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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Adriana Maria Corsi
Currículo em ação nos anos inciais do Ensino Fundamental e a
atenção à multiculturalidade
SÃO CARLOS
Setembro - 2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Currículo em ação nos anos inciais do Ensino Fundamental e a
atenção à multiculturalidade
Adriana Maria Corsi
Tese apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Educação, Metodologia de Ensino, da
Universidade Federal de São Carlos,
como parte dos requisitos para obtenção
do Título de Doutor em Educação.
Orientadora: Profa. Dra. Emília Freitas de Lima.
SÃO CARLOS
Setembro - 2007
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Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da
Biblioteca Comunitária/UFSCar
C826ca
Corsi, Adriana Maria.
Currículo em ação nos anos iniciais do ensino
fundamental e a atenção à multiculturalidade / Adriana Maria
Corsi. -- São Carlos : UFSCar, 2008.
180 f.
Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de São Carlos,
2007.
1. Professores - formação. 2. Currículos. 3.
Multiculturalismo. I. Título.
CDD: 371.71 (20
a
)
BANCA EXAMINADORA
Profi Df' Emília Freitas de Lima
Profi Df' Dulce Consuelo Andreatta Whitaker
Profi Df' Ana Canen
Profi Df' Roseli Rodrigues de Mello
Profi Df' Rosa Maria Moraes Anunciatto de Oliveira
~'~
AGRADEÇO
À professora Emília Freitas de Lima, por acreditar em meu trabalho de pesquisa
e contribuir para sua realização.
Às professoras Rosely Rodrigues de Mello, Rosa Maria M. Anunciato de Oliveira
e Vera Candau, pelas contribuições na banca de qualificação de tese.
À professora Carlinda Leite que me recebeu e orientou durante o estágio
realizado na Faculdade de Educação da Universidade do Porto, em Portugal.
Às professoras e aos/às funcionários/as do Programa de Pós-graduação em
Educação da UFSCar.
Aos/às professores/as e funcionários/as do Departamento de Psicologia, em
especial do Laboratório de Psicologia da Aprendizagem.
Às amigas de doutorado, especialmente à Heloísa, pelas conversas sobre as
nossas pesquisas e sobre a vida.
Aos/às amigos/as que conheci em Portugal, dentre eles/as: Sueli, Renata,
Adilson e Zenaide, pela boa amizade que construímos em pouco tempo de
convivência.
À minha família, pelo apoio nos momentos em que mais precisei. Ao meu
companheiro e à minha querida filha Ana Júlia, que nasceu recentemente, pela
alegria que me proporcionam.
Estranhem o que não for estranho.
Tomem por inexplicável o habitual.
Sintam-se perplexos ante o cotidiano.
Bertold Brecht
RESUMO
A presente pesquisa tem como objetivo identificar aspectos da prática
pedagógica que podem contribuir para a regulação e para a emancipação social,
discutindo-os a partir dos estudos sobre o Multiculturalismo Crítico. Desta forma,
procuramos compreender como as diferenças relativas às categorias raça/etnia,
classe social e gênero estão presentes no currículo em ação. Os dados foram
coletados em duas salas de aula das séries iniciais do Ensino Fundamental – 1ª.
e 4ª. séries -, por meio de observação e entrevista. Foram realizados trinta dias
de observação em cada sala, distribuídos durante um semestre letivo cada. As
entrevistas foram feitas com o objetivo de compreender os significados
atribuídos pelas professoras às suas práticas. A escolha da 1ª.série se deu ao
acaso e a 4ª. série foi escolhida porque a professora apresentava uma prática
pedagógica diferenciada, preocupada com questões referentes à diversidade
cultural. As análises apontam dois tipos de práticas bastante distintos, sendo
que na 1ª. série os aspectos ligados às diferenças foram registrados mais
fortemente nas relações entre professora e alunos/as e na 4ª. série é o trabalho
com os conteúdos que aparece como central. Na 1ª. série da professora
Roberta, as situações analisadas evidenciam a existência de um padrão
etnocêntrico que pauta o seu trabalho pedagógico, principalmente no que se
refere à relação entre ela e os/as alunos/as, envolvendo a atenção dada a
determinados/as alunos/as, as expectativas positivas ou negativas para com
eles/as, o estímulo, a concepção de conhecimento etc. Esse quadro ilustra como
dentro de uma mesma sala de aula se dão diferentes formas de ensino e
aprendizagem e como esses processos são influenciados pelas diferenças
culturais e sociais. Na 4ª. série da professora Silvia, temas como preconceito,
racismo, estereótipos são tratados juntamente com os conteúdos curriculares.
As situações observadas revelam que a professora procura desenvolver com os
alunos uma visão crítica sobre diferentes temas que envolvem questões sociais
e culturais, com uma educação mais voltada à emancipação social. No entanto,
essa tentativa de desenvolver uma prática voltada ao trabalho com as diferenças
também é marcada por algumas dificuldades, como o isolamento na escola e o
domínio de conteúdos curriculares em suas relações com as questões de
gênero, sexualidade, raça/etnia. Por fim, consideramos que a(s) cultura(s)
está(ão) sempre presente(s) na educação escolar, como monoculturalismo ou
multiculturalismo. Portanto é imprescindível que os cursos de formação inicial e
continuada envolvam as discussões sobre as diferenças culturais e sociais em
seus programas, com o objetivo de desenvolver uma educação crítica, “política”,
que vise a superação da exclusão social, do preconceito e do racismo.
Palavras-chave: Currículo em ação, Intermulticulturalismo, Formação de
Professores
ABSTRACT
The present study had as objective identifies aspects of the pedagogic practice
that can contribute to the regulation and social emancipation, discussing them
starting from the studies of Critique Multiculturalism. This way, we tried to
understand how the relative differences of categories race/ethnic, social class
and gender are present in curriculum in action. The data were collected from two
classrooms of the first grade of Fundamental Teaching - 1st and 4th series -
through observation and interview. They had been accomplished thirty days of
observation in each classroom, distributed for each school semester. The
interviews were made with the objective of understanding the meanings
attributed by the teachers to their practices. The choice of the 1st series was
random and to 4th series was chosen because the teacher realized a
differentiated pedagogic practice, concerned with subjects regarding the cultural
diversity. The analyses point two types of quite different practices, and in the 1st
series the linked aspects of differences were registered stronger in the
relationships between teacher and students and in 4th series the work with the
contents that he/she appears as central. In teacher Roberta's 1st series, the
analyzed situations show the existence of ethnocentric pattern that rules his/her
pedagogic work, mainly in what he/she refers to the relationship between her and
the students, involving the attention given to certain students, the expectations
positive or negative to them, the incentive, the knowledge conception and others.
This aspect illustrates how inside of a same classroom they feel different
teaching forms and learning and how those processes are influenced for cultural
and social differences. In the 4th series teacher's Silvia, themes like prejudice,
racism, stereotypes are treated together with the curricular contents. The
observed situations reveal that the teacher tries to develop with the students a
critical vision of different themes that involve social and cultural subjects, with an
education that illustrate more the social emancipation. However, that attempt of
developing a practice returned to the work with the differences is set also by
some difficulties, as the isolation in the school and the domain of curricular
contents in their relationships with the gender subjects, sexuality, race/ethnic.
Finally, we considered that the culture is always present in the school education,
as monoculturalism or multiculturalism. Therefore it is indispensable that the
courses of initial and continuous formation involve the discussions of the cultural
and social differences in their programs, with the objective of developing a critical
education, "politics" that seeks the overcoming of the social exclusion, of the
prejudice and of the racism.
Key words: curriculum in action, multiculturalism, teachers’ formation.
Sumário
INTRODUÇÃO____________________________________________________ 8
Capítulo 1 ____________________________________________________ 17
1.1. Globalização e educação_________________________________________________ 18
1.2. Cultura____________________________________________________________________ 32
1.3. Intermulticulturalismo_____________________________________________________ 37
Capítulo 2 ____________________________________________________ 55
2.1. Currículo__________________________________________________________________ 55
2.2. Escolarização e conhecimento / poder e discurso _______________________ 62
2.3. Multiculturalismo, escola, educação e currículo __________________________ 68
2.4. Multiculturalismo e prática pedagógica___________________________________ 70
Capítulo 3 - Metodologia ________________________________________ 79
3.1. A observação
_____________________________________________________________ 84
3.2. A entrevista_______________________________________________________________ 86
3.3. Análise dos dados ________________________________________________________ 88
Capítulo 4 - A 1ª. Série da Professora Roberta ______________________ 93
4.1. O trabalho com os conteúdos ____________________________________________ 94
4.2. A relação professora, alunos/as e conhecimento _______________________ 106
4.3. Discussão dos dados____________________________________________________ 125
Capítulo 5 - A 4ª. série da professora Silvia _______________________ 130
5.1. O trabalho com os conteúdos e a relação professora, alunos/as e
conhecimento ________________________________________________________________ 131
5.2. Discussão dos dados ___________________________________________ 157
Considerações Finais ______________________________________________________ 166
Referências
_________________________________________________________________ 174
Anexo I
______________________________________________________________________ 179
Anexo II______________________________________________________________________ 180
8
INTRODUÇÃO
As histórias da maioria dos grupos culturais sempre foram marcadas pela
interação com o diferente, com o outro. No caso do Brasil esta situação é bastante
evidente. O fato de ter passado por um processo de colonização configurou
contatos com outras culturas e marcou radicalmente a cultura do país, com a
introdução de hábitos, crenças e valores de diferentes grupos, o genocídio de
índios, a catequização pelos jesuítas, a escravização de africanos, a imigração
partindo de diversos países europeus, etc.
De forma diferente, essa interação entre pessoas de diferentes lugares é
ainda mais evidente hoje, com os meios de comunicação e de transporte que
possibilitam um contato maior entre as diversas culturas, sendo um dos elementos
que caracteriza o processo de globalização que vivemos atualmente.
Esta marca que nos caracteriza do ponto de vista cultural não advém
somente da presença de pessoas de diferentes etnias em um país; ela
compreende, também, as que decorrem das diferenças de gênero, classe social,
religião, etc. São essas marcas, através das dinâmicas que estão presentes nos
conflitos e consensos sociais, que influenciam a construção e reconstrução das
nossas identidades.
Neste processo de construção e reconstrução, a escola desempenha um
importante papel. Ela é, ao mesmo tempo, um veículo de emancipação e de
regulação social que impõe restrições estruturais e ideológicas ao trabalho dos
professores e, também, possibilita, em diferentes graus, oportunidades de
desenvolver modos críticos de pedagogia (Giroux, 1986, p.311). Considerando
que vivemos em uma sociedade desigual e excludente, em que há uma disputa
constante para imposição de significados específicos, torna-se relevante
compreendermos como ocorrem esses processos e que responsabilidade neles
tem a educação escolar. Admitindo, tal como Giroux (idem), que na escola se
vivem situações que ensinam a disciplinar, mas também se vivem outras voltadas
para a libertação, em nosso trabalho buscamos compreender o que nela se
9
passa, que ideologias marcam os professores e que processos ali se
desenvolvem no sentido da regulação e da emancipação.
Acreditando que é possível desenvolver uma pedagogia que questione
valores, estereótipos e atitudes preconceituosas, tidas, muitas vezes, como
naturais em nossa sociedade, e que instigue a agência na construção de uma
sociedade verdadeiramente democrática, a intenção da nossa pesquisa é penetrar
no interior da escola – com ênfase na sala de aula - para tornar visível o que lá
ocorre no domínio das respostas ao Intermulticulturalismo
1
.
Assim, nesta investigação, nos propomos a analisar o currículo em ação,
no ensino fundamental, na perspectiva do Multiculturalismo Crítico (McLaren,
2000a), especificamente no que se refere à prática pedagógica docente. Estudos
no âmbito do Multiculturalismo, de autores como Peter McLaren, Vera Candau,
Carlinda Leite, Ana Canen, Antonio Flávio Moreira, entre outros, têm mostrado
que, além das determinações de classe, as questões de gênero, raça e
sexualidade interferem no gradiente da desigualdade em matéria de educação e
currículo.
A escola, aqui, é entendida como tendo um importante papel na
transformação social, não como um meio somente de ascensão, via titulação, que
beneficia mais determinadas pessoas ou grupos sociais, mas como mobilizadora
da práxis, como nos alerta Paulo Freire (1979).
Considerando que vivemos em uma sociedade capitalista, na qual a
globalização da economia tem sido um elemento central para o gerenciamento e
organização social reforçando e, algumas vezes, criando grupos marginalizados e
excluídos socialmente, destacamos a relevância dos estudos que envolvem a
relação entre o currículo praticado e as diferenças de etnia/raça, gênero e classe
social presentes em nossas escolas. Neste sentido, Silva (1999) ressalta que as
questões de currículo devem ser tratadas levando-se em conta o contexto social e
político, que hoje é fortemente influenciado pelo mercado. Neste cenário, o
currículo tem posição estratégica porque é o espaço onde se concentram e se
desdobram as lutas em torno dos diferentes significados sobre o social e o político
(ibid, p.10).
1
Optamos, neste trabalho, pela utilização do termo “intermulticulturalismo”, que compreende tanto a
constatação das diversas culturas na sociedade, como a interação que existe entre elas. Os termos
multiculturalismo e interculturalismo aparecem no texto conforme a utilização por parte dos autores.
10
No estudo que aqui apresentamos, o currículo é entendido como tudo
aquilo que é prescrito, mas também como tudo aquilo que é vivido na escola e na
sala de aula. A nosso ver, e com base no referencial aqui adotado, é a conjugação
entre o currículo prescrito e o currículo em ação que pode contribuir para a
manutenção e/ou para a mudança dos processos de exclusão.
No quadro do que temos vindo a afirmar, o olhar que lançamos sobre as
questões do currículo e da multiculturalidade nos tem remetido a algumas
indagações: que práticas pedagógicas podem contribuir para viabilizar uma
sociedade de inclusão
2
? Que lugar têm em sala de aula as diferenças, relativas à
etnia, gênero e classe social? Como são compreendidas e trabalhadas pelos/as
professores/as? Essas diferenças constituem fatores potenciadores de
enriquecimento ou obstáculos ao exercício docente e ao modo como os
professores realizam a formação dos/as alunos/as?
A par dessas indagações, vimos constatando um crescimento da atenção
envolvendo a prática pedagógica e as diferenças culturais nos últimos anos. No
entanto, Anhorn (2004), analisando a incorporação das questões relativas ao
Intermulticulturalismo pelo campo da Didática, indica que poucos trabalhos têm
enfrentado os desafios que o cotidiano da prática pedagógica escolar coloca,
sendo mais freqüentes os trabalhos referentes a concepções que envolvem o
Multiculturalismo na sua realidade, em sua relação com a exclusão.
Neste mesmo sentido, as análises desenvolvidas por Moreira (2001), a
respeito da recente produção sobre currículo e Multiculturalismo no Brasil,
também apontam no sentido da necessidade do desenvolvimento de pesquisas
envolvendo a prática pedagógica no âmbito das disciplinas escolares. É
correspondendo a este chamado que nos propomos a analisar o currículo em
ação dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Assim, procuramos nesta
pesquisa responder a seguinte questão: o que a análise do currículo em ação
aponta no que se refere à atenção à multiculuralidade revelada na prática
pedagógica de professoras das séries iniciais do Ensino Fundamental?
O nosso objetivo, como atrás já apontamos, é identificar aspectos da
prática pedagógica que podem contribuir para a regulação e/ou para a
2
O termo Inclusão é utilizado aqui de maneira ampla, referindo-se a uma sociedade que garanta
oportunidades iguais para os grupos que são excluídos socialmente.
11
emancipação social, discutindo-os a partir dos estudos sobre o Multiculturalismo
Crítico (McLaren, 2000a).
É nossa intenção questionar práticas que foram naturalizadas na educação
escolar e em sala de aula e as que se apresentam como emancipatórias
(progressistas), que indicam a possibilidade de desenvolvimento de uma
educação referenciada no caráter Intermulticultural da sociedade, visando a
igualdade social. Temos, assim, como objetivos específicos de pesquisa:
Identificar e analisar as práticas pedagógicas que são voltadas à
emancipação e/ou à regulação social;
Analisar as situações em que são evidenciadas as questões relativas às
diferenças de gênero, classe social e etnia, em sala de aula, como parte
do currículo em ação, na perspectiva do Multiculturalismo Crítico;
Identificar e analisar as concepções que fundamentam o trabalho das
professoras com relação às diferenças em sala de aula.
Os termos regulação e emancipação foram usados por Santos (2002) para
explicar as bases do paradigma da modernidade. Segundo o autor, esse
paradigma comporta duas formas de conhecimento: o conhecimento-
emancipação, que compreende uma trajetória entre um estado de ignorância para
um estado de saber (colonealismo para solidariedade), e o conhecimento-
regulação, que progride do caos para a ordem. Esses dois modelos devem se
articular em equilíbrio dinâmico, mas com o predomínio da lógica de racionalidade
cognitivo-instrumental da ciência e tecnologia o:
conhecimento-regulação conquistou a primazia sobre o
conhecimento emancipação. Este desequilíbrio a favor do
conhecimento-emancipação permitiu a este último recodificar nos
seus próprios termos o conhecimento-emancipação. Assim, o
estado de saber no conhecimento-emancipação passou a estado de
ignorância no conhecimento-regulação (a solidariedade foi
recodificada como caos) e, inversamente, a ignorância no
conhecimento-emancipação passou a estado de saber no
conhecimento-regulação (o colonealismo foi recodificado como
ordem) (SANTOS, 2002, p. 79).
Santos (2002) considera que as análises envolvendo esses temas devem
tomar como ponto de partida a tensão dialética entre regulação e emancipação,
considerando a dinâmica que as caracteriza. Argumenta, ainda, que trata de
12
emancipações no plural, porque essa transformação do conhecimento-regulação
para o conhecimento-emancipação assume características diferentes, requer
coligações progressistas e está sujeita a diferentes ritmos nos diferentes espaços
estruturais. A transformação resulta da substituição gradual da dinâmica de
desenvolvimento dominante pela dinâmica emergente. É essa possibilidade de
transformação que queremos destacar nas práticas pedagógicas desenvolvidas
nas escolas, tendo o Multiculturalismo Crítico como base para a discussão dessas
situações, lembrando que, como aponta Oliveira (2003), não há nem propostas
nem práticas que possam ser identificadas totalmente com a regulação ou com a
emancipação.
O início do interesse por esta pesquisa
O interesse pelo desenvolvimento da temática aqui apresentada teve sua
origem em leituras realizadas durante um estágio
3
na disciplina Currículos e
Programas
4
. Os estudos então realizados, iniciaram-nos no contato com uma
linha teórica e um campo de ação coerente com nossos pensamentos a respeito
de diversas questões sociais. Portanto, optamos por desenvolver este trabalho na
linha do Multiculturalismo Crítico.
Após realizarmos uma pesquisa, ainda no Mestrado
5
, na área de formação
de professores, na qual analisamos as dificuldades enfrentadas no início da
carreira, levantamos várias questões principalmente com relação ao trabalho com
os conteúdos. Sentimos necessidade de ampliar o foco de pesquisa considerando
também as relações entre as situações em sala de aula e o contexto maior, que
envolve a estrutura política, econômica e cultural da sociedade.
Desta forma, destacamos que o caráter político da educação, na acepção
de Giroux (2003), seja na elaboração das políticas públicas ou nas situações do
3
Atividades Complementares de Teoria e Prática em Ensino Superior – disciplina oferecida pelo Programa
de Pós-Graduação em Educação, UFSCar, e cursada por mim no 2º. semestre de 2003.
4
Disciplina do curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade Federal de São Carlos.
5
CORSI, Adriana M. (2002). O início da construção da profissão docente: analisando dificuldades
enfrentadas por professoras de séries iniciais. Dissertação de Mestrado. PPGE – UFSCar.
13
cotidiano de sala de aula, configura-se importante elemento para nossas análises
sobre as situações vivenciadas por professoras/es e alunas/os nas escolas.
Trabalho empírico e campos de pesquisa
Os anos iniciais do Ensino Fundamental foram escolhidos como campo de
análise para esta pesquisa por configurarem um período importante na construção
da identidade dos alunos. É nesse período também que muitos alunos passam
por uma classificação quanto às suas possibilidades ou não de aprendizagem,
compondo um quadro que alguns autores denominam como efeito funil (Leite,
2002, p.35). Desta forma, optamos por desenvolver este estudo em duas salas de
aula do primeiro segmento do Ensino Fundamental, uma no início (1a. série) e
outra no final (4a. série)
6
.
A coleta de dados foi realizada por meio de observações na escola,
predominantemente em sala de aula, e entrevistas com as professoras. Foram
realizadas trinta sessões de observação em cada sala, sendo que na 1ª série
essas observações foram distribuídas durante o 1º semestre de 2004. Na 4ª
série, as observações ocorreram durante o segundo semestre do mesmo ano.
À época da coleta de dados, a 1a. série pertencia a uma Escola Estadual
localizada em um bairro semi-periférico (não está localizado no centro da cidade
mas também não é distante dele) que recebia alunos das quatro séries iniciais do
Ensino Fundamental, no período da manhã e da tarde. Era uma escola pequena,
com oito salas de aula, uma biblioteca que funcionava juntamente com a sala
pedagógica, uma sala para os professores, cozinha, sala da diretoria e secretaria.
Não havia quadra esportiva, somente um pátio no qual as crianças brincavam
durante o recreio e faziam as aulas de Educação Física.
Por ser uma escola que pouco aparecia nas pesquisas desenvolvidas na
Universidade e localizar-se relativamente perto de nossa casa, nos dirigimos até
lá para verificar a possibilidade de realizar o estudo em uma das salas de primeira
série. Assim, conversamos com a Coordenadora Pedagógica da escola que se
prontificou a falar com as professoras. Explicamos que, em sala de aula, nossa
6
Quando realizamos esta pesquisa ainda não havia sido determinado o Ensino Fundamental de 9 anos, por
isso utilizamos a nomenclatura série em alguns casos.
14
atenção estaria voltada especialmente às práticas pedagógicas e às situações
envolvendo as categorias de raça/etnia, gênero e classe social e que esses dados
seriam coletados por meio de observações e entrevistas.
Após alguns dias, voltamos à escola e a Coordenadora disse que uma
professora havia demonstrado interesse em receber alguém em sua sala. Falou
também que nesta sala havia um aluno com muitas dificuldades de aprendizagem,
e que poderíamos fazer uma avaliação com ele para desenvolvimento de algum
trabalho. Dissemos que seria possível acompanhar o aluno nas atividades durante
o período que lá estivéssemos. Desta forma, passamos a desenvolver a pesquisa
nesta 1a. série. No primeiro dia de observação, conversamos brevemente com a
professora que se mostrou receptiva, não demonstrando constrangimento com
nossa presença.
Segundo a Coordenadora Pedagógica, a maioria dos alunos da escola
morava nas proximidades desta e pertencia às classes média-baixa e baixa.
Os critérios para escolha da professora de 4a. série foram diferentes.
Sabíamos previamente que esta professora desenvolvia o trabalho pedagógico
com atenção às questões relativas às diferenças. Esse fato foi indicado pela
própria professora, ao relatar e analisar, em sua dissertação de mestrado, sua
própria prática docente. Assim, entramos em contato com ela, que nos solicitou
uma explicação a respeito do tipo de dados em que estávamos interessadas e a
respeito do Multiculturalismo Crítico.
Além de uma breve explicação, entregamos à professora uma cópia do
projeto que estávamos desenvolvendo e de um artigo escrito por Candau (2002)
sobre o tema da pesquisa.
A referida 4ª série pertencia a uma Escola Municipal, que ocupava um
prédio novo na periferia da cidade. Era uma escola também pequena em termos
de número de salas, mas que ocupa um espaço físico maior que a outra escola,
com oito salas de aula, cozinha, sala de vídeo, secretaria, sala de professores e
diretoria. Possuía uma quadra de esportes, um grande pátio e um espaço coberto
onde ficavam as mesas de merenda. No ano em que estávamos desenvolvendo
esta pesquisa foi inaugurada uma grande biblioteca no pátio da escola, que
poderia ser utilizada pelas pessoas da escola e do bairro. Além dos livros e de
lugares para leitura, havia também uma sala de vídeo e outra com computadores.
15
Nesta sala de 4ªa série estudavam 30 alunos. Segundo a professora, a
maioria deles morava no próprio bairro e pertencia às classes média-baixa e
baixa.
Estrutura do trabalho
Nesta investigação, desenvolvemos análise do currículo em ação, mais
especificamente no que se refere à prática pedagógica de duas professoras, com
base no referencial do Multiculturalismo Crítico. Com essa análise, procuramos
identificar práticas que se distanciam e que se aproximam de uma educação
referenciada no Intermulticulturalismo, compreendendo esta como meio de
emancipação social.
Consideramos relevante realizar este trabalho de análise a partir da
contextualização política, econômica e cultural de nossa sociedade hoje, ou seja,
procurando compreender as relações entre currículo e Multiculturalismo dentro do
sistema capitalista, em face da globalização. Queremos ressaltar, no entanto, que
não concebemos as questões culturais condicionadas exclusivamente pelo
sistema capitalista, mas também não podemos minimizar sua influência nas
questões que envolvem a desigualdade, a opressão, a diferença, a eqüidade etc.
Tendo em vista essas questões, organizamos o presente trabalho da
seguinte maneira:
No Capítulo 1 apresentamos, inicialmente, um breve histórico da
globalização e, em seguida, um quadro teórico envolvendo cultura,
Multiculturalismo Crítico e as categorias de gênero, classe social e etnia;
A articulação das discussões anteriormente citadas e o currículo são
apresentados no Capítulo 2. Tecemos um quadro teórico no campo
curricular, buscando mostrar a relação entre currículo em ação e o
Multiculturalismo;
No capítulo 3 caracterizamos a metodologia de investigação deste
trabalho, destacando a observação e entrevista como instrumentos de
pesquisa e a análise de conteúdo como tratamento dos dados;
16
Os dados das 1ª e 4ª séries, assim como suas análises, são
apresentados separadamente nos Capítulos 4 e 5, respectivamente;
Por fim, tecemos as considerações finais, tendo em conta os
pressupostos iniciais, o quadro teórico de referência, os dados
recolhidos no trabalho empírico e suas análises.
17
Capítulo 1
Neste capítulo apresentamos um breve histórico da globalização e, em
seguida, um quadro teórico envolvendo cultura, Multiculturalismo Crítico e as
categorias de gênero, classe social e etnia.
Seu objetivo é o de discutir alguns aspectos do contexto social, político e
econômico no qual a educação está inserida. É esse contexto que influencia
fortemente, quando não determina, a elaboração de políticas públicas para a
educação e, conseqüentemente, o currículo formal e real das escolas. São novos
modelos que, em essência, apontam uma interferência mínima do Estado nas
questões sociais, com baixos investimentos levando a novas formas de
organização de setores sociais, como a educação, saúde, trabalho etc. Um
exemplo dessas mudanças pode ser observado no Ensino Público Superior, que,
aos poucos, está se adaptando ao novo modelo neoliberal global por meio de
convênios com empresas, ampliação do ensino a distância etc. Interessa-nos
aqui, compreender como esse contexto social, político e econômico se relaciona
com a prática pedagógica em sala de aula.
A continuidade, ou aprofundamento, das hierarquias pautadas em
desigualdades sociais ainda serve como base para concepções de sociedade e
educação de muitos educadores sendo que, atualmente, esses aspectos se
tornam mais marcantes com a concorrência em todos os setores de trabalho
devido ao subemprego e ao desemprego. O conhecimento também passa a ter
um novo papel para o mercado: além de se aproximar muito de um conjunto cada
vez maior de informações técnicas, torna-se também um “produto”, no qual as
pessoas investem muito para que possam garantir bons rendimentos no futuro.
Esses fatores influenciam a prática pedagógica, principalmente com a
naturalização de processos que tendem a adequar os diferentes grupos a
determinadas posições sociais.
Mais uma vez, afirmamos nossa convicção na possibilidade de mudança
social e educacional, considerando para tanto, a necessidade da integração de
estudos micro e macro sociais. A construção de práticas pedagógicas de
orientação crítica, que não aceitem a suposta “naturalidade” das desigualdades
sociais, é uma necessidade premente. Os estudos do Multiculturalismo Crítico têm
18
contribuído para compreensão das práticas educacionais atuais e para a
construção de novos modelos que se contraponham ao neoliberalismo
7
e à sua
sede de mercado consumidor.
1.1. Globalização e educação
Analisar as influências da globalização em nossa sociedade, em especial
na educação, configura-se como algo complexo devido a seu dinamismo.
Também é um tema importante por sua influência nas mudanças sociais, políticas,
econômicas e culturais.
Como todo modelo político e econômico, a globalização neoliberal tem
características que podem ser consideradas boas e outras ruins, dependendo da
perspectiva em que é analisado.
Burbules e Torres (2004) entendem que as mudanças que vivenciamos
com a globalização podem ser mais justas e eqüitativas. Para tanto, é necessário
que se entenda a força das diferentes tendências a as implicações para moldar e
limitar as escolhas disponíveis, resistindo também à retórica da inevitabilidade
para prescrição de certas políticas.
De acordo com os autores, a reestruturação econômica, que teve início na
década de 1970, caracteriza-se pela descrença no valor do Estado de bem-estar
social. O Estado, aliando-se ao capital, afasta-se de seu papel como árbitro entre
trabalho e capital. Essa visão difere de outras que entendem que o Estado
continua sim como árbitro entre o trabalho e o capital, mas com a diferença de
que agora faz somente a defesa do capital, garantindo maiores lucros para a
burguesia.
A reestruturação econômica gerada com a globalização levou a reduções
orçamentárias que afetam fortemente o setor público, com a diminuição das
responsabilidades sociais do Estado e uma crescente privatização dos serviços
sociais, de saúde, habitação e educação:
7
Goran Therborn (1995) define o neoliberalismo como uma superestrutura ideológica e política que
acompanha uma transformação histórica do capitalismo moderno (p.39). A globalização neoliberal envolve
a forma como essa superestrutura se realiza materialmente.
19
Verifica-se uma reestruturação da relação Estado/trabalhador, de
modo que o salário social (gastos públicos distribuídos na forma de
benefícios sociais) diminuiu às custas de salários individuais. Como
resultado disso, a sociedade foi segmentada em dois setores: um
protegido ou incluído pelo Estado, e outro desprotegido e excluído.
A reestruturação econômica levou a um modelo de exclusão que
deixa de fora setores amplos da população, particularmente as
mulheres que vivem na pobreza em países desenvolvidos e em
desenvolvimento (BURBULES e TORRES, 2004, p. 14).
Burbules e Torres (2004) afirmam que essas mudanças na economia
levaram a uma crescente proletarização e desespecialização do emprego. Mesmo
que a alta tecnologia apresente solução para muitos problemas, ela não contribui
para elevar o padrão de vida da maioria das pessoas:
[…] com a implementação de políticas neoliberais, o estado omitiu-
se de sua responsabilidade de administrar os recursos públicos
para promover a justiça social, a qual está sendo substituída por
uma fé cega no mercado e pela esperança de que o crescimento
econômico gere um excedente para ajudar o pobre, ou que a
caridade privada assuma aquilo que os programas estatais deixam
de fora (BURBULES e TORRES, 2004, p. 15).
Não há consenso na literatura quanto à origem do processo de
globalização. Burbules e Torres (2004) apontam que a origem da globalização é
localizada por alguns autores no período seguinte à crise do petróleo, entre 1971
e 1973. Outros a localizam há mais de um século, com as mudanças nas
tecnologias de comunicação, nos padrões de migração e nos fluxos de capital.
Os autores indicam duas características da globalização como positivas: a
globalização da democracia e a expansão e prevalência dos direitos humanos.
Dentre os males, os autores destacam: o desemprego estrutural, a erosão da
mão-de-obra organizada como força política e econômica, a exclusão social e um
aumento no abismo entre ricos e pobres dentro das nações e, especialmente, ao
redor do mundo.
O termo democracia deve ser usado com certo cuidado. Apple (2004), que
considera o neoliberalismo uma das maiores forças no contexto global, destaca
que a relação entre democracia e consumo passa a ter maior destaque com as
mudanças econômicas:
20
Para os neoliberais, o mundo, em essência, é um vasto
supermercado. A escolha do consumidor é a garantia da
democracia. Com efeito, a educação é vista simplesmente como
mais um produto do mesmo modo que o pão, o carro e a televisão.
Voltando-se para o mercado por meio de vales e planos de opções,
ela será amplamente auto-regulada. Assim, a democracia é
transformada em práticas de consumo. Dentro desses planos, o
ideal do cidadão é o do comprador. Os efeitos ideológicos disso são
diversos. Em vez de a democracia ser um conceito político, ela é
transformada em um conceito inteiramente econômico. A
mensagem desse tipo de política é o que pode ser mais bem
chamado de particularismo aritmético, no qual se tira do indivíduo
desapegado – como consumidor – sua raça, sua classe e o seu
gênero (APPLE, 2004, p.47).
Assim, segundo Apple (2004), o neoliberalismo transforma a própria idéia
que temos de democracia, fazendo dela apenas um conceito econômico, e não
um conceito político.
Anderson (1995) indica algumas idéias que caracterizam a política
neoliberal: a do perigo da regulação do mercado por parte do Estado; a de que os
sindicatos possuem um poder excessivo e nefasto; a de que o Estado deve ser
forte para romper o poder dos sindicatos e para o controle do dinheiro
(estabilidade monetária, disciplina orçamentária, contenção de gastos com bem-
estar e restauração da taxa “natural” de desempregados).
No Brasil, as mudanças neoliberais tiveram início há pelo menos duas
décadas e seguem atualmente mesmo com o governo exercido por políticos de
diferentes partidos.
Dados do IBGE (BRASIL, 2006) demonstram claramente que nada, ou
quase nada, tem melhorado no país com relação à desigualdade social nos
últimos dez anos. Isso se reflete em vários setores como saúde, educação,
moradia, emprego/desemprego etc. Os dados apresentados revelam ainda uma
profunda desigualdade entre as regiões do país. É assustador o quadro
apresentado no relatório com relação às regiões Norte e Nordeste:
O Brasil, em 2005, contava com cerca de 14,9 milhões de pessoas
de 15 anos ou mais analfabetas, segundo dados da PNAD daquele
ano, correspondendo a 11% da população. [...] A disparidade entre
as taxas de analfabetismo dos estados brasileiros é bastante
significativa. As taxas mais elevadas foram encontradas no
Nordeste, 29,3% em Alagoas e 27,4% no Piauí, situação
semelhante se comparadas com as taxas de 1995 [...].
Quando se amplia o conceito de analfabetismo para “analfabetismo
funcional” (pessoas com menos de quatro anos de estudo),
21
conceito, segundo a Unesco, mais adequado para se avaliar a
realidade social do mundo moderno, o número de pessoas nestas
condições cresce significativamente e a taxa alcançava 23,5%, em
2005. Entre 1995 e 2005, os resultados mostram redução, mas as
desigualdades regionais continuam muito acentuadas
(BRASIL/IBGE, 2006, p.56).
Com relação à defasagem escolar ano/série, o mesmo relatório aponta
uma melhoria entre 1995 e 2005, principalmente no Sudeste.
No entanto, devemos considerar a forma questionável como foi
implementada a política de progressão continuada nas escolas do Estado de São
Paulo e o seu peso na redução dos números dessa defasagem.
Segundo o relatório, a escolaridade média da população em 2005 ficou em
torno de 7 anos, sendo que as pessoas com maiores rendimentos atingiram 10
anos de estudo. O rendimento familiar aparece como um fator importante para o
aumento da escolaridade da população.
Com relação à “ocupação”, o relatório aponta um aumento da atividade
(emprego), principalmente na população com nível escolar entre 9 e 11 anos de
estudo. Por outro lado, houve aumento no número geral de “desocupados” e
queda de rendimento:
Com relação à desocupação, em 2005 a taxa atingia 9,3% da
população economicamente ativa, enquanto, em 1995, era de 6,1%
da PEA. Apesar da taxa de desocupação em 2005 ser maior que
em 1995 em todos os grupos etários, foram nas faixas etárias de 10
a 17 e 18 a 24 anos que se observou as maiores variações:
aumentos de 87% e 68%, respectivamente. [...] Nesse sentido, a
elevada taxa de desocupação entre os jovens revela não somente
um aumento da procura por trabalho, mas também uma baixa
capacidade da economia de absorver essa mão-de-obra qualificada
(com médias de anos de estudo próximas à da população adulta
que era de 7 anos) porém considerada pouco experiente
(BRASIL/IBGE, 2006, p.85).
Essa falta de perspectiva de trabalho para a juventude pobre pode ser um
dos motivos que contribui para a violência, para o desinteresse na escola, etc.,
devendo ser considerado tanto na elaboração de políticas públicas como na
prática educacional:
Levando-se em conta que o rendimento familiar per capita é uma
variável importante para determinar o nível de bem-estar das
crianças, na medida em que o estado brasileiro não garante
22
universalmente os serviços básicos de saúde, educação e
habitação, verificou-se que uma parcela significativa dessas
crianças com até 14 anos (cerca de 40%, em 2005) viviam em
famílias cujo rendimento não ultrapassava ½ salário mínimo per
capita; situação que era ainda maior entre as crianças de até 6 anos
de idade (44,1%). [...] Ao comparar os dados de 1995 e 2005
observou-se que a situação dessas crianças pouco se alterou nos
últimos dez anos, com ligeiro aumento de 1 ponto percentual
nessas proporções (BRASIL/IBGE, 2006, p.186).
Os dados revelam que a política neoliberal adotada no Brasil não tem
contribuído para uma maior igualdade social entre as pessoas. Tem, na realidade,
aumentado o abismo entre pobres e ricos como é possível observar, por exemplo,
com os recordes de lucro que todos os anos os banqueiros atingem, como
publicado na página do jornal Estado de São Paulo, na internet, dia 12/03/2007
8
.
A globalização neoliberal ainda é um processo que estamos vivenciando, o
que não impede de analisarmos os rumos que esta nova ordem global tem
tomado em diferentes lugares do mundo e de questionar os nexos entre esta fase
do capitalismo e a educação, o trabalho, o lazer, as relações humanas etc. Com
relação à educação, vários questionamentos podem ser feitos: que papel a escola
está desempenhando diante das transformações que a globalização tem
engendrado na sociedade? O que os educadores pensam sobre essas mudanças
e o que a educação tem feito em relação a elas? Que perfil é exigido das pessoas
para que se integrem a este sistema? Quem são os excluídos desta nova ordem?
É possível reformar o capitalismo e suas várias faces, tornando-as mais sensíveis
às questões humanas? Essas são questões amplas, cujas respostas requerem
estudos específicos e numerosos. No entanto, devem estar sempre em mente
quando analisamos as questões educacionais, pois nos orientam quanto aos
caminhos a serem trilhados. É dessa forma que elas aparecem no presente
trabalho: como pano de fundo para pensar as relações entre as práticas
pedagógicas e o contexto social.
Alguns autores apontam a existência de uma nova geografia da exclusão,
com a emergência do Quarto Mundo, resultante das mudanças causadas pela
globalização neoliberal:
[…] No contexto da globalização, o afastamento do locus do poder e
de tomada de decisão do estado erode a capacidade dos grupos
8
www.folha.com.br
23
marginalizados de entenderem os processos estruturais que
determinam o seu destino. Esses grupos marginalizados são os
menos capazes de lutarem por si mesmos contra os fluxos e as
pressões globais por ajuste estrutural. Nesse sentido, as novas
categorias de oprimidos não estão em posição de levar vantagem
sobre as formas de identidade reflexiva que têm sido alardeadas
como um traço definidor da alta modernidade (ou pós-modernidade)
[…] (RAYMOND e TORRES, 2004, p.41).
Segundo Apple (2003), as reformas no setor educacional são lideradas
pelos grupos neoliberais, que representam um poderoso elemento da restauração
conservadora, na qual predomina a visão de Estado fraco. De acordo com essa
visão, é considerado bom o que é privado e ruim o que é público.
Um aspecto preocupante a longo prazo, segundo Apple (2005), são as
implicações dos processos e das ideologias individualizantes, que caracterizam a
política neoliberal, e seus efeitos sobre as necessidades de mobilizações sociais
maiores, que apontem para transformações reais na esfera pública.
A versão neoliberal da globalização, segundo Burbules e Torres (2004),
reflete-se em uma agenda educacional que impõe, de modo direto, determinadas
políticas de avaliação, financiamento, padrões, formação de professores,
currículo, instrução e testes:
Este processo de privatizar a educação está ocorrendo no contexto
de novas relações e arranjos entre nações, caracterizado por uma
nova divisão global do trabalho, uma integração econômica de
economias nacionais (mercados comuns de livre-comércio e assim
por diante), a crescente concentração do poder em organizações
supranacionais (como banco Mundial, o FMI, a ONU, a União
Européia e o G-7), e aquilo que chamamos de internacionalização
do Estado (BURBULES e TORRES, 2004, p.15).
Os autores apontam algumas conseqüências da globalização para as
políticas educacionais:
No nível econômico, porque a globalização afeta o emprego, ela
afeta um dos objetivos tradicionais básicos da educação: a
preparação para o trabalho. As escolas deverão reconsiderar essa
missão à luz de mercados de trabalho instáveis, em um ambiente
de trabalho pós-fordista; novas habilidades e a flexibilidade de
adaptar-se a novas demandas do trabalho e, portanto, mudar de
emprego durante o decorrer da vida; e lidar com uma mão-de-obra
internacional cada vez mais competitiva. Ainda assim, as escolas
não estão apenas preocupadas em preparar os estudantes como
produtores; cada vez mais, as escolas ajudam a moldar as atitudes
e práticas do consumidor, encorajadas pelos patrocínios
24
empresariais para instituições educacionais e para produtos
curriculares e extracurriculares que confrontam os estudantes em
seu cotidiano na sala de aula. Essa crescente comercialização do
ambiente escolar tem-se tornado notavelmente impudente e
explícita em suas intenções (BURBULES e TORRES, 2004, p. 22-
23).
Um dos efeitos ideológicos da política de custo-benefício que vem sendo
implementada, com o mercado como árbitro do mérito social, segundo Apple, é o
fracasso continuado em interromper as crescentes desigualdades nos recursos e
no poder:
A competição global molda as discussões públicas sobre políticas e
práticas educacionais. Testes reducionistas e propostas de
responsabilidade, o constante corte de custos, a mercantilização,
elos mais íntimos entre a educação e a economia e tantas coisas
mais são feitas de forma a parecerem inevitáveis. Os discursos
conservadores são naturalizados pelas realidades da competição
global (APPLE, 2004 , p.50).
O autor acrescenta, ainda, que é importante compreender a maneira como
essa naturalização é discursivamente construída: por meio da despolitização dos
discursos sociais. Apoiando-se em Fraser, Apple (2004) ressalta que os discursos
sobre necessidades são retraduzidos na linguagem do mercado e de políticas de
motivação privada. Cita como exemplo, a tentativa de impedir que questões como
agressão física doméstica invadam o discurso político, tentando, assim defini-la
como uma questão apenas familiar.
Há que se reconhecer, como apontam Burbules e Torres (2004), que,
mesmo diante dessa gigantesca onda global, existem muitos focos de resistência.
Um deles é atribuído, por Morrow e Torres (2004), aos sindicatos dos
professores que servem como obstáculo à adaptação dos sistemas educacionais
ao imperativo da economia global que requer trabalhadores que se adaptem a
flexibilidade dos regimes de trabalho e a insegurança dos empregos, o que tem
implicações profundas para as funções exercidas em instituições educacionais.
A atual situação social, política e econômica é comparada por Apple (2003)
a um mapa rodoviário:
O uso de uma palavra-chave – mercados – coloca você numa via
expressa que vai numa direção e que tem saídas em certos lugares,
mas não em outros. Se você está numa via expressa chamada
mercado, sua direção geral leva a uma parte do país chamada
25
economia. Você toma a saída intitulada individualismo que leva a
uma outra estrada chamada opção do consumidor. Saídas com
palavras como sindicatos, liberdade coletiva, o bem comum, política
e outros destinos semelhantes são evitadas, quando chegam a
existir no mapa [...] (APPLE, 2003, p.12).
Como professores, podemos orientar nossa prática pedagógica de acordo
com o novo modelo de mercado ou procurar criar caminhos que valorizem as
relações humanas e o conhecimento voltado para a emancipação. No entanto,
essa opção não é simples, pois existem muitas variáveis que interferem na
construção dos significados, como a própria formação profissional, experiências
pessoais, os meios de comunicação, religião etc.
A escolha individual e o indivíduo autônomo são, segundo Giroux (2003), o
foco das pedagogias que, em tempos de neoliberalismo, acompanham a
celebração da lógica de mercado. Em detrimento da pluralidade, da igualdade e
do conhecimento que possibilite articular o aprendizado com a justiça social, os
neoliberais e conservadores colocam a realização individual como alvo de
excelência.
Nos últimos anos, os estudos envolvendo educação e o contexto social,
político e econômico local e mundial têm dado grande relevância aos aspectos
culturais. As questões referentes à etnia, classe, gênero e outras minorias
9
estão
sempre presentes nas práticas sociais, que são marcadas também por disputas
assimétricas de poder e por processos de dominação.
Segundo Candau et al. (2002), nosso mundo hoje está marcado pela:
fluidez de fronteiras no sentido econômico e cultural. Trata-se de
um cenário complexo, com muitos sons e vozes, e processos de
profunda desigualdade social. Este cenário levanta muitas questões
na área educacional. A Globalização representa hoje uma postura
hegemônica, mas tem recebido críticas a partir das recentes crises
no mercado financeiro internacional e do crescimento visível dos
níveis de pobreza e exclusão em todos os países (CANDAU et al,
2002, p. 14).
9 Como aponta Candau et al. (2002, p.77), apoiada em Chinelli, “minoria seria um grupo de pessoas que em
virtude de suas características físicas e culturais, são afastadas de outras na sociedade em que vivem por um
tratamento diferencial e desigual sendo, portanto, objeto de discriminação. Para que exista uma minoria numa
sociedade, supõe-se a existência de um grupo dominante que desfruta de status social mais alto e maiores
privilégios. Dessa forma, o status de minoria carrega consigo a exclusão de participação plena na vida social
que é privilégio do grupo hegemônico. (...) as categorias minoria/maioria são produções históricas e sociais”.
26
Os autores ressaltam que para que a globalização possa mostrar seus
resultados que estão estritamente ligados ao mercado de bens de consumo, com
o barateamento do preço de determinados bens e seu acesso a uma parcela
maior da população, ela necessita adequar os países política, social e
economicamente a seus princípios, levando ao crescimento do desemprego, ao
desinvestimento econômico, à fragilização da pesquisa científica autônoma e à
elitização do ensino.
Candau et al. (2002) apresentam duas temáticas relacionadas à educação
num cenário de globalização. Uma delas é a da qualidade do ensino, que envolve
aspectos econômico, político e tecnológico, destacando um novo perfil da mão-de-
obra norteada pela lógica do mercado ampliado e acumulação de capital, e a
escolha de projeto político e social de sociedade que dimensiona o significado de
qualidade. A outra temática é da diversidade cultural, que compõe um campo de
tensões e conflitos entre o que é universal e o que é particular. De acordo com os
autores, essas questões estão diretamente ligadas ao currículo quando se
questiona sobre qual é o perfil de cidadão que a escola pode e deve contribuir a
formar num mundo de identidades plurais, marcado pela globalização e, ainda,
sobre a capacidade da escola de absorver e trabalhar as diferenças culturais.
Os autores destacam que as mudanças sociais, com o descentramento e
enfraquecimento do referencial nacional, se traduziriam, no plano cultural, pelo
aparecimento de múltiplas identidades – identidades comunitárias, locais,
regionais, supranacionais – que influem na constituição das identidades
individuais e coletivas. O sujeito não é mais definido por uma identidade unificada
e estável, mas por identidades que são contraditórias. A convivência com as
diferentes expressões culturais, de forma assimétrica, estimula movimentos de
afirmação da identidade cultural de determinados grupos, bem como provoca
processos de desestabilização e fragmentação de códigos culturais (ibid, p.20).
Levando em conta que vivemos num momento em que as pessoas são
chamadas a serem ao mesmo tempo locais e planetárias, Candau et al. (2002)
afirmam que a homogeneização cultural é uma tendência nos processos de
globalização:
Ela [a globalização] opera de forma a ‘desalojar’ as identidades
nacionais ao destinar a todo planeta o consumo de produtos que, se
não são os mesmos, pelo menos têm a mesma configuração. [...] A
27
cultura de cada povo, mesmo considerando a hibridização presente
em maior ou menor grau, processa as informações recebidas de
forma diferente. A mercantilização do mundo, que o capitalismo
potencializou e acabou por institucionalizar, quebrou barreiras, mas
não anulou as identidades culturais (CANDAU, 2002, p.41).
Segundo os autores, a globalização não acaba com as identidades
culturais, mas mantém um constante tensionamento das identidades fortes. A
cultura local, como resistência na afirmação da diferença, se contrapõe à
homogeneização cultural promovida com o desenvolvimento do mercado global.
Considerando que a identidade só se afirma diante do diferente, Candau et
al. (2002) destacam que a necessidade de conviver com o outro exige uma
relação democrática entre os grupos existentes, que permita não só a
manifestação das expressões plurais, mas que possibilite e garanta os meios para
seu desenvolvimento. Esse processo é permanente e inacabado, não visando
somente uma coexistência pacífica, mas a intenção deliberada de promover uma
relação dialógica e igualitária entre pessoas e grupos que pertencem a culturas
diferentes.
Segundo Hall (2005), as culturas nacionais ocidentais têm, em diferentes
graus, sua identidade contestada e recebem pressão das diferenças, da alteridade
e da diversidade cultural.
O autor considera que a globalização tem o efeito de contestar e deslocar
as identidades centradas e ‘fechadas’ de uma cultura nacional. Ela tem um efeito
pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variabilidade de possibilidades
e novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionais,
mais políticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas
(ibid, p.87). Entretanto, o autor destaca que o efeito geral da globalização
permanece contraditório, pois enquanto algumas identidades giram em torno da
tradição, tentando recuperar as unidades que consideram terem sido perdidas,
outras compreensões aceitam que as identidades estão sujeitas ao plano da
história, da política, da representação e da diferença, sendo improvável que
voltem a ser unitárias. Essas giram em torno do que Robins e Bhabha apud Hall
(2005) chamam de tradução:
[...] Em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não
são fixas, mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes
posições; que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de
28
diferentes tradições culturais; e que são o produto desses
complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez
mais comuns num mundo globalizado [...] (HALL, 2005, p.88).
No que diz respeito aos atores sociais, Castells (2003), entende por
identidade:
o processo de construção do significado com base num atributo
cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-
relacionados, o(s) qual(is) prevalece(m) sobre outras formas de
significado. No entanto, essa pluralidade é fonte de tensão e
contradição tanto na auto-representação quanto na ação social. Isto
porque é necessário estabelecer a diferença entre a identidade e o
que tradicionalmente os sociólogos têm denominado papel, e
conjuntos de papéis (CASTELLS, 2003, p.3).
O autor destaca que esses papéis, como ser trabalhadora, mãe, vizinha,
militante socialista etc, ao mesmo tempo, são definidos por normas estruturadas
pelas instituições e organizações da sociedade. São os acordos entre as pessoas
e as instituições e organizações que determinam a influência no comportamento:
As identidades, por sua vez, constituem fontes de significado para
os próprios atores, por eles originadas, e construídas através de um
processo de individualização. [...] Contudo, as identidades são
fontes mais importantes de significado do que os papéis, por causa
do processo de autoconstrução e individualização que envolvem.
Em termos mais genéricos, pode dizer-se que as identidades
organizam os significados, enquanto os papéis organizam as
funções. Defino significado como a identificação simbólica, por parte
de um ator social, da finalidade da ação praticada por esse ator [...]
(CASTELLS, 2003, p.3).
Castells (2003) argumenta que, do ponto de vista sociológico, podemos
dizer que toda e qualquer identidade é construída. Questiona-se, no entanto,
como, a partir de quê, por quem e para quê. Essas questões estão estritamente
determinadas por um contexto social, não sendo possível abordá-las em linhas
gerais e abstratas:
A construção de identidades vale-se da matéria-prima fornecida
pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e
reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos
aparelhos de poder e revelações de cunho religioso. Porém, todos
esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e
sociedades que reorganizam o seu significado em função de
tendências sociais e projetos culturais enraizados na sua estrutura
social, bem como na sua visão de tempo/espaço. Coloco aqui a
hipótese de que em linhas gerais, quem e para quê se constrói a
29
identidade coletiva são em grande medida os determinantes do
conteúdo simbólico dessa identidade, e do seu significado para
aqueles que com ela se identificam ou dela se excluem
(CASTELLS, 2003, p.4).
Considerando que a construção social da identidade ocorre sempre num
contexto determinado de poder, Castells (2003, p.4) propõe uma distinção entre
três formas e origens de construção de identidades:
identidade legitimadora: é introduzida pelas instituições dominantes da
sociedade no intuito de expandir e racionalizar a sua dominação sobre
os atores sociais [...];
identidade de resistência: criada por atores que se encontram em
posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da
dominação, construindo, assim trincheiras de resistência e
sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as
instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos [...];
identidade de projeto: quando os atores sociais, servindo-se de
qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova
identidade capaz de redefinir a sua posição na sociedade e de provocar
a transformação de toda a estrutura social. [...];
O autor ressalta que essas identidades não são fixas, sendo necessário
considerá-las em suas dinâmicas e dentro de determinados contextos sociais.
Essas identidades produzem resultados distintos: a identidade legitimadora dá
origem a uma sociedade civil; a identidade destinada à resistência leva à
formação de comunas, ou comunidades; a identidade de projeto produz sujeitos:
Os sujeitos não são indivíduos, mesmo considerando que são
constituídos a partir de indivíduos. São o ator social coletivo pelo
qual indivíduos atingem o significado holístico na sua experiência.
Neste caso, a construção da identidade consiste num projeto de
uma vida diferente, talvez com base numa identidade reprimida,
expandindo-se no sentido da transformação da sociedade como
prolongamento desse projeto de identidade [...] (CASTELLS, 2003,
p. 7).
Um exemplo dessa transformação deu-se, segundo o autor, na sociedade
pós-patriarcal, resultando na libertação das mulheres, dos homens e das crianças
por meio da realização da identidade das mulheres.
30
Para Moreira e Macedo (2002), a reflexão sobre o tema da identidade é
indispensável. Os autores consideram que definir nossas identidades, saber quem
somos e decidir a que grupos nos filiar são necessidades imperiosas.
Desta forma, parece importante que os educadores pensem nas
identidades que estão sendo construídas nas escolas e em quais podem construir
frente à realidade social.
A teoria pós-moderna contribui muito com uma nova visão do sujeito.
Nessa perspectiva, segundo Moreira e Macedo (2002, p.18), o sujeito é
fragmentado, descentrado, deslocado tanto do seu lugar no mundo social como
de si mesmo, composto de várias identidades, algumas contraditórias ou mesmo
não resolvidas. Com base nessa acepção, o eu mostra-se, portanto, uma
produção histórica, cultural e discursiva, um constante processo de reconstrução.
Distanciando-se da perspectiva essencialista, Moreira (2006) defende as
contribuições da concepção de identidade pós-moderna para o campo curricular,
trazendo à tona tensões e desafios a serem enfrentados. Entre eles, destaca: a
necessidade do diálogo entre as diferenças; as relações entre identidade e
subjetividade; a importância de certo grau de centramento no processo de
construção de identidades por meio do currículo; e os espaços de confinamento
que podem ser criados em experiências pedagógicas multiculturalmente
orientadas.
Considerando que as identidades estão sempre em processo, construindo-
se na e por meio da linguagem, Moreira (2006) destaca a possibilidade de criação
de contradiscursos que geram mudanças no espaço escolar, pela compreensão
do movimento de construção das identidades e pela crítica de identidades
dominantes.
De acordo com esse entendimento, o autor aponta a importância de se
analisarem conteúdos curriculares, recursos e procedimentos didáticos e artefatos
culturais, procurando-se explicitar como as identidades hegemônicas são
valorizadas e as relações de poder se expressam:
Daí a importância de se estudarem os processos quotidianos dos
contextos escolares, buscando-se entender como, nesses
processos, as ações dos sujeitos implicados, bem como os
discursos que os envolvem e constituem, estão contribuindo para a
construção de determinadas identidades sociais de raça, gênero,
etnia, sexualidade, idade, profissão [...] (MOREIRA, 2006, p. 17).
31
Entendemos que dentro de uma mesma sala os processos de construção
de identidades se dão de maneiras diferenciadas e dinâmicas, podendo ser
predominantes em algumas práticas pedagógicas, formas mais emancipatórias e
em outras formas mais conservadoras, pautadas no modelo eurocêntrico.
Tendo em vista o contexto da globalização, McLaren e Gutierrez (2000,
p.199) apontam que a pesquisa educacional deveria concentrar-se mais nas
questões relacionadas à raça, ao gênero e ao status socioeconômico e, com um
esforço mais determinado, a mudanças nas bases da exploração capitalista e na
produção cultural de trabalhadores.
Os autores argumentam a respeito da relevância de micro e macroanálises
de diferentes contextos para as pesquisas educacionais. Destacam que a
pesquisa etnográfica em sala de aula possibilita a análise de relações entre o
mais amplo e o pequeno, com uma tentativa interessada do pesquisador por
abordar a representação local de vetores mais amplos de poder e hierarquias
sociais.
Argumentam, ainda, que nesse tipo de pesquisa professor e aluno não são
considerados simplesmente efeitos passivos do discurso. O fato de que o
indivíduo é constituído dentro e através de práticas sociais que produzem
significados sugere a possibilidade de desenvolver critérios imanentes para a
ação social, baseados em um projeto histórico materialista
10
de transformação
social.
Para McLaren e Gutierrez (2000), é importante ressaltar a necessidade de
uma transformação local das escolas e salas de aula, com ruptura das hierarquias
e rearranjo das relações sociais e de poder, possibilitando a participação de fato
de professores, estudantes e famílias, historicamente excluídos, das
conversações para elaboração de políticas educacionais.
10
Os autores se referem ao Materialismo histórico dialético. Segundo o Dicionário do Pensamento Marxista,
a combinação do materialismo com a dialética modifica ambos. Bem compreendido, o materialismo do
materialismo dialético não é, como seu ancestral tradicional, reducionista. Não reduz as idéias à matéria,
afirmando sua identidade final. Sustenta, dialeticamente, que o material e o ideal são diferentes, na
realidade opostos, mas existem dentro de uma unidade na qual o material é básico ou primordial.[...]
(p.259).
32
1.2. Cultura
McLaren (1997, p.204) utiliza o termo cultura para significar os modos
particulares nos quais um grupo social vive e dá sentido às suas dadas
circunstâncias e condições de vida. Destaca que é preciso reconhecer como as
questões culturais ajudam a entender quem tem poder e como este é reproduzido
e manifestado nas relações sociais que ligam a escolarização à grande ordem
social.
Giroux (2003) considera que a cultura tornou-se o principal meio pelo qual
as práticas sociais são produzidas, circuladas e estabelecidas, recebendo, assim,
significado e importância:
A cultura torna-se política não apenas quando é mobilizada pela
mídia e por outras formas institucionais que atuam de maneira a
garantir certas manifestações de autoridade e relações sociais
legítimas, mas também como um conjunto de práticas que
representam e empregam o poder, moldando assim identidades
particulares, mobilizando uma variedade de paixões e legitimando
formas precisas de cultura política. A cultura, nesse sentido, torna-
se produtiva, inextricavelmente ligada a questões relacionadas de
poder e de protagonismo [...] (GIROUX, 2003, p.19).
Segundo Bourdieu (1992), é a tradição marxista que passa a discutir a
cultura e os sistemas simbólicos considerando-os como um instrumento de poder,
de legitimação da ordem vigente. Assim, a cultura passa a ser vista como
estrutura estruturante e não mais como estrutura estruturada, como era
compreendida anteriormente.
Candau et al. (2002) concebem a cultura como um estruturante profundo
do cotidiano de todo grupo social, não privilegiando somente as dimensões
artísticas e intelectuais. Nesta perspectiva, cultura pode ser entendida:
como tudo aquilo que é produzido pelo ser humano. Assim sendo,
toda pessoa humana é produtora de cultura. Não é apenas
privilégio de certos grupos sociais nem pode ser apenas atribuída à
escolarização formal. A cultura é um fenômeno plural, multiforme,
heterogêneo, dinâmico. Envolve criação e recriação, é atividade,
ação. É considerada também como um sistema de símbolos que
fornece as indicações e contornos de grupos sociais e sociedades
específicas. Podemos então entendê-la como código, como sistema
de comunicação [...] (CANDAU et al, 2002, p.72).
33
Falar sobre culturas hoje remete a uma discussão referente à hibridização
cultural. Segundo Candau et al. (2002), os processos de hibridização cultural são
cada vez mais intensos. De acordo com esta perspectiva, diferentes culturas se
interpenetram quando se encontram, o que não implica necessariamente exclusão
de uma ou de outra.
Segundo Hall (2003), hibridismo não é uma referência à composição racial
mista de uma população, mas é um termo destinado à lógica cultural da tradução,
que é um processo não resolvido e que nunca se completa.
Hall (2003) reforça a idéia de hibridismo como tradução com uma citação
de Bhabha:
[o hibridismo] Não é simplesmente apropriação ou adaptação; é um
processo através do qual se demanda das culturas uma revisão de
seus próprios sistemas de referência, normas e valores, pelo
distanciamento de suas regras habituais ou ‘inerentes’ de
transformação. Ambivalência e antagonismo acompanham cada ato
de tradução cultural, pois o negociar com a ‘diferença do outro’
revela uma insuficiência radical de nossos próprios sistemas de
significado e significação (BHABHA apud HALL, 2003, p. 75).
Tendo como base as concepções apresentadas pelos autores, entendemos
cultura como toda elaboração de um grupo social, que se manifesta de maneira
dinâmica e conflituosa devido à interação com outras culturas e com seu processo
intrínseco de revisão. A cultura também é um campo de disputa de poder presente
na Educação, que pode tanto legitimar o lado dominante da disputa, como
explicitar as diferentes posições, desnaturalizando práticas conservadoras e
submetendo à crítica as questões sociais.
Para Giroux (2003), a cultura ganha destaque também como força
pedagógica e sua função é fundamental para a aplicação de formas de
alfabetização dentro de diferentes esferas sociais e institucionais. Essa relação
entre cultura e pedagogia não pode ser abstraída da dinâmica central da política e
do poder:
A cultura, na perspectiva mais ampla, está sempre envolvida com o
poder e torna-se política em um duplo sentido. Em primeiro lugar,
questões de propriedade, acesso e controle são cruciais para o
entendimento do modo como o poder é empregado para regular
imagens, significados e idéias que organizam as agendas e moldam
34
a vida cotidiana. Em segundo, a cultura emprega o poder em suas
conexões com o campo da subjetividade, ou seja, ela oferece
identificações e noções de sujeito por meio de formas de
conhecimento, valores, ideologias e práticas sociais que
disponibiliza, em relação desigual de poder, para diferentes setores
das comunidades global e nacional [...] (GIROUX, 2003, p.19).
A influência do neoliberalismo nas relações sociais contribui para a
construção de determinados perfis de identidades. Essa influência produz e é
produzida pelo que Giroux (2003, p.53) denominou “cultura empresarial”, que
designa um conjunto de forças ideológicas e institucionais que funciona
politicamente e pedagogicamente para governar a vida organizacional por meio do
controle gerencial superior e para produzir trabalhadores submissos,
consumidores despolitizados e cidadãos passivos [...].
Segundo Giroux (2003), o objetivo central dessa “cultura empresarial” é que
renunciemos a nossos papéis como sujeitos sociais para sermos sujeitos
consumidores. Ressalta que a cidadania crítica não pode se limitar a ser um
consumidor alfabetizado. A educação deve ser afirmada como um projeto político,
encorajando as pessoas a ampliarem suas capacidades para compreenderem a
primazia do bem público sobre os interesses empresariais e a democracia como
tendo importância maior do que um simples espetáculo da cultura de mercado.
Pode-se entender a cultura empresarial como parte de uma categoria que
McLaren (1997) denomina cultura dominante. Essa cultura ocupa muitos espaços
sociais, domina os discursos e silencia as vozes contrárias, afirmando os valores
e interesses da classe social que controla a riqueza simbólica e material da
sociedade.
O autor argumenta que é por meio de um processo denominado
hegemonia que a cultura dominante é capaz de exercitar a dominação sobre
classes ou grupos subordinados. Essa dominação se dá não pelo simples
exercício da força, mas através de práticas sociais, formas sociais e estruturas
sociais de consenso produzidas em locais específicos como a igreja, o estado, a
escola, a mídia de massa, o sistema político e a família:
A classe dominante assegura a hegemonia – o consentimento do
dominado – fornecendo símbolos, representações e práticas da vida
social de tal maneira que a base da autoridade social e as relações
desiguais de poder e privilégio permanecem ocultas. Perpetuando o
mito de conquista e empreendimento individual na mídia, escolas,
35
igreja e família, por exemplo, a cultura dominante assegura que os
grupos subordinados, que falham na escola ou que não são bem
sucedidos no mundo dos ‘ricos e famosos’, encarem tal falha em
termos de inadequação pessoal ou ‘falta de sorte no jogo’. O
oprimido culpa a si próprio pela falha escolar – uma falha que sem
dúvida pode ser adicionalmente atribuída aos efeitos estruturais da
economia e da divisão de trabalho baseada em classes
(MCLAREN, 1997, p.207).
McLaren (1997) entende a hegemonia como um pacote cultural de
significados, por meio da qual a classe dominante fabrica sonhos e desejos tanto
para os grupos dominantes como para os dominados, fornecendo “termos de
referência” (ex. imagens, visões, histórias, idéias), com os quais todos os
indivíduos devem viver.
O autor ressalta que os significados estabelecidos dentro do processo
hegemônico são freqüentemente despidos de contradição, contestação e
ambigüidade. No entanto, em alguns locais são criados processos de resistência à
hegemonia da classe dominante, como nas escolas e outros locais sociais e
culturais onde se encontram luta e confrontação e que raramente estão
completamente subjugados pelo processo hegemônico. O autor destaca que o
desafio dos professores deve ser o de reconhecer e tentar transformar as
características opressivas do controle hegemônico que estruturam a existência
diária da sala de aula de maneiras não muito aparentes.
Os cursos de formação são fundamentais para que o/a professor/a possa
ser capaz de refletir sobre essas questões que envolvem a relação entre a prática
docente e o contexto social. A compreensão da situação política, econômica e
cultural da sociedade e a reflexão sobre as próprias concepções parecem ser
ingredientes importantes para o desenvolvimento de uma prática comprometida
com a emancipação social.
Entendemos, assim, que cultura e poder possuem uma estreita relação.
Para McLaren (1997), três pensamentos da teoria social crítica iluminam a lógica
política que baseia relações de cultura/poder:
- A cultura está intimamente conectada à estrutura de relações
sociais dentro de formações de classe, gênero e idade que
produzem formas de opressão e dependência. [...]
- A cultura é analisada não simplesmente como um modo de vida,
mas como uma forma de produção através da qual grupos
diferentes em suas relações sociais dominantes ou subordinadas
36
definem e realizam suas aspirações através de relações desiguais
de poder [...].
- A cultura é vista como um campo de batalha no qual a produção, a
legitimação e a circulação de formas particulares de conhecimento
e experiência são áreas centrais de conflito (MCLAREN, 1997,
p.204).
Para Giroux (2003), a interseção entre os estudos culturais e a pedagogia
crítica deve ser analisada de forma mais crítica, à luz das recentes intervenções
que tentam apagar a relação entre poder e a política, ou que definem a política de
forma limitada, deixando de reconhecer a maneira como estão entrelaçadas as
questões de raça, gênero, idade, orientação sexual e de classe, e a construção de
identidades, formação de valores morais e mobilização de desejo como função
pedagógica da cultura:
[...] os educadores e os demais necessitam repensar as maneiras
em que a cultura se relaciona com o poder e como e onde ela
funciona simbólica e institucionalmente como uma força
educacional, política e econômica. A cultura é o terreno da
contestação e da acomodação, assim como o local onde os jovens
e outras pessoas imaginam sua relação com o mundo; ela produz
as narrativas, as metáforas e as imagens para construir e exercer
uma poderosa força pedagógica sobre a maneira como as pessoas
pensam a respeito de si mesmas e de seu relacionamento com os
outros [...] (GIROUX, 2003, p. 155).
Levantar questões sobre como a dominação e a resistência realmente
operam, sobrevivem e são mobilizadas, e como elas empregam o poder e são,
elas próprias, a expressão do poder, é o que Giroux (2003) considera tornar o
político mais pedagógico.
E educação política significa para o autor: reconhecer que o protagonismo
humano é condicionado e não determinado; reconhecer que as escolas e outros
espaços culturais não podem abstrair-se das condições sócio-culturais e
econômicas de seus estudantes, de suas famílias e de suas comunidades;
ensinar os estudantes a correr riscos, fazer perguntas, desafiar aqueles que estão
no poder, honrar tradições críticas e ser reflexivo a respeito da forma como a
autoridade é utilizada na sala de aula e em outros espaços pedagógicos; propiciar
a oportunidade para que os estudantes não apenas se expressem de forma
crítica, mas para que alterem a estrutura de participação e o horizonte do debate
pelo qual suas identidades, seus valores e seus desejos são moldados; construir
condições pedagógicas para capacitar os estudantes para entenderem como o
37
poder opera sobre eles, através deles e por eles, para construir e ampliar seu
papel como cidadãos críticos.
Assim como o autor, acreditamos no protogonismo humano e que há a
necessidade de mudanças sociais com vistas a uma sociedade mais igualitária
com relação às condições de educação, moradia, saúde, acesso à arte e ao lazer,
etc. Essa discussão não é recente na educação. Sob diferentes enfoques, há
muitos anos o papel da escola é questionado. Será que a educação escolar
isoladamente pode levar a uma transformação social? Ou somente a uma
transformação individual? Será que isso é desejável? Que políticas/ideologias
estão por trás dos cursos de formação de professores? Essas questões
extrapolam as situações da prática pedagógica e compõem um conjunto de
fatores que influenciam fortemente a situação educacional atual.
1.3. Intermulticulturalismo
Para Candau et al. (2002), é do reconhecimento da pluralidade de
experiências culturais e da luta de grupos étnicos, de classe, gênero etc., que
nascem propostas que visam à articulação entre educação e diversidade cultural
na Europa, América Latina e Estados Unidos. Essas propostas procuram traçar
políticas públicas de educação e trabalhar pedagogicamente a diversidade. Os
autores destacam as peculiaridades existentes no desenvolvimento do trabalho
com educação e cultura na América Latina, pois com o processo de expansão
européia, os choques entre povos e culturas neste continente foram marcados por
relações de poder assimétricas, tendo sua história profundamente marcada pela
colonização.
Baseando-se em Forquin, Candau (2002) aponta que o termo
Multiculturalismo possui, simultaneamente, um sentido descritivo e um prescritivo.
O sentido descritivo está relacionado com a situação objetiva de cada país, no
qual coexistem diferentes grupos de origem étnica ou geográfica, diferentes
línguas, com valores e adesões religiosas diversas. Esse sentido reflete a
realidade multicultural de uma determinada sociedade:
38
Quanto ao sentido prescritivo, Forquim assinala que a aplicação do
termo multicultural assume diferentes contornos. Relacionando
Multiculturalismo e educação, aponta para o fato de que um ensino
pode se dirigir a uma clientela culturalmente diversa sem ser,
todavia, multicultural. A educação só apresenta-se como
multicultural no momento em que põe em ação na escola certas
escolhas pedagógicas que representem em seus conteúdos e
métodos a diversidade cultural do público ao qual se dirige
(CANDAU, 2002, p.76).
Multiculturalismo é um termo amplo, que pode ser entendido a partir de
perspectivas diferentes. McLaren (2000a) analisa algumas perspectivas nas quais
o termo é utilizado, são elas: Multiculturalismo conservador; humanista liberal;
liberal de esquerda e o Multiculturalismo Crítico e de resistência.
A opção para o desenvolvimento deste trabalho é pela perspectiva do
Multiculturalismo Crítico, a partir, fundamentalmente, de estudos realizados por
McLaren e Giroux, e de autores que procuram articular o Multiculturalismo e a
prática pedagógica, como Vera Candau, Antonio Flávio Moreira, Ana Canen e
Elizabeth Macedo.
McLaren (2000a) desenvolve a idéia de Multiculturalismo Crítico a partir da
perspectiva que enfatiza o papel que a língua e a representação desempenham
na construção de significado e identidade. Os signos e significações são
considerados como instáveis e em deslocamento, podendo ser fixados apenas
temporariamente, dependendo de como estão articulados dentro de lutas
discursivas e históricas particulares. O autor destaca que a perspectiva que
chama de Multiculturalismo Crítico compreende a representação de raça, classe e
gênero como o resultado de lutas sociais mais amplas sobre signos e
significações e, neste sentido, enfatiza não apenas o jogo textual e o
deslocamento metafórico como forma de resistência, mas enfatiza a tarefa central
de transformar as relações sociais, culturais e institucionais nas quais os
significados são gerados.
Nessa mesma linha, Canen e Oliveira (2001, p.1) destacam que a
perspectiva crítica do Multiculturalismo busca superar a valorização da
diversidade cultural em termos folclóricos ou exóticos, para questionar a própria
construção das diferenças e, por conseguinte, dos estereótipos e preconceitos
39
contra aqueles percebidos como “diferentes”, no seio de sociedades desiguais e
excludentes.
Para McLaren (2000a), o Multiculturalismo Crítico ou de resistência, como
também é nomeado, deve ter uma agenda política de transformação para não se
tornar uma outra forma de acomodação a uma ordem social maior. Esse aspecto
é tratado mais detalhadamente pelo autor, quando este apresenta a perspectiva
do Multiculturalismo revolucionário, apontando qual é a direção dessa
transformação.
McLaren (2000b) considera que classe, raça, gênero e orientação sexual
são conjuntos de relações e práticas sociais determinadas mutuamente,
destacando que nem todos esses conjuntos são subordinados diretamente ao
capital financeiro. Entretanto, a maioria das relações sociais constitutivas das
identidades com caráter de raça e gênero é formada em parte pela divisão social
do trabalho e pelas relações sociais de produção. Para o autor, a luta por um
socialismo revolucionário é a luta preeminente de nosso tempo, sendo importante
e imperativa em um projeto multicultural revolucionário.
O autor argumenta, ainda, que é preciso repensar a luta de classes em
termos culturais e econômicos, mas sem esquecer os sistemas de produção, a
divisão social do trabalho ou as relações sociais de produção e consumo.
Ressalta que indivíduos e grupos estão localizados de forma diferente dentro de
sistemas de poder superpostos, e é no contexto dessas localizações diferenciais
que precisamos entender e localizar a luta de classe. Em outras palavras, os
aspectos culturais e sociais da classe precisam ser entendidos (ibid, p. 244).
Nessa vertente, McLaren (2000b) aponta que:
as estruturas objetivas nas quais vivemos, as relações materiais
condicionadas à produção nas quais estamos situados e as
condições determinadas que nos produzem estão todas refletidas
em nossas experiências cotidianas. [...] O multiculturalismo
revolucionário é um multiculturalismo feminista-socialista que
desafia os processos historicamente sedimentados, através dos
quais identidades de raça, classe e gênero são produzidas dentro
da sociedade capitalista. Conseqüentemente, o multiculturalismo
revolucionário não se limita a transformar a atitude discriminatória,
mas é dedicado a reconstruir as estruturas profundas da economia
política, da cultura e do poder nos arranjos sociais contemporâneos.
Ele não significa reformar a democracia capitalista, mas transformá-
la, cortando suas articulações e reconstruindo a ordem social do
ponto de vista dos oprimidos (MCLAREN, 2000B,p. 284).
40
Na perspectiva do Multiculturalismo Crítico, segundo McLaren (2000a), a
cultura é entendida como conflitiva, e não como harmoniosa e consensual. A
democracia, a partir desta perspectiva, é compreendida como tensa, e não como
um estado de relações culturais e políticas sempre harmonioso e suave. O
Multiculturalismo Crítico entende que a diversidade deve ser afirmada junto a uma
política de crítica e justiça social, entendendo que a diferença é sempre um
produto da história, cultura, poder e ideologia.
Para McLaren (2000a, p.125), a diferença pressupõe a compreensão de
que os conhecimentos são forjados em histórias e são estratificados a partir de
relações de poder diferencialmente constituídas; isto quer dizer que
conhecimentos, subjetividades e práticas sociais são forjados dentro de ‘esferas
culturais incomensuráveis e assimétricas’. Podemos pensar, então, quais as
influências do momento histórico atual na construção de conhecimentos e
subjetividades que constituem a diferença.
A relação entre igualdade e diferença ainda é foco de algumas dúvidas
entre educadores. Candau (2005, p.18) defende a necessidade de termos uma
visão dialética da relação entre igualdade e diferença. Hoje em dia não se pode
falar em igualdade sem incluir as questões relativas à diferença, nem se podem
abordar temas relativos às políticas de identidade dissociadas da afirmação da
igualdade. A autora salienta que não se deve contrapor igualdade e diferença, já
que igualdade está oposta à desigualdade e diferença à padronização. O que se
quer trabalhar é a negação da padronização e a luta contra a desigualdade e
discriminação social.
A desigualdade e diferenciação, segundo Stoer e Magalhães (2005), foram
ganhando novas formas nos vários períodos da história, assim como o conceito
de exclusão social também assumiu diferentes formas, de acordo com o período
histórico e o “território” compreendido neste período:
Nas sociedades e culturas pré-modernas, o território era a
comunidade local e o sistema de crenças que a constituem. No
paradigma de sociedade e de cultura modernas, o território é o
estado-nação, é o sistema de trabalho e de emprego assalariado
que se encontra na sua base. O território emergente das
sociedades pós-modernas é virtual, heterogêneo, “glocal” e
desenvolvido por meio de sistemas em rede. A exclusão social é, no
primeiro caso, estar fora dos valores e símbolos partilhados; no
41
segundo caso, é ser incluído num processo de reabilitação, porque
o estado sempre recupera os seus súbditos quer como cidadãos,
quer como trabalhadores assalariados, e, no terceiro caso, ser
excluído é, para dizer de um modo simples, não fazer parte das
redes (STOER e MAGALHAES, 2005, p.117).
Os autores propõem o Modelo Relacional como modelo de
conceptualização e de legitimação de relação com a diferença. Esse modelo tem
como característica a:
recusa da boa e da má consciência prisioneiras do jogo de soma
zero: quem é que foi mais oprimido e quem foi o mais opressor?
Nós e Eles somos partes de uma relação, o que torna a nossa
posição mais frágil: já não somos o Nós que tem a legitimidade
universal de determinar quem são os Eles. Mas ao assumirmos que
a diferença também somos nós (o Nós transforma-se em Eles), é a
nossa própria alteridade que se expõe na relação. Recusa da ação
unilateral, por mais generosa que seja, sobre a alteridade, como se
esta tivesse como natureza ser por nós cuidada e agida (STOER e
MAGALHÃES, 2005, p. 138).
Entendemos, no entanto, que esse Modelo apresentado pelos autores não
pode deixar de considerar a trajetória histórica de cada grupo, procurando
compreender como se deram os processos de diferenciação e exclusão
desenvolvidos nestas relações, sob pena de se recair num modelo pautado pela
simples tolerância do outro e ser utilizado para justificar as desigualdades e a
exploração de grupos dominantes como, por exemplo, ao se discutir sobre o
machismo, acusando conivência das mulheres.
Stoer e Magalhães (2005) assinalam que o modelo etnocêntrico de relação
com a diferença, centrado na “civilização ocidental”, é base para uma educação
pautada na transmissão de valores e de saberes assumidos como indiscutíveis e
universais. Constitui-se, assim, a abordagem monocultural da educação,
rejeitando-se o modelo inter/multicultural:
[...] a educação inter/multicultural (modelo relacional) realiza-se
sendo, por um lado, o lugar do encontro/confronto de diferenças e
da sua negociação e, por outro, o lugar ele próprio agenciado pela
diferença, isto é, é a própria educação escolar que é colocada nos
guiões dos atores sociais e culturais e não o contrário. A nossa
diferença exprime-se através da educação inter/multicultural não
como aquela que traz consigo a luz, a matriz, a generosidade, mas
como aquela que traz a sua própria alteridade. As margens do
nosso lado, da nossa diferença, podem traduzir-se num projeto de
42
gestão da diferença, mas nunca na sua dominação (STOER e
MAGALHAES, 2005, p. 140).
A diferença é entendida por McLaren (2000a) como uma forma de
significação, como práticas de significação que constituem e refletem relações
políticas e econômicas. Essas significações são compreendidas nos estudos
multiculturalistas como textualidades, práticas materiais, relações sociais
conflitivas.
Giroux (2003) enfatiza a relevância dos textos culturais para construir
conhecimento, produzir diferentes identidades sociais e legitimar determinados
mapas de significado:
[...] Os textos são agora vistos não apenas como objetos de luta
para desafiar os modelos dominantes de autoridade racial e
colonial, mas como recursos pedagógicos para reescrever as
possibilidades de novas narrativas, identidades e espaços culturais.
Concentrando-se na política da representação para chamar a
atenção para as maneiras como os textos mobilizam os significados
para suprimir, silenciar e conter histórias, vozes e experiências
marginalizadas, os multiculturalistas críticos reafirmaram o poder do
simbólico como força pedagógica para garantir a autoridade e como
estratégia pedagógica para produzir formas particulares de
contestação e de resistência (GIROUX, 2003, p. 76).
O autor ressalta que a ênfase dada ao Multiculturalismo Crítico na
textualidade abriu espaços institucionais para questionamento de diferentes textos
culturais e de seu poder de criar e afirmar determinadas identidades sociais. No
entanto, pode resultar em uma prática pedagógica ou política reducionista, se
removida dos discursos públicos mais amplos e analisados sem considerar outras
formações culturais.
Para McLaren (1997), a celebração da pluralidade ou a tolerância da
diferença não bastam. Ele aponta que os estudantes devem procurar superar as
condições que perpetuam seu próprio sofrimento e sofrimento de outros, e que a
pedagogia crítica deve se desenvolver dentro de uma linguagem da vida pública,
comunidade emancipatória e comprometimento individual e social.
Desenvolver uma educação multicultural, na perspectiva do
Multiculturalismo Crítico, possibilita:
uma maneira de interrogar a localidade, o posicionamento e a
especificidade do conhecimento (em termos da localização de raça,
classe e gênero dos alunos e alunas) e de gerar uma pluralidade de
43
verdades (em vez de uma verdade apodítica construída em torno da
norma invisível do eurocentrismo e da etnicidade branca). Ao
mesmo tempo, esta perspectiva também situa a construção do
significado em termos dos interesses materiais que estão operando
na produção de ‘efeitos de verdade’ – isto é, na produção de formas
de inteligibilidade e de práticas sociais (MCLAREN, 2000a, p.87).
Entendendo que as subjetividades e identidades de educadoras e
estudantes são sempre produtos de contextos históricos e jogos de linguagem,
McLaren (2000a) indica a necessidade se reconhecer os discursos internalizados,
que orientam a ritualização da prática docente e os que organizam visões de
futuro.
O autor defende a necessidade do desenvolvimento de uma teoria mais
eficiente para a compreensão da pedagogia em relação às atuações de classe,
raça e gênero, entendendo que a professora não é a detentora individual do
saber. Os alunos não são passivos à manipulação, sendo possível e importante à
teorização dos sujeitos do processo educativo como agentes históricos da
resistência. Assim, parece fundamental a compreensão do contexto social e das
diferentes análises que são produzidas a partir dele.
Cada país apresenta suas especificidades com relação às diferenças. Em
Portugal, por exemplo, as questões relativas à etnia cigana são marcantes nos
estudos acadêmicos. No Brasil, além das categorias teóricas que pretendemos
tratar nesta pesquisa – classe social, gênero, raça/etnia -, podemos encontrar
outros aspectos que constituem e marcam as diferenças entre grupos ou
indivíduos, também relevantes para estudos, como a migração, a zona rural e
urbana, padrão de beleza, religião etc., que de alguma forma e em alguma medida
estão presentes nos dados empíricos.
Discutiremos, a seguir, alguns aspectos relevantes na teorização atual
sobre gênero e raça/etnia. São alguns pontos que nos auxiliam na compreensão e
análise das situações observadas em sala de aula relacionadas a essas duas
categorias.
O enfoque marxista sobre as questões de gênero privilegia os aspectos
ligados à relação mulher e trabalho. As análises pós-estruturalistas ampliaram
essa discussão, passando a envolver a produção social da feminilidade e da
masculinidade. Nesta pesquisa, utilizamos estudos de ambas as vertentes,
44
reconhecendo a importância de cada uma na reflexão sobre a construção dos
papéis feminino e masculino em nossa sociedade.
Destacamos que o trabalho de busca de referencial teórico que tratasse da
relação entre gênero e prática pedagógica revelou a escassez de produção nessa
área.
Segundo relatório do IBGE (BRASIL, 2006), as questões de igualdade de
gênero ainda constituem um desafio para as políticas públicas. A desigualdade
de rendimento entre homens e mulheres ainda é uma realidade no País,
principalmente no grupo com 12 anos ou mais de escolaridade:
Com esse nível de escolaridade, 44,9% das mulheres estão no
grupamento de saúde, educação e serviços sociais. Em resumo, as
mulheres estão predominantemente no setor de serviços, em
atividades relacionadas ao cuidado, em áreas que poderiam ser
consideradas extensões das atribuições familiares e domésticas.
Independentemente da maior escolaridade das mulheres, a
inserção delas em nichos ocupacionais tipicamente femininos faz
com que elas ganhem menos que os homens, o que explica, em
parte, essa desigualdade de rendimento por sexo. Mas, é
importante destacar que, entre 2004 e 2005, houve um ligeiro
aumento de 0,4 ponto percentual na proporção de mulheres na
categoria de dirigentes em geral (IBGE/BRASIL, 2006, p.269).
O relatório aponta, ainda, que apesar da maior participação das mulheres
no mercado de trabalho e das mudanças nos padrões familiares brasileiros, a
responsabilidade no cuidado dos afazeres domésticos ainda é
predominantemente das mulheres.
A relação gênero e educação tem papel de destaque nos estudos pós-
estruturalistas. Segundo Meyer (2005), além dos processos familiares e/ou
escolares, os indivíduos aprendem a se reconhecer como homens e mulheres em
todo âmbito social, sendo necessário o reconhecimento e problematização desses
processos educativos que envolvem estratégias sutis de naturalização.
Louro, Felipe e Goellner (2005, p.7) reafirmam esta idéia: Um olhar mais
cuidadoso nos mostra que todos os processos educativos sempre estiveram – e
estão – preocupados em vigiar, controlar, modelar, corrigir, construir os corpos de
meninos e meninas, jovens, homens e mulheres.
Na escola, os conflitos gerados pela construção social dos papéis feminino
e masculino se evidenciam constantemente na prática pedagógica. O choque com
45
determinados comportamentos dos meninos leva, muitas vezes, a
relacionamentos difíceis que resultam no abandono da escola. Com relação às
meninas, são aceitáveis e estimulados os comportamentos considerados
femininos que são valorizados socialmente, como a organização, docilidade e a
quietude. Meyer (2005, p.21) faz uma questão muito pertinente com relação à
escolarização dos meninos: Será que os meninos de determinados segmentos da
população abandonam a escola em maior número ou vão sendo, no cotidiano
pedagógico, progressivamente “abandonados” por ela?
Estudos atuais buscam discutir e problematizar como a norma e a diferença
são produzidas, e quais os efeitos de poder envolvidos nessa produção. Os
estudos sobre o espaço escolar, segundo Meyer (2005), têm mostrado como
estamos sempre operando a partir de uma identidade que é a norma, que é aceita
e legitimada, tornada quase invisível – masculinidade branca, heterossexual, de
classe média e judaico-cristã.
Um desses estudos foi realizado por Pereira (2005), tendo como objetivo
identificar as concepções de gênero e sexualidade presentes nos discursos das
professoras da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, por meio de
questionários e entrevistas. A partir de um referencial pós-estruturalista, a autora
analisa a fala das professoras e discute vários aspectos relativos às questões de
gênero e sexualidade. Um dos aspectos mais marcantes foi com relação à
homofobia das professoras entrevistadas e a dificuldade que algumas
demonstraram em analisar suas próprias concepções e crenças. Isso se refletia
no empenho em normalizar e normatizar o comportamento dos alunos que
apresentavam atitudes diferentes do padrão esperado tradicionalmente para
homens e mulheres, além do empenho em criar uma relação de respeito entre os
alunos, de tolerância das diferenças. Quanto a este último aspecto, a autora
argumenta: Não podemos concordar com o apelo ao respeito quando este se quer
suficiente; quando a omissão recebe o nome de respeito; quando afirmamos o
respeito e impedimos a reflexão sobre o significado político de nossas ações
(Pereira, 2005, p.141).
Outra categoria central desse trabalho é a de raça/etnia, da qual
consideramos necessário apontar alguns aspectos específicos. Um desses
aspectos é referente à distinção entre os dois termos: raça e etnia.
46
Hall (2003) considera que o termo raça é uma construção política e social:
É a categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema
de poder socioeconômico, de exploração e exclusão – ou seja, o
racismo. Contudo, como prática discursiva, o racismo possui uma
lógica própria. Tenta justificar as diferenças sociais e culturais que
legitimam a exclusão racial em termos de distinções genéticas e
biológicas, isto é, na natureza. Esse ‘efeito naturalizante’ parece
transformar a diferença racial em um ‘fato’ fixo e científico, que não
responde à mudança [...] (HALL, 2003, p. 70).
No Parecer (BRASIL/CNE, 2004), que estabelece a obrigatoriedade do
ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica do
Brasil, constam algumas considerações sobre os dois termos:
(...) se entende por raça a construção social forjada nas
tensas relações entre brancos e negros, muitas vezes
simuladas como harmoniosas, nada tendo a ver com conceito
biológico de raça cunhado no século XVIII e hoje sobejamente
superado. Cabe esclarecer que o termo raça é utilizado com
freqüência nas relações sociais brasileiras, para informar
como determinadas características físicas, como cor de pele,
tipo de cabelo, entre outras, influenciam, interferem e até
mesmo determinam o destino e o lugar social dos sujeitos no
interior da sociedade brasileira (Parecer BRASIL/CNE, 2004,
p.5).
Entretanto, o documento ressalta que o termo raça foi ressignificado pelo
Movimento Negro, que o utiliza considerando seu sentido político e de valorização
da cultura africana no Brasil. O uso do termo étnico-racial serve para marcar as
relações tensas devidas a diferenças na cor da pele, traços fisionômicos e a raiz
cultural africana, com diferentes visões de mundo, valores e princípios.
Hall (2003, p.71) analisa que a ‘etnicidade’ gera um discurso em que a
diferença se funda sob características culturais e religiosas, podendo fazer com
que pessoas de diferentes etnias sejam estigmatizadas por serem ‘culturalmente
diferentes’. (...) o racismo biológico e a discriminação cultural não constituem dois
sistemas distintos, mas dois registros do racismo. Na maioria das vezes, os
discursos da diferença biológica e cultural estão em jogo simultaneamente.
Ao tratarmos da categoria raça/etnia é essencial não ficarmos restritos à
discussão da negritude em si, mas que também nos dediquemos à análise do
47
contexto social em que se dá a construção da identidade negra, procurando
entender todo o processo histórico percorrido.
Segundo o relatório do IBGE (BRASIL, 2006), entre 1995 e 2005 pouco se
alteraram os índices sobre a fragmentação racial no Brasil:
A sociedade brasileira vem apresentando, de forma recorrente, uma
indiscutível fragmentação racial em todas as pesquisas de
população realizadas, configurando-se a variável cor ou raça como
um fator eminentemente estruturante das relações sociais no País.
Assim, as mais diversas informações convergem no sentido de
mostrar o critério de pertencimento étnico-racial como altamente
determinante dos processos de diferenciação e exclusão social,
evidenciados pelas profundas desigualdades socioeconômicas
entre os diferentes grupos em estudo (IBGE/BRASIL, 2006, p. 245).
Apesar de se verificar uma considerável queda na participação da
população branca do Brasil nos índices demográficos, a taxa de analfabetismo de
pretos (14,6%) e de pardos (15,6%) continuava sendo, em 2005, mais que o
dobro da dos brancos (7,0%). O relatório aponta que dois anos de estudo de
vantagem para a população branca resultam em quase uma duplicação de seus
salários em relação aos das populações de pretos e pardos. As informações
analisadas indicam que esta correspondência, entre anos de estudo e
rendimentos, como tem sido ressaltado nas últimas sínteses de indicadores
sociais, não caracteriza a educação como fator suficiente para a superação das
desigualdades raciais de rendimentos no Brasil (ibid, p.247).
O grau de desigualdade racial no País fica ainda mais evidente se
analisarmos os dados referentes à população estudante entre 18 e 24 anos. Para
esta faixa da população se pode constatar que, em 2005, enquanto mais da
metade dos brancos está cursando o ensino superior (pouco mais de 51%),
praticamente a mesma proporção de pretos e pardos ainda cursa o ensino médio
(quase 50%) e apenas 19% cursa a graduação (ibid, p. 246).
Esses dados demonstram que há muito que se fazer para atingirmos uma
igualdade maior entre as diferentes raças/etnias deste País e que a educação tem
papel importante para a realização de tal objetivo, porém não determinante.
Também são necessárias políticas públicas que possam garantir condições para
inserção social mais igualitárias para os negros.
Além das questões econômicas que já foram discutidas anteriormente e
que estão intimamente relacionadas com a história dos negros no mundo e,
48
especialmente no Brasil, consideramos relevante apresentar a discussão que
McLaren (2000b) faz a respeito da “branquidade”.
Muitas vezes a discussão a respeito de diferenças é evitada sob o
argumento de que ‘não devemos ver cor’, ‘aqui todos são iguais’, ‘aqui não há
preconceito’, etc.
Para McLaren (2000b), a democracia neutra ou formal com relação à
diferença é pouco mais do que uma ideologia e uma prática da discriminação:
As atuais definições legais de raça assumem a norma de ‘não ver a
cor’ e, dessa forma, desconectar a raça da identidade social e da
consciência de raça. No discurso de ‘não ver a cor’, as condições
branca e negra são vistas como descrições neutras de dominação e
subordinação e com atributos sociais como classe, cultura, língua e
educação. Em outras palavras, ‘não ver cor’ é um conceito que
torna simétricas as relações de poder e privilégio e as achata, de
forma que pareçam simétricas ou equivalentes. Porém, as
condições branca e negra existem simetricamente, apenas como
oposições idealizadas; no mundo real, elas existem como uma
hierarquia dependente, com a condição branca isolando o poder
social da condição negra, através da colonização da definição do
que é normal, da institucionalização de uma alocação maior de
recursos para os eleitorados brancos e da manutenção de leis que
favoreçam os brancos (MCLAREN, 2000b, p.262).
McLaren (2000b) destaca também a importância dos educadores
abordarem a questão da condição branca e suas inseguranças com relação ao
futuro, alertando que uma retórica conservadora pode contribuir para que
populações brancas, jovens e inseguras desenvolvam identidades brancas de
linha racista, principalmente em tempos de expectativas econômicas
decrescentes.
No Brasil, estamos vivenciando uma fase em que a pressão dos
movimentos organizados tem resultado em políticas sociais reparatórias que estão
sendo planejadas e implementadas, como, por exemplo, as Cotas para Negros
nas Universidades Públicas. A implementação dessa política tem evidenciado o
preconceito de muitos que se escondiam atrás da falsa idéia de “democracia
racial”. Não são somente jovens, que disputam o mercado de trabalho, que se
colocam contra, são também muitos “adultos” que querem manter a hierarquia
que assegura privilégios aos brancos por meio da naturalizão da exclusão
social. Algumas pessoas argumentam que os negros devem competir nos
vestibulares e, se tiverem capacidade intelectual, poderão ingressar nas
49
Universidades. Negam, assim, toda a história de escravização e marginalização a
que os negros foram submetidos desde que chegaram ao Brasil e ignoram que a
luta deve ser para que todos tenham direito ao Ensino Superior Público e de
qualidade, mas que a reparação histórica com os negros é inadiável.
Esta situação reflete o que McLaren (2000b, p.264) aponta quando diz que
as pessoas não discriminam grupos somente porque eles são diferentes. O ato da
discriminação constrói categorias de diferença que localizam hierarquicamente as
pessoas como ‘superiores’ ou ‘inferiores’ e, então, universalizam e naturalizam
tais diferenças.
A respeito da forma como a condição branca opera na sociedade, McLaren
(2000b) escreve:
A condição branca não tem conteúdo formal. Ela funciona
retoricamente, através da sua própria articulação a partir do detrito
semiótico dos mitos da superioridade européia. Estes são mitos
ontologicamente vazios, epistemologicamente enganadores e
moralmente perniciosos no sentido de que privilegiam os
descendentes dos europeus como sendo aqueles verdadeiramente
civilizados, em contraste com os personagens singulares, exóticos
ou bárbaros das culturas não-européias. A condição branca é uma
forma sócio-histórica de consciência, nascida no nexo do
capitalismo, da dominação colonial e dos relacionamentos
emergentes entre os grupos dominantes e subordinados. Ela opera
através de sua constituição como uma autoridade universalizante,
pela qual o sujeito branco burguês apropria-se do direito de falar em
nome de todos os não-brancos e, ao mesmo tempo, negar voz e
agência a esses outros, em nome da humanidade civilizada. A
condição branca constitui e demarca idéias, sentimentos,
conhecimentos, práticas sociais, formações culturais e sistemas de
inteligibilidade, que são identificados com os atribuídos a pessoas
brancas, que investem neles como ‘brancos’. A condição branca é,
também, uma recusa em reconhecer de que forma os brancos
estão envolvidos em certas relações sociais de privilégio e relações
de dominação e subordinação. A condição branca pode, então, ser
considerada como uma forma de amnésia social, associada a
modos de subjetividade dentro de espaços sociais considerados
normativos. [...] Ela se tornou a substância e o limite de nosso
senso comum, articulado como consenso cultura (MCLAREN,
2000b, p.265).
O autor argumenta que a sedução da condição branca, para aqueles que
são não-brancos, pode produzir uma autodefinição que separe o sujeito de sua
história de opressão e luta, colocando a identidade dentro do domínio incerto da
condição de ‘outro’, ao mesmo tempo em que aceita taticamente a superioridade
do sujeito ocidental. A condição branca oferece uma fantasia de pertencimento,
50
fornecendo ao sujeito euroamericano fronteiras conhecidas que colocam tudo
dentro dos limites. A condição branca seduz o sujeito a aceitar a idéia de
bipolaridade branco/não branco, como o texto-limite da identidade, como a
fundação constitutiva da subjetividade.
Citando Wolfenstein, McLaren (2000b) considera que o racismo branco é
autolimitante para as pessoas brancas e autodestrutivo para as pessoas negras:
[...] A condição negra, oficialmente desvalorizada, incorpora
suas vidas e desejos de outros. Eles conseguem, todavia, ver-
se refletidos nos espelhos de seu self. Contudo, se os negros
têm sua ‘condição própria’ estruturada pela forma
embranquecida do caráter social, eles acabam por anular-se.
Sua negritude, odiada e desprezada, deve ser escondida.
Alisadores de cabelo e clareadores de peles testemunham o
desejo de ir adiante e erradicar completamente a negritude
(WOLFENSTEIN apud MCLAREN, 2000b, p. 268).
A condição branca, segundo McLaren (2000b), é produzida por meio de
relações sociais ou dos modos de produção capitalista, e aqueles que são
marcados como “brancos” têm pouco entendimento consciente. Por isso, é
importante a desnaturalização dessa condição, quebrando seus códigos, relações
sociais e hierarquias de privilégio.
Para o autor, tornar-se não-branco é uma escolha política autoconsciente,
uma escolha espiritual e uma escolha crítica, uma maneira de desidentificar-se
politicamente com o privilégio branco e identificar-se, tomando parte de lutas de
povos não-brancos.
Toda essa construção social de etnias passa pela escola, que nas últimas
décadas começou a direcionar sua atenção às questões relativas a este tema.
McCarthy (1994) propõe uma formulação alternativa para explicar as
desigualdades escolares, que antes eram explicadas a partir da corrente
dominante que tende a culpar as vítimas (reduzem a complexidade associada à
desigualdade racial a uma preocupação fundamental: a questão da educabilidade
das minorias) e da corrente radical, que vê a desigualdade racial como subproduto
da contradição principal de classe entre trabalho e capital.
Sem abandonar as dinâmicas econômicas e de classe, teóricos radicais,
segundo McCarthy (1994), dedicam-se a descrições mais minuciosas e matizadas
51
da escolarização, possibilitando um estudo mais sistemático das diferentes
características da vida escolar.
A formulação proposta por McCarthy (1994) dá maior atenção às relações e
aos contextos de funcionamento das diferenças raciais na escolarização, o que
ajuda no estudo dos vínculos existentes entre desigualdade racial e as dinâmicas
de classe social e gênero. Mas, como funcionam as diferenças nas escolas?
McCarthy (1994) apresenta duas teorias em contraponto as teorias
dominante e radical, que são a teoria do paralelismo (baseada em Apple e Weis,
1983)
11
e teoria do assincronismo:
- (...) a postura paralelista nos apresenta uma teoria de
determinação múltipla, na qual os processos e resultados desiguais
de ensino e aprendizagem e de sistema escolar em geral são
produto das interações constantes entre as três dinâmicas (raça,
gênero e classe) e nas três esferas (econômica, política e cultural)
(APPLE e WEIS, 1983, p. 91).
- o enfoque assincrônico de estudo da desigualdade na
escolarização nos adverte de como distintos grupos de raça, classe
e gênero não só têm experiências qualitativas diferentes nas
escolas, mas que, em realidade, mantêm entre si uma tensão
constitutiva, pois com freqüência sustentam uma competição ativa
entre eles, recebem distintos tipos de recompensas, sanções e
avaliações e, em último extremo, se estruturam em direção a
futuros diferentes [...]. (McCarthy, 1994, 105).
12
O autor ressalta, ainda, que os educadores radicais devem lutar com e não
para os que se encontram em situações sociais desvantajosas. O currículo crítico
teria como função preparar os estudantes para a participação democrática em um
mundo complexo, diferenciado e assincrônico, utilizando a experiência das
minorias oprimidas e das mulheres e homens de classe trabalhadora como
fundamentos primordiais de currículo básico, integrando as realidades
micropolíticas e institucionais da escola com os imperativos macropolíticos
associados.
No Brasil, a atenção dada à questão da discriminação racial vem crescendo
com o passar dos anos. As escolas também acompanham esse processo com
discussões promovidas em alguns Estados e Municípios sobre o racismo,
preconceito e diversidade cultural. Mas nem todos os professores participam
11
Apple, M; Weis, L. Ideology and practice in schooling. Filadelfia, Temple University Press, 1983.
12
Traduzido do espanhol para o português.
52
dessas iniciativas, ficando, muitas vezes, restritos a uma pequena parcela destes.
Há que se considerar também que esse não é um tema simples de ser abordado,
e as mudanças necessárias tanto de concepções como de práticas pedagógicas
demandam discussões freqüentes e aprofundadas com os professores e demais
funcionários das escolas.
Um avanço no sentido de garantir algumas mudanças com relação aos
conteúdos escolares que tratem da história dos negros, se deu com a Lei
10639/2003, que altera a LDB 9394/96, estabelecendo a obrigatoriedade do
ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica. O
Parecer (BRASIL/CNE, 003/2004), tendo a Professora Petronilha B. G. e Silva
como relatora, discute alguns pontos fundamentais para o desenvolvimento de um
trabalho comprometido com a questão racial e étnica.
O referido Parecer propõe que conhecimentos sejam produzidos e
divulgados, visando à formação de atitudes, posturas e valores que eduquem
cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial para interagirem na
construção de uma nação democrática, em que todos igualmente tenham seus
direitos garantidos e sua identidade valorizada.
Para que as políticas públicas de Estado destinadas a reparações,
reconhecimento e valorização da identidade, da cultura e da história dos negros
brasileiros tenham sucesso, são necessárias, segundo a relatora do Parecer,
condições físicas, materiais, intelectuais e afetivas adequadas ao ensino e à
aprendizagem.
Um dos objetivos da implementação de políticas afirmativas é assegurar
aos negros, o direito de se reconhecerem na cultura nacional, expressarem visões
de mundo próprias, manifestarem com autonomia, individual e coletiva, seus
pensamentos. Outra meta é o direito dos negros, assim como de todos os
cidadãos brasileiros, de cursarem cada um dos níveis de ensino, em escolas
preparadas, com professores qualificados para o ensino das diferentes áreas de
conhecimentos; com formação para lidar com as tensas relações produzidas pelo
racismo e discriminações, sensíveis e capazes de conduzir a reeducação das
relações entre diferentes grupos étnico-raciais, ou seja, entre descendentes de
africanos, de europeus, de asiáticos, e povos indígenas (...) (Parecer 003/2004,
p.2).
53
O reconhecimento, um dos pilares das políticas afirmativas, envolve: a
compreensão da justiça e dos iguais direitos sociais, civis, culturais e econômicos;
a desconstrução do mito da democracia racial na sociedade brasileira;
valorização, divulgação e respeito aos processos históricos de resistência negra; e
o questionamento de relações étnico-raciais baseadas em preconceitos que
desqualificam os negros e salientam estereótipos depreciativos, palavras e
atitudes que, velada ou explicitamente violentas, expressam sentimentos de
superioridade em relação aos negros próprios de uma sociedade hierárquica e
desigual (Parecer 003/2004, p.4).
De acordo com o Parecer, o trabalho com a história dos negros não pode
ser improvisado, mas ao contrário, requer um plano que oriente os procedimentos
pedagógicos que envolvam as experiências sociais e institucionais vividas pelos
negros. Também é necessário o diálogo com estudos que analisam criticamente
estas realidades e fazem propostas e com a discriminação.
A relatora do Parecer aponta, com propriedade, alguns aspectos que
podem constituir equívocos nas discussões e desenvolvimento do trabalho
pedagógico. O primeiro aspecto afirmado é que a raça/etnia negra compreende
pretos e pardos. A construção da identidade negra no Brasil é um processo
complexo. Inicialmente, o termo negro era usado pelos senhores para designar
pejorativamente os escravizados, o que gerou um sentido negativo da palavra.
Com a ressignificação do termo pelo Movimento Negro, a palavra passa a ter um
sentido político e positivo.
É comum ouvirmos pessoas afirmando que os negros se discriminam entre
si e que, portanto, são racistas também. De acordo com o Parecer, esta
constatação:
tem de ser analisada no quadro da ideologia do branqueamento que
divulga a idéia e o sentimento de que as pessoas brancas seriam
mais humanas, teriam inteligência superior e por isso teriam o
direito de comandar e de dizer o que é bom para todos. Cabe
lembrar que no pós-abolição foram formuladas políticas que
visavam o branqueamento da população, pela eliminação simbólica
e material da presença dos negros. Nesse sentido, é possível que
pessoas negras sejam influenciadas pela ideologia do
branqueamento e, assim, tendam a reproduzir o preconceito do qual
são vítimas. O racismo imprime marcas negativas na subjetividade
dos negros e também na dos que os discriminam (PARECER
003/2004, p.7).
54
Junto ao aspecto anteriormente apresentado, também é recorrente a
argumentação de que a escola não deve tratar questões relativas às diferenças
étnico-raciais. Acreditamos, assim como aponta o Parecer, que a escola deve se
posicionar politicamente contra qualquer forma de discriminação, assegurando,
assim, o direito a educação de todo e qualquer cidadão e recusando a falsa idéia
de que vivemos uma democracia racial.
55
Capítulo 2
Neste capítulo, apresentaremos um apanhado teórico referente ao
Currículo e à relação entre o Multiculturalismo Crítico e a Prática pedagógica, no
âmbito do currículo em ação.
2.1. Currículo
O termo currículo pode ser entendido de diversas formas. Na escola, o
currículo também pode ter diferentes compreensões por parte dos educadores e
alunos. Alguns entendem que o currículo escolar refere-se exclusivamente às
disciplinas oferecidas. Outros, como nós, entendem o currículo escolar como algo
amplo, que abrange não só as disciplinas e seus conteúdos, como também as
concepções que direcionam o trabalho pedagógico, as formas como estes
conteúdos são desenvolvidos, os objetivos que os norteiam, o alunado e a
comunidade em que a escola se insere, a estrutura e funcionamento da escola
etc. Assim:
[...] a resposta à questão “o que é o currículo?” é uma missão, por
um lado, complexa porque existe uma grande diversidade no
pensamento curricular e, por outro, fácil, na medida em que o
currículo é um projeto de formação (envolvendo conteúdos,
valores/atitudes e experiências), cuja construção se faz a partir de
uma multiplicidade de práticas inter-relacionadas através de
deliberações tomadas nos contextos social, cultural (e também
político e ideológico) e econômico (PACHECO, 2005, p. 44).
Este autor indica que Currículo e Didática são campos que compartilham
um mesmo espaço, sendo que o currículo liga-se ao estudo dos processos e
práticas pedagógicas institucionalizados e a didática relaciona-se com o estudo
dos elementos nucleares do currículo (objetivos, conteúdos, atividades, recursos,
avaliação). O currículo apresenta uma dupla vertente: a institucional, que se situa
no plano da organização social, política escolar; a didática, que ocorre ao nível
dos eventos curriculares da sala de aula (Pacheco, 2005, p. 25).
56
Pacheco (2005, p.54) destaca que, enquanto processo contínuo de
reflexão, o currículo é uma construção que ocorre em diferentes contextos macro
e microcurriculares. De um modo global, consideram-se três os contextos/níveis
de decisão curricular: político administrativo – no âmbito da administração central;
de gestão – no âmbito da escola e da administração regional; de realização – no
âmbito da sala de aula.
O currículo que envolve o que acontece em sala de aula diariamente
recebe diferentes denominações. A utilizada no presente estudo é currículo em
ação (Gimeno, 1998). Assim, nossas análises têm como foco as situações de
ensino e aprendizagem que se realizam na escola, buscando compreender de
forma articulada a relação entre alunos/as, professores/as e o conhecimento.
Pacheco (2005) nos alerta que um currículo não se elabora no vazio e nem
se organiza arbitrariamente:
Com o advento do Estado moderno, o currículo torna-se num
instrumento ideológico, com diferentes finalidades, que regula as
relações entre a sociedade e a escolarização. [...] A escola é uma
força ativa que legitima ideologias, formas econômicas e sociais
que lhe são intimamente associadas. [...] o professor é visto como
fator de ideologização do currículo tanto pelo seu pensamento e
ação como pela sua dimensão social e humana. Enquanto ente
pensante e atuante, o professor reflete um conjunto de opções
culturais, políticas e econômicas, através das quais modela e filtra o
currículo no momento da sua concretização, tornando-se num
elemento ativo da reprodução, se elementos “controlados”, ou da
transformação social, se elementos problematizadores e críticos
(PACHECO, 2005, p. 71).
A seleção de conteúdos é um exemplo da luta de forças que se dá em
diferentes espaços da ação e da elaboração curriculares, que é carregada de
significações e ideologias. Quais conteúdos devem ser trabalhados na escola?
Deve haver um currículo nacional? Devemos continuar trabalhando com
conteúdos considerados universais, que têm origem majoritariamente na Europa?
A seleção hoje existente privilegia determinados setores sociais? Quais? Como?
Uma discussão atual que reflete essa situação complexa é aquela relacionada ao
universalismo ou relativismo dos conteúdos curriculares, que apresentaremos
posteriormente.
O currículo escolar pode ser orientado por diferentes linhas teóricas, que
influenciam fortemente a concepção de conhecimento e de ensino e
57
aprendizagem dos/as professores/as, se refletindo na seleção e na forma como
são tratados os conteúdos em sala de aula. Silva (2003) aponta, brevemente,
essas diferentes linhas:
1. A tradicional, humanista, baseada numa concepção
conservadora da cultura (fixa, estável, herdada) e do conhecimento
(como fato, como informação), uma visão que, por sua vez, se
baseia numa perspectiva conservadora da função social e cultural
da escola e da educação; 2. A tecnicista, em muitos aspectos
similares à tradicional, mas enfatizando as dimensões estruturais,
utilitárias e econômicas da educação; 3. A crítica, de orientação
neomarxista, baseada numa análise da escola e da educação como
instituições voltadas para a reprodução das estruturas de classe da
sociedade capitalista: o currículo reflete e reproduz essa estrutura;
4. A pós-estruturalista, que rompe e reformula algumas das análises
da tradição crítica neomarxista, enfatizando o currículo como prática
cultural e como prática de significação [...] (SILVA, 2003 p.13).
Silva (2003) destaca que a visão tradicional sofre seus primeiros abalos
com os questionamentos da “nova sociologia da educação” e da teoria crítica,
ressaltando o caráter histórico (variável, mutável) e o caráter social (construído)
do conhecimento escolar.
As concepções tradicionais, tecnicistas e críticas são modificadas com as
teorizações pós-modernas e pós-estruturalistas. Ganha centralidade o papel da
linguagem e do discurso na constituição do social. Segundo o autor, a cultura,
entendida principalmente como prática de significação, assume um papel
constituidor e não apenas determinado, superestrutural.
Neste estudo, optamos por desenvolver as análises a partir das
contribuições das teorias crítica e pós-crítica. Além da relação entre a educação
escolar e a organização política e econômica da sociedade, nos interessam
também as questões ligadas às diferenças culturais.
As teorias pós-críticas trazem à tona diferentes aspectos a serem
considerados nas análises, além das desigualdades de classe social no sistema
de ensino. Sem deixar de reconhecer a importância desta categoria – classe
social - nos processos sociais, as teorias denominadas pós-críticas incorporam,
segundo Silva (1999), aspectos inovadores como: identidade, alteridade,
diferença, subjetividade, significado e discurso, saber, poder, representação,
cultura, gênero, raça, etnia, sexualidade, multiculturalismo (p.17).
58
Ao tratar das diferentes teorias curriculares, Pacheco (2005), apoiando-se
em Apple, analisa que:
a teoria crítica traz à realidade curricular os lados mais ocultos das
práticas e sobretudo a geografia das relações, na medida em que
se torna possível olhar criticamente para as diversas relações que
existem quando se pensa no conteúdo e na forma daquilo que se
faz no contexto das organizações escolares. As linhas de ação dos
atores curriculares são delineadas por forças mais vastas que
controlam os contextos social, econômico e político, aceitando-se,
assim, o argumento gramsciano de que as lutas e os conflitos
culturais não são superficiais, mas reais e cruciais na batalha da
hegemonia (PACHECO, 2005, p. 115).
Pacheco (2005) considera que não há neutralidade na elaboração e ação
pedagógica, e que é necessário termos um compromisso político com o que
pensamos e fazemos. É que a teoria crítica, inscrita numa tradição marxista, é
considerada, por princípio, um espaço de contestação.
É tarefa do educador crítico, identificar as injustiças existentes nas práticas
pedagógicas, reconhecendo a relação destas com as práticas sociais. O autor
ressalta, ainda, que as análises introduzidas por Foucault e Gramsci reforçam a
compreensão de que as práticas sociais são o resultado de relações de poder.
Pacheco (2005, p.80) argumenta que o currículo constrói-se na ação social,
que os modos de pensar e agir na educação são formalizados em códigos
curriculares. O autor afirma que o elo de ligação do currículo com a sociedade se
dá por meio da cultura e que, por isso, o conteúdo escolar tem sido uma das
questões mais marcantes da teorização curricular. [...] o currículo é a seleção e
organização do conhecimento cultural e socialmente considerado válido para um
tempo particular.
Candau (2005) alerta que essa questão do universalismo e relativismo tem
sido foco de muitas dúvidas e discussões. A autora destaca que a base da
educação continua sendo conhecimentos e valores considerados universais, com
origem na cultura ocidental e européia:
[...] A questão colocada hoje supõe perguntarmo-nos e discutirmos
que universalidade é essa, mas, ao mesmo tempo, não cairmos
num relativismo absoluto, reduzindo a questão dos conhecimentos
e valores veiculados pela educação formal a um determinado
universo cultural, o que nos levaria inclusive a negar a própria
59
possibilidade de construirmos algo juntos, negociado entre
diferentes, e à guetificação [...] (CANDAU, 2005, p.18).
Entendemos que o papel da escola na teoria crítica é criar as condições
para uma visão de mundo que questione o eurocentrismo, a hegemonia, as
hierarquias, o patriarcado, o monoculturalismo, a exploração e a exclusão social.
Consideramos importante que a seleção de conteúdos escolares não fique restrita
aos conhecimentos tidos como universais, incluindo, também, conhecimentos
locais, e destacamos também a importância da maneira como esses
conhecimentos são apresentados, que deve ser criticamente, compreendendo
como foram construídos, em que contexto, e não como uma verdade suprema.
Tendo como fonte a dialética marxista, entendemos que a teoria crítica não
postula uma verdade absoluta e sim uma outra verdade que estará susceptível às
contradições e superações engendradas por meio das pressões sociais nos
diferentes períodos históricos, mas que tem um sentido contrário ao do
liberalismo.
Canen e Moreira (2001, p.7) apontam que o currículo corresponde a uma
seleção da cultura, que ao enfatizar determinados saberes e omitir outros,
expressa uma posição político-ideológica: Presenças e ausências nos currículos
constituem, sim, o resultado de disputas culturais, de embates e conflitos em torno
dos conhecimentos, das habilidades e dos valores que se consideram dignos de
serem transmitidos e apreendidos.
Os autores argumentam que considerar a pluralidade cultural no âmbito da
educação e da formação docente implica pensar formas de valorizar e incorporar
as identidades plurais em políticas e práticas curriculares, e refletir sobre os
mecanismos que geram discriminação e silenciamento das diferentes culturas
com o objetivo de homogeneizá-las de acordo com uma perspectiva monocultural.
O processo curricular baseado numa perspectiva multicultural crítica,
segundo Canen e Moreira (2001), visa dois propósitos básicos:
promover o respeito pela diversidade e preparar os alunos para o
trabalho coletivo em prol da justiça social. No primeiro caso, trata-se
de reduzir preconceitos, de estimular atitudes positivas em relação
ao “diferente”, de promover a capacidade de assumir outras
perspectivas, de propiciar o desenvolvimento da empatia. No
segundo, trata-se de evidenciar as relações de poder envolvidas na
construção da diferença, de criar oportunidades de sucesso escolar
para todos os alunos de incentivar habilidades e atitudes
60
necessárias ao fortalecimento do poder individual e coletivo, bem
como de desenvolver habilidades de pensamento crítico (CANEN e
MOREIRA, 2001, p. 30).
Os mesmos autores apresentam as linhas gerais que consideram
necessárias para a elaboração de um currículo na escola e na formação de
professores:
- [...] parece necessário que o trabalho curricular procure articular a
pluralidade cultural mais ampla da sociedade à pluralidade de
identidades presente no contexto concreto da sala de aula onde se
desenvolve o processo de aprendizagem [...] (ibid, p.31).
- [...] a educação multicultural não pode ser reduzida ao espaço de
uma disciplina a ser incluída no currículo. Um currículo multicultural
deve informar os conteúdos selecionados em todas as áreas do
conhecimento, contribuindo para ilustrar conceitos e princípios com
dados provenientes de culturas diversificadas, focalizar a diferença
como processos de construção, decodificar teorias e conceitos na
perspectiva do outro, bem como desconstruir mensagens
etnocêntricas, racistas e discriminatórias presentes nos materiais
didáticos e nos discursos da sala de aula (ibid, p.32).
- [...] importância do diálogo como elemento delineador de uma
prática curricular multiculturalmente orientada. [...] o diálogo oferece
base indispensável para o desenvolvimento de uma perspectiva
multicultural no currículo em ação. (ibid, p.33).
- [...] é necessário acentuar que os aspectos cognitivos envolvidos na
formação docente não são suficientes para estimular de fato uma
postura multicultural, não podendo, portanto, ser separados de um
concomitante envolvimento afetivo. (ibid, p.33).
Entendemos que essas questões são parte de uma compreensão mais
política da educação. Além da necessidade de condições materiais e de
formação, é fundamental que as pessoas envolvidas com os processos
educacionais façam uma opção pela mudança da situação desigual e excludente
de nossa sociedade. Para isso, é importante o conhecimento das questões
sociais, políticas, econômicas, culturais e educacionais em suas diferentes
análises.
Silva (2003) destaca que a cultura e o conhecimento são produzidos como
relações sociais que são hierárquicas, assimétricas, são relações de poder. As
concepções essencialistas e estáticas de cultura e conhecimento pensam o
currículo fora dessas relações.
O autor ressalta uma concepção mais dinâmica de cultura, que seria vista
mais como produção, criação, e não como produto. Desta forma, o currículo,
61
assim como a cultura, é compreendido por ele como: 1. Uma prática de
significação; 2. Uma prática produtiva; 3. Uma relação social; 4. Uma relação de
poder; 5. Uma prática que produz identidades sociais (...) (ibid, p.17).
Olhar o currículo como um meio que produz identidades sociais de gênero,
raciais, sexuais e culturais, amplia significativamente as possibilidades de análise
das situações de sala de aula, extrapolando aquilo que foi apontado pela tradição
crítica em educação sobre currículo, como indica Silva (2003), que é a produção
de formas dolorosas de divisões sócias, identidades divididas e classes sociais
antagônicas.
Silva (2002) afirma que as conexões entre saber, identidade e poder são
preocupações das teorias críticas e pós-críticas de currículo.
Privilegiamos neste trabalho, concepções que olham globalmente para o
currículo, como assinala Leite (2002), relacionado-o com uma política educativa e
cultural, como algo dinâmico e específico de contextos construídos em situações
reais:
Ao adotarmos um entendimento de currículo numa perspectiva
ampla e resultante de uma construção social e cultural, englobamos
neste conceito todos os elementos que configuram a educação
escolar, ou seja, valores e objetivos orientadores das ações
educativas, atividades de ensino e de aprendizagem, materiais e
métodos de trabalho escolar, sistemas de poder e relações inter-
pessoais estabelecidas, organização e utilização dos espaços e
tempos escolares, avaliação de conhecimentos, saberes e formas
de expressão selecionadas, etc (LEITE, 2002, p.89).
A autora considera essa concepção de currículo a mais adequada a uma
escola que pretenda desenvolver um trabalho orientado pelo Multiculturalismo,
pois pressupõe a imprevisibilidade das situações e desenvolve um esforço
contínuo de reconhecimento e valorização da diferença.
A nossa concepção de currículo, neste trabalho de pesquisa, se aproxima
daquele apontado por Leite (2002). A autora entende o currículo:
como o conjunto de processos de seleção, organização, construção
e reconstrução culturais (no sentido amplo), ou seja, como tudo o
que existe enquanto plano e prescrição e tudo o que ocorre num
dado contexto e numa situação real de educação escolar. E,
evidentemente, pensamos o currículo nas relações que se
estabelecem entre os diferentes atores, experiências e saberes, nos
valores e crenças dos protagonistas da ação, nos papéis atribuídos
62
aos diferentes sujeitos e nos que por eles são assumidos nas
diversas dinâmicas, bem como na sua dimensão de intervenção e
reconstrução social (LEITE, 2002, p. 90).
Ao considerarmos a situação educacional real como elemento importante
na construção do currículo, torna-se necessário pensar também o papel dos
professores nesta construção. Esse papel não pode ser desvinculado do contexto
social e de sua prática profissional. Nem sempre há um interesse em uma
formação crítica do professor, que possibilite o questionamento da estrutura
social, das hierarquias, das disputas pelo poder etc. O poder hegemônico busca
um consenso de idéias, e isso se reflete de diferentes maneiras na sociedade, nos
meios de comunicação, nos cursos de formação profissional. Ao mesmo tempo,
existem movimentos de resistência que mostram as contradições do poder
hegemônico, nos dando elementos para questionar, para desenvolver um
pensamento crítico com relação às questões sociais. Esse fato nos torna também
responsáveis pelas atitudes que tomamos em sala de aula.
Como Leite (2002) aponta em seu trabalho de pesquisa, não consideramos
os professores como únicos responsáveis pelo sucesso ou insucesso dos alunos,
mas entendemos que eles têm uma ação importante, senão na configuração do
currículo, pelo menos em sua recontextualização e nas condições que criam para
a construção dos seus significados.
2.2. Escolarização e conhecimento / poder e discurso
McLaren (1997) entende a escolarização como um empreendimento
político e cultural, desenvolvendo ao mesmo tempo um papel que contribui para
emancipação pessoal e social por meio do conhecimento e um papel de
reprodução do modelo hegemônico das classes dominantes. Destaca a
importância de que os professores entendam o papel que a escolarização
representa ao unir conhecimento e poder:
As escolas são vistas não somente como locais de instrução, mas
como arenas culturais onde uma heterogeneidade de formas
ideológicas e sociais freqüentemente colidem em uma luta
63
incessante por poder. As escolas são analisadas de maneira
ambígua: como mecanismos de seleção nos quais grupos
privilegiados de estudantes são favorecidos com base em sua raça,
classe e gênero; e como agências para habilitação pessoal e social
(MCLAREN, 1997, p.192).
Leite (2002) compartilha deste entendimento quanto à dupla função que a
escola desempenha. Analisa a escola como um local no qual se desenvolvem
estratégias que fazem do processo de ensino e de aprendizagem, além de um
meio de reprodução, um meio de produção e transformação social.
É dessa forma também que compreendemos a função da escola. Ainda
que se privilegiem uma seleção de conteúdos pré-estabelecida com base em uma
cultura etnocêntrica e que se desenvolvam, muitas vezes, uma forma de trabalho
pedagógico que contribui para a exclusão de determinadas pessoas e
determinados grupos, acreditamos que existem práticas pedagógicas voltadas à
emancipação social, que contribuem para uma visão mais crítica e para a
transformação social. Apesar da aparente preocupação com a inclusão e a
igualdade de direitos, entendemos que o contexto sócio-político favorece as
práticas que contribuem para a manutenção das hierarquias pautadas na
desigualdade e na exclusão social por meio das propagandas, dos cursos e das
políticas para educação que são lançadas.
Para McLaren (1997), o conhecimento escolar é histórico, socialmente
enraizado e ligado ao interesse. A compreensão do conhecimento como
construção pressupõe dizer que o mundo em que vivemos é construído
simbolicamente pela mente, por meio da interação social, e é dependente da
cultura, contexto e costume.
Considerando que certos tipos de conhecimento legitimam certos
interesses de gênero, classe e raça, o autor apresenta alguns questionamentos
que contribuem para o desenvolvimento da ação reflexiva, como, por exemplo:
Este conhecimento serve aos interesses de quem? Quem é excluído como
resultado?
O privilégio de determinados interesses está relacionado à seleção e à
forma como uma grande parte dos conhecimentos se apresenta na escola. Uma
das preocupações fundamentais da pedagogia crítica é a compreensão dessa
relação que envolve poder e conhecimento. O currículo dominante, segundo
64
McLaren (1997), separa o conhecimento da questão de poder e o trata de uma
maneira técnica. O autor aponta que o trabalho do filósofo francês Michel Foucault
é essencial para a compreensão da natureza socialmente construída da verdade e
sua inscrição em relações de conhecimento/poder. Para este filósofo, as relações
de poder estão inscritas no que ele refere como discurso.
Desta forma, o discurso passa a receber destaque nos estudos que
envolvem a construção de subjetividades. Segundo McLaren (1997, p.213), as
práticas discursivas referem-se às regras pelas quais os discursos são formados,
regras que governam o que pode ser dito e o que deve permanecer em silêncio, e
quem pode falar com autoridade e quem deve ouvir.
McLaren (1997) considera que, para a educação, o discurso não é somente
composto por palavras, é também incorporado na prática das instituições, em
padrões de comportamento e em formas pedagógicas. O discurso crítico, que é
também auto-crítico, preocupa-se com os interesses e suposições que informam a
geração do próprio conhecimento:
[...] Discursos e práticas discursivas influenciam o modo pelo qual
vivemos nossas vidas como sujeitos (nossos modos de
compreensão do mundo), porque é somente na linguagem e
através do discurso que um sentido pode ser dado à realidade
social [...] (MCLAREN, 1997, p.214).
O autor afirma que o conhecimento, comparado à verdade, é socialmente
construído, culturalmente mediado e historicamente situado. Considerando que
Foucault retirou a verdade da esfera do absoluto, McLaren (1997) entende que a
verdade não é relativa, mas é relacional, pois as afirmações consideradas
‘verdadeiras’ dependem da história, contexto cultural e relações de poder,
disciplina, instituição, etc.
Ainda segundo este autor, a compreensão da relação poder/conhecimento
é um aspecto fundamental para o educador selecionar os conhecimentos que
podem conferir poder aos estudantes, identificando meios de opressão e
exploração relacionados a determinados conhecimentos. Além de
compreenderem o mundo ao seu redor, deve ser possibilitado aos alunos
exercitarem a coragem para mudar, quando necessário, a ordem social. As
relações de poder na escola tendem a distorcer a compreensão da realidade e
produzir aquilo que é aceito como verdade.
65
O autor salienta, ainda, que:
o conhecimento deve ser examinado não somente em relação
às maneiras pelas quais pode representar ou mediar
inadequadamente a realidade social, mas também em relação
às maneiras pelas quais ele de fato reflete a luta diária da vida
das pessoas. É importante entender que o conhecimento não
somente distorce a realidade, mas também oferece bases
para entender as condições atuais que informam a vida
cotidiana (...) (MCLAREN, 1997, p.216).
De acordo com McLaren (1997), em meio aos currículos racionalizados que
as escolas adotam, há um persistente silêncio em relação à maneira como
professores e alunos produzem e reconstroem o significado da vida diária. Para
esse autor, uma pedagogia crítica e afirmativa considera as histórias das
pessoas, a maneira como se constrói os significados e as experiências que dão
forma à voz de alunos e professores.
Baseando-se em Giroux, McLaren (1997) destaca que o conceito de voz
refere-se a um conjunto de significados interligados, e por meio deste, os alunos e
professores se engajam num diálogo ativo. O conceito da voz na prática docente
alerta os professores de que todo discurso é situado historicamente e mediado
culturalmente.
Ainda com relação à voz e a produção de significados em sala de aula,
McLaren (1997) argumenta:
A voz individual deve ser entendida em sua especificidade cultural e
histórica. O modo como os estudantes e professores e outros
definem a si próprios e nomeiam a experiência é um ponto central
de interesse pedagógico, pois auxilia os educadores a entenderem
como o significado de sala de aula é produzido, legitimado ou não
(MCLAREN, 1997, p. 252).
Ao mesmo tempo em que reflete o mundo, a voz também é uma força
constituinte, que dá forma à realidade dentro de práticas historicamente
construídas e relações de poder. Para McLaren (1997), cada voz individual é
formada pela história cultural e por experiências particulares anteriores.
Reconhecer a natureza social da linguagem e seu relacionamento com o
poder e com as formas de conhecimento, segundo McLaren e Giroux (2000), é o
que possibilita entender o processo escolar como um empreendimento político
66
culturalmente complexo. Os autores apontam que as identidades sociais são
construídas, os agentes sociais formados e as hegemonias culturais asseguradas,
por meio da linguagem. Ainda que não seja a única fonte de realidade, o
significado é criado, em grande parte, por meio da linguagem. Consideram que a
linguagem produz entendimentos particulares do mundo, ou seja, significados
particulares:
O significado é sempre um espaço colonizado, no qual a
necessidade já foi inscrita por códigos culturais e pelo campo mais
amplo de relações políticas, econômicas e sociais. A linguagem,
então, pode ser usada para definir e legitimar leituras diferentes do
mundo (...) (MCLAREN e GIROUX, 2000, p.31).
McLaren (1997) ressalta que a cultura escolar dominante, geralmente,
representa as vozes privilegiadas das classes média-altas brancas. Para uma
análise política da cultura escolar dominante é preciso questionar as vozes que
emergem de diferentes esferas. É o jogo que dá forma às diferentes vozes, não
como opostas, mas no contínuo esforço por poder, significado e autoria, que deve
ser analisado pelos professores em sala de aula.
McLaren e Giroux (2000) reafirmam que os textos da escola são, em
grande parte, produtos dos interesses que informam grupos culturais e sociais
dominantes. A leitura crítica procura desestabilizar os fatos reificados e
desfamiliarizar os mitos domesticantes, que servem freqüentemente para legitimar
relações existentes de poder e privilégio entre grupos dominantes. Por isso, é
fundamental questionarmos práticas que são tidas como “politicamente corretas”,
desnaturalizando situações que contribuem para a exclusão e desigualdade social
nas escolas e que muitas vezes não são sequer identificadas pelas diferentes
pessoas envolvidas no processo de ensino e aprendizagem.
A respeito da voz do professor, McLaren (1997) ressalta seu poder
opressor e o poder emancipador:
A voz do professor reflete os valores, ideologias e princípios
estruturais que os professores usam para entender e mediar as
histórias, culturas e subjetividades dos estudantes. [...] Como no
caso da voz da escola, a voz do professor compartilha de um
discurso autoritário que freqüentemente silencia as vozes dos
estudantes. De um lado, o poder opressivo da voz autoritária do
professor pode ser visto como um exemplo daquilo que Bourdieu
chama de violência simbólica. A violência simbólica é exercida, por
exemplo, quando um professor usa seus estreitos valores para
67
desafiar ou rejeitar as crenças e experiências dos estudantes de
grupos subordinados. Por outro lado, o poder emancipador da voz
de autoridade do professor é exercido quando se permite que a voz
do aluno avalie a si mesma, de modo a ser confirmada e analisada
nos termos dos valores particulares e ideologias que ela representa.
No último caso, a voz do professor pode proporcionar um contexto
crítico dentro do qual os estudantes podem entender as várias
forças sociais e configurações do poder que colaboraram na
formação de suas próprias vozes. Os estudantes que exibem
valores e práticas cotidianas de grupos subordinados podem
aprender a se libertar do controle autoritário do discurso da classe
média como forma de auto-afirmação, sem rejeitar nem ao seu
próprio discurso de classe trabalhadora, nem, no caso, o discurso
da classe média (MCLAREN, 1997, p.253).
Segundo o autor, o caráter emancipatório da voz dos professores está
relacionado à autocompreensão e à possibilidade de encontrarem-se em uma voz
coletiva como parte de um movimento social dedicado a reconstruir as condições
ideológicas e materiais tanto dentro quanto fora do ensino.
McLaren e Giroux (2000) analisam que quando o conhecimento é
produzido de modo não-refletido, por meio da linguagem, ele tende a mascarar-se
na forma de ‘verdades fixas’ ou de ‘fatos existentes’ sobre o mundo social, como
se tais fatos fossem imunes a relações particulares de poder e a interesses
materiais.
Os autores consideram os discursos como práticas materiais em si, pois
emergem e são constitutivos de configurações particulares de poder, vinculado-
os a uma posição ideológica. Os discursos localizam a história não nos registros
de uma versão universalizada de verdade, mas em uma noção de práticas
significantes. Tais práticas são assumidas como uma política de localização ou da
posicionalidade do indivíduo que é informada pela raça, pelo gênero, pela
orientação sexual e por outras determinações culturais e sociais (ibid, p.34).
A escolarização é marcada por diversas vozes, umas mais fortes - tentando
impor suas concepções, seus valores, seus comportamentos - e outras mais
fracas, que ainda assim conseguem se manter durante todo o período de
escolarização, resistindo aos processos de dominação. Entendemos que uma
educação crítica deve questionar as diferentes vozes existentes na escola,
principalmente as que expressam os interesses dos grupos dominantes, que
naturalizam os meios da dominação que exercem, para manter a hegemonia.
68
Para isso, é importante a compreensão de quais conhecimentos e de como são
trabalhados no sentido de contribuírem para assegurar o poder de alguns grupos.
2.3. Multiculturalismo, escola, educação e currículo
Moreira (1997) indica que a produção mais recente sobre currículo tem sido
marcada pela influência do pensamento pós-moderno.
Baseando-se em Giroux, o referido autor destaca que o pós-modernismo
leva a mudanças na constituição dos mapas social, cultural e geográfico do
mundo, produzindo novas formas de crítica social. As questões do significado,
identidade e política são analisadas sob novo prisma, com destaque para
linguagem e textos. O currículo passa a ser concebido como um todo significativo,
um texto, como instrumento de construção de identidades e subjetividades a partir
da luta em torno de símbolos e significados. Essa visão de currículo inclui planos
e propostas, o que de fato acontece nas escolas e nas salas de aula e as regras e
normas não explicitadas que governam as relações que se estabelecem nas salas
de aula.
Silva (2002, p.87) aponta que a perspectiva crítica do Multiculturalismo está
dividida entre a concepção pós-estruturalista e uma concepção “materialista”.
Para a concepção pós-estruturalista, a diferença é essencialmente um processo
lingüístico e discursivo. A diferença não pode ser concebida fora dos processos
lingüísticos de significação. A diferença não é uma característica natural: ela é
discursivamente produzida [...].
Quanto à visão “materialista”, inspirada no marxismo, o autor argumenta
que há uma ênfase maior nos processos institucionais, econômicos, estruturais
que produzem a discriminação e desigualdade que têm como base a diferença
cultural. O racismo, por exemplo, não pode ser analisado a partir somente do
discurso, mas também das estruturas institucionais e econômicas que estão em
sua origem. O combate a expressões lingüísticas racistas deve ser acompanhado
do combate ao racismo no emprego, na educação, na saúde, etc.
Concordamos com o autor quando este aponta que o currículo, inspirado
na concepção crítica, não se limitaria a ensinar a tolerância e o respeito, insistiria
69
na análise dos processos pelos quais as diferenças são produzidas através de
relações assimétricas e da desigualdade:
O texto curricular, entendido aqui de forma ampla – o livro didático e
paradidático, as lições orais, as orientações curriculares oficiais, os
rituais escolares, as datas festivas e comemorativas – está
recheado de narrativas nacionais, étnicas e raciais. Em geral, essas
narrativas celebram os mitos da origem nacional, confirmam o
privilégio das identidades dominantes e tratam as identidades
dominadas como exóticas ou folclóricas. [...] A questão torna-se
então: como desconstruir o texto racial do currículo, como
questionar as narrativas hegemônicas de identidade que constituem
o currículo? (SILVA, 2002, p. 102).
Silva (2002) aponta que uma perspectiva crítica buscaria incorporar ao
currículo estratégias de desconstrução das narrativas e das identidades nacionais,
étnicas e raciais. Desta forma, o currículo não se tornaria multicultural pelo
simples acréscimo de conteúdos e informações superficiais sobre diferentes
culturas. Na perspectiva crítica, esse currículo trataria a questão da diferença
como uma questão histórica e política. Não se trata simplesmente de celebrar a
diferença e a diversidade, mas de questioná-la. [...] Um currículo multiculturalista
desse tipo deixaria de ser folclórico para se tornar profundamente político (ibid,
p.102).
O autor destaca que a questão do racismo não pode ser tratada como uma
questão de preconceito individual. Segundo este autor, o racismo é parte de uma
matriz mais ampla de estruturas institucionais e discursivas que não podem
simplesmente ser reduzidas a atitudes individuais. Assim, um currículo crítico
deveria, além de questionar e criticar as atitudes racistas individuais, centrar-se na
discussão das causas institucionais, históricas e discursivas do racismo.
Segundo Candau e Arnhon (2002), desde os anos 1980 e 1990, vem
crescendo no Brasil uma nova consciência das diferentes culturas presentes no
tecido social e um forte questionamento do mito da democracia racial. Ressaltam
que se torna urgente a desnaturalização da cultura escolar dominante nos
sistemas de ensino, buscando-se caminhos de incorporar positivamente a
diversidade cultural no cotidiano escolar.
As autoras supracitadas destacam a relevância do estudo da problemática
das relações entre diversidade cultural e cotidiano escolar para a construção de
uma escola verdadeiramente democrática hoje. Apontam que se trata de uma
70
questão pouco trabalhada entre os pesquisadores da educação, considerando
que se faz urgente à incorporação da dimensão cultural na prática pedagógica,
entendida não somente como um determinante macroestrutural, mas também
como um elemento construído no interior da escola e parte do cotidiano escolar
(ibid, p.107).
O currículo, na teoria crítica da educação, representa mais do que um
programa de estudo ou um texto de sala de aula. Ele representa, segundo
McLaren (1997), a introdução a uma forma particular de vida, servindo para
preparar estudantes para posições dominantes ou subordinadas na sociedade,
pois favorece certas formas de conhecimento, afirma sonhos, desejos e valores
de determinados grupos sobre outros.
Considerando que é no currículo em ação que se materializam diferentes
formas de pensar o mundo, o conhecimento, etc., que marcam o processo de
ensino e aprendizagem, torna-se fundamental a compreensão de como ele
acontece em sala de aula, para que seja possível o desenvolvimento de um
currículo mais voltado à emancipação social.
2.4. Multiculturalismo e prática pedagógica
Com relação às diferentes posturas dos profissionais da educação no que
diz respeito à educação Multicultural, Candau et al. (2002) destacam que uma
delas pode ser denominada de a-crítica e refere-se aos educadores que não têm
consciência clara da relação entre escola e cultura. Os conflitos e tensões no
âmbito escolar são interpretados em nível individual ou de grupos específicos, e a
forma de abordar tais problemas é reduzida aos aspectos relacionais, não
chegando a afetar a dinâmica escolar como tal. Sugerem que talvez esta seja a
postura mais comum entre os profissionais de educação.
Uma outra postura, denominada intercultural, é descrita por Candau (2005)
como uma perspectiva que supõe a inter-relação entre diferentes grupos
socioculturais, que afeta a educação em todas as suas dimensões:
71
favorecendo uma dinâmica de crítica e autocrítica, valorizando a
interação e a comunicação recíprocas. [...] A interculturalidade
orienta processos que têm por base o reconhecimento do direito à
diferença e a luta contra todas as formas de discriminação e
desigualdade social. Tenta promover relações dialógicas e
igualitárias entre pessoas e grupos que pertencem a universos
culturais diferentes, trabalhando os conflitos inerentes a esta
realidade (CANDAU, 2005, p.32).
Baseando-se em Forquin, a autora ressalta que o Multiculturalismo é um
dado da realidade – vivemos em sociedades multiculturais. O Interculturalismo
configura-se como uma tomada de posição diante dessa realidade. Ressalta,
ainda, que uma condição fundamental para que qualquer processo seja
qualificado de intercultural é que ele seja marcado pela intenção de promover uma
relação democrática entre os grupos e não unicamente uma coexistência pacífica
num mesmo território.
Como apontamos anteriormente, optamos por utilizar o termo
Intermulticultural por entender que as diferentes culturas coexistem socialmente
mantendo especificidades, mas também se inter-relacionam e se transformam ao
mesmo tempo. Ressaltamos que, neste trabalho, mantivemos os termos
multicultural e intercultural quando utilizadas pelos diferentes autores.
Segundo Candau (2005), a educação intercultural rompe com a visão
essencialista das culturas e das identidades culturais, situando-se em confronto
com as visões diferencialistas que favorecem processos radicais de afirmação de
identidades culturais específicas. Tem ainda como princípio que os processos de
hibridização cultural são intensos e mobilizadores da construção de identidades
abertas, em construção permanente. A autora acrescenta, ainda, que a educação
intercultural é consciente dos mecanismos de poder que permeiam as relações
culturais, e que não desvincula as questões da diferença e da desigualdade
presentes em nossa sociedade, aproximando esta perspectiva de
interculturalidade ao Multiculturalismo crítico de McLaren.
Candau (2005) apresenta alguns desafios tendo em vista a promoção de
uma educação intercultural na perspectiva crítica emancipatória, agrupados em
torno de ações que considera fundamentais: desconstruir, articular, resgatar e
promover.
72
O primeiro desafio – desconstruir - envolve a penetração no universo de
preconceitos e discriminações presentes na sociedade brasileira, questionando os
elementos que os fazem parecer naturais, reconhecendo o caráter desigual,
discriminador e racista de nossa sociedade, da educação e de cada um de nós.
(idid, p.34) Ainda como parte deste desafio, a autora ressalta que é preciso
questionar o caráter monocultural e o etnocentrismo presentes nos currículos
escolares.
A educação intercultural segundo Candau et al (2002), afeta aspectos do
currículo explícito e do currículo oculto, assim como as relações entre os
diferentes agentes do processo educativo. Os autores consideram desafios
iniludíveis o trabalho com ritos, símbolos e imagens que constituem o dia-a-dia da
sala de aula, procurando desenvolver a auto-estima dos sujeitos e construir
relações mais democráticas.
Articular igualdade e diferença constitui o segundo desafio para a
promoção de uma educação intercultural no nível das políticas públicas e das
práticas pedagógicas.
O terceiro desafio é o de resgatar os processos de construção das nossas
identidades culturais no nível pessoal e no coletivo, dando atenção à hibridização
cultural e à constituição de novas identidades culturais. É importante que se opere
com um conceito dinâmico e histórico de cultura, capaz de integrar as raízes
históricas e as novas configurações, evitando-se uma visão das culturas como
universos fechados (...) (Candau, 2005, p.34).
O último desafio apresentado pela autora é o de promover experiências de
interação sistemáticas com os “outros”, com projetos que envolvam uma dinâmica
sistemática de diálogo e construção conjunta entre diferentes pessoas e grupos,
afetando todos os atores e todas as dimensões do processo educativo. Esse
desafio envolve ainda o favorecimento de processos de ‘empoderamento’, que
começa por liberar a possibilidade, o poder, a potência que cada pessoa tem, para
que ela possa ser sujeito da vida social e ator social. O ‘empoderamento’ tem
também uma dimensão coletiva, trabalha com grupos sociais minoritários,
discriminados, marginalizados etc., favorecendo sua organização e participação
social ativa na sociedade civil (ibid, p. 35).
73
Esse caminho, marcado por desafios, proposto pela autora, aponta para a
superação de práticas pedagógicas que privilegiam o modelo etnocêntrico, que
valorizam uma cultura dominante em detrimento da diversidade cultural que existe
nas escolas.
Cortesão (2006, p. 80) apresenta um quadro que auxilia na caracterização
das formas de ação do/a professor/a em sua prática educativa, considerando
simultaneamente: o tipo de conhecimento e como o professor tem acesso a ele; a
forma como esse conhecimento é apresentado ao/à aluno/a; e o contexto e o nível
de ensino em que o/a professor/a trabalha:
Os diferentes quadrantes estão relacionados a práticas pedagógicas
diferenciadas que envolvem desde um trabalho no qual está mais presente o
monoculturalismo, no conteúdo e na forma, até um trabalho que revela atenção às
diferenças culturais. No quadrante 1, por exemplo, o/a professor/a recorre
74
exclusivamente ao livro didático para realizar um ensino expositivo, características
apontadas por Cortesão (2006) neste nível. O professor numa atitude que poderá
ser classificada de “daltônica”, limita-se a comunicar, a transmitir os
conhecimentos com maior ou menor clareza a um público encarado por ele como
sendo homogêneo e a quem cabe o papel de receptor (ibid, p. 86).
Já no quadrante 7, o trabalho do/a professor/a se caracteriza pela
aquisição de conhecimentos a partir de manuais, mas se preocupa em adequar as
formas de tratamento desses conteúdos ao tipo de estudante. Segundo Cortesão
(2006, p.93), neste quadrante estão professores, que, pelo menos em
determinados contextos, tentam atender a diferenças de que se dão conta
existirem nos seus alunos e recorrem predominantemente a pedagogias invisíveis,
com preocupações geralmente mais emancipatórias (ibid, p. 93).
Os estudos na linha do Multiculturalismo têm como propósito, para Moreira
e Macedo (2002), a superação do Monoculturalismo, com uma nova postura e
novos objetivos informando os conteúdos selecionados em todas as áreas de
conhecimento, favorecendo a afirmação de identidades de grupos minoritários.
Considerando as identidades individuais e coletivas como fragmentadas e
descentradas, sem deixar de lado a categoria classe social como importante
elemento na formação da identidade, Moreira e Macedo (2002) procuram
compreender esse processo de formação no mundo contemporâneo, sugerindo:
que docentes e estudantes examinem que partes de seus eus são
autorizadas a penetrar nas salas de aula e nos currículos e que
partes são expulsas como indesejáveis, incomodas ou subversivas.
[...] Que identidades são apresentadas como exemplos a serem
seguidos, como centradas e unificadas? Como procuramos
questionar modelos dominantes? (MOREIRA e MACEDO, 2002, p.
25).
A intenção apontada pelos autores é de reconhecer e problematizar a
construção das categorias com base nas quais nossas identidades se constituem,
para que seja possível entender os significados das diferenças que separam uns
indivíduos de outros.
Os autores destacam a importância do diálogo no estabelecimento de uma
prática curricular centrada na diferença, na justiça social e na construção de um
projeto utópico:
75
Na verdade, quando se fala em diálogo entre professor e aluno,
encobrem-se suas múltiplas e contraditórias posições de sujeito,
impossíveis de serem integradas nessas identidades mestras.
Assim, há que se admitir a presença, na escola e na sala de aula,
de relações de poder entre as diferentes classes sociais, raças e
gêneros de estudantes e professores. A sala de aula não se revela,
portanto, ambiente necessariamente seguro e propício à ocorrência
do diálogo e ao desenvolvimento de relações democráticas
(MOREIRA e MACEDO, 2002, p. 27).
Leite (2002) indica três tipos de respostas educativas ao Multiculturalismo:
assimilacionismo: a diversidade cultural e qualquer característica
percebida como diferente do comportamento ou regra padrão é vista
como um problema perturbador da ordem instituída e do consenso
social. Algumas denominações que fazem parte deste tipo de resposta:
caldo de culturas, salada de culturas (indicando a homogeneização),
monoculturalismo e aceitação passiva e benevolente da diversidade;
compensação: (...) reconhecem já a existência de diferentes culturas,
mas optam, na procura da igualdade e da eliminação de situações de
discriminação, por submeter os alunos e alunas pertencentes aos
grupos minoritários a processos e a estratégias de ensino que permitam
superar aquilo que é considerado ser o seu “déficit”. O sucesso e o
fracasso escolar são atribuídos aos alunos, a partir de suas
características culturais, e não ao sistema e ao currículo;
programas igualitários: reconhecimento da diferença, do direito a essa
diferença e dos efeitos positivos e enriquecedores que podem advir das
interações culturais;
Segundo Leite (2002), a ênfase da educação nas questões da diversidade
cultural tem sido alvo das críticas dos teóricos radicais. Eles argumentam que
essa perspectiva é incapaz de lidar com as desigualdades estruturais que
interferem diretamente nas condições de vida das crianças dos grupos
minoritários. Consideram, ainda, que a educação multicultural não é
suficientemente política, servindo apenas para acalmar as minorias enquanto não
76
mudam as ordens sociais. Outros, pelo contrário, se opõem a ela por ser
demasiado ‘política’.
Com base em Forquin, Leite (2002) aponta que o respeito pelas culturas
não é possível se não formos capazes de um pensamento transcultural. Seria
necessário, então, reconhecermos a alteridade do outro como uma outra
modalidade possível de ser humano e reconhecermos a alteridade como uma
dimensão constitutiva de nós próprios.
Leite (2002, p. 161) apresenta um quadro com diferentes tipos de educação
face à diversidade cultural: assimilação / homogeneização cultural; constatação do
Multiculturalismo; promoção do anti-racismo; e promoção da aprendizagem
interativa / interculturalismo anti-racista.
Atualmente, não é comum que se diga que uma criança apresenta déficit
cultural e necessidade de compensação pedagógica. No entanto, ressalta Leite
(2002, p.211), em termos ideológicos e das práticas, são ainda estas idéias que
imperam nos cotidianos escolares. [...] É esta atitude de uma educação escolar
que trata os alunos, em si diferentes, como se todos fossem iguais e como se
apenas de um se tratasse, que tem sido responsável pelos elevados índices de
insucesso escolar, privilegiadamente penalizantes dos grupos e culturas mais
afastados da cultura escolar [...].
A autora ressalta que a partir do momento em que se deixa de situar as
questões do sucesso/insucesso escolares em termos de deficiência cultural e se
passa a considerá-las como diferença cultural, não faz mais sentido a idéia de um
currículo uniforme construído e desenvolvido para um tipo único de aluno, sendo
necessária uma constante inovação curricular, com a participação ativa dos/as
professores/as.
No entanto, a autora aponta que uma análise geral dos papéis atribuídos
aos professores no sistema escolar revela que estes nem sempre são estimulados
a participar na elaboração do currículo e nem os próprios professores têm
reivindicado essa participação.
Assim como Leite (2002), consideramos a escola um espaço onde há
reprodução e também produção de novos saberes. Há uma predominância da
cultura dominante, mas também convivem as manifestações das culturas
dominadas, num espaço socializador de conflito e de emancipação.
77
Com base em treze linhas de força apresentadas por Rey para ultrapassar
a tradição monocultural, Leite (2002) defende as seguintes idéias:
- as culturas devem ser aprendidas no seu dinamismo através de
processos interativos que impliquem reconhecimentos mútuos e
que desocultem relações de dominação;
- a educação intercultural é um princípio subjacente a toda a
atividade escolar e não uma nova disciplina [...];
- uma postura e opção interculturais pressupõem uma ação integrada
que não se esgota nos conteúdos e materiais selecionados para o
ensino e a aprendizagem. Ao contrário, atravessam todos os
aspectos da organização de programas e dos horários escolares, a
seleção dos recursos materiais e humanos, o tipo de atividades
extra-escolares;
- a escola é o lugar privilegiado de coeducação e tem de ser o lugar
de criação de condições de comunicação real entre alunos de
origens diversas, por forma a permitir uma partilha de experiências
e o desenvolvimento de atitudes de aceitação;
- é importante a valorização das culturas maternas dos diversos
grupos presentes na escola, quer pelo poder de expressão da
identidade pessoal e social, quer pela significação que comporta
enquanto reconhecimento do direito à diferença;
- a arte [...] é uma forma privilegiada de comunicação e
reconhecimento das diversas culturas;
- a implicação das famílias e outros elementos da comunidade é uma
condição importante de aprendizagem e um fator gerador de maior
conhecimento e articulação entre eles;
- os professores têm um papel importante na educação para a
vivência intercultural, na compreensão dos alunos, famílias etc, que
vieram de outros lugares, no respeito a diversidade das línguas, dos
modos de vida, das religiões etc. (LEITE, 2002, p.364).
A autora defende uma educação na qual a presença de culturas diferentes
possa gerar vivências de interação estimuladoras da alteridade e da construção
de identidades. Para tanto, é preciso (re) inventar dinâmicas escolares que se
orientem no sentido da autonomia e de processos de inovação contínua,
estruturados na criatividade dos professores (individual e coletivamente) e na
capacidade das escolas para recriarem e retificarem objetivos e modalidades de
ação (...) (Leite, 2002, p. 566).
As condições do exercício profissional são um fator importante para o
desenvolvimento de projetos educativos adequados. Leite (2002) destaca ainda
que os professores precisam adquirir saberes que permitam lidar com as
características diversas da população escolar e que a administração facilite esse
processo.
78
Neste capítulo, procuramos apresentar como se articulam as linhas teóricas
sobre currículo e Multiculturalismo. Destacamos, apoiada em autores/as como
Candau (2005), McLaren (2000b), Leite (2002), dentre outros, que a prática
pedagógica pode configurar diferentes formas de relação com as diferenças
culturais, desde o não reconhecimento da existência dessas diferenças em sala
de aula até o questionamento crítico da construção da interação entre elas. São
esses os elementos utilizados como base para as análises dos dados coletados
nesta pesquisa.
79
Capítulo 3 - Metodologia
Neste capítulo, apresentamos o caminho metodológico percorrido pela
pesquisa. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, com coleta realizada em
ambiente natural e analisada por meio de categorias levantadas a partir dos
próprios dados, de acordo com o referencial teórico adotado.
Alves-Mazzotti e Gewandsnajder (1998), com base nos estudos de Patton,
apontam algumas características da Pesquisa Qualitativa, as quais consideramos
relevantes também para compreensão da metodologia deste estudo. Os autores
indicam que o “paradigma qualitativo” segue a tradição compreensiva e
interpretativa, ou seja, parte do pressuposto de que as pessoas agem em função
de suas crenças, percepções, sentimentos e valores que seu comportamento tem
sempre um sentido, um significado que não se dá a conhecer de modo imediato,
precisando ser desvelado (...) (ibid, p. 131).
Essa característica foi marcante em nossa pesquisa, especialmente no
período de coleta dos dados. Ao iniciarmos as observações em sala de aula,
foram necessários alguns dias para que aquele ambiente, supostamente rotineiro
e tranqüilo, nos revelasse relações que merecessem ser analisadas, tendo em
vista os objetivos de pesquisa e o referencial teórico adotado. Entendemos que
esse ambiente, assim como os valores, sentimentos e crenças que levam as
pessoas a agirem de determinadas maneiras, estão inseridos em um contexto
maior e que essa relação também deve ser considerada.
Partindo dessa tradição compreensiva e interpretativa, os estudos
qualitativos apresentam ainda três características essenciais: visão holística,
abordagem indutiva e investigação naturalística. Segundo Alves-Mazzotti e
Gewandsnajder (1998):
a visão holística parte do princípio de que a compreensão do
significado de um comportamento ou evento só é possível em
função da compreensão das inter-relações que emergem de um
dado contexto. A abordagem indutiva pode ser definida como
aquela em que o pesquisador parte de observações livres, deixando
que dimensões e categorias de interesse emerjam
progressivamente durante os processos de coleta e análise de
dados. Finalmente, investigação naturalística é aquela em que a
80
intervenção do pesquisador no contexto observado é reduzida ao
mínimo (ALVES-MAZZOTTI e GEWANDSNAJDER, 1998, p. 131).
O referencial teórico que orientou, predominantemente, este trabalho é de
orientação marxista, pois esta abordagem se propõe a captar o movimento, as
contradições e os condicionamentos históricos (Minayo, 2004, p.230). São autores
e autoras que têm como base de suas análises o marxismo, mas se distanciaram
da linha mais ortodoxa. Muitos deles tentam conciliar o foco central das análises
marxistas – economia e luta de classes – com elementos do pós-modernismo e
pós-estruturalismo.
Particularmente, consideramos indispensáveis para a compreensão dos
objetos de pesquisas sociais algumas contribuições da linha pós-moderna e pós-
estruturalista, principalmente as referentes às diferenças e construção de
identidades, às culturas, às relações de poder. No entanto, também consideramos
indispensável que essa compreensão esteja inserida em um contexto, no qual
devemos considerar a relevância dos aspectos econômicos do capitalismo e, mais
que isso, que tenhamos uma direção para caminhar. Não um modelo
completamente fechado de sociedade, no qual tudo já esteja determinado - o que
na realidade não existe-, mas que nos orientemos para a construção de um
mundo diferente do mundo capitalista, que tenha como objetivos a igualdade de
oportunidades, como na sociedade socialista, o fim da exclusão social e do
racismo. Consideramos muito difícil alcançar estes princípios dentro de um
sistema que tem como um dos elementos centrais a necessidade de manutenção
de uma taxa de desemprego constante e a competição como estratégia para
ascensão em meio à desigualdade de oportunidades. Por isso, entendemos que a
transformação social é um importante elemento que deve estar aliado às
pesquisas educacionais.
Tendo em vista estas considerações sobre a relação entre o espaço micro
e macro de pesquisa, optamos por desenvolver este trabalho seguindo a
orientação teórico-metodológica da Teoria Crítica. Segundo Alves-Mazzotti e
Gewandsnajder (1998), a palavra crítica assume pelo menos dois sentidos na
pesquisa qualitativa. Um deles é relativo ao raciocínio teórico e os procedimentos
de seleção, coleta e avaliação dos dados, buscando a consistência lógica entre
argumentos, procedimentos e linguagem. O segundo sentido é relativo ao papel
81
da ciência na transformação da sociedade, com ênfase na análise das condições
de regulação social, desigualdade e poder.
Os autores ressaltam que a abordagem crítica é essencialmente relacional,
dedicando-se à investigação do que ocorre nos grupos e instituições relacionando
as ações humanas com a cultura e as estruturas sociais e políticas, procurando
compreender como as redes de poder são produzidas, mediadas e transformadas.
Nessa perspectiva, a subjetividade deve ser admitida e compreendida como parte
da construção de significados inerentes às relações sociais estabelecidas no
campo de pesquisa.
Ainda como parte do referencial metodológico da pesquisa, faremos
algumas considerações breves sobre a dialética materialista histórica, pois este é
um conceito fundamental para o entendimento da metodologia e dos resultados
das pesquisas realizadas a partir da orientação marxista. Corremos, entretanto, o
risco de simplificação deste conceito já que apresentaremos uma idéia geral para
que não nos afastemos do foco deste estudo.
Sem pretender fixá-la, Frigotto (1989, p.73), entende a dialética materialista
histórica como uma postura ou concepção de mundo; enquanto um método que
permite uma apreensão radical (que vai à raiz) da realidade e, enquanto práxis,
isto é, unidade de teoria e prática na busca da transformação e de novas sínteses
no plano do conhecimento e no plano da realidade histórica.
O pensamento materialista histórico indica que a realidade existe
independentemente das idéias e dos pensamentos. As idéias e os pensamentos
são o reflexo das realidades e leis dos processos que se passam no mundo
exterior. Porém, o reflexo não é toda realidade, mas constitui-se na apreensão
subjetiva da realidade objetiva (ibid, p. 75).
O autor destaca que é no plano da realidade, no plano histórico, que a
dialética se situa, sob a forma da trama de relações contraditórias, conflitantes, de
leis de construção, desenvolvimento e transformação dos fatos (ibid, p.75). O
pensamento, que se move no plano abstrato, teórico, tem como desafio trazer
essa dialética do real para o plano do conhecimento.
São os movimentos de superação e de transformação que explicitam,
segundo Frigotto (1989), a dialética materialista como postura, método de
investigação e práxis.
82
A dialética trata da “coisa em si” que não se manifesta imediatamente. Para
se chegar a essa “coisa em si”, Frigotto (1989) destaca a necessidade de se ter
como ponto de partida os fatos empíricos que nos são dados pela realidade. Isso
implica, ainda, superar as primeiras impressões e ascender ao seu âmago, às
suas leis fundamentais. O ponto de chegada não serão as representações
primeiras, mas o concreto pensado.
Segundo Lefebvre (1995, p.236), as leis do método devem ser concretas
no sentido de que os permitem penetrar em todo objeto, em toda realidade. Com
efeito, são as leis internas, necessárias, de todo devir: de todos os objetos e de
cada objeto, do universo como totalidade e de cada objeto como parcela do
universo.
Neste sentido, Sanfelice (2005, p.89) entende que a questão central, do
ponto de vista da pesquisa dialética, é que o “em si”, ontologicamente, se constitui
sempre em movimento. Na fluidez do “em si” dos fenômenos há uma
(não)permanência: a (não)permanência do movimento, do processo, da mudança.
Nesta perspectiva, o conhecimento histórico tem caráter relativo, parcial,
provisório. Assim, o conhecimento científico não busca todas as determinações e
leis de um fenômeno social, mas busca suas determinações e leis fundamentais.
distinção entre o fundamental e o secundário, o necessário e o fortuito, é o
princípio epistemológico sem o qual não é possível construir conhecimento
científico (ibid, p. 81).
Sanfelice (2005) ressalta que não há conhecimento absolutizado, mas
somente relativo, no sentido de que se constitui como parte de um todo, o que não
impossibilita o conhecimento de fato do objeto de análise.
O conhecimento é fundamental para se desenvolver uma prática voltada à
transformação social. Segundo Frigotto (1989):
No processo dialético de conhecimento da realidade, o que importa
fundamentalmente não é a crítica pela crítica, o conhecimento pelo
conhecimento, mas a crítica e o conhecimento crítico para uma
prática que altere e transforme a realidade anterior no plano do
conhecimento e no plano histórico-social (FRIGOTTO, 1989, p.81).
Como exposto anteriormente, o autor reafirma que o processo de perquirir
e analisar as leis históricas que estruturam, desenvolvem e transformam os fatos
83
sociais é algo a ser prática e historicamente demonstrado e não algo que dependa
de negociação, conciliação ou consenso.
Alguns aspectos são essenciais para a análise que tem como base a
dialética materialista histórica. A fim de tornar mais compreensível este processo,
apresentamos brevemente cinco grandes leis do método dialético apontadas por
Lefebvre (1995):
Lei da interação universal (da conexão, da “mediação” recíproca de tudo
o que existe): considera cada fenômeno no conjunto de suas relações
com os demais fenômenos e no conjunto das manifestações e dos
aspectos daquela realidade. Quando se isola um objeto de estudo,
deve-se considerar que ele é parte de um contexto maior e deverá
voltar para este contexto para que não seja privado de sentido, de
explicação, de conteúdo;
Lei do movimento universal: compreende o movimento interno do
fenômeno, que provém dele mesmo, e o movimento externo, que o
envolve no devir universal, sendo esses movimentos inseparáveis;
Lei da unidade dos contraditórios: A contradição dialética é uma
inclusão (plena, concreta) dos contraditórios um no outro e, ao mesmo
tempo, uma exclusão ativa. [...] O método dialético busca captar a
ligação, a unidade, o movimento que engendra os contraditórios, que os
opõe, que faz com que se choquem, que os quebra ou os supera (ibid,
p. 238).
Transformação da quantidade em qualidade (lei dos saltos): as
modificações quantitativas lentas resultam numa súbita aceleração do
devir. A modificação qualitativa apresenta características bruscas,
expressando uma crise interna da coisa, através de uma intensificação
de todas as contradições. O salto dialético implica, simultaneamente, a
continuidade (o movimento profundo que continua) e a descontinuidade
(o aparecimento do novo, o fim do antigo) (ibid, p. 239).
Lei do desenvolvimento em espiral (da superação): No devir do
pensamento e da sociedade, revela-se ainda mais visivelmente o
movimento “em espiral”: o retorno acima do superado para dominá-lo ou
aprofundá-lo, para elevá-lo de nível libertando-o de seus limites. A
84
contradição dialética é já “negação” e “negação da negação”, visto que
as contradições estão em luta efetiva. Desse choque, que não é um
choque “no pensamento”, no abstrato, no plano subjetivo (embora dê
lugar a um “choque de pensamentos”), surge uma promoção mais
elevada do conteúdo positivo que se revela e se libera no e pelo conflito
(ibid, p. 240).
Como já foi escrito anteriormente, essas leis não compõem um método
fechado de análise da realidade, mas dão subsídios para a compreensão das
relações que se estabelecem num dado momento e das transformações que
estão acontecendo. Minayo (2004) aponta alguns princípios da lógica dialética que
podem orientar um trabalho de campo a partir da perspectiva marxista: a inter-
relação entre particular e geral; a dificuldade de apreensão está no pensamento e
não na realidade; a marcha do real é sempre mais verdadeira e profunda do que
nossa capacidade de apreendê-lo; entre os fatores objetivos e subjetivos, entre o
material e o espiritual, há uma relatividade.
Em síntese, para a realização deste estudo nos orientamos por posturas
críticas, sem descartar contribuições do pós-estruturalismo, para interrogar a
realidade escolar, procurando compreender quais relações são produzidas e o
que elas produzem levando-se em conta o contexto social em que vivemos.
Recorremos, para este fim, à observação de práticas pedagógicas em duas salas
de aula, entrevistas com as professoras e a análise de conteúdo do material,
instrumentos esses caracterizados a seguir.
3.1. A observação
Como já indicado na introdução deste trabalho, realizamos as observações
para coleta de dados em duas turmas das séries iniciais do Ensino Fundamental
(1ª e 4ª séries). Foram trinta dias de observação em cada sala, distribuídas
durante os dois semestres do ano de 2004.
85
As observações foram realizadas com a finalidade de nos aproximarmos do
objeto de pesquisa, de estarmos em contato direto com a realidade a ser
analisada, possibilitando a percepção das relações estabelecidas entre as
professoras, os alunos e os conteúdos. As observações realizadas se constituíram
em principal fonte de dados para este estudo.
A coleta de dados na 1ª. série foi realizada no primeiro semestre de 2004 e
na 4ª. série no segundo semestre do mesmo ano. As observações foram feitas
três vezes por semana, sendo que, no total, foram trinta dias de observação em
cada sala de aula distribuídos durante o semestre letivo. As duas turmas tinham
aulas no período da manhã, das 7 às 12 horas. Durante o recreio ficávamos na
sala dos professores e, algumas vezes, no pátio com os alunos.
Assim, os períodos de observação foram marcados por nosso contato com
as professoras e com os alunos. Ocorreram conversas informais com as
professoras, sobre dificuldades que enfrentavam na sala de aula e na escola e,
também, sobre o que pensavam sobre as situações que ocorriam em sala de aula,
além de conversas com os alunos e auxílio para realização de atividades. Esses
aspectos dão um certo grau de participação às observações, devido à existência
de interação entre observador e observado.
Lessard, Goyette e Boutin (1994) afirmam que na observação participante,
o investigador é o instrumento principal de observação, pode compreender o
mundo social do interior. A observação participante é, portanto, uma técnica de
investigação qualitativa adequada ao investigador que deseja compreender um
meio social que, à partida, lhe é estranho ou exterior e que lhe vai permitir
integrar-se progressivamente nas atividades das pessoas que nele vivem (ibid,
p.155).
Os autores ressaltam, ainda, que a observação participante permite
recolher dois tipos de dados: um descritivo, que são os registrados nas “notas de
trabalho de campo”, e um compreensivo, que faz apelo à sua própria
subjetividade.
Outro importante aspecto, apontado por autores como Leite (2002), é a
aceitação do observador pelas pessoas no local de observação. Isso parece ter
ocorrido em ambas as turmas em que realizamos a coleta dos dados. As
professoras e os alunos não evidenciaram receio com a nossa presença. Em
86
pouco tempo, as situações de sala de aula, que inicialmente pareciam se alterar
com a presença de outra pessoa, retomaram a rotina.
Quanto à flexibilidade, Alves-Mazzotti e Gewandsznajder (1998) apontam
que as observações podem ser estruturadas ou não. No caso deste estudo, as
observações não foram estruturadas, pois os comportamentos a serem
observados não foram predeterminados, eles foram observados e relatados da
forma como ocorriam na situação.
Os registros dos dados foram feitos no diário de campo, durante o período
de observação. Algumas reflexões sobre as situações observadas eram anotadas
posteriormente, em separado.
Com o objetivo de triangular os dados e ampliar a compreensão a respeito
das opiniões e práticas das professoras em sala de aula, as observações foram
associadas à técnica da entrevista.
3.2. A entrevista
Em nosso estudo desenvolvido no curso de Mestrado em Educação, a
entrevista foi realizada em conjunto com o diário reflexivo escrito por professoras
iniciantes, sobre suas dificuldades na prática pedagógica (Corsi, 2002). Tanto a
escrita do diário, como as entrevistas, se revelaram importantes instrumentos de
coleta de dados e evidenciaram caráter formativo. A escrita das situações
vivenciadas em sala de aula e a reflexão posterior, durante as entrevistas,
manifestaram características diferentes. Nas entrevistas, as professoras
demonstravam sentimentos mais amenos se comparados às situações descritas
no diário, tentando organizar formas diferentes de intervenção em possíveis
situações semelhantes.
Destacamos, desta forma, a entrevista que trata das situações específicas
de sala de aula como um meio de intervenção, com caráter formativo para o
professor, mesmo que deliberadamente não tenha sido feita com este objetivo.
Também destacamos a entrevista como um instrumento importante para a coleta
de dados, por permitir detectar mais claramente o ponto de vista das participantes.
87
Nesta pesquisa de doutorado ela foi associada à observação, tendo como objetivo
central complementar os dados com a visão das professoras sobre as situações
observadas em sala de aula.
Segundo Mazzotti e Gewandsznajder (1998), as entrevistas qualitativas são
pouco estruturadas, assemelhando-se muito a uma conversa. O interesse do
entrevistador é compreender o significado atribuído pelos sujeitos a situações,
processos e personagens que fazem parte de sua vida.
Esse aspecto também é apontado por Lessard, Goyette e Boutin (1994)
que, recorrendo aos etnólogos Werner e Scheepfle, destacam a contribuição da
entrevista para minimizar possíveis enviesamentos da observação participante e a
necessidade da entrevista quando se trata de recolher dados sobre concepções,
opiniões, crenças dos sujeitos observados.
Neste estudo, as entrevistas foram organizadas a partir das situações
observadas em sala de aula. Inicialmente, apresentávamos a situação e as
professoras faziam comentários, isso seguido de questionamentos feitos por nós,
quando necessário. As situações e os questionamentos foram levantados com
base nas principais categorias teóricas desta pesquisa – classe social, gênero,
raça/etnia –, além de ocorrências envolvendo religião, diferenças regionais,
estereótipos etc., que configuraram como categorias empíricas.
Com a professora da 1ª. série, as entrevistas foram realizadas durante o
período de observação, tendo início após alguns dias do início da coleta. Já com a
professora da 4ª. série, as entrevistas foram realizadas posteriormente, devido à
exígua disponibilidade de tempo da professora
13
. Assim, o tempo decorrido entre
o término da realização das observações (dezembro de 2004) e a realização das
entrevistas (janeiro de 2006) com esta professora foi longo. Consideramos, no
entanto, que esse problema foi minimizado pelas conversas informais que tivemos
durante todo o período de observação. Esse tipo de conversa foi freqüente com as
duas professoras, porém ainda mais com a professora da 4ª. série, devido ao fato
de morarmos no mesmo bairro e irmos juntas à escola.
Com a professora da 1ª. série, foram feitas quatro entrevistas, com
aproximadamente 50 minutos de duração. Eram realizadas na sala dos
professores da escola, durante o horário da aula de Educação Física dos alunos.
13
Logo que terminou o segundo semestre de 2003, ela assumiu a direção de uma escola e não tinha tempo
para que pudéssemos conversar.
88
Devido à exigüidade de tempo da professora da 4ª. série durante o período
em que realizamos as observações e posteriormente, fizemos uma única
entrevista com duração de aproximadamente três horas. Ela foi feita na casa da
professora e, assim como a da professora da 1ª. série, foi gravada e depois
transcrita.
3.3. Análise dos dados
Por serem dados obtidos, principalmente, por meio de observação de sala
de aula, uma das maiores dificuldades encontradas para a apresentação deles
nesta tese foi a de contextualizar as situações que foram analisadas.
O cotidiano de sala de aula é muito rico em acontecimentos,
comportamentos, diálogos etc. que compõem um quadro complexo. Retirar deste
quadro algumas situações para análise sempre resultará em perdas na
compreensão daquele todo. No entanto, não é possível transmitir todo o conjunto
de dados obtidos durante a coleta, correndo o risco de que algumas situações
apareçam descontextualizadas, ainda que tomemos cuidado para que isso não
ocorra.
As análises que têm como referência o Multiculturalismo Crítico
pressupõem a existência de várias categorias, sendo que neste trabalho focamos
três delas: raça/etnia, classe social e gênero. Essas categorias não aparecem
completamente dissociadas umas das outras no currículo em ação;
freqüentemente aparecem juntas, influenciando-se mutuamente. Assim, optamos
por trabalhar com o conjunto das categorias citadas anteriormente tentando
separá-las, quando possível, para análise e, também, procurando mostrar como
elas interagiram em algumas situações de sala de aula.
A apresentação dos dados neste trabalho foi feita por meio de situações
referentes às três categorias anteriormente citadas. Após várias leituras do
material, organizamos as situações a serem analisadas com base no referencial
teórico adotado nesta pesquisa. Inicialmente apresentamos brevemente a forma
como cada professora trabalhava os conteúdos pedagógicos, a fim de contribuir
89
para uma melhor compreensão do contexto da prática pedagógica. Em seguida,
apresentamos as situações que envolviam a relação entre a professora, os alunos
e o conhecimento. Foi possível agrupar algumas dessas situações de acordo com
um tema comum, compondo, assim, alguns eixos temáticos específicos para cada
turma, como se verá nos dois capítulos seguintes.
Apesar de não estarmos trabalhando especificamente com linguagem na
análise dos dados, consideramos conveniente apresentar alguns elementos
apontados por Bakhtin (1995), que entende a palavra como um signo construído
socialmente com base na ideologia e na consciência individual. Em nossa
pesquisa, a fala das professoras teve papel de destaque, configurando grande
parte dos dados coletados.
Para Bakhtin (1995), a materialização das diferentes formas de
comunicação social pressupõe a existência de signos que pertencem ao campo
ideológico e da consciência individual ao mesmo tempo:
Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da
realidade, mas também um fragmento material dessa realidade.
Todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma
encarnação material, seja como som, como massa física, como cor,
como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer. Nesse
sentido, a realidade do signo é totalmente objetiva e, portanto,
passível de um estudo metodologicamente unitário e objetivo. Um
signo é um fenômeno do mundo exterior. O próprio signo e todos os
seus efeitos (todas as ações, reações e novos signos que ele gera
no meio social circundante) aparecem na experiência exterior. [...]
(BAKHTIN, 1995, p.33).
Para o autor, tudo o que é ideológico possui significado e remete a algo
que está situado fora de si mesmo, ou seja, tudo o que é ideológico é um signo.
Ressalta o interesse em saber como a realidade (a infra-estrutura) determina o
signo, como o signo reflete e refrata a realidade em transformação (ibid, p.41). A
organização hierarquizada das relações sociais exerce influência poderosa sobre
as diferentes formas de enunciação, como na interação verbal. As formas do
signo são condicionadas tanto pela organização social dos indivíduos como pelas
condições em que a interação acontece.
É no processo de interação social que a consciência se torna consciência,
ao se impregnar de conteúdo ideológico. (...) A consciência adquire forma e
existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações
90
sociais. Os signos são o alimento da consciência individual, a matéria de seu
desenvolvimento, e ela reflete sua lógica e suas leis. A lógica da consciência é a
lógica da comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social (...)
(ibid, p.36).
Para o autor, a palavra, como signo social, deve ser profundamente
analisada para que se compreenda seu funcionamento como instrumento de
consciência:
[...] O indivíduo enquanto detentor dos conteúdos de sua
consciência, enquanto autor dos seus pensamentos, enquanto
personalidade responsável por seus pensamentos e por seus
desejos, apresenta-se como um fenômeno puramente sócio-
ideológico. Esta é a razão porque o conteúdo do psiquismo
“individual” é, por natureza, tão social quanto a ideologia e, por sua
vez, a própria etapa em que o indivíduo se conscientiza de sua
individualidade e dos direitos que lhe pertencem é ideológica,
histórica e internamente condicionada por fatores sociológicos.
Todo signo é social por natureza, tanto o exterior quanto o interior
(BAKHTIN, 1995, p. 58).
Há uma relação dialética entre o psiquismo individual e a ideologia, ao
mesmo tempo em que se constroem juntos tentam se impor um sobre outro. (...) o
psiquismo se oblitera, se destrói para se tornar ideologia e vice-versa (ibid, p. 65).
O autor lembra, ainda, que há diferenças essenciais entre a recepção ativa
da enunciação e sua transmissão em um contexto. A transmissão, sobretudo sob
forma escrita, tem um fim específico e deve-se levar em conta uma terceira
pessoa, a quem estão sendo transmitidas às enunciações. Por ser dirigido a essa
terceira pessoa, retomamos as palavras do próprio interlocutor, para afirmar que
compreendemos corretamente, para apanhar o interlocutor com suas próprias
palavras:
Toda a essência da apreensão apreciativa da enunciação de
outrem, tudo o que pode ser ideologicamente significativo tem sua
expressão no discurso interior. Aquele que apreende a enunciação
de outrem não é um ser mudo, privado da palavra, mas ao contrário
um ser cheio de palavras interiores. Toda a sua atividade mental, o
que se pode chamar o “fundo perceptivo”, é mediatizado para ele
pelo discurso apreendido do exterior. A palavra vai à palavra. É no
quadro do discurso interior que se efetua a apreensão da
enunciação de outrem, sua compreensão e sua apreciação, isto é, a
orientação ativa do falante [...] (BAKHTIN, 1995, p. 148).
91
Desta forma, como salienta Leite (2002, p.263), é necessário relativizar os
resultados, pois eles correspondem apenas a uma leitura do discurso que pode,
ou não, coincidir com os sentidos reais. Assim, mesmo cruzando os dados de
observação com as entrevistas realizadas com as professoras, entendemos que a
análise feita por nós pode ter um viés que parte das nossas concepções de
mundo, de educação etc. Portanto, há que se verificar as análises dentro do
quadro a que elas pertencem, considerando a necessária fragmentação do todo
para que um fenômeno possa ser compreendido mais profundamente.
Minayo (2004) salienta que os resultados finais das pesquisas de
orientação marxista são provisórios, mas que a interpretação supera a dicotomia
objetividade e subjetividade e revela que estes resultados são um momento de
práxis do pesquisador.
Foi no sentido de estabelecer as conexões, mediações e contradições dos
fatos que constituem a problemática de como se configura o currículo em ação
nas séries iniciais do ensino Fundamental, a partir da perspectiva do
Multiculturalismo Crítico, que desenvolvemos a análise das situações observadas
e, posteriormente, discutidas em entrevista com as professoras. Com as várias
leituras e organização do material coletado e com o esforço de sistematização
teórica, buscamos superar a percepção imediata, as primeiras impressões e a
análise mecânica para chegarmos a um plano concreto que expressa o
conhecimento apreendido da realidade (Frigotto, 1989, p. 99).
Sintetizando o percurso que fizemos para análise do conteúdo das
observações e entrevistas, foram efetivadas as seguintes etapas:
1. Leituras preliminares das anotações de observação e das entrevistas para
nos impregnarmos nos conteúdos manifestos;
2. Identificação das idéias centrais e dos sentidos presentes nos textos;
3. Agrupamento das situações relativas aos diferentes temas presentes no
currículo em ação;
4. Definição das categorias empíricas e de análise - raça/etnia, classe social e
gênero - , tendo como base o referencial teórico adotado para este estudo.
5. Apresentação e interpretação dos dados.
Os dados referentes às duas salas de aula foram organizados de forma
diferente, pois, apesar de serem obtidos a partir das mesmas categorias
92
analíticas, as situações do currículo em ação de cada uma são muito distintas
resultando em categorias empíricas
14
específicas. Na 1ª. série, a ênfase recai
sobre a relação da professora com os/as alunos/as e o conteúdo curricular
apresenta-se com poucas variações. Na 4ª. série, é o conhecimento que recebe
destaque em sala de aula, sendo o foco das discussões com os alunos. Essas
análises compõem os dois próximos capítulos.
14
Os termos categoria analítica e categoria empírica são utilizados por Minayo ao tratar sobre a
Hermenêutica Dialética. “A interpretação exige elaboração de Categorias Analíticas capazes de desvelar as
relações essenciais, mas também de Categorias Empíricas e Operacionais capazes de captar as contradições
do nível empírico em questão. [...]” (Minayo, 2004, p. 233)
93
Capítulo 4 - A 1ª. Série da Professora Roberta
15
Como descrito anteriormente, essa 1ª. série funcionava em uma Escola
Pública do interior de São Paulo. À época da coleta dos dados (1º. Semestre de
2004) a Escola ocupava um prédio pequeno e antigo, em um bairro semi-
periférico da cidade; atualmente funciona em um novo prédio, no mesmo bairro
em que já se localizava.
A Escola é freqüentada por um público majoritariamente de baixa renda.
São filhos de jardineiros, catadores de papelão, empregadas domésticas etc. Os
filhos de vigilantes, vendedoras, operários de indústrias são os que apresentam
uma situação econômica um pouco melhor.
As reuniões de HTPC
16
ocorriam às segundas-feiras, após o horário de
aula do período da tarde. Segundo a professora Roberta, os assuntos tratados
eram variados: “depende do que tem em pauta no dia, o que tem de problema”
(entrevista, 05/07/2004).
Geralmente, era a coordenadora que dirigia as reuniões. A depender do
assunto, às vezes, a diretora da escola participava. “(...) hoje, é o Saresp, então
serão as duas. Vão ter que fazer um levantamento de uns dados. A coordenadora
já passou e a gente adiantou. Agora, hoje, tem que terminar” (entrevista,
05/07/2004).
A sala de aula (anexo I) era grande, parecia ter sido ampliada com a
retirada de uma parede que dividia duas salas. Às vezes dava a impressão de que
realmente eram duas salas, pois na parte do fundo ficavam os alunos que a
professora considerava indisciplinados.
Os alunos eram distribuídos nos lugares de acordo com o nível de
aprendizagem. Os que apresentavam maiores dificuldades ocupavam duas fileiras
próximas à porta. As duas fileiras centrais eram ocupadas por alunos
considerados bons. E as duas fileiras perto da janela e da mesa da professora
eram dos alunos médios.
A professora Roberta tem formação no Magistério e concluiu três
licenciaturas: Pedagogia, Educação Física e Letras. Apesar desses vários cursos,
15
Os nomes das professoras e alunos/as são fictícios.
16
HTPC – Horário de Trabalho Pedagógico Conjunto
94
ela considera a prática dos dezoito anos de carreira no magistério como principal
fonte de conhecimento e não fez alusão ao papel das teorias:
[...] eu acho assim, que a formação... o principal de tudo que a
gente tem, que a gente vem vendo aí é a vivência mesmo né, é o
dia a dia. Faz dezoito anos que eu estou dando aula e cada ano
que passa você vive situações diferentes, entendeu? Está cada vez
mais difícil, mais complicado. A gente tem que trabalhar em cima de
regras, de determinadas coisas que são impostas pra gente, então
você até vê o problema e não tem como.... (Entrevista,
26/05/2004).
Quanto às imposições a que se refere anteriormente, a professora cita
como exemplo a Progressão Continuada, que, segundo o que diz, aprova as
crianças em diferentes estágios, acumulando problemas e dificuldades de um ano
para outro:
[...] o aluno é aprovado mas ele não atingiu o objetivo, mas ele
atingiu alguma coisa, essa alguma coisa é muito pouco. Ela está
indo para uma série seguinte sendo que na série seguinte ele vai
pegar uma outra pessoa que também não sabe até quando ele
aprendeu... então são crianças que estão em diversos estágios e
eu acho que isso que está complicado, eu acho que a gente deveria
rever isso. (...) (Entrevista, 26/05/2004).
Apresentaremos, a seguir, as situações representativas das categorias
teóricas e empíricas referentes aos dados coletados na 1ª. Série. Devido ao fato
dos conteúdos serem trabalhados pela professora com pouca variação quanto à
forma, centramo-nos na relação entre professora e os alunos, momento em que a
professora evidenciava suas concepções de mundo, de conhecimento etc. Assim,
as análises desta turma ficaram mais focadas nas relações pessoais, com o
trabalho com os conteúdos seguindo, na maior parte do tempo, paralelamente.
4.1. O trabalho com os conteúdos
Os conteúdos trabalhados pela professora em sala de aula estavam
relacionados, na maior parte do tempo, à alfabetização. Seguindo as letras do
alfabeto, ela trabalhava cada dia com uma nova letra.
95
Após vários dias de observação nesta sala, percebemos que as mesmas
atividades eram realizadas freqüentemente pelos alunos, mudando apenas a letra
trabalhada naquele determinado dia. Essa rotina de atividades fica explicitada, por
exemplo, no dia 01/04, quando a professora trabalhou com a letra M.
Após a leitura conjunta do alfabeto que ficava pendurado em cima da lousa,
Roberta escreveu na lousa o cabeçalho e, logo em seguida, a primeira atividade
que também devia ser copiada pelos alunos, chamada pela professora de
“Treino”; neste dia era o “Treino da letra M”. Nessa atividade, os alunos escreviam
uma linha do caderno com a letra M bastão maiúscula e minúscula e com a letra
M cursiva maiúscula e minúscula.
Em seguida, a professora escreveu um texto em letra bastão maiúscula na
lousa. Os alunos copiaram, mas o texto foi lido, depois, somente pela professora
que também circulou todas as letras M que apareceram no texto:
PARA LER
TODO MUNDO SE ADMIRA,
DO MACACO ANDAR EM PÉ
O MACACO JÁ FOI GENTE
PODE ANDAR COMO QUISER.
Enquanto os alunos copiavam o texto da lousa, a professora fazia uma
matriz para reproduzir no mimeógrafo. Aos alunos que terminavam a cópia ela
dizia que deveriam fazer o desenho do macaco.
Uma atividade que requer a participação dos alunos seguiu-se à cópia do
texto. Eles deveriam dizer palavras que começassem com a letra M. A professora
avisou que não queria muitos nomes (nomes próprios). Os mesmos alunos que
disseram as palavras na aula anterior (letra L) participaram neste dia dizendo
palavras com M, que foram escritas pela professora na lousa e copiadas pelos
alunos no caderno.
MACACO, MARIA, MAÇÃ, MILHO, MASSA, MASCULINO, MIMO,
MENINO, MÁQUINA, MENINA, MENTIRA, MEU, MÚSICA, MENTA,
MÉDICO, MUNDO, MÚSCULO, MEL, MARACUJÁ, MAMÃO.
96
Quando terminou de escrever na lousa, a professora reforçou todas as
letras M das palavras e leu com ênfase cada uma das palavras. Enquanto os
alunos copiavam as palavras, ela olhava os cadernos.
A professora passou mais uma atividade: ditado. Os alunos deveriam
escrever no caderno as palavras ditadas por Roberta: OVO, DIA, DEDO, LIMA,
BOLO, BULE, LIXO.
Um desenho, em folha mimeografada, foi entregue aos alunos para que
pintassem antes de saírem para o recreio.
Ao voltarmos para a sala, após o recreio, a atividade que deveria ser
copiada da lousa era CAÇA PALAVRAS. Os alunos copiavam da lousa as
palavras que deveriam encontrar em um quadro com letras embaralhadas:
CAÇA PALAVRAS
A M A L A
M U L A A
C E M E U
M O L A C
M A R I A
MOLA
MALA
MARIA
MEU
MULA
Em seguida, mais uma atividade:
O QUE VEM ANTES E DEPOIS
__B__ __R__ __S__
__L__ __M__ __O__
__X__ __J__ __F__
__T__ __Q__ __D__
Após copiarem essas atividades, a professora distribui uma folhinha com
sílabas e disse que os alunos já trabalharam com essa atividade. Explicou como
fazer e pediu para que fizessem devagar, com calma. Roberta resolveu, na lousa,
o caça palavras.
97
Às onze horas e vinte minutos do mesmo dia (01/04/2004)
17
, Roberta
escreveu na lousa uma atividade de Matemática: PINTE A QUANTIDADE
PEDIDA. Ela desenhou retângulos com dez partes cada um e pediu para que os
alunos pintassem no primeiro desenho cinco partes, depois seis, nove e oito.
Essa maneira de trabalhar com os conteúdos se repetiu com pequenas
variações, como, por exemplo, quando o ditado passou a ser de frases, não só de
palavras. Ou então, quando repentinamente a letra bastão foi substituída pela
letra de mão, em junho. Algumas atividades de passar frase de um tipo de letra
para outra foram feitas, mas alguns alunos ficaram visivelmente perdidos nesta
passagem.
É importante destacar que essas atividades eram dadas ao mesmo tempo
a todos os alunos. O ritmo era um só e todos deveriam acompanhar.
Em entrevista, a professora explica um pouco sua forma de trabalhar com
os conteúdos e como elabora seu plano de trabalho anual:
Cada ano, eu procuro mudar e ver o que eles, o que é melhor para
cada turma, porque cada turma é uma realidade, cada escola é uma
realidade. [...] Esse ano, nessa sala a maioria já tem pré, então
coordenação eles vieram até mais ou menos, então eu começo
selecionar o que interessa mais, o que eu acho que eles vão
assimilar mais rápido. As famílias (silábicas), que nem você falou
que percebeu, é uma fase na primeira série que a gente tem que
bater, primeiro é o alfabeto, a gente trabalha as letrinhas, o
conhecimento, depois a gente trabalha com as famílias, estou
terminando as famílias e já estou introduzindo, como você viu no
ditado, que muita gente não gosta, mas eu introduzo o textinho em
forma de ditado. Porque já estou trabalhando pra ver se eles tão
gravando, memorizando, se só estão lendo, já estão formando
palavrinha e ao mesmo tempo dando iniciação às frases e ao
textinho, porque eles têm que saber que o textinho eles têm que
desenvolver alguma coisa relacionado com as palavras, com o
título, com o tema que eles estão abordando (entrevista 09/06/04).
Ao ser questionada sobre a seleção das atividades do dia, a professora
disse que ela não seguia tanto o livro didático porque “eles estão difíceis”:
[...] A gente tem que batalhar assim em termos de palavras, para
eles saberem que o som... Quando nós começamos, eu trabalhei
muito assim com rótulo, acho que você não chegou a pegar,
embalagem, jornal, revista, então pra eles terem conhecimento com
as palavras né, com as letras, então por isso eu peço sempre uma
17
O horário de aula era das 7 às 12 horas.
98
lista de palavras, então palavras que eles já ouviram, palavras que
eles acham que é mas não é, então a gente já corrige: ‘não, não é’.
[...] Agora a gente já está no finalzinho disso, o que eu já falei, a
gente está passando para uma outra etapa, mais é leitura agora,
ver como eles vão se sair. Então são coisas, são atividades que
todo mundo tem, mesmo fora da sala, eles têm, mesmo quem não
tem condições de ter televisão, ter vídeos, essas coisas, eles têm
conhecimento da palavra, eles ouvem, vêem uma placa, vêem um
comercial, vêem um refrigerante. Então é um jeito deles trazerem o
que eles sabem, o conhecimento deles também (Entrevista
09/06/04).
Ainda com relação ao trabalho com os conteúdos, a professora disse:
Também o conteúdo a gente procura pesquisar, nessa fase que eu
estou terminando, que são as famílias, montagem de palavrinhas já
está encerrando, então a partir de agora a gente vai mudar um
pouco. Então eu vou começar a trazer mais o que, mais pesquisa
de revista, vou trazer mais palavrinha cruzada, trazer mais labirinto,
entendeu? joguinhos. Porque agora eles já estão começando a ler,
então já da para ter mais incentivo, porque também para você trazer
um trabalhinho diferente, você ficar lendo tudo e eles ficarem
sem saber, então eu acho que não tem muita motivação (Entrevista
09/06/04).
Quanto à distribuição das atividades das diferentes disciplinas, como as
atividades de Matemática que apareciam sempre no final das aulas, a professora
disse:
Eu prefiro porque eu acho que o Português é mais cansativo, então
de manhã, como eles chegam mais descansados, eu acho que
rende mais. Eu já tentei trabalhar depois, mas eu acho que rende
mais Português na hora em que eles chegam. É um jeito, cada um
eu acho que tem um jeito. Agora eu não sei se você vai continuar
[com a observação] mas você vai poder ver o seguinte: agora já vou
introduzir mais historinha, então vai mudar as atividades. Às vezes
eu vou colocar na hora de Português eu vou colocar Matemática,
por exemplo, eu dou uma receita né, agora eles vão começar a ler,
já tem interesse, então eles vão trazer receitas de casa, então aí a
gente já vai trabalhar com números, com dúzia, com meio litro, litro
né, com medida, com peso, com quantidade, então já está
trabalhando Matemática. Então, às vezes, dependendo do dia, a
gente nem vai ter Matemática pura, vai ter junto, entendeu?
(Entrevista 09/06/04).
A fala da professora na entrevista indica que ela tem percepção quanto a
alguns aspectos que tornam seu trabalho com os conteúdos rotineiros e estáticos,
justificando alguns deles, como a realização de ditado, e indicando algumas
mudanças com a diversificação das atividades.
99
Também é possível compreender alguns aspectos que informam a
concepção da professora principalmente com relação à leitura e escrita, como, por
exemplo, quando ela diz que os alunos terão interesse por atividades que utilizam
textos somente quando começarem a ler.
O caráter do conhecimento, como se revelou especialmente nas
observações, aproxima essa prática pedagógica a uma concepção tradicional de
currículo, na qual, segundo Silva (2003, p.13), prevalece o caráter estático e
inercial da cultura e do conhecimento. Ao mesmo tempo em que a professora diz
valorizar o que a criança conhece, as atividades desenvolvidas em sala de aula
não davam espaço para esse conhecimento. A única atividade observada aberta à
participação das crianças foi a elaboração das listas de palavras, da qual um
pequeno grupo participava.
O trabalho da professora com uma data comemorativa - Dia do Índio –, por
exemplo, revelou uma concepção essencializada da diferença.
A forma como a professora trabalhou a comemoração dessa data está
registrada no Diário de Campo (19/04/2004). A seguir, apresentamos, com base
nos registros, como se desenvolveu esse trabalho durante esse dia de aula.
Ao escrever o cabeçalho na lousa, a professora se lembrou que dia 19 de
abril é Dia do Índio e falou para as crianças. Enquanto conversa com os alunos
sobre outros assuntos, a professora terminou o cabeçalho escrevendo “Bom dia
Jesus” e o alfabeto, como fazia todos os dias. Algum tempo depois, ela falou
comigo e disse que o Brasil está uma confusão, perguntou se eu vi sobre a morte
de garimpeiros no Norte do país. Um aluno, Bruno, que estava perto falou: “Eu
pensei que os índios fossem nos atacar”. A professora respondeu: “Ataca nada.
Ninguém ataca ninguém. É capaz de você atacar o índio, bonitinho”.
Após iniciar as atividades com a letra U e corrigir cadernos, a professora
saiu da sala e disse que ia buscar um papel mais grosso para fazer alguma coisa
sobre o índio, que não sabia bem o que era. Quando voltou para a sala, disse:
“Vou tentar fazer alguma coisa aqui, não sei se vai dar.” O Bruno fala novamente:
“Índio, índio vai atacar!!!”.
Os alunos que terminavam de copiar da lousa recebiam uma pena que a
professora recortou para pintarem. Ela disse: “Vocês vão pintar bem bonito porque
é para vocês mesmos”. Logo em seguida, entrou outra professora de 1ª. série
100
para saber se a ‘pena do índio’ tinha dado certo e pegar o modelo. Enquanto os
alunos pintavam, a professora comentou sobre a cor do papel pardo: “Pinta bem
forte porque a cor do papel é feia. Essa cor é muito feia”.
Os alunos voltaram a fazer a lição que estava na lousa, enquanto a
professora cortava as fitas de papel para grampear as penas. Ela tirou a pena de
alguns alunos que começaram a brincar com ela.
Após o recreio, a professora passou atividades de Matemática na lousa.
Antes de saírem para a aula de Educação Física, os alunos que terminavam de
fazer a lição levavam a pena para a professora grampear na tira de papel e saiam
com ela na cabeça.
Em entrevista, questionei a professora sobre a importância de se trabalhar
as datas comemorativas, como o Dia do Índio, e ela disse:
Eu acho interessante trabalhar porque quando ele sai, eu acho
assim a pré-escola trabalha bastante então eu acho que a gente
tem que dar continuidade, não tanto também. [...] No Dia do Índio,
uma semana antes a gente conversou, comentou, não sei nem se
você estava. Explicou porque se comemora, conscientizou quem foi
o índio, para eles terem consciência, mas muitos deles já trazem
isso aí, já sabem, já vêm sabendo mais ou menos o que é, a gente
só reforça. Mas eu não fico muito em cima de data não, tem gente
que roda papelzinho, faz... eu comento, eu explico, esclareço se sai
alguma pergunta, alguma curiosidade, alguma coisa que assistiu na
televisão, então a gente aproveita, mas eu não fico muito em cima
não (Entrevista 01/07/2004).
A fala do aluno sobre os índios, durante a aula, apontou a importância de
uma discussão sobre acontecimentos recentes que envolvem esse grupo social. A
história do povo indígena no Brasil nos últimos quinhentos anos é marcada pelo
encontro com os europeus, que propiciou grandes mudanças culturais para
ambos, mas também o genocídio de índios e a perda de grande parte das terras
que ocupavam. A identidade indígena se re/construiu em um processo histórico,
em meio aos conflitos e às tradições do povo, e é parte da História do Brasil. Nas
escolas, é comum que o povo indígena seja lembrado somente na sua data
comemorativa, quando são apresentados os elementos de suas vestimentas, seus
alimentos etc. Apresentam, assim, o índio como um personagem folclórico e
exótico da nossa cultura. São práticas como essa, segundo Canen e Oliveira
101
(2001), que o Multiculturalismo Crítico busca superar, visando ao questionamento
da própria construção das diferenças, dos estereótipos e preconceitos.
Outro tema que destacamos para análise, que apareceu nesta aula do dia
19/04 e em várias outras, é o “Bom dia Jesus” que é escrito junto com o
cabeçalho. Quando questionada sobre essa frase, a professora disse:
O Bom dia Jesus é uma coisa assim, as salas são misturadas, não
sei se você sabe que tem religiões, vários tipos de religiões, então a
gente também não pode chegar e ficar rezando Ave Maria, Pai
Nosso, tem criança que não tem esse costume. Então eu adotei o
seguinte, no começo do ano eu coloquei um monte de frases na
lousa e eles optaram por Bom dia Jesus, porque é um jeito simples,
que é a primeira coisa que a gente deveria fazer todos os dias, é
lembrar de Jesus. [...] Então tem até dias em que eu esqueço e eles
falam: “ô professora, você não vai colocar?” Então ficou a
marquinha deles, é o jeitinho que eles gostam. [...] Na mesma
semana a gente trabalhou o respeito, os deveres, o que eles tinham
de dever, de direito, então prioridade o que é? É o respeito com os
colegas, com os outros, com o próximo e caiu em cima disso, que a
gente tem que gostar de um Deus, de um Jesus, cada um de sua
forma, entendeu? [...] (Entrevista, 09/06/2004)
É interessante notar como a noção de respeito com outra pessoa está
ligada, na fala da professora, à religiosidade, à crença em Deus e Jesus, e como
isso se torna uma “marquinha” nos alunos. Não é possível afirmarmos que essa
valorização religiosa como é trabalhada em sala de aula passa a fazer parte da
identidade dos alunos, pois não analisamos o significado que esse aspecto
religioso tem para cada um deles, como nos alerta Castells (2003). Ainda assim,
de acordo com o referencial adotado nesta pesquisa, podemos argumentar que a
linguagem é um elemento importante na constituição da identidade. Podemos
questionar qual é a versão religiosa que está sendo divulgada, fazendo as
perguntas que Castells (2003) apontou em seu trabalho: como, a partir de quê,
por quem e para quê está sendo divulgada.
Como ressalta McLaren (1997, p.214), o discurso está incorporado na
prática das instituições, em padrões de comportamento e formas pedagógicas,
que influenciam o modo de viver, a compreensão do mundo, porque é somente na
linguagem e através do discurso que um sentido pode ser dado à realidade social.
Foi procurando dar um novo sentido com relação às diferenças, que um
trabalho foi desenvolvido com os alunos da turma observada, por uma aluna da
102
UFSCar que participava de um projeto envolvendo contar histórias aos alunos
com discussões sobre respeito e diferença, realizado pelo Departamento de
Letras.
A primeira história que a aluna do curso de Letras contou para os alunos
dessa turma foi “Menina bonita do laço de fita”, de Ana Maria Machado. A história
fala sobre a beleza de uma menina negra. Após ler a história para os alunos,
sentados em círculo no chão da biblioteca (sala pedagógica), a contadora
perguntou aos alunos sobre o que eles mais gostaram. Um aluno respondeu que
gostou porque tinha coelho na história. A contadora começou, então, a falar das
diferentes cores das pessoas, que cada pessoa tem uma cor. Um aluno disse:
“Minha mãe é branca e meu pai é preto”. A contadora respondeu: “É, e você
nasceu moreno. Eu também, meu pai é branco e minha mãe é negra, eu nasci
morena”. Ela perguntou o que mais os alunos queriam falar sobre a história. Os
alunos responderam que foi legal. Em seguida, os alunos voltaram para a sala
(diário de campo, 01/04/2004).
Ao conversar com a professora, em entrevista, sobre a história contada
pela aluna da UFSCar, ela disse:
Essa historinha deu para perceber que trabalha bem o quê? Ah... as
experiências sociais, o preconceito, que a menina é negra, deu para
trabalhar bem o preconceito... mas eu acho assim, viu Adriana, em
criança, a gente trabalhou já... eu trabalhei em periferia, escola de
centro, tudo, criança não tem preconceito..., eu acho. Ela não tem
preconceito nem de cor, nem de condição. [...] Só que eu acho
assim, o que tem é que aqueles que têm um pouco mais se saem
melhor, têm mais estrutura. Porque eu acho que a mãe está mais
presente, a família está mais presente, certo? Porque se você for
analisar, os problemas maiores que a gente tem é por falta de
família presente, não por falta de condição. Porque, tudo bem, que
a condição leva com que a mãe esteja cada vez mais longe, porque
ela sai de manhã e volta à noite, se a criança fica na rua, como o
caso do Fernando que a gente está vendo o que está acontecendo,
mas você vê que muitos superam, só que a maioria você está
vendo que está sendo criado por outro, o outro não liga, não dá
apoio. Você mesma ouviu o Fernando falar que a mãe dele não
olha o caderno dele, é uma falta de estímulo... Você deu atenção,
você viu que ele já tentou fazer, então aí o que ta faltando? É
carência [...] (Entrevista, 09/06/2004).
A forma como o conteúdo sobre a diferença foi inserido no currículo, fez
com que ele se tornasse pontual, sem relação com o contexto maior da prática
103
docente, tanto que não se voltou a esse assunto nas aulas seguintes. Esse tipo
de abordagem leva a uma reflexão momentânea e, talvez, nem chegue a surtir o
efeito desejado com a atividade. A professora disse, em entrevista, que voltaria a
discutir a diferença com os alunos a partir daquela mesma história, mas até o final
do semestre não o fez.
A visão apresentada pela professora com relação à ausência de
preconceito entre as crianças reflete uma consciência não muito clara da relação
entre escola e cultura, postura comum entre os professores, que Candau et al.
(2002) denominam de a-crítica.
McLaren (2000b) alerta para o fato de que essa “democracia neutra” de
“não ver a cor” , como demonstra a visão da professora, contribui para a
continuidade da dominação da condição branca sobre as outras raças/etnias.
Esse aspecto será tratado posteriormente, quando analisarmos as situações
envolvendo a relação entre a professora e um aluno, o Júlio.
A maneira como a professora percebe a influência da classe social na vida
dos alunos é por meio da presença ou não das mães. A professora relaciona a
baixa condição financeira à ausência da mãe na vida escolar dos filhos. A
literatura aponta que a influência da classe social se dá também pelo acesso a
determinados conhecimentos que são valorizados pela educação escolar, como é
possível observar em algumas situações de sala de aula, como, por exemplo,
quando a professora, ao comparar os alunos com seu sobrinho, os considera
“babacas”. Bourdieu (1992) argumenta que os bens culturais acumulados,
embora sejam formalmente oferecidos a todos, pertencem aos que detêm os
meios para dele se apropriarem, ou seja, os bens culturais enquanto bens
simbólicos só podem ser apreendidos e possuídos como tais por aqueles que
detêm o código que permite decifrá-los (ibid, p.297).
Segundo Apple (2003), o capital econômico e social pode ser convertido
em capital cultural de várias formas, sendo que uma delas é a possibilidade dos
pais com melhores condições econômicas terem horários mais flexíveis, o que
possibilita a visita à escola. Também podem oferecer aos filhos recursos culturais
variados como dança, música, computação etc. Seu estoque anterior de capital
social e cultural – quem eles conhecem, seu “desembaraço” nas reuniões sociais
104
onde se encontram com funcionários da educação – é um celeiro invisível de
recursos, mas um celeiro que tem poder.
A partir de estudos relacionados à produção do fracasso escolar, Carvalho
(2004) aponta que as famílias são lembradas principalmente no caso de
problemas de desempenho, na forma de “falta de compromisso” ou de “falta de
envolvimento”. As famílias de mais baixo nível socioeconômico encontram
maiores dificuldades em suas relações com a escola e no desenvolvimento de
atitudes consideradas adequadas pelos/as professores/as.
Ainda com relação à participação dos pais na vida escolar dos filhos, uma
situação foi marcante neste primeiro semestre de observação. No dia 09/06/2004,
a professora questionava um aluno, Fernando, sobre o que ele fazia no período
da tarde. Ela dizia que havia conversado com a tia dele e que era mentira quando
ele dizia que ficava na casa de outro aluno. Várias vezes repetiu que o aluno
mentia. Após algum tempo a professora mandou o aluno sentar comigo. A
professora demonstrou preocupação em encontrar uma vaga para ele na
recreação que é oferecida em outra escola. Depois ela me disse que a tia do
menino falou que ele poderia estar se envolvendo com drogas, pois andava com o
irmão mais velho a tarde toda, estava mentindo demais e com comportamento
diferente. Fernando, que estava sentado ao meu lado, me contou que ficava na
pista de “bicicross” com o irmão dele. Disse que o irmão estudava à tarde (6ª
série, em outra escola), mas que a professora falava para ele faltar à aula e eles
saíam para andar de bicicleta. Enquanto ele estava ao meu lado, percebi que
copiou tudo da lousa, mas não sabia ler nada do que havia escrito.
Segundo a professora, a mãe de Fernando tinha sete filhos, estava grávida
de outro, e trabalhava como empregada doméstica. Mesmo sabendo disso,
durante vários dias ela dizia que queria que a mãe comparecesse à escola,
mandava bilhetes por meio do aluno, mandava o aluno falar com a coordenadora
para que esta mandasse bilhete para a mãe dele também. No final do semestre
percebi que o aluno passou a faltar constantemente às aulas.
Diante desta situação, a atitude da professora parece ter contribuído mais
para afastar o aluno da escola, do que para integrá-lo às atividades que o
tirassem da rua, o que parecia ser sua intenção quando procurava uma vaga na
recreação, em outra escola.
105
Em algumas situações a professora deixa transparecer seu ideal de aluno,
que passa por sua referência familiar e se reflete em apenas um dos alunos da
sala.
Durante uma aula de Educação Física, a professora conversava comigo
enquanto os alunos faziam as atividades que a outra professora orientava. Ela me
falou sobre seu sobrinho, de 4 anos, que é muito inteligente, gosta de
dinossauros, quer saber tudo sobre o assunto e gosta de saber palavras em
inglês. Em seguida, disse: “Agora, você vê esses alunos aqui, tão babacas...”. E
continuou falando sobre as famílias dos alunos, que a maioria não tem pai e que a
mãe tem um filho com cada pai (Diário de campo, 19/04/2004).
A professora voltou a falar sobre esse sobrinho durante o semestre e,
algumas vezes, ela o comparou ao Gustavo. Essa comparação pode ser
observada no dia 21/06/2004, quando Gustavo responde “sim” aos
questionamentos da professora e ela me falou que o sobrinho também responde
“sim” quando perguntam alguma coisa para ele, como o Gustavo na sala. Ela
disse: “É engraçado porque ninguém fala assim em casa!” Perguntou ao Gustavo
se a irmã dele também responde assim e ele disse que não.
Esta valorização do conhecimento de um determinado grupo social se
revelou também quando, durante a aula de Português, os alunos se depararam
com a figura de palmito e não sabiam dizer o que era. A professora disse,
dirigindo-se a mim: “Está vendo Adriana! Não conhecem. Aí que a gente vê o
conhecimento. Por isso não dá para exigir muito” (diário de campo, 26/05/2004).
Os trechos citados anteriormente refletem uma valorização de
determinados conhecimentos pela professora. Essa valorização a leva a se
identificar com um dos alunos: aquele que demonstra ter acesso e interesse por
um mesmo tipo de assunto que o seu sobrinho tem.
Essa seleção e valorização de determinados conhecimentos, que
freqüentemente tem base num padrão do homem branco de classe média,
configura o que McLaren (1997) denomina de cultura escolar dominante e que
devem ser questionadas por meio de uma análise política da cultura escolar.
Neste sentido, Candau e Arnhon (2002) apontam para a necessidade
urgente da desnaturalização da cultura escolar dominante nos sistemas de
ensino. Estas situações da prática pedagógica suscitam algumas questões: Por
106
que todos os alunos deveriam demonstrar interesse por dinossauros e pelo
inglês? Por qual assunto os alunos dessa escola se interessam? Não saber o que
é palmito limita a possibilidade de conhecimento dos alunos?
Entendemos que essa situação reforça os estudos que indicam a
necessidade de se incorporar a dimensão cultural na prática docente (Candau e
Arnhon, 2002), nos cursos de formação inicial e continuada, e o
reconhecimento/trato com as diferenças presentes em sala de aula. Trata-se da
necessidade de conjugar a cultura de referência dos alunos com a cultura escolar.
4.2. A relação professora, alunos/as e conhecimento
As situações que destacamos para análise neste trabalho envolvem, de
forma geral, expectativas diferenciadas da professora com relação a diferentes
alunos, valorização de um determinado padrão de aluno/a, o papel da menina e
do menino e a sala de aula como um dos lugares da re/construção de identidades.
A observação das aulas na 1ª. série permitiu identificar dois grupos com
comportamentos bem distintos. Um deles era composto pelos alunos mais
quietos, que não participavam de conversas com a professora, conversavam
somente entre si. Desse grupo faziam parte, na maioria, alunos considerados
como tendo dificuldades de aprendizagem, que sentavam nas duas fileiras
próximas à porta. O outro grupo era de alunos que conversavam mais entre si e
com a professora, alguns para contar histórias, outros porque recebiam
advertências dela.
Por serem os alunos com quem a professora geralmente conversava ou a
quem advertia, a maioria das situações a seguir ocorreu com os alunos do
segundo grupo descrito acima. Esse grupo, apesar de se diferenciar muito do
outro, também era muito heterogêneo quanto aos comportamentos e à relação
com a professora.
107
Gustavo e Leandro
Gustavo era reconhecido pela professora e pelos demais alunos como o
melhor aluno da sala. Logo nos primeiros dias de observação esse aspecto se fez
notar. No dia 29/03/2004, quando a professora pediu para que os alunos falassem
palavras com a letra L, Gustavo falou a maioria delas, inclusive “licor”. Neste
momento Marcela disse: “O Gustavo sabe mais que a gente”. A professora
respondeu: “Não, todos sabem”.
Gustavo é um menino branco de cabelos loiros e olhos azuis.
Aparentemente tinha melhor condição financeira em relação aos outros alunos da
turma. As professoras da escola comentaram sobre esse aspecto no horário do
recreio, momento em que eram freqüentes as conversas sobre os alunos e suas
famílias. No dia em que o pai de Gustavo levou uma prenda para a Festa Junina e
entregou para a professora durante o recreio, que estava na sala junto às demais
professoras, uma delas disse que ele era um homem muito educado, que tinha
grande cuidado com os filhos. Outra professora disse que eles eram ricos, mas
perderam todo o dinheiro com o tratamento da avó de Gustavo (diário de campo,
17/05/2004).
Após alguns dias de observação, foi possível perceber como a professora
reforçava a auto-estima de Gustavo e, em algumas situações, o próprio aluno
falava sobre sua participação em sala de aula.
No dia em que era trabalhada a letra U e os alunos tinham que falar as
palavras, Gustavo indicou várias delas. Depois de algumas participações desse
aluno, a professora disse: “só o Gustavo está pensando?” Quando o aluno disse
outra palavra, ela exclamou: “Olha! Só ele!” A professora comentou, em seguida,
que ele assiste à televisão e o aluno complementou dizendo que lê gibis e revistas
também (diário de campo, 19/04/2004). Essa situação se repete em várias aulas.
Gustavo é comparado pela professora com o seu próprio sobrinho, como
registrado no diário de campo no dia 21/06/2004, a quem ela considera
inteligente, muito esperto, diferente dos outros alunos da sala. Ele também é
considerado o mais educado, como foi possível perceber no dia em que a
professora gritou com Lucas e depois chamou a atenção de Gustavo, ela diz em
108
seguida: “Isso é porque ele (Gustavo) é o mais educado da sala. Imagine os
outros.” (diário de campo, 23/06/2004)
Sobre o destaque de Gustavo nas atividades desenvolvidas na sala de
aula, a professora disse:
Até na aula da Maria, era bom você observar também, é a
mesma coisa. Só ele que responde, só ele que responde, só
ele que fala. Isso daí também eu acho que já veio de casa [...]
Ele é uma criança muito inteligente, sabe ler, escrever... muito
ativo, ele é até meio confuso. Ele se destaca porque ele tem
consciência de que ele sabe, acho que isso já é da criança
[...] ele responde com convicção. [...] Para ele está sendo bom
né, agora para os outros eu não sei se está sendo tão bom.
Eu acho assim, que para alguns é até incentivo, é o que eu
falei pra você, para aqueles que têm vontade é até um
incentivo de falar também, de se comunicar igual ele. Às
vezes a gente elogia automaticamente, às vezes não deveria
elogiar tanto mas no fim a gente acaba até elogiando. Mas
assim, pra alguns é até incentivo, mas pra outros eles ficam
tímidos de se deparar com ele, porque ele fala tudo, ele sabe
tudo e ele sabe disso, que ele sabe tudo, e os outros ficam
meio assim. [...] (Entrevista 01/07/2004).
McLaren (1997) ressalta que é por meio dos símbolos, representações e
práticas sociais que a classe dominante assegura a hegemonia, de maneira que
as relações desiguais de poder e privilégio permaneçam ocultas. Assim, a
conquista é atribuída ao empreendimento individual.
Os resultados da pesquisa realizada por Carvalho (2004), sobre a produção
do fracasso escolar, indicam uma correlação entre o elogio feito pelos/as
professores/as e a classe social, o sexo e a cor das crianças em uma escola,
sendo que status econômico aparece como fator central. As crianças de famílias
com mais alta renda estão entre as mais elogiadas, com porcentagem que
representa o dobro do número dessas famílias na escola. A proporção de
elogiados decresce à medida que decresce a renda. Ainda, segundo a autora, as
meninas são mais elogiadas que os meninos e também é significativamente maior
a proporção de alunos percebidos como brancos entre os elogiados.
A forma como a professora chamava a atenção de Gustavo, quando ele
estava conversando, parecia ser mais suave se comparada às situações que
envolviam outros alunos. Isso pôde ser observado no dia em que o aluno
109
conversava demais e a professora disse: “Gustavo, fica quietinho”. Já no caso em
que um outro aluno falava para um amigo guardar o material, a professora
pareceu bem menos tolerante e disse: “Já até falei para sua mãe que você é um
xarope” (Diário de campo, 22/04/2204).
A própria resposta de Gustavo às situações em que era repreendido pela
professora também era muito diferente da resposta dada por outros alunos da
sala. Na situação em que Gustavo e Marcela conversavam, a professora disse:
“Marcela, acho que você quer ir para fora” e para ele, ela disse: “Você também
Gustavo e seu pai não ia gostar disso, fica quieto”. Gustavo respondeu: “eu vou
tentar, vou tentar ficar quieto” (Diário de campo, 24/05/2004). Já Leandro, que foi
para fora da sala duas vezes por fazer um som (hummm), saiu e voltou para a
sala com um bilhete da coordenadora da escola, endereçado à sua mãe, e sentou
sem dizer uma palavra.
Neste mesmo dia, logo no início da aula, a professora falou com os
alunos/as que houve uma reunião com os pais e que alguns deles, com quem ela
queria conversar, não compareceram. Sobre a reunião, ela ainda disse: “A mãe do
Leandro veio, mas é a mesma coisa que nada. A mãe falou que não sabe o que
vai fazer com ele. Mandei lição e voltou do mesmo jeito”.
Leandro é um menino, na minha atribuição, pardo. Disse-me, um dia, que
queria ter a profissão do pai, ser jardineiro, e que sua mãe era catadora de
papelão.
Na aula em que Leandro fez o barulho (hummm) pela primeira vez, a
professora disse: “Eu já falei que o seu lugar não é aqui”. E outros alunos
complementaram: “É no circo”. Por continuar a fazer o barulho, a professora falou
para ele sair da sala. Ele voltou, sentou e fez novamente o barulho. A professora o
mandou sair pela segunda vez. Ele entrava e saía da sala sem dizer uma palavra
(Diário de campo, 24/05/2004).
Após alguns dias, a professora percebe que Leandro tem interesse em
aprender. Isso aconteceu numa aula de Matemática, em que pedi à professora
para que eu pudesse ajudá-lo, pois a todo o momento ele me perguntava como
escrever os numerais em palavras (escrita de numerais), dizia que não sabia
fazer. Ainda enquanto eu o ajudava, a professora disse: “O Leandro está
demonstrando interesse agora, então eu vou colocar no reforço à tarde, quando
110
começar. Ele e o Antônio, que também está demonstrando interesse”. O Antônio
estava sentado junto comigo também (Diário de campo, 23/06/2004). Mesmo com
a pressão exercida pela cultura dominante sobre classes e grupos subordinados,
os processos de resistência estão sempre presentes. McLaren (1997) ressalta que
as escolas e outros locais sociais e culturais raramente estão completamente
subjugados pelo processo hegemônico, pois nestes locais há também luta e
confrontação. Talvez o silêncio de Leandro represente essa resistência de que
fala McLaren. O aluno não se submete completamente ao controle escolar, que
não permite o som que ele fazia, e responde com silêncio, diferente de Gustavo
que, sabendo de suas condições para o fazer, desafiava a autoridade da
professora dizendo que iria tentar ficar quieto. É necessário destacar, no entanto,
que essa disputa por espaço e poder em que se dá a resistência de Leandro é
assimétrica, além da pressão da professora e da coordenadora, os outros alunos
disseram que o lugar dele era no circo. É a compreensão desse processo que
envolve poder e resistência que poderá tornar, segundo Giroux (2003), o político
mais pedagógico.
Com o passar dos dias, a professora demonstrou certa irritação passageira
com as conversas e brincadeiras de Gustavo e reclamou dele com a professora
de Educação Física, que ficou surpresa. No diário de campo, consta o seguinte
registro:
A professora de Educação Física vê o Gustavo mordendo o lápis e
diz: “Gustavo, comendo lápis?!”. A professora da sala responde:
“Ele está assim agora. Vai para o mesmo caminho daquele ali
(aponta o Fernando)”. A professora de educação Física diz:
“Gustavo, você era o melhor aluno da classe. O que aconteceu?”
Ela mostra o caderno do Reinaldo para ele e diz: “Impecável, olha
que capricho. Você acha legal falar que era o melhor no passado e
agora é um dos piores?!” (Diário de campo, 07/06/2004).
A partir de análises de práticas pedagógicas que classificam estudantes por
grupos de capacidade nos Estados Unidos, McLaren (1997) aponta que para os
grupos considerados melhores pelos/as professores/as, o ensino ocorre em um
ambiente que confirma a sua identidade superior, onde o tempo, atividade e local
estão estruturados de forma a encorajar seu senso de auto-estima e realização.
111
Isso pode ser observado também com Gustavo que, por ser considerado o melhor
aluno, recebia um estímulo maior por parte das professoras.
Aline e Marcela
Assim como Gustavo, Aline é branca, tem cabelos loiros e aparentava ter
condição econômica melhor do que a maioria dos alunos da sala. Mas, se para
Gustavo é dada atenção intelectual, no sentido de estimular seu interesse pela
aprendizagem, para Aline a professora dá uma atenção mais voltada às questões
emocionais e de sociabilidade.
Com base em alguns estudos sobre a relação de gênero na educação,
McLaren (1997) destaca que as práticas analisadas nestes estudos apontavam
que os meninos deveriam ser academicamente agressivos, enquanto as meninas
deveriam permanecer comportadas e passivas. Conclui que aos meninos está
sendo ensinada a independência e às meninas a dependência. Os dados obtidos
na 1ª. série não nos permitem essa generalização, porém, é o conjunto de
características – homem branco de classe média – que parece determinar o que
será ensinado em termos de atitude.
A atenção diferenciada que recebem Gustavo e Aline revela que, segundo
Meyer (2005), os estudos sobre espaço escolar têm indicado: que estamos
sempre operando a partir de uma identidade que é a norma, que é aceita e
legitimada, tornada quase invisível – masculinidade branca, heterossexual, de
classe média e judaico-cristã.
Após alguns dias de observação nesta turma, pude notar que, sempre que
Aline estava presente, a professora conversava somente com ela e sobre
questões pessoais, como, por exemplo, presentes que ganhava dos pais,
passeios de final de semana, a respeito do namorado novo da mãe, de sua saúde
etc.
Aline era considerada uma aluna responsável. Isso ficou evidenciado, por
exemplo, quando ao começarem a usar o livro de Matemática na sala, a
professora avisou que os alunos não poderiam levá-lo para casa. Após um
112
comentário de Aline, dizendo que ela não estragaria o livro, a professora disse:
“Você é responsável, mas os outros não. Tem um monte que vai esquecer,
perder...” (diário de campo, 28/04/2004).
A aluna era chamada para todos os trabalhos de que a professora
precisava, do tipo ‘secretária da professora’: levar papel à secretaria, chamar a
inspetora, distribuir folhas e jogos, tirar papel nos sorteios etc.
Quais aprendizagens podem decorrer desta relação entre a professora e
Aline? Em seus estudos, Meyer (2005) destaca que, com relação às meninas, são
aceitáveis e estimulados os comportamentos considerados femininos e
valorizados socialmente, como a organização, a docilidade e a quietude.
Em entrevista, perguntei à professora se ela percebia que conversava
quase que exclusivamente com a Aline e sempre pedia a ela para buscar alguma
coisa, entregar algum papel, distribuir folhas na sala etc. Sobre isso, a professora
respondeu:
Eu percebia (sorri e faz um sinal positivo com a cabeça). Porque é
assim, quando a gente está trabalhando, todo ano você tem
atividade mais com um aluno, não por escolha, porque ela também
sempre foi mais comunicativa, então todos os problemas que ela
tinha na casa dela, primeira coisa, ela chegava de manhã e me
procurava, falava, explicava. Então, afinidade não de escolha, mas
porque eu percebia que ela precisava também dessa atenção
maior, pelos problemas que ela tava passando na casa dela. [...]
Então aí passava o quê? Passava a carência, a necessidade de eu
dar uma atenção maior para ela. [...] Então na hora, está certo que
a gente na hora de precisar tudo de algum favor, certo é você
mandar sempre alguém diferente para conhecer, é o certo, mas na
hora em que você está com pressa, você então, você procura o
quê? Aquele que conhece mais, que vai rapidinho [...] (Entrevista,
01/07/2004).
A professora tinha uma relação bastante diferente com as outras alunas.
Dentre elas, Marcela (de cor de pele parda) era a única aluna que tentava
conversar com a professora, assim como fazia Aline, mas nem sempre era
correspondida. Quando questionada, se percebia que Marcela era uma das
poucas alunas que insistia em conversar com ela, assim como fazia Aline, a
professora respondeu:
É, a Marcela também. Ela é mais ou menos do tipo da Aline mas é
diferente, ela perturba um pouco. Realmente ela fala um pouco da
113
vida dela, da casa, do tio, só que é diferente. Ela é mais assim, ela
é mais agitada, ela procura mexer com os outros, conversa aqui,
conversa ali, conversa lá... mas ela também é uma das que
conversa, tem bastante problema em casa e ela procura passa-los.
As outras são mais fechadas. (...) (Entrevista, 01/07/2004).
A diferença de expectativa que a professora tinha com relação a essas
duas meninas foi evidenciada, por exemplo, no dia 12/04/2004, em que as duas
alunas se sentaram juntas. Ao levarem a atividade que fizeram para corrigir, a
professora olhou e disse que a Marcela havia copiado da Aline, que ela não sabia
fazer tudo certinho, que a outra passou para ela. Deu, então, outra folha à
Marcela, para que refizesse a atividade. Mandou Aline mudar de lugar, para que a
outra não copiasse novamente.
Depois de um tempo, Marcela levou a folha novamente para a professora e
esta disse: “Copiou de novo” e entregou outra folha de atividades para a menina
refazer (Diário de campo, 12/04/2004).
Dias depois, a professora demonstrou surpresa ao verificar que Marcela
estava lendo e escrevendo. Ela estava freqüentando um reforço escolar no
período da tarde, em outra escola. Contraditoriamente, dias antes de Aline mudar
de escola, porque a família se mudaria para outro bairro da cidade, a professora
se surpreendeu ao verificar que ela tinha várias dificuldades na leitura e escrita.
Ao ver seu caderno a professora disse: “Nossa! O que aconteceu? Como você vai
para a outra escola assim?” (Diário de campo, 03/06/2004).
É importante destacar a relação aparente entre um determinado modelo de
aluno/a e a expectativa da professora com relação à aprendizagem e ao “bom”
comportamento deste/a. Isso pode ser observado tanto no caso de Gustavo que
visivelmente decepcionou as professoras (da sala e de Educação Física), quanto
no caso de Aline e Marcela, esta última tendo superado a expectativa da
professora, chegando a surpreendê-la com relação à sua aprendizagem.
No dia em que Aline mudou de escola a professora demonstrou muita
irritação. Logo no início da aula a professora me disse: “Só sai aluno bom, a
Débora, o Bruno, a Aline. Até o final do ano só ficam os mais...”.
Com a saída de Aline, pude observar a professora falando mais com outros
alunos, principalmente meninos. A única menina que continuava tentando falar
114
com a professora era Marcela. Era difícil ouvir a voz das outras meninas, pois elas
conversavam baixinho umas com as outras.
Paulo
Logo que conversei com a coordenadora e a professora sobre a
possibilidade de realizar a pesquisa na escola, elas me falaram a respeito de um
aluno que gostariam que eu avaliasse. No primeiro dia de observação, a
professora me mostrou o aluno na sala e disse que ele não se integrava com os
outros, que ficava assim (sem fazer nada) o dia todo. Ela contou que tentou
colocá-lo com outro aluno, sentado em dupla, mas que ele começou a brincar,
beliscar. Passou, então, a ficar sentado sozinho no fundo da sala.
A coordenadora da escola e a professora consideravam que a dificuldade
de aprendizagem do aluno era “de família”. Logo no primeiro dia de observação, a
professora disse que a família toda era assim, que ele tinha irmãos na escola do
mesmo jeito. A coordenadora disse que era um problema “genético”. Isso não só
era ensinado ao aluno, como também à família: (...) A professora me falou que
conversou com a mãe de Paulo e é aquilo mesmo, a família toda tem problemas
de aprendizagem. A professora disse: “A mãe disse que a família toda, por parte
de pai, ninguém aprende mesmo”. (Diário de campo, 30/03/2004)
Paulo é branco (minha atribuição) e aparentava ser de família pobre. Por
ter baixa estatura, ele era chamado por outros alunos e, às vezes, pela professora
de “baixinho”.
Ainda no primeiro dia de observação, pude perceber que Paulo era um
menino ativo, pintava desenhos, copiava (à sua maneira) coisas da lousa e
brincava um pouco enquanto esperava a aula passar. Quando bateu o sinal de
saída, Paulo saiu rapidamente de sua carteira e foi pegar os pequenos lápis que
caíram no chão e lá ficaram esquecidos pelos alunos.
Atendendo ao pedido da professora, passei a me sentar com Paulo e a
ajudá-lo nas atividades. Diversificando as atividades, procurei seguir os
conteúdos que a professora trabalhava com a turma (alfabeto), pois o nosso
trabalho com o aluno não era diário e iria se encerrar no final do primeiro
115
semestre. Ao mesmo tempo em que eu trabalhava a alfabetização, procurei
desenvolver sua autonomia para que ele pudesse acompanhar um pouco mais as
aulas.
Paulo ficou muito entusiasmado com a atenção que estava recebendo de
mim, questionava minhas ausências
18
, perguntava se eu iria continuar ajudando-o
e fazia comentários do tipo “Ah! Hoje você trocou de sapato!”. Algumas vezes, ele
também me contava histórias:
Enquanto um aluno contava para a professora uma história que
envolvia polícia, o Paulo me falou que a polícia já foi na casa dele.
Disse que a mãe chamou a polícia porque o pai dele estava
batendo nele e nos irmãos. Perguntei o que a polícia fez e ele falou:
“mandou a gente sair do quarto”. Depois disse: “eu vou dar um
murro na cabeça do meu pai” e voltou a fazer as atividades (Diário
de campo, 17/05/2004).
No início do trabalho, percebi que a professora parecia ter desistido deste
aluno. Uma situação contribuiu para esta percepção:
[...] Fiquei trabalhando com Paulo. A professora estava passando
de carteira em carteira, olhando os cadernos. Quando ela estava se
aproximando de nós, Paulo se preparou para mostrar o que havia
feito e me disse: “Quer ver?! Ela vai me xingar.” Mas a professora
virou antes de chegar onde estávamos e continuou olhando os
outros cadernos (Diário de campo, 01/04/2004).
Depois de alguns dias em que trabalhamos juntos, Paulo passou a levar o
caderno para que a professora visse as atividades que ele estava realizando. O
aluno demonstrava muita alegria com os elogios que ela passou a fazer. Em uma
das vezes, a professora fez um “elogio” comparando-o com Gustavo:
O Paulo foi mostrar o caderno para a professora e ela disse: “Você
está ficando melhor que eles (apontou para os outros alunos).
Pensou Gustavo, que feio, ele está ficando melhor que vocês”
(Diário de campo, 17/05/2004).
O fato de estar recebendo atenção de outra pessoa fez com que o aluno
fosse percebido também pela professora de Educação Artística:
Na aula de Educação Artística, Paulo fez o desenho que a
professora pediu, com a minha orientação. As professoras (da
18
Como escrito anteriormente, as observações eram realizadas três vezes por semana.
116
turma e de Educação Artística) ficaram admiradas ao verem o
desenho. Disseram que ele não fazia e que, então, teria que ter
alguém perto, mas que ela não poderia. A professora de Educação
Artística falou da frente da sala: “Pode ser carência”. Várias vezes,
Paulo quis levar o caderno para que elas vissem os menininhos e a
árvore que ele havia desenhado (Diário de campo, 07/04/2004).
Lentamente, Paulo estava começando a reconhecer as letras do próprio
nome e do alfabeto. Fiquei muito feliz no dia em que ele me esperava com o nome
montado na carteira com as letras que utilizávamos no trabalho.
De modo geral, foi possível observar pouca mediação da professora entre o
conhecimento e os alunos, e isso ficou ainda mais evidente com Paulo. Também
na aula de Educação Artística essa característica prevaleceu. No caso dessa
turma, não seria possível recorrer ao argumento de que a quantidade de alunos
dificulta a mediação, pois muitas vezes eles não chegavam a vinte alunos.
Esse aspecto remete ao conceito muito difundido de Educação Bancária –
assim denominada por Paulo Freire - que se caracteriza por “depositar” conteúdos
sem a preocupação de se fazer entender. Não se valoriza os conhecimentos que
o/a aluno/a já tem e nem mesmo há a preocupação de que a maioria dos alunos
aprenda os conteúdos que o/a professor/a selecionou.
Com relação ao aspecto referido anteriormente, a prática da professora
Roberta se aproxima do ensino monocultural. Como Cortesão (2006, p.55)
aponta, ao descrever uma prática pedagógica monocultural, o professor oferece
um ensino idêntico a todos e, deste ensino, terão proveito os que forem,
naturalmente, mais dotados e/ou os que se esforçarem mais.
A comparação que a professora fez entre Gustavo e Paulo, quando este
levou o caderno para mostrar que estava fazendo as atividades, parece indicar
uma concepção que naturaliza o fato de que alguns alunos estão “destinados” a
aprender e outros não. Gustavo pode aprender; já no caso de Paulo, aprender
parece algo estranho e uma ameaça à “diferença” que existe entre os alunos. O
fato é que aí, muito mais que diferença entre os alunos, existe uma enorme
desigualdade tanto de oportunidades e estímulos, como do conhecimento que é
valorizado pela escola.
A compreensão dos conceitos de igualdade e diferença é fundamental para
o desenvolvimento de um trabalho pedagógico que supere os preconceitos e as
hierarquias que geram desigualdades e exclusão social. Entendemos que a
117
diferença está relacionada à diversidade existente entre as pessoas e grupos, ao
que foge a um único padrão seja de etnia ou raça, de religião, de gênero ou de
estilo de vida. A desigualdade está relacionada a condições impostas a partir da
dominação de determinados grupos sobre outros, gerando, por exemplo, as
desigualdades entre classes sociais.
Para Candau (2005) há uma relação dialética entre igualdade e diferença.
A autora argumenta que a diferença se opõe à padronização e a igualdade se
opõe à desigualdade. Assim, o que se pretende com um trabalho na perspectiva
multicultural é a:
[...] negação da padronização e também a luta contra todas as
formas de desigualdade e discriminação presentes na nossa
sociedade. Nem padronização nem desigualdade. A igualdade que
queremos construir assume a promoção dos direitos básicos de
todos/as as pessoas. No entanto, esses todos/as não são
padronizados/as, não são os/as “mesmos/as”, têm que ter as suas
diferenças reconhecidas como elementos presentes na construção
da igualdade (CANDAU, 2005, p.18).
Neste sentido, discutimos também a atribuição das dificuldades de
aprendizagem a causas externas. Esse também é um elemento que Cortesão
(2006, p.59) aponta como característico do professor monocultural: explicações
psicológicas e biológicas das dificuldades escolares. No caso dos dados
analisados, parece ser um discurso coerente com a compreensão e concepção de
ensino, aprendizagem e papel da família que a professora apresentou durante
todo o semestre. Ressaltamos, no entanto, que tal discurso é questionado entre
os estudiosos da educação, principalmente na vertente que considera a
multiplicidade cultural na perspectiva crítica, pois transfere ao indivíduo a
responsabilidade exclusiva pelas dificuldades que apresenta, isentando o
professor, a escola e a sociedade de qualquer responsabilidade.
McLaren e Gutierrez (2000) ressaltam que muitos professores são
seduzidos por um ensino e aprendizagem do tipo “fast-food”, com compreensões
monológicas, monolíticas e monoculturais. Dessa forma, o currículo representa as
crenças e valores da escola e da comunidade articuladas hegemonicamente em
relação a lógicas sociais e culturais e relações econômicas mais amplas.
Analisam, ainda, que é assim que os estudantes são empurrados para fora das
118
escolas, por meio da marginalização contínua. (McLaren e Gutierrez, 2000,
p.205).
Flávio (o contador de histórias)
Flávio é um menino que gosta de contar histórias. Conta sobre a própria
vida, quando tem a atenção de alguém, e reconta, com riqueza de detalhes, todas
as histórias que são lidas para os alunos. É um aluno negro que, aparentemente,
tem boas condições financeiras, em relação aos demais alunos da turma.
Como foi registrado anteriormente, durante o semestre em que estive na
escola, uma aluna de graduação da UFSCar contava histórias para os alunos uma
vez por semana, como parte de um projeto de extensão do curso de Letras da
Universidade. Nessas histórias, a contadora se propunha a tratar temas como
diversidade, respeito etc.
Sempre após ler uma história para os alunos, a contadora pedia para que a
recontassem e o Flávio se destacava neste momento, pois contava com detalhes.
Algumas vezes, durante a aula, Flávio falava com a professora e, diferente
da atenção que era dada a Aline com quem conversava, ela só ouvia e
rapidamente o mandava sentar, dizendo: “Flávio, chega! Você fala muito e coisa
que não tem nada a ver” ou: “Esse menino não pára de falar. Flávio, você
atrapalha”.
Um dia ao chamar a atenção de Flávio, a professora disse: “Ele vem para a
escola bater papo, contar o que fez no final de semana, mas não faz nada. Acho
que sua mãe manda você para a escola pra você não ficar falando na cabeça
dela” (Diário de campo, 07/06/2004).
A habilidade de recontar histórias também não era reconhecida pela
professora. Após contar uma história em que Flávio se destaca ao recontá-la, a
contadora pergunta sobre ele para a professora. Em tom de crítica, a professora
diz que o aluno fala demais, que conta uma história, e outra, e outra...
Abramowicz et al (2006) indicam que pesquisas têm concluído que o
rendimento escolar das crianças negras é condicionado por processos que se dão
119
dentro das escolas, pois, mesmo que apresentem um nível socioeconômico
melhor, muitas vezes, os negros continuam a apresentar uma trajetória escolar
diferenciada. Desta forma, não se pode explicar o baixo rendimento das crianças
negras sem considerar o racismo presente nas escolas.
Como eu me sentava no fundo da sala para observar a aula, alguns alunos
me procuravam para que eu ajudasse nas atividades. Flávio era um deles:
O Flávio fala para mim que está tentando ler, mas não consegue.
Pergunta-me: “O que fica c + a, é da?”. Isso, logo após a aula com
a família do c (a professora não fez a leitura com os alunos do que
escreveu na lousa). Quando a professora me vê ajudando o Flávio,
ela diz que ele não presta atenção, que não adianta querer ensinar.
“Flávio, para aprender a ler precisa parar e prestar atenção, senão
não sou eu, nem a Adriana, nem a Joana que vai fazer você
aprender” (Diário de campo, 28/04/2004).
Apesar de Flávio demonstrar uma grande capacidade de entendimento e
de aprendizagem, a professora demonstra ter uma baixa expectativa com relação
ao seu desempenho escolar. A partir das situações apresentadas anteriormente,
podemos levantar algumas questões: Por que a fala de Flávio não é valorizada
pela professora? Será que é porque Flávio não se encaixa no padrão etnocêntrico
que a professora demonstra valorizar? Por que ela se interessa pelas histórias de
Aline? Por que Gustavo tem tanto estímulo para participar das aulas?
Segundo Abramowicz et al (2006), estudos têm confirmado que o cotidiano
na escola é atravessado pela questão racial, e isso se reflete nas dificuldades
enfrentadas pelos alunos negros, que apresentam o pior desempenho, as maiores
taxas de evasão e de repetência. Isso significa que as crianças negras encontram-
se em desvantagens, e esse fato justifica e retira um imaginário estereotipado que
se tem sobre o negro, afirmando sua suposta incapacidade para tarefas
intelectuais (ibid, p.68).
120
Lucas
Lucas é uma criança de cor parda (atribuição minha). Ele era muito
repreendido pela professora devido ao ritmo em que desenvolvia as atividades.
Durante um recreio, a coordenadora e a professora conversaram sobre o irmão de
Lucas. A coordenadora falou de um aluno que tinha comportamento homossexual
(virou a mão para fazer referência ao aluno). Comentou que ele fazia muita fofoca,
que só fazia confusão e que tinha ciúmes da relação da professora com as outras
alunas da sala. Depois, perguntou para a professora da turma que eu observava
se o irmão dele, Lucas, estava dando trabalho. A professora Roberta disse que
não dava trabalho porque ele era muito quieto, mas que também não era bom
aluno porque era muito devagar. Comentou, ainda, que ele estava se
aproximando de outros da turma e que ela havia dito para ele ser igual ao
Reinaldo.
Reinaldo é um aluno de cor branca que a professora descreve da seguinte
maneira:
O Reinaldo é uma criança de situação financeira boa, a mãe é
professora só que não está dando aula, fica em casa com os filhos,
cuida, incentiva, trabalha, procura estar sempre a par. Quando não
vem a mãe na reunião, vem o pai, estão sempre presentes. Ele é
uma criança que fez pré e está indo bem (Entrevista, 05/07/2004).
Pensando no modelo apontado pela professora para que Lucas seguisse,
não podemos deixar de questionar por que Reinaldo e não Gustavo. Reinaldo era
um aluno que aparecia menos nas aulas, tinha bom comportamento, estava indo
bem e tinha pai e mãe sempre presentes. Gustavo era considerado um aluno
“brilhante”, mas não era passivo, obediente, era agitado.
Esse dado parece coincidir com os dados encontrados por Carvalho (2004)
num estudo envolvendo a produção do fracasso escolar. A autora aponta que:
um grupo de meninos, em geral brancos e provenientes de famílias
de setores médios intelectualizados, aparecia nas falas das
professoras como “excelente” ou “brilhante”. Raramente meninas
faziam parte desse grupo seleto de crianças que eram referência
certamente para seus pares. Não eram garotos passivos e
121
obedientes, mas, ao contrário, alunos com bom desempenho
acadêmico e também muito “agitados”, “perguntadores”, “críticos” e
mesmo “indisciplinados” (...) (CARVALHO, 2004,p.20).
Gustavo, tido como aluno excelente, apresentava comportamento agitado,
às vezes, indisciplinado. Parecia ser o referencial de masculinidade da professora,
mas não poderia servir de modelo de comportamento aos demais alunos:
Nesses meninos agitados, pouco atentos às necessidades dos
outros, a desobediência e a indisciplina são compreensíveis e
aceitáveis para as educadoras, cuja atitude parece conter não
apenas condescendência, mas também admiração e aprovação.
(...) Esse referencial de masculinidade passa a ser considerado um
problema apenas quando outros garotos, menos “rápidos e
espertos”, tentam seguir os mesmos padrões de comportamento ou,
não conseguindo obter prestígio com um bom desempenho
acadêmico, tentam construir sua auto-estima pela “masculinidade
de protesto” (CARVALHO, 2004, p.21).
Após alguns dias de observação, pude perceber que a professora chamava
a atenção de um aluno com freqüência e fazia referência também à família dele,
como no dia em que usando de ironia, disse que o aluno que ele atrapalhava os
outros demais:
A professora chama a atenção do Lucas que está muito atrasado.
Ela diz que quando escreve no caderno que ele não terminou, a
mãe não gosta. E diz para ele: “Você é excelente, não atrapalha os
outros com essa lerdeza” (Diário de campo 26/04/2004).
Algumas vezes a professora comentava sobre as aulas particulares que o
aluno vinha recebendo:
A professora fala novamente com Lucas sobre as aulas
particulares. “Quem tem professora particular alguma coisa
aprende, olha essa menina” e mostrou outra aluna (Diário de
campo, 17/05/2004).
Conversando um dia com a professora, ela me disse que o jeito do Lucas a
incomodava e pediu para eu prestar atenção nas pernas dele, como ele parava
com as pernas. E, num tom de brincadeira, a professora diz a Lucas durante uma
aula: “Acho que sua tia desistiu de você. Agora é a avó que leva para outra
professora. Acho que é melhor trocar de neto, já que nenhuma professora dá jeito.
Tem preguiça, não aprende” (Diário de campo, 09/06/2004).
122
Trabalhar com os diferentes ritmos dos alunos é uma dificuldade
freqüentemente apontada pelos professores. A organização das atividades e o
tempo disponível para a realização de cada uma delas “amarra” o trabalho da
professora e dos alunos, que devem começar e terminar tudo ao mesmo tempo
ou, pelo menos, com a menor diferença de tempo possível.
Os alunos que têm um ritmo mais lento para copiar e resolver atividades
são sempre foco de atenção dos professores, o que nem sempre se configura
como um problema. A questão é como o professor lida com essa diferença em
sala de aula. Expor o aluno a situações humilhantes é muito diferente da atenção
que se deve dispensar aos alunos que ficam atrasados durante as aulas.
Júlio
Júlio é um aluno negro e quieto que se sentava na fileira de alunos
classificados como tendo maiores dificuldades de aprendizagem. A professora
revelou, em vários momentos, a percepção que tinha do aluno com relação à
aprendizagem, como no dia em que o aluno conversava com outro e ela disse:
“Você (Júlio) já não faz nada, ainda fica dando atenção para ele (Lucas)”.
Também quando o aluno levou o caderno para ser corrigido e a professora
reclamou: “Sujo, cheio de orelha, nem capricho está tendo, né Júlio?”.
Júlio é um dos únicos alunos, dos que se sentam nas fileiras próximas à
porta (dos alunos com maiores dificuldades), que foi mencionado durante o
período em que realizamos as observações. Paulo também ficava deste mesmo
lado da sala, mas tão no fundo que parecia estar em outra sala.
McCarthy (1994, p.94), ao discutir os dados de pesquisa em que uma
professora agrupava os alunos em mais promissores, promissores e menos
promissores, logo no início das aulas, aponta que os alunos interiorizam estas
etiquetas. Este processo de agrupação, instituído de forma tão precoce na vida
escolar dos alunos, constituía por si uma profecia de cumprimento automático que
os alunos viveriam durante o resto de sua evolução escolar (ibid, p.44). Além de
interferir na própria evolução escolar, essa prática de rotular os alunos está
123
relacionada à expectativa e aposta que o/a professor/a fará na aprendizagem
deste, determinando, muitas vezes, o grau de mediação ou o estímulo dado pelo/a
professor/a à relação entre o/a aluno/a e o conhecimento.
No dia em que o pai de Júlio esteve na escola para conversar com a
professora sobre a dificuldade que o aluno sentia para enxergar as atividades na
lousa, a professora o colocou na primeira carteira, mas rapidamente concluiu que
o problema do aluno era outro:
A professora fala para o Júlio: “Seu pai falou que você não enxerga
(hoje ele está sentado na primeira carteira) só que quem não
enxerga não faz isso no caderno. Seu caderno está feio. Além de
não enxergar seu problema é o relaxo também”.
(...)
O Júlio leva o caderno para a professora corrigir o ditado e ela diz
“Não tem nada a ver com a vista. Você não está estudando. Eu vou
chamar sua irmã e você vai pegar firme com ela”.
(...)
O Júlio e o Lucas conversavam e a professora mandou o Júlio para
a carteira em que estava antes. “Mocinho, pega seu material e vai
para o canto. Seu problema não é enxergar, seu problema é outro”
(Diário de campo, 09/06/2004).
Um único dia em que pude observar a professora falar com o aluno sem
criticá-lo, foi quando ela perguntou se a mãe havia comprado as roupas que tinha
prometido a ele.
Num dos últimos dias de observação, Júlio revelou um aspecto conflituoso
da construção de sua própria identidade:
A professora sai um pouco da sala e o Júlio levanta e vem
conversar comigo. O Leandro, que estava sentado perto, me diz
que não quer fazer o reforço (no próximo semestre, em período
contrário), que não fica na rua à tarde. Enquanto os alunos estão ao
meu lado, começam a olhar a revista que está em cima da mesa e
um deles aponta a mulher mais bonita (Na capa da revista havia
quatro fotos de mulheres, sendo três brancas e uma negra).
Pergunto para o Leandro (branco) quem ele acha mais bonita e ele
aponta a foto de uma mulher branca e a da mulher negra. Pergunto
qual ele acha a mais feia e ele aponta a loira. Pergunto para o Júlio
(negro) e ele aponta como mais bonita uma das mulheres brancas e
diz que a mais feia é a negra. Pergunto porquê e ele diz que não
gosta de preto. Diz que não queria ser preto, queria ser como o
irmão que é branco. O Flávio (negro) aponta a negra como a mais
feia, quando pergunto porque, ele diz “porque sim” (diário de
campo, 01/07/04).
124
Neste mesmo dia, realizei uma entrevista com a professora e relatei esta
situação. Em tom de surpresa, a professora disse: “Ele (Júlio) é... então ele já traz
alguma coisa de casa, o preconceito... está dentro dele. E era pra ele gostar mais
dessa porque a mãe deve ser, o pai deve ser, e ele não gosta. E a moça é linda,
se for ver.” (entrevista 01/07/2004) Eu disse a ela que ele sofre esse preconceito,
o que levava à negação da própria cor. A professora se interessou em fazer a
pergunta sobre as atrizes da capa da revista para uma outra aluna negra da sala.
Fomos então para a aula de Educação Física, onde os alunos estavam. Eu fiz as
perguntas e a professora ficou ao lado, ouvindo. Fizemos a pesquisa com a Ana,
que é uma aluna negra que sempre ia para a escola com uma touca na cabeça:
Pesquisadora: Ana, a gente está fazendo uma pesquisa. Está
vendo essa revistinha? Qual (mostrando a capa da revista) você
acha mais bonita aqui?
Aluna: A menina aponta a negra.
P. Qual você acha a mais feia?
Al. A menina aponta a loira.
P. Por que esta é mais bonita e esta é mais feia?
Al. (demorou...) Por causa do cabelo (o cabelo da negra era liso e
das outras três um pouco enrolado).
P. Ah, por causa do cabelo dela. E essa aqui por que você acha
que é mais feia? ... Você gosta do cabelo dela (negra) assim? E
dessa (da que indicou como mais feia)?
Al. Não.
P. Por quê?... E desse cabelo aqui (mostrando um cabelo loiro
enrolado) você gosta?
Al. Não.
P. E desse aqui (outro cabelo enrolado)?
Al. Não.
P. E esse aqui (cabelo liso da negra), você gosta?
Al. Sim.
(Entrevista, 01/07/2004)
A importância atribuída por Ana ao tipo de cabelo das modelos da revista
indica sua dificuldade em aceitar seus cabelos crespos, que estavam sempre
escondidos pela touca. Silva (2001) aponta que os cabelos das crianças afro-
descendentes são identificados como “ruim” primeiro pelas mães e depois na
escola por outros alunos. Trabalhar a razão de ser dos diferentes tipos de
cabelos, ensinar como tratá-los, realizar concursos de penteados afro, trazer
trançadeiras para trançar na sala de aula, são algumas atividades que podem
desconstruir a negatividade atribuída à textura dos cabelos crespos (ibid, p.21).
125
Esses depoimentos dos/as alunos/as indicam dificuldades em lidar com a
questão racial. Durante o período escolar, eles/as passam por um processo de
re/construção de identidade que muitas vezes não é percebido pelos/as
professores/as. São conflitos e mudanças importantes que muitas vezes podem
influenciar no comportamento e na aprendizagem dos/as alunos/as. Estar atento a
esses processos, tentando, quando possível, interferir de maneira positiva,
poderia contribuir para melhorar a auto-estima dos/as alunos/as e na motivação
para a aprendizagem.
Como essas questões não são discutidas na escola, o conflito tende a
tomar uma dimensão extrema que é o “não querer ser”, como ficou explícito na
fala de Júlio. McLaren (2000b) destaca que a condição branca seduz o sujeito a
aceitar a idéia de bipolaridade branco/não branco como o texto limite da
identidade, como a fundação constitutiva da subjetividade.
Abramowicz et al (2006) salientam que as crianças negras não encontram
modelos que afirmem positivamente sua cor de pele na escola:
Elas aprendem que seus antepassados viviam em tribos e eram
povos bárbaros. São chamadas por apelidos pejorativos [...]. Não
desempenham papéis de protagonistas nas festas escolares. São
pouco solicitadas pelos professores para tarefas destinadas aos
“melhores alunos”, considerados “os mais capazes”. Todas essas
situações fazem as crianças negras se sentirem menos capazes,
menos bonitas, menos queridas (Abramowicz et al, 2006, p.68).
Numa situação em que “não se vê cor”, mas em que somente os
comportamentos de brancos são valorizados, talvez seja mais prudente “esconder
a negritude” ou, não podendo, querer ser branco. É, muitas vezes, vivenciando
esses conflitos, que são construídas e reconstruídas as identidades dos/as
alunos/as negros/as em sala de aula.
4.3. Discussão dos dados
A análise do currículo em ação da 1ª. série apresenta características que
são usadas para descrever um modelo eurocêntrico/monocultural de educação,
que valoriza o homem branco de classe média. As situações em que esse
126
entendimento é evidenciado são várias e concentram-se, neste caso, com maior
freqüência na relação entre a professora e os alunos. Essas situações envolvem,
principalmente, as diferenças de classe social, gênero e raça, que são categorias
relevantes quando tratamos de mono ou Multiculturalismo. Essas categorias
teóricas se misturam na prática pedagógica, não aparecendo de forma estática.
Ao analisar as características de uma prática docente monocultural,
Cortesão (2006, p.59) destaca alguns aspectos que podem ser observados
também na prática da professora da 1ª. série: professor que contribui para a
construção do aluno tipo-ideal; desenvolver transmissão de saberes considerados
importantes; concebe o ensino dirigido ao aluno médio; escola como campo
neutro de aquisição de saberes; representação dos alunos como conjuntos
homogêneos.
Alguns aspectos da prática ultrapassam as características apontadas por
Cortesão (2006) para uma prática monocultural, contribuindo fortemente para a
exclusão de alunos de determinados grupos, sem a preocupação de que esses
alunos possam apropriar-se nem mesmo da cultura hegemônica.
Dentro do modelo monocultural, a escola se mostra “emancipatória” para
uns e não para outros. Nas pequenas relações dentro da sala de aula, se
evidencia um tratamento igual quanto à apresentação dos conteúdos e à
exigência dos ritmos e, ao mesmo tempo, diferenciado quanto às relações com os
alunos e às expectativas. Enquanto poucos alunos são estimulados a
desenvolver seus conhecimentos e a participar das aulas, outros são
abandonados a sua própria sorte. Por que somente alguns alunos são
estimulados?
Este tipo de prática parece coerente com a organização social em que
vivemos, parece servir muito bem à hierarquia social que distribui as pessoas em
classes sociais distintas, na qual a desigualdade cresce a cada dia. Não é raro
ouvirmos de professores que nem todos os seus alunos serão médicos, o que
reafirma a naturalização da exclusão em sala de aula em sua relação com a
exclusão na sociedade. Quem está destinado a ser médico? O que define essa
classificação em sala de aula?
A concepção de conhecimento que está por trás desta prática parece ser
exclusivamente utilitarista, ou seja, ligada ao trabalho que supostamente será
127
exercido. O conhecimento na sociedade neoliberal toma cada vez mais esse
sentido, o de produto a ser consumido, como ressalta Apple (2003). Essa idéia de
conhecimento como produto é facilmente encontrada fora das escolas,
principalmente na televisão. Como o professor/a poderia ter acesso a um discurso
diferente deste? Como realizar com o/a professor/a o questionamento de
princípios capitalistas já tão disseminados e arraigados, que servem como base
para a própria prática pedagógica? Essa última pergunta pode ser estendida para
as questões de gênero e raça/etnia. Como reconhecer a opressão e os meios de
exclusão social para que possamos combatê-los? Não parece fácil saber se
localizar em meio a um “mar” hegemônico, que cresceu ainda mais com a
globalização.
Afinal, o que acontecia de bom
19
nesta sala de aula? Primeiramente, o fato
da turma e da professora existirem. A maioria das crianças demonstrava
constantemente a disposição para conversar com a professora, ainda que fossem
muitas vezes “cortadas”, demonstravam alegria quando recebiam uma palavra de
estímulo, ainda que fossem raras para alguns. Consideramos esses processos
como resistência, que, às vezes, se dava por meio do silêncio e outras por meio
da persistência dos alunos. Marcela é um exemplo dessa persistência. Além de
ser responsável por estabelecer a conversa com a professora, ainda superou as
expectativas negativas com relação a sua aprendizagem. No entanto, há que
destacar que esse processo de resistência não se deu com todas as crianças na
mesma intensidade.
Um importante episódio a ser analisado se deu quando iniciamos as
observações nesta turma, e que nos faz pensar em como a percepção das
situações da prática podem se configurar como “trapaças ideológicas” (Cortella,
1998) tanto para os/as professores/as, como para o/a próprio/a pesquisador/a.
Nos três primeiros dias de observação, as aulas nos pareciam rotineiras e sem
grandes problemas. Era uma turma com poucos alunos, na qual a professora não
tinha problemas com indisciplina e trabalhava os conteúdos tradicionais da
alfabetização. Com o passar dos dias, o referencial teórico crítico, que serviu de
base para a construção deste estudo, começou a indicar alguns pontos que
consideramos nevrálgicos na educação escolar. Assim, de uma suposta
19
No sentido da emancipação apresentado por Santos (2002).
128
“normalidade” passou-se a uma seqüência de acontecimentos, que submetidos a
uma análise a partir da teoria crítica, nos revelaram uma configuração mais
complexa das relações estabelecidas em sala de aula.
Os dados coletados na 1ª. série se aproximam das análises apresentadas
por Leite (2002), que aponta aspectos semelhantes com relação à educação
portuguesa:
[...] os grupos socioculturais mais penalizados pelo insucesso
escolar são, sobretudo, os dos meios economicamente
desfavorecidos e os que possuem valores, expectativas e códigos
diferentes dos privilegiados pela instituição escolar. A presença
destes alunos no sistema limita-se, muitas vezes, aos primeiros
anos de escolaridade e é caracterizada por níveis de sucesso
bastante baixos. O argumento de que a escola possui e valoriza um
único modelo e uma única narrativa tem estado na base de
inúmeras críticas que são feitas à instituição escolar, alegando que
ela, ao invés de contribuir para a construção de uma sociedade
mais igualitária, tem desempenhado um papel de reprodução e
legitimação das diferenças sociais. Na postura em que nos
colocamos, concordamos com os que criticam a escola porque,
mesmo quando recorre a critérios que exteriormente por alguns são
considerados justos, porque são iguais para todos, coloca em
situação desvantajosa os que possuem uma experiência e uma
cultura descoincidente da cultura tradicional escolar. A perspectiva
que nos orienta é a crença de que a escola monocultural e elitista
se transforme numa escola para todos, ou seja, a possibilidade de
substituir o paradigma da cultura única e da seleção pelo paradigma
da inclusão da diversidade social e cultural, que assume a
responsabilidade de a todos proporcionar sucesso escolar (LEITE,
2002, p. 194).
Por envolver categorias teóricas amplas – classe social, raça/etnia e gênero
– e por também nos basearmos em autores que tratam de temas como o de
emancipação e regulação (Santos, 2002), currículo em ação (Gimeno, 1998 e
Pacheco, 2005), etnocentrismo e monoculturalismo (Candau, 2002, 2005 e
Cortesão, 2006), consideramos pertinente analisar as situações observadas na 1ª.
série mesmo sabendo que a professora não tinha como objetivo desenvolver um
trabalho pedagógico com base no Multiculturalismo Crítico.
Procuramos, ainda, superar a lógica formal que julga a professora como
culpada ou vítima do sistema. Entendemos que há um ciclo de construção e
reconstrução da ideologia dominante que deve ser quebrado e isso é
responsabilidade do/a professor/a, mas também dos/as formadores/as, com o
129
objetivo de avançarmos na transformação social. Para isso, é necessário que
tenhamos consciência da importância do papel dos educadores dentro da escola,
e do Estado como fonte de investimento, elaboração e implementação de políticas
públicas para assegurar a educação pública, gratuita e de qualidade a todos.
O que pretendemos, então, com a apresentação destes dados? A partir da
compreensão de um quadro, como este da 1ª. série, levantamos alguns aspectos
do cotidiano escolar que podem contribuir para a reflexão dos professores quanto
à própria prática pedagógica e para a elaboração de cursos de formação inicial e
continuada de professores/as. No âmbito teórico, consideramos que a análise do
currículo em ação deverá contribuir para o desenvolvimento de estudos relativos à
importância do reconhecimento das diferentes culturas no trabalho escolar e no
estabelecimento de uma relação mais profícua entre o contexto social e a prática
pedagógica.
Apesar de não ter sido pensado como intervenção, o trabalho de coleta de
dados se revelou um importante meio de comunicação com a professora sobre
sua prática pedagógica. Além de chamar a atenção para alguns aspectos que
talvez não fossem problemáticos para ela, como a frase diária: “Bom dia Jesus”, a
permanência na sala e a relação com os alunos produziram um efeito de
“visibilidade” para muitos alunos, que, como a professora dizia, passavam a
demonstrar interesse e, assim, poderiam fazer o reforço em horário contrário. A
simulação de uma pesquisa com alguns alunos sobre a capa da revista,
procurando compreender melhor como eles viviam a questão da negritude,
pareceu muito instigante à professora, revelando elementos que até então ela não
percebia entre os alunos. O desenvolvimento desse tipo de pesquisa, juntamente
com os/as professores/as, nos pareceu um caminho promissor para tratar de
temas tão complexos em sala de aula.
130
Capítulo 5 - A 4ª. série da professora Silvia
20
Neste capítulo apresentamos os dados coletados na 4ª. série, com a
professora Silvia. Inicialmente caracterizamos a trajetória profissional da
professora e o ambiente escolar. Em seguida, passamos à análise de alguns
aspectos do currículo em ação, quais sejam: o trabalho com os conteúdos, a
relação entre professora, alunos e conhecimento destacando os aspectos
relativos à educação intermulticultural.
À época da coleta de dados, Silvia era professora da rede municipal de
ensino havia quatro anos. Sua formação é em Pedagogia e Mestrado em
Educação, no qual desenvolveu um auto-estudo sobre a construção do início de
sua carreira docente. Neste trabalho, a professora ressalta sua preocupação em
desenvolver uma prática pedagógica voltada aos/as alunos/as das classes menos
favorecidas, de diferentes raças/etnias e regiões do país.
A escola em que atuava localiza-se em região periférica. Tinha
aproximadamente oito salas de aula e ocupava um prédio recém construído. No
ano em que realizamos as observações, a escola ganhou uma biblioteca ampla
que, além de atender aos seus professores e alunos, também poderia ser utilizada
pela comunidade próxima.
A sala de aula era grande e bem iluminada. As carteiras eram organizadas,
na maioria das atividades, em duplas. Os trinta alunos da turma ocupavam todo o
espaço da sala. Eram alunos provenientes do próprio bairro e de bairros vizinhos.
Segundo a professora, os alunos pertenciam predominantemente à classe sócio-
econômica baixa, ainda que alguns pais trabalhassem em indústrias e outros
possuíssem pequenos comércios.
Os dados relativos ao currículo em ação da 4ª. série apontam para alguns
aspectos que, de algum modo, aproximam a prática pedagógica da professora
Silvia à perspectiva intermulticultural, tal como era esperado ao convidá-la para
participar deste estudo. Sua atuação pedagógica foi marcada pela convicção,
manifestada por ela, acerca da importância de se reconhecer e discutir as
diferenças culturais, os preconceitos e estereótipos sociais. Também revelou
algumas dificuldades quanto à seleção, organização e discussão dos conteúdos
20
Os nomes das professoras e dos/as alunos/as são fictícios.
131
que fugiam àqueles prescritos no planejamento e no livro didático e que se
relacionavam a questões ligadas à diferença, desigualdade, preconceito, racismo
etc.
Apesar dessas dificuldades, os dados apontam a possibilidade de se
desenvolver uma prática pedagógica diferenciada com a introdução da
preocupação com a diferença e a igualdade de oportunidades para os alunos.
Diferentemente das situações observadas na 1ª. série, o trabalho com os
conteúdos é que se destacou no currículo em ação da 4ª. série, o que resultou em
categorias empíricas diferentes das apresentadas no capítulo anterior.
Por meio do trabalho que desenvolvia, a professora Silvia procurava
abordar assuntos relacionados à construção de identidades individuais e coletivas
positivas dos alunos, demonstrando preocupação com o reforço da auto-estima, a
valorização de diferentes expressões culturais e com o estímulo à participação e à
aprendizagem de cada aluno.
Apresentamos, a seguir, os conteúdos trabalhados pela professora, durante
o período em que realizamos as observações, juntamente com os aspectos
referentes à relação com os alunos.
5.1. O trabalho com os conteúdos e a relação professora, alunos/as e
conhecimento
Com relação ao tratamento que a professora dava aos conteúdos, um
aspecto a ser destacado é que estes eram apresentados igualmente para todos
os alunos. A diferenciação, a nosso ver, ocorria posteriormente quando ela
procurava verificar quais os alunos que não havia compreendido um assunto,
chamando-os a sua mesa ou à lousa para explicar individualmente. Quando
percebia que vários/as alunos/as apresentavam dificuldades com um mesmo
conteúdo, a professora explicava a todos novamente, modificando os exemplos.
Assim, trabalhar, ao mesmo tempo, com o individual e o coletivo é uma
característica da prática desta professora, ainda que a seqüência e o ritmo de
trabalho fossem os mesmos para todos os/as alunos/as.
132
Algumas experiências demonstram a viabilidade de se desenvolver um
trabalho com os conteúdos de forma a respeitar mais o interesse e poder de
decisão dos alunos, como, por exemplo, o trabalho desenvolvido na Escola da
Ponte
21
, em Portugal. Há que se ressaltar, no entanto, que toda a escola deve se
reestruturar em função dessa prática diferenciada, não sendo possível que tal
mudança se dê isoladamente, em uma única sala de aula.
A professora Silvia demonstra em suas aulas a preocupação em trabalhar
com os conteúdos estabelecidos para a 4ª. série, mesclando a esses conteúdos
questões sobre preconceito, racismo, estereótipos etc., procurando diversificar
seus métodos de trabalho com músicas regionais, produção de textos coletivos e
individuais, discussões e outras atividades.
Retomamos aqui o alerta que Candau (2005) faz com relação à
universalidade e ao relativismo que tem sido foco de muitas discussões entre
pesquisadores. Para essa autora, é necessário questionarmos a afirmação, que
ainda é base da educação escolar, de que os conteúdos selecionados fazem
parte dos conhecimentos e valores considerados universais, pois essa
universalidade está assentada numa única cultura, a cultura ocidental européia.
Mesmo sendo uma discussão difícil e sem definição por parte dos
pesquisadores, consideramos que cabe tanto aos professores como aos demais
profissionais da educação ter um olhar mais crítico com relação à seleção dos
conteúdos, questionando o porquê, como e para quê desta seleção.
Demonstrando um pouco essa preocupação, a professora Silvia, mesmo
que ainda de maneira aditiva (acrescentando eventualmente ao programa),
procura diversificar os conteúdos tradicionais envolvendo aspectos da diversidade
cultural, principalmente quando discute esses conteúdos curriculares com os
alunos durante as aulas.
Além do planejamento anual, todas as aulas eram planejadas com
antecedência pela professora. Ela levava, anotadas em seu caderno, todas as
atividades que seriam desenvolvidas durante a aula. Ao chegar à sala de aula,
escrevia na lousa a seqüência de componentes curriculares e atividades a serem
desenvolvidas naquele dia:
Rotina:
21
Site da escola da Ponte na internet
133
Café
Chamada
Matemática
Geografia
Matemática
Agenda
Intervalo
Escovação
Português
Leituras
(Diário de campo, 02/09/2004)
Silvia demonstrava preocupação constante com a organização de suas
aulas, o que podia ser percebido pelo planejamento semanal e diário das
atividades, e com o aprendizado dos alunos – o que ela demonstrava durante as
aulas, explicando detalhadamente os conteúdos, individual e coletivamente. A
viagem que realizou com sua turma a Brodósqui para visitar o Museu de Portinari,
é um exemplo dessa preocupação. Antes da viagem, a professora trabalhou com
os alunos a vida e obra do pintor. Leu para eles o poema que Carlos Drumond de
Andrade escreveu em homenagem ao pintor e falou sobre sua infância na cidade
de Brodósqui.
Em entrevista, ao mencionar a fala de uma inspetora de alunos admirada
com o envolvimento dos alunos nas aulas, a professora Silvia fala também sobre
seu empenho no planejamento do trabalho com os conteúdos:
[...] Um dia a inspetora chegou na sala de aula e falou: “o que você
fez com eles? Porque no ano passado eles não sentavam”. Eu não
sei, acho que se você professor... isso não é uma coisa simples de
fazer, você tem que estar a todo momento... eu acho que o
conteúdo, que se fala tanto do conteúdo escolar, eu acho que tem
esse conteúdo tradicional que você tem nos programas, nos PCN,
claro que tem um objetivo aquilo, mas como você transforma aquilo,
traz para aquela realidade, a criança lê e vê um sentido naquilo. [...]
Então quando eu trabalhei isso (adjetivos) com as crianças, eu
aprendi isso com os alunos, ensinar adjetivo para eles, eles
adjetivando os colegas positivamente, falando que os adjetivos
negativos ninguém gosta de ouvir... Então eu acho que você tem
que buscar meios de transformar em alguma coisa que seja positiva
pra eles, tenha esse sentido para a criança entender. Por exemplo,
quando você chegou e eu estava estudando as regiões do Brasil,
né, não sei se você lembra, começou sempre com uma música da
região, porque a música para a criança é muito fácil. Eu me lembro
que na época, quando eu introduzi o Brasil, era época em que a
Daiane dos Santos estava nas olimpíadas, todos na expectativa, ela
já havia ganhado medalhas nos campeonatos mundiais,
134
classificatórias, e aí levei aquela música Brasileirinho, eu fui
procurar uma versão com a Baby do Brasil, que ela põe rock, que é
o que eles gostam, eles adoraram. [...] tem gente que pode achar
babaquice, mas eu sou muito atenta a essa coisa do humano, da
manifestação cultural (Entrevista, 05/01/2006).
Em alguns momentos a professora revelou que, apesar do compromisso e
do entusiasmo com que desenvolve seu trabalho, às vezes sente cansaço devido
às dificuldades enfrentadas na docência, como o desinteresse de alguns alunos e
os entraves operacionais para realizar atividades que fujam ao convencional,
como, por exemplo, deslocar os alunos para atividades extra-escolares.
Um aspecto a ser ressaltado no currículo em ação da 4ª. série e que
interfere na relação entre os alunos, a professora e o conhecimento foi o de que
ela procurava instigar nos alunos, freqüentemente, a compreensão da
necessidade de conhecimento. Ela dizia: “Eu já falei, adianta caderno cheio...” e
eles complementavam: “e a cabeça vazia?”. Um tempo depois ela comentou com
os alunos: “Todos têm capacidade, têm que ter oportunidade para aprender”
(Diário de campo, 01/09/2004).
Sempre que era preciso chamar a atenção de um/a aluno/a, a professora
ressaltava os aspectos positivos de seus comportamentos.
[...] O Gilson demonstra grande dificuldade para fazer um exercício
na lousa, principalmente na multiplicação. A professora diz: “Gilson,
você não está fazendo os exercícios? Você é um menino inteligente
em Matemática” (Diário de campo, 15/09/2004).
Em entrevista, ela disse:
[...] tem a coisa tradicional da escola, do primeiro da classe, e eu
nunca, é lógico que como professora você sabe quais aquelas
crianças que têm mais habilidades, mais facilidades, mas eu nunca
coloco isso pro grupo “olha ele é o melhor aluno”, porque aí essa
criança pode achar que é a oitava maravilha do mundo e às vezes
você tem uma criança que é ótima numa determinada atividade e
tem dificuldade em outra [...] (Entrevista, 05/01/2006).
Observa-se, nesses excertos, uma coerência entre o que a professora diz
em entrevista e sua prática em sala de aula, o que pode ser observado em
diversas situações. Durante os dias de observação, além de ressaltar as
135
características positivas dos alunos, a professora não usou comparações e nem
rotulou os alunos.
Em entrevista, explicou como entende e procura desenvolver a
compreensão dos alunos com relação à “disciplina para aprendizagem”, que, a
seu ver, está relacionada ao sentido dado por eles ao conhecimento:
[...] não é fácil você pegar todo esse conteúdo que a escola
tradicionalmente valoriza, que é isso que eu falo de encher o
caderno, não que eu não enchesse o caderno, não é não ter nada
no caderno, mas aquela coisa sem sentido e a disciplina no caso
para a aprendizagem que você precisa desse conhecimento hoje
para sobreviver, para você ter uma boa... não é performance no
sentido de nota, digo de uma performance para se apropriar desse
conhecimento, para você poder sobreviver nesse mundo que está
aí. Nesse sentido que eu vejo o conteúdo e a disciplina, pelo menos
eu sempre converso com as crianças o porquê disso e eu acho que
eles captavam isso. [...] (Entrevista, 05/01/2006).
Apesar de apresentar aspectos importantes para o desenvolvimento de
uma prática pedagógica privilegiando a relação professor/a, alunos/as e
conhecimento, ressaltamos um aspecto da prática de Silvia que merece reflexão.
Trata-se da relação dessa prática com o contexto social. Como é possível
perceber nesse excerto da entrevista, a preocupação da professora é a de que os
alunos precisam do conhecimento para “poder sobreviver nesse mundo que está
aí”. Essa função do conhecimento aparece em algumas situações em que a
professora ressalta a necessidade de determinados comportamentos e
aprendizagens para que possam sobreviver neste mundo, que é competitivo.
Consideramos que essa preocupação deve existir na educação, mas não pode
ser a única.
O referencial teórico adotado nesta pesquisa ressalta constantemente a
preocupação com a transformação das condições de exploração e exclusão
existentes na sociedade. Na prática pedagógica da professora Silvia é possível
perceber que, ao mesmo tempo em que se questionam elementos que contribuem
para a manutenção da desigualdade, o preconceito etc., há um destaque na
participação ativa das pessoas neste sistema social e não para a necessidade de
sua transformação.
Segundo McLaren (1997, p.216), conferir poder significa não somente
ajudar os estudantes a entenderem e envolverem-se no mundo ao seu redor, mas
136
também dar a eles a possibilidade de exercitar o tipo de coragem necessária para
mudar a ordem social, quando preciso.
A auto-estima é um elemento a ser tratado numa educação
intermulticultural e faz parte das preocupações da professora Silvia no
desenvolvimento de seu trabalho, o que parece ter reflexos no relacionamento
entre eles. No final do ano (10/12/2004) foi realizado o amigo secreto, com música
e, depois, uma festa. Enquanto chamavam os amigos para a entrega do presente,
percebi que os alunos recebiam os presentes demonstrando satisfação, mesmo
quando era a caixa de lápis de cor que a professora havia dado aos alunos que
não podiam comprar presentes (isso não foi revelado aos demais alunos). Depois
a professora comentou comigo que havia conversado com eles sobre a
importância do sentimento ao dar um presente e não do valor material. Contou a
história de uma aluna que a presenteou com uma flor num vasinho de papel que
ela mesma tinha feito e que a professora guarda até hoje (levou e mostrou aos
alunos).
A Daniela, para descrever seu amigo secreto, disse que era um “menino
inteligente”. A professora falou: “todos são inteligentes”. Ninguém esperava que
fosse o Luciano e quando ela disse que era ele, ele mesmo se surpreendeu.
O Luciano é um aluno que foi alfabetizado na 4
ª
série. Ele mesmo disse
que, até então, só sabia escrever cavalo porque o pai, ao ver que ele não havia
aprendido a ler e escrever no ano anterior bateu nele e o fez escrever cem vezes
a palavra cavalo. Além da atenção durante as aulas, chamando a participação do
aluno nas mais diversas atividades, a professora dava aulas de reforço para ele e
para outros alunos com dificuldades, durante o seu Horário de Trabalho
Pedagógico (HTP).
Ainda durante a festa, ele me disse, sem que eu perguntasse, que ficou
surpreso porque a Daniela tinha falado “menino inteligente”. Ele disse: “não pensei
que fosse eu”. Eu disse que ele era inteligente sim. Ele riu, como se dissesse que
não. Eu falei que ele aprendeu coisas dos quatro anos em um único ano. Ele
falou, mais convencido: “É”.
Em dois estudos que focalizam estratégias pedagógicas utilizadas por
professoras bem-sucedidas de alunos negros, no Canadá e Estados Unidos, são
destacados elementos que encontramos também no trabalho desenvolvido por
137
Silvia. Ladson-Billings e Henry (2002) apresentam alguns pontos relativos à
estrutura das aulas: os alunos da turma apresentam tanto uma agitação quanto
uma seriedade de propósito; as professoras aproveitam todos os momentos
disponíveis para dar instruções; fazem atividades coletivas e individuais; os alunos
falam baixo um com o outro; sabe-se que a professora deve ser respeitada e que
pode exigir a atenção de todos quando necessário; as aulas são dinâmicas,
espontâneas e participativas; os temas das aulas normalmente são relacionados
às vidas e experiências dos alunos; as professoras não têm medo de lidar com
assuntos controversos etc.
As professoras destes estudos também utilizavam provérbios para
estimular os alunos quanto à necessidade do conhecimento:
Professora: Qual é o nosso lema? Se todo dia eu der um
peixe a vocês, o que eu estarei fazendo?
Turma: Nos alimentando por um dia!
P: Mas se vocês aprendem a pescar, o que vocês estarão
fazendo em benefício próprio?
T: estaremos nos alimentando para a vida toda!
(LADSON-BILLINGS e HENRY, 2002, p.47).
Além dessa estrutura de trabalho em sala de aula, as professoras
pesquisadas por esses autores procuram desenvolver um “ensino culturalmente
relevante”, que usa a cultura do aluno para capacitá-lo a fazer um exame crítico
dos processos e conteúdos educacionais, e questionar o papel dele na criação de
uma sociedade verdadeiramente democrática e multicultural (ibid, p.51).
Outro ponto a ser destacado na prática pedagógica da professora Silvia é a
relação com as famílias das crianças, que parecia estar pautada no respeito e
apoio mútuos. Como, por exemplo, ao passar uma lição para que os alunos
fizessem em casa, a professora disse que se não soubessem fazer era para
deixar em branco: “não dou lição para o pai, a mãe, o irmão fazer” (diário de
campo, 02/09/2004). Durante o período de observação, sempre que os pais
compareceram à escola para conversar sobre seu/ua filho/a foram recebidos pela
professora, que demonstrava paciência para explicar a situação do/a aluno/a,
quando era o caso.
Uma atividade de integração entre escola e família muito interessante
realizada pela professora se deu no final do ano, quando ela orientou a
elaboração de um caderno de poesias pelos alunos e convidou os pais para um
138
Sarau em que cada aluno escolheu e apresentou uma poesia. A maioria dos pais
compareceu e muitos elogiaram a iniciativa.
Essa relação com as famílias é ressaltada pela professora quando fala,
durante a aula, sobre quem ela considera o melhor aluno: O melhor aluno para
mim é aquele que tem vontade de aprender. A obrigação dos pais é perguntar se
tem tarefa, se tiver dúvida, explicar, mas ensinar a fazer tudo não (Diário de
campo, 30/09/2004).
Em entrevista, a professora fala sobre como lida com questões que
envolvem a vida familiar das crianças:
[...] eu não agüento esse discurso de chegar “porque a família é
assim..., a mãe é prostituta, o tio está na cadeia...”. Isso me irrita
profundamente. Quando eu sei de uma história das crianças dessas
aí, é porque alguém veio me contar ou ela mesma me contou,
porque eu não vou bisbilhotar a vida de ninguém. Entrou na sala é
meu aluno, é um ser humano que eu vou procurar fazer o melhor
para ele... achar o lugar dele no mundo “oh eu sou desse jeito, vou
ter de sobreviver assim, me defender assim...” , mas é dificílimo
porque a cultura escolar já vem com tudo isso aí [...] (Entrevista,
05/01/2006).
A escola é entendida pela professora como o ambiente que poderá mostrar
para aquelas crianças que vivem em ambientes de agressão em casa outras
possibilidades de se relacionar, por meio do respeito mútuo e de um ambiente
mais harmonioso.
Silvia aproveita as pequenas situações para trabalhar diferentes temas,
como a responsabilidade e o compromisso, por exemplo, ao dizer que quando um
aluno falta tem que ter a responsabilidade de perguntar para um colega se tem
atividades para o dia seguinte. Ou em situações mais sutis, como colocar-se no
lugar do outro, quando a professora falou que um aluno pediu transferência e a
Karina disse: “Ai que bom!”. A professora prontamente questionou a aluna:
“Karina, você gostaria que falassem assim de você?” (Diário de campo,
02/09/2004).
Em algumas situações os alunos demonstraram reconhecer a preocupação
e o trabalho diferenciado que a professora Silvia procurou realizar. No final do ano
(02/12/2004) o Fábio disse à professora que ela foi a melhor professora que ele
139
teve, porque as outras diziam que ele não aprenderia e colocavam-no para fora da
sala de aula. Disse que a Silvia, naquele ano, não havia gritado com ele.
A leitura geral dos dados obtidos a partir do currículo em ação da 4ª. série
possibilitou a organização das situações em categorias empíricas relacionadas à
educação intermulticultural, tais como: o conceito de cultura, sexualidade, gênero,
racismo etc. A fim de melhor organizar a discussão dos dados, as categorias são
apresentadas separadamente neste relatório. Ressaltamos, no entanto, que em
algumas situações elas se misturam, como, por exemplo, uma discussão na qual
figuram dois temas: gênero e preconceito racial.
Conceito de cultura
No dia 1º. de setembro de 2004 a professora deu continuidade a um
trabalho sobre as regiões do Brasil, na aula de Geografia. A região estudada
neste dia foi a Sudeste. Os alunos ouviram uma música e assistiram a um filme
sobre a região.
O filme faz parte de uma coleção da revista Caras, que mostra as regiões
do país focalizando os pontos turísticos e festas de cada uma delas. Assim, a
imagem de cada região acaba ficando distorcida por mostrar somente os aspectos
bons. A professora tinha consciência disso e durante as discussões alertava que
as regiões apresentam problemas também, não eram só as coisas boas que
apareciam.
Após assistirem ao filme a professora iniciou a discussão sobre ele,
questionando os alunos sobre as diferenças culturais, e perguntou: “O que é
cultura?” Ela mesma respondeu: “Valores, crenças, costumes”. Alguns alunos
contaram sobre suas origens e discutiram características como sotaque e
alimentação típica de uma região. Após essa discussão, a professora escreveu
um texto na lousa falando sobre a região Sudeste. Ela voltou a esse texto no dia
seguinte, terminou de escrevê-lo na lousa e fez a explicação, questionando os
alunos sobre alguns pontos, tais como: a importância das informações dos jornais,
a parcialidade das informações e os problemas do Brasil. Ela perguntou aos
140
alunos: “Nos cortiços, as pessoas moram por que querem?” Os alunos
responderam que não, que é por necessidade. “O salário dá para pagar aluguel?”
Os alunos disseram que não. A professora acrescentou: “O país tem riquezas,
mas a população...” (diário de campo, 02/09/2004).
Ainda no dia 01/09/2004, durante a aula de Português, a professora utilizou
a música que ouviram na aula de Geografia para assinalar os verbos. Ela pediu
para que cada aluno dissesse um dos verbos assinalados. Isso demonstra a
tentativa de integrar a discussão sobre a diversidade cultural das regiões
brasileiras em outros componentes curriculares. Silvia trabalhou várias vezes com
poesias e letras de músicas de diferentes regiões do país nas aulas de Português,
acompanhando os conteúdos trabalhados nas aulas de Geografia.
As aulas eram dinâmicas, a todo o momento a professora conversava com
diferentes alunos, corrigia cadernos, orientava as atividades, explicava as
atividades individualmente quando o/a aluno/a tinha dificuldades, fazia correção
com os alunos na lousa etc. A maioria dos alunos desenvolvia as atividades
juntamente com a professora. Alguns tinham um ritmo mais lento e ela chamava a
atenção deles, perguntando se já haviam terminado de fazer a atividade.
A concepção de cultura apresentada logo no início da aula do dia
01/09/2004 se aproxima de uma compreensão designada por Stoer e Magalhães
(2005), como “multiculturalismo benigno”, que se preocupa centralmente com
diferentes estilos de vida e sua aceitação. Esta concepção pode ser
encontrada/percebida em outras situações em que a professora recorre à
definição de cultura ou aborda a questão da diferença.
Ainda com relação ao conceito de cultura, em entrevista, a professora diz:
Eu acho que cultura é aquilo que te forma enquanto pessoa. É a
sua maneira de pensar, sua forma de se vestir, o alimento que você
come, quer dizer, “Ah eu gosto de pensar determinada fruta”, que é
da sua região, para você tem todo um significado, aquele cheiro,
aquele paladar, o aroma... você vê a árvore, a planta. Por exemplo,
na minha infância, apesar de ter sido criada em São Paulo, na
capital, há muito tempo atrás tinha um pé de pitanga na minha casa.
[...] Então num quintal pequenininho minha avó trouxe toda essa
cultura da terra e eu acho que eu como professora, que como eu
iniciei minha carreira em uma escola que recebia crianças da zona
rural, eu percebi logo de início como era importante valorizar essas
coisas das crianças. [...] Então eu acho que cultura é isso, essa
forma de alimentação, de como você se apresenta, sua forma de se
141
vestir, o próprio falar, que nós temos diferentes formas no Brasil, a
arte popular mesmo, música, dança, literatura de cordel, quer dizer
diversas manifestações artísticas. [...] o fato do meu pai ser
estrangeiro e ter vindo pra cá... [...] você tem uma outra visão do
país [...] o tempo que eu vivi fora (do Brasil)
22
[...]. Não tem assim
cultura melhor ou pior, é diferente e eu acho que o legal... eu tento
passar isso para as crianças e algumas coisas eu vejo em algumas
crianças que eu consigo isso, porque a escola reflete a sociedade
que somos, e a sociedade brasileira é extremamente
preconceituosa, racista, mas é tudo meio disfarçado, então eu acho
que a escola é um espaço legal pra gente estar vendo isso [...]
(Entrevista, 05/01/2006).
Diferentemente das concepções apresentadas por autores do
Multiculturalismo Crítico, a concepção de cultura da professora parece privilegiar
as dimensões artísticas e intelectuais de diferentes grupos. Na perspectiva do
Multiculturalismo Crítico, segundo Canen e Oliveira (2001), busca-se superar a
valorização da diversidade cultural em termos folclóricos ou exóticos, para
questionar a própria construção das diferenças, dos estereótipos e preconceitos.
A forma como Silvia compreendia as diferenças culturais será retomado
algumas vezes conforme a apresentação dos dados, principalmente quando as
discussões envolverem questões sobre preconceito, racismo e desigualdade.
Destacamos que o conceito apresentado pela professora parece nortear toda a
elaboração de seu trabalho pedagógico, sendo base também para as discussões
ocorridas em sala de aula.
Ainda com relação à fala da professora durante a entrevista, é possível
identificar o aspecto afetivo envolvido em seu trabalho. Ela retoma sua própria
trajetória como filha de imigrante e de sua convivência com pessoas de diferentes
culturas. Canen e Moreira (2001) destacam que esse é um dos elementos a
serem priorizados na elaboração de um currículo intermulticultural na escola e na
formação de professores. Os autores argumentam: (...) é necessário acentuar que
os aspectos cognitivos envolvidos na formação docente não são suficientes para
estimular de fato uma postura multicultural, não podendo, portanto, ser separados
de um concomitante envolvimento afetivo (ibid, p.33).
Além desse aspecto afetivo, outro elemento que parece fazer parte das
motivações para o desenvolvimento de um trabalho preocupado com a
diversidade cultural é que Silvia considera importante trabalhar com a valorização
22
A professora residiu alguns anos nos Estados Unidos, por razões familiares.
142
das diversas culturas para que os alunos se sintam fortalecidos para lutar por
seus direitos. Se você valoriza culturalmente, eu acho que ela tem força pra brigar
politicamente... Isso no meu primeiro ano como professora, isso me chamou
atenção, porque a quê as crianças têm acesso? O que a mídia oferece para essa
criançada?(...) (Entrevista, 05/01/2006).
A interpretação dos conceitos de diferença e desigualdade, muitas vezes,
se confundem. Isso parecia ocorrer também com a professora Silvia, como foi
possível observar em uma atividade. Após um trabalho realizado na aula de
Português do dia 29/09/2004, com o texto intitulado “Andréa e Clarice – uma
relação difícil” (texto em anexo), Silvia procurou discutir com os alunos sobre a
diferença de comportamento entre duas irmãs.
A discussão levantada a partir desse texto envolveu questões sobre
higiene, inveja e a relação com os irmãos, o que fez com que muitos alunos
contassem situações vivenciadas por eles em casa. A professora enfatizou que as
irmãs não precisavam ser iguais, mas que Clarice poderia ter atitudes que a
fizesse se sentir bem, como a irmã.
Após uma longa discussão sobre a diferença entre as irmãs na história e
entre as pessoas em geral, o aluno Henrique disse: “Todo mundo deveria ter as
coisas iguais.” Alguns alunos falaram que seria chato se todos tivessem tudo
igual. Henrique reforça: “Ter as mesmas coisas”. A professora fala: “É, seria chato
se Andréa e Clarice fossem iguais”.
Essa situação revela que as questões de diferença e desigualdade não
pareciam estar bem definidas para a professora. Henrique falava sobre
desigualdade e não sobre a diferença que havia sido discutida com base na
história.
Candau (2005) alerta que estes temas devem ser tratados dialeticamente,
compreendendo-se que igualdade está oposta à desigualdade e diferença à
padronização. Uma educação intermulticultural, na perspectiva crítica, tem como
objetivo trabalhar com a negação da padronização e a luta contra a desigualdade
e discriminação social.
A compreensão desses dois conceitos – diferença e desigualdade - é de
fundamental importância para o desenvolvimento de um trabalho que considere a
diversidade cultural, pois possibilita a diferenciação entre situações que
143
contribuem para a situação de exclusão por meio da desigualdade social e as
diferenças entre as pessoas.
Discussões envolvendo questões culturais e/ou sociais foram realizadas em
vários momentos durante o semestre, como, por exemplo, quando a professora
tratou sobre verminoses na aula de Ciências e fez uma discussão sobre o
atendimento à saúde público e privado.
No dia 22/09/2004, Silvia voltou a conversar com os alunos sobre uma aula
de Ciências em que discutiram sobre AIDS. Desta vez, conversaram sobre o
atendimento recebido nos postos de saúde. Ela perguntou aos alunos quem
dependia de atendimento público e quem tinha convênio e explicou sobre esses
dois atendimentos: “Público, o governo paga. Privado, a gente que paga”. Vários
alunos falaram sobre o atendimento de familiares nos postos, da demora no
atendimento, falta de remédio, etc. A professora perguntou: “por que tem pessoas
que compram remédios sem receita?” Os alunos responderam: “porque não têm
dinheiro para consulta.” Silvia continuou: “E se o remédio for errado?” Um aluno
complementou: “E se tiver alergia?”. Mirela falou sobre a greve dos médicos e a
professora perguntou por que os médicos fazem greve. Os alunos responderam
que é por melhores salários e condições de trabalho. Continuaram falando sobre
leis, cumprimento de leis, venda de remédios sem receita e sobre o lucro das
indústrias de remédios.
Continuando a aula de Ciências, a professora perguntou aos alunos o que
é necessário para se ter boa saúde. Os alunos falaram de alimentação, higiene,
atendimento etc. A professora questionou mais uma vez: “E as crianças que não
têm saneamento básico?” Alguns alunos falaram novamente sobre situações que
conheciam e a professora disse que nem todos têm água encanada, esgoto e
comentou sobre as favelas. Um aluno falou sobre o desemprego. Após essa
discussão a professora começou a ler o texto sobre verminoses do livro de
Ciências (Diário de campo, 22/09/2004).
Ressaltamos aqui a importância da contextualização que Silvia procurava
fazer por meio da discussão. A professora apresentou o conteúdo “verminoses”
relacionando-o às condições sociais em que as pessoas vivem, superando a
fragmentação das análises que tratam a doença exclusivamente como um
problema fisiológico e individual.
144
Como apontam Canen e Moreira (2001), o diálogo oferece base
indispensável para o desenvolvimento de uma perspectiva multicultural no
currículo em ação. No entanto, temos que atentar para alguns cuidados no
desenvolvimento das discussões em sala de aula. A variedade de assuntos
discutidos pela professora e pelos alunos, a partir do tema “verminoses”, foi muito
grande, o que pareceu dificultar um pouco o estabelecimento da relação entre o
específico e o geral.
Outro aspecto a ser ressaltado a partir das discussões realizadas em sala
de aula é a fundamentação da argumentação da professora. O que parece
prevalecer é a própria visão de mundo dela, que em vários momentos nos parece
próxima das concepções mais críticas e em alguns outros não, quando, por
exemplo, diz que o governo paga a saúde pública – que é mantida, na verdade,
pelos impostos pagos pelos contribuintes.
Consideramos que a compreensão das relações sociais tem importância
fundamental para o desenvolvimento de uma prática comprometida com a
melhoria da educação e com a transformação social, definindo, às vezes
inconscientemente, boa parte dos objetivos educacionais e da prática docente.
“Cultura escolar” e “cultura de bairro”
Durante o período de observação na 4ª. série, foi possível perceber que,
em vários momentos, a professora criticava o que ela denominava “cultura
escolar” e a “cultura do bairro”. Esses termos eram usados para designar os
comportamentos dos alunos, de outros professores e profissionais da escola que
Silvia considerava inadequados, tais como: cumprir tarefa mecanicamente (por
exemplo, algumas vezes quando ela pedia aos alunos para que lessem poesias),
“cultura do bilhete no caderno”, cópia da lousa para conseguir o silêncio dos
alunos etc. Isso ficou explícito, por exemplo, no seguinte excerto:
[...] Voltamos do intervalo. A professora comenta com os alunos,
que ficou triste por saber que formaram “panelinhas” e não
deixaram algumas crianças participar do teatrinho. A professora fala
que a turma é 4ª. C, e sempre é possível participar de diferentes
145
formas do teatrinho. A Amanda fala para que esses alunos façam
outro teatro e a professora diz que não é esse o espírito da coisa.
Depois a professora comenta comigo que isso reflete a cultura do
bairro. Fala dos pais que reclamam se só o filho dele recebe
advertência, querem para o outro também (Diário de campo,
29/09/2004).
No final do ano, 02/12/2004, a professora comentou comigo sobre a
dificuldade de mudar o comportamento agressivo de alguns alunos, porque não
havia um projeto que envolvesse toda a escola. Falou sobre as dificuldades que já
havia enfrentado com relação à forma de tratamento de inspetoras de alunos e
merendeiras para com os alunos, como no dia em que a merendeira disse que as
alunas pareciam galinhas, por terem entrado rindo no banheiro. Também falou
sobre a cultura do bairro em que a escola está inserida que, segundo ela, era
marcada por agressão, brigas e xingamentos. Ela já havia comentado neste
mesmo dia que não estava muito contente com os resultados de seu trabalho
referentes ao tratamento entre os alunos neste ano.
Destacamos que dentro da sala de aula a professora consegue manter um
ambiente de respeito mútuo, mas isso não se dá na escola como um todo. Há
conflitos entre funcionários e alunos, talvez por não compreenderem o papel
educativo que todos eles também têm dentro da escola.
Alguns desses aspectos identificados pela professora como “cultura
escolar” e “cultura de bairro”, tais como: a rotulação de alunos, o fazer pedagógico
reificado e os comportamentos observados no grupo social do bairro, são
analisados por McLaren (1991) procurando entender a escola a partir da
perspectiva da cultura, por meio do conceito de ritual aplicado a ambientes
escolares. Ele parte da compreensão da escola como um rico repositório de
sistemas rituais e de que os rituais representam um importante papel no conjunto
da existência do estudante.
Para o autor, ritual é uma produção cultural construída como uma
referência coletiva ao simbólico e a experiência localizada da classe social de um
grupo (ibid, p. 30), sendo que a cultura é formada fundamentalmente por rituais
inter-relacionados e sistemas de rituais (ibid, p.32).
O autor argumenta que conhecer os rituais de uma escola, que se
apresentam tanto de forma tácita como manifesta, auxilia na compreensão de
como funciona a transmissão de mensagens simbólicas:
146
(...) Uma consciência de como os rituais operam também ajudará os
professores a modificar as regras culturais que, de outra forma,
ditariam padrões hegemônicos de interação na sala de aula, bem
como a melhorar a comunicação com os alunos no clima
educacional freqüentemente apreensivo dos dias atuais
(MCLAREN, 1991, p.36).
A professora Silvia mostrou-se capaz de identificar alguns rituais escolares
e, às vezes, interferir para modificá-los. No entanto, nem sempre demonstrou
compreender o significado desses rituais, que provém tanto da cultura escolar
como da cultura local (de bairro), o que dificulta a intervenção para modificação de
regras culturais e a comunicação com os alunos em determinados momentos.
Ressaltamos a necessidade da realização de um trabalho conjunto com os
demais profissionais da escola, pois isoladamente pouco se pode avançar na
compreensão e na transformação de fato de alguns ritos escolares e de suas
relações com o que McLaren (1991) chama de cultura “de esquina de rua”.
Gênero e Sexualidade
As questões sobre gênero e sexualidade foram observadas principalmente
em atividades que aconteceram fora da sala de aula, como as apresentações de
teatro realizadas na escola.
No dia 21/10/2004, um grupo de dentistas da rede municipal de saúde
apresentou um teatro baseado na história de Cinderela para todos os alunos da
escola, com o objetivo de demonstrar a necessidade de escovação e higiene
bucal. No entanto, além desta mensagem, vários estereótipos fizeram parte da
apresentação, como a Cinderela sendo representada por uma mulher loira e a
madrasta representada por uma mulher gorda. A questão de gênero também
estava presente no texto, no qual a menina deveria ser “boazinha” e “limpinha”
para esperar o “príncipe encantado”, pois só o casamento poderia trazer a
felicidade.
Mais uma apresentação de teatro foi realizada no dia 22/11/2004 e
novamente muitos estereótipos estiveram presentes. A história era sobre uma
mulher feia que acabou casando-se com um príncipe. De uma melancia saíram
147
três mulheres: uma de cabelos pretos, outra de cabelos ruivos e, a última, “a mais
linda de todas”, de cabelos loiros. A encenação mostrava a espera da mulher
pelo príncipe encantado, e mostrava uma relação entre beleza da mulher e
trabalho, quando a Moura Torta, que carregava o balde de água na cabeça, vê
seu reflexo no lago como de uma princesa e questiona: “como uma mulher tão
linda poderia estar fazendo isso”?
Nessas duas apresentações, a mulher é referida como tendo um papel que
envolve a preocupação com a beleza e a espera pelo “príncipe encantado”. É
interessante notar como os preconceitos e estereótipos relativos à categoria
gênero estão associados a outros de diferentes categorias, como, por exemplo, de
classe social e raça/etnia.
Mesmo com tantas mudanças relativas ao papel da mulher na sociedade,
principalmente no mundo do trabalho e na educação, segundo Beauvoir (1980), o
maior empreendimento reservado a ela ainda é o casamento. A família, a religião,
as revistas, os programas de televisão e, como pudemos observar, as
encenações nas escolas, ainda reproduzem esse padrão, sem críticas:
Abrem-se as fábricas, os escritórios, as faculdades às mulheres,
mas continua-se a considerar que o casamento é para elas uma
carreira das mais honrosas e que as dispensa de qualquer outra
participação na vida coletiva. [...] Como, portanto, não conservaria o
mito de Cinderela todo o seu valor? Tudo encoraja ainda a jovem a
esperar o “príncipe encantado” fortuna e felicidade de preferência a
tentar sozinha uma difícil e incerta conquista [...] (BEAUVOIR, 1980,
p.177).
Nem todas as apresentações de teatro foram carregadas de estereótipos
com relação ao feminino e masculino. Em uma apresentação do grupo da Ação
Cultural da Biblioteca da UFSCar, no dia 06/12/2004, não apareceram os
estereótipos que geralmente acompanharam as peças apresentadas na escola.
Nesta encenação baseada no conto da Branca de Neve, Maria e a madrasta eram
negras e a bruxa era branca. Os personagens foram interpretados por alunos da
2
ª
série da escola que participaram de um projeto de leitura.
Destacamos a importância do papel do educador na elaboração de
atividades para serem apresentadas nas escolas, a fim de submeter à crítica,
148
aspectos como os apresentados anteriormente, que envolveram preconceito,
estereótipo etc.
Uma situação envolvendo sexualidade ocorrida em sala de aula aconteceu
no final da aula do dia 02/09/2004. Enquanto os alunos liam os livros de poesia
que a professora havia levado, Renata reclamou para a professora que o Rubens
estava “pegando nela”. A professora chamou a atenção dele e disse que já havia
conversado com os meninos da turma, inclusive com ele, sobre isso. “Você só
pode tocar nela, se ela permitir”. Depois me disse que já tinha dado uma aula
sobre sexualidade.
Posteriormente, Silvia nos alerta de que a postura frente a essa situação é
motivada tendo em vista o contexto social em que esses alunos/as vivem. Diz que
o bairro é marcado por situações de agressão, inclusive contra as mulheres.
A respeito dessa situação, ela disse em entrevista:
[...] como a gente tem esse modelo que a mulher está “a serviço do
prazer do homem” que é isso que a mídia passa, as meninas... elas
também não têm como lidar com isso se um menino, já como falam
avança o sinal... Quer dizer ela não se sente segura para dizer não,
você entende? Eu acho que isso pode começar por aí mesmo, esse
poder que a mídia fala que o homem domina a mulher nesse
sentido, então você já começa de pequeno falar “não, eu não vou
reagir?” É como eu falei, o corpo... eu sempre falo isso paras
meninas... que o corpo elas que vão ter que ter essa autonomia,
vamos dizer, de não serem usadas, de não serem exploradas pelo
sexo mais forte, como a sociedade prega que o homem que... então
é lógico, isso é uma sutileza que isso acontece, como numa quarta
série que eles estão entrando na pré-adolescência... eu me lembro
que nessa turma eu já tinha menina que já tinha tido menarca,
então já está numa outra fase. Você vê, menina com nove anos
ficando menstruada... por conta do jeito que a coisa é posta. Então
quando esse assunto surgia, eu sempre colocava isso da menina
aprender a se impor, a ser respeitada, que o corpo dela alguém só
pode tocar, mexer, se ela permitir... porque é uma coisa muito sutil,
não sei até que ponto, não sei avaliar isso, eu conversando isso
com a criança eu não sei também, porque o nosso... você tem que
trabalhar com tantas coisas como professor. Eu me lembro, na
minha formação eu nunca tive alguma coisa específica... eu procuro
agir muito assim pelo bom senso, lógico ler alguma coisa, sempre
que eu vejo alguma coisa assim que eu... uma reportagem, uma
pesquisa, uma coisa interessante, eu sempre procuro estar me
informando, porque eu acho que a gente precisa muito de
informação e... mas eu não sei também, porque eu também tenho
que me patrulhar, porque até que ponto isso não é um valor meu,
como pessoa. Eu não sei até que ponto isso é adequado ou não, eu
me questiono assim. Mas quando acontece uma coisa assim na
149
hora, você tem que se posicionar, mas eu acho que se eu me
posicionar, é obvio você como professor você não vai ser imparcial,
acho que eu estou lá como professora e toda essa valorização
como você viu da cultura, eu tenho toda uma história por trás disso,
de vida, de formação, de experiência que também lógico
sexualmente é pela minha vivencia (Entrevista, 05/01/2006).
A professora acrescentou, ainda, que tem grande preocupação com as
meninas, por isso considera importante mostrar que elas podem se defender
sozinhas e que existem outros modelos diferentes daqueles apresentados pela
mídia. Ao mesmo tempo em que desenvolve esse trabalho com as meninas, a
professora diz que também desenvolve um trabalho não-machista com os
meninos: (...) procuro sempre mostrar para eles essa questão da delicadeza, mas
delicadeza no sentido de hábitos de educação.
Um dos pontos a destacar na fala da professora, é com relação ao papel
que a mídia tem na produção de padrão de feminino e masculino e como isso é
forte na construção das identidades dos alunos. Segundo Camargo e Ribeiro
(1999), ainda hoje a sexualidade é ocultada ou tratada como forma de disciplina,
tabu e submissão. No entanto, argumentam que a presença do/a educador/a
comprometidos com o respeito à intimidade da vida sexual possibilitaria que
alunos/as tivessem uma visão diferente daquela vendida pelo consumo, que
produz os indivíduos normalizados e normatizados:
A escola é uma das instituições encarregadas de transmitir cultura e
formas de comportamento aceitas pela sociedade, mas pode
também ser um espaço de questionamento desses
comportamentos. Atualmente, esfacelada por uma série de motivos,
a escola contém espaços de resistência, em que a criatividade e a
sensibilidade representam possibilidades de problematização de
seu papel (CAMARGO e RIBEIRO, 1999, p.43).
Como afirmou a professora Silvia, os questionamentos que fazia com
relação à questão de gênero eram baseados em alguns estudos próprios e em
sua visão de mundo. Ela não teve nenhum tipo de formação que abarcasse o
tema e não havia nenhuma discussão, ou troca de experiências entre os
professores, que a ajudassem a lidar com as situações da prática pedagógica.
Quanto à formação de professores para trabalhar com as questões de
gênero e sexualidade, Pereira (2005) ressalta que, apesar de não haver
orientações que devam ser seguidas indiscriminadamente em diferentes situações
150
que envolvam o tema, o que parece ser desejável e necessário é que as escolas
se organizem para discutir essas questões, acompanhadas, algumas vezes, por
estudiosas/os, pesquisadoras/es e/ou militantes de movimentos sociais
envolvidas/os com tais discussões. Que as professoras possam refletir sobre seus
valores e preconceitos à luz da produção teórica; que examinem suas ações e
possam tirar conclusões amparadas por um foro de discussão (ibid, p.144).
A preocupação revelada por Silvia em entrevista quanto às meninas,
questionando a submissão da mulher na sociedade atual, e aos meninos,
preocupando-se com atitudes de gentileza, parece demonstrar uma compreensão
que se distancia do essencialismo das posições tradicionais da mulher meiga,
passiva, boazinha e do homem forte, bruto, agressivo. Apesar das dificuldades
enfrentadas pela professora no trabalho com esse tema, ela demonstrou ter uma
compreensão menos fixa e essencializada daquilo que é destinado social e
simbolicamente para mulheres e homens.
Em uma conversa informal sobre o tema, a professora nos contou sobre o
pai de uma aluna que foi reclamar que a filha estava vendo pornografia na
biblioteca. Logo no início da conversa a professora percebeu que se tratava dos
livros de ciências que mostram o corpo humano e procurou explicar ao pai que
eram livros científicos e que esse conhecimento era necessário aos alunos. O pai,
por conta da religião, se recusou a aceitar a argumentação da professora e
terminou a conversa dizendo que não queria que a filha tivesse contato com tal
material. Silvia explicou para a aluna que os livros são de ciências e que o
funcionamento do corpo humano é um conteúdo importante. Disse que se a aluna
quisesse consultar o livro sobre reprodução humana não havia problemas, que só
não contasse ao pai, pois esse não aceitaria.
A religião é um aspecto que interfere muito na compreensão da
sexualidade e na constituição das identidades no que se refere a gênero. Essa é
uma questão importante, pois não é raro que durante um trabalho pedagógico em
que essas questões são discutidas na sala de aula, surjam pais reclamando que
não aceitam que os filhos participem dessas discussões, principalmente quando
elas fogem do tradicional papel da mulher e do homem, e envolvem questões
como a homossexualidade, homofobia, aborto, etc. A participação e o apoio de
151
outros educadores, coordenadores e diretores, parece ser indispensável para que
os/as professores/as possam enfrentar tais situações.
Preconceito, racismo e estereótipo (raça e etnia)
Ao iniciar a aula de História, no dia 29/09/2004, sobre o ciclo do café no
Brasil, a professora introduziu uma discussão a respeito de cultura, raça,
preconceito, estereótipos, etc.
Apesar de dizer que iria trabalhar com o tema Escravidão na aula seguinte,
ela iniciou nesta aula a discussão sobre os descendentes de africanos. Disse que
sempre que chegava neste ponto alguns alunos se sentiam incomodados, que no
ano anterior tinha uma aluna que sentia vergonha de ser negra, e comentou: “A
cor da pele é só um detalhe. O Ícaro é diferente de mim por causa da cor?” Os
alunos responderam: “não”. Talita falou: “se todos fossem brancos, o país não
seria tão bonito como é”. Outro aluno, Fábio, comentou sobre as habilidades dos
negros no artesanato e nos esportes e a professora, percebendo o estereótipo,
ressaltou que essa é uma forma de preconceito e contou sobre um aluno negro
muito inteligente que teve no ano anterior e de todos os alunos negros da turma,
destacando o quanto eram inteligentes. Perguntou, em seguida: “a cor vai
influenciar?” Vários alunos comentaram sobre o assunto, inclusive um aluno negro
que falou sobre a própria família e a escravidão. Luciano voltou a falar do talento
para o futebol de Pelé. A professora destacou também os livros de Machado de
Assis.
No final dessa discussão, a professora pediu para os alunos pegarem os
cadernos e perguntou se já haviam discutido esse assunto anteriormente. Eles
responderam que não.
Mesmo apresentando uma visão ingênua sobre a cor da pele como
aspecto fundamental na construção de identidades e nas relações sociais, a
professora demonstrou, por exemplo, quando disse que a “cor da pele é só um
detalhe”, estar atenta aos papéis sociais em geral reservados pela sociedade à
população negra: jogador de futebol ou cantor de pagode. Brandão (2006),
152
colocada a questão dos cuidados que o professor deve ter ao tratar desse tema
em sala de aula:
Nossos alunos certamente terão muito a dizer, mas devemos ter um
imenso cuidado com o senso comum, que pode surgir tanto para
desvalorizar como para criar mitos – os quais, ao se desfazerem,
redobrarão o peso da desilusão e do desgaste da auto-estima.
Trata-se de um equilíbrio delicado entre o resgate de uma História
que deverá servir para elevar o orgulho de pertencer a ela e a
valorização de posturas estreitas que tendem a criar esquemas
explicativos maniqueístas (BRANDÃO, 2006, p.46).
Tratar questões como preconceito e racismo, assim como a história do
povo negro desde a África, é algo novo para a maioria dos/as professores/as.
Esse conteúdo não fazia parte do currículo escolar
23
e nem da formação docente,
o que faz com que muitos/as professores/as hoje sintam dificuldade em conduzir
as discussões. Apesar do aumento no número de pesquisas e publicações sobre
o tema, aparentemente esse material que traz uma visão mais crítica sobre a
participação do negro na construção material e cultural do país, ainda não chegou
às mãos de grande parte dos/as professores/as. Como ressalta Brandão (2006),
este é um lugar que nunca esteve ocupado, sendo necessário formação e
atualização para tratarmos com profissionalismo e responsabilidade esses
conteúdos.
No dia 17/11/2004, a professora conversou com os alunos sobre uma
excursão que fizeram à fazenda Conde do Pinhal, em São Carlos, retomando
assuntos discutidos anteriormente, como a escravidão, o preconceito, estereótipos
e racismo. Iniciou a discussão perguntando o que foi importante conhecer e
perguntou diretamente a um aluno negro: “Rubens, o que você gostou mais?” Ele
respondeu que foi das camas da senzala. A professora explicou que houve
mudanças na fazenda e continuou: “Deu para entender o processo de produção
do café? Por que preservaram um trecho da mata? Quantas refeições os escravos
recebiam por dia? Uma, eu não sabia”. Falou sobre a abolição dos escravos e a
imigração: “Com a abolição dos escravos, eles não quiseram ficar nas fazendas
porque tinham lembranças ruins. A violência, mesmo com aqueles que não
apanhavam, viram outros serem violentados...”. A discussão continuou e os
23
A Lei 10639/2003 estabelece a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana
na Educação Básica.
153
alunos falaram sobre o capitão do mato. Ícaro perguntou: “O capitão do mato
também era negro?” Carolina disse que teria de ser branco porque senão não iria
bater num negro. Fábio mostrou no livro de história uma foto de um negro batendo
em outro. A professora perguntou ao Ícaro o que ele pensava sobre o capitão do
mato e ele disse que o fazendeiro devia ter negociado alguma coisa com o
capitão. Henrique falou que o dono da fazendo devia ter gostado do negro e fez
dele capitão.
Ao trabalhar com a história dos negros é necessário que o/a professore/a
procure diferentes fontes, pois até recentemente essa História não fazia parte dos
cursos de formação de professores e, quando não era completamente omitida dos
livros de história, era contada privilegiando a visão do branco sobre a população
negra do Brasil.
A fala da professora Silvia sobre a saída dos negros das fazendas após a
abolição, indica a necessidade de um aprofundamento com relação ao
conhecimento da História dos negros. Segundo Albuquerque e Fraga (2006), com
a eminência do fim da escravidão havia interesse por parte dos proprietários das
terras de que os negros permanecessem nas propriedades, alguns deles fizeram
concessões em massa de alforrias antes da abolição com o objetivo de criar uma
dívida de gratidão que garantisse a permanência dos negros. Com a abolição,
uma parte dos ex-escravos queriam ficar trabalhando nas terras, mas desde que
tivessem seus direitos garantidos e condições de cidadania dignas:
[...] os ex-escravos procuraram distanciar-se do passado de
escravidão rechaçando papéis inerentes à antiga condição. Em
diversos engenhos do Nordeste eles se negaram a receber a ração
diária e a trabalhar sem remuneração. Inegavelmente, os dias que
se seguiram à abolição foram momentos de tensão, pois estavam
em disputa as possibilidades e limites da condição de liberdade. [...]
Muitos ex-escravos, porém, permaneceram nas localidades em que
haviam nascido. Estima-se que mais de 60 por cento deles viviam
nas fazendas cafeeiras e canavieiras do Centro-Sul do Brasil. Mas
decidir ficar não significou concordar em se submeter às mesmas
condições de trabalho do regime anterior. [...] No entanto, negociar
com os libertos parece ter sido uma situação para a qual seus ex-
senhores se mostraram indispostos (ALBUQUERQUE e FRAGA,
2006, p.198).
Ainda no mesmo dia em que Silvia e os alunos falavam sobre a excursão à
fazenda, a discussão prosseguiu sobre os vínculos entre brancos e negros,
154
inclusive sobre o papel cumprido pelas amas de leite. Os alunos discutiram sobre
as relações entre os donos das fazendas e escravas. Ao comentar sobre a surra
que uma escrava levou por ter engravidado do senhor de engenho, que viram em
uma novela
24
, Talita disse que os dois deveriam apanhar porque a negra também
aceitou, o que foi logo contestado por Ícaro quando disse que eram obrigadas a
ter relações com os senhores. A professora fala sobre a submissão do negro e da
mulher no período da escravidão por causa dos castigos.
Mesmo considerando-se que os castigos utilizados contra qualquer atitude
de rebeldia dos negros esmagaram muitas vezes a revolta que sentiam, há que se
considerar a resistência do povo negro à escravidão. Albuquerque e Fraga (2006)
destacam que a fuga para os quilombos foi um dos atos mais freqüentes de
resistência dos negros. Com o impulso dado pelos movimentos abolicionistas,
organizados principalmente por escravos libertos, os escravos começaram a
enfraquecer a autoridade dos senhores com intensificação das fugas para os
quilombos e para as cidades à procura de autoridades judiciais e policiais para
denunciar castigos corporais e longas jornadas de trabalho. Os conflitos nas
propriedades também aumentaram. Toda essa pressão dos negros, combinada
com o momento histórico internacional que não via mais com bons olhos a
escravidão e procurava novos mercados, resultou que no dia da promulgação da
Abolição - 13 de maio de 1888 - mais de 90% dos escravos brasileiros já haviam
conseguido a liberdade por meio das alforrias e das fugas (Albuquerque e Fraga,
2006, p.196).
Destacar a luta do povo negro é de suma importância para desmistificar a
história de que a liberdade dos negros foi dada pela princesa Isabel, como um ato
de bondade. Diferentemente da história tradicional que se conta nas escolas,
ressaltar a resistência e a luta dos próprios negros contra a escravidão
influenciaria de forma positiva a auto-estima das pessoas, como destaca Brandão
(2006):
Se refletirmos sobre os destinatários principais do processo ensino-aprendizagem,
os estudantes, o que se continuava a fazer (na história tradicional) era dificultar a
construção da auto-estima, por trazer uma imagem de nossos antepassados
africanos sempre oprimidos, explorados e, finalmente, sempre derrotados –
mesmo quando rebeldes e inconformados. Quem gostaria de se identificar com
24
A novela era Escrava Isaura.
155
essa imagem? E, além do mais, tratava-se de uma falsa imagem, se não em seu
todo, ao menos em parte. A historiografia recente trouxe dados para rever essa
visão. Resta fazê-la chegar às salas de aula de muitas universidades e da
Educação Básica (Brandão, 2006, p.43).
No final dessa discussão sobre a visita à fazenda, a professora pediu para
que os alunos escrevessem um texto contando o que viram e gostaram no
passeio: “Nosso passeio à Fazenda Santa Maria”. Os alunos reclamaram que não
queriam escrever e a professora nos disse que está um pouco desanimada com
eles.
Depois de algum tempo, li as produções dos alunos e foi possível perceber
que eles descreveram o passeio. A professora me perguntou se considero válida
aquela discussão no início da aula. Eu respondi que sim, que a compreensão
dessas questões vai se dando aos poucos.
Como já foi dito anteriormente, a discussão é um dos principais meios para
se desenvolver o trabalho sobre as questões ligadas à diferença, ao preconceito,
etc. Destacamos, assim, alguns aspectos referentes à condução das discussões
em sala de aula pela professora Silvia para serem analisados. O primeiro deles
está relacionado à diversidade, ou quantidade de temas presentes em uma
mesma discussão o que parece deixar a discussão superficial. Selecionar
antecipadamente os temas a serem discutidos parece ser uma prática necessária
para o encaminhamento de uma boa discussão, pois mesmo que apareçam
outros assuntos, a professora e os alunos não perderão o foco central. Outro
aspecto relevante a ser considerado é a importância da visão do/a professor/a
com relação às questões sociais. Essa visão está constantemente direcionando a
discussão da professora Silvia com os alunos. Daí a importância da formação
inicial e/ou contínua que analise a prática docente em conjunto com as questões
sociais, políticas, econômicas e culturais. A compreensão de como se dão às
relações de poder, exploração, preconceito, etc., na sociedade é fundamental
para que o trabalho do/a professor/a possa estar voltado para a superação da
desigualdade e da exclusão social.
Por considerarmos pertinentes para essa discussão, retomamos aqui
alguns aspectos apontados por Giroux (2003) quanto à Educação Política. O autor
alerta sobre a necessidade de: reconhecer que o protagonismo humano é
condicionado e não determinado; reconhecer que as escolas e outros espaços
156
culturais não podem abstrair-se das condições sócio-culturais e econômicas de
seus estudantes, de suas famílias e de suas comunidades; ensinar os estudantes
a correr riscos, fazer perguntas, honrar tradições críticas e ser reflexivo a respeito
da forma como a autoridade é utilizada na sala de aula e em outros espaços
pedagógicos; propiciar a oportunidade para que os estudantes não apenas se
expressem de forma crítica, mas para que alterem a estrutura de participação e o
horizonte do debate pelo qual suas identidades, seus valores e seus desejos são
“moldados”; construir condições pedagógicas para capacitar os estudantes para
entenderem como o poder opera sobre eles, através deles e por eles, para
construir e ampliar seu papel como cidadãos críticos. Alguns desses aspectos
apontados por Giroux (2003) puderam ser observados na prática pedagógica da
professora Silvia. No entanto, ressaltamos que são as tentativas que prevalecem
no trabalho da professora, ou seja, não havia um trabalho já estruturado visando
ao desenvolvimento de uma educação crítica ou Educação Política, como
denomina o autor.
No dia seguinte à aula em que discutiram sobre a visita à fazenda Conde
do Pinhal, 18/11/2004, a professora recolheu os desenhos que os alunos fizeram
sobre o passeio. Mirela e Ícaro (negros) desenharam o pelourinho e os demais
desenharam a casa sede da fazenda que estava no folheto que receberam.
Mirela era uma das alunas mais quietas da turma. Em entrevista,
perguntamos à professora como ela percebia essa situação e ela nos disse que
respeitava a quietude da aluna como uma característica pessoal:
[...] tem pessoas que se sentem bem estando sozinhas. Então eu
também vejo isso, pode até ser uma falha, eu procuro respeitar isso
da criança. Até que ponto isso é uma característica pessoal da
criança ou se é tímida porque se sente acuada. [...] E a Mirela foi
assim uma gracinha, não sei se você lembra na noite das poesias
que ela foi e falou uma poesia, nossa a mãe dela, os pais estavam
presentes e a mãe dela falou: “olha, você conseguiu fazer ela falar
em público” [...] (Entrevista, 05/01/2006).
Ainda sobre essa aluna, a professora e eu conversamos a respeito de uma
situação em que o Rubens demonstrou que não queria se sentar ao lado de
Mirela, primeiramente resistindo e depois, como não havia outro lugar, afastou as
carteiras que estavam organizadas em dupla. Mirela não disse nada enquanto
Rubens fazia isso; ficou em silêncio, como se não estivesse percebendo nada. Ao
157
comentar essa situação durante a entrevista, a professora contou a história de seu
pai que era imigrante e a sua convivência com pessoas de outras raças/etnias em
São Paulo e, depois, falou especificamente da situação:
Esse olhar que você está falando do Rubens para a Mirela, eu não
sei se vou falar besteira, mas às vezes quando você não é [racista],
você não faz esse tipo de coisa, você não enxerga tão facilmente,
não sei se... acho que tem coisas que são explícitas. No caso ele
ter preconceito dela sendo que ele também é negro, se bem que
existe essa questão... porque ele tinha uma dificuldade de se
aceitar (expressou isso na redação). Eu lembro que a gente foi
trabalhando que tinha que ter orgulho da origem, essa coisa que eu
trabalho de cultura... mas ele era um menino que por qualquer coisa
ele, me lembro claramente, qualquer coisa, se você chamasse
atenção dele por qualquer coisa assim, aquilo pra ele já tomava
como... ele era mais sensível que os outros numa coisa mais
corriqueira, acho que por conta de trazer toda essa história, na rua,
na escola... já pensou porque ele era, se não me engano, da escola
ele era uma das crianças de cor mais escura da escola, porque no
país a gente tem esse problema de tons. [...] (Entrevista,
05/01/2006).
Esta situação indica que a percepção do/a professor/a quanto à atitude
dos/as alunos/as diante de situações envolvendo preconceito em sala de aula
também se configura como um importante elemento para que seja possível o
desenvolvimento de uma prática pedagógica intermulticultural. Isso contribui para
a complexidade do desenvolvimento desta prática, pois além de trabalhar com as
próprias concepções, crenças, preconceitos, valores etc. o/a professor/a deve
estar atento/a aos comportamentos manifestados pelos/as alunos/as, fazendo
com que essas observações sirvam também para orientar seu trabalho
pedagógico. A necessidade dessa percepção por parte de Silvia ficou muito
evidente no caso do aluno Rubens que dava sinais claros de um desconforto com
relação ao trabalho com as diferenças étnico/raciais.
Como aponta McLaren (1997), um dos desafios dos professores deve ser o
de reconhecer e tentar transformar as características opressivas do controle
hegemônico que estruturam a existência diária da sala de aula de maneiras não
muito aparentes. Trata-se de uma tarefa difícil, mas fundamental, para os/as
professores/as que, como Silvia, procuram desenvolver uma prática atenta às
questões das diferenças e das culturas.
158
Ainda no dia 18/11/2004, Silvia leu um texto do livro de Geografia sobre
uma situação vivenciada por Netinho
25
em um restaurante de São Paulo, em que
o cantor, que esperava seu carro, foi identificado por um cliente como o
manobrista do restaurante. Seguiu o diálogo entre a professora e os/as alunos/as:
- Quem entendeu e quer dar a opinião? Pergunta a professora.
- Por causa da cor, o branco pensou que ele fosse motorista. Disse
Luciano.
- O que reflete o pensamento do branco? Por que isso não é tão
comum (negro no restaurante)? Silvia pergunta.
- Por causa da cor, do racismo. Responde Karina. (Diário de campo,
18/11/2004)
A professora voltou a falar sobre o Dia da Consciência Negra e mais um
texto sobre abolição e outro sobre a introjeção da submissão, que contava a
história de uma mulher que sentia vergonha de ser negra e dizia que diante dos
brancos, os negros deveriam abaixar os olhos. Questionou alguns alunos negros
sobre o assunto, mas eles não responderam e, então, outros alunos comentaram
o assunto:
- Ela deveria ter orgulho de ser escrava. Diz Luís.
- Orgulho de ser escrava?! Contesta Olavo.
- Orgulho de ser negra. Complementa Talita.
- Por que você acha que não deveria ter orgulho de ser escrava
Olavo? Pergunta a professora.
- Porque eles foram mal tratados. (Diário de campo, 18/11/2004)
Continuaram a falar sobre a submissão e sobre o comércio de escravos.
Depois Silvia perguntou aos alunos por que é importante estudar isso hoje. Ícaro
disse que é porque isso poderia acontecer novamente no futuro. Quando
questionado sobre em que este estudo pode ajudar, Rubens respondeu: “a não
ter inveja dos brancos”. Continuaram a discussão falando sobre o preconceito
como construção social, sobre a dificuldade para os negros encontrarem emprego
e o preconceito que os negros têm da própria raça e do negro com o branco.
Esses temas foram tratados rapidamente, sem muito aprofundamento.
No final da discussão, a professora pediu aos alunos que escrevessem um
texto individual: “A história e as condições de vida do povo negro”, pois muitos não
quiseram falar. Mais uma vez eles reclamaram que não queriam escrever. Silvia
25
Cantor brasileiro.
159
disse que eles precisavam se posicionar, colocar as opiniões, senão alguém
sempre falaria o que eles deveriam fazer.
Como é possível observar nas discussões apresentadas anteriormente, a
passividade e submissão ainda são centrais nas discussões sobre a história dos
negros no Brasil. Como ter orgulho da origem, como a professora disse procurar
desenvolver, se os negros são apresentados somente como vítimas da história,
submissos?
[...] a posição de vítima carrega em si um forte conteúdo de
passividade, de impotência e de incapacidade de resistência, de
atuação e intervenção na História. Trata-se, pois, de se acostumar a
ver os africanos sempre tratados como objetos e não como sujeitos
da História. E isso compromete a compreensão de suas trajetórias
(Brandão, 2006, p. 43).
Talvez seja essa uma das razões para a não participação dos alunos
negros na discussão quando a professora perguntava diretamente a eles sobre o
que pensavam a respeito do tema. Outro aspecto que pode contribuir para essa
não participação é a forma de apresentação desses assuntos, que apareciam
como complementares aos conteúdos curriculares “convencionais” e sempre por
meio de discussão. A fala de Rubens sobre como o trabalho com este tema
poderia ajudá-lo, quando ele disse: “a não ter inveja dos brancos”, indica um
distanciamento dos objetivos de um trabalho orientado pelo Intermulticulturalismo
Crítico, pois parece enfatizar essencialmente a aceitação benevolente das
diferenças étnico-raciais, ao invés da compreensão de como se deu a construção
social do preconceito e do racismo com relação às pessoas negras.
Quando se pretende desenvolver uma prática pedagógica crítica, segundo
McLaren (1997), a celebração da pluralidade, ou a tolerância da diferença, não
bastam. Deve-se buscar superar as condições que perpetuam as desigualdades e
exclusão, desenvolvendo-se dentro de uma linguagem da vida pública,
comunidade emancipatória e comprometimento individual e social.
Neste sentido, Silva (2002, p.102) levanta uma questão muito pertinente e
que pode orientar nossa atuação em sala de aula: como desconstruir o texto racial
do currículo, como questionar as narrativas hegemônicas de identidade que
constituem o currículo?
160
Nesse sentido, a prática pedagógica da professora Silvia oscilava entre
uma visão ingênua do trabalho com as diferenças e uma visão crítica. Ainda que a
professora revelasse dificuldades na construção de um caminho intermulticultural
na perspectiva crítica, em alguns momentos foi possível perceber uma
aproximação, principalmente com relação à concepção que se apresentava como
base para o desenvolvimento de seu trabalho. Isso pode ser analisado tendo
como fundamento as considerações de Candau (2005) quanto à
interculturalidade:
[...] A interculturalidade orienta processos que têm por base o
reconhecimento do direito à diferença e a luta contra todas as
formas de discriminação e desigualdade social. Tenta promover
relações dialógicas e igualitárias entre as pessoas e grupos que
pertencem a universos culturais diferentes, trabalhando os conflitos
inerentes a esta realidade (CANDAU, 2005, p. 32).
Ao trabalhar com o tema República, no dia 24/11/2004, a professora Silvia
voltou a falar sobre os negros e a escravidão. Inicialmente ela pergunta sobre a
fazenda Santa Maria que visitaram, sobre a casa que foi construída para receber
o Imperador do Brasil que passaria pela região. Falaram sobre grupos sociais,
sobre escravos e assalariados. Alguns alunos leram trechos do livro de História e
a professora explicou alguns pontos. A professora perguntou: “Por que a abolição
dos escravos foi necessária? Qual era o interesse que estava por trás que nós já
vimos?” Karina responde: “Porque precisavam vender as mercadorias.” Silvia
seguiu falando sobre o como o Movimento Negro entende o ato da Princesa
Isabel e sobre quando os negros saíram das fazendas.
Após retomar esses pontos a professora seguiu explicando sobre a
República. Perguntou aos alunos: “O que são militares?” Depois perguntou: “O
que os militares têm nas mãos?” Os alunos responderam: “Armas”. Ícaro
comentou: “os negros não tinham armas” e a professora comentou comigo: “olha,
ele percebeu como a luta era desigual”. Continuaram a aula sistematizando as
diferenças entre um regime de governo e outro.
Ao trabalhar com este tema, mais uma vez a professora demonstrou querer
instigar nos alunos uma visão crítica sobre os conteúdos estudados. No entanto,
ainda é possível perceber que a resistência, a luta do povo negro escravizado não
recebe a atenção devida.
161
No dia seguinte (30/11/2004) a professora Silvia deu continuidade à
discussão sobre República, na aula de História. A primeira pergunta que ela fez
foi: “A República era para todos?” Karina respondeu: “Não, as mulheres não
podiam votar. Que injusto!” Seguiu a discussão sobre a participação das mulheres
nas eleições e das lutas necessárias para que houvesse mudanças. Falaram
sobre casamento e os direitos conquistados pelas mulheres.
Seguiram lendo o texto no livro de história e pararam para comentar o “voto
de cabresto”. Vários alunos participaram da discussão, outros pareciam distraídos
com outras coisas:
- E hoje, ainda tentam influenciar os votos? Perguntou a professora.
- Apesar de ser secreto ainda prometem emprego, churrasco... Mas a
justiça eleitoral pode proibir a candidatura de quem troca voto por
alguma coisa. Falou Ícaro.
- Tem pessoas que passam muita necessidade e por isso trocam
seus votos. Sei de uma pessoa que fez campanha para um
candidato e votou em outro também. Disse a professora.
- Contra burguês, vote 16. Falou Henrique.
- O que é burguês professora? Perguntou Carolina.
- A burguesia são as pessoas... lembra que estudamos os grupos
sociais? A burguesia hoje são as pessoas que detêm os meios de
produção, os donos de fábricas, os donos de terras. Explicou a
professora.
- Contra burguês, vote 16. Repetiu Talita.
- Ah! É por isso eles falam para votar 16, contra isso. Concluiu Ícaro
(Diário de campo, 30/11/2004).
Outros temas abordados na discussão foram direitos trabalhistas e
emprego. Silvia disse: “Tem que se organizar, saber escrever um texto, ler e
entender um contrato. [...] Quem tem conhecimento vai brigar pelos direitos, quem
não tem vai ter que abaixar a cabeça.” Seguiram lendo e respondendo às
questões colocadas no livro de História referentes ao tema discutido.
Foi possível perceber que a professora procurava mostrar a relação entre
os conteúdos estudados e a realidade social em que vivemos, dando um sentido
ao conhecimento ligado ao social. Assim, Silvia parecia trilhar o caminho apontado
por Moreira (2006) quando este destaca a possibilidade de criação de
contradiscursos que geram mudanças no espaço escolar, pela compreensão do
movimento de construção das identidades e pela crítica de identidades
dominantes.
162
No dia 08/11/2004, ao iniciar o trabalho com o texto de História “Chegaram
os imigrantes”, Silvia retomou a discussão sobre o fim da escravidão. Falou
rapidamente sobre o dia 20 de novembro em homenagem a Zumbi dos Palmares
e falou sobre a passagem do regime de escravidão para o de trabalho assalariado
dos imigrantes. A professora fez algumas questões para iniciar a discussão: “Por
que fizeram a abolição? Por que o sistema de escravidão foi superado? Já havia
trabalho assalariado em outros países. Por que os donos das fazendas
precisavam dos imigrantes? Quando houve a libertação dos escravos, eles
quiseram ficar nas fazendas? Não, porque eles não tinham liberdade, eram
torturados... Como os africanos conseguiram manter a religião deles?” A partir
destas questões a professora passou a discutir com os alunos a questão das
diferentes religiões e do preconceito com relação ao Candomblé.
Luís contou que já havia assistido a uma sessão de candomblé e que
achou “esquisito”. Silvia disse que muita gente desqualifica essa crença, dizendo
que é feitiço e explicou o que é desqualificar citando exemplos. Alguns alunos
comentaram sobre religiões e preconceitos. A professora falou que no filme a que
estavam assistindo, “A Muralha”
26
, os alunos poderiam ver um pouco da história
das religiões, principalmente da religião Católica no período da Inquisição e
finalizou essa discussão dizendo: “cultura é uma criação dos homens, nós não
precisamos desqualificar a do outro para valorizar a que a gente acredita... As
religiões vêem Deus de diferentes formas.”
Após essa discussão, Silvia comentou um pouco mais sobre os imigrantes,
sobre seus hábitos, alimentação e músicas que herdamos com a imigração.
Escreveu na lousa, em seguida, um questionário sobre esse assunto para que os
alunos respondessem.
È possível observar que a forma como a professora aborda alguns
conteúdos está próxima do que Candau (2005) aponta como desafio para o
desenvolvimento de um currículo intercultural. No caso da discussão
anteriormente apresentada, Silvia procurou desmistificar e superar o preconceito
existente com relação ao Candomblé, resgatando os processos de construção das
nossas identidades culturais no nível pessoal e no coletivo.
26
“A Muralha” é uma mini-série produzida pela rede Globo, que a professora estava passando, um pouco por
dia, para os alunos assistirem.
163
Quando questionada sobre a importância de trabalhar com esses temas –
racismo, preconceito, desigualdade – na escola, a professora Silvia argumentou:
[...] Porque nós temos uma sociedade, que os dados estatísticos
mostram, extremamente desigual, quer dizer as crianças negras
são as que mais fracassam na escola, vai ver a questão de salário,
aí entra a questão dos homens e das mulheres. Os homens negros
ganham menos se você for ver a pirâmide... [...] você precisa,
enquanto indivíduo, se valorizar, ter orgulho do que você é, da sua
cor, do seu corpo, do seu cabelo, da sua cultura, para brigar como
cidadão pra ter uma escola melhor, de ter condições de sobreviver
nessa sociedade (Entrevista, 05/01/2006).
Neste trecho, Silvia evidenciou que em sua visão de mundo, em suas
concepções, as questões relativas à desigualdade, ao conflito de classes e ao
preconceito estão presentes. E isso se refletia em sua prática também, na relação
com os alunos e no trabalho com os conteúdos.
5.2. Discussão dos dados
Apesar das dificuldades apresentadas pela professora no desenvolvimento
de um trabalho que ressalte a questão das diferenças culturais e da igualdade
social, a professora Silvia demonstrou a preocupação com o desenvolvimento de
programas igualitários, com o reconhecimento da diferença, do direito a essa
diferença e dos efeitos positivos e enriquecedores que podem gerar essas
interações culturais, o que, segundo Leite (2002), indica um tipo de resposta
educativa ao Multiculturalismo.
A prática desenvolvida pela professora Silvia revela, a nosso ver, que a
escola é um espaço onde há reprodução e também produção de novos saberes.
Como aponta Leite (2002), na escola há uma predominância da cultura
dominante, mas também convivem as manifestações das culturas dominadas,
num espaço de conflito e de emancipação.
Não podemos deixar de mencionar a importância das condições oferecidas
aos professores/as para o desenvolvimento de projetos educativos adequados.
Leite (2002) destaca que é preciso que os professores possam adquirir saberes
164
que lhes permitam lidar com as características diversas da população escolar e
que a administração escolar facilite esse processo. Esse apoio não foi percebido
em nenhum dos dois casos analisados nesta pesquisa, sendo que na 1ª. série
inexistia um trabalho com as diferenças e na 4ª. série ficou restrito à sala de aula.
Abordar temas como racismo e preconceito é considerado importante pela
professora Silvia porque ela considera que não se fala sobre isso explicitamente
nas escolas. Em entrevista, ela fala sobre seu desejo de se aprofundar nos
estudos sobre Multiculturalismo e desenvolver um trabalho pedagógico mais
criterioso:
[...] eu, voltando para a sala de aula
27
com esse referencial que eu
comecei a ter contato (Multiculturalismo), quero ver como posso
trabalhar isso de uma forma bem objetiva, que eu vou meio que,
como eu te falei, pelo bom senso, lógico tudo que eu puxo tem a ver
com o que eu sou também, com o que eu vivi, com a minha história,
com a minha formação. [...] o não ser racista, como eu trabalho de
uma forma criteriosa? [...] (Entrevista, 05/01/2006).
Brandão (2006) destaca que não existe uma forma de trabalho definida
para tratar a História dos Negros. Da mesma maneira, compreendemos o trabalho
realizado com as diferenças de gênero e classe social:
Não há receitas prontas, não existe um “como fazer”, e por isso
percebe-se a necessidade de muitos espaços de discussão e troca
intelectual – e não apenas entre os reconhecidos como
“intelectuais”, mas como os movimentos sociais. Não podemos, a
despeito da exigência da lei, sair repassando nas nossas salas de
aula informações equivocadas, ou tratar o tema de uma maneira
folclorizada e idealizada. Esse é um grande temor: repetir modelos
para fazer com que esses conteúdos curriculares fiquem parecidos
com os que já trabalhávamos ao tratarmos da História e das
contribuições culturais comumente estudadas é um caminho fácil e
perigosíssimo. São temas diferentes e sua abordagem
necessariamente deve ser diferenciada (Brandão, 2006, p.46).
Resgatamos brevemente alguns aspectos que caracterizam o trabalho da
professora Silvia no sentido do Intermulticulturalismo: a visão de mundo revelada,
principalmente nas entrevistas; os temas levantados pela professora para
discussão em sala de aula envolvendo questões relacionadas às categorias
27
Como já informamos, à época da realização da entrevista a professora estava exercendo a função de
Diretora de uma unidade escolar da Rede Municipal de Educação.
165
classe social, raça/etnia, gênero e sexualidade; e a preocupação revelada pela
professora com a aprendizagem de todos os alunos, propiciando condições
individuais e coletivas para isso. No entanto, há outros aspectos que aproximam
esta prática pedagógica de uma perspectiva que prioriza a mistura homogênea
das diferenças, o que Stoer e Magalhães (2005) denominam “multiculturalismo
benigno”: a concepção de cultura, que acaba se refletindo e orientando as
discussões sobre as diferenças em sala de aula; ênfase nos hábitos, costumes,
festas e comidas típicas de diferentes culturas e não na construção histórica das
diferenças culturais, assim como do preconceito, racismo, estereótipos etc.;
ênfase na sobrevivência diante das desigualdades sociais e não em sua
transformação.
Destacamos, ainda, três pontos relacionados ao trabalho pedagógico que
pareceram centrais para que se possa desenvolver, de maneira sistematizada, um
trabalho pedagógico intermulticultural na perspectiva crítica:
- aprofundar o conhecimento dos conteúdos a serem trabalhados referente às
questões de classe, etnia/raça e gênero, entre outras;
- organizá-los juntamente com os conteúdos curriculares das diferentes
disciplinas, assim como definir os temas e organizar as discussões; a relação
entre forma e conteúdo é muito importante: só discussão não basta, pois esses
temas envolvem os domínios cognitivo, atitudinal/valorativo e procedimental.
- perceber a relação dos alunos com esse conteúdo antes, durante e depois de
cada trabalho.
Cada um desses pontos necessita de maiores análises na prática
pedagógica, o que poderá ser realizado em estudos futuros. Também são pontos
importantes a serem considerados nos cursos de formação de professores.
.
166
Considerações Finais
Os dados apresentados nesta pesquisa mostram duas formas distintas de
atuação docente em relação à diversidade cultural.
Na 1ª. série, a professora Roberta não parecia ter consciência da influência
das questões culturais no dia-a-dia em sala de aula, postura denominada por
Candau (2005) como a-crítica, sua prática pedagógica era marcada pelo
monoculturalismo, com a valorização de um padrão etnocêntrico - homem branco
de classe média.
Segundo Stoer e Magalhães (2005), o modelo etnocêntrico de relação com
a diferença é base para uma educação pautada na transmissão de valores e de
saberes assumidos como indiscutíveis e universais, centrado na “civilização
ocidental”, constituindo uma abordagem monocultural da educação.
Um aspecto revelado nas análises é a centralidade das relações pessoais
na constituição deste currículo em ação. O trabalho com os conteúdos curriculares
seguia paralelo às situações vivenciadas entre professora e alunos/as, sem
alterações significativas quanto à forma como eram apresentados. Foi nas
situações envolvendo essas relações pessoais que identificamos alguns valores,
crenças e concepções que orientavam o trabalho da professora, como, por
exemplo, a concepção de ensino e aprendizagem, de conhecimento, de família e
de infância.
O trabalho da professora com os conteúdos apontava uma concepção de
ensino e aprendizagem tradicional. Os conteúdos se tornavam gradualmente mais
complexos com o passar dos dias, mas a forma e o ritmo de trabalho não se
alteravam. O conteúdo era “passado” aos alunos e aqueles que conseguiam
decifrá-lo seguiam junto com ela; aqueles que não conseguiam ficavam para trás.
Esta compreensão do processo de ensino e aprendizagem também está
relacionada com a concepção de conhecimento evidenciada pela professora. Ela
partia de uma seleção de conhecimentos que considerava válidos, como
demonstrou em algumas situações como, por exemplo, ao comparar o interesse
demonstrado por seu sobrinho em aprender inglês e saber sobre dinossauros e o
“pouco” interesse e conhecimento dos/as alunos/as da sala, considerados por ela
como “babacas”.
167
Com relação à concepção de família, à estruturação com pai, mãe e filhos
pareceu ser um padrão considerado importante pela professora para o bom
desempenho e bom comportamento dos/as alunos/as. Ainda, o papel atribuído à
família com relação ao auxílio dado aos filhos nas atividades escolares
apresentava algumas especificidades, quando, por exemplo, os familiares eram
cobrados para que garantissem o aprendizado de alguns conteúdos.
Outra concepção revelada por ela foi a de infância como uma fase
caracterizada pela ingenuidade e pureza ao dizer: “[...] criança não tem
preconceito.” Essa concepção está relacionada também à naturalização da
condição branca, como analisa McLaren (2000b). A professora parece não ter
consciência de como as diferenças são produzidas e reproduzidas em sala de
aula e como elas se inter-relacionam no currículo em ação.
Essas concepções que se revelaram mais fortemente no trabalho da
professora estavam constantemente presentes na prática pedagógica
desenvolvida em sala de aula, determinando a relação entre professora, alunos/as
e conhecimento, como foi explicitado no capítulo 4.
O padrão etnocêntrico valorizado pela professora era personificado em
poucos/as alunos/as, quase exclusivamente em Gustavo e Aline, com cuja
aprendizagem demonstrava preocupação. Os/as outros/as alunos/as ficavam
entregues à própria sorte, como Lucas que tinha professora particular, Marcela
que freqüentava aulas de reforço em outra escola e surpreendeu a professora
com sua aprendizagem e os outros alunos que aprendiam como lhes era possível.
Analisar este currículo em ação diante do contexto da globalização
neoliberal remete a aspectos que reforçam o caráter reprodutor de algumas
práticas escolares para a maior parte dos alunos. Quais são os/as alunos/as que
farão parte dos grupos excluídos socialmente? É neste ponto que as categorias
gênero, classe social e raça/etnia se cruzam no currículo em ação e revelam sua
força na hierarquização social que se re/cria.
Como destaca Santos (2002), não existem práticas que sejam somente
reguladoras ou somente emancipadoras. O que vem ocorrendo há muito tempo é
a predominância da regulação em relação à emancipação. Isso fica evidente nos
dados obtidos na 1ª. série. Essa relação dialética entre emancipação e regulação
pode ser pensada na educação escolar como um todo, quando discutimos, por
168
exemplo, a seleção de conteúdos, a metodologia de trabalho, os objetivos
educacionais etc., e pode ser pensada também levando-se em conta cada aluno
individualmente. Por que a escola se mostra mais emancipadora para uns/umas
alunos/as e mais reguladora para outros/as?
É interessante observar que a professora parecia saber que poderia ter
uma prática mais democrática e igualitária, como demonstrou em entrevista, mas
isso não ocorria e era justificado por meio de diferentes argumentos, por exemplo,
quando falou sobre as razões de recorrer mais à Aline durante as aulas,
principalmente nas questões pessoais, e recorrer a Gustavo com relação ao
conhecimento. As razões que a levavam a desenvolver esse tipo de prática
indicavam a valorização do padrão etnocêntrico - homem branco de classe média.
As diferenças, neste modelo educacional analisado, parecem servir na prática
para hierarquizar e excluir socialmente aqueles que estão fora deste padrão.
Em alguns momentos, a professora revelou também não ter consciência do
papel das diferenças em suas atitudes e nas atitudes dos/as alunos/as, como
demonstrou na conversa sobre a dificuldade de Júlio em se aceitar como negro.
Um dos aspectos envolvidos nessa questão é a formação profissional – inicial e
continuada -, que só recentemente tem dado maior importância aos temas ligados
à cultura e às diferenças. Além disso, há aspectos da sociedade atual, na qual se
procura naturalizar as desigualdades e a exclusão de determinados grupos em
nome de um consenso hegemônico das classes dominantes.
Nas situações observadas na 1ª. série, diferentes tipos de identidades
estão sendo re/construídas constantemente e as análises dessas situações
apontam pistas que contribuem para responder ao questionamento de Moreira
(2006) sobre como identidades hegemônicas são valorizadas e como as relações
de poder se expressam. É possível, ainda, compreender parcialmente como se
dá o dinâmico processo de construção de identidade, que, segundo Castells
(2003), é determinado por um contexto social e, ao mesmo tempo, é processado
pelos indivíduos a partir de suas experiências.
A outra professora, Silvia da 4ª. série, desenvolvia seu trabalho tendo como
um dos elementos de base a atenção com as diferenças culturais. Ela procurava
questionar os conteúdos e desenvolver junto com os/as alunos/as a reflexão sobre
169
diversas questões sociais que envolviam desigualdade, preconceito, estereótipos,
etc.
O conhecimento se destacava como elemento central da prática
pedagógica desta professora, mediando a relação entre ela e os/as alunos/as. A
expectativa de que todos/as alunos/as eram capazes de aprender foi evidenciada
pela professora durante todo o tempo de observação, o que se configura como um
dos elementos de sua concepção de ensino e aprendizagem.
Outros elementos das concepções da professora Silvia puderam ser
identificados a partir de seu trabalho pedagógico: a concepção de conhecimento,
como passível de questionamento; de família, como elemento de apoio ao
trabalho pedagógico; e a de sociedade, como marcada por desigualdades e
conflitos.
Assim como percebido com relação à professora da 1ª. série, a prática
pedagógica de Silvia era coerente com as concepções evidenciadas em sua fala
durante as aulas.
A preocupação com as diferenças culturais dos alunos e com a
contextualização e questionamento dos conteúdos curriculares indicam a
aproximação deste trabalho com a educação intermulticultural. No entanto, alguns
aspectos evidenciam também um distanciamento daquilo que os/as autores/as
utilizados nesta pesquisa, dentre eles McLaren, Candau, Canen e Silva, apontam
como características da educação inter/multicultural crítica, como, por exemplo,
com relação ao conceito de cultura, que para a professora se restringe aos
aspectos relacionados aos costumes, danças, comidas típicas, etc.
O domínio de conteúdo específico relacionado ao trabalho com as
diferenças principalmente de gênero e raça/etnia se configurou também como
uma das dificuldades enfrentadas pela professora. Ela expôs abertamente essa
dificuldade quando, em entrevista, disse que tinha dúvidas quanto aos
encaminhamentos em determinadas situações envolvendo questões de gênero.
[...] eu procuro agir muito assim pelo bom senso, lógico ler alguma coisa [...], mas
eu não sei também, porque eu também tenho que me patrulhar. Porque até que
ponto isso não é um valor meu, como pessoa? [...] Mas quando acontece uma
coisa assim na hora, você tem que se posicionar [...] (Entrevista, 01/2007).
170
Mesmo não tendo conhecimento específico sobre o referencial teórico do
Intermulticulturalismo, a professora Silvia desenvolvia um trabalho no qual
evidenciava atenção às diferentes culturas e com à igualdade de oportunidades
de aprendizagem para todos/as os/as alunos/as. O apoio institucional, com cursos
de formação continuada e discussão entre os pares, poderia auxiliá-la na
superação das dificuldades pontuadas nesta pesquisa.
Diferentemente do que foi analisado a partir dos dados da 1ª. série, a
emancipação pareceu estar mais presente na 4ª. série, na qual a “visão de
mundo” da professora teve um papel importante na busca de um caminho para
uma educação mais crítica.
A opção da professora por desenvolver um trabalho com atenção às
questões culturais também parece ser um aspecto relevante para o
desenvolvimento de uma educação intermulticultural. Salientamos, no entanto,
que essa opção requer conhecimento do contexto social, das disputas de poder,
de como se constituem a opressão e a exclusão social, etc., o que reafirma a
importância de uma perspectiva crítica, política, nos cursos de formação docente.
Foi considerando as características do contexto social, político e econômico
atual que analisamos os currículos em ação da 1ª. e da 4ª. série. É nesta nova
fase do capitalismo, da globalização neoliberal, que pensamos quais as
influências da escolarização na re/construção de identidades, na exclusão ou
inclusão social e na construção de uma sociedade mais igualitária. Por fim,
procuramos compreender como a(s) cultura(s) está(ão) presente(s) nas escolas.
O modelo monocultural, ainda presente em muitas escolas, naturaliza as
desigualdades sociais ao valorizar o padrão de homem branco de classe média.
Há uma contínua seleção social baseada neste modelo, inclusive na escola,
daqueles/as que competirão em melhores condições por empregos em uma
sociedade desigual. Mas a escola não cumpre esse papel meramente regulador
para todos/as alunos/as, ao mesmo tempo e do mesmo modo. Daí a importância
das micro-análises, e da observação como metodologia de pesquisa em sala de
aula, pois uma parte desta seleção ocorre no currículo em ação por meio de um
processo contraditório, complexo e sutil, que, em alguns casos, se dá sem que o/a
professor/a tenha consciência dele. Como aponta Frigotto (1989), é necessário
171
trazer essa dialética do real para o plano do conhecimento e chegar à práxis, à
relação teoria e prática para transformação.
Como Candau e Arnhon (2002), consideramos urgente a incorporação da
dimensão cultural na prática pedagógica. Entendemos, ainda, que o
Intermulticulturalismo possibilita o desenvolvimento de uma educação diferenciada
que questione o padrão etnocêntrico e a construção dos processos de exclusão,
com o objetivo de promover o reconhecimento das diferenças e maior igualdade
social, compreendendo, como aponta Candau (2005), que a igualdade está
oposta à desigualdade e a diferença à padronização.
A linguagem demonstrou ser uma das vias mais importantes tanto nas
práticas que contribuem para manter valores sociais tradicionais, como para
questioná-los. No caso da 4ª. série, ainda que de maneira incipiente, a professora
teve como objetivo criar, por meio da linguagem, um contradiscurso (Moreira,
2006), ou seja, um discurso contrário ao machismo, ao racismo etc que está
impregnado no dia a dia das pessoas. Isso foi evidenciado, por exemplo, quando
ela falou sobre as razões que a levaram a preocupar-se com o comportamento
das meninas e dos meninos com relação à sexualidade.
No entanto, entendemos também que não é somente mudando o discurso,
e por meio dele, que ocorrerão as transformações sociais tão necessárias para
superar a opressão, a discriminação, a exclusão social. Essas mudanças passam
também, como aponta Silva (2002), pelas estruturas institucionais e econômicas,
sendo necessário combater a discriminação no emprego, na saúde, etc.
O currículo, considerado em suas diferentes dimensões, tem papel
relevante na superação de práticas que contribuem para a exclusão e
desigualdade social. Ainda que muitas mudanças possam ser engendradas no
currículo em ação, para que ocorram mudanças efetivas é necessário articular os
três níveis, indicados por Pacheco (2005), de decisão curricular: político
administrativo; de gestão (da escola e administração regional); e de realização
(em sala de aula).
A Lei que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica (Lei 10639/2003) pode ser
considerada um grande avanço no que se refere a uma educação mais
democrática. Mas não basta regulamentar; cabe também ao poder político e
172
administrativo propiciar a aplicação desta Lei para que tenha resultados positivos,
não simplesmente aplicando uma avaliação, mas com investimento em cursos de
formação inicial e continuada e na carreira e trabalho docente.
A elaboração de políticas públicas para a educação, em diferentes níveis -
Federal, Estadual e Municipal -, constitui-se em importante foco para estudos
futuros, pois, juntamente com as análises de contexto social, político, cultural e
econômico, e a prática pedagógica, configuram um tripé para a pesquisa sobre a
educação intermulticultural.
Em ambos os casos analisados nesta pesquisa, ficou evidenciada a
ausência de uma estrutura na escola que auxiliasse as professoras principalmente
com relação às questões envolvendo a diversidade cultural. Na 1ª.série, essa
discussão inexistia para a professora e, na 4ª. série, a professora procurava
caminhos para desenvolver um trabalho com atenção às questões da diferença,
mas fora da sala de aula não havia esta preocupação por parte dos outros
profissionais. Para o desenvolvimento de um currículo intermulticultural é
importante o envolvimento da escola como um todo, com discussão sobre a
seleção de conteúdos, a interação com a comunidade e os movimentos sociais,
sobre as situações vivenciadas no dia a dia em sala de aula e fora dela etc.
Na sala de aula se cruzam vários elementos que envolvem desde questões
amplas, como as sociais, políticas, econômicas e culturais, parte deles por meio
do currículo oficial, como questões específicas, ligadas às identidades, às
relações pessoais, às diferenças, a valores, à concepções etc. Compreender
como esses elementos se relacionam como parte de um conjunto chamado
“educação escolar”, com implicações individuais e sociais, é um grande desafio
que, por sua complexidade e dinâmica, talvez não chegue a ser completamente
atingido.
Assim, tentamos nos aproximar desta realidade de sala de aula e, por meio
de nosso “olhar sobre o mundo” e de um referencial teórico crítico, analisar
diferentes formas do fazer pedagógico. Não tivemos a intenção de “condenar” a
prática das professoras que participaram desta pesquisa, pois não olhamos para
essa prática isoladamente. Mas buscamos sempre compreendê-la no contexto
social em que está inserida.
173
Para finalizar, queremos ressaltar que buscamos com essas análises meios
para superar práticas pedagógicas que contribuem para a exclusão social e
indicar caminhos para uma educação que possibilite a compreensão e
questionamento da realidade, com o objetivo de construirmos uma sociedade com
base no reconhecimento das diferenças e na igualdade de oportunidades.
174
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179
Anexo I
Planta da sala - 1ª. série
Júlia Reinaldo Lucas
Fernand
Observ.
Mara Marcos
Flávio Vanessa
Ana
Carla Luciano
Daniel Aline
Gustavo
Antonio
Cristiane Marcela Júlio Karen
Paulo
Leandro
Professora
j
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180
Anexo II
Andréia e Clarice – uma relação difícil
É eu tenho uma dessas irmãs. Das que dão certo em tudo. Adiantada na
escola, bonita, cheia de amigas. Mais velha do que eu dois anos.
Dormimos no mesmo quarto. De manhã, ela levanta cedinho e eu fico
espreguiçando na cama. Quando ela volta do banho, o cabelo molhado e
cheiroso, finjo que ainda não acordei e fico espiando escondida enquanto ela põe
a roupa. Alisa a blusa no corpo, afofa na cintura, puxa o jeans bem apertado
enquanto se olha no espelho, de frente, de trás, de cada lado. Calça as meias,
espicha, dobra a ponta põe o tênis branquinho, dá o laço com cuidado. Tudo nela
é bonito, qualquer roupinha realça, parece estar sempre produzida.
Só quando ela volta pro banheiro, pra acabar de se arrumar, é que eu me
levanto, já com desânimo de fazer qualquer coisa pra melhorar o meu visual. Adio
o banho, enfio a mesma calça de ontem com uma blusa qualquer, procuro meu
tênis encardidinho debaixo da cama e espero Andréia sair do banheiro para ir
escovar os dentes.
Andréia. Até o nome dela é chique. O meu é Clarice, não que seja feio,
mas Andréia é muito mais bacana.
Eu e ela estudamos infelizmente na mesma escola. Estou cansada de
saber que os professores todos nos comparam, mesmo sem comentar nada. É
claro que nenhum professor vai falar “sua irmã é melhor que você”. Não falam,
mas pensam. Basta olhar as notas dela e as minhas, os cadernos e os livros dela
e os meus. Às vezes eu herdo os livros dela, quando não saem do programa, mas
nem posso dizer que é por isso que eles estão estragados. Quando eu pego
parecem quase novos. Estragam é comigo, nem sei por que, mas na segunda
semana já estão diferentes. Com cara de coisa minha.
Herdar as coisas dela! A vida toda foi isso. Roupa, sapato, livro.
_ Olha, Clarice, esta calça está novinha e não entra mais na Andréia.
Experimenta e vê se te serve.
E eu fico com a calça. Com a blusa. Com o short. Com o macacão. Não é
que seja feio, nem estragado, já falei que Andréia é super cuidadosa, nada dela
estraga. Acabo ficando com mais roupa que ela, e tem umas coisas que eu estava
até invejando, mas o problema é a bronca que eu tenho com herança. Também
quando eu visto nunca fica igual, nela ficava melhor. Isso me chateia mais ainda.
E as amigas de Andréia. Chegam e vão para a sala, ela fecha a porta
começam os cochichos, as risadas. Tenho uma vontade de entrar! Mas sei que
não deixam. São metidas a moça, me acham criançola. Que será que elas
conversam? Morro de curiosidade, às vezes passo perto da porta e paro um
pouco, mas não dá para ouvir nada. E não posso ficar muito tempo atrás da porta.
Mamãe já cansou de falar que é feio, e além do mais, se Andréia me pega, me
enche a paciência.
Eu não tenho tanta amiga feito ela. Minha melhor amiga era Tina, mas a
família dela mudou pra Recife. De vez em quando eu recebo uma carta e escrevo
também, mas vai ficando cada vez mais espaçado. Com certeza ela fez outras
amigas. Eu também, mas nenhuma é como Tina.
(texto de Ivana Versiani)
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