Download PDF
ads:
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
DOUTORADO EM FILOSOFIA
A TEORIA DO SENTIDO EM DELEUZE
LUIZ MANOEL LOPES
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
LUIZ MANOEL LOPES
TEORIA DO SENTIDO EM DELEUZE
Tese de doutoramento apresentada ao
Departamento de Filosofia da
Universidade Federal de São Carlos para
a obtenção do título de doutor sob a
orientação do Prof. Dr. Bento Prado de
Almeida Ferraz Junior.
SÃO CARLOS
2006
ads:
Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da
Biblioteca Comunitária/UFSCar
L864ts
Lopes, Luiz Manoel.
A teoria do sentido em Deleuze / Luiz Manoel Lopes. --
São Carlos : UFSCar, 2006.
222 p.
Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de São Carlos,
2006.
1. Ontologia. 2. Filosofia contemporânea. 3. Significado e
sentido. 4. Filosofia francesa. 5. Diferença (Filosofia). I.
Título.
CDD: 111 (20
a
)
COMISSÃO EXAMINADORA DE DEFESA DE TESE DE DOUTORADO
DE LUIZ MANOEL LOPES
~~$~~
~~~ --
------------
Dr.Eladio Constantino Craia
1
~
' .
. .): .~~ .
-Df. LU.Z~O Mouzan~
1.,- \0
I
I
I
I
I
i
I
-------------
Dr. Bento Prado de A. Ferraz Neto
..
I
4
à imanência
5
Resumo:
O propósito deste trabalho é o de estudar a teoria do sentido em Deleuze inserida nas
questões que repercutem no âmbito filosófico contemporâneo. O nosso percurso
seguirá as indicações de Deleuze em seu livro “Lógica do sentido”, sobretudo quando
sublinha que este tema foi pensado de três maneiras diferentes: a primeira, como lekton,
pelos estóicos no século III a C; a segunda, como complexe significabile, por Gregório
de Rimini, no século XIV; a terceira, como objektiv, por Meinong no século XIX. Deleuze
pensa a sua teoria do sentido apresenta-o como acontecimento, o que implica em dizer
que é uma quarta e inovadora maneira de pensá-lo. O nosso estudo, partirá das
questões levantadas por Meinong e como estas tem a sua origem no paradoxo das
representações sem objeto levantadas por Benhard Bolzano, o que permite-nos afirmar
que tal paradoxo está nas origens da fenomenologia e da filosofia analítica. A teoria do
sentido de Deleuze será apresentada como estando fora destas duas correntes de
filosofia contemporânea.
Palavras-chaves: campo transcendental; acontecimento, sentido, paradoxo; imanência
6
Abstract:
The proposal of this work is to study the theory of sense in Deleuze inserted in the
questions that reverberate on the contemporaneous philosophical field.
Our route will follow the statements of Deleuze on his book “Logic of Sense”, especially
when he detaches that this theme was thought by three different ways: the first, as
lekton, by the Stoics on the III century B.C.; the second, as complexe significable, by
Gregori di Rimini, on the XIV century; the third as obektiv, by Meinong, on the XIX
century. When Deleuze thinks about his theory of sense, he introduces the sense as
event.. Our study will start from the rosen questions by Meinong and how they have their
origin on the paradox of the representation without object rosen by Benhard Bozano ,
which allows us to affirm that such paradox is at the origins of the phenomenology and in
the analytic philosophy. The theory of the sense of Deleuze will be presented like being
out from these two current contemporaneous philosophies.
Key-words: transcedental field, event, sense, paradox, immanence.
7
AGRADECIMENTOS
Este trabalho é fruto de meu encontro com dois professores, sem os quais eu não teria
possibilidade de fazer um investimento na perspectiva deleuziana da teoria do sentido, e
a maneira mais coerente de expressar-lhes o meu mais profundo e sincero
agradecimento: Cláudio Ulpiano e Bento Prado Junior. E com esse gesto, estender meu
agradecimento a inúmeros outros. Foram esses dois professores, que nunca se
encontraram e que aqui procuro reunir, que me estimularam à prática do pensamento.
Foi Cláudio Ulpiano quem me aproximou da filosofia e abriu o percurso de meus
estudos, apresentando-me o pensamento de Deleuze, até então inteiramente
desconhecido para mim. O pensamento de Deleuze, e particularmente seu livro a
“Lógica do Sentido”, sobre o qual desenvolvo o presente estudo, foram motivos de
inúmeras de suas aulas, tanto na universidade, em minha graduação em filosofia;
quanto fora dela, em cursos livres, onde inúmeros estudantes das mais diversas áreas
procuravam introduzir-se na difícil arte de pensar sob o modo do acontecimento. Devo a
este professor, Cláudio Ulpiano, através de seu exemplo e do brilhantismo de suas
aulas, o incentivo à pesquisa filosófica; e a sua generosidade, os recursos para que
hoje, eu e outros companheiros dessa extraordinária jornada, pudéssemos traçar nossos
próprios caminhos. Recursos em forma de livros, mas sobretudo em caminhos e
diretrizes, de que os estudantes de filosofia muitas vezes necessitam, exemplificando o
que Deleuze chama de distribuição nômade.
Disse e insisto: sem a generosidade de Ulpiano este trabalho jamais poderia ser feito.
Não apenas a minha graduação em filosofia, mas toda a inclinação com que orientei a
minha vida tiveram como marca definitiva a contribuição deste estimado e venerável
mestre; e meus estudos filosóficos são a única forma digna de agradecer-lhe o
aprendizado do que é trabalhar com afinco, sem dia e sem hora, na pesquisa dessa
disciplina que atravessa os tempos e modifica as vidas.
Meus estudos em filosofia levaram-me a ter contacto com a obra de Deleuze e com os
diversos textos que começaram a ser traduzidos no Brasil. Foi a partir da tradução de “O
8
que é a filosofia?” que tive meu primeiro encontro com o querido Bento Prado Junior,
segundo professor a quem quero prestar aqui os meus agradecimentos.
Um evento sobre Deleuze, no Rio de Janeiro, em que, devido à impossibilidade de sua
presença, foi lido um texto de sua tese sobre a idéia de campo transcendental em
Bergson, foi meu segundo encontro com Prado Jr. A idéia de campo transcendental
aparece com muita ênfase em Deleuze, sobretudo no livro a Lógica do Sentido, o que
me levou a um desejo imperativo de conhecer essa tese.
Meus estudos, no curso de pós-graduação em filosofia, são o resultado de meu terceiro,
e desta vez pessoal, encontro com o professor Prado Jr, meu orientador e incentivador,
e dos ensinamentos obtidos nas aulas magníficas desse ilustre professor.
Não posso deixar de recordar também, em meus agradecimentos neste trabalho sobre
a filosofia de Deleuze, de todos os meus amigos que tanto contribuíram para a sua
realização. Amigos, em sua maioria, originários em minha relação com esses
professores, motivos de admiração por parte de um grande número de estudantes de
filosofia.
Meu trabalho sobre este pensador tão complexo, que é Gilles Deleuze, um dos
principais responsáveis pela força de revitalização da filosofia na atualidade, não poderia
ser feito se não fosse o bom encontro com esses dois brilhantes professores.
Meus agradecimentos se estendem ainda a outros professores que contribuíram para
sua realização, sobretudo alguns colegas do colegiado de filosofia da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná – Campus Toledo — no que diz respeito às discussões
sobre os mais variados temas filosóficos, mas que, além disso, tiveram a gentileza de
financiar minhas passagens para São Carlos e a minha hospedagem por ocasião da
minha prova de qualificação, assim como todos os recursos necessários para que eu
cumprisse a etapa inicial de defesa desta tese de doutorado, o que ressalta a idéia de
que fazer filosofia não é apenas uma questão teórica, mas um modo singular e nobre de
convívio.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 11
CAPITULO I
O PROBLEMA DO SENTIDO EM DELEUZE
1.1) Apresentação do problema do sentido em Deleuze...................................... 15
1.2) O problema do sentido na filosofia contemporânea ...................................... 23
1.2.1) A controvérsia em relação aos objetos impossíveis................................... 24
1.2.2) O paradoxo das representações sem objeto............................................. 33
1.2.3) A crítica aos paradoxos das representações sem objeto.......................... 37
1.2.4) O paradoxo dos objetos impossíveis ......................................................... 42
CAPITULO II:
DO SENTIDO, DA LINGUAGEM E DO TEMPO
2.1) As inversões na linguagem e no tempo ........................................................ 50
2.2) O circulo da proposição e o sentido .............................................................. 53
2.3) O campo transcendental ............................................................................... 59
2.4) A impossibilidade lógica................................................................................ 68
2.5) A critica e clínica ........................................................................................... 72
CAPITULO III
NEUTRALIDADE E GENESE
3.1) A neutralidade e a potência genética ............................................................ 76
3.2) A saída do abismo indiferenciado ................................................................. 82
3.3) O limite.......................................................................................................... 88
10
CAPITULO IV
DO PROBLEMÁTICO
4.1) O problema do decalcamento ....................................................................... 93
4.2) O problema da organização de superfície..................................................... 95
4.3) O problema da neutralidade.......................................................................... 98
4.4) O problema do sentido e da significação ...................................................... 103
4.5) O problema da profundidade e da superfície ................................................ 109
4.6) O problema anarcôntico................................................................................ 118
4.7) O problema da vida....................................................................................... 126
CAPITULO V
ACONTECIMENTO TRANSCENDENTAL
5.1) Os dois modos da experiência ..................................................................... 145
5.2) As singularidades.......................................................................................... 148
CAPÍTULO VI
IMANÊNCIA
6.1) Acontecimento e sentido............................................................................... 154
6.2) O percurso: do campo transcendental ao plano de imanência ..................... 167
6.3) Do empirismo transcendental........................................................................ 171
6.4) As sínteses disjuntivas.................................................................................. 183
CONCLUSÃO....................................................................................................... 205
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ..................................................................... 219
11
INTRODUÇÃO
Este trabalho se pretende uma aproximação da difícil obra do filósofo francês
Gilles Deleuze, particularmente no que diz respeito à questão do sentido. Minha
pesquisa se centrará, inicialmente, no livro “Lógica do sentido”, onde são apresentadas
trinta e quatro séries de paradoxos, sem contudo deixar de explorar os outros textos do
autor que abordam a questão. Seu itinerário deverá acompanhar as indicações que
remetem a esse tema dentro do âmbito filosófico contemporâneo, onde duas correntes
se destacam: a fenomenologia e a filosofia analítica. Ao elaborar a sua teoria do sentido,
Deleuze, de um certo modo, se mantém afastado destas duas escolas filosóficas,
estando nos propósitos de nossa pesquisa defender esta posição, e apresentar então,
suas divergências com relação às teorias elaboradas por Husserl e Wittgenstein.
Todavia, como Deleuze busca na filosofia antiga a sustentação necessária para o
desenvolvimento de suas concepções sobre o sentido, iremos demonstrar que
couberam aos filósofos estóicos fornecer-lhe os devidos subsídios. Não faremos,
entretanto, entradas mais profundas na filosofia estóica; em nosso itinerário,
procuraremos indicar, no âmbito contemporâneo, o que Deleuze compreende como
fonte de inspiração estóica. Os filósofos contemporâneos que trazem esta inspiração
são, segundo ele, Meinong e Husserl. Deste modo, faremos inserções na teoria dos
objetos de Meinong e na fenomenologia de Husserl, enfatizando os pontos citados por
Deleuze.
Em relação a Meinong, filósofo pouco conhecido entre nós, procuraremos
aprofundar a pesquisa em torno da Teoria dos objetos, uma vez que a citação de
Deleuze, demasiadamente ligeira, nos convida à pesquisa, ou à busca da origem da
questão da teoria dos objetos, ou seja, ao problema que a suscita. Tal origem tem sua
fonte em Benhard Bolzano, quando este pensa o paradoxo das representações sem
objeto. É a partir de Twardowski, que como o próprio Meinong e Husserl era discípulo de
12
Franz Brentano, que Meinong entra em contato com essa questão. Desse modo,
faremos uma apresentação do paradoxo das representações sem objeto de Bolzano, até
a teoria dos objetos de Meinong
1
.
Uma vez que o contato de Meinong com a questão do paradoxo das
representações sem objeto deu-se a partir de Twardowski, utilizaremos, em nosso
trabalho, o próprio texto do filósofo polonês
2
. Husserl também se debruçou sobre a
questão, escrevendo uma critica a Twardowski, encontrada na tradução francesa sob o
título Les Objets intentionels.
A ênfase sobre Meinong terá o proveito não só de apresentar toda a questão
desde a sua origem, mas vislumbrar ainda a controvérsia com Bertrand Russell. Desse
modo, poderemos ver que a pesquisa de Deleuze tem seu lugar entre a fenomenologia
e a filosofia analítica, apesar de inclinar-se mais para a primeira do que para a segunda.
A partir desse percurso, a pesquisa delineia as divergências entre as escolas da
análise lógica (filosofia analítica) e da análise intencional (fenomenologia) acerca dos
objetos impossíveis. Por ser citada ao longo da Lógica do Sentido e por inserir-se
nessas discussões a partir do paradoxo das representações sem objeto, a
fenomenologia será abordada a partir da idéia de campo transcendental.
A noção de campo transcendental sem sujeito é desenvolvida por Deleuze com
base nas considerações tecidas por Husserl em suas Meditações Cartesianas. É
importante observar que a critica de Deleuze sobre Husserl se apóia em La
Transcendence de L’ Ego de Sartre; Deleuze, porém, não deixará de criticar Sartre, pois
que, embora este se encaminhe para um campo transcendental sem Ego, este é, ainda
assim, possuidor de uma consciência. É então que Deleuze elabora a idéia de campo
transcendental sem Ego e sem consciência.
1
Nesta apresentação, utilizaremos como fonte de referência o livro de Jocelyn Benoist, Représentations sans objet – Aux
origines de la phénomenologie et de la philosophie analytique, o qual servirá de apoio em relação ao que é citado por
Deleuze em Lógica do Sentido.
2
Kasimir Twardowski, Sur la theorie du contenu et de l’objet des représentations, in Husserl-Twardowski – Sur les
objets intentionels (1893-1901) traduction par Jacques English, Paris, J.Vrin, 1993, p.105.
13
Neste ponto aparecerá um aliado que permitirá que a idéia de campo
transcendental seja pensada de outro modo, isto é, sem sujeito. Em Gilbert Simondon,
pensador pelo qual Deleuze tem muito apreço, Deleuze encontra os elementos que lhe
permitem pensar o campo transcendental pré-subjetivo, além de articular a teoria do
sentido à teoria das singularidades. Nesse encontro com Simondon vemos delineadas
também as influências que Deleuze sofreu do estruturalismo francês no que diz respeito
à questão do sujeito. A recusa em admitir tal noção (a de sujeito), como ponto de partida
para pensar o sentido, faz com que Deleuze teça considerações sobre a fenomenologia.
Porém, após o encontro com Simondon veremos que se dá um afastamento tanto da
fenomenologia como do estruturalismo.
O que podemos destacar, nesta introdução, são alguns pontos que permeiam a
filosofia tais como: 1) O problema do pensamento e o discurso sobre o sentido dos
objetos inexistentes, desde os estóicos à fenomenologia; 2) O paradoxo das
representações sem objeto; 3) A controvérsia entre Meinong e Russell acerca dos
objetos impossíveis; 4) A noção de campo transcendental sem sujeito; 5) A teoria das
singularidades; 5) A idéia de plano de imanência. Outros pontos aparecem ao longo do
texto, mas podemos dizer de antemão que todos orbitam em torno dos apresentados
acima, os seus pormenores os veremos quando enfatizarmos o nosso propósito dentro
das discussões da teoria do sentido em relação a Husserl e Wittgenstein. Após todas
estas indicações, devemos dizer que dentro de nosso propósito, procuraremos
apresentar a originalidade da teoria do sentido de Deleuze. O termo originalidade, talvez
não seja muito apropriado para o pensamento de Deleuze, mas o manteremos a fim de
mostrar o ponto em que sua teoria do sentido difere em relação àquelas que pensaram o
sentido dentro do âmbito filosófico contemporâneo. Qual seria esta originalidade? A
neutralidade e a potência genética do sentido é esta originalidade a qual procuraremos
apresentar seus pormenores; dentro desta apresentação, aparecerão questões que
remetem ao problema da individuação, fortemente marcada pela influência do
ontologista Gilbert Simondon; tais influências permitem que Deleuze elabore uma teoria
do sentido que dá ênfase à neutralidade e potência genética do campo transcendental
14
relacionada à idéia de singularidade, onde aparecerá o aspecto problemático e o
conceito de disparação além daquele que remete para o de sinteses disjuntivas. Neste
ponto, encaminharemos a pesquisa a fim de mostrar como Deleuze elabora sua teoria
do sentido com o cuidado de não confundi-la com uma teoria da significação. A
condução do trabalho abordará a teoria do sentido procurando deixar em relêvo alguns
dos conceitos que perpassam a obra do pensador francês. Deste modo, procuraremos
sempre apresentar tais conceitos diante dos problemas que os suscitam, o que ficará
exposto quando no decorrer da pesquisa fizermos remissão a alguns filósofos
contemporâneos que também abordaram o mesmo problema, sobretudo aqueles que se
inclinaram em pensar o transcendental. Destacaremos como a partir da noção de campo
transcendental sem sujeito, o pensador francês chega a ideía de plano de imanência
como uma vida. Tal percurso nos permitirá apresentar a teoria do sentido de Deleuze
como uma nova linha de pesquisa filosófica contemporânea que trata o conceito como
acontecimento.
15
CAPÌTULO I
O PROBLEMA DO SENTIDO EM DELEUZE
1.1) Apresentação do problema do sentido em Deleuze
Deleuze começa a pensar o sentido articulando-o à noção de incorporal, a partir
da filosofia estóica; e, por essa via, procura apresentar uma linha de pensamento que
percorre a história da filosofia desde o século III a C. Em Lógica do Sentido indica três
momentos diversos em que a questão do sentido foi pensada: primeiramente entre os
estóicos, no século III a.C.; uma segunda descoberta tendo sido feita no século XIV, por
Gregório de Rimini
3
e Nicolas d’Autrecourt; e uma terceira vez, como objektiv
4
, no século
XIX, com o filósofo alemão Alexius Von Meinong.
5
A nossa preocupação em apresentar
a teoria do sentido de Deleuze no âmbito contemporâneo, após a citação desses três
momentos diversos, leva-nos às questões que remetem à Teoria dos objetos em
Meinong. De início, pode soar um pouco estranho o fato de Deleuze ter escrito um livro
3
Elie, H. Le Complexe Significabile, Paris, Vrin, 1936, p.7: “Em suas Categorias ( Cap. X, 12 b). Aristóteles disse: ‘A
afirmação é um enunciado (λογος) afirmativo, a negação um enunciado negativo. Quanto às coisas que se colocam sob
uma dessas enunciações, não poderíamos dizer que são julgamentos, mas sim coisas’. Em 1344, um monge italiano,
Gregório de Rimini, estimou, que nessa passagem, por coisa (πραγµα) o Estagirita não queria falar de coisa exterior
existente, mas de uma entidade não existente que se exprime por um complexo, especialmente pela oração infinitiva.
Considerava essa ‘coisa’, significado total e adequado da proposição, como denominou-o ‘Significado por complexo
(Complexe significabile).”
4
Cf. Elie, H. Le Complexe Significabile, Paris, Vrin, 1936, p.148. “Do mesmo modo que as palavras e as frases possuem
uma dupla função, a de exprimir nossas experiências interiores ou idéias, e de significar os objetos dessas experiências,
também as proposições exprimem nossos julgamentos ou assuões e significam alguma outra coisa. Essa ‘alguma coisa’
que julgamos e examinamos é, segundo Meinong, uma entidade a qual ele denomina ‘Objektiv’ que, reservando nesse
momento toda a questão de terminologia, traduziremos para o francês por ‘objectiv’. Se entendermos por ‘objeto’ todo o
objeto do conhecimento em geral, diremos que os objetos se dividem em duas classes: os objetivos e os objetos no sentido
estrito da palavra (esses que são expressos por uma palavra ou frase)”.
5
Deleuze cita o livro de Hubert Elie, Le Complexe Significabile, Paris, Vrin, 1936. como a fonte em que aparecem as
semelhanças entre as doutrinas de Gregório de Rimini, Nicolas d’Autrecourt e as teorias de Meinong, sem deixar de
assinalar que este autor não indica a origem estóica do problema.
16
apoiado em Meinong
6
, mesmo após Bertrand Russell
7
ter atacado a posição do filósofo
alemão acerca do objektiv
8
. O que seria um objektiv? O que podemos dizer, de início, é
que não se trata de um objeto; o objetiv estaria para os juízos e suposições assim como
os objetos estão para as representações. Desse modo, Deleuze rompe com toda a
tradição inaugurada por Frege, e que se estende por Bertrand Russell, levando-nos a
indagar: qual a importância da questão do sentido? O que pode ser construído, em
filosofia, a partir dessa abordagem? É espantoso como Deleuze tende mais para a
Teoria do objeto de Meinong do que para o artigo de Frege Sobre o sentido e a
referência, o que de imediato nos leva à consideração do sentido como entidade não-
existente, ou seja, à tese capital do livro.
Cláudio Ulpiano nos indica — em seu trabalho Afetos: um sorriso, um gesto
como se dá essa aproximação que Deleuze faz entre Meinong e os estóicos na “Lógica
do sentido”:
6
José Oscar de Oliveira Marques in A Ontologia do Tractatus e o Problema do Sachverhalte Não-Subsistentes
esclarece-nos sobre a posição de Meinong acerca dos objetos puros: “Para Meinong, quando se julga que um certo objeto
(eg, a montanha de ouro, ou o círculo quadrado) não existe, esse julgamento é, ainda assim, acerca desse objeto, embora
seja sua inexistência que torna o julgamento verdadeiro. Restringir o domínio dos objetos às coisas reais ou existentes
tornaria inexplicável, para Meinong, a ocorrência de julgamentos verdadeiros de inexistências, pois tais julgamentos seriam
acerca de nada, isto é sequer seriam genuinamente julgamentos. Reciprocamente, ter-se-ia que admitir que todo genuíno
julgamento de existência seria sempre verdadeiro, pois seus objetos seriam sempre objetos existentes. Para evitar esta
situação paradoxal, Meinong postula que os objetos enquanto tais são neutros à existência ou inexistência (doutrina do
Außersein do objeto puro). É certo que um objeto inteiramente absurdo como o círculo quadrado (mas não a montanha de
ouro), traz consigo a garantia de sua inexistência , mas ele deve , ainda assim, ser capaz de configurar no conteúdo do
julgamento que assevera sua inexistência. É isso que permite, em última instância, que o julgamento de que o círculo
quadrado não existe seja, afinal, diferente de que a montanha de ouro não existe, pois seus objetos, embora inexistentes,
são distintos e têm propriedades distintas (doutrina da independência do Sein e do Sosein)”.
7
Bertrand Russell no Cap XXXI: A filosofia da análise lógica, in : História da Filosofia Ocidental VIII, São Paulo,
Companhia Editora Nacional, 1977. p.385, comenta que a teoria das descrições trata de designar uma pessoa ou uma coisa
não pelo seu nome, mas sim por alguma propriedade que se supõe ou se sabe peculiar, e afirma: ‘Suponhamos que digo:
‘A montanha dourada não existe, e suponhamos que o leitor pergunte: ‘Que é que não existe?’ Pareceria que, se eu
dissesse ‘a montanha dourada, estaria atribuindo a ela uma espécie de existência. Evidentemente não estou fazendo o
mesmo tipo de afirmação que faria se dissesse: ‘O quadrado redondo não existe’. Isto pareceria implicar que a montanha
dourada é uma coisa e que o quadrado redondo é outra, embora nenhum dos dois exista. A teoria das descrições era
destinada a resolver esta e outras dificuldades”.
8
Bertrand Russell, Lógica e Conhecimento, São Paulo, Abril Cultural, Col. “Os Pensadores”, 1978, p.89. “Meinong
sustenta que existe um objeto tal como o quadrado redondo somente que ele não existe, e nem mesmo subsiste, mas
apesar disto existe tal objeto, e quando dizemos ‘o quadrado redondo é uma ficção’, ele considera que existe um objeto ‘o
quadrado redondo’ e existe um predicado: ficção. Ninguém com um senso de realidade teria assim analisado aquela
proposição. Teria visto que a proposição requer uma análise de tal modo que não tenhamos que considerar o quadrado
redondo como um constituinte daquela proposição. Supor que no mundo real da natureza existe todo um conjunto de
proposições falsas que se dizem é para a minha mente algo de monstruoso. Não me consigo persuadir em supô-lo. Não
posso acreditar que existem no sentido que existem os fatos”.
17
“O circulo quadrado, do qual jamais poderemos constituir uma forma, o exclui, em definitivo, do
campo existencial. A impossibilidade do círculo quadrado, seu absurdo é em si absoluto e
incondicionado. Em qualquer situação, o círculo quadrado estará sempre em impossibilidade
existencial. Objeto impossível, inconcebível na série causal, física e lógica. Logo, sua aparição se
dá na outra série – na série temporal, que os estóicos nomeiam como sendo a linha aiônica – a do
acontecimento, semelhante às linhas da plástica barroca, do rosto de Joana d’Arc e de seus cruéis
julgadores, teólogos e juristas
9
.
Por outro lado, há também um fascínio do autor da Lógica do sentido pela obra
de Lewis Carroll; diante desta, procura mostrar que a obra lógica de Carroll difere de sua
obra fantástica exatamente pelo tratamento dado ao sentido. A ênfase em Carrol
assinala como Deleuze se preocupa com os paradoxos e sobretudo com a problemática
que eles causam diante da lógica formal. A crise dos fundamentos da lógica e da
matemática fez com que Carroll escrevesse essa crise sob o modo de literatura infantil,
onde o pensamento começa a ser impelido pelo que é considerado irracional e ilógico.
Uma das preocupações de Deleuze é sempre ressaltar o ponto em que o pensamento
brota e que acontecimentos propiciam esse brotar.
“É exatamente neste mundo plano do sentido-acontecimento, ou do exprimível-atributo,
que Lewis Carroll instala toda a sua obra. Disso decorre a relação entre toda a obra
fantástica assinada Carroll e a obra matemático-lógica assinada Dodgson. Parece difícil
aceitar que se diga, como já se fez, que a obra fantástica apresenta simplesmente a
amostra das armadilhas e dificuldades nas quais caímos quando não observamos as
regras e as leis formuladas na obra lógica. Não somente porque muitas das armadilhas
subsistem na própria obra lógica, mas porque a partilha parece-nos outra”
10
.
9
Cláudio Ulpiano, Afetos: um sorriso, um gesto, in: Pontos de Fuga: Visão, Tato e Outros Pedaços, Rio de Janeiro,
Taurus, 1996, p.116.
10
Gilles Deleuze, Lógica do sentido, tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes, São Paulo, Perspectiva, 1974, p.23
18
O apreço de Deleuze por Lewis Carroll fá-lo afirmar que este, ao distinguir
diferentes modos de tratar o sentido, sinaliza também para a diferença entre significação
e sentido.
“É curioso constatar que toda a obra lógica diz respeito diretamente à significação, às implicações
e conclusões e não se refere ao sentido a não ser indiretamente – precisamente por intermédio dos
paradoxos que a significação não resolve ou até mesmo que ela cria. Ao contrário, a obra
fantástica se refere imediatamente ao sentido e relaciona diretamente à ela a potência do
paradoxo. O que corresponde aos dois estados do sentido, de fato e de direito, a posteriori e a
priori, um pelo qual o inferimos indiretamente do círculo da proposição, outro pelo qual o fazemos
aparecer por si mesmo desdobrando o circulo ao longo da fronteira entre as proposições e as
coisas”
11
.
O livro: “Lógica do sentido” parece lançar-nos numa contracorrente filosófica,
sobretudo por tentar situar-se fora do platonismo e do aristotelismo, indicando-nos
aspectos da filosofia antiga através dos filósofos estóicos; esse desvio nos induz cada
vez mais em direção à pesquisa filosófica, forçando-nos a procurar uma maior
aproximação com os temas apresentados. Deleuze mostra que a origem do problema do
sentido é a filosofia estóica; de modo que, nesse aspecto, procuraremos seguir os textos
referentes ao tema, fazendo incursões naqueles que remetem ao estatuto dos
incorporais.
12
Tais incursões, porém, não deverão ser demoradas nem aprofundadas,
uma vez que o nosso propósito é circunscrever a questão do sentido no âmbito
contemporâneo.
A filosofia antiga, como sabemos, é um forte pilar para a compreensão dos
diversos temas que percorrem a história da filosofia. O nosso projeto — em torno do
livro “Lógica do sentido” — procurará também demonstrar a sua importância para o
ensino filosófico. Donde podermos dizer que o estudo da lógica dos estóicos servirá de
pedagogia para a compreensão, por exemplo, da diferença entre a lógica dos termos e
a lógica das proposições. Torna-se oportuno afirmar que o termo lógica foi forjado pelos
11
Idem, ibdem, p.23
12
Os textos em que Deleuze pesquisa estes temas são: La Theorie des incorporels dans l’ancien stoicisme, Paris, Vrin,
1928 de Émile Brehier e Le systeme stoicien et l’idée de temps, Paris, Vrin, 1953 de Victor Goldschimdt.
19
estóicos; antes deles, o modo correto e coerente de raciocinar era o que Aristóteles
chamava de analítica.
Os estóicos admitem que no limite dos corpos e das coisas ocorrem efeitos de
superfície. É no plano da física que se encontram os corpos com seus limites e tensões
internas. Os corpos são causas uns para os outros de certos efeitos de superfície. O
plano da lógica diz respeito aos incorporais, aos acontecimentos e aos laços dos efeitos
entre si. A importância que Deleuze dá ao sentido, como acontecimento incorporal —
que não possui as características de uma coisa e nem de um estado de coisas —
permite-lhe considerar que os estóicos tratam positivamente aquilo que Platão chamava
de simulacro. O que seria essa positividade? Platão dava o nome de simulacro a tudo
aquilo que se furtava à Idéia. Os estóicos concebem que, no limite dos corpos, dão-se
os acontecimentos; os quais são expressos pela proposição. Os simulacros platônicos
sobem à superfície e tornam-se sentido. Não podemos deixar de observar a importância
desse ponto, uma vez que o sentido torna-se objeto de uma filosofia. Os incorporais
estóicos dividem-se em quatro modos: o exprimível, o vazio, o lugar e o tempo.
13
O
exprimível é tratado com um estatuto “positivo”, ou seja, é o que nos permite falar dos
acontecimentos que ocorrem no mundo, envolvendo as coisas e os estados de coisas.
“A realidade lógica, o elemento principal da lógica aristotélica é o conceito. Esse elemento para os
estóicos é uma coisa inteiramente outra; não é nem a representação (φανταςια) que é a
modificação da alma por um corpo exterior; nem a noção (εννοια), que se forma na alma sob a ação
de experiências semelhantes. Na realidade é alguma coisa de inteiramente nova que os estóicos
denominam exprimível (λεκτον)”.
14
O estatuto do sentido, a partir da filosofia estóica, tem no exprimível, no lekton,
seu ponto de partida. Deleuze, na Lógica do sentido, procura mostrar os filósofos que
tratam o sentido de modo direto, fazendo-o aparecer na fronteira entre as proposições e
as coisas. Pela via dos incorporais, ele acredita que temos um novo modo de pensar a
lógica, sobretudo pelo fato do princípio de não-contradição não atingir os incorporais.
13
Sextus Empiricus, Adv. Math, X.218, in Les Stoiciens, Paris, PUF, 1973, p.53.
14
Emile Bréhier, La Theorie des incorporels dans l’ancien stoicisme, Paris, Vrin, 1980, p.14.
20
(Desde Aristóteles
15
, esse princípio fundamenta e garante a verdade das premissas e,
conseqüentemente, permite observar se de premissas verdadeiras seguem-se
necessariamente conclusões verdadeiras; ou seja, a prova da validade dos
argumentos). Nesse livro, ele também estabelece uma relação entre o sentido e o
tempo, destacando a dimensão presente — que pertence aos corpos, o reino de Cronos;
e o tempo dos incorporais, denominado Aion. Na linguagem, o substantivo e os verbos
apareceriam relacionados respectivamente a essas dimensões do tempo.
O trabalho, enfim, procurará desenvolver essas questões que passam pela
história da filosofia e trazem uma luz para a compreensão da pesquisa deleuzeana,
assinalando que o propósito deleuzeano é o de construir uma nova imagem do
pensamento. A partir dessa via, que remete aos estóicos, Deleuze encontrará na
filosofia contemporânea, fontes de inspiração estóica; Meinong e Husserl são citados
como pensadores que trazem essa inspirão. Desse modo, nos debruçaremos nas
questões sobre os objetos impossíveis em Meinong, indicadas por Deleuze. Nesse
sentido, vemos que este autor, em determinado momento do livro, rompe com os
estóicos, afirmando não terem eles resistido à tentação de relacionar o acontecimento à
causalidade física; e cita Leibniz como o primeiro grande teórico do acontecimento. A
tese de Deleuze é pensar o acontecimento, o sentido, inteiramente independente de
qualquer aspecto redutor, seja ele físico, lógico ou psicológico. O acontecimento não se
reduz a nenhuma coisa, indivíduo ou pessoa, antes os envolve.
“Logique du sens é um texto profundamente afetado pela cisão causal; é sua essência, do texto, a
cisão causal e todas as suas conseqüências: que lhe são imensas. O extra-ser, como a parte
inefetuada do acontecimento é a obra de Deleuze. Uma idéia propriamente estóica, para a qual o
pensamento se volta a fim de suprimir a psicologia, as causalidades físicas, as contradições
15
Os estudiosos de lógica paraconsistentes assinalam que Aristóteles já apontava para uma derrogação do princípio de
não-contradição. Lukasiewski e Vassileiev são dois lógicos que afirmam esta tese.
21
lógicas e através de ressonâncias, ecos, correspondências não-causais, compatibilidades e
incompatibilidades alógicas: o acontecimento puro, conceber uma nova imagem do pensamento”.
16
Ao longo de sua obra, Deleuze observa que sempre pensou o acontecimento
17
; é
o que comprovamos em seu livro — O que é a filosofia? —, quando procura mostrar que
esta disciplina trata da criação de conceitos. Desse modo, tudo o que tinha sido
desenvolvido a partir de Lógica do sentido, em relação ao acontecimento e o sentido, é
retomado e modificado. A contra-efetuação do Acontecimento é relacionada ao campo
transcendental sem sujeito, ao plano de imanência, a uma vida; conceitos que aparecem
sobretudo em seu último texto — A imanência: uma vida —, escrito e publicado em
1995, em um número especial da revista Philosophique, produzida em sua homenagem.
As explicações de Deleuze, sobre o que é a filosofia, o levam a afirmar que o
conceito filosófico jamais deve ser reduzido à função científica; que o conceito filosófico
diz respeito somente ao acontecimento. Nesse sentido, Deleuze entra em confronto com
todas as posições filosóficas que tentam tirar da filosofia a condição real de criar e
inventar conceitos. A criação de conceitos é inseparável das circunstâncias, dos
acontecimentos que envolvem a vida do filósofo em seu mergulho no pensamento.
Prado Júnior aponta a inserção da filosofia de Deleuze no âmbito
contemporâneo.
“A crítica deleuzeana à subjetividade como fundamento é menos uma originalidade de sua filosofia
do que um ponto pacífico de toda reflexão contemporânea de vocação antifenomenológica, da
filosofia analítica aos famosos ‘desconstrucionismos’, passando por todos os neopragmatismos (o
naturalista, norte-americano, e o transcendental, alemão) e por todos os estruturalismos. O que a
distingue, talvez, é ver no sujeito fundante (cartesiano, kantiano, husserliano e mesmo hegeliano –
cf. Gerard Lebrun, O avesso da dialética, São Paulo, Cia das Letras, pp.254-7) um sujeito
essencialmente representativo e submetido ao regime de identidade, arqué unificadora e síntese
prévia da experiência capaz de exorcizar toda forma de diferença rebelde. Trata-se de inverter a
16
Cláudio Ulpiano, O Pensamento de Deleuze ou A Grande Aventura do Espírito, Tese de Doutoramento apresentada
ao Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP sobre a orientação do Prof. Dr,
Luiz. B. L. Orlandi, p.77.
17
Gilles Deleuze, Conversações, tradução de Peter Pal Pelbart, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992, p.177. “Em todos os meus
livros busquei a natureza do acontecimento; este é um conceito filosófico. O único capaz de destituir o verbo ser e o
atributo”.
22
linha de pensamento, para levá-la para algo como um campo prévio, pré-subjetivo e pré-objetivo,
donde constituir tanto sujeito como objeto”.
18
Deleuze investe numa nova imagem do pensamento. Essa imagem não é apenas
para salvar o reino das metáforas, pois sabemos que tangencia a poesia; nem tampouco
para ficarmos apenas no domínio da conotação; trata-se, sim, de uma revitalização da
filosofia, de um acréscimo diferencial nessa disciplina que percorre os séculos.
“O campo transcendental é a-subjetivo. É ininteligível sem o modelo de uma nova imagem do
pensamento. Esta nova imagem confronta-se com o reconhecimento, com a recognição e todo o
seu séqüito – sobretudo a correlação sujeito-objeto. Para se entender o pensamento como ato de
criação, como rompimento com o eu pessoal, é necessário arrancá-lo de suas possibilidades
abstratas, separá-lo do senso comum e do bom senso. Noutra linguagem, quebrar por dentro o
esquema sensório-motor. Para fazer aparecer o eu dissolvido – um conjunto de eus larvares
contraentes e contemplativos. Liberar as singularidades nômades das individualidades fixas e do
sujeito finito – rompendo com o equívoco de considerar que esta prática conduziria a um abismo
indiferenciado. Ao contrário, será, sim, alguma coisa que não é nem individual nem pessoal; que
não será nem formal nem informe; mas o aformal puro. É a renovação da filosofia quando o
transcendental perde a forma da consciência e expande a sua aventura involuntária”.
19
Este trabalho tratará de apresentar, através da teoria do sentido, os meios e vias
que nos permitam desenvolver com consistência os pormenores dessa renovação da
filosofia. Dando, por exemplo, prosseguimento às investigações iniciadas em nossa
dissertação de mestrado, procuraremos fazer um paralelo entre uma tese que aparece
em Lógica do sentido que, de um certo modo, pode ser considerada inversa à tese
bergsoniana exposta em sua crítica à idéia do Nada. Ora, como sabemos, Bergson,
nessa crítica, mostra, por diferentes vias, que jamais podemos pensar o Ser após o
Nada. A ilusão teórica, o falso problema da anterioridade do Nada sobre o Ser é
dissipada. O Ser é a realidade que possui duração. Entretanto, o incorporal não é o
18
Bento Prado Junior, A Idéia de “Plano de Imanência” , in Gilles Deleuze: uma vida filosófica, São Paulo, Ed. 34,
2000, p.34.
19
Cláudio Ulpiano, Afetos: um gesto, um sorriso, in; Visão, Tatos e Outros Pedaços, Rio de Janeiro, Taurus, 1998,
p.116.
23
Nada. Deleuze, de outro modo, se esforça por nos mostrar, com a idéia de
Acontecimento, que este, apesar de não existir, possui sentido e realidade. A realidade
do Acontecimento é de natureza diferente da dos corpos, pois, como dissemos, ele é
incorporal: não um ser, mas um extra-ser. É, enfim, nessa direção, que aparecerão as
conexões reais e as conjugações virtuais. A comunicação entre os acontecimentos tem
como resultado uma lógica que trata o sentido fora do campo da representação e da
significação. Desse modo, o nosso trabalho apresentará como que duas faces: uma em
que trataremos da questão do sentido a partir do paradoxo das representações sem
objeto, enfocando a ressonância dessa questão diante da fenomenologia e da filosofia
analítica; e a outra, onde estudaremos a neutralidade e a potência genética do campo
transcendental, do plano de imanência, a fim de mostrar como a teoria do sentido de
Deleuze se afasta dessas duas correntes de filosofia.
1. 2 ) O problema do sentido na filosofia contemporânea
Para indicar a origem do problema do sentido na filosofia contemporânea
começaremos destacando dois pensadores que contribuíram para que a questão se
desenrolasse da maneira que pretendemos enfocá-la. Deleuze, na “Lógica do sentido” ,
faz algumas citações sobre a “controvérsia” que envolve os filósofos Meinong e Bertrand
Russell. São, porém, citações ligeiras. Citações que nos levam a aprofundar a pesquisa,
buscando os principais pontos envolvidos nessa controvérsia. Não nos preocuparemos
em confrontar a fenomenologia com a filosofia analítica, mas dois pensadores que
dessas escolas fazem parte, ainda que indiretamente. Meinong não é propriamente um
fenomenólogo, mas é influenciado pela linha de pensamento que descende dos filósofos
austríacos do século XIX, orientados pelos trabalhos de Bernhard Bolzano — este,
tcheco de nascimento. Esses filósofos propõem um afastamento de Kant, ou seja,
deixam de lado a nítida preocupação com o sujeito e se voltam para o objeto
20
. Bertrand
20
Bento Prado Junior, em“Presença e campo transcendental: consciência e negatividade em Bergson, São Paulo :
Edusp, 1964, ensinou-nos como Kant, na refutação do idealismo – analítica transcendental da Crítica da Razão Pura – teria
mostrado a dependência da consciência em relação ao objeto externo. Neste sentido a fenomenologia seria herdeira de
24
Russell, como sabemos, é um dos mais importantes nomes da filosofia da análise
lógica, uma vez que foi a partir de seu contato com Frege que procurou pesquisar a
forma lógica da proposição fora das categorias de sujeito e predicado
21
.
1.2.1) As controvérsias em torno dos objetos impossíveis
Ao tratar da questão do sentido, o presente trabalho se insere numa discussão
que ocupa um capítulo importante na história da filosofia: a controvérsia entre Bertrand
Russell e Meinong. Quando o lógico inglês procura expor, em Lógica e Conhecimento, o
que entende por denotação, depara-se com duas teorias: a de Meinong e a de Frege,
que, segundo ele, não satisfazem o seu propósito: a teoria dos objetos de Meinong e a
teoria do sentido e referência de Frege seriam destituídas pela teoria das descrições
proposta por Russell por darem margens à proliferação de objetos contraditórios e
absurdos.
Russell apresenta os motivos pelos quais a teoria de Meinong não lhe é
satisfatória: primeiramente, por considerar toda e qualquer expressão denotativa
gramaticalmente correta como representante de um objeto; e também por acreditar que
a teoria dos objetos infringe o princípio de contradição, como poderemos ver na citação
abaixo:
Por conseguinte, ‘o atual rei da França’, ‘o quadrado redondo’, etc., supõem-se ser objetos
genuínos. Admite-se que tais objetos não subsistem, mas, entretanto, eles são supostos ser
objetos. Esta é em si mesma uma perspectiva difícil; mas a principal objeção é que tais objetos,
reconhecidamente, estão prontos a infringir a lei de contradição. Sustenta-se, por exemplo, que o
Kant, por considerar a tendência para o objeto como bem indicou o filósofo de Könisberg. Deste modo, considerar que os
filósofos austríacos, liderados por Bolzano, afastam-se de Kant é estranho, pois o idealismo transcendental não prescinde
do realismo empírico. Kant afirma que a minha existência somente pode ser experimentada em relação a existência de
objetos exteriores a mim. A realidade mais imediata, segundo Kant, não é a interna, e sim a externa. O tempo possui
dependência em relação ao espaço e, também o sentido íntimo depende do sentido externo.
21
Luiz Henrique Lopes dos Santos in Russell (1872-1970) Vida e Obra, São Paulo, Abril Cultural, 1978, p.VII afirma: “A
análise lógica das proposições matemáticas e o contato com as doutrinas lógicas de Peano (1858-1932) e Frege (1848-
1925) levaram Russell a reconhecer a irrelevância lógica das categorias de sujeito e predicado e particularmente a
incorreção da análise de proposições que enunciam relações entre objetos, fundada sobre tais categorias”.
25
existente atual rei da França existe e também que não existe; e que o quadrado redondo é redondo
e também não redondo, etc. Mas isto é intolerável; e se puder estabelecer qualquer teoria para
evitar este resultado, esta deve ser certamente preferida”
22
O texto de Russell é esclarecedor, principalmente no que tange ao nosso
conhecimento sobre Meinong. É comum encontrarmos considerações sobre Meinong
pela ótica de Russell, o que nos deixa com idéias inadequadas sobre a sua filosofia,
geralmente apresentada de um modo que nos confunde quanto ao seu propósito. Resta-
nos a alternativa de apresentar o próprio Meinong; o que também nos permite enfocar o
ponto de partida das preocupações de Russell. Esse enfoque, além disso, terá a
vantagem de nos aproximar das questões que envolvem a filosofia contemporânea,
sobretudo no que diz respeito à fenomenologia e à filosofia analítica. A teoria da
denotação, que Russell diz ser proveitosa não apenas para a lógica e a matemática,
mas também para todo o conhecimento, tem sua origem precisamente nessa
controvérsia com Meinong
23
. Nesse sentido, oportuno se faz apresentarmos o
esclarecimento do próprio Meinong quanto ao seu propósito.
“Que não se pode conhecer sem conhecer algo; mais genericamente, que não se pode julgar e
também não representar sem julgar sobre algo ou representar algo, isto pertence ao mais evidente
sob uma consideração elementar dessas experiências. Que no domínio da suposição não é
diferente, eu pude mostrar sem recorrer a um exame especial, embora a pesquisa psicológica
sobre isso mal tenha começado. O problema é mais complexo no caso dos sentimentos, onde a
linguagem, sem dúvida, mais nos induz ao erro, com a indicação do que se sente, o gozo, a dor,
22
Bertrand Russell, Lógica e Conhecimento, tradução de Pablo Rubén Mariconda, São Paulo : Abril Cultural, 1978, p.6.
23
Luiz Henrique Lopes Santos, em texto profundamente esclarecedor, nos mostra que Russell entra em controvérsia com
Meinong quando procura solucionar o problema de expressões denotativas, que tentam denotar objetos do tipo “o atual rei
da França”, mostrando-os como símbolos incompletos e não como elementos independentes da proposição, porém com
significados em contexto. “O pressuposto de que toda expressão denotativa denota algo acarreta problemas insolúveis;
torna impossível, por exemplo, a negação de existência. Tome-se, por exemplo, a proposição “O atual rei da França não
existe”; se ela for reconhecida como significativa, dever-se-ia reconhecer a existência de algo denotado por “o atual rei da
França” e, portanto, a falsidade da proposição. Nenhuma negação de existência seria então verdadeira, pois sua
significatividade implicaria necessariamente sua falsidade. Uma linha de solução, assumida entre outros por Meinong (1853-
1921), consiste em distinguir entre existência e subsistência e exigir que expressões denotativas denotem não apenas
entidades existentes mas simplesmente subsistentes. Sem falar na obscuridade da noção de subsistência, se essa
distinção resolvesse o problema no que concerne a “o atual rei da França’, certamente não o resolveria no que concerne a
“o círculo quadrado”, visto que o caráter contraditório das proposições que a entidade supostamente denotada por essa
expressão deveria possuir impede até mesmo que seja admitida como subsistente, seja qual for o sentido que se dê a
“subsistência”. Problemas semelhantes poderiam ser também levantados com respeito a expressões como “um centauro”,
“todos os anjos”, etc”. Cf. Russell (1872-1970) Vida e Obra, São Paulo, Abril Cultural, 1978, p.VIII.
26
assim como a piedade, a inveja, etc., e no caso dos objetos, na medida em que, a despeito do
testemunho da ocorrência muito clara na linguagem, sempre tem-se que enfrentar a eventualidade
de desejos que não desejam nada. Mas, mesmo aqueles que não compartilham a minha opinião –
qual seja, tanto os sentimentos quanto os desejos não são fatos psíquicos independentes porque
eles são representações a título de inelutável “pressuposição psicológica” – concederão sem
reservas que se goza de alguma coisa, que se interessa por alguma coisa e, ao menos na extrema
maioria dos casos, que se não quer ou se deseja sem querer ou desejar qualquer coisa, em suma,
ninguém ignora que o processo psíquico tão freqüentemente esteja de par com esta propriedade
de “ser orientada para algo” que se está bem perto de ver nisso um aspecto característico que
distingue o que pertence ao psíquico do que não é da ordem psíquica
24
.
A citação acima nos leva em busca de recursos para tentarmos compreender em
que ponto Russell pode desqualificar a empresa de Meinong. A preocupação do
segundo é com a diversidade de casos que se apresentam quando estamos
direcionados para algo. O conhecimento, segundo ele, não pode ser estudado sem seu
objeto. O objeto do conhecimento cumpre essa tendência de modo que, quando
perguntamos pelo conhecimento, está implícito que estamos direcionados para o objeto
do conhecimento. Desse modo, quando queremos conhecer os casos em que estamos
direcionados para nada, por exemplo, devemos perguntar se o nada é um objeto ou
apenas um sentido? A postura de Meinong é a de dar um tratamento científico a esses
casos, por isso a pertinência de suas indagações nos faz olhar Russell com certa
desconfiança. Meinong afirma:
“Todavia, não é a tarefa das considerações seguintes explanar porque eu tenho esta suposição
como a melhor fundada a despeito das muitas dificuldades que a ela se opõem. Os casos em que
a referência, o estar expressamente orientado para ‘algo’ ou, como se diz muito grosseiramente, a
um objeto, são tantos que se impõe, mesmo que seja para dar conta desses casos, que a questão
acerca de a quem cabe tratar de maneira científica estes objetos não deve permanecer sem
resposta”.
24
Alexius Meinong, Sobre a Teoria dos Objetos, tradução de Celso R. Braida, no prelo, p.1 (Original A Meinong, Über
Gegenstandtheorie; Selbstdarstellung; Mit. Einl., Bibliogr. U. Reg.hrsg. von Josef M. Werle; Hamburg, Meiner, 1988. p.51.
27
A questão de Meinong envolve a ciência do objeto que possa explicar a
diversidade de casos em que estamos orientados para “nada”. Em suas pesquisas já
aparece uma preocupação com o que atualmente se chama transdisciplinaridade. A
existência de uma “zona neutra” entre os diversos domínios teóricos que procuram
pensar o objeto apenas dificulta o encontro dessa ciência. Meinong expõe
magistralmente que a existência de uma zona neutra é eficaz no domínio prático por
permitir a relação de boa-vizinhança — a interpenetração de fronteiras é caso de
conflito. Já no domínio teórico, se as fronteiras não se interpenetram, não existe avanço
na ciência do objeto. A zona neutra separa os diversos domínios teóricos, causando a
estagnação da ciência do objeto.
“Interrogar-se sobre um determinado domínio do saber, negligenciado a ponto de ele não ter
reconhecido ao menos a medida de sua especificidade, eis o que visa o problema aqui posto de
saber qual é de fato o lugar, de qualquer maneira legítimo, do tratamento rigoroso do objeto
enquanto tal e em sua generalidade; trata-se da questão seguinte: existe entre as disciplinas,
reconhecidas por sua proveniência científica, uma ciência onde se pode encontrar um tratamento
rigoroso do objeto enquanto tal ou, ao menos, onde tem valor esta exigência?”.
25
A indagação de Meinong tem uma resposta negativa, por não termos
conhecimento de um tratamento rigoroso que tenha sido dado ao objeto por parte de
qualquer ciência. A pesquisa de Meinong segue examinando o que ele denomina: “pré-
juízo a favor do efetivo”, sendo esse o ponto em que aparecerá o “objektiv”, que
remeterá para o sentido tanto dos objetos que existem, quanto dos que não existem: a
doutrina do “Auβersein”, ou seja, da indiferença do objektiv tanto em relação à existência
quanto à subsistência. Tal doutrina afirma que o objektiv está fora do ser, o que é
conseqüência da tendência que possuímos em favorecer o efetivo. Meinong diz: “o
interesse vivo pelo efetivo”. O ensinamento que se retira dessa doutrina é de que os
objetos ideais, apesar de não existirem, são passíveis de entrar no rol do conhecimento.
Tome-se como exemplo os números e as relações entre eles, diz Meinong. Não é,
25
Idem, ibdem.
28
todavia, esse o ponto que queremos destacar, mas o que remete aos objetos
subsistentes. O preconceito a favor daquilo que existe deixou sua marca na história da
filosofia quando se procurou encontrar uma ciência que subsumisse todos os objetos
existentes. A metafísica foi considerada como a ciência primeira, que forneceria os
fundamentos para as ciências particulares, sendo definida como: “a ciência do ser
enquanto ser”.
O pré-juízo a favor do efetivo consiste justamente nisto, ou seja, em não levar em
conta objetos subsistentes. A réplica de Meinong visa sobretudo à questão do juízo onde
o verdadeiro e o falso aparecem sustentados pelo objektiv. O juízo negativo não poderia
ter sentido se o objektiv, fora do ser, não o garantisse. Meinong mostra-nos que, para
além da não existência do sujeito do juízo, há o objektiv. Desse modo, poderíamos
discernir as várias espécies de julgamentos negativos. O que a Metafísica diria sobre
esse aspecto?
“Quando se recorda a que ponto a Metafísica sempre teve a intenção de integrar ao domínio de
suas colocações o mais próximo como o mais distante, o maior como o menor, pode parecer
estranho que ela não possa assumir a tarefa que estamos evocando pela razão que, malgrado a
universalidade de suas intenções, a Metafísica não teve sempre, de longe, a visada
suficientemente universal para ser uma ciência do objeto. A Metafísica lida, sem dúvida, com a
totalidade do que existe. Mas, a totalidade do que existe, incluindo aí o que existiu e o que
existirá, é infinitamente pequena em relação a totalidade dos objetos de conhecimento; e que se
tenha negligenciado isto tão facilmente tem, bem entendido, o seu fundamento no fato que o
interesse vivo pelo efetivo, que está em nossa natureza, favorece este excesso que consiste em
tratar o não-efetivo como um simples nada, mais precisamente, a tratá-lo como algo que não
oferece ao conhecimento nenhum ponto de apreensão ou nenhum que seja digno de interesse”.
26
Meinong diz que os objetos ideais, que são dotados de subsistência (bestehen),
mas em nenhum caso de existência (existierien), mostram o quanto essa tendência é
insustentável.
26
Idem, ibdem.
29
O sentido seria muito fácil de ser definido como alguma coisa que se situa entre
as coisas e as proposições. Ora, não discordamos que assim possa ser, é porém
necessário avançarmos em nosso estudo, apresentando nuances que tornem o trabalho
filosófico cada vez mais estimulante. A pesquisa remete aos pontos citados por Deleuze
em Lógica do sentido, mas não explicitado em seus pormenores. O nosso trabalho
consiste em trazer à luz essas contendas filosóficas, apontando para aquilo que Deleuze
quer tratar como um problema que percorre a filosofia ao longo dos tempos. O sentido
foi descoberto por Meinong como objektiv, afirma Deleuze. Entretanto, nós temos que ir
atrás dos problemas e sobretudo da critica de Russell a Meinong, colocando-a no
interior do seu contexto.
O rigor em relação à ciência do objeto, exigido por Meinong, teve diversos
tratamentos através da história da filosofia. Husserl, por exemplo, afirmou o ato
intencional como doador de sentido. O noema — situado entre a noesis e a coisa —
estaria próximo ao objektiv, devido ao seu aspecto de irrealidade. É célebre o exemplo
do noema da árvore em Husserl, em que o fenomenólogo indica que uma árvore, real
existente, pode arder: mas não o seu noema. Os objetos impossíveis, em Meinong,
apresentam algo que está distante da efetividade. Na Lógica do sentido, é justamente o
que vemos, uma vez que Deleuze cita Husserl como um filósofo que lhe permite pensar
o sentido como entidade não existente. A escola de Husserl , como a de Meinong,
serviria para Deleuze pensar o sentido próximo do exprimível preconizado pelos
estóicos
27
.
Deleuze tece vários comentários sobre o noema husserliano; em determinado
ponto do texto, porém, começa a indicar a insuficiência da doação de sentido
proveniente da fenomenologia. Tal insuficiência, à primeira vista, parece provir da
27
Hubert Elie é citado por Deleuze como aquele que apresenta a importância de Gregório de Rimini e de Meinong, sem citar
porém a origem estóica do problema. Deleuze aponta que desde a filosofia antiga – século III a C - o problema do sentido
vem percorrendo a história da filosofia. A partir do século XIX é que começam as pesquisas dos filósofos austríacos em
torno do que pode ser o sentido. Tais pesquisas giram em torno do problema dos juízos falsos. Vários pensadores
inscrevem-se neste propósito; a escola de filósofos austríacos considerando o sentido como fruto de um ato intencional será
confrontada pela filosofia analítica. Frege será o filósofo que dará o respaldo necessário para que o ato lógico seja pensado
de modo diferente do ato psicológico. Husserl, ao receber esta influência de Frege, tratará de fazer da fenomenologia o
fundamento da lógica.
30
comparação com a estrutura
28
advinda do estruturalismo francês, uma vez que a doação
de sentido fenomenológica não apresenta o elemento paradoxal, o ponto aleatório que
ele denomina, simultaneamente, casa vazia e objeto supranumerário; lugar sem
ocupante e ocupante sem lugar. A doação de sentido deriva, através da inspiração do
estruturalismo, do não-sentido; sendo esse o aspecto em que podemos observar por
que Deleuze não segue a consciência intencional como doadora de sentido, justamente
em função do estruturalismo francês apontar para a oclusão do sujeito. O noema,
apesar de se situar entre as proposições e as coisas — consideradas como duas séries
heterogêneas — não poderia ser apreendido como o não-sentido que doa sentido. O
não-sentido que se opõe à ausência de sentido serve para que Deleuze, de outro modo,
faça remissão a um campo transcendental como aquele que Sartre pensou a partir da
La Transcendence de l’Ego. A fenomenologia, como vemos, não deixa de estar sempre
próxima das considerações de Deleuze acerca do sentido. Mas a crítica ao campo
transcendental sartreano não tardará a ser feita. Deleuze, no entanto, conserva a noção
de campo transcendental, remetendo-o para o sistema metaestável de Gilbert
Simondon. O ponto mais importante dessa viragem — que começa a nos remeter para a
ontologia — é a indicação de que o sentido é produzido, e não dado como uma
essência. A Lógica do sentido é um problema dentro da filosofia transcendental. A
filosofia transcendental começa por apontar para um campo transcendental sem as
formas da consciência e do sujeito. Seria possível em algum tempo e em algum lugar
ensinar-se uma filosofia fora da consciência e do sujeito? O campo transcendental é
denominado, por Deleuze, mundo das singularidades nômades e anônimas, impessoais
e pré-individuais. Simondon inspira Deleuze a indicar cinco características do campo
transcendental: 1) As singularidades-acontecimentos correspondem às séries
28
O estruturalismo francês confere um novo sentido ao termo estrutura, termo este que aparece tanto na fenomenologia
quanto na filosofia analítica. Em Husserl, sobretudo nas Meditações Cartesianas, vemos as remissões ao eu puro como
estrutura que permite ao mundo aparecer com sentido. O eu puro, eu transcendental é a unidade ideal que doa sentido ao
mundo. Em Wittgenstein assistiremos à forma lógica tornar-se comum à estrutura do mundo e à da linguagem. O
estruturalismo pensa o termo estrutura com sentido inteiramente outro, apresentando-o como um novo modo de pensar a
linguagem e o sentido. É oportuno também indicar que o aparecimento do estruturalismo na década de 60, na França,
destrona a fenomenologia enquanto paradigma de pensamento. O deslocamento da fenomenologia ressoa sobre a posição
do sujeito como fonte de onde emanam todos os atos de pensamento. A influência do estruturalismo sobre a filosofia
francesa contemporânea vem acrescida daquelas oriundas de Nietzsche e Heidegger quanto à posição do homem e
conseqüentemente do sujeito.
31
heterogêneas que se organizam num sistema meta-estável provido de uma energia
potencial em que se distribuem as diferenças entre as séries; 2) As singularidades
gozam de um processo de auto-unificação sempre móvel e deslocado, na medida em
que um elemento paradoxal, que percorre as séries, as faz ressoar, envolvendo os
pontos singulares em um mesmo ponto aleatório; 3) As singularidades ou potenciais
freqüentam a superfície; 4) A superfície é o lugar do sentido: os signos permanecem
desprovidos de sentido enquanto não entram na organização de superfície que
assegura a ressonância entre duas séries; 5) O mundo do sentido tem como estatuto o
problemático; as singularidades se distribuem em um campo propriamente problemático
e advêm deste campo acontecimentos topológicos que não estão ligados a nenhuma
direção.
Meinong continua servindo ao pensamento deleuzeano em virtude do objektiv
dos objetos subsistentes não remeter à consciência intencional. A importância de
Meinong aparecerá quando Deleuze nos mostrar que a comunicação dos
acontecimentos substitui a exclusão dos predicados. O campo transcendental pré-
subjetivo e pré-objetivo se esboça aqui para mais adiante ganhar uma maior importância
ao longo do livro. A indicação de que Meinong continua a prestar-lhe serviço é apontada
quando Deleuze começa a pensar a 6
a
série: ”Sobre a colocação em séries”, onde pela
primeira vez é feita remissão a Jacques Lacan e aos paradoxos que derivam dessa
abordagem. A 5
a
série: “Do Paradoxo”, onde Deleuze cita o paradoxo dos objetos
impossíveis de Meinong, alinhava-se com os elementos paradoxais que percorrem as
séries da estrutura. A doação de sentido é dada pelo não-sentido, que não tem a forma
de uma consciência fenomenológica. Deleuze, como já tinha afirmado que os objetos
contraditórios são plenos de sentido, alinhava a teoria do objeto de Meinong com a
estrutura. Como podemos ver, ao longo de toda a sua obra não faz sequer uma crítica
ao filósofo de Graz. Entretanto, de imediato caímos em um problema, pois não sabemos
se Deleuze vai das concepções estruturalistas à filosofia antiga — a estóica — ou desta
àquelas. Sim, mas é a filosofia estóica que o orienta nas pesquisas em torno do sentido;
32
o lekton estóico entra em ressonância com o objektiv de Meinong, passando pelo
estruturalismo.
O livro Lógica do Sentido começa, em sua primeira série de paradoxos: “Do puro
devir”, citando Lewis Carroll e os paradoxos que aparecem em “Alice no país das
maravilhas”; em seguida encaminha-se para a parte propriamente filosófica, onde
remete-se a Platão para tratar da dualidade do limite e do ilimitado contida no Filebo. Os
paradoxos em relação à linguagem começam a aparecer, sendo o Crátilo também
citado. Na segunda série de paradoxos: “Do sentido, através da distinção entre corpos
e incorporais, os estóicos serão apresentados. Os estóicos, diz Deleuze, são amantes
dos paradoxos e estes são os incorporais, os efeitos de superfícies que possuem uma
natureza diferente da dos corpos. Os corpos possuem limites em seus contornos, ações
e paixões que emanam de suas profundidades. Já os incorporais são ilimitados,
impassíveis, efeitos que acontecem na superfície dos corpos. Os acontecimentos têm
suas diferenças para com os estados de coisas, justamente por não apresentarem as
características das coisas; não existem, mas antes subsistem ou insistem nas coisas.
Os acontecimentos ocorrem às coisas e são expressos pelas proposições.
A partir da segunda série de paradoxos, Deleuze começa a apontar para a
reversão que os estóicos operam na filosofia. De inicio, poderíamos dizer que essa
reversão tem em vista dois filósofos: Platão e Aristóteles. Em relação a Platão,
estabelece-se a seguinte diferença: a Idéia platônica deixa de ser um modelo, uma
causa exemplar, para constituir-se como um efeito de superfície; os estóicos consideram
efeitos todo o tipo de idealidades, ou seja, os exprimíveis: não as coisas, mas aquilo que
se pensa e se diz sobre elas. Os corpos, com suas tensões e limites, têm as
características da substância. A diferença para com Aristóteles dá-se justamente em
relação às categorias que se reportam à substância. É nesse sentido que podemos
constatar a inovação estóica; o acidente em Aristóteles se diz como ser no outro, ou
seja, sem a substância não seriam; donde se conclui que possuiriam hierarquicamente
um nível inferior à substância. Os estóicos, segundo Deleuze, apoiado em Emile Bréhier
e Victor Goldschimdt, revertem esse procedimento por apontarem para os corpos como
33
possuidores de ser, o que impede que existam graus hierárquicos no interior de sua
substancialidade. Tomemos como exemplo uma árvore verde: para Aristóteles essa
árvore seria uma substância, por ele denominada o ser em si; o acidente verde
possuiria um grau inferior ao da substância árvore por existir em função dela. Desse
modo, os estóicos revertem Aristóteles por dizerem que a árvore e o verde possuem ser,
mas que o verdejar é um acontecimento na superfície da árvore verde. A hierarquia em
relação ao Ser é destituída em prol de uma outra relação que envolve os corpos e
incorporais. O termo mais alto, diz Deleuze, não é mais o Ser, mas Alguma Coisa, que
envolve os corpos e os incorporais.
1.2.2) O paradoxo das representações sem objeto
O desenvolvimento da filosofia, após Kant, dá-se através de uma preeminência
da subjetividade transcendental face à objetividade. O tema de nosso trabalho inclina-se
em direção do estudo do objeto. Ora, de inicio o nosso propósito poderia parecer inócuo,
mas não o é, uma vez que o tema da subsistência em Meinong, por exemplo, remete à
problematização levantada por Bolzano em relação ao aspecto transcendente do objeto.
O acesso à referência aparecerá como uma questão que percorre tanto a fenomenologia
quanto a filosofia analítica. Jocelyn Benoist esclare como esse acesso ao objeto é
mediatizado pelo sentido.
29
As distâncias e as aproximações entre essas duas correntes
filosóficas dão-se em relação à problematização do sentido. Tais divergências farão a
divisão de águas na filosofia contemporânea. O nosso propósito em inscrever nesse
contexto a teoria do sentido em Deleuze diz respeito sobretudo ao seu silêncio em torno
de Wittgenstein. É estranho que Deleuze não aborde o autor do Tractatus uma vez que
o tema da proposição e do sentido é exaustivamente estudado por Wittgenstein. Sim,
mas são justamente as divergências entre as escolas — fenomenológicas e analíticas —
que irão nos permitir a compreensão desse silêncio. Entretanto, para que esta
compreensão seja obtida, é imprescindível o enfoque sobre a atmosfera filosófica que
29
Jocelyn Benoist, Représentations sans objet Aux Origines de la Phenoménologie et de la philosophie analytique,
Paris, PUF, 2001, p.6
34
pairava sobre o século XIX na Áustria. Jocelyn Benoist observa que a representação, o
sentido e a referência de um lado; e o ato, o conteúdo e o objeto de outro são
resultantes das problematizações ocorridas na aurora do século XIX conduzidas pelos
filósofos austríacos.
Benhard Bolzano, em seu Wissenschaftlehre, é o filósofo que dá início ao
pensamento do paradoxo das representações sem objeto. Todavia, faz-se necessário
apresentar o que esse filósofo entende como proposições em si, representações em si e
verdade em si.
As proposições em si (Satz an sich) se distinguem dos enunciados e dos
juízos; de modo que uma proposição, quando é enunciada, pode ser separada do
enunciado; do mesmo modo, quando pensamos uma proposição, podemos separá-la do
juízo; a proposição, contudo, não possui uma existência real como as coisas; se há uma
objetividade da proposição, esta não é como a de um objeto real, mas a de um objeto
lógico, um objeto ideal; tal objeto, no entanto, não é mental, nem psicológico. Os objetos
lógicos não possuem existência, somente idealidade. Bolzano procura distinguir as
proposições em si de qualquer objeto psicológico, justamente para poder pensar o
estatuto do objeto lógico; o seu propósito é o de elucidar tal objeto em seus pormenores,
fato que nunca ocorrera antes na historia do pensamento. Vejamos, então, o que
podemos dizer acerca de sua proposta: a proposição em si é um objeto lógico, que não
possui nenhuma proximidade com os objetos psicológicos; a proposição em si possui
uma posição de autonomia face ao sujeito, sem, no entanto, ter uma existência real; a
proposição em si independe do sujeito, mas não possui uma objetividade. Haveria uma
autonomia da proposição em si face ao sujeito, e esse ponto deixa em aberto a
possibilidade de tal objeto ser como as Formas platônicas. Ora, as proposições em si,
pensadas desse modo, são verdades em si, que podem ser apreendidas por qualquer
um independentemente de quaisquer aspectos subjetivos; e, de certo modo, deixa
transparecer que não existe nada de novo em relação ao platonismo. Bolzano, de fato,
intitula-se um platônico e através dessa denominação entrará em confronto com a
filosofia transcendental de Kant; a sua critica vai de encontro à intuição kantiana, que diz
ser escabrosa (messlich). Não é difícil de compreender a aversão de um lógico à
35
sensibilidade, e aqui temos um ingrediente a mais para compreender que tal critica não
se dá apenas como uma espécie de puritanismo, mas sim como uma pesquisa
extremante inovadora face ao kantismo. Por conseguinte, deixa também em aberto o
aspecto platônico de tal abordagem
30
.
Bolzano abandona definitivamente o privilégio que o filósofo de Könnisberg dava
ao sujeito, para se perguntar pelo objeto, mas deixando bem claro que o objeto em
questão é um problema, uma proposição em si
31
. Ora, uma proposição remete sempre a
algo, e este algo pode ser pensado ou dito de algum objeto, mas tal objeto é, na maioria
das vezes, uma representação; no entanto, uma representação em si só pode remeter a
uma proposição em si. As representações em si são aquelas que não derivam de
nenhum objeto existente e que também podem ser pensadas por qualquer sujeito. A
independência das representações em si tanto do sujeito quanto do objeto dá-lhes um
estatuto ontológico, não sendo este, no entanto, o aspecto que Bolzano procura
elucidar, e sim o aspecto lógico. A proposição em si é o puro significado lógico da
proposição. O puro significado lógico independente da proposição ser expressa ou não,
30
Neste ponto já podemos deixar indicado como a teoria do sentido de Deleuze difere daquela de Bolzano, justamente pelo
segundo ater-se ao aspecto platônico, ou seja, de pensar que o discurso diz respeito a alguma coisa de existente e a da
ênfase nas Formas incorpóreas. Deleuze, ao nosso ver, mantém uma proximidade com essa teoria, mas difere dela pela
sua exaltação ao lekton estóico que, por ser um incorpóreo, deixa de ser como a forma platônica, que é uma causa além de
ser incorpórea. O lekton, o exprimivel estóico, é um incorpóreo, mas nunca possui o estatuto de causa, aitia; mas, sim o
estatuto de um mero efeito de superfície e é, por isso, imune ao princípio de contradição. As proposições em si de Bolzano,
apesar de serem incorpóreas, não possuem isenção em relação ao princípio de contradição; tais proposições independente
de serem enunciadas ou pronunciadas, são verdades em si e aproximam-se do que entendemos por sentido, mas de modo
algum deixam de ser aparentadas às realidades existentes, mesmo que Bolzano diga que elas não existem, mas que estão
fora do espaço e tempo. As proposições em si estão fora do espaço e tempo, mas assim mesmo não se dizem como
objetos paradoxais. Todavia, Bolzano encontrará o problema das representaçãoes que são sem objeto e, neste ponto
pensamos que aquilo que Deleuze entende por acontecimento se aproxima do que Bolzano chama de representações sem
objeto.
31
Jan Sebastik em Logique et mathematique chez Bernard Bolzano. Paris, Vrin, 1992, p.116-117. “Os termos ‘em si’ e, o
seu sinônimo, “objetivo” qualificam as proposições e seus constiuintes (e que Bolzano chama de representações em si e
que correspondem grosso modo ao que habitualmente se chama de conceitos). Tais distinções parecem corresponder à
habitual distinção entre ato e conteúdo de juízos. Mas, o que é essencial para Bolzano, é que as proposições não são
construídas como abstrações obtidas a partir de enunciados que são encadeamentos de signos, ou a partir de juízos que
são os acontecimentos mentais. As proposições não são derivadas dos enunciados ou juízos que podem ser tomados pelo
estatuto de objetos reais. O termo “subjetivo” se opõe à “objetivo” não quanto à validade, mas unicamente quanto à
realidade que ele qualifica: uma proposição subjetiva é uma proposição objetiva pensada., quer dizer encarnada,
apreendida, realizada por um sujeito individual. Os enunciados e os juízos, enquanto manifestações lingusiticas e
acontecimentos mentais, fazem parte do mundo real: pronunciados, escritos ou pensados, eles nascem, se desenvolvem e
morrem no tempo. Eles são subjetivos porque são propriedades de um ser real, de um sujeito. Todavia, não podemos dizer
o mesmo em relação às proposições em si e seus constituintes, as representações em si: elas aparecem noutro mundo,
fora do espaço e tempo. As proposições e as representações em si são objetivas, mas não são realmente existentes; em
troca, as representações mentais e os juizos existem realmente, por isto eles são ditos subjetivos; eles são as encarnações
das representações e das proposições em si”.
36
ser pensada ou não; a proposição em si não depende do ato de ser pensada ou
enunciada. Quando pensada ou enunciada a proposição se torna conteúdo de um ato
do sujeito; a representação em si é o ato do sujeito enquanto pensa ou enuncia uma
proposição em si. Há, nessa representação, uma matéria que contém uma verdade em
si. O em si que Bolzano tanto sublinha é a dimensão que permite à experiência ser
pensada lógica e objetivamente.
A teoria dos objetos, formulada por Meinong, resulta do contato com as questões
levantadas por Bolzano, a partir do texto de Twardowski sobre a teoria do conteúdo e
dos objetos das representações. Husserl, por sua vez, se colocará contra Twardowski e
também contra Meinong. Ora, aqui podemos distinguir dois grupos de filósofos: de um
lado Bolzano, Brentano, Husserl, Twardowski e Meinong; e de outro, Frege, Russell e
Wittgenstein, que desenvolveram filosofias em torno do sentido. É importante observar
que nem todos os filósofos supracitados são de origem austríaca. Não podemos
também deixar de observar que Frege influenciará tanto Husserl quanto Wiitgenstein. O
que mais nos interessa aqui é mostrar a origem da problematização do sentido, e como
a teoria do sentido em Deleuze, em torno dessa problemática, aparece. O paradoxo das
representações sem objeto é pensado por Bolzano no § 67 da Wissenchaftlehre, onde,
na doutrina dos elementos, procura elucidar que toda representação subjetiva remete a
uma representação em si. A representação sem objeto é paradoxal, primeiramente por
ser uma representação em si que não depende de conteúdos subjetivos nem
psicológicos. A representação em si é qualificada de representação objetiva. O problema
com o qual Bolzano se depara é aquele em que encontra representações em si, ou seja,
representações objetivas, porém sem objeto, como na representação do nada e do
circulo quadrado. As representações sem objeto fazem Bolzano indagar-se sobre a
origem de seu sentido. Jocelyn Benoist mostra-nos que a indagação de Bolzano insere-
se numa ruptura com o representacionalismo kantiano e também com a descoberta
desta camada intermediária denominada sentido, constituindo uma filosofia com teor
semântico. O nosso propósito, então, começa a elucidar-se, uma vez que Deleuze
afirma, na Lógica do sentido, que o sentido teria sido descoberto uma terceira vez por
37
Meinong. Sim, concordamos, há a descoberta de Meinong, mas antes existiram as
colocações de Bolzano sobre as proposições em si, das quais derivam a problemática
das representações sem objeto. Meinong começou a estudar esse tema somente a
partir do texto de Twardowski, que, por sua vez, remetia às indagações de Bolzano
acerca do paradoxo das representações sem objeto.
O nosso propósito fica bem delineado, uma vez que nos preocupa indicar como
essas pesquisas dos filósofos — que não são citados por Deleuze — faz jus ao que
nos exorta quando lemos seus textos. Ora, é assim que a filosofia nos afeta, somos
levados a buscar um tema, a partir de um filósofo, e encontramos outros temas e outros
filósofos. A pesquisa filosófica leva-nos ao labirinto. O paradoxo das representações
sem objeto não é citado por Deleuze, mas, sem ele, as especulações de Meinong
acerca do objektiv não teriam sentido. A teoria dos objetos em Meinong remete para um
objeto que, como veremos mais adiante, é puramente intencional
32
. Nosso propósito
será o de abordar as questões deleuzeanas, mergulhando nos temas que são citados
ligeiramente pelo filósofo francês, mostrando que, em sua teoria do sentido, o objeto
impossível de Meinong assume importância crucial, sem contudo depender de uma
consciência intencional. Desde já podemos perceber a diferença do pensamento de
Deleuze em relação à fenomenologia.
1.2.3) A critica ao paradoxo das representações sem objeto
A pesquisa que viemos realizando, em torno da proposição e do sentido, chega no ponto
em que temos que nos reportar a Kasimir Twardowski, cujo texto, escrito em 1894,
“Sobre a teoria do conteúdo e do objeto das representações”, apresenta a crítica ao
paradoxo das representações sem objeto pensado por Bolzano. Nesse texto,
32
O tratamento deste assunto é de extrema importância por apresentar, a partir do paradoxo da representações sem objeto,
um percurso que desembocará na fenomenologia de Husserl. A importância do assunto se dá justamente por Meinong,
Twardowski e Husserl terem sido alunos de Brentano. A questão erguida por Brentano em relação à distinção dos
fenômenos psíquicos, em relação aos demais fenômenos, abre uma discussão em torno da dependência ou não dos
objetos impossiveis face à consciência intencional.
38
Twardowski começa por discutir o ato, o conteúdo e o objeto das representações. Tais
questões têm inicio quando se afirma que cada fenômeno psíquico possui um objeto
imanente. A representação aparece nessa relação, onde se distingue entre o ato e o
conteúdo da representação em cada fenômeno psíquico. O ato de representar
corresponde ao representado. A presença de uma relação desse gênero é um signo
característico dos fenômenos psíquicos que, desse modo, distinguem-se dos fenômenos
físicos. Twardowski quer encontrar uma solução para o seguinte problema: a
representação é o ato de representar ou o conteúdo da representação? O conteúdo se
confundiria com o objeto da representação? No § 5 “As representações que
denominamos sem objeto” é o ponto onde apresenta a tese de Bolzano. No
desenvolvimento de seu estudo, Twardowski observou que no ato de representar ficou
distinguido: o ato, o conteúdo e seu objeto, e que, entretanto, existem representações
que não possuem objetos.
“Bolzano assim nos ensinou que há representações sem objeto, quer dizer representações que
não possuem objetos. Se alguém, pensa Bolzano, assegura que é um absurdo afirmar que uma
representação não possa ter um objeto e nada representar, então não consegue ver bem que
confunde o conteúdo da representação que, certamente, remete a cada representação, com o
objeto da representação”
33
.
Twardowski encontra-se diante do problema do conteúdo da representação, resta
a saber se este é semântico ou intencional. A posição de Bolzano é que o nada, o
quadrado redondo, a montanha de ouro e a virtude viciada são representações que
dependem da proposição, isto é do conteúdo semântico. A solução de Twardowski será
de cunho intencionalista, o que indica a sua diferença em relação a Bolzano, que
mantém o sentido dependente da proposição e não o inverso.
Todo esse itinerário serve de arcabouço para que a pesquisa se consolide, uma
vez que o referencial teórico utilizado sinaliza para a problematização em torno da
proposição e do sentido. A posição de Bolzano já nos indica uma diferença para com a
33
Kasimir Twardowski, Sur la theorie du contenu et de l’objet des représentations, in Husserl-Twardowski – Sur les
objets intentionels (1893-1901) traduction par Jacques English, Paris, J.Vrin, 1993, p.105.
39
perspectiva de Deleuze; o sentido, segundo o filósofo francês, não dependeria da
proposição. A solução de Twardowski, entretanto, possui um cunho intencionalista, o
que o aproxima da fenomenologia. O desenvolvimento ulterior da questão dos
paradoxos da representação sem objeto levará Husserl à formulação do noema. Nesse
aspecto, poderíamos pensar a filosofia como um tipo de superposição de camadas
conceituais; algo como um flash back filosófico. O conceito de noema retrata muito bem
esse ponto, uma vez que ao nos depararmos com o conceito de noema, nós estamos
diante do conceito de conteúdo da representação elaborado por Twardowski. Esses
conceitos filosóficos aparentemente teriam uma superposição de camadas conceituais.
A arqueologia conceitual talvez revele um aspecto da temporalidade filosófica que até
então era tida como despercebida, ou seja, mesmo que os filósofos construam seus
conceitos como sendo singulares, podemos encontrar dentre esses conceitos, outros
conceitos de outros filósofos que lhes serviram de motivação.
Twardowski critica a posição de Bolzano acerca da representação sem objeto,
mostrando-nos três gêneros em que tais representações podem aparecer: 1) as
representações que envolvem negação, como a representação do nada; 2) as
representações que não correspondem a nenhum objeto, por aparecerem em seu
conteúdo elementos contraditórios, tal como na representação do circulo quadrado; 3)
as representações que não apresentam nenhum objeto que tenham algum correlato na
experiência.
O argumento de Twardowski, em relação às representações do nada,
inicialmente remete aos erros que foram cometidos nas pesquisas lógicas e dialéticas
sobre o não-ser, sobre o nihil. A sua reflexão dá-se sobre os três gêneros do nada, sem
deixar de observar que o mesmo Twardowski aponta que Immanuel Kant concebeu
quatro gêneros de nada
34
. A sua réplica consiste em perguntar se: a representação do
nada, ao invés de possuir um objeto, seria realmente uma representação? Qual o motivo
de sua espreita em relação a Bolzano?
34
A observação de Twardowski remete à Crítica da Razão Pura, sem citar, porém, o parágrafo.
40
“Ora, a questão que parece se colocar é a de saber se a palavra ‘nada’ é uma expressão
categoremática, quer dizer se, por ela, é designada uma representação, como, por exemplo,
aquelas que são pelas palavras pai, julgamento, folhagem. De uma maneira geral, a significação
de nihil pode ser igualada àquela de ‘não-ser’ e hoje pensa-se também que o nada é
simplesmente um substituto da expressão ‘não-qualquer coisa’. Sendo assim, parece então
necessário levantar a questão de saber o que significam expressões como ‘não-ser’, ‘não-
qualquer coisa’”.
35
Twardowski prossegue em sua pesquisa mostrando-nos que os medievais
chamavam de infinitização ao conjunto constituído de uma expressão categoremática
mais a partícula negativa “não”; o que resulta em uma expressão nova de significação
determinada. A representação torna-se dividida de maneira dicotômica por uma
expressão composta em conjunto com o “não”. A questão de Twardowski, de saber se a
representação do nada é mesmo uma representação, parece enveredar por caminhos
de extremas dificuldades. A infinitização, para que possa ser bem concluída, deve
reportar-se a um elemento superior, diz Twardowski, seguindo de perto os medievais. O
que seria este elemento superior? O exemplo escolhido é bem ilustrativo, por tratar de
mostrar o que seria um elemento superior quando se pronuncia a expressão: não-
gregos. A resposta é simplesmente homens que, vivendo em meio aos gregos, não são
gregos. Twardowski indica que os não-gregos, apesar de serem homens que convivem
com os gregos, não partilham da mesma qualidade. A expressão não-grego infinitiza,
porque divide os homens em gregos e em não-gregos. Outro bom exemplo seria de não
fumantes e fumantes, por permitir a divisão entre os passageiros que fumam e os que
não fumam, durante uma viagem de trem. Ora, mas este não seria um bom exemplo
para infinitizar o nada justamente por não existir um elemento superior que sustente a
divisão entre qualquer coisa e a não-qualquer coisa. Twardowski afirma que a
infinitização dá-se efetivamente em relação a um elemento superior, e de imediato a sua
investida ruma em direção ao aspecto categoremático da representação do nada.
Twardowski quer saber se o nada é um categorema ou um sincategorema. O
35
Kasimir Twardowski, op.cit, p.106.
41
categorema, como sabemos, é uma palavra que significa alguma coisa. O
sincategorema, por sua vez, é aquilo que se dá quando dois categoremas são unidos,
sintetizados. A indagação twardowskiana remete à seguinte questão: a representação
do nada seria uma representação ou apenas um sincategorema? A infinitização quando
se dá em relação a um gênero de ordem superior, como no exemplo dos não-gregos,
constatamos que esta mesma expressão é categoremática e possui significação. A
infinitização não suprime, em si e por si, a natureza categoremática da expressão. O que
se pode destacar dessas assertivas é: o efeito dicotômico da infinitização somente se
efetiva junto a uma condição, ou seja, deve existir um gênero de ordem superior.
Twardowski, a partir desse ponto, procura pensar a representação sem objeto de
Bolzano, tomando como exemplo o nada. A sua estratégia é a de pensar o “nada”
através da expressão “não-qualquer coisa”, para poder concluir se essa expressão é
categoremática ou apenas sincategoremática. Ora, para quenão-qualquer coisa” fosse
uma expressão categoremática deveria existir um elemento de ordem superior. Tal
elemento permitiria a infinitização e a dicotomia entre qualquer coisa e a não-qualquer
coisa. O argumento de Twardowski se consolida quando conclui que é impossível existir
um gênero de ordem superior entre qualquer coisa e não-qualquer coisa. Nesse caso, a
expressão torna-se sem significação; a tentativa de encontrar um elemento de ordem
superior malogra justamente por esse deslocamento implicar na colocação de “qualquer
coisa” como gênero superior. Nesse sentido, “qualquer coisa” serviria de mesmo e de
outro, o que tornaria impossível a infinitização. Twardowski conclui que o nada é apenas
um sincategorema, não existindo nem sequer a sua representação. Avicena é por ele
citado como o filósofo que observou ser inadmissível afirmar infinitizações como as de
não-coisa, não-qualquer coisa, não-ente..etc.
O problema levantado por Bolzano sobre as representações sem objeto é
solucionado por Twardowski através da distinção entre sincategorema e categorema. O
nada não é um nome, mas sim um sincategorema, isto é, uma parte constitutiva das
expressões negativas. Twardowski considera ser necessário reescrever as expressões
que se reportam ao nada. “Nada é eterno” deveria ser escrito da seguinte maneira: “não
42
existe qualquer coisa de eterno”; “eu não vejo nada” significaria: não há qualquer coisa
que seja vista por mim”. Twardowski fica abismado como a natureza sincategoremática
do nada escapou a um pesquisador como Bolzano.
1.2.4) O paradoxo dos objetos impossíveis
Deleuze, ao pensar os paradoxos dos objetos impossíveis em Meinong, enumera
os seguintes pontos: a) os objetos impossíveis não podem existir nem ser
representados; b) os objetos impossíveis, apesar de serem contraditórios, possuem
sentido; c) objetos impossíveis não são seres, mas sim “extra-seres”. Sim, todos esses
aspectos são remanescentes das especulações meinonguianas, o que de imediato nos
leva às considerações de Twardowski acerca dos objetos impossíveis. De início,
poderíamos já assinalar a diferença entre Twardowski e Meinong. Qual seria essa
diferença? Twardowski dá aos objetos impossíveis o estatuto de objetos consistentes.
Tal consistência, porém, não resulta de coerência lógica, uma vez que os objetos
impossíveis infringem o princípio de não-contradição. A consistência é intencional,
sendo esta a inovação de Twardowski. Ora, a contradição lógica que torna o objeto
impossível de existir e de ser pensado não constituirá problema para Twardowski,
revertendo o problema, atribuir-lhe um conteúdo intencional.
Meinong, por sua vez, dará ao objeto impossível uma “característica ontológica” e
não apenas intencional, como o faz Twardowski. A reflexão de Twardowski, além da
infinitização oriunda da filosofia medieval, apóia-se na filosofia transcendental de Kant,
retirando dela os elementos que lhe permitem afirmar a consistência intencional dos
objetos impossíveis. Kant aponta nas “Notas sobre anfibologia do conceito de reflexão”
da Crítica da Razão Pura que é de uso iniciar a filosofia transcendental a partir dos
conceitos de possível e impossível. Entretanto, também acrescenta que existe um objeto
mais elevado da filosofia transcendental que é o objeto geral. O exame desse objeto,
para saber se ele é algo ou nada, levará Kant a criar a tábua dos Nadas (A290/292 B
346/349). O nihil negativo, ou seja, o objeto sem conceito, servirá de ponto de partida
43
para a reflexão de Twardowski. O filósofo polonês irá transgredir o princípio de não-
contradição, e o seu ponto de apoio se centrará na autodestruição do conceito. O
princípio de não-contradição impede que o conceito se constitua, mas não que o objeto
seja sem conceito. Tal é o ensinamento que Twardowski retira de Kant.
Ao pensar o paradoxo dos objetos impossíveis, Deleuze comenta que esses
objetos não podem ser representados, porém, nada impede que possuam sentido. A
contradição lógica impede que tais objetos existam e sejam representados. É neste
ponto que percebermos porque Deleuze dá ênfase aos incorporais dos estóicos, aos
elementos paradoxais da estrutura e aos objetos impossíveis de Meinong. Todos esses
elementos têm como característica serem estranhos ao princípio de não-contradição. No
caso da estrutura, o simbólico, que se distingue do real e do imaginário por uma questão
de posição, alinhava-se com os objetos impossíveis de Meinong, que não podem existir
nem ser imaginados. O círculo quadrado, como o centauro, não pode ser imaginado,
apesar de ambos não existirem. A tese de Deleuze se aproxima da de Kant em relação
ao nihil negativum. Deleuze pode assim articular também os incorporais dos estóicos ao
simbólico e aos objetos impossíveis. Não podemos deixar de observar que todos esses
elementos são pensados como independentes da consciência. É notório como até certo
ponto da obra de Deleuze estão fortemente presentes o estruturalismo e o estoicismo.
Todavia, o que desde o início estivemos ressaltando, foi a presença dos paradoxos da
representação sem objeto, que nos permitem pensar algo de diferencial no pensamento
de Deleuze.
O que distingue o pensamento de Meinong com relação ao de Twardowski é a
preocupação em denunciar o “pré-juízo a favor da efetividade"; a metafísica, de acordo
com o primeiro, caracterizou-se por querer formular uma teoria do objeto, porém,
privilegiou apenas os objetos existentes. Quando da comparação com a totalidade dos
objetos do conhecimento, os objetos que existem são infinitamente restritos, ou seja,
apresentam-se em número diminuto; o propósito de Meinong, então, se revela como
aquele que pretende ampliar a teoria dos objetos incluindo os não efetivos, ou seja, os
objetos ideais. A idealidade dos objetos não impede que eles sejam pensados mesmo
44
que contrariando os princípios lógicos; a categoria de subsistência vem destituir a de
existência, pela qual a metafísica foi constituída. Os princípios lógicos, na verdade,
adequam-se perfeitamente aos objetos existentes por serem constituídos a partir deles,
donde podemos afirmar que a metafísica e a lógica clássica caminham juntas. Tais
asserções poderiam levar-nos às considerações de irracionalismo e até de não-filosofia,
mas não é por aí que a teoria dos objetos deverá se constituir. Meinong não enfatiza o
aspecto de irracionalidade dos objetos impossíveis, pelo contrário, procura estabelecer
uma ciência que os leve em conta, tanto que suas especulações irão girar em torno do
sentido dos juízos negativos. O que fica nítido, nas considerações meinonguianas, é a
categoria de "objektiv" , que nos permitirá distinções — entre objetos efetivos e ideais —
em torno dos tipos de juízos (afirmativos e negativos), além de apontar para uma
"ontologia". Meinong assinala, por exemplo, que as relações são objetos ideais que
pertencem a um campo inteiramente teórico: as relações de identidade e diferença não
possuem efetividade, mas coexistem com as realidades efetivas.
"No conhecimento de uma tal relação já está se lidando com este gênero particular de objeto, que
eu espero ter mostrado, que se situam face aos juízos e às suposições de uma maneira análoga
àquela do próprio objeto em relação às representações. Eu propus para designar aquela o termo
"objetivo" (Objektiv), e mostrei que este 'objetivo' ele mesmo pode assumir, por sua vez, as funções
próprias de uma objetidade (Objektes) e tornar-se, em particular, o objeto (Gegenstand) de uma
nova apreciação que o leva em conta como uma objetidade (Objekte), tal como aquele das outras
operações intelectuais".
36
Quando Twardowski faz a crítica da representação do Nada está iniciando toda a
discussão sobre os objetos impossíveis e, conseqüentemente, sobre a teoria do sentido.
O que caracteriza a diferença de Meinong para o seu modo de pensar é justamente a
procura por uma ontologia dos objetos impossíveis. O Nada apareceria com um sentido
ontológico. Os objetos impossíveis, que aparecem na tábua kantiana do Nada,
sobretudo o nihil negativum, ganharam ontologia em Meinong. Como se dará essa
ontologia? Como vimos, a consistência dos objetos impossíveis é vista por Twardowski
36
Alexius Meinong, Über Gegenstandtheorie, trad. Celso Braida, texto inédito, p.3
45
como intencional. Já Meinong procurará a ontologia desses objetos. O objeto tem sua
idealidade, e tal característica faz com que Meinong o apresente relacionado ao aspecto
judicativo. Tal objeto não pertence ao juízo, mas é condição de todo e qualquer juízo.
Por que todo e qualquer juízo? É que os juízos negativos remetem ao que não existe. O
discurso de Meinong, como sabemos, caracteriza-se por uma crítica à efetividade
ressaltando que a época filosófica moderna se apóia neste pré-conceito a favor da
efetividade. O propósito de Meinong é, além da oposição à efetividade, indicar os
aspectos ontológicos dos objetos ideais. A relação dos objetos com os juízos servirá
para mostrar tal ontologia. Meinong cria uma nova terminologia para tratar desse objeto
peculiar denominado-o objektiv. O seu intuito é, sobretudo, indicar que o objektiv não
aparece somente na modalidade judicativa. Trata-se de um problema extremamente
difícil, qual seja: como estabelecer uma ontologia a partir de objetos que aparecem de
antemão na esfera judicativa. A outra modalidade de manifestação do objektiv é que
dará as pistas para a compreensão ontológica de tais objetos. A saída para a ontologia
dá-se pela doutrina do ser e do ser-tal — doutrina esta estabelecida por Ernest Mally —
que nada mais é do que a outra modalidade de manifestação do objektiv, fora da esfera
judicativa.
Na busca de aprofundar as questões levantadas por Meinong em torno do
objektiv, não podemos perder de vista que elas se inserem em nosso propósito de
estudar a teoria do sentido em Deleuze como entidade não existente. O pano de fundo
de nosso trabalho é a relação entre a teoria dos objetos e o sentido como acontecimento
em Deleuze. O desdobramento dessas questões incidirá sobre a querela entre a
fenomenologia e a filosofia analítica em torno dos atos intencionais e dos atos
linguísticos. Quem teria primazia em relação ao sentido? O acontecimento sendo a
condição para o sentido, como poderíamos justificar essa tese diante daquelas que
privilegiam a consciência e a linguagem? Se a teoria da significação for prévia a
qualquer modalidade de ato intencional, qual seria a distinção a estabelecer entre
sentido e significação? Deleuze não deixa de destacar, na Lógica do sentido, o
pensamento de Meinong, sobretudo em relação à ontologia do ser tal (Sosein). Os
46
paradoxos dos objetos impossíveis aparecem na quarta série de Lógica do Sentido
como objetos sem pátria e que habitam o exterior do ser. A ênfase que Deleuze dá ao
conceito de extra-ser é apoiada na doutrina do “ser tal”. Deleuze indica o problema da
ontologia de modo peculiar, uma vez que destaca os objetos contraditórios como extra-
seres. O que seria a exterioridade do ser? Ora, como Meinong concebe o ser como tudo
aquilo que é efetivo, certamente está apontando para tudo aquilo que possa ser
pensado fora da efetividade. O “fora do ser”, a exterioridade do ser, é tudo aquilo que
pode ser definido como não existente. Tudo o que existe está submetido ao princípio de
não-contradição, portanto tal filtro lógico não consegue atingir o objektiv.
Ao debruçar-se sobre o paradoxo do absurdo ou dos objetos impossíveis,
Deleuze aponta que as proposições que designam objetos contraditórios possuem
sentido. Meinong diria que tais proposições possuem objektiv e Bolzano, por sua vez,
afirmaria que são representações sem objeto ou que o conteúdo da representação
aparece somente na proposição. Deleuze continua afirmando que as proposições que
designam objetos impossíveis possuem sentido, sem deixar de indicar que tal
designação é impossível de ser efetuada, o que conseqüentemente resultaria numa
impossibilidade de significação. Toda e qualquer proposição sem significação é dita
absurda, mas a possibilidade de manifestação ocorre devido ao sentido.
“Elas são sem significação, isto é, absurdas. Nem por isso deixam de ter um sentido e as duas
noções de absurdo e não-senso não devem ser confundidas. È que os objetos impossíveis –
quadrado redondo, matéria inextensa, perpetuum móbile, montanha sem vale etc – são objetos
‘sem pátria’, no exterior do ser, mas que têm uma posição precisa e distinta no exterior: eles são
‘extra-ser’, puros acontecimentos ideais inefetuáveis em um estado de coisas. Devemos chamar a
este paradoxo de paradoxo de Meinong, que soube tirar os mais belos e brilhantes efeitos”.
37
Deleuze sublinha a posição dos objetos impossíveis no exterior do ser como
possuindo uma posição distinta, isto é, não são da ordem dos estados de coisas, e sim
acontecimentos ideais. O que quer dizer esta posição de acontecimento ideal?
37
Gilles Deleuze, op.cit, p.38
47
“ Se distinguimos duas espécies de ser, o ser do real como matéria da designação e o ser do
possível como forma das significações, devemos acrescentar este extra-ser que define um
mínimo comum, ao real, ao possível e ao impossível. Pois o princípio de contradição se aplica ao
real e ao possível, mas não ao impossível: os objetos impossíveis são extra-existentes, reduzidos
a este mínimo e enquanto tais insistem na proposição
38
.
A terminologia utilizada por Deleuze para indicar a insistência dos objetos
impossíveis na proposição remete à de Meinong. Tal terminologia nos faz indagar: que
movimento é esse que aparece tanto em Meinong como em Deleuze, que consiste em
dar um estatuto ontológico ao que não existe? No caso de Meinong, o propósito é o de
dar ontologia ao objektiv. Deleuze, por sua vez, procurará a ontologia do acontecimento
e sua ressonância na proposição. A tese de Deleuze é que o sentido é expresso pela
proposição, mas não pertence à linguagem. Não é a linguagem que funda o sentido,
pelo contrário, o acontecimento é que dá condição à linguagem de possuir sentido. O
sentido é o expressado da proposição e acontece aos corpos como extra-ser. O estatuto
do quase-ser tira o acontecimento da possível confusão com o estado de coisas.
Quando Deleuze afirma que o princípio de não-contradição não atinge os objetos
impossíveis faz o movimento inverso ao de Bertrand Russell, quando este tenta
impugnar, de qualquer modo, a teoria dos objetos de Meinong. A tese de Deleuze seria
inócua do ponto de vista da análise lógica? O que poderíamos dizer quanto ao ponto de
vista fenomenológico? Ora, a tese de Deleuze se aproxima muito da fenomenologia,
mas se afasta, ao mesmo tempo, por tender muito mais para Meinong, que não é
fenomenólogo, apesar de ter sido aluno de Franz Brentano. A tese do filósofo alemão é
muito mais ontológica do que fenomenológica e, devido a esse aspecto, podemos dizer
que a doutrina da independência do “ser tal” inspira Deleuze, quando este afirma a
posição do extra-ser enquanto acontecimento ideal. A doutrina do ser tal foi formulada
por Ernst Mally e retomada por Meinong e, segundo Jocelyn Benoist, se aproxima
daquela elaborada pelo filósofo Avicena, quando este árabe distingue três estados da
38
Idem, ibdem
48
essência: a essência individualizada, a essência universal e a essência neutra. Deleuze,
na quinta série de Lógica do Sentido, aproxima as duas teses, a de Avicena e a de
Meinong, assim como o faz Jocelyn Benoist em seu livro Representations sans object
Aux Origines de la phénoménologie et de la philosophie analytique. A aproximação de
Benoist ressalta, na tese aviceniana, a independência da essência em relação à
existência, o que de imediato remete à independência da essência em relação aos
objetos existentes da metafísica. Não podemos esquecer que Meinong repudia a
metafísica enquanto ciência dos objetos efetivos. A inexistência aparece através de
duas modalidades: objetos que não existem como a montanha de ouro; objetos que não
existem tipo círculo quadrado. Os últimos são chamados impossibilia e remetem às
representações sem objeto formulada por Bolzano no § 67 da Wissenschaftlehre.
O problema da inexistência nos leva para a seguinte questão: o discurso sobre a
inexistência é primeiro que o discurso sobre a existência? Ora, se o discurso é
geralmente sobre algo ou sobre alguma coisa, resta saber se esse algo é existente ou
não-existente. Benoist assinala que se o discurso for sobre algo que não existe
estaremos próximos da via tomada pelos estóicos; para eles, o discurso versa sobre
alguma coisa (
τι
) que, entretanto não é um existente (
ον
). Benoist observa que os
estóicos estão abrindo um caminho, de modo pioneiro, e que será também o de
Meinong e também o de Husserl. Ora, é nesse ponto que a nossa pesquisa sobre
Deleuze ganha mais força, já que o filósofo francês procura justamente pensar o sentido
através dos exprimíveis pensados pelos estóicos; nesse ponto também aparece a
importância de Meinong por ser o filósofo que permite pensar o sentido como extra-ser,
sobretudo no que remete aos objetos impossíveis. Deleuze, entretanto, acrescenta,
além dos estóicos e de Meinong, o pensamento de Lewis Carroll através de sua obra
fantástica, justamente para elucidar que o sentido pode ser pensado fora do princípio de
não-contradição. Deleuze reúne o lekton estóico, os impossibilia de Meinong e os
paradoxos de Lewis Carroll. Ora, se Deleuze alinha esses autores em sua teoria do
sentido, resta perguntar: em que consiste a originalidade de tal teoria? Que perspectivas
se abrem em filosofia a partir da teoria do sentido em Deleuze? A filosofia passaria a
49
lidar com o sentido não somente a partir de sua neutralidade, mas de sua potência
genética. O sentido quando pensado a partir de um campo transcendental sem sujeito
remete à potência genética, ponto este que estava excluído das teorias que o tratavam
como significação.
50
CAPITULO II
DO SENTIDO, DA LINGUAGEM E DO TEMPO
2.1) As inversões na linguagem e no tempo
Ao começar, na primeira página de Lógica do Sentido, a problematização em torno do
sentido, Deleuze cita a protagonista da novela de Lewis Carrol “Alice no país das
maravilhas”:
Quando Alice cresce, quero dizer que ela se torna maior do que era. Mas por isso mesmo ela se
torna menor do que é agora. Sem dúvida não é ao mesmo tempo que ela é maior e menor. Mas é
ao mesmo tempo que se torna um e outro. Ela é maior agora e era menor antes. Mas é ao mesmo
tempo, no mesmo lance, que nos tornamos maiores do que éramos e que nos fazemos menores
do que nos tornamos. Tal é a simultaneidade de um devir cuja propriedade é furtar-se ao
presente”.
39
Em seguida a Lewis Carroll, Deleuze nos remete a Platão; e os diálogos
platônicos que lhe servem de orientação são o Crátilo e o Filebo. O tema aqui estudado,
nesse ponto, envolve o ser e o tornar-se; importante esclarecer que não utilizaremos ser
e devir por não se tratar da oposição entre o ser e o devir
40
. O nosso alvo é mostrar que
Deleuze, diante da indicação de Platão, recorta um excerto do Filebo, onde aparece a
distinção entre o ser e o tornar-se. O que resulta dessa citação é justamente o enfoque
no tornar-se, ao invés da exaltação do verbo ser. O velho tema filosófico do ser e do
39
Gilles Deleuze, Lógica do sentido, São Paulo, Perspectiva, 1974, p.2
40
Em nosso propósito de tratar da questão do sentido relacionado à neutralidade e à potência genética, iremos encontrar
indicações em torno do problema da individuação. Ao abordarmos esse problema, faremos um enfoque sobre a questão do
devir do ser. O ser devém enquanto é. Tal afirmação não opõe ser e devir, mas sim os apresenta entrelaçados; o indivíduo,
ao individuar-se, aparece como um ser fasado; o devir do ser é justamente o aparecimento de fases no ser. O Ser sem
fases, o Ser defasado, é o ser enquanto problemático;. o ser devém enquanto problemático. Tanto é, que a individuação é
problemática; em relação ao tempo, não basta dizer que somos finitos somente por nos tornarmos mais jovens e mais
velhos ao mesmo tempo. A finitude é um problema, sem dúvida, mas não destitui o aspecto paradoxal de nos
experimentarmos simultaneamente no passado-futuro. Deste modo, o tornar-se é preferível do que o simples vir-a-ser.
51
devir parece retornar à cena. Heráclito e Parmênides novamente em suas contendas
infindáveis? Deleuze, entretanto, sublinha que o devir não suporta a separação nem a
distinção do antes e do depois, nem a do passado e do futuro. O devir avança, puxando
nos dois sentidos (direções): o passado e o futuro. Alice não envelhece sem tornar-se
jovem e vice-versa.
Deleuze nos apresenta a filosofia, mostrando que jamais podemos pensar sem
levar em conta o devir. O paradoxo aparece como o elemento do pensamento em que o
devir é afirmado sempre nos dois sentidos (direções) ao mesmo tempo. A filosofia, que
tanto se orientou pelo bom senso, a ponto de Descartes ter afirmado ser a coisa mais
bem distribuída do mundo, tem no paradoxo o seu elemento problemático. O bom
senso, que diz que todas as coisas possuem um sentido determinado, é ultrapassado
pelo paradoxo que afirma simultaneamente os dois sentidos. O curioso, em Deleuze, é
que ele toma como fonte de sua filosofia o próprio Platão. Ora, nada mais interessante
do que uma apresentação filosófica em que o tornar-se é indicado pelo mais conhecido
dentre os filósofos.
“Platão convidava-nos a distinguir duas dimensões: 1
o
) a das coisas limitadas e medidas, das
qualidades fixas, quer sejam permanentes ou temporárias, mas supondo sempre freadas assim
como repousos, estabelecimentos de presentes, designações de sujeitos: tal sujeito tem tal
grandeza, tal pequenez em tal momento; 2
o
) e, ainda um puro devir sem medida, verdadeiro devir-
louco que não se detém nunca, nos dois sentidos ao mesmo tempo, sempre furtando-se ao
presente, fazendo coincidir o futuro e o passado, o mais e o menos, o demasiado e o insuficiente na
simultaneidade de uma matéria indócil (‘mais quente e mais frio vão sempre para a frente e nunca
permanecem, enquanto a quantidade definida é ponto de parada e não poderia avançar sem deixar
de ser; ‘o mais jovem torna-se mais velho do que o mais velho, e o mais velho, mais jovem do que o
mais jovem, mas finalizar este devir é o de que eles não são capazes, pois se o finalizassem não
mais viriam a ser, mas seriam... ”)
41
.
O importante a destacar, nessa citação, é que o devir não é apresentado como a
unidade do ser e do não-ser. O devir, ao avançar nos dois sentidos, não é como a
quantidade fixa que não pode avançar sem deixar de ser. Não é ao mesmo tempo que
41
Platão, Filebo, 24d; Parmênides, 154-155 apud Deleuze, op.cit, p.1-2.
52
ficamos maiores e menores, mas ao mesmo tempo que nos tornamos um e outro. Tal
fórmula implica na distinção entre o verbo ser e o tornar-se. Ora, as questões
levantadas por Deleuze são inteiramente de ordem filosófica; o ser que permanece
sendo por toda a eternidade e o devir que, inseparável do tempo, torna-se sempre um
outro, aparecem como pontos importantes do modo deleuzeano de apresentação da
filosofia. Ora, é aqui que podemos apresentar Deleuze inserido na problemática
filosófica contemporânea. A linguagem e o tempo aparecem como meios de pensarmos
o paradoxo. Deleuze, citando Platão, começa por perguntar-se se não haveria dois tipos
de linguagem: uma que remeteria às coisas fixas e determinadas e outra que diria
respeito ao tornar-se? A linguagem também apareceria, segundo Deleuze, como o meio
em que os limites são fixados e ao mesmo tempo ultrapassados.
42
Podemos pensar,
também, na conjugação desses dois tipos de linguagens, aquela que remete às coisas e
estados de coisas e aquela que remete aos acontecimentos. A linguagem que trata da
significação, designação e manifestação conjugada com aquela que trata do puro
sentido. Sendo neste ponto que aparecem as inversões da linguagem e do tempo. O
acontecimento e o sentido se apresentam de modo unívoco, sempre afirmando as duas
direções. Quando Alice ao cair na toca dá início à sua longa aventura, num dado
momento começa a lembrar-se de sua gatinha de nome Dinah e a pensar: será que
gatos comem morcegos? E imediatamente pergunta: será que morcegos comem gatos?
O que vemos é uma inversão da pergunta, a expressão de que o devir louco não deixa
que a frase tenha apenas uma direção, assim como acontece com o tempo. Há
univocidade da inversão, no tempo e na linguagem; e, podemos dizer como Deleuze: o
que acontece aos corpos e é expresso pela proposição. O que fixaria a linguagem em
42
Não podemos deixar de observar que, apesar de todas divergências entre o pensamento de Deleuze e Wittgenstein, a
linguagem tem um papel preponderante na questão da proposição e do sentido. O livro de Deleuze, Lógica do Sentido, não
traz nenhuma referência ao texto de Wittgenstein, sobretudo ao Tratactus Lógico-Philosophicus. O vídeo: “L’ abecedaire de
Gilles Deleuze”, contêm duras criticas de Deleuze a Wittgenstein. Tal critica causa um ar pesado entre os estudiosos de
ambos os filósofos. O nosso propósito é apenas o de apresentar os pontos que Deleuze, ao nosso ver, diverge de
Wittgenstein em relação ao sentido. O nosso interesse é o de relacionar a questão do sentido com o tempo e a linguagem;
Procuraremos destacar aquilo que Deleuze denomina inversões da linguagem. Deste modo, pesquisaremos as questões
que dão origem à fenomenologia e à filosofia analítica, para ver como Deleuze se mantém, com sua teoria do sentido,
distante de ambas. A linguagem relacionada ao tempo será um dos pontos que Wiittgenstein irá abordar na passagem dos
textos de 1929 para 1930, como bem nos indicou Bento Prado Neto in Fenomenologia em Wittgenstein, Rio de Janeiro,
Editora da UFRJ, 2003.
53
apenas uma direção? Se o tempo do acontecimento é paradoxal e se afirma de modo a
levar o bom senso e o senso comum aos seus limites, o que fazer para que a linguagem
tenha permantemente apenas uma versão? A inversão e a subversão seriam aspectos
dos acontecimentos que ocorrem simultaneamanete no passado-futuro sem se deter no
presente imediato. O modo mais confortável de paralisar esse processo é o de fazer
com que a linguagem remeta às coisas e estados de coisas do mundo; ou, na pior das
hipóteses, anular por completo o tempo. Anular o tempo é retirar a vida da linguagem.
2.2) O círculo da proposição e o sentido
As considerações em torno da linguagem levam Deleuze a debruçar-se sobre a
proposição. Quais são as relações do sentido com a proposição, considerando que esta
possui três dimensões: designação, manifestação e significação? Quando afirmamos, no
inicio deste trabalho, que Deleuze procura pensar o sentido de modo direto, ficou
implícito que ele se reportava à saída do círculo da proposição. O que seria o circulo da
proposição e, por que tal círculo não consegue dar conta do sentido? O acontecimento,
como sentido, não poderia ser apreendido diretamente dentro do circulo da proposição.
O sentido não se confundiria com a designação, nem muito menos com a manifestação
e a significação. Deleuze explicita que a designação remete sempre a um estado de
coisas, enquanto que a manifestação começa no Eu que fala; e a significação trata dos
conceitos universais. A teoria da significação teria que ser distingüida da teoria do
sentido, uma vez que o propósito de Deleuze é elucidar a diferença entre sentido e
significação. Se fôssemos estabelecer uma comparação entre o que Deleuze e
Wittgenstein pensam acerca da linguagem e, sobretudo da proposição, poderíamos
dizer que o primeiro privilegia a designação e a expressão, enquanto o segundo a
designação e a significação. Quando Wittgenstein afirma, no Tractatus, que o mundo é
tudo que ocorre, podemos aproximá-lo do que Deleuze pensa acerca do acontecimento?
Poderíamos afirmar que fato e acontecimento se recobrem? Seria muito fácil se o fato,
como tudo aquilo que ocorre no mundo, fosse identificado ao acontecimento. Se tal
54
assertiva tivesse propriedade diríamos que a filosofia de Wittgenstein e a de Deleuze
seria a mesma, quanto ao sentido. Todavia, fato e acontecimento não se recobrem; a
distinção entre estados de coisas e acontecimento não permite tal identificação. Por
tratar o sentido como acontecimento e vendo nisto um avanço da filosofia
transcendental, Deleuze jamais diz que entre o mundo e a linguagem existe algo em
comum como uma forma lógica. A ontologia em Wittgenstein precede a linguagem,
sendo que o mundo não é a totalidade das coisas, mas sim a totalidade dos fatos.
Deleuze pensa uma estranha ontologia, onde além de no mundo existirem coisas, e
ocorrerem fatos e estados de coisas, subsistem acontecimentos.
A meditação de Deleuze sobre o tempo e a linguagem se insere em questões
sobre as quais dois dos maiores filósofos contemporâneos se debruçaram. Heidegger e
Wittgenstein, respectivamente, pensam o homem no limite do mundo e da linguagem. A
distinção entre Deleuze e Wittgenstein é que o primeiro pensa a linguagem articulada ao
tempo, enquanto o segundo não o faz, pelo menos não no Tractatus. A ontologia de
Deleuze, nesse ponto, vai distinguir-se daquela do Tractatus, onde o tempo não se dá
na ocorrência dos fatos. Quando dissemos que Deleuze privilegia a designação e a
expressão, podemos dizer que faz o mesmo em relação aos corpos e aos
acontecimentos. As duas séries, da linguagem e do mundo, apresentam-se nas
proposições que designam as coisas e expressam o sentido. Em Wittgenstein, a
estrutura da linguagem e do mundo é a mesma, devido à forma lógica transcendental:
isomorfismo. A linguagem pode representar o mundo através da proposição; os fatos
são designados e significados pela forma lógica da linguagem.
Deleuze pensa que o sentido só é apreendido diretamente quando saímos do
círculo da proposição. Tal círculo vai dos estados de coisas à significação, dos fatos à
linguagem e vice-versa; nesse percurso torna-se impossível o contato direto com o
sentido. Desse modo, nunca podemos encontrar o sentido como acontecimento puro
que envolve as coisas e os estados de coisas, e o tempo também não pode ser
apreendido como passado-futuro. A proposição, quando é pensada através de suas três
dimensões constitutivas — designação, manifestação e significação — não nos permite
55
sair do círculo, o que de imediato leva-nos a pensar que o sentido está fora do círculo.
A significação, como condição de verdade, e o estado de coisas, como valor de verdade,
contribuem para que jamais atinjamos o sentido diretamente. O círculo da proposição
nos remete da condição de verdade ao valor de verdade. Notemos que a condição de
verdade depende de um valor externo dado apenas pelo estado de coisas que, por sua
vez, só pode ter significação através da proposição. O itinerário passa circularmente dos
estados de coisas à proposição e vice-versa. A manifestação só aparece quando a
proposição é emitida por aquele que fala. Nesse ponto, Deleuze indica existir uma
hierarquia entre as dimensões da proposição no que concerne à fala e à língua. Na
ordem da fala, a manifestação é primeira; já na ordem da língua é a significação que tem
primazia, justamente por evitar proposições absurdas. Não podemos perder de vista o
propósito de Deleuze, ou seja, o de distinguir sentido e significação. O propósito de
Deleuze, nesse estudo sobre o círculo da proposição, é nos indicar que o sentido jamais
pode ser reduzido à significação. Uma proposição é absurda quando não possui
significação e conseqüentemente não possui condição de verdade, por isso, o sentido
de uma proposição absurda não pode ser reduzido à significação. Uma proposição, para
ser verdadeira ou falsa, deve, antes de tudo, não ser absurda. Quando Deleuze se
reporta ao paradoxo dos objetos impossíveis é para apontar a saída do círculo da
proposição, e assinala que Meinong foi o filósofo que soube retirar os mais belos e
brilhantes efeitos desse paradoxo.
E. Craia, em seu estudo sobre a ontologia de Deleuze, pensa, de maneira muito
original, o que ocasiona a confusão do sentido com a significação, destacando que o
esquecimento do sentido decorreu da tendência que nos leva a considerar o estado de
coisa como aquilo que a proposição deve designar; a proposição pensada através de
suas três dimensões remete não somente aos estados de coisas, mas sobretudo ao
sujeito; o que fica nítido quando este manifesta suas crenças, desejos e convicções. O
percurso da significação à manifestação e à designação nos faz girar em círculos, uma
vez que somos prontamente remetidos de novo da designação à manifestação e em
seguida à significação. É nesse ponto que encontramos a condição de verdade, sempre
56
dependendo do valor de verdade e o círculo, por sua vez, nunca se abre, pelo contrário,
tende sempre ao fechamento e ao mesmo percurso. Sobre esse aspecto, Craia faz a
seguinte citação:
"Deleuze necessita de apenas um instrumento para demonstrar a insuficiência desta estrutura. Ao
introduzir a pergunta sobre qual destas dimensões é primeira em relação às outras, e qual é o
comércio que entre elas se estabelece, mostra-nos, claramente, a formação circular do esquema;
e, sobretudo, a impossibilidade de abrir este circulo a partir de seu interior, procurando fazer
prevalecer uma das três dimensões sobre as outras. Devemos ter o cuidado de não entender isto
no sentido de uma busca de fundamento: o que se mostra, ao contrário, é como cada instância
reclama de outra um fundamento, o qual, no entanto, não pode receber. Cada relação da
proposição exige ser fundada, mas as outras, que deveriam fundá-la, carecem por sua vez da
capacidade de fazê-lo, pois exigem, elas próprias, das restantes, um fundamento. Nenhuma das
três relações da proposição é, ou pode ser, primeira ou fundaste e, tal fato permite entrever um
paradoxo que apenas poderá ser superado através da operação de um elemento de ordem
diferente e que implique um modo diferente de fundação. A fim de mostrar esta característica mais
detalhadamente analisaremos, em particular, a relação entre a significação e a designação, pois
esta nos permite ver, em detalhe, duas instâncias irredutíveis as quais dão sustentação à
exigência de uma outra dimensão"
43
.
Ora, é aqui nesse encaminhamento que encontraremos toda a problemática do
sentido no que tange à fenomenologia, porque é justamente nesse ponto que Deleuze
vai dizer que o sentido, sendo a quarta dimensão da proposição, se aproxima daquilo
que Husserl denomina noema. Habitualmente encontramos inúmeros textos sobre
Deleuze em que aparece de modo bastante relevante o que vem a ser a sua filosofia; o
termo acontecimento, geralmente sublinhado em maiúsculas, sobressai como o principal
entre os conceitos do filósofo. Porém, quando se trata de apresentar a sua filosofia de
modo mais direto aos leitores, não podemos fazer vista grossa ao seu relacionamento
de proximidade e afastamento com relação à fenomenologia. Desse modo, preferimos
adotar a estratégia de apresentar essa relação ao invés de sublinharmos os seus
principais conceitos; o percurso escolhido permitirá, além de relacionar o seu
43
Eladio Craia, A problematica ontológica em Gilles Deleuze, Cascavel: Edunioeste, 2002, p.43.
57
pensamento com à fenomenologia tocar, por vezes, em seus conceitos mais relevantes.
Todavia, faz-se necessário apresentar o ponto de contato de seu pensamento com à
fenomenologia e, para isso precisaremos destacar a sua preocupação com o sentido; a
sua aproximação com à fenomenologia dá-se a partir da recusa em sobrepor sentido e
significação. De inicio, endereça uma critica ao que denomina o círculo da proposição;
tal circulo, na verdade, seria “um girar em círculos”, onde sempre retornaríamos ao
mesmo ponto sem jamais conseguir distinguir sentido de significação; o ponto de
contato com a fenomenologia aparece quando, recusando o circulo da proposição,
afirma que o sentido é a quarta dimensão da proposição. Se o sentido é a quarta
dimensão da proposição; a significação, a manifestação e a designação seriam as três
dimensões pelas quais não conseguiríamos sair do círculo vicioso da proposição. Aqui já
está delineada toda a problemática do sentido, que culminará na idéia de campo
transcendental, própria à fenomenologia: idéia na qual Deleuze irá fazer modificações,
formulando-a como um campo transcendental sem sujeito e sem consciência. O círculo
da proposição nos leva ao paradoxo de Carroll, onde duas proposições verdadeiras,
como no silogismo, remetem para uma conclusão verdadeira
44
.
Deleuze mostra que não sairíamos nunca do círculo da proposição se não fosse
o sentido como o que está fora do circulo, e acontece como o expresso da proposição; o
sentido, como quarta dimensão da proposição, não pertence ao eu que se manifesta na
proposição, nem muito menos aos estados de coisas que são designados por ela; e nem
também aos conceitos universais que significam tais designações. O círculo da
proposição remete da condição de verdade ao valor de verdade; e o que é importante
assinalar é que a primeira não se opõe ao falso, mas ao absurdo: ao que é sem
significação, ao que não pode ser nem verdadeiro nem falso. Deleuze afirma que uma
proposição, mesmo sendo falsa, possui sentido; e isso remete à condição de verdade,
mas a condição de verdade definida como significação parece ter um caráter que é
44
O paradoxo de Carroll assinala que duas proposições sendo verdadeiras, como, por exemplo, A e B; a conclusão que
culmina das premissas A e B pode ser designada por A B Z o que equivale a uma proposição do tipo C que denota
[AB]→Ζ, porém a veracidade de Z resulta da veracidade ABC, que culmina numa proliferação infinita, que nos leva a
considerar uma proposição D, que denota [ABC] Z.
58
comum, próprio ao sentido; eis a razão pela qual a significação malogra e o fundamento
faz círculo com o fundado; não deixamos de ir do condicionado à condição, assim como
da condição ao condicionado. A condição de verdade só escapará desse circulo se ela
possuir um elemento distinto da forma do condicionado; será preciso que ela possua
alguma coisa de incondicionado, como potência de gerar tanto a designação como as
outras dimensões da proposição; a potencia genética e a neutralidade do sentido
aparecem aqui em confronto com a forma de possibilidade da proposição. Todo o
estudo que se seguirá em torno da noção de transcendental articulada à problemática
do sentido caminhará nesta direção, isto é, de apresentar o transcendental não apenas
como condição de possibilidade, mas como potência de gênese. É nesse ponto que
Deleuze fará alusão à fenomenologia de Husserl, indicando que o noema inicialmente
preenche os aspectos que retiram o sentido da simples forma de possibilidade da
proposição. Quando Deleuze fala em romper o circulo da proposição é justamente para
sair do condicionamento que a simples forma de possibilidade da proposição implanta,
causando uma confusão geral de sentido e significação. Todavia, antes de adentrar
propriamente na critica à Urdoxa, que perpassa a fenomenologia de Husserl, indica os
momentos em que o sentido foi pensado na história da filosofia
45
. A preocupação de
Deleuze é nítida: trata-se de pensar a condição de verdade não como forma de
possibilidade, como condição de possibilidade, ou seja, não se trata mais de pensar o
transcendental como simples condicionamento, mas sim como potência genética; a
filosofia transcendental ganha um novo passo e aqui devemos adiantar que todas as
discordâncias de Deleuze em relação à fenomenologia de Hussserl se dão em relação à
gênese, à produção de sentido.
A Lógica do Sentido apresenta um ponto que consideramos de extrema
importância para o estudo da filosofia do acontecimento: ponto esse que relaciona
sentido e campo transcendental; o que resultaria dessa relação é a tendência a não
retornarmos ao sujeito como inicio, como ponto de partida da filosofia, mas sim
45
Na série da proposição enumera os pensadores que tratararm a questão do sentido ao longo da história da filosofia
assinalando as contendas destes com aqueles que defendiam veementemente a ortodoxia da significação centrada no
princípio de não-contradição.
59
lançarmo-nos em uma linha de pesquisa que se distância daquela que priveligia a
substância ou a subjetividade do sujeito, seja ele empírico ou transcendental; o que fica
exposto nas considerações deleuzeanas é: somente após toda a exposição sobre o
circulo da proposição é que o sentido, como uma referência à fenomenologia, começa a
ser pensado como o elemento de uma filosofia do acontecimento, que rompe com toda
uma tradição gramatical centrada na idéia de substância, e que nos leva a
considerações sobre os princípios lógicos de identidade e não-contradição, pelos quais
Deleuze tanto se debateu, como aqueles que ao invés de regular o correto modo de
pensar, impede o pensamento de pensar. A especulação sobre o sentido nos remete
para a idéia de acontecimento e esta, para a idéia de campo transcendental. A gênese
do sentido implica um campo transcendental que remete aos paradoxos e, deste modo,
uma lógica que dê conta do pensamento como emergindo a partir de um meio altamente
complicado; as alusões a Meinong como aos pensadores que trataram do sentido como
uma entidade não existente, repercutem nessa pesquisa em torno do campo
transcendental. Todavia, adiantamos que a idéia de acontecimento é que faz dessa
pesquisa filosófica algo inovador. Deleuze, portanto, pensa uma filosofia do
acontecimento e uma lógica do sentido.
2.3) O campo transcendental
Este trabalho, como já observamos inúmeras vezes, tem o propósito de
apresentar a teoria do sentido em Deleuze. No entanto, desde que tecemos algumas
considerações sobre Sartre sentimos a necessidade de acrescentar explicações sobre o
campo transcendental. Quando Deleuze recorre a essa noção, encontra-se fortemente
inspirado em La Transcendance de L’ego, texto de Sartre onde aparecem críticas ao
Ego transcendental de Husserl. A tese de Sartre é a de uma consciência impessoal e
pré-individual, em que o Ego apareceria como transcendente. Sartre observa que
Husserl também teria considerado esse aspecto do Ego nas Investigações Lógicas, mas
60
retrocedeu a ponto de dizer que existiria um ego transcendental por trás da consciência,
como pode ser comprovado nas Idéias e nas Meditações cartesianas.
“Seguimos Husserl em cada uma das suas admiráveis descrições, em que ele mostra a
consciência transcendental constituindo o mundo e aprisionando-se na consciência empírica;
estamos persuadidos, tal como ele, que o nosso eu psíquico e psicofísico é um objeto
transcendente que deve ficar ao alcance da epoché. Mas nós nos fazemos a seguinte pergunta:
não é suficiente este eu psíquico e psicofísico? Será preciso duplicá-lo por um Eu transcendental,
estrutura da consciência absoluta? Vêem-se as conseqüências da resposta. Se ela é negativa,
resulta dai: 1
o
, que o campo transcendental torna-se impessoal ou, se se prefere, ‘pré-pessoal’, ele
não tem Eu “.
46
Nas Meditações cartesianas, Husserl apresenta o eu puro numa réplica a
Descartes, ou seja, afastando-se dele ao deixar de fazer a passagem do Ego cogito ao
ergo sum, do eu penso ao eu sou: o eu puro é o eu reduzido à pura corrente da
consciência. Husserl não está preocupado com a existência, e sim com a pura corrente
de vida da consciência. Para ele, Descartes fez do Eu penso um axioma como aquele
que vige na geometria. Tal axiomatização, diz o fenomenólogo, vem da influência
nefasta da matemática e, por esse desacordo, procura fundamentar a ciência absoluta
pela filosofia. O Eu penso cartesiano será assim retirado da categoria de substância,
assim como distinguido de um eu psicológico. Do eu puro não se infere um eu existo. A
redução leva ao aspecto transcendental, e Husserl coloca em relevo que o eu puro não
possui uma relação com o mundo, mas sim com o fenômeno do mundo. O que importa
destacar é que apesar de não ter relação com o mundo, o eu puro manterá uma relação
com o objeto, assim como em nossas relações com o mundo estamos sempre nos
relacionando com objetos. O eu puro, entretanto, manterá uma relação com um objeto
que não possui existência. Tal orientação é transcendental, justamente o que faltou a
Descartes, e também assinala a diferença para com o transcendental pensado por Kant.
Tender para um objeto é considerar que a consciência será sempre intencional. A
consciência transcendental é doadora de sentido ao mundo.
46
Sartre, A Transcendência do Ego, tradução Pedro M.S. Alves, Lisboa: Colibri, 1994, p.46.
61
A partir das considerações de Sartre, Deleuze irá elaborar a sua idéia de campo
transcendental, fazendo ainda, porém, suas críticas a essa posição. A idéia de campo
transcendental desembocará nas teses de Gilbert Simondon sobre o problema da
individuação físico-biológica. Deleuze admite que esse passo, para Simondon, remete à
ontologia de um novo modo, por admitir meios em que os elementos paradoxais podem
ser pensados; o abandono das orientações fenomenológicas deu-se justamente por não
ser possível pensá-los: a fenomenologia, segundo ele, ainda estaria demasiadamente
presa ao bom senso e ao senso comum. A indicação de Sartre, entretanto, será decisiva
para a concepção de Deleuze acerca do sentido; sendo a transcendência do ego a via
que permitirá com que Deleuze posteriormente pense a idéia de plano de imanência. O
campo transcendental a-subjetivo e pré-objetivo tem sua inspiração em fontes
fenomenológicas, onde Sartre aparece como um pensador de extrema importância: a
consciência impessoal e pré-pessoal conforme a apresenta o filósofo existencialista. O
texto de Sartre, onde aparecem criticas a Husserl acerca da transcendência do ego,
também remete ao problema do tempo, ou melhor, à consciência do tempo. Sartre cita o
texto Lições sobre a consciência do tempo imanente, de Husserl, e em alguns pontos
também faz alusão aos textos de Bergson
47
, o que de imediato nos leva a indagar sobre
a diferença entre a consciência impessoal e pré-pessoal citada em La Transcendance
de L’ego e aquela citada, como sendo bergsoniana, na Imaginação. Ora, na Imaginação
aparecem criticas à rapidez com que Bergson passa de um campo de imagens
48
, prévio
e impessoal, para a posse de algo como um “meu corpo” que também seria uma
imagem. Sartre considera que
Bergson concebe o campo prévio das imagens como uma
consciência impessoal, o que nos faz querer compreender se Deleuze ao fazer críticas à
posição de Sartre estaria, de um certo modo, retomando a posição bergsoniana.
47
Em relação a Bergson não podemos deixar de observar que Sartre o critica, na maioria das vezes injustamente, apesar
de ter descoberto a filosofia a partir das leituras do Ensaio sobre os dados imediatos da consciência conforme o texto do
Prof. Bento Prado Junior. A organização nadificadora — que permite que os objetos do bar se tornem objeto de fundo
quando da ausência de Pedro conforme aparece em O Ser e o Nada - sabemos que é uma resposta à critica da idéia de
nada elaborada por Bergson no capítulo IV da Evolução criadora.
48
O campo prévio das imagens é considerado por Bento Prado Junior como campo transcendental o que podemos conferir
em seu texto Presença e campo transcendental: consciência e negatividade em Bergson , São, Edusp, 1988.
62
Sobre a idéia de campo transcendental é necessário acrescentar uma
perspectiva que, ao que tudo indica, não foi lida por Deleuze, apesar de ser notória a
influência de Bergson em seus escritos. Faz-se necessário indicar o que, nessa
discussão sobre o campo transcendental, ainda resulta de um confronto com o
psicologismo e sobretudo com o movimento positivista. Os nomes de Bergson e Husserl
reluzem, nesse cenário de oposição ao positivismo, em sua tentativa de fundamentar as
ciências a partir dos fatos empíricos. Husserl, nas Meditações Cartesianas, afirma o “eu
puro” como o descortinar de uma experiência transcendental. Tal campo de experiência
transcendental resulta da epokhé, onde não somente o corpo e o mundo são colocados
entre parênteses, mas sobretudo o eu psíquico e o eu psico-físico. O “eu penso” é
colocado entre parênteses por Descartes tê-lo pensado como um axioma geométrico a
partir do qual o mundo poderia ser dedutivamente derivado. O “eu puro” é um conceito
de Husserl que remete ao domínio do transcendental, do qual deriva todo sentido e valor
do mundo enquanto fenômeno. Husserl ressalta no § 11 das Meditações Cartesianas
que o conceito de transcendental possui o seu correlato, isto é, o transcendente. O eu
reduzido (transcendental) não faz parte do mundo assim como o mundo não faz parte do
eu. Qual seria a posição do eu puro? Husserl afirma que não é possível que o mundo e
o seu objeto façam parte do “meu eu”; diz ainda que é impossível encontrá-lo no meio
de minha vida psíquica como um complexo de dados sensoriais ou de atos psíquicos.
49
Husserl, como dissemos, afirma que a epokhé não leva apenas para o “Eu
Penso” como pensava Descartes, mas destaca uma esfera nova e infinita da existência,
na qual se descortina a experiência transcendental como um campo de possibilidades
apriorísticas, que ditam regras à experiência real. Os problemas filosóficos
transcendentais são inúmeros e o que percebemos de imediato é a relação da filosofia
contemporânea com Husserl. A crítica ao sujeito tem como ponto de partida a tese de
49
Cf. Husserl, Meditações Cartesianas § 11: “Essa transcendência é inerente no sentido específico de tudo o que faz parte
do mundo , ainda que não possamos dar a esse mundo e às suas determinações nenhum outro sentido senão aquele que
extraímos de nossas experiências, representações, pensamentos, julgamentos de valor e ações da mesma forma não
podemos justificar a atribuição a esse mundo de uma existência evidente, a não ser partindo de nossas próprias evidências
e atos. Se essa transcendência de inerência irreal pertence ao sentido do mundo, então o eu em si, que carrega nele o
mundo como unidade de sentido e que justamente por isso é uma premissa necessária dele, esse eu chama-se
transcendental no sentido fenomenológico do termo, e os problemas filosóficos decorrentes dessa correlação chamam-se
problemas filosóficos transcendentais”.
63
Husserl sobre a subjetividade transcendental. Ora, se Husserl coloca entre parênteses
não somente o mundo e o corpo, mas também o Eu penso, o que resultaria se também
colocasse o eu transcendental? De imediato, a unidade ideal de sentido do mundo
desapareceria por completo. A tese de um campo transcendental sem sujeito seria, para
Husserl, a retirada do sentido do mundo.
Prado Junior promove uma discussão, em Presença e campo transcendental:
consciência e negatividade em Bergson, em torno da idéia de campo transcendental em
Husserl, destacando a possibilidade desse campo transcendental ser sem sujeito; é
nessa discussão, ou melhor, a partir dela que aparecerá um viés bergsoniano para a
idéia de campo transcendental. De início soa estranho, uma vez que Bergson não é
fenomenólogo, nem muito menos apresenta essa idéia em seus textos; mas vejamos
como a questão se apresenta: a discussão de Prado Jr. põe em relevo o diálogo entre
Jean Hippolyte e o husserliano Van Breda (organizador dos arquivos Husserl em
Louvain), ocorrido em 1957, durante o Congresso de Royamount em torno de Husserl.
Prado Junior indica-nos que a referência sobre o assunto foi-lhe passada durante
um curso sobre Bergson, ministrado pelo Prof. Victor Goldschimdt, no período de 1959-
1960. Esse curso foi recentemente publicado nos Annales Bergsoniennes, retomado da
revista Études Bergsoniennes de 1950-1960.
Prefaciando o curso, D. M. Pinto aponta, com muita propriedade, como Deleuze
propõe uma filosofia a partir da idéia de campo transcendental sem sujeito, sem ter
conhecimento do texto do Prof. Goldschimidt. O diálogo,entre Hippolyte e Van Breda se
processou da seguinte maneira:
“Qual é o estatuto da subjetividade transcendental? Mais exatamente, o estatuto do Ego na
problemática husserliana? O Pe. Van Breda nos diz nem objetivismo [. . .] nem subjetivismo, mas a
relação, a mediação entre os dois, na qual se instalaria o filósofo [. . .] haveria de um lado, a
revelação do ente à consciência e, de outro, a abertura da consciência para o ente.. Instalando-se
ao mesmo tempo no que se abre e no que se revela nesta abertura, pois bem, nós teríamos tudo.
Sim, mas nada temos, pois precisamente estamos no ‘entre dois’, e retomamos uma fórmula que
Fichte empregava quando dizia: ‘O essencial é que toda compreensão supõe um encontro, e todo
encontro uma compreensão’. As palavras alemãs que assim traduzo, talvez dando-lhes um novo
64
sentido concreto, são as palavras zusammenfasen e zusammentreffen. Para poder
zusammentreffen, para poder encontrar – ora que é o problema do ser, senão o encontro da
evidência? Esse encontro nós queremos sempre preservar. Não queremos constituir
antecipadamente o que encontraremos e queremos, no entanto, encontrar, tornar possível o
encontro. Ora, o que torna possível o encontro é justamente compreender o que se vai encontrar –
no sentido de ‘constituir’ o que vai se encontrar. Mas, de outro lado, não se pode compreender,
dizia Fichte, se não se encontra. De tal maneira que a antinomia da fórmula permanece assim: se
queremos uma verdadeira teoria do Ser, que é uma teoria da revelação, nós queremos uma teoria
do encontro, mas o encontro pressupõe o que torna possível o encontro, isto é, uma pré-
concepção do encontro, uma compreensão [...]. A redução é a descoberta de um meio onde se
torna acessível o problema do encontro”
50
.
O que é interessante na discussão e na resposta de Van Breda à questão
levantada por Hippolyte é a posição do filósofo: o “entre dois”, o entre sujeito e objeto, é
o lugar do filósofo. No limite, o lugar do filósofo seria habitar, através do pensamento,
uma região de não pertença ao mundo natural. O aspecto transcendental da questão faz
com que Hippolyte formule uma segunda questão: “o que falta a Husserl não é uma
teoria da objetividade, mas sim uma teoria da subjetividade”. Após a resposta de Van
Breda, o francês Hippoliye propõe uma solução do problema. Em Husserl não temos
uma objetividade como dado, nem uma subjetividade em que seu estatuto seja
claramente preciso. E indaga:
“Não culminaria esta ambigüidade na possibilidade de se conceber um campo transcendental sem
sujeito ? Uma noção de campo transcendental no qual apareceriam as condições da subjetividade
transcendental e onde o sujeito seria constituído a partir do campo transcendental: seria isto
possível?”
51
A discussão culmina no campo transcendental sem sujeito. Van Breda, diante
dessa questão, responde: “Para Husserl esta solução é impensável”. Ora, é justamente
nesse ponto que encontramos o foco de toda a nossa pesquisa, já que Deleuze quer
pensar esse campo transcendental sem sujeito destacando a sua neutralidade — em
50
Presença e campo transcendental: consciência e negatividade em Bergson , São Paulo, Edusp, 1988, p. 132.
51
Idem, ibdem.
65
relação ao sujeito e ao objeto — e a sua potência genética de produzir sentido.
Entretanto, um ponto deve ser esclarecido: quando afirmamos ter sido a partir dessa
discussão que um viés bergsoniano acerca da idéia de campo transcendental teria
aparecido, não queríamos dizer que Hippolyte e Van Breda o teriam deixado
transparecer em sua discussão. O viés bergsoniano aparece nas considerações de
Victor Goldschimidt, em torno das posições de Hippolyte acerca da possibilidade desse
campo transcendental ser sem sujeito. Ora, o que Goldschimidt destaca é que Hipollyte
poderia estar pensando no primeiro capítulo de Matéria e memória de Bergson
52
.
O propósito do trabalho mais uma vez se confirma, sobretudo porque queremos
fazer algo como a indicação de que Deleuze se propõe a pensar o sentido fora das
posições fenomenológica e analítica. Bergson aparece como um pensador que serviria
de intercessor para que — além das fontes de inspiração já citadas em sua tese, ou
seja, os estóicos, Gregório de Rimini e Meinong — Deleuze pudesse traçar esse
caminho, o que poderemos observar a partir do momento em que ele se debruça sobre
a questão do virtual. O texto deleuzeano, entretanto, traz uma forte marca do
estruturalismo, sobretudo em relação à posição tópica do sentido; as teses em torno do
tempo aiônico dos estóicos coadunam-se com as do estruturalismo mas, sobretudo,
intercalam-se com as de Bergson acerca do virtual. O incorporal estóico, o virtual
bergsoniano e o simbólico do estruturalismo aparecerão sempre em ressonância na
obra de Deleuze, pelo menos é o que observamos em Lógica do Sentido. Acreditamos
serem profícuas as posições que levantamos acerca dos paradoxos das representações
sem objeto a partir de Bolzano, por conduzirem às de Meinong, acerca da teoria dos
objetos. No nosso entender, existe um liame entre as teses que Deleuze aborda e
52
Bento Prado Junior, após apresentar esta discussão, acrescenta que a solução de Hippolyte parece-lhe mais próxima
das modificações que Heidegger introduz na fenomenologia. “O projeto (que é a pré-concepção do ente) não cria o ente, é
antes “soliicitado” ou, mesmo “jogado” pelo Ser, e não pela consciência (como seria no caso de Sartre), Por outro lado, é só
através do projeto que o Ser se ilumna: não há encontro sem compreensão. È no campo do “Aberto” que se torna possível
que Dasein tenha acesso aos ente e que os entes se revelem ao Dasein. Mas, segundo o Prof. V. Golschimidt, talvez
Hippolyte tivesse em mente Matiére et memoire, ao expor a idéia de constituição da subjetividade a partir de um campo
transcendental “pré-subjetivo”. Nesse caso, o sistema das imagens seria justamente o universo prévio e neutro onde se
tornam possíveis, ao mesmo tempo, o encontro do Ser e a sua antecipação subjetiva, o projeto enquanto condução do ente
à potência e enquanto acesso ao ente”. Cf. Presença e campo transcendental, p.133-134.
66
aquelas apresentadas pelos pensadores pertencentes à corrente “pré-fenomenológica”,
tais como Bolzano e Twardowski. O problema do sentido, no limite, encontrará as
posições sobre o tempo e a realidade. A fenomenologia, como sabemos, trata das puras
idealidades, ou melhor, de objetos puramente intencionais; a perspectiva temporal,
adotada por Deleuze, encontrará as puras idealidades noemáticas, mas também os
objetos impossíveis, o que ocasionará um conflito ao pensar o estatuto da realidade. A
filosofia para Deleuze, como sabemos, não pretende representar a realidade das coisas
existentes, remetendo para a realidade não apenas como atual, mas também como
virtual. A noção de realidade virtual ou propriamente de virtual produzirá uma saída em
relação às representações das coisas existentes. Um problema, de imediato, aparece
nessas asserções: será que essas posições de Deleuze não o estariam levando para
algo que não é filosofia? Admitir o sentido como acontecimento incorporal, afirmar que o
sentido independe do sujeito, assinalar que o paradoxo quebra o bom senso e o senso
comum não seria cair numa região onde o pensamento parece ser impossível? A
loucura não poderia instalar-se por completo? Seria possível fazer filosofia fora do
individuo e da pessoa? Não precisaríamos ter nenhum fundamento para pensar a partir
de paradoxos e acontecimentos, é esta a sua perspectiva. Deleuze afirma que fora do
indivíduo e da pessoa encontraremos um campo de singularidades nômades. O campo
transcendental apareceria como pleno de singularidades, e Deleuze insiste em nos dizer
que as singularidades não se confundem com os indivíduos. O campo transcendental
seria a consciência purificada que Sartre formula em La Transcendance de L’ego? Na
Lógica do Sentido, na série Das singularidades, Deleuze enaltece a noção de campo
transcendental em Sartre; logo acrescenta, porém, que o campo transcendental para
esse pensador tem a forma de uma consciência. O problema se agrava ainda mais:
seria possível pensar sem o concurso da consciência? Como poderíamos ter sentido
sem consciência? Teria a linguagem um papel de importância a desempenhar aí? O que
queremos dizer quando afirmamos que Deleuze quer fazer uma filosofia que pense o
sentido fora da fenomenologia e da filosofia analítica? É possível pensar sem a
consciência e a linguagem? O que temos que elucidar, antes de tudo, é que a
67
problematização levantada por Deleuze se insere no coração da filosofia transcendental.
A filosofia contemporânea pensa o homem no limite do mundo, sendo esse a linguagem
e o tempo: a consciência do tempo, a temporalidade como o sentido fundamental do ser
e “aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”, enfim, os limites que permitem ao
homem ser no mundo.
A consciência, sendo ultrapassada por um campo transcendental, ainda nos daria
chance de pensar? O campo transcendental, sendo prévio à consciência, faria com que
esta fosse constituída a partir dele e não o inverso. A consciência, como mostrou-nos
Sartre, seria independente do Ego; a posição de Deleuze seria a de apresentar a
consciência, se houver consciência, aparecendo de fato em meio ao campo
transcendental. A distinção que Sartre estabelece em relação a Kant, dizendo que de
direito o Eu penso deve acompanhar nossas representações, serve para a réplica de
Deleuze. De fato o eu penso não acompanha as minhas representações, diz Sartre, e
essa afirmação permite com que Deleuze diga que de fato a consciência só aparece
quando relacionada ao sujeito e ao objeto. Como o campo transcendental é a-subjetivo
e pré-objetivo aparece como uma consciência de direito, impessoal e pré-individual. A
aposta de Deleuze é que fora do indivíduo e da pessoa não cairemos num abismo
indiferenciado. O que fica nítido, a partir dessas considerações, é que Deleuze parece
estar tentando aprimorar as pesquisas fenomenológicas, algo como uma fenomenologia
radical: as idealidades da fenomenologia são aproximadas ao incorporal estóico, aos
objetos impossíveis de Meinong, ao virtual bergsoniano e ao simbólico do
estruturalismo. A região em que encontra o estruturalismo, e sobretudo as teses do
ontologista Gilbert Simondon, apresenta ainda fortes indícios de sua dívida para com o
pensamento fenomenológico. Há ecos de Husserl em toda a Lógica do sentido! Quando
Husserl renunciou a admitir que o Ego transcendental era constituído a partir da
consciência, não estaria já preanunciando Deleuze? Quanto à filosofia analítica, não
podemos ainda fazer nenhum avanço, somente podemos tecer comentários em torno
daquilo que diz respeito à proposição e ao sentido sem o intermédio da consciência
68
2.4) A impossibilidade lógica
Quando Deleuze se reporta à questão da impossibilidade lógica, não deixa de
afirmar que, mesmo aí, a proposição possui sentido. Qual a diferença entre a sua
perspectiva e a de Schlick? Essa indagação nos aproxima das influências de
Wittgenstein acerca do sentido da proposição, uma vez que os filósofos participantes do
Círculo de Viena são influenciados pelo filósofo austríaco.
Schlick em seu texto Sentido e Verificação apresenta-nos dois modos de
verificação. O critério de verificação, como sabemos, é o modo como que se pode
demarcar o conhecimento científico do metafísico. Ao serem verificadas, as proposições
metafísicas se apresentariam como proposições sem sentido. As proposições
metafísicas constituiriam impossibilidades lógicas e, portanto, seriam proposições sem
sentido. De início, podemos perceber a diferença entre a posição de Deleuze e a do
Circulo de Viena. Schlick afirma que existem dois modos de verificação: a empírica e a
lógica. A verificação empírica é aquela que permite afirmar se dada uma proposição, se
esta será verdadeira ou falsa. A proposição: “chove agora” pode ser verificada
empiricamente: basta que simplesmente observemos se está chovendo; caso esteja
realmente chovendo, essa proposição será verdadeira; caso contrario, ela será falsa.
Schlick observa, porém, que a proposição só pode ser verificada empiricamente caso
não apresente impossibilidade lógica de ser verificada. A impossibilidade lógica, enfatiza
o filósofo, não diz respeito apenas à desobediência ao princípio de não-contradição.
Ora, como podemos então falar em impossibilidade lógica, se a lógica possui princípios
e sendo o de não-contradição aquele que assegura a validade de nossos argumentos?
Schlick vai mostrar a impossibilidade lógica por outro viés, ou seja, vai mostrar que a
proposição deve ser considerada logicamente impossível quando as definições dos
termos não obedecerem às regras gramaticais. Os seus exemplos mais conhecidos de
proposições sem sentido são: “A torre tem 1, 50, e 1, 80m de altura”; “O menino está nu
e vestido ao mesmo tempo”; “A mulher está com um vestido vermelho que é verde-
claro”. Tais proposições, diz Schlick, trazem impossibilidades lógicas, pois as definições
69
dos termos infringem as regras gramaticais; as definições dos termos são mal utilizadas,
daí essas proposições não possuírem sentido. O ponto a observar é: a impossibilidade
lógica, para Deleuze, ainda está ligada ao princípio de não-contradição. O paradoxo dos
objetos impossíveis, que são de inspiração meinonguianas, leva Deleuze a dizer que o
sentido independe da existência do objeto. A existência física e a possibilidade lógica
não regulam o sentido, diz Deleuze; a física e a lógica não podem dar conta do sentido
enquanto entidade não existente; os estados de coisas e as proposições, que os dizem,
não podem apreender o sentido como acontecimento. Sim, podemos fazer todas essas
afirmações e comparações, mas nada resolvemos ainda, uma vez que a impossibilidade
lógica, na ótica analítica de Schlick, incide sobre a gramática; a lógica e a gramática é
que permitem a verificação do sentido da proposição. Ora, até o momento não demos
nenhum passo adiante. Talvez a nossa hesitação em fazer afirmações categóricas sobre
o sentido em Deleuze nos afaste de um certo neodogmatismo que parece reinar nas
pesquisas em torno da filosofia contemporânea. Os argumentos que nos propomos a
apresentar para defender a tese de uma teoria do sentido em Deleuze não podem beirar
o dogmatismo, pelo menos é o que esperamos. O que temos a fazer é procurar meios
para sairmos dessa aporia, ou como fazer filosofia sem a consciência e a linguagem. A
saída que podemos vislumbrar remete para a questão do tempo, mas ainda é cedo para
alinhavarmos tal questão com as que até agora viemos perseguindo; resta-nos, como
diz Bergson, tomar fôlego e mergulhar com mais força, para retornarmos com mais
intensidade à superfície.
As regras gramaticais que constituem a linguagem são as garantias para uma
proposição ter sentido. Ora, o que de imediato podemos concluir é que uma proposição
somente pode ser verdadeira ou falsa se antes de tudo possuir sentido. O positivismo
lógico, inteiramente influenciado pela filosofia de Wittgenstein, pensa desse modo. O
que nos faz mais uma vez perguntar: é possível pensar o sentido sem nos remetermos à
linguagem? No primeiro Wittgenstein, o que permite as proposições dizerem os estados
de coisas é a forma lógica transcendental; no segundo, a forma lógica é ultrapassada e
o transcendental muda de estilo; os jogos de linguagem e as formas de vida, como nos
70
esclarece Prado Junior em Erro, Ilusão e Loucura, fazem com que o transcendental e o
empírico se misturem, se aproximem.
O tema nos instiga a perguntar: como ficaria, na visão fenomenológica de
Husserl, a questão do sentido relacionada à linguagem? De inicio, teríamos que
compreender como uma palavra difere de um amontoado de sons. Husserl, nas
Investigações Lógicas V, afirma que uma palavra difere de um mero amontoado de sons
por ter um sentido. Afirma, também, que uma palavra tem sentido em virtude do ato
intencional. Mas o que seria um ato intencional? Uma intenção significativa, uma
vivência intencional, quando a consciência tende para um objeto. A tendência para o
objeto não quer dizer que ele seja real ou existente, mas simplesmente um objeto
intencional. A consciência tanto pode tender intencionalmente para um unicórnio, como
para uma montanha de ouro ou para um circulo quadrado.
A consciência, sendo sempre consciência de um objeto, leva-nos a indagar: o
objeto da consciência não seria uma proposição? O ato intencional não pressuporia a
linguagem; o sentido não seria anterior à consciência? A questão se aproxima da de
Sartre em relação a Husserl, da consciência sem Ego, mas sobretudo do pensamento
de Wittgenstein em relação não mais ao sentido, mas ao uso da linguagem. Talvez
estejamos caindo numa circularidade: como pode existir linguagem sem consciência e,
também, como pode existir consciência sem linguagem? A questão, no entanto, é
pertinente e nos faz indagar uma vez mais: o ato intencional não pressuporia um certo
uso da linguagem? Entretanto a questão oposta seria verdadeira: é possível fazer uso
da linguagem sem o ato intencional?
Deleuze propõe o sentido como anterior à consciência e à linguagem. Seriam
falaciosos os argumentos de Deleuze? Há ainda filosofia quando o sentido se apresenta
como independente da consciência e da linguagem? A saída para sustentar a nossa
tese de que a teoria do sentido em Deleuze se afasta da fenomenologia e da filosofia
analítica está cada vez mais difícil. Pelo menos o nosso propósito de inserir essa
filosofia no âmbito contemporâneo aparentemente não apresenta nenhum malogro.
Quando pensamos em Husserl e em Wittgenstein — destacando, por exemplo, o ato
71
intencional e o uso da linguagem como dois modos de pensar o homem em sua relação
com o mundo e com as formas de vida — não estaríamos deixando de observar um
problema? Como seria possível um ato intencional sem confundi-lo com um certo uso da
linguagem? As formas de vida não nos autorizariam a ter diferentes intenções
significativas? Deleuze conseguiria construir uma teoria do sentido fora dessas duas
filosofias, ou seja, sem levar em conta a consciência e o uso da linguagem? Se,
afirmamos que há ecos de Husserl atravessando toda a Lógica do Sentido, o mesmo
não pode ser afirmado com relação a Wittgenstein. O texto de Deleuze quase não
apresenta citações sobre o autor do Tractatus e, quando as faz, é justamente em torno
da questão do uso da linguagem.
“Há pois um ‘uso’ da representação sem o qual a representação permanece privada de vida e de
sentido; e Wittgenstein e seus discípulos têm razão em definir o sentido pelo uso. Mas tal uso não
se define por uma função da representação com relação ao representado, nem mesmo pela
representatividade como forma de possibilidade. Aí como alhures, o funcional se ultrapassa para
uma tópica e o uso está na relação da representação a algo de extra-representativo, entidade não-
representada e somente expressa. Que a representação envolva o acontecimento de uma outra
natureza, que ela chegue a envolvê-lo em suas bordas, que ela chegue a se estender até este
ponto, que ela consiga este forro ou esta barra, eis a operação que define o uso vivo tal que a
representação, quando aí não atinge, fica sendo só letra morta em face de seu representado,
estúpida no seio de sua representatividade”.
53
Tal citação mostra-nos que, apesar de todas as suas considerações sobre o autor
das Investigações Filosóficas, Deleuze viu algo em torno do uso da linguagem articulado
à noção de sentido e também à de forma de vida. Quando sublinha o uso vivo, que dá
sentido à representação, parece aproximar-se da idéia que posteriormente será
trabalhada em seu ultimo texto — A imanência: uma vida. Que idéia seria essa ? A idéia
de vida. A vida fazendo parte de todas as especulações em torno do sentido.
53
Gilles Deleuze, Lógica do Sentido, 148.
72
2.5) A crítica e a clínica
A tese de Deleuze em torno do sentido pode ser vista sob dois prismas: o critico e
o clinico. A posição estruturalista, que afirma ser o sentido produzido pelo não-sentido,
dá a Deleuze condições de afirmar que quando o não-sentido deixa de produzir sentido,
trata-se de um caso clínico. Já a critica é a parte da lógica do sentido que diz respeito à
superfície, portanto, ao não-sentido que traz a possibilidade de freqüentarmos a
superfície com sentido. O caso clínico é a perda da superfície, a entrada nas misturas
inomináveis, nas cavernas, na profundidade pré-socrática, como muitas vezes Deleuze
afirma ao longo de seu texto
54
. Lewis Carrol e Antonin Artaud servem de exemplos para
que possamos avaliar, através de suas escritas, a diferença entre os dois casos. A
linguagem aparece como um elemento que nos permite avaliar de um modo mais
próximo a diferença entre os dois autores. Na série Do esquizofrênico e da menina
aparecem considerações acerca desses dois regimes; a linguagem de Carroll difere da
de Artaud por remeter aos paradoxos, aos efeitos de superfície. A viragem na obra de
Deleuze a partir de O Anti-édipo, livro escrito em conjunto com Felix Guattari, irá
privilegiar a linguagem de Artaud e conseqüentemente a profundidade. O livro, Lógica
do sentido é o lugar onde essas questões começam a aparecer e apresenta uma
hesitação de Deleuze entre esses dois tipos de linguagem. Artaud, que além de
pensador era ator de teatro, inspira fortemente o trabalho de Deleuze através de seu
conceito de corpo sem órgãos. A perda da superfície não seria a queda no poço sem
fundo, no abismo indiferenciado? Não seria o campo transcendental aquilo que nos
permitiria cair, mesmo que fora da pessoa e do indivíduo, nesse abismo indiferenciado?
Qual o critério para que o esquizofrênico perca a superfície e mergulhe nas
profundidades inomináveis? Sua escrita torna-se impregnada de palavras-sopros como
aquelas de Artaud, o que elucida a diferença, por exemplo, para com Lewis Carroll.
Poderíamos dizer que Lewis Carroll ainda se encontra sobre os auspícios de um campo
54
Deleuze, na série: “Das três imagens dos filósofos”, apresenta na filosofia antiga uma espécie de divisão em que os
filosófos pré-socráticos, platônicos e estóicos são remetidos respectivamente à profundidade, à altura e à superfície.
73
transcendental sem sujeito, enquanto Artaud se vê desamparado, ou melhor,
abandonado à forma vazia e pura do tempo?
A linguagem que há pouco nos perguntávamos se, sem ela o sentido seria
possível, aparece como protagonista da querela entre Carroll e Artaud. O texto de
Deleuze indica-nos que Artaud grita alto e em bom som que a linguagem de Carroll é
de superfície e que ele, Artaud, odeia a superfície. A linguagem do esquizo, aquele que
ama a profundidade e que odeia o perverso, que desliza sobre a superfície perde por
completo a fronteira que separa as palavras e as coisas; as proposições e os
acontecimentos. O sentido incorporal, o acontecimento, foi perdido. Na falência da
superfície, as palavras passam a ser sentidas como coisas, um vocábulo queima como
a temperatura solar, a dor envolve as palavras ou mesmo a palavra é dor. A física pré-
socrática, e também estóica, onde os corpos aparecem com seus limites e tensões, já
não se diferencia mais do domínio das palavras sentidas pelo esquizofrênico. Artaud
afirma a fecalidade, o excremencial habitando o Ser; a poesia deve cheirar mal, diz ele,
como numa espécie de imperativo poiético ou também na criação de uma escato-onto-
logia. Introduzir o pensamento Jose Gil. Aí, parece-nos, se anuncia a viragem do
pensamento de Deleuze para a imanência. A superfície metafísica começa sutilmente a
ser impregnada de imanência; e a vida começa a ser sentida de outra maneira. O texto
A Imanência: uma vida explicita bem essa viragem. O evenemencial passa a ser
contagiado pelo excremencial. Qual o motivo dessa afirmação? O simples fato de
Artaud estar falando de uma vida que perde o sentido de superfície, a sua linguagem é
a experimentação de uma vida que não sente mais a superfície em que a vida se dá,
onde a vida a freqüenta. Artaud sente apenas a profundidade, o que indica a perda da
superfície, o mergulho nas misturas inomináveis da profundidade. O empirismo
transcendental será definitivamente afetado por todas as considerações de Artaud. Tal
empirismo é uma vida: a vida singular de um homem independentemente da
subjetividade e da objetividade. O que fazer para que o sentido da superfície não seja
perdido? O que nos permite afirmar que Artaud não se encontra louco? Deleuze quer
justamente pensar isto: o que seria esse não sentido que não produz mais sentido e ao
74
mesmo tempo é um infra-sentido (Untersinn)?. O signo desprovido de sentido conforme
as palavras de Hölderlin! O infra-sentido nos aproximaria da metafísica ou da ontologia?
Como é possível a experiência desses dois tipos de linguagem? Em que difere a
experiência real da linguagem em superfície, da linguagem em profundidade? A vida
não estaria sendo sentida de dois modos distintos? Deleuze observa que na escrita do
esquizofrênico aparece algo como a ação e a paixão, tal como se dá na física pré-
socrática e estóica. Os corpos com seus limites e tensões agem e padecem, e os
incorporais são ilimitados e impassíveis. Deleuze observa que na linguagem
esquizofrênica aparecem dois tipos de linguagem: uma que remete para a ação e a
outra para a paixão. A fonética e a tônica aparecerão como indícios desses regimes de
linguagem. A palavra-paixão explode as ligações fonéticas e a palavra-ação liga valores
tônicos inarticulados. Deleuze assinala como em Artaud aparece a inarticulação dos
sons onde palavras são formadas sem nenhum sentido, onde a fronteira entre corpo e
palavra já desapareceu. Não há mais sentido que separe as ações e as paixões dos
corpos das proposições que o expressam através de sua neutralidade e
impassibilidade. Agora nos parece que todo discurso tornou-se impossível. Deleuze
afirma: “Nada mais impede as proposições de se abaterem sobre os corpos e de
confundir seus elementos sonoros com as afecções do corpo, olfativas, gustativas,
digestivas. Não somente não há mais sentido, mas não há mais gramática ou sintaxe e,
em ultima instância, nem mesmo elementos silábicos, literais ou fonéticos
articulados”.
55
O problema da dupla causalidade, da cisão causal, aparece nos estóicos:
o acontecimento é submetido a uma dupla causalidade que, de um lado, remete para
as misturas dos corpos da profundidade, que são suas causas; e de outro para os
acontecimentos, que são suas quase-causas. O problema da clinica aparece aí, nessa
perda de superfície. Os estóicos já apontavam para o problema que mais tarde Husserl
consideraria como a camada expressiva ou noemática que permite ao sentido ser
pensado como distinto das coisas no mundo. O problema da gênese do sentido é o
ponto em que Deleuze vai divergir de Husserl.
55
Gilles Deleuze, Lógica do Sentido, p.94.
75
Como então pensar como essa frágil superfície se mantém como sentido? A
produção de sentido, a potência genética, é o que faz Deleuze afirmar que a consciência
intencional não é suficiente para tal gênese. Encontramos, no coração da lógica do
sentido, o problema da passagem da esterilidade à gênese. Nele, encontramos também
um problema critico e clinico. Filosoficamente, o problema caminha sempre numa
proximidade com a fenomenologia e, ao mesmo tempo, em sua distância para com ela,
já que a passagem da esterilidade à gênese, advinda de Husserl, não satisfaz Deleuze
como podemos notar na citação que se segue :
“Ocorre que Husserl pensa a gênese, não a partir de uma instância necessariamente
‘paradoxal’ e não ‘identificável’ apropriadamente falando (faltando à sua própria identidade
como à sua própria origem), mas ao contrário a partir de uma faculdade originária de senso
comum encarregada de dar conta da identidade do objeto qualquer e mesmo de uma
faculdade de bom senso encarregada de dar conta do processo de identificação de todos
objetos quaisquer ao infinito. Nós o vemos muito bem na teoria husserliana da doxa, em que
os diferentes modos de crença são engendrados em função de uma Urdoxa a qual age como
uma faculdade de senso comum com relação às faculdades especificadas”
56
.
A produção de sentido acontece de modo diferente às determinações do bom
senso e do senso comum, que não passam de recognições, a partir das coisas e
estados de coisas já constituídos e plenamente acabados. A neutralidade e a potência
genética do sentido remetem diretamente à filosofia do acontecimento, que implica na
introdução de novos conceitos e de novas maneiras de pensar.
56
Idem, ibdem, p.100.
76
CAPÍTULO III
NEUTRALIDADE E GÊNESE
3.1) A neutralidade e a potência genética
A originalidade da teoria do sentido em Deleuze é pensar o acontecimento
transcendental, o que o aproxima de Meinong em relação ao objektiv, mas também o
distingue devido à elaboração do campo transcendental; as singularidades que
compõem o campo transcendental são os verdadeiros acontecimentos transcendentais,
diz Deleuze. Não podemos deixar de ressaltar mais uma vez que Deleuze está fazendo
filosofia transcendental; a sua postura filosófica, em relação ao sentido, é que este foi
pensado de dois modos: neutralidade lógica e potência genética. A filosofia
transcendental, segundo ele, rompeu com a metafísica quando começou a pensar o
sentido ao invés das essências; o que caracteriza a filosofia transcendental é pensar o
sentido pela produtividade genética. Entretanto, o pensamento de Deleuze também
aborda o aspecto da neutralidade, aspecto este que, no seu dizer, foi imputado pela
lógica empírica das proposições em ruptura com o aristotelismo. Neste ponto,
procuraremos enfatizar a neutralidade no contraponto com à fenomenologia A lógica
das proposições rompe com a lógica dos termos e por aí obtém um novo estatuto para o
sentido. Deleuze quando se preocupa em mostrar o tratamento que os estóicos dão as
proposições, a partir dos exprimíveis, está pensando este aspecto de neutralidade; a
produtividade genética, por sua vez, é pensada a partir do campo transcendental como
provido de singularidades. O que está em jogo é a preocupação de não cairmos
novamente na alternativa imposta pela filosofia transcendental kantiana: fora do
indivíduo e da pessoa somente encontraremos o abismo indiferenciado. Tal alternativa
tem origem na confusão entre o transcendental e o empírico, isto é, o transcendental
77
decalcado do empírico. O que quer dizer o transcendental decalcado do empírico? É
que o transcendental tem a imagem e semelhança daquilo que está incumbido de
fundar. O aspecto de produtividade genética do sentido é pensado com toda a
preocupação de evitar um ponto de partida que remeteria a um Ego transcendental ou a
consciência constituinte. Deleuze não quer dizer que a metafísica e a filosofia
transcendental não tenham pensado as singularidades, sim estas as pensaram, porém
aprisionando-as em um Ego individual (Moi) supremo ou em um Eu pessoal (Je)
superior.
O propósito de Deleuze é decisivo, trata-se de pensar a filosofia transcendental
fora da consciência constituinte procurando apresentar o ponto onde possamos pensar
sem que estejamos submetidos ao Eu assim como a Deus. O sentido pensado pelo viés
da produtividade genética, quer dizer que o sentido é produzido e não dado por
condições de possibilidades que apenas revelem a submissão do condicionado. Quando
o sentido é pensado deste modo evita-se renunciar à gênese e, ao mesmo tempo,
recusa-se o condicionamento transcendental. Deleuze acredita que a filosofia
transcendental pode renovar-se ao tratar o sentido como acontecimento. Quando é que
a linguagem passa a ser pensada articulada à idéia de acontecimento? O acontecimento
é o que permite a linguagem; é esta a tese de Deleuze e, também o que distingue a sua
filosofia das demais; o acontecimento não reproduz as formas da consciência e do Ego.
Tais afirmações se dirigem às noções de neutralidade e potência genética. O que vem a
ser a neutralidade e gênese? Deleuze procura sublinhar a impassibilidade e neutralidade
do sentido em relação aos estados de coisas e aos corpos propriamente ditos, mas a
ênfase na neutralidade incide sobre os modos proposicionais em geral. É que o seu
propósito é o de elucidar que o sentido não pertence à linguagem, mas sim aparece na
linguagem assim como o acontecimento envolve os estados de coisas. A neutralidade
ao ser pensada em relação à designação, manifestação e significação remete para o
sentido enquanto quarta dimensão da proposição.
A potência genética, por sua vez, é pensada de modo a evitar que fora do
indivíduo e da pessoa somente tenhamos a alternativa do abismo indiferenciado. A
78
alternativa imposta pela filosofia transcendental, centrada na forma da consciência e do
Eu, é afastada por Deleuze quando pensa a gênese dos indivíduos e pessoas a partir de
singularidades. O campo transcendental possui singularidades impessoais e pré-
individuais: os acontecimentos transcendentais. A idéia de acontecimento ganha um
novo atributo quando remetido às singularidades. Não podemos deixar de assinalar que
Deleuze quando apresenta a neutralidade do sentido está procurando distinguí-lo da
significação e, enquanto à potência genética do sentido, por sua vez, está recusando o
condicionamento transcendental e o abismo indiferenciado.
Deleuze ao pensar o campo transcendental através de sua potência genética o
faz através de um agenciamento com Gilbert Simondon. Ora, é por aí que a gênese dos
indivíduos e pessoas começa a ser pensada de um modo diferente das filosofias
transcendentais precedentes. O apoio que viemos buscando em Meinong vem agora se
mostrar muito profícuo uma vez que o problema da neutralidade e gênese do sentido
remete diretamente à fenomenologia de Husserl. A réplica de Deleuze a este pensador
remete diretamente, como já observamos inúmeras vezes, ao problema da consciência
e do Ego. É por este aspecto que Meinong apresenta-se como um aliado de Deleuze,
sobretudo pela doutrina do au
β
ersein; a ontologia do objektiv serve para que a tese de
Deleuze venha por conceber o transcendental como fora da consciência. Husserl é o
pensador que estimula Deleuze a pensar a neutralidade e a potência genética do
sentido; Meinong, o pensador que permite a Deleuze desenvolver a idéia do sentido
como extra-ser; Simondon, o ontologista que dá a Deleuze as condições de elaboração
de uma teoria das singularidades que ultrapassa a síntese da pessoa e a análise do
indivíduo tais como elas são ou se fazem na consciência.
“Husserl mostrou realmente a independência do sentido com relação a um certo número desses
modos ou desses pontos de vista, conforme às exigências do método de redução fenomenológico.
Mas o que o impede de conceber o sentido como uma plena (impenetrável) neutralidade é o
cuidado em conservar no sentido o modo racional de um bom senso e de um senso comum, que
79
ele apresenta erradamente como uma matriz, uma forma-mãe não-modalizada (Urdoxa). É esta
mesma preocupação que o faz conservar a forma da consciência no transcendental”.
57
O texto de Husserl onde aparecem as considerações sobre a neutralidade e
gênese é “Idéias diretivas para uma fenomenologia”, sobretudo os parágrafos 111 e 114,
onde é estudada a subtração do sentido face à jurisdição da razão. O estatuto que
Deleuze busca ao elaborar sua teoria sobre o sentido requer, como já apontamos, um
afastamento em relação à concepção fenomenológica, mas devemos considerar que
ele, também não poderia fazer este movimento sem apontar para uma certa ontologia do
transcendental. A teoria das singularidades, a partir do estudo de Simondon, é que
permitirá este esboço do avanço da filosofia transcendental justamente por pensar o
campo transcendental como possuidor de acontecimentos; as singularidades são
acontecimentos transcendentais que através de um princípio móvel de auto-unificação
presidem a gênese dos indivíduos e pessoas. É a partir desta potência genética que a
consciência será pensada como constituída e não mais como constituinte. O que
importa nesta questão do sentido é: há sentido, e de onde vem sua neutralidade e
potência genética? A neutralidade, como já vimos, remete ao acontecimento puro e a
potência genética ao campo transcendental pré-individual e impessoal.
O que resta saber é como se dá este princípio móvel de auto-unificação. O tema
já não teria aparecido em Husserl nas Investigações Lógicas? Quando Sartre elabora a
idéia de campo transcendental é numa réplica ao Ego transcendental de Husserl. O que
nos cabe indagar é: o Eu transcendental, distinto do eu psico-físico e empírico, é o
mesmo que Sartre critica? Se o Eu transcendental for pensado por Husserl como um
movimento dinâmico, como tendência que permite a passagem da consciência irrefletida
para a consciência reflexiva, a tese de Sartre cai por terra. A idéia de campo
transcendental como consciência pré-pessoal fica obliterada, o que também afetaria a
tese de Deleuze. Ora, mas a tese de Deleuze é a de que o campo transcendental não
57
Deleuze, op.cit, p.104.
80
pode ser determinado como uma consciência seja ela irrefletida ou reflexiva
58
. O que
Deleuze quer é apresentar a gênese da consciência a partir do campo transcendental a-
subjetivo e pré-objetivo. Um passo a mais deve ser dado nestas apreciações acerca da
neutralidade e gênese, tal passo avança em direção à potência genética de produzir
superfícies. A falência da superfície nos remeteria às profundidades do corpo onde as
misturas inomináveis dão a tônica, mas quando não há falência da superfície são as
misturas inomináveis que produzem as tênues camadas que percorrem a superfície.
No coração da lógica do sentido reencontramos este problema: a passagem da
esterilidade à gênese. No nosso propósito de pensarmos a teoria do sentido em
Deleuze, fora da fenomenologia e da filosofia analítica encontramos o problema que
percorre a filosofia transcendental. O desdobramento de um elemento paradoxal em
mundo e linguagem parece-nos muito próximo das especulações de Husserl e
Wittgenstein. Entretanto, a elucidação de tal desdobramento remete à passagem da
neutralidade à gênese do sentido. Husserl, como já citamos inúmeras vezes, é um
interlocutor que Deleuze se reporta a todo tempo, o que já não podemos dizer o mesmo
em relação a Wittgenstein. A fronteira entre mundo e linguagem sugere que haveriam
condições transcendentais que permitem as proposições dizerem o que ocorre no
mundo. O que faz Deleuze remeter-se mais a Husserl é a doação de sentido dada pela
consciência intencional; já no que diz respeito a Wittgenstein, não se pode deixar de
assinalar que a forma lógica é transcendental. A linguagem e mundo estariam numa
disparidade absurda se não houvesse a forma lógica como condição transcendental. O
problema que Deleuze observa na filosofia transcendental é desta não ter pensado nem
a consciência nem a forma lógica como geradas a partir do acontecimento; o que quer
dizer não ter pensado o sentido como acontecimento.
Deleuze encontra uma saída para pensar o campo transcendental sem cair em
um abismo indiferenciado. A potência genética deste campo remete para a organização
de superfícies. O campo transcendental possui uma potência de produzir sua própria
58
Husserl se não introduzisse a idéia de Eu transcendental estaria incorrendo no passo em falso que o levaria apenas a
fazer psicilogia transcendental e não fenomenologia transcendental.
81
superfície. Deleuze encontra na idéia de singularidade o modo de determinação do
campo transcendental e de sua potência genética. É neste ponto que se dá o seu
agenciamento com Gilbert Simondon, mas é também o momento em que às
considerações sobre os efeitos de superfície são pensados na imanência do ser vivo. A
organização de superfície passa a ser pensada a partir da topologia e ontogênese.
Somente através do debruçar-se sobre a vida (o viver) é que a potência genética do
campo transcendental começará aparecer na teoria do sentido de Deleuze. Os seus
argumentos remetem á idéia de singularidade como anti-generalidade, distinção esta
que o possibilita de retomar às considerações sobre os limites do vivo. É na superfície
que o vivo constitui seus limites; o problema da individuação é aqui pensado juntamente
com a topologia. A idéia de singularidade permitirá o enfoque sobre a disparation como
modo de fugir da doxa. O elemento paradoxal, que rompe com o bom senso e o senso
comum, é pensado pela disparation das singularidades que percorrem o campo
transcendental. O problemático é o traço distintivo do campo transcendental. A
neutralidade e a potência genética do sentido começam a ganhar novos modos de
serem pensadas.
Deleuze ressalta a importância de Husserl nesta passagem da neutralidade do
sentido à potência genética, porém indicando os pontos que se afasta do fenomenólogo;
o § 114 do livro Idéias Diretivas para uma fenomenologia é celebrado como
extraordinário onde Husserl apresenta o tema da neutralidade do noema relacionado à
disjunção da consciência. Husserl pensa a consciência sob a forma do cogito indicando
que todo cogito tem uma contrafigura, de tal índole, que todo noema tem seu
contranoema correspondente no cogito paralelo. Na relação entre os atos paralelos do
cogito, explica Husserl, um destes atos é real enquanto o outro é apenas "sombra", isto
é, um cogito impróprio. Um se efetua realmente enquanto o outro é apenas o mero
espelho de um efetuar. Husserl, ainda ressalta que a distinção entre o cogito real e o
impróprio na consciência corresponde à distinção radical dos correlatos: de um lado o
efeito noemático constituído, que tem o caráter de efeito não modificado, real; de outro
lado, o "mero pensamento" do efeito exatamente correspondente.
82
3.2) A saída do abismo indiferenciado
As dificuldades de ser pensar o campo transcendental sem sujeito são resolvidas
por Deleuze fazendo remissão aos estudos de Gilbert Simondon. Quando o ego e a
consciência são afastados do campo transcendenta e,l são as emissões de
singularidades – os verdadeiros acontecimentos transcendentais – enquanto se fazem
sobre uma superfície inconsciente e gozam de um principio de auto-unificação por
distribuição nômade. Ora, toda esta afirmativa é inspirada no estudo de Simondon. Na
resenha sobre o texto de Simondon: L’individu et sa gênese physico-bioligique,
apresentada na Revue Philosophique nº1, jan/mars em 1966, p.115-118, Deleuze faz a
seguinte afirmação:
“A condição prévia da individuação, segundo G.S., é a existência de um sistema metaestável. Foi
por não ter reconhecido a existência de tais sistemas que a filosofia caiu nas duas aporias
precedentes. Mas o que define essencialmente um sistema metastável é a existência de uma
disparation, pelo menos de duas ordens de grandeza, de duas escalas de realidade díspares, entre
as quais ainda não há comunicação”
59
O sistema metaestável de Simondon percorrido por ordens de grandezas
díspares é associado por Deleuze ao campo transcendental sem sujeito. Simondon, em
suas reflexões, está pensando a individuação como processo. A individuação como o
aparecimento de fases no sistema metaestável que ele também denomina como o ser
sem fases. A individuação seria o aparecimento de fases no ser defasado. O devir do
ser é o surgimento de fases neste sistema díspar. Deleuze explica-nos o que é o
sistema meta-estável:
59
Gilber Simondon, L’individu et sa genese physico-bioligique, Paris: PUF, 1964; O individuo e sua gênese físico-
biologique, seleção e tradução Ivana Medeiros, texto inédito, no prelo, p.5.
83
“Ele implica, portanto, uma diferença fundamental, como um estado de dessimetria. Se é,
entretanto, sistema. É à medida que a energia nele é como energia potencial, como diferença
de potencial repartida em tais ou tais limites [...] A importância da tese de G.S. já aparece.
Descobrindo a condição prévia da individuação, ele distingue rigorosamente
singularidade e
individualidade. Pois o metaestável, definido como ser pré-individual, é perfeitamente provido de
singularidades que correspondem à existência e à repartição de potenciais”.
60
Deleuze ao considerar o estudo de Simondon destaca os conceitos de
disparation, de sistema metaestável e de energia potencial. O que nos chama atenção é
o princípio de auto-unificação que irá aparecer em meio às ordens de grandeza
díspares. Simondon mostra-nos que existe diferença entre a individuação do físico e do
vivo.
“A mesma noção de metaestabilidade pode ser utilizada no domínio do vivo para caracterizar a
individuação; a individuação não se produz, como no domínio físico, apenas de maneira
instantânea, quântica, brusca e definitiva, deixando atrás de si a dualidade meio e indivíduo, o meio
sendo empobrecido do indivíduo que não é, e o indivíduo não tendo mais a dimensão do meio.
Sem dúvida, tal individuação existe também para o ser vivo, como origem absoluta, mas é
acompanhada de uma individuação perpétua que é a própria vida, conforme o modelo fundamental
do devir: o vivo conserva em si uma atividade de individuação permanente; ele não é só resultado
de
individuação, como o cristal ou a molécula, mas teatro de individuação. A atividade do vivo
também não está, como a do indivíduo físico, toda concentrada em seu limite; há nele um regime
mais completo de ressonância interna, que exige comunicação permanente e mantém uma
metaestabilidade que é condição de vida”.
61
Gilbert Simondon com o conceito de ressonância interna, isto é, a relação entre
as energias díspares, permite a Deleuze pensar o princípio de auto-unificação entre as
emissões de singularidades: o ponto aleatório que aparece em meio ao ser sem fases e
que começa por se individuar. O processo de individuação é pensado por Simondon
como culminando num coletivo transindividual o qual permitirá que os problemas, que as
fases sucessivas da individuação biológica e psíquica não conseguiram resolver, sejam
60
Idem, ibdem, p.5
61
Idem, ibdem
84
solucionados. O sistema metaestável, a fluctuatio animi, apresenta uma disparation,
uma disparidade; Deleuze ressalta como Simondon nos mostra que a disparidade -
enquanto primeiro momento do ser, enquanto momento singular- é efetivamente suposta
por todos os outros estados quer sejam de unificação, de integração, de tensão, de
oposição, de resolução das oposições..etc. A ontologia de Simondon não é uma
explicação da individuação através de um ponto de vista apenas biológico sendo neste
ponto que Deleuze ressalta os conceitos de ressonância interna e energia potencial por
considerá-los conceitos filosóficos.
“Como a individuação vai proceder a partir desta condição? Como ela estabelece uma
comunicação interativa entre as ordens de grandeza ou realidade díspares, dir-se-á que atualiza a
energia potencial ou integra as singularidades; que resolve o problema colocado pelos díspares,
organizando uma nova dimensão na qual formam um único conjunto de grau superior.(assim a
profundidade para as imagens retinianas) A categoria do problemático ganha no pensamento de
G.S. uma grande importância, na medida exata em que é possuidora de um sentido objetivo: com
efeito ela não designa mais um estado provisório de nosso conhecimento, um conceito subjetivo
indeterminado, mas um momento do ser, o primeiro momento pré-individual. E, na dialética de
G.S., o problemático substitui o negativo”.
62
O campo transcendental impessoal e pré-individual apresenta todas estas
características pensadas por Simondon. A saída do pensamento fenomenológico e
também do estruturalista dá-se pelo agenciamento com Simondon. As características do
campo transcendental sobretudo as de energia potencial, ressonância interna e a do
problemático foram as que permitiram tal saída. Deleuze confirma estas características
quando, na 15
a
série: Das singularidades, faz a seguinte afirmação:
“Eis porque em quinto lugar, este mundo do sentido tem por estatuto o problemático: as
singularidades se distribuem em um campo propriamente problemático e advém neste campo
como acontecimentos topológicos aos quais não está ligada nenhuma direção”.
63
62
Gilles Deleuze, Gilbert Simondon: Le individu e sa genese physico-biologique, Paris, Revue Philosophique n.1, Jan/Mar,
1965, tradução: Ivana Medeiros, p.5.
63
Deleuze, Lógica do Sentido, p.109.
85
Deleuze após todas estas considerações sobre o campo transcendental começa a
pensar a neutralidade e gênese do sentido. Como o sentido pode ser neutro em relação
às proposições e às coisas e, ao mesmo tempo possuir uma potência genética a ponto
de gerar indivíduos? A tese de Simondon deixa nítido que o individuo não se separa do
pré-individual. Deleuze expõe a problemática do sentido do seguinte modo:
“Então aparecem as condições da verdadeira gênese. É exato que o sentido é a descoberta
própria da filosofia transcendental e vem substituir as velhas Essências metafísicas. (Ou antes, o
sentido foi primeiro descoberto uma vez, sob seu aspecto de neutralidade impassível, por uma
lógica empírica das proposições que rompia com o aristotelismo; depois, uma segunda vez, sob
seu aspecto de produtividade genética, pela filosofia transcendental em ruptura com a
metafísica)”.
64
Deleuze assinala que apesar da aparentes diferenças entre a filosofia
transcendental e a metafísica, quanto ao sentido e as essências, mesmo assim ainda
possuem algo em comum. O que é comum à metafísica e à filosofia transcendental é
primeiramente esta alternativa que elas nos impõem ou um fundo indiferenciado, sem-
fundo, não-ser informe, abismo sem diferenças e sem propriedades. A aposta de
Deleuze é a de pensar o campo transcendental sem cair nesta concepção da metafísica
e da filosofia transcendental, ou seja, a de somente apreender as singularidades
aprisionadas em um Ego individual (Moi) supremo ou em um Eu pessoal (Je) superior. A
saída destas duas alternativas filosóficas foi também apontada na direção do
estruturalismo. Valéria Loturco
65
em seu trabalho “O empirismo transcendental na
filosofia de Gilles Deleuze” expõe como se dá esta saída e afastamento do
estruturalismo.
64
Deleuze, lógica do Sentido, p.108.
65
Cf. Valéria Loturco O emprismo transcendental na filosofia de Gilles Deleuze tese de mestrado apresentada na
FFLCH da USP em 2001 sob a orientação do Prof. Dr. Bento Prado Jr.
86
“Se, no estruturalismo, o caminho para alcançar o âmbito virtual é extrair, de um domínio, uma
estrutura de coexistência pré-existente aos seres ( de lugares que antecedem aos ocupantes, aos
indivíduos), na filosofia deleuzeana, o procedimento parece ser outro: como dissemos, é pela
reversibilidade, do virtual em atual e vice-versa, que se consegue ir de um âmbito ao outro, são as
singularidades que se atualizam em individualidades, e estas se virtualizam como
singularidades”
66
Valéria Loturco elucida que o campo transcendental deleuzeano não possui
lugares prévios como na estrutura, pelo contrário, as velocidades infinitas impediriam
formação de lugares e afirma:
“Nesse sentido afirmamos que o âmbito transcendental deleuzeano tem uma estrutura mutante,
com lugares moventes, nômades, ou então, que trata-se de uma estrutura volátil, pouco presente
ou mesmo ausente, porquanto que a velocidade infinita do campo transcendental impediria a
formação de lugares; seriam, antes, não-lugares ou apenas “pontos ”transcendentais”.
67
A saída e o afastamento do estruturalismo é concomitante à aproximação de
Simondon. O capítulo, Topologia e Ontogênese, apresentará a idéia de que o vivo vive
no limite de si mesmo, tal enunciado levará a Deleuze a pensar o campo transcendental
do modo que Valéria Loturco nos indica:
“Então de uma só vez, o estruturalismo, tanto quanto Nietzsche, conseguiu eliminar, da filosofia,
deus e o homem, preparando o terreno filosófico para outros avatares que, conforme Deleuze,
implica numa mutação da própria estrutura, embora também seja seu ponto de partida, e que leva,
ao nosso ver, ao empirismo transcendental deleuzeano. Isso porque a filosofia deleuzeana parece
tomar como base para estabelecer uma nova topologia transcendental que, embora conserve a
idéia de coexistência virtual das multiplicidades, implica num topos mutante, nômade, que não se
fixa em lugares, mas acontece nos interstícios, nos não-lugares”.
68
Quando Deleuze afirma que o campo transcendental é feito desta topologia de
superfícies e de singularidades nômades, pré-individuais e impessoais traz toda a
66
Idem, ibdem, p.127.
67
Idem, ibdem,
68
Idem, ibdem, p.138
87
influência de Gilbert Simondon. A topologia é pensada por Simondon quando coloca no
capítulo, cujo título é: Topologia e Ontogênese, o problema concernente às relações
entre matéria inerte e vida. Simondon ressalta que a partir da descoberta da síntese da
uréia inúmeras outras sínteses foram possíveis. A química conseguiu produzir corpos
com moléculas excessivamente pequenas. No entanto, diz Simondon, subsiste um hiato
entre a produção das substâncias utilizadas pela vida e a produção do próprio vivo. O
aspecto topológico se torna relevante quando Simondon indica que o vivo produz um
tipo particular de espaço. Os corpos da química, diz ele, não arrastam uma topologia
diferente da das relações físicas e energéticas habituais. Os conceitos de energia
potencial, ressonância interna e disparação permitirão que se pense melhor esta
topologia. O vivo pode ser pensado no espaço euclidiano onde se define como um corpo
entre outros, porém nada nos faculta afirmar que seu topos é euclidiano. Simondon
considera uma tarefa inútil querer construir um ser vivo com a matéria elaborada pela
química orgânica devido à topologia singular que o caracteriza. Talvez, o vivo se
caracterizasse por um tipo de topologia que não se pode conhecer a partir da física e da
química utilizando o espaço euclidiano. A questão do empírico e do transcendental entra
em cena, uma vez que experimentamos esta topologia sem ao menos conseguirmos
conceber como esta é constituída. As condições da experiência real, pela qual não nos
separamos de um sistema metaestável, impessoal e pré-individual, levam Deleuze a
tentar pensar o transcendental de maneira diferente daquela pensada por Kant.
Simondon observa que em relação à manutenção e auto reparação topológica, o
ser vivo apresenta características que dizem mais respeito às condições energéticas do
que estruturais. Neste aspecto é que consideramos o modo que Deleuze se inspira para
sair do estruturalismo, por já não se ater a lugares prévios. A membrana celular
apresenta condições de repolarização que permitem a Simondon fazer a seguinte
exposição sobre a energia potencial:
“Assim, uma das propriedades encontradas na base de todas as funções, quer se trate da
condução do influxo nervoso, da contração muscular ou da assimilação, é o caráter assimétrico da
88
permeabilidade celular. A membrana viva, anatômica ou apenas funcionalmente diferenciada,
quando nenhuma formação particular materializa o limite, caracteriza-se por aquilo que separa
uma região de interioridade de uma região de exterioridade: a membrana é polarizada, deixando
passar tal corpo
no sentido centrípeto ou centrífugo, opondo-se a passagem de tal outro”.
69
As influências de Simondon sobre Deleuze são decisivas, apesar do segundo
admitir que discorda do livro do primeiro somente nas conclusões, o que também nos
alerta para o modo como o transcendental vem sendo pensado a partir desta noção de
topologia. Quando Deleuze falar de uma singularidade, que atravessa plantas, animais e
homens, está certamente falando da vida. O aspecto topológico é o que vai fazer com
que a sua filosofia conceba o campo transcendental com as características destacadas
por Simondon. A membrana como é permeável à passagem de substâncias sofre a
despolarização; a característica principal que Simondon destaca é a repolarização da
membrana como se houvesse uma bomba de sódio e potássio que permitisse tal
fenômeno. A energia potencial que atravessa a célula é que permite este fenômeno o
que faz Deleuze aproximá-la do campo transcendental sem sujeito.
3.3) O limite
Cláudio Ulpiano em seu texto “O Pensamento de Deleuze ou A Grande Aventura
do Espírito” articula a noção de campo transcendental às mais variadas questões que
aparecem ao longo da obra de Deleuze. O transcendental sem as formas da
consciência, diz Ulpiano, aponta não mais para a espontaneidade e receptividade, como
em Kant, mas para as singularidades levando-nos a primeira teoria “racionalizada” das
singularidades impessoais e pré-individuais. Em seu texto esclarece um ponto crucial
onde se pode articular a topologia, pensada por Simondon, ao pensamento dos
estóicos. A distinção é feita em relação aos limites do vivo, sendo por aí que uma
diferença entre o modo de pensar de Platão e dos estóicos pode ser ressaltada.
69
Gilber Simondon, L’individu et sa genese physico-bioligique, Paris: PUF, 1964; O individuo e sua gênese físico-
biologica, seleção e tradução Ivana Medeiros, texto inédito, no prelo.
89
“Há um modo próprio da filosofia platônica abordar o vínculo entre a Idéia e as coisas sensíveis. Da
mesma maneira. Há um modo próprio da filosofia estóica fazer sua abordagem, constituindo um
vinculo entre o limite e os seres. Este vínculo configura a noção de limite como essencial dos
seres, distinguindo-se incorporal ou corporal nos estóicos, já que para estes só os corpos, as
essências particulares afirmativas, têm limites. É já a organização de um plano de referencia.
Limites que não são fixos, mas móveis, como se a geometria euclidiana fosse abandonada e se
fizesse presente uma topologia associada mais
com a biologia e singularidades do que com idéias
gerais; mais com a diferença dos seres do que com sua classificação. Em Platão, são os limites do
provisório e do permanente – distinguindo o fenômeno e o eterno; enquanto nos estóicos os limites
e as forças causais se singularizam, privilegiando a diferença em vez da semelhança”.
70
Ulpiano toca no problema pelo qual a filosofia dos estóicos foi sempre colocada a
margem na história da filosofia. O problema é aquele que diz respeito à relação entre
filosofia e matemática. Uma definição matemática seria capaz de engendrar sozinha
uma multiplicidade indefinida de seres. A relação entre estes seres é aquela
estabelecida por Platão entre Forma e mundo sensível. A filosofia dos estóicos, como
aparentemente não toca na relação entre filosofia e matemática, foi colocada à margem;
desde Platão a dianóia ( o raciocínio discursivo entre os noetas inferiores) apresenta-se
como propedeútica à filosofia (a noesis como contemplação dos eide, o anhipotético).
Se retirássemos a dianóia do platonismo, o que aconteceria? A história da filosofia
sempre nos apresenta os aspectos morais que nortearam o estoicismo sem jamais tocar
no problema dos incorporais; o estóico seria aquele que suportaria o sofrimento. No
entanto, a partir dos trabalhos de Emile Bréhier e Victor Goldschimidt começamos a
compreender o sistema estóico de outro modo. Emile Brehier, por exemplo, nos mostra
que a relação entre filosofia e matemática aparece muito mais ligada à topologia do que
à geometria euclidiana. A noção de limite é crucial no pensamento estóico; a
determinação do limite dos corpos não é dada como na relação modelo e cópia; os
corpos possuem limites a partir de suas tensões internas. Os corpos com suas ações e
paixões produzem efeitos em suas superfícies assim como as suas próprias superfícies.
70
Cláudio Ulpiano, op.cit, p.27.
90
A teoria do lugar nos estóicos difere daquela de Aristóteles, por exemplo, que é uma
relação entre continente e conteúdo. O lugar, para os estóicos é um incorporal assim
como os exprimíveis, o vazio e o tempo. A topologia aparece, evidenciando o aspecto
matemático, devido aos estóicos pensarem os corpos como o desenvolvimento de um
gérmen. A reta é pensada por eles como o alongamento de uma linha até a sua
extremidade. A vida é que serve de exemplo no pensamento dos estóicos. Bergson já
nos alertava – no Pensamento e o movente – que os sistemas filosóficos eram
extremamente abstratos e que poderiam ser aplicados em mundos onde não existissem
seres viventes tais como plantas, animais e homens. Emile Brehier em seu texto La
Theorie des Incorporels dans L’Ancien Stoicisme torna relevante este aspecto, qual seja
que os estóicos já estariam no período helenista fazendo uma filosofia voltada para a
vida. Os estóicos jamais admitiram que as causas fossem incorporais como o eram as
formas platônicas. Brehier esclarece-nos como os estóicos relacionam o problema das
causas em relação aos seres vivos.
“Ora é aí que está situado para os Estóicos o problema das causas. Eis, segundo Sextus, alguns
fatos onde eles concluíam que existiam causas: a semente e o desenvolvimento de uma planta, a
vida e a morte, o governo do mundo, o devir e a corrupção, a geração do semelhante pelo
semelhante. Os exemplos são quase todos recebidos dos seres vivos. Mesmo no caso contrário,
os outros seres são, no pensamento intimo dos Estóicos, similares ao vivo. O próprio mineral com
a coesão de suas partes, possui uma unidade análoga a de um vivo. Assim o dado a explicar-se é
a mudança do ser; que é sempre análoga a evolução do vivo”
71
.
Os estóicos são trazidos por Deleuze até a filosofia contemporânea. A noção de
limite é imprescindível para que possamos encontrar, na stoa, anúncios do que mais
tarde será tratado por Deleuze em relação ao campo transcendental e posteriormente ao
plano de imanência. Tal procedimento elucida a tendência filosófica de fazer filosofia
articulada à vida.
“Qual é a natureza desta unidade do vivo, unidade sempre móvel, unidade de um recipiente?
Como as partes do ser são reunidas de maneira a persistir? Será, como no vivo, por uma força
71
Emile Brehier, La Theorie des Incoporels dns L’Ancien Stoicisme, Paris, Vrin, 1980, p.4-5.
91
interna que os mantêm, quer chamemos esta força Exis nos minerais, natureza nas plantas, ou
almas nos animais. Em todos os casos, é indispensável que ela esteja no próprio ser do qual
constitui a causa, como a vida só pode estar no vivo".
72
Na posição de Simondon, como dissemos, o vivo vive no limite de si mesmo o
que nos impele a buscarmos proximidades com os temas que os estóicos trataram já no
século III a. C., sem contudo deixar de admitir que são estas as linhas que Deleuze
procura desenvolver em seu trabalho acerca do sentido. Se a linha filosófica deleuzeana
causa tanto descrédito a ponto de não ser considerada uma filosofia séria, nem por isto
podemos ficar a mercê das possíveis censuras que nos impediriam de executarmos
nosso trabalho a contento. Assim, gostaríamos muito de trazer à baila essas discussões
que giram em torno de temas problemáticos. A noção de problema é exaltada na
filosofia de Deleuze onde o campo pré-individual e impessoal é considerado
problemático. A noção de problema também é articulada ao acontecimento e Deleuze
procura pensá-la diante da matemática; a geometria euclidiana, por exemplo, trabalharia
com ênfase nos teoremas, os invés dos problemas. Os estóicos, com a noção de
acontecimento, permitem a Deleuze pensar uma geometria onde as figuras são cortadas
em seus planos por um acontecimento, tipo: o cone quando cortado de determinado
modo torna-se uma hipérbole ou uma parábola. A noção de problema, que é uma noção
filosófica, faz Deleuze afirmar que o Ser é problemático onde podemos notar que é ao
aspecto díspar desse campo que ele está se reportando. A disparação em Simondon
remete ao caráter problemático. No entanto, este mesmo campo é inseparável do que
acontece no limite do vivo, isto é, da membrana plasmática e, este ponto é recorrente na
obra de Simondon, sobretudo no capítulo que trata da topologia e da ontogênese.
Ulpiano afirma que Deleuze descobriu o campo transcendental com os estóicos e
seguindo a sua orientação podemos observar que, sendo o campo transcendental
inseparável dos efeitos de superfícies, realmente há ressonâncias entre estes dois
modos de pensamento. Quando, por exemplo, os estóicos indagam sobre a unidade do
vivo eles afirmam que a força que dá coesão as partes do vivo também limita a forma
72
Idem, ibdem.
92
exterior do ser. Tal limite, porém não é produzido como no afazer do escultor, que limita
a estátua através de um ponto exterior a ela, mas sim como um germen que se
desenvolve até um certo ponto do espaço, e apenas até este ponto, suas capacidades
latentes.
93
CAPÍTULO IV
DO PROBLEMÁTICO
4.1) O problema do decalcamento
O trabalho que nos propusemos a realizar caminha em meio a inumeráveis dificuldades,
tendo seu aspecto mais notório ligado ao problemático. Conforme o tema já em
desenvolvimento, o campo transcendental se apresenta como problemático. Seguindo
Emile Brehier podemos compreender, através da historia da filosofia, a diferença entre
teorema e problema. Essas noções, diz ele, têm origem na Antigüidade e derivam da
matemática, sendo a diferença entre os dois termos respectivamente relacionada à
dedução da propriedade de um ser matemático e à construção de uma grandeza em sua
relação com as outras (dividir, por exemplo, uma reta em razão média e extrema).
Bréhier faz, no entanto, uma observação que pode elucidar com muita propriedade
aquilo que pretendemos ressaltar como sendo o problemático.
"De outro modo, enquanto a definição visa apenas uma tese que se quer admitir, o problema
considera como possível o contrário da tese proposta e chama ao exame tanto os argumentos a
favor quanto os contra; ele é essencialmente dialético e, conseqüentemente, bastante útil à
filosofia, uma vez que “a possibilidade de trazer para os problemas argumentos nos dois sentidos
fará com que descubramos, mais facilmente, a verdade e o erro em cada caso”. O problema é,
portanto, anterior a toda a consciência de uma alternativa; ele opõe o espírito a si próprio. E aqui
temos, sem dúvida, um dos pontos de partida da filosofia. A filosofia começou quando as
afirmações da consciência espontânea sobre o homem e o universo tornaram-se problemáticas".
73
A inserção do aspecto problemático permite-nos tocar em questões que
envolvem o limite. Quando se pergunta sobre o sentido da vida, encontramos de saída a
posição de Wittgenstein: o homem vive no limite do mundo. Ora, quando se pergunta
73
Emile Brehier, A Noção de Problema em Filosofia tradução de Silvia Ulpiano; in Etudes de Philosophie Antique,
Paris: PUF, 1955.
94
pelo sentido da topologia do vivo, encontramos a posição de Deleuze: o vivo vive no
limite de si mesmo. O que mais atrai nossa atenção é que é pelo viés topológico que
Deleuze vai se propor a pensar o sentido relacionado à linguagem e ao tempo. O
aspecto problemático aparecerá, na linguagem, associado aos paradoxos e não
propriamente à contradição, que esta, sim, tem sua gênese a partir dos paradoxos.
Platão encontrava a contradição e falava sobre o thaumatzein, aquilo que causa espanto
e admiração no filósofo. No entanto, o mesmo Platão procurava a contradição, vendo
nela aquilo que forçava o pensamento a pensar — vide o exemplo do dedo que é maior
e menor ao mesmo tempo, no livro X da República —, mas para ultrapassá-la, e assim
encontrar a identidade. Deleuze, por sua vez, ao deparar-se com a contradição, não
quer ultrapassá-la, mas ir ao encontro de sua gênese. Os paradoxos, o problemático,
enfim, dizem mais respeito ao vivo “vivendo no limite de si mesmo”, do que ao “homem
no limite do mundo”. A linguagem aparece envolvida por elementos paradoxais, pelos
objetos impossíveis.
O campo transcendental permite-nos ainda observar como Deleuze não se perde
no equívoco diagnosticado por Sartre na maioria dos filósofos contemporâneos: o de
querer realizar a consciência transcendental kantiana. Compreende-se o realizar aqui
como tornar de fato as condições da experiência. Sartre considera que a crítica kantiana
remete às questões de direito e não às de fato. Deleuze considera o campo
transcendental como uma questão de direito: é o que podemos observar quando ele
afirma que as condições do vivo, vivendo no limite de si mesmo, remetem à energia
potencial. O empírico, o vivo vivendo no limite de si mesmo, é inseparável do
transcendental — que é o metaestável, a energia potencial que permite a repolarização
da membrana, o problemático, a disparação. Trata-se de um empirismo transcendental
de fato e de direito. A problematização incide em torno da filosofia
transcendental,momento em que Deleuze procura observar que o transcendental
pensado a partir de Kant remete a um decalcamento de origem empírica: que diz que os
dados empíricos devem se submeter às condições, às imposições a priori de um sujeito
transcendental. A idéia de campo transcendental, pensada fora de tal decalcamento,
95
retira assim toda e qualquer possibilidade de fundar-se sobre um sujeito. A categoria de
problema é de importância extrema, justamente por remeter mais para a ontologia do
que para a linguagem. Deleuze evitará, sempre, decalcar o problema da proposição
assim como o transcendental do empírico. O problema não seria apenas uma frase
construída de modo diferente, como afirma Aristóteles
74
. O estagirita chega a dizer que
os problemas e as proposições são em igual número, bastando que a frase seja
construida de um modo diferente para que a proposição se torne um problema. A frase
— “Animal bípede-pedestre é a definição de homem, não é?” — seria uma proposição,
mas ao ser construída deste modo: “Animal bípede-pedestre é ou não é a definição de
homem?” passa a ser um problema. Todavia, para Deleuze o problema remete a outra
ordem e por aí veremos como deslocará o sentido do verdadeiro e do falso da
proposição para o problema. Os verdadeiros problemas são aqueles que remetem muito
mais ao tempo do que ao espaço.
4.2) O problema da organização das superfícies
O posicionamento de Simondon sobre a individuação leva Deleuze a pensar o
campo transcendental como organizador de superfícies. Desse modo, a questão que
envolve o ser vivo aparece na filosofia ligada às superfícies, às dobras que envolvem o
organismo. O corpo do ser vivo, como sabemos, é um tema que aparece na filosofia de
Husserl, sobretudo nas Meditações Cartesianas. Na Quinta Meditação, o corpo aparece
como aquilo que lhe permite pensar uma via de saída do solipsismo; o que há de
comum com os outros eus é o fato de possuírem um corpo, ou melhor dizendo, um
organismo. O conceito de endopatia será por aí desenvolvido de modo a mostra-nos que
o eu puro faz parte de um nós transcendental.
A organização de superfícies é uma das características principais do campo
transcendental. O organismo, como sabemos, é pensado por Deleuze como aquilo que
aprisiona a vida. Todavia, quando, no agenciamento com Simondon, começa a pensar
74
Aristóteles, Tópicos I, IV, 101 b 30-35.
96
a Topologia e a Ontogênese o faz a partir da gênese do indivíduo — como constituído
de singularidades — e de sua relação com o mundo.
"O campo transcendental rea é feito desta topologia de superfícies, destas singularidades
nômades, impessoais e pré-individuais. Como o indivíduo deriva daí para fora do campo, constitui
a primeira etapa da gênese. O indivíduo não é separável de um mundo, mas o que chamamos de
mundo?
75
"
Na décima sexta série da Lógica do Sentido cujo título é: "Da Gênese Estática
Ontológica" é feita remissão à Quinta Meditação cartesiana onde Husserl, no § 48,
pensa a transcendência do mundo objetivo em relação à transcendência primordial. O
tema que aparece presente nesta meditação é, como já assinalamos, o da saída do
solipsismo. Husserl ao encontrar, através do método de redução, o "eu puro" como
unidade das sínteses, quer saber como se processa a relação com o mundo,
considerando ser este constituído por "outros eus". O que há de comum entre o "meu
eu" e os "outros eus" é o organismo. O que permite ao "eu puro" reduzido ter uma
transcendência de mundo objetivo é esse "em comum" com os "outros eus". O indivíduo,
como mônada, existindo no mundo e o Ego, como unidade de síntese, se encontram no
mundo participando de uma comunidade intersubjetiva. Husserl denomina "endopatia" à
experiência do outro. O organismo aparece como o modo em que meu corpo pode sentir
o contato com o mundo, através da experiência de que existem outros corpos com
organismo semelhante ao meu. A semelhança aparece como o modo comum de
sentirmos e agirmos através de nosso corpo, ou seja, o que há de comum entre o meu
corpo e os outros é o comportamento.
"A proposição seguinte pode servir de fio condutor para os esclarecimentos: o organismo estranho
afirma-se no decorrer da experiência como organismo verdadeiro, unicamente por seu
'comportamento', que se modificou, mas que é sempre concordante. E isso da seguinte maneira:
esse comportamento tem um lado físico que apresenta o psíquico como seu indicador. É sobre
75
Deleuze, Lógica do Sentido. p.114.
97
esse "comportamento" que se apóia a experiência original, que se verifica e se confirma na
sucessão ordenada de suas fases"
76
.
O tema do organismo é importante quando vemos que as meditações de Husserl
levam àquelas que vínhamos apontando em Deleuze acerca da individuação a partir do
campo transcendental. Ora, o que vemos nas considerações de Husserl é a descrição
do organismo como ordenação de fases sucessivas. O comportamento dá-se de modo
semelhante em todos os organismos. O ego e o organismo possuem uma relação tal
qual a que existe entre sujeito e objeto, ou seja, um implica o outro, não há possibilidade
de um sujeito sem objeto, nem de um Ego sem corpo e organismo. O sentido da
transcendência do mundo objetivo se dá a partir do organismo. A pergunta que se faz é:
o que há de recusável na tese de Husserl a ponto de Deleuze não aceitá-la? É que, de
início, essa tese remete a um mundo já individuado, onde as singularidades já estão
organizadas em séries convergentes. Os indivíduos pertencentes a um mundo possuem
suas singularidades já aprisionadas na organização fixa que os define. Ao pensar o
campo transcendental como problemático, Deleuze se distancia de Husserl, recusando o
sentido da transcendência do mundo objetivo tal como é pensada pelo fenomenólogo,
que afirma:
"É preciso, portanto, fazer compreender como, num plano superior e baseado nesse primeiro, se
efetua a atribuição a um objeto do sentido da transcendência objetiva propriamente dita, segunda
na ordem da constituição, e isso sob a forma da experiência. Não se trata aqui de colocar em
destaque uma gênese que se completa no tempo, mas uma análise estática. O mundo objetivo
sempre já está lá acabado, ele é um dado de minha experiência que se desenvolve atual e vivo; e
o que não é objeto da experiência guarda seu valor na forma de habitus"
77
Husserl, ao conceber o mundo objetivo como acabado, permite a réplica de
Deleuze sendo este o motivo que o leva a voltar-se para Leibnitz. O que Deleuze recusa
no modo husserliano de pensar o sentido do mundo objetivo é a importância atribuída ao
76
Husserl, Meditações cartesianas, p.128.
77
Idem, ibdem, p.120.
98
bom senso e ao senso comum, em detrimento dos signos ambíguos e dos pontos
aleatórios. A utilização da teoria dos mundos possíveis em Leibnitz permitirá a inserção
dos mundos incompossíveis, ao invés de um mundo pronto e plenamente acabado em
relação ao qual os indivíduos estariam situados. Através de Leibnitz, Deleuze pensará
os indivíduos habitando diferentes mundos possíveis, onde os predicados analíticos
aparecem como acontecimentos que os envolvem. Entretanto, não deixará de criticar
Leibniz por fazer um uso negativo e limitativo da divergência, o que resultará numa visão
mutilada acerca das sínteses disjuntivas. O que Deleuze observa em Husserl é sempre
o recuo diante dos elementos paradoxais, mas mesmo assim tentaremos uma
proximidade maior com o texto do fenomenólogo, uma vez que Deleuze o cita inúmeras
vezes ao longo da Lógica do Sentido. Entendemos que a neutralidade e a potência
genética do sentido é o que permite essa aproximação; Deleuze trata da potência
genética nas séries 16
a
e 17
a
, cujos títulos respectivamente são: "Da Gênese Estática
Ontologia" e "Da Gênese Estática Lógica". Nessas séries, o problemático aparece como
comum às duas: a primeira trata da gênese do indivíduo em meio ao campo
transcendental; já a segunda aborda o problema do sentido e o sentido como problema
relacionado ao círculo da proposição. A pergunta de Deleuze é: como manter que é ao
mesmo tempo que o sentido produz os estado de coisas em que se encarna e é
produzido por estes estados de coisas, ações e paixões de corpos (imaculada
concepção)? Deleuze afirma que os corpos e suas misturas produzem o sentido através
da profundidade indiferenciada que pulsa sem medida. A profundidade age organizando
superfícies e envolvendo-se em superfícies.
4.3) O problema da neutralidade
O afastamento de Deleuze em relação a Husserl dá-se através do modo como
ambos pensam a neutralidade e a potência genética do sentido. A questão da potência
99
genética é aquela que remete para a organização de superfícies através da pulsação da
profundidade indiferenciada. A neutralidade do sentido está ligada à potência genética
justamente pelo sentido ser produzido por causas corporais e ser neutro em relação às
proposições que o expressam. O sentido produz os corpos e estados de coisas e ao
mesmo tempo é produzido por estes; questão complexa, mas é esta a posição do
pensador transcendental. Quando procura mostrar que o sentido somente pode ser
alcançado de modo direto, o faz indicando que somente pela quebra do circulo da
proposição é que podemos pensá-lo fora do âmbito da significação. Todavia, não quer
dizer que não exista significação, designação e manifestação. O sentido será pensado
como problema e distinto da proposição, o estatuto do problemático envolve às noções
de neutralidade e de potência genética; o sentido sendo produzido pelos estados de
coisas, ações e paixões dos corpos nos leva para uma complexidade extrema. Como
aparece para nós um estado de coisas, um corpo agindo e padecendo? É pela
superfície dos corpos que podemos observar que eles entram em misturas formando
estado de coisas. O sentido como acontecimento dá-se nas superfícies dos corpos. Ora,
como essas superfícies são constituídas? A noção de superfície implica em pensar não
ser ela nem ativa nem passiva, e sim um mero resultado das ações e paixões. A
superfície, entretanto, mantém-se sobrevoando a si mesma de modo impassível, o
sobrevôo se mantém devido à energia potencial que a freqüenta, sem que a ela
pertença; o aspecto transcendental se revela por inteiro, uma vez que não existe
nenhum corpo sem superfície, tal é o sentido do que aparece. De outro modo, não
haveria sentido nenhum, se a superfície não fosse produzida pelas tensões que a
percorrem. Vejamos que o problemático aparece tanto em relação à gênese dos
indivíduos como à do sentido expresso pela proposição.
A disparation, como condição prévia para toda individuação, encontra o seu
equivalente no sentido, como o que freqüenta a proposição sem lhe pertencer. Do
mesmo modo que a superfície, que delimita os corpos, é freqüentada por uma energia
potencial que não lhe pertence, o sentido é expresso pela proposição sem lhe pertencer:
o problemático é neutralidade e potência genética ao mesmo tempo. O paradoxo
100
perpassa as afirmações de Deleuze sobre o sentido: como pensar algo que é estéril e
ao mesmo tempo possui potência de gênese? É o problema que habita o coração da
filosofia transcendental. O sentido é neutro em relação aos estados de coisas e aos
corpos, no entanto, é o problema que aparece na linguagem. O problemático aparece na
série do mundo tanto quanto na da linguagem. "O sentido é neutro, mas não é nunca o
duplo das proposições que o exprimem, nem dos estados de coisas aos quais ele ocorre
e que são designados pela proposição". Como sabemos, diz Deleuze, somente
quebrando o círculo da proposição é que apreenderemos o sentido diretamente como
problema.
"Não podemos conceber a condição à imagem do condicionado ; purgar o campo transcendental
de toda semelhança permanece a tarefa de uma filosofia que não quer cair nas armadilhas da
consciência e do cogito. Ora, para permanecer fiel a esta exigência, é preciso dispor de um
incondicionado como síntese heterogênea da condição em uma figura autônoma, que reúne em si
a neutralidade e a potência genética".
78
Como pensar, diferentemente de Husserl, a neutralidade e a potência genética do
sentido? O estudo, que viemos elaborando sobre a "teoria do sentido", desde as
considerações sobre "o paradoxo das representações sem objeto", depara-se com o
estatuto do problemático. A diferença para Husserl se dá em relação ao que o
fenomenólogo concebe como "cogito impróprio", que aparece como sombra do "cogito
real" que se efetua, enquanto o outro permanece como seu duplo.
"Assim não podemos seguir Husserl, quando pretende que a expressão não é senão um duplo e
tem forçosamente a mesma “tese” do que aquilo que a recebe. Pois o problemático, então, não é
mais do que uma tese proposicional entre outras e a “neutralidade” recai de um outro lado, opondo-
se a toda tese em geral, mas somente para representar uma outra maneira de conceber ainda o
expresso como o duplo da proposição correspondente: reencontramos a alternativa da consciência
segundo Husserl, constituindo o "modelo" e a "sombra" as duas maneiras do duplo. Parece ao
contrário que o problema, enquanto tema ou sentido expresso, possui uma neutralidade que lhe
78
Deleuze, Lógica do Sentido, p.128.
101
pertence essencialmente, mas também que não é nunca modelo nem sombra, nunca o duplo das
proposições que o exprimem"
79
.
O sentido é neutro, mas nunca o duplo da proposição. O que Deleuze aponta
como afastamento em relação a Husserl é que o sentido não pode ser pensado como
uma neutralidade que seria como uma sombra, como ficou estabelecido pelo
fenomenólogo, a partir da disjunção da consciência. Quando afirma que a neutralidade,
enquanto oposta a toda tese, é apenas uma pseudoneutralidade, está indicando o que
Husserl estabelece como consciência posicional e consciência neutra. Deleuze não
compactua com a idéia de a neutralidade ser como uma sombra, como um duplo, para
evitar justamente a doação de sentido pela consciência constituinte; é que em Husserl a
consciência possui dois modos de cogito (modos de pensar): o real e o impróprio, o
primeiro se efetua por ser um cogito real, enquanto o segundo é mera sombra, isto é,
possui uma neutralidade por nunca se efetuar. Nesse ponto, Deleuze afirma que o
sentido é neutro, mas nunca o duplo de uma proposição nem de uma disjunção da
consciência.
O problema da neutralidade avança e alinhava-se com todos os pontos que
viemos discutindo ao longo do trabalho; a autonomia do sentido em relação aos modos
proposicionais, assim como aos estados de coisas, não quer dizer que a significação, a
manifestação e a designação não existam. O propósito de Deleuze não é esse, pelo
contrário: o exame acurado da questão do sentido o levará em busca das condições em
que aparecem as dimensões da proposição; do mesmo modo procurará pensar como os
estados de coisas aparecem envolvidos pelo sentido, a partir da organização da
superfície. Quando procura expurgar todos os indícios de semelhança entre o
transcendental e o empírico, quer distanciar-se das filosofias do cogito; é por esse viés
que se dá a sua réplica a Husserl quando o fenomenólogo identifica a neutralidade do
sentido com o duplo do cogito real.
79
Idem, ibdem, p.127.
102
O tema da profundidade é aqui importantíssimo, por articular-se à organização
de superfície e, sobretudo por remeter à questão do organismo ( como dissemos, no que
diz respeito à transcendência do mundo objetivo conforme o pensar de Husserl). A
importância da profundidade é pela superfície organizar-se a partir das pulsações
indiferenciadas. O sentido é o que se desdobra na superfície e esta se mantém a partir
das pulsações das misturas inomináveis na profundidade dos corpos e estados de
coisas. Antes de falarmos de um continuum ou de uma convergência que nos dá
indícios de mundo, devemos pensar na organização de superfície a partir da
profundidade indiferenciada; a falência da superfície implicaria na irrupção de tais forças
da profundidade.
A questão da linguagem, como vimos, tem nessa profundidade a destituição de
qualquer contato com o sentido; o não-sentido deixaria de produzir sentido, por não
haver mais superfície. A linguagem centrada no indivíduo e na pessoa seria implodida
quando da erupção da forças inomináveis da profundidade. Essa fissura abriria a fresta
para que as palavras entrassem numa região de indiscernibilidade com as afecções do
corpo. O que mantém a organização de superfícies? O campo transcendental, enquanto
provido de energia potencial. O sentido é um forro, diz Deleuze, só que o forro não
significa mais uma semelhança evanescente e desencarnada, uma imagem esvaziada
de carne como um sorriso sem gato. O sentido é a dobra, a dobra entre a profundidade
e a superfície; a continuidade do avesso e do direito, a arte de instaurar essa
continuidade. De tal modo, que o sentido na superfície se distribui dos dois lados ao
mesmo tempo: como expresso subsistindo nas proposições e como acontecimento
sobrevindo aos estados de coisas.
Insistiremos sobre o distanciamento de Deleuze com relação a Husserl para,
desta feita, remetermo-nos ao problema do continuum — que aparece no § 143 das
Idéias diretivas para uma Fenomenologia. Que continuidade é essa? A continuidade do
mundo objetivo, ou seja, o que assegura a saída do solipsismo. O organismo, como o
que permite o sentido do mundo objetivo, só pode ser descrito como aquilo que possui
103
uma continuidade; não só o organismo, mas todos os objetos do mundo aparecem como
um continuum.
"Este continuo se determina mais precisamente como um contínuo infinito em todas as direções,
consistente em todas as suas fases do mesmo x determinável e ordenado com tal conexão e
determinado em seu conteúdo essencial de tal maneira, que qualquer linha do mesmo da por
resultado em seu correr constante uma série coerente de apareceres ( que deve considerar-se
como a unidade de uma aparecer móvel) em que um e mesmo x dado se determina com coerência
contínua 'de maneira precisa' e nunca 'de outra maneira' ".
80
O problema da continuidade está vinculado ao do organismo como aquilo que
permite a unidade de sentido do mundo objetivo. Segundo Husserl, o organismo seria
uma mera aparência de organismo, caso não aparecesse como uma ordenação de
fases sucessivas, isto é, o comportamento é essa ordenação de fases sucessivas. Ora,
a tese da continuidade é que o organismo aparece como um continuum sem o qual não
poderia ser apreendido nem muito menos percebido.
Deleuze pensa a continuidade em relação à organização de superfícies, sem a
qual nem sequer poderíamos pensar e falar sobre o mundo e sobre os corpos. Esse
autor considera que a dobra entre as proposições e as coisas, entre as séries da
linguagem e do mundo, é aquilo que permite a continuidade entre o que acontece aos
estados de coisas e o que é expresso nas proposições. A arte de instaurar essa
continuidade é o que ele denomina organização de superfície; e é aí que o sentido se
desdobra como efeito neutro, mas também como potência genética de produzir, não
apenas da individuação dos corpos, mas também da significação e de todas as
dimensões da proposição.
4.4) O problema do sentido e da significação
80
Husserl, Idees I, § 143.
104
Quando falamos que Deleuze procura distinguir sentido e significação, pensamos
nas distinções que ele procura estabelecer entre problema e proposição. A distinção
entre verdadeiros e falsos problemas é, segundo ele, o modo de elucidar a autonomia
do sentido em relação à significação. Quanto à nossa preocupação em mostrar o
distanciamento da teoria do sentido em Deleuze com relação à fenomenologia e à
filosofia analítica, consideramos ser este um ponto de extrema importância para
estabelecermos a diferença para com aquilo que, por exemplo, Wittgenstein chama de
condição de sentido e condição de verdade da proposição. Tomemos, neste ponto, o
texto de Luiz Henrique L. H. Lopes dos Santos, A Harmonia Essencial, a fim de
demarcar o que vem a ser condição de sentido e condição de verdade. Tal texto se
mostra interessante por nos remeter ao tema da superfície como um dos aspectos que
nos permitem ainda observar resquícios de metafísica dogmática no Tractatus.
Wittgenstein, ao pensar aquilo que nos permite emitir proposições acerca dos
estados de coisas que ocorrem no mundo, encontrará o que não se mostra por inteiro na
superfície do mundo e da linguagem. No texto de Lopes Santos, em suas considerações
acerca das proposições e do sentido, fica nítida a distinção entre condição de sentido e
condição de verdade. É a relação entre o mundo e a linguagem que permitirá esta
distinção, uma vez que a proposição somente pode ser verdadeira ou falsa quando for
significativa. Uma proposição é considerada significativa quando indica estados de
coisas possíveis dentro de um espaço lógico. Ela é dita verdadeira quando indica um
estado de coisa realizado, isto é, um fato. Tal fato pode ocorrer, ou não, no mundo. A
contingência dos fatos, no mundo, marca portanto a condição da verdade das
proposições no que concerne ao seu valor de verdade. A bipolaridade da proposição
depende da contingência dos fatos. Porém, para que uma proposição seja verdadeira ou
falsa é necessário que ela seja, antes de tudo, significativa. A condição de verdade de
uma proposição pressupõe a sua condição de sentido.
O nosso propósito de indicar que a teoria do sentido em Deleuze se afasta da
fenomenologia e da filosofia analítica tem agora um ponto que nos permitirá assinalar os
pormenores de tal saída. Com relação à fenomenologia, trata-se do ponto em que ele
105
afirma ser o sentido neutro, mas nunca o duplo da proposição; a distância para com a
fenomenologia fica nítida, pois, como já vimos, a neutralidade do sentido não é uma
conseqüência da disjunção da consciência. Já em relação á filosofia analítica, o ponto
remete à distinção que Deleuze estabelece entre problema e proposição. O verdadeiro e
o falso não remetem mais às proposições, mas sim aos problemas, sendo esse
deslocamento simultaneamente a ruptura com o círculo da proposição. O problema,
pensado por Deleuze, é o sentido enquanto expresso pela proposição. O aspecto
problemático do sentido perpassa a sua pesquisa por inteiro.
Todavia, permaneçamos na digressão sobre o que é dito no Tractatus Logico-
Philosophicus de Wittgenstein. Encontramos, de saída, uma dificuldade, uma vez que
para o filósofo austríaco os problemas filosóficos são, na verdade, falsos problemas. No
entanto, como sabemos, as proposições são figurações lógicas dos estados de coisas.
Nas proposições existem combinações entre os nomes e, no mundo, combinações entre
os objetos. A possibilidade dos objetos entrarem em combinações é concomitante à dos
nomes. A proposição, enquanto figuração lógica dos estados de coisas, somente é
possível devido à forma lógica que garante o isomorfismo entre a linguagem e o mundo.
A ocorrência de fatos indica que os estados de coisas, enquanto combinações de
objetos, efetivamente se dão: um fato é um estado de coisas real. Um estado de coisa
possível não é um fato, mas apenas um estado de coisa que tem a possibilidade de
realizar-se. A proposição que sinaliza um estado de coisa possível não é verdadeira
nem falsa, e sim significativa ou, como no dizer de Wittgenstein, possuidora de sentido.
A proposição que indica um estado de coisa realizado, um fato, é verdadeira. A
proposição que indica que um estado de coisa ocorre, mas este não ocorre é
obviamente uma proposição falsa. Wittgenstein circunscreve a possibilidade de
ocorrências de fatos dentro de um espaço lógico; os estados de coisas possíveis,
quando sinalizados dentro da circunscrição do espaço lógico, indicam as condições de
sentido da proposição. A ocorrência de fatos, por sua vez, indica a condição de verdade
da proposição. A linguagem como figuração da realidade (Tract, 4.01) só pode
representar o mundo devido à forma lógica. O mundo é pensado não mais como a
106
tradição o pensava, isto é, como a totalidade das coisas, mas sim como a totalidade dos
fatos. A forma lógica, que é transcendental, é a condição de possibilidade da proposição
representar o que ocorre no mundo. A lógica não é teoria, mas figuração especular do
mundo; a lógica é transcendental. A forma lógica é transcendental por assegurar o
isomorfismo entre a estrutura interna da proposição e a estrutura interna do mundo. A
forma lógica transcendental é onto-lógica.
O mais importante a assinalar em Wittgenstein é que a forma lógica, como
condição de representação da realidade, não é uma estrutura subjetiva. Wittgenstein
não remete a forma lógica à interioridade de um sujeito, por isso afirma que a lógica é
transcendental. Se há um sujeito, esse se encontra no limite do mundo, mas como um
sujeito sem interioridade; os dados imediatos, neste aspecto, não são propriedade de
ninguém.
É no ponto que incide sobre a relação entre a linguagem e o mundo que
procuramos encontrar a distinção entre Deleuze e Wittgenstein. Ao alterar a relação
semântica da esfera do nome-objeto para proposição-estado de coisas Wittgenstein nos
leva ao problema do sentido. É justamente esse o ponto que nos intriga, uma vez que
Deleuze — em Lógica do sentido — nunca cita Wittgenstein e o Tractatus. O que motiva
esse silêncio? Por que as referências enfáticas em relação à fenomenologia de Husserl?
Nessas considerações, além disso, aparecem nitidamente controvérsias em torno da
distinção entre estados de coisas e acontecimento. As especulações que aparecem, a
partir daí, levam Deleuze a considerar que o sentido só se expressa na proposição,
sem,no entanto, pertencer a ela. Há, todavia, algo em comum entre Deleuze e
Wittgenstein: tanto um quanto outro não fazem remissão à interioridade de um sujeito.
Wittgenstein pode ainda falar de um sujeito no limite do mundo, mas em Deleuze jamais
encontraremos tal sujeito como fundante, como doador de sentido ou mesmo situado no
limite do mundo.
Lopes dos Santos traz uma questão sobre Wittgenstein que nos auxilia a
compreender o que viemos abordando em relação à superfície, à linguagem e ao
mundo. Em suas reflexões sobre a condição de sentido e condição de verdade esse
107
autor nos indica o que, no Tractatus, ainda resta da metafísica dogmática. O problema
detectado é o da definição do espaço lógico; a suposição da existência de tal espaço
não assegura a certeza da sua definição. O autor diz que Wittgenstein percebe o
problema, fazendo a seguinte colocação:
“Rapidamente, percebe que o Tractatus varreu para debaixo do tapete um problema crucial: a
forma essencial da proposição obriga a que se postule a existência do espaço lógico, mas não
permite que se defina sua estrutura. Por um lado o espaço lógico não é construído, por outro lado
sua estrutura não se encontra visível na superfície do pensamento e da linguagem. Portanto, a
solução do problema filosófico da caracterização dessa estrutura deveria, em algum sentido, ser
descoberta
81
.
O aspecto metafísico sobressai diante desse problema: o que fazer para eliminar
tal dogmatismo? O que salta aos olhos é justamente o problema dessa estrutura que
não aparece na superfície do mundo. A superfície indica o que, no Tractatus, ainda é
resquício de metafísica dogmática, uma vez que a estrutura — que permite a
possibilidade das proposições representarem os estados de coisas — não é visível na
linguagem e no mundo. Em Deleuze, pelo contrário, o sentido é inseparável do que
acontece na superfície das coisas e dos estados de coisas. O problema que
Wittgenstein detecta como índice de metafísica dogmática, já não aparece em Deleuze.
A superfície é o que permite o distanciamento entre os dois pensadores no que tange ao
sentido das proposições. A forma lógica, não se mostrando na superfície do mundo em
Wittgenstein; e o acontecimento, dando-se na superfície das coisas e estados de coisas,
em Deleuze, seria o modo de apresentarmos a diferença entre os dois pensadores.
Todavia, o que acontece não é um corpo ou uma coisa e, por este modo, podemos dizer
que não é visível na superfície do mundo como coisa, mas como mero efeito de
superfície, que envolve as coisas e estados de coisas. A não visibilidade da forma lógica
é o que leva Wittgenstein a recusar o que ainda resta de metafísica dogmática na
81
Luiz Henrique Lopes Santos, A Harmonia Essencial, in A crise da razão, organizador Adauto Neves – São Paulo:
Companhia das Letras: Brasília, DF: Ministério da Cultura: Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1996. P.451.
108
relação proposição e estados de coisas. Lopes Santos esclarece esse ponto da seguinte
maneira:
“Nesse momento Wittgenstein percebe que o Tractatus lança mão de um procedimento dogmático
mais típico. A metafísica dogmática postula a acessibilidade dos fundamentos últimos do mundo e
do pensamento, não os encontrando imediatamente na superfície do mundo, localiza-os num fundo
oculto, duplica a realidade postulando dois planos, o plano profundo das essências e o plano
profundo das aparências”
82
.
O isomorfismo, para Wittgenstein, é um aspecto metafísico por esconder num
fundo oculto, o que permite a figuração lógica. Desse modo, a teoria do sentido não
difere em nada da metafísica dogmática. Abre-se, nesse ponto, uma discussão em que
a estrutura que garante o sentido da figuração lógica do mundo, pensada pela filosofia
analítica, tem sua ressonância com o que a fenomenologia postula como a estrutura que
garante o mundo aparecer com sentido. Assim sendo, podemos indicar qual seria a via
adotada por Deleuze em relação a essa estrutura. O vocábulo “estrutura”, quando
aparece em Deleuze, remete sempre para algo que não possui nada de subjetivo. Em
Wittgenstein também não vemos nada de subjetivo no que diz respeito à forma lógica. O
eu puro, o ego transcendental da fenomenologia, também não é subjetivo, mas sim o
que garante a relação entre sujeito e objeto. Qual seria o estatuto dessa estrutura nos
três pensadores acima citados? Em Wittgenstein começamos por perceber que a
condição de sentido de uma proposição é a definição de possibilidades dos estados de
coisas ocorrerem dentro do espaço lógico, qualquer impossibilidade seria impensada e
não poderia ser dita. Desse modo, o acontecimento enquanto paradoxo, entidade não-
existente, como afirma Deleuze, é impossível de ser pensado pelo autor do Tractatus,
isto é, não há acontecimentos, mas somente estados de coisas possíveis e reais, os
quais podem ser figurados logicamente pelas proposições. Entretanto, a condição de
sentido é sustentada por uma forma lógica invisível, imperceptível e que não pode ser
dita por nenhuma proposição.
82
Idem, ibdem.
109
“O Tractatus postula a acessibilidade dos fundamentos últimos do pensamento e do mundo e, não
os encontrando na superfície do pensamento e da linguagem, localiza-os num fundo oculto da
linguagem, duplicando a linguagem pela postulação de duas camadas: uma aparente inessencial,
e uma camada profunda, a ser desvelada pela análise lógica, onde se encontraria a essência
comum do pensamento e do mundo”
83
.
A discussão em torno dessa essência comum do pensamento e do mundo
atravessa as filosofias de Husserl, Wittgenstein e Deleuze. O aspecto transcendental é
notório, já que Wittgenstein afirma que a forma lógica é transcendental; Husserl postula
o Ego transcendental, o eu puro, como estrutura que garante unidade e identidade ao
mundo ou o que permite ao fenômeno do mundo aparecer com sentido. Deleuze, por
sua vez, afirmará um campo transcendental sem sujeito, que desembocará num
empirismo transcendental. A partir da discussão em torno do termo estrutura é que
veremos o esboço daquilo que consideramos a originalidade da teoria do sentido de
Deleuze, qual seja: a neutralidade e potência genética do sentido. Retornando à
diferença para com o Wittgenstein do Tractatus podemos dizer que neste a definição de
possibilidade acerca do que pode ocorrer significativamente dentro do espaço lógico é o
que norteia o seu pensamento sobre o sentido. A superfície do mundo não nos dá a
plenitude de experimentar o que garante o sentido. A superfície é sempre sombreada
por algo que não nos permite vislumbrar claramente o que liga, sob a mesma forma,
linguagem e mundo. A estrutura do mundo e a estrutura da linguagem aparecem
ligadas, sem que possamos, porém, vê-la nem dize-la; apesar dela ser a condição da
harmonia, digamos assim, essencial. A proposição significativa não tem, apesar do
isomorfismo, nada na superfície do mundo que indique o que seja o sentido.
4.5) O problema da profundidade e da superfície
83
Idem , ibdem.
110
Quando, de outro modo, Deleuze insiste em destacar a importância da superfície,
aposta que o sentido é inseparável desta dobra entre as séries da linguagem e do
mundo. O tom enfático sobre a superfície faz com que pensemos no que anteriormente
discutimos a respeito do aspecto dogmático da metafísica. Todavia, o filósofo francês
denomina superfície metafísica a este forro, a esta dobra que permite que os sons e
gritos que emanam das profundidades dos corpos não se misturem com as proposições
expressas pela linguagem.
"A linguagem é tornada possível pelo que a distingue. O que separa os sons e os corpos faz dos
sons os elementos para uma linguagem. O que separa falar e comer torna a palavra possível, o
que separa as palavras e as coisas torna as proposições possíveis. O que torna possível é a
superfície e o que se passa na superfície: o acontecimento como expresso"
84
.
Em Deleuze, a superfície aparece como o que torna a linguagem possível; o
sentido aparece somente onde há distinção entre coisas e proposições, linguagem e
mundo, onde há diferença entre linguagem e mundo e não isomorfismo ou semelhança.
A linguagem difere da superfície do mundo e, no entanto, orienta-se com sentido nesta
mesma superfície. A remissão da linguagem à superfície do mundo ocorre concomitante
à freqüência da vida na superfície do vivo. As proposições somente se dão na superfície
(na boca) daquele que fala, do mesmo modo que a vida se dá na superfície das
membranas, da pele e da terra. A remissão da linguagem aos estados de coisas e às
coisas se dá acompanhada pelo acontecimento vida na superfície do vivo. O que implica
em dizer que, no caso do homem que se encontra na superfície do mundo, dedicando-
se inteiramente a perceber as coisas que estão nele, o acontecimento vida passa
despercebido, como um processo de individuação contemporâneo do indivíduo.
As singularidades que constituem o mundo e a linguagem distinguem-se na e
pela superfície. É nítida a questão de Deleuze em relação à superfície: trata-se de
imanência, somente de imanência. A vida imanente, que não pode ser abandonada
quando da experiência do mundo, implica a relação profundidade-superfície; a
84
Deleuze, Lógica do Sentido, p.191.
111
linguagem, que distingue a boca que fala da que come, ao acontecer na superfície
conduz Deleuze a fazer considerações que se afastam daquela que indica apenas
possibilidades de ocorrência de estados de coisas dentro do espaço lógico.
Na teoria do sentido de Deleuze, torna-se nítida a distinção entre acontecimento
e estados de coisas. O acontecimento inclui a vida pensada sob o aspecto
transcendental, sendo aí que se encontra a diferença para com as escolas filosóficas
colocadas em questão neste trabalho. O acontecimento torna o som algo distinto de um
simples grito ou de um ruído da profundidade, para torná-lo capaz de designar
qualidades, manifestar corpos ou significar sujeitos. As dimensões da proposição —
manifestação, designação e significação — pressupõem a separação entre palavras e
os corpos. Uma palavra só pode ser apreendida como corpo quando se dá a falência da
superfície. Aqui podemos notar que não existe nada que se assemelhe a um fundo
oculto, localizado na profundidade do mundo e da linguagem. A falência da superfície é
que leva à profundidade, onde as palavras se confundem com os corpos. A
profundidade, o fundo, não remete para a metafísica dogmática, mas para uma falência
da produção de sentido. Explicitando: nada mais resta de oculto como uma forma lógica
que, localizada em fundos inacessíveis, garantiria o isomorfismo. Quando falamos do
aspecto clínico na teoria do sentido de Deleuze, enfatizamos justamente a falência da
superfície. A relação profundidade-superfície permite a Deleuze tecer considerações
sobre as noções de valor, convenção, costume e artifícios.
“Justamente, o som não teria um valor convencional na designação – e um valor costumeiro na
manifestação, um valor artificial na significação – senão porque leva sua independência à
superfície de uma mais alta instância: a expressividade. Sob todos os aspectos a distinção
profundidade-superfície é primeira relativamente à natureza-convenção, natureza-costume,
natureza-artifício”.
85
A distinção entre sentido e significação se torna nítida, após essas apresentações
em que a superfície aparece como o meio de separar os sons que ocorrem na
85
Deleuze, Lógica do Sentido, p.192.
112
linguagem dos que emanam da profundidade dos corpos. A idéia de expressividade se
destaca, por destituir qualquer fundamento oculto que permitisse à linguagem dizer o
mundo. É esse o ponto em que aparece o deslocamento do valor de verdade da
proposição para o problema. O sentido é o verdadeiro problema da filosofa
transcendental
Tais considerações são de extrema importância quando se busca apresentar a
singularidade de uma filosofia que trata o sentido de maneira inteiramente diversa da
fenomenologia e da filosofia analítica. A importância da questão é a de ressaltar a saída
para a filosofia transcendental, ou seja: a de pensar o sentido a partir do acontecimento.
A distinção entre a filosofia transcendental do acontecimento e a fenomenologia diz
respeito à neutralidade e à potência genética do sentido. Quanto à filosofia analítica,
vimos através de Wittgenstein que a diferença em relação à forma lógica se processa
como um fundo oculto que garante o isomorfismo entre a linguagem e o mundo. Tal
diferença faz com que Deleuze exalte o acontecimento como aquilo que torna a
linguagem possível, além de deslocar o valor de verdade do problema para a
proposição. A dificuldade extremada em expor-se as peculiaridades dessa filosofia se dá
precisamente pela postura de Deleuze em relação à superfície, o que marcará a sua
diferença em relação aos pensadores precedentes que pesquisaram a questão. Husserl,
por exemplo, quando afirma que as vivências possuem componentes reais ou hyléticos,
não deixa de observar que o noema não se confunde com eles. O noema é um
componente irreal das vivências, o que ele denomina “o núcleo da intencionalidade”, o
objeto intencional de toda vivência. O objeto intencional é o sentido do noema, isto é,
transcende o noema. A crítica de Deleuze a Husserl implica numa crítica à
intencionalidade. Essa crítica se deve justamente à falta de autonomia do sentido face à
consciência. Só há mundo com sentido devido à consciência transcendental: no limite,
ao ego transcendental — o eu puro. Todavia, ao se preocupar com o sentido noemático,
Deleuze não critica a posição de irrealidade do noema, mas sua dependência em
relação à consciência. Husserl, no entanto, afirma que a consciência sem
intencionalidade não é nada. “É a intencionalidade que caracteriza a consciência em seu
113
pleno sentido, e que autoriza a designar, ao mesmo tempo, a corrente inteira das
vivências como corrente da consciência e como unidade de uma consciência”. O § 84
das Idéias tem como título “A intencionalidade: tema fenomenológico capital”, o conceito
de vivência é aí muito importante por estar ligado à consciência; toda e qualquer
consciência humana possui vivências e o que caracteriza a consciência é ser
consciência de alguma coisa.
Deleuze discute o aspecto de alguma coisa (σι) desde os estóicos até a
fenomenologia, sendo aí que notamos a sua recusa em manter esta alguma coisa, o
acontecimento submisso à consciência intencional. Em Husserl, é, pois, sempre alguma
coisa que tem sentido através da intencionalidade da consciência. Todas as vivências
possuem componentes reais e imanentes (irreais, intencionais), o noema é o
componente irreal ou intencional da vivência; o sentido do noema é um componente
irreal da vivência. Nesse ponto, encontramos, ao longo da Lógica do Sentido, a ênfase
dada por Deleuze à fenomenologia de Husserl. O noema, o sentido e o acontecimento
aparecem imbricados, em suas análises, justamente por não possuírem efetividade. A
questão de Deleuze é pensar o sentido sem submissão à intencionalidade, sendo este o
maior problema que enfrentamos ao expor sua filosofia.
Husserl exemplifica o que vem a ser o sentido quando distingue, numa árvore, a
sua estrutura real e o seu noema. A árvore pura e simplesmente, como uma coisa da
natureza, possui uma estrutura físico-química que pode arder (queimar) e decompor-se.
A árvore também pode ser percebida, sem confundir-se com a sua estrutura real.
Husserl conclui que a árvore, enquanto estrutura real, pode arder e fragmentar-se, mas
jamais o seu sentido; a imunidade do sentido a quaisquer acidentes físicos se deve ao
fato dele não possuir elementos reais. O sentido aparece como o atributo noemático da
vivência de árvore: o percebido da percepção, o recordado da recordação O sentido
perceptivo,tomado como exemplo, no caso da árvore, não se confunde com o sentido
perceptivo fenomenológico. Trata-se do sentido fenomenologicamente reduzido, que
permite às vivências possuírem múltiplos sentidos através de seus noemas enquanto
objetos intencionais.
114
A critica de Deleuze em relação a Husserl se verifica através do que considera
como falta de autonomia do sentido face à intencionalidade. A pergunta que se pode
fazer é: como pode haver sentido sem intencionalidade? Os dados hyléticos, as
sensações, que são os componentes reais das vivências, só possuem sentido através
de uma camada expressiva que os animam. Por si mesmos, os dados hyléticos não
possuiriam a possibilidade formal de se tornarem plenos de sentido. Não vemos, diz
Husserl, impressões de cores, mas coisas coloridas; não ouço impressões de sons, mas
a canção da cantora. Tais dados materiais possuem sentido pelo elemento formal que é
justamente a intencionalidade. Quando Husserl afirma que o noema – o sentido da
percepção da árvore – não queima por não ter elementos físico-químicos, nem muito
menos forças e nem propriedades reais, de uma certa maneira está próximo do que
Deleuze pensa sobre o acontecimento. O que os separa é a intencionalidade e a
Urdoxa. O estatuto transcendental do acontecimento o distingue dos estados de coisas,
que são reais.
Como o pensamento entra em contato com o sentido enquanto acontecimento? A
pergunta procede, por não existir mais uma sustentação de um sujeito fundante e de
uma consciência constituinte; o que fica nítido nas considerações de Deleuze é a
eliminação do tal sujeito fundante a partir de um campo transcendental. Onde estaria
então localizado o sujeito? Como o mundo poderia ser pensado e expresso por
proposições sem a existência de um sujeito? O mundo não é mais um mundo acabado,
mas multiplicidades de mundos que se constituem em meio às singularidades que se
auto-unificam. A linguagem, através de proposições, diz os acontecimentos que ocorrem
no mundo, expressando-os com sentido. Não há sujeito constituído, apenas processos
de individuação e subjetivação em meio ao campo problemático; a individuação psico-
orgânica aparece como resoluções do campo transcendental problemático. Ao agenciar-
se com Simondon, Deleuze pensa com ele a seguinte questão:
No vivo há uma individuação pelo indivíduo e não apenas um funcionamento resultante de uma
individuação já efetuada, comparável a uma fabricação; o vivo resolve problemas, não só se
115
adaptando, isto é, modificando sua relação com o meio (como uma máquina pode fazer), mas
modificando-se a si próprio, inventando novas estruturas internas, introduzindo-se completamente
na axiomática dos sistemas vitais
86
.
A relação entre linguagem e mundo é problemática e essa relação fica mais
evidente quando é a superfície que permite à linguagem falar do mundo. Deleuze
investe nessas questões sem deixar de lado o devir do indivíduo, ou seja, o processo de
individuação que é contemporâneo do indivíduo. O devir do indivíduo emerge
justamente quando no campo problemático, onde o ser defasado se dá, começam a
aparecer as fases da individuação. A teoria do sentido de Deleuze é inseparável desse
campo problemático e das resoluções a ele pertinentes. O processo de individuação é
contemporâneo do indivíduo e vice-versa; e todas as considerações de Deleuze em
torno da teoria do sentido se fundam em seu aspecto problemático.
O que mais nos atrai a atenção, nessas considerações, é o contato entre o
pensamento, a linguagem e o acontecimento. A superfície é o lugar onde se distinguem
linguagem, mundo e pensamento. Nada nos autoriza a dizer que o pensamento está
localizado em camadas profundas da consciência e. muito menos que a linguagem seja
essencialmente de profundidade. A tendência a interiorizar o pensamento em camadas
muito profundas talvez seja o maior obstáculo a ser vencido. O sentido deixaria de ser
dado por uma consciência localizada no fundo de um sujeito e passaria a acontecer na
superfície, a partir da fase psíquica da individuação. As possíveis distinções entre os
atos que se processam na consciência podem ser pensadas somente a partir do
momento em que se dá a individuação, o aparecimento de tal fase; a fase dita psíquica,
que é a resolução de tensões dentro do campo problemático, poderá ser estudada como
possuidora ou não de atos intencionais, atos psicológicos e atos lógicos. A linguagem
também poderá ser estudada através de discursos que podem ser significativos. Neste
ponto, podemos afirmar que a superfície destituiria a interioridade de uma consciência
intencional constituinte.
86
Gilbert Simondon, O indivíduo e sua gênese fisico-biológica, tradução Ivana Medeiros, no prelo, p.9
116
Em que ponto da individuação psíquica apareceria a consciência dotada de
intencionalidade? Há uma gênese da intencionalidade no devir da consciência; há um
devir da consciência no devir do indivíduo
87
. Sobre esse aspecto, Gilbert Simondon faz
uma afirmação bastante esclarecedora do que vem a ser o processo de individuação.
Sua preocupação é a de operar uma reversão na investigação do princípio de
individuação, considerando a realidade pré-individual a partir da qual o indivíduo vem a
existir. A realidade pré-individual é o campo transcendental, que Deleuze encontra como
a saída para a filosofia transcendental pensar o sentido fora do sujeito. A gênese da
consciência se dá a partir dessa realidade pré-individual pensada por Simondon. O
indivíduo passa a ser apreendido como realidade relativa, como uma fase determinada
do ser, que supõe uma realidade pré-individual; por outro lado, o que a individuação faz
aparecer não é apenas o indivíduo, mas o par indivíduo-meio. Simondon faz a seguinte
citação sobre o sentido da gênese do indivíduo:
A palavra ontogênese ganha todo o seu sentido se em vez de atribuir-lhe o sentido, restrito e
derivado, de gênese do indivíduo (em oposição a uma gênese mais vasta, por exemplo, a da
espécie) fizermo-la designar o caráter de devir do ser, isso pelo qual o ser devém enquanto é,
como ser. A oposição do ser e do devir pode ser válida apenas no interior de uma certa doutrina,
que supõe que o próprio modelo do ser é a substância. Todavia, também é possível supor que o
devir é uma dimensão do ser, correspondente a uma capacidade que este tem de defasar-se em
relação a si mesmo, de se resolver defasando-se; o ser pré-individual é o ser em que não existe
fase; o ser no qual se efetua uma individuação é aquele em que uma resolução aparece pela
repartição do ser em fases, o que é o devir; o devir não é um quadro no qual o ser existe; ele é
dimensão do ser, modo de resolução de uma incompatibilidade inicial rica em potenciais”.
88
A partir dessas considerações de Simondon, Deleuze atribui à superfície um valor
diferente daquele que a colocava como inferior à profundidade. A superfície deixa de ser
o que tem pouca profundidade, para ser pensada como o que é de vasta dimensão. O
sentido da superfície é o que nos permite pensar e dizer o mundo. Tudo isto
aconteceria como resolução das tensões de um Ser problemático. Em todas as suas
87
Idem, ibdem.
88
Idem, ibdem, p.11.
117
divergências para com a fenomenologia, o que fica claramente exposto é a recusa em
admitir o bom senso e o senso comum como aquilo que nos permite compreender o
sentido. , de um certo modo, O campo transcendental problemático força o rompimento
com o que Deleuze considera como Urdoxa em Husserl. No § 104 das Idéias diretivas
para uma fenomenologia, Husserl enfatiza que dentre todas as modalidades de juízo há
como que um substrato, uma forma não modalizada de crença. De início, podemos dizer
que a forma primitiva da crença, sua forma originária, a Urdoxa, nada mais é do que a
crença no mundo que está diante de nós, tal qual ele é. Tomemos como exemplo uma
árvore sendo percebida por uma consciência que, no caso, pode ser a minha ou a de
qualquer outro. O que há de comum entre essas percepções?
A árvore percebida não é uma alucinação, ela existe, de fato, fora de nós, num
determinado ponto do presente. Num tempo qualquer, distinto do presente, digamos no
passado, podemos nos recordar dela, acreditando ainda tratar-se de uma árvore. A
recordação de uma árvore outrora percebida se constitui numa modificação daquela
percepção. À crença na percepção – que mais tarde sofre modificação – Husserl dá o
nome de forma primitiva da crença, protodoxa ou Urdoxa.
Ao recusar essas categorias de Husserl, Deleuze está criticando toda a teoria do
sentido calcada a partir da consciência transcendental. Pensar a questão do sentido
sem relacioná-la a uma consciência é recusar a unidade ideal de sentido que faz o
mundo aparecer. A transcendência primordial, isto é, transcendência na imanência dá a
unidade de sentido a partir de uma ordem primária. A transcendência do mundo objetivo
é a ordem secundária. Sendo nela que aparece o problema da intersubjetividade: a
relação com o outro. A transcendência primordial revela o “eu puro” como um
espectador desinteressado que não possui vinculo de atenção para com o mundo, como
na atitude natural. A constituição transcendental subjetiva apresenta algo de não-
psicológico no âmago do “Eu penso”. O cogito aparece de modo diferente daquele
formulado por Descartes, que mantém-se ainda no domínio psicológico. Husserl pensa o
“eu puro” como espectador desconectado com o mundo; a atitude transcendental é uma
modificação da atitude natural, através da epokhé, que torna possível a descrição das
118
estruturas que fazem o mundo aparecer com sentido. Na atitude natural, o modo de
contato com os fatos se dá através da indução; na atitude transcendental é a evidência
apodítica que permite tal contato com as essências. A constituição transcendental
intersubjetiva revela o outro como possuidor de um organismo: o sentido do mundo
objetivo aparece somente através da semelhança orgânica e psíquica. A tese do mundo
objetivo aparece entremeada pela forma primitiva da crença.
4.6) O problema anarcôntico
Todas as considerações a respeito da teoria do sentido de Deleuze, até agora
tecidas, mantiveram o mesmo teor de enfocar o sentido através de um viés comparativo.
No objetivo de destacar os aspectos mais importantes desta teoria viemos ressaltando o
aspecto problemático. As questões que importam a Deleuze — tais como a neutralidade
e a gênese do sentido, e o problema da individuação — foram realçadas para que
pudéssemos apresentar e defender a originalidade dessa teoria. Um dos pontos
destacados foi a observação de que Deleuze procura pensar a filosofia fora do princípio
de contradição, sem contudo cair numa sofística, nem muito menos numa dialética de
cunho hegeliano. Enfatizamos, nesse ponto, que Deleuze elabora uma filosofia
transcendental e não uma filosofia da história. Há, todavia, uma espécie de dialética em
Deleuze. Tal pensamento dialético se dá pelo agenciamento com Simondon, uma vez
que para este pensador o problemático toma o lugar do negativo.
Quando pensamos e falamos em mundo e também quando indagamos: como
este mundo aparece com sentido diante de nós? A resposta habitual é: somos nós,
enquanto sujeitos humanos, que introduzimos o sentido no mundo. Habitualmente
consideramos, pelo viés fenomenológico, que a consciência ultrapassa a deficiência da
percepção. No exemplo de um cubo e de uma casa, a percepção somente apreende
algumas faces do cubo, no máximo três; a consciência ultrapassaria essa deficiência,
trazendo o objeto cubo com todas as seis faces ligadas entre si numa unidade; o sentido
do cubo seria doado pela consciência constituinte, e não pela percepção. A casa, do
119
mesmo modo, apareceria com uma unidade de sentido diferente da do cubo, apesar de
toda casa possuir uma construção cúbica: toda casa ser um cubo habitável. Deleuze
pensa justamente o acontecer do mundo, com sentido independente de qualquer sujeito
humano, seja ele transcendental ou empírico. Poderíamos traçar aqui um paralelo com
um filósofo contemporâneo, ainda não citado em seus pormenores. O acontecer que
permite o mundo aparecer com sentido, seria ele próximo daquilo que Heidegger pensa
como a clareira (Lichtung), o aberto? A gênese do indivíduo e da pessoa dentro de um
campo transcendental não deixa de se processar diante do mundo. O indivíduo, quando
pensado sem a relação com o meio, é geralmente isolado do mundo, parecendo estar
plenamente constituído, e assim como o mundo, já acabado. Em filosofia é comum
relacionarmos Deus, o mundo e o eu; e, se desde Descartes a existência de Deus
passou a ser deduzida a partir da existência do Eu, nada no entanto alterou a relação
desses três pilares do conhecimento: o Eu, o Mundo e Deus. Pensar o eu sem a
garantia de Deus é justamente pensar sem a garantia da identidade que assegura a
permanência do mundo. Quando Deus desaparece, o eu e o mundo se esfacelam em
diferenças. O campo problemático que Deleuze procura recuperar a fim de mostrar a
individuação com relação ao meio, segue esse viés; o indivíduo, a pessoa, o eu e o
mundo, quando pensados a partir de um campo problemático, são indicadores de que
Deleuze pensa a filosofia a partir das questões que envolvem o âmbito filosófico
contemporâneo. Pensados mediante um campo problemático, o homem e o mundo
sinalizam para aquilo que posteriormente será chamado, por Deleuze, de imanência.
Na filosofia contemporânea, ao pensarmos a relação entre o homem e o mundo,
emerge, de imediato, a questão do sentido. Quando destacamos Husserl e Wittgenstein
como filósofos que pensaram essa questão, procurávamos ressaltar a diferença entre
Deleuze e esses pensadores, e, desse modo, encaminhamo-la para pontos específicos
de suas considerações. A questão a ser investigada na filosofia contemporânea é: como
o mundo aparece com sentido? Tal pesquisa já foi iniciada, restando apenas examinar
como esse sentido é dado ou doado. A preocupação maior seria pesquisar como o
homem possui o sentido do mundo. O sentido é doado pelo "eu puro" conforme nos diz
120
Husserl, pela linguagem como diz Wittgenstein ou o homem é o sentido do Ser como
afirma Heidegger? Os desdobramentos dessas indagações repercutem em toda a
história da filosofia. As especulações acerca das estruturas que possibilitam ao mundo
aparecer para o homem com sentido foram alvo da fenomenologia de Husserl. O sentido
do ser, Dasein, levou Heidegger a estabelecer uma ontologia fundamental, considerando
que a abertura para o mundo não é dada pela consciência, mas é o próprio Ser se
abrindo no homem. Heidegger se pergunta: por que no vocábulo alemão Bewusstsein,
que quer dizer consciência, há Sein (Ser)? Talvez, pudéssemos reformular a questão,
perguntando por que o Ser aparece na consciência? As problematizações que Deleuze
tece em relação ao acontecimento não caminham nessas direções de busca de
estruturas e fundamentos, porém, o aspecto ontológico remete ao Ser como campo
problemático. A filosofia de Deleuze, conforme diz de Bento Prado Junior, é uma filosofia
anarcôntica, ou seja, não há pesquisa em direção a arkhé. Entretanto, há ontologia
problemática. A pesquisa sobre o campo transcendental é percorrida por uma série de
indagações sobre o que compreendemos como mundo. Para compreendermos o que é
mundo, porém, é necessário, antes de tudo, perguntarmos como o mundo aparece
enquanto mundo. Uma pergunta difícil, já que o homem está diante do mundo e, deste
modo, o mundo nunca aparece enquanto mundo. A pergunta caminha em outra direção:
o que nos permite pensar tal questão? Já que o mundo nunca aparece enquanto mundo,
uma vez que o homem está no mundo; o que então nos leva a indagar pelo mundo
enquanto mundo? O sentido da questão teria sua fonte em uma instância antipredicativa
ou é apenas um mau uso da linguagem que nos permite formular tal questão? Todavia,
a abertura para que o mundo enquanto mundo apareça, não pode ser o resultado de
uma linguagem ou de uma consciência constituinte. Seria o acontecimento essa
abertura?
Deleuze, quando pensa o acontecimento dizendo que este ocorre na superfície e
distingue-se dos corpos e dos estados de coisas, não se pergunta sobre a abertura ou a
estrutura que nos permite apreendê-lo em tais superfícies. Ora, se existisse uma
abertura para pensarmos, por exemplo, que o acontecimento verdejar se distingue da
121
árvore que é verde, então estaríamos falando de fenomenologia ao modo de Husserl.
Deleuze, no caso, teria que admitir como Husserl um eu transcendentalmente reduzido,
um eu puro — distinto do eu psíquico e do eu psico-físico — de onde emanasse o
sentido do mundo.
"O que acontece aqui também pode ser descrito da seguinte maneira: se dizemos do eu que
percebe 'o mundo', e aí vive de forma totalmente natural, que ele está interessado nele, então
teremos, na atitude fenomenológica modificada, um desdobramento do eu; acima do eu
ingenuamente interessado no mundo estabelecer-se-á como espectador desinteressado o eu
fenomenológico. Esse desdobramento do eu está por sua vez sujeito a uma nova reflexão, reflexão
que, por ser transcendental, exigirá uma vez mais a atitude 'desinteressada do espectador",
preocupado somente em ver e descrever de maneira adequada".
89
Na citação acima fica evidente a distinção que Husserl faz entre vida natural e
transcendental. O eu que vive naturalmente interessado no mundo não é capaz de
descrever as estruturas que dão sentido ao mundo. Ora, o que afirmamos neste trabalho
é justamente o aspecto transcendental que, em Deleuze, está livre das remissões ao eu
transcendental. A vida transcendental é aquela do eu transcendentalmente reduzido.
Ora, o que Deleuze pensa em relação ao sentido é que somente a partir da
individuação, desde um campo transcendental a-subjetivo, que poderemos compreender
como se dão os procedimentos que dizem respeito ao eu, incluindo a redução
transcendental. O processo de voltar-se sobre si mesmo ocorre apenas posteriormente
à fase da individuação denominada psíquica. Não haveria então, em Deleuze, uma
estrutura que permitisse descrever o acontecimento, pelo contrário, o sentido se dá a
partir do próprio acontecimento enquanto vida transcendental. As especulações sobre o
campo transcendental desembocam no conceito de vida transcendental. Neste ponto,
aparece o que Deleuze pensa como a potência genética de um campo transcendental.
O transcendental, assim como a imanência, não é mais submetido a um Eu; o ponto
relevante dessa questão é que a potência também não é aqui apenas confundida com
uma possibilidade. A condição de pensarmos o impossível, assim como o possível, é a
89
Husserl, Meditações Cartesianas, tradução Frank de Oliveira, São Paulo, Madras, 2001 p. 52-53.
122
própria vida transcendental, que produz superfícies e dobras. As noções de estrutura e
também de energia potencial permitem aqui que estabeleçamos uma distinção
extremamente importante. Deleuze, quando pensa o campo transcendental, não o faz
remetendo a uma estrutura, mas à energia potencial; no agenciamento com Simondon,
o conceito de disparation indicava a repartição de energias potenciais que ainda não se
comunicavam.
As críticas de Deleuze à fenomenologia incidem sobre o bom senso e o senso
comum; na escola fenomenológica, o campo problemático é destituído por uma forma
primitiva de crença, como ponto de partida para pensar a relação homem e mundo. Ao
enfatizar que o eu puro é desinteressado em relação ao mundo, Husserl apenas procura
descrever as estruturas que permitem ao mundo aparecer. No que diz respeito ao
acontecimento, conforme Deleuze o pensa, haveria uma estrutura que permitiria
descrevê-lo?
O que permite ao acontecimento ser distinto em relação aos estados de coisas
são os efeitos de superfície. Não estaria o mundo envolvido por acontecimentos em sua
superfície?
Deleuze, na Lógica do Sentido, pergunta: não seria a fenomenologia a ciência
rigorosa dos efeitos de superfície? São justamente os argumentos de Husserl que fazem
Deleuze pensar a relação do noema com o acontecimento. As criticas endereçadas à
fenomenologia, sobretudo em relação à Urdoxa, não minimizam essa aproximação do
noema com o acontecimento. O que restaria a saber é se existe uma estrutura que
permite a descrição do acontecimento. No § 129 das Idéias diretivas para uma
fenomenologia Husserl afirma: “Todo noema tem um conteúdo, a saber, seu senti;e
através dele o noema se refere a seu objeto”
90
Deleuze aproxima noema e acontecimento quando nos indica que as
interrogações em relação ao ”noema perceptivo” ou “sentido perceptivo” nos revela que
o noema se distingue dos objetos físicos, do vivido psicológico, das representações
90
Não podemos deixar de observar que é neste parágrafo que Husserl faz referência ao texto de Twardowski sobre a
tríplice distinção ente ato, conteúdo e objeto da representação.
123
mentais e dos conceitos lógicos. Husserl, diz Deleuze, apresenta o noema como um
impassível, um incorporal, sem existência física nem mental, que não age nem padece,
puro resultado, pura aparência: a árvore real pode queimar, ser sujeito ou objeto de
ação, entrar em misturas; não o noema da árvore. Desse modo, parece que noema e
acontecimento se recobrem, o que nos faz quase afirmar que Deleuze é um
fenomenólogo radical. O que impede a integral adoção da teoria husserliana do sentido
por parte de Deleuze é a Urdoxa, a forma primitiva e originária da crença, sobretudo no
que diz respeito à neutralidade e potência genética do sentido. No § 104 das Idéias
diretivas para uma fenomenologia, Husserl estuda as diferenças entre caracteres de ser
(Seincharaktere) e caracteres de crença (Glaubenscharaktere); o ser provável, o
necessário e o possível aparecem como caracteres que remetem ao noema, enquanto
os caracteres de crença remetem aos atos noéticos relacionados à consciência
transcendental.
Em “Das Singularidades”, 14
a
série da Lógica do Sentido, Deleuze afirma que “o
que impede que o sentido tenha uma plena neutralidade é o cuidado que Husserl tem
em conservar o modo racional de um bom senso e do senso comum, que ele apresenta
erradamente como uma matriz, uma forma-mãe não modalizada (Urdoxa) “
91
A certeza
é a forma primitiva da crença, de onde, por modificações, resultam todos os outros tipos
de crença, tais como a dúvida, a suspeita e a hesitação. Essa matriz permitirá também
um tipo de modificação muito especial. Quando Deleuze recusa a Urdoxa, recusa
simultaneamente a modificação de neutralidade formulada por Husserl no § 109 das
Idéias, em que este apresenta um aspecto da consciência que não remete para
nenhuma modalidade de crença. A consciência sofre uma modificação a partir da qual
passa a tender para um puro pensado. A recusa de Deleuze à modificação de
neutralidade de Husserl se dá justamente por afirmar que o sentido é neutro em relação
aos estados de coisas, mas nunca é o duplo da proposição. A duplicidade que Deleuze
recusa é por ele encontrada naquilo que Husserl chama de a disjunção da consciência.
A neutralidade, diz Husserl, não se confunde com a negação; também não é a
91
Deleuze, Lógica do sentido, p.104.
124
efetuação. A modificação de neutralidade aparece na seqüência das considerações
tecidas por Husserl acerca das modificações dóxicas; a modificação de neutralidade
não é uma modificação dóxica por não remeter a nenhum tipo de crença. O que seria a
neutralidade do sentido pensada por Deleuze? Ao pensar a neutralidade como uma
disjunção da consciência, não estaria Husserl dando a Deleuze sua teoria do sentido? A
modificação de neutralidade aparece na disjunção da consciência quando esta passa a
pensar apenas um puro pensado.
Deleuze pensa justamente a neutralidade do acontecimento em relação ao
estado de coisas e enfatiza o que vem a ser a contra efetuação. O acontecimento puro
não se efetua por completo: há nele sempre uma parte inefetuada. A contra-efetuação,
da mesma maneira que a realidade pré-individual, não se individua por inteiro; o
indivíduo é sempre contemporâneo de uma realidade pré-individual. Assim, também, o
acontecimento não se efetua por completo. Ora, Deleuze vê no tema da modificação de
neutralidade justamente uma pseudo-neutralidade, devido à disjunção da consciência.
Husserl afirma que na modificação de neutralidade a consciência não efetua nenhum
tipo de ato, ela deixa de pertencer à esfera exclusiva da crença, opondo-se a qualquer
tipo de efetuação ou de cooperação. Por não ser considerada uma modalidade dóxica,
tal modificação é, ainda assim, uma modificação da consciência. Como ocorre tal
modificação da consciência? Husserl não nos explica, apenas indica que neutralização
não é o mesmo que negação. Ela se aproxima da indecisão, do por fora de jogo, do
colocar entre parênteses. Husserl tem até dificuldade para denominá-la por não ter, tal
modificação, sido ainda pensada cientificamente, dispondo apenas de um modo de
definição negativa, dizendo aquilo que ela não é. A modificação de neutralidade não
designa um fazer voluntário. Husserl elimina todo o fazer voluntário, deixando a
consciência apenas como um campo de indecisão, que não se confunde com a dúvida
ou com qualquer tipo de hipótese. A consciência neutra não se posiciona mais diante de
algo que seja real. O caráter de posição perde sua força, diz ele, a crença já não é mais
em sério uma crença, nem o conjeturar em sério um conjeturar, nem o negar em sério
um negar. É um crer, um conjeturar, um negar neutralizados. Husserl afirma que o ser
125
puro e simplesmente, o ser possível, provável, questionável, igualmente o não-ser e
todo o resto do negado e afirmado estão para a consciência não no modo real, senão
como “meramente pensados”, como “meros pensamentos”. Assinala ainda que na
modificação de neutralidade fica tudo entre parênteses, o que nos leva a considerar que
tal neutralidade é o próprio método de redução fenomenológica.
“Tudo está entre os parênteses modificadores de uma maneira parecida àquela de que tanto
falamos ao principio e, que é tão importante para abrir o caminho à fenomenologia. As posições
puras e simples, as posições não-neutralizadas têm por correlatos proposições as quais têm por
sua vez o caráter de ser. A possibilidade, a probabilidade, a questionabilidade, o não-ser e o ser –
tudo isto é algo que é, quer dizer, está caracterizado no correlato tal como é pensado na
consciência. Mas as proposições neutralizadas se distinguem essencialmente porque seus
correlatos não contêm nada suscetível de ser posto, nada de realmente predicável; a consciência
neutra não desempenha, em nenhum aspecto, diante daquilo de que é consciência, o papel de
crença.
92
O que impediria Husserl de cair num ceticismo? Já que a consciência não crê em
nada, também nada impediria que ela duvidasse de tudo, mas duvidar é uma
modalidade de crença; a neutralidade da consciência se dá quando ela não crê, mas
apenas pensa. Husserl no § 110 das Idéias diretivas para uma fenomenologia destaca
que a consciência neutralizada não se encontra legitimada pela razão.
O que resta ainda de filosofia, após nos dedicarmos à tese do sentido relacionada
aos impossibilia? Desde Aristóteles, em sua querela com os argumentos sofísticos, a fim
de aperfeiçoá-los, a desobediência ao princípio de não-contradição leva-nos à
impossibilidade de pensar. Todo enunciado pensável seria uma obediência a tal
princípio. A tese de que o sentido ou a condição de sentido é o próprio princípio de não-
contradição coloca-nos diante da posição deleuzeana acerca dos impossibilia. A
relação de Deleuze com Meinong confirma a indiferença ao princípio, o que resulta em
92
Husserl, Idées, § 104.
126
uma aporia. Como pensar fora de tal princípio? Só se pode sair dessa aporia ao
encontrar-se o que permite ao mundo e ao discurso se darem mutua e adequadamente.
O acontecimento, diz Deleuze, é aquilo que torna a linguagem possível. No mundo não
se dão somente coisas e estados de coisas, mas acontecimentos. Em relação à tese de
Wittgenstein, relacionada à possibilidade de ocorrência de estados de coisas dentro do
espaço lógico, a tese de Deleuze sobre o acontecimento fica completamente excluída,
pois o acontecimento está relacionado aos impossibilia (estado de coisas não existente).
Por sua vez, na perspectiva aristotélica, as proposições relacionadas aos objetos
contraditórios são impensáveis. Como continuar a fazer filosofia ousando-se pensar fora
de tal princípio? A argumentação de Deleuze tem como prerrogativa dizer apenas o
avesso do que se dá corpórea e fisicamente no mundo? Seria apenas o contrário de um
fisicalismo? O dar-se de modo físico é regido pelo princípio de não-contradição. A
ousadia de pensar fora dos cânones lógicos não seria apenas um tipo de rebeldia
inócua? Não parece ser este o propósito de Deleuze, sobretudo no que remete à
filosofia transcendental.
4.7) O problema da vida
Deleuze procura pensar a filosofia fora da circunscrição do princípio de não-
contradição sem contudo cair na sofística ou apontar para mundos transcendentes. A
filosofia, assim, não pensa mais subjugada às coisas que são regidas pelo princípio de
não contradição. Resta a saber o que no mundo distinto das coisas nos permitiria pensar
fora desse princípio: a vida, o homem, a história?
O pensamento tem uma possibilidade de ultrapassar o princípio de não-
contradição sem contudo cair numa espécie de fuga para os mundos transcendentes.
Esse passo só pode ser atingido quando ele se volta para a vida. Desse modo,a filosofia
transcendental fica dentro do mundo, sem submeter-se ao empírico nem muito menos à
subjetividade; a vida passa a ser pensada como algo que está no mundo, mas que não
se submete ao princípio de não-contradição. O transcendental seria o meio que
127
permitiria a saída do empírico (aquele que está subjugado ao principio de não-
contradição). Todavia, Deleuze também procura retirar todo o aspecto do transcendental
que traga indícios de um sujeito. Desse modo, a vida deixa de ser apreendida apenas
pelo viés empírico.
O que faz com que o homem esteja dentro da vida: uma estrutura ou um
acontecimento? Um acontecimento: justamente pelo homem acontecer na vida de modo
diferente dos outros seres vivos (vegetais, animais). O que denominamos existência
humana é um acontecimento dentro da vida, dentro do acontecimento viver. Deleuze, ao
pensar a vida freqüentando a superfície, indica um ponto que ficou inteiramente
esquecido: a questão do sentido é inseparável da vida. Em seu último texto — A
imanência: uma vida — ele insiste sobre o aspecto transcendental como imanência, e a
imanência como uma vida sem sujeito e sem objeto: acontecimento singular que se dá
na superfície do mundo e da pele, a filosofia do acontecimento é uma filosofia da
imanência. Deleuze acabará denominando de empirismo transcendental o sentido do
acontecimento viver. A singularidade, por sua vez, será denominada uma vida. O
indivíduo e a pessoa são pensados, antes de tudo, como uma vida singular. Com essa
noção de empirismo transcendental, Deleuze evita o idealismo transcendental
justamente por não se ater à subjetividade transcendental pensada por Husserl.
Entretanto, não podemos deixar de assinalar que todas as considerações em torno do
campo transcendental provido de singularidades trazem uma forte influência do
estruturalismo francês. O tema do desaparecimento do sujeito é caro ao estruturalismo,
assim como a Nietzsche e a Heidegger. A filosofia de Deleuze traz a atmosfera
contemporânea de abandono do sujeito, o que a torna extremamente polêmica.
A singularidade desta filosofia, porém, está em propor novas problematizações
em torno do sentido. A influência do estruturalismo aparece quando, por exemplo,
assistimos à ênfase dada por Deleuze às singularidades que perpassam o campo
transcendental. Essas singularidades são pensadas quase como os fonemas enquanto
elementos da estrutura. Os fonemas se distinguem entre si por relações como nas
palavras gato e rato. A relação entre os fonemas ga/ra é o que permite a diferença
128
significante entre gato e rato enquanto imagem acústica. A diferença entre os fonemas
não se dá como entre as coisas e as imagens, ou seja: não é real e nem imaginária,
apenas simbólica. A relação não existe como uma coisa nem muito menos como
imagem mental. As relações são exteriores aos termos, sendo esse o aspecto que
constitui a estrutura, pois assim como não podemos falar o nome pai sem relacioná-lo
aos nomes mãe e filho, também não podemos ter a distinção entre os fonemas fora das
relações entre eles; o que caracteriza as relações exteriores aos termos que tipificam o
estruturalismo.
Pensar fora do princípio de não-contradição, sem cair na sofística nem apontar
para um mundo distante do que vivemos, mundo que seria estranhamente regido por
outro pelo princípio que o de não-contradição, é a ousadia máxima de Deleuze. A
circunscrição do pensamento dentro desse princípio é o feito de Aristóteles
93
. A
ontologia e a lógica só podem ser pensadas se obedecerem fielmente a tal princípio. O
mundo só pode também ser pensado caso não apresente entes contraditórios. Quando
afirmamos que Deleuze se volta para a vida, para evitar o pensamento subjugado ao
principio de contradição, esse voltar-se para, no entanto, não se dá como um método de
redução fenomenológica em que o mundo é colocado entre parênteses. Tal voltar-se
reencontra uma ontologia sem deixar de sinalizar para o estatuto problemático que
percorre essa “filosofia primeira”. Por que falar de uma filosofia primeira? Justamente
para assinalar que, desde Aristóteles, existe uma discussão em torno de uma ciência
que procura pensar o ser enquanto ser. A filosofia que estuda o ente enquanto ente
diferentemente da física, considerada uma filosofia segunda por estudar o ente
enquanto móvel, é tratada por Aristóteles como a que conhece as causas, os princípios
e os fundamentos que regem os entes. O principio mais fundamental de todos é o de
não-contradição. Apesar de colocar-se contra o princípio de não-contradição, Deleuze
está ainda, de um certo modo, fazendo uma filosofia primeira (ontologia), pois ao apoiar-
se nas teses de Simondon, que se sustentam nos resultados da física quântica, nem por
isso deixa de pensar o aspecto filosófico frente àquilo que se conhece como processo
93
Aristóteles Met Γ 1003
a
.
129
de individuação. A pergunta pelo ser aparece diante de um campo problemático onde a
vida é o foco. Nesse ponto, Deleuze reaviva a atualidade da filosofia face à ciência. Na
Partibus Animalium 640b, 34, Aristóteles indagava: “como o cadáver tem a mesma
estrutura e configuração sem ser por isto um homem?”. Deleuze “retoma” essa questão,
pensando a vida através de um aspecto transcendental. No limite, poderíamos dizer que
ele procura pensá-la sem fazer recurso ao hilemorfismo. A saída do hilemorfismo
permitirá ao sentido ser pensado fora da significação e que o indivíduo apareça a partir
de um campo problemático. Ao não ser mais pensada pela matéria, a individuação
ganha um campo de singularidades de onde provém a realidade ultima que distingue
formalmente os indivíduos entre si, a hecceidade conforme foi pensada por Duns
Escoto. O fio condutor desta questão, da individuação, é o pensamento de Aristóteles,
sobretudo quando indica que o indivíduo é inefável. Quando Deleuze retoma essa
questão vinculada ao problema do sentido, sinaliza para as singularidades que o
constituem, mas se preocupa também com o campo no qual se individua. O problema é:
que procura pensar essas questões transgredindo, de uma certa forma, o princípio de
não-contradição. Ao pensar a vida fora desse principio e articular esse pensamento ao
problema do sentido leva Deleuze a se confrontar com tudo aquilo que Aristóteles
concebeu como o principio mais fundamental de todos e a condição de toda e qualquer
significação
94
. Em seu projeto de separar o sentido da significação, a vida aparece como
um termo que nos levaria a compreender que mesmo onde não há significação se dá
sentido. A ausência de significação é, como vimos, uma desobediência ao principio de
não-contradição e toda e qualquer tentativa de se fazer filosofia e ciência fora de tal
princípio é conseqüentemente um anúncio de fracasso. Ora, então podemos afirmar que
94
Aristóteles Met, 1003
a
35. Neste texto, o estagirita afirma que existe um principio mais fundamental de todos que permite
ao filósofo conhecer o ente enquanto ente. Tal princípio é o que também permite refutar aqueles que afirmam que o ente
pode ser e não-ser ao mesmo tempo. O argumento de Aristóteles consiste em pedir ao adversário que signifique algo. Ora,
a recusa de dizer algo assinala que o adversário não é um homem e sim algo próximo de uma alma vegetativa sem
discurso e sem pensamento sobre os entes. De outro modo, se o adversário aceitar significar algo, imediatamente faz a
escolha: as essências de algo e, através desta escolha afasta a possibilidade de, por exemplo, afirmar que homem e não-
homem significam a mesma coisa. O princípio de não contradição, o axioma da ciência do ente enquanto ente, é a condição
de significação sobre os entes particulares. O discurso cientifico sobre os entes, o discurso judicativo, implica a condição de
significação dada pelo princípio ontológico e lógico de não-contradição; é vedada a proposição que afirma que homem e
não-homem possuem a mesma ousia. Aristóteles circunscreve o que pode ser considerado como filosofia e como ciência,
uma vez que a filosofia primeira – a ciência do ente enquanto ente – engloba as ciências particulares.
130
a empresa de Deleuze é um malogro, por querer pensar o acontecimento e o sentido
fora dos limites estabelecidos pelo principio de não-contradição?
Aqui, nesse ponto, retornaremos mais uma vez a Meinong, destacando seu grito
de protesto, o pré-juízo a favor do efetivo, que perpassa a história da filosofia. O
propósito de Meinong, inteiramente aceito por Deleuze, é o de ampliar o domínio da
filosofia primeira, introduzindo os objetos impossíveis (objetos contraditórios plenos de
sentido). Todo o problema consiste em querer introduzir objetos impossíveis no seio de
uma ciência que tem por objeto o ente enquanto ente. Uma tentativa dessa natureza é
assaz complicada, mesmo que o objeto da ciência do ente enquanto ente apresente
aspectos antitéticos. Nada nos garante que a impossibilidade de definição do Ser, por
Aristóteles, ou até mesmo sua identificação com a substância seja índice de um objeto
impossível. A ontologia em Aristóteles impede qualquer tentativa de introdução da
impossibilidade no seio do Ser. O fundamento das ciências particulares jamais poderia
ser um objeto impossível, por tal formulação afirmar que os entes só poderiam existir em
virtude de o “ente enquanto ente” ser uma impossibilidade. O fundamento do possível e
do real não poderia ser o impossível. A dificuldade em apreender esse objeto ocorre
justamente pelo ente enquanto ente só se dar junto aos entes particulares, sem se
confundir com eles; a impossibilidade de definir o ente enquanto ente não é a afirmação
de uma impossibilidade que ontologicamente fundamenta os entes. A tese de Deleuze
se aproxima dessa especulação sobre a impossibilidade de fundamentar
ontologicamente o possível e o real. O impossível, ao invés de ser derivado do possível
e do real, seria, antes de tudo, sua condição. Todavia, o acontecimento é pensado por
Deleuze como aquilo que foge, que escapa ao princípio de não-contradição. O
acontecimento é pensado como sendo, e não como Ser, mas se o acontecimento pode
ser expresso pelo verbo no infinitivo ou no gerúndio, logo, ser e sendo parecem ter o
mesmo sentido. O acontecimento nos remeteria ao anti-predicativo, uma vez que só
podemos predicar sobre os entes através do principio de não-contradição. Todavia, por
não se confundir com os entes, o acontecimento coexiste com eles. Como o
acontecimento coexistiria com os entes? Os entes brilham, reluzem, aparecem, vivem. O
131
acontecimento coexiste com os entes inclusive com o homem. Ora, mas o
acontecimento coexiste com o homem enquanto ser vivo. O acontecimento viver
coexiste com o homem. O acontecimento coexiste com todos os entes sem, no entanto,
se confundir com eles. O sentido aparece no acontecer que envolve todo os entes
particulares que, podemos dizer assim, estão regidos p5elo princípio de não
contradição. Mesmo que a nossa predicação sobre os entes esteja regida pelo principio
de não-contradição, o acontecimento entre os entes não deixa de ser pleno de sentido
mesmo que a sua significação seja impossível, mesmo até que a sua predicação esteja
somente no pensamento e, não nas coisas como nos diz Aristóteles.
Ao afirmar que o acontecimento não existe, mas que possui sentido não estaria
Deleuze trilhando o mesmo caminho da fenomenologia no que diz respeito aos objetos
intencionais? Quando Deleuze afirma que a singularidade é um acontecimento
transcendental não estaria fazendo fenomenologia? Nada, entretanto, nos autoriza a
afirmar que o acontecimento seja um objeto intencional. Deleuze afirma um
acontecimento transcendental sem que este possua qualquer aspecto de objeto
intencional, justamente por não fazer uma filosofia a partir dos fenômenos psíquicos.
O acontecimento não seria um objeto intencional de um fenômeno psíquico que
se caracteriza por tender para algo, se direcionar para um objeto. Deleuze não está
fazendo fenomenologia, onde o acontecimento seria um objeto intencional de uma
consciência. O fenômeno psíquico, a consciência, seria pensado por Deleuze, antes de
tudo, como um acontecimento de um campo transcendental. A consciência somente
adquire intencionalidade a partir da fase da individuação dita psíquica. O problema da
individuação ressalta a maneira como podemos pensar a consciência a partir da fase
dita psíquica. A fenomenologia é um estudo do fenômeno da consciência a partir desta
fase onde se procura purificar os atos da consciência dos conteúdos psicológicos
empíricos. Ao realizar esse estudo, Deleuze quer ir para além da fenomenologia no que
diz respeito ao transcendental. Na introdução das Idéias, Husserl afirma que a
fenomenologia é um estudo dos fenômenos transcendentalmente reduzidos: não se
preocupa como o aparecimento da consciência no campo transcendental. A consciência
132
intencional, a partir do estudo de Deleuze, parece como resolução no campo
problemático. O campo transcendental problemático possui uma potência genética. A
diferença de Deleuze para Husserl se encontra justamente no que diz respeito a essa
potência de gênese. Segundo Deleuze, Husserl ainda conserva o bom senso e o senso
comum. Há gênese do sentido, diz Deleuze, a partir de um campo problemático. O
fenômeno psíquico não é constituinte, mas se constitui a partir de um campo
transcendental sem sujeito. O campo transcendental problemático possui potência de
gênese, e nos possibilita entender como aparece a consciência e também a significação
de mundo. A doação de sentido, tão apregoada pela fenomenologia, pode se dar,
apenas, pelo campo transcendental já ser pleno de sentido sem possuir, contudo,
qualquer significação. O acontecimento transcendental é o próprio movimento de
individuação, enquanto se mantém sobre uma superfície que delimita um dentro e um
fora. O indivíduo e o meio são sustentados pelo acontecimento transcendental onde, a
partir deste campo transcendental a-subjetivo e pré-objetivo, começamos a perceber
determinados tipos de relações tais como consciência e mundo; linguagem e mundo.
A ontologia se confunde aqui com o acontecimento transcendental, onde o
indivíduo surge como o devir do Ser, isto é, como o aparecimento de fases no Ser sem
fases. O ontológico nesse caso, porém, tem o sentido de filosofia primeira, já que a
orientação de Deleuze segue o projeto de Meinong de ampliar a metafísica,
introduzindo os objetos impossíveis. O argumento tem como motivo indicar que a teoria
do sentido de Deleuze não está sendo pensada apenas diante da relação homem e
mundo, mas enfatizando que homem e mundo aparecem como envolvidos por
acontecimentos. O homem é pensado enquanto ser vivo que passa por um processo de
individuação diferente daquele pelo qual passa o mundo. A individuação física se
distingue da individuação físico-biológica devido ao campo transcendental resultar
numa individuação física, biológica, psíquica e coletiva. A neutralidade e a potência
genética do sentido se dão mediante o processo de individuação, em que a relação
indivíduo e meio permite a compreensão do que habitualmente se pensa como o limite
do homem. O modo de individuação do homem, diante do mundo, é concomitante ao
133
processo de individuação sobre o campo transcendental. O indivíduo homem qualquer
ao se individuar, o faz sobre um campo transcendental provido de singularidades. A
vida singular, que cada indivíduo homem traz consigo, é transcendental; a relação que
o indivíduo homem qualquer faz com o mundo é inseparável da vida singular
transcendental que ele carrega consigo. Na relação do indivíduo com o mundo aparece
o campo das significações, mas o campo transcendental é o puro sentido concomitante
à vida singular. Se pensarmos segundo a égide analítica e fenomenológica, ora a
consciência doa sentido ora a linguagem. O mundo não possuiria sentido por si mesmo,
e toda investigação acerca da fonte de onde provém esse sentido do mundo seria
resultado de características propriamente humanas, isto é, pensamos o sentido apenas
através da significação, que deriva da relação homem e mundo, esquecendo-nos do
campo transcendental sem sujeito. O exemplo vivo dessa questão se mostra quando
consideramos o homem como o sentido do mundo por ser possuidor de temporalidade.
A postura de Deleuze é nítida: trata-se de pensar o sentido sem confundi-lo com a
significação, a partir de um campo transcendental neutro e que possui potência
genética.
Deleuze enfatiza ser a gênese do sentido concomitante ao processoi de
individuação, procurando apresentar pontos em que o sentido se dá numa superfície
como um continuum, o que permite a distinção entre os mais variados tipos de
indivíduos. A superfície, na individuação do ser vivo, que culmina no homem, se
mantém de modo peculiar filtrando o que provém da profundidade dos corpos (os gritos,
os ruídos, não se confundem com as proposições). A falência da superfície é a perda do
sentido e conseqüentemente da significação. Como a individuação do ser vivo envolve
as fases biológica e psíquica, nada nos impede de afirmar que a significação depende
da última fase. Em Da Interpretação, Aristóteles fala dos estados de alma (πατεµαταα
τησ ϕσιχησ) que são mais próximos de nós do que as coisas do mundo A linguagem,
neste caso, significa os estados de alma, os quais, por sua vez, representam a ousia
das coisas. O hilemorfismo, que considera o indivíduo inefável, sempre teve dificuldades
para pensar o problema da individuação. A filosofia transcendental encontrou o
134
problema da individuação e, desse modo, o campo problemático se fez objeto de estudo
a partir de Deleuze, que, em suas inquirições, nos leva a pesquisar a importância da
categoria de problema. Suas inquirições acerca do sentido nos levam a compreender a
relação entre individuação e sentido. As controvérsias com a concepção
fenomenológica, acerca da consciência, ficam mais claras quando acompanhamos o
que Deleuze considera como processo de individuação a partir de um campo
problemático transcendental.
O indivíduo, sendo contemporâneo do processo de individuação, não se separa
de suas relações com o meio: o processo de individuação se dá frente a um meio, onde
outros indivíduos também se individuam; o problema que percorre a filosofia
transcendental, isto é, a relação com o outro, pressupõe as fases da individuação desde
a físico-biológica à trans-individual e coletiva. Vejamos que o tema da individuação
percorre a 5
a
Meditação Cartesiana de Husserl, quando o fenomenólogo detecta que no
seu dilema da intersubjetividade o "outro eu" tem um corpo orgânico semelhante ao meu
e que se caracteriza por seu lado psíquico. Husserl afirma que não basta indicar que um
corpo é orgânico e semelhante ao meu para constitui-lo como alter ego. O psiquismo é
justamente o traço distintivo dos outros eus, isto é, daqueles outros homens que habitam
o mundo comigo; tal afirmação remete ao problema de como se dá a individuação. O
problema do sentido relacionado somente à esfera da individuação psíquica se confunde
com a significação. É preciso, portanto, acompanhar a individuação sobre o campo
transcendental sem sujeito, a fim de se ver como a significação se dá diante da relação
indivíduo e meio. O mundo é o meio onde o indivíduo se individua, sem, no entanto, se
separar da realidade pré-individual.
Deleuze enfatiza, em sua teoria do sentido, a ruptura com o princípio de não-
contradição, o que resulta num cântico à impossibilidade. O sentido, desvinculado da
significação, nos permite, segundo a concepção de Deleuze, compreendê-lo sem o
compromisso de obtê-lo a partir das coisas. A impossibilidade diante do real é a
exclusão de uma possibilidade. O impossível não existe, mas possui sentido. E só
aparece enquanto objeto do pensamento quando relacionado ao possível e ao real.
135
Quando encontramos a proposição: toda proposição que designa um objeto impossível
tem sentido, de imediato confundimos o sentido com a significação. O princípio de não-
contradição determina a significação do possível e do real. Como o impossível pode ter
sentido, uma vez que ele não existe? O princípio de não-contradição não poderia ser o
determinante do sentido que o impossível possui? A questão deve ser examinada em
seus pormenores: o mundo tal qual existe diante de nós, e no qual nos projetamos, não
é apenas um apelo à individuação, o mundo também se individua por processos que
diferem daqueles pelos quais os indivíduos se individuam. Deleuze procura fazer uma
filosofia que escape do princípio de não-contradição sem, no entanto, cair na sofística e
sem sair do mundo, isto é, em busca de mundos transcendentes. A saída que encontra
é justamente a vida em seus processos imanentes; o problema do sentido é pensado
não pelo seu lado existencial, onde o homem seria o centro das especulações. Deleuze
procura acompanhar os processos de individuação que ocorrem na vida a partir de um
campo problemático transcendental cuja fonte são as discussões entre Sartre e Husserl
acerca do estatuto do Ego transcendental. Desse modo, o impossível deixa de ser
pensado como determinado pelo princípio de não-contradição. Deleuze abandona a
determinação do possível e do real dada a partir da representação do mundo já
constituído e acabado.
A idéia de acontecimento vem assinalar que os corpos, nas suas superfícies, não
são apenas corpos, mas também diferenças que se expressam sob o modo de efeitos. A
categoria de impossível aparece aí relacionada ao estatuto problemático do sentido: o
verdejar da árvore e o brilhar da faca são efeitos na superfície dos corpos físicos, mas
também o viver o é na superfície da vida. O homem apareceria aí como um
acontecimento na superfície da vida. Os atributos noemáticos ocorrem na tênue película
que envolve os corpos. O pensamento e a linguagem ocorrem na superfície do homem.
A impossibilidade é esquecida, isto é, de um certo modo, Deleuze abandona essa
categoria, e a superfície começa a ser pensada como o que faz a separação e a
filtragem entre o indivíduo e o meio, o homem e o mundo. Deleuze não está fazendo
biologia, mas ontologia, ao modo em que os antigos a pensavam. O acompanhamento
136
do devir do Ser, o campo transcendental problemático e o modo de individuação, nos
permite dizer que o impossível é abandonado pelo Ser problemático.
Aristóteles no Peri Hermeneia (I, 16 a 3) afirma: " Os sons emitidos pela voz são
os símbolos dos estados de alma e as palavras escritas, os símbolos das palavras
emitidas pela voz" . De um certo modo, podemos dizer que na filosofia contemporânea
estas considerações, que emanam de Aristóteles, ainda encontram ecos na
fenomenologia de Husserl. A filosofia contemporânea, entretanto, se preocupa também
em ultrapassar a subjetividade. Heidegger pergunta: o que nos dá a pensar? Deleuze
toma para si essa questão quando investiga o problema do sentido; à diferença de
Heidegger — que enfoca a questão do homem como signo sem interpretação, como
signo sem sentido
95
— procura acompanhar a gênese do sentido, discutindo sobre um
novo caminho para a filosofia. Por demais distante que seja a filosofia de Deleuze da de
Aristóteles, não deixamos de estar diante da questão do pensamento e do Ser. A ciência
que estuda o ser enquanto ser reaparece na filosofia de Deleuze com todas as
influências de Heidegger. Entretanto, uma questão aparece: como podemos pensar o
Ser na filosofia do acontecimento? O ser é pensado como problemático, o que nos
remete para a questão levantada por Heidegger no seu texto O que significa pensar?
Neste texto, Heidegger afirma que ainda não pensamos de modo próprio, o que dá a
pensar é o que “vira as costas para o homem”. O homem enquanto aquele em que se
mostra o pensar, se vê destituído do que dá a pensar. O sentido do Ser, mostrando-se
no homem, caracteriza e dá a este a presença do que se retira após forçá-lo a pensar.
Qual o elemento do pensar? Heidegger, quando pensa essa questão, exemplifica
dizendo que jamais aprendemos a nadar através de um tratado de natação. Do mesmo
modo, jamais aprendemos a pensar sem mergulharmos no elemento do pensamento.
95
Heidegger cita o poema de Hölderlin, Mnemosyne. onde o poeta diz:
Um signo somos nós, e sem sentido
Feitos de dor, e quase que temos
Perdido toda a língua na Estranheza
Mesmo quando acerca dos humanos,
No céu uma pendência se levanta, e com força
Rumam luas, tal também discursa o Mar e devem seu caminho..
Cf. Hölderlin, Canto do destino e outros cantos, tradução Antonio Medina de Rodrigues, São Paulo, Iluminuras, 1994, p.34.
137
Deleuze, de modo diferente do de Heidegger, pensa o que nos força a pensar,
recorrendo ao elemento do pensamento como inseparável do processo de individuação.
Assistimos aqui à diferença entre a analítica existencial e a filosofia do acontecimento (o
empirismo transcendental). A primeira, segundo o percurso fenomenológico, ainda
enfatizará a questão do sentido centrada no homem, no Dasein enquanto ser-aí. A
segunda, por sua vez, pensará o processo de individuação onde, na fase da
individuação denominada psíquica, aparecerão as questões relativas ao que podemos
pensar diante do mundo. O elemento em que o pensamento se encontra mergulhado é
a própria vida, enquanto transcendental. Heidegger dá importância à facticidade da
existência, onde cada existência é uma existência. O “ser si mesmo”, a ipseidade, é um
dos pontos que remete ao que trata Deleuze quando pensa a individuação a partir do
campo transcendental problemático.
A expressão vida fáctica significa a nossa própria existência enquanto aí. O ser-
aí, Dasein, possui uma existência fáctica porque está abandonado à existência no seio
do mundo, sem saber o porquê de tal abandono. Todavia, o que distingue Deleuze de
Heidegger é que o primeiro se preocupa com o processo genético a partir de
singularidades, enquanto que o segundo se preocupa apenas com o homem. Heidegger
propõe uma hermenêutica como auto-interpretação da facticidade, como meio de
elucidar a posição do homem enquanto possibilidade de ser si mesmo. O homem não é,
mas pode-ser; podendo ser si-mesmo diante do um existir que não tem nenhuma
explicação. A existência é apenas nela mesma, sendo somente ela mesma. A existência
é somente o caminho de si, mas o caminho só leva até ela mesma no seio do abandono.
Ao pensar a existência, Heidegger não retorna à posição tradicional de apresentar o
homem como aquele que existe consciente de seu existir, mas como aquele que possui
uma existência fáctica.
Quando Deleuze apresenta sua teoria do sentido, procura sempre ligá-la à vida
transcendental. O aspecto fáctico, de que Heidegger fala, não aparece em sua teoria,
mas sim o jogo da vida com a morte, onde o jogo nada mais é senão o acontecimento
viver e morrer: o campo problemático. A facticidade, desse modo, apareceria entre o
138
viver e o morrer; a existência nunca é objeto, senão ser-aí, e somente é aí enquanto é
uma vida, isto é, enquanto é uma vida concreta, como afirma Heidegger. Na filosofia
contemporânea, a relação entre o homem e o mundo é o traço distintivo, o que nos leva
a considerar o homem no mundo da vida. A vida, entretanto, não pode ser pensada
como uma totalidade, mas como distribuída singularmente entre os indivíduos humanos,
dentre outros. Quando relacionamos pensamento e vida não podemos esquecer a via
que nos conduz à imanência. O discurso sobre a vida é inseparável da experiência
imanente que fazemos com a vida singular que possuímos. Ora, se tal experiência é
denominada transcendental, não nos resta outra alternativa do que aquela que nos
remete ao sentido como acontecimento na superfície das coisas e da vida. Se
perguntarmos: qual o ser da vida? Poderemos responder: o ser problemático, o campo
transcendental; o ser do sensível — o ser do fenômeno — pode ser pensado como
problema. O campo transcendental é ontologicamente anterior e contemporâneo aos
indivíduos e pessoas. O sentido, desse modo, pode ser articulado como logicamente
anterior e contemporâneo da significação, manifestação e designação.
O homem está diante do mundo, mas nada nos garante que ele pense sobre
essa relação. O homem tem a possibilidade de pensar, nada, porém, nos assegura que
esteja pensando. Quando o pensamento pode ser pensado? A resposta a essa questão
remete ao que consideramos a filosofia do acontecimento. Somente quando se dá o
pensamento é que podemos falar de filosofia. O filósofo pensa quando se ocupa do que,
na ocasião precisa, o leva a pensar.
Quando nos voltamos para a vida, nos voltamos para a questão: quando o
pensamento pode ser pensado? Não é em toda e qualquer circunstância que o
pensamento pode ser pensado. O pensamento só pode ser pensado quando pensa. O
pensamento somente pensa quando o acontecimento o retira da paralisia diante das
coisas e o remete para uma experiência transcendental. A apreciação do que nos leva a
pensar, de início, nos remete para um outro problema, isto é, para o limite do que
podemos pensar. Traçar um limite para o pensar pensamento é uma questão que,
desde Aristóteles, vem impregnando as noites dos filósofos. Wittgenstein, por exemplo,
139
no prefácio do Tractatus faz a seguinte afirmação: “O livro pretende, pois, traçar um
limite para o pensar, ou melhor não para o pensar, mas para a expressão dos
pensamentos, a fim de traçar um limite para o pensar; deveríamos poder pensar os dois
lados desse limite; deveríamos, portanto, pensar o que não pode ser pensado”. Ora, é
possível dizer que, em Wittgenstein, o limite das expressões do pensamento é o mesmo
que o sentido do pensar. Tal afirmação nos leva àquela levantada por Heidegger em Ser
e tempo quando no § I, 2 afirma que a impossibilidade de definir o Ser não dispensa a
questão de seu sentido, pelo contrário a exige. Nessa busca investigativa sempre nos
deparamos com a significação e não com o sentido do Ser. Wittgenstein, por sua vez,
afirma que o pensar só pode ser significativo através de sua expressão, isto é, da
proposição; o limite da proposição é sua remissão à possibilidade de ocorrência dos
estados de coisas dentro do espaço lógico. O problema da expressão nos leva
diretamente às Investigações Lógicas de Husserl, onde, no § I, aparece a diferença
entre signo indicativo e signo significativo. Husserl chama de expressão o signo
significativo que é constituído através das vivências intencionais que articulam os sons
(fenômenos físicos), doando-lhes sentido.
Husserl distingue a expressão do sinal, pontualizando que existe uma dificuldade
em definir o termo de modo preciso. O termo expressão, diz ele, é tomado em sentido
limitado, cuja esfera de validade exclui muitas coisas que na fala normal são
consideradas como expressões. Desse modo, diz Husserl, é necessário fazer violência
ao idioma, quando se trata de fixar terminológicamente os conceitos para os quais
somente dispomos de termos equívocos. Todavia, esboça uma definição: expressão é
todo tipo e toda parte do discurso (palavras ou frases) que são de uma espécie, isto é,
mesmo sem que o discurso seja pronunciado. Husserl exclui do conceito de expressão o
que habitualmente chamamos de expressão, ou seja, todos os gestos e trejeitos que
acompanham um sujeito quando este pronuncia algo com significado. Desse modo,
podemos afirmar que Husserl se preocupa com o aspecto consciente do discurso e não
com os gestos inconscientes; nos gestos, nessas exteriorizações, não estão presentes
140
as intenções que acompanham as vivências; os gestos não são expressões porque não
possuem significações.
Em Husserl, sentido e significação se recobrem (IL § 6) e tal aspecto remete às
vivências intencionais, que são os sentidos ou os significados das expressões. O
predicado intencional distingue um tipo particular de vivência que consiste em doar
sentido a um conjunto de sons. Quando um conjunto de sons inarticulados adquire um
significado realiza-se um ato psíquico que consiste em referir-se a um objeto. O ato de
doar sentido é também denominado intenção significativa. É notório que o termo
expressão configura uma possibilidade de discernimento entre a fenomenologia e a
filosofia analítica. De início, podemos afirmar, sem nenhuma dúvida, que tal termo, para
Wiitgenstein, remete à linguagem, não havendo neste pensador nenhuma preocupação
de mostrar que por trás dela existiriam vivências intencionais a lhes conferir sentido.
Husserl, de modo inverso, se preocupa com os atos intencionais provenientes de tais
vivências, o que nos faz afirmar que a linguagem não é simplesmente uma expressão do
pensamento . A expressão para Husserl é o que torna a linguagem significativa, embora
possua também função indicativa, isto é, designativa. Quando Husserl, no § 9 das
Investigações Lógicas, apresenta a intenção significativa como o modo de exemplificar o
ato doador de sentido está, de um certo modo, reavivando aquilo que os filósofos
antigos concebiam como a relação entre o pensamento (dianóia) e o discurso (logos). O
discurso, conforme o Sofista de Platão, nada mais é do que a expressão sonora do
pensamento; a voz (phoné) é articulada ao que o pensamento pensa sobre às coisas.
Ora, Husserl segue essa linha de pensamento introduzindo, a partir das Idéias, o
método de redução fenomenológico. Nesse método, o aspecto transcendental se
destaca, quando procura descrever as estruturas que doam sentido ao discurso sobre
os fenômenos. O mais importante, dentre eles, é a própria consciência intencional, isto
é, a consciência dotada de uma intencionalidade transcendental.
Quando Deleuze pensa a relação profundidade-superfície se preocupa em indicar
os aspectos que levam a linguagem, a voz, a ser distinta dos sons e dos gritos. Ora, é
esse tema, que Husserl chama de expressão, que Deleuze remete à neutralidade e à
141
potência genética do sentido. A voz com sentido — e distinta das gritarias e ruídos que
emanam da profundidade — não é fruto de um ato intencional como em Husserl, mas
efeito de um acontecimento, que filtra o que vem da profundidade, e se torna proposição
na superfície da boca de quem a pronuncia. As discussões em torno deste tema
remetem ao Da Interpretação, onde Aristóteles, no primeiro capítulo, faz a seguinte
afirmação:
“As palavras faladas são símbolos ou signos dos afetos ou impressões da alma; as palavras
escritas são signos das palavras faladas. Como a escrita, tampouco a linguagem é a mesma para
todas as raças de homem. Mas os afetos da alma em si mesmos, das quais essas palavras são
primeiramente signos, são os mesmos para toda a humanidade, como o são também os objetos
dos quais esses afetos são representações..
96
.”
A partir desta citação percebemos que a posição aristotélica, em relação à
significação, é nitidamente uma investigação da possibilidade de se falar sobre a ousia
das coisas através dos estados de alma. Na filosofia contemporânea, assistimos a
essa dispensa em relação aos estados de alma; no limite, a consciência é inteiramente
dispensada como fonte de emanação do sentido do mundo. É nesse ponto que Deleuze
procura dar, quem sabe, um passo a mais em relação à fenomenologia, uma vez que os
atos intencionais, por mais distantes que estejam em relação aos estados de alma de
que nos fala Aristóteles, nos levam sempre em direção ao que o Estagirita propôs como
o modo de representação das coisas na alma.
Deleuze abre o livro, Lógica do Sentido, dizendo que vai tratar de um tipo muito
especial de coisas: o acontecimento. Entretanto, sabemos que o acontecimento não é
uma coisa, o que nos permite vislumbrar que a sua teoria do sentido jamais poderá se
confundir com uma teoria da significação. Vimos que Aristóteles enfatiza os objetos e as
representações como elementos que permanecem sempre os mesmos, enquanto as
palavras mudam (em relação às demais raças humanas) de acordo com cada tipo de
língua.
96
Aristóteles, Da Interpretação, Capítulo I, § 3.
142
Na introdução das Idéias, Husserl afirma que a fenomenologia é uma
modificação da atitude natural face aos fenômenos. Nessa modificação, o sentido do
fenômeno sofre alterações; a atitude transcendental, por exemplo, modifica o sentido do
fenômeno, permitindo ao homem sair da atitude natural pela qual estuda os fenômenos
como meros fatos. O método de redução fenomenológico, como sabemos, permite que
os fenômenos sejam estudados de modo diferente do das ciências empíricas. Husserl
admite que a fenomenologia é uma ciência eidética, por não se ater aos fatos, mas sim
às essências dos fenômenos transcendentalmente reduzidos. Quando Deleuze distingue
estados de coisas de acontecimento está muito próximo de Husserl: a distância aparece
quando admite que o acontecimento transcendental independe de qualquer método de
redução e também de toda e qualquer consciência — o que fica implícito quando
procura pensar o campo transcendental sem sujeito. Como dissemos, o que desaparece
da filosofia contemporânea é essa preocupação com a consciência, com os estados de
alma, pelo menos é o que vemos em Wiittgenstein, quando este afirma que a expressão
do pensamento se dá na linguagem e também que o pensamento não é uma atividade
mental, mas sim captadora de signos. Todo o problema do sentido e da significação
recai sobre esse impasse: consciência ou linguagem? Deleuze, por sua vez, quando
pensa o acontecimento apresenta uma linha divergente daquelas que privilegiam ora a
consciência, ora a linguagem. A tese de um campo transcendental sem sujeito é a via
encontrada por ele para pensar todas as questões relacionadas à idéia de
acontecimento. O estatuto do campo transcendental remete diretamente à
fenomenologia de Husserl, mas tal estatuto, como a-subjetivo, seria inconcebível para o
fenomenólogo.
Fica nítido, nessa problematização, que o afastamento dos processos que se dão
no interior da consciência é concomitante ao afastamento em relação a Aristóteles. No
De Anima, o estagirita recusa que a alma seja definida como harmonia ou movimento. A
alma não possuiria o movimento como um atributo e sim como um meio de expressão.
O pensar, o perceber, o aprender são movimentos da alma; tais movimentos ou tais
atividades podem ser denominados faculdades da alma. Enquanto faculdade de pensar,
143
o estagirita a divide de dois modos: o pensar prático e o pensar especulativo. O pensar
prático é aquele que remete a um objeto existente, relacionando-o a uma ação sobre o
mesmo como, por exemplo: a percepção de uma casa e o pensamento de ampliá-la
construindo um segundo andar sobre a mesma; o pensar especulativo, por sua vez, é o
que acrescenta uma afirmação ou negação sobre o que é percebido; e quem formula o
juízo não é a percepção, mas sim o intelecto. A teoria da significação em Aristóteles é
inseparável das afecções da alma; o aspecto judicativo só pode se dar na alma através
de uma faculdade que formula juízos, independente da percepção. O que observamos
na filosofia contemporânea é justamente o desaparecimento desse aspecto onde a
consciência deixa de ser o lugar de onde parte toda e qualquer possibilidade de
significação acerca do mundo. O pensamento discursivo em Aristóteles é aquele que
além de possuir significação indica a verdade ou a falsidade da proposição.
97
Aristóteles
define como expressão de pensamento aquelas proposições que afirmam ou negam um
predicado de um sujeito. Portanto, o verdadeiro e o falso se dão, antes de tudo, no
pensamento e não nas coisas. A proposição pode ter significação, mas nem por isso
tem a possibilidade de ser verdadeira ou falsa. O termo expressão do pensamento se
modifica completamente no decorrer da história da filosofia. Todavia, devemos admitir
que de Aristóteles a Husserl esse termo remete aos estados de alma. Husserl, por
exemplo, quando nos fala da intencionalidade, podemos dizer assim, nos mostra que
explodimos em direção ao mundo; ao conhecer uma coisa, podemos além de conhecê-
la intencionalmente, amá-la ou detestá-la
98
. Não quer isto dizer que o tema da
97
Cf, Marriluze F. Andrade e Silva, Pensamento e Linguagem em Platão e Aristóteles e a visão contemporanea da teoria
tradicional da proposição, Rio de Janeiro, Pós-moderno, 2002, p.98: “Assim a alma nos seres vivos, para Aristóteles, tem
duas características distintas: a capacidade de julgar, que é a forma do entendimento e ela julga combinando com a
sensação; e a capacidade de produzir movimentos no espaço”
98
Sartre, em seu texto Uma idéia fundamental de Husserl: a intencionalidade in Situations I, comenta: “A consciência e o
mundo são dados de uma só vez: exterior à consciência por essência, o mundo é, por essência, relativo a ela. É que
Husserl vê, na consciência, um fato irredutível que nenhuma imagem física pode exprimir. Talvez a imagem rápida e
obscura da explosão. Conhecer é “explodir em direção a”, desvencilhar-se da úmida intimidade gástrica para fugir, lá longe,
para além de si mesmo, em direção ao que não é si mesmo, lá longe perto da árvore e, no entanto, fora dela, pois ela me
escapa e me rechaça e não posso perder-me nela da mesma forma que ela não pode se diluir em mim: fora dela, fora de
mim. Não estão reconhecendo suas exigências e pressentimentos nesta descrição? Vocês sabiam muito bem que a árvore
não era vocês, que não poderiam fazê-la entrar em seus estômagos sombrios e que o conhecimento não poderia, sem
desonestidade, comparar-se à posse. De uma só vez, a consciencia se purificou, está clara como a brisa mais pura, não há
mais nada nela, exceto um movimento para fugir de si mesma, um escorregar para fora de si mesma; se, por absurdo,
vocês entrassem “dentro” de uma consciência, seriam tomados por um turbilhão e repelidos para fora, perto da árvore, em
144
consciência em Husserl remeta para uma interioridade; pelo contrário, a consciência é
um esvaziar-se, um movimento para fora, para o mundo, em direção ao mundo. Porém,
mesmo assim encontramos uma subjetividade, um eu transcendental sem o qual os atos
intencionais não teriam sentido. Deleuze deixa muito bem assinalado que não existe
uma faculdade que formula juízos acerca do mundo, nem muito menos uma consciência
intencional que lhe doa sentido. O que acontece no mundo torna-se sentido na
proposição, sem a intermediação de um sujeito ou consciência transcendental.
plena poeira, pois a consciência não tem “dentro” ; ela não é nada além do fora de si mesma e é esta fuga absoluta, esta
recusa de ser substância, que a constitue como uma consciência. Imaginem, agora, uma seqüência encadeada de
explosões que nos arrancam de nós mesmos, que não deixam a um “nós mesmos” sequer o tempo de formar-se atrás
delas, mas que, ao contrário, nos joga além delas, na poeira seca do mundo, sobre a terra rude, entre as coisas; imaginem
que somos repelidos, abandonados por nossa própria natureza num mundo indiferente, hostil e recalcitrante; terão captado
o sentido profundo da descoberta que Husserl exprime nesta famosa frase: “Toda consciência é consciência de alguma
coisa”. Não é necessário mais do que isso para pôr um fim na filosofia aconchegante da imanência, onde tudo se faz por
compromisso, por trocas protoplasmáticas, por uma morna química celular. A filosofia da transcendência nos joga na grande
estrada, no meio das ameaças, sob uma luz ofuscante. Ser, diz Heidegger, é estar-no-mundo. Entendam este “estar-no” no
sentido de movimento, Ser é explodir dentro do mundo, é partir de um nada de mundo e de consciência para, subitamente,
explodir-se-consciência-no-mundo. Caso a consciência tente recuperar-se, coincidir finalmente consigo mesma, no
quentinho, a portas fechadas, ela se aniquila. Essa necessidade, para a consciência, de existir como consciência de outra
coisa que si mesma, Husserl chama de “intencionalidade”. Falei, de início, do conhecimento, para me fazer melhor
entender: a filosofia francesa que nos formou não conhece quase nada além da epistemologia. Mas, para Husserl e os
fenomenólogos, a consciência que tomamos das coisas não se limita a seu conhecimento. O conhecimento ou pura
“representação” é apenas uma das formas possíveis da minha consciência “de” tal árvore; posso também amá-la, temê-la,
destetá-la e essa superação da consciência por si mesma, que chamamos de “intencionalidade”, reaparece no temor, no
ódio e no amor. Detestar outrem é ainda uma maneira de explodir em direção a ele, é encontrar-se, de repente, diante de
um estranho cuja qualidade objetiva de “odiável” vivemos e sofremos antes de tudo. Eis, que de repente, essas famosas
reações “subjetivas”, ódio, amor, temor, simpatia, que flutuavam na salmoura malcheirosa do Espírito, dele se
desvencilham; são apenas maneiras de descobrir o mundo. São as coisas que se desvendam, subitamente, para nós, como
odiáveis, simpáticas, horríveis, amáveis. É uma propriedade dessa máscara japonesa, a de ser terrível; uma inesgotável,
irredutível propriedade que constitui sua própria natureza, - e não a soma de nossas reações subjetivas a um pedaço de
madeira esculpida. Husserl reinstalou o horror e o encanto nas coisas. Ele nos restituiu o mundo dos artistas e dos profetas:
assustador, hostil, perigoso, com portos seguros de graça e amor. Ele abriu espaço para um novo tratado das paixões que
se inspiraria dessa verdade tão simples e tão profundamente desconhecida por nossos refinados: se, amamos uma mulher,
é porque ela é amável. Eis-nos libertados de Proust. Libertados, ao mesmo tempo, da “vida interior”; em vão procuraríamos,
como Amiel, como uma criança que beija o próprio ombro, as carícias, os mimos de nossa intimidade, já que, finalmente,
tudo está fora, tudo, até nós mesmos: fora, no mundo, entre os outros. Não é em sabe-se lá que recolhimento que nos
descobriremos: é na estrada, no meio da multidão, coisa entre as coisas, homem entre os homens”.
145
CAPÍTULO V
ACONTECIMENTO TRANSCENDENTAL
5.1) Os dois modos da experiência
Uma exposição acerca dos acontecimentos transcendentais requer a distinção
daquilo sobre o qual efetuamos nossa experiência. Ao efetuarmos as nossas
experiência do mundo que se posta diante de nós, grosso modo, em nossas
manifestações, dizemos tratar-se de uma experiência transcendente, esquecendo que,
na realidade, se trata de uma dupla experiência: seja a do mundo, seja a de nós
mesmos. Assim sendo, podemos dizer que a experiência de si mesmo, ou a experiência
imanente, é concomitante à do mundo. Ora, para que essa distinção seja feita, no
entanto, faz-se necessário indagar: o que nos permitiria distinguir a experiência de si
mesmo da experiência dos fenômenos? Se supusermos uma fundamentação absoluta
para a ciência, de onde devemos partir? Tal indagação percorre a filosofia desde
Aristóteles até Husserl.
Seria a observação dos fenômenos superior à observação de si mesmo? Se
estamos no mundo diante dos fenômenos (que aparecem), estamos também
aparecendo para nós mesmos. Os acontecimentos que se dão no mundo nos permitem
observar que as coisas estão sempre por eles envolvidas. Essa distinção já implica um
acontecimento: acontece de sentirmos e percebermos que os acontecimentos envolvem
as coisas. O sentir, o perceber, o pensar dão-se ao modo de acontecimentos.
As coisas ou os corpos possuem limites, assim como nós os possuímos. Isso
quer dizer que apesar de possuirmos limites, que nos separam das coisas, de um certo
modo estamos a elas ligados (embora não saibamos ainda como). O que nos configura,
assim como às coisas, é uma certa superfície que se mantém. Ao envolverem as coisas
em suas superfícies, os acontecimentos nos dão delas o sentido. Uma coisa nunca é
pensada e sentida como inseparável do que acontece em sua superfície. Assim como o
146
que ocorre conosco nos permite pensar a nós mesmos. O que acontece conosco? Uma
corrente de vida, de pensamento e de linguagem. Tal distinção nos permite pensar que
entre nós e o mundo algo em comum acontece: o puro acontecer. A corrente de vida
que nos atravessa abre-se em corrente de pensamento e de linguagem. O acontecer do
pensamento e da linguagem é inseparável de um fluxo incessante que ultrapassa o
limite que nos configura: um fluxo incessante é, portanto, ilimitado.
Na experimentação transcendente, isto é, daquilo que ocorre fora de nós, não
estamos inteiramente separados do fluxo incessante. Ora, mas nós possuímos limites,
estamos aqui fixados. Entretanto, fluxos incessantes de pensamento, de vida e de
linguagem desobedecem a esses limites. Há uma desobediência do fluxo incessante ao
ultrapassar esses limites. Quando nos fixamos às coisas caímos numa espécie de
paralisia do fluxo incessante, criando um ramal, um tempo auxiliar, onde queremos
apenas que as coisas se reflitam no interior de seus limites, desconsiderando e
esquecendo de tudo que ocorre em suas superfícies. Ao desprezarmos os
acontecimentos, e ficarmos interessados em que as coisas apareçam de modos
determinados, obedecendo aos limites, queremos apenas que o futuro repita o passado,
num tempo auto-refletor, tal qual uma imagem entre dois espelhos que se repetem ad
infinitum.
Ao escaparmos do tempo auto-refletor, que diz respeito ao nosso trato com às
coisas, experimentamos um outro modo de tempo. Trata-se de experimentar no fluxo
incessante, nos acontecimentos que nos envolvem, um tempo anti-refletor, por não
existir no futuro (se futuro houver) nenhuma imagem prévia repita o passado. Não é um
projeto, mas condição para todo e qualquer projeto; a imagem projetada não é aqui um
caminho adequado para pensarmos o pensamento como corrente de vida e fluxo
incessante. A desobediência dos fluxos incessantes não conduz qualquer imagem para
o futuro como se fosse uma imagem refletida entre dois espelhos. O tempo anti-refletor
não possui nenhuma imagem, e sim o sentido de um tempo não-projetado Desse modo,
não pode haver nenhum preenchimento no futuro, nem muito menos nenhuma
antecipação; o tempo vazio possui apenas um sentido transcendental.
147
Deleuze afirma que a maior iniciativa da filosofia transcendental foi introduzir a forma
pura e vazia do tempo no pensamento. Ao elaborar essa iniciativa, Kant anunciava a
morte especulativa de Deus e a rachadura do Eu. Não prosseguiu porém em sua
empreitada, fazendo com que o Deus e o Eu tivessem uma ressurreição prática — o que
pode ser constatado na segunda crítica, quando a moral é pensada como sendo a
própria metafísica. O que mais interessa a Deleuze, entretanto, é o que ocorre no
domínio especulativo, quando Kant parece de novo soldar a rachadura do Eu, quando
apresenta uma nova forma de identidade que consiste em operar por sínteses ativas. A
réplica de Deleuze é que o eu passivo, conseqüente da rachadura do Eu, só pode ser
definido por sua receptividade, não possuindo nenhum poder de síntese. Deleuze
esclarece que o eu passivo é constituído por sínteses passivas (contemplações-
contraentes); sua réplica em relação a Kant consistiu em elucidar que a capacidade do
eu operar por sínteses ativas tem como objetivo salvar o mundo da representação. O
problema das sínteses passivas serve como apoio para esclarecer o que Deleuze pensa
como a auto-unificação das singularidades no campo transcendental. O conceito de
síntese passiva remete às sínteses que se processam independentemente de qualquer
eu. No campo transcendental sem sujeito, segundo Deleuze, ocorre a auto unificação
das singularidades independentes da consciência ou do eu transcendental.
As singularidades assumem uma importância ímpar na teoria do sentido de
Deleuze, por dar ao campo transcendental um novo estatuto. Diferentemente de
Husserl, o campo transcendental deleu zeano não possui nem mônadas nem Ego. O
problema da individuação vem ressaltar a auto-unificação das singularidades de modo
diferente do proposto por Husserl, que se dá a partir de centros de individuação. O que
fica nítido é que nenhuma especulação sobre o campo transcendental pode deixar de
lado o problema da individuação. O modo do acontecimento é o problemático. Não se
deve dizer que há acontecimentos problemáticos, mas que os acontecimentos
concernem exclusivamente aos problemas e definem suas condições.
148
5.2) As singularidades
Qual é o ganho filosófico que se obtém quando se retira do campo transcendental
as mônadas e os Egos, colocando em seu lugar as singularidades? O que as
singularidades possuiriam de extraordinário, para que o campo transcendental além de
neutro possuísse potência genética de produzir sentido? As singularidades possuem um
poder de unificação, podemos dizer de auto-unificação e, isto é o bastante para que não
se faça apelo à subjetividade transcendental. Ora, se esse poder de auto-unificação
pertence às singularidades, o que restaria ao campo transcendental?
A auto-unificação é dada no campo transcendental onde as singularidades
díspares só se unificam quando se encontram aleatoriamente: não existiria um Ego
transcendental que assegurasse as sínteses como formação de unidades. No campo
transcendental ocorrem sínteses, sem que seja necessária uma subjetividade
transcendental, as singularidades díspares já se encontrariam em sínteses disjuntas. O
ganho filosófico, nesse ponto, é que a comunicação das singularidades se dá de modo
diferente daquele que ocorre entre os indivíduos e pessoas: não há a exclusão; o uso
limitativo e negativo que se faz da exclusão desaparece, quando se trata de
singularidades. As singularidades são acontecimentos transcendentais que não se
regulam pelos mesmos princípios que organizam os indivíduos e as pessoas.
Observamos que aqui aparece um dos pontos relevantes da teoria do sentido de
Deleuze que perpassará toda a sua obra: a noção de distribuição nômade, que deriva
desse modo das singularidades acontecerem sobre uma superfície inconsciente, através
de um princípio imanente e móvel de auto-unificação. Em Mil Platôs, um outro texto de
Deleuze escrito com Felix Guattari, aparecem conceitos como os de espaço liso e tempo
não pulsado, derivados dessa idéia de distribuição nômade.
Não se trata de dividir um território estriando o espaço, mas de distribuir um povo
como as tribos que se distribuem no deserto, no espaço liso; os nômades possuem um
olhar háptico, capaz de distinguir as diversas singularidades, as diversas tonalidades
que compõem o branco das areias do deserto. Os esquimós, por sua vez, distinguem as
149
singularidades que compõem o branco do gelo. Os nômades foram aqueles que,
segundo os autores de Mil Platôs, fizeram a primeira revolução industrial quando, ao
fugir da dominação dos sedentários, rumaram para o deserto e se agenciaram com os
animais, retirando deles e com eles o alimento. As singularidades se distribuem no
campo transcendental assim como os nômades no espaço liso. A superfície é o espaço
liso onde as singularidades se distribuem. Como exemplo, tomemos a própria escrita
filosófica de Deleuze, que faz percorrer ao longo da superfície do texto os mais diversos
autores e assuntos, pontos relevantes de sua teoria do sentido.
Ao enumerar as cinco características principais do campo transcendental —
energia potencial do campo, ressonância interna das séries, superfície topológica das
membranas, organização do sentido, estatuto do problemático — Deleuze destaca que
a superfície é o lugar do sentido: os signos permaneceriam desprovidos de sentido
enquanto não entrassem numa organização de superfície. A organização de superfície
não é dada por um plano transcendente, mas por um plano de imanência onde as
singularidades se distribuem em um campo propriamente problemático. Há diferenças
de potencial no campo problemático. O que dele podemos dizer é que não é um campo
lingüístico, mas que também não é mental. Nesse ponto, podemos dizer que a filosofia
do acontecimento é uma filosofia da singularidade, uma filosofia daquilo que não é
lingüístico nem mental.
Quando Deleuze afirma que o sentido aparece na proposição, podemos
ousadamente articular o seu pensamento com o de Bolzano, para mostrar como duas
singularidades falaram de um mesmo assunto em épocas diversas. Bolzano afirma que
as proposições em si são independentes da linguagem e do pensamento e que não são
enunciados e nem juízos. Ora, tais proposições não possuem existência no espaço e no
tempo, mas são também o sentido de toda proposição pensada, escrita ou pronunciada;
o que nos deixa livres para afirmar que se aproximam daquilo que Deleuze denomina
acontecimento.
Jan Sebastik, um dos maiores estudiosos do pensamento de Bolzano, afirma
que há uma aproximação da proposição em si com o lekton, com o exprimível, um dos
150
incorpóreos dos estóicos
99
. Desse modo, podemos dizer que Deleuze e Bolzano tratam
de singularidades que não estão submetidas ao domínio das coisas, da existência real.
Há, no entanto, diferenças entre os dois pensadores e tais diferenças se produzem em
função do que Deleuze afirma em relação ao tempo do acontecimento; tempo esse que
não se dá em Bolzano. O tempo do acontecimento transcendental está sempre como
que disperso, díspar, sem bom senso e senso comum. Em Bolzano, as proposições em
si não são reais, mas dão-se fora do espaço e do tempo; enquanto que, para Deleuze, o
acontecimento é o expresso da proposição, podendo por isso haver inversões na
linguagem, assim como paradoxos no tempo; as sínteses disjuntivas apareceriam aqui,
onde o tempo é afirmado na sua diferença em relação às coisas. Deleuze não abandona
o acontecimento; e afirma que por mais que se tente tirar da filosofia a potência de criar
conceitos, de nenhum modo deixaremos de ter acontecimentos envolvendo os
conceitos. No nosso entender, Deleuze afirma de todas as maneiras a divergência.
Como já dissemos, a ressonância das problematizações de Bolzano chegam até
Meinong e podemos dizer que Deleuze, na Lógica do sentido, está muito mais próximo
de Bolzano e de Meinong do que mesmo de Husserl.
Deleuze possui estranhas correspondências, comunicações bizarras com outros
filósofos, que parecem participar de modo virtual de sua filosofia. É assim que ousamos
afirmar que não apenas Meinong o acompanha na tessitura de sua teoria do sentido,
mas Bolzano, sobretudo quando esse pensador afirma com todas as letras: “por
proposição, eu entendo não uma combinação de palavras, mas somente o sentido que
pode exprimir uma certa combinação de palavras”
100
. De modo mais incisivo, podemos
99
Jan Sebastik, Logique et mathematique chez Bernard Bolzano, Paris, Vrin, 1992, p.128. “Bolzano lui-même rattache le
concept de proposition a au
λογοσ
aristotélicien et à la cogitatio possibilis de Leibniz. A mon a vis, l’equivalent le plus
adéquat de la proposition au sens de Bolzano est l’exprimable,
το
λεκτον
, l’un dês incorporels des stöiciens. Mais c’est
surtout plus tard, à partir de Frege et de Husserl jusqu’à nos jours que ce concept deviendra l’enjeu des discussions sur la
nature dês objets logiques” “ Bolzano procura aproximar o conceito de proposição do
λογοσ
e da cogitatio possibilis de
Leibniz. Ao meu ver, o equivalente mais adequado da proposição em si, no sentido de Bolzano, é o exprimível,
το
λεκτον
,
um dos incorporais dos estóicos. Mas é sobretudo mais tarde, a partir de Frege e de Husserl até os nossos dias que esse
conceito irá se tornar-se o motivo da discussão sobre a natureza dos objetos lógicos”.
100
Bolzano, Wissenchaftlehre, I, § 28, 121 apud Jan Sebastik, Logique et mathematique chez Bernard Bolzano, Paris, Vrin,
1992, p.123.
151
ainda afirmar com a mesma ousadia que ao pensar a vida como singularidade Deleuze
está muito próximo do que pensava Bolzano como objeto lógico.
Deleuze se insere nessa discussão acerca dos objetos lógicos introduzindo a variante
do acontecimento, e suas considerações culminam em uma filosofia da imanência.
Quando Bolzano fala da independência da proposição em si, tanto em relação ao
pensamento quanto da linguagem, deixa transparecer algo com um meio que independe
do objeto. A diferença entre Deleuze e Bolzano é que o primeiro afirma a imanência em
todos os seus aspectos e por isso mesmo o acontecimento, uma vida, não se
confundiria com o objeto lógico bolzaniano. A imanência não é imanente a algo, mas
nela mesma, e jamais em um sujeito. Ora, uma lógica do sentido é imanente ao próprio
acontecer, mas não a imanência de um sujeito lógico. Podemos, dizer até que o sentido
pode ser considerado como um objeto lógico, mas de uma lógica paradoxal onde a vida
como acontecimento imiscui-se de um modo ilógico e aberrante. Consideramos que é
sobretudo pela vida ser pensada como acontecimento, e por esse acontecimento dar-se
no entre, no interstício, onde vidas separadas entram em comunicação, que existiria um
predomínio do abstrato, da tendência a valorizar o puro, o formal em detrimento do
empírico, mas sublinhando-se que os mesmos princípios que regem o empírico regeriam
também o formal. De outro modo, Deleuze valorizaria o que acontece, deixando em
relevo que a imanência implicaria, sobretudo, naquilo que se dá entre, onde não existiria
nada de substancial nem de formal. No vazio em que não há coisas, mas somente vida
é que os acontecimentos apareceriam como distintos das coisas e dos estados de
coisas. Há acontecimentos, como há sentido sendo produzido no vazio, antes de
qualquer significação e princípios lógicos. Em Deleuze, não há nada escondido, nada
velado, tudo se dá na transparência do vazio entre vidas. É desse modo que podemos
dizer que a vida pensada por Deleuze quase chega a ser o objeto lógico que Bolzano
pretende elucidar, mas o que os distingue é a ênfase dada ao paradoxo como o que
destitui o bom senso e o senso comum. As proposições em si de Bolzano, não sendo
nem do domínio da linguagem e nem do pensamento, só poderiam remeter ao âmbito
mesmo da vida, mas esse ponto não é investigado pelo filósofo de Praga. Já Deleuze
152
pensa a imanência como um plano de acontecimentos em que os paradoxos são plenos
de sentido e afirmados como distintos das significações, que sempre remetem ao
domínio das coisas. O que salta aos olhos é como Deleuze afirma o meio em que a vida
se dá; um meio transcendental, um campo transcendental sem sujeito, inseparável da
vida em sua imanência.
Então Deleuze nos permite afirmar que só há imanência e, mais ainda, que a
imanência se dá apenas no entre vidas, no fora; o que brilha em seu modo de pensar é
justamente introduzir esse “entre” as singularidades, os acontecimentos, que ocorrem e
permitem a comunicação entre as vidas anteriormente a qualquer exclusão de
predicados. É nesse ponto que uma lógica do sentido se faz inteiramente necessária;
uma lógica que aconteça de modo tão paradoxal como a própria vida em sua imanência;
uma lógica que resgate o pensamento que comece a pensar a partir de um meio ilógico
e irracional. Quando vemos as suas afirmações sobre a distinção entre os
acontecimentos e os estado de coisas, vislumbramos o que sempre foi discutido pelos
filósofos ao longo dos séculos: o que tem mais importância: o empírico ou o
transcendental?
De um modo paradoxal, Deleuze afirma o empirismo transcendental, onde se dá
a experiência do vazio, do entre, sem o qual nenhuma vida se constitui, seja empírica ou
transcendentalmente; e por aí vemos que os problemas que os filósofos se debatem
deixam sempre de afirmar esse meio onde a vida acontece. Nunca nos perguntamos
por que somos levados, por exemplo, a preferir o abstrato, o puro, o formal face ao
empírico ou vice-versa, simplesmente porque a vida não se constitui sem esse hiato,
esse deserto, essa aridez que nos separa. Todavia, sem esse meio, nenhum sentido
poderia ser produzido. Quando, por exemplo, assistimos ao longo da historia da filosofia
aos vários discursos que exaltam a superioridade do conhecimento matemático frente
ao físico, nunca nos perguntamos qual é a fonte de onde deriva esta tendência para
essa superioridade. Há sempre uma tendência ao puro como ao impuro; ora se afirma o
puro, ora o impuro; mas nunca se faz a afirmação dos dois processos. Esse empecilho
deriva do fato de não sabermos distinguir a fonte de onde emanam essas afirmações.
153
Não existe um outro meio onde a vida aconteça e é assim que aparecem questões como
essas que percorrem a filosofia. A teoria da significação privilegia tudo aquilo que é
passível de existir, sem se perguntar pelo sentido do que acontece entre as vidas: o
sentido que sustenta toda e qualquer significação. Quando Bolzano diz que as
proposições em si não se reduzem nem ao pensamento nem à linguagem, é por esse
meio que está impelido; do mesmo modo, quando constata que existem representações
sem objeto, é esse meio, sem o qual não podemos pensar nem dizer nada sobre nada,
que está afirmando.
Deleuze, com seu brilhantismo, afirma que esse meio é a imanência; tanto é que
possuímos dentro de nós uma espécie de vazio,de exterior do interior”, “de dentro do
fora”. A filosofia realmente se renova ao afirmar na imanência toda a potência do
pensamento enquanto criação de conceitos.
154
CAPÍTULO VI
IMANÊNCIA
6.1) Acontecimento e sentido
A gênese do sentido se dá de um modo disperso, de um modo problemático e se
falamos em gênese, devemos considerar a duração em que o sentido aparece, o tempo
em que o sentido acontece. O tempo é problemático porque é o do acontecimento; a
paradoxal afirmação do passado-futuro, que destitui o bom senso e o senso comum. A
individuação só pode se dar caminhando simultaneamente para o passado e para o
futuro; não caminhamos apenas projetando-nos para o futuro. O passado — vide o
exemplo da memória — caminha colado ao futuro a tal ponto que uma indiscernibilidade
aparece entre essas duas direções do tempo. Como saber se estamos indo para o
futuro ou para o passado? Evitar as fontes doadoras de sentido é dar um passo além do
que se pode entender com as filosofias do cogito, uma vez que tais fontes de sentido
possuem sempre o estatuto de arkhé. A filosofia anarcôntica é aquela que não busca
fundamentos para explicar o sentido do mundo. Há sentido no mundo sem que seja
preciso alguém que o doe. Deleuze denomina imanência ao plano em que o sentido
acontece independentemente de qualquer consciência
A filosofia transcendental anarcôntica pensa que o sentido do mundo não é
doado pelo homem, mas sim que o homem faz parte de um processo, de um
acontecimento que é simultaneamente sentido, quando expresso pela linguagem. O
modo de este processo acontecer é o problemático e por ele todas as questões relativas
às explicações do sentido do mundo são problemáticas. Ao indagar pelo sentido a
filosofia expressa o campo problemático do qual deriva o processo de individuação. O
meio de expressar a dispersão, a disparidade de um campo problemático, é a colocação
de problemas. Nesse ponto, não podemos confundir sentido com significação, devido ao
campo problemático não se reduzir estritamente à linguagem. A filosofia jamais
155
conseguirá eliminar os problemas ou mesmo dizer que não existem problemas
filosóficos, considerando que a filosofia, assim como a vida, se mantém no meio
problemático. Daí que a gênese do sentido é sempre problemática. No início era o caos?
Não, o caos é sempre problemático, o caos é imanência. Ao erigir conceitos para
expressar os meios problemáticos, o filósofo precisa buscar refúgios, não em mundos
tranqüilos, mas na dispersão que o encaminha novamente para o caos no qual procura
erguer os seus conceitos. Ao construir conceitos, o filósofo o faz expressando a
experiência de individuar-se no campo problemático. A filosofia não é fácil como nada é
fácil, a vida não é fácil. A resolução de problemas é um acontecimento que se constitui
em meio às dificuldades que a vida encontra; um organismo qualquer assim como um
psiquismo qualquer é sempre resolução de problemas. O problema aparece na filosofia
como o elemento que tensiona a questão. Ao indagar sobre o sentido e ao vasculhar o
campo da consciência e da linguagem, o filósofo acaba por encontrar o campo
problemático como um campo de experiência transcendental. Quando se delimita a
investigação do sentido ao campo das coisas já individuadas, aparece um conjunto de
problemas com características empíricas. Tal circunscrição apresenta ora um horizonte
de coisas, ora um horizonte de fatos. No interior dessa circunscrição se aprecia apenas
o que é passível de realização, deixando-se de lado o que acontece em meios às coisas
e fatos. O sentido do que não é fato nem coisas ora é reduzido à consciência, ora à
linguagem.
As coisas, assim como os fatos, tanto os possíveis como os reais, são apenas
uma das faces do campo de investigação dos problemas; o campo transcendental
apresenta problemas que não são como aqueles que caracterizam as coisas e os fatos.
No ponto máximo da investigação do campo transcendental sem sujeito, abre-se
uma pletora de acontecimentos, que fazem o filósofo entrar em aturdimento. Reduzir o
sentido à significação é apenas evidenciar uma das faces da experiência. A face que
denominamos de experiência transcendental, não é apenas aquela que nos revela
vivências no interior de uma consciência, mas toda uma vida transcendental
problemática em todos os seus aspectos. A redução do problema do sentido à
156
significação é, dentre as formas do empírico, aquela que inibe a potência genética,
assim como a neutralidade do acontecimento. É relevante, em todas as considerações
de Deleuze, a preocupação com o problema; e do mesmo modo que procura não
decalcar o transcendental do empírico, procura não confundir o problema com a
proposição. E ao se preocupar em nos mostrar o que é um problema, Deleuze contribui
para o engrandecimento da filosofia.
Para pensarmos o problema do ser, é necessário, antes de tudo, saber o que é
problema. Se aqui reside o brilhantismo de Deleuze, é esse também o ponto que nos
encaminha à pesquisa filosófica. Quando Deleuze, por exemplo, nos indica que
Aristóteles — nos Tópicos I, IV, 101 b 30-35 — nos mostra que os problemas e as
proposições são em igual número, nos oferece um caminho para entrar ainda mais forte
na pesquisa filosófica. Se Aristóteles diz que a diferença entre o problema e a
proposição é uma simples diferença na construção da frase, Deleuze, por sua vez, diz
que o sonho dos filósofos de fazerem dos problemas um cálculo sempre malogrou
exatamente por derivarem o problema da proposição.Quando informamos que Deleuze
desloca o sentido do verdadeiro e do falso do âmbito da proposição para o do problema
é para destacar a importância ontológica dessa categoria
101
.
Em Diferença e Repetição a dificuldade que habitualmente os filósofos se
deparam quando decalcam o problema a partir da proposição é apresentada. Há um
resultado ilusório que impregna a filosofia a partir desse decalcamento. Deleuze
denomina ilusão natural a essa tendência que se prolonga na ilusão filosófica de mostrar
101
Neste ponto é notória a influência de Bergson sobre Deleuze: no Pensamento e o movente aparecem as distinções
bergsonianas entre verdadeiros e falsos problemas, os verdadeiros problemas são aqueles colocados mais em relação ao
tempo que ao espaço. Bergson, no primeiro capítulo de Matéria e memória se confronta com os argumentos dos psicólogos
e fisiologistas, ao perguntar: como nascem nossas representações de mundo? Os argumentos dos fisiologistas e psicólogos
tendem a afirmar que as representações nascem dos movimentos moleculares que ocorrem no interior de nosso cérebro.
Bergson diz que tais problemas são mal colocados, sobretudo porque os fisiologistas e psicólogos não entendem que o
problema da percepção está estreitamente vinculado à ação e, também, porque o cérebro se situa no organismo, e este
depende inteiramente do mundo. Bergson procura recolocar o problema, de modo que o sentido do verdadeiro problema
apareça em sua importância. O seu ponto de partida para a recolocação do problema é um suposto fingimento sobre a
idealidade e realidade do mundo. O filósofo supõe, finge, que não sabe nada a respeito do mundo e desse modo adota a
posição do senso comum que afirma que o mundo é um conjunto de imagens. Dentre essas imagens, uma é privilegiada em
relação às demais, diz Bergson, o meu corpo; isto porque diferentemente das outras imagens não a conheço apenas de
fora, mediante percepções, mas de dentro, mediante afecções. Bergson acompanha o aparecimento da percepção
consciente e chega à conclusão de que esta aparece no intervalo entre a percepção e a ação. Ora, o que vemos aqui é que
tal intervalo implica duração, tempo; o problema, desse modo, é colocado por Bergson como verdadeiro problema.
157
que um problema é verdadeiro somente se for passível de obter solução. E afirma que
essa ilusão filosófica pode ser exemplificada através da distinção aristotélica entre
dialética e analítica
102
, procurando com ela assinalar como se dá a avaliação dos
problemas. Para o Estagirita, o verdadeiro problema é aquele que não apresenta
nenhum vício lógico. Essas considerações tornam explícito o cuidado de Deleuze em
não decalcar o transcendental do empírico, o sentido da significação e o problema da
proposição.
A nossa pesquisa destaca de modo incisivo o aspecto problemático, sendo o
próprio sentido que nos remete ao problema; e de modo decisivo nos leva a destacar
também a importância do paradoxo como aquilo que faz o pensamento pensar, como
aquilo que retira o pensamento de sua letargia, de sua impotência. A problemática do
sentido em Deleuze, como já assinalamos, difere radicalmente da posição de Husserl a
ponto do pensador francês fazer a seguinte consideração sobre o fenomenólogo:
“Ocorre que Husserl pensa a gênese, não a partir de uma instância necessariamente paradoxal e
não identificável apropriadamente falando (faltando à sua própria identidade como à sua própria
origem), mas ao contrário a partir de uma faculdade originária do senso comum encarregada de
dar conta do processo de identificação de todos os objetos quaisquer ao infinito”
103
François Zourabichvili em seu texto O Vocabulário de Deleuze expõe de modo
brilhante como este pensa a gênese de maneira diferente da fenomenologia,
102
Cf. Diferença e Repetição, p.258. “A figura nova dessa ilusão, seu caráter técnico, vem desta vez do esforço, visando
modelar a forma dos problemas sobre a forma da possibilidade das proposições. Já é este o caso em Aristóteles, que
assinalava a dialética sua tarefa real, sua única tarefa efetiva: a arte dos problemas e das questões. Ao passo que a
Analítica nos dá o meio de resolver um problema, já dado, ou de responder a uma questão, a Dialética deve mostrar como
se estabelece legitimamente a questão. A Analítica estuda o problema pelo qual o silogismo conclui necessariamente, mas
a Dialética inventa os temas de silogismos ( que Aristóteles chama precisamente ‘problemas’) e engendra os elementos de
silogismo que concernentes a uma tema (‘proposições’). Acontece que para avaliiar um problema, Aristóteles nos convida a
considerar “as opiniões que são recebidas por todos os homens ou pela maior parte deles, ou pelos sábios, para referi-los
a pontos de vistas gerais (predicáveis) e formar, assim, os lugares que permitem estabelecê-los ou refutá-los numa
discussão. Os lugares comuns são, pois, a prova do próprio senso comum; será considerado falso problema todo aquele
cuja proposição contenha um vício lógico correspondente ao acidente, ao gênero, ao próprio ou à definição. Se a dialética
aparece desvalorizada em Aristóteles, reduzida às simples verossimilhanças da opinião ou da doxa, não é porque ele tinha
compreendido mal sua tarefa essencial, mas, ao contrário, porque concebeu mal a realização desta tarefa. Preso à ilusão
natural, ele decalca os problemas sobre as proposições do senso comum; preso à ilusão filosófica, ele faz com que a
verdade dos problemas dependa dos lugares-comuns, isto é, da possibilidade lógica de receber uma solução (as próprias
proposições designando casos de soluções possíveis)”.
103
Deleuze, Lógica do Sentido, p.100
158
ressaltando ainda como o filósofo francês é inovador ao pensar o tempo do
acontecimento. A fenomenologia quando pensa o acontecimento deixa que os vestígios
de uma forma primitiva de crença na identidade e numa única direção do tempo
subsistam e por isso o acontecimento não é nunca pensado como sentido, mas sim
como um advento ou aparecimento de um fenômeno no mundo
104
.
O deslocamento do sentido em relação à significação se dá justamente por
Deleuze pensar o campo transcendental como um meio em que ocorre a gênese do
sentido, mesmo antes de aparecerem os problemas no interior da linguagem. A
dificuldade de dizer o mundo, por exemplo, decorre do aspecto problemático que
atravessa a ontologia. O paradoxo, desse modo, é o elemento problemático. Deleuze faz
a seguinte afirmação sobre o paradoxo:
”A manifestação da filosofia não é o bom senso, mas o paradoxo. O paradoxo é o pathos ou a
paixão da filosofia. Há ainda várias espécies de paradoxos que se opõem ao bom senso e ao
senso comum, estas formas complementares da ortodoxia
105
.
A vida ao se processar no universo — podemos dizer neste universo de fogo —
não segue o bom senso e o senso comum; o universo, também com seus processos
ígneos, não obedece estritamente aos princípios lógicos. Se o bom senso e o senso
comum assim como o princípio de não-contradição triunfaram num determinado
momento do pensamento, foi somente através de uma redução do conhecimento a partir
das coisas e dos fatos. O pensamento, de outro modo, só pode ser levado a pensar
104
Cf.François Zourabichvili, O Vocabulário de Deleuze, tradução André Telles, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2004,
p.18. “Gênese é também entendida em relação ao novo conceito de ‘devir’, e é certamente o que mais afasta Deleuze da
fenomenologia e de seus herdeiros mesmo ingratos. A fenomenologia “fracassa” ao pensar a heterogeneidade
fundamentalmente em jogo no devir (em termos deleuzianos estritos): este não é o seu problema, (ela coloca um outro
problema). Com efeito, ela só pensa senão um devir-mesmo ( a forma em vias de nascer, o aparecer da coisa) e não o que
devia ser um pleonasmo – um devir-outro. Não seria isso o que exprime a desarticuclação heideggeriana do termo Ereignis
(acontecimento) em Ereignis (advento-como-próprio)? Daí o equívoco da fenomenologia que sobreviveu a Deleuze ao
pretender retomar o tema do acontecimento e redescobrí-lo como próprio núcleo daquilo a que se dedicava desde sempre a
pensar. Pois, em função de sua problemática fundamental, ela nunca consegue obter mais que adventos, de tipo
nascimento ou vinda ( mas aí também, seu problema sendo outro, certamente é o que ela almeja, ou o que seu “plano” lhe
traz do “caos”). Seu tema é o começo do tempo, a gênese da historicidade; e não, como em Deleuze, a cesura ou a ruptura
cortando irrevogavelmente o tempo em dois e forçando-o a re-começar, numa apreensão sintética do irreversível e do
iminente, o acontecimento dando-se no estranho lugar local de um ainda-aqui-e-já-passado, ainda-por vir-e-já-presente.”
105
Deleuze, Diferença e repetição, p.364.
159
através dos problemas que o forçam a pensar. Como pode um filósofo construir seus
conceitos num meio extritamente apaziguado? Não nos resta outra alternativa a não ser
fazer filosofia a partir de um meio problemático. Deleuze faz a seguinte colocação sobre
este novo tipo de discurso filosófico:
“Eis o problema fundamental de ” Quem fala em filosofia? “ ou qual é o ‘sujeito’ filosófico?
Mas, mesmo fazendo falar o fundo informe ou o abismo indiferenciado, com toda a sua voz de
embriaguez e cólera, não saímos da alternativa imposta pela filosofia transcendental tanto
quanto pela metafísica; fora da pessoa e do indivíduo, não distinguiremos nada”
106
.
Deleuze possui uma leitura peculiar de Nietzsche e, na Lógica do Sentido, articula a
noção de singularidade à de vontade de potência. Nietzsche, diz ele, após a ruptura com
Schopenhauer e Wagner, explora um mundo de singularidades impessoais e pré-
individuais, mundo que ele chama de dionisíaco ou da vontade potência, energia livre e
não ligada.
Ora, o que vemos nessas citações de Nietzsche é que Deleuze continua fazendo
filosofia após as marteladas do pensador dionisíaco e notamos também que ele não
está preocupado em recompor a filosofia pós-marteladas: os estilhaços resultantes das
considerações intempestivas de Nietzsche transmutam-se em singularidades nas quais
Deleuze aposta para fazer uma filosofia sem sujeito.
“E o sujeito deste novo discurso, mas não há mais sujeito, não é o homem ou Deus, muito
menos o homem no lugar de Deus. É esta singularidade livre, anônima e nômade que percorre
tanto os homens, as plantas e os animais independentemente das matérias de sua
individuação e das formas de sua personalidade: super-homem não quer dizer outra coisa, o
tipo superior de tudo aquilo que é. Estranho discurso que devia renovar a filosofia e que trata o
sentido, enfim, não como predicado, como propriedade, mas como acontecimento”
107
.
106
Deleuze, Lógica do Sentido, p.110.
107
Idem, ibdem.
160
Deleuze, pela citação acima, nos exorta a fazer filosofia para além e aquém do sujeito e
da consciência, mas também através da singularidade que é a própria vida. Trata-se de
fazer filosofia tendo a ousadia de dar um passo a mais em relação ao Cogito. Tal tarefa
é aquela que Nietzsche, por exemplo, tanto sonhara em seus aforismos quando
vislumbrava a filosofia como invenção e criação de novos modos de pensar e viver:
fazer filosofia sem os terrores da transcendência e da disciplina espúria do homem.
Deleuze se reporta à singularidade livre, anônima e nômade que atravessa as plantas,
os homens e os animais; a vida como singularidade que não se reduz ao indivíduo. Na
verdade, os indivíduos que são constituídos por singularidades, mas se pensarmos de
modo distinto veremos que o que habitualmente chamamos de indivíduos são, nada
mais nada menos, do que singularidades que coexistem de modos díspares. Os
indivíduos que compõem um determinado grupo são, antes de tudo, singularidades que
ao entrarem em relação compõem tal grupo; uma cidade, um campo social qualquer,
uma tribo nômade habitando o deserto são composições de singularidades, sendo tais
composições altamente problemáticas.
Em seu texto Entre eu e o si ou a questão do humano na filosofia de Nietzsche A..
Onate tece considerações sobre o que seria fazer filosofia para o autor de Zaratustra.
Tais considerações entram em ressonância com o que pensamos de Deleuze.
“A atividade filosófica esteve sempre marcada pelo desconhecimento de seu próprio papel: ao
invés de criar e dispor perspectivas, ela se limitou a descrevê-las, a representá-las, a
circunscrevê-las. O empecilho dos filósofos tradicionais estava focado em dizer o que é o
homem, o que é o mundo, o que é Deus e não intervir decisivamente na produção desses
horizontes de sentido. Saltar da dedução para a produção , eis o leitmotiv da obra nietzschiana
e o ponto nevrálgico de seu cumprimento encontra-se precisamente na questão das valorações
e dos valores ou , de modo mais direto, na transvaloração dos valores”
108
.
Deleuze faz sua filosofia a partir dessa perspectiva nietzscheana, recusando
todos os pressupostos que possam imiscuir-se em seu modo de pensar o sentido. O que
se vislumbra em sua tessitura acerca do sentido e do acontecimento é um esforço
108
Alberto Onate, Entre eu e o si ou a questão do humano na filosofia de Nietzsche, Rio e Janeiro, Sete Letras, p.249.
161
incomum e um grito que se transmuta em voz, numa única voz, que expressa o sentido
como distância em relação à significação.
Não podemos deixar de observar que o tema do sentido foi pensado por Gottlob
Frege (1848-1923), que se opunha radicalmente ao psicologismo, e que uma linha de
filosofia se constituiu a partir de suas pesquisas; e que seu pensamento influenciou tanto
Husserl como Wittgenstein. Frege se colocou em oposição à psicologia, indicando que
qualquer homem pode captar um pensamento verdadeiro conforme aqueles que
aparecem na lógica e na matemática. Além de nos mostrar a validade dos argumentos,
a lógica elucida também que não há um conteúdo particular de um pensamento
verdadeiro, isto é, o conteúdo não pertenceria exclusivamente a um determinado sujeito.
Ora, vemos, nesse ponto, como Deleuze se inscreve na mesma direção que Frege, mas
que existiriam diferenças em relação aos dois no que diz respeito ao sentido. O que há
de comum entre eles é que o sentido possui independência em relação ao sujeito. Ao
pensar o acontecimento distinto das coisas e dos estados de coisas Deleuze se
aproxima das considerações de Frege, já que suas indicações remetem sempre ao
transcendental sem sujeito e vemos que aquilo que Frege considera como uma Verdade
objetiva, independente do sujeito, tem a ver com a independência do acontecimento em
relação à consciência. Em seu artigo Sentido e referência Frege assinala que todos
aqueles que falam capturam o sentido das expressões sem mesmo saber de sua
referência, isto é, sem saber do que se trata, do que se pensa e se tal referência é
verdadeira ou falsa. Frege é considerado por muitos autores como aquele o pensador
que abre o caminho da filosofia contemporânea.
“A distinção entre sentido e referência não se aplica apenas às expressões como os nomes
próprios e as descrições definidas. Ela adquire inclusive todo o seu alcance quando serve para
descrever o que para Frege é o nível verdadeiro da análise lógica, o da frase autêntica, o da
frase que pode ser verdadeira ou falsa, ou seja, o enunciado (Satz). Para Frege, uma frase tem
um sentido que pode ser captado por várias pessoas; Frege chama esse conteúdo objetivo de
pensamento (Gedanke) ‘e o que um lógico hoje em dia denomina de proposição. Várias frases
diferentes podem exprimir o mesmo pensamento ou proposição. Por exemplo, ‘o cume do
Everest está a 8.800 metros acima do nível do mar’ e a altura do Everest é de 8.800 metros’ são
162
duas frases gramaticalmente diferentes, mas que exprimem o mesmo ‘pensamento’.
Conseguimos, porém, compreender o sentido da frase antes de saber se ela é verdadeira ou
falsa A frase teria portanto, além de seu sentido, uma referência que será seu valor de verdade,
sua verdade ou sua falsidade. Frege desenvolveu de fato uma teoria, evocando o platonismo e
retomada depois, segundo a qual todas as frases verdadeiras têm a mesma referência, o
Verdadeiro, o que é o mesmo que dizer que elas só designam uma mesma e única realidade que
se poderia conceber como o mundo das verdades”
109
.
As especulações de Deleuze em relação ao sentido são muito próximas das de
Frege, porém se distinguem quanto ao valor que o primeiro dá aos paradoxos. Deleuze
também não está preocupado em estabelecer uma pesquisa em torno da frase, para
analisar se esta é significativa e nem muito menos se atêm ao seu valor de verdade; por
outro lado, também não procura deduzir ou descrever como o sentido se dá: o sentido é
para Deleuze sempre produzido em meio ao campo problemático. Em Frege vemos uma
aproximação do sentido com as Formas platônicas, pois o mundo do sentido não
remeteria ao mundo da física nem muito menos ao da psicologia. Mesmo assim
observamos que Deleuze não segue a linha filosófica que deriva de Frege como, por
exemplo, a seguiram Russell e Wittgenstein.
Quando nos deparamos com as questões que envolvem o aspecto paradoxal do
sentido, são sempre recorrentes as controvérsias de Russell em relação a Frege, e
sobretudo a Meinong. A teoria das descrições serve de antídoto, de meio eficaz para
impedir a proliferação de objetos inexistentes no campo epistemológico. A teoria das
descrições de Russell trata de eliminar os objetos inexistentes, que não possuem
qualquer espécie de vínculo com a experiência sensível. A referência é, nesse sentido,
aquilo que determina o valor de verdade de uma proposição.
Em suas análises lógicas pormenorizadas Russell exemplifica como sua teoria
das descrições pode ser aplicada: as frases “O rei da França é calvo” e “Absalão é
calvo” aparentemente assemelham-se quanto à construção parecendo possuir o mesmo
modelo, isto é, o que relaciona um sujeito e um predicado. As duas frases são falsas,
109
Jean Lacoste, A Filosofia no século XX,, tradução Marina Appenzeller, Campinas: Papirus, 1992, p.27.
163
pois sabemos que Absalão, segundo as escrituras, morreu pendurado pelos cabelos. A
segunda frase é falsa porque não há atual rei da França. A contraditória da primeira é
“Absalão não é calvo” a qual é verdadeira. Já a contraditória da segunda “O rei da
França não é calvo” também é falsa já que não existe atual rei da França. A teoria das
descrições tem como objetivo eliminar as aparentes descrições definidas, que causam
enganos e erros. Russell procura mostrar que a frase “O atual rei da França é calvo”
deve se desenvolver em três fases: 1) há pelo menos uma pessoa que é o rei da
França; 2) há uma única pessoa que é o rei da França; 3) a pessoa que é o rei da
França é calva.
O enfoque que demos a Meinong foi justamente para podermos apresentar o
sentido articulado ao campo dos problemas, além de elucidar como Deleuze se afasta
das posições que encaminham o tratamento do sentido pela via da análise lógica. A
teoria do objeto de Meinong serviu para deixar em relevo o problema do sentido.
Deleuze faz a seguinte afirmação:
“O elemento do sentido é bem reconhecido pela Filosofia, tornou-se mesmo muito familiar.
Todavia, isto talvez ainda não seja suficiente. Define-se o sentido como a condição do
verdadeiro; mas, como se supõe que a condição guarde uma extensão maior que o
condicionado, o sentido não funda a verdade sem tornar o erro possível. Quanto ao não
sentido, ele seria o caráter daquilo que não pode ser nem verdadeiro nem falso”
110
.
A inexistência dos objetos impossíveis e o incorporal dos estóicos — todos esses
elementos paradoxais — contribuem para que Deleuze procure dentro da lógica e na
ontologia meios que façam o pensamento lidar não apenas com o que é racional, mas
também com o que está para além e aquém da razão. Deleuze afirma que o sentido o
leva a considerar a importância ontológica da categoria de problema. O aspecto
ontológico aparece quando Deleuze procura distinguí-lo da proposição:
110
Deleuze, Diferença e Repetição, tradução Roberto Machado e Luiz. B.Orlandi, Riode Janeiro: Graal,p.251
164
“Encontramo-nos, então, numa estranha situação: descobre-se o domínio do sentido, mas ele é
remetido apenas a um fato psicológico ou a um formalismo lógico. Sendo preciso, anexa-se aos
valores clássicos do verdadeiro e do falso um novo valor, o do não-sentido ou do absurdo”
111
.
Deleuze afirma que o sentido é problema e tal afirmação deriva do contágio que a
teoria dos objetos de Meinong lhe proporcionou. Que passo levaria Deleuze a considerar
o sentido como problema? Não seria outro do que aquele que envolve a impossibilidade
de existência dos objetos. O sentido dos objetos inexistentes, dos objetos contraditórios
é o passo que lhe permite fazer uma filosofia que trata o sentido como acontecimento. A
insistência de Deleuze acerca do sentido como acontecimento esbarra nas
considerações de caráter lógico, sobretudo quando afirma a potência do paradoxo. A
lógica do sentido distingu-se da que remete à significação precisamente por encontrar
no sentido o problema filosófico. Quando confundimos o sentido apenas como um
problema de linguagem, no mínimo o confundimos com a significação. Vejamos esta
citação de Deleuze:
“Mas, assim, caímos num ninho de dificuldades secundárias, pois, como evitar que as
proposições contraditórias tenham o mesmo sentido, visto que a afirmação e a negação são
apenas modos proposicionais? E como evitar que um objeto impossível, contraditório em si
mesmo, tenha um sentido, embora não tenha ‘significação’ (o ente-quadrado do círculo)? E ainda:
como conciliar a fugacidade de um objeto e a eternidade de seu sentido?”
112
.
Deleuze apresenta o problema e ao mesmo tempo indica que a lógica do sentido
é tão problemática quanto a ontologia e dessa maneira podemos encontrar ai o tema da
univocidade. A lógica do sentido é unívoca à ontologia problemática. Deleuze afirma:
“O sentido está no próprio problema. O sentido é constituído no tema complexo, mas o tema
complexo é o conjunto de problemas e de questões em relação a que as proposições servem de
elementos de resposta e de casos de solução. Todavia, esta definição exige que nos
111
Deleuze, Diferença e Repetição, p.251.
112
Idem. Ibdem, p.255
165
desembarecemos de uma ilusão própria da imagem dogmática do pensamento: é preciso parar de
decalcar os problemas e as questões sobre proposições correspondentes, que servem ou podem
servir de respostas”
113
.
O sentido como problema desfaz a ilusão natural que consiste em imaginar que o
problema seja a modificação gramatical, isto é, uma construção gramaticalmente
diferente do que aquela da proposição. Não basta simplesmente modificar a proposição
para que o problema apareça, mas sim apresentá-lo como onto-lógico.
“Nós sabemos qual é o agente da ilusão; é a interrogação, que, nos quadros de uma comunidade,
desmembra os problemas e as questões e os reconstituem de acordo com proposições da
consciência comum empírica, isto é, de acordo com verossimilhanças de uma simples doxa”
114
.
Desfazer as ilusões é o meio de Deleuze encontrar o problema em seu avatar
ontológico. A interrogação é a ilusão que desnatura o problema; a ilusão filosófica, por
sua vez, confunde o valor do problema com sua possível solução. Confundir o problema
com uma simples interrogação, diz Deleuze, é ganhar muito pouco. Deleuze explica que
o ganho é pequeno porque uma interrogação é sempre calcada sobre respostas
passíveis de serem dadas, sobre respostas prováveis ou possíveis. Interrogar implica
uma repartição de bom senso e de senso comum no seio de uma comunidade onde a
distribuição do saber se dá em relação às consciências empíricas. A interrogação indica
que as consciências se relacionam pressupondo que uma sabe o que a outra ignora. A
repartição da interrogação não deixa que o problema apareça em seu estatuto
ontológico. É nesse ponto que Deleuze procura distinguir o sentido da significação como
é possível se ver na seguinte citação:
“Por não ver que o sentido ou o problema é extra-proposicional, que ele difere, por natureza,
de toda proposição. Perde-se o essencial, a gênese do ato de pensar, o uso das
faculdades”
115
.
113
Idem, ibdem, p.257.
114
Idem, ibdem. P.257.
115
Idem ibdem, p.258.
166
A dialética, como arte das questões e problemas, se desnatur, quando decalca os
problemas nas proposições. A conseqüência disso tudo é que nos fazem crer que os
problemas são dados prontos e que desaparecem nas respostas ou nas soluções.
Somos pedagogicamente ensinados a crer que o ato de pensar, assim como o
verdadeiro e o falso só concernem às soluções. Deleuze faz uma afirmação decisiva
sobre o assunto:
“É o destino da imagem dogmática do pensamento apoiar-se sempre em exemplos
psicologicamente pueris, socialmente reacionários (os casos de recognição, os casos de erro, os
casos de proposições simples, os casos de respostas ou de soluções) para prejulgar o que deveria
ser o mais elevado no pensamento, isto é, a gênese do ato de pensar e o sentido do verdadeiro e
do falso”
116
.
O sentido do verdadeiro e do falso deixa transparecer todo o cuidado de Deleuze
em pensar que “uma solução tem sempre a verdade que merece de acordo com o
problema a que ela corresponde e, o problema tem sempre a solução que merece de
acordo com sua própria verdade e falsidade, isto é, de acordo com seu sentido”. A partir
desse ponto consideramos ser extremamente necessário indicar como Deleuze insere o
aspecto ontológico do problema. Aqui, mais uma vez afirmamos como o procedimento
deleuziano se altera justamente por começar a pensar o sentido articulado ao problema
da individuação. Deleuze faz a seguinte afirmação sobre esse aspecto:
“Gilbert Simondon mostrou recentemente que a individuação supõe, em primeiro lugar, um estado
meta-estável, isto é, a existência de uma “disparação” como duas ordens de grandeza ou duas
escalas de realidade heterogêneas, pelo menos, entre as quais os potenciais se repartem. Esse
estado pré-individual não carece, todavia, de singularidades: os pontos relevantes ou singulares
são definidos pela existência e pela repartição dos potenciais. Aparece, assim, um campo
“problemático” objetivo, determinado pela distância entre ordens heterogêneas”
117
.
116
Idem, ibdem, p.259.
117
Idem, ibdem, p.393.
167
A partir dessa citação, podemos acompanhar como Deleuze pensa o campo
transcendental como um campo de singularidades díspares, como um campo de
acontecimentos transcendentais. A disparidade deste campo indica que já existem
sínteses, sínteses disjuntivas
118
onde a dispersão inclui a heterogeneidade: a
coexistência de problemas povoa o campo transcendental.
6.2) O percurso do campo transcendental ao plano de imanência
A potência genética do campo transcendental resultará naquilo que mais tarde
Deleuze irá chamar de plano de imanência. Nesse ponto, consideramos ser necessário
apresentar o itinerário dessa passagem que vai da idéia de campo transcendental até o
que Deleuze chama, em seu último texto, de imanência: uma vida. Deleuze procura
pensar a filosofia fora de uma imagem dogmática do pensamento, daí fazer recurso a
aspectos da filosofia que são por ele considerados como uma nova imagem do
pensamento. Sua filosofia, nesse sentido, procura situar-se naquilo que ele chama de
imanência em oposição à transcendência, e seu desenvolvimento apresenta, sobretudo,
a preocupação em pensar a relação entre pensamento e vida. O pensamento é um ato
de criação e conseqüentemente um modo de vida. Ora, o que pretendemos destacar,
nessa passagem, são as considerações de Deleuze sobre as relações de Bergson e
Sartre
119
com a imanência.
Deleuze reverencia Bergson e Sartre como dois filósofos que pensaram a
imanência sem a colocarem como imanente a algo. Bergson aparece em vários
118
Francois Zourabichvili, O Vocabulário de Deleuze, p.106-107. “A síntese disjuntiva (ou disjunção inclusa) é o operador
principal da filosofia de Deleuze, o conceito assinado entre todos. Pouco importa que seja um monstro aos olhos dos
lógicos. Deleuze, que definia de bom grado seu próprio trabalho como a elaboração de uma “lógica”, criticava a disciplina
institucionalizada sob esse nome por reduzir exageradanmente o campo do pensamento ao limitá-lo ao exercício pueril da
recognição, e por assim justificar o bom senso satisfeito e obtuso aos olhos do qual tudo o que da experiência abala os dois
princípios de contradição e do terceiro excluído é puro nada, e vão, todo empreendimento de aí discernir o que quer que
seja. O pensamento é antes de tudo clínico, decifrador sensível e paciente dos regimes de signos produzidos pela
existência, e segundo os quais ela se produz. Seu ofício é construir os objetos lógicos capazes de dar conta dessa
produção e levar assim a questão critica a seu mais alto ponto de paradoxo: ali onde são focalizadas condições que não
são ‘maiores que o condicionado’ (esse programa conduz diretamente ao conceito de disjunção inclusiva). Deleuze,
portanto, protesta com veemência contra a confusão do irracionalismo e do ilogismo, conclamando por ‘uma nova lógica’,
plenamente uma lógica”.
119
Não podemos deixar de observar que é o nome de Espinoza que brilha na constelação de filósofos que Deleuze
considera como sendo da imanência.
168
momentos da obra de Deleuze, que a ele dedica os artigos “Bergson” e “A concepção da
diferença em Bergson”, produzidos em 1956. No ano seguinte, publica o Bergsonismo,
livro em que não se pode encontrar ainda qualquer referência à idéia de plano de
imanência, nem tampouco à de campo transcendental. Não vemos, no Bergsonismo,
sequer remissão ao primeiro capítulo de Matéria e memória (Seleção das Imagens),
que em 1983 se tornará tema em seu primeiro livro sobre filosofia e cinema: “A imagem-
movimento”. Este livro toma como referência o campo prévio das imagens de Matéria e
Memória — primeiro sistema de imagens em que elas agem e reagem entre si sem se
reportarem a um centro fixo ou sem que apareça ali qualquer intervalo. Nesse primeiro
livro sobre filosofia e cinema, Deleuze já aplica o termo plano de imanência para tratar
desse sistema de percepção pura ou da matéria em movimento. Nesse trabalho,
Deleuze observa que no capítulo IV da Evolução criadora, publicado em 1907, Bergson
acusava o cinema de produzir uma ilusão de movimento através de cortes fixos no
tempo; enquanto que em Matéria e memória, escrito onze anos antes, já aparecia o
cinema como imagem movimento
120
. Em seu segundo livro sobre cinema “A imagem-
tempo”, escrito em 1985, Deleuze estuda o cinema a partir do terceiro capítulo de
Matéria e memória “Sobrevivência das imagens”. Já em “O que é a filosofia?”, livro
escrito em parceria com Felix Guattari e publicado em 1991, vemos a exaltação de
Bergson por ter pensado a imanência
121
.
Sartre também comparece em inúmeras citações de Deleuze. Observamos,
entretanto, desde a “Lógica do sentido” até “A Imanência: uma vida” uma série de
120
Cf. Gilles Deleuze, Conversações, tradução: Peter Pal Pelbart, Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 63-64. “É muito curioso.
Tenho a impressão de que as concepções filosóficas modernas da imaginação não levam em conta o cinema; ou elas
crêem no movimento, mas suprimem a imagem, ou elas mantêm a imagem, mas suprimem dela o movimento. É curioso
que Sartre, em L’imaginarie, considere todos os tipos de imagem, exceto a imagem cinematográfica. Merleau-Ponty se
interessava pelo cinema, mas para confrontá-lo com as condições gerais da percepção e do comportamento. A situação de
Bergson, em Matéria e memória, é única, ou melhor, é Matéria e memória que é um livro único, extraordinário na obra de
Bergson. Ele não coloca mais o movimento do lado da duração, mas por um lado estabelece uma identidade absoluta entre
movimento-matéria-imagem, e, por outro, descobre um tempo que é a coexistência de todos os níveis de duração (a matéria
sendo o nível mais inferior). Fellini, dizia recentemente que somos ao mesmo tempo a infância, a velhice, a maturidade: é
totalmente bergsoniano. Em Matéria e memória há, portanto as núpcias de um puro espiritualismo com um materialismo
radical”.
121
Cf. Gilles Deleuze O que é a filosofia? tradução: Bento Prado Júnior e José Alberto Alonso Muñoz – Rio de Janeiro :
Ed. 34, 1992, p.66-67. “Aconteceu com Bergson, uma vez: o princípio de Matéria e memória traça um plano que corta o
caos, ao mesmo tempo movimento infinito de uma matéria que não pára de se propagar e a imagem de um pensamento,
que não pára de fazer proliferar por toda a parte uma pura consciência de direito”
169
hesitações, e até certo ponto de rupturas — e por fim referências positivas a esse autor.
Na “Lógica do sentido” essas hesitações e rupturas têm como alvo a noção de campo
transcendental
122
que Deleuze indica ser imprescindível para tratar o tema do sentido.
Sua crítica em relação a essa noção, conforme utilizada por Sartre, deu-se sobretudo
pelas ligações desse filósofo com a fenomenologia de Husserl — mesmo após retirar o
ego transcendental e mostrá-lo com transcendente. A consciência enquanto
intencionalidade
123
é um dos motivos de crítica.
Como é de nosso propósito acompanhar o percurso das noções citadas,
observemos que a idéia de campo transcendental aparece ao longo do texto de Prado
Júnior assim como no de Deleuze, trazendo uma forte inspiração de Sartre. Ora, as
considerações de Deleuze sobre Sartre mudam de teor quando nos deparamos com “O
que é a filosofia?”; onde o campo transcendental
124
aparece articulado à imanência e a
contribuição de Sartre exaltada. Nesse texto também se podem observar algumas
referências críticas a Bergson, no que diz respeito às relações entre filosofia e ciência,
associadas, sobretudo, à distinção delezeana entre estado de coisas e acontecimento.
O sobrevôo, pensado como acontecimento
125
, paira sobre os estados de coisas e
corpos possuindo uma relação diferente com o tempo.
122
Cf. Gilles Deleuze, Lógica do Sentido – tradução: Luiz Roberto Salinas Fortes, São Paulo, Perspectiva, 1974, p.101.
“Em verdade a doação de sentido a partir de uma quase causa imanente e a gênese estática que se segue para as outras
dimensões da proposição não podem ser realizar senão em um campo transcendental que responderia as questões que
Sartre punha em seu artigo de 1937: um campo transcendental impessoal não tendo a forma de uma consciência pessoal
sintética, a de uma identidade subjetiva – o sujeito, ao contrário sendo sempre constituído”.
123
Cf. Idem, ibdem, p.101n. A idéia de um campo transcendental impessoal ou pré-pessoal, produtor do Eu, assim como
do Ego é de uma grande importância. O que impede esta tese de desenvolver todas as suas conseqüências em Sartre é
que o campo transcendental impessoal é ainda determinado como o de uma consciência que deve então unificar-se por si
mesma e sem eu através de um jogo de intencionalidades ou retenções puras”.
124
Gilles Deleuze O que é a filosofia? , p. 65-66. “A suposição de Sartre, de um campo transcendental impessoal devolve
a imanência seus direitos. Um tal plano é talvez um empirismo radical; ele não apresenta um fluxo de vivido imanente a um
sujeito, e que se individualiza no que pertence a um eu. Ele não apresenta senão acontecimentos, isto é mundo possíveis
enquanto conceitos, e outrem, como expressões de mundos possíveis e personagens conceituais. O acontecimento não
remeteao vivido a um sujeito transcendente = Eu, mas remete ao sobrevôo imanente de um campo sem sujeito”
125
Idem, ibdem, p.203-204. “Um sistema atual, um estado de coisas ou um domínio de função, se definem, de qualquer
maneira, como um tempo entre dois instantes, ou entre muitos instantes. É por isso que, quando Bergson diz que entre dois
instantes, por mais próximos que sejam, há sempre tempo, ele ainda não sai do domínio das funções e somente introduz
nele um pouco de vivido. Mas, quando subimos para o virtual, quando nos voltamos para a virtualidade, que se atualiza no
estado de coisas, descobrimos uma realidade inteiramente diferente, onde não temos mais de cuidar do que ocorre de um
ponto a outro, de um instante a outro, porque ela transborda toda função possível. De acordo com os termos familiares, que
se pôde emprestar de um cientista, o acontecimento “não se preocupa com o lugar em que está, e pouco se importa em
saber desde quando ele existe”, de modo que a arte, e mesmo a filosofia, podem apreendê-lo melhor que a ciência. Não é
mais o tempo que está entre dois instantes, é o acontecimento que é um entre-tempo: o entre-tempo não é eterno, mas
170
É em seu último texto, publicado em 1995, “A Imanência: uma vida”,que o campo
transcendental
126
vai ser articulado ao plano de imanência e este definido como “uma
vida”. E o que vem a ser uma vida?
A filosofia, sob inspiração aristotélica, sempre considerou a existência da ciência
apenas do universal. Deleuze retoma a pesquisa dos pensadores franciscanos
medievais da escola de Oxford e também a de Espinoza. A hecceidade, considerada por
Duns Scot como a realidade última, compreende o indivíduo como detentor de uma
essência singular irredutível à essência universal e específica. Quando Deleuze afirma
uma vida como pura imanência, antepondo ao termo vida o artigo indefinido uma, não é
para uma indeterminação que ele aponta, mas para a determinação de uma
singularidade. Esse texto, “A imanência: uma vida” traz em suas linhas primorosas uma
grande exaltação dos filósofos anteriormente criticados pelo autor. Husserl, por exemplo,
é criticado em “O que é a filosofia?” por conceber a imanência a uma subjetividade
transcendental como um fluxo de vivido. No entanto, como esse vivido puro e mesmo
selvagem, não pertence inteiramente ao eu que o representa para si, é nas regiões de
não pertença que se reestabelece no horizonte algo de transcendente: uma vez sob a
forma de uma “transcendência imanente ou primordial” de um mundo povoado de
objetos intencionais; uma segunda vez como transcendência privilegiada de um mundo
intersubjetivo povoado de outros eus; uma terceira vez como transcendência objetiva de
um mundo povoado de formações culturais e pela comunidade dos homens. Apesar de
todas essas considerações críticas, Husserl vai ser exaltado como aquele que permitiu a
Sartre elaborar a tese sobre a transcendência do ego e conseqüentemente do campo
também não é tempo, é devir. O entre-tempo, o acontecimento, é sempre um tempo morto, lá onde nada se passa, uma
espera infinita que já passou infinitamente, espera e reserva”.
126
Gilles Deleuze. L’imannence: une vie, Paris, Philosophie, n. 47, Minuit, 1995 – A imanência; uma vida., tradução de
Jorge Vasconcellos e Hércules Quintanilha, in Gilles Deleuze : imagens de um filósofo da imanência, Londrina, UEL,
1997. “O que é um campo transcendental? Ele se distingue da experiência desde que não se remeta a um objeto nem
pertença a um sujeito (representação empírica). Também se apresenta como pura corrente de consciência a-subjetiva,
consciência pré-reflexiva e impessoal, duração qualitativa da consciência sem eu. Pode parecer curioso que o
transcendental se defina por tais dados imediatos: falaremos de empirismo transcendental em oposição a tudo o que faz o
mundo do sujeito e do objeto. Há algo de selvagem e de potente neste empirismo transcendental. Não é o elemento da
sensação (o empirismo simples), já que a sensação não passa de um corte na corrente da consciência absoluta. É a
passagem, por mais próximas que sejam duas sensações, a passagem de uma á outra se dá como um devir, como
aumento e diminuição de potência ( qualidade virtual)”.
171
transcendental.
127
É na perspectiva da história da filosofia apresentada como a
instauração de um plano de imanência que a importância de Sartre e Bergson se
agiganta, revelando a parcela de contribuição desses filósofos que pensaram o campo
transcendental e o plano de imanência sem a submissão a algo transcendente como
uma consciência, um sujeito ou um objeto. É assim que Bergson e Sartre participam da
elaboração daquilo que Deleuze em seu texto derradeiro nomeou de empirismo
transcendental
128
.
6.3) Do empirismo transcendental
Tomaremos como orientação para tratar desse assunto o livro de Prado Junior, já
trabalhado em nossa tese de mestrado, onde se encontram referências bastante
esclarecedoras em torno da obra Husserl e Bergson. A ênfase nesses dois pensadores
nos parece importante, sobretudo porque em seu ultimo texto Deleuze os destaca ao
pensar a vida e a imanência. Prado Junior aborda o impasse em relação à experiência
transcendental, isto é: tal experiência prescinde ou não do sujeito? Sua exposição
esclarece que pelo menos em Bergson tal subjetividade não é imprescindível.
“A redução fenomenológica, ao transformar o mundo em sistemas de fenômenos ou de noemas,
abre o campo da experiência transcendental
, como horizonte de uma subjetividade transcendental.
Se a redução bergsoniana instaura, também como veremos, um campo de experiência
transcendental, não será no interior de uma subjetividade constituinte, pelo contrário, é a partir da
127
Idem, ibdem, Até mesmo Husserl reconhece: O ser do mundo é necessariamente transcendente consciência, mesmo
na evidência originária, e permanece necessariamente transcendente. Mas isso não muda em nada o fato de que toda
transcendência se constitui unicamente na vida da consciência, como inseparavelmente ligada `a esta vida..(Meditations
cartesiennes, Ed. Vrin, p.52). Este será o ponto de partida do texto de Sartre”.
128
Valéria Loturco da Silva, O empirismo transcendental na filosofia de Gilles Deleuze, dissertação de mestrado
apresentada sob a orientação de Bento Prado Júnior ao Departamento de Filosofia da USP, em fevereiro de 2001, p.221.
“Nesse sentido, o empirismo transcendental define o próprio movimento da diferença, tendo em vista que o campo virtual
não está submetido à identidade do Eu ou da consistência, mas pode ser definido como sendo o exercer da diferença em si
mesma. Então, o empirismo transcendental é o caminho para se chegar à diferença. Agora, além de se definir como um
empirismo transcendental, o pensamento deleuziano também pode ser chamado de filosofia da diferença”.
172
noção de indeterminação ou de introdução de novidade que assistiremos, no interior do campo
transcendental, ao nascimento da própria subjetividade. De alguma maneira, podemos dizer que o
sistema de imagens corresponde à idéia de um espetáculo sem espectador. Mais precisamente ele
é o lugar onde, tornando-se possível o espetáculo, criam-se, ao mesmo tempo, as condições de
possibilidade de um espectador em geral”
129
.
Nessa citação se encontra a fonte de onde brota toda a problematização em torno
do campo transcendental. Nossa leitura de Deleuze, sobretudo quando relacionamos
sua teoria do sentido ao problema da individuação, ressalta o que Prado Junior assinala
em Bergson. A experiência transcendental é a maneira que Deleuze encontra para
afirmar que toda a produção de sentido e de individuação se dá sem o concurso de um
sujeito, sendo ai que observamos sua fuga do idealismo transcendental. O empirismo
transcendental de Deleuze pode ser visto pelo mesmo ângulo que Prado Junior aponta
em Bergson, ou seja, como introdução de novidade e indeterminação no seio do campo
transcendental, mas também como um campo problemático, como em Simondon, onde
a individuação se dá como resolução de problemas sem o olhar de um sujeito. É nesse
campo problemático que a própria subjetividade transcendental irá aparecer e
desaparecer.
O conceito de empirismo transcendental, pensado por Deleuze, é de singular
importância em nosso trabalho por levar-nos à pesquisa filosófica e sobretudo à busca
da diferença entre os filósofos que pensaram o transcendental. Enquanto pensador da
diferença, Deleuze nos convida a elucidar a diferença entre o seu pensamento e o dos
outros filósofos que, por exemplo, se dedicaram ao problema do sentido. Quando
naquele último texto Deleuze fala da imanência, coloca em relevo a fenomenologia,
assim como o bergsonismo, como contribuições primordiais para a sua elaboração. Daí
a insistência que empregamos em ressaltar a diferença entre Husserl e Bergson, no que
diz respeito à experiência transcendental, bastante destacada no desenvolvimento de
nosso trabalho, mas que, por esse mesmo motivo, merece mais acuidade em seu
tratamento.
129
Bento Prado Junior, op.cit, p.145-146.
173
O conceito de empirismo transcendental já tinha aparecido em Diferença e
Repetição, onde Deleuze o relacionava ao uso discordante das faculdades em Kant ou
propriamente à gênese das faculdades. É preciso destacar que tal empirismo não se
preocupa apenas em lidar com indivíduos. Desde Ockham sabemos que o indivíduo é
também considerado como singular. O nominalismo é um empirismo, já que considera
os indivíduos como as únicas realidades existentes e coloca os universais como flactus
vocis, ou sob o estatuto de signos arbitrários. Deleuze, por sua vez, ao promulgar seu
empirismo transcendental, toma como ponto de partida as singularidades que, como já
enfatizamos, não mais se confundem com os indivíduos. O empirismo, em Deleuze, não
é portanto apenas nominal, mas um empirismo transcendental em que a subjetividade
se constitui no dado, ou seja: no próprio campo transcendental. Ao escrever A
concepção de diferença em Bergson Deleuze já indicava um empirismo superior,
presente no filósofo da duração. Tal empirismo é condizente com o propósito de
Bergson de construir conceitos móveis para acompanhar o fluxo da duração. Entre o
pensamento e o movente, por exemplo, não existiria mais uma relação de condicionante
para condicionado (o empirismo superior pensa a experiência real e não apenas às
condições da experiência possível!), pois o condicionamento é sempre transcendente ao
condicionado — o que fica evidente quando se pretende que existam condições a priori
que permitam aos conceitos puros do entendimento serem aplicados às formas puras da
sensibilidade, como em Kant; ou quando se quer, como em Husserl, que exista uma
transcendência na imanência que doe unidade e identidade às vivências.
Quando Deleuze em Empirismo e subjetividade, sua monografia sobre Hume,
pensava que o sujeito se constitui na experiência, já estava fugindo do condicionamento
transcendental. Ora, de outro modo, poderíamos objetar que todas essas questões já
teriam sido pensadas pela ontologia fundamental de Heidegger. O que restaria de novo
em Deleuze, após Heidegger? O empirismo transcendental, a partir das singularidades,
é um traço distintivo e inovador de Deleuze quando se pensa em termos de ontologia.
Podemos também enunciar aqui que em tal empirismo o nome de Bergson aparece
como principal filósofo a inspirar Deleuze. Se prestarmos atenção ao primeiro capítulo
174
de Matéria e memória descobriremos que Bergson ao fingir nada saber sobre a
idealidade e a realidade do mundo, de um certo modo, está fugindo do condicionamento
transcendental. Seus argumentos de início vão de encontro aos dos psicólogos e
fisiologistas que afirmavam que nossas representações de mundo derivariam dos
movimentos moleculares que ocorrem no interior do cérebro. Bergson diz que, sim, tais
representações podem derivar desses movimentos, mas que não se originam neles. De
outro modo, quando afirma que o mundo é um conjunto de imagens dentre as quais uma
é privilegiada, pois que não a conheço de fora mediante percepções, mas de dentro
mediante afecções, deixa claro que o corpo deve ser considerado, quando se trata de
fazer filosofia. A imanência do corpo mediante afecções é destacada por Bergson, e não
apenas um ver perceptivo. Em seu suposto fingimento, Bergson não recua até uma
subjetividade, onde vivências temporalizadas seriam unificadas por um eu atemporal. A
imanência em Bergson não é a de um sujeito ou consciência que possuiria dentro de si
uma transcendência original, uma transcendência constituinte de unidade e sentido do
mundo.
Do mesmo modo que Bergson desfaz os argumentos dos psicólogos e
fisiologistas, também procura desfazer os equívocos que habitualmente nos perpassam
ao tomarmos a percepção como fonte do conhecimento; é então que se preocupa em
nos mostrar que a percepção não acrescenta nada ao mundo; pelo contrário: por possuir
um vínculo com a ação, a percepção subtrai do conjunto de imagens aquelas que lhe
interessam. É, então, neste vínculo — entre percepção e ação — que irá encontrar o
intervalo, aquele que traz em si a indeterminação, a introdução de novidade no campo
prévio das imagens.
A imagem que percebe, age e se afeta possuiria pois uma zona de
indeterminação. É ela que nos permite sentir que a filosofia de Bergson se encaminha
para a imanência através da afecção. E como, nesse intervalo — na zona de
indeterminação e novidade — aparecem as durações e as multiplicidades. Não se trata
de encontrar, após a redução, um eu puro, um espectador desinteressado, como nos
orienta Bento Prado Junior em seu trabalho. Encontramos em Bergson, após seu
175
suposto fingimento – e aqui relembramos que não é apenas o poeta que finge – um
espetáculo sem espectador. O que fica em relevo, nessas considerações bergsonianas,
é que é pela afecção que a imanência do espetáculo começa a ser experimentada.
Ao nos apresentar o campo transcendental, Deleuze nos indica serem as
singularidades os verdadeiros acontecimentos transcendentais. Ora, esse termo nos
remete para Sartre, que discorre sobre a epokhé husserliana no final da Transcendencia
do Ego. A discussão é proveitosa, por ser exatamente após a redução que irá se
descortinar a experiência transcendental. É então que Sartre se pergunta: o que propicia
a epokhé? Como da atitude natural lograríamos passar para a atitude transcendental?
Sartre formula essas questões justamente por não ter encontrado suficiente resposta em
Husserl. Enquanto medita sobre a epokhé, no final da Transcendência do ego,
examinando-a inclusive de maneira crítica ao considerá-la como um milagre, Sartre
finalmente vai elucidar que ela deriva da angústia.
Sartre procura pensar a epokhé mediante o esvaziar-se da consciência, um
movimento incessante da consciência para ultrapassar-se a si mesma — apreender-se
escapando de si. A epokhé seria pois uma conseqüência desse movimento angustiante
de esvaziamento. Um acontecimento puro de origem transcendental e um acidente
possível da nossa vida cotidiana, complementa Sartre. E aqui gostaríamos de afirmar o
caráter problemático que atravessa a filosofia; mais precisamente no caso da
fenomenologia. O tema é apropriado, já que é pela epokhé que Husserl chega ao Eu
transcendental; e por ser este o problema que percorre as discussões que viemos
apresentando ao longo do trabalho.
Sartre crê que Husserl introduziu a noção de Eu transcendental para garantir a
unidade e a individualidade da consciência, ou seja, para poder afirmar que Paulo e
Pedro possuem consciências individuais inteiramente distintas. A tese de Sartre é que a
consciência, sendo um puro movimento de ultrapassar-se a si mesma, não comportaria
um Eu transcendental. É então que na introdução da Transcendência do Ego faz a
seguinte a firmação:
176
“Para a maior parte dos filósofos, o ego é um habitante da consciência. Alguns afirmam a sua
presença formal no seio das Erlebnisse como um princípio vazio de unificação. Outros —
psicólogos em sua maior parte — pensam descobrir sua presença material, como centro dos
desejos e dos atos, em cada momento de nossa vida psíquica. Nós queremos mostrar aqui que o
Ego não está na consciência nem formal nem materialmente: ele está fora, no mundo, tal como o
Ego de outrem”
130
.
Para Sartre a consciência não precisaria de nenhum princípio unificador para que
as sínteses que nela ocorrem se tornassem possíveis, ela se basta a si mesma. Quando
se diz uma consciência, diz-se toda a consciência; não é necessário um Eu
transcendental para que a unidade e a individualidade da consciência sejam garantidas.
As suas objeções remetem para o ponto de inflexão no pensamento de Husserl, quando
este recorre, nas Idéias, ao Eu transcendental; nos textos anteriores às Idéias,
sobretudo nas Lições sobre a consciência imanente do tempo, curso ministrado em
Gottingen em 1905, é a consciência que se auto-unifica. O tema da auto-unificação é
importante por aparecer em Deleuze quando pensa o campo transcendental sem sujeito
inclusive quando faz sua réplica a Sartre.
A tese de Sartre é que a consciência é pré-posicional, no limite impessoal. O que
isto quer dizer? A consciência só pode ser limitada por si mesma, isto é, a unidade e
identidade decorrem dela mesma e não de um eu transcendental. Sartre afirma de modo
categórico que o Eu é somente uma expressão da consciência e não a sua condição. O
eu transcendental decorre, portanto, do fato da consciência ser uma totalidade sintética
e individual inteiramente isolada de outras totalidades do mesmo tipo. Sartre mantém —
eis sua diferença para Husserl — que o eu transcendental é totalmente inútil para que a
consciência possua unidades de síntese, afirmando inclusive ser ele a morte da
consciência. Tudo na consciência é translúcido, no sentido de possuir o absoluto em si
mesma, independente do eu transcendental, que apareceria apenas como um centro de
opacidade. Vemos aqui que, sendo um fenomenólogo e crítico da concepção
husserliana, Sartre se mantém preso à consciência como um absoluto, sem no entanto
130
Sartre, A Transcendência do ego, tradução Pedro M. S. Alves, Lisboa, Colibri, 1992, p.44.
177
pensá-la como uma fase do processo de individuação. Sartre afirma que a consciência
não é posicional, não é tética, por não ser objeto para si mesma, o seu objeto está fora
dela e, é por isso que , num mesmo ato, ela o põe e o apreende. Sartre define tal
consciência como irrefletida. A pergunta de Sartre é: há lugar para um eu transcendental
no seio da consciência irrefletida? Se tudo é translúcido na consciência irrefletida como
encontrar nela a opacidade de um Eu transcendental?
Sartre considera que a consciência é um absoluto não substancial; o eu aparece
como qualquer coisa para a consciência, mas não como uma qualidade da consciência.
A passagem do irrefletido para o refletido, no entanto, é o ponto que os partidários de
Husserl
131
encontram como a maneira de neutralizar os argumentos de Sartre. A
estrutura da consciência é apresentada por Sartre da seguinte maneira: primeiro, há um
ato irrefletido que se dirige para a consciência refletida; segundo, essa consciência
refletida torna-se objeto da consciência irrefletida; terceiro, um objeto novo aparece,
sendo este uma ocasião de afirmação da consciência reflexiva, e não está, por
conseguinte, nem no mesmo plano da consciência irrefletida ( porque esta é um
absoluto que não precisa da consciência reflexiva para existir) nem no mesmo plano do
objeto da consciência refletida; este objeto transcendente do ato reflexivo é o eu. Sartre
faz a seguinte a firmação sobre esse problema:
“O campo transcendental purificado de qualquer estrutura egológica, readquire a sua limpidez
primeira. Num sentido é um nada visto que todos os objetos físicos, psicofísicos e psíquicos, todas
as verdades, estão fora dele, visto que meu Eu (moi) deixou, ele mesmo, de fazer parte dele. Mas,
este nada é tudo, visto que ele é consciência de todos esses objetos. Já não é questão de “vida
interior” no sentido que Brunschwig opõe vida interior e ‘vida espiritual’, porque não há nada que
seja objeto e que possa pertencer à interioridade da consciência”
132
.
131
Pedro M.S. Alves em seu texto Observações sobre uma tese de Sartre que é a introdução da sua tradução da
Transcendencia do Ego apresenta uma bela análise deste problema. A sua postura é a de defender o Eu transcendental em
Husserl onde procura mostrar que este possui uma relação com a unidade e individualidade da consciência. “O que faz a
individualidade da consciência é, assim, aquilo mesmo que fazia a sua unidade, a saber, a síntese temporal. Efetivamente,
o que permite à consciência compreender-se como individual é o fato dela viver sob a forma de recuperação retencional de
si mesma e da projeção para diante a partir do que lhe é presente por meio dessa auto conservação retencional. Ao
projetar-se para diante mantendo uma continuidade com o seu passado imediato, a consciência obtém assim uma ligação
contínua de todas as fases do seu desenvolvimento temporal, de tal modo que a mesmidade de estilo e de ponto de vista,
que eram precisamente as notas de sua individualidade, se vêem por essa via também asseguradas”.
132
Sartre, ibdem, p.76.
178
O problema fenomenológico do Eu transcendental se desdobra, segundo os
argumentos de Sartre, num objeto transcendente à consciência irrefletida. A posição
desse problema resulta no impasse de saber se o Eu é transcendental ou transcendente
à consciência. Ora, o problema deve ser colocado de outra maneira: como a consciência
aparece dentro do campo transcendental sem sujeito? Sartre na Transcendência do ego
faz a seguinte citação: “O ego é para os objetos psíquicos, o que o mundo é para as
coisas” Notemos aqui que a relação entre o eu e o mundo pemanece nas réplicas que
Sartre tece em relação a Husserl, ambos porém afirmam que o Eu é transcendente à
consciência; a diferença entre eles é que Husserl afirma a transcendência na imanência,
enquanto Sartre a transcendência fora da imanência; sendo que Husserl considera
como imanência o que ocorre na subjetividade.
Quando enfatizamos que o pensamento de Deleuze procurava sair fora da
relação entre o eu e o mundo, pretendíamos assinalar que é plenamente possível
pensar a filosofia fora desses terminais metafísicos. Notamos, no entanto, que a
transcendência na imanência em Husserl parece querer reconstituir a posição exercida
por Deus na filosofia moderna, como fonte e garantia da identidade do eu e do mundo. A
imanência nunca é pensada nela mesma, assim como o sentido nunca é pensado nele
mesmo. O desaparecimento de Deus, assim como do Eu, não gera, entretanto, o
abismo indiferenciado; pelo contrário: a imanência aparece com toda a sua potência de
gênese.
A teoria do sentido de Deleuze, dentro do âmbito da filosofia transcendental,
ganha uma diferença para as de Husserl e de Sartre. Deleuze considera que o campo
transcendental impessoal formulado por Sartre — mesmo que não tenha a forma de
uma consciência pessoal ou de uma identidade subjetiva onde o Ego aparece como
transcendente — é insuficiente, devido ao critério de unificação se dar por um jogo de
intencionalidades puras. Como Deleuze quer pensar o sentido sem confundi-lo com a
designação, com manifestação e com significação, ele afirma que não basta recusar a
179
forma do pessoal; o campo transcendental deve também ser isento das formas do geral
e do individual. A forma do pessoal caracteriza um sujeito que se manifesta, a forma do
geral significa classes e propriedades objetivas das coisas e a forma do individual
designa sistemas individualizados de maneira objetiva, que remetem a pontos de vista
subjetivos, eles mesmo individuantes e designantes.
Deleuze sublinha sua diferença para com Husserl quando afirma que não adianta
estabelecer centros de individuação e pontos de vista no campo transcendental como
faz o fenomenólogo. Assinala, todavia, que aprecia o movimento de Husserl para
instaurar no campo transcendental vários eus à maneira de Leibniz, ao invés de uma
forma do Eu ao modo de Kant. Tal reverência, ao nosso ver, é por Husserl ter quase
chegado às singularidades que povoam o campo transcendental; mas insistimos aqui
em sublinhar a diferença entre os dois pensadores ao afirmar que o fenomenólogo
povoa o campo transcendental com mônadas e egos; enquanto o filosófo francês
encontra ali apenas singularidades. Deleuze afirma que nas Meditações Cartesianas
Husserl coloca as mônadas numa posição muito importante, ao lado do Eu como
unidade sintética de apercepção. Todavia, acrescenta um comentário de Gaston Berger,
em que este faz uma objeção a Sartre ao assinalar que a consciência impessoal pode
não ter necessidade do Eu transcendental, mas que não pode dispensar pontos de
vistas ou centros de individuação. Por que o campo transcendental em Husserl não
pode dispensar pontos de vista e centros de individuação? Para não se tornar um
abismo indiferenciado, não podemos perder de vista que Deleuze está procurando
pensar a neutralidade e a potência genética do sentido. E é justamente nesse ponto que
Deleuze afirma que Husserl pensou as singularidades, mas já aprisionadas nos
indivíduos e nas pessoas.
O empirismo transcendental apresenta muitas questões levantadas por Husserl
em sua fenomenologia, mas avança, a partir das considerações de Sartre sobre o
campo transcendental, no que tange ao campo transncendental sem consciência e sem
sujeito. É então que podemos dizer que Deleuze emparelha com mais um pensador que
tem sua origem na fenomenologia. Heidegger é um pensador que dispensou o sujeito, a
180
consciência, rumando para uma ontologia fundamental; em sua disussão com Cassirer,
em Davos, podemos observar como pensa o problema do ser-aí e também como se
distancia da fenomenologia:
“Acredito que o que designo por Dasein (ser-aí) não é traduzível por nenhum conceito de
Cassirer. Se quiserem designá-lo como consciência, isto é justamente o que tento rechaçar. O
que denomino ser-aí não se determina com o que se denomina por espírito, nem por vida, senão
que se refere à unidade pristina e à estrutura imanente da relação do homem, que de certa
maneira está vinculado a um corpo, e que, mediante tal vínculo com o corpo, está em certa
ligação com o ente no meio do qual se encontra; o ser aí, ainda que aferrolhado em meio ao ente,
pratica em relação a este uma ruptura livre, a qual é sempre histórica e efêmera; tão efêmera que
a mais excelsa forma de existência do ser-aí somente se deixa retrair a raros e excassos
momentos entre a vida e a morte, pelo que cabe dizer que o homem só existe por momentos
exíguos em cima de sua própria possibilidade, enquanto o resto passa se movendo em meio de
seu próprio ente”
133
.
A citação de Heidegger é importante por nos mostrar que sua filosofia se
distancia da fenomenologia no que diz respeito à consciência, o que nos permite enfocar
com mais proximidade os problemas que viemos até agora discutindo, sobretudo
aqueles que remetem à vida e à imanência. Heidegger, como vimos, recusa-se a definir
o Dasein como consciência e, também, como vida. Todavia, quando pensa que o Dasein
existe apenas diante de suas possibilidades, não percebe que a escolha, a decisão, só
pode ocorrer desse modo por ser esse o único meio em que os problemas apresentados
foram resolvidos. Não haveria outro modo do Dasein existir, a não ser que um outro
campo de problemas se apresentasse e fosse resolvido de outra maneira. Vemos que a
dimensão do problema do transcendental se amplia cada vez mais; com Husserl, vemos
que o transcendental não é apenas a condição de possibilidade para toda experiência
possível, mas sim a transcendência originária no seio da imanência; através de Sartre
assistimos à possibilidade de não haver Eu transcendental por trás da consciência; com
Heidegger vemos dissipar-se toda consciência transcendental, aparecendo uma
133
Heidegger, Kant y el problema de la metafísica, Mexico, Fondo de Cultura, p.76.
181
abertura do Ser através do próprio Dasein. Mediante todas essas questões, Deleuze nos
apresenta um empirismo transcendental em que o conceito de singularidade
134
aparece
como a diferença radical para com todos esses pensadores que se ocuparam do
problema do transcendental.
A teoria do sentido de Deleuze traz essa marca característica, de modo que se
quisermos apresentar a sua filosofia para aqueles que não tiveram contato com ela
devemos destacar, em seu modo de pensar, o que vem a ser a singularidade. A citação
a seguir deixa o entendimento dessa noção bastante nítido:
“O que é um acontecimento ideal? É uma singularidade. Ou melhor: é um conjunto de
singularidades, de pontos singulares que caracterizam uma curva matemática, um estado de coisa
físico, uma pessoa psicológica e moral. São pontos de retrocessos, de inflexão etc.; desfiladeiros,
nós, núcleos, centros; pontos de fusão, de condensação, de ebulição etc.; pontos de choro e de
alegria, de doença e de saúde, de esperança e de angústia, pontos sensíveis como se diz. Tais
singularidades não se confundem, entretanto, nem com a personalidade daquele que se exprime
em um discurso, nem com a individualidade de um estado de coisas designado por uma
proposição, nem com a generalidade ou a universalidade de um conceito significado pela figura ou
a curva. A singularidade faz parte de uma outra dimensão diferente das dimensões da designação,
da manifestação ou da significação. A singularidade é essencialmente pré-individual, não pessoal,
aconceitual. Ela é completamente indiferente ao individual e ao coletivo, ao pessoal e ao
134
François Zourabichvili, O Vocabulariode de Deleuze, tradução André Telles, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004,
p.100-103. “A elaboração do conceito de singularidade procede de uma radicalização da interrogação crítica ou
transcendental: o indivíduo não é o primeiro na ordem do sentido, devendo ser engendrado no pensamento (problemática
da individuação); o sentido é o espaço da distribuição nômade, não existe partilha originária das significações (problemática
da produção de sentido). Com efeito, embora à primeira vista pareça a ùltima realidade tanto para a linguagem como para a
representação em geral, o indivíduo supõe a convergência de certo número de singularidades, determinando uma condição
de fechamento sob a qual se define uma identidade: o fato de que certos predicados sejam escolhidos implica que outros
sejam excluídos. Nas condições da representação, as singularidades são desde logo predicados, atribuíveis a sujeitos. Ora,
o sentido é por si mesmo indiferente à predicação (‘verdejar’ é um acontecimento como tal, antes de ser tornar a
propriedade possível de uma coisa, ‘ser verde’); por conseguinte, comunica-se de direito com qualquer outro acontecimento,
independentemente da regra de convergência que o apropria a um eventual sujeito. O plano onde se produz o sentido é
assim povoado de singularidades nômades e não hierarquizadas, constituindo puros acontecimentos. Essas singularidades
têm entre si relações de divergência ou de disjunção certamente não de convergência, uma vez que esta já implica o
princípio de exclusão que governa a individualidade: elas só se comunicam por sua diferença ou sua distância, e o livre jogo
do sentido e de sua produção reside precisamente no percurso dessas múltiplas distâncias, ou “síntese disjuntiva”. Os
indivíduos que somos, derivando desse campo nomádico de individuação, que conhece apenas acoplamentos e
disparidades, campo transcendental completamente impessoal e inconsciente, não reatam com esse jogo do sentido sem
fazer a experiência da mobilidade de suas fronteiras. A esse nível, cada coisa não é mais ela mesma senão uma
singularidade que ‘se abre ao infinito dos predicados pelos quais ela passa, ao mesmo tempo em que perde seu centro, isto
é, sua identidade como conceito e como eu”.
182
impessoal, ao particular e ao geral – e às suas oposições. Ela é neutra. Em compensação, não é
ordinária: o singular se opõe ao ordinário”
135
.
O empirismo transcendental distingue a filosofia de Deleuze das demais filosofias
transcendentais: as singularidades impedem que caiamos no abismo indiferenciado, ou
que se pretenda decalcar o transcendental do campo empírico. Ao recusar a forma da
pessoa e o ponto de vista da individuação, Deleuze afasta a possibilidade do campo
transcendental ser dado como uma consciência. Ele afirma que uma consciência sem
síntese de unificação não é nada e não há síntese de unificação sem a forma do Eu ou
ponto de vista da individualidade. Os indivíduos e as pessoas só podem se comunicar
através da recognição, onde reinam a identidade e a semelhança; no campo das
singularidades impessoais e pré-individuais tudo se comunica com tudo, assim como a
vida não-orgânica envolve todos os indivíduos e pessoas, que por sua vez somente se
comunicam por recognição constituindo campos de exclusão; no limite bolsões de
miséria e holocaustos diários. Através do empirismo transcendental, Deleuze
potencializa a filosofia, apontando para futuras pesquisas que possam tornar cada vez
mais atraente o estudo dessa disciplina que atravessa o tempo.
Ao pensar o empirismo transcendental, Deleuze está delineando uma posição
que diverge literalmente daquela construída por Kant. O filosofo de Könisberg defende a
idéia de que a experiência só é possível por intermédio de sínteses que derivam a priori
do entendimento. Veremos aqui a propriedade dos conceitos de sínteses disjuntivas e
de singularidade em Deleuze. Quando Kant expõe sua visão de como a experiência é
possível, revela ainda resquícios do hilemorfismo, o que fica evidente quando vemos
sua preocupação em mostrar que existe a matéria da experiência e a forma do
entendimento. A matéria do empírico é a sensação, diz Kant; a sensação quando
relacionada à consciência chama-se percepção.
Kant elucida que dentre as representações que constituem uma experiência,
quase todas derivam da sensibilidade, exceto uma: a do composto. O composto por não
135
Deleuze, Lógica do Sentido, p.55
183
derivar da sensiblidade obviamente tem sua fonte no entendimento. O que seria o
composto? Kant introduz, desse modo, a forma do entendimento na matéria da
experiência. As sínteses a priori do entendimento permitem com que a experiência seja
possível porque as sensações, mesmo quando relacionadas à consciência, não
possuem tais sínteses. O diverso é ligado por uma unidade que Kant denomina unidade
sintética de apercepção. Tal unidade permite à consciência fazer as ligações dessas
diversidades de representação mediante determinadas funções. Kant chamou essas
funções de categorias.
Deleuze introduz uma modificação nesse modo de pensar a experiência, não se
atendo aos seus aspectos materiais e formais. Sua modificação consiste em pensar a
experiência a partir de um campo de singularidades não ligadas; e a noção de
singularidade se insere justamente entre a matéria e a forma. Não se trata mais de
pensar a experiência das coisas que aparecem constituídas de materia e forma. Deleuze
pensa as singularidades como o campo transcendental onde as coisas, indivíduos e
pessoas constituídos de matéria e forma aparecem. Tal experiência implica a inserção
da vida no campo das especulações filosóficas. Todavia, faz- se necessário acrescentar
que tal experiência implica em um novo aspecto de sínteses: as sínteses disjuntivas.
Esse ponto parece nítido, na obra de Deleuze, quando este se reporta, por exemplo, às
considerações de Duns Scot sobre as hecceidades: singularidades que pernitem aos
indivíduos se distinguirem uns dos outros; mas também quando faz seu agenciamento
com Simondon; mas é sobretudo no plano de imanência de uma vida que retira a
imposição do hilemorfismo. É aqui que observamos como a experiência transcendental
em Deleuze permite sínteses disjuntivas como uma via diferente da filosofia
transcendental inaugurada por Kant. O conceito de singularidades vem dar novo brilho à
experiência transcendental.
6.4) As sínteses disjuntivas
184
Ao pensar o acontecimento, Deleuze remeteu-nos inicialmente ao pensamento
dos estóicos, afirmando, no entanto, em determinado ponto do texto, que Leibniz era o
grande teórico do acontecimento. Não tardou, porém, em recusar o pensamento do
filósofo das mônadas pelo uso negativo que ele faz da divergência. O estudo das
sínteses disjuntivas na Lógica do Sentido remete para a critica de dois filósofos: Leibniz
e Kant. Nesse ponto, Deleuze expõe que as sínteses disjuntivas se dão quando um
elemento paradoxal, quando um precursor sombrio, não mais um eu transcendental, faz
ressoar as séries. A filosofia deleuzeana sempre nos remeteu para a questão dos
simulacros e, quando encontramos suas proposições em torno do elemento paradoxal,
parecemos vislumbrar uma espécie de “modelo simulacro” no campo transcendental
provido de singularidades díspares. As singularidades gozariam de um princípio de auto-
unificação, sempre móvel e deslocado, na medida em que seriam percorridas por um
elemento paradoxal que as faz ressoar, constituindo não mais um mundo, mas um
“caosmos” — onde os indivíduos e as pessoas apareceriam constituindo mundos.
Os estóicos, como dissemos, serviram de inspiração para que Deleuze traçasse
sua teoria do sentido; no entanto, em determinado ponto do texto, ele afirma terem
esses filósofos sucumbidos à causalidade física, vindo então a erigir Leibniz como o
teórico do acontecimento, por considerar que aquilo que este denomina compossível e
incompossível não se deixaria reduzir ao idêntico e ao contraditório. Nesse estudo das
sínteses disjuntivas, remete-nos então para uma lógica que não tem como preocupação
afirmar os princípios de identidade e de não contradição; e que nos nos permite também
escapar da lógica dialética, onde é afirmada a contradição. Em sua teoria do
acontecimento, pensa que o acontecimento envolve os estados de coisas e com Leibniz
encontra o tema da compossibilidade em que afirma que os predicados são inerentes a
um sujeito, na medida em que correspondam aos acontecimentos compossíveis com o
mundo em que este sujeito vive. Assim, o predicado pecador, para Adão, é compossível
com o mundo em que Adão pecou e incompossível com o mundo em que não pecou.
Leibniz tem uma viva consciência da anterioridade e da originalidade do acontecimento
em relação ao predicado, diz Deleuze; e indica que a compossibilidade deve ser definida
185
de uma maneira original, a um nível pré-individual, pela convergência das séries que
formam as singularidades dos acontecimentos estendendo-se sobre linhas ordinárias. A
incompossibilidade assinala uma divergência entre as séries ao redor das
singularidades. Deleuze faz aqui uma afirmação cuja importância é preciso destacar:
“Dois acontecimentos são compossíveis quando as séries que se organizam em torno de suas
singularidades se prolongam umas às outras em todas as direções, incompossíveis quando as
séries divergem na vizinhança das singularidades componentes. A convergência e a
divergência são relações completamente originais que cobrem o rico domínio das
compatibilidades e incompatibilidades alógicas e com isso formam um peça essencial da teoria
do sentido
136
.
A incompossibilidade serve de regra para que Leibniz exclua os acontecimentos
uns dos outros fazendo da divergência ou da disjunção um uso negativo ou de exclusão.
A justicativa para essa escolha é a subserviência às exigências da teologia. Deleuze
afirma que tudo é uma questão de ponto de vista e se decide por um uso afirmativo da
divergência.
“Mas o que quer dizer isso, a divergência ou a disjunção como objetos de afirmação? Em regra
geral, duas coisas não são simultaneamente afirmadas senão na medida em que sua diferença
é negada, suprimida de dentro, mesmo se o nivel desta supressão é supostamente incumbido
de regulamentar a produção da diferença tanto quanto seu desvanecimento. Sem dúvida, a
identidade não é aí a da indiferença, mas é geralmente pela identidade que os opostos são
afirmados ao mesmo tempo, quer aprofundemos um dos opostos para aí encontrar o outro,
quer procedamos a uma síntese dos dois. Falamos, ao contrário, de uma operação a partir da
qual duas coisas ou duas determinações são afirmadas por sua diferença, isto é, não são
objetos de afirmação simultânea senão na medida em que sua diferença é ela própria
afirmada, ela própria afirmativa. Não se trata mais, em absoluto, de uma identidade dos
contrários, como tal inseparável ainda de um movimento do negativo e da exclusão. Trata-se
de uma distância positiva dos diferentes: não mais identificar dois contrários ao mesmo tempo,
mas afirmar sua distância como o que relaciona um ao outro enquanto diferentes. A idéia de
uma distância positiva enquanto distância (e não distância anulada ou vencida) parece-nos o
essencial, porque ela permite medir os contrarios por sua diferença finita em lugar de igualar a
136
Deleuze, Logica do Sentido,177.
186
diferença a uma contrariedade desmedida e a contrariedade a uma identidade ela propria
infinita. Não é a diferença que deve ‘ir até’ à contradição, como pensa Hegel no seu voto de
acolher o negativo, é a contradição que deve revelar a natureza de sua diferença seguindo a
distância que lhe corresponde. A idéia de distância positiva é topológica e de superfície e exclui
toda profundidade ou toda elevação que reuniriam o negativo com a identidade”
137
.
Quando Deleuze expõe o problema das sínteses disjuntivas está ressaltando
que a vida é o procedimento mesmo e retira de Leibniz a afirmação de que não há
pontos de vista sobre as coisas, mas que as coisas, os seres, são pontos de vistas.
Deleuze, no entanto, diferentemente de Leibniz faz da incompossibilidade não uma
regra de exclusão, mas um meio de comunicação; os pontos de vista deixam de ser
submetidos a regras que os admitiam apenas quando convergiam; como, por exemplo,
os pontos de vista sobre uma mesma cidade. Deleuze adota o procedimento de
Nietzsche em “Ecce Homo”, ou seja, a inversão da perspectiva onde é feita a afirmação
em torno da vida mediante a relação saúde-doença. Deleuze toma como ensinamento,
o pensamento de Nietzsche quando este diz que é preciso observar, enquanto doente,
conceitos mais sadios, valores mais sãos; e depois, inversamente, no alto de uma vida
rica, superabundante e segura de si, mergulhar no trabalho secreto do instinto da
decadência. Deleuze, através da inversão da perspectiva, pensa a divergência dos
pontos de vista onde cada um afirma a sua diferença; cada ponto de vista é uma
afirmação de divergência, de distância; e coloca a seguinte questão sobre as sínteses
disjuntivas:
“Mas, justamente, toda a questão é de saber em que condições a disjunção é uma verdadeira
síntese e não um procedimento de análise que se contenta em excluir predicados de uma
coisa em virtude da identidade de seu conceito (uso negativo, limitativo ou exclusivo da
disjunção). A resposta é dada na medida em que a divergência ou o descentramento
determinados pela disjunção tornam-se objetos de afirmação como tais. A disjunção não é, em
absoluto, reduzida a uma conjunção; ela continua sendo disjunção uma vez que recai e
continua recaindo sobre uma divergência enquanto tal. Mas esta divergência é afirmada de
modo que o ou torna-se ele próprio afirmação pura. Em lugar de um certo número de
137
idem, ibdem, p.178-179.
187
predicados serem excluídos de uma coisa em virtude da identidade de seu conceito, cada
coisa se abre ao infinito dos predicados pelos quais ela passa, a mesmo tempo em que ela
perde seu centro, isto é, sua identidade como conceito ou como eu. À exclusão dos predicados
se substitui a comunicação dos acontecimentos
138
.
As criticas endereçadas a Leibniz repercutem naquelas dirigidas a Kant, onde
vemos aparecer os mesmos pontos em relação ao uso negativo da divergência. Quando
Deleuze se reporta ao conceito de sínteses disjuntivas imediatamente faz remissão à
filosofia transcendental de Kant, indicando o que a dialética transcendental nos fornece
para pensarmos tal questão. Kant, como sabemos, quando formulou a distinção entre
uso lógico e uso transcendental da razão deixou-nos como legado o ensinamento de
que as idéias transcendentais ou os conceitos da razão pura não se relacionam
diretamente com a sensibilidade, mas sim com o entendimento. Nesse capítulo intitulado
“Dos conceitos da razão pura” , o filósofo de Könnisberg nos ensina acerca da
dificuldade em se denominar um conceito com a palavra adequada; por isso o conceito
puro da razão, ao ser denominado idéia transcendental, requer de Kant uma distinção
sobre aquele homônimo de Platão. Nesse ponto, podemos acompanhar como se dá
para o filósofo a preocupação quanto à criação de conceitos, tema que
coincidentemente será tratado posteriormente pelo próprio Deleuze quando se interroga:
O que é a filosofia? Kant, na segunda seção do Livro I da Dialética Transcendental, nos
indica o que a analítica transcendental nos ensinou sobre a representação dos objetos;
diz ele que só podemos possuir representações de objetos pelas mesmas quando estes
aparecerem sobre uma unidade sintética, que é a única a nos permitir um conhecimento
empírico dos objetos. Qual seria então o papel dos conceitos puros da razão? Tal
pergunta remete diretamente ao papel e à função das idéias transcendentais com
relação ao conhecimento: que é o de buscar a totalidade das condições pelas quais os
objetos podem ser representados e conhecidos; ao pensarmos a totalidade das
condições, só podemos assinalar que não deve existir uma unidade que ultrapasse tal
138
Idem, ibdem, p.180
188
totalidade: não pode haver uma condição maior do que essa; mas sim que a totalidade
das condições seja uma unidade incondicionada.
O tema das sínteses disjuntivas, como dissemos, faz com que Deleuze assinale
pontos importantíssimos sobre a dialética transcendental de Kant no que remete à
unidade incondicionada que garante a relação entre as partes e o todo. Nesse ponto,
devemos acompanhar o percurso de Kant quando este nos apresenta o que vem a ser a
função dos conceitos da razão pura. Kant nos explica que as categorias do
entendimento atuam nos juízos através de sua forma lógica, dirigindo todo o uso do
próprio entendimento diante dos dados da experiência. Ressalta ainda que, do mesmo
modo, podemos esperar que a forma dos raciocínios e não dos juízos, também tenha a
mesma função de unidade sintética que determina o uso do entendimento no conjunto
total da experiência. A pergunta: qual é a função ou papel das idéias trancendentais é
assim respondida. Kant, porém, vai mais além, ao assinalar que a função da razão —
quando de suas inferências — consiste na universalidade do conhecimento por
conceitos.
Na dialética transcendental, o raciocínio aparece como um juízo determinado por
conceitos a priori em toda a extensão da sua condição; ao raciocinar, a razão procura
sempre um conceito que possua a universalidade que abarque tudo aquilo que é
inferido; daí a relação com o entendimento sempre remeter a tal universalidade. Na
conclusão de um silogismo do tipo: Todo homem é mortal, Caio é homem, logo Caio é
mortal , temos condições de somente pelo entendimento extrair a proposição: Caio é
mortal. Kant nos explica que, nesse caso, a razão procura um conceito que tenha a
condição pela qual é dado o predicado desse juízo, elucidando que em todo silogismo
restringimos um predicado a determinado objeto, após tê-lo anteriormente pensado na
premissa maior em toda sua extensão, sob certa condição. A função da razão aparece
aqui, isto é, como universalidade do conhecimento por conceitos; a universalidade é
toda quantidade completa de extensão como referência e condição para todo conceito
do entendimento. Os conceitos puros da razão, as idéias transcendentais,
correspondem à totalidade das condições de todos os conceitos do entendimento
189
relacionados às sinteses das intuições. Dado um conceito, a razão busca a totalidade
das condições pelas quais o entendimento o mantém sobre determinadas relações. Tal
conceito, por relacionar-se com o entendimento e não com a sensibilidade, é, por sua
vez, incondicionado; as idéias transcendentais são, portanto, incondicionadas. Desse
modo, um conceito puro da razão, de acordo com Kant, pode ser definido como o
conceito do incondicionado, na medida em que contém um fundamento da síntese do
condicionado. Vejamos o que diz Kant a esse respeito:
“Haverá tantos conceitos puros da razão quantas as espécies de relações que o entendimento
se representa mediante as categorias: teremos, pois, que procurar, em primeiro lugar, um
incondicionado da síntese categórica num sujeito; em segundo lugar, um incondicionado da
síntese hipotética dos membros de uma série e, em terceiro lugar um incondicionado da
síntese disjuntiva das partes num sistema”
139
No capítulo da dialética transcendental, cujo título é das Idéias transcendentais,
Kant nos apresenta três tipos de sínteses: hipotética, categórica e disjuntiva; essas
sínteses repercutem em todo o nosso modo de pensar. O eu penso implica em
sabermos como ocorre a ligação entre um sujeito e um predicado para que possamos
pensar um objeto, o que aparece na síntese categórica; de outro modo, também para
que possamos pensar o mundo com seus objetos é preciso um tipo de síntese que
permita relacioná-los, daí a síntese hipotética. Do mesmo modo, para que todos os
objetos em geral possam ser pensados, a síntese disjuntiva aparece como aquela que
evita predicados contraditórios. Deus, neste caso, é aquele que evita a contradição de
predicados. Deus é uma idéia transcendental, isto é, um conceito puro da razão; a razão
tem como fim buscar a totalidade do que o entendimento pensa através de seus
conceitos de reflexão; nessa busca, a totalidade, dos objetos em geral só pode ser
pensada devido à exclusão de predicados; não basta somente a idéia de Eu nem a de
Mundo. No apêndice III de Lógica do Sentido cujo título é: Klossowski ou os Corpos-
Linguagem aparece uma bela exposição sobre a sinteses disjuntivas em Kant. Nesse
139
Kant, Critica da Razão Pura, A323.
190
apêndice, Deleuze afirma que a compreensão desse problema requer que saibamos
como se dá, em Kant, a relação entre a Idéia e o silogismo em geral. A razão é definida
por uma certa maneira de tratar os conceitos do entendimento; um conceito sendo dado,
a razão procura relacioná-lo a um outro que subsume, em toda a sua extensão, o
primeiro. A razão estabelece, no nível dos conceitos, a relação entre condicionante e
condicionado. Podemos citar como exemplo o conceito de mortal, quando tal conceito é
dado, a razão procura o conceito que condiciona em toda a sua extensão essa
atribuição; no caso, o conceito “Todos os homens”. Todavia, um problema aparece
devido ao entendimento possuir categorias a priori que condiciona os objetos da
experiência possível. Nesse ponto, Deleuze destaca que diante desse problema a razão
é forçada a inverter noções supracondicionantes, as quais são chamadas de Idéias.
Em sua belíssima exposição elucida que é somente em segundo lugar que a
razão pode ser definida como faculdade das Idéias. A Idéia é definida como uma noção
que em toda a sua extensão condiciona a atribuição de uma categoria de relação
(substância, causalidade, comunidade) a todos os objetos da experiência possível. As
Idéias de Eu, Mundo e Deus correspondem às categorias de substância, causalidade e
comunidade. Deleuze afirma que o gênio de Kant está em mostrar que o Eu é a Idéia
que corresponde à categoria de substância; o Eu não apenas condiciona a atribuição da
categoria de substância aos fenômenos do sentido externo, mas também o do sentido
interno; o Eu, desse modo, é descoberto como o princípio universal do silogismo
categórico, na medida em que este relaciona um fenômeno determinado como
predicado a um sujeito determinado como substância. A Idéia de Mundo condiciona a a-
tribuição da categoria de causalidade a todos os fenômenos, sendo considerada, por
Kant, como o principio universal do silogismo hipotético. Deus, por sua vez, é a Idéia
que condiciona a atribuição da categoria de comunidade. Deleuze assinala, de modo
brilhante, após elogiar a teoria kantiana do silogismo, que Deus não é mais aquele que
cria sujeitos e mundo, mas aquele que opera disjunções ou pelo mesmo as funda, sendo
considerado o senhor do silogismo disjuntivo. Deus é definido pelo conjunto de toda
possibilidade, na medida em que esse conjunto constitui uma matéria ”originária” ou um
191
todo de realidade. A realidade de cada coisa daí deriva: ela repousa, com efeito, na
limitação desse todo, “uma vez que um pouco de realidade é atribuído à coisa enquanto
o resto é daí excluído, o que está de acordo com o ou da maior disjunta e com a
determinação do objeto por um dos membros desta divisão na menor”. Em suma, o
conjunto do possível é uma matéria originária, por onde deriva, por disjunção, a
determinação exclusiva e completa de cada coisa. E Deus não tem outro sentido além
de fundar esse manejo do silogismo disjuntivo, pois que nos é proibido concluir da
unidade objetiva que sua Idéia representaria a unidade coletiva ou singular de um ser
em si que seria representado pela Idéia”
140
.
O tema da exclusão de predicados fica bem nítido aqui, uma vez que a tese
deleuzeana é a de substitui-la pela comunicação dos acontecimentos. Mas, por que tal
substitução? Sabemos que Deleuze pensa a negação transcendental kantiana como um
uso limitativo e negativo da divergência. O principio de determinação completa de uma
coisa nos leva à compreensão daquilo que Kant considera o conjunto de todos os
predicados possíveis. A determinação de uma coisa impede que ela se abra para todos
os predicados possiveis, sendo este o aspecto que Deleuze ressalta quando fala que
uma coisa quando se abre para todos os predicados possiveis perde sua identidade e se
metamorfoseia, se modifica. Deleuze afirma que Kant considera que Deus é o senhor
dos silogismos disjuntivos. Tal afirmação resulta daquilo que Kant concebe como o
modo da razão operar em seu uso transcendental; a razão opera ao modo de um
silogismo disjuntivo, onde na premissa maior aparece a disjunção — o “ou...ou” — que
assinala uma divisão e já remete para um escolha entre predicados; a premissa menor
limita essa divisão e a conclusão determina a escolha dos predicados, dando a
identidade ao conceito da coisa. Deus é o senhor do silogismo porque contém o
conjunto de todos os predicados possíveis pelos quais uma coisa pode ser determinada.
Tal determinação é uma negação, uma limitação no conjunto de todos os predicados
possiveis. Deleuze assinala, nesse ponto, que uma coisa determinada nunca se abre
para todos os predicados, sendo aqui que o tema insólito sobre a teologia ressurge com
140
Deleuze, Lógica do Sentido, p.303-304.
192
toda a sua força; e a tese de Klossowski ressoa diante das suas afirmações em relação
às sínteses disjuntivas. Ao pensar o ideal transcendental, Kant consolidou o uso
limitativo e negativo da disjunção, o que fez com que Deleuze retomasse a tese de
Klossowski acerca do estatuto de Deus como senhor do silogismo disjuntivo. “A tese de
Klossowski, com a nova critica da razão que implica, assume então todo o seu sentido:
não é Deus, é, ao contrário, o Anti-cristo que é o senhor do silogismo disjuntivo. E isto
porque o antideus determina a passagem de cada coisa por todos os predicados
possíveis”.
141
Deleuze, nesse ponto, começa a pensar toda uma filosofia sem apontar
para o Eu, para o mundo ou para Deus; que ressoa com o desmoronamento que a
dinamite de Nietzsche provocou na categorias filosóficas da tradição. Os temas do
campo transcendental sem sujeito e o das singularidades ganham aqui suma
importância por não nos deixarem cair num abismo indiferenciado e também por nos
permitirem um uso afirmativo das disjunções. Deleuze faz nesse ponto uma afirmação
preciosa, que nos deixa ver todo o encaminhamento de suas considerações sobre o
campo transcendental atravessado por singularidades dispares:
“Não há mais realidade originária. A disjunção não deixa de ser uma disjunção, o ou então não
deixa de ser um ou então. Mas, ao invés da disjunção significar que um certo número de
predicados são excluídos de uma coisa em virtude da identidade do conceito correspondente,
ela significa que cada coisa se abre ao infinito dos predicados pelos quais passa, com a
condição de perder sua identidade como conceito e como eu. Ao mesmo tempo que o
silogismo disjuntivo acede a um princípio e a um uso diabólicos, a disjunção é afirmada por si
mesma sem cessar de ser uma disjunção, a divergência ou a diferença tornam-se objetos de
afirmação pura, o ou então torna-se potência de afirmar, fora das conições no conceito da
identidade de um Deus, de um mundo ou de um eu”.
142
Ao pensar a disjunção de modo afimativo, Deleuze encontra através do conceito
de singularidade um meio de elucidar o que entende por comunicação dos
acontecimentos, uma vez que sempre repetiu que as singularidades são os verdadeiros
141
Deleuze, Lógica do Sentido, p.304.
142
idem , ibdem , p.304.
193
acontecimentos transcendentais, isto é, por mais que um indivíduo esteja imerso e
aprisionado por uma exclusão de predicados, as singularidades que o constituem
permitem uma linha de fuga por se comunicarem com as multiplicidades, com inumeras
singularidades. Daí a inventividade, a criatividade, como podemos atestar na vida
mesma em suas mais diferentes expressões. O conceito de singularidade é aquele que
nos leva a entender o valor dado por Deleuze ao tema das sínteses disjuntivas. Vejamos
esta citação:
“Ora, desde que a singularidade se apreende como pré-individual, fora da identidade de um eu,
isto é, como fortuita , ela se comunica com todas as outras singularidades, sem cessar de
formar com elas dsjunções, mas passando por todos os termos disjuntos que afirma
simultaneamente, ao invés de reparti-los em exclusões”.
143
Deleuze, diferentemente dos “empiristas empíricos”, aponta para um empirismo
transcendental onde as sínteses disjuntivas ocorrem tanto na gênese dos indiividos
quanto nos acontecimentos que os envolvem em suas superficies, o que ressalta o
aspecto transcendental. Transcendental já não é um princípio de submissão dos dados
da experiência às condições a priori de um sujeito, muito pelo contrário: são as sínteses
que o acompanham em todos os seus processos de individuação. A exclusão dos
predicados deriva do hilemorfismo que, de modo subrepticio, ressoa na filosofia de Kant
como um decalque empirico do transcendental.
Deleuze introduziu na filosofia um descompasso, um inusitado modo de pensar
cujo efeito é estrondoso, sobretudo para aqueles que se ocuparam da filosofia
transcendental; e a pesquisa de sua teoria levou-nos ao encontro de uma nova maneira
de ver a fazer filosofia. Ao estudar Deleuze, não podemos deixar de lado a vida; só
pensar que o acontecer se dá de modo distinto ao das coisas. A filosofia encontra o
acontecimento e, com esse encontro, a vida pode se expressar fora dos contornos
determinados pela recognição; e ao pensar filosofia com Deleuze começamos a
entender que a experiência transcendental difere literalmente do que é costume chamar
143
idem , ibdem , p.308.
194
de empírico. É uma experiência de que podemos falar não apenas especulando, mas
incluindo a experimentação que fazemos como diferença em relação à experimentação
das coisas que estão no mundo; o que nos permite falar que no empirismo
transcendental nada é definitivo, mas um campo aberto, como a vida é aberta sem se
fechar nos indivíduos vivos. Nesse tipo de experiência não há referências, como existem
referências na atividade daquele que faz ciência; nem se trata tampouco de buscar
fundamentos como requer uma ciência universal. A filosofia de Deleuze abre um novo
campo de problematização onde a vida é aparece como o único modo de nos
experimentarmos a nós mesmos. Deleuze pensa a experiência transcendental
constituindo-se por sínteses que se dão de modo completamente diverso daquelas
pensadas por Kant; são as sínteses que não derivam do entendimento, mas ocorrem no
em meio do ao campo transcendental, onde individuos e pessoas aparecem presididos
por singularidades. O campo transcendental, podemos dizer assim, é um campo de
sínteses disjuntivas; como uma vida é um plano de sínteses disjuntivas; e é desse modo
que Deleuze fala que o transcendental, ao ser pensado, foi sempre pensado como
decalcado do empírico; assim como o problema da proposição. Os problemas que
vemos ocorrer na filosofia como o da fenomenologia em relação à consciencia como
duração e a constituição das sínteses temporais, como a retenção e a protenção,
constantemente sempre esbarraram na reflexão. Se investigarmos a fundo o problema,
veremos que as sínteses disjuntivas sempre apareceram nas bordas dessas
considerações. O inusitado descompasso introduzido por Deleuze ao pensar o sentido a
partir do acontecimento, repercute na filosofia contemporânea, sobretudo no que diz
respeito ao problema da imanência.
As considerações que Deleuze está pensando têm muito mais a ver com a vida
em sua dispersão, do que no mundo com sua totalidade de coisas e fatos ; o seu modo
de pensar, ao nosso ver, incidem muito mais para sobre o acontecimento viver e, do
modo que este se dá diferente distingue das coisas e estados de coisas do mundo.
Diante destas considerações acerca da vida, o conceito de dispersão poderia ser muito
proveitoso, pois a teoria do sentido de Deleuze somente pode ser pensada a partir da
195
maneira singular com que o acontecimento viver se dá: os seres que são denominados
vivos encontram-se dispersos, isolados, separados uns dos outros e, no entanto, há
comunicação entre eles. A comunicação dos acontecimentos, que substitui a exclusão
dos predicados, pode ser muito bem pensada nesse hiato que separa e une as mais
diversas e singulares vidas; e é só aí que poderemos compreender o esforço de
Deleuze em distinguir sentido e significação. É no vazio, na distância entre as vidas, que
o sentido pode ser pensado como distinto da significação; e como problema, justamente
por ser produzido no seio da impossibilidade.
Através de sua teoria do sentido Deleuze remete, antes de tudo, para a dispersão
que caracteriza o acontecimento viver envolvendo os seres vivos. Tal acontecer possui
uma singularidade, que é a de produzir sentido em meio à dispersão. Vários exemplos,
como o da vespa e da orquídea e o dos animais híbridos podem ser considerados para
elucidar esse estranho modo de comunicação. O acontecimento viver implica tal
dispersão e Deleuze não está preocupado com o mundo, mas com o acontecimento que
nos envolve enquanto possuidores de uma vida. Fazer uma filosofia assim é reavivar os
modos de viver e pensar que nos afastam de uma certa monotonia que apenas nos
pretendem fazer subservientes ao que é ordinário e sem importância. Uma vida é um
acontecer que possui sentido diante de outras singularidades vivas quando, junto a elas
e com elas, produz sentido; a diferença da vida em relação às coisas se dá justamente
por esta mostra exatamente nessa estranha síntese, por esse paradoxo de estarmos
separados, mas ligados, ao mesmo tempo, por uma vida. Ao pensar a vida, a filosofia
não o faz com o intuito de descobrir a sua origem, mas de pensá-la como um problema.
Para Deleuze, pensar as multiplicidades, as várias singularidades que uma vida
traz consigo é sempre uma afirmação, assim como que a distância entre as várias vidas
não deixa de ser uma afirmação da divergência. Há sempre distância entre vidas.
Nenhum indivíduo está junto ao outro, e, no entanto, não pode viver eternamente
isolado; apesar do aparente isolamento, precisa de estabelecer laços com outros
indivíduos. Os indivíduos estão separados entre si e próximos pelos laços que os unem
que, no limite, são as relações que aparecem na vida empírica. Todavia, a vida singular
196
não desaparece diante da vida individual empírica. A separação, a distância é o que
caracteriza a vida empírica. Como já dissemos, as singularidades também são díspares
e heterogêneas e, apresentam mais do que distâncias entre elas, o que acontece entre
elas são disparidades e ressonâncias. O que é dado é um isolamento, um hiato, uma
separação e o que permite dizer que o homem está isolado e abandonado no universo é
justamente a dispersão que é imanente à vida.
Em qualquer multiplicidade, em qualquer comunidade encontraremos distâncias
entre os que a compõem; o que os une, o que os aproxima, é o sentido que não pode
ser visto como uma coisa, por se tratar de um acontecimento. Há produção de sentido
entre as vidas singulares, antes de toda e qualquer significação, manifestação e
designação. Não adianta dizer que estamos no mundo e que, através da consciência,
tendemos para as coisas do mundo, tentando significá-las; o que envolve o abandono
do homem no seio do mundo é o isolamento, a distância, a dispersão. Só há sentido por
esse abismo que separa as vidas e somente por ele é que tendemos para as coisas e
estados de coisas, assim como para o outro.
Não é difícil pensar que é essa estranha relação que instaura, por exemplo, a
possibilidade de se fazer classificação entre os seres; a taxonomia separa os seres que
já estão separados entre si, classificando-os em espécies e genêros. Ousamos dizer
que desde o início estamos instalados numa espécie de “saudade ontológica” por
estarmos separados uns dos outros. Acredita-se, habitualmente, que estamos
separados no espaço e juntos no tempo, mas é sobretudo no tempo que se dão as
separações e o próprio tempo é produzido através dessas separações; o sentido do
tempo é diferente da consciência do tempo. E só podemos ter consciência do tempo
devido ao sentido do tempo ser produzido em meio à disjunção, à separação, à
dispersão entre as vidas. A separação, a descontinuidade, a disjunção solicitam que
compreendamos o movimento de tender para o outro, e que façamos também uma
filosofia que não apenas dê importância ao mundo com seus objetos, mas que também
leve em conta o modo da vida acontecer de modo disperso frente ao mundo. É comum
procurarmos um meio seguro de evitar a dispersão; procuramos constantemente a
197
unidade, a matriz que venha assegurar a unificação e evitar a dispersão. Jamais
pensamos que é a dispersão que nos impele em busca da unificação; muito antes de
pensarmos que estamos abandonados no mundo e no universo, vivemos dispersamente
na vida e é desse modo que a vida se diferencia em relação às demais coisas que estão
no mundo. Quando falamos de um sujeito que visa um objeto, já estamos falando e
pensando a partir de uma dispersão. A única maneira de experimentarmos o acontecer
é por esses, digamos, fragmentos vivos, dispersos e separados uns dos outros, e que,
no entanto, possuem uma potência inventiva e criativa. A busca de qualquer consenso já
é contra-senso em virtude do malogro que sempre aparece quando se trata de unificar
os homens através do pensamento e da linguagem. A dialética está na vida, implicita,
devido ao viver se dar de modo disjunto entre vidas singulares.
O problemático já está de saida implicito na vida e é por isso que toda tentativa
de segregação, separação férrea, malogra. Justamente pelo sentido ser produzido em
meio ao impossível. Há sempre sentido sendo produzido no seio da dispersão e vida
sendo produzida em linha de fuga. A vida, o viver sempre retorna do mesmo modo, o
acontecer da vida sempre retorna de modo disperso e fragmentado, são sínteses vivas
que se afirmam e retornam de modo diferente em relação às outras sínteses que se dão
na imensidão do vazio. Falar de transcendência, de intencionalidade implica que
tenhamos pensado, antes de tudo, que tal “sair fora de si” é um resultado do
acontecimento viver; se não estivéssemos separados, desde sempre, jamais
tenderíamos para o outro, jamais sairíamos de nós e tenderíamos para o outro e nos
preocuparíamos em fazer, por exemplo, uma teoria sobre a intersubjetividade; assim
como nada tenderia para nós e nos afetaria. Pensar o sentido é ter a experiência da
lassidão que nos assola quando tentamos a todo custo fazê-lo um sentido de mundo; e,
a alegria retorna quando encontramos o sentido sendo produzido na e pela dispersão
que envolve a vida. A abstração já está ali na dispersão, na separação; neste
acontecimento que não é visto e nem percebido, mas apenas pensado e sentido; a
tendencia em privilegiarmos como superior todo os pensamentos abstratos deriva do
vazio que nos separa. Quando nos deparamos com o vazio, disse Ulpiano,
198
experimentamos uma espécie de “susto metafísico”, ou melhor, diria ele: “uma surpresa
metafisica”. Na imanência de viver somos dispersos no vazio. Nascer é separar-se e,
viver é efemeramente tocar a superfície no vazio. Nada mais abstrato; e o pensamento
filosófico tende sempre a exaltar como superior o modo de fazer filosofia que não se
atenha ao aspecto material das coisas, mas ao formal; e tal modo de pensar deriva da
posição que ocupamos no seio do vazio, na dispersão onde o sentido é produzido.
O acontecimento viver se dá na superfície da terra e da vida; o viver acontece de
modo dispar e, por estarmos nesta dispersão, nesta separação, estamos tendendo para
o mundo e esquecemos que, antes de tudo, estamos vivendo sempre de modo
separado uns dos outros. Por estarmos separados uns dos outros, sempre tendemos
para o mundo e, por isto mesmo, podemos tender de novo para nós mesmos e nos
isolar numa espécie de enclausuramento. Dentro dele, desse enclausuramento,
podemos tentar construir o mundo dedutivamente e até mesmo descrever a sua
estrutura ultima de sentido. Porém, desde que vivemos, estamos sempre no abismo, na
fenda que nos separa dos que vivem ao nosso redor. O que acontece quando a
distância diminui? O que acontece nas vizinhanças das vidas, quando a distância entre
elas diminui? Várias singularidades, vários acontecimentos, vários encontros. É aqui,
nesse ponto, que podemos dizer que Deleuze não pensa o sentido como Frege o faz,
isto é, como sendo da ordem do intersubjetivo enquanto a referência é da ordem objetva
e a representação da ordem subjetiva. O sentido é, para Deleuze, um campo
transcendental sem sujeito.
O sentido está, assim, sempre sendo produzido de modo invisivel e imperceptivel
e, ao mesmo tempo, sendo expresso através de proposições por aqueles que vivem e
falam a partir dos acontecimentos que os envolvem. Há sempre sentido sendo produzido
e é por isso que podemos dizer que cada um pode captá-lo independente de qualquer
subjetividade psicológica ou transcendental. Por haver sentido é que podemos falar de
necessidade e universalidade e, também, de generalidades e, sobretudo, de
significação. O sentido é no minimo o vínculo que mantém as vidas proximas umas das
outras, por mais distantes que estejam. Neste fosso, nesse abismo que separa as vidas,
199
encontramos singularidades e não apenas indivíduos e pessoas; encontramos na
distância entre vidas não apenas coisas e estados de coisas. O sentido acontece não
como uma forma que pairando sobre os indivíduos garantiria os seus aspectos e nem
tampouco como uma consciência, que fosse uma abertura para compreendermos o
isolamento dos individuos entre si. Há um fora completamente distinto da consciência e
que ao mesmo tempo se constitui como um dentro, pelo qual trazemos conosco o que
acontece fora; por mais que quiséssemos nos interiorizar, o que acontece fora sempre
estará conosco, assim sempre repercutirá em nós, ao modo de memória e de
imaginação, os aconteciementos que experimentamos no fora. Quando memorizamos,
trata-se sempre de alguma coisa que aconteceu conosco, envolvendo alguém, em
algum lugar. O tempo sempre implica a participação de um fora onde os outros fazem
parte de nosso tempo. O que quer dizer que o tempo não é somente meu, mas também
dos outros. Nesse ponto, prefirimos nos reportar ao texto de Peter Pal Pelbart onde
aparecem importantes considerações sobre o pensamento do “fora”.
“A expressão pensamento do fora, em Deleuze, soa quase como uma tautologia. Pois para ele o
pensamento não é uma faculdade inata, é sempre fruto de um encontro, o encontro é sempre encontro
com o exterior, mas esse exterior, como o sublinha Zourabichvili, não é a realidade do mundo externo,
na sua configuração empírica, porém concerne as forças heterogêneas que afetam o pensamento, que
o forçam a pensar, que arrombam o pensamento para aquilo que não pensa ainda, levando-o a pensar
diferentemente. As forças do fora, diz ele ainda, não assim chamadas apenas porque vêm de fora, do
exterior, mas porque colocam o pensamento em estado de exterioridade, jogando-o num campo
informal onde pontos de vista heterogêneos, correspondentes à heterogeneidade das forças em jogo,
entram em relação... As consequências dessa perspectiva são diversas: 1) o desafio do pensamento é
liberar as forças que vêm de fora; 2) o fora é sempre abertura de um futuro; 3) o pensamento do fora é
um pensamento da existência (a um estado de coisas); 4) a força do fora é a Vida. Assim, não só a vida
é definida como essa “capacidade de resistir da força”, mas o desafio é atingir a vida como potência do
fora”
144
.
A experiência transcendental difere ligeiramente da experiência simples na qual
apenas observamos os fenômenos; o empirismo transcendental é inseparável de uma
144
Peter Pal Pelbart , Literatura e loucura in Memorial Circunstanciado (1997-2000) p.38-39.
200
teoria do sentido que se constitui nos interstícios, nos intervalos, nas indeterminações
em relação às outras vidas singulares. Não queremos enfocar o problema
exclusivamente pelo lado humano, preocupando-nos apenas com a existência humana.
Um pensador como Heidegger, por exemplo, afirma que está inscrita na essência do
Dasein, apesar de isto não defini-la por inteiro, a transposição para o interior de outro
homem; e por aí vemos que está fazendo uma critica ao conceito de endopatia em
Husserl. Grosso modo, todas essas considerações resultam do problema da
intersubjetividade, que por sua vez, como dissemos, tem sua fonte na dispersão que
caracteriza a vida mesma.
Deleuze, por sua vez, ao introduzir na filosofia a noção de acontecimento chega
por várias e outras vias àquela de imanência: uma vida. Quando falamos que em sua
filosofia aparecem comparecem vários filosofos, que aparentemente não apresentam
nada em comum, queremos mostrar a relevância da vida dos filósofos, a relevância de
uma vida filosófica. A comunicação dos acontecimentos que substitui a exclusão dos
predicados, exemplificando o que Deleuze denomina e pensa por sinteses disjuntivas,
requer que saibamos que uma vida filosófica implica na constituição de uma vizinhança,
de uma espécie de acordo discordante com outras vidas filosóficas: um filósofo não é
apenas um teórico, mas aquele que possui uma vida filosófica. Deleuze, por exemplo,
tem um livro dedicado a Kant, que, como sabemos, não viveu e nem pensou como
Nietzsche, mas que, no entanto, possuía uma vida filosófica; em seu texto Imanência:
uma vida distingue vida individual e vida singular quando afirma: “as singularidades ou
acontecimentos constitutivos de uma vida coexistem com os acontecimentos da vida
correspondente, mas não se agrupam nem se dividem da mesma maneira. Comunicam-
se entre si de outra maneira que os indivíduos”
145
. Nesse texto vemos aparecer
agrupados quatro filosófos: Bergson. Sartre, Husserl e Fichte. O motivo desse
agrupamento gira em torno da vida. Deleuze pensa uma vida como contendo a
determinação do singular. O Um, diz Deleuze, deixa de ser o todo transcendente que
pode conter até mesmo a imanência e passa a ser pensado como o imanente contido no
145
Deleuze, L’imannaence: une vie, Revue Philosophie n.47. Paris: Minuit, 1995. p.19
201
campo transcendental. Nesse ponto, passamos a assistir ao seu dizer discurso elogioso
a Husserl, quando destaca um excerto das Meditações Cartesianas onde o
fenomenólogo afirma que toda transcendência se constitui unicamente na vida da
consciência como inseparavelmente ligada a essa vida. A fenomenologia, aqui, é lida
como a restituição de vida à filosofia, isto é, a leitura de Deleuze, pelo menos nesse
momento, aponta para a fenomenologia como o estudo da vida imanente da
consciência, ou melhor, da corrente imanente da consciência. A transcendência é
sempre um produto da imanência. Prado Junior destaca a importância que Deleuze dá
ao filosofos citados nesse texto, sobretudo Fichte e Husserl:
“O próprio Deleuze, como sempre hostil à tradição da fenomenologia, sublinha que até mesmo
Husserl chega à idéia de que toda transcendência ‘ só se constitui na vida da consciência ,
como inseparavelmente ligada a essa vida’. Mas nota que já Fichte entendia por ‘vida’ uma
inobjetivável precondição de objetividade, que jamais pode ser assimilada a uma res fixa.
Sublinhemos que, para Fichte como para Husserl, os significados de ‘transcendental’ e de
‘vida’ superpõem-se aos de temporalidade e de absoluto (um absoluto ‘inquieto’ e vivo)
146
.
Quando se trata de imanência, não podemos deixar de fazer alusão ao nome de
Espinoza pelo qual Deleuze sempre expressou todo o seu afeto; ser um filosófo da
imanência é sobretudo conjugar-se a Espinoza, o polidor de lentes, o filósofo
trabalhador. No artigo “Espinoza e nós”, Deleuze faz a seguinte consideração: “O
importante é conceber a vida, cada individualidade de vida, não como uma forma, ou um
desenvolvimento de forma, mas como uma relação complexa entre velocidades
diferenciais, entre retardamento e aceleração de partículas. Uma composição de
velocidades e lentidões sobre um plano de imanência. Acontece como uma forma
musical que depende de uma relação complexa entre velocidades e lentidões de
partículas sonoras. Não é somente uma questão de música, mas de maneira de viver; é
por velocidade e lentidão que nós escorremos entre as coisas, que nós nos conjugamos
com outra coisa; nunca começamos, nunca fazemos tábula rasa, passamos entre,
146
Bento Prado Junior, Plano de imanência e vida, in Erro, ilusão e loucura, São Paulo : Ed.34. 2004, p.164.
202
entramos no meio, esposamos ou impomos rítmos”. No agenciamento com Espinoza,
Deleuze destaca a noção de modo levando-o àquela de singularidade. Espinoza, não
define um corpo por sua forma ou pelos seus orgãos e nem tampouco está preocupado
em classificá-los como substância ou sujeito. Entretanto, os modos são pensados
concretamente como velocidades e lentidões no corpo e no pensamento e se os
definirmos, corpo e pensamento, como potência de afetar e ser afetado, certamente
muitas coisas mudam. Uma vida é pensada pelos seus afetos, por suas singularidades.
Fazer uma listagem dos afetos de um animal ou de um homem é apreender a sua vida
singular, o imanente contido no campo transcendental.
Ao nos apresentar o sentido, como sempre escapando aos princípios lógicos,
Deleuze nos levou de encontro às teses clássicas da filosofia como, por exemplo,
aquela que nos impossibilita de falar do que não existe; uma proposição que fala do que
não existe é impossível. Por esse estranho caminho encontramos a sua preocupação
em pensar o sentido, distigüindo-o da significação; para ter significação as proposições
precisam referir-se a objetos ou estados de coisas possíveis ou reais; as proposições
falsas não seriam aquelas que não dizem absolutamente nada; Platão, no Sofista,
mostrou-nos que mesmo uma proposição falsa remete a alguma coisa. A proposição,
por exemplo: “Teeteto voa” refere-se a duas coisas: ao indivíduo Teeeteto, enquanto
sujeito e à ação de voar, enquanto predicado. O erro é a má combinação, na
proposição, dessas duas coisas; em Platão, o discurso remete sempre a alguma coisa
de existente e Deleuze, quando procura distinguir sentido de significação, está
apontando para alguma coisa de não existente como o que dá sentido à proposição; o
acontecimento torna a linguagem possível; o que acontece não existe como uma coisa,
um objeto, um estado de coisas. O acontecimento se articula à vida singular que não se
confunde com a vida individual nem tampouco com as coisas e estados de coisas. A
vida singular, a vida não-orgânica, não existe como um estado de coisas e, no entanto,
fazemos nela um empirismo transcendental a ponto de encontrar o sentido como
produzido no vazio entre vidas singulares. O homem pode até existir, ao
transcendender-se, saindo fora de si, mas não podemos jamais esquecer que a vida
203
singular se dá no vazio pleno de singularidades. Aqui encontramos o mote de Deleuze
sobre o problemático e de como é esta a tarefa quase impossível de erigir, por exemplo,
um cálculo de problemas. A vida singular não se esgota nos limites do vivo, pelo
contrário, a freqüenta na superfície. Deleuze, em relação à vida, pensa que morrer diz
respeito aos órgãos e funções e tece considerações enfáticas ao entre-vidas, ao entre
tempo; o que nos convida a apreciar aspectos novos sobre a vida enquanto
acontecimento: o viver não se dá apenas naqueles indivíduos que são assim
denominados seres vivos, mas no intervalo, na distânica que os liga; e por aí
experimentamos uma estranha imanência, que não está dentro do sujeito nem muito
menos aprisionada no indivíduo. Encontramos o modo como Deleuze faz filosofia da
imanência, sem ancorá-la em um sujeito ou substância. A imanência é o meio no qual as
diferentes vidas singulares tecem, produzem sentido através de suas distâncias e
disparidades.
Quando Deleuze nos remete para Espinoza é para realçar este precursor do
pensamento da imanência; o descompasso fica mais nítido quando se afirma que a
imanência está fora do sujeito e da substância e ao mesmo tempo os envolve; por isso
podemos dizer que toda transcendência é produto da imanência. A imanência está entre
as vidas singulares; as bodas contra-natura são os exemplos que Deleuze se serve para
elucidar a transversalidade afetiva entre vidas; a orquídea e a vespa se ligam num plano
afetivo muito estranho, de tal modo que parece que a orquídea possui afetos
transcendentais de vespa e vice-versa. O homem, no que diz respeito aos afetos, difere
dos animais e plantas por ser capaz de inventar novos afetos; a vida difere do homem
por inventá-lo como afeto singular através de multiplicidades que se apresentam de
modos díspares e dispersos. Há no vazio entre vidas um modo de conjugação virtual.
Não perguntamos mais como a vida é possível, mas sim como experimantamos o
transcendental como o que acontece entre vidas; não basta apenas fazer uma analítica
da ek-sistência. Há em Deleuze um problema que remonta ao descuido de nos
identificarmos às coisas e aos estados de coisas; esse desejo de limites e contornos
rígidos, essa tendência em igualar-se à solidez pétrea, assim como esses movimentos
204
de anulação da diferença, fazendo do tempo a medida do movimento, não passam de
ilusões que fazem com que a vida quase se perca da imanência. A transcendência nos
leva à ilusão de querermos ser coisas que limitadamente permanecem no idêntico e
aparecem como formas fixas. Não podemos esquecer que a transcêndencia é um
produto da imanência; uma vida tende a ser individual, sem deixar de ser singular.O
sentido tende a identificar-se com a significação sem, no entanto, deixar de acontecer de
modo diferente e distinto das coisas e dos estados de coisas. O empirismo
transcendental remete para o que se dá entre a vida individual, as coisas e os estados
de coisas. Quando o indivíduo percebe e age diante do meio, a vida singular tende
quase a anular-se, a desaparecer em meio à dominação das coisas. Todavia, a vida
singular acontece envolvendo a vida individual e os estados de coisas, comunicando-se
com os acontecimentos ilimitados que se conjugam com elas no campo transcendental,
no plano de imanência; o vazio — em que se afetam as vidas singulares — é o meio em
que o sentido se produz; o elemento paradoxal que faz ressoar as séries da vida e do
caosmos e é esse entre imanente às muliplicidades de vidas singulares. A auto-
unificação das singularidades devido ao elemento paradoxal deixa o vazio entre vidas, a
dispersão torna-se o meio em que deixamos de habitar um abismo indiferenciado como
tanto quiseram as filosofias transcendentais que se apoiavam na idéia de cogito.
Deleuze, ao pensar a vida, promove uma reviravolta na filosofia por já não pensar
mais como o mundo aparece com sentido nem tampouco como pode ser dito de modo
significativo. O sujeito é deslocado de um campo transcendental que possuia toda a
capacidade de unificar e sintetizar para aparecer e desparecer em meio aos auto-
unificações de singularidades. A problemática do sentido leva-nos de encontro ao que
experimentamos o tempo todo sem ao menos nos perguntar o que significa; mas nunca
é a posição de um sujeito o que vivemos, e sim esse elemento paradoxal, essa
singularidade que atravessa plantas, homens e animais.
205
CONCLUSÃO
O que queremos colocar é: não encerramos a pesquisa, nem muito menos
encontramos uma teoria definitiva sobre o sentido. Deleuze com a sua teoria do sentido
traz apenas mais um modo de pensá-lo; não queremos dizer que estejamos imersos
num diletantismo, pelo contrário, concluímos que existem muitos pontos no texto de
Deleuze que poderíamos ter abordado, no entanto, destacamos aqueles que mais nos
foram afeitos dentro da problemática exposta pelo filósofo; a nossa preocupação foi dar
um encaminhamento na obra do autor afim de abrí-los mais e, contribuir assim para que
a sua leitura torne-se cada vez mais acessível a um maior número de estudantes de
filosofia, dentre os quais nos incluímos. Como sabemos a obra é difusa, complexa, e
que ainda tem muito a ser trabalhada; o ponto que mais nos incita é aquele que remete
à pesquisa filosófica, ou seja, àquela tarefa de vasculhar os autores indicados
procurando estabelecer as suas diferenças.
A vida filosófica é um campo de experiência transcendental e, como tal campo é
inseparável de singularidades concebemos que os filósofos são tais singularidades. Na
problemática do sentido encontramos e citamos muitos filósofos, porém os nomes de
Husserl e Bergson foram os mais presentes. Concebemos que neste estudo, da teoria
do sentido em Deleuze, estamos experimentando a vida filosófica de Deleuze; na sua
experimentação filosófica, no campo transcendental que é a sua vida, encontramos as
singularidades de Husserl e Bergson; são singularidades dispares, entretanto, no campo
transcendental, no plano de imanência da filosofia de Deleuze, estas aparecem numa
síntese disjuntiva onde se conjugam de modo virtual. Consideramos que pensar a
problema do sentido sem mencioná-los é passar bem distante da questão, do mesmo
modo que não podemos estudar filosofia contemporânea sem ao menos nos
aproximarmos dos textos de Husserl, Heidegger, Sartre e Wittgenstein. Os
encaminhamentos que fizemos sempre destacaram esta atmosfera em que o problema
do sentido foi pensado pela contemporaneidade. Todavia, perseguimos uma linha que
206
aponta como Deleuze encaminha sua teoria do sentido fora da fenomenologia e da
filosofia analítica e, por isto, ficaram delineados os pontos em que enfatizamos estas
duas vertentes de pensamento. Como consideramos que Husserl é interlocutor
constante de Deleuze em Lógica do Sentido, procuramos verticalizar os pontos que
dizem respeito às questões fenomenológicas aprofundando suas pesquisas. Como
vemos, o nome de Deleuze não pode ser inserido nestas duas linhas filosóficas e, por
isto mesmo cremos que Bergson contribuiu efetivamente para que a sua filosofia se
desse deste modo; o estudo sobre o sentido deságua no problema da imanência, no
problema da singularidade de uma vida. A filosofia de Deleuze traz esta singularidade de
uma vida compondo-se com outras singularidades filosóficas; Husserl e Bergson
compõem-se com Deleuze, o que fica nítido em seu último texto que trata somente da
imanência de uma vida, da experiência transcendental de uma vida. Tal nitidez nos
impele a ensaiar comentários que estranhamente aproximam Husserl e Bergson. É bom
dizer que estranhamente somente para quem está acostumado a transitar no plano das
coisas e não dos acontecimentos; estranhamente somente para aqueles que fazem um
uso negativo e limitativo da divergência
Deleuze, com o que deixou escrito em seu ultimo texto, nos impele a pensar
Husserl e Bergson como singularidades no campo transcendental filosófico. Tomemos
apenas, como ponto de partida, que os dois filósofos recusam em dizer o que é o
mundo. Nesta recusa, ambos voltam-se para à vida, um encontrando um campo
transcendental; Husserl afirma que o eu tem vida, tem vivências, e estas se dão de
modo transcendental; Bergson encontra uma imagem privilegiada dotada de percepção,
ação e afecção que ainda introduz indeterminação e novidade no mundo. Deleuze ao
pensar o problema do sentido volta-se, também para à vida; sendo neste ponto que
introduz uma novidade, uma originalidade no seio do campo transcendental. Deleuze
quando pensa o problema do sentido relacionado à vida o faz delineando, deixando em
relêvo, a relação entre profundidade e superfície.
Deleuze introduziu este frágil liame quando começou a pensar sua teoria do
sentido dando como exemplo as vidas singulares de literatos que tiveram problemas
207
clínicos: aqueles em que a fronteira entre profundidade e superfície se vê comprometida.
Zourabichvili recortou muito bem este aspecto dizendo que Deleuze, diferentemente da
fenomenologia, não se contentou com o vivido quotidiano, tal descontentamento erigiu
os casos clinicos e literários como exemplos raros de experiência transcendental.
Deleuze tratou destes casos, mais propriamente com Felix Guattari, quando escreveram
juntos O Anti-Édipo, onde procuram apresentar as sínteses disjuntivas do inconsciente,
mais especificamente do inconsciente produtivo.
A teoria do sentido de Deleuze traz duas linhas as quais consideramos
importantes, uma que remete ao problema da individuação onde aparece a noção de
singularidade e, outra que remete à distinção do sentido em relação à significação;
ambas trazem o que consideramos a radical diferença de Deleuze quando pensa a
questão do sentido, ou seja, a neutralidade e a potência genética. O sentido é neutro e
ao mesmo tempo é produzido a partir de um campo problemático: um campo de
sínteses disjuntivas.
Aqui podemos notar como Deleuze, ao investir na teoria dos objetos de Meinong,
sempre procurou pensar o campo transcendental não como uma cópia fiel do que ocorre
no mundo empírico; os objetos impossíveis de Meinong possuem, para Deleuze, o
mesmo que as sinteses disjuntivas possuem no campo problematico, isto é, literalmente
estão longe de serem regulados pelos principios de exclusão da lógica formal. Quando
Deleuze diz que as proposições, que remetem aos objetos impossíveis, possuem
sentido, está nos alertanto que o acontecimento não tem as mesmas propriedades das
coisas, ou seja, os predicados das coisas somente podem entrar em determinadas
sínteses, em determinadas ligações as quais nunca podem apresentar aspectos
contraditórios. No limite, o campo transcendental com suas sínteses disjuntivas é um
objeto impossível para a ordem das coisas e da significação. No campo transcendental,
as singularidades são os acontecimentos transcendentais que entram em sínteses as
quais os princípios de não-contradição e terceiro excluído não são capazes de
apreendê-los. Quando Deleuze fala em não decalcar o transcendental do empírico está
ressaltando que o campo transcendental não é o que faz o mundo empírico aparecer
208
com unidade e identidade. O transcendental coexiste com o empírico sendo a
experiência transcendental aquela que realça o campo das disjunções inclusivas, dos
paradoxos, dos acontecimentos. Tudo resulta na aposta de Deleuze que fora do
indivíduo e da pessoa não caíriamos num abismo indiferenciado. A filosofia
transcendental lida, a partir de Deleuze, com uma experiência que não é mais aquela
pensada por Kant; o filósofo de Konisberg considerava como tarefa mais elevada da
filosofia saber como é possível a experiência. Deleuze pensa a filosofia transcendental
como uma experiência e, por aí já vemos o seu afastamento em relação a Kant. A
experiência somente é possível porque experimentamos problemas tanto de modo
empírico como de modo transcendental.
A filosofia transcendental ganha com Deleuze uma estranha atmosfera
apontando para algo que beira ao trágico, ao mergulho em um abismo. Todavia, ao
enumerar os filósofos que se ocuparam do transcendental sempre viu neles, um ligeiro
medo de mergulhar no abismo; o mergulho deleuziano encontrou, no abismo, as
singularidades pré-individuais e impessoais, tanto é que no seu ultimo texto assitimos
um procedimento inteiramente novo. Neste sentido, é que falamos que Husserl e
Bergson aparecem como singularidades, onde as suas filosofias aperecem em sínteses
disjuntivas; o empirismo transcendental, neste último texto, é composto pelas
singularidades filosóficas de Husserl e Bergson dentre outras; sendo a idéia de
experiência transcendental que nos permite tal afirmação.
Deleuze em seu último texto nos faz ver que não adianta fazer ataques gratuitos
aos filósofos, mas sim encontrar onde eles divergem e, afirmar tal divergência a ponto
de construir uma diferença, em relação a elas, trazendo-as sintetizadas e acopladas a
ponto de devirem outras tantas filosofias. O campo da experiência pré-subjetiva e pré-
objetiva aparece tanto em Husserl como em Bergson, somente que o primeiro recua
para um eu transcendental para talvez não ser acusado de psicologista; o que nos deixa
fascinado é a tônica que Deleuze atribui à vida e como estes pensadores a viveram. O
pensamento filosófico, deste modo, se faz entremear por filosofias díspares, mas que,
no entanto, se ligam por algum ponto frágil. A vida, pensada como experiência
209
transcendental, requer um pensamento que não elucide apenas o problema da
existência humana que se diferencia entre as coisas, mas os problemas que são
singulares e constituintes de toda existência. O empirismo transcendental remete a um
campo de problemas que se sustenta de modo disjunto. O problemático apresenta a
disparidade, as sínteses disjuntivas como meio em que a vida se afirma e por aí
assistimos que todos os problemas que afligem a existência humana têm sua
consonância com os problemas do campo ontológico. O problema do Ser, que tanto
deixa os filósofos atônitos, tem sua origem no ser problemático; o modo de ser do
homem é problemático porque o ser é problemático. E somente assim que podemos
falar de um empirismo transcendental.
A teoria do sentido de Deleuze tem como diferença, em relação às outras
concepções do campo transcendental, à neutralidade e a potência genética do sentido
as quais se dão em meio às sínteses disjuntivas; a inserção do problema assim como da
experiência transcendental levaram-no à elaboração de uma filosofia que afirma em
todos os aspectos a divergência. A distancia que separa e silencia aproximando e
afastando vidas serve de meio para Deleuze propor uma filosofia que cria conceitos a
partir de acontecimentos. No vazio da dispersão, a vida se propaga através de
composições de afetos. O acontecimento viver remete-nos à imanência; sublinhamos,
mais uma vez, que a filosofia do acontecimento traz um âmbito novo de pesquisa para
além da fenomenologia e da filosofia analítica e, o que nos permite fazer tal afirmação é
o afeto que Deleuze possui pelo vazio, pelo “entre”, por aquilo que distancia e
singulariza. Quando nos deparamos com a conclusão do livro “O que é a filosofia?”
somos levados a pensar na relação entre pensamento e cérebro. Deleuze neste ponto
afirma que se tivéssemos que procurar um local onde os objetos mentais da arte, da
ciência e da filosofia se encontram, certamente seria nos mais profundo das fendas
sinápticas, nos hiatos, nos intervalos e nos entre-tempos de um cérebro inobjetivável,
onde penetrar para procurá-los seria criar. Como podemos notar sempre encontramos
exemplos notáveis, em seus textos, os quais remetem sempre ao que acontece entre
vidas. O conceito de multiplicidades, que traz uma herança bergsoniana e também
210
husserliana, indica que as vidas singulares são distantes e distintas entre si, não
havendo um outro modo de pensar a vida e a filosofia sem levar em conta esses
aspectos.
Pensar como pode haver sentido no meio desta imensidão vazia que separa e
une vidas é quase insuportável, porém é somente no seio da tormenta que o
pensamento sobre a produção de sentido pode emergir; o problema não é mais aquele
de como o mundo pode aparecer com sentido; não se trata de pensar as estruturas
transcendentais de um suposto sujeito as quais permitem um conjunto de atos
intencionais significativos, mas sim de restituir à filosofia o acontecimento viver; de
pensar a experiência transcendental dando-se entre vidas singulares. Há algo de muito
intenso na vida, diz Deleuze. Vejamos que tal hiato que separa e une vidas, não é um
abismo indiferenciado sendo justamente neste vazio que as singularidades, os afetos,
emergem constituindo um plano de imanência; é por isto que Deleuze afirma sempre
que a filosofia, enquanto disciplina que cria conceitos, tem haver com um povo por vir,
com uma multidão que virá. O discurso de Deleuze aponta para este campo
problemático onde vidas coexistem de modo singular inventando e criando novas
distribuições de espaço e tempo; é espantoso e, por vezes, alarmante que tais aspectos
não tenham sido explorado pelos filósofos; os atomistas falavam de átomos e vazios, os
estóicos pensaram o vazio como um incorpóreo, porém não assistimos na história da
filosofia um enfoque incisivo sobre o objeto de pensamento que consiste no hiato, no
interstício, entre vidas. Trata-se de pensar e sentir que na mínima especulação sobre o
sentido já está implícito o que acontece na imensidão que distancia, daí o conceito de
multiplicidade que Deleuze tanto adora e venera. A teoria do sentido de Deleuze elucida
que pensar depende de um encontro que fazemos com o vazio e, que sem tal encontro
ficamos apenas voltados para o domínio das coisas; não nos encontramos com coisas
nem muito menos com pessoas; e sim com afetos, acontecimentos, intensidades,
singularidades nômades sem sujeito e impessoais.
Quando apontamos a diferença desta filosofia para com a fenomenologia e
filosofia analítica foi, sobretudo enfocando o acontecimento como aquilo que não foi
211
pensado por estas duas vertentes de filosofia contemporânea; o acontecimento quando
pensado fora do sujeito leva-nos à teoria das singularidades e às sínteses disjuntivas; a
partir da idéia de acontecimento destacamos a neutralidade e a potência genética do
sentido como o ponto que decididamente assinala a originalidade desta teoria. Não se
trata de refletir sobre o mundo e suas coisas as quais podem ser intuídas como dados e
pensadas pelo entendimento através de conceitos, mas sim de um modo de pensar que
dá importância ao acontecer da vida diante de um caosmos - conforme o dizer de James
Joyce; trata-se de conjugações de acontecimentos onde o pensamento consiste na
experiência de viver como uma diferença singular. Não se trata de um solipsismo, mas
de um agenciamento onde pensar é inseparável do encontro com este plano de
imanência onde se dão singularidades e não sujeitos e objetos. Não há um retorno ao
sujeito o qual possuiria toda a potência de sintetizar estruturalmente o aparecer de
formas no mundo. Há, antes de tudo, a dispersão da vida no vazio que envolve o
mundo; não há retorno ao sujeito, mas ao pensamento que é o modo singular pelo qual
o acontecimento, a vida, é diferença. Não se trata de procurar a estrutura ontológica do
ser-aí, mas de elucidar como no campo problemático o sentido se produz nos
acontecimentos que envolvem as coisas e na imensidão vazia que separa e une vidas.
Todas estas considerações nos levam para um modo de fazer filosofia que não está
preso a uma gramática que estrutura o mundo através de substâncias e predicados. Tal
distância pode ser pensada como um objeto impossível do qual nos falava Meinong; a
peculiaridade desta distância é permitir tanto o tender para à vida como para o mundo e,
desta maneira, um retorno às singularidades e ao plano de composições de afetos.
Quando se pensa a teoria do sentido faz-se um retorno à experiência sem, contudo,
indagar como esta é possível, mas já fazendo a experiência que se dá na pura
imanência de uma vida, daí o seu empirismo transcendental. Não há mais a
necessidade de buscar coisas e estados de coisa, como refrências, a filosofia
apresenta-se como auto-referente; a criação de conceitos somente diz respeito ao
acontecimento e jamais podemos pensá-lo sem levar em conta à vida mesma.
212
Não existe um objeto o qual possamos apontá-lo, apenas temos o sentido do
“objeto vazio” que é impossível de ser apreendido como referente. Quando Deleuze diz
que a filosofia é uma disciplina que consiste na criação de conceitos, a partir de
acontecimentos, está indicando um novo campo de pesquisa; é o que vemos em Lógica
do Sentido onde as sínteses disjuntivas ganham papel de destaque, sendo um dos
conceitos que mais nos permite fazer remissão quando se trata de pensar a sua obra.
Não mais o sujeito como a fonte de onde derivam as unidades de sínteses como ficou
nítido no percurso elaborado por Kant e seguido quase que inteiramente pela maioria
dos filósofos ditos transcendentais. Deleuze procura renovar a filosofia trazendo
questões que exorta-nos à pesquisa filosófica sem contundo deixar de nos alertar que
não se trata de uma questão teórica, mas sim de uma experiência filosófica.
O trabalho que nos propusemos a fazer não chegou ao seu término nem nunca
chegará, a pesquisa continuará uma vez que procuraremos aplicá-la de modo concreto
no ensino da filosofia onde deixaremos em relevo a importância do sentido pensado
como acontecimento; a filosofia sempre será pensada através de seus conceitos e dos
problemas que os suscitam, por este motivo enfatizamos em nossa pesquisa, o conceito
de acontecimento e o campo problemático que o envolve. A teoria do sentido que
Deleuze esboçou têm ao nosso ver uma contribuição para o ensino da filosofia, a
criação de conceitos sempre envolve um campo problemático que o suscita; o sentido
de um conceito remete ao acontecimento que o faz singularmente destacar-se entre os
demais conceitos que compõem a filosofia ao longo dos tempos. O plano de criação de
conceitos aparece em Deleuze sempre sinalizando para a importância do
acontecimento. Gerard Lebrun, em seu brilhante artigo sobre o campo transcendental
em Deleuze, afirma que temos uma boa oportunidade para pensarmos um
transcendental não securitário; o que é nada mais nada menos do que entramos em um
campo de experiência transcendental para sermos, de um certo modo, forçados a
pensar o que é fazer filosofia. Deleuze chega mesmo a dizer de um pensamento
nômade, para não dizer de uma nova imagem do pensamento; a nomadologia aparece
com toda a sua intensidade, por justamente apontar para um problema concreto, para
213
uma linha de fuga, para um modo de vida onde viver é conviver com o deserto onde não
há mais coisas e sim acontecimentos e vidas. A primeira revolução industrial, diz
Deleuze, foi feita pelos nômades quando fugiram para o deserto levando os animais e
extraindo deles o alimento; a composição afetiva com os animais é o meio que os
nômades encontram para a criação de um modo de vida; o devir animal é um conceito
que leva-nos a compreender como o sentido é produzido no seio do vazio; no meio do
deserto nada brota, mas a vida cresce e o corpo deixa de ser regido pelo orgânico e
funcional assim como o pensamento pelo juízo e a linguagem pela significação. Não há
mais uma percepção de coisas, e sim uma sensibilidade, uma estética que se afeta por
intensidades, por sensações que somente remetem para acontecimentos que não se
detêm em nenhum presente. Deleuze gosta muito da fórmula de Samuel Butler:
erewhon, o anagrama entre as palavras inglesas now e here, aqui e agora em
português, mas que subvertidas soam: em lugar nenhum. O pensamento enquanto
acontecimento não está preocupado de modo nenhum com o destino do homem, nem
muito menos com a administração de terras e populações, mas sim com o viver de
modo intenso distribuindo o povo por vir no território, no espaço liso e no tempo puro.
Há no pensamento de Deleuze uma ética, uma aposta que podemos viver de um
modo que não seja apenas o que habitualmente acreditamos e somos obrigados a vivê-
lo. Quando afirma que fazer filosofia é dar um passo para à vida e outro para o
pensamento deixa explícito que não se trata de filosofia teórica, mas de uma filosofia
prática que volta-se para à vida enquanto diferença. O que é mais difícil é nos
apreendermos como acontecimento, afirma Deleuze. O seu pensamento não é uma
fenomenologia do Dasein como é, por exemplo, a filosofia de Heidegger, mas - assim
como o pensador alemão - procura também pensar à diferença; porém, o seu modo de
pensá-la incide sobre à vida
147
. Quando teoriza sobre o sentido pensa, antes de tudo,
147
Giorgio Agamben em “A Imanência Absoluta” in Gilles Deleuze: uma vida filosófica mostra-nos a proximidade entre
os dois ultmos textos escritos respectivamente por Michel Foucault e Gilles Deleuze; o texto do primeiro intitulado “La vie;
l’experience et la science” trata do mesmo assunto que o segundo aborda em “L’immanence:une vie” . O que há de comum
entre os dois textos é justamente a diferença, o acontecimento; a vida é pensada em Foucault, diz Agamben, como aquilo
que é capaz de errar, o que nos remete para um campo transcendental sem sujeito como Deleuze vem pensando desde
Lógica do Sentido. “Arrancando o sujeito do terreno do Cogito e da consciência, ele o arraiga no da vida, mas de uma vida
que, enquanto essencialmente errar, vai além das vivências e intencionalidade da fenomenologia”.
214
como o acontecimento viver, se dando na superfície dos corpos, permite-nos
experimentar, à vida, à diferença em relação às coisas e estados de coisas.
Deleuze deixa-nos diante de muitas pesquisas a serem feitas em filosofia. A
possibilidade de pensamos uma teoria do sentido fora da significação já é um motivo de
continuarmos com tal pesquisa por muito tempo ainda, sobretudo, por considerarmos
que tal questão remeterá sempre para uma renovação, para uma nova vitalidade, da
filosofia. Tal questão, ao nosso ver, permitirá destacar à diferença da filosofia para os
outros modos de pensar como, por exemplo, a ciência e a arte. Deleuze não privilegia
nem o sujeito nem muito menos o objeto, mas sim o campo transcendental onde sujeito
e objeto emergem; a vida, o acontecimento viver é esse campo transcendental, esse
plano de imanência. Deleuze sempre destacou a importância, a relevância do encontro
face à idéia; o encontro é um acontecimento; não nos encontramos com pessoas, mas
sim com singularidades, com intensidades. O pensamento de Deleuze é inseparável das
singularidades que o constitui e, por aí assistimos ao encontro de varios pensadores que
pensaram a questão do sentido e do transcendental. Desde já, podemos dizer que fazer
filosofia ao modo de acontecimento é, por exemplo, não apenas apresentar esta filosofia
- a um determinado público - sob o modo de representação, mas sim fazer com ele a
experiência de sentir como os conceitos são pensados na imanência; o melhor meio
para isto é convidar aqueles que nunca tiveram contatos com esta filosofia a
apresentarem os texto de Deleuze e, a partir daí entrar num agenciamento com eles. A
vida é quem salta, quem se torna relevante, em tal experiência; a imanência, o
empirismo transcendental é uma experiência que não se faz em laboratórios, mas na
vida mesma. Acreditamos na potencia da filosofia da imanência e, por isto também
acreditamos que podemos ministrá-la em quaisquer meios, sobretudo nas escolas, nas
periferias e naqueles locais onde existe um descaso pela vida como onde habita, por
exemplo, a terceiridade.
215
Deleuze em O que é a filosofia? deixa transparecer esta pergunta relacionando-a
com a velhice que é a hora de colocar as questões concretamente, mas de modo
paradoxal, também é o ponto máximo de juventude. A imanência sempre está
inteiramente articulada à prática de criação de conceitos a partir de verdadeiros
problemas. A teoria do sentido de Deleuze enfim encontra-se com a filosofia prática que
remete ao acontecimento raro e extremo que é sentir-se como diferença e afirmar a
potencia de viver. A teoria do sentido ressalta o que em Lógica do Sentido aparece
como univocidade do ser. Deleuze afirma: a univocidade se confunde com a ontologia.
O que é singular na ontologia pensada por Deleuze é a sua distinção para àquela
pensada por Heidegger.
Alberto Gualandi
148
em seu texto, cujo título é Deleuze, assinala a diferença entre
esses dois pensadores quanto à ontologia; o que fica marcante de inicio é que Deleuze,
dá-nos uma ontologia que não fica presa na finitude, na negatividade do Dasein, como a
de Heidegger. A teoria do acontecimento sinaliza sempre para o Ser como problemático
onde através do processo de individuaçao podemos compreender o que envolve toda e
qualquer vida singular. O caráter de ser para a morte, que tanto marca o Dasein
heideggeriano, não aparece em Deleuze quando formula a imanência como uma vida;
a existência inautêntica, outra marca de Heidegger, também não repercute na sua
ontologia; o que está sempre sublinhando nesta ontologia é o aspecto de afirmação de
novas possibilidades de vida; aqui, podemos dizer, é que o mote de Proust aparece:
somente a arte nos faz esquecer a morte. A religião, por exemplo, nos dá apenas uma
imagem retorcida da eternidade; a arte, por sua vez, oferece-nos a própria eternidade;
eternidade das senações que aparece, nas criações da arte; a arte, sobretudo, como um
modo de pensar, assim como a ciência e a filosofia são modos de pensar por conceitos
e funções. Deleuze em sua filosofia afirmativa não faz ataques gratuitos à ciencia,
dizendo que esta não pensa, por reduzir o ser ao ente como o faz, por exemplo,
Heidegger; a sua tese em relação à arte, filosofia e ciência repercute naquilo que ele
148
O te xto de Gualandi traz pontos importantissimos em Deleuze, porém discordamos de suas conclusões justamente por
não ter dado importância à imanência como uma vida.
216
denomina de caóides: as filhas do caos. Ora, os filosófos com suas vidas singulares
instauraram um modo de pensar por conceitos traçando um filtro imanente ao caos e
denominaram à esta prática de filosofia. Deleuze, sempre aposta nestas criações que
nos permitem pensar de modo diferenciado.
O acoplamento de filosofia, ciencia e arte; o agenciamento caóide permite ver-
nos, sentir-nos, pensarmo-nos não apenas como aquele que retornando a si mesmo
encontra uma angústia dilacerante devido à finitude e, uma dor lancinante por ser um
ser para à morte, por caminhar para à morte como extinção de todas as possibilidades –
mas, sim como potencia de criação onde a morte é esquecida. Deleuze enfatiza como a
singularidade de uma vida experimenta potencias de criações e invenções desde
sempre; a junção das caóides - filosofia, ciencia e arte – resultam no complexo modo de
pensar que não é apenas crítico, e que se contenta com a crítica, mas que além de
criticar investe e incide sobre as potências imanentes da criação. Quando contentamo-
nos apenas em criticar, em denunciar os falsos valores caímos em filosfis da angústia. O
homem somente se angustia quando não cria, quando todas as suas potencias de
criação se esgotaram, e se aniquilaram ou foram aniquiladas. Deleuze, deste modo,
distancia-se e, a distancia é um procedimento que faz de sua filosofia algo a explorar.
Quando falamos de homem, falamos da distancia que há entre os seres, um homem é
antes de tudo, uma diferença para um animal, um vegetal; não podemos deixar de
lenbrar que um homem não seria, se não fosse uma vida singular, uma vida que inventa
a si mesma diante de um meio caótico e na distancia para com outras vidas singulares.
Deleuze sempre falou da distância, da diferença, com elemento genealógico; não para
nos remeter para uma origem mas, sim para nos levar à gênese do sentido assim como
das faculdades. O conceito de sínteses disjuntivas é a expressão dessa distância, dessa
diferença, que faz com cada vida singular tenha seu grau de potência; não mais a
unidade dos contrários, mas a afirmação de uma distância. A sua teoria do sentido
distancia-se assim da fenomenologia e da filosofia analítica devido à preocupação com
a gênese do sentido, o que remete para uma ontologia do acontecimento. Os
acontecimentos se comunicam como uma dobra imperceptível entre as vidas singulares.
217
Deleuze ao nos remeter para imanência de uma vida está nos dando uma ontologia
afirmativa.
A distância é o meio onde uma experiência se dá, de modo que como numa
síntese disjuntiva, os termos são afirmados; não trata-se de ser um e outro, mas de
afirmar a distância que os tornam distintos; trata-se de experimentar esse tornar-se,
esse devir no entre as mais estranhas e disjuntas sínteses. Deleuze sempre fala de um
devir animal, de um devir imperceptível e mesmo de um ritornelo, que nada mais são do
que conceitos criados por ele para pensar não mais em termo de identidade e unidade
dos contrarios, mas sim de diferença. Deleuze não suprime a disjunção, identificando os
termos contraditorios, afirma-a por sobrevôo de um distância indivísivel. Uma vida já é
afirmação de uma distância, ela não se identifica como uma outra vida, mas se
comunica por afetos, por acontecimentos. Há distância entre as vidas singulares assim
como no elemento diferencial que fazem as singularidades díspares que presidem a
gênese dos indivíduos. Há sempre gênese onde há o elemento diferencial; a distancia
de sua teoria do sentido vem simplesmente de encontro com a univocidade que se
confunde com a ontologia. Tanto na gênese dos indivíduos como na do sentido
encontramos a distância afirmativa, A ontologia da diferença diz-nos que o ser é
diferença, distância e afirmação assim como uma vida singular já é distancia para com
uma outra vida singular, o sentido também é produzido nesta distância, somente há
sentido devido a distância: a teoria do sentido encontra a ontologia do acontecimento. A
gênese, a criação, deixa de tributária de um princípio transcendente. A imanência
aparece, sobretudo como um meio em que as potencias de criação se desdobram em
vidas singulares. Há uma preocupação muito maior com a criação do que com a
finitude. Deleuze, afirma: uma vida que joga com a morte, uma vida que já não é mais
subjetiva nem objetiva. Ter o sentido dessa experiência não é apenas nos contentarmos
com o ser para à morte, é o que faz Deleuze quando nos fala de um devir criança e das
singularidades, dos gestos que a expressam. Aristóteles dizia: “o que torna Sócrates e
Cálias diferentes é a matéria”.
218
Deleuze, diz uma vida: uma essência singular afirmativa, não mais a essência
universal e a distinção apenas pela matéria signada; a sua teoria do sentido remete para
uma intensificação das essências singulares, das diferenças nelas mesmas e não
apenas pela matéria ou pela forma, mas pelas singularidads que as atravessam.
Sócrates e Cálias não seriam apenas individuados pelas matérias que os constituem,
mas sim pelas singularidades. O pathos da distância percorre por inteiro a obra de
Deleuze a ponto de vermos suas colocações sobre o papel do artista como inventor e
criador, não se tratando de uma exaltação dos fundadores de raças e religiões nem
muito menos de um ideário aristocrático, tanto é que mostra-nos que arte, filosofia e
ciência se singularizam por traçarem um filtro imanente sobre o caos. O pathos da
distância leva-nos à criação na imanência, que é o ponto mas discutido e disputado
entre os humanos; a criação sendo pensada por idéias inadequadas, como no dizer de
Espinoza, sempre recaíria numa transcendência.
A gênese de modos de vidas, de modos de pensar, aparece no pensamento de
Deleuze muito próximo do que Bergson declarava: “o tempo é invenção, criação, jorro
contínuo ou não é nada”; como dissemos, na introdução deste trabalho, Bergson faz
uma crítica violenta à idéia de Nada; e, dissemos que o Nada para ele é o que não
existe e por isto mesmo não pode ser anterior ao Ser. Deleuze, pelo seu lado, está
apresentando-nos uma teoria do sentido em que o acontecimento - apesar de não existir
como um estado de coisa ou como uma coisa - possui realidade virtual. Deste modo,
encontra com Bergson por um outro caminho no que diz respeito ao que não existe: o
acontecimento é real virtual, ideal sem ser abstrato. Aqui encontramos o que Bergson
chama de condição real da experiência, não mais as condições possíveis da
experiência. A fuga de Deleuze em relação ao condicionamento deixou nítido que
sempre buscou a gênese do sentido; a sua motivação é pensar a gênese e a
neutralidade do sentido através de uma experiência real, tal experiência remete ao
acontecimento viver: uma vida não se esgota em atualidades, mas sempre traz um
amplexo de virtualidades.
219
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS
ARTAUD, A Heliogábalo ou o anarquista coroado, tradução de Mario Cesariny,
Lisboa, Asssirio e Alvim, 1982.
BERGSON, H. Ouvres , Paris, PUF, 1959.
BRÉHIER, É. La théorie des incorporels dans l’ancien stoïcisme. Paris: Vrin,
1980.
______________. Chrysippe & l’ancien stoïcisme. Paris: PUF, 1971.
______________ . Études de Philosophie Antique. Paris, PUF, 1955.
BRENTANO, F. Aristote et les significations de l’être. Paris, Vrin, 1992.
CICERON. Traité du Destin, in: Les Stoiciens. Paris: Bibliotéque de la Pléiade,
Gallimard, 1962.
CONCHE, M. Temps et destin. Paris: PUF, 1992.
CRAIA, E. A problemática ontológica em Deleuze, Cascavel, Edunioeste, 2000.
DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les éditions de Minuit, 1969.
________ . Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974.
________. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
DERRIDA, J. Le problème de la genèse dans la philosophie de Husserl, Paris,
PUF, 1990.
DIAS, S. Lógica do acontecimento, Deleuze e a filosofia. Porto: Afrontamento,
1995.
DUHOT, J-J. La conception stoïcienne de la causalité. Paris: Vrin, 1989.
ENGEL, P. La norme du vrai. Paris: Gallimard, 1989.
ELIE, H. Le Complexe Significabile. Paris: Vrin, 1936.
FREGE, G. Écrits logiques et philosophiques. Paris: Éditions du Seuil. 1979.
220
FREGE-HUSSERL. Correspondance. Paris: Éditions T.E.R., 1987.
GASTON, G-G. Le probable, le possible et le virtuel. Paris: Odile Jacob, 1991.
GOLDSCHMIDT, V. Le système Stoïcien et l’idee de temps. Paris: Vrin, 1985.
GONÇALVES COELHO, J. Bergson: tempo e liberdade. Tese de doutoramento
apresentada ao Departamento de FFLCH-USP, sob a orientação do Prof. Dr.
Franklin Leopoldo e Siva em 1998.
GUALANDI, A. Deleuze, tradução Danielle Ortiz Blanchard, São Paulo : Estação
Liberdade, 2003.
GUATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma estético, tradução Ana Lúcia de
Oliveira e Lúcia Claudia Leão, Rio de Janeiro : Ed.34, 1992.
HADOT, P. Sur le divers sens du mot Pragma dans la tradition philosophique
grecque, in: Concepts et categories dans la pensée antique. Paris: Vrin, 1980.
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo, tradução Marcia Sá Cavalcante, Petrópolis, Vozes,
1993.
_____________ Conceitos fundamentais de metafísica, tradução Marco Antonio
Casanova, Rio de Janeiro : Forense, 2003.
HÖLDERLIN, F. Canto do destino e outros cantos, organização, tradução e
ensaio de Antonio Medina Rodrigues, São Paulo, Iluminuras, 1994.
HUSSERL, E. Ideias relativas a una fenomenologia pura y una filosofia
fenomenológica, Trad. José Gaos, Mexico, FCE, 1949. Ideen zu einer reinen
Phänomenologischen, Martinus Nijhoff, 1952.
___________ Meditações cartesianas, tradução Frank de Oliveira, São Paulo,
Madras, 2001.
KNEALE, W. & KNEALE, M. O Desenvolvimento da lógica. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 1962.
LAZ, J. Bolzano Critique de Kant, Paris, Vrin, 1993.
LINSKY, L. Le problème de la référence. Paris: Éditons du Seuil, 1967.
LEBRUN, G. O transcendental e sua imagem in Gilles Deleuze: uma vida
filosófica, São Paulo : E, 34, 2000.
LEWIS CARROL, Alice no país das maravilhas, tradução Rosaura Eichenberg,
Porto Alegre, LPM, 2002
221
LOTURCO DA SILVA, V. O Empirismo Transcendental na Filosofia de Gilles
Deleuze. Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Filosofia da
FFLCH em 2001 sob orientação do Prof. Dr. Bento Prado Jr.
MARQUES, J. A Ontologia do Tractatus e o Problema dos Sachverhalte Não-
Subsistentes, texto retirado da Internet em 03/01/02.
MATES, B. Stoic Logic. Berkeley: University of Californis Press, 1973.
MAXIME-SCHULL, P. Le Dominateur et les possibles. Paris: PUF, 1960.
MEINONG,A Übergegenstand theorie - Teoria dos objetos, tradução Celso
Braida, no prelo
MOREAU, J. Stoïcisme-Épicurisme. Tradition Hellenique. Paris: Vrin, 1979.
MORATO PINTO, D. Consciência e corpo como memória. Tese apresentada ao
Departamento de Filosofia da FFLCH-USP para obtenção do grau de Doutor em
Filosofia, sob a orientação Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva em julho de 2000.
MURAULT, A A metafísica do fenômeno, tradução de Paula Martins, São Paulo :
Ed.34, 1998.
PASQUINO, P. Le statut ontologique des incorporels dans l’ancien stoïcisme in:
Les stoïciens et leur logique. Paris: Vrin, 1978.
PÁL PELBART, P. Memorial circunstanciado (1997-2000).
PRADO JÚNIOR, B. A Idéia de “plano de imanência” in: Gilles Deleuze: uma
vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000.
__________________ Presença e campo transcendental: consciência e
negatividade em Bergson, São Paulo, Edusp, 1988.
____________________ Erro, ilusão e loucura, São Paulo: Ed. 34, 2004.
PRADO NETO, B. Fenomenologia em Wittgenstein, Rio de Janeiro : Editora
UFRJ, 2003.
PETIT, J-L. Solipsisme et intersubjectivité, Quinze Leçons sur Husserl et
Wittgenstein. Paris: CERF, 1996.
ROUILHAN, P. Frege, Les Paradoxes de la representation. Paris: Les Éditions de
Minuit, 1988.
RUSSELL, B. Significação e verdade, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1973.
SARTRE, J-P. La Transcendance de l’ego, Paris: Vrin, 1988.
222
___________ A Transcendência do ego, tradução de Pedro M. S. Alves, Lisboa,
Colibri,1994.
___________ O Ser e o Nada, tradução de Paulo Perdigão, Petropólis, RJ : Vozes,
1997.
SEXTUS EMPIRICUS. Adversus Mathemathicus. In: Les Stoicïens, Paris, PUF,
1973.
SEBESTIK, J. Logique et mathematique chez Bolzano, Paris, Vrin, 1992.
SIMONDON, G. Le individu et sa genese phisico-biologique, Paris. PUF, 1984.
TWARDOWSKI, K. Sur la théorie du contenu et de l’objet des représentations
Zur Lehre vom Inhalt und Gegenstand der Vorstellungen, traduction par Jacques
English in Sur les objets intentionnels (1893-1901), Paris : Vrin, 1993
ULPIANO, C. Do Saber em Platão e do sentido nos estóicos como reversão do
platonismo. Tese de Mestrado apresentada ao Departamento de Filosofia do
IFCHS – UFRJ em 1983.
_________ . O Pensamento de Deleuze ou A grande aventura do espírito. Tese
de Doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia do IFCH da UNICAMP em
1998, sob a orientação de Luiz B. L. Orlandi.
_____________ . Afetos: um sorriso, um gesto in: Pontos de Fuga: visão, tato e
outros pedaços. Rio de Janeiro: Taurus Editora, 1996.
VIRIEUX-REYMOND, A. Pour connaître la pensée des Stoiciens. Paris: Bordas,
1976.
WITTGENSTEIN, L Tractatus Lógico Philosophicus tradução Luiz Henrique
Lopes dos Santos, São Paulo, Edusp, 1994.
ZOURABICHVILI, F. Deleuze une philosophie de l’evenement. Paris: PUF, 1994.
_____________ Vocabulário Deleuze, tradução André , Rio de Janeiro : Relume
Dumará, 2004.
223