatores, é
preciso considerar que os sistemas variam sempre em função de uma presença
mais significativa ou não de um desses fatores. No exemplo acima, sobre redes
condutoras, a relação sugerida é que, de modo geral, mas não absoluto, os
fatores topográficos e dinâmicos influenciam os sistemas de maneira
inversamente proporcional: quanto maior a presença de fatores topográficos
menor será a ocorrência dos fatores dinâmicos.
A diferença de presença e o grau variável de influência dos fatores
constituem critérios determinantes no processo de distinção entre os sistemas que
se encontram, evidentemente, entre a quase absoluta necessidade e a
liberalidade total. A disparidade de presença dominante de um dos fatores é fácil
de ser evidenciada entre os mais diversos sistemas. Quanto mais significativa for
a influência dos fatores topográficos, mais perto estaremos do puro mecanicismo.
Sendo, sem dúvida, essa a condição mais comum, fundamentalmente no caso dos
sistemas físicos. De modo geral esse parece ser o caso mais comum:
concebemos modelos teóricos e nos deparamos, mais freqüentemente, com
sistemas nos quais as condições topográficas se mostram mais atuantes do que
as dinâmicas. É o caso típico, nos indica Köhler, das máquinas construídas pelos
homens. Como, por exemplo, o trabalho de um pistão que tem o seu movimento –
um fator dinâmico - limitado a apenas uma direção pelas paredes do cilindro –
condições topográficas. “Nesse caso, o vapor do cilindro que tende a se expandir
163
em todas as direções, mas, devido, as coerções topográficas, só pode atuar em
uma direção, aquela em que o pistão se pode mover”.
163
Essa mesma perspectiva mecanicista se mostra presente nos grandes
sistemas filosóficos. As concepções da astronomia de Aristóteles, a teoria
fisiológica de Descartes e todas as ciências nascidas dessas doutrinas clássicas
são, no entender de Köhler, os exemplos mais bem acabados de sistemas
concebidos fundamentalmente pela determinação de condições topográficas. O
universo aristotélico, antes de tudo, manifesta uma concepção astronômica
essencialmente determinada por condições restritivas. O céu aristotélico é
concebido como um sistema rígido no qual os fenômenos – os movimentos - são
todos necessários. Os eventos dinâmicos como a direção dos movimentos e a
intensidade do brilho das esferas celestes, por exemplo, são limitados pela
estrutura topográfica desse cosmos ordenado. Assim, no cosmos aristotélico não
há, como consta no De Caelo, a possibilidade de movimentos contingentes.
Acompanhemos a bem estabelecida interpretação de Ross sobre o céu
aristotélico:
O sistema astronômico de Aristóteles é, em termos breves, o seguinte.
Os corpos celestes consistem nos cinco elementos, livres de geração
e de destruição, da mudança de qualidade e tamanho, e movem-se,
não como elementos terrestres em linha reta, mas em círculo. (....) o
espaço é finito, não existe aí vazio (...) e a rotação uniforme de uma
esfera é o único movimento passível de durar eternamente, sem
mudança de direção e sem requerer quer o vazio quer um espaço
infinito.
164
163
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p.66.
164
ROSS, Aristóteles, p 103-104.
164
De modo semelhante à astronomia aristotélica, também foram forjadas
as mais rígidas relações entre as condições topográficas e as dinâmicas acerca do
sistema fisiológico. Todas as presunções mecanicistas sobre a fisiologia do
sistema nervoso – fundamentalmente aquelas construídas por Descartes ou
filiadas a sua doutrina - foram concebidas sob a égide quase absoluta da
prevalência de fatores topográficos. A descrição do corpo por Descartes, por
exemplo, conforme encontramos nas Paixões da Alma, sustenta a idéia já bem
conhecida de uma máquina. Descartes, sem exageros, é bem preciso na
afirmação do mecanicismo corporal, como o texto abaixo deixa claro, ao salientar
a predominância maquinal das condições topográficas. Ao comparar o corpo a um
relógio, estabelece que ele não passa no fundo, essa é a mensagem cartesiana,
de um sistema mecânico no qual as categorias restritivas explicam e sujeitam os
eventos dinâmicos. Aliás, o correto é considerar que as mais significativas causas
dinâmicas não são dadas no corpo, mas na alma. A Fisiologia nessa perspectiva
cartesiana está, então, sempre limitada a descrever somente aqueles fenômenos
nervosos e os reflexos que, de certo modo, são permitidos pela a topografia do
nosso corpo. Nesse sentido, a Fisiologia não se seria mais do que uma Física do
nosso sistema nervoso.
(...) consideremos que a morte nunca ocorre pela falta da alma, mas
somente porque alguma das principais partes do corpo se corrompe; e
pensemos que o corpo de um homem vivo difere tanto do de um
homem morto quanto um relógio ou outro autômato ( isto é, outra
máquina que se mova por si mesma), quando está montada e tem em
si o princípio corporal dos movimentos para os quais é instituído,
contudo o que é necessário para a sua ação, difere do mesmo relógio,
165
ou outra máquina, quando está quebrado e o princípio do seu
movimento cessa de agir.
165
A posição de Köhler, à primeira vista, não parece muito clara. Há algo
do cartesianismo, há algo da Física que precisamos manter e, ao mesmo tempo,
recusar quando se trata da organização do campo sensorial. O organismo, por
mais complexo que seja, não deixa de ter propriedades semelhantes àquelas que
se encontram num sistema físico. É verdade que, em função daquilo que um corpo
admite como condição sistêmica, podemos compará-lo a uma máquina sem, de
modo algum, cometer um despropósito teórico refutável em toda a sua extensão.
Mesmo aceitando a idéia de que na organização sensorial há uma espécie de
“interdependência dinâmica” dos fatores topográficos temos, também, que admitir
o fato de nesse mesmo campo operam limites que regulam a atuação e a
distribuição dos fatores dinâmicos. Por isso mesmo, conforme as palavras de
Köhler, “há bons exemplos na Física. Tudo favorece a presunção de que o mesmo
acontece no sistema nervoso”.
166
No entanto, Köhler não concorda integralmente
com o mecanicismo cartesiano. É fundamental recusar a concepção atomista
clássica, de que o campo é a soma dos elementos locais e, ainda, as indicações
sensualistas e psicologistas de Ehrenfels como, por conseqüência, a organização
do campo sensorial em função de uma fisiologia dominada quase que
integralmente por fatores restritivos. Por isso mesmo, Köhler propõe a idéia de
estrutura como um dado perceptivo primário e físico. Estabelece, assim como
Koffka, que o que importa é a estrutura do campo que atua na própria percepção.
165
DESCARTES. As Paixões da Alma, p. 30.
166
Köhler.Psicologia da Gestalt, p.81.
166
Para köhler o processo de estruturação é dinâmico e antecede e controla a
percepção. A estrutura opera quase que totalmente independente da fisiologia
sem, contudo, deixar de corresponder a ela. Com a Gestalttheorie a apreensão
das formas é uma função da percepção apenas enquanto nos dirigimos ao que já
está pronto, já está dado.
A questão, então, é compreender como a Gestalttheorie explica o modo
como operam as funções de conexão entre as condições observáveis do estímulo
e as reações observáveis no meio comportamental. Deve haver, então, pelo
menos um princípio que permita a transição – a ligação - da experiência direta
com os fenômenos fisiológicos e a sua objetivação. Isto é, quais são as hipóteses
que dão conta das relações estabelecidas no largo meio comportamental – entre
os processos fisiológicos, o organismo e comportamento – que foi, de certo modo,
ignorado ou não respondido satisfatoriamente por toda psicologia experimental e
pelas primeiras pesquisas patrocinadas pelo início da Psicologia da Gestalt? A
primeira resposta a essa questão, segundo Köhler, foi fornecida pelos estudos de
E. Herring: “as experiências podem ser classificadas sistematicamente, se seus
vários matizes são unidos de acordo com suas semelhanças”.
167
Nesse caso a
sugestão é simples. Antes de tudo é necessário classificar – fundamentalmente
através do critério da semelhança – os processos fisiológicos e a experiência
perceptiva para, então, supor relações possíveis de serem estabelecidas. A
relação entre os sistemas de classificação somente será clara se supusermos que
ambos têm as mesmas formas e estruturas. Por exemplo, quando conseguimos
estabelecer correspondência entre a representação geométrica de um som – uma
167
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p.38.
167
linha reta crescente – e a características dos fenômenos cerebrais. “O princípio
não dá uma resposta direta, mas supõe que quaisquer que possam ser as
características em questão, suas várias tonalidades ou graus devem mostrar
exatamente a mesma ordem que a altura do som apresenta, isto é, a de uma linha
reta”.
168
A segunda resposta interessante, a qual köhler faz referência, é dada pelo
princípio da identidade das estruturas elaborado por G. E. Muller, ao estudar a
experiência visual. Muller supõe, conforme Köhler, “que as cores podem ser
estudadas em sua relação com processos cerebrais correspondentes”.
169
Resumidamente, essa correspondência é assumida numa relação estrutural que
liga a experiência visual aos processos cerebrais. Afirma-se, nesse caso, que o
aparelho responsável pelas experiências do fenômeno da cor e dos fenômenos
fisiológicos relacionados variam, por conseqüência lógica, conjuntamente e na
mesma direção das cores. Há, nesse caso, a indicação de uma espécie de
paralelismo estrutural entre as cores, o aparelho retiniano e a percepção.
Não satisfeito com essas duas respostas, Köhler nos indica que a
Gestalttheorie fundou um princípio mais complexo e próximo da experiência direta:
o princípio do isomorfismo psicofísico. Ao contrário dos autores anteriores, que
construíram os seus modelos numa referência à ordem lógica das experiências, a
teoria da Gestalt pressupõe uma ordem concreta. O procedimento de Köhler é fiel
ao que até o momento foi enunciado. Estabelece, de modo geral, que é
fundamental não abstrair da experiência para mostrar a ligação entre essa
mesma experiência e os fenômenos fisiologicamente velados. Köhler demonstra,
168
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p.39.
169
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p.39.
168
primeiro, a validade desse princípio relacionado-o às experiências espaciais.
Nesse caso, ele pode ser enunciado assim: “A ordem experimentada no espaço é
sempre estruturalmente idêntica a uma ordem funcional na distribuição dos
processos cerebrais ocultos”.
170
O princípio sustenta, basicamente, a idéia de que
uma determinada ordem experimentada – três pontos brancos numa superfície
negra – está implicada aos processos cerebrais. Na medida em que a apreensão
dessa ordem depende desses processos que, por sua vez, são no seu estado
distribuídos simetricamente, na mesma ordem dada visualmente. Esse princípio
também se estende com relação aos fenômenos que se situam no tempo. De
modo análogo, ele estabelece a noção de que o tempo experimentado deve
corresponder a um evento funcional no cérebro: “à ordem constatada pela
experiência no tempo é sempre estruturalmente idêntica a uma ordem funcional na
seqüência dos processos cerebrais correlatos.
171
Conforme Köhler, a noção de
correspondência concreta entre a experiência e os processos fisiológicos internos
vai além das ordens temporais e espaciais. Uma terceira aplicação do princípio
psicofísico, muito importante para a teoria da Gestalt, é enunciada em termos de
hipótese fisiológica dos eventos sensoriais. Supõe uma espécie de unidade
substancial – de mesma natureza - entre os fenômenos da experiência e os
processos fisiológicos: “(...) as unidades da experiência correspondem a unidades
funcionais nos processos fisiológicos ocultos”.
172
O importante para entender as afirmações acima, compreender a
significação positiva do isomorfismo e a sua aplicação é ter em conta,
170
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p.40.
171
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p.41.
172
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p.41.
169
fundamentalmente, que os eventos fisiológicos, nos termos de Köhler e de Koffka,
são processos molares e não moleculares. Aliás, na perspectiva da Gestalttheorie,
essa consideração molar é uma condição necessária para superar a distância que
separa os processos fisiológicos subjacentes da consciência, do meio
comportamental e da experiência direta.
Köhler inverte de maneira radical o esquema explicativo das escolas
clássicas de psicologia. O caminho não é aquele que se percorre dos princípios
para a experiência, e também, não mais se busca explicar a experiência pelo
fisiológico. Aquilo que Kant definiu como sendo as formas a priori da sensibilidade
– o tempo e o espaço – mais a própria dinâmica da experiência, encontram os
seus correlatos não somente nos processos fisiológicos, mas na própria
experiência direta e no meio comportamental. A experiência direta e a noção de
meio comportamental assumem, com Köhler e Koffka não apenas a condição de
eventos aparentemente dispersos que precisam ser reunidos pela razão, elas são
significativas desde o seu início, comportam uma estrutura de campo que permite
reconhecer nelas os caracteres mais expressivos da relação entre o físico, o
fisiológico e o fenomênico. Nas palavras de Köhler, essa relação é, ao que tudo
indica, de integração:
Três pessoas caminham à minha frente pela rua física como três
entidades físicas distintas; há, em correspondência, três unidades
psicofísicas em meu córtex e três percpto-pessoas em meu espaço
visual. Fisicamente, meu próprio organismo é um objeto macroscópico;
também o vejo como algo à parte, a saber, o eu visual; e em meu
córtex visual o seu correlato ocupa uma região em que, como estado
macroscópico, é destacado do contexto psicofísico geral.
173
173
KoHLER. “Sobre o Isomorfismo”. In: Psicologia, p. 104.
170
De modo análogo, Koffka pôde, efetivamente, reconhecer o lugar e a
condição dos processos molares dentro do comportamento molar. Não são então,
processos fragmentados sujeitos a uma conexão causal mecânica. Esses
processos, nas palavras de Koffka: “não são uma soma ou combinação de
processos de nervos independentes e locais, mas processos nervosos em tal
extensão que cada processo local depende de todos os outros processos locais,
dentro da distribuição molar”.
174
São, evidentemente, estruturas.
A estrutura para a Gestalttheorie passou a significar a idéia de que o
campo fenomenal - a experiência - é feito de coisas, de situações e de relações
que integram o físico, o fisiológico e o mental. Portanto, a idéia de estrutura,
primeiramente, oferece a possibilidade de superar a clássica oposição corpo e
alma e todos os problemas que advém dessa oposição como, também, significa
uma nova possibilidade de análise e compreensão do comportamento.
No entanto, se a teoria da Gestalt manifesta, num primeiro momento,
uma proximidade conceitual com a fenomenologia, ela se afasta desse viés
quando reduz a existência das formas às estruturas físicas. A perspectiva
naturalista referendada pela idéia de campo se impõe, como indica Merleau-Ponty,
quando a teoria da Gestalt pressupõe a existência de formas físicas puras,
autônomas, objetivas e isentas de qualquer subjetividade.
174
KOFFKA. Princípios da Psicologia da Gestalt, p.70.
171
4.2 As formas e o comportamento.
As relações eficazes em cada nível, na hierarquia das espécies,
definem um a priori desta espécie, uma maneira que lhe é
própria de elaborar estímulos, e assim o organismo tem uma
realidade distinta, não substancial mas estrutural.
MERLEAU-PONTY
A principal coisa a ser lembrada, até o momento, é que a condição mais
importante para apreenderemos a fisiologia viva do sistema nervoso é nunca
deixar de partir “dos dados fenomenais”. A defesa de uma volta à experiência
primeira está dada nos teóricos da Gestalt, como vimos a pouco, em Husserl e,
desde A Estrutura do Comportamento, em Merleau-Ponty. Nesse sentido é
coerente, ainda na parte crítica que as duas primeiras obras de Merleau-Ponty
admitem, realizar o trabalho filosófico integralmente: recuperar o mundo da
percepção em toda sua dimensão e estabelecer a natureza do conhecimento que
se encerra nesse espaço-situação primitivo. Se, como já vimos, as teses de
Pavlov e Watson não são sustentáveis quando confrontadas com a fisiologia e
com uma descrição do comportamento são, menos ainda, quando analisadas à luz
da teoria da percepção. E o que dizer da própria psicologia da Gestalt diante da
fenomenologia da percepção que ela própria ajudou a estabelecer? Se a fisiologia,
juntamente com a Gestalttheorie, nos livrou dos preconceitos da teoria clássica do
reflexo, das considerações reflexógenas de Pavlov e do radicalismo objetivista do
primeiro behaviorismo é, também, muito importante não aquiescer as suas teses
sem o devido cuidado. Há limites metodológicos no uso da fisiologia, da Física
para compreensão do comportamento e Merleau-Ponty quer evitar o erro da teoria
da Gestalt e das demais Psicologias experimentais. Uma espécie de fisiologismo,
172
de naturalismo ontológico que estamos sujeito quando, na tentativa de fazer
ciência do comportamento, nos guiamos por meio de um de objetivismo
metodológico fisicalista. É preciso, sobretudo, não cometer o erro mais evidente
da Gestalt: a coisificação, a naturalização da forma.
Portanto, para fugir aos desvios da Gestalttheorie é fundamental aceitar
que o percebido somente é explicável pelo percebido e não por uma instância
exterior. É justamente isso, esse contexto, que torna possível pensar a forma
aplicada a todos os tipos de comportamento.Vejamos o caso do comportamento
reflexo. Com a adoção da idéia de forma é possível confirmar que esse tipo de
comportamento existe, mas, ao contrário do que a Fisiologia clássica tentava
estabelecer, ele apenas representa um tipo específico de comportamento,
observável em condições também particulares. Nesse sentido, a noção de forma
possibilita explicar todo o funcionamento do sistema nervoso. Nos termos de
Merleau-Ponty, a forma explica a ambigüidade e a indeterminação do lugar na
substância nervosa, desde as localizações horizontais da periferia até as
localizações verticais no centro.
Em vez de proceder por cortes – sensação e percepção, sensibilidade e
inteligência –, a aceitação das formas nos leva a pensar o comportamento a partir
de tipos ou níveis de organização. Merleau-Ponty destaca três níveis de
comportamentos representados, respectivamente, pelas formas sincréticas, pelas
formas amovíveis e pelas formas simbólicas. Essas três categorias não se referem
a três grupos de animais. Os organismos, em geral, apenas se encaixam nessa
escala em função do tipo de comportamento que reproduzem, mas não se
resumem a elas. Assim como o espaço e o tempo se encontram nos três níveis
173
sem, contudo, ter o mesmo sentido, pois são vivenciados de modo distinto.
Somente, conforme Merleau-Ponty, “para se tornarem os meios indefinidos que a
experiência humana neles encontra, o espaço e o tempo exigem a atividade
simbólica”.
175
A primeira, a forma sincrética típica dos animais invertebrados é, nas
palavras de Merleau-Ponty a menos evoluída, a mais primitiva. Essa forma limita o
comportamento do organismo a situações singulares, aquelas sempre típicas do
extrato natural. Nesse nível o animal é incapaz de transcender de uma situação
naturalmente dada. Há, nesse caso, conforme os exemplos citados por Merleau-
Ponty sobre as rãs e as formigas, uma conduta fundamentalmente instintiva.O seu
comportamento consiste basicamente em uma atividade de adaptação, de
conformação das atividades vitais com o meio. O animal somente reage diante de
uma situação nova ou artificial quando consegue estabelecer algum elemento que,
de algum modo, sugere alguma semelhança entre essa ocasião nova e uma
circunstância dada no ambiente natural.
Assim não é jamais face ao estímulo da experiência que o sapo reage,
o estímulo é reflexógeno tão somente na medida em que se
assemelha a um dos objetos de uma vida natural de contornos
definidos, e as reações que provoca são determinadas não pelas
particularidades físicas da situação presente, mas pelas leis biológicas
do comportamento. Se desejamos dar às palavras um sentido preciso,
é necessário chamarmos de instintivo um comportamento desse
gênero, que responde literalmente a um complexo de estímulos muito
mais que a certas características essências da situação.
176
Os exemplos com sapos e estrela do mar, apresentados por Merleau-
Ponty, aludem sobre uma possibilidade muito limitada de aprendizagem e
175
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.135.
176
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.115.
174
aquisição de reflexos condicionados. Na verdade, e o texto de Merleau-Ponty
aponta para isso, é muito difícil conceber que há realmente aprendizagem nesse
nível de comportamento. Alheios aos dispositivos experimentais que se
apresentam estranhos às condições naturais, o que concebemos como um caso
bem específico de aprendizagem somente ocorre como uma resposta global às
situações semelhantes àquelas dadas como vitais. A reação sempre se esboça
conforme a acomodação natural. Os reflexos condicionados, por seu lado,
também só se tornam possíveis quando a situação experimental reproduz
situações instintivas e naturais. Pois o comportamento do animal nesse estágio
não se dissocia do arranjo de suas estruturas primárias sendo, desse modo,
impossível a ele reagir de maneira inusitada diante de uma situação nova.
Mergulhado na sua própria existência natural o organismo é incapaz de superá-la
e, por conseqüência, também é incapaz de perceber o que está além do vital
orgânico.
Em relação às formas amovíveis, Merleau-Ponty entende que o
comportamento pressupõe um certo grau de independência dos elementos
materiais que o envolvem. Quando comparado à conduta das formas sincréticas o
animal, no caso das formas amovíveis, consegue pressupor relações, fazer
analogias e ir além do quadro natural. Ocorre com as formas amovíveis o que
Merleau-Ponty denomina de “conduta do sinal”. Os vários relatos feitos em A
Estrutura do Comportamento sobre experimentos realizados com galinhas e
ratos, por exemplo, mostram que a aprendizagem, nesse caso, é um pouco mais
sofisticada e muito mais complexa do que comumente pensamos. Ao contrário do
175
que sugerem as interpretações do “behaviorismo estrito”
177
a aprendizagem não
se resume na passagem de um estímulo incondicionado a um condicionado. Ainda
que obedeça a uma lógica de eventos linearmente dispostos em contigüidade,
tanto temporal como espacial o que se aprende não é reagir isoladamente a um
estímulo, mas, sobretudo, adaptar-se a uma situação, a uma conjuntura. Não se
trata, por exemplo, de negar o poder reflexógeno de uma determinada excitação.
Ele existe, mas é preciso também admitir que ele tem com o organismo uma
relação estrutural. O estímulo não afeta apenas um ponto, não se refere apenas a
uma atividade específica. Se prestarmos atenção, como nos diz Merleau-Ponty
logo abaixo, até mesmo o behaviorismo parece sugerir a pertinência da idéia de
configuração nos reflexos condicionados. Curiosamente, e o texto é claro nesse
sentido, nos deparamos diante do comportamento das formas amovíveis com uma
situação na qual são a leis do reflexo condicionado - cerne do behaviorismo – que
funcionam contra o atomismo comportamentalista.
É uma lei geral do reflexo condicionado que a reação adquirida tende a
ser antecipada pelos estímulos que precedem o próprio estímulo
condicionado. Animais treinados a entrar em uma caixa de alimentos
onde deverão virar á direita, tomam e seguem o lado direito da
passagem desde a sua entrada no labirinto
178
.
O que se dá como as formas amovíveis é a realização de uma estrutura
de conjunto. Nos termos de Merleau-Ponty, o que se opera na conduta do sinal é
uma configuração (Sing-Gestalt) que confere um significado global a ligação entre
os estímulos as respostas. Merleau-Ponty, amparado nas conclusões da Teoria da
177
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.116.
178
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.116.
176
Gestalt, opõe à noção atomista do behaviorismo de uma contigüidade de fato
entre estímulos condicionados e incondicionados essa idéia de configuração.
Mostra, além disso, retomando os argumentos da crítica à teoria das localizações
que talvez não seja adequado localizar o estímulo nas coisas ou no escopo do
mundo dos fatos objetivos. É preciso sempre lembrar, como nos indica a idéia
Sing-Gestalt, que os atributos locais não são independentes das propriedades do
conjunto. “A atividade do organismo seria ao pé da letra, comparada a uma
melodia cinética, pois toda mudança no fim da melodia modifica qualitativamente o
início e a fisionomia do conjunto”.
179
Contra a interpretação estática realizada pela Psicologia experimental
sobre o comportamento, Merleau-Ponty faz intervir uma interpretação muito mais
dinâmica com a conduta dos sinais. Mostra que apesar dessa conduta diferir de
uma conduta mais rica, como aquela operada pelas formas simbólicas, ela não
deixa de ser complexa e muito significativa quando vemos superá-la o esquema
rígido da relação estímulo-resposta construído pelo behaviorismo. Se, no caso de
uma conduta mais rica é possível observar que a relação entre estímulos
condicionados e incondicionados ocorre, sobretudo, em função de caracteres
objetivos ou lógicos, na conduta dos sinais os estímulos condicionados também se
diferenciam em razão de caracteres que estão além do objetivo imediato que se
apresenta.
Entre essas estruturas que operam e enriquecem o comportamento das
formas amovíveis estão as estruturas espaciais e temporais. Merleau-Ponty não
179
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.117.
177
deixa de reconhecer, amparado em diversos experimentos com cães, ratos e
chimpanzés, que um determinado estímulo se torna reflexógeno, em muitos
casos, mais em razão de suas relações de contigüidade temporais e espaciais do
que em função das estimulações que se exercem sobre o animal. Isto é, nesses
casos, as estruturas temporais e espaciais suplantam as estimulações dadas pelo
objetivo do experimento. Como se ocorresse uma espécie de desvio na conduta.
De imediato ela deixa de se dirigir para e pelo objetivo e passa operar envolvida
pelas estruturas, no caso espaciais e temporais. Mas, de modo geral, qual é o
significado disso? Brevemente, a concepção de que a aprendizagem não se
constrói pelo exame isolado dos elementos, mas se dá através da relação dos
elementos no conjunto.
180
No entanto, essas reações se apresentam distintas conforme a
estrutura que as envolve. Na medida que não tem o mesmo sentido vivenciado
pelos homens, espaço e tempo operam, como já dissemos, de modo diverso na
conduta dos animais. “Os termos espaço e tempo não devem ser aqui tomados
em seu sentido humano, segundo o qual as relações de tempo podem ser
simbolizadas pelas relações do espaço”.
181
O animal, de certo modo, quando
envolvido por estruturas do tipo espacial tende a apresentar um comportamento
distinto daquele quando se encontra diante da predominância de uma estrutura
temporal. No entanto, é a presença mais efetiva de uma ou de outra estrutura que
parece ser marcante no modo como o tempo e o espaço se fazem presentes,
180
Sobre a experimentação com manipulação de tubos por parte de chimpanzés realizada por
Koehler, Merleau-Ponty conclui: “Assim a reação de reunião não é de modo algum ligada às
propriedades absolutas de cada um dos tubos, ela é regulada a cada momento pela reação de
seus diâmetros.” MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.123.
181
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.121.
178
tanto para o animal como para o homem. Conforme Merleau-Ponty, o
comportamento dos animais adere muito mais às estruturas espaciais do que as
estruturas temporais. As primeiras, como sugerem as pesquisas com ratos
182
, são
mais evidentes, precisas e determinantes. “Aquilo que é realizável na unidade de
uma ação contínua através do espaço não mais o é, em se tratando de vários
ciclos de movimentos ligados ao tempo. O corpo vivo não organiza
indiferentemente o tempo e o espaço, não dispõe de um como de outro”.
183
O que
Merleau-Ponty afirma, especificamente, é que o tempo não parece para os
animais ter um sentido, uma presença tão intensa e significativa como o espaço.
Por isso mesmo, sobressai a noção de que são as estruturas espaciais que mais
intervêm no comportamento. Corroboram, nessa perspectiva, com um nível de
comportamento envolvido por relações mais articuladas com sentido interior. São,
ainda, capazes de construir relações de referência tanto para a significação de
situações individuais como de abstratas. A estrutura espacial pressupõe relações
que parecem sofisticar o comportamento, na medida em que o apresentam
envolvido por elementos muito mais extensos do que aqueles dados no
esquematismo rígido dos estímulos condicionados.
Merleau-Ponty, ainda, se serve das experiências de Köhler com
chimpanzés para discutir, primeiro, a possibilidade e, então, apontar as
182
“Dispondo de um labirinto onde as divisões móveis permitem variar o caminho que o animal
deve percorrer para chegar a saída e que o circuito aberto comporta ora duas curvas para a
esquerda, ora duas curvas para a direita, pode-se treinar o animal, em duas séries de
experiências, a percorrer sem falso movimento cada um destes dois caminhos. Mas não se
consegue obter alternância desses dois comportamentos que representamos pelos símbolos gg dd
gg dd . Se agora se coloca o animal num labirinto mais longo, que exige esta mesma alternância a
partir da entrada até a saída, o treinamento é alcançada. Como se tomou cuidado em eliminar
qualquer outro fator, a diferença dos comportamentos não se deve senão à diferença das
estruturas que, no primeiro caso, se ordenam em relação ao tempo, no segundo caso em relação
ao espaço.” MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.121.
183
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.122.
179
dificuldades da conduta preconizada pelas formas amovíveis em produzir
respostas novas quando confrontados por estruturas mecânicas e estáticas. Antes
de tudo é imperativo ter em conta, fiel à mesma perspectiva de análise das
estruturas de ordem temporal e espacial, que o quadro do comportamento dos
animais não comporta essas estruturas mecânicas e estáticas como o nosso.
Muito pelo contrário, elas não são dadas no campo natural e, quando aparecem,
são freqüentemente suplantadas por esquemas biologicamente mais sólidos. Ai
está a primeira dificuldade. Pois as estruturas mecânicas e estáticas não
aparecem de imediato, não estão presentes nos estímulos, não são visíveis no
estrato natural das formas amovíveis. Nas palavras de Merleau-Ponty é preciso
inatividade, tempo de espera e, sobretudo, é importante que outras estruturas
naturais sejam superadas para que ocorra um arranjo inédito e positivo da
situação.
É um erro constante das psicologias empiristas e das psicologias
intelectualistas raciocinar como se o galho de árvore, enquanto realidade
física tendo em si mesmo as propriedades de comprimento, de largura e
de rigidez que o tornarão utilizável como bastão, o galho de árvore como
estímulo as possuísse também, e tão bem que a intervenção nelas no
comportamento seria natural. Não se vê que o campo da atividade
animal não é feito de conexões físico-geométricas como o nosso
mundo.
184
Nessa perspectiva, estruturas do tipo mecânicas e estáticas somente
podem se tornar reflexógenas quando sofrem a interferência de estruturas mais
fortes. Como, por exemplo, a posição do objeto diante do objetivo, a relação entre
a distância do objeto e o objetivo e, ainda, a possibilidade da realização próxima
ou distante do objetivo. Desse modo, são relações como essas que importam na
184
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.124.
180
construção do valor de uso dos objetos quando sobrepostos ao arranjo natural:
estímulo mais objetivo. Essas relações demonstram, sobretudo, que o animal não
pode tomar em relação aos objetos uma atitude escolhida à vontade. Se as
respostas ou, enfim, a aprendizagem não ocorre à sua revelia também pouco
depende da sua intenção. Quase não há espaço para a subjetividade, na medida
em que é, nomeadamente, o objeto enquanto subentendido por um valor objetivo
que se impõe ao sujeito. O exemplo do chimpanzé, que ao invés de trazer a fruta
vai até a mesma quando está se encontra dentro de uma caixa, é muito ilustrativo.
Esse caso nos revela que as relações espaciais, as mecânicas e as estáticas nos
animais se dão quase que exclusivamente numa única direção: um movimento do
organismo em direção ao objetivo. O organismo, no caso do animal, é sempre o
móvel e o objetivo é, por sua vez, ponto fixo que orienta o movimento do animal.
Há, então, conforme as descrições sobre o comportamento dos
chimpanzés, feita por Köhler, uma supressão dos limites instintivos em favor de
uma estrutura. No entanto, nesse nível de conduta é importante reconhecer a
inaptidão do organismo em superar a armação primária que atribui as reações
afirmativas – felizes - caráter reflexógeno positivo. É importante, como o exemplo
abaixo descreve, admitir que diante de uma situação inédita o animal tem apenas
possibilidades limitadas de responder com atitudes adaptadas.
Um dia um chimpanzé não foi alimentado pela manhã, mas a sua
comida foi colocada no teto de sua habitação. Pusemos uma caixa no
chão, a alguns metros do local adequado, mas o animal não a usou.
Na verdade ele nunca havia usado anteriormente uma caixa como
instrumento auxiliar. Tentou, em vão, alcançar a comida dependurada
no teto, pulando para alcançá-la, subindo pelas paredes e correndo ao
longo do telhado. Em dado momento, ficou tão fatigado que foi várias
181
vezes até a caixa para se sentar e descansar um pouco, enquanto
olhava tristemente para a comida dependurada no teto.
185
A descrição acima revela um comportamento incapaz de suplantar, pelo
menos inicialmente e por si mesmo, o caráter restrito e imediato do objeto. A
caixa, antes de Köhler demonstrar que ela poderia funcionar como um móvel e
como um degrau até comida, não passa de uma “pedra fixa” restringida a servir,
como na natureza, de assento para o animal. O principal motivo, como já
dissemos a pouco, dessa limitação está no modo como o animal se relaciona e
percebe o seu corpo e o mundo. Primeiro, conforme Merleau-Ponty, o animal é
incapaz de ver a si mesmo como um objeto num sentido semelhante ao que atribui
as coisas. Depois, o que mais falta ao animal, é o que mais caracteriza o
comportamento simbólico: capacidade de encontrar no objeto exterior, sob a
diversidade dos seus aspectos um uso, um valor, um sentido semelhante aquele
dado pelo próprio corpo, isto é, alongar a representação do corpo às coisas.
Assim, também, parece indicar o exemplo sobre o uso próprio e restrito do
equilíbrio realizado pelo chimpanzé. O exemplo, reproduzido por Merleau-Ponty,
nos mostra que se o animal é capaz de equilibrar-se sobre caixotes empilhados de
maneira instável não o é, por outro lado, capaz de transferir essa vivência do
equilíbrio para os caixotes
186
. Nas formas amovíveis aquilo que se passa com o
corpo se encerra no próprio corpo. Todos esses objetos comportam um valor
intrínseco que, por sua vez está dado, na composição do campo fenomenal
próprio. A deficiência do animal, como indica Merleau-Ponty, é a falta de um
185
KÖHLER, Psicologia da Gestalt, p. 53.
186
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.126.
182
comportamento simbólico capaz de conceber as coisas – a caixa, o bastão etc –
fora de uma relação funcional. No caso do exemplo do chimpanzé é evidente a
falta de uma aptidão para encontrar nos objetos exteriores, sob a diversidade dos
seus aspectos, uma multiplicidade de valores não resumidos a uma situação
estática. Falta ver as coisas sob a perspectiva do valor, falta tomar os objetos sob
a perspectiva da definição temporária e momentânea. Como, de modo análogo,
falta no comportamento das formas amovíveis superar uma visão subjetivista e
transcendente do corpo e, nesse caso, aceitar o próprio corpo como mais um
objeto entre objetos. Portanto, perceber no corpo próprio uma existência objetiva e
independente e, ainda, tratar o seu corpo como um objeto entre objetos é ser
capaz de atribuir aos objetos um domínio semelhante aquele vivenciado no uso do
próprio corpo: um valor e uma significação aberta.
No caso da formas amovíveis, trata-se, em última análise, de um
comportamento que é incapaz de pressupor uma situação fictícia, de ir além de
uma adaptação ao imediato, de superar os valores funcionais em direção às
coisas e, enfim, reconhecer um mesmo objeto em diferentes pontos de vista. É o
que Merleau-Ponty traduz por princípio de insuficiência. Sem transcender a
contigüidade espacial, o organismo também não usa símbolos, pois apesar de
poder perceber sinais é incapaz de perceber símbolos. Quando se trato do
comportamento dos animais os signos nunca deixam de ser sinais na medida em
que, nos termos de Merleau-Ponty, são espécies de “presságios” que indicam que
alguma coisa irá acontecer. Mas enquanto permanecem sinais não alcançam o
significado dos estímulos, das reações. Isso seria próprio da conduta das formas
simbólicas, a terceira e a última entre as formas.
183
Com as formas simbólicas se introduz no comportamento duas novas
categorias que suplantam os limites dados, por exemplo, pelo princípio de
insuficiência das formas amovíveis ou, ainda, pela armação vital das formas
sincréticas: cognição e liberdade.
A cognição se apresenta, de modo claro, quando consideramos que
comportamento simbólico é pura expressão. Por meio do comportamento das
formas simbólicas, por exemplo, o animal encontra no mundo exterior, nos objetos
uma variedade de aspectos que são impossíveis às outras duas ordens de
comportamento. Estamos, agora, diante de um comportamento que manifesta a
possibilidade de construir sobre um mesmo tema expressões as mais variadas
possíveis. A função vetor do objeto e a sua rigidez funcional, o caráter necessário
do estímulo e reflexógeno da reação dão lugar a uma variedade de perspectivas
significativas. Através do signo, nesse nível de comportamento convertido em
símbolo, nos defrontamos com uma conduta inédita que se orienta em direção às
coisas conferindo-lhes um significado sem, necessariamente, objetivar dar conta
dos a priori sensórios-motores ou instintivos. “É preciso admitir, acima da formas
amovíveis que dispõe o chimpanzé, um nível de conduta original onde as
estruturas sejam mais disponíveis ainda, transportáveis de um sentido a outro. É o
comportamento simbólico onde se torna possível a estrutura coisa”.
187
Portanto, com o exame das formas simbólicas estamos tratando,
sobretudo, de um tipo de comportamento totalmente capaz de uma conduta
original, de ir muito além das condições materiais dadas. Por isso, somente nesse
caso, é possível a ocorrência de uma conduta livre sempre passível de ir além do
187
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.130.
184
tempo presente, de superar a realidade dada pelos arranjos material, orgânico ou,
mesmo, o vital. Nesse caso, as coisas não se limitam a valores funcionais, é
sempre possível através de uma conduta livre significar as coisas sem confundir-
se com elas.
Com as formas simbólicas, aparece uma conduta que exprime o
estímulo por si mesmo, que se abre a verdade e ao valor próprio das
coisas, que tende a adequação do significante ao significado, da
intenção e daquilo que ela visa. Aqui o comportamento não tem mais
um significado, é, ele próprio, significação.
188
Com a análise das formas simbólicas, Merleau-Ponty expõe o seu
argumento mais radical contra a teoria dos reflexos condicionados, ao apontar o
seu verdadeiro lugar no conjunto do comportamento: “ou é um fenômeno
patológico ou um comportamento superior”.
189
No mais, é preciso reconhecê-lo
como um fenômeno de desintegração. Os motivos para tanto parecem evidentes.
As experiências de Pavlov com cães, como lembra Merleau-Ponty, já
apresentavam animais que quando submetidos a experimentos de
condicionamento manifestavam “verdadeiras neuroses experimentais”. Sendo
difícil ao animal executar de modo constante a prática sugerida pelos reflexos
condicionados, o comportamento se apresenta, de modo evidente, como um
desvio de conduta: uma dissociação patológica. Ainda, conforme as indicações de
Piéron anotadas por Merleau-Ponty, encontrado com mais freqüências nas
crianças do que nos adultos, nos retardos do que nos normais o grau do sucesso
dos reflexos condicionados é proporcional ao desenvolvimento intelectual.
188
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.133.
189
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.133.
185
Assim, nos dois casos, seja como disfunção patológica ou como
comportamento superior, os reflexos condicionados não dão conta do
comportamento já que, por sua vez, estão, envolvidos, sujeitos às estruturas que o
tornam possíveis. A explicação, na perspectiva de Merleau-Ponty ganhou uma
direção contrária: é o comportamento que explica os reflexos condicionados e não
o contrário.
A partir da análise das diferentes formas de comportamento Merleau-
Ponty busca evitar a armadilha ontológica na qual se encontram envolvidas as
teorias clássicas que descrevem o comportamento. Para tanto, é necessário
reconhecer que toda descrição deve, primeiramente, se dirigir à experiência
concreta do comportamento sem os limites de uma análise exclusivamente
fisiológica e, ainda, sem desvios metafísicos que o reduzem a uma mera
representação da consciência. A noção de forma não opõe mais as categorias
sujeito e objeto. Ela organiza, contra o dualismo clássico, uma amarração da alma
e do corpo sob a perspectiva de que sujeito e objeto são enraizados um no outro.
Abre, assim, a possibilidade de uma nova perspectiva de análise do
comportamento. Não se trata mais de significar o comportamento, mas de
compreendê-lo. A forma seja sincrética, amovível ou simbólica permanece uma
mistura. Não é corpo, como também não é exclusivamente consciência. Pois,
como já foi manifestado anteriormente, se o comportamento não é uma coisa
como concebem os tributários da reflexiologia de Pavlov ele também não é
apenas idéia mas, é, sobretudo, feito de relações como precisamente a idéia de
forma vem nos esclarecer: “(...) o comportamento não é uma coisa mas também
não é uma idéia, não é um invólucro de uma pura consciência e, como
186
testemunha de um comportamento, não sou uma pura consciência. É justamente
isso que queríamos dizer, dizendo que ele é uma forma”.
190
A idéia de estrutura adotada por Merleau-Ponty nos conduz a
abandonar a tradicional antítese entre um comportamento de ordem inferior –
simples - em oposição a um outro de ordem superior - complexo. Não se trata,
nesse caso, de excluir por completo o juízo que sugere uma espécie de
verticalidade entre as diferentes formas do comportamento. Merleau-Ponty não
abandona esse conceito de verticalidade, mas, por outro lado, rejeita a antítese
clássica que opõe um comportamento simples a outro complexo superior como se
fossem fenômenos completamente distintos, isto é de naturezas distintas. Pois se,
por um lado, tradicionalmente entendíamos o comportamento como um
acontecimento físico, mecânico dependente de acontecimentos que se sucedem
no espaço e no tempo, ou, ao contrário disso, como algo não dependente de
causas mecânicas, mas como um acontecimento interior próprio da atividade do
pensamento a idéia de estrutura parece mostrar como são inconsistentes essas
considerações.
Em oposição a essas inclinações teóricas clássicas – o behaviorismo, o
solipsismo - o conceito de estrutura parece, na interpretação de Merleau-Ponty,
passível de ser aplicado na compreensão do comportamento de um determinado
organismo, desde as esferas mais individuais até as relações mais gerais que
podem envolvê-lo com o meio ambiente.
Distinguem-se tradicionalmente reações inferiores ou mecânicas,
função, como um acontecimento físico, de condições antecedentes e
190
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.138.
187
que se desenrolam pois no espaço e no tempo objetivos – e reações
“superiores”, que não dependem de estímulos materialmente
considerados, mas, antes, do sentido da situação, que parecem pois
supor uma visão da situação, uma prospecção, e não pertencem mais
a ordem do em si, mas à ordem do para si. Uma e outra dessas duas
ordens é transparente para inteligência, a primeira para o pensamento
físico e como ordem do exterior, onde os acontecimentos comandam
um ao outro de fora; a segunda para a reflexão e como a ordem do
interior, onde o que se produz depende sempre de uma intenção. O
comportamento, enquanto tem uma estrutura, não se dá em nenhuma
dessas ordens.
191
O estudo das formas, conforme a Gestalttheorie, nos revela que o
comportamento pode ser dividido em três campos: o campo físico (matéria); o
campo vital (vida); o campo humano (espírito). Entre esses os campos há distintos
graus de integração da forma na medida em que eles representam aspectos
diferentes de uma mesma estrutura. Por isso mesmo, Merleau-Ponty entende que
na compreensão do comportamento acerca de diversos tipos de organismos pode-
se falar de uma diferença estrutural, mas não de uma distinção substancial. Pois
nem psicologicamente, nem fisiologicamente um determinado comportamento
preexiste à estrutura, pois não é nem mais imediato e nem mais antigo do que o
conjunto. No caso das relações entre a matéria, a vida e o espírito há uma grande
interdependência, cada campo pressupõe o outro. Mas, por outro lado, não
podemos afirmar que se estabelece entre eles uma relação causal semelhante
àquelas descritas pela mecânica clássica acerca dos corpos celestes. Isso fica
ainda mais evidente quando pensamos na aplicação das categorias quantidade,
ordem e significado que caracterizam as relações entre esses três campos. Ao
contrário, da posição materialista que reduziu o campo da vida e da consciência
ao físico ou, ainda, longe do o dualismo psíco-físico cartesiano que reduziu os três
191
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement p. 135-136.
188
campos a apenas dois igualando o campo da vida ao da matéria, Merleau-Ponty
entende que as categorias de quantidade, de ordem e de significado não são
exclusivas de cada campo, mas enquanto categorias apenas representam um
aspecto dominante de cada campo, isto é, são categorias que não se sobrepõem
à estrutura. Por isso mesmo, Merleau-Ponty manifesta a idéia de que não seria
nenhum equívoco epistemológico atribuir, por exemplo, um valor objetivo à
categoria quantidade na consideração dos fenômenos da vida.
É aqui que a noção de forma permitiria uma solução verdadeiramente
nova. Aplicável igualmente aos três campos que acabam de ser
definidos, ela os integraria como três tipos de estruturas,
ultrapassando as antinomias do materialismo e do espiritualismo, do
materialismo e do vitalismo. A quantidade, a ordem, o valor ou a
significação, que passam respectivamente por propriedades da
matéria, da vida e do espírito, não seriam mais que o caráter
dominante na ordem considerada e se tornariam categorias
universalmente aplicáveis.
192
Na idéia de forma, adotada por Merleau-Ponty, os princípios de
totalidade, de auto-regulação e transformação, elencados por Piaget, se mostram
presentes quando pensados nas relações estruturais que se interpõem à matéria,
à vida e ao espírito. Cada situação, cada momento é determinado pelo conjunto
dos outros – totalidade - e o seu valor depende de um estado de equilíbrio que é
de caráter intrínseco da relação – auto-regulação. As formas, também, operam de
modo dinâmico – transformação – e todas ordens ou graus de comportamento
estão em conexão com as formas.
Mas a descrição de Merleau-Ponty é mais rica. A perspectiva merleau-
pontyana para a noção de estrutura não se esgota na observação dessas três
192
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 141.
189
categorias. O elogio de Merleau-Ponty a Marcel Mauss está centrado, como
comentamos anteriormente, na indicação da possibilidade de um discurso que
contempla o universal sem, contudo, anular o particular. Não se trata nas
descrições de Mauss, conforme Merleau-Ponty, de supor que uma nova sociologia
foi fundada, mas, principalmente, do reconhecimento de um solo original que
sempre esteve presente. Portanto, mais do que uma sociologia inédita é um novo
olhar sociológico que se manifesta. Nas palavras de Merleau-Ponty, é o caso de
reconhecer que “a verdade da sociologia generalizada nada suprimiria a verdade
da microssociologia”.
193
Devemos admitir com Durkheim que é necessário ao
antropólogo, ao etnólogo, ao sociólogo um olhar objetivo e exterior, capaz de
tomar a devida distância para não se misturar com as coisas. No entanto, na
antropologia, na sociologia e na etnologia, nos ensinaram Mauss e Lévi-Strauss é,
também, admissível fazer ciência estando em contato com as coisas mesmas.
Na análise do trabalho realizado pela antropologia estrutural de Lévi-
Strauss é possível conceber um cientista transitando entre o racionalismo e o
empirismo, entre a consciência instituidora e a experiência. O que aparece é um
mundo que não se reduz apenas a um sentido: nem imanência, nem
transcendência. Há, conforme as palavras de Merleau-Ponty, o sentido da própria
estrutura do mundo como há, também, o sentido dado pelo olhar que se debruça
sobre o mundo.
As surpreendentes operações lógicas atestadas pela estrutura formal
das sociedades têm realmente que ser de algum modo realizadas
pelas populações que vivem tais sistemas de parentesco. Logo, deve
existir uma espécie de equivalente vivido deles que o antropólogo
193
MERLEAU-PONTY, Signos, p. 128.
190
deve pesquisar, desta a custa de um trabalho que já não é somente
mental, à custa de seu conforto e até da sua segurança. Essa junção
da análise objetiva à vivência talvez seja a tarefa mais peculiar da
antropologia, aquela que a distingue das outras ciências sociais, como
a ciência econômica e a demografia.
194
A noção de estrutura em Merleau-Ponty, certamente, admite esse
enraizamento dinâmico que ele supõe nos trabalhos de Lévi-Strauss e de Marcel
Maus. De imediato o conceito de estrutura aplicado ao comportamento permite a
Merleau-Ponty, em oposição ao associacionismo mecanicista e ao intelectualismo,
compreendê-lo como um todo formado de elementos solidários, isto é, concebê-lo
como uma forma. Nesse sentido, o comportamento não é mais conseqüência de
uma miscelânea de estímulos ou, mesmo, resultado de um ego autônomo, mas,
fundamentalmente, algo que é organizado e estruturado desde o seu primeiro
momento. Se o comportamento não se prende nem a uma ordem superior e nem
a uma ordem inferior, conforme as palavras de Merleau-Ponty, é que ele não deve
mais ser considerado como uma soma de elementos que, primeiramente, deve ser
isolado, analisado, mas deve, sobretudo, ser interpretado como um conjunto de
fenômenos que, ao se constituírem como unidades autônomas, manifestam uma
solidariedade interna.
A noção estrutura foi o que permitiu a Merleau-Ponty descrever uma
unidade significativa no comportamento, tanto das formas amovíveis, como das
sincréticas e das simbólicas. Com a intervenção da noção de estrutura a
existência e o comportamento não se resumem mais aos caracteres
representativos - abstracionistas, mecânicos e atomistas - do pensamento
clássico. Podemos, ainda dizer, amparados na leitura de Chauí, que o que torna
194
MERLEAU-PONTY, Signos, p. 129.
191
possível a abertura da experiência direta, entre as diferentes ordens – material,
vital e espiritual - nas quais à existência está assentado, é o reconhecimento do
enraizamento estrutural que permeia toda as funções dos organismos e que, por
isso mesmo, confere uma unidade significativa a cada uma das formas de
comportamento sem, contudo, torná-las incomunicáveis entre si:
A estrutura é sentido encarnado: não é Natureza em-si, nem sistema
de posições da consciência, mas produção de uma inteligibilidade
espessa que se realiza no meio das coisas e dos homens,
anteriormente à reflexão. Ou melhor, é uma reflexão operante, na qual
as distinções entre o objetivo e o subjetivo não são aquelas do em-si e
do para-si, e sim manifestações particulares da unidade peculiar de
uma forma e de uma significação, unidade que define a diferença e a
passagem da ordem física para a vital, e desta para a cultural.
195
Desde A Estrutura do Comportamento a passagem de uma ordem
para outra, de um comportamento para outro - como o texto acima de Chauí muito
claramente se refere - já está muito bem situado como o contato intencional que
não permite fissuras absolutas entre o eu e o outro e as coisas ou, mesmo,
apreensões definitivas. Mostra que a experiência perceptiva engendra diferentes
relações estruturais com o eu, com mundo e com o outro. Dá adaptação pura e
simples, quando nos referimos às formas amovíveis, até as relações com
significações existenciais, como no caso das formas simbólicas. Portanto, essas
relações são, definitivamente, estruturas significativas que podemos, sem, dúvida,
traduzir por comportamento. Comportar-se, no sentido primeiro e anterior a toda
determinação reflexiva é, então, estabelecer relações estruturais que são,
evidentemente, mediadas pelo nosso corpo. Merleau-Ponty reconhece no nosso
195
CHAUI. Experiência do Pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty, P.229.
192
corpo uma capacidade auto-reguladora que transcende a si próprio. Se o nosso
corpo é a raiz da nossa unidade existencial ele, também, está na origem e no
entorno das coisas que se mostram – que são vivenciadas - ao eu. Por isso
mesmo, é fundamental entender as diferentes relações estruturais do corpo, seja
do corpo encarnado no mundo com as coisas naturais, seja do corpo consigo
próprio ou, ainda, do nosso corpo com o outro.
193
V. O COMPORTAMENTO ESTRUTURAL: OPACIDADE E
TRANSPARÊNCIA
Se estamos em situação, estamos enredados, não podemos ser
transparentes para nós mesmos, e é preciso que nosso contato
com nós mesmos só se faça no equívoco.
MERLEAU-PONTY.
5.1 A consciência perceptiva e a estrutura corporal.
As concepções de experiência direta, de intencionalidade e de estrutura
corporal, descritas na experiência do comportamento simbólico, passaram
despercebidas pelo introspectivismo, pelas Psicologias associacionistas e, de
certo modo, não foram, pela própria teoria da Gestalt, levadas ao seu termo
absoluto, isto é não permaneceram categorias fundantes e descritivas do
comportamento autenticamente filosóficas
196
. Se com Brentano e Husserl,
inicialmente, a noção de intencionalidade descreve a disposição natural da
consciência para se dirigir às coisas e, depois, as categorias de experiência direta
e estrutura com Köhler e Koffka determinam o substrato e o arranjo essencial do
comportamento foi, fundamentalmente, com Merleau-Ponty que a noção de
intencionalidade ganhou a sua leitura mais radical através de um alargamento que
incorporou, ao mesmo tempo, a matéria, a vida e o espírito.
Apreendemos com Merleau-Ponty, que não é exclusividade do
pensamento ou, mesmo, do comportamento superior a posse de noções como
valor e intencionalidade. Essas noções, como originalmente estabeleceu A
196
Nesse caso, precisamos lembrar da crítica acerca do fisicalismo das formas e da retenção do
campo da experiência direta aos pressupostos da física. Movimentos sustentados, ainda que de
forma distinta, pelas obras de Köhler e Koffka.
194
Estrutura do Comportamento, também estão presentes, em graus distintos, nas
coisas, no corpo e, também, na descrição merleau-pontyana da consciência
perceptiva.
Portanto, as elaborações de uma teoria da consciência e da noção de
corpo fenomenal, em A Estrutura do Comportamento e na Fenomenologia da
Percepção, são inseparáveis das idéias de experiência direta, de intencionalidade
e de estrutura. O pensamento merleau-pontyano buscou, antes de tudo,
reconhecer na experiência direta o lugar original de uma consciência primeira que,
diferente do associacionismo, não se fundamenta na certeza da posse das coisas
que, de modo geral, são tomadas, desde de Locke, como o resultado de um
movimento que se estabelece na montagem de um contato objetivo entre as
representações constituídas na consciência e aquilo que se passa no mundo
natural. De modo análogo, diferente do introspectivismo, a consciência primitiva
também não se funda na crença de que as coisas são significativas somente na
medida em que estão dadas ao domínio da consciência. A teoria da consciência
merleau-pontyana pressupõe o fim da filiação irrestrita ao abstracionismo, seja ela,
como nos referíamos no início desse trabalho, de fundo empirista ou racionalista.
As coisas, se não são em sua integridade apreensíveis pela consciência, também,
na perspectiva merleau-pontyana, não se resumem à condição de operarem como
causas inapreensíveis de representações que somente são dadas à consciência:
a consciência não é inteiramente constituinte ou, mesmo, constituída.
Com Merleau-Ponty é o mundo natural que é recuperado e reconhecido
como aquele no qual, conjuntamente, consciência e corpo estão estruturalmente
ligados. Há, sobretudo, com Merleau-Ponty uma tentativa de reconhecer o caráter
195
e a natureza dialética da consciência e das suas relações na sua primeira
vivência, no seu primeiro estado, no seu primeiro lugar. Mas, enfim, o que seria
isso? O que significa a vivência original da consciência? Suponhamos o caso de
uma consciência voltada sobre si mesma. De imediato, podemos dizer que se
trata de um gesto intencional, carregado de ambigüidade. Nessa volta sobre si
mesmo, não há auto-percepção no sentido de um movimento capaz de ter a posse
representativa de si, como aquele preconizado pela consciência intelectualista. O
voltar-se para si mesmo não admite, antes de tudo, um abandono de si próprio,
algo como uma atitude de sobrevôo, pois sobre essa experiência estão
descartadas, ao mesmo tempo, a transcendência e a imanência absolutas.
Merleau-Ponty indica, muito claramente, que o sujeito que percebe não está
aberto sobre si mesmo como, por exemplo, estaria uma razão constituinte diante
de um mundo apático. O processo de percepção não exige um a priori, ou mesmo
uma consciência normatizadora da percepção. A percepção é integralmente uma
experiência de estrutura, é sempre um gesto intencional e, então, a volta sobre si
mesmo, é um fluxo contínuo de auto-percepção, primitivo e inacabado. O nosso
primeiro e mais insistente diálogo é com o nosso próprio corpo, é com a nossa
consciência. Podemos dizer sobre a consciência o que, em grande parte, na
Fenomenologia da Percepção é estabelecido sobre o corpo: a vida primitiva da
consciência é um objeto, mas um objeto diferente, pois nunca me abandona.
Na vivência de uma consciência primitiva temos, contrariamente à
interpretação realista, o conhecimento perspectivo que não é, em absoluto,
tratado como uma falta, um acidente ou, mesmo, uma imperfeição. O
perspectivismo não é, ainda, visto como um conhecimento menor que precisa ser
196
ultrapassado em direção a um conhecimento totalizante. O conhecimento fundado
na consciência perceptiva modifica a nossa leitura da existência, pois pressupõe a
confissão de uma vivência estrutural que atravessa as interpretações acabadas,
determinadas a erigir um discurso representativo sobre um caráter singular e
universal das coisas, do eu e do outro. É a perspectiva que torna possível que o
objeto seja sempre uma coisa interrogável, isto é, aberta e explorável. As coisas
reveladas no perspectivismo, como a própria percepção, nunca permanecem
definitivamente encerradas em uma representação totalizante. Do mesmo modo
que as coisas têm, entre os seus caracteres, propriedades retidas na forma de
uma unidade indivisível e transparente, também permanecem opacas e
inacabadas. Na experiência direta, antes de qualquer definição da consciência
reflexiva, os objetos são sempre seres ambíguos, pois se não se mostram
integralmente são, do mesmo modo, dados como unidades significativas, mesmo
que permaneçam em perspectiva: “A perspectiva não me aparece como uma
deformação subjetiva das coisas mas, ao contrário, como uma de suas
propriedades, talvez sua propriedade essencial.”
197
Nesse sentido, uma
perspectiva, um lado da mesa, a face de brinquedo retangular, uma situação
experimentada representam somente uma experiência possível num mundo
sempre aberto. A realidade das coisas transcende as próprias coisas como,
também, as coisas transcendem a experiência própria. A posse do dado integral,
da unidade indivisível e definitiva ou, mesmo, do conceito universal, como quer a
consciência reflexiva, só seria possível com o fim do tempo e a ausência de todas
as tensões perceptivas que estruturam a nossa existência no mundo. Na
197
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement. p.201.
197
interpretação de Merleau-Ponty estamos em situação, em contato com um mundo
mais dinâmico e opaco do que aquele representado pelas filosofias dogmáticas e
sustentado pela consciência realista: “O percebido é apreendido de uma maneira
individual como “em si”, isto é, como dotado de interior que eu não acabaria nunca
de explorar, e como “para mim”, isto é, como dado em pessoa através de seus
aspectos momentâneos.”
198
Os objetos dados na experiência direta são vividos como realidades e,
então, só depois se constituem como objetos puros, limpos e verdadeiros como a
ciência e consciência moderna assim os definiram. Portanto, é preciso voltar ao
pré-objetivo e procurar o sentido desses objetos dados antes de toda e qualquer
determinação objetiva, antes da operação abstracionista da consciência reflexiva.
Nesse aspecto, o caráter descritivo da percepção direta pressupõe uma
reformulação da noção de consciência, das suas operações e das suas formas de
representação: “A consciência é antes uma rede de intenções significativas, às
vezes claras para si mesmas, às vezes ao contrário, vividas antes que
conhecidas”.
199
Como já falamos do corpo e, ainda, do comportamento dialético
das formas simbólicas, é preciso ter claro que a consciência não é um receptáculo
que recebe do exterior estruturas já acabadas. Não se trata, nesse caso, adverte
Merleau-Ponty, de aceitar os pressupostos do inatismo cartesiano, ou mesmo do
kantismo sobre a consciência: “desde de que se tome por análise à consciência
elementar percebe-se que lhe é impossível aplicar-lhe a distinção célebre da
198
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement. p.201.
199
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement. p.187.
198
forma a priori e do conteúdo empírico.”
200
Para Merleau-Ponty a consciência
perceptiva - na busca pela auto-compreensão, como nos referíamos a pouco - no
contato consigo mesma e com o mundo, desdobra-se na experiência direta. No
campo fenomenal, como bem já estabelecemos no terceiro capítulo, temos a
experiência irrefletida de um mundo que não se distende em um conjunto de
propriedades abstratas e independentes que precisam ser ligadas. A experiência
vivenciada no campo fenomenal é estrutural, supõe um arranjo total onde nem o
sujeito e nem o objeto estão dispostos, como concebe a Física clássica, como se
fossem coisas depositadas no espaço homogêneo. O campo da experiência
direta, ambíguo, suporta tanto experiências opacas como transparentes, pois as
coisas certamente nos são dadas, ainda que permaneçam, como Husserl indica,
isoladas (abschattung), vistas somente a partir de determinado perfil ou
perspectiva.
Com Merleau-Ponty, apreendemos que a subjetividade está além do
que poderíamos chamar de um estado de consciência, ela também se refere a um
arranjo impessoal no qual todos os gestos e pensamentos já estão como que
previamente estruturados. Nesse sentido, na filosofia de Merleau-Ponty não há
lugar para o subjetivismo, para o relativismo e para o empirismo radical. A
subjetividade, desde sempre encarnada – estruturada -, vinculada a experiência
perceptiva é anterior ao projeto de uma consciência vazia capaz de, por si mesma,
alcançar os objetos puros, pois, como o texto a seguir indica, as formas intervêm
desde sempre na experiência perceptiva: “A forma é uma configuração visual e
200
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement. p.188.
199
sonora, ou mesmo anterior à distinção dos sentidos, onde o valor sensorial de
cada elemento é determinado por sua função no conjunto e varia com ela(...)”
201
A nossa experiência perceptiva não supõe uma dicotomia substancial
entre a consciência e o corpo, pois além de uma organização de natureza
estrutural, como o texto acima descreve, temos, fundamentalmente, uma ligação
estrutural entre a consciência, o corpo e as coisas mundanas. Na experiência
direta, nesse sentido, a consciência não é uma operação cognitiva desinteressada
ou, ainda, uma instância superior e constituinte das coisas. A consciência
perceptiva, diferente das abordagens clássicas, é integralmente atravessada por
uma intencionalidade engajada aos gestos expressivos do nosso corpo e às
significações que as coisas suscitam em nós. Precisamos aceitar a idéia de que
não há gesto sem intenção, não há palavra sem propósito, pois a nossa existência
está integralmente abarcada de intencionalidade. Desde a elaboração de A
Estrutura do Comportamento, somos alertados a evitar as antinomias
reducionistas do introspectivismo e do empirismo e, desse modo, recuperar a
expressividade valorativa que estruturalmente se impõe a nós. Nesse caso, é
necessário voltar à velha fórmula, a consciência perceptiva é intencional e, nesse
aspecto, comporta todos os caracteres que essa definição tão fundamental à
fenomenologia suporta. Assim, como a consciência perceptiva, o nosso
comportamento em todos os seus gestos é muito mais complexo do que sugerem
as análises limitadas ao exame das solicitações vitais, ou aquelas que recorrem à
hipótese de uma consciência interior incólume ao corpo e ao ambiente.
201
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.214.
200
O eu, a consciência, o corpo, o outro e as coisas comportam uma
relação mediada por significações puras e indeterminações livres, por planos
oblíquos e retos, por relações funcionais e valorativas. É o que Merleau-Ponty
quer dizer quando descreve que, na experiência direta, no exercício da
consciência primitiva, os objetos (uma escrivaninha, por exemplo) não aparecem
como causa da minha percepção. Ao contrário, a minha percepção é que parece
revelá-los, como se ela, nesse caso intencional, fosse o agente da aparição dos
objetos: “Que perceba a mim mesmo ou considere um outro sujeito percebendo,
parece-me que o olhar “se põe” sobre os objetos e os atinge à distância, como
bem exprime o uso latino da palavra “lumina”para olhar.”
202
Na experiência da consciência perceptiva e do corpo próprio, como
descrevem as duas primeiras obras de Merleau-Ponty, encontramos tanto um ser
que é assentado pela configuração das forças do mundo material como, também,
um ser que demarca o domínio da significatividade sensível através da sua
expressividade intencional. Merleau-ponty interpreta o nosso engajamento
estrutural sem recorrer às impressões subjetivas de cada sujeito, como faria um
psicólogo introspectivista. Não se trata, seja em A Estrutura do Comportamento
ou, mesmo, na Fenomenologia da Percepção, de desvelar o âmbito estrutural da
encarnação existencial a partir de um exame dos estados privados da consciência,
pois isso seria dar um passo atrás e assumir os pressupostos do introspectivismo.
Nas duas primeiras obras de Merleau-Ponty, temos a construção de
uma filosofia assentada na em uma estrutura primordial - “corpo-consciência” –
que permite descrever o nosso comportamento com todos os caracteres de uma
202
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.200.
201
vivência dialética. Portanto, o comportamento é uma estrutura significativa do ser
no mundo que não adere ao conceito de consciência reflexiva, mas que suporta a
idéia de uma subjetividade isenta de pré-determinações objetivas e, o que é mais
fundamental, não se atém à noção de um corpo funcional operando segundo
relações lineares. Por isso mesmo, a descrição do corpo - a fenomenologia de
corpo - na segunda obra de Merleau-Ponty, é essencial para a compreensão e o
aprofundamento da noção de experiência direta, para a renovação e radicalização
da noção de estrutura e, enfim, para uma descrição fenomenológica do
comportamento.
Primeiro, é preciso ver o corpo para além dos seus aspectos físicos.
Nesse sentido, nunca é demais lembrar que o nosso corpo não se reduz a um
conjunto de funções neuro-motoras controlado por uma função superior qualquer,
seja neurológica ou mesmo psíquica. Apreendemos com Merleau-Ponty, ainda na
A Estrutura do Comportamento, a considerar o corpo muito além do
fisiologismo, a ver que as suas reações não se limitam ao campo físico, mas se
abrem ao universo fenomenal. O nosso corpo habita essa anterioridade original, é
cercado pelos fenômenos, se dirige ao mundo primário que nos é dado antes de
qualquer abstração reflexiva e, em toda sua existência, se comunica e é o “nosso
ponto de apoio no mundo”. No corpo doente, indica Merleau-Ponty, a enfermidade
modifica, perturba o mundo fenomenal e, nesse caso, o corpo permanece como o
ponto de ligação entre nós e a natureza. Ficou estabelecido, desde A Estrutura
do comportamento, que a interpretação do comportamento, a partir da noção de
202
“dependência linear entre o estímulo e o receptor”
203
é, sem dúvida, a principal
razão pela qual o corpo nunca deixou de um objeto entre as coisas. Quando a
Fisiologia mecanicista passou a considerar a percepção e as relações psicofísicas
como objetivas e, desse modo, atribuiu ao aparelho nervoso a função de criar e
operar os fenômenos da nossa experiência, encerrou o corpo como mais um
objeto. Nesse sentido, a fisiologia mecanicista indicou que na relação entre o físico
e o mental operam “causas mundanas”. Desse modo, apoiado nas noções de
constância e de presença, o corpo, tanto para a Fisiologia como para as
Psicologias clássicas, nunca deixou de ser um objeto. Passou, bem verdade, com
a Gestalttheorie, a ser um tipo de objeto distinto entre as coisas, na medida em
que desempenha um papel fundamental na apreensão e, em certa medida, na
realização das gestalten. É o caso, por exemplo, das pesquisas descritas por
Köhler sobre o processo de empilhamento de caixas por parte dos chimpanzés.
Nessa situação, como já descrevemos anteriormente, se o corpo primeiro compõe
com as caixas uma condição de objeto realiza, por seu lado, de maneira
autônoma, a função de equilíbrio. Mas é Merleau-Ponty que reconhece isso e não
o próprio Köhler. As caixas empilhadas, de modo instável, encontram no corpo
vivo e dinâmico a condição de servirem de base sólida. Portanto foi,
fundamentalmente, com Merleau-Ponty que a idéia que torna o corpo um objeto
singular entre outros ganhou profundidade. O que faz o corpo singular é, conforme
nos referimos há pouco sobre a consciência perceptiva, o fato de que “ele é um
objeto que não me deixa”.
204
No entanto, é justamente isso que não me permite
203
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção. p.110.
204
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção. p.133.
203
conceber o corpo como um objeto no sentido usual, uma vez que só é objeto,
conforme as definições da Psicologia e da Filosofia clássicas, o que está diante de
nós, o que se afasta, o que aparece e desaparece do meu campo visual, o que
não se confunde comigo e parece ter existência distinta da minha. O corpo, ao
contrário, é uma presença constante, quando me dirijo a ele é, evidentemente, a
mim mesmo que volto o meu olhar intencional. E, ainda, quando olho para mim
deparo-me com uma face, com um lado presente que se recusa a uma exploração
objetiva. “O que o impede de ser alguma vez objeto, de estar alguma vez
completamente constituído, é o fato de ele ser aquilo por que existem os
objetos”.
205
A experiência de sensações duplas – de tocar e sentir-se tocado - do
mesmo modo, também parecem pôr fim à idéia do corpo como objeto, pois indica
um corpo que é capaz de apreender uma realidade. A organização ambígua de
tocante e tocado que o faz “surpreender-se a si mesmo do exterior prestes a
exercer uma função de conhecimento, ele tenta tocar-se tocando, ele esboça um
tipo de reflexão”.
206
Não fosse apenas isso, o que o distingue dos objetos é o
reconhecimento, também, do seu caráter afetivo. A dor no pé, por exemplo, não
indica uma parte do corpo como causa da dor, mas apenas o lugar da dor. Não é
apenas o pé que sente, é um corpo dolorido que está em questão.
Mas, enfim, por que os psicólogos não distinguiram o corpo dos
objetos? Primeiro, porque, como vimos anteriormente, estavam comprometidos
com o pensamento abstracionista e obstinadamente imparcial da ciência moderna.
205
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção. p.137.
206
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção. p.137.
204
A experiência do corpo vivo, então, como resultado de uma exigência
metodológica tornou-se objeto, converteu-se no psiquismo:
Postula-se que a nossa experiência, já assaltada pela física e pela
biologia, devia-se resolver inteiramente em saber objetivo. Desde
então a experiência do corpo se degradava em representação do
corpo, não era um fenômeno, era um fato psíquico.
207
O que é interessante, na leitura merleau-pontyana das Psicologias
clássicas, é que o psiquismo - pelo menos a sua versão empirista - convertido nas
funções corporais elencadas por uma Fisiologia atomista, como a de Pavlov,
passou a ser encarado como mais um objeto mas, quase que paradoxalmente,
também deixou de ser um acontecimento no tempo e no mundo exterior. Por outro
lado, as psicologias introspectivistas também se ocuparam sem saber, do pré-
objetivo. O psíquico, nesse caso, também estava fora do espaço e do tempo
objetivos. Assim, uma psicologia como a cartesiana, mesmo sem admitir, também
se precipitou em direção à experiência perceptiva. Parece, portanto, que a
confusão entre sujeito e objeto, a sua falta de objetividade histórica e a sua
parcialidade é justamente o que Merleau-Ponty reconhece como antecipação não
consentida das Psicologias clássicas a um retorno à experiência primitiva.
O que a Fisiologia clássica quis provar, indica Merleau-Ponty, é que a
função do organismo na recepção dos estímulos consiste em se abrir para uma
certa forma de excitação, em fornecer um certo lugar ou, mesmo, em determinar
um receptor específico que se assemelharia ao que é suscitado na percepção.
207
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção. p.139.
205
Como se os processos nervosos também fossem em si mesmos capazes, na
direção contrária, de linearmente reproduzir o que é dado na percepção.
De modo geral, concordar com as afirmações da Fisiologia clássica
seria o mesmo que admitir que a percepção e os processos nervosos seriam algo
como as faces distintas da mesma moeda. No entanto, a Fisiologia moderna –
sobretudo as indicações de Goldstein - mostrou que a ligação entre os processos
nervosos e a percepção é muito mais complexa do que comumente se pensava.
Contra a teoria das localizações, é preciso também ter em conta que
uma lesão no centro nervoso ou nos órgãos dos sentidos não destrói
necessariamente os conteúdos sensíveis. Não são poucos os casos em que as
qualidades permanecem as mesmas, ainda que não consigamos determinar com
clareza as excitações. Trata-se, sobretudo, daqueles casos emblemáticos, em que
órgãos ou membros específicos comumente tomados como responsáveis por
conteúdos sensíveis, também específicos, deixaram de operar, de existir mas,
assim mesmo, as sensações produzidas por esses órgãos e membros se mostram
presentes. É o que nos dizem, por exemplo, as pesquisas com amputados, que
continuam a sentir os membros próprios e o mundo através desses membros,
mesmo depois que foram extirpados.
Para compreender todo o alcance das pesquisas com a excitação de
membros fantasmas é necessário, previamente, evitar o psicologismo e as
explicações reducionistas do fisiologismo, pois é justamente diante desses
exemplos de patologia que elas falham. Não se trata de um campo magnético, ou
mesmo de um meio de energia ou de força física invisível aos olhos. Não é o caso,
também, de tomar a sensação como uma ilusão desencadeada por uma revolta
206
contra a perda do membro e a deficiência. O doente, quando sente o braço
perdido, não está delirando e na maior parte das vezes, não estamos diante de um
comportamento alucinado que se recusa a aceitar a realidade. Assim, nos diz
Merleau-Ponty, a compreensão dessas relações não se limita nem a uma
explicação física ou psicológica; estamos, nesse caso, diante de uma experiência
reveladora do modo como o nosso corpo se comunica com o mundo e,
principalmente, participa ao próprio eu sua presença integral - do corpo físico e do
corpo virtual:
O amputado sente a sua perna, assim como posso sentir vivamente a
existência de um amigo que não está diante de mim; ele não a perdeu
porque continua a contar com ela, assim como Proust pode constatar
a morte de sua avó sem perdê-la ainda, já que ele a conserva no
horizonte de sua vida. O braço fantasma não é uma representação do
braço, mas a presença ambivalente de um braço.
208
As reações do doente, a percepção do membro fantasma, só ganham
sentido quando pensadas na relação direta que nos insere no mundo como um ser
único, total. Aliás, a experiência do membro fantasma, num sentido inverso,
também explica a condição do ser no mundo. O amputado remonta a uma visão
pré-objetiva de si mesmo, a vivência de um ser que não é uma soma de reflexos e
que não se reconhece unicamente através de um ato de consciência ou, ainda, de
prolongamento de tecidos.
Na interpretação de Merleau-Ponty, estamos diante de uma experiência
que realiza a junção do físico com o psíquico. A experiência do membro fantasma
remonta a um acontecimento fenomênico dado no corpo que, por isso mesmo,
208
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção. p.121.
207
não pode ser reduzido a um deliro. A sensibilidade do membro fantasma remonta
conjuntamente as intenções do corpo, ao horizonte de passado e, ainda, as
estimulações do mundo. É, nesse caso, uma relação de estrutura armada entre as
estimulações sofridas pelo coto e as intenções espaciais que o doente não pode
mais realizar.
A superação da deficiência é resultado de um eu engajado, é a
afirmação daquilo que nos lança no mundo fenomenal: sentimento do físico
presente, sentimento do objeto ausente, vivência carnal e pensante sem que
tenhamos que deixar o corpo próprio. O corpo, nos diz Merleau-Ponty, “é o veículo
do ser no mundo”. É, na minha vivência, centro de tudo, que percebo tudo sem
necessariamente ser o percebido. O braço amputado não está mais ali, mas não é
absolutamente percebido como ausente, pois ainda me oferece a textura e o calor
do pano que parece envolvê-lo. O alcance significativo desse exemplo, Merleau-
Ponty nos adverte, está em nos mostrar que vivemos quase que uma espécie de
duplicidade corporal de comunicação intensa. Primeiro, a dinâmica do corpo
“habitual”: ação constante e ininterrupta de gestos e sinais através do qual
manipulo o mundo: expressividade pura. Depois, a disposição das partes do corpo
“atual”. Merleau-Ponty descreve a estrutura corporal, como quando nós referíamos
à noção de consciência perceptiva, como um arranjo capaz de permitir à vivência
original a posse de um campo de experiências significativas.
A estrutura corporal nos garante individualidade e, ainda, a saída de
uma leitura que vê apenas o corpo como mais objeto operando conforme o
“esquematismo” rígido de funções orgânicas. Mesmo quando pensamos nos
gestos habituais, não é esse esquematismo que parece se sustentar como a única
208
versão explicativa. Ao contrário, o que vemos nesse caso é a representação de
uma variante menos verossímil da nossa existência corporal. Através do hábito,
que à primeira vista parece sustentar a verdade da visão objetivista do corpo,
podemos espontaneamente nos estender no mundo e incorporar novos
instrumentos ao nosso ser. Nesse sentido, o hábito, nas palavras de Merleau-
Ponty, manifesta duas potencialidades: “alongamento e atualização”. Permite,
ainda, através dos gestos sempre familiares, a realização de um encontro entre o
corpo, a consciência e as coisas sem a necessidade de recorrer a qualquer tipo de
determinismo reducionista: intelectualista ou empirista. Ao contrário das teorias
clássicas antitéticas, o hábito não se explica por um recurso exclusivo aos reflexos
condicionados e, também, não se dá como uma resolução desencadeada
automaticamente por uma atividade mental oculta. O hábito mostra a apreensão
de significações pelo corpo fenomenal, pois é através do corpo que o hábito se
realiza e permite que o mundo natural e os gestos se incorporem ao meu ser. De
modo análogo, através do hábito o corpo expressa uma certa posse familiar do
ambiente e das coisas. É por meio do corpo “habitual” – nos gestos intencionais -
que o eu se dirige e significa as vivências como, também, é por uma ligação
essencial com o corpo atual que todas as intenções expressas no nosso contato
com o mundo são percebidas, são vividas e se perdem:
O eu, como centro donde irradiam suas intenções, o corpo que as
carrega, os seres e as coisas às quais elas se dirigem não são
confundidos: são apenas três setores de um campo único. As coisas
são coisas, isto é, transcendentes face a tudo o que sei delas,
acessíveis a outros sujeitos que percebem, mais justamente visadas
como tais, momento indispensável da dialética vivida que as enlaça.
209
209
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.204.
209
Na dialética da experiência simbólica que, como vimos anteriormente,
supõe que entre a nossa consciência, o nosso corpo e as coisas não há
integração absoluta ou, mesmo, uma negação irrestrita encontramos a análise
mais bem acabada sobre existência estrutural. Há uma união essencial entre
corpo e alma que se mostra pela expressividade do comportamento simbólico.
Merleau-Ponty renova a noção de consciência sem despojá-la da existência, seja
por que não concebe a lacuna entre a consciência e o corpo dos introspectivistas
ou, ainda, por que não supõe, desde A Estrutura do Comportamento, a
consciência reduzida às funções do córtex como conjunto de conexões nervosas e
causalidades psíquicas: “Nem a consecução dos estados de consciência, nem a
organização lógica do pensamento percebem a realidade mesma da percepção: a
primeira porque é uma relação exterior (...), a segunda porque supõe um espírito
de posse de seu objeto(...)”.
210
O fisiológico e o psíquico são reintegrados à existência e não se
distinguem como a ordem do em si e do para si. Na experiência da percepção
intervêm, conforme Merleau-Ponty, pelos menos três ordens de acontecimentos:
em primeiro lugar, os eventos da natureza; em segundo, o corpo real – orgânico -;
e, por último, os acontecimentos do pensamento. Nesse sentido, a percepção está
ligada a um complexo de relações que vai muito além das reduções tradicionais
que a ligam tanto a processos exteriores como a eventos interiores. Não é uma
ação da alma, como não é isoladamente do corpo objetivo. A percepção nasce de
210
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.205.
210
uma ação do mundo sobre o corpo e é, ao mesmo tempo, um acontecimento no
próprio corpo e, deste, sobre a alma.
Portanto, o corpo e a consciência navegam juntos e não há entre
ambos nenhuma separação substancial, como a tradição intelectualista nos fez
acreditar. A metáfora platônica do piloto no navio ou, mesmo, a separação entre
res extensa e res pensante pertence, conforme Merleau-Ponty, “somente à
filosofia, a consciência ingênua não pensa assim”. A nossa experiência imediata
não é a de um ser dividido. Os estados subjetivos, as idéias, os juízos, a
imaginação e as paixões não são funções exclusivas da alma. O corpo vivo não é
um relógio, não se reduz aos aspectos fisiológicos e os seus movimentos não são
meras funções orgânicas; são, como já indicamos na introdução do trabalho,
gestos significativos carregados de intenções.
Deste modo, podemos dizer que estamos no mundo através do corpo
como, de modo análogo, as coisas e o mundo natural, o outro e o mundo humano
– temas da segunda parte da Fenomenologia da Percepçãonos são dados a
partir da nossa experiência perceptiva, que supõe a ligação indissociável entre as
vivências do corpo próprio e o mundo fenomenal. Assim, ainda na primeira parte
da Fenomenologia da Percepção Merleau-Ponty, ao considerar o corpo, reforçou
e aprofundou os temas de base desenvolvidos em A Estrutura do
Comportamento. Agora, as noções de estrutura, de experiência direta e de corpo
fenomenal – como já estabelecia a primeira obra – indicam mais solidamente uma
nova concepção das relações entre consciência e natureza e, por extensão, do
comportamento.
211
5.2 As coisas.
Mas é preciso expor a natureza e dirimir as dificuldades dessa
“situação-existência-vivência” estrutural e encarnada que se apresenta como
movimento, como promessa e abertura ao mundo. Primeiro, é interessante
perguntar o que essa vivência implica na relação entre o nosso corpo e as coisas
mundanas. É realmente possível uma abertura das coisas mundanas para o
corpo? Como? Qual a ligação entre o corpo encarnado, o outro e as coisas
quando pensamos no espaço, no tempo e na linguagem? Como é que podemos
falar dessas categorias a partir da nossa vivência original e encarnada? Ainda, é
possível entrever toda complexidade do comportamento tendo, como pano de
fundo, a relação estrutural e fundante do corpo com essas categorias? Admitindo
esse papel fundante o corpo, paradoxalmente, não faz a função de uma
consciência constituinte como apregoa o pensamento clássico? E, nesse caso, o
que nos garante que ao afirmar que as coisas se desdobram a partir da nossa
percepção – do eu encarnado – não estamos apenas reafirmando as “velhas”
relações entre consciência e natureza? Ademais, aceitando a tese do corpo
encarnado como centro de todas as vivências não permanecemos fiéis aos
pressupostos atomistas da Psicologia do reflexo e dos teóricos do fisicalismo,
conforme expusemos no início deste trabalho? Afinal, estamos, nesse sentido,
entre a alternativa do corpo como um eu constituinte ou, ainda, como um
receptáculo de estímulos? Nenhuma coisa e nem outra, como até agora quisemos
demonstrar.
212
Desde A Estrutura do Comportamento Merleau-Ponty já havia
afastado essas interpretações antitéticas e reducionistas sobre o corpo e, por
extensão, sobre a impossibilidade de um mundo inapreensível. O comportamento
das formas amovíveis, sincréticas e, fundamentalmente, das formas simbólicas já
atestavam como o trabalho do corpo na experiência direta tornava possível
apreender – comunicar – o mundo em função dos distintos graus de integração do
organismo: da adaptação quase absoluta à liberdade se mantêm, distintamente,
lacunas ontológicas e pontes perceptivas entre o eu e as coisas mundanas. Nesse
sentido pudemos supor, como indicamos acima, que essas relações comportam
tanto um grau quase absoluto de imanência do organismo às coisas –
comportamento amovível – como, por outro lado, revelam que as coisas
permanecem, em grande medida, transcendentes e apreensíveis,
fundamentalmente para o comportamento simbólico.
Como vimos anteriormente, a diferença entre os diversos graus de
comportamento está fundada no tipo de relação que o organismo dispensa ao
ambiente, em função de sua armação sensório-motora. O mundo para as formas
amovíveis não parece distinto de si, do sentimento da própria existência. Estamos
falando, nesse caso, de um comportamento que se traduz pela repetição, pela
adaptação por ser, sobretudo, um desdobramento das implicações do meio e de
uma armação corporal restrita às funções mais elementares da vida animal. No
que se refere ao comportamento simbólico, o organismo se dirige às coisas,
transforma o seu ambiente e, através do trabalho, da linguagem, das experiências
afetivas confere valores ao mundo e a si próprio. Nesse aspecto, podemos afirmar
que a transcendência, a certeza de que as coisas não estão em mim, pressupõe a
213
experiência da posse de si mesmo, de um eu dado no espetáculo das nossas
experiências perceptivas e, ainda, de uma projeção do eu em direção às coisas
mundanas que, do mesmo modo, fazem parte do espetáculo perceptivo:
A existência humana, a análise do comportamento simbólico é muito
clara sobre isso, não se esgota nas relações de necessidade que se
impõe ao organismo a partir do meio. Ao contrário do comportamento
das formas sincréticas e amovíveis, também fazemos com que o
ambiente e as coisas se adaptem a nós e assumam as nossas
necessidades, as nossas intenções, os nossos valores. A análise dos
fins da ação e de seus meios imanentes, e, de sua estrutura in-
essência própria da espécie. Sem dúvida a vestimenta, a casa, servem
para nos proteger do frio, a linguagem ajuda o trabalho coletivo e a
análise do sólido inorganizado. Mas o ato de vestir torna-se o ato do
ornamento ou ainda do pudor e revela assim uma nova atitude para
consigo mesmo e para com o outro. Só os homens vêem que estão
nus. Na casa que constrói para si, o homem projeta e realiza seus
valores preferidos. O ato da palavra finalmente exprime que ele deixe
de aderir imediatamente ao meio, eleva-o à condição de espetáculo e
toma posse mentalmente dele pelo conhecimento propriamente dito.
211
Podemos supor, desde A Estrutura do Comportamento, que o corpo
e os seus dispositivos anatômicos - enquanto são considerados como “pontos de
apoio ou veículos de minhas intenções” estão na origem não apenas da nossa
unidade espaço-temporal e da nossa própria extensão, mas, também, do mundo,
das coisas e do outro que se apresenta à nossa experiência. Diferente do corpo
real das ciências da anatomia - esquema rígido de músculos, líquidos e ossos - é
somente na consideração da experiência direta do corpo fenomenal que a
consciência não se distingue dele. É através do corpo fenomenal que a
experiência imediata se dá e, também, faz integrar num só campo o interior e o
exterior, a alma e o corpo e, também, o eu, outro e as coisas:
211
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.188.
214
O corpo próprio e seus órgãos permanecem pontos de apoio ou
veículos de minhas intenções e são ainda apreendidos como
realidades fisiológicas O corpo está presente à alma como as coisas
exteriores; em um e outro caso não se trata de uma relação causal
entre dois termos. A unidade do homem não foi rompida, o corpo não
foi despojado dos predicados humanos, não se tornou ainda uma
máquina, a alma não foi ainda definida pela existência por si.
212
Portanto temos, em A Estrutura do Comportamento, muito
solidamente considerado, a idéia de que o comportamento humano e a sua
percepção não se explicam em toda a sua riqueza somente a partir da dialética
vital restritiva que permeia as relações entre o organismo e o ambiente. Toda
percepção original, todo comportamento, à nossa experiência direta é sempre
intencional, podemos dizer – fazendo uso de um conceito da Fenomenologia -
motivada e não é, em situação alguma, uma operação reflexa desprovida de
interesses. Todo gesto se dá sempre em direção a algo, toda a experiência
sempre está visando um fim e, nesse caso, não estamos no mundo apenas
respondendo a estímulos. Responder a um estímulo é, podemos afirmar, apenas
um momento, uma expressão da dialética que permeia a nossa experiência, pois
ao mesmo tempo em que estamos nos oferecendo – interrogando – ao mundo, ele
por sua vez não deixa também de se dirigir – inquirir – a nós.
Nesse sentido, desde A Estrutura do Comportamento Merleau-Ponty
discute como o mundo existe e é significado por nós a partir das nossas vivências
afetivas: o desejo, o amor, a sexualidade etc. Para a Psicanálise, a sexualidade
deixou de ser apenas um momento do nosso comportamento, não é mais
analisada como uma reposta reflexa frente a estímulos pontuais ou, ainda, uma
função fisiológica reduzida à distribuição dos nossos órgãos sexuais. Freud
212
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.203.
215
concebeu a sexualidade, conforme interpreta a leitura de Merleau-Ponty, como
uma espécie de “infra-estrutura” psíquica com poder universal de explicar o nosso
comportamento. No entanto, na leitura e na aproximação com a obra de Freud,
Merleau-Ponty não se detém nessa análise do papel totalizante das vivências
eróticas: “A obra de Freud não é um quadro da existência humana, mas um
quadro de anomalias, por mais freqüentes que sejam”.
213
A aproximação com os
textos e as idéias de Freud é progressiva, da adesão ainda tímida e desconfiada
em A Estrutura, como está dado no texto acima, até o reconhecimento
nevrálgico, porém ainda crítico da sexualidade – da vida afetiva – como mais uma
vivência que nos permite a certeza da existência dos seres e dos objetos: “A
psicanálise (...) por um lado, ela insiste na infra-estrutura sexual da vida; por outro,
ela “incha” a noção de sexualidade a ponto de integrar a ela toda a existência.”
214
Mesmo sem assumir a sexualidade como essa espécie de “infra-
estrutura” explicativa do nosso comportamento, Merleau-Ponty não deixa de
descrever a vida erótica como intencional, pois os nossos gestos eróticos, como
bem estabelece a Fenomenologia da Percepção, são, fundamentalmente,
dialógicos e projetivos. A afetividade – as nossas experiências sexuais, por
exemplo, - do modo como foi descrita no capítulo V, ainda na primeira parte da
Fenomenologia da Percepção, permanece, enquanto um momento do nosso
comportamento, reveladora de uma existência percepto-estrutural: a visão sobre
mim, sobre as coisas e sobre o outro. Merleau-Ponty fala em uma “percepção
erótica” que atua, que nos liga e nos projeta no mundo. Nesse sentido, é fácil ver
213
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.198.
214
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.219.
216
que a sexualidade não se reduz a um sentimento interior - uma vivência da alma -
ou, mesmo, a um gesto desencadeado por um estímulo. O nosso comportamento
afetivo se abre ao mundo através dos nossos gestos corpóreos-motores e,
também, evidencia presença do outro em nosso campo perceptivo:
No próprio Freud, o sexual não é o genital, a vida sexual não é um
simples efeito de processos nos quais os órgãos genitais são o lugar,
a libido não é um instinto, quer dizer, uma atividade naturalmente
orientada a fins determinados, ela é o poder geral que o sujeito
psicofísico tem de aderir a diferentes ambientes, de fixar-se por
diferentes experiências, de adquirir estruturas de conduta.
215
Essas “estruturas de conduta” – comportamento – e o seu poder nos
“fixar” no mundo estão, de certo modo, presentes em todas as nossas vivências
afetivas. Certamente, todo o alcance e sentido da raiva, por exemplo, não está
representado na expressão facial que acompanho no outro: no seu rosto apertado,
nos seus olhos e boca compactados ou, mesmo, nos seus punhos cerrados. A
raiva é mais do que a nossa expressividade corporal visível, mas nem por isso,
podemos deixar de afirmar – próximo ao behaviorismo é, quase que
integralmente, exterior e muito solidamente manifestada pelos nossos gestos. É
somente com isso que posso contar quando digo “você está com raiva”, pois não
tenho acesso à raiva que está no seu interior; tudo o que posso dizer sobre a sua
raiva é aquilo que você me oferece a partir da sua expressividade corporal.
Mas, dotado de intencionalidade, o comportamento afetivo é muito
distinto das interpretações do behaviorismo e do introspectivismo. Na leitura de
Merleau-Ponty, a sexualidade supõe um diálogo carregado de gestos intencionais,
215
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.219.
217
é reveladora na nossa existência encarnada, das ligações de transcendência e
imanência que se operam entre o eu e o outro. Por meio da afetividade corporal
apreendemos o outro e nos expressamos no mundo e, então, nos abrimos para
uma leitura do outro sobre o eu. Quando leio nos seus gestos a sua raiva você,
concomitantemente, percebe que uma modificação se processou em mim. Na
nossa existência original o nosso comportamento afetivo, todos os nossos
sentimentos, as nossas paixões, os nossos desejos, a nossa vivência sexual são
intencionais e, portanto, encontram na expressividade do corpo a possibilidade de
se projetarem no mundo para, então, permitirem o diálogo que torna possível a
experiência de um encontro carregado de sentimentos, paixões e valores entre o
eu, as coisas e o outro. Desse modo, a afetividade expressada pelo nosso corpo
confere significado para as coisas e, como não poderia deixar de ser, para o outro.
Através da sexualidade, como o texto abaixo muito bem indica, compreendemos
de um modo original, na vivência pré-reflexiva, as coisas mundanas e o outro;
pois, ainda que desprovida de todas as propriedades e funções constituintes da
consciência reflexiva, a sexualidade, nos termos de Merleau-Ponty, é um
comportamento, uma experiência que nos faz escorregar para o mundo e, ao
mesmo tempo, permite que tomemos posse do meio e do outro. A sexualidade é
uma expressão afetiva da relação entre o corpo próprio e o mundo, da visão sobre
mim e sobre e o outro, nesse sentido, ela é “percepção erótica”, é, nesse caso,
como o texto abaixo indica, “compreensão” erótica:
Há uma “compreensão” erótica que não é da ordem do entendimento,
já que o entendimento compreende percebendo uma experiência sob
uma idéia, enquanto o desejo compreende cegamente, ligando um
218
corpo a um corpo. Mesmo que a sexualidade, que todavia passou
durante muito tempo passou pelo tipo de função corporal, nós lidamos
não com um automatismo periférico, mas com uma intencionalidade
que segue o movimento geral da existência e que inflete com ela.
216
Como a afetividade, a fala também é um fator significativo da nossa
existência primeira. Nós nos compreendemos, nos projetamos e dialogamos
através de uma experiência original da fala. Nessa experiência pré-objetiva da fala
– “fala falante”
217
– interrogamos as coisas mundanas como, de modo análogo,
nos revelamos ao mundo concomitantemente à ação da fala, isto é antes de
qualquer hermenêutica. Merleau-Ponty, ao contrário das noções intelectualistas e
empiristas, recusa a idéia da palavra como a aparência – a feição externa – do
pensamento. Ela não tem apenas a função de representar, de expressar por meio
de um conjunto de símbolos o que se encontra encerrado no nosso interior. Como,
também, não resulta da excitação de estímulos físicos. A comunicação, o diálogo
está, antes de tudo, na própria fala, no ato de falar e não, como comumente
supomos, somente naquilo que os termos querem significar, pois a fala é
expressiva e comunicativa no próprio ato de falar.
O ato de falar implica e exige de nós muito mais do que simplesmente
colocar em ação o nosso sistema fonador de músculos e nervos. O ato falar –
como a sexualidade – é intencional e, nesse sentido, distintamente do que
216
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.217.
217
Há uma distinção sobre duas modalidades da fala: entre a “fala falante” e a “fala falada”. A
primeira se refere à vivência e ao uso da linguagem anterior a qualquer reflexão abstracionista
sobre a relação entre signo e o significado.Trata-se, nesse caso, do sentido original da fala que
está intrinsecamente ligado à intenção primeira do sujeito falante, esboçada por signos – gestos
lingüísticos - que são, sobretudo, expressivos e não representativos. No segundo caso, da “fala
falada”, estamos diante da posição intelectualista da linguagem. A escolha dos signos obedece às
exigências racionais de um momento posterior, de uma significado racionalizado, assentado em
uma convenção. Trata-se, nesse aspecto, de uma linguagem dada, muito mais, à representação
do que a expressividade intencional.
219
concebem as escolas clássicas da filosofia, ao falar, antes do significado dos
símbolos serem coligidos por uma interpretação racionalizante, já estamos
comunicando os nossos pensamentos, já estamos nos projetando e retendo o
mundo ao nosso domínio expressivo. Um gesto afetivo e uma palavra são
comportamentos intencionais muito próximos, nos remetem a uma tomada de
posição, a uma situação expressiva, a um comportamento estruturado e
estruturante do mundo: “Para o pensamento pré-científico, é fazê-lo existir ou
modificá-lo...”.
218
Portanto, diferentemente das concepções clássicas, as palavras
não se resumem a nos oferecer conceitos ou idéias universalmente válidas, mas
nascem da nossa experiência direta e, antes de tudo, evocam um mundo que se
faz transcendente e significativo para o eu. Apreender significativamente uma
língua exige de nós um esforço semelhante àquele que devemos despender para
compreender uma filosofia. É fundamental, nesse caso, alude Merleau-Ponty, que
sejamos capazes de assumir os caracteres do mundo cultural que são significados
e amparados e, também, sustentados por essa língua e por essa filosofia.
E, assim como em um país estrangeiro começo a compreender o
sentido das palavras por seu lugar em um contexto de ação e
participando à vida comum, da mesma maneira um texto filosófico
ainda mal compreendido me revela pelo menos um certo “estilo” – seja
um estilo spinozista, criticista ou fenomenológico – que é o primeiro
esboço do seu sentido, começo a compreender uma filosofia
introduzindo-me na maneira de existir desse pensamento,
reproduzindo seu tom, o sotaque do filósofo.
219
A fala – no seu aspecto “falante” – como os gestos corporais, é em si
mesma expressiva. Não há, nesse caso, como supor uma distinção entre o signo
218
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.242.
219
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.244.
220
e o significado, pois o signo, veiculado na experiência direta, é inseparável de uma
finalidade significativa própria enraizada na fala. A “fala falante” é, naturalmente,
significativa e projetiva, pois está carregada de intenções intersubjetivas. Através
dessa experiência da fala temos, de modo evidente, a realização de um
comportamento – diálogo – estrutural. Não há separação entre signo, significado e
sujeito falante, pois todos os elementos expressam indistintamente uma mesma
intenção. Diferente, por outro lado, é a experiência da fala “falada”: nesse caso
estamos diante de um meio expressivo que não se desdobra na experiência
direta. A fala, nessa experiência secundária, corresponde a uma função
representativa. Os significados, nesse caso, obedecem a um a priori racional que
ordenou o uso dos signos. Essas duas experiências distintas da fala revelam que
o signo tem um sentido em si mesmo, como tem um outro sentido dado pelo seu
solo cultural e, como não poderia deixar de ser, apresenta, do mesmo modo, umas
significações originárias e abertas, fundadas na própria experiência da fala: “(...)
toda linguagem se ensina por si mesma e introduz o seu sentido no espírito do
ouvinte”.
220
A língua, como uma filosofia, também é interrogante, é falante e a sua
posse expressiva, ainda que não seja integral, solicita aproximação, imersão e
vivência.
O mundo da experiência primeira, como complementarmente está dado
em A Estrutura do Comportamento e na Fenomenologia da Percepção, e a
presença do corpo fenomenal e dos seus gestos - do seu movimento, da sua
expressividade, da sua vivência e da sua perspectiva - tornam possíveis formar
com os objetos - com as coisas mundanas em geral - e com o outro uma estrutura
220
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.244.
221
carregada de significações que permanecem transcendentes. A língua estrangeira
nunca será a minha língua, assim como a minha interpretação – um “estilo” -
nunca será a posse integral e definitiva do pensamento merleau-pontyano. Essa
abertura só é possível na medida em que antevemos uma vivência que se dá sob
a forma de um diálogo incessantemente instigador, carregado de expressões, de
sinais e de intenções intersubjetivas que não se limitam aos termos e ao uso
objetivo convencionalmente considerado pelo pensamento clássico. Se não fosse
assim, noções como as de expressividade corporal, de gestos intencionais, de
“fala falante” e de coisas carregadas de valores não teriam qualquer sentido e,
então, deveríamos nos reduzir aos escolhos do intelectualismo e do empirismo.
Mas o eu merleau-pontyano, ainda na primeira obra, como já afirmamos acima, é
consciência e corpo insistentemente comunicativo, voltado para o mundo, seja
para interrogá-lo ou apenas para ouvi-lo. Essa relação dialética é o que Merleau-
Ponty muito claramente conclui ao final da sua primeira obra:
A “coisa” natural, o organismo, o comportamento do outro e o meu não
existem senão através do seu sentido, mas o conceito que jorra neles
não é ainda um objeto kantiano, a vida intencional que os constitui não
é ainda uma representação, a “compreensão” que lhes dá acesso não
é ainda uma intelecção.
221
Merleau-Ponty ultrapassa os preconceitos clássicos e renova as noções
abstracionistas de sensação, de percepção, de consciência e de corpo. A nossa
existência estrutural é, como nos fala a Fenomenologia da Percepção,
“literalmente uma comunhão”.
222
Uma cor como o azul - conforme descreve o
221
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.241.
222
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.286.
222
capítulo O Sentir, na segunda parte da Fenomenologia - antes mesmo de
simbolizar a paz, já se aloja no meu corpo e me comunica toda uma significação
que independe da consciência reflexiva ou, mesmo, de um solo cultural. No meu
contato original com o azul, alojado no meu corpo, a paz é, desde o princípio,
compreendida em toda a minha experiência, em toda a minha extensão motora:
“Meus músculos relaxam, o olho se acomoda e sou concomitantemente invadido
pela paz.”
223
Assim temos claro que as coisas não são apreendidas apenas como
uma impressão pontual ou, ainda, o sentir não se reduz a nossa capacidade de
ser afetados por propriedades. A sensação é percepção, é um desdobramento
estrutural que se instala no corpo, que ocorre no mundo e na consciência
perceptiva. Portanto, o azul – fundamentalmente a sua significação bruta – não é
uma qualidade dada em si mesma como, também, não resulta de uma observação
atenta e abstracionista. Tomá-lo assim, seria o mesmo que supor que encontro a
sua essência como encontraria um arquétipo atemporal. O azul do céu, da
paisagem, da roupa, da bandeira, como o exemplo acima indica, não é apenas
apreendido pelo olhar, mas se comunica no nível pré-reflexivo com todo o corpo.
Já a qualidade sensível tomada em si mesma, é resultado de uma reflexão
secundária, não é coextensiva à percepção e surge, nos termos de Merleau-
Ponty, “ quando rompo essa estruturação total de minha visão..., em lugar de viver
minha visão interrogo-me sobre ela”.
224
Seria, nesse caso, separar os objetos em
partes, substituir uma percepção estrutural por um juízo particular que é,
nomeadamente, uma abstração.
223
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.298.
224
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.306.
223
Na relação estrutural – encarnada – que se estabelece entre nós e as
coisas, entre o eu e o outro não se supõe, conforme a interpretação de Merleau-
Ponty, a supressão de uma existência à outra. O corpo, assim como a totalidade
da existência humana, não se reduz às coisas, não se mitiga na experiência da
exterioridade e na imanência do embaralhamento entre nós e o mundo. A relação
estrutural entre o homem e o mundo natural passa por um diálogo intermitente e
insonoro, mas que permanece sempre significativo e, em sentido merleau-
pontyano, ambíguo. Nesse caso, os interlocutores nunca deixam de estar juntos
como, também, de se apresentarem separados – transcendentes. Merleau-Ponty
sabe que para preservar a experiência perceptiva de toda redução dogmática –
empirista ou intelectualista – é fundamental reconhecer na relação estrutural entre
a expressividade do nosso corpo e as coisas um ponto, uma zona de confluência
e de separação. Por isso mesmo, fiel ao projeto elaborada em A Estrutura do
Comportamento, temos que entender como as coisas e o outro podem
corresponder ao nosso corpo cognoscente e, ao mesmo tempo, recusar o próprio
corpo.
Primeiro, temos que ter em conta que, se as coisas nos atraem a elas,
em maior medida, também nos afugentam. É o que Merleau-Ponty quer dizer
quando estabelece que a experiência perceptiva comporta um conjunto de
reduções que intervêm no sujeito percepiente. Sobre isso vejamos,
resumidamente, o exemplo sobre a percepção de um dado. Primeiro, descreve
Merleau-Ponty, observo que o dado só existe para mim, “ele se torna o pólo de
224
uma história pessoal”.
225
Depois, na segunda redução, noto que o dado só me é
apresentado pela visão. Agora o objeto – o dado – se reduz a uma estrutura visual
e, então, como por conseqüência lógica e inerência espacial, perde uma série de
caracteres significativos. Na terceira redução, a confiança numa síntese objetiva
se enfraquece ainda mais, pois quando noto que todas as faces do dado não me
são fornecidas tenho, então, a passagem da coisa visual para o caráter
perspectivo. Nesse momento, tenho claro que todas as faces do dado não são
apresentadas aos olhos, que entre elas, algumas sofrem deformações e
permanecem escondidas. Finalmente, a última redução, quando temos a noção de
que o que apreendemos do dado “é uma modificação do meu corpo”.
226
Para que
percebamos as coisas, continua Merleau-Ponty, é preciso que a vivamos. E isso
não é nem coincidir com a coisa e nem pensá-la através de uma atitude de
sobrevôo. Diferentemente da síntese objetiva pressuposta pelo cartesianismo e
pelo kantismo, na experiência perceptiva o sujeito é capaz de orientar-se para o
mundo e abrir um “outro absoluto que ele prepara no mais profundo de si
mesmo”.
227
Na Crítica da Razão Pura, a síntese aparece como o fundamento da
lógica transcendental, pois é pensada por Kant como uma operação a priori
necessária ao entendimento. Sem a síntese o conhecimento não seria possível,
pois as representações permaneceriam todas dispersas: “Entendo por síntese, na
acepção mais geral da palavra, o acto de juntar, umas às outras, diversas
225
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.435.
226
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.436.
227
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.438.
225
representações e conceber a sua diversidade num conhecimento”.
228
Conforme, o
texto de Kant, a síntese é o que nos permite ultrapassar a diversidade e concluir
pela unidade: “num conhecimento”. Portanto, esse ganho cognoscente que se
realiza como unidade e como ligação do múltiplo, é alcançado em operações
distintas, mas que permanecem indissociáveis. Podemos, nesse sentido, afirmar
que a síntese kantiana ocorre por uma série de deduções lógicas – ou modos –
que continuam transcendentais, na medida em que se dão a priori.
Vejamos, resumidamente, a descrição kantiana acerca dos três modos
de sínteses operadas a priori pelo sujeito: i - a síntese da apreensão em intuição; ii
- a síntese da reprodução ou a síntese transcendental da imaginação; iii - a
síntese intelectual ou do reconhecimento. A primeira síntese de caráter figurativo
relaciona as intuições, fundamentalmente, conforme o tempo. A segunda torna
possível a continuidade das representações no tempo. Já a última, a synthesis
intellectualis, permite a continuidade das intuições empíricas e, nesse sentido,
através do entendimento torna possível à retenção de um conhecimento.
Acompanhemos as palavras de Kant sobre como esses três modos de síntese
operam, conforme o que está dado na “Lógica Transcendental”:
O que primeiro nos tem de ser dado para efeito do conhecimento de
todos os objetos a priori é o diverso da intuição pura; a síntese desse
diverso pela imaginação é o segundo passo, que não proporciona
ainda conhecimento. Os conceitos, que conferem unidade a este
síntese pura consistem unicamente na representação desta unidade
sintética necessária, são o terceiro passo para o conhecimento de um
dado objecto e assentam no entendimento.
229
228
KANT. Crítica da Razão Pura, p. 109.
229
KANT. Crítica da Razão Pura, p. 110.
226
Diferente da análise kantiana, Merleau-Ponty estabeleceu que a
unidade do mundo existe, mas sem que a alma tenha necessariamente ligado o
que comumente perceberíamos – caso não houvesse a atividade sintética do
entendimento – como algo com todas as suas partes dispersas, ou desvelado
todas as facetas que julgávamos estarem ocultas. Primeiro, a síntese perceptiva
não se realiza fora da experiência pré-reflexiva e, nesse caso, não há nada a ligar,
pois a experiência perceptiva é, desde sempre, uma vivência da totalidade, é a
experiência direta – bruta – que suscita a posse de um acontecimento fenomênico,
que é significativo em si mesmo.
Por outro lado, próximo de Kant, é fundamental entender que a
“atividade sintética”, no viés merleau-pontyano, supõe um sujeito que permanece
no domínio da experiência direta, isto é, no espaço e no tempo encerrados e
elaborados nas coisas e no próprio corpo. Seria, portanto, permanecer naquele
estado, conforme descreve as palavras de Kant, de condição nascente, de
existência bruta e livre na qual a experiência perceptiva está sempre desdobrada
espontaneamente: “A síntese em geral é, como veremos mais adiante, um simples
efeito da imaginação, função cega, embora imprescindível, da alma, sem a qual
nunca teríamos conhecimento algum, mas da qual muito raramente temos
consciência”.
230
Para Merleau-Ponty devemos nos reportar e permanecer nessa “função
cega”, nesse momento que muito “raramente temos consciência”, não para
superá-lo ou, ainda, para ligar todas as suas partes dispersas como bem
estabeleceria um projeto comprometido com os pressupostos de uma filosofia de
230
KANT. Crítica da Razão Pura, p. 109.
227
tradição criticista. Na verdade não há necessariamente o que ligar, pois se as
coisas não são oferecidas integralmente à percepção é, fundamentalmente,
porque elas devem ser interiormente vividas e experimentadas por nós sem, no
entanto, a presunção de que podemos exaurir – abstrair - o segredo das coisas.
Portanto, se admitimos que há algo ainda inexplorado que permanece
desconhecido não o fazemos com o intuito de que podemos e devemos, a partir
de uma série de deduções do entendimento, desvelá-lo e apreendê-lo
integralmente. A unida que apreendemos na síntese da experiência pré-reflexiva,
como indicávamos no início desse capítulo, paradoxalmente, não permanece
única, indivisa ou total.
É possível reconhecer uma coisa que se apresente como um perfil, ou
nos termos de Merleau-Ponty, como um “estilo” e, nesse caso, não seja dada em
sua mais completa definição. Vivencio a unidade do mundo e, de modo análogo,
apreendo um “estilo”. Apesar dos deslocamentos e dos perfis, a minha experiência
no mundo sugere sempre a posse de um estilo que me permite reconhecer a
mesma coisa, perceber que a mesma pessoa está presente sem,
necessariamente, apresentar-se de modo transparente e ininterruptamente com os
mesmos caracteres. Nesse aspecto, o estilo de uma pessoa, de uma cidade e das
coisas permanece reconhecível para mim, mesmo quando não fornecem as
mesmas propriedades ou, ainda, quando não está assentado na mesma
paisagem. O estilo é o que me permite ter a noção de uma coisa em sua
singularidade, mesmo que essa coisa assuma caracteres novos, pois o estilo,
pode-se afirmar, é uma presença estrutural. A própria natureza da experiência
perceptiva revela um mundo natural vivido como um horizonte de todos os
228
horizontes, como um estilo de todos os estilos e isso parece garantir, pelo menos
temporalmente, uma unidade que é, em si mesma, retenção e distensão:
Não temos uma série de perfis do mundo, dos quais uma consciência
em nós operaria a ligação. Sem dúvida o mundo se perfila,
espacialmente em primeiro lugar: só vejo o lado sul da avenida, se eu
atravessar a rua veria o seu lado norte; só vejo Paris, o campo que
acabo de deixar caiu em uma espécie de vida latente; mais
profundamente, os perfis espaciais são também temporais: um alhures
é sempre algo que se viu ou que se poderia ver; e, mesmo se o
percebo como simultâneo ao presente, é porque ele faz parte da
mesma onda de duração.
231
Conforme as palavras de Merleau-Ponty, se queremos afirmar a
vivência de uma experiência do mundo em ato e acabada, isto é, sustentar a
certeza da posse indivisa e incorruptível de alguma coisa que se apresenta a nós,
é fundamental, antes de tudo, ter em conta que essa síntese, essa posse é uma
realização no espaço e no tempo. O espaço e do tempo são categorias
estruturadas e, no mesmo sentido, são estruturantes, pois coexistem na
experiência, nas coisas, no eu e na percepção.
É preciso admitir, desde A Estrutura do Comportamento, que os
sentidos se comunicam entre si e abrem-se à estrutura do mundo e da experiência
direta. A visão não é simples resultado da fixação – “é preciso olhar para ver”
232
e,
para olhar, nessa acepção fenomenal, é fundamental dispor de todo o corpo.
Quando me volto à luz, podemos dizer, faço-o inteiramente. Assim o corpo
fenomenal realiza uma síntese perceptiva como resultado de um engajamento
estrutural. Já na síntese intelectual, presente nos modelos abstracionistas, as
relações estruturais não intervêm no contato entre as coisas e o eu, pois a
231
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.441.
232
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.312.
229
verdade do objeto que permanece é aquela que se mostra integralmente à
consciência e que é, sobretudo, instituída como um trabalho, como um esforço de
reflexão pertencente a um segundo momento. Nesse sentido, a essência não se
realiza no próprio objeto ou, mesmo, no contato original com o mundo, permanece
no domínio exclusivo do sujeito reflexionante. Portanto, no processo de síntese
intelectual não há lugar para o perspectivismo, pois a posse de um perfil – como
se dá na experiência perceptiva – é sempre considerada, nesse caso, uma falta.
Vejamos, nas palavras de Merleau-Ponty, como a síntese perceptiva e a
intelectual se apóiam em planos distintos – do corpo próprio à razão constituinte –
e, então, supõem contatos avessos entre o eu e o mundo:
Apoiada na unidade pré-lógica do esquema corporal, a síntese
perceptiva não possui o segredo do objeto, assim como o do corpo
próprio, e é por isso que o objeto percebido se oferece sempre como
transcendente, é por isso que a síntese parece fazer-se no próprio
objeto, no mundo, e não neste ponto metafísico que é o sujeito
pensante, é nisso que a síntese perceptiva se distingue da síntese
intelectual.
233
A síntese perceptiva operada em nossa experiência pré-objetiva é que
nos permite concluir que entre o eu e as coisas e o outro não há separação e nem
junção absoluta. Na leitura merleau-pontyana, o sentido do mundo germina das
nossas experiências perceptivas e, diferentemente do intelectualismo, não se
remete à atividade de um artesão metafísico. O eu – a consciência e o corpo
percepiente – permanece transcendente como, seguramente, também está entre
as coisas do mundo, pois não elaboramos o mundo, mas freqüentamos um mundo
que obstinadamente nos convida a interrogá-lo.
233
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.313.
230
5.3 O Outro.
No entanto, é preciso ainda responder como posso apreender em meu
campo perceptivo um Outro sujeito, um cogito diferente de mim? De modo geral,
indica a leitura da Fenomenologia, essa retenção fenomenal se dá através da
percepção do corpo do Outro, dos seus objetos de uso, dos seus vestígios
culturais e do seu comportamento. As experiências da “fala falante” e do
comportamento afetivo, como comentamos a pouco, são muito significativas sobre
esse contato com o Outro, pois não dão a certeza de sua presença sempre
estrutural e ambiguamente expressiva.
Entretanto, a admissão da percepção do Outro, adverte Merleau-Ponty,
suscita uma nova questão: como, de modo geral, uma intenção, um pensamento,
um projeto, podem separar-se do cogito e tornar-se visíveis fora do seu corpo e,
ainda, serem apreendidos por mim, agora o Outro?
Antes de tudo, é fundamental ter muito claro que esse problema se
mostra de difícil solução quando buscamos respondê-lo fundamentado-nos na
noção de um cogito constituinte. Porque o Outro diante de um Eu tético nunca
deixará de ser uma coisa. O outro, na condição de constituído, somente existe
como para-si e não me é dado fora da condição de coisa quando o concebo
conforme o pensamento objetivo: “Para o pensamento objetivo, a existência de
outrem representa dificuldade e escândalo”.
234
Mas, afinal, o que o pensamento
objetivo diz sobre relação entre o Eu e o Outro que me impossibilita de pensar em
um outro Eu? Por que a existência de um outro cogito é “escandalosa”?
234
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, 468.
231
Na leitura de Merleau-Ponty, os obstáculos que se opõe às relações
intersubjetivas são dados pelas concepções do pensamento objetivo acerca do
mundo, do cogito e, fundamentalmente, do corpo. Primeiro, o mundo, como já
comentamos em passagens anteriores, nada mais é do que um “entrelaçamento
de causas gerais”, o lugar da necessidade e da funcionalidade. Nesse caso, as
coisas no mundo obedecem a uma lógica natural intrínseca, pois na consecução
dos seus eventos pouco importa a situação do sujeito no mundo. Já o cogito
nesse caso uma consciência tética – representa o Eu que tem desdobrado diante
de si uma paisagem, da qual ele é o autor e, por isso mesmo, possui o segredo
das suas relações causais. Portanto, o Eu possui em si poder de desvelar todos
os segredos do mundo, pois as coisas mundanas são interrogadas por um sujeito
que responde por elas. O conhecimento do mundo, nesse sentido, pressupõe uma
volta do pensamento ao sujeito reflexionante, pois é através dele que o
“entrelaçamento de causas gerais” torna-se significativo. Agora, talvez, fique mais
claro porque a existência do Outro é escandalosa. Nesse caso, o maior problema,
quando nos deparamos com as filosofias interpretadas por Merleau-Ponty sob o
signo do pensamento objetivo, não é se existem coisas, mas, fundamentalmente,
se existem coisas independentemente da atividade reflexionante do Eu. Notemos,
para melhor nos situarmos no debate, como esse problema é elaborado por
Descartes ainda na segunda Meditação Metafísica: “Haverá, também, algum
desses atributos que possa ser distinguido do meu pensamento, ou que se possa
dizer que existe separado de mim mesmo?”
235
Essa questão cartesiana levantada
após a conquista da primeira verdade – “eu sou, eu existo” – indica muito
235
DESCARTES. Meditações Metafísicas, p.177.
232
solidamente o modo reflexivo como o pensamento objetivo supõe a existência do
Outro, pois, nesse caso, não se discute a certeza da experiência do próprio cogito,
mas se coloca em questão a possibilidade de uma experiência fora do Eu. O que
se passa no cogito é uma ação do pensamento que encontra em si mesmo a
certeza da sua própria existência. Como, então, conceber algo distinto e fora do
Eu? É possível uma existência não constituída pelo Eu?
Todavia, o próprio Descartes fornece a solução para esse dilema, pois
ao fim das Meditações Metafísicas
236
as fissuras ontológicas entre o sujeito e o
mundo são, de certo modo, ultrapassadas por um reconhecimento do caráter
fundante do mundo natural e do papel formador e constitutivo do corpo. Nesse
caso, vale a pena lembrar, mesmo que rapidamente, como Descartes opera a
transposição desse obstáculo e afirma a certeza de uma experiência fora do Eu.
Na sexta Meditação Metafísica o sujeito finalmente vence a última fronteira da
dúvida e estabelece a verdade das coisas materiais e a união substancial do corpo
e da alma. O que nos interessa apontar, como está dado na última Meditação,
não é o passo constitutivo realizado pelo pensamento – da imaginação, por
exemplo – em direção às coisas, mas, ao contrário, é o fato de que agora a
natureza, as coisas e o corpo também me incitam a aceitar a verdade do mundo
material e, o mais importante, a compreender a minha existência psicofísica como
a de um ser integral. Acompanhemos o texto de Descartes:
236
Na verdade o “escândalo” da existência do outro já foi devidamente resolvido por Descartes na terceira
Meditação Metafísica com a prova da existência de Deus: “E, por conseguinte, é preciso necessariamente
concluir, de tudo o que foi dito antes; pois ainda que a idéia da substância esteja em mim, pelo próprio fato de
ser eu uma substância, eu não teria, todavia, a idéia de uma substância infinita, eu que sou ser finito, se ela
não tivesse sido colocada em mim por alguma substância que fosse verdadeiramente infinita.” Conf.
DESCARTES. Meditações Metafísicas, p.190.
233
Ora, nada há que esta natureza me ensine mais expressamente, nem
mais sensivelmente do que o fato de que tenho um corpo de que está
mal disposto quando sinto dor, que tem necessidade de comer ou de
beber, quando nutro os sentimentos de fome ou de sede etc. E,
portanto, não devo, de modo algum, duvidar que haja nisso alguma
verdade.
A natureza me ensina, também, por esses sentimentos de dor, fome,
sede etc., que não somente estou alojado em meu corpo, como um
piloto em seu navio, mas que, além disso, lhe estou conjugado muito
estreitamente e de tal modo confundido e misturado, que componho
com ele um único todo.
237
Entretanto, a admissão da união substancial entre alma e corpo –
reconhecida pelas funções, os sentimentos de fome e sede e pelas experiências
expressivas do corpo, os atos de comer e beber – não responde a nossa questão
da percepção do Outro diante das exigências que ela suscita, conforme o que
anteriormente foi colocado. Sabemos, ao final da sexta Meditação, que as coisas
materiais existem e que tenho uma alma unidade ao corpo. Mas, podemos
novamente perguntar: ainda que tenha a posse das coisas materiais e do meu
próprio corpo, porque também estaria, do mesmo modo, em meu poder a
capacidade de perceber um Outro sujeito, um outro cogito diferente de mim?
Ainda, qual seria a natureza dessa percepção do Outro? Nesse sentido, o
problema fundamental agora não é saber se percebo coisas distintas do Eu, mas,
sobretudo, entender se o Outro é percebido na sua ecceidade. Nesse caso,
podemos perguntar: o Outro é dado à minha percepção na condição de um
cogito?
A questão acima sugere, muito fortemente, não apenas uma releitura
da resposta cartesiana ao problema da união substancial entre corpo e alma.
Podemos afirmar que Merleau-Ponty aprofundou o problema, procedeu como se
237
DESCARTES. Meditações Metafísicas, p.218.
234
alongasse
238
as Meditações Metafísicas e, por conseqüência, estabeleceu uma
nova dimensão filosófica ao problema. O que estamos afirmando é que Merleau-
Ponty não se restringe a responder a questão que Descartes claramente já havia
resolvido. Podemos dizer, agora, que com Merleau-Ponty o problema sobre a
relação entre consciência e natureza foi renovado e radicalizado, pois nesse
momento uma nova questão entrou cena. Expliquemo-nos. Trata-se para a
filosofia merleau-pontyana, desde A Estrutura do Comportamento, de saber
como Outro pode ser dado no campo fenomenal e, ainda, permanecer um Eu.
Como podemos perceber o outro sem coisificá-lo? A percepção tem esse poder
negativo? Na perspectiva cartesiana, podemos supor que a questão seria
formulada do seguinte modo: é possível a uma res cogitans pensar – “perceber” –
outra res cogitans sem destituí-la de sua ecceidade
substancial?
A resposta merleau-pontyana para esse problema segue, de certo
modo, as orientações da última meditação Metafísica. Como já havíamos
discutido a pouco, esse problema repousa fundamentalmente na concepção de
corpo, nos limites estreitos que a biologia e a fisiologia impõe ao corpo
considerando-o uma junção de órgãos, uma representação científica, ou apenas
um objeto constituído pela consciência: “No que diz respeito ao corpo, e mesmo
238
Vale a pena, nesse momento, ter presente o comentário de Lebrun sobre a certeza das coisas
materiais dada a partir da experiência do corpo. Comentando o texto da última Meditação – nota
238 – Lebrun aproxima a reflexões de Merleau-Ponty e de Descartes, mas não reconhece que a
relação entre consciência e natureza é, de certo, radicalizado na Fenomenologia, na medida que
opõe um cogito a outro. Segue o texto de Lebrun: “Frase capital. Descartes não estabeleceu que
eu sou um entendimento + um corpo, porém que em mim há, além do mais, uma “mistura” dessas
duas substâncias. E esta mistura de fato o corrige o dualismo de direito. A idéia de sou totalmente
corpo e totalmente espírito anuncia um tema fundamental da Antropologia moderna. Pode-se dizer,
por exemplo, que a Phénoménologie de la Perception de Merleau-Ponty constitui, em certo
sentido, um comentário dessas linhas.” Conf. LEBRUN. In: DESCARTES. Meditações
Metafísicas, p.218.
235
ao corpo de outrem, precisamos apreender a distingui-lo do corpo objetivo, tal
como os livros de fisiologia o descrevem”.
239
Se me atenho a essa noção atomista
do corpo, se reduzo a existência do corpo a um objeto que se dispõe
passivamente diante de mim, todas as análises são estéreis para os nossos
propósitos, pois funcionam, de imediato, como obstáculos quase insuperáveis
para uma relação estrutural entre o Eu e o Outro. Os obstáculos ontológicos,
nessa situação, se mostram então intransponíveis. Restrito a uma análise objetiva
do corpo, o Outro é mais um objeto entre as coisas mundanas. Estamos, nesse
caso, presos a uma experiência objetivante do Outro que, como mostramos a
pouco, podemos superá-la ou, paradoxalmente, nos reduzirmos a ela por meio de
uma leitura do próprio Descartes. Precisamos ir até a sexta Meditação Metafísica
e entender que, nesse momento, é o corpo que interroga o espírito: “ (...) quando
temos necessidade de beber, nasce daí certa secura na garganta que move seus
nervos (...) e esse sentimento faz com que o espírito experimente o sentimento da
sede (...)”.
240
A indicação do papel fundante do corpo está clara desde a última
Meditação Metafísica. Se quisermos escapar das análises objetivantes, para não
coisificarmos o Outro é vital entender o papel expressivo e fundante do corpo. É
necessário, nesse caso, aprofundar a interação entre a alma e o corpo,
compreender que a comunicação expressiva do corpo e, como supõe Descartes,
devemos tornar possível não apenas a integração entre consciência e natureza,
mas, fundamentalmente, as relações intersubjetivas. Portanto, como já está dado
239
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, p.470.
240
DESCARTES. Meditações Metafísicas, p.223.
236
na leitura da sexta Meditação Metafísica, se ainda queremos e romper com os
limites cientificistas e reducionistas das teorias clássicas acerca da interpretação
do Outro temos, antes de tudo, que ultrapassar a leitura objetiva do corpo. Buscar
os motivos das nossas certezas na expressividade do corpo, porque sentir fome
ou sede nos remete a uma experiência mais profunda do que a posse da certeza
de que temos um corpo e vivemos na pobreza: “Precisamos recuperar, nos corpos
visíveis, os comportamentos que neles se esboçam, que fazem ali a sua aparição,
mas que não estão realmente contidos neles”.
241
É através da experiência do meu
corpo fenomenal que posso conceber o Outro como um Eu, pois essa experiência
é o substrato de um comércio anônimo ancorado numa rede intencionalidades que
operam a ligação entre o Eu e o Outro. Portanto, o corpo próprio é o veiculo de
comunicação entre o Eu, as coisas e o Outro. Sobre isso, acompanhemos a
descrição de Merleau-Ponty sobre como entre o Eu e o Outro são estabelecidas
relações de constatações –vivências - intersubjetivas – “interiores” – a partir dos
gestos expressados pelo esquema corporal:
Um bebê de quinze meses abre a boca por brincadeira se ponho um
dos seus dedos entre meus dentes e faço menção de mordê-lo. E,
todavia ele quase não olhou seu rosto em um espelho, seus dentes
não se parecem com meus. Isso ocorre porque sua própria boca e
seus dentes, tais como ele os sente do interior, são para ele
imediatamente aparelhos para morder, e porque minha mandíbula tal
como ele a vê do exterior, é para ele capaz das mesmas intenções. A
“mordida” tem para ele imediatamente uma significação intersubjetiva
(grifo nosso). Ele percebe as suas intenções em seu corpo, com seu
corpo percebe o meu, e através disso percebe em seu corpo as
minhas intenções
.
242
241
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, p.470.
242
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, p.470.
237
Mas a impossibilidade do outro, como resultado de um esquecimento
do corpo não é um problema apenas das teorias intelectualistas. As teorias
clássicas do comportamento, amparados no pensamento objetivo, ignoram
firmemente as indicações sobre o corpo intencional. Essas teorias, como
comentamos nos primeiros capítulos deste texto, concebem o corpo como mais
um objeto no mundo. Julgado freqüentemente inexpressivo, o corpo não é
pensado pelas teorias empiristas do comportamento como um ente capaz de
estabelecer uma conexão intersubjetiva. Primeiro, com Pavlov, o corpo foi inserido
na dinâmica atomista das relações físicas objetivas do mundo natural. Depois,
com Watson e, mais tarde, com Skinner o corpo, de certo modo, foi preterido as
determinações e solicitações do ambiente. Na verdade, a noção de corpo
intencional passou a margem dos grandes sistemas da Psicologia. Ele fornece
respostas, indícios objetivos de como num determinado contexto, numa
determinada situação sou afetado pelos estímulos. Mas o corpo em si mesmo, não
é expressivo, ou, se quisermos, ele não é o sujeito dos seus próprios atos. O
papel ativo e preponderante de uma consciência constituinte – como foi
estabelecido pelo pensamento objetivo - impede que haja um outro mundo, uma
outra consciência que não essa reflexionante, ou um outro corpo que não seja
aquele erigido pelo pensamento objetivo e, por extensão, um outro
comportamento que não seja aquele dado nas relações objetivas que o processo
de observação comporta. Nesse sentido, podemos afirmar que as relações
intersubjetivas não são, fundamentalmente, para as teorias científicas do
comportamento, algo que deva ser levado em conta na análise da conduta
humana. Acompanhemos, como forma de ilustração geral, as palavras de Skinner
238
que parecem indicar como essa relação “objetivante” entre o eu e outro se
sustenta como a única possível, pois mesmo com a intervenção da linguagem, o
conhecimento do outro é limitado pelas condições de acessibilidade nas quais os
dados observáveis se mostram presentes:
O significado de uma expressão é diferente para o falante e para o
ouvinte; o significado para o falante deve ser procurado nas
circunstâncias em que ele emite uma resposta verbal e para o ouvinte
na resposta em que dá a um estímulo verbal. No melhor dos casos,
poder-se-ia dizer que o produto final da comunicação é o fato de a
resposta do ouvinte ser apropriada à situação do falante. A descrição
do estado corpóreo sentido pelo falante não produz, por si só, um
estado semelhante, a ser sentido pelo ouvinte. Não torna o sentimento
comum a ambos.
243
As palavras de Skinner, teórico da Psicologia que não estava entre as
leituras de Merleau-Ponty, parecem indicar que os dilemas ontológicos
enfrentados pelo cartesianismo deixaram de ser problemas, isto é, não se
apresentam mais no domínio da ciência moderna. Nesse caso, não são problemas
científicos. Podemos afirmar, como indica a Fenomenologia da Percepção, que
o pensamento objetivo não supõe no mundo objetivo um lugar para o Outro, ou
mesmo uma diversidade de consciências porque, antes de tudo, ignora o corpo
fenomenal e a possibilidade de olhar para Outro sem reduzi-lo aos caracteres de
uma coisa. Vamos, para exemplificar esse caso, mais uma vez ao texto de
Skinner: “Numa análise behaviorista, conhecer outra pessoa é simplesmente
conhecer o que ela faz, fez ou fará, bem como a dotação genética e os ambientes
passados e presentes que explicam por que ela o faz”.
244
243
SKINNER. Sobre o behaviorismo, p.150.
244
SKINNER. Sobre o behaviorismo, p.152.
239
Contudo, desde A Estrutura do Comportamento essa objetivação do
Outro já havia de certo modo sido superada pela integração das diferentes formas,
pois as categorias da matéria, da vida e do espírito são cambiantes e estruturais,
nesse caso, é preciso reconhecer que elas supõem uma integração dialética entre
a matéria, a vida e o espírito. Quantidade, ordem e significação são, como já
indicamos anteriormente, categorias universalmente aplicáveis. A categoria de
significação, por exemplo, ao mesmo tempo em que descreve em grande parte o
comportamento superior encerra, também, um valor expressivo para a
interpretação dos sistemas físicos e para os eventos dinâmicos da vida:
“Auxiliados pelas noções de estrutura ou de forma, percebemos que o mecanismo
e o finalismo deviam ser rejeitados, e que o “físico”, o “vital” e o “psíquico”, não
representam três potências de ser, mas três dialéticas.”
245
Nesse sentido, podemos concluir que o Outro não é integralmente
passível de objetivação, pois, como vimos a pouco, nem mesmas as coisas o são
em sentido absoluto. É preciso ter em conta a natureza, as dificuldades, as
lacunas do nosso engajamento estrutural no mundo como, do mesmo modo, não
podemos esquecer do nosso contato dialético com o mundo e, por extensão, com
o Outro.
Os corpos, o meu e o do outro, são seres em comportamento. Não
estão diante de mim como um espetáculo, como um peixe num aquário respirando
uma atmosfera distinta daquela de um observador incólume e impassível. A minha
percepção sobre o Outro não tem limites definidos, não se realiza solitariamente,
“escorrega” na perspectiva do Outro, pois respiramos o mesmo ar e vivemos no
245
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p. 199.
240
mesmo ambiente. A mesma estrutura, nos diz Merleau-Ponty, que me permite a
percepção do meu corpo me liga ao Outro:“(...) como as partes do meu corpo em
conjunto formam um sistema, o corpo de outrem e o meu são um único todo, o
verso e o reverso de um único fenômeno (...)”
246
A integração das formas, a vivência no mundo pré-reflexivo e a
experiência do corpo fenomenal nós levam a superar a presunção “objetivante” e
abstracionista das teorias clássicas do comportamento. Contudo, não se trata de
recusar essas teorias. Esse nunca foi o objetivo da crítica merleau-pontyana, mas
somente de recuperar o exame do comportamento à luz de uma reflexão filosófica
voltada para os acontecimentos estruturais desdobrados na experiência primeira
do corpo fenomenal.
5.4 O Eu.
“(...)só me conheço em minha inerência ao tempo e ao
mundo, quer dizer na ambigüidade”.
No entanto, há um solipsismo que nunca é ultrapassado. A experiência
pré-objetiva do Eu é, podemos dizer, pública e, paradoxalmente, privada.
Comporta, ao mesmo tempo, harmonia e desacordo, comunhão e recusa, pois as
relações entre o cogito e o mundo não são mediadas por uma intencionalidade
estéril. Ao se dirigir às coisas, ao se lançar no mundo, ao se abrir ao Outro o
cogito não o faz gratuitamente, pois a experiência do cogito, antes de chegar às
coisas e ao Outro, é desde sempre atravessada de significação e, nesse sentido,
246
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, p.474.
241
o Eu jamais abdica do seu poder intencional, demiúrgico e voluntário. Portanto,
nesse caso, é fundamental entender como a subjetividade pode, ao mesmo
tempo, ser independente e indeclinável? Expliquemo-nos.
As coisas, o Outro sempre nos são dadas em perspectiva. Sabemos
que no nosso contato com o mundo há sempre a presença “ameaçadora” do
Outro, pois mesmo sem ter a posse integral da sua vida subjetiva ele está lá
seguramente presente e interferindo no meu campo perceptível. Podemos dizer
que a vida se passa no exterior e tudo o que me ocorre – um pensamento, uma
vontade, um medo e uma visão, por exemplo, – se refere a experiências
transcendentes. Todavia, é preciso que as coisas e o Outro encontrem em mim
um solo significativo e aberto, sempre disposto a receber os seus gestos
expressivos, a responder e a compreender o comportamento. Nesse caso, o Eu
também não deixo de fazer o papel de um cogito “ameaçador” que se recusa, ao
mesmo tempo, à abertura e a se declinar – projetar – em direção as solicitações
do outro: “Mas esse intermundo é ainda um projeto meu, e haveria hipocrisia em
acreditar que quero o bem de outrem assim como o meu, já que mesmo esse
apego ao bem de outrem ainda vem de mim”.
247
Mas, então, não estamos, nesse caso, admitindo os pressupostos do cogito
intelectualista?
Antes de tudo, conforme Merleau-Ponty, um exame sobre o uso da
linguagem pode nos ajudar a entender esse paradoxo. A linguagem, entre todos
os objetos culturais, é aquele que de modo mais efetivo torna possível à certeza
do Outro e a experiência de uma relação intersubjetiva. Não estamos mais nos
247
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, 478.
242
referindo a uma ligação concretizada em toda a sua extensão a partir de um
diálogo anônimo, ou de uma intenção cega. O diálogo estabelecido no uso comum
dos signos lingüísticos é sempre intencional e se afirma a partir uma base comum
– “intermundo” – entre o Eu e o outro:
Na experiência do diálogo, constitui-se um terreno comum entre o
outrem e mim, meu pensamento e o seu formam um só tecido, meus
ditos e aqueles do interlocutor são reclamados pelo estado da
discussão, eles se inserem em uma operação comum da qual nenhum
de nós é o criador. Existe ali um ser a dois, e agora outrem não é mais
para mim um simples comportamento em meu campo transcendental,
aliás nem eu no seu, nós somos, um para o outro, colaboradores em
uma reciprocidade perfeita, nossas perspectivas escorregam um na
outra, nós coexistimos através de um mesmo mundo.
248
Através das múltiplas formas de diálogo saio do eu, movimento-me em
direção ao outro. A fala, como o texto acima descreve, é uma função projetiva que
me permite, antes de tudo, formar com o Outro um solo comum, estabelecer uma
intimidade de transparência e reciprocidade, pois, nesse caso, “nos coexistimos
através do mesmo mundo”. Assim, por uma conseqüência necessária, sou
também invadido pela fala do Outro: “que é sentido por mim como uma
ameaça”.
249
No entanto, na experiência do cogito cartesiano o mundo e o outro são
dados como algo sempre presente em torno de Eu. Mas essa subjetividade
radicalmente indeclinável é a experiência do cogito tácito, uma experiência de mim
para mim. A certeza, nesse caso, tem como condição a posse acabada de si e do
mundo desdobrado diante si. Podemos supor, então, que o cogito cartesiano é
capaz de antecipar em si mesmo todas as experiências do mundo. A realidade,
248
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, 474.
249
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, 475.
243
nesse caso, é precedida pela operação reflexionante do sujeito. Nessa perspectiva
do cogito cartesiano, a linguagem nada mais seria do que a tradução de um
pensamento previamente arranjado – “uma veste”. No entanto, o exame da
experiência da linguagem nos revela, desde o capítulo “O corpo como expressão
da fala” que o pensamento se expressa através da fala, mas não está traduzido
integralmente à fala. Por isso mesmo, podemos afirmar, que a fala não anuncia
algo que pretensamente já estava dado no pensamento. A fala e o pensamento
são concomitantes, pois vivem e se projetam no mesmo tempo. O pensamento se
anuncia no mundo através da linguagem, mas, absolutamente, não constitui o
mundo, como a linguagem também não revela todas as faces do pensamento e do
mundo.
A transcendência, paradoxalmente, encontra nessa vivência ambígua
do cogito – nesse eu “ameaçador” – a sua possibilidade de realização. Nesse
caso, o mundo exterior é interiormente significado por mim, como se a
coexistência, antes de ser vivida, se encontrasse intencionalmente antecipada no
sujeito: “Se o próprio pensamento não colocasse nas coisas aquilo que em
seguida encontraria nelas, ele não teria poder sobre as coisas, não as pensaria,
ele seria uma ilusão”.
250
.
Nesse comércio entre o sujeito e o mundo existe algo que permanece
distinto do cogito, pois percebo e sou interpelado pelos vestígios do mundo. A
minha percepção, como temos discutidos, não constitui as coisas e o Outro, não
estabelece solitariamente a certeza e os segredos mundo, pois está aderida a ele,
250
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, 496.
244
como bem sugere a vivência anônima do corpo fenomenal que se lança
continuamente no mundo através dos atos intencionais.
Porém a subjetividade e a ordem do em si não são absolutamente
ultrapassadas. A relação dialógica com o Outro não deixa de se dar sob as
condições do sombreamento – abschattung. Ainda há um Eu que permanece
solitário, há um Outro que se mostra estranho, pois diálogo e sinto a sua
presença, mas, mesmo assim, ele conserva uma vivência própria e solitária numa
dimensão que não experimento jamais. Com o Outro percebido como
comportamento não compartilho integralmente os mesmos motivos, as mesmas
intenções, pois o significado de uma experiência afetiva é sempre aberto e, nesse
sentido, é muito maior – mais expressivo – do que eu posso supor. A sua tristeza,
o seu desejo erótico, por exemplo, não será jamais traduzido na forma de conceito
claro e distinto para mim. Não há, seguramente, como afirmar: ”eu conheço a
situação, eu sei o que você está passando, eu já sofri como você”. Percebo o
outro, vejo, sinto os vestígios da sua existência por meio do comportamento, mas
não experimento a sua experiência com todos perfis da vivência solitária: “O luto
de outrem e sua cólera nunca tem exatamente o mesmo sentido para ele e para
mim”.
251
Como já indicamos no início deste capítulo, na experiência primeira o
Outro e as coisas mundanas não são absolutamente constituídos pelo cogito.
Assim como estou ancorado no mundo, as coisas e o Outro não se reduzem as
minhas representações. Antes disso, eles interrogam o Eu que se projeta no
251
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, 477.
245
mundo, que vive fora de si Ek-stasepois está ancorado no mundo, nas coisas
e no Outro.
Portanto, o encontro entre o Eu e o Outro não resulta de uma atividade
do pensamento. É, antes de tudo, suscitado pelo corpo próprio, pelos vestígios e
objetos culturais - a linguagem. A vantagem desse encontro inter-corpóreo é que
o corpo alheio jamais será reduzido à condição de um objeto, essa é uma atitude
da consciência constituinte que não cabe na experiência primeira. Ademais, se o
outro nunca me é dado integralmente no campo perceptivo ele sempre será uma
vivência interrogável. A experiência conjunta – o diálogo anônimo do corpo, da fala
e dos objetos culturais – remonta sempre a há um excesso de expressividade.
A experiência da linguagem enriquece a percepção, transpõem o
solipsismo, supera a ausência de companhia e a solidão da vida privada, mas não
fornece jamais uma descrição acabada do Outro ou, ainda, de Si próprio. Os
pensamentos, as subjetividades se comunicam, mas o Outro me oferece mais do
que eu posso suportar. Nesse sentido, o Eu e ou Outro compartilham, na vivência
pré-objetiva do corpo, um mesmo horizonte espacial e temporal, experimentam a
mesma cultura e, permanecem, sempre presenças intencionais e abertas: “A
solidão e a comunicação não devem ser os dois termos de uma alternativa, mas
dois momentos de um único fenômeno, já que, de fato, outrem existe para
mim”.
252
A experiência do corpo próprio, o nosso engajamento no mundo já nos
garante a certeza das coisas e do outro, isto é, uma existência em comunhão. Mas
através da linguagem a reciprocidade e a coexistência se instalam justamente no
252
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, 482.
246
domínio de uma experiência – da res cogitans – que Descartes somente
reconheceu como válida – indubitável - porque se mantinha só e afastada de
todos os prejuízos do mundo: “eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira
todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito”.
253
Os pensamentos, as subjetividades se comunicam: “se eu lhe empresto
pensamentos, em troca ele me faz pensar”.
254
O Evento da linguagem enriquece a
percepção e a vida, não permite jamais o gosto da solidão absoluta como foi
experimentada pelo eu cartesiano logo no início da segunda Meditação: “(...) e,
como se de súbito tivesse caído em águas muito profundas, estou de tal modo
surpreso que não posso nem firmar meus pés no fundo, nem nadar para me
manter à tona”.
255
O mundo, o Outro e a própria palavra, assim como o seu
sentido, não é constituída pelo trabalho de uma consciência reflexionante. Como
vimos acerca do comentário sobre a experiência da “fala falante”, a linguagem é
comunicativa em todo a sua extensão e, nesse caso, não é resultado de síntese
de identificação absoluta e fechada:
A partir do momento que o homem se serve de uma linguagem para
estabelecer uma relação viva consigo mesmo ou com seus
semelhantes, a linguagem não é mais um instrumento, não é mais um
meio, ela é uma manifestação, uma revelação do ser íntimo e do elo
psíquico que nos une ao mundo e aos nossos semelhantes.
256
O cogito, indica Merleau-Ponty, enquanto um ser cultural, enquanto
uma tese filosófica é transcendente, como são coisas as quais o meu corpo se
253
DESCARTES. Meditações metafísicas, p. 174.
254
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, p.475.
255
DESCARTES. Meditações metafísicas, p. 173.
256
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, p.267.
247
dirige. Mas não é, como o meu próprio corpo, um exterior isento de interior. Se
assim fosse seria impossível reconhecer esse exterior. Essa parece ser a ligação
do interior com o exterior: “A própria experiência das coisas transcendentes só é
possível se eu trago e encontro em mim seu projeto”.
257
Na experiência perceptiva não separamos o ato de perceber do
percebido. É impossível conceber um sem o outro. Negar isso seria assumir uma
percepção de natureza não intencional e, como nas palavras de Merleau-Ponty:
“Reconhecemos de uma vez por todas que nossas relações com as coisas não
podem ser relações externas, nem nossa consciência de nós mesmos a simples
notação de acontecimentos psíquicos”.
258
O caráter profano do mundo, a experiência dos perfis e a visão da
experiência primeira do mundo não são dados na obra de Merleau-Ponty como
problemas que devem ser superados. Muito pelo contrário, a filosofia merleau-
pontyana se afirma naquilo que o pensamento clássico descarta. Encontramos,
desse modo, a afirmação de uma Filosofia que busca descrever as coisas a partir
da sua “profanidade”, pois ficou estabelecido que a contradição entre
perspectivismo e unidade, ou entre opacidade e transparência é apenas um
momento da experiência perceptiva, que não pode ser tomada como a definição
representativa de um erro ou de uma falha. A leitura negativa que o pensamento
dogmático atribui às categorias de indefinição e abertura é – conforme o que
descreveremos a seguir – ultrapassada quando buscamos compreender o tempo
como medida do ser, como aquilo que realiza a síntese dos horizontes.
257
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, 494.
258
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, 500.
248
A evidência absoluta, a posse integral, a percepção definitiva e indivisa
de um objeto, do Outro e de Si mesmo somente seria possível se o sujeito
deixasse de ser ele mesmo e se convertesse em uma razão pura, em um
pensamento constituinte. Nesse caso, o mundo deixaria de existir em torno de
mim para tornar-se objeto diante de mim; e isso representa, podemos dizer, um
delírio típico de um projeto alicerçado sobre um “cartesianismo” radical que crê
nas certezas constituídas por um cogito que não apenas não interroga o mundo
como não é, sobretudo, por ele interrogado.
A Filosofia clássica é portadora de uma falsa esperança, pois foi
construída em função de um mundo sustentado por uma série de abstrações que
negam a realidade e a força da experiência profana encerrada no nosso contato
pré-reflexivo com o mundo. Se rompêssemos com a nossa inerência estrutural no
mundo, toda a possibilidade de diálogo e, fundamentalmente, toda experiência
contingente de
"estar no mundo" in-der Welt-sein – estaria perdida. Nessa
situação objetiva, não há porque supor o fenômeno –
erscheinung – e, por
conseqüência lógica - não há lugar para a percepção –
wahrnehmung. A
subjetividade não seria capaz nem mesmo de se reconhecer em sua existência e,
então, não poderíamos mais falar em vivência –
Erlebinis – e intencionalidade da
consciência.
Contudo a subjetividade encontra no mundo, através de seus vínculos
intencionais vividos nas dimensões do espaço e do tempo, tudo aquilo que a faz
ser e, ainda, tudo o que a remete a condição de não-ser. A experiência no mundo
é sempre paradoxal, pois quando retemos o tempo estamos negando a sua
249
principal condição, a passagem. Quando escolhemos a figura nos decidimos, de
imediato, por um determinado contexto, isto é, ancoramos numa parte do mundo
ao mesmo tempo em que apartamo-nos de um outro mundo. Estamos
intencionalmente e constantemente recortando a paisagem. Mas somos, do
mesmo modo, levados pelo tempo e retidos pela paisagem. Não há diálogo sem
perda e submissão, pois pronunciar uma palavra é, desde sempre, optar por um
sentido e, então, abandonar um outro. No contanto com o mundo, uma ancoragem
significa o desaparecimento de uma outra paisagem que nunca chegará a fazer
parte do nosso horizonte perceptivo: significação pura e fiel da experiência
dialética e estrutural do cogito no mundo. Nesse caso, vivemos uma experiência
que é em toda a sua extensão paradoxal, pois experimentamos na mesma
situação espaço-temporal, no contato com uma coisa ou com o Outro, o
sentimento de um dado ausente e a certeza de uma presença “ameaçadora”. O
interior, ao mesmo tempo, nega e supõe o exterior, a opacidade se aloja na posse
da transparência.
Graças a essa ambigüidade que liga o Eu e as coisas mundanas é
possível à percepção identificar e manter diante do Eu o seu objeto intencional:
“Ver é ver algo”. É fundamental reconhecer que há um poder constituinte na
percepção, ainda que não seja aquele mesmo da consciência objetiva, pois a
síntese da percepção, como já nos referimos anteriormente, é sempre incompleta,
ocorre sempre em perspectiva -
Abschattung.
Todavia, a percepção será sempre erro e ilusão se permanecemos fiéis
aos pressupostos do pensamento objetivo. Para a filosofia intelectualista, por
250
exemplo, precisamos corrigir a percepção através da consciência. Somente os
eventos determinados pela consciência são sempre verdadeiros. Mas, como já
indicamos ao longo do trabalho, na experiência pré-objetiva as certezas operadas
pela consciência constituinte não passam de um desvio, representam uma
abstração do mundo fenomenal. O caso das relações afetivas, do amor, por
exemplo, mostra que é a redução à confiança presunçosa de um pensamento que
nos fornece a posse, a certeza e a significação das nossas experiências afetivas é
quase um delírio. Vejamos, nesse caso, o porque dessa relação. Amo e tenho
vontade do mesmo modo que tenho consciência de amar e consciência de ter
vontade. A experiência do amor indica que os eventos da consciência não são
duvidosos, mas, por outro lado, sugere que não cabe a consciência pretender
desvelar integralmente o amor que experimentamos. O amor prescinde dos
critérios de certeza do cogito constituinte. O sentido nunca será absolutamente
claro, distinto e definitivo. Podemos concluir com Merleau-Ponty, como o texto
abaixo indica, que o significado do amor transparece na experiência de amor:
O amor para o apaixonado que o vive não tem nome, não é uma coisa
que se possa circunscrever e designar, não é o mesmo amor do qual
falam os livros e os jornais, porque é a maneira pela qual o
apaixonado estabelece relações com o mundo, é uma significação
existencial.
259
Não há sentimento falso ou enganoso, não odeio ou amo o outro
enganando-o ou me iludindo. Os sentimentos vividos são sempre verdadeiros.
Nesse caso, a medida de um amor falso e de um verdadeiro, como indica
Merleau-Ponty, é apenas um deslocamento: “Um amor verdadeiro termina quando
259
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, 515.
251
eu mudo ou quando a pessoa amada mudou; um amor falso revela-se falso
quando volto a mim”.
260
A percepção interior, o deslocamento em direção a si mesmo, é uma
tarefa imprópria se, nesse caso, acreditamos na posse absoluta do Eu. Mas é
possível voltar-se a si mesmo, concomitantemente a minha relação com as coisas
mundanas e com o Outro. Nesse sentido, o deslocamento, a declinação para
interior do próprio Eu é um movimento incompleto que não deixamos jamais de
experimentar. No entanto, essa volta supõe um trabalho sempre aberto, supõe
uma síntese nunca acabada, pois não sou um objeto, só me encontro, conforme
os termos de Merleau-Ponty, “em ato”.
261
É através da experiência original do meu corpo, da sua disposição
intencional e dos seus gestos que posso conceber o Outro como um Eu, isto é,
uma existência como minha, um comportamento: transparente e opaco. A
experiência ambígua e dialética atravessa toda a vivência do cogito. Nada é
integralmente antecipado por um pensamento constituinte, não há posse absoluta
e transparente do Outro como, do mesmo modo, o Eu permanece indecifrável em
toda a sua extensão para a consciência de Si. Se as coisas nos são dadas em
excesso e transbordam os limites do campo da percepção, o Eu, de modo
semelhante, se oferece como excesso de si:
Assim, a posse de si, a coincidência consigo não é a definição do
pensamento: ao contrário, é resultado da expressão e é sempre ilusão,
na medida em que a clareza do saber adquirido repousa na operação
260
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, 507.
261
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, 512.
252
fundamentalmente obscura pela qual eternizamos, em nós, um
momento de vida fugidio.
262
No exame do comportamento pré-objetivo o interior e o exterior são
inseparáveis. Eu compreendo o mundo porque estou situado nele e ele me
envolve. Compreendo a minha alma no instante que experimento o meu corpo. A
expressão do corpo é, em última análise, uma expressão da alma. A existência
engajada, a experiência pré-objetiva não realiza a dicotomia psicofísica, pois no
mundo estamos situados como um ser integral. A experiência primeira é um
fenômeno estrutural no qual não experimentamos, num mesmo ser, duas ações
desencadeadas e vividas por duas substâncias distintas.
Temos que admitir que são relações estruturais que formam o sentido
ambíguo da nossa experiência primeira. O cogito carrega em si a universalidade e
o mundo, mas, por seu lado, o mundo é o campo de nossas experiências e o
cogito, também, está no mundo, pois o sujeito somente realiza a sua ipseidade
ancorando no mundo: “(...) a minha existência como subjetividade é uma e a
mesma que minha existência como corpo e com a existência do mundo(..)”
263
A partir da minha presença a mim mesmo sei que não há causalidades
objetivantes e dicotômicas que operam a relação entre a consciência e o corpo, ou
entre o meu mundo e o de outrem. Quando me dirijo mim o que encontro é “um
fluxo anônimo”, uma estrutura na qual não existem estados de consciência
definitivos. Não me compreendo integralmente na exterioridade ou na
262
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, 521.
263
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, 547.
253
interioridade, pois “regressando ao interior de sua consciência, cada um se sente
além de suas qualificações e no mesmo instante se resigna a elas”.
264
Através do mundo natural e do mundo cultural, através das estruturas
espaço-temporais e dos pontos de confluência e dissensão entre o eu, o outro e
as coisas o comportamento se mostra como uma experiência que não é
absolutamente transparente ou, mesmo, absolutamente opaca.
Vejamos, nas páginas seguintes, como as relações entre o cogito
encarnado, as coisas do mundo natural e o outro são desdobradas no tempo e no
espaço. Categorias fundamentais que permitem aprofundar a noção de
experiência direta, entender a relação – a freqüentação – estrutural do corpo com
o mundo e, sobretudo, responder mais solidamente as questões que levantamos
no início desse tópico
265
.
264
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, p.582.
265
“(...)Qual a ligação entre o corpo encarnado, o outro e as coisas quando pensamos no espaço,
no tempo e na linguagem? Como é que podemos falar dessas categorias a partir da nossa vivência
original e encarnada? Ainda, é possível entrever toda complexidade do comportamento tendo,
como pano de fundo, a relação estrutural e fundante do corpo com essas categorias? (...) Afinal,
estamos, nesse sentido, entre a alternativa do corpo como um eu constituinte ou, ainda, como um
receptáculo de estímulos?’ Conferir, p.203.
254
VI. O ESPAÇO, O TEMPO E O COMPORTAMENTO.
6.1 O espaço
O espaço, assim, não é mais esse meio das coisas
simultâneas que poderia ser dominado por um observador
absoluto, igualmente próximo de todas elas, sem ponto de
vista, sem corpo, sem situação especial, pura inteligência,
em suma – o espaço da pintura moderna, dizia
recentemente Jean Paulhan, é “o espaço sensível ao
coração”, onde também estamos situados, próximos de nós,
organicamente ligado a nós.
Merleau-Ponty
Essas belas palavras de Merleau-Ponty – lidas pelo filósofo num
programa de rádio em 1948
266
– anunciam uma concepção de espaço erigida pela
arte e pela ciência modernas em contraposição ao espaço geométrico e
homogêneo do pensamento clássico. Mas essa leitura do espaço bruto, sensitivo
e estruturalmente ligado ao corpo está, de modo mais vigoroso e preciso, descrita
nas duas primeiras obras do filósofo. Na verdade os textos que compõem o
programa de rádio retomam, em grande parte, os escritos da Fenomenologia da
Percepção. Essa concepção de um “espaço organicamente ligado a nós”
resultou, sobretudo, do exame da condição primeira do homem no mundo, da
descrição do engajamento estrutural do corpo e das coisas com o espaço. Na
análise merleau-pontyana baseada na armação da experiência primeira, como
ainda melhor indicaremos, o espaço não é isotrópico, não é límpido e não é um
ambiente estranho às coisas e ao corpo. O espaço está integrado no mundo, se o
266
“Eu gostaria de mostrar nessas conversas que esse mundo é em grande medida ignorado por
nós enquanto permanecemos numa postura prática e utilitária, que foram necessários muito
tempo, esforços e cultura para desnudá-lo e que um dos méritos da arte e do pensamento
modernos (entendo por moderno a arte e o pensamento dos últimos cinqüenta anos ou setenta
anos) é o de fazer-nos redescobrir esse mundo em que vivemos mas que somos sempre tentados
a esquecer.” MERLEAU-PONTY, Conversas, p. 2.
255
corpo está no espaço é porque o espaço também está nas coisas e no corpo
próprio. Por isso mesmo, precisamos seguir a indicação do texto de abertura, e
procurar a experiência de um espaço que nasce junto a nós – ao corpo – que,
nesse caso, se encontra na nossa experiência direta antes de toda e qualquer
objetivação.
Nesse sentido, são as considerações abstracionistas erigidas sobre o
espaço, fundamentalmente pelo pensamento clássico, que temos que ultrapassar
em direção a uma concepção de espaço fundante – “nível primordial”. O
pensamento clássico, de modo geral, ao separar o espaço das coisas optou por
um caminho que não comporta uma ligação estrutural entre a expressividade do
corpo, às coisas mundanas e o próprio espaço. Nesse caso é importante, antes de
tudo, fazer uma breve descrição das concepções de espaço arquitetadas pelo
pensamento clássico.
A primeira noção clássica, a mais usual, de filiação empirista, está
limitada à concepção do espaço como um ambiente físico, uma espécie de
receptáculo das coisas. Trata-se, nesse caso, da redução do espaço à condição
de um meio, de um lugar “espacializado”, no qual o eu e as coisas estão
encerradas e dispostas. A indicação geral, dessa perspectiva, é justamente que a
acomodação pontual das coisas compõe – determina - a nossa percepção – a
idéia - do espaço. Vejamos, numa breve referência, como a interpretação
humeana da não divisibilidade infinita da extensão faz alusão a essa primeira
compreensão do espaço: “Assim como recebemos a idéia de espaço da
256
disposição dos objetos visíveis e tangíveis
267
, assim também formamos a idéia
de tempo, partindo da sucessão de nossas idéias e impressões”.
268
Não podemos,
nessa perspectiva, dizer que freqüentamos estruturalmente o espaço, pois, agora,
ocupamos uma posição no espaço como uma roupa que está no armário, como
um cadáver que está num caixão.
A segunda concepção de espaço, elaborada pelo pensamento racional,
basicamente pelo kantismo, supõe o espaço não mais a partir da percepção das
coisas mas, fundamentalmente, em razão dos princípios da geometria. Podemos,
nessa perspectiva, afirmar com Kant que a natureza do espaço é geometral: “A
geometria é uma ciência que determina sinteticamente, e contudo a priori, as
propriedades do espaço.”
269
A tese kantiana do espaço remonta a um domínio
subjetivo e ideal dessa acepção. O espaço deixou ser algo equivalente às coisas,
de derivar dos sentidos e passou, com Kant, à condição de uma categoria a priori
do entendimento que, inerente à sensibilidade perceptiva do sujeito, ordena os
objetos dos sentidos. O espaço - como o tempo – não apenas colabora para a
percepção das coisas, mas é uma categoria sem qual as coisas não poderiam ser
vistas. Acompanhemos as palavras de Kant, na Estética Transcendental, que
explica essa definição ideal do espaço como uma representação a priori
necessária a todas as intuições empíricas: “O espaço nada mais é do que a forma
de todos os fenômenos dos sentidos externos, isto é, a condição subjectiva da
sensibilidade, única que permite intuição externa.”
270
.
267
Grifo nosso.
268
HUME. Tratado da Natureza Humana, p.61.
269
KANT. Crítica da Razão Pura, p.66.
270
KANT. Crítica da Razão Pura, p.67.
257
Portanto, nesse último sentido, podemos afirmar que as coisas não
estão mais no espaço, mas ganham atributos próprios da condição espacial.
Nesse caso, as coisas se tornam espaciais, são percebidas a partir de categorias
do espaço que proporcionam ao sujeito a possibilidade de desvelá-las a partir de
um arranjo de propriedades espaciais. Para a filosofia de Kant todas as coisas
são, de antemão, percebidas à luz de categorias espaciais geométricas e, desse
modo, podemos dizer que o espaço é uma categoria “espacializante”. Para
Merleau-Ponty, resumidamente, essas duas interpretações acerca do espaço
podem ser descritas do seguinte modo:
Portanto, ou eu não reflito, vivo nas coisas e considero vagamente o
espaço ora como ambiente das coisas, ora como seu atributo comum,
ou então eu reflito, retomo o espaço em sua fonte, penso atualmente
as relações que estão sob esta palavra, e percebo então que elas só
vivem por um sujeito que as trace e as suporte, passo do espaço
espacializado para o espaço espacializante.
271
Assim sendo, o espaço, conforme essas duas considerações antitéticas
é, num primeiro sentido, um lugar e, depois, uma categoria que torna possível a
uma atividade noética definir geometricamente as coisas. É, primeiro, o lócus das
coisas e, de outro modo, aquilo que confere a elas uma natureza geometral. Estou
“aqui” ou “lá”, experimento olhar “de cima” ou “de baixo” coisas que podem ser
“grandes”, “pequenas” ou estarem “próximas” e “distantes” etc. Então estamos
entre a alternativa de perceber as coisas no espaço ou, conforme a segunda
noção, de conceber o espaço como uma categoria homogênea, uma intuição
constituinte que conecta e torna possível perceber as coisas em suas
271
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.328.
258
particularidades espaciais. Mas é preciso indagar: o espaço é “espacializante” ou
“espacializado”? Ou, ainda, pode ser as duas coisas ao mesmo tempo?
Conforme já indicamos no início desse tópico, podemos com Merleau-
Ponty pensar em um espaço que não se reduz absolutamente a nenhuma das
alternativas acima. Para nos contrapormos a esses recortes objetivos, temos que
investigar a experiência originária do espaço e considerar que estamos também
em presença de uma terceira espacialidade: “o nível primordial”. Nessa nova
presença o trabalho e as intenções do corpo, o arranjo e a percepção das coisas e
do próprio espaço, talvez a lição mais fundamental da análise merleau-pontyana
acerca do tema, não se diferenciam, pois o espaço – livre de toda análise nocional
- não é uma condição a priori que organiza as coisas, assim como não é um meio
finitamente indiviso no qual as coisas estão depositadas.
Na experiência do corpo próprio vemos, concomitantemente, a coisa
enraizada no espaço e o espaço nascendo das coisas, o sujeito se projetando no
espaço e, também, o espaço se moldando às intenções do sujeito. Para melhor
elaborar essa noção de um espaço fundante Merleau-Ponty recorre à descrição de
quatro categorias espaciais vivenciadas na experiência direta: orientação
espacial, profundidade espacial, movimento e fixação da constância dos
objetos. Vejamos, portanto, como Merleau-Ponty – no segundo capítulo, da
segunda parte da Fenomenologia da Percepção – remonta a essa terceira
concepção de espacialidade em função dessas categorias.
Então, o que é orientação espacial? Para dar conta desse tema e
superar as interpretações do intelectualismo e do empirismo, Merleau-Ponty
analisa o experimento de Stratton que, de modo muito claro, mostra como
259
algumas noções de orientação – como alto e baixo, direita e esquerda –
acontecem, desaparecem, retornam e se reorganizam em função de uma relação
estrutural entre o corpo e as coisas mundanas: “É preciso que nos voltemos para
algum caso excepcional, em que ela se desfaça e se refaça aos nossos olhos, por
exemplo ao caso de visão sem inversão retiniana.”
272
O experimento de Stratton
273
, como resumidamente transcrevemos em
nota de rodapé, mostra como são incongruentes as leituras clássicas sobre
orientação espacial. O empirismo sustenta, de modo geral, a idéia de que a
orientação espacial obedece à armação objetiva dada no mundo alcançada pelas
nossas sensações. Assim como percebemos as coisas através de uma montagem
de sensações também, nesse caso, nos orientamos no espaço em função dessa
montagem. No entanto, quando confrontado com a experiência Stratton, o
empirismo não responde as implicações desse experimento. A orientação espacial
é mais complexa do que supõe o empirismo, pois o experimento nos mostra que
nesse processo intervém um número maior de varáveis do que a impressão prévia
da armação das coisas que é, por meio das sensações, sugerida ao sujeito. Já o
intelectualismo, por seu turno, nega a possibilidade de um movimento de inversão
retiniano alheio às orientações determinadas a priori pelo sujeito constituinte, isto
é, não reconhece as implicações do experimento: “O intelectualismo não pode
272
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.329.
273
“Se se faz um paciente usar óculos que viram para baixo as imagens retinianas, primeiramente
a paisagem inteira parece irreal e invertida; no segundo dia da experiência, a percepção normal
começa a se restabelecer, à exceção de que o paciente tem o sentimento de que seu próprio corpo
está invertido (...) Do terceiro ao sétimo dia, o corpo se apruma progressivamente e enfim parece
estar em posição normal, sobretudo quando o paciente está ativo. No final da experiência, quando
se retiram os óculos, os objetos parecem sem dúvida não invertidos, mas “bizarros”, e as reações
motoras estão invertidas: o paciente estende a mão direita quando seria preciso estender a mão
esquerda.” MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.329.
260
nem mesmo admitir que a imagem do mundo esteja invertida após a imposição
dos óculos”.
274
Mas quais seriam essas implicações do experimento para a noção de
orientação espacial? De modo geral, podemos dizer, a orientação no espaço não
obedece ao objetivismo do empirismo e, também, não se reduz ao subjetivismo do
introspectivismo. A orientação espacial não resulta de uma série de informações
sugeridas aos sentidos conforme nos são dadas às coisas, como sustenta o
empirista, e, também, não é algo que parte autonomamente do sujeito para nos
informar os as coisas estão. Prova disso, argumenta Merleau-Ponty, é que a
orientação comporta uma lógica dinâmica e complexa que não remete nem à
função isolada do corpo, nem a uma análise objetiva da disposição dos objetos:
“(...) os mesmos conteúdos podem estar orientados alternadamente em uma
direção ou na outra, e que as relações objetivas, registradas na retina pela
posição da imagem física, não determinam nossa experiência de “alto” e de
“baixo”.
275
A orientação ocorre, conforme nos sugere o experimento de Stratton, a
partir da nossa experiência encarnada no mundo, da nossa situação no mundo.
As noções de alto e baixo, de direita e esquerda, por exemplo, não são objetivas
no mundo, não estão lá como referências universais determinando orientações ao
meu corpo como, ao mesmo tempo, não são escolhidas de antemão pelo sujeito,
mesmo porque não temos essas noções antes da experiência do corpo próprio no
campo perceptivo. São noções que apreendemos estruturalmente na relação do
nosso corpo com o mundo, pois quando o mundo se inverte, o corpo,
274
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.333.
275
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.332.
261
fundamentalmente quando está em ação, acerta – equilibra – a sua orientação no
mundo corrigindo, antes de tudo, essas noções de direção no próprio corpo:
O que importa para a orientação do espetáculo não é meu corpo tal
como de fato ele é, enquanto coisa no espaço objetivo, mas meu
corpo enquanto sistema de ações possíveis, um corpo virtual cujo
“lugar” fenomenal é definido por sua tarefa e por sua situação Meu
corpo está ali onde ele tem algo a fazer.
276
O corpo, de certo modo, constitui o meu ponto de vista sobre o mundo e
determina a orientação espacial. No entanto, essa orientação nunca é
completamente constituída por mim, pois a direção para a qual o corpo aponta é
também aquela indicada pela paisagem. O corpo antes de ocupar uma posição
habita o espaço e está, como indica Merleau-Ponty, em situação. O experimento
de Stratton e, do mesmo modo, do espelho obliquo
277
indicam como as “tarefas” e
a “situação” – as nossas intenções motoras e as solicitações da paisagem –
elaboram a orientação no espaço. Sempre ordenadas – seja na paisagem normal
ou na de inversão retiniana apresentada no experimento de Stratton – as coisas,
as “tarefas” e a minha “situação” estão continuamente solicitando uma atitude
corporal. Desse modo, podemos compreender a orientação como um “ato global
do sujeito perceptivo”.
278
Podemos dizer, que na experiência direta, o corpo
constitui um “nível espacial” primordial, na medida em habita espetáculo em
função de um contato intermitente entre as suas intenções motoras e as
276
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.336.
277
“Se se dispõe para que um sujeito só veja o quarto onde se encontra por um intermédio de um
espelho que o reflita inclinando-o a 45º em relação à vertical, primeiramente o sujeito vê o quarto
“oblíquo”. Um homem que ali se desloca parece caminhar inclinado para o lado. Um pedaço de
papelão que cai ao longo da guarnição da porta parece cair segundo uma direção oblíqua. O
conjunto é “estranho”.” cf. MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.334.
278
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.335.
262
solicitações da paisagem, pois na relação entre o corpo e o mundo, de acordo
com os resultados do experimento sobre o espelho oblíquo, os objetos invertidos
também orientam a paisagem em direção ao plano vertical. Assim, o corpo
escolhe uma orientação, envolve e é envolvido numa orientação espacial. Nesse
sentido o corpo, como já indicamos anteriormente, através de sua expressividade
intencional dialoga com o mundo, pois o mundo não deixa de solicitar ao corpo um
lugar, uma direção e um comportamento. Portanto, é desse modo dialético que
precisamos ler a orientação espacial, sempre assentada em um “nível espacial”
primordial que precede todos os outros níveis e, a partir do qual, a experiência
perceptiva se desdobra:
A constituição de um nível espacial é apenas um dos meios da
constituição de um mundo pleno: meu corpo tem poder sobre o mundo
quando minha percepção me oferece um espetáculo tão variado e tão
claramente articulado quanto possível, e quando minhas intenções
motoras, desdobrando-se recebem do mundo as repostas que
esperam. Esse máximo de nitidez na percepção e na ação define um
solo perceptivo, um fundo de minha vida, um ambiente geral para a
coexistência do meu corpo e do mundo.
279
Portanto o corpo, assentado no nível primordial, não ocupa
simplesmente uma posição no mundo, pelo contrário, como já indicamos está em
situação. Compreendemos, nesse caso, que o mundo é genuinamente habitado
por nós e, então, é precisamos ter em conta todas as implicações que separam a
condição de estar em um lugar daquela de morar em um lugar. Moramos no
mundo como habitamos uma casa e, nas palavras de Merleau-Ponty, isso significa
279
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.337.
263
que “lançamos âncora no ambiente em que vivemos”.
280
Desse modo, podemos
compreender o que significa viver em situação: é habitar, é viver no “nível
primordial”, é “lançar âncora” num ambiente sempre requerido por uma paisagem
familiar que corrobora com as nossas intenções.
No entanto, não nos reduzimos integralmente ao “nível primordial”, pois
simplesmente ocupamos uma posição e, como supõe o intelectualismo, também
aprumos a paisagem. Há, desse modo, uma variação de níveis até um “nível
primordial” que está horizonte de todas as nossas percepções. Como experiência
direta, esse nível nunca poderá ser percorrido integramente, pois ele evidencia a
nossa freqüentação espontânea e sempre renovada no mundo. É o nosso
engajamento estrutural, a nossa situação que, em certa medida, é estruturada
pelas intenções imperativas do mundo que sempre se mostra em perspectiva. A
paisagem que nos interroga, a casa que habitamos não permanece sempre a
mesma e, então, a orientação precisa ser sempre renovada, pois freqüentemente
somos solicitados a intervir num ambiente familiar, estranho, enevoado e obliquo.
Habitamos e estamos ancorados no mundo contando com o mesmo
sentimento de segurança e de necessidade que vivenciamos quando pisamos o
solo. Somos continuamente orientados e nos orientamos no espaço na medida em
que todo gesto não pode ser, em situação alguma, isento de orientação: “A
labilidade dos níveis acarreta não apenas a experiência intelectual da desordem,
mas também as experiências vitais da vertigem e da náusea, que são a
consciência e o horror de nossa contingência”.
281
Portanto, no debate sobre a
280
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.338.
281
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.342.
264
orientação espacial é a nossa situação e o nosso engajamento estrutural que se
desvela como uma existência “nauseante”. Não há orientação sem um mundo já
pronto como referência, como não há uma orientação sem um sujeito que se
estabeleça intencionalmente e continuamente no mundo.
A dialética entre o corpo e a paisagem que, com vimos a pouco, nos
remete a uma compreensão do processo de orientação espacial e da nossa
situação “nauseada” no mundo, também nos permitirá reafirmar a nossa
experiência primordial da profundidade e, ainda, entender e superar as
aparentemente distintas concepções de profundidade espacial suscitadas pelas
teorias clássicas.
O empirismo, antes de tudo, nega a possibilidade da percepção da
profundidade, pois entende que se ela não é registrada pela retina não pode, por
sua vez, ser vista. O intelectualismo, de modo semelhante, também a concebe
imperceptível. Na verdade, ambos relacionam a profundidade à “largura dos
objetos considerados de perfil”.
282
“A experiência da profundidade segundo as
concepções clássicas consiste em decifrar certos fatos dados – a convergência
dos olhos, a grandeza aparente da imagem – recolocando-os no contexto de
relações objetivas que os explicam”.
283
Nesse caso, para o empirismo e para o
intelectualismo, a profundidade é entendida como algo que resulta de categorias
tomadas como signos da distância: a grandeza aparente e a convergência.
Portanto, a profundidade deriva de um processo de abstração semelhante ao
282
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.343.
283
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.346.
265
artifício pelo qual concebemos a distância, isto é relacionada-a a posição do objeto
e a nossa capacidade de apreendê-lo.
Mas é fundamental descrever a profundidade a partir da experiência
perceptiva, buscar a sua origem fenomênica e ver em que sentido ela nos fornece
a certeza da nossa vivência primordial no mundo: a dialética que supõe
requeremos o mundo e ele, por sua vez, nos solicita.
Essa consideração fenomênica da profundidade, como da orientação
espacial, nos dá acesso ao mundo da experiência direta na qual o nosso
engajamento estrutural se afirma e se desvela. A profundidade, conforme a
interpretação de Merleau-Ponty, é a dimensão do espaço mais existencial que
vivenciamos, fundamentalmente porque pertence muito mais a nossa situação do
que as coisas. Vivenciamos, mais uma vez, com a experiência da profundidade a
nauseabilidade e a vertigem do nosso engajamento no mundo. Nesse caso,
distintamente das concepções clássicas, temos agora a indicação de um
deslocamento e de um alargamento da profundidade em direção às relações
estruturais entre o corpo e o mundo que se desdobram e se enlaçam no espaço e
através do espaço. Quando aceitamos esse tipo de relação, a profundidade deixa,
definitivamente, de ser uma propriedade dos objetos, não é mais a largura vista de
perfil, como, do mesmo modo, não se resume ao meu olhar, isto é, não está em
meu poder – como um intelectualista poderia afirmar – produzi-la.
Na descrição da experiência primordial da profundidade, a grandeza
aparente e a convergência não aparecem mais como signos ou, ainda, como
causas da profundidade. Muito pelo contrário, agora são categorias que, na
medida em que carregam em si mesmas “o sentido da profundidade” funcionam,
266
de certo modo, como os motivos dessa experiência espacial: “elas estão
presentes na experiência da profundidade assim como o motivo, mesmo quando
não está articulado é posto à parte, está presente na decisão”.
284
A convergência,
sobretudo, pressupõe uma orientação – uma intenção – em direção ao objeto, nos
lança as coisas e ao mundo. Com a grandeza aparente não é muito diferente.
Mas, nesse caso, é preciso entender que ela já é profundidade ou, conforme a
indicação de Merleau-Ponty, apenas uma maneira de exprimir a nossa visão da
profundidade. É fundamental ter em conta que essas categorias, muito antes de
se reduzirem à condição de signos da distância, já são partes presentes no
espaço. Nesse aspecto, podemos supor que a distância, a convergência e a
grandeza aparente são categorias de uma mesma experiência primordial que, em
última análise, somente é possível em função do seu caráter estrutural que
envolve a nossa situação no mundo. Essas três categorias resultam, ao mesmo
tempo, da intencionalidade do nosso corpo e da solicitação das coisas. Temos a
experiência da profundidade na medida em que nos dirigimos ao mundo que,
concomitantemente, se apresenta a nós. A profundidade, a sua vivência é, como
já indicamos acima, um acontecimento estrutural próprio da experiência
perceptiva, solicitada pelos dados do mundo – na paisagem – e pelo corpo.
Portanto, a profundidade, nas palavras de Merleau-Ponty, “não pode ser
compreendida como um pensamento de um sujeito acósmico, mas como
possibilidade de um sujeito engajado”.
285
284
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.348.
285
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.360.
267
Depois que examinamos as categorias de orientação e profundidade
devemos, agora, descrever a de movimento. Nesse caso, é preciso ter muito
claro que as relações estruturais e dialéticas sustentadas nas análises das
categorias anteriores também estão presentes na descrição do movimento.
Primeiro temos que recuperar, como sucintamente indicaremos, a definição
objetiva de movimento, conforme elaborada pela teoria clássica. Essa definição
pode ser descrita a partir de quatro princípios explicativos. O movimento, nesse
caso: i - é um deslocamento ou uma mudança de posição; ii - é uma mudança nas
relações entre uma coisa e a circunvizinhança; iii - é um atributo acidental no
móbil, mas difere deste; iv - não ocorre sem referencial externo, não se dá,
portanto, num sentido absoluto.
Se, então, como indicamos a pouco, precisamos analisar o movimento
como uma experiência fenomênica, estamos, necessariamente, diante de uma
descrição que não suporta o argumento de base da teoria tradicional: a separação
entre o móbil e o movimento. “Todavia, este pensamento do movimento é, de fato,
uma negação do movimento”.
286
Para Merleau-Ponty, ao contrário do pensamento
objetivo, a síntese perceptiva, a vivência do movimento em nossa experiência
direta nos oferece um fenômeno que somente deve ser lido em seu sentido
estrutural, pois, nesse caso, estamos em presença de uma experiência que
remonta a um sujeito que não deixa de experimentar aquilo que é mais
significativo ao movimento, o seu caráter dialético de se integrar ao horizonte
perceptivo e, ao mesmo tempo, se destacar nesse horizonte. Expliquemo-nos.
Podemos dizer que o movimento é a renúncia de um lugar e de uma situação e,
286
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.362.
268
do mesmo modo, supõe, mesmo em condições diferentes, a permanência, ainda
que enevoada, deste mesmo lugar e desta mesma situação. Com o movimento,
indica Merleau-Ponty, ocorre o mesmo que em um “truque mágico”, não vejo os
intervalos, mas sei que eles estão lá. Quando digo que o móbil está em
movimento, não significa apenas que ele está se deslocando, mas que o
movimento começa no móbil e dali se desdobra no campo perceptivo: “Lanço uma
pedra. Ela atravessa o meu jardim. Por um momento ela se torna um bólido
confuso e volta a ser pedra caindo no chão a alguma distância”.
287
Do ponto
inicial, do lançamento, até o ponto de descanso é a mesma pedra que se move.
Mas é preciso considerar que a pedra, dependendo da intenção do sujeito, pode,
num sentido, expressar-se como uma arma, ou expressar-se como um “bólido
confuso” carregado de intenções ingênuas de uma criança ou, mesmo, revelar o
receio de um observador que habita a circunvizinhança. Entretanto, ao cair no
chão aquilo já foi uma arma e um bólido confuso volta a ser uma pedra. Porém,
nesse caso, é preciso considerar que alguma coisa mudou na pedra desde o seu
lançamento. O movimento transformou a pedra e o ambiente, pois ela ainda
conserva algo de ameaçador e de confuso.
Desse modo, Merleau-Ponty estrutura o movimento na experiência
perceptiva supondo que o movimento toma conta de todo o espaço, pois se não
há separação entre o móbil e o movimento, é porque o movimento é uma
ocorrência percebida no próprio móbil estruturalmente integrado com toda a
circunvizinhança: “É preciso haver uma relação interna entre aquilo que se
aniquila e aquilo que nasce; é preciso que um e outro sejam duas manifestações
287
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.361.
269
ou duas aparições, duas etapas de um mesmo algo que alternadamente se
apresenta sob essas duas formas”.
288
O movimento não deixa de revelar a mesma estrutura que encontramos
na experiência das relações entre figura e fundo. Nos dois casos, temos de
maneira muito clara, é que a nossa ancoragem no mundo, a nossa opção por um
ponto de apóio que nos apresenta o movimento e a paisagem, como, de modo
análogo, permite que optemos pela figura ou pelo fundo. Portanto, o movimento é
uma experiência conformada às solicitações que se impõe entre o ambiente e a
nossa atitude perceptiva e, nesse caso, como na percepção das figuras ambíguas,
ele se mostra como um acontecimento dado no horizonte do nosso campo
perceptivo. Podemos, nesse sentido, afirmar que a percepção da pedra em
movimento depende da sua função na paisagem, como, também, a figura de sua
relação com o fundo. Mas é preciso ter em conta que o movimento e a figura
indicam a transformação e de um ambiente já familiar e, sobretudo, exprimem a
“ancoragem” e o engajamento do corpo próprio a um determinado campo
perceptivo.
Por isso mesmo, em função dessa abertura a um campo perceptivo, é
possível compreender que o movimento não se detém no espaço. É, também,
fundamental ter em conta que o fenômeno do movimento se manifesta no tempo.
O movimento não supõe apenas o alto e o baixo, mas, também, o antes o depois
e o agora, como um fenômeno integrado a nossa existência primeira ele se mostra
mais como um acontecimento estrutural que, nesse caso, supõe um arranjo capaz
de modificar todas as categorias da existência, inclusive o tempo:
288
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.371.
270
As coisas coexistem no espaço porque estão presentes ao mesmo
sujeito perceptivo e envolvidas na mesma ordem temporal. Mas a
unidade e a individualidade de cada vaga temporal só possível se ela
está espremida entre a precedente e a seguinte, se a mesma pulsação
temporal que a faz jorrar retém ainda a precedente e contém
antecipadamente a seguinte. É o tempo objetivo que é feito de
momentos sucessivos. O presente vivido encerra em sua espessura
um passado e futuro. O fenômeno do movimento não faz senão
manifestar de uma maneira mais sensível a implicação espacial e
temporal.
289
Se toda percepção do movimento supõe, como já dissemos, uma
ancoragem é porque o nosso corpo próprio estabelece o solo sobre o qual a
percepção do movimento irá fundar-se. Mas, novamente, a ancoragem não se
resume a uma percepção explícita, ou mesmo uma tomada de posição objetiva
em referência a objetos determinados de antemão. Pode ser, nesse caso, quando
nos referimos a objetos que compõe um ambiente evidentemente utilitário. No
entanto, a ancoragem, enquanto uma certeza do nosso engajamento no mundo,
revela, mais uma vez, a nossa existência estrutural: a fixação do sujeito em um
ambiente e a sua inerência ao mundo aberto.
Na Fenomenologia da Percepção apreendemos que se uma coisa
possui caracteres e propriedade estáveis - forma e grandeza – ela, também,
comporta variações perspectivas que são como que aparências reais que nascem
da nossa relação com o objeto. A Psicologia, de modo geral, sustenta a idéia de
que obtemos do objeto a grandeza e a forma, que são variáveis conforme a
perspectiva. Construímos a objetividade, isto é, passamos da aparência à
verdade, reconhecendo uma grandeza e uma forma sempre constantes, tendo o
nosso corpo como referencial, numa certa orientação, num certo plano. A questão
289
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.371.
271
está, então, em determinar se há uma orientação, um plano na experiência
perceptiva que me permite reconhecer como constante a grandeza e a forma. A
resposta de Merleau-Ponty indica, mais uma vez, a relação estrutural da
experiência perceptiva como a saída fundamental possível, não somente para
determinar como uma grandeza ou uma forma podem ser tomadas como estáveis,
mas, ainda, como a objetividade permanece possível numa existência que se
caracteriza pelo dinamismo, pelo perspectivismo que se estabelece na relação
estrutural entre o corpo e o mundo.
É necessário entender que a grandeza e a forma não são atributos
dados exclusivamente no objeto singular, mas são espécies de signos que
indicam o contato – distância, horizonte exterior e interior - entre as partes do meu
corpo e as coisas dadas no campo fenomenal. Conforme Merleau-Ponty, quando
pensamos nas noções de forma e grandeza, a nossa existência perceptiva
encarnada é descrita a partir de três “normas” que indicam a relação estrutural que
a envolve no contato original com as coisas:
A distância de mim ao objeto não é uma grandeza que cresce ou
decresce, mas um tensão que oscila em torno de uma norma; a
orientação oblíqua do objeto em direção não é medida pelo ângulo que
ele forma com o plano de meu rosto, a mim é sentida como um
“desequilíbrio”, como uma repartição desigual de suas influências
sobre mim; as variações da aparência não são mudanças de grandeza
para mais ou para menos, distorções reais: simplesmente, ora suas
partes se articulam umas às outras e desvelam as suas riquezas.
290
A forma e a grandeza percebidas estão dadas numa relação intrínseca
que se estabelece entre o nosso corpo e as coisas. Como o texto acima descreve,
290
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.406.
272
entre o nosso corpo e as coisas - a “distância” é significativa como “tensão”, a
“orientação obliqua” é vista sobre a condição de um “desequilíbrio” e, ainda, as
“variações da aparência” como “distorções reais” – é sempre um processo
dinâmico e de conjunto que está em curso. Todos os nossos gestos e atitudes são
sempre dirigidos às coisas, ao mundo. São sempre, nesse caso, gestos
intencionais que marcam, na percepção de uma coisa, de uma forma ou de uma
grandeza a ocorrência de uma estrutura de experiência que supõe uma conexão
sólida entre o meu corpo e as coisas que, ainda, releva uma abertura existencial
marcada por uma série de desdobramentos espaciais ambíguos – opacos e
transparentes etc. – e carregados de sensação.
O tema estrutura, aplicado à descrição da nossa experiência espacial,
permanece recorrente da leitura em que Merleau-Ponty designa de maneira
vigorosa o caráter do nosso contato com o mundo natural. Para, por exemplo,
conhecer a constância da cor própria é imprescindível descrever a estrutura
“iluminação-coisa iluminada”. Então, nesse caso, precisamos nos perguntar o que
é iluminação? Se pensarmos na iluminação como um fenômeno isolado, ela não
passa de um evento acessório da percepção, pois a iluminação não diz o que é a
coisa, a sua função básica é dirigir a nossa visão e fazer aparecer as coisas aos
nossos olhos. Novamente é preciso ter claro a relação de estrutura; a iluminação e
a constância da coisa iluminada dependem da posição do nosso corpo: “a
iluminação é apenas um momento em uma estrutura complexa cujos os outros
273
momentos são a organização do campo, tal como nosso corpo a realiza, e a coisa
iluminada em sua constância.”
291
Na organização de campo, conceito fundamental para a Gestalttheorie,
as cores dadas no campo visual, por exemplo, compõem um conjunto organizado
em função de um fator predominante que é, em ultima análise, o grau de
iluminação tomado como referência. Nesse sentido, todos os termos envolvidos na
iluminação, as cores, os caracteres geométricos, os dados sensoriais, a
significação dos objetos formam um sistema, compõe uma estrutura. A constância
da cor, como descreve Merleau-Ponty, é um momento subjetivo da constância da
coisa que se estrutura na nossa percepção original do mundo.
Vejamos, ainda, o exemplo do peso. Nesse caso, os dados táteis e a
constância do peso são impressões muito diferentes. No entanto, agindo em
diferentes partes do corpo, esses dados nos dão a mesma percepção de peso,
isto é uma constância. Nesse caso, a constância do peso, na interpretação de
Merleau-Ponty, não se dá pela dedução reflexiva ou por um processo indutivo
fragmentado que remonta sempre a uma série de experiências anteriores.
Diferente do que concebe o associacionismo, a constância real do peso é a
permanência, em nós, de uma certa impressão de peso. Todas as impressões se
mostram em cada um dos nossos órgãos e não são separadas, associadas ou
reunidas por uma leitura superior. Muito pelo contrário, a impressão de peso se dá
na experiência perceptiva com todos os caracteres das diferentes manifestações
do peso real. Todo contato com as coisas, com cada parte do nosso corpo, é
291
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.417.
274
contato com a totalidade do nosso corpo fenomenal. E, nesse caso, é contato
estrutural.
As coisas dadas por meio dos sentidos, na visão e no tato, por
exemplo, permanecem as mesmas através de uma série de experiências, não
porque são objetos de uma consciência objetiva, que é capaz de reter um
determinado atributo ou mesmo uma essência. Permanecem as mesmas,
sobretudo, em função daquilo que é retomado pelos nossos sentidos. Todos os
atributos – forma, peso, grandeza e cor – são propriedades sensoriais das coisas,
que não são separados delas, ao contrário, constituem uma estrutura coisa. “O
sentido de uma coisa habita essa coisa como a alma habita o corpo (...)”.
292
De
modo análogo, “o conjunto dos meus sentidos constituem a potência de um só
corpo”.
293
A comunicação de uma parte do nosso corpo é a comunicação de todo
o corpo, pois, de modo geral, no corpo doente ou saudável, o todo fala através das
partes e, por sua vez, as partes sempre remetem ao todo. Na experiência
perceptiva são todos os nossos sentidos que se comunicam simultaneamente com
o mundo:
Antes de outrem, a coisa realiza este milagre de expressão: um interior
que se revela no exterior, uma significação que irrompe o mundo e
se põe a existir, e só se pode compreender plenamente procurando-a
em seu lugar com o olhar. Assim, a coisa é o correlativo do meu corpo,
mais geralmente, de minha existência, da qual o meu corpo é apenas
a estrutura estabilizada, ela se constitui no poder do meu corpo sobre
ela, ela não é em primeiro lugar uma significação para o entendimento,
mas uma estrutura acessível à inspeção do corpo, e, se queremos
descrever o real tal como ele nos aparece na experiência perceptiva,
nós o encontraremos carregado de significados antropológicos.
294
292
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.428.
293
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.428.
294
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.429.
275
O “milagre”, nas palavras de Merleau-Ponty, é a próprio aparecimento
da comunicabilidade que permeia a experiência perceptiva, pois se o corpo é em
toda a sua extensão e ação expressividade pura ele, por sua vez, dialoga consigo
mesmo e com a natureza. A natureza é o nosso interlocutor mais próximo, pois
todos os fenômenos naturais se comunicam incessantemente com o nosso corpo.
Na experiência do espaço estamos diante da consagrada fórmula merleau-
pontyana que supõe um diálogo expressivo entre o nosso corpo e a natureza: “(...)
se pode dizer, literalmente, que nossos sentidos interrogam as coisas e elas lhes
respondem”.
295
6.2 O tempo
O tempo, saltador de obstáculos, cavalga como um fidalgo
Sobre as valas dos bosques, com seu sabujo nos calcanhares,
Empurrando meus homens e meus filhos desde as escarpas do Sul.
Dylan Thomas
As discussões, como a que travamos a pouco, sobre a experiência de
um espaço pré-reflexivo apontam consistentemente para a consecução de uma
existência em situação, isto é, estruturada na dialética que entrecruza um diálogo
constante entre as intenções do corpo e o apelo das coisas mundanas. Na
experiência pré-reflexiva do movimento e da profundidade, por exemplo, é uma
vivência estrutural que se desdobra e torna possível a percepção desses
fenômenos no seu contexto original. O movimento é um acontecimento de
deslocamento, como é também uma condição dada no próprio móbil e, além
295
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.428.
276
disso, é um fenômeno que aparece em nosso campo perceptivo muito em função
da ancoragem que escolhemos: “Os pontos de ancoragem, quando nos fixamos
neles, não são objetos. O campanário só se põe em movimento quando deixo o
céu em visão marginal”.
296
Portanto, o movimento é estrutural na medida em que
comporta as intenções do corpo e as solicitações da paisagem. Estrutural,
também, porque o nosso corpo não reconhece as diferentes dimensões do espaço
a partir de uma interpretação específica, fornecida por uma função anatômica
determinada, pois estamos no espaço com o nosso corpo agindo em sua
totalidade. A orientação espacial dada através da visão, ou por meio do tato é,
podemos dizer, uma orientação do próprio corpo. Aquilo que se dá em nosso
campo perceptivo remonta antes a um arranjo integral do corpo do que a um
trabalho específico desencadeado por um dos nossos órgãos dos sentidos. É o
corpo que fala, que ouve e que vê, não são apenas os olhos que põem o
campanário em movimento, mas a própria ancoragem do nosso corpo é que torna
possível esse fenômeno. Nessas condições o movimento é vivido e significado em
toda as sua extensão em função do nosso esquema corporal, pois através do
nosso contato direto com o mundo optamos e sentimos o movimento com o nosso
corpo, isto é, movimentando-nos estruturalmente: “Se o corpo fornece à
percepção do movimento o solo ou o fundo do qual ela precisa para estabelecer-
se, é enquanto potência que percebe, e enquanto ele está estabelecido em um
certo domínio e engrenado a um mundo”.
297
296
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.371.
297
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.371.
277
No entanto, se abrigamos às nossas experiências e ao nosso próprio
ser uma vivência estrutural alcançada e realizadora do espaço, temos, além disso,
que apontar para um reconhecimento do caráter estrutural do nosso engajamento
temporal. “As coisas coexistem no espaço porque estão presentes ao mesmo
sujeito perceptivo e envolvidas na mesma onda temporal”.
298
Mas o que seria esse
envolvimento temporal? Como, de modo geral, um exame sobre a experiência da
temporalidade poderá nos ajudar a compreender melhor a nossa relação com a
natureza e, sobretudo, esclarecer a nossa própria condição existencial e o nosso
comportamento estrutural?
Antes de tudo, é fundamental ter em conta que quando pensamos no
tempo antevemos, de imediato, que a síntese perceptiva do corpo próprio – como
argumentamos ao final do capítulo anterior e, também, retomaremos no último
capítulo – e a nossa experiência pré-reflexiva do espaço, mesmo que não nos
forneçam um conhecimento seguro e indiviso das coisas mundanas, apontam,
seguramente, para uma significação da relação que estabelecemos com o mundo
e da condição existencial do próprio cogito.
Com o exame da experiência temporal, a relação ambígua de
solicitações – que permeia o contato entre o eu, as coisas e o outro, ainda que
não signifique a posse integral e acabada dos dados da experiência – permanece
como a vivência mais concreta e significativa que experimentamos, pois essa
relação de caráter projetivo está sempre renovando os fenômenos dados em um
campo perceptivo que se mantém sempre abertos. A ambigüidade da experiência
direta, nesse caso, considerada em função do arranjo da temporalidade, deixa
298
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.371.
278
muito mais evidente a natureza estrutural e dialética do nosso contato com o
mundo. Mostra, sobretudo, que o perspectivismo, que a posse de um perfil, que a
significação operada em função de um estilo é, como já indicava a análise do
espaço, o reconhecimento da estruturação intima, aberta e transcendental do eu
– do cogito – com as coisas e com o outro. Portanto, a temporalidade corrobora,
juntamente com as reflexões sobre o espaço, o trabalho de elucidação da clássica
questão retomada pelo pensamento merleau-pontyano desde A Estrutura do
Comportamento: sobre as relações entre consciência e natureza. Nesse caso,
comentemos, ainda que brevemente, a nossas experiências estruturais da
temporalidade.
Na experiência perceptiva, o mundo e as coisas, como quer o
pensamento dogmático, admitem a objetividade, mas, por outro lado, também
suportam uma abertura para o indeterminado e para a subjetividade. Nesse
sentido, tanto no viés espacial como no temporal, o perspectivismo aparece como
a indeterminação de uma síntese subjetiva sempre aberta que não cessa de
possuir e abandonar as coisas, de carregá-las e renová-las consigo mesmo: “A
contradição que encontramos entre a realidade do mundo e o seu inacabamento é
a contradição entre a ubiqüidade da consciência e seu engajamento em um
campo perceptivo”.
299
Primeiro, adverte Merleau-Ponty, nos deparamos com uma experiência
da temporalidade na qual todos os meus horizontes espaciais formam em conjunto
um único momento no mundo, pois eles ocorrem no tempo presente. Depois, de
modo análogo, os meus horizontes temporais estão dados no meu presente e,
299
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.444.
279
nesse sentido, permaneço atualmente ligado firmemente ao meu passado e ao
meu futuro. Estou, conforme essa lógica, subsumido a uma vivência sempre atual
das dimensões espaciais e temporais: no presente preso a um passado que não
me larga e, ao mesmo tempo, ligado a um futuro que se anuncia constantemente
na atualidade vivida.
Assim como as coisas e os instantes se estruturam entre si e
estabelecem, como descreve Merleau-Ponty, “um mundo através desse ser
ambíguo que chamamos de subjetividade, só podem tornar-se co-presentes de
um certo ponto de vista e em intenção”.
300
É preciso admitir que as coisas não são
objetos límpidos e claros, mas, ao contrário, são opacas e tem o seu sentido
embaralhado diante da nossa subjetividade, diante da perspectiva da nossa
experiência perceptiva que é, indissoluvelmente, temporal. O passado está
sempre presente e aquilo que vivemos, atualmente, de um modo ou de outro,
meio claro, meio enevoado continuamente nos acompanhará: “A eternidade não é
uma outra ordem para além do tempo, ela é a atmosfera do tempo”.
301
Portanto, de modo análogo a aquilo que estabelecemos na descrição
do espaço, o tempo também vive em mim e encontra nas coisas mundanas e no
corpo próprio – nos gestos expressivos – a sua significação. O tempo é um ser em
movimento, que retém as coisas e, também, é retido por elas e por mim.
Lembremos que próprio movimento, categoria significativa do tempo, está atado
às coisas, no móbil, como anteriormente discutimos. O tempo, nesse sentido,
carrega em si mesmo a expressão da natureza do movimento, pois comporta, no
300
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.446.
301
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, 526.
280
presente o passado e o futuro, fundamentalmente, se dá como uma passagem
que se estabelece entre a experiência perceptiva do eu e as próprias coisas.
Todas as nossas experiências se dispõem no tempo. Mas, como já
indicamos há pouco, o tempo também está estruturado em função das nossas
vivências. A nossa subjetividade e o nosso comportamento são elaborados no
tempo que, por sua lado, torna-se significativo no interior do nosso próprio
comportamento. O tempo, além disso, encontra a experiência do nosso
comportamento como uma referência capaz de determinar a sua própria armação.
Portanto, uma primeira determinação do tempo comporta a subjetividade como um
elemento fundante dessa categoria. As dimensões do tempo são como afirmamos
anteriormente, sempre vividas, reconstituídas e presentemente armadas pelo
sujeito. Poderíamos, então, dizer que o tempo é uma “categoria” constituída pelo
sujeito? E, nesse caso, não estaríamos aderindo às teses kantianas acerca do
tempo e da subjetividade? Vejamos, para efeito de breve comparação, as palavras
de Kant sobre a relação entre a subjetividade e o tempo:
O tempo é, sem dúvida, algo real, a saber, a forma real da intuição
interna; tem pois realidade subjetiva, relativamente à experiência
interna, isto é, tenho realmente a representação do tempo e das
minhas determinações nele. Não deve ser, portanto, encarado
realmente como objecto, mas apenas como modo de representação
de mim mesmo como objecto.
302
No texto acima, retirado da “Estética Transcendental”, Kant responde à
objeção empirista de que o tempo existe em si mesmo e, ainda, se dá como uma
realidade empírica. Para Kant, de modo geral, não podemos abolir o tempo em
302
KANT. Crítica da Razão Pura, p.75.
281
relação aos fenômenos, ainda que possamos abstrair os fenômenos do tempo. Na
filosofia kantiana essa abstração somente é possível na medida em que o tempo é
uma função da consciência. Nesse caso, encerrado na subjetividade, o tempo não
passa de uma sucessão de “agoras” realizado pela consciência.
A psicologia, como indica Merleau-Ponty, tende, de modo geral a
concordar com as teses kantianas, pois também explica o passado e o futuro
como funções da consciência. Não deixa de admitir que o passado é resultado de
uma consciência que recorda, enquanto o futuro se dá atualmente através das
projeções de uma consciência que não deixa de mostrar-se instituidora. O tempo,
subordinado as operações da consciência, passou a ser concebido como mais
uma categoria circunscrita ao domínio das nossas funções fisiológicas: o passado
e o futuro resultam de uma consciência que recorda e que, ao mesmo tempo,
anseia atualmente pelo amanhã.
Essa noção geral de tempo, herdada, sobretudo, do kantismo, supõe as
idéias de sucessão, de deslocamento e de causalidade como categorias temporais
constituídas por uma subjetividade que ordena o contato do cogito com as coisas,
mas que, como já indicamos, não se confunde com elas. O tempo permanece uma
categoria transcendente e, como indica Kant, é o fundamento de todas as
intuições. Contudo, abstraído das coisas e, assim, dado a priori ao entendimento o
tempo não é passível de ser compreendido a partir das mesmas propriedades a
que recorremos para descrever um objeto. Portanto, se ainda podemos,
considerando esse viés kantiano, afirmar que “o tempo passa ou escoa, como um
rio” é somente no sentido de que ele passa e escoa coerentemente e linearmente,
mas somente na consciência. No presente vivido na consciência, resultado do
282
passado preservado pela consciência, então, temos a causa imediata, porém não
necessária, de um futuro construído internamente. Desse modo intelectualista, a
nossa intuição, contando ainda com a concepção a priori do espaço, ordena as
coisas ao entendimento.
Portanto, ao contrário do que descrevemos antes, quando nos
referimos à experiência primordial do tempo e à sua estruturação essencial, o
tempo, enquanto permanece uma categoria a priori da intuição sensível, não está
mais nas próprias coisas. Nesse sentido, o passado é rigorosamente definido
como aquilo que não é mais e o futuro como aquilo que está sendo constituído
pelo ser. Passado e futuro, nesse caso, são o não-ser, enquanto o presente é o
limite do ser. “A temporalidade, em linguagem kantiana, é a forma do sentido
interno, e porque ela é o caráter mais geral dos fatos psíquicos”.
303
Se o sujeito, como já vimos anteriormente, é espacial, é falante, é
erótico, ele também é temporal. Merleau-Ponty, portanto, não deixa de recorrer à
experiência da subjetividade para descrever o tempo. O cogito carrega em si
mesmo o tempo, apresenta constantemente o passado e o futuro como funções
vividas e significadas interiormente. Nesse sentido para Merleau-Ponty, ao
contrário do pensamento clássico empirista, o tempo “não é como o riacho, uma
substância fluente”. O futuro, por exemplo, não é integralmente um acontecimento
posterior e preparado no passado, ele já é, de certa forma, vivido no presente.
Como o espaço, o tempo habita as coisas e, nesse sentido, o passado e o futuro
estão encarnados nas coisas. O que falta a esse ser estruturalmente temporal é o
303
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, 549.
283
que sobra à consciência constituinte do tempo, é a experiência sempre ambígua
do ser e do não-ser, tanto de outrora como do futuro.
O passado e o futuro que estão em nós, são presenças sólidas e vivas
dadas na nossa experiência direta no mundo. Nesse sentido o tempo não se
resume a nenhum signo fisiológico ou psíquico, o passado e o futuro não são
funções da consciência, são, em algumas situações, a consciência das dimensões
contínuas e distintas do tempo. O passado não nasce da consciência, mas, ao
contrário, é a consciência do passado que se constrói sobre o passado. O
passado permanece como aquilo que torna possível pensar sobre ele e até
mesmo abstrair-se dele: “Não digamos mais que o tempo é um dado da
consciência, digamos, mais precisamente, que a consciência desdobra ou
constitui o tempo. Pela idealidade do tempo, ela deixa enfim de estar encerrada no
presente”.
304
Mas essa concepção da “presentificação” que, em certa medida, nos
permite manter um diálogo crítico com as concepções kantianas e empiristas do
tempo, não dá conta, por sua vez, da nossa vivência estrutural. Se o tempo é uma
categoria transcendente e sem movimento próprio, ele está, por necessidade
lógica, reduzido a uma única dimensão: o presente. E se não há distinção entre
passado e futuro, conclui Merleau-Ponty, também não há o próprio tempo.
Novamente, se recusarmos o movimento – a passagem do passado, do presente
e do futuro, estamos decretando o fim do tempo: “o tempo já constituído é o seu
registro final”.
305
304
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, 555.
305
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, 556.
284
O tempo, como o espaço, a fala e a afetividade, não se reduz a um
atributo exterior ou, mesmo, subjetivo. Não é, também, uma forma a priori do
entendimento ou, ainda, como estabeleceu Locke
306
, uma idéia complexa
traduzida sobre o conceito de duração que, além disso, deve ser compreendida
como resultado da experiência de sucessão de idéias vivenciadas pelo cogito.
Como o espaço, o tempo, na construção da Fenomenologia da Percepção, se
estrutura na nossa experiência e nas coisas estendidas no campo perceptivo.
Desse modo, está muito claro na Fenomenologia da Percepção, que por meio
de uma compreensão do tempo teremos uma compreensão da subjetividade e da
nossa relação com as coisas mundanas. Nesse sentido é fundamental, conforme
as palavras de Merleau-Ponty, interpretar “a noção de tempo, não como um objeto
de nosso saber, mas como uma dimensão do nosso ser”.
307
Para não que corramos o risco de “matar” o tempo, devemos buscar
uma noção de tempo que comporte a passagem e a própria duração como um
acontecimento estrutural. Nesse sentido, a experiência do futuro, por exemplo,
obedece, necessariamente, a seguinte disposição de caráter eminentemente
estrutural: i) primeiro, o futuro deve estar presente nas próprias coisas, isto é, ser
anunciado por elas; ii) depois, ele deve ser intencionalmente suscitado em nosso
306
Para o autor dos Ensaios acerca do entendimento humano, o tempo deve ser compreendido
a partir da idéia de duração e, também, do processo pelo qual fomos levados a apreender essa
idéia. Locke sustenta que a duração é uma espécie de distância, cuja idéia formamos,
fundamentalmente, a partir da sucessão e dos intervalos das idéias que experimentamos. Locke
estabelece que apreendemos a idéia complexa de duração e a aplicamos às coisas. No entanto, é
preciso ter claro que se aplicamos a idéia de duração às coisas é porque, antes de tudo, a duração
já existe no mundo empírico. Não é diretamente das coisas que apreendemos a duração – o tempo
– é, como já indicamos na perspectiva lockiana, em função da seqüência de idéias. Mas isso,
distintamente de Kant, não anula para Locke a concepção de que o tempo, como o espaço, é uma
realidade empírica como são as coisas.
Conf. Ensaios acerca do entendimento humano, livro II, cap. XIV.
307
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, 557.
285
campo de presença, pelo nosso corpo em nossa experiência direta. Sem essas
duas condições o tempo seria um acontecimento puramente subjetivo, ou, ao
contrário, uma categoria objetiva ocasionada linearmente pelas coisas e depois
pelas idéias, como o empirismo de Locke bem estabelece.
A experiência direta e a nossa existência ancorada no mundo nos
encaminham para uma noção mais rica e profunda do tempo que, nesse caso,
comporta a existência das coisas e a intencionalidade do eu. Reconheço o futuro,
como descreve Merleau-Ponty, como aquilo que está, por exemplo, dado “como o
verso de uma casa que vejo a fachada, ou como o fundo sob uma figura”.
Como o espaço e os nossos gestos corporais, o tempo não é uma
sucessão objetiva e ordenadora da realidade, mas é, nas palavras de Merleau-
Ponty, “uma rede de intencionalidades”.
308
O tempo, portanto, vivenciado na
subjetividade e no diálogo com as coisas comporta tanto uma relação de
coexistências como, também, uma relação de sucessões. Assim sendo, o tempo
não está isento de ser significativo a partir de uma consideração estrutural. Mais
do que um momento ou uma medida, o tempo é um “ambiente” orgânico, pois vivo
nele, me detenho nele e, ainda, passo por ele.
Entretanto, se o eu, as coisas passam pelo tempo e são, do mesmo
modo, conservadas por ele, é porque o tempo e as coisas e o eu permanecem,
igualmente, como movimento, como coexistência e sucessão. Do contrário, se o
tempo não fosse constantemente movimento enraizado na existência teríamos,
308
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, 558.
286
como as palavras de Merleau-Ponty bem estabelecem, o fim do tempo: “Um
presente sem porvir ou um eterno presente é exatamente a definição da morte”.
309
Portanto, quando aderimos à tese de que o passado, o presente e o
futuro estão ancorados entre si não estamos, como inicialmente se poderia supor,
admitindo apenas a experiência subjetiva do presente. O sujeito não é a
consciência constitutiva de presente, ou mesmo o seu cárcere. Se entre as
dimensões do tempo existe uma unidade, ela é estrutural. Nesse aspecto, temos
uma estrutura que se realiza como um contato íntimo e perturbador entre o sujeito,
as coisas e próprio tempo. Podemos, então, afirmar que sob o tempo recai um
esquema dialético de solicitações e motivações semelhante àquele que
descrevemos acerca da orientação espacial. As dimensões do tempo, concebidas
semelhantemente ao esquema cultivado entre o corpo e as coisas, estão
ambiguamente ancoradas em si mesmas e dispostas nas coisas e no eu. O
presente, por exemplo, se projeta em direção a um passado e a um futuro e os
reconhece no lugar – no tempo - onde eles estão e são significativos. Entre o
passado, o presente e o futuro há um arranjo estrutural. E, nesse sentido, o tempo
é uma “atmosfera” em movimento que se distancia de nós, como a paisagem que
se distende quando da decolagem de um avião:
A perspectiva temporal, a confusão dos longínquos, essa espécie de
encolhimento do passado cujo limite é o esquecimento não são
acidentes da memória, não exprimem a degradação, na existência
empírica, de uma consciência do tempo em princípio total, eles
exprimem sua ambigüidade inicial: reter é ter, mas à distância.
310
309
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, p.445.
310
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, 557.
287
A nossa experiência temporal, a própria estrutura ambígua do tempo,
supõe que nenhuma dimensão do tempo pode ser reduzida à outra. Se a
experiência do presente estabelece que o meu corpo e a minha consciência
formam uma estrutura é, sobretudo, porque o tempo é a categoria capaz de
realizar uma síntese que nos permite conceber como o passado e futuro estão e
não estão no presente, assim como uma consciência e um corpo são e, ao mesmo
tempo, não são indiscerníveis num mesmo ser.
A consciência e o corpo estão enraizados no tempo como, também, não
deixam de ser um projeto universal e uma visão com sentido integral, mas sempre
num determinado contexto temporal. A consciência, por mais sólida e integra
possamos imaginá-la, nunca será um eu constituinte como uma razão pura ou, ao
contrário, um aparelho do entendimento capaz de interpretar os signos de uma
experiência acabada. Toda a consciência encontra-se, desde sempre, envolvida
no próprio eu e, também, nos apelos do ambiente. Através da experiência da
temporalidade são as coisas, o outro e o próprio eu que são perceptíveis no seu
engajamento estrutural:
Falando em síntese passiva, queríamos dizer que o múltiplo é
penetrado por nós e que, todavia, não somos nós que efetuamos a
sua síntese. Ora, a temporalização, por sua própria natureza, satisfaz
essas duas condições: com efeito, é visível que eu não sou o autor do
tempo, assim como eu não sou o autor dos batimentos do meu
coração, não sou eu quem toma a iniciativa da temporalização; eu não
escolhi nascer e, uma vez nascido, o tempo funde-se através de mim,
o que quer que eu faça. E todavia este jorramento de tempo não é um
simples fato que eu padeço, nele posso encontrar um recurso contra
ele mesmo, como acontece em uma decisão que me envolve ou em
um ato de fixação conceptual. Ele me arranca daquilo que eu ia ser,
mas ao mesmo tempo me dá o meio de apreender-me à distância e de
realizar-me enquanto eu.
311
311
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, 573.
288
É na vivência original e indissociável da espacialidade e da
temporalidade que a síntese perceptiva repousa, se realiza e, desse modo, atinge
todas as dimensões do tempo e permite a subjetividade desvelar-se como um ser
engajado e projetivo. Vivemos, como as palavras do texto merleau-pontyano
acima aponta, como o próprio tempo: na permanência e na fugacidade. Afinal o
tempo “me arranca daquilo que eu ia ser e me dá o meio de aprender-me à
distância e de realiza-me enquanto eu”.Temos a posse das coisas, mas elas
também são, ao mesmo tempo, perenes, oblíquas e fugazes. E, como o tempo
que vive em mim e nas coisas, tenho a sua experiência completa e sou possuído
pelo tempo sem jamais percorrê-lo ou preservá-lo integralmente, pois ele também
não se permite uma posse integral e definitiva e, naturalmente, é fugaz, transitório
e permanente. A subjetividade funda e vive o tempo e é, fundada e vivida no
tempo, pois enquanto ela se embaraça e se distancia dos apelos da existência
também, inexoravelmente, está no tempo como alguém que em uma canoa que
navega nas correntezas de um rio. Assim Merleau-Ponty concluiu que o exame do
tempo “(...) ilumina as análises precedentes porque faz o sujeito e o objeto
aparecerem como dois momentos abstratos de uma estrutura (grifo nosso) única
que é a presença”.
312
Na consideração do viés temporal é a experiência perceptiva que
aparece com toda a sua certeza e indeterminação, é o “estilo”, são os “farrapos de
subjetividade”, o “gosto” da “vertigem” e da “náusea” que, a partir do meu
engajamento estrutural junto ao mundo natural e ao outro, sobrevém a cada
momento para anunciar o mundo e fazer-me expressar no mundo.
312
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, 577.
289
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O intelectualismo e o empirismo não nos dão
um relato da experiência humana no mundo:
eles dizem o que Deus poderia pensar dela.
MERLEAU-PONTY
O caminho que até aqui percorremos nos autoriza a dizer que o
comportamento, fundado nas noções de estrutura e experiência direta, é como a
própria fenomenologia, sem uma determinação absoluta: “(...) ela está longe de
estar resolvida”.
313
Merleau-Ponty, ainda no prefácio da Fenomenologia da
Percepção, expõe as dificuldades e as possibilidades que se podem encontrar
quando buscamos entender uma filosofia que se caracteriza por ser um
pensamento em “situação”. Há um destino a ser cumprido e uma história a ser
escrita, que enquanto é realizada, devido à sua própria natureza, é
constantemente renovada: “(...) ela existe como movimento antes de ter chegado
a uma inteira consciência filosófica”.
314
Nesse caso estamos diante de uma
filosofia que se move entre a diversidade e a unicidade das teses e que nunca
abandona a condição de se apresentar como fato e como possibilidade. “Talvez
compreendamos então por que a fenomenologia permaneceu por tanto tempo em
estado de começo, de problema e de promessa”.
315
Merleau-Ponty nos lembra que os fenomenólogos não são poucos. Se
Husserl, Sartre, Heidegger e o próprio Merleau-Ponty são os mais recentes e
eminentes representantes desse pensamento, entre os seus precursores estão
Hegel, Kierkegaard, Marx, Nietzsche e Freud. Então, podemos dizer que a
313
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, p.1
314
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, p.2
315
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, p.3
290
fenomenologia está quase em toda parte, pertence a quase todos e não pertence
exclusivamente a ninguém? Sim. Ainda, se a fenomenologia está por se fazer, o
que aparece como novo já não estaria superado, ou trazendo em si está
expectativa? Tudo já não traz em si a desesperança de estar superado? As teses
do próprio Merleau-Ponty sobre o comportamento já não teriam nascidas
esclerosadas? Absolutamente não. O inacabado, a promessa que se renova em
cada análise é a possibilidade constante de abertura para um campo original, para
um novo projeto de uma filosofia que permanece, por isso mesmo, sempre viva.
No entanto, as dificuldades vão além de uma reflexão crítica da história
da fenomenologia e, além disso, o nosso problema, como já deixamos claro nas
primeiras páginas desse texto, não é bem esse. Basta, por enquanto, apenas
estender a natureza dessas dificuldades da história da fenomenologia junto ao
exame do comportamento, pois como o movimento filosófico, que está destinado a
nunca se esgotar em uma única análise, em uma única obra, assim também
parece ser o campo da experiência fenomenológica: o mundo fenomenal no qual o
comportamento está encerrado.
Antes de tudo é preciso seguir as orientações do método e, nesse caso,
temos que ler os problemas do comportamento através do viés metodológico da
fenomenologia. A questão mais fundamental não é tanto a definição da filosofia,
mas a compreensão de uma atitude filosófica e de uma experiência que não é a
do senso comum, da ciência ou, mesmo, aquela das escolas clássicas da filosofia.
Como o próprio método fenomenológico pressupõe: ”trata-se de descrever, não de
291
explicar nem de analisar”.
316
Estamos, então, diante do primeiro grande desvio das
considerações merleau-pontyanas sobre o comportamento em relação às análises
tradicionais: questão de método que opõe o viés da descrição fenomenológica à
explicação causal e atomista das teorias clássicas.
Desde o enfrentamento teórico dos preconceitos clássicos, passando
pelo exame da nossa experiência direta – do nosso contato corporal e irrefletido
com o mundo – até a consideração do espaço e do tempo, Merleau-Ponty não
deixou de se reportar, em momento algum, ao problema fundamental das relações
entre consciência e natureza.
317
Nos capítulos anteriores, mostramos como Merleau-Ponty concebe o
tempo, a natureza espacial e temporal das coisas e, ainda, como elas são
percebidas pelo sujeito.
318
Vimos, deste modo, que a experiência perceptiva,
descrita como um acontecimento original e estrutural, nos releva que a síntese
como foi ajuizada pelo pensamento clássico é uma operação abstracionista que
recusa os caracteres da nossa ancoragem no mundo.
Ficou também estabelecido que na nossa experiência primeira as
coisas não são percebidas em sua integridade, não são totalmente transparentes,
pois há faces que permanecem à sombra da consciência perceptiva. Caso
quiséssemos superar essa experiência original das coisas para, então, proclamar
uma possa clara e distinta dos elementos do mundo – conforme os critérios de
verdade erigidos pelo pensamento clássico – teríamos que percorrer e descartar
316
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, p.3.
317
“Tratava-se para nos de compreender as relações entre consciência e natureza, entre interior e
exterior.” Conf. MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, 574.
318
“(...) Afinal, estamos, nesse sentido, entre a alternativa do corpo como um eu constituinte ou,
ainda, como um receptáculo de estímulos?” Conferir, p.202.
292
um número incontável de perspectivas e horizontes. Todavia, esse percurso é
impossível de ser feito integralmente, pois não está em nosso poder suplantar
aquilo que Husserl nomeou como o modo profano - weltlichkeit der welt - e frívolo
que é próprio do mundo. Contudo, podemos afirmar que a filosofia merleau-
pontyana nunca se sentiu constrangia a superar o caráter sombreado -
abschattung
319
- das coisas dadas à consciência, ou em suplantar a experiência
da percepção que nos apresenta sempre o objeto, o Outro e o Eu em determinado
perfil ou perspectiva. Vejamos, mais uma vez o que Merleau-Ponty diz sobre isso:
O mundo no sentido pleno da palavra não é um objeto, ele tem um
invólucro de determinações objetivas, mas também fissuras, lacunas
por onde as subjetividades nele se alojam, ou, antes, que são as
próprias subjetividades. Compreende-se agora por que as coisas, que
devem ao mundo o seu sentido, não são significações oferecidas à
inteligência, mas estruturas opacas (grifo nosso) e por seu sentido
último permanece embaralhado.
320
Também, diferente da ciência, do idealismo, e do realismo a
fenomenologia merleau-pontyana, desde A Estrutura do Comportamento, como
argumentamos nos capítulos três e quatro, se dirige ao mundo antes que qualquer
exame possa desviar a nossa atenção da experiência primordial. É a partir dela,
sobretudo nela, que a fenomenologia busca descrever o comportamento do sujeito
no mundo, pois é no campo fenomenal que as estruturas opacas estão dadas.
Não poderia ser diferente, na medida em que a experiência primeira “só é
acessível a um método fenomenológico”.
319
Conf. HUSSERL. “Quinta lição”, in: A Idéia de Fenomenologia.
320
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, 447.
293
Mas, retomando as análises anteriores, qual seria a natureza dessa
descrição, ancorada na experiência originária? Se a vida, como a própria filosofia,
não escapa de uma experiência indeterminada, que experiência será válida? O
que descrever, o que reter, o que guardar? Sob a perspectiva de uma experiência
freqüentemente marcada pelos preconceitos do psicologismo é possível falar em
unidade? Nos termos de Husserl, é preciso perguntar o que dá sentido e unidade
ao campo transcendental no qual aparece o fenômeno. São questões como essa
que – como bem estabelece Merleau-Ponty na publicação As ciências do
homem e a fenomenologia – aparecem como um desafio a ser superado quando
procuramos descrever o comportamento sem recorrer às metodologias
abstracionistas das análises positivas: “O problema é, pois, este: como descobrir
um modo de conhecimento que não se separe da experiência e que, contudo,
permaneça filosófico”.
321
Husserl, como indica a leitura de Merleau-Ponty,
respondeu às questões acima quando estabeleceu que o sujeito transcendental –
o processo de redução e a intuição das essências – deveriam garantir a unidade
do campo transcendental: “modo de conhecimento que tem o caráter concreto do
conhecimento psicológico e a dignidade do conhecimento filosófico”.
322
No entanto, para Merleau-Ponty, a existência e o próprio
comportamento nunca serão compreendidos integramente pela redução ao mundo
pré-reflexivo. Não temos o absoluto na filosofia e na vida, não temos nada que
possa ser integral, único e definitivo. A experiência se apresenta e foge na
321
MERLEAU-PONTY. “As ciências do homem e a fenomenologia”. In: Merleau-Ponty na
Sorbonne: resumo dos cursos de psicossociologia e filosofia, p. 157.
322
MERLEAU-PONTY. “As ciências do homem e a fenomenologia”. In: Merleau-Ponty na
Sorbonne: resumo dos cursos de psicossociologia e filosofia, p. 157.
294
perspectiva de um lugar, de uma situação e de um tempo que não é passado e
não será em absoluto futuro, como não está dada terminantemente no presente,
ou localizada em definitivo num determinado espaço. Quando pensamos nos lócus
fenomenal, é preciso admitir que a experiência e o comportamento não são
objetivamente dados, apreendidos e significados como as filosofias dogmáticas
propõem. É preciso entender os termos da experiência direta de Köhler e a
estrutura do meio comportamental descrito por Kofkka, somente assim podemos
aceitar que, antes de nos instalarmos no espaço homogêneo e vivermos no tempo
linear das ciências positivas estamos, como as palavras de Merleau-Ponty,
descrevem, vivendo no mundo fenomenal.
O comportamento animal visa um ambiente (umwelt) e centros de
resistência (Widestand). Quando se quer submetê-lo a estímulos
naturais desprovidos de significação concreta provocam-se neuroses.
O comportamento humano abre-se a um mundo (Welt) e a um objeto
(Gegenstand) para além dos utensílios que ele constrói; ele pode até
mesmo tratar o corpo próprio como um objeto. A vida humana se
define por este poder que ela tem de se negar no pensamento
objetivo, e este poder, ela o tem de seu apego primordial ao próprio
mundo. A vida humana “compreende” não apenas tal ambiente
definido, mas uma infinidade de ambientes possíveis, ela se
compreende a si mesma porque está lançada em mundo natural.
323
Podemos concluir, conforme as palavras de Merleau-Ponty, que a
apreensão das coisas, do outro e do próprio eu, arranjada na experiência primeira,
obedece às exigências de uma epistemologia fundada sob o signo da abertura.
Falamos na percepção dos “perfis”, na posse de um “estilo” e nos farrapos da
subjetividade como resultado do nosso engajamento nauseado no mundo – Welt.
323
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, p.438.
295
Ademais, acompanhamos que o nosso contato com as coisas
mundanas é estrutural e dialético, pois, como já citamos, interrogo as coisas e
elas, por sua vez, me respondem e me interrogam. As considerações sobre o
espaço e, fundamentalmente sobre o tempo, como discutimos no capítulo cinco,
explicam o movimento de transcendência do sujeito e, ao mesmo tempo, garante
o seu contato familiar com o mundo. Essa relação dialógica, seguramente nos
garante que somos e que o outro e as coisas também são. Assim, o percurso que
fizemos é um caminho positivo, pois estamos de tal modo providos de uma série
certezas “claras e distintas”, que nem mesmo a força de um gênio maligno seria
capaz de abalá-las. Encontramo-nos, portanto, no domínio da experiência
irrefletida do mundo, no qual as coisas e ou outro são apreendidos e vividos no
contato estrutural que travam com o cogito. Conseqüentemente, a saída merleau-
pontyana é a opção de uma nova filosofia, que recusou as alternativas clássicas,
fundadas sobre a noção de uma consciência tética e optou pela descrição da
relação dialógica do corpo com o mundo no instante pré-reflexivo.
O percurso realizado por Merleau-Ponty, como vimos no terceiro
capítulo, é claro: em vez de uma reflexão noética, como aquela de Descartes e de
Kant, é preciso fazer intervir uma análise noemática. No lugar de um pensamento
constitutivo sobre a experiência, é fundamental descrevê-la no seu estado
nascente. Com Merleau-Ponty, diferentemente de todas as interpretações
antitéticas, é possível descrever a experiência na sua inerência original e
reconhecer nela o que está visível e, ainda, reconhecer que há coisas que
permanecem ocultas. Isso porque o espírito, a vida e as coisas não se resumem
ao cogito ou à explicação positiva da ciência. É fundamental, nesse caso, alcançar
296
as estruturas, pois são elas que nos permitem descrever a unidade essencial entre
o eu – corpo e alma – as coisas e o outro.
A partir das críticas de Merleau-Ponty, de Köhler e de Koffka, como
comentamos nos dois primeiros capítulos, apreendemos que as teses clássicas da
filosofia e as teorias científicas sobre o comportamento admitem um discurso
paradoxal. Ainda que permaneçam teses pela metade, na medida em que se
dirigem apenas a uma parte da experiência, pretendem ser análises totalizantes:
“Mas isso é ingenuidade ou, se preferir, uma reflexão incompleta que perde a
consciência de seu próprio começo”.
324
Ao mesmo tempo em que sustentam, de
modo geral, a idéia de uma apreensão total do mundo que existe e se dispõe
como um espetáculo desprovido de propriedades sensíveis, negam, como não
poderia deixar de ser, a condição da ciência como uma “expressão segunda” da
minha própria maneira de existir, da minha experiência no mundo.
Com Merleau-Ponty entendemos que é possível falar do espaço, do
tempo, das coisas, do outro e do eu e – o que mais nos interessa neste trabalho –
do comportamento a partir da nossa experiência estrutural encarnada. Nesse
caso, trata-se de uma descrição em “situação”, de uma descrição que é expressão
do nosso modo de existir antes de qualquer determinação positiva.
A natureza se mostra nos objetos, no outro e na subjetividade. Ela é, ao
mesmo tempo, transcendente e imanente: está fora e está presente em mim. Mas
a vida e o outro também se manifestam na civilização, na natureza e são dados na
subjetividade, pois a minha vivência é cortada por gestos alheios e esboços
culturais e materiais de um mundo natural e civilizado: “A subjetividade
324
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, p.5.
297
transcendental é intersubjetividade”.
325
Ficou, portanto, estabelecido que a partir
do comportamento também me explico sob a forma dos materiais culturais, dos
gestos alheios e das coisas. Deste modo, Merleau-Ponty indica muito claramente
quando, por exemplo - amparado no texto de Francis Ponge - supõe que as
categorias que tradicionalmente explicam o comportamento simbólico também
estão presentes nas coisas e no mundo em geral. O domínio do espírito, sem ser
incondicional, é muito mais amplo do que inicialmente conjeturamos, pois as
coisas são, em grande medida, intencionais e atravessadas de significações
antropológicas. As palavras de Ponge, reproduzidas por Merleau-Ponty num
programa de rádio três anos após a Fenomenologia da Percepção, descrevem a
água como, de certo modo, poderíamos descrever o comportamento simbólico:
Ela é branca e brilhante, informe e fresca, passiva e
obstinada em seu único vício: o peso; dispõe de meios excepcionais
para satisfazer esse vício: contornando, penetrando, erodindo,
filtrando.
Dentro dela mesma esse vício também age: ela
desmorona incessantemente, renuncia a cada instante a qualquer
forma, só tende a humilhar-se, esparrama-se de bruços no chão,
quase cadáver como monges de algumas ordens (...)
Poderíamos dizer que a água é louca devido a essa
necessidade histérica de só obedecer ao seu peso, que a possui como
uma idéia fixa (....)
LÍQUIDO é por definição o que prefere obedecer o peso a
manter sua forma, o que recusa toda forma para obedecer a seu peso.
E que perde toda a compostura por causa dessa idéia fixa, desse
escrúpulo doentio (...)
Inquietude da água: sensível à menor mudança de
inclinação. Saltando as escadas com os dois pés ao mesmo tempo.
Brincalhona, de uma obediência pueril, voltando logo que a chamamos
mudando a inclinação para este lado.
326
325
MERLEAU-PONTY. “As ciências do homem e a fenomenologia”. In: Merleau-Ponty na
Sorbonne: resumo dos cursos de psicossociologia e filosofia, p. 156.
326
PONGE, Fancis. Le parti pris de choses, p 61-63. Apud. MERLEAU-PONTY, Conversas,
p.26.
298
O mundo se dispõe a mim com seu arranjo, com seu material e, como
falamos acima com Ponge, com os seus gestos intencionais e os seus valores. As
coisas – a água - podem ser “loucas”, “viciadas”, “passivas”, “obstinadas” e, ainda,
“humilhar-se” e “brincar”. Se os objetos materiais podem ser descritos assim é que
eles, como o comportamento, formam, na experiência direta com as coisas, com
o outro e o eu uma estrutura. Nesse caso, não é apenas uma ligação de partes,
de elementos estranhos dispostos por uma razão ou, mesmo, por um motivo
alheio qualquer. Através dessa estrutura o mundo anuncia a sua presença, se
esconde, se desvela e, sobretudo, se comunica sob a forma de caracteres que
são dinâmicos, que pertencem, ao mesmo tempo, à matéria, à vida e ao espírito.
Expressam, também, a união substancial de uma consciência a um corpo. Há na
experiência da consciência perceptiva, na volta à experiência original e na
consideração da estrutura corporal os fundamentos que nos levam a superar os
preconceitos dogmatizantes do pensamento objetivo. Primeiro, o mundo não é
mais constituído por mim, “mas habitado”. Me desloco no mundo, me lanço a ele e
nele meu corpo e minha consciência estão indistintamente ancorados. Portanto, o
mundo, mesmo que não me deixe, existe como algo distinto de mim: Vejo os seus
vestígios, afeto e sou afetado pelos seus materiais. Como não há coisas isentas
de valores, também não há gestos isentos de afetividade, não há comportamento
isento de intencionalidade e, por isso mesmo, a descrição nunca é totalizante.
Como um ser natural e cultural, corporal e mental tenho uma história que, nesse
caso, é incapaz de se mostrar acabada ou, mesmo, absolutamente transparente.
Vivo no tempo presente e a atualidade é um momento cercado por um horizonte
de passado – mesmo que seja apenas fragmento de memória – que não me deixa
299
e, também, por um horizonte de futuro – mesmo que seja somente feito de
vestígios e traços remanescentes que prometem uma situação aberta – que desde
sempre já está anunciado. Nunca temos a posse de uma experiência acabada e a
vivência não se desdobra num único instante. Nesse sentido, a minha vida nunca
se realizará completamente, há sempre um horizonte a ser percorrido:
Encontro a certeza do mundo cultural nos seus materiais. A
transcendência dos momentos do tempo simultaneamente funda e
compromete a racionalidade da minha história(....), já que assim o
vivido nunca é inteiramente compreensível, o que compreendo nunca
alcança a minha vida, e já que enfim nunca me uno a mim mesmo. Tal
é a sina de um ser que nasceu, quer dizer, que de uma vez por todas
foi dado a si mesmo a se compreender.
A minha percepção não constitui o mundo, está aderida a ele. A
questão é que experimento essa minha adesão ao mundo e vivo constantemente
como uma consciência encerrada num corpo. É indispensável, como vimos na
crítica aos preconceitos clássicos e no tópico sobre estrutura corporal, superar as
noções clássicas de corpo objetivo, assentar o comportamento no corpo
fenomenal – estrutural – e também, desde os comentários de A Estrutura do
Comportamento, passar da noção de consciência constituinte para a de
consciência perceptiva. Somente desse modo podemos fomentar uma nova
descrição do comportamento. Entendemos, nesse sentido, a partir da obra de
Merleau-Ponty que as nossas intenções no mundo são expressas pelo nosso
comportamento e são visíveis nos gestos desenhados pela nossa estrutura
corporal. O corpo, desde A Estrutura do Comportamento, não é definitivamente
uma massa material ou, mesmo, uma máquina de funções interiores que age
mecanicamente em função de uma alma. O corpo é a fonte viva de nossa
300
existência e suporta a nossa experiência primordial e da mesma forma todos os
graus de integração que estão supostos nas relações do próprio eu – interior e
exterior – e entre o eu, o outro e as coisas.
Vimos também que o autor, amparado, desde A Estrutura do
Comportamento nas pesquisas de Köhler e de Koffka, reconheceu na
experiência direta – na consciência perceptiva – o desdobramento de uma
existência que se realiza como percepção de uma estrutura. Isto foi condição
fundamental para romper com as teses clássicas do comportamento e, desse
modo, descrevê-lo como uma vivência significativa que não se esgota em
afirmações e teses que julgam definitivas, na medida em que estão apoiadas em
métodos empíricos e resultados positivos.
Mas foi na Fenomenologia da Percepção, coerente com a noção de
estrutura elaborada na sua primeira obra, que Merleau-Ponty fez intervir, de modo
mais radical, as noções de experiência direta e estrutura como o ambiente, o
substrato e a modalidade perceptiva na qual o nosso comportamento se
estabelece. Nesse ambiente, de certo modo já desenhado por Köhler, não há
percepção interior finalizada, como não há uma consciência constituinte. É,
essencialmente, o lugar da ambigüidade, da percepção transparente e opaca,
porém estrutural. Tese merleau-pontyana, nesse caso, que a teoria da Gestalt não
aderiu com todas as suas conseqüências quando optou pelo fisicalismo das
formas e pela descrição objetiva do comportamento.
Perceber, desde A Estrutura do Comportamento, não é imaginar, não
é reter informações, não é conectar fatos; não é uma função segunda do intelecto,
formada por sensações, mas sim, desde a intervenção das categorias de estrutura
301
e experiência direta, apreender uma coisa, uma situação, uma expressão, uma
fala, um gesto, enfim, um comportamento que não tem uma única significação
absoluta, apesar de estarmos atrelados a ele na medida em que sustenta a
unidade significativa da nossa experiência. O homem está no mundo, se conhece
no mundo e através da experiência encontra a sua significação primordial. Mas é
necessário considerar que na experiência direta a significação pré-existe à
reflexão, pois o que temos é a posse de uma estrutura aberta e, como já
dissemos, o mundo permanece opaco e transparente.
No mundo fenomenal, no qual estamos lançados, a objetividade
acabada, a face universal das coisas como, de modo análogo, a apreensão de um
comportamento com todos os seus motivos e todas as suas respostas é só um
momento da experiência perceptiva. Na consideração da experiência direta, só
encontramos o sentido das estruturas. A alma não é sujeito e o corpo não é objeto
e, com Merleau-Ponty, comportar-se, nesse aspecto, é sentir a si próprio, é
encontrar e o outro, é, naturalmente, presença estrutural num mundo sempre
aberto. E, nesse caso, estamos arranjados no campo fenomenal, onde o eu, as
coisas e ou outro são dados sempre como um “perfil”, como um “estilo”, como “um
farrapo de subjetividade”.
No último capítulo da Fenomenologia Merleau-Ponty retoma a nossa
inerência estrutural sob o signo da liberdade. Contudo, essa relação já havia sido
expressada, ainda que com relativa parcimônia, no exame comportamento
simbólico. Nesse sentido, apreendemos, desde a Estrutura do Comportamento,
que a nossa existência é atravessada por intenções não constituintes, mas
estruturais. Primeiro, porque ela afeta toda a circuvizinhança. Depois, as minhas
302
vivências intencionais constituem um sistema, no qual todos os objetos são
envolvidos em um só golpe. Por fim, não há intenção exclusiva, absolutamente
particular, ela vêem de mais longe do que posso supor e, nesse caso, eu as
reencontro como uma organização semelhante em todos os sujeitos: “(...) o
projeto existencial é a polarização de uma vida em direção a uma meta
determinada-indeterminada da qual ela não tem nenhuma representação e que só
reconhece no momento de atingi-la”.
327
Portanto, entre A Estrutura do Comportamento e a Fenomenologia
da Percepção é o anúncio dos fundamentos filosóficos e a consecução de uma
nova abordagem do comportamento, essencialmente, aberta para a descrição das
estruturas que expressam o significado da nossa experiência direta. O que
sustentamos, como anunciado no início deste trabalho, é uma descrição inédita
realizada por Merleau-Ponty sobre comportamento primeiro e, desse modo, um
novo olhar sobre o homem e sobre uma vivência até então esquecida e despojada
de sentido e de valor pelo senso comum e pelo pensamento clássico. Deste modo,
temos com Merleau-Ponty não uma supressão das Psicologias clássicas -
empirista ou introspectivista - mas a abertura para uma nova descrição
fenomenológica do comportamento - “alojado nas fronteiras do esquematismo, do
determinismo e da transparência” - a ser realizado “por uma psicologia e uma
filosofia que soubessem criar um lugar ao indeterminado como tal e compreender
que um comportamento ou uma experiência pode ter uma significação vaga e
aberta sem ter uma significação nula“.
328
327
MERLEAU-PONTY. A Fenomenologia da Percepção, p.598.
328
MERLEAU-PONTY. La structure du comportement, p.125..
303
REFERÊNCIAS
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Presses Universitaires de France,1972.
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________________________. Elogio da Filosofia. Lisboa: Guimarães
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_______________________. A Prosa do Mundo. São Paulo:
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304
_______________________. Conversas. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
II – Outros autores
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- BENVENISTE, Émile. “Estrutura em lingüística”. IN: BASTIDE, Roger
(coord.) Usos e Sentidos do Termo Estrutura – Nas Ciências Humanas e
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- BAMBINET, Étienne. Nature et Humanité: Le problème
antropologique dans l´ouvre de Merleau-Ponty. Paris: Libraire Philosophique j.
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- BARBARAS, Renaud. De L´être du Phénomène: Sur L´ontologie de
Merleau-Ponty. Grenoble:Jérôme Millon, 1991.
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Perspectiva, 2001.
- CHAUÍ, Marilena. "Experiência do pensamento: homenagem a
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