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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
E METODOLOGIA DAS CIÊNCIAS
CORPO, REPRESENTAÇÃO E O DOMÍNIO DO REAL:
a constituição do conceito de realidade psíquica em Freud
CLOVIS EDUARDO ZANETTI
ORIENTADOR: PROF. DR. RICHARD THEISEN SIMANKE
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-graduação em Filosofia da
Universidade Federal de São Carlos,
como parte dos requisitos para a
obtenção do título de Mestre em
Filosofia, área de concentração:
Epistemologia da Psicanálise.
SÃO CARLOS – SP
2006
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Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da
Biblioteca Comunitária da UFSCar
Z28cr
Zanetti, Clovis Eduardo.
Corpo, representação e o domínio do real: a constituição
do conceito de realidade psíquica em Freud / Clovis
Eduardo Zanetti. -- São Carlos : UFSCar, 2006.
291 p.
Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal de São
Carlos, 2006.
1. Psicanálise. 2. Corpo - psicologia. 3. Representação.
4. Aparelho psíquico. 5. Realidade. 6. Matéria. I. Título.
CDD: 150.195 (20
a
)
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CLOVIS EDUARDO ZANETTI
CORPO, REPRESENTAÇÃO E O DOMÍNIO DO REAL:
A constituição do conceito de realidade psíquica em Freud
Dissertação apresentada à Universidade Federal de São Carlos, como parte dos requisitos para
obtenção do título de Mestre em Filosofia, área de concentração: Epistemologia da
Psicanálise.
Aprovado em 01 de dezembro de 2006.
BANCA EXAMINADORA
Presidente PROF. Dr. RICHARD THEISEN SIMANKE
(Orientador -UFSCar)
1º Examinador PROF. Dr. JOSÉ MIGUEL HENRIQUES FERNANDES BAIRRÃO
(Membro Titular – USP / Ribeirão Preto)
2º Examinador PROF. Dr. HÉLIO HONDA
(Membro Titular – UEM / PR)
DEDICATÓRIA
Para Juliana F. N. Villari Zanetti e
Fernando Eugênio do Nascimento
(in memoriam)
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Richard Theisen Simanke que aceitou orientar esta pesquisa, pelo aprendizado
que me propiciou com a excelência de seu trabalho e dedicação ao texto de Freud. Aos Profs.
Bento Prado Jr. , Mark Julian Richter Cass e João de Fernandes Teixeira pela qualidade de
seus cursos e pelo aprendizado crítico em filosofia. A Rose, Sueli e Robson, funcionários da
secretaria, pela disponibilidade e auxílio. Ao CNPq pela bolsa concedida que viabilizou a
pesquisa. Agradeço também aos Profs. Drs. membros da banca de qualificação e defesa José
Miguel H. F. Bairrão e Hélio Honda pela leitura atenta e por terem conferido qualidade e
importância ao trabalho realizado. Aos colegas André Medina Carone, Lea Silveira Sales e
Fátima Caropreso pela acolhida e pelas trocas. A Juliana, Rina, Margareth e Sylvio Villari e
aos meus pais Maria de Lourdes e José Clovis Zanetti pelo suporte que deram aos meus
estudos. A Juan Fernando Peña pela leitura inicial, a Luiza Wisniewski, Sonia Petrocini e
Vera Lucia Taques presenças importantes na minha formação em psicanálise.
Eis por que os textos de Freud revelam ter, no final
das contas, um verdadeiro valor formativo para o
psicanalista, ao habituá-lo, como ele deve estar – nós
o ensinamos expressamente – ao exercício de um
registro fora do qual sua experiência não é mais nada.
(Lacan)
RESUMO
Através de uma gênese conceitual a dissertação tem por objetivo elucidar o estatuto do real e
da realidade psíquica do desejo inconsciente na metapsicologia freudiana. A originalidade
desses conceitos se encontra em três premissas que pesquisa deve sustentar: 1ª. Para dar
conta da realidade que é preciso inferir através das observações clínicas, é necessário situá-la
no interior da estruturação de um aparelho, ou seja, sua gênese, necessariamente, se entretece
com a teoria da estruturação do aparelho psíquico. 2ª. Essa gênese e estruturação pressupõem
uma materialidade até então não problematizada no contexto da constituição e da duplicação
do domínio da realidade pelos processos e atividades no aparelho. 3ª. A problematização de
um conceito de matéria em Freud, permite verificar, sobretudo, o laço indissociável existente
entre corpo e representação na constituição do “psíquico verdadeiramente real”, bem como,
da “realidade psíquica“ do desejo inconsciente que é “uma forma particular de existência” do
primeiro. Foram estabelecidos quatro tempos da constituição do conceito de realidade,
correlatos aos quatro primeiros trabalhos metapsicológicos de Freud em torno da construção
de um modelo de aparelho psíquico clinicamente correlacionado: “Ensaio sobre as afasias”
(1891), “Projeto de uma Psicologia” (1895), Carta 52 (1896) e “A Interpretação dos sonhos”
(1900). Esses trabalhos representam uma progressiva tentativa clínica e conceitual, orientada
pela investigação das neuroses, de circunscrever o psíquico desde seu ponto de origem
infantil, e fornecer com isso um modelo de funcionamento adequado para o aparelho que
justifique o estrito determinismo dos eventos mentais. As transições entre os textos
metapsicológicos também serão estudadas visando reconstituir o contexto e a progressão dos
problemas em questão, o que, por outro lado, possibilitará também assistir ao próprio
nascimento da psicanálise desde as questões que lhe foram originalmente colocadas sobre o
corpo, a representação e o domínio do real.
Palavras-chave: corpo, representação, matéria, aparelho psíquico, realidade.
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1. Esquema psicológico da representação de palavra. p.55
FIGURA 2. Esquema cronológico do desenvolvimento psíquico e sexual. p.148
FIGURA 3. Esquema explicativo da etiologia e da formação das psiconeuroses. p.150
FIGURA 4. Diagrama esquemático da estratificação mnêmica do mecanismo psíquico. p.154
FIGURA 5. Esquema do aparelho reflexo. p.240
FIGURA 6. Esquema do aparelho de memória. p.241
FIGURA 7. Esquema do aparelho psíquico. p.242
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 13
PARTE I
TEORIA E MATERIALIDADE DO CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO NOS
PASSOS INAUGURAIS DA METAPSICOLOGIA FREUDIANA 19
Cap.1 – Questões acerca da natureza real da sintomatologia da histeria 20
1.1 As primeiras hipóteses sobre a base do status histérico
20
1.2 A circunscrição da participação psíquica inconsciente 25
1.3 A palavra enquanto recurso terapêutico primário e a introdução da noção de afeto
30
1.4 A relação entre a formação dos sintomas e os modos de reação do mecanismo
psíquico 34
Cap. 2 – O Aparelho de Linguagem no ensaio “Sobre as afasias” (1891) 35
2.1 Exame crítico do conceito de representação: Projektion e Repräsentation 38
2.2 A ultrapassagem do localizacionismo e do paralelismo psicofísico: Repräsentation e
Vorstellung 41
2.3 A autonomia do ponto de vista funcional e a espacialização do psíquico
45
2.4 O aparelho de associações e as representações de palavra
49
Cap. 3 – Representação e matéria: o conceito de real enquanto possibilidade permanente
de sensação 52
3.1 Das Ding e o processo de significação: o não fechamento da representação de objeto 52
3.2 A origem psicológica da idéia de matéria e realidade exterior 57
Cap. 4 – A representação do corpo e sua relação com a justificação teórica da existência
e eficácia do inconsciente 62
4.1 O modo de existência das representações excluídas e sua alteração material 62
4.2 Uma nova concepção de corpo sustentada pela teoria da representação 69
4.3 Ação e eficácia do mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos 74
PARTE II
O SENTIDO E A NATUREZA DA CONCEPÇÃO DE REALIDADE E A TEORIA DA
MEMÓRIA NO “PROJETO DE UMA PSICOLOGIA” (1895) 78
Cap. 1 – A constituição do Aparelho Neuropsíquico 79
1.1 Postulados, funções e estrutura 80
1.2 Memória e percepção 83
1.3 Qualidade e consciência 89
1.4 O interior do corpo e a mola impulsiva do mecanismo psíquico 93
Cap. 2 – A realização alucinatória de desejo e o signo de realidade (Realitätzeichen)
96
2.1 Vivências constitutivas: desamparo e satisfação
96
2.2 Conseqüências psíquicas: afeto, desejo e vida representacional 103
2.3 O signo de realidade 106
Cap. 3 – O sentido da crença na teoria freudiana do juízo 110
3.1 Pensamento e desejo 110
3.2 Crença e juízo de realidade 115
Cap. 4 – Traços de realidade e realidade do pensar (Denkrealität) 120
4.1 Os signos de descarga lingüística
120
Cap. 5 – Psicopatologia e os processos primários póstumos
123
5.1 Os sonhos: desejo e alucinação onírica
123
5.2 A compulsão histérica: formação de símbolo
127
Cap. 6 – Sexualidade e etiologia 130
6.1 A etiologia traumática e a teoria da sedução 130
6.2 O processo sexual e a teoria do aparelho
132
6.3 A temporalidade do trauma e a significação do sexual
134
6.4 Estados afetivos e a Proton pseudos 138
Cap. 7 – A materialidade das descargas sensoriais e a concepção de realidade no
“Projeto...” (1895) 140
7.1 O psíquico versus o subjetivo 140
PARTE III
DA TEORIA DO TRAUMA A INTRODUÇÃO DA FANTASIA: ESTRATIFICAÇÃO
DA MEMÓRIA E A PRODUÇÃO DA CENA PSÍQUICA INCONSCIENTE
142
Cap. 1 – Repressão e prazer: o núcleo do enigma 143
1.1 Progresso clínico versus pressuposições teóricas
143
Cap. 2 – Working hypotheses 148
2.1 Um novo esquema etiológico: infância e cronologia 148
2.2 Da cronologia a tópica: a estratificação do psíquico (Carta 52) 151
Cap. 3 – Questões acerca da autenticidade e da realidade das cenas 157
3.1 A resenha crítica de Adolf von Strümpell 157
3.2 As evidências em três domínios: clínico, lógico e terapêutico 159
3.3 A correlação com a estratificação psicológica e as primeiras dúvidas quanto à hipótese
da sedução 160
Cap. 4 – A introdução da fantasia e a tópica inconsciente 162
4.1 Estruturas protetoras versus derivados das pulsões 162
4.2 A natureza dos impulsos e as novas formações de compromisso
165
Cap. 5 – Não acredito mais em minha neurótica 168
5.1 No inconsciente não existe um signo de realidade 169
Cap. 6 – O elemento universal e a derivação do infantil 173
6.1 Épido Rei: uma compulsão 173
6.2 O caráter infantil e ‘a coisa’ por de traz da repressão 175
6.3 A fonte do inconsciente 177
Cap. 7 – A teoria da memória segundo a formação das fantasias 179
7.1 O mecanismo psíquico do esquecimento 179
7.2 Pequenos avanços na teoria do desejo 182
7.3 Lembranças encobridoras 184
7.4 A produção da cena inconsciente 187
7.5 Do real dos traços a realidade das fantasias 193
PARTE IV
A CIRCUNSCRIÇÃO DO INFANTIL E O DOMÍNIO DO REAL:
A PRIMEIRA TÓPICA FREUDIANA 194
Cap.1 – O sonho é a realização disfarçada de um desejo reprimido 197
1.1 A deformação onírica: o manifesto e o latente 197
Cap.2 – Memória onírica: o material e a fonte dos sonhos 200
2.1 Não existem excitadores oníricos indiferentes 200
2.2 O infantil como fonte dos sonhos 203
2.3 Pensar e vivenciar são uma e a mesma coisa 206
2.4 A elaboração da excitação somática e os propósitos do sonho 207
Cap.3 – Sonhos típicos e a psicologia do desejo infantil
210
3.1 Sonhos de embaraço por desnudez
210
3.2 Sonhos de morte de pessoas queridas 212
3.3 Oedipus Rex e Hamlet: um patrimônio psíquico inalterado e universal 218
Cap.4 – O trabalho do sonho e a transformação do material latente em conteúdo
manifesto 220
4.1 Os trabalhos de condensação e deslocamento 220
4.2 Os meios de representação do sonho e a repulsa como afirmação (Bejahung) da
realidade
223
4.3 Consideração pela figurabilidade: uma unidade de ação isenta de censura
226
4.4 O afeto faz do sonho uma vivência real 229
4.5 Elaboração secundária: uma trama inteligível 233
Cap.5 – O Aparelho Psíquico: desejo inconsciente, ética e o domínio do real 235
5.1 O processo da regressão: a cena de ação e a transmutação ao sensível 236
5.2 Desejar: a atividade psíquica por excelência 245
5.3 O sonho e sua função: a tramitação da excitação inconsciente 248
5.4 A lacuna na eficácia funcional e o que se separa do desenvolvimento 251
5.5 O psíquico verdadeiramente real 257
5.6 Psychische Realität: uma forma particular de existência 264
CONCLUSÃO 276
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 279
13
INTRODUÇÃO
É comum encontrar na literatura psicanalítica a utilização de noções e conceitos cuja
distância que se encontram do contexto em que foram produzidos acaba por banalizá-los.
Descontextualizados, se abrem a um deslocamento semântico que os destituem de sua eficácia
e originalidade. Costuma-se apresentar a realidade psíquica em Freud na sua suposta forma
acabada, no entanto, uma leitura mais cuidadosa permite verificar que a questão se quer foi
formulada. Nos casos em que se formulou, na falta de um trabalho prévio com o texto
freudiano, encontra-se mal colocada, pois sua originalidade e consistência conceitual são
inseparáveis do contexto clínico e dos problemas de fundamentação teórica a qual ela
responde. Com freqüência confunde-se nas considerações sobre a realidade o que é psíquico
com o que é subjetivo, psicológico, como é o caso de FRAYZE-PEREIRA (1999), entre
outros. Pouca ou nenhuma atenção é dada à emergência e aos antecedentes dessa diferença,
aparentemente trivial, da qual decorrem conseqüências de grande envergadura, como as
inovações introduzidas pelo conceito freudiano de representação, por exemplo.
São raros os trabalhos que se ocupam em reconduzir noções e conceitos aos lugares
que lhe são próprios. É o que justifica este estudo que se propõe a acompanhar os movimentos
iniciais da obra de Freud em torno do problema da natureza e da concepção de realidade em
sua teoria. Pretende-se demonstrar que, a proposta de Freud de formular uma explicação que
justifique a existência e a eficácia do inconsciente através da construção de um modelo de
aparelho psíquico representacional, acabou por circunscrever um conceito de realidade
próprio e exigido pelos problemas postos pelas neuroses a prática clínica e a sua
14
fundamentação. A originalidade dessa concepção se assenta em três premissas que a pesquisa
pretende sustentar:
1º. Para dar conta da realidade que é preciso inferir através das observações, é
necessário situá-la no interior da estruturação de um aparelho, ou seja, sua gênese,
necessariamente, se entretece com a teoria da estruturação do aparelho psíquico.
2º. Essa gênese e estruturação pressupõem uma materialidade até então não
problematizada no contexto da constituição e da duplicação do domínio da realidade pelos
processos e atividades no aparelho.
3º. A problematização de um conceito de matéria em Freud, permite verificar,
sobretudo, o laço indissociável existente entre corpo e representação na constituição do
“psíquico verdadeiramente real”, bem como, da “realidade psíquica“ do desejo inconsciente
que é “uma forma particular de existência” do primeiro.
É importante pontuar que na circunscrição dessa problemática partilhamos do
pressuposto de que o arsenal teórico freudiano possui certo potencial intrínseco, tanto para
resolução de seus impasses, quanto para melhor definir seus conceitos. (SIMANKE, 1994a,
p.11). Portanto, através do estudo da origem dos problemas e hipóteses que levaram Freud a
formular uma concepção de realidade pertinente a seu objeto de estudo, foram estabelecidos
quatro tempos da constituição desse conceito, correlatos aos quatro primeiros trabalhos
metapsicológicos de Freud em torno da construção de um modelo de aparelho psíquico
clinicamente correlacionado, são eles: “Ensaio sobre as afasias” (1891), “Projeto de uma
psicologia” (1895), “Carta 52” (1896) e “A interpretação dos sonhos” (1900). Esses trabalhos
representam uma progressiva tentativa clínica e conceitual, orientada pela investigação das
neuroses, de circunscrever o psíquico desde seu ponto de origem infantil, e fornecer com isso
um modelo de funcionamento adequado que justifique o estrito determinismo dos eventos
mentais. As transições entre os textos metapsicológicos também serão estudadas visando
15
reconstituir o contexto e a progressão dos problemas em questão, o que, por outro lado,
possibilitará também assistir ao próprio nascimento da psicanálise desde as questões que lhe
foram originalmente colocadas sobre o corpo, a representação e o domínio do real.
Assim, o plano geral da pesquisa comporta quatro partes: a primeira parte tratará dos
antecedentes do conceito de realidade no contexto de uma problematização sustentada pelas
dúvidas quanto à natureza real da sintomatologia da histeria e da necessidade de se justificar a
existência e a eficácia do inconsciente por meio do conceito de representação. Nessa primeira
etapa da constituição do conceito será discutido e avaliado o ponto de ruptura freudiano no
cerne de um debate interno a clínica médica em torno do localizacionismo; uma teoria
neurológica posta em questão pelas características clínicas das afasias e da histeria. As
conclusões tiradas por Freud, através do exame crítico do conceito de representação no texto
“Sobre as afasias” (1891), lhe renderam um ponto de vista funcional que permitiu conceber a
espacialização de um aparelho de linguagem que não precisa mais coincidir com a localização
anatômica cerebral; um passo inaugural e definitivo para metapsicologia. No aparelho assim
concebido, as associações entre representação de palavra e representação de objeto fornecem
os fundamentos de uma relação com o real, que neste momento, com base na filosofia de
Stuart Mill, é definido por meio do conceito de “coisa”. A introdução por parte de Freud do
conceito de “coisa” no coração da representação de objeto, marca, do ponto de vista
psicológico, a base material onde se inscreve a conceituação sobre a constituição do psíquico
e sua relação aberta com a base e a periferia corporal.
Nessa etapa, serão examinados e comentados os primeiros textos freudianos
publicados entre 1888 e 1895, principalmente: Histeria (1888); Prefácio à tradução de
Suggestion de Bernheim (1888 [1888-91]); Tratamento psíquico (1891); Sobre as afasias: um
exame crítico (1891); Um caso de cura pela hipnose – com algumas pontuações sobre a
gênese dos sintomas histéricos através da contravontade (1892); Algumas considerações para
16
o estudo comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas (1893[1888-93]); Sobre o
mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar (1893) e as
“Considerações teóricas” de Breuer em “Estudos sobre histeria” (1893-95). Também serão
examinados os seguintes textos de Stuart Mill referidos por Freud: “Sistema de lógica
dedutiva e indutiva: exposição dos princípios da prova e dos métodos de investigação
científica” (1843), “Um exame da filosofia de Sir William Hamilton” (1865).
A segunda parte se ocupará da primeira circunscrição efetiva do conceito de realidade
pela teoria freudiana do aparelho psíquico enquanto gênese e estruturação de um aparelho de
memória. No texto do “Projeto de uma psicologia” (1895) iremos acompanhar como essa
primeira teoria da constituição do psíquico comporta, nela mesma, a organização de um
domínio de realidade apto a se inscrever através das atividades e dos processos no aparelho.
No “Projeto...” essa primeira concepção duplica-se em dois registros: a realidade da
percepção e a realidade do pensamento; em ambos os domínios o que define o estatuto de real
conferido aos seus processos é a materialidade das descargas sensoriais: os signos de
realidade para a percepção, e os signos de descarga lingüística para o pensamento. É o trâmite
destes signos qualitativos no interior do aparelho que torna percepção e pensamento
susceptíveis de consciência e rememoração, ou seja, é o que lhes confere uma existência
subjetiva. Já o que Freud considera como psíquico propriamente dito, diferente desse domínio
subjetivo, é estritamente definido enquanto inconsciente. Como se pode notar, o que está em
jogo nessa primeira teoria da realidade é o estabelecimento de uma realidade subjetiva para
esses processos mentais, cuja contraparte inconsciente, a realidade psíquica, ainda não é
explicitamente tematizada pela teoria.
A terceira parte do trabalho irá mostrar as insuficiências e incompatibilidades dessa
concepção de realidade subjetiva diante dos deslocamentos e transformações ocorridas na
hipótese do aparelho psíquico em razão dos impasses clínicos e teóricos com as neuroses.
17
Essas transformações representam o momento crítico da constituição do conceito de realidade
psíquica, que passa a ser cada vez mais requisitado na medida em que a teoria da fantasia
começa a substituir, gradativamente, a hipótese do trauma e da sedução; momento em que o
desejo sexual infantil entra em cena como o grande organizador na formação dos sintomas e
da vida psíquica em geral. Neste percurso, o aparelho é repensado através da hipótese da
estratificação psíquica e da tradução entre sistemas, onde o recurso à representação tópica se
revelará o principal instrumento metodológico na circunscrição de um novo domínio do real,
estranho e extrínseco ao campo subjetivo. Os textos a serem analisados e comentados nessa
etapa serão aqueles escritos no período de 1894 a 1898, incluindo “A correspondência de
Sigmund Freud a Wilhelm Fliess” (1887-1904), são eles: “Sobre os critérios para destacar da
neurastenia uma síndrome particular intitulada ‘neurose de angústia’” (1894);
“Hereditariedade e a etiologia das neuroses” (1896); “Novos comentários sobre as
neuropsicoses de defesa” (1896); “A etiologia da histeria” (1896); “O mecanismo psíquico do
esquecimento” (1898) e “Lembranças encobridoras” (1899).
a quarta e última parte dedicar-se-á ao estabelecimento final desse novo conceito
de real correlacionado a um novo redimensionamento do aparelho psíquico que ocorre no
texto “A interpretação dos sonhos” (1900). No trabalho será possível avaliar a força do golpe
conceitual dado pela introdução da idéia de um aparelho no cerne de uma psicologia das
neuroses. A produção da teoria de um aparelho clinicamente correlacionado é, segundo Freud,
a grande novidade de sua elaboração; é o que marca a diferença entre sua concepção de
inconsciente e aquelas advindas de outros domínios, como da filosofia ou da psicologia de
Theodor Lipps, por exemplo. Nesse contexto, Freud estabelece os fundamentos estruturais
dessa nova ordem de realidade organizada pelas fantasias, em torno da estruturação da
experiência originária e constitutiva com o desejo. O trabalho com os sonhos possibilitará
perceber que a referência ao desejo inconsciente implica na própria definição da realidade
18
psíquica como uma forma particular de existência do núcleo infantil, o centro psíquico de
nosso aparelho mental, desde o ponto de vista de suas raízes pulsionais. Também será
possível avaliar a pertinência e o alcance da explicitação do conceito de matéria pressuposto –
reconduzido ao domínio natural das excitações – para a elucidação do conceito de real e da
particularidade de sua forma de existência psíquica, bem como de seu contraponto na
realidade material independente do desejo. Nessa ultima etapa trabalharemos com o texto “A
interpretação dos sonhos” (1900) a luz do saldo obtido pelo conjunto do trabalho que o
precedeu.
Ao final da pesquisa, espera-se que seus resultados possam contribuir com a avaliação
do alcance e a precisão conceitual que essas concepções em torno desse conceito de realidade
podem adquirir quando remetidas ao quadro teórico e clínico a qual elas respondem. Espera-
se também que este estudo possa situar a psicanálise diante da especificidade e a originalidade
de seu projeto conceitual, contribuindo com alguns pontos de referência para se pensar o
trabalho clínico, a diferença entre as diversas metapsicologias pós-freudianas, bem como a
interlocução com outras áreas do conhecimento.
19
PARTE I:
TEORIA E MATERIALIDADE DO CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO NOS
PASSOS INAUGURAIS DA METAPSICOLOGIA FREUDIANA
20
CAPÍTULO 1
Questões acerca da natureza real da sintomatologia da histeria
1.1. As primeiras hipóteses sobre a base do status histérico
O artigo “Histeria” (1888), que é uma das quatro contribuições de Freud para
enciclopédia médica Villaret (1888-91)
1
, deixar ver, a princípio, as conseqüências clínicas e
as primeiras insinuações teóricas decorrentes do encontro do jovem neurologista Freud com o
trabalho clínico de Charcot em Paris (1886). A histeria é definida aí como uma neurose
stricto sensu, ou seja, uma enfermidade do sistema nervoso que não apresenta alterações
anatômicas e que repousa inteiramente em modificações funcionais. Segundo o autor, sua
essência, de acordo com essa tese, deveria expressar-se mediante uma fórmula que levasse em
conta as alterações da excitabilidade entre as partes que compõe o sistema. (FREUD, 1988a,
p.45). Tal fórmula, a ser construída, teria a função de fundamentar e justificar a recente
sistematização da sintomatologia da histeria organizada por Charcot em um quadro
nosográfico distinto, tanto das afecções orgânicas nervosas, quanto de outras neuroses. Uma
tarefa inaugural, como se vê, e de extrema importância para o reconhecimento da histeria no
campo das doenças mentais, que até então “não recebera se não o anátema do ridículo onde
seus estados eram considerados como simulações indignas de observação clínica.” (FREUD,
1988a, p.45).
1
As outras três contribuições referem-se a trabalhos que tratam da anatomia do cérebro, das afasias,
paresias e paralisias infantis. (Cf. STRACHEY, 1988a, p.43)
21
Freud nesse trabalho pretende sustentar a tese de que as perturbações histéricas não
carecem de lei (FREUD, 1988, p.46), fato esse que, se justificado, conferiria legitimidade ao
quadro clínico recém estabelecido. A primeira tarefa é mostrar como é possível um
diagnóstico diferencial da histeria, e segundo, notar que dessa rigorosa distinção pode-se
extrair os primeiros elementos de uma fórmula que explique a especificidade da formação dos
sintomas através das peculiaridades da distribuição da excitação dentro do sistema nervoso.
Os sintomas analisados que compõe o quadro nosográfico típico da histeria são:
ataques convulsivos, zonas histerógenas, perturbações da sensibilidade, paralisias, contraturas
e perturbações psíquicas. O que distingue e caracteriza em geral esses sintomas como
histéricos é o fato clinicamente estabelecido de que em todos eles há uma grande liberdade em
relação à regra anatômica. As anestesias histéricas diferentemente das orgânicas, por
exemplo, não interferem nas atividades motoras, além de que, podem, mesmo que sua
extensão e intensidade sejam muito acentuadas, escapar inteiramente ao conhecimento e a
percepção do paciente. (FREUD, 1988a, p.49). As convulsões histéricas, outro exemplo,
diferente das epiléticas não apresentam aumentos de temperatura e seus movimentos
coordenados contrastam fortemente com a brutalidade dos ataques na epilepsia; há também
como característico desses ataques histéricos uma fase alucinatória denominada de –
attitudes passionnelles’ – que exibe posturas, ações e palavras que correspondem ao
conteúdo psíquico de cenas que são alucinadas durante o ataque, o que não ocorre, em
absoluto, na epilepsia. Com relação às paralisias histéricas não há uma preferência pela
porção distal do membro como nas orgânicas. Enfim, Freud aponta inúmeras outras distinções
diagnósticas, mas para nossos propósitos é suficiente destacar que todos os sintomas
encontrados na histeria são móveis: mudam de uma forma que, de saída refuta toda a
conjectura de uma lesão material e de modo algum refletem a constelação anatômica do
sistema nervoso como o fazem os sintomas das afecções orgânicas. (FREUD, 1988a, p.53). É
22
justamente essa mobilidade que sugere uma alteração do fluxo da excitação na base das
afecções e também o que explica a eficácia da terapêutica hipnótica, uma vez que a sugestão
sob hipnose atuaria nessa distribuição pela mediação psíquica.
Por meio da consideração dos sintomas psíquicos da histeria Freud introduz, já em
1888, as primeiras hipóteses e postulados sobre os quais irão se edificar os conceitos
fundamentais de sua futura metapsicologia.
As alterações psíquicas, que é preciso postular como base do status
histérico, se desdobram por inteiro no âmbito da atividade encefálica
inconsciente, automática. Talvez ainda se possa destacar que na histeria a
influência dos processos psíquicos sobre os processos físicos do organismo
está aumentada, (como em todas as neuroses), e que os pacientes histéricos
trabalham com um excedente de excitação no sistema nervoso, o qual se
exterioriza ora inibindo, ora estimulando, e que se desloca com grande
liberdade dentro do sistema nervoso. (FREUD, 1988a, p.54).
As alterações psíquicas assinaladas como a base do estado histérico são designadas,
antes de tudo, como alterações no decurso e nas associações entre representações, inibições da
atividade voluntária e a acentuação ou sufocação de sentimentos. Assim, já no seu ponto de
partida, o psíquico é referido fundamentalmente a esfera representacional: como uma
atividade cerebral inconsciente, e essa, por sua vez, responderia pelas modificações
funcionais na distribuição sobre o sistema nervoso, tanto de quantidades estáveis de excitação,
como ocorre no estado de saúde normal, quanto do excedente verificado nos transtornos
histéricos. (FREUD, 1988a, p.54).
Segundo essa hipótese, pode-se presumir que uns dos fatores que melhor respondem
à formação desse excedente de excitação dentro do órgão mental são aqueles relacionados à
vida sexual; pois se deve admitir o importante papel desempenhado por suas constelações
funcionais na etiologia das neuroses, isso devido à elevada significatividade psíquica desta
23
função
2
. (FREUD, 1988a, p. 56). A sintomatologia da histeria seria uma demonstração de
como a formação desse “excedente de estímulo é distribuído por intermédio das
representações conscientes e inconscientes”. (FREUD, 1988a, p.63).
A observação da existência de grandes intervalos de tempo entre os fatores
desencadeantes e as irrupções sintomáticas sugere ainda que os distúrbios neuróticos
requeiram um período de latência durante o qual a causa segue atuando (produzindo efeitos)
no inconsciente. (FREUD, 1988a, p.58). Em seguida, a respeito do tratamento o autor volta a
afirmar que este deve consistir na eliminação da causa psíquica fonte da formação de
sintomas e que a mesma deve ser buscada, sobretudo, no representar inconsciente. (FREUD,
1988a, p.62). Como observa SIMANKE (2004b, p.13), é no plano clínico que a noção de
inconsciente começa a se impor. Contudo, será necessário um trabalho crítico para que essas
hipóteses sobre a natureza dos fatores inconscientes em ação nas histerias ultrapassem o
domínio da observação e da intuição clínica e alcancem um estatuto conceitual amparado por
uma teoria da representação.
A respeito do método terapêutico faz uma importante menção ao trabalho de Breuer
que pode ser considerado como uma fonte de influência importante sobre a formulação dessas
hipóteses que sugerem um mecanismo psíquico para os fenômenos histéricos. Este método
consiste em reconduzir o enfermo, hipnotizado a pré-história psíquica do
padecer, e compeli-lo a reconhecer a ocasião psíquica a raiz da qual se
originou a perturbação correspondente. Esse método é mais adequado por
que imita fielmente o mecanismo segundo o qual se originam e dissipam as
perturbações. (FREUD, 1988a, p.62).
2
Apesar de reconhecer a importância da significação psíquica da função sexual na causação dos
sintomas
, Freud mantém uma posição dúbia em relação a seu papel etiológico. Ora, se põe ao lado de
Charcot e afirma que a causa da histeria deve ser buscada inteiramente numa disposição hereditária
para a perturbação da atividade nervosa; deixando aos fatores traumáticos adquiridos o lugar
secundário das causas desencadeantes. Ora, partilha das descobertas de Breuer e sustenta que as causas
devem ser buscadas na pré-história psíquica do padecer, na ocasião traumática que deu origem a
perturbação nervosa. Nos trabalhos subseqüentes, como no texto “Charcot” (1893), pode-se verificar
que Freud toma partido das causas sexuais adquiridas, dizendo que Charcot superestimou a
hereditariedade como agente causativo não deixando espaço algum para a aquisição da doença
nervosa. (FREUD, 1989, p.24).
24
Não há dúvida de que a idéia da existência e da eficácia de um inconsciente psíquico
representacional é absolutamente essencial ao conjunto destas hipóteses que visam explicar a
sintomatologia clínica da histeria. No entanto, o sentido e a natureza da noção de
representação com que Freud está manejando neste momento ainda não são claros. Muito
embora, os sintomas da histeria dão indícios que se trata:
1º. Da representação do corpo no córtex, enquanto uma atividade cerebral
inconsciente.
2º. Que essa representação não pode ter por base as regras anatômicas da distribuição
nervosa, uma vez que esses sintomas são absolutamente refratários à anatomia.
3º. Que isso tem a ver com a significação psíquica atribuída as funções corporais
representadas.
Nesse sentido seu estatuto está mais próximo do domínio funcional do que do
morfológico
3
, como indica o uso do conceito funcionalista de atividade e de modificações da
distribuição sobre o sistema nervoso de quantidades estáveis de excitação por causas não
orgânicas. Se as causas devem ser buscadas no “representar inconsciente” por meio da
recondução do paciente à pré-história psíquica da doença até a ocasião traumática que deu
origem aos sintomas, o conceito de representação também deverá comportar uma função
mnêmica capaz de explicar a eficácia póstuma desses eventos. No entanto, até o momento
esses desdobramentos permanecem implícitos neste ponto de vista neurológico é evidente,
porém, já de todo funcional. Os futuros desenvolvimentos mostrarão qual é a noção de
representação que Freud tem por referência, ao mesmo tempo em que irá submetê-la a um
exame crítico decisivo que resultará numa reformulação de seu estatuto conceitual
3
Segundo LEVIN (1980, p.12), essa alternativa entre a apreensão funcional ou morfológica dos
fenômenos nervosos foi amplamente debatida pela neurologia e psiquiatria do século XIX. A
controvérsia girava em torno “da utilidade relativa da Anatomia Patológica (acompanhar os pacientes
até à autopsia a fim de correlacionar sintomas com dados anatômicos) e da Fisiologia (enfatizar a
experimentação em animais de laboratório, com a finalidade de investigar os modos de funcionamento
em lugar da estrutura) para a elucidação da natureza dos processos patológicos.” Como torna evidente
esse texto de 1888, Freud opta por esse segundo o estilo de abordagem.
25
adequando-o aos novos problemas e necessidades colocados pelas características clínicas da
neurose.
1.2. A circunscrição da participação psíquica inconsciente
Nesse mesmo ano de 1888, no prefácio escrito por Freud a sua tradução do livro de
Bernheim sobre a sugestão, (De la sugestíon et de ses applications à la thérapeutique)
encontra-se um prolongamento das questões abordadas em “Histeria” (1888) aplicadas ao
problema da hipnose. Esse prefácio pretende apresentar ao público médico alemão os
argumentos a favor do estudo e da prática terapêutica do hipnotismo contra a “crença de que
o problema da hipnose estaria, como assevera Meynert, envolvido num ralo de absurdidade”.
(FREUD, 1988b, p.81). Bernheim teria, e esse segundo Freud seria seu grande mérito,
despojado as manifestações do hipnotismo de sua raridade, correlacionando-as com os
fenômenos e com as leis da vida psicológica normal e do dormir. Como entre histeria e
hipnose existem nexos bastante íntimos, trata-se de sustentar ao lado de Charcot, entre outros,
tanto a realidade dos fenômenos hipnóticos quanto a natureza real da sintomatologia da
histeria que fora posta em dúvida pela ciência médica alemã.
Os partidários a favor da hipnose se dividem em dois grupos: aqueles como Bernheim
que defendem que os fenômenos do hipnotismo procedem unicamente dos fatores psíquicos
produzidos pela sugestão, ou seja, da introdução de uma representação consciente desde o
exterior no órgão anímico do hipnotizado e que é acolhida como se tivesse surgido
espontaneamente; e outros, como Charcot, que afirmam que no mecanismo dos fenômenos
hipnóticos sobressaem os fatores fisiológicos, pois tem por base deslocamentos da
26
excitabilidade dentro do sistema nervoso sem a participação das partes que trabalham com
consciência. (FREUD, 1988b, p.83). É interessante notar a diferença em torno da concepção
de psíquico entre os autores. Segundo a definição dada em “Histeria” (1888), Freud entende
que o psíquico como atividade neurológica inconsciente. Bernheim, por sua vez, o concebe
enquanto representação psicológica consciente. Já as alterações fisiológicas sem a
participação consciente que Charcot postula como a base dos fenômenos hipnóticos é o que
Freud reconhece como atividade psíquica cerebral.
Como observa Freud, as opiniões de Bernheim, se aceitas integralmente, destituem por
completo a objetividade da sintomatologia histérica. Pois, se o hipnotismo se fundamenta
exclusivamente na sugestão, a hipnose de pacientes histéricos careceria de características
próprias na medida em que o médico poderia produzir em seus hipnotizados, sem saber,
qualquer sintomatologia que desejasse falseando as observações. Esse seria um excelente
exemplo de como um grande observador como Charcot se viu levado de maneira falsa e
artificial, por desconsiderar o fator psíquico da sugestão, a criar um tipo clínico a partir da
total arbitrariedade e maleabilidade de uma neurose. Não obstante, Freud sustenta a tese de
que a sintomatologia da histeria clinicamente justificada é de natureza real, objetiva, e não
pode ser falseada pela sugestão do observador. Isto não significa que se deva desprezar o
mecanismo psíquico das manifestações, porém, este não pode ser reduzido ao mecanismo da
sugestão. (FREUD, 1988b, p.85). A avaliação é de que, se a sintomatologia da histeria sugere
um mecanismo psíquico, este deverá articular ambos os argumentos, e propõe a busca de uma
mediação, de um elo
4
, entre processos psíquicos e fisiológicos postulados por esses autores
através de um exame crítico do conceito de sugestão.
4
Como bem observou SIMANKE (2004b, p.61) “na clínica da histeria, não se tratava de escolher
entre uma explicação fisiológica, que relegava os sintomas a fenômenos deficitários incompreensíveis,
e uma abordagem interpretativa que lhes revelasse a significação imanente, mas de formular uma
explicação psicológica dos distúrbios neuróticos que justificasse seu sentido histórico e individual na
sua função de determinante causal dos processos, sem abrir mão da materialidade atribuída aos
mesmos.”
27
O uso ambíguo do termo sugestão é tido como o grande responsável por esta antítese
entre fatores psíquicos e fisiológicos. Segundo sua definição: por sugestão se entende uma
espécie de influência psíquica que se singulariza frente outras modalidades de influência,
como a comunicação, a ordem ou o ensinamento, por despertar num segundo órgão mental,
uma representação cuja origem não é submetida a um exame, sendo aceita como se houvesse
sido gerada espontaneamente neste órgão. (FREUD, 1988b, p. 88).
O ponto de partida para o reconhecimento do mecanismo em questão é o
estabelecimento da diferença entre a sugestão direta (psíquica) e sugestão indireta
(fisiológica). Por exemplo, se dissermos a uma pessoa hipnotizada: ‘seu braço direito está
paralisado; você não pode movê-lo’, essa seria uma sugestão psíquica direta. Em vez disso,
observa Freud, Charcot dá um leve golpe no braço do hipnotizado produzindo uma sensação
dolorosa, ao que segue o mesmo resultado, a paralisia do braço independente da sugestão
psíquica direta do médico. Nesse segundo caso é preciso reconhecer a presença de auto-
sugestões na produção do sintoma, ou seja, uma série de elos intermediários oriundos da
própria atividade psíquica do sujeito se intercala entre o estímulo externo aplicado (o golpe) e
o resultado (a paralisia). Não obstante, nessas auto-sugestões se tratam de processos psíquicos
que não recebem a atenção da consciência como nas sugestões diretas. É por via desta
tendência à auto-sugestão enquanto atividade psíquica própria inconsciente que se pode
explicar o mecanismo de produção das paralisias histéricas espontâneas. É essa inclinação que
é característico da histeria muito mais do que a sugestionabilidade em relação ao médico.
(FREUD, 1988b, p.89). Pode-se dizer com isso que Freud estabelece diferenças importantes
entre: psíquico consciente (sugestão direta); a atividade psíquica inconsciente (auto-sugestões)
e atividade fisiológica não psíquica.
28
Nesse mecanismo de produção as auto-sugestões são descritas apresentando tanto
fenômenos psíquicos quanto fisiológicos (corporais) e Freud propõe que o elo buscado entre
esses possa ser explicado mediante leis de associação: “ – sugerir – tem o mesmo significado
que o despertar recíproco de estados psíquicos segundo as leis da associação.
5
(FREUD,
1988b, p.89). Por exemplo, a sugestão indireta do fechamento dos olhos, que é um dos
concomitantes mais regulares do dormir, desperta o estado psíquico do sono associado à
representação do dormir, ou seja, um componente dos fenômenos do sono sugere os outros
que completam a manifestação como um todo; e conclui:
Esta capacidade de associar elementos faz parte da natureza do sistema
nervoso, não depende do livre arbítrio do médico; não pode subsistir sem
apoiar-se em alterações dentro da excitabilidade das partes encefálicas em
questão, dentro da inervação dos centros vasomotores, etc., e igualmente
oferece uma face psicológica tanto como uma fisiológica. (FREUD, 1988b,
p.90).
Assim, através da consideração dessa capacidade associativa a antítese em questão é
desfeita e a suspeita de que a sintomatologia seria imposta pelo médico perde o sentido. A
sugestão direta ou indireta seguida da auto-sugestão não faz outra coisa que desencadear por
meio de uma representação uma série de estados corporais que se encontram associados a
estados psicológicos; outro exemplo: a representação psicológica do dormir pode engendrar
os sentimentos de fadiga nos olhos e músculos e vice versa. (FREUD, 1988b, p.90). O
fundamento desse enlace apóia-se nas particularidades funcionais associativas do sistema
nervoso hipnotizado e na noção de representação, pois como demonstra o estudo da sugestão,
a excitabilidade parece ser distribuída no sistema conforme as alterações no decurso das
representações segundo as leis de associação.
5
As leis de associação a que Freud se refere e que estão na base da formação dos fenômenos são:
associação por similaridade, por contigüidade e a formação de uma associação indissolúvel entre dois
fenômenos contíguos ou similares pela freqüência e pela repetição com que são experimentados. Para
um exame da fonte dessas leis na psicologia de Stuart Mill ver adiante Parte I, seção 3.2.
29
Freud observa que o modelo da função cerebral de Meynert reduz o domínio psíquico
a estrutura anatômica do córtex e o fenômeno fisiológico as fibras subcorticais. O que dá
margem para a pergunta (bastante freqüente na época) que indaga se as alterações da
excitabilidade na hipnose afetam o âmbito psíquico ou o fisiológico; a resposta de Freud é
contrária à idéia da localização estrita das funções mentais: não se tem “critério algum que
permita separar com exatidão um processo psíquico de um fisiológico, [ou seja] um ato no
córtex cerebral de um ato nas massas subcorticais.” (FREUD, 1988b, p.91)
6
. Concluindo
então que: tal processo, como um todo, resiste a uma localização estrita e apresenta efeitos
globais em que se deve considerar suas duas faces interdependentes.
7
Ao remeter o psíquico à atividade cortical inconsciente e não a sua localização
anatômica, Freud inicia uma crítica a idéia de localização das funções mentais em partes
específicas do órgão cerebral que se tornará uma condição de possibilidade para elaboração
de sua teoria da constituição do aparelho psíquico. Neste momento se executa os primeiros
passos de um movimento conceitual que irá superar criticamente tanto o localizacionismo
quanto a tradicional identidade estabelecida entre psíquico e consciência:
a “consciência”, seja ela o que for, não corresponde a toda atividade do
córtex cerebral, e nem sempre corresponde na mesma medida a alguma das
suas atividades em particular, não é algo ligado a uma localidade psíquica
dentro do sistema nervoso. (FREUD, 1988b, p.91, grifo nosso).
6
Com essa resposta Freud está se posicionando contra a teoria de Meynert que pretende ver nos
fenômenos hipnóticos “uma – depressão da atividade cortical – uma forma de imbecilidade
experimental; [...] e até chega a localizar o princípio do – mal – nas partes subcorticais do cérebro.”
(FREUD, 1988c, p. 105).
7
Com efeito, observa NASSIF (1977, p.117), “só uma teoria que dê a possibilidade de pensar em
termos de processo, e que não faz da consciência um critério de existência desses processos, permite
interpretar os fatos clínicos colocados em evidência por Charcot em seus estudos das paralisias
histéricas.”
30
1.3. A palavra enquanto recurso terapêutico primário e a introdução da
noção de afeto
O texto “Tratamento psíquico” publicado no ano de 1890 é um exemplar preciso do
rendimento clínico e teórico obtido por Freud nestes primeiros anos de seu trabalho com as
neuroses. Nele pode-se encontrar uma síntese da temática que abre e expõe o contexto do qual
surgirão às questões e os conceitos fundamentais da teoria psicanalítica. Sua articulação mais
próxima está internamente ligada com o lugar ocupado pela linguagem e a necessidade de
correlacioná-la com a idéia de um aparelho de associações. Nesse sentido, esse texto pode ser
considerado como o contraponto clínico do ensaio crítico especulativo “Sobre as afasias”
(1891). (Cf. BIRMAN, 1993, p.71). Nele podem-se observar alguns dos motivos que levaram
Freud a escrever esta crítica inaugural para sua metapsicologia.
As duas principais questões aí abordadas são: o lugar e o sentido dado à palavra
enquanto recurso terapêutico primário e a introdução da noção de afeto enquanto elo de
mediação e eficácia entre processos psíquicos e corporais. Segundo Freud, a expressão
tratamento psíquico significa: o tratamento (seja de perturbações mentais ou corporais) com
recursos que de maneira primária e imediata influem sobre a mente humana. “Um recurso
desta índole é sobre tudo a palavra, e as palavras são, com efeito, o instrumento essencial do
tratamento mental.” (FREUD, 1988c, p. 115). Como os principais meios mediadores de
influência entre os humanos, as palavras estiveram inicialmente a serviço das práticas
curativas sacerdotais. Freud, por sua vez, situa seu trabalho como parte da recente
reordenação do campo da medicina em razão de sua inserção no domínio das ciências
naturais. Cabe então, afirma o autor, tornar compreensível o modo como à ciência pode
devolver a palavra uma parte de seu préstimo curativo. Para tanto é necessário um
31
remanejamento na orientação bastante difundida pelos progressos da medicina moderna que
restringiu seu interesse ao corporal. A falta de autonomia clínica e conceitual do domínio
psíquico é problematizada e discutida e a avaliação de Freud é que ciência médica segue uma
orientação unilateral.
É verdade que a medicina moderna teve ocasião de estudar os nexos entre o
corporal e o mental, nexos cuja existência é inegável; [...] A relação [...] é de
ação recíproca; mas [...] a ação do mental sobre o corpo, não era visto com
bons olhos pelos médicos. Pareciam temer que se concedessem certa
autonomia a vida mental, deixariam de pisar no seguro terreno da ciência.
(FREUD, 1988c, p.116, grifo nosso).
No entanto, houve uma modificação importante nessa orientação causada pela própria
experiência clínica com determinado tipo de transtornos que se tornaram um grande desafio a
prática médica. Freud dá alguns exemplos destes quadros clínicos: pacientes que não podem
realizar trabalhos intelectuais devido a dores de cabeça e por impossibilidade de
concentração; outros têm dores nos olhos quando lêem; as pernas se cansam quando
caminham; sofrem de dores imprecisas; padecem de transtornos digestivos com sensações
penosas; espasmos, insônia, etc. As provas clínicas de que as causas não se encontram em
lesões orgânicas se encontram no fato de que esses sintomas exibem grande variabilidade,
podendo haver substituições, mudanças repentinas de localização, e em alguns casos, uma
alteração nas condições de existência pode por fim a essas afecções sem deixar seqüela
alguma.
Tais estados têm recebido o nome de nervosismo (neurastenia, histeria) e se
os define como enfermidades meramente funcionais do sistema nervoso.
[...] Ao menos em alguns desses casos os signos patológicos não provem
senão de um influxo alterado da ação de suas mentes sobre seus corpos.
Portanto, a causa imediata da perturbação deve ser buscada em suas mentes.
(FREUD, 1988c, p. 117, grifo nosso).
32
Contudo, antes de se interrogar pelas causas (que em última instância Freud remete a
relação do psíquico a sua base corporal), o autor adverte que é preciso reavaliar então essa
relação de reciprocidade entre mente e corpo. Começa por observar que o cotidiano dá
exemplos irrefutáveis da influência psíquica sobre o corporal, como é caso do que se pode
observar naquilo que se designa por “expressão das emoções”
8
. (FREUD, 1988c, p.118). As
expressões emocionais exteriorizam estados mentais por meio da tensão ou relaxamento dos
músculos, das alterações cardíacas e respiratórias, do afluxo sangüíneo no interior do corpo e
vasos da pele, do modo de emprego do aparelho fonador, das posturas em geral, e dos
comportamentos das mãos e dos olhos em específico; ou seja, grande parte das atividades
psíquicas exibe conseqüências corporais. Dentre todas essas atividades psíquicas Freud isola
alguns estados psicológicos que são identificados como afetos.
9
Segundo o autor, os estados
afetivos como o medo, a ira, as dores anímicas e o prazer sexual são os melhores exemplos da
intensa e significativa co-participação corporal na expressão de estados psíquicos. Nos casos
mais graves como na persistência de estados afetivos de natureza depressiva, por exemplo, a
nutrição do corpo é rebaixada, os cabelos embranquecem, gordura é reduzida e são causadas
alterações patológicas nas paredes dos vasos sanguíneos. O inverso também pode ocorrer:
sob afetos de felicidade o corpo floresce dando sinais de renovação. (FREUD, 1988c, p.119).
Portanto, pode-se concluir que:
Os afetos em sentido estrito se singularizam por uma relação muito particular
com os processos corporais; mas, a rigor, todos os estados mentais, incluindo
os que habitualmente consideramos “processos de pensamento”, são em certa
8
(Cf. DARWIN, C. A expressão das emoções nos homens e nos animais).
9
É importante observar que no texto anterior a sintomatologia da histeria fora estabelecida como uma
demonstração de como a formação de um excedente de estímulo no órgão mental é distribuído por
intermédio de representações. Apesar da referência a importância da função sexual, a fonte de onde
provém o excedente de estímulo não é claramente especificada, se é de origem endógena ou exógena,
se provém de uma disfunção orgânica ou de uma estimulação sensorial. Nesse texto sobre o tratamento
psíquico, a excitação assume a forma de afeto, que por sua vez é constituído a partir de uma vivência
específica e não de uma espontaneidade do somático. Assim, é a carga afetiva associada à
representação psíquica dessa vivência que é distribuída na inervação corporal.
33
medida afetivos [...]. Até mesmo a tranqüila atividade de pensar em
“representações” provoca, segundo seus conteúdos, excitações permanentes
sobre os músculos lisos e estriados. (FREUD, 1988c, p.120, grifo nosso).
Nesta generalização operada da ação recíproca entre processos corporais e afetivos
para os processos do pensamento como um todo está à base que lhe permitirá, num futuro
próximo, realizar o redimensionamento que irá conferir a desejada, porém, relativa,
autonomia conceitual e clínica aos processos psíquicos em geral
10
.
Nesse contexto, o recurso à palavra, quando manejada no interior do estado hipnótico,
tem sua eficácia maximizada. Freud observa que nessas situações qualquer intervenção que o
médico empreenda comporta sempre duas partes: a atitude mental do enfermo, seu desejo de
curar-se, e o poder que atribui à pessoa de seu médico. Aí onde se conjuga: um estado
semelhante ao sono (em que se mantém a atenção do paciente desperta somente as palavras do
hipnotizador), somada a estima e obediência crédula para com o médico, é que se pode
compreender uma parcela do poder curativo conferido a palavra enquanto instrumento
essencial do tratamento psíquico. (FREUD, 1988c, p.127).
11
A outra parcela será avaliada no
passo seguinte que é o de correlacionar toda esta problemática com a estruturação de um
aparelho de linguagem que possa fornecer uma intelecção mais profunda dos processos sob os
quais se constitui a vida psíquica representacional.
10
Essa autonomia conceitual, que não deve ser confundida com autonomia causal combatida por
Freud (Cf. SIMANKE, 2004a), será reconhecida justamente no momento em que for estabelecido o
laço conceitual que liga inextrincavelmente a atividade representacional aos afetos através do conceito
de representação afetiva. (Cf. Parte I, seção 4.3) Para tanto será necessário o exame crítico do
conceito de representação e sua correlação com a as funções e estruturas de um aparelho, primeiro
referente à linguagem e depois, com a inclusão do domínio pulsional, enquanto aparelho psíquico
propriamente dito.
11
Nas práticas hipnóticas as quais Freud se refere, as palavras são utilizadas sob a forma de sugestões
com o objetivo de que o enfermo renuncie a enfermidade adquirida, ou seja, um tratamento
sintomático. Porém, por influência de Breuer, Freud fez um uso diferente deste procedimento, praticou
a hipnose também como forma de investigação. Ao invés de sugerir a eliminação dos sintomas
reconduzia o paciente à pré-história psíquica do adoecer fazendo-o reconhecer à ocasião que deu
origem a perturbação. Portanto, um tratamento causal, onde as palavras proferidas pelo próprio
enfermo vem para o primeiro plano revelando os efeitos do representar inconsciente.
34
1.4. A relação entre a formação dos sintomas e os modos de reação do
mecanismo psíquico
Nesses três primeiros movimentos do pensamento freudiano encontram-se elementos
importantes para algumas pontuações preliminares acerca da natureza real da sintomatologia
da histeria. Assim, pode-se verificar que a princípio essa afirmação tem o seguinte sentido,
segundo Freud: a sintomatologia é de natureza real se, e somente se, não carece de lei. No
entanto, essa lei somente pode ser devidamente verificada através da formulação de um
mecanismo psíquico que leve em conta a hipótese do excedente de excitação distribuído
conforme as alterações no decurso das representações segundo leis associativas.
Portanto, a sintomatologia é real, ou seja, não carece de lei, com a condição que se
possa observar uma relação constante e necessária entre a formação de sintomas e um
determinado modo de reação do mecanismo nervoso. Encontrar essa relação constante é o que
torna possível conferir uma legitimidade teórica para a ação psíquica suposta nos fenômenos
observados. Pois, se nos sintomas há uma liberdade em relação à regra anatômica isso não
significa que não sigam regra alguma. Contudo, o mecanismo não pode se reduzir à sugestão;
é dá natureza do sistema associar, e o corpo deve ser pensado como um conjunto de traços em
que a organização não é mais totalmente regida pelas leis da fisiologia mais segundo as da
associação
12
. (NASSIF, p.1977, 248).
Freud se ocupa em fornece provas clínicas dessa relação constante e necessária. Um
passo importante nessa investigação é avaliação da ação recíproca entre os estados afetivos e
12
Contudo, segundo essa perspectiva, a natureza real da sintomatologia somente receberá sua
legitimação conclusiva no texto “Algumas considerações com vistas ao estudo comparativo entre
paralisias motrizes orgânicas e histéricas” (1888-1893), que torna evidente o processo pelo qual a
formação dos sintomas histéricos incide, não sobre o corpo anatômico, mas, sob o corpo
psiquicamente representado segundo as leis de associação.(Cf. Parte I, seção 4.2).
35
suas conseqüências corporais. Nessa avaliação é possível pontuar uma outra perspectiva na
abordagem do real. Se por um lado, pode-se dizer que o real é tratado como aquilo que resulta
da apreensão científica direta e indireta dos fenômenos estudados, ou seja, trata-se aí de um
real construído pela ciência
13
, por outro, o real é apreendido tal qual ele se dá diretamente à
experiência. Esse real enquanto vivido pode ser parcialmente apreendido no reconhecimento
por parte de Freud de que as dores em geral, por exemplo, podem ser acentuadas até o limite
por influências mentais denominadas habitualmente de imaginação. Todavia, afirma o autor,
essas dores de natureza afetiva não deixam de ser menos reais nem menos fortes que as
causadas por feridas e inflamações (FREUD, 1988c, p.120). Esse tipo de observação clínica
abre também a possibilidade de pensar teoricamente à eficácia própria aos processos
psíquicos pela avaliação da ação recíproca entre estados afetivos e processos corporais.
CAPÍTULO 2
O Aparelho de Linguagem no ensaio “Sobre as afasias” (1891)
O trabalho crítico realizado no ensaio “Sobre as afasias” (1891) pode ser considerado
como parte de um movimento interno da investigação sobre a histeria. Com efeito, Freud só
consegue dar seqüência a essa investigação a partir dos resultados obtidos nesse ensaio. Um
dos grandes problemas formulados no curso deste trabalho é o da impossibilidade de um
isomorfismo entre função psíquica e anatomia cerebral. O re-equacionamento desta relação
13
Pois, como observa NASSIF (1977, p.122), no caso de Freud “todos os processos que concernem
aos eventos psíquicos são inferidos do mesmo modo que são inferidos os processos mecânicos nas
ciências da natureza.”
36
deve tornar possível responder a seguinte questão que recobre todo esse percurso inicial:
Como se ordena a estrutura do psiquismo para que o ato psicanalítico fundado na palavra
seja uma experiência possível?” (BIRMAN, 1993, p.38).
Tendo em vista o ponto de partida freudiano no interior de uma tradição médica
constituída historicamente sobre a clínica do visível, no momento em que Freud elege a escuta
do discurso afásico e histérico como objeto de sua pesquisa, executa um movimento que o
levará a uma ruptura com esta tradição. O mais significativo desta ruptura, como observa
SIMANKE (1994b, p.7), é que ela “é produto de uma crítica de natureza epistemológica dos
métodos, dos conceitos e dos objetos tipicamente médicos que foram seu ponto de partida.”
Portanto, um movimento próprio de um trabalho que pretende abrir o domínio e estabelecer as
bases de uma nova disciplina no campo do saber. (Cf. NASSIF, 1977).
Como pretendemos demonstrar, a teoria desenvolvida no ensaio sobre as afasias
permite também verificar que não há uma diferença de natureza entre corpo e representação,
ambos são concebidos como dois níveis de um mesmo processo material. Esse entendimento
quanto à natureza material partilhada entre corpo e representação é o que da inteligibilidade a
ação direta do psíquico sob os processos corporais como foram apresentados nos textos
anteriores.
Segundo Freud, a teoria das afasias proposta por Wernicke através de esquemas
baseados na idéia de localização de funções mentais em áreas anatomicamente definidas era
bastante difundida e aceita pela neuropatologia da época. Sua crítica pretende demonstrar que
essa teoria contém premissas que precisam ser revisadas, pois delas se deduzem formas de
dissolução da linguagem que não podem ser confirmadas pela observação. No entanto, de
37
acordo com os objetivos desse trabalho, iremos concentrar os comentários desse ensaio no
que tange a elaboração da teoria da representação que encontra aí seu momento crítico
14
.
As hipóteses de Wernicke, afirma Freud, além de tentarem relacionar as perturbações
da linguagem observadas na prática clínica a um número equivalente de lesões cerebrais
localizadas, pretendem oferecer uma explicação de seu processo fisiológico postulando-o
como um reflexo cerebral. Segundo esse ponto de vista, os sons da linguagem são levados
pela via do nervo acústico a uma região situada no lóbulo temporal, onde suas impressões
sensoriais são armazenadas sob a forma de imagens sonoras individuais em células nervosas
separadas, constituindo assim, um centro sensorial para a linguagem. Por outro lado, as
imagens mnêmicas, resíduos das impressões glossocinestésicas
15
das palavras faladas, são
reagrupadas em uma região cortical reconhecida como centro motor da linguagem. Assim, os
estímulos sonoros são transmitidos do centro sensorial ao centro motor, e desta associação
entre imagens sonoras e impressões motoras resulta o impulso para a linguagem articulada.
(FREUD, 1973, p.19). Os centros de linguagem estariam separados por um território cortical
desprovido de função designado por Meynert de lacunas funcionais. A conexão entre os
centros armazenadores seria realizada através de um feixe de fibras de condução por meio das
quais se produziria as associações
16
sensório-motoras necessárias à articulação da palavra
falada. Portanto, é possível identificar na base desta teoria de Wernicke três grandes
14
Para um exame mais detalhado das afasias remetemos o leitor aos trabalhos de NASSIF (1977) e
CAROPRESO (2002).
15
As impressões glossocinestésicas se referem às sensações de inervação ou de percepções de
movimentos efetuados no ato de falar. (FREUD, 1973, p.60).
16
Esse uso do conceito de associação, como pondera NASSIF (1977, p.269), indica que o modelo da
psicologia associacionista está sendo importado para o domínio da análise neurológica. Com efeito,
como foi apontado por GABBI JR. (2003, p.11) e desenvolvido por SIMANKE (2004, p.5) a
psicologia implícita do localizacionismo de Wernicke e Meynert é o associacionismo britânico de
James Mill. No entanto, no caso de Freud, essa influência está muito mais próxima do empirismo de
Stuart Mill; um autor que apresenta diferenças importantes em relação a essa versão atomista e
mecânica do associacionismo.
38
postulados: 1º o processo de linguagem enquanto reflexo cerebral; 2º o armazenamento de
impressões psíquicas em células nervosas corticais; 3º a distinção entre vias e centros
separados por áreas isentas de função. (NASSIF, 1977, p.271).
2.1 Exame crítico do conceito de representação: Projektion e Repräsentation
A explicitação desses postulados tem por objetivo redirecionar o exame crítico da
teoria das afasias de Wernicke para seus fundamentos na doutrina de Meynert sobre a
organização e funcionamento cerebral. No que diz respeito ao exame crítico do conceito de
representação, o problema assume a forma da seguinte questão: de que modo se encontra
representado o corpo no córtex? Segundo Freud, Meynert entende esta representação como
uma verdadeira projeção: uma representação ponto por ponto, incluindo músculos, áreas da
pele, glândulas, vísceras etc., ou seja, um conceito de representação completa e
topograficamente exata do corpo no órgão cerebral. (FREUD, 1973, p.64).
Esse conceito de projeção (Projektion) se apóia na suposição da existência de feixes
de fibras projetivas que refletem a periferia no córtex. Porém, observa Freud, as investigações
sobre a anatomia cerebral mostram que nenhum feixe de fibra chega da periferia do corpo até
as partes superiores do cérebro sem haver antes entrado em alguma conexão com a substância
cinza da medula espinhal. Essa descoberta da existência de conexões nervosas que se
intercalam no trajeto das fibras da periferia ao centro é um dado importante contra a suposição
de uma representação do corpo enquanto imagem completa e topograficamente similar.
Freud toma como ponto de partida para a refutação dessa idéia de projeção os
resultados dos estudos de Henle. Suas pesquisas afirmam que o número de fibras que partem
39
da periferia do corpo e chega à medula espinhal não é o mesmo daquele vai da medula até o
córtex cerebral: nesse último trajeto há uma redução do número de fibras. Por conseguinte, a
relação da medula com o corpo é diferente de sua relação com o cérebro, e somente na
medula espinhal existem os pré-requisitos para uma projeção. (FREUD, 1973, p.66).
Por tanto é adequado empregar termos diferentes para estes dois tipos de
representação no sistema nervoso central. Se chamamos “projeção” o modo
como a periferia está refletida na medula espinhal, sua contraparte no córtex
cerebral poderia ser convenientemente chamada de “representação”
[repräsentation]
17
. (FREUD, 1973, p.66).
Esse argumento a favor de um novo conceito de representação (Repräsentation) se
apóia na consideração crítica de que a idéia de Meynert sobre um feixe de fibras aferentes que
retém sua identidade no trajeto até o córtex, mesmo depois de haver atravessado um grande
número de núcleos, é insustentável. Freud afirma a impossibilidade de conceber que essa fibra
permaneça idêntica devido à observação de que a mielinização avança gradualmente de um
núcleo a outro, e que, para cada feixe de fibras aferentes emergem três ou mais feixes
eferentes desde um só núcleo. Essas freqüentes interrupções e arborizações que o feixe
sensorial aferente sofre na passagem pelos núcleos permitem supor que haja uma mudança no
significado funcional desta fibra ao longo deste trajeto a cada vez que emerge de um núcleo.
(FREUD, 1973, p.67). Freud dá o exemplo do nervo óptico: em seu trajeto, uma fibra nervosa
translada uma impressão retiniana até um gânglio (tubérculo quadrigêmeo anterior), daí em
diante outra fibra vai desse gânglio até o córtex occipital. No gânglio ocorre um
entrecruzamento de fibras aferentes onde a impressão retiniana se associa a uma impressão
muscular do movimento dos olhos e assim por diante; o mesmo acontece com as sensações
dérmicas e musculares em geral. Portanto, aquilo que chega ao córtex não é algo simples, mas
uma multiplicidade de associações entre diversas impressões sensoriais que determinam à
17
Tradução comparada com o texto original alemão. (Cf. FREUD, 1992, p.93).
40
alteração qualitativa e o ganho complexidade que o significado funcional dos processos
adquire durante esse percurso. Com isso, só podemos presumir que:
os feixes de fibras que chegam ao córtex cerebral depois de haverem passado
por outras massas cinzentas mantêm alguma relação com a periferia do corpo,
mas não refletem uma imagem topograficamente exata dele. Contém a
periferia do corpo da mesma maneira que – para tomar um exemplo do tema
que nos interessa aqui – um poema contém o alfabeto, ou seja, uma disposição
completamente diferente que está a serviço de outros propósitos, com
múltiplas associações dos elementos individuais, nas quais alguns podem
estar representados várias vezes enquanto outros podem estar completamente
ausentes. (FREUD, 1973, p.68).
O princípio subjacente a essa reordenação é puramente funcional, afirma o autor, as
relações topográficas se mantêm por se ajustarem as funções (FREUD, 1973,p.68). Isso
significa assumir:
1º. Que não há relações topográficas pré-estabelecidas, essas são constituídas como
decorrência do exercício das funções.
2º. As mudanças no significado funcional dos processos ocorrem de acordo com as
seqüências associativas estabelecidas pela experiência.
Portanto, a primeira representação do corpo diz respeito antes de tudo à importância
funcional da parte representada. Um modo de representação que admite variações, pois as
partes do corpo a serem mais ou menos representadas são selecionadas de acordo com a
importância funcional que adquirem no decorrer dos processos.
18
18
É importante notar que essa representação do corpo que resulta desse processo material é destituída
de uma significação a priori. A significação do corpo se constrói a posteriori, mediante a associação
com as representações de palavra, como veremos adiante. Também é importante observar que o
processo de formação de uma representação é algo distinto e independente daquilo que se experimenta
enquanto consciência.
41
2.2. A ultrapassagem do localizacionismo e do paralelismo psicofísico:
Repräsentation e Vorstellung
De posse desse conceito de representação Freud retorna ao exame das afasias com o
objetivo de desconstruir a idéia – fundamentada nas concepções de Meynert – de que o
aparelho de linguagem estaria formado por centros corticais distintos separados por uma
região isenta de função e conectados entre si por feixes associativos. Centros esses cujas
células, se supõem, conteriam as imagens das palavras, sua projeção. A crítica se endereça
justamente a essa tendência em localizar faculdades mentais ou mesmo elementos psíquicos,
como os define a terminologia psicológica, em certas áreas do cérebro. (FREUD, 1973, p.69).
Para executar essa desconstrução dos pressupostos localizacionistas Freud se apropria
de alguns conceitos e instrumentos metodológicos advindos de sua leitura da neurologia de
Jackson. Segundo esta metodologia, processos psíquicos e fisiológicos devem ser
investigados separadamente. Portanto, a princípio, a cadeia psíquica e a neurológica não
devem ser abordadas numa relação de causa e efeito; a relação de identidade entre esses
processos deve ser recusada. Segundo a doutrina de Jackson, o processo psíquico é paralelo
ao fisiológico, mais precisamente, se trata de um “concomitante dependente”. (FREUD, 1973,
p.70) Assim, quando se afirma que uma representação está contida numa célula se incorre
num erro categorial que leva a confundir dois processos que não necessitam ter nada em
comum. A operação no seu conjunto pode ser assim descrita: das modificações fisiológicas
ocorridas nas fibras nervosas produzidas pela estimulação sensorial decorrem sucessivas
reorganizações funcionais na condução dos estímulos periféricos até serem, finalmente,
representados (Repräsentation) no órgão cerebral. As alterações aí produzidas se convertem
42
então, segundo o paralelismo, no correlato neural de uma representação psíquica
(Vorstellung)
19
. (FREUD, 1973, p.70).
Freud ainda alerta que dessa confusão conceitual denunciada por Jackson resulta a
inferência infundada de que aquilo que na psicologia é uma simples representação deva
corresponder no domínio neurológico a algo também simples e localizável como pretende a
teoria da projeção. Porém,
tal inferência, naturalmente, carece de todo o fundamento; as qualidades desta
modificação têm que ser estabelecidas em si mesmas e independentemente de
seus concomitantes psicológicos. Qual é o correlato fisiológico de uma
representação simples ou de uma representação [Vorstellung]
20
que volta a
emergir? Obviamente nada de estático, mas algo da natureza de um processo.
(FREUD, 1973, p.70, grifo nosso).
Contrapondo a noção dinâmica de processo à noção estática de localização pretende-
se refutar a hipótese da existência de centros de linguagem. O processo, segundo a
apropriação que Freud faz desse conceito de Jackson, é algo que se difunde amplamente por
todo o córtex deixando atrás de si modificações permanentes (traços), portanto, não há
necessidade de postular a existência de centros estáticos e de vias de condução. São essas
modificações processuais que permitem que haja possibilidade de recordações, pois segundo
este raciocínio, a cada vez que o processo volta a ocorrer suscitando os mesmos estados
corticais, o evento psicológico concomitante surge novamente enquanto recordação. (FREUD,
1973, p. 71). Assim, para cada emergência de uma simples representação psíquica
corresponderia a uma rede associativa neurológica complexa.
19
WIDLÖCHER (1989, p.239, grifo nosso) esclarece que “a dependência do psiquismo em relação ao
somático dá ao evento psíquico a função de representar a excitação somática. Representar aqui no
sentido de ter lugar, de estar no lugar de (Repräsentanz). A outra via é a da representação
(Vorslellung), que na atividade mental se refere ao objeto [ou a vida relacional]”.
20
Tradução comparada com o original alemão (Cf. Freud, 1992, p.99).
43
Um inconveniente dessa apropriação da doutrina de Jackson é que o paralelismo
implica na identidade entre o psíquico e à atividade psicológica consciente assim como era
para Bernheim no exame sobre a sugestão. Freud diagnostica essa implicação, quando afirma
que, segundo essa doutrina, é duvidoso que “essa modificação [traço deixado pela difusão do
processo] corresponda também a algo psíquico. Nossa consciência não apresenta nada, que
desde o ponto de vista psicológico, possa justificar o termo ‘imagem mnêmica latente’.”
(FREUD, 1973, p.71). Tendo em vista as elaborações anteriores (Histeria, 1888) a respeito do
representar inconsciente, pode-se sustentar que Freud esteja a par deste impasse e que a
adoção do paralelismo psicofísico seja provisória e requerida apenas enquanto metodologia, o
que não lhe obriga, a princípio, a nenhum compromisso ontológico determinado (Cf.
IBERTIS, 2005; ARAÚJO, 2003). Por outro lado, como sustenta SIMANKE (2004a), é
possível reconhecer já no ensaio sobre as afasias os elementos que levariam Freud nos
trabalhos subseqüentes a ultrapassar juntamente com o localizacionismo, o paralelismo
psicofísico, rompendo com a identificação entre o psíquico e o consciente. “Ruptura essa não
só característica, mas, no limite, constitutiva da psicanálise” (SIMANKE, 2004a, p.2), uma
vez que o próprio conceito de inconsciente depende dos resultados dessa crítica que se dá
justamente pelas inovações introduzidas mediante o conceito de representação.
Como vimos, com Freud, a representação deixa de ser entendida enquanto cópia ou
duplo psíquico das impressões sensoriais como queria a teoria da projeção, para ser o
resultado de uma sucessiva recriação da informação sensorial segundo princípios associativos
determinados. Meynert postulava uma identidade do elemento ao longo do trajeto, não
havendo alterações qualitativas durante a condução da periferia ao córtex. Enquanto que
Freud, apoiando-se no conceito de representação e hierarquia funcional de Jackson e na
influência das idéias de Stuart Mill, como se verá adiante (Cf. GABBI JR., 2003; HONDA,
2002), dá evidencias de que nessa passagem do simples ao complexo, da periferia ao córtex,
44
são produzidas diferenças funcionais qualitativas que afetam progressivamente a significação
dos processos. Portanto, o processo pode ser pensado como uma sucessão de recriações
associativas que dão ensejo à emergência de propriedades distintivas que não se encontram
nos elementos individuais
21
, ultrapassando a idéia da existência de dois processos paralelos e
da inexistência de uma relação causal entre o psíquico e o corporal.
22
Mesmo que Freud não assuma de imediato as conseqüências de sua crítica, segundo a
tese sustentada por SIMANKE (2004a, p. 32), é possível reconhecer que ele tenha chego,
mesmo que inadvertidamente, a uma solução emergentista para o problema mente-cérebro.
Assim, a idéia de emergência se insinua aí enquanto possibilidade
23
no modo como se
concebe a representação ao longo desse ensaio, dando todos os indícios de que essa
Vorstellung consistiria então,
no conjunto de propriedades distintivas que os processos corticais
adquirem ao se verem organizados de uma determinada maneira, no nível
mais evoluído e de maior complexidade e flexibilidade, segundo os
princípios jacksonianos; haveria, então, uma diferença funcional entre o
neurológico e o mental, mas não mais uma diferença essencial ou de
natureza, abrindo caminho para a formulação de uma psicologia
materialista, como a que Freud vai empreender no Projeto... e que não deixa
de ser a meta e o horizonte de toda a metapsicologia.(SIMANKE, 2004a,
p.32, grifo nosso).
Dado os desenvolvimentos anteriores, também se pode estender essa conclusão a
relação do psíquico com sua base corporal, pois, assim como no caso anterior pode-se
sustentar que não há uma diferença de natureza entre corpo e representação, uma vez que a
representação nada mais é do que o nível mais elevado de uma progressiva reorganização dos
elementos sensoriais provenientes da periferia corporal. Portanto, corpo e representação
21
Para uma exposição completa dos argumentos a favor dessa leitura ver: SIMANKE (2004a),
JACKSON (1971) e TEIXEIRA (2000a); a respeito das idéias de Stuart Mill sobre a química mental
enquanto fonte clássica da doutrina da emergência, ver NAGEL (1978), MILL (1971).
22
A relação causal justificada nesse momento se encontra clinicamente circunscrita, por exemplo, no
texto “Tratamento psíquico” (1890).(Cf. Parte I, seção 1.3).
23
(Cf. Parte II, seção 1.2).
45
apreendidos no seu registro funcional e não anatômico, fazem parte de um único processo
material. Essa continuidade material se deixa apreender, por exemplo, se considerarmos que
durante o processo da representação (Repräsentation) que parte da periferia para o centro, a
emergência de uma representação psicológica (Vorstellung) sob a forma de uma recordação,
deve ser concebida como algo dotado de uma materialidade acústica, visual ou cinestésica
inegável.
2.3. A autonomia do ponto de vista funcional e a espacialização do psíquico
Na seqüência, Freud descarta o postulado sobre a existência das lacunas funcionais, e
esta refutação, segundo ele, acabará por desencadear uma completa transformação na
concepção do aparelho de linguagem. (FREUD, 1973, p.72). A idéia a ser examinada é a
seguinte: as áreas que funcionam como centros de linguagem estariam separadas por hiatos
isentos de função. Meynert, segundo Freud, compreende que todo o processo de aquisição
psíquica e de aprendizagem de novas línguas se dá por meio da ocupação do córtex por novas
imagens mnêmicas armazenadas individualmente em células separadas. Com efeito, a esses
hiatos funcionais são atribuídas funções importantes na aquisição da linguagem: são espaços
livres de função utilizados para a expansão topográfica das imagens adquiridas pela
aprendizagem.
Se isto fosse correto no caso de novas aquisições lingüísticas cada uma delas estaria
armazenada em locais diferentes dessa região desocupada, por conseguinte, uma lesão
orgânica, dependendo de sua localização, poderia afetar primeiramente a língua materna, por
exemplo, restando intacta as aquisições lingüísticas mais tardias. Porém, no caso de lesões
46
orgânicas isso jamais acontece, a linguagem materna ou aquela utilizada com maior
freqüência são sempre as últimas a serem afetadas. Freud apóia-se no conceito de Jackson de
“retrogressão funcional” e nas observações clínicas de outros autores para mostrar que as
funções lingüísticas são afetadas segundo a ordem de sua constituição, das mais recentes e
menos organizadas, portanto, mais flexíveis, até as mais primárias, automáticas e inflexíveis.
Por exemplo, no caso de uma afecção do aparelho de linguagem a capacidade primária de
repetir palavras permanece intacta mais tempo do que a linguagem espontânea que é uma
aquisição mais tardia do aparelho. (FREUD, 1973, p.45).
Assim, a aprendizagem da fala estaria limitada pela organização de uma “hierarquia
funcional” que se estabelece em diferentes épocas: primeiro o sensório-auditivo, depois o
motor, em seguida, no caso da escrita, o visual e finalmente o gráfico. Por conseguinte,
conclui Freud, as afasias não fazem outra coisa que reproduzir um estado que existiu no curso
do processo normal da aprendizagem da fala. O conjunto de associações sobrepostas é
danificado antes que o primário qualquer que seja a localização da lesão. (FREUD, 1973,
p.75).
Essa argumentação pretende sustentar a afirmação de que as formas de dissolução da
linguagem observadas contradizem a concepção de Meynert baseada na noção estática de
localização que compreende o processo de aquisição de linguagem enquanto expansão
topográfica. Para concluir a refutação dessa teoria Freud recorre às hipóteses funcionais de
Bastian sustentando que: no caso de lesões ou outros tipos de afecções o aparelho de
linguagem reage não como uma interrupção localizada mas com uma modificação de seu
estado funcional. (FREUD, 1973, p.45). Uma lesão da área motora, por exemplo, nunca
resulta na perda de palavras específicas que estariam contidas nesta área, mas sim, numa
diminuição funcional da atividade motora da linguagem como um todo.
47
Bastian distingue três estados de redução da excitabilidade na atividade de uma
função, que, segundo Freud, também representam níveis de retrogressão funcional dos
processos no interior do aparelho: primeiramente, numa redução mínima da excitabilidade, a
função deixa de reagir à estimulação voluntária, porém segue reagindo a estimulação por
associação de outra área e pela estimulação sensorial direta; em casos mais graves passa a
responder apenas a estimulação sensorial direta; por último, no nível mais baixo de
funcionamento, deixa reagir. (FREUD, 1973, p. 45).
Com esses últimos argumentos, pode-se dizer que Freud inaugura aquilo que se pode
chamar em sua teoria de uma autonomia do ponto de vista funcional. (SIMANKE, 2004b,
p.51). A principal característica dessa autonomia é a possibilidade de descrever o aparelho de
linguagem pelo que ele faz (um conjunto de operações e processos representativos) e não pelo
que ele é; se trata tão somente da inscrição das condições que permitem que o aparelho
funcione. Segundo SIMANKE (2004a, p.21), a própria noção de aparelho de linguagem
(Sprachapparat) “se reveste de uma significação funcional e designa o conjunto de processos
necessários para a execução das funções da linguagem, assim como o modo como eles devem
estruturar-se para tanto”.
A principal conseqüência dessa consolidação é a ruptura com a idéia de que as
funções mentais têm de ser simétricas a sua descrição anatômica. Assim, pode-se dizer que a
teoria do aparelho passa a ser uma teoria aberta em relação aos lugares anatômicos. Eles
existem, pois o cérebro é concreto e está localizado no espaço, porém, o equivoco conceitual
que Freud encontra no localizacionismo é justamente o espelhamento entre essas duas
dimensões que não são homólogas. O mais significativo é que essa autonomia dos processos
funcionais não depende do conhecimento do cérebro: por mais que se conheça o cérebro um
esquema não tem que equivaler ao outro. Essa crítica abre um caminho epistemológico em
direção à teoria psicológica na medida em que a característica funcional nunca é igual à
48
descrição anatômica. Freud reivindica uma legitimidade própria para a representação
psicológica.
24
Como vimos é da neurologia de Jackson que Freud extrai os conceitos e argumentos
necessários para conceber essa representação psicológica dos processos mentais. Como
pondera NASSIF (1977, p.111), Jackson tenta orientar a neurologia na via de uma localização
se inspirando em modelos verdadeiramente funcionalistas. Dois conceitos são concebidos
para isso: o de dissolução, (que Freud traduz por retrogressão funcional ), e o de processo.
Com a introdução desse último não é mais um músculo que é localizado na área motriz, mas
um processo motor permitindo descrever um tipo de movimento: “centros nervosos
representam movimentos, não músculos”. (JACKSON, 1958a, p.29). Com efeito:
O corte jacksoniano [...] teve êxito em separar a dimensão do lugar do estudo
anatômico dos tecidos nervosos. Desde então, tornou possível conservar a
exigência científica inerente a toda localização, sem assimilar com isso o
psíquico ao somático com objetivo de uma redução, nem tentar estabelecer
entre eles qualquer correspondência. [...] A problemática que se desdobra
desta abertura implica que o lugar ele mesmo é construído e não mais somente
descrito. [...] É ele mesmo uma dimensão deduzida da análise. (NASSIF,
1977, p.127).
Esta noção de lugar enquanto dimensão deduzida da análise, resultado das
diferenciações funcionais produzidas pelos processos, permite uma espacialização do
psíquico que não precisa mais coincidir com o espaço anatômico cerebral. A idéia de espaço
aí não serve a nada mais do que inscrever as condições necessárias ao funcionamento do
aparelho: são relações topográficas, afirma Freud (1973, p.68) que “se mantém somente na
medida em que se ajustam as necessidades da função”; aí está à originalidade dessa noção de
lugar que adquire uma acepção funcional e não mais morfológica. Portanto, como pondera
SIMANKE (1994a, p.3) “a topografia psíquica não pré-existe ao processo, mas é
24
Cf. SIMANKE (2004a,b), TEIXEIRA (2000,b) e Parte II, seção 1.2).
49
estabelecida por ele”. Esse autor também faz notar que não é preciso esforçar-se muito para
ver aí as origens da concepção estritamente freudiana de tópica, tal como é afirmada na seção
B do capítulo VII da Traumdeutung.
2.4. O aparelho de associações e as representações de palavra
Ter êxito em construir um aparelho de processos, afirma NASSIF (1977, p.264), “que
permita verificar as leis de associação é um sonho partilhado por todos os cientistas que
Freud freqüentava”. Com esse intuito, realizada essa etapa crítica de seu ensaio, Freud passa a
extrair as conseqüências dessas revisões e da introdução desses novos conceitos para a
compreensão dos processos que, segundo seu ponto de vista, constituem o aparelho de
linguagem (Sprachapparat). O que acaba por conferir maior alcance a armação conceitual que
vincula de maneira indissociável corpo e representação. A primeira dessas conseqüências diz
respeito à substituição da hipótese dos centros separados por lacunas onde as recordações
estariam armazenadas em células que se associam por meio de fibras de condução, pela idéia
da constituição de um aparelho cuja: “a área de linguagem é uma região cortical contínua
dentro do qual se tem lugar as associações e transmissões que subjazem as funções da
linguagem.” (FREUD, 1973, p.76). Essa redefinição permite conceber o aparelho de
linguagem organizado por uma área associativa contínua que se estende entre as regiões
sensoriais dos nervos ópticos e acústicos e os nervos motores periféricos
25
dentro da qual se
associam os elementos visuais, auditivos e motores na produção da linguagem articulada.
25
É importante para acompanhar os desenvolvimentos posteriores continuar destacando que essa
distribuição espacial do aparelho de linguagem é bastante próxima àquela proposta para o aparelho
psíquico no capítulo VII da “Interpretação dos sonhos” (1900). (Cf. Parte IV, seção 5.1).
50
Com esses desenvolvimentos, a palavra, anteriormente definida como o instrumento
essencial do tratamento psíquico”, passa então a ser correlacionada com a estruturação de um
aparelho de associações. Freud reafirma sua pretensão de avançar no entendimento da
organização das funções do aparelho seguindo a opção metodológica de manter separado o
aspecto psicológico do aspecto anatômico do problema. Assim, desde o ponto de vista
psicológico, a palavra produzida por esse aparelho deve ser considerada como a unidade
funcional da linguagem. Porém, Freud dá a entender que a emergência desta unidade
psicológica simples corresponde, e tem por base, à formação de uma representação complexa
(komplexe Vorstellung)
26
constituída pelas associações entre elementos auditivos, visuais e
cinestésicos. (FREUD, 1973, p.86). Diante disso, a representação de palavra (Wortvostellung)
seria formada por uma rede composta de quatro elementos constituintes: a imagem sonora; a
imagem visual da letra; a imagem motora da linguagem (glossocinestésica) e a imagem
motora da escrita (quirocinestésica).
Consequentemente, a produção da linguagem articulada deve ser concebida como
precedida, necessariamente, por uma etapa de aquisição de algumas dessas representações
realizada por meio de atividades e processos associativos
27
que no limite presidem a própria
constituição do aparelho de linguagem. Freud propõe uma idéia do processo de
aprendizagem
28
das diversas atividades lingüísticas centrada na noção de sobreassociação. No
caso especifico da fala diz: aprendemos a falar associando uma “imagem sonora da palavra”
com uma “impressão da inervação da palavra”. Após termos falado adquirimos uma “imagem
26
Tradução comparada com o texto original alemão (Cf. FREUD, 1992, p.117).
27
Por mais que o arco reflexo esteja na base desse desenvolvimento complexo e adquirido da
linguagem, a introdução da aprendizagem implica que o processo não pode ser reduzido unicamente a
um reflexo cerebral.
28
Como também observa IBERTIS (2005), a entrada em cena da aprendizagem tem um peso
argumentativo importante a favor do ponto de vista psicológico, que equivale à importância dada
anteriormente as modificações processuais (traços) do ponto de vista neural.
51
motora da palavra”. Numa etapa infantil do desenvolvimento da fala, pondera Freud, nos
servimos de uma diversidade de sons construídos por nós mesmos e os associamos aos sons
das palavras. Num segundo momento, mediante o auxílio de um agente prestativo, aprende-se
a repetir. Como pondera NASSIF (1977, p.52), essa estrutura da relação ao outro é decisiva
para que as seqüências produzidas sejam efetivamente seqüências de linguagem
29
.
Aprendemos à linguagem dos outros mediante o esforço por adequar tanto
quanto possível a imagem sonora produzidas por nós mesmos com aquela
imagem sonora que serviu de estímulo para o ato de inervação de nossos
músculos da linguagem, ou seja, aprendemos a repetir. (FREUD, 1973, p.87,
grifo nosso).
Por meio da repetição adquirimos então um conjunto de associações entre imagens
sonoras e cinestésicas de palavras. No caso da aprendizagem da linguagem contínua, sugere
Freud, é preciso observar que as palavras são produzidas em série: para que a inervação dos
músculos da linguagem da palavra seguinte seja acionada, é preciso esperar que o som ou a
impressão verbal cinestésica da palavra precedente tenham sido produzido. O encadeamento é
sobredeterminado, e a cada nova associação lingüística resulta necessariamente na alteração
da significação funcional dos elementos e de suas conexões anteriores. Com efeito, como
observa SIMANKE (2004, p.40), para compreender como se dá aprendizagem e o uso efetivo
da linguagem espontânea é preciso considerar o modo como às palavras adquirem
significado.
30
Freud introduz então outro conceito de representação de objeto: “a palavra
29
Esse autor ainda observa que é necessário admitir que a ordem introduzida na aprendizagem vai
traçar definitivamente às vias do funcionamento do aparelho de linguagem. (NASSIF, 1977, p.343).
30
Segundo SIMANKE (2004, p.41) em Freud “repetição de palavras e fala espontânea são pensadas
dentro de uma hierarquia de processos, progressivamente mais complexos, mais flexíveis, mais
evoluídos, no sentido jacksoniano, caracterizados pelo surgimento de propriedades distintivas na
passagem de um nível a outro, e não mais como dois processos autônomos que ocorrem lado a lado
sem interferirem necessariamente um com o outro [como se deduzia dos esquemas localizacionistas].”
52
adquire seu significado mediante a associação com uma representação de objeto
[Objektvorstellung].
31
” (FREUD, 1973, p. 90).
CAPÍTULO 3
Representação e matéria: o conceito de real enquanto
possibilidade permanente de sensação
3.1. Das Ding e o processo de significação: o não fechamento da
representação de objeto
A representação de objeto (Objektvorstellung), tal qual a de palavra, também tem por
base um intrincado processo associativo, ou seja, sua emergência psicológica também é
precedida por uma progressiva reorganização funcional do material sensorial bruto ao longo
do trajeto da periferia do corpo ao córtex. Porém, se trata de uma referência extralingüística,
integrada por uma diversidade indefinida de impressões que, a princípio, precede a formação
de palavras, ou seja, sua emergência enquanto processo psíquico é absolutamente
independente da constituição dos processos lingüísticos (Cf. RIZZUTO, 1993); daí a
aproximação estabelecida por Freud entre essa concepção de objeto e o conceito de “coisa”.
Segundo sugere esta aproximação freudiana, a representação de objeto comporta sempre um
resto que se subtrai ao processo de significação por meio da associação com as
31
Tradução comparada com o texto original alemão. (Cf. FREUD, 1992, p.122).
53
representações verbais. Como se vê, a adoção dessa concepção de objeto extraída da filosofia
de Stuart Mill
32
é de fundamental importância, não só para sua teoria da significação, como
para a teoria do aparelho psíquico como um todo.
Segundo nos ensina a filosofia, continua Freud, a representação de objeto não contém
nada mais que isto: um complexo de associações integrado por diversas impressões
sensoriais, visuais, táteis, acústicas, cinestésicas entre outras. (FREUD, 1973, p.91). Na
seqüência diz:
sua aparência de ser uma “coisa” (Ding) se origina somente do fato de que
ao enumerar as impressões sensoriais percebidas desde um objeto deixamos
aberta a possibilidade de que se integre uma larga série de novas impressões
a cadeia de associações (J.S. Mill). (FREUD, 1973, p.90, grifo nosso);
Em outras palavras, a representação de objeto não contém nada mais que associações
entre impressões sensoriais, porém, ela assume a aparência de ser algo absolutamente
diferente disso: uma coisa, ou seja, assume a aparência de ser algo extrínseco que não
depende de nossas sensações para existir. No entanto, Freud localiza os fundamentos desta
metamorfose de algo cuja constituição dependente unicamente das impressões sensoriais, para
algo que passa a assumir a forma de uma coisa externa, perdurável e inapreensível pelos
órgãos sensoriais, diz: “Essa aparência se origina somente do fato” de que da recepção das
impressões sensoriais advindas da experiência com o objeto (Gegenstand)
33
, resta sempre em
aberto à possibilidade permanente de novas impressões. Com isso se quer dizer que, da
experiência com os objetos fazem parte todo um conjunto impressões sensoriais despojadas
32
A referência que Freud faz a obra de Stuart Mill concerne ao livro I, capítulo III, do “Sistema de
lógica dedutiva e indutiva: exposição dos princípios das provas e dos métodos da pesquisa científica”
(1843) e ao texto “Um exame da filosofia de Sir Willian Hamilton” (1865), trabalhos que recorremos
para elucidar estas passagens do texto freudiano.
33
Segundo nota da edição castelhana Amorrortu das obras completas, os termos utilizados por Freud
nessa passagem, Ding e Gegenstand, geralmente designam: coisa material e objeto do mundo,
respectivamente. (FREUD, 1989b, p.211); (Cf.FREUD, 1992, p.122).
54
de conteúdo cognitivo que no estado de afecção atual existem somente enquanto
possibilidade. Mas isso não significa dizer que a presença dessas possibilidades permanentes
sejam algo externo a sensibilidade, elas apenas assumem essa aparência devido ao fato de que
sua base na sensação é esquecida. Essa explicação compacta que não é desenvolvida por
Freud, poderá ser mais bem compreendida após o exame das referências que ele faz ao
empirismo associacionista de Stuart Mill, como veremos na próxima seção.
Assim, da experiência de sempre se poder obter renovadas impressões de um mesmo
objeto (que no limite pode ser o próprio corpo) extraímos a razão, conclui o autor, pela qual
sua representação não se nos apresenta como fechada, e dificilmente poderia sê-lo, trata-se de
um complexo associativo permanentemente aberto. (FREUD, 1973, p.91). O complexo da
representação de palavra, por sua vez, considerado em si mesmo é um complexo associativo
fechado; capaz de extensão evidentemente, contudo, suas associações estão restritas as
recombinações entre seus quatro elementos constitutivos, não havendo a possibilidade de se
agregar outras impressões sensoriais. (FREUD, 1973, p.90).
Cada um desses dois grandes complexos associativos se organiza em torno de um
elemento fundamental. No caso da representação de palavra o elemento central é a imagem
acústica da palavra; já o complexo da representação de objeto se organiza e se representa
principalmente através da imagem visual. A palavra, entendida como uma organização de
elementos sensoriais, quando associada a um objeto vira um nome; mas essa associação não
se faz em bloco, mesmo que opere como uma unidade, a conexão se dá via elementos (Cf.
SIMANKE, 2004a). As representações de palavra se associam as representações de objeto
mediante as imagens acústicas, ou seja, em seu extremo sensorial as impressões sonoras
lingüísticas se ligam preferencialmente às imagens visuais do objeto, e esse é o processo
associativo por meio do qual a palavra adquire seu significado. (FREUD, 1973, p.91). A
significação mesma pode ser posta como dependente desta topologia induzida a partir da
55
relação do complexo fechado da representação de palavra com o complexo aberto da
representação de objeto. ( NASSIF, 1977, p.378).
FIGURA 1. Esquema psicológico da representação de palavra.
Essa rede associativa composta pela associação entre esses distintos grupos de
representação equivale ao esquema psicológico da representação de palavra. Mais ainda, esse
esquema permite supor que, muito embora a representação de palavra seja um complexo
fechado composto por elementos finitos, ela se abre no seu extremo sensorial a representação
de objeto, composta por uma série infinita de associações. Essa abertura sensorial é de tal
natureza, como demonstrou a constituição do conceito de representação, que a linguagem
passa a obter, necessariamente, um caminho fundamental que remete tanto para ordem do
corpo como para a experiência com mundo. (Cf. BIRMAN, 1993, p.60; RIZZUTO, 1993)
34
.
Em sentido estrito, pode-se dizer que corpo e mundo se fazem representar no aparelho através
dessa abertura em relação às associações de objeto.
34
Para a particularidade do modo de apreensão do corpo próprio por meio de sua representação
psicológica, ver também Parte I, seção 3.2.
ASSOCIAÇÕES DE
OBJETO
auditivas
táteis
visuais
imagens acústicas
imagens cinestésicas
imagens visuais
para o impresso
PALAVRA
imagens visuais
para a escrita
56
O fato de essas representações comportarem sempre um resto permanente que se
subtrai ao processo de significação das representações verbais, e da afirmação de Freud de
que todos os estímulos [causas] para a linguagem espontânea surgem das associações de
objeto” (FREUD, 1973, p.92, grifo nosso), permite supor, como faz NASSIF (1977, p.383 e
628), que: a linguagem espontânea define a tentativa, incessante, de organizar as associações
de objeto, ou ainda que, a própria significação representa a tentativa indefinida por parte do
aparelho de linguagem de cernir o não fechamento das impressões advindas da experiência
com o objeto.
Em linhas gerais, pode-se concluir que o ensaio “Sobre as afasias” (1891), rendeu a
teoria freudiana um ponto de vista funcional que permitiu conceber a espacialização de um
aparelho de linguagem que não precisa mais coincidir com a localização anatômica cerebral;
sem dúvida um passo inaugural e definitivo em sua obra. Contudo, os desenvolvimentos
anteriores permitem ainda extrair as conseqüências e os elementos necessários para situar e
compreender qual a concepção de realidade que se encontra implícita e que fornece a base
material sob a qual Freud desenvolveu sua teoria da representação.
De acordo com o apresentado, pretende-se sustentar que, no caso de um aparelho
assim constituído, a relação entre o complexo fechado da representação de palavra e o
complexo aberto da representação de objeto fornece os fundamentos de uma relação com o
real definido por meio do conceito de “coisa”. Os elementos que sustentam essa afirmação se
encontram, evidentemente, na introdução, por parte de Freud, do conceito de “possibilidades
permanentes de sensação”extraído da filosofia de Stuart Mill no coração de sua teoria
sobre a representação de objeto.
57
3.2. A origem psicológica da idéia de matéria e realidade exterior
Nos textos referidos por Freud: capítulo III do livro I do “Sistema de lógica dedutiva e
indutiva: exposição dos princípios das provas e dos métodos da pesquisa científica” (1843), e
“Um exame da filosofia de Sir Willian Hamilton” (1865), Stuart Mill tem entre seus objetivos
fornecer uma explicação para a origem e o desenvolvimento da idéia de matéria ou de
realidade exterior que não contra diga as leis naturais. Para melhor compreensão de seus
argumentos é preciso ter em mente o discernimento feito pelo autor entre duas modalidades
do conhecimento: o intuitivo e o não intuitivo. Quanto ao conhecimento intuitivo, no “Sistema
da Lógica...” (1843), afirma que dessa modalidade fazem parte as verdades imediatamente
conhecidas pela consciência como nossas próprias sensações corporais e afecções mentais.
Por outro lado, o conhecimento não intuitivo, é composto por aquilo que conhecemos pela
vida da inferência, ou seja, os fatos que acontecem na nossa ausência. (MILL, 1984a, p.84).
Contudo, afirma Mill, a maior parte do nosso conhecimento consiste reconhecidamente em
inferências, pois para decidir suas condutas, todos têm, a cada momento, a necessidade de
constatar fatos que não observamos diretamente. “Esta é a única ocupação à qual a mente se
dedica sempre, e pertence ao domínio do conhecimento geral”. (MILL, 1984a, p. 85).
Em comum acordo com essas duas modalidades do conhecimento, Mill propõe uma
teoria psicológica que é a base da qual extrai sua concepção da origem da formação da idéia
de matéria e de realidade exterior. Para tanto, é preciso também observar dois importantes
postulados de sua psicologia:
Primeiro postulado: A mente humana é capaz de “expectativa”. Em outras palavras,
após termos sensações reais, somos capazes de formar a concepção de sensações
58
possíveis, ou seja, sensações que não estamos sentindo no momento presente, mas
poderíamos vir a experimentar em certas condições. (MILL, 1984b, p.262).
Segundo postulado: A experiência é regida pelas leis de “associação de idéias”: 1º
fenômenos similares tendem a ser pensados juntos; 2º fenômenos experimentados em
contigüidade idem, tanto por simultaneidade quanto por sucessão imediata; 3º a
freqüência da repetição entre dois fenômenos experienciados conjuntamente formam
uma “associação indissolúvel”, se torna impossível pensar em tal coisa separada de
outra; 4º coisas que somos incapazes de conceber separadamente parecem incapazes
de existir separadamente, e a crença nessa coexistência, apesar de ser um produto da
experiência (que aprendemos a inferir) se nos apresenta como algo intuitivo, ou seja,
imediato e evidente por si mesmo. (MILL, 1985b, p.263).
Para Mill as sensações constituem o fundamento original do todo. Segundo essa
concepção a principal característica que distingue nossa noção de matéria de nossa noção de
sensação, é a idéia de permanência. A matéria ou substância exterior seria uma coisa fixa,
perdurável, que existe quer nos estejamos presentes ou não. Isso significa que, enquanto a
substância exterior continua sendo sempre a mesma, nossas sensações são passageiras e
variam de acordo com as contingências. Diante disso, apontar uma origem para esta
concepção complexa é o mesmo que explicar o que significamos pela crença na matéria.
(MILL, 1984b, p.263).
Segundo sua teoria psicológica, a concepção que formamos do mundo existente
compreende, juntamente com as sensações presentes, uma variedade incontável de
possibilidades de sensação que poderiam ser experimentadas sob determinadas circunstâncias.
As possibilidades são permanentes, as sensações presentes são fugazes. As sensações que
59
fazem parte dessas possibilidades estão ligadas a grupos; desses grupos, apenas uma parte
muito pequena das possibilidades se atualizam enquanto sensações reais. Contudo, sempre
que determinada sensação se faz sentir, todo grupo a ela associado se apresenta enquanto
possibilidade, como uma espécie de substrato permanente. (MILL, 1984b, p.265). Mill
acentua ao extremo o contraste entre sensação atual e os grupos de possibilidade, tanto que
chega a sustentar o seguinte:
As sensações, apesar do fundamento original do todo, acabam sendo
consideradas como uma espécie de acidente que depende de nós; e as
possibilidades como muito mais reais do que as sensações reais, como as
próprias realidades das quais estas últimas são somente as
representações, aparências ou efeitos. (MILL, 1984b, p.266, grifo nosso).
Também é um dado da experiência, continua o autor, que quando as possibilidades
permanentes assumem tal dissimilitude de aspecto e de relação com as sensações atuais
passamos a concebê-las sendo algo diferente das sensações, pois sua base na sensação é
esquecida.
35
(MILL, 1984b, p.266). Ainda mais que, como observa o autor, podemos nos
afastar ou sermos afastados de qualquer de nossas sensações externas, mas mesmo que as
sensações cessem, as possibilidades continuam existindo: “elas são independentes de nossa
vontade, de nossa presença e de tudo o que nos pertence.” (MILL, 1984b, p.266). Tais
possibilidades são compartilhadas, são comuns a nós e aos nossos semelhantes; como é
possível verificar, todos fundam suas expectativas e condutas nas mesmas possibilidades.
Isto coloca o ponto final em nossa concepção dos grupos de possibilidades
como a realidade fundamental na natureza. [...] O mundo de sensações
possíveis, que se sucedem umas as outras segundo leis, está tanto em outros
seres quanto está em mim; tem portanto uma existência fora de mim; é um
mundo exterior. (MILL, 1984b, p.266, grifo nosso).
35
Como tentamos tornar evidente na seção anterior, não é preciso muito esforço para encontrar aí os motivos
pelos quais Freud afirma que representação de objeto assume a aparência de ser uma “coisa”, isso se dá
precisamente devido ao fato desse esquecimento.
60
Assim, conclui Mill, a matéria, desde a teoria psicológica, é definida como
possibilidade permanente de sensação; acreditar nas possibilidades é acreditar na matéria. A
expectativa e a confiança quanto à existência de objetos reais, tangíveis e visíveis, significa a
crença na existência das possibilidades dessas sensações quando nenhuma delas está presente.
Com essa breve exposição pretendeu-se situar o contexto conceitual em que se insere a
referência de Freud a Mill, que é de onde emerge a concepção freudiana sobre a representação
de objeto. Diante disto, pode-se sustentar o seguinte argumento: a afirmação de Freud de que
a representação de objeto não contém nada mais que isto: um complexo de associações
integrado por diversas impressões sensoriais (FREUD, 1973, p.91), significa assumir, de
acordo com sua referência a Mill, que: a existência do objeto enquanto matéria – do ponto de
vista psicológico – não pode ser provada extrinsecamente em relação às impressões que dele
temos (não contém nada mais que isto: sensações complexas), descartando com isso a idéia
da existência de uma coisa em si. Com efeito, o que se nos apresenta como fixo, perdurável e
inapreensível, não é o objeto, e sim a existência universal do que Mill denomina de
possibilidades permanentes de sensação.
Contudo, não se pode dizer que Freud assuma por completo essa concepção de
realidade e matéria enquanto possibilidade permanente de sensação. Pois, sua reflexão, além
de não constituir uma visão de mundo, também passa por outros domínios além da filosofia,
como a clínica, a física, a química e a própria materialidade dos estudos sobre o tecido
nervoso que permeiam toda neuropatologia desses primeiros anos. No entanto, pode se
afirmar, com segurança, que esse é o contexto de onde ele extrai o essencial para pensar sua
própria concepção de real em termos da incognoscibilidade do processo material em questão.
Para avaliar a sustentabilidade dessa tese é preciso, antes de tudo, considerar que a
pretensão de Mill é justamente a de fornecer uma explicação da origem psicológica da idéia
de matéria que não contradiga as leis reconhecidas pelas ciências naturais, entre as quais
61
Freud situa sua própria investigação. Assim, de acordo com o horizonte psicológico aberto
pelas ciências naturais, Mill considera que sua concepção de existência real em termos de
“possibilidades permanentes de sensação” remete ao domínio natural das excitações:
A significação do nome abstrato existência e a conotação do nome concreto
ser consistem, como a significação de todos os outros nomes, em sensações
(...) sua peculiaridade é que existir é excitar, ou ser capaz de excitar. (MILL,
1984a, p.136, grifo nosso).
Existir é excitar ou ser capaz de excitar, conclui o autor , mesmo no caso em que o
antecedente da excitação (o estímulo) seja algo negativo como uma possibilidade de sensação.
É justamente essa recondução última do real ao domínio natural das excitações que confere
materialidade ao conceito freudiano de representação, e também, é o que mais tarde lhe
servirá de base para a afirmação do inconsciente como “o psíquico verdadeiramente real”.
36
Quando no ensaio sobre as afasias (1891) Freud afirma que sensação e associação são
dois nomes para um mesmo processo representacional indivisível: “não podemos ter uma
sensação sem associá-la de imediato [...] elas dependem de um processo único que,
começando em um ponto do córtex, se difunde sobre a totalidade do mesmo” (FREUD, 1973,
p.71), isto implica em conceber que a associação cortical dos elementos sensoriais, precedida
por uma sucessiva reorganização da informação sensorial no trajeto da medula ao córtex,
consiste, em última análise, num processo excitatório. Essa é, sem dúvida, a base material
sobre a qual Freud desenvolveu sua teoria da representação.
37
Uma das principais conseqüências que se pode extrair disso é a possibilidade de
conceber o enraizamento do processo da representação numa continuidade material com sua
36
(Cf. Parte IV, seção 5.5).
37
Contudo, diferente de Mill, em Freud “a percepção é despojada de conteúdo cognitivo – não é mais
algo dado e dotado em si mesmo de significado, nenhuma percepção pura pode atingir a consciência
mas apenas uma representação construída pelos processos neurológicos no nível cortical.”
(SIMANKE, 1994a, p.4); (Cf. DAYAN, 1985, p.374).
62
base corporal: corpo e representação se constituem como momentos diferentes do mesmo
processo material. Porém, Freud apenas irá ter uma concepção própria de realidade a partir
do momento em que for possível correlacionar essa base material aos processos decorrentes
da constituição de um aparelho psíquico.
CAPÍTULO 4
A representação do corpo e sua relação com a justificação teórica
da existência e eficácia do inconsciente
4.1. O modo de existência das representações excluídas e sua alteração
material correspondente
De posse dos rendimentos teóricos obtidos com o exame crítico das afasias: os
conceitos de representação e de aparelho de linguagem, o próximo passo freudiano é dar conta
de conceber qual seria o mecanismo psíquico capaz de dar inteligibilidade aos fenômenos
neuróticos e ao mesmo tempo justificar teoricamente o modo de existência e eficácia, ou seja,
a realidade das representações inconscientes. A questão é posta exatamente nesses termos no
trabalho subseqüente “Um caso de cura pela hipnose – com algumas pontuações sobre a
gênese dos sintomas histéricos através da contravontade” (1892). Freud nesse texto pretende
apresentar dois casos que demonstrem os êxitos terapêuticos obtidos pelo tratamento com a
sugestão e a hipnose, bem como comprovar através deles o mecanismo psíquico das
63
perturbações tratadas relacionando-o com processos semelhantes em outras perturbações
nervosas. (FREUD, 1988d, p.151).
No primeiro caso trata-se de uma jovem mãe que se tornou incapaz por dificuldades
neuróticas de amamentar seus filhos, somente obtendo êxito nessa tarefa com o auxílio do
tratamento sugestivo sob hipnose. A sintomatologia do caso, altamente significativa do ponto
de vista da ação de determinantes psíquicos nos fenômenos corporais, apresentava: escassez
de leite, dores no peito, repugnância por comida (anorexia), vômitos, insônia e irritação. A
cada tentativa de amamentar o filho a incapacidade aumentava contrariando sua vontade em
fazê-lo, o que agravava seu estado nervoso. A sugestão consistiu em contradizer
energicamente todos seus temores e sensações em que esses se apoiavam. Apesar da
recorrência dos sintomas a cada nova gestação, o tratamento obteve êxito em remover os
sintomas em todas as ocorrências. (FREUD, 1988d, p.154).
Freud propõe então elucidar qual pode ter sido o mecanismo psíquico dessa
perturbação. Porém, devido à impossibilidade de ter obtido informações diretas sobre tal
mecanismo se vê forçado a ter de deduzi-lo, e como já pontuamos, Freud se mostra bastante
familiarizado com esse modo de conhecimento indireto dos processos mentais. No ensaio
“Sobre as afasias” (1891), por exemplo, a respeito do controle exercido pela experiência sob
as conclusões deduzidas, observa que, se aquilo que é inferido dedutivamente puder ser
confirmado pela observação clínica, essa seria uma prova válida da correção das premissas
(FREUD, 1973, p.24); é o que se propõe esse artigo de 1892.
Freud parte da seguinte premissa: “existem representações as quais se conectam um
afeto de expectativa”. (FREUD, 1988d, p.155). As representações se dividem em duas
classes: aquelas que se referem ao êxito das ações que possam ser realizadas (as intenções), e
outras que dizem respeito às expectativas em relação a algo possa ocorrer. A incerteza
subjetiva em relação ao êxito da ação ou referente ao que possa vir a acontecer é representada
64
em seu conjunto por uma rede de representações designadas representações aflitivas
contrastantes. (FREUD, 1988d, p.155). Ao que segue a seguinte questão: que tratamento
daria uma pessoa de vida representativa saudável as representações contrastantes com suas
intenções? As sufocaria, as inibiria, afirma Freud, excluindo-as das associações com as outras
representações e,
na maioria das vezes conseguiria a tal ponto que a existência da
representação contrastante com a intenção deixa de ser evidente, e apenas
pela consideração das neuroses cobram verosimilitude [se tornam uma
possibilidade.](FREUD, 1988d, p.155, grifo nosso).
Cabe então investigar as condições e os efeitos pelos quais se pode inferir o modo de
existência dessas representações inibidas. A histeria torna evidente que do ponto de vista
psicológico a representação aparentemente deixa de existir a partir do momento em que é
arrancada de sua associação com a intenção ou expectativa consciente. Freud postula como
condição para essa exclusão associativa uma inclinação da histeria para a dissociação da
consciência. No entanto, em consonância com esse mecanismo, a representação aflitiva
contrastante, pelos efeitos que continua a produzir, dá todos os sinais de que mesmo deixando
de ser psicologicamente evidente permanece agindo sob uma forma particular de existência,
como uma representação separada inconsciente para o próprio enfermo. (FREUD, 1988d,
p.156).
Como dissemos, Freud pretende dar provas da correção desse mecanismo através da
apresentação do tratamento de uma mãe histérica que se encontra impedida, contra sua
própria vontade, de realizar sua intenção de amamentar seu filho. Se essa mãe não fosse uma
neurótica, pondera Freud, sua conduta teria sido outra, poderia estar muito ansiosa e
preocupada com os perigos possíveis, e se essas representações aflitivas contrastantes se
tornassem dominantes, a paciente poderia abandonar a intenção devido ao medo de executá-
65
la. A histérica se conduz de modo diverso, não estando consciente de seu receio e de suas
dúvidas, passa a executar sua intenção, no entanto, comporta-se de modo contrário, como se
sua vontade fosse absolutamente não amamentar. O característico da histeria é que “quando
chega o momento de executar a intenção, essa representação contrastante inibida se objetive,
por via da inervação corporal [...] como ‘vontade contraria” (FREUD, 1988d, p.156). Por
essa via as representações exercem um controle sobre o corpo produzindo no aparelho
digestivo, por exemplo, uma série de sinais objetivos que uma simulação seria incapaz de
engendrar. (FREUD, 1988d, p.157).
A objetivação (Objektiviert) da representação aflitiva é contraria mesma a sua
subjetivação que consistiria em torná-la consciente. Contudo, isso abre espaço para a seguinte
questão: como uma representação afetiva sob a forma de um pensamento excluído pode
passar para a inervação somática e continuar a ser um pensamento? (Cf. DAVID-MÉNARD,
2000). Essa intrigante pergunta pode ser parcialmente respondida se considerarmos que o
acesso da representação excluída ao corpo se encontra justificado pela concepção de que
ambos compartilham da mesma natureza material. Fato esse plenamente estabelecido e
empiricamente comprovado pela observação freudiana no contexto dos estados afetivos, pois
todas as atividades psíquicas exibem, conforme seus conteúdos (medo, ira, prazer etc.),
conseqüências corporais. O que há de novo é que essa idéia é expandida para a formação de
sintomas histéricos como vômitos, anorexia etc. No presente trabalho, esse mecanismo se
explica pela consideração de que as representações quando excluídas se organizam numa
atividade psíquica separada e assumem o controle do corpo expressando uma vontade
contrária incompreensível para o próprio sujeito.
38
38
Aqui fica bastante claro, como bem observa MEZAN (1998b, p.354), que “o próprio da
representação não é reproduzir o mundo exterior, mas ativar na psique determinadas reações que se
traduzem por uma vivência afetiva”.
66
No segundo movimento desse texto Freud relembra que o mecanismo psíquico acima
descrito foi obtido por meio de inferências, uma vez que não havia meios de obter
informações diretas sobre ele. Contudo, com a apresentação do segundo caso ele pretende
assegurar que “investigando os enfermos sob hipnose [foi possível obter] por repetidas vezes
a comprovação direta de um mecanismo semelhante para sintomas histéricos.” (FREUD,
1988d, 157). Freud dá entender que a diferença entre esses dois casos em relação ao
estabelecimento direto ou indireto do mecanismo em questão, foi o método utilizado. No
primeiro, a eliminação dos sintomas se deu através da sugestão sob hipnose, no segundo,
houve uma mudança, Freud utilizou a hipnose como instrumento de investigação. Portanto,
pode-se supor que no primeiro a ação do mecanismo teve de ser deduzida, pois não houve
uma investigação sobre as causas, e no segundo tal ação pôde ser comprovada diretamente
devido às informações obtidas referentes à origem do sintoma, bem como por seu
desaparecimento simultâneo a essa descoberta.
Nesse segundo caso trata-se de uma paciente histérica que se encontrava incapacitada
por numerosos impedimentos neuróticos, dentre eles, o mais chamativo era um ruído peculiar,
parecido com um tic, que se intrometia em sua conversação por meio de um estalido da
língua. Ao ser interrogada sobre a ocasião que havida se originado esse estalido respondeu
não saber. Numa segunda ocasião, à mesma pergunta foi feita agora sob hipnose e a resposta
foi obtida sem a necessidade da sugestão. O ruído havia se originado quando a paciente
cuidava da filha que se encontrava muito enferma, sofrendo de convulsões; quando a criança
adormeceu, a paciente pensou: “agora você tem que guardar total silêncio para não acordá-la”,
e aí, nesse momento o ruído apareceu pela primeira vez. Numa segunda ocasião estava numa
carruagem durante uma tempestade quando um raio atingiu uma árvore que caiu
interrompendo a estrada, então pensou: “agora não podes gritar, pois assim assustaria os
67
cavalos”, foi quando o estalido sobreveio e persistiu desde então. (FREUD, 1988d, p.158).
Contudo, assegura Freud,
pude convencer-me de que o estalido não era um tic genuíno, pois desde sua
recondução a seu fundamento desapareceu.” [Está foi] “ a primeira
oportunidade que tive de apreender a gênese de um sintoma histérico
mediante a objetivação de uma representação aflitiva contrastante.(FREUD,
1988d, p. 158).
A representação aflitiva objetivada pelo estalido se tratava da idéia de que, mesmo
com todos os cuidados para não acordar a criança enferma, ela, não obstante, poderia fazê-lo
ou não seria capaz de evitá-lo. Essa representação concomitante absolutamente contrária a sua
intenção, devido ao estado de esgotamento que se encontrava, se intensificou e teve acesso a
inervação da língua produzindo o barulho temido.
O mesmo mecanismo se observa nas explosões de linguagem obscena e erótica
descritas em crianças de educação refinada e em monjas, por exemplo; esse grupo de
representações que nesses casos se encontra laboriosamente suprimido da cadeia associativa
consciente se transpõe em ação quando esses sujeitos se encontram esgotados pelo estado
nervoso neurótico, que possivelmente, pondera Freud, possa ser produzido justamente por
esse mesmo permanente e desgastante processo de supressão contra essas representações.
(FREUD, 1988d, p.160). Nesse estado, a emergência da representação contrária é
responsável pela característica marcante na histeria que se apresenta como uma perversão do
caráter, ou seja, pelo traço que se exterioriza
na incapacidade dos pacientes de fazerem alguma coisa precisamente quando
e onde eles mais ardentemente desejam fazê-la, de fazer justamente o
contrário do que lhe é pedido, e verem-se obrigados a depreciar e por sob
suspeita aquilo que mais valorizam. (FREUD, 1988d, p.160).
68
Diante disso é preciso dar conta das condições que garantem a existência dessas
representações sufocadas enquanto elas não se realizam, ou seja, enquanto essas
representações permanecem como uma possibilidade.
A pergunta acerca do que acontece com as intenções inibidas parece carecer
de sentido para o representar normal. A essa pergunta se responderia que nem
se quer se produzem [simplesmente não existem]. O estudo da histeria mostra
que, não obstante, estão presentes [realmente existem], ou seja, que a
correspondente alteração material se mantém; são armazenadas e passam
por uma insuspeitada existência numa espécie de reino das sombras, até
emergirem como fantasmas e assumirem o controle do corpo que,
ordinariamente, estava aos serviços da consciência do ego dominante.
(FREUD, 1988d, p.161).
Portanto, o que garante a existência das representações mesmo enquanto são apenas
uma possibilidade, ou seja, enquanto não participam da cadeia associativa consciente, é a
manutenção de sua alteração material correspondente. Como foi estabelecido no exame
critico “Sobre as afasias” (1891), os processos associativos se difundem pelo órgão mental
deixando atrás de si modificações permanentes que se constituem, segundo o paralelismo
estratégico adotado por Freud, como os correlatos neurais das representações psicológicas.
Assim, segundo esses argumentos, a cada vez que o processo volta a ocorrer suscitando os
mesmos estados corticais o evento psicológico concomitante emerge novamente enquanto
recordação. Aqui o argumento é mantido, porém, é utilizado para justificar a existência de
representações que tem sua eficácia afetiva intensificada mesmo depois de suprimidas da
cadeia associativa dominante. Com essa hipótese sobre as modificações processuais, as
representações aflitivas inibidas têm sua existência material garantida, mesmo não podendo
ser recordadas por meio de sua integração atividade psíquica consciente.
69
4.2. Uma nova concepção de corpo sustentada pela teoria da representação
Como sugere esse artigo sobre a cura hipnótica, o isolamento associativo de
representações penosas acaba por resultar numa intensificação patológica de seu afeto aflitivo,
o que as força a se objetivarem através da inervação corporal sob a forma de sintomas. No
trabalho subseqüente “Algumas considerações para o estudo comparativo das paralisias
motoras orgânicas e histéricas” (1893) Freud reformula a ação desse mecanismo introduzindo
a noção de trauma; essa tarefa e realizada ao mesmo tempo em que avança na compreensão
daquilo que a histeria revela sobre a particularidade com que o corpo é apreendido quando se
trata de sua representação psicológica. A formação do sintoma é concebida na dependência do
trâmite que esse modo particular de representação recebe diante das condições que decidem o
destino de seu afeto traumático.
Segundo Freud, a clínica nervosa reconhece duas classes de paralisias motoras que
estão em perfeito acordo com os dados da anatomia do sistema nervoso, são elas: a paralisia
periférico-espinhal e a paralisia cerebral, ou segundo a diferença no modo de representação da
periferia, se na medula ou no córtex: paralisia de projeção e paralisia de representação
respectivamente. Freud atribui essa diferença aos resultados obtidos em seu exame sobre as
afasias (1891) em relação à estrutura do sistema nervoso retomando as características das duas
modalidades de representação
39
. Com a Projektion se trata da relação ponto a ponto que a
estimulação periférica mantém com medula espinhal, e com a Repräsentation, da relação
entre as terminações sensoriais periféricas e o córtex, mediada por sucessivos processos de
seleção, recombinação e organização das conduções nervosas nos núcleos intermediários.
(SIMANKE, 2004b, p.15). De acordo com essa diferença na estrutura nervosa as paralisias se
39
(Cf. Projektion e Repräsentation: seção 2.1 do capítulo 2 dessa dissertação)
70
dividem em paralisias em détaillé, que são as de projeção, e as paralisias em masse, as de
representação.
Com base nessa distinção Freud da continuidade ao exame clínico comparativo entre
essas paralisias orgânicas e as paralisias histéricas iniciado no artigo “Histeria” (1888).
Contudo, iremos nos concentrar na teoria da representação que aí está em jogo. Quanto a isso,
diante das evidências, Freud entende que “se pode sustentar que a paralisia histérica é
também uma paralisia de representação, mas de um tipo especial de representação cuja
característica deve ser descoberta”. (FREUD, 1988g, p.200, grifo nosso).
Buscando responder as características desse tipo de representação com o qual as
paralisias histéricas estão associadas, Freud pondera que não há a menor dúvida de que as
condições que dominam a sintomatologia da paralisia cerebral são os fatos anatômicos
referentes organização do sistema nervoso. Cada detalhe clínico das paralisias cerebrais se
explica em um detalhe da estrutura cerebral. Por exemplo, se um segmento distal de um
membro é mais atingido pela paralisia que seu segmento proximal, isso se deve ao fato
anatômico de que as fibras representativas do segmento distal são mais numerosas, o que
aumenta sua influência cortical; e assim por diante. Por outro lado, não se pode afirmar o
mesmo quanto às paralisias histéricas, pois é impossível explicar seus traços característicos
através da distribuição e organização da anatomia cerebral. A histeria, por exemplo, combina
em suas paralisias uma delimitação exata com uma intensidade excessiva, uma
impossibilidade do ponto de vista nervoso.
Freud propõe elucidar essas questões interrogando a natureza da lesão que estaria em
jogo nas paralisias histéricas. Segundo Charcot, afirma Freud, trata-se na histeria de uma
lesão cortical, no entanto, essa lesão é de natureza unicamente dinâmica ou funcional, ou seja,
um tipo de lesão em que não se pode detectar nenhuma alteração tecidual por meio da
autopsia. Charcot acredita que essa lesão dinâmica possa decorrer de perturbações
71
perfeitamente localizáveis como edemas, anemias ou hiperemias; todavia, Freud observa que
essas perturbações, apesar de transitórias, são ainda autênticas lesões orgânicas.
Afirmo o contrário, que a lesão das paralisias histéricas deve ser por completo
independente da anatomia do sistema nervoso, posto que a histeria se
comporta em suas paralisias e outras manifestações como se a anatomia não
existisse, ou como se não tivesse nenhuma noticia dela. (FREUD, 1988g,
p.206, grifo do autor).
A sintomatologia histérica ignora a distribuição dos nervos, e aí está à tese que Freud
quer introduzir, aderindo de forma plena, como ele mesmo reconhece, às concepções de
Pierre Janet a favor da particularidade com que o corpo é representado do ponto de vista
psicológico. A histeria: “toma os órgãos pelo sentido comum, popular, dos nomes que eles
têm: a perna é a perna até sua inserção no quadril” (FREUD, 1988g, p.202), quando que, no
sentido estritamente anatômico, a perna consiste na parte do membro inferior que vai do
joelho ao pé. Assim, o mecanismo responsável pela função de nomear encontra suas analogias
na vida cotidiana, perna é perna e não fibras, músculos. (GABBI JR 1991,p.197).
Para apreender a particularidade da formação dos sintomas na histeria é necessário
rever essa noção de lesão funcional extraindo-a do âmbito da anatomia para o da psicologia
das neuroses. Nessa acepção a lesão, enquanto alteração de uma propriedade funcional (como
uma diminuição da excitabilidade ou de uma qualidade fisiológica constante) passa a estar
correlacionada com a dinâmica dos nomes com que o corpo é representado de acordo com a
experiência perceptual de cada paciente construída e partilhada na relação com os
semelhantes.
Afirmo, com Janet, que [...] essa concepção (Vorstellung)
40
não se funda em
um conhecimento profundo da anatomia nervosa, se não em nossas
40
Nesse artigo de 1893, escrito originalmente em francês para os Archives de Neurologie, Freud
reserva o termo “répresentation” para designar “Repräsentation” e emprega “conception” para a
"Vorstellung”.
72
percepções tácteis e, sobretudo, visuais. [...] A lesão da paralisia histérica será
então, uma lesão da concepção de braço; a idéia de braço, por exemplo.
(FREUD, 1988g, p.207)
Se por um lado há um débito para com Janet, por outro se pode reconhecer que, em
termos estritamente freudianos, o que está em jogo na nomeação do corpo é a relação
associativa entre Wortvostellung (representação de palavra) e Objektvorstellung
(representação de objeto). Freud afirma nesse momento que a Vorstellung em questão que
designa: a tomada dos órgãos pelo sentido comum dos nomes que recebem (portanto uma
representação de palavra), tem seus antecedentes fundamentais em nossas percepções tácteis,
sobretudo as visuais, e não em imagens sonoras lingüísticas, por exemplo. Com isso, está
propondo que a apreensão sensorial do corpo, que resulta numa representação de objeto
primária, deva preceder a sua nomeação através da associação com as representações de
palavra, que é uma aquisição mais tardia. O ato da nomeação se faz, portanto, através da
associação entre impressões corporais periféricas, representadas por meio de suas imagens
tácteis e visuais, e as impressões lingüísticas sonoras, representadas pelas imagens
acústicas.
41
41
Partindo da distinção clínica entre patologias orgânicas e doenças neuróticas iniciadas no artigo
“Histeria” (1888), a investigação freudiana acaba por abrir o campo e fundar as bases de uma nova
concepção de corpo sustentada pela teoria da representação e distinta da idéia de organismo definida
desde o ponto de vista da ciência anatômica. O trabalho com as paralisias dá um passo importante na
compreensão desses fenômenos. A histeria toma o corpo desde sua representação e desconhece
completamente o saber adquirido pela ciência anatômica. Trata-se de um corpo construído par a par
com a experiência, muito diferente do corpo revelado pela autopsia. Contudo, como foi possível
fundamentar, a nomeação da experiência com o corpo nunca tem fim, ela se faz a partir de um
aparelho de linguagem organizado em torno de uma relação aberta com a experiência sensorial. De
acordo com isso a representação do corpo deve sempre comportar um resto que se subtrai ao processo
de significação por meio da associação com as representações verbais.
Tendo em vista o ponto de partida freudiano no interior de uma tradição médica constituída
historicamente sobre a clínica do visível, no momento em que Freud elege a escuta do discurso afásico
e histérico como objeto de sua pesquisa, executa um movimento que o levará a uma ruptura com esta
tradição. Desse movimento foi possível destacar o estatuto inédito que o corpo adquire a partir de uma
clínica da escuta e de uma teoria da representação cujo enraizamento material torna inteligível a
passagem de um pensamento e de sua carga afetiva para a inervação corporal, onde o sintoma advém
no lugar de uma fala capaz traduzir e liberar o afeto de uma vivência sem palavras.
73
A lesão funcional da qual resulta a paralisia histérica deve então incidir não sobre o
corpo anatômico, e sim sobre sua representação psicológica: trata-se da lesão de uma
representação.
Considerada psicologicamente, a paralisia de braço consiste no fato de que a
concepção de braço não pode entrar em associação com as outras idéias que
constituem o eu do qual o corpo do indivíduo forma uma parte importante.
A lesão seria então a abolição da acessibilidade associativa da concepção
de braço. Essa se comporta como se não existisse para o jogo das
associações. (FREUD, 1988g, p.208, grifo nosso).
Freud pretende demonstrar com a introdução dessa noção de abolição da
acessibilidade associativa que a representação psicológica pode estar inacessível, (como se
não existisse) sem que seu substrato material correspondente esteja lesionado ou destruído.
Para isso re-introduz a noção de afeto:
Se a concepção de braço está envolvida numa associação de grande valor
afetivo, será inacessível ao livre jogo das outras associações. O braço estará
paralisado em proporção a persistência desse valor afetivo ou da sua
diminuição por meios psíquicos apropriados. (FREUD, 1988g, p.208).
Assim, conclui Freud, a representação de braço existe no substrato material, mas não
está acessível aos impulsos conscientes, e isso se dá devido ao alto valor afetivo relacionado
com a recordação de um evento traumático com que está envolvida numa associação
subconsciente.
Tanto nesse trabalho com as paralisias como no texto anterior sobre a cura pelo
hipnotismo 1892, mantêm-se o paralelismo adotado no ensaio de 1891, consequentemente
Freud não consegue romper com a identidade entre o psíquico e a consciência. Muito embora,
como observa CAROPRESO (2003, p. 337), o uso do termo subconsciente para designar
tanto os processos psíquicos envolvidos nas paralisias quanto o âmbito de sua atuação,
74
indique os primeiros movimentos a favor da superação dessa identidade, a existência psíquica
da representação permanece dependente de sua acessibilidade psicológica consciente. Seu
substrato material, apesar de psicologicamente eficaz, com bem demonstrou a sintomatologia
apresentada nos dois textos examinados, não é concebido como fazendo parte dos processos
psíquicos, e sim como o correlato neural de uma representação.
4.3. Ação e eficácia do mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos
No final do ensaio sobre as paralisias Freud remete seus argumentos ao trabalho
escrito em colaboração com Breuer “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos”
(1893), uma comunicação preliminar em que expõe as teses a serem comprovadas nos
“Estudos sobre histeria” (1893-1985)
42
. Essa obra tem grande importância para o
aprimoramento dessas hipóteses iniciais, quais sejam: o modo de ação do mecanismo psíquico
frente à recordação de um evento traumático e o processo terapêutico como ab-reação do
afeto aflitivo via expressão verbal. De acordo com essa teoria: toda impressão psíquica está
provida de um montante de afeto, de um valor afetivo (FREUD, 1988g, p.209); ou seja, toda
representação é em si mesma, segundo a ordem de sua constituição, um processo afetivo. Essa
tese permite estender a hipótese desse mecanismo psíquico básico em ação nas paralisias
histéricas para a formação dos sintomas neuróticos em geral.
42
Devido à extensão e a importância dos “Estudos...” (1893-1895) para a gênese dos conceitos
freudianos, bem como a qualidade da literatura existente, optamos por examinar as hipóteses e
conceitos aí estabelecidos na forma em que se encontram desenvolvidos no “Projeto de uma
psicologia” (1895), momento em que são correlacionados a constituição e ao funcionamento de um
aparelho psíquico representacional (Cf. Parte II, .cap. 6). Para um exame detalhado do alcance desse
trabalho em colaboração com Breuer e da transição de suas hipóteses para o “Projeto...” remetemos o
leitor ao trabalho de SIMANKE (2004b), ROSSI (2004) e CAROPRESO (2002; 2003).
75
A comunicação preliminar de 1893 traz os resultados obtidos pelo aprimoramento do
método de investigação hipnótica, mas também permite apreciar o alcance dos primeiros
trabalhos sobre a representação e o aparelho de associações, bem como da crescente
necessidade da elaboração de uma teoria sobre a memória. Investigamos no sintoma
(observam os autores), sua causa desencadeante: o processo em virtude do qual o fenômeno se
produziu pela primeira vez. Esse método permite verificar que no ponto de origem dos
transtornos encontram-se vivências traumáticas que o enfermo, não somente reluta em
comentar, mas que, principalmente, realmente não as recorda. (FREUD, BREUER, 1987a,
p.29). São traumas psíquicos decorrentes de vivências que suscitaram afetos penosos de
horror, vergonha, angústia, medo e dor mental, e que fazem parte de uma história de
sofrimento, de uma trama de recordações. Descobrimos, continuam, que os sintomas
desapareciam quando conseguíamos evocar nitidamente a recordação do processo que o
determinou despertando o afeto envolvido e demandando ao enfermo uma descrição
detalhada, uma tradução em palavras: “O decurso do processo psíquico originário tem de ser
repetido com a maior vivacidade possível, deve ser levado de volta a seu status nascendi e
então receber expressão verbal. “ (FREUD, BREUER, 1987a, p.32).
Os efeitos decorrentes da tradução do afeto põem em questão a capacidade que as
recordações das vivências demonstram em produzir efeitos tão intensos mesmo quando
aparentemente esquecidas. Segundo essa teoria, a perda da afetividade de uma lembrança
depende de alguns fatores, mas o essencial é saber se diante do evento que provocou o afeto
houve ou não uma reação adequada.
Por reação entendemos aqui toda série de reflexos voluntários e involuntários
em que, segundo sabemos pela experiência, se descarregam os afetos: desde o
choro até a vingança. [...] Se essa reação se produz em escala suficiente,
desaparece boa parte do afeto. [...] Se a reação é sufocada, o afeto permanece
conectado com a recordação. (FREUD, BREUER, 1987a, p.34).
76
O acréscimo da soma de excitação afetiva se dá pela vias sensoriais, a diminuição por
vias motoras, o que os autores propõem diante da reação sufocada é que o trabalho com a
linguagem, por meio da expressão motora verbal e da retificação associativa, possa ser um
substituto para a ação.
43
Assim, se o sujeito, por algum motivo não pode ou se recusa a
tramitar esse excedente afetivo via reação motora ou por um trabalho associativo, a
recordação dessa impressão psíquica continua a existir tomando parte na organização de um
grupo de representações afetivas isoladas do comércio associativo. Excluídas e inconscientes
elas adquirem uma intensificação excessiva, tornando-se causa para a formação de sintomas.
Mesmo com os avanços obtidos nos “Estudos sobre histeria” ambos os autores
hesitam em admitir uma natureza psíquica para os processos inconscientes, por razões
declaradas que dizem respeito às suas opções metodológicas e as dificuldades reais inerentes a
matéria. Em “Psicoterapia da histeria” (1895), por exemplo, a respeito da hipótese da
presença de pensamentos inconscientes impossíveis de serem recordados, afirma que não tem
uma idéia definida sobre a natureza dessas representações:
deve-se supor que se trata realmente de pensamentos nunca produzidos, e para
os quais haveria uma mera possibilidade de existência, de modo que a
terapia consistiria, então, na consumação de uma ato psíquico interceptado ? É
evidentemente impossível enunciar algo sobre isto, ou seja, sobre o estado do
material patógeno antes da análise. (FREUD, 1987c, p. 304, grifo nosso).
No artigo “As neuropsicoses de defesa” (1894), ao discutir sua teoria da defesa
enquanto mecanismo psíquico em ação contra a emergência de idéias sexuais incompatíveis
com a vida representacional, a dúvida quanto à natureza do inconsciente é exposta
claramente:
43
Nesse ponto Freud se apóia na observação espirituosa de Jackson de que o primeiro homem que em
vez de lançar uma lança contra seu inimigo lhe lançou um insulto foi o fundador da civilização, desse
modo à palavra é o substituto da ação.(FREUD, 1989b,p.38).
77
a separação da representação sexual e de seu afeto, e o enlace desse último
com outra representação, adequada mas não incompatível: são processos que
acontecem sem consciência, que somente é possível presumir sua existência, e
nenhuma analise clínico-patológica é capaz de demonstrar. Talvez fosse mais
correto dizer que tais processos [inconscientes] não são de modo algum de
natureza psíquica, mas processos físicos. (FREUD, 1989c, p.54).
Essa problemática levará Freud a uma revisão sobre a natureza da representação sem a
qual o psíquico inconsciente, apesar de perfeitamente estabelecido em termos clínicos,
permaneceria teoricamente excluído do campo psicológico aberto pela histeria e pela hipnose.
Como pretendemos demonstrar
44
, a necessária desvinculação entre o psíquico e a consciência
se consuma, definitivamente, no texto “Projeto de uma psicologia” (1895), permitindo que a
representação possa produzir toda uma série de efeitos e ter seu comportamento descritível em
termos psicológicos sem aceder à consciência. (SIMANKE, 2004b, p.59).
44
(Cf. Parte II, seção 1.2)
78
PARTE II:
O SENTIDO E A NATUREZA DA CONCEPÇÃO DE REALIDADE E A TEORIA DA
MEMÓRIA NO “PROJETO DE UMA PSICOLOGIA” (1895)
79
CAPÍTULO 1
A constituição do Aparelho Neuropsíquico
45
Nessa segunda etapa da pesquisa iremos situar e analisar os problemas e as hipóteses
que estão na origem daquilo que se pode denominar: uma primeira circunscrição do conceito
de real pela metapsicologia freudiana. Nesse contexto o “Projeto de uma psicologia” (1895)
tem uma importância fundamental devido ao fato de poder ser considerado como uma grande
síntese das observações e da teoria desses primeiro anos. Um trabalho cujo problema
fundamental é o de fornecer uma justificativa teórica adequada e uma base constitucional para
a hipótese clínica da defesa. Esse é núcleo do argumento freudiano a favor do reconhecimento
do lugar das causas adquiridas na etiologia das neuroses e na própria constituição do aparelho
psíquico. Sendo assim, nosso objetivo neste momento é situar o sentido e a natureza da
concepção de realidade que se pode extrair dessa primeira teoria sobre o aparelho, e com isto
responder a seguinte questão: Qual é a concepção de realidade manejada no interior da teoria
da defesa e da sedução?
No “Projeto...” (1895) também é possível acompanhar a construção da primeira teoria
freudiana sobre a memória ou como define Freud, o psíquico propriamente dito, que surge,
como observa SIMANKE (2004b, p.59), como conseqüência e culminação do argumento
anti-localizacionista desenvolvido desde o “Ensaio sobre as afasias” (1891). Trata-se mesmo
de um do estabelecimento do fundamento conceitual
45
O termo neuropsíquico se justifica, como será examinado adiante (Cf. Parte II, seção 1.2 Memória e
percepção), pelo fato de que Freud nesse trabalho passa a atribuir uma natureza psíquica aos processos
neurológicos identificando-os aos processos inconscientes. Uma operação conceitual que implica na
ultrapassagem do paralelismo psicofísico problematizado anteriormente. (Cf. Parte I, seção 2.2). Essa
identificação e ultrapassagem trazem conseqüências fundamentais para conceituação do laço
indissociável entre corpo e representação, principalmente com a introdução da noção de pulsão
enquanto a mola impulsiva de toda atividade psíquica. (Cf. Parte II, seção 1.4).
80
sobre o qual pode-se erigir a teoria de um inconsciente psíquico,
representacional, psicologicamente ativo, concedendo, enfim a carta de
cidadania metapsicológica às intuições clínicas que já há algum tempo se
acumulavam e que tão reticentemente eram consideradas por Freud.
(SIMANKE, 2004b, p.59).
1.1. Postulados, funções e estrutura
De maneira introdutória iniciaremos com uma descrição geral da estrutura e do
funcionamento do aparelho psíquico tal como é proposto no “Projeto de uma psicologia”
(1895)
46
. Freud tem como ponto de partida dois postulados fundamentais para abordar à
estruturação do aparelho, o da quantidade (Qn)
47
e do neurônio (N). A concepção
quantitativa lhe foi sugerida pelas observações clínicas, particularmente pela presença
patológica em obsessões e histerias das chamadas idéias excessivamente intensas (überstarken
Vorstellungen) que deram evidências da existência de processos de excitação neuronal em
fluxo.(FREUD, 1988h, 340). Já o segundo postulado sobre o neurônio, acrescido e
combinado a essa concepção quantitativa, foi fornecido pela descoberta recente advinda da
46
Existem divergências sobre o valor deste escrito na obra de Freud, geralmente a literatura se divide
em duas grandes posições: ou o texto é tido como um desvio neurológico na constituição da
psicanálise, como é o caso da avaliação feita por autores como GARCIA-ROZA (2001,p.60) e
FRAYZE-PEREIRA (1999) por exemplo, ou é tomado como já sendo uma teoria psicológica, onde o
neurológico deve ser encarado apenas como metáfora da psicologia implícita nele, como se encontra
em algumas leituras lacanianas. Em ambas as avaliações o valor e o lugar desse texto na composição
da teoria freudiana é deslocado e reduzido. Existe em contrapartida uma terceira avaliação realizada
por autores como MONZANI (1989) GEERARDYN (1997), GABBI JR. (2003), SIMANKE (2004
a,b) entre outros, que tende a localizar e explicitar lógica e historicamente, o lugar que esse trabalho
ocupa no desenvolvimento da teoria psicanalítica, seus pressupostos epistemológicos, a origem e a
construção de seus problemas, suas hipóteses, e sua contribuição para o conjunto da obra. O presente
trabalho, que não tem como foco essa problemática em específico, tem como referência essa terceira
via, e situa o Projeto... (1895) dentro da orientação científico-naturalista de Freud, onde é possível
verificar que o campo das ciências naturais e a psicologia do inconsciente nunca foram alternativas
excludentes para o autor.
47
Freud utiliza duas notações para designar a quantidade: Q e Qn, cuja diferença nem sempre é clara
ao longo do texto. Contudo, a hipótese mais sustentável sugerida tanto pelo editor como por GABBI
JR. (2003, p.24) é de que o termo Q seja utilizado para referir-se a quantidade em geral, de origem
externa, e Qn a de origem interna. Importante destacar que Qn é sinônimo de excitação neuronal.(Cf.
FREUD, 1988h, p.340).
81
histologia da época, de que o sistema nervoso seria composto por neurônios distintos
mediados entre si por uma massa nervosa, numa estrutura em que a direção da condução
nervosa estaria prefigurada. Eles receberiam quantidade através dos prolongamentos celulares
(dendritos) e a emitiram través dos cilindros de eixo (axônios). (Cf.SIMANKE,
CAROPRESO, 2005). A combinação proposta por Freud entre esses dois postulados
principais deu forma a uma primeira dedução teórica segundo a qual quantidade em fluxo
implicaria, sob certas condições, a ocupação dos neurônios.
O signo de realidade é concebido nesse trabalho neuropsicológico de cunho clínico-
especulativo em decorrência da introdução de um terceiro sistema na teoria do aparelho
neuronal, o ômega. Esse sistema é introduzido ao lado dos dois outros já estabelecidos, o da
memória psi e o da percepção phi. Ômega se torna necessário no momento em que os dois
postulados para a construção de uma psicologia científica naturalista, o da quantidade (Qn) e
do neurônio (N), encontram seus limites em dar conta de explicar a característica qualitativa
atribuída à consciência, que então passará a ser atribuída às operações deste novo sistema.
A modalidade de funcionamento que antecede a introdução da consciência na
constituição do aparelho é regida por uma lei que Freud empresta da física newtoniana e que
traduz de forma adequada sua hipótese sobre o movimento neurônico, a lei da inércia, um
modo de funcionamento regulado pelo seguinte princípio: “toda célula nervosa aspira a
libertar-se de Q”. (FREUD, 1988h, p.340). A ação deste princípio explica, segundo Freud, a
arquitetura bipartida dos nervos e neurônios em pólos motores e sensoriais que impõe uma
orientação para a condução nervosa. Portanto, toda quantidade (Qn) recebida pelo aparelho
deve ser descarregada automaticamente pela via motora, ou seja, este modo de processamento
da quantidade visa, através de uma ação puramente reflexa, orientada no sentido sensório-
motor, reconduzir todo o aumento da tensão interna a Qn = 0.
82
A hipótese de um aparelho como esse, regido exclusivamente pelo princípio de
inércia, cuja única fonte de excitação provém da estimulação externa, desempenha a princípio
a função de uma ficção teórica, uma vez que esse regime de processamento é incompatível
com a realidade de um organismo vivo, como veremos. Essa hipótese será modificada até se
adequar aos dados da observação, mas, no que concerne ao fundamento, será mantida, pois,
segundo Freud, este principio geral da atividade nervosa que estabelece que o sistema
neuronal em seu conjunto aspira a aliviar-se dos acréscimos de tensão (Qn), permite: 1.
compreender a arquitetura, desenvolvimento e as operações de seus sistemas
(FREUD,1988h, p.340); 2. com essa estrutura teórica, organizar e explicar os processos e
mecanismos envolvidos na formação e na etiologia das neuroses.
Nos desempenhos proporcionados por essa arquitetura bipartida, segue-se o
desenvolvimento de duas funções: uma função primária que é a eliminação de Qn, ou seja, a
descarga; e uma função secundária que é a fuga de estímulo. (FREUD, 1988h, p.340). Essa
última se estabelece em razão do fato de que no desempenho das operações no interior do
aparelho são preferidos e mantidos aqueles caminhos que levam ao cancelamento do estímulo.
A função secundária se utiliza desses caminhos selecionados para realizar a operação
necessária à fuga.
De acordo com essa hipótese inicial, sua adequação a um organismo vivo exige uma
série de substituições, pois a manutenção da vida implica que se leve em conta uma segunda
fonte de excitação interna ao organismo acrescida desde as necessidades vitais, Freud refere-
se às grandes urgências da vida: a fome, a respiração e a sexualidade. No caso dessas
necessidades, a fuga de estímulos por meio da resposta reflexa é completamente ineficaz, e
sua resolução exige a substituição da ação reflexa automática por uma ação específica
dirigida ao mundo externo no sentido de obter o aprovisionamento dos objetos necessários a
resolução da tensão. (FREUD, 1988h, p.341).
83
Essa inclusão exige uma alteração significativa na tendência à inércia, uma vez que,
sob este regime o aparelho é incapaz de tolerar qualquer acréscimo de excitação, o que é
inconcebível para um organismo vivo. Neste sentido, o princípio de inércia é substituído pelo
que Freud denomina princípio de constância. Esse último exige que o aparelho seja capaz de
tolerar um mínimo de acúmulo de excitação em seus sistemas, uma cota de energia necessária
para o cumprimento da função secundária e para iniciar os rudimentos de uma ação
específica.
Até o momento foi possível acompanhar as repercussões produzidas pela consideração
das fontes internas de excitação na teoria do aparelho psíquico. Isso marca a passagem de uma
ficção teórica de um aparelho regido pela inércia para uma especulação sobre a gênese do
aparelho a partir de suas vivências fundamentais de dor e de satisfação, até chegar, em seu
desenvolvimento mais complexo e organizado, à constituição da consciência, como veremos
adiante.
1.2. Memória e percepção
Essa nova modalidade de funcionamento, regida pela tendência a manter a tensão
interna constante defendendo-se contra todo acréscimo de excitação, segue a mesma
orientação de eliminação sensório-motora estabelecida pela tendência à inércia; a diferença
está em que para o cumprimento dessa função secundária é preciso que uma parcela da
quantidade seja retida no interior do sistema, não pode ter sido completamente eliminada.
Essa retenção de uma cota de excitação para ser utilizada na realização dos desempenhos do
aparelho está diretamente articulada à constituição da memória. Isso se deve ao fato de que
84
nessas operações de fuga e descarga são selecionadas e mantidas aquelas trilhas abertas pela
condução nervosa que levam ao cancelamento do estímulo, assim, ambas, retenção de Qn e
seleção de caminhos, articulam-se na constituição de um sistema mnêmico.
Para tanto, é preciso supor uma resistência que faça oposição às descargas, algo como
barreiras que contenham o livre curso da excitação. Freud introduz, então, a hipótese das
barreiras de contato situadas entre os neurônios. (FREUD, 1988h, p.342). Tais barreiras se
articulam e se justificam devido à observação de que a condução nervosa atravessa o
protoplasma indistinto provocando aí uma diferenciação e, com isto, uma melhora da
faculdade condutiva para as conduções posteriores. O que demonstra a capacidade do tecido
nervoso de ser “alterado permanentemente por processos únicos.” (FREUD, 1988h, p.343).
As barreiras de contato ainda tornam possível uma outra inferência sobre a diferenciação no
tecido nervoso que divide as células em duas classes de neurônios: o sistema (phi), que serve
à percepção, cujas barreiras de contato são completamente permeáveis ao decurso da
excitação (logo, após cada processo de condução eles estão no mesmo estado que antes; não
há alteração, portanto, não há registro, apenas recepção sensorial) e o sistema (psi),
representando a memória e os processos psíquicos propriamente ditos, em que as barreiras de
contato conservam sua resistência à passagem da excitação, o que as torna relativamente
impermeáveis ao processo excitatório. Uma vez que o decurso da excitação atinge uma
intensidade “x” capaz de vencer as resistências oferecidas pelas barreiras, com a passagem da
condução elas caem num estado de alteração permanente, se tornam mais susceptíveis à
condução, menos impermeáveis: “Designamos este estado das barreiras de contato como
grau de facilitação.” (FREUD, 1988h, p.344). As diferenças entre os graus de facilitações
existentes entre os neurônios psi é que constituem então o fundamental da explicação da
memória dentro dessa teoria do aparelho psíquico.
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Essa hipótese das facilitações se ajusta bem à observação da experiência psicológica,
Freud cita o exemplo da aprendizagem como evidência de que a memória se faz por
facilitações. Essa justificativa teórica da memória é traduzida na linguagem da experiência
como o poder de uma vivência de seguir produzindo efeitos continuamente. O poder de
efetividade permanente de uma vivência está na dependência de dois fatores: “da magnitude
da impressão e da freqüência com que essa mesma impressão fora repetida.” (FREUD,
1988h, p.345). No plano metapsicológico, originariamente, a quantidade é o fator eficaz, e o
resultado, a facilitação; a posteriori, em termos de eficácia, a facilitação pode substituir a
quantidade, assim como a recordação substitui a vivência.
Todas as operações do aparelho devem-se adequar à tendência à constância; nessa
orientação, as facilitações como base para a memória também servem à função primária da
descarga. Frente a um acréscimo de tensão advindo de uma vivência, a seleção dos caminhos
de eliminação é determinada pelo grau de facilitação das barreiras de contato, ou seja, em
relação aos posteriores decursos da excitação serão selecionadas as trilhas que melhor
conduzem à cessação do estímulo. (FREUD, 1988h, p.345). Assim, os caminhos preferenciais
são estabelecidos pelos próprios processos e experiências e não estão previamente
determinados por restrições anatômicas.
Descrita como fato psíquico fundamental, a memória, que demonstra a capacidade do
tecido nervoso de ser alterado permanentemente por processos únicos, encontra sua
justificativa teórica através da teoria das barreiras de contato, que também é o fundamento em
que repousa a possibilidade das aquisições psíquicas: “Toda aquisição psíquica consistiria,
então, na articulação do sistema psi por um cancelamento parcial e topicamente definido da
resistência nas barreiras de contato, que distingue phi e psi”. (FREUD, 1988h, p.346).
A fim de diminuir a arbitrariedade de suas construções, Freud, após esgotar as
possibilidades de explicação mecânica, via de regra concebe um fundamento evolutivo para
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seus conceitos, o que se aplica tanto para explicação da memória como para percepção através
da ação da quantidade sobre os neurônios. A hipótese é de que a ação da quantidade se deu de
modo diferente ao longo da evolução dos sistemas phi e psi. Do ponto de vista da história
evolutiva, a divisão entre essas duas classes de sistemas se justifica pelo fato de que os
neurônios phi da percepção estariam submetidos a uma quantidade externa muito mais
intensa do que aquelas advindas do interior do corpo. Com isso, as barreiras de contato entre
seus neurônios tornaram-se completamente permeáveis ao curso da quantidade; enquanto as
barreiras de contato dos neurônios em psi, por sua localização tópica mais interna, afastadas
da ação direta dos estímulos, mantiveram certa impermeabilidade (resistência) ao curso da
quantidade: “Por conseguinte, a arquitetura do sistema nervoso serviria ao afastamento; a
função, à eliminação de Qn’ dos neurônios.” (FREUD, 1988h, p.350).
O sistema phi, voltado para recepção sensorial do mundo exterior, tem por finalidade
duas tarefas: reduzir o impacto das quantidades exógenas, e descarregar, através do pólo
motor, as quantidades excedentes que penetram em seus neurônios. O que vale também para o
sistema psi, que não tem conexão direta com o mundo externo, e recebe as quantidades de
duas fontes: aquela advinda de phi e outra proveniente dos estímulos endógenos advindos do
interior do corpo.
48
48
Com relação aos dois sistemas em questão Freud tece uma comparação que confere uma
continuidade de base em relação ao Ensaio sobre as afasias (1891). O sistema de neurônios phi é
correlacionado à substância cinza da medula espinhal, e o sistema psi a substância cinza do cérebro.
Da crítica da idéia de projeção realizada no ensaio resulta que: phi (assim como a medula espinhal) é o
único sistema que tem uma conexão direta com o a periferia externa, enquanto que o sistema psi
(comparado ao córtex) distante da periferia sensorial é o único que tem vias diretas até o interior do
corpo. (FREUD, 1988h, p. 347). A fecundidade e o alcance do trabalho crítico com as afasias podem
ser conferidos ainda pelo uso que Freud faz dele no esquema proposto pela Carta 52 (1896), por
exemplo, quando trabalha com a estratificação sucessiva da memória e suas retranscrições, que é uma
primeira versão do aparelho psíquico apresentado na Interpretação dos sonhos (1900). (Cf. Parte III,
seção 2.2). Na Interpretação dos sonhos a crítica a favor da representação contra a idéia de projeção
assume características psicológicas que dizem da seleção e recombinação dos pensamentos do sonho
no conteúdo manifesto. (Cf. Parte IV, seção 4.1).
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O curso da quantidade proveniente das fontes endógenas de excitação, após atingir
certo limiar, ultrapassa a resistência existente entre o aparelho e o interior do corpo. Ao
ultrapassar essa resistência oferecida pelas barreiras de contato entre os neurônios, o curso da
quantidade abre trilhas nessas barreiras entre os neurônios em psi, as facilitações. Na próxima
recorrência do decurso excitatório, esse é induzido a percorrer novamente essa trilha já
facilitada, ou seja, está garantida a possibilidade da repetição dos processos.
49
Essa é a base
material da memória que fornece os elementos necessários à constituição de uma
representação.
No caso da recorrência do curso psíquico por essas trilhas facilitadas devido à ação da
quantidade de origem endógena, trata-se então, da constituição de representações mnêmicas
das excitações provenientes do interior do corpo. Existem também as representações
mnêmicas provenientes da percepção phi, constituídas pela ação da quantidade externa sob o
aparelho. No caso do fenômeno da dor, que é o exemplo dado por Freud, o curso da
quantidade de origem externa, por sua intensidade, rompe os dispositivos de proteção contra
Q, deixando atrás de si poderosas facilitações em direção à representação do objeto hostil,
essas funcionam como motivos compulsivos no interior de psi.
Com essas considerações, Freud toca o limite do que é possível deduzir e explicar a
partir da articulação entre os postulados principais da quantidade e do neurônio na sua
49
No “Ensaio sobre as afasias” (1891) essa possibilidade decorria da hipótese de uma modificação
permanente que os processos deixavam após a sua passagem, os traços mnêmicos. Aqui, essa
modificação permanente, que até então permanecia sem uma definição mais precisa, é especificada
pela teoria memória sob a forma da abertura de facilitações nas barreiras de contato entre os neurônios.
Segundo SIMANKE (2004b), a teoria da memória desenvolvida no “Projeto...”(1895), consolida a
prevalência e autonomia do ponto de vista funcional sob a concepção estática e localizacionista da
memória criticada por Freud desde 1891. A consolidação se apóia em duas substituições: 1º. A idéia
do localizacionismo de que os elementos mnêmicos estariam contidos no interior da célula nervosa, é
substituída pela concepção funcional de que “a única coisa que um neurônio, entendido com a unidade
material de composição do sistema nervoso, pode inteligivelmente conter é certo montante de
quantidade (Qn).” (SIMANKE, 2004b, p.52). 2º. A hipótese de que a rememoração é garantida pela
permanência de uma modificação cortical morfologicamente concebida, é substituída pela idéia de que
o processo deixa sim atrás de si uma modificação, “mas não no neurônio, que permanece idêntico (...),
mas na barreira de contato que, uma vez ultrapassada, tem a sua capacidade de oferecer resistência ao
fluxo da quantidade diminuída.” (SIMANKE, 2004b, p.53).
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intenção de construir uma psicologia científica naturalista. O limite dessa construção é
colocado pela impossibilidade de se conceber a consciência unicamente pela ação da
quantidade; para tanto, é preciso incluir a qualidade e as sensações. Até este momento da
estruturação do aparelho, tanto as atividades quanto a própria constituição da memória, base
de todos os processos psíquicos, prescindiram completamente das funções desempenhadas
pela consciência:
Explicitemos uma premissa que nos tem guiado até aqui. Temos abordado os
processos psíquicos como algo que poderia prescindir do conhecimento dado
pela consciência, como algo que existe independentemente de uma
consciência. [...] A consciência não nos proporciona um conhecimento
completo nem confiável dos processos neuronais; e esses, em toda sua
extensão, tem que ser considerados em primeiro lugar como inconscientes e
devem ser inferidos do mesmo modo que as outras coisas naturais.(FREUD,
1988h, p.352).
É importante observar que com isso Freud empreende um movimento conceitual de
grandes proporções que implica na própria ultrapassagem do paralelismo psicofísico, uma
possibilidade aberta desde 1891:
1º. Reafirma que a existência dos processos psíquicos é independente daquilo que se
experimenta como consciência.
2º. Atribui uma natureza psíquica aos processos neurológicos, ou seja, aquilo que no
“Ensaio sobre as afasias” (1891) era tido como o correlato da representação “é agora pensado
como consistindo na própria representação, enquanto processo psíquico inconsciente”.
(CAROPRESO, 2002, p.100).
A ultrapassagem se dá justamente no momento em que a teoria da memória torna
possível identificar os processos psíquicos que ocorrem na ausência da consciência aos
processos neurológicos. De acordo com esses desenvolvimentos, a própria opção de Freud no
“Projeto...” (1895) pelo termo Vorstellung ao invés de Repräsentation para designar seu
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conceito de representação (SIMANKE 2004a, p.25), indica, justamente, a efetivação do que
desde as afasias se tornara uma possibilidade: conceber a Vorstellung como
conjunto de propriedades distintivas que os processos corticais adquirem
ao se verem organizados de uma determinada maneira, no nível mais
evoluído e de maior complexidade e flexibilidade, segundo os princípios
jacksonianos; haveria, então, uma diferença funcional entre o neurológico e
o mental, mas não mais uma diferença essencial ou de natureza
(SIMANKE, 2004a, p.32, grifo nosso).
SIMANKE (2004b, p.58), ainda extrai dessa reordenação conceitual elementos que
permitem conceber a relação entre o psíquico e sua base neural escalonada em três níveis:
O primeiro corresponde a uma série de facilitações deixadas por algum
processo anterior que constitui um complexo associativo de neurônios
operando, desde então, como uma unidade funcional; pode-se dizer que este
sistema de traços mnêmicos constitui a representação em potência [uma
possibilidade]. (...) O segundo nível corresponde ao processo da representação
(Vorstellungsabaluf) propriamente dito, quando o complexo torna-se
novamente ativo devido à sua ocupação pela quantidade, e a representação
pode ser dita psicologicamente eficaz. Isso, por si só não significa que a
representação torne-se consciente, o que configuraria o terceiro nível da
relação mente-cérebro.
1.3. Qualidade e consciência
Dada os limites da construção anterior que esbarrou na impossibilidade de se conceber
a consciência unicamente pela ação da quantidade é necessário incluir a qualidade e as
sensações. O problema é abordado inicialmente desde a localização tópica da origem da
qualidade no aparelho. Freud descarta três possibilidades para essa origem: ela não pode estar
90
no mundo externo que em sua visão fisicalista é composto apenas de massas em movimento.
Não pode se dar no sistema phi da percepção, dado o pressuposto de que a consciência esteja
localizada em níveis superiores de organização do funcionamento psíquico; e por último, não
pode estar no sistema psi, pois seus processos psíquicos, o recordar e o reproduzir são, por
natureza, sem qualidade.
Diante dessas dificuldades, Freud se vê obrigado a postular a existência de um terceiro
sistema, o ômega, que dê conta de explicar a origem e as operações que envolvem as
sensações conscientes de qualidade. Essa hipótese, apesar de ser requerida pelo
desenvolvimento precedente, não decorre das noções anteriormente apresentadas, não pode
ser deduzida dos princípios assumidos desde o início. (SIMANKE, 2004b, p.138). Freud
também não consegue estabelecer a origem evolutiva deste sistema, que é introduzido mais
como uma ficção que poderá ser útil até o momento em que se possa encontrar uma hipótese
mais adequada a sua construção.
Neste mesmo sentido, dando seqüência ao argumento, Freud afirma que dessa
arquitetura dos sistemas de neurônios cabe esperar que ela consista também “em mecanismos
que transformem as quantidades externas em qualidades, com o que parece triunfar de novo
a tendência originária ao afastamento da quantidade.” (FREUD, 1988h, p.353). O problema
passa a ser quais são as operações necessárias para que o aparelho neuronal seja capaz de
consciência, ou seja, como é possível ao aparelho operar uma transformação que partindo da
quantidade resulte, ao final de um processo dinâmico, em qualidade; o sistema ômega seria
capaz deste desempenho. Para tanto, é necessário que este sistema estabeleça dois modos
diferentes de relação aos outros: um por meio da quantidade e outro pela da apreensão da
característica temporal gerada pelo curso da quantidade, o período. Com essa hipótese do
período transmitido juntamente com a quantidade, “é preciso mostrar que, embora essa não
possa ser plenamente derivada das proposições anteriores, não está em desacordo com elas,
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nem contradiz as idéias até agora aceitas e, em princípio, demonstradas.” (SIMANKE,
2004b, p.140).
Dada à localização de ômega ser a mais interna e afastada da periferia sensorial (phi –
psi – ômega), a quantidade a que está submetido é mínima, pois já vem fracionada pela
passagem pelos crivos protetores dos órgãos sensoriais, pelo sistema phi e pelo sistema psi.
De acordo com essa distribuição, Freud propõe então que as sensações conscientes sejam
produzidas “apenas ali onde as quantidades estão reduzidas ao máximo.” (FREUD, 1988h,
p.355).
Ao lado dessa questão tópica e econômica, é preciso responder a questão das
propriedades desses períodos. Os períodos seriam os aspectos formais que acompanham o
movimento, uma propriedade dos estímulos, como as diferenças de freqüência e oscilação que
chegam à percepção com um amplo e diverso grau de variações. O sistema psi, por sua vez,
também possui um período próprio ao curso da quantidade durante seus processos, porém seu
período é monótono. A divergência entre as variações dos períodos provenientes da percepção
e a monotonia característica do período em psi permite avançar mais uma hipótese, que é a
seguinte: “as divergências, segundo este período psíquico próprio, chegam à consciência
como qualidades.” (FREUD, 1988h, p.354). Essas diferenças de período também se explicam
pela ação protetora dos crivos dos órgãos sensoriais que apenas permitem a passagem de
determinados processos com certos períodos. Selecionadas essas propriedades temporais, elas
são transmitidas da periferia para o centro, até chegar a ômega, onde esse estado de afecção
pelo contraste de períodos produz sensações conscientes de qualidades.
A propagação do período não está submetida às resistências das barreiras de contato
entre os neurônios, essas funcionam apenas para o curso da quantidade, portanto, sua
circulação é livre entre os sistemas. Porém, essa total permeabilidade entre os neurônios
quanto ao período exclui a possibilidade de que haja, por essa via, uma memória dessas
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sensações qualitativas que são a base material e o fundamento da consciência perceptiva. É
bastante evidente que a natureza dessa transformação da divergência dos períodos para
produção de consciência permanece enigmática. Com essa concepção Freud obtém apenas as
condições de possibilidade da consciência, mas não a elucidação do mecanismo ou da
natureza da consciência ela mesma; este seria um limite interno da metapsicologia freudiana.
(SIMANKE, 2004b, p.128).
A ocupação dos neurônios em ômega pela quantidade advinda de psi, apesar de ser
mínima, também incita à descarga de excitação. Essa possibilidade de ocupação gera uma
segunda série de sensações: a de prazer e desprazer. Essa série proporciona uma mediação
entre os processos em psi e a consciência. O desprazer seria a sensação ômega frente ao
aumento da excitação neste sistema; já o prazer seria a sensação consciente decorrente da
liberação da tensão nervosa, ou seja, são sensações que resultam do nível da quantidade neste
sistema, muito diferentes da série qualitativa relacionada à presença dos objetos na percepção
que acompanha a propagação do período.
A aptidão do aparelho para sensações de prazer e desprazer em função dessa via de
comunicação entre psi e ômega abre a possibilidade de uma segunda modalidade de
consciência imediata ao lado da percepção; a posteriori, com a aquisição de linguagem, passa
a existir também a possibilidade de uma consciência mediada, através da articulação das
representações verbais. Essa seria uma possibilidade de consciência para as representações
psi, que deve ser distinguida da consciência como função da percepção phi, como Freud tem
desenvolvido até o momento. Essa nova série qualitativa (prazer-desprazer), que resulta da
conversão das quantidades em qualidades, está em comum acordo com a tendência geral da
vida psíquica em manter-se livre de acréscimos de tensão, que assume, a partir de então, a
forma de uma tendência geral do aparelho em evitar o desprazer. (FREUD, 1988h, p.356).
93
Neste ponto, Freud faz uma consideração importante sobre as conseqüências do
entrecruzamento dessas duas séries de sensações no interior de ômega, uma advinda da
propagação do período e outra da quantidade, que é a seguinte: a condição para que este
sistema permaneça receptivo aos períodos da percepção é que a ocupação de seus neurônios
esteja num nível ótimo, que não exceda ou não caia abaixo de certo limiar. Isto significa que,
com presença das sensações de prazer e desprazer que indicam essa oscilação de nível,
desaparece a aptidão para perceber qualidades sensoriais, que se situam, por assim dizer,
numa zona de indiferença entre prazer e desprazer.” (FREUD, 1988h, p.357). O que está
plenamente de acordo com a experiência, pois, como é possível observar, o sistema da
percepção fica temporariamente inoperante no caso de um sofrimento psíquico muito intenso
(ansiedade, desespero etc.) ou de uma experiência prazerosa muito vívida cujo protótipo seria
o orgasmo sexual, por exemplo. (SIMANKE, 2004b, p.173).
1.4. O interior do corpo e a mola impulsiva do mecanismo psíquico
Concluída essas etapas da construção da estrutura do aparelho, em que se articularam
memória, percepção e consciência, resta figurar seu modo de operação, mediante o que será
possível ponderar a produção dos efeitos psíquicos advindos dos processos excitatórios que
percorrem seus sistemas e as conseqüências de sua relação indissociável com o interior do
corpo. Uma etapa que visa articular os elementos necessários à consideração do aparelho do
ponto de vista de suas operações e atividades vitais, ou seja, que permita a passagem do plano
estrutural para a compreensão do lugar e da significação das vivências nessa composição.
94
Cabe examinar primeiramente seu modo de operação quanto às magnitudes de
excitação provindas do mundo exterior. A porção do aparelho que está em contato com o
mundo externo, os neurônios phi, não está exposta diretamente aos estímulos exógenos. Na
periferia está protegida por aparelhos de terminações nervosas que não permitem que as
quantidades ajam em psi sem redução, “atuam como filtro, de modo que em cada um dos
lugares terminais não podem operar estímulos de qualquer índole.” (FREUD, 1988h, p.357).
Os processos externos sofrem uma dupla transformação para que possam se converter em
estímulos passíveis de serem tramitados pelo aparelho. Segundo a quantidade, são reduzidos e
limitados por um corte, acima ou abaixo do qual não há conversão, e de acordo com a
qualidade são descontínuos, a razão de que certos períodos não podem atuar como estímulos.
(FREUD, 1988h, p.358).
A vida de relação do aparelho implica a ligação direta do sistema phi, perceptual, com
o aparelho motor. Pelo lado da qualidade, o período, por não haver impedimento para seu
trânsito, desaparece pelo lado motor. Pelo lado da quantidade, o estímulo phi excita à
tendência a descarga que rege as operações no aparelho, neste sentido as quantidades são
traduzidas em uma excitação motora proporcional. (FREUD, 1988h, p.358). As quantidades
assim traduzidas, quando atingem músculos e glândulas, agem aí não mais por transferências
como entre os neurônios, mas por desprendimento. Ou seja, a excitação, quando atinge essas
articulações, produz um efeito muito superior a ela mesma, pois libera uma reserva de
quantidade própria dos músculos e glândulas que, por sua vez é canalizada para fora
produzindo sensações de movimentos.
Definido o modo de operação entre o phi e o mundo externo, Freud segue as
considerações entre phi e psi, o que põe a questão sobre a magnitude do estímulo phi e a
produção dos efeitos psíquicos propriamente ditos. Neste ponto cabe levar em conta outro
dispositivo estrutural que também contribui para o afastamento da quantidade em psi. A
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intensidade do estímulo phi não segue a intensidade dos efeitos psíquicos, pois a quantidade
de excitação phi se expressa em psi por complicação, quanto maior a quantidade phi, maior o
número de trilhas percorridas em psi. (FREUD, 1988h, p.359).
Além dessas relações com a condução sensória phi, o sistema psi também recebe
quantidades do interior do corpo. Essa duplicidade na recepção de estímulos repercute na
divisão de psi em dois grupos de neurônios: os neurônios do manto, ocupados desde a fonte
externa pela percepção, e os neurônios do núcleo ocupados desde as conduções endógenas.
Há uma particularidade importante em relação à estimulação endógena: Freud situa
essa fonte de excitação na raiz de todas as operações que se pode detalhar dentro do aparelho
psíquico. Diferentemente da exógena, que age de modo intermitente e por impactos incidindo
sobre a proteção dos aparelhos de terminações nervosas, o estímulo endógeno age por
somação, sua excitação é gerada continuamente e seus impulsos têm uma condução direta e
facilitada até o núcleo de psi: “Por este lado psi está exposto sem proteção à Q [quantidade],
e nisto reside à mola impulsora do mecanismo psíquico.” (FREUD, 1988h, p.360) Uma vez
que a condução alcance um nível suficiente para ultrapassar a resistência entre o aparelho
psíquico e o interior do corpo ocupando assim os neurônios do núcleo, os estímulos
endógenos se convertem então, periodicamente, em estímulos psíquicos. A somação é o
processo que responde por essa conversão, pois, de certa quantidade em diante, as excitações
endógenas “atuam de maneira contínua como estímulo, e todo incremento de Q é percebido
como incremento do estímulo psi.” (FREUD, 1988h, p.361).
Tais estímulos provenientes dos elementos celulares se fazem conhecer em psi do
núcleo através das grandes necessidades vitais: a fome, a respiração e a sexualidade; nessa
exposição direta, em que o núcleo de psi fica inteiramente a mercê do estímulo, é que reside
a impulsão que sustenta toda atividade psíquica. Temos notícias deste poder como a
vontade, o derivado das pulsões.” (FREUD, 1988h, p.362). Uma conseqüência fundamental
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que se pode extrair dessas considerações é a de que, a origem de toda atividade psíquica será
sempre exterior ao aparelho. Isto devido à ligação indissociável do núcleo de psi com as
fontes de excitação advindas do interior do corpo que se constitui como elemento externo para
o psiquismo, e que se faz valer aí, periodicamente, como impulso e demanda à atividade
psíquica. (TORT, 1966, p.41).
CAPÍTULO 2
A realização alucinatória de desejo e o signo de realidade
(Realitätzeichen)
2.1 Vivências fundamentais: desamparo e satisfação
Com essas últimas pontuações foi possível articular os elementos necessários à
consideração do aparelho do ponto de vista de suas operações e atividades vitais. Podemos
seguir, a partir destes subsídios conceituais, da passagem do plano estrutural para a
compreensão do lugar e da significação das vivências na evolução do aparelho desde seu
estado originário, infantil.
Este estado de desamparo originário frente às excitações dá lugar às duas vivências
fundamentais que organizam e estruturam todo o desenvolvimento do aparelho psíquico: a
vivência de satisfação e a vivência de dor. Ambas retratam as experiências primárias do
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vivente e trazem “conseqüências mais profundas para o desenvolvimento das funções no
indivíduo”. (FREUD, 1988h, p.363)
Vejamos como são amplas as conseqüências. Da vivência de satisfação decorre a
instalação no interior do aparelho dos estados de desejo; já da vivência de dor, dos estados
afetivos. Cada qual dá origem a um tipo de processo primário, a atração desiderativa
primária decorrente da vivência de satisfação, e a defesa primária decorrente da vivência
dolorosa. A satisfação estrutura todo o funcionamento normal do aparelho, porém o
funcionamento patológico não é uma decorrência direta da vivência de dor, a experiência de
dor apenas fornece o modelo para se pensar à patologia.
Com a evolução do aparelho, estes processos primários sofrem uma inibição que
permite o desenvolvimento de processos secundários, também decorrentes dessas duas
vivências fundamentais. São eles: pensamento e juízo pelo lado da vivência de satisfação, e
defesa normal pelo lado da vivência de dor. Contudo, mesmo estabelecida à inibição dos
processos primários, estes podem voltar a ocorrer sob a forma de processos primários
póstumos: os sonhos, derivados da vivência de satisfação e dos estados desiderativos, e a
defesa patológica (repressão), que segue o modelo da vivência de dor e dos estados afetivos.
Com isso, temos então, duas séries distintas:
Vivência de satisfação (estado desiderativo)
Processo primário: atração desiderativa
Processos secundários: pensamento e juízo
Processo primário póstumo: sonho
Vivência de dor (estado afetivo)
Processo primário: defesa
Processo secundário: defesa normal
Processo primário póstumo: defesa patológica (repressão)
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Essa divergência, somada à observação de que a vivência de dor fornece apenas o
modelo para pensar patologia psíquica (repressão) sem ser uma decorrência direta dessa,
chama a atenção para o fato de que a neurose, neste momento, não pode estar correlacionada,
ao menos teoricamente, com os estados de desejo.
A vivência de satisfação é descrita pela seguinte situação: o núcleo de psi, o mais
afastado e protegido contra a violência dos estímulos do mundo externo, quando preenchido
pelas quantidades endógenas derivadas das necessidades vitais, como a fome, por exemplo,
tende a derivar a excitação, assim como todas as operações do aparelho psíquico, através da
descarga motora. De início, segundo a experiência, o vivente não tem meios para realizar de
modo eficiente uma ação no mundo que propiciaria a satisfação de suas necessidades. Sua
ação inicial frente às urgências é unicamente reflexa, como o grito, o choro (expressão das
emoções), inervação vascular, agitação motora etc., que são vias de eliminação. Porém, neste
caso, isso não resulta em alívio, pois o estímulo, desde as fontes endógenas, após atingir certo
limiar, continua agindo de maneira constante e progressiva. No entanto, este ponto de partida
reflexo abre caminho ao que levará à alteração interna adequada ao cancelamento do
estímulo. A descarga adquire uma função secundária fundamental nessa vivência, que é a
comunicação entre o vivente em desamparo e o agente prestativo que é capaz de realizar uma
ação específica, o aprovisionamento do alimento. A inclusão necessária de um outro
prestativo nestes desempenhos vitais traz amplas conseqüências para o desenvolvimento
psíquico, e o conjunto dessas operações constitui o que Freud chama de vivência de
satisfação. (FREUD, 1988h, p.363). Ainda é importante destacar em relação ao desamparo,
como o faz MILLIDONI (1993, p.117), que “é pela via do prazer que esse outro, que vem
“de fora”, intermediará a emergência de “motivos morais” no seio do “biológico” mais
“interior” que se encontra em psi do núcleo.
99
Desse modo, a satisfação inscreve no aparelho o registro de uma série de eventos
psíquicos que se associam entre si, por meio do qual se pode verificar que, além dos fatores
estruturais filogenéticos anteriormente considerados, Freud põe todo acento na importância
das vivências e das aquisições psíquicas na formação do aparelho. Essas são constitutivas, e
colocam em relação os seguintes processos:
a) A eliminação da quantidade devido à experiência de satisfação se traduz em ômega
numa sensação consciente de prazer, ao que se segue o restabelecimento da
resistência entre o núcleo de psi e o interior do corpo, cessando o estímulo.
b) Essa vivência também inscreve no manto de psi uma imagem mnêmica da percepção
do objeto que trouxe a satisfação – o seio.
c) Por último, são registrados nos neurônios do manto de psi mensagens de descargas
ocasionadas em várias partes do organismo decorrentes do movimento de alteração
interna reflexa que segue a ação específica, formando uma imagem mnêmica motora
deste movimento – a sucção.
Freud, a partir desses processos, se ocupa em ponderar o que a formação dessas
facilitações entre essas imagens mnêmicas pode dizer sobre o desenvolvimento de psi. O
sistema psi, como foi descrito, se divide em duas partes: o manto que se altera em decorrência
das percepções, e o núcleo que é alterado pelas excitações internas. Essas alterações
constituem a memória desses eventos, cada qual, sendo representado por suas respectivas
imagens mnêmicas. Essas recordações entre o estado de tensão decorrente das necessidades
vitais e o objeto que trouxe a satisfação (o seio) se associam de tal maneira que revelam uma
lei associativa na base de todas as conexões psi: a lei fundamental da “associação por
simultaneidade”, que se afirma em toda a atividade psi pura. (FREUD, 1988h, p.363).
100
Com a simultaneidade, mais uma vez o que está em questão é como e por que um
processo segue uma direção e não outra; ela representa um terceiro fator na determinação das
facilitações, juntamente com a magnitude e a freqüência do decurso. Essa lei diz
fundamentalmente que duas representações se associam mais facilmente se forem ocupadas
ao mesmo tempo do que em momentos distintos. A introdução da simultaneidade visa dar
conta das conseqüências advindas da vivência de satisfação quanto às relações associativas
entre percepção e representação de objeto e ainda mais quanto às relações entre o manto e o
núcleo de psi. Ela explica o fato de que o decurso dos processos do núcleo estabelece relações
na dependência da simultaneidade associativa com o objeto da percepção. Pois esses
processos de origem pulsional que ocorrem no núcleo, a princípio, não têm relação a nenhum
objeto específico, não têm uma direção predeterminada. A formação dos circuitos irá
depender da simultaneidade associativa entre as ocorrências do núcleo e do manto através da
percepção do objeto. O que implica um determinismo na base das reproduções: assim a
recordação de uma dessas ocorrências sempre reanimará simultaneamente a memória das
outras, ou seja, a cena que levou a satisfação é reproduzida em sua totalidade. Vejamos como
isto se aplica à vivência de satisfação.
Assim, por meio da vivência de satisfação cria-se uma facilitação entre as
duas imagens mnêmicas e o neurônios do núcleo que são investidos no
estado de urgência {Drang}. Com a descarga de satisfação, a Qn é, sem
dúvida, retirada das imagens recordativas. Com o reaparecimento do estado
de urgência ou de desejo, a ocupação transpassa sobre as duas recordações e
as anima. Talvez a imagem recordativa do objeto seja a primeira a ser
afetada pela reanimação do desejo. (FREUD, 1988h, p.364).
Da reanimação da recordação do objeto segue-se a recordação dos movimentos
reflexos relacionados à satisfação (a sucção): “Não tenho dúvida de que essa animação de
desejo produza inicialmente o mesmo efeito que a percepção, a saber, uma alucinação. Se em
conseqüência disso a ação reflexa for iniciada, não há como faltar a desilusão.” (FREUD,
1988h, p.364).
101
A conseqüência mais ampla deixada por essa vivência infantil pode ser descrita,
segundo MILLIDONI (1993, p.118), pela
constituição desse aparelho em um nível que já se pode chamar de psíquico
[...] o dito aparelho começará a funcionar também em um plano
representacional, já que uma constelação de representações da vivência de
satisfação fixar-se-á em psi sob a forma de recordações (“imagens
mnêmicas”).
O que permite, a partir daí, a emergência de um novo estado em psi, o estado
desiderativo, cujos processos se diferenciam da estrita ordem da satisfação das necessidades,
muito embora, as pressuponha como ponto de partida e apoio. Os estados desiderativos se
destacam dessas por se tratar, nesses processos, de repetir o circuito arcaico do prazer e da
satisfação fora das condições biológicas das necessidades.
Já as conseqüências mais pontuais, como o fato de que a animação de desejo produza
o mesmo efeito que a percepção, e, ainda em decorrência disto, haja o desencadeamento de
uma ação motora produzindo uma desilusão, são tópicos que precisam aguardar outros
elementos conceituais para serem devidamente esclarecidos.
A vivência dolorosa, neste texto de 1895, exibe um mecanismo, uma fonte e uma
conseqüência diferentes da vivência de satisfação, mas, por envolver um processo psi,
também implica na formação de facilitações, em que a lei fundamental da associação por
simultaneidade também faz valer sua influência no processo reprodutivo. A vivência da dor (a
princípio, física) decorre de uma exposição anormal de psi a intensas quantidades exógenas
que rompem os dispositivos de proteção periférica sensorial, produzindo em psi:
a) Um aumento de excitação sentido como desprazer.
b) Uma inclinação à descarga motora.
102
c) Uma facilitação entre essa inclinação e a imagem mnêmica do objeto hostil.
Examinemos a seguinte situação: durante a vivência dolorosa se constitui então, uma
excitação desprazerosa, uma facilitação em direção a imagem mnêmica do objeto hostil e uma
tendência à eliminação. Num momento posterior a vivência, com a ocorrência de uma
percepção ou recordação que remeta, por algum elo associativo, às representações da cena
dolorosa, o decurso da excitação liberada deixa-se guiar pelas trilhas facilitadas pela vivência
até ocupar a imagem recordativa do objeto hostil, resultando na reanimação da cena dolorosa.
Essa reprodução mnêmica que acompanha a produção de desprazer na ausência do objeto
hostil, Freud chama de afeto. A diferença do afeto para com a vivência genuína é que o
desprazer com que o aparelho é dominado durante o estado afetivo é liberado desde o interior
do corpo. Para tanto, é preciso supor a existência de neurônios secretores (neurônios chave),
que quando excitados, originam do interior do corpo algo que tem ação eficiente como
estímulo sobre as conduções endógenas até psi” (FREUD, 1988h, p.365). Como foi descrito
sobre a relação quantitativa de phi com os músculos e glândulas, a liberação pode desprender
uma excitação superior a que deu origem à vivência. Nisto, Freud faz uma importante
aproximação entre a liberação afetiva e a liberação sexual: ambas compartilham dessa
superioridade do efeito liberado por reproduções psíquicas temporalmente distantes da
vivência original.
É importante observar que todo evento que envolve a atividade psi, como foi
demonstrado pelas duas vivências fundamentais, conduz sempre a uma reprodução. Isto se
explica pelo pressuposto de que as facilitações abertas pelas vivências se constituem como
alterações permanentes e indestrutíveis em psi, compondo uma rede de processos dinâmicos
associativos entre o aparelho, o corpo e o mundo, exercendo grande influência para o decurso
dos processos. O que permite afirmar que: a teoria freudiana da memória, peça fundamental
para a metapsicologia, sustenta neste texto, de forma mais ou menos implícita, a tese de que
103
os processos psi deixados a si mesmos tendem a se repetir indefinidamente, exigindo do
aparelho a criação de dispositivos que inibam a força dessas reproduções.
2.2 Conseqüências psíquicas: afeto, desejo e vida representacional
O semelhante entre as duas vivências é que ambas deixam o que se pode chamar de
restos ativos no interior do sistema psi, que são os estados de afeto e de desejo.
Os dois estados são da máxima significação para o decurso em psi, pois
deixam como seqüelas motivos compulsivos. Do estado de desejo segue
diretamente uma atração pelo objeto de desejo, ou melhor, por sua imagem
mnêmica; da vivência de dor resulta uma repulsa, uma aversão, a manter
ocupada a imagem mnêmica hostil. São essas a atração desiderativa
primária e a defesa primária. (FREUD, 1988h, p.367).
Estes restos são ativos na medida em que são capazes por si mesmos de mobilizarem
grandes quantidades desde o interior do aparelho sem que haja uma referência direta à
presença dos objetos na percepção. Pois, no estado de desejo a compulsão exercida pela
atração desiderativa está voltada primariamente para imagem recordativa do objeto, e não
para sua presença efetiva na percepção. O mesmo se passa com o estado afetivo em que, a
defesa primária é a repulsa em ocupar a imagem recordativa do objeto hostil. Deste modo, a
animação desses processos mnêmicos dá lugar no aparelho psíquico à reprodução
alucinatória da vivência de satisfação, e à reprodução do afeto no estado que decorre da
vivência traumática. Estes fenômenos podem ser tomados como índices seguros da existência
e da eficácia da memória psíquica na teoria do aparelho, que é definida por Freud como “o
poder de uma vivência de seguir produzindo efeitos continuamente” (FREUD, 1988h, p.345).
104
A animação destes processos reprodutivos que, no limite, levam até a alucinação passa
a representar a presença da atividade de processos primários em psi. Processos que
mobilizam intensas somas de excitação em livre curso, cuja principal característica resulta na
impossibilidade do aparelho em diferenciar percepção e recordação (Wahrnehmung und
Vorstellung), que é o que indica o fenômeno alucinatório e a reprodução afetiva. Como já foi
demonstrado anteriormente, essa diferenciação está parcialmente comprometida devido a um
problema colocado pela localização tópica dos sistemas (phi - psi - ômega), pois o sistema
ômega, o mais afastado da periferia sensorial, responsável pela consciência qualitativa e pelas
sensações conscientes de prazer e desprazer, recebe o curso da quantidade de psi e, por essa
via quantitativa, não tem relações diretas com a percepção. Portanto, não tem também como
diferenciar a fonte da quantidade que lhe chega: se advém do sistema phi ou se decorre do
próprio sistema psi, o que explica a origem estrutural dessa indistinção primária entre
percepção e recordação.
Também é importante lembrar que a intensidade das sensações de prazer e desprazer
torna o sistema da percepção temporariamente inoperante. Assim, originariamente, o aparelho
psíquico encontra-se submetido de maneira compulsória à força da ação psíquica da
recordação. É somente a posteriori, e por aprendizagem, que a percepção adquire uma
relativa autonomia e importância frente à memória, isto na medida em que as necessidades da
vida impõem à observância das condições externas ao aparelho psíquico. (GABBI JR., 2003,
p.65).
Tudo indica que o critério para acertar essa diferença não é dado a priori, e também
tem de vir de outra fonte. Sua importância para a manutenção da atividade psíquica se
encontra no fato de que, com essa indistinção primária, o aparelho sofre repetidas vezes dano
e desamparo devido ao fracasso em obter a satisfação efetiva de suas necessidades vitais pela
via alucinatória. Por outro lado, também existe a necessidade de um signo advindo de algum
105
lugar que possa evitar o desencadeamento da defesa primária excessiva frente à ocupação da
imagem recordativa do objeto hostil. (FREUD, 1988h, p.370).
Os repetidos fracassos em se obter satisfação efetiva pela via alucinatória incitam, no
interior de psi, a uma organização que visa dar conta de superar essa via reflexa, evitando o
desprazer e os gastos excessivos com a defesa primária. Essa organização que tem por base a
totalidade das facilitações entre os neurônios desse sistema, Freud denomina eu. Os neurônios
que compõe estes processos do eu organizados no interior de psi se encontram
permanentemente ocupados, isto devido à relação direta do núcleo com o interior do corpo e a
recepção constante das quantidades endógenas.
A função dessa organização, que não deve ser confundida com a consciência, passa
ser a de inibir o desenvolvimento de processos associativos primários através de ocupações
laterais. O eu, nessas ocupações, age desviando o decurso excitatório do caminho que levaria
à animação alucinatória de desejo ou à defesa primária. Estes desvios se explicam pela
simultaneidade de ocupações: uma ocupação simultânea pelo eu entre duas representações
adjacentes à facilitação primária desviam o decurso do processo, e a facilitação é percorrida
por uma fração menor de excitação, o que produz uma rememoração inibida, ou seja, o
processo alucinatório é interrompido. A excitação, que sem a inibição estaria em estado livre,
passa a ser ligada pela ação do eu, e essa ligação passa a ser uma condição necessária, porém
não suficiente para criação de um signo que possa indicar uma diferença entre percepção e
recordação.
106
2.3 O signo de realidade
A hipótese de Freud é que este signo pode ser fornecido pelo sistema ômega, e ele o
chama de signo de realidade (Realitätszeichen). A ocupação dos neurônios desse sistema
produz fundamentalmente sensações, e essa nova produção – o signo de realidade – não foge
a regra, também deve ser revestido de alguma qualidade. É preciso, então, saber como e a
partir de que estes são produzidos. A percepção guarda uma relação direta e indireta com o
sistema ômega, direta através da propagação do período, indireta pelo curso da quantidade. A
excitação qualitativa em ômega pelos períodos da percepção gera também uma eliminação
que chega até psi como uma mensagem. Essa mensagem de eliminação em ômega, segundo
Freud, constitui um signo qualitativo ou de realidade para o aparelho, pois indica por
sensações a presença efetiva de objetos na percepção. Assim, a descarga de excitação por esse
sistema seria um meio de acesso aos objetos, um signo da existência real e objetiva do mundo
externo pela mediação das sensações. No entanto, na seqüência Freud reconhece um problema
para a eficácia deste signo, que é o seguinte:
Se o objeto desiderativo for ocupado com abundância, de modo a ser
animado alucinatoriamente, também resulta o mesmo signo de eliminação
ou de realidade que na percepção externa. O critério falha neste caso.
(FREUD, 1988h, p.371).
Essa afirmação de Freud reúne os principais elementos do problema em questão e
expõe de maneira inequívoca seu núcleo, através do reconhecimento de uma falha na
mediação do aparelho com o mundo; mais especificamente, com uma parte do mundo, aquela
que interessa à resolução de suas urgências vitais: o objeto desiderativo. Este objeto, após a
vivência de satisfação, se constituiu para o aparelho também como uma representação, e se
essa representação, diante do estado de desejo, for ocupada com abundância, como é
107
característico do curso da energia livre no processo primário, dá lugar a uma animação
alucinatória. O problema que Freud está apresentando é que essa animação alucinatória
também resulta no mesmo signo de eliminação ou de realidade que aqueles emitidos para a
percepção externa, ou seja, a alucinação do objeto de desejo também acompanha as mesmas
sensações geradas quando da presença efetiva do objeto para percepção externa. Logo, a
mediação pelas sensações deixa de ser um meio de atestar a existência real de objetos
externos, para se tornar justamente o oposto, o meio pelo qual a diferença entre recordação e
percepção se apaga. O aparelho psíquico, submetido às urgências da vida e à intensa excitação
de suas próprias recordações relacionadas à experiência de satisfação, toma–as
inevitavelmente como se tratasse de uma percepção. A conseqüência desse erro é que os
movimentos de sucção são realizados na ausência do objeto, (o seio, por exemplo) o que
aumenta o desprazer e, como Freud diz, aí não há como evitar a desilusão.
Para entender essa falha na base dos processos psíquicos é preciso conceber que a
eliminação ômega, cuja mensagem constitui o signo de realidade, decorre de uma inscrição
em psi de uma descarga motora que passou por ômega e foi eliminada gerando uma sensação
de movimento. O signo de realidade é então registrado em psi como uma representação da
sensação de movimento, o que nos leva a seguinte questão: que realidade é essa que o signo
indica justamente quando falha em distinguir recordação e percepção? Freud não faz essa
pergunta neste momento, mas há indicações de que a questão começa a se impor, e parece não
ser nada abusivo formular a seguinte hipótese: se, sob a vigência dos processos primários, é
produzido o mesmo signo de eliminação que é produzido para a percepção, e se, sua função é
indicar uma realidade (Realität), este signo pode ser pensado, quando emitido diante da
animação alucinatória, como signo de realidade psíquica (Psychische Realität). Trata-se de
uma mensagem qualitativa, índice da existência e da eficácia da atividade psíquica do desejo
no momento em que essa incide sob os circuitos representacionais que compõem a memória
108
inconsciente. Memória cujos processos dinâmicos associativos são o fundamento de toda essa
reprodução e que parece ter a consistência de uma realidade para o aparelho.
50
A seguir, Freud finalmente encontra uma solução para o estabelecimento de um
critério eficiente para a distinção em jogo, reconhecendo uma condição para que o signo de
realidade seja emitido somente junto às sensações produzidas pela presença de objetos na
percepção. A condição é que a ocupação das imagens recordativas dos objetos do desejo seja
inibida pelo eu; isso no decorrer de um processo de aprendizagem diante do desprazer,
portanto, um critério adquirido. Os processos do eu, por meio das ocupações laterais, seriam
responsáveis por impedir que o curso psíquico, sob a intensa animação do desejo, siga
livremente para a representação do objeto e resulte com isso em um signo qualitativo. Deste
modo, é a inibição do eu que fornece as condições para que o critério funcione e haja uma via
de distinção entre percepção e recordação. A partir disto, “o signo de qualidade se produz
desde fora por qualquer intensidade de ocupação, e desde psi somente com grandes
intensidades”. (FREUD, 1988h, p.371).
Com a animação do desejo sob inibição, a intensidade das quantidades advindas da
percepção da realidade externa é aumentada, mantendo a atenção psíquica voltada para as
condições externas ao aparelho mediante a ocupação dos signos de qualidade. “Portanto: com
a inibição por um eu ocupado, os signos de descarga ômega tornam-se universalmente signos
de realidade que psi aprende a valorizar biologicamente.” (FREUD, 1988h, p.372).
50
Essa hipótese estaria plenamente de acordo com todo o desenvolvimento metapsicológico realizado
até o momento; porém, é preciso lembrar que este texto, Projeto de uma psicologia (1895), foi
escrito, entre outras coisas, para justificar a teoria da sedução. Portanto, apesar das evidências da
organização e eficácia dessa realidade psíquica, neste trabalho em que não há referência à fantasia,
Freud precisa dar predominância à realidade externa objetiva do atentado sexual como causa dos
sintomas. Esse é o argumento que sustenta sua hipótese etiológica de que a histeria é adquirida e
não uma degeneração hereditária. O paradoxal e talvez o mais interessante destes argumentos é
justamente que nessas reproduções alucinatórias primárias, que formam a base do que mais adiante
poderá se dizer sobre as fantasias, não é a realidade externa que está em ação e sim os restos ativos
deixados pelas vivências.
109
A instituição dessa inibição psíquica da realização alucinatória do desejo por parte do
eu, neste contexto, funciona mais como uma defesa primária contra o desprazer. Desprazer e
desilusão se constituem como grandes operadores destes desenvolvimentos em psi; mais
enfaticamente, Freud considera mesmo que o desprazer “segue sendo o único meio de
educação.” (FREUD, 1988h, p.419). A inibição, resultante dessa aprendizagem que ocorre
durante os estados de desejo (expectativa), possibilita um retardo da descarga reflexa
automática que consiste em suportar o desprazer até que surja um signo de realidade que
sinalize a presença efetiva do objeto amado na percepção, momento o qual, ocorrendo à
eliminação motora, a satisfação é coroada de êxito.
No momento em que a facilitação primária é percorrida por uma fração menor de
excitação, a inibição do decurso produz, não mais uma alucinação e sim uma rememoração,
será essa que permitirá o desenvolvimento do juízo enquanto processo desiderativo que
possibilita comparações entre a percepção atual e as representações do objeto. Essa distinção
entre alucinação e percepção é uma aquisição fundamental do funcionamento psíquico, ao que
se segue à possibilidade do desenvolvimento de uma série de funções superiores no interior
do aparelho.
Este é o sentido e o lugar da função desempenhada pelo signo de realidade nas origens
do aparelho: ele participa, juntamente com os desempenhos do eu, da substituição dos
processos psíquicos primários pelos processos psíquicos secundários, o que, em termos
econômicos, equivale à passagem do princípio de inércia para a tendência à constância. Os
processos secundários são todas as atividades psíquicas advindas sob a condição dessa
inibição psíquica do processo primário alucinatório. O reconhecer, o julgar, o recordar, o
pensamento, a fala, são processos que começam a se organizar em função da necessidade vital
de se observar as condições externas ao psiquismo. Aí o recurso ao signo de realidade serve, a
cada uma dessas operações, como um elemento mediador entre o aparelho e o mundo, um
110
mecanismo diferenciador e organizador da relação entre interno e externo. (GABBI JR,
2003, p.69).
CAPÍTULO 3
O sentido da crença na teoria freudiana do juízo
3.1 Pensamento e desejo
Este momento representa uma elaboração mais refinada da relação do aparelho com o
mundo no que concerne à busca de satisfação e demonstra a progressiva especialização do
aparelho psíquico em seu extremo perceptual. Dada à eficácia do critério que, na presença do
estado desiderativo, permite reconhecer a animação da recordação do objeto desejado como
não real, a seqüência do processo segue na direção de um trabalho judicativo. A condição
alucinatória originária é paulatinamente substituída pela atividade do pensamento, e os
signos de realidade passam a ser reaproveitados no interior dos processos do pensar. Mais
ainda, Freud chega a dizer que o uso correto destes signos de realidade é a própria condição
destes processos. (FREUD, 1988h, p.372)
Devido à complexidade e abrangência da teoria freudiana do pensamento e do juízo,
isolaremos apenas um de seus aspectos, e remetemos o leitor, para uma leitura mais detalhada
dessas operações, ao exame realizado por PRIBRAM & GILL (1976) e também ao trabalho
crítico de GABBI JR. (1994; 2003) e de MILIDONI (1993). Freud parte da seguinte
distinção: existem dois tipos básicos de pensamento, o pensamento judicativo e o reprodutivo.
111
O primeiro deles, o judicativo, “relaciona-se com o fato de que algum pensamento está
principalmente dedicado à exploração de um objeto de percepção externamente derivado,
enquanto o outro pensamento [reprodutivo] se dedica primordialmente à reprodução
(recordação) de eventos passados.” (PRIBRAM & GILL, 1976, p.109). Ambos fazem parte
de uma categoria mais ampla chamada de pensamento prático, definido como sendo aqueles
pensamentos que são dirigidos por um propósito pragmático, a realização de desejo, sendo
guiados pela memória arcaica da satisfação. Porém, é preciso notar que, diferente do processo
alucinatório, o pensar, um processo secundário, se dá por uma alteração da seqüência
associativa primária, ou seja, “é uma repetição do curso psi originário em um nível inferior,
com quantidades menores.” (FREUD, 1988h, p.380).
O pensamento, a princípio, pode ser equiparado à ação, “o pensamento é ação
experimental” (PRIBRAM & GILL, 1976, p.106), é somente mais tarde, com a aquisição da
linguagem que pensamento e movimento muscular se separam, podendo o pensar antecipar-se
à ação. Examinemos a seguinte situação: no estado desiderativo (de expectativa),
simultaneamente à evocação da imagem recordativa do objeto desejado, está presente uma
percepção que concorda apenas em parte com representação evocada. Essa discordância é o
elemento chave para inauguração do processo, ela “dá o impulso ao trabalho de pensar, que
por sua vez termina com a coincidência.” (FREUD, 1988h, p.373). O trabalho cumpre a meta
então de reencontrar “essa identidade que se estabeleceu quando teve lugar a primeira
gratificação bem sucedida.” (PRIBRAM & GILL, 1976, p.98).
O processo se inicia com um ato judicativo, sua tarefa é decompor os complexos
mnêmicos e perceptivos, o que permite apresentá-los como uma parte constante (coisa) e
outra variável (seu predicado – atividade ou atributo). Essa decomposição pelo juízo recebe a
seguinte fórmula:
112
Ocupação de desejo = neurônio a (coisa) + neurônio b (predicado).
Ocupação perceptiva = neurônio a (coisa )+ neurônio c (predicado).
“A experiência biológica ensinará que é inseguro iniciar a eliminação enquanto os
signos de realidade não concordarem com a totalidade do complexo.” (FREUD, 1988h,
p.373). Como é possível notar, a presença ou ausência desses signos não deixa inalterado o
funcionamento psíquico. Sua utilização adequada, que pressupõe a ação inibitória do eu,
regula o modo de atividade dos três sistemas, controla a ação e as descargas motoras,
protegendo o aparelho contra os danos provocados pela alucinação. Nessas circunstâncias, a
produção dos signos de realidade ocupa o lugar de um posto avançado em conexão com a
periferia perceptiva, desempenhando aí a função de um elemento mediador entre o interior do
aparelho e o mundo, entre a busca desiderativa e os objetos percebidos.
A etapa subseqüente a essa decomposição judicativa é realizada pelo julgar que
resulta da comparação entre os complexos perceptivos e abre o caminho para ação do
pensamento reprodutivo fornecendo os complexos decompostos e julgados. O pensar
reprodutivo visa, em ultima instância, assim como todo o pensamento prático, reproduzir, por
outras vias que não a alucinatória, a vivência de satisfação. Em outros termos, encontrar um
caminho pela ação experimental do pensamento que vá da similaridade à identidade.
Este acesso até o predicado faltante se dá por intermédio do pensamento em sua forma
primária, como ação motora, exploratória, que, guiada pela recordação da experiência
primária, alcança um outro perfil da coisa, o atributo desejado. “O trabalho do eu segue as
ligações desse neurônio c e faz surgir [reproduz], por meio da corrente de Qn’ ao longo das
ligações, novas ocupações até encontrar um acesso para o neurônio b faltante.” (FREUD,
1988h, p.374).
113
Ocupação de desejo = neurônio a + neurônio b.
Ocupação perceptiva = neurônio a + neurônio c + trabalho do eu = neurônio b faltante.
Nessa ação judicativa que consiste na divisão do objeto de percepção em uma parte
constante, (das Ding), e outra variável, seu predicado (Prädikat), é a parte variável do
complexo que pode ser compreendida. A constante “a – a” cumpre aí uma função referencial,
não é passível de julgamento: “o que chamamos de coisas são restos que se subtraem à
apreciação judicativa.” (FREUD, 1988h, p.379). Nesse sentido, Freud chama a atenção para
uma semelhança que “de fato existe entre o núcleo do eu e o elemento constante da
percepção, e as ocupações mutáveis dentro do manto e o elemento inconstante [da
percepção]” (FREUD, 1988h, p.373). A semelhança está em que, tanto o núcleo do eu quanto
o campo da percepção, apresenta um resto permanente e impossível de predicar. Já o
elemento variável, por se encontrar dentro do domínio do que é passível de comparação, é
predicável e comum tanto as ocupações do manto quanto ao que se apresenta a percepção.
Feito os devidos esclarecimentos, é importante notar que Freud concebe essa primeira
forma de juízo associativo, como uma operação pré-verbal, pois, como é possível sustentar, na
sua forma mais elementar, anterior à aquisição da linguagem, o pensar se equipara à ação
motora, e o julgar, a um ato sensitivo. Vejamos o exemplo dado por Freud: Seja a imagem
recordativa desiderativa a imagem do busto materno e seu mamilo na visão frontal, e a
primeira percepção ocorrida na recorrência do estado de desejo, uma visão lateral deste objeto
sem o mamilo.
É preciso encontrar um caminho pela ação experimental do pensamento que vá da
similaridade a identidade. Este acesso até o predicado faltante (a visão frontal do seio com o
mamilo) se dá por intermédio de uma ação motora, exploratória, que alcança um outro perfil
da coisa, o atributo desejado.
114
Na recordação da criança, acha-se uma experiência ocorrida por acaso na
amamentação, na qual um movimento determinado da cabeça transformou a imagem frontal
em lateral. Essa imagem lateral vista conduz agora a um movimento de cabeça que – uma
tentativa mostra –, tem de ser executado ao contrario, e chega-se à percepção da visão frontal.
(Freud, 1988h, p.374) Ou seja, entre a imagem desejada e a percepção discordante se intercala
uma imagem motora que conduz a um movimento capaz de encontrar a identidade procurada.
O processo de comparação, de checagem dos atributos se depara com dois perfis da
mesma coisa representados pelo neurônio b e c. Cumpre decidir, dentre eles, por aquele em
que há maior coincidência com a imagem recordativa do desejo; o critério é prático –
encontrar a satisfação. Neste sentido a procura por essa identidade, que nunca é absoluta, pois
sempre se pode acrescentar ou retirar um atributo do complexo, visa um exame preliminar de
certo estado de coisas para que a ação subseqüente seja eficaz. O que não ocorre, por
exemplo, com a alucinação, onde a ação é fracassada: o desamparado suga o vazio.
“Então se alcança uma identidade e um direito de eliminação se surgir ainda o signo
de realidade desde o neurônio b”. (FREUD, 1988h, p.375). Dentre os atributos que
coincidem com a memória do objeto desejado (neste caso o seio) é preciso – antes de liberar a
ação e a descarga motora – esperar pelas indicações dos signos de realidade que cumprem
verificar, por meio das sensações de movimento, a existência efetiva desse predicado para
percepção. Aí está mais uma vez a contribuição do signo de realidade para com a meta de
todo processo: sua presença decide a eficácia do conjunto das operações.
115
3.2 Crença e juízo de realidade
Ao fim dessa primeira etapa de análise e classificação dos processos judicativos que
corresponde às seções de 15 a 18 do texto do “Projeto...” (1895), Freud faz a seguinte
afirmação:
O pensar judicativo trabalha com antecipação em relação ao pensar
reprodutor, pois lhe oferece facilitações prontas para a migração associativa
posterior. Se, após a conclusão do ato de pensar, chegar o signo de
realidade para a percepção, obtém-se o juízo de realidade, a crença,
alcançando-se a meta de todo o trabalho. (FREUD, 1988h, p.378, grifo
nosso).
A totalidade do trabalho repercute desse modo num salto qualitativo da mediação do
aparelho psíquico com o mundo externo, num ajustamento de suas funções. O interessante é
que Freud afirma que esse juízo de realidade (Realitätsurteil) obtido pela conclusão das
operações judicativas, estreitamente relacionado com a verificação da existência de objetos
externos, nada mais é do que uma crença. Freud não dá maiores esclarecimentos a respeito,
portanto, só nos resta inserir essa afirmação no conjunto conceitual sintetizado nessa pesquisa,
assim como na explicitação de alguns pressupostos aí subentendidos, e extrair disso, quiçá,
uma boa hipótese de trabalho.
Diante disso, a hipótese auxiliar que levantamos a respeito do sentido que se pode
atribuir à crença na teoria freudiana do juízo, visa examinar presença de alguns pressupostos
filosóficos na fundamentação dessa teoria. De acordo com GABBI JR. (2003, p.9), Freud, um
naturalista assumido, compartilha uma série de teses em comum com o empirismo britânico,
em particular, com a filosofia de John Stuart Mill. Fato esse amplamente demonstrado na
116
primeira parte desse trabalho dedicado a materialidade do conceito de representação.
51
Dentre
tais teses é possível situar a problemática em relação à mediação do aparelho com o mundo,
ou seja, a crença. De acordo com essa tradição de pensamento “o único ponto firme e
acessível do qual se pode partir são as sensações: elas são os únicos elementos que
conhecemos. Todo o resto resulta de inferências. Não temos conhecimento direto do mundo,
nem da mente.” (GABBI JR. 1997, p.180). Disto segue que,
os objetos externos, mais uma tese decorrente da adoção do programa para
psicologia empírica de Mill,só podem ser objetos de crença; pois uma vez
que não são entendidos como substâncias, mas como inferências
constituídas segundo a associação de complexos perceptivos, é impossível
estabelecer de forma absoluta sua existência. (GABBI JR., 2003 p.71).
Segundo nosso desenvolvimento anterior, parece bastante razoável a hipótese de que
Freud partilha de alguns dos pressupostos do empirismo, pelo menos quanto à questão da
crença: “Talvez parte da tentativa de justificar a presença de signos de realidade também seja
na verdade uma tentativa de mostrar como as cadeias associativas são construídas pelo fluxo
de sensações.” (GABBI JR., 2003, p.68). O ponto comum onde essas teses se encontram
parece dizer a respeito ao lugar ocupado pelas sensações na construção dos processos. Isto a
nosso ver se dá em dois planos:
1. A construção da relação com o mundo se dá pelo intermédio das sensações e das
associações constituídas pela experiência.
2. A afirmação da existência de objetos externos é inferida mediante a utilização das
sensações no interior de processos judicativos.
No entanto, é preciso deixar claro que, no caso de Freud, com o juízo de realidade
obtido pela totalidade do processo do pensar, se trata de uma modalidade de crença bastante
51
(Cf. Parte I, cap. 3).
117
específica. A crença em Freud situa-se no interior de um quadro conceitual próprio, em que a
existência dos objetos para a percepção pode ser afirmada ou negada pelo remanejamento das
sensações ou, em termos freudianos, dos signos de realidade, no interior de uma busca de
satisfação. Para isso lança mão de uma série de dispositivos e desempenhos e os utiliza para
averiguar um determinado estado de coisas levando em consideração as condições externas ao
aparelho. Um processo ativo, dirigido pelo desejo, movido pela pulsão.
Ainda assim, salvo a especificidade do projeto freudiano, em apoio à hipótese de uma
aproximação com os pressupostos do empirismo, é importante considerar dois
posicionamentos de Freud a respeito. Primeiro, a afirmação fundamental de que a condição de
possibilidade de todo o juízo está na “preexistência de experiências corporais, sensações e
imagens de movimento próprias. Na medida em que faltem, a parte variável do complexo
perceptivo permanecerá incompreendida.” (FREUD, 1988h, p.378). Segundo posicionamento
a considerar: quanto à possibilidade de acesso a esse domínio Freud é bastante claro ao dizer
que aquilo que chamamos de coisas são “restos que se subtraem à apreciação judicativa.”
(FREUD, 1988h, p.379). Na medida em que afirma a similaridade existente entre o elemento
mnêmico constante (o núcleo do eu) e o elemento constante da percepção, ambos seriam
restos não passíveis de predicação. No entanto, esses restos subtraídos não constituem um
domínio extrínseco às sensações, mas sim grupos de possibilidades permanentes de sensação.
(Cf. Parte I, seção 3.1 e 3.2).
Resta interrogar, dentro do quadro conceitual freudiano anteriormente desenvolvido,
que relação há entre esses restos subtraídos ao julgamento e o fato psicológico denominado
crença. A sentença em que a questão se coloca diz: “Se, após a conclusão do ato de pensar,
chegar o signo de realidade para a percepção, obtém-se o juízo de realidade, a crença,
alcançando-se a meta de todo o trabalho.”
(FREUD, 1988h, p.378).
118
Apesar de Freud não dar maiores esclarecimentos, a hipótese é de que a reposta se
encontra no próprio processo judicativo anteriormente descrito, qual seja: diante do estado de
desejo se apresenta ao juízo um complexo recordativo desejado e um complexo percebido.
Diante de uma discordância inicial, por meio da ação experimental do pensamento encontra-
se um outro perfil da mesma coisa que conduz ao predicado desejado, no caso, a transição da
visão lateral para a visão frontal do seio com o mamilo, é preciso ainda antes de deflagrar a
ação, verificar por meio das sensações a presença efetiva do objeto.
Caso diante do objeto percebido se vivencie tais e tais sensações, as vivências
anteriores indicaram que, invariavelmente, após tais sensações, a ação pode ser iniciada que a
conseqüência será a satisfação da necessidade e obtenção de prazer. Portanto, esses signos de
realidade quando emitidos indicam, dão um sinal, da possibilidade efetiva de satisfação. São
sensações reais que são requeridas para mostrar que as possibilidades de se obter as sensações
desejadas estão realmente presentes.
Essa é a explicação que se pode dar para crença na teoria freudiana do juízo, que em
últimos termos se trata da crença na causalidade, pois Freud mostra que diante de um estado
de expectativa a presença de uma dada sensação antecedente leva a crer que se seguirá tal
conseqüência esperada. A criança diante das sensações que lhe proporcionam o seio crê na
possibilidade da satisfação desejada. O fundamento da crença repousa na lei fundamental da
associação por simultaneidade. As sensações, assim como as representações, se sucedem
umas as outras em certa ordem fixada pela própria repetição da experiência de satisfação, e
que resultam em certas combinações constantes que a criança aprende a reconhecer.
Portanto, como conclui Freud: se, após a conclusão do pensar, a princípio, um ato
sensitivo, chegar o signo de realidade para a percepção, obtém-se o juízo de realidade, a
crença. A crença de que, de acordo com as experiências anteriores, a presença deste signo
antecipa as conseqüências esperadas. Esta ordem não significa que de um antecedente seguirá
119
imediatamente tal conseqüente, mas que, dada tal sensação está presente à possibilidade de
um grupo de outras associadas.
De acordo com a experiência biológica (evitar o desprazer), não se deve iniciar uma
ação até que os signos de realidade tenham concordado com a totalidade do complexo, que
implicaria na plena identidade entre recordação e percepção do objeto, porém essa identidade
nunca é alcançada de forma absoluta. A crença se constitui aí como uma expectativa em
relação à possibilidade de reencontro do objeto gerada pela memória arcaica da satisfação. Só
há crença onde há desejo; a crença é uma decorrência interna do próprio estado desiderativo,
sem o qual o trabalho do juízo nunca poderia ser concluído e, consequentemente, o aparelho
psíquico nunca chegaria a uma ação específica no mundo, estaria fadado a retornar ao
processo alucinatório. A crença cumpre a função de manejar essa diferença irredutível entre
os complexos, decidindo a ação motriz adequada em razão do grau de proximidade entre
representação desejada e objeto percebido, levando-se em conta a presença dos signos de
realidade para percepção que indicam a existência de possibilidades efetivas de satisfação.
Com a inibição do processo alucinatório permitindo o desenvolvimento dos processos
do pensar, a conseqüência que se pode extrair do sentido da crença na teoria do juízo é que:
trata-se da consolidação de dispositivos que tornam o psiquismo apto a um determinado modo
de ação em relação ao desejo e à realidade. E o desdobramento mais significativo para o
futuro da metapsicologia é que a própria ação, enquanto meio de reprodução do prazer, a
partir de então, irá sempre requerer uma crença, uma aposta em relação à realidade para agir.
(DELOUYA, 2004, p.333).
120
CAPÍTULO 4
Traços de realidade e realidade do pensar
4.1 Os signos de descarga lingüística
Outro problema relacionado, de suma importância para análise da constituição e da
natureza da realidade no interior da teoria do aparelho psíquico, é posto pelas diferenças entre
os traços de realidade e a memória do pensar. O pensamento, de acordo com os
desenvolvimentos anteriores, passa a representar tudo aquilo que, enquanto trabalho, se
interpõe entre o surgimento do desejo e sua realização. Trata-se de um processo psi que, por
meio do controle e direcionamento inibitório, provoca uma alteração da compulsão a
associar, em que o curso psi originário passa a ser percorrido por quantidades menores, o que
permite uma atenção e um juízo sobre a realidade. Porém, as facilitações são concebidas por
Freud como traços de realidade ( Spuren der Realität ) deixados pelas vivências de dor e
satisfação, e enquanto tais, não podem ser alterados pelo pensamento. Para tanto, é preciso
supor que o pensar também constitua traços, isto permitiria representar uma memória para os
pensamentos, separando-os dos traços de realidade. (FREUD, 1988h, p.380)
Que o pensar também deixe atrás de si facilitações como traços é algo que, segundo
Freud, a observação psicológica torna evidente, como na aprendizagem: um determinado
processo de pensamento, quando percorrido inúmeras vezes, ou apenas uma única muito
intensamente, nas futuras recorrências oferece menos resistências e se realiza com maior
facilidade.
Do ponto de vista metapsicológico, estrutural, a realidade externa se faz representar no
manto de psi por traços formados por meio de percepções, ou seja, ocupações em psi a partir
121
de phi; são alterações permanentes em psi que permitem que os processos possam ser
reproduzidos. As facilitações somente se constituem enquanto traços de realidade em função
da freqüência e da magnitude das impressões.
A questão que começa a ser formulada é: por quais dispositivos as facilitações
formadas pelas influências experimentadas em psi desde os processos de pensamento
(desejo), se tornariam psiquicamente aproveitáveis, ou seja, capazes de despertarem a atenção
consciente, assim como os processos de percepção o fazem? (FREUD, 1988h, p.412). É uma
questão fundamental, porque se isso for concebível, os processos de pensamento se tornariam
equiparáveis, em termos de realidade, aos processos perceptivos.
Tendo como referência os processos de percepção, em que a atenção psi é
biologicamente condicionada a seguir curso indicado pelos signos de descarga sensorial, na
mesma orientação sensório-motora, pensamentos e recordações, a princípio inconscientes,
tornam-se susceptíveis de atenção e rememoração psi na medida em que se associam com
representações sonoras e imagens motoras lingüísticas. Eis o processo:
Da imagem sonora, a excitação alcança sempre a imagem-palavra, e dessa a
descarga. Por conseguinte, se as imagens mnêmicas são de tal índole que
uma corrente parcial pode ir desde elas até as imagens sonoras e imagens
motoras da palavra, a ocupação das imagens mnêmicas é acompanhada de
notícias de descarga que serão signos de qualidade, e por isto também
signos de consciência da recordação. (FREUD, 1988h, p.413).
Estes signos de descarga lingüística (Sprachabfuhrzeichen) que se desprendem da
palavra falada no momento em que se associam às imagens mnêmicas equivalem, em
importância e função, aos signos qualitativos perceptuais, atraem a atenção consciente e
equiparam os processos do pensar aos processos perceptivos, proporcionam a eles uma
realidade [Realität] e possibilitam sua memória.” (FREUD, 1988h, p.414, grifo do autor).
Assim se efetua a separação entre os traços de realidade deixados pelas vivências primárias e
os traços do pensar. “Os signos de descarga lingüísticos são, em certo sentido, também signos
122
de realidade, da realidade do pensar (Denkrealität), mas não da realidade externa.”
(FREUD, 1988h, p.421).
Freud não deixa dúvidas, algo somente pode ser indexado pelo aparelho enquanto
Realität se for:
1. Uma ocupação de percepção susceptível de atenção e de representação em psi.
2. Uma ocupação psi (processos de pensamento-desejo) suscetível de associação
com as representações verbais, o que as torna conscientes e passíveis de
rememoração.
Isso revela muito da concepção e natureza da realidade com que Freud lida em sua
teoria e técnica neste momento de sua obra (1895). Como bem observa DAYAN (1985a,
p.50), em ambos os casos, do ponto de vista de alguém que dispõe de tal aparelho, a realidade
se faz representar por descargas sensoriais:
Uma das idéias originais que é exposta neste ensaio consiste em reconstituir
o entorno do aparelho nervoso – este que tem o valor de “mundo” – ao olhar
de um indivíduo que dispõe de tal aparelho – a partir dos índices de
qualidade ou de realidade. (Realitätzeichen) Contudo, as mesmas descargas
sensoriais que permitem indexar [...] a realidade do mundo exterior, porque
elas requerem um maior investimento – essa é a lei biológica da atenção –
as mesmas descargas que se efetuam, na ausência de toda ação motriz sobre
o meio ambiente, para as emissões de palavras, servem para indexar uma
“realidade de pensamento” (Denkrealität) bem distinta da realidade
exterior.
Segundo esses desenvolvimentos, o fundamental que decide o estatuto de realidade
destes processos mentais é essa característica memorável que lhes é conferida pelos índices de
descarga verbal. (DAYAN, 1985, p.50). Estes processos de pensamento, cujo curso deixa
atrás de si facilitações como traços, em si mesmos, não são passíveis de memória no sentido
psicológico, são inconscientes, de suas facilitações permanecem somente os efeitos, e não
123
lembranças. (FREUD, 1988h, p.414). Esse enlace com as associações lingüísticas é o que lhes
confere uma existência subjetiva, ou seja, consciência e rememoração. Assim, os processos
psíquicos – enquanto inconscientes – não participam deste domínio subjetivo; por mais que
tenham sua existência e eficácia conferida no plano econômico e representacional (enquanto
estrutura e não qualidade), nesse trabalho, Freud ainda não lhes confere o estatuto de
realidade psíquica. A realidade dos eventos externos mantém o foco das considerações, isto
por razões que já discutimos a respeito da defesa por parte de Freud da importância e da
significação dos fatores adquiridos na etiologia das neuroses.
Capitulo 5
Psicopatologia e os processos primários póstumos
5.1 Os sonhos: desejo e alucinação onírica
Quanto ao aparelho assim consolidado, cujas facilitações e processos se organizam em
ordem crescente de complexidade exigindo um ajustamento permanente de suas funções
secundárias, é preciso ponderar o fato de que: mesmo tendo sido inibido pelo
desenvolvimento de psi, o processo primário segue sendo capaz, sob certas condições, de
voltar a influenciar o decurso dos processos tal como era efetivo antes da consolidação do eu
e dos processos secundários. Um dos fenômenos que exibem as condições propícias ao
retorno deste modo de operação é o sonho, um processo normal; outro é o sintoma, um
processo psicopatológico, ambos concebidos enquanto processos primários póstumos, ou seja,
124
que ocorrem após a constituição do eu. A análise do processo onírico, segundo Freud, é um
recurso técnico e teórico que permite avançar no exame e na elucidação dos processos que
envolvem a formação dos sintomas, possibilitando com isso o ajustamento de seu esquema
psíquico aos dados da observação clínica da qual ele partiu.
Freud afirma que o estado de sono, como se pode observar na criança, se estabelece
com a condição de que não haja nenhum carecimento ou estímulo externo. A criança
adormece com a satisfação (no seio) assim como o adulto adormece post coenam et coitum.
(FREUD, 1988h, p.381). Incorporada à teoria:
A condição do dormir, é assim, o decréscimo da carga endógena no núcleo de
psi, que torna supérflua a função secundária. No dormir, o indivíduo está no
estado ideal de inércia, isento do armazenamento de Qn. No adulto, este
armazenamento está reunido dentro do “eu”, temos o direito de supor que a
descarga do eu é que condiciona e caracteriza o dormir. E como de imediato
se esclarece, com isto se proporciona também a condição para os processos
psíquicos primários. (FREUD, 1988h, p.382)
Essa dissolução temporária e parcial das funções secundárias libera os processos
primários de sua inibição; assim, no estado de desejo onírico volta a dominar a compulsão
associativa característica da vida psíquica primária, cuja ação resulta na própria formação do
sonho. Segundo Freud, dentre as características apresentadas pelo sono e sonhos, a mais
importante delas é a seguinte: as idéias oníricas são de índole alucinatória, despertam a
consciência e são passíveis de crença. (FREUD, 1988h, p.384). Temos numa sentença três
problemas oníricos que precisam ser explicados: alucinação, consciência e crença.
Entre as explicações para essa natureza alucinatória das idéias oníricas, Freud
considera a hipótese de que, durante os sonhos, a excitação no aparelho é submetida a um
retrocesso. Haveria uma inversão do decurso da excitação que, durante a vigília vai de phi a
psi, e que durante o sonho, quando a motricidade e a periferia perceptual estão fora de ação,
seria conduzida regressivamente de psi (memória) até phi (extremo perceptual), onde as
representações psi regressariam a seu modo de expressão primário, não através de
125
representações de palavras, mas por representações de objeto (sensações e imagens visuais):
fecham-se os olhos e alucina-se, eles se abrem e pensa-se com palavras.” (FREUD, 1988h,
p.384). O que demarca bem a transição entre os dois processos.
Que a consciência seja despertada durante o sonho revela, primeiro, que essa não está
atrelada ao eu e pode ser agregada a todos os processos psi e, segundo, que processos
primários não devem ser identificados a processos inconscientes (FREUD, 1988h, p.386). O
sonho fornece signos de qualidade (despertam atenção psi) na medida em que estes não
pressupõem nenhum objeto real e sim intensidade de ocupação. Como no sonho, pela
dissolução temporária das funções do eu, não há signos de realidade que permitam diferenciar
recordação de percepção, a crença onírica não pode ser da mesma natureza que a crença
obtida pela conclusão do trabalho judicativo. A crença, enquanto resultado de um juízo, se
apóia em um processo que pressupõe, já no seu ponto de partida, um dispositivo apto a inibir
a alucinação. Nos sonhos trata-se de uma crença imediata produzida pelo caminho mais curto
da identidade de percepção.
Sendo o sonho uma reprodução das vivências primárias de satisfação, Freud não
encontra nenhuma dificuldade em atribuir-lhe sentido e finalidade: o sonho é uma realização
de desejo. A alucinação onírica demonstra com clareza a natureza essencialmente psíquica do
desejo, que, embora nasça à raiz das carências orgânicas, visa uma satisfação irredutível à
necessidade, em um circuito de prazer relacionado à reprodução da percepção do objeto
amado.
A observação de que o significado dos sonhos como realização de desejo se encontra
ocultado por uma série de processos psi, aproxima o sonho de processos patológicos que
também resultam nessa falta de sentido. (FREUD, 1988h, p.386). Já de saída, no início da
sessão em que discute os sonhos, Freud alertara sobre essas semelhanças:
126
[...] os mecanismos patológicos que a mais cuidadosa análise põe a descoberto
nas psiconeuroses tem a máxima semelhança com os processos oníricos.
Dessa comparação, que logo explicitaremos, resultam as mais importantes
conclusões. (FREUD, 1988h, p.381).
A relação entre processos patológicos e processos oníricos ainda é uma relação de
analogia e não de identidade; em ambos se verifica a ação de processos primários, esses se
dão sob a forma de um deslocamento da excitação entre as representações. Sonho e sintoma
têm como característica comum um mecanismo particular de substituição e deslocamento que
mantém associações intermediárias inconscientes, e faz com que estes fenômenos apresentem
lacunas que os tornam aparentemente sem sentido. Já a diferença situa-se na observação de
que, nos sonhos, o deslocamento se dá em razão da dissolução passiva e temporária das
funções do eu (não há repressão nos sonhos), enquanto no sintoma, ele assume a forma de um
processo ativo contra a reminiscência traumática (não há desejo nas neuroses).
Freud figura o mecanismo desse processo primário nos sonhos da seguinte maneira:
imagine-se uma seqüência associativa de pensamentos oníricos (A – B – C – D) que, ao final
deste processo, com a articulação da representação “D”, resultaria numa realização de desejo.
A idéia “A” se tornou consciente, mas no lugar de “B” encontra-se “C” consciente
(A – C); houve uma substituição, a ocupação de “B”, que é uma idéia intermediária, foi
subtraída, e sua excitação foi deslocada para “C”, que ganha com isso uma vivacidade
alucinatória; e “D”, por sua vez, também tem sua excitação subtraída, ou seja, não é
consciente. O resultado pode ser figurado pelo seguinte esquema: (A – C) que representa a
descontinuidade da consciência em relação às articulações intermediárias e a vivacidade
alucinatória acrescida a um dos elementos. A conseqüência disso é que a realização de desejo
é alucinada, mas o próprio desejo, ou seja, o sentido do sonho, não se faz consciente, o que o
torna aparentemente absurdo. (FREUD, 1988h, p.388).
127
5.2 A compulsão histérica: formação de símbolos
Com os sintomas neuróticos também se verifica algo similar. Freud dá o exemplo
dos efeitos psíquicos incompreensíveis decorrentes da ação compulsiva das chamadas idéias
excessivamente intensas (überstarken Vorstellungen) presentes à consciência de pacientes
neuróticos. Essas representações hiper-intensas, que se apresentam à consciência sem que se
possa justificar sua origem e os motivos de sua permanência, se fazem acompanhar de
conseqüências incompreensíveis, como inibições, afetos, inervações motoras, que não podem
ser suprimidas pelo pensamento normal. Por meio da análise dessa compulsão, é possível
inferir o processo pelo qual se produziu esse aparente absurdo, e o trabalho clínico
demonstrou que o processo que leva à compreensão do sentido do sintoma (a reminiscência
traumática) é o mesmo que resulta na sua solução.
Vejamos o resultado da análise no exemplo de Freud: antes da análise a idéia “A” é
imposta à consciência, levando todas às vezes ao choro sem que o indivíduo saiba por que
“A” o faz chorar. Após a análise, descobriu-se a existência de uma segunda idéia “B”, que
tem todos os motivos para que se faça acompanhar pelo choro. O efeito de “B” é
compreensível, e tende a se repetir inúmeras vezes enquanto o indivíduo não for capaz de
realizar uma operação psíquica necessária à resolução do afeto. (FREUD, 1988h, p. 396).
Assim, pela análise se descobriu que, na origem da compulsão houve uma vivência que
consistiu em A + B, “A” foi uma circunstância acessória, porém “B” fora uma circunstância
significativa para a produção do efeito. A questão é que, quando essa vivência é reproduzida
pela recordação, a representação “A” sempre surge no lugar da representação “B”, o que
explica por que a relação entre ”A” e o efeito que segue, no caso o choro, tona-se inadequada
e incompreensível. Este processo em que a excitação de “B” é subtraída e transferida a “A”,
128
Freud denomina deslocamento, um processo primário tal qual aquele observado nos sonhos.
No entanto, no caso do sintoma, essa operação leva o nome de repressão, cujo resultado é a
formação de símbolo. “A” simboliza (substitui) “B”, mas o histérico que chora por “A” nada
sabe dessa substituição. Freud sintetiza: se “A é do tipo compulsivo, B está reprimida [...]
toda compulsão corresponde a uma repressão, e toda intromissão desmedida na consciência,
a uma amnésia”. (FREUD, 1988h, p.397).
A repressão subtrai a excitação (o afeto) de “B” e o transfere a “A” que, em razão
desse acréscimo de excitação, desperta a atenção consciente podendo se articular às
representações de palavra, o que lhe confere uma existência subjetiva; enquanto “B”, uma vez
que sua excitação foi deslocada, permanece inconsciente, seu traço mnêmico é isolado do
decurso associativo e separado das representações verbais. Contudo, seu afeto segue
produzindo efeitos que somente podem ser resolvidos por um trabalho psíquico complexo:
ligar o afeto deslocado (excitação sem significação) a sua representação de objeto “B”,
articulando-o a linguagem falada, em outros termos, possibilitar um trâmite e um sentido para
a excitação no interior do aparelho, propiciando uma descarga adequada. A fala substitui a
ação sintomática e a repressão dá lugar à rememoração.
A experiência clínica de Freud tornou evidente o lugar ocupado pela sexualidade entre
as condições exigidas para que uma representação seja reprimida: “em primeiro lugar, a
repressão diz respeito sem exceção a representações que despertam no eu um afeto penoso
(desprazer); em segundo lugar, são representações provenientes da vida sexual”. (FREUD,
1988h, p. 397). Essa evidência clínica coloca duas questões a Freud: uma quanto ao motivo
pelo qual apenas os afetos e representações sexuais são passiveis de repressão; outra, quanto
ao estado em que se encontram as representações reprimidas.
Como vimos o traço mnêmico de “B”, assim como as facilitações em geral, não pode
ser apagado; porém, por se tratar do traço de uma representação que desperta no eu grande
129
desprazer (angústia), o processo repressivo, como uma defesa patológica, resulta numa forte
resistência em se pensar com “B”. Trata-se de uma representação excluída do eu e de todo
comércio associativo. Mesmo que essa idéia incompatível já tenha se tornado consciente,
permanece excluída do processo do pensar. (FREUD, 1988h, p. 398). Essa forte resistência
em articular afeto e representação sexual às representações verbais é a medida da força que
mantém o sintoma e suas conseqüências psíquicas.
Quanto à questão sobre o motivo pelo qual somente as representações da vida sexual
são passíveis de repressão, Freud é levado a explicar, desde o ponto de vista de seu modelo
teórico: qual a condição psíquica que torna possível que um afeto sexual despertado dentro do
eu leve essa organização secundária a mover um processo de defesa que ultrapasse a defesa
normal contra o desprazer; dando lugar, dentro dessa organização, à ação de um processo
primário como a repressão e a formação de símbolo. Desde o ponto de vista clínico, Freud é
levado a examinar as características naturais da sexualidade que expliquem essa condição
psíquica especial reconhecida à vida sexual na formação das patologias mentais.
130
CAPÍTULO 6
Sexualidade e etiologia
6.1 A etiologia traumática e a teoria da sedução
Há na descrição desses processos uma concepção bastante particular sobre a etiologia
das neuroses que permeia todos os trabalhos da época. Desde os trabalhos com Charcot
(1886), a noção do trauma enquanto causa específica da histeria vem sendo continuamente
repensada. No texto em colaboração com Breuer “Estudos sobre a histeria” (1893-95) o
traumatismo sexual e as reminiscências têm um lugar de destaque na descrição do mecanismo
psíquico da histeria. No entanto, é no “Projeto de uma psicologia” (1895) que a noção do
trauma enquanto trauma psíquico ganha um contorno mais definido ao ser examinado de
acordo com os pressupostos da formação do aparelho.
Freud propõe discutir tais questões por meio de uma exposição clínica e apresenta o
caso de uma jovem, Emma, submetida à compulsão de que não pode ir sozinha a determinado
lugar, uma loja. O caso se organiza em duas cenas: a cena I é uma recordação que Emma
acredita ser a justificativa de seu impedimento. Segundo essa justificativa (incompreensível),
ela está impedida de ir a tal lugar porque, aos 12 anos, esteve sozinha numa loja e viu dois
balconistas rindo. Diante dessa cena Emma é (inexplicavelmente) tomada por um afeto de
terror e foge. Os pensamentos que lhe ocorrem são de que eles riam de seu vestido e de que
um dos balconistas lhe atraiu sexualmente.
Devido ao fato de que a recordação e os pensamentos associados não permitem
explicar o que determinou o sintoma, a investigação segue e as associações revelam uma
131
segunda lembrança relacionada, que ela diz não ter lhe ocorrido no momento da primeira.
Emma se recorda de que aos 8 anos fora sozinha duas vezes à loja de um merceeiro para
comprar doces. Na primeira vez, tal senhor, rindo, beliscou-a nos genitais por cima do
vestido. Apesar do ocorrido Emma retorna uma segunda vez à loja, e atualmente se recrimina
por ter voltado como se quisesse provocar o atentado. Como observou GABBI JR. (2003,
p.119) esse retorno de Emma não é explicado por Freud, uma vez que a teoria desenvolvida
no “Projeto...” é incapaz de pensar tanto a repressão do prazer quanto o desejo sexual infantil.
Entretanto, a análise da cena II permite compreender o efeito provocado pela cena I,
na medida em que há uma sobredeterminação entre as cenas por meio de elos associativos
comuns: ir sozinha a uma loja, o balconista, o vestido, a sensação sexual, mas o principal
deles, o que evocou inconscientemente a recordação da cena com o merceeiro, foi o riso.
Quanto ao que provocou a liberação do afeto de terror, isso é entendido pela consideração de
que um novo fator fora acrescido entre as duas cenas: entre elas se intercalou o advento da
puberdade.
A puberdade é um elemento explicativo que indica a presença de dois fatores
importantes para desencadeamento do sintoma: o fator quantitativo e o semântico. Em
primeiro lugar é preciso considerar a puberdade no que concerne à intensificação da
capacidade de reação do aparelho sexual. É um momento em que a sexualidade se constitui
como fonte importante de estimulação endógena. Para avaliar seu potencial traumático basta
lembrar as considerações anteriores sobre o desamparo que o aparelho psíquico é submetido
diante das excitações provenientes do interior do corpo, isto devido ao fato de que contra essa
fonte de excitação, diferentemente das excitações exógenas, não há proteções e nem a
possibilidade de fuga. Se, por um lado, essa desproteção se constitui como a própria mola
impulsiva de todo desenvolvimento psíquico, por outro lado, a partir de certo limiar, torna-se
intolerável. Não havendo meios de ligar essa excitação tornando-a psiquicamente aproveitável
132
e passível de descarga adequada, a tensão passa a representar um dos fatores que compõem a
condição psíquica especial reconhecida por Freud à sexualidade na formação das
perturbações mentais.
No caso Emma, por exemplo, os traços mnêmicos relacionados à vivência do atentado,
que até então permaneciam em estado de repouso, a partir do momento em que ela tornou-se
púbere, foram reanimados pelo intenso afluxo de excitação. Com isso as suas recordações
passam a despertar o que naquele momento, anterior a puberdade, eram incapaz de fazer: “um
desprendimento sexual que se converte em angústia.” (FREUD, 1988h, p.401).
6.2 O processo sexual e a teoria do aparelho
Essa conclusão sobre sexualidade e angústia tem como fundamento uma concepção
bastante freqüente nos textos contemporâneos ao “Projeto...” (1895) a respeito do mecanismo
e das operações que envolvem o processo sexual. Existe aí um esquema explicativo que se
ajusta bem à teoria do aparelho psíquico, em que se pode observar o início de uma possível
convergência entre desejo (decorrente da vivência de satisfação) e repressão (decorrente da
vivência de dor). Ambos passam a ter como origem uma única vivência, a sexual. Contudo,
isso, neste momento, não abrange a sexualidade infantil. Esse esquema é descrito nos
Manuscritos E “Como se origina a angústia”, G “Melancolia” (1895) e também em textos
publicados como “Sobre a justificativa de separar da neurastenia uma determinada síndrome
intitulada neurose de angústia” (1895[1894]). De acordo com essas referências, a relação da
angústia com o processo sexual é descrita da seguinte maneira: o corpo produz tensão sexual
física continuamente, porém, essa somente é percebida quando atinge um determinado limiar;
133
a partir de então, a excitação endógena vence a resistência entre o interior do corpo e o núcleo
do sistema psi convertendo-se em estímulo psíquico. Como estímulo psíquico, a excitação se
liga aos grupos de representações sexuais correspondentes, dando origem à libido, em outras
palavras, a tensão sexual física, por intermédio das representações, se converte então em
desejo psíquico.
Este estado de tensão sexual psíquica, a libido, traz consigo uma ânsia e uma
possibilidade de remover este estado de excitação por meio da produção de uma sensação
voluptuosa através de uma ação específica adequada. Essa ação adequada que leva à descarga
reflexa no coito é precedida e preparada pela conexão psíquica entre a tensão física e as
representações sexuais relacionadas. Contudo, é preciso observar a seguinte condição: se,
devido à insuficiência do desenvolvimento das representações sexuais ou por causa da
tentativa de reprimi-las, a tensão sexual física não puder ser transformada em afeto sexual
(desejo psíquico), essa mesma tensão, não sendo psiquicamente ligada, se converte em
angústia. (FREUD, 1988a, p.232).
É o que ocorre com Emma, um caso típico: uma vivência atual inócua se associa a
uma recordação que provoca uma excitação sexual. O anseio libidinal decorrente dessa
ligação entre a sensação sexual e a representação psíquica é vivido como perigo (da repetição
do atentado); diante da ameaça dessa idéia incompatível, o eu move uma defesa contra a
recordação em que a excitação sexual é desligada de sua representação e se converte em
angústia. O próximo passo é a formação do sintoma: através do processo patológico da
formação de símbolo a excitação livre é deslocada para uma representação substitutiva.
Assim, toda vez que a vivência, por algum elo associativo, for reproduzida pela recordação, a
cena principal (merceeiro) será inconscientemente substituída pela cena secundaria
(balconistas), formando ligações falsas com o material existente. (FREUD, 1988h, p.402). O
saldo desse processo de sobredeterminação ganha forma de um impedimento inexplicável
134
exercido pela ação compulsiva de uma idéia incompreensível que mantém Emma distante de
determinadas situações.
Como é possível notar essa é uma teoria etiológica nada simples cujas conseqüências
estão longe de serem esgotadas. Freud se pergunta neste caso: qual seria o ponto de partida, a
causa do processo patológico? Sem dúvida, diz Freud, a excitação sexual; porém o
surpreendente é que essa excitação está muito mais relacionada às recordações do atentado do
que à vivência original: “Aqui se dá o caso de que uma recordação desperta um afeto que a
vivência não despertara.” (FREUD, 1988h, p. 403). É um caso típico de repressão histérica:
descobre-se que é reprimida uma recordação que apenas posteriormente { nachträglich } se
tornou um trauma.”(FREUD, 1988h, p.403). Um dos motivos deste descompasso entre a
vivência e seu efeito, como foi apresentado, está no atraso da puberdade em relação ao
desenvolvimento das outras funções psíquicas, consequentemente há um atraso da capacitação
do aparelho sexual em relação às experiências.
6.3 A temporalidade do trauma e a significação do sexual
Além do fator quantitativo que a puberdade implica em termos da intensificação da
excitação sexual póstuma às vivências, existe outro elemento importante para a eficácia
traumática, que é o elemento semântico propiciado pela experiência. Segundo Freud, a
puberdade também possibilita uma outra compreensão do vivido: “Toda pessoa adolescente
tem traços de recordação que somente podem ser compreendidos com a emergência de
sensações sexuais próprias”. (FREUD, 1988h, p.404). Ou seja, uma vez que o julgar tem
como fundamento sensações e imagens de movimento, essas vivências primárias anteriores à
135
emergência de sensações sexuais deixam traços de memória, porém, essas impressões não são
passíveis de julgamento, não são pensadas pelo sujeito.
Posteriormente, a compreensão do sentido sexual dessas representações faz com que
se convertam numa fonte endógena geradora de excitação sexual. A significação traumática se
deve ao fato de que, por meio da compreensão das representações, o sujeito tende a explicar a
emergência do estado intenso de seu anseio libidinal convertido em angústia como
decorrência da ação de um atentado sexual sofrido em sua infância. Os histéricos, é o que nos
ensina a experiência, diz Freud, seriam pessoas que se tornaram sexualmente excitáveis
precocemente por estimulação mecânica passiva e por masturbação. (FREUD, 1988c, p.404).
É o que faz essa teoria do trauma também uma teoria sobre a sedução.
Como foi examinado por MONZANI (1989, p.159) e por LAPLANCHE (1985, p.49),
a novidade dessa teoria em relação ao trauma físico (entendido como efração) é que, o que
define o trauma enquanto psíquico é o fato de que nesse caso, o traumatismo vem do interior,
pois o traumatizante não está no acontecimento em si, mas na recordação. Essa inversão da
eficácia da recordação em relação à vivência dá origem ao que Freud denomina de proton
pseudos (primeira mentira histérica), algo como uma premissa falsa que consiste, como
observou GABBI JR. (2004, p.125), “em tomar como motivo da liberação sexual uma
vivência, quando efetivamente se trata de uma recordação.” É o que se passa com Emma
quando crê que a causa que justifica seu estado afetivo esteja na cena atual com os
balconistas, posterior a puberdade. Essa premissa é falsa e decorre da repressão da cena
infantil.
Como também observara GABBI JR. (2004), a introdução e a consideração por Freud
a respeito da compreensão do significado sexual proporcionada pela puberdade em relação à
recordação infantil permitem a reorganização da eficácia traumática desde a perspectiva dos
efeitos de sentido. Vejamos quais as conseqüências que se podem extrair dessas
136
considerações. No exemplo dado por Freud, primeiro, “o recordado refere-se a uma liberação
sexual precoce. O efeito de entendê-la como sexual a transforma em fonte geradora de
quantidades endógenas, ou seja, em causa de uma nova liberação sexual.” (GABBI JR. 2004,
p.125). Que a recordação, a partir de sua significação, torne-se fonte interna e permanente de
excitação sexual, indica que,
a questão central progressivamente se desloca da quantidade para a
possibilidade expressiva insuspeita que certas idéias possuem. Em outras
palavras, a idéia sexual pode estar presente na mente como não-sexual. A
descoberta do seu sentido sexual originário produz um efeito quantitativo
levando à repressão. (GABBI JR., 2004, p.126).
É importante notar que o exame da eficácia traumática revela uma determinada
organização na vida sexual do sujeito que a divide em dois tempos: um período infantil, pré-
sexual, anterior à puberdade, e um período sexual, pós-puberdade. Na passagem entre eles
instala-se a repressão, entendida como uma operação que atua no âmbito da significação, ou
seja, age impedindo a associação entre as impressões infantis e as representações verbais. A
articulação das impressões com a associação lingüística, além de ser a condição para que os
traços mnêmicos adquiram existência subjetiva (consciência e rememoração) é também a
condição subentendida nesse texto para a emergência da significação. Compreender, segundo
“Projeto...” (1895), significa associar um traço de memória ou de percepção a uma imagem
sonora que incita imagens motoras próprias, ou seja, uma representação de palavra. (FREUD,
1988h, p.414).
E importante notar, como o fez FORRESTER (1983, p.64), que se trata sempre de
uma falta de coordenação entre o sexual e o verbal. Essa divisão entre impressões infantis
pré-verbais e sua posterior compreensão verbal é fundamental para a metapsicologia, e se
acentuará cada vez mais com o desenvolvimento da obra freudiana. Na “Comunicação
Preliminar” (Breuer /Freud, 1893), por exemplo, esse descompasso entre impressão e palavra
137
se constitui no próprio fundamento do método. A resolução dos sintomas consiste em tornar
possível a tradução das lembranças e dos afetos em palavras faladas. Segundo os autores, o
processo psíquico que deu origem ao sintoma deve ser levado de volta a seu status nascendi e
então receber uma expressão verbal. (BREUER, FREUD, 1987, p.32). Na discussão do caso
Katharina (1893), Freud novamente acentua essa diferença ao afirmar que “as impressões do
período pré-sexual que não produziram nenhum efeito na criança, mais tarde cobram, como
recordações, uma violência traumática ao abrir-se [...] a compreensão da vida sexual.”
(FREUD, 1987, p.148).
No “Projeto...” (1985), Freud reafirma esse discernimento, ao dizer que, nesses casos
que envolvem trauma psíquico, todo o peso recai sobre a precocidade da liberação sexual. A
partir de então, essa condição precoce, em que fora localizada a origem do processo, receberá
um exame cada vez mais detalhado no sentido de circunscrever seu significado para a teoria
do aparelho psíquico. É um marco na obra freudiana.
A teoria do aparelho, tal como é proposta neste “Projeto de uma psicologia”, traz um
quadro conceitual que já subtende essas diferenças sob a forma de dois modos distintos de
funcionamento mental, o processo primário e processo secundário. A própria evolução do
aparelho pressupõe a sobreposição das aquisições psíquicas em ordem crescente de
complexidade, porém as aquisições secundárias, mais tardias, advindas pela consolidação da
memória do pensar por meio das descargas verbais, não elimina a organização primária
infantil, essa segue existindo enquanto possibilidade, sob inibição. No entanto, se as
aquisições são definitivas, a inibição não o é: a irrupção do afeto de angústia, por exemplo,
pode tornar essa inibição inoperante, o que abre a possibilidade de sobredeterminação entre os
processos. Essa questão é tratada por Freud no ultimo tópico do capitulo dedicado à
psicopatologia.
138
6.4 Estados afetivos e a Proton pseudos
As alterações provocadas pelo afeto são muito similares àquelas observadas nos
sonhos. Tanto nos sonhos como nos estados afetivos há uma desarticulação do decurso
normal do pensar. Isso se explica por que em ambos as trilhas mais recentes formadas pela
memória do pensamento são esquecidas, deixam de ser percorridas pela excitação, e as
facilitações abertas pelas vivências infantis – isto é, a antiguidade – impõe-se: “Com este
esquecimento, em total semelhança ao que ocorre no sonho, desaparecem a escolha, a
conveniência e a lógica do decurso.” (FREUD, 1988h, p, 405). Ou seja, todas as aquisições
secundárias instituídas pela inibição do eu desaparecem e aqueles caminhos de descarga, que
de outro modo seriam evitados, passam a ser percorridos, dando lugar a ações durante o
estado afetivo: “Em suma, o processo afetivo se aproxima ao processo primário desinibido
(FREUD, 1988h, p.405).
Considerando a condição psíquica especial reconhecida à vida sexual na formação das
patologias mentais, Freud é levado a explicar como é possível que um afeto sexual convertido
em angústia, leve à organização secundária a mover um processo de defesa primário como a
repressão e a formação de símbolo. Em resposta a essa questão a teoria do aparelho
possibilita o seguinte desdobramento: após a instituição da inibição do processo alucinatório
pelo eu, a atenção psíquica passa a ser regulada na direção das percepções: esse é o
dispositivo que permite ao eu evitar aquelas percepções que levariam a liberação do afeto.
Contudo, em se tratando da vida sexual, “não é nenhuma percepção, mas um traço mnêmico
que inesperadamente libera o desprazer, e o eu toma conhecimento desse fato muito tarde,
consentiu com um processo primário, por que não o esperava.” (FREUD, 1988h, p.406). Que
o eu tome conhecimento muito tarde da origem do afeto significa que, durante o estado
139
afetivo, a distinção entre recordação e percepção está comprometida. Este estado de
indistinção, característico dos processos primários desinibidos, favorece a repressão e a
formação de símbolo, formando ligações falsas com o material existente. A percepção atual é
tomada como causa da excitação sexual convertida em angústia, quando efetivamente se trata
da ação de uma recordação inconsciente. Nesse sentido, a recordação inconsciente se impõe
ao campo da percepção e, através dessas ligações falsas com elementos intermediários entre
os dois domínios, se atualiza como uma realidade perceptual para o sujeito.
Com isso, é possível reconhecer, como o fez GABBI JR. (2003, p.53) que, para Freud,
neste momento, “o principal traço do patológico está na indistinção estabelecida entre
recordação e percepção”. Essa é uma observação metapsicologica importante, pois será a
consideração desse traço que irá permitir, após a revisão exigida pela descoberta das fantasias,
avançar rumo ao reconhecimento de uma realidade para o inconsciente.
140
CAPÍTULO 7
A materialidade das descargas sensoriais e a concepção de
realidade no “Projeto...” (1895)
7.1 O psíquico versus o subjetivo
De acordo com desenvolvimento anterior pode-se concluir que Freud, até esse
momento de sua obra (1895), trabalha com uma concepção de realidade que se duplica em
dois registros, o da percepção e do pensamento. Em ambos os domínios, o estatuto de
realidade conferido aos seus processos é definido pela materialidade das descargas
sensoriais: os signos de realidade para a percepção e os signos de descarga lingüística para o
pensamento. Essas descargas qualitativas produzidas durante os decursos desses processos é o
que os tornam susceptíveis de consciência e de rememoração, ou seja, é o que lhes confere
uma existência subjetiva.
Entretanto, com a introdução dessa realidade do pensar ainda não se trata do
reconhecimento de uma realidade psíquica stricto sensu. A gênese da realidade do
pensamento está internamente articulada a representações de palavra e a atividade
consciente, que é o que define o campo subjetivo dos fenômenos mentais. (FREUD, 1988h,
p.355). Já o que Freud considera como o psíquico propriamente dito, diferente desse domínio
subjetivo, é estritamente definido enquanto inconsciente. O psíquico e o subjetivo são dois
domínios perfeitamente discerníveis nesse trabalho de 1895 “Projeto de uma psicologia”. (Cf.
CAROPRESO, 2003, p.346).
141
Como tentamos tornar evidente, a teoria da sedução, em si mesma, não faz obstáculo
ao reconhecimento da existência e da eficácia de uma realidade psíquica, basta considerar o
lugar e peso dado às representações inconscientes na determinação dos sonhos e sintomas. O
mais interessante desses argumentos, como vimos, é justamente que, nessas reproduções, não
é a realidade externa que está em ação e sim os restos ativos deixados pelas vivências. Isto
permite avançar a seguinte hipótese: muito mais do que a teoria da sedução (um lugar comum
na crítica de Freud) é essa concepção da natureza e da composição da realidade enquanto
domínio subjetivo que impede ou adia a problematização do estatuto de realidade do psíquico
inconsciente.
Contudo, como pondera DAYAN (1985, p.51), o reconhecimento e a circunscrição
de uma realidade interna apta a se reinscrever pela materialidade das descargas verbais (a
realidade do pensar), ainda que distante da realidade muda do inconsciente recalcado – como
é estabelecida nas últimas páginas da “Interpretação dos sonhos” (1900) – funciona aí como
um protótipo em razão da manifestação de certa invariância dos eventos psíquicos.
Nos textos subseqüentes ao “Projeto...” (1895), como veremos a seguir, torna-se
evidente a incompatibilidade ou a insuficiência dessa concepção de realidade em relação aos
problemas colocados pela crescente especificação tópica do domínio inconsciente. E a
pergunta que começa se impor é: como algo pode ser real se está fora do campo subjetivo?
142
PARTE III:
DA TEORIA DO TRAUMA A INTRODUÇÃO DA FANTASIA:
A ESTRATIFICAÇÃO DA MEMÓRIA E A PRODUÇÃO DA CENA PSÍQUICA
INCONSCIENTE
143
CAPÍTULO 1
Repressão e prazer: o núcleo do enigma
1.1 Progresso clínico versus pressuposições teóricas
O empreendimento realizado no “Projeto de uma psicologia” (1895) consistiu num
esforço de fornecer uma sustentação teórica à hipótese etiológica do trauma e da sedução.
Esse movimento se concentrou na tentativa de explicar a defesa (repressão) enquanto uma
predisposição específica e adquirida, a partir de uma base constitucional comum a patologia e
a normalidade. No entanto, a defesa neurótica é um problema que essa estrutura teórica não dá
conta de resolver, “o processo de repressão permanece sendo o núcleo do enigma.”
(FREUD, 1988h, p.399).
Um dos motivos que faz com esse problema permaneça sem solução é o fato de que,
nessa teoria do aparelho psíquico a repressão é concebida a partir do modelo fornecido pela
vivência de dor, não tendo relação alguma com o prazer e a satisfação. Isso é o que torna
impossível correlacionar essa noção de repressão às novas observações clínicas sobre a
presença do prazer na origem das neuroses. O empenho de Freud no “Projeto...” em
estabelecer semelhanças entre sonhos e sintomas pode ser entendido como uma tentativa de
resolver tal problema. Porém, em vista da divergência entre os pontos de partida, como
observou GABBI JR. (1994, p.106), nesse momento da obra freudiana, “nada mais afastado
teoricamente do que a vinculação entre desejo e repressão”.
144
Na carta a Fliess de 8 de outubro de 1895, três dias após ter lhe enviado a última parte
do “Projeto...”, essa incoerência entre progresso clínico e fundamentação teórica se apresenta
pela primeira vez:
O que ainda não está coerente não é o mecanismo – posso ser paciente
quanto a isso –, e sim a elucidação do recalcamento – cujo conhecimento
clínico fez grandes progressos em outros aspectos. (MASSON, 1986,
p.142).
O progresso clínico a qual Freud se refere concerne à descoberta de que a cena
primária na base das obsessões se faz acompanhar por prazer:
Será que já lhe revelei o grande segredo clínico? [...] A neurose obsessiva
é conseqüência de um prazer sexual pré-sexual, que se transforma,
posteriormente, em auto-recriminação.” (MASSON, 1986, p.145, grifo do
autor).
Vale lembrar que a teoria do trauma está sustentada pelo pressuposto da ausência da
sexualidade na infância, portanto, se a criança é assexuada, como é possível integrar
teoricamente essas novas observações sobre o prazer durante a vivência infantil? (Cf.
IZENBERG, 1999).
O problema se acentua ainda mais na medida em que essa observação sobre o prazer
sexual não fica restrita a neurose obsessiva. Para histeria, por exemplo, Freud propõe uma
nova solução clínica, afirmando que em sua raiz “há sempre um conflito (prazer sexual, ao
lado, possivelmente, de um desprazer concomitante)”. (MASSON, 1986, p.155). Com isso,
todo trabalho metapsicológico é reorientado mais uma vez na direção do estatuto clínico da
repressão e, nesse movimento duas questões fundamentais começam a se impor; por um lado,
no que tange a defesa, a questão é: como é possível pensar a repressão de algo que na sua
origem é prazeroso? Por outro, no que diz da teoria da sexualidade: é possível conceber
prazer sexual num período anterior à puberdade?
145
Com vistas a essa problemática e suas conseqüências para a concepção e a natureza da
realidade no interior da teoria do aparelho psíquico, iremos examinar os escritos do ano de
1896, na seguinte seqüência: carta 39, de 1 de janeiro, e o anexo "Rascunho K – Neuroses de
defesa”; os dois artigos publicados “A hereditariedade e a etiologia das neuroses” (30 de
março) e “Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa” (15 de maio), que foram
enviados aos seus editores no mesmo dia, 5 de fevereiro; carta 46, de 30 de maio; o terceiro e
último texto publicado neste ano, “A etiologia da histeria” de 31 de maio; e enfim, a
importante carta 52, de 6 de dezembro.
Nestes trabalhos também será possível observar a lenta transição das hipóteses de
Freud rumo a uma representação tópica do aparelho psíquico. Neste percurso, o estudo da
cronologia das vivências (que logo será abandonada), não passa de um elemento
intermediário, porém necessário, para constituição da tópica psíquica. Sendo essa última o
principal instrumento metapsicológico a qual Freud recorrerá na circunscrição de um novo
domínio do real, distinto da realidade da cena consciente.
* * *
A carta 39 traz, antes de tudo, uma importante revisão na teoria do aparelho psíquico.
O novo esquema insere os neurônios ômega entre os neurônios phi e psi, (phi – ômega – psi),
e as principais conseqüências desse remanejamento são:
1º Os processos psi são originariamente inconscientes e somente adquirem uma
consciência secundária ao serem ligados a processos de descarga e percepção decorrentes das
associações da fala.
2º As sensações não levam quantidade a psi, consequentemente, sua fonte de energia
passa a ser unicamente as vias de condução orgânicas, endógenas. Freud ainda observa que
146
essas vias de onde advém a força propulsora da atividade psíquica e da formação de sintomas
são as vias da excitação sexual. (MASSON,1986, p.161).
Quanto ao enigma da repressão, no “Rascunho K” temos a seguinte observação, a
respeito na neurose obsessiva, diz: “a repressão pode processar-se devido ao fato de que a
recordação do prazer, em si mesmo, produz desprazer, quando anos depois é recordada”.
(FREUD, 1988, p.263). Encontra-se nessa formulação o essencial sobre a nova hipótese que
será proposta para explicar a repressão; a hipótese é de que há uma transformação do prazer –
vivido numa cena primária infantil – em desprazer – quando essa mesma cena primária é
recordada anos depois na puberdade. O enigma a ser resolvido é precisamente essa
transformação do prazer em desprazer; o desprazer produzido aciona o processo de defesa
contra a recordação. Essa hipótese leva Freud a investigar, a partir de seu modelo de aparelho
psíquico, quais as possíveis relações entre a repressão e a cronologia das vivências infantis.
Em “A hereditariedade e a etiologia das neuroses” afirma que percorrendo
retrospectivamente a história da doença é possível estabelecer o ponto de partida do processo
patológico. Nesse percurso, a causa específica das neuroses é, em todos os casos,
invariavelmente, uma recordação inconsciente derivada de uma vivência sexual precoce, (com
excitação efetiva dos genitais). Trata-se de um abuso cometido por outra pessoa, e acrescenta:
o período da vida no qual ocorre esse fatal evento é a infância – até os 8 ou dez anos, antes
que a criança tenha atingido a maturidade sexual.” (FREUD, 1989e, p.151). Segundo as
análises, a data mais comum dessas experiências sexuais é a idade entre 4 e 5 anos; caso essas
vivências ocorram após a idade de 8 ou 10 anos elas não fundam a neurose; esse período, que
corresponde à segunda dentição, é uma linha de fronteira para a causação da doença. Os
eventos subseqüentes à puberdade são considerados apenas agents provocateurs que possuem
a faculdade de despertar o traço psíquico inconsciente do evento infantil; esse traço
relacionado à infância é designado aí como uma impressão patogênica primária.
147
O texto “Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa” reafirma as
observações sobre a natureza dos traumas sexuais e seus períodos. Em relação ao trabalho
anterior acrescenta a importante afirmativa de que o limite inferior para que a vivência possa
desempenhar um papel efetivo na causação do processo recua na medida da própria memória
– isto é, até a tenra idade de 1 ano e meio a 2 anos. (FREUD, 1989f, p.166). Mais adiante,
também observar que a maturidade sexual psíquica não coincide necessariamente com
capacitação do aparelho sexual, é mesmo anterior a ela, ocorrendo entre 8 e 10 anos.
(FREUD, 1989f, p.168). De posse dessas noções, Freud avança à seguinte hipótese: a
precocidade do desenvolvimento da libido deixa-se ver pelo prazer proporcionado pela
vivência primária que, quando reproduzido, assume a forma de um ato de agressão inspirado
no desejo (no caso do menino) ou de um ato de participação nas relações sexuais
acompanhada de gozo (no caso da garotinha). (FREUD, 1989e, p.154). Do fato de que a
maturidade da libido psíquica se antecipe à capacitação do aparelho genital, decorre também a
possibilidade de se pensar a sexualidade na infância enquanto perversão, como será explorada
por Freud adiante.
148
CAPÍTULO 2
Working hypotheses
52
2.1 Um novo esquema etiológico: infância e cronologia
Diante dessa série de problemas e intuições desdobradas desde a observação do prazer
nas neuroses, Freud, na carta 46, propõe uma solução através de um esquema cronológico do
desenvolvimento psíquico e sexual aplicado à questão da repressão e da escolha da neurose. A
idéia é a seguinte: a vida do sujeito é desdobrada em quatro períodos (Ia-Ib-II-III), e entre eles
estão localizados dois períodos de transição (A-B), durante os quais ocorre a repressão.
Ia Ib A II B III
Até os 4 anos
Anteconsciente
Até os 8 anos
Infantil
Até os 14 anos
Pré-puberdade
Até X
Maturidade
FIGURA 2. Esquema cronológico do desenvolvimento psíquico e sexual.
52
Este é o modo como Freud definiu o trabalho metapsicológico elaborado nas cartas desse período
que iremos analisar. Essa definição confere um grande valor epistemológico a esses rascunhos. Neles é
possível acompanhar o longo caminho percorrido por Freud entre as intuições clínicas e a formulação
dos conceitos. Neste ínterim, suas próprias hipóteses são postas à prova da experiência. Em carta de 17
de dezembro de 1896 diz: “Fico muito satisfeito, porém, com a recepção dada a minhas fantasias. Sei
que você as coloca no lugar certo, investiga esses pontos de vista um pouco mais e não me encara nem
como um devaneador, pelo fato de eu comunicar essas coisas incompletas, nem como um tolo, que,
por essa razão, acredita estar acima da investigação minuciosa e da correção. Trata-se de sínteses e
working hypotheses [hipóteses de trabalho], que espero podermos trocar um com o outro sem
preocupações.” (MASSON, 1986, p.216).
149
No esquema, a ação póstuma dos traumas infantis é explicada pela seguinte
consideração: a recordação de uma cena sexual numa época posterior ao período em que ela
ocorreu, produz um excesso de sexualidade, e esse, por sua vez, inibe o pensamento normal
conferindo à lembrança e às suas conseqüências um caráter compulsivo impossível de inibir.
Nesse caso, como a neurose obsessiva tem demonstrado, trata-se da tendência a repetir um
prazer desinibido. A compulsão somente pode ser inibida com a condição de que, na transição
de um período para o outro, as recordações, a princípio sob a forma de traços mnêmicos,
sejam psiquicamente traduzidos, o que implicaria na conversão da excitação sexual física em
libido psíquica. Porém, o próprio excesso de sexualidade torna-se um obstáculo à tradução
devido ao fato de que os traços mnêmicos são insuficientes para ligar a excitação sexual
liberada.
Ao excesso de sexualidade não traduzido sob a forma de uma compulsão ao prazer, se
opõem a vergonha e a moralidade, que representam duas forças psíquicas repressoras no
aparelho. Importante lembrar que, segundo o “Projeto...” (1895), a emergência dos motivos
morais no sujeito é intermediada pela sua relação ao outro, que lhe assiste em seu estado de
desamparo inicial. Contudo, mesmo com a introdução dessas forças, o problema da
transformação do prazer em desprazer ainda permanece sem explicação.
Freud também apresenta quais seriam os requisitos cronológicos das cenas sexuais
para as diferentes neuroses. Neste esquema explicativo, o que decide a escolha da neurose são
os períodos em que ocorrem as vivências traumáticas.
150
Ia Ib A II B III
Até os 4 Até os 8 Até os 14 Até x
Histeria Cena Repressão Repressão
Neur. Obs. Cena Repressão Repressão
Paranóia Cena Repressão
FIGURA 3. Esquema explicativo da etiologia e da formação das psiconeuroses.
No caso da histeria, as cenas ocorrem no primeiro período da infância (Ia) até os 4
anos. As cenas ocorridas nesse período têm a particularidade de serem intraduzíveis, ou seja,
seus restos mnêmicos não estão disponíveis sob a forma de representações de palavra. Assim,
uma recordação de uma cena sexual (Ia) não conduz a conseqüências psíquicas, e sim a
realizações (conversão). (FREUD, 1988, p.270). Na neurose obsessiva as cenas ocorrem em
(Ib) e já dispõem da tradução em palavras. Quando recordadas em períodos posteriores,
produzem um excesso de excitação na forma de uma compulsão sexual, que, sob a ação da
repressão, dão lugar, não mais a conversão, e sim, a sintomas psíquicos (obsessões). Já na
paranóia, as cenas ocorrem após a segunda dentição e dá lugar a desconfiança.
53
Na seqüência, Freud tece algumas considerações que situam esse esquema dentro de
um contexto teórico ainda bastante ligado às teses expostas no “Projeto...” (1895). A
consciência das recordações, por exemplo, é determinada fundamentalmente pela associação
das impressões mnêmicas às representações de palavra, portanto, não se trata de conceber “a
consciência”, e sim, o “tornar-se consciente” de uma representação. A consciência não é
53
A repressão em A e B consistira na deflagração de uma defesa primária contra as representações
sexuais relacionadas ao surgimento do desprazer advindo da formação desse excedente de excitação
sexual na transição entre os períodos. O que pressupõe, dada a proximidade com as teses do
“Projeto...” (1895), o processo de deslocamento da excitação afetiva e substituição das recordações na
formação de símbolos, que é o mecanismo pelo qual Freud descreveu a formação dos sintomas. (Cf.
Parte II, seção 5.2).
151
inerente “ao reino chamado – inconsciente –, nem ao reino chamado – consciente – (...) de
modo que estes termos devem ser recusados.” (FREUD, 1988, p.272). Segundo Freud, a
distinção principal continua sendo entre processos psíquicos inibidos e não-inibidos pela ação
do pensamento, portanto, a idéia de um consciente e um inconsciente (no sentido tópico ou
substantivado do termo), nesse momento, é desnecessária.
Assim, tanto o acesso à consciência quanto à formação dos sintomas, são
influenciados por um compromisso entre forças psíquicas que entram em conflito entre si.
Nesse conflito entre processos primários e secundários, deve-se considerar a força
quantitativa inerente a toda representação, assim como a atração ou o desvio da atenção
psíquica segundo as regras impostas pelos signos de qualidade e pela defesa contra o
desprazer. A força inerente aos processos primários não-inibidos está na base da emergência
de distúrbios no interior do aparelho; e o desprazer segue sendo o único critério que impede as
transições associativas entre esses processos.
Apesar de ter sido insuficiente para elucidar a transformação do prazer em desprazer
pela repressão, essas tabelas cronológicas acabaram por introduzir, mesmo a revelia de Freud
como vimos, os rudimentos para a uma representação tópica do aparelho psíquico. A noção
de tradução entre períodos permitiu pensar a presença de dois registros temporalmente
separados pela evolução dos processos no aparelho: a possibilidade de se produzir duas
versões diferentes de uma mesma cena, o registro primário das impressões, sob a forma dos
traços mnêmicos, e o secundário das representações verbais.
2.2 Da cronologia a tópica: a estratificação do psíquico (Carta 52)
152
O texto subseqüente, “A etiologia da histeria” (1896), trabalha com uma noção de
estratificação do psíquico em diferentes camadas sobrepostas ao longo do tempo, uma noção
já apresentada em “A psicoterapia da histeria” (1895). Nesse texto sobre a etiologia, ao tratar
da possibilidade de penetrar no conhecimento das causas a partir dos sintomas, Freud propõe
uma comparação entre o método analítico e o trabalho arqueológico. O trabalho todo consiste
em retroagir do sintoma à cena do trauma. Neste trajeto, frequentemente, se encontram cenas
inoperantes que podem ocultar atrás de si outras de maior eficácia. A estratificação recua,
como Freud já apontou, na medida da própria memória – isto é, até a tenra idade de 1 ano e
meio a 2 anos. Essas cenas infantis, muito mais uniformes em seus conteúdos do que as cenas
da puberdade passam a reivindicar o lugar de causa universal na etiologia das neuroses.
Entretanto, o texto apresenta, não somente intuições clínicas a respeito da
estratificação, que posteriormente receberão uma justificativa teórica adequada, mas também
anuncia uma nova problemática: a concepção do inconsciente enquanto tópica psíquica.
Quanto a isso é preciso observar dois posicionamentos de Freud a respeito. O primeiro, em
que o problema é apresentado em sua relação com as condições exigidas para a produção de
sintomas nas neuroses:
[...] não importa somente a existência de vivências sexuais infantis; conta
também uma condição psicológica. Essas cenas devem estar presentes como
recordações inconscientes; só quando são, e na medida em que são
inconscientes, é que elas podem produzir e sustentar sintomas histéricos [...]
existe aí um novo problema [...]. (FREUD, 1989g, p.210).
No segundo posicionamento assistimos a uma inversão que coloca a questão em outras
bases. A respeito da intuição de que os neuróticos são sujeitos que se tornam incapazes de
tramitar (dispor de) estímulos psíquicos, diz:
153
[...] é como se a dificuldade para a tramitação, a impossibilidade de mudar
uma impressão atual em uma recordação inofensiva, dependera justamente do
caráter do inconsciente psíquico. (FREUD, 1989g, p.216, grifo nosso)
Os termos consciente e inconsciente foram utilizados até o momento, como
pontuamos anteriormente, como exprimindo a presença ou a ausência de qualidade. Também
é importante lembrar que, no “Projeto...” (1895), em termos estruturais, há uma relação de
identidade entre o psíquico e a memória, e nesse contexto o termo inconsciente diz respeito ao
estado originário dos registros mnêmicos, ou seja, indicaria a ausência de qualidade. Aqui,
parece haver uma inversão quanto ao uso do termo, a sentença não diz: o psíquico
inconsciente, e sim, o inconsciente psíquico. O inconsciente, nessa acepção, vem para o
primeiro plano, indicando não mais apenas ausência de qualidade, mas sim, um registro
psíquico particular, um prelúdio à tópica.
Na carta 52 o trabalho vai precisamente nessa direção, quando propõe uma
reformulação da teoria do aparelho tal qual lhe é exigida pela consideração das
impossibilidades de tramitação dos estímulos impostas pelas características deste
inconsciente psíquico representacional. Nessa carta a noção de estratificação psíquica é
articulada com a idéia de tradução entre períodos, dando origem a uma nova teoria sobre a
memória.
[...] estou trabalhando com a hipótese de que nosso mecanismo psíquico
formou-se por estratificação sucessiva: o material presente sob a forma de
traços mnêmicos fica sujeito, de tempos em tempos, a um rearranjo, de
acordo com as novas circunstâncias – a uma retranscrição {Umshrift}.
Assim, o que há de essencialmente novo na minha teoria é a tese de que a
memória não preexiste de maneira simples, mas de maneira múltipla [que se
desdobra em vários tempos]; está registrada em diversas variedades de signos.
Há algum tempo atrás (Afasia) postulei a existência de um rearranjo
semelhante para as vias que provém da periferia [do corpo até o córtex
cerebral]
54
. (FREUD, 1988, p.274, grifo nosso).
54
(Cf. Parte I, seção 2.1; Parte II, seção 1.2, principalmente nota 48; Parte IV, seção 4.1).
154
O novo esquema propõe uma representação espacial para o aparelho, o que permite
representar a estratificação sucessiva da memória segundo sua ordem constitutiva, onde seus
diferentes estratos passam a se organizar em sistemas. A tramitação dos processos psíquicos
no aparelho realiza o seguinte trajeto: o estímulo recebido pela extremidade perceptual (W)
deve atravessar o aparelho sofrendo uma série de rearranjos e restranscrições na transição
entre os sistemas até chegar a tornar-se apto, no extremo oposto, a consciência verbal (Bews).
I II III
W Wz Ub Vb Bews
x x x x x x x x x x
x x x x x x x
FIGURA 4. Diagrama esquemático da estratificação mnêmica do mecanismo psíquico.
Assim, no pólo receptor está o sistema W (percepções), no qual se originam as
percepções; sua estrutura não permite que haja memória dos acontecimentos, portanto, sua
atividade consiste exclusivamente na recepção sensorial. Em Wz (signos de percepção) se
produz a primeira transcrição das percepções, dando forma aos primeiros registros de
memória no aparelho; é por completo insuscepvel de consciência, e seus traços mnêmicos
encontram-se dispostos segundo as associações por simultaneidade. Ub (inconsciência) é o
segundo registro, corresponde a recordações conceituais também inacessíveis a consciência.
Vb (pré-consciência) é a terceira transcrição ligada às representações verbais que corresponde
a nosso eu oficial. (FREUD, 1988, 275).
Essas transcrições que se seguem umas às outras representam a realização psíquica de
épocas sucessivas da vida, entretanto, na fronteira de uma época para outra deve haver uma
tradução do material psíquico. Cada transcrição posterior inibe a anterior e lhe desvia o
processo excitatório. Isso é justamente o que não ocorre com as neuroses, nesses casos há
155
uma falha na tradução. Consequentemente, uma parte do material, assim como sua excitação,
permanece como não traduzido, seguindo as leis e as vias de eliminação abertas no período
anterior. “Subsistiria assim um anacronismo, numa determinada região ainda vigoram
determinados ‘fueros’, estamos na presença de ‘sobrevivências’.” (FREUD, 1988, 276).
Uma vez que as recordações que se prestam à repressão, serem, invariavelmente,
aquelas relacionadas à vida sexual, isto permite conceber que, os anacronismos que subsistem
nos sistemas Wz e Ub como material psíquico não tramitado e inconsciente, referem-se,
fundamentalmente, às vivências sexuais infantis. No final dessa carta, Freud inaugura então,
uma aproximação entre as vivências infantis e as perversões sexuais, introduzindo, pela
primeira vez, a idéia de zonas erógenas abandonadas. Essas seriam lugares do corpo,
sexualmente ativos durante a infância, produtores de liberação sexual, que posteriormente são
abandonados devido ao fato de que em determinado momento deixam de produzir prazer e
passam a produzir angústia. Freud chega até mesmo a considerar que todo o progresso
cultural, assim como o desenvolvimento moral e psicológico do indivíduo, residiria nessa
diferenciação e limitação observada pelo abandono de tais zonas erógenas. (FREUD, 1988,
p.280).
Contudo, suas hipóteses acerca da sedução ainda não lhe permitem considerar a
possibilidade da existência de uma sexualidade própria à vida infantil. A perversão é
introduzida no pensamento freudiano no contexto de um afunilamento de sua hipótese
etiológica, onde o agente do trauma, o sedutor, é reiteradamente reconhecido pelas análises
como sendo o Pater, e é este que, enquanto perverso, quem introduz a perversão na vida
infantil: “A histeria se insinua cada vez mais como conseqüência de uma perversão por parte
do sedutor, e cada vez mais que a hereditariedade é a sedução pelo pai.” (FREUD, 1988,
p.279). Do contexto dessa nova hipótese sobre a sedução paterna decorre a afirmação de
156
longo alcance na obra freudiana de que, nas neuroses, não é a sexualidade que é desautorizada
pela repressão, e sim, a perversão. (FREUD, 1988, p.279).
O mais interessante é que Freud, na seqüência, começa a considerar que os ataques
histéricos, assim como alguns sintomas, muito mais do que uma simples descarga, tem o
estatuto de uma ação, ou seja, visam reproduzir um prazer obtido durante as cenas primárias.
Essa reprodução implica nela mesma, a referência a um outro que na cena ocuparia o lugar do
sedutor: “tudo isto tem como alvo um outro, no mais das vezes um outro pré-histórico
inesquecível, que nunca é igualado por nenhum posterior.” (FREUD, 1988, p.280). Existem
aí dois movimentos que cumprem um mesmo processo e que tem como modelo a vivência de
satisfação e suas conseqüências psíquicas, porém, nessa última, o paradigma foi à fome; aqui,
temos o mesmo modelo aplicado à libido. (Cf. AMACHER, 1965, p.83). A cena de sedução
se constitui enquanto uma vivência cujas impressões estão associadas à descarga sexual. Essas
impressões se organizam em traços mnêmicos que, diante dos estados de desejo, são
reanimados e reproduzidos pelos sintomas no sentido de repetir a satisfação desejada.
Com este movimento começa a se tornar insustentável afirmação sobre ausência da
sexualidade na vida infantil, que é um postulado central para a teoria da sedução. A
progressiva desmontagem desses pressupostos tem como contrapartida a possibilidade da
articulação entre repressão e prazer, que até então eram teoricamente incompatíveis devido as
suas origens distintas. Esses processos começam, lentamente, a convergir para uma única
vivência, a vivência sexual infantil.
Portanto, as características que se podem atribuir ao inconsciente concebido, a partir
de então, como um sistema psíquico distinto, são: inscrições de traços mnêmicos
insusceptíveis de consciência, ou seja, não disponíveis sob a forma de representações verbais,
formados por impressões sexuais infantis de natureza perversa decorrentes de uma cena de
sedução. Essas inscrições tomam parte no desenvolvimento de uma atividade psíquica retirada
157
do poder das funções conscientes e que tende a se reproduzir na vida psíquica sob a forma de
sintomas.
Contudo, é importante lembrar que, essa crescente especificação do inconsciente
psíquico enquanto sistema, e do caráter universal atribuído às cenas de sedução, acentua a
incompatibilidade entre esses avanços clínico-teóricos e a concepção de realidade com que
Freud maneja desde o “Projeto...” (1895), fundada no domínio subjetivo dos eventos mentais.
Tal incompatibilidade faz com que a reprodução dessas cenas, sob a forma de recordações,
assim como o próprio inconsciente psíquico, permaneça sem um estatuto de realidade
definido.
CAPÍTULO 3
Questões acerca da autenticidade e da realidade das cenas
3.1 A resenha crítica de Adolf von Strümpell
A falta de um estatuto de realidade próprio ao inconsciente é um problema que
também foi identificado por outros autores, e se tornou público desde as críticas advindas do
circulo médico alemão ao texto “Estudos sobre histeria” (1895). Dentre essas, a mais
importante, e a que teve mais impacto sobre Freud, foi uma resenha escrita pelo neurologista
Adolf von Strümpell, publicada em 1896 no Deutsche Zeitschrift für Nervenheilkunde.
158
Segundo STRÜMPELL, a investigação minuciosa da intimidade sexual assim como os
resultados expostos pelos autores (Breuer e Freud), são profundamente questionáveis:
Não consigo eliminar minhas dúvidas em termos de saber se o que é extraído
dos pacientes hipnotizados por meio de perguntas sempre corresponde
exatamente à realidade. Temo que, nessas circunstâncias, alguns histéricos
dêem asas à fantasia livremente e inventem histórias. Por conseguinte, é muito
fácil para o médico descobrir-se numa posição extremamente escorregadia.
Em resumo [...] não posso recomendar incondicionalmente a adoção do
método. (apud, MASSON, 1986, p.172).
Segundo DECKER, essa crítica foi um suporte significativo para a recepção da
psicanálise na Alemanha,
[...] pois foi à primeira resenha extensa e séria do trabalho de Freud a ser feita
por uma figura médica respeitada. As observações dele foram frequentemente
citadas por outros médicos e seus argumentos vieram repetidamente à baila.
(apud MASSON, 1986, p.162).
Apesar do desagrado de Freud, que recebeu essa resenha como uma crítica infame a
seu trabalho, de acordo com SULLOWAY, os problemas levantados acerca da realidade
daquilo que é extraído dos pacientes neuróticos através do método catártico, “dificilmente
seriam questões descabidas numa resenha esclarecida de Estudos sobre a Histeria.” (apud,
MASSON, 1986, p.172). Desde então, essas questões acerca da autenticidade e da realidade
das cenas passaram a permear todo o movimento clínico-teórico realizado por Freud durante o
ano de 1896. Todos os três trabalhos publicados durante esse ano acolhem e tentam responder
a tais críticas reunindo as evidências e os argumentos a favor da realidade do material em
questão. As evidências fornecidas pelos textos “A hereditariedade e a etiologia das neuroses
e “Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa” se encontram reagrupadas e
examinadas com maior profundidade em “A etiologia da histeria”. Nesse último, o problema é
examinado em suas duas vertentes, a do método e a da autenticidade. Quanto ao método, a
159
questão é: não ocorrerá que o médico imponha tais cenas aos pacientes? Por outro lado, como
se certificar de que aquilo que os pacientes relatam ao médico não seja pura imaginação,
invenções deliberadas, como ficar convencido da realidade dessas confissões analíticas?
3.2 As evidências em três domínios: clínico, lógico e terapêutico
Quanto às dúvidas acerca da autenticidade das cenas sexuais infantis, os argumentos
se organizam em três domínios: clínico, lógico e terapêutico. Em todos os níveis é possível
verificar que o fundamento último de tais eventos repousa sempre em sua teoria sobre a
estratificação psíquica e na hipótese clínica da sedução traumática.
O primeiro argumento decorre da observação clínica acerca do comportamento dos
pacientes durante as reproduções induzidas pela análise: “o comportamento dos enfermos
enquanto reproduzem essas vivências infantis é sob todos os aspectos incompatível com a
suposição de que as cenas não sejam uma realidade sentida com desgosto e reproduzida
com a maior relutância.” (FREUD, 1989g, p.203, grifo nosso) E acrescenta que, antes da
análise, os pacientes nada sabem sobre tais cenas, e quando estão despertando os traços
mnêmicos dessas vivências infantis, sofrem das mais violentas sensações das quais se
envergonham e as quais procuram esconder. Tentam negar-lhes a crença e afirmam nunca
terem vivido a sensação de tê-las como recordações. (FREUD, 1989g, p.203). Ainda no
domínio clínico, existem outras observações que garantiriam a realidade de tais cenas, como a
uniformidade de certos detalhes, por exemplo.
160
Contudo, Freud afirma que a prova mais forte advém das relações lógicas que se
verifica através dos traços indeléveis deixados pelas cenas infantis e suas relações com o
conjunto de toda história clínica.
É exatamente como montar as peças de um quebra cabeças infantil: depois
de muitas tentativas ficamos no fim absolutamente certos de que cada peça
corresponde a cada um dos espaços que permanecem livres – por que
somente tal peça completa a imagem, ao passo que seu contorno irregular se
ajusta perfeitamente com o contorno das outras [...], do mesmo modo as
cenas infantis provam ser por seu conteúdo como complementos
irrecusáveis à estrutura associativa e lógica das neuroses, e somente sua
inserção torna o processo inteligível – na maioria das vezes poderia dizer –
torna-o evidente por si mesmo. (FREUD, 1989g, p.204).
Ainda que a história clínica representada pelos sintomas não possa ser explicada de
outra maneira, existem evidências terapêuticas quanto à autenticidade do material infantil,
pois a análise dos casos demonstra que não se obtém nenhum avanço até que o trabalho
alcance seu término natural com a descoberta dos traumas mais antigos. (FREUD, 1989g,
p.205). O efeito terapêutico falha caso não se tenha penetrado tão fundo, e então, não resta
qualquer escolha além de rejeitar ou aceitar o conjunto. (FREUD, 1989a, p.153).
3.3 A correlação com a estratificação psicológica e as primeiras dúvidas
quanto à hipótese da sedução
Dentre os argumentos existem duas observações de Freud que consideramos
importante destacar devido à estreita articulação que elas apresentam entre as cenas sexuais
infantis e a nova hipótese sobre a constituição da memória psíquica: a primeira delas diz
respeito ao fato de que, os pacientes, quando induzidos pelo método analítico a reproduzirem
161
a cena traumática, afirmam, com freqüência, nunca terem experimentado quaisquer
recordações desses acontecimentos, mesmo quando durante essas reproduções são tomados
por sensações e afetos difíceis de negar. A segunda é uma observação correlacionada que
provém da análise dos sintomas. Freud observa que muitos sintomas retroagem a uma
modalidade infantil de sexualidade – antiga nobreza
55
– e que essas estruturas se fazem
acompanhar de numerosas sensações e parestesias dos órgãos sexuais e de outras partes do
corpo “que simplesmente correspondem ao conteúdo sensorial das cenas infantis,
reproduzidas alucinatoriamente e, com freqüência, intensificadas dolorosamente.” (FREUD,
1989g, p.212).
As duas observações estão em perfeito ajuste com o novo esquema sobre o aparelho
psíquico e permitem articular a hipótese de uma relação direta entre esse grupo de sensações e
a estratificação psicológica. (FREUD, 1988, p.282). Os traços mnêmicos que constituem os
primeiros estratos do aparelho exibem a particularidade de não estarem disponíveis sob a
forma de representações verbais. A natureza intraduzível das recordações que daí provém
somente pode manifestar seus efeitos sob a forma primária das alucinações sensoriais, uma
das poucas formas pela qual o aparelho pode vir a dispor das recordações desse período; outra
opção seriam os sonhos, como veremos adiante.
Nessa crescente tentativa de formular uma justificativa teórica adequada quanto à
questão da realidade de suas descobertas, no texto “Novos comentários sobre as neuropsicoses
55
A expressão “antiga nobreza” faz referência às sensações erógenas obtidas de diferentes partes do
corpo (posteriormente abandonadas pelo desenvolvimento) como a cavidade oral, o reto, o aparelho
urinário e seus produtos que, a exemplo das perversões, ainda não se diferenciaram de outras funções
vitais. Nos sintomas, após a repressão, a reprodução de tais sensações assume diferentes formas como:
a vontade dolorosa de urinar, sensação de defecar, distúrbios intestinais, vômito, repugnância à
comida, asfixia, todos derivados das vivências infantis. (Cf. FREUD, 1989g, p.212). Freud, em carta a
Fliess de 11 de janeiro de 1987, se refere a esse grupo de sensações erógenas como algo muito
próximo ao lugar ocupado pelos sentidos na vida sexual dos animais: “Com relação a isto, convém
recordar que o sentido principal nos animais (também para a sexualidade) é o olfato, que é deposto no
ser humano. Enquanto governa o olfato (ou o gosto), o cabelo, as fezes e toda a superfície do corpo, e
até o sangue, produzem um efeito sexualmente excitante. O aumento do sentido do olfato na histeria
sem dúvida está em conexão com isso.” (FREUD, 1988, p.282).
162
de defesa” (1896), Freud, pela primeira vez, expõe suas dúvidas, e considera a possibilidade
de que as cenas que se atribui à causa das neuroses possam ser ficções. Muito embora, não
abra mão, em momento algum, da autenticidade do material, como pudemos verificar. Ao
referir-se ao propósito do método de tornar consciente o que até então estivera inconsciente,
diz: “Eu próprio me inclino a pensar que as tão freqüentes ficções de atentados {Dichtung...}
a que se entregam as histéricas são inventos compulsivos que emergem do traço mnêmico do
trauma infantil.” (FREUD, 1989f, p.165). Em carta de 8 de fevereiro de 1987, a respeito do
lugar atribuído a sedução paterna na etiologia traumática acrescenta: “a freqüência dessa
situação, muitas vezes, causa-me estranheza.” (MASSON, 1986, p.232). Como é possível
notar, a teoria mnêmica e a etiologia sexual se mantêm inabaláveis, o que começa a ser posto
em questão é o lugar ocupado pelas fantasias na formação dos sintomas.
CAPÍTULO 4
A introdução da fantasia e a tópica inconsciente
4.1 Estruturas protetoras versus derivados das pulsões
A noção de fantasia aparece pela primeira vez na correspondência a Fliess de 6 de
abril de 1897:
O aspecto que me escapou na resolução da histeria consiste na descoberta de
uma nova fonte, da qual deriva um elemento novo da produção inconsciente.
Refiro-me as fantasias histéricas, que, segundo vejo, em geral remontam a
163
coisas ouvidas pelas crianças na mais tenra idade e só posteriormente
compreendidas. (FREUD, 1988, p.285).
A nova fonte a qual Freud se refere concerne a sua recente descoberta a respeito da
memória auditiva de seus pacientes relacionada às suas vivências sexuais e, principalmente,
em relação à cena primária de sedução. (MASSON, 1986, p.227). Nessa introdução, a
primeira coisa a destacar é o fato de que a fantasia, já de início, é situada como uma produção
inconsciente. Ao que tudo indica, Freud está sugerindo a eficácia das fantasias em dois
tempos: o tempo da impressão auditiva infantil, que não comporta nenhum elemento
cognitivo, e o tempo posterior da compreensão verbal. Mas com isso não se compreende por
que são chamadas fantasias e não simplesmente recordações.
Em 2 de maio a formulação avança mais um passo e, em relação à estrutura da
histeria, diz:
[...] adquiri uma noção segura da estrutura da histeria. Tudo desemboca na
reprodução de cenas. Umas se obtêm de maneira direta outras sempre
através de fantasias interpostas. As fantasias provêm do ouvido, porém
entendido posteriormente, e desde logo são genuínas em todo seu material.
(FREUD, 1988, p.288).
Nessas reproduções, as fantasias são definidas como estruturas protetoras,
embelezamento dos fatos, que servem também para o alívio pessoal: “são fachadas psíquicas
edificadas para bloquear o acesso às recordações. Ao mesmo tempo servem para refinar as
recordações, sublima-las.” (FREUD, 1988, p.289). Na sua origem inconsciente, combinam
aquilo que foi vivenciado pelo sujeito com aquilo que foi ouvido a respeito da história dos
pais e dos antepassados. Essa raiz nas impressões do vivido sustenta sua autenticidade. Na
mesma carta, Freud faz outro discernimento muito importante que acaba por redefinir o
próprio objeto da repressão. Reintroduz um elemento chave para a teoria do aparelho: o
impulso.
164
[...] as estruturas psíquicas que na histeria são afetadas pela repressão não
são na verdade as recordações, pois nenhum humano se entrega sem motivo
a atividade mnêmica, mas sim os impulsos que derivam das cenas
primordiais. Percebo agora que as três neuroses – histeria, neurose
obsessiva e paranóia – mostram os mesmos elementos (junto com a idêntica
etiologia), a saber: fragmentos mnêmicos, impulsos (derivados da
recordação) e ficções protetoras. (FREUD, 1988, p.288).
O impulso que desde o “Projeto...” (1895) é concebido como um derivado das pulsões,
dada à relação direta existente entre o núcleo do aparelho e o interior do corpo, aqui, mais
uma vez, é reconhecido como motivo e causa de toda atividade mnêmica. Portanto, essa nova
derivação do impulso a partir das cenas primárias, somente se justifica caso essas últimas
sejam tomadas não apenas no sentido subjetivo do termo, mas em sua acepção psíquica
representacional: enquanto representações sexuais constituídas a partir de uma vivência de
satisfação, que num segundo momento são convertidas em fontes endógenas de excitação
psíquica. Por outro lado, às fantasias, concebidas como estruturas protetoras que emergem
durante os períodos de excitação, são formadas por meio de combinações inconscientes que
visam tornar inacessíveis as representações primárias, numa tentativa de neutralizar o
desenvolvimento dos impulsos. Segundo essa tendência, sua formação implica num processo
de distorção e decomposição que resulta na falsificação das lembranças.
No manuscrito M (1897), essa distorção é descrita como uma fragmentação que rompe
as relações cronológicas, em que uma cena visual combina-se a um fragmento de uma outra
cena auditiva e assim por diante, tornando a conexão original impossível de rastrear.
56
(FREUD, 1988, p.293). Com isso, através da formação de fantasias, as cenas primárias
genuínas, assim como os impulsos que assomam através delas, cessam de se impor, porém em
seu lugar encontram-se agora substituídas e representadas por essas ficções inconscientes.
56
Também é preciso destacar que, a distorção temporal utilizada pelas fantasias se constitui como um
importante diferenciador das atividades entre os sistemas. A temporalidade no sentido do ordenamento
cronológico dos eventos mentais, a partir de então, será uma função pré-consciente completamente desprezada
pela atividade dos processos no inconsciente. (FREUD, 1988, p.294).
165
Portanto, conclui Freud, não basta considerar a repressão entre o inconsciente e o pré-
consciente, é preciso considerar que a própria formação da fantasia (ao menos até o
momento), é definida como uma formação de defesa que ocorre dentro do próprio sistema
inconsciente. (FREUD, 1988, p.294). No entanto, caso a excitação relacionada às fantasias
tome proporções que forcem sua passagem ao pré-consciente, e assim à palavra e a ação, elas
próprias, após certa permanência, são repudiadas e acabam por sucumbir a um novo processo
de repressão, gerando sintomas. Freud ainda observa que a irrupção da angústia também está
relacionada à presença dessas fantasias reprimidas, ao que segue a seguinte questão: “seria
possível que os impulsos também derivassem das fantasias?” (FREUD, 1988, p.297). Com
isso, podemos verificar como, gradativamente, as fantasias começam a ocupar o lugar e as
características anteriormente atribuídas às recordações na formação dos sintomas.
4.2 A natureza dos impulsos e as novas formações de compromisso
No manuscrito N (1897), a natureza dos impulsos que são objetos de repressão assume
formas psíquicas que irão reordenar todo o campo analítico: dão lugar a desejos hostis e
desejos sexuais. Quanto aos primeiros, Freud afirma: “os impulsos hostis contra os pais
(desejo de que morram) são, de igual modo, um elemento integrante das neuroses.” (FREUD,
1988, p.296). Mais adiante complementa: “recordar nunca é um motivo, mas apenas um
meio, um modo. O motivo primeiro da formação do sintoma é, na ordem do tempo, a libido.
(FREUD, 1988, p.298). Disso deriva a importante conclusão: “os sintomas, tal como os
sonhos, são a realização de um desejo.” Ou seja, ambas as estruturas, sonhos e sintomas,
166
finalmente convergem como decorrências de uma mesma vivência de satisfação, a vivência
sexual.
O que justifica que a libido sob a forma de um anseio sexual seja vivida como um
perigo a ser evitado pela repressão é o fato de que, esses desejos, formados a partir das cenas
primárias infantis, são desejos de natureza perversa e incestuosa ou desejos de morte contra
pessoas queridas. Nesse sentido, o desejo, para que possa de alguma forma realizar-se,
necessita atender aos requisitos da censura inconsciente dando origem a um conflito psíquico
e a formação de sintomas que consistem num compromisso entre os dois desejos em questão.
Isto acontece se o sintoma pode funcionar como castigo (a causa de um
impulso hostil ou por falta de confiança em impedir o desejo sexual). Assim
se somam então os motivos da libido e o cumprimento de desejo como
castigo. (FREUD, 1988, p.298)
.
É o que ocorre nos casos em que os pacientes desejam adoecer e se agarram ao
sofrimento como uma proteção contra a ameaça advinda de sua própria libido, ou ainda, nos
casos do desejo de morte, em que se apegam às doenças como meio de autopunição por terem
alimentado tais anseios inconscientes.
Num segundo momento, Freud remete essas descobertas clínicas à hipótese estrutural
sobre a composição dos estratos psíquicos com a qual estão correlacionadas. Na
correspondência de 7 de julho de 1897 descreve a hierarquia dos processos desde as cenas
primárias até a formação dos sintomas. Para maior clareza da descrição iremos correlacioná-la
com seu esquema tópico.
I II III
W Wz Ub Vb Bews
x x x x x x x x x x
x x x x x x x
167
A idéia é a seguinte: para que as cenas primárias em Wz (signos de percepção),
anteriores a aquisição da linguagem, sejam reorganizadas e dêem origem a um novo estrato
psíquico, Ub (inconsciente), é necessário que sejam transcritas. Devido a forte resistência
imposta pela própria forma bruta e sensorial na qual o material mnêmico Wz se encontra
disposto, assim como por sua natureza sexual, essa transcrição produz um excesso de
excitação que se converte em angústia, o que resulta num processo de defesa na própria
constituição do inconsciente Ub. O processo de defesa se dá através da formação de fantasias
que reproduzem de forma distorcida e sublimada as recordações Wz: “vejo que a defesa
contra as recordações não impede que essas dêem origem a produtos psíquicos superiores.
(FREUD, 1988, p.299). Os produtos aos quais Freud se refere nada mais são do que as
próprias fantasias. O importante é notar que a formação dessas ficções passa a ter implicações
na própria constituição dos processos no inconsciente.
Conheço mais ou menos as regras segundo as quais estes produtos se
compõem, e os fundamentos para que sejam mais intensos que as recordações
genuínas, e assim, tenho aprendido algo novo sobre a característica dos
processos no interior do Icc. Junto a este se geram impulsos perversos, e a raiz
da repressão dessas fantasias e impulsos, que logo se faz necessária, surgem
como resultado os determinismos mais elevados dos sintomas que se seguem
das recordações, e novos motivos para aferrar-se a enfermidade. Tomo notícia
de alguns casos típicos de composição dessas fantasias e impulsos, e de
algumas condições típicas para o advento da repressão contra os mesmos.
(FREUD, 1988, p.300).
168
CAPÍTULO 5
Não acredito mais em minha neurótica
Essa relativa segurança expressa em relação à composição das fantasias e seu lugar na
estrutura psíquica, Freud já havia demonstrado quando, no contexto da descoberta clínica da
participação do desejo na formação dos sintomas, comparou a formação das fantasias com o
que se dá na formação dos sonhos.
É possível acompanhar a trajetória, a época e o material da formação das
fantasias, que por outra parte é em todo semelhante à formação dos sonhos,
salvo que não é uma regressão e sim uma progressão dentro da figuração.
Relação entre sonho, fantasia e reprodução. (FREUD, 1988, p.291).
Muito embora Freud no momento não desenvolva de forma sistematizada essas
observações, o avanço clínico acerca da participação das fantasias e do desejo na estrutura das
neuroses abalou um dos pilares de sua teoria etiológica, provocando um desequilíbrio interno
duradouro na obra freudiana. Importante lembrar que esse abalo foi precedido pela
observação do prazer e da auto-recriminação nas neuroses de obsessão.
Tendo acompanhado passo a passo essa trajetória, não nos parece nada espantoso, nem
mesmo ao próprio Freud, as declarações que faz a Fliess na famosa carta 69 de 21 de
setembro de 1897:
Aqui estou eu de novo, desde ontem de manhã, reanimado, bem-disposto,
empobrecido e sem trabalho no momento [...]. E agora quero confiar-lhe o
grande segredo que pouco a pouco foi despontando em mim nessas últimas
semanas. Não acredito mais em minha neurótica. [teoria das neuroses]
(FREUD, 1988, p.301).
A descrença, sem dúvida, foi lentamente revelada pela inegável evidência da presença
efetiva da sexualidade na vida psíquica infantil. (Cf. IZENBERG, 1999). O colapso eminente
169
se deve ao fato de que, toda teoria traumática, baseada na hipótese da realidade da cena de
sedução, foi edificada sob o pressuposto da inexistência do elemento sexual na infância. Essa
concepção sobre a sexualidade a qual Freud adere inicialmente, é uma concepção ortodoxa
pacientemente montada pela biologia e pela psiquiatria do século passado [...]. Desde
Buffon e Bichat, passando por Pinel, Esquirol, Morel até Krafft-Ebbing e H. Ellis.
(MONZANI, 1989, p.29). A partir dessa tradição, o problema que se impõe a Freud é,
precisamente:
como provar a existência da sexualidade infantil se não dispomos de outro
critério da natureza sexual de um processo se não o relativo à reprodução?
(BOURGUIGNON, 1991b, p.98).
No entanto, é sobre esse pressuposto que se assenta toda eficácia da teoria do trauma.
Nessa concepção, as impressões infantis somente manifestam seu efeito quando recordadas
após a puberdade (até então considerada como o início da vida sexual para o sujeito), quando
recebem um excedente de excitação sexual que resulta num traumatismo psíquico e na
formação de sintomas. Pudemos acompanhar as alterações internas por que passou esse
esquema explicativo, ao longo dos anos de 1896 e 1897, para dar conta dos novos problemas
surgidos nesse trajeto.
5.1 No inconsciente não existe um signo de realidade
Neste progressivo deslocamento da eficácia das reminiscências traumáticas para as
fantasias na causação das neuroses, Freud, ainda nessa carta, relaciona os motivos que o
levaram a sua descrença. É importante observar que os diferentes motivos estão internamente
170
correlacionados com um mesmo problema: a refutação da hipótese da sedução e da
inexistência do desejo sexual na vida psíquica infantil.
1. O primeiro grupo é formado por motivos clínicos: o fracasso em conduzir as análises a
uma conclusão real, a debandada de pacientes, a falta de sucessos absolutos, e a
possibilidade de explicar por outras formas os sucessos parciais.
2. O segundo grupo diz da questionável probabilidade da revelação de que, na totalidade
dos casos, o pai deveria ser acusado de pervertido.
3. Em terceiro lugar, uma conclusão metapsicologica: o conhecimento seguro da
ausência de signos de realidade no inconsciente, o que torna impossível a distinção
entre verdade e ficção.
4. Quarto, a consideração de que as lembranças inconscientes que guardam os segredos
da vivência infantil não se revelam nem mesmo na mais profunda psicose.
O terceiro e quarto motivo trazem duas conclusões que visam às funções e à própria
estrutura do aparelho psíquico na sua relação com a realidade e com a teoria da formação dos
sintomas. Vejamos a primeira delas:
[...] no inconsciente não existe um signo de realidade, de modo que não se
pode distinguir entre a verdade e a ficção que foram investidas pelo afeto.
(Segundo isto, restaria a seguinte solução: a fantasia sexual se prende
invariavelmente ao tema dos pais.) (FREUD, 1988, p.302).
De acordo com as teses elaboradas no “Projeto...” (1895), a emissão dos signos de
realidade é um critério fornecido ao juízo para que o aparelho possa, durante os estados de
desejo, distinguir se está diante de uma recordação ou quando se trata de uma percepção. No
entanto, esse critério somente funciona com a condição de que seja precedido por uma
inibição dos processos primários alucinatórios por parte do eu, que tem como efeito o
redirecionamento da atenção psíquica para os signos qualitativos emitidos para as percepções.
171
Neste novo contexto, em que o aparelho essa disposto em sistemas, é bastante pertinente a
afirmação de não há signos de realidade no inconsciente. Isto se deve ao fato de que, no
interior dessa organização, os processos decorrem de forma desinibida, pois estão topicamente
isolados das funções exercidas pelo eu: “Crer (duvidar) é um fenômeno que pertence por
inteiro ao sistema do eu (Cc) e não tem contrapartida alguma no Icc.” (FREUD, 1988,
p.297).
Portanto, uma vez que as produções do inconsciente sejam investidas pelo afeto,
despertando signos de qualidade, sem serem, no entanto, inibidas pela tradução verbal que
ocorre entre os sistemas, o juízo não tem meios de discernir, nessas reproduções, o que são
recordações verdadeiras e o que são ficções; que é o que define a própria formação das
fantasias. Nesse sentido, como foi observado no “Projeto...” (1895), a recordação
inconsciente se impõe ao campo da percepção e, através de ligações falsas com elementos
intermediários entre os dois domínios, se atualiza como uma realidade perceptual para o
sujeito.
57
A conseqüência disso é que: as recordações verdadeiras nunca podem ser alcançadas
de maneira direta, no limite, o que se tem são sempre formações mistas, reproduções
mnêmicas distorcidas por um processo de decomposição e combinação inconsciente, o que
lhes permite a passagem livre e desinibida entre os sistemas.
A segunda conclusão a que Freud chega ao revelar o quarto motivo de sua descrença
está intimamente relacionada a essa primeira: “as verdadeiras lembranças, essas que
guardam o segredo das vivências infantis, não nos são reveladas nem mesmo na psicose mais
profunda.” (FREUD, 1988, p.302). Esse material mnêmico, isolado como o segredo das
vivências infantis, passa a ocupar, no esquema psicológico de Freud, o lugar de um primeiro
estrato psíquico, inacessível, permanente e eficaz, que é preciso inferir na origem dos
processos. A afirmação de que para tais traços não há signos de realidade, indica que esse
57
(Cf. Parte II, seção 6.4).
172
material ainda está sendo tratado por instrumentos teóricos advindos de outro domínio, o da
realidade subjetiva, configurada pela ação conjunta da percepção, do juízo e da memória
consciente. Ao que tudo indica, com essas constatações está-se abrindo lentamente um campo
distinto de pesquisa: um domínio do real, psíquico, porém extrínseco ao campo subjetivo, que
para ser circunscrito exige a criação de outros instrumentos técnicos e teóricos, como a
associação livre e representação tópica, por exemplo.
Da incerteza quanto aos fundamentos da “neurótica” decorre uma série de problemas
que já haviam sido superados pela teoria da sedução como, por exemplo, o importante lugar
ocupado pelos fatores adquiridos na formação das neuroses, assim como na própria
constituição do aparelho. Com a introdução das fantasias, a realidade e a preponderância
destes fatores adquiridos foram minimizados ao máximo. (MONZANI, 1989, p.43). O que
trouxe um grave inconveniente, colocando em risco a totalidade do empreendimento analítico,
pois, como o próprio autor reconhece:
Com tudo isso eu estava predisposto a uma dupla renúncia: a solução
completa de uma neurose e do conhecimento seguro de sua etiologia na
infância. [...] Assim o fator da predisposição hereditária recupera uma
jurisdição da qual eu me incumbira de desalojá-la. (FREUD, 1988, p.302).
Entretanto, Freud também dá indícios do caminho que tomará na resolução dessas
questões. Numa referência clara ao “Projeto...” (1895) e a seu redimensionamento no livro
sobre os sonhos, conclui que, apesar do abalo, o essencial do trabalho está a salvo.
58
Neste colapso de tudo o que é valioso, apenas o psicológico permaneceu
inalterado. O livro sobre o sonho continua inteiramente seguro e meus
58
Ainda é preciso notar, como observou IZENBERG (1999, p.37), que a análise das cartas desse
período, entre 1897 e 1899, torna patente às contínuas dúvidas de Freud a respeito do colapso de sua
teoria, e que, em algumas passagens tem-se a impressão de que a existência das fantasias não chegou a
abalar completamente a crença de Freud na realidade da sedução, “ele continuou explorar as fantasias
enquanto simultaneamente tentava encontrar evidências para confirmar o abuso por parte do pai.”
173
primórdios do trabalho metapsicológico só fizeram crescer no meu apreço.
(MASSON, 1986, p.267).
Tendo que, a partir dessa base, dar conta das seguintes questões:
a) Sem poder contar com o solo firme da realidade do atentado sexual, qual o referente, o
ponto de apoio real, para onde remeter a origem dos sintomas?
b) Como conceber estes processos internos ao aparelho que transcorrem entre o desejo, a
memória e a realidade nas formações de compromisso?
CAPÍTULO 6
O elemento universal e a derivação do infantil
6.1 Édipo Rei: uma compulsão
Freud, por meio da interpretação de seus próprios sonhos – que considera como algo
indispensável na resolução desses problemas – encontra as evidências de uma intensa
atividade mental relacionada ao sexo em sua própria infância. Em carta de 3 de outubro de
1897 revela: ”(entre dois e dois anos e meio) minha libido foi despertada para a matrem
59
, e
isto por ocasião de uma viagem com ela de Leipzig a Viena (...) dormimos juntos e devo ter
tido a oportunidade de vê-la nudam.” (FREUD, 1988, p.303). Em 15 de outubro (carta 71),
59
De acordo com AMACHER (1965, p.83), o termo libido parece estar sendo usado aqui como a
contraparte sexual extraída do modelo da fome.
174
duas semanas depois, afirma que nesse intervalo lhe ocorreu uma idéia, confirmada por sua
auto-análise, que julga possuir um valor universal:
Descobri, também em mim, o apaixonamento pela mãe e o ciúmes do pai,
que agora considero como um evento universal do início da infância [...]. Se
isto é assim, podemos entender o poder de atração do Édipo Rei [...], a saga
grega captura uma compulsão que cada um reconhece por que registrou sua
existência dentro de si mesmo. Cada um dos ouvintes foi uma vez em
germe na fantasia um Édipo, assim, diante da realização do sonho trazida
aqui para a realidade, recua espantado com toda força da repressão que
separa seu estado infantil do estado atual. (FREUD, 1988, p.307).
Como observou SANTI (1995, p.47), a teoria da sedução dependia de fatores
adquiridos, porém, acidentais; se Freud fundamentar o desejo infantil em componentes
universais, a teoria poderá pretender estender-se ao humano como um todo. A referência à
saga de Édipo Rei, assim como a Hamlet, nos parece também servir a esse propósito. O
elemento universal que aqui está sendo posto à prova, é algo da ordem de uma compulsão,
um acontecimento universal da primeira infância. De acordo com a metapsicologia, uma
compulsão pode ser descrita da seguinte forma: durante os intensos estados de anseio o
aparelho tende a repetir, por intermédio da formação de uma fantasia, um prazer desinibido
relacionado à memória de uma vivência de satisfação. Essa reprodução, como já foi
afirmado
60
, implica, em sua própria estrutura, na referência a um outro, pré-histórico,
inesquecível, que nunca é igualado por nenhum outro posterior, que nesse caso é
nomeadamente a mãe, o primeiro objeto do amor infantil. Importante observar também o
deslocamento em relação à fantasia, que de uma estrutura de defesa passa a assumir também a
veiculação de um desejo. Esse, por sua vez, quando transplantado para a realidade da cena
consciente, causa horror e repúdio, expressão da força repressora que separa, no aparelho, seu
estado desinibo infantil de seu estado inibido atual.
60
(Cf. Parte III, seção 2.2).
175
6.2 O caráter infantil e a coisa por detrás da repressão
Em 27 de outubro de 1897, Freud afirma que a existência e a eficácia deste estado
infantil no aparelho mantido sob repressão no sujeito adulto, pode ser observada no decurso
dos tratamentos através do fenômeno da resistência, cuja ação acaba por paralisar todo
trabalho analítico. Essa resistência diz Freud:
[...] não é outra coisa que o antigo caráter da criança, o caráter degenerativo
que se desenvolveu ou se desenvolveria como resultado daquelas vivências
que costumamos encontrar como conscientes nos casos chamados
degenerativos, caráter que aqui, porém, tem sobre si um estrato superposto
por obra do desenvolvimento-repressão. Mediante o trabalho eu o exumo,
ele se revolve; o homem que no começo era tão nobre e leal torna-se vulgar,
mentiroso ou obstinado, um simulador, até que eu lhe digo isso e assim se
torna possível superar esse caráter. (FREUD, 1988, p.308).
Em seguida, faz a importante observação de que estes traços de caráter degenerativo
se desenvolvem na criança como conseqüência de um intenso estado de anseio gerado por ter
sido afastada das vivências sexuais, e que sua formação também está relacionada à
masturbação e à formação das fantasias: “Durante este mesmo período de anseio são
formadas as fantasias e a masturbação é praticada (regularmente?), o que logo cede à
repressão.” (FREUD, 1988, p.309). Com isso, afirma Freud, o caráter infantil sob a forma de
resistência tornou-se algo real e palpável, porém, acredita que para além dessa descoberta é
necessário ainda alcançar “a coisa” mesma [sache] que se oculta por trás da repressão.
A coisa, objeto da repressão, foi anteriormente redefinida como sendo algo da ordem
dos derivados da pulsão, mais precisamente, como impulsos perversos desprendidos das cenas
primárias de satisfação. Neste momento, a questão é retomada, no entanto, aqui há uma
176
grande síntese
61
em que a sexualidade é reconhecida na primeira infância a partir de
características próprias. Assim, em 14 de novembro de 1897, Freud começa observando que,
segundo sua conjectura, na repressão cooperaria algo de orgânico que estaria originariamente
relacionado à alteração do desempenho das sensações do olfato decorrente da adoção do andar
ereto:
[...] o nariz levantado do chão e com ele se tornam repugnantes – por um
processo que, todavia desconheço – certas sensações próprias ligadas à terra
que antes despertavam interesse. [...] Ora, as zonas que no ser humano normal
e maduro não mais produzem uma descarga sexual tem que ser a região do
ânus, assim como da boca e garganta. [...] Nos animais essas zonas sexuais
seguem em vigência em ambos sentidos; quando isto persiste também nos
seres humanos, o resultado é a perversão. Devemos pressupor que, na
primeira infância, a liberação sexual todavia não está tão localizado como
depois, de modo que as zonas que depois são abandonadas (talvez também
toda a superfície do corpo) incitam algo análogo a posterior descarga sexual.
(FREUD, 1988, p.310).
Assim, essa nova liberação, produzida pela ação adiada de traços mnêmicos
inconscientes, quando relacionada às vivências ligadas ao genital, produziriam uma
compulsão à masturbação e a libido. Na medida em que estejam relacionadas a vivências
ligadas ao ânus, a boca e a cavidade oral resultariam em uma repulsa psíquica (asco), cujo
resultado final Freud correlaciona com seu esquema da estratificação e da tradução entre
sistemas:
[...] o conseqüente estado final é que uma quota de libido, não pode irromper,
como em outros casos, até a ação ou a tradução em termos psíquicos, sendo
obrigada a abrir passagem numa direção regressiva (como acontece nos
sonhos). (FREUD, 1988, p.312).
61
Os principais momentos que compõe essa síntese são estes: carta 52 (6 de dezembro de 1896), com
a noção de zonas erógenas abandonadas e sua relação com as perversões; “A etiologia da histeria” (31
de maio de 1986), com a observação de que os sintomas reproduzem de maneira dolorosa o conteúdo
sensorial das cenas infantis; “Manuscrito N” de 2 de maio deste mesmo ano, em que os impulsos dão
lugar aos desejos hostis e sexuais; e finalmente na carta de 11 de janeiro de 1897, onde relaciona o
lugar dos sentidos na vida sexual dos animas com aqueles que são encontrados nos estratos psíquicos
mais arcaicos dos sujeitos histéricos. (Cf. Parte III, seção 3.3).
177
Em “A sexualidade na etiologia das neuroses” (1898), reafirma o mesmo raciocínio
traumático que agora passa a incluir a liberação sexual na infância. Essa última, quando
recordada anos depois, produz um efeito intensificado, pois, durante o intervalo entre a
impressão e sua reprodução, tanto o aparelho somático quanto o psíquico sofrem um
importante desenvolvimento que resulta na intensificação dos impulsos; isto explica por que
a ingerência dessas vivências sexuais infantis leva a uma reação psíquica anormal: geram
formações psicopatológicas.” (FREUD, 1989h, p.273). Portanto, a teoria das psiconeuroses,
que começou a deslocar seu ponto de apoio do atentado sexual para realização de desejo,
mantém dois de seus principais fatores: a natureza traumática e adiada do efeito, e o estado
infantil do aparelho psíquico e sexual.
6.3 A fonte do inconsciente
Quanto a esse estado infantil, em 10 de março de 1898, Freud o traz para o primeiro
plano ao reconhecer que, biologicamente, a vida onírica e, consequentemente, toda vida
psíquica,
parece derivar inteiramente dos resíduos da fase pré-histórica da vida (entre 1
e 3 anos de idade), o mesmo período que é fonte do inconsciente e que
contém, sozinho, a etiologia de todas as psiconeuroses. (FREUD, 1988,
p.316).
Essa derivação que, partindo da cronologia, acaba por fornecer os resíduos necessários
à elaboração de uma tópica
62
(fonte do inconsciente), é para Freud a contraparte metapsíquica
da solução psicológica trazida pela teoria da realização de desejo.
62
Neste momento, em relação a essa transição para a tópica inconsciente, Freud já conta com o apoio
das idéias de Fechner, em carta de 9 de fevereiro de 1898, ao avaliar a literatura sobre os sonhos, diz:
178
Ainda sobre estes resíduos da pré-história infantil dos quais se deriva toda vida
psíquica, é preciso considerar que, como fonte do inconsciente, essas representações se
constituem num período da vida do sujeito em que é impossível sua tradução como
consciência verbal. Portanto, devido a essa característica, permanecem como anacronismos
topicamente isolados, não obstante, eficazes, pois sua natureza intraduzível (não inibida) é a
própria medida de sua força, cujo ímpeto se faz valer enquanto causa da atividade psíquica e
da formação de sintomas.
São essas considerações de base que permitem que Freud, na seqüência, proponha a
seguinte fórmula (síntese das descobertas): aquilo que é visto neste período pré-histórico,
resulta em sonhos; o que foi ouvido, em fantasias; e o vivenciado sexualmente, sintomas
neuróticos. A repetição do que foi vivido na pré-história do aparelho é, em si, e por si mesma,
a realização de um desejo; um desejo atual somente conduz a formação de um sonho quando
pode ligar-se ao material mnêmico dessa pré-história infantil, ou seja, quando o desejo recente
for um derivado do desejo infantil. (FREUD, 1988, p.316). É importante observar que
nenhuma dessas reproduções: sonhos, fantasias e sintomas implicam necessariamente na
tradução dos restos infantis à consciência verbal; essa última é secundária e artificial em
relação à consciência alucinatória presente nessas formações. Portanto, aí, nessas formações
de compromisso, que, em si mesmas já comportam a deformação das lembranças em prol da
realização de desejo, o desejo é alucinado, porém os motivos permanecem verbalmente
intraduzíveis; isto é o que configura a cena psíquica onde deve incidir a terapêutica
psicoanalítica.
Nas correspondências que seguem, Freud avança em mais alguns detalhes. Em 24 de
março (1898) encontra indícios de que a própria cena de sedução possa ser uma expressão
“A única idéia sensata ocorreu ao velho Fechner em sua sublime simplicidade: o processo do sonho se
desenrola num território psíquico diferente. Farei um relato sobre o primeiro mapa grosseiro desse
território.” (MASSON, 1986, p.300).
179
invertida de um desses intensos desejos infantis. Tal evidência lhe foi fornecida através da
observação de seu próprio filho, Martin. Freud nos relata que, recentemente, Martin produziu
um poema cujo tema era: “a sedução de um ganso por uma raposa”. Segundo Freud, nesse
poema, “as palavras de persuasão [do Papai raposa para o ganso] foram: Eu o amo do fundo
do coração. Venha, dê-me um beijo; você poderia ser meu favorito dentre todos os animais.”
(MASSON, 1986, p.306). Em 27 de abril, conclui que até então havia definido a etiologia de
modo muito estreito, e a parcela que se pode atribuir à fantasia é muito maior do que se
imaginara. Dois meses depois, em 20 de junho, afirma que todos os neuróticos criam aquilo
que se pode chamar de romance familiar, composto de adultérios, filhos ilegítimos e coisas
semelhantes, cujo material é fornecido pelas brigas entre os pais. De acordo com Freud, tais
ficções atendem de um lado, à necessidade de auto-enaltecimento dos sujeitos, e de outro,
servem como uma defesa, na medida em que o romance de uma filiação ilegítima os isenta em
relação ao incesto. (MASSON, 1986, p.318).
CAPÍTULO 7
A teoria da memória segundo a formação das fantasias
7.1 O mecanismo psíquico do esquecimento
Com todos esses desdobramentos tornou-se inevitável para Freud uma revisão de sua
teoria sobre a memória, peça fundamental de toda a metapsicologia. Em carta de 26 de agosto
180
(1898) a questão recebe uma primeira abordagem através da análise dos lapsos mnêmicos,
particularmente o esquecimento de nomes. O fenômeno observado é o seguinte: durante uma
conversação o sujeito quer lembrar de um nome específico e, apesar da intensa concentração
da atenção, nada se obtém. No entanto, frequentemente no lugar do nome esquecido surge um
outro, que apesar de ser incorreto, persiste em retornar.
Em dezembro de 1898 essas observações ganham uma justificativa mais sistematizada
com a publicação do artigo “O mecanismo psíquico do esquecimento”. Freud propõe explicar
o processo pelo qual tal esquecimento é produzido através da análise psíquica de suas
formações substitutivas. No exemplo dado, o esquecimento do nome Signorelli
63
é seguido
pela formação dos seguintes nomes substitutivos: Botticelli e Boltraffio. O motivo que tornou
o nome Signorelli inacessível para a recordação, que o reprimiu, está relacionado à íntima
associação desse nome com um outro curso de pensamentos anteriormente suprimidos cujo
tema era o valor que se atribui à morte e a perda do gozo sexual. O nome Signorelli, por estar
relacionado a estes pensamentos inconscientes capazes de produzirem o desprendimento de
afeto (angústia), é então isolado do decurso associativo. Porém, afirma Freud: “o tema
sufocado quer estabelecer por todos os meios a conexão com o que não está sufocado, e para
isso não se despreza o caminho da associação externa.” (FREUD, 1989i, p.284). Ou seja, o
material reprimido – morte e impotência sexual relacionados ao nome Signorelli – força a
passagem para a consciência verbal impulsionando a produção de formações substitutivas –
Botticelli e Boltraffio – cuja estrutura nada mais é do que um compromisso entre este desejo
de expressão e a resistência oferecida por certa instância psíquica. Essas formações são
produzidas através de um processo de decomposição e recombinação dos nomes, em que as
63
Pintor italiano autor de afrescos cujos temas os quais Freud se refere são: O Fim do Mundo e Juízo
Final.
181
associações são baseadas muito mais na homofonia entre as sílabas (semelhanças sonoras) do
que no nexo de significado a elas relacionado (conceito)
64
.(FREUD, 1989i, p.284).
Segundo Freud, o interesse de se esclarecer o mecanismo de um acontecimento
psíquico como esse, reside no fato de que daí pode-se extrair um modelo para os processos
psicopatológicos. Na verdade, o essencial desse modelo se encontra estabelecido desde o
“Projeto...” (1895), com a descrição dos processos primários de deslocamento e substituição.
A novidade trazida pelo presente texto está em que, primeiro, os processos aí descritos estão
implicitamente referidos a uma representação tópica do aparelho; segundo, que na descrição
do mecanismo do esquecimento Freud confere maior atenção e importância ao lugar ocupado
pela linguagem e pelas associações entre os elementos que compõe as representações verbais
no processo que leva à formação dos sintomas.
65
No que concerne às conseqüências das análises para a teoria da memória, é importante
notar que, aquilo que foi anteriormente estabelecido sobre as distorções produzidas pela
formação das fantasias, agora, através da descrição do mecanismo psíquico do esquecimento,
está sendo generalizado para a função da memória como um todo.
Cabe asseverar com total universalidade: a facilidade – e definitivamente
também a fidelidade – com que evocamos certa impressão na memória não
depende somente da constituição psíquica do indivíduo, da intensidade da
64
Cf. carta 79 de 22 de dezembro de 1897 (FREUD, 1988, p.314).
65
A diferença para com o “Projeto...”, onde os processos são descritos em termos de subtração e
transferência de excitação entre os neurônios, é que nesse momento Freud não consegue ajustar essa
explicação às formações mais complexas. Nesse artigo, o que se desloca e se substitui são as partes
que compõem os nomes, portanto um deslocamento semântico. (Cf. GABBI JR., 1991b, p.176) Em
carta de 22 de setembro de 1898 diz: “não tenho a menor inclinação a deixar a psicologia suspensa no
ar, sem uma base orgânica. No entanto, à parte essa convicção, não sei como prosseguir, nem teórica,
nem terapeuticamente, de modo que preciso me comportar como se apenas o psicológico estivesse em
exame.” (MASSON, 1986, p.327) Na passagem fica evidente o dualismo metodológico assumido por
Freud, que apesar de optar por uma descrição psicológica não deixa de sustentar as seguintes teses
que afirmar compartilhar com LIPPS: ”a consciência é apenas um órgão sensorial; todo conteúdo
psíquico é apenas uma representação; todos os processos psíquicos são inconscientes.” (MASSON,
1986, p.326).
182
impressão no momento em que era recente, do interesse que se lhe atribui, da
constelação psíquica presente, do interesse que se tenha no momento de
evocá-la, dos enlaces em cujo interior a impressão se estabeleceu, etc., mas
que também depende da atitude favorável ou desfavorável de um fator
psíquico particular que se recusa a reproduzir qualquer coisa que possa
liberar desprazer. (FREUD, 1989i, p.287, grifo nosso).
Se, por um lado, as impressões infantis mais significativas estão impedidas de serem
recordadas, (ao menos na forma convencional) em razão de sua natureza intraduzível, por
outro, as impressões que estão disponíveis a tradução verbal, para que possam ser evocadas,
precisam se ajustar à tendência geral contra o desprazer. Esse ajustamento é o que realiza o
esquecimento e a formação das fantasias, em que se pode reconhecer o lugar ocupado pela
repressão na organização das operações mnêmicas. Assim, a função da memória, como todas
as atividades no aparelho, está sujeita a restrição por uma tendência da vontade. Freud é
enfático: não se pode conceber a memória de maneira ingênua como um arquivo aberto. Tanto
as recordações quanto os esquecimentos são de natureza tendenciosas, a primazia é do
desprazer e não da autenticidade.
7.2 Pequenos avanços na teoria do desejo
As restrições impostas à facilidade e a fidelidade no exercício da função mnêmica são
decorrências diretas da descrença de Freud na teoria da sedução e da crescente importância
dada às fantasias e a libido nas formações de compromisso; fazem parte de um mesmo
movimento. Na carta de 27 de setembro (1898), por exemplo, relata a descoberta de que o
sintoma da enurese está relacionado a uma vivência infantil da excitação sexual, ao que se
segue à polêmica questão: tal excitação se dá de forma espontânea ou por sedução? Em 3 de
183
janeiro de 1899, responde: “Quanto à pergunta pelo que ocorreu na primeira infância, a
resposta é: Nada, mas existia o germe de um impulso sexual.” (FREUD, 1988, p.318). Na
correspondência de 16 de janeiro as fantasias são apresentadas como elementos chave na
resolução dos sintomas e seus desempenhos são ilustrados em três recortes clínicos. O último
deles é segundo Freud, esclarecedor: uma jovem que se apaixonara por um homem idoso de
posição elevada e de vasta fortuna, sofre dos seguintes sintomas: durante o coito é tomada de
um acesso de tremores, tem quatro ou cinco orgasmos e cai num estado de sono patológico
durante o qual fala como em hipnose; ao se recompor há uma amnésia completa. Hipótese:
isso se deve, diz Freud, a uma possível identificação desse cavalheiro com o pai imensamente
abastado da infância da moça, o que tem o efeito, evidentemente, de conseguir liberar a libido
vinculada às fantasias dela. Ele pretende casar-se com ela, com o marido certamente será
anestésica. (FREUD, 1988, p.320).
Após uma série de evidências e confirmações, em 19 de fevereiro, afirma que sua
última generalização se sustentou e parece querer alcançar proporções imprevisíveis. Não
apenas os sonhos, mas também os ataques histéricos e os demais produtos das neuroses são
realizações de desejos. Disso conclui que, nossa vida psíquica emerge de dois opostos:
realidade e realização de desejo. (FREUD, 1988, p.320). No entanto, observa uma distinção
importante entre sonho e sintoma: os sonhos estão muito mais voltados à realização de desejo,
pois são mantidos distantes da realidade da cena da vigília, já os sintomas, inseridos em meio
à vida diurna, precisam ser também a realização de desejo do pensamento repressor. O sentido
dos sintomas: um par de contrários que consegue unir-se na realização do desejo; essa chave
abre muitas portas. (FREUD, 1988, p.321).
184
7.3 Lembranças encobridoras
Diante das novas considerações, Freud se volta mais uma vez ao estudo da memória, e
neste retorno confere às fantasias um lugar fundamental na formação das recordações. Em
maio de 1899 conclui o ensaio “Recordações encobridoras”, que é publicado em setembro
desse mesmo ano. Freud parte de dois fatos consolidados por sua clínica e teoria: 1. a
importância patogênica conferida as impressões da primeira infância. 2. o fato indiscutível de
que as vivências infantis deixam traços não erradicáveis na constituição de nosso aparelho
mental. (FREUD, 1989j, p.297). Essas considerações pressupõem uma teoria da memória cuja
estrutura, composição e funcionamento podem ser sintetizados pela seguinte asserção: a
memória é constituída por traços formados a partir de impressões advindas da experiência
capazes de serem rememoradas através de sua tradução em imagens mnêmicas reprodutíveis.
(FREUD, 1989j, p.301).
Segundo a teoria, existe uma relação direta entre a importância psíquica de uma
vivência e sua retenção na memória. Assim, de acordo com essa premissa, as impressões que
são importantes devido a seus efeitos imediatos, ou por suas conseqüências posteriores, são
fixadas em imagens mnêmicas, e o que é julgado como não essencial é esquecido. No entanto,
diz Freud, algo não se ajusta com as observações, pois, se inquirimos nossa memória sobre
aquelas impressões de nossa infância que estão destinadas a permanecer e a nos influenciar
até o fim de nossas vidas, ou nada obtemos, ou bem ela nos entrega recordações isoladas e de
importância duvidosa. (FREUD, 1989j, p.297). Isso faz crer, diz o autor, que haveria uma
diferença entre o funcionamento psíquico das crianças e dos adultos no que concerne a função
mnêmica. O vínculo entre a importância psíquica e sua conservação na memória, segundo
185
essa hipótese, parece valer apenas para aquelas vivências ocorridas a partir do sexto ou sétimo
ano de vida.
Porém, os rendimentos obtidos pelo trabalho com a psicopatologia levam a questionar
essa via de explicação pela imaturidade constitucional. Freud observa que há uma estreita
analogia entre a amnésia normal e a amnésia patológica encontrada nas psiconeuroses. O
elemento comum está no fato de que em ambas o esquecimento se abate precisamente sobre
as vivências mais significativas dos primeiros anos da infância, o que fornece indícios da
íntima relação entre o conteúdo psíquico das neuroses e a vida psíquica infantil.
O problema se desloca então da imaturidade para o exame da determinação do
conteúdo das reminiscências infantis. Freud extrai de uma pesquisa realizada por V. e C.
Henri (1895) os elementos que lhe permitem aprofundar o problema. Segundo a pesquisa, a
idade a qual se referem as mais antigas recordações se encontra entre dois e quatro anos, já o
conteúdo, freqüentemente, diz respeito a situações que envolvem medo, vergonha, dor,
doenças, mortes, nascimento de irmãos e irmãs, etc. Portanto, estaria confirmada também para
o funcionamento da memória na infância a relação esperada entre a força das impressões e sua
retenção mnêmica. Entretanto, a mesma pesquisa trouxe a tona um fato diametralmente
oposto que contraria todas as expectativas; num delimitado número de sujeitos, as recordações
infantis estão enigmaticamente relacionadas com eventos cotidianos, indiferentes, e que não
possuem a capacidade de produzir qualquer efeito emocional, mesmo nas crianças e, ainda
sim, são recordados detalhadamente e com uma nitidez sensorial fora do comum. Enquanto
aqueles eventos contemporâneos que, segundo outras testemunhas, foram altamente
comoventes para o sujeito, não deixaram nenhuma imagem mnêmica. (FREUD, 1989j,
p.300).
Apesar dos autores descreverem esses casos como sendo raros, a experiência analítica
com pacientes neuróticos indica que são os mais freqüentes, e nesses, ao invés de
186
esquecimento seria mais adequado falar em omissão de elementos altamente significativos.
Com freqüência, afirma Freud, por meio do tratamento psicanalítico pode-se descobrir a peça
faltante da vivência infantil, e assim demonstrar que, a impressão da qual se reteve na
memória uma parcela realmente obedecia à premissa de que na memória se conserva o mais
importante. No entanto, o grande problema a ser esclarecido é outro, pois essa descoberta
não nos explica a rara seleção que a memória pratica entre os elementos de uma vivência;
devemos antes de tudo investigar por que o substantivo foi sufocado e se conservou o
indiferente.” (FREUD, 1989j, p.300). Essa é a questão que o ensaio “Recordações
encobridoras” pretende esclarecer, e para tanto, é preciso penetrar no mecanismo de tais
processos.
Freud expõe o processo psíquico através da seguinte figuração: duas forças psíquicas
participam da produção dessas recordações, uma delas toma como motivo a importância da
vivência para ser recordada, a outra se opõe como resistência à seleção. Essas forças de
efeitos contrários não se cancelam entre si, e nenhuma delas predomina sobre a outra, o que
sobrevém é a formação de um compromisso cujo resultado é: o que é fixado numa imagem
mnêmica reprodutível não é a vivência desagradável, e sim outro elemento psíquico a ela
associado. A recordação substituta, aparentemente indiferente, somente justifica sua
persistência e sua nitidez sensorial através da relação associativa que mantém com o material
que fora reprimido. Esse é um dos casos mais simples em que os elementos essenciais de uma
vivência são representados na memória pelos menos importantes. Isso se faz por meio de um
processo de “deslocamento para alguma coisa associada por contigüidade, ou tendo em vista
o processo na sua íntegra, uma repressão com substituição por algo próximo (no espaço e no
tempo).” (FREUD, 1989j, p.301).
Segundo Freud, a série operativa – conflito, repressão e substituição com formação de
compromisso – é um processo que se verifica na formação de todos os sintomas
187
psiconeuróticos. São hipóteses sobre processos de defesa tal qual foram estabelecidas no
“Projeto...” (1895), cuja descrição mais detalhada é preciso aguardar as futuras investigações,
pois ainda não foi possível “comprovar em que estratos da atividade psíquica atuam e sobre
quais as condições que passam a operar”. (FREUD, 1989j, p.302). Nesses termos, todo
processo teria por fundamento a seguinte asserção, (que também aguarda comprovação): uma
intensidade psíquica é deslocada de uma representação e transferida à outra que passa a
desempenhar o papel psicológico da primeira.
7.4 A produção da cena inconsciente
Freud propõe o relato de um caso (autobiográfico) em que é possível acompanhar o
processo de formação das recordações. Segundo o caso, a recordação a ser analisada
corresponde ao 2º e 3º ano de vida do sujeito que na ocasião do relato tem a idade 38 anos. A
cena se refere a um grupo de recordações relacionadas à partida do sujeito de sua bem
afortunada terra natal para uma vida difícil num grande centro urbano. Porém, seu conteúdo
lhe parece algo bastante indiferente, o que torna incompreensível sua fixação. A recordação
possui as seguintes características: é uma cena curta, entretanto, muito bem conservada e
provida de todos os detalhes da percepção sensorial, ao qual se opõem as imagens mnêmicas
da maturidade nas quais está inteiramente ausente o elemento visual. (FREUD, 1989j, p.303).
A cena é a seguinte: trata-se de uma pradaria verde onde há grande número de flores
amarelas. No alto uma casa de campo e a frente de sua porta duas mulheres conversando. Três
crianças brincam na grama, uma delas é o sujeito em questão (aos 3 anos), as outras duas um
primo um ano mais velho e uma prima da mesma idade que a do sujeito. Estão colhendo
188
flores e os meninos arrebatam as flores da garotinha que sai correndo em prantos e é
consolada pela camponesa que lhe dá um pedaço de pão. Os garotos correm na direção da
casa e também ganham uma fatia, o pão tem um sabor inigualável.
Nessa cena infantil, dois elementos se destacam por sua intensidade sensorial: o
amarelo das flores e o sabor do pão. Ambos representam à presença de duas fantasias
posteriores projetadas na infância que contribuíram para a formação da lembrança. A peça
chave que leva a sua interpretação é o fato de que essa recordação nunca lhe ocorrera na
infância, e as duas ocasiões que levaram a sua restituição datam da idade de 17 anos.
A primeira delas lhe ocorreu quando pela primeira vez retornou ao lugar de onde
nasceu e foi hospedado por uma família cuja amizade data desde sua pré-história infantil. O
sujeito também se recorda que é filho de pais que eram originalmente abastados e levavam
uma vida bastante confortável naquele lugar. Quando tinha 3 anos adveio uma catástrofe nos
negócios do pai e então perderam tudo, sendo obrigados a mudarem para a cidade grande e
disso seguiram longos e difíceis anos. Nesse retorno, também se encontrou com a filha de
seus hospedeiros por quem se apaixonou: “foi esse meu primeiro amor, muito intenso, mas o
mantive em completo segredo” (FREUD, 1899j, p.306). Ao se separarem o sujeito passava
muitas horas construindo castelos no ar que procuravam melhorar o passado: “se ao menos a
catástrofe não tivesse ocorrido” (FREUD, 1899j, p.306), teriam crescido juntos e se amado.
Depois de alguns anos, a moça casou-se, e hoje, fato que lhe causa estranheza, a moça é
alguém para ele completamente indiferente.
O segundo evento que suscitou a formação da recordação refere-se a uma visita que
fez três anos depois a seu tio, momento em que se encontrou com os primos que tinham sido
seus primeiros companheiros de infância, os mesmos que participam da cena. A família do tio
também abandonou a terra natal, porém, prosperaram em outra cidade. Na ocasião seu pai e
seu tio pareciam combinar um casamento do sujeito com sua prima como um modo de
189
compensar a grande perda que se abatera sobre a família. Em troca o sujeito teria de
abandonar seus estudos e trocá-los por uma atividade mais prática junto aos negócios da
família, o que lhe daria uma vida mais confortável, não tendo que lutar tanto por seu pão de
cada dia.(FREUD, 1989j, p.308).
Esses elementos, e outros detalhes fornecidos pelo sujeito, levam a seguinte
interpretação: o intenso amarelo das flores está relacionado, para esse sujeito, à cor amarela
do vestido da moça por quem se apaixonara, portanto, trata-se de uma fantasia de
defloramento; já o sabor delicioso do pão corresponde à fantasia de uma vida confortável.
Assim, as duas fantasias se projetaram uma sobre a outra e daí se constituiu uma recordação
de infância. (FREUD, 1989j, p.309). Uma criação inconsciente, ao modo de um trabalho de
ficção, acionado num momento de grande aspereza e insatisfação, que teve o intuito de
melhorar o passado e dessa forma corrigir o presente, o que tornaria possível a realização de
dois desejos insatisfeitos: o sexual e o de uma vida confortável.
Muito embora esse seja o resultado de uma ficção, segundo o relato do sujeito, existe
um sentimento de que a cena recordada é autêntica. Em geral, não se tem garantia alguma
quanto ao que é fornecido pela memória, observa Freud, no entanto, se a cena é autêntica, ela
deve ter sido selecionada devido ao conteúdo – em si mesmo indiferente – pois era apta para
figurar as duas fantasias que haviam adquirido profunda importância para o sujeito. (FREUD,
1989j, p.309). Uma recordação como essa, cujo valor consiste em representar na memória,
mediante elos simbólicos, impressões e pensamentos de um tempo posterior, Freud denomina
recordações encobridoras. No caso descrito, sua aparente inocência está destinada a ilustrar e
a encobrir os mais importantes pontos críticos da vida do sujeito, a influência das duas mais
poderosas forças pulsionais: a fome e o amor.
No entanto, não se compreende por que tais fantasias destinadas a representar essas
forças pulsionais não possam ser fantasias conscientes que o sujeito possa se lembrar. Freud
190
faz notar que tais fantasias, a princípio, podem ser conscientes, entretanto, elas são
continuadas em pensamentos inconscientes, por exemplo: o sujeito, no auge das urgências da
vida e de sua timidez juvenil, pensa: “se eu tivesse casado com essa ou aquela menina, minha
vida se teria tornado muito mais agradável”. Por traz desse pensamento há um impulso de
formar uma cena ao qual pertence o “estar casado”. A formação dessa cena que prolonga a
fantasia consciente precisa ser disfarçada
66
, portanto é continuada no inconsciente. A esse
propósito serve o caminho alusivo de uma cena infantil que permite, ao mesmo tempo, figurar
e descaracterizar o desejo de agressão sexual grosseira representado pela cena inconsciente.
(FREUD, 1989j, p.310).
Freud descreve o processo: a corrente sensual apropria-se do pensamento “se eu
tivesse casado com essa ou aquela menina” e o repete em imagens (representações) capazes
de proporcionar uma satisfação sensual. Essas imagens representam uma segunda versão do
pensamento que permaneceu inconsciente. Por ter permanecido inconsciente, a cena persistiu
inalterada mesmo depois que sua versão consciente se transformou conforme as alterações de
sua realidade. (FREUD, 1989j, p.310). Enquanto inconsciente a cena, por meio de formações
substitutas, foi transformada numa cena infantil por meio da qual poderia tornar-se
consciente. Ao que segue duas novas re-configurações: uma que retira da cena o material
chocante expressando-o por uma alusão figurativa (arrancar as flores de uma menina); outra
66
É importante observar que Freud relata apenas uma parte da fantasia, aquela que diz dos devaneios
conscientes, já sua verdadeira continuação no inconsciente não é apresentada. Como faz notar GABBI
JR. (1991, p.176), Freud sabia, desde o primeiro instante, que se sentira atraído pela jovem e que
recriminara o seu pai pela situação econômica na qual se encontrava. “Portanto, esses elementos não
podem ser responsabilizados pela distorção produzida. A motivação está na relação que os elementos
criaram com outros cuja tradução para o sistema pré-consciente se acha bloqueada”: os desejos
edípicos. Essa observação se justifica devido ao fato, primeiro, de que o caráter primordial e
estruturante dos desejos infantis incestuosos e desejos vingança se encontra plenamente estabelecido
nas cartas que antecedem o artigo. (Cf. Parte III, cap. 6). Segundo, que o próprio relato da cena
informa o caminho que a análise deveria seguir quando diz: “foi esse meu primeiro amor, muito
intenso, mas o mantive em completo segredo”, e a acusação: “se ao menos a catástrofe não tivesse
ocorrido” [teriam se amado] (FREUD, 1899j, p.306). Do ponto de vista metapsicológico a presença
estruturante dos desejos edípicos também está assinalado pelos elementos quase alucinatórios
presentes na recordação infantil.
191
que impõe a segunda parte da oração, “minha vida teria se tornado muito mais agradável”,
uma forma susceptível de figuração visual através de uma representação intermediária (o
sabor delicioso do pão). Assim, a formação da fantasia serviu para a satisfação de dois desejos
sufocados, o de defloramento e o de conforto material. Esclarecidos os motivos que levaram a
formação da fantasia (desejos insatisfeitos), Freud chega a importante conclusão: com as
fantasias “se trata de algo que jamais acontecera, mas que fora ilicitamente contrabandeado
entre minhas recordações de infância.” (FREUD, 1989j, p.311).
Contudo, essa encenação de algo que teve apenas uma possibilidade de existir
67
, não
tem meios de se produzir a não ser que haja um traço de memória cujo conteúdo ofereça um
ponto de apoio à fantasia; no caso apresentado “o arrancar as flores”, por exemplo. Mesmo
que a recordação tenha sido falseada, seu material bruto fora utilizado, caso contrário não
teria sido possível para essa recordação em particular ter-se tornando consciente. Por outro
lado, algumas imagens mnêmicas não se adequam ao sentido requerido pela fantasia, o que
demonstra que “a fantasia não coincide por completo com a cena infantil, somente se apóia
em determinados pontos. Isto depõe a favor da autenticidade da recordação.” (FREUD,
1989j, p.312).
Freud considera que as lembranças encobridoras não são elementos heterogêneos entre
o restante de nossas recordações infantis e, ao que tudo indica, essas formações participam do
próprio estabelecimento de nosso tesouro mnêmico. De acordo com as considerações, a
premissa de que as recordações são geradas simultaneamente com o vivenciar como
conseqüências imediatas das impressões que depois são reproduzidas, precisa ser revista, pois
67
Essa admissão de uma memória daquilo que teve apenas a possibilidade de existir é um momento
decisivo para a teoria da fantasia e do desejo. Conforme GABBI JR. (1991, p.177), desde o
“Projeto...” a memória teve sempre a função de evitar o desprazer, como o desejo decorrente da
vivência de satisfação sempre levava ao prazer, não havia motivos para deformá-lo. A partir das
cartas, como analisamos, houve uma alteração com a consideração do prazer na neurose que tornou
necessário pensar a memória como uma função produtiva capaz de distorcer e encenar o desejo que, se
deixado a si mesmo, levaria ao conflito e ao desprazer. Com essa reformulação da memória que inclui
a deformação, abriu-se a possibilidade de haver recordações de coisas que nunca ocorreram, no
entanto, tiveram uma possibilidade de existir, ou seja, foram desejadas.
192
os estudos realizados pelos Henris (1895) também trazem evidências de que “as imagens
mnêmicas não podem ser um repetição fiel da impressão sentida.” (FREUD, 1989j,p.314).
Isto pode ser provado pelo fato de que em muitas das recordações o sujeito aparece nelas
como um objeto, quando, no evento original estava no meio da situação e não atentava para si
mesmo, isto é um sinal, diz Freud, de que a impressão original foi refundida.
Tudo parece como se aqui o traço de memória da infância tivesse sido
retraduzido em uma forma plástica e visual numa época posterior (a época do
despertar da recordação). Sendo assim nunca se introduziu em nossa
consciência a reprodução da impressão originária. (FREUD, 1989j, p.314).
Isto não quer dizer que as recordações são completas invenções, mas sim que, a
própria passagem da impressão original para o estabelecimento de uma imagem mnêmica
reproduzível implica em transformações que são, por natureza, tendenciosas, “pois servem
aos fins da repressão e da substituição das impressões chocantes ou desagradáveis.”
(FREUD, 1989j, p.315). Esses são fundamentos gerais que se podem comprovar com
regularidade em todos os casos e não somente em pacientes neuróticos. Portanto, as imagens
mnêmicas que resultam do conflito são sempre formações substitutas, e essas são as primeiras
de que tomamos conhecimento. Já “o material cru dos traços de memória, a partir do qual a
recordação foi forjada, permanece desconhecido para nós em sua forma originária.”
(FREUD, 1989j, p.315). Esse entendimento, afirma Freud, reduz o abismo entre as
recordações encobridoras e o restante das recordações infantis, até mesmo torna-se duvidoso
que haja alguma lembrança da infância, parece ser mais adequado que as recordações tenham
sido formadas em um período posterior.
Nestes tempos de despertar, as recordações de infância não emergiram, como
se costuma dizer, mas sim que neste momento elas foram formadas. E
inúmeros motivos, sem nenhuma referência a fidelidade histórica, participam
de sua formação, assim como sobre a seleção das recordações. (FREUD,
1989j, p.315).
193
7.5 Do real dos traços a realidade das fantasias
Desse importante ensaio de Freud sobre a memória, no qual culmina toda elaboração
advinda da superação da hipótese da sedução, podemos depreender dois domínios de
realidade que começam a tomar consistência: o real inacessível dos traços mnêmicos e a
realidade das fantasias. A fantasia inconsciente começa a obter um estatuto de realidade mais
definido a partir do momento em que permanece inalterada e eficaz face às transformações da
realidade subjetiva. O ensaio sobre as recordações traz muitos elementos que serão retomados
no próximo trabalho “A interpretação dos sonhos” (1900), e que permitem à delimitação da
formação e da eficácia deste domínio de realidade conferido às cenas inconscientes: se trata
de algo que jamais acontecera, porém, fora vivido intensamente enquanto desejo. O que não
retira nada da autenticidade e da realidade da formação, pois como foi examinado, esse
movimento só se realiza se tiver como ponto de apoio os traços de memória. Os traços de
realidade são re-trabalhados pelos processos e traduzidos em imagens e cenas capazes de
proporcionar a satisfação dos impulsos irrepreensíveis que formam o núcleo infantil de nosso
aparelho mental. A formação dessas cenas é, em linhas gerais, o problema que a
“Interpretação dos sonhos” visa esclarecer fornecendo uma explicação que fundamente a
operação de acordo com a estrutura e funcionamento de um aparelho psíquico devidamente
redimensionado.
194
PARTE IV:
A CIRCUNSCRIÇÃO DO INFANTIL E O DOMÍNIO DO REAL:
A PRIMEIRA TÓPICA FREUDIANA
195
No prefácio à primeira edição da “Interpretação dos sonhos” (1900) Freud expõe as
razões que o levaram ao estudo da formação onírica.
Nesta tentativa de expor a interpretação dos sonhos não creio haver
ultrapassado o círculo de interesse da neuropatologia. Com efeito, o exame
psicológico mostra que o sonho é o primeiro membro de uma série de
produtos psíquicos anormais; outros membros são as fobias histéricas, as
representações obsessivas e as delirantes, as quais o médico tem de ocupar-se
por razões práticas. Como se verá, o sonho não pode reivindicar uma
importância prática; não obstante, tanto maior é seu valor teórico como
paradigma, e quem quer que tenha falhado em explicar a origem das
imagens oníricas se esforçará em vão por compreender as fobias, as idéias
obsessivas e as delirantes, e inclusive, exercer sobre elas uma influência
terapêutica. (FREUD, 1987f, p.17, grifo nosso).
O valor e o alcance dessas afirmações logo perdem o caráter aparentemente arbitrário
se tomadas numa perspectiva histórica e epistemológica que as situe no centro de uma
problemática cujo ponto de partida data dos primeiros anos do encontro de Freud com a
histeria e a hipnose. Com efeito, o que se nos apresenta nessa abertura deve ser tomado como
resultado e consolidação de um longo desenvolvimento clínico e conceitual que a presente
pesquisa tentou situar minimamente seus momentos constitutivos. No entanto, a extensão e o
alcance das questões postas pela obra exigem uma restrição nos temas a serem tratados.
Assim, não será possível, nos limites dessa investigação, retomar o trabalho já estabelecido
nas três partes antecedentes em relação ao passo a passo da origem de suas teses
68
, bem como
68
Ao leitor que queira localizar a origem e o desenvolvimento da problemática em questão o
remetemos aos “Artigos sobre hipnotismo e sugestão” (1888-92), (Cf. Parte I, seção 1.2) ; ao trabalho
“Estudos sobre histeria” (1893-1895) em que se pode verificar o lugar e a importância das recordações
que assumem a forma de cenas muitas vezes alucinadas durante o tratamento. (Cf. Parte I, seção 4.3.).
Ao próprio “Projeto de uma Psicologia” (1895) onde se apresenta a primeira teoria sobre os sonhos
enquanto realização alucinatória de desejo e sua correlação com as primeiras vivências de satisfação.
(Cf. Parte II, cap. 2, cap.5). O trabalho realizado nas cartas a Fliess (1896-1899), onde se pode
verificar a busca pela delimitação das cenas primárias não disponíveis a tradução verbal consideradas
como a fonte do inconsciente de onde deriva toda a vida onírica e responsável pela etiologia de todas
as neuroses. (Cf. Parte III, cap.6). E mais recentemente o artigo “Lembranças encobridoras” (1899)
onde se estabelece o lugar das fantasias na formação das recordações e na produção das cenas
psíquicas inconscientes, base dos sintomas. (Cf. Parte III, cap. 7).
196
os detalhes das evidências fornecidas por meio da análise dos sonhos, o exame crítico da
literatura
69
, seus impasses e conclusões. O que se propõe nessa quarta e última parte do
trabalho é o tratamento de um problema em particular que segundo o próprio autor não deixa
de ser o coração de todo o empreendimento, qual seja: explicar a origem das imagens
oníricas.
A carta 84 de 10 de março de 1898
70
, bem como o último artigo analisado sobre as
“Lembranças encobridoras” (1899), permite situar a dimensão que a origem e a formação da
cena psíquica inconsciente adquiriram ao longo de todos os anos que separam o “Projeto...”
(1895) da “Interpretação dos Sonhos” (1900).
71
Seja na hipnose, nos ataques histéricos, nas
alucinações, sonhos, fantasias ou recordações, o enigma da origem e do sentido das imagens
organizadas sob a forma de cenas primárias sempre foi uma questão para a estrutura e o
tratamento das neuroses. O que se pretende demonstrar é a forma que esse problema é tratado
e explicado pela nova teoria do aparelho psíquico, que, no limite, acaba por conferir um
estatuto de realidade inédito ao desejo inconsciente inferido como causa dessas formações.
69
Cf. GABBI JR. (1991a) “A leitura freudiana das teorias pré-psicanalíticas sobre o sonho”.
70
(Cf. Parte III, seção 6.3).
71
(Cf. Parte III, seção 7.5).
197
CAPÍTULO 1
O sonho é a realização disfarçada de um desejo reprimido
1.1. A deformação onírica: o manifesto e o latente
A “Interpretação dos sonhos” (1900) em seu capítulo inicial apresenta os seguintes
objetivos, pretende demonstrar e dar provas de que:
1º. Existe uma técnica apropriada para se interpretar os sonhos.
2º. Essa nova técnica revela o sonho como uma estrutura psíquica provida de
sentido.
3º. É possível assinalar o lugar do sentido dos sonhos nas atividades
psíquicas da vigília.
A partir dos resultados daí obtidos se propõe a:
4º. Elucidar os processos que dão ao sonho o caráter de algo estranho e sem
sentido.
5º. Desde os processos remontar a natureza das forças de cuja ação contrária
nasce o sonho. (FREUD, 1987f, p.29).
Dentre esses objetivos iremos nos concentrar em três deles: o 3º, 4º e o 5º que estão
mais diretamente relacionados com os propósitos do trabalho; os outros dois primeiros serão
tratados na medida em que auxiliem no tratamento do problema em questão.
A tese fundamental de que o sonho é uma realização de desejo já se encontra
plenamente estabelecida no contexto da primeira teoria da constituição do aparelho psíquico a
partir de suas vivências primárias. Contudo, no “Projeto...” (1895), a aparente falta de sentido
198
dos sonhos se dava por uma dissolução passiva e temporária das funções do eu, ou seja, não
havia lugar para a repressão na formação dos sonhos. Enquanto que, no sintoma, a distorção
decorria de um processo ativo contra a recordação traumática, porém, o trauma não guardava
relação alguma com o desejo. Portanto, entre sonho e sintoma havia apenas uma relação de
analogia baseada em seus processos primários de deslocamento e condensação.
72
No período
das cartas, principalmente no Manuscrito N de 1897, ambas as estruturas convergem como
derivadas de uma mesma vivência de satisfação, a vivência sexual infantil.
73
A partir de então
o desejo passa a ocupar um lugar central na formação dos sintomas e a repressão decorrente
da censura e do desprazer passa a ser investigada a partir do estudo da memória e da formação
das fantasias.
74
Assim, desde essa perspectiva o que há de essencialmente novo nesse trabalho
de 1900 é o reconhecimento da repressão também para os sonhos, o que tornou possível
aplicar as formações oníricas os mesmos procedimentos utilizados para a elucidação dos
sintomas. (MANIAKAS, 1994, p.48).
No capítulo IV da “Interpretação...” (1900) a deformação nos sonhos é inserida como
argumento para rebater a uma série de objeções contra a tese de que o sentido de todo e
qualquer sonho é a realização de um desejo. As objeções a essa generalização (baseada em
exemplos analisados no capítulo III) vão desde sonhos de conteúdos penosos, sonhos de dor e
desprazer até os sonhos de angústia. Freud argumenta que as objeções podem ser refutadas
pela consideração de que sua doutrina não se apóia unicamente no conteúdo manifesto do
sonho, mas que discerne nesse, mediante o trabalho de interpretação, um conteúdo de
pensamento latente. “Ao conteúdo manifesto do sonho lhe contrapomos o conteúdo latente.”
(FREUD, 1897f, p.154, grifo do autor). É verdade, argumenta Freud, que existem sonhos cujo
conteúdo manifesto provoca desprazer, contudo, o exame da literatura especializada realizada
72
(Cf. Parte II, seção 5.1.).
73
(Cf. Parte III, seção 4.2.).
74
(Cf. Parte III, cap.7).
199
no capítulo I indica que nenhum autor foi capaz de interpretar os sonhos para descobrir atrás
deles seu conteúdo latente. Assim, segue sendo possível que tais sonhos após sua
interpretação se revelem como realização de desejos.
O segundo argumento a favor dessa tese é evocado mediante a seguinte questão: por
que o sonho não diz diretamente, sem disfarce, seu sentido? A esse disfarce Freud denomina
desfiguração onírica
75
, e mais adiante afirma: onde a realização de desejo é irreconhecível
deve de existir uma tendência à defesa contra esse desejo, em conseqüência disso o desejo
não pode expressar-se de outro modo que desfigurado.” (FREUD, 1987f, p.160). A analogia
com a censura política exercida por sistemas autoritários contra escritores de oposição é
bastante adequada, ao ponto mesmo de permitir supor, afirma Freud, que os sonhos adquirem
sua forma mediante a ação simultânea de dois poderes ou sistemas. O primeiro sistema forma
o desejo, o segundo exerce a censura e obriga a deformação. Desde o primeiro sistema, onde
se formam os pensamentos latentes nada chega à consciência e ao conteúdo manifesto sem ter
passado pela ação crítica do segundo sistema. Isso permite conceber que o torna-se consciente
é um ato psíquico distinto e independente do processo de formação de uma representação. A
consciência nesse conflito entre instâncias ocupa o lugar de um órgão sensorial que percebe
apenas o resultado final de um processo que se inicia em outro lugar. (FREUD , 1987f,
p.163).
Diante dessas hipóteses, que serão devidamente justificadas quando correlacionadas
com a constituição do aparelho psíquico, as objeções feitas pelos sonhos de conteúdo penoso
contra a tese da realização de desejos podem ser respondidas pela seguinte consideração: o
conteúdo penoso serve ao propósito de disfarçar o desejado, ou ainda, de que conteúdo do
75
Como apoio e esclarecimento da presença da desfiguração onírica Freud fornece a análise de um
sonho próprio intitulado: “Tio da barba dourada”, ou ainda, “Meu amigo R. é meu tio”. (Cf. FREUD,
1987f, p.155).
200
sonho é penoso para a segunda instância, contudo, realiza o desejo da primeira de onde parte
o impulso para a formação onírica.
Na seqüência Freud analisa uma série de sonhos apresentados como provas contrárias
a sua tese
76
e conclui após a interpretação que: o sentimento de desprazer não exclui a
existência do desejo, pois há em todo ser humano desejos que prefeririam não revelar aos
outros, e ainda, desejos que não admitem se quer a si mesmos. Assim, a analise dos sonhos de
desprazer exige uma modificação na fórmula que expressa a essência do sonho que passa a
incluir a desfiguração: “o sonho é a realização (disfarçada) de um desejo (reprimido).”
(FREUD, 1987f, p.177).
77
CAPÍTULO 2
O material e a fonte dos sonhos: a memória onírica
2.1. Não existem excitadores oníricos indiferentes
As evidências oferecidas pelo reconhecimento da repressão nas formações oníricas
permitem retomar algumas contradições levantadas pela literatura. Com efeito, pondera
Freud, tais problemas podem ser devidamente esclarecidos quando se parte da descoberta da
76
Entre os sonhos analisados está o famoso sonho de uma de suas pacientes histéricas, o sonho do
“Salmão defumado” que realiza o desejo de ter um desejo insatisfeito; também analisa outros sonhos
cujo conteúdo manifesto versa sobre a morte de pessoas queridas entre outros. (Cf. FREUD, 1987f,
p.164-176).
77
O maior obstáculo dessa formulação advém, segundo Freud, dos sonhos de angústia. Sua hipótese é
de que esse afeto no sonho não deve ser atribuído ao conteúdo manifesto e sim a vida sexual neurótica,
pois, segundo nos informam as neuroses, os sonhos de angústia também decorreriam do fato de que a
libido não encontrou aplicação psíquica e se transformou em afeto livre, desligado de seu conteúdo
representacional. (FREUD, 1987f,p.178); (Cf. Parte II, seção 6.2.).
201
existência de um conteúdo onírico latente significativamente mais importante na configuração
do sonho que o conteúdo manifesto.(FREUD, 1897f, p.180). Freud retoma três observações
acerca do nexo do sonho com a vigília e da origem do material onírico que põem em questão
as particularidades da memória nos sonhos, são elas:
1º. O sonho dá preferência a impressões do dia anterior.
2º. A seleção do material onírico se dá de tal forma que o indiferente é
recordado e o essencial é esquecido.
3º. Encontra-se a disposição da formação onírica impressões triviais da
mais remota infância a muito esquecidas.
O fato dos autores abordarem essas características da seleção do material onírico a
partir do seu conteúdo manifesto põe obstáculos a sua elucidação. Freud, por sua vez, propõe
examiná-las a partir do conteúdo onírico latente obtido mediante trabalho de interpretação.
Quanto à origem dos elementos que emergem no conteúdo dos sonhos, oferece a
seguinte tese: “em todo sonho se descobre um ponto de contanto com as vivências do dia
anterior.” (FREUD, 1987f, 182). A análise demonstra que o caminho mais direto para a
interpretação é a investigação das vivências diurnas recentes que suscitaram o sonho.
78
Contudo, os sonhos também indicam a possibilidade de que a fonte excitadora, uma
impressão recente, possa levar a recordação de uma impressão mais antiga. “O sonho pode
tomar seu material de qualquer época da vida, contanto que desde as vivências do dia do
sonho (impressões recentes) até aquelas mais antigas haja uma linha de pensamento.”
(FREUD, 1987f, p.186).
Resta saber ao que se deve a preferência pelas impressões diurnas geralmente
indiferentes no conteúdo onírico. As associações oferecidas pela análise do “Sonho da
monografia botânica” demonstram que se trata de um fenômeno de desfiguração. Dentro do
78
Os sonhos analisados nos capítulos anteriores que tornaram evidente esse caminho de interpretação
são “O sonho da injeção de Irmã” e o sonho “Tio da barba dourada”.
202
conteúdo manifesto a impressão diurna indiferente é empregada como uma alusão a outro
tema latente que a análise descobre como fonte onírica efetiva. O processo psicológico que
responde pelas particularidades dessa operação em que uma vivência indiferente assume o
lugar e o valor psíquico de uma outra é o processo de deslocamento. Esse se constitui como
uma conseqüência da censura psíquica que opera na passagem entre as duas instâncias acima
mencionadas. (FREUD, 1987f, p.193).
Freud ainda observa que as relações entre diferentes impressões não pré-existem,
somente são tecidas posteriormente pelo trabalho do sonho com vistas a tornar viável o
deslocamento. Assim, parece haver uma necessidade, para que se cumpra à formação do
sonho, de que se estabeleçam essas conexões entre as impressões recentes, mesmo que
triviais, e as fontes oníricas genuínas, pois, “do contrário, seria igualmente viável que os
pensamentos oníricos deslocassem seu acento a um elemento indiferente de seu próprio
círculo de representações.” (FREUD, 1897f, p.194). A pergunta que se impõe é então: qual a
contribuição das impressões diurnas indiferentes ao conteúdo do sonho? Uma parte da
resposta seria: tornar possível o deslocamento e representar por meio de alusão o grupo de
representações de seu genuíno excitador. Contudo, continua Freud, é preciso dar um passo e
formular uma outra questão: a fonte do sonho localizada mediante análise deve ser um
acontecimento recente? Resposta: O excitador do sonho pode ser um processo interior, como
uma recordação de uma vivência provida de valor psíquico que durante o dia tornou-se
recente de algum modo pelo trabalho de pensamento. (FREUD, 1987f, p.195).
Feito esses discernimentos iniciais quanto ao trabalho de deformação Freud conclui
que isso torna possível sustentar a seguinte tese: não existem excitadores oníricos indiferentes,
consequentemente não há sonhos inocentes. Na seqüência apresenta a análise de uma série de
cinco sonhos cujo conteúdo manifesto aparentemente inocente, simultaneamente, oculta e
203
representa temas e questões sexuais latentes cuja interpretação nos leva muitas vezes a épocas
remotas da vida do sujeito.(FREUD, 1987f, p.198-203).
2.2. O infantil como fonte dos sonhos
A terceira peculiaridade examinada da atuação da memória nos sonhos é a capacidade
de recordar impressões vividas na mais remota infância que se encontram inacessíveis à
memória da vigília: os sonhos são hipermnêsicos.
79
Geralmente, a literatura tende a fornecer
as provas de que se trata de impressões infantis por meio de confirmações objetivas,
recorrendo a testemunhos externos. Contudo, somente a análise pode revelar os motivos que
levam aquele que sonha a reproduzir tais impressões. Mais ainda, afirma Freud, se passamos
do conteúdo manifesto aos pensamentos do sonho que somente a análise descobre,
comprovaremos a cooperação de vivências infantis mesmo em sonhos cujo conteúdo não
havia suscitado semelhante suspeita.
80
(FREUD, 1987f, p. 205). Freud pretende sustentar
através de uma outra série de sonhos que a análise permite não apenas verificar a cooperação
das vivências infantis, mas sim, demonstrar algo fundamental:
Em outra série de sonhos a análise nos ensina que o desejo mesmo que
excitou o sonho, e do qual esse se apresenta como sua realização, nasce da
vida infantil, de modo que para nosso assombro encontramos no sonho a
criança que segue vivendo com seus impulsos. (FREUD, 1987f, p.2006).
79
No exame da literatura Freud discute o “fato assombroso” e de “grande importância teórica” do
sonho dispor de recordações que são inacessíveis durante a vigília. A forma pela qual a memória se
comporta no sonho permite sustentar a tese de que toda impressão, até a mais insignificante, deixa um
traço inalterável, indefinidamente susceptível de reaparecer em nosso aparelho psíquico (Cf. FREUD,
1987f, p.38).
80
Fato esse que pode ser observado na análise do “Sonho da monografia botânica”, por exemplo. (Cf.
FREUD, 1987f, p.189).
204
O primeiro exemplo fornecido é um trecho do sonho autobiográfico “Meu amigo R. é
meu tido” cuja análise do conteúdo manifesto reconduz as vivências infantis que deram
origem à ambição doentia que leva o sujeito a maltratar no sonho dois eminentes colegas, um
como idiota e outro delinqüente, como forma de realizar desejos grandeza e de vingança
pertencentes a sua primeira infância. (FREUD, 1987f, p.206). O segundo exemplo é uma
série: “Sonhos sobre Roma” que realizam o desejo infantil de igualar-se ao general Aníbal e a
outros heróis que representam no sonho a tenacidade dos judeus contra o anti-semitismo
diante do qual o sonhante teve que se posicionar desde muito cedo. (FREUD, 1987f, p.208).
Quanto mais nos aprofundamos na análise de um sonho, afirma o autor, mais nos
aproximamos dos rastros das experiências de infância que desempenharam um papel
importante como fontes de seu conteúdo latente. Como é o caso do entusiasmo bélico desse
último exemplo que representa uma transferência de uma relação de afeto já formada desde
os jogos, ora amistosos, ora hostis, com companheiros de infância, para objetos atuais.
(FREUD, 1987f, p.211). Nesse caso, trata-se de formas de relação com o semelhante
consolidadas na infância e que foram substituídas na vida adulta por transferências: “as
vivências infantis mais antigas não as temos mais como tais, porém foram substituídas na
análise por transferências e sonhos. [...] Transferências para o presente de velhos modos de
pensar e agir.” (FREUD, 1987f, p.199). Geralmente, tanto no caso do sonho como com a
transferência, a cena infantil encontra-se representada no conteúdo manifesto por meio da
alusão, e é a ela que a interpretação deve chegar.
Na seqüência Freud apresenta cinco breves reconduções ao material infantil a partir de
sonhos de pacientes seus
81
e dois sonhos próprios intitulados: “Sonho das três Parcas” e
“Sonho do Conde Thun”. Com os dois últimos pretende dar provas de que motivos recentes
81
As impressões infantis obscuras ou mesmo esquecidas descobertas nesses sonhos referem-se muitas
vezes a vivências que datam dos três primeiros anos de vida. Dizem respeito a jogos e traquinagens
sexuais, a insaciabilidade do amor infantil, as impressões intensas causadas pelo testemunho de cenas
amorosas, ameaças contra a curiosidade sexual etc.
205
podem unir-se a vivências infantis esquecidas como fontes dos sonhos. O sonho das Parcas
tem como motivo atual o estímulo da fome durante o dormir, o sonho do Conde o estímulo é a
vontade de urinar. Ambos, após analisados conduzem vivências e desejos infantis inocentes
que fazem anteparo a desejos mais sérios impedidos de aparecer abertamente. No primeiro, a
análise demonstra o caminho associativo percorrido desde o estimulo da fome até a formação
de uma cena que recorda o anseio pela mulher como provedora do amor e do alimento: – “No
peito da mulher coincidem o amor e fome” – bem como o assombro da criança vivido frente à
descoberta da inevitável submissão humana à morte que lhe fora transmitido por sua
mãe.(FREUD,1987f, p.218). Já o segundo trata-se de um sonho cujo estímulo da micção se
associa a uma cena infantil que recorda a “rebelião contra o pai” devido uma reprimenda
sofrida aos sete anos por ter infringido as regras da discrição exibindo seu órgão sexual e
urinado na presença de ambos os pais. Nessa ocasião o pai lhe pronunciou um veredicto:
“Esse menino nunca chegará a nada”. Recorda que vivera a repreensão paterna como um
golpe grave contra aquilo que reconhece como um ridículo delírio de grandeza e ambição a
muito sufocado na vigília e que ousara aparecer no sonho.(FREUD,1987f, p.229).
Esses exemplos esclarecem o sentido da afirmação sobre a descoberta de que
encontramos nos sonhos a criança que segue vivendo com seus impulsos e traços de caráter.
A essa fonte onírica em particular sufocada na vigília Freud designou como “o infantil”.
Apesar das análises terem confirmado sua existência, não foi possível explicá-la tal como foi
feito em relação à preferência pelas impressões indiferentes como conteúdo do sonho,
reconduzindo-as a desfiguração e a censura. Essa explicação deve aguardar as elucidações
posteriores acerca da estrutura do aparelho psíquico. Contudo, pretende-se dar provas de que
mesmo que os sonhos relevem múltiplos sentidos e reúna várias realizações de desejo que vão
se sobrepondo uns aos outros, o último da base deve ser uma realização de desejo da primeira
infância.(FREUD, 1897f, p.232).
206
2.3. Pensar e vivenciar são uma e a mesma coisa
No curso das interpretações Freud faz uma pontuação importante para a teoria da
realidade. Trata-se de uma sentença que faz parte do próprio conteúdo do sonho “Conde
Thun” que diz: penso num plano para tornar-me imperceptível e no mesmo momento vejo o
plano realizado. “Pensar e vivenciar são, por assim dizer, uma e a mesma coisa.” (FREUD,
1987f, p.234).
82
Primeiro, é preciso observar que tal equiparação confere ao pensamento uma
materialidade sensório-visual que empresta forma e vivacidade aos traços mnêmicos infantis e
a realização de desejo. Segundo, a particularidade do tempo na operação: penso e
imediatamente vejo realizado. Porém, antes de afirmar qualquer estatuto de realidade ao
pensamento onírico é preciso aguardar maiores esclarecimentos quanto à contribuição do
material provindo das impressões e estímulos atuais na configuração sensível da qual resulta o
trabalho que leva a formação do sonho.
82
Mais adiante, numa nota de rodapé, ao comentar o sentido dessa frase no sonho, a contextualiza na
teoria da formação dos sintomas
: “A versão do sonho “Pensar e vivenciar são uma e a mesma coisa”
aponta para a explicação dos sintomas histéricos. Não é preciso explicar aos vienenses o princípio dos
“Gschnas”; consiste em produzir objetos de aparência rara ou valiosa a partir de um material trivial
(...) como gostam de fazê-los nossos artistas (...). Eu tinha observado que os histéricos fazem o
mesmo; junto ao que realmente lhes aconteceu criam inconscientemente em sua fantasia eventos
atrozes ou dissolutos, construídos sobre o mais inocente e trivial material de vivências. E dessas
fantasias dependem os sintomas, não das recordações dos fatos reais, sejam eles graves ou igualmente
inocentes. Esse conhecimento me ajudara em muitas dificuldades e me causou grande alegria.”
(FREUD, 1987f, p.231, grifo nosso).
207
2.4. A elaboração da excitação somática e os propósitos do sonho
Diante disso resta encontrar um lugar dentro da doutrina dos sonhos para os estímulos
somáticos, tanto os nervosos como por exemplo, a fome, dor, micção, quanto para os
sensoriais externos, tidos por muitos autores como a principal, quando não a única fonte
excitadora do sonho. De acordo com essa doutrina médica do estímulo somático o sonho é
compreendido como uma reação psíquica inútil e enigmática frente à estimulação durante o
estado de sono: “os sonhos decorrem da indigestão”, por exemplo, não deixando lugar algum
para motivos psíquicos na formação onírica.(FREUD, 1987f, p.235). Seu ponto fraco,
segundo Freud, está em não conseguir explicar a seleção do material e relação que se
estabelece entre os estímulos somáticos e o conteúdo representativo do sonho (FREUD,
1987f, p.236). Também se deve considerar que os estímulos dessa natureza não compelem
necessariamente ao sonhar, uma vez que diante de um estímulo existe uma variedade de
reações possíveis, portanto, a formação do sonho não poderia acontecer se o motivo do sonhar
não se situasse fora das fontes somáticas de estímulo. (FREUD, 1987f, p.237). Contra as
insuficiências dessa doutrina pretende-se demonstrar que:
1. O sonho possui um valor próprio como ação psíquica.
2. O desejo se constitui como o motivo de sua formação.
3. As vivências da véspera proporcionam ao conteúdo o material mais
próximo. (FREUD, 1987f, p.240).
Segundo o trabalho do sonho, todo estímulo onírico, independente de sua fonte, é
fusionado e elaborado numa unidade de ação. O material onírico sob a forma de traços
208
mnêmicos também é reunido e adquire (sem que se possa explicar por hora) a qualidade de
ser atual: uma ação no tempo presente. O que ocorre se a essas atualidades mnêmicas se
agrega enquanto se dorme um novo material de sensações? As novas sensações são reunidas
com outras atualidades psíquicas a fim de fornecer o material para formação do sonho: “os
estímulos que surgem enquanto dormimos são elaborados dentro de uma realização de desejo
cujos outros ingredientes são os restos psíquicos diurnos que já conhecemos.” (FREUD,
1987f, p.240). Portanto, a essência do sonho não varia quando as suas fontes se agregam um
material somático ou outro qualquer, ela segue sendo a realização de desejo.
Porém, segundo Freud, há uma outra conseqüência que se pode extrair dessas
observações sobre os estímulos que revela um dos segredos do sonho como tal: “em certo
sentido todos os sonhos são sonhos de comodidade; servem ao propósito de continuar
dormindo ao invés do despertar.” (FREUD, 1987f, p.245). O desejo de dormir, ao qual o eu
consciente e a censura se concentram, é reconhecido como sendo um desejo universal,
distinto da necessidade, invariavelmente presente e estreitamente relacionado com os demais
desejos realizados nos sonhos. A invariabilidade desse desejo se faz valer, por exemplo, pela
seguinte situação: quando estímulos nervosos externos ou internos alcançam intensidade
suficiente ao ponto de atrair a atenção psíquica e disso resultado a formação de um sonho ao
invés do despertar, as sensações constituem-se como um ponto firme para a formação, um
núcleo de material onírico. Contudo, essa é uma situação em que o conteúdo do sonho é
ditado pelo elemento somático, pois para que se mantenha o dormir é necessário encontrar
uma realização de desejo que incorpore e anule a capacidade da sensação de provocar o
despertar: que a despoje de sua realidade.
83
(FREUD, 1987f, p.246-247). É preciso considerar
83
Essa é uma das razões pela qual o estímulo não é reconhecido no sonho em sua verdadeira natureza,
com certas considerações isso também se pode aplicar a vida da vigília. Um dos sonhos analisados que
fornece evidências de uma elaboração onírica dessa natureza é o sonho autobiográfico nomeado:
“Cavalgada (furúnculo)”. (Cf. FREUD, 1987f, p.241). Outros exemplos de como as necessidades
corporais se ligam a impulsos mais intensos e sufocados são os dois sonhos acima apresentados
“Sonho das Três Parcas” e “Conde Thun”.
209
a existência na vida psíquica de desejos reprimidos, pertencentes à primeira das instâncias
psíquicas e recusado pela segunda.(FREUD, 1987f, 247). No caso da sensação atual ser de
natureza dolorosa ou penosa recorre-se a representação desses desejos cuja realização
provocaria desprazer. Nesse ponto Freud enfrenta novamente o problema levantado pelos
sonhos de angústia, e a realização de desejos reprimidos é novamente evocada para dar conta
da presença do desprazer nos sonhos.
84
Porém, aqui a explicação avança alguns passos com a
reintrodução da idéia, bastante utilizada em trabalhos anteriores, de inibição
85
entre os
sistemas e de considerações acerca da forma de existência dos desejos reprimidos garantida
pela permanência de determinados arranjos psíquicos.
Como temos sabido, na vida psíquica existem desejos reprimidos que
pertencem ao primeiro sistema cuja realização o segundo resiste. A
expressão “existe” não a entendemos historicamente, a saber, que tais
desejos estiveram presentes e depois se os aniquilou; o que afirma a
doutrina da repressão, da qual não se pode prescindir no estudo das
psiconeuroses, é que tais desejos reprimidos seguem existindo, mas ao
mesmo tempo uma inibição pesa sobre eles. Em linguagem corrente: se diz
que tais impulsos estão sufocados. O dispositivo psíquico para que tais
desejos sufocados abram caminho para a realização se conserva e segue
sendo susceptível de uso.
86
Caso ocorra que um desses desejos sufocados
se cumpra, e a inibição do segundo sistema (susceptível de consciência) seja
vencida, isso se exterioriza como desprazer. (FREUD, 1987f, p.247).
Os demais tipos de estímulos que se impõe ao sonho desde o interior do corpo como a
cinestesia corporal, por exemplo, desempenham um papel semelhante às impressões diurnas
que permanecem recentes, embora indiferentes. Tais sensações, selecionadas de acordo com o
84
(Cf. Parte IV, seção Deformação onírica).
85
(Cf. Parte II, seção 2.2 e 2.3; Parte III, seção 2.2).
86
Ao que tudo indica Freud está se referindo a sua teoria da memória e representação estabelecida no
“Projeto de uma psicologia” (1895). Segundo essa teoria tal dispositivo psíquico susceptível de uso é
constituído por facilitações abertas pela experiência nas barreiras de contato entre os neurônios psi das
quais resultam traços mnêmicos permanentes inerradicáveis do que fora vivido. No caso presente os
traços passam a responder pela memória daquilo que existiu apenas enquanto possibilidade, ou seja,
daquilo que fora apenas desejado. (Cf. Parte III, seção 7.3).
210
propósito do sonho, são fundidas ao conteúdo representacional advindo de suas fontes
psíquicas e tratadas como material barato e prontamente disponível.
CAPÍTULO 3
Sonhos típicos e a psicologia do desejo infantil
3.1. Sonhos de embaraço por desnudez
Outra classe de sonhos examinados são aqueles designados sonhos típicos, que
suscitam um interesse particular, pois, dada sua tipicidade se pode presumir que eles surgem
das mesmas fontes em todos os casos. Portanto, parecem particularmente apropriados para o
esclarecimento das fontes dos sonhos. (FREUD, 1987f, p.252).
O sonho de embaraço por desnudez é o primeiro a ser considerado; seu conteúdo
manifesto versa sobre o estar nu ou mal vestido em presença de estranhos. Porém, pondera o
autor, tais sonhos somente interessam à análise quando são acompanhados de vergonha e
embaraço, diante de que se quer fugir ou ocultar-se, e no entanto, sobrevém uma estranha
inibição que impede o sujeito de mover-se ou de alterar a situação embaraçosa. “O essencial
[em sua forma típica] é a sensação penosa, a vergonha que leva ao desejo de ocultar a
desnudez (quase sempre pela locomoção) e não poder fazê-lo.” (FREUD, 1987f, p. 253).
Algumas características se destacam nesses sonhos: as pessoas diante de quem o sujeito se
envergonha geralmente são desconhecidas, indeterminadas, e demonstram completa
indiferença ao fato. A vergonha de quem sonha se apresenta incompatível com a indiferença
211
de quem vê; adequado seria se os estranhos o olhassem com assombro, indignação ou risos de
zombaria. A incompatibilidade sugere que esse traço chocante foi eliminado pela realização
de um desejo desfigurado pela atividade consciente e moralizante do segundo sistema
psíquico.
Contudo, sabemos, sustenta Freud, que o contexto em que emergem tais sonhos
durante as análises de neuróticos não deixa dúvidas que na base do sonho há uma recordação
da primeira infância. (FREUD, 1987f,p.254). Observações diretas e cotidianas de crianças
pequenas corroboram a tipicidade dessas ocorrências recordadas:
Somente em nossa infância foi o tempo em que familiares, amas,
empregadas e visitas nos viram sem roupas, e nessa época não nos
envergonhávamos de nossa desnudez. Em muitas crianças pode-se observar,
inclusive em idade não tão precoce, que sua desnudez lhes produz algo
como uma embriaguez no lugar de envergonhá-los. Riem, dão saltos ao
redor, se golpeiam o corpo, até que a mãe ou quem está presente os
repreende. (...) É freqüente que as crianças mostrem um impulso de
exibição. (FREUD, 1987f, p.255, grifo nosso).
Freud também pontua que existem elementos culturais que confirmam o alcance de
tais observações sobre a infância desprovida de vergonha. Como é o caso da fantasia coletiva
a respeito do Paraíso onde os homens estão nus e não sentem vergonha uns dos outros, até o
momento que a vergonha é despertada juntamente com a angustia. Sendo expulsos do Paraíso,
começam a vida sexual e o trabalho da cultura.
87
(FREUD, 1987f, p.255). Os sonhos
permitem retroceder a esse paraíso perdido todas as noites, pois, de acordo com a teoria da
memória, as impressões do período pré-histórico (até os 3 anos aproximadamente), em si e
por si mesmas, demandam reproduções cuja repetição é a realização de um desejo. “Os
sonhos de desnudez são então sonhos de exibição”. (FREUD, 1987f, p.255).
87
O autor também pontua as relações que julga não serem nada contingentes entre o material oferecido
pelos sonhos típicos e as sagas, em particular a situação de Odisseu quando apareceu nu e coberto de
lama diante dos olhos de Nausicaä e suas aias. (Cf. FREUD, 1987f, p.257).
212
As características incompatíveis acima citadas referentes ao conteúdo manifesto:
vergonha injustificada diante de pessoas estranhas e indiferentes, podem ser melhor
compreendidas se considerarmos que o sonho nunca se constitui como uma simples
recordação.
88
Os estranhos representam o exato oposto das pessoas a quem se dirigiu o
interesse sexual na infância, ou melhor, aquela única pessoa, bem familiar, para quem se
oferece o desnudamento.
89
A repressão também explica a sensação penosa como resultado da
reação do segundo sistema psíquico diante do conteúdo da cena de exibição. A sensação de
paralisia tão freqüente é, por sua vez, muito apropriada para representar o conflito entre o
propósito inconsciente e a exigência da censura. (FREUD, 1987f, p.256).
90
3.2. Sonhos de morte de pessoas queridas
A outra série de sonhos considerados como típicos são aqueles cujo conteúdo versa
sobre a morte de pessoas queridas, entre elas, pais, irmãos, filhos etc. Esses sonhos
geralmente se dividem em duas classes: a primeira delas em que o sujeito não é afetado pela
dor do luto e quando desperto lhe provoca assombro a falta desse sentimento, e a segunda em
que se vive uma profunda dor pela morte do ente querido acompanhada de choro e amargura
mesmo antes de acordar. Os sonhos do primeiro grupo, segundo Freud, não podem ser
considerados como sonhos típicos. A análise revela que o tema da morte nesses últimos se
destina a ocultar outros desejos que não dão lugar a dor, daí a completa ausência de seu
88
(Cf. Parte III, seção 7.3).
89
(Cf. Parte III, seção 2.2).
90
Entre as evidências oferecidas a favor da correção dessas hipóteses encontra-se a análise do sonho
autobiográfico denominado: “Encontro na escada com uma mulher de serviço”. (Cf. FREUD, 1987f,
p.249-25;257).
213
registro no sonho.
91
Diante disso deve-se considerar que o afeto despertado pelo sonho não
pertence ao seu conteúdo manifesto, mas sim ao latente, e em contraste com o que ocorre com
as representações, o conteúdo afetivo se encontra livre da deformação.(FREUD, 1987f,
p.259).
Freud, diante das compreensíveis objeções que sua tese possa suscitar, pretende
explicar e dar provas de que: os sonhos em que é representada a morte de uma pessoa querida
seguida do registro do afeto doloroso, são sonhos que expressão o desejo de que essa pessoa
morra. (FREUD, 1987f, p.259). Contudo, tais sonhos não são utilizados como provas de que o
desejo de morte de entes queridos seja um desejo atual, “a teoria do sonho não exige tanto; se
conforma a inferir que lhes tenha desejado a morte em algum momento da infância.”
(FREUD, 1987f, p.259).
Dito isso, Freud recorre a uma série de apontamentos recolhidos da observação direta
de crianças que visam restaurar o que chama de um fragmento esquecido da vida psíquica
infantil. A primeira delas se refere à relação da criança com seus irmãos. Não há razões para
crer que essa deva ser uma relação amável, pondera Freud, pois os exemplos de hostilidade e
desavença entre irmãos se impõem à experiência de todos. A criança maior maltrata e denigre
a menor, lhe toma seus brinquedos, e o menor por sua vez, se consome em fúria impotente
contra o opressor, e lhe endereça seus primeiros impulsos de liberdade e consciência do que é
justo. Os pais testemunham tais hostilidades e com freqüência relatam que seus filhos não se
suportam.
Não é difícil ver que o caráter da criança não é o que desejaríamos encontrar
em um adulto. A criança é absolutamente egoísta, sente com intensidade
suas necessidades e luta impiedosamente para satisfazê-las, em particular
contra seus rivais, as outras crianças, e em primeiro lugar contra seus
irmãos. (FREUD, 1987f, p.260, grifo nosso).
91
Alguns sonhos dessa natureza são apresentados por Freud no capítulo IV dedicado a deformação
onírica. Ali alguns sonhos de morte que versam sobre o infanticídio são apresentados como objeções à
tese da realização de desejo. Porém, as análises revelam que a morte nesses casos serve como material
intermediário para realização de outros desejos, fato esse mais uma vez confirmado pela ausência de
registro do afeto de dor. (Cf. FREUD, 1987f, p.170).
214
Contudo, não se pode dizer que a criança pequena seja má, pois é de se esperar que a
moral e os impulsos altruístas ausentes se desenvolvam ainda dentro dos limites da infância,
portanto, o pequeno egoísta deve ser encarado apenas como uma criança levada que ainda não
pode responder por seus atos. (FREUD, 1987f, p.260). Nos casos em que a moralidade não se
desenvolve e o caráter primário infantil permanece desinibido, aí sim se pode falar em
degeneração e perversidade. Muito embora, deva-se observar que esse caráter primário
mesmo que recoberto e inibido pelos desenvolvimentos posteriores pode abrir caminho nos
casos patológicos. Na histeria, por exemplo, é bastante chamativa a coincidência do caráter
histérico com o de uma criança travessa. A hiper-moralidade característica das neuroses
obsessivas, outro exemplo, devém de um reforço contra a emergência desse caráter primário e
infantil.
Essas observações que visam pontuar a indestrutibilidade do caráter infantil permitem
inferir e sustentar a possibilidade de que os adultos possam trazer consigo desejos infantis,
permeados de hostilidade, que se realizam nos sonhos. Na seqüência Freud afirma que a
observação da conduta de crianças de até 3 anos em relação a seus irmãos recém nascidos
desperta um especial interesse. Com essa idade as crianças têm plena noção dos prejuízos
causados com a chegada do estranho e sofrem intensamente com o sentimento do ciúme,
desejando seu desaparecimento como forma de que a vida volte a ser como antes.
92
Não havendo dúvida quanto à presença de impulsos hostis na relação entre irmãos,
resta elucidar os motivos que levam uma criança a desejar a morte de seus competidores e
companheiros como se não houvesse outro castigo que pudesse expiar tais faltas. No entanto,
pondera o autor, tal idéia de morte na criança é bastante peculiar.
92
Na seqüência Freud apresenta uma série de breves relatos de observações de crianças pequenas que
corroboram suas afirmações. (Cf. FREUD, 1987, p. 261-262).
215
A criança nada sabe dos horrores da putrefação da carne. (...) Para as
crianças, que além do mais são poupadas das cenas de sofrimento que
precedem à morte, estar morto significa o mesmo de estar longe, e não
molestar mais os sobreviventes.(...) Portanto, se a criança tem motivos para
desejar a ausência de outra criança, nada o retém para não vestir esse desejo
com a forma da morte. (FREUD, 1987f, p.263-264).
Não obstante, não se vê como o implacável egoísmo infantil pelo qual se explica o
desejo de morte em relação aos irmãos competidores possa também explicar o desejo de
morte em relação aos pais. Por duas razões: os pais são para as crianças aqueles que lhe
dispensam amor e satisfazem suas necessidades, assim, preserva-los iria de encontro aos
motivos egoístas. Aqui Freud se empenha em apresentar uma longa bateria de argumentos e
evidencias sobre esse desejo de morte em específico. O ponto de partida é a observação
colhida da experiência de que com muita freqüência o homem sonha com a morte do pai e a
mulher com a morte da mãe. Mesmo que por hora não se possa afirmar que isso ocorra
universalmente se pode dizer que
as coisas se apresentam como se desde muito cedo se abre caminho para uma
preferencial sexual, como se o menino visse no pai, e a menina na mãe,
competidores no amor, cujo desaparecimento não lhes traria a não ser
vantagens.(FREUD, 1987f, p.265, grifo nosso).
A observação cotidiana das relações reais entre pais e filhos, argumenta Freud,
esconde muitos motivos de hostilidade, e são inúmeras as situações que propiciam a
emergência de desejos censuráveis. Os exemplos fornecidos pela cultura demonstram que o
conflito entre pai e filho, por exemplo, é imemorial. As mitologias e sagas são testemunhos
dessa hostilidade nas sociedades antigas, Freud cita o despotismo paterno de Cronos que
devora seus filhos, e a insurreição de Zeus que castra o pai e toma-lhe o lugar. Desde a família
antiga até a família burguesa são muitas as circunstâncias que favorecem o desenvolvimento
do germe de hostilidade contido nessa relação.(FREUD, 1987f, p.266). A relação entre filha e
216
mãe também esconde conflitos, principalmente nos casos em que a mãe comporta-se como
um obstáculo a liberdade sexual da filha. Todas essas observações que dão o contexto de
onde emerge o desejo de morte dos pais devem ser reconduzidas aos seus fundamentos na
primeira infância e aos desejos sexuais da criança. As análises confirmam que a primeira
inclinação sexual da menina se dirigiu ao pai e os primeiros desejos infantis do menino
apontaram para a mãe, assim, para o menino o pai torna-se um rival e para a menina sua mãe;
cada qual deseja tomar o lugar do rival e o faz se identificando com ele, uma inclinação
bastante comum de se observar enquanto brincam: “Agora eu sou a mamãe...”. Nesses
conflitos deve-se ter em mente que para as crianças obter o amor exclusivo de um adulto não
se reduz à satisfação de uma necessidade particular, também significa que sua vontade será
obedecida em tudo mais. (FREUD, 1987f, p.267).
93
Esses desejos que facilmente se traduzem como desejos de morte, de que o opositor
esteja sempre ausente a fim de que se possa conservar o lugar junto ao pai ou a mãe amada,
não exclui que a menina também ame a mãe e o menino o pai. Freud, após pontuar pequenas
observações de crianças, dá três exemplos colhidos de análise de neuróticos adultos que
confirmam isso que a psicologia infantil descreve. (Cf. FREUD, 1987f, p.267). O segundo
exemplo é bastante esclarecedor devido à contribuição da análise dos sonhos. Trata-se de uma
jovem paciente sua que durante a enfermidade atravessou diversos estados psíquicos. A fase
inicial foi marcada por uma excitação confusional durante a qual agredia a mãe e insultava
toda vez que essa se aproximava do leito, ao mesmo tempo em que se mostrava dócil e
amorosa com uma irmã mais velha. Esse estado fora seguido por um segundo de lucidez e
apatia com um sono muito agitado no qual teve início a análise dos sonhos. Tais sonhos em
93
Em nota a um sonho do filho de seu amigo Fliess de menos de 4 anos Freud acrescenta a seguinte
observação: “As crianças não abrigam um desejo mais ardente do que serem grandes, e de assim
obterem tantas coisas como os grandes; é difícil se contentarem, nada lhes basta, pedem
insaciavelmente a repetição do que gostaram e lhes fizera bem. Somente a cultura, por meio da
educação, os ensina a medida, a moderar-se, a resignar-se. Como é sabido, também o neurótico se
inclina ao sem medida e ao desmesurado.” (FREUD, 1987f, p.276).
217
sua grande maioria versavam sobre a morte da mãe de maneira mais ou menos velada, ora
tratava-se do enterro de uma velha, ora de um estado de luto com a ausência da mãe. Com a
melhora de seu estado surgiram às fobias, entre elas o intenso medo de algo acontecesse a sua
mãe que lhe obrigava constantemente a verificar se ainda estava viva. Esse caso combinado
com outras experiências, afirma Freud, foi altamente instrutivo:
mostrava numa tradução a várias línguas, por assim dizer, diferentes modos
de reação do aparelho psíquico frente a mesa representação excitante. No
estado de confusão, que concebi como a dominação da segunda instância
psíquica pela primeira, normalmente sufocada, a hostilidade inconsciente para
com a mãe adquiriu poder no plano motor; depois, quando sobreveio o
primeiro apaziguamento, sufocada a revolta, se estabeleceu o império da
censura e a hostilidade somente encontrou abertura onde pudesse realizar o
desejo pela morte da mãe através dos sonhos; acentuada a normalidade, deu
origem a exagerada preocupação para com a mãe como contra-reação
histérica e um fenômeno de defesa. Dentro dessa concatenação não é mais
inexplicável que as jovens histéricas mostrem um apego tão exagerado as suas
mães.(FREUD, 1987f, p.268).
Segundo suas experiências que não são poucas, pondera o autor, os pais ocupam um
lugar central na vida psíquica infantil, estar apaixonado por um dos progenitores e odiar o
outro é um dos constituintes do material de impulsos psíquicos configurados nessa época
como “um patrimônio inalterado de enorme importância para a sintomatologia da neurose
posterior”. (FREUD, 1987f, p.269). Contudo, tais desejos apaixonados e hostis não parecem
ser exclusivos de crianças que posteriormente se tornaram adultos neuróticos, uma vez que
isso também se observa com muita freqüência em crianças normais. A hipótese é de que se
trata de um patrimônio universal da vida psíquica infantil.
218
3.3. Oedipus Rex e Hamlet: um patrimônio psíquico inalterado e universal
Nesse contexto, em apoio a essa generalização, Freud insere sua análise da saga de
Oedipus Rex
94
cuja eficácia total e universal somente se compreende se é também
universalmente válida nossa hipótese sobre a psicologia infantil.” (FREUD, 1987f, p.270). A
ação do drama centrada na revelação do assassino de Laio é comparada por Freud com o
trabalho de uma psicanálise. O efeito trágico milenar da saga de Édipo rei, sua capacidade de
comover até mesmo o homem moderno, se deve unicamente por que poderia ter sido o nosso
próprio destino: “deve haver algo em nossa interioridade, uma voz predisposta a reconhecer
o império fatal [a força compulsiva] do destino de Édipo” (FREUD, 1987f, p.271). Trata-se
da realização de um desejo infantil, pois como demonstram as análises e observações, é bem
possível que todos os humanos dirijam o primeiro impulso sexual para suas mães e o primeiro
ódio e desejo violento para seus pais. Porém, retrocedemos espantados diante da realização
desses desejos antigos que permanecem reprimidos pela ação da censura, observa Freud, ao
passo que
o poeta, no curso da investigação vai trazendo à luz a culpa de Édipo, nos vai
forçando a conhecer nossa própria interioridade, de onde aqueles impulsos,
embora sufocados, seguem existindo.(...) Como Édipo, vivemos na ignorância
desses desejos que ofendem a moral, desses desejos que a natureza forçou em
nós, e depois de sua revelação desejaríamos todos fechar os olhos para as
cenas de nossa infância.(FREUD, 1987f, p. 272).
A poesia trágica de Hamlet, segundo Freud, se enraíza no mesmo material de Édipo,
muito embora seja tratado de maneira diversa devido a um suposto “progresso secular da
repressão” que separa os dois períodos da história psíquica humana que essas tragédias
representam. (FREUD, 1987f, p.273). Em Édipo, idêntico ao que ocorre no sonho, a fantasia
94
O valor da saga de Oedipus Rex foi sugerido pela primeira vez a Freud pela análise de seus próprios
sonhos. (Cf. Parte III, seção 6.I).
219
de desejo infantil sufocada é trazida à luz e realizada. Quando que, em Hamlet, esta fantasia
permanece reprimida, e somente averiguamos sua existência, as coisas se encadeiam aqui
como numa neurose, por suas conseqüências inibidoras.” (FREUD, 1987f, p.273). Hamlet
não consegue vingar a morte do pai, mas os motivos de sua vacilação o texto não confessa.
Freud faz notar que Hamlet se encontra impedido contra si mesmo de vingar-se justamente do
homem que matou seu pai e tomou-lhe o lugar junto à sua mãe. A hipótese é de que Hamlet se
identifica com o assassino do pai, e que isso lhe remete aos seus próprios desejos infantis
reprimidos. Assim, o horror que deveria movê-lo a vingança é substituído por escrúpulos e
auto-censuras incompreensíveis.(FREUD, 1987f, p.274).
95
Antes de prosseguir Freud reforça algumas considerações anteriormente apresentadas
sobre aquilo que demonstra ser à base dessas formações oníricas que põe em cena o desejo de
morte de pessoas queridas: o egoísmo da alma infantil. Sua tese é de que
todos os sonhos são absolutamente egoístas, em todos emerge o querido eu,
mesmo que disfarçado. Os desejos que neles se realizam são via de regra
desejos desse eu; que algum sonho possa engendrar-se por outro interesse não
é senão uma ilusão enganadora. (FREUD, 1987f, p.276, grifo nosso).
96
95
Os outros dois sonhos típicos menos significativos apresentados por Freud são sonhos de estar
voando ou caindo e os sonhos de exame, ambos são remontados a vivências infantis. O primeiro está
relacionado a jogos de movimento de onde despertam as primeiras ereções e sensações sexuais. O
segundo faz alusão a más ações realizadas na infância e os temidos castigos sofridos, bem como, a
provas de natureza sexual. (Cf.FREUD, 1987f, p.279-284).
96
Na seqüência apresenta uma série de quatro sonhos que aparentemente contradizem essa afirmação.
220
CAPÍTULO 4
O trabalho dos sonhos e a transformação do material latente em
conteúdo manifesto
A próxima tarefa que o livro sobre sonhos se propõe é de investigar os processos pelos
quais os pensamentos latentes se convertem em conteúdo manifesto. Ambos são considerados
como dois modos de expressão de um mesmo conteúdo, cada qual com suas formas e leis
próprias de articulação. O conteúdo manifesto se nos apresenta em uma pictografia cujos
signos devem ser transpostos individualmente para o modo de expressão dos pensamentos
oníricos.(FREUD, 1987f, p.285). O sonho é análogo a um enigma sob a forma de figuras cuja
leitura deve partir da substituição de cada imagem individual por uma sílaba ou palavra que
lhe corresponda. As sentenças que resultam da associação entre as palavras obtidas são
sentenças significativas: o sonho é um rébus, e como tal não deve ser tomado em seu valor de
imagem mas segundo sua referência significante. (FREUD, 1987f, p.286). Interpreta-lo como
composição pictórica conduz a erros que acabam por destituí-lo de seu valor e sentido para a
vida psíquica daquele que sonha.
4.1. Os trabalhos de condensação e deslocamento
A desproporção que surge da comparação entre conteúdo e pensamento dos sonhos
leva a inferir que houve um amplo trabalho de condensação dos pensamentos na formação do
221
sonho. O sonho é breve e pobre quando se compara com os pensamentos revelados pelo
trabalho de associação. Em geral, assinala Freud, se subestima a medida da compressão
produzida pelo trabalho que converte pensamentos em conteúdo manifesto. Com efeito, as
análises mostram que a rigor nunca se está seguro de ter interpretado um sonho
exaustivamente,
mesmo quando parece que a resolução é satisfatória e sem lacunas, segue em
aberto a possibilidade de que através desse mesmo sonho se possa insinuar
outro sentido. Por tanto, em sentido estrito, a cota de condensação é
indeterminada. (FREUD, 1987f, p. 287, grifo nosso).
Essa possibilidade permanente de se associarem novas representações aos
pensamentos oníricos contrasta em muito com a forma pictográfica sucinta com que se
apresenta o sonho, o que levanta a questão de como se produz essa condensação de uma rede
de pensamentos que se abre indefinidamente. A condensação, afirma o autor, opera por
omissão: do conjunto de pensamentos que estiveram ativos na formação do sonho apenas uma
minoria está representada por um de seus elementos no conteúdo manifesto. “O sonho não
seria uma tradução fiel nem uma projeção ponto por ponto daqueles pensamentos.”
97
(FREUD, 1987f, p.289). Portanto, se apenas poucos elementos dos pensamentos alcançam o
conteúdo como seus representantes, quais seriam as condições que determinam tal seleção?
Com a análise do “Sonho da monografia botânica” Freud pretende demonstrar que os
elementos escolhidos são aqueles aptos para exibirem o maior número de contatos possíveis
com a rede onírica inconsciente, são elementos que se constituem como pontos nodais sobre
os quais convergem muitas cadeias de representações. Tais elementos intermediários são, por
97
Essa sentença deixa ver o ganho conceitual permanente obtido por Freud desde a crítica da idéia de
projeção a favor do conceito de representação originalmente desenvolvido no Ensaio sobre as afasias
(1891). (Cf. Parte I, seção 2.1; Parte II, seção 1.2, principalmente nota 48, Parte III, seção 2.2).
222
assim dizer, sobredeterminados na medida foram escolhidos por serem capazes de representar
uma multiplicidade de pensamentos.
98
Com isso, prossegue Freud, pode-se observar uma outra disparidade da formação
onírica: os elementos que no conteúdo manifesto se impõe como essenciais por serem
determinantes múltiplos não desempenham a mesma importância nos pensamentos latentes.
Do que se conclui que: aquilo que nos pensamentos é tido por essencial, o desejo
inconsciente, não precisa necessariamente estar presente no conteúdo do sonho, basta que
esteja indiretamente representado. Portanto, afirma o autor, o sonho é diversamente centrado
pois se organiza em torno de outros elementos que não os pensamentos oníricos. Disso resulta
que o centro do conteúdo manifesto aparece fora de todo nexo direto com seus genuínos
desejos excitadores. (FREUD, 1987f, p. 311).
O intrigante nesse processo é o fato de que os elementos inconscientes sobre os quais
recai um alto valor psíquico são tratados em relação ao conteúdo como destituídos de
importância, enquanto que aqueles elementos selecionados por serem aptos a
sobredeterminação, mesmo que indiferentes, são providos de uma intensidade
desproporcional. Segundo Freud, essa fato sugere a seguinte hipótese: no trabalho onírico se
exterioriza um poder psíquico que despoja de sua intensidade os elementos de alto valor
psíquico e, pela via da sobredeterminação cria novos valores a partir de elementos de valor
ínfimo, fazendo com que esses elementos alcancem o conteúdo onírico. Segundo essa
hipótese: toda formação onírica opera uma transferência e um deslocamento de intensidades
psíquicas cujo resultado é diferença de texto que se estabelece entre pictografia manifesta e
pensamentos latentes. (FREUD, 1987f, 313).
98
Entre os sonhos analisados para dar mostras dessa operação onírica, além do sonho da monografia
acima citado, estão aqueles intitulados: “Um belo sonho”, “O sonho dos besouros”, “Sonho da injeção
de Irmã” e mais outros seis pequenos relatos, entre eles o sonho “Autodisdasker”. (Cf. FREUD, 1987f,
p.292-311).
223
O processo que com isso supomos é nada menos que a peça essencial do
trabalho onírico: merece o nome de deslocamento onírico.
99
O deslocamento
e a condensação são os dois principais mestres artesãos cuja atividade
podemos atribuir à configuração dos sonhos. (FREUD, 1987f, p.313, grifo
nosso).
O deslocamento onírico é um dos meios da deformação do desejo onírico que
facilmente pode ser atribuído ao poder que a censura exerce sobre a primeira instância em que
se forma e de onde parte a realização de desejo. Em vista disso, os elementos são selecionados
e talhados pelo trabalho de condensação, sobredeterminação e deslocamento como um modo
de abrir caminho pela resistência oferecida pela instância crítica ao desejo inconsciente.
4.2. Os meios de representação do sonho e a repulsa como afirmação
(Bejahung) da realidade
Ao lado dos trabalhos de condensação e deslocamento que operam a mudança do
material de pensamentos latentes em conteúdo onírico manifesto é necessário considerar
algumas outras condições na seleção do material. Os pensamentos oníricos exibem a
particularidade de serem compostos por um complexo de pensamentos e recordações de uma
construção altamente intrincada com todas as características do pensamento da vigília. No
entanto, Freud observa que é preciso considerar que o sonho não dispõe, a princípio, de meio
algum que possa representar relações lógicas tais como, “se”, “porque”, “como”, “embora”,
“ou...ou”, e outras conjunções sem as quais não se pode compreender as sentenças e os
discursos.(FREUD, 1987f, p.318).
99
Cf. O exame desse conceito na análise do “Projeto...” (1895), Parte II, seção 5.1, 5.2.
224
Uma restrição semelhante, pondera o autor, encontramos nas artes figurativas da
pintura e da escultura da qual a poesia se diferencia por poder servir-se das palavras como
matéria. O fundamento dessa incapacidade que o sonho compartilha com as artes figurativas
está na natureza do material utilizado por ambas como meio de expressão. Contudo, tanto a
pintura como os sonhos têm meios próprios de compensar essa desvantagem. No caso dos
sonhos os meios são os seguintes: Relações lógicas são representadas por simultaneidade.
Relações causais se apresentam por meio da seqüência temporal. Alternativas como “ou...ou”
não podem ser expressas, não obstante, ambas são inseridas no texto dos sonhos como
igualmente válidas, cada uma delas tem um sentido próprio e conduz a uma cadeia de
pensamentos de idêntico valor. Antíteses e contradições são simplesmente desprezadas, o
“não” parece não existir para o sonho que exibe uma notável predileção em combinar os
opostos em uma unidade ou representa-los no conteúdo manifesto por meio de um mesmo
elemento.
Entre todas essas relações lógicas uma delas é extremamente favorecida pelo processo
de formação do sonho: é a relação de semelhança, concordância, o “assim como” que nos
sonhos pode-se representar por diversos meios.
São os primeiros pontos de apoio para a formação dos sonhos, e uma parte
grande do trabalho do sonho consiste em criar novas semelhanças quando as
existentes não podem abrir caminho até o sonho por causa da censura e da
resistência.(FREUD, 1987f, p.325, grifo nosso).
Semelhança, concordância, comunidade são representadas no sonho pela reunião em
uma unidade ou que já estava dada no material onírico, ou que é criada como algo novo. O
primeiro caso denomina-se identificação
100
, o segundo, formação mista. A identificação se
emprega quando se trata de pessoas; a formação mista quanto o material são coisas. (FREUD,
100
Nesse ponto Freud tece algumas considerações sobre o processo de identificação que é introduzido
na obra sobre o sonho como tendo um papel significativo na formação onírica, bem como na formação
de sintomas histéricos como é demonstrado pela análise do “Sonho do salmão defumado”.(Cf.
FREUD, 1987f, p. 164-169).
225
1987f, p.325). A inversão, por sua vez, é um dos modos de representação preferidos pela
formação do sonho e muito apropriado para impor a vigência da realização de desejo diante
da censura.
Quanto aos caracteres formais como diferenças de intensidade sensorial, nitidez e
vivacidade entre elementos oníricos, Freud pondera que não há justificativa para supor que os
elementos do sonho que são derivados de impressões reais durante o sono (estímulos
nervosos) se distingam por sua vivacidade de outros elementos que provém de recordações.
O fator de realidade não conta para a determinação da intensidade das imagens oníricas.”
(FREUD, 1987f, p.334). Não obstante, continua o autor, poder-se-ia esperar que a intensidade
sensorial de imagens oníricas estivesse relacionada com a intensidade psíquica dos elementos
que lhes correspondem dentro dos pensamentos oníricos. Porém, “a intensidade de um não
está relacionada à do outro; entre material onírico e o sonho ocorre uma total subversão de
todos os valores psíquicos.” (FREUD, 1987f, p.335). As análises demonstram que a
intensidade dos elementos do sonho vem a ser determinadas de outra forma e por dois fatores
independentes: 1º. Os elementos que expressam a realização de desejo são representados com
especial intensidade; 2º a análise também revela que os elementos mais vívidos de um sonho
são aqueles sobre os quais houve um maior trabalho de condensação, são elementos
sobredeterminados.(FREUD, 1987f, p.335).
Freud conclui essa seção sobre o trabalho onírico com algumas considerações a
respeito da presença e do significado do juízo durante o sonho de grande interesse para a
teoria da realidade. Qual o significado, se pergunta o autor, do juízo emergente durante o
próprio sonho: “Isto é apenas um sonho”.
A intenção é desvalorizar o sonhado do sonho, arrebatar-lhe sua realidade;
o que se segue sonhando depois do despertar do ‘sonho dentro do sonho’ é
o que o desejo onírico quer por no lugar da realidade obliterada. Pode-se
supor que o sonhado contém a representação da realidade, a recordação
226
real, e o sonho que segue, ao contrário, contém a representação do que
aquele que sonha deseja. (FREUD, 1987f, p.343, grifo nosso).
Segundo essa hipótese, tal re-elaboração realiza o desejo de que a coisa sonhada
jamais tivesse ocorrido, como uma forma de repulsa, mas, por outro lado, essa repulsa
implica na mais decisiva corroboração da realidade desse fato, sua mais forte afirmação
[Bejahung]”. (FREUD, 1987f, p.343).
4.3. Consideração pela figurabilidade: uma unidade de ação isenta de
censura
Como foi pontuado, no decurso do processo que conduz a formação do sonho o
material onírico experimenta alterações significativas em sua forma original, entre elas: uma
compressão da qual resulta um despojamento de parte de suas relações; um deslocamento de
intensidades que subverte os valores psíquicos de seus elementos essenciais, bem como a
substituição de uma representação por outra de característica ambígua apta a representar uma
multiplicidade de sentidos favorecendo a convergência de muitas cadeias associativas.
Contudo, a que se considerar um segundo tipo de deslocamento, afirma Freud, pois a
análise do sonho também dá mostras da existência de uma permutação da expressão
lingüística dos pensamentos oníricos. A diferença entre as duas modalidades de deslocamento
está em que, no primeiro, o resultado é a substituição de um elemento por outro, enquanto que
no segundo, o que é substituído é a forma de linguagem pela qual se expressam; esse segundo
tipo de deslocamento se consuma de acordo com a seguinte direção:
227
uma expressão descolorida e abstrata do pensamento onírico é trocada por
outra, figural e concreta. A vantagem – e com ela o propósito – dessa
substituição é patente. Para o sonho, o pictórico é susceptível de figuração,
pode inserir-se numa situação. (FREUD, 1987f, p.345, grifo nosso).
Além de que, o remodelamento figural de um pensamento abstrato também favorece a
condensação e formação de pontos nodais, pois “em qualquer linguagem, em virtude de sua
evolução, os termos concretos são mais ricos em associações que os conceituais.” (FREUD,
1987f, p.346)
101
. Em todos os casos, é preciso observar afirma Freud, que as substituições
características do trabalho do sonho “não tem o propósito que se as compreenda e não
oferecem ao seu tradutor dificuldades maiores do que as oferecidas pela escrita hieroglífica
dos antigos.” (FREUD, 1987f, p. 347).
A transformação dos pensamentos oníricos em conteúdo do sonho deve incluir um
terceiro fator acima descrito que é a consideração pela figurabilidade do material psíquico do
qual se serve o sonho, ou seja, a consideração por sua aptidão ou dificuldade em ser
representado por meio de imagens visuais.
102
Com efeito, diante da diversidade de
pensamentos intermediários a preferência é por aqueles que permitem uma figuração visual, e
o trabalho do sonho não mede esforços de remodelar pensamentos e palavras inadaptáveis
numa nova forma verbal que facilite sua representação pictórica.(FREUD, 1987f, p.349).
103
101
Segundo Freud, a linguagem por suas características evolutivas pode em certos casos facilitar a
figuração de pensamentos pois dispõe de uma série de palavras que originariamente possuíam um
sentido figural e concreto e que na atualidade são utilizadas de modo abstrato.”Tudo o que o sonho
tem de fazer é devolver seu significado primitivo ou descender um degrau na evolução de seu
significado.” (FREUD, 1987f, p.408).
102
O sonho apresentado como evidencia desse trabalho de permutação intitula-se: “Torre na platéia do
teatro”. (Cf. FREUD, 1987, p.348).
103
Contudo, é importante pontuar que o material acústico, apesar de menos freqüente, também tem um
lugar na formação onírica. Freud observa que elaboração onírica não pode criar falas, assim tudo o que
o sonho pode fazer é extrai-las de falas pronunciadas, escritas ou ouvidas durante a vigília, que são
fragmentadas e reunidas numa nova ordem segundo outros fins. (Cf.FREUD, 1987f, p.419). Portanto,
com vistas à figurabilidade, os pensamentos devem ser reproduzidos não tão somente dentro do
228
Nesse sentido, para alcançar seu objetivo, qual seja: uma figurabilidade isenta de
censura, ou em outros termos, uma unidade de ação isenta de censura, o trabalho do sonho
também se apropria de alusões e substituições de palavras universalmente compartilhadas
presentes nas sagas e nos usos populares. Agindo assim, a formação onírica não faz mais do
que
transitar por vias que já se encontram facilitadas no pensamento
inconsciente; prefere aquelas transmutações do material reprimido que na
qualidade de chiste e alusão tem permitido o devir consciente, e das quais
transbordam todas as fantasias dos neuróticos. (FREUD, 1987f, p.351, grifo
nosso).
Tanto o fantasiar inconsciente como o sonho recorrem com facilidade a grupos de
representações relacionados a casa, por exemplo, como seus pilares, colunas, portas, buracos
e encanamentos, para simbolizar algo relativo a partes do corpo: pernas, aparelho urinário,
órgãos sexuais, etc. Segundo Freud, esse é um fenômeno bastante freqüente no pensamento
inconsciente que remonta a curiosidade sexual infantil. Outros grupos de representações
muito utilizados para aludir e disfarçar imagens sexuais são aqueles relacionados à vida
vegetal ou a cozinha.
104
Com alusões aparentemente inocentes a prática culinária pode-se pensar e
sonhar os detalhes mais desagradáveis ou íntimos da vida sexual.(...) Onde
quer que a neurose se serve de tais encobrimentos, recorre a caminhos já
transitados por toda a humanidade em épocas remotas da cultura, e cuja
existência dão hoje testemunho os usos lingüísticos, superstições e
costumes.(FREUD, 1987f, p.352).
105
Na seqüência o autor empreende a análise de uma longa série de sonhos, entre eles
sonhos típicos, com a intenção de oferecer exemplos e provas confirmatórias desse tipo de
material de traços de memória visuais mas também dos traços mnêmicos acústicos. (FREUD, 1987f,
p.503).
104
Deve-se observar que as possibilidades de expressão assumidas pelo pensamento substitutivo não
deixam em nenhum momento de serem determinadas pelo propósito desiderativo do pensamento
onírico inicial.(FREUD, 1987f, p.346).
105
Cf. Análise do sonho: “Ramo com flores vermelhas” (FREUD, 1987f, p.353).
229
simbolização que, segundo ele, não é uma atividade exclusiva das formações oníricas, mas
sim algo característico do representar inconsciente como tal. (FREUD, 1987f, p.356). Freud
dedica toda uma seção a análise desse tipo de simbolismo (seção E do Capítulo VI).
106
4.4. O afeto faz do sonho uma vivência real
Como vimos, o propósito da permutação do modo de expressão dos pensamentos em
imagens não é, de forma alguma, torna-los compreensíveis, e sim, possibilitar que os desejos
reprimidos que eles vinculam possam inserir-se numa situação, ou seja, numa unidade de ação
isenta de censura; é justamente essa passagem à ação que é impedida pela instancia crítica na
vigília. A materialidade sensorial dessas cenas oníricas e a particularidade de seu tempo de
ação (penso num plano e imediatamente o vejo realizado) é o que permite sustentar a tese de
que nos sonhos pensar e vivenciar são uma e a mesma coisa. O exame da ação dos afetos nos
sonhos demonstra o alcance dessa tese, e os resultados obtidos acabam por elevar o sonho ao
estatuto de uma vivência real.
Freud parte da seguinte observação realizada por Stricker: “Se eu no sonho sinto medo
de ladrões, os ladrões são por certo imaginários, mas o medo é real” (FREUD, 1987f,
106
O conteúdo latente revelado pela análise desses sonhos versa, em sua grande maioria, sobre
problemas referentes à sexualidade tanto de crianças como de adultos neuróticos e sadios; o trabalho
associativo frequentemente os reconduz aos impulsos da vida sexual infantil.(Cf.FREUD, 1987f, 356-
406). Chega mesmo a concluir que essa predominância do material sexual latente se justifica e se
harmoniza com o princípio estabelecido por sua doutrina de que nenhuma outra pulsão teve de
suportar desde a infância uma repressão tão grande quanto à pulsão sexual, e nenhuma outra deixou
atrás de si, tantos e tão fortes desejos inconscientes que, posteriormente, passam a impulsionar a
formação de sonhos e sintomas.(FREUD, 1987f, p.398).
230
p.458), e acrescenta que o mesmo ocorre quando o sonho resulta numa intensa satisfação: o
regozijo é real.
107
De acordo com o testemunho de nossa sensação, o afeto vivenciado no sonho
de modo algum é inferior aquele de igual intensidade vivenciado na vigília; e
é por seu conteúdo afetivo que o sonho sustenta, mais energicamente que por
seu conteúdo de representação, o direito de que se o inclua entre as vivências
reais de nossa alma.(FREUD, 1987f, p.458, grifo nosso).
Contudo, as vivências oníricas quando apreciadas fora do estado do sono dificilmente
são tidas por vivências reais que encontram lugar e sentido nas atividades psíquicas da vigília.
Tal depreciação se deve, pondera Freud, devido ao fato de que sempre avaliamos o afeto por
seu conteúdo representacional, porém, no caso dos sonhos as representações sofrem um
amplo trabalho de deformação e remodelação lingüística que as torna aparentemente
incompatíveis com os afetos que as acompanham. Por exemplo, pode acontecer de se estar no
sonho numa situação temerosa, perigosa ou repugnante, e no entanto não sentir medo nem
repulsa; noutras situações vivesse um grande espanto devido a coisas inofensivas, e assim por
diante. Diante dessas distorções a análise nos ensina
que os conteúdos de representação experimentaram deslocamentos e
substituições, enquanto os afetos se mantiveram inalterados. (...) Em um
complexo psíquico submetido à censura da resistência [Widerstand] os afetos
são a parte mais resistente [Resistent] a ação dessa última, e por isso a única
que pode dar-nos indícios para uma reconstrução correta. Isso se revela nas
psiconeuroses com maior nitidez que nos sonhos.(FREUD, 1987f, p.458, grifo
nosso).
É importante destacar a diferença indicada pelo editor espanhol nos termos utilizados
por Freud para designar dois modos distintos de resistência. Para a resistência da censura o
termo é Widerstand que, segundo o editor, é utilizado para designar uma resistência psíquica.
107
Freud traz inúmeros exemplos da realidade com que os afetos e desejos são vividos nos sonhos, que
vão desde aqueles que resultam em poluções, até, em outro extremo, sonhos que conduzem à tristeza e
ao choro amargurado enquanto ainda se dorme.
231
Enquanto que, a resistência oferecida pelos afetos é designada pelo termo Resistent que
remeteria ao sentido físico da resistência, análogo a resistência de um sólido. (FREUD, 1987f,
p. 459).
Dessa constatação decorre que, diante de um aparente absurdo posto pela relação de
um afeto a uma representação qualquer, a psicanálise reconheça o afeto como justificado
pondo-se no trabalho de busca da representação que lhe corresponde e que foi reprimida
mediante uma substituição. A premissa que embasa essas considerações, prossegue Freud, é
de que “o desprendimento do afeto e o conteúdo de representação não formam uma unidade
orgânica indissolúvel (...) ambas as peças podem estar soldadas, podendo ser separadas
mediante a análise.” (FREUD, 1987f, p.459).
No caso da dissolução do complexo tendo em vista a repressão o afeto aparece
totalmente desligado da representação a que pertence podendo se ajustar a uma nova
disposição. Freud recorre ao exemplo
108
do sonho cujo tema é a morte de um ente querido
que, não obstante, transcorre sem que se viva qualquer afeto de dor ou luto. Com efeito, nesse
caso o tema da morte é apenas um disfarce para outro desejo cuja representação se encontra
sob repressão. Diante disso se pode concluir que, invariavelmente, o afeto deve harmonizar-se
com o desejo e não com seu disfarce. (FREUD, 1987f, p.460).
A reconstrução dos pensamentos oníricos revela sua íntima relação com os mais
intensos impulsos da vida anímica. As análises ensinam que não é possível alcança-los sem
que se experimente uma profunda emoção. (FREUD, 1987f, p.465).
109
Mesmo permanecendo
108
Ao todo são cinco os sonhos analisados nessa seção dedicada aos afetos.
109
No entanto, Freud verifica ainda outras possibilidades quanto ao destino dos afetos nos sonhos.
Uma vez que se os conceba como sendo despertados por obra do pensamento inconsciente, o trabalho
do sonho tem meios de inibi-los via formação de representações e estados afetivos opostos que se
anulam entre si, como é demonstrado pela análise do sonho de número IV dessa seção. (Cf.FREUD,
1987, p.466). O afeto pode ainda ser dissimulado pela transformação no seu contrário: “a mudança no
contrário é possibilitada pelo íntimo encadeamento associativo que em nosso pensamento liga a
representação de coisa [Dingvorstellungen] a seu oposto.” (Cf. FREUD, 1987f, p.468-470). Porém, a
232
inconscientes tais fontes de afeto mantêm-se ativas durante o sono e lutam para estabelecer
uma conexão associativa com uma fonte permitida, isenta de censura, que “lhes abre a
facilitação {Bahnung} desejada para o desprendimento [afetivo].” (FREUD, 1987f, p.476).
Ou seja, isso dá mostras da existência de uma confluência entre diferentes fontes que se
conjugam na composição do afeto tal como ele aparece no sonho: os afetos são assim
sobredeterminados.
Freud passa a considerar então os casos em que a sobredeterminação põe em jogo o
que ele designa por afeto de satisfação. Geralmente, ocorre que duas ou mais fontes cooperam
na formação afetiva, porém, para os fins da análise, é preciso ir além da primeira fonte
revelada junto aos pensamentos latentes e rastrear uma segunda fonte da formação de afeto
(dentro dos próprios pensamentos oníricos) cuja satisfação se encontra interditada. O que
ocorre é que, a presença da primeira fonte onírica livre de censura habilita, por proximidade
associativa, a segunda fonte censurada a subtrair da repressão seu afeto de satisfação
permitindo-lhe que se reúna a satisfação que procede de outra fonte, intensificando-a.
(FREUD, 1987f, p.477). Segundo o símile: “Ao abrirem-se as portas, irrompem por elas sem
tropeços mais pessoas do que fora originalmente a intenção de deixar passar.” (FREUD,
1987f, p.476).
Freud oferece alguns exemplos desse processo pela análise do sonho autobiográfico
intitulado “Non Vixit”. As associações conduzem à análise do sonho, de camada em camada,
das fontes de afetos atuais até as mais remotas e conclui que as últimas recebem reforços de
fontes mais profundas que fluem dentro do infantil. (FREUD, 1987f, p.479). Portanto, o tipo
de satisfação afetiva em questão que o processo acima descrito faz passar pela censura é uma
satisfação proveniente do infantil, que geralmente se caracteriza por um egoísmo grosseiro e
uma ambição desmedida associada a afetos hostis e amorosos. São modos de reação e formas
inibição do afeto deve ser considerada como uma conseqüência secundária da censura que é
antecedida pelo trabalho de deformação onírica.(FREUD, 1987f, 466).
233
de pensar fixadas pelas vivências infantis, plenas de impulsos e desejos insatisfeitos que
quando obtém meios de se realizarem nos sonhos produzem o que Freud qualifica de uma
enorme satisfação.
110
(FREUD, 1987f, p.466). É importante pontuar que, na formação dos
sonhos a satisfação encontra-se ligada a uma seqüência de pensamentos, em outras palavras, é
uma determinada seqüência de pensamentos que se materializa no sonho e que conduz à
satisfação.
Freud conclui sua avaliação sobre os afetos com a observação de que esses recebem o
mesmo tratamento que é dispensado aos estímulos nervosos e demais representações durante
o sono, tudo aquilo que dessas e de outras fontes advém como penoso não está destinado a ser
representado no sonho. A formação onírica está sujeita a condição de que algo somente abrir
caminho até a figuração se for possível ser re-trabalhado até que possa tornar-se útil para
expressar a realização de desejo, sua fonte psíquica impulsora. (FREUD, 1987f, p.483).
4.5. A elaboração secundária: uma trama inteligível
Até o momento o trabalho do sonho foi concebido a partir da cooperação de três
fatores: condensação, deslocamento e figurabilidade. Dentre eles é preciso reconhecer um
quarto fator que opera na transformação dos pensamentos oníricos, Freud o denomina
elaboração secundária. Essa é uma função onírica crítica cujo trabalho consiste em produzir
elos por meio de pensamentos vinculatórios e com eles preencher lacunas da estrutura do
sonho (FREUD, 1987f, p.486); em outros termos, “por ordem no material, estabelecer
relações e adequá-lo a expectativa de uma trama inteligível”. (FREUD, 1987f, p.495).
110
Na análise do sonho “Non vixit” Freud confere novamente a transferência uma papel significativo
nesses processos. (Cf. FREUD, 1987f, p.479-483).
234
Disso resulta que muitas vezes nos deparamos com sonhos que já foram interpretados
antes mesmo de serem submetidos à interpretação. É o que torna evidente aqueles sonhos
durante os quais se produzem observações críticas como por exemplo: “Isto é apenas um
sonho”. Juízos dessa natureza demonstram que a instância crítica conhecida por sua função
censora dá mostras de que também participa na formação do sonho com intercalações como
essas e outros acrescentamentos que visam dar inteligibilidade e coerência a apresentação do
material onírico. A elaboração parte de uma situação possível, prossegue por meio de
transformações isentas de contradição criando um sentido manifesto “mas na verdade esse
sentido está muito longe do real significado do sonho”.(FREUD, 1987f, p.487). Seu modo de
trabalho é idêntico ao trabalho de coordenação lógica realizado pelo pensamento de vigília. O
contraste com o modo do trabalho essencialmente onírico é grande, e a especificidade desse
último se deixa ver mediante a seguinte fórmula: o trabalho do sonho se afasta do modelo de
pensamento da vigília, pois não pensa, não calcula, nem julga, se limita a transformar
pensamentos, dar a eles uma nova forma. (FREUD, 1987f, p.502).
111
111
Em nota ao final da seção dedicada elaboração dos sonhos, Freud faz uma pontuação conclusiva
que deixa ver a importância que esse trabalho em específico passou a ter para a compreensão da
produção onírica. “No fundo, o sonho não é mais do que uma forma particular de pensamento
possibilitada pelas condições do estado do dormir. É o trabalho do sonho que produz essa forma, e é
sozinho a essência do sonhar, a explicação de sua especificidade.”(FREUD, 1987f, p.502, grifo
nosso). Contudo, não se deve perder de vista esses rendimentos obtidos com o estudo dos sonhos
visam à elucidação de outras estruturas psíquicas correlacionadas, como sintomas, fantasias, delírios,
alucinações etc., pois, ao que tudo indica, o trabalho onírico lhes serve como modelo a partir do qual é
possível pensar suas particularidades.
235
CAPÍTULO 5
O Aparelho Psíquico: desejo inconsciente, ética e o
domínio do real
A abertura do sétimo capítulo do livro sobre os sonhos (1900) traz um problema muito
bem definido que é apresentado por meio da análise de um sonho tido como paradigmático
em vista da questão que o autor pretende elucidar.
112
O contexto de onde emerge o sonho é o
seguinte:
Um pai assistiu noite e dia a seu filho mortamente enfermo. Falecida a
criança, se retirou a uma habitação vizinha com o propósito de descansar, mas
deixou a porta aberta a fim de poder ver desde seu dormitório a habitação
donde jazia o corpo de seu filho, rodeado de velas. Um ancião a quem se lhe
encarregou montar vigília se sentou próximo ao cadáver, murmurando
orações. (FREUD, 1987f, p.504).
Depois de dormir algumas horas, prossegue o relato, o pai tem o seguinte sonho: “seu
filho está de pé junto a sua cama, lhe toma pelo braço e lhe sussurra esta censura: Pai, então
não vês que estou queimando?”. Desperto, o pai observa um forte clarão no quarto ao lado e
corre até lá onde encontra o ancião adormecido e as roupas e parte do braço do cadáver da
criança em chamas devido a uma vela acesa que tombara sobre ele. (FREUD, 1987f, p.504).
Trata-se, observa Freud, de um sonho aparentemente simples de se explicar. O clarão
da chama incidiu sobre os olhos do adormecido e lhe sugeriu a mesma conclusão que haveria
extraído se estivesse acordado: uma vela havia caído e incendiado o cadáver. Entre outros
detalhes Freud observa que o que chama a atenção é o fato de nessas circunstâncias terem
112
Como veremos se trata de um problema que confere uma unidade para a obra e que foi apresentado
desde o prefácio de sua primeira edição como seu objetivo fundamental.(Cf. Parte IV, seção 1.1).
236
sobrevindo um sonho quando que o mais esperado era um brusco despertar. O sonho, pondera
o autor, prevaleceu sobre o despertar e o pensamento de vigília por que pôde, mesmo que por
um breve lapso, realizar o desejo de representar a criança ainda com vida. (FREUD, 1987f,
p.505).
Segundo Freud, o que torna esse sonho paradigmático e exige explicação é fato dele
problematizar de modo bastante claro “os caracteres essenciais pelos quais os sonhos se
afastam consideravelmente do nosso pensamento de vigília” (FREUD, 1987f, p.505). Com
vistas a demarcar essa distância fundamental e extrair dela o essencial sobre a formação
onírica será necessário: “estabelecer uma série de novos supostos que se aproximem mediante
conjecturas do edifício do aparelho psíquico e o jogo de forças que neles atuam” (FREUD,
1987f, p.506); ou seja, trata-se de se obter, por meio do estudo dos sonhos, uma inferência
acerca da construção e do modo de trabalho do aparelho psíquico.
113
5.1. O processo da regressão: a cena de ação e a transmutação ao sensível
O “sonho do menino que queima” mostra, antes de tudo, que é pela realização de um
desejo que o processo de pensamento se transforma em sonho. Estabelecido o motivo da
transformação deve-se interrogar a característica que separa os dois tipos de acontecer
psíquico em questão, qual seja, o pensamento onírico e o sonho. No exemplo dado, o
pensamento onírico daquele que dorme poderia ser assim formulado: “Vejo um clarão que
vem do cômodo onde jaz o cadáver. Talvez uma vela tenha caído e a criança esteja
113
Porém, o autor alerta que tal inferência somente pode ser levada adiante se puder conjugar-se com o
estudo comparativo entre outras estruturas e operações psíquicas, como o pensamento diurno e as
fantasias, por exemplo, de onde se devem extrair os elementos de constância necessária.
237
queimando.” O sonho, por sua vez, não faz mais do que repetir o resultado dessa reflexão sem
alterações, contudo, o que o diferencia enquanto processo é que ele “o figura dentro de uma
situação presente [atual] que os sentidos apreenderam como uma vivência da vigília.”
(FREUD, 1987f, p.527).
114
Esse é o caráter psicológico mais geral e notável do sonhar; um
pensamento, geralmente um pensamento desejado, é objetivado no sonho, é
figurado como cena ou, segundo cremos, é vivenciado. (FREUD, 1987f,
p.527).
A transmutação do material exibe características bem delimitadas, a primeira delas
está relacionada ao tempo e a segunda a transposição do pensamento em imagens visuais e
acústicas. Freud extrai outro exemplo de uma passagem do “Sonho da injeção de Irma”.
Trata-se de mostrar que o pensamento onírico que alcança a figuração na tela do sonho é uma
oração desiderativa, expressa uma expectativa: “Oxalá que Otto seja o culpado pela
enfermidade de Irmã !”. O sonho, e isso é bem evidente, suplanta o optativo “Oxalá Otto
seja”, e o substitui pelo presente direto: “Sim, Otto é o culpado” . Nessa nova situação o
desejo se encontra realizado,
115
o que não um processo é exclusivo dos sonhos, pondera
Freud, as fantasias conscientes procedem do mesmo modo, contudo, nesses sonhos diurnos as
representações de desejo são pensadas, quando que nos sonhos, são transpostas em imagens
sensíveis que se dá crédito e se crê vivenciar. (FREUD, 1987f, p.528).
Essa transmutação ao sensível, mesmo que não seja completa e nem a única
possibilidade da formação onírica, é de longe a sua característica mais notável, ao ponto,
114
No “Projeto...” (1895) essa transição entre os processos já se encontra plenamente estabelecida:
“Fecham-se os olhos e alucina-se, eles se abrem e pensa-se com palavras.” (Cf. Parte II, seção 5.1).
Contudo, no livro sobre os sonhos (1900) a formação onírica alcança o estatuto de uma vivência real
equiparando-se em importância e conseqüências a vivência da vigília com a qual mantém um modo
particular de relação.
115
O sonho se vale do tempo presente com o mesmo direito que o sonho diurno. O presente é o tempo
em que o desejo se figura como realizado
.” (FREUD, 1987f, p.528).
238
afirma o autor, de não podermos conceber a vida onírica sem ela; o que exige extensas
elucidações. Freud toma como ponto de partida para suas hipóteses uma fecunda observação
de Fechner: “A cena de ação do sonho é diferente daquela da vida de representações da
vigília”; e acrescenta uma pontuação fundamental: “nenhuma outra hipótese permitiria
conceitualizar as peculiaridades da vida onírica”. (FREUD, 1987f, p.529).
O que está em jogo com essa hipótese sobre diferentes cenas de ação é a possibilidade
de se pensar o aparelho mental por meio da idéia de localidade psíquica, ou seja, permite uma
representação espacial para o aparelho. A seguir, Freud tece algumas considerações
metodológicas sobre empreendimento em questão nas quais transparece, ainda que por
exclusão, sua natureza neuropsicológica fundamental: “Queremos deixar de lado por
completo que o aparelho anímico de que aqui se trata nos é conhecido também como
preparado anatômico”. Com isso, Freud, mais uma vez, deixa claro que sua opção pelo
dualismo é unicamente metodológica (Cf. Parte I, seção 2.2). Portanto, deve-se ter “o maior
cuidado em não cair na tentação de determinar essa localidade psíquica como se fora
anatômica
116
. (FREUD, 1987f, p.529). Assim, a metodologia de trabalho permanece a
mesma que a do ensaio “Sobre as afasias” (1891), dada à escassez de informações diretas e as
dificuldades próprias da matéria: “nos manteremos no terreno psicológico”. (FREUD, 1987f,
p.529)
Não se deve perder de vista que a necessidade de se propor uma representação espacial
para o aparelho psíquico é uma exigência do problema que se pretende explicar. A
representação topográfica é tida como a única maneira de tornar inteligível a formação da
116
Como foi anteriormente desenvolvido, a anatomia é encarada por Freud desde o ponto de vista
funcional e não morfológico como se encontra plenamente estabelecido por sua teoria da memória e da
representação. Assim, determinar a espacialização do psíquico desde a perspectiva funcional é
realmente uma forte tentação para Freud. (Cf. Parte I, seção 2.3; Parte II, seção 1.2) É o que demonstra
a presença constante de alusões e de afirmações diretas sobre a formação dos traços mnêmicos por
meio das facilitações entre neurônios ao longo da “Interpretação dos Sonhos” (1900). (Cf. Parte IV,
seção, 4.4; 5.1, 5.2, 5.5)
239
cena sensório-visual em que se desenrola a ação desiderativa a partir dos pensamentos
oníricos. Freud num primeiro momento propõe uma analogia, o intuito é tornar
compreensível a complexidade dessa operação psíquica e correlaciona-la à estrutura de um
aparelho: imaginemos o instrumento do qual se valem às operações psíquicas, sugere o autor,
como se fossem um microscópio ou um aparelho fotográfico.
A localidade psíquica corresponde então a um lugar no interior do aparelho
em que se produz um dos estágios prévios da imagem. No microscópio e no
telescópio, como é sabido, essas são em parte localizações ideais, em regiões
nas quais não se acha situado nenhum componente tangível do aparelho.”
(FREUD, 1987f, p.530).
A analogia põe em destaque o elemento em comum entre os aparelhos. Em ambos o
que está em jogo é a autonomia do ponto de vista funcional que descarta a necessidade de
uma apreensão morfológica das atividades envolvidas na produção da imagem: a operação se
dá, sim, no interior do aparelho, no entanto, em pontos ideais que não podem ser localizados
em nenhum componente tangível. Segundo a analogia, em tese, essa propriedade virtual deve
se aplicar também às produções do aparelho psíquico.
Em uma primeira aproximação de algo desconhecido, afirma Freud, tudo o que
precisamos é de representações auxiliares, hipóteses de trabalho que permitam uma primeira
descrição e sistematização, ainda que grosseira, do domínio problemático. Imaginemos então,
prossegue o autor, o aparelho psíquico
como um instrumento composto cujos componentes chamaremos instâncias,
ou para o bem da clareza, sistemas. Depois formulamos a expectativa de que
esses sistemas possam ter uma orientação espacial constante, ao modo como
os diversos sistemas de lentes de um telescópio se seguem uns aos outros. Em
rigor, não necessitamos supor um ordenamento realmente espacial (...). Basta-
nos que se estabeleça entre eles uma seqüência fixa, que a raiz de certos
processos psíquicos os sistemas sejam percorridos dentro de uma série
temporal. (FREUD, 1987f, p.530).
240
A idéia que se quer testar é a seguinte: os processos psíquicos percorrem os sistemas
psi que compõe o aparelho em uma determinada direção. “Toda nossa atividade psíquica
parte de estímulos (internos ou externos) e termina em inervações.” (FREUD, 1987f, p.530).
Consequentemente o trabalho psíquico propriamente dito deve ser concebido como algo que
transcorre e opera no intervalo existente entre uma extremidade sensorial, apta a receber
percepções, e outra extremidade motriz, do qual depende o acesso à descarga via ação motora.
FIGURA 5. Esquema do aparelho reflexo.
O esquema permite visualizar aquilo que Freud entende ser um requisito indispensável
na construção do aparelho psíquico, ele deve ser erguido primeiramente como um aparelho
reflexo. “O processo do reflexo segue sendo o modelo de toda operação psíquica.” (FREUD,
1987f, p.531).
Estabelecido esse fundamento segue uma primeira diferenciação: de acordo com a
experiência os estímulos perceptivos que afetam o primeiro sistema sensorial deixam atrás de
si, em um segundo sistema, o que se pode denominar por “traços mnêmicos”. O primeiro
sistema carece de memória, tem uma função unicamente receptiva, o segundo cumpre então a
tarefa de transpor a excitação momentânea do sistema de percepção em traços permanentes;
como se pode ver no segundo esquema:
P M
241
FIGURA 6. Esquema do aparelho de memória.
A impressão perceptiva quando transposta aos sistemas psi produz aí alterações
permanentes. Seu traço é registrado como um elemento que se encontra associado a outras
impressões que se deram de maneira simultânea na experiência, nunca de forma isolada.
Segundo a teoria das barreiras de contato entre os neurônios, a associação deve ser
compreendida como uma conseqüência da “redução na resistência e de facilitações”; uma
vez que os caminhos sejam facilitados pela experiência,desde um dos elementos Mn a
excitação se propaga melhor até um segundo elemento Mn do que até um terceiro” (FREUD,
1987f, p.532), o que garante a possibilidade permanente de associação. Também se deve
considerar que uma mesma excitação propagada desde os elementos perceptuais “experimenta
uma fixação {Fixierung} de índole diversa”. (FREUDf, 1987, p.532). O primeiro sistema Mn
é composto e organizado pela fixação das associações por simultaneidade. Nos sistemas
posteriores o mesmo material mnêmico se ordenará segundo outros modos de relação como as
de semelhança, conseqüência, e assim por diante.
Contudo, Freud dedica atenção especial a esses registros primários cujo significado
psíquico não se pode traduzir em palavras. O que caracterizaria o primeiro sistema psi seria a
intimidade de seus vínculos com o material mnêmico bruto. De maneira geral, para o que
segue, deve-se ter mente que se as qualidades sensoriais são emitidas unicamente pelo sistema
P Mn Mn’ Mn’’ M
242
da percepção, as recordações, por sua vez, são em si mesmas inconscientes, o que não as
impede de seguir produzindo efeitos. Dito isso, Freud segue afirmando que as impressões
vividas na primeira infância, as que produzem um efeito psíquico mais intenso sob o aparelho,
dificilmente se tornam conscientes, não obstante, boa parte do que chamamos de nosso
caráter se baseia justamente nos traços mnêmicos dessas impressões. (FREUD, 1987f, p.533).
Essas considerações psicológicas, juntamente com as primeiras etapas da construção
do instrumento psíquico, foram obtidas sem o auxílio do estudo dos sonhos, cabe agora
introduzi-lo. O sonho serve a Freud como fonte de prova para o conhecimento de uma
segunda peça do aparelho, pois a investigação mostrou a impossibilidade de compreender a
formação onírica sem que se conceba um conflito entre instâncias, agora substituídas por
sistemas. Assim, o sistema crítico que mantém relações estreitas com a consciência deve
situar-se no extremo motor do aparelho, dele depende as decisões que guiam as ações motoras
voluntárias.
FIGURA 7. Esquema do aparelho psíquico.
A esse sistema, afirma o autor, denominamos pré-consciente (Pcc); o nome indica que
seus processos de excitação podem, sem demora, alcançar a consciência assim que se
cumpram determinadas condições, como atingir uma intensidade suficiente para desperta a
P Mn Mn Icc Pcc
. . . . . .
243
atenção psíquica, por exemplo. (FREUD, 1987f, p.534). O sistema que lhe antecede é
denominado inconsciente (Icc), e indica o fato de que seu acesso à consciência somente se faz
pela mediação do pré-consciente, o que produz alterações significativas em seus processos de
excitação. (FREU, 1987f, p.535).
De volta aos sonhos, pode-se dizer que, quando tratamos do desejo onírico, deve-se
reconhecer que o impulso para a formação dos sonhos é fornecido pelo sistema inconsciente.
O sistema inconsciente é o ponto de partida para a formação do sonho. Como todas
as outras formações de pensamento, esta excitação onírica exteriorizará o afã de
atravessar o Prcc e alcançar desde aí o acesso à consciência”. (FREUD, 1987f,
p.535).
A experiência nos ensina, observa Freud, que durante a vigília à censura barra aos
pensamentos oníricos o acesso à consciência. Segundo essa linha de raciocínio, durante o
sono a resistência da censura situada entre inconsciente e pré-consciente diminuiria e deixaria
livre o acesso, mas isso não ajuda a compreender o caráter alucinatório da formação que se
propõe a esclarecer. O que ocorre com o sonho alucinatório somente pode ser descrito da
seguinte maneira “a excitação toma um caminho de refluxo. No lugar de propagar-se até o
extremo motor do aparelho, o faz até o extremo sensorial, e por último alcança o sistema das
percepções.” (FREUD, 1987f, p.536). O mesmo ocorre no recordar deliberado ou em outros
processos normais, a excitação põe-se em marcha regressiva desde algum ato complexo de
representações até sua base na matéria bruta dos traços mnêmicos. Contudo, “na vigília essa
retrogressão não vai além das imagens mnêmicas, não pode produzir a animação
alucinatória das imagens perceptivas.” (FREUD, 1987f, p.536).
No caso do sonho, o sistema da percepção é plenamente investido partindo-se dos
pensamentos. “Assim chamamos – regressão – o fato de que no sonho a representação é
novamente transformada na imagem sensorial da qual se originou.” (FREUD, 1987f, p.537).
244
Segundo Freud, esse é um fato, primeiro, empiricamente comprovado se temos em vista que
durante o trabalho de condensação, por exemplo, todas as relações lógicas entre os
pensamentos se perdem; e segundo, é teoricamente justificado quando correlacionado ao
esquema, pois as relações lógicas não fazem parte dos primeiros sistemas Mn, e por isso a
regressão que a eles retorna despoja os pensamentos desse meio de expressão e os oferece um
outro mediante imagens perceptivas. “O conjunto dos pensamentos oníricos é reduzido, pela
regressão, a seu material bruto.” (FREUD, 1987f, p.537).
Que alteração, pergunta-se Freud, permite essa e outros tipos de regressão como às
alucinações da histeria e da paranóia ou mesmo as visões de pessoas normais? Em todos os
casos trata-se de pensamentos transformados em imagens, contudo, essa mudança só se
efetiva para aqueles pensamentos que se associam às recordações sufocadas ou inconscientes.
Quanto aos sonhos, pode-se supor que a mudança dos pensamentos em imagens seja
conseqüência da atração exercida pelas recordações visuais infantis que lutam por realização.
Segundo essa concepção o sonho pode ser descrito também como o
substituto da cena infantil alterado por transferência ao atual. A cena
infantil não pode impor sua renovação, deve conformar-se em regressar
como sonho.” (FREUD, 1987f, p. 540).
Assim, a regressão, onde quer que apareça, depende de dois fatores: a resistência que
se opõe a penetração do pensamento na consciência e a simultânea atração seletiva exercida
pelas recordações que subsistem sob a forma sensorial. No sonho, o processo de refluxo da
excitação atraído pelas cenas primárias é facilitado pela interrupção da corrente progressiva
que durante o dia parte dos órgãos sensoriais até o pólo motor. Freud distingue três
perspectivas da regressão que se pode observar num mesmo movimento, a regressão tópica,
temporal e formal; sua simultaneidade se deixa apreender pela seguinte fórmula: “O mais
antigo no tempo é mais primitivo no sentido formal [modos de expressão] e o mais próximo
do extremo perceptivo dentro da tópica psíquica.” (FREUD, 1987f, p.542).
245
Vale lembrar, conclui o autor, que a regressão exerce um papel não menos importante
na teoria das neuroses cujo desenvolvimento deve reconduzir a pesquisa a esta mesma região
que se impõe insistentemente no estudo dos sonhos, qual seja: “que o sonhar em seu conjunto
é uma regressão a condição mais primitiva daquele que sonha, uma reanimação de sua
infância, das moções pulsionais que o governaram e dos modos de expressão de que
dispunha.” (FREUD, 1987f, p. 542).
5.2. Desejar: a atividade psíquica por excelência
Diante do estabelecido, Freud julga necessário tecer uma série de considerações que
correlacionem o desejo, concebido como força impulsora do trabalho anímico, com o novo
esquema do aparelho psíquico. Existem três possibilidades para a gênese de um desejo,
pondera o autor: 1º pode ser um desejo diurno, pré-consciente, admitido mas não tramitado; 2º
um desejo diurno não tramitado por que censurado, remetido do pré-consciente ao
inconsciente; 3º um desejo reprimido que “carece de relação com a vida diurna”, inteiramente
incapaz de transpor o sistema inconsciente.(FREUD, 1987f, p.544).
Em todos os casos trata-se sempre de desejos pendentes, não satisfeitos. A questão é se
todos têm a mesma significatividade para a formação onírica. Os sonhos de crianças, pondera
o autor, não deixam dúvidas de que um desejo diurno insatisfeito pode por si só despertar um
sonho, porém, deve-se considerar que nesses casos se trata “do desejo de uma criança, de
uma moção de desejo com a força própria do infantil.”(FREUD, 1987f, p.545). No adulto, o
esperado é que a vida pulsional encontre-se, em certa medida, dominada pela atividade do
pensamento de vigília que gradualmente acaba por renunciar, por julgar inútil, “a formação
246
ou conservação de desejos tão intensos como a criança conhece.” (FREUD, 1987f, p.545).
Assim, no caso de um aparelho inteiramente constituído, o desejo consciente carece da
intensidade necessária à formação de um sonho e somente torna-se capaz de excitá-lo
mediante a conexão com desejos inconscientes, esses sim,sempre alertas e dispostos a todo
o momento a procurar expressão quando se lhes oferece oportunidade de aliar-se a um
impulso do consciente e de transferir sua maior intensidade”. (FREUD, 1987f, p.545). Tais
desejos insusceptíveis de consciência, bem como todos os outros atos psíquicos realmente
inconscientes,
partilham deste caráter de indestrutibilidade (...). São vias facilitadas de uma
vez por todas, que nunca caem em desuso e que sempre que uma excitação
inconsciente as reinveste estão prontas a conduzir o processo de excitação à
descarga. (FREUD, 1987f, p.546, grifo nosso).
Uma representação de desejo indestrutível, sem relação alguma com a vida diurna, é
incapaz por si mesma de ingressar no pré-consciente e somente exterioriza efeitos nesse
último mediante a conexão com uma representação indiferente selecionada entre os restos
diurnos que lhe permita a transferência de sua intensidade. Com efeito, os restos diurnos
contribuem com a formação do sonho emprestando-lhe material de transferência como ponto
de apoio necessário à força figurante do desejo reprimido.
A prevalência do impulso inconsciente na realização alucinatória de desejo pode ser
devidamente justificada com o auxílio do esquema do aparelho psíquico; cabe então
interrogar através desse a natureza propriamente psíquica do desejar. Freud reapresenta as
etapas de constituição do aparelho tal qual foram estabelecidas no “Projeto...” (1895).
117
Desde um aparelho reflexo guiado unicamente pela tendência a manter-se livre de estímulos,
passando pela introdução das necessidades internas que lhes exigem uma alteração no modo
de operação, até a consideração desse aparelho a partir de suas primeiras vivências de
117
(Cf. Parte II, cap.1 e 2).
247
satisfação, das quais resulta a introdução da vida representacional no aparelho: o psíquico no
seu ponto de origem.
118
No contexto da formação do aparelho, o desejo se constitui como conseqüência das
primeiras vivências de satisfação, trata-se mesmo da “primeira atividade psíquica”, ou ainda,
da “primeira atividade de pensamento”
119
: um impulso que visa restabelecer mediante a
reanimação sensorial da representação do objeto amado uma situação original de satisfação.
(FREUD, 1987f, p.557). O desejar é uma primeira atividade genuinamente psíquica por se
tratar de repetir mediante representações o prazer e a satisfação fora das condições biológicas
das necessidades, muito embora, as pressuponha como ponto de partida e apoio. Tal atividade
inicialmente apontava para a produção de uma identidade de percepção, em outros termos,
diante do reaparecimento do estado de anseio a excitação, guiada pela memória da cena de
satisfação, tendia a reproduzir aquela percepção originária da qual resultou na satisfação da
necessidade: desejar terminava em alucinar. Porém, a experiência vital com o desprazer
exigiu do aparelho uma inibição da regressão alucinatória e sua substituição pelo pensamento
judicativo.
120
Dado todos os desenvolvimentos anteriores, é possível reconhecer o seguinte fato
psicológico fundamental: o desejar se constitui como a atividade psíquica por excelência. O
desejo está na origem de todas as formações anímicas pois, “somente um desejo pode colocar
em trabalho nosso aparelho psíquico.”
121
(FREUD, 1987f, p.559). O sonho tido como
primeiro membro de uma série de outras formações pode ser considerado como um
118
(Cf. Parte II, seção 2.1 e 2.2).
119
(Cf. Parte II, seção 3.1).
120
(Cf. Parte II, seção 2.3).
121
É importante lembrar que o desejo somente pode ser concebido como força impulsora de toda
atividade psíquica em decorrência de suas raízes pulsionais, como se encontra estabelecido desde o
“Projeto...” (1985), que pressupõe o desamparo do aparelho psíquico diante da ausência de proteção
frente à condução direta da estimulação endógena até o núcleo de psi. (Cf., Parte II, seção 1.4).
248
testemunho desse modo de trabalho primário do aparelho, um modo infantil de se obter a
satisfação desejada, que foi abandonado pela vigília por ser absolutamente inadequado frente
às urgências da vida.
Não obstante, os impulsos de desejo inconscientes também aspiram durante o dia
abrir caminho” através do sistema pré-consciente até a consciência e o controle da atividade
motora, é o que se pode observar tanto nas psicoses como no fenômeno da
transferência.(FREUD, 1987f, p.559). Nesse sentido, a censura entre o inconsciente e o pré-
consciente torna-se a guardiã da saúde mental. No caso dos sonhos, ao mesmo tempo em que
a censura relaxa sua ação crítica, fecham-se também as portas para a motricidade, assim, as
realizações de desejo resultam inofensivas por que “não são capazes de por em movimento o
aparelho motor, o único que pode atuar sobre o mundo externo o transformado.” (FREUD,
1987f, p.559). Menos inofensiva, prossegue Freud, são as situações de vigília que envolvem
um debilitamento da instância crítica por meio de um reforço patológico das excitações
inconscientes que nessas condições sobrepujam o pré-consciente e “assumem o controle da
fala e da ação”, ou ainda, guiam o aparelho na direção de uma psicose alucinatória.(FREUD,
1987f, p.560). No caso dos sintomas neuróticos a situação é outra, pois eles sempre
comportam um compromisso conflituoso entre duas realizações de desejos opostos, realizam,
simultaneamente, uma fantasia de desejo e um pensamento punitório cujo resultado é uma
produção psíquica inibida e reativa.
5.3. O sonho e sua função: a tramitação da excitação inconsciente
249
Essas diferentes possibilidades de que os impulsos a muito suprimidos da vida diurna
possam sob certas condições abrir caminho até a fala e a ação, são as evidências mais
surpreendentes da eficácia contínua e da indestrutibilidade desses processos. Freud justifica
essa eficácia permanente concebendo-a como decorrente da conservação dos dispositivos
psíquicos pelos quais esses processos transcorrem e seguem sendo susceptíveis de uso. São
caminhos sempre transitáveis, reafirma o autor, tão pronto uma quantidade de excitação deles
se sirva. Mas, nesse momento acrescenta que é uma particularidade dos processos
inconscientes permanecerem indestrutíveis, poisno inconsciente nada pode findar, nada é
passado e nem está esquecido.” (FREUD, 1987f, p.569). Uma afronta, por exemplo, ocorrida
há trinta anos atrás produz seus efeitos agora como se fosse recente. Basta que sua recordação
seja evocada para que reviva e se mostre investida de grande excitação procurando descarga
motriz em um ataque.
É precisamente aí que a psicoterapia deve atuar, tornando possível a tramitação desses
processos visando torna-los susceptíveis de esquecimento por meio de um debilitamento
afetivo dessas impressões. O mesmo vale para os intensos desejos infantis incompatíveis com
a vida diurna, o que não implica em destruí-los, o que é impossível, e sim tramita-los.
Enquanto inconscientes tais representações não sofrem a influência primária do tempo sobre
seus restos mnêmicos. Isto só é possível mediante alterações secundárias obtidas por árduo
trabalho que implica em submeter o inconsciente ao império do pré-consciente. (FREUD,
1987f, p.569).
Para cada processo de excitação inconsciente existem duas saídas, observa Freud:
1. É deixado a si mesmo, podendo irromper em alguma situação que favoreça o acesso
a ação motora como via de descarga para sua excitação.
2. Ao invés da descarga cega, submete sua excitação à influência do pré-consciente
tornando-se uma excitação ligada.
250
Disso segue uma observação fundamental: o tramite que leva a ligação da excitação é
justamente o que ocorre no processo onírico. “O pré-consciente liga a excitação inconsciente
do sonho e a torna inócua enquanto perturbação”. (FREUD, 1987f, p.570). Do ponto de vista
econômico é muito mais vantajoso dar tramite ao desejo inconsciente no sonho do que mantê-
lo sob repressão constante.
Pode-se conjecturar que o sonho, mesmo que na sua origem não fosse um
processo com um propósito definido, dentro do jogo de forças da vida
psíquica se apropriou de uma função. E agora podemos ver de que função se
trata. Assumiu a tarefa de trazer de novo sob o império do pré-consciente
a excitação do inconsciente que foi deixada livre. Assim se constitui como
um compromisso, como todas as outras formações psíquicas da série a qual
pertence: serve simultaneamente aos dois sistemas realizando ambos os
desejos com a condição de que sejam compatíveis. (FREUD, 1987f, p.570,
grifo nosso).
Contudo, outras formações como os sintomas, por exemplo, permitem observar que
mesmo onde a saúde psíquica é plena a submissão do inconsciente pelo pré-consciente nunca
é total. Os sistemas se encontram em permanente conflito, e os sintomas representam uma
trégua provisória. Não obstante, os sintomas também oferecem ao pré-consciente a
possibilidade de alguma tramitação da excitação inconsciente. (FREUD, 1987f, p.572).
Vale lembrar, como demonstra à análise dos sonhos de angústia, que para Freud a
excitação em jogo nessas formações psíquicas é inequivocamente a excitação sexual. Um
bom exemplo disso, afirma o autor, pode-se observar no pavor nocturnus em crianças que dá
mostras da angústia infantil diante do despertar de uma excitação sexual crescente,
incompreensível e impossível de dominar. (FREUD, 1987f, p.575).
251
5.4. A lacuna na eficácia funcional e o que se separa do desenvolvimento
O destino dos pensamentos na formação dos sonhos pode ser visto ainda de um outro
ângulo. Freud pondera que os pensamentos oníricos geralmente se originam durante o dia e se
processam de uma forma tal que passam muitas vezes inadvertidos para a consciência até o
adormecer, quando inicia a segunda etapa do trabalho onírico. Outra possibilidade, por
exemplo, ocorre quando certa seqüência de pensamentos segue determinado caminho
associativo até encontrar-se com uma representação alvo de censura e desprazer. Desse ponto
em diante a cadeia de pensamentos é desinvestida pela atenção consciente e o processo
prossegue sem que seja notado, de forma pré-consciente, assim como no caso anterior. Nesse
sistema as representações, quando abandonadas a si mesmas, estabelecem conexões com os
desejos inconscientes sempre alertas, são expropriadas, servindo de material intermediário
para a transferência da excitação do processo de desejo reprimido. A partir daí o itinerário de
pensamentos pré-consciente sofre uma série de transformações anormais exemplificadas pelo
conjunto de operações que compõem o trabalho do sonho: “Podemos dizer que a cadeia de
pensamentos até então pré-consciente foi agora arrastada ao inconsciente” (FREUD, 1987f,
p.584), atraída por grupos mnêmicos que existem somente sob a forma de investimentos
visuais.
A subjugação de seqüências de pensamentos conscientes e pré-conscientes por
processos inconscientes é parte do trabalho que leva a formação tanto dos sonhos como dos
sintomas. O principal traço dessas transformações anormais é o empenho em tornar a energia
móvel susceptível de descarga; a significatividade própria dos elementos psíquicos fica em
segundo plano.(FREUD, 1987f, p.586). É nessa direção que Freud conduz a investigação que
devera explicar que fatores ainda desconhecidos possibilitam essas transações cujo saldo para
252
a vida de vigília é uma perda da eficácia pré-consciente e consequentemente de uma parcela
da vida psíquica normal.
As diferenças no destino e no modo de tratamento da excitação exigem outras
elucidações acerca da construção do aparelho psíquico. Na seqüência Freud retoma
amplamente as teses estabelecidas no “Projeto...” (1895). Segundo esse, o aparelho psíquico
primitivo exibe um funcionamento reflexo diante da excitação. Após as primeiras vivências, o
desprazer advindo da ausência do objeto e da conseqüente somatória da excitação interna põe
o aparelho em atividade na direção do prazer, a isso se denominou desejo: um impulso para
reencontrar uma satisfação perdida.
O exame desses e de outros processos similares permitem sustentar a seguinte tese: “o
decurso da excitação dentro deste [aparelho] é regulado automaticamente pelas percepções
de prazer e desprazer.” (FREUD, 1987f, p.588). Nos seus primórdios, o aparelho exibe uma
atividade unicamente alucinatória e completamente inadequada para fazer cessar o estímulo
interno. Esse tramite alucinatório da excitação é inibido pela consolidação de novas
aquisições psíquicas (como a constituição do eu, por exemplo) sendo gradualmente
substituído por processos de pensamento judicativos aptos a diferenciar percepção e
recordação e assim reencontrar o objeto perdido desde modificações no mundo exterior.
122
Para poder efetivamente modificar o mundo mediante a ação motora, pondera o autor, é
necessário fixar as experiências em sistemas mnêmicos de maneira múltipla que permita ao
pensamento usufruir da experiência passada e proceder por ensaios antes de decidir a ação
eficaz sob o objeto real.
123
Correlacionado com a hipótese sobre os sistemas pode-se dizer que
a atividade alucinatória do primeiro sistema psi está dirigida a livre descarga das quantidades
de excitação, já as atividades que se consolidam com o desenvolvimento do segundo sistema
122
(Cf. Parte II, seção 2.2 e 2.3).
123
(Cf. Parte II, seção 3.1).
253
produzem uma inibição desse processo, torna os investimentos quiescentes. (FREUD, 1987f,
p.589).
O processo psíquico que convém exclusivamente ao primeiro sistema denomina-se
processo primário, aquele que resulta da inibição imposta pelo segundo sistema, processo
secundário.
124
Regido pelo princípio do desprazer o primeiro sistema é incapaz de incluir
algo desagradável na sua trama de pensamentos, não pode fazer outra coisa que desejar.
Segundo esse princípio regulador, o segundo sistema somente pode investir uma
representação se estiver em condições de inibir o desprendimento de desprazer que dela parte,
caso contrário procede por repressão (deslocamento e substituição). Contudo, pondera o autor,
não é essa a lacuna na eficácia funcional de nosso aparelho psíquico pela
qual se possibilita que pensamentos constituídos como resultado do trabalho
de pensamento secundário caiam sob o domínio do processo psíquico
primário, fórmula esta com a qual agora podemos descrever o trabalho que
leva aos sonhos e aos sintomas histéricos.(FREUD, 1987f, p.592, grifo
nosso).
As restrições impostas pela vigência implacável do princípio do desprazer não
conduzem necessariamente o aparelho psíquico a uma perda de sua eficácia funcional. Não
obstante, essa lacuna existe, observa Freud, ela torna o aparelho susceptível à dissociação de
seus processos normais e é produzida pela convergência de dois fatores procedentes de sua
própria história evolutiva. Um deles está relacionado à história de emergência e de vínculo
entre os sistemas, o outro, diz respeito à introdução na vida psíquica de forças pulsionais de
origem orgânica.
Quanto à história evolutiva dos sistemas é preciso considerar que o termo primário
utilizado para designar uma classe dos processos psíquicos em questão, tem três acepções: 1.
124
(Cf. Parte II, seção 2.2). Contudo, apesar da inibição, os processos primários podem sobrevir “onde
quer que as representações sejam abandonadas pelo investimento pré-consciente, deixadas a si mesmas
podem ser investidas com a energia não inibida do inconsciente” que aspira unicamente a descarga
motora, ou quando o caminho está aberto, “a reanimação alucinatória da desejada identidade
perceptiva”. (FREUD, 1987f, p.594).
254
se refere à posição desse sistema num ordenamento hierárquico; 2. diz de um modo de
operação; 3. tem um sentido cronológico. Assim, os processos primários estão presentes no
aparelho desde o princípio, enquanto os secundários somente se constituem pouco a pouco no
curso da vida psíquica, seu desenvolvimento inibe e sobrepõem-se aos processos primários, e
talvez, pondera o autor, somente na plena maturidade conseguem submetê-los a seu império.
(FREUD, 1987f, p.592). Existe assim, um descompasso temporal na emergência dos sistemas
que resulta numa conseqüência estrutural impar:
Em conseqüência desta emergência tardia dos processos secundários, o
núcleo de nosso ser, que consiste em moções de desejos inconscientes,
permanece inapreensível e não inibivel para o pré-consciente, cujo papel
ficou limitado de uma vez por todas a assinalar as moções de desejo que
provém do inconsciente um caminho mais adequado a seu fim. (FREUD,
1987f, p.593, grifo nosso).
Portanto, esse retardo no desenvolvimento dos processos secundários explica não só a
susceptibilidade permanente do aparelho frente à natureza irrepreensível de seus impulsos de
desejo mais antigos, como também a função vital e conflitiva que os estratos mais elevados
adquirem ao longo da experiência.
Esses desejos inconscientes constituem para todas as tendências psíquicas
posteriores, uma compulsão com a qual tem que adequar-se e a qual talvez
possam empenhar-se em desviar e dirigir, até metas mais elevadas. (FREUD,
1987f, p.593, grifo nosso).
“O núcleo do ser”, afirma Freud, é formado precisamente por moções de desejo
indestrutíveis provenientes do infantil, o centro psíquico do aparelho, formado por impulsos
desiderativos contra os quais durante o desenvolvimento se erguem barreiras como o asco, a
vergonha e a moralidade, por exemplo, inexistentes na pré-história psíquica infantil. São
desejos impossíveis de inibir pelo trabalho de ligação pré-consciente, unicamente pelo fato de
que “as recordações desde as quais o desejo inconsciente provoca o desprendimento de afeto
255
nunca foram acessíveis ao pré-consciente” (FREUD, 1987f, p.593). Muito embora, os
pensamentos pré-conscientes sirvam como material de transferência para esses desejos e seus
processos de excitação. Mas, tão logo seja acionado o princípio do desprazer, observa Freud,
o pré-consciente tende a se afastar desses pensamentos de transferência sob os quais se
ocultam desejos infantis, assim, tais pensamentos
são abandonados a si mesmos, são reprimidos {desalojados}, é dessa
maneira que a existência de um tesouro de recordações infantis subtraído
desde o começo do Pré-consciente passa a ser a condição prévia da
repressão.”
125
(FREUD, 1987f, p.593, grifo nosso).
O segundo fator que converge na produção da lacuna na eficácia funcional a qual se
atribui a não submissão disso que se separa do desenvolvimento ulterior no aparelho, é da
ordem de um reforço pulsional que os desejos reprimidos experimentam em determinados
momentos da constituição sexual que os reinveste de um excedente de excitação. (FREUD,
1987f, p.594). O mesmo reforço pode também advir sob circunstâncias sexuais desfavoráveis,
mas o fato indiscutível, afirma Freud, é que em todos os casos trata-se invariavelmente de
impulsos de desejos sexuais insatisfeitos procedentes do infantil. (FREUD, 1987f, p.595).
Os dois fatores acima apresentados referentes à própria história evolutiva do aparelho
psíquico, qual seja: retardo na emergência dos processos secundários, e o excedente pulsional
característico da constituição sexual humana, intervêm na formação de sonhos e sintomas.
Porém, é preciso observar, alerta Freud, que “o sonho não é um fenômeno patológico; não tem
por premissa nenhuma perturbação do equilíbrio psíquico e não deixa como seqüela nenhum
125
Nesse sentido, parece bastante pertinente a pontuação e as conseqüências extraídas por DAYAN
(1985, p.332) quando afirma, por exemplo, que “o infantil o qual Freud atribui o essencial do
inconsciente (...) é uma determinação tópica do recalcado (...) como conseqüência de uma separação
primeira [não traduzível]. É essa aptidão a um isolamento tópico que é o essencial, e que aparece como
a condição de possibilidade do recalcamento sob a égide do princípio do prazer, por que essa
separação devém, ela mesma, realidade psíquica.”
256
debilitamento da eficiência.” (FREUD, 1987f, p.596). Não se pode dizer o mesmo sobre os
sintomas que debilitam e deixam seqüelas permanentes no funcionamento psíquico. O fato do
sonho não poder ser considerado um fenômeno patológico, torna-o um instrumento
importante na investigação da constituição do mecanismo psíquico em geral.
Quando desde os fenômenos inferimos suas forças pulsionais, reconhecemos
que o mecanismo psíquico de que se serve a neurose não é criado primeiro
por uma perturbação patológica que ataca a vida psíquica, se não que já se
encontra disposto dentro do edifício normal do aparelho psíquico. Os dois
sistemas psíquicos, a censura na passagem entre eles, à inibição e a
sobreposição de uma atividade por outra, as relações de ambos com a
consciência (...) tudo isso pertence ao edifício normal de nosso instrumento
psíquico e o sonho nos indica os caminhos que levam ao conhecimento de sua
estrutura. (FREUD, 1987f, p.596).
Mais ainda, afirma o autor, os sonhos fornecem mesmo as provas de que o reprimido
persiste e segue sendo capaz de operações psíquicas também no estado de saúde normal.
(FREUD, 1987f, p.596). Os impulsos sufocados impedidos de expressarem-se durante a
vigília encontram no sonho os meios para abrir caminho a consciência e a satisfação: Flectere
si nequeo superos, Acheronta moverbo
126
. Dessa forma, conclui o autor, a interpretação do
sonho se consolida como a via régia para o conhecimento do inconsciente e para uma
intelecção mais profunda da composição do aparelho psíquico, possibilitando ainda, em
conjunto com outras formações, encontrar uma base psicológica para psicopatologia
funcional. (FREUD, 1987f, p.597).
126
“Se não posso dobrar os poderes mais altos, moverei as águas do inferno.” Virgílio, (Eneida).
257
5.5. O psíquico verdadeiramente real
Freud inicia seção F do último capítulo da “Interpretação dos Sonhos” (1900) com
uma reavaliação do alcance efetivo de suas hipóteses e seu manejo metodológico.
Anteriormente havia atribuído a cada um dos sistemas situados na extremidade motora do
aparelho, o inconsciente e o pré-consciente, dois modos diferentes de tramitação da excitação
psíquica, os processos primários e secundários respectivamente. Na presente seção, o autor
afirma que se trata mesmo da intenção de substituir um determinado tipo representação
auxiliar, os sistemas, por outro, os processos de excitação, numa tentativa de aproximação
mais efetiva e direta da realidade desconhecida que se quer investigar. (FREUD, 1987f,
p.598). A hipótese sobre os dois sistemas pode levar a mal entendidos, alerta Freud, se forem
entendidos como duas localidades situadas no interior do aparelho. O uso de analogias e
termos como tradução, reprimir, irromper, transcrever pode induzir o leitor ao erro de uma
interpretação localizacionista e a supor, por exemplo, que os pensamentos inconscientes se
encontram agrupados em um determinado lugar e necessitam ser traduzidos em outro onde se
tornam pré-conscientes. Mas, se quisermos substituir esses símiles, pondera Freud, pelo que
parece responder melhor ao “estado real das coisas” que se quer representar,
podemos dizer que um investimento é imposto a um determinado
ordenamento ou retirado dele, de sorte que o produto psíquico em questão cai
sob o império de uma instância ou dela se subtrai. De novo substituímos o
modo de representação tópico por um dinâmico. Não é o produto psíquico que
se nos aparece como móvel e sim sua inervação. (FREUD, 1987f, p.598).
127
127
Em nota, Freud observa que o problema em questão deve ser reformulado na medida em que se
considera a diferença fundamental que separa uma representação pré-consciente de outra inconsciente
implícita em todo o desenvolvimento anterior. A representação pré-consciente se caracteriza por uma
íntima relação com restos de representação de palavra, suas imagens acústicas, enquanto a
representação inconsciente compreenderia apenas a representação de objeto, cujo elemento central é a
imagem visual. (FREUD, 1987f, p.598).
258
Não obstante, Freud julga o modo de representação tópico justificado por ser
altamente fecundo e intuitivo em relação aos problemas que se propõe elucidar.
128
Os mal
entendidos desse modo de figuração podem ser corrigidos se não se perde de vista que
“produtos psíquicos” não podem ser localizados dentro de elementos orgânicos do sistema
nervoso, são processos que se dão “entre eles, onde resistências e facilitações constituem seu
correlato. Tudo o que pode ser objeto de nossa percepção interior é virtual.” (FREUD,
1987f, p.599). Apesar da manutenção metodológica do paralelismo psicofísico
129
, a
representação dos processos por meio dos conceitos de resistências e facilitações é para Freud
mais próxima da realidade em questão: “quem quer que queira tomas essas idéias a sério
teria de procurar analogias físicas para elas e descobrir um meio de representar os
movimentos que acompanham a excitação dos neurônios.” (FREUD, 1987f, p.589). No que
128
Deve-se ter em mente que a concepção de tópica psíquica em Freud está internamente
correlacionada com a consolidação da autonomia do ponto de vista funcional na abordagem dos
problemas psíquicos, propiciada, principalmente, pela apropriação dos conceitos jacksonianos de
processo e dissolução e pela concepção de Bastian sobre os três estados de redução da excitabilidade
na atividade de uma função. (Cf. Parte I, seção 2.3). Essa apropriação de um modelo funcionalista
permitiu uma ruptura com a idéia de que as funções mentais têm de ser simétricas a sua descrição
anatômica. O mais significativo, como observou SIMANKE (2004a,b), é que essa autonomia dos
processos funcionais não depende do conhecimento do cérebro: por mais que se conheça o cérebro um
esquema não tem que equivaler ao outro. Essas duas dimensões não são homólogas. A problemática
que se desdobra desta abertura implica que o lugar é construído e não mais somente descrito, trata-se
de uma dimensão deduzida da análise. (Cf. NASSIF, 1977, p.127). Como afirma Freud no “Ensaio
sobre as Afasias” (1973, p.68) as relações topográficas “se mantém somente na medida em que se
ajustam as necessidades da função”, ou seja, a topografia psíquica não pré-existe ao processo, mas é
estabelecida por ele. (Cf. SIMANKE, 1994a). Portanto, com a introdução da tópica não se trata tão
somente de um recurso didático e intuitivo, e sim de um modo original e legitimo de conceber a
espacialização do aparelho sem perder de vista a materialidade de seus processos.
129
Como foi desenvolvido anteriormente (Cf. Parte I, seção 2.2, Parte II, seção 1.2) a superação do
paralelismo psicofísico em direção de uma abordagem materialista não reducionista dos processos
mentais (Cf. Teixeira, 2000a) encontra-se latente nas inovações introduzidas pelo conceito de
representação no “Ensaio sobre as Afasias” (1891) e desenvolvidas no “Projeto...” (1895). No exame
crítico desses trabalhos pôde-se verificar a existência, no interior do próprio desenvolvimento
conceitual freudiano, de uma solução emergentista para o problema mente-cérebro. Esse seria um
horizonte aberto pela própria teoria e compatível com suas metas e pressupostos originais – uma
possibilidade. Tanto aqui como no problema anterior acerca da espacialização do psíquico partilhamos
do pressuposto de que “arsenal teórico freudiano possui certo potencial intrínseco para resolução de
seus impasses, de modo que não é necessário introduzir um excesso de elementos estrangeiros na
teoria para melhor definir seus conceitos.” (SIMANKE, 1994a, p.11).
259
tange a construção do aparelho anímico, trata-se mesmo de inferências, clinicamente
correlacionadas, acerca do enraizamento material dos processos psíquicos representacionais.
Feita essas ponderações Freud passa ao exame comparativo entre suas teses e outras
doutrinas contemporâneas acerca da questão do inconsciente. Freud reconhece na crítica de
THEODOR LIPPS, professor de psicologia em Munique, um parentesco muito grande com
suas próprias idéias. Ambos reconhecem, contra a asseveração de que a consciência é algo
indispensável ao psíquico, que falar em termos de “processos psíquicos inconscientes é a
expressão adequada e plenamente justificada de um fato efetivo.” (FREUD, 1987f, p.599).
Basta à análise de um sonho, argumenta Freud, para impor a convicção de que processos de
pensamento altamente complexos e sofisticados podem ocorrer sem excitar a consciência.
Freud, de acordo com Lipps, compreende que uma intelecção correta da “origem do psíquico”
deve subtrair a propriedade consciência como requisito indispensável, e o inconsciente deve
alçar o estatuto de “base universal da vida psíquica”. (FREUD, 1987f, p.600).
Contudo, é preciso reconhecer que dos processos inconscientes, em si mesmos, nada
se sabe até que tenham exercido sobre a consciência um efeito susceptível de comunicação ou
de observação. “O efeito consciente não é senão uma repercussão psíquica remota do
processo inconsciente que como tal, não se tornou consciente. Não obstante, [o médico]
saberá que esse tem existido e operado sem se transpor à consciência.” (FREUD, 1987f,
p.600). Essa impossibilidade de uma apreensão direta exige que se avance, desde o efeito até
causa psíquica desconhecida, mediante um processo de inferência. Nesse sentido, pondera
Freud:
O inconsciente é o psíquico verdadeiramente real, nos é tão desconhecido
em sua natureza interna como o real do mundo exterior, e nos é apresentado
pelos dados da consciência de maneira tão incompleta quanto o é o mundo
externo pelas indicações de nossos órgãos sensoriais. (FREUD, 1987f, p.600,
grifo nosso).
260
Existem outras passagens da obra sobre os sonhos (1900) que permitem situar
minimamente o sentido dessa problemática afirmação acerca do “psíquico verdadeiramente
real”. Na análise do “Sonho da injeção de Irmã” o autor faz a seguinte observação: “todo
sonho tem pelo menos um lugar no qual é insondável, um umbigo pelo qual se conecta com o
não conhecido.” (FREUD, 1987f, p.132). No capítulo VII seção A, retoma e aprofunda o
problema ao criticar os empenhos teóricos que insistem em velar “as condições básicas da
formação do sonho e a desviar o interesse de suas raízes pulsionais
130
, acrescentando que
até mesmo os sonhos melhor interpretados é preciso deixar um lugar em
sombras, por que na interpretação se observa que nesse ponto existe uma
meada de pensamentos oníricos que não se deixam desenredar (...) Esse é o
umbigo do sonho, o ponto central de onde mergulha no desconhecido. Os
pensamentos oníricos acham-se obrigados a ramificar-se em todas as
direções dentro da emaranhada rede de nosso mundo de pensamentos. E
desde um lugar mais espesso desse tecido o desejo onírico se desenvolve
como um cogumelo de seu micélio. (FREUD, 1987f, p.519, grifo nosso).
Assim, numa primeira aproximação, dizer que o inconsciente, centro psíquico do
aparelho, é reconhecido como algo verdadeiramente real, significa afirmar que se trata de algo
desconhecido para o qual converge toda trama psíquica e que a análise indica ser o ponto de
onde o desejo se desenvolve desde suas raízes pulsionais.
131
130
(Cf. Parte I, seção 3.1, Parte II, seção 1.4, 6.1, 6.2, Parte III, seção 2.2, 3.3 nota 55 e seção 4.1).
131
SANTI (1999), FULGENCIO (2001a) e LOPARIC (2001) são autores que se dedicaram a essa
passagem sobre o real. Apesar do louvável trabalho de resgatar o artigo de Lipps citado por Freud,
LOPARIC faz uma avaliação da passagem em questão que não se sustenta no projeto conceitual
freudiano. Afirma, por exemplo, que o “fundamento” da afirmação de Freud sobre o psíquico real
deva ser buscado no artigo de LIPPS “O conceito de inconsciente na psicologia”, e até mesmo na
filosofia de Kant. (2001, p.320). Muito embora Freud reconheça a proximidade efetiva de suas idéias
com as concepções de Lipps, pretende-se demonstrar que a semelhança não permite inscrever o
fundamento real do inconsciente freudiano numa tradição kantiana postulando-o como “coisa em si”
atrás dos fenômenos conscientes, como foi afirmado por LOPARIC (2001, p.320,328-329),
FULGÊNCIO (2001a), LAPLANCHE (apud SANTI, 1999, p.120) e sugerido por SANTI (1999,
p.119).
261
O exame da formação do conceito de representação de objeto [Objektvorstellung] no
“Ensaio sobre as afasias” (1891) interdita qualquer interpretação da concepção de real em
Freud em termos de “coisa em si” no sentido kantiano, ou seja, como a existência de algo
incognoscível absolutamente extrínseco a experiência sensível. Dentre as razões dessa
interdição deve-se considerar, primeiro, que o processo de formação da Objektvorstellung é o
mesmo que leva a constituição dos primeiros estratos da vida psíquica
132
, num tempo em que
o aparelho não está inteiramente constituído. A princípio só haveria representações de objeto
e não haveria a divisão inconsciente e pré-consciente. Portanto, essas representações podem
ser reconhecidas como núcleo do aparelho psíquico, inapreensível, indestrutível e impossível
de inibir. Trata-se mesmo do umbigo do sonho.
Segundo, como vimos anteriormente
133
, a representação de objeto se constitui no
aparelho de linguagem como uma referência extralingüística. É Integrada por uma diversidade
indefinida de impressões que a princípio precede a formação de palavras, ou seja, sua
emergência enquanto processo psíquico é absolutamente independente da constituição dos
processos lingüísticos, daí a aproximação estabelecida por Freud entre essa concepção de
objeto e o conceito de “coisa”. Segundo sugere Freud, a representação de objeto, por ser um
complexo aberto, comporta sempre um resto que se subtrai ao processo de significação por
meio da associação com as representações verbais. Esse resto não verbal e inconsciente, com
efeito, é o que se pode designar: o psíquico verdadeiramente real. Diferente da idéia de real
enquanto coisa em si, cuja existência independe da experiência, o real freudiano designa,
antes de tudo: algo desconhecido para o qual converge toda trama psíquica e que encontra seu
enraizamento material no complexo aberto das representações de objeto, organizado
132
(Cf. Parte III, seção 2.2).
133
(Cf. Parte I, seção 3.1 e 3.2).
262
principalmente em torno de seus elementos visuais, referentes às vivências sexuais infantis
134
e que constituem os primeiros estratos psíquicos do aparelho anímico.
Terceiro, como pudemos demonstrar, para Freud, a existência das coisas, do ponto de
vista psicológico, não pode ser provada extrinsecamente em relação às impressões que delas
temos (não contém nada mais que isto: sensações complexas).
135
Desde esse ponto de vista, a
concepção de matéria mais adequada, e até mesmo pressuposta nos desenvolvimentos
freudianos sobre o psíquico real, tem seu ponto de partida na obra de Stuart Mill.
136
Como foi
possível verificar, para Mill, em última instância, “existir é excitar”, ou seja, tudo aquilo que
se pretende designar por matéria, ou processo material, deve necessariamente “ser capaz de
excitar”, mesmo no caso em que a fonte da excitação seja algo negativo (ausente) como uma
possibilidade.
Segundo essa concepção, a teoria da representação e da formação das fantasias
apresenta todos os requisitos exigidos para que seus processos sejam reconhecidos como
processos materiais. Nos trabalhos sobre a memória que antecederam a “Interpretação dos
sonhos” (1900), a fantasia de desejo se constitui, em sonhos e sintomas, como uma encenação
psíquica de algo que teve apenas uma possibilidade de existir, ou seja, trata-se da constituição
de cenas que de fato nunca ocorreram, mas, no entanto, foram e continuam sendo
intensamente desejadas.
137
O trabalho com os sonhos deu provas de que tais desejos
insusceptíveis de consciência seguem sendo a única fonte excitadora capaz de por em
movimento o aparelho psíquico e suas representações. É tão somente por se constituir
enquanto “possibilidade permanente de excitaçãoque as representações de desejo devem ser
consideradas como um processo psíquico material:
134
(Cf. Parte III, seção 2.2, 3.3, 4.2 e cap. 6).
135
(Cf. Parte I, seção 3.1).
136
É preciso considerar, como fora exposto anteriormente, que a pretensão de Mill nas obras citadas
por Freud é justamente fornecer uma explicação da origem psicológica da idéia de matéria que não
contradiga as leis reconhecidas pelas ciências naturais. (Cf. Parte II, seção 3.2)
137
(Cf. Parte III, seção 7.4).
263
São vias facilitadas de uma vez por todas, que nunca caem em desuso e que
sempre que uma excitação inconsciente as reinveste estão prontas a conduzir
o processo de excitação à descarga. (FREUD, 1987f, p.546, grifo nosso).
Freud, após marcar as semelhanças de suas concepções com as de Lipps, se dedica a
pontuar o que torna seu conceito de inconsciente único diante dessa e de outras concepções
que lhes são contemporâneas
138
. A produção desse conceito no interior de um aparelho
clinicamente correlacionado é segundo Freud, a grande novidade de sua elaboração.
O novo que nos ensina a análise das formações psicopatológicas e do
primeiro membro dessa série, o sonho, consiste em que o inconscienteo
psíquicoocorre como função de dois sistemas separados e isso sucede
dentro da vida normal. (FREUD, 1987f, p.602, grifo nosso).
139
O que escapa a psicologia, prossegue Freud, é que o inconsciente freqüentemente
tomado de forma única existe de dois modos distintos: o primeiro deles é denominado
Inconsciente, e se caracteriza por ser insusceptível de consciência, e o segundo, é o Pré-
138
A demarcação dessa diferença é fundamental para Freud, traz mesmo a marca de sua originalidade.
Por outro lado trata-se de uma necessidade que se impôs desde o encontro com o texto de LIPPS, em
carta a Fliess de 31 de agosto de 1898, por exemplo, diz: “A correspondência entre nossas idéias é
estreita também no que concerne aos detalhes; talvez a bifurcação de onde poderão partir minhas
próprias idéias novas surja mais adiante.” (MASSON, 1986, p.326). Para um exame das semelhanças
em questão que vão além das mencionadas por Freud em seu exame comparativo, ver LIPPS (2001
[1897]).
139
Como bem observou LOPARIC (2001, p.321, grifo do autor), “o que diferencia o inconsciente
Freudiano do de Lipps é, primeiro, o fato de ele ser algo reprimido e, segundo, de ele ser representado
como algo espacial.” O erro está em concluir que o inconsciente freudiano espacialmente
representado é tão somente um “inconsciente metafórico, artificial, colorido fisicamente” (2001,
p.322). (Sobre a originalidade do ponto de vista freudiano da espacialização do psíquico remetemos o
leitor às notas nº128 e 129 nesta mesma seção). De acordo com os desenvolvimentos anteriores, as
principais fontes desse equívoco estão: 1º. No desconhecimento da importância do “Ensaio sobre as
afasias” (1891) em razão das inovações trazidas pelo conceito freudiano de representação, entre elas: o
ponto de vista funcional e a adoção unicamente metodológica do paralelismo. (Cf. Parte I, cap.2, Parte
II, seção 1.2). 2º. Por não considerar a continuidade de base existente entre os problemas e conceitos
elaborados no “Ensaio sobre as afasias” e o “Projeto de uma psicologia” (1895). 3º. O autor parte do
pressuposto, compartilhado por GARCIA-ROZA (2001, p.77), do abandono por parte de Freud das
teses elaboradas no “Projeto...” (1895). Fato amplamente refutado pela presença constante e central
que as teses em questão desempenham ao longo dos desdobramentos clínicos, conceituais e
metodológicos na “Interpretação dos sonhos” (1900). (Cf. Parte IV, seção, 1.1, 2.4, 4.1, 4.4, 5.1, 5.2,
5.4, 5.5).
264
consciente, que recebe esse nome por que suas excitações podem, sob certas condições,
tornarem-se conscientes. Freud sublinha que, a observação das modificações efetuadas no
processo devido à censura, foi o que lhe sugeriu um símile espacial em que as excitações, para
se tornarem conscientes, necessitam atravessar uma seqüência imutável de instâncias
(FREUD, 1987f, p.602). O pré-consciente desempenha funções importantes nessa passagem,
ele bloqueia o acesso à consciência, controla o acesso à atividade motora e tem a sua
disposição uma energia de investimento móvel conhecida como atenção. A Consciência, por
sua vez, é concebida como um órgão sensorial para percepção de qualidades psíquicas,
assim, os processos de pensamentos, por serem destituídos de qualidade, para que possam ser
percebidos necessitam se associarem às recordações de palavras que lhes emprestam
qualidade suficiente para atrair a atenção da consciência. (FREUD, 1987f, p.605). Na
seqüência, o autor fornece dois exemplos clínicos que visam mostrar que os pensamentos
quando associados às palavras estão sujeitos a uma série de deformações e disfarces que lhes
permitem um acesso mais ou menos livre a atividade consciente e a fala.
5.6. Psychische Realität: uma forma particular de existência
Freud conclui o último capítulo da obra numa avaliação do valor e das contribuições
do estudo dos sonhos em duas vertentes do conhecimento: a teórica e a prática. Seu valor
teórico, pondera o autor, estaria nas contribuições que o estudo pode dar ao conhecimento
psicológico e para a compreensão preliminar na abordagem dos problemas postos pelas
neuroses: é a via régia para o inconsciente. Os sonhos fornecem mesmo as provas de que o
265
reprimido persiste e segue sendo capaz de operações psíquicas também no estado de saúde
normal.
Os dois sistemas psíquicos, a censura na passagem entre eles, à inibição e a
sobreposição de uma atividade por outra, as relações de ambos com a
consciência (...) tudo isso pertence ao edifício normal de nosso instrumento
psíquico e o sonho nos indica os caminhos que levam ao conhecimento de
sua estrutura.(FREUD, 1987f, p.596).
Por outro lado, a compreensão que os sonhos permitem alçar sobre a estrutura e
funções do aparelho psíquico é, para Freud, uma condição necessária para que se possa
exercer uma influência terapêutica favorável sobre as psiconeuroses. Algo plenamente
estabelecido desde o prefácio à primeira edição:
Como se verá, o sonho não pode reivindicar uma importância prática; não
obstante, tanto maior é seu valor teórico como paradigma, e quem quer que
tenha falhado em explicar a origem das imagens oníricas se esforçará em vão
por compreender as fobias, as idéias obsessivas e as delirantes, e inclusive,
exercer sobre elas uma influência terapêutica. (FREUD, 1987f, p.17).
Como bem observou COTTET (1999, p.93), a dinâmica da cura em Freud tem por
modelo a teoria da formação do aparelho psíquico, ou seja, a análise é homogênea a
reconstrução dos momentos constitutivos do aparelho, devendo o analista buscar no seu
funcionamento a lei de sua ação. Segundo o autor, essa é uma relação estabelecida desde o
ponto de partida e que se mantém até o final. Com efeito, a respeito do método catártico, por
exemplo, Freud afirma que ele “é mais adequado por que imita fielmente o mecanismo
segundo o qual se originam e dissipam as perturbações.” (FREUD, 1988a, p.62). Portanto,
ambos, dinâmica da cura e aparelho psíquico se encontram em constante e recíproca
reformulação conforme a evolução dos problemas que se lhes apresentam.
266
Quanto ao valor prático do estudo, Freud se mostra bastante cauteloso, com efeito,
pois o termo prático está sendo tomado numa acepção moral e ética. São três as questões
postas desde essa perspectiva:
1º. Qual é o valor prático do estudo para o conhecimento da alma e o descobrimento
das propriedades ocultas do caráter dos indivíduos?
2.º Acaso os impulsos inconscientes que o sonho manifesta não possuem um valor de
reais poderes dentro da vida psíquica?
3.º Deve-se iluminar o significado ético dos desejos sufocados, que, assim como criam
os sonhos, podem engendrar amanhã outra coisa (como uma ação, por exemplo)? (FREUD,
1987f, p.607).
Freud primeiramente observa que esse problema prático não foi desenvolvido pelo
estudo, muito embora tenha recebido um tratamento preliminar no exame crítico da
literatura.
140
Contudo, julga necessário deixar claro sua posição, e para isso retorna ao
comentário de SCHOLTZ a respeito de uma passagem histórica sobre o “sonho de um
cidadão romano”. Segundo Scholtz:
O imperador romano que mandou executar um de seus súditos por que esse
havia sonhado que cortava a cabeça do governante não estava equivocado
quando justificou seu ato dizendo que, aquele que assim sonha, também deve
alimentar idéias parecidas quando desperto. (apud, FREUD, 1987f, p.90).
O imperador romano justificou a execução de seu súdito por entender que não há
diferença entre os pensamentos dos sonhos e aqueles que ocorrem durante a vigília, ambos se
140
No exame da literatura o autor dedica uma seção (F) as diferentes opiniões sobre a questão da
presença ou inexistência dos sentimentos morais nas formações oníricas, bem como sobre a
responsabilidade ou irresponsabilidade do sujeito para com seus sonhos imorais e a relação desses
impulsos com a vida da vigília. Conclui com a elaboração de um problema que é retomado nesse
último capítulo: “nos confrontamos com o problema de que parte dos processos psíquicos que ocorrem
nos sonhos devem ser considerados como real, isto é, tem o direito de ser classificado entre os
processos psíquicos da vigília ?” (FREUD, 1987f, p.97).
267
constituem como processos conscientes e se realizam na cena da ação da vigília, portanto,
partilham da mesma realidade. Dessa forma, não haveria necessidade alguma do trabalho de
interpretação, pois, esse entendimento abole, entre outros fundamentos, a distinção cara a
Freud entre conteúdo manifesto e conteúdo latente assim como todo trabalho e tramite
psíquico inconsciente que isso implica.
141
Opino, simplesmente, pondera Freud, que o imperador romano se equivocou quando
mandou executar seu súdito. O equívoco se deve a duas razões: 1º. O imperador deveria, antes
de tudo, ter se preocupado em interrogar o significado do sonho; muito provavelmente não
seria aquele que parecia ser. 2º. Mesmo que a interpretação de um sonho revelasse esse
significado de lese majesté, não deveríamos, se pergunta Freud, aceitar o juízo de Platão de
que o virtuoso se contenta em sonhar o que o perverso realmente executa? Diante da
polêmica ética e moral Freud se posiciona ao lado de Platão asseverando que: “o melhor é
deixar em liberdade os sonhos” (FREUD, 1987f, p.607). As razões são claras quando se
considera que durante o estado de sono a atividade da censura relaxa, no entanto, fecham-se
também as portas do movimento. Assim, quaisquer que sejam os impulsos inconscientes
encenados, eles permanecem inofensivos por que “não são capazes de por em movimento o
aparelho motor, o único que pode atuar sobre o mundo externo, transformando-o. O estado
de dormir garante a segurança da cidadela.” (FREUD, 1987f, p.559).
É no contexto dessas questões sobre o valor dos sonhos para “o julgamento do caráter”
que se encontra a célebre e problemática passagem que introduz no projeto clínico-conceitual
freudiano uma nova ordem de realidade: a realidade psíquica. Essa introdução se faz em dois
tempos; o primeiro é marcado pela questão prática que lhe antecedeu, qual seja: os desejos
inconscientes, assim como criam os sonhos, podem engendrar amanhã outra coisa, como a
ação temida pelo imperador romano, por exemplo? Uma questão altamente complexa do
141
(Cf. Parte IV, seção 1.1).
268
ponto de vista do conflito constitutivo das operações desiderativas no aparelho, daí a cautela
de Freud:
Eu não sei se aos desejos inconscientes se deve reconhecer-lhes realidade;
a todos os pensamentos intermediários e de transição, desde já, ela deve ser
negada.” (FREUD, 1987f, p.607, grifo nosso).
O contexto indica que o termo “realidade” está sendo utilizado nessa frase como uma
referência à realidade prática tal qual ela se constitui para cena de ação da vida diurna
dominada pela censura e pelo juízo. É o que justifica a dúvida que aí se instala: Eu não sei se
aos desejos inconscientes oníricos, tal qual se nos apresentam mediante o trabalho de
interpretação, se deve reconhecer-lhes a mesma realidade que vigora para os processos
psíquicos da vigília, ou seja, a possibilidade de existirem publicamente diante dos
julgamentos morais enquanto processos susceptíveis de representação verbal, atenção
consciente e ação motora voluntária. Deve-se considerar que, na cena do sonho, o trabalho
onírico opera justamente uma subversão dos valores produzindo uma cena que visa uma
unidade de ação isenta de censura, onde não se pode mais distinguir verdade e ficção.
Porém, no que se refere aos pensamentos oníricos intermediários e de transição – em
que se pode reconhecer a dimensão psicológica
142
dos eventos psíquicos – não há dúvida: a
todos eles a realidade deve ser negada. Com efeito, pois como foi demonstrado, o trabalho do
sonho os despoja de sua realidade e os introduz em outras relações
143
; os utiliza como material
apto a representar e encobrir o desejo inconsciente diante da censura. A importância dos
pensamentos intermediários é justamente ser um componente absolutamente necessário para
que os desejos infantis possam obter uma satisfação substitutiva, bem como exercer seus
142
Sobre a diferença entre o psíquico e o subjetivo/psicológico ver Parte II, seção 4.1 e 7.1.
143
(Cf. Parte IV, seção 2.4 e cap.4).
269
efeitos, ligando-se aos pensamentos da vigília e transferindo a eles sua carga de excitação.
(RUDGE, 2003, p.18).
Na seqüência, a questão é colocada desde uma perspectiva epistemológica, logo a
conclusão extraída deve ser lida como uma resposta a um problema clínico e conceitual cuja
resolução foi precedida por uma longa etapa de elaboração, desde os trabalhos com a histeria,
o hipnotismo e a linguagem (1888-1891), o “Projeto de uma psicologia” (1895), o colapso da
teoria da sedução (1897) até a “Interpretação dos sonhos” (1900). Trata-se de uma decisão
teórica: se não se pode reconhecer aos desejos inconscientes a mesma realidade que vigora
para ação subjetiva dos processos da vigília, os resultados efetivos do trabalho clínico com os
sonhos e sintomas conduzem ao reconhecimento de um domínio de realidade próprio ao
inconsciente. Portanto:
Se estivermos frente aos desejos inconscientes em sua expressão última e
mais verdadeira, é preciso concluir que a realidade psíquica [Psychische
Realität] é uma forma particular de existência que não deve ser confundida
com a realidade material. (FREUD, 1987f, p.607, grifo do autor).
144
A interpretação dos sonhos demonstra de modo inequívoco que o desejo inconsciente
em sua expressão última e mais verdadeira é o infantil: a criança que segue vivendo com seus
144
Deve-se considerar que a presente sentença não consta na 1º edição da obra e foi estabelecida na
sua forma final apenas em 1919. Em sua primeira versão de 1909 o conceito realidade psíquica se
apresenta sem se opor a outra realidade: “se olharmos par aos desejos inconscientes reduzidos a sua
forma mais fundamental e verdadeira, teremos de lembrar-nos, fora de dúvida, que também a realidade
psíquica possui mais de uma forma de existência.” (FREUD, 1987f, p.616).Em 1914 enfatiza a
diferença: “a realidade psíquica é uma forma especial de existência que não deve ser confundida com a
realidade factual”. Textos contemporâneos, como “Contribuição à história do movimento
psicanalítico” (1914), indicam que o uso que Freud faz do termo realidade factual, contrapondo-o a
realidade psíquica, também tem uma acepção prática: “Se os histéricos reconduzem seus sintomas a
traumas inventados, há aí um fato novo, a saber, que eles criam essas cenas na fantasia, e essa
realidade psíquica deve ser apreciada junto à realidade prática.” (FREUD, 1989a p.17). Somente em
1919 a palavra factual é substituída por material. Sobre as razões da introdução tardia do conceito de
realidade psíquica remetemos o leitor aos trabalhos de COELHO JR. (1994) e DAYAN (1984).
270
impulsos e traços de caráter.
145
A constatação contínua dessa afirmação, tanto em termos
clínicos e terapêuticos quanto como exigência lógica, é que leva a concluir a favor do
reconhecimento de uma Psychische Realität. Mas o que justifica o estatuto de realidade, e no
que consiste esta forma particular de existência que não deve ser confundida com realidade
material da cena de ação consciente? Primeiramente, é preciso considerar que, desde quando
o inconsciente passou a assumir um lugar conceitual mais ou menos definido na determinação
dos processos psíquicos, houve uma necessidade crescente de lhe reconhecer um estatuto de
realidade. Pois, na ausência de um estatuto próprio, seus processos sempre foram tratados
com instrumentos advindos de um outro domínio, a realidade da cena consciente.
146
Foi somente com a investigação que revelou a importância das fantasias na formação
dos sintomas, e no limite para a própria constituição do inconsciente, que se abriu caminho
para um novo campo de pesquisa: um domínio do real, psíquico, e extrínseco ao campo
subjetivo. Esse novo domínio, para ser circunscrito, exigiu a criação de instrumentos teóricos
e metodológicos diferentes dos utilizados para a cena consciente, e os mais importantes deles
foram, sem dúvida, a associação livre e a representação tópica. MAURICE DAYAN (1985,
145
(Cf. Parte II, seção 6.3, Parte III, cap.6 e Parte IV seção 2.2 e cap.3).
146
Por exemplo, diante do colapso da teoria da sedução, Freud conclui que: no inconsciente não há
signos de realidade. A utilização do signo de realidade indica que o inconsciente, o psíquico
propriamente dito, é tratado nesse momento com instrumentos teóricos próprios da realidade
subjetiva, psicológica, configurada pela ação conjunta da percepção, do juízo e da memória
consciente, mediante a associação com as representações verbais. Contudo, apesar da insuficiência ou
mesmo incompatibilidade desses instrumentos para tratar do domínio inconsciente, se deve reconhecer
que o estabelecimento dessa realidade subjetiva, ou mais propriamente, a realidade do pensar
(Denkrealität), foi um precursor importante para a realidade psíquica. Como vimos, (Cf. Parte III, cap.
4), o pensamento adquire realidade mediante o seguinte processo: os signos de descarga lingüística
que se desprendem da palavra falada no momento em que se associam às imagens mnêmicas
equivalem, em importância e função, aos signos qualitativos perceptuais. Atraem a atenção consciente
e “equiparam os processos do pensar aos processos perceptivos, lhes proporcionam uma realidade
[Realität] e possibilitam sua memória.” (FREUD, 1988b, p.414,). Como observou DAYAN, (1985,
p.50), em ambos os casos, do mundo externo ou do pensar, do ponto de vista de alguém que dispõe de
tal aparelho, ou seja, do ponto de vista subjetivo, a realidade se faz representar por descargas
sensoriais, os signos de realidade para a percepção e os signos de descarga lingüística para o
pensamento.
271
p.332) tece um comentário a respeito
147
que sintetiza com clareza a circunscrição conceitual
em questão:
o infantil o qual Freud atribui o essencial do inconsciente (...) é uma
determinação tópica do recalcado (...) como conseqüência de uma separação
primeira (não traduzível) [carta 52]. É essa aptidão a um isolamento tópico é o
essencial, e aparece como a condição de possibilidade do recalcamento sob a
égide do princípio do prazer, por que essa separação devém, ela mesma,
realidade psíquica.
O que essa observação traz de essencialmente novo é a conseqüência plenamente
sustentável que ela extrai da determinação tópica do recalcado: essa separação devém, ela
mesma, realidade psíquica. Os trabalhos dedicados às fantasias, bem como a própria
investigação dos sonhos, demonstraram e estabeleceram que os intensos desejos provenientes
do núcleo infantil, centro psíquico do aparelho anímico, exibem, devido a seu isolamento
tópico, uma forma particular de existência: os desejos inconscientes, de acordo com a
natureza do material eminentemente visual que os constitui, organizam-se como encenações
psíquicas em torno de algo que teve apenas uma possibilidade de existir, que – de fato –
nunca ocorreu, mas, no entanto, foi e continua sendo intensamente desejado.
148
Por outro lado, tais cenas representam os restos ativos de uma simbolização primária,
não-verbal, referente às vivências sexuais próprias do infantil (a sedução é um exemplo): são
cenas primárias, ou, se nos permitem o anacronismo, fantasias originárias. A realidade
psíquica – que resulta desse trabalho primário de simbolização – se constitui então como
147
(Cf. Parte IV, seção 5.4)
148
Vale sublinhar a natureza sexual de tais desejos, pois se trata mesmo de um princípio estabelecido
pela doutrina, uma vez que nenhuma outra pulsão teve de suportar desde a infância uma repressão tão
grande quanto à pulsão sexual, e nenhuma outra deixou atrás de si, tantos e tão fortes desejos
inconscientes que, posteriormente, passam a impulsionar a formação de sonhos e sintomas.(FREUD,
1987f, p.398). Importante também observar que o desejo inconsciente verdadeiramente real assume
diferentes formas de expressão no contexto dos conflitos da vida amorosa infantil: desde a mania de
grandeza, o egoísmo absolutista, e o exibicionismo ao desejo de morte, a vingança e a autopunição.
(Cf. Parte IV, seção 2.2 e cap.3: sonhos típicos e a psicologia do desejo infantil).
272
forma particular de existência disso que se caracteriza como o psíquico verdadeiramente
real: o ponto insondável e traumático de onde as representações do infantil se formam desde
suas raízes pulsionais.
As características que justificam um estatuto de realidade e uma forma particular de
existência as fantasias inconscientes, que não devem ser confundidas com a cena do sonho
manifesto e os devaneios pré-conscientes, são:
1º. A constatação de que o desejo enquanto inconsciente permanece inalterado e
eficaz face às transformações da realidade subjetiva. As fantasias que o encenam se destacam
como realidade por sua perdurabilidade, sua fixidez, em outros termos, seu caráter
determinante e impossível de mudar em razão da “lacuna na eficácia funcional” que divide o
aparelho em dois sistemas em permanente conflito.
149
2º. As cenas inconscientes se constituem como realidade na medida em que veiculam
nos sonhos – mediante trabalho de deformação e transferência para experiências atuais – uma
satisfação real e efetiva, por mais repugnante e indesejável que se apresente às instâncias
superiores do aparelho psíquico. Uma satisfação disfarçada e parcial de um desejo reprimido
cuja própria natureza pressupõe um vínculo material indissociável entre corpo e
representação, entre o desejo e suas raízes pulsionais.
150
149
Do ponto de vista metapsicológico, estabilidade e eficácia permanente dessas cenas se sustenta
graças à conservação dos dispositivos psíquicos pelos quais esses processos transcorrem e seguem
sendo susceptíveis de uso. São caminhos sempre transitáveis tão pronto uma quantidade de excitação
deles se sirva. Enquanto inconscientes, separadas de todo o resto, tais representações não sofrem a
influência primária do tempo sobre seus restos mnêmicos: no inconsciente nada finda, nada é passado.
Tal ação temporal somente se torna uma possibilidade mediante alterações secundárias obtidas por
árduo trabalho que implica em submeter o inconsciente, o tanto quanto possível, ao império da
palavra, o pré-consciente. É o trabalho da palavra que historiciza tais desejos pré-históricos e os torna
susceptíveis de um debilitamento afetivo o que não implica em destruí-los, o que é impossível, e sim
tramita-los.
150
Do ponto de vista da experiência, vale lembrar que, segundo Freud, é o afeto que faz do sonho uma
vivência real, o que inclui entre outros o afeto de satisfação: no sonho o regozijo é tão real quanto
durante a vida diurna. (Cf. Parte IV, seção 4.4). Freud também observa que da perspectiva do sintoma
a satisfação visada pelos impulsos de desejo pode se manifestar por meio de sensações e parestesias
nos órgãos genitais e em outras partes do corpo, e que isso corresponde ao conteúdo sensorial das
273
Quanto à realidade material que se lhe opõe, é preciso observar que: ela não deve ser
confundida com a realidade psíquica em mais de um sentido. Muito embora, nos limites dessa
pesquisa não seja possível examinar a evolução conceitual por que passa essa outra realidade
após 1900
151
, é importante pontuar os contextos que regulam as diferentes acepções
complementares da palavra material. Existem, a principio, três contextos a serem
considerados: o original de 1891 a 1900, onde o conceito de realidade prática se sustenta
plenamente; o segundo de 1914 que, em linhas gerais, corresponde ao original acentuando a
incompatibilidade entre realidade e realização de desejo na formação dos sintomas
152
; e o
terceiro contexto 1919, onde a palavra material é introduzida complementando os sentidos
anteriores e acentuando-os numa direção já presente nos desenvolvimentos iniciais. Em carta
a Fliess de 1899, por exemplo, a oposição que aqui será retomada, é reconhecida como
originária: “Realidade e realização de desejo: desses opostos emerge nossa vida psíquica”.
(FREUD, 1988, p. 320).
A realidade material “vai sendo constituída por oposição ao que é psíquico
(COELHO JR, 1991, p.72)
153
, e conforme se apresenta nesta progressão conceitual que
culmina no “Mais além do princípio do prazer” (1920) e posteriormente no “Esboço de
psicanálise” (1938), compreende que: no próprio seio da cena de ação da vida diurna e da
materialidade dos fatos, existe um resto real designado material, equivalente ao real psíquico,
porém, alheio e independente da realidade psíquica do desejo inconsciente. Conforme a
cenas infantis que são reproduzidas na vida adulta alucinatoriamente, e com freqüência, intensificadas
dolorosamente. (Cf. Parte III, seção 3.3).
151
Cf. COELHO JR. (1994) e DAYAN (1984).
152
Cf. “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental” (1911) e “Conferências
Introdutórias sobre a psicanálise, Parte III - Doutrina geral das neuroses.” (1916-1917).
153
(Cf. Parte II, cap.2: A realização alucinatória de desejo e o signo de realidade, cap.7: A
materialidade das descargas sensoriais e a concepção de realidade no “Projeto...” (1895)
e Parte III, seção 5.1: No inconsciente não existe signo de realidade).
274
conferência sobre a Weltanschauung (1932): trata-se daquilo “que existe fora de nós e
independente de nós, e, segundo nos ensinou a experiência, é decisivo para a satisfação ou a
decepção de nossos desejos.” (FREUD, 1989c, p.157).
154
Essa reformulação dos opostos e de seu modo de relação, incluindo a concepção de
matéria pressuposta
155
, remete então a diferença entre um domínio de realidade que é
configurado pelo desejo, e outro real que lhe é absoluta e dolorosamente indiferente – mas do
qual depende –. Não obstante, é possível verificar algo comum entre esse real material e o real
psíquico, ambos, distintos das realidades que os representam, se definem na vida de relação
do aparelho como restos irredutíveis, resistentes à análise e a subjetivação: um substrato de
possibilidades permanentes de excitação, imprevisíveis e por vezes insuportáveis.
Como observou RUDGE (2003), a partir do “Além do princípio do prazer (1920)” o
objetivo da realização de desejo passa a dividir o terreno com a função primordial de obter a
ligação psíquica das impressões traumáticas ao longo de um processo de representação.
156
Do
ponto de vista da constituição, o trabalho de domínio das excitações que ultrapassam o
aparelho se torna algo que precede e prepara a instalação do funcionamento psíquico segundo
o princípio do prazer. Uma atividade primária, evidenciada pelos sonhos traumáticos, que foi
reconhecida como uma condição de possibilidade para que se instalem as condições
necessárias para a futura realização de desejo. Nesse contexto traumático onde a ordem das
prioridades é revista:
as surpresas e os acontecimentos imprevisíveis [...] [tomam] a precedência na
formação onírica. O real assume um papel decisivo na psicanálise,
recolocando sem cessar a necessidade da elaboração psíquica. Fazer face ao
que de inesperado pode vir da natureza, do próprio corpo, ou de outras
pessoas, algumas vezes constituindo um perigo para a sobrevivência psíquica,
é uma tarefa permanente do psiquismo, e o sonho está a serviço desta tarefa.
(RUDGE, 2003, p.22).
154
(Parte IV, seção 4.2).
155
(Cf. Parte I, cap.3, Parte IV, seção 5.5).
156
(Cf. Parte IV, seção 5.3).
275
Portanto, o real, nas suas duas dimensões psíquica e material, assume o lugar de causa
exigindo do aparelho um trabalho contínuo em prol da sobrevivência psíquica, o que, para
Freud, é indissociável da vida sexual e do trabalho da cultura. (FREUD, 1987f, p.255).
Após ter reconhecido uma realidade própria ao desejo inconsciente distinta da
realidade material, Freud conclui com mais algumas breves considerações sobre o aspecto
ético do problema. Afirma que o discernimento entre realidades deve favorecer os indivíduos
a tomarem para si a responsabilidade pelo caráter imoral de seus sonhos. Pois, as
características chocantes da vida onírica e da vida de fantasia, como os desejos de morte ou os
demais desejos imorais e ambiciosos, o mais das vezes, se dissipam pela apreciação de sua
origem, bem como do conflito constitutivo e operante no funcionamento do aparelho. De
modo geral, basta, para o julgamento do caráter, que se levem em conta às ações que se
expressam conscientemente, uma vez que os impulsos infantis, via de regra, são cancelados,
antes de resultarem em ações, por poderes reais consolidados pela história evolutiva do
aparelho anímico. “Cada um [...], diante da realização do sonho trazida aqui para a
realidade, recua espantado com toda força da repressão que separa seu estado infantil do
estado atual.” (FREUD, 1988, p.307). Em todo caso, conclui, é instrutivo tomar
conhecimento do terreno palmilhado do qual se levantam orgulhosas nossas virtudes.
(FREUD, 1987f, p.608).
276
CONCLUSÃO
Os passos inaugurais da clínica freudiana em torno do diagnóstico e do tratamento da
histeria puseram em questão o estatuto da representação do corpo estabelecido pela
neurologia que lhe era contemporânea. O ensaio crítico sobre o conceito de representação e o
aparelho de linguagem certamente abriu o campo e definiu as bases de uma nova disciplina no
campo do saber. Corpo e representação, estiveram a partir de então, desde o ponto de vista
psicológico, articulados sob uma mesma base material: as excitações e suas derivações
sensoriais e afetivas. A clínica dos primeiros anos também exigiu a rearticulação desses
conceitos numa teoria da memória que pudesse dar conta participação psíquica inconsciente
na formação dos sintomas e na etiologia das neuroses. O importante é notar que a crescente
complexidade dos problemas da qual resultou o primeiro aparelho de memória, uniu, de forma
definitiva, corpo e representação. A articulação da relação direta, sem proteção, entre o núcleo
do aparelho e as excitações provindas do interior do corpo se constituiu desde então como a
mola impulsiva do desenvolvimento, fonte de desamparo e da introdução do semelhante e do
desejo na estruturação psíquica humana.
A partir desses desdobramentos se inicia no percurso freudiano uma longa
interrogação pelo estatuto do real cujos momentos cruciais é preciso sintetizar. Primeiro, é
importante lembrar que a representação para Freud não se trata de uma cópia ou reprodução
de algo, e sim de uma construção psíquica particular guiada por princípios próprios. Essa
construção psíquica que põe em relação o aparelho, o mundo e o corpo, se faz em torno de
uma abertura permanente cuja tentativa de significação mediante as representações de palavra
deixa sempre um resto real impossível de significar. Além da representação não se definir
numa projeção ponto a ponto do representado, e de sempre restar um saldo negativo de seu
277
processo, a própria teoria da memória pressupõe uma estratificação contínua que multiplica as
formas de registro de um mesmo objeto ou evento que são transcritas em diferentes sistemas
associativos ao longo das épocas da vida. Diante desse panorama, considerando-se a natureza
sexual das recordações que interessa a Freud, as fantasias assumem um lugar significativo na
determinação dos sintomas e da própria constituição dos primeiros sistemas do aparelho
mental. Da crise teórica e clínica que daí se instala resulta na imensa redefinição da
concepção de memória efetuada por Freud que acaba por implodir qualquer possibilidade de
conceber uma identidade entre o evento material ou objeto e sua representação psíquica no
aparelho. Freud reconhece nas atividades do aparelho psíquico um princípio regulador que se
recusa a recordar qualquer coisa que possa liberar desprazer, assim, no ato da rememoração, a
primazia é do desprazer e não da autenticidade: a teoria da memória passa a ser concebida a
partir da formação das fantasias. Isso dá impulso às questões a respeito da origem e do modo
de produção da cena psíquica inconsciente, bem como da circunscrição conceitual daquilo que
pode ser considerado como a grande contribuição de Freud a psicologia: o infantil – o que da
memória do desejo não pode ser recuperado pelo verbal – e que, no entanto, busca realizar-se
conformando o presente a partir do modelo coercitivo construído no passado, a partir de uma
matriz infantil de relação às coisas desejadas. (MEZAN, 1998a, p.263).
Na medida em que o sonho nos apresenta um desejo como realizado, nos
conduz indubitavelmente para o futuro; mas esse futuro que representamos
como presente é criado, por um desejo indestrutível, a imagem e semelhança
do passado. (FREUD, 1987f, p.608).
Portanto, com a realidade psíquica do desejo inconsciente trata-se de uma hipótese
sobre um existente que cumpre a função de completar a explicação psicológica e de justificar
a tese de um determinismo estrito para cada ato psíquico, alicerçado na historia
individual.(SIMANKE, 2003, p.284). Em outros termos, pode-se dizer que as fantasias de
desejo regulam, mesmo inconscientes, todas as expectativas de um sujeito, todas suas
278
convicções vitais e todas suas reações. (SOLER, 2004, p.54). Essa é, em linhas gerais, a
progressão conceitual que precede e sustenta o reconhecimento teórico da realidade psíquica
do desejo infantil, tal qual apresentamos nas ultimas seções desse trabalho. Trata-se, enfim,
no contexto dessa gênese conceitual, de uma realidade inconsciente necessária e correlativa da
construção de um aparelho de memória regido por uma teoria materialista da representação.
279
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