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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS
CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS, AMBIENTAIS E DE TECNOLOGIAS
C A M P I N A S
2 0 0 8
A (RE)INVEÇÃODA PRAÇA
A experiênciadaRocinhaesuasfronteiras
DA N I E L L E CA V A L C A N T I KL I N T O W I T Z
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DEDICATÓRIA
DEDICATÓRIADEDICATÓRIA
DEDICATÓRIA
A todos habitantes das cidades informais
que em suas vivências cotidianas
inventam e (re)inventam praças.
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AGRADECIMENTOS
AGRADECIMENTOSAGRADECIMENTOS
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Eugenio Queiroga, orientador primeiro, pelo acolhimento desde o início desta
incursão no mundo acadêmico; pelo comprometimento e dedicação constantes; pelos
ensinamentos e pelo carinho.
Ao Prof. Denio Benfatti, orientador tardio, pela dedicação e por seu olhar singular que
trouxe grandes contribuições.
Ao Prof. Vladimir Bartalini e Raul Pereira pelas preciosas observações no Exame de
Qualificação.
Ao Prof. Caracol pelo acompanhamento e carinho sempre.
À Profa. Raquel Rolnik por todo ensinamento, estímulo, exemplo e pela oportunidade de
transformar o urbanismo em realidade.
A José Marcelo Zacchi que me aproximou da Rocinha, me acolheu e me acompanhou
durante a maior parte da pesquisa de campo.
A Pedro Strozenberg por ter me introduzido à Rocinha pela primeira vez, iniciando o ciclo
dos vários guias que se seguiram.
A todos os guias que me acompanharam na Rocinha sem os quais esta dissertação não
seria possível. E especialmente a Carlinhos Costa e Hosana Pereira que além de guias
tornaram-se parceiros na busca pelo entendimento de sua comunidade.
Aos professores da Puc-Campinas, Ricardo Moretti, Laura Bueno, Ari Fernandes, Maria
Helena Machado, que durante o desenvolvimento deste trabalho contribuíram e
incentivaram de diversas formas.
Ao Prof. Silvio Soares Macedo pelo incentivo e interlocução.
Aos pesquisadores do Quapá-SEL, núcleo São Paulo, pelas discussões e reflexões
quinzenais.
À CAPES que apoio financeiro durante o desenvolvimento da pesquisa.
Aos amigos Pedro Castellano, Ana Carolina Bitencourt, Amanda Pimenta e Fabio Araújo,
colegas do curso de mestrado, por compartilharem as dúvidas, angústias e reflexões
durante todo o percurso.
A Luciana, Caco, Leo e Marcel que dividiram comigo as primeiras reflexões sobre a
Rocinha.
Aos meus pais pela confiança, incentivo e apoio eternos e incondicionais.
Às amigas Carolina D’Horta, Maiana Freire e Márcia Crespo por dividirem comigo os
momentos de cansaço, nervosimos e tensão.
RESUMO
RESUMORESUMO
RESUMO
Uma parte significativa da paisagem urbana do território das grandes e
médias cidades do Brasil contemporâneo é composta por favelas e
periferias pobres. Neste cenário, este trabalho propõe, utilizando como
estudo de caso a Favela da Rocinha no Rio de Janeiro, uma reflexão
sobre os espaços públicos e as novas formas urbanas apropriadas
cotidianamente nos territórios populares a fim de contribuir para o
entendimento das práticas sócio-espaciais da “cidade informal”. Apesar
da “cidade informal” representar uma importante parcela do território
urbano brasileiro no século XXI, pouco tem se refletido a respeito das
novas formas produzidas neste universo, centrando, muitas vezes, a
reflexão apenas nas novas formas produzidas na “cidade formal”.
Mesmo que aparentemente distantes, as duas partes da cidade, formal e
informal, compõem um mesmo território urbano e, portanto, o
entendimento global sobre a cidade pode ser alcançado através da
compreensão destas duas facetas constituintes da natureza urbana.
PALAVRAS CHAVES
PALAVRAS CHAVESPALAVRAS CHAVES
PALAVRAS CHAVES
Espaço-público, Cidade informal, Praça, Laje, Rocinha
ABSTRACT
ABSTRACTABSTRACT
ABSTRACT
A significant part of the urban landscape of the area of large and medium
sized contemporary Brazilian cities is made up of slums and poor areas
in the outskirts. In this scenario, this work suggests, using as a case
study the Favela of Rocinha in Rio de Janeiro, a reflection on the public
spaces and new forms appropriate urban popular daily in the territories in
order to contribute to the understanding of the practices of socio-spatial
"informal city". Despite the "city informal" represent a significant portion of
territory in the urban Brazilian XXI century, little has been reflected about
the new forms produced this universe, focusing often a reflection only on
new forms produced in the "formal city". Even that seemingly distant, the
two parts of the city, formal and informal, make up the same urban
universe, and, therefore, the global understanding about the city can only
be achieved through the comprehension of these two sides that
constitute the urban nature.
KEY WORDS
KEY WORDSKEY WORDS
KEY WORDS
Public space, Informal city, Square, Flagstone, Rocinha
SUMÁRIO
SUMÁRIOSUMÁRIO
SUMÁRIO
Introdução
0
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02
22
2
Capítulo 01 - (D
ES
)
E
NCONTROS
1.1.
1.1.1.1.
1.1.
O Asfalto sobe o Morro
1
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1.2.
1.2.1.2.
1.2.
Cidade partida ?
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1.3.1.3.
1.3.
A Rocinha pede passagem
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1.3.1.
1.3.1.1.3.1.
1.3.1.
Passagem para Gávea
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1.3.2.
1.3.2.1.3.2.
1.3.2.
Da Rocinha para o mar
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1.3.3.
1.3.3.1.3.3.
1.3.3.
Entre a Gávea e São Conrado
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Capítulo 02 - P
LANETA
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OCINHA
2.1.
2.1.2.1.
2.1.
Existência sócio-territorial da Rocinha
2.1.1.
2.1.1.2.1.1.
2.1.1.
Inserção metropolitana
6
66
68
88
8
2.1.2.
2.1.2.2.1.2.
2.1.2.
A população e sua vida
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2.2.
2.2.2.2.
2.2.
Evolução morfo-territorial
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2
2.3.
2.3.2.3.
2.3.
Tecidos urbanos e configurações no começo do Século XI
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Capítulo 03 - O
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D
ONOS DA
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OCINHA
3.1.
3.1.3.1.
3.1.
Caminhando entre o público e o privado
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118
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3.2.
3.2.3.2.
3.2.
Conquista da Vita Activa e relações de poder
no espaço público
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Capítulo 04 - D
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4.1.4.1.
4.1.
Outras formas, outros encontros
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4.2.
4.2.4.2.
4.2.
As praças suspensas da Rocinha
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Referências Bibliográficas
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DEDICATÓRIA
DEDICATÓRIADEDICATÓRIA
DEDICATÓRIA
A todos habitantes das cidades informais
que em suas vivências cotidianas
inventam e (re)inventam praças.
AGRADECIMENTOS
AGRADECIMENTOSAGRADECIMENTOS
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Eugenio Queiroga, orientador primeiro, pelo acolhimento desde o início desta
incursão no mundo acadêmico; pelo comprometimento e dedicação constantes; pelos
ensinamentos e pelo carinho.
Ao Prof. Denio Benfatti, orientador tardio, pela dedicação e por seu olhar singular que
trouxe grandes contribuições.
Ao Prof. Vladimir Bartalini e Raul Pereira pelas preciosas observações no Exame de
Qualificação.
Ao Prof. Caracol pelo acompanhamento e carinho sempre.
À Profa. Raquel Rolnik por todo ensinamento, estímulo, exemplo e pela oportunidade de
transformar o urbanismo em realidade.
A José Marcelo Zacchi que me aproximou da Rocinha, me acolheu e me acompanhou
durante a maior parte da pesquisa de campo.
A Pedro Strozenberg por ter me introduzido à Rocinha pela primeira vez, iniciando o ciclo
dos vários guias que se seguiram.
A todos os guias que me acompanharam na Rocinha sem os quais esta dissertação não
seria possível. E especialmente a Carlinhos Costa e Hosana Pereira que além de guias
tornaram-se parceiros na busca pelo entendimento de sua comunidade.
Aos professores da Puc-Campinas, Ricardo Moretti, Laura Bueno, Ari Fernandes, Maria
Helena Machado, que durante o desenvolvimento deste trabalho contribuíram e
incentivaram de diversas formas.
Ao Prof. Silvio Soares Macedo pelo incentivo e interlocução.
Aos pesquisadores do Quapá-SEL, núcleo São Paulo, pelas discussões e reflexões
quinzenais.
À CAPES que apoio financeiro durante o desenvolvimento da pesquisa.
Aos amigos Pedro Castellano, Ana Carolina Bitencourt, Amanda Pimenta e Fabio Araújo,
colegas do curso de mestrado, por compartilharem as dúvidas, angústias e reflexões
durante todo o percurso.
A Luciana, Caco, Leo e Marcel que dividiram comigo as primeiras reflexões sobre a
Rocinha.
Aos meus pais pela confiança, incentivo e apoio eternos e incondicionais.
Às amigas Carolina D’Horta, Maiana Freire e Márcia Crespo por dividirem comigo os
momentos de cansaço, nervosimos e tensão.
RESUMO
RESUMORESUMO
RESUMO
Uma parte significativa da paisagem urbana do território das grandes e
médias cidades do Brasil contemporâneo é composta por favelas e
periferias pobres. Neste cenário, este trabalho propõe, utilizando como
estudo de caso a Favela da Rocinha no Rio de Janeiro, uma reflexão
sobre os espaços públicos e as novas formas urbanas apropriadas
cotidianamente nos territórios populares a fim de contribuir para o
entendimento das práticas sócio-espaciais da “cidade informal”. Apesar
da “cidade informal” representar uma importante parcela do território
urbano brasileiro no século XXI, pouco tem se refletido a respeito das
novas formas produzidas neste universo, centrando, muitas vezes, a
reflexão apenas nas novas formas produzidas na “cidade formal”.
Mesmo que aparentemente distantes, as duas partes da cidade, formal e
informal, compõem um mesmo território urbano e, portanto, o
entendimento global sobre a cidade pode ser alcançado através da
compreensão destas duas facetas constituintes da natureza urbana.
PALAVRAS CHAVES
PALAVRAS CHAVESPALAVRAS CHAVES
PALAVRAS CHAVES
Espaço-público, Cidade informal, Praça, Laje, Rocinha
ABSTRACT
ABSTRACTABSTRACT
ABSTRACT
A significant part of the urban landscape of the area of large and medium
sized contemporary Brazilian cities is made up of slums and poor areas
in the outskirts. In this scenario, this work suggests, using as a case
study the Favela of Rocinha in Rio de Janeiro, a reflection on the public
spaces and new forms appropriate urban popular daily in the territories in
order to contribute to the understanding of the practices of socio-spatial
"informal city". Despite the "city informal" represent a significant portion of
territory in the urban Brazilian XXI century, little has been reflected about
the new forms produced this universe, focusing often a reflection only on
new forms produced in the "formal city". Even that seemingly distant, the
two parts of the city, formal and informal, make up the same urban
universe, and, therefore, the global understanding about the city can only
be achieved through the comprehension of these two sides that
constitute the urban nature.
KEY WORDS
KEY WORDSKEY WORDS
KEY WORDS
Public space, Informal city, Square, Flagstone, Rocinha
SUMÁRIO
SUMÁRIOSUMÁRIO
SUMÁRIO
Introdução
0
00
02
22
2
Capítulo 01 - (D
ES
)
E
NCONTROS
1.1.
1.1.1.1.
1.1.
O Asfalto sobe o Morro
1
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55
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1.2.
1.2.1.2.
1.2.
Cidade partida ?
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1.3.
1.3.1.3.
1.3.
A Rocinha pede passagem
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1
1.3.1.
1.3.1.1.3.1.
1.3.1.
Passagem para Gávea
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1.3.2.
1.3.2.1.3.2.
1.3.2.
Da Rocinha para o mar
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1.3.3.
1.3.3.1.3.3.
1.3.3.
Entre a Gávea e São Conrado
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Capítulo 02 - P
LANETA
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OCINHA
2.1.
2.1.2.1.
2.1.
Existência sócio-territorial da Rocinha
2.1.1.
2.1.1.2.1.1.
2.1.1.
Inserção metropolitana
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2.1.2.
2.1.2.2.1.2.
2.1.2.
A população e sua vida
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2.2.2.2.
2.2.
Evolução morfo-territorial
8
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2
2.3.
2.3.2.3.
2.3.
Tecidos urbanos e configurações no começo do Século XI
9
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6
Capítulo 03 - O
S
D
ONOS DA
R
OCINHA
3.1.
3.1.3.1.
3.1.
Caminhando entre o público e o privado
11
1111
118
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8
3.2.
3.2.3.2.
3.2.
Conquista da Vita Activa e relações de poder
no espaço público
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Capítulo 04 - D
OMINGO
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ESTA NA
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AJE
4.1.
4.1.4.1.
4.1.
Outras formas, outros encontros
15
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4.2.
4.2.4.2.
4.2.
As praças suspensas da Rocinha
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Referências Bibliográficas
19
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“As favelas cariocas, fazem parte da cidade há mais de um século
e representam contraditoriamente, o que temos de melhor e de
pior em termos de vida na metrópole. As favelas são os lares de
milhares de brasileiros. Lares marcados pela presença de grupos
criminosos armados e policiais; facções formadas por jovens e
adolescentes obcecados pela ordem capitalista de consumir tudo
– inclusive suas vidas. Ao mesmo tempo, lares que serviram de
berços para as mais ricas manifestações culturais de nossa terra,
espaços construídos com a luta e o trabalho de milhares de
pessoas que a ergueram e a reconstroem a cada dia. Estão aqui
pessoas plenas que amam, choram, lutam brincam e têm algo a
nos dizer sobre si e sobre o mundo.
Bem-vindo à favela.”
(SOUZA ; BARBOSA, 2005:68-69)
INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃOINTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO
O grande crescimento urbano do terceiro mundo, ocorrido durante o século XX,
atrelado às relações políticas e econômicas, produziu, por todo planeta,
assentamentos precários e cidades extremamente desiguais. Segundo dados do
UN-Habitat (2005), a população das favelas no mundo cresce na base de 25
milhões de pessoas por ano, sendo que as taxas mais altas de urbanização são
verificadas justamente nos países mais pobres (DAVIS, 2006: 200).
No Brasil, este fenômeno não ocorreu de forma diferente, a urbanização
desenfreada associada às políticas e dinâmicas econômicas, elevaram muito os
níveis de desigualdade social no país nas últimas cadas do século XX. Neste
cenário histórico, uma parte das cidades brasileiras foi se constituindo em
territórios fragmentados e seccionados com fortes padrões de segregação e
exclusão territorial marcados, ainda, pelas baixas condições de vida nos espaços
periféricos e favelados. Atualmente uma porção significativa da paisagem urbana
do território das grandes e médias cidades brasileiras é composta por favelas e
periferias
1
. Apesar disso, o foco da discussão e produção intelectual sobre as
novas formas urbanas produzidas pelas territorialidades contemporâneas está
quase que inteiramente centrado nos espaços produzidos na “cidade formal” e
pouco se reflete a respeito dos novos espaços da “cidade informal”. A cidade
informal representa uma das “outras faces” da urbanização contemporânea e
produz formas e vivências do território distintas das que são produzidas na cidade
formal. Apesar de segregadas, estas duas faces da cidade, formal e informal,
compõem um mesmo universo urbano e, portanto, o entendimento global sobre a
cidade só pode ser alcançado através da compreensão destas duas facetas
constituintes da natureza urbana.
1
As favelas representam o lócus de 3% da população brasileira, sendo que no município de São Paulo este
número chega próximo a 11% da população e no município do Rio de Janeiro, no ano de 2000, 18,7% da
população da cidade vivia em favelas. (VALLADARES, 2005)
3
A cidade informal, principalmente quando caracterizada por favelas, sofre, desde
suas origens, o estigma do preconceito e da marginalização.
2
Estes espaços o
estigmatizados, em sua grande maioria, como berços apenas da precariedade e
da violência e, configuram-se no imaginário da grande maioria da população
como uma “disfunção” urbana.
“A percepção que se tem da favela não traduz os elementos
materiais que a significam, de forma particular. A representação
conceitual foi sendo construída por uma representação
estereotipada, fundada em pré-conceitos e juízos generalizados.
A favela ainda é contraposta a um determinado ideal de urbano,
vivenciado por uma pequena parcela de habitantes da cidade. Não
é à toa, então, que ela é considerada uma disfunção, um problema
que afeta a saúde da cidade. A revista Veja expressou em uma de
suas capas esse juízo marcado pelo temor: acompanhada da
manchete ‘A periferia cerca a cidade’, apresenta-se uma imagem
na qual as construções de alvenaria, em cor escura vão
devorando gradativamente os prédios brancos e limpos(...) Os
espaços periféricos e favelados são vistos, nessa posição, como
por externos à polis, ou seja, ao território reconhecido como o
lugar, por excelência, de exercício da cidadania.” (
SOUZA &
BARBOSA, 2005:158-159
)
Apresenta-se a imagem de uma “cidade partida”, dois mundos desconectados
que lutam arduamente por sua preservação e possibilidade de expansão,
travando batalhas pela conquista de novos territórios. No imaginário coletivo as
grandes cidades brasileiras têm seu destino traçado e, este será
irremediavelmente marcado pela separação das “duas faces” do universo urbano
(formal e informal). Seguindo esta lógica, cada dia mais, parte da população se
auto segrega nas novas fortalezas urbanas exacerbando a dualidade entre estes
“dois mundos” metropolitanos. Assim, grande parte da população que reside na
“parte formal” das cidades nega-se a reconhecer a existência da “parte informal”
como constituinte da mesma cidade.
Diante deste quadro, este trabalho se propõe a olhar para a cidade como um
universo único constituído por distintos territórios que se relacionam
cotidianamente exercendo mutúas influências e transformações tanto no âmbito
físico, como social, investigando e analisando as formas, apropriações e
sociabilidades existentes nos espaços públicos da cidade contemporânea. Para
2
Mike Davis afirma que a palavra favela (SLUM), apareceu pela primeira vez em uma publicação inglesa de
1812 como sinônimo de “racket”, que significa estelionato ou comércio criminoso, revelando que o estigma da
marginalidade e criminalização dos assentamentos urbanos pobres existe desde a origem de sua
denominação. (DAVIS, 2006, 32)
4
tanto, entende-se que a caracterização dos espaços públicos urbanos não pode
se limitar às características formais dos tecidos urbanos, é preciso aliar a estes
fatores as análises sobre o tecido social que a eles es profundamente
conectado. Só na compreensão da indissociabilidade entre o sistema de objetos e
ações (M. SANTOS,1996:51) é que se conseguirá uma análise clara e profunda
sobre as novas espacialidades públicas da cidade contemporânea.
“A cidade não pode ser estudada como uma forma maciça. Nós
chamamos esses dois subsistemas de “circuito superior” ou
“moderno”, e “circuito inferior.” (...) Cada circuito constitui, em si
mesmo, um sistema, ou antes, um subsistema do sistema urbano.
(...) a maior parte dos estudos não são feitos sobre a cidade
inteira, mas sim sobre uma parte da cidade, impedindo, por isso
mesmo, a formulação de uma autêntica teoria da urbanização. A
primeira coisa que deve ser feita, portanto, é definir bem cada
circuito da economia urbana, suas relações recíprocas e suas
relações com a sociedade, assim como um espaço circundante. A
vida urbana é condicionada pelas dimensões qualitativas e
quantitativas de cada circuito. Cada circuito mantém, com o
espaço de relações da cidade, um tipo particular de relações: cada
cidade tem, portanto, duas zonas de influência. O reconhecimento
da existência dos dois circuitos obriga a uma nova discussão das
teorias consagradas (...) è necessário doravante levar em conta o
circuito inferior como elemento indispensável à apreensão da
realidade (...) É nessa perspectiva que se deve velar por uma
adequada regulação da dialética dos dois circuitos nas cidades e
nos sistema de cidades.” (M. SANTOS,2004:22-23)
Embora as questões sobre o espaço público estejam sendo tratadas por muitos
estudiosos e teóricos na atualidade, como se afirmou, a maior parte desta
reflexão foca-se apenas no entendimento das novas espacialidades produzidas
na parcela formal dos núcleos urbanos. Ermínia Maricato afirma que: Essa
cidade ilegal inexiste, frequentemente, para o planejamento urbano oficial.
(MARICATO, 1996:22). Assim, esta dissertação de mestrado a fim de contribuir
para a reflexão e planejamento da cidade integrada, percorre o caminho contrário
voltando seu olhar sobre as novas espacialidades públicas produzidas na cidade
informal.
A partir do entendimento sobre a cidade como uma unidade, utiliza-se como
classificação dual os termos “cidade formal” e “cidade informal” apenas para
distinguir territórios e suas peculiaridades formais e sociais. Esta classificação,
entretanto, de forma alguma, pressupõe uma real separação entre estas partes,
5
como em uma “cidade partida”
3
. Aqui, entende-se que estas partes formam uma
estrutura dialética que compõem o sistema urbano. Desta forma, classificam-se
por “cidade informal” todos os territórios que compõem o universo das periferias
pobres e favelas das grandes e médias cidades brasileiras, pois que interessa a
este estudo é o pado morfológico e social que compõe estes espaços marcados
pela exclusão territorial
4
. Não trata-se, portanto, de uma distinção jurídica sobre
legalidade ou ilegalidade, pois na cidade contemporânea, encontram-se muitos
territórios que seriam classificados como formais” por sua aparência e
características morfológicas, apesar de juridicamente estarem em situação de
ilegalidade.
Ultrapassando os limites da cidade informal, este estudo estende seu olhar para
suas fronteiras, refletindo sobre como os sistemas de espaços públicos e as
práticas sociais existentes nos dois universos influenciam-se mutuamente na
estruturação das relações entre os territórios formais e informais na cidade
contemporânea brasileira.
3
A expressão “cidade partida” foi utilizada pelo Jornalista Juenir Ventura (1994) como título de seu livro do
sobre a favela carioca de Vigário Geral, e desde então vem sendo usada para designar uma cidade que se
pressupõe dividida entre áreas formais e áreas informais, exacerbando o imaginário coletivo de uma cidade
dominada pela violência. Segundo Márcia P. Leite: A representação do Rio como uma “cidade partida”
terminou, contudo, por reforçar os nexos simbólicos que territorializavam a pobreza e a marginalidade nas
favelas cariocas.” (LEITE, Márcia P. Entre o Individualismo e a Solidariedade: Dilemas da política e da
cidadania no Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais vol 15 44, outubro 2000. Apud SILVA,
2006:22)
4
A questão da exclusão é muito complexa, pois como afirma Milton Santos (2004) não existe
verdadeiramente pessoas totalmente excluídas, que de alguma forma participam do sistema produtivo,
segundo ele, mais do que exclusão, trata-se de dois circuitos econômicos interligados e dependentes:
Assim, não há dualismo: os dois circuitos têm a mesma origem, o mesmo conjunto de causas e são
interligados. Contudo, é necessário precisar que, apesar de sua aparente interdependência, o circuito inferior
aparece como dependente do circuito superior.” (M. SANTOS, 2004:56). Aqui, usa-se o termo excluído
segundo o entendimento de Ermínia Maricato, que afirma que A exclusão social tem sua expressão mais
concreta na segregação espacial ou ambiental, configurando pontos de concentração de pobreza à
semelhança de guetos, ou imensas regiões nas quais a pobreza é homogeneamente disseminada. (...) Não
como definir um limite claro entre o “incluído” e o “excluído”. Como expusemos, trabalhadores do setor
secundário, e até mesmo da indústria fordista brasileira, são excluídos do mercado imobiliário privado e
frequentemente moram em favelas. Trata-se do “produtivo excluído” que é resultado da industrialização com
baixos salários. (...) A exclusão social não é passível de mensuração, mas pode ser caracterizada por
indicadores como a informalidade, a irregularidade, a ilegalidade, a pobreza, a baixa escolaridade, o
oficiosos, a raça, o sexo, a origem e, sobretudo, a ausência da cidadania. (...) Uma das faces centrais da
exclusão é a ilegalidade generalizada, como já apontamos anteriormente: ilegalidade nas condições de
moradia (favela, aluguel informal de cômodo, loteamento ilegal), ilegalidade nas relações de trabalho,
ilegalidade na ação da polícia ou desconhecimento de tribunais para resolução de conflitos, além da
impunidade. O Estado não está simplesmente ausente, mas sua presença pode dar-se de forma ambígua e
arbitrária: repressor, paternalista, ou clientelista. ”(MARICATO, 1996: 55-57, 83) Esta população, apesar de
incluída no sistema produtivo da cidade, é excluída de qualquer urbanidade básica.
6
Nos pontos de contato entre os territórios formais e informais não existem limites
fixos e delimitados com uma rigidez absoluta. Nestes lugares geram-se “zonas
fronteiriças” com múltiplas permeabilidades das práticas sociais e disposições
morfológicas que ultrapassam as linhas divisórias que demarcam os territórios em
mapas. Segundo Raquel Coutinho Marques da Silva (2006:25): O conceito de
fronteira é muitas vezes confundido com o conceito de limite. O termo fronteira é
mais abrangente e se refere a uma região ou faixa, e o termo limite está ligado a
uma concepção precisa, linear e perfeitamente definida no território.Neste caso
o conceito de limite não se aplica, tratam-se, pelo contrário, de fronteiras vivas
5
,
onde os territórios e seus habitantes convivem cotidianamente e estabelecem
fortes interações.
Diante do desejo de investigar a novas espacialidades públicas na cidade informal
e em suas fronteiras, a escolha do objeto de estudo recaiu sobre a cidade do Rio
de Janeiro, onde se encontram pulsantes casos de fronteiras vivas entre a cidade
informal e formal. Nesta cidade, elegeu-se a Favela da Rocinha como foco
principal de análise por se tratar de um enorme e complexo universo informal que,
surgido em meados da década de 1920, época do inicio da formação das favelas
no Brasil, é conhecido hoje como a maior favela da América Latina que convive
lado a lado com os bairros da Gávea, com o maior IDH da cidade, e de São
Conrado, com o IPTU mais caro do Rio de Janeiro.
A pesquisa se iniciou a partir de uma hipótese inicial onde o espaço público teria
um papel fundante na estruturação das relações sociais da cidade
5
Hoje, um novo conceito emerge: o conceito de fronteiras vivas. São nas faixas de fronteiras que se dão os
melhores intercâmbios das nações modernas, e o conceito de fronteiras vivas superou o conceito de
fronteiras obstáculos. Assim, nos casos de fronteiras entre países as fronteiras vivas se baseiam no
pressuposto da integração e interação, seja por meio de trocas ou pelo multiculturalismo. No entanto,
algumas áreas de fronteira ainda possuem conotações de barreiras e trabalha-se neste caso com a idéia de
superação de obstáculos. (...) O conceito de fronteiras vivas é recente, e estas podem ser permeáveis, de
tensão ou acumulação. Nas fronteiras vivas, dependendo do tipo de interação, cria-se um novo espaço e uma
nova cultura. Mas se a interação for assimétrica e desigual ocorrerão disputas, discórdias e rivalidades. Nas
fronteiras vivas, onde existe uma forte concentração demográfica e uma estrutura social complexa, existe
uma integração informal que pode sobreviver às políticas de fechamento e corte. (...) Um aspecto importante
no campo das relações internacionais, relativo à noção de fronteiras, é a teoria da interdependência. Para os
teóricos da interdependência, a cooperação seria a melhor forma das nações alcançarem seus interesses,
estabelecendo novas estruturas de relações. Assim, creio ser pertinente utilizar o conceito de fronteira viva
para a reflexão que se segue sobre as fronteiras que se estabelecem no espaço urbano entre as áreas
informais e formais, nas zonas de conflito social e criminal. Ao examinarmos as fronteiras que se constituem
no espaço urbano percebemos a interdependência entre estas áreas, e a cooperação seria a melhor forma
de superação dos conflitos.” (SILVA, 2006:26-27)
7
contemporânea. Entretanto, com o desenvolvimento do estudo compreendeu-se
que o que existe de fato é uma relação dialética entre as relações sociais e
espaços públicos, onde a todo momento um influência e modifica o outro. A partir
de então, toda pesquisa passou a ser norteada pela compreensão do espaço
público a partir da conceituação de espaço de Milton Santos:
“(...) um conjunto indissociável, solidário e também contraditório,
de sistemas de objetos e de ões, não considerados
isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá.
(M. SANTOS, 1996:51)
A primeira imersão na Rocinha, depois de iniciado o mestrado, foi surpreendente
em vários aspectos. Descortinou-se um universo distinto daquele visualizado nas
visitas anteriores.
6
Agora o objetivo principal das visitas não era mais conhecer a
região e, sim reconhecê-la: enxergar suas nuances; perceber os vários tons sob a
superfície; entender os percursos cotidianos; os encontros furtivos; o lazer
habitual; a organização das festas. A busca principal destinava-se a descobrir os
espaços públicos onde se pratica a sociabilidade cotidiana dentro deste território
e, a partir daí, a compreensão de qual o papel desempenhado por estes espaços,
na vida de seus habitantes.
Originalmente imaginou-se realizar visitas de campo e contatos com os
moradores da comunidade com apoio de questionários formais que pudessem
revelar as percepções, vivências e reações estabelecidas entre a comunidade e
seus espaços públicos. Os questionários foram elaborados e levados a campo,
mas, nos primeiros encontros, percebeu-se que a presença de um questionário
formal limitava a interação por constranger os moradores a estabelecerem
relações de maior informalidade com a pesquisa e, com isso, perdia-se grande
parte da espontaneidade e emoção dos relatos. Diante desta percepção inicial
optou-se por eliminar os questionários e realizar uma pesquisa de campo através
da observação participativa e de entrevistas abertas que trouxeram maior riqueza
aos depoimentos. As “conversas” seguiram um roteiro semi-estruturado, mas
preocuparam-se em não impor limites aos desvios de assunto e digressões que
6
Os primeiros contatos com a Rocinha haviam sido realizados em 2005, ano anterior ao ingresso no
programa de mestrado, em algumas visitas feitas durante a elaboração de um projeto para um Concurso
Nacional de Urbanização da Rocinha, promovido pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro.
8
pudessem ocorrer, trazendo novas percepções, conhecimentos e detalhes para a
pesquisa.
Por causa da peculiaridade do território de estudo, as visitas foram feitas sempre
com o acompanhamento de um “guia”. Durante a pesquisa, foram visitados quase
todos os espaços entendidos como públicos e “permitidos”
7
pelos “guias”. A cada
dia a visita ganhava um novo acompanhante: líderes comunitários; professores, o
personagem principal de um romance escrito sobre a comunidade
8
, uma jovem
universitária moradora da comunidade, o diretor do teatro local e ainda outros
moradores com as mais diferentes peculiaridades. A diferenciação de “guias” a
cada dia trouxe grande riqueza para a pesquisa, pois cada uma destas pessoas
carregava consigo suas vivências particulares do território, revelando novos e
diferentes espaços e, principalmente, novos e diferentes olhares sobre a
comunidade, suas fronteiras e seus espaços públicos. Os vários guias foram
sendo apresentados e conhecidos durantes os próprios percursos e as
oportunidades de novas companhias foram sendo abraçadas no intuito de
aumentar o contato com as diferentes visões durante o trabalho de campo. A
maioria das entrevistas e conversas se deu durantes os trajetos e iam se
relacionando, in loco, com os espaços visitados. Depois de uma conversa prévia
sobre os intuitos da pesquisa, os percursos eram determinados pelos próprios
guias que tinham liberdade para oferecer os trajetos que levariam aos lugares de
sua comunidade que gostariam de apresentar.
O primeiro guia foi Carlinhos Costa, presidente da associação de moradores do
bairro do Lauboriaux que tem 43 anos e cursa faculdade de jornalismo. Este guia
mostrou o que veio a se mostrar posteriormente como uma “Rocinha Light”.
7
Na Rocinha existem lugares, como o “Campo do Terreirão” conhecido campo de futebol “não permitido”
para estranhos, inseridos em territórios estratégicos e de domínio do tráfico de drogas onde não é permitido a
entradas de pessoas que não são “amigas” ou convidadas. Note que a palavra “amiga” na frase anterior está
entre aspas porque refere-se a gíria utilizada pelo tráfico e pelos moradores da comunidade para denominar
pessoas pertencentes a organização do tráfico de drogas. Mesmo nos locais “permitidos”, o acesso ao
“espaço público” na Rocinha não é ilimitado. Com exceção dos lugares com ampla acessibilidade, como a
Estrada da Gávea e o Largo dos Boiadeiros, onde o acesso pode se dar, inclusive, por transporte coletivo,
em outras áreas, ruas, becos e caminhos não é possível circular sem o acompanhamento de um morador
“guia” que conheça os códigos, regras, proibições e perigos existentes. Voltaremos a esta questão mais
profundamente no desenvolvimento da dissertação.
8
LUDEMIR, Julio. Sorria, você está na Rocinha. Rio de Janeiro: Record, 2004.
9
Apesar de revelar a extrema precariedade do lugar, não mostrou os sinais
cotidianos da violência e da opressão esperados. Além de sua função de líder
comunitário, Carlinhos trabalha com a intermediação entre a entidade Viva Rio
9
e, talvez por isso, queira mostrar aos visitantes uma Rocinha despida dos
estigmas da violência e da territoralização do tráfico de drogas. As andanças com
Carlinhos não tiveram nada de cenográficas ou tentativas de simular a realidade,
as observações agora feitas foram percebidas mais tarde em comparação ao
conjunto de visitas realizadas. Percursos iniciais tiveram, entretanto, um tom de
otimismo: visitou-se vários locais públicos conquistados e construídos pela
comunidade, além de locais como a nascente de água a beira da Floresta da
Tijuca que conserva, segundo ele, 97% de sua pureza reconhecida pela
Secretaria de Meio Ambiente do Estado. Durante os trajetos a impressionante
vista que se tem da cidade do Rio de Janeiro a partir da Rocinha era celebrada e
o assunto “tráfico de drogas” era pouco citado e sempre encerrado
veementemente com a afirmação de que quem não quer não precisa se submeter
a ele. Por coincidência, durante todas as visitas realizadas com Carlinhos, durante
a pesquisa de campo e anteriormente na época do concurso, não foi vista
nenhuma pessoa explicitamente armada.
O segundo “guia” designado pelo próprio Carlinhos, foi Li, um líder comunitário de
menor escala que atua em um pequeno setor da favela, a Cachopinha, aparenta
ter em torno de 50 anos e escolaridade incompleta e, apresentou uma Rocinha
sem restrições. Esta caminhada revelou, pela primeira vez, a existência e
localização de lugares que não são “permitidos” aos visitantes de fora e a
existência de uma enorme precariedade, nos setores de recente ocupação. Este
acompanhante propiciou uma aproximação maior com a vida cotidiana da
comunidade, com os pequenos largos e praças de vizinhança e, através dos seus
relatos, que citavam sem o menor constrangimento as relações do tráfico de
drogas com a comunidade, pôde-se compreender melhor a complexidade destas
interações. Durante esta visita se aprendeu alguns dos códigos de postura
exigidos e seguidos pelos “amigos” do tráfico e pela primeira vez percebeu-se a
presença de pessoas armadas na favela. Em outra visita, acompanhada por Li,
9
O “Viva o Rio” é ONG com grande atuação nas favelas cariocas que trabalha para a superação da violência
urbana e de seus efeitos na cidade do Rio de Janeiro. Para conhecer a história do Viva Rio e sua atuação
nas favelas cariocas ver: VENTURA,1994 e RIBEIRO & STROZENBERG, 2001.
10
que culminou em um passeio com famílias e crianças da comunidade a uma praia
da zona oeste carioca (Grumari), pode-se perceber algumas relações dos
moradores da Rocinha com os espaços públicos de lazer de fora dos limites de da
comunidade.
Depois de mais familiarizada com o território teve-se a oportunidade de percorrê-
lo com Hosana, moradora de 23 anos e estudante de ciências sociais na PUC-
Rio. Pela primeira vez o guia não era líder comunitário e não estava engajado no
exercício da cidadania e na conquista de melhorias para a Rocinha, simplesmente
habitava aquele território como tantas outras pessoas. Hosana tinha uma visão
clara e muito pessimista sobre a Rocinha e seu futuro, seus relatos foram
carregados de angústia em relação à violência cotidianamente e revelaram um
grande desconforto por viver um lugar territorializado pelo tráfico de drogas, o que
ainda não tinha sido revelado claramente por nenhum outro morador. Hosana
levou a lugares que freqüenta cotidianamente dentro da comunidade, mas
também percorreu-se os territórios de fronteira da Rocinha e São Conrado, que
também fazem parte de seu roteiro cotidiano. Para ela, que utiliza os serviços,
como correio e xerox, existentes nestas fronteiras, o espaço de vivência cotidiana
amplia-se para fora dos domínios administrativos da Rocinha. O mesmo
fenômeno o é observado nos relatos do Li, que se perde e demonstra grande
desconhecimento ao falar sobre os equipamentos existentes fora dos limites da
Rocinha. Foi na companhia de Hosana que viu-se, pela primeira vez, crianças
portando fusis.
Outro guia peculiar com o qual se realizou alguns percursos na Rocinha foi
Aurélio Mesquita, o diretor de teatro da comunidade, com aproximadamente 30
anos e segundo grau completo. Aurélio revelou uma grande preocupação com a
precariedade do território ao mesmo tempo em que demonstrou grande otimismo
em relação ao futuro da Rocinha. Seu percurso teve a intenção de mostrar
apenas os espaços públicos existentes e alguns lugares com potencial para virem
a ser espaços públicos um dia. Apresentou os lugares onde acontecem os
eventos culturais mais importantes da comunidade e depois exibiu a vida boêmia
dos bares da Rocinha. Seus relatos sempre enfatizavam a função social do
espaço público e da cultura para a melhoria da qualidade de vida da comunidade
e redução da violência.
11
Por último, caminhou-se da Rocinha a à praia com Bocão, professor e
coordenador da escolinha de surf da comunidade, acompanhando-se depois suas
aulas na praia. Esta curta caminhada e observação das aulas possibilitaram
compreender melhor o que representa a praia para esta comunidade e quais
práticas que lá se desenvolvem.
Além dos acompanhantes citados houve outros guias e outros encontros, sempre
apresentando novas peculiaridades, visões, vivências e experiências.
Os relatos e explicações sobre o território elaboradas por diferentes pessoas, a
partir de suas experiências revelaram a existência dos diferentes significados dos
lugares e do território como um todo. Obviamente estes relatos eram sempre
carregados de subjetividade e emoções e por isso mesmo, podem ser
apreendidas pelo contato próximo de um observador participante, que em muitos
momentos consegue se desprender, no imaginário das pessoas, da imagem do
pesquisador. Este contato revelou nuances e matizes da realidade que, por
vezes, o olhar distanciado homogeneizaria. Assim, através deste procedimento,
foi possível identificar que a leitura que cada pessoa da comunidade da Rocinha
faz sobre os vários lugares e o valor que lhes atribui influencia e, é, ao mesmo
tempo, influenciada por sua experiência pessoal e pela forma como vivencia e
apropria-se do território.
Depois de andar pelas ruas internas da Rocinha e de seus vizinhos, em busca de
seus espaços públicos, restaram ainda antigas dúvidas, que, agora, eram
acrescidas de novas questões. De todos os espaços observados, quais eram
realmente públicos? Seriam aqueles que claramente têm uso coletivo, mas que
estão submetidos a rígidos controles e observadores onipresentes? Ou seriam
aquelas pequenas vielas de circulação que a todo o momento são privatizadas
para alguma atividade cotidiana particular que acaba dificultando a passagem de
outras pessoas? Ou seriam, ainda, os espaços privados que em certos momentos
são apropriados para o uso coletivo? E em São Conrado, o que pensar sobre
suas ruas desertas de que permitem o livre acesso a qualquer pessoa, mas que
por falta de freqüência não propiciam qualquer encontro?
12
A volta à pesquisa bibliográfica, na procura de respostas às questões surgidas em
campo foi, então, inevitável. Entendeu-se por fim que o espaço público tem
graduações de publicidade, não perdendo, com isso, sua designação de espaço
de vivência da esfera de vida pública. Dificilmente se encontrará na cidade
contemporânea o espaço público “absoluto” de que falam Hanna Arendt e
Habermas
10
e, portanto, faz-se necessárias novas análises e entendimentos das
possibilidades espaciais e de sociabilidade na cidade atual. Para Queiroga
(2006:132):
“(...) trata-se mais de transformações na esfera de vida pública
que de seu inexorável declínio. Atentar para as práticas espaciais
atuais permitirá identificar possibilidades de planejamento e gestão
do território, superando o dilema entre a visão saudosista das
qualidades da cidade tradicional e uma posição liberal afirmativa
das benesses da eficaz gestão privada dos espaços urbanos.”
Assim, a estrutura de redação da dissertação apresentada procura refletir as duas
hipóteses que nortearam toda a pesquisa: a indissociabilidade entre o sistema de
objetos e o sistema de ações e a recriação do espaço público na cidade
contemporânea e a negação de seu declínio.
Em um primeiro momento aproxima-se da cidade informal carioca através de sua
interação com a cidade formal. O Capítulo 01 - (Des) encontros: o asfalto sobe
o morro
-
discorre sobre as relações do morro e o asfalto na cidade do Rio de
Janeiro, na tentativa de identificar as nuances da vivência cotidiana que apresenta
muitas contradições dentro da segregação estabelecida e aparentemente
cristalizada. Busca-se entender os encontros e desencontros que sempre
marcaram as existências do morro e do asfalto e, como estas sociabilidades
foram se transformando no tempo e, finalmente, como se dão na atualidade.
Inicialmente, a primeira parte do capítulo O Asfalto sobe o morro reflete
sobre a tradição de parte da “sociedade do asfalto” carioca, que desde os
primórdios das favelas, sobe os morros em busca da “magia” das raízes do
samba. No tópico Cidade partida? discute-se como a violência urbana
10
Para Habermas (2003:14 -15) “Chamamos de “públicos” certos eventos quando eles, em contraposição às
sociedades fechadas, são acessíveis a qualquer um assim como falamos de locais públicos ou de casas
públicas. (...) Na cidade-estado grega desenvolvida, a esfera da polis que é comum aos cidadãos livres
(koiné) é rigorosamente separada da esfera do oikos, que é particular a cada individuo (idia)”. Hanna Arendt
(2005:47), por sua vez, afirma que faz parte da esfera de vida pública tudo o que vem a público pode ser
visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível.
13
gerada, principalmente, pela territorialização do tráfico de drogas dos espaços
informais da cidade, repercute na cidade formal e influencia a imagem do morro
no imaginário coletivo. A terceira parte do capítulo A Rocinha pede passagem
–estrutura-se como um percurso pelos bairros de São Conrado e da Gávea.
Através deste percurso estabelece-se uma análise crítica sobre a influência
exercida pela Rocinha nas vivências e apropriações dos espaços públicos pelos
moradores destes bairros, apresentando, ainda, uma análise destes espaços do
asfalto que têm sido apropriados pela população da Rocinha em suas práticas
cotidianas e como, a partir destas apropriações, acontecem os (des)encontros
com os habitantes deste pedaço da zona sul carioca.
No capítulo 02 Planeta Rocinha após ter se aproximado do morro carioca e
entendido suas relações com o asfalto o leitor chega à Rocinha e é apresentado
formalmente a este território. Na primeira parte do capítulo Existência sócio-
territorial descreve-se as características físicas da Rocinha, como sua inserção
territorial na cidade do Rio de Janeiro, suas relações com o entorno, além de suas
características sócio-econômicas. O segundo item Evolução Morfo-territorial
apresenta a evolução histórica da Rocinha com ênfase nas mudanças ocorridas
em seus aspectos morfológicos durante as várias épocas de sua existência. Na
última parte do capítulo se estabelece uma análise morfológica dos tecidos
urbanos existentes na Rocinha atualmente, com a descrição e análise das
tipologias habitacionais, seus padrões de ocupação, e a paisagem decorrente
desta ocupação.
no terceiro capítulo Os donos da Rocinha discute as relações
estabelecidas entre os espaços públicos existentes na cidade informal e as
esferas de vida pública, privada e social. Inicia-se o capitulo Caminhando entre o
público e o privado, um percurso pelos espaços públicos existentes na
comunidade, analisando-os, principalmente, a partir das apropriações e vivências
que neles se estabelecem. Depois de caminhar pela comunidade e questionar-se
sobre as questões de dominação em seus espaços públicos, no item – Conquista
da Vita Activa e relações de poder no espaço público reflete-se sobre o
poder do tráfico de drogas, as associações de moradores e suas influências na
vivência dos espaços públicos na cidade informal. Analisa-se as origens destas
relações de poder através da história dos primeiros “donos dos morros”,
14
conquistas das associações de moradores e da formação dos espaços públicos,
estabelecendo-se uma análise comparativa entre estas conquistas e as relações
de dominação que vão, ao mesmo tempo, se cristalizando dentro da comunidade.
Finalmente no quarto capítulo Domingo é dia de festa na laje chega-se as
reflexões finais sobre as novas formas urbanas surgidas na cidade informal
contemporânea e como estas propiciam novas vivências da esfera de vida pública
nestes territórios. O primeiro tópico Entre Becos e travessas comenta as
práticas sociais que ocorrem nas vielas da favela e como estas o apropriadas
para a reprodução de usos “tradicionais” da sociabilidade urbana. A última parte
do capítulo As praças suspensas da Rocinha apresenta uma reflexão sobre
as lajes, figuras tão presentes no universo das favelas e periferias pobres
contemporâneas brasileiras, que têm adquirido novas apropriações e
configurações nos cotidianos destes espaços, revela-se de novas praças no
universo da cidade informal.
Ao final, com este estudo sobre as novas formas e vivências produzidas nos
territórios informais e em suas fronteiras, evidencia-se que a criação destas novas
formas encontradas está geneticamente ligada ao contexto morfológico onde são
criadas, apenas a cidade informal com seu complexo e denso tecido urbano pode
produzí-las.
Na cidade contemporânea criam-se e recriam-se formas urbanas onde se pode
exercer novas ou tradicionais práticas sociais, o espaço público não desaparece,
como afirma alguns autores, apenas recria-se.
CAPÍTULO 01
(DES)ENCONTROS
“Riodeladeiras
Civilizaçãoencruzilhada
Cadaribanceiraéumanação
Àsuamaneira
Comladrão
Lavadeiras,honra,tradição
Fronteiras,muniçãopesada”
ChicoBuarque
1.1.
1.1.1.1.
1.1.
O ASFALTO SOBE O MORRO
O ASFALTO SOBE O MORROO ASFALTO SOBE O MORRO
O ASFALTO SOBE O MORRO
Mangueira
Estou aqui na plataforma
da Estação Primeira
O morro veio me chamar
De terno branco e chapéu de palha
Vou me apresentar à minha nova parceira
Já mandei subir o piano pra Mangueira
(Piano na Mangueira – Tom Jobim / Chico Buarque, 1993)
O morro carioca sempre foi palco de uma grande produção cultural e por isso,
atrativo para as elites cariocas, que subiam o morro à procura dos encantos e da
criatividade popular. Mas, apesar da atratividade cultural que o morro exercia
sobre o asfalto, morro e asfalto sempre fizeram parte de “universos distintos” que
compõem uma mesma cidade. Apesar da interação constante existente entre
estes “dois universos” que formalmente parecem separados, mas que na
realidade fazem parte de um mesmo sistema urbano, os habitantes das duas
partes da cidade nunca as entenderam como uma coisa única. A subida ao morro
e a descida ao asfalto sempre foi um gesto de entrada em um outro mundo.
“(...) havia também dois Rios, mas as distâncias sociais pareciam
menores. O mundo dos ricos e o mundo dos pobres se olhavam sem
medo e sem ódio.” (VENTURA,1994:35)
“(...) tudo no morro é tão diferente
Todo vizinho é amigo da gente
Até o batuque nossa maravilha
Toda cabrocha é decente e família
Tudo no morro é melhor que na cidade
Tanto na dor como na felicidade (...)”
(Vida no Morro – Aníbal Cruz, 1942)
Até os anos 1940, a sociedade carioca tinha uma visão idealizada do morro,
conhecido como o “berço do samba”. A favela não deixava de ser vista como o
espaço urbano da pobreza, ser favelado sempre significou ser pobre, mas apesar
da pobreza, ou talvez por uma mitificação dela, a favela era identificada, neste
momento, como o espaço da pessoalidade e da boa convivência, onde os laços
16
de vizinhança eram mais forte e o companheirismo e união entre moradores era
verdadeiro. Ao visitar várias favelas cariocas nos anos 40, o escritor austríaco
Stefan Zweig declarou Nunca ter visto por ali uma pessoa pouco afável ou uma
pessoa triste” (VENTURA,1994:18)
Alvorada lá morro que beleza
Ninguém chora, não há tristeza
Ninguém sente dissabor
O sol colorido é tão lindo, é tão lindo
E a natureza sorrindo
Tingindo, tingindo a alvorada...”
(Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho, 1976)
Esta idealização fazia nítida contraposição à “cidade” (asfalto), onde as relações
estavam se tornando impessoais. A favela então, era vista como o lugar da
excelência das relações personalizadas, onde todos se conheciam, todos se
ajudavam, onde todo vizinho é amigo da gente”.
11
Neste momento o morro era,
no imaginário de grande parte da sociedade carioca, o lugar da vivência aprazível,
o “asfalto”, em contraposição, representava o perigo e a impessoalidade.
Apesar desta idealização da favela como a “boa vizinhança” representar um olhar
generoso sobre os territórios pobres dos morros cariocas, trazia em si a ênfase
na dualidade morro/asfalto, reafirmando a difículdade da passagem de um
universo para o outro. Desde desta época se estabelecia uma visão
maniqueísta e segregacionista de territórios “bons” e territórios “maus”, dividindo a
cidade em territorialidades distintas e desconectadas.
“O morro está em luto
Por causa de um rapaz
Que depois de beber muito
Foi a um samba na cidade
E não voltou mais
Entre o morro e a cidade
A batida é diferente
O morro é para tirar samba
A cidade é pro batente
Eu há muito minha gente
Avisava este rapaz:
Quem sobe ao morro não desce
Quem desce não sobre mais
(O morro está de luto – Lupicínio Rodrigues, 1953)
11
OLIVEIRA ; MARCIER:80. A Palavra é: Favela In ZALUAR & ALVITO, 2004
“Eu sou do tempo em que malandro não
descia
Mas a polícia no morro também não subia.”
(Saudosa Mangueira – Herivelto Martins)
17
O samba não nasceu no morro e, sim, na Cidade Nova
12
, mas no imaginário
popular e musical o morro sempre foi consagrado como o “berço do samba”,
atraindo os olhares e desejos da classe média para este espaço peculiar que
produzia tanta alegria. Nesta época, entre as décadas de 1900 e 1910, o carnaval
na Avenida Central do Rio de Janeiro era destinado à elite seguindo os padrões
da Belle Époque e não era permitido aos negros, mulatos e pobres percorrem as
ruas centrais da cidade durante os dias de folia.
O carnaval dos moradores do morro, por sua vez, não era organizado, acontecia
nos fundos de quintais, nos terreiros de santo, nas feijoadas organizadas pelas
“Tias Baianas”. Era um samba de improviso, de desafio em rodas de samba.
Entretanto, por volta dos anos 20, a favela começou a se consolidar como o
espaço urbano do samba através dos sambas de Sinhô que cantavam afirmando
que o samba pertencia ao morro e a mais ninguém. (OLIVEIRA;MARCIER,
2004:80)
“Minha cabocla, a Favela vai abaixo
Ajunta os troço, vamo embora pro Bangú
Buraco Quente, adeus pra sempre meu Buraco
Eu só te esqueço no buraco do Caju
Isto deve ser despeito dessa gente
porque o samba não se passa para ela
Porque lá o luar é diferente
Não é como o luar que se vê desta Favela
No Estácio, Querosene ou no Salgueiro
meu mulato não te espero na janela
Vou morar na Cidade Nova
pra voltar meu coração para o morro da Favela
(A favela vai a baixo - Sinhô, 1927)
Apesar das proibições, muitos moradores do morro e sambistas desafiavam a
ordem vigente e saiam em blocos, o que lhes garantiam muito prestigio em suas
comunidades de origem. Com o tempo, os sambistas começaram a organizar
seus próprios blocos, o que atraiu atenção geral não pela irreverência, mas
também pela exuberância, valentia e sensualidade, experiências que o faziam
12
A Cidade Nova é uma região da cidade do Rio de Janeiro, localizada nas proximidades no bairro do
Estácio, estando na convergência entre o Centro e a Zona Norte. Por volta de 1905 e 1910, a Cidade Nova
era ocupada por uma multiplicidade de bares e gafieiras e, tornou-se, por isso um espaço privilegiado para as
manifestações musicais da cidade. A história da musica brasileira conta que o primeiro samba gravado (“Por
telefone”) teria sido composto em um bar nesta região. (OLIVEIRA ; MARCIER, 2004:82). Atualmente na
Cidade Nova está localizado o Sambódromo da Cidade do Rio de Janeiro.
18
parte do cotidiano da cidade àquela época.
13
Estes blocos foram os precursores
das Escolas de Samba e dos desfiles carnavalescos, contribuindo de modo
decisivo para associação entre samba e morro.
“Tal associação que na verdade se faz entre morro e samba, de tão forte
e recorrente na produção musical, tende a ser tomada como elemento
constituinte da própria definição de favela. No imaginário da musica
brasileira, samba é acionado para representar simultaneamente meio de
identificação e lugar: por seu intermédio, o morro se afirma positivamente,
como ilustra Kéti (1955) ao cantar “eu sou o samba, a voz do morro
sou eu mesmo sim senhor, quero mostrar ao mundo que tenho valor...”
(OLIVEIRA ; MARCIER, 2004:82)
Na década de 30 os blocos se institucionalizaram e se ordenaram, ficando clara a
separação entre Escolas de Samba e blocos carnavalescos. Com a formalização
das Escolas de Samba a produção musical se intensificou, se especializou e se
concentrou no samba. Cada morro passou, então, a ser identificado com sua
Escola, tendo, normalmente, o mesmo nome. Neste momento ser da Mangueira,
por exemplo, passou a ter duplo sentido: significava tanto morar no Morro da
Mangueira como pertencer à Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira.
Desta maneira, o samba não se desconectou mais da imagem da favela e o
morro passou a ser identificado definitivamente como o espaço do samba.
As atividades das Escolas não se restringiam apenas ao carnaval. Nos espaços
dos barracões, as pessoas também se reuniam regularmente para formar as
rodas de samba. O samba era um elemento aglutinador, nas rodas de samba os
participantes não apenas expunham suas sicas, mas comiam, bebiam e se
divertiam. Não eram apenas espaços para o samba, mas principalmente espaços
de sociabilidade.
As quadras das Escolas de Samba, além do espaço de confluência da
comunidade favelada e de seus compositores, passaram a ser também um lugar
onde o morro podia receber e entreter os visitantes da Zona Sul carioca.
“Ninguém no nosso meio sabia o que era uma Escola de Samba. Visto
hoje, é difícil de acreditar. (...) Na primeira vez que pisei lá, conheci Zé
Keti (...) a partir dali não sei se fui eu quem adotou o ou se foi ele que
me adotou. Viramos parceiros de vida. (...) Ficamos amigos e ele,
portelense de me apresentou à Portela e eu, a partir daí, me tornei um
grande amigo da escola de Madureira. Amigo freqüentador assíduo e uma
13
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Mangueira e Império: a carnavalização do poder pelas escolas de
samba:125 In ZALUAR ; ALVITO, 2004.
19
espécie do que se chamam hoje de promoter: comecei a levar amigos aos
ensaios de domingo na Portela. (...) Cada domingo de samba na Portela,
o grupo aumentava, alertado por um boca-a-boca (...) Mas o boca-a-boca
se espalhou tanto que a portaria do meu prédio, na Avenida Rui Barbosa,
virou ponto de concentração de carros, que aumentava a cada domingo,
ao ponto da vizinhança reclamar (...) Conheci compositores maravilhosos,
aprendi a sambar no coisa que enriqueceu muito a minha vida de
então e me trouxe muito sucesso. Eu era um branco no samba, um
craque sambando, o que fazia com um entusiasmo enorme. Convoquei O
Cruzeiro e a Manchete para fazerem reportagens e divulgar toda aquela
beleza e comecei a defender a causa das escola de samba e a maravilha
que aquilo era como organização social. (...)
14
Para as Escolas de Samba, como a Mangueira, que recebiam apenas uma
pequena ajuda de custo da Prefeitura Municipal, as visitas dos grã-finos” eram
rentáveis e ajudavam a financiar os desfiles.
“Além de dominar as ruas a classe média lançou a moda de subir o morro
para se divertir. Uma noite, Ronaldo Bôscoli, que além de compositor era
jornalista, resolveu ir à mangueira para denunciar, indignado, ‘a invasão
dos grã-finos que ficavam fingindo sambar com copos de leite
condensado com cachaça não mão (leite de onça) e lenços molhados de
lança-perfume no nariz’.” (VENTURA,1994:19)
“A criatividade musical dos sambistas integrou-se às diversas mudanças
por que passavam o país, transformando pequenas agremiações musicais
em grandes instituições organizadas de manifestações culturais e
espaços de lazer.” (SANTOS,
Myrian, 2004:127)
O novo carnaval além de ter sido incrementado com os desfiles das Escolas de
Samba, intensificou mais a imagem dos morros como produtores de sonho e
felicidade. Durante quatro dias o morro tinha visibilidade total, evocando seu lado
criativo, colorido e luminoso, obtendo, assim, o reconhecimento social por sua
arte.
“A felicidade do pobre parece
a grande ilusão do carnaval
A gente trabalha o ano inteiro
por um momento de sonho
pra fazer a fantasia
de rei ou de pirata ou jardineira
pra tudo se acabar na quarta-feira”
(Tom Jobim e Vinicius de Moraes)
“A identidade dos favelados também foi construída através de suas
manifestações culturais, como o samba, as quadrilhas juninas, e demais
manifestações com as quais os favelados não se afirmavam
positivamente mas também criavam laços com o asfalto, formando um
14
Depoimento de André Jordan, polonês criado no Brasil e que pertencia à classe média alta carioca, sobre
sua descoberta e posterior vivência do universo das Escolas de Samba. (JORDAN, 2006: 62-64)
20
dos aspectos mais ricos e talvez o mais marcante do que é o Rio de
Janeiro.” (BRUM: 2004)
Mas apesar da exaltação ao morro conseguida pelo carnaval das Escolas de
Samba, é curioso notar que os jurados dos desfiles carnavalescos eram, desde
sua origem e, continuam sendo até hoje, “de fora do samba”, o que, de certo
modo, transforma este carnaval em um espetáculo feito pelo morro, mas mediado
e organizado pelo e para o asfalto. (SANTOS,
Myrian, 2004:129) Trata-se mais
uma vez da arraigada dualidade morro/asfalto.
A associação da favela com o samba, evoca também uma associação com a
boemia, com o botequim, com o jogo, com o universo da malandragem carioca.
Apesar da clara marginalidade do malandro, a imagem mitificada da época via os
moradores dos “morros do samba”, como “bons malandros”. A existência da
criminalidade não era negada, entretanto expressava-se através de imagem
amenizada por uma suposta ética da boa malandragem do morro. O malandro,
muitas vezes, se confundia mais com o “brigão” ou com o “valentão” do que com
o “bandido” e as reações violentas e de agressividade desta figura decorriam de
disputas amorosas e não se caracterizavam como ameaças para os de “fora do
morro”. (OLIVEIRA ; MARCIER, 2004)
“(...) os malandros não eram vagabundos, pois trabalhavam em biroscas,
mas gostavam da boa vida, de mulheres, eram valentes e nunca
aceitavam o trabalho cotidiano, proletário, que significava para eles
confinamento na pobreza” (SANTOS,
Myrian, 2004: 141)
“Malandro é o cara que sabe das coisas
Malandro é aquele que sabe o que quer
Malandro é o cara que tá com dinheiro
E não se compara com um Zé Mané
Malandro de fato é um cara maneiro
E não se amarra em uma só mulher”
(Malandro é Malandro, Mane é Mane - Bezerra da Silva)
Até então, as favelas eram menos densas e a pobreza ainda não havia se
transformado em miséria, o que tornava as relações entre morro e asfalto mais
cordiais e não fomentavam, de modo geral, grandes tensões sociais. A pobreza
não chega a ser vista socialmente como uma patologia, assim como a miséria. A
associação dessas duas condições (pobreza e miséria) com o crime organizado
(narcotraficantes) é que gera “pré-conceitos” sobre estes espaços. Estas variáveis
21
não coexistem nos lugares de origem destas populações e por isso, apenas nas
grandes cidades adquirem estas conotações criminalizadoras e preconceituosas,
que vêem estes espaços como lugares de “disfunção social”.
Neste momento, meados da década de 1950, a violência política era muito mais
presente e temida na cidade do Rio de Janeiro do que a violência urbana. Vivia-
se, então, o auge da crise política que acabou por levar Getulio Vargas ao
suicídio. As disputas entre Vargas e Carlos Lacerda não ficavam somente nos
palanques, pelo contrário, alcançavam as ruas com socos, pontapés e tiros.
15
Diante dos escândalos políticos, o morro escapava do olhar criminalizador e
continuava vivendo seus dias de paz e glamour sob a alcunha de “berço do
samba”.
“Uma parte da cidade oculta tinha ocupado os morros, mas as favelas
então, mais do que uma ameaça ou um problema, eram vistas de longe
como um acidente pitoresco. ‘Quem mora no morro vive pertinho do
céu’, constatava a famosa música de Herivelto Martins.” (VENTURA,
1994:18)
Até este momento, o Rio de Janeiro não era considerada uma cidade perigosa.
Obviamente, tinha alguns núcleos de violência, mas estes o eram associados
às favelas, concentravam-se mais na zona central e portuária, onde estavam os
contrabandistas, pequenos traficantes e baixo meretrício. O morro ainda era um
lugar a ser visitado. Reportagens de jornais e revistas falavam de “damas da
sociedade carioca” que se dedicavam à assistência social nas favelas e de
“moças de família ricas” que se orgulhavam de serem normalistas nas favelas e
subúrbios. (VENTURA,1994:19)
“Existia, claro, o pau-de-arara, o pobre, a personagem do morro, mas as
quantidades eram muito menores e não intromissivas. As ruas da Zona
Sul eram ‘nossas’, da classe média e acima.
16
Em 1953 a matéria de capa da Revista Manchete de janeiro deste ano alardeava:
“1953 chegou à Cidade Maravilhosa encharcado de sangue”, referindo-se a um
grande tumulto ocorrido durante o reveillon, representou um marco que trouxe a
15
Em 1954 Lacerda, que acabara de escapar de um atentado, foi atingindo por Osvaldo Aranha, ministro da
fazenda, com um soco na cara em um restaurante no Hotel Copacabana Palace. O episódio foi seguido por
várias demonstração de violência e alguns tiros, para se “resolver” questões políticas (VENTURA,1994)
16
Paulo Francis apud VENTURA,1994:19 (Grifo meu)
22
voga o tema da violência urbana à mídia. Mesmo assim, esta violência ainda não
tinha uma associação direta com as favelas da cidade. (VENTURA,1994:20-21)
Na década de 1960, assistiu-se uma grande mudança nos desfiles das escolas de
samba que começaram a ter a escala de um grande espetáculo. Os desfiles, que
ainda aconteciam nas arquibancadas da Avenida Presidente Vargas, começaram
a ser comercializados e a classe média passou a entrar nas Escolas de Samba,
não mais como visitantes, mas como participantes das alas. Estas mudanças
ocorreram também na gestão de algumas Escolas que passaram a serem
administradas por pessoas de fora dos morros.
“Para completar, o Roberto Paulino rapaz de boa cepa, filho do dico
Fernando Paulino e da Marina Ludolf começou a freqüentar e, de certa
forma, a patrocinar a Mangueira. E fez muito pela Mangueira, chegou a
casar-se com a lindíssima passista Gigi da Mangueira, que causava furor
no carnaval e fora dele. A grande diferença entre o Roberto e eu é que ele
achava que os brancos que não eram da comunidade podiam desfilar pela
escola e eu sempre discordei disso. (...) O Roberto foi parar na Comissão
de Frente da Mangueira, chegou a ser presidente da escola e abriu a
porta para o que acontece hoje: qualquer pessoa, de qualquer parte do
mundo, pode comprar sua fantasia e desfilar na avenida através das
agências de viagem.” (JORDAN, 2006: 64)
Alguns dos antigos participantes do morro, que perderam espaço para os novos
integrantes das Escolas, protestaram e rejeitaram a nova administração que trazia
valores de fora do “território do samba para dentro das Escolas. Nesta época,
também se integraram às Escolas de Samba intelectuais e artistas plásticos da
classe média que revolucionaram os desfiles trazendo pensamentos de
vanguarda do asfalto para o samba do morro.
A partir da década de 1980 as favelas foram tornando-se mais perigosas com a
territorialização do tráfico de drogas. O morro foi se “fechando” e passou a
receber menos visitantes do asfalto. Algumas Escolas mudaram os locais de suas
quadras, descendo o morro, para poderem continuar recebendo os visitantes “de
fora”, que agora, em grande parte não sobem mais o morro para irem aos ensaios
de suas Escolas.
“A partir de 1995 os ensaios [da Escola de Samba da Mangueira] abertos
ao blico para arrecadar verba não foram mais realizados na quadra,
devido ao clima de insegurança e intranqüilidade que foi se
estabelecendo.(CASÉ, 1996:44)
23
A Rocinha teve tardiamente a fundação de sua Escala de Samba, A Escola de
Samba Acadêmicos da Rocinha iniciou-se apenas em 1988, com a fusão de três
blocos carnavalescos da comunidade: o Sangue Jovem, o Império da Gávea e o
Unidos da Rocinha. A partir de 2003, a Acadêmicos da Rocinha também passou a
ser gerenciada por um presidente de fora da comunidade e teve como
carnavalesco, Alex de Souza, que também não era da comunidade. Em 2004, a
quadra da Escola que desde sua fundação era localizada na Rua 1, incrustada no
morro, mudou-se para o Conrado, e hoje se localiza do outro lado da Avenida
Lagoa-Barra, que divide a Rocinha de São Conrado.
“O samba me mandou dizer
Que precisa de tempo pra pensar
Ou mudar a cadência do samba do morro
Ou resolverá mudar o morro de lugar”
(Lata D’água - Elza Soares)
Ao longo dos 1980 anos de existência das favelas cariocas, a produção musical
do morro foi intensa, surgindo, a cada época, novos tmos como o choro, o
pagode e o Funk, mas recentemente. Mas nenhum destes ritmos foi capaz de
atrair tantos olhares e visitantes para o morro como foi o samba nos seus áureos
tempos, nem de produzir uma identidade “espaço-música tão marcante.
(OLIVEIRA ; MARCIER, 2004)
O Funk, modalidade musical de grande veiculação na atualidade, apresenta-se
como uma manifestação, quase sempre violenta, oferecendo perigo para os “de
fora”. Em uma analogia ao tráfico de drogas no Rio de Janeiro que é organizado e
dividido em comandos que disputam o domínio dos territórios informais, o Funk é
organizado em “galeras” que disputam territórios, muitas vezes, com grande
violência. Os bailes funks são divididos em duas modalidades: “bailes de
corredor” e “bailes de comunidade”. Os chamados “bailes de corredor” compõem-
se por um confronto violento entre turmas de homens jovens rivais. Os “bailes de
comunidade” não se caracterizam pela agressão e violência como os bailes de
corredores, mas não podem ser entendidos como territórios totalmente “abertos”.
Nos bailes de comunidade os concursos o realizados entre galeras de
“comandos amigos”, é o “baile da união”, mas a segurança dos bailes é feita pelos
24
“amigos”
17
armados, o que gera preocupação constante nos freqüentadores que
sabem da possibilidade sempre premente de invasão da polícia ou de um grupo
de outro comando do tráfico de drogas. Tanto nos “bailes da união”, quanto nos
“bailes de corredor” a exibição e desfile de armas nas mãos de jovens das
comunidades é intenso.
18
Por estes motivos, este tipo de evento cultural não atrai
tantos visitantes do asfalto como sempre fez o samba.
Atualmente, além dos eventos culturais existentes, criou-se uma nova modalidade
de subida do asfalto ao morro: o Tour-Favela. Trata-se de um passeio turístico
organizado por agências de viagens para pessoas de fora das favelas
conhecerem as peculiaridades do morro.
Segundo a Riotur, órgão do governo municipal responsável pela promoção
turística da cidade do Rio de Janeiro, a Rocinha é, atualmente, o 3
°
ponto turístico
mais visitado da cidade, estima-se que por mês o bairro receba em torno de 2000
pessoas (Jornal O Dia, 14/05/2000). Este dado, apesar de aparentemente
exagerado, revela a importância no imaginário da população e do poder público
da cidade deste passeio que leva os “alemães”
19
para conhecer as favelas
cariocas.
O turismo organizado na Rocinha iniciou-se oficialmente em 1992, com a Eco-92,
quando se organizaram as primeiras experiências de levar grupos de estrangeiros
para conhecer a favela. Antes disso, já existiam alguns moradores da comunidade
que trabalhavam como “free-lancers” levando algumas pessoas “de fora” para
subir o morro em passeios improvisados. Após a Eco-92 o interesse pelos
passeios na favela se intensificou e algumas agências de turismo começaram a
organizar itinerários pela Rocinha, criando o Tour Favela. Por causa do grande
sucesso alcançado com este percurso turístico na Rocinha, algumas empresas de
turismo que fazem este trajeto estão expandindo o itinerário para outras favelas
da cidade. Atualmente existem 5 empresas de turismo que fazem o Tour Favela
17
A expressão “amigo” é usada para designar pessoas que pertencem ao “movimento” (tráfico de drogas).
18
Ver CECCHETTO, Fátima Regina. Galeras Funk cariocas: os bailes e a constituição do ethos guerreiro. In
ZALUAR ; ALVITO, 2004; VENTURA,1994; VIANNA, 2003.
19
“Alemão” é a forma que se designa quem é de de fora” da comunidade. “Sangue-bom é quem é da nossa
turma, quem é nosso ‘colega’. Alemão não precisa nem ser o inimigo: é o outro, o que está fora (mas nem
sempre está ‘por fora’”. (VIANNA, 2003:07)
25
que levam turistas, na maioria estrangeiros, para conhecer os espaços internos
das favelas cariocas.
Nestes tours a favela é apresentada como um ambiente extremamente peculiar e
típico do Rio de Janeiro. Na propaganda do tour favela, existente no site de uma
das agências que realiza este percurso, percebe-se claramente que a favela é
vendida como uma caricatura, o que leva muito dos turistas a sentirem-se em
uma espécie de safári sobre jipes militares e suas roupas caquis.
Figura 1.1 – Turistas visitando a Rocinha sobre Jipes de modelos militares durante um Tour-Favela.
Fonte: CYPRIANO, 2005
Foto: André Cipriano
26
Além das subidas ao morro para turismo ou eventos culturais, os moradores dos
bairros vizinhos se aproximam da Rocinha para fazerem compras de “produtos
específicos da favela”, como produtos nordestinos e drogas. Os pontos de venda
destes dois tipos de produtos ficam estrategicamente localizados no “pé” do
morro, assim seus consumidores não precisam subir o morro para comprá-los. Do
mesmo modo, como o barracão da Escola de Samba desceu o morro para facilitar
o acesso dos visitantes de fora, as outras atividades que atraem “pessoas de fora”
Figura 1.2 – Propaganda do Favela Tour
Fonte: http://www.favelatour.com.br
Figura 1.3 – Roteiro Favela-tour
Fonte: www.simonsen.br/rds/geo/artigo5.php
Desenho e adaptação: Danielle Klintowitz
27
têm feito o mesmo movimento. A principal boca de tráfico da comunidade localiza-
se na “Rua do Valão”, na parte baixa da Rocinha, perto de São Conrado. As
barracas e pequenas lojas que vendem os mais variados produtos e comidas
nordestinas se localizam no “Largo dos Boiadeiros”, também próximo a São
Conrado. Da mesma forma, as principais casas de shows da comunidade onde
acontecem os bailes funks e outros eventos culturais que podem ser freqüentados
pelos moradores do asfalto, se concentram nas bordas da favela para facilitar o
acesso dos moradores da Zona Sul.
Figura 1.4 – Pontos de atração da Rocinha localizados na proximidade de São Conrado
Fonte: Governo do Estado do Rio de Janeiro
Interpretação: Danielle Klintowitz
28
Esta existência intensa de sobre as “visitas” dos habitantes do asfalto ao morro
torna evidente que a idéia de uma cidade dual, partida, composta por duas partes
distintas e claramente separadas que permeia o imaginário urbano desde os
primórdios das favelas no Rio de Janeiro, no começo do século XX, não se reflete
na realidade. Apesar de separadas e distantes estas “duas partes” da cidade
sempre estiveram em contato. Até meados da cada de 1970, o morro e asfalto
estavam próximos, apesar de mais distantes fisicamente do que na atualidade,
seus moradores se encantavam mutuamente com os “mistérios” alheios e por
vezes se frequentavam cotidianamente em busca do encontro com as diferenças.
O fascínio pela alegria oferecida pela vida do morro foi era tão evidente que
inspirou muitas produções intelectuais da zona sul carioca. Em 1956, Vinicius de
Moraes compôs a ópera “Orfeu da Conceição”, adaptada depois para o cinema
por Orson Welles como o “Orfeu do Carnaval”, que conta a história de uma moça
do asfalto (Eurídice) que perseguida, por um mascarado, é salva por Orfeu, um
lindo sambista do morro. Eurídice, seduzida por seus encantos, vai viver no morro
com Orfeu. Na ópera de Vinicius, a história de amor entre morro e asfalto tem o
mesmo fim trágico da versão grega, evidenciando mais uma vez a visão da
impossibilidade da superação da dualidade entre morro e asfalto. Nesta tragédia
fica claro que apesar do encantamento existente, a classe dia carioca não
conseguia ver a possibilidade deste amor de carnaval, entre morro e asfalto,
transformar-se em um casamento duradouro. Entretanto, apesar do imaginário da
“sociedade do asfalto” tratar os espaços da cidade formal e da cidade informal
como dois mundos paralelos e desconectados, a tão alardiada separação entre
morro e asfalto, na realidade, trata-se de uma relação dialética que compõe a
cidade do Rio de Janeiro. A cidade é constituída por um sistema composto por
estes dois universos distintos, mas extremamente conectados, que interagem
cotidianamente nos empregos oferecidos na zona sul aos moradores das favelas,
no lazer oferecido no morro aos moradores da zona sul e em tantos outros
encontros ocorridos nas vivências urbanas.
29
1.2.
1.2.1.2.
1.2.
CIDADE PARTIDA ?
CIDADE PARTIDA ?CIDADE PARTIDA ?
CIDADE PARTIDA ?
“A obsessão de construir muros e cercas fechando os bairros dos mais
ricos ocorre não num momento de incertezas econômicas e de medo
da criminalidade, mas também quando os mais ricos começam a ficar
mais próximos dos pobres e miseráveis excluídos, ou seja, quando os
ricos começam a ir para a periferia. Note-se, contudo, que essa maior
proximidade dos ricos aos pobres excluídos não nega a existência de
segregação.(VILLAÇA,
2001:
152)
Até meados da década de 1960 e começo de 1970, as favelas cariocas, ainda
evocavam certa mitificação sobre o mundo popular, o berço do samba e a “boa
malandragem”. No trecho a seguir Licia Valladares relata sua percepção sobre as
favelas cariocas na época em que iniciou em suas pesquisas:
“Àquela época, muitos mitos povoavam minha cabeça. Em síntese, a
favela representava o mundo popular, o lugar autêntico da vida carioca,
das escolas de samba, da religiosidade popular, do jogo do bicho e da
malandragem, no bom sentido do termo. Mundo diferente concentrado
nos morros, a favela me parecia estranha, bastante diversa da minha
realidade de classe dia brasileira e do meu modo de vida.”
(VALLADARES, 2005: 15)
Com a grande migração e aumento incessante da população urbana, as favelas
foram se consolidando no cenário urbano e se transformando no lugar definitivo
da moradia de uma grande parcela da população urbana, com isso a imagem da
favela carioca como berço da alegria perdeu lugar para a criminalização destes
espaços. Na virada da década de 1970 para 1980, as metrópoles brasileiras
assistiram à emergência de um novo contexto de estigmatização destes territórios
com o aumento da criminalidade e controle das grandes favelas pelo tráfico de
drogas, que passaram a sofrer uma “atualização do mito da marginalidade”
(SOUZA, 2006:473).
“Embora tráfico de drogas e criminalidade urbana violenta não sejam
sinônimos pois nem o tráfico precisa sempre em todas as instâncias da
violência, nem a criminalidade violenta, naturalmente, se reduz aos crimes
vinculados ao tráfico é indiscutível que a dinâmica da violência urbana
passou, nas décadas de 80 e 90, a estar fortemente marcada pelos
efeitos (guerras entre quadrilhas e entre estas e a policia, ‘balas perdidas’)
e indiretos (empréstimo de armamentos de traficantes para criminosos
comuns, delitos praticados por viciados, etc.) do trafico de tóxicos.
(SOUZA, 2000: 53)
Diante destes novos fatos, estes lugares passaram a ser identificados apenas
como redutos de criminosos, como se ali vivessem apenas traficantes, ou mesmo,
30
como se todos seus moradores fossem beneficiados diretos, coniventes ou
entusiastas das organizações do tráfico de drogas e, sendo assim, merecedores
de descriminação e perseguição por parte da polícia e das leis criminais. Desta
forma, a repulsa à proximidade destes lugares marginais e seus moradores
tornou-se mais intensa e o contato entre as populações dos territórios formais e
informais, mais difícil.
A Rocinha sofreu desde muito cedo com o estigma da marginalidade e da
criminalidade, sendo apresentada pelos meios de comunicação de massa, desde
a década de 1970, como um reduto de delinqüentes e pivetes”.
20
Esta favela que
na década de 1970 tinha uma enorme extensão, era classificada pela mídia da
época como uma “uma cidade marginal dentro da zona sul debruçada sobre o
mar.”
21
Desde esta época entendia-se como um grande estorvo a existência de
um bolsão de pobreza em uma região da cidade tão valorizada pelo capital
imobiliário, indisponibilizando a área para a utilização da classe média alta carioca
que, neste momento, expandia as fronteiras de seu território de moradia. Além
disso, na atualidade, a proximidade às favelas desvaloriza os imóveis, pois além
do medo da violência, ainda torna o ambiente menos aprazível e mais feio.
“O crime e os criminosos são associados aos espaços que supostamente
lhes dão origem, isto é, as favelas e os cortiços, vistos como os principais
espaços do crime. (...) Excluídos do universo do que é adequado, eles
[favelas e cortiços] são simbolicamente constituídos como espaços do
crime, espaços de características impróprias, poluidoras e perigosas.
Como seria de se esperar, os habitantes desses espaços são tidos como
marginais. A lista de preconceitos contra eles é infinita. São considerados
intrusos: nordestinos, recém-chegados, estrangeiros, pessoas de fora e
que não o na verdade da cidade. São também considerados
socialmente marginais: diz-se que usam palavrões, são sem-vergonha,
consomem drogas e assim por diante. De certo modo, tudo o que quebra
os padrões do que se considera boa conduta pode ser associado a
criminosos, ao crime e a seus espaços. O que pertence ao crime é tudo o
que a sociedade considera impróprio. (...) a “confusão” entre pessoas
pobres e criminosos pode ter sérias conseqüências, considerando-se que
a polícia também opera com os mesmo estereótipos, frequentemente
confundindo os pobres com criminosos e às vezes até matando-os.”
(CALDEIRA, 2000:79-80, 89)
O preconceito em relação aos moradores das favelas cariocas favoreceu e
ampliou o processo de vulnerabilidade social em que sempre viveram. E com o
20
O Globo, 02/09/1975 apud SEGALA,1991:06.
21
Movimento, 24/01/1977; O Globo, 23/10/1976 apud SEGALA, 1991:5
31
passar do tempo, a circunstância tornou-se mais complexa: os narcotraficantes
passaram a ter os morros como seu ponto fixo de venda de varejo, o que refletiu
na maior “criminalização” da pobreza
22
e do espaço da favela. Esse contínuo
temor vem gerando, desde então, políticas blicas de controle, de moralização,
de tutela e, mais freqüentemente, de repressão sobre este segmento da
população carioca, como observa Lúcio Kowarick:
“Colocando no âmbito da lutas sociais, o processo de espoliação urbana,
entendido enquanto uma forma de extorquir as camadas populares do
acesso aos serviços de consumo coletivo, assume seu pleno sentido:
extorsão significa impedir ou tirar de alguém algo a que,, por alguma
razão de caráter social, tem direito. Assim, como a cidadania supõe o
exercício de direitos tanto econômicos como políticos e civis, cada vez
mais parece ser possível falar num conjunto de prerrogativas que dizem
respeito aos benefícios propriamente urbanos.” (KOWARICK, 1993: 71)
Neste cenário passa-se a assistir um processo mais profundo de fragmentação do
tecido urbano e uma aceleração da segregação urbana, nunca antes vista, que
vem se exacerbando até os dias de hoje (SOUZA, 2006:468). Não se pode negar
que a configuração sócio-territorial das favelas favoreça a presença e controle do
tráfico de drogas, mas, dialeticamente, a descriminação e rejeição social sofrida
pelos moradores destes lugares por parte dos “cidadãos de bem torna-se,
também, fator determinante para sua baixa auto-estima que favorece a submissão
e territorialização dos criminosos, em um ciclo vicioso.
“Reações como a criminalidade (organizada ou não) podem, por seu
turno, conduzir a respostas por parte do aparelho de Estado ou de
segmentos da sociedade que contribuem para agravar e não para minorar
o quadro de tensões (intensificação da repressão policial e aumento dos
preconceitos contra a população pobre), configurando assim um feedback
positivo, um círculo vicioso, sem que ao menos haja alguma promessa de
ganho efetivo no âmbito do conflito.” (SOUZA, 2000: 50-51)
Uma visão sobre a violência isenta de preconceitos é fundamental para se
entender o cotidiano do morador da Rocinha. Para MV Bill (Rapper, integrante da
Central Única de Favelas 23 e morador de Cidade de Deus
24
):
22
Ver CALDEIRA, 2000.
23
A Central Única de Favelas (CUFA) é uma ONG que funciona como um pólo de produção cultural e
através de parcerias, apoios e patrocínios forma e informa jovens de favelas cariocas, oferecendo
perspectivas de inclusão social. (http://www.cufa.org.br)
24
A Cidade de Deus é um bairro do suburbano da Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro do oriundo de
um conjunto habitacional construído na década de 1960 pelo Governo Estado como parte da política de
remoção de favelas que se transformou em um espaço extremamente violento com a territoralização do
tráfico de drogas.
32
“( ...) ao contrario do que costuma parecer, a comunidade não é a favor do
tráfico de drogas e grande parte dela não é envolvida com o tráfico.
Muitas vezes, apenas 1% a 2% daquela população têm envolvimento com
as drogas. Essa verdade não aparece porque os moradores nunca o
consultados sobre o assunto ou têm medo de falar. Então os criminosos
acabam tendo mais visibilidade do que as pessoas que acordam cedo
para trabalhar todos os dias (...) e as pessoas chamadas de traficantes
dentro da comunidade para mim são varejistas, simples camelôs. Os
verdadeiros traficantes não estão dentro da comunidade, estão na Zona
Sul, ocupando cargos públicos .” (SOUZA & BARBOSA, 2005:147-152)
Grande parte da patologia social atribuída apenas ao espaço favelado é gerada
fora dele, pela distribuição da terra e da renda no país. No morro se aloca o
varejo do narcotráfico, todavia, encontra-se no “asfalto a maioria dos
consumidores e dos atacadistas de drogas.
“Variáveis como consumidores com poder aquisitivo suficiente são
fundamentais para explicar o crescimento e a geografia do consumo e do
tráfico domésticos (na cidade).” (SOUZA, 2000: 54)
Ao mesmo tempo, é importante lembrar, que a proximidade entre as favelas e os
bairros de classe média alta deve-se às condições impostas pelo Poder Público e
pelas próprias elites que constroem cidades com infraestrutura deficiente, que não
permitem a digna reprodução da força de trabalho. Verifica-se, então, o processo
descrito por David Harvey: (...) em busca de um emprego melhor e de um salário
para viver, o trabalhador é forçado a seguir o capital, onde quer que ele flua
25
No
Rio de Janeiro, por exemplo, os moradores da Gávea e de São Conrado têm
grande responsabilidade na manutenção desta realidade apesar de se sentirem
extremamente incomodados e amedrontados com seus vizinhos “marginais”.
Grande parte da atração inicial exercida pelas favelas cariocas às populações
pobres teve origem nos “sub-empregos” ofertados pelos moradores na zona sul,
que ofereciam trabalhos que não pagavam o suficiente para que estes
assalariados pudessem prover seu próprio transporte e habitação, que desde esta
época o eram supridos pelo Poder Público. Assim, esta população pobre
teve que encontrar formas alternativas de moradia e mobilidade, instalando-se
nos morros localizados próximos aos seus locais de trabalho.
A população vizinha às favelas têm, ainda, grande parcela de responsabilidade
em relação à criminalidade ali existente, pois como afirma Marcelo Lopes de
25
HARVEY, David. The Limits to Capital. Chicago: the University of Chicago Press, 1982 Apud VILLAÇA:
2001:43
33
Souza: o consumo de cocaína, esteve, tradicionalmente, associado a um
mercado de classe média ou alta
(SOUZA, 2000: 49-50). Parte da sociedade
carioca, moradora do “asfalto” é grande consumidora das drogas oferecidas pelos
traficantes dos morros. Então, além de um lugar com características morfológicas
estratégicas para a preservação da segurança, a favela oferece, aos traficantes,
proximidade do seu público consumidor, que tem a tradição, no Rio de Janeiro, de
entrar no morro para comprar droga. Por causa do grande mercado consumidor
existente na Zona Sul, os morros tornaram-se pontos muito disputados pelas
diferentes organizações do tráfico, o que gera maior violência nestes territórios.
“A geografia humana e social propiciou aqui [Rio de Janeiro] um convívio
entre áreas muito pobres e áreas de elite ou camadas médias. Essa
contigüidade permitiu que o tráfico varejista, que serve diretamente ao
consumidor, se instalasse em territórios mais vulneráveis. Sem essa
contigüidade, o varejo seria de modo camuflado, errante, nômade, como
em outras grandes cidades. (...) O processo não envolveria armamento ou
subordinação de comunidades. Se sedentarismo e fixação do varejo,
tem que haver domínio territorial para que aquela área seja inexpugnável
à ão de outros grupos ou da polícia. As armas são necessárias para o
domínio social e para dissuadir agressões de outros bandos. Os grupos
se multiplicam nessa lógica porque as condições se repetem pela cidade.
Conquista de território de traficante corresponde à conquista de
mercado.”
26
Talvez por fazerem parte do ciclo do tráfico, parte da classe média e alta
considere todos habitantes das favelas marginais, e criminalize com tanta
intensidade a pobreza. Apesar de consumirem os produtos oferecidos nas
favelas, sentem-se incomodados pela proximidade geográfica que elas mantêm
com suas residências, e por isso pressionam o Estado para que tome
providências a este respeito.
“A distribuição e a venda de cocaína a partir dessas comunidades,
principalmente para as classes média e alta, criaram uma trama complexa
de relações econômicas e políticas entre comunidades, traficantes e
Estado. Tais relações resultaram sobretudo da presença e ausência
seletivas do Estado, constituindo o que chamo de violência estrutural”,
violência e repressão continuas contra as classes populares.”
27
O episódio conhecido como o “Muro da Rocinha” demonstra com muita
propriedade este fato. Em abril de 2004, os traficantes do Morro do Vidigal
28
26
SOARES, Luiz Eduardo. In FILHO ; ALVES FILHO, 2003: 33.
27
LEEDS, Elizabeth. Cocaína e poderes paralelos na periferia urbana brasileira: Ameaças à democratização
em nível local. In ZALUAR ; ALVITO, 2004: 235
28
Grande favela carioca localizada à Avenida Niemeyer, próxima à Rocinha.
34
invadiram a Rocinha iniciando uma guerra pelo domínio do território do tráfico de
drogas. A briga foi brutal e acabou envolvendo um grande contingente da força
policial do estado do Rio de Janeiro. A população carioca se alarmou ao ver
fechados, pelos traficantes, os dois principais caminhos de acesso a São Conrado
e à Zona Oeste
29
, onde se localiza a Barra da Tijuca e outras regiões das elites
cariocas. Em plena batalha campal entre os traficantes e a polícia, o Secretário
Estadual do Meio Ambiente e vice-governador do estado Rio de Janeiro, Luiz
Paulo Conde, sugeriu a construção de um muro de 3m de altura envolta das
principais favelas da cidade, pois, segundo ele, esta seria a única forma de conter
a violência que assolava a cidade. Além da favela da Rocinha seriam alvos desta
“intervenção” outras importantes favelas que “necessitavam” o mesmo
“encarceramento”. Consultada, a Governadora do Estado, Rosinha Garotinho,
declarou-se a favor do “projeto” e, assim, iniciaram-se rapidamente as reuniões
técnicas dentro do Governo para viabilização dos muros.
“Por ser a Rocinha, que está no coração da Zona Sul, área nobre da
cidade, onde o conflito interrompe o trânsito e ameaça a elite, o impacto e
a reação foram muito maiores do que nas outras comunidades onde essa
violência é rotineira.”
30
Após inúmeras críticas da imprensa e de formadores de opinião, o Vice-
Governador voltou atrás em sua decisão afirmando que suas declarações sobre
os muros haviam sido mal entendidas, que estes serviriam, na verdade,
apenas, para conter os avanços sobre as encostas da Floresta da Tijuca, uma vez
que o Governo estava preocupado com a expansão territorial das favelas sobre a
mata e declarou ainda: Se é muro, se é cerca, se é grade, se não é grade, se é
marco deliminatório. O que eu acho na minha opinião é que temos que conter a
expansão”.
31
A Governadora Rosinha Garotinho, após esta nova declaração, para
que a nobre preocupação ecológica tivesse mais colorido, solicitou a intervenção
do Exército, deslocou mais de 900 policiais para a Rocinha e praticamente deu
carta branca para que se erradicasse o “mal” que tanto incomodava os moradores
e freqüentadores de São Conrado e da Barra da Tijuca.
29
O Túnel Zuzu Angel e a Av. Niemeyer.
30
Rubem César Fernandes, antropólogo e coordenador da ONG Viva Rio sobre a “guerra” entre traficantes
do Vidigal e da Rocinha. COAV - Global Information Network on Children and Youth in Organised Armed
Violence, 13/05/2007. (http://www.dreamscanbe.org/controlPanel/materia/view/251)
31
Folha de São Paulo, 13/04/2004.
35
Atitudes como essas, distanciam, ainda mais, o Poder Público da população das
favelas. o se pode pensar em murar ou cercar. Deve-se, pelo contrário, se
pensar em derrubar as barreiras sociais enrijecidas pela secular indiferença do
Estado e da sociedade. Neste episódio levantou-se a bandeira ecológica apenas
para encobrir a verdadeira intenção do Estado que era concretizar a construção
da muralha, que existe embora seja invisível, no imaginário de parte da
população que enxerga o Rio de Janeiro como uma cidade partida em dois: a
cidade do asfalto e a cidade do morro.
Para além desta questão, o Estado, ainda, acabou por diluir e minimizar a
questão ecológica que também é de suma importância neste cenário, que a
Rocinha e outras favelas cariocas estão inseridas dentro do Maciço da Tijuca que
é uma área de proteção ambiental com importância estratégica para o município.
Desde a década de 1960 o Governo procura saídas para a preservação do
Parque Nacional da Tijuca, sendo sua principal preocupação a expansão territorial
das favelas:
(...) Em 1967 foram traçados novos limites para o Parque Nacional da
Tijuca, com exclusão de áreas consideradas irrecuperáveis ou invadidas
por favelas. A Floresta da Covanca e parte da Floresta do Andaraí, como
também as Chácaras da Bica e do Cabeça da Gávea, urbanizadas e
ocupadas por favelas, foram excluídas. Outras áreas foram incluídas no
Parque Nacional da Tijuca como o conjunto Pedra da Gávea - Pedra
Bonita e áreas do Morro Dona Marta, Corcovado, Gávea, Cochrane, Alto
Figura 1.5 - Intervenção da policia e do exercito na Rocinha
Fonte: Folha Online, 09/04/2004 – (http://www1.folha.uol.com.br/folha/galeria/album/i_cotidiano_00001.shtml )
Foto: Victor R. Caivano
36
da Boa Vista, Av. Edson Passos e Jacarepaguá, dentre outras. (IBDF,
1982)
32
Na década de 2000 foi implantado um programa de “ecolimites” em algumas
favelas do Rio de Janeiro na tentativa de conter esta expansão e preservar as
áreas de proteção circundantes. Estes ecolimites são pequenas muretas e gradis
que apenas determinam o limite de expansão, sem que pareçam realmente muros
de contenção. Até agora, na Rocinha, estes limites têm sido respeitados pela
população que com a implantação destes limites aliados a um programa de
conscientização, aderiu ao discurso sobre a preservação da mata.
Apesar da preocupação com a preservação da Floresta da Tijuca, no final da
década de 1970 o Governo do Estado abriu um novo braço de expansão dentro
da mata preservada a fim de reassentar algumas famílias da Rocinha que
estavam em situação de risco. Este braço, aberto pelo Governo Municipal,
possibilitou uma nova frente de expansão da favela que hoje se caracteriza
como um denso e consolidado “bairro”, o “Labouriaux”.
É importante notar que sempre existiu a idéia de contenção no sentido geral.
33
Mas neste momento, o que parecia ser mais importante para o Poder Público e
parte da sociedade carioca era a contenção da favela enquanto território
criminoso, mais do que a preservação da floresta. Percebe-se claramente que a
idéia do muro não tinha verdadeiramente uma vertente ecológica, e sim
segregacionista. Segundo Lefevbre:
“Social e politicamente, as estratégias de classes (inconscientes ou
conscientes) visam a segregação. Os poderes públicos, num país
democrático, não podem decretar publicamente a segregação como tal.
Assim, freqüentemente, adotam uma ideologia humanista que se
transforma em utopia no sentido mais desusado, quando não em
demagogia. A segregação prevalece mesmo nos setores da vida social
que esses setores públicos regem mais ou menos facilmente, mais ou
menos profundamente, porem sofrem sempre.” (LEFEBVRE: 2001: 94-95)
32
IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal),1982.
33
No de 1979, por exemplo, o engenheiro Luiz Fernando Gabaglia Penna, genro do arquiteto Lucio Costa
resolveu construir um muro de 400 metros de extensão no bairro da Gávea a fim de conter a expansão da
favela da Rocinha, que neste momento começava a crescer em direção a este bairro vizinho. Procurados, o
Município, Estado e Governo federal mostraram-se desinteressados em patrocinar a obra, mas não tomaram
nenhuma medida contrária a construção, que foi realizada por seu próprio idealizador. (FILHO & ALVES
FILHO, 2003: 169-176.)
37
Figura 1.6 Ecolimites entre a rocinha e a floresta da tijuca
Foto: Danielle Klintowitz
Figura 1.7 – Localização do Labouriaux inserido na Floresta da Tijuca
Fonte: Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Rio de Janeiro, 2005
Interpretação: Danielle Klintowitz
38
Esta proposta foi, na verdade, um perverso desejo de controle social onde se
deixaria os “miseráveis” presos dentro dos enclaves criados pelo Poder Público.
Intencionava-se cercar a favela para controlá-la, pois o Governo não acreditava,
neste momento, que a polícia pudesse conter a violência. Segundo o ex-
secretario federal de segurança pública, Luiz Eduardo Soares:
“Claro está que sempre houve milhares de policiais honestos, corretos,
dignos, que tratam todos os cidadãos com respeito e apresentam-se como
profissionais de grande competência. Mas as instituições policiais, em seu
conjunto e com raras exceções regionais, funcionaram e continuam a
funcionar como se estivéssemos em uma ditadura ou como se
vivêssemos sob um regime de apartheid social. Constrói-se uma espécie
de "cinturão sanitário" em torno das áreas pobres das regiões
metropolitanas, em benefício da segurança das elites.(SOARES, 2003)
A estrutura espacial produzida na cidade do Rio de Janeiro, diferente de outras
grandes cidades brasileiras como São Paulo, por exemplo, faz com que as elites
e classe média, vizinhas das favelas, vivam de perto das “guerras” travadas nos
morros em decorrência do tráfico de drogas. À beira da Av Niemeyer, que liga o
bairro do Leblon ao bairro de São Conrado, está a favela do Vidigal e, do outro
lado do Morro Dois Irmãos, na saída do túnel Zuzu Angel, que liga São Conrado à
Gávea, está a Rocinha, que “ameaça” todos os dias os moradores dos ricos
condomínios da Barra e de São Conrado ao dirigirem-se para a Zona Sul. Esta
proximidade, muitas vezes apenas visual, com os espaços residenciais
descriminados e criminalizados e a violência deles decorrente, dissemina o
fenômeno da auto-segregação e esvaziamento dos lugares urbanos de encontro,
afastando da vivência da esfera de vida pública parte da população das grandes
cidades, que se refugia na esfera de vida privada dentro de seus muros.
“Os enclaves privados e fortificados cultivam um relacionamento de
negação e ruptura com o resto da cidade e com o que pode ser chamado
de um estilo moderno de espaço público aberto à livre circulação. Eles
estão transformando a natureza do espaço público e a qualidade das
interações públicas na cidade, que estão se tornando cada vez mais
marcadas pela suspeita e restrição. (...) São fisicamente demarcados e
isolados por muros, grades, espaços vazios e detalhes arquitetônicos.
São voltados para o interior e não em direção à rua, cuja vida pública
rejeitam explicitamente.” (CALDEIRA,2000: 258 -259)
Como afirma Tereza Caldeira, a "fala do crime "
34
é presença constante na vida do
cidadão brasileiro. Muitos só falam sobre o medo, a violência, o crime organizado.
34
A fala do crime ou seja, todos os tipos de conversas, comentários, narrativas, piadas, debates e
brincadeiras que têm o crime e o medo como tema – é contagiante”. (CALDEIRA: 2000, 27)
39
A fala do medo, de certo modo, é catártica, mas ao mesmo tempo, perversa.
Iguala e une as pessoas dentro de uma mesma situação, mas também as agride
ainda mais. Através da fala do crime o terror faz mais timas. A fala do crime
reproduz a própria violência. Usa-se fatos traumáticos para originar boatos, e ter
assim uma nova forma de socialização. Usa-se fatos traumáticos para justificar
falas reacionárias e preconceituosas. Usa-se fatos traumáticos para se levantar a
bandeira da repressão, dos muros. Usa-se fatos traumáticos para aumentar a
distância social que separa "os homens de bens" dos “pobres perigosos”.
“Nesse começo dos anos 90, a violência tinha propagado sua nocividade
pelo organismo social como se fosse um contágio biológico,
contaminando atitutes e metalidades. Não se sabia mais o que era causa,
efeito ou sintoma. (...) Assaltos, chacinas, seqüestros, arrastões, saques,
linchamentos, estupros eram manifestações espetaculares dessa nova
cultura, a Cultura da Violência, que havia criadoo que o antropológo
Luiz Eduardo Soares chamou de Cultura do Medo, um subproduto
também perigoso. o o medo natural, indispensável como legítima
defesa da vida e do patrimônio, mas o “medo reativo”, histérico, o medo
transformado em paranóia e pânico, habitante de bunkers, condomínios
fechados, cidadelas medievais.” (VENTURA: 1994:138)
E por isso o episódio do Muro da Rocinha é tão exemplar. O muro foi pensado em
um momento de exasperada violência urbana, onde até as pessoas que recusam
FIGURA 1.8 - Localização da Rocinha e Vidigal que representam entraves na mobilidade para as elites cariocas
Fonte: Google Eatrh, 2006
Interpretação: Danielle Klintowitz
40
ser atingidas pelo medo o foram involuntariamente. A proximidade física, não
permite que se ignore a existência destes núcleos de pobreza incrustados nos
bolsões de riquesa da cidade. O contato é inevitável, talvez a cidade esteja
partida no imaginário de muitos cidadãos, mas fisicamente os territórios se tocam
e precisam encontrar formas de conviver.
“A disseminação das práticas violentas gera, por sua vez, um sentimento
crescente de insegurança que invade toda a cidade, inclusive os bairros
nobres. E a principal solução para o enfretamento da violência,
tradicionalmente apontada pela maior parte da população carioca de
diversos grupos sociais, é o aumento da presença de policiais nas ruas.
(...) O enfrentamento da violência presente no Rio de Janeiro, no entanto,
exige a criação de mecanismos que ampliem o tempo e o espaço sociais
dos seus moradores, que permitam o reconhecimento da cidade como um
lugar do encontro das diferenças por excelência. (SOUZA; BARBOSA,
2005:62)
Ao final, o episódio exemplar do Muro da Rocinha deixa clara a pretensão de
separar concretamente, com um muro de 3 metros de altura, o que a muito já está
separado simbolicamente: a sociedade brasileira. Na época, o Estado carioca
demonstrou que a única solução que enxergava para o problema da violência
urbana é a segregação total e absoluta de uma parte da população. Uma solução
justa e definitiva, obviamente, deve passar por um conceito oposto, isto é, pela
integração e encontro da população das favelas com aquela que vive do outro
lado deste "muro invisível". Afinal, como pode-se deixar de ter medo se não se
conhece o que tem do outro lado do muro? E, como os que estão do outro lado
podem não querer agredir se estão cercados e aprisionados dentro deste muro?
“A vida na cidade é a possibilidade de encontro entre pessoas diferentes,
de origens diversas e saberes distintos. O reconhecimento absoluto das
diferenças e, a seguir, a diluição de todas elas na busca do que torna a
todos nós igualmente seres humanos, nada mais que humanos. Pensar a
cidade como espaço da humanidade plena significa, então, uma aposta
em nossa capacidade intelectual e afetiva de estar pronto para esse
encontro, para refazer a polis com nossos concidadãos de todos os
espaços, raças e credos.(SOUZA; BARBOSA, 2005:68)
Então, mais uma vez fica claro que o pensamento que pressupõe que os
territórios formais e informais são partes constituintes de um todo urbano, é muito
importante para o desenvolvimento da cidade como o lugar do encontro e do
exercício da cidadania. o olhar unificador pode compreender a cidade como
ela realmente é e, atuar sobre sua realidade e não sobre um espaço idealizado
que não corresponde a sua verdadeira existência.
41
1.3.
1.3.1.3.
1.3.
A
A A
A ROCINHA PEDE PASSAGEM
ROCINHA PEDE PASSAGEMROCINHA PEDE PASSAGEM
ROCINHA PEDE PASSAGEM
“Morro pede passagem
Morro quer se mostrar
Abram alas pro morro
Tamborim vai falar
É um, é dois, é três
É cem, é mil a batucar
O morro não tem vez
Mas se derem vez ao morro
Toda a cidade vai cantar”
(O Morro não tem vez – Tom Jobim)
Da mesma forma que os habitantes do asfalto sobem o morro estabelecendo
inúmeras relações com o território da Rocinha, os moradores desta comunidade
também descem o morro e interagem com o asfalto cotidianamente. Os
moradores da Rocinha utilizam os espaços dos bairros vizinhos, não apenas para
o lazer, mas também nas funções básicas de sua vida cotidiana, como fazer
compras, estudar, trabalhar. Em decorrência destas “visitas”, o cotidiano dos
bairros vizinhos também vai se altera. Para entender como se dá a inserção da
Rocinha com a cidade do Rio de Janeiro e que tipo de relações sua população
estabelece com os territórios vizinhos é preciso conhecer estes territórios,
observando que influências podem ser sentidas nestes espaços por estarem
localizados ao lado do morro.
A descrição e análise dos bairros vizinhos à Rocinha, que se segue, está
estruturada sob a forma de percursos, que levam o leitor a percorrer estes bairros
como se estivesse caminhando por eles. Os percursos, neste texto, sempre têm
como ponto de partida a Rocinha e fazem o trajeto de quem desce o morro em
direção ao asfalto. Estes percursos estão separados em dois momentos: o
primeiro percurso é breve, pretende apenas observar a saída da Rocinha e a
entrada no bairro da vea, seu vizinho mais recente. Em um segundo momento
o percurso volta ao ponto inicial, a Rocinha, apenas para escapar novamente dos
seus limites chegando até a Praia de São Conrado. Este segundo percurso é
mais demorado porque a relação estabelecida entre a Rocinha e São Conrado é
42
mais intensa do que a relação estabelecida entre a Rocinha e a Gávea. Andando
até a praia, o leitor terá a oportunidade de parar em lugares significativos de São
Conrado compreendendo as peculiaridades dos espaços públicos da região e
suas sociabilidades.
FIGURA 1.9 - Mapa com demarcação dos percursos desenvolvidos no texto
Fonte: IPP – Instituto Pereira Passos – Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro
Interpretação : Danielle Klintowitz
FOTO AÉREA PERCURSO GÁVEA -MAPA
FONTE :GOOGLE EARTH,2007
I
NTERPRETAÇÃO:DANIELLE KLINTOWITZ
01
1
1
2
2
3
3
4
4
5
5
6
6
7
8
8
7
CurvaEstradadaGávea
ClubeUmuarama
LimiteGávea/Rocinha
ShoppingGávea
PUC
Planetário
Conj.MarquêsdeS.Vicente
TúnelZuzuAngel
N
1.3.1
1.3.11.3.1
1.3.1 P
PP
P
ASSAGEM PARA A
ASSAGEM PARA A ASSAGEM PARA A
ASSAGEM PARA A
G
GG
G
ÁVEA
ÁVEAÁVEA
ÁVEA
Para se chegar à Gávea, estando no ponto central da Rocinha, basta percorrer a
avenida principal da comunidade, a Estrada da Gávea, até o final, pois esta
avenida ultrapassa os limites da Rocinha e chega à Gávea transformando-se
imediatamente na Av. Marquês de São Vicente, como se demarcasse a entrada
em um novo território. A Rocinha é uma das únicas favelas do Rio de Janeiro que
tem uma avenida que a corta inteiramente. A Estrada da Gávea percorre toda a
Rocinha desde São Conrado até a Gávea. Este fato faz com que esta favela se
conecte com seus vizinhos da Zona Sul de forma integral e não se caracterize
espacialmente como um território fechado em si mesmo. Desta forma, é possível
pegar um ônibus em São Conrado, atravessar a Rocinha e chegar à Gávea sem
descer do ônibus, como fazem muitos moradores diariamente para estudar ou
trabalhar na Gávea. O outro caminho que liga a Gávea a São Conrado é muito
mais extenso e passa sob o Túnel Zuzu Angel, em trechos com intenso tráfego.
Ainda dentro da Rocinha, a última parte da estrada da Gávea traz a surpresa
do visual: a Lagoa Rodrigo de Freitas vai se aproximando lentamente e se
Figura 1.10 – Gávea vista da Rocinha
Foto: Danielle Klintowitz
45
impondo na paisagem, ao mesmo tempo, começam a se apresentar no horizonte
construções que se distinguem muito das encontradas na Rocinha.
Um pouco antes do limite entre a Rocinha e a Gávea, a Estrada da Gávea faz
uma grande curva em forma de cotovelo, (n°1 - mapa 01), mudando a direção do
olhar e permitindo que se aviste uma construção inusitada no contexto: uma
grande piscina se descortina sob as árvores. Trata-se do Clube Umuarama (n°2
mapa 01)
um antigo clube particular, que originalmente estava no bairro da
Gávea, mas que com o tempo foi incorporado pelo território da Rocinha. De
FIGURA 1.11 - Seqüência de aproximação da vista do
bairro da Gávea e da Lagoa Rodrigo de Freitas
Fotos: Danielle Klintowitz
46
dentro do clube pode-se avistar ao mesmo tempo a Gávea e a Rocinha,
demonstrando sua proximidade geográfica.
Este clube não é aberto à comunidade da Rocinha, nunca foi. Antigamente era
freqüentado pela alta sociedade carioca, mas com o crescimento da favela foi
perdendo seus associados e consequentemente ficando endividado. Ao final,
acabou perdendo todos seus associados, com exceção de 8 pessoas que
resolveram comprá-lo e tentar mantê-lo aberto. Por falta de dinheiro estes cios
alugam as dependências do clube para uma ONG (Instituto Rumo Certo)
35
. Um
dos donos do Clube quando perguntado se não seria interessante abrir o clube
35
35
Atualmente, o Instituto Rumo Certo oferece, durante 3 dias por semana, aulas e práticas esportivas para
cerca de 200 crianças da comunidade, nos outros dias o clube é fechado à comunidade e suas dependências
são utilizadas pelos sócios.
FIGURA 1.12 - Clube avistado na descida à
Gavea / clube avistando parte da Rocinha
Foto: Danielle Klintowitz
FIGURA 1.13 - Clube Umuarama
entre a Rocinha e a Gávea
Fonte: www.trekshare.com
47
para a comunidade, mesmo que se cobrasse uma pequena taxa de associado,
rejeitou efusivamente a hipótese dizendo inclusive que o arrendamento para a
ONG é
temporário e, que em breve, quando as contas do clube forem acertadas,
ele voltará a ser um clube “exclusivo” de “pessoas de bem”.
Continuando através da Estrada da Gávea, depois da grande curva onde se
avista o Clube Umuarama, percebe-se que à medida que se aproxima do bairro
da Gávea a paisagem vai mudando lentamente. A densidade da paisagem vai
diminuindo e as casa vão mudando seu padrão construtivo. Agora a Rocinha não
domina mais a paisagem, de um lado da avenida ainda se a sobreposição de
casinhas de alvenaria, mas do outro lado da avenida ora pode-se ver as grandes
e tradicionais casas da Gávea, ora se vê apenas a densa vegetação, como
fragmentos descolados da Floresta da Tijuca. De repente perde-se a referência: já
se chegou na Gávea, ou ainda se continua na Rocinha? Na verdade, neste
pequeno trecho do percurso, tem-se um território híbrido, de um lado Rocinha, de
outro a Gávea.
FIGURA 1.14 – Entre a Gávea e a Rocinha
Fonte : Google Earth, 2007
48
Por algum tempo anda-se com a Rocinha de um lado e a Gávea de outro. Este
percurso não oferece uma mudança brusca na passagem entre estes dois
territórios. Como a Rocinha demorou a crescer para o lado da Gávea, sua
expansão deste lado deu-se de forma mais rarefeita, com menos densidade e
com limites menos claros.
Mas de repente percebe-se que a Rocinha ficou para trás e os dois lados da
avenida podem ser chamados de Gávea. As casas vão ficando maiores e seus
acabamentos visivelmente mais caros, em pouco depois nota-se a presença
marcante dos tradicionais e ricos casarões. Neste momento, fica nítido que se
mudou de território. Agora com certamente se está na Gávea.
Nas ruas do bairro da Gávea próximas à Rocinha vê-se pessoas passeando com
seus cachorros, crianças andando de bicicletas, babás com carrinhos de bebês.
Nesta parte do bairro existe uma vivência de unidades de vizinhança, onde os
moradores têm uma sociabilidade cotidiana, diferente do bairro de o Conrado
com sua vivência apenas em condomínios fechados.
FIGURA 1.15 - Passagem para Gávea
Fonte: Site Imagens do Povo – http://www.imagensdopovo.org.br
Foto: J R Ripper
49
1.3.2
1.3.21.3.2
1.3.2 D
DD
D
A
A A
A
R
RR
R
OCINHA PA
OCINHA PAOCINHA PA
OCINHA PARA O MAR
RA O MARRA O MAR
RA O MAR
Este segundo trajeto percorre o bairro de São Conrado, que parece estar mais
próximo à Rocinha do que a Gávea, embora apenas no imaginário da população
da cidade. Para conhecer a parte de São Conrado mais significativa na vivência
cotidiana do morador da comunidade o texto fará o caminho da Rocinha até a
praia, passando por alguns lugares, que apesar de estarem oficialmente em São
Conrado, em parte, são também constituintes do território da Rocinha.
36
Para sair da Rocinha, em direção a São Conrado, deve-se descer a movimentada
Via Ápia (n°1- mapa 02), uma das principais vias de acesso ao morro. Apesar de
na primeira observação rápida, esta via parecer-se com uma rua comercial
convencional, um olhar mais cuidadoso percebe que sua morfologia não é comum
à cidade formal, gerando vivências também incomuns. Sua calçada é muito
estreita, em alguns casos, quase inexistente. Algumas lojas ainda avançam sobre
o passeio e quase todas as pessoas acabam andando sobre o leito carroçável,
disputando o espaço de circulação com os carros estacionados ou em
movimento. Esta via está sempre cheia de carros e pessoas, circulando
incessantemente. Ali encontram-se, além das lojas, muitos restaurantes que
servem aos trabalhadores de toda região. A Via Ápia se caracteriza, também, por
uma intensa atividade noturna, que nesta via localizam-se as casas de shows e
espaços para bailes funks que atraem inclusive moradores de outras regiões da
cidade. Por ser uma rua que se localiza na fronteira entre o território da Rocinha e
de São Conrado, de certa forma, acaba funcionando como uma espécie de
“fronteira viva”, que vai se moldando no tempo a fim de atrair as populações dos
dois territórios. Estes fato faz com que nela se localizam tantos restaurantes de
comida nordestina, casas de shows, além de uma conhecida “boca” de venda de
drogas.
36
Aqui o conceito de território é entendido não apenas como uma configuração espacial, mas como um
espaço apropriado para a vivência de certa comunidade. A própria formação da Rocinha a caracteriza muito
mais como um território do que como um bairro. O território, modernamente, é entendido não apenas como
limite político administrativo, senão como espaço efetivamente usado pela sociedade e pelas empresas. O
território tem, pois, um papel importante especialmente na formação social brasileira (...) tudo passa, mas os
territórios, espaços efetivamente usados, permanecem.” (SOUZA, 2003:17-18)
50
Após vencida a Via Ápia, chega-se ao “fim” da Rocinha. Esta rua termina em uma
marginal da Estrada Lagoa-Barra de onde já se avista São Conrado do outro lado
da rua. Neste momento, depara-se com um mundo muito agitado, a paisagem
parece estar fora de foco. O encontro entre a Rocinha e São Conrado é brusco e
barulhento. Avenidas se encontram e separam territórios, viadutos transpõem
caminhos, passarelas conectam lugares. Os carros passam rapidamente pela
Estrada Lagoa-Barra sumindo dentro do Túnel Zuzu Angel. A entrada para
passarela de pedestre, que atravessa a avenida, está sempre repleta de gente
passando rápido, sobre os velozes carros.
Do alto da passarela (n°2 mapa 02) vê-se de um lado a Rocinha: imponente,
subindo o morro por todos os lados. Do outro lado vê-se São Conrado. Mas não
São Conrado dos grandes e ricos condomínios verticais, o que se é uma rua
que ainda parece pertencer à Rocinha. Esta rua, uma marginal da Estrada Lagoa-
FIGURA 1.16 – Entre a Rocinha e São Conrado
Fotos: Danielle Klintowitz
51
Barra, é pequena, apenas uma rua de pedestre. Mas, apesar de pequena, tem
vários equipamentos públicos que servem à comunidade da Rocinha e tentam
timidamente estabelecer contato entre esta comunidade e a cidade do Rio de
Janeiro.
Ali, localiza-se o CIEP Airton Senna (n°3-mapa 02), cujos freqüentadores são, na
maioria, crianças da Rocinha, embora também receba alguns outros alunos da
região. Ao lado do CIEP, existe um campo de futebol, que foi, em um primeiro
momento implantado para servir as atividades esportivas da escola, mas acabou
FIGURA 1.17 – A Rocinha atravessa a rua
Fonte: CYPRIANO, 2005
Foto: André Cypriano
52
sendo, também, apropriado para o lazer da comunidade nos momentos em que
não tem atividades programadas. Dentro do campo de futebol, em um pequeno
barracão, está a sede da escola de surfe da Rocinha que funciona com apoio de
algumas ONGs e pretende, segundo seu diretor, desenvolver a relação dos
jovens da comunidade com um esporte muito praticado na cidade e,
principalmente, com a praia.
Passando o campo de futebol, está o Centro de Artes da Rocinha (n°4 - mapa
02), que se destina a vender obras de artistas e artesãos da comunidade para
pessoas de fora, na maioria estrangeiros, que participam do Tour Favela e que
têm neste centro sua parada final como normalmente acontece com os city tours
nas cidades turísticas. Encostada neste posto de recepção ao turista encontra-se
a nova quadra da Escola de Samba Acadêmicos da Rocinha (n°5 - mapa 02), que
por ter “descido o morro”, acabou se configurando como um dos poucos lugares
de lazer e entretenimento da região onde acontece o encontro entre os moradores
de São Conrado e os moradores da Rocinha. Ao lado da Escola de Samba foi
instalado, no edifício de um antigo hotel abandonado, o Centro de Cidadania da
Prefeitura Municipal (n°6 - mapa 02), onde funcionam postos de atendimento de
diferentes secretárias municipais, além de centros de capacitação, educação e
atendimento de saúde, destinados à comunidade da Rocinha. A praça existente
em frente a este edifício, projetada junto com a revitalização do edifício, é a única
praça que esta bem cuidada nas redondezas, mas como fica totalmente exposta
ao sol e seu projeto pre apenas o descanso em bancos de alvenaria, sua
freqüência é muito pequena, concentrando-se apenas nos intervalos entre as
aulas oferecidas no centro.
Este “pedaço” do bairro parece pertencer muito mais à Rocinha do que ao bairro
de São Conrado. Esta rua foi totalmente apropriada para as necessidades
cotidianas dos moradores da comunidade, com escola, campo de futebol, loja de
artesanato, Escola de Samba e centro de assistência social. Não sobraram muitos
serviços destinados aos moradores de São Conrado, apenas a Escola de Samba
em dias festivos, mesmo assim, trata-se da Acadêmicos da Rocinha e não de
uma suposta “Acadêmicos de São Conrado.” Com a expansão do território da
Rocinha a comunidade desta favela parece ter conquistado um pedaço de São
Conrado para si.
53
Ao ultrapassar a marginal da Estrada Lagoa-Barra e continuar o caminho pelas
ruas internas do bairro de São Conrado no entorno próximo à Rocinha o espaço
avistado pode causar, ao visitante, tanta surpresa quanto andar no interior da
favela. O espaço público nestas ruas parece ter sido completamente abandonado
por seus habitantes e pelo Poder Público. As calçadas são estreitas e estão
esburacadas; o canal que leva o esgoto da Rocinha para o mar passa a céu
aberto e cheira mal; as praças estão remexidas por máquinas que dia após dia
Figura 1.18 – Centro de Artes da Rocinha
Foto: Danielle Klintowitz
Figura 1.19 – Acadêmicos da Rocinha em São Conrado
Foto: Danielle Klintowitz
Figura 1.20 – Praça do Centro de Cidadania
Foto: Danielle Klintowitz
54
continuam paradas sem completar o trabalho começado, ao que parece, há muito
tempo.
37
Em qualquer dia da semana em que se ande em São Conrado, o se
vê quase ninguém nas ruas. As ruas foram esquecidas, abandonadas.
“Se considerarmos que as ruas representam, afinal, o mais
característico dos espaços comuns nas cidades, o que é mais
importante que praças, bosques, parques e quaisquer outros tipos
de logradouros, então teremos que a negação da rua é a negação
do urbano. (...) O problema não está na rua enquanto espaço
físico e sim na maneira pela qual é configurada socialmente. O
desaparecimento da diversidade, dos muitos olhos, dos contatos
personalizados em maior ou menos grau estão são os
verdadeiros fatores de desconfiguração. Fugir da rua
desconfigurada para se encerrar nas desejadas áreas de lazer, às
vezes menos seguras ainda, ou nos decantos e valorizados
condomínios exclusivos; suspirar pelas áreas verdes não são
senão modos de se alienar da problemática social do urbano.
(C.SANTOS,1985:101)
Este abandono causa maior estranheza ao se considerar que este bairro faz parte
da cidade do Rio de Janeiro, que sempre teve grande tradição de vivência do
espaço público. Em bairros como Copacabana, Ipanema e Leblon a qualquer hora
do dia pessoas nas ruas, nos bares que se abrem para fora, nas praças. O
espaço público é muito usado e apropriado nestes bairros da Zona Sul. A própria
configuração espacial dos edifícios, que ocupam quase que integralmente os lotes
e não têm áreas de lazer e convívio internas, acabam por “forçar” as pessoas a
saírem às ruas e às praças para realizar estas atividades de lazer.
O bairro de São Conrado teve seu boom imobiliário, no que pode-se chamar de a
segunda fase de expansão da Zona Sul, quando os bairros mais antigos, como
Copacabana, Ipanema, Leblon e Gávea estavam consolidados e, se configurou
espacialmente com um tecido urbano completamente distinto. Este bairro é
constituído basicamente por condomínios verticais fechados onde todas as
atividades esportivas e de lazer estão contempladas dentro do próprio lote
privado, o que leva os moradores a realizarem estas atividades intra-muros. Os
moradores destes condomínios não saem muito à rua, e por isso não a olham. O
Poder Público, por sua vez, também não se sente impelido a manter este espaço
37
Durante a primeira visita à campo observou-se que algumas praças no bairro de São Conrado estavam
sendo reformadas e seu terreno encontravam-se todos remexidos por máquinas. Em uma segunda visita à
campo, seis meses depois, encontrou-se as praças na mesma situação, ainda com as mesmas máquinas em
seus terrenos.
55
que foi abandonado por seus moradores. Paulo César da Costa Gomes analisa
que:
“Abandonados pelos poderes públicos e pela população que mais
efetivamente dispõem de meios de exercer e reclamar cidadania,
os espaços públicos se convertem em terra de ninguém, sem
regras de uso, perdem suas características fundamental, ou seja,
a de terreno de convivência, associação social, encontro entre
diferenças, ou em uma palavra, espaço democrático. Desgaste,
sujeira, desrespeito e invasões são, pois, algumas das
características freqüentes neste tipo de espaço, sem que isso de
fato gere uma reação efetiva da população.” (GOMES,2002:185)
As saídas diárias dos moradores dos condomínios são motivadas, quase
inteiramente, pelas relações com os lugares de trabalho. E como vão aos
escritórios de carro ou em ônibus particulares dos condomínios, não precisam
andar na rua, saem de carro de suas garagens e descem dos carros nas
garagens do escritório.
38
Ainda sobre esta questão Gomes afirma:
“O uso da via pública se restringe progressivamente ao seu valor
instrumental primário, a circulação. (...) devemos usar um
automóvel, que nos levará a um lugar preciso, onde,
habitualmente, reproduz-se a idéia de confinamento e segurança.
(...) As garagens são interiores, e a saída do veículo se faz por
meio de portas automáticas; dessa forma ao sair à rua, já estamos
devidamente protegidos por nossas carapaças privativas. As
grandes cidades devem, portanto, aumentar continuamente o
espaço de circulação dos carros particulares, em detrimento de
outros usos possíveis para o espaço público. (...) o uso do espaço
público se restringe, a área de sociabilidade tem uma pequena
extensão, procura-se, sempre que possível conviver com os
semelhantes, quando não os da família imediata, pelo menos
aqueles que mais se aproximam dos mesmos padrões e que se
refugiam, como quase todos, em espaços selecionados e
controlados(GOMES, 2002:183 -185)
38
Em pesquisa realizada sobre a dicotomia entre a favela e os condomínios fechados no Rio de Janeiro, a
socióloga francesa Caterine Reginensi (2004) cita um morador de um condomínio localizado em São
Conrado que fala sobre sua mobilidade na cidade e, a pesar de considerar uma “desvantagem” não sair à
rua, não muda seus hábitos: Isso aqui é uma utopia de vida (...) Eu acho que a desvantagem é que vo
acaba não conhecendo a rua mais, você não sai mais daqui e fica isolado do universo fora, para os
filhos é até um pouco prejudicial que eles tem uma visão um pouco errada, distorcida do que es
acontecendo fora. E cada vez mais com a insegurança a gente está se voltando cada vez mais para
dentro.
56
Curiosamente, enquanto se caminha pelas ruas desertas de São Conrado, pode-
se ouvir carros de som que anunciam os próximos eventos que ocorrerão na
Rocinha convidando todos os moradores do bairro vizinho a comparecerem. Este
fato demonstra que além de entender que São Conrado faz, de certo modo, parte
também de seus domínios territoriais, a Rocinha ainda convida seus moradores
para subir o morro e visitar seu território. Enquanto São Conrado cada vez se
fecha mais em seus muros, a Rocinha alarga seu território.
Os moradores de São Conrado também não costumam ir à praia em São
Conrado, pois afirmam ser poluída. Os moradores dos condomínios costumam
pegar seus carros para irem às praias mais afastadas na Zona Oeste da cidade.
Assim como as ruas, a praia de São Conrado também foi abandonada.
39
Mas o
que terá vindo primeiro a poluição da praia que recebe todo “esgoto” da Rocinha,
39
Ver GOMES: 2003.
FIGURA 1.21 – Espaços públicos de São Conrado: Vazios e mal cuidados
Fotos: Danielle Klintowitz
57
ou o abandono deste espaço pela classe alta que passou a não se importar com
despejo de dejetos naquele mar que não considerava mais seu?
Os moradores da Rocinha, por outro lado, utilizam muito a praia de o Conrado
que é conhecida por eles como a “Praia da Rocinha”.
Esta praia foi primeiramente denominada como “Praia da Gávea”, depois se
tornou a “Praia de São Conrado”, hoje é a “Praia da Rocinha”. Esta sucessão de
nomes que a mesma praia foi recebendo com o passar do tempo representa
claramente os diferentes tempos de apropriação que teve. A paisagem desta
região da cidade foi intensamente modificada desde a primeira metade do séc XX,
quando começou a ser ocupada e esta dinâmica de tempos acumulados,
40
que
continua ocorrendo até os dias atuais, foi trazendo novas vivências, apropriações
e sociabilidades às áreas desta praia que se encerra entre o Morro Dois Irmãos e
a Pedra da Gávea, ao mesmo tempo em que, dialeticamente, trazia e produzia
novos tempos, novas paisagens e novas formas espaciais.
41
“Para as crianças e adultos da Rocinha, como para qualquer outro
morador da cidade, a praia, o morro e o espaço construído com
casas e becos fazem parte de um todo indivisível, apropriado e
compreendido como território deles. (...) A praia, oficialmente
chamada São Conrado, passa a ser para eles a praia da Rocinha.
Neste momento percebemos que o bairro de São Conrado, que se
constitui morfologicamente como um espaço entre a Rocinha e a
praia, tem significado tênue, ou não é reconhecido pelos
moradores da Rocinha. (...) A questão que nos pareceu mais
relevante para a reprodução do sentimento de posse da praia
pelos moradores é o fato de a Rocinha existir a mais tempo e ser
muito mais densamente povoada, desde o inicio dos anos 1920,
criando no morador da favela uma relação de domínio do território,
que para ele é legitimado pelo tempo de moradia e de
enraizamento de seus ancestrais naquele lugar várias
gerações. Esse ponto de vista não é compartilhado pelo
moradores de classe média alta de São Conrado, mas é suficiente
40
Para Milton Santos: “A paisagem existe, através de suas formas, criadas em momentos históricos
diferentes, porém coexistindo no momento atual. No espaço, as formas de que se compõem a paisagem
preenchem, no momento atual, uma função atual, como resposta às necessidades atuais da sociedade.
Tais
formas nasceram sob diferentes necessidades, emanaram de sociedades sucessivas, mas só as formas mais
recentes correspondem a determinações da sociedade atual.” (M.SANTOS,1996:86). E ainda: A paisagem
humana é uma combinação de vários tempos presentes” (REBORATTI, 1993:17 Apud M.SANTOS:1996).
41
Aqui, usa-se o conceito de espaço contido na teoria de Milton Santos que descreve: O espaço é formado
por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações,
não considerados isoladamente, mas como um quadro único no qual a história se dá. (M.SANTOS,
1996:51), sendo, por isso, imprescindível a concepção de uma analise espacial concebida como um diálogo
permanente entre a morfologia e as práticas sociais ou comportamentos.Onde os sentidos e significações
da organização do espaço são sempre tributários de um universo relacional: da relação entre as coisas
espacialmente distribuídas, da relação entre essas coisas e as práticas que têm lugar, dos lugares com as
coisas, e assim sucessivamente.” (GOMES, 2002: 290)
58
para o habitante da Rocinha compreender a praia como sendo seu
território.” (COELHO, 2007: 192-195)
Mas apesar de os moradores da Rocinha considerarem como sua, quem sai da
comunidade para ir à praia precisa atravessar muitos obstáculos. Depois de
atravessar a engarrafada passarela é preciso atravessar o emaranhado de ruas
que se formam em frente à Rocinha e compõem a circulação entre a Zona Sul e a
Zona Oeste do Rio de Janeiro. Estas avenidas são congestionadas e seus faróis
de trânsitos, quando existem, são mais rápidos do que o tempo do pedestre.
Vencido este primeiro cruzamento é preciso caminhar ao lado do sombrio Hotel
Nacional.
(n°7- mapa 02) O imponente edifício do Hotel Nacional, que está
abandonado, tem lixo acumulado em seu entorno e dá, para o pedestre que
atravessa por baixo de sua laje para ir em direção à praia, uma sensação de
insegurança constante.
42
Em alguns momentos caminhar pelas ruas internas de o Conrado pode causar
maior sensação de insegurança do que caminhar pelas vielas da comunidade da
Rocinha. Como os espaços públicos deste bairro estão vazios, mal cuidados e
ainda não têm policiamento visível, parecem “terra de ninguém”, onde pode
acontecer qualquer coisa. As ruas da Rocinha, por outro lado, estão sempre
repletas de gente, “vigiando” a rua. De certa forma, retirar-se da rua por uma
sensação de insegurança, traz à rua uma insegurança real. Carlos Nelson do
Santos (1985:91) afirma que: Muitos olhos podem garantir a segurança de uma
rua. Muitos olhos vigilantes asseguram que nada passará despercebido.”
Depois de ultrapassada a laje sob o hotel a praia pode ser avistada, mas ainda
falta uma avenida a atravessar. É a Av. Niemeyer (n°8 - mapa 02), que também
faz a ligação entre a Zona Sul e a Zona Oeste e, que por ser uma via expressa,
tem sempre carros e ônibus passando rapidamente e querendo virar justamente
42
O Hotel Nacional foi projetado por Oscar Niemeyer em 1971 e seus jardins por Burle Marx para ser um
hotel de altíssimo luxo, mas na década de 80 começou a entrar em decadência e aos poucos foi sendo
desativado. Nos anos 90, fechou de vez e agora está completamente abandonado. Houve alguns projetos de
reativação e de leiloá-lo, mas nenhuma destas tentativas se concretizou e o edifício continua pouco a pouco
se deteriorando, piorando a qualidade do espaço público do seu entorno.
59
na esquina onde desemboca nosso percurso e, por isso, fica cheia de pedestres
querendo atravessar para chegar a praia. Existe um farol para pedestres nesta
via, mas fica a mais ou menos 1KM deste ponto, em frente ao Hotel
Intercontinental (n°9 - mapa 02), único hotel que ainda sobrevive em São
Conrado.
Entre o Hotel Intercontinental e o Hotel Nacional, configura-se uma generosa
praça (n°10 - mapa 02), bem cuidada, com banquinhos sombreados por
frondosas árvores e imensos seguranças que vigiam e inibem qualquer desejo de
se sentar. Esta praça, como era de se imaginar, está sempre vazia.
FIGURA 1.23 - Farol se localiza apenas onde o fluxo de carros e pedestre é menor
Fotos: Danielle Klintowitz
FIGURA 1.22 - Passagens sob o Hotel nacional
Fotos: Danielle Klintowitz
60
Na praia (n°11 - mapa 02), apesar de seu bonito mobiliário urbano, com ciclovia e
um generoso calçadão, não se quase ninguém caminhando, como é
costumeiro na cidade. As poucas pessoas que se avistam parecem ser
estrangeiros, provavelmente hospedadas no hotel sem saber que estão ao lado
da “Maior Favela da América Latina”.
Na areia, os moradores da Rocinha jogam vôlei, tomam sol, aprendem a surfar e
passam seus sábados e domingos como os outros cariocas. Territorializam o
espaço segundo “classes sociais” e de afinidade, reproduzindo a dinâmica que
existe nas outras praias da Zona Sul carioca, onde cada “pedaço” da praia é
ocupado por uma tribo diferente. As traves de vôlei do último campeonato da
Rocinha continuam testemunhando a apropriação deste espaço pela
comunidade que chama a praia de sua. Paulo César da Costa Gomes explica a
importância da apropriação da praia no imaginário carioca:
“No caso do Rio de Janeiro, nada é mais característico como
espaço do “carioquismo” do que as praias da Zona Sul da cidade.
Nas praias se inscreve o estilo de vida do habitante da cidade.
Nelas, que são uma das imagens picturais mais fortes do Rio de
Janeiro, são lançadas as novas modas, as novas rias, onde o
carioquismo é mais característico , ou seja, a praia serve como um
poderoso referencial na definição do estilo de vida, caricaturizado,
é claro, da cidade. (...) a praia embora não seja dentro da
dinâmica carioca um local primariamente identificado com a idéia
de direito e deveres de um cidadão, funciona indiretamente como
o local que indica, pela freqüência, o acesso a esse exercício. (...)
Esses grupos que se auto-organizam sobre a areia, revivem
algumas fraturas e composições sociais sobre um espaço urbano
valorizado, ganham publicidade e o reconhecimento, na medida
em que se estabelecem sobre um espaço público de primeira
ordem.” (GOMES, 2002: 213 - 227)
O avanço da população da Rocinha em direção a apropriação da praia, que
tem o seu nome, é um avanço em direção ao exercício da cidadania e de tomada
da cidade, no sentindo de sentir-se pertencente a ela. A população da Rocinha,
por intermédio da apropriação da praia, sente-se inserida na cidade, como uma
população que também vive à beira mar e assim incluída entre os moradores da
Zona Sul carioca.
61
Figura 1.24 – Rocinha, São Conrado e a praia
Fonte: www.panorania.com
Figura 1.25 – Praia da Rocinha
Fotos: Danielle Klintowitz
62
Da mesma forma, o movimento de retirada da população de São Conrado da
mesma praia, assim como o abandono das ruas, representa o abandono da
cidade, o abandono do exercício da cidadania. Estas pessoas estão se retirando
da cidade para viverem isoladas em seus mundos fechados e, com isso, perdem
a riqueza essencial da cidade que é o encontro.
No período anterior ao carnaval, a avenida da praia vira uma grande passarela do
samba onde o morro encontra-se com o asfalto para participar dos ensaios
técnicos da Escola de Samba Acadêmicos da Rocinha. Durante dois meses, toda
quinta-feira, a Escola desfila na praia, reafirmando que trata-se mesmo da “Praia
da Rocinha”. Apesar de alguns relatos de moradores revelarem que mais de uma
vez este ensaio técnico foi interrompido por falta de luz no calçadão da praia, esta
Escola parece tentar sempre trabalhar no sentido de unir as duas comunidades
que a compõe: o “Morro da Rocinha” e o “Asfalto de São Conrado”. Seu enredo
de 2005, que se chamava “Um mundo sem fronteiras” demonstrava claramente
este desejo de união que se espacializa através destes ensaios na praia.
Figura 1.26 – Ensaio técnico da Acadêmicos da Rocinha na “Praia da Rocinha”
Fonte: http://www.academicosdarocinha.com.br/galeria.html
Fotos : Alexandre Vidal
63
Neste passeio por São Conrado, percebe-se claramente que os espaços públicos
se encontram abandonados para o “uso dos pobres”, perdendo a possibilidade do
encontro. Gomes analisa esta questão nas cidades contemporâneas:
“Em conseqüência do abandono dos espaços blicos comuns e
dessa recusa em compartilhar um território coletivo de vida social,
surge o fenômeno da ocupação dos espaços públicos por aqueles
que, não tendo meios para reproduzir privadamente esse estilo de
vida, estão condenados a desfilar sua condição por esse espaço:
os pobres.” (GOMES, 2002:184 -185)
Assim, progressivamente o território da Rocinha vai se espalhando por São
Conrado. Como o espaço público foi abandonado pelos moradores do bairro, os
vizinhos da favela vão apropriando-se dele para suas atividades cotidianas, na
praia, nas praças, nos informativos do carro de som. O território da favela
expande-se pelo território formal que parece ter sido abandonado e vai
modificando-o suas formas e vivências. Como verdadeiras “fronteiras vivas” “que
fomentam a interação social e o surgimento de uma nova cultura a partir das
subculturas divididas pelas barreiras e trincheiras.” (SILVA, 2006:36)
FOTO AÉREA PERCURSO SÃO CONRADO -MAPA
02
1
1
7
8
10
11
11
12
12
14
14
13
2
2
8
9
3
3
4
9
10
4
5
5
6
6
7
ViaÁpia
HotelNacional
Passarela
Av.Niemeyer
“PraiadaRocinha”
CampodeFutebol/EscoladeSurf
HotelIntercontinental
GolfClub
ShoppingFashionMall
CentrodeArtesdaRocinha
QuadraAcadêmicosRocinha
CentrodeCidadania
PçaHotelIntercontinental
CIEPAirtonSenna
13
FONTE :GOOGLE EARTH,2007
INTERPRETAÇÃO:DANIELLE KLINTOWITZ
N
1.3.3
1.3.31.3.3
1.3.3 E
EE
E
NTRE A
NTRE A NTRE A
NTRE A
G
GG
G
ÁVEA E
ÁVEA E ÁVEA E
ÁVEA E
S
SS
S
ÃO
ÃO ÃO
ÃO
C
CC
C
ONRADO
ONRADOONRADO
ONRADO
A dicotomia São Conrado/Rocinha é mais falada, mais lembrada, mais presente
no imaginário da população da cidade do Rio de Janeiro do que a relação
Gávea/Rocinha. Isso ocorre por vários motivos, em primeiro lugar porque o
contraste da fronteira entre São Conrado e Rocinha se expressa visualmente com
mais clareza, está mais a mostra, apesar de não ser verdadeiramente mais
expressivo. A passagem de um universo para outro é mais brusca, uma auto-
estrada separa os dois territórios, enquanto a Gávea aproxima-se mansamente
dos limites imprecisos da Rocinha, seguindo a mesma avenida ladeada pela
floresta. Este caminho é mais urbano, menos rodoviário; mais humano, menos
desigual e suas fronteiras mais suaves e diluídas.
A Rocinha demorou mais para se debruçar sobre a vea, sua expansão
privilegiou primeiro a descida para beira mar, para então entrar mata a dentro.
Este fato observa-se também na relação entre a população da comunidade com a
praia e com a floresta. A praia é apropriada, muito freqüentada, é a “Praia da
Rocinha”, enquanto que a Floresta é apenas respeitada, seu limite está
claramente delimitado pelos muros do eco-limite e sua visitação não é tão intensa.
A floresta, tem difícil acesso e sua transposição é difícil, por isso estabelece não
estabelece intensa relação com os moradores da Rocinha. Outro fato que
desmobiliza a população em relação à floresta é que nos momentos em que
existem conflitos envolvendo o tráfico de drogas, a mata converte-se em um
“espaço proibido”, por ser utilizada por esta organização e pela polícia como lugar
de esconderijo e de conflito armado. (COELHO,2007:192) Assim,embora alguns
moradores a usem para extrair recursos naturais para consumo próprio ou venda
em feiras como forma de geração de renda, outros penetrem na mata em busca
de trilhas e aventuras ecológicas, além de algumas crianças que a exploram em
suas brincadeiras (COELHO,2007:191), no cotidiano, a favela da Rocinha olha
mais em direção ao mar do que à floresta.
66
A separação Morro-Asfalto é flagrante, expressa-se claramente até na topografia
que separa o “Morro da Rocinha” da “Cidade de São Conrado”. Já na Gávea, sua
topografia se confunde com a da Rocinha, suas casas também sobem, mesmo
que suavemente, pelos morros do Maciço da Tijuca.
A Gávea ainda representa o universo urbano de um Rio antigo e mitificado. Um
Rio de Janeiro que se abria para o espaço público, um Rio de Janeiro onde se
andava na rua, um Rio de Janeiro que recriou o significado do encontro,
transformando-o em arte. São Conrado representa um novo Rio. Um Rio de
Janeiro que se fecha para o universo público, um Rio de Janeiro aonde não se vai
mais a praia, um Rio de Janeiro que não reconhece a rua como sua, um Rio de
Janeiro que esqueceu como encontrar-se.
F
IGURA
1.
27
G
ÁVEA
,
R
OCINHA
,
S
ÃO
C
ONRADO
Fonte: ZALIS, 2005
Foto:
Sérgio Zalis
67
“Na calçada realiza-se o universal, o encontro com o outro,do
diferente cujo ser sentido à democracia, por isso mesmo nosso
desafio cotidiano. Aí, talvez se entenda porque André Breton diz
que a rua é o único campo de experiência válido. Fora dos
espaços fechados e de nossos iguais, dos valores de grupo, na
rua, somos submetidos ao encontro do lugar e da experiência que
realmente realizam nosso sentido coletivo ou, na pior das
hipóteses, funcionam como cartilha. Nela sem identidade, somos
frágeis, por isso merecedores de uma ordem que nos proteja. Mas
sair pela porta da frente transforma em risco o que poderia ser
uma reinvenção da flanação, fazendo da cidade o lugar do medo,
ao invés de tradicional lugar do encontro e de trocas. (YAGIZI:
2000:24-25)
Então, apesar de muito distante, a Gávea ainda parece mais pròxima à Rocinha
do que São Conrado, onde os muros dos “enclases segregados” expressam
claramente a vontade de separa-se da Rocinha e do resto da cidade.
CAPÍTULO 02
PLANETA ROCINHA
“Falemdemimoquequiserfalar
Aquieunãopagoaluguel
Seeumorreramanhãseudoutor,
Estoupertinhodocéu.”
ZéKeti
2.1.
2.1.2.1.
2.1.
EXISTÊNCIA SÓCIO
EXISTÊNCIA SÓCIOEXISTÊNCIA SÓCIO
EXISTÊNCIA SÓCIO-
--
-TERRITORIAL DA ROCINHA
TERRITORIAL DA ROCINHATERRITORIAL DA ROCINHA
TERRITORIAL DA ROCINHA
2.1.1
2.1.12.1.1
2.1.1 I
II
I
NSERÇÃO
NSERÇÃO NSERÇÃO
NSERÇÃO
M
MM
M
ETROPOLITANA
ETROPOLITANAETROPOLITANA
ETROPOLITANA
A Rocinha localiza-se na Zona Sul do Rio de Janeiro, entre a Gávea e o
Conrado, bairros habitados por populações com alto padrão econômico.
É delimitada, na região sul de seu território, pela auto-estrada Lagoa-Barra (RJ-
071), que a separa de São Conrado; a noroeste, na parte de cima do morro, está
limitada pela mata do Parque Nacional da Tijuca e, do lado oposto, a nordeste,
pela Estrada da Gávea, que a separa e a conecta à Gávea.
A Rocinha e São Conrado, últimos bairros da Zona Sul carioca, estão separados
do Leblon pelo Morro Dois Irmãos. Os dois principais caminhos que conectam a
Zona Sul à Zona Oeste, nova fronteira de expansão da cidade, onde se localiza a
Barra da Tijuca e o Recreio dos Bandeirantes, passam por estes bairros: A Av.
Niemeyer sai do Leblon beirando o mar até São Conrado e a Estrada Lagoa-
Barra, sai de Ipanema e passa pelo Túnel Zuzu Angel, sob a Rocinha, dando
acesso a São Conrado.
F
igura 2.
1
- Vista do Rio de Janeiro com localização da Rocinha
Fonte: Google Earth, 2007
Interpretação: Danielle Klintowitz
69
Segundo o CENSO/2000,IBGE, a favela da Rocinha
tem uma área territorial de
143,72 ha, sendo que 66,80 % (96 ha) desta área está acima da cota 100 m, onde
não é permitido construir por ser uma área de preservação
43
.
O sítio que ocupa tem forma de concha, tendo uma parte plana onde se encontra
seu núcleo central junto à entrada do Túnel Dois Irmãos, desenvolvendo-se, em
seguida, por terrenos de grande declividade até o alto do morro. Da parte mais
baixa, na região próxima a São Conrado, localizada a uma altitude de 10 m acima
do nível do mar, à parte mais alta na divisa com a Floresta da Tijuca, no
Labouriaux, localizada a uma altitude de 315 metros acima do nível do mar,
desenvolve-se um desnível de aproximadamente 300m. Na outra vertente do
território, onde os setores estão implantados sobre os afloramentos rochosos do
Morro Dois Irmãos, chega-se a uma cota de 476m, com desnível de mais de
450m até a parte mais baixa da Rocinha.
43
O Decreto 322 de 1976, que aprovou o Regulamento do Zoneamento do Município do Rio de Janeiro,
no Cap. IX, Seção 1, que trata da Zona Especial ZE-1, vem limitar a ocupação nas áreas do Parque Nacional
da Tijuca, considerando non aedificandi as áreas que estão acima da curva de nível de 100 m. Com base
neste decreto, após a sua publicação, fica proibida qualquer construção acima da cota 100m.”
(FRANCISCO:1995, p.141)
Figura 2.
2
– Topografia Rocinha – Maciço da TIjuca
Fonte: MARTOLIO, Edgar de. O Rio de Janeiro Visto do Céu, Editora Caras / Danielle Klintowitz
525
05
45
85
125
165
205
245
285
325
365
405
445
485
ALTIMETRIA
METROS
0
100m
200m
500m
MAPA03-HIPSOMETRIA
DESENHO:DanielleKlintowitz,2007
N
71
A Rocinha está implantada na vertente sul do Maciço da Tijuca, em uma região
com características de fragilidades físicas em virtude das altas declividades e alta
índice pluviométrico.
44
Ocupa, ainda, um trecho da encosta do Morro Dois Irmãos
que faz parte da área de preservação do Parque Nacional da Tijuca
45
e do
Parque Municipal Penhasco Dois Irmãos
46
.
O Maciço da Tijuca
47
representa uma importante área de lazer e recreação para a
população carioca, pois compreende inúmeros parques públicos, equipamentos
de lazer e turismo da cidade. Dentre eles pode-se destacar: o Parque da Cidade,
a Floresta da Tijuca, o Corcovado e a Vista Chinesa.
(
PETROBRÁS AMBIENTAL,
2005) Apesar, de grande parte da área florestada do Maciço da Tijuca estar
protegida por lei, que o parque abrange mais de 50% de sua área, a Floresta
da Tijuca
48
encontra-se extremamente ameaçada por estar situada em uma região
do maciço que sofre grande pressão da expansão da cidade, o que acaba
expondo-a aos diversos problemas advindos da expansão urbana da cidade.
49
(FRANCISCO: 1995)
44
Na área do Maciço da Tijuca, existem 63 nascentes que abastecem uma parcela significativada população
da cidade. (PREFEITURA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO, 2001)
45
O Parque Nacional da Tijuca, criado em 1961, é o único parque nacional do Brasil que se localiza em área
urbana, sendo considerado o maior parque urbano do mundo. Em 1991, foi declarado Reserva Mundial da
Biosfera pela UNESCO, em reconhecimento à sua importância de acervo natural para o ecossistema
mundial. A massa florestada, existente no parque e nas áreas que o circundam, desempenha o papel de
redutor da poluição e de amenizador do clima da cidade, além de contribuir para a conservação das encostas
do Maciço da Tijuca. (SECRETARIA MUNICIPAL DE MEIO AMBIENTE: 1998)
46
O Parque Municipal Penhasco Dois Irmãos integra o patrimônio paisagístico da cidade sujeito a proteção
ambiental, tendo sido tombado pela União em 1973. Em 1992, por demanda dos moradores vizinhos, foi
criado o Parque Municipal Penhasco Dois Irmãos, através do remembramento de vários lotes que haviam
sido doados ao Município. Apesar de criado em 1992, o parque ainda não foi efetivamente implantado, mas
se pretende que seja, no futuro, mais uma opção de lazer e turismo da região. (SECRETARIA MUNICIPAL
DE MEIO AMBIENTE: 1998)
47
Mapa 03
48
Esta floresta foi devastada para dar lugar a diferentes lavouras, principalmente de café, prejudicando as
nascentes dos rios e conseqüentemente o abastecimento de água da cidade. Em virtude deste
desmatamento, a floresta existente hoje em dia não é original, ela é fruto de um longo processo de
reflorestamento, realizado durante a segunda metade do séc. XIX, com objetivo de recuperar os principais
mananciais de água que abasteciam a cidade. (SECRETARIA MUNICIPAL DE MEIO AMBIENTE: 1998)
49
Ao se analisar a imagem de satélite - SPOT de 1991 - da cidade, verifica-se que a floresta localizada
apresenta uma situação insular, e encontra-se rodeada pela cidade que cresce por suas encostas,
principalmente, as voltadas para as zonas norte e sul da cidade. Porém, como os limites do parque excluem
as áreas mais degradadas, além das linhas divisórias estarem situadas em altitudes elevadas em alguns
trechos a expansão das favelas para o interior do Parque Nacional da Tijuca é dificultada.(PETROBRÁS
AMBIENTAL, 2005:149)
72
As favelas representam uma importante parcela da ocupação do Maciço da
Tijuca, ocupando 4,6% de sua área total. Além da Rocinha, mais outras 50
favelas situam-se no entorno do Parque Nacional da Tijuca.
O progressivo
desmatamento do maciço preocupa especialistas, porque pode ocasionar o
aumento do escoamento superficial nas encostas no período de fortes chuvas, o
que, por sua vez, agravaria a intensidade e a freqüência das inundações na
cidade, pois a floresta presente nestas encostas desempenha um importante
papel de reservatório das águas das chuvas na região. (FRANCISCO: 1995)
O terreno da Rocinha apresenta algumas áreas com grande risco de erosão,
principalmente no limite com o Parque Nacional da Tijuca. A concentração dos
deslizamentos nestas áreas está intimamente relacionada com o aumento de
cortes para construção de barracos e outros tipos de interferências, que se
intensificam bastante para possibilitar a instalação de novas habitações
.
“A dinâmica de ocupação da comunidade da Rocinha, ocorreu próxima a
afloramentos rochosos onde a declividade é mais acentuada. Dessa
forma, a declividade aliada à composição de macegas são condicionantes
que explicam a alta concentração de cicatrizes erosivas no entorno desta
favela.” (MENDES & SIMÕES & RIBEIRO & CARNEIRO: 2001)
Segundo FERNANDES & LAGÜÉNS & NETTO (1999) Um exemplo significativo
foi o que ocorreu no setor 4, onde está a favela da Rocinha, no período de 1951-
1970, houve 1 ocorrência, e no período de 1971-1991, ocorreram 13
deslizamentos.Embora a atuação das favelas no avanço da malha urbana sobre
a Floresta da Tijuca seja de fundamental relevância, no setor 4 do maciço onde
está a Rocinha, ainda que o avanço das favelas também seja alto, a área das
favelas não é tão expressiva no âmbito geral do território urbanizado; o que
prevalece mais significativamente é, na verdade, o avanço, em direção ao maciço,
de construções de classe média e alta.
LAGOA
LEBLON
IPANEMA
BOTAFOGO
COPACABANA
ATERRO DO
FLAMENGO
CENTRO
MARACANÃ
GÁVEA
SÃO CONRADO
PQ NACIONAL
DA
TIJUCA
VISTA CHINESA
PEDRA DA GÁVEA
BAIXADA FLUMINENSE
CORCOVADO
VIDIGAL
ROCINHA
SISTEMA PÚBLICO DE CALÇADÕES E CICLOVIAS
EQUIPAMENTOS PÚBLICOS DE RECREAÇÃO E LAZER
MACIÇO DA TIJUCA (PROTEÇÃO AMBIENTAL)
BARRA DA TIJUCA
PONTOS TURÍSTICOS
PQ DA CIDADE
MAPA04-INSERÇÃOMETROPOLITANA
FONTE:GogleeEath,2006
INTERPRETAÇÃO:DanielleKlintowitz
N
2.2.2
2.2.22.2.2
2.2.2 A
AA
A
POPULAÇÃO E SUA VID
POPULAÇÃO E SUA VID POPULAÇÃO E SUA VID
POPULAÇÃO E SUA VIDA
AA
A
A localização privilegiada da Rocinha, incrustada na Zona Sul carioca, foi de
grande importância para seu crescimento vertiginoso que a transformou na maior
favela da América do Sul, chegando ao ano de 2000 à cerca de 130.000 mil
habitantes.
50
A taxa de crescimento da Rocinha tem variado nos últimos 20 anos, mas mostra-
se sempre alta. Nos últimos vinte anos, a população da Rocinha praticamente
triplicou. Apesar, de atualmente ser menos acelerado, o aumento populacional
constante, de 1996 a 2000 fez com que sua população crescesse quase 24%
apenas em 04 anos. (Secretaria Municipal de Urbanismo, Rio de Janeiro, 2004)
Atualmente seu crescimento tem se dado com a verticalização das construções,
quase não expandindo mais o território horizontalmente, que “encosta” nos
bairros vizinhos.
51
Seu crescimento populacional, revelado no último censo,
merece destaque pelo expressivo aumento de 31,3% no período 1991 e 2000,
contrariando a tendência da maioria do outros bairros da cidade que obtiveram
crescimento populacional negativo. Apesar do grande crescimento populacional,
seu IDH (índice de desenvolvimento humano) teve uma variação positiva
mudando de 0,678 em 1991 para 0,735 em 2000, o que revela um crescimento de
50
Segundo os dados oficiais do
Censo de 2000/IBGE a Rocinha teria uma população de 56.338 habitantes.
Mas no mesmo ano a LIGHT (companhia de energia elétrica do Estado do Rio de Janeiro), em conjunto com
lideranças locais, realizaram outra pesquisa que obteve como resultado o número de 130.000 habitantes,
dado que é considerado mais próximo da realidade, inclusive pelo Governo do Estado e Prefeitura da cidade
do Rio de Janeiro. (SECRETARIA DE ESTADO DO MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO URBANO DO
RIO DE JANEIRO, 2005.) O líder comunitário Carlos Roberto da Silva Costa descreve a circunstâncias sob
as quais foram realizadas as pesquisas do Censo 2000 na Rocinha: Acontece que o IBGE considerou
encerrado o trabalho na Rocinha, mas em parte da rua 4 o censo 2000 não passou (...) Antigamente, os
mapas do recenseador tinham uma descrição: “Vai do beco tal, dobra na birosca tal...”Agora não, só consta o
nome da rua: Rua D, rua 4. Como o recenseador não tinha a descrição, não foi. Pior ainda, nesse censo o
IBGE tirou as duas meninas da Rocinha que supervisionavam o censo aqui e escolheu duas de Copacabana
para trabalhar na Rocinha. E por ai vai. Como é que vou dar credibilidade às informações que eles estão
colhendo? (...) Nós fizemos um projeto por área e enviamos seis agentes de porta em porta .” (PANDOLFi &
GRYNSZPAN: 2003: 89-90)
51
O limite ximo de pavimentos permitido na Rocinha, estabelecido na criação da XXVII RA ROCINHA
(lei n. 1995 de 18 de junho de 1993), é de 03 andares, mas esta regra não é cumprida e, muito menos
fiscalizada pelo poder público, o que tem permitido a continuidade do crescimento vertical. Recentemente foi
denunciado no jornal O Globo (Rio de Janeiro, 28 de setembro de 2005) a existência de um edifício de 11
andares com 56 apartamentos, nascido sem que a Prefeitura Municipal se desse conta.
75
8,4% deste índice, o maior crescimento da AP2
52
que inclui entre outros bairros,
São Conrado e a Gávea. Ainda assim, não houve alteração em sua posição (29
o
.)
entre os bairros da região metropolitana. A Gávea, bairro vizinho à Rocinha, tem o
maior IDH da cidade, enquanto que a Rocinha tem o quarto pior. A renda per
capta da Gávea é, ainda, 10 vezes maior do que a da Rocinha.
(IPP,2003)
A densidade populacional estimada na Rocinha é de 904,55 hab/ha, o que
representa uma densidade quase 3 vezes maior do que a densidade do Município
do Rio de Janeiro (336,60 hab/ha) e 13 vezes maior do que a densidade da RA
Lagoa, onde estão inseridos os bairros de São Conrado e da Gávea,
(76,70hab/ha).
53
ROCINHA
ROCINHAROCINHA
ROCINHA
GÁVEA
GÁVEAGÁVEA
GÁVEA
SÃO CONRADO
SÃO CONRADOSÃO CONRADO
SÃO CONRADO
ÁREA
ÁREAÁREA
ÁREA
143,72 ha 257,96 ha
648,86 ha
POPUL
POPULPOPUL
POPULAÇÃO
AÇÃOAÇÃO
AÇÃO
Censo/2000 - 50.200 hab
Ligth/2000 - 130.000 hab
Censo/2000 - 7.475 hab Censo/2000 - 11.155 hab
DENSIDADE
DENSIDADEDENSIDADE
DENSIDADE
Censo/2000 - 349, 29 hab/ha
Ligth/2000 - 904,53 hab/ha
67,74 hab/ha
Censo – 5 x menor
Ligth – 13 x menos
17,20 hab/ha
Censo – 20 x menor
Ligth – 53 x menos
IDH
IDHIDH
IDH
0,735
(29° lugar em 31 no RJ)
0,924
(1° lugar no RJ)
0,873
54
T
TT
T
AXA DE CRESCIMENTO
AXA DE CRESCIMENTO AXA DE CRESCIMENTO
AXA DE CRESCIMENTO
POPULACIONAL
POPULACIONALPOPULACIONAL
POPULACIONAL
-
--
-2001
20012001
2001
1,6% 0, 2 % 0, 2 %
52
O Município do Rio de Janeiro é dividido 05 Áreas de Planejamento (AP), que por sus vez são subdivididos
em 34 Regiões Administrativas (RA). (Mapa de áreas de planejamento e regiões administrativas, IPP, 2005)
53
A densidade de 904,55 hab/ha RA Rocinha foi calculada baseada nos dados não oficiais, do censo da
Light que afirma que a população da Rocinha é de 130.000 habitantes. Segundo os dados oficiais de 2006,
sua população é de 64.213 habitantes, o que resulta em uma densidade de 446,80 hab/ha; sendo mesmo
assim, ainda 6 vezes maior do a densidade da RA Lagoa. (Secretaria Municipal de Transportes - Plano
Diretor de Transporte Urbano da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, 2005.)
54
O IDH de São Conrado não é representativo para o bairro, porque na análise foi incluída também a região
da favela do Vidigal, o que fez com que o índice baixasse.
Tabela 2.1 – Comparação entre densidades da Rocinha, Gávea e São Conrado.
Fonte: Instituto
Pereira Passos.
Interpretação: Danielle Klintowitz
76
A população da Rocinha é composta por 49,24% de mulheres e 50,75% de
homens; e 98,50% desta população mora em domicílio permanente, sendo que
73,97% destes domicílios é constituído por casas, 21,58% por apartamentos e
04,44% são cômodos. A maioria (72,20%) dos domicílios é própria e apenas
26,42% é alugado. A densidade domiciliar observada na Rocinha não é muito alta
e compõem-se da seguinte maneira: 48,44% dos domicílios têm de 2 a 3
pessoas, 30,93% têm de 4 a 5 pessoas e apenas 08,95% dos domicílios têm mais
de 5 habitantes.
55
Em média cada domicílio tem apenas 1,08 banheiros.
(FGV,2004)
O maior grupo etário existente na Rocinha é de pessoas entre 20 e 24 anos
(12,12%); o número de crianças também é muito significativo, sendo 28,80% que
de sua população é constituída por crianças de 0 a 14 anos e; como aponta os
índices de longevidade, presentes na análise do IDH da cidade, o número de
pessoas idosas é baixo com apenas 6,5% da população acima de 50 anos, ou
seja, a maior concentração populacional se encontra entre jovens e crianças. A
idade média da população é de 26,02 anos. (FGV,2004)
Quanto à escolaridade, na Rocinha a maior porcentagem está entre as pessoas
que tem de 4 a 7 anos de estudos (31,75%), sendo que em segundo lugar se
encontram os que não têm estudo nenhum (27,07%). Tem, ainda, uma taxa de
13,11% de analfabetismo dentre sua população, o que a coloca em 3
o
. lugar no
ranking de analfabetismo entre as regiões administrativas em na região
metropolitana do Rio de Janeiro. (IPP, 2002)
“Obteve [a Rocinha] o menor IDH-Educação da Cidade, 0,818. Das três
favelas analisadas, a Rocinha mostra o mais forte desequilíbrio no IDH-
Educação, pois, encontra-se abaixo da norma. Por outro lado, nas outras
duas dimensões – Longevidade e Renda – esta região administrativa
encontra-se localizada acima da norma.(IPP,2003)
A maior parte da população da Rocinha trabalha na própria Zona Sul, sendo que
28,96 % de sua população é inativa e, apenas 26,93% é empregada com carteira
assinada.
(PREFEITURA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO, 2001) A mesma
pesquisa realizada pela FGV em 2004 determinou que 21,89% da população da
55
Armazém de Dados – Instituto Pereira Passo / Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, Censo
Demográfico 2000; Resultados do Universo.
77
Rocinha se encontrava abaixo da linha da miséria que era determinada pela
renda de até R$ 79,00 mensais.
(FGV,2004)
A tabela abaixo apresenta o tipo de ocupação e seu percentual dentro da
população da Rocinha.
De acordo com a associação comercial da Rocinha abriga cerca de 2500
estabelecimentos comerciais, entre lojas de venda a varejo, bares, academias de
ginástica, restaurantes, papelarias e outros. São na sua maioria micro e pequenas
empresas, com poucas exceções, como as lanchonetes Bob’s e McDonald’s
quem têm lojas instaladas na região de maior concentração comercial. Várias
empresas e instituições de peso vêm se instalando nos últimos anos na
comunidade, o que têm ocasionado um bom desenvolvimento comercial na
região. Ainda, segundo a associação comercial encontram-se na Rocinha: 2
Bancos (CAIXA e BANERJ), 2 Rádios, 3 jornais, 3 Salas de Variedades, 2 pontos
de táxis, diversos pontos de moto-táxis e duas linhas regulares de Combis
(Rocinha-Botafogo e Rocinha –Copacabana), assim como vans que cobrem o
circuito interno. Além destes serviços, a Rocinha, ainda conta com uma variada
gama de empreendimentos comerciais e institucionais como o Sebrae, Vivacred,
revendedoras de celulares, concessionária de tea cabo, a TV Roc e lojas de
eletrodomésticos.
“Há quem diga, inclusive que não passa um mês sem que um novo
estabelecimento comercial abra suas portas(LEITÃO, 2004: 71)
Tabela 2.2 – Ocupação da População da Rocinha
Fonte:
Mapa do Fim da Fone II
Zoom nas Favelas Cariocas
FGV , Rio de Janeiro, 2004.
78
Essa nova dinâmica econômica, principalmente no que se refere ao comércio na
Rocinha, cumpre um papel importantíssimo na absorção de mão-de-obra local.
56
O dono da TV ROC
57
revela a abrangência de seu serviço dentro da comunidade:
“Hoje temos 30 000 assinantes.(...) Eles pagam quando podem!
Oferecemos um pacote de 22 reais por mês. TV ROC é um projeto
financeiro e social. A maioria da comunidade da Rocinha é assinante.
Temos pessoas que pagam regularmente e pessoas que pagam
sistematicamente um mês atrasado e nós não descobrimos o por quê. 40
% pagam, a maioria são mulheres...” (REGINENSI: 2004)
Em termos de infra-estrutura urbana a Rocinha ainda sofre de grande deficiência.
A rede pública de água potável não é suficiente para toda a população da
Rocinha que a complementa com redes coletivas, executadas e gerenciadas
pelos próprios moradores a partir de fontes naturais existentes na Floresta da
Tijuca ou pela própria rede de abastecimento público. Estas redes coletivas são
formadas pelo somatório dos canos que conectam as casas à rede pública e
ficam expostos sobre as vias. Em alguns casos, como na Rua Um, o conjunto de
tubos chega a ter 30cm que passam sobre o eixo do beco, ocupando parte da
área de circulação. Na Dionésia a rede coletiva é aérea, sustentada pelos fios e
cabos da rede elétrica. (ANDRADE,2002:153) A rede de drenagem das águas
pluvial também não é subterrânea, o que causa muitos transtornos de
transbordamento e sujeira na rede.
A iluminação pública é muito irregular. Apenas o Largo dos Boiadeiros e a Rua
Um são bem iluminadas, nas outras vias de circulação de veículos também
existem postes de iluminação pública, mas a distância entre eles não é regular e
não garantem boa iluminação. As redes de iluminação são sustentadas por
postes de concreto nas vias principais e de madeira nos becos. A quantidade de
cabos e fios elétricos, que se acumulam nos postes é enorme, o que além de
56
http://www.observatoriodefavelas.org.br/observatorio/producoes/noticias/2082.asp
57
A TV Roc é uma distribuidora de televisão a cabo, afiliada da NET RIO, que fornece o sistema de televisão
a cabo para população da Rocinha e também produz um canal comunitário que apresenta programas sobre
os acontecimentos locais. “Prestamos serviços de tv por assinatura via cabo desde o ano de 1996, através de
fibra óptica de 112 pelos e cabos coaxiais .750. Nossa rede foi construída em 100% da Rocinha dentro dos
padrões internacionais, acompanhada por consultores americanos sistema totalmente mapeado e
identificado, com base em pontos de GPS e digitalizado em autocad. Nossas vendas e instalações são
instantâneas, pela dificuldade de localizão de endereços na comunidade, criamos nosso próprio localizador
digital, nossa cobrança é entregue nas residências pessoalmente por nossos funcionários caracterizando um
atendimento personalizado ao cliente.” (http://tvrocinha.com/)
79
poluir a paisagem urbana, ainda são grandes focos de preocupação dos
moradores, devido ao grande número de acidentes registrados, principalmente
com crianças.
Figura 2.3 - canos aéreos da rede de água
Fonte: Site Imagens do Povo –
http://www.imagensdopovo.org.Br
Foto: J R Ripper
Figura 2.4 – “Gatos” de Energia
Foto: Danielle Klintowitz
80
Em muitas regiões não há iluminação pública e a iluminação das travessas e
becos é garantida apenas pela iluminação das casas. Nos casos de becos em
forma de “túneis”, pela iluminação colocada por moradores nas lajes que cobrem
os becos.
Quase a totalidade dos domicílios da Rocinha (99,82%) recebe energia elétrica da
rede pública e abastecimento de água canalizada (96,20%), entretanto apenas
60,50% destes mesmos domicílios, têm rede de esgoto e somente 10,15% recebe
o serviço de coleta de lixo na porta da casa, os outros 89,85% recolhem o lixo
doméstico através de caçambas.
58
A coleta de lixo é um dos maiores problemas
de infra-estrutura enfrentados na Rocinha. Como o acesso de veículos é difícil, o
caminhão do lixo passa na Estrada da Gávea. Ao longo desta avenida existem
caçambas que servem como pontos de coleta para os caminhões de lixo, mas
estes depósitos não são suficientes para o grande volume de lixo gerado
diariamente e acabam transbordando. Além da dificuldade de acesso do
caminhão de lixo a algumas áreas, a coleta de lixo não é regular, o que acaba por
gerar acumulo de lixo em inúmeros locais usados como depósito de lixo a céu
aberto. Por causa desta precariedade, a comunidade organizou o sistema de
garis comunitários, que fazem a varredura dos espaços públicos dos becos e
travessas, mas o número deste garis não é suficiente para a extensa área da
comunidade. Também não existem muitos telefones públicos nas ruas da
Rocinha.
59
No mapa 05, a seguir, elaborado por Mayerhofer & Todelo (2000), pode-se
verificar que a grande concentração de equipamentos de saúde, educação e
instituições comunitárias está localizada ao longo da Estrada da Gávea e na
região próxima a São Conrado, que são as áreas mais consolidadas da
comunidade e que apresentam melhores padrões construtivos. Nas áreas aonde
o acesso se quase que inteiramente por becos e vielas a população sofre com
a carência de equipamentos, precisando sempre se deslocar às áreas mais
consolidadas para acessá-los.
58
Armazém de Dados – Instituto Pereira Passo / Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, Censo
Demográfico 2000; Resultados do Universo.
59
Ver mapa 05 com identificação dos principais serviços e suas localizações na comunidade.
MAPA05-INFRA-ESTRUTURA
FONTE:MAYERHOFER&TOLEDO,2006
N
82
2.2.
2.2.2.2.
2.2.
EVOLUÇÃO MORFO
EVOLUÇÃO MORFOEVOLUÇÃO MORFO
EVOLUÇÃO MORFO-
--
-TERRITORIAL
TERRITORIALTERRITORIAL
TERRITORIAL
A favela da Rocinha originou-se em meados da cada de 1920, nos morros da
Praia da Gávea, atual bairro de São Conrado, região que apesar de sua
proximidade com os bairros de elite da Zona Sul, não apresentava, neste
momento, interesse para ocupação por parte das elites. Em primeiro lugar, por se
localizar em cotas altas, mas principalmente porque a cidade do Rio de Janeiro
manteve-se muito concentrada entre o começo da zona sul e o centro, até
meados da década de vinte. Villaça (2005:167) descreve que durante mais de
um século não surgiu no Rio nenhum bairro residencial das elites localizado a
distância maior que a Gávea, na chamada zona sul”. A Av. Niemeyer, que liga o
bairro do Leblon a São Conrado foi construída em 1916
60
, época em que os
bairros do Leblon e Gávea ainda eram pouco ocupados, e que a Lagoa era
habitada apenas por operários que ocupavam terrenos abandonados e
pantanosos. (ABREU, 2006:126)
Nesta época, a área, hoje ocupada pela Rocinha, se constituía como uma grande
fazenda denominada Fazenda Quebra-Cangalha, sendo que grande parte de seu
terreno compreendia, ainda, uma densa floresta remanescente da Mata Atlântica.
Entre 1927 e 1930, como parte do processo de intensificação de ocupação da
zona sul, esta fazenda foi parcelada em lotes de 270 m
2
, destinados a um público
de baixa renda. Seus primeiros ocupantes foram, na maioria, comerciantes
portugueses e operários de fábricas situadas nas proximidades, principalmente na
Gávea. (LEITÃO, 2004:76)
60
O caminho que viria a ser a Av. Niemeyer, foi construído e entregue a cidade pelo Comendador Conrado
Jacob Niemeyer, que era proprietário no local. Apenas em 1920, a Prefeitura Municipal alarga o caminho
aberto pelo Comendador e o transforma na Av. Niemeyer. (ABREU, 2006:95)
83
Neste momento, a localização da Rocinha ainda era periférica em relação às
áreas centrais da cidade, apresentando difícil acesso e total falta de infra-
estrutura urbana. Em 1935, foi instalada uma rede de energia elétrica na Estrada
da Gávea, pólo original de desenvolvimento da Rocinha, favorecendo a venda dos
lotes existentes. Nesta mesma época, embora 80 lotes houvessem sido
vendidos, o loteamento não conseguiu obter sua regularização junto ao poder
municipal por não cumprir as normas vigentes da legislação urbanística. As
vendas foram interrompidas. Em 1937a companhia responsável pelo loteamento
acabou entrando em falência, o loteamento foi abandonado e assim iniciou-se a
Figura 2.5 - Morros da Gávea no início e no fim do Séc. XX
Fonte: CYPRIANO, 2005.
84
efetiva favelização e constante construção de habitações informais que se verifica
até hoje. (SEGALA, 1991:102)
Os compradores iniciais nunca receberam suas escrituras definitivas, mas após a
morte do proprietário loteador, seus herdeiros não se interessaram pelo terreno
por causa dos embargos ao empreendimento e a posse dos proprietários de lotes
nunca foi questionada. Este fato contribuiu para a imagem originária da Rocinha
como “terras sem dono”. Assim, esta área, que se encontrava desprezada,
disponível e com a presença de novos loteamentos irregulares, tornou-se perfeita
para a ocupação de uma população carente, pois se encontrava ainda, muito
perto dos locais com oferta de emprego. (ANDRADE: 2002; LEITÃO: 2004)
“A Rocinha não surgiu a partir da invasão deliberada de áreas públicas ou
de terceiros. Sua origem está relacionada a uma complexa dinâmica que
envolveu trabalhadores em busca de terras baratas para construir suas
habitações, empreendedores imobiliários que não atenderam às
exigências da legislação e um poder blico que não controlou a
execução do loteamento e a comercialização dos seus terrenos e o
Figura 2.6 – Loteamento original da Rocinha
Fonte: DRUMMOND:1981
85
assegurou os direitos dos consumidores que adquiriram tais terrenos.”
(ANDRADE, 2002:10)
Na cada de 1930 a Rocinha ainda tinha uma aparência rural, dispersa, pouco
densa e era constituída por casas de madeira e taipa. (PREFEITURA
MUNICIAPAL DO RIO DE JANEIRO: 2001) Apesar da pouca densidade, o Censo
Predial de 1933 contou 5.910 prédios na circunscrição da Gávea, que incluía a
Rocinha, destes 1.447 (24,5%) eram casebres. (ANDRADE: 2002)
Em 1938, a Estrada da vea foi pavimentada, tornando-se uma via pública mais
acessível, o que incrementou o processo de invasão. Neste período ocorreu pela
cidade o boato que na Rocinha havia “terras do Governo”, para serem ocupadas
sem a necessidade de apresentação de títulos de propriedade. Iniciou-se assim,
um processo de ocupação mais intenso. Nesse mesmo ano, uma capela da Igreja
Católica foi inaugurada, também na Estrada da Gávea, nascendo, no local, o
primeiro centro comercial e de serviços da favela.
F
igura
2.
7
– Começo da existência da Rocinha
Fonte: Site Favela Tem Memória - http://www.favelatemmemoria.com.br/
Foto: Arquivo Nacional, acervo do Correio da Manhã, data desconhecida
86
Até o início da década de 1940, seus moradores se concentravam basicamente
em três áreas distintas: no sopé do morro, em uma faixa ao longo da Estrada da
Gávea e nos lotes situados na primeira rua da comunidade, o Caminho dos
Boiadeiros.
61
Nesta época, as condições de vida ainda eram muito precárias e a
Rocinha se conectava com a cidade apenas através da Estrada da Gávea, pois o
Túnel Dois Irmão só foi construído na década de 1970.
A Rocinha não teve iluminação em suas moradias antes de 1948, quando a
Fundação Leão XIII
62
iniciou os seus trabalhos de promoção de eletrificação das
favelas. Mas, inicialmente, havia luz elétrica nas ruas, os barracos eram
iluminados apenas com lampiões e lamparinas de querosene ou velas. A
iluminação elétrica nas casas chegou primeiro à Estrada da Gávea, os habitantes
de outras regiões, inicialmente, só conseguiram a energia elétrica através da
cessão realizada pelas pessoas residentes nesta estrada (CARVALHO FILHO:
2003).
O crescente aumento de população observado na Rocinha a partir da metade da
década de trinta e que perdurou por toda década de 1940, fez parte de um
processo global de crescimento da cidade do Rio de Janeiro, que no período de
1906 a 1930, época do surgimento da Rocinha, caracterizou-se por uma
expansão muito grande de seu tecido urbano; sendo que na década de 1940
observou-se o período de maior proliferação de favelas. O censo de favelas
realizado em 1948 revelou um contingente de 138.873 habitantes nas 105 favelas
existentes na época. (ABREU: 2006.)
Com o crescente aumento populacional da cidade, devido, principalmente, ao
fluxo migratório, a partir da década de 1950, começou haver uma expansão
territorial da Rocinha.
(
ABREU:2006) Embora, muitos de seus habitantes iniciais
61
Ver mapa 06 de evolução da ocupação territorial da Rocinha.
62
A Fundação Leão XIII foi a primeira e, até a década de oitenta, a maior instituição de assistência social
que atuou em localidades faveladas do Rio de Janeiro, fundada com o objetivo de assistir moral e
materialmente os seus habitantes. (...) a Fundação Leão XIII estabelecia uma relação peculiar com as
localidades faveladas, devido ao seu alto grau de enraizamento, conseguido justamente através dos referidos
Centros de Ação Social, localizados em suas bases dentro das favelas. (...) A Leão XIII fixou sua base na
Rocinha em 1949, ficando lá instalada até o ano de 1983, quando, em razão de animosidades entre a cúpula
da instituição e a Igreja Católica, teve seus trabalhos de intervenção encerrados. Suas atividades eram
realizadas em salas da Igreja Nossa Senhora da Boa Viagem localizada na micro-área denominada Rua
Um, às margens da estrada da Gávea, na região central da favela tendo sido o espaço disponibilizado
através de um convênio firmado entre a Paróquia e a Fundação.” (RAMOS: 2005)
87
tenham sido operários das várias indústrias que se localizavam nos bairros
vizinhos da Gávea e do Jd. Botânico, a maior parte de sua população teve origem
a partir do êxodo rural. Entre as décadas de 1940 e 1950 o Rio de Janeiro
recebeu um enorme contingente de migrantes do Nordeste e, no começo da
década de 1950, a favela da Rocinha se caracterizava como um dos grandes
núcleos de moradores nordestinos na cidade.
63
Aliado ao crescimento territorial, observou-se, também, uma melhoria nas
construções das áreas mais consolidadas. Os barracos destas áreas, que até
então eram muito precários feitos com materiais descartáveis e cobertos com
“papelão pichado” (UNIÃO PRÓ-MELHORAMENTOS DOS MORADORES DA
ROCINHA, 1983), foram sendo substituídos por barracos de madeira.
Concomitantemente, enquanto as construções mais antigas eram melhoradas,
surgiam, nas encostas mais altas do morro, novos barracos que, por sua vez,
eram o precários quanto os que estavam sendo aprimorados. Os vetores de
crescimento eram, ainda neste momento, as ruas abertas pelo loteamento
original.
64
Durante as décadas de 1940 e 1950, o governo federal e a prefeitura procuraram
deter a transformação dos barracos de madeira em alvenaria, na tentativa de
impedir que a ocupação ilegal pudesse instalar-se definitivamente. Se houvesse
infração a essa resolução, a polícia sentia-se no direito de destruir a nova
vivenda. No entanto, apesar das proibições e derrubadas, as casas de alvenaria
gradativamente impuseram-se. Alguns, para burlar a lei, edificavam cômodos com
paredes de tijolos sob a de tábuas. (LEITÃO: 2004)
O primeiro recenseamento feito na Rocinha, em 1950, apontava a existência de
4.513 habitantes. Tendo uma ocupação rarefeita, não se caracterizava por uma
alta densidade como as demais favelas cariocas da época e sua paisagem ainda
se confundia com uma localidade rural.
(LEITÃO: 2004) No final da década de
63
Segundo Leitão: “Os levantamentos feitos pela UPMMR [associação de moradores da Rocinha], no final de
1987, revelam nas palavras de uma diretora da entidade, que a “Rocinha é a capital do Nordeste no Rio de
Janeiro”: em cada 14 pessoas, oito são cearenses e três paraibanos.” (LEITÃO, 2004:70)
64
Ver mapa 06 de evolução da ocupação territorial da Rocinha.
88
1950 o Relatório Aspectos Humanos da favela Carioca (Apud LEITÃO:2004)
apresentava a Rocinha com as seguintes características:
“Possui cerca de 3.000 habitantes e sua grande maioria é constituída de
trabalhadores, operários da construção civil, industriários, funcionários da
Prefeitura e biscateiros. Algumas construções o prédios de dois
andares, bem conservados. A Igreja e as instalações do Centro Social
Leão XIII ficam numa quadra ampla, própria. Os principais prédios se
situam ao redor desta área. A Rocinha possui várias biroscas (...) um
açougue, uma padaria e confeitaria, duas farmácias e um armazém.”
No período entre 1950 e 1960, a favela cresceu vertiginosamente, tendo um
aumento populacional de 228% (de 4513 para 14 793 habitantes), com o aumento
de 912% de domicílios (de 307 para 3017). (UNIÃO PRÓ-MELHORAMENTOS
DOS MORADORES DA ROCINHA, 1983) Mas, apesar do enorme crescimento
populacional, até o começo de 1960, a tipologia construtiva encontrada na
Rocinha ainda era basicamente constituída por casas térreas, muitas, ainda, de
madeiras cobertas com telhas de barro ou de zinco, sendo que poucas destas
casas possuíam banheiros internos com instalações sanitárias adequadas, os
principais imóveis situados ao longo da Estrada da Gávea, eram em sua maioria
casas, havendo alguns prédios de dois andares de alvenaria, bem conservados.
F
igura
2.
8
– Rocinha na década de 1950
Foto: Varal de Lembranças, 1983.
89
Mas o processo de consolidação e melhoria das habitações, que se mostrava
acelerado, sofreu um processo de desaceleração nos anos 1960 durante o
governo de Carlos Lacerda que começou um intenso programa de remoção de
favelas na cidade do Rio de Janeiro. A administração de Lacerda chegou a
remover 27 favelas com 41.948 habitantes. Com o golpe militar em 1964, a
política remocionista permaneceu e até se agravou devido ao esvaziamento das
praticas políticas-eleitoreiras, que diminuíram as ações clientelistas e as
possibilidades de resistência das comunidades faveladas. A Rocinha sofreu três
remoções parciais: em 1968, 1971 e 1975 (SEGALA: 1991).
Apesar do temor da remoção estar assombrando a comunidade, em 1964, toda a
área plana da favela, atual Bairro Barcelos, ao lado da auto-estrada Lagoa-Barra,
foi loteada pela Imobiliária Cristo Redentor. Essa área era um matagal em
terrenos alagadiços que possuía uma vila, chamada Vila Rica, com algumas
casas que se localizavam na Via Ápia uma das principais ruas do atual Bairro
Barcelos. A área loteada fazia parte de um espólio, e sua divisão foi decidida
pelos herdeiros em comum acordo. Os lotes, medindo 80m
2
, foram vendidos de
forma facilitada com entrada de 10% do valor total e prestações mensais de 25%
sobre o salário mínimo regional. Porém, mais uma vez, a Prefeitura Municipal não
reconheceu o loteamento, alegando que o problema da herança ainda não havia
sido resolvido e que a área dos terrenos não correspondia ao mínimo permitido.
Mesmo assim, todos os terrenos foram vendidos e ocupados.
A companhia loteadora utilizou como marketing, para vender os terrenos, a idéia
de que quem morasse no Bairro do Barcelos era “melhor” do que quem morasse
nas outras regiões da Rocinha. Este fato gera, até hoje, desconfianças e
desagravos dos moradores da “parte alta” com os moradores do Bairro do
Barcelos. (GRYNSPAN & PANDOLFI: 2003) Apesar destas desconfianças, os
moradores da comunidade toda, incluindo os moradores da parte alta e os
moradores do novo bairro, se uniram para completar a urbanização da área, com
pavimentação, rede de água e luz. Esta união em prol da finalização da
urbanização do novo Bairro do Barcelos tinha como objetivo estratégico o
reconhecimento por parte do Poder Público do novo loteamento como um “bairro”,
pois acreditava-se que com isso diminuiriam as ameaças de remoção de toda a
região da Rocinha. (SEGALA: 1991)
90
Até a década de 1970, a política de remoção permaneceu no Rio de Janeiro,
criando um estrangulamento na oferta de moradia de baixa renda na cidade. Em
conseqüência, as favelas remanescentes, como a Rocinha, sofreram um
extraordinário crescimento.
No mesmo período, a abertura da Auto Estrada Lagoa-Barra foi outro grande
marco no desenvolvimento da Rocinha, pois, a partir da construção desta via, o
acesso ao local foi facilitado e o bairro de São Conrado passou a ser mais
ocupado. Projetada em 1965 e implementada entre 1966 e 1971, a Auto-Estrada
Lagoa Barra fez parte do conjunto do Anel Rodoviário do antigo Estado da
Guanabara, e foi planejada visando uma forte expansão territorial, que realmente
se deu no final da década de 1960, em direção a zona oeste da cidade, onde hoje
se localiza a Barra da Tijuca. Esta expansão territorial da cidade era fomentada
pela especulação imobiliária que contava com a decisiva ajuda do Estado, para
abrir vias e disponibilizar infra-estrutura. (ABREU: 2006) Nesta época, por estar
F
igu
ra
2.
9
– Loteamento original do Bairro do Barcelos
Fonte: DRUMMOND:1981
91
situada a meio caminho entre a Zona Sul e a Barra da Tijuca, a Rocinha se firmou
definitivamente como uma alternativa de moradia para os trabalhadores,
principalmente da construção civil, que aproveitavam as ofertas de emprego do
grande mercado em expansão na região. Ao final desta obra viária, a abertura do
Túnel Dois Irmãos ligando os bairros da Gávea a o Conrado, além do conjunto
de túneis e vias elevadas que conectaram a Zona Sul à Zona Oeste,
consolidaram efetivamente a Rocinha como o locus da força de trabalho que
contribuirá para a construção e a manutenção da novíssima Zona Sul da cidade
do Rio de Janeiro.(LEITÃO,2004:83) Na mesma época, a construção de hotéis
de luxo e outros empreendimentos imobiliários em São Conrado, também
geraram diferenciadas ofertas de emprego.
A abertura do Túnel Dois Irmãos, em 1971, provocou, ainda, uma significativa
alteração na configuração espacial da Rocinha, pois deslocou o centro da
comunidade, com maior concentração comercial e de serviços, localizado na
F
igura
2.
1
0
– Construção do túnel dois irmãos
Fonte: Site Favela Tem Memória - http://www.favelatemmemoria.com.br/
Foto: Arquivo Nacional, acervo do Correio da Manhã, 1970
92
Estrada da vea, para a parte baixa da favela, junto à Estrada Lagoa-Barra,
local que se caracteriza como a maior centralidade na comunidade até hoje. A
construção do túnel acarretou, também, a remoção de parte das moradias que
ocupavam uma área sobre o Morro Dois Irmãos e, em decorrência dessa
remoção houve a ocupação do Campo da Esperança, um campo de futebol que
existente na região.
(
UNIÃO PRÓ-MELHORAMENTOS DOS MORADORES DA
ROCINHA, 1983)
Com todos estes eventos promotores de sua expansão, a Rocinha já apresentava
na década de 1970 uma enorme extensão e densidade. Segundo dados da
Prefeitura Municipal, em 1974, a favela apresentava uma população de 33.790
habitantes, ou seja, um crescimento de 128%, em relação aos dados de 1960 e,
um total de 7500 domicílios com um crescimento de 149% em relação a década
anterior. Então, a Rocinha ocupava uma área de 453 440 m
2
.
65
“Já em 1976, essa favela encontrava-se restrita em ambos os lados pela
malha urbana da Gávea e de São Conrado, bem como ao sul, por um
grande afloramento localizado no morro Dois Irmãos, maciço da
Tijuca”(MENDES & SIMÕES & RIBEIRO & CARNEIRO: 2001)
Com o desaquecimento da política de remoções e com a possibilidade crescente
da abertura política que trazia de volta as práticas clientelistas, paulatinamente os
barracos de madeira e zinco voltaram a ser substituídos por casas de alvenaria,
erguidas a partir das sobras de materiais de construção dos grandes condomínios
de São Conrado e Barra da Tijuca. Ao mesmo tempo, começava a aparecer na
comunidade toda série de serviços.
66
A implantação desta nova infra-estrutura
ajudou na organização espacial, facilitando o aparecimento de comércio e
instituições que estimularam, mais uma vez, o fortalecimento dos movimentos
populares que pressionavam o Poder Público por melhorias no ambiente urbano.
A partir do final desta década a defasagem de serviços de infra-estrutura entre os
diferentes setores começa a produzir uma diferenciação na valorização das
regiões e se consolida definitivamente o crescente processo de heterogenização
65
Armazém de Dados, Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro.
66
Apesar de os novos serviços serem introduzidos pelo poder público, os moradores precisam se submeter a
toda sorte de exigências para conseguir sua implantação. O caso da rede de água encanada é exemplar
desta questão: A CEADE (companhia estadual de águas e esgotos) ao implantar em 1976 o serviço, afirmava
não ter disponível todo dinheiro necessário e, por isso, acordou com a população que as obras seriam feitas
pela mão de obra da instituição, mas que os canos deveriam ser comprados pela própria população, que com
isso ganharia uma tarifa reduzida. (GRYNSPAN & PANDOLFI: 2003)
93
sócio-espacial dentro da Rocinha. Este mesmo processo foi verificado também
em outras grandes favelas cariocas na mesma época.
Segundo Drummond, no inicio da década de1980, todo o espaço disponível na
encosta havia sido ocupado. O autor afirma que a ocupação da Rocinha teve
características radiais e lineares ao mesmo tempo, pois o pólo de expansão
principal se dava no sopé do morro, estendendo-se de forma radial, e, ao mesmo
tempo, que a Estrada da Gávea e as demais vias de penetração, como a Rua
Um, Dois, Três e Quatro, caracterizavam-se como vias de expansão linear. O
autor conclui, a partir desta observação, que este “crescimento orgânico” deu
origem a primeira diferenciação social entre as partes mais altas e mais baixas da
comunidade. Nesta época se podia observar claramente a divisão sócio-
econômica do morro: na parte de baixo, estão os moradores mais antigos,
morando em casas de alvenaria e com melhor infraestrutura e serviços urbanos,
se beneficiando, ainda, da proximidade e facilidade de acesso a outros bairros da
cidade; no alto do morro estão os moradores mais recentes, que moram, na sua
maioria, em barracos de madeira, sem infraestrutura e com difícil acessibilidade.
67
Esta mesma dinâmica pode ser observada até hoje, em 2008, 27 anos depois das
observações escritas por Drummond. Nas regiões de ocupação mais recente
encontram-se, atualmente, barracos feitos de restos de materiais e com
condições extremamente precárias, enquanto que em outras regiões mais antigas
e consolidadas da comunidade encontram-se edifícios de alvenaria de até 12
andares. Paulo Casé denomina este fenômeno de “a injustiça da cota”:
“Quanto mais alto o domicílio, maior será o esforço despendido pelo
morador, incluindo os de terceira idade, no freqüente e inevitável trajeto
de subida e descida. Quanto mais se sobe o morro, menores são as
possibilidades de seus moradores serem estimulados na busca de formas
de convívio, de lazer e dos serviços encontrados nas áreas mais baixas
ou na cidade formal.” (CASÉ,1996: 32)
Ainda segundo Drummond, com esta evolução das construções na Rocinha, as
moradias foram se tornando cada vez mais “urbanas”
68
no que se refere aos
materiais utilizados, pois os resto precários de obra originais vão sendo
substituídos por materiais convencionais da construção civil, adquiridos em lojas
67
DRUMMOND: 1981 apud LEITÂO: 2004
68
Aqui, entende-se o termo urbanoutilizado pelo autor, como mais próximos das construções da cidade
formal.
94
de material de construção. Um relatório elaborado pela Fundação Estadual de
Engenharia e Meio Ambiente (FEEMA) (apud LEITÂO: 2004:152) em 1980
descreve o tipo de material de construção encontrado nas edificações da
comunidade, nesta época:
“Embora as formas de construção sejam diferentes daquelas
convencionais na cidade (o que resulta numa atmosfera visual
específica), os materiais de construção utilizados na favela são os
mesmos das construções ditas regulares.
A partir da cada de 1980, observa-se também uma significativa melhoria nas
condições de vida da população da Rocinha decorrente de investimentos em
infra-estrutura realizados pelo Estado. Nesta época, foram observadas também
melhorias nas condições das edificações habitacionais. E já no final da década de
1980, praticamente não existiam mais barracos de madeira, a não ser, como se
observa até hoje, de moradores recém chegados à comunidade.
Em 1986 a favela da Rocinha foi transformada em bairro, mas teve a
delimitação de sua área regulamentada em 1993 e aprovada através de lei em
1995, constituindo-se hoje, na XXVII Região Administrativa do Município. Apesar
da formalização de sua situação como bairro, pouco mudou na configuração física
da Rocinha depois deste decreto.
Nos anos 1990 o crescimento da Rocinha prossegue com a expansão do seu
território em direção à Floresta da Tijuca. Ocorre nesta época, um novo fenômeno
nos diferentes setores: a verticalização das construções com o acréscimo de
novos pavimentos. As transformações na morfologia das construções da Rocinha
continuam constantes neste período e, no final da década de 1990 são
encontradas construções com 6 pavimentos feitas com estrutura de concreto
armado e alvenaria de tijolos cerâmicos.
RUA 3
RUA 1
RUA 2
TÚNEL DOIS IRMÃOS
RUA 5
RUA1
RUA 2
LGODOS
BOIADEIROS
RUA 4
0
100m
200m
500m
ESTRADA
DA
GÁVEA
DE40À65
DE65À75
DE75À85
DE85A2005
ATÉ40
BAIRRO
DO
BARCELOS
MAPA06- EVOLUÇÃODAOCUPAÇÃOTERRITORIAL
DESENHO:DanielleKlintowitz,2006
N
96
2.3.
2.3.2.3.
2.3.
TECIDOS URBANOS E CONFIGURAÇÕES NO COMEÇO
TECIDOS URBANOS E CONFIGURAÇÕES NO COMEÇO TECIDOS URBANOS E CONFIGURAÇÕES NO COMEÇO
TECIDOS URBANOS E CONFIGURAÇÕES NO COMEÇO
DO SÉCULO XXI
DO SÉCULO XXIDO SÉCULO XXI
DO SÉCULO XXI
Em 2008 a paisagem urbana que se observa na Rocinha é de grande diversidade
morfológica, composta tanto por prédios de 6 e 7 pavimentos no Bairro do
Barcelos e ao longo da Estrada da Gávea, como por precários barracos de
madeira na Macega, Roupa Suja e Portão Vermelho. Entre estes dois extremos
há, ainda, uma enorme diversidade de construções, tipologias habitacionais,
formas, cores, texturas e gabaritos.
Mas, embora haja uma grande diversidade na morfologia intrafavela, é possível
distinguir uma paisagem predominante que se compõe por casas de 2 e 3
pavimentos, em alvenaria, sem revestimento, cobertas com lajes de concreto
armado a espera de mais um pavimento.
A maioria das construções da Rocinha encontra-se sem revestimento porque, em
geral, os moradores investem nesta etapa quando consideram todas as
ampliações concluídas. As melhorias internas são priorizadas em detrimento do
aspecto externo, o que simbolicamente pode representar uma maior preocupação
com a esfera privada do que com a esfera pública. Como as casas só são
revestidas e pintadas quando estão definitivamente prontas, o que quase nunca
ocorre que sempre se está construindo mais um “puxadinho” ou uma nova laje,
a aparência de canteiro de obras permanente se intensifica. A paisagem,
principalmente, nas regiões menos consolidadas, é de uma cidade que nunca
está acabada, que está em constante crescimento.
“A impressão que se tem é que se está num canteiro de obras
permanente, tal o número de edificações sendo construídas, ampliadas e
reformadas.(
LEITÂO: 2004:71
)
Em algumas construções que contam com revestimento externo é comum o uso
de revestimento cerâmico de cores variadas, trazendo mais colorido à paisagem.
Os edifícios, principalmente os mais antigos, foram construídos cada andar por
seu proprietário e morador, o que acabou formando um mosaico estético e uma
97
paisagem constituída por um cenário que parece-se com casas empilhadas umas
sobre as outras, com grande variedade de cores e desenhos entre os diferentes
pavimentos. Mesmo nos edifícios que são construídos por uma única pessoa, é
possível encontrar esta diversidade visual entre os diferentes pavimentos, como
se já se tratasse de uma “cultura arquitetônica e estética” local.
A partir de meados da década de 90, a verticalização tornou-se, quase sempre, a
única alternativa de expansão das residências na Rocinha, o que gerou um
grande crescimento vertical e hoje, a paisagem se compõe, em muitas regiões,
mais por edificações verticais do que horizontais.
“Para atender a demanda crescente por espaço, a solução encontrada por
muitos é a verticalização das moradias, investindo tudo que podem nas
fundações, que delas depende, principalmente, esse processo de
crescimento para o alto.” (
LEIT
Ã
O: 2004:72
)
A maior parte das casas não tem quintal, pois, as construções tendem a ocupar
toda extensão do lote. Este fenômeno é observado em todos os setores, inclusive
nos que apresentam densidades menores ou que foram, a princípio, planejados,
FIGURA
2.
1
1
- Mosaico estético das edificações da favela
Fotos: Danielle Klintowitz
98
como o Bairro do Barcelos e o Labouriaux. O mesmo fenômeno ocorre em
relação aos recuos, que são praticamente inexistentes, sendo encontrados
apenas em regiões que ainda têm densidade menor. Em toda comunidade a
densidade construtiva é muito grande. As construções estão, quase sempre,
agrupadas e sobrepostas umas as outras, nas áreas mais densas não existe
recuo algum e, muitas vezes, as ampliações das residências encostam suas
novas paredes nas janelas dos vizinhos sem o menor constrangimento. (RIBEIRO
& STROZENBERG: 2001)
“(...) sempre que um morador tem recursos, ele constrói ocupando todo o
lote. Em nossos questionários, 70% dos entrevistados revelaram que
consideram que o limite do seu terreno é a casa do vizinho.”
(
ANDRADE:2002: 178
)
Apesar de o loteamento original ter demarcado um traçado inicial, grande parte
das ruas e travessas que compõem o sistema viário atual foram determinadas
pelas próprias edificações e não o contrário, como acontece nos loteamentos
formais.
São as casas que ao irem se justapondo determinam o traçado das ruas,
tanto das que servem apenas ao acesso às casas, com as de trânsito mais
intenso. Assim, o arruamento existente é sinuoso, com alargamentos e
estreitamentos, com becos sem saída, que à vezes terminam em um largo ou
numa minúscula pracinha, escondida no interior da favela. As ruas do loteamento
original também foram, pouco a pouco, sendo modificadas pelas edificações que
ao serem construídas e ampliadas foram invadindo e transformando o espaço
delimitado para a rua.
O sistema de circulação de pessoas e veículos se caracteriza pelo grande volume
de veículos nas vias carroçáveis existentes, que abarca veículos particulares,
coletivos e os famosos moto-taxis
69
e apresenta várias dificuldades estruturais.
Existem muitos nós viários que dificultam o fluxo de veículos e pedestres por
causa da sua geometria inadequada para o grande fluxo existente. Há um intenso
tráfego de veículos que circulam nas ruas, formando enormes engarrafamentos
durante todo o dia. Além da enorme quantidade de veículos ainda há grande
69
Grande parte do transporte da Rocinha acontece através do serviço de moto-taxi existente na comunidade.
Existem várias empresas que organizam este serviço, cobrando dos passageiros R$ 1,50 para subir o morro
e, vários pontos de parada onde os moradores podem pegar a moto. Com as ruas íngremes, becos e vielas
estreitas, a maioria dos moradores da comunidade considera a moto a melhor alternativa de transporte para
circular dentro da Rocinha.
99
dificuldade para os ônibus efetuarem manobras em determinadas curvas devido a
seu desenho e, também, ao grande número de veículos estacionados à beira das
calçadas.
O grande fluxo de pedestres e a inadequação das calçadas fazem destas vias
trajetos tumultuados, oferecendo perigo constante. As calçadas são, quase
sempre, estreitas e com um desnível muito grande em relação ao leito carroçável.
A declividade do terreno é sempre vencida por altos degraus que ocupam toda a
largura do passeio atrapalhando ainda mais o percurso pela calçada, que são,
ainda, invadidas por vitrines comerciais, mesas de bares e restaurantes, além de
servirem de depósito de produtos que não têm como serem estocados dentro do
estabelecimento. Por causa da quase impossibilidade de utilizar as calçadas, a
maior parte dos pedestres caminha pelo leito carroçável disputando o espaço com
os inúmeros veículos que circulam constantemente por estas vias. A privatização
da via ocorre também nas residências que invadem a rua para aumentar o espaço
Figura 2.12
– Dificuldades do sistema viário
Fonte: site Imagens do Povo – http://www.imagensdopovo.org.br
Fotos: J R Ripper
100
interno da casa, abrigar carros ou construir acessos e escadas. Como as lajes
das casas são, em muitos casos, vendidas para a construção da residência de
outra família, as escadas precisam ser construídas externamente à edificação,
invadindo a rua. Existem, também, casos onde os moradores constroem a
varanda de suas casas ocupando todo o espaço da calçada, forçando o pedestre
a usar o leito carroçável para circular.
Entretanto, estas vias, apesar do grande fluxo de veículos que recebem, são
exceções no sistema viário, a maioria dos caminhos serve apenas aos pedestres
e, em alguns casos às motos. Em alguns setores não é possível o acesso por
qualquer tipo de veículo, nem mesmo motos e bicicletas. O desenho, ou melhor, a
falta dele, nas ruas e becos, estreitos e irregulares, da comunidade, dificulta a
acessibilidade de pessoas em praticamente todos os setores da favela. Uma
grande parcela do território é constituída apenas por vias de pedestres muito
precárias, que por vezes são de terra batida e têm declividades muito acentuadas.
Figura 2.
13
- Becos e Travessas
Fotos : Danielle Klintowitz
DIFÍCIL ACESSIBILIDADE
RISCODEATROPELAMENTO
PONTOS DE CONFLITO VIÁRIO
MAPA07- DIAGNÓSTICOSISTEMAVIÁRIO
DESENHO:DanielleKlintowitz,2006
sobrebasedeMAYERHOFER&TOLEDO,2006
N
TRAVESSAS -PEDESTRES
VIAS PRINCIPAIS - VEÍCULOS
VIAS COLETORAS - VEÍCULOS
VIAS LOCAIS - VEÍCULOS
0
100m
200m
500m
MAPA08-HIERARQUIASISTEMAVIÁRIO
DESENHO:DanielleKlintowitz,2006
N
103
A Estrutura viária da Rocinha pode ser dividida em quatro categorias hierárquicas
caracterizadas pelo tipo de circulação e intensidade de fluxo.
70
Suas
características principais são :
Via Principal
A principal via de acesso à Rocinha é a Estrada da Gávea, que a atravessa
conectando-a aos seus vizinhos: Gávea e São Conrado. Esta via atravessa toda
extensão da favela ligando um lado da Zona Sul, esta característica é atípica, pois
geralmente as favelas cariocas não têm vias que as cortam integralmente,
permitindo que seu território seja atravessado inteiramente (LEITÃO: 2004). O
fato de a Estrada da Gávea atravessar a Rocinha de um lado a outro torna muito
peculiar e diferenciado o tipo de sociabilidade que se estabelece entre a
população desta comunidade com a cidade, que de certa forma penetra na favela
através desta via. A Estrada da Gávea inicia-se na via expressa Lagoa-Barra e se
estende por aproximadamente 3,5 Km até se transformar na Av. Marques de São
Vicente, no bairro da Gávea, quando muda completamente sua configuração
morfológica, deixando de ser somente residencial e passa a ter lojas que se
abrem para a rua e modernos edifícios comerciais. Desta estrada saem algumas
poucas ruas asfaltadas que permitem o acesso de carros e motos e, que também
se caracterizam como eixos de valorização secundário. (ANDRADE, 2002:90)
Suas calçadas são irregulares e apresentam diferentes dimensões ao longo de
sua extensão. Apesar de extremamente utilizada pela população, esta avenida
não possui características que favoreçam a circulação de pedestres que é
dificultada por inúmeros obstáculos que se colocam na calçada. O mesmo
acontece em relação à circulação de veículos, que acontece de forma
desordenada dificultando o intenso fluxo de veículos que se compõem por 3
linhas de ônibus, linhas de vans, moto-táxis, carros particulares e caminhões de
abastecimentos do comércio local. As linhas regulares de ônibus operam com
veículos de tamanhos inadequados para as características espaciais da via.
Alguns pontos de ônibus mal localizados obrigam que estes veículos realizem
manobras perigosas e, que por vezes causam enormes congestionamentos
70
Ver mapa 08 de hierarquia do sistema viário
104
comprometendo ainda mais a capacidade, limitada, de fluxo desta via.
(MAYERHOFER & TOLEDO, 2006)
FIGURA 2.14
– Estrada da Gávea
Fotos: Danielle Klintowitz
105
Vias Coletoras:
O conjunto de vias coletoras ou secundárias é formado, pela Via Ápia, Caminho
dos Boiadeiros, Rua Dois, subida da Dionésia e subida do Laboriaux, além de
algumas outras vias localizadas no Bairro do Barcelos. Este sistema viário
secundário, que permite o trânsito de veículos de menor porte, se conecta à
Estrada da vea permitindo a acessibilidade em diferentes setores da Rocinha.
A Via Ápia e o Caminho dos Boiadeiros localizam-se em áreas mais consolidadas
da comunidade com uma intensa atividade comercial e de prestação de serviço, o
que as transforma em vias de intenso fluxo de veículos e, principalmente, de
pedestres. (MAYERHOFER & TOLEDO, 2006) No Largo dos Boiadeiros existe,
ainda, um intenso fluxo de caminhões que descarregam produtos para abastecer
as lojas da região, causando congestionamentos e dificultando o tráfego no
Caminho dos Boiadeiros. Parte do piso da subida do Labouriaux é feito de
paralelepípedos de pedra, que devido a grande declividade da via, tornam-se
muito escorregadios causando transtornos na circulação, tanto de veículos e
como de pedestres, em dias de chuva.
FIGURA
2.
15
– Via Ápia
Foto: Danielle Klintowitz
106
Vias Locais:
Existem, ainda na comunidade, algumas vias que permitem o acesso de veículos,
apesar de terem os leitos carroçáveis irregulares e de largura reduzida, admitindo
a passagem de apenas um veículo e dificultando manobras. Mas estas vias, em
alguns casos, são os únicos acessos a alguns setores da comunidade.
(MAYERHOFER & TOLEDO, 2006)
Becos e travessas:
Existem, também, vias que permitem apenas o percurso de pedestres. Algumas
delas, como é o caso da Rua Um, têm um intenso fluxo de pedestres por serem o
único acesso a muitas regiões da favela. O leito destas travessas é muito irregular
e, é, em geral, demarcado pelas construções lindeiras, que, por vezes, avançam
sobre o caminho formando becos muito estreitos. Uma moradora da Rocinha
descreve que:
FIGURA
2.
1
6
- Vias locais
Fotos : Danielle Klintowitz
107
“Nos dias de chuva o estreitamento dos becos impossibilita que pessoas
passem com guarda-chuvas. Em determinados lugares, as vias só
permitem a passagem de uma pessoa por vez.” (PEREIRA, 2007)
Nos becos observa-se duas sub-categorias: aqueles que são definidos pelas
edificações, que os “esprememe, os que se constituem como “túneis”, formados
pela junção, por sobre o beco, das lajes dos segundos pavimentos das
edificações lindeiras. (ANDRADE:2002) Alguns destes becos são extremamente
estreitos, chegando a ter menos de 1 metros de largura.
Muitos becos são formados por escadarias, na maioria das vezes mal
dimensionadas, com espelhos muito altos e pisos muito estreitos, que dificultam a
circulação das pessoas. Nos diferentes setores os becos têm diversos tipos de
pisos, alguns o asfaltados, outros têm cimento, outros são de terra. Algumas
escadarias, ainda, foram revestidas por pisos cerâmicos pelos moradores do
entorno.
“Os becos, que marcaram a configuração da favela clássica, se
transmutam em verdadeiros túneis sob as edificações e escadarias que
levam as habitações, na medida em que a verticalização nas favelas
FIGURA
2.
17
– Becos estreitos e becos túneis convivendo lado a lado
Foto: Danielle Klintowitz
108
situadas em morros não configura exatamente prédios, mas, antes,
habitações sobrepostas verticalmente, criando caminhos sob os pilares e
mesmo em áreas que circundam as edificações, tornando os tortuosos
becos em labirintos indescritíveis e levando a proliferação do mero de
escadarias, nas quais se misturam as que são caminhos no interior da
favela e as que servem de acesso às moradias.” (MARZULO,2004)
Existem ainda, algumas áreas consolidadas que se abrem formando pequenos
largos.
Também, nos setores onde os becos são um pouco mais largos, como na
Macega, se observa a tendência destes espaços serem reduzidos pelas novas
construções e ampliações que avançam sobre a circulação.
Na maior parte da Rocinha, os becos e travessas são confinados por edificações
de 2 a 3 pavimentos; nas vias secundárias encontram-se em geral edificações
com gabarito de 3 a 5 pavimentos e, na Estrada da vea, no Bairro do Barcelos
e no Largo dos Boiadeiros encontram-se, na maioria, edifícios com 5 a 6
pavimentos. Apesar desta distribuição que se apresenta em grande parte do
território em estudo, a distribuição de gabaritos não segue um padrão definido e
muito menos definitivo, o que mais influi no aumento do gabarito é o grau de
consolidação da região. A figura a seguir mostra estudo feito para uma pequena
região da Rocinha e apresenta um exemplo de distribuição de gabaritos em uma
porção do território próximo ao Largo dos Boiadeiros e ao Bairro do Barcelos,
onde se verifica que, por ser uma área mais consolidada a maioria de seus
edifícios têm entre 3 e 4 pavimentos e os edifícios mais concentram-se no entorno
da Estrada da Gávea.
FIGURA
2.
18
- Travessas que se abrem em largos
Fotos: Danielle Klintowitz
109
Mas é importante lembrar que, a densidade e gabaritos existentes atualmente na
Rocinha não é estanque, que a atividade construtiva ainda é intensa, o que
torna a paisagem construtiva muito dinâmica.
Obviamente não uma delimitação formal para o uso do solo na Rocinha, mas
apesar disso é possível identificar certa setorização de usos. Existem regiões que
têm características predominantemente residencial, embora seja possível
encontrar pontos comerciais fragmentados por todas as regiões da comunidade.
Andrade atestou em sua pesquisa que sempre existe próximo a qualquer casa,
alguma venda de produtos de primeira necessidade: as biroscas. (ANDRADE,
2002:131) Quanto mais se afasta da parte de baixo, mais consolidada, próxima à
Estrada Lagoa-Barra e, da Estrada da vea, mais pulverizado se torna o
comércio, que passa a assumir características de comércio local, com biroscas e
açougues, por exemplo. A figura abaixo mostra um estudo de uso do solo
realizado na mesma região próximo ao Largo dos Boiadeiros e ao Bairro do
FIGURA
2.
19
- Distribuição de gabaritos em um trecho da Rocinha
Fonte: MAYERHOFER & TOLEDO, 2006
110
Barcelos, onde se percebe claramente a área comercial concentra-se ao longo da
Estrada da Gávea e se torna residencial a partir da primeira edificação
afastada.
A Estrada da Gávea se constituí, em toda sua extensão, como um corredor
comercial, que tem as testadas das edificações, geralmente no térreo, com uso
comercial. É importante notar que, como mostra o estudo acima, o uso comercial
não se espalha para dentro do território, concentra-se apenas na via de circulação
principal e, em alguns casos, pelas vias coletoras. A diversidade comercial se
relaciona diretamente com a quantidade e tipo de fluxo de pessoas. As vias
secundárias também apresentam características comerciais em expansão,
principalmente nas áreas mais afastadas como na subida do Labouriaux e na
subida da Dionésia. Para Andrade:
“Aparentemente o comércio local apresenta uma resposta
imediata à demanda dos moradores, não havendo projeções a
respeito da posssibilidade de criação de áreas comerciais que não
F
IGURA
2.
20
- Distribuição de usos do solo em um trecho da Rocinha
Fonte: MAYERHOFER & TOLEDO: 2006
111
estejam diretamente ligadas a grande concentrações
habitacionais. Não se verifica, assim, investimentos para atrair a
demanda ou equacionar o saturamento de determinadas áreas,
como ocorre com o Largo dos Boiadeiros.(ANDRADE,2002: 132)
O Largo dos Boiadeiro e a Via Ápia são as regiões que apresentam maior
diversidade de usos, incluindo usos comerciais, residenciais, institucionais e de
serviços. O comércio diversificado do Largo dos Boiadeiros atrai, inclusive,
moradores de São Conrado em procura de produtos que não são encontrados
normalmente nos bairros da Zona Sul, como aves vivas, por exemplo. Mas, como
afirma Andrade, estas compras são feitas, em geral, por empregadas e motoristas
e não pelos próprios moradores. (ANDRADE,2002: 132)
O Espaço intra-favela apresenta grande diversidade social e econômica.
Costuma-se dizer, inclusive, que a comunidade da Rocinha é composta por várias
classes sociais e, a subdivisão de seus setores confirma este fato. O grande vetor
de diferenciação das áreas e dos imóveis diz respeito à acessibilidade em relação
aos outros bairros da cidade e à proximidade de vias de acesso. Quanto maior a
proximidade de vias carroçáveis, maior a valorização da região. As áreas
próximas a São Conrado são as mais valorizadas, devido a sua facilidade de
acesso interno e externo que um grande número de linhas de ônibus circulam
pela Estrada Lagoa-Barra. Outro eixo de valorização é a Estrada da vea, onde
além da fácil acessibilidade, embora tenha um número reduzido de linhas de
ônibus comparado à auto-estrada Lagoa-Barra, conta com ampla atividade
comercial. Desta estrada saem algumas poucas ruas asfaltadas que permitem o
acesso de carros e motos e, que também se caracterizam como eixos de
valorização secundário. (ANDRADE: 2002:90)
“A Rocinha não é o somatório dos diferentes setores que a
compõe; apresenta identidade apesar e, mesmo, por causa desta
diferenciação intrafavela.(ANDRADE,2002:102)
“Como em qualquer outra cidade fluminense, nessa também
existem lugares onde moram os que têm maior renda e outros
onde vivem aqueles que são mais pobres. Isto pode ser verificado
não apenas na aparência de ruas e edifícios. Pode ser observado,
também, nas palavras dos próprios moradores: quando alguém diz
que mora neste ou naquele lugar, está dando mais informações do
que somente seu endereço (...) num de seus bairros, o valor do
aluguel de um apartamento, só para citar um exemplo, equivale ao
de um imóvel com características semelhantes nos bairros da
Gloria, Catete e Flamengo, na zona sul da cidade do Rio de
Janeiro.” (LEITÃO, 2004: 70 - 72)
112
A Rocinha é subdividida informalmente em 25 áreas, denominadas “setores”, que
apresentam grande diversidade sócio-espacial entre si. Segundo depoimento de
um morador da comunidade esta setorização foi feita pelos próprios moradores.
“É uma favela que tem vários bairrozinhos dentro dela. É aquele
espírito carioca. Vão surgindo novas áreas e os próprios
moradores vão batizando, vão lhes dando um nomezinho.Por
exemplo, o largo da Rua 1, Faz Depressa, que tem esse nome
porque naquele tempo, o morador que fazia barraco era muito
perseguido pela ação da polícia. Naquele faz não faz, pode não
pode, de uma hora para outra surgia um barraco, e daí o nome
Faz Depressa. Depois chegava a polícia e pronto. estava
morando no barraco.”
71
De modo geral, os setores mais próximos das vias de circulação de veículos, o
mais consolidados e têm edificações de melhor padrão construtivo, enquanto que
as regiões de menor acessibilidade são marcadas pela precariedade das
construções e do espaço público. Além disso, nota-se que os setores que ficam
mais próximos aos seus vizinhos, Gávea e o Conrado têm construções com
melhor padrão construtivo e maior densidade, enquanto que os setores que se
localizam sobre os afloramentos rochosos do Morro Dois Irmãos, apresentam os
piores padrões construtivos e menor densidade.
72
Os setores que ficam na parte exterior da Rocinha são muito ventilados, mas os
setores internos sofrem com o aquecimento atmosférico. Mayerhofer & Toledo
apresentam a descrição do fenômeno microclimático que tem acontecido no
interior da Rocinha:
“Os ventos principais que vem do mar vão se aquecendo no seu
percurso pela Rocinha, chegando até o Morro Dois Irmãos, onde
não encontram corredores de escapamento. Margeando o morro,
esses ventos retornam enfraquecido sem direção ao mar; no
entanto, temporariamente, ficam presos numa área de alta
densidade urbana. Atualmente as brisas vindas da praia pouco
refrescam o interior da Rocinha, e não penetram nas edificações,
que formam uma massa compacta deixando livre somente
estreitas passagens de acesso. Este micro clima, porém apresenta
diferenciações nos vários setores do bairro.(...) Tais características
amenizam-se, é evidente, nas margens da Floresta do Parque
nacional. Ressalta-se, assim, a importância da preservação da
mata para o microclima da Rocinha, não obstante sua importância
macroambiental para a cidade do Rio de Janeiro.
(MAYERHOFER & TOLEDO: 2006)
71
Depoimento de Ismael Elias da Silva, 1981, apud LEITÃO: 2004:80.
72
Ver mapa de setorização e análise morfológica em anexo.
113
Nos diversos setores que são constituídos, principalmente, por becos muito
estreitos, a incidência de sol é pequena, o que contribui para que haja excesso de
umidade, principalmente no inverno e nos períodos chuvosos, quando é possível
observar poças que persistem por dias sem secarem. Apesar de muitos becos
não receberem incidência direta de sol, nem todos são sombrios e escuros
durante o dia, em alguns becos, observa-se uma boa iluminação diária. Os largos
têm situação térmica mais confortável, pois além da ventilação constante,
recebem a incidência direta do sol, deixando-os menos úmidos e abafados. Nas
vias mais largas observa-se um alto índice de insolação, com uma atmosfera
muito quente e seca, devido a falta de vegetação de porte. Embora nos setores
que fazem limite com a Floresta sinta-se a presença massiva da vegetação da
floresta, nos cleos mais afastados na floresta não se observa quase nenhuma
árvore. O que se observa são apenas algumas árvores esparsas que parecem ser
remanescentes do desmatamento proveniente da invasão. (MAYERHOFER &
TOLEDO: 2006)
Como os setores foram sendo divididos e denominados de acordo com suas
origens, apresentam até hoje características morfológicas comuns às divisões
FIGURA 2.21
– Vista da Rocinha com vegetação remanescente
Fonte: www.panoramio.com/
114
estabelecidas. Baseado no diagnóstico elaborado MAYERHOFER & TOLEDO
(2006) aliado à observação da pesquisa de campo elaborou-se um mapa onde
através de um agrupamento de setores faz-se uma síntese das características
morfológicas de cada grupo.
73
73
É importante notar, também, que a classificação de padrão construtivo dada a cada categoria tem com
referência os próprios padrões encontrados na Rocinha, então, portanto, quando se fala em bom padrão
construtivo, não se refere ao bom padrão construtivo comum na cidade formal, mas ao melhor padrão
construtivo encontrado dentro desta comunidade.
FONTE:MAYERHOFER&TOLEDO,2006
CAPÍTULO 03
OSDONOSDA ROCINHA
“Odonodomorro
Atendeoseupovoenãotempraninguém
propovododono
Vaitershownomorro
Semanaquevem”
LeciBrandão
3.1.
3.1.3.1.
3.1.
CAMINHANDO ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO
CAMINHANDO ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADOCAMINHANDO ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO
CAMINHANDO ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO
Após de ter conhecido o Planeta Rocinha, este percurso levará o leitor à caminhar
no interior da comunidade para conhecer seu cotidiano e seus moradores. Não se
trata de um percurso linear, que corre rua a rua, beco a beco, seguindo o traçado
linear de um mapa. Trata-se, no entanto, de um percurso que passeia pelos
espaços públicos desta comunidade, ora olhando-os coletivamente, de forma
temática, ora olhando-os individualmente, ressaltando suas peculiaridades,
sempre seguindo o caminho de subida do morro pela Estrada da Gávea.
O Mapa 11 sobre a foto aérea da Rocinha, procura assinalar alguns dos pontos
de parada deste percurso a fim de facilitar e espacializar a compreensão do
universo percorrido. A linha amarela demarca a Estrada da Gávea, pela qual o
percurso se estrutura e os pontos demarcados e numerados são algumas das
paradas possíveis de serem visualizadas nesta escala da foto. Como a Rocinha é
composta por um tecido urbano extremamente adensado e complexo, não é
possível, através de uma foto rea ou de um mapa, localizar todas as pequenas
praças, quadras e becos a que se refere o texto, por isso muitos dos pontos
mencionados não podem ser identificados, mas a demarcação existente é
suficiente para o entendimento geral do percurso.
A chegada à Rocinha através da Auto-estrada Lagoa-Barra choca o olhar que
tenta identificar formas e contextos reconhecíveis no meio da densa e conturbada
paisagem que se apresenta. Passado o impacto, enxerga-se imediatamente um
pequeno “complexo esportivo” (n° 02 - mapa 11) que tem como pano de fundo o
impressionante aglomerado de casas que compõe este tecido urbano que sobe e
desce o morro como se fosse um mar de construções infinitas. Este “complexo
119
esportivo” trata-se, hoje em dia, do único equipamento esportivo e de lazer
implantado nesta comunidade pelo Poder Municipal.
74
Embora este espaço seja apropriado pela comunidade que o utiliza com
freqüência, choca pensar sobre sua implantação, que o coloca lado a lado com o
intenso trânsito da via expressa Lagoa-Barra e com a saída do Túnel. Por causa
da topografia acentuada, a praça composta por mesas de jogos e bancos de
74
Em 2003 a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro executou um plano de reurbanização de uma área com
9mil m
2
denominada “entorno da Rocinha”, ao lado do Túnel Zuzu Angel. O projeto foi batizado de Urbe-
Rocinha e contou com a instalação de equipamentos esportivos (quadras poli-esportivas e pistas de skates),
parquinho infantil e com uma praça com mesas de jogos, além do novo Mercado Popular da Rocinha para
onde foram realocados os camelôs que ficavam anteriormente na área que serviu para a intervenção.
(Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro - http://obras.rio.rj.gov.br/index.cfm?sqncl_publicacao=458)
120
concreto, localizada-se um nível acima do restante do complexo e praticamente
toca as paredes do túnel que emite intermitentemente o ruído dos automóveis
que passam rapidamente. As quadras e o playground estão separados da
avenida apenas pelo frágil alambrado, deixando os jogadores e crianças expostos
ao barulho e aos gases emitidos pelos veículos que passam sem parar. A
arborização desta parte da avenida é composta por poucas árvores que não
conseguem ter nenhum efeito mitigador sobre estes inconvenientes que atingem
o complexo esportivo.
No interior da comunidade encontram-se, ainda, outras quadras. Estas,
produzidas e gerenciadas pela própria população. O que se percebe ao andar
pela comunidade é que esta é servida de mais espaços de lazer do pode-se supor
a primeira vista, mesmo assim, estes espaços públicos não são suficientes para
atender a enorme demanda. Vários setores da Rocinha têm na proximidade
algum espaço que foi apropriado e construído pela comunidade para a prática
esportiva, de lazer e convívio.
75
Em datas festivas, estas quadras se transformam
em lugares de eventos, abrigando as mais diferentes comemorações: feijoadas,
churrascos, festas juninas, ceias natalinas, etc.
75
Estes espaços apropriados e construídos pela comunidade ou pelo tráfico de drogas, como praças,
parquinhos e quadras esportivas pavimentadas, são denominados pelos moradores de espaços formais de
brincadeiras”. (COELHO, 2007)
FIGURA 3.
2
– Festa junina na Rocinha
Fonte: Agencia olhares-http://www.agenciaolhares.com
Foto: Ricardo de Jesus
121
Por estarem, quase sempre, implantadas em locais com acessibilidade facilitada,
à beira das vias principais, estas quadras, tornam-se pontos de referência na
região, sendo as principais arenas dos movimentos comunitários, onde
acontecem as reuniões das associações, onde são distribuídas cestas sicas
para os mais carentes, onde políticos fazem comícios, onde se marcam os
encontros.
Apesar de serem os espaços de manifestação comunitária, estas quadras não
estão abertas à comunidade cotidiamente. Isto é, as quadras não têm uso livre e
irrestrito para qualquer um a qualquer hora. São geridas pelas associações de
moradores que organizam uma agenda com as mais variadas atividades
esportivas de acordo com suas possibilidades financeiras e de apoio. Nestas
quadras regras claras, agendas cheias a serem cumpridas; professores
e projetos com programas e horários pré-definidos; inúmeros eventos
comunitários programados. pouco espaço para a espontaneidade, para o jogo
de bola descompromissado, para a apropriação inusitada.
A série de fotografias a seguir é significativa no entendimento das relações
estabelecidas nestes espaços para prática de esporte na Rocinha. Na primeira
foto nota-se um extenso muro azul que restringe o contato da quadra com a rua.
Quem passa pelo lado de fora não o que acontece do lado de dentro porque a
altura do muro associada ao rebaixamento do piso interno da quadra não permite
que o transeunte estabeleça contato visual com a quadra a partir da rua. Esta
quadra se encerra em si mesma, não estabelece contato com o lado de fora, não
convida ao contato, à visita. Para assistir ao jogo, o menino que, aparentemente,
não se sente à vontade para entrar na quadra, precisa subir em uma pedra e ficar
debruçado na mureta, enquanto a arquibancada interna permanece vazia.
“Esse cotidiano vivido pelos moradores controla de forma subjetiva as
crianças da redondeza ao intentarem se apropriar livremente do espaço.”
(COELHO, 2007:187)
Na figura que se segue observa-se que as crianças, em diferentes espaços,
repetem a mesma atitude observada na foto anterior, colocam-se do lado de fora
do campo para assistir o jogo, ao invés de entrar e sentarem-se nas
arquibancadas, que também permanecem vazias.
122
“Em verdade, os usuários privatizam o espaço público através da ereção
de barreiras simbólicas, por vezes invisíveis. O espaço público
transforma-se, portanto, em uma justaposição de espaços privatizados;
ele não é partilhado, mas, sobretudo, dividido entre os diferentes grupos.
Conseqüentemente, a acessibilidade não é mais generalizada, mas
limitada e controlada simbolicamente. (...) Os usuários do espaço
contribuem assim para a amplificação da esfera privada no espaço
público, fazendo emergir uma sorte de estranhamento mútuo de territórios
privados (...) A soma de processos de apropriação de um coletivo de
indivíduos não é suficiente para legitimar a noção de espaço público.”
(SERPA, 2004:33)
Como estas quadras e campos não se localizam em espaços fechados de clubes,
e sim na rua, tendo na sua origem a alcunha de “espaço comunitário”, estas
barreiras que carregam parecem retirá-las da categoria de “espaços livres
públicos”, pois estão sempre sob o domínio de “alguém” e não do público.
FIGURA 3.0
3
- Praça e quadras do
U
rbe Rocinha
Fotos: Danielle Klintowitz
123
“São cada vez mais reduzidos os espaços livres dentro do tecido urbano,
e as exigências de espaço da sociedade de serviço originam novas
propostas de ocupação e de uso do território, que vão significar sua
apropriação por parte de algum agente econômico e social, restringindo-
se cada vez mais o acesso ou a utilização livre pelo cidadão. Assim, este
cada vez mais vive e circula em ambientes controlados por terceiros, com
pouca ou nenhuma autonomia para utilizar o espaço conforme sua
inspiração.”
76
Além destas quadras “livres” existe, ainda, a “Quadra do Terreirão” que não é
“permitida” para qualquer pessoa. Este é um dos locais mais “proibidos” da
Rocinha, o acesso a esta quadra é controlado pelo tráfico de drogas em qualquer
dia e horário. Esta quadra foi construída pela organização do tráfico local e se
localiza em um dos pontos de seu domínio. Para usar esta quadra, que tem
também um parquinho infantil integrado, é preciso a autorização do poder local.
Os moradores falam do local com grande constrangimento e cuidado, pois o
simples revelar de sua localização para pessoas de fora da favela pode ser
entendido como uma falta grave.
“(...) códigos internos não escritos que marcam a presença nas favelas
cariocas do tráfico de drogas. Especificamente na Rocinha existia um
controle subjetivo de quando e onde as brincadeiras seriam “permitidas
por esse tipo de poder local (...) Em diversos casos vividos observamos
que o tráfico local sempre privilegia e cede espaço para as crianças
brincarem, porém a concessão somente ocorre na certeza de que elas
não tenham nenhum tipo de contato visual direto com o cotidiano do
tráfico.” (COELHO, 2007, 184)
Segundo Coelho, esta quadra apresenta um suporte físico extremamente rico às
brincadeiras infantis, é equipada com vestiários, arquibancada, cantina, terraço
panorâmico e mesas de sinuca e pingue-pongue. Apesar de “proibida”, a Quadra
do Terreirão é muito utilizada pelas crianças da comunidade que acabam tendo
uma “concessão especial” para o uso sob determinadas regras. (COELHO,
2007:187) As crianças, por sua vez, não parecem sentir muita diferença entre os
distintos níveis de dominação que se apresenta nas quadras. Para elas,
acostumadas a viver em um ambiente onde o tráfico de drogas e associações
têm uma existência onipresente, um local “proibido” pelo tráfico é apenas mais um
lugar com regras e donos como tantos outros locais de seus cotidianos.
“As crianças da Rocinha compreendem não somente essa regra, mas
igualmente têm domínio das regras de uso do que são os lugares
proibidos” Para elas é apenas um lugar que tem “outro dono”, porém é um
76
(PINA, Luiz Wilson. O Parque Lúdico: A construção de um novo conceito de brincar. In MIRANDA, Danilo
Santos de (org). O Parque e a Arquitetura: Uma proposta Lúdica. Campinas: Parirus, 1996: 35)
124
lugar aonde podem ir sob determinadas condições (quando o poder local
permitir).” (COELHO, 2007, 184)
Voltando ao percurso original, depois de passar pelo Urbe-Rocinha, chega-se ao
“Mercado Popular da Rocinha” (n°3 - mapa 11), um camelódromo criado, no
mesmo plano que implantou o Urbe-Rocinha. Apesar do projeto arquitetônico
deste equipamento não favorecer muito a interação social, este espaço costuma
ser um local de encontro entre a população da Rocinha e os outros habitantes da
cidade formal que vêm ao mercado fazer compras de produtos populares. Os
quiosques de vendas ficam voltados para o interior de uma “rua coberta” sob uma
lona tencionada e dão as costas para a avenida, criando um ambiente escuro,
muito quente e isolado, que produz uma desagradável sensação de insegurança
a quem passa por lá. O funcionamento deste camelódromo é contraria a lógica
usual dos camelôs que se instalam nas ruas urbanas. Normalmente os camelôs
ficam na rua voltados à passagem dos pedestres que, assim, são tentados a
comprar ao verem os produtos expostos. O projeto arquitetônico, além de
esteticamente parecer um corpo estranho à paisagem, acabou criando um
entrave no passeio, espaço público de circulação de pedestres e, a população
que não quer passar pela calçada transformada em “rua de barracas”, acabou
criando um caminho, pelo leito carroçável, externo ao mercado. As barracas
dominaram o espaço da calçada e, os pedestres dominaram o espaço dos
automóveis.
Nas duas tentativas de implantação de novos espaços de lazer e convívio na
fronteira entre a Rocinha e São Conrado, o Poder Público, talvez por
desconhecimento do cotidiano e práticas sócias desta comunidade e de seu
entorno, realizou intervenções que não conseguiram criar espaços blicos de
qualidade que possam ser apropriados integralmente pela população.
Perto deste mercado localiza-se o popular Largo dos Boiadeiros (n°4 - mapa 11),
ponto nevrálgico da comunidade. Antigamente este lugar era totalmente livre de
edificações e servia como ponto central para todas as festividades da
comunidade. Hoje, em sua área central, foi construído, pelos próprios moradores,
um pequeno mercado voltado para venda de produtos nordestinos, perdendo
suas características físicas de largo destinado a festas e encontros. Além do
mercado, ocupam a área muitos camelôs. Este ponto de camelô é mais
125
freqüentado do que o mercado popular. E por ainda estar perto da Auto-estrada
Lagoa-Barra, também recebe muitos visitantes dos bairros vizinhos que vêm
aproveitar os baixos preços dos camelôs e as iguarias nordestinas.
FIGURA 3.
4
– Mercado popular da Rocinha
Fonte: Arcoweb - http://www.arcoweb.com.br
FIGURA 3.
5
– Foto Aérea região Largo boiadeiros / Mercado Popular / Urbe-Rocinha
Fonte: Google Earth, 2007
Interpretação Danielle Klintowitz
126
Além dos camelôs, o Largo dos Boiadeiros tem também pequenas casas de
comida nordestina que vendem produtos e servem comidas típicas da região
originária da maior parte dos moradores da Rocinha. Este largo também se
caracteriza por uma intensa atividade noturna. À noite os restaurantes da região
transformam-se em bares, animando o Largo.
Apesar de sua função principal e originária, voltada às festividades comunitárias,
ter sido abandonada, o Largo dos Boiadeiros ainda congrega o encontro entre os
habitantes e continua enormemente apropriado pela população, sendo ainda uma
FIGURA 3.
7
– Largo dos Boadeiros a noite.
Fonte: Agência Olhares- – http://www.agenciaolhares.com
Foto: Ricardo de Jesus
FIGURA 3.
6
–Largo dos Boiadeiros
Fotos: Danielle Klintowitz
127
forte referência presente no imaginário dos habitantes da comunidade, que o
usam cotidianamente para suas compras e convivío.
“A cidade capitalista criou o centro de consumo. (...) Já é bem conhecido o
duplo caráter da centralidade capitalista: lugar de consumo e consumo de
lugar. (...) Esta centralidade se instala com predileção nos antigos
núcleos, nos espaços apropriados no decorrer da história anterior. (...)
Nestes lugares privilegiados, o consumidor também vem consumir o
espaço; o aglomerado dos objetos nas lojas, vitrinas, mostras, torna-se
razão e pretexto para a reunião das pessoas; elas vêem, olham, falam,
falam-se. E é o lugar de encontro, a partir do aglomerado das coisas.”
(LEFEBVRE, 2004:130-131)
Retornando, mais uma vez ao trajeto inicial, dobrando a esquina chega-se ao
outro portal de entrada da Rocinha: o Largo da Macumba (n°5 mapa 11). Ao
iniciar o morro, neste ponto, a rua faz uma curva, e a Rocinha se esconde atrás
da sub-estação de energia e por isto parece desaparecer, mas aparece
imponente novamente depois da curva onde o morro começa imediatamente a
subir vertiginosamente como se soubesse que ali começa a Rocinha.
Neste largo, que funciona como uma porta da comunidade para os veículos que
subirão o morro. Ali existem pontos de ônibus, de vans, lotações e moto-taxis.
Como o serviço de moto-taxi é muito utilizado na comunidade para se subir às
regiões de menor acessibilidade, este primeiro ponto permite que se comece o
trajeto desde o “pé do morro”. No ponto de ônibus e vãs que se localizam neste
ponto, passam ônibus que fazem parte das três linhas que percorrem toda a
Rocinha pela Estrada da Gávea, subindo o morro a partir deste local e descendo
pela Av. Marquês de São Vicente, na Gávea.
A
movimentação neste trecho é tão intensa e constante em volta dos pontos de
coletivos, com motos passando, ônibus e vãs disputando passageiros, pontos
cheios de gente, que um olhar distraído é capaz de nem perceber os prédios de
São Conrado no entorno e achar dentro da na Rocinha . Aqui, mais uma vez a
fronteira entre a Rocinha e São Conrado é fluida, não se sabe ao certo onde
começa um território e onde acaba o outro. Oficialmente, o Largo da Macumba
pertence aos domínios de São Conrado, mas na prática este lugar presta-se
muito mais à população da Rocinha do que a de seu vizinho. No largo quase
passam pessoas que moraram na Rocinha, dificilmente passa alguém que pareça
128
morar em o Conrado.
Os Moradores deste bairro não costumam andar por
estas ruas, muito menos pegar algum transporte oferecido no local.
Existem alguns projetos para transformar o Largo da Macumba em uma praça,
para que a interação entre os bairros aconteça de forma amena, este lugar deixe
de ser o de terminal intermodal, em que se transformou e, passe a ser um lugar
de lazer e convívio dos moradores dos dois bairros.
Neste ponto, ma rua divide o território entre Rocinha e São Conrado. De um lado
da rua, existem grandes edifícios de classe média alta, do outro, o morro da
Rocinha.
FIGURA 3.
9
– Largo da macumba
Foto: Danielle Klintowitz
FIGURA 3.
8
– Rocinha e São Conrado
Foto : Danielle Klintowitz
129
As poucas praças existentes na Rocinha são pequenas. Geralmente são espaços
livres renanescentes da ocupação que foram sendo transformados em lugares de
convivência. Na maior parte dos casos, não são espaços planejados, o que
demonstra que o desejo do espaço público é posterior à ocupação. Na lógica de
ocupação da favela, primeiro vem resolução da “necessidade sica” da
habitação e o que “sobra” torna-se espaço público.
FIGURA 3.
10
– Praças internas da Rocinha
Foto : Danielle Klintowitz
130
Trata-se de espaços, quase sempre, mal localizados e com pouca acessibilidade,
que se constituem, geralmente, por pequenos largos que se abrem na frente de
algumas casas, configurando praças de convivência local que servem ao lazer e
convívio dos moradores das redondezas. Muitas vezes estes espaços são um
hibrido entre um pátio coletivo e uma praça, servindo, em certos momentos, a
atividades domésticas e, em outras ocasiões, assumindo caráter público com
festividades e encontros comunitários.
Suas atividades se multiplicam e se sobrepõem. Enquanto mulheres conversam,
adolescentes jogam bola, algumas crianças brincam de pega-pega, outras sobem
no escorregador. Alheias a toda esta movimentação, pessoas circulam pelo
espaço entrando e saindo das biroscas enfrente às praças.
Muitos destes espaços têm biroscas, o que acaba servindo como atrativo às
pessoas da região. As biroscas são pequenos pontos de venda de bebidas e
outros itens de primeira necessidade que estão polvilhados por toda a Rocinha.
Estas vendas acabam se transformando em pontos de referência da comunidade,
funcionando, muitas vezes, como pontos de encontro e de estar. Na fotografia
abaixo se verifica que a birosca, através de uma cobertura e de um banco
estruturou-se como um espaço público de encontro para a comunidade.
As praças, como quase todos os espaços livres da Rocinha, também abrigam
comemorações comunitárias e se transformam recebendo grupos de música,
FIGURA 3.
11
– Biroscas
Foto: Danielle Klintowitz
131
enormes bolos para comemorar o dia das mães, bandeirinhas para o o João,
mesas de ping-pong para um campeonato. Estes espaços funcionam como
praças de vizinhança, cada morador freqüenta o espaço que fica mais próximo à
sua casa e convive com seus vizinhos. Como a semelhança morfológica entre
estes locais é grande e todos têm equipamentos semelhantes, não atraem
pessoas que estão distantes, pois é possível realizar atividades similares nos
ambientes próximos à suas residências. As festas que acontecem nestes lugares,
por outro lado, são grandes atrativos para as pessoas que moram mais distante.
Apesar de existirem espaços que foram totalmente apropriados e construídos
pelos moradores e associações sem ajuda do tráfico. Grande parte destas praças
existentes no miolo da Rocinha, foram “presentes” do tráfico à comunidade.
77
O
que significa dizer, que apesar da aparente descontração da apropriação de seus
usuários, estes espaços têm donos, têm regras, têm vigias. Muitas delas não
podem nem ao menos ser fotografadas. Estes “presentes” do tráfico podem
acontecer de diferentes maneiras: muitas vezes a comunidade constrói
originalmente um espaço e ao final recebe os equipamentos de presente; outras
vezes a praça toda é ofertada como presente; há ainda casos em que a
associação é “ajudada” pelos “amigos” em todas suas atividades e, por isso, seus
feitos acabam indiretamente constituindo-se também como “presentes”.
Ao percorrer estes espaços de lazer apropriados e “projetados” pela comunidade,
fica claro seu uso comunitário e coletivo e a grande freqüência de usuários,
entretanto, mais uma vez, um observador atento pode perceber que estes
espaços, assim como as quadras, têm excesso de controle, de regras, de
proibições e, por isso mesmo, a pouca possibilidade de improvisação,
característica usual dos espaços públicos intra-favela.
77
A relação do Tráfico com a favela da Rocinha é muito complexa, se por um lado o Tráfico exerce o papel
de algoz, ditando regras; executando sentenças; praticando todo tipo de violência; em outros momentos,
funciona como o provedor da comunidade que cuida de sua segurança; do acesso à saúde; de cestas
básicas e; também da construção de espaços coletivos de esporte, lazer e convívio; o que deveria ser uma
atribuição do Estado (Ver SOUZA: 2000 – cap. 4 e 5)
132
Subindo pela Estrada da Gávea, enquanto vai se imergindo por dentro da
peculiar paisagem, avista-se as garagens de ônibus da TAU. (n° 7/8 – mapa 11)
78
Estas garagens, por serem os dois maiores espaços livres existentes na
comunidade, geram muita expectativas na população sobre seu destino, que no
imaginário comunitário, ainda não está determinado. Em conversas com pessoas
da comunidade, sobre possíveis intervenções urbanas na Rocinha, estas
garagens são sempre lembradas como potenciais espaços de apropriação para a
instalação de equipamentos urbanos. O fato de estes dois espaços serem de
propriedade privada não traz nenhum constrangimento à população que os
entende como seus. Talvez isso possa ser explicado pela apropriação que a
comunidade venha fazendo destes locais. Uma vez por mês, estes lugares
adquirem seu desejado status de espaços públicos e são, às vezes um, às vezes
o outro, transformados em locais de show. Nestes momentos, os espaços são
cedidos integralmente à comunidade e a associação de moradores organiza
eventos que, segundo afirmação de um morador local, chegam a receber 150 mil
pessoas por noite, atraindo muitas pessoas de fora da Rocinha. O carro de som
que se ouvia em São Conrado, no capítulo anterior, anunciava juntamente um
destes shows que iria acontecer na noite seguinte.
78
A empresa de transporte coletivo Transportes Amigos Unidos (TAU) adquiriu os espaços, onde hoje
funcionam suas garagens, na década de 70 e logo depois, como o crescimento de suas linhas de ônibus,
passou a utilizá-los como garagem de ônibus. Hoje a empresa funciona em Ramos e na Rocinha. Fonte: Rio
Ôninus - www.rioonibus.com.
Figura 3.
12
- Foto aérea Garagens de ônibus
Fonte : Google Earth, 2007
Interpretação : Danielle Klintowitz
133
Continuando pela Estrada da Gávea, chega-se ao ponto central da Rocinha: A
quadra da Rua 01 (n°9 mapa 11). Quando se marca um encontro com alguém
da comunidade na parte de cima do morro, quase sempre este é o local
sugerido.
79
De se vai para todos os pontos facilmente. Neste lugar se
concentram os principais serviços públicos existentes na comunidade como
correio, posto de saúde, escritório da administração regional da XXV RA e, ainda
a antiga quadra da Escola de Samba que agora funciona como lugar de encontro
comunitário, de festas e campeonatos esportivos.
79
É clara a distinção que se faz entre os novos visitantes e visitantes “acostumados”. As primeiras vezes que
se vai a Rocinha, o “guia” costuma marcar o encontro na parte de baixo, e a subida é feita acompanhada.
Quando se foi várias vezes, o encontro passa a ser marcado em cima ( dentro da Rocinha), então
geralmente o visitante vai até o Lgo da Macumba e sobe de coletivo ou moto-taxi, que os táxis de rua da
cidade formal se recusam a subir o morro, aceitam apenas deixar o passageiro na Estrada Lagoa-Barra. É
como se fosse necessário passar por um período de incubação para poder estar “pronto” para adentrar o
território da Rocinha sozinho.
Figura 3.
13
vista da garagem da TAU
inserida na densa paisagem da Rocinha.
Fonte: site Imagens do Povo –
http://www.imagensdopovo.org.br
Fotos: J R Ripper
Figura
3.
14
Show na garagem da TAU
Fonte: http://www.flickr.com
134
O largo da Rua 1 (n°10 - mapa 11) é um entroncamento viário, definido por uma
confluência entre uma curva da Estrada da Gávea, a entrada da Rua 1 e pelo
começo da Subida do Labouriaux, mas como é uma área muito movimentada e
com comércio intenso acaba sendo também ocupado por camelôs e barracas de
venda de comidas rápidas. A qualquer hora que se passe por este lugar ele está
cheio de pessoas, carros, motos e ônibus. Ficar um período parado por
observando é uma experiência interessante para entender a sociabilidade
existente na comunidade. Neste lugar todos se encontram, todos se conhecem.
Sempre alguém se cumprimentando, parado no meio da rua para conversar,
chamando outra pessoa ao longe, mesmo quem passa em um veículo acaba
reconhecendo alguém pelo caminho. É um lugar com características de
passagem muito movimento, forte comércio, grande fluxo, não
equipamentos de estar mas que por ser um ponto referencial acaba se
tornando o lugar do encontro e da permanência. A partir do Largo da Rua 1 pode-
se subir para o Labouriaux
80
de onde se tem a vista mais bonita da região, por
seu o ponto mais alto da Rocinha. Neste setor existe um lugar em particular que
se caracteriza como mirante natural (n°11 - mapa anexo), de onde se pode
avistar ao mesmo tempo a praia de São Conrado, a Praia da Ipanema, o Cristo
80
O Laboriaux é uma região da Rocinha, que faz limite com a Gávea, que foi planejado pela Prefeitura
Municipal em 1971 para assentar 75 famílias que moravam nas margens do canal do Bairro do Barcelos, na
parte baixa da Rocinha, e que precisavam ser removidas porque se encontravam em áreas de risco e
inundação. Mas parte da população instalada vendeu seus imóveis e voltou para a antiga região que é mais
plana e perto da Estrada Lagoa-Barra. (ANDRADE: 2002, 91). A região do Labouriaux, por ter sido planejada,
em parte, pelo menos, conta com sistema viário definido em projeto, suas ruas são todas de paralelepípedo e
possibilitam, quase em sua totalidade a passagem de pequenos veículos ou motos. Calcula-se que hoje
morem certa de 7.000 pessoas na região que originariamente foi projetada para 75 famílias.
FIGURA 3.
15
– Largo da Rua 1
Foto : Danielle Klintowitz
135
Redentor, a Lagoa Rodrigo de Freitas, a Floresta da Tijuca e o Morro Dois
Irmãos. Curiosamente este local não é tão valorizado, e nem apropriado como
mirante. Na comunidade não existem equipamentos destinados à contemplação e
não se muita gente parada por ali admirando a vista. O que se são apenas
algumas crianças brincando nas árvores, que nesta região, que encosta na
Floresta da Tijuca, são de fácil acesso. Luciana Andrade observou a mesma
questão em seu trabalho:
“Considerando que as vistas das montanhas, da malha urbana e do mar
são parte das importantes atrações turísticas da Cidade do Rio de
Janeiro, os moradores da Rocinha são privilegiados ao terem condições
de desfrutar deste panorama de diferentes pontos dos espaços coletivos
não-edificados. Entretanto a constituição destes espaços na favela não
têm como meta resguardar e valorizar a vista para a população. (...) dos
73 entrevistados, apenas 6 revelaram que elas (paisagens) são
importantes nos seus cotidianos, o que aponta a dimensão cultural da
pouca valorização das vistas. (...) A questão do acesso às perspectivas
visuais, uma espécie de amenidade urbana,mostram que as
potencialidades do sítio são subaproveitadas(ANDRADE, 2002:171-172)
FIGURA
3.
16
– Mirante do Labouriaux
Foto : Danielle Klintowitz
FIGURA 3.
17
– Vistas da Lagoa Rodrigo de Freitas e da Floresta da Tijuca
Fotos: Danielle Klintowitz
136
Entretanto, apesar de as vistas não serem aproveitadas para construção ou
apropriação de mirantes naturais que favoreceriam a contemplação da
deslumbrante paisagem oferecida pela privilegiada localização da Rocinha, não
significa que a população da Rocinha não perceba, admire e valorize a paisagem.
No trecho abaixo a moradora Hosana Pereira afirma a importância da vista para a
população da comunidade:
“Um outro transtorno que afeta a sociabilidade decorre da obstrução da
paisagem (visual) que alguns moradores têm o privilégio de contemplar
por morar na parte alta da favela. Quando um morador projeta uma janela
em sua casa voltada para a vista da Lagoa Rodrigo de Freitas ou para a
praia de São Conrado, nesse momento sente-se privilegiado em morar na
favela e por desfrutar desse prazer (que muitos turistas procuram quando
visitam a Rocinha). Construir uma parede obstruindo a visão da paisagem
gera um grande motivo para conflitos entre vizinhos.” (PEREIRA, 2007:
37)
Confirmando a importância do visual para os moradores da comunidade,
Gerônimo Leitão afirma que a vista é também um fator que influencia na
valorização dos imóveis na comunidade. (LEITÃO, 2004). Sendo assim, a
primeira impressão dos pesquisadores sobre a desvalorização geral da vista por
parte da comunidade mostra-se equivocada. A falta de mirantes estruturados
diante de uma paisagem tão deslumbrante realmente choca o olhar estrangeiro,
que por não tê-la cotidianamente, imagina imediatamente equipamentos para
admirá-la. A população da Rocinha, por ter acesso à vista cotidianamente, tem
com ela outra relação. Os mirantes na Rocinha existem, mas são em geral
privados. Não estruturas públicas para contemplar a paisagem, mas a vista é
admirada cotidianamente através das janelas e lajes, que são mirantes naturais e
peculiares deste território.
Abandonando o percurso pela Estrada da Gávea, entra-se na Rua 1 (n°12 – mapa
11)
81
com destino às regiões mais desestruturadas da Rocinha, onde a paisagem
se compõe basicamente por becos e vielas, que serão percorridos no capítulo 4.
Ao andar pela Rocinha percebe-se que o limite entre o que é espaço público e
privado é muito tênue e pode ser subvertido a qualquer momento. O habitante
desta comunidade parece muito à vontade para se apropriar de qualquer tipo de
81
A Rua 1, a despeito do nome e do fato de sua origem ser atribuída a um dos loteamentos que ocorreu na
Rocinha consiste em um longo beco que corta diferentes setores e liga o ponto mais alto da Estrada da
Gávea ao Bairro Barcelos.” (SEGALA:2001)
137
espaço que esteja disponível para as atividades cotidianas. Da mesma forma, o
espaço privado pode facilmente ter uma apropriação coletiva de uma hora para
outra. Em alguns momentos estas apropriações dos espaços públicos ou
privados, podem ser entendidas como de esfera de vida social e não esfera de
vida pública, que são apropriações coletivas apenas para um grupo social e
não para o público em geral, o que no caso de um espaço público, o afastaria de
seu sentido de publicidade e no caso de um espaço privado não o tornaria
público.
82
O público e o privado se confundem na Rocinha, e esbarram, muitas vezes, na
esfera de vida social, outras na esfera de vida pública. Os espaços na Rocinha
parecem ter uma vida “hibrida”, ora estão funcionando na esfera de vida pública,
ora na esfera de vida social, ora na esfera de vida privada. Suas funções e
vivências são ltiplas, estão em constante mutação, dependem do momento e
do tipo de apropriação. Na Rocinha, muitos espaços se transformam no tempo,
não são espaços que ficam inertes, caracterizam-se justamente pela vitalidade de
funções e apropriações que propiciam. Talvez, esta “mistura” de usos e funções
dos espaços públicos e privados na Rocinha venha, em parte, de sua formação.
A própria constituição histórica desta comunidade é a da tradição da apropriação
83
dos
“espaços disponíveis” onde cada morador foi construindo sua casa e pouco a pouco
adensando a região.
Os espaços públicos que existem se constituíram, em sua
maioria, pela apropriação da comunidade (moradores, lideres comunitários,
tráfico) que transformaram o espaço disponível em praças, quadras, ruas, vielas.
E, por ter uma constituição não “oficial”, não m o mesmo grau de legitimidade
de espaço público para todos habitantes daquela comunidade.
82
Nas sociedades ocidentais, além da esfera de vida pública e de sua oposta e complementar esfera de
vida privada, vem se estabelecendo uma esfera social, própria das formações sócio-espaciais capitalistas. A
esfera de vida social atravessa tanto o mundo do trabalho como o do ócio, trata-se da vida em grupos sociais
relativamente homogêneos, mais numerosos que os integrantes da vida privada e menos heterogêneos que
os necessários para a caracterização da esfera como pública. (...) uma ação própria da esfera pública não
precisa ser partilhada por todos, mas por vários grupos sociais, pode-se mesmo falar em “graus de
publicidade” em função do maior ou menor número de grupos sociais envolvidos em determinado sistema de
ações da esfera pública.” (QUEIROGA: 2006, p.133)
83
O uso da palavra “apropriação” ao invés do usual “invasão” é proposital, pois o segundo termo, usado
comumente para se referir a assentamentos irregulares, traz consigo o significado de usurpação violenta e,
pior de não pertencimento ao território, à cidade. Alguns vocábulos do cotidiano da cidade que refletem a
dinâmica de exclusão existente devem ser usados com muito cuidado.
138
É claro que o espaço público tem graduações de publicidade, não perdendo, com
isso, sua designação de espaço de vivência da esfera de vida pública.
Dificilmente se encontra na cidade contemporânea o espaço público “absoluto” de
que falavam Hanna Arendt e Habermas
84
, então, faz-se necessário novas análises
e entendimentos das possibilidades espaciais e de sociabilidade na cidade atual.
Para Queiroga:
“(...) trata-se mais de transformações na esfera de vida pública que de seu
inexorável declínio. Atentar para as práticas espaciais atuais permitirá
identificar possibilidades de planejamento e gestão do território,
superando o dilema entre a visão saudosista das qualidades da cidade
tradicional e uma posição liberal afirmativa das benesses da eficaz gestão
privada dos espaços urbanos.”
(QUEIROGA, 2006:132)
Na Rocinha isso fica claro. Os mesmo espaços podem ser vivenciados
diariamente nas três esferas de vida (social, pública e privada) em momentos
diferentes, como práticas sociais diferentes. Em alguns momentos, esta mistura
de esferas de vida que atuam em um mesmo espaço podem causar conflitos,
entretanto, não impede que estes espaços desempenhem importantes funções
públicas de sociabilidade dentro da comunidade, afinal, também faz parte da
vivência pública as disputas e resoluções de conflitos.
“(...) difícil seria imaginar qualquer processo de apropriação de um bem
coletivo sem dissensões e discordâncias. Sem choques, resultantes da
própria dinâmica do sistema. (...) A comunidade convive com o dissenso.
Esta convivência torna possível o restabelecimento de um equilíbrio. Mas
não existe apenas um equilíbrio, ao qual se retornaria sempre, como num
sistema homeostático. O confronto e o conflito, resultam invariavelmente
da performance do sistema, permitem a incorporação do evento, da
novidade, da forma inédita, abrindo o caminho para as transformações do
próprio sistema.” (C.SANTOS, 1985:105)
84
Segundo Hannah Arendt (2005:47), o termo público significa, em primeiro lugar, tudo o que vem a público
pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível.” Para Habermas: Chamamos de
“públicos” certos eventos quando eles, em contraposição às sociedades fechadas, são acessíveis a qualquer
um – assim como falamos de locais públicos ou de casas públicas. (...) Na cidade-estado grega desenvolvida,
a esfera polis que é comum aos cidadãos livres (koiné) é rigorosamente separada da esfera do oikos, que é
particular a cada individuo (idia).(HABERMAS:2003:14 -15). Outros autores entendem, ainda, a esfera de
vida pública como o conjunto de práticas sociais que associadas a uma certa disposição física, fundam o
espaço público. (ANDRADE, 2002:06).
FOTO AÉREA ROCINHA-MAPA
1
13
2
5
4
7
9
10
11
6
12
8
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
3
TúnelZuzuAngel
Urbe-Rocinha
Mercadopopular
LargodoBoaiadeiros
LargodaMacumba
PraçaLaboriaux
GaragemTau01
GaragemTau02
LargoRua1
QuadraRua1
MiranteLaboriaux
EntradaRua1
PraçaVilaCruzado
FONTE :GOVERNODOESTADODORIODEJANEIRO
INTERPRETAÇÃO:DANIELLE KLINTOWITZ
N
11
3.2.
3.2.3.2.
3.2.
CONQUISTA DA VITA ACTIVA E
CONQUISTA DA VITA ACTIVA E CONQUISTA DA VITA ACTIVA E
CONQUISTA DA VITA ACTIVA E RELAÇÕES DE PODER
RELAÇÕES DE PODER RELAÇÕES DE PODER
RELAÇÕES DE PODER
NO ESPAÇO PÚBLICO
NO ESPAÇO PÚBLICONO ESPAÇO PÚBLICO
NO ESPAÇO PÚBLICO
Na Rocinha o espaço público tem muitos donos e a sociabilidade da comunidade
se relaciona diretamente com esta dominação de seu território. Os espaços são
vividos de acordo com as regras internas estabelecidas. E apesar destas regras
serem criados e estabelecidos dentro da própria comunidade, na maioria das
vezes, não podem ser negociados e sua desobediência pode trazer rias
conseqüências. Embora aparentemente esta dominação presente refira-se
apenas ao tráfico de drogas, isto não é verdade. O território é disputado por
muitas forças dentro e grande parte destas disputas reflete-se na dominação do
espaço público que é um símbolo de poder dentro da comunidade.
“A associação e seus líderes representam a comunidade junto às
estruturas administrativas formais do município ou do estado e cumprem o
papel de “mediadoresperante a sociedade. À medida que os grupos de
traficantes se tornam mais poderosos nas favelas, aumenta a tensão
diante da ameaça real ou potencial, à autoridade eleita.”
(LEEDS,2004:250)
A evolução histórica da Rocinha demonstra que a comunidade constituiu-se
através da institucionalização de diferentes poderes locais que exerciam
diferentes esferas de dominações sobre a população e seu território. A história de
ocupação do território Rocinha foi sendo construída paralelamente à ao
desenvolvimento comunitário e a conquista e consolidação de seu espaço político
na cidade. Este paralelismo gerou grandes contradições internas, pois ao mesmo
tempo em que se conquistava mais urbanidade para o território, se estabelecia
fortes relações de poder e dominação sobre o mesmo território.
Observa-se desde o inicio da ocupação da Rocinha uma grande disputa em torno
do poder. No início, as disputas se davam em bases pessoais, entre os próprios
moradores que entravam em conflito sobre as formas de ocupação da região. Os
primeiros moradores que haviam comprado um terreno do loteamento original não
aceitavam com facilidade a vinda de novos moradores, que eram chamados de
“os invasores”. Consideravam que a expansão territorial, feita através da invasão
141
de terras, desvalorizava a comunidade e contribuía para a imagem de espaço
marginal.
Com a intensificação das invasões começaram a surgir tensões entres os
proprietários de lotes e os invasores. Grande parte destas tensões eram
originadas pela dualidade de entendimento sobre o território que dividiam. Os
invasores, em sua maioria migrantes, eram, de modo geral, homens sozinhos,
solteiros ou casados que haviam deixado suas famílias nas cidades de origem e,
que imaginavam estabelecer-se neste território provisoriamente a fim de
adquirirem melhores condições de vida e então, buscar suas famílias,
constituí-las ou voltarem para sua terra natal. Mas, enquanto os migrantes
constituíam um território que julgavam provisório, os proprietários tinham a
intenção de fixar-se e construir uma comunidade. Como não haviam normas que
determinassem como se deveria dar a ocupação do território e que pudessem
pontuar a solução de disputas entre moradores, pouco a pouco a população foi
criando um código próprio de gestão de sua comunidade.
“Estruturaram-se, internamente, sistema de arbitragem e acordos
informais caracterizados como a lei do morro no sentido de controlar
as rixas entre vizinhos, muitas vezes inevitáveis, e assegurar a fixação no
local.” (SEGALA: 1991, 91)
85
Com o passar do tempo as normas comunitárias e o sistema paralelo de
legitimação foram se tornando mais sofisticados e fortalecidos pelo surgimento de
associações voluntárias e entidades, principalmente religiosas, que se instalaram
na Rocinha, contribuindo para o reconhecimento daquele território como espaço
legítimo de moradia. (ANDRADE: 2002) Este processo de “politização” foi
generalizado entre as favelas cariocas, e durou até a década de 60,
transformando fortemente as redes internas de relações, solidariedade e
organização do morro. A rede de parentesco foi perdendo força com o
crescimento de novas lógicas e interesses contraditórios ligados à política supra-
local”. (SEGALA: 1991:102) À medida que a Rocinha foi crescendo as redes de
relações pessoais, os acordos e contratos sociais foram mudando de escala,
passando da escala do convívio e da vizinhança para a escala da comunidade
85
Grifo da autora
142
como um todo e assim, foram sendo criados sistemas de legitimação e ordenação
das práticas sociais.
A dinâmica de acordos sociais tornou-se mais complexa com a entrada de
associações voluntárias, em especial instituições religiosas, que se instalaram a
partir da década de 1930 nas principais favelas cariocas.
“Ao se entrarem nestes assentamentos, estas associações [religiosas]
contribuem para o reconhecimento da favela enquanto lugar legítimo de
moradia.” (ANDRADE, 2002:67)
Em meados da década de 1940, com a abertura política decorrente do fim do
Estado Novo, as favelas cariocas tornaram-se importantes redutos eleitorais,
favorecendo o aparecimento de práticas clientelistas e, por outro lado,
possibilitando que as vozes de reivindicação do morro fossem ouvidas pelo
asfalto por meio da reprodução de redes políticas nas favelas com a atuação da
Fundação Leão XIII, na ocasião vinculada à Igreja Católica e do próprio governo.
(SEGALA, 1991) Exatamente neste momento, é que, impulsionadas também pela
Fundação Leão XIII, começaram a ser formadas as primeiras associações de
moradores que lutavam pelas melhorias nas condições de vida nas favelas.
“As associações de moradores, ao contrário das agremiações
carnavalescas e dos times de futebol, têm sua história vinculada à
intervenção do Estado e da Igreja Católica junto à população favelada. Os
conselhos de moradores foram criaturas da Fundação Leão XIII, que na
década de 50 começou a fundá-los a partir da favela da Praia do Pinto no
Leblon. Naquela época, o projeto assistencialista da Fundação tinha por
finalidade promover a “elevação moral e cultural” dos favelados através da
“participação organizada” e “do próprio esforço do favelado”, buscando
finalmente “integrá-lo à sociedade”.” (ZALUAR,2000:180)
O período de “politização” das favelas, que durou até meados da década de 1960,
transformou inteiramente suas redes de relações. As relações de parentesco
perderam o valor na ocupação do morro, dando lugar à lógicas e interesses
contraditórios ligados à política supra-local”, que acabaram por acentuar o
caráter segmentado da organização social do morro” (SEGALA, 1991:102)
143
“Até pelo menos 1982, as associações de moradores abriam-se a tutela
do Estado através de suas ligações com os Centros Sociais e Urbanos e
com os políticos clientelistas, intermediários do governo estadual. O que
se passa hoje, não sei.” (ZALUAR,2000:180)
Aparece, durante este processo, a figura, denominada por Segala (1991), de o
dono do morro”. O segmento social dos “donos do morro” era formado por
antigos moradores da Rocinha que apresentavam condições sócio-econômicas
superiores a dos “invasores” e que se aproveitava de sua longevidade na área
para dominar os serviços oferecidos na comunidade, como água e luz elétrica
fornecidos por redes coletivas, mediante o pagamento de taxas, formando, assim
as “sociedades” de água e luz. Os donos do morro” conquistaram também o
status de representantes do morro, não tendo, contudo, o interesse efetivo no
melhoramento coletivo e na alteração das condições da favela, o que poderia
acarretar na perda de seu poder e conseqüentemente de sua situação privilegiada
no morro.
“A atuação destes agentes [donos do morro] junto ao poder público,
especialmente em época de eleições, estava ligada a conquistas de
benfeitorias que não implicassem o comprometimento do seu controle
sobre a prestação de serviços coletivos aos favelados. Desse modo, as
propostas mais eficazes de integração da favela com o “asfaltonão eram
bem vindas.(ANDRADE, 2002:68)
Percebe-se assim, que a ausência de infraestrutura e de agências externas que
fornecessem os serviços públicos não era ocasionada apenas pela falta de
interesse dos órgãos públicos, mas encontrava resistência também em agentes
internos. Machado Silva define estes agentes como burguesia favelada que
monopoliza o acesso, controle e manipulação dos recursos econômicos e as
decisões e contatos políticos”. (SILVA, 1967:37 apud SEGALA,1991:104)
“Tornar-se um intermediário entre o Estado e os políticos, de um lado, e
os moradores, de outro, é indiscutível fonte de prestígio e de poder. Por
isso mesmo, a liderança intermediária é objeto de disputa.
(ZALUAR,2000:194)
Em 1961 foi criada a associação de moradores, União Pró-melhoramentos dos
Moradores da Rocinha - UPMMR, que passou a atuar como intermediária entre a
população e o governo, funcionando como uma espécie de governo local.
“Meio governo meio representante dos moradores, as diretorias da
Associação tentavam por diversas maneiras aproximar a Lei do Morro e
144
a Lei do Asfalto. A primeira diretoria tentou urbanizar o local, mesmo fora
de licença permitindo algumas obras em alvenaria.”
86
(SEGALA, 1991:119)
Justamente nesta época verificou-se o início da substituição dos barracos de
madeira por alvenaria, com grande incentivo da Associação de Moradores, que
enxergava neste feito a irreversível consolidação da favela.
“De fato, diretores da Associação de Moradores distribuíram licenças para
a construção aos moradores, tirando partido da legitimidade oficial que o
vínculo com a Fundação Leão XIII lhes dava.(ANDRADE,2002:69)
“(...) neste processo de licença, como em outros, a lei do asfalto era
recriada no espaço ilegal da favela, legalizando-o de outra forma frente
aos moradores.
87
(SEGALA, 1991:121)
Em 1964, com o golpe militar, o vínculo com os políticos foi rompido na Rocinha e
seus moradores perceberam a necessidade urgente da união comunitária para o
enfrentamento do risco de remoção das favelas que se alastrava pela cidade.
88
Nesta época, o atual Bairro do Barcelos estava sendo loteado e por apresentar
condições de urbanização adequada com pavimentação e redes de água e luz, foi
estrategicamente utilizado pela Associação de Moradores para que o Poder
Público reconhecesse a área como um bairro da cidade, o que facilitaria o
esvaziamento das tentativas de remoção das áreas próximas pertencentes à
comunidade.
No final da década de 1970, com o início da reabertura política, os votos das
populações faveladas voltaram a ser significativos na cena política e ressurgem
as políticas clientelistas na Rocinha. Em 1979 é criada a Secretaria de
Desenvolvimento Social do Rio de Janeiro que trazia, desde sua origem, um novo
conceito para as propostas de urbanização das favelas, que não sugeriam, como
as propostas anteriores, novos desenhos viários com a demolição das casas
existentes. A nova secretaria propunha uma “nova concepção de urbanização à
nível mais restrito, como prestação de serviços básicos.” (SEGALA,1991:349)
86
Grifo da Autora
87
Grifo da Autora
88
De 1962 a 1964 Carlos Lacerda removeu, total e parcialmente, 27 favelas, deslocando, no total, 41.948
moradores. Depois do Golpe militar, 1964, a política remocionista continuou sendo aplicada, sendo que com
o golpe, houve um grande esvaziamento das práticas políticas clientelistas e eleitoreiras, o que fragilizou
ainda mais a resistência às ações de remoção. (SEGALA, 1991 e ANDRADE,2002)
145
Enquanto o Poder Público se ocuparia dos espaços públicos, os moradores
seriam responsáveis pela melhoria das condições de sua moradia.
Em 1980, a Rocinha foi escolhida como favela piloto de um programa de
urbanização de favelas, o Projeto Rocinha, desenvolvido pela Secretaria de
Desenvolvimento Social do Rio de Janeiro. Mas as lideranças da comunidade
não souberam aproveitar a oportunidade para se fortalecer politicamente e
apresentaram-se muito fragmentadas demarcando os múltiplos interesses que
norteavam os moradores. Segundo Lígia Segala (1991), a implantação do Projeto
Rocinha foi marcado por desmandos políticos e acordos politiqueiros que
deixavam de lado os aspectos técnicos. Segundo Andrade:
“A exploração clientelista de políticos e de alguns moradores que se
valeram, em diferentes momentos da história, dos problemas da favela
para atrelar seu nome ao fornecimento de serviços públicos, fortalecendo
o caráter relacional no interior da favela. As políticas sociais que traziam,
em seu bojo, a possibilidade de promoção da constrição de espaços
públicos ocorreram sempre em proporções tímidas, se comparadas ao
fortalecimento da oposição favela x asfalto.(ANDRADE,2002:77)
A partir da cada de 80, com territorialização do tráfico de drogas, o poder das
associações de bairro passa a ser duramente disputado pelas organizações
criminosas que dependem da dominação do território para preservação de seus
negócios. Atualmente, os traficantes e seus respectivos comandos que o
conhecidos como os “Donos do Morros” ou “Donos das Favelas”. A dominação do
território das favelas cariocas é tão grande que seus moradores evitam freqüentar
favelas de facções opostas.
“(...) um líder comunitário que ia realizar um trabalho em uma outra favela,
“controlada pelo CV [comando vermelho] e, portanto, teoricamente
inimiga do pessoal de Acari, foi consultar Jorge Luís [chefe do tráfico de
Acari] (...) O “bom relacionamento”, a proximidade de que este líder
desfrutava junto ao chefe do tráfico, permitiu-lhe fazer a consulta para
assegurar-lhe de que tudo correria bem. Na maioria dos casos, entretanto,
os moradores e mesmo os lideres comunitários evitam circular ou manter
vínculos de qualquer espécie com pessoas ou instituições de outras
favelas “controladas por outra facção”(...) Não é preciso uma proibição, o
146
medo é que faz que as pessoas tratem de evitar estes contatos.”
89
(ALVITO, 2001:82)
Se de um lado o tráfico se coloca na posição de Dono do Morro e determina a
qual comando aquela favela estará vinculada, por outro, os próprios moradores
assumem para si a identificação com seus comandos e suas rivalidades como
forma de pertencimento à localidade.
“Em suma, embora inexistentes enquanto grupos do crime organizado, as
“facções vão se tornando emblemas identitários que servem como
referencial importante para estes grupos de jovens.”(ALVITO,2001:85)
Ao mesmo tempo, ao reforçar a imagem dos comandos organizados, tanto a
Policia Militar quanto a imprensa proporcionam toda uma estratégia simbólica a
este grupos dispersos, a estas quadrilhas locais em boa parte compostas por
adolescentes” (ALVITO,2001:89) e permitem que estes grupos adquiram uma
força de dominação maior do simplesmente seu arsenal armamentíssio: os imbui
do poder simbólico.
“Por dedicar-se a uma atividade ilegal, a quadrilha tem que organizar-se
informalmente, recorrendo á “a parentada, à amizade, ao ritual, ao
cerimonial e a muitas outras atividades ou padrões simbólicos implícitos
naquilo que se reconhece com estilo de vida” (COHEN,1978:89). Em
outras palavras grupos dispersos e desorganizados, ao serem imaginados
pelo aparelho de segurança pública como parte de organizações ou
“facções” compondo verdadeiros exércitos, começam a porta-se como
tal.” (ALVITO,2001: 89)
90
Uma das conseqüências observadas pela territoralização do tráfico de drogas nas
favelas é a dominação dos “espaços públicos” por estes criminosos que passam a
determinar os usos e ocupações que podem ou não ser dados a tais espaços.
Muitos destes espaços, inclusive, foram “presentes” oferecidos pelas
89
No Rio de Janeiro existem três “Comandos” de facções criminosas que controlam o tráfico de drogas na
cidade e que disputam entre si o domínio dos territórios das favelas existentes. São eles : Comando
Vermelho (que controla da Rocinha), Terceiro Comando e Amigos dos Amigos. Em verdade, existem
algumas controvérsias sobre a origem e a real organização dos comandos, alguns autores acreditam que a
denominação dos comando foi criação da própria policia militar e acabou sendo incorporada pelos chefes do
tráfico das favelas. O que é certo é que atualmente as favelas são identificadas e se “auto-
denominam”pertencentes a determinado comando. Afinal, o que são estas facções: CV e TC? Trata-se,
sobretudo, de uma rede de relacionamentos pessoais ou, na lúcida imagem formulada por Caio Ferraz
(VENTURA,1994:188), “é uma espécie de compadrio”. E na lógica das oposições binárias, o amigo do teu
amigo é teu amigo e o o inimigo do teu amigo é teu inimigo. (...) O que existe, na realidade, é somente um
conjunto de alianças estabelecido por cada um dos “chefes” locais do tráfico com outros chefes que da
mesma forma, têm determinados aliados e inimigos e assim sucessivamente.(...) São alianças localizadas
que levam ao “pertencimento” a um comando e não o contrário, embora, a posteriori pareça ser assim.(...)
Todavia, CV e TC têm hoje a força de representações coletivas
(...) ”(ALVITO, 2001:82-83) (grifos do autor)
90
Grifos do autor
147
organizações criminosas às comunidades e, assim, já nascem dominados. A
convivência da cidade informal com o tráfico de drogas estabelece uma
complicada relação nas questões de “publicidade” dos espaços desta
comunidade, pois, cria regras de conduta e de acesso que restringem algumas
práticas e encontros, limitando assim, a vivência na esfera de vida pública nestes
territórios.
“(...) na ausência de normas que regulamentem o direito de cada um, a
tendência natural é o uso de todos os artifícios, entre os mais comuns a
força ou a intimidação, para maximizar os interesses particulares daquele
que o mobiliza.” (GOMES, 2002: 177)
A existência de todas de variáveis como pobreza, criminalidade, dominação e
ausência do Estado, conectadas a um espaço de extrema precariedade urbana
propiciam o que pode-se chamar de produção de espaço criminoso, isto é, a
produção de um território urbano que por suas características morfológicas e
sociais favorece a gênesis e existência de organizações criminosas e relações de
dominação que têm no próprio espaço a perpetuação de sua existência, tanto
pela cooptação de novos membros para organização, como pela segurança de
sua permanência neste espaço.
“A topografia da favela e suas formas de ocupação (se tem ruas largas e
urbanizáveis ou becos sinuosos, preferidos pelos traficantes) auxiliam sua
“conveniência para a atividade ilegal. (...) Das 500 favelas e conjuntos
habitacionais populares do município carioca (excluindo os municípios da
áreas metropolitana periférica), praticamente todas têm grupos de
traficantes de drogas” (LEEDS, 2004:240-241)
Os traficantes acabam territorializando os espaços dos morros e favelas cariocas,
porque, além de espacialmente favoráveis pela falta de urbanidade, que
segurança às quadrilhas, a falta de auto-estima da população permite que a
dominação seja aceita com mais facilidade. As condições de vida nestes
assentamentos, não pelo espaço desordenado e abandonado, mas também
pela insuficiência de recursos financeiros advindos do trabalho e investimentos
públicos, precarizam seus habitantes, transformando-os em sujeitos vulneráveis.
Como outros assentamentos informais, a Rocinha, apesar de extremamente bem
localizada dentro do cenário urbano carioca, tem, ainda hoje, muitas dificuldades
de acessibilidade devido a falta de investimentos públicos em infra-estrutura.
Estas dificuldades inibem o exercício da cidadania do residente da comunidade,
148
impedindo o acesso a serviços como o dos correios com o recebimento de
correspondências, contas e entregas de mercadorias compradas no corcio
formal e, dificulta também a obtenção de crédito em lojas. Lefebvre
(2001:20)
escreve que:
“Se se definir a realidade urbana pela dependência em relação ao centro,
os subúrbios o urbanos. Se se definir a ordem por uma relação
perceptível (legível) entre a centralização e a periferia, os subúrbios são
desubarnizados.”
Assim, pode-se pensar na Rocinha como um “subúrbio/periferia”, pois, apesar de
estar inserida no miolo do cenário urbano da Zona Sul, não conta com os
privilégios da avançada infra-estrutura da classe média carioca. Logo, viver na
Rocinha é ser, para muitos, um indivíduo “sem endereço”, e a impossibilidade de
exercer atos simples da vida cotidiana, reafirma a identidade negativa,
potencializadora da vulnerabilidade. Além disso, apresentar a Rocinha como
residência, significava quase uma imediata discriminação social, logo, muitos
moradores a negam, assumindo, por vezes, endereços de parentes e amigos “do
asfalto”, ou a substituem pelo bairro vizinho São Conrado. Nesta comunidade,
como em tantas outras espalhadas pelo país, produz-se “cidadãos de segunda
classe”, que não podem exercer plenamente seus direitos.
“O tráfico de varejo se disseminou a partir da década de 90, utilizando em
larga escala espaços pobres (favelas, loteamentos periféricos, conjuntos
habitacionais) como bases de apoio logístico. Estes espaços pobres,
antes vinculados essencialmente ao comércio rotineiro de maconha, um
comércio de lucratividade relativamente baixa, protagonizado por
delinqüentes desorganizados e protegido com armamento de baixo custo
(armas brancas, um ou outro revolver), passaram, nos últimos anos, a ser
pontos de apoio para o florescente comércio de varejo de cocaína,
gerenciado localmente por quadrilhas mais bem estruturadas e equipadas
com armamento cada vez mais sofisticado e pesado.(SOUZA, 2000: 50-
51)
Como o Estado não provê os bens de consumo coletivos necessários à
sobrevivência da população favelada, mantendo-os em uma situação de “não-
cidadãos”, permite que o tráfico comece a suprir as funções que, por pressuposto,
cabem ao governo. Lucio Kowarick (1993:71) afirma que:
“A precariedade das condições de vida, por si só, já torna temerário
classificar o favelado como um cidadão urbano. Mas não é somente sob
este aspecto que a cidadania, entendida como um rol mínimo e
imprescindível de direitos está ausente. Se para o morador urbano existe
a possibilidade de tentar formas de organização que visem impedir a
149
expulsão dos locais onde habita ou pressionar os centros decisórios a fim
de obter, para seus bairros, a melhoria dos serviços coletivos, para o
favelado até o exercício desse aspecto nimo de cidadania está
comprometido.
O Estado tem, por excelência, na cidade contemporânea, o monopólio da
repressão, da justiça, da provisão de bens de uso coletivo e de regulação. Esta
questão torna-se mais grave, quando o Estado além de não prover os bens de
uso coletivo e de regulação, não provê ainda segurança urbana a esta população,
abrindo espaço para que, em muitos destes territórios, o tráfico de drogas o faça.
Com isso, as organizações criminosas passam a exercer o monopólio da violência
e da repressão. Exercem, ainda, o poder de justiça, de regulação e tornam-se a
lei, além de os mantenedores de muitos bens de consumo coletivo, tais como
praças, escolas e postos de saúde.
“Os lideres do tráfico de drogas de varejo dependem da violência
(intimidação) para manter uma certa disciplina e garantir uma certa
lealdade, que, sendo protagonistas de uma atividade ilegal, eles não
podem buscar respaldo na lei e na polícia.
91
Assim, a insegurança social não é uma prerrogativa dos moradores da cidade
formal, os moradores de assentamentos irregulares convivem com dois tipos de
violência, a do policial e a do traficante. Estes moradores têm a consciência de
que residir nestes espaços marginalizados significa poder ter, de repente, uma
“inversão" de funções da polícia que pode invadir sua casa ou então capturá-los
como transgressores, mesmo sem provas. Um morador da favela, portando
documento de identidade ou de trabalho, ou trajando roupa suja de tinta e
cimento, característica da construção civil, pode ser considerado suspeito de
criminalidade e conduzido à delegacia, como se o ônus da prova coubesse ao
acusado e não ao acusador. Esses episódios denotam um desrespeito aos ideais
de cidadania, pois para estas comunidades não valem, em realidade, as mesmas
leis que organizavam a vida social das camadas médias cariocas.
“(...) mais do que a diferença na percepção da natureza da violência,
ocorre uma grande diversidade no grau de tolerância com suas
manifestações. Assim, determinadas práticas são consideradas
inaceitáveis para outros. Essas diferenças revelam-se na aceitação - ou
não – dos métodos utilizados pela polícia no combate ao tráfico de drogas
91
ZALUAR, Alba. Violência, crime organizado e poder: a tragédia brasileira e seus desafios, p. 18-19 In
VELLOSO, João Paulo dos Reis (org.). Governabilidade, sistema político e violência urbana. Rio de Janeiro:
José Olimpio, 1994 Apud SOUZA, 2000: 51.
150
e da pena de morte informal decretada a uma parcela da população
brasileira.” (SOUZA ; BARBOSA, 2005:61)
Na Rocinha, a violência policial contra a população local foi gradativamente
aumentando. Em alguns momentos, como relatam os moradores, tem-se mais
medo da polícia do que do bandido:
“Justamente hoje acho que os policiais, eles chegam assim perto das
pessoas, e metem o pau. Vão logo assim, apertam a pessoa, a pessoa
não tem jeito de explicar, de mostrar documento. Já vão logo batendo. (...)
Hoje eu tenho mais medo da polícia do que do vagabundo.”
92
Morador não prefere tráfico nem policia, ele não pode expulsar o
traficante... Se houvesse uma policia honesta os moradores escolheriam a
policia, mas as vezes é melhor confiar no trafico do que na policia.”
93
Neste cenário de “guerra”, muitos habitantes das favelas que não fazem parte do
tráfico de drogas, precisam conviver com criminosos, silenciando sobre suas
ações, por causa da coação que sofrem. Outros presenciam inocentes serem
abatidos por balas perdidas devido às diligências policiais ou às lutas entre
facções rivais de criminosos e, neste caso também estão sob a lei do silêncio por
causa da coação policial. Alguns, embrutecendo-se com tanta violência, resolvem
também assumi-la como prática, ou voltar-se para o crime que lhes parece mais
lucrativo. Esta lógica da produção do espaço criminoso, que propicia relações de
poder e a perpetuação da violência, fica clara na afirmação de Marcelo Lopes de
Souza:
“Uma tal associação entre pobreza e criminalidade, se simplista, pode ser,
além de errônea, preconceituosa, por passar a idéia absurda de que só os
pobres são criminosos. A lembrança não-simplista de uma conexão entre
injustiça social e criminalidade visa, porém, a recordar que as condições
materiais, sob determinadas circunstâncias culturais e institucionais,
podem atuar como fator de estímulo a estratégias de sobrevivência
ilegais, com conseqüências nefastas para o conjunto da sociedade e para
os próprios pobres.” (SOUZA, 2000: 192)
Por outro lado, o tráfico de drogas, como exerce funções que deveriam ser do
Estado, assume, também, dentro deste território, um papel de “Segundo Estado”
com as prerrogativas de idealizador e executor das leis, que cabem ao “Estado
Oficial”.
92
Bernardino Francisco de Souza, morador da Rocinha desde 1949. (UNIÃO PRÓ-MELHORAMENTOS DOS
MORADORES DA ROCINHA:1983:39)
93
Morador de Acari. (ALVITO, 2001:75)
151
“Ao contrário da polícia, entretanto, o bandido, além de garantir a
inviolabilidade de sua área, pode ser reconhecido como defensor do
trabalhador nos casos em que ofensas pessoais sofridas por este
precisem ser vingadas. Diante da inevitável humilhação e da ausência de
proteção policial ou jurídica, o bandido transforma-se no vingador de seu
povo. (...) Os bandidos formados”, isto é, aqueles que têm experiência
e conhecem as regras do jogo, sabem disso e não trocam tiros com
qualquer um, nem à toa. Matar quem não está na guerra é considerado
perversidade(ZALUAR, 2000:141-143)
Nas palavras de um morador da Cidade de Deus esta relação é descrita da
seguinte maneira:
“(...) eles respeitam a gente ... Qualquer coisa que me acontecer, um
menino passou ou um vagabundo pegar, não será eu que vou pegar um
revolver para dar tiro, eles aí: ‘deixa com a gente porque aí a gente mata o
cara, porque a gente é perdido mesmo, mais um crime nas costas não
faz diferença’, entende ? É aquele negocio, tudo em qualquer área, em
qualquer lugar é assim, sempre tem uma rapaziada local...” (ZALUAR,
2000:143 -144)
No filme M., O Vampiro de Dusseldorf” (1931), Fritz Lang apresenta claramente
como funciona um poder paralelo legitimado pela população local. No filme um
tribunal composto por membros do crime organizado julga um infanticida que
assusta a cidade cometendo crimes que não eram permitidos pelos códigos de
conduta ética da criminalidade local. O mais importante deste episódio é que tal
tribunal de julgamento é aceito pela comunidade local, como real representante
da justiça e da lei. Esta passagem cinematográfica exemplifica e explicita as
complexas relações de poder que se estabelece em áreas territorializadas pelo
crime organizado, que passa a representar, muitas vezes legitimado pela
comunidade local, o poder de Estado prezando pela manutenção das normas
estabelecidas na comunidade.
“(...) as relações entre bandidos e trabalhadores mostram-se muito mais
complexas e ambíguas, tanto no plano das representações que a
atividade criminosa tem para os trabalhadores, como no plano das
práticas efetivamente desenvolvidas entre eles.” (ZALUAR, 2000:133)
Este fato é denominado por alguns autores de “Estado Paralelo”, mas esta
expressão traz em si alguns paradoxos. Como a carência destes territórios
chegou a níveis alarmantes revelando a impossibilidade do Poder Público em
superá-las, o Estado, de certa forma, isenta-se de suas obrigações com estes
espaços populares e deixa a encargo do crime organizado parte das demandas
socio-territoriais. Assim, o morador da favela, muitas vezes, sente-se mais em
152
dívida e tem maior confiança nos traficantes do que no “Estado Oficial”. Cria-se
então, uma separação muito clara de territórios, como se houvesse um muro que
dividisse a cidade: do lado de lá do muro, cabe ao “Estado Paralelo” a governança
deste gheto” e, do lado de cá, onde habitam os “homens de bem” o Estado pode
cumprir mais facilmente seu papel.
“Por deterem meios de coerção física poderosos, ou seja, armas de fogo,
e por enriquecerem, os bandidos acabam virando uma força política e
montando um sistema de poder no local. Muitos de seus métodos se
assemelham ao do Estado moderno: seu poder está baseado, em última
instância, no poder de fogo de suas armas e, com base nisto, às vezes
cobram pedágio em pontes, taxas de proteção a comerciantes, etc. Mas
não gozam da legitimidade do Estado e, se ganham a aceitação dos
moradores locais como protetores e justiçadores, suas relações com estes
trazem a marca da ambivalência.” (ZALUAR, 2000:166)
“Malandro, você toma conta da favela
É você que espanta a fera que vive assombrando a gente
É que você é o malandro consciente
É que você é o malandro consciente
Você ajuda a nossa comunidade
Não deixa que o nosso salário de miséria
Mate de fome os filhos da gente
Você dá leite para as crianças
Remédio para quem está doente
E comida para os mais carentes
Ainda dá uma segurança total
Aquilo que a favela nunca teve
Que é assistência social
Ainda dá uma segurança total
Aquilo que a favela nunca teve
Que é assistência social
Parabéns bom malandro
(Malandro Consciente - Bezerra da Silva)
No Rio de Janeiro esta situação parece ter chegado a um estado de coisas tal,
que o poder dos traficantes perante a sociedade da cidade informal e da cidade
informal está cada vez mais legitimado como um “Estado alternativo”.
A história do engenheiro Luiz Fernando Gabaglia Penna, genro do arquiteto Lucio
Costa, é representativa de como a ausência do Estado na cidade pode inverter a
ordem urbana e legitimar cada vez mais o poder do tráfico de drogas. Após ter
tido sua casa, localizada no bairro da Gávea, assaltada duas vezes no mesmo dia
e ter ouvido do chefe de polícia da cidade que nada podia fazer, Luiz Fernando foi
procurar o chefe do tráfico da favela da Rocinha para contar o episódio e pedir
153
ajuda. O criminoso tratou então de reaver todas as coisas que haviam sido
roubadas e firmou um trato de proteção da região em que morava o engenheiro,
pedindo em troca apenas que fosse avisado de algum roubo na região.
“Explicaram [os traficantes] que não tinham o menor interesse em assaltos
na região, na medida em que o negócio deles era a venda de tóxicos. (...)
Argumentaram que teriam prejuízo se alguém chamasse a polícia, que
os policiais iriam até o morro, aprenderiam a droga...”
94
Firmado este gentlemans’s agreement”, a região no bairro da Gávea onde mora
o engenheiro nunca mais foi assaltada. E Luiz Fernando afirma:
“O acordo vale e tem sido passado de chefe para chefe. (...) Eu não estou
fazendo apologia dos traficantes, mas que eles fazem um certo
policiamento nesta região, fazem. São mais eficazes que o Estado. Eu
vou à favela de vez em quando fotografar o muro de contenção e vou com
equipamento fotográfico caro, duas Nikkons, uma teleobjetiva, algo que
custa dois ou três mil dólares, sem a menor preocupação. Se você andar
com este mesmo material na Viera Souto, é roubado por um pivete. (...)
Eles nunca me cobraram nem me pediram nada. Solucionaram uma coisa
que o governo não solucionou, o acordo foi mantido para sempre.
95
Ao mesmo tempo em que o Estado parece deixar para os “outros” o exercício de
seus deveres, a polícia disputa intensamente o território interno das favelas.
Como afirma Marcos Alvito:
“A polícia, todavia, quando “ocupa” uma favela, procura granjear a
simpatia e apoio da população, aqui parecendo ter aprendido com os
traficantes e mais, reivindicando o mesmo papel que estes, de forma
explícita. Desta forma, a creche antes mantida pelo traficante agora é
“adotada” por um Batalhão da PM. (...) As famosas e já tradicionais “festas
do tráfico”, foram substituídas por festas da polícia”, com direito à equipe
de som mais famosa no cenário funk carioca, show de pagode,
distribuição de brindes e torneios esportivos, em meio ao fornecimento de
carteiras de identidade (Povo, 30/11/96). (...) Na ocupação do território, a
polícia fez questão de montar suas “bases” exatamente em locais onde
antes havia bocas-de-fumo e/ou casas pertencentes ao tráfico. Isto
ocorreu tanto em Acari quanto em Vigário Geral.(...) ficamos sem saber
se era o tráfico que antes assumia a função de Estado ou se é o Estado
que agora passa a assumir a função do tráfico. Válida como tática de”
guerra”, a ocupação das “bases inimigasem nada ajuda a população a
diferenciar azuis [PM] de verdes [Terceiro Comando] ou vermelhos
[Comando Vermelho] ou o governador dos chefes do tráfico, e vice-versa,
94
PENNA, Luiz Fernando Gabaglia. In FILHO, Aziz; ALVES FILHO, Francisco. Paraíso Armado:
Interpretações da violência no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ed. Cecília Garçoni, 2003: 172.
95
PENNA, Luiz Fernando Gabaglia. In FILHO, Aziz; ALVES FILHO, Francisco. Paraíso Armado:
Interpretações da violência no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ed. Cecília Garçoni, 2003: 172-176
154
talvez apenas mudando o regime, de monárquico para republicano.”
96
(ALVITO,2001:86-88)
Assim, os territórios informais parecem funcionar sempre sobre a égide da
dominação. Na atualidade, além do marcante poder exercido pelo tfico de
drogas, é possível identificar, também, uma acentuada dominação exercida pelas
associações de moradores sobre os espaços blicos. Estas associações
também territorializam os espaços públicos para as mais diversas funções que
podem acontecer segundo seu consentimento e gestão. As quadras esportivas,
por exemplo, são geridas pelas associações de moradores que organizam uma
agenda com as mais variadas atividades, impedindo, muitas vezes, que a
comunidade se aproprie delas livremente. Nestas “quadras das associações de
moradores” fica evidente que regras claras e a comunidade está submetida a
elas.
A acessibilidade às quadras é restrita e controlada e, por causa deste rígido
controle, o acesso à estes espaços acaba por restringir-se, passando a funcionar
sob a mesma gica dos condomínios fechados da cidade formal que têm como
característica mais marcante a ordem espacial que neles vigora. Todas as
atividades são previstas, e a regulamentação do uso do espaço costuma ser
bastante rígida.” (GOMES, 2002:187) São espaços ditos públicos, mas suas
ações se passam quase sempre na esfera de vida social. Apesar de continuarem
funcionando para a coletividade, funcionam sob normas de conduta impostas
pelas associações de moradores.
Percebe-se, então que a dominação do espaço público da Rocinha é uma
constante. Os donos são múltiplos, atuam ao mesmo tempo e, em alguns
momentos, concorrentemente. E apesar da dominação do tráfico de drogas ser de
mais explicita e ter mais espaço midiático, fica claro que os agentes da
dominação são vários. Além dos agentes organizados, tráfico de drogas e
associações, o espaço público sofre, ainda, a dominação dos moradores
individualmente, que privatizam os espaços de usos coletivo para fins privados.
96
Na Rocinha a polícia também se utilizou da conquista da casa do famoso traficante Lulu para implantar ai
um batalhão avançada da PM no alto do setor do Labouriaux.
155
Assim, na comunidade da Rocinha existe pouco a figura do espaço público,
entendido como o espaço do acesso livre e irrestrito, do espaço de todos, do
espaço comum, de propriedade coletiva. O espaço público nesta comunidade
está sujeito a regras rígidas e claras, tem donos, e está sob constante
observação.
No entanto é importante ressaltar que este fenômeno não é exclusivo da Rocinha
ou mesmo da cidade informal como um todo. No inicio do século XXI podemos
encontrar muitas outras formas de “dominação” e privatização dos espaços
coletivos, dentro e fora dos assentamentos populares. Os espaços públicos de
São Conrado, por exemplo, também se encontram privatizados e, quando não o
estão, são abandonados para o uso apenas dos “pobres”, perdendo, em parte,
seu caráter público. Gomes analisa esta questão nas cidades contemporâneas:
“Em conseqüência do abandono dos espaços públicos comuns e dessa
recusa em compartilhar um território coletivo de vida social, surge o
fenômeno da ocupação dos espaços públicos por aqueles que, não tendo
meios para reproduzir privadamente esse estilo de vida, estão
condenados a desfilar sua condição por esse espaço: os pobres.
(GOMES, 2002:184 –185)
A grande diferenciação que existe entre a dominação dos espaços públicos na
cidade formal e da dominação dos espaços públicos nos locais territorializados
pelo tráfico de drogas está no tipo de dominação exercida. Em verdade, todos
espaços públicos das cidades têm regras. A diferença que se apresenta nos
espaços públicos da Rocinha e de outros lugares da cidade informal, é que nestes
territórios existe uma assimetria social muito marcante na determinação das
regras vigentes. Em Estados democráticos as regras são elaboradas dentro de
relações e de acordos sociais estabelecidos e com concordância de grande parte
da sociedade ou de seus representantes, em territórios onde existe uma
dominação muito marcante, ao contrário, os acordos sociais e representações são
mais frágeis e as regras o elaboradas em instâncias autoritárias e impostas
através da força, poder e violência.
“(...) o uso da força faz diferença no contexto da favela não apenas por
tornar mais árido o cotidiano do morador, como também pela conformação
de uma interlocução coletiva que deve responder, explícita ou
implicitamente elaborada ou canhestramente, ao impacto dessa presença
156
que subverte a lógica do gerenciamento democrático do espaço
coletivo.”
97
Esta situação faz com que estas “leis” retirem, em muitos casos, parte da
publicidade dos locais que são, em certa medida, privatizados através da
determinação de usos e ações permitidas. Nos territórios do tráfico os “donos” dos
espaços são violentos, e exercem sua dominação através da força bruta,
enquanto que no resto da cidade a dominação é exercida de forma mais sutil,
através de muros e olhares mais discretos ou eletrônicos.
97
MAFRA, Clara. Drogas e símbolos: redes de solidariedade em contextos de violência:282 In ZALUAR;
ALVITO, 2004.
CAPÍTULO 04
DOMINGOÉDIA DEFESTA NA LAJE
“Fimdesemanacurtosamba
Esolnalaje
Nacaipirinha,euesqueçoarotina
Enchoapiscina,criançadafazafarra
Eanegabronzeia
MuitosemDeusnãoadiantanada
Éoditadoqueopovodiz
Poucocomele,agentefazafesta
Cantaeéfeliz”
ZecaPagodinho
4.1.
4.1.4.1.
4.1.
O
OO
OUTRAS FORMAS, OUTROS ENCONTROS
UTRAS FORMAS, OUTROS ENCONTROSUTRAS FORMAS, OUTROS ENCONTROS
UTRAS FORMAS, OUTROS ENCONTROS
“Andar pelo interior de uma favela desse tipo é uma experiência
sensorial radical para quem vem de espaços projetados pela
racionalidade moderna. Num contexto mundial em que se debate cada
vez mais a proliferação de não-lugares e dinâmicas de padronização do
espaço à revelia das identidades culturais, talvez como expressão da
própria crise destas, estaria no espaço periférico ou desarticulado do
tecido urbano-metropolitano onde vivem os pobres, exatamente devido a
sua formação e a pequena e apenas paliativa ação da modernidade,
emergindo lugares? (MARZULO, 2004)
O passeio pelos pequenos becos e vielas da Rocinha propicia o encontro público.
Estes becos são estreitos, com grande declividade, repletos de esca
darias
e de outras dificuldades de acessibilidade e mobilidade, mas propiciam tipos de
sociabilidade peculiares da cidade informal. Ali acontece a interação cotidiana
entre os moradores. O encontro ocasional, fato que não é mais tão comum nas
ruas da cidade formal, acontece diariamente nesta favela.
Os caminhos possíveis são poucos e apertados. Neste cenário, o encontro é
inevitável. Andrade descreve:
“(...) a vida cotidiana apresenta características que a diferencia dos
bairros formais da Zona Sul da cidade, particularmente no que diz respeito
às inter-relações sociais. Foi possível observar que o nível de
interatividade entre os moradores é grande e, somado à alta densidade do
local, percebemos que os espaços coletivos na Rocinha são intensamente
vividos.” (ANDRADE: 2002,115)
Nos becos da Rocinha a rua volta a assumir verdadeiramente seu papel de
espaço público, desempenhando a função de propiciadora de interações e
relações comunitárias, deixando de ser apenas o espaço de circulação ocupado
pelo automóvel e para a passagem rápida que não possibilita a fixação de marcas
de sociabilidade no território.
“Não creio que alguém possa entender a rua sem tê-la palmilhado dia
após dia, com primazia sobre outras formas de circulação. Vê-la dos
carros pouco significa. a dimensão do corpo-a-corpo com suas
sensações revela prazeres, percepções, conflitos ou humilhações. (...) Na
calçada realiza-se o universal, o encontro do outro, do diferente cujo ser
sentido à democracia, por isso mesmo nosso desafio cotidiano. Aí,
talvez, se entenda porque André Breton diz que a rua é o único campo de
experiência válido. Fora dos espaços fechados e de nossos iguais, dos
valores de grupo, na rua, somos submetidos ao encontro do lugar e da
158
experiência que realmente realizam nosso sentido coletivo ou, na pior das
hipóteses, funcionam como cartilha.” (YAGIZI: 2000: 25)
Ao mesmo tempo que as ruas e os becos propiciam uma vivência mais intensa da
vida pública, o espaço do pedestre, desprezado no bairro vizinho de São
Conrado, diferentemente do espaço do automóvel, permite ainda que o usuário
tenha uma vivência mais orgânica do próprio território.
“Andar pelo bairro une o útil ao agradável. As caminhadas que se
destinam à resolução de afazeres funcionais, são, ao mesmo tempo,
passeios. Têm uma dimensão ritual. Põem o morador em contato
permanente com as pessoas e os eventos do seu universo social
imediato. É andando que se fica sabendo das coisas. O bairro é passado
em revista, é supervisionado, oferecendo-se como espetáculo também.
Uma caminhada, mesmo um pouco mais longa, é atenuada pelas muitas
quebras e descontinuidades proporcionadas pelo espaço, quer na sua
dimensão física, quer na sua dimensão social.” (C. SANTOS, 1985:81)
O caminhar possibilita maior interação com o lugar. O simples trilhar de caminhos
cotidianos dos pedestres modifica o território, que passa a funcionar segundo
uma lógica própria de cada um dos caminhantes, sendo inclusive, por vezes,
contrária à lógica originária do sistema viário. E, assim como o percurso e o
próprio pedestre são modificados pelo espaço e circunstâncias do caminho, o
espaço da circulação também sobre transformações a cada nova pegada deixada
por seus visitantes. O morador da comunidade e seu território estão intimamente
ligados, suas identidades são construídas simultânea e complementarmente.
“Se é verdade que existe uma ordem espacial que organiza um conjunto
de possibilidades (por exemplo, por um local onde é permitido circular) e
proibições (por exemplo, por um muro que impede de prosseguir), o
caminhante atualiza algumas delas. Deste modo, ele tanto as faz ser
como aparecer. Mas também as desloca e inventa outras, pois as idas e
vindas, as variações ou as improvisações da caminhada privilegiam,
mudam ou deixam de lado elementos espaciais. (...) A caminhada, que
sucessivamente persegue e se faz perseguir, cria uma organicidade
móvel do ambiente, uma sucessão de topoi fáticos (...) o caminhante
transforma em outra coisa cada significante espacial. E se, de um lado,
ele torna efetivas algumas somente das possibilidades fixadas pela ordem
construída (vai somente por aqui, mas não por lá), do outro aumenta o
número dos possíveis (por exemplo, criando atalhos ou desvios) e dos
interditos (por exemplo, ele se proíbe de ir por caminhos considerados
ilícitos ou obrigatórios). Seleciona portanto.” (CERTEAU,2005:177-178)
Pensando sobre os relatos de espaços, Certeau (2005:199) afirma que na
Atenas contemporânea, os transportes coletivos se chamam metaphorai. Para ir
para o trabalho ou voltar para casa, toma-se uma “metáfora” um ônibus ou
trem. A partir desta afirmação, o autor conclui que os relatos poderiam
159
igualmente ter esse belo nome: todo dia, eles atravessam e organizam lugares;
eles os selecionam e os reúnem num só conjunto; deles fazem frases e
itinerários. São percursos de espaços.
Seguindo a mesma lógica poder-se-ia considerar que o termo “metáfora”
99
se
prestaria para nomear todos os percursos urbanos. Sobre coletivos ou a pé, os
caminhos que se toma diariamente acabam por inscrever nos indivíduos grande
parte da compreensão sobre suas cidades. O modo como se percorre a cidade,
define, em grande medida, como se apreende esta cidade e, por conseguinte,
qual a tradução e significado esta terá para cada cidadão.
“O ato de caminhar está para o sistema urbano como a enunciação (o
speech act) está para a ngua ou para os enunciados proferidos. Vendo
as coisas no nível mais elementar, ele tem, com efeito, uma tríplice
função”enunciativa”: é um processo de apropriação do sistema topográfico
pelo pedestre (assim como o locutor se apropria e assume a língua); é
uma realização espacial do lugar ( assim como o ato da palavra é uma
realização sonora da língua); enfim, implica relações entre posições
diferenciadas, ou sejam “contratos” pragmáticos sob a forma de
movimentos. (...) O ato de caminhar parece portanto encontrar uma
primeira definição como espaço de enunciação.” (CERTEAU, 2005: 177)
Se cotidianamente o percurso que se faz ao sair de casa se por becos e vielas
que vão se modificando diariamente através da vivência e apropriação de seus
usuários, é provável que o entendimento que se tenha sobre o território seja de
um espaço urbano em constante mutação, acessível a todas as táticas
100
individuais. Assim, é possível considerar, também, que as inúmeras apropriações
que se observa nos espaços públicos da Rocinha não se tratam de práticas
individualizadas e indissociadas, mas sim de “maneiras de fazerque fazem parte
de um sistema regido por uma lógica coletiva e institucionalizada de utilização do
99
“Etimologicamente, o termo metáfora deriva da palavra grega metaphorá através da junção de dois
elementos que a compõem - meta que significa "sobre" e pherein com a significação de "transporte". Neste
sentido, metáfora surge enquanto sinônima de "transporte", "mudança", "transferência" e em sentido mais
específico, "transporte de sentido próprio em sentido figurado". Figura de estilo que possibilita a expressão de
sentimentos, emoções e idéias de modo imaginativo e inovador por meio de uma associação de semelhança
implícita entre dois elementos. De facto, e tendo como base o significado etimológico do termo, o processo
levado a cabo para a formação da metáfora implica necessariamente um desvio do sentido literal da palavra
para o seu sentido livre; uma transposição do sentido de uma determinada palavra para outra, cujo sentido
originariamente não lhe pertencia. Ao leitor é exigido no processo interpretativo uma rejeição prévia do
sentido primeiro da palavra, para a apreensão de outro(s) sentido(s) sugerido(s) pela mesma e clarificada
pelo contexto, na qual se insere.” (CEIA, Carlos, s.v. "Metáfora", E-Dicionário de Termos Literários, coord. de
Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, <http://www.fcsh.unl.pt/edtl> (acessado em 06/12/2007).
100
Michel Certeau denomina de táticasou maneiras de fazeras inúmeras práticas cotidianas pelas quais
os usuários se apropriam e reapropriam do espaço existente. “(...) operações quase microbianas que se
proliferam no seio das estruturas tecnocráticas e alteram o seu funcionamento por uma multiplicidade de
“táticas” articuladas sobre “detalhes” do cotidiano.”(CERTEAU, 2005:41)
160
território, mesmo que de forma inconsciente. Segundo Certeau e Carlos Nelson
do Santos:
“A análise mostra antes que a relação (sempre social) determina seus
termos, e não o inverso, e que cada individualidade é o lugar onde atua
uma pluralidade incoerente (e muitas vezes contraditória) de suas
determinações relacionais. (...) Pode-se supor que essas operações
multiformes e fragmentárias, relativas a ocasiões e a detalhes, insinuadas
e escondidas nos aparelhos das quais elas são os modos de usar, e
portanto desprovidas de ideologias ou de instituições próprias, obedecem
a regras. Noutras palavras, deve haver uma lógica dessas práticas. (...)
Por esse prisma, a “cultura popular” se apresenta diferentemente, assim
como toda uma literatura chamada “popular”: ela se formula
essencialmente em “artes de fazeristo ou aquilo, isto é, em consumos
combinatórios e utilitários. Essas práticas colocam em jogo um ratio
“popular”, uma maneira de pensar investida numa maneira de agir, uma
arte de combinar indissociável de uma arte de utilizar. (...) essas práticas
volta e meia exacerbam e desencaminham as nossas lógicas.”
(CERTEAU, 2005:42-43)
“(...) não acreditamos na existência prévia e estanque de um conjunto de
regras aposto em seguida a um conjunto de lugares. A regularidade existe
previamente em todas as maneiras pelas quais um local venha a ser, de
fato, apropriado e usado. As regras de utilização do espaço estão
permanentemente em construção. Mas, ao fazê-lo, a sociedade estará
também construindo um conjunto de relações sociais úteis a seus
interpretes.(C. SANTOS,1985:49)
Os “becos-espremidos” e os “becos túneis”
101
, que propiciam os encontros
cotidianos na escala do cidadão, são novas formas urbanas criadas e erguidas
pela comunidade, geralmente de forma individualizada, mas segundo um
entendimento comum à maioria de como “usar” o território. A “construção” destes
becos demonstra que a relação estabelecida pela comunidade da Rocinha e seus
espaços públicos é intensa e se dá de diversas formas. A comunidade não
apenas se apropria do espaço público para suas práticas cotidianas, como
também o transforma fisicamente, dando-lhe novos aspectos morfológicos ao
criar uma laje-cobertura transformando-o em um túnel ou ao espremê-lo entre
duas edificações. Apesar de estas modificações do espaço físico, que constrói
lajes e invade o espaço de circulação com novas construções, terem incutidas o
componente contemporâneo da desvalorização do espaço público que é visto,
101
Citados no Capitulo 2 – Planeta Rocinha.
161
Muitas vezes, apenas como um espaço vazio passível de uma privatização.
102
Observa-se, ao mesmo tempo, que a comunidade “cuida” deste espaço público
que foi transformado como uma extensão de seu espaço privado. Pode-se,
talvez, comparar a gestão do espaço dos becos com uma gestão condominial,
onde aquela comunidade sente-se responsável por cuidar e melhorar suas
condições físicas instalando iluminação “pública” sob as lajes e assentando novos
pisos sobre a terra batida original.
A apropriação e transformação física destes espaços se dão tanto pela invasão,
quanto na preservação e melhoria. Não é possível saber ao certo se este cuidado
com o espaço público se pela consciência de sua publicidade, ou
simplesmente por ser considerado realmente privado, pois em um território
construído ora coletivamente, ora individualmente, mas nunca por um loteador ou
pelo poder público, existem poucos limites pré-definidos sobre o que é público e o
é que privado. Ambos vão sendo construídos concomitantemente e por vezes se
sobrepondo, em uma luta constante por sua permanência ou expansão.
“O que une os olhos vigilantes de uma rua é esse sentimento de serem
seus proprietários naturais”. O espaço que supervisionam é, de certa
forma, o espaço de todo. Neste sentido, é mais do que público, ou não
apenas público. Pertence a todos em comum, em função das relações
que mantêm com ele, ou dentro dele, e graças a ele. Por isso, o exercício
do controle é um poder e um dever. Mais do que simples usuários, os
“proprietários naturais” da rua são cúmplices.(C. SANTOS, 1985:93)
Na cidade formal o espaço privado (o lote) é desenhado a partir da pré-
delimitação do espaço público (as ruas, praças, etc), o limite entre o que é público
e o que é privado está claramente estabelecido desde o início. Na Rocinha, a
construção do espaço público e do espaço privado é menos segmentada, se
ao mesmo tempo e segundo uma lógica comunitária própria que não dialoga com
as normas regulatórias legais.
“(...) a oposição casa/rua tem aspectos complexos. É uma oposição que
nada tem de estática e de absoluta. Ao contrário, é dinâmica e relativa
porque, na gramaticidade dos espaços brasileiros, rua e casa se
reproduzem mutuamente, posto que espaços na rua que podem ser
102
Este fenômeno é percebido comumente na maioria dos territórios urbanos do país, mas torna-se
dramático em território informais e muito densos, como a favela da Rocinha, onde disputa-se ferrenhamente
cada pedacinho de terra. Muitas vezes as ampliações de casas destes lugares invadem sem constrangimento
algum o espaço da rua impedindo a circulação naquele trecho.
162
fechados ou apropriados por um grupo, categoria social ou pessoas,
tornando-se sua “casa”, ou seu ponto”. Neste sentido, a rua pode ter
locais ocupados permanentemente por categorias sociais que ali “vivem”
como se “estivessem em casa”, conforme salientamos em linguagem
corrente.” (DAMATTA, 1997:55)
Curiosamente a palavra rua vem da expressão latina ruga, que significava o sulco
situado entre dois renques de casas ou muros em uma povoação qualquer.
(C.SANTOS,1985:24). A tradução desta expressão sugere que o marco
FIGURA 4.1 - Becos na Rocinha
Fotos:
D
anielle
lintowitz
163
deliminatório estava nas construções e a rua era o espaço livre entre elas. Apesar
de os romanos comumente fundarem cidades traçando suas vias em cruz, talvez
as vias internas do povoado se constituíssem concomitantemente com as casas,
não sendo o marco espacial organizador do espaço, papel ocupado pelas
construções, como acontece na Rocinha.
Andando pelos becos e vielas, a todo o momento, encontra-se alguém que
subverteu o uso habitual da circulação e transformou aquele exíguo espaço em
um ambiente de lazer e convívio ou mesmo de afazeres domésticos.
“A casa na favela esintimamente ligada à rua. Até mesmo por serem
edificadas em ruas estreitas, os parentes e vizinhos estão mais próximos.
(...) a rua é um prolongamento da casa. (...) A importância da rua na
habitação popular ainda tem outros valores. um forte sentido de uso
público do espaço. (...) nas favelas as ruas são espaços da festa, do lazer,
dos encontros afetivos, do trabalho, da brincadeira. (SOUZA ; BARBOSA,
2005:97-98)
“Há um certo lazer pelo simples fato de estar na rua, onde as populações
mais desprovidas encontram várias formas de sociabilidade,
gratuitamente.(YAGIZI, 2000:162)
“As mulheres encaram como parte de seu lazer o “ir às compras”. Nestas
ocasiões encontram-se com as amigas e conhecidas. Isto não se dá sobre
o muro do quintal, ou na porta de casa, ou de janela para janela se
na rua, o que é indicativo de um inflexão particular da categoria lazer entre
os moradores mais tradicionais do bairro.” (C. SANTOS, 1985:51)
FIGURA 4.2 - Homens jogando cartas sob “beco-túnel”
Foto: Danielle Klintowitz
164
As ruas na Rocinha não são só os espaços de circulação, são verdadeiros
espaços de uso coletivo, para as mais diversas atividades cotidianas.
Nos becos,
existem crianças brincando de bola; homens jogando cartas sobre mesas que
foram colocadas literalmente no meio do caminho; crianças apostando corridas
de carrinhos em cima de pedras que afloram do terreno; jovens conversando
sentados nas soleiras e; ainda mulheres lavando suas roupas nos degraus de
suas casas que invadem o espaço destinado à circulação nas vielas.
“A experiência do espaço urbano fundamenta a intuição de que a rua é
mais do que via, trilho ou caminho. (...) Uma rua é um universo de
múltiplos eventos e relações. A expressão “alma da rua” significa um
conjunto de veículos, transeuntes, encontros, trabalhos, jogos, festas e
devoções. (...) A par de caminhos, são locais onde a vida social acontece
ao ritmo e fluxo constante que mistura tudo. Um “microcosmo real” de
espaços e relações que tem a ver com o repouso e movimento, com
dentro e fora, com intimidade e exposição e assim por diante.”
(C. SANTOS, 1985:24)
Em territórios como a Rocinha onde a maioria das moradias é muito precária e os
equipamentos de lazer são raros, a rua torna-se um espaço fundamental para o
desenvolvimento de atividades infantis.
[SIC] Está vendo lá, dentre todas as áreas de lazer da comunidade os
becos e as lajes são as mais utilizadas. Porque a verdade, a verdade
mesmo, aqui onde estamos não tem área de lazer, onde as crianças vão
brincar ? Nos becos e nas lajes (...) e brincam de tudo, casinha, boneca,
patinete, bicicleta, pipa, jogam bola de gude, e fazem de tudo um pouco.”
(COELHO, 2007: 173)
Na favela as categorias casa e rua, não se apresentam como dois universos
distintos como analisa Roberto da Matta (1997), a separação entre a casa e a rua
é mais fluido, as fronteiras oscilam e são mutáveis, dependem dos usos e
apropriações que podem se modificar no decorrer do dia.
“Para a maioria das crianças brasileiras a vida não apresenta a
dualidade ‘dentro-fora’, a realidade da casa versus a realidade da rua.
Elas não vivenciam, ao menos com tanta força este corte crucial. Não
o lado de dentro. A rua não é a extensão da casa, mas o contrário: a
casa como prolongamento da rua, espaço apenas um pouco mais
reconhecível deste mundo exterior. O lado de fora é quase o padrão de
sua existência cotidiana.Vivem nas ruas de terra das periferias,
descalças, junto ao esgoto a céu aberto, do lado de habitações precárias
e sempre inacabadas, do lado de fora de barracos, das favelas e dos
165
cortiços. Vivem do lado de fora porque o lado de dentro só é suportável
quando se está dormindo.”(GARCIA, 1996:120)
103
“O espaço fora da casa transforma a rua simbolicamente na extensão da
casa e nele o brincar da criança se amplia.” (COELHO, 2007:182)
No universo da favela, as crianças são grandes protagonistas da vida urbana,
apropriando-se e reestruturando lugares para suas atividades através de
103
In MIRANDA, Danilo Santos de (org.). O Parque e a arquitetura: uma proposta lúdica. Campinas, Papirus,
1996.
FIGURA 4.3 – Becos e suas apropriações
Fonte: Viva Favela - http://www.vivafavela.com.br
Fotos: Nando Dias / Walter Mesquita
166
maneiras de fazerpróprias. Estas crianças não têm quintais e playgrounds onde
brincar, as quadras existentes na comunidade estão, na maior parte do tempo,
ocupadas com atividades que exigem inscrições, então se apropriam dos becos e
os transformam em seus espaços lúdicos espontâneos e informais, reconstruindo
lugares para suas brincadeiras através de “táticas” infantis.
“A característica significativa maior do espaço não está na função que se
determina para ele, mas sim na capacidade que esse tem de ser vital, na
possibilidade tanto física quando subjetiva das variadas possibilidades
imaginárias que esse oferece aos indivíduos. E em favelas essa
característica do espaço é peculiar, se observarmos que a utilização de
seus espaços livres por parte dos seus habitantes mirins se destina a
diversos propósitos no instante da brincadeira, convertendo-se em lugares
sempre propícios ao brincar no imaginário infantil.” (COELHO; DUARTE;
VASCONCELLOS, 2006, 76)
Contraditoriamente, apesar de estarem em um território que convive
cotidianamente com a violência, na Rocinha as crianças costumam brincar muito
na rua. As crianças e adolescentes sentem a necessidade de estarem em lugares
onde possam exercer sua autonomia longe dos olhos dos pais e responsáveis e
assim construírem sua identidade e sua ligação com o território onde habitam. Na
favela a rua é o lugar onde isto tem espaço para acontecer. Segundo Coelho:
“A relação da criança da favela com o espaço no qual a sua vida cotidiana
está inserida é fundamental no processo de constituição de sua infância.
(...) Ela busca experimentar todo o espaço que está ao seu alcance e se
identifica nele mediante suas conquistas, descobertas e diferentes ações,
sejam elas mal ou bem sucedidas. A experiência da brincadeira guarda,
assim, um sentido de domínio do espaço. (...) O espaço, como um dos
agentes construtores, contribui nesse processo com as diversas
possibilidades de apropriação vividas e brincadeiras, e que são
despertadas no imaginário infantil. Criança e espaço unem-se no brincar
para construção de suas identidades.(COELHO, 2007, 178)
A falta de espaços próprios para o lazer acaba contribuindo para que esta
atividade se dê em qualquer espaço, mesmo que do ponto de vista funcional este
não seja propriamente apropriado para isso. Na Rocinha, entretanto, a morfologia
dos becos acaba contribuindo para o tipo de apropriação que se faz. O “beco-
túnel” coberto por uma laje e normalmente iluminado por uma lâmpada instalada
pela própria comunidade propicia um abrigo que protege do sol excessivo ou da
chuva, permitindo que o jogo de carta aconteça tranquilamente, mesmo que na
passagem. Da mesma forma, o “beco-espremido” propicia o jogo de bola onde os
limites do campo e do gol o definidos pelas próprias construções lindeiras e o
menino pode jogar sozinho e ter sua bola rebatida pelo “paredão”. As novas
167
formas urbanas criadas na comunidade possibilitam apropriações que a elas se
conjugam e são por elas transformadas.
Os espaços dos becos desta comunidade são elásticos, estão constantemente
sendo transformados e recriados pelos seus usuários.
Da mesma maneira que se observa uma grande interação entre os membros da
comunidade e a rua em suas práticas de lazer, não se pode deixar de observar
que muitas das atividades desenvolvidas nestes espaços acabam por
comprometer o uso coletivo e funcionam como privatizações do espaço público,
individualizando, particularizando seu uso e usurpando o espaço público dos
outros cidadãos. Na Rocinha observa-se diariamente, por exemplo, mulheres
lavando roupas nos degraus de suas casas que, por sua vez, estão sobre os
becos “espremendo-os”. Esta atividade atrapalha o percurso dos transeuntes,
inclusive molhando seus pés, ao mesmo tempo que constrange as donas de casa
que precisam realizar algumas atividades domésticas nos espaços blicos pois
o ínfimo espaço de suas casas não comporta tais atividades.
“Nas áreas predominantemente residenciais, embora existam atividades
coletivas desenvolvidas nas áreas externas, como lavar roupa, por
exemplo, elas não são atividades públicas, pois expõem a privacidade das
pessoas envolvidas (...) O Exercício de atividades intimas como lavagem
de roupas, ainda que propiciem alguma sociabilização, não são atividades
impessoais. Pelo contrário, a presença de pessoas estranhas tendem a
inibir as pessoas, geralmente mulheres, que desenvolvem estas
atividades. (ANDRADE, 2002:136-146)
Entende-se, assim, que falta de privacidade não tem o mesmo significado que
sociabilidade. A realização de certos afazeres domésticos na rua revela apenas a
precariedade das condições de habitabilidade e não um “bom” uso dos espaços
públicos, que nestes casos são privatizados para funções particulares e íntimas.
DaMatta observa ainda que:
“Não se pode misturar o espaço da rua com o espaço da casa sem criar
alguma forma de grave confusão ou até mesmo conflito. Sabemos e
aprendemos muito cedo que certas coisas só podem ser feitas em casa e,
mesmo assim, dentro de alguns dos seus espaços. (...) Não posso
transformar a casa na rua e nem a rua na casa impunemente. regras
para isso.” (DAMATTA, 1997:55)
168
A extensão da casa sobre a rua, tanto fisicamente, quanto através das atividades
desenvolvidas é prática comum na Rocinha e causa inúmeros conflitos no seio da
comunidade.
“(...) a própria população constrói os seus males, no estreitamento das
vias (becos) a partir do uso dos limites dos becos para expansão das
construções, o que ilustra o desrespeito aos limites e ao outro, dificultando
o transitar das pessoas e de móveis. (...) uma valorização do mundo
da casa que representa o espaço privado na busca do mínimo de conforto
e o mundo da rua como “terra de ninguém”. Percebe-se que na formação
dos espaços públicos não-edificados os moradores não partilham da
noção de uso comum com o próximo. (...) a comunidade vive em conflito
consigo mesma em conseqüência das suas práticas que de certa forma,
criam uma espécie de cultura da pouca importância ao ambiente urbano
como um todo.” (PEREIRA, 2007: 25-26)
“Na verdade, percebemos nestes conflitos a ausência de pactos
explícitos, o que compromete a qualidade das práticas sociais no espaço
e, consequentemente, a cidadania. (...) o pacto associativo formal
demanda delimitação espacial que inscreve direitos e deveres dos
indivíduos no plano individual e coletivo. O que verificamos na Rocinha é
que, no que se refere ao uso dos espaços coletivos não-edificados, os
interesses particulares de cada um se sobrepõem aos interesses da
população geral. Cabe relativizar esta afirmação, entretanto.(ANDRADE,
2002:129)
É interessante observar como a apropriação do espaço blico na Rocinha é
tolerada para certo tipo de utilização e em outros não. A mesa colocada no meio
da passagem para o jogo de cartas ou o jogo de bola das crianças não parece
causar tantos desagravos como a utilização do espaço para atividades
domésticas.
A diferenciação entre o espaço da rua e da casa é, de certa maneira, essencial
para manutenção da rede de relações que se dá em um e no outro espaço. A rua
polariza um conjunto de relações sociais que se opõem à casa. É o mundo das
relações contratuais que regem o convívio e a interação daqueles que não têm
laços de parentesco. A rua, domínio público por excelência, é o lugar onde se dão
as relações mais formais, expostas e visíveis. (C. SANTOS, 1985; DAMATTA,
1997)
Desta forma, certas atividades, mesmo que de certa maneira também privatizem
o espaço público, ou dificultem o fluxo, são entendidas como pertencentes à
esfera de vida pública e seu desempenho em locais públicos trazem até certa
169
identidade para o território, outras atividades pertencentes estritamente à esfera
de vida privada não são bem aceitas nos espaços públicos.
Carlos Nelson do Santos observou fenômeno semelhante no bairro carioca do
Catumbi:
“As calçadas pertencem às casas, o que não significa que sejam parte
das mesmas enquanto propriedade. O seu caráter público contrasta, por
vezes, com as formas pelas quais são circunstancialmente utilizadas. As
diversas maneiras de ocupação destas áreas vivas do espaço urbano
criam uma ambiência que os moradores associam ao modo de vida
tradicional do Catumbi. Referem-se muito a um tempo em que as cadeiras
na calçada eram “a marca registrada” da vida do bairro.”
(C. SANTOS,1985: 51)
Esta intensa interação que se observa no espaço público das vias no território da
Rocinha se dá pela existência de dois fatores predominantes: as condições físicas
do espaço das ruas e a disposição da população para este tipo de sociabilidade.
Apenas a disponibilidade para um tipo de sociabilização dissociada de um espaço
que permita esta interação, ou vice-versa, não propicia a complexa rede de
vivências observada nas ruas da Rocinha.
170
4.2.
4.2.4.2.
4.2.
AS PRAÇAS SUSPENSAS DA ROCINHA
AS PRAÇAS SUSPENSAS DA ROCINHAAS PRAÇAS SUSPENSAS DA ROCINHA
AS PRAÇAS SUSPENSAS DA ROCINHA
“A complexidade as relações do cotidiano na favela da Rocinha é
desvendada de diversas formas e uma delas é expressa nos modos de
apropriação dos espaços público(COELHO, 2004: 199 apud COELHO,
2007: 178)
104
O processo de verticalização gerou, na Rocinha, assim como em muitas outras
favelas e periferias brasileiras, uma paisagem que se compõe, em quase todos
os setores, mais por edificações verticais do que horizontais.
“A expansão vertical chegou a tal ponto que a administração regional da
Rocinha conta que reações contrárias a novas obras vêm partindo dos
próprios vizinhos algo que dificilmente acontecia antigamente. Eles vão
à RA para reclamar quando a construção passa determinada altura ou é
feita muito próxima à outra casa.”
105
Nesta nova paisagem verticalizada, as lajes tornaram-se figuras fundamentais no
universo da favela. Além de serem utilizadas cotidianamente para as mais
diversas funções, as lajes são, hoje, elementos que compõem a identidade da
paisagem da Rocinha, aparecendo invariavelmente nas representações e
ilustrações feitas de seu território por crianças e adultos.
Estas lajes apresentam grande diversidade morfológica, variando de acordo com
a tipologia construtiva da edificação das quais fazem parte, entretanto
predominam as lajes sobre edifícios de 2 a 3 pavimentos. Como a topografia da
Rocinha é muito irregular, em vários pontos da favela encontram-se lajes, mesmo
quando estão sobre edifícios de 3 andares, que estão apenas 1 ou 2 metros
acima da rua, pois as construções sobre as quais estão construídas encontram-se
em uma cota inferior à da rua. A dimensão de superfície das lajes também varia
muito: nas regiões mais precárias a predominância é de lajes com dimensões
reduzidas, em torno de 5 metros de comprimento por 5 metros de largura, nas
104
COELHO, Glaucineide do Nascimento. Brincadeiras na Favela: A Constituição da Infância nas Interações
com o Ambiente. In VASCONCELLOS, 2007.
105
Trecho retirado da reportagem “Cada vez mais verticais: delimitadas por cercas, favelas crescem para
cima e já têm prédios de 7 andares.” O Globo, 9 de Agosto de 2002 apud LEITÃO, 2004:198.
171
regiões mais consolidadas, a predominância é de lajes com dimensões maiores,
tendo em média 10 metros de comprimento e 7 metros de largura.
A verticalização e a multiplicação das lajes na paisagem da Rocinha é
decorrência de um profundo processo de adensamento construtivo que tem
exacerbado, cada vez mais, a forte deterioração da qualidade de vida pública. O
solo da favela está quase todo ocupado, quase não espaço para as
brincadeiras das crianças, para as “conversas fiadas”, para as festividades
familiares, apenas os estreitos becos subvertidos em espaços de convivência. Ao
mesmo tempo, este processo de verticalização retira parte das habitações do solo
e, por conseguinte, parte da convivência entre a casa e a rua, o que modifica os
modos de viva da comunidade, que em favelas extremamente densas como a
Rocinha, a rua tem um papel fundamental no cotidiano, sendo, em muitos casos,
quase um prolongamento do habitat. Neste contexto, o distanciamento entre a
casa e a rua é muito significativo e gera transformações na comunidade, que
passa a inventar novos modos de “prolongar” o espaço do habitat, agora, alguns
metros acima do chão.
Além da falta de espaço físico é preciso lembrar que o pouco espaço livre público
existente no solo tem muitos donos que exercem seus domínios com regras
claras e rígidas. A criação de novos espaços públicos, implantados alguns metros
acima do solo, sobre o espaço privado, constitui-se, então, como uma “estratégia”
de fuga da dominação espacial e de conquista de novos territórios com maior
possibilidade do exercício de sociabilidades públicas. Enquanto os condomínios
fechados de São Conrado criam espaços de lazer e convívio intramuros,
extremamente privativos; na Rocinha os espaços de convívio privado estão sendo
em grande medida, publicizados permitindo uma inversão da constante
privatização e dominação existentes nos espaços públicos da cidade
contemporânea. Para Certeau estas pequenas apropriações sociais surgidas no
seio das comunidades funcionam como sutis subversões à dominação vigente e
através de pequenas “práticas” cotidianas são capazes de provocar grandes
transformações nas estruturas sociais.
“Se é verdade que por toda a parte se estende e se precisa a rede da
“vigilância”, mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade
inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares (também
172
“minúsculose cotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não
conformam com ela a não ser para altera-los; enfim, que “maneiras de
fazer” formam a contrapartida, do lado dos consumidores (ou
“dominados”?), dos processos mudos que organizam a ordenação sócio-
política. Essas maneiras de fazer” constituem as mil práticas pelas quais
usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da
produção sócio-cultural. (...) as operações quase microbianas que
proliferam no seio das estruturas tecnocráticas e alteram o seu
funcionamento por uma multiciplicidade de “táticasarticuladas sobre os
“detalhes” do cotidiano. (...) as formas sub-reptícias que o assumidas
pela criatividade dispersa, tática e bricoladora dos grupos ou dos
indivíduos presos agora nas redes de “vigilância”. (...) Do fundo do oceano
até as ruas das megalópoles, as táticas apresentam continuidades e
permanências. Em nossas sociedades, elas se multiplicam com o
esfarelamento das estabilidades locais como se, não estando mais fixadas
por uma comunidade circunscrita, saíssem de órbita e se tornassem
errantes, e assimilassem os consumidores a imigrantes em um sistema
demasiadamente vasto para ser o deles e com as malhas
demasiadamente apertadas para que se pudessem escapar-lhes.
(CERTEAU, 2005: 41, 47)
Em muitos momentos, as lajes que cobrem as construções assumem
características de espaços livres públicos de circulação. Como as ruas são
estreitas e têm desenhos tortuosos, às vezes não é possível carregar móveis e
eletrodomésticos por elas. Para vencer esta dificuldade, os moradores instituíram
novos caminhos sobre as lajes de diferentes casas que vão se justapondo e
formando percursos, que apesar de irregulares, certamente são menos apertados
e mais transitáveis do que muitos caminhos nos becos e vielas. Com o tempo,
estes caminhos sobre lajes passam a não funcionar apenas como acesso para
carregamento, cada vez mais as lajes-ruas assumem caráter de permanência no
imaginário dos moradores da comunidade, que tornaram cotidiano muitos
destes acessos.
Embora as lajes-ruas o se caracterizem por trajetos contínuos, muitas vezes
interrompidos momentaneamente suscitando a necessidade de saltos sobre
vazios, através delas o denso território da favela torna-se mais permeável,
propiciando uma maior agilidade em alguns trajetos de difícil acesso.
Estes novos percursos são também muito utilizados pelas crianças que
descobrem, na subversão da cobertura em rua, uma nova brincadeira e, como
não poderia deixar de ser, pelos traficantes de drogas em suas fugas ou para
controlar as incursões policiais dentro da favela. Aqui, mais uma vez, o tecido
urbano construído de maneira informal surpreende ao revelar o potencial das
novas formas, que permitem inúmeras apropriações e funções.
173
“A geografia íngreme da Rocinha e a implantação densa de suas
construções possibilita que as lajes sejam usadas também como via de
pedestres, muitas vezes mais acessíveis do que as calçadas. Nas lajes as
crianças se locomovem de forma ágil, ocasionando a necessidade de
“pulos” sobre pequenos precipícios. Vimos que esse deslocar favorece
não o conhecimento da permeabilidade da favela, mas também que a
criança tenha a percepção da favela “de cima”, aumentando
gradativamente o domínio espacial do lugar e fazendo que elas se
apropriem de um território cada vez mais vasto, facilitando o processo de
enraizamento.(COELHO; DUARTE; VASCONCELLOS, 2006, 78)
Por causa da grande densidade construtiva existente, as lajes podem se
comunicar física e visualmente entre si, criando uma continuidade na paisagem e,
ao mesmo tempo, criando um sistema de percursos integrados. Assim, como os
becos, no solo, se tornaram em grande medida os lugares do encontro
comunitário, as lajes-ruas quanto mais utilizadas, além de caminhos, também
podem passar a propiciar o encontro nos percursos cotidianos. Através das lajes-
ruas poderá se assistir a reprodução da sociabilidade que se apresenta nos
becos, só que alguns metros acima do solo.
Ante da falta de espaço e do concomitante surgimento de uma nova figura
espacial, a laje, que destina-se, em um primeiro momento, à construção de um
FIGURA 4.4 – Lajes-ruas: a
s lajes vão se encontrando e
formando caminhos suspensos
Foto: Danielle Klintowitz
174
novo pavimento, recupera-se o espaço livre perdido no solo. Apesar de os becos
serem extremamente apropriados pelas crianças na suas brincadeiras cotidianas,
as lajes são apontados pelos moradores como os principais locais das
brincadeiras infantis.
“O primeiro espaço livre destacado são as lajes, que de uma forma geral
demonstram ser o lugar ideal e privilegiado para o lazer ou qualquer
atividade de integração social entre crianças e adultos. (...) é nesses
espaços que as crianças passam parte do tempo, quando não brincando
sozinhas, acompanhadas de algum amigo ou adulto. (...) A apropriação
das lajes é freqüentemente ilustrada em falas e aparece nos desenhos
das crianças. (COELHO, 2007, 184)
Às vezes este solo recuperado nas lajes funciona como espaço do convívio e
lazer familiar e coletivo, mas, em muitos momentos, adquire também um caráter
público no exercício de funções como circulação ou lazer. A densidade construtiva
cada dia mais exacerbada acabou por consumir quase todos os espaços livres
públicos existentes no solo, diminuindo as possibilidades de preservação e
instalação de novos espaços de lazer e convívio na favela da Rocinha. Diante
deste fato a laje assume o papel de um novo espaço livre urbano com grande
potencial de publicização. Eduardo Yagizi (2000:25) afirma que à medida que
muda a vida pública, muda também o espaço público.”
Hosana Pereira, moradora da Rocinha descreve:
“Com o processo de perda do espaço, que teve início nos anos 80, e que
se intensificou nos anos 90 e 2000 (...) adultos e crianças fazem da laje
um espaço alternativo para a falta do espaço público, como no caso das
brincadeiras, como, por exemplo, jogar bolinhas de gude, brincar de pique
e pega.” (PEREIRA,2007:35)
Ao propor os 5 pontos fundamentais para a arquitetura, Le Corbusier demonstrou
a importância da recuperação do solo ocupado pelas edificações através da
criação de “tetos-jardins” que cumpririam o papel de um “solo criado” para o lazer
e atividades comunitárias.
106
106
Os 5 pontos de fundamentais de uma nova arquitetura de Le Corbusier foram o resultado das
pesquisas realizadas nos anos iniciais de sua carreira. Sua forma final foi publicada em 1926 na revista
francesa L’Esprit Nouveau. Os cinco pontos são a sintaxe de fundamentação e ordenação das edificações
modernistas. São eles:1) Os pilotis que elevariam a massa acima do solo, 2) a planta livre, obtida mediante
a separação entre as colunas estruturais e as paredes que subdividiam o espaço, 3) a fachada livre, o
corolário da planta livre no plano vertical, 4) a longa janela corrediça horizontal e finalmente 5) o jardim de
cobertura que supostamente recriava o terreno coberto pela construção da casa JOHNSON, Philip. In:
NESBITT, Kate (org.) Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica (1965-1995). São Paulo: Cosac
& Naify, 2006: 27.
175
“Para descongestionar a cidade e conquistar-lhe uma imensa superfície
acessível nas melhores condições de higiene: Qual é o crescimento das
superfícies de terraços construídos no país, sobre todos os imóveis,
terraços estanques e acessíveis? Pois os eternos ‘impedidores’ veriam
então existir e (resistir) esse método que não é mais que a expressão
do bom senso utilizando o progresso; e o urbanismo poderia estender
seus traçados AO TELHADO da cidade, recuperando uma parte dessa
superfície acessível e traçando nela uma nova ordem de ruas de
repouso, longe do ruído e no meio do verde.” (LE CORBUSIER,
2000:113)
107
Nas postulações de Corbusier o teto-jardim moderno funcionaria na esfera de vida
privada e social, não tendo sido pensado como um lugar do exercício da vida
pública da cidade. Este tipo de espaço foi projetado para suprir a necessidade de
espaços de lazer nas residências unifamiliares e coletivas e alguns edifícios
comerciais, que no modelo de cidade que propunha o urbanismo modernista
todo o solo urbano seria destinado à vida pública. No projeto da cidade
modernista pressupunha-se um tecido urbano rarefeito, onde os tetos jardins
estariam afastados uns dos outros, mantendo a privacidade necessária ao
desenvolvimento das atividades das esferas de vida privada e social.
Em um processo intuitivo a comunidade da Rocinha tem exercitado, à sua
maneira, em seu território, um dos cinco pontos da arquitetura modernista,
recriando o solo ocupado.
Mas a laje da favela, que nasce para ser privada e com caráter provisório, por
estar inserida em um tecido urbano onde a superfície é profundamente densa,
acaba por se inserir, por vezes, no sistema de ações da esfera de vida pública,
contrariando o conceito modernista do teto-jardim, e não recria apenas o solo
para o lazer privado ou condominial, como propunha Le Corbusier. As lajes,
quando associadas a certas ações, transformam-se em um novo tipo de
espacialidade pública criada nos territórios informais. Talvez esta diferença
explique-se através da reflexão sobre os dois contextos urbanos aqui analisados.
A cidade modernista, onde se propunha a criação do teto-jardim, caracterizava-se
por sua pequena densidade construtiva e pelo solo totalmente público, então, a
demanda por espaços livres públicos era praticamente inexistente, assim, não era
preciso se recriar espaços públicos, apenas privados. Na Rocinha
contemporânea, observa-se justamente o fenômeno contrário e a demanda por
107
Grifos do autor
176
espaços públicos é enorme. Neste contexto surge a premência da recuperação do
solo, não apenas para atividades do âmbito da esfera de vida privada, mas
também no âmbito da esfera de vida pública, assim, a laje transforma-se em uma
recriação do solo que oferece grandes possibilidades de publicidade.
“As praças também nasceram de necessidade: de espaço para abrigar as
atividades de troca e para a tomada de decisões coletivas; de endereço
para os encontros, para as festividades; de um símbolo para a
comunidade, enfim, de um centro” facilmente acessível para a realização
das mais variadas funções.(BARTALINI,2005)
Trata-se de uma (re)invenção da praça. Aparece uma nova figura espacial na
cidade, a praça recriada: a laje-praça.
FIGURA 4.5 – Unité d'Habitation de
Briey en Forêt
Fonte: Fondation Le Corbusier
FIGURA 4.6 Lajes: os solos
criados na Rocinha
Fonte: www.flickr.com
177
A “nova praça” surge da necessidade atrelada à possibilidade, e não de um plano,
o que torna o novo “sistema de praças” fragmentado, diversificado e entremeado
no tecido urbano. Esta fragmentação supre a demanda premente por espaços de
lazer e convívio pulverizados pelo território que, por sofrer com a baixa
acessibilidade e mobilidade em muitos setores, não seria mitigada simplesmente
com a existência de uma única grande praça central que teria, inclusive,
características de sociabilidade, escala e abrangência muito diferentes das
possibilitadas e identificadas nas lajes-praças. Assim como as praças medievais,
as lajes-praças nascem diretamente relacionadas à forma do tecido urbano, elas
não funcionam apenas no desempenho de funções de convívio e lazer, como
também ajudam na reestruturação do tecido urbano, que por ser muito denso
acaba gerando novos espaços livres suspensos, sobre as lajes das edificações.
A laje torna-se praça quando assim é usada e volta a ser apenas uma cobertura
quando deixa de ser usada como tal. Trata-se de uma apropriação e modificação
“de ocasião”, que só transforma o lócus em “lugar praticado” quando usado,
voltando a ser apenas suporte físico quando se cessa a ação pública nele
exercida.
108
Portanto, a laje, esta nova figura espacial da cidade informal
contemporânea, pode ser entendida como praça, em certos momentos, por causa
de sua peculiar capacidade de desenvolver diferentes “pracialidades”.
109
“Quem define a praça é o que nela se realiza, assim um sistema de ações
e objetos que apresente forte conotação pública, de livre acessibilidade é
o que vai caracterizar o espaço como praça. Desta forma, situações de
“pracialidade poderão ocorrer, eventualmente, em ruas, avenidas,
descampados e até em edifícios. Tem o sentido de praça, ainda que
oficialmente possam não ser, por exemplo: os campinhos de futebol nos
bairros periféricos das grandes cidades, alguns trechos de parques nos
fins-de-semana, a feira de São Cristóvão no Rio de Janeiro, o calçadão de
Copacabana, a Av. Paulista ou a Champs Elysées em Paris quando
tomadas pelos pedestres em festas ou manifestações políticas.”
(QUEIROGA, 2001:57)
108
Para Certeau o espaço ou lugar praticado se constituem como tal pelas práticas que neles são
exercidas. Em suma, o espaço é um lugar praticado. Assim a rua geometricamente definida por um
urbanismo é transformada em espaço pelos pedestres.” (CERTEAU, 2005:202)
109
O termo pracialidadepode ser entendido como um estado de praçaque certos lugares adquirem em
certos momentos e por determinadas apropriações sociais de caráter público. (QUEIROGA, 2001) (...) uma
prática espacial própria da esfera de vida pública, que pode se estabelecer em determinados momentos, para
diferentes sistemas de objetos integrantes do espaço urbano, envolvendo desde ões comunicativas do
cotidiano da vida pública, até momentos da vita activa harenditiana, da ação política e suas representações
simbólicas. A pracialidade é, como categoria, uma abstração, mas voltada à interpretação de concretudes,
existências que se situam no tempo-espaço, participando da construção e metamorfose da vida pública.
(QUEIROGA, 2003)
178
Da mesma forma que as ações que pracializam as lajes, o espaço físico destas
lajes apresenta, em sua origem, um caráter provisório. Estas coberturas são
executadas na intenção de abrigarem novos pavimentos que se construirão no
futuro. Mas apesar da transitoriedade de cada laje, a potencial praça que se
instaura sobre ela, não é provisória, pois apenas mudará de andar. Ao final da
execução de cada novo pavimento, surge uma nova laje que sempre traz consigo
uma nova praça e assim sucessivamente. Assim provisoriedade é uma
característica primordial da laje-praça, que apresenta caráter transitório tanto em
seus aspectos físicos, quanto apropriativos. A laje-praça assume inúmeros
significados, podendo ser entendida como um novo espaço a cada nova
apropriação e “maneira de usar”.
“O “próprio” é a vitória do lugar sobre o tempo. Ao contrário, pelo fato de
seu não-lugar, a tática depende do tempo, vigiando para “captar vôo”
possibilidades de ganho. O que ela ganha, não o guarda. Tem
constantemente que jogar com os acontecimentos para transformar em
“ocasiões”. (...) Ele o consegue em momentos oportunos onde combina
elementos heterogêneos.(CERTEAU, 2005: 47)
Um dos fatores primordiais que possibilita que a laje seja entendida como uma
forma urbana mais próxima da praça do que de um espaço doméstico como o
quintal é o fato de a laje estar exposta à rua. A laje é um espaço que pertence
muito mais ao universo social da rua do que da casa. Apesar de sua
acessibilidade física restrita, visualmente a laje está mais conectada ao espaço
exterior do que ao espaço interior.
“O acesso é fundamental para a apropriação e uso de um espaço. Car et
al. (1995)
110
classificam os três tipos de acesso ao espaço público de
físico, visual e simbólico ou social. (...) Acesso visual ou visibilidade é o
primeiro contato, mesmo à distância, do usuário com o lugar. Perceber e
identificar ameaças potenciais é um procedimento instintivo antes de
adentrar qualquer espaço. Uma praça visível de todas as calçadas,
informa aos usuários sobre o local e, portanto, é mais propícia ao uso.
(ALEX, 2004:18)
Certamente, apenas, a visibilidade desconectada de outros fatores físicos e ações
que ali ocorram, não garante a publicidade da laje-praça, o que a torna pública é o
conjunto de determinantes físicas associadas às ações públicas. A visibilidade
torna-se um fator publicizador quando quem é visto tem, além da consciência
110
Car et al. (1995)” -
CARR,Stephen; FRANCIS,Mark; RIVLIN,Leanne; STONE,Andrew M. Plubic Space.
New York: Cambridge University Press, 1995. Apud ALEX, 2004.
179
desta visibilidade, a intenção de ser visto. Ao intencionarem ser vistos, os atores
sociais passam a praticar ações públicas e, assim, publicizam o local sobre o qual
realizam suas ações, pois o que a pracialidade ao lugar é a ação sobre ele
desenvolvida, quando não há uma ação como esta a laje deixa de ser praça.
Apesar de não ser a única característica da publicilização da laje, a visibilidade é
de grande importância para que isso ocorra. A visibilidade pública promove uma
sociabilidade específica com a rua que permite que as brincadeiras, churrascos e
encontros, em certos momentos, não permaneçam exclusivamente na esfera de
vida privada, porque, mesmo que os participantes do evento não possam ser
ouvidos, sempre podem ser vistos e sabem disso, diferente do que acontece no
quintal onde se está isolado, normalmente entre muros, dentro do lote privado.
Sobre as lajes não se tem “direito a invisibilidade”, sempre se está exposto.
“Da casa olha-se para rua, que, sendo pública, é de todos. A vista do
quintal deve ser, em contrapartida, limitada ao nosso quintal, pois, a
materialidade dos anteparos (muros, cercas vivas, trepadeiras, etc.)
expressa o direito a uma relativa invisibilidade. Estas fronteiras do
respeito mútuo unem e separam ao mesmo tempo. (...) No quintal se
expõe uma dimensão da vida cotidiana que é recorrentemente
escondida.”
111
(C. SANTOS,1985:49-50)
O fato de o espaço da laje-praça estar exposto retira as relações que nele se
estabelecem, do âmbito exclusivo da esfera de vida privada.
“Chamamos de ‘públicoscertos eventos quando eles, em contraposição
às sociedades fechadas, são acessíveis a qualquer um assim como
falamos de locais públicos ou de casas públicas. (...) à luz da esfera
pública é que aquilo que é consegue aparecer, tudo se torna visível a
todos.” (HABERMAS, 2003:14-16)
Reforçando, ainda, sua externalidade, existe o fato de que o ingresso às lajes, na
maioria dos casos, se por escadas externas que são acessadas a partir da rua
e não do espaço interno da habitação. Isso se dá justamente porque as lajes são
pensadas e construídas como um espaço independente do espaço interno da
casa existente. Normalmente as lajes são feitas com a finalidade de possibilitar a
construção de uma nova residência para outros membros da família, ou ainda,
para o incremento da renda familiar através do aluguel ou da venda. Na Rocinha,
vende-se ao aluga-se uma laje como se fosse um outro lote.
111
Grifo meu.
180
Na Rocinha, assim como em outras favelas brasileiras, os prédios de apartamento
não são entendidos como um condomínio habitacional multifamiliar, e sim como
uma série de casas sobrepostas verticalmente, onde os acessos são quase
sempre externos não havendo possibilidades para circulação vertical interna à
edificação. Da mesma forma, a laje é entendia como uma unidade independente
que não faz parte do núcleo central da habitação, é o germe de uma nova
habitação, por isso conecta-se diretamente à rua.
FIGURA 4.7 - Escadas de acesso às lajes e novos andares nas edificações
Fotos: Danielle Klintowitz
FIGURA 4.8 - Desenho de criança do complexo de favelas Pavão- Pavãozinho representando seu território, onde os edifícios são
representados como unidades habitacionais individuais sobrepostas. Interessante notar também a criança soltando pipa no alto de
uma laje.
Fonte:
MARZUELO, 2005
.
181
O senso comum que a laje da favela apenas como um futuro espaço para
ampliação da residência está ultrapassado, não representa mais a realidade da
maioria das lajes nas favelas atuais. O espaço da laje representa uma
oportunidade de negócio. É prática comum os moradores venderem suas lajes
para outros construírem uma nova casa sobre suas casa.
“(...) a existência da laje nas casas é um ativo social e econômico
importante. A laje é também a principal herança, em geral, que os pais
podem deixar para os seus filhos, além de funcionar como áreas de
lazer, espaço de reunião da família e dos amigos.” (SOUZA ; BARBOSA,
2005:65)
“Cada andar criado pela laje gera uma nova possibilidade de
verticalização. As mutações sistemáticas, típicas da sociedade
contemporânea, nas famílias transformam a expansão das áreas de
moradia e a verticalização em um estoque imobiliário crescente que vai
alojar os novos moradores, em geral oriundos da periferia da metrópole
ou do nordeste brasileiro. As lajes viram capital imobiliário. (...)Tem-se,
no interior dessa dinâmica arquitetônico-urbanística, o fortalecimento do
sempre presente mercado imobiliário, agora extremamente aquecido.
(...) Dentro dessa dinâmica, aproveitando-se de uma certa "cultura da
laje" no fazer construtivo na favela contemporânea, é que surgem os
empreendedores imobiliários que investem seu tempo, sua capacidade
de trabalho e pequena monetização na construção de mais andares
sobre edificações onde, normalmente, habitavam, acelerando a
verticalização, a dinâmica imobiliária e o fluxo dos pobres que transitam
no interior do espaço metropolitano.” (MARZUELO, 2004)
Percebe-se, então, que simbólica e morfologicamente a laje está mais conectada
ao espaço exterior da rua do que ao espaço interior da casa, como o quintal. Isto
é, a laje conecta-se mais fortemente com o espaço público, representado pela
rua, do que com o espaço privado, representado pela casa. Se por um lado as
escadas de acesso às lajes inibem o acesso de qualquer um, fazendo com que na
maioria dos casos seja preciso um convite para se subir na laje de uma pessoa,
por outro lado, as mesmas escadas permitem que se acesse a laje de alguém
sem que se necessite passar por dentro de sua residência, retirando-a do âmbito
do espaço doméstico. Ao mesmo tempo, quando convida-se pessoas para uma
celebração na laje, não é preciso que estas pessoas percorram a casa para
chegar à festa, diferentemente de uma comemoração no quintal, desta forma nas
festas nas lajes não é preciso convidar “gente de casa” porque os convidados
da laje não terão que passar por dentro da casa.
“O quintal enquanto extensão da casa, adquire, em primeiro lugar, um
significado de intimidade. O acesso a esta área só é possível literal e
metaforicamente, através da casa e, portanto, a “pessoas da casa”.
(C.SANTOS,1985:50)
182
Domingo é dia de festa na laje.
No Domingo a imagem que se tem deste território é de uma cidade em festa. As
reuniões festivas que acontecem em inúmeras lajes da favela se sobrepõem na
paisagem e parece que toda a Rocinha está celebrando seu dia de folga. Nestes
espaços com vista privilegiada para a “Cidade Maravilhosa” acontecem diferentes
tipos de atividades: tem churrasco, tem feijoada, tem pagode, tem criança
nadando em piscinas de plástico, tem gente admirando a paisagem.
Estes encontros nas lajes representam uma parte significativa das atividades de
lazer e recreação desenvolvidas na favela da Rocinha. As lajes são os espaços
da brincadeira infantil, dos encontros familiares, das festas comunitárias, das
rodas de samba e pagode, das reuniões das associações e, ainda, são os
mirantes para a deslumbrante paisagem do Rio de Janeiro.
FIGURA 4.9 – Domingo na Rocinha
Fonte: Site Viva favela – http://www.vivafavela.com.br
Foto: Nando Dias
183
FIGURA 4.10 - Lajes em festa
Fonte: Site Agencia Olhares – http://www.agenciaolhares.com
Site Viva Favela - http://www.vivafavela.com.br
184
As lajes não podem ser vistas como quintais tradicionais. Estes novos espaços
podem, porém, ser entendidos como bridos entre “novos quintais”, nos
momentos em que nele se realizam ações cotidianas da vida doméstica e familiar
e, lajes-praça nos momentos e eventos em que se realizam sobre elas ações que
as tornam públicas.
Apesar da publicidade das lajes, de uma forma geral são esses os ambientes que
os habitantes da favela utilizam tanto para a socialização como para o
desenvolvimento de atividades domésticas. Na Rocinha praticamente não
quintais e as lajes funcionam também como “novos quintais suspensos”. Neles as
crianças brincam enquanto as mães lavam roupas. Mas estas atividades mesmo
que domésticas e pertencentes à esfera de vida privada, estão sempre expostas
aos olhos da rua. Nas lajes-quintais não pode-se esconder. Como nem nos
“novos quintais” se tem o “direito a invisibilidade” que se tem nos quintais
tradicionais, não causa estranheza que muitas atividades domésticas sejam
desempenhadas nos becos, onde estão os caminhos e olhos de todos, afinal nas
lajes-quintais também se está exposto aos olhos de todos.
São diversas as brincadeiras e apropriações feitas por crianças nas lajes, mas
sem dúvida, as mais significativas são as brincadeiras com pipas que já se
tornaram símbolos de algumas favelas cariocas. Existem casos, inclusive de
pipas que ficam tremulando no ar com a inscrição dos comandos do tráfico de
drogas, como uma representação da territorialização também do u daquele
lugar.
Neste momentos em que as lajes estão atuando apenas como os “novos quintais”
que abrigam as brincadeiras das crianças, acabam oferecendo grandes perigos
para estas crianças. Muitas destas lajes não têm guarda-corpo ou nenhuma outra
proteção, afinal estão ali à espera de novas construções sobre elas. A falta de
185
proteção nas lajes favorece que as peripécias infantis transformem-se em
acidentes com quedas das lajes que ocorrem frequentemente.
112
“O soltar pipas na laje oferece certo perigo (...) apresenta casos de queda
devido ao descuido causado pelo alvoroço quando vêem uma pipa
“avoada” (quando se desprende da linha que a segura no ar) no dizer dos
mesmos que o medem conseqüências para pegar a pipa, que é
transformada num objeto de disputa entre os “pipeiros”. Quando
conquistam a pipa, os mesmos atribuem o tal feito como símbolo de
esperteza, sagacidade e disposição para correr e pular por obstáculos
para alcançar o premio. (PEREIRA, 2007:35-36)
112
Em uma pesquisa realizada pelo Serviço de Neurocirurgia do Departamento Hospitalar Prof. Dr. Alípio
Corrêa Netto (HMACN), conhecido como Hospital Municipal de Ermelino Matarazzo na cidade de São Paulo,
constatou que em média, 60% dos pacientes internados na neurocirurgia, tanto adultos quanto crianças,
eram vítimas de quedas das lajes. Para se ter uma idéia da magnitude desses dados, é importante constatar
que, dos 364 procedimentos cirúrgicos realizados pelo HMACN em 2003, 40% foram em vítimas de quedas
de laje e que dos 2880 atendimentos ambulatoriais no mesmo ano, 60% deveram-se a esse tipo de acidente.
(...) Os dados também apontavam para algumas relações entre o tipo de vítima, período do dia em que
ocorre o acidente e o tipo de atividade envolvida. Os dados indicavam que bebês de colo sofrem acidentes
pela manhã, período em que as mães sobem às lajes para estender roupas. Crianças são vítimas
principalmente nos períodos inversos aos do turno escolar, quando sobem às lajes para soltar pipa, e jovens,
em finais de semana, momento de subir à laje para namorar. Os adultos, por sua vez, tornam-se vítimas
principalmente aos domingos à tarde, momento do churrasco.A proporção deste tipo de acidente aumentou
tanto, em uma relação direta com a intensificação do uso das lajes para as diversas sociabilizações nas
favelas e periferias da cidade, que a equipe de Neurocirurgia do Hospital, dirigida pelo Prof. Dr. Sérgio
Branco Soares Júnior, elaborou o Projeto Laje, com o objetivo de reduzir a incidência de Traumatismo
Crânio-Encefálico (TCE) e Traumatismo Raqui-Medular (TRM) resultantes das quedas de laje, prevenindo
esse tipo de acidente e reintegrando o paciente à sociedade. O projeto é desenvolvido com o Mutirão
Comunitário que consiste na construção efetiva de proteções na lajes expostas, com a união da comunidade
e dos profissionais da saúde que trabalham voluntariamente para isso. O Mutirão prevê também a realização
de palestras em escolas, centros comunitários e outros, principalmente nas áreas de risco” (COVISA, 2005)
FIGURA 4.11 - Pipa com iniciais do Comando Vermelho demarcando
territorialidade.
Fonte: Viva Favela - Http://www.vivafavela.com.br
FIGURA 4.10 - Desenho de menino de nove anos que
simula brincadeira de pipa sobre a laje.
Fonte: COELHO; DUARTE; VASCONCELLOS, 2006
186
A laje-praça por estar suspensa, assim como o teto-jardim modernista, cria um
distanciamento físico dos acontecimentos da cidade, o que faz com que, em
muitos momentos – principalmente quando estas lajes estão em cotas muito
acima do chão o pareça estar inserida verdadeiramente no tecido urbano,
gerando uma menor relação de pertencimento deste espaço e de seus usuários
com a cidade. Entretanto como as lajes-praças não estão isoladas no tecido
urbano, pelo contrário, normalmente estão ao lado de outras lajes-praças, como
observado na fig. 4.9 ao mesmo tempo em que ocorre este distanciamento da
rua, ocorre uma inter-relação entre várias lajes praças. Esta conecção entre as
várias lajes-praças cria novas e diferentes relações de publicidade com o solo e
com o tecido urbano, pois muitas vezes as trocas e ações públicas se passam
apenas entre os espaços suspensos, sem se relacionarem diretamente com o
solo.
A condição elevada destes espaços permite que o usuário tenha uma maior
leitura do contexto urbano onde está inserido, possibilitando uma maior
compreensão da paisagem urbana, o que não ocorre com grande parte das
praças urbanas confinadas dentro do tecido urbano e não permitindo ao usuário
uma amplidão no olhar para a cidade, que configura-se, neste momento, apenas
pelos edifícios do entorno da praça.
Além de seu caráter de visibilidade e convívio, a praça sempre serviu,
historicamente, à função de espaço do exercício da cidadania e da ação política.
Na laje-praça esta função torna-se presente em função da diferença de cota entre
a laje e o solo. Se nas estreitas vielas a visibilidade do território como um todo é
comprometido, nas lajes tem-se a amplitude do olhar e pode-se ver e ser visto por
todos. Na Rocinha, por causa de sua condição topográfica privilegiada, em cima
do morro, as lajes-praças permitem que o morador da comunidade tenha domínio
visual da paisagem, de dentro e de fora da favela e, com isso, estabelece-se uma
nova relação com a cidade. Não apenas por se estar acima, mas também por se
estar à distância, a visão sobre o território é modificada. À distância o olhar torna-
se mais objetivo e reflexivo e menos suscetível à mistura de sensações e
emoções inebriantes dos percursos e vivências urbanas cotidianas.
187
Quando se tem a possibilidade de visualização e de apreensão e, portanto, de
compreensão do contexto e da paisagem urbana globalmente, minimiza-se
simbolicamente a condição de inferiorizado e marginalizado (no strito senso da
palavra: de estar à margem da sociedade, fora do contexto). Assim, sobre a laje,
a favela pode estabelecer uma nova relação simbólica com a cidade. Sobre a laje
enxerga-se os espaços que estão fora do território informal e a relação com estes
espaços torna-se um pouco mais tangível. Talvez esta condição de apreensão do
território externo à favela seja, inclusive, um dos fatores contribuintes para a
apropriação por parte da população da Rocinha de territórios externos aos seu
limites, como a praia de São Conrado.
Através da laje-praça se eleva o olhar.
“Subir até o alto do World Trade Center é o mesmo que ser arrebatado até
o domínio da cidade. O corpo não está mais enlaçado pelas ruas que o
fazem rodar e girar segundo uma lei anônima; nem possuído, jogador ou
jogado, pelo rumor de tantas diferenças e pelo nervosismo do tráfico
nova-iorquino. Aquele que sobe até no alto foge à massa que carrega e
tritura em si mesma toda identidade de autores ou de espectadores. Ícaro,
acima dessas águas, pode agora ignorar as astúcias de Dédalo em
labirintos móveis e sem fim. Sua elevação o transfigura em voyeur.
Coloca-a à distância. Muda num texto que se tem diante de si, sob os
olhos, o mundo que enfeitiçava e pelo qual se estava “possuído”. Ela
permite lê-lo, ser um Olho solar, um olhar divino. Exaltação de uma pulsão
escópica e gnóstica. (...) No 110º. Andar, um cartaz, semelhante a uma
esfinge, propõe um enigma ao pedestre por instante transformado em
visionário: It’s hard to be down when you’re up. (...) Mas “embaixo” (down),
a partir dos limiares onde cessa a visibilidade, vivem os praticantes
ordinários da cidade. Forma elementar dessa experiência, eles são
caminhantes pedestres, wandersmänner, cujo corpo obedece cheios e
vazios de um “texto urbano que escrevem sem poder lê-lo. Esses
praticantes jogam com espaços que não se vêem; têm dele um
conhecimento tão ego como no corpo-a-corpo amoroso. (...) Tudo se
passa como se uma espécie de cegueira caracterizasse as práticas
organizadoras as cidade habitada.” (CERTEAU, 2005, 170 – 171)
Mas esta possibilidade de um novo olhar só ocorre em espaços populares como a
Rocinha, incrustados na região “central” da cidade e com uma topografia
favorável. Nos espaços informais localizados nas periferias paulistanas, por
exemplo, com relevo em cotas mais baixas, o se tem o domínio da paisagem
da cidade formal, como se tem nos espaços localizados em cima dos morros,
olha-se apenas para si mesmo. Apesar disso, a laje-praça destes espaços
marginais possibilita, ainda assim, uma nova possibilidade de olhar e apreensão,
permitindo um olhar geral sobre seu próprio território, o que também é importante
enquanto exercício de cidadania e vivência social.
188
“Daqui de cima da laje
Se vê a cidade
Como quem vê por um vidro
O que escapa da mão
Uns exilados de um lado
Da realidade
Outros reféns sem resgate
Da própria tensão
(Malabaristas do Sinal Vermelho, João Bosco)
Outra vivência interessante que se observa nas lajes-praças é o uso destes
espaços como platéias para shows, teatros e eventos que acontecem na rua ou,
mais comumente, em outra laje que, neste momento, serve de palco. As lajes-
platéias e as lajes-palcos se valem, além da própria diferença de altura em
relação ao solo, da topografia com cotas altas e grandes declividades para
criarem “auditórios” e “espaços cênicos”, transformando criativamente condições
topográficas ruins para o assentamento habitacional, em um atributo positivo para
a apropriação social dos novos espaços construídos.
FIGURA 4.12 - Laje como mirante da cidade
Fonte: CYPRIANO,2005
Foto: André Cypriano
189
“A origem etimológica da palavra praça é o vocábulo latino platéia, ou rua
larga.” (BARTALINI,2005)
Um show ou uma peça de teatro realizada em uma laje torna-se automaticamente
aberto ao público, pois das lajes existentes no entorno pode-se ter uma visão
privilegiada dos espetáculos. Muitos moradores da comunidade, proprietários de
lajes, revertem esta possibilidade oferecida pela nova espacialidade em uma fonte
de renda ao cobrar entradas para suas lajes-platéias, ou ao organizarem um
espaço de bares em suas lajes durante as apresentações.
FIGURA 4.13 - Lajes em dia de show
Fonte: Site Viva favela – http://www.vivafavela.com.br
Foto: Beto Pêgo
190
As lajes-platéia transformam-se em novos pontos no território, valorizando
determinados locais por suas possibilidades financeiras. Em muitos locais estas
lajes-platéias são tão utilizadas que acabam por se institucionalizar, como ocorre
no bairro do Candeal Pequeno em Salvador na Bahia, onde existe uma casa de
shows do grupo musical Timbalada, o Gueto Square, que com o palco instalado
em um quintal, pode ser visto por todas as lajes que estão em volta. Os donos
destas lajes cobram ingressos mais baratos para a população que não tem
acesso à casa de shows. Neste caso, as lajes-platéias estão tão
institucionalizadas que os músicos no palco sempre saúdam o público das lajes
vizinhas, como se fizessem parte do próprio Guetho Square.
113
“O ponto pode estar ligado ao trabalho ou ao lazer e é caracterizado pelo
exercício regular de uma atividade. Tal atividade terá de ser
necessariamente de domínio público, sem o que seria incapaz de criar o
ponto. Este, por sua vez, poderá ser formalmente reconhecido como no
caso do ponto de ônibus, ponto de táxi. O processo, no entanto, não é o
mesmo observado no caso do ponto-de-bicho. Aqui será a própria
atividade que, ao dotá-lo de significação, torna-o passível de identificação.
(...) É necessário, no entanto, algo mais do que um signo para construir
um ponto.(C. SANTOS,1985:70)
As lajes da Rocinha se multiplicam em suas funções e vivências. Ora são praças,
ora são quintais, ora são ruas ora são palcos. Estas novas formas surgidas da
precariedade e adensamento atreladas às inúmeras sociabilidades que
possibilitam, transformaram-se em interessantes espaços de convívio e lazer com
grande complexidade de funções. Por outro lado esta quantidade de funções
possíveis em um mesmo espaço podem causar conflitos com a sobreposição de
atividades da mesma forma como acontece no solo, nos estreitos becos que são
disputados e negociados cotidiamente por todos da comunidade.
“Os sistemas assim concebidos têm a virtude de saberem conviver com a
ambigüidade. Exemplificamos essa coexistência com seus eventuais
efeitos negativos: as dissenções, interferências e conflitos. Como todas as
113
O Candeal Pequeno é um bairro pobre da cidade de Salvador, na Bahia, onde nasceu o músico Carlinhos
Brown que fundou a banca Timbalada. Por ter nascido no bairro, o músico fez um forte esforço para melhorar
as condições de vida do lugar, dentre suas iniciativas esteve a construção de uma casa de shows que
sediaria os shows de sua banda, trazendo o bairro pobre para o cenário cultural da cidade. De fato, o Guetho
Square tornou-se um sucesso e nos domingos, quando aconteciam os shows da banda Timbalada o bairro
do Candial era invadido por jovens da classe média bahiana e turistas, que conviviam com os moradores
pobres da comunidade. Por tratar-se de uma iniciativa que visava melhorar a qualidade de vida do bairro, as
lajes-platéia que se constituíram no entorno do Gueto Square eram prestigiadas pelos músicos da mesma
forma que os camarotes da casa de shows.
191
fronteiras são definidas contextualmente, a única maneira de desfazer
acavalamentos não desejados, ou de hierarquizar as diferentes formas de
apropriação, tornando-as compatíveis, é a prática permanente da
negociação.” (C.SANTOS, 1985:129)
A laje representa bem a relação entre o espaço público e privado na Rocinha, se
apresentando ora como blico, ora como privado, ora como lugar da vivência na
esfera social. Ao andar pela Rocinha percebe-se que o limite entre o que é
espaço público e o que é espaço privado é muito tênue, e pode ser subvertido a
qualquer momento. O habitante desta comunidade parece muito à vontade para
se apropriar de qualquer tipo de espaço público que esteja disponível. Da mesma
forma, o espaço privado pode ter uma apropriação pública de uma hora para
outra.
“O espaço se confunde com a própria ordem social de modo que, sem
entender a sociedade com suas redes de relações sociais, valores, não se
pode interpretar como seu espaço é concebido. Aliás, nesses sistemas,
pode-se dizer que o espaço não existe como uma dimensão social
independente e individualizada, estando sempre misturado, interligado ou
“embebido em outros valores que servem para orientação geral.”
(DAMATTA,1997:30)
A própria vida dentro das casas na Rocinha não é completamente privada. As
casas são coladas umas nas outras, não há recuos, as paredes são finas, tudo se
escuta. A proximidade física faz com que todos saibam e participem da vida
doméstica de todos. Em um universo onde não se conhece a privacidade integral
a distinção entre o público e o privado torna-se também mais tênue. A moradora
Hosana Pereira afirma que:
“Com a proximidade das casas, fruto de tal liberdade, ocorre a perda da
privacidade, pois é comum nesse ambiente que a disposição das janelas
e portas das casas serem próximas umas das outras, o que faz com que
os vizinhos sejam forçados a fazer parte da rotina do outro e conhecer
seus hábitos. (...) No atual curso das construções, devido à intensificação
das mesmas e ao excesso de proximidade, apresentam uma disposição
mais invasiva, ou seja, com janelas e portas de frente para rua ou para
casa vizinha permitindo a observação dos hábitos e de sua intimidade por
outros. Com a intensificação das construções e proximidade das mesmas,
essa garantia da liberdade de ação sem controle por parte dos vizinhos foi
perdida.” (PEREIRA,2007:38 -39)
Na Rocinha, as lajes são bons exemplos das novas formas espaciais que o
espaço público pode assumir na cidade contemporânea. Nos domingos de sol
quando as lajes estão todas ocupadas, verifica-se uma vivência do território que
deixa de se passar no solo e acontece, também, alguns metros acima. As
músicas se confundem, os cheiros se fundem, as conversas se misturam.
192
Com este estudo sobre as novas formas e vivências produzidas nos territórios
informais das cidades brasileiras fica claro que não se está produzindo apenas
novas morfologias, mas atreladas a elas, está se produzindo novas sociabilidades
e conseqüentemente novos espaços públicos, em
um diálogo permanente e
indissociável entre a morfologia e as práticas sociais. Na comunidade da Rocinha
produz-se a todo o momento espaços que criativamente vão adquirindo novas
funções e possibilidades que suprem carências do cotidiano comunitário. Criam-
se e recriam-se formas onde possam se exercer inúmeras formas de
sociabilidades que, por sua vez, também são recriadas dentro de uma nova e
particular forma urbana.
Deste modo, torna-se evidente que a caracterização dos espaços públicos das
cidades contemporâneas não pode se limitar às características físicas dos tecidos
urbanos, é preciso, também, aliar a estes fatores as análises sobre o tecido social
que a eles está profundamente conectado. na compreensão da
indissociabilidade entre o sistema de objetos e ações (M. SANTOS, 1996) é que
se conseguirá uma análise clara e profunda sobre as novas espacialidades
públicas da cidade contemporânea.
O território da Rocinha foi todo construído por seus moradores. Ele é a
representação precisa de sua comunidade. O estudo de suas questões espaciais
revela toda série de relações sociais que lá existem. A identidade da Rocinha está
marcada em seu espaço físico, é parte dele, assim como ele também é
componente da identidade desta comunidade.
Toda memória coletiva e afetiva da comunidade aparece nos usos e nas
apropriações dos espaços e contribuem para construção de uma identidade
comum. Segundo Carlos Nelson Ferreira dos Santos:
“O que se denomina “vida comunitária” é um conjunto de desempenhos
suportados por “palcos”, por “cenários” que tenderão a ser identificados de
acordo com o enquadramento em um dos dois modelos. As
manifestações sócio-culturais características de um grupo e que servem
para distingui-lo, em relação a quem é de fora e para seus próprios
membros, sempre estarão referidas a conceitos de “abertura” de espaços.
Irão se dar em locais públicos ou naqueles que, por força de um uso
especial passarão a ser vistos “como se fossem públicos”. (C. SANTOS,
1985:13)
193
É interessante notar, também como estas novas formas urbanas surgidas nos
espaços informais das cidades brasileiras apresentam semelhanças formais com
outros espaços tradicionais de muitas cidades européias. As lajes-praças
podem ser entendidas como uma nova tipologia de praça da cidade informal
contemporânea que se compõe por uma mescla de características morfológicas e
de sociabilidade identificáveis em várias outros tipos de praças existentes nas
cidades formais.
“A forma urbana resultante das favelas urbanizadas é bastante
semelhante no traçado e largura das ruas, vielas e becos, no desenho
dos lotes, nos gabaritos e recuos das edificações, na apropriação dos
elementos do sítio natural (declividade, existência de nascentes,
córregos) à de certos trechos de origem medieval de cidades
européias. Há semelhanças nas soluções / adaptações do tecido urbano.
O mesmo poderia se dizer das nossas cidades coloniais.” (BUENO,
2000:285)
E observando relações entre os aspectos morfológicos e vivências das lajes-
praças, com outras formas tradicionais do espaço público da cidade formal,
percebe-se que as formas vernaculares que surgem de maneira intuitiva na
cidade informal, podem ser entendidas também como produtos da história da
cidade. Desta forma, as praças suspensas da Rocinha nos impelem a olhar para
esta e outras comunidades que produzem espaços que criativamente vão
adquirindo novas funções e possibilidades que suprem carências no cotidiano
comunitário. Criam-se e recriam-se formas onde possam se exercer “tradicionais”
formas de sociabilidades humanas que, por sua vez, também são transformadas
dentro de uma nova e particular forma urbana.
Estes espaços identificados nos territórios informais, que constituem como formas
contemporâneas de produção de espaços urbanos, podem ser facilmente
associadas à “arquitetura materialmente líquida” que, segundo Solà-Morales, está
preocupada em dar configuração à fluidez, inconstância e mobilidade que
caracterizam a época contemporânea.
“Formas fluidas, cambiantes, capaz de in-corporar, de fazer fisicamente
corpo, não com o estável, mas com o mutável, não buscando uma
definição fixa e permanente do espaço, mas dando forma física ao tempo,
a uma experiência de durabilidade na mudança que é completamente
distinta do desafio do tempo que caracterizou o modo clássico de
operação.” (SOLÀ-MORALES, 2002:126)
194
Sendo entendidas como formas contemporâneas de produção informal do espaço
público, estas “novas praças” devem ser olhadas por pesquisadores e
planejadores urbanos a fim de colaborar na compreensão sobre as necessidades
e formas que assumem as sociabilidades nas cidades informais contemporâneas.
“Esta fluidez, em contraponto ao princípio vitruviano de permanência,
indica a necessidade de haver enorme maleabilidade dos planejadores do
espaço, para considerar a inclusão de novas articulações que possam
estabelecer como dado, a mobilidade universal que se está instalando.”
114
Não se está produzindo apenas novas morfologias, mas atreladas à elas, está se
produzindo novos modos de sociabilidade e conseqüentemente novos espaços
públicos, em um diálogo permanente entre a morfologia e as práticas sociais. A
todo o momento os espaços criativamente vão adquirindo novas funções e
possibilidades que procuram suprir as carências do cotidiano comunitário.
Aparentemente o público e o privado se confundem nesta comunidade. Talvez,
esta confusão venha, em parte, de sua formação espacial que não definiu
originariamente estas categorias espaciais. Da mesma forma, as relações de
dominação estabelecidas também causam entraves à questão da publicidade dos
espaços, pois estabelecem regras de conduta e de acesso que restringem
práticas e encontros. Entretanto, embora estes fatores pareçam determinantes na
constituição dos espaços e em suas apropriações, o que se conclui estudando a
Rocinha é que mais do que uma confusão ou sobreposição das esferas de vida
pública e privada, o que existe é uma enorme fluidez entre estas categorias,
decorrente da razão cotidiana, que constrói regras próprias a partir da interação
entre necessidades e práticas estabelecidas. No cotidiano desta comunidade as
vivências ultrapassam as determinações jurídicas de propriedade - quando
existem - e, principalmente, as abstrações teóricas que classificam em rígidas
categorias o que é público e o que é privado. Na cidade informal as esferas de
vida oscilam no tempo e no espaço.
114
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.
195
FIGURA 4.14
Laje em construção
Fonte: Agencia Olhares -
http://www.agenciaolhares.com
Foto: João Alexandre Firmino
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