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absurdo da vida
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. Desse modo, a construção do personagem André, ele que durante a
juventude e a educação de seu filho Davi, buscava o exemplo de Napoleão Bonaparte, o
modelo dos modos de alcançar glória e riqueza na Modernidade. Porém, somente atingiu o
status napoleônico, porém, quando enlouqueceu, quando foi tomado pelo delírio e pelo álcool.
A vida começava a ruir, mas André andava feliz. Ria, presunçoso. (...)
Mas André continuava saudável. Orgulhoso. Rindo. Sobranceiro. - Por que será essa
arrogância? - interrogavam-se uns aos outros.
Aquela mania de Napoleão nunca o abandonou. Transferiu-a para o filho, mas
dentro dele é que ela germinava.
O povo agora esmiuçava, como um psicólogo, o mundo interior do Alpargateiro.
Como não tinha o que fazer, desenvolvia a imaginação, e apregoava aos quatro
ventos que André estaria engendrando um invento para destruí-los. - Ele, único
soberano, dominando aquelas paragens, como Napoleão.
A notícia entrou de casa em casa como uma onda de terror. Aluvião. André era um
gigante. Um Ferrabrás. Se voltasse a tomar genebra, o mundo viria a baixo, agora
que o padre não existia. O homem estava ficando violento, mau. Agora que os
amigos haviam desaparecido, o filho perdido uma perna, não se justificava. Alguma
coisa estranha estava acontecendo, pois suas atitudes bem o indicavam. André era
um homem cordato, dado aos amigos, à família. Agora ria a todo instante. Um riso
irônico, maligno. Um riso endemoninado.
Mas só André sabia o que lhe ia no íntimo, por isso ria de si mesmo. Conseguira em
vida o que sonhara. Idealizara Davi um soldado, e Davi o era. Destemido como
Napoleão. Só lhe restava uma perna. E isso era uma glória. Quando lhe
perguntassem sobre o aleijão do filho, responderia orgulhoso: "Davi é um soldado
da pátria. Deixou cortar a perna. Não é um covarde. Não poupou o corpo. Em
primeiro lugar o ideal. A vida da comunidade. A Pátria”
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.
André, como herói, era uma ameaça aos sentidos postos, ao mundo delineado da
aldeia, às tradições do lugar, pois representava a fugacidade do tempo e do sentido. A história
tornava-se uma “farsa”, um “conto de fadas”, uma “miragem”, justamente porque “o rastro
das criaturas desaparecia com o tempo”, os nomes, as existências, as formas da vida, a aldeia,
os heróis seriam esquecidos, ninguém mais saberia quem fora André, Davi, ou João Pinto de
Maria. A história, o tempo, o fim das tradições, todos seriam indícios de que as pegadas
estavam apagadas pela Modernidade, em que a lembrança não permanece, era o próprio
tempo do esquecimento e da solidão, sem passado, sem genealogias, sem futuros além da
morte, e, acima de tudo, sem heróis
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. Deste modo, ainda, o progresso, o
desenvolvimentismo eram todas temporalidades que apontavam para uma remissão
impossível do homem, haja vista que o tempo não seguia um curso predeterminado, mas “era
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Sobre a noção de herói absurdo de Camus, ver: CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. São Paulo, Record, 2003.
p. 49. Sobre o herói melancólico, ver: BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do
capitalismo. São Paulo, Brasiliense, 1989. p. 9-20.
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PINTO, José Alcides. “O Dragão”. In: ______. Trilogia da Maldição. Rio de Janeiro, Topbooks, 1999. p.
145-6.
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Sobre a modernidade como apagamento dos rastros, ver: GAGNEBIN, Jeanne Marie. Op. cit. p. 59-62.