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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
CURSO DE MESTRADO EM DIREITO
CARLOS WAGNER DIAS FERREIRA
A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NOS CONTRATOS
CIVIS E DE CONSUMO: uma teoria contratual baseada na colisão dos
direitos ou bens constitucionalmente protegidos
NATAL
2008
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2
CARLOS WAGNER DIAS FERREIRA
A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NOS CONTRATOS CIVIS E DE
CONSUMO: uma teoria contratual baseada na colisão dos direitos ou bens
constitucionalmente protegidos
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Direito - PPGD da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em
Direito.
Orientador: Prof. Doutor Edílson Pereira Nobre Júnior
NATAL
2008
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AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, a Deus por me dar força e saúde para enfrentar esta longa e
desgastante empreitada.
Ao professor-orientador Edílson Pereira Nobre Júnior, grande sábio das letras
jurídicas deste país, pelas preciosas lições e orientações, sem as quais teria sido frustrada a
feitura e a conclusão deste trabalho, e, sobretudo, pelo constante e incansável incentivo e
apoio na condução da minha carreira acadêmica.
Ao Tribunal Regional Federal da Região, com especial realce para o então
Desembargador-Corregedor Dr. Luiz Alberto Gurgel de Faria, que autorizou o meu
afastamento das atividades jurisdicionais por dois meses, sem o qual teria sido praticamente
impossível a realização de pesquisas e a imprescindível reflexão sobre o material coletado.
À Fábio Ataíde, colega de mestrado e que, ao longo do tempo, se transformou em um
grande amigo e uma espécie de “co-orientador”, o meu sincero agradecimento pelas horas que
privou de sua vida e de sua família, para debater sobre os principais pontos deste trabalho.
À minha irmã Ana Carla, excelente estudante de direito e agora também
“pesquisadora”, pelo fundamental auxílio nas pesquisas bibliográficas e jurisprudenciais.
À minha querida mãe Maria do Céu, que nunca deixou de acreditar em meu
potencial, pelas lições de luta e de amor incondicional.
E, por fim, à minha esposa Anete Brito e às minhas filhas Júlia e Beatriz, pela
compreensão nos momentos de ausência e, em particular, pelos momentos de desconcentração
e de riso que me aliviavam da carga de tensão e cansaço provocados pela elaboração deste
trabalho.
4
SUMÁRIO
Página
RESUMO................................................................................................................................. 8
ABSTRACT........................................................................................................................... 10
1. INTRODUÇÃO
1.1. REFLEXOS DA GLOBALIZAÇÃO E DA CONCEPÇÃO NEOLIBERAL NAS
RELAÇÕES CONTRATUAIS................................................................................................ 12
1.2. O FENÔMENO DO PODER PRIVADO......................................................................... 20
1.3. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO E A PERSPECTIVA
CIVIL-CONSTITUCIONAL................................................................................................... 26
1.4. CRÍTICAS À PERSPECTIVA DO DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL................. 35
1.5. PLANO DE TRABALHO................................................................................................ 44
2. ASPECTOS JURÍDICOS E CONSTITUCIONAIS DA ATIVIDADE ECONÔMICA
2.1. A UNIDADE E A VISÃO SISTÊMICA NA ORDEM JURÍDICA................................ 47
2.2. VALORES, PRINCÍPIOS E REGRAS JURÍDICAS....................................................... 52
2.3. CLÁUSULAS GERAIS.................................................................................................... 61
2.4. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS LIGADOS À ATIVIDADE NEGOCIAL............. 63
2.4.1. Princípio da segurança jurídica................................................................................. 63
2.4.2. Princípio da dignidade da pessoa humana................................................................ 66
2.4.3. Princípio da solidariedade........................................................................................... 72
2.4.4. Princípio da proibição de discriminação................................................................... 76
2.4.5. Princípios constitucionais da ordem econômica (art. 170 da CF)........................... 80
2.5. DIREITOS OU BENS CONSTITUCIONALMENTE PROTEGIDOS.......................... 85
2.6. COLISÕES E PONDERAÇÕES ENTRE PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS, DIREITOS
OU BENS CONSTITUCIONALMENTE PROTEGIDOS.................................................... 90
3. DAS DIMENSÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À INCIDÊNCIA NAS
RELAÇÕES ENTRE PARTICULARES
3.1. DIMENSÃO SUBJETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS................................. 99
3.2. DIMENSÃO OBJETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS................................... 103
3.3. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES JURÍDICAS ENTRE
PARTICULARES.................................................................................................................. 110
3.4. QUESTÃO TERMINOLÓGICA E DISCIPLINA CONSTITUCIONAL NO DIREITO
COMPARADO...................................................................................................................... 121
3.5. TEORIAS ACERCA DA EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS
RELAÇÕES PRIVADAS...................................................................................................... 125
3.5.1. Teoria da não aplicação dos direitos fundamentais................................................ 125
3.5.2. Teoria do state action................................................................................................. 126
3.5.3. Teoria da eficácia mediata ou indireta..................................................................... 130
3.5.4. Teoria da eficácia imediata ou direta....................................................................... 135
3.5.5. Teoria dos deveres de proteção................................................................................ 141
5
3.6. CORRETO EQUACIONAMENTO DO PROBLEMA DA EFICÁCIA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS........................................................... 145
4. CONCEPÇÃO CLÁSSICA DOS CONTRATOS DA ANTIGUIDADE AO ESTADO
LIBERAL
4.1. O CONTRATO NO DIREITO ROMANO................................................................... 153
4.2. O CONTRATO NO DIREITO CANÔNICO................................................................ 156
4.3. REFLEXOS DO LIBERALISMO NA TEORIA CONTRATUAL: FENÔMENO DO
CODICISMO........................................................................................................................ 158
4.4. A CONCEPÇÃO LIBERAL DO CONTRATO............................................................ 164
4.4.1. A noção de contrato.................................................................................................. 164
4.4.2. Características do contrato no Estado liberal........................................................ 167
4.4.3. Princípios da concepção liberal do contrato........................................................... 170
4.4.3.1. Princípio da autonomia da vontade.......................................................................... 170
4.4.3.2. Princípio da relatividade dos efeitos........................................................................ 172
4.4.3.3. Princípio da boa-fé................................................................................................... 173
4.4.3.4. Princípio da força obrigatória dos contratos............................................................. 176
4.5. O CÓDIGO CIVIL DE 1916 E AS RELAÇÕES CONTRATUAIS............................. 178
5. CONCEPÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
5.1. A CRISE NA TEORIA LIBERAL DOS CONTRATOS E O DIRIGISMO
CONTRATUAL.................................................................................................................... 183
5.2. FUNCIONALIZAÇÃO DOS INSTITUTOS JURÍDICOS E O ABANDONO DA
TEORIA ESTRUTURAL..................................................................................................... 191
5.3. A CONCEPÇÃO SOCIALIZANTE DOS CONTRATOS............................................ 195
5.3.1. A noção de contrato.................................................................................................. 195
5.3.2. Características da concepção social do contrato.................................................... 199
5.3.3. Princípios da concepção social dos contratos......................................................... 203
5.3.3.1. Princípio da autonomia privada............................................................................... 203
5.3.3.2. Princípio da função social do contrato..................................................................... 207
5.3.3.3. Princípio da boa-fé objetiva..................................................................................... 211
5.3.3.4. Princípio do equilíbrio econômico........................................................................... 215
5.4. CONTRATOS À LUZ DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E DO CÓDIGO
CIVIL DE 2002..................................................................................................................... 217
6. CONCEPÇÃO PÓS-SOCIAL DOS CONTRATOS: PROPOSTA PARA UMA
TEORIA CONTRATUAL DIFERENCIADA BASEADA NA PONDERAÇÃO DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS
6.1. INSUFICIÊNCIA DA CONCEPÇÃO SOCIAL DO CONTRATO.............................. 221
6.2. EM BUSCA DE UMA TEORIA CONTRATUAL DIFERENCIADA........................ 228
6.2.1. Premissas constitucionais a considerar.................................................................... 228
6.2.2. Teoria da causa como função econômico-social..................................................... 233
6.2.3. Teoria da essencialidade do bem na visão de Teresa Negreiros........................... 235
6.2.4 Teoria dos deveres de proteção incidente sobre os direitos e os bens
constitucionalmente protegidos nos contratos.................................................................. 238
6.3. NOVOS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS DECORRENTES DA EFICÁCIA
HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS........................................................ 244
6
6.3.1. Necessidade de consolidação de novos princípios contratuais de natureza
constitucional....................................................................................................................... 244
6.3.2. Princípio da autonomia privada como extensão da livre iniciativa...................... 246
6.3.3. Princípio da dignidade contratual........................................................................... 251
6.3.4. Princípio da solidariedade contratual..................................................................... 255
6.3.5. Princípio da justiça contratual................................................................................. 258
6.4. PONDERAÇÃO ENTRE DIREITOS OU BENS CONSTITUCIONALMENTE
PROTEGIDOS NOS CONTRATOS CELEBRADOS ENTRE PARTICULARES............ 259
7. CONCLUSÃO................................................................................................................. 273
8. REFERÊNCIAS.............................................................................................................. 280
7
RESUMO
A aparente virtuosidade que se poderia esperar da globalização e do neoliberalismo tem dado
sinais de deterioração nas relações contratuais, especialmente nos contratos de consumo de
massa, gerando inúmeras situações ofensivas aos direitos fundamentais e a bens
constitucionalmente protegidos dos contratantes. No mundo de hoje, ainda que não manifeste
qualquer desejo, o indivíduo é praticamente compelido a contratar, por força de necessidades
e costumes massificamente impostos, principalmente em face da essencialidade dos serviços
ou bens pactuados. Diante de tantas e inesperadas mudanças nos liames civis e de consumo,
ditadas pela globalização, vem à tona a reflexão se o direito privado e, mais especificamente,
o direito civil, encontra-se adequadamente preparado para lidar com esses novos parâmetros
da economia. A presente dissertação tem o propósito de investigar se a globalização e o
conseqüente neoliberalismo, neste início de terceiro milênio, implicarão o reviver dos
princípios e dos paradigmas basilares dos contratos que alicerçaram e mantiveram, por mais
de dois séculos, o Estado liberal. Note-se que o estudo desse fenômeno ganha importância à
medida em que se agrava o declínio do Estado social (Welfare State), com a fragilização e a
perda da autonomia da autoridade estatal, sobretudo em países de modernidade tardia, como é
o caso do Brasil, que apresenta profundas deficiências de prestar ou promover, com um
mínimo de qualidade e eficiência, serviços públicos considerados essenciais à coletividade e
que se encontram consagrados na Constituição Federal, como direitos fundamentais ou como
bens constitucionalmente protegidos, a exemplo da saúde, da educação, da moradia, da
segurança, da previdência, do seguro, da proteção à maternidade, da infância e dos idosos e
deficientes. Ao final, conclui-se que a incidência de direitos fundamentais do homem
constantes na Constituição, no processo de interpretação dos conflitos contratuais que têm
8
como objeto direitos ou bens constitucionalmente protegidos, no universo da economia
globalizada e do neoliberalismo, constitui-se talvez em um dos poucos caminhos senão o
único - que ainda restam para tratar mais adequadamente das relações contratuais, mesmo que
se considere a presença de cláusulas gerais no âmbito da legislação civil e consumerista
infraconstitucional, sobretudo frente aos particulares detentores de poder sócio-econômico.
Poder que importa necessariamente em desequilíbrio entre as partes, cujo realinhamento
depende do efeito e da graduação que se pretende conferir ao direito fundamental em jogo na
relação privada. A Constituição, ao permitir a vinculação dos direitos fundamentais nas
relações entre particulares, estaria assumindo contornos de um estatuto fundamental de toda a
coletividade, dando proteção ao homem contra o poder, independentemente se público ou
privado.
Palavras-chave: direitos fundamentais – contratos – direitos ou bens constitucionalmente
protegidos.
9
ABSTRACT
The apparent virtuosity that if could wait of the globalization and the neoliberalism has given
signals of deterioration in the contractual relations, especially in contracts of mass
consumption, generating innumerable offensive situations to the basic rights and the goods
constitutionally protected of the contractors. In the world of today, still that it does not reveal
any desire, the individual practically is compelled to contract, for force of necessities and
customs completely imposed, mainly in face of the essentiality of the services or agreed to
goods. Ahead of as much and unexpected changes in the civil liames and of consumption,
dictated for the globalization, it comes to surface the reflection if the private law e, more
specifically, the civil law, meet prepared adequately to deal with these new parameters of the
economy. The present dissertation has the intention to investigate if the globalization and the
consequent neoliberalism, in this beginning of third millennium, will imply to revive of the
principles and the basics paradigms of the contracts that consolidated and had kept, for more
than two centuries, the liberal State. One notices that the study of this phenomenon it gains
importance to the measure where if it aggravates the decline of the social State (Welfare
State), with the embrittlement and the loss of the autonomy of the state authority, over all in
countries of delayed modernity, as it is the case of Brazil, that presents deep deficiencies to
give or to promote, with a minimum of quality and efficiency, essential considered public
services to the collective and that if they find consecrated in the Federal Constitution, as basic
rights or as goods constitutionally protecting, the example of the health, the education, the
housing, the security, the providence, the insurance, the protection the maternity, the infancy
and of aged and deficient. To the end, the incidence of constant basic rights of the man in the
Constitution is concluded that, in the process of interpretation of the right contractual conflicts
10
that have as object rights or goods constitutionally proteges, in the universe of the globalized
perhaps economy and of the neoliberalismo, it consists in one of the few ways - unless the
only one - that still they remain to over all deal with more adequately the contractual relations,
exactly that if considers the presence of clauses generalities in the scope of the legislation
infraconstitutional civil and of consumption, front the private detainers of social-economic
power. To be able that it matters necessarily in disequilibrium between the parts, whose
realignment depends on the effect and the graduation that if it intends to confer to the basic
right in game in the private relation. The Constitution, when allowing the entailing of the
basic rights in the privates relations, would be assuming contours of a statute basic of all the
collective, giving protection to the man against the power, if public or independently private.
Key Words: basic rights – contracts – rights or goods constitutionally proteges.
11
1. INTRODUÇÃO
1.1. Reflexos da globalização e da concepção neoliberal nas relações contratuais
Nas últimas duas décadas, especialmente após a queda do muro de Berlim e o fim da
Guerra Fria, a sociedade vem assistindo ao surgimento de um novo cenário na economia, cada
vez mais intenso, marcado pelo acirramento em âmbito global da competição e da
concorrência entre os diversos setores da produção empresarial, o que acaba se refletindo no
campo do direito, sobretudo no terreno contratual. Esse fenômeno, batizado de globalização
econômica
1
, tem provocado sensíveis mudanças na forma e no conteúdo dos relacionamentos
dos participantes dos vínculos negociais e instituído, no plano da concepção política, o Estado
neoliberal.
Além da globalização econômica e da competição internacional, a revolução ocorrida
na esfera das telecomunicações e da informática, associada ao incrível desenvolvimento
tecnológico, contribuem para a otimização da produção industrial e para a aceleração dos
mecanismos de circulação de riquezas nacionais e internacionais, caracterizando a nossa era
como a da extrema velocidade e do desaparecimento das distâncias e das fronteiras
2
. Ao lado
1
Antonio Enrique rez Luño estabelece as linhas gerais do que se deve entender acerca da globalização da
economia como processo de integração do financiamento, produção e comercialização, explicitando que “Dichos
procesos de integración e interdependencia se producen a escala planetaria, rebasando los limites tradicionales
establecidos por las fronteras de los Estados. Por tanto, la globalización supone la realización de los esquemas
económicos del neoliberalismo capitalista. Entre sus efectos más importantes destacan: el desbordamiento de la
capacidad de las naciones para realizar políticas y/o controles económicos en favor de poderes internacionales
(Fondo Monetario Internacional) o privados (empresas y corporaciones multinacionales); la existencia de
grandes redes de comunicación que posibilitan actividades financieras y comerciales a escala planetaria; el
desequilibrio y asimetria del protagonismo de los distintos Estados en las redes económicas interconectadas, lo
que determina la concentración de benefícios en los países del Primer Mundo (global-ricos) y el correlativo
empobrecimiento de los países del Tercer Mundo (global-pobres)” (Derechos Humanos, Estado de Derecho y
Constitucion. 8ª Edición. Madrid: Tecnos, 2003, pág. 628).
2
WALD, Arnold. Um Novo Direito para a Nova Economia: A Evolução dos Contratos e o digo Civil. In:
DINIZ, Maria Helena, LISBOA, Roberto Senise (Coords.). O Direito Civil no Século XXI. São Paulo: Saraiva,
2003, págs. 73/74.
12
disso, neste mundo globalizado, os fluxos de financiamentos, a volubilidade de capital
especulativo, o controle cambial e a política monetária deixam de serem assuntos de exclusivo
controle interno do próprio Estado
3
e passam a ficar cada vez mais vulneráveis a fluxos e
injunções globais.
A repercussão da globalização, com a prevalência das regras de mercado, tem sido
tão acentuada que Arnoldo Wald ainda destaca o desaparecimento dos mercados cativos que
se mantinham com base na tradição ou, mesmo, em uma espécie de direito adquirido a
abastecer o consumo local, existentes no Brasil até 1990. Ressalta que corte de custos
substanciais e aumento dos lucros empresariais ganham renovados fôlegos, incrementando,
com rapidez nunca vista na história da civilização, com o auxílio da internet, a velocidade da
comercialização de produtos e de serviços, capaz de proporcionar uma nova escala à atividade
negocial, devido à possibilidade de alcançar um número ilimitado de clientes ou de
fornecedores
4
.
Mas a aparente virtuosidade que se poderia esperar da globalização tem dado sinais
de deterioração nas relações contratuais, sobretudo nos contratos de consumo de massa,
gerando inúmeras situações desvantajosas e ofensivas aos direitos fundamentais e a bens
constitucionalmente protegidos dos contratantes.
Antonio Enrique Pérez Luño chega a noticiar, inclusive, o alerta de alguns líderes de
países periféricos de que esse fenômeno econômico oculta, em muitas ocasiões, o interesse de
multinacionais de criar hábitos “globais” de consumo, tentando uniformizar as modas e os
3
FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões Histórico-evolutivas sobre a Constitucionalização do Direito Privado.
In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundaementais e Direito Privado. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2003, págs. 24/25.
4
A Função Social e Ética do Contrato como instrumento jurídico de parcerias e o Novo Código Civil de 2002.
Revista Forense. Ano 98. Volume 364. Novembro/dezembro de 2002, pág. 22.
13
modos de vida, num movimento que está sendo chamado de “macdonalização do mundo”
5
. A
competitividade pela excelência dos bens de consumo e dos serviços torna o consumidor mais
vulnerável a cair na sedução de comprar a qualquer custo, submetendo-se a tudo para adquiri-
los, mesmo correndo o risco de ver adulterados alguns direitos fundamentais essenciais à sua
própria dignidade.
No mundo de hoje, ainda que não manifeste qualquer desejo, o indivíduo é
praticamente compelido a contratar, por força de necessidades e costumes massificamente
impostos, configurando aquilo que se convencionou denominar de conduta socialmente
típica
6
. Por outro lado, a dificuldade ou mesmo a impossibilidade - de escolher com quem
deseja contratar pode decorrer tanto da existência de monopólio em determinados setores,
como também da essencialidade dos serviços ou bens pactuados
7
. Diante de tantas e
inesperadas mudanças nos liames de consumo, ditadas pela globalização, vem à tona a
reflexão se o direito privado e, mais especificamente, o direito civil, encontra-se
adequadamente preparado para lidar com esses novos parâmetros da economia.
Convém, neste início de terceiro milênio, investigar se a globalização e o
conseqüente neoliberalismo implicarão o reviver dos princípios e dos paradigmas basilares
que alicerçaram e mantiveram, por mais de dois séculos, o Estado liberal. Não custa lembrar
que a concepção liberal pregava a mínima interferência estatal nas relações privadas, a
separação entre a sociedade e o Estado e, na seara dos negócios, a prevalência da vontade e da
liberdade nos pactos e a necessidade de preservação do vínculo contratual, para garantir
segurança jurídica. A lógica que justificava a separação entre sociedade e Estado partia da
5
Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion. 8ª Edición. Madrid: Tecnos, 2003, págs. 629.
6
ZINN, Rafael Wainstein. O Contrato em Perspectiva Principiológica: Novos Paradigmas da Teoria
Contratual. In: ARONNE, Ricardo (Org.). Estudos de Direito Civil-Constitucional. Volume 1. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2004, págs. 117/118.
7
ZINN, Rafael Wainstein, Ibid., pág. 120.
14
idéia de que o maior agressor dos direitos do indivíduo era o poder estatal, daí a
predominância em seu rol das liberdades públicas ou direitos negativos sintetizados na trilogia
“liberdade, propriedade e segurança”.
Note-se que o estudo desse fenômeno ganha importância à medida em que se agrava
o declínio do Estado social (Welfare State)
8
, com a fragilização e a perda da autonomia da
autoridade estatal, sobretudo em países de modernidade tardia, como é o caso do Brasil, que
apresenta profundas deficiências de prestar ou promover, com um mínimo de qualidade e
eficiência, serviços públicos considerados essenciais à coletividade e que se encontram
consagrados na Constituição Federal como direitos fundamentais ou como bens
constitucionalmente protegidos, tais como saúde, educação, moradia, segurança, previdência,
seguro, proteção à maternidade, à infância e aos idosos e deficientes.
Além da derrocada do Estado do bem-estar social, Juan María Bilbao Ubillos,
baseado na experiência européia, mas cujo raciocínio se aplica à realidade brasileira,
complementa que a privatização efetuada por países do velho mundo, como a Inglaterra,
significará que cada vez mais serviços tradicionalmente nas mãos do Estado deixem de ser
públicos e se transformem em privados
9
.
Não é à toa que milhares de consumidores são forçados a procurar a prestação de
serviços privados, sob pena de definitivamente não usufrui-los, nas áreas de planos ou seguros
8
Daniel Sarmento historia as razões que levaram à crise do Estado do Bem-Estar Social e ao conseqüente
nascimento do paradigma pós-social, explicitando que: “A partir dos dois choques do petróleo na década de 70,
instaura-se uma crise no Welfare State, que põe em cheque a lógica do dirigismo estatal. O Estado, que havia se
expandido de modo desordenado, tornando-se burocrático e obeso, encontrava enormes dificuldades para se
desincumbir das tarefas gigantescas que assumira. A explosão de demandas reprimidas, gerada pela
democratização política, tornara extremamente difícil a obtenção dos recursos financeiros necessários ao seu
atendimento. Por outro lado, o envelhecimento populacional, decorrente dos avanços na medicina e no
saneamento básico, engendrou uma perigosa crise de financiamento na saúde e na previdência social pilares
fundamentais sobre os quais se assentara o Estado Social” (Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2004, pág. 43).
9
La Eficacia de los Derechos Fundamentales frente a Particulares: Análisis de la jurisprudencia del Tribunal
Constitucional. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1997, pág. 255.
15
de saúde, de educação (ensinos fundamental, médio e superior), de mútuo habitacional
(Sistema Financeiro de Habitação), de segurança privada, de previdência privada, de
empréstimos em empresas ou instituições financeiras e seguros das mais variadas espécies.
Em cada espécie contratual desta, um direito fundamental subjacente tutelado pela
Constituição.
Neste universo contratual, merecem destaque os chamados contratos cativos de longa
duração
10
, que nada mais são do que contratos de adesão, porém com particularidades bem
específicas que os diferenciam de outras espécies contratuais. Três características bem
peculiares justificam uma abordagem mais diferenciada do fenômeno contratual em tempos
de globalização e neoliberalismo: a) fortes campanhas de propaganda na busca de captação de
clientes; b) vínculo que se protrai por longo tempo; e c) essencialidade do objeto contratual no
mundo atual
11
. Além dessas características, também se observa que, na execução do contrato,
o consumidor torna-se escravo daquilo que contratou, e de quem contratou
12
.
Com o avanço do neoliberalismo, os vários setores econômicos (sejam eles públicos
ou privados), mormente se estiverem vinculados ao sistema capitalista transnacional e em
condições de atuar na economia mundial, utilizam os meios de persuasão, barganha, confronto
e veto de que dispõem e situados em posições-chave no sistema produtivo e se tornam
influentes
13
na formulação, implementação e execução de políticas públicas, pressionando o
10
Expressão cunhada por Claudia Lima Marques na obra Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2002”.
11
KARAM-SILVEIRA, Marco Antonio. Contratos cativos de longa duração: tempo e equilíbrio nas relações
contratuais. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). A Nova Crise do Contrato: Estudos sobre a Nova Teoria
Contratual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pág. 483.
12
Ibid., pág. 488. E, ainda, Marco Antonio Karam-Silveira arremata que “A vinculação é tão radical, porque
ligada a bens e serviços da existência, que acaba por reclamar proteção especial” (Ibid., Ibidem).
13
Carlos Alberto Bittar e Carlos Alberto Bittar Filho ponderam que “ao longo dos séculos, sempre existiu
intervenção nos negócios da economia por parte dos detentores do poder, desde as organizações tribais aos
príncipes e monarcas do ‘despotismo esclarecido’, das cidades primitivas às monarquias e democracias
constituídas no ‘século das luzes’” (Direito Civil Constitucional. Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2003, pág. 116).
16
Estado a eliminação de entraves que bloqueiam a abertura comercial, a desregulamentação
dos mercados, a adoção de programas de desestatização, a “flexibilização” da legislação
trabalhista e a implementação de outros projetos de “deslegalização” e
“desconstitucionalização”
14
.
Realmente, parece inegável que a visão neoliberal prefere um modelo constitucional
mais sintético possível, sem pretensões de transformar realidades fáticas e com figurino mais
próximo do Estado liberal, não havendo, portanto, espaços para normas programáticas ou para
direitos sociais, vistos quase sempre como entraves ao desenvolvimento econômico
15
.
As alterações desencadeadas na legislação e na Constituição terminam por serem
inevitáveis, para que o direito se amolde aos destinos e aos novos princípios econômicos
definidos pela globalização e pelo neoliberalismo. Se, de um lado, o direito privado, calcado
normalmente em leis e códigos infraconstitucionais, sofre os maiores ataques e vulnerações
aos propósitos de tutela dos mais frágeis e hipossuficientes da relação contratual, de outro, a
Constituição, ainda que ostente o status de lei fundamental da sociedade, também não fica à
salvo das influências operadas pelo fator da nova economia de mercado, como bem
demonstram, no caso brasileiro, as seguidas reformas constitucionais ocorridas desde o início
da década de 90 (Emendas Constitucionais nº 5, 6, 7, 8, 9, 10, 13, 19, 20, 29, 33, 41 e 42).
Tamanho impacto nas estruturas institucionais, organizacionais, políticas e jurídicas,
lançado pela economia globalizada, levou José Eduardo Faria a questionar o papel da
Constituição, que, antes vocacionada a concretizar as diretrizes programáticas e os
princípios constitucionais, não tem mais hoje o poder de sedução detido no passado recente,
mais precisamente, no período áureo do Welfare State. Todavia, ainda se anima a sugerir que
14
FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 2004, págs. 25/26.
15
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pág.
49.
17
a Constituição converta-se num centro de convergência de valores e princípios, detentora de
apenas duas exigências constitucionais de caráter absoluto: os direitos fundamentais da
cidadania e a adoção de mecanismos neutralizadores de soluções uniformizantes e medidas
capazes de bloquear a liberdade e instaurar uma unidade social amorfa e indiferenciada
16
.
Para Daniel Sarmento, mesmo com as mudanças causadas pela globalização e pelos
ideais neoliberais, o modelo normativo do Estado brasileiro contemplado na Constituição
permanece com o espírito intervencionista, ao se preocupar com a justiça social e com a
igualdade material, quando não reverencia com fervor o mercado, mas, nem por outro lado, o
despreza. A este novo modelo de Estado Sarmento designa de pós-social
17
.
Para Teresa Negreiros, a globalização não parece ser argumento suficiente para
condenar a influência da Constituição no tráfico jurídico privado, pois, embora não se negue
que provoca um certo enfraquecimento ao “patriotismo constitucional”, as críticas contra essa
incidência têm motivações muito mais ideológicas
18
.
A incidência de direitos fundamentais do homem constantes na Constituição, no
processo de interpretação dos conflitos contratuais que têm como objeto direitos ou bens
constitucionalmente protegidos, no universo da economia globalizada e do neoliberalismo
constitui-se talvez em um dos poucos caminhos senão o único - que ainda restam para tratar
mais adequadamente das relações contratuais, mesmo que se considere a presença de
16
Op. cit., págs. 32/35.
17
Ibid., pág. 51. Daniel Sarmento expõe os contornos que caracterizam o Estado pós-social, destacando que seria
“um Estado subsidiário, que restitui à iniciativa privada o exercício de atividades econômicas às quais vinha se
dedicando, através de privatizações e reengenharias múltiplas. De um Estado que também vai buscar parceiras
com a iniciativa privada e com o terceiro setor, para a prestação de serviços públicos e desempenho de atividades
de interesse coletivo, sempre sob a sua supervisão e fiscalização. É um Estado que não apenas se retrai, mas que
também modifica a sua forma de atuação, e passa a empregar técnicas de administração consensual. Ao invés de
agir coercitivamente, ele tenta induzir os atores privados, através de sanções premiais ou outros mecanismos,
para que adotem os comportamentos que ele deseja. As normas jurídicas que este Estado produz são muitas
vezes negociadas em verdadeiras mesas-redondas, e o direito se torna mais flexível, sobretudo para os que detêm
poder social” (Ibid., Ibidem).
18
Teoria do Contrato: Novos Paradigmas. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pág. 78.
18
cláusulas gerais no âmbito da legislação civil e consumerista infraconstitucional. A
Constituição brasileira de 1988, inclusive, ao incluir seus dispositivos no elenco das cláusulas
petreas (art. 60, § 4º, inciso IV)
19
, dificultou a possibilidade de modificação do conteúdo dos
direitos fundamentais.
O direito contratual tende sempre a refletir o contexto socioeconômico e a ideologia
de sua época, buscando reunir em um sistema coerente, flexível e mutável, as normas que
orientam as operações econômicas e a distribuição de vantagens e ônus econômicos entre os
diversos grupos sociais. Assim, a adequação da teoria contratual às novas vicissitudes da
economia globalizada pressupõe, a um tempo, a eliminação da desigualdade social ou
econômica entre os contratantes, a promoção do progresso e a manutenção da estabilidade
social
20
, exigindo um tratamento diferenciado da doutrina contratual, a depender do direito
fundamental ou do bem constitucionalmente protegido.
Sob a ótica político-ideológica, a Constituição de 1988, como se observa nos arts.
e 170, simboliza um projeto liberal de sociedade. Apesar disso, é um liberalismo ou mesmo
poderia ser até um neoliberalismo – temperado pela dignidade da pessoa humana, pelos
direitos e garantias fundamentais, pela democracia e pelas aspirações de igualdade, de bem-
estar e de justiça sociais. Na Constituição, os princípios constitucionais da livre iniciativa, que
assegura a economia de mercado (arts. 1º, IV, e 170, caput), e da liberdade em geral (art. 5º,
caput), encontram-se lado a lado com o princípio da dignidade humana (art. 1º, III), os
direitos e garantias fundamentais (Título II), o princípio democrático (art. 1º, caput e
19
Art. 60, § , “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV - os direitos e
garantias individuais”.
20
THEODORO DE MELLO, Adriana Mandim. A Função Social do Contrato e o Princípio da Boa-no Novo
Código Civil Brasileiro. Revista dos Tribunais. Ano 91. Volume 801. Julho/2002. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, págs. 16/17.
19
parágrafo único), o princípio da igualdade (art. 3º, III e IV e art. 5º, caput) e princípio-
objetivo de construção de uma sociedade justa e solidária (art. 3º, I)
21
.
Mas ainda um outro fenômeno, decorrente também da globalização e do
neoliberalismo, que vem inspirando, cada vez mais, a interferência dos direitos fundamentais
nas relações privadas, principalmente porque alguns entes particulares passaram a ser
detentores de relevante poder econômico ou social que representa uma ameaça concreta a
outros particulares.
1.2. O fenômeno do poder privado
No Estado liberal, os direitos fundamentais do indivíduo nasciam e se reproduziam
no intuito de protegê-lo contra a opressão e as agressões do Estado, pois o que se almejava
combater era o arbítrio do Estado absolutista (Ancién Regime), que cultuava a concentração
do poder estatal nas mãos do rei ou do monarca. A centralização do poder estatal na figura do
governante, antes imprescindível ao fortalecimento do próprio Estado, logo passou a se
constituir em terreno fértil aos excessos e abusos praticados contra os cidadãos e, em especial,
contra os interesses diretos da burguesia, mais especificamente ligados à propriedade, à
liberdade e à estabilidade dos negócios.
No entanto, os ideais liberais que floresceram s-Revolução Francesa inspiraram a
burguesia a querer influenciar as decisões estatais, através da participação e do engajamento
político perante órgãos representativos da vontade geral. Com o reconhecimento do sufrágio
universal a seguimentos organizados da sociedade, uma série de “organismos intermédios”
21
STEINMETZ, Wilson. A Vinculação dos Particulares a Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004,
págs. 99/100.
20
(partidos, sindicatos, associações diversas), não se contentou apenas em influenciar o poder,
mas desejava adquirir parcela deste poder
22
.
Esta evolução paralela, que também marcou a passagem do Estado liberal para o
social, no mesmo instante em que pulverizou e democratizou, retirou o poder das mãos
exclusivas do Estado e o compartilhou com a própria sociedade. Por isso, o poder deixou de
ser privilégio do Estado, necessitando que os direitos fundamentais fossem alargados não
apenas face ao poder estatal, mas a todas as situações de poder, como o poder econômico, o
poder empresarial, o poder sindical e o poder da comunicação social
23
.
Hoje, no Estado pós-social, delineado por traços do neoliberalismo e da globalização
econômica, a diminuição do papel do Estado abre margem à disseminação do poder na
sociedade, acarretando o aumento de sua autonomia e servindo para corrigir os déficits de
participação e legitimidade do Estado social. Daí a justificativa de também, nos alvores deste
Estado pós-social, debruçar sobre as mesmas preocupações quanto ao poder dos grupos que
já, no Estado social, lançaram as sementes da extensão a todas as relações de poder da
eficácia dos direitos fundamentais.
24
.
Gregorio Perces-Barba destaca que, no mundo globalizado, poderes, tais como os
poderes econômico, financeiro, científico e técnico, que se afiguram um perigo e que devem
se submeter às regras das constituições estatais democráticas e as regras do direito
internacional
25
.
22
PEREIRA DA SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias. Vinculação das Entidades Privadas pelos Direitos,
Liberdades e Garantias. Revista de Direito Público.Ano XX. 82. Abril-junho de 1987. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1987, págs. 43.
23
PEREIRA DA SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias. Ibid., Ibidem.
24
Ibid., pág. 44.
25
La Constitución y los Derechos. Serie de Teoria Jurídica y Filosofia del Derecho. Bogotá: Universidade
Externado de Colombia, 2006, pág. 217.
21
Wilson Steinmetz define poder como a relação entre dois atores ou sujeitos na qual
um tem a capacidade de condicionar, restringir ou eliminar a liberdade de outrem em uma
determinada esfera ou âmbito de vida
26
. Com base nesse conceito, exemplifica Steinmetz os
poderes privados da atualidade, como sendo: a) megagrupos industriais e comerciais
(nacionais e multinacionais) produtores de bens e prestadores de serviços; b) megagrupos
financeiros (bancos, fundos de pensão, companhias de seguro, corretora e investidores
internacionais diversos); c) megagrupos midiáticos (redes de televisão); d) associações e
sindicatos; e e) organizações criminosas. No Brasil, ainda poderia ser indicados, em sua visão,
o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), Movimento Nacional de Luta pela
Moradia, centrais sindicais, associações de classe, associações profissionais, associações de
consumidores, cooperativas, grupos de defesa de minorias, ambientalistas, feministas, igrejas
e organizações não-governamentais
27
.
Juan María Bilbao Ubillos, aliás, adverte que os poderes privados, dada a capacidade
de impor as suas próprias vontades no marco de uma concreta relação jurídica, podem se
afigurar mais perigosos do que os poderes públicos, uma vez que desfrutam de uma relativa
impunidade, que se mostra favorecida pelas dificuldades existentes de articular um sistema
incisivo de controle. A posição de supremacia redunda na instauração de uma relação de
dependência entre os particulares. É por isso que se observam situações de sujeição e isso
normalmente ocorre quando uma das partes não dispõe de outra alternativa senão aceitar uma
proposta ou umas condições ditadas unilateralmente, mesmo estando em estado de
necessidade
28
.
26
Op. cit., págs. 86/87.
27
Op. cit., págs. 88/89.
28
Op. cit., pág. 243.
22
Na ordem jurídica brasileira, ressalvadas as hipóteses do habeas corpus e, sobretudo,
do habeas data, inexistem remédios constitucionais de caráter célere e efetivo hábil à tutela
processual dos direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares. A estrutura das
garantias processuais cristalizadas na Constituição de 1988, arquitetadas como reação às
experiências nefastas patrocinadas pelo Estado brasileiro no período de ditadura militar
(1964-1985), concentrou-se na preocupação de assegurar a efetivação das clássicas liberdades
públicas face aos atos unicamente legais ou estatais, como foi o caso do mandado de
segurança, do mandado de injunção, da ação popular e também do sistema de controle difuso
e concentrado de constitucionalidade das normas. Contra atos negociais privados ofensivos à
Constituição, nada foi previsto.
À míngua de tutela processual efetiva, eventuais violações a direitos fundamentais
verificadas no ambiente negocial acabam por minar o equilíbrio entre as partes, retirando da
parte mais fraca e hipossuficiente condições mínimas de dignidade, de saúde, de educação, de
moradia, de segurança e de velhice ou de desamparo sadio e tranqüilo.
Ao assumir o lugar do Estado na prestação de bens e serviços considerados
relevantes ao indivíduo, a iniciativa privada é alçada à confortável posição de detentora de
destacado poder de impor a sua vontade, justamente em decorrência da essencialidade do que
disponibiliza, e, por causa disso, coloca o consumidor em situação de incontornável
submissão. Essa supremacia, aqui reconhecida como poder social e econômico, também
favorece o aumento da desigualdade na sociedade
29
, pois as empresas ou as organizações
29
Carlos Roberto Siqueira Castro bem sintetiza nas seguintes linhas o efeito produzido pela era pós-industrial na
reconfiguração do perfil do poder que ora impera na sociedade: “Tendo a desigualdade em todas as escalas se
tornado a argamassa de sustentação das sociedades na era pós-industrial, a implantação da segregação entre
indivíduos e grupos que detêm o poder e indivíduos e grupos que constituem a clientela do poder gerou o
surgimento de uma nova fonte de ameaça social: a ameaça dos poderosos, que controlam os mercados de
produção e consumo de que depende a vida humana, contra a multidão de debilitados social e economicamente
que se esfola nas engrenagens da sobrevivência na sociedade de massas. Na verdade, as ameaças que hoje o
Estado faz pesar sobre o exercício dos direitos humanos tornam-se a cada dia mais secundárias nas nações de
23
privadas passam a oferecer os bens e serviços a quem exclusivamente possui capital a eles
acessíveis.
Orlando Gomes já há muito registrava que a obrigação de contratar ocorre não
apenas na hipótese de regime de monopólio, mas também quando quem a exerce está, até
circunstancialmente, em situação privilegiada e as prestações ou os bens são vitais ao ser
humano. Quando se trata de gêneros de primeira necessidade ou prestações socialmente
valorizadas como necessárias à vida de cada cidadão, como o transporte, a eletricidade, a
água, o gás e tantas outras, o dever de não recusá-los
30
. Na atual quadra do Estado pós-
social, outros bens podem ser considerados necessários à sobrevivência digna e decente do
indivíduo como participante ativo da sociedade, como a saúde, a educação, a moradia, a
previdência, o seguro, segurança, proteção à maternidade, à infância e aos idosos e
deficientes.
Para Daniel Sarmento, a crise do Welfare State, ao enfraquecer o Estado, multiplica
os obstáculos para que este possa promover as políticas públicas necessárias à proteção dos
direitos fundamentais, libertando os poderes privados das amarras estatais, o que faz com que
se tornem um risco ainda mais ameaçador à liberdade e à dignidade dos despossuídos. Daí a
necessidade de articular novas estratégias para enfrentar os graves problemas da justiça social
e opressão que afligem a humanidade. Deixar essa tarefa nas mãos da economia neoliberal e
desenvolvimento cultural e político, comparadas às agressões que os indivíduos e grupos detentores de poder
social fazem pesar sobre as liberdades daqueles destituídos de influência ou sem condições materiais de
participar minimamente da concorrência pela vida em padrões aceitáveis de dignidade. Em suma, tirante os
resquícios ainda existentes de deformação da autoridade que caracteriza o autoritarismo oficial e as ditaduras de
base militar que atormentaram o terceiro mundo, o Estado deixa gradativamente de ser o grande e único inimigo
das liberdades públicas, haja vista que proliferam na sociedade outros focos de poder poderes inorgânicos e
não departamentais da soberania do Estado a exemplo do poder da mídia e das comunicações, do poder dos
bancos no sistema financeiro, do poder tecnológico, do poder patronal-empresarial dos oligopólios e do poder do
banditismo paramilitar, dentre outros, todos eles potencialmente em condições de periclitar a todo instante o
exercício dos direitos fundamentais do homem (A Constituição Aberta e os Direitos Fundamentais: Ensaios
sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003, págs. 246/247).
30
Obrigação de Contratar. Revista de Informação Legislativa. Ano V. mero 17. Janeiro a março de 1968.
Brasília: Senado Federal, 1968, pág. 23.
24
globalizada parece não ser suficiente para assegurar o gozo efetivo dos direitos fundamentais
para toda a população, como a história demonstrou no Estado liberal. Nem mesmo se pode
confiar apenas no Estado para cumprir esse desafio
31
.
Com isso, começam a brotar tentativas de dotar os direitos fundamentais de eficácia
não apenas face ao Estado, mas também frente aos particulares detentores de poder. Poder que
importa necessariamente em desequilíbrio entre as partes, cujo realinhamento depende do
efeito e da graduação que se pretende conferir ao direito fundamental em jogo na relação
privada. Uma grande empresa, enquanto sujeito de direito, detém mesmo nível do de seus
empregados, porém a diferença em termos de poder social é tão grande que se poderia tratar a
parte forte como detentora de um poder semelhante ao do Estado
32
.
Assim, em nome do Estado pós-social, não há como negar ou minimizar a incidência
dos direitos fundamentais nas relações privadas. Ao contrário, em tempos de crise do Estado
social e de globalização neoliberal, em que se exacerbam as desigualdades econômicas e
fortalecem os poderes privados, a eficácia dos direitos fundamentais torna-se, mais do que
nunca, um escudo protetivo contra a opressão privada
33
.
A Constituição, ao permitir a vinculação dos direitos fundamentais nas relações entre
particulares, estaria assumindo contornos de um estatuto fundamental de toda a coletividade,
dando proteção ao homem contra o poder, independentemente se público ou privado. Ao
mesmo tempo, estaria enriquecendo o debate travado nas relações celebradas no palco privado
com padrões éticos oriundos da sistemática constitucional dos direitos fundamentais do
homem.
31
Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, págs. 1/2.
32
DIMOULIS, Dimitri, MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007, pág. 109.
33
SARMENTO, Daniel. Ibid., pág. 66.
25
1.3. Constitucionalização do direito civil e a perspectiva civil-constitucional
Com a exacerbação do individualismo e a concentração de riqueza nas mãos de
poucos no Estado liberal, era mais do que natural que princípios clássicos balizadores do
direito privado, que se fundava na idéia de completude do sistema e na precisão e
imodificabilidade das figuras e institutos civis, começassem a se mostrar impotentes para
proteger os personagens mais vulneráveis das relações jurídicas. A estrutura tradicional e
hermética da regra jurídica e a sua forma de aplicação ao caso concreto dificultavam a
resolução de situações vividas pelo cotidiano de uma sociedade timbrada pela rapidez e pela
complexidade. Freqüentemente, a problemática não se amoldava ao tipo legislativo que se
sugeria e, quando raramente se amoldava, não a solucionava satisfatoriamente, à luz de
premissas éticas e sociais.
A busca pela precisão semântica e pela imutabilidade dos conceitos e dos institutos
jurídicos, longe de garantir a pretendida segurança jurídica nas relações jurídicas, vem
acelerando a sua superação, curiosamente, em virtude da insegurança que traz como modelo
de técnica legislativa. Por isso, o próprio direito começou a se render às normas
principiológicas e modeladas por cláusulas gerais, capazes de tutelar de forma mais
apropriada e atualizada as situações jurídicas cotidianas
34
.
Assim, como de resto todos os demais tentáculos da ciência jurídica, o direito civil,
calcado originariamente na codificação positivista, também não resistiu à vinculação dos
direitos fundamentais constantes nas Constituições, em especial porque também lida com
bens preciosos da vida humana. Constatou-se, consoante alinha Joaquim Arce y Flórez-
Valdés, que a Constituição não era apenas uma norma jurídica, mas sim norma
34
ZINN, Rafael Wainstein. Op. cit., pág. 87.
26
qualitativamente distinta e superior às demais do ordenamento, justamente por incorporar
valores essenciais da convivência em sociedade a servir de critério informativo e
interpretativo a toda ordem jurídica
35
.
Ante a relevância de alguns bens existenciais do homem, as constituições européias
do século XX
36
passaram gradualmente a inserir em seus textos dispositivos relacionados a
direitos da personalidade, à família, à propriedade e ao contrato. Esse fenômeno de
constitucionalização de determinados departamentos do direito civil inaugura uma nova
perspectiva de estudo chamada civil-constitucional, na qual se tutelam bens
constitucionalmente importantes para o indivíduo.
Para Flórez Valdés, o direito civil-constitucional não seria um novo ramo do direito,
pois não trata de matéria distinta da veiculada no direito civil. Também não seria uma parte do
direito civil, já que provém de sua integração à Constituição, e não de uma setorização
institucional dentro daquele. A bem da verdade, entende Flórez-Valdés que, por cuidarem da
mesma matéria e, portanto, serem materialmente idênticos, o direito civil-constitucional seria
a infraestrutura do direito civil
37
.
Por isso, conclui Flórez-Valdés que o direito civil-constitucional corresponde ao
sistema de normas e princípios normativos institucionais integrados na Constituição, relativos
à proteção da pessoa em si mesma e de suas dimensões fundamentais familiar e patrimonial,
35
El Derecho Civil Constitucional. Madrid: Editorial Civitas, 1986, pág. 27.
36
Adverte Samir José Caetano Martins que, no caso do Brasil, “O debate sobre a constitucionalização do Direito
Privado no cenário nacional foi adiado pelos ventos autoritários que marcaram o período de pós-guerra,
entremeado pelas ditaduras getulistas e militares, com alguns espasmos democráticos plasmados em um
desenvolvimentismo populista: falar em ‘socializaçãodo Direito Privado poderia trazer ao estudioso a pecha de
‘comunista’ ou ‘subversivo’, com todas as perseguições políticas daí decorrentes”(Neoconstitucionalismo e
Relações Privadas: alguns parâmetros. Revista do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça
Federal. Nº 36. Brasília: CEJ, 2007, pág. 63). Somente após o advento da Constituição de 1988 é que se
suscitaram discussões mais séries e com maior profundidade a respeito da constitucionalização do direito.
37
Op. cit., págs. 39/40.
27
na ordem de suas relações jurídico-privadas gerais e concernentes àquelas outras matérias
residualmente consideradas civis
38
.
A perspectiva civil-constitucional requer que o intérprete percorra várias fontes
normativas, não se limitando apenas ao Código Civil, mas antes prestigiando a Constituição e
as leis específicas sobre determinado interesse ou direito
39
. Daí a conclusão de Paulo Nalin de
que a idéia da constitucionalização do direito civil pressupõe a falência do sistema
codificado. O juiz, nesta tarefa, assume as funções constitucionais de dignificar o homem e de
eliminar a desigualdade socioeconômica
40
.
Para Paulo Luiz Netto Lôbo
41
, a constitucionalização “é o processo de elevação ao
plano constitucional dos princípios fundamentais do direito civil, que passam a condicionar a
observância pelos cidadãos, e a aplicação pelos tribunais, da legislação infraconstitucional”.
38
Ibid., pág. 178.
39
Paulo Nalin considera o direito civil-constitucional como ramo do direito civil e o conceitua sob três vertentes:
“a normativa civil conformada pela Constituição é composta de regras e de princípios normativos institucionais,
integrados no corpo constitucional e todos interligados num unitário ordenamento jurídico. Prevalece aqui a
concepção sistemática do Direito e, sobretudo, a institucional do contrato, encontrando seu máximo fundamento
na Carta. A Constituição não se limita aos seus aspectos positivos, dela fazendo parte uma normativa mais ampla,
composta pelos valores e princípios abstratos e concretos que reúne. Em segundo plano, está a constatação de
que em torno da pessoa se funda a concepção do novo paradigma, na sua tutela, em si mesma, ou em suas
plúrimas dimensões de família e propriedade, especialmente em nosso regime constitucional no âmbito da
propriedade, do contrato e outras residuais, como o do dano extrapatrimonial contratual, que conjuga,
complexamente, uma violação patrimonial (quebra a um clássico devedor jurídico revestido de patrimonialidade)
concomitantemente a uma violação da personalidade humana. Terceiro aspecto desta edificação conceitual é a
evidência de que a normativa civil posta na Constituição não tem a pretensão de exaurir a matéria pertinente às
relações civis, não obstante seja possível a aplicação direta da norma constitucional às atividades interprivadas.
O papel da Constituição é, antes, teleológico, não lhe cabendo o tratamento minucioso dos institutos jurídicos
civis. O argumento é importante, notadamente em nosso meio jurídico em que prevalece uma fração entre a
atualidade constitucional e a velha codificação de 1916. Não se pode, simplesmente, substituir a normativa posta
no Código Civil pela constitucional, tendo a legislação infraconstitucional, esta sim, um propósito de
regulamentação minuciosa da vida privada. Idéia diversa pode contrastar com a sustentada neste texto de
descodificação do Direito Civil, pois, contraditoriamente, estar-se-ia trocando o Código Civil pelo ‘Código
Constitucional’” (Do Contrato: Conceito Pós-Moderno em busca de sua formulação na perspectiva civil-
constitucional. 2ª Edição. Curitiba: Juruá, 2006, págs. 91/92).
40
Ibid., pág. 87.
41
Paulo Luiz Netto Lôbo ainda esclarece que não se pode confundir constitucionalização com publicização, ao
pontificar que “Durante muito tempo, cogitou-se de publicização do direito civil, que, para muitos, teria o
mesmo significado de constitucionalização. Todavia, são situações distintas. A denominada publicização
compreende o processo de crescente intervenção estatal, especialmente no âmbito legislativo, característica do
Estado Social do século XX. Tem-se a redução do espaço de autonomia privada para a garantia da tutela jurídica
dos mais fracos. A ação intervencionista ou dirigista do legislador terminou por subtrair do Código Civil
28
Pedro Cruz Villalon, por seu turno, entende que constitucionalização representa o
processo que converte os direitos em direitos fundamentais, tendo nascido a partir dos
fenômenos da declaração dos direitos na independência dos Estados Unidos da América, da
possibilidade de revisão constitucional e do controle judicial de constitucionalidade das leis
(judicial review)
42
.
Neste contexto, a unidade e a sistematização dos vários fragmentos jurídicos se
evidenciam na coexistência normativa de valores comuns e dos direitos fundamentais. O
direito constitucional conquista, na atualidade, por esta razão, o papel antes ocupado pelo
direito civil, de sistematizador do conjunto de valores sobre os quais se vem construindo o
pacto da convivência coletiva. Contudo, o maior óbice consiste em equacionar de maneira
aceitável fatores aparentemente conflitantes consistentes nos valores fundamentais comuns,
capazes de fornecer os enquadramentos éticos e morais a inspirar as leis e os espaços de
liberdade, de modo a permitir a cada um a escolha de seus atos e a condução de sua vida
particular, de sua trajetória individual, de seu projeto de vida
43
.
Konrad Hesse assinala que, mesmo no século XIX, o direito constitucional se
relacionava com o direito civil, o que pode sugerir que, desde o início, sempre existiu um
estreito liame entre eles. Tanto as constituições modernas como as codificações civis
assentavam-se nos princípios da liberdade e da igualdade e, como se não bastasse, ambas as
matérias inteiras, em alguns casos tranformadas em ramos autônomos, como o direito do trabalho, o direito
agrário, o direito das águas, o direito da habitação, o direito da locação de imóveis urbanos, o estatuto da criança
e do adolescente, os direitos autorais, o direito do consumidor(Constitucionalização do Direito Civil. Revista
de Informação Legislativa. Ano 36. Nº 141. Jan/mar de 1999. Brasília: Senado Federal, 1999, pág. 100).
42
Formacion y Evolucion de los Derechos Fundamentales. Revista Española de Derecho Constitucional. Año 9.
Núm. 25. Enero-Abril 1989, pág. 46.
43
MORAES, Maria Celina Bodin de. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. In: MORAES, Maria
Celina Bodin de (Coord.). Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pág. 5.
29
esferas sofriam os reflexos advindos da transformação da sociedade feudal-estamental para a
sociedade burguesa
44
.
Mas também a relação de aproximação entre o direito constitucional e o direito
privado, no caso do Brasil pós-Constituição de 1988, ocorre na eleição do mesmo princípio
fundante (dignidade da pessoa humana art. 1º, III) como base axiológica do homem, pois,
enquanto o texto constitucional, o eleva à condição de postulado cardeal da República
Federativa do Brasil, o Código Civil de 2002 (Lei 10.406/2002), de igual modo, inicia com
o reconhecimento de direitos da personalidade, que nada mais representam do que mero
desdobramento daquele. A tarefa de especificar detalhadamente a completa implementação
dos princípios constitucionais e, bem assim, de suas diretivas também se constituir em
demonstração inequívoca dessa intimidade
45
.
Como confidencia José de Oliveira Ascensão, a Constituição consagra princípios
fundamentais da ordem jurídica, inclusive na arena do direito civil. Os princípios civilísticos
que dizem respeito ao homem, ao conquistarem assento constitucional, pressupõe, desde logo,
uma análise de preceitos constitucionais
46
. Para ele, é louvável a consolidação do fenômeno
do direito civil-constitucional, que conduz a um aprofundamento das bases constitucionais
do direito civil e favorece estudos interdisciplinares, que são sempre indispensáveis.
Inclusive, os princípios fundamentais do direito civil podem coincidir com os princípios
constitucionais, na medida em que são comuns, tenham ou não assento na Constituição
47
.
Tanto isso é verdade que Teresa Negreiros encerra que o processo de
constitucionalização do direito civil implica a substituição do indivíduo pela pessoa, como o
44
Derecho Constitucional y Derecho Privado. Madrid: Cuadernos Civitas, 1995, págs. 33/34
45
MARTINS-COSTA, Judith. Mercado e Solidariedade Social entre Cosmos e Taxis: A Boa-fé nas Relações de
Consumo. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). Reconstrução do Direito Privado. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, pág. 627.
46
Direito Civil: Teoria Geral. 2ª Edição. Vol. I. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, pág. 29.
47
Ibid., pág. 30.
30
centro valorativo da ordem jurídica, e, onde antes reinava, absoluta, a liberdade individual,
entra em cena a solidariedade social
48
. A perspectiva civil-constitucional, neste sentido,
pretende dar à sucessão de fatos históricos que marcam a evolução do direito civil a finalidade
de conceder efetiva proteção e permanente desenvolvimento da pessoa humana
49
. E, ainda,
arremata Teresa Negreiros que a leitura constitucionalizada do direito civil acarreta a primazia
do “ser” sobre o “ter”, transformando a ética da liberdade em uma ética solidária, de co-
responsabilidade, cooperação e lealdade
50
.
A constitucionalização do direito civil representou a fragilização da visão meramente
patrimonialista dos institutos e figuras a ele correlatos e a substituiu pela visão existencial, na
qual se valorizam bens imateriais de extremo relevo para a convivência humana e mais
próximos da dignidade da pessoa humana. Sem embargo de as relações civis revestirem-se de
forte conteúdo patrimonializante, como se observa nas hipóteses da propriedade e do contrato,
essa característica, ancorada nos códigos, vem ruindo a partir da concepção cada vez mais
latente da primazia da pessoa humana. Com isso, os valores baseados no princípio da
dignidade da pessoa humana, ao reencontrarem a longa trajetória da emancipação humana,
recolocam a pessoa humana como protagonista do direito civil e reservam ao patrimônio o
papel de mero coadjuvante
51
.
A conseqüente vinculação das relações jurídicas entre particulares aos ditames
constitucionais serviu como vem servindo - para preservar e promover os direitos
fundamentais frente às transformações, sobretudo no plano das relações de poder, das
sociedades capitalistas contemporâneas, o que os torna relevante instrumento de caráter
48
Op. cit., pág. 11.
49
NEGREIROS, Teresa. Ibid., pág. 59.
50
Ibid., pág. 62.
51
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Revista de Informação Legislativa. Ano 36.
Nº 141. Jan/mar. de 1999, pág. 103.
31
social
52
. Daí, como ressalta Pietro Perlingieri, a razão pela qual não se deve, à vista dos
valores constitucionais, limitar a valoração do ato ao mero juízo de legalidade, mas se deseja a
aferi-lo ante os valores previstos na Lei Fundamental. O juízo de valor do ato deve ser
expresso à luz dos princípios fundamentais do ordenamento e dos valores que o
caracterizam
53
.
Essa visão constitucional força o direito abandonar a postura patrimonialista que fora
herdada do século XIX e o guia para uma concepção emancipatória que privilegia o
desenvolvimento humano e a dignidade da pessoa concretamente considerada. A
Constituição, além de suas dimensões formal e material, também contribui para a formação de
um sistema jurídico aberto, poroso e plural, de ressignificar os sentidos dos diversos
significantes que integram o discurso jurídico normativo, doutrinário e jurisprudencial,
sobretudo no campo da propriedade, da família e do contrato
54
.
Além disso, outra nota característica que se acentuou na perspectiva civil-
constituição consistiu no desaparecimento da distinção entre direito público e direito privado.
Em face da Constituição, de pouca relevância reside a diferenciação, na medida em que tanto
sobre o direito público como sobre o direito privado irradiam normas constitucionais.
Aliás, Pietro Perlingieri informa que os romanos tinham dificuldade em distingui-
los, seja com base na natureza do sujeito titular dos interesses, seja com fundamento na
natureza dos próprios interesses. E ainda mais em uma sociedade como a atual, onde não se
tem delimitado com precisão o campo de liberdade do particular e a autoridade do Estado.
Hoje, é praticamente impossível, com o apogeu dos interesses difusos e coletivos, individuar
52
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pág.
83.
53
Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2007,
págs. 92/93.
54
FACHIN, Luiz Edson. Questões do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008,
págs. 6/7.
32
um interesse particular que seja completamente autônomo, independente, isolado do interesse
dito público
55
. O interesse particular não pode ser exercido sem que se atente para o interesse
da coletividade e, portanto, para o interesse público. Separar o interesse privado do público,
neste palmilhar, seria até mesmo inútil, diante de tantas normas legais imperativas que vêm
modelando o teor do direito privado.
Com a força da globalização e do neoliberalismo, associado ao crescente vigor do
poder privado, novas discussões, sobretudo na seara judicial, vêm à tona, em decorrência da
existência de contratos que têm como objeto direitos fundamentais ou bens
constitucionalmente protegidos. Na tentativa de minoração ou mesmo resolução dessa
situação de conflituosidade no universo dos contratos civis e de consumo, vêm os tribunais e a
jurisprudência em geral se valendo indiscriminadamente de princípios encartados na
Constituição diretamente no caso concreto, como se estivesse a invocar a perspectiva civil-
constitucional ou mesmo a teoria da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas.
A pretexto de fazer prevalecer a vontade da constituição, normalmente, juízes e
tribunais, através da utilização de princípios constitucionais, de preferência, aquele de menor
densidade semântica possível, como o da dignidade da pessoa humana, terminam por externar
as suas vontades subjetivas e os seus desejos voluntaristas mais íntimos, proferindo decisões
que conferem proteção a partes hipossuficientes da relação contratual, sem qualquer critério
56
.
55
Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2007,
págs. 52/55. Pietro Perlingieri ensina que, no âmbito do Direito Civil, área propícia à manifestação da livre
vontade dos sujeitos, “entra em crise a comum sistemática do direito subdividido em privado e público. Técnicas
e institutos nascidos no campo do direito privado tradicional são utilizados naquele do direito público e vice-
versa, de maneira que a distinção, neste contexto, não é mais qualitativa, mas quantitativa. Existem institutos em
que é predominante o interesse dos indivíduos, mas é, também, sempre presente o interesse dito da coletividade e
público; e institutos em que, ao contrário, prevalece, em termos quantitativos, o interesse da coletividade, que é
sempre funcionalizado, na sua íntima essência, à realização de interesses individuais e existenciais dos cidadãos”
(Ibid., Ibidem).
56
Eros Roberto Grau lamenta a postura da jurisprudência brasileira em interferir nos contratos privados, a ponto
de por em risco a segurança jurídica, quando proclama que “infelizmente, nossa jurisprudência às vezes se
esmera em fazer ruir esse pressuposto de certeza e segurança, intervindo em contratos privados celebrados entre
33
É relativamente comum detectar decisões judiciais que lançam mão da “carta coringa” da
dignidade da pessoa humana, para resolver, com ar de superioridade hierárquico-normativa, a
esmagadora maioria dos conflitos de direito civil, como se, em qualquer situação, houvesse de
prevalecer.
Antes de tudo, é bom registrar que somente se analisa um caso concreto à luz da
perspectiva civil-constitucional, se os vários interesses conflitantes forem sopesados com base
na ponderação dos bens, valores e princípios constitucionais em jogo e, conseqüentemente,
aferidos com alicerce no princípio da proporcionalidade, inclusive, não se podendo esquecer,
no plano das relações contratuais, daqueles atinentes à ordem econômica, dentre eles os
postulados da livre iniciativa e da autonomia privada.
Alexei Julio Estrada confessa que toda a discussão dos últimos trinta anos sobre a
autonomia privada na doutrina tedesca tem sido dominada pela aspiração de um modelo
contratual correto, que assegure a liberdade individual, porém, ao mesmo tempo, tenha em
consideração as desigualdades fáticas entre as partes contratantes. Tal modelo ideal é muito
difícil de conseguir. A primazia da autonomia privada e da conseqüente liberdade contratual é
uma imposição da ordem econômica capitalista
57
.
Mas, de outra banda, Estrada reconhece existir um certo consenso da necessidade de
estabelecer limites ao poder de autodeterminação privada, principalmente por meio da
estipulação de disposições legislativas destinadas a conferir maior tutela à parte mais frágil da
relação contratual. Todavia, os limites legislativos têm se revelados insuficientes, tornando-se
agentes econômicos que nada têm de hipossuficientes. A autonomia da vontade, que deveria ser a regra, é
indevidamente substituída pelo entendimento que o julgador tem do negócio. Passa o Judiciário, então, a ignorar
o pressuposto básico da racionalidade dos agentes econômicos, arvorando-se a condição de protetor daqueles que
tinham plenas condições de contratar e se obrigar em igualdade de condições” (Um Novo Paradigma dos
Contratos? Revista Latinoamericana de Política, Filosofia y Derecho. Nº 18. Jun/2001. Curitiba: Crítica Jurídica,
2001, pág. 122).
57
La Eficacia de los Derechos Fundamentales entre Particulares. Bogotá/CO: Universidad Externado da
Colombia, 2000, págs. 117.
34
essencial operar o trânsito do constitucionalismo da liberdade para o constitucionalismo da
igualdade, sendo um de seus mais interessantes caminhos a adoção da eficácia dos direitos
fundamentais nas relações jurídicas entre particulares
58
.
A perspectiva civil-constitucional aparenta ser o modelo mais completo para se
discutir e solucionar conflitos no âmbito do direito civil e, mais particularmente, no campo do
direito contratual. Se, de uma banda, os princípios clássicos da teoria contratual tutelam
prioritariamente os interesses da liberdade contratual, da autonomia da vontade, enfim, dos
mais fortes (empresário-fornecedor), de outra, os princípios socializantes do contrato, como
os da função social e da boa-fé objetiva, concentram-se preponderantemente na proteção da
parte considerada mais fraca ou hipossuficiente (consumidor). A concepção civil-
constitucional enxerga, simultaneamente, os dois focos principiológicos, dando prevalência a
um deles somente no exame da casuística concreta.
Enquanto o Estado liberal, nas relações de consumo, prestigiava-se o fornecedor do
produto ou serviço, o Estado social buscava defender os direitos e interesses do consumidor,
restando ao Estado pós-social, constantemente ameaçado pelos sufocantes fatores da
globalização, do neoliberalismo e do crescente poder privado, apresentar-se como o grande
mediador desses conflitos. E a matéria prima mais adequadamente preparada para enfrentar
esse desafio, certamente, é a Constituição, com a sua proposta de reunificação e
ressistematização do ordenamento jurídico.
1.4. Críticas à perspectiva do direito civil-constitucional
58
Op. cit., pág. 119.
35
A despeito das vantagens da constitucionalização do direito privado e do correlato
avanço nos estudos relativos à concepção do direito civil-constitucional, alguns doutrinadores
têm se mostrado reticentes à influência da Constituição na resolução de problemas no âmbito
do direito privado. Não é de hoje a preocupação com o intervencionismo estatal no ambiente
contratual, levando alguns doutrinadores a desconfiar de seu apetite avassalador e
assustador
59
. Ainda no Estado social houve quem pregasse o fim do contrato, a morte do
contrato
60
, em virtude da limitação da livre vontade de autodeterminação do conteúdo
contratual pelos próprios contratantes, decorrente da crescente intervenção do Estado em
áreas, consideradas essenciais à coletividade.
Konrad Hesse critica a influência que a constituição pode exercer na resolução dos
problemas concretos do direito privado. Para ele, sempre será de mais difícil determinação os
preceitos que encerram os direitos fundamentais. A claridade e a certeza jurídicas, tão
necessárias ao tráfico jurídico-privado, seriam profundamente afetadas com a invocação de
direitos fundamentais. A falta de claridade decorre da imensa constelação de ditames
fundamentais, dos quais, em um conflito jurídico, todos são titulares
61
.
Nesta situação de colisão, segundo Hesse, o direito civil assumiria uma tarefa
extremamente complicada de encontrar, por si mesmo, o modo e a intensidade da influência
dos direitos fundamentais, por intermédio do equilíbrio e da ponderação, o que se
59
GIL, Oto. Crise e Evolução do Contrato. Revista Forense. Ano 54. Vol. 172. Julho-agosto de 1957, pág. 29.
60
Um dos maiores defensores da teoria da morte do contrato, provocado pelo dirigismo contratual, foi Grant
Gilmore (Cf. The death of contract. 2ª Ed. Columbus: Ohio State University Press, 1995). Hoje, há quem
defenda a existência de uma nova crise contratual, como bem enuncia Cláudia Lima Marques, apontada pelos
doutrinadores franceses Christophe Jamin e Denis Mazeaud, decorrente da multiplicação desenfreada de
cláusulas gerais no direito privado, instituída pelo direito do consumidor, o que acarretava freqüentemente
decisões contraditórias de magistrados quando tratava de conflitos contratuais. Porém, a própria professora
Cláudia Lima Marques a rechaça, pois considera que o problema reside muito mais no correto uso das cláusulas
gerais do que propriamente na incerteza jurídica proporcionada por elas (A Chamada Nova Crise do Contrato e o
Modelo de Direito Privado Brasileiro: Crise de Confiança ou de Crescimento do Contrato? In: MARQUES,
Cláudia Lima (Coord.). A Nova Crise do Contrato: Estudos sobre a Nova Teoria Contratual. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007, pág. 19).
61
Derecho Constitucional y Derecho Privado. Madrid: Cuadernos Civitas, 1995, págs. 59/60.
36
incompatibiliza com a concepção privatística desse ramo do direito marcado por regras claras,
detalhadas e determinadas. O recurso imediato aos direitos fundamentais ameaçaria a perda de
identidade da longa história do direito civil, desnaturando, por completo, um de seus pilares
fundantes, o princípio da autonomia privada. Além disso, ainda diz Hesse que o juiz
naturalmente se inclinaria a defender com mais afinco a constituição e os direitos
fundamentais, ainda que em prejuízo da economia
62
.
Alexei Julio Estrada aponta as principais críticas que se faz à doutrina da
constitucionalização do direito privado na Alemanha, notadamente àquela que se funda na
eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, assim sintetizadas: a) a incidência
dos direitos fundamentais nas relações privadas contraria a sua tradição histórica de servir de
tutela do indivíduo contra o Estado; b) a admissão da eficácia frente a particulares deve estar
prevista expressamente no texto constitucional; c) não caberia ao constituinte regular as
relações entre particulares; d) dos antecedentes do debate constituinte não se depreende que os
pais da Lei Fundamental de Bonn tiveram a intenção de consagrar a eficácia horizontal dos
direitos fundamentais; f) a Lei Fundamental de Bonn, em seu art. 1.3, apenas vincula os
poderes públicos aos direitos fundamentais, como direitos diretamente aplicáveis; g) a
eficácia dos direitos fundamentais anula a autonomia privada e termina por destruir o direito
privado, ao torná-lo desnecessário, que os juízes poderiam embasar suas decisões
diretamente do texto constitucional, prescindindo das prescrições legais existentes; e, por
derradeiro, h) a eficácia entre particulares iria retirar das mãos do legislador democrático
importantes âmbitos de configuração do direito privado, instituindo um “Estado judicial”
63
.
No entanto, tais críticas, como bem acentua Estrada, não resistem a uma análise
aprofundada e pormenorizada dos elementos que gravitam em torno da aplicação dos direitos
62
Op.cit., págs. 61/62.
63
Op. cit., págs. 98/99.
37
fundamentais nas relações interprivadas. No que diz respeito à primeira delas, não se pode
conceber que o conceito de direitos fundamentais seja único e imutável, sem que sofra
influência da história e da cultura em constante mudança na sociedade. O significado atual
dos direitos fundamentais supera em muito as estreitas margens do direito público subjetivo,
englobando um conteúdo objetivo e uma multiplicidade de funções, que não impedem a sua
vinculação também nas relações privadas
64
.
De igual sorte, condicionar a eficácia nas relações entre particulares a expresso
reconhecimento constitucional, tal como ataca as críticas acima elencadas (letras “b” a “f”),
significaria desconhecer a própria essência de alguns direitos fundamentais, que são
vocacionados originariamente para ser invocados contra outros indivíduos
65
.
Maior destaque merece o argumento que teme a ameaça de que a autonomia privada
seja, praticamente, eliminada no confronto com os direitos fundamentais. Nota-se que, em um
número cada vez mais crescente de casos, as partes dispensam a estrutura normativa do direito
privado e esgrimem diretamente, em seus conflitos, posições jurídicas jusfundamentais
66
.
Contudo, a invocação de direitos fundamentais nas relações privadas não esvazia a autonomia
privada, sobretudo porque esta também se funda em direitos fundamentais, o que acaba por
representar, a bem da verdade, em uma colisão entre bens, valores e princípios
constitucionais, apenas solucionável pela ponderação entre eles.
A crítica à constitucionalização do direito civil com base em suposto prejuízo à
precisão conceitual e à autonomia das disciplinas significa reduzir o direito a um sistema
fechado e a uma realidade ontológica como um fim em si mesmo, e não utilizá-lo como
instrumento para o atendimento de demandas impostas para a concretização da dignidade da
64
Ibid., pág. 100.
65
ESTRADA, Alexei Julio. Ibid., págs. 100/101.
66
ESTRADA, Alexei Julio. Op. cit., págs. 100/101.
38
pessoa. Não resta dúvida de que os conceitos não são o verdadeiro objeto do direito, mas,
apenas, seu instrumento
67
.
Gustavo Tepedino rebate as críticas de que a perspectiva civil-constitucional estaria
na contramão do movimento econômico reducionista do papel do Estado social, minimizando
a importância do intervencionismo pretendido pelo constituinte, o que tornaria até mesmo
desnecessária ou superada a discussão quanto à aplicação de valores e princípios do texto
constitucional nas relações privadas. Afirma ele que, a despeito das tendências neoliberais, a
alteração da forma de intervenção estatal não torna prescindível a submissão da autonomia
privada aos princípios normativos que, inseridos no vértice da hierarquia mandamental,
modelam, funcionalizam e asseguram o valor social da livre iniciativa
68
.
A importância da Constituição, para Tepedino, permaneceria em face da
indispensável unidade interpretativa exigida no cenário de pluralidade de fontes normativas, a
partir dos valores constitucionais, cuja utilização direta na solução das controvérsias do direito
privado asseguraria, a um tempo, a abertura do sistema e a sua unidade. Acrescente-se a
isso o fato de que a força normativa dos princípios constitucionais teria um papel fundamental
de influenciar a cultura hermenêutica do legislador infraconstitucional, que, na busca por
decifrar os direitos fundamentais do ordenamento, evitaria acabar tendo sua amplitude
normativa reduzida ao espectro das regras
69
.
Mas, talvez, uma das maiores críticas lançadas contra a pretensa constitucionalização
do direito consiste no temor de que a incidência dos direitos fundamentais nas relações
67
FACHIN, Luiz Edson, RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Direitos Fundamentais, Dignidade da Pessoa
Humana e o Novo Código Civil: uma análise crítica. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos
Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, pág. 99.
68
Normas Constitucionais e Direito Civil na Construção Unitária do Ordenamento. In: SOUZA NETO, Cláudio
Pereira de, SARMENTO, Daniel (Coords.). A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e
Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, págs. 311.
69
Normas Constitucionais e Direito Civil na Construção Unitária do Ordenamento. In: SOUZA NETO, Cláudio
Pereira de, SARMENTO, Daniel (Coords.). A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e
Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pág. 312.
39
privadas pudesse gerar insegurança jurídica, já que se perderia a possibilidade de antever, com
base nos ditames contidos na legislação, o direito do sujeito do direito privado que nele se
assegurasse. A segurança proporcionaria a obtenção de uma resposta gica previsível, que
pudesse ser repetida em vários outros casos similares, não se correndo o menor risco de o juiz
decidir, em casos, por exemplo, de conflitos contratuais, de maneira diversa da que se
encontra na previsão legal.
Henri y Léon Mazeaud e Jean Mazeaud alerta para os perigos de deixar o contrato à
discrição do juiz, já que, ao intervir em seu cumprimento com o sentimento pessoal da
equidade ou do interesse geral, acaba por aniquilar a avença e põe em risco toda a economia,
ao suprimir toda a segurança nas relações contratuais
70
.
Fábio Antônio Correia Filgueira, no entanto, considera ilusória a visão de que uma
legislação clara, precisa e casuística, com pouca possibilidade de manobra interpretativa,
afastaria o temor da insegurança jurídica. A falta da segurança jurídica não é devida à forma
legislativa da cláusula geral ou à adoção dos princípios, ambos caracterizados pela
indeterminabilidade conteudista, mas aos condicionamentos histórico-culturais. É a prática
social de respeito aos valores eleitos pela coletividade e positivados nas regras
infraconstitucionais e constitucionais que garante a segurança e estabilidade das relações
jurídicas. Conservar, em nome da segurança formal, um vínculo jurídico contratual
desequilibrado, afrontoso à axiologia constitucional, simboliza ineludível fator de
instabilidade jurídico-social. Causa descrença da sociedade nas instituições públicas e
privadas e aguça o sentimento geral de injustiça, de ofensa à dignidade humana e à
70
Lecciones de Derecho Civil. Parte Segunda. Vol. III. Trad. Luis Alcalá-Zamora y Castilho. Buenos Aires:
Ediciones Jurídicas Europa-América, 1978, pág. 20.
40
solidariedade social
71
. Como diria Teresa Negreiros, a função estabilizadora do direito é
“fonte de segurança para os que se beneficiam do status quo, e de insegurança para os que
aspiram por mudanças”
72
.
Um novo perfil de segurança jurídica contratual de levar em conta a abertura do
sistema privado, para que possa o intérprete localizar, na vocação constitucional solidária, o
seu alicerce fundamental. Essa construção leva em conta, precipuamente, a justiça contratual
contemporânea, baseada na idéia do equilíbrio das obrigações reciprocamente consideradas
73
.
A segurança jurídica do contrato não é mais decorrência da aplicação cega do Código
Civil, que considera a verificação formal de uma vontade livremente emitida, mesmo que
circunscrita a deveres de conduta, introduzidos pela boa-fé, mesmo antes de a atual
codificação civil ter sido aprovada. A segurança no plano contratual deve ser material
(concreta e histórica), investigativa das condutas e dos resultados objetivos do contrato,
escapando da concepção, hoje superada, de que residiria no instante do adimplemento do
contrato pelo devedor. O enredo constitucional da segurança não está mais no momento do
adimplemento do contrato, posta, exclusivamente, em favor do credor, mas também quando
concorrem efeitos econômicos e sociais
74
.
Tanto isso é verdade que Peter Ulmer conta que a limitação contratual, por meio de
ações coletivas ou mesmo controle judicial individual, na Alemanha, após o advento da Lei de
Condições Gerais dos Contratos de 1977, tem melhorado a qualidade dos contratos em
benefício de todos os interessados, não acarretando, ao contrário do que se poderia pensar, o
71
O Princípio da Função Social do Contrato e o seu Controle Jurisdicional. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris, 2007, págs. 125/126.
72
Op. cit. págs. 86/87.
73
NALIN, Paulo. Op. cit., pág. 209.
74
NALIN, Paulo. Ibid., págs. 210/211.
41
encarecimento dos bens objeto de consumo em prejuízo dos clientes, inclusive com o efeito
positivo de estabilizar os preços dos produtos e serviços
75
.
Poder-se-ia falar também que a invocação de direitos fundamentais, ao invés de
enriquecer o debate em torno dos conflitos contratuais, teria o efeito totalmente inverso e
indesejado de abrir margem para o aumento descontrolado de recursos extraordinários
interpostos perante o Supremo Tribunal Federal, causando mais transtornos do que avanços à
perspectiva civil-constitucional.
Idêntica experiência foi detectada pelo Tribunal Constitucional Federal alemão,
como relata Dieter Grimm, tendo sido resolvido quando a Corte passou a entender que
somente no caso de lesão a direito constitucional específico é que caberia o exame
extraordinário
76
.
No entanto, essa problemática pode ser sensivelmente mitigada com a recente
introdução no sistema jurídico brasileiro do instituto da repercussão geral, pela EC 45/2004 e,
em especial, pela Lei 11.418/2006. A repercussão geral consiste em um mecanismo de
filtragem que autoriza a Suprema Corte a não conhecer do recurso extraordinário que não
ostentar relevância sob a ótica social, econômica, política e jurídica, mesmo que se trate de
matéria constitucional. Os requisitos basicamente são dois: relevância da matéria
constitucional no âmbito social, econômico, político e jurídico e transcendência (ultrapassem
os interesses subjetivos e meramente individuais das partes da causa).
Além disso, é fundamental, antes de tudo, definir o papel a ser exercido pela
Constituição, pois, a depender do que ela representa para a sociedade e, sobretudo, para as
relações entre os indivíduos, haverá uma maior ou menor receptividade de recursos pelo
75
Diez Años de la Ley Alemana de Condiciones Generales de los Contratos: retrospectiva y perspectivas.
Anuario de Derecho Civil. Tomo XVI. Fascículo III. Julio-Septiembre 1988. Madrid: Ministerio da Justicia, pág.
783.
76
Constituição e Política. Del Rey Internacional – 3. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, pág. 189.
42
Supremo Tribunal Federal, sobretudo quando tiver o propósito de servir à unidade e ao
aperfeiçoamento do direito ou particularmente significativa para seu desenvolvimento.
Pondera, contudo, Alexei Julio Estrada que a incidência dos direitos fundamentais
nos liames privados não busca tornar supérfluo o direito privado, nem mesmo admitir uma
eficácia geral, absoluta e indiscriminada dos princípios e valores constitucionais em todo o
nível e em todo o contexto do direito privado
77
. A Constituição não pretende substituir o
ordenamento jurídico privado vigente, senão antes confirmá-lo enquanto totalidade e em seus
fundamentos decisivos.
Roberto Rosas é enfático ao dizer que, longe de substituir a norma civil, a
Constituição a consolida, não sendo possível entender esta sem se socorrer àquela
78
.
Em outras palavras, a constitucionalização do direito privado permite que cada
âmbito do direito permaneça como tal e conserve as suas características próprias, devendo os
direitos fundamentais atuarem como princípios de interpretação de seus preceitos, recebendo
conformidade constitucional. O Código Civil perde seu caráter de supremo regulador das
relações interprivadas e cede seu lugar aos mandamentos constitucionais, entre os quais
ocupam um lugar privilegiado os direitos fundamentais
79
.
É certo que os direitos fundamentais das pessoas, pelo seu caráter geral e universal
alcançam toda a vida comunitária e isso representa um bom pretexto, para que se estenda o
prestígio e a especial proteção jurídica de que gozam a outras posições e situações cada vez
mais longínquas do seu núcleo tradicional de proteger o indivíduo em face do Estado
80
.
77
La Eficacia de los Derechos Fundamentales entre Particulares. Bogotá/CO: Universidad Externado da
Colombia, 2000, pág. 122.
78
O Novo Código Civil e a Constituição. In: SILVA MARTINS, Ives Gandra (Coord.). As Vertentes do Direito
Constitucional Contemporâneo. Estudos em homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Rio de Janeiro:
América Jurídica, 2002, pág. 455.
79
ESTRADA, Alexei Julio. Op. cit., pág. 73.
80
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976.
Edição. Coimbra: Almedina, 2004, pág. 81.
43
Este processo de alargamento, intensivo e extensivo, natural num ambiente de
socialização, porém, corre o risco de exceder-se e se transformar em um
“jusfundamentalismo”, dominado por uma preocupação maximalista de enquadramento e de
proteção, provocando o amolecimento e a descaracterização do conceito de direito
fundamental. Para evitar esse “dirigismo constitucional”, impõe-se que a função de todos os
preceitos relativos aos direitos fundamentais concentre-se na proteção e na garantia de
determinados bens jurídicos das pessoas ou de certo conteúdo de suas posições ou relações na
sociedade, considerados essenciais ou primários. Os preceitos que não atribuam posições
jurídicas subjetivas pertencem à matéria dos direitos fundamentais se contiverem normas
que se destinem diretamente e por via principal a garantir essas posições jurídicas
81
.
Lembra Daniel Sarmento que não se pode cair na tentação equivocada de, a pretexto
de estender a aplicação dos direitos fundamentais ao âmbito privado, terminar “asfixiando a
autonomia individual, criando uma atmosfera totalitária, quase orwelliana, na qual a
multiplicação ao infinito dos deveres constitucionais reduziria a bem pouco a liberdade
humana”. É certo que os direitos fundamentais devem irradiar efeitos sobre as relações
privadas, porém requer a observância de uma rie de especificidades a serem devidamente
consideradas no caso concreto
82
.
E isso se concretiza em meio a técnicas de ponderação de bens, valores e
princípios constitucionais, mediante a eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas
relações privadas.
1.5. Plano de trabalho
81
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Op. cit., págs. 82/83.
82
Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pág. 6.
44
O debate a respeito da eficácia dos direitos fundamentais nas relações contratuais
reclama uma análise dos vários elementos que podem servir de base para a elaboração de uma
teoria contratual diferenciada e mais adaptada a lidar com contratos que tenham como objeto
direitos ou bens constitucionalmente protegidos.
Este trabalho, nesta esteira, que iniciou o primeiro capítulo com várias
problemáticas que envolvem o tema, será dividido nos cinco capítulos seguintes, nos quais
hão de ser abordadas as premissas e os pressupostos teóricos que formaram a teoria e os
princípios mais próximos de uma doutrina contratual diferenciada no Estado pós-social,
marcado pela globalização e pelo neoliberalismo.
No segundo capítulo, o trabalho procura dar ênfase a variados vetores que
estruturam, jurídica e constitucionalmente, a atividade econômica da iniciativa privada,
partindo da ótica da unidade e do caráter sistêmico da ordem jurídica para o exame de todo o
direito privado, além de se debruçar sobre a natureza dos princípios constitucionais afetos,
direta ou indiretamente, à atividade negocial, que majoritariamente caracterizam os direitos
fundamentais nas relações contratuais. Além disso, ainda neste capítulo, um dos principais
elementos que embasam esta dissertação serão analisados no tópico que trata dos direitos ou
bens constitucionalmente protegidos e a possibilidade de ceder frente a outros, através da
ponderação entre eles.
Em seguida, no terceiro capítulo, serão enfrentados os aspectos gerais que circundam
os direitos fundamentais, desde o estudo da dimensão subjetiva que permeou o limiar do
constitucionalismo moderno, passando pela dimensão objetiva até desaguar na discussão
acerca da possibilidade de incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas,
inclusive, com a análise das teorias que tratam do grau e da intensidade da eficácia. E, ao
45
final, propõe-se um correto equacionamento entre as teorias e adoção de uma postura mais
moderada e variável a depender das particularidades do caso concreto.
O quarto capítulo busca apreciar desde a concepção clássica do contrato, com início
na época romana, analisando a influência do direito canônico, até a época do Estado liberal e
do fenômeno do codicismo, que proporcionou a definição de determinadas características e
princípios que ainda, na atualidade, em grande parte, orientam a doutrina contratual.
o quinto capítulo aborda a visão socializante da teoria contratual, expondo os
motivos que levaram a crise da teoria liberal dos contratos e o surgimento do dirigismo
contratual, a funcionalização dos institutos de direito privado em prol dos interesses da
coletividade, culminando com a consolidação da concepção social do contrato. À semelhança
da ótica liberal dos contratos, a concepção social, ao se fundar em outras características,
instituiu novos princípios, aprimorando aqueles clássicos, no intuito de eliminar as
desigualdades econômico-sociais vividas pela sociedade.
E, por fim, no sexto capítulo, para encerrar o trabalho, rios exemplos, inclusive
extraídos da jurisprudência pátria, são ostentados para demonstrar a insuficiência da teoria
socializante dos contratos, quando se lida com direitos ou bens constitucionalmente
protegidos, ainda que esteja apoiada em cláusulas gerais e princípios do Código Civil e do
Código de Defesa do Consumidor. Por isso, sugere-se, por derradeiro, a adoção da teoria dos
deveres de proteção incidente sobre os direitos e os bens constitucionalmente protegidos nos
contratos e, conseqüentemente, a aceitação de novos princípios que decorrem da eficácia dos
direitos fundamentais nas relações interprivadas, a fim de que viabilizem, no plano
constitucional, a decisão judicial resultante da ponderação entre os interesses em jogo.
46
2. ASPECTOS JURÍDICOS E CONSTITUCIONAIS DA ATIVIDADE ECONÔMICA
2.1. A unidade e a visão sistêmica da ordem jurídica
A atividade econômica deve pressupor uma análise jurídica e constitucional que a
compreenda num contexto marcado pelo fenômeno da interpretação unitária e sistemática de
todas as normas e valores atinentes às relações negociais.
A unidade da ordem jurídica consiste na recondução dos valores singulares aos
valores fundamentais mais profundos, até que se chegue aos princípios gerais que a
fundamentam. assim podem os valores singulares libertar-se do seu isolamento aparente e
reconduzir-se à procurada conexão “orgânica” de toda a ordem jurídica. O sistema passa,
então, a ser uma ordem axiológica ou teleológica de princípios gerais de direito
83
.
Os conceitos não se mostram adequados a propiciar a adequação valorativa e a
unidade interior do sistema jurídico. Isto porque, ainda que estejam bem construídos, os
conceitos contêm valorações fechadas e estáticas, enquanto os princípios são abertos e
dinâmicos. E, por incrível que pareça, a valoração apresenta-se mais imediata e segura no
princípio do que no conceito de determinado instituto jurídico
84
.
A abertura do sistema significa a incompletude e a provisoriedade do conhecimento
científico. De fato, o jurista, como qualquer cientista, deve estar sempre preparado para pôr
em causa o sistema até então elaborado e para o alargar ou modificar, com base numa melhor
consideração. Cada sistema científico é, assim, apenas um projeto de sistema, que exprime o
estado dos conhecimentos do seu tempo e, por isso mesmo, não se afigura definitivo nem
83
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Edição.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, págs. 76/78.
84
CANARIS, Claus-Wilhelm. Ibid., pág. 83.
47
“fechado”. Em conseqüência, nunca pode ser tarefa do sistema fixar a ciência ou o
desenvolvimento do direito num determinado estado, mas antes exprimir o quadro geral de
todos os conhecimentos do tempo, garantindo recíproca concatenação entre si
85
.
Hoje, princípios novos e diferentes dos existentes ainda poucas décadas, podem
ter validade e ser constitutivos para o sistema. Segue-se, daí, finalmente, que o sistema, como
unidade de sentido, compartilha de uma ordem jurídica concreta no seu modo de ser, não
sendo estático, mas dinâmico, por assumir a estrutura da historicidade
86
.
Especialmente com a queda do império do racionalismo que predominou no século
XIX e em parte do século XX, e com o advento dos paradigmas da complexidade, é cada vez
mais convidativo que o direito seja visto como um sistema geneticamente aberto e, pois, como
potencialmente contraditório, normativa e axiologicamente. A abertura supõe a preexistência
latente de soluções admissíveis para as inevitáveis lacunas e antinomias. Decerto, não se está
pensando, neste passo, apenas na abertura patrocinada pelas cláusulas gerais, senão que,
sobretudo, na abertura de natureza epistemológica, derivada da aludida indeterminação,
intencional ou não, dos enunciados semânticos em matéria jurídica
87
.
Um sistema que funciona como ordem axiológica ou teleológica, lastreado nas idéias
de adequação valorativa e de unidade, proporciona aos princípios um sentido resultante da
combinação complementar ou da restrição recíproca, possuindo as seguintes vantagens: a)
traduz coerência valorativa, impedindo abordagem meramente formal; b) evita a crença
exacerbada na completude fechada e autosuficiente do sistema; c) resguarda o papel da
interpretação sistemática; e d) permite ver o papel decisivo da interpretação ponderada, em
85
CANARIS, Claus-Wilhelm. Ibid., pág. 106.
86
CANARIS, Claus-Wilhelm. Ibid., pág. 108.
87
FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito. 4ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2004, págs. 48/50.
48
virtude do manejo concertado de princípios no bojo do sistema jurídico, afastando, entre
outros, o mito da excessiva e imoderada autonomia do texto
88
.
Todas as frações do sistema guardam conexão entre si, dresultando que qualquer
interpretação comete, direta ou indiretamente, uma aplicação de princípio, de regras e de
valores componentes da totalidade do direito. Cada preceito deve ser visto como parte viva do
todo. Ao hierarquizar prudencialmente princípios, regras e valores, a interpretação tópico-
sistemática opera as escalonando, renovando os seus significados, e, quando configurada
qualquer antinomia lesiva ou para evitá-la, os princípios devem ocupar o lugar de diretrizes
harmonizadoras ou solucionadoras, situando-se na base e no ápice do sistema
89
.
O sistema, segundo o pensamento de Juarez Freitas, requer constante e contínua
reelaboração, donde segue que a hierarquização não pode ser confundida com mero elemento
ou método interpretativo. Não se deve considerar a interpretação sistemática como simples
elemento da interpretação jurídica. É a interpretação sistemática, quando entendida em
profundidade, o processo hermenêutico por excelência, de tal maneira que ou se
compreendem os enunciados prescritivos no plexo dos demais enunciados, ou não se
alcançará compreendê-los sem perdas substanciais. Nesta linha de raciocínio, Juarez Freitas
chega a afirmar que a interpretação jurídica é sistemática ou não é interpretação
90
.
Os direitos fundamentais constituem um sistema ou uma ordem, que se estrutura com
base em valores. Os preceitos relativos aos direitos fundamentais, ao constituírem posições
jurídicas subjetivas, exprimem também o reconhecimento e a garantia de um conjunto de bens
ou valores que são caros à comunidade e que legitimam e dão sentido aos preceitos
constitucionais respectivos. São valores ou bens que a Constituição, nuns casos, recebe como
88
FREITAS, Juarez. Ibid., págs. 53/54.
89
FREITAS, Juarez. Ibid., pág. 70.
90
FREITAS, Juarez. Op. cit., pág. 75.
49
dados irrecusáveis da cultura universal ou nacional, noutros casos de algum modo cria,
procurando interpretar o sentimento coletivo da época na determinação de um projeto de vida
em comum, havendo entre eles uma unidade que dê coerência e sentido a essa cultura
constitucional
91
.
Ingo Wolfgang Sarlet, inclusive, sustenta que o conceito material aberto dos direitos
fundamentais cristalizado no art. 5º, § 2º, do Carta Republicana de 1988
92
, conduz à ilação de
que existem outros direitos fundamentais positivados em outras partes do texto constitucional
e até mesmo em tratados internacionais, ou ainda considerados implícitos ou não-escritos
93
, o
que termina por formatar no cenário da ordem constitucional um sistema jusfundamental.
Esse sistema dos direitos fundamentais, arremata Sarlet, advém da consagração do princípio
da aplicabilidade imediata (art. 5º, § 1º, CF/88) e da proteção existente no art. 60, § 4º, da
Constituição, contra a ação erosiva do legislador constituinte derivado
94
.
Por isso, José Carlos Vieira de Andrade defende que, por encerrarem princípios de
valor objetivo, os direitos fundamentais teriam de valer nas relações privadas, tanto mais
intensamente quanto mais íntima for a sua ligação ao valor da dignidade da pessoa humana. A
autonomia do direito privado não significa independência em relação à Constituição que tem
hoje como tarefa fundamental a garantia da unidade do ordenamento jurídico
95
.
Segundo Paulo Nalin, o sistema aberto não se esgota em si ou nos seus elementos
componentes, mas sim, na força jurisprudencial, depreendendo-se dele, sobretudo, uma
finalidade evidenciada pela funcionalização dos institutos jurídicos
96
.
91
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Op. cit., pág. 105.
92
Dispõe o § 2º, do art. 5º, da CF/88, que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte”.
93
A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 6ª Edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, pág. 85.
94
Ibid., pág. 87.
95
Ibid., pág. 269.
96
Op. cit., pág. 69.
50
Pietro Perlingieri ressalta que um enunciado lingüístico torna-se norma quando é lido
e confrontado com o inteiro ordenamento, em dialética com os fatos históricos concretos, com
as relações individuais e sociais. A função do sistema é, portanto, necessária não como
resultado estático -, mas como o instrumento e o fim dinamicamente conhecíveis, como uma
experiência cultural global, idôneo a transformar a lei em direito, o enunciado lingüístico em
norma. A unidade interna não é um dado contingente, mas, ao contrário, é essencial ao
ordenamento, sendo representado pelo complexo de relações e de ligações efetivas e
potenciais entre as normas singulares e entre os institutos. Não existem normas, portanto, que
não tenham como pressuposto o sistema e que ao mesmo tempo não concorram a formá-lo
97
.
Nesta linha, uma das tarefas da Constituição, como norma fundamental do Estado, é
ser parâmetro para a unidade formal e material da ordem jurídica. E nessa empreitada, os
direitos fundamentais exercem um papel decisivo como parte do núcleo material da
Constituição, no sentido de unificar os vários elementos normativos do ordenamento jurídico.
Em razão disso, qualquer pretensão de excluir as relações entre particulares norteadas pelo
direito privado da incidência dos direitos fundamentais atenta contra o postulado da unidade
material da ordem jurídica, patrocinada pela Constituição
98
.
A convivência de universos legislativos isolados, responsáveis pela disciplina
completa dos diversos setores da economia, sob a égide de princípios e valores díspares, não
raro antagônicos e conflitantes, além de politicamente indesejável, não parece possa ser
admitido diante da realidade constitucional, tendo em vista a existência de princípios e valores
bastante específicos no que concerne às relações de direito civil, particularmente quanto trata
97
Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2007,
págs. 78/80.
98
STEINMETZ, Wilson. Op. cit., pág. 104.
51
da propriedade, dos direitos da personalidade, da política nacional das relações de consumo,
da atividade econômica privada, da empresa e da família
99
.
Diante do novo texto constitucional, torna-se imperioso redesenhar o direito civil à
luz da nova Constituição. O reconhecimento da existência de universos legislativos setoriais
implica a busca pela unidade do sistema, deslocando para a tábua axiológica da Constituição
da República o ponto de referência antes localizado no Código Civil. Caso o Código Civil se
mostrasse incapaz até mesmo por sua posição hierárquica de informar, com princípios
estáveis, as regras contidas nos diversos estatutos, não parece haver dúvida de que o texto
constitucional poderia fazê-lo, que o constituinte, deliberadamente, através de princípios e
normas, interveio nas relações de direito privado, determinando, conseguintemente, os
critérios interpretativos de cada uma das leis especiais. Recuperar-se-ia, assim, o universo
desfeito, reunificando-se o sistema, a partir dos princípios constitucionais
100
.
Entretanto, antes de aprofundar no exame de que maneira a Constituição e a
legislação civil deve se relacionar na interpretação unificante e sistemática, convém averiguar
que papel exercem os valores, as regras e os princípios nesse processo.
2.2. Valores, princípios e regras jurídicas
Na teoria geral do direito, uma das principais distinções que se faz às categorias
jurídico-filosóficas diz respeito às diferenciações entre valores, princípios e regras. Essa
distinção se evidencia como uma dos primeiros passos essenciais à interpretação e à correlata
aplicação destas modalidades no plano da ciência jurídica, notadamente quando se trata de
99
TEPEDINO, Gustavo. Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil. In: Temas de
Direito Civil. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pág. 12.
100
TEPEDINO, Gustavo. Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil. In: Temas de
Direito Civil. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pág. 13.
52
direitos fundamentais ou bens constitucionalmente protegidos. Os direitos fundamentais, na
Constituição, podem assumir as vestes tanto de regras como de princípios jurídicos, e até
mesmo de valores.
Os valores não chegam a se constituir em categoria normativa de essência
deontológica, pois não emanam conseqüências jurídicas com força normativa tendentes a
regular condutas humanas, mas apenas projetam indicativos éticos no tecido social. Isso
porque, conforme pontifica Humberto Ávila, os valores dependem de uma avaliação
eminentemente subjetiva, envolvendo um problema de gosto. Alguns aceitam um valor,
enquanto outros o rejeitam. Uns consideram prioritário determinado valor, outros não o
reconhecem
101
.
Assim, enquanto os valores teriam conteúdo meramente axiológico, os princípios
têm cunho essencialmente deontológico, estabelecendo, ainda que com certo grau de
generalidade, conseqüências jurídico-normativas de proibição, permissão ou obrigação.
A distinção entre regras e princípios, por sua vez, como pontifica Robert Alexy,
constitui o marco da teoria normativo-material dos direitos fundamentais, sendo, portanto, um
dos pilares principais do edifício da doutrina dos direitos fundamentais
102
.
Mas, um dos primeiros teóricos do direito a utilizar um critério lógico para
diferenciar os princípios e as regras jurídicas foi Ronald Dworkin. Segundo Dworkin, tanto os
princípios e as regras sinalizam decisões particulares acerca da obrigação jurídica em
circunstâncias específicas, porém se distinguem quanto à natureza da orientação que
oferecem. As regras são aplicáveis pela fórmula do tudo-ou-nada, enquanto os princípios se
intercruzam entre si e valem uns mais que outros, a depender do peso ou da importância. Uma
101
Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. Edição. São Paulo: Malheiros,
2004, págs. 55/56.
102
Teoria de Los Derechos Fundamentales. El Derecho y la Justiça. Madrid: Centro de Estudos Políticos y
constitucionales, 2002, págs. 81/82.
53
regra, face a uma determinada circunstância fática, é válida, e neste caso a resposta que ela
fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão. Se
duas regras entram em conflito, uma delas não pode ser válida. O princípio, ao contrário, não
oferece mensuração exata, devendo ser sopesado com outro princípio, a fim de ser
identificado qual apresenta maior dimensão de peso. Na colisão entre princípios, um deles não
é considerado inválido, mas apenas inaplicável, momentaneamente, após constatar que o
outro ostenta maior peso ou importância na solução do caso concreto
103
.
Alexy é outro que, na cada de 80, apresentou uma teoria qualitativa que
diferenciava as regras dos princípios. Segundo entende, os princípios são normas jurídicas que
ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas
e fáticas existentes. São mandamentos de otimização e que se caracterizam pelo fato de que
podem ser cumpridos em diferentes graus. Ao passo que as regras são normas que podem
ser cumpridas ou não, por conter determinações no âmbito no fático e juridicamente possível.
Os princípios e as regras se diferenciam na forma como se soluciona o conflito. Um conflito
ocorrido no plano das regras pode ser solucionado, mediante a introdução de uma cláusula
de exceção ou, quando não é possível, de ser declarada uma delas inválida, através dos
critérios da “lex posterior derogat legi priori” e “lex specialis derogat legi generali
104
.
A colisão entre princípios deve ser solucionada de maneira totalmente distinta. Neste
caso, um dos princípios tem que ceder em face do outro, pelo critério da precedência. Não se
decreta a invalidade de um deles ou mesmo se introduz uma cláusula de exceção. Nos casos
concretos, os princípios têm diferentes pesos e prevalece, como resultado da colisão, aquele
103
Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, págs. 39 e 42/43.
104
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. El Derecho y la Justiça. Madrid: Centro de
Estudos Políticos y constitucionales, 2002, págs. 87/88.
54
que apresentar maior peso ou importância. Enquanto o conflito de regras se resolve pela
dimensão de validez da norma, a colisão entre princípios assenta na dimensão de peso
105
.
Jorge Reis Novais sustenta que, em geral, as normas constitucionais de direitos
fundamentais têm a natureza de princípios, consagrando garantias subordinadas a uma reserva
geral imanente de ponderação ou de necessidade de compatibilização com valores, bens ou
interesses igualmente dignos de proteção, o que, mesmo quando a Constituição não o prevê
expressamente, envolve, consoante as circunstâncias do caso concreto, a possibilidade de
ceder frente a outros
106
.
Contudo, esclarece Martin Borowski que os direitos fundamentais podem ser
consagrados mediante regras, porém não ficam sujeitos à ponderação. Ao passo que os
princípios, quando assumem o perfil dos direitos fundamentais, tornam-se limitáveis, através
da ponderação, de sorte que as normas que os restringem são restrições dos próprios
princípios
107
.
A solução da colisão travada entre os princípios leva em conta as circunstâncias do
caso, estabelecendo entre eles uma relação de precedência condicionada, que significa a
indicação das condições fáticas e jurídicas que proporcionam que um princípio prevaleça
sobre outro. Alteradas essas condições, nada impede que a questão da precedência possa ser
resolvida de maneira inversa, fazendo predominar agora o princípio que antes havia sido
mitigado em favor de outro
108
.
105
ALEXY, Robert. Ibid., pág. 89.
106
As Restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição. Coimbra:
Coimbra Editora, 2003, pág. 575.
107
La Restricción de los Derechos Fundamentales. Revista Española de Derecho Constitucional. Año 20. m.
59. Mayo-Agosto 2000, págs. 39/40.
108
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. El Derecho y la Justiça. Madrid: Centro de
Estudos Políticos y constitucionales, 2002, pág. 92.
55
Para resolver de forma racional o problema da colisão entre princípios, Alexy cria a
“Lei de Colisão”, que passa a se constituir em um dos fundamentos da sua teoria dos
princípios e se alicerça em duas premissas básicas: a) não existem relações absolutas de
precedência e; b) referem-se a ações e situações que não são quantificáveis a priori
109
.
O modelo dos princípios tem a vantagem de oferecer uma flexibilidade à
Constituição e, com isso, uma resposta intermediária à vinculação. Assim, as normas de
direitos fundamentais livram-se da questão de se valem ou não valem, de se são programáticas
ou não, e ganham em vinculatividade sem exigir o impossível. Em uma Constituição como a
brasileira, ganham em significado os direitos fundamentais não-clássicos (direitos sociais),
previstos no art. 6º, que prescrevem prestações positivas ao Estado, cuja execução depende,
em grande medida, da situação econômica que, de início, se apresenta como condição
fática
110
.
À diferença dos princípios que possuem natureza deontológica e normativa, os
valores, como dito, têm cunho axiológico, sendo fruto da própria experiência do homem e
da coletividade, através do tempo. E, por mais que apresentem imperatividade ética
111
a
conduzir o intérprete a definir determinadas conseqüências jurídicas, ainda assim não perdem
o seu grau de extremo relativismo e subjetivismo.
Os limites no processo de intelecção racional dos valores mostram-se visíveis. Ao
apreciar dado comportamento humano à luz dos valores da liberdade, da igualdade e da
justiça, por exemplo, no máximo, pode-se concluir ser livre ou não-livre, igual ou desigual,
justo ou injusto. Escassos elementos dispõem o intérprete para graduar os parâmetros e o
alcance normativos da liberdade, da igualdade e da justiça.
109
ALEXY, Robert. Ibid., págs. 94/95.
110
HECK, Luís Afonso. O Modelo das Regras e o Modelo dos Princípios na Colisão de Direitos Fundamentais.
Revista dos Tribunais. Ano 89. Nº 781. Novembro de 2000, pág. 77.
111
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2002, págs. 208/209.
56
Acresça-se a isso a circunstância de que a interpretação de valores como liberdade,
igualdade e justiça, pressupõe desfilar razões igualmente axiológicas, que facilmente podem
justificar certo grau de subjetivismo e preferências pessoais difíceis de depurar no discurso
jurídico. A depender da conveniência do julgador, a amplitude dada ao valor da liberdade, da
igualdade ou da justiça, poderia resolver qualquer complexidade jurídica, sem necessidade de
auxílio normativo de qualquer natureza. O valor representaria não apenas as diretrizes
políticas e éticas vocacionadas a oxigenar o ordenamento jurídico, porém assumiria contornos
deônticos e criaria a linguagem normativa pela voz construtivista do intérprete.
Na interpretação axiológica, fica a cargo do intérprete edificar os parâmetros e o
alcance normativos dos valores em cada caso concreto, praticamente decidindo o teor e a
extensão dos direitos fundamentais, sem qualquer apego ou compromisso à letra
constitucional.
Por causa disso, Luis M. Cruz, inspirado em Böckenförde, ostenta três objeções à
fundamentação axiológica dos direitos fundamentais: a) o raciocínio valorativo serve somente
como ação individual ético-moral no marco de uma ordem jurídica (diretriz ou orientação); b)
carecem de base racional e discursiva para ser objeto de debate, imprescindível à
fundamentação jurídica; e, c) no discurso prático-geral, a invocação de valores, em face da
ausência de uma fundamentação racional dos valores, termina por admitir, sem prévia
delimitação do âmbito normativo, na interpretação, aplicação e desenvolvimento do Direito,
as opiniões e idéias subjetivas e incontroláveis do juiz e do teórico do Direito, além dos
valores e valorações atualmente dominantes na sociedade
112
.
De fato, a dificuldade de estabelecer mínimo alicerce racional ao discurso dos
direitos fundamentais, a ponto da concreção dos valores depender integralmente do trabalho
112
La Constitución como Orden de Valores - Problemas jurídicos y políticos: Um estudio sobre los Orígenes del
neoconstitucionalismo. Granada: Editorial Comares, 2005, págs. 69/70.
57
do intérprete, denota a fragilidade da teoria axiológica na interpretação, por dispensar a
utilização de referenciais de texto insertos na própria Constituição a orientar o processo de
concretização da norma.
Os valores manifestam intuições e sentimentos experimentados na vivência social,
não passando, contudo, de simples vetor-guia da ação moral e ética do indivíduo. O impulso
normativo que os valores revelam convocam o indivíduo a seguir o padrão ético por eles
assinalados, entretanto, não fornecem subsídios racionais mas apenas emocionais à
formação da rede discursiva das razões que vivificam os direitos fundamentais. Sobram
sentimentos e opiniões e faltam razões de cunho lingüístico.
A interpretação, tendo como premissa os princípios, assegura maior solidez
discursiva na concretude dos direitos fundamentais, pois reduzem o campo de abstração antes
verificado no universo axiológico e equipam o aplicador da norma com parâmetros e
referenciais deônticos existentes no texto constitucional e no âmbito normativo do próprio
postulado fundamental. Os princípios detêm a vantagem de apontar a conseqüência jurídica,
ainda que em grau mais generalista do que as regras, fincando os mínimos pilares que possam
sustentar o edifício argumentativo dos direitos fundamentais.
Robert Alexy, em que pese não negar a possibilidade de argumentação jurídica
fundado no modelo axiológico, prefere realçar o modelo dos princípios, em razão de expressar
claramente o caráter do dever ser e propiciar, em menor medida que o dos valores, menos
falsas interpretações
113
.
O princípio, por mais que se origine do valor e contribua para sedimentá-lo, encerra a
direção da conseqüência jurídica, constituindo-se em ponto de interseção entre os valores
113
Teoria de Los Derechos Fundamentales. El Derecho y la Justiça. Madrid: Centro de Estudos Políticos y
constitucionales, 2002, pág. 147.
58
difundidos na ordem jurídica e as regras jurídicas
114
, o que permite maior poder de
concretização dos direitos fundamentais, mediante o discurso argumentativo, embora não se
possa afastar a atuação dos valores na renovação dos princípios e das regras, como forma de
atualização do direito na sociedade.
Daniel Sarmento argumenta que existe a necessidade indeclinável de que a
Constituição empregue em seu texto as regras e os princípios. Os princípios têm um papel
formidável conferindo maior flexibilidade à Constituição, facilitando a adaptação às
mudanças que ocorrem na sociedade. E, por estarem mais próximos dos valores, aproximam a
Constituição dos princípios éticos e morais substantivos
115
.
No entanto, tempera Daniel Sarmento que, embora tenha aperfeiçoado o
ordenamento jurídico brasileiro, esta nova visão sobre os princípios não pode cair no campo
do decisionismo e do “oba-oba”. É muito comum juízes, deslumbrados diante dos princípios,
e da possibilidade de, através deles, buscarem a justiça ou o que entendem por justiça -,
passarem a negligenciar do seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta
“euforia” com os princípios abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um
decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com os seus jargões
grandiloqüentes e com a sua retórica inflamada, mas sempre um decisionismo. Os princípios
114
Acerca desse ponto, lapidar é o magistério de Claus-Wilhelm Canaris, quando profetiza que: “a passagem do
valor para o princípio é extraordinariamente fluida; poder-se-ia dizer, quando se quisesse introduzir uma
diferenciação de algum modo praticável, que o princípio está já num grau de concretização maior do que o valor:
ao contrário deste, ele compreende a bipartição, característica da proposição de Direito em previsão e
conseqüência jurídica. Assim, por exemplo, por detrás do princípio da auto-determinação negocial, está o valor
da liberdade; mas enquanto este por si, ainda não compreende qualquer indicação sobre as conseqüências
jurídicas daí derivadas, aquele exprime algo de relativamente concreto, e designadamente que a proteção da
liberdade é garantida através da legitimidade, conferida a cada um, para a regulação autônoma e privada das suas
relações com os outros. O princípio ocupa pois, justamente, o ponto intermédio entre o valor, por um lado, e o
conceito, por outro; ele excede aquele por estar suficientemente determinado para compreender uma indicação
sobre as conseqüências jurídicas e, com isso, para possuir uma configuração especificamente jurídica e
ultrapassa este por ainda não estar suficientemente determinado para esconder a valoração (Pensamento
Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. 3ª Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2002, págs. 86/87).
115
Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pág. 87.
59
constitucionais, neste quadro, converteram-se em verdadeiras ‘varinhas de condão’: com eles,
o julgador de plantão consegue fazer quase tudo o que quiser. Esta prática é profundamente
danosa a valores extremamente caros ao Estado Democrático de Direito, dentre eles a
democracia, a separação dos poderes e a segurança jurídica
116
.
Em tom igual moderado, Lafayete Josué Petter considera que é na principiologia
constitucional que se haverá de encontrar o fundamento e legitimidade da aplicação das
demais normas jurídicas, servindo de referencial para toda a hermenêutica do ordenamento
jurídico. Mas, se tais dispositivos forem excessivamente idealistas, serão utópicos e, por outro
lado, se ficarem demasiadamente realistas, serão inócuos. Por isso, acertada a postura de
Petter quando diz que uma Constituição é o delicado ponto de encontro entre o real e o ideal
de uma sociedade
117
.
Mas este temor, para Martin Borowski, é infundado, pois, sendo os princípios que
veiculam os direitos fundamentais normas jurídicas, todos os critérios de validez previstos no
ordenamento jurídico a elas inerentes são exigidos, o que significa dizer que a aplicação deve
ser resultado de um procedimento metódico estrito
118
.
Com efeito, não se pode cair na tentação de atribuir sempre aos direitos fundamentais
a natureza de princípios, no entanto, não se nega que vários deles ou mesmo a grande
maioria deles encerram, estruturalmente, princípios constitucionais, inclusive ínsitos à
atividade negocial de particulares.
116
Ubiqüidade Constitucional: Os Dois Lados da Moeda. Revista de Direito do Estado. Ano 1. Nº 2. Abril/junho
de 2006, págs. 113/117.
117
Princípios Constitucionais da Ordem Econômica: o significado e o alcance do art. 170 da Constituição
Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, pág. 187.
118
Op. cit., págs. 44/45.
60
Além dos valores, regras e princípios, ainda existe uma outra categoria jurídica que
tem recebido grande destaque no tráfico jurídico-privado, sobretudo na concepção social do
contrato.
2.3. Cláusulas gerais
Nas relações negociais inspiradas no pensamento liberal racionalista, a necessidade
de garantir segurança jurídica redundou na consolidação da técnica legislativa que se fundava
na precisão, na clareza e na univocidade das expressões jurídicas. No entanto, esse cenário
modificou-se sensivelmente em razão das freqüentes injustiças e desequilíbrios ocorridos nas
relações contratuais, daí se fortalecendo, na seara da revisão judicial, a figura da cláusula
geral.
O conceito de cláusula geral, como bem delineia Karl Engisch, contrapõe-se ao
esquema gido e casuístico de hipóteses legais, embora corresponda a uma hipótese legal,
mas que apresenta grande generalidade, capaz de abranger todo um domínio de casos a um
determinado tratamento jurídico específico
119
.
Segundo Judith Martins-Costa, as cláusulas gerais são dotadas de grande abertura
semântica, que têm o objetivo de fornecer ao juiz critérios aplicativos determináveis ou em
outros espaços do sistema ou por meio de variáveis tipologias sociais, dos usos e costumes
objetivamente vigorantes em determinada ambiência social. Com isso, é possível resolver, em
uma mesma hipótese de cláusula geral, uma ampla variedade de casos cujas características
específicas serão formadas por via jurisprudencial, e não legal. A cláusula geral constitui uma
disposição normativa que utiliza, no seu enunciado, uma linguagem de tessitura
119
Introdução ao Pensamento Jurídico. 9ª Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, págs. 228/229.
61
intencionalmente “aberta”, “fluida” ou “vaga”, caracterizando-se pela ampla extensão do seu
campo semântico
120
.
Tudo isso facilita o trabalho do juiz, que pode, à vista dos casos concretos, criar,
complementar ou desenvolver normas jurídicas destinadas ao caso concreto. Sem falar que as
cláusulas gerais viabilizam a integração inter-sistemática, facilitando a migração de conceitos
e valores entre o Código, a Constituição e as leis especiais. É que, em razão da potencial
variabilidade do seu significado, desencadeia-se permanente e dialético fluir de princípios e
conceitos entre esses corpos normativos, evitando não a danosa construção de paredes
internas no sistema, considerado em sua globalidade, mas também que a eficácia da
Constituição no direito privado não fique na dependência da decisão do legislador do dia. A
concreção das cláusulas gerais insertas no Código Civil com base na jurisprudência
constitucional acerca dos direitos fundamentais evita os malefícios da inflação legislativa, de
modo que ao surgimento de cada problema novo não deva, necessariamente, corresponder à
nova emissão legislativa
121
.
O ponto-chave das cláusulas gerais descansa no campo da técnica legislativa, na
medida em que, dada à sua generalidade, é possível sujeitar a uma conseqüência jurídica um
vasto grupo de situações fáticas. A técnica casuística das hipóteses legais apenas resolve,
fragmentária e provisoriamente, as problemáticas jurídicas, daí a importância fundamental das
cláusulas gerais
122
.
De fato, como esmiúça Ruy Rosado de Aguiar Júnior, as cláusulas gerais adotam
técnica diversa do processo de subsunção da regra à conduta fática, permitindo que o juiz, na
120
MARTINS-COSTA, Judith. O Direito Privado como um “sistema em construção”: As cláusulas gerais no
Projeto do Código Civil brasileiro. Revista de Informação Legislativa. Ano 35. Nº 139. Julho/setembro de 1998,
pág. 8.
121
MARTINS-COSTA, Judith. Ibid., pág. 11.
122
ENGISCH, Karl. Ibid., págs. 233/234.
62
solução do caso concreto, estabeleça, de acordo com o princípio que as encerra, o
comportamento que deveria ter sido adotado na hipótese
123
. Em função da regra que cria para
a situação particular, o juiz avalia se o dito comportamento encontra-se em harmonia com tal
norma de dever
124
.
Dentre as vantagens deste modelo de técnica legislativa, Paulo Luiz Neto Lôbo
ilustra que através das cláusulas gerais, o direito fica mais próximo da realidade social,
captando os valores prevalecentes por meio da mediação concretizadora do juiz. Com isso,
também se assegura uma permanente atualização do sistema positivo romano germânico,
sobretudo nos países onde a construção jurisprudencial tem acompanhado a evolução sócio-
jurídica
125
.
Assim, diante do relevo que os meios de produção econômicos provocam na
formação da sociedade e do Estado, várias constituições contemporâneas no palmilhar do
Estado pós-social, dentre elas a Constituição de 1988, consagraram inúmeros princípios que
guardam sintonia com a atividade negocial, em especial a partir de uma ótica mais
existencialista do que patrimonialista.
2.4. Princípios constitucionais ligados à atividade negocial
2.4.1. Princípio da segurança jurídica
123
As Obrigações e os Contratos. Revista do CEJ/Conselho da Justiça Federal. Centro de Estudos Judiciários. N.
1. Brasília: CJF, 1997, pág. 33.
124
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. O Novo Código Civil e o Código do Consumidor. Revista da Escola da
Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Vol. 6. Nº 24. Rio de Janeiro: EMERJ, 2003, pág. 18.
125
Condições Gerais dos Contratos e Cláusulas Abusivas. São Paulo: Saraiva, 1991, pág. 143.
63
Talvez um dos primeiros princípios relacionados à atividade negocial que vem logo à
mente é o da segurança, devido à idéia ainda muito arraigada de que o negócio jurídico, para
melhor se desenvolver, deve primar sempre pela certeza e calculabilidade das normas e
decisões. A segurança exige continuidade do direito e dos efeitos jurídicos decorrentes do
negócio. Qualquer interrupção pode comprometer seriamente a estabilidade nesta relação
jurídica.
A segurança é um valor necessário ao homem para conduzir, planificar e conformar,
de forma autônoma e responsável, a sua própria vida, constituindo-se, portanto, em fator que
integra a noção de Estado de direito. A segurança jurídica, por sua vez, mantém íntima
conexão com a garantia da estabilidade das relações jurídicas e com a preservação da
orientação e da realização do direito
126
. É por esta razão que se pode afirmar que a segurança
jurídica deriva diretamente do princípio do Estado de direito, que se encontra, na Carta
Política de 1988, no art. 1º, caput
127
.
A segurança jurídica, como bem acentua Canotilho, pressupõe a precisão ou a
determinabilidade dos atos normativos, o que significa dizer que os contornos lingüísticos das
cláusulas devem ser delineados em termos claros, compreensíveis e não contraditórios.
Inegavelmente, a determinabilidade, a clareza e a fiabilidade proporcionam segurança na
ordem jurídica e no Estado de direito
128
.
Para Ingo Wolfgang Sarlet, a estabilidade nas relações jurídicas constitui um valor
fundamental de todo e qualquer Estado que tenha a pretensão de merecer o título de Estado de
direito. Essa importância fez com que o princípio da segurança jurídica, ao menos desde a
126
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª Edição. Coimbra: Almedina,
2000, pág. 257.
127
O art. 1º, caput, da CF, tem a seguinte dicção: “A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e
tem como fundamentos:” (grifos acrescidos).
128
Ibid., pág. 258.
64
Declaração dos Direitos Humanos de 1948, passasse a figurar expressamente em várias
constituições modernas, tal como a Constituição Federal de 1988, que o consagrou, no art. 5º,
a cláusula geral (caput)
129
e, implicitamente, em outros dispositivos nele elencados
130
.
Observa, no entanto, Sarlet, que a Constituição de 1988 não especificou o âmbito de
aplicação do direito à segurança jurídica. Dessa forma, a utilização da expressão genérica
segurança apenas o faz tornar uma espécie de cláusula geral, que abrange as hipóteses da
segurança jurídica, da segurança social, da segurança pública, da segurança pessoal, dentre
outras
131
.
No tocante à segurança jurídica, a Lei Fundamental de 1988, para Sarlet, trouxe, no
art. 5º, várias demonstrações inequívocas de seu prestígio na ordem jurídico-constitucional, a
começar pelo princípio da legalidade (inciso II), passando pela expressa proteção ao direito
adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada (XXXVI), pelos princípios da legalidade,
anterioridade e irretroatividade em matéria penal (incisos XXXIX e XL), além das garantias
do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (incisos LIV e LV)
132
.
Pondera, contudo, José Afonso da Silva que a segurança jurídica deve ser sopesada
com o valor do justo, uma vez que a Constituição colima assegurar a vigência e efetividade do
princípio da dignidade da pessoa humana. Conforme ensina, nem sempre direito seguro é
direito justo, daí porque se legitima o direito seguro apenas quando o seja para todos, de
129
O art. , caput, da CF, ostenta a redação a seguir: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:” (grifos acrescidos).
130
A Eficácia do Direito Fundamental à Segurança Jurídica: Dignidade da Pessoa Humana, Direitos
Fundamentais e Proibição de Retrocesso Social no Direito Constitucional Brasileiro. In: ROCHA, Cármen
Lúcia Antunes (Coord.). Constituição e Segurança Jurídica: Direito Adquirido, Ato Jurídico Perfeito e Coisa
Julgada. Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004, pág.
86.
131
Ibid., pág. 88.
132
Ibid., pág. 91.
65
forma igualitária e na mesma proporção de vida digna, e não quando se constituir em garantia
de tranqüilidade para as classes dominantes
133
.
De fato, a segurança jurídica não é o fim último do direito, porquanto vive em
constante tensão com outros princípios constitucionais que buscam o restabelecer o equilíbrio
e a justiça nas relações jurídicas, dentre eles a dignidade humana, a solidariedade e a
proibição de discriminação.
2.4.2. Princípio da dignidade da pessoa humana
Tanto no âmbito internacional como interno, a dignidade da pessoa humana revela
ser princípio que unifica e centraliza todo o sistema normativo, assumindo especial
prioridade, a orientar o constitucionalismo contemporâneo, nas esferas local e global,
dotando-lhe de especial racionalidade, unidade e sentido
134
.
O princípio da dignidade da pessoa humana está na base do estatuto jurídico dos
indivíduos e confere unidade de sentido ao conjunto dos preceitos relativos aos direitos
fundamentais. Estes preceitos não se justificam isoladamente pela proteção de bens jurídicos
avulsos, ganhando sentido enquanto ordem que manifesta o respeito pela unidade
existencial de sentido que o homem representa para além dos seus atos e atributos
135
.
A dignidade da pessoa humana projeta-se sobre as normas constitucionais e
infraconstitucionais, de forma a estabelecer conexões sistemáticas e teleológicas (elementos
de interpretação), veiculando normas de obrigação e normas de proibição em âmbitos
133
Constituição e Segurança Jurídica. In: ROCHA, Cármen Lúcia Antunes (Coord.). Constituição e Segurança
Jurídica: Direito Adquirido, Ato Jurídico Perfeito e Coisa Julgada. Estudos em homenagem a José Paulo
Sepúlveda Pertence. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004, págs. 16/17.
134
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, o Princípio da Dignidade Humana e a Constituição Brasileira de
1988. Revista dos Tribunais. Ano 94. Volume 833. Março de 2005, pág. 51.
135
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Op. cit., pág. 101.
66
concretos específicos, tal como se fosse norma constitucional de eficácia direta e imediata
sobre os casos concretos
136
.
Ressalta Ingo Von Münch, porém, que a interpretação acerca do que se entende por
dignidade da pessoa humana sempre pressupõe um estudo interdisciplinar de teologia,
filosofia e ciência política. E ainda acrescenta que uma das maiores dificuldades em sua
conceituação reside no caráter relativo e muitas vezes subjetivo do princípio. Isso porque,
em alguns casos, pode uma medida violar a dignidade de uma mulher, mas não a de um
homem; a dignidade de um idoso, mas não a de um jovem; a dignidade de um civil, mas não a
de um militar. Daí a necessidade de avaliar sempre as circunstâncias do caso concreto
137
.
Dentre os pensadores que trataram da dignidade, foi o filósofo Immanuel Kant quem
melhor conseguiu traçar os contornos de tal atributo que serviu de fator de diferenciação do
homem das demais coisas. Kant partiu da premissa de que o homem existe como fim em si
mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Os seres, ora
atuam como meios, se forem irracionais, sendo, por isso mesmo, denominados coisas, ora
consistem em fim em si mesmo, se forem racionais, denominando-se pessoas. As pessoas não
podem ser empregadas como simples meio, constituindo-se um fim tal que em seu lugar não
se pode pôr nenhum outro em seu lugar
138
.
Para Kant, tudo teria ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tivesse
preço, poderia ser substituída por algo equivalente. Mas se, por outro lado, a coisa estivesse
acima de todo preço e não admitisse qualquer equivalência, gozaria de dignidade. É certo que
as necessidades do homem teriam um preço comercial, porém, como a condição humana era
136
STEINMETZ, Wilson. Op. cit., págs. 112/113.
137
La Dignidad del Hombre en el Derecho Constitucional. Revista Española de Derecho Constitucional. Año 2.
Núm. 5. Mayo-agosto 1982, págs. 12 e 18/19.
138
Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. São Paulo: Martin Claret, 2005, págs. 58/59.
67
um fim em si mesma, isso não teria simplesmente valor relativo ou preço, mas um valor
interno, a dignidade
139
.
Kant lançou as bases para a construção da fórmula doutrinária da não-
instrumentalização do homem. Para esta teoria, o homem não poderia ser considerado mero
instrumento ou objeto de satisfação de interesses de terceiros.
Ingo Von Münch destaca que a fórmula do objeto só auxilia nos casos de violação da
dignidade humana e que isso ocorre quando a medida que a desencadeia constitui em
expressão de desapreço a pessoa
140
.
Maria Celina Bodin de Moraes sustenta, apoiada no pensamento kantiano, que, se a
humanidade das pessoas reside no fato de serem elas racionais, dotadas de livre arbítrio e de
capacidade para interagir com os outros e com a natureza, será desumano e, portanto,
contrário à dignidade humana, tudo aquilo que puder reduzir a pessoa à condição de objeto.
Essa idéia não-instrumentalista pode ser desdobrada em quatro premissas básicas que
caracterizam a pessoa humana: a) reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a
ele; b) merece o mesmo respeito à integridade psicofísica; c) é dotado de vontade livre e de
autodeterminação; e d) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não vir a
ser marginalizado
141
.
Nesta mesma trilha, um famoso caso, de certa forma, adotou na configuração dos
contornos da dignidade da pessoa humana a teoria da não-instrumentalização do homem.
Tratava-se da hipótese decidida pelo Conselho de Estado francês a respeito do atirador de
139
Op. cit., pág. 65. Gláucia Correa Retamozo Barcelos Alves ensina que a concepção kantiana “implica que a
dignidade de uma pessoa independe de seu status social, do cargo que ocupa, da sua popularidade, de sua
utilidade para os outros. Esses fatores podem mudar, mas a dignidade atribuída ao ser humano enquanto agente
moral não. [...] Ao afirmar que a dignidade não admite equivalente, Kant afirma também que aquele que é
dotado de dignidade não pode ser trocado ou sacrificado sob qualquer pretexto. O que tem dignidade não tem
preço e não pode ser mensurado” (Sobre a Dignidade da Pessoa. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A
Reconstrução do Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, págs. 221/222).
140
Op. cit., págs. 19/20.
141
Op. cit., págs. 16/17.
68
anões (arrêt du lanceur de nains). Em duas cidades francesas, surgiu um tipo de diversão
pública, que consistia em um jogo em que o público era convidado a atirar, utilizando-se de
um canhão de pressão, um anão à distância. Aquele que conseguisse arremessá-lo a uma
distância maior, ganhava o jogo. Duas prefeituras departamentais francesas baixaram decretos
proibindo a apresentação dos espetáculos, sob a alegação de proteção da dignidade da pessoa
do anão. No entanto, os promotores do jogo, em litisconsórcio com o anão que nele atuava,
buscaram, pela via do contencioso administrativo, a anulação dos decretos, com base na
proteção do livre exercício profissional. Derrotado na primeira instância, o anão recorreu ao
Conselho de Estado francês, argumentando que desempenhava aquela profissão porque
gostava do que fazia e sua atividade era um instrumento de socialização e, em última análise,
de concretização do direito ao livre desenvolvimento de sua personalidade. No entanto, o
Conselho de Estado confirmou a sentença de primeiro grau, assentando que o respeito da
dignidade humana não poderia ser renunciado em função de apreciações subjetivas que cada
um pudesse ter a seu próprio respeito, e, assim, ser objeto de comercialização
142
.
Na densificação do princípio da dignidade da pessoa humana, além do sentido
kantiano, Ignacio Gutiérrez Gutiérrez apresenta um elemento variável, que se desdobra em
cinco condições: a) a segurança na vida individual e social; b) a igualdade jurídica; 3) as
garantias da identidade e da integridade humanas, que assegure um espaço de
autodeterminação; d) a limitação do poder estatal; e e) a atenção à contingência corporal do
homem
143
.
142
CUNHA, Alexandre dos Santos. Dignidade da Pessoa Humana: Conceito Fundamental do Direito Civil. In:
MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A Reconstrução do Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002,
pág. 249/250.
143
Dignidad de la Persona y Derechos Fundamentales. Madrid: Marcial Pons Ediciones Jurídicas y Sociales,
2005, págs. 43/44.
69
Para Ingo Wolfgang Sarlet, a dignidade da pessoa humana, devido ao pluralismo e à
diversidade de valores na sociedade, deve ser definida em permanente processo de construção
e desenvolvimento. Isso porque, onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e
moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem
asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade, a autonomia e os
direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, que pode ocorrer
por variadas formas e matizes ao longo do tempo, não haverá espaço para a dignidade humana
e esta pessoa, por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças
144
.
Como conseqüência disso, constitui pressuposto essencial para o respeito da
dignidade da pessoa humana a garantia da isonomia de todos os seres humanos, não podendo,
nesta esteira, ser submetidos a tratamento discriminatório e arbitrário, a ofensas à integridade
física e emocional (psíquica) da pessoa, a situações que torne impossível à pessoa representar
a contingência de seu próprio corpo como momento de sua própria e autônoma
individualidade, à falta de uma moradia decente ou mesmo de um espaço físico adequado para
o exercício da atividade profissional e ao desrespeito aos direitos sociais, econômicos e
culturais
145
.
É por tais circunstâncias que Sarlet define a dignidade da pessoa humana como a
qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano de respeito e consideração por parte do
Estado e da comunidade, que lhe assegure um complexo de direitos e deveres fundamentais
contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, garantindo-lhe condições
144
Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Edição. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2002, pág. 41.
145
SARLET, Ingo Wolfgang. Ibid., págs. 91/94.
70
existenciais mínimas para uma vida saudável e a uma participação ativa e co-responsável nos
destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos
146
.
Wilson Steinmetz também elenca diversas conseqüências interpretativas que
decorrem da dignidade da pessoa humana, assim reproduzidas: a) respeito à pessoa como ser
autônomo, livre e valioso em si mesmo; b) o reconhecimento particularidades de cada pessoa
como ser único, singular e irrepetível; c) o reconhecimento de cada pessoa como uma
manifestação concreta da humanidade; e d) a criação de condições, oportunidades e
instrumentos para o livre desenvolvimento da pessoa
147
Ignacio Gutiérrez Gutiérrez sintetiza as principais conclusões encontradas pelo
Tribunal Constitucional espanhol, alicerçadas na fórmula da não-instrumentalização, como
resultado de seus julgamentos, nas seguintes linhas: a) a pessoa não pode ser
patrimonializada, pois é sujeito de direitos, e não objeto de contratos patrimoniais (STC
212/1996); b) o trabalhador não pode equiparado a “mero fator de produção” ou “mera força
de trabalho” (STC 192/2003); c) a pessoa não pode ser, enquanto tal, mero instrumento de
diversão ou entretenimento (STC 231/1988); d) a pessoa não deve ser convertida em mero
objeto nos casos de agressão ou abuso sexual (SSTC 53/1985 y 224/1999); e) a dignidade
impõe que a assunção de compromissos ou obrigações tenha em conta a vontade do sujeito
(STC 53/1985); e f) a dignidade também impõe que não seja sujeito tratado como mero objeto
dos procedimentos legais, quando estiver participando de processos judiciais, sobretudo
naqueles de natureza criminal (STC 91/2000)”
148
.
Gustavo Tepedino considera que a dignidade da pessoa humana é composta pelos
princípios da liberdade privada, da integridade psicofísica, da igualdade substancial (art. 3º,
146
Ibid., pág. 62.
147
Op. cit., pág. 116.
148
Op. cit., pág. 97.
71
III, CF) e da solidariedade social (art. 3º, I, CF), conferindo fundamento de legitimidade ao
valor social da livre iniciativa (art. 1º, IV, CF) e modelando a atividade econômica privada
(art. 170, CF) e, em última análise, os próprios princípios fundamentais do regime contratual
regulados pelo Código Civil
149
. Realmente, a dignidade humana tem íntima correlação com a
solidariedade, na medida em que ações solidárias em prol de um grupo ou de indivíduos
podem ter o condão de torná-los mais dotados de dignidade.
2.4.3. Princípio da solidariedade
O princípio da solidariedade encontra-se alicerçado na idéia de cooperação entre os
membros da sociedade. Essa premissa de cooperação, por seu turno, pressupõe que cada
participante pode razoavelmente aceitar e, às vezes, deveria aceitar, desde que todos os outros
aceitassem as regras e os procedimentos publicamente reconhecidos. Todo aquele que
cumprir sua parte, de acordo com o que as regras reconhecidas o exigem, deve-se beneficiar
da cooperação conforme um critério público e consensual especificado
150
.
Ronald Dworkin noticia que os filósofos vêm debatendo há muito tempo casos
hipotéticos que testam o vel de interesse devido por um membro de uma comunidade a
outro. Exemplifica Dworkin que, se um homem estiver se afogando e outro puder salvá-lo
com um risco insignificante para si mesmo, o primeiro tem um direito moral a ser salvo pelo
segundo. Em termos econômicos, poder-se-ia asseverar que, se a utilidade coletiva de ambos
149
Normas Constitucionais e Direito Civil na Construção Unitária do Ordenamento. In: SOUZA NETO,
Cláudio Pereira de, SARMENTO, Daniel (Coords.). A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e
Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pág. 317.
150
RAWLS, John. Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003, págs. 7/9.
72
for grandemente incrementada graças a um salvamento, o homem que está prestes a se afogar
tem um direito a este salvamento, e seu salvador tem o dever de salvá-lo
151
.
Karl-Otto Apel defende, ardorosamente, a necessidade de uma ética,
intersubjetivamente vinculatória, de responsabilidade solidária da humanidade, diante das
conseqüências de atividades e conflitos humanos, mormente em função do pavoroso aumento
do risco decorrente de todas as atividades e conflitos humanos, em decorrência do espantoso
potencial técnico da ciência
152
. Para Apel, o que na atual crise da civilização técnico-científica
seria exigido em medida planetária é muito mais do que uma ética das situações-limite
existenciais. Indubitavelmente se exigiria algo como uma ética de responsabilidade solidária
comum da humanidade, no sentido de uma intermediação comunicativa de interesses e
ponderação da situação
153
.
Sendo diametralmente oposto ao individualismo, Pedro Buck Avelino conceitua
solidariedade como o atuar humano, de origem no sentimento de semelhança, cuja finalidade
principal é possibilitar a vida em sociedade, mediante o respeito aos terceiros, tratando-os
como se familiares o fossem
154
.
Maria Celina Bodin de Moraes entende que a solidariedade deriva da consciência
racional dos interesses em comum, instituindo, para cada membro da sociedade, a obrigação
moral de “não fazer aos outros o que não se deseja que lhe seja feito”. Esta regra não tem
conteúdo material, enunciando apenas uma forma, a forma da reciprocidade, indicativa de que
151
Op. cit., pág. 155.
152
Estudos da Moral Moderna. Petrópolis/RJ: Vozes, 1994, pág. 164/165.
153
Op. cit., pág. 173.
154
Princípio da Solidariedade: Imbricações Históricas e sua Inserção na Constituição de 1988. Revista de
Direito Constitucional e Internacional. Ano 13. Nº 53. Outubro-dezembro de 2005, pág. 250.
73
“cada um, seja o que for que possa querer, deve fazê-lo pondo-se de algum modo no lugar de
qualquer outro”
155
.
A solidariedade, na ótica de Cláudia Lima Marques, seria o vínculo recíproco em um
grupo, traduzido na consciência de pertencer ao mesmo fim, à mesma causa, ao mesmo
interesse, ao mesmo grupo, apesar da independência de cada um de seus participantes. Mas
também possui sentido moral, exigindo uma relação de responsabilidade, de apoio, de adesão
a um objetivo, plano ou interesse compartilhado. No meio caminho entre o interesse centrado
em si e o interesse centrado no outro está a solidariedade, com seu interesse voltado para o
grupo. Um dos ideais do direito civil que floresceu na Revolução Francesa era a fraternidade,
hoje é a solidariedade e a realização dos direitos fundamentais em pleno direito privado”
156
.
Ao estatuir como objetivo fundamental da República, no arts. 3º, inciso I, a
construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a Constituição de 1988 conformou, a um
só tempo, um modelo de mercado assentado, de um lado, na liberdade de iniciativa econômica
e, de outro, na garantia de existência digna, na defesa do consumidor e na redução das
desigualdades regionais e sociais, o que sedimenta a idéia primária de construir uma
sociedade baseada na solidariedade. A palavra “solidariedade” reflete categoria social que
exprime uma forma de conduta correspondente às exigências de convivência de toda e
qualquer comunidade que se queira como tal, implicando a superação de uma visão
meramente individualista do papel de cada um dos seus singulares membros e assim
configurando elemento de coesão da estrutura social
157
.
155
Op. cit., págs. 45/48.
156
MARQUES, Cláudia Lima. Solidariedade na Doença e na Morte: sobre a necessidade de ‘ações afirmativas’
em contratos de planos de saúde e de planos funerários frente ao consumidor idoso. In: SARLET, Ingo
Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2003, pág. 186.
157
MARTINS-COSTA, Judith. Mercado e Solidariedade Social entre Cosmos e Taxis: A Boa-fé nas Relações de
Consumo. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A Reconstrução do Direito Privado. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, págs. 620/621.
74
Também como decorrência da previsão encartada no art. 3º, inciso I, é possível
asseverar que a Constituição de 1988 consagrou, ainda que implicitamente, o princípio da
boa-fé. A obrigação de se comportar solidariamente na sociedade nada mais revela do que o
conteúdo material do princípio da boa-fé, sobretudo a de natureza objetiva.
A boa-exprime o valor da ética, da lealdade, da correção e da veracidade que se
espraia por todo o fenômeno contratual e repercute sobre todos os demais princípios,
repudiando a ênfase excessiva no individualismo e no voluntarismo jurídicos. Para Teresa
Negreiros, a boa-fé objetiva assenta suas bases na cláusula geral de tutela da pessoa humana e,
mais especificamente, no ditame constitucional que determina como objetivo fundamental a
construção de uma sociedade solidária, na qual o respeito pelo próximo seja elemento
essencial de toda e qualquer relação jurídica
158
.
A boa-fé é um modelo de comportamento timbrado pela honestidade, lealdade e
cooperação e, quando a Constituição, diz que fala em construir uma sociedade solidária finca
em solo firme aqueles valores basilares.
Para Álvaro Villaça Azevedo, o princípio da boa-fé, no tráfico jurídico-privado,
representa a essência e a presença ética dos negócios, sendo um estado de espírito que leva o
sujeito a celebrá-los em clima de aparente segurança
159
.
Já, segundo J. M. de Carvalho Santos, a boa-fé é um conceito ético-social extraído da
prática da vida, que possui as funções de sanear e suprir vícios, à luz da equidade e da
humanidade, de servir de critério de moralidade, exigindo lealdade na celebração de negócios
158
Op. cit., págs. 116/117.
159
O Novo Código Civil Brasileiro: Tramitação; Função Social do Contrato; Boa-fé Objetiva; Teoria da
Imprevisão e, em especial, Onerosidade Excessiva (Laesio Enormis). Revista Ltr. Vol. 67. 04. Abril/2003,
pág. 395.
75
jurídicos e no cumprimento das obrigações, e de ser utilizado como princípio interpretativo da
norma jurídica e da vontade das partes
160
.
A boa-fé é princípio normativo que se desenvolve por meio de cláusulas gerais,
substituindo o modelo de sistema fechado, próprio do positivismo científico e legalista, pelo
modelo da eticização das relações jurídicas
161
.
De acordo com a ensinança de Ludwig Enneccerus, a boa-fé proíbe que se cometa
abuso com pretensões jurídicas formal ou aparentemente infundadas, protegendo o devedor
contra exigências impertinentes, que choquem contra o direito e a equidade
162
.
Com efeito, é de reconhecer que o princípio da boa-fé funciona como o elo ou uma
ponte que liga o direito contratual aos princípios constitucionais a ele afetos.
2.4.4. Princípio da proibição de discriminação
No plano das relações negociais, o tipo de ameaça, lesão ou violação mais freqüente
é o que se relaciona com as discriminações, o tratamento desigual, o desfavorecimento
arbitrário, os privilégios injustificados, a perseguição ou o assédio em função de fatores
suspeitos, como a raça, o sexo, a orientação sexual, o território de origem, a ideologia ou a
religião. Assim, a zona mais vitalmente carecida de proteção nas relações negociais é a que
respeita à igualdade
163
.
160
Boa-fé. Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro. Vol. VI. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1961, pág. 66
e 68.
161
AMARAL, Francisco. A Boa-fé no Processo Romano. Revista de Direito Civil. Nº 78. Outubro/dezembro de
1996. São Paulo: Revista dos Tribunais, pág. 196.
162
Tratado de Derecho Civil: Derecho de Obligaciones. Traducción de la 35ª Edición Alemana por Blas Pérez
González y José Alguer. Vol. I. Barcelona: Bosch, 1954, pág. 19.
163
NOVAIS, Jorge Reis. Os Direitos Fundamentais nas Relações Jurídicas entre Particulares. In: SOUZA
NETO, Cláudio Pereira de, SARMENTO, Daniel (Coords.). Constitucionalização do Direito: Fundamentos
Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pág. 374.
76
No entanto, não é possível que o princípio da igualdade se realize em todo o seu
alcance nestas relações privadas. Isso não significa que o princípio da igualdade
constitucional não possa ter relevância no direito civil, mas, antes, implica, simplesmente, que
o postulado da igualdade previsto na Constituição não pode simplesmente ser transplantado
no direito civil, sem ser harmonizado e sem que se torne compatível com o inteiro sistema
normativo constitucional
164
.
Jorge Reis Novais justifica essa postura moderada em relação ao princípio da
igualdade, diferentemente do que ocorre nas relações jurídicas entre indivíduo e o Estado. Isso
porque simples e meras razões de bom senso mostram à evidência que, na vida privada, os
particulares não estão sujeitos à observância direta do princípio constitucional da igualdade.
Do contrário, ter-se-ia que permitir o absurdo de alguém poder exigir judicialmente o direito a
namorar ou a constituir família com outro alguém, pelo fato de ter sido preterido por razões,
alegadas pela outra parte, de estética, de ideologia, de religião ou de preferência clubística
165
.
José Carlos Vieira de Andrade acentua que o princípio da igualdade não é aplicável
nas relações negociais privadas, enquanto proibição do arbítrio ou imperativo de
racionalidade de atuação. O homem não é apenas um ser racional, nem é perfeito e a ética
jurídica não pode pretender que ele o seja. A liberdade do homem individual inclui
necessariamente uma margem de arbítrio, é também uma liberdade emocional. Em vez de se
pretender impor rigidamente a cada indivíduo que, nas relações com os seus semelhantes, os
trate com estrita igualdade, fundamentando sempre juridicamente os seus atos e não atuando
164
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Edição. Rio de
Janeiro: Renovar, 2007, pág. 49.
165
Op. cit., págs. 377/378.
77
senão com a certeza de poder justificar a sua atitude com um valor socialmente igual ou
maior, deve tolerar-se um certo espaço de espontaneidade e até de arbitrariedade
166
.
Estender, segundo pensa Vieira de Andrade, aos indivíduos a aplicação do princípio
constitucional da igualdade afigura-se, em princípio, impróprio, absurdo e insuportável. A
liberdade tem de prevalecer sobre a igualdade, constitui um limite imanente deste princípio.
Contudo, o princípio da igualdade terá de ser aplicado, mesmo entre iguais, enquanto
proibição de discriminações que atinjam intoleravelmente a dignidade humana dos
discriminados, máxime, que impliquem uma violação dos seus direitos de personalidade
167
.
Nesta esteira, arremata Vieira de Andrade que, se estiver em causa situações em que
certas pessoas coletivas, grupos ou indivíduos detenham uma posição de domínio econômico
ou social, por gozarem, por exemplo, de uma situação de monopólio, não deve permitir que
invoquem a liberdade negocial para escolher arbitrariamente a contraparte ou impor a
exclusão de terceiros. poderá valer a primazia do dever de respeito pela igualdade sobre a
liberdade. Note-se, enfim, que o princípio da igualdade enquanto proibição de discriminações
se refere a uma igualdade material e se dirige especialmente às atuações arbitrárias ou
injustificadas determinadas por diferenças como o sexo, a religião, as convicções políticas,
ect.
168
.
Para Juan María Bilbao Ubillos, a possibilidade de ponderação do princípio da
igualdade no contexto das relações negociais só cabe em determinadas ocasiões. A regra geral
é a liberdade negocial e, por conseguinte, a inoperância do princípio da igualdade. Nada
impede que um locador possa promover contra um inquilino uma ação de despejo para falta
de pagamento do aluguel, e não exercer esse direito na relação com outro inquilino, nas
166
Op. cit., págs. 276.
167
Ibid., págs. 277/278.
168
Ibid., págs. 279/280.
78
mesmas circunstâncias. Na imensa maioria dos casos, o particular não está submetido a uma
obrigação de tratar igualmente os particulares
169
.
Ubillos noticia um caso decidido, em 1987, pelo Tribunal Constitucional espanhol,
em que um vizinho, fundado no art. 14 da Constituição espanhola
170
, reclamava na justiça
igualdade de tratamento entre vizinhos de uma mesma comunidade. Entendeu a Corte
espanhola, no entanto, que, nas relações negociais entre particulares, a Constituição apenas
assegurava o direito ao particular de não ser discriminado por outro, por razões de
nascimento, raça, sexo, religião, opinião ou condição social
171
.
Iacyr de Aguilar Vieira assinala que, dentre as limitações à liberdade de contratar,
uma delas consiste na liberdade de escolher as partes com quem contratar, que se também
limitada principalmente pelos ditames constitucionais que protege os indivíduos contra as
práticas discriminatórias
172
.
Pela Constituição Federal de 1988, os particulares estão proibidos de praticar
tratamento discriminatório entre si, com base na cor, na idade, na religião, na raça, na origem,
no sexo e em quaisquer outros preconceitos contrários à dignidade da pessoa humana (art. 1º,
III e art. 3º, IV). Isso não significa, porém, que o princípio da igualdade não vincule os
particulares em suas relações jurídicas. Como bem esclarece Steinmetz, há situações nas quais
se exigem tratamento igual para os iguais e desigual para os desiguais, exemplificando
quando isso ocorre nos seguintes casos: a) nas hipóteses em que o particular detém posição
monopolista ou oligopolista ou forte poder social; b) quando se negociam bens e serviços
169
Op. cit., pág. 414.
170
O art. 14 da Constituição da Espanha tem a seguinte redação no original: “Los españoles son iguales ante la
ley, sin que pueda prevalecer discriminación alguna por razón de nacimiento, razá, sexo, religión, opinión o
cualquier otra condición o circunstancia personal o social”.
171
Op. cit., pág. 428.
172
A Autonomia da Vontade no Código Civil Brasileiro e no Código de Defesa do Consumidor. Revista dos
Tribunais. Ano 90. Nº 791. Setembro de 2001, pág. 61.
79
essenciais e de interesse público (ex: hospitais, farmácias, clínicas médicas para atendimento
de urgências, universidades, escolas e empresas de transporte coletivo) ou, por fim, c) quando
uma emissão pública e geral da vontade de contratar (ex: restaurantes, bares, confeitarias,
casas de espetáculo, hotéis ou pousadas)
173
.
Jesús Alfaro Aguila-Real aponta rias circunstâncias em que grande
probabilidade de que tais comportamentos atentem contra o princípio da proibição de
discriminação: a) ocorre ofensa ao princípio quando é negado ao sujeito afetado a contratação
por ser negro, mulher, homosexual ou outras formas de discriminação similares; b) quando se
baseiam em circunstâncias utilizadas historicamente para determinar o status jurídico da
pessoa, como, por exemplo, o sexo; c) quando a negativa de contratar ocorre mediante
discriminação lançada em público, pondo o sujeito atingido em situação vexatória perante os
demais; e d) mesmo quando existem cláusulas contratuais prevendo tratamentos
discriminatórios. Fora tais hipóteses, é plenamente lícito e constitucional a discriminação
efetuada por particulares em relação a outros igualmente particulares
174
.
Contudo, no exame do caso concreto, somente na ponderação dos bens em jogo é
que se concluirá pela violação ou não do princípio da proibição de discriminação em uma
relação negocial privada.
2.4.5. Princípios constitucionais da ordem econômica (art. 170 da CF)
173
Op. cit., págs. 260 e 263.
174
Autonomía Privada y Derechos Fundamentales. Anuario de Derecho Civil. Vol. 46. Nº 1. Madrid: Ministerio
da Justicia, 1993, págs. 118/120.
80
O art. 170 da Constituição Federal de 1988
175
traduz o modelo de ordem jurídico-
constitucional que procura harmonizar os interesses da atividade negocial privada, como a
livre iniciativa e a liberdade de contratar com os interesses da dignidade da pessoa humana, da
justiça social, da função social da propriedade, da defesa do consumidor, da redução das
desigualdades regionais e sociais.
Com efeito, uma interpretação atenta da Carta Política de 1988 permitirá que se
perceba a opção do constituinte originário por solução intermediária e compromissória entre o
individualismo e o coletivismo transpersonalista, que vislumbra na pessoa humana apenas
uma parte no todo social, concebendo a sociedade como um organismo superior a qualquer
dos membros que a compõem
176
.
O art. 170 da Constituição de ser lido no sentido de que a atividade econômica
deverá estar fundadas na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social
177
. Para Eros
Roberto Grau, a ordem econômica liberal é substituída pela ordem econômica
intervencionista
178
.
Eros Roberto Grau assinala que a ordem econômica na Constituição de 1988
contempla a economia de mercado, porém se distancia do modelo liberal puro e se ajusta à
ideologia neoliberal. Segundo ele, a Constituição repudia o dirigismo, porém acolhe o
175
Como se vê, reza o art. 170 da Constituição que: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça
social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da
propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive
mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de
elaboração e prestação; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX -
tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua
sede e administração no País”.
176
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pág.
117.
177
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. Edição. São Paulo: Malheiros, 2001,
pág. 51.
178
Ibid., pág. 57.
81
intervencionismo econômico, que não se faz contra o mercado, mas a seu favor. Admite que a
Constituição é capitalista, mas a condiciona ao interesse da justiça social e confere prioridade
aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado
179
.
Ana Prata, ao se referir à Constituição portuguesa de 1976, assevera que o texto
constitucional não se adstringe a definir regras de organização política, econômica e social
para a formação da coletividade, mas, antes, impõe um programa de transformação da
sociedade. A função normativa de qualquer texto constitucional implica alguma projeção
programática no futuro. Toda a sociedade está em constante mutação, e a adequação e
longevidade de um texto constitucional dependem, em grande medida, da sua capacidade de
definir o respectivo projeto como um projeto de transformação ou, ao menos, como um
projeto aberto à transformação
180
.
Como um dos fundamentos da ordem econômica, a livre iniciativa consiste no direito
que todos têm de se lançarem ao mercado de produção de bens e serviços por sua conta e
risco, fincando raízes nos direitos fundamentais, aos quais se faz ínsita uma especial e
dedicada proteção. Se é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão (CF, art. 5º,
XIII), esta liberdade compreende também a liberdade de se lançar na atividade econômica,
sendo então assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica (CF, art.
170, parágrafo único)
181
. Contudo, a livre iniciativa não se confunde com a livre concorrência,
que corresponde ao livre jogo das forças de mercado na disputa da clientela
182
.
O princípio da liberdade de iniciativa econômica constitui a marca e o aspecto
dinâmicos do modo de produção capitalista, correspondendo ao poder reconhecido aos
particulares de desenvolverem uma atividade econômica. É mesmo uma fonte axiológica de
179
A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 6ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2001, págs. 226/227.
180
A Tutela Constitucional da Autonomia Privada. Coimbra: Almedina, 1982, págs. 59/60.
181
PETTER, Lafayete Josué. Op. cit., págs. 161 e 163.
182
PETTER, Lafayete Josué. Ibid., págs. 221.
82
liberdade do particular perante o Estado e até perante os demais indivíduos, um atributo
essencial da pessoa humana em termos de realização direta de sua capacidade, suas
realizações e seu destino
183
.
Pontes de Miranda, ao comentar o dispositivo constitucional da Constituição
brasileira de 1967 (EC 1/69) que trata dos princípios da ordem econômica (art. 160)
184
,
considera a valorização do trabalho pressuposto da dignidade da pessoa humana, e, partindo
da idéia de os homens são desiguais, arremata que o objetivo de se valorizar o trabalho é
reduzir esta desigualdade
185
.
A liberdade de iniciativa econômica é mesmo substrato da realidade econômica da
empresa, a qual se tem projetado em diversos ângulos da normatividade jurídica e constitui
um dos suportes fundamentais do processo de desenvolvimento. Parece haver uma relação de
instrumentalidade entre iniciativa econômica e autonomia privada. Como visto, a essência da
autonomia privada repousa na atividade econômica da propriedade, consistindo as duas
condições, propriedade privada e livre iniciativa, as bases do sistema capitalista. O sistema
capitalista funda-se na liberdade da iniciativa econômica, e sua expressão no campo do direito
privado corresponde à autonomia privada, com a qual, porém, não se confunde
186
.
A iniciativa privada é conceito, por um lado, mais amplo que o da autonomia
privada, enquanto se realiza, além dos negócios jurídicos, também nos atos meramente
183
PETTER, Lafayete Josué. Ibid., pág. 166.
184
“Art. 160. A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social,
com base nos seguintes princípios:
I - liberdade de iniciativa;
II - valorização do trabalho como condição da dignidade humana;
III - função social da propriedade;
IV - harmonia e solidariedade entre as categorias sociais de produção;
V - repressão ao abuso do poder econômico, caracterizado pelo domínio dos mercados, a eliminação da
concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros; e
VI - expansão das oportunidades de emprêgo produtivo.”
185
Comentários à Constituição de 1967 (com a Emenda n. I, de 1969). Tomo VI. Edição. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1974, pág. 40.
186
PETTER, Lafayete Josué. Op. cit., pág. 168.
83
executivos ou em atividades materiais que não exprimem atuação da autonomia privada,
como poder normativo; por outro lado, é conceito mais restrito, porquanto existem negócios
jurídicos, e, portanto, atos de autonomia privada, que não entram no âmbito da atividade
empresarial. Qualquer que seja o entendimento sobre tais conceitos, é manifesta a relação
instrumental entre o princípio da liberdade de iniciativa econômica e o da autonomia privada,
mais explicitamente, da autonomia contratual, expressão jurídica da liberdade dos particulares
de organizarem a atividade produtiva, isto é, a liberdade dos particulares de decidir o que,
quanto, quando, como e onde produzir
187
.
O fim da ordem econômica é possibilitar a todos uma existência digna, conforme os
ditames da justiça social. Como a expressão existência digna remete ao princípio da dignidade
da pessoa humana, considerada, preponderantemente, na sua individualidade, a justiça social
diz respeito a uma espécie de dignidade coletiva. Não basta alguém possuir digna existência
se aquele que está ao lado não possui dignidade alguma. Por isso que a justiça social está
relacionada com a correção das grandes distorções que ocorrem numa sociedade, diminuindo
distâncias e diferenças entre as diversas classes que a constituem, favorecendo os mais
humildes
188
.
Friedrich Hayek explicita que o uso da expressão “justiça social” remota cerca de um
século. Em épocas mais antigas, era usada para descrever os esforços organizados para que
fossem observadas as regras de mera conduta individual. Todavia, atualmente, costuma ser
usada como o mesmo que justiça distributiva. Para ele, a idéia da justiça social torna-se uma
187
AMARAL, Francisco. A Liberdade de Iniciativa Econômica: Fundamento, natureza e garantia
constitucional. Revista de Informação Legislativa. Ano 23. Nº 92. Outubro/dezembro de 1996, pág. 230.
188
PETTER, Lafayete Josué. Op. cit., págs. 180/181.
84
exigência aos membros da sociedade, para que se organizem de modo a poder atribuir cotas
específicas da produção social aos vários indivíduos ou grupos
189
.
Na mesma linha, Pontes de Miranda equipara o princípio da justiça social ao
princípio da justiça distributiva
190
.
Porém, pondera Adolfo J. Sequeira Martin que a regulação na defesa do consumidor
não pode vulnerar princípios econômicos constitucionais
191
. Daí a razão pela qual não se pode
prescindir de analisar todos os princípios supostamente postos em posição de colisão, segundo
técnicas de ponderação entre os direitos ou os bens constitucionalmente protegidos.
2.5. Direitos ou bens constitucionalmente protegidos
A preocupação que recai sobre o respeito à pessoa, em razão de sua dignidade, exige
a proteção de determinados bens jurídicos de especial importância para poder desenvolver
livremente a personalidade. A conseqüente interpretação e a delimitação do conteúdo dos
direitos fundamentais, no contexto global da vida humana, realizam-se quando os bens
jurídicos que os protegem constitui um interesse não apenas para seu titular, mas também para
a coletividade
192
.
O direito civil regula os mais generalizantes institutos relacionados ao homem e afeta
as relações jurídicas mais comuns da vida em sociedade. Daí a justificativa das figuras
civilísticas encontrarem-se plasmadas, com grande freqüência, na Constituição
193
. Na
189
Lei, Legislação e Liberdade. In: MAFFETTONE, Sebastiano, VECA, Salvatore (Orgs.). A Idéia de Justiça de
Platão a Rawls. São Paulo: Martins Fontes, 2005, págs. 368 e 370.
190
Op. cit., pág. 30.
191
Defensa del Consumidor y Derecho Constitucional Economico. Revista Española de Derecho Constitucional.
Año 4. Núm. 10. Enero-abril 1984, pág. 95.
192
DOMINGO, Tomás de. Conflictos entre Derechos Fundamentales? Madrid: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales, 2001, pág. 341.
193
FLÓREZ-VALDÉS, Joaquim Arce y. Op. cit., pág. 85.
85
Constituição brasileira de 1988, podem ser mencionados, como institutos originariamente de
natureza civil, a propriedade (art. 5º, XXII), a herança (art. 5º, XXX) e a família (art. 226).
A diferenciação de soluções, consoante o tipo de bem jurídico em causa, repercute
em todos os direitos fundamentais, incluindo os próprios direitos fundamentais que, constando
da Constituição, regulam aparentemente e de forma quase exclusiva, relações entre
particulares, por exemplo, relacionadas com família, casamento, propriedade e educação
194
.
É claro que os bens jurídicos tutelados pelos direitos fundamentais (a vida, a saúde, a
integridade física, a propriedade, a família, a liberdade de expressão, a liberdade de religião, a
criação artística, a inviolabilidade de domicílio ou de comunicações, o desenvolvimento da
personalidade) também devem ser reconhecidos e necessitam de ser protegidos nas relações
entre particulares, bastando apenas que haja significativas ameaças
195
.
Um dos principais parâmetros de aplicação dos direitos fundamentais às relações
jurídicas privadas deve ser o seu grau de existencialismo em relação à pessoa e a
conseqüência disso é atribuir diferente peso aos direitos fundamentais, dependendo do
conteúdo existencial ou patrimonial. Isso se deve ao fato de que a dignidade da pessoa
humana não se expressa prioritariamente em relações de conteúdo meramente patrimonial,
mas normalmente em questões existenciais, nas quais o patrimônio só adquire relevo no plano
da proteção do mínimo existencial
196
.
Wilson Steinmetz classifica os direitos fundamentais individuais em direitos
fundamentais pessoais e direitos fundamentais de conteúdo patrimonial.
194
NOVAIS, Jorge Reis. Os Direitos Fundamentais nas Relações Jurídicas entre Particulares. In: SOUZA
NETO, Cláudio Pereira de, SARMENTO, Daniel (Coords.). Constitucionalização do Direito: Fundamentos
Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pág. 356.
195
NOVAIS, Jorge Reis. Ibid., pág. 364.
196
MARTINS, Samir José Caetano. Op. cit., pág. 68.
86
Os direitos fundamentais pessoais são aqueles de natureza imaterial, cujo âmbito de
proteção são bens, esferas ou atributos vitais intrínseca e estritamente importantes para a
definição e o desenvolvimento do indivíduo como pessoa livre e autônoma. Alguns exemplos
são: a liberdade de manifestação do pensamento (art. 5º, IV), a liberdade de consciência e de
crença (art. 5º, VI), a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e
comunicação (art. 5º, IX), a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem (art. 5º, X), a
liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão (art. 5º, XIII) e a liberdade de
locomoção no território nacional em tempo de paz (art. 5º, XV)
197
.
Ao passo que os de conteúdo patrimonial correspondem àqueles bens, esferas ou
atributos de natureza material, tais como, o direito de propriedade (art. 5º, XXII), o direito
exclusivo dos autores de utilização, publicação ou reprodução de suas obras (art. 5º, XXVII) e
o direito de herança (art. 5º, XXX)
198
.
Mas também não se pode esquecer ainda que a Constituição Federal de 1988, no art.
6º, elenca uma série de direitos fundamentais de segunda dimensão, que também podem ser
considerados bens constitucionalmente protegidos, tais como a educação, a saúde, o trabalho,
a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a
assistência aos desamparados.
É por isso que a saúde não pode ser protegida através da utilização de normas
inspiradas por uma exclusiva lógica patrimonial, nem a sua tutela pode exaurir-se em um
critério fundado unicamente em exigências ditadas pela idéia da propriedade privada. A
função social da propriedade e a utilidade social da empresa no ordenamento vigente
assumiram conteúdos solidaristas e personalistas, o que propicia um juízo de compatibilização
197
STEINMETZ, Wilson. Op. cit., págs. 221/222.
198
STEINMETZ, Wilson. Op. cit., págs. 221/222.
87
entre a liberdade de contratar, de um lado, e o direito à saúde, de outro, ambos de índole
constitucional
199
.
Na mesma trilha, o direito à moradia também de merecer destacado realce na
relação contratual. Isso se deve à idéia de que a moradia pertence à pessoa e à família, o que
acaba por produzir conseqüências notáveis no plano dos contratos civis, notadamente nas
relações locatícias. Como direito existencial, o direito à moradia pode se satisfazer mesmo
sem ser proprietário do imóvel residencial
200
.
Hoje o contrato, mais do que instrumento de circulação das riquezas da sociedade,
representa, como diz Cláudia Lima Marques, mecanismo de proteção dos direitos
fundamentais. A crise do Estado social no direito advém da modificação dos bens
economicamente relevantes. Se, na idade média, os bens economicamente relevantes eram os
bens imóveis, na idade moderna, o bem móvel material, parece se revelar indiscutível que
hoje, no Estado pós-social, o que se mostra de mais relevante na sociedade é a prestação de
serviços de comunicação, de lazer, de segurança, de educação, de saúde e de crédito
201
.
Daí Cláudia Lima Marques detectar, na nova realidade contratual massificada que se
observa no mercado brasileiro atual, uma série de novos contratos, que se valem dos modelos
de adesão ou de outros típicos da contratação de massa, para fornecer serviços especiais no
mercado, criando relações jurídicas complexas de longa duração. Estes contratos de longa
duração
202
envolvem uma cadeia de fornecedores organizados entre si e com uma
199
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Edição. Rio de
Janeiro: Renovar, 2007, pág. 170.
200
PERLINGIERI, Pietro. Ibid., pág. 198.
201
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações
contratuais. 4ª Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pág. 168.
202
Consoante Cláudia Lima Marques, os contratos cativos de longa duração, como ela própria os designam,
dizem respeito a “serviços que prometem segurança e qualidade, serviços cuja prestação se protrai o tempo, de
trato sucessivo, com uma fase de execução contratual longa e descontínua, de fazer e o fazer, de informar e
não prejudicar, de prometer e cumprir, de manter sempre o vínculo contratual e o usuário cativo. São serviços
contínuos e não mais imediatos, serviços complexos e geralmente prestados por fornecedores indiretos,
88
característica determinante: a posição de “catividade” ou de “dependência” dos aderentes.
Esta posição de dependência ou de catividade ocorre nos serviços prestados pela iniciativa
privada que asseguram - ou prometem assegurar - ao consumidor e à sua família status,
segurança, crédito renovado, escola ou formação universitária certa e qualificada, moradia
assegurada ou mesmo saúde no futuro
203
.
Os principais exemplos destes contratos cativos de longa duração são os contratos de
mútuo habitacional (Sistema Financeiro de Habitação), de empréstimos em instituições
financeiras, de seguro-saúde e de assistência médico-hospitalar, de previdência privada e de
seguros em geral, os serviços de transmissão de informações e de lazer por cabo, telefone,
televisão, computadores
204
, de prestação de serviços educacionais, de locação, dentre outros
igualmente ligados à existência humana na atualidade.
Como informa Cláudia Lima Marques, o mesmo fenômeno vem ocorrendo nos
Estados Unidos, cuja doutrina designou essa espécie contratual de “contratos relacionais”
(relational contracts). Os contratos relacionais são mais baseados na confiança, na
fornecedores ‘terceiros’, aqueles que realmente realizam o ‘objetiva’ do contrato, da grande importância da
noção de cadeia ou organização interna de fornecedores e sua solidariedade. O contrato é de longa duração, de
execução sucessiva e protraída, trazendo em si expectativas outras que os contratos de execução imediata. Estes
contratos baseiam-se mais na confiança, no convívio reiterado, na manutenção do potencial econômico e da
qualidade dos serviços, pois trazem implícita a expectativas de mudanças das condições sociais, econômicas e
legais na sociedade nestes vários anos de relação contratual. A satisfação perseguida pelo consumidor (por
exemplo, futura assistência médica para si e sua família) depende da continuação da relação jurídica fonte de
obrigações. A capacidade de adaptação, de cooperação entre contratantes, de continuação da relação contratual é
aqui essencial, básica. Tais serviços envolvem normalmente obrigações denominadas ‘duradouras’ nas quais o
‘adimplemento sempre se renova sem que se manifeste alteração no débito’. O bito contratual continua o
mesmo, isto é, o dever de prestar continua total, assim, mesmo que, por exemplo, o segurado tenha usado os
serviços, o dever de prestar assistência médica ou de reembolsar os gastos com saúde, renova-se, continua o
mesmo e total, conforme o objetivo do contrato. Não se trata, nestes casos, de mera divisão da prestação
contratual no tempo ou de obrigação divisível, fracionável no tempo e no espaço, mas de obrigações renovadas
no tempo, que ‘são adimplidas permanentemente e assim perduram sem que seja modificado o conteúdo do
dever de prestação, até seu término’. O tempo aqui corresponde a um interesse do credor e é essencial, uma vez
que o contrato desenvolve seus efeitos justamente através da passagem do tempo, da divisão de riscos no tempo
e da cooperação entre os contratantes. Entre as relações que podem ser denominadas ‘cativas’, outras existem
que aproximam-se mais do modelo da compra e venda a prazo, de forma divisível, pois, aqui apenas observa-se
o outro lado da relação jurídica, o lado passivo do devedor-consumidor”(Ibid., págs. 87/88).
203
Ibid., pág. 79.
204
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações
contratuais. 4ª Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pág. 79.
89
solidariedade e na cooperação do que em vínculos contratuais expressos, possuindo vínculos
mais abertos, de relação continuada e duradoura, porém passível de serem modificados ao
longo da execução contratual, ante as necessidades das partes
205
.
Tomás de Domingo aduz que, se os direitos fundamentais protegem bens jurídicos
que se estruturam coordenados à serviço da pessoa, não pode o intérprete abordar a solução
do conflito com absoluta discricionariedade, sem que se ampare no bem jurídico protegido
por cada direito
206
.
Esses direitos ou bens constitucionalmente protegidos hão de ser interpretados e
valorados após processo de ponderação, a fim de observar quais prevalecerão no conflito
contratual submetido à apreciação judicial.
2.6. Colisões e ponderações entre princípios fundamentais, direitos ou bens
constitucionalmente protegidos
As mais elementares necessidades de convivência social apontam para a
possibilidade e a imprescindibilidade de os direitos fundamentais, independentemente de
previsão expressa na Constituição, terem que ceder nas situações em que outros bens
igualmente dignos de proteção jurídica assim o exijam
207
.
205
Ibid., pág. 82.
206
Op. cit., págs. 357/362.
207
NOVAIS, Jorge Reis. As Restrições aos Direitos Fundamentais o expressamente autorizadas pela
Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, pág. 569.
90
Para Luis Aguiar de Luque, toda limitação dos direitos tem de estar justificada pela
explícita previsão constitucional ou pela garantia de outros direitos, bens ou valores
constitucionais, à luz do princípio da proporcionalidade
208
.
Samir José Caetano Martins considera, todavia, absurda a premissa de que qualquer
valor existencial deve sobrepujar sobre qualquer valor patrimonial, a ponto de concluir que,
na ótica dos direitos fundamentais, por exemplo, o consumidor tivesse sempre razão nas
relações de consumo. Seria o mesmo que fazer tabula rasa de contratos que nada têm de
abusivos, correndo o risco de reconhecer a primazia do valor existencial apenas porque a
execução forçada das obrigações assumidas pelo consumidor lhe gera tristeza. Para ele, onde
não houver ofensa à dignidade da pessoa humana, o patrimônio pode e deve ser
tutelado
209
.
Nem mesmo o direito à vida
210
, como alerta Jorge Reis Novais, não escapa a
idênticas dificuldades inviabilizadoras de uma aplicação independente das circunstâncias de
sua concretização. Inclusive, pode haver colisão entre o mesmo direito à vida de diferentes
titulares, como foi o caso decidido pelos tribunais britânicos, no ano 2000, de sacrificar uma
das gêmeas siamesas, com o objetivo de salvar a vida da gêmea com mais possibilidades de
sobrevivência
211
.
Mas não apenas nesta situação o direito à vida deixa de ser forte (quase supremo),
Jorge Novais, ainda, relata outro caso em que esse direito fundamental é analisado frente ao
Estado. É inegável que o direito à vida têm preferência sobre a segurança do Estado. Porém,
208
Los Limites de los Derechos Fundamentales. Revista del Centro de Estudios Constitucionales. Núm. 14.
Enero-abril 1993, pág. 25.
209
Neoconstitucionalismo e Relações Privadas: alguns parâmetros. Revista do Centro de Estudos Judiciários do
Conselho da Justiça Federal nº 36. Brasília: CEJ, 2007, pág. 67.
210
Na Constituição brasileira de 1988, o direito à vida não é considerado absoluto, tanto que se permite a adoção
da pena de morte, no caso de guerra declarada (art. 5º, XLVII).
211
As Restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição. Coimbra:
Coimbra Editora, 2003, pág. 715.
91
indaga Novais se um grupo terrorista seqüestrasse um empresário e ameaçasse matá-lo, caso o
Estado não atendesse as suas exigências, tais como de extermínio de determinada comunidade
ou a exclusão de dado grupo de benefícios estatais
212
.
Por isso mesmo, as relações negociais privadas, normalmente, implicam a colisão
entre um ou mais direitos fundamentais e a autonomia privada exteriorizada na liberdade
negocial, podendo ocorrer de duas maneiras: a) no exercício da liberdade contratual positiva
(direito de contratação), quando o particular concorda em restringir ou mesmo renunciar ao
núcleo essencial de um ou mais direitos fundamentais; e b) no exercício da liberdade negativa
(direito de não-contratação), quando o particular viola direito fundamental de um ou mais
particulares. Porém, essa distinção não tem repercussão prática, pois ambas as situações
conflitivas se resolvem, mediante idêntico método (técnica da ponderação de bens, valores ou
princípios)
213
.
Como bem pontifica Jesús Alfaro Aguila-Real, as pessoas, no exercício de sua
autonomia individual, assumem voluntariamente limitações a seus direitos em função de
outros interesses e ditas restrições não são perfeitamente constitucionais como se
constituem em manifestação clara do direito ao livre desenvolvimento da personalidade
214
.
Segundo Aguila-Real, o cerne do problema repousa em decidir em que medida o
consentimento do sujeito afetado exclui a inconstitucionalidade da autoregulação privada ou
em que medida o consentimento da autoproteção mostra-se suficiente. E um dos primeiros
critérios que sugere repousa na idéia da proibição do exercício abusivo ou antisocial dos
direitos
215
.
212
Ibid., pág. 718.
213
STEINMETZ, Wilson. Op. cit., pág. 188.
214
Op. cit., pág. 62.
215
Op. cit., págs. 94/95.
92
Outro parâmetro defendido por Aguila-Real, para averiguar se a renúncia nos
negócios jurídicos aos direitos fundamentais é válida, consiste em verificar se o sujeito
contratante atuou livremente em escolher a alternativa razoavelmente disponível à renúncia
216
.
Também não se admite a renúncia aos direitos fundamentais naqueles casos de bens situados
fora do comércio, considerados inalienáveis
217
, como, por exemplo, órgãos vitais do próprio
corpo humano.
Já, para Vieira de Andrade, a renúncia aos direitos fundamentais depende da
autenticidade e da genuinidade da manifestação de vontade do titular que justifica a restrição
ou a ofensa. A renúncia, pois, só pode ser admitida como fundamento legítimo de uma
autolimitação dos direitos fundamentais se for produto inequívoco de uma vontade livre e
esclarecida, produzida pelo próprio titular
218
.
No entanto, observa Ingo Von Münch que o direito à dignidade da pessoa humana é
considerado irrenunciável
219
, ainda que seja proveniente da vontade livre e esclarecida
manifestada pelo próprio titular.
Por ser modelo predominante dos direitos fundamentais, os princípios desfrutam de
íntima conexão com a proporcionalidade, a ponto de Robert Alexy sustentar que o simples
caráter principiológico de uma norma jurídica pressupor a proporcionalidade, por meio dos
postulados da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. Isso se
deve ao fato de que a proporcionalidade deriva da própria essência dos direitos fundamentais,
previstos na Constituição predominantemente em formato de princípios
220
.
216
Ibid, pág. 97.
217
Ibid, págs. 99/100.
218
Op. cit., pág. 331.
219
Op. cit., pág. 28.
220
Teoria de Los Derechos Fundamentales. El Derecho y la Justiça. Madrid: Centro de Estudos Políticos y
constitucionales, 2002, págs. 111/112.
93
Tanto isso é verdade que Paulo Bonavides assegura que a vinculação do princípio da
proporcionalidade ao direito constitucional ocorre por via dos direitos fundamentais. Com os
direitos fundamentais a proporcionalidade ganha extrema importância, aufere destacado
prestígio e tem se propagado de maneira muito abrangente tanto quanto outros princípios
constitucionais de similar envergadura, tal como a igualdade
221
.
Afirma Willis Santiago Guerra Filho que a exitosa acolhida do princípio da
proporcionalidade, na Alemanha, deveu-se, em parte, à existência de um ambiente propício
para discussões jusfilosóficas desencadeadas após a Segunda Guerra Mundial. A experiência
vivida com os horrores do regime nacional-socialista, praticados em nome da lei, estimulou o
aprofundamento teórico da dimensão valorativa do direito e a busca por outras fontes de sua
aplicação que não se resumissem em meros esquemas legais
222
.
E, mais especificamente, na esfera do direito constitucional, a utilização do princípio
da proporcionalidade, donde pode vir a ser invocado nos mais diversos setores do direito,
adveio em grande parte do posicionamento do Tribunal Constitucional Federal alemão,
quando, na tarefa de velar pelo cumprimento e respeito à Constituição, passou a referir-se
com freqüência a expressões em sua argumentação, que se associavam claramente à
proporcionalidade, tais como “excessivo” (übermassig), “inadequado” (unangemessen),
“necessariamente exigível” (erforderlich, unerlässilich, unbedingt notwendig), até
estabelecer, ao final, o princípio como “proibição de excesso” (Übermassverbot)
223
.
A proporcionalidade, dada à sua ligação intrínseca com as idéias de justeza e
razoabilidade, apresenta-se como o princípio fundamental mais importante para equacionar
questões práticas enfrentadas pelo direito, sempre que se tratar da descoberta do meio mais
221
Curso de Direito Constitucional. 10ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2000, pág. 359.
222
Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 2ª Edição. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2001, pág. 74.
223
Teoria Processual da Constituição. 2ª Edição. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002, pág. 81.
94
adequado, necessário e proporcional para atingir determinado objetivo
224
. Willis Santiago
Guerra Filho chega a dizer que a história veio a confirmar a premissa de que a
proporcionalidade confunde-se com a própria idéia do “direito”, não sendo à toa, neste
sentido, que em diversas tentativas de captar a essência do direito sempre se encontre, de
alguma maneira, expressa ou latente, a noção de proporcionalidade
225
.
O princípio da proporcionalidade, que não se confunde com o da razoabilidade,
pressupõe nexo de causalidade proporcional entre o meio utilizado e o fim almejado, porém
apenas o afere se o aplicador do direito empreender exame acurado dos sub-princípios da
adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito.
Para se reconhecer a proporcionalidade de determinado meio, em princípio, avalia-se
o sub-princípio da adequação, que atesta se a medida alcança ou atende aos fins pretendidos.
Em seguida, em caso afirmativo, passa a se analisar se a mesma medida observa o sub-
princípio da necessidade. Neste ponto em particular, investiga-se se não havia outro meio
menos gravoso e igualmente eficaz, para atingir a finalidade almejada. E, por fim, não
havendo inadequação ou desnecessidade, é que se chega ao exame do sub-princípio da
proporcionalidade em sentido estrito, que afere a existência de proporção entre o objetivo
perseguido e o ônus imposto ao atingido.
Os sub-princípios da adequação e da necessidade não oferecem maiores dificuldades
em sua aplicação, porém o mesmo não ocorre com a proporcionalidade em sentido estrito,
justamente por dizer respeito à própria ponderação entre os direitos, bens e princípios em
colisão.
Para tentar facilitar a aplicação da proporcionalidade em sentido estrito, Alexy
idealizou a formulação da Lei do Sopesamento”, que assim se expressa: “quanto maior é o
224
Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 2ª Edição. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2001, pág. 75.
225
Teoria Processual da Constituição. 2ª Edição. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002, pág. 75.
95
grau da não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior tem que ser a importância
para a satisfação do outro”
226
. Em outras palavras, a lei da ponderação traduz a idéia de que a
medida permitida de não satisfação ou de afetação de um dos princípios depende do grau de
importância da satisfação do outro
227
.
No entanto, a “Lei do Sopesamento” de Alexy sofreu ácidas críticas de Jürgen
Habermas e Ernst-Wolfgang Böckenförde, o que o forçou, em resposta, a elaborar, em
póscrito (Postscript), a “Fórmula de Peso”.
Habermas critica a teoria da ponderação de Alexy, por não permitir que, com base
nela, sejam formulados juízos racionais sobre as colisões entre princípios e valores
constitucionais. Acentua Habermas que a adoção da “Lei do Sopesamento” faria com que os
direitos fundamentais perdessem a sua firmeza, garantida através de uma estrutura
deontológica escrita formada por regras. No caso de colisão, todas as justificativas
assumiriam caráter político, o que levaria a proteção erguida num discurso legal a entrar em
colapso. Correr-se-ia o risco de que os direitos fundamentais se tornassem vítimas de regras
irracionais, abrindo margens para arbitrariedades judiciais
228
.
Já Böckenförde atenta para o perigo da supervalorização dos direitos fundamentais, a
ponto de se concluir que todo o ordenamento jurídico estaria contido nos princípios
constitucionais, afastando-se do papel que sempre desempenhou de ser instrumento de tutela
contra as ofensas do Estado
229
.
226
A Theory of Constitutional Rights. Trad. Julian Rivers. Oxford: University Press, 2004, pág. 401. Em inglês, a
Lei do Sopesamento está assim delineada: “The greater the degree of non-satisfaction of, or detriment to, one
principle, the greater must be the importance of satisfying the other”.
227
Teoria de Los Derechos Fundamentales. El Derecho y la Justiça. Madrid: Centro de Estudos Políticos y
constitucionales, 2002, pág. 161.
228
A Theory of Constitutional Rights. Trad. Julian Rivers. Oxford: University Press, 2004, págs. 388/389.
229
Op. cit., pág. 389.
96
Na doutrina traduzida na “Fórmula de Peso”, Alexy rebate as críticas procurando
esclarecer, com maiores desdobramentos, o sub-princípio da proporcionalidade em sentido
estrito e, conseqüentemente, explicar em que consistia o seu pensamento neste ponto.
Na apreciação específica da proporcionalidade em sentido estrito, para determinar
qual dos valores ou princípios fundamentais em rota de colisão, dentre eles a autonomia
privada, deve ser considerado mais relevante, é necessário argumentar acerca dos seguintes
fatores: a) o “peso abstrato” e o “peso concreto” de cada um dos valores ou princípios
colidentes; b) a interferência que a realização de um causa reciprocamente no outro; e c) as
evidências disponíveis para fundamentar, racionalmente, as considerações relativas aos
direitos em colisão
230
.
Com base nestes parâmetros, para Alexy, o intérprete atribuiria um valor numérico
para cada um destes elementos e, ao final, apuraria qual os bens ou interesses
constitucionalmente protegidos receberam maior pontuação e aquele que a tiver atingido
prevalece no caso concreto. É bom que se diga que o recurso à matemática não consiste na
essência da teoria de Alexy, mas serve de critério mais objetivo para respaldar a força das
argumentações desfiladas em prol de cada um dos direitos fundamentais em colisão.
Para Marcelo Lima Guerra, a Fórmula de Peso de Alexy permite enxergar a
possibilidade de se formular decisões racionais sobre colisões entre princípios ou valores
constitucionais, ainda que não se trate de uma racionalidade idêntica àquela das ciências, tais
como a Física, a Bioquímica e outras, em que a verdade dos enunciados compõem suas
respectivas teorias. A racionalidade que respalda as decisões resultantes do sopesamento dos
230
A Theory of Constitutional Rights. Trad. Julian Rivers. Oxford: University Press, 2004, págs. 408/414.
97
princípios é aquela própria do discurso prático em geral e do jurídico em particular, sendo
uma de suas variáveis justamente a argumentação
231
.
Existe ainda outra vantagem apontada por Marcelo Lima Guerra. É que a “Fórmula
de Peso” explicita a total impossibilidade de se estabelecer uma rígida hierarquia entre valores
constitucionais. Esta teoria descarta a hierarquização absoluta e pré-estabelecida, ainda que
seja possível indicar preceitos constitucionais mais relevantes (de maior peso abstrato) do que
outros, uma vez que o grau de interferência concreta que um principio exerce sobre outro
pode se dá em peso concreto maior do que aquele de peso abstrato
232
.
Nas relações negociais travadas entre particulares, mais do que nunca, vem
emergindo, ainda que de maneira incipiente, estudos acerca da eficácia dos direitos
fundamentais nas relações interprivadas.
231
A Proporcionalidade em Sentido Estrito e a “Fórmula de Peso” de Robert Alexy: significância e algumas
implicações. Revista de Processo. Ano 31. Nº 141. Novembro de 2006, págs. 55/56 e 67.
232
Ibid., págs. 69/70.
98
3. DAS DIMENSÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À INCIDÊNCIA NAS
RELAÇÕES ENTRE PARTICULARES
3.1. Dimensão subjetiva dos direitos fundamentais
Os direitos fundamentais nasceram, historicamente, para proteger o indivíduo contra
o poder que mais o ameaçava numa época em que floresciam os ideais iluministas e liberais: o
poder do Estado. Com o apogeu do Estado absolutista, o homem sofreu toda a sorte de
opressão, abuso e arbítrio por parte das estruturas estatais de poder. O poder estatal
amesquinhava o homem e, especialmente, os interesses da burguesia, que buscava liberdade e
proteção à propriedade. Daí surgiram, em meio às descobertas científicas da ilustração e às
revoluções liberais dos séculos XVII e XVIII, direitos do homem que serviam para protegê-lo
contra a opressão do Estado.
Fábio Konder Comparato acentua que o reconhecimento da dignidade da pessoa
humana e de seus direitos, na trajetória da história, resulta, no mais das vezes, da dor e do
sofrimento e, a cada grande surto de violência, os homens recuam, horrorizados, à vista das
torturas, das mutilações em massa, dos massacres coletivos e das explorações aviltantes. Mas,
além disso, outro fato chama à sua atenção: é o sincronismo entre as grandes declarações de
direitos e as grandes descobertas científicas ou invenções técnicas
233
.
De fato, na história moderna, ao lado do conteúdo ético propiciado pela afirmação
dos direitos humanos, as invenções técnico-científicas consistem em fatores de transformação
dos meios ou instrumentos de convivência, padronizando costumes e modos de vida, pela
homogeneização universal das formas de trabalho, de produção e de troca de bens. Sem a
233
A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 3ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2004, pág. 37.
99
contribuição constante do progresso técnico, não se criam as condições materiais
indispensáveis ao fortalecimento universal da comunhão humana. Porém, se não for
completada pela harmonização ética, fundada nos direitos humanos, tende à desagregação
social, em razão da fatal prevalência dos mais fortes sobre os mais fracos
234
.
Na França, a proclamação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
1789 revelou, em texto escrito, vários direitos ligados à defesa da liberdade, da segurança e da
propriedade, tão aspirados por aqueles que compunham o chamado Terceiro Estado (a
burguesia e o povo) e que não desfrutavam de qualquer participação política. Estabelecia o
art. 16 da Declaração que não teria Constituição a sociedade que não assegurasse a garantia
dos direitos, nem determinasse a separação dos poderes.
Isso representou a semente através da qual se germinaria a essência da idéia do
constitucionalismo moderno a imperar nos Estados nacionais. Os direitos fundamentais,
cunhados de liberdades públicas, colimavam proteger o homem contra o Estado. a
separação dos poderes (divisão funcional do poder estatal) buscava fragmentar o poder, para
enfraquecer o absolutismo estatal e evitar o arbítrio e o abuso nas relações jurídicas travadas
entre o indivíduo e o Estado.
Para tutelar o indivíduo, os direitos fundamentais foram construídos de modo a evitar
a interferência do Estado na vida privada da sociedade, normalmente se exigindo do poder
estatal omissões e abstenções. Nessa primeira etapa do constitucionalismo moderno, formam-
se os direitos fundamentais de primeira geração ou dimensão, como, por exemplo, as
liberdades públicas em geral (religiosa e de consciência, de locomoção, de reunião, de
expressão, dentre outras), os direitos associados à proteção da propriedade privada e o modelo
de contrato como fruto do acordo de vontades individuais das partes.
234
COMPARATO, Fábio Konder. Ibid., pág. 38.
100
Numa época em que o indivíduo vivia isolado no espaço social e político, sendo a
sociedade e o Estado dois mundos separados e estanques, cada um governado por uma lógica
de interesses própria, não admira que os direitos fundamentais pudessem ser concebidos como
direitos unicamente do indivíduo contra o Estado. Não seria exagero afirmar que os direitos
fundamentais não podiam deixar de ser então concebidos dessa maneira. Além do contexto
favorável, estava em causa a exigência teórica e prática no sentido de que os direitos
fundamentais tinham a finalidade a proteger a sociedade contra as intromissões do poder
estatal
235
.
Os direitos fundamentais de primeira dimensão constituíam liberdades negativas, que
implicavam deveres de omissão por parte do Estado. Assegurar o seu exercício, nessa
primeira fase do movimento constitucionalista, significava garantir o espaço privado como
lugar jurídico do exercício de plena liberdade individual, sem intervenção estatal, daí a
separação entre as esferas pública e privada. O livre estabelecimento de relações jurídicas
interprivadas era reputado suficiente para a concretização dos direitos fundamentais
236
.
Segundo pensa Jesús Alfaro Aguila-Real, os direitos fundamentais que vinculam os
poderes públicos consistem em ordens para que respeitem a liberdade reconhecida aos
cidadãos (proibição de intervenção) e, ao mesmo tempo, estabelecem meios de proteção
eficazes frente à tentativa de infração por outros particulares
237
.
O direito privado e, conseqüentemente, o direito civil, cresceram a partir da garantia
do espaço privado, que estimulava a proliferação de relações jurídicas entre os indivíduos,
sem qualquer interferência da ação do Estado. Desenvolve-se, nesse contexto, a ordem de
idéias que colocam as Constituições, nas quais se encontram os direitos fundamentais de
235
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Op. cit., págs. 247/248.
236
FACHIN, Luiz Edson, RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Op. cit., pág. 89.
237
Op. cit., pág. 66.
101
primeira dimensão, como centro do direito público, e as codificações civis, como núcleo
central do direito privado
238
. O Código Civil ganha o caráter de “Constituição do homem
privado”. Assim, os deveres de respeito aos direitos fundamentais apenas se postavam na
perspectiva do Estado, destinando-se as Constituições, precisamente, à disciplina das relações
entre Estado e indivíduos. Nos códigos civis, a seu turno, eram reguladas as relações entre os
indivíduos
239
.
A vertente subjetiva dos direitos fundamentais corresponde exatamente à existência
de direitos e interesses do indivíduo contra o Estado, na medida em que se preocupa em
analisá-los sob o ângulo dos sujeitos da relação jurídica que os une.
Virgílio Afonso da Silva alerta que a função essencial dos direitos fundamentais, que
muitos costumam chamar de clássica, voltados à proteção dos indivíduos contra violações por
parte do Estado, embora realce uma precedência histórica em relação a outros direitos do
homem, esconde, muitas vezes, uma precedência no que diz respeito à importância. A
necessidade de tutelar o indivíduo em face do Estado, por ter exatamente justificado o
nascimento dos primeiros direitos fundamentais no constitucionalismo, seria mais importante
do que os demais direitos fundamentais que surgiram posteriormente, não se admitindo, pois,
que produzissem efeitos nas relações dos particulares entre si
240
.
238
Para justificar esta separação entre o direito das relações públicas e o dos vínculos privados, Dieter Grimm
explica que “O Estado Constitucional é um fenômeno histórico relativamente jovem. Ele se originou quando se
impôs a convicção burguesa de que o bem-estar social e a justiça seriam mais bem alcançados por meio das
forças de autocontrole do mercado. Sob essas condições, a tarefa do Estado ficou reduzida a uma mera garantia
das leis de mercado: livre jogo das forças sociais. Na medida em que essa convicção abriu caminho de forma
revolucionária ou evolucionária, os vários âmbitos funcionais sociais foram desligados do controle política e
entregues cada um a seus próprios critérios de racionalidade. Esse processo é conhecido como separação entre
Estado e sociedade. Nesse contexto, coube à Constituição a tarefa de consolidar juridicamente a separação
garantidora de bem-estar social e justiça e, simultaneamente, regular as relações entre Estado e sociedade de tal
maneira que o Estado pudesse, por um lado, cumprir eficazmente sua posição de garante, mas, por outro, não
pudesse dela abusar em benefício de suas próprias ambições controladores” (Op. cit., pág. 62).
239
FACHIN, Luiz Edson, RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Op. cit., pág. 90.
240
AFONSO DA SILVA, Virgílio. A Constitucionalização do Direito: os direitos fundamentais nas relações
entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005, págs. 70/71.
102
Jorge Reis Novais ressalta que não é de hoje a consciência das ameaças à liberdade
individual provenientes de outros particulares. Mesmo no Estado liberal, a consciência dessas
ameaças esteve sempre presente, porém a então concepção difundida na ordem jurídica
sempre procurou dar-lhe a resposta que considerava adequada à época. A tríade
liberdade/segurança/propriedade, que sintetizava o espírito do constitucionalismo liberal, não
exigia somente a abstenção do Estado, mas também impunha ao aparato estatal que
providenciasse a tutela interna de proteção à liberdade individual, sobretudo naquilo que se
referisse à propriedade.
241
.
A perspectiva subjetiva dos direitos fundamentais, ao longo do tempo, porém, não
conseguiu explicar como era possível existir proteção a bens e valores ligados à pessoa
humana, quando houvesse violações praticadas pelo Estado, e, ao mesmo tempo, negá-la
quando o agente ofensor era outro cidadão ou particular. Novas ameaças a direitos
sobrepairavam sobre os particulares, vindas de organismos e estruturas fora do Estado,
exigindo uma nova visão dos direitos fundamentais que se tornasse aplicável às relações
jurídicas entre particulares.
3.2. Dimensão objetiva dos direitos fundamentais
É certo que um dos maiores avanços do constitucionalismo do culo XX,
particularmente após a segunda grande guerra mundial, consistiu na superação da idéia de que
a proclamação dos direitos fundamentais significava apenas meras declarações de princípios,
241
Os Direitos Fundamentais nas Relações Jurídicas entre Particulares. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de,
SARMENTO, Daniel (Coords.). Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações
Específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pág. 366.
103
sem força normativa, mas, antes de tudo, dizia respeito a normas que conferiam direitos
subjetivos aos cidadãos
242
.
No entanto, a mais significativa mudança de paradigma ocorrida na segunda metade
do século XX foi o abandono da concepção de que os direitos fundamentais somente se
apresentavam em oposição ao Estado, seja como uma abstenção (liberdades públicas), seja
como uma prestação (predominantemente direitos sociais). Nesta nova ótica, os direitos
fundamentais desempenhariam uma função adicional de expressar um sistema de valores,
válido para todo o ordenamento jurídico. Era o ponto de partida para uma
constitucionalização do direito e uma ampliação da própria força normativa da constituição
243
.
A Constituição, neste sentido, seria uma ordem objetiva de valores.
Como ordem objetiva de valores, a Constituição serviria para impor normas de
comportamento e de convivência aos indivíduos, estabelecendo um padrão axiológico e ético
que incidiria sobre todas as esferas do direito, não se limitando tão-somente às relações
mantidas entre indivíduo e Estado. Os direitos fundamentais também alcançariam as relações
entre indivíduo e indivíduo.
Consoante Paulo Gustavo Gonet Branco, a ótica objetiva resulta do significado que
os direitos fundamentais exercem na ordem constitucional democrática, ao operar como limite
do poder (público e privado) e, ao mesmo tempo, como diretriz para a sua ação. As
Constituições com esse espírito assumem um sistema de valores que os direitos
constitucionais influenciam todo o ordenamento jurídico, servindo de norte para a ação de
todas as espécies e formas de poder
244
.
242
AFONSO DA SILVA, Virgílio. Op. cit., págs. 76.
243
AFONSO DA SILVA, Virgílio. Ibid., págs. 77/78.
244
Aspectos da Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. In: Hermenêutica Constitucional e Direitos
Fundamentais. Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, pág. 153.
104
Essa dimensão objetiva dos direitos fundamentais enseja a produção de efeitos
jurídicos concretos, ainda que os preceitos constitucionais que os veiculem careçam de
integração legislativa capaz de prever direitos subjetivos aos seus titulares. Sem falar que o
reconhecimento da dimensão objetiva não significa desprezo à sua dimensão subjetiva dos
direitos fundamentais, que a complementa reforçando a tutela dos direitos dos indivíduos
contra outras ameaças
245
.
Konrad Hesse enaltece o crescente significado que a compreensão dos direitos
fundamentais, como elementos da ordem objetiva e alicerces da ordem jurídica da
coletividade, vem ganhando em vista da tarefa do Estado social atual de produzir ou garantir
os pressupostos da liberdade jurídico-fundamental
246
.
A evolução histórica dos direitos fundamentais, por esse motivo, sempre se afigurou
em permanente transformação na busca, na expressão de José Carlos Vieira de Andrade, de
um “estatuto da humanidade”. Neste passo evolutivo, vieram à tona as idéias de acumulação,
de variedade e de abertura. A idéia de acumulação pressupõe que, em cada momento
histórico, formulam-se novos direitos, típicos do seu tempo, que se adicionam aos direitos
antigos. A variedade quer dizer que os direitos fundamentais são funcionalmente complexos,
desdobrados em diversas dimensões normativas. E a idéia da abertura revela que nenhum
texto constitucional pretende esgotar o conjunto ou determinar o conteúdo dos direitos
fundamentais, permitindo-se, então, que direitos não escritos ou de faculdades implícitas a ele
se incorporem
247
.
245
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pág.
136.
246
Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, pág. 242.
247
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Op. cit., págs. 68/69.
105
Entretanto, um momento comum e caracterizador da idéia dos direitos
fundamentais que não se perde ao longo dos tempos, consistente na proteção da dignidade da
pessoa contra os perigos que resultam das estruturas de poder na sociedade. Sempre que surja
uma nova forma de poder ou um novo tipo de perigo para a dignidade do ser humano, tenderá
a aparecer um novo direito. Por isso, sempre que se afirme um outro entendimento das
necessidades correlatas à condição digna do homem, descobrir-se-ão novas dimensões
normativas dos direitos fundamentais
248
.
Mas foi, sem dúvida alguma, o famoso caso Lüth julgado pelo Tribunal
Constitucional Federal alemão, em 1958, que sedimentou as bases para a construção da
dogmática geral dos direitos fundamentais e, mais especificamente, da conhecida dimensão
objetiva, tal como se entende hoje.
Neste caso, um cidadão chamado Erich Lüth, crítico de cinema e diretor do Clube de
Imprensa da cidade de Hamburgo, na Alemanha, incitou, no início da década de 50, todos os
distribuidores de filmes cinematográficos e o público em geral, a boicotar o filme lançado à
época por Veit Harlan, conhecido cineasta do regime nazista e acusado de ser um dos
principais responsáveis pela alienação ideológica a que foi submetido o povo alemão no III
Heicht. Harlan e os seus parceiros comerciais ajuizaram, com base no art. 826 do Código
Civil alemão (BGB), perante a Justiça estadual de Hamburgo, ação cominatória, postulando
que Lüth fosse impedido de continuar a promover o boicote, por estar causando dano a
outrem, por ação imoral. As instâncias ordinárias acataram o pedido de Harlan, o que motivou
Lüth a ingressar no Tribunal Constitucional Federal com uma reclamação constitucional,
alegando ofensa ao direito fundamental à liberdade de expressão garantido na Lei
Fundamental de Bonn de 1949. O Tribunal julgou procedente o pedido veiculado na
248
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Ibid., Ibidem.
106
reclamação e revogou a decisão do Tribunal estadual de Hamburgo
249
, dando prevalência à
liberdade de expressão em detrimento da liberdade de exercício da atividade empresarial de
promover e divulgar filmes.
Na decisão, o Tribunal não apenas solucionou um conflito meramente individual, foi
mais além, assentando novos contornos à Constituição e aos direitos fundamentais. A
Constituição seria uma ordem objetiva de valores (sistema de valores) a incidir sobre todos os
compartimentos do ordenamento jurídico, não se limitando, portanto, a proteger unicamente o
cidadão nas relações jurídicas travadas contra o Estado. Os direitos fundamentais, por seu
turno, incidiriam nas relações jurídicas privadas e, por conseguinte, civis, e não apenas nos
vínculos de direito público.
249
A resenha do caso e parte do trecho da decisão proferida pelo Tribunal Constitucional Federal a seguir
reproduzida foi retirada da coletânea realizada por Jürgen Schwabe, denominada “Os Cinquenta Anos de
Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha. Org. Leonardo Martins. Programa Estado de
Derecho para Sudamérica. Montevideo: Fundación Konrad-Adenauer, 2005”. Os fundamentos lançados na
decisão bem realçam o avanço que representou a consolidação da dimensão objetiva dos direitos fundamentais,
como se infere deste trecho: “(...) os direitos fundamentais existem, em primeira linha, para assegurar a esfera de
liberdade privada de cada um contra intervenções do poder público; eles são direitos de resistência do cidadão
contra o Estado. Isto é o que se deduz da evolução histórica da idéia do direito fundamental, assim como de
acontecimentos históricos que levaram os direitos fundamentais às constituições dos vários Estados. Os direitos
fundamentais da Grundgesetz também têm esse sentido, pois ela quis sublinhar, com a colocação do capítulo dos
direitos fundamentais à frente [dos demais capítulos que tratam da organização do Estado e constituição de seus
órgãos propriamente ditos], a prevalência do homem e sua dignidade em face do poder estatal. A isso
corresponde o fato de o legislador ter garantido o remédio jurídico especial para a proteção destes direitos, a
Reclamação Constitucional, somente contra atos do poder público. Da mesma forma é correto, entretanto, que a
Grundgesetz, que não pretende ser um ordenamento neutro do ponto de vista axiológico (BVerfGE 2, 1 [12]; 5,
85 [134 et seq., 197 et seq.]; 6, 32 (40.s]), estabeleceu também, em seu capítulo de direitos fundamentais, um
ordenamento axiológico objetivo, e que, justamente em função deste, ocorre um aumento da força jurídica dos
direitos fundamentais (...) Esse sistema de valores, que tem como ponto central a personalidade humana e sua
dignidade, que se desenvolve livremente dentro da comunidade social, precisa valer enquanto decisão
constitucional fundamental para todas as áreas do direito; Legislativo, Administração Pública e Judiciário
recebem dele diretrizes e impulsos. Desta forma, ele influencia obviamente o direito civil. Nenhuma norma do
direito civil pode contradizer esse sistema de valores, cada norma precisa ser interpretada segundo o seu espírito.
O conteúdo normativo dos direitos fundamentais enquanto normas objetivas desenvolve-se no direito privado
por intermédio do veículo (Medium) das normas que dominem imediatamente aquela área jurídica. Assim como
o novo direito precisa estar em conformidade com o sistema axiológico dos direitos fundamentais, será, no que
tange ao seu conteúdo, o direito pré-existente direcionado a esse sistema de valores; dele flui para esse direito
pré-existente um conteúdo constitucional específico, que a partir de então fixará a sua interpretação. Uma lide
entre particulares sobre direitos e obrigações decorrentes destas normas comportamentais do direito civil
influenciadas pelo direito fundamental permanece, no direito material e processual uma lide cível. Interpretado e
aplicado deve ser o direito civil, ainda que sua interpretação tenha que seguir o direito público, a Constituição”
(Ob. cit., págs. 381 e 387/388).
107
O mais interessante disso tudo, no entanto, foi que, poucos anos depois (1969), o
mesmo Tribunal Constitucional alemão em outro conhecido caso chamado Blinkfüer, optou
por dar primazia ao direito protegido pela livre iniciativa empresarial em detrimento da
liberdade de expressão, baseando-se, evidentemente, em outras circunstâncias que
preponderaram na situação concreta. Cuidava-se de reclamação constitucional proposta contra
decisão proferida pelo Tribunal Federal (BGH), que julgou improcedente pedido de
indenização por perdas e danos deduzido por editor e chefe de redação de pequeno semanário
chamado Blinkfüer, em circulação na região de Hamburgo, contra os conglomerados editoriais
da Axel Springer e Die Welt. Estes dois conglomerados editoriais forçaram os distribuidores e
varejistas de bancas de jornal a boicotarem a publicação o semanário Blinkfüer, alegando que
este, produzido por órgão da mídia oriental, estaria a serviço da propaganda injuriosa do
governo da hoje extinta República Democrática alemã (antiga Alemanha Oriental) contra os
alemães ocidentais e seu Estado livre e democrático
250
.
No entanto, neste caso em particular, a Corte Constitucional não acatou o precedente
Lüth, para dar respaldo à conclamação ao boicote, pois a manifestação contra o semanário
Blinkfüer foi realizada a partir do abuso de uma posição de poderio econômico dos
conglomerados editoriais Axel Springer e Die Welt, e não com base em discussão
predominantemente intelectual. Entendeu o Tribunal que o incitamento ao boicote
contrariava, no caso Blinkfüer, o sentido e a substância do direito fundamental à livre
expressão, na medida em que não pretendia garantir a luta intelectual das opiniões, mas tão-
somente eliminar uma concorrência comercial.
Isso bem demonstra que, na colisão entre princípios, direitos ou bens constitucionais,
ora pode preponderar um deles, em face de determinadas circunstâncias fáticas e jurídicas
250
SCHWABE, Jürgen. Op. cit., págs. 400/406.
108
dadas, ora sobrepujar interesses contrários, quando aqueles fatores se alterarem no caso
concreto.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de enfrentar situação
parecida no julgamento do caso em que se discutiu a prática do crime de racismo por escritor
e sócio de editora, que havia publicado, distribuído e vendido obras anti-semitas contra o
povo judeu e, por isso, foi condenado nas instâncias ordinárias como incurso no art. 20 da Lei
7.716/89. Na colisão entre os direitos fundamentais da liberdade de expressão e da proteção à
dignidade do povo judeu, acabou prevalecendo o segundo, sobretudo porque, mesmo não se
tratando propriamente de uma raça, o racismo é antes de tudo uma realidade social e política
que reflete reprovável comportamento decorrente da convicção de que existe hierarquia entre
grupos humanos, suficiente para justificar atos de segregação, inferiorização e até mesmo de
eliminação de pessoas
251
.
Parcela disso se deve ao fato de que a Constituição de 1988, ao gravar os direitos
fundamentais com a cláusula de eternidade (CF, art. 60, § 4º), pretendeu explicitar o especial
significado objetivo dos direitos fundamentais como elementos da ordem jurídica objetiva
252
.
A constitucionalização do direito civil nada mais representou, portanto, do que o
reconhecimento da possibilidade de os direitos fundamentais operarem sua eficácia nas
relações interprivadas e na conseqüente consolidação na seara privada da dimensão objetiva.
A Constituição deixou de ser reputada simplesmente como uma carta política, que
regulava somente as relações entre indivíduo/Estado, para assumir uma feição de integração
de todo o ordenamento jurídico, inclusive do direito privado. Os direitos fundamentais não
251
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 82.424/RS. Rel. orig. Moreira Alves, relator para o acórdão Min.
Maurício Corrêa. STF, Brasília, DF, 17 de setembro de 2003. Disponível em:
http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 18 de setembro de 2007.
252
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. Estudos de Direito
Constitucional. 3ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2004, pág. 119.
109
são oponíveis apenas contra o Estado, mas também entre indivíduo/indivíduo. A Constituição
passa a ser observada por todos aqueles submetidos à ordem jurídica, perdendo sentido falar
da fronteira entre público e privado
253
.
3.3. Os direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares
À luz da dimensão objetiva, não se pode negar a possibilidade de vinculação dos
direitos fundamentais nas relações entre particulares (indivíduo/indivíduo). Contudo, mais
importante do que isso, é desvendar em que medida, extensão e intensidade ocorre essa
vinculação. É bom que se assinale, logo de início, que a vinculação dos direitos fundamentais
no terreno privado apresenta diferenciações em relação ao público, pois, neste, um dos pólos
da relação jurídica (o Estado) não é, a rigor, detentor de algum direito fundamental, enquanto
que, no campo das relações privadas, os opositores são titulares de direitos fundamentais.
Pelo caráter axiológico dos direitos fundamentais, a incidência nas relações de direito
privado representa a incorporação, a concretização e o desenvolvimento dos valores mais
nobres da sociedade em todas as esferas da ordem jurídica, especialmente da liberdade, da
igualdade, e dos princípios que compõem a dimensão objetiva emanada pela Constituição
254
.
É inegável, sob a perpectiva objetiva, que as normas da Constituição entrelaçam-se
sob o princípio da unidade moral, numa associação única de valores e preceitos qualificados
pela nota da essencialidade social. Conseqüentemente, os direitos constitucionais, por
conterem normas de valor aplicáveis a toda a sociedade, ostentam uma eficácia irradiante que
extrapola as fronteiras orgânicas do Estado, alcançando também as entidades privadas.
253
FACHIN, Luiz Edson, RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Op. cit., pág. 98.
254
DÍAZ REVORIO, Francisco Javier. Valores Superiores e Interpretación Constitucional. Madrid: Centro de
Estudios Políticos y Constitucionales, 1997, págs. 203/204.
110
Todavia, o Estado continua com os encargos e a responsabilidade de garantir a reciprocidade
do exercício das liberdades por parte de todos os membros da vida civil
255
.
Antonio Enrique Pérez Luño defende a necessidade de estender a aplicação dos
direitos fundamentais às relações entre os particulares, porquanto, além da ameaça implacável
dos poderes privados, tal postura propicia a manutenção de uma coerência e unidade interna
ao ordenamento jurídico, impedindo a existência de uma estranha situação de dupla ética no
seio da sociedade. Uma nas relações entre os particulares, calcada na legislação
infraconstitucional de direito privado, e outra, completamente divergente, nas relações entre
particular e o Estado, pautada na primazia dos direitos fundamentais contidos na
Constituição
256
.
Wilson Steinmetz chega a ponto de dizer que a “vinculação dos particulares a
direitos fundamentais, além de ser uma imposição da Constituição, é um instrumento
socialmente necessário para a preservação e promoção dos direitos fundamentais ante as
transformações, sobretudo no plano das relações de poder, das sociedades capitalistas
contemporâneas”
257
.
Com efeito, não se compreenderia uma sociedade e uma ordem jurídica em que o
respeito aos direitos fundamentais do homem fosse procurado apenas nas relações com o
Estado e deixasse de o ser nas relações dos indivíduos entre si. Não basta, pois, limitar o
poder do Estado, sendo preciso também assegurar o respeito dos direitos fundamentais de
cada particular em face dos demais particulares
258
.
255
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Extensão dos Direitos e Deveres Fundamentais às Relações Privadas. In:
Fórum Administrativo de Direito Público. Ano 4. 42. Agosto de 2004, Belo Horizonte: Fórum, 2004, págs.
4236/4237.
256
Op. cit., pág. 314.
257
Op. cit., pág. 83.
258
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Edição. Tomo IV. Coimbra: Coimbra Editora, 1998,
pág. 288.
111
Aliás, a grande peculiaridade, como bem anuncia Alexei Julio Estrada, da incidência
dos direitos fundamentais nos vínculos entre particulares, à diferença do que ocorre nas
relações existentes entre o indivíduo e o Estado, consiste em que todos os sujeitos que a
integram são titulares de direitos fundamentais e, muito provavelmente, de direitos subjetivos
em relação ao outro. A concessão de um direito a um deles implica necessariamente a
denegação do direito, também fundamental, titularizado pelo outro sujeito. Assim, os direitos
fundamentais, neste plano, atuam, ao mesmo tempo, como direitos e como deveres para quem
intervém na relação jurídica de direito privado, estando, em última instância, frente a um
conflito de direitos fundamentais
259
.
Por isso, Jorge Miranda alerta que a aplicação dos direitos fundamentais nas relações
entre particulares não se afigura um problema de equacionamento simples por várias razões.
Em princípio, é indubitável a diferença manifesta de posições e de modos de agir das
entidades públicas e das entidades privadas. Também não se pode simplesmente recortar os
direitos fundamentais como direitos essencialmente colocados frente ao Estado e transplantá-
los, sem as devidas adaptações, para as relações entre particulares. Além do mais, a aplicação
dos direitos fundamentais nas relações interprivadas exige uma análise interdisciplinar. E, por
derradeiro, em que pese estar sujeito à limitação, o princípio da autonomia da privada vai
condicionar em larga medida a aplicação dos direitos, liberdades e garantias fundamentais nas
relações privadas
260
.
Daí a precisa lição de Claus-Wilhelm Canaris que reconhece não terem os direitos
fundamentais, nas relações entre sujeitos de direito privado, exatamente o mesmo conteúdo e
o mesmo alcance do que se verifica na relação entre o cidadão e o Estado. A eficácia pode
determinar diversamente o conteúdo dos direitos fundamentais, a depender se se trata de
259
Op. cit., págs. 88/89.
260
Op. cit., pág. 287.
112
liame privado ou público, ou mesmo determinar em termos diferentes se é possível invocar
dado direito fundamental naquela respectiva relação jurídica. Assim, por exemplo, a exigência
do bem comum ou do interesse público não desempenhariam, em regra, qualquer papel para a
disciplina da relação entre os sujeitos de direito privado, diferentemente do que se constataria
em vínculos de direito público
261
.
Com base nisso, Ingo Wolfang Sarlet resolveu logo excluir da discussão a respeito da
aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares uma série de normas
previstas na Constituição de 1988, que se mostram inoponíveis aos particulares (pessoas
físicas e/ou jurídicas), notadamente quando têm por destinatário exclusivamente os órgãos
estatais, como as hipóteses relacionadas aos direitos políticos, aos direitos de nacionalidade,
às garantias fundamentais processuais (especialmente na esfera penal), aos direitos de asilo e
de não-extradição
262
.
Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da Silva defende que a idéia da incidência dos
direitos fundamentais nas relações privadas inspirou-se no direito das obrigações. Sustenta o
professor lusitano que, além do efeito obrigacional interno dirigido ao devedor, as obrigações,
nos últimos tempos, passaram a produzir um efeito externo consistente no dever imposto a
todas as outras pessoas de respeitar o direito do credor. Neste efeito externo, a obrigação
contraída impunha aos terceiros a uma atitude negativa, de respeito ao direito constituído
pelos titulares primários da relação creditícia
263
.
No caso das relações privadas de consumo, Cláudia Lima Marques reconhece ser
impossível, atualmente, negar a força normativa da Constituição Federal de 1988 no direito
261
Direitos Fundamentais e Direito Privado. Coimbra: Almedina, 2006, págs. 37/38.
262
Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares
aos direitos fundamentais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição Concretizada: Construindo
pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, 115/116.
263
Op. cit., pág. 41.
113
privado, quando não apenas elevou os consumidores à condição de sujeitos de direitos
fundamentais (art. 5º, XXXII, da CF/88), mas também no momento em que assegurou sua
proteção, apesar da livre iniciativa de mercado (art. 170, V, da CF/88) e concomitante com a
possibilidade de privatização, concessão e outros métodos de iniciativa privada em atividades
antes exercidas pelo Estado, como é o caso da saúde, educação, habitação, previdência, dentre
outros
264
.
Mas, para que ocorra efetivamente a incidência dos direitos fundamentais nas
relações privadas, mostra-se imprescindível a realização da ponderação dos bens, valores e
princípios consagrados na Constituição, eventualmente colidentes. A particularidade de haver,
no liame interprivado, dois sujeitos titulares de direitos fundamentais, por si só, justifica a
imperiosidade da utilização da técnica da ponderação, para resolver os conflitos que surjam.
De certa forma, uma das primeiras manifestações neste sentido do Supremo Tribunal
Federal, após a Constituição de 1988, relativas à aplicabilidade dos direitos fundamentais nas
relações privadas e, mais especificamente, no âmbito dos contratos, ainda que não tivesse
expressado qualquer referência às teorias que tratam da eficácia nas relações interprivadas, foi
a discussão, na ação direta de inconstitucionalidade promovida pela Confederação Nacional
dos Estabelecimentos de Ensino - CONFENEM (ADIN nº 319-4/DF), acerca da possibilidade
de estipulação de critérios de reajuste de mensalidades escolares pelas instituições de ensino
privadas.
Mesmo não invocando as teorias que tratam da eficácia frente a terceiros, a Suprema
Corte considerou que a simples fixação pelo Estado, por via legislativa (Lei 8.039/90), de
critérios de reajuste de mensalidades escolares não seria inconstitucional, mas uma forma de
conciliar o fundamento da livre iniciativa e do princípio da livre concorrência com os da
264
Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações contratuais. Edição. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, págs. 211/212.
114
defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em atenção aos ditames da
justiça social
265
.
No voto do relator, Moreira Alves, fica evidente que a relevância do bem
constitucional protegido (a educação) influenciou decisivamente a interpretação da Lei
8.039/90 e, em especial, dos princípios da ordem econômica que autorizariam, em princípio, a
livre fixação dos valores das mensalidades escolares pelas instituições privadas, quando
proclama que a intervenção do Estado no domínio econômico encontra-se justificada “ainda
mais intensamente quando a atividade econômica diz respeito à educação, direito de todos e
dever do Estado, disciplinada, em si mesma, no título da Ordem Social, ordem essa que tem
como objetivo, além da justiça social, o bem-estar social, nos termos expressos no artigo
193”.
Outra decisão bem mais específica em que o Supremo Tribunal Federal enfrentou a
temática dos direitos fundamentais nas relações privadas foi a questão, agora em sede de
recurso extraordinário, da possibilidade de exclusão de sócio de sociedade civil sem fins
lucrativos de natureza não-estatal (privado), sem que lhe fosse oportunizado o contraditório e
a ampla defesa. Tratava-se de sócio da União Brasileira de Compositores UBC, que havia
sido excluído da associação, por força de decisão exarada pela Comissão de Inquérito,
composta por três membros e designada pela diretoria da entidade, para apurar possível
prática de infrações estatutárias supostamente cometidas por ele. A Comissão Processante
constatou a prática de infrações e, sem conferir qualquer oportunidade de defesa ao sócio para
refutasse as acusações e produzisse provas em seu favor, sugeriu à diretoria a sua exclusão do
quadro da associação, o que acabou ocorrendo. O sócio excluído ingressou com ação judicial
265
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIN 319-4/DF. Plenário. Rel. Min. Moreira Alves. STF, Brasília, DF,
03 de março de 1993. Disponível em: http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 18 de setembro de
2007.
115
perante a Justiça Estadual, tendo, ao final das instâncias ordinárias, o Tribunal de Justiça do
Rio de Janeiro reconhecido o direito ao contraditório e à ampla defesa em sede de processo
disciplinar, ainda que desencadeado por instituição privada.
No julgamento do extraordinário, a relatora Ellen Gracie exarou voto no sentido de
dar provimento ao recurso, por entender que as regras e princípios constitucionais que se
referem ao contraditório e à ampla defesa não se aplicam às associações privadas, que
desfrutam de liberdade, para se organizar e estabelecer normas de funcionamento e de
relacionamento entre os sócios, desde que respeitada a lei. Porém, Gilmar Mendes, após ter
discorrido longamente a respeito das várias teorias existentes sobre a temática dos direitos
fundamentais nas relações privadas, reconheceu, em voto-de-vista, no que foi acompanhado
pelos demais ministros da Corte, que a União Brasileira de Compositores UBC, embora
fosse sociedade civil não-estatal, exercia atividade de caráter público e, por essa circunstância,
estaria vinculada ao mesmo regime jurídico-constitucional dedicado às relações entre
indivíduo/Estado
266
.
No voto-condutor da decisão, ao que parece, fica evidente que se admite a vinculação
dos direitos fundamentais nas relações privadas, em especial quando se constata a existência
do fenômeno do poder privado, como se depreende do seguinte trecho da ementa: “As
violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o
cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de
266
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 201.819/RJ. Segunda Turma. Rel. Min. Ellen Gracie. STF, Brasília,
DF, 11 de outubro de 2005. Disponível em: http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 18 de
setembro de 2007. É oportuno mencionar que, por força da Lei 11.127/2005, o art. 57 do Novo Código Civil
de 2002 (Lei 10.406/2002), passou a prever que “A exclusão do associado é admissível havendo justa
causa, assim reconhecida em procedimento que assegure direito de defesa e de recurso, nos termos previstos no
estatuto”. O STF já tinha, em outro caso similar, decidido no mesmo sentido, reconhecendo o direito do
associado à cooperativa ao devido processo legal e ao exercício amplo da defesa, quando estivesse ameaçado de
ser excluído por prática de conduta contrária aos estatutos (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE
158.215/RS. Turma. Rel. Min. Marco Aurélio. STF, Brasília, DF, 30 de abril de 1996. Disponível em:
http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 18 de setembro de 2007).
116
direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam
diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção
dos particulares em face dos poderes privados(grifos acrescidos). Dessa maneira, mesmo
à míngua de regra prevista no estatuto da associação ou em lei na época, restou assentado que
o direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa devia também ser garantido no caso
de uma relação jurídica formada eminentemente entre particulares. E, certamente, seguiu essa
linha teórica devido ao desnível entre os componentes integrantes da relação processual,
considerando o sócio como hipossuficiente ou parte mais frágil e vulnerável do liame.
Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal novamente, em acalorado debate,
debruçou-se sobre a temática da vinculação dos direitos fundamentais nas relações privadas,
sem que, no entanto, fizesse menção à sua teoria, salvo raríssimas exceções como o voto de
Joaquim Barbosa e sucinta referência de Sepúlveda Pertence
267
em seu voto. O caso dizia
respeito à possibilidade de penhora de imóvel residencial, considerado bem de família, do
fiador nos contratos de locação.
Aliás, a Corte havia, em outra ocasião, tido a oportunidade de discutir a mesma
questão, no Recurso Extraordinário 352.940/SP de relatoria de Carlos Velloso
268
, no qual
assegurou a impenhorabilidade do único bem imóvel residencial do prestador de fiança
locatícia (bem de família), em atenção à tutela constitucional concedida ao direito social de
moradia.
Neste novo caso, sem lograr êxito nas instâncias ordinárias, o fiador interpôs recurso
extraordinário, pleiteando a inconstitucionalidade incidental do art. 3º, inciso VII, da Lei
8.009/90, com a dicção dada pela Lei 8.245/91, que permite a penhora de bem de família
267
Sepúlveda Pertence é ex-integrante do Supremo Tribunal Federal.
268
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 352.940/SP. Plenário. Rel. Min. Carlos Velloso. STF, Brasília, DF,
25 de abril de 2005. Disponível em: http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 18 de setembro de
2007. Também Carlos Velloso não compõe mais a Corte Suprema.
117
na hipótese de obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação, porém o
resultado do julgamento foi diverso daquele relatado por Carlos Velloso.
O Supremo, por maioria, vencidos Eros Grau, Carlos Brito e Celso de Mello,
entendeu ser admissível a penhora de bem imóvel residencial (bem de família) de fiador de
contrato de locação, reafirmando a constitucionalidade do art. 3º, VII, da Lei 8.009/90
269
, sob
a alegação de que a impenhorabilidade acarretaria retração e dificuldades de acesso ao
mercado de locação predial por parte dos candidatos a locatários. Acresça-se a isso que a
decretação de inconstitucionalidade e a conseqüente impossibilidade de penhora romperia o
equilíbrio do mercado, despertando exigência de garantias mais custosas para as locações
residenciais, com reflexos extremamente nefastos para o próprio direito constitucional à
moradia. Partiu-se da premissa de que os locadores não celebram contratos de locação sem
garantia, o que praticamente inviabiliza o acesso à locação de pessoas que não têm condições
econômicas de ser proprietários de imóvel.
Enfim, o Tribunal, majoritariamente, concluiu que a viabilização da locação
residencial, patrocinada pela Lei 8.009/90 com a autorização de penhora de bem de família do
fiador, é modalidade de concretização do direito fundamental social à moradia. Além disso,
também se reconheceu que a decisão de prestar fiança é expressão da liberdade e do direito à
livre contratação e que o direito fundamental social à moradia pode ser renunciado por livre e
espontânea vontade.
De outro lado, a corrente minoritária do Tribunal, ancorada na primazia da proteção
constitucional à moradia, defendeu, em princípio, uma incongruência no raciocínio
prevalecente, assim sintetizado na pena de Eros Grau: “Se o benefício da impenhorabilidade
269
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 407.688/SP. Plenário. Rel. Min. Cezar Peluso. STF, Brasília, DF, 08
de fevereiro de 2006. Disponível em: http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 18 de setembro de
2007.
118
viesse a ser ressalvado quanto ao fiador em uma relação de locação, poderíamos chegar a uma
situação absurda: o locatário que não cumprisse a obrigação de pagar aluguéis, com o fito de
poupar para pagar prestações devidas em razão de aquisição de casa própria, gozaria da
proteção da impenhorabilidade. Gozaria dela mesmo em caso de execução procedida pelo
fiador cujo imóvel resultou penhorado por conta do inadimplemento das suas obrigações,
dele, locatário”. Em seguida, Carlos Britto enaltece que a moradia recebeu proteção especial
da Constituição como um direito social, com destinação constitucional à satisfação das
necessidades vitais básicas do trabalhador e da sua família (arts. e 7º, inciso IV, da CF),
não estando, portanto, na esfera de disponibilidade do indivíduo. E, por fim, Celso de Mello
adverte que o direito à moradia deriva do princípio da dignidade da pessoa humana, que eleva
o homem e a conseqüente concepção existencial das relações civis à posição de prevalência
em relação a valores de caráter meramente patrimonial.
Essa discussão, que será novamente retomada ao final deste trabalho, em análise bem
mais profunda, repousa na investigação se, dentre as várias hipóteses de concretização do
direito fundamental à moradia, a doutrina da eficácia nos liames privados dos direitos
fundamentais permitirá a penhorabilidade de imóvel residencial (bem de família) do fiador de
contrato de locação.
Há, ainda, outros casos decididos pelo Supremo Tribunal Federal, porém no campo
do direito trabalhista, que, de certo modo, demonstram a incidência dos direitos fundamentais
nas relações contratuais privadas.
Uma destas foi julgada pela Suprema Corte, no ano de 1995, e dizia respeito à
exigência, por força do contrato de trabalho, de que as operárias de uma indústria de vestuário
teriam que se submeter à revista íntima na saída da fábrica, sob pena de demissão por justa
causa. O Diretor-Presidente da empresa de vestuário foi processado criminalmente na Justiça
119
estadual, pela prática do crime de constrangimento ilegal (art. 146 do Código Penal
brasileiro), porém foi absolvido pelo então Tribunal de Alçada Criminal do Rio de Janeiro.
Em recurso extraordinário interposto por algumas ex-operárias da fábrica, o STF, embora
reconhecesse flagrante ofensa à intimidade das empregadas na conduta da empregadora,
acabou por declarar extinta a punibilidade pela ocorrência da prescrição da pretensão
punitiva
270
.
Em outro decidido em 1996, o Supremo Tribunal Federal entendeu haver
discriminação praticada por empresa francesa no Brasil que não aplicou o seu estatuto
pessoal, restrito ao empregado de nacionalidade francesa, em favor de seu trabalhador
brasileiro, justamente porque não era francês. Considerou o Excelso Pretório que toda
discriminação, baseada em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo,
como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, além de outras formas
discriminatórias, viola a Constituição (art. 3º, IV, CF)
271
.
No Superior Tribunal de Justiça, por seu turno, uma única referência expressa feita à
eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas ocorreu, curiosamente, na seara
processual, onde exatamente reside a maior resistência da doutrina. Era um caso de uma ação
declaratória movida por um pequeno agricultor contra uma instituição bancária, em que o
Tribunal Superior decretou a inversão do ônus da prova - matéria inequivocamente
processual, ainda que assentada em premissa de direito material (relação de consumo) -, para
270
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 160.222/RJ. 1ª Turma. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. STF, Brasília,
DF, 11 de abril de 1995. Disponível em: http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 18 de setembro
de 2007.
271
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 161.243/DF. 2ª Turma. Rel. Min. Carlos Velloso. STF, Brasília, DF,
29 de outubro de 1996. Disponível em: http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 18 de setembro de
2007.
120
que a demandada trouxesse a cópia do contrato de financiamento celebrado entre eles, não
juntada pelo demandante com a petição inicial
272
.
Entendeu a Corte que havia inescondível desigualdade fática na relação jurídica-
processual existente entre um pequeno agricultor e uma instituição financeira, que tem muito
mais facilidade de guardar e conservar documentos referentes a contratos de financiamento. O
voto do relator Ruy Rosado de Aguiar explicitou essas razões amparadas na teoria da
vinculação dos direitos fundamentais nas relações privadas, ao pontificar que: “essas novas
exigências éticas feitas para a regulação do tráfico comercial e que se estendem para todos os
ramos do Direito, inclusive para o campo processual, devem orientar o comportamento das
partes. Não se trata de simples preceito moral, porque a sua exigibilidade decorre da eficácia
mediata da Constituição da República, pela teoria da ‘Drittewirkung’, segundo a qual as
regras asseguradoras dos direitos fundamentais do cidadão estabelecem enunciados que
devem regular não apenas suas relações com o Estado, mas orientam todo o campo da
autonomia privada, sobre o qual igualmente incidem”.
Mas esta matéria, na doutrina e na jurisprudência, não é tão simples como parece,
sobretudo em decorrência da insistente penumbra da dimensão subjetiva que ainda recai sobre
o estudo da dogmática dos direitos fundamentais, associada a inexistência, na maior parte dos
casos, de previsão nas Constituições da incidência dos direitos fundamentais nas relações
privadas.
3.4. Questão terminológica e disciplina constitucional no direito comparado
272
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRgAG. 49.124/RS, Turma, Rel. Min. Ruy Rosado Aguiar.
STJ, Brasília, DF, 04 de outubro de 1994. Disponível em: http://www.stj.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em:
19 de setembro de 2007.
121
A problemática da incidência dos direitos fundamentais nas relações interprivadas
também provoca no seio da doutrina discussões a respeito da terminologia mais adequada
para tratar do fenômeno da irradiação dos efeitos. São várias as expressões, dentre elas, a
“eficácia horizontal”, “eficácia entre terceiros”, “eficácia externa”, que tentam caracterizar a
possibilidade de aplicar os direitos fundamentais nas relações travadas entre particulares. Sem
falar que alguns criticam a expressão “eficácia”, propondo, em seu lugar, “vinculação”,
“incidência” ou “aplicabilidade”.
A expressão “eficácia horizontal” enfrenta resistência em razão de não compreender,
em seu contexto, a relação privada entre dois particulares que estejam em condições de
desigualdade, em decorrência do poder privado. Nesta hipótese, não se teria uma eficácia
horizontal, mas vertical, muito semelhante do que a que se verifica entre o indivíduo e o
Estado
273
.
De igual sorte, também não se poderia admitir as expressões “eficácia entre
terceiros” e “eficácia externa”, pois se estaria enaltecendo a ultrapassada teoria liberal dos
direitos fundamentais que os compreende apenas nos liames indivíduo/Estado. A visão mais
recente dos direitos fundamentais consagra a vinculação de seus ditames nas relações
privadas, tornando-se impróprio dizer que, neste caso, seria externa ou entre terceiros a
incidência
274
.
No entanto, como bem assinala Daniel Sarmento, por mais que reconheça a
procedência das críticas às várias expressões utilizadas pela doutrina, da mesma forma, este
trabalho não dará maior importância aos preciosismos terminológicos, valendo-se
indistintamente de todas elas
275
, inclusive as eventuais combinações formadas com as
273
STEINMETZ, Wilson. Op. cit., pág. 57.
274
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pág. 9.
275
Ibid., pág. 10.
122
expressões “vinculação”, “incidência” e aplicabilidade” e tantas outras que porventura
surgirem ao longo do texto.
Desde a década de 50, a doutrina, sobretudo a estrangeira, com maior realce para a
alemã - embora não se possa olvidar a profunda contribuição das literaturas espanhola, norte-
americana e portuguesa -, tem, ao longo do tempo, aceitado, quase que unanimente, de certa
forma, a vinculação dos direitos fundamentais nas relações jurídicas privadas, porém se divide
quanto aos contornos em que se deve ocorrer essa incidência em termos de medida, extensão
e intensidade da eficácia. A grande maioria das Constituições desses países não estabelecem
expressamente a possibilidade de incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas,
quando muito a estipulam em relação aos liames do indivíduo frente ao Estado (Poder
Público), com exceção da portuguesa, que, apesar disso, não está livre de divergências no
campo doutrinário e jurisprudencial.
A Constituição alemã de 1949, chamada de Lei Fundamental de Bonn, no art. 1.3,
não prevê expressamente a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, ao
proclamar que: “Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário estarão obrigados a
considerar como diretamente aplicáveis os direitos fundamentais a seguir enunciados”.
A Constituição espanhola de 1978 também seguiu a mesma linha de vincular
expressamente os poderes públicos aos direitos fundamentais, ao dispor, no art. 53.1, que
“Los derechos y libertades reconocidos en el Capítulo segundo del presente Título vinculan a
todos los poderes públicos. Sólo por ley, que en todo caso deberá respetar su contenido
esencial, podrá regularce el ejercicio de tales derechos y libertades, que se tutelarán de
acuerdo con lo previsto en el artículo 161, 1, a.”.
A Constituição Norte-Americana de 1787, até em virtude de seu acentuado
sintetismo, não faz qualquer referência à eficácia dos direitos fundamentais nem mesmo nas
123
relações jurídicas constituídas entre indivíduo e Estado, porém vincula o Judiciário aos termos
da Constituição, quando reza, no art. 6.2, que “Esta Constituição e as leis complementares e
todos os tratados já celebrados ou por celebrar sob a autoridade dos Estados Unidos
constituirão a lei suprema do país; os juízes de todos os Estados serão sujeitos a ela, ficando
sem efeito qualquer disposição em contrário na Constituição e nas leis de qualquer dos
Estados”.
A Constituição Portuguesa de 1976, por sua vez, admite a possibilidade de incidência
dos direitos fundamentais nas relações interprivadas, quando, no art. 18.1, preceitua que “Os
preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente
aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”.
a Constituição brasileira de 1988 não faz qualquer referência expressa à
possibilidade de eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas, apenas
prevendo, no § 2º, do art. 5º, que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”
276
.
276
Jorge Reis Novais narra um fato curioso que constatou entre os alunos de pós-gradução brasileiros e
portugueses, “Um recente curso de mestrado na Faculdade de Direito de Lisboa subordinado a este tema e
freqüentado em igual mero por estudantes brasileiros e portugueses proporcionou-nos esta clara verificação
inicial: enquanto os estudantes brasileiros se pronunciavam unanimemente pela aplicação directa dos direitos
fundamentais aos particulares, os estudantes portugueses eram muito mais reticentes a esta ideia. O curioso é
eu esta divergência reproduz uma divisão no mesmo sentido que é possível perceber entre as doutrinas brasileira
e portuguesa. Ou seja, enquanto que praticamente todos os autores brasileiros que ultimamente m escrito sobre
o tema aderem, com diferenciações de pormenor, à tese da eficácia ou aplicabilidade directa, parte substancial
da melhor doutrina portuguesa pronuncia-se em sentido diverso. Daí uma primeira complexidade e uma primeira
sugestão. A perplexidade advém desse facto: a Constituição brasileira não tem nenhuma afirmação clara sobre a
questão e, no entanto, os brasileiros convergem na afirmação da aplicabilidade ou eficácia directa; a Constituição
portuguesa consagra a aplicabilidade directa de forma aparentemente inequívoca, pelo menos no sentido em que
não distingue a vinculação das entidades públicas da vinculação das privadas (‘os preceitos constitucionais
respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e
privadas’) e os portugueses manifestam evidentes reservas em adoptar essa posição” (Os Direitos Fundamentais
nas Relações Jurídicas entre Particulares. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de, SARMENTO, Daniel
(Coords.). Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007, pág. 355).
124
À vista disso, impende ostentar as cinco principais teorias que procuram explicar o
fenômeno da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: a)
teoria da não aplicação dos direitos fundamentais; b) teoria do state action; c) teoria da
eficácia mediata ou indireta; d) teoria da eficácia imediata ou direta; e e) teoria dos deveres de
proteção.
3.5. Teorias acerca da incidência dos direitos fundamentais nas relações interprivadas
3.5.1. Teoria da não aplicação dos direitos fundamentais
À vista da dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, parcela da doutrina não
concebe a incidência de princípios e valores constitucionais no direito privado. Estes
doutrinadores descartam qualquer tipo de via de influência dos direitos fundamentais nas
relações jurídicas entre sujeitos de direito privado, por desnaturar a tradicional concepção
liberal do constitucionalismo, que fora construído para proteger o indivíduo contra o Estado.
Assim, somente haveria vinculação dos direitos fundamentais nas relações entre o indivíduo e
o Estado.
Na doutrina tedesca, de postura conservadora e considerado “paleoliberal” por seus
críticos, Ernst Forsthoff foi um dos baluartes dessa corrente, ao sustentar que, para que os
direitos fundamentais pudessem cumprir a função social a que se propunha não era preciso
desfigurar o perfil clássico de servirem como limites ao poder estatal. Forsthoff não aceitava a
interpretação dos direitos fundamentais como um sistema de valores e dizia que propostas
125
inovadores neste sentido provocavam insegurança e provável dissolução da Constituição
277
. O
próprio direito privado é que se encontra mais apto a solucionar os conflitos instaurados em
seu âmbito.
Mas essa teoria acabou não predominando na Alemanha, principalmente em virtude
da decisão prolatada pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, no caso Lüth, que
praticamente enterrou qualquer idéia que rechaçava a vinculação dos direitos fundamentais no
terreno do direito privado, na medida em que a Constituição, para aquela Corte, apresentava
uma ordem objetiva de valores tendente a alcançar toda a sociedade.
Um exemplo, porém, em que se adotou, na esfera judicial, a concepção que nega a
eficácia horizontal dos direitos fundamentais ocorreu no caso Seeling, julgado pelo Tribunal
Constitucional suíço, em 1954. Neste caso, o proprietário de uma sala de cinema impediu o
acesso de um conhecido comentarista de cinema que havia criticado a programação do
referido estabelecimento. O Tribunal decidiu em favor do proprietário do cinema, invocando a
primazia da liberdade contratual em detrimento da liberdade de expressão e informação, sob
alegação de este último direito fundamental não se aplicava às relações jurídicas entre
particulares
278
.
3.5.2. Teoria do state action
Uma das teorias também refratárias à idéia de vinculação direta dos direitos
fundamentais nas relações privadas foi criada e desenvolvida nos Estados Unidos, chamada de
state action. A teoria do state action busca alargar o conceito de “ação estatal”, para também
incluir em seu âmbito as ações praticadas por particulares ofensivas aos direitos fundamentais.
277
UBILLOS, Juan María Bilbao. Op. cit., págs. 278/279.
278
UBILLOS, Juan María Bilbao. Op. cit., pág. 281.
126
A doutrina da state action consiste no fato de que, ao invés de reconhecer
expressamente que direitos fundamentais vinculam, de alguma forma, as relações entre
particulares e que, nesse sentido, um ato privado pode violar direitos fundamentais, preferiram
a doutrina e a jurisprudência norte-americanas, mantendo-se fiéis à concepção liberal de
direitos fundamentais, considerar que tais ações se inserem na seara estatal. Ao invés de negar
a aplicabilidade às relações privadas, a doutrina da state action tem como objetivo justamente
definir em que situações equiparáveis à ação estatal - uma conduta privada está vinculada
aos direitos fundamentais
279
.
Como ilumina J. J. Gomes Canotilho, a doutrina do state action conduz a
problemática da eficácia dos direitos fundamentais na ordem jurídica privada a uma questão
de imputação. Investiga-se, neste palmilhar, se o ato de um particular, direta ou indiretamente
agressor de direitos ou princípios constitucionais, pode ser imputado ao Estado
280
.
Além da justificativa fundada na visão do liberalismo clássico, a teoria do state
action tem apoio no pacto federativo. Nos Estados Unidos, legislar sobre direito privado cabe
aos Estados, e não à União, a não ser em matérias relacionadas ao comércio interestadual ou
internacional. Por isso mesmo, a tese visa a preservar o espaço de autonomia dos Estados,
impedindo que tribunais federais, a pretexto de aplicarem a Constituição, venham a intervir na
esfera das relações de direito privado
281
.
Como diz Wilson Steinmetz, “amplia-se o campo de abrangência do conceito de
state action operando eficácia de direitos fundamentais nas hipóteses em que um particular
279
AFONSO DA SILVA, Virgílio. Op. cit., pág. 99.
280
Civilização do Direito Constitucional ou Constitucionalização do Direito Civil? A Eficácia dos Direitos
Fundamentais na Ordem Jurídico-Civil no Contexto do Direito s-Moderno. In: GRAU, Eros, GUERRA
FILHO, Willis (Orgs.). Direito Constitucional Estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo:
Malheiros, 2001, pág. 109.
281
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pág.
228.
127
demanda contra outro particular alegando violação de direito fundamental individual”. E isso
se operacionaliza, no campo judicial, na análise do juiz ou do tribunal se, em demanda
instaurada unicamente entre particulares, e, portanto, sem a participação do ente estatal, as
ações do demandado podem ser imputadas, por alguma razão, ao Estado e, assim, ser
subsumidas ao conceito de state action
282
.
A diferença essencial entre a doutrina do state action e a anterior que nega
completamente qualquer incidência é quanto aos efeitos. Enquanto a primeira, mesmo não
admitindo a eficácia direta, faz incidir os direitos fundamentais nas relações privadas,
utilizando-se de um artifício (equiparação da ação privada à state action), a segunda
simplesmente não permite, em hipótese alguma, a incidência de qualquer eficácia
interprivada.
A teoria do state action pode ser identificada em vários casos julgados pela Suprema
Corte norte-americana. Em um deles dizia respeito a uma cláusula da convenção de um
condomínio em St. Louis, no Estado de Missouri, que proibia a aquisição de propriedade por
“povos negros ou da raça mongol”, aplicada desde 1911. Uma família negra comprou uma
casa no condomínio, em 1945, e foi impedida de tomar a posse da propriedade, sendo forçada
a ingressar na Justiça americana. Ao enfrentar esse caso em última instância, a Suprema Corte
reconheceu que as decisões proferidas pelas instâncias ordinárias do Judiciário americano
constituíam ações estatais e, por esse motivo, qualquer pronunciamento judicial em favor da
prevalência da cláusula restritiva seria inconstitucional, dada a inequívoca discriminação
praticada
283
.
282
Op. cit., pág. 179.
283
ESTADOS UNIDOS. Suprema Corte dos Estados Unidos da América. Shelley v. Kraemer, 334 U.S. 1 (1948).
Disponível em: http://www.supremecourtus.gov/casehand.html. Acesso em: 14 de outubro de 2007.
128
Outro caso importante decidido pela Suprema Corte norte-americana em que fora
imputada ao Estado a conduta realizada por particular foi o de um restaurante privado, que
operava em um estacionamento de veículos e que se recusou a fornecer alimento e bebida a
um negro. O Tribunal Supremo entendeu tratar-se de uma situação de state action, porquanto
o estabelecimento privado, alugado de uma agência do Estado de Delaware, era localizado
dentro de um edifício público, construído com fundos públicos para atender a finalidades
públicas. Por isso, o Estado era um participante comum na operação do restaurante privado, e
sua recusa em servir um negro viola a cláusula da igual proteção, capitulada na décima quarta
emenda da Constituição americana de 1787
284
.
Em outro, tratava-se de um cidadão americano, residente na cidade de York, no
Estado da Pensilvânia, que sofreu a suspensão no fornecimento de energia elétrica, sem aviso
prévio e a possibilidade de contraditório e direito de defesa, efetuada pela companhia privada
de energia elétrica, por falta de pagamento. Na hipótese, observou que a companhia de
energia elétrica, mesmo de natureza privada, tinha obtido um certificado de conveniência
pública emitida pela Comissão de Serviço Público da Pensilvânia e que o serviço prestado de
fornecimento de energia elétrica era proveniente de permissão estatal, sendo sua ação, por via
de conseqüência, equiparável ao do Estado. Assim, a Suprema Corte norte-americana
declarou, neste caso, que a suspensão do serviço de energia elétrica, sem prévio aviso e
oportunidade de defesa, violava o princípio do devido processo legal
285
.
No entanto, algumas teorias optaram por conceber a eficácia dos direitos
fundamentais nas relações interprivadas, apenas divergindo de que forma ocorreria essa
284
ESTADOS UNIDOS. Suprema Corte dos Estados Unidos da América. Burton v. Wilmington Pkg. Auth., 365
U.S. 715 (1961). Disponível em: http://www.supremecourtus.gov/casehand.html. Acesso em: 14 de outubro de
2007.
285
ESTADOS UNIDOS. Suprema Corte dos Estados Unidos da América. Jackson v. Metropolitan Edison Co.,
419 U.S. 345 (1974). Disponível em: http://www.supremecourtus.gov/casehand.html. Acesso em: 14 de outubro
de 2007.
129
vinculação. Para alguns, a incidência desencadearia de maneira indireta ou mediata nas
relações jurídicas realizadas entre particulares, enquanto outros preferiram, em nome da
supremacia da Constituição, defender a aplicação imediata ou direta dos direitos
fundamentais, havendo, ainda, quem atribuísse o dever ao Estado de assegurar a
imperiosidade dos princípios e valores constitucionais sobre o direito privado.
3.5.3. Teoria da eficácia mediata ou indireta
A primeira delas consiste na teoria da eficácia mediata ou indireta dos direitos
fundamentais nas relações entre particulares. Como o próprio nome já a denuncia, seria
permitida a incidência dos direitos fundamentais no âmbito privado, porém de forma indireta,
mediante cláusulas gerais do direito civil, que atuariam como “pontos de entrada” daqueles
direitos nas relações jurídicas entre particulares.
A projeção axiológica dos direitos fundamentais incorporam-se ao mundo das
relações interprivadas, dando sentido e conteúdo às cláusulas e aos princípios abertos do
direito privado, tais como, por exemplo, a ordem pública, a boa-fé, os bons costumes, a
função social, interesse público, abuso de direito, dentre outras expressões de textura
semântica fluida e indeterminada. Somente através da transformação em normas de direito
civil é que poderiam os direitos fundamentais obrigar as pessoas nas suas vidas jurídico-
privadas e através da sua irradiação sobre os conceitos indeterminados ou as cláusulas
gerais privatísticas poderiam os correspondentes conceitos tornar-se operativos
286
.
Um dos principais defensores na Alemanha da teoria da eficácia mediata dos direitos
fundamentais foi Günther Dürig, que, na sua obra escrita em 1956, chamada de Grundrechte
286
MIRANDA, Jorge. Op. cit., págs. 287/288.
130
und Privatrechtsprechung” (traduzido como “Direitos Fundamentais e Relações Jurídicas
Privadas”), assentou que os direitos fundamentais operariam no âmbito privado através das
cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos preenchidos valorativamente
287
.
Dürig partiu da idéia de que o princípio da dignidade da pessoa humana, inserto no
art. 1º da Lei Fundamental de Bonn, além de se destinar a estabelecer uma obrigação negativa
ao Estado (liberdades blicas), também impõe um dever de proteção e de tutela frente aos
valores que os direitos fundamentais sedimentam na base da ordem jurídica. Entretanto, Dürig
percebeu que esse último fenômeno ocorria de forma diversa se fosse dirigida contra o Estado
ou contra terceiros. Frente a terceiros, o direito privado conta com a limitação da autonomia
privada. Por isso, o meio idôneo para a realização dos direitos fundamentais no tráfico
jurídico privado é a incorporação de seu conteúdo nas cláusulas gerais do direito privado
288
.
Consoante o pensamento de Dürig, o princípio constitucional da liberdade (e do livre
desenvolvimento da personalidade) deve continuar a ser o postulado básico, o valor
fundamental a ter em conta na solução dos problemas no campo do direito privado. Para ele,
submeter a atividade dos sujeitos privados aos mesmos direitos fundamentais, que limitam a
ação do Estado, significaria transformar os direitos em deveres, invertendo o seu sentido.
Neste contexto, os princípios constitucionais apenas serviriam como vetores axiológicos de
interpretação das cláusulas gerais suscetíveis de concretização, seja para clarificá-los, seja
para acentuar ou desacentuar determinados elementos do seu conteúdo, ou, em casos
extremos, suprir as lacunas existentes, mas sempre dentro do “espírito” do direito privado
289
.
Na decisão proferida em 1958 no caso Lüth, o Tribunal Constitucional Federal
alemão sufragou a teoria da eficácia mediata, ao dizer que as cláusulas gerais deveriam
287
ESTRADA, Alexei Julio. Op. cit., pág. 109.
288
DÜRIG, nther. Grundrechte und Privatrechtsprechung. München: Beck, 1956. Apud ESTRADA, Alexei
Julio. Op. cit., págs. 110/111.
289
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Op. cit., págs. 251/252.
131
funcionar como “pontos de entrada” dos direitos fundamentais no direito civil
290
, e que a
ordem de valores por eles gerada seria fortemente considerada na interpretação das relações
privadas. Os direitos fundamentais não se destinariam a solver diretamente conflitos de direito
privado, devendo o próprio sistema jurídico infraconstitucional cuidar de desvencilhá-los
291
.
Wilson Steinmetz sintetizou as principais características da doutrina da eficácia
indireta dos direitos fundamentais nos seguintes termos: a) as normas de direitos
fundamentais produzem efeitos nas relações interprivadas, mediatamente, por intermédio de
cláusulas e parâmetros dogmático hermenêutico-aplicativos próprios do direito privado; e b)
compete ao legislador concretizar os direitos fundamentais, através da criação de regulações
normativas especifícas que delimitem o conteúdo, as condições de exercício e o alcance nas
relações entre particulares. Steinmetz ainda arremata que, para a teoria da eficácia mediata, os
direitos fundamentais seriam tão-somente princípios objetivos, correspondente a um sistema
de valores ou ordem objetiva de valores
292
.
Demais disso, Steinmetz relata a existência de variações teóricas acerca da teoria da
aplicação indireta dos direitos fundamentais nas relações privadas. Segundo ele, haveria, pelo
menos, quatro correntes diferentes que se afirmariam mediata dos direitos fundamentais
293
.
A primeira variação sinalizaria que a eficácia dos direitos fundamentais apenas se
realizaria na hipótese de concretização legislativa. Na falta dela, os direitos fundamentais não
vinculariam os particulares. A segunda estaria traduzida na idéia de que a eficácia dos direitos
fundamentais deveria ser protagonizada, preferencialmente, pelo legislador, porém, na sua
inércia, caberia ao juiz decidir o caso concreto com base na interpretação valorativa das
cláusulas gerais do direito privado. Mas não se resolvendo adequadamente o caso, concluir-
290
SCHWABE, Jürgen. Op. cit., pág. 388.
291
MENDES, Gilmar. Op. cit., pág. 125.
292
Op. cit., págs. 137/138.
293
Ibid., págs. 149.
132
se-ia pela não incidência nas relações interprivadas. A terceira teria os mesmos elementos da
segunda, mas, ao contrário dela, o sendo possível uma solução adequada,
excepcionalmente, quando se estivesse diante de uma desigualdade fática relevante, o juiz
deveria aplicar diretamente os direitos fundamentais. E, por fim, a última corrente considera
que, na ausência de concreção legislativa e na impossibilidade de decidir baseado nas
cláusulas gerais, incidiriam diretamente os direitos fundamentais, independentemente de se
tratar de relação fática desigual
294
.
Todavia, como se claramente, as variações doutrinárias nada mais expressam do
que as rias teorias acerca da vinculação dos direitos fundamentais nas relações privadas e,
não propriamente, em diferenciações da doutrina da eficácia indireta. Ao que parece, somente
as duas primeiras é que se aproximariam da teoria da eficácia mediata, sendo que as duas
últimas restantes, a bem da verdade, corresponderiam à teoria da eficácia imediata ou direta,
como será visto mais adiante.
Konrad Hesse defende a eficácia indireta ou mediata dos direitos fundamentais nas
relações privadas, por entender que cabe ao legislador do direito privado a tarefa
constitucional de transformar o conteúdo dos direitos fundamentais em direito imediatamente
vinculante para os particulares. O legislador compete cristalizar as múltiplas modificações
resultantes da influência dos direitos fundamentais no direito privado, não podendo, portanto,
mutilar a autodeterminação e a responsabilidade individuais, sob pena de esvaziar a
autonomia privada
295
.
Jorge Reis Novais também rejeita qualquer tentativa de conferir primazia ao juiz em
detrimento do legislador democrático. A prioridade das tarefas de realização dos direitos
fundamentais nas relações entre os particulares deve continuar a ser da alçada do legislador
294
Op. cit., págs. 149/150.
295
Derecho Constitucional y Derecho Privado. Madrid: Cuadernos Civitas, 1995, págs. 64/65.
133
democrático. E deve ser assim, sobretudo, quando se reconhece que os problemas decididos
pelo Estado são, em regra, aqueles em que os interesses de liberdade não se situam apenas de
um dos lados da relação jurídica, como acontece nos conflitos entre indivíduo e Estado, mas
alcançam ambos os lados do conflito entre indivíduos, o que acaba por exigir a realização de
juízos complexos, inclusive políticos, de avaliação, valoração e ponderação dos interesses em
confronto
296
.
A doutrina da vinculação mediata, contudo, não se sustenta, como bem demonstra
Claus-Wilhelm Canaris, por razões de lógica jurídica. Segundo ele, é impossível controlar, do
ponto de vista intelectual, a conformidade de uma norma de direito privado com os direitos
fundamentais sob a perspectiva de uma outra norma de direito privado (cláusula ou conceito
do direito privado). Isso porque as duas normas estarão, em termos de lógica normativa,
situadas no mesmo nível
297
.
Ao enriquecer em termos jurídico-constitucionais uma das normas de direito privado,
mediante a interpretação de cláusula geral à luz dos direitos fundamentais, ou ela permanece
uma norma de direito ordinário – e então lhe falta, ainda e sempre, a superioridade de nível de
que necessita como padrão de controle; ou ela é elevada ao nível do direito constitucional e
então chegar-se-ia à conseqüência, contraditória, de o seu conteúdo, justamente na medida em
que pertence realmente ao direito ordinário, adquirir agora, de repente, nível constitucional
298
.
Ademais, a atividade reguladora dos direitos fundamentais desempenhada pelo
legislador não é exaustiva. As leis não contemplam todas as situações nem todos os conflitos
possíveis, mormente em uma sociedade caracterizada pela complexidade das relações
296
Os Direitos Fundamentais nas Relações Jurídicas entre Particulares. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de,
SARMENTO, Daniel (Coords.). Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações
Específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pág. 381.
297
Direitos Fundamentais e Direito Privado. Coimbra: Almedina, 2006, pág. 29.
298
CANARIS, Claus-Wilhelm. Ibid., pág. 30.
134
jurídicas e pela pluralidade de interesses eventualmente colidentes
299
. E mais do que isso, um
direito fundamental cujo reconhecimento depende, para ser efetivado, do legislador, não pode
ser reputado como direito fundamental. Os direitos fundamentais caracterizam-se justamente
pela indisponibilidade de seu conteúdo pelo legislador, não sendo, portanto, compatível com
essa idéia a afirmação de que só operariam nas relações entre particulares quando este assim o
decidisse
300
.
Por estas e outras razões, vários doutrinadores posicionaram-se contrários à vertente
indireta dos direitos fundamentais nas relações interprivadas, por condicionar a eficácia da
Constituição à vontade do legislador. Surge, então, outra corrente que se apoiou na idéia da
supremacia constitucional, para advogar a vinculação direta dos direitos fundamentais nos
vínculos entre particulares.
3.5.4. Teoria da eficácia imediata ou direta
Na contramão da doutrina da eficácia mediata ou indireta, apareceu outra teoria que
passou a defender a aplicação direta ou imediata dos direitos fundamentais nas relações entre
particulares. Para esta teoria, não haveria necessidade de se valer de “pontos de entrada”
encontrados nas cláusulas gerais e conceitos indeterminados do direito privado para fazer
incidir os direitos fundamentais nos vínculos privados. Os direitos fundamentais recairiam,
diretamente e sem intermediações, sobre os conflitos instaurados nas relações travadas entre
particulares. A eficácia direta pressupunha que o sujeito, que postula a proteção de uma
299
UBILLOS, Juan María Bilbao. Op. cit., pág. 295.
300
UBILLOS, Juan María Bilbao. Ibid., pág. 297.
135
garantia ou direito constitucionalmente previsto, pode invocar diretamente a norma
constitucional, se não houver norma legal que a concretize
301
.
A teoria da eficácia imediata ou direta dos direitos fundamentais foi formulada
originariamente também pela doutrina alemã, sendo Hans Carl Nipperdey um de seus maiores
entusiatas, assim expressado nas obras Die Würde des Menschen” (1954) e Grundrechte
und Privatrech” (1962)
302
.
Na primeira obra escrita traduzida como “A dignidade do ser humano”, Nipperdey
defende que algumas normas de direitos fundamentais não se aplicam unicamente às relações
jurídicas entre indivíduo e Estado, mas também compreendem relações entre particulares e,
notadamente, naqueles liames em que se verificam poderes sociais, nascendo daí posições
jurídicas do particular frente a outros
303
.
Já, na segunda obra (Direitos Fundamentais e Direito Privado), Nipperdey rebate
explicitamente a teoria de Dürig, asseverando que os direitos fundamentais modifica as
normas de direito privado existentes, sem que se utilize de cláusulas gerais ou determinadas
normas jurídicas, ou se criem outras pelo legislador, sejam proibições, mandados, direitos
subjetivos, leis de proteção ou razões de justificação
304
.
A jurisprudência do Tribunal Federal do Trabalho alemão adotou, em alguns de seus
julgados, essa concepção direta dos direitos fundamentais, sendo conhecido o famoso caso
decidido em 1957, que reconheceu a invalidade de cláusula constante em contrato de trabalho
de enfermeiras de um hospital privado, que previa a sua extinção, caso viessem a contrair
matrimônio. Mesmo não havendo norma trabalhista específica, a Corte laboral assim entendeu
301
RIVERA, Julio César. El Derecho Privado Constitucional. Revista dos Tribunais. Ano 85. Volume 725.
março de 1996, pág. 19.
302
STEINMETZ, Wilson. Op. cit., págs. 164/165.
303
NIPPERDEY, Hans Carl. Die Würde des Menschen, 1954. Apud STEINMETZ, Wilson. Ibid., Ibidem.
304
NIPPERDEY, Hans Carl. Grundrechte und Privatrech, 1962. Apud STEINMETZ, Wilson. Ibid, Ibidem.
136
com alicerce em preceitos constitucionais. Em outra situação mais recente, o mesmo tribunal
anulou a demissão de um químico de uma instituição privada, que se recusara a participar de
pesquisa de medicamento a ser utilizado em guerra nuclear, sob a alegação de liberdade
consciência
305
.
Nipperdey chega a sustentar uma eficácia absoluta dos direitos fundamentais nas
relações interprivadas, fundado na idéia de que seriam normas de valor a valer para toda a
ordem jurídica, incluindo o direito privado, e, em caso de poderes privados, como verdadeiros
direitos subjetivos. Na situação de relações jurídicas entre cidadãos “comuns” ou iguais,
também se aplicariam diretamente, agora como valores comunitários, sem precisar se valer de
regras de interpretação ou de preenchimento de cláusulas gerais do direito privado
306
.
No entanto, essa concepção absoluta (“forte”) de eficácia dos direitos fundamentais,
como assinalou Wilson Steinmetz, terminou não prevalecendo na doutrina, por desconsiderar,
por completo, o problema oriundo da colisão de direitos fundamentais, que requer a
ponderação entre os direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e a autonomia
privada que se constitui em pilar fundamental do direito privado e também um bem
constitucionalmente protegido
307
.
Somente as variações chamadas “intermediária” e “fraca” é que conquistaram a
simpatia da doutrina. A corrente intermediária repousa na idéia de que a vinculação dos
direitos fundamentais, embora imediata, não é ilimitada, incondicionada ou indiferenciada,
devendo, neste caso, ser resolvida com base na ponderação de bens. Ao passo que, na corrente
305
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pág.
246.
306
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Op. cit., págs. 252/253.
307
Op. cit., págs. 169/170.
137
considerada “fraca”, os direitos fundamentais operariam eficácia imediata nas relações
marcadas pela desigualdade produzida pelos poderes privados
308
.
A esta última variação é possível alinhar o pensamento de José Carlos Vieira de
Andrade, que aceita a transposição direta dos direitos fundamentais, enquanto direitos
subjetivos, no âmbito privado, quando se trate de relações de poder e não relações entre
iguais - de pessoas coletivas (ou, excepcionalmente, indivíduos) sobre (outros) indivíduos que
estão em posição vulnerabilidade. Mas, para cada situação e circunstância em particular, deve
se precisar casuisticamente o grau e a medida da aplicabilidade imediata dos direitos
fundamentais, até para evitar que se trate da mesma maneira a relação de poder que existe
dentro da família entre filhos e pais, e aquela que liga um empregador a um empregado numa
empresa
309
.
De fato, Jorge Miranda pondera que a incidência direta dos direitos fundamentais
deve se reconduzir à dialética liberdade-poder. Se se tratar de poder de grupo ou de uma
entidade privada dominante, os direitos fundamentais deverão valer de modo direto e
imediato, enquanto que, nos demais casos despidos daquela dialética, haverá graus de
vinculatividade
310
.
Jesús Alfaro Aguila-Real considera a teoria imediata simples demais para resolver
problemas práticos tão variados e complexos como os que envolvem os direitos
fundamentais
311
.
Jorge Reis Novais também se posiciona no mesmo sentido, ao comparar que, se os
direitos fundamentais se desenvolveram e demonstraram a sua aptidão, enquanto garantias
jurídico-constitucionais na relação dos indivíduos com o Estado, quando presente um cenário
308
Ibid., Ibidem.
309
Op. cit., págs. 263/264.
310
Op. cit., págs. 287/288.
311
Op. cit., pág. 64.
138
de verticalidade e de assimetria nas relações jurídicas, da mesma forma, também estarão
estruturalmente aptos a desempenhar as mesmas funções sempre que tais relações de poder,
cada vez mais freqüentes nos dias de hoje, sejam reiteradas nas relações entre particulares
312
.
No Brasil, a vinculação direta dos particulares aos direitos fundamentais decorre,
mesmo à míngua de norma expressa neste sentido, diretamente da Constituição. Inclusive na
Alemanha, embora prevaleça a doutrina da eficácia mediata, se reconheceu que a norma
contida no art. 1º, inc. III, da Lei Fundamental de Bonn, ao enunciar expressamente a
vinculação dos poderes públicos, não tem o condão de afastar uma vinculação dos
particulares. Da mesma forma, se até na Alemanha, onde apenas a vinculação dos órgãos
estatais está expressamente consignada na Lei Fundamental, mesmo assim tal previsão não
pode ser interpretada como uma decisão impeditiva da vinculação dos particulares, também
no caso da Constituição brasileira de 1988, que apenas enuncia de forma expressa o princípio
da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, não se
poderia simplesmente afastar a vinculação direta às relações jurídico-privadas
313
.
Ainda que restringisse de forma simplista a vinculação dos particulares apenas às
hipóteses de poderes privados, assume relevo a circunstância de que uma importação acrítica
da posição majoritariamente adotada na Alemanha esbarra, também e desde logo, na
evidência de que os pressupostos de uma certa igualdade fática e jurídica encontram-se
gravemente comprometidos na realidade brasileira
314
.
312
Os Direitos Fundamentais nas Relações Jurídicas entre Particulares. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de,
SARMENTO, Daniel (Coords.). Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações
Específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, págs. 368/369.
313
SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da
vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição
Concretizada: Construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, g.
151.
314
SARLET, Ingo Wolfgang. Ibid., págs. 152/153.
139
Basta, para tanto, uma breve referência aos elevados índices de opressão
socioeconômica e, portanto, a relevância maior dos assim denominados poderes sociais. Se
mesmo em Estados desenvolvidos e que, de fato, assumem as feições de um Estado
democrático de direito se aceita a eficácia direta nas relações cunhadas pela desigualdade,
como maior razão, tal vinculação deve ser reconhecida na ordem jurídica brasileira, onde,
quando muito, fala-se na previsão formal de um Estado Social de Direito que, de fato, acabou
sendo concretizado apenas para uma diminuta parcela privilegiada da população
315
.
Pietro Perlingieri rebate os argumentos que criticam a aplicação direta dos direitos
fundamentais, pois, de qualquer forma, a norma constitucional acaba sempre por ser utilizada.
Não importa tanto estabelecer se em um caso concreto se aplicação direta ou indireta, mas
sim, confirmar a eficácia, com ou sem uma específica normativa ordinária, da norma
constitucional frente às relações pessoais e sócio-econômicas. Os direitos fundamentais, nesta
trilha, não devem ser considerados sempre e somente como mera regra hermenêutica, mas
também como norma de comportamento, idônea a incidir sobre o conteúdo das relações entre
situações subjetivas
316
.
Assim, pela teoria da vinculação direta, os direitos fundamentais não precisariam de
transformação alguma para o sistema de regras de direito privado, antes estabelecendo, sem
qualquer intermediação, proibições de intervenção no tráfico jurídico-privado e direitos de
defesa em face de outros particulares. Em cada direito fundamental existiria uma proibição
constitucional que vedaria, em princípio, a sua restrição por negócio jurídico. Contudo, ao
radicalizar esta assertiva, levar-se-ia a conseqüências dogmáticas insustentáveis, pois toda
315
Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares
aos direitos fundamentais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição Concretizada: Construindo
pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, págs. 152/153.
316
Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2007,
págs. 11/12.
140
cláusula contratual que restringisse direitos fundamentais seria considerada nula, o que se
revelaria absurdo, que o instrumento mais legítimo e idôneo de renúncia de direitos é
justamente o contrato. Foi, pois, por esse temor que a teoria da eficácia imediata acabou por
se não impor
317
.
Jorge Reis Novais alega que a aplicação dos direitos fundamentais como direitos
subjetivos oponíveis aos outros particulares, “transformaria as nossas vidas num pesadelo de
virtudes. Todo o excesso era inconstitucional, toda a desrazoabilidade era vedada pelos
direitos fundamentais, toda a futilidade era proscrita por inapta ou dispensável. A participação
num reality show seria inconstitucional, porque obviamente, a busca dos cinco minutos de
fama não justificaria a perda de privacidade”
318
.
uma das críticas que se faz à teoria da eficácia direta que, em casos extremos,
simplesmente neutralizaria a mínima autonomia e liberdade do homem, imprescindível à
autodeterminação da sua própria vida privada. Em seu lugar, surgem outras concepções mais
ligadas ao dever do Estado de proteger possíveis violações de direitos fundamentais
cometidos entre sujeitos de direito privado.
3.5.5. Teoria dos deveres de proteção
Uma dessas concepções seria a teoria dos deveres de proteção, que se traduz na tese
de que cabe ao Estado, por meio do legislador e dos juízes, o dever de tutelar, por imposição
dos direitos fundamentais, o particular contra eventuais ofensas praticadas por outros
particulares. A doutrina dos deveres de proteção impõe ao Estado a obrigação de salvaguardar
317
CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Coimbra: Almedina, 2006, págs. 53/54.
318
Os Direitos Fundamentais nas Relações Jurídicas entre Particulares. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de,
SARMENTO, Daniel (Coords.). Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações
Específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pág. 379.
141
o indivíduo contra quaisquer ameaças, seja na atuação legiferante, seja no desempenho da
atividade jurisdicional, pois também estaria vinculado aos direitos fundamentais.
O legislador, ao confeccionar as leis que disciplinam as relações jurídicas privadas, e
o juiz, ao resolver os conflitos entre particulares, exatamente por estarem vinculados aos
direitos fundamentais, teriam sempre de levá-los em conta e de aplicá-los nos seus âmbitos de
atuação. A teoria do deveres de proteção, embora inspirada na idéia da aplicabilidade mediata,
dispensa a tradicional técnica de utilização de cláusulas gerais e conceitos indeterminados do
direito privado, obrigando os poderes públicos, em especial o Legislativo e o Judiciário, a
velarem os direitos fundamentais de particulares ameaçados por outros particulares
319
.
A despeito de possuírem uma raiz comum, as teses da eficácia mediata e dos deveres
de proteção divergem significativamente em termos de construção e, sobretudo, de resultados.
Enquanto a doutrina da eficácia mediata permite a eficácia horizontal dos direitos
fundamentais, através da intervenção concretizadora das cláusulas gerais, a teoria dos deveres
de proteção obriga todos os órgãos do Estado a protegerem os direitos fundamentais, sem que
se exija qualquer intermediação legiferante
320
.
A teoria dos deveres de proteção preserva a responsabilidade primária do legislador
no cumprimento dos deveres de protecção dos direitos fundamentais, porém não descarta a
possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, na ausência de lei ou de cláusula geral
aplicável. Mesmo, em situações extremas, até mesmo contra lei, pode o juiz, calcado nos
deveres de proteção a que se acha submetido, intervir no sentido de conferir proteção aos
direitos fundamentais nas relações entre particulares
321
.
319
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Op. cit., págs. 256/257.
320
NOVAIS, Jorge Reis. Os Direitos Fundamentais nas Relações Jurídicas entre Particulares. In: SOUZA
NETO, Cláudio Pereira de, SARMENTO, Daniel (Coords.). Constitucionalização do Direito: Fundamentos
Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, págs. 357/360.
321
Op. cit., págs. 357/360.
142
Quando comparado com a teoria da eficácia imediata, a doutrina dos deveres de
proteção confere prioridade, na definição dos critérios de composição do conflito subjacente,
ao legislador democrático em detrimento da atuação direta do juiz. em casos extremos de
absoluta e total ausência de regulação legislativa que resulte numa desproteção intolerável do
direito fundamental em questão, poderá o juiz assumir autonomamente o dever de proteção na
exata medida em que nessas circunstâncias se mostre necessário
322
.
A grande vantagem da doutrina dos deveres de proteção descansa na tentativa de
compatibilizar as teorias da eficácia mediata e da eficácia imediata, quando, ao mesmo tempo,
valoriza o papel prioritário do legislador na concretização dos direitos fundamentais e não
despreza a eventual intervenção do juiz, em situações de ofensa à Constituição. E mais,
viabiliza um tratamento suficientemente diferenciado dos direitos fundamentais no direito
privado, admitido o dever de intervenção estatal no âmbito das relações jurídico-privadas
apenas em casos excepcionais e devidamente justificados
323
.
De fato, mais recentemente, uma tendência no sentido de desvalorizar-se a idéia
de irradiação objetiva direta ou indireta dos direitos fundamentais, para enveredar-se pela
existência de deveres de proteção por parte do Estado, designadamente perante terceiros. A
vinculação dos poderes públicos aos direitos fundamentais não se limitaria ao cumprimento
do dever de abstenção, ou ainda de prestação ou de garantia da participação, mas também
implicaria o dever de promover a proteção dos direitos perante quaisquer ameaças
324
.
322
NOVAIS, Jorge Reis. Os Direitos Fundamentais nas Relações Jurídicas entre Particulares. In: SOUZA
NETO, Cláudio Pereira de, SARMENTO, Daniel (Coords.). Constitucionalização do Direito: Fundamentos
Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, págs. 383/384.
323
SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da
vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição
Concretizada: Construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, pág.
140.
324
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Op. cit., pág. 147.
143
Poder-se-ia objetar esta teoria rebatendo que o Estado sempre desempenhou uma
função protetora relativamente às liberdades e aos bens jurídicos pessoais, quer garantindo a
segurança pública, quer perseguindo criminalmente quem atentasse contra os direitos das
outras pessoas, tais como a vida, a integridade física, o patrimônio. que essas atividades
eram consideradas intrinsecamente ligadas, por definição, à própria existência do Estado
liberal, enquanto exercício de uma função comunitária, de interesse geral, e não enquanto
meio de proteção dos direitos individuais
325
.
Por outro lado, não se pode chegar a posições extremistas que, de um lado, eliminem
a liberdade constitutiva do legislador, e, de outro, não estabeleça limites a ele. Uma das
limitações substanciais à proteção estatal dos direitos fundamentais é justamente imposta
pelos direitos dos outros particulares. Por causa disso, quando a proteção dos direitos de uma
pessoa possa pôr em causa a esfera jurídica de terceiros, a proteção do Estado será medida por
uma ponderação dos bens ou valores em colisão, observando-se o princípio da
proporcionalidade
326
.
Gilmar Ferreira Mendes conta que a jurisprudência da Corte Constitucional alemã
acabou por consolidar entendimento no sentido de que o dever do Estado deriva da dimensão
objetiva dos direitos fundamentais e, portanto, da tarefa de proteger esses direitos contra a
agressão produzida por atos de terceiros. Essa interpretação do Tribunal Constitucional
Federal empresta sem dúvida nova dimensão aos direitos fundamentais, fazendo com que o
Estado evolua da posição de adversário para uma função de guardião desses direitos, tomando
todas as providências necessárias para a realização ou concretização dos direitos
325
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Ibid., pág. 149.
326
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Ibid., Ibidem.
144
fundamentais. Os direitos fundamentais não conteriam apenas uma proibição de intervenção,
expressando também um postulado de proteção
327
.
Seguindo os passos de José Carlos Vieira de Andrade, observa-se que, no caso de
haver lei regulando determinada situação fática, prevaleceria, em princípio, a presunção de
que o legislador estabeleceu um equilíbrio aceitável entre os valores em jogo. Porém, essa
presunção poderá ser ilidida, se, por exemplo, atentar frontalmente contra os preceitos
relativos aos direitos fundamentais, enquanto princípios objetivos ou normas. Ou mesmo, se a
lei for restritiva, terá, para ser válida, que respeitar sempre o conteúdo essencial dos direitos
fundamentais, podendo, contudo, os valores e os princípios próprios do direito privado
funcionar como interesses e bens constitucionalmente protegidos, a justificarem a restrição
328
.
3.6. Correto equacionamento do problema da eficácia dos direitos fundamentais nas
relações privadas
Como se viu, o correto equacionamento do problema da eficácia dos direitos
fundamentais não reside na teoria de Nipperdey, nem mesmo teoria de Dürig, mas na teoria
dos deveres de proteção, que as harmoniza, levando-se em conta a particularidade dos direitos
fundamentais em colisão.
Para Cristiano Tutikian, a melhor solução seria a adoção de uma terceira proposição,
construída a partir da idéia de circularidade hermenêutica espiraliforme do sistema jurídico
aberto. Por esta premissa, a interpretação da legislação infraconstitucional sempre pressuporia
o sentido da Constituição. Essa terceira proposição caracterizar-se-ia por possuir
327
Op. cit., págs. 119/120.
328
Op. cit., págs. 271/272.
145
simplesmente eficácia, mediante a hierarquização axiológica dos direitos fundamentais em
colisão, obtida apenas no caso concreto, à luz do princípio da proporcionalidade
329
.
Sem embargo disso, José Carlos Vieira de Andrade constatou que todas as teorias,
mesmo partindo de pressupostos distintos ou operando por vias diversas, curiosamente
chegavam ao mesmo resultado prático. Se, de um lado, a teoria mediata admitia a influência
das normas de valor dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, em última
análise, permitia o alargamento do campo de aplicação direta das normas constitucionais na
execução de tarefas administrativas públicas, mesmo que a atuação fosse feita por figuras de
direito privado. Por outro lado, a teoria da aplicação imediata não se aplicaria a todos os
direitos fundamentais, sendo necessário averiguar o comportamento dos particulares, não
desprezando a tutela da liberdade negocial ou da autonomia privada
330
.
Ressalte-se que, pela unidade do sistema jurídico, quando se aplica uma lei, não se
está apenas a aplicá-la, mas antes todo o Código e todo o sistema legislativo no seu conjunto,
não se verificando entre a Constituição e o direito privado propriamente um hiato, mas um
contínuo fluir. Este fluir contínuo intensifica-se à medida em que as Constituições se referem,
ao lado dos direitos fundamentais, de forma explícita ou implícita, à autonomia privada.
Acresça-se a isso o fato de que as cláusulas gerais e os conceitos indeterminados do direito
privado são tão amplos que o seu conteúdo pode ser, facilmente, preenchido pelos valores
constitucionais. Daí a questão da distinção entre a aplicabilidade mediata ou imediata dos
direitos fundamentais não fazer, de fato, muito sentido
331
.
Alexei Julio Estrada afirma que não haveria em relação às teorias direta e indireta um
antagonismo, mas sim uma questão de grau ou intensidade e, mais especificamente, um “mero
329
Sistema e Codificação: O Código Civil e as Cláusulas Gerais. In: Estudos de Direito Civil-Constitucional.
Org. Ricardo Aronne. Vol. 1. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, págs. 58/59.
330
Op. cit., págs. 254/255.
331
PEREIRA DA SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias. Op. cit., págs. 46/47.
146
problema de formulação”. A eficácia dos direitos fundamentais, quando desencadeada pela
atividade judicial, são equivalentes em seus resultados. Note-se que as duas se opõem por
igual às soluções generalistas e preferem analisar as circunstâncias fáticas do caso, por meio
da técnica de ponderação
332
. Tanto que Juan María Bilbao Ubillos arrisca a dizer que a
eficácia mediata dos direitos fundamentais através do juiz é ilusória
333
, pois o resultado é
sempre idêntico à aplicação imediata.
Para Jorge Reis Novais, a divergência entre as teorias eficácia mediata, imediata e
dos deveres de proteção reside exatamente no ponto que diz respeito ao alcance do papel do
juiz, quando não lei ordinária aplicável. Nessa situação, as duas teses da eficácia mediata e
imediata são claramente opostas: a tese da eficácia mediata recusa qualquer efeito
suplementar produzido pelos direitos fundamentais com apoio nas normas constitucionais;
enquanto que a tese da eficácia direta ou imediata aplicará o direito fundamental
constitucionalmente consagrado como direito subjetivo oponível a outros particulares. Já a
tese dos deveres de proteção recusará a aplicação direta dos direitos fundamentais enquanto
direitos subjetivos contra outros particulares, mas, diferentemente da doutrina da eficácia
mediata, permitirá a projeção de efeitos jurídicos sobre o direito privado, recorrendo-se
diretamente à norma constitucional para resolver os conflitos entre particulares
334
.
Um ponto, porém, a doutrina parece convergir. É quando diz respeito à teoria
aplicável às hipóteses de “poder privado”, na qual se verifica a existência de uma relação de
desigualdade. Nesses casos, a intensidade da vinculação seria similar à do Estado, o que se
aproximaria da teoria direta dos direitos fundamentais. E, nas relações entre particulares em
332
Op. cit., págs. 126/127.
333
Op. cit., pág. 318.
334
NOVAIS, Jorge Reis. Os Direitos Fundamentais nas Relações Jurídicas entre Particulares. In: SOUZA
NETO, Cláudio Pereira de, SARMENTO, Daniel (Coords.). Constitucionalização do Direito: Fundamentos
Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, págs. 357/360.
147
de igualdade, apenas se tornaria necessário garantir uma eficácia nima dos direitos
fundamentais, o que se avizinha da doutrina indireta dos direitos fundamentais
335
.
Também, em idêntico trilhar, em que pese sustentar a regra do caráter
mediato/indireto do efeito horizontal dos direitos fundamentais, admitem Dimitri Dimoulis e
Leonardo Martins, excepcionalmente, a eficácia imediata/direta, devido à existência de outras
forças sociais que apresentam potencial lesivo semelhante ao Estado, ou seja, quando for
oponível a poderes privados
336
.
Todavia, reconhecer que somente haveria eficácia direta dos direitos fundamentais na
hipótese de existência de poderes privados também não convence, pois, mesmo em relações
nas quais não impere a desigualdade fática, é possível ocorrer violações talvez até mais
gravosas e ofensivas a bens, valores e princípios constitucionais, do que as que a possuam.
Wilson Steinmetz discorda da hierarquização das lesões de direitos fundamentais
tendo como critério o causador da lesão, pois entende que pouco importa se o particular-
violador tem mais ou menos poder do que o particular-violado. Um particular, sem poder
econômico e/ou social, pode causar lesões a direitos fundamentais tão ou mais graves do que
um particular com poder social e/ou econômico. Lesão de direito fundamental é lesão de
direito fundamental e, portanto, inconstitucional e, por conseqüência, razão suficiente para
impedir, anular ou invalidar a autonomia privada
337
.
Nas relações jurídicas públicas, quando um indivíduo opõe um direito fundamental
ao Estado está a invocar uma garantia forte que só poderá ser mitigado, se for imprescindível
e necessária à satisfação de outros interesses justificativamente mais relevantes. reside,
precisamente, a força da garantia jusfundamental. O direito fundamental só cede se o Estado
335
PEREIRA DA SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias. Op. cit., págs. 49/50.
336
Op. cit., pág. 113.
337
Op. cit., págs. 158/159.
148
for capaz de encontrar uma justificação de peso intrínseco indiscutível, não sendo suficiente,
para justificar a restrição, a simples elaboração de lei.
Mas o mesmo não se verifica no caso das relações jurídicas privadas. Quando se
pretende opor o mesmo direito a outro particular se encontra, invariavelmente, um outro
direito fundamental. Como dois lados são titulares de direitos fundamentais, que estão em
oposição, toda a argumentação a favor de uma posição jusfundamental pode ser replicada com
os mesmo ou idênticos argumentos em favor da outra posição jusfundamental em confronto.
Ainda que, no confronto entre um direito fundamental e o princípio da autonomia privada,
presumisse que prevalece o reconhecimento do direito fundamental, estar-se-ia esquecendo
que associado ao exercício da autonomia privada estão inevitavelmente direitos fundamentais,
tais como a autonomia pessoal e a liberdade individual
338
.
Daí a justificativa de não ser aceita a concepção da eficácia direta de forma ampla e
irrestrita, sob pena de uma simplificação equivocada. Em primeiro lugar, não é a existência de
uma situação de “poder privado” ou de desigualdade na relação entre particulares que irá
modificar o caráter jurídico-privado da relação jurídica em causa, nem afastar a circunstância
de que se trata de uma relação entre dois titulares de direitos fundamentais. Também o
particular ou entidade detentor de certo grau (por maior que seja) de poder social, não deixa
de ser titular de direitos fundamentais. Assim, nas relações deste tipo, não se poderá deixar de
reconhecer a existência de um conflito de direitos fundamentais, tornando-se indispensável
uma compatibilização (harmonização) à luz do caso concreto, impedindo um tratamento
idêntico ao das relações particular-poder público
339
.
338
NOVAIS, Jorge Reis. Os Direitos Fundamentais nas Relações Jurídicas entre Particulares. In: SOUZA
NETO, Cláudio Pereira de, SARMENTO, Daniel (Coords.). Constitucionalização do Direito: Fundamentos
Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pág. 371.
339
SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da
vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição
149
Nesta linha, vê-se que a problemática da vinculação dos direitos fundamentais nas
relações privadas corresponde, em última análise, a uma colisão de direitos fundamentais
titularizados por particulares, na medida em que o exercício de um direito fundamental por
um particular obstaculiza, afeta ou restringe o exercício de um direito fundamental de um
outro particular. A incidência pode ocorrer, por exemplo, numa relação contratual, quando
houver conflito entre um direito fundamental de liberdade de expressão de um particular
contratante e o princípio da autonomia privada, invocado pelo outro particular contratante
como bem constitucionalmente protegido
340
.
Nas relações de direito privado, os princípios e os valores com os quais se entram em
colisão são os que presidem, evidentemente, o tráfico jurídico-privado, dentre eles, quase
sempre, o princípio da autonomia privada. À vista disso, para que a articulação seja correta, o
juiz, no exame do caso concreto, deverá ponderar cuidadosamente a eficácia limitadora
daqueles princípios em relação ao conteúdo do bem ou dos direitos constitucionalmente
protegidos. E não deve esquecer que deve ser resolvido sempre procurando preservar o núcleo
essencial dos direitos e interesses em jogo
341
.
Para Ubillos, a eficácia dos direitos fundamentais frente a particulares, relativizada
ou modulada pelo jogo da autonomia privada, será mais intensa à medida em que se estiver
diante de uma relação desigual ou assimétrica. Assim, quanto menor for a liberdade da parte
mais frágil da relação maior será o grau de proteção. Outro fator a influenciar a intensidade da
vinculação, no pensamento de Ubillos, consiste no grau de aproximação do direito
fundamental em discussão com o princípio da dignidade da pessoa humana. Aliás, toda ordem
Concretizada: Construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, págs.
129/131.
340
STEINMETZ, Wilson. Op. cit., pág. 133.
341
UBILLOS, Juan María Bilbao. Op. cit., págs. 364/367.
150
jurídica encontra-se descansada no respeito à dignidade da pessoa humana, como núcleo
intangível e indisponível que deve ser preservado frente qualquer agressão
342
.
Por tudo isso, infere-se que, numa relação contratual, prevalece, em primeiro lugar,
com base na teoria dos deveres de proteção, que se mostra mais adequada às especificidades
das relações privadas, a liberdade de conformação do legislador, através da produção
legiferante do direito privado. Mas, em caso de ocorrência de conflito no âmbito das relações
privadas, quando submetidas à análise judicial, deverá o juiz efetuar a ponderação entre os
direitos ou bens constitucionalmente protegidos em colisão, valendo-se, na operação, do
princípio da proporcionalidade.
O problema da eficácia dos direitos fundamentais na ordem jurídica privada tende
hoje para uma superação da dicotomia eficácia mediata/eficácia imediata a favor de soluções
diferenciadas, sobretudo alicerçado na eficácia extraída do dever de proteção dos direitos
fundamentais. Esta eficácia, para ser compreendida com rigor, deve ter em consideração a
multifuncionalidade ou pluralidade de funções dos direitos fundamentais, de forma a
possibilitar soluções diferenciadas e adequadas, consoante a relevância do bem ou do direito
constitucionalmente protegido que estiver em jogo no caso concreto
343
.
E, mais do que isso, mostra-se imprescindível que a aplicação da Constituição
encontre adequada metodologia que se preocupe com o estreitamento das margens de
subjetivismo, incerteza e insegurança das decisões, mediante a adoção de técnicas
interpretativas e argumentações constitucionais racionais e transparentes
344
, e a idealização de
um modelo que represente a unidade e a sistematização de todo o direito privado em torno de
342
Ibid., págs. 368/370.
343
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª Edição. Coimbra: Almedina,
2000, pág. 1289.
344
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, págs.
153/154.
151
valores, princípios, direitos e bens constitucionais que desfrutem de íntima conexão com a
atividade econômica da iniciativa privada.
Mas, antes de enveredar pelas discussões mais pragmáticas da eficácia dos direitos
fundamentais nas relações negociais privadas, cumpre tecer algumas considerações a respeito
da evolução histórica do fenômeno contratual, desde a antiguidade romana, passando pela
concepção liberal, até chegar à perspectiva socializante, que anima os atuais Código Civil de
2002 e o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90).
152
4. CONCEPÇÃO CLÁSSICA DOS CONTRATOS DA ANTIGUIDADE AO ESTADO
LIBERAL
4.1. O contrato no direito romano
O direito romano não se apresentou como um todo unitário, mas como a sucessão
evolutiva de vários sistemas, que nasceu, atingiu o apogeu e decaiu, até se consolidar no
Corpus iuris civilis
345
. O contrato em Roma, por sua vez, como conseqüência, passou por
várias fases, não se podendo falar em um único modelo ou uma determinada espécie ao longo
de sua história
346
.
345
AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. 6ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pág. 112.
346
Caio Mário da Silva Pereira historia as várias transformações por que passou o direito romano, destacando
que “A maior transformação por que passou o Direito Obrigacional ocorreu com a Lex Poetelia Papiria, do ano
428 antes de Cristo, substituindo a responsabilidade do devedor, que recaía sobre sua pessoa, para incidir sobre
os seus bens pecuniae creditae bona debitoris, non corpus obnoxium esse. Uma sociedade de costumes mais
simples encontrava nas trocas individuais o nexum. Ainda era o processo mais comum e mais natural de
estabelecer relações obrigacionais. O desenvolvimento econômico e social vem criar o contrato e o seu poder
vinculativo, como expressão do mais puro individualismo. O que as pessoas enunciavam oralmente tinha a
possibilidade de criar direitos. Tal entendimento já o consagrava a Lex XII Tabularum: Cum nexum faciet
mancipiumque, uti língua nuncupassit ita ius esto (Tabula VI, em Textes, de Frederic Girard, p. 15). O contrato
nascido da palavra obriga os contratantes. Um vez celebrado, com observância dos requisitos, impõe-se aos
contratantes. Sentiu-se, entretanto, na sociedade romana, cuja vida se tornou cada vez mais complexa com o
surgimento de maior pluraridade de negócios, a necessidade de dar uma certa materialidade aos contratos. E
surgiram, então, as quatro modalidades, mencionadas por Gaius. Primeiro, os contratos re, como uma espécie de
contrato real, que se perfazia mediante a entrega de uma coisa; contratos litteris, que se completavam pela
inscrição no codex do devedor; contratos verbis, que se realizavam mediante a troca de palavras sacramentais,
dos quais o mais importante era a stipulatio. Somente mais tarde veio o contrato consensu, cujo nascimento foi
lento e complexo, a que me referirei no segmento seguinte. Nem por isto perdeu sentido a afirmação de Gaius: as
obrigações ora nascem do contrato ora do delito (vel ex contractu nascitur, vel ex delicto – Instituciones,
Commentarius, vol. III, 88). Baixo Império: Foi o Baixo Império que consagrou uma importante mutação na
evolução do contrato, através do simbolismo que caracterizou o Direito Germânico. Na sua última fase romana,
o contrato obrigava mediante a simples proclamação verbal. E se aprofundou na Idade Média. O sentido de
segurança como que inverteu as práticas quiritárias. Partindo da necessidade de que fossem observadas as
formalidades exigidas pelo Direito Romano, era freqüente aos escribas, que reduziam a escrito as convenções
das partes, consignar que todos os rituais haviam sido observados, embora em verdade não o tivessem sido. E de
tal forma generalizou-se a praxe, que se passou a entender que a menção do fato valia pelo próprio fato. Passou-
se a considerar que bastava a declaração de que as formalidades haviam sido cumpridas. Embora os
jurisconsultos jamais chegassem a dispensar o formalismo, a proclamação de sua observância produzia o efeito
de seu cumprimento. E assim teve começo a quarta modalidade, a dos contratos consensu, que se formavam
independentemente de todo elemento material”(Direito Civil, págs. 227/229).
153
A primeira fase do direito romano, denominada de antiga ou arcaica, compreende o
período da criação de Roma até o início das guerras púnicas, no século III a.C. Nessa época, a
sociedade romana, simples e rústica, tinha como base de sua economia a agricultura, o que
tornava o direito formal e solene, adstrito apenas aos cidadãos romanos
347
.
Na fase antiga do direito romano, para criar uma obrigação (obligatio)
348
, era
imprescindível a observância da prática de determinados atos solenes e rituais, previstos em
lei. Se não houvesse o cumprimento rigoroso dessas formalidades, o contrato (contractus) não
tinha validade e, por conseguinte, não produzia efeitos para as partes. A obrigação jurídica na
Roma clássica tinha como fonte as solenidades, os rituais e as formas contemplados na lei
romana. A lei estabelecia os efeitos e as obrigações que decorriam do contrato. Os
contratantes estavam vinculados a formulários legais pré-estabelecidos.
Nessa época antiga do direito romano, as relações sociais encontravam-se
determinadas, em sua grande parte, pelo status derivado do nascimento e da carreira que se
exercia. As próprias características da sociedade, cujas famílias desfrutavam de certa
autonomia, por terem propriedade própria e produzirem o que consumiam, minimizava o
papel do contrato. O regime familiar adotado terminava por atribuir os direitos não ao
indivíduo isoladamente considerado, mas à comunidade ou à própria família
349
.
A segunda fase, chamada de período clássico, acompanhou as conquistas dos
exércitos romanos nas guerras púnicas e a conseqüente criação do império, provocando
profunda mudança econômico-social na sociedade romana. De simples agricultores, os
antigos romanos tornaram-se, em curto espaço de tempo, dominadores das mais florescentes
347
AMARAL, Francisco. Ibid., pág. 112.
348
Paul Jörs relata que os romanos chamavam obligatio o direito de obrigação que unia o devedor ao credor,
representando o dever de realizar a prestação (Derecho Privado Romano. Edición totalmente refundida por
Wolfgang Kunkel. Barcelona: Editorial Labor, 1937, pág. 234).
349
COGLIOLO, Pietro. Lições de Filosofia e de Direito Privado. Belo Horizonte: Líder, 2004, págs. 196/197.
154
civilizações da humanidade na época. As práticas de fluxo mercantil entre Roma e as suas
colônias passaram a exigir um direito civil mais flexível e célere e menos formalista
350
.
Nas palavras de Limongi França, o direito romano antigo conheceu os contratos
formais, chamados de nexum e a stipulatio. Porém, tais espécies formais começaram a se
enfraquecer, após as guerras púnicas, não mais satisfazendo as exigências de um comércio
cada vez mais desenvolvido, tanto que o nexum caiu em desuso e a stipulatio teve de minorar
o seu rigorismo formal, o que fez proliferar, nesta época, os contratos verbais
351
.
Antes predominava o formalismo e a tipologia contratual e, com as modificações
ocorridas na sociedade romana após as guerras púnicas, o contrato romano caminhou para o
consensualismo. Como assinala Adalício Coelho Nogueira, o formalismo foi-se esmaecendo,
à medida em que o direito romano, gradualmente, conquistava a sua emancipação do rigor das
formas, por longo tempo, o caracterizou. Iniciava um período em que os contratos passavam a
valer, juridicamente, pela só manifestação da vontade das partes
352
.
No entanto, foi na terceira e última fase, designada como pós-clássica, vivida a partir
do século III (230 d.C.), que o direito romano expandiu-se por todas as províncias do império,
perdendo o seu caráter nacional e transformando-se em um direito universal, até ser
finalmente condensado, por ordem do imperador Justiniano, no ano 565, no Corpus iuris
civilis
353
.
350
AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. 6ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, págs. 112/113.
351
Contrato (Direito Romano). Enciclopédia Saraiva do Direito. Vol. 19. São Paulo: Saraiva, 1978, págs.
146/147.
352
Introdução ao Direito Romano. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 1966, pág. 127.
353
AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. 6ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pág. 114.
155
Neste particular, observa Max Kaser que o imperador Justiniano, que não estava
vinculado aos esquemas clássicos e rigorosos das ações e das rmulas processuais,
generalizou a idéia fundamental da eqüidade como base para o enriquecimento
354
.
Passou-se, nesta fase, a admitir que o mero consentimento ou o acordo de vontades
pudesse criar obrigações. Luis Díez-Picazo ressalta que a evolução do pensamento jurídico,
nessa fase pós-clássica, ocorre, mais particularmente, no Direito bizantino, momento através
do qual se lançaram as primeiras sementes da corrente do voluntarismo jurídico, acenando
que a origem das obrigações residia na expressão da vontade das partes
355
.
Segundo Limongi França, o direito romano não chegou a reconhecer o ideal da força
obrigatória a todo e qualquer contrato em geral, mas, sem dúvida, por intermédio das
convenções verbais, preparou o terreno para que aquele reconhecimento ocorresse na
dogmática liberal do direito das obrigações
356
.
4.2. O contrato no direito canônico
Mas, sem qualquer sombra de dúvida, foi no berço do direito canônico que floresceu
a idéia da vontade como fonte da obrigação. A manifestação da vontade das partes, por
intermédio da palavra dada, ganhou importância decisiva na constituição e no reconhecimento
da figura do contrato. A promessa empenhada de cumprir a obrigação assumida detinha
tamanha força obrigatória, que eventual desrespeito significava o cometimento de um pecado.
A filosofia cristã eleva o homem ao centro das reflexões de ordem religiosa e social,
influenciando a dogmática do direito canônico a considerar a declaração da vontade como
354
Direito Privado Romano. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1999, pág. 275.
355
Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial. Introducción Teoría del Contrato. 6ª Edición. Madrid: Civitas,
2007, pág. 135.
356
Op. cit., pág. 148.
156
fonte de obrigações jurídicas. O respeito à palavra dada, que exigia a consciência livre do
contratante, pressupunha a necessidade de o consentimento das partes o estar viciado e a
inexistência de enriquecimento injusto, possível de ocorrer nas situações de lesão e de
usura
357
.
As idéias construídas pela doutrina do direito canônico ajudaram a formatar a teoria
da autonomia da vontade e, nesta linha, assentar em solo firme os alicerces da concepção
clássica do contrato, devido à consolidação do princípio da força obrigatória da promessa, o
que provocou, definitivamente, uma ruptura ao modelo romano compromissado com o
formalismo exagerado e as solenidades típicas. O direito canônico populariza a fórmula ex
nudo pacto nascitur, consagrando o contrato como um instrumento abstrato e como uma
categoria jurídica
358
.
Luis Díez-Picazo, ainda, assinala que a doutrina do direito canônico se constituiu em
uma das diversas correntes de pensamento, que inspiraram a formação histórica do conceito
moderno de contrato, na medida em que se reconhecia o consenso como valor fundamental e
a vontade como fonte das obrigações. Além disso, os deveres de fidelidade à palavra dada e
de veracidade instituíram a cultura do cumprimento obrigatório dos contratos, representado no
princípio mendacium est si quis non cumpleat quod promisit. A falta a uma promessa é
considerada um engano, uma mentira e um pecado
359
, almejando a doutrina canônica
encontrar meios idôneos de reprimi-la
360
.
357
AMARAL, Francisco. A Liberdade de Iniciativa Econômica: Fundamento, natureza e garantia
constitucional. Revista de Informação Legislativa. Ano 23. Nº 92. Outubro/dezembro de 1996, pág. 352.
358
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações
contratuais. 4ª Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, págs. 43/47.
359
Cristiano Heineck Schmitt complementa que “a força vinculante da palavra dada prendia-se, no direito
canônico e na moral cristã da época medieval, à idéia do pecado do descumprimento de uma obrigação contraída,
fator externo à vontade dos contratantes” (Cláusulas Abusivas nas Relações de Consumo. Instituto Brasileiro de
Política e Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, págs. 40/42).
360
Op. cit., pág. 136.
157
Em face disso, os elementos essenciais do contrato, sob a influência canonista, são:
a) o objeto; b) uma causa; e c) a vontade manifestada na palavra dada. Todavia, por mais que
o conceito moderno de contrato tivesse eleito como um de seus principais elementos a
vontade manifestada pelas partes, substituindo o mero consentimento da doutrina do direito
romano, ainda faltava um ingrediente essencial para que o contrato assumisse de vez o papel
de principal veículo de circulação de riqueza do liberalismo, que viria com as idéias
iluministas.
4.3. Reflexos do liberalismo na teoria contratual: fenômeno do codicismo
A corrente de pensamento do Iluminismo, fundada no direito natural racionalista, põe
o indivíduo como o centro das preocupações sociais, políticas, filosóficas e econômicas, o que
leva à valorização não apenas da idéia de vontade, mas sobretudo da vontade individual e
humana baseada na razão. Somente a vontade individual e racional, como elemento essencial
do contrato, é que tem a potencialidade de criar obrigações.
A liberdade
361
tão propagada no Iluminismo encontra campo aberto para a concepção
liberal (liberalismo econômico) e, conseqüentemente, as idéias de interferência mínima do
Estado nas atividades próprias da sociedade, dentre elas aquelas afetas às relações contratuais.
361
Manuel García Amigo assim define a liberdade, nos seus mais variados matizes, inclusive jurídico: “es uma
facultad del individuo de obrar según su voluntad; la facultad, por tanto, de autodeterminarse. La idea puede
desdoblarse en dos aspectos: internamente, con carácter positivo para el individuo, se cualifica por la nota de
soberania, es decir, el individuo es soberano para determinar normas de conducta propia en los campos donde su
liberdad existe externamente, con carácter negativo para las demás personas que con él se relacionan, se
concreta en la idea de independencia, en el sentido de que el individuo no es condicionado, influenciado por
otros al tomar sus decisiones. [...] la libertad se cualifica de jurídica cuando es tomada en consideración por el
ordenamiento jurídico, atribuyendo a la decisión libre del individuo determinados efectos de derecho. La libertad,
como las demás instituciones jurídicas, comprende dos elementos: uno que podemos llamar sustantivo,
constituído por la facultad del individuo de autodeterminarse en el campo de las relaciones sociales, de los
hechos humanos con transcendencia social; y otro formal, es decir, la toma en consideración de ese hecho social
por el ordenamiento jurídico, sancionando y haciendo suyas las consecuencias sociales que del ejercicio de la
libertad derivan. Libertad jurídica, por tanto, es actuar libremente con trascendencia jurídica” (Derecho Civil de
España. I. Parte General. Madrid: Servicio Publicaciones Facultad Derecho, 1997, págs. 193/194).
158
Prevalece a lógica de que, com a primazia do indivíduo, a independência e a liberdade apenas
podem ser limitadas pela própria vontade individual. Se o homem é livre, nada pode restringi-
lo, a não ser a sua própria vontade.
Enquanto que, em Roma clássica e pós-clássica e no direito canônico, a lei, o
consentimento e a vontade externada na palavra dada correspondem às fontes das obrigações
jurídicas em suas respectivas épocas, no liberalismo, o contrato por si é o legítimo
instrumento criador de obrigações, limites e efeitos. Mas, para que os contratos cumprissem
com mais eficiência essa tarefa, a ordem jurídica teria que assegurar a segurança e a liberdade
dessas relações ou mesmo os ideais que germinaram na Revolução Francesa (liberdade,
igualdade e fraternidade), tão caros aos maiores beneficiários dessa concepção: a burguesia.
A formação dos grandes Estados modernos, logo após a Revolução Francesa,
conduziu a Europa continental à criação de corpos organizados de leis destinados a regular em
abstrato situações análogas, equiparando soluções jurídicas com base no pressuposto de que,
perante a lei, todos os cidadãos eram iguais. Com isso, inaugura-se um novo momento
histórico para o direito privado que se cunhou como a era codicista, caracterizada por códigos
que reuniam em um mesmo diploma normativo todas as situações jurídicas relativamente às
relações entre os indivíduos. O fenômeno da codificação alarga a categoria do contrato,
significando expressão política, antes do que jurídica, da liberdade individual
362
.
A primeira grande onda do fenômeno do codicismo originou-se da ligação do
jusracionalismo com o iluminismo, inicialmente, nos estados absolutos do centro e do sul da
Europa, depois na Europa ocidental após o processo revolucionário francês. As codificações,
ao alterarem as técnicas jurídicas de redação anteriores, não objetivavam fixar, ordenar,
melhorar ou completar o direito existente (como, por exemplo, as Ordonnances francesas e
362
MARTINS-COSTA, Judith. Crise e Modificação da Idéia de Contrato no Direito Brasileiro. Revista de
Direito Civil. Ano 16. Nº 59. Janeiro/Março de 1992, págs. 21/22.
159
as Reformationen alemãs do séc. XVI), porém antes se dirigiam a uma planificação global da
sociedade, através de uma reordenação sistemática e inovadora da matéria jurídica. Havia a
convicção, própria do Iluminismo, de que a atuação racional dos governantes ou da vontade
comunitária geral criaria por si só uma sociedade melhor
363
.
O movimento da codificação representou, na época, o coroamento dos ideais
racionalizadores do Iluminismo, que pretendiam unificar o direito em bases seguras. A
consolidação da igualdade, com o fim dos privilégios estamentais, reclamava um direito único
para todas as pessoas, que deveria primar pela generalidade e abstração, e regular, de modo
completo e exaustivo, as relações sociais
364
.
Para tanto, intentava-se sepultar uma plêiade de normas, emanadas de variadas
fontes, que conviviam de maneira conflituosa e desordenada no Ancién Regime, e substituí-las
por um único corpo normativo, composto de regras simples, harmônicas e sistemáticas, capaz
de garantir a segurança jurídica e preparar o direito para atender às necessidades de uma
economia capitalista em processo de expansão
365
. O Código representava uma proposta de um
sistema fechado de regras dotado de autosuficiência para resolver todos os problemas no
âmbito das relações de direito privado.
O codicismo, ainda, produziu outro efeito típico de uma sociedade burguesa: a
patrimonialização do direito civil. A patrimonialização decorreu da idéia prevalecente do
valor e da importância econômica que os institutos do direito civil, tais como família,
propriedade e contrato, tinham na sociedade
366
.
363
WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Edição. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1980, págs. 365/366.
364
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pág.
89.
365
Ibid., Ibidem.
366
FLÓREZ-VALDÉS, Joaquim Arce y. Op. cit., pág. 54.
160
O Code Civil, segundo Franz Wieacker, seria, quer do ponto de vista do conteúdo,
quer do ponto de vista estilístico, a expressão de uma cultura evoluída e de um plano global
da construção do Estado a partir dos fundamentos de base da sociedade humana, apoiada na
antropologia jusracionalista
367
.
A mais expressiva marca do fenômeno da codificação do direito foi, inegavelmente,
o Código Civil de Napoleão de 1804. A noção de que o livre acordo de vontades entre
indivíduos poderia produzir efeitos e criar obrigações atingiu o ápice e a sua verdadeira
concretização no art. 1.134 do Código Napoleônico, que proclama: “As convenções
legalmente formadas têm força de lei para quem as tenha celebrado”
368
. Em outras palavras, o
contrato faz lei entre as partes e, portanto, produz efeitos e cria obrigações
369
.
G. Marty conta que, nesta época liberal, as melhores leis eram as que nasciam da
convenção entre os homens, porquanto se tratavam de normas que eles próprios tinham
desejado modelar para o uso particular. E, como corolário disso, um dos direitos essenciais do
homem consistia na liberdade de contratar e de celebrar convenções. Na seara econômica,
confiar nas atividades negociais, sem a interferência estatal, era o melhor meio de realizar o
367
Franz Wieacker chega, inclusive, a afirmar que: “É precisamente a crença jusracionalista na possibilidade de
um direito justo em absoluto (numa certa situação histórica) que faz crer ao legislador que é possível regular uma
vez por todas qualquer situação pensável. Com isto, ele acaba por se sobrecarregar com o peso de uma casuística
tuteladora e com o permanente controlo do futuro, e corta aquele desenvolvimento espontâneo no qual um
código revela muitas vezes potencialidades insuspeitadas dos seus autores. À auto-suficiência do legislador
corresponde um cepticismo em relação à jurisprudência científica, cepticismo que se fundava não apenas na
opinião pessoal do velho rei e no seu atraso em relação aos melhores espíritos da época, mas também nos
sentimentos pedagógicas do tempo, que não aceitavam como verdadeiro ‘esclarecimento’ (‘iluminação’) a
especialização limitada dos eruditos” (Op. cit., págs. 378/379).
368
Tradução livre do autor ao art. 1.134 do Código Civil francês, que tem a seguinte redação no original: “Les
conventions légalement formées tiennent lieu de loi à ceux qui les ont faites”
369
Contam Henri y Léon Mazeaud e Jean Mazeaud que os redatores do Código Civil napoleônico queriam
destacar que uma obrigação nascida por intermédio do contrato deveria se impor com a mesma força que uma
obrigação legal. E dois fundamentos justificavam essa concepção: fundamento moral e o fundamento econômico
e social. Pelo fundamento moral, com a palavra dada, a promessa deve ser cumprida custe o que custar.
Enquanto que, pelo fundamento econômico e social, se o credor não estivesse seguro de que o devedor está
obrigado a cumprir a sua promessa, o crédito, sobre o qual se baseiam os negócios, desapareceria com a
confiança que o embasa (Op. cit., pág. 7/8).
161
bem comum
370
. Para Francisco Amaral, era a máxima expressão do princípio do laissez-faire,
laissez-passer, laissez-contracter
371
.
O bem comum não se confunde com o bem da sociedade, pois é atendido quando
satisfação individualizada dos indivíduos. A idéia de bem comum representa a relação
aritmética do bem de cada indivíduo. Por isso, é que somente era alcançado o bem comum se
o bem dos indivíduos também o fosse
372
.
Judith Martins-Costa, ao tratar das fontes das obrigações jurídicas, revela a receita
perfeita do que representou a codificação francesa, no plano do direito positivo, para o
conceito e os elementos essenciais do contrato, afirmando que o Código de Napoleão teve o
mérito de equiparar os efeitos da lei aos efeitos almejados pela vontade ou o consentimento
373
.
O Código Civil tradicional é o código do sujeito burguês, enquanto homem privado
de qualquer incômodo do Estado e, nesse viver privado, o direito civil ostenta três pilares
fundantes: a perspectiva contratual de circulação de bens; a dimensão patrimonial de
apropriação dos bens, e o projeto parental de exteriorização da família
374
.
O indivíduo, na concepção clássica, é um ser abstrato, descolado da realidade, e
detentor de individualidade e de autonomia, que goza de direitos subjetivos pessoais e
inalienáveis. Nesse ambiente propício, a burguesia ganha força, sobretudo política, e ascende
na esfera da sociedade, tornando-se mais uma integrante da faceta do poder econômico no
meio social. A formalização do direito, conforme os ideais positivistas, é desencadeada por
370
MARTY, G. Derecho Civil. Teoria General de las Obligaciones. Volume I. Puebla/ME: José M. Cajica, 1952,
págs. 27/29.
371
Direito Civil. Introdução. 6ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pág. 354.
372
SANTOS, Eduardo Sens dos. O Novo Código Civil e as Cláusulas Gerais: Exame da Função Social do
Contrato. Revista Forense. Ano 98. Volume 364. Novembro/dezembro/2002, págs. 91/92.
373
Crise e Modificação da Idéia de Contrato no Direito Brasileiro. Revista de Direito Civil. Ano 16. 59.
Janeiro/Março de 1992, pág. 20.
374
FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil e Dignidade da Pessoa Humana: Um Diálogo Constitucional
Contemporâneo. Revista Forense. Ano 102. Volume 385. Maio/Junho de 2006, pág. 115.
162
obra do Código Civil Napoleônico, que passa a ser fonte unitária, exclusiva e completa da
produção jurídica
375
.
Esses caracteres conduzem à insensibilidade para problemas de cunho social, dada à
desconexão do direito à realidade fática que envolve a coletividade, devendo a legislação
codicista cuidar de preservar os direitos individuais do homem, considerado em sua
individualidade.
No Estado liberal, o Código Civil é considerado a “autobiografia” do indivíduo
burguês, podendo, até mesmo, afirmar-se, nas palavras de Teresa de Negreiros, que não
apenas o direito civil, mas todo o direito tem como ponto de partida o individualismo e o
liberalismo
376
.
Contudo, Caio Mario da Silva Pereira pondera que “sendo inspirado no acordo das
vontades, e sendo expressão do querer dos contratantes, não se poderia admitir que as
vontades livres pudessem estipular uma avença que atentasse contra o princípio imanente de
justiça. E, então, o jurista do século XIX afirmava, e o do começo do século XX repetia:
‘quem diz contratual diz justo’”
377
De fato, não se pode desprezar, ainda na concepção liberal da Revolução Francesa, a
incidência de alguns direitos fundamentais sobre o direito privado. A Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão de 1789 não se destinavam exclusivamente contra as arbitrariedades
do Estado, mas também se dirigiam contra os privilégios corporativos, econômicos e sociais
da nobreza e do clero, exigindo-se liberdade e, sobretudo, igualdade nas relações de direito
privado
378
.
375
FACHIN, Luiz Edson. Ibid., pág. 116.
376
Op. cit., pág. 14.
377
A nova tipologia contratual no Direito Civil brasileiro. Revista Forense. Ano 79. Vol. 281. Jan/março de
1983, pág. 2.
378
ESTRADA, Alexei Julio. Op. cit., pág. 31.
163
Essa declaração de direitos revelava-se como o programa de um novo ordenamento
do direito privado e social igualitário, posteriormente complementado com o Código Civil
francês de 1804, que veio a ser o principal instrumento de preservação da liberdade dos
cidadãos em suas relações de coordenação e de garantia da autonomia da vontade. De um
lado, existiam as liberdades públicas, assim reconhecidas como a relação existente entre o
indivíduo e o Estado, regidas pelas declarações de direitos e pelas constituições, de outro lado,
as liberdades privadas, que diziam respeito às relações entre os indivíduos, a cargo do Código
Civil
379
.
O fenômeno do codicismo influenciou, naturalmente, os contornos jurídicos da teoria
contratual, incorporando em sua base características e elementos próprios da filosofia liberal,
inclusive princípios que nortearam a disciplina dos contratos no tráfico jurídico privado.
4.4. A concepção liberal do contrato
4.4.1. A noção do contrato
Como era de se esperar, o fenômeno da codificação, aliado à filosofia liberal e ao
pensamento racionalista, repercutiram sobre o conteúdo e o alcance do conceito, dos
elementos essenciais, das características e dos princípios do contrato liberal. Esses
componentes relacionados à concepção clássica ainda hoje têm influência na própria
delimitação do que se entende por contrato.
O homem, entendido como mero indivíduo, para viver em sociedade, necessitava
trocar serviços e prestações pessoais ou patrimoniais e essa circulação de benefícios se
379
ESTRADA, Alexei Julio. Ibid., pág. 32.
164
perfazia através do contrato. A capacidade de o indivíduo de usar livremente os seus bens,
para adquirir a propriedade, encerra a idéia do direito de dispor das coisas, inclusive em favor
de terceiros. Nessa disposição em benefício de terceiros, depositam-se esperanças e
propósitos, cuja revogação do que se promete representa uma ofensa ao direito contratual. Daí
a essência do fundamento jurídico do contrato: a liberdade de dispor e a obrigação de o
revogar a disposição feita
380
.
Além disso, a noção de contrato, sob os influxos do liberalismo e sob as linhas
demarcatórias do Código de Napoleão, representa historicamente um importante passo na
libertação do homem. Havia grande massa de trabalhadores, que se achavam vinculados à
terra e ao modelo de produção econômica feudal. A necessidade de formação da produção
capitalista ensejou a libertação dos homens desses vínculos, invocando a essencial liberdade
humana e o seu caráter natural, eterno e, portanto, pré-jurídico. A doutrina jusnaturalista de
proclamação de direitos ínsitos à condição humana liberta o homem da ideologia
hierarquizadora e vinculadora feudal e, mais particularmente, da situação de submissão em
que se encontrava
381
.
A concepção moderna do contrato, fundada no Estado liberal, compreende todo
acordo de vontades por meio do qual os interessados se obrigam. O contrato converte-se,
assim, em figura central de todos os quadrantes do direito, não apenas do direito civil. Luis
Díez-Picazo chega, inclusive, a ponto de asseverar que o direito é o reino do contrato e onde
acaba o contrato começa o reino da arbitrariedade e da força. Qualquer limitação à liberdade
de contratar era intepretada como um atentado à liberdade da pessoa
382
.
380
COGLIOLO, Pietro. Op. cit., pág. 199.
381
PRATA, Ana. Op. cit., págs. 79/80
382
Op. cit., pág. 137.
165
Essa ótica contratual, ainda, estaria estruturada sobre pressupostos ideológicos e
sociológicos. Um deles, lastreada no pensamento de Adam Smith, aponta Díez-Picazo
consistiria em que as leis de mercado e o egoísmo individual seriam os melhores motores da
felicidade e da prosperidade das nações. Outra idéia era a de que o contrato é o melhor meio
de alcançar os interesses privados, pois resultava da vontade comum dos contratantes. E, por
fim, ainda se deve levar em consideração a premissa de que o contrato é o instrumento mais
idôneo para o progresso econômico do mercado de capitais e do trabalho
383
.
O contrato, pois, no meio social, é o mais interessante mecanismo de viabilização da
circulação de riqueza e de bens e, por conseguinte, de realização dos interesses privados e
econômicos, devido à excelência de servir como instrumento de satisfação individual do
interesse buscado e de possibilitar a escolha privada da melhor maneira de operacionalizá-la,
mesmo que para compatibilizar interesses individuais antagônicos. Aliás, o contrato
representava o ponto de equilíbrio de interesses contraditórios, não podendo - nem devendo -
o Estado intrometer-se para não correr o risco de falsear todo o sistema
384
.
Entretanto, não era apenas como ponto de equilíbrio de interesses contrapostos que
se agigantava o papel do contrato no Estado liberal. Mesmo quando houvesse interesses
convergentes entre as partes poder-se-ia cogitar da figura do contrato. Luiz da Cunha
Gonçalves, após delinear as duas correntes doutrinárias que pretendiam definir o elemento
distintivo do contrato (interesses antagônicos ou interesses convergentes), sustenta que a
“palavra contrato’ (do latim contractum do verbo contradicor) é suficientemente maleável e
compreensiva para se adaptar a todas as situações e abranger toda a espécie de acordos e
convenções tendentes a criar obrigações jurídicas, ainda que sejam mais ou menos forçadas,
383
Ibid., Ibidem.
384
PRATA, Ana. Op. cit., págs. 29/30.
166
como são todos os contratos de direito público, havendo muitos de direito privado em
idênticas condições”
385
.
Esses qualificativos da visão liberal favorecem o surgimento de determinadas
características e princípios da teoria contratual, ainda hoje de grande destaque na disciplina
dos contratos.
4.4.2. Características do contrato no Estado liberal
No período do Estado liberal, o mercado e as forças que o ditam são basicamente
vistos como únicos fatores econômicos que se admitem para realizar escolhas racionais e
decisões voluntárias por parte de sujeitos autônomos. A racionalidade e a voluntariedade, ao
interagir no processo de negociações e trocas, é que promoveriam o ajuste entre a procura e a
oferta.
A teoria contratual liberal caracteriza-se pela proliferação dos contratos descontínuos
ou pontuais, que assim são denominados porque diferenciam e isolam a transação contratada
de todas as demais a ela anteriores, contemporâneas e subseqüentes. Cada ato negocial é
concebido como um ato específico, independente, pontual e estanque, que se realiza
instantaneamente com base no acordo de vontades contraído no exato momento da aceitação
da oferta e que reúne em si todos seus elementos constitutivos essenciais de um contrato
386
.
Firmados com base nos princípios da livre autonomia da vontade das partes e do
mútuo consentimento, os contratos, de natureza impessoal, cingiam-se a definir a negociação
em termos de mera troca de mercadorias ou serviços, mediante a descrição apenas das
especificidades do bem, do preço, da quantidade, da qualidade, do prazo e do local de entrega.
385
Tratado de Direito Civil. 1ª Edição. Volume IV. Tomo I. São Paulo: Max Limonad, 1958, págs. 274/275.
386
FARIA, José Eduardo. Op. cit., pág. 201.
167
Qualquer imprecisão ou indeterminação das cláusulas contratuais comprometia sensivelmente
certeza e a previsibilidade que se exigia do contrato, o que rendia ensejo à sua própria
nulidade
387
.
Também por motivos de segurança jurídica e calculabilidade, eventuais alterações no
curso da execução do contrato era concebida como um novo contrato, reclamando-se, de igual
forma, nova manifestação de acordo de vontades das partes. A individualidade, a
calculabilidade e a livre autonomia da vontade praticamente retira desses contratos qualquer
sentimento de “solidariedade” e “cooperação” ou, mesmo, de preocupação com a parte
economicamente mais vulnerável, débil ou hipossuficiente
388
.
Essa concepção contratual, em virtude da qualidade abstrata do sujeito abstrato, não
leva em consideração a qualidade das partes contratantes ou a condição referente à classe, ao
status, ao grupo, à família ou à situação social das partes. Também não se nenhuma
importância ou relevância substantiva à performance das partes na definição dos efeitos da
quebra ou descumprimento contratual, devendo o contrato ser mantido a qualquer custo,
inclusive social, à luz do princípio do pacta sunt servanda
389
.
387
FARIA, José Eduardo. Op. cit., pág. 201.
388
FARIA, José Eduardo. Ibid., pág. 203. Ronaldo Porto Macedo Junior, na mesma linha de idéia, também
escreve que “No direito contratual do Civil Law o predomínio do positivismo jurídico e, no plano metodológico,
a Escola da Exegese, conferiram à vontade contratada um estatuto soberano. No direito contratual clássico
americano, os princípios jurídicos mais importantes ganharam uma enunciação formalista que garantia a
segurança e previsibilidade nas relações contratuais. Em primeiro lugar, com relação aos termos contratuais
deixados em aberto, ou apenas termos abertos, potencialmente geradores de incerteza e imprevisibilidade,
entendeu-se que a falta de determinação de um termo ou cláusula contratual levaria à nulidade do contrato por
indeterminação (void for indefiniteness). Tal princípio foi cristalizado no Restatement First secção 32. Assim,
quase que por definição, não haveria contrato válido ambíguo ou incerto, visto que a indeterminação importaria
na nulidade de todo o contrato. [...] Ao mesmo tempo em que se procurava banir a indeterminação e incerteza
nas cláusulas contratuais, criava-se uma série limitação ao poder das partes de introduzirem modificações
contratuais no curso da performance contratual. A modificação passa a ser vista como um novo contrato e requer
contraprestação contratual, isto é, consideration ou nova causa. Desta forma, impõe-se através de um
mecanismo jurídico formal a supramencionada característica da autonomia e descontinuidade. O contrato não é
visto como um processo, mas antes como uma mônada o vinculada às modificações e acertos anteriores ou
subseqüentes” (Contratos Relacionais e Defesa do Consumidor. Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007, págs. 92/93).
389
MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Ibid., págs. 89/90.
168
Em outras palavras, a circunstância de o bem objeto do contrato ser essencial ou
relevante à existência humana não tinha qualquer repercussão no tratamento contratual
dispensado. Aliás, como o Código Civil centralizava em um único corpo legislativo todo o
sistema normativo e, sobretudo, aplicativo, do direito privado, o fato de determinados bens ou
direitos estarem assentados na Constituição, ou mesmo sendo considerados fundamentais à
condição humana, ainda mais porque eram oponíveis apenas contra o Estado, não acarretavam
qualquer reflexo no tratamento contratual, a não ser em casos excepcionais de ameaça de
perda definitiva.
Nesse cenário, poder-se-ia inferir que o principal elemento essencial do contrato, na
concepção liberal, consistia na manifestação de vontade individual de cada uma das partes.
Para Cláudia Lima Marques, os elementos básicos que simbolizam a concepção
tradicional do contrato, com reflexos até os nossos dias são: (a) a vontade (b) do indivíduo (c)
livre, capaz de definir e criar direitos e obrigações protegidos e reconhecidos pelo direito.
Esses requisitos implicam a construção da doutrina da autonomia da vontade e do dogma da
liberdade contratual. Para esta visão individualista, a vontade dos contratantes, declarada ou
interna, é o elemento principal do contrato. A vontade representa não só a gênesis, como
também a legitimação do contrato e de seu poder vinculante e obrigatório
390
.
De fato, como denuncia Lourenço Trigo de Loureiro, mesmo na época clássica, além
da imprescindibilidade do livre e expresso consentimento de ambas as partes, era considerado
nulo o contrato ou o pacto que pudesse resultar na perda da vida, saúde, honra ou liberdade
391
.
E este aspecto se mostra relevante, pois se observa que, desde a concepção tradicional e
liberal do contrato, alguns bens essenciais à condição e ao sentimento existencial do homem
390
Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações contratuais. Edição. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, págs. 41/42.
391
Instituições de Direito Civil Brasileiro. Vol. II. História do Direito Brasileiro. Brasília: Senado, 2004, pág.
218.
169
não poderiam ser vulnerados pelo acordo de vontades, sob pena de perder, em definitivo, a
sua própria razão de ser, que é a proteção do indivíduo.
Vê-se, então, que somente, em casos excepcionais de perda de bens essenciais à
existência humana, é que a teoria contratual liberal se empenhava em decretar a nulidade do
contrato. Fora isso, dever-se-ia preservar a vontade estabelecida no momento da celebração da
avença.
A vontade, na concepção liberal, passa a ser a essência do contrato, e este, a essência
do direito objetivo como um todo e do próprio Estado. O século XVIII, caracterizado pelo
século das luzes, do indivíduo e do contrato, resulta na formulação de princípios, categorias e
valores que, em torno da autonomia da vontade, até hoje orientam várias correntes, inclusive
no Brasil, significativas do pensamento civilístico
392
.
4.4.3. Princípios da concepção liberal dos contratos
4.4.3.1. Princípio da autonomia da vontade
Sendo a vontade individual um dos elementos essenciais à configuração do contrato
no Estado liberal, sobretudo numa sociedade baseada na propriedade, a conseqüência mais
imediata seria reconhecer que a criação de obrigações e a produção de efeitos poderiam
estar assentadas no dogma da autonomia da vontade
393
. O contrato, nesta esteira, confundiu-se
392
NEGREIROS, Teresa. Op. cit., pág. 25.
393
Francisco Amaral advoga que “o dogma da vontade nasce também do direito de propriedade. Na Idade Média,
a fonte principal da riqueza e produção era a terra, e o direito principal, a propriedade. A evolução política e
econômica tornou, porém, distintas, a propriedade da terra da dos demais bens de produção, base do comércio e
a indústria, e de que eram titulares os construtores da economia capitalista, os burgueses, interessados no
desenvolvimento do intercâmbio comercial. Esse processo levou à jurisdicização das relações de troca, isto é, a
um sistema jurídico que permitisse a livre circulação dos bens e dos sujeitos, na dinâmica do próprio sistema. A
generalização das trocas configura uma nova força, um novo poder, que se destaca do direito de propriedade, e
170
com a própria liberdade, sendo o instrumento por excelência da autonomia da vontade, que
não desenvolviam sem o direito de propriedade privada. Daí a conclusão de que liberdade de
contratar e liberdade de propriedade seriam interdependentes, como irmãs siamesas
394
.
Nessa fase histórica, não se pode falar propriamente em autonomia privada, mas tão-
somente em autonomia da vontade, já que ainda não se tinha sedimentado a concepção de que
a autonomia representava o poder de autodeterminação de efeitos negociais.
O princípio da autonomia da vontade parte da idéia básica de que a autodeterminação
na definição dos rumos da própria vida econômica decorre da vontade. Assim, a autonomia
seria derivada da vontade das partes contratantes, o que a qualificaria como autonomia da
vontade. A manifestação volitiva desfrutava uma dimensão subjetiva e psicológica em que era
avaliada, no íntimo, a verdadeira intenção do contraente e, se não houvesse correspondência
entre essa intenção e a declaração da vontade, prevaleceria aquela em detrimento desta,
podendo até mesmo se reconhecer a nulidade do ato negocial.
Para Immanuel Kant, a autonomia da vontade é a constituição da vontade, graças à
qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer). O
princípio da autonomia é, portanto, não escolher senão de modo a que as máximas da escolha
no próprio querer sejam simultaneamente incluídas como lei universal”
395
.
A legislação codicista, normalmente, previa que a vontade das partes era
componente necessário para a perfectibilização do referido suporte. A vontade servia como
que é, precisamente, o poder da vontade que se realiza na liberdade de troca e na liberdade de atuação no
mercado, correspondente ao que hoje denominamos de liberdade de iniciativa econômica. A autonomia da
vontade traduz no poder de disposição diretamente ligado ao direito e propriedade, dentro do sistema de mercado
da circulação dos bens por meio da troca, e de que o instrumento jurídico próprio é o negócio jurídico(A
Autonomia Privada como Princípio Fundamental da Ordem Jurídica: Perspectiva estrutural e funcional.
Revista de Direito Civil. Ano 12. Nº 46. Outubro/dezembro de 1988, pág. 16).
394
LÔBO, Paulo Luiz Neto. Contrato e Mudança Social. Revista dos Tribunais. Ano 84. Volume 722.
Dezembro de 1995, pág. 40.
395
Op. cit., págs. 70/71.
171
elemento essencial e constitutivo do contrato, sem a qual nem sequer se cogitava de avença
396
.
Um exemplo claro disso era o art. 85 do Código Civil brasileiro de 1916, ao preconizar que
“nas declarações de vontade se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da
linguagem”.
Cláudia Lima Marques é mais enfática ao afirmar que a autonomia da vontade
reconhece que o contrato tem como única fonte a vontade das partes. A vontade humana seria,
então, o elemento nuclear, a fonte e a legitimação da relação jurídica contratual, e não a lei. O
papel da lei estaria reservado unicamente em pôr à disposição das partes instrumentos que
garantam o cumprimento das promessas veiculadas pela declaração da vontade
397
.
Com isso, fica evidente a superioridade da vontade sobre a lei. A doutrina da
autonomia da vontade acha-se intimamente ligada à idéia de uma vontade livre, dirigida pelo
próprio indivíduo sem influências externas imperativas, devendo o direito assegurar que essa
vontade criadora do contrato seja isenta de máculas ou de defeitos, nascendo a teoria dos
vícios de consentimento. A autonomia da vontade seria limitada apenas pelas regras
imperativas que a lei formula, mas que são raras e têm como função justamente proteger a
vontade dos indivíduos, como, por exemplo, as regras sobre capacidade
398
.
4.4.3.2. Princípio da relatividade dos efeitos
396
ZINN, Rafael Wainstein. Op. cit., pág. 114. Mas, ainda hoje, como destaca o autor, reflexos da concepção
clássica do contrato na legislação civil codicista, quando constata que “O reflexo da visão clássica da autonomia
da vontade na interpretação e na execução dos contratos encontrava guarida expressa no Código Civil de 1916,
no art. 85, o qual dispunha que ‘nas declarações de vontade se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal
da linguagem’. O novo Código Civil manteve esta percepção sobre a autonomia da vontade, precisamente no
artigo 112” (Ibid., pág. 117).
397
Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações contratuais. Edição. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, págs. 48/50.
398
MARQUES, Claudia Lima. Ibid., Ibidem.
172
Pelo princípio da relatividade dos efeitos, o contrato apenas tinha eficácia e instituía
obrigações exclusivamente para as partes contratantes, não projetando qualquer efeito a
terceiros que não integrassem a relação negocial. Parece lógico que, ante à concepção de
liberdade do homem, somente a sua própria vontade individual poderia vinculá-lo a
determinadas conseqüências advindas do contrato, ainda mais em uma época que equiparava
essa convenção à lei. Ao lado disso, também se pode afirmar que a autonomia da vontade e,
em outras palavras, a possibilidade de se autodeterminar por meio da vontade poderia
atingir quem a expressou. Seria inimaginável pensar que, em uma relação jurídica fundada
essencialmente na vontade, o contrato celebrado pelos contratantes pudesse vincular terceiros
que nem sequer a manifestaram.
Apenas excepcionalmente, como bem afirma Roberto Senise Lisboa, o contrato
geraria efeitos sobre os interesses de terceiro, mas tão-somente em seu benefício (negócio
jurídico em favor de terceiro). O princípio da relatividade veda a oponibilidade externa em
face do contrato celebrado, por parte de terceiro, exceção feita à hipótese da existência de
prejuízo a outrem. As partes, por integrarem a relação contratual, podem exercer, por seu
turno, a oponibilidade interna em face dos atos de terceiro, para preservação do contrato e
conseqüente defesa de seus respectivos interesses
399
.
4.4.3.3. Princípio da boa-fé
Na fase liberal, o princípio da boa-fé, a rigor, refletia exatamente o estado de
consciência interno e íntimo da manifestação da vontade, daí se levando em consideração o
sentimento subjetivo, a intenção e o estado psicológico. No entanto, no ambiente contratual,
399
Princípios Gerais dos Contratos. Revista dos Tribunais. Ano 86. Volume 745. Novembro de 1997, pág. 34.
173
não prevalecia a dimensão subjetiva da boa-fé, mas sim a ótica objetiva, que impunha
verdadeira regra de comportamento às partes contratantes, lastreada na lealdade, honestidade
e cooperação.
A boa-fé subjetiva pressupunha que o contratante não sabia ou desconhecia
sinceramente que estava causando uma lesão ao outro contratante. Na face oposta à boa-fé
encontrava-se a má-fé, entendida como a intenção de ferir direito de outrem.
Para Judith Martins-Costa, a boa-fé subjetiva, neste olhar da concepção liberal,
apresentava a idéia naturalista da boa-fé, compreendida como estado psicológico, estado de
consciência que se caracteriza pela ignorância de se estar a lesar direitos ou interesses alheios,
com forte atuação nos direitos reais, notadamente no direito possessório e nas formas de
aquisição da propriedade, como, por exemplo, o usucapião
400
. A boa-fé subjetiva, consoante
Teresa Negreiros, apresenta-se como uma situação ou fato psicológico, cuja “caracterização
dá-se através das intenções da pessoa cujo comportamento queira qualificar”
401
.
Com efeito, basta atentar, no tocante ao direito possessório, para o disposto no art.
490
402
do Código Civil de 1916, que reconhecia que somente haveria boa-fé na posse, se o
possuidor ignorasse o vício ou o obstáculo presente na coisa ou no direito. Ainda no campo da
posse, a boa-fé ostenta significativa relevância quanto aos efeitos possessórios, como se pode
depreende dos arts. 510 a 517 do CC/1916. Sem falar, no caso da tutela dominial, nos arts.
546 a 551, que tratam das construções e plantações e dos usucapiões extraordinário e
ordinário. Neste ponto em particular, se ignorasse a existência de qualquer óbice, o possuidor
400
Mercado e Solidariedade Social entre Cosmos e Taxis: A Boa-fé nas Relações de Consumo. In: MARTINS-
COSTA, Judith (Org.). A Reconstrução do Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pág. 612.
401
Op. cit., pág. 120.
402
Art. 490 do CC/1916: “É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que lhe impede a
aquisição da coisa, ou do direito possuído”.
174
poderia adquirir a titularidade dominial de imóvel no prazo de 10 (dez) anos entre presentes,
ou de 15 (quinze), entre ausentes.
Antônio Junqueira de Azevedo conta que, no Código Civil de 1916, não havia regra
genérica que se referisse expressamente à boa-fé na formação ou execução dos contratos e
que esta omissão se devia à mentalidade capitalista da segunda metade do século XIX, mais
preocupada com a segurança do tráfico jurídico-privado do que com a justiça material. É por
este motivo que, mesmo sob o pálio do Código Civil de 1916, a boa-fé atinente aos contratos
de seguro e sociedade tinham natureza objetiva
403
.
Realmente, como proclama António Menezes de Cordeiro, no art. 1.134.3
404
do
Código Civil francês de 1804, a referência à boa-fé objetiva nele existente tinha a única
finalidade de reforçar o conteúdo vinculativo ou obrigatório dos contratos
405
. A boa-fé
objetiva, no ambiente contratual, a bem da verdade, almejava consolidar o princípio da força
obrigatória dos contratos.
Edílson Pereira Nobre Júnior vai mais além. Diz que a boa-fé prevista no Código
Civil francês deparou-se com cenário hostil frente ao pensamento liberal que predominava no
século XIX, ainda mais porque preponderava o positivismo exegético, que hostilizava um
modelo de conduta baseado em cláusulas gerais. Entretanto, esclarece Edílson Nobre que esse
desprestígio perdurou até o terceiro quartel do século XX, quando, por empenho da doutrina e
403
A Boa-na Formação dos Contratos. Revista da Faculdade de Direito da USP. Vol. 87. São Paulo: USP,
1992, pág. 81.
404
O art. 1.134, alínea 3, do Código Civil francês, tem a seguinte redação, no original francês: “Elles doivent être
exécutêes de bonne foi”. Em português, expressa que “Eles [os contratos] devem ser executados de boa-fé”
(tradução livre do autor).
405
Novas Tendências da Boa-Fé. Revista Paraná Judiciário. Anais do Seminário Luso-brasileiro sobre as Novas
Tendências do Direito Civil. Vol. 52. Set/dez. 1998, pág. 24.
175
da jurisprudência, foi-lhe dado uma interpretação mais elástica, para compreendê-lo como
vetor de interpretação e diretriz tendente à apreciação do comportamento das partes
406
.
4.4.3.4. Princípio da força obrigatória dos contratos
Dentre as principais notas características da visão liberal do contrato, certamente
uma de suas mais destacadas repousa na idéia de que os contratos devem ser obrigatoriamente
cumpridos, em respeito à promessa da palavra dada ou da manifestação da vontade, que foi
levada a efeito na formação do pacto. A declaração de vontade emitida no momento inicial da
celebração do contrato não poderia ser simplesmente desconsiderada e levar a outra parte, que
confiou na produção dos efeitos dele decorrentes, à frustração.
A obrigatoriedade, sintetizada no brocardo pacta sunt servanda, impõe a observância
de todos os termos do contrato, conforme originariamente formado, que se tornou delimitado
para os contraentes a partir do momento em que, dotados de vontade autônoma, vieram a,
consensualmente, firmá-lo. A obrigatoriedade assegura estabilidade à relação contratual,
tendo os contraentes, a partir da formação do vínculo, a segurança de que os termos da avença
serão respeitados reciprocamente, sob pena de resolução do negócio jurídico
407
. A força
vinculante impede que o acordo de vontades seja desfeito, a não ser na hipótese de outro
acordo de vontade ou pelas figuras da força maior e do caso fortuito (acontecimentos fáticos
externos e incontroláveis pela vontade do homem)
408
.
A motivação ética da obrigatoriedade dos contratos, consoante o pensar de Luis
Díez-Picazo, decorre da boa-fé, que exige não fraudar a confiança que se deposita no outro
406
O Princípio da Boa-fé e sua Aplicação no Direito Administrativo Brasileiro. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris, 2003, pág. 83/84.
407
LISBOA, Roberto Senise. Op. cit., pág. 33.
408
LISBOA, Roberto Senise. Ibid., págs. 48/50.
176
criada pela própria promessa ou oriunda da conduta praticada, e consiste em uma espécie de
norma ética de veracidade em nossas comunicações com o próximo e que se exterioriza como
o dever de atender a palavra dada
409
. E, à vista da autonomia da vontade, a obrigatoriedade do
contrato encontra o fundamento na idéia mesma de pessoa. Isso porque, se a pessoa é um ser
dotado de dignidade, derivada da natureza racional, o ordenamento jurídico não pode deixar
de reconhecer que dispõe de autonomia para regular as suas próprias situações jurídicas e,
através delas, dar causa aos fins, interesses e aspirações que almeja
410
.
Luis da Cunha Gonçalves, por sua vez, entende que a força obrigatória dos contratos
corresponde à absoluta necessidade da confiança recíproca e da boa-fé entre os homens, sem
os quais haveria anarquia e desordem social, campearia a má-fé, a vileza e a traição,
inviabilizando a celebração de negócios e o fluxo do comércio nacional e internacional
411
.
Roberto de Ruggiero considera muito genérico dizer que o fundamento da
obrigatoriedade do contrato corresponde a uma exigência da vida social, uma vez que isso
também justificaria todas as normas de direito, não explicando, portanto, a especificidade da
obrigação contratual. Por isso, reconhece como verdadeiro e supremo fundamento da
obrigatoriedade do contrato a unidade da vontade contratual. No momento da celebração do
contrato, as vontades de cada um dos contratantes se unem formando uma nova vontade
unitária (a vontade contratual), não podendo as partes fugir dela, na medida em que o seu
conteúdo se subtrai à livre disponibilidade individual
412
.
Não resta dúvida, pois, de que a intangibilidade do contrato advém do realce
conferido pelo Estado liberal à vontade e, por via de conseqüência, ao princípio da autonomia
409
Op. cit., pág. 141.
410
DÍEZ-PICAZO, Luis. Ibid., pág. 142.
411
Op. cit., pág. 280.
412
Instituições de Direito Civil. Vol. III. Tradução da 6ª edição italiana Ari dos Santos. São Paulo: Saraiva, 1973,
págs. 190/192.
177
da vontade, que se desdobram na liberdade de contratar e na liberdade contratual, segundo os
quais o sujeitos da relação privada são livres para contratar como quer, quando quer e com
quem quiser, contanto que se observe a norma imperativa e não falseie a ordem pública ou os
bons costumes
413
.
4.5. O Código Civil de 1916 e as relações contratuais
No Brasil, as idéias liberais e a concepção moderna do contrato alcançaram a
verdadeira consolidação com a edição do Código Civil de 1916, elaborado por Clóvis
Bevilacqua. O Código Civil de 1916, gestado durante longos 17 (dezessete) anos, foi a grande
síntese do movimento de manutenção do poder pela elite brasileira
414
.
413
TABOADA, Lizardo. La Teoria General del Contrato frente a la del Negocio Jurídico. Revista de Direito
Civil. Ano 18. Nº 70. Outubro-dezembro de 1994, pág. 42.
414
Orlando Gomes sintetiza os bastidores históricos da época da elaboração e da entrada em vigor do digo
Civil de 1916 nos seguintes termos: Ao tempo em que Clóvis Beviláqua apresentou o Projeto do Código Civil
brasileiro, éramos, na precisa observação de Sílvio Romero, uma nação embrionária, cuja indústria mais
importante consistia em uma lavoura rudimentar, extensiva, servida ontem por dois milhões de escravos e,
àquele tempo, abolida a escravatura, isto é, na última cada do século XIX, por trabalhadores nacionais e
algumas dezenas de milhares de colonos de procedência européia; a população em geral era pobre, na sua
maioria, mas eram os pobres da inércia e não os proletários no sentido socialista, porque não eram operários
rurais ou fabris. (...) A esse tempo não se iniciara o processo de transformação da economia brasileira, que a
guerra mundial de 14 viria desencadear. A estrutura agrária mantinha no país o sistema colonial, que reduzia a
sua vida econômica ao binômio da exportação de matérias-primas e neros alimentares e da importação de
artigos fabricados. A indústria nacional não ensaiara os primeiros passos. Predominavam os interesses dos
fazendeiros e dos comerciantes, aqueles produzindo para o mercado internacional e estes importando para o
comércio interno. Esses interesses eram coincidentes. Não havia, em conseqüência, descontentamentos que
suscitassem grandes agitações sociais. A preservação e a defesa desses interesses estavam confiadas a uma classe
média escassa, cujo marginalismo econômico se compensava no exercício dos cargos burocráticos, dos quais se
assenhoreava em conseqüência da urbanização prematura de alguns pontos do país. Para a organização social do
país, a racionalização dos interesses dos fazendeiros e comerciantes se processou por intermédio dessa classe,
que os matizou com os pigmentos de seus preconceitos. Ajustada, então, material e espiritualmente, à situação
econômico-social do país, pelo apoio que recebia da burguesia rural e mercantil, transfundiu na ordem jurídica a
seiva de sua ilustração, organizando uma legislação inspirada no Direito estrangeiro, que, embora estivesse, por
vezes, acima da realidade nacional, correspondia, em verdade, aos interesses a cuja guarda e desenvolvimento se
devotava” (Raízes Históricas e Sociológicas do Código Civil Brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2003, págs.
24/25).
178
O Código Civil brasileiro de 1916
415
, quando em vigor, apresentava essas
características ínsitas ao modelo liberal ou clássico da doutrina contratual, que, para que o
contrato fosse válido e produzisse efeitos na relação, bastava a presença, como se extrai do
disposto no art. 145, da manifestação da vontade das partes, do objeto lícito ou possível, do
agente capaz, da observância da forma e da solenidade essencial prescrita em lei -
praticamente reproduzido pelo Código Civil de 2002, no art. 166.
O Estatuto de 1916, bem se sabe, é fruto da doutrina individualista e voluntarista que,
consagrada pelo Código de Napoleão e incorporada pelas codificações posteriores, inspiraram
o legislador brasileiro quando, na virada do século, redigiu o primeiro Código brasileiro.
Àquela altura, o valor fundamental era o indivíduo, cuidando o direito privado de regular a
atuação dos sujeitos de direito, notadamente o contratante e o proprietário, que almejavam
poder contratar, fazer circular as riquezas, adquirir bens como expansão da própria
inteligência e personalidade, sem restrições ou entraves legais. Eis a filosofia do século
XIX que marcou a elaboração do tecido normativo consubstanciado no Código Civil de
1916
416
.
Esse papel do Código Civil e a crença do individualismo como verdadeira religião
marcam as codificações do século XIX e, portanto, o Estatuto de 1916, fruto de uma época em
que um dos valores mais importantes da sociedade era a segurança, que se traduzia, mais
propriamente, na estabilidade das regras jurídicas dos negócios. Eventuais riscos do negócio,
advindos do sucesso ou do insucesso das transações, expressariam a maior ou menor
inteligência, a maior ou menor capacidade de cada indivíduo
417
.
415
Hoje não mais em vigor, em face do advento do Novo Código Civil de 2002 (Lei 10.406/2002).
416
TEPEDINO, Gustavo. Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil. In: Temas de
Direito Civil. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pág. 2.
417
Ibid., pág. 3.
179
Ruy Rosado de Aguiar Júnior sintetiza que, dentre as principais características, o
Código elaborado por Clóvis Beviláqua ostentava nítida feição individualista, sendo o homem
o centro do mundo e capaz, com a sua vontade e a sua razão, de ordená-lo e submetê-lo às
intenções das partes. Além disso, no Código, quase não existem cláusulas gerais, o que
dificulta a judicialização dos contratos. E, por fim, ainda destaca que o Código de 1916 foi
confeccionado em uma época de estabilidade econômica, com relações civis centradas na
propriedade imobiliária
418
.
Porém, esta era de estabilidade e segurança, retratada pelo Código Civil brasileiro de
1916, entra em declínio na Europa na segunda metade do século XIX, com reflexos na
política legislativa brasileira a partir dos anos 20 do culo XX. Os movimentos sociais e o
processo de industrialização crescentes do século XIX, aliados às vicissitudes do
fornecimento de mercadorias e à agitação popular, intensificadas pela eclosão da Primeira
Grande Guerra, atingiriam profundamente o direito civil europeu, e também, na sua esteira, o
ordenamento brasileiro, quando se tornou inevitável a necessidade de intervenção estatal cada
vez mais acentuada na economia
419
.
O Código Civil de 1916 foi elaborado pela classe média com a preocupação de dar
ao Brasil um sistema de normas de Direito privado que refletisse às aspirações de uma
sociedade sintonizada com os interesses do regime capitalista de produção. Entretanto, essa
doutrina inspiradora da burguesia mercantil encontrou obstáculos na estrutura agrária do país
e na falta estímulos de uma organização industrial que desse impulso ao liberalismo, tal como
ocorreu na Europa continental. A classe burguesa liberal e progressista, que tentava se
fortalecer, estava presa aos interesses dos fazendeiros, que, embora se mostrassem
418
As Obrigações e os Contratos. Revista do CEJ/Conselho da Justiça Federal. Centro de Estudos Judiciários. N.
1. Brasília: CJF, 1997, pág. 32.
419
Op. cit., pág. 4.
180
imediatamente coincidentes, não tolerava certas ousadias. E, como não poderia deixar de ser,
esse desajustamento interno entre os interesses da classe dominante influenciou a construção
de vários institutos na fase de elaboração do Código Civil
420
.
O art. 85 do Estatuto Civil de 1916
421
nada mais fez do que desenhar em linhas
escritas a concepção liberal do contrato, ao dispor que, nas manifestações de vontade, a
interpretação deve preponderância mais à intenção (elemento subjetivo) do que o sentido
literal da linguagem utilizada das cláusulas negociais.
Consoante Paulo Luiz Neto Lôbo, o art. 85 do Código de 1916 reflete o ambiente
político-social de uma época de ascensão do liberalismo jurídico, da visão do Estado mínimo
e da liberdade contratual quase absoluta, o que o tornava refratário a qualquer intervenção
legislativa ou jurisdicional
422
.
No entanto, por vários motivos que serão explorados no próximo capítulo, a
concepção estritamente liberal dos contratos de teor excessivamente individualista entra em
crise, provocando nítido descompasso entre os ditames estabelecidos no Código Civil de 1916
e as novas necessidades de uma sociedade, que, além de se encontrar mergulhada num
420
GOMES, Orlando. Raízes Históricas e Sociológicas do Código Civil Brasileiro. São Paulo: Martins Fontes,
2003, pág. 30/31. Aliás, Orlando Gomes alerta, porém, que dois fatos, em relação ao momento histórico vivido
na época da confecção e da entrada em vigor do Código Civil de 1916, “devem ser destacados para melhor
compreensão de certos fenômenos superestruturais, notadamente o jurídico. O primeiro é a contradição
ideológica entre os setores predominantes da camada superior. Enquanto a burguesia mercantil aspirava a um
regime político e jurídico que lhe assegurasse a mais ampla liberdade de ação, tal como preconizava a ortodoxia
liberal, a burguesia agrária temia as conseqüências da aplicação, ao da letra, dos princípios dessa filosofia
política, consciente, como classe, de que a democratização de fundo liberal se faria ao preço do seu sacrifício.
Essa contradição não provocou o antagonismo entre os dois setores, não porque seus interesses econômicos
imediatos coincidam, mas também porque a superestrutura política era, em verdade, de fachada. O regime
representativo, por sua desfiguração através do coronelismo, permitia ao proprietário da terra resguardar-se de
investidas contra seus interesses fundamentais. Por outro lado, o sistema de franquias liberais aproveitava, tão-
somente, a reduzido número, sendo estranho à grande maioria da população miserável e inculta. E, desse modo,
sem grandes abalos, arrastava-se o país pelos corredores da História” (Ibid., pág. 29).
421
A redação desse dispositivo legal foi reproduzida no atual Código Civil de 2002 (art. 112), o que demonstra
que, mesmo na concepção contemporânea do contrato, ainda se mantém alguns resquícios da teoria tradicional.
422
Condições Gerais dos Contratos e Cláusulas Abusivas. São Paulo: Saraiva, 1991, pág. 127.
181
modelo econômico de consumo de massa, cada vez mais se apresenta desigual do ponto de
vista social e econômico.
182
5. CONCEPÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
5.1. A crise na teoria liberal dos contratos e o dirigismo contratual
Inegavelmente, o Estado liberal propiciou inúmeros benefícios à sociedade, devido
ao grande impulso dado ao progresso econômico nunca antes vivenciado, o que semeou o
terreno para a revolução industrial. Nessa concepção econômica, o indivíduo foi valorizado,
despertando-se a consciência para a importância da liberdade humana, além de ter surgido a
idéia da supremacia da lei. Nada obstante essas vantagens, o mesmo Estado liberal, de outro
vértice, criou as condições para sua própria superação
423
.
423
José Carlos Vieira de Andrade adverte que “A superação do liberalismo não foi, contudo, apenas uma obra
política. Foi a própria sociedade liberal que ruiu, substituída por uma nova ordem a que se convencionou chamar
‘sociedade técnica de massas’. A industrialização e o progresso técnico desenraizaram os homens das suas terras,
amontoaram-se nas cidades, impuseram-lhes um ritmo acelerado de vida e desenharam—lhes os horizontes de
um bem-estar material. Privados do seu espaço e do seu tempo, arregimentados em estruturas intermédias, desde
a fábrica ao sindicato e ao partido, dirigidos e controlados pela publicidade (propaganda) e pelos meios de
comunicação de massa que lhes ditam as idéias e os produtos prontos a consumir os homens dissolvem-se na
sociedade e nela encontram o seu destino. O indivíduo torna-se um ser dependente, uma espécie-tipo do gênero
humano. A sociedade, por seu lado, fragmenta-se em grupos. Revelam-se as diferenças mal escondidas e, com a
divisão do trabalho, das actividades e das profissões, os interesses multiplicam-se ainda mais entre si, uns contra
os outros, procurando a melhor posição num mundo social sem lugares marcados e em movimento contínuo. A
construção da harmonia liberal é destruída pela erupção de uma luta entre preferências diversas, onde certas
contraposições se manifestam com tal intensidade que algumas doutrinas e teorias descobrem na sociedade
antagonismos radicais e historicamente determinantes. O Estado começa a ser cada vez mais solicitado a intervir
na vida social e a Administração ultrapassa definitivamente a sua condição aparente de esquadra de polícia e
repartição de finanças. Não foi apenas uma intervenção de necessidade, que durasse apenas enquanto as guerras
mundiais desarticularam a sociedade privada e mobilizaram os recursos para uma administração marcial.
Terminadas as guerras, verifica-se que a sociedade mudou: a paz social não se reduz à ordem nas ruas,
pressupõe e responsabiliza a Administração na caminhada para um Bem-Estar susceptível de medida (‘a matter
of social engineering’), com base nos critérios de determinação do futuro que os conhecimentos técnicos vão
pondo à disposição das vontades colectivas. Exigem-se do Estado medidas de planejamento económico e social,
uma intervenção directa e dirigente na economia, um sistema completo de prestações nas várias áreas da vida
social. A liberdade individual e a concorrência económica não tinham conduzido ao melhor dos mundos, mas a
um mundo de injustiças flagrantes designadamente, a liberdade contratual entre empresários e trabalhadores
tivera como resultado uma exploração social infrene, que reduziu massas humanas a um nível degradante da sua
dignidade e abriu uma ‘questão social’, em termos de afectar a própria segurança burguesa. A desagregação das
estruturas sociais tradicionais, um certo laicismo anticlerical e a deslocação das pessoas dos meios rurais para as
cidades tornaram insuficientes os sistemas antigos (familiares, religiosos, mutualistas, ainda que submetidos a
uma fiscalização pública) de resolução dos problemas da doença, da velhice e da pobreza” (Op. cit., págs.
57/58).
183
A exacerbação da valorização do indivíduo e a conseqüente perda do sentimento
coletivo do homem renderam margem a um comportamento egoísta, altamente vantajoso para
os mais hábeis, mais audaciosos ou menos escrupulosos. Aliado a isso, a doutrina da mínima
intervenção do Estado nas relações privadas não o autorizava a proteger os menos
afortunados, acarretando uma crescente injustiça social. Ao conceder a todos o direito de ser
livre, não se assegurou a ninguém o poder de ser livre
424
.
A liberdade individual tão festejada nos movimentos revolucionários, tal como se
verificou especialmente na Revolução Gloriosa Inglesa de 1688 e na Revolução Francesa de
1789, não garantiu a perseguida felicidade do homem, sobretudo no meio contratual, mas
antes acirrou a desigualdade fática entre os contratantes, colocando o mais fraco (cidadão
comum) numa situação de subserviência e submissão ao mais forte (detentor do capital).
No âmbito dos contratos, como informa João Baptista Villela, o livre acordo de
vontades era mais aparente do que real, na medida em que vigorava a desigualdade
econômica, e especialmente em áreas onde havia necessidade, dificilmente se poderia falar de
liberdade contratual. Daí se mostrou imprescindível a criação de um sistema de vedações e
exigências legais, com a finalidade de impedir a espoliação do fraco pelo forte e, em última
análise, assegurar a prevalência dos interesses do bem comum sobre os interesses meramente
individuais
425
.
Na esteira do pensamento de Paulo Luiz Neto Lôbo, o Estado social percorreu o
caminho inverso daquele que fora trilhado pelo Estado liberal, inclinando o pêndulo do
interesse individual para o interesse social e o da vontade individual para o da vontade
presumível do grupo ou da coletividade. No Estado social, a importância do componente
424
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da Teoria Geral do Estado. 18ª Edição. São Paulo: Saraiva, 1994,
pág. 235.
425
Por uma nova Teoria dos Contratos. Revista Forense. Ano 74. Volume 261. Janeiro/março de 1978, pág. 29.
184
social exterioriza-se justamente através do intervencionismo estatal, pressionado por força da
evolução histórica e pelas sociedades de massas
426
.
Diante desse quadro de desequilíbrio real, o Estado passou a ser instado a intervir nas
relações privadas, no intuito de neutralizar as diferenças e restaurar o equilíbrio, mas somente
por meio da lei. Curiosamente, a mesma lei que tinha, na época liberal, sido o principal
instrumento de libertação do homem do Estado absolutista, criticado por ser abusivo e
arbitrário, passou a restringir a liberdade individual em nome do interesse coletivo. No
liberalismo, era comum se evocar a idéia de que “a lei liberta”. Mas, com as injustiças sociais
decorrentes do ultra-individualismo, admitiu-se que a “lei restringe”. Essa forma de
intervencionismo estatal, mediante a lei, na seara dos contratos foi denominada de dirigismo
contratual.
Para Caio Mário da Silva Pereira, sob as luzes do dirigismo contratual, houve um
deslocamento de foco na vida contratual. Com base nos princípios da ordem pública, o
Estado, por meio da lei, passou a ter a missão de restabelecer o equilíbrio econômico das
partes contratantes, rompido pelo crescimento do poder empresarial, mesmo que o fosse em
detrimento da liberdade e da autonomia da vontade
427
.
O princípio da ordem pública, por sua vez, pode apresentar rios matizes e
desdobramentos doutrinários, a depender da teoria sufragada. Diego Espín Cánovas ensina
que, para a concepção positivista, a ordem pública correspondia às leis imperativas que
estruturavam o Estado e a sociedade. E, para a teoria extrapositivista, ordem pública consistia
426
O Contrato: Exigências e Concepções Atuais. São Paulo: Saraiva, 1986, pág. 85.
427
A Nova Tipologia Contratual no Direito Civil Brasileiro, pág. 3.
185
em princípio limitador da autonomia da vontade, operacionalizado pelo juiz no exame do caso
concreto
428
.
O mesmo ocorre no tocante aos bons costumes. Diego Espin Cánovas expõe, pelo
menos, três teorias que procuram conceituar a cláusula dos bons costumes. A primeira delas,
de cunho positivista, também se baseia na lei e que, no caso dos contratos, representava os
princípios da boa-fé e da liberdade. A segunda doutrina, chamada de sociológica, preconiza
que o conceito de bons costumes, como limites à autonomia privada, deve ser extraído da
própria observação dos fatos sociais e da consciência coletiva. E a última escola, considerada
normativista, aproxima os bons costumes à moral social
429
.
Assim, enquanto a ordem pública diz respeito aos interesses gerais do Estado e da
sociedade, os bons costumes podem ser traduzidos na moral difundida no tecido social
430
.
Karl Larenz, inclusive, chega a sustentar a existência de uma “moral predominante”
nos mais amplos setores da sociedade a respeito do que se entende por decoroso, leal, lícito ou
ilícito, não apenas na vida sexual e nas relações familiares, mas também na vida dos negócios
entre comerciantes e seus clientes, inquilinos e locatários, patrões e empregados e, em geral,
entre contratantes honestos
431
.
E complementa, ainda, Larenz que a “moral predominante” desfruta de íntima
conexão com os princípios ético-jurídicos imanentes da Lei Fundamental de Bonn
(Constituição Alemã de 1949), tais como os postulados da dignidade da pessoa humana (art.
1º, ap. 1), do livre desenvolvimento da personalidade (art. 2º), da proibição de discriminações
428
Las Nociones de Orden Público y Buenas Costumbres como Límites de la Autonomía de la Voluntad en la
Doctrina Francesa. Anuario de Derecho Civil. 3. Vol. 16. Madrid: Ministerio da Justicia, 1963, págs. 786 e
790.
429
Ibid., págs. 791/793 e 797.
430
CÁNOVAS, Diego Espin. Ibid., pág. 800.
431
Derecho Civil. Parte General. Trad. Miguel Izquierdo y Macías-Picavea. Madrid: Editorial Revista de
Derecho Privado, 1978, pág. 596.
186
(art. 3º, ap. 3), da liberdade de crença e de consciência (art. 4º), da liberdade de opinião (ar.
5º), da proteção do matrimônio e da família (art. 6º) e da liberdade de associação (art. 9º)
432
.
Já se começa a perceber que a ordem pública e os bons costumes desfrutam de íntima
conexão com os princípios basilares que estruturam a ordem constitucional.
A lei, no início do Estado social, ditava, em determinadas áreas essenciais da vida
societária, os contornos e as exigências que o contrato tinha que atender, para gozar de
validade e eficácia. Não necessariamente a lei apontava os efeitos a serem produzidos ou
mesmo criava a obrigação contratual, pois esses elementos ainda permaneciam sob império do
acordo de vontades. Contudo, a liberdade antes irrestrita à formação da vontade contratual
começou a sofrer, em novo momento histórico da humanidade
433
, limitações a bem do
interesse público. A vontade continuava ainda a ser fonte da obrigação jurídica, porém com a
possibilidade de ser restringida pelos interesses da coletividade.
As idéias solidaristas e socialistas do século XIX tiveram um papel marcante na
formação da ideologia socializante das relações privadas e, sobretudo, dos contratos. Sob o
pálio do dirigismo contratual, agigantou-se, durante o final do século XIX e por quase todo o
século XX, o número de normas de ordem pública destinadas a proteger os indivíduos
432
Op. cit., págs. 598/599.
433
Lino de Morais Leme esclarece que a intervenção estatal não era algo novo na história da política econômica
das sociedades, uma vez que “Em todos os tempos, houve intervenções governamentais em matéria contratual.
No direito romano houve a interdição, durante o Império, de exportar trigo, vinho; as intervenções destinadas a
impor às corporações comerciais, industriais e operárias, sob a forma de obrigações imperativas, o regime
sistemático de subordinação, que se acabou generalizando; a tentativa de taxação das mercadorias pelo edito do
máximo, e a fixação do salário, sob DIOCLECIANO; a luta contra o precarium, que levou ao contrato feudal.
Na Grécia, as legislações de LICURGO e de SÓLON já teriam dado o exemplo da intervenção governamental,
destinada a pôr fim às crises da época. Que foram as leis de MOISÉS para os israelitas? Que são os plenos
poderes concedidos aos chefes, em períodos considerados de salvação nacional, ou por estes assumidos, como se
observa em vários países, atualmente? Num dos países considerado a terra do liberalismo, os Estados Unidos da
América, em 1890, o Sherman Act declarava ilícitas as coalizões formadas por trusts e cartéis, com o objetivo de
aumentar os preços; e outras leis se fizeram com o mesmo caráter, especialmente o New Deal, fixando preços
das mercadorias, estabelecendo limites à exportação, aos salários, controlando o câmbio, etc. Na Inglaterra, são
limitadas as taxas de juros e se permite aos tribunais anular o contrato de empréstimo que lhe pareça duro e
abusivo (harsh and unconscionable) (As Transformações dos Contratos. Revista Forense. Ano 54. Vol. 171.
Maio-junho de 1957, pág. 60).
187
economicamente fracos, favorecendo o empregado, pela criação do direito do trabalho, o
inquilino, com a legislação sobre locações, e o consumidor, por uma legislação específica em
seu favor
434
.
Com isso, a autonomia da vontade ficou à mercê de restrições em face de uma série
de normas legislativas, que fixava princípios mínimos que os contratos não podiam afastar
(salário mínimo, tabelamento de gêneros alimentícios, fixação de juros). O dirigismo
contratual passou, em certos casos, a influenciar até mesmo o conteúdo do contrato, para
caracterizá-lo como de ordem pública, com grande possibilidade de alcançar até pessoas que
nele não foram partes
435
.
As primeiras manifestações da evolução do Estado liberal para o social, no plano da
legislação, ocorreram em meio à economia de guerra da Primeira Grande Guerra, que trouxe
pela primeira vez graves restrições à liberdade contratual e à liberdade de utilização da
propriedade. Em primeiro lugar, houve a publicização da comercialização de quase todos os
bens e várias medidas legislativas foram tomadas para minimizar a carência de habitação. E,
mesmo depois da guerra, mantiveram-se durante muito tempo as restrições no mercado da
habitação e no comércio fundiário
436
.
Para Marta Maria Vinagre, foi no período posterior à Primeira Grande Guerra
Mundial que o contrato tomou outros rumos, assumindo novas feições e funções, deixando de
ser apenas uma forma de transferir a propriedade de bens, e passou a reger múltiplas e
variadas situações. A revolução industrial e tecnológica e o crescimento empresarial levaram
o contrato a exercer outro papel no regime capitalismo vigente. Com o aumento de novas
434
WALD, Arnoldo. A Função Social e Ética do Contrato como instrumento jurídico de parcerias e o Novo
Código Civil de 2002. Revista Forense. Ano 98. Nº 364. Novembro/dezembro de 2002, pág. 26.
435
WALD, Arnoldo. A Função Social e Ética do Contrato como instrumento jurídico de parcerias e o Novo
Código Civil de 2002. Revista Forense. Ano 98. Nº 364. Novembro/dezembro de 2002, pág. 27.
436
WIEACKER, Franz. Op. cit., págs. 631/632.
188
técnicas e complexidades, o contrato deixou de ser mero veículo do poder de
autodeterminação de interesses privados e individuais, para também se tornar um instrumento
de realização do interesse coletivo, cumprindo uma função social
437
.
No início do século XX, inúmeras normas especiais passam a disciplinar novos
institutos do direito privado, surgidos com a evolução econômica, ou subtraindo outros do
âmbito do Código Civil, para submetê-los à nova disciplina, mais consentânea com as
necessidades de uma sociedade que se industrializava e de um Estado que se afigurava cada
vez mais social
438
. Esse processo intensifica-se na Europa depois da Segunda Guerra Mundial,
em decorrência da evolução do cenário econômico e social, que exige crescente intervenção
estatal
439
.
Todavia, para Paulo Luiz Neto Lôbo, o declínio da concepção clássica do contrato
começou quando a eqüidade, expulsa pelo individualismo liberal, retornou ao debate
contratual, na legislação e na doutrina pela via dos princípios e das cláusulas gerais
440
.
A intervenção legislativa concentrou-se em vários setores da atividade negocial, com
realce para: a) a limitação da liberdade de escolha do outro contratante, sobretudo nos setores
de fornecimento de serviços públicos (água, luz, telefone, transporte etc.), ou monopolizados;
b) a limitação da liberdade de escolha do tipo contratual, quando a lei estabelece os tipos
contratuais exclusivos em determinados setores, a exemplo dos contratos de licença ou
cessão, no âmbito da lei de software, e dos contratos de parceria e arrendamento no âmbito do
direito agrário; e c) a limitação da liberdade de determinação do conteúdo do contrato, parcial
437
A Outra Face do Contrato. Revista de Direito Civil. Ano 12. Nº 44. Abril/Junho de 1988, págs. 111/112.
438
Flórez-Valdés adverte que a descodificação não constitui, em si mesma, um atentado à unidade do direito
civil, mas não deixa de concordar que representa um sintoma eloqüente de sua ruptura com o Código Civil, ainda
mais diante da consolidação nas leis especiais de princípios distintos e díspares, que até mesmo comprometem
uma certa unidade (Op. cit., pág. 61).
439
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pág.
95.
440
Contrato e Mudança Social. Revista dos Tribunais. Ano 84. Nº 722. Dezembro de 1995, pág. 43.
189
ou totalmente, quando a lei define o que ele deve conter de forma cogente, como no exemplo
do inquilinato, dos contratos imobiliários, do contrato de turismo, do contrato de seguro
441
.
Mais recentemente, o expansionismo industrial ocorrido após a segunda metade do
século XIX fez nascer o fenômeno da contratação em massa. A massificação na produção e na
distribuição de bens deu origem a um novo direito: o direito do consumidor, ramo da ciência
jurídica voltado para a correção das desigualdades entre a classe dos consumidores, que é a
grande parte da população, e a dos fornecedores, composta pelos industriais e comerciantes
442
.
O instrumento eleito para reger as relações massificadas que se formam entre
consumidores e fornecedores foi o contrato de adesão
443
(ou seus similares, como as
condições gerais dos negócios, os contratos-tipo, os contratos standards, condições
predispostas etc.). Operando num palco de liberdade contratual plena, a figura do contrato de
adesão deflagrava o exercício absoluto de autonomia da vontade da classe fornecedora em
detrimento da classe consumidora, uma vez que esta somente possuía a prerrogativa de aderir,
mas não de discutir o contrato, revelando também a sua vontade. Essa situação mostrava a
vulnerabilidade do consumidor no plano das relações jurídicas
444
.
Em que pese tudo isso, não se deve perder de vista que a intervenção estatal e o
dirigismo contratual não poderia chegar ao extremo de aniquilar a vontade e destruir a
autonomia, que é a base e o fundamento da doutrina contratual. Mesmo com a multiplicação
das intervenções legislativas, incabível reconhecer a existência de vínculo contratual sem
441
Ibid., Ibidem.
442
SCHMITT, Cristiano Heineck. Op. cit., págs. 51.
443
Paulo Nalin relata que “Em 1901, enquanto Josserand batizava, como sendo de adesão, o contrato tido como
fruto da industrialização de massa, no Brasil, a economia se desenrolava à sombra do extrativismo natural das
matas de cacau e seringueira, à espera da industrialização, que somente em meados dos anos quarenta, com a
siderurgia, se instalaria no Brasil” (Op. cit., págs. 162/163).
444
SCHMITT, Cristiano Heineck. Ibid., págs. 53.
190
autonomia da vontade, e sem que as partes, embora num espaço mais exíguo e reduzido,
possam, por livre acordo de vontades, regular os seus interesses
445
.
5.2. Funcionalização dos institutos do direito privado e o abandono da teoria estrutural
No processo de intervenção estatal na esfera privada, os princípios da ordem pública
e dos bons costumes não se constituem em fins de si mesmos, mas, antes de tudo, cumprem
várias funções em prol do ordenamento jurídico.
Diego Espin Cánova sistematiza três correntes doutrinárias que cuidaram de definir a
função que a ordem pública e os bons costumes exercem no direito privado. Em princípio, diz
Cánova que a teoria do sistema jurídico-geral prega que a função dos princípios da ordem
pública e dos bons costumes confunde-se com a própria função do direito. Por outro lado, a
teoria social-material assinala que a função consiste em servir de salvaguarda a paz social. E,
para encerrar, a teoria jurídico-fundamental entende que a função da ordem pública e dos bons
costumes é preservar as instituições fundamentais do Estado, não se deixando sucumbir ao
arbítrio da autonomia da vontade
446
.
Neste ambiente de intervencionismo, institutos tradicionais do direito privado, como
a propriedade e o contrato, sofreram modificação substancial em suas estruturas conceituais.
No Estado liberal, o contrato consistia em simples mecanismo fundamental de circulação de
riqueza na sociedade e, por via de conseqüência, de transferência de propriedade entre os
indivíduos, sem que se despertasse para qualquer propósito econômico-social. A única
finalidade do contrato era proporcionar a livre circulação dos bens dos indivíduos, pouco
445
VINAGRE, Marta Maria. Op. cit., pág. 114.
446
Op. cit., págs. 807/808.
191
importando se promovia o desenvolvimento, a satisfação, a felicidade e o bem-comum da
coletividade ou mesmo de todos os contratantes de dada relação negocial.
Aliás, a propriedade sempre esteve bastante próxima da figura do contrato,
intensificando-se, ainda mais, essa aproximação no modelo de produção capitalista, porquanto
a circulação dos bens de produção só poderia ser efetuada por meio de instrumento contratual.
A inserção da propriedade no processo produtivo, portanto, foi operada pelo contrato, o que
os tornaram indissociáveis na ótica econômico-jurídica e expressões essenciais e incindíveis
da liberdade humana
447
.
O acirramento dos conflitos entre propriedade e trabalho, as necessidades sociais de
aumentar a produção e a utilização crescente dos bens econômicos constituíram-se no estopim
do nascimento da fase social dos direitos, que levavam em consideração as finalidades para as
quais os havia criado. Emerge uma nova perspectiva que relevância à função exercida pelo
direito e que modela o seu exercício a uma finalidade solidária. Como conseqüência disso,
nasce a teoria do direito subjetivo como um interesse juridicamente protegido, de sorte que
somente se possui direito quando se tem um interesse determinado
448
.
Com a influência paulatina do Estado social, os institutos jurídicos deixaram de se
constituir em meros mecanismos de circulação da propriedade e, dessa forma, vocacionados
unicamente para a proteção de interesses individuais, e passaram a ser vistos como
instrumentos através dos quais se obtêm alguma utilidade ou benefício também para a
sociedade.
Desenvolveu-se uma perspectiva funcional dos institutos jurídicos sempre se tendo
em mente que deveriam servir a algo de cunho coletivo. Essa funcionalização significava que
447
PRATA, Ana. Op. cit., pág. 147.
448
LOPES Y LOPES, Angel M. La Disciplina Constitucional de la Propiedad Privada. Madrid: Tecnos, 1988,
págs. 61/62.
192
se deveria buscar a satisfação de interesses que transcendiam os meramente individuais e
inserir, neste contexto, a inteireza da cena social com todos os atores, figurinos e a platéia que
os assistem.
Na concepção liberal, prevalecia a idéia de que os institutos jurídicos achavam-se
vinculados à teoria estruturalista e conceitual, segundo a qual a aplicação ficava condicionada
ao preenchimento das elementares do tipo normativo de teor exclusivamente jurídico, por
meio do processo silogístico, ao passo que a visão social, lastreado na teoria funcional,
deslocou o foco da discussão para a finalidade a que se prestavam
449
.
A teoria estrutural preocupava-se estritamente com a constituição dos elementos
formais que faziam nascer o instituto jurídico. Porém, mais importante do que conceituá-los,
para extrair o máximo de performance de cada figura jurídica, impunham-se que se
concentrassem todos os esforços na definição das funções que se almejassem na sua adoção.
Ana Prata pondera, porém, que, mesmo que se considere o contrato como resultante
do poder da vontade (Estado liberal), isso não significa dizer que esteja completamente
excluída de tal noção a perspectiva funcionalizadora. Mas apenas quer revelar que a
concepção funcional parte do pressuposto de que “o negócio, como produto da autonomia
449
Francisco Amaral tece considerações a respeito da diferenciação entre a teoria estrutural e a teoria funcional
do direito, alinhando que “Para a concepção estrutural, científica, do direito, a ciência jurídica não deve ocupar-
se com as funções que ele possa desempenhar, mas somente com os seus elementos estruturais, deixando-se a
análise funcional para a sociologia e a filosofia. Ocorre, porém, que o recurso às ciências sociais permite melhor
compreensão do fenômeno jurídico, revelando, outrossim, a íntima relação que existe entre a teoria estrutural do
direito e a abordagem técnico-jurídica, de um lado, e a teoria funcional e o estudo sociológico, de outro. Esta
conexão é característica dos estudos jurídicos contemporâneos, considerando-se essencial para o jurista saber
não apenas como o direito é feito mas também para o que serve, vale dizer, a sua causa final. Aparece assim o
conceito de função em direito, significando o papel que um princípio, norma ou instituto desempenha no interior
de um sistema ou estrutura. A referência à função social ou econômico-social de um princípio, um instituto, uma
categoria jurídica, neste caso a autonomia privada e o seu instrumento de realização, o negócio jurídico, significa
a aproximação do direito com as demais ciências sociais, como a sociologia, a economia, a ciência política,
antropologia, em um processo interdisciplinar de resposta às questões que a sociedade contemporânea apresenta
ao jurista, considerado não mais a ‘figura tradicional de cultor do direito privado, ancorado aos dogmas das
tradicionais características civilísticas’, mas atento à realidade do seu tempo, a exigir-lhe uma postura crítica em
prol de uma ordem mais justa na sociedade” (Direito Civil. Introdução. 6ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
pág. 363).
193
privada, realiza, por si só, e automaticamente, a função que lhe é reservada”. A liberdade
bastaria para garantir o funcionamento da vida econômica e social
450
.
Afastado do “mito jusnaturalista” que imperou na codificação oitocentista, o direito
subjetivo, na concepção social, passou a ser condicionado pela respectiva função, e, como não
poderia deixar de ser, o direito de contratar, também de índole subjetiva, e a forma de seu
exercício, foram, igualmente, afetados pela funcionalização. A teoria funcional apenas
concedia poderes ou deveres a um dado titular se tivesse em vista certa finalidade ou estivesse
tendente à satisfação de interesses alheios e coletivos
451
.
É forçoso reconhecer que, no campo contratual, a visão unicamente estrutural
apresentou deficiências, pois, além de impedir a avaliação se o contrato merecia ser tutelado
pelo ordenamento jurídico, obstava a prestação da tutela jurídica adequada à específica
disciplina dos interesses em jogo. Somente a análise funcional permitiria a individualização
da tutela de cada contrato, questionando sobretudo as razões (finalidades) que as partes
perseguiam por meio da execução do contrato, na medida em que se permitia que se
projetassem na tutela contratual os valores mais relevantes do ordenamento jurídico
452
.
Pietro Perlingieri considera que a perspectiva funcional é particularmente importante
para a individuação da relevância e para a qualificação da situação subjetiva, a fim de
determinar a sua função no âmbito das relações sócio-jurídicas. Por isso, na ordem jurídica, o
interesse é tutelado enquanto atende não somente ao interesse do titular, mas também àquele
da coletividade
453
. Enfim, a teoria funcional aspiraria à satisfação do interesse individual, mas
450
PRATA, Ana. Op. cit., págs. 12/13.
451
MARTINS-COSTA, Judith. O Direito Privado como um “sistema em construção”: As cláusulas gerais no
Projeto do Código Civil brasileiro. Revista de Informação Legislativa. Ano 35. Nº 139. Julho/setembro de 1998,
pág. 13.
452
RENTERÍA, Pablo. Op. cit., pág. 297/298.
453
Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2007,
págs. 106/107.
194
em especial o social pertencente à coletividade. Em um Estado social, nada mais natural do
que conceber a teoria funcional na perspectiva social dos institutos jurídicos, o que os tornam
figuras que passam a ostentar função social.
Em similar raciocínio, Francisco Amaral entende que função social significa que os
interesses da sociedade se sobrepõem aos do indivíduo, sem que isso implique,
necessariamente, a anulação da pessoa humana, o que autoriza a intervenção estatal pela
necessidade de acabar com as injustiças sociais. Neste sentido, o objetivo da função social
seria o bem comum, o bem-estar econômico coletivo
454
.
Já, para Paulo Nalin, funcionalizar, em conformidade com a Carta Política de 1988,
representa oxigenar as bases estruturais do direito com elementos externos à sua própria
ciência, tais como a sociologia, a filosofia, a economia, a antropologia, a biologia, a
psicanálise, a história e especialmente a ética, de forma a possibilitar a análise do direito em
face de sua função, com o objetivo de atender às respostas da sociedade, em favor de uma
ordem jurídica e social mais justa
455
.
A funcionalização das figuras do direito privado preparou terreno para o nascimento
da visão social do contrato. Isto porque, se o contrato deve atingir uma determinada
finalidade, em uma sociedade marcada pela desigualdade social, o objetivo perseguido
pode ter afinidade com os interesses da sociedade e os da coletividade.
5.3. A concepção socializante dos contratos
5.3.1. A noção de contrato
454
AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. 6ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, págs. 364/365.
455
Op. cit., págs. 216/217.
195
A funcionalização dos institutos jurídicos em favor do interesse social inspirou a
construção da concepção socializante do contrato, na qual não se tutela o interesse privado e
individual de cada um dos contratantes, mas antes procura proteger um terceiro interesse,
recíproco e que transcende à vontade meramente individualizada, formado objetivamente da
avença.
Esse terceiro interesse, de cunho coletivo e alheio aos interesses individuais
originários de cada um dos contraentes, é externo à relação contratual e lança os olhos sobre
os efeitos que ela projeta na sociedade. A visão social coloca a sociedade na ordem de
prioridade, devendo os valores coletivos terem preferência, a qualquer custo, sobre os valores
individuais
456
. É a fase em que reina, em todas as esferas da vida privada, o interesse coletivo
sobre o interesse individual
457
.
A função social, nestes termos, é um verdadeiro standard jurídico, mais ou menos
flexível, que orienta o exercício dos bens e institutos jurídicos na direção mais harmoniosa
com o bem comum e a justiça social. O direito, notadamente por seu arsenal principiológico, é
convocado constantemente para exercer a função de equilibrar os interesses de vários setores
da sociedade, limitando o poder jurídico dos sujeitos, em maior ou menor intensidade, em
456
SANTOS, Eduardo Sens dos. Op. cit., pág. 92.
457
Hannah Arendt, ao abordar essa transformação no campo da propriedade, dizia que “a moderna descoberta da
intimidade parece constituir uma fuga do mundo exterior como um todo para a subjetividade interior do
indivíduo, subjetividade esta que antes fora abrigada e protegida pela esfera privada. A dissolução desta esfera e
sua transformação em esfera social pode ser perfeitamente observada na crescente transformação da propriedade
imóvel em propriedade móvel, ao ponto em que a distinção entre propriedade e riqueza, entre os fungibiles e os
consumptibiles da lei romana, perde toda a sua importância, de vez que toda coisa tangível, ‘fungível’ passa a ser
objeto de ‘consumo’; perde seu valor de uso privado, antes determinado por sua localização, e adquire valor
exclusivamente social, determinado por sua permutabilidade constantemente mutável, cuja própria flutuação
temporariamente pode ser fixada através de uma conexão com o denominador comum do dinheiro. Intimamente
ligada a esta evaporação social do tangível estava a mais revolucionária contribuição moderna ao conceito de
propriedade, segundo a qual a propriedade não constituía parte fixa e firmemente localizada no mundo, adquirida
por detentor de uma maneira ou de outra, mas, ao contrário, tinha no próprio homem a sua origem, na sua posse
de um corpo e na indiscutível propriedade da força desse corpo, que Marx chamou de ‘força de trabalho’” (A
Condição Humana. 10ª Edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, págs. 79/80).
196
sociedades neoliberais, que se caracterizam precisamente pela conjunção da liberdade
individual com a justiça social e a racionalidade econômica
458
.
O mais interessante disso tudo é que, na função social formatada pela sociedade ao
longo da evolução histórica, o direito introduz uma obrigação (um dever) na estrutura do
direito subjetivo. Talvez, essa característica essencial tenha sido a primeira, mais célebre e
mais fiel tradução jurídica da obrigatoriedade imposta ao exercício de um direito subjetivo.
Ficou famosa idéia de que ‘a propriedade obriga’ da Constituição de Weimar
459
.
A concepção social do contrato importância não apenas ao momento da
manifestação da vontade (consenso), mas também e principalmente aos efeitos do contrato na
sociedade, ganhando relevo a condição social e econômica das pessoas nele envolvidas. Para
resgatar o equilíbrio contratual entre as partes, a lei, como o Código Civil de 2002 e o Código
de Defesa do Consumidor, destinada a tutelar determinados interesses sociais, atuará como
limite e fonte legitimadora da autonomia privada, de sorte que o contrato passa a valorizar a
confiança depositada no vínculo, as expectativas e a boa-fé dos contraentes
460
.
É uma nova concepção de contrato no Estado social, em que a vontade individual,
como elemento nuclear, é substituída pelo interesse social. Cresce um intervencionismo cada
vez maior do Estado nas relações contratuais, à vista das novas preocupações de ordem social,
com a imposição de novos paradigmas principiológicos
461
.
O intervencionismo estatal à liberdade dos contratos, em prol do interesse social,
deriva das necessidades sociais de refrear o uso absoluto que o indivíduo possa fazer da sua
458
AMARAL, Francisco. A Autonomia Privada como Princípio Fundamental da Ordem Jurídica, pág. 22.
459
SALOMÃO FILHO, Calixto. Função Social do Contrato: Primeiras Anotações. Revista dos Tribunais. Ano
93. Vol. 823. Maio de 2004, pág. 70.
460
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações
contratuais. 4ª Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pág. 175.
461
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações
contratuais. 4ª Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pág. 176.
197
pessoa e dos seus bens. Os limites não encontram justificativa no direito, porém em razões de
outro gênero, como a regra econômica e social de que se não pode obrigar perpetuamente a
própria pessoa
462
.
Apenas teoricamente - ou a teor das idéias jusnaturalistas, típicas do liberalismo - se
sustenta que a vontade humana, por si só, é idônea à criação de efeitos jurídicos, porém, no
Estado social, o negócio jurídico só se transforma em um ato de vontade juridicamente
relevante na medida em que preenche a previsão de uma dada norma legal, que estabeleçam
os efeitos decorrentes daquele. Daí se entender que o ato de vontade não produz diretamente
efeitos, pois só quem os cria é a lei
463
.
A evolução teórica impulsionada pelo Estado social conduziu à constatação de que
negócio jurídico não se traduz na manifestação de vontade dirigida a certos efeitos, nem que
haja coincidência entre a vontade e os efeitos, mas apenas que a vontade integra ou, ao
menos, deve integrar - a previsão da lei, sendo os efeitos produzidos de acordo com o
estatuído legalmente
464
. A vontade, embora tenha o condão de desencadear a produção dos
efeitos contratuais, não os determina ou regula. Esta determinação de quais efeitos serão
produzidos fica a cargo da lei, que buscará atender ao interesse social.
Para José Eduardo Faria, tanto o sentimento de solidariedade e de cooperação, como
o favorecimento ao hipossuficiente, serão, justamente, uma das características básicas dos
contratos regidos pelos programas normativos “finalísticos”, constituídos no período histórico
posterior à crise econômica oriunda da quebra da bolsa de valores de Nova York de 1929. Por
força dessa crise, o poder de regulação estatal é forçado a se ampliar, tornando menos tidas
e precisas as fronteiras entre o público e o privado, devido à incorporação na doutrina
462
COGLIOLO, Pietro. Op. cit., pág. 201.
463
PRATA, Ana. Op. cit., pág. 19.
464
PRATA, Ana. Ibid., págs. 21/22.
198
contratual dos ideais de democracia, justiça social, pleno emprego e preços justos. A
intervenção no funcionamento do mercado abre caminho para uma fragmentação da figura
jurídica do contrato em distintos campos de especialização autônoma (mercantil,
administrativo, previdenciário, de crédito, de trabalho, de prestação de serviços, de consumo
etc.)
465
.
No plano das relações de consumo, o advento da produção em massa leva à
padronização dos contratos, relativizando o peso do consentimento expresso e inequívoco
dado a cada cláusula após um intrincado processo de negociação e permite a popularização
dos contratos de adesão. Diferentemente do capitalismo mercantil, típico do Estado liberal, o
mercado passa a ser regulado e “organizado” pelo Estado intervencionista, exigindo que os
contratos de adesão e os contratos com cláusulas abertas, para serem eficazes, levem a efeito,
além dos requisitos formais, o status sócio-econômico das partes contratantes. Surgem
crescentes limitações ao poder de contratar, motivadas por exigências de equidade, boa-fé e
vulnerabilidade da parte mais fraca da relação negocial
466
.
5.3.2. Características da concepção social dos contratos
A sociedade de massa atual tem sido marcada pela proliferação de uma espécie
contratual, sobretudo nas relações de consumo, que se caracteriza pelo selo da
homogeneidade em seu conteúdo. Esses contratos, chamados de contratos de adesão, embora
celebrados com contratantes distintos, apresentam idênticas cláusulas e mesma estrutura
padrão.
465
Op. cit., pág. 203.
466
FARIA, José Eduardo. Op. cit., págs. 205/206.
199
A institucionalização desse modelo uniforme e pré-existente, em uma sociedade com
hábitos e desejos massificados, mostrou-se necessária por razões de economia, de
racionalização, de praticidade e mesmo de segurança da produção empresarial em série. Para
firmar o contrato de adesão, basta o consumidor manifestar simples adesão ao esquema
contratual, sem que se instaure previamente qualquer discussão quanto às cláusulas e
condições. Esse mesmo ritual é reiterado para tantos mais consumidores que a ele pretendam
aderir.
As cláusulas gerais, praticamente inexistentes na época da codificação do Estado
liberal, atingem o ápice na ordem jurídica do Estado social.
O fenômeno da predisposição de cláusulas gerais, estabelecido em contratos de
adesão, tornou-se inerente à sociedade industrializada moderna do século XIX, como se
observou na sistemática adotada nos contratos de seguro e de transporte. Mas, hoje, os
contratos de adesão, praticamente, dominam quase todos os setores da vida privada, sendo a
maneira normal de convolar contratos mediante os quais se verifica superioridade econômica
ou técnica entre os contratantes
467
.
Cláudia Lima Marques define o contrato de adesão como “aquele cujas cláusulas são
preestabelecidas unilateralmente pelo parceiro contratual economicamente mais forte
(fornecedor), ne varietur, isto é, sem que o outro parceiro (consumidor) possa discutir ou
modificar substancialmente o conteúdo do contrato escrito”
468
No contrato de adesão, não há espaço para prévia discussão ou negociação individual
dos termos e das condições contratuais, já os recebendo prontos e regulamentados. O
consumidor cinge-se a aceitar em bloco as cláusulas, que foram unilateral e uniformente pré-
467
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações
contratuais. 4ª Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, págs. 53/54.
468
Ibid., pág. 54.
200
elaboradas pela fornecedora do produto ou serviço, assumindo, assim, um papel de simples
aderente à vontade manifestada no instrumento contratual massificado
469
.
No contrato de adesão, Juan Ossorio Morales identifica papéis distintos
desempenhados pelas partes contratantes, o que limita as suas respectivas vontades a atuar
dentro do esquema rígido que a realidade social impõe. A oferta do produto ou do serviço tem
um caráter geral e permanente, dirigido ao público, sendo indiferente a circunstância de ser
aceito ou não. Já a aceitação possui teor individual e concreto, cujos efeitos são meramente
transitórios
470
.
Assim, para sintetizar, é possível afirmar que o contrato de adesão possui as
seguintes características: a) pré-elaboração unilateral; b) oferta uniforme e de caráter geral,
para um número ainda indeterminado de futuras relações contratuais; e c) modo de aceitação,
em que o consentimento ocorre por simples adesão à vontade manifestada pelo parceiro
contratual economicamente mais forte
471
.
António Menezes de Cordeiro caracteriza as cláusulas insertas nos contratos em
massa com os elementos da generalidade e da rigidez. Na generalidade, as cláusulas
contratuais gerais, pré-elaboradas, destinam-se a ser propostas a destinatários
indeterminados ou a ser subscritas por proponentes indeterminados. Ao passo que, na rigidez,
as cláusulas contratuais são convencionadas sem prévia negociação individual, devendo o
aderente aceitá-las em bloco e sem chance de modificar o conteúdo na fase da celebração
472
.
Esses elementos, por mais que se mostrassem absolutamente imprescindíveis na atual
conjuntura da atividade econômica, passaram a acarretar, com freqüência, como
469
Ibid., pág. 58.
470
Crisis en la Dogmática del Contrato. Anuario de Derecho Civil. Tomo V. Fascículo III. Madrid: Ministerio
da Justicia, 1952, pág. 1182.
471
Ibid., págs. 59/60.
472
Tratado de Direito Civil Português. Parte Geral. Tomo I. 2ª Edição. Coimbra: Almedina, 2000, págs. 416/417.
201
conseqüência, a desigualdade entre as partes contratantes. A desigualdade devia-se ao fato de
que a parte contratante que estabelecia as cláusulas contratuais desfrutava de larga
superioridade econômica e científica em relação a outra parte aderente
473
.
Como ao consumidor, no contrato de adesão, restava aderir ou não ao esquema
contratual predefinido, se não concordasse com uma ou várias cláusulas do contrato, o
fornecedor simplesmente se negava a celebrá-lo.
Daí se começou a perceber que, nos mais das vezes, o modelo massificado do
contrato de adesão fomentava a existência de constantes desequilíbrios entre as partes
contratantes, pois, em situações em que o bem contratual era essencial ou imprescindível à
vida contemporânea do homem, o consumidor tinha que se submeter aos seus ditames, mesmo
a seu desgosto. Isso favoreceu o surgimento de cláusulas abusivas e, sobretudo, constantes
ofensas a direitos ou bens considerados fundamentais ou constitucionalmente protegidos.
Com efeito, a massificação da produção e da distribuição solidificou o nascimento
dos contratos de adesão, ou dos contratos-tipo, que se transformaram em uma fonte de graves
abusos por parte daqueles que previamente os elaboravam, porquanto não era raro se
vislumbrar inexperiência do consumidor, necessidade de aquisição de certos bens garantidores
da subsistência do indivíduo atual e de sua família e ser o comerciante a parte mais forte no
contrato de consumo
474
.
A parte mais forte da relação, que redige o instrumento contratual, fica tentado a
fazê-lo de maneira que mais lhe convém, surgindo situações iníquas para aqueles que aderem
ao contrato, que rendem margem à presença de cláusulas abusivas. Conseqüência disso é a
473
CORDEIRO, António Menezes. Tratado de Direito Civil Português. Parte Geral. Tomo I. 2ª Edição. Coimbra:
Almedina, 2000, págs. 417/418.
474
SCHMITT, Cristiano Heineck. Op. cit., pág. 65.
202
ocorrência de desequilíbrio contratual, o que impõe a limitação da fixação do conteúdo do
negócio pelo comerciante-fornecedor e a correlata proteção do consumidor
475
.
Por esta e outras razões, a doutrina idealizou novos princípios contratuais que, sem
suplantar definitivamente os princípios construídos pela concepção liberal dos contratos,
significaram profundo avanço na disciplina contratual, uma vez que procuraram conformar os
interesses individuais dos contratantes às finalidades sociais almejadas pela coletividade.
Isso se deve especialmente, como adverte K. J. Albiez Dohrmann, porque, nos
contratos de adesão, o princípio da boa-fé – a exemplo de todos os demais princípios próprios
da concepção social - é um elemento essencial para evitar cláusulas prejudiciais, abusivas e
desproporcionais ao aderente
476
.
5.3.3. Os princípios da concepção social dos contratos
5.3.3.1. Princípio da autonomia privada
Não mais fundada na vontade, como na época liberal, a autonomia contratual, na
concepção social do contrato, encontra seu verdadeiro conteúdo, passando a ser vista e
considerada como um poder, o que a faz se transformar de autonomia da vontade para
autonomia privada. A autonomia privada corresponde ao poder de autodeterminação dos
próprios interesses.
Para Francisco Amaral, enquanto a autonomia da vontade significa a possibilidade de
praticar um ato jurídico, determinando-lhe o conteúdo, a forma e os efeitos, a autonomia
475
SCHMITT, Cristiano Heineck. Ibid., pág. 69.
476
Exposición sucinta de la Jurisprudencia alemana sobre la buena fé en las condiciones generales del contrato.
Anuario de Derecho Civil. Vol. 42. Nº 3. Madrid: Ministerio da Justicia, 1989, págs. 869/870.
203
privada representa o poder de estabelecer as regras jurídicas de seu próprio comportamento.
Autonomia da vontade, como manifestação de liberdade individual no campo do direito, e
autonomia privada, como poder de criar, nos limites da lei, normas jurídicas, e, objetivamente,
o caráter próprio desse ordenamento
477
.
Assim, a autonomia privada, na linha do pensamento de Francisco Amaral, seria o
poder que os particulares têm de regular, pelo exercício de sua própria vontade, as relações de
que participam, estabelecendo-lhes o conteúdo e a respectiva disciplina jurídica. Sinônimo de
autonomia da vontade para grande parte da doutrina contemporânea, com ela porém não se
confunde, existindo entre ambas sensível diferença. A expressão “autonomia da vontade” tem
uma conotação subjetiva, psicológica, enquanto a autonomia privada marca o poder da
vontade no direito de modo objetivo, concreto e real
478
.
De acordo com Fábio Antônio Correia Filgueira, a autonomia privada, ao contrário
da autonomia da vontade, que fora arquitetada pelo individualismo liberal, é um poder
heterônomo, que a vontade contratual tem como causa de validez a lei. Quando o Código
Civil de 2002, no art. 421, alude ao exercício da liberdade de contratar em razão e nos limites
da função social do contrato, busca flexibilizar e redimensionar os antigos princípios
orientadores da teoria do contrato. Nesta esteira, a autonomia da vontade dá a vez à autonomia
privada, a significar que a mera declaração de vontade ou consenso é insuficiente à produção
de efeitos jurídicos, havendo necessidade de que a iniciativa do sujeito exprima na sua origem
conteúdo axiológico merecedor da tutela jurígena ou correspondência com o programa
constitucional e legal do Estado Social
479
.
477
Direito Civil. Introdução. 6ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pág. 345.
478
Ibid., Ibidem.
479
Op. cit., pág. 112.
204
A autonomia privada constitui-se, pois, em um dos princípios fundamentais em torno
do que se organiza o sistema de direito privado contemporâneo num reconhecimento, pelo
sistema jurídico, da existência de um âmbito particular, uma esfera privada de atuação com
eficiência normativa. Trata-se, efetivamente, de uma verdadeira projeção, na ordem jurídica,
do personalismo ético, concepção axiológica da pessoa como centro e destinatário da ordem
jurídica privada, sem o que a pessoa humana, embora formalmente revestida de titularidade
jurídica, nada mais seria do que mero instrumento a serviço da sociedade
480
.
Sob o ponto de vista técnico, a autonomia privada funciona como verdadeiro poder
jurídico particular, traduzido na possibilidade de o sujeito agir com a intenção de criar,
modificar ou extinguir situações jurídicas próprias ou de outrem. Tal poder não é, porém,
originário. Deriva do ordenamento jurídico estatal, que o reconhece, e se exerce nos limites
que esse fixa, limites crescentes pelo aumento das funções estatais, em virtude da passagem
do Estado do direito para o Estado intervencionista e assistencial
481
.
Ana Prata esclarece que autonomia privada não designa toda a liberdade, nem toda a
liberdade privada, nem sequer toda a liberdade jurídica privada, mas apenas um aspecto desta
última: a liberdade negocial
482
. A autonomia privada consiste em categoria lógica e princípio
fundamental do direito civil e do direito constitucional, por meio da liberdade de iniciativa
econômica, e também em categoria histórica e dogmática, consagrada que foi como expressão
da liberdade individual, especialmente em matéria de contratos
483
.
O atual conceito jurídico de autonomia privada tem o seu surgimento e configuração
estreitamente vinculados às condições históricas, nomeadamente da passagem do feudalismo
480
AMARAL, Francisco. A Autonomia Privada como Princípio Fundamental da Ordem Jurídica. Perspectiva
estrutural e funcional. Revista de Direito Civil. Ano 12. Nº 46. Outubro/dezembro de 1988, pág. 10.
481
AMARAL, Francisco. Ibid., págs. 11/12.
482
Op. cit., pág. 13.
483
AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. 6ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pág. 348.
205
ao capitalismo. A autonomia constitui, a um tempo, um instrumento e uma conseqüência
da transformação econômica e social que se operou. A autonomia privada ou liberdade
negocial traduz no poder reconhecido pela ordem jurídica ao homem, de juridicizar a sua
atividade econômica, realizando livremente negócios jurídicos e determinando os respectivos
efeitos
484
.
Para Luis Díez-Picazo y Antonio Gullón, a autonomia privada consiste em princípio
geral do direito, sendo uma das idéias fundamentais que inspira toda a organização do direito
privado. Eventual supressão da autonomia privada implicaria total anulação da pessoa e sua
conversão em puro instrumento da comunidade. A autonomia privada não é, todavia, um
princípio de caráter absoluto, pois, do contrário, seria reconhecer o império sem limite do
arbítrio individual, daí a ilação de que o problema da autonomia privada seria um problema de
limites, e, portanto, em estabelecer um equacionamento dos limites
485
.
Por este motivo, o exercício da autonomia privada deve limitar-se, de modo geral,
pela ordem pública e pelos bons costumes e, em particular, pela utilidade que possa ter na
consecução dos interesses gerais da comunidade, com vistas ao desenvolvimento econômico e
ao seu bem-estar social. O que se pretende, enfim, é a realização da justiça social, sem
prejuízo da liberdade da pessoa humana
486
.
À autonomia privada, não se pode desconsiderar que direitos fundamentais e bens
constitucionalmente protegidos possam ser lançados para limitá-la em seu conteúdo e
extensão, em particular quando estes, na ponderação entre os princípios constitucionais,
ostentem maior relevo na solução do conflito contratual analisado.
484
PRATA, Ana. Op. cit., págs. 10/11.
485
Instituciones de Derecho Civil. 2ª Edición. Volume I/1. Madrid: Tecnos, 1998, págs. 234/236.
486
AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. 6ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pág. 365/366.
206
5.3.3.2. Princípio da função social do contrato
Decorrente diretamente da funcionalização dos institutos do direito privado, a função
social do contrato almeja introduzir na essência contratual os componentes da finalidade e da
utilidade em favor de terceiros. A preocupação quanto aos efeitos contratuais não se adstringe
unicamente às partes contratantes, mas também se estendem a terceiros e à própria sociedade.
A idéia que predominou no pensamento tradicional dos contratos traduzido no princípio da
relatividade dos efeitos é sucedida, na concepção socializante, pela idéia da função social do
contrato. A aplicação do princípio da função social do contrato caracteriza-se sempre que o
contrato puder afetar de alguma forma interesses institucionais externos a ele
487
.
Conta Eduardo Tomasevicius Filho que a idéia de função social foi formulada pela
primeira vez por São Tomás de Aquino, quando afirmou que os bens apropriados
individualmente teriam um destino comum, que o homem deveria respeitar. Essa idéia, no
entanto, ganhou força apenas no século XIX, devido às profundas alterações econômicas e
sociais que ocorreram naquele período. Em consequência, surgiram alterações na ordem
social, formando-se novas classes sociais: a burguesia, detentora do capital, e os
trabalhadores
488
.
Para Pablo Rentería, é a partir da nova compreensão da perspectiva funcional, em
substituição à estrutural, que surge a função social do contrato. De acordo com o perfil
estrutural, característico da concepção tradicional do contrato, pretende-se apenas identificar
as partes contratantes e aquilo que querem. Na perspectiva funcional, os institutos jurídicos
487
SALOMÃO FILHO, Calixto. Op. cit., pág. 84.
488
A Função Social do Contrato: Conceito e critérios de aplicação. Revista de Informação Legislativa. Ano 42.
Vol. 168. Outubro/dezembro de 2005, págs. 197/198.
207
são sempre analisados como instrumentos para a consecução de finalidades consideradas úteis
e justas
489
.
Os princípios da função social e da autonomia privada estão intrincados como duas
faces de uma mesma moeda, na medida em que a finalidade social é o próprio título
justificativo do ato de autonomia. A vinculação do ato à sua finalidade social permite que se
recrimine certos atos que, embora situados dentro dos limites externos fixados pela ordem
pública, se mostram contrários a essa finalidade. Todo ato de autonomia, portanto, deve se
ater aos limites internos traçados pela sua própria finalidade
490
.
Para Arnoldo Wald, a delimitação da liberdade e de seus limites éticos-jurídicos tem
bases na sintonia entre a constituição e o código civil. A função social do contrato decorre do
princípio da função social da propriedade, inscrito no art. 5º, XXIII, e art. 170, III, todos da
Constituição de 1988
491
.
Para Lafayete Josué Petter, a função social do contrato descrita no art. 421 do Código
Civil brasileiro de 2002 seria uma decorrência gica do princípio da função social da
propriedade, porquanto a função mais característica do contrato é sua finalidade econômica,
propiciando a desejada circulação das riquezas. Como a circulação da riqueza pressupõe a sua
apropriação privada e esse mediante o instituto da propriedade, substanciais razões
para inferir-se que este princípio do direito obrigacional tem fundamento constitucional
justamente no princípio da função social da propriedade
492
.
489
Considerações acerca do Atual Debate sobre o Princípio da Função Social do Contrato. In: MORAES,
Maria Celina Bodin de (Coord.). Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pág.
293.
490
RENTERÍA, Pablo. Ibid., pág. 297.
491
O interesse social no direito privado. Revista do Tribunal Regional Federal da Região, 77, Maio/junho
2006. São Paulo: Thompson & IOB, 2006, pág. 132.
492
Op. cit., págs. 218/219.
208
A função social do contrato consiste em uma transposição do instituto da função
social da propriedade para o âmbito contratual. Sem similar nos códigos civis europeus nem
nos códigos civis latino-americanos, a única codificação que tem uma regra cuja estrutura
lembra o art. 421 do Código Civil de 2002
493
é o Código Civil italiano de 1942, cujo art.
1.322 tem a seguinte redação: “As partes podem livremente determinar o conteúdo do
contrato dentro dos limites impostos pela lei (e das normas corporativistas)”
494
.
Na ótica de Everaldo Augusto Cambler, o art. 421 do Código Civil de 2002 expressa
o exercício da liberdade de contratar, como desdobramento dos princípios constitucionais que
tutelam a individualidade e a liberdade de expressão
495
.
Pela função social, não basta que o contrato produza os efeitos que dele se espera, e
que não cause dano a outrem, mas sobretudo que alcance determinados resultados ou
vantagens concretas para a sociedade. Assim, na concepção negativa de liberdade, tem-se que
a liberdade de contratar é exercida nos limites da função social do contrato. Na concepção
positiva de liberdade, a liberdade de contratar é exercida em razão da função social do
contrato. No direito brasileiro, o art. 421 tem uma redação contraditória, pois estabelece, ao
mesmo tempo, tanto a concepção negativa, quanto a concepção positiva de liberdade, já que a
liberdade de contratar seexercida nos limites (concepção negativa) e em razão (concepção
positiva) da função social do contrato
496
.
À luz da função social, a característica diferenciadora do conceito de negócio
jurídico deixa de ser a liberdade do sujeito, passa a ser a função que desempenha, a sua
aptidão a produzir dados efeitos.
493
Art. 421 do digo Civil de 2002 possui a seguinte dicção: “A liberdade de contratar será exercida em razão
e nos limites da função social do contrato”.
494
TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. Op. cit., pág. 202.
495
Comentários ao Código Civil Brasileiro. Vol. III. Coords. Arruda Alvim e Tereza Alvim. Rio de Janeiro:
Forense, 2003, pág. 8.
496
TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. Ibid., pág. 204.
209
Na concepção clássica do contrato, o elemento funcional no conceito de negócio
jurídico era de natureza estritamente individual, destinado a realizar os interesses meramente
subjetivos das partes. As limitações à autonomia privada colocavam-se, neste contexto, como
um elemento externo, alheio ao conceito de autonomia e de negócio. Ao passo que, na
concepção social, à vista do não preenchimento automático da satisfação do interesse geral
através do puro exercício da autonomia privada, prepondera a idéia de que a funcionalização
do negócio tem de ser encarada não uma perspectiva global e estranha à configuração do
conceito, mas integrada na própria estrutura conceitual
497
.
A função social, quando vista na dimensão do nculo estabelecido entre os próprios
integrantes da relação contratual, é denominada como intrínseca, mas, quando serve de
standard, sendo o contrato avaliado segundo as implicações positivas ou negativas sentidas
junto à coletividade, passa a ser considerada extrínseca
498
.
Na mesma linha, Paulo Nalin também reconhece que a função social do contrato
pode ser intrínseca e extrínseca. A função social intrínseca, ocorrida no próprio âmbito da
relação contratual, corresponde, para ele, à observância dos princípios da igualdade material,
da equidade e da boa- objetiva pelos titulares contratantes, que derivam da cláusula
constitucional de solidariedade. a extrínseca rompe com o princípio da relatividade dos
efeitos do contrato, preocupando-se com suas repercussões no campo da sociedade em geral,
pois o contrato em tal desenho passa a interessar a outros particulares que não aqueles
imediatamente envolvidos na relação jurídica negocial
499
.
Sem embargo disso, Arnoldo Wald recomenda a superação da equivocada idéia da
função social como princípio protetivo da parte economicamente mais fraca da relação
497
PRATA, Ana. Op. cit., pág. 23.
498
CAMBLER, Everaldo Augusto. Op. cit., págs. 11 e 15.
499
Op. cit., págs. 223/224.
210
contratual, devendo-se afastar, ainda, o entendimento no sentido de que esse postulado faria
tábua rasa do respeito a atos jurídicos perfeitos ou direitos adquiridos
500
. Por isso, sugere que
a função social do contrato persiga um equilíbrio entre os interesses das partes e da
sociedade
501
.
Essa visão, no entanto, só consegue prevalecer nas concepções do direito privado que
germinam no Estado pós-social, sobretudo, no caso brasileiro, com a interpretação
sistematizadora e unificadora que a Constituição empreende em relação aos demais diplomas
infraconstitucionais (Código Civil de 2002 e Código de Defesa do Consumidor).
5.3.3.3. Princípio da boa-fé objetiva
Sem qualquer conotação psicológica, tal como caracteriza a boa-fé subjetiva, a boa-
objetiva não se ampara no estado de consciência, na intenção ou na íntima convicção das
partes, mas sim em modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico segundo o qual
cada pessoa deve ajustar a sua própria conduta a esse arquétipo, com honestidade, lealdade,
probidade.
Por esse modelo objetivo de conduta, levam-se em consideração os fatores concretos
do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação
mecânica do standard, de tipo meramente subsuntivo, o que vem a significar que, na
concreção da boa-fé objetiva, deve o intérprete desprender-se da pesquisa da intencionalidade
da parte, de nada importando, para a sua aplicação, a sua consciência individual no sentido de
500
O interesse social no direito privado. Revista do Tribunal Regional Federal da Região. 77. Maio/junho
2006. São Paulo: Thompson & IOB, 2006, pág. 133.
501
Ibid., págs. 134/138.
211
não estar lesionando direito de outrem ou violando regra jurídica
502
. A boa-fé objetiva desloca
o eixo da relação contratual da tutela subjetiva da vontade à tutela objetiva da confiança
503
.
A boa-fé objetiva, para Paulo Luiz Neto Lôbo, é a boa-fé de comportamento, assim
considerada a decorrente da conduta honesta, leal e correta que as pessoas normalmente
depositam e se espera no mundo social. O exame da boa-fé objetiva exige um juízo valorativo
que o tempo e o espaço determinam
504
.
Evidentemente que a boa-fé objetiva deve orientar o contrato não apenas na sua
formação, mas também na sua execução. Na formação do contrato, a boa-fé significa que as
partes devem se conduzir com lealdade e correção, não vedado a astúcia para obter o máximo
de vantagens, iludindo a confiança do outro contratante ou se aproveitando de sua
inexperiência ou ligeireza. De outro pórtico, na execução, a boa-fé expressa a proibição, no
cumprimento das obrigações e no exercício dos direitos, de prejudicar consciente e
voluntariamente a quem quer que seja
505
.
Podem ser atribuídas à boa-fé três funções principais: a) função interpretativa dos
contratos; b) função restritiva do exercício abusivo de direitos; e c) função criadora de deveres
anexos à prestação principal, nas fases pré-negocial, negocial e pós-negocial
506
.
A primeira função exige que a interpretação das cláusulas contratuais sempre o
sentido mais consentâneo com o objetivo comum pretendido pelas partes. Tal perspectiva
502
MARTINS-COSTA, Judith. O Direito Privado como um “sistema em construção”: As cláusulas gerais no
Projeto do Código Civil brasileiro. Revista de Informação Legislativa. Ano 35. Nº 139. Julho/setembro de 1998,
pág. 14.
503
Crise e Modificação da Idéia de Contrato no Direito Brasileiro. Revista de Direito Civil. Ano 16. 59.
Janeiro/Março de 1992, pág. 28.
504
Condições Gerais dos Contratos e Cláusulas Abusivas. São Paulo: Saraiva, 1991, pág. 145.
505
GOMES, Orlando. O Princípio da Boa-fé no Código Civil Português. Revista Jurídica. Vol. 17. 116.
Jan./mar. 1972, págs. 173/175.
506
TEPEDINO, Gustavo. Novos Princípios Contratuais e Teoria da Confiança: a Exegese da Cláusula to the
best knowledge of the sellers. Temas de Direito Civil. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pág. 250.
212
encontra-se positivada no art. 113 do Código Civil de 2002: “Os negócios jurídicos devem ser
interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”
507
.
a segunda função tem conotação negativa, estabelecendo limites para o exercício
dos próprios direitos. Consiste, assim, em critério para diferenciação entre o exercício regular
e o exercício irregular ou abusivo de direitos. Tal função revela-se no art. 187 do Código
Civil: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos
bons costumes”
508
.
Por fim, a boa-fé exerce a função de fonte criadora de deveres anexos à prestação
principal. Trata-se de deveres de informação, lealdade e transparência, que se agregam
implicitamente ao regulamento de interesses. Esta terceira função atribuída à boa-fé necessita,
certamente, de definição interpretativa também associada aos objetivos do negócio, pois seria
absurdo supor que a boa-fé objetiva criasse, por exemplo, um dever de informação apto a
exigir de cada contratante esclarecimentos acerca de todos os aspectos da sua atividade
econômica ou de sua vida privada
509
.
Com efeito, a boa-fé, no trato do cumprimento das obrigações, desdobra-se em vários
deveres considerados acessórios à conduta (deveres de informação, de notificação, de
preservação ou de cuidado, guarda, conservação ou vigilância das coisas), variando o
conteúdo de acordo com a natureza das obrigações fundamentais e com particularidades de
cada caso concreto.
510
Para Cláudia Lima Marques, o princípio da boa-fé objetiva corresponde a uma
atuação pensando no outro, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis,
507
TEPEDINO, Gustavo. Ibid., pág. 251.
508
Ob. cit., pág. 252.
509
Ibid., pág. 253.
510
VARELA, Antunes. Direito das Obrigações. Vol. 2. Rio de Janeiro: Forense, 1978, pág. 9.
213
seus direitos, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva,
cooperando para atingir o bom fim das obrigações. A boa-fé objetiva, consoante a sua
ensinança, tem as seguintes funções a desempenhar: a) como fonte de novos deveres especiais
de conduta durante o vínculo contratual, os chamados deveres anexos; b) como causa
limitadora do exercício abusivo dos direitos subjetivos; e 3) na concreção e interpretação dos
contratos
511
.
A primeira é uma função criadora de deveres de conduta que se espera em uma
relação contratual, como o dever de informar, de cuidado e de cooperação. A segunda função
é limitadora da liberdade de atuação dos parceiros contratuais na definição de algumas
condutas e cláusulas como abusivas, seja controlando a transferência dos riscos profissionais e
libertando o devedor em face da não razoabilidade de outra conduta. E a terceira restante
talvez uma das mais importantes - é a função interpretativa, que obriga o intérprete, na
construção hermenêutica, a percorrer caminho trilhado pelo princípio da boa-fé
512
.
A função da boa-fé como recurso de interpretação é, de fato, a mais difundida. Na
interpretação da extensão do conteúdo da relação contratual, a boa-fé será instrumento
destinado a suprir lacunas e flexibilizar a vontade declarada (limite à autonomia da vontade),
servindo de “regra objetiva que concorre para determinar o comportamento devido”
513
.
A busca do sentido do conjunto contratual não autoriza o juiz a criar obrigações. Ao
contrário, apenas e tão-somente, haverá o intérprete de especificar o exato alcance das
obrigações que surgem do contrato, em face dos princípios da autovinculação, da
obrigatoriedade do contrato, do sinalagma, da sua função social e da boa-fé. A boa-fé impõe
ao juiz o dever de tornar concreto o mandamento de respeito à recíproca confiança que
511
Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações contratuais. Edição. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pág. 180.
512
Ibid., págs. 181/182.
513
THEODORO DE MELLO, Adriana Mandim. Op. cit., pág. 22.
214
incumbem às partes contratantes, no desiderato de não permitir que o contrato atinja
finalidade oposta ou divergente daquela para a qual foi criado, e que, à vista de seu escopo
socioeconômico, seria razoável e licitamente esperada pelos contratantes
514
.
O atual desenho da boa-fé, materializante da vocação solidarista da Constituição, tem
um papel substitutivo no âmbito contratual, antes ocupado pela vontade dos contratantes. A
vontade dos contratantes, até porque argumento contrário seria irreal, não mais está no âmago
do contrato. Tal espaço é preenchido pela boa-fé contratual. É bem verdade que o elemento
volitivo do contrato mostra-se mais forte, na inversa proporção de vulnerabilidade de um das
partes envolvidas na relação. Neste sentido, quanto maior for a equivalência de forças na
relação, maior também será a autonomia para contratar. De outro vértice, quanto maior o
distanciamento socioeconômico entre as partes, mais arraigado será o preenchimento da boa-
no espaço do contrato, servindo ela de termômetro da legalidade das obrigações assumidas
e parâmetro para se dosar a auto-responsabilidade do contratante mais forte
515
.
5.3.3.4. Princípio do equilíbrio econômico
A ampla liberdade conferida aos contratantes na concepção liberal dos contratos,
embora tenha impulsionado o crescimento econômico e proporcionado inúmeros benefícios à
sociedade, instigou o nascimento de várias situações de desequilíbrio entre as partes
contratantes, que, na verdade, escondiam desigualdades fáticas relativas a aspectos sociais,
econômicos e culturais. A liberdade negocial, que antes tinha sido decisiva na própria
existência do contrato no Estado liberal, chegou a tal ponto que a liberdade do indivíduo ficou
514
THEODORO DE MELLO, Adriana Mandim. Ibid., Ibidem.
515
NALIN, Paulo. Op. cit., págs. 139 e 141.
215
ameaçada. A liberdade, sem qualquer limite, favoreceu o surgimento da desigualdade e,
conseqüentemente, de desequilíbrios no ambiente contratual.
Inspirado na igualdade substancial, o princípio do equilíbrio econômico expressa a
preocupação da doutrina contratual contemporânea com o contratante hipossuficiente. Diante
da desigualdade fática existente, a disciplina contratual pode instituir mecanismos de proteção
da parte mais vulnerável da relação, reequilibrando as recíprocas prestações. Esse patamar
mínimo de equilíbrio exigido não se adstringe ao momento de formação e constituição do
contrato, mas também ao conteúdo e aos efeitos dele decorrentes
516
.
Com a nova realidade dos contratos massificados, a lei passou a autorizar o juiz a
controlar o conteúdo do negócio jurídico, possibilitando a revisão judicial por motivos de
desequilíbrio negocial, não se adstringindo somente a corrigir aspectos formais do
instrumento. Diante da situação de desigualdade fática, a tarefa judicial consistia em restringir
a vontade do “forte” para que a vontade do “fraco” pudesse ser manifestada de forma
paritária
517
.
Registra Luiz da Cunha Gonçalves que a revisibilidade judicial, embora contraste
com o anterior respeito absoluto inspirado remotamente pelo direito canônico e pelo
liberalismo do Código Civil francês, longe de ser novidade imposta pela moderna teoria da
ingerência do Estado, nada mais é do que o regresso ao velho direito dos pretores romanos
que, durante séculos, minaram e amaciaram o rigor e o formalismo sagrado dos contratos
pelas exceções que davam às partes oprimidas pelas duras conseqüências da sua própria
vontade
518
.
516
NEGREIROS, Teresa. Op. cit., pág. 159.
517
SCHMITT, Cristiano Heineck. Op. cit., págs. 55/56.
518
Op. cit., pág. 279.
216
Para Georges Ripert, a obrigação contratual apóia-se na idéia de consciência e de
liberdade dos que consentem. Mas se entre os contratantes uma desigualdade de forças,
cuja contratação ocorre mediante uma coação moral ou econômica, o consentimento não se
afigura livre e, portanto, não se pode ver nessa manifestação de vontade um ato criador da
obrigação. Daí se defender, nesses casos, a igualdade, para se proteger os mais frágeis. Por
isso, considera que, quando o legislador impede a adesão, proíbe a lesão e combate o abuso de
direito, em última instância, está a defender a idéia da força contratual
519
.
Teresa Negreiros, no entanto, adverte que o princípio do equilíbrio econômico
desafia a teoria dos contratos, obrigando à formulação de novos critérios de caráter objetivo,
sem, porém, forçar generalizações demasiadamente indiscriminadas, como a que assinala ser
todo e qualquer consumidor um contratante frágil e, portanto, vulnerável
520
.
De fato, nem sempre o simples fato de ser consumidor o torna vulnerável numa
relação contratual, pois é bem possível que não haja desigualdade entre as partes, ou mesmo,
seja uma situação em que inexiste, no exame concreto, risco de violação da essência dos
direitos fundamentais e dos bens constitucionalmente protegidos.
5.4. Contratos à luz do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil de 2002
Uma das mais incisivas limitações ao conteúdo do contrato, no ordenamento jurídico
brasileiro, operada nos últimos tempos pelo Estado, deu-se por via do Código de Defesa do
Consumidor (Lei 8.078/90), que, em nome de tutela à parte fraca da relação de consumo,
influenciou decisivamente a essência de todos os postulados básicos da teoria contratual
519
El Régimen Democrático y el Derecho Civil Moderno. Puebla/México: Editorial José M. Cajica Jr, 1959, págs.
220/221.
520
Op. cit., pág. 202.
217
liberal, tais como, os princípios da autonomia da vontade, da força obrigatória, da relatividade
dos efeitos e da boa-fé. O Estatuto de Defesa do Consumidor estabeleceu várias normas de
ordem pública, que não podem ser alteradas ou restringidas por convenção das partes (acordo
de vontades), porém ainda preservou certa liberdade no tocante à escolha da pessoa com quem
contratar e à possibilidade de autodeterminação do conteúdo do negócio jurídico
521
.
Em seguida, na trajetória da história legislativa brasileira, veio a lume o Novo
Código Civil de 2002 (Lei 10.406/2002), que estendeu a todos os quadrantes do direito civil
os valores e os princípios cardeais que haviam sido consagrados pelo Código de Defesa do
Consumidor, mitigando o caráter egoísta e excessivamente individualista do ideário liberal
que imperou durante boa parte do século XX a partir do Código Civil de 1916.
Miguel Reale noticia que o Código Civil de 1916 foi gestado, em fins do século XIX,
quando ainda prevaleciam princípios de marcante individualismo e se prestava fidelidade aos
preceitos da escola francesa da exegese ou da germânica dos pandectistas, cujas questões
sociais eram tão-somente resolvidas à luz de categorias jurídicas fechadas. Além do mais, no
Brasil, predominava uma sociedade rural e agrária, com a maior parte da população vivendo
no campo
522
.
Em tempos de hoje, esse quadro se alterou significativamente. A ciência do direito
busca compreender os fenômenos jurídicos a partir de valores e princípios éticos e sociais, em
especial em uma sociedade majoritariamente urbana e, portanto, aberta aos imperativos da
socialização do progresso. Por isso, Miguel Reale erigiu a eticidade, socialidade e
521
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Contratos – Princípios Gerais – Tendências do Direito Contratual
Contemporâneo Abrandamento dos Princípios Tradicionais Intervenção Estatal Crescente Impacto do
Código de Defesa do Consumidor. Revista dos Tribunais. Ano 88. Nº 765. Julho de 1999, pág. 31.
522
Estudos Preliminares do Código Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, pág. 36.
218
operabilidade como princípios que presidiram a feitura do novo Código Civil, daí se
espraiando todos os demais postulados previstos em forma de cláusula geral
523
.
Na mesma esteira, Ruy Rosado de Aguiar Júnior sistematiza três distinções entre o
Código Civil de 1916, de feição eminentemente liberal, com o Novo Código Civil de 2002
(Lei 10.406/2002). A primeira consiste em que o Código elaborado por Clóvis Beviláqua
expressa a concepção político-filosófica vigorante depois da Revolução Francesa, sendo o
homem o centro do mundo e capaz, com a sua vontade e a sua razão, de ordená-lo. Por isso,
consagrou o primado da vontade e submeteu os contratantes ao que constava da avença,
devendo esta ser interpretada de acordo com a intenção das partes
524
. O Código de 2002, por
seu turno, tem nítida feição socializante, preocupando-se essencialmente com o interesse
social e da coletividade.
Basta uma despretenciosa consulta - apenas para citar alguns - aos arts. 421, 1.228,
§§ 1º, e 4º, 1.238, parágrafo único, e 1.414, para perceber o quão social se tem afigurado o
espírito do Código Civil de 2002. Na mesma balada, é possível extrair dos arts. e 4º, caput
e III, todos do Código de Defesa do Consumidor, idêntica filosofia socializante.
A segunda diferença reside em que, enquanto o Código de 2002 massificou a
utilização da técnica das cláusulas gerais, o Código de 1916, praticamente, quase não a
adotou, o que significou o afastamento da possibilidade de aplicação judicializada dos
contratos atento a preocupações de realizar a justiça material. Além disso, essa tendência
levou, durante muito tempo, ao desprezo dos usos e costumes locais, privilegiando a regra
523
Op. cit., pág. 37.
524
Projeto do Código Civil As Obrigações e os Contratos. Revista dos Tribunais, Ano 89, Volume 775, maio
de 2000. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, págs. 18.
219
racionalmente estabelecida na lei, pois se tratava de um sistema fechado e, portanto,
insuscetível de influências externas de princípios e valores
525
.
No Código Civil de 2002, apresentam em seu texto as técnicas legislativas das
cláusulas gerais, dentre inúmeros outros, os arts. 258, 317, 422 e 765. E, no CDC, vale
mencionar os arts. 6º, V, 7º, e 51, IV.
E, por fim, uma terceira distinção ocorre na seara econômica. O Código de 1916 foi
elaborado ao tempo de uma economia estável, moeda com valor definido, relações civis
centradas na propriedade imobiliária, recém-saído de um regime de escravidão, cuja
economia, em vez de dirigir-se para a indústria, investiu na terra para seu fortalecimento e
segurança. Já o Código de 2002 vive, atualmente, quadro econômico completamente diverso,
desde à oscilação do mercado de capitais à circulação de riquezas de bens mobiliários e,
sobretudo, imateriais ou mesmo existenciais à vida do homem. Em vez de considerar a
intenção das partes e a satisfação de seus interesses, tal como se concebia na filosofia do
Código de 1916, o contrato, à luz dos valores cultuados pelo Código de 2002, é visto como
um instrumento de convívio social e de preservação dos interesses da coletividade
526
.
Através das cláusulas gerais e dos princípios previstos no Código de Defesa do
Consumidor e no Código Civil de 2002, os ideais liberais e meramente individualistas sofrem
restrições, para atender os interesses da sociedade, mas, mesmo assim, não tem se mostrados
suficientes para tutelar adequadamente os contratos civis e consumeristas que lidam com
direitos fundamentais e bens constitucionalmente protegidos.
525
Ibid., págs. 18/19.
526
Ibid., pág. 19.
220
6. CONCEPÇÃO PÓS-SOCIAL DOS CONTRATOS: PROPOSTA PARA UMA
TEORIA CONTRATUAL DIFERENCIADA BASEADA NA PONDERAÇÃO DOS
DIREITOS OU BENS CONSTITUCIONALMENTE PROTEGIDOS
6.1. Insuficiência da concepção social do contrato
Como se viu, a teoria socializante dos contratos civis e consumeristas ampara-se,
basicamente, nas cláusulas gerais e nos princípios encartados no Código Civil de 2002 e no
Código de Defesa do Consumidor, para atender ao interesse social e da coletividade. A
perspectiva social do contrato caracteriza o Estado social, também chamado de Estado do
bem-estar social (Welfare State), mas não se mostra adequada à resolução de conflitos
contratuais que vêm surgindo no recente Estado pós-social, justificando a criação de uma
nova concepção contratual diferenciada, fundada em novos valores e princípios que o
norteiam.
Gustavo Tepedino critica posições doutrinárias que desejaram aproveitar a chegada
do Código Civil de 2002, para resgatar a doutrina do voluntarismo contratual próprio do
Estado liberal, considerando desnecessário, a partir de agora, todo o esforço hermenêutico de
compatibilização das fontes normativas em torno da Constituição. Segundo tal raciocínio, a
nova codificação restauraria a condição de estatuto orgânico das relações patrimoniais,
servindo o Código como mediador entre as normas de direito público e a autonomia privada.
Porém, Tepedino sustenta, em contraposição a esta tese, que a aplicação direta das normas
constitucionais não se reduz a uma mera questão de localização topográfica das regras e
221
princípios aplicáveis às relações privadas, mas se converte em permanente e contínuo
processo desencadeado na tábua axiológica constitucional das categorias do direito privado
527
.
O Novo Código Civil de 2002, não obstante os incontáveis avanços em relação ao
Código de 1916, fica bem aquém, como explicita Daniel Sarmento, do espírito solidarístico da
Constituição. Por isso, infere que, até por razões hierárquicas, é antes à Constituição que ao
Código Civil que deve o jurista recorrer para iluminar a interpretação dos preceitos de direito
privado
528
.
Wilson Steinmetz, por sua vez, reconhece que, sob o prisma político-ideológico, a
Constituição de 1988 representa um projeto liberal de sociedade, porém consagra um
liberalismo humanizado, democrático e socialmente orientado. É um liberalismo temperado
pela dignidade da pessoa humana, pelos direitos e garantias fundamentais, pela democracia e
pelas aspirações de igualdade, de bem-estar e de justiça social. Os princípios constitucionais
da liberdade (art. 5º, caput) e da livre iniciativa (art. 1º, IV) estão no mesmo patamar dos
princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da democracia (art. 1º, caput e
parágrafo único), da igualdade (art. 5º, caput, e art. 3º, III e IV) e dos direitos, garantias e
objetivos fundamentais previstos no texto
529
.
Floresce, no âmbito do direito privado, um novo período caracterizado pela limitação
da autonomia privada a partir da concretização dos princípios constitucionais da solidariedade
social e da dignidade da pessoa humana. Abandona-se a ética do individualismo e a substitui
527
Normas Constitucionais e Direito Civil na Construção Unitária do Ordenamento. In: SOUZA NETO,
Cláudio Pereira de, SARMENTO, Daniel (Coords.). A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e
Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, págs. 319/320.
528
Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pág. 99.
529
Op. cit., pág. 99/100.
222
pela ética da solidariedade. Relativiza-se a tutela da autonomia da vontade e se acentua a
proteção da dignidade da pessoa humana
530
.
Contudo, por mais bem intencionado que esteja e bem dotado de cláusulas gerais e
princípios de teor social, a concepção meramente socializante do contrato, apoiada em fartos
comandos legais contidos no Código Civil de 2002 e, notadamente, no Código de Defesa do
Consumidor, não se mostra razoavelmente apta a resolver embates judiciais travados em
relações contratuais, que envolvam direitos ou bens constitucionalmente tutelados.
para se ter uma idéia, note-se para o insculpido no art. 424 do Código Civil de
2002. Dispõe o art. 424 do CC/2002 que “Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que
estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio”
531
.
Ora, se a renúncia, ainda que não resulte da natureza do negócio, comprometer a essência de
alguns direitos fundamentais ou mesmo o conteúdo ou núcleo essencial (dignidade da pessoa
humana), mesmo assim se pode dizer que é válida? Seria por demais estranho responder
afirmativamente.
Como se não bastasse, o art. 54, § 4º, do Código de Defesa do Consumidor
532
,
permite a edição de cláusulas, no contrato de adesão, que limitem direitos do consumidor,
apenas se exigindo destaque na redação capaz de ensejar a sua imediata e fácil compreensão.
Mas, se a cláusula restritiva de direito do consumidor, ainda que esteja em destaque no
contrato, malferir a dignidade da pessoa humana ou mesmo desconsiderar a relevância de
outros direitos fundamentais ou bens constitucionalmente protegidos, como, por exemplo, a
saúde, a educação, a moradia, segurança, previdência, seguro, proteção à maternidade, à
530
FACCHINI NETO, Eugênio. Op. cit., pág. 23.
531
O Código de Defesa do Consumidor presume exagerada a vontade, para fins de nulidade contratual, a que
restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto
ou equilíbrio contratual (art. 51, § 1º, II, do CDC).
532
Art. 54. § 4°, do CDC: “As cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidor deverão ser
redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão”.
223
infância e aos idosos e deficientes? Deve-se considerá-la válida, justamente por ter sido
inserida em destaque? Ao que parece, não.
Da jurisprudência é possível colher algumas situações em que a teoria socializante do
contrato aplicada às hipóteses concretas decididas pelo Poder Judiciário, ou mesmo a
invocação de direitos fundamentais, despida de análise à luz da doutrina da eficácia nas
relações privadas, mostraram-se insuficientes e em muitos casos, indiferentes - à solução de
controvérsias contratuais que têm como objeto direitos ou bens constitucionalmente tutelados.
Num primeiro caso, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, em situação
envolvendo um contrato de alienação fiduciária em garantia, entendeu que, genericamente e,
portanto, sem fazer distinção quanto ao bem jurídico objeto do contrato, o Decreto-lei
911/69 não ofendia a função social do contrato, a probidade e a boa-fé objetiva, capitulados
nos arts. 421 e 422 do Novo Código Civil
533
. A Corte Estadual reconheceu a compatibilidade
das regras procedimentais constantes no Decreto-lei nº 911/69, que autorizam a busca e
apreensão do bem alienado fiduciariamente, com a Constituição de 1988.
Entretanto, não é difícil vir à mente hipóteses em que o bem alienado pode ter
significativa relevância na prestação de serviços essenciais, como, por exemplo, veículos que
servem de ambulância a hospitais privados, ou, ainda, para quem os utilizam para o
desempenho de alguma atividade laborativa ou negócio particular, como motoristas de táxi,
de caminhão, de ônibus, ou monta um pequeno empreendimento para a sua subsistência e de
sua família. Em tais circunstâncias, parece evidente que o tratamento jurídico dispensado a
estes contratos não pode deixar de considerar a relevância dos direitos fundamentais à saúde e
ao trabalho.
533
ESTADO DE MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Processo
1.0024.06.091512-1/001. Rel. Des. Irmar Ferreira Campos. TJMG, Belo Horizonte, MG, 19 de outubro de 2006.
Disponível em: http://www.tjmg.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 15 de agosto de 2007.
224
Nesta linha, o Superior Tribunal de Justiça examinou, em habeas corpus, o
cabimento de prisão civil decorrente de inadimplência em contrato de alienação fiduciária em
garantia, celebrado para aquisição de automóvel-táxi, cuja dívida, em menos de 24 (vinte e
quatro) meses, de R$ 18.700,00 (dezoito mil e setecentos reais) havia alcançado o incrível
montante de R$ 86.858,24 (oitenta e seis mil, oitocentos e cinqüenta e oito reais e vinte e
quatro centavos). A Turma do Tribunal, à unanimidade, concedeu a ordem de liberdade à
devedora, em conformidade com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana,
com os direitos de liberdade de locomoção e de igualdade contratual
534
.
A simples circunstância de se tratar de contrato destinado à aquisição de automóvel,
para o exercício da profissão de taxista, foi levado em consideração pelo Superior Tribunal de
Justiça para dar-lhe tratamento jurídico contratual distinto.
Noutra hipótese, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro deparou-se, em sede de
apelação cível, com contrato de plano de saúde celebrado em 1986 (contrato cativo de longa
534
No voto do relator, são esgrimidos elementos fáticos associados a direitos fundamentais, como se depreende
dos seguintes trechos: “O descumprimento do contrato, com a falta da entrega do veículo ou de pagamento do
valor exigido, sujeitou a devedora à prisão civil por quatro meses, decretada pelas instâncias ordinárias. Isso
significa que a devedora, pessoa com sessenta anos de idade, com a provável renda líquida mensal de R$ 500,00,
obtida com a exploração de táxi, consumirá o total de sua renda pelo resto da vida (prevista de acordo com as
tabelas de expectativa de vida vigentes no país), para pagar os juros bancários do contrato de alienação fiduciária
de um automóvel de aluguel. [...] A decisão judicial que atende a contrato de financiamento bancário com
alienação fiduciária em garantia e ordena a prisão devedora pro dívida que se elevou, após alguns meses, de R$
18.700,00 para 86.858,24, fere o princípio da dignidade da pessoa humana, validade a uma relação negocial
sem nenhuma equivalência, priva por quatro meses o devedor de seu maior valor, que é a liberdade, consagra o
abuso de uma exigência que submete uma das partes a perder o resto provável de vida reunindo toda a sua
remuneração para o pagamento dos juros de um débito relativamente de pouca monta, destruindo qualquer outro
projeto de vida que não seja o de cumprir com a exigência do credor. Houve ali ofensa ao princípio da dignidade
da pessoa, que pode ser aplicado diretamente para o reconhecimento da invalidade do decreto de prisão. Na
relação contratual, celebrada por contrato de adesão, houve ofensa ao princípio da igualdade, com a imposição
de sanção grave (prisão) prevista para apenas uma das partes, e também excesso com a cláusula de juros acima
de qualquer limite legal. [...] É certo que o confronto entre o direito à liberdade de comerciar do credor, o
direito de crédito que lhe resulta do contrato, ambas de natureza patrimonial, com os direitos da paciente à
liberdade de locomoção e de igualdade nas contraprestações. Daí a necessidade da ponderação dos valores em
colisão no caso particular dos autos, o que, penso, deve ser resolvido com a limitação dos direitos do credor, que
pouco perde, ou nada perde, porquanto não se lhe nega o direito de cobrar o lícito, em comparação com a perda
que decorreria da execução da ordem de prisão por quatro meses, por si infamante, agravada pelas condições
subumanas de nossos presídios” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 12.547/DF. Turma. Rel. Min.
Ruy Rosado de Aguiar. STJ, Brasília, DF, 01 de junho de 2000. Disponível em:
http://www.stj.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 19 de setembro de 2007).
225
duração), no qual a fornecedora do serviço negou cobertura à implantação de aparelho
chamado “stents” em cirurgia cardíaca (angioplastia), mesmo se tratando de doença grave e
com risco de vida para o paciente. E, ainda, como se não bastasse, condicionou a autorização
da cobertura do procedimento cirúrgico emergencial à emissão de cheque pós-datado pelo
paciente como garantia de futuro pagamento
535
. A decisão, embora favorável ao paciente,
baseou-se essencialmente no Código de Defesa do Consumidor, quando nada impedia, antes
recomendava, que se respaldasse também nos direitos fundamentais, dentre eles, o princípio
da dignidade da pessoa humana, com o objetivo de afastar a exigência de prévia emissão de
cheque pós-datado. É inegável que esse ato privado constrangedor imposto ao paciente ou à
sua família, que se encontram em situação de vulnerabilidade, ofende a dignidade da pessoa
humana, ainda mais quando se tenta dar prevalência a aspectos essencialmente patrimoniais
em detrimento de valores existenciais.
Mas ainda outros casos em que a jurisprudência construída pelos tribunais pátrios
não aplica, como deveriam, a teoria da eficácia dos direitos fundamentais nas relações
privadas, caindo na armadilha por demais tentadora do subjetivismo, do voluntarismo e do
decisionismo judiciais, quando se adstringem a mencionar a incidência daqueles direitos, sem
efetuar qualquer operação de ponderação entre os princípios e bens constitucionais colidentes.
Nunca é demais lembrar que, nas relações jurídicas formadas entre particulares,
ambas as partes são titulares de direitos fundamentais, o que requer sempre um sopesamento
dos bens constitucionalmente tutelados que se acham em colisão.
Uma dessas tentações pode ser encontrada na decisão proferida pelo Tribunal de
Justiça de Minas Gerais, quando estava diante de uma apelação cível referente a contrato de
535
ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Cível
2007.001.14163. Câmara Cível. Rel. Des. Cristina Tereza Gaulia. TJRJ, Rio de Janeiro, RJ, 03 de abril de
2007. Disponível em: http://www.tj.rj.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 15 de agosto de 2007.
226
financiamento. A Corte declarou haver violação à honra e à imagem do consumidor,
considerados no julgamento como direitos fundamentais e indisponíveis, a inclusão do nome
do devedor em cadastros restritivos de crédito, estando em discussão a existência ou o
montante da dívida
536
. O Tribunal de Justiça mineiro não se dignou a investigar eventuais
direitos fundamentais pertencentes ao credor da dívida, não fazendo qualquer ponderação
entre direitos ou bens constitucionalmente protegidos que estivesse em colisão.
Outro caso que pode ser trazido à baila consiste no julgamento de apelação cível pelo
Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em que se discutia a possibilidade de revisão de
contrato de abertura de crédito fixo. Ao se basear na Constituição e no CDC, o Tribunal
refutou a concepção patrimonialista/civilista das obrigações, determinando a vedação de juros
remuneratórios acima de 12% (doze por cento) ao ano, sob o fundamento de que a
extrapolação desse patamar gerava prejuízos às classes produtoras e enriquecimento ilícito aos
tomadores de empréstimos
537
. Nada se abordou a respeito do direito à livre iniciativa ou à
autonomia privada, para se averiguar se a redução do percentual de juros remuneratórios se
justificava no caso concreto.
E, por derradeiro, ainda existem acórdãos, como o que fora prolatado pelo Tribunal
de Justiça do Espírito Santo, em apelação cível que tratava de contrato de seguro de vida,
segundo o qual, embora se tenha supostamente enaltecido a eficácia horizontal dos direitos
fundamentais, a questão foi resolvida apenas com base na função social do contrato e, assim,
na concepção socializante do contrato. A discussão girava em torno da possibilidade de ex-
empregado de hospital privado poder ajuizar contra a seguradora, cujo contrato alcançava
536
ESTADO DE MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação Cível
2.0000.00.474030-3/000(1). Rel. Des. Mauro Soares de Freitas. TJMG, Belo Horizonte, MG, 07 de março de
2007. Disponível em: http://www.tjmg.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 15 de agosto de 2007.
537
ESTADO DE SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Apelação Cível
2001.021268-4, Rel. Des. Fernando Carioni. TJSC, Florianópolis, SC, 12 de agosto de 2004. Disponível em:
http://www.tj.sc.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 15 de agosto de 2007.
227
apenas os atuais empregados, ação de reparação de danos, em decorrência da perda total da
visão de um dos olhos proveniente dos agentes patológicos existentes no ambiente da cozinha
hospitalar. A Corte estadual, fundada na função social do contrato, reconheceu que a
cobertura securitária abrangia também os ex-empregados, pois aquele princípio derivado do
art. 5º, inciso XXIII, da Constituição, tinha a finalidade de distribuir riquezas de forma justa e
de servir de fonte de equilíbrio social
538
.
6.2. Em busca de uma teoria contratual diferenciada
6.2.1. Premissas constitucionais a considerar
Como se percebe, tem se revelado imprescindível, no atual momento da teoria
contratual, buscar soluções diferenciadas para tratar de contratos que tenham como objeto
direitos fundamentais ou bens constitucionalmente protegidos. Porém, a dificuldade reside em
saber qual o mais adequado critério, pois, em princípio, prepondera a liberdade de
conformação do legislador e somente, em casos de conflitos contratuais submetidos ao
Judiciário, surge a possibilidade de realização de ponderação, notadamente porque não há, no
sistema normativo civil-constitucional, homogeneidade axiológica que unifique a teoria
contratual em torno de um único e absoluto valor: liberdade individual ou solidariedade
social
539
.
A perspectiva civil-constitucional caracteriza-se pela alternância entre tendências
individualistas e socializantes, ora predominando a liberdade clássica, constatada pela
538
ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo. Apelação vel
024.99.001198-3. 4ª Câmara Cível. Rel. Des. Catharina Maria Novaes Barcellos. TJES, Vitória, ES, 19 de
setembro de 2006. Disponível em: http://www.tj.es.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 15 de agosto de 2007.
539
NEGREIROS, Teresa. Op. cit., pág. 285.
228
eficiência econômica do livre mercado (concepção liberal do contrato), ora prevalecendo a
concepção que tem em vista a construção de uma sociedade mais justa e solidária (concepção
social do contrato)
540
.
Atualmente, um dos maiores desafios da teoria contratual é a de redefinir, à luz do
catálogo de direitos fundamentais consagrado na Constituição, os fatores a considerar na
determinação dos princípios aplicáveis às diferentes espécies de contrato
541
.
Questiona Teresa Negreiros se as circunstâncias de ser o contratante velho ou jovem,
saudável ou doente, rico ou pobre, estar ou não empregado, não teriam qualquer reflexo na
disciplina contratual. Certamente, à vista do digo Civil de 1916, tais fatores não teriam
relevância alguma. Aliás, a concepção liberal do direito civil pregava a igualdade formal e,
por esse motivo, jamais iria admitir a possibilidade de diferenciar contratos com base em
aspectos eminentemente pessoais. Já, sob a ótica do Código de Defesa do Consumidor e do
recente Código Civil de 2002, entende que a conclusão seria um pouco diferente, pois levaria
a efeito a situação de vulnerabilidade do consumidor, considerando fatores como idade, saúde,
renda, estabilidade financeira, além de outros
542
.
Entretanto, ainda assim o art. 54, § 4º, do digo de Defesa do Consumidor, e
certamente o Código Civil de 2002, permitem restrições a direitos fundamentais do
consumidor, desde que a cláusula seja posta em destaque, a fim de possibilitar a imediata e
fácil compreensão.
540
NEGREIROS, Teresa. Ibid., pág. 286.
541
NEGREIROS, Teresa. Op. cit., págs. 303/304.
542
Ibid., págs. 312/314.
229
A bem da verdade, uma tendência do direito contratual contemporâneo de
considerar cada vez mais relevantes certos dados pessoais do contratante, tais como a
inexperiência, a leviandade, a pobreza, a doença e a velhice
543
.
Colhe-se da jurisprudência alguns exemplos de como alguns tribunais têm dado
tratamento diferenciado às relações contratuais que dizem respeito a bens, valores e princípios
constitucionais relevantes à pessoa, embora não apliquem a teoria horizontal dos direitos
fundamentais, que exige a ponderação dos interesses em colisão.
Em um caso atinente a plano de saúde, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais
determinou a realização em paciente portador de obesidade rbida de cirurgia
expressamente excluída com destaque em cláusula contratual, por considerá-la abusiva e,
portanto, nula, em virtude de estabelecer restrição a direitos fundamentais inerentes à natureza
da avença
544
.
Com base neste mesmo raciocínio, idênticas decisões foram exaradas pelo mesmo
Tribunal mineiro nas hipóteses de paciente que postulava do plano de saúde cobertura para
tratamento de doença congênita
545
e de cancelamento unilateral e desmotivado do contrato de
plano de saúde
546
. Dessa maneira, não poderia haver restrição contratual, ainda que
expressamente prevista com destaque no instrumento contratual, nos precisos moldes do art.
54, § 4º, do CDC, à prestação de serviço referente à saúde, por se tratar de um direito
fundamental e, portanto, um bem constitucionalmente protegido.
543
NEGREIROS, Teresa. Ibid., pág. 328.
544
ESTADO DE MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Processo
2.0000.00.498247-0/000. Rel. Des. Domingos Coelho. TJMG, Belo Horizonte, MG, 21 de junho de 2006.
Disponível em: http://www.tjmg.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 15 de agosto de 2007.
545
ESTADO DE MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Processo
2.0000.00.467337-6/000. Rel. Des. Domingos Coelho. TJMG, Belo Horizonte, MG, 06 de abril de 2005.
Disponível em: http://www.tjmg.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 15 de agosto de 2007.
546
ESTADO DE MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Processo
2.0000.00.414681-2/000. Rel. Des. Elias Camilo. TJMG, Belo Horizonte, MG, 18 de março de 2004. Disponível
em: http://www.tjmg.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 15 de agosto de 2007.
230
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em outro caso concernente também a plano
de saúde, reconheceu o direito de pai de criança em processo de adoção e da qual já possuía a
guarda provisória a inscrevê-la como sua dependente em plano de saúde, fundado na força
protetiva do direito fundamental consagrado à família e à criança, amparado pelos preceitos
constitucionais capitulados nos arts. 226, 227 e 229, da Carta Política de 1988
547
.
Em outro campo dos direitos fundamentais sociais, o Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul declarou que as regras impostas por parte do Sistema Financeiro de Habitação
em contratos de mútuo habitacional devem ser interpretadas considerando o objetivo de
atender ao direito fundamental de moradia e a tantos outros que se relacionem com a
sobrevivência da família. Cuidava de ação revisional de contrato de mútuo, na qual se
pretendia discutir as cláusulas que previam a utilização da tabela PRICE, a capitalização de
juros, a cobrança de comissão de permanência e violação do limite máximo de
comprometimento da renda (30%)
548
.
Como se vê, além da deterioração do conceito tradicional do contrato provocado pela
complexidade das relações de consumo, outra particularidade de especial relevo para o estudo
da adequada estrutura normativa aplicável a cada caso concreto tem sido a mudança dos
próprios bens oferecidos ao mercado consumidor, não mais somente produtos industriais, mas
sobretudo serviços de valor social fundamental ao ser humano, como a moradia, a saúde e a
educação
549
.
547
ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Cível
2007.001.01057. Rel. Des. Cristina Tereza Gaulia. TJRJ, Rio de Janeiro, RJ, 23 de janeiro de 2007. Disponível
em: http://www.tj.rj.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 15 de agosto de 2007.
548
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelaçãovel
70018453100, Rel. Des. Íris Helena Medeiros Nogueira. TJRS, Porto Alegre, RS, 23 de janeiro de 2007.
Disponível em: http://www.tj.rs.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 15 de agosto de 2007.
549
KUHN, Adriana Menezes de Simão. O tempo e a catividade nos contratos: elementos para uma abordagem
sistêmica da teoria dos contratos. In: MARQUES, Cláudia Lima (Coord.). A Nova Crise do Contrato: Estudos
sobre a Nova Teoria Contratual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pág. 473.
231
Nem o Código Civil de 2002, nem sequer o Código de Defesa do Consumidor, fazem
distinção entre contratos de adesão, tomando como base a natureza do bem jurídico objeto de
circulação. A proteção contratual tende a recair em favor do consumidor com a mesma
intensidade e nível de tutela simplesmente pelo fato de se tratar de contrato de adesão,
independentemente se o bem ou o direito em questão é constitucionalmente relevante à vida
humana.
É inegável que não se pode equiparar, em termos de intensidade protetiva, o contrato
de empréstimo destinado à aquisição de bens supérfluos com aquele celebrado no intuito de
adquirir a casa própria onde residirá a sua família, ainda que ambos sejam contratos de
adesão. Igualmente, não se pode pretender igualar, para fins de proteção, o contrato de
prestação de serviços estéticos em clínica de embelezamento com aquele contrato de
prestação de serviços médico-hospitalares ou, ainda, com contrato de prestação de serviços
educacionais. A depender da natureza do objeto contratual, salta aos olhos de quem a
identifica uma certa necessidade de diferenciação de tratamento protetivo.
Parece evidente que aqueles contratos, mesmo que de adesão, sujeitos, portanto, ao
regime do CC e do CDC, que lidam com bens de destacada relevância em relação a outros,
merecem distinta disciplina, apenas restando saber qual o melhor critério para se estabelecer
essa diferenciação.
De início, propõe-se que o critério mais sintonizado com a perspectiva civil-
constitucional e com a vinculação dos direitos fundamentais seja a da previsão constitucional
de certos bens considerados direitos fundamentais da criatura humana. Porém, cumpre antes
analisar outras teorias que se propuseram a estabelecer distinções na disciplina contratual, a
depender de determinados critérios diferenciadores.
232
6.2.2. Teoria da causa como função econômico-social
A partir do Código Civil francês de 1804, a idéia de causa passa a se constituir em
elemento normativo do contrato, como requisito legal de validez contratual, sendo um fim
subjetivo perseguido pelos contratantes na relação negocial, que se alcançava com a satisfação
dos interesses meramente individuais. A causa, na concepção liberal do contrato, tinha feição
subjetiva, uma vez que dizia respeito aos fins almejados, individual e intimamente, por cada
um dos contratantes na avença.
No entanto, o civilista italiano Emilio Betti, inspirado na teoria funcional dos
contratos, insurgiu-se contra a teoria subjetiva da causa e sugeriu uma abordagem objetiva.
Nesta visão, a causa seria a função econômico-social que o direito reconhece como relevante
para seus fins e que justifica a tutela jurídica da autonomia privada. A causa, entendida como
a razão ou a justificação objetiva, do negócio residia na sua função, e não nos fins individuais
das partes contratantes. O fim é substituído pela função, para qualificar a causa do contrato.
Para Emilio Betti, além da forma e do conteúdo do contrato, tornou-se
imprescindível examinar também a função do negócio. A função que se pretende no contrato
seria a causa, ou seja, a razão do negócio, que se entrelaça com o próprio conteúdo, embora
com ele não se confunda. Betti percebeu que quem promete, dispõe, renuncia, aceita, não
busca apenas se obrigar contratualmente, despojar-se de um bem, transmiti-lo ou adquiri-lo,
como um fim em si mesmo, mas atingir um outro determinado fim
550
.
É certo que a causa do negócio é a razão determinante normal da vontade que
formata a celebração do negócio. Porém, a ordem jurídica aprova e protege a autonomia
privada não enquanto um capricho momentâneo, senão enquanto procura um típico interesse
550
Teoría General do Negocio Jurídico. Granada: Editorial Comares, 2000, pág. 153.
233
na mudança de estado de fato e se dirige eminentemente em direção às funções sociais dignas
de tutela
551
.
A causa (razão do negócio), para Betti, identifica-se com a função econômico-social
do negócio inteiro, reconhecido como a síntese dos elementos essenciais do contrato. A
função econômico-social do tipo de negócio, como exercício da autonomia privada, é um
fenômeno social antes de se transformar em um fato jurídico. A causa do negócio é, pois, a
função econômico-social que caracteriza o tipo de negócio como ato de autonomia privada.
No caso do contrato de compra e venda, os elementos essenciais que o caracterizam são as
duas partes, o objeto, o preço e a relação comutativa que se estabelece entre os contraentes,
porém estes fatores nada mais são do que os elementos concretos da função prestacional
recíproca típica desta espécie contratual, que corresponde à causa do negócio
552
.
Assim, para Betti, os elementos essenciais do tipo de negócio são, ao mesmo tempo,
elementos de sua causa, constantes e invariáveis em cada negócio concreto, compreendidos
em seu tipo e, por conseqüência, indispensáveis para sua identificação. Mas, em cada tipo de
negócio, a causa é diferente, servindo para diferenciar um de outro. Por mais que sempre
esteja presente em todas as espécies contratuais, é distinta a causa e, portanto, a função
econômico-social da venda, do arrendamento de coisas e do mútuo
553
.
A dimensão objetivista de Betti, como de resto toda teoria, não está isenta de críticas,
sobretudo porque não consegue explicar como um negócio típico, com uma função
econômico-social típica, pode, em algumas ocasiões, ser afetado por intenções específicas
perseguidas pelas partes (por exemplo, doação com um fim de união sexual). Se tem
defendido, por isso mesmo, ao contrário do que pensa Emilio Betti, que a função econômico-
551
BETTI, Emilio. Ibid., pág. 160.
552
Ibid., pág. 162.
553
Ibid., pág. 165.
234
social não se confundiria com a causa do negócio jurídico. A causa do negócio seria o intento
ou a vontade das partes de obter a função econômico-social. Isto explica a razão pela qual a
intenção prática das partes tenha, em muitas situações, relevância jurídica e que esta
relevância jurídica não pode ser canalizada através da idéia de causa, entendida em
conformidade com a concepção objetiva
554
.
Como se não bastasse, a ligação da causa do contrato à sua função econômico-social
poderia revelar como inconveniente à indevida intromissão de elementos extrajurídicos
(econômicos, sociais e éticos) na teoria jurídica do negócio jurídico. Na tentativa de consagrar
uma fórmula mais técnico-jurídica, os críticos procuraram conceituar a causa como a síntese
dos efeitos essenciais de cada contrato, afastando-se da concepção econômico-social
555
.
Seria a partir do concreto regulamento de interesses no contrato, que se deve
verificar quais são os efeitos contratuais aptos a produzir. Enfim, a causa seria identificada
pelos efeitos que o contrato produz. Dentre esses efeitos, alguns podem ser qualificados como
essenciais, pois é a sua efetiva identificação que permite que se qualifique esse contrato como
de certo tipo. Em sua falta, o contrato já não seria desse tipo, mas de outro
556
.
No entanto, no mais das vezes, a função do contrato visa a atender a dignidade
individual do contratante e, portanto, a um interesse meramente individual
constitucionalmente protegido, sem que se possa enquadrá-la como econômico-social. Daí a
insuficiência da teoria da causa de Emilio Betti.
6.2.3. Teoria da essencialidade do bem na visão de Teresa Negreiros
554
DÍEZ-PICAZO, Luis. Op. cit., pág. 267.
555
RENTERÍA, Pablo. Op. cit., págs. 302/307.
556
RENTERÍA, Pablo. Ibid., Ibidem.
235
Na busca por uma teoria contratual adequada ao Estado pós-social, Teresa Negreiros
sinaliza a existência de uma metodologia civil-constitucional que a chama de “paradigma da
essencialidade”, baseada em uma releitura da Constituição e das categorias dogmáticas
consagradas, como a classificação dos bens em essenciais, úteis e supérfluos
557
.
Teresa Negreiros constata que a renovação da teoria contratual, exigida pelas
constantes mudanças sociais, econômicas e até comportamentais da sociedade, tem conduzido
a uma crescente fragmentação do contrato, tornando-se, portanto, imperiosa a especificação
de diferentes espécies contratuais. Além disso, esse novo modelo deve refletir os princípios
constitucionais, servindo como instrumento para alcançar as metas sociais impostas pela
Constituição
558
.
Por isso, surge como fundamental a fixação de diretriz que seja capaz de distinguir os
contratos à luz das diferentes funções que desempenham em relação às necessidades
existenciais do contratante. Os contratos que se destinem a satisfazer essas necessidades
existenciais estaria sujeita a um regime tutelar dos princípios constitucionais, ao passo que os
contratos que tivessem por objeto bens supérfluos, tendentes a satisfazer preferências que não
configuram necessidades básicas da pessoa, ficariam submetidos à sistemática da teoria
contratual clássica, de inspiração liberal
559
.
Um exemplo claro dessa diferenciação seletiva seria que não se pode conferir
idêntico tratamento contratual entre um contrato de compra e venda de um remédio, destinado
à cura do contratante, e um outro contrato, também de compra e venda, mas de um perfume
ou de uma jóia. A classificação dos bens contratuais, segundo a essencialidade, incorporar-se-
ia ao regime contratual, fornecendo parâmetros para a hierarquização, no caso concreto, dos
557
Op. cit., pág. 29.
558
Ibid., pág. 31.
559
NEGREIROS, Teresa. Ibid., pág. 32.
236
valores individualistas e solidaristas que coexistem na ordem social e econômica da
Constituição de 1988
560
.
O critério da utilidade do bem, aferida em relação à pessoa, constituiria o caminho na
busca por soluções concretas no âmbito do direito contratual, que compatibilizasse a tensão
dialética presente na Constituição de 1988, sobretudo nos arts. 1º, e 170, entre a liberdade
individual e os valores coletivos, como a justiça social e a solidariedade
561
. Esse critério é
constitucionalmente consistente para diferenciar os contratos e para determinar, por via de
conseqüência, o modo como se deve aplicar a nova principiologia
562
.
O paradigma da essencialidade propõe que a necessidade da pessoa seja um fator de
diferenciação dos bens e, por conseguinte, que se constitua em parâmetro de definição do
regime contratual adequado à realidade contratual, baseando-se nos nas diretrizes
constitucionais da solidariedade, da supremacia dos interesses existenciais sobre os interesses
patrimoniais e da proteção àqueles em situação de inferioridade
563
.
A relevância do paradigma da essencialidade, contudo, fica restrita àquelas hipóteses
em que a vulnerabilidade do contratante não esteja, de antemão, subjetivamente determinada.
É por essa circunstância que o paradigma da essencialidade teuma função decisiva em
relação àquelas transações que, por uma razão ou outra, estiverem à margem do sistema de
tutela do consumidor
564
.
Contudo, o critério utilizado por Teresa Negreiros, baseado na essencialidade dos
bens, não se afigura o mais sintonizado com a teoria da eficácia horizontal dos direitos
fundamentais, pois, além de se sustentar em referenciais de natureza infraconstitucional,
560
NEGREIROS, Teresa. Ibid., pág. 39.
561
NEGREIROS, Teresa.Ibid., pág. 37.
562
NEGREIROS, Teresa. Ibid., pág. 204.
563
NEGREIROS, Teresa. Op. cit., págs. 346/347.
564
NEGREIROS, Teresa. Ibid., pág. 489.
237
considera que, sempre quando forem essenciais os bens, aos consumidores será conferido um
tratamento contratual benéfico. Isso porque, nos contratos que tratam de bens essenciais,
dever-se-á de observar os princípios e valores constitucionais da solidariedade, da prevalência
dos interesses existenciais sobre os patrimoniais e de proteção do consumidor em situação de
inferioridade.
Ora, basta imaginar uma situação relativamente à prestação de plano de saúde, para
perceber que esta teoria apresenta algumas inconsistências. Com base na teoria do paradigma
da essencialidade, um consumidor poderia exigir a cobertura de determinado tratamento mais
dispendioso para o plano de saúde, mesmo se houvesse outro menos oneroso e igualmente
exitoso e eficaz que proporcionasse a cura do paciente. A saúde é um bem inegavelmente
essencial à existência humana, mas isso não significa que deva sempre preponderar, em
qualquer situação, sobre os interesses patrimoniais do plano de saúde privado.
casos em que a negativa de cobertura a determinado tratamento ou procedimento
médico-hospitalar em nada compromete a vida do paciente ou mesmo a incolumidade da
saúde. Nestas situações, constatada, mediante a ponderação entre os bens ou direitos
constitucionalmente protegidos, risco algum à saúde, deve prevalecer os interesses da livre
iniciativa e da autonomia privada, cuja titularidade pertence ao plano de saúde.
6.2.4. Teoria dos deveres de proteção incidente sobre os direitos e os bens
constitucionalmente protegidos nos contratos
Para resolver de maneira mais adequada essa problemática, sugere-se, como teoria
contratual diferenciada, a adoção do critério da simples existência, na relação contratual, de
um direito ou bem constitucionalmente protegido, ao lado da autonomia privada e da livre
238
iniciativa. Naqueles contratos que tenham bens constitucionalmente protegidos, em especial
os constantes no art. da Constituição de 1988, em confronto com a autonomia privada e a
livre iniciativa, a teoria contratual deve ser diferenciada para permitir a eficácia dos direitos
fundamentais, por meio da doutrina dos deveres de proteção.
Sem dúvida alguma, uma das questões que mais atormenta o estudo da vinculação
dos direitos fundamentais nas relações contratuais reside em saber se os conflitos ocorridos
em contratos desvantajosos ou perigosos poderiam ser resolvidos sem se recorrer à
Constituição, valendo-se apenas pelos mecanismos do direito privado. Claus-Wilhelm Canaris
aduz que não resta dúvida de que é perfeitamente possível, mas isto em nada altera a
circunstância de a problemática também apresentar uma dimensão jurídico-constitucional
565
.
Com efeito, segundo Canaris, à medida em que a uma das partes é recusado, pelo
direito privado ou pela sua aplicação pelos tribunais, aquele nimo de proteção conferido
pela Constituição, também se verifica uma violação da proibição de insuficiência. E, ainda
que uma das partes concorde com o teor contratual, isso não torna totalmente dispensável a
tutela dos direitos fundamentais
566
.
A função dos direitos fundamentais de imperativo de tutela se aplica, em princípio,
em relação à autovinculação por contrato. E isso se verifica, na expressão de Canaris, quando
o bem protegido por direitos fundamentais, cujo exercício é contratualmente limitado, não
estiver de todo à disposição do seu titular, ou se, pelo seu conteúdo fortemente pessoal, for
especialmente sensível em relação a uma vinculação jurídica, e, por outro lado, se as
possibilidades fáticas de livre decisão de uma das partes contraentes estiverem
significativamente afetadas. O fato de problemas desta natureza ser, em regra, resolvidos com
alicerce unicamente no direito privado infraconstitucional não impede a sua dimensão
565
Direitos Fundamentais e Direito Privado. Coimbra: Almedina, 2006, pág. 73.
566
Ibid., pág. 74.
239
jurídico-constitucional, em caso de descida abaixo do mínimo de proteção imposto pelos
direitos fundamentais
567
.
A determinação do conteúdo do contrato, na concepção do Estado pós-social,
encontra-se condicionada à observância das regras e dos princípios constitucionais, de forma a
concebê-lo como instrumento a serviço da dignidade e do desenvolvimento da pessoa. O
contrato, assim, incorpora em seu horizonte ideais e noções de justiça social, de solidariedade,
de erradicação da pobreza e de proteção ao consumidor
568
.
Fica sepultada a controvérsia doutrinária que apenas reconhecia o contrato como
instrumento de conformação de interesses antagônicos. Para Arnoldo Wald, nos últimos anos,
deixou-se de conceber o contrato como representativo, necessariamente, de interesses
antagônicos, chegando a doutrina e a própria jurisprudência a admitir, inicialmente apenas nos
contratos de longo prazo, mas, em seguida, em todos eles, a existência de uma affectio (a
affectio contractus), à semelhança de outras formas de colaboração, como a affectio societatis
ou o próprio vínculo conjugal. Em vez de adversários, os contratantes passaram a ser
caracterizados como parceiros, que pretendem ter, um com o outro, uma relação equilibrada e
igualitária, tendo em vista uma maior fraternidade e justiça. Deve-se, entretanto, ponderar que
a função social do contrato não deve afastar a sua função econômica, respeitando-se os
direitos individuais, e cabendo conciliar os interesses das partes e os da sociedade
569
.
Tanto que a criação de normas de direito privado assumiu o papel de dar concreção
aos princípios estruturais da ordem constitucional, tais como, o postulado da democracia, a
forma republicana de governo, a igualdade, o livre desenvolvimento da personalidade e
solidariedade. Na interpretação do direito privado, por seu turno, leva-se em conta a
567
CANARIS, Claus-Wilhelm. Ibid., págs. 134/135.
568
NEGREIROS, Teresa. Op. cit., pág. 107.
569
A Função Social e Ética do Contrato como instrumento jurídico de parcerias e o Novodigo Civil de 2002.
Revista Forense. Ano 98. Nº 364. Novembro/dezembro de 2002, págs. 27/29.
240
adaptação das normas infraconstitucionais às constitucionais, sem que, no entanto, não
importe em substituir o sistema jurídico privado pelos princípios constitucionais
570
.
Os serviços prestados através dos contratos cativos de longa duração confundem-se
com a própria existência da pessoa humana, de modo que não seria exagero, nos dizeres de
Marco Antônio Karam-Silveira, chamá-los de contratos existenciais. Determinados serviços,
de fato, integram-se na vida como algo a ela inerente, tais como o acesso ao crédito, os
seguros de saúde médico-hospitalar, aqueles de informações e de lazer por cabo, televisão e
telefone. A vida contemporânea não dispensa o ininterrupto acesso a bens e serviços ligados à
segurança, à educação, à saúde, ao crédito, à informação e ao lazer
571
.
As cláusulas gerais previstas na legislação civil, ao falar de bons costumes, boa-fé,
ordem pública, a bem da verdade, estão se inspirando nos valores e princípios extraídos dos
direitos fundamentais previstos na Constituição.
Ao fazer menção ao Código Civil espanhol, Luis Díez-Picazo defende que o que se
denomina como ordem pública corresponde, atualmente, à organização geral da comunidade
ou seus princípios fundamentais e, portanto, consistem em matérias estritamente situadas
dentro da ordem constitucional, como, por exemplo, a dignidade da pessoa humana, as
liberdades básicas, o direito à igualdade e à proibição de discriminação. Assim, mesmo à
míngua de normas legais expressamente imperativas, os direitos fundamentais de assento
constitucional não podem ser desprezados nos pactos firmados entre particulares
572
.
Um exemplo marcante da influência do direito ou do bem constitucionalmente
protegido na resolução de conflitos contratuais ocorreu na interessante divergência que se
firmou originariamente nas duas Turmas da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça
570
RIVERA, Julio César. Op. cit., pág. 28.
571
Op. cit., págs. 489/490.
572
Op. cit., pág. 157.
241
nos casos de cláusula contratual que limitava o tempo de internação. De um lado, a Terceira
Turma do STJ considerava abusiva a cláusula que restringisse o tempo de internação do
segurado, pois o consumidor não era o senhor do “prazo de sua recuperação, que, como é
curial, depende de muitos fatores, que nem mesmo os médicos são capazes de controlar. Se a
enfermidade está coberta pelo seguro, não é possível, sob pena de grave abuso, impor ao
segurado que se retire da unidade de tratamento intensivo, com o risco severo de morte,
porque está fora do limite temporal estabelecido em uma determinada cláusula. Não pode a
estipulação contratual ofender o princípio da razoabilidade, e se o faz, comete abusividade
vedada pelo art. 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor”
573
.
Por outro, a Turma do Superior Tribunal de Justiça, por maioria, vencido Ruy
Rosado de Aguiar, entendeu não haver razão para a anulação das cláusulas de seguro de saúde
que limitavam o tempo de internação do paciente, que inexistiria vedação legal à sua
celebração e que a instituição privada não poderia substituir o papel do Estado em garantir a
todos os cidadãos o direito à saúde. Sem falar que deveria ser preservado o equilíbrio
financeiro entre o que o beneficiário paga e o que é oferecido pela seguradora
574
.
No voto-vencido proferido por Ruy Rosado de Aguiar, as razões invocadas baseiam-
se na especificidade e na natureza extremamente relevante do bem constitucional que é a
saúde, como se depreende do seguinte trecho: A limitação do número de dias de internação
não prevalece quando o doente tiver a necessidade, reconhecida pelo médico que ordenou a
sua baixa em estabelecimento hospitalar, de ali permanecer por mais tempo do que o
inicialmente previsto no contrato de seguro saúde. A natureza desse contrato e a
573
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RESP 158.728/RJ. Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito. STJ,
Brasília, DF, 06 de março de 1999. Disponível em: http://www.stj.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 19 de
setembro de 2007.
574
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RESP 242.550/SP, Rel. p/ Acórdão Min. Aldir Passarinho Junior.
STJ, Brasília, DF, 02 de março de 2002. Disponível em: http://www.stj.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em:
19 de setembro de 2007.
242
especificidade do direito a que se visa proteger estão a exigir sua compreensão à luz do
direito do contratante que vem a necessitar do seguro para o pagamento das despesas a
que não pode se furtar, como exigência do tratamento de sua saúde” (grifos acrescidos).
Neste caso, vê-se claramente que, com base na teoria dos deveres de proteção, os
direitos fundamentais não atuam como direitos subjetivos contra outros particulares, mas
permita a projeção de efeitos jurídicos sobre o direito privado, recorrendo-se diretamente à
norma constitucional para resolver os conflitos entre particulares.
Nesta relação tipicamente de direito privado, os princípios que se encontram em
colisão são os que protegem o direito à saúde e a autonomia privada e a livre iniciativa. À
vista disso, para que a articulação seja correta, o juiz, no exame do caso concreto, deverá
ponderar cuidadosamente a eficácia limitadora daqueles princípios em relação ao conteúdo e
o grau de interferência que provocam nos bens ou nos direitos constitucionalmente
protegidos. E não deve esquecer que deve ser resolvido sempre procurando preservar o núcleo
essencial dos direitos e interesses em jogo.
Certamente, a limitação dos dias de internação pode perfeitamente atingir o núcleo
essencial do direito à vida, ao contrário do que se verificaria na hipótese de se afastar tal
cláusula contratual e, em última instância, restringir, neste caso em particular, a autonomia
privada.
É certo que deve prevalece, em primeiro lugar, a liberdade de conformação do
legislador, através da produção legiferante do direito privado. Mas, em caso de ausência de
disciplina legal específica ou insuficiente regulamentação, poderá o juiz efetuar a ponderação
entre os direitos ou bens constitucionalmente protegidos em colisão, valendo-se, na operação,
do princípio da proporcionalidade.
243
O problema da eficácia dos direitos fundamentais na ordem jurídica privada
possibilita soluções diferenciadas e adequadas, consoante a relevância e o risco de ofensa ao
núcleo essencial do bem ou do direito constitucionalmente protegido que estiver em jogo no
caso concreto.
Dessa maneira, naqueles contratos que tenham como objeto direitos ou bens
constitucionalmente protegidos, impõe-se a adoção da teoria dos deveres de proteção, por
meio da ponderação e do exame do princípio da proporcionalidade.
6.3. Novos princípios contratuais decorrentes da eficácia dos direitos fundamentais nas
relações privadas
6.3.1. Necessidade de consolidação de novos princípios contratuais de natureza
constitucional
Por mais que se enalteça o modelo da constitucionalização do direito civil, não se
pode, para coibir os excessos provenientes da absolutização do direito privado pautado na
vontade individual, opor um regime que represente a negação pura e simples dos aspectos
voluntarísticos que constituem o instituto contratual. Os princípios da concepção liberal do
contrato que giraram em torno da concepção da autonomia da vontade devem ser relidos à luz
da Constituição, mas sem anulá-los
575
.
Como lembra Teresa Negreiros, os princípios que hoje se contrapõem ao modelo
liberal de contrato podem ser considerados como um reforço aos princípios tradicionais, não
se lhes podendo negar o papel fundamental que exercem na complementação e na
575
NEGREIROS, Teresa. Op. cit., pág. 111.
244
compreensão da relação contratual. Sob outras circunstâncias, nada impede, porém, que haja
um conflito entre as soluções concretas associadas à dimensão social e a lógica individualista
e voluntarística própria do modelo contratual liberal
576
.
Hão de ser conciliados os velhos e novos princípios, em um processo histórico de
acumulação de direitos e princípios que passam a ser fundamentais à coletividade. Daí a
necessidade de identificar e reconhecer novos princípios do direito civil-constitucional que
podem ser extraídos da visão sistemática e unitária da Constituição e que passam a ficar
sujeitos à ponderação, no intuito de resolver eventuais conflitos existentes entre eles, por
intermédio da teoria dos deveres de proteção.
Para Pietro Perlingieri, o civilista, na atividade hermenêutica, deve ser recorrer de
modo direto e imediato aos princípios do ordenamento constitucional, já que fundamentam os
vários institutos do direito civil. E, ainda, arremata que a norma constitucional assume uma
função promotora da transformação das instituições tradicionais do direito civil, a ponto de se
tornar imprescindível a feitura de uma nova teoria das fontes, que respeite as suas
particularidades, porém também obedeça aos princípios constitucionais
577
.
Daí porque passa Perlingieri a propugnar uma revisão dos contratos tradicionais, no
intuito de que abandonem os métodos tradicionais e formalistas e levem em consideração as
peculiaridades dos fatos concretos e individuais. Com isso, seria, no entender dele, possível a
construção de um direito civil não mais ancorado na obrigação, mas sobretudo nas várias
obrigações existentes de forma diferenciada, tais como as obrigações de alimentos, as
obrigações pessoais, obrigações comerciais, obrigações assumidas por grandes empresas ou
por grandes sociedades.
576
Ibid., pág. 112.
577
Por un Derecho Civil Constitucional Español. Anuario de Derecho Civil. Vol. 36. 1. Madrid: Ministerio
da Justicia, 1983, págs. 8 e 14/15.
245
6.3.2. Princípio da autonomia privada como extensão da livre iniciativa
Reconhecida constitucionalmente a liberdade de iniciativa econômica, indiretamente
se vislumbra a autonomia privada, em face da íntima relação de instrumentalidade existente
entre ambas. Ambas não se confundem, tendo a autonomia privada feição instrumental em
face da liberdade de iniciativa econômica, daí a razão pela qual eventuais limitações as
alcançam da mesma forma
578
.
A liberdade de iniciativa econômica, na linha de pensar de Francisco Amaral, é a
expressão da autonomia privada no campo constitucional
579
. De fato, a autonomia privada se
constitui em uma das dimensões da cláusula constitucional da livre iniciativa, pressupondo a
capacidade de celebrar contratos e outros negócios jurídicos, de utilizar seus bens e
propriedades na consecução de seus objetivos e de fazer circular a riqueza
580
.
Konrad Hesse lembra que deve sempre ser preservado o princípio da autonomia
privada, pilar fundamental do direito privado, na forma de liberdade contratual, pois se
constitui em aspecto ativo e positivo da personalidade, o âmbito no qual a pessoa pode atuar
como ser autônomo e responsável, no qual não é lícito convertê-lo em simples meio para fins
sociais
581
.
As Constituições contemporâneas que importam para o presente estudo (alemã,
norte-americana, portuguesa, espanhola e brasileira) não contêm disposição expressa ao
princípio da autonomia privada ou à liberdade contratual. Mas, nem por isso, se pode afirmar
578
AMARAL, Francisco. A Autonomia Privada como Princípio Fundamental da Ordem Jurídica. Perspectiva
estrutural e funcional. Revista de Direito Civil. Ano 12. Nº 46. Outubro/dezembro de 1988, pág. 20.
579
Ibid., pág. 17.
580
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pág.
216.
581
Derecho Constitucional y Derecho Privado. Madrid: Cuadernos Civitas, 1995, pág. 75.
246
que a autonomia privada não tenha fundamento constitucional e que, portanto, não seja um
bem ou princípio constitucionalmente protegido.
No Brasil, é possível extrair da Constituição de 1988 fundamento para tutela da
autonomia privada, pois vários princípios e direitos nada mais representam do que o poder do
particular de autodeterminar e autovincular determinados interesses e objetivos. A
Constituição brasileira estabelece, em seu texto, o direito geral de liberdade (art. 5º, caput), o
princípio da livre iniciativa (art. 1º, IV, e art. 170, caput), o direito ao livre exercício de
qualquer trabalho, ofício ou profissão (art. 5º, XIII), o direito de propriedade (art. 5º, caput e
XXII), o direito de herança (art. 5º, XXX), o direito de convenção ou acordo coletivo (art. 7º,
XXVI) e o direito de proteção da família, do casamento e da união estável (art. 226, caput e
§§ a 4º). No campo contratual, é inegável que a autonomia privada é um bem ou princípio
constitucionalmente protegido, devido à previsão constitucional do direito de propriedade e
do princípio da livre iniciativa
582
.
Aliás, Ana Prata adverte que o problema da autonomia privada tem sentido numa
economia em que, em alguma medida, os bens são produzidos privadamente e a satisfação das
necessidades é obtida no mercado. enquanto, e na medida em que o mercado funcione
como forma dominante de satisfação das necessidades humanas, é que, no sentido em que o
conceito tem sido tomado, se pode falar em autonomia privada
583
.
A Constituição operou uma reviravolta qualitativa e quantitativa na ordem
normativa. Os chamados limites à autonomia, colocados à tutela dos contraentes mais frágeis,
não são mais externos e excepcionais, mas, antes, internos, na medida em que se refletem
582
STEINMETZ, Wilson. Op. cit., pág. 199/201.
583
Op. cit., pág. 197.
247
diretamente da Constituição
584
. A autonomia privada não tem um fundamento único com a
iniciativa econômica privada, mas afunda as suas raízes em princípios diversos também de
relevância constitucional, podendo o alcance e o conteúdo do ato negocial ostentar caráter
personalíssimo, de natureza familiar, patrimonial, dentre outros de similar envergadura
585
.
Contudo, a tutela da autonomia privada, embora descansada na ordem constitucional,
não é uniforme, sendo mais intensa no plano existencial da pessoa humana do que na sua vida
patrimonial e econômica
586
.
É por isso que a ordem jurídica não pode igualar a manifestação da autonomia
privada entre situações como a de venda de mercadorias e a do consentimento a um
transplante, por retratarem uma diversidade de valores, tal como estabelece a Constituição.
Não se afigura aceitável, portanto, um discurso unitário sobre a autonomia privada, já que, em
um ordenamento centrado no valor da pessoa, impõe-se um tratamento diversificado para atos
e atividades que, de modo também diferenciado, lidam com esse valor e regulamentam
situações ora existenciais, ora patrimoniais, ora umas e outras juntas
587
.
Não se pode desprezar jamais que a autonomia privada, além de ser pressuposto da
democracia, está indissociavelmente relacionada à proteção da dignidade da pessoa humana.
Como ensina Daniel Sarmento, “negar ao homem o poder de decidir autonomamente como
quer viver, em que projetos pretende se engajar, de que modo deve conduzir sua vida privada,
é frustrar sua possibilidade de realização existencial”. Mas essa autonomia privada não é
absoluta, evidentemente, pois de ser conciliada com os direitos de terceiros e com outros
584
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Edição. Rio de
Janeiro: Renovar, 2007, págs. 280/281.
585
PERLINGIERI, Pietro. Ibid., pág. 292.
586
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pág.
176.
587
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Edição. Rio de
Janeiro: Renovar, 2007, págs. 275/279.
248
valores e princípios ao regime constitucionalista, como a democracia, a igualdade, a
solidariedade, a segurança
588
, ou mesmo com outros bens constitucionalmente protegidos.
Nas relações contratuais, o conteúdo da autonomia privada deve ser reconfigurado
frente a outros valores não patrimoniais, de cunho existencial, colhidos da Constituição e que
se constituam em bens de grande realce para a vida humana. Os tradicionais institutos civis da
propriedade e das relações contratuais passam a corresponder a instrumentos de realização
dos valores constitucionais, em especial da dignidade da pessoa humana, não mais havendo
setores imunes a tal incidência dos direitos fundamentais, espécies de zonas francas para a
atuação da autonomia privada. A autonomia privada deixa de ser um fim em si mesma e se
transforma, com a vinculação dos direitos fundamentais, em meio de realização de um outro
valor constitucional
589
.
Porém, isso não quer dizer que a autonomia privada sempre deve ceder, no caso de
colisão, em favor de outro valor não patrimonial, de conteúdo existencial. Somente na
ponderação entre os princípios, bens e direitos constitucionais, é que se vai saber qual deles,
no caso concreto, haverá de preponderar.
As intervenções estatais no domínio econômico, antes adstritas ao universo da
legislação infraconstitucional, começam a ganhar um sentido de unificação e de coerência a
partir da expressão nas leis constitucionais de princípios que, preservando o mercado,
legitimam as limitações pela interferência na sua forma de funcionamento dos sujeitos
privados
590
.
588
Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pág. 189.
589
TEPEDINO, Gustavo. Normas Constitucionais e Direito Civil na Construção Unitária do Ordenamento. In:
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de, SARMENTO, Daniel (Coords.). A Constitucionalização do Direito:
Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, págs. 310/311.
590
PRATA, Ana. Op. cit., pág. 138/140.
249
Para Ana Prata, muito embora o reconhecimento constitucional da iniciativa privada
comporte a autorização de realização dos negócios jurídicos inerentes à atividade econômica,
não pode o sujeito econômico reivindicar para cada ato negocial a tutela que a Constituição
estabelece para aquela atividade, unitariamente concebida. Atuando livremente na esfera
econômica, o sujeito de direito privado tem de subordinar-se aos condicionamentos dessa
atuação, que lhe sejam impostos, e que podem consistir e muitas vezes consistirão na
obrigação de realizar dados negócios, de não os realizar, de os celebrar com dado conteúdo ou
dada forma
591
.
A autonomia privada preserva em seu conteúdo positivo a possibilidade de se
realizarem deslocamentos patrimoniais mediante negócios jurídicos e, em seu conteúdo
negativo, a premissa de que os bens particulares somente podem ser dispostos por sua
vontade. Pela essência positiva, a formação do contrato não se encontra na vontade por ser
vontade ou na lei por ser lei, mas no caráter social e na utilidade que esse caráter oferece aos
homens que vivem gregariamente
592
. Essa utilidade social não se limita, na relação contratual,
apenas à função social, à igualdade material e à boa-fé, mas se potencializa na busca pela
concretização da dignidade da pessoa humana, da solidariedade, da justiça social, da proibição
de discriminação.
Paulo Nalin fala, ainda, da existência dos contratos obrigatórios, por imperativo
legal, mas também pela condição monopolista ou oligopolista de mercado. Nesses casos,
sustenta que o concessionário do transporte público não pode se negar a transportar, o
fornecedor de energia elétrica não pode se negar a fornecê-la, o distribuidor de combustível
não pode se negar a entregar o produto, o fornecedor de crédito não pode negar-se a fornecê-
591
Op. cit., págs. 199/200.
592
RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Autonomia da vontade, autonomia privada e autodeterminação: Notas
sobre a evolução de um conceito na Modernidade e na Pós-modernidade. Revista de Informação Legislativa.
Ano 41. Nº 163. Julho/setembro de 2004, págs. 125/126.
250
lo, a escola não pode se negar a matricular o candidato a aluno. A situação da necessária
contratação torna-se mais clara, à proporção que o ente privado ocupa o espaço antes
reservado apenas só ao Estado, como é a hipótese das escolas, em que o ensino fundamental é
dever do Estado e direito do cidadão
593
.
6.3.3. Princípio da dignidade contratual
Como decorrência da dignidade da pessoa humana, é possível se falar em dignidade
contratual, que significa que toda relação contratual encontra-se vinculada à observância
daquele princípio, ainda que se tente renunciá-lo.
O fundamento de cada ramo do direito deriva do quadro constitucional, devendo os
atos e as atividades ser influenciados, nos seus requisitos de validade e de eficácia e nos seus
próprios pressupostos, pela hierarquia dos interesses que resulta da análise das normas de uma
Constituição rígida, fonte privilegiada das relações pessoais, econômicas e sociais. O interesse
público seria a síntese e a atuação equilibrada dos valores das pessoas consorciadas na
unidade de seus direitos
594
.
Se, implicitamente, a atividade econômica se insere no âmbito da livre iniciativa, esta
surge legalizada, tão-somente, se cumprida a explícita função de dignificação dos sujeitos
contratantes. Na leitura constitucional do direito civil, reconhece-se a atual insuficiência do
nosso sistema codificado, tomando-se como vértice de todo o ordenamento jurídico os valores
fundamentais do homem, dentre os quais, a dignidade contratual. Tal posição do homem, aqui
593
Op. cit., pág. 167.
594
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Edição. Rio de
Janeiro: Renovar, 2007, pág. 285.
251
sujeito/titular contratante, é decorrência lógica da posição hierárquica normativa ocupada pela
Carta Constitucional
595
.
O deslocamento do foco de interpretação do contrato do Código Civil para um
sistema civil-constitucional é que enquadra o homem no centro das atenções do ordenamento.
Enquanto a Constituição tem no homem o seu ator maior, revelando um efetivo direito
“antropocêntrico”, o Código Civil trabalha com o homem “ecocêntrico”. Não necessário
conflito entre as duas leituras, pois ambas trabalham com o mesmo titular de direitos e
deveres
596
.
Note-se que se está diante de um suposto paradoxo, pois, ao mesmo tempo em que a
constitucionalização do direito civil aniquila o individualismo inserido no Código Civil,
coloca o homem no centro de suas atenções. Ocorre que resgatar o homem não se identifica
com a renovação daqueles valores egoísticos contidos no Código Civil, ou seja, não é o
homem econômico que figura no vértice constitucional, em que pese ser este, também,
tutelado pela Constituição, todavia de forma causal, mas sim, o homem existencial,
recepcionada a relação jurídica desde que tais experiências individuais tenham uma projeção
útil (existencial) para o titular em si e para o coletivo
597
.
Edílson Pereira Nobre Júnior considera que, firmando um contrato em que uma das
partes se obrigara a cumprir prestação consistente em ato suscetível de acarretar-lhe, em
condições anormais, risco de vida, ou capaz de impor séria ofensa à saúde, ocorre maltrato à
ordem pública e, como conseqüência, a invalidade do negócio jurídico. Aqui a ordem pública
seria ofendida independente da eventual desigualdade econômica das partes, mas em razão do
objeto da relação jurídica obrigacional traduzir menoscabo à índole humana do indivíduo.
595
NALIN, Paulo. Op. cit., pág. 243.
596
NALIN, Paulo. Ibid., págs. 243/244.
597
NALIN, Paulo. Ibid., pág. 244.
252
Outras hipóteses aptas a gerarem desrespeito à dignidade do ser humano se centram naquelas
contratações em que o contratado, durante a execução do seu objeto, encontra-se ante situação
capaz de submetê-lo ao ridículo, ou melhor, a tratamento degradante
598
.
Não se pode esquecer, porém, que a invocação da dignidade da pessoa humana, que
ressalta a dimensão social dos valores existenciais, ponha em risco a liberdade individual e a
autonomia negocial, pois, se de um lado, não se esgota com o mero exercício da prerrogativa
de autodeterminação da vontade individual, também não despreza a garantia da liberdade,
sem a qual, inclusive, careceria de sentido a própria existência humana
599
.
É inegável que o princípio da liberdade consiste na regra das relações entre
indivíduos iguais. Os indivíduos, no uso do seu direito ao livre desenvolvimento de
personalidade, devem poder autodeterminar os seus comportamentos e conduzir o seu projeto
de vida, tal como lhes compete em primeira linha harmonizar e ajustar entre si, no uso da
liberdade negocial, os seus direitos e interesses
600
.
Esta regra tem, contudo, os seus limites. Não pode se admitir, como acentua José
Carlos Vieira de Andrade, que, na vida social privada as pessoas, mesmo em situação de
igualdade, possam ser tratadas ou admitirem ser tratadas como se não fossem seres humanos.
Tal seria a negação do axioma antropológico que fundamento à própria idéia de direitos
fundamentais. Por isso, a dignidade humana, enquanto conteúdo essencial absoluto do direito,
nunca pode ser afetada
601
.
Assim, por exemplo, nos casos de renúncia e, em geral, de auto-restrição do titular
do direito fundamental, ainda que se observe a igualdade entre os contratantes e a
598
O Direito Brasileiro e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Revista do Instituto de Pesquisas e
Estudos. Divisão Jurídica. Dezembro de 2001 a março de 2002. Bauru/SP: Instituição Toledo de Ensino, 2002,
pág. 144.
599
NEGREIROS, Teresa. Op. cit., pág. 38.
600
Op. cit., págs. 271/272.
601
Ibid., págs. 273.
253
manifestação da vontade livre e esclarecida, não se permite a renúncia da dignidade da pessoa
humana, para além da qual o indivíduo se reduz à condição de mero objeto ou instrumento do
contrato
602
.
Além da vida em si e da integridade física e psíquica, a concretização da dignidade
humana exige também o respeito às condições mínimas de vida. Assim, a obtenção da casa
própria e a sua proteção, por exemplo, são decorrências da dignidade humana. E, no campo
contratual, o respeito às condições mínimas de vida também tem aplicação, especialmente
quando sua execução leva a gastos excessivos não previstos, o que terá maior razão de ser
quando o adimplemento puder dificultar a sobrevivência de um dos contratantes
603
.
Para Leon Mazeaud, as convenções que afetam a integridade física, mas que não
causam nenhum dano, não pode ser proibidas. Isso porque, no mais das vezes, tais contratos
são úteis e até mesmo indispensáveis à vida humana, especialmente quando visam a melhorar
o estado físico da pessoa, como é o caso das cirurgias estéticas. Nesta situação em particular,
os contratos não objetivam ofender a integridade física, mas antes fortalecê-la. Por este
motivo, defende que somente ocorre ofensa à dignidade da pessoa humana a intervenção que
seja prejudicial à integridade física
604
.
Tudo, como reiteradamente se disse, depende da análise das peculiaridades do
caso concreto, mediante a ponderação entre a dignidade humana e a autonomia privada como
extensão da livre iniciativa.
6.3.4. Princípio da solidariedade contratual
602
Ibid., págs. 272274.
603
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Caracterização Jurídica da Dignidade da Pessoa Humana. Revista dos
Tribunais. Ano 91. Volume 797. Março de 2002. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, págs. 22/23.
604
Los Contratos sobre el Cuerpo Humano. Anuario de Derecho Civil. Vol. 6. 1. Madrid: Ministerio da
Justicia, 1953, pág. 84.
254
Solidariedade e mercado são dois elementos que desafiam uma aproximação sob
única perspectiva, pois a tradição liberal do direito privado condiciona o pensamento à tese de
que o mercado não seria local de demonstrações solidárias, mas, de competição, onde os
interesses egoísticos dos indivíduos se apresentam mais salientes. No entanto, a Constituição
de 1988, quando esquadrinha o art. 170, não se limita aos clássicos valores patrimoniais de
troca, mas também busca concretizar interesses existenciais diversos
605
.
O princípio da solidariedade contratual nada mais reflete do que o princípio da boa-fé
no plano constitucional. A boa-objetiva, portanto, derivaria do princípio constitucional da
solidariedade social. Este é o entendimento de Eugênio Facchini Neto, embora registre que
alguns doutrinadores prefiram considerar que o princípio da boa-fé objetiva derivaria do
princípio da dignidade da pessoa humana
606
. No entanto, para Teresa Negreiros, é o princípio
da função social do contrato que decorre do princípio constitucional da solidariedade,
porquanto estaria a exigir que os contratantes e os terceiros colaborem entre si
607
.
A importância da noção de solidariedade é tamanha no campo contratual que Paulo
Nalin conceitua o contrato interprivado como a relação jurídica subjetiva, nucleada na
solidariedade constitucional, destinada à produção de efeitos jurídicos existenciais e
patrimoniais, não só entre os titulares subjetivos da relação, como também perante
terceiros”. Segundo ele, hoje, o contrato é relação complexa solidária
608
.
Para Wilson Steinmetz, o princípio constitucional da solidariedade “é um
fundamento adicional e de reforço à vinculação dos particulares a direitos fundamentais”
609
.
605
NALIN, Paulo. Op. cit., págs. 183 e 188/189.
606
Op. cit., pág. 45.
607
Op. cit., pág. 209.
608
Op. cit., pág. 253.
609
Op. cit., pág. 117.
255
Mas pondera que a projeção da solidariedade sobre as relações entre particulares não tem a
mesma intensidade daquela que se verifica entre o Estado e os cidadãos
610
.
A vinculação sobre o Estado é “forte”, enquanto que sobre as relações privadas é
“fraca” ou “branda”. E justifica dizendo que “uma vinculação ‘forte’ dos particulares ao
princípio da solidariedade poderia conduzir aos grandes equívocos teóricos e práticos das
ideologias e dos regimes coletivistas do século XX, nos quais houve uma ‘funcionalização’
por vezes, ‘diluição e a mesmo ‘eliminação’ do indivíduo em favor do Estado e da
coletividade social. Tomar ou usar o indivíduo como ‘função’ da coletividade contraria
decisões fundamentais da CF. A ‘funcionalização’ da pessoa é incompatível com o sentido e a
finalidade do princípio da dignidade da pessoa e dos direitos fundamentais de liberdade”
611
.
A novidade da constitucionalização do direito privado repousa em considerar as
relações obrigacionais, em larga medida, como deveres de solidariedade social. A dúvida,
contudo, reside em saber como especificá-los, e a quem é atribuída esta tarefa, pois não se
pode imaginar que a configuração desses deveres fique exclusivamente ao completo alvedrio
do intérprete. Consoante entende Judith Martins-Costa, apenas por intermédio das cláusulas
gerais contidas na lei, é que seria possível estipular deveres de solidariedade social no
contrato. O auxílio da lei, para organizar os deveres, e o da jurisprudência, para definir a sua
extensão e o seu alcance, seria indispensável
612
.
Vê-se que, em relação à solidariedade contratual, propõe Judith Martins-Costa a
adoção da teoria da eficácia mediata dos direitos fundamentais. Porém, restou dito, que
distinção alguma, na prática, se verifica entre a eficácia mediata e imediata, quando a
610
Ibid., pág. 120.
611
Ibid., pág. 120.
612
MARTINS-COSTA, Judith. Mercado e Solidariedade Social entre Cosmos e Taxis: A Boa-fé nas Relações de
Consumo. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A Reconstrução do Direito Privado. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, págs. 629/632.
256
aplicação dos direitos fundamentais nas relações interprivadas é efetuada pelo juiz na solução
do caso concreto.
Um dos exemplos mais eloqüentes de contratos marcados com o selo da cooperação
e da solidariedade são os contratos de planos de saúde, cuja essência é justamente o vínculo
recíproco direcionado para o mesmo fim, mantendo uma relação de apoio e de adesão ao
objetivo compartilhado. A solidariedade, nesta espécie contratual, estaria intrinsecamente
ligada à idade dos consumidores
613
.
O grupo de consumidores presentes no plano se une, em mutualidade, expondo-se
aos mesmos perigos, às mesmas possibilidades de danos à saúde. Unem-se solidariamente
para organizar uma espécie de fundo gerido pelo fornecedor que organiza uma cadeia de
prestadores de saúde ou reembolsa despesas de saúde e gere as verbas. Para garantir que
poderão manter-se no sistema, apesar de aposentados e mais “doentes”, os consumidores
aderem ao plano ainda jovens e por muito tempo contribuem para o sistema, devendo, à luz
do princípio da solidariedade, os cálculos do fornecedor assegurarem que os mais novos
poderão sustentar no sistema aqueles com maior sinistralidade
614
.
Para Cláudia Lima Marques, deve ser possível o aumento ou reajuste geral por
faixas quando ocorrer um aumento do risco abstrato de doenças, pois, segundo entende,
permitir qualquer tipo de reajuste seria injusto e revoltaria os princípios básicos da
mutualidade e da solidariedade no qual se baseia o sistema. A idéia do plano é justamente
613
MARQUES, Cláudia Lima. Solidariedade na Doença e na Morte: sobre a necessidade de ‘ações afirmativas’
em contratos de planos de saúde e de planos funerários frente ao consumidor idoso. In: SARLET, Ingo
Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundaementais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2003, págs. 206 e 208.
614
MARQUES, Cláudia Lima. Ibid., págs. 206.
257
transferir o risco abstrato de doenças para todo o sistema, suavizando e solidarizando seu
preço, para que seja suportado por todos
615
.
6.3.5. Princípio da justiça contratual
A propriedade constitui instrumento de instauração de novas e mais justas relações
entre os cidadãos e a sua tutela supõe a utilização dos bens adequada à satisfação de interesses
de dadas categorias de cidadãos, sempre que esteja em causa a satisfação de necessidades que
a Constituição considera prioritárias e protege diretamente
616
.
Busca-se, através de normas jurídicas, estimular formas obrigatórias de cooperação,
de solidariedade entre a comunidade, fundamentalmente para viabilizar a convivência, a paz
social, dirimir conflitos latentes, criando mecanismos de distribuição de benefícios sociais da
vida comum. O direito social quer gerar justiça, permitindo a acumulação capitalista, mas
evitando alguns impactos negativos, que colocariam em risco a coesão social. Ao juiz caberá,
em situações de crise vividas no caso concreto, transformar a realidade social egoísta até que
se chegue àquele ideal de justiça social
617
.
Para Teresa Negreiros, a noção de equilíbrio no contrato pressupõe à preocupação
com o justo, no sentido da necessidade de estabelecer um critério paritário de distribuição dos
bens. Justiça contratual, segundo entende, ocorreria quando as prestações de um e de outro
contratante, guardam entre si um nível razoável de proporcionalidade. Havendo exagerada ou
615
MARQUES, Cláudia Lima. Ibid., pág. 208.
616
PRATA, Ana. Op. cit., pág. 181.
617
TIMM, Luciano Benetti. As Origens do Contrato no Novo Código Civil: Uma Introdução à Função Social,
ao Welfarismo e ao Solidarismo Contratual. Revista dos Tribunais. Ano 85. Volume 844. Fevereiro de 2006,
pág. 89.
258
excessiva discrepância entre as obrigações assumidas por cada contratante, tem-se situação de
verdadeira injustiça contratual
618
.
O princípio do equilíbrio econômico nada mais seria do que a densificação, no
espaço contratual, do princípio da justiça social previsto como princípio geral da atividade
econômica no caput do art. 170 da C.F
619
. Aliás, Paulo Luiz Netto Lôbo defende o
compromisso do contrato com a justiça social, justamente em decorrência dos postulados da
ordem econômica capitulados na Constituição
620
.
Pietro Perlingieri, ao tratar da justiça no plano contratual, prefere, no entanto, adotar
a teoria mediata dos direitos fundamentais, fazendo incidir o valor da justiça social no direito
civil, através das cláusulas gerais estampadas na legislação no tocante à eqüidade, ao estado
de necessidade, à lesão, à causa não imputável, à boa-fé, dentre outras
621
.
6.4. Ponderação entre direitos ou bens constitucionalmente protegidos nos contratos
celebrados entre particulares
Estes princípios contratuais de natureza constitucional, além dos direitos ou bens
constitucionalmente protegidos, inclusive os previstos no art. da Constituição de 1988,
devem ser colocados em posição de colisão, no desiderato de aferir qual deles de
preponderar no conflito contratual concreto submetido à análise judicial.
A eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas leva em consideração a
“multifucionalidade” ou “pluralidade de funções” que exercem, de sorte a possibilitar
618
Op. cit., pág. 168.
619
FACCHINI NETO, Eugênio. Op. cit., págs. 45/46.
620
Constitucionalização do Direito Civil. Revista de Informação Legislativa. Ano 36. 141. Jan/mar de 1999,
pág. 107.
621
Op. cit., pág. 49.
259
“soluções diferenciadas” face ao caso concreto a concretizar. Por esta razão, deve-se rejeitar,
como bem pontifica Cristina M. M. Queiroz, a crítica da “perversão” da ordem jurídico-
privada pela “hipertrofia” dos direitos fundamentais. Para ela, não se pode permitir que a
afirmação dos direitos fundamentais afete o núcleo irredutível do princípio da autonomia
privada, a ponto de torná-lo irreconhecível. Atento a isso, a colisão existente entre eles
poderá ser resolvido pelo recurso a uma “ponderação” ou “contrapeso de bens” no caso
concreto”
622
.
No âmbito da ponderação (e, por conseguinte, também hierarquização) de valores,
inerente à tarefa de estabelecer a concordância prática na hipótese de conflitos entre princípios
(e direitos) constitucionalmente assegurados, o princípio da dignidade da pessoa humana,
como ressalta Ingo Wolfgang Sarlet, justifica - e até mesmo exige - a imposição de restrições
a outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos, ainda que se cuide de normas de
cunho jusfundamental
623
.
Isso não quer dizer, porém, que existe uma hierarquia jurídico-formal entre as
normas constitucionais, a ponto de justificar uma inviável inconstitucionalidade de normas
constitucionais originárias, à luz da dignidade da pessoa humana ou de outros direitos
fundamentais.
Ao partir do pressuposto da primazia dos direitos fundamentais na ordem
constitucional brasileira, Wilson Steinmetz propõe, no plano dos direitos individuais, quatro
precedências gerais que considera dogmaticamente corretas, para o âmbito das relações
contratuais privadas: a) em situação de igualdade fática entre os particulares, uma
precedência prima facie do direito fundamental individual de conteúdo pessoal ante o
622
Direitos Fundamentais. Teoria Geral. Coimbra: Editora Coimbra, 2002, págs. 278/280.
623
Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Edição. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2002, págs. 115/116.
260
princípio da autonomia privada; b) em situação de desigualdade fática entre os particulares, há
uma precedência prima facie do direito fundamental individual de conteúdo pessoal ante o
princípio da autonomia privada; c) em situação de igualdade fática entre os particulares, há
uma precedência prima facie da autonomia privada ante o direito fundamental individual de
conteúdo patrimonial; e d) em situação de desigualdade fática entre os particulares, uma
precedência prima facie do direito fundamental individual de conteúdo patrimonial ante o
princípio da autonomia privada
624
.
No entanto, alerta Wilson Steinmetz que não se pode admitir uma eficácia imediata,
linear, absoluta, universal e definida, abstratamente, de uma vez por todas, mas, antes, uma
eficácia “matizada” ou “modulada”. Os juízes e tribunais estão obrigados a interpretar e
aplicar as disposições dos direitos fundamentais em sintonia com a Constituição
625
.
Mas, havendo regulação legislativa concretizadora específica, em conformidade com
a Constituição e com os direitos fundamentais, deve-se dar a ela prioridade aplicativa.
Eventual desconsideração da harmonização ou dos direitos fundamentais ou entre esses
direitos e a autonomia privada proposta pelo legislador na esfera do direito privado, exige do
Judiciário a apresentação de razões argumentativas jurídico-constitucionais de peso, à luz da
ponderação e da proporcionalidade
626
.
Sugere-se, neste sentido, a utilização da teoria de Alexy, sobretudo no campo da
ponderação entre os princípios, direitos e bens constitucionalmente tutelados, mediante a
“Fórmula de Peso”, que enaltece três referenciais básicos para definir qual deles haveria de
prevalecer no caso concreto: a) o “peso abstrato” e o “peso concreto” de cada um dos valores
ou princípios colidentes; b) a interferência que a realização de um causa reciprocamente no
624
Op. cit., pág. 224.
625
Op. cit., pág. 273.
626
Ibid., pág. 274.
261
outro; e c) as evidências disponíveis para fundamentar, racionalmente, as considerações
relativas aos direitos em colisão.
Evidentemente, o peso ou a importância, em abstrato, dos direitos ou bens
constitucionalmente protegidos previstos no art. da Constituição (saúde, educação,
moradia, proteção da criança e do adolescente, dentre outros) é maior do que a autonomia
privada ou a livre iniciativa (também direitos constitucionalmente protegidos). A despeito
disso, quando o direito ou o bem constitucional tutelado não se encontra ameaçado de sofrer
ofensa em seu núcleo essencial (dignidade da pessoa humana), o peso concreto não se
apresenta superior. Por isso, no mais das vezes, a solução da colisão entre direitos
fundamentais nas relações contratuais ocorre pela análise do grau de interferência que um
deles exerce sobre o outro.
Assim, por exemplo, nas situações em que a saúde ou a vida é posta em risco
seriamente, a primazia que se conceberia à autonomia privada ou a livre iniciativa interferiria
no direito fundamental à saúde, a ponto de anulá-lo completamente, inclusive atingindo
irremediavelmente a dignidade da pessoa humana.
Em alguns casos julgados pelos tribunais, não sequer uma única referência à
Constituição, mas unicamente a dispositivos pinçados da legislação infraconstitucional (civil
e/ou consumerista), ainda assim a fundamentação que dá respaldo a decisão têm embasamento
eminentemente constitucional, em especial quando leva em consideração a relevância do bem
contratual em jogo. Isso é muito comum nos contratos relativos a planos ou seguros de saúde,
em que o bem, além de se mostrar essencial à existência do próprio ser humano, é
constitucionalmente tutelado.
O Superior Tribunal de Justiça, através da Segunda Seção, em julgamento posterior
ao ocorrido no RESP nº 158.728/RJ, sedimentou o entendimento no sentido da abusividade da
262
cláusula contratual de plano ou seguro de saúde que limitava o tempo de internação do
segurado
627
, adotando, ainda que implicitamente, a teoria da eficácia horizontal dos direitos
fundamentais nas relações contratuais privadas.
A despeito da equivocada afirmação de que haveria vedação à restrição de direitos
fundamentais em contratos
628
, o Tribunal, para decidir em prol do consumidor, efetuou um
exercício de ponderação de direitos fundamentais postos em colisão. Considerou que, se, de
um vértice, o direito do segurado à saúde e à vida, também não se pode esquecer que, do
outro, a seguradora está amparada na liberdade de iniciativa e de contratar, princípios
igualmente tuteláveis pela Constituição.
No voto-condutor do julgamento, o relator ressaltou a técnica da ponderação entre
bens constitucionalmente protegidos nos seguintes moldes: “De um lado, a liberdade de
contratar, a regra do art. 1460 do Código Civil (‘quando a apólice limitar ou particularizar os
riscos do seguro, não responderá por outros o segurador’) e a obrigação do Estado, e não da
iniciativa privada, de garantir a saúde da população. De outro, a hipossuficiência do
consumidor, o fato de o contrato ser de adesão, a nulidade de cláusula que restringe direitos e
a necessidade de preservar-se o maior dos valores humanos, que é a vida. Ponderando as duas
correntes, tenho que mais acertada a segundo, notadamente por não encontrar justificativa na
limitação de internação imposta pelas seguradoras. Se a doença é coberta pelo contrato de
seguro (e isso a recorrida não nega), não se mostra razoável a limitação a seu tratamento. Até
porque o consumidor não tem como prever quanto tempo durará a sua recuperação”.
627
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RESP 251.024/SP. Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira. STJ,
Brasília, DF, 27 de setembro de 2000. Disponível em: http://www.stj.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 19
de setembro de 2007.
628
Essa assertiva merece reparos, pois, como se disse, o próprio contrato se constitui em legítimo
instrumento de auto-restrição ou renúncia de direitos fundamentais. O que se deve atentar, em compasso com a
lição de Vieira de Andrade, é se a renúncia se manifesta livre e esclarecida.
263
Neste caso específico, o exercício de ponderação realizado pelo Superior Tribunal de
Justiça entre o direito à saúde e a autonomia privada acabou por dar primazia ao interesse
existencial sobre o patrimonial. Sem embargo disso, se não se tratasse de hipótese de
internamento de paciente em estado grave, mas simples tratamento, consulta ou atendimento,
sem que se estivesse a correr risco de vida ou de piora da saúde, nada obstava que
preponderasse o interesse patrimonial de titularidade do plano de saúde.
Além de se constatar maior peso, tanto na órbita abstrata como na concreta,
seguramente a limitação do tempo de internamento chega a interferir no direito à saúde com
tamanha gravidade que, praticamente, a esvazia de modo definitivo, inclusive alcançando o
seu núcleo essencial, em prol do interesse protegido pela autonomia privada.
Raciocínio similar foi utilizado em recente julgamento ocorrido no Superior Tribunal
de Justiça em relação à pretensa nulidade de cláusula de carência em plano de saúde. Sem
embargo de considerar válida cláusula de carência, a Corte Superior, no caso específico
decidido, decretou a sua nulidade, por ter ocorrido circunstância excepcional, ocasionada por
necessidade de tratamento de urgência decorrente de doença grave (tumor neurológico, com
comprometimento da medula espinhal ao nível da 7ª vértebra cervical até a 3ª vértebra
torácica). Se não combatida a tempo, seria inócuo o contrato de plano de saúde, que é de
assegurar eficiente amparo à saúde e à vida. O Tribunal realizou, como deveria, um
sopesamento entre os interesses ou direitos constitucionalmente protegidos que se achavam
em colisão: direito à saúde e à vida e o princípio da autonomia privada (livre iniciativa).
No voto do relator, isso fica bem evidente, como se neste trecho: “a cláusula que
fixa a carência para certos tratamento, em si, não é abusiva, porquanto não se afigura
desarrazoada a exigência de um período mínimo de contribuição e permanência no plano de
saúde para que o contratante possa usufruir de determinados benefícios. As condições são
264
voluntariamente aceitas, os planos são inúmeros e oferecem variados serviços e níveis de
assistência médica, tudo compatível com a contraprestação financeira acordada e de
conhecimento da pessoa que neles ingressam por livre escolha, salvo algum lapso ou vício
existente no contrato, aqui não detectado pela instância de origem, soberana em seu exame.
Todavia, a jurisprudência do STJ tem temperado a regra quando surjam casos de urgência de
tratamento de doença grave, em que o valor da vida humana se sobrepuja ao revelo comercial,
além do que, em tais situações, a suposição é a de que quando foi aceita a submissão à
carência, a parte não imaginava que poderia padecer de um mal súbito”
629
.
No mesmo compasso, é possível identificar a adoção, ainda que tacitamente, da
teoria horizontal dos direitos fundamentais, em outros casos decididos pelos tribunais
ordinários, quando decidem a respeito de conflitos contratuais cujo objeto se constitui em bem
constitucionalmente protegido. A relevância do objeto contratual, assim reconhecida por ser
verdadeiro direito fundamental, exige um tratamento diferenciado e, conseqüentemente, uma
abordagem de cunho constitucional da questão contratual, apenas solucionável mediante a
aplicação da técnica da ponderação de bens.
Em outra situação relacionada a plano de saúde, o Tribunal de Justiça de Santa
Catarina manteve decisão concessiva de tutela antecipada, em sede de agravo de instrumento,
que obrigava plano de saúde a efetuar a cobertura de cirurgia de redução mamária, por
considerá-la necessária à eliminação das fortes dores sofridas pela paciente, causadas pela
dorsolombalgia.
Porém, mais importante do que isso, foi o Tribunal ter se valido da ponderação dos
bens envolvidos e, portanto, aproximado-se da teoria dos deveres de proteção, apurando que
629
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RESP 466.667/SP. Turma. Rel. Min. Aldir Passarinho Junior.
STJ, Brasília/DF, 27 de novembro de 2007. Disponível em: http://www.stj.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso
em: 17 de janeiro de 2008.
265
relegar o procedimento cirúrgico, em caso de urgência, para momento posterior ao trânsito em
julgado da sentença importaria em sofrimento prolongado, atentando frontalmente contra o
direito fundamental à saúde, que deve prevalecer sobre o direito patrimonial pertencente ao
plano de saúde
630
, passível de ser satisfeito a longo prazo.
Se, nesta espécie, não se importasse em sofrimento ao paciente, a ponderação entre
os bens envolvidos autorizaria a recusa da cobertura pelo plano de saúde, em situações em
que se poderia aguardar um determinado tempo, como, por exemplo, o cumprimento
contratual do período de carência.
Na mesma esteira, decidiu o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro assegurar a
paciente, que necessitava se submeter à cirurgia cardíaca, cobertura do seguro de saúde
privado da utilização de aparelho cardioversor desfibrilador nesse procedimento. A Corte
estadual entendeu que excluir a cobertura do aparelho inviabilizaria à própria realização do
procedimento cirúrgico, invocando, neste sentido, os direitos fundamentais à vida e à saúde.
No caso, deveria preponderar a tutela dos direitos à vida e à saúde em detrimento das questões
obrigacionais e contratuais, notadamente, quando as cláusulas de exclusão não estão
subscritas ou rubricadas pelo segurado
631
.
Com base no princípio da dignidade da pessoa humana, Clayton Maranhão defende
que, na sociedade de consumo, deve se impor a prorrogação imediata dos planos privados de
saúde, prescindindo da vontade declarada do operador em renovar o prazo contratual
632
.
630
ESTADO DE SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Agravo de Instrumento
2004.022939-9. Rel. Des. Maria do Rocio Luz Santa Ritta. TJSC, Florianópolis, SC, 07 de junho de 2005.
Disponível em: http://www.tj.sc.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 15 de agosto de 2007.
631
ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Cível
2006.001.55412. Rel. Des. Roberto de Abreu. TJRJ, Rio de Janeiro, RJ, 20 de março de 2007. Disponível em:
http://www.tj.rj.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 15 de agosto de 2007.
632
Tutela Jurisdicional do Direito à Saúde. Coleção Temas Atuais de Direito Processual Civil. Vol. 7. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2003, pág. 208.
266
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em outra situação que não a pertinente à
saúde, também se baseou em direitos fundamentais, dentre eles o da dignidade da pessoa
humana, da educação e dos que conferem proteção à criança e ao adolescente, para impedir o
corte decretado pela concessionária (pessoa jurídica privada) no fornecimento de energia
elétrica à escola modelo de Suruí, localizada no Município de Magé/RJ, em razão de elevada
inadimplência municipal.
Sem embargo de um das partes da relação processual não ser propriamente entidade
privada (Município de Magé), o Tribunal, para obstar o corte no fornecimento de energia
elétrica, socorreu-se de princípios constitucionais cujos titulares eram particulares (alunos da
instituição de ensino municipal). O corte de energia elétrica atentava contra o pleno
desenvolvimento da educação a que tinham direito os alunos da escola modelo (particulares).
Aliás, a decisão assentou que o exercício do direito à educação não se constituía
apenas dever do Estado, mas também da sociedade, especialmente em uma comunidade local
de notória carência econômico-financeira. Logo, dever-se-ia dar predominância a esse
interesse social e coletivo em detrimento do direito da concessionária recuperar o seu
expressivo crédito, até porque poderia perfeitamente buscar o ressarcimento devido pelos
meios judiciais próprios
633
.
É muito provável que, nesta situação, se o município não abrigasse uma escola, mas,
por exemplo, uma repartição administrativa qualquer que desempenhasse atividades
burocráticas, o Tribunal teria permitido o corte de energia elétrica.
Gustavo Tepedino exemplifica uma situação observada no liame contratual firmado
entre locador e locatário que sofre a incidência de direitos fundamentais. Assinala que, em
633
ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Agravo de Instrumento nº
2007.002.00059. Rel. Des. Luiz Fernando de Carvalho. TJRJ, Rio de Janeiro, RJ, 06 de março de 2007.
Disponível em: http://www.tj.rj.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 15 de agosto de 2007.
267
virtude da impossibilidade de previsão de todos os conflitos entre locador e locatário, a Lei de
Locações de Imóveis Urbanos (Lei 8.245/91) fixou princípios, no intuito de compatibilizar
a iniciativa econômica privada, tutelada na Constituição, com os valores extrapatrimoniais, ou
existenciais, da moradia, do trabalho, da estabilidade do homem em seu habitat
634
.
A Lei de Locações, em seu art. 30, fixa como critério de desempate na hipótese de
múltiplos locatários, com contratos iniciados na mesma data, que queiram igualmente exercer
o direito de preferência, a idade do inquilino, decidindo o legislador em favor do locatário
mais idoso. Porém, conta que alguns magistrados se pronunciaram no sentido da
inconstitucionalidade desse dispositivo, pois estaria ferindo o princípio da isonomia.
Entretanto, entende Tepedino que diferença entre a discriminação arbitrária e o tratamento
legitimamente diferenciado. Se a Constituição determina o dever do Estado amparar idosos,
nos termos do art. 230, esse dever não pode ser interpretado apenas como estímulo à
construção de asilos, mas também como base para evitar o tormento do locatário mais idoso
em se mudar de residência, daí decorrendo o desempate a seu favor no exercício do direito de
preferência
635
. Neste caso, mesmo que não houvesse lei específica sobre essa estipulação, o
juiz, pela teoria dos deveres de proteção, poderia, à luz da Constituição, conferir tratamento
diferenciado em favor do idoso.
O Tribunal Regional Federal da Região, fundado no direito fundamental à
moradia, manteve sentença proferida em sede de ação cautelar, para impedir a imissão de
posse de terceiro adquirente de imóvel residencial, que o adquiriu em execução extrajudicial
movida por instituição financeira contra o mutuário inadimplente. Entendeu-se que a
interpretação da Lei 10.150/2000 deve ser influenciada pela carga de eficácia resultante dos
634
Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil. In: Temas de Direito Civil. 3ª Edição.
Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pág. 16.
635
Ibid., Ibidem.
268
direitos fundamentais e, por conseguinte, ser aplicada em harmonia com o direito à moradia
previsto no art. da Constituição. Também constatou a presença de periculum in mora
consistente no risco de que a desocupação do imóvel residencial e a conseqüente imissão de
posse pelo novo adquirente inviabilizassem futura decisão judicial que garantisse ao mutuário
inadimplente o direito à formalização do arrendamento com opção de compra
636
.
A Corte Federal ponderou os interesses conflitantes, inclusive os do terceiro
adquirente, e optou por fazer preponderar o direito do mutuário inadimplente à proteção da
moradia, de caráter existencial, em detrimento do interesse de efetivar o direito de
propriedade, de cunho eminentemente patrimonial. É claro que o interesse do terceiro
adquirente também pode abrigar o direito fundamental à moradia, se foi adquirido com o
intuito de servir de residência familiar, porém o Tribunal Regional, lastreado de igual maneira
na ponderação dos bens em disputa, reconheceu que, na colisão entre os interesses de
desalojar a família do mutuário inadimplente e de alojar a família do terceiro adquirente,
haveria de prevalecer, no caso concreto, situação fática que se prolongava algum tempo
e, portanto, em favor da primeira. Eventual mudança nesse cenário provocaria maiores
transtornos às partes do que a sua manutenção.
Diferente poderia ter sido o resultado se o mútuo habitacional fosse destinado à
aquisição de casa de campo ou de veraneio, que, nestas situações, haveria mera limitação
do direito constitucional à moradia, sem que estivesse atingida a dignidade mínima da família,
ante à preservação da residência principal como unidade domiciliar.
Outro caso que diz respeito ao direito constitucional à moradia foi julgado pelo
Tribunal de Justiça de Minas Gerais, numa situação semelhante a enfrentada pelo Supremo
636
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Apelação Cível 324783/AL. Quarta Turma. Rel. Des.
Edílson Nobre. TRF-5ª, Recife, PE, 14 de dezembro de 2004. Disponível em:
http://www.trf5.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 16 de agosto de 2007.
269
Tribunal Federal, mas com desfecho diverso, e se refere à possibilidade de penhora de bem de
família do fiador de contrato de locação. O Tribunal estadual, diferentemente do Excelso
Pretório, partiu da premissa de que o direito fundamental à moradia não pode ser renunciado,
pois a sua tutela interessa ao Estado, como Nação. Ainda que se tratasse de propriedade
exclusiva do fiador, não interessa ao Estado ver a família ser jogada na rua da amargura, para
saldar dívidas de natureza privada, aumentando, ainda mais, o caos social que se instalou no
País
637
.
Nada obstante a impropriedade da afirmação de que os direitos fundamentais, dentre
eles o de moradia, não podem ser renunciados, a decisão do Tribunal estadual mostra-se mais
consentânea com os valores e os princípios constitucionais. De fato, a se entender que o
direito à moradia não pode ser renunciado, pelo simples fato de ser um direito fundamental,
chegar-ser-ia ao absurdo de considerar nulo qualquer contrato de compra e venda que
alienasse o único bem imóvel da família e, praticamente, tornar impossível qualquer outra
transação negocial em relação a ele.
O que tem que ser analisado é se a renúncia ao direito de moradia, a priori possível,
interfere no campo da dignidade da pessoa humana, da qual o titular, mesmo que assim
expresse e deseje, não pode renunciar. Como se assinalou, os direitos sociais, sendo um
deles o de moradia, corresponde a um dos consectários lógicos do princípio constitucional da
dignidade da pessoa humana. Assim, quando a renúncia ao direito social à moradia interfere
(requisito do grau de interferência) na própria dignidade da pessoa humana, atinge
irremediavelmente o núcleo essencial de qualquer direito fundamental e, se não coibido, fere a
unidade da Constituição e a proteção que se almeja dos direitos fundamentais.
637
ESTADO DE MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Processo
1.0024.03.030944-7/001. Rel. Des. Dárcio Lopardi Mendes. TJMG, Belo Horizonte, MG, 15 de dezembro de
2004. Disponível em: http://www.tjmg.gov.br/jurisprudencia/html. Acesso em: 15 de agosto de 2007.
270
No caso da penhora de bem imóvel de família de fiador, é um preço caro demais que
se paga pela renúncia que se faz ao direito constitucional à moradia, que nem mesmo o
locatário esteve disposto a pagar. A perda do único imóvel residencial do fiador, nestas
condições, redundará na total desproteção de sua família que ficará sem condições mínimas
de existência digna. É uma situação bem diferente daquela em que o potencial fiador opta por
vender, voluntariamente, o seu único imóvel ou, mesmo nos casos em que decide doá-lo
graciosamente a outrem, pois, nestas hipóteses, a vontade de transferir o bem a terceiro
manifesta-se de forma livre e esclarecida, que consiste em requisito essencial da renúncia a
direitos fundamentais.
Diverso é o caso do fiador. Quando aceita prestar a garantia de fiança para viabilizar
a celebração do contrato de locação, o fiador não concorda ou pelo menos não
expressamente em perder o imóvel, em caso de inadimplência do locatário. A fiança, como
o próprio nome sugere, decorre de uma relação de confiança entre o fiador e o afiançado.
Normalmente, o fiador confia que o afiançado não irá lhe trazer maiores transtornos, nunca
imaginando, no mais das vezes, que pode correr o risco de perder, em processo judicial, o
único imóvel residencial que possui para abrigar a sua família, pois, se imaginasse,
provavelmente não se ofereceria a prestar-lhe fiança. Muitas vezes, o fiador aceita prestar
fiança, para não perder a amizade com chefes, colegas de trabalho, amigos de infância,
parentes ou outras pessoas próximas a quem não se pode negar um favor. Nestes casos, não
pode sustentar que vontade livre e esclarecida do fiador. Variadas circunstâncias
metajurídicas impedem, pois, que o fiador esteja livre para recusar voluntariamente o pedido
de fiança. Assumir o risco da fiança não pode ser equiparado à manifestação da vontade livre
e esclarecida, pois, se aceita assumir um ônus, é porque não dispõe de liberdade, mas tão-
somente uma falsa liberdade. Por isso, o fato de a fiança corresponder à renúncia ao direito
271
fundamental à moradia, na maioria dos casos, não ocorre por expressa manifestação da
vontade livre e esclarecida do fiador.
272
7. CONCLUSÃO
Diante de tudo o que fora expendido, pode-se concluir, em princípio, que os direitos
fundamentais podem incidir nas relações contratuais privadas que tenham como objeto
direitos ou bens constitucionalmente protegidos, dentre eles a autonomia privada calcada na
livre iniciativa, por meio das teorias dos deveres de proteção e as de Robert Alexy atinentes à
ponderação e à proporcionalidade em sentido geral.
O direito civil regula os mais generalizantes institutos relacionados ao homem e afeta
as relações jurídicas mais comuns da vida em sociedade. Daí a justificativa das figuras
civilísticas encontrarem-se plasmadas, com grande freqüência, na Constituição. Na
Constituição brasileira de 1988, podem ser mencionados, como institutos originariamente de
natureza civil, a propriedade (art. 5º, XXII), a herança (art. 5º, XXX) e a família (art. 226).
As mais elementares necessidades de convivência social apontam para a
possibilidade e a imprescindibilidade de os direitos fundamentais, independentemente de
previsão expressa na Constituição, terem que ceder nas situações em que outros bens
igualmente dignos de proteção jurídica assim o exijam.
Por derivar da própria essência dos direitos fundamentais, a proporcionalidade
desfruta de íntima conexão com os princípios, a ponto de se sustentar que o simples caráter
principiológico de uma norma jurídica pressupor a proporcionalidade, por meio dos
postulados da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito.
Na apreciação específica da proporcionalidade em sentido estrito, para determinar
qual dos valores ou princípios fundamentais em rota de colisão, dentre eles a autonomia
privada, deve ser considerado mais relevante, é necessário argumentar acerca dos seguintes
fatores: a) o “peso abstrato” e o “peso concreto” de cada um dos valores ou princípios
273
colidentes; b) a interferência que a realização de um causa reciprocamente no outro; e c) as
evidências disponíveis para fundamentar, racionalmente, as considerações relativas aos
direitos em colisão.
À luz da dimensão objetiva, a possibilidade de vinculação dos direitos fundamentais
nas relações entre particulares (indivíduo/indivíduo), além de servir de proteção contra os
poderes econômico-sociais, propicia a manutenção de uma coerência e unidade interna ao
ordenamento jurídico, evitando a estranha situação de dupla ética no seio da sociedade, uma
fundada na legislação infraconstitucional, preferencialmente no Código Civil, e outra,
completamente divergente, amparada na primazia dos direitos fundamentais contidos na
Constituição.
Para que ocorra efetivamente a incidência dos direitos fundamentais nas relações
privadas, mostra-se imprescindível a realização da ponderação dos bens, valores e princípios
consagrados na Constituição, eventualmente colidentes. A particularidade de haver, no liame
interprivados, dois sujeitos titulares de direitos fundamentais, por si só, justifica a
imperiosidade da utilização da técnica da ponderação, para resolver os conflitos que surjam.
Por isso, a problemática da vinculação dos direitos fundamentais nas relações
privadas corresponde, em última análise, a uma colisão de direitos fundamentais titularizados
por particulares, na medida em que o exercício de um direito fundamental por um particular
obstaculiza, afeta ou restringe o exercício de um direito fundamental de um outro particular.
Com base na teoria dos deveres de proteção, os direitos fundamentais não atuam
como direitos subjetivos contra outros particulares, mas permite a projeção de efeitos
jurídicos sobre o direito privado, recorrendo-se diretamente à norma constitucional para
resolver os conflitos entre particulares. À vista disso, para que a articulação seja correta, o
juiz, no exame do caso concreto, deverá ponderar cuidadosamente a eficácia limitadora
274
daqueles princípios em relação ao conteúdo e o grau de interferência que provocam nos bens
ou nos direitos constitucionalmente protegidos. E não deve esquecer que deve ser resolvido
sempre procurando preservar o núcleo essencial (e em especial, a dignidade da pessoa
humana) dos direitos e interesses em jogo.
Assim, numa relação contratual, prevalece, em primeiro lugar, com base na teoria
dos deveres de proteção, que se mostra mais adequada às especificidades das relações
privadas, a liberdade de conformação do legislador, através da produção legiferante do direito
privado. Mas, em caso de inexistência de norma específica ou havendo insuficiência na
regulamentação, quando submetidos os conflitos contratuais à análise judicial, deverá o juiz
efetuar a ponderação entre os direitos ou bens constitucionalmente protegidos em colisão,
valendo-se, na operação, do princípio da proporcionalidade.
A concepção liberal do contrato, em virtude da qualidade abstrata do sujeito abstrato,
não leva em consideração a qualidade das partes contratantes ou a condição referente à classe,
ao status, ao grupo, à família ou à situação social das partes. Também não se nenhuma
importância ou relevância substantiva à performance das partes na definição dos efeitos da
quebra ou descumprimento contratual, devendo o contrato ser mantido a qualquer custo,
inclusive social, à luz do princípio do pacta sunt servanda. A circunstância de o bem objeto
do contrato ser essencial ou relevante à existência humana não tinha qualquer repercussão no
tratamento contratual dispensado. Aliás, como o Código Civil centralizava em um único
corpo legislativo todo o sistema normativo e, sobretudo, aplicativo, do direito privado, o fato
de determinados bens ou direitos estarem assentados na Constituição, ou mesmo sendo
considerados fundamentais à condição humana, ainda mais porque eram oponíveis apenas
contra o Estado, não acarretavam qualquer reflexo no tratamento contratual, a não ser em
casos excepcionais de ameaça de perda definitiva.
275
A exacerbação da valorização do indivíduo e a conseqüente perda do sentimento
coletivo do homem renderam margem a um comportamento egoísta, altamente vantajoso para
os mais hábeis, mais audaciosos ou menos escrupulosos. Aliado a isso, a doutrina da mínima
intervenção do Estado nas relações privadas não o autorizava a proteger os menos
afortunados, acarretando uma crescente injustiça social. Ao conceder a todos o direito de ser
livre, não se assegurou a ninguém o poder de ser livre. Isso inspirou o nascimento do Estado
social e, por via de conseqüência, da concepção social dos contratos. A liberdade antes
irrestrita à formação da vontade contratual começou a sofrer, em novo momento histórico da
humanidade, limitações a bem do interesse público. A vontade continuava ainda a ser fonte da
obrigação jurídica, porém com a possibilidade de ser restringida pelos interesses da
coletividade.
Além disso, as necessidades sociais de aumentar a produção e a utilização crescente
dos bens econômicos também se constituíram no estopim do nascimento da fase social dos
direitos, que levavam em consideração as finalidades para as quais os havia criado. Emergia
uma nova perspectiva que dava relevância à função exercida pelo direito e que modela o seu
exercício a uma finalidade solidária. A funcionalização dos institutos jurídicos em favor do
interesse social inspirou a construção da concepção socializante do contrato, na qual não se
tutela o interesse privado e individual de cada um dos contratantes, mas antes procura
proteger um terceiro interesse, recíproco e que transcende à vontade meramente
individualizada, formado objetivamente da avença.
Daí se começou a perceber que, nos mais das vezes, o modelo massificado do
contrato de adesão fomentava a existência de constantes desequilíbrios entre as partes
contratantes, pois, em situações em que o bem contratual era essencial ou imprescindível à
vida contemporânea do homem, o consumidor tinha que se submeter aos seus ditames, mesmo
276
a seu desgosto. Isso favoreceu o surgimento de cláusulas abusivas e, sobretudo, constantes
ofensas a direitos ou bens considerados fundamentais ou constitucionalmente protegidos.
A perspectiva social do contrato que caracteriza o Estado social, também chamado de
Estado do bem-estar social (Welfare State), porém, não se mostrou mais adequada à resolução
de conflitos contratuais que surgiram no recente Estado pós-social, justificando a criação de
uma nova concepção contratual diferenciada, fundada em novos valores e princípios que o
norteiam.
Tem-se revelado imprescindível, no atual momento da teoria contratual, buscar
soluções diferenciadas para tratar de contratos que tenham como objeto direitos fundamentais
ou bens constitucionalmente protegidos, uma vez que não há, no sistema normativo civil-
constitucional, homogeneidade axiológica que unifique a teoria contratual em torno de um
único e absoluto valor: liberdade individual ou solidariedade social.
Nem o Código Civil de 2002, nem sequer o Código de Defesa do Consumidor, fazem
distinção entre contratos de adesão, tomando como base a natureza do bem jurídico objeto de
circulação. A proteção contratual tende a recair em favor do consumidor com a mesma
intensidade e nível de tutela simplesmente pelo fato de se tratar de contrato de adesão,
independentemente se o bem ou o direito em questão é constitucionalmente relevante à vida
humana.
Para resolver de maneira mais adequada essa problemática, sugere-se, como teoria
contratual diferenciada, a adoção do critério da simples existência, na relação contratual, de
um direito ou bem constitucionalmente protegido, ao lado da autonomia privada e da livre
iniciativa.
Dessa forma, naqueles contratos que tenham bens constitucionalmente protegidos,
em especial os constantes no art. da Constituição de 1988, em confronto com a autonomia
277
privada e a livre iniciativa, a teoria contratual deve ser diferenciada para permitir a eficácia
dos direitos fundamentais, por meio da doutrina dos deveres de proteção.
A determinação do conteúdo do contrato, na concepção do Estado pós-social,
encontra-se condicionada à observância das regras e dos princípios constitucionais, de forma a
concebê-lo como instrumento a serviço da dignidade e do desenvolvimento da pessoa,
mormente porque determinados serviços, de fato, integram-se na vida como algo a ela
inerente, tais como o acesso ao crédito, os seguros de saúde médico-hospitalar, aqueles de
informações e de lazer por cabo, televisão e telefone. A vida contemporânea não dispensa o
ininterrupto acesso a bens e serviços ligados à segurança, à educação, à saúde, ao crédito, à
informação e ao lazer.
Hão de ser conciliados os velhos e novos princípios, em um processo histórico de
acumulação de direitos e princípios que passam a ser fundamentais à coletividade. Daí a
necessidade de identificar e reconhecer novos princípios do direito civil-constitucional que
podem ser extraídos da visão sistemática e unitária da Constituição e que passam a ficar
sujeitos à ponderação, no intuito de resolver eventuais conflitos existentes entre eles, por
intermédio da teoria dos deveres de proteção.
Estes princípios contratuais de natureza constitucional, além dos direitos ou bens
constitucionalmente protegidos, inclusive os previstos no art. da Constituição de 1988,
devem ser colocados em posição de colisão, no desiderato de aferir qual deles de
preponderar no conflito contratual concreto submetido à análise judicial.
Evidentemente, o peso ou a importância, em abstrato, dos direitos ou bens
constitucionalmente protegidos previstos no art. da Constituição (saúde, educação,
moradia, proteção da criança e do adolescente, dentre outros) é maior do que a autonomia
privada ou a livre iniciativa (também direitos constitucionalmente protegidos). A despeito
278
disso, quando o direito ou o bem constitucional tutelado não se encontra ameaçado de sofrer
ofensa em seu núcleo essencial (dignidade da pessoa humana), o peso concreto não se
apresenta superior. Nesta linha, no mais das vezes, a solução da colisão entre direitos
fundamentais nas relações contratuais ocorre pela análise do grau de interferência que um
deles exerce sobre o outro.
Nas situações, por exemplo, em que a saúde ou a vida é posta em risco seriamente, a
se conceber primazia à autonomia privada ou a livre iniciativa, o grau de interferência no
direito fundamental à saúde pode ser tamanho que o anule completamente, inclusive atingindo
irremediavelmente a dignidade da pessoa humana.
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