Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
EU SOU A LUZ DO MUNDO:
UM ESTUDO DO SIGNIFICADO DO TERMO LUZ EM
JOÃO 9, 1-41
Maria Aparecida de Andrade Almeida
São Bernardo do Campo
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
EU SOU A LUZ DO MUNDO:
UM ESTUDO DO SIGNIFICADO DO TERMO LUZ EM
JOÃO 9, 1-41
Por
Maria Aparecida de Andrade Almeida
Orientador
Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia
Dissertação apresentada em cumprimento às exigências
do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
para a obtenção do grau de mestre.
São Bernardo do Campo, São Paulo, Brasil
Agosto de 2008
ads:
3
ALMEIDA, Maria Aparecida de Andrade. Eu Sou a Luz do Mundo: um estudo do significado
do termo luz em João 9,1-41. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo,
2008 (Dissertação de Mestrado), 167p.
SINOPSE
O termo “luz” se inscreve no encontro das tradições veterotestamentária e grego-romana
como uma alternativa a certas necessidades da comunidade joanina: as culturas diferentes dos
povos que receberam o evangelho; a diversidade dos problemas que pediam respostas
diferentes; a diferença de classes dentro da comunidade; as tomadas de posição discordantes
diante da política do império e o conflito entre judeus e cristãos. E é neste ínterim de conflito,
tanto interno como externo, um momento doloroso para os dissidentes, porque os prejuízos
não eram apenas religiosos, mas provocavam mudanças em todos os âmbitos da vida, que a
comunidade joanina procurará alternativa. Por isso, a Narrativa da Cura do Cego de Nascença
(Jo 9,1-41) é um espelho para a comunidade. Ela buscará em Jesus a luz de que precisa para
continuar. O cego representa a comunidade antes de conhecer a Luz do Mundo. A
solidariedade, a fraternidade e o amor mútuos são forças que ajudaram na resistência.
4
ALMEIDA, Maria Aparecida de Andrade. I am the Light of the World: a study of the
significance of the word light in John 9,1-41. São Bernardo do Campo: Methodist University
of São Paulo, 2008 (Master’s Program Dissertation), 167p.
ABSTRACT
The word “light” inserts itself in the encounter of the old Testament and Greco-Roman
traditions as an alternative to certain needs of the Johannine community: the different cultures
of the people who received the Gospel; the diversity of problems that were asking for
different answers; the class differences inside the community; the contradictory positions
taken against imperial politics and the conflict between Jews and Christians. And it is in this
conflicting interim, both internal and external, a painful moment for the dissidents (because
the damage was not just religious, but they caused changes in all aspects of life) that
Johannine community shall seek some alternative. Therefore the Narrative of the Blind Man’s
Healing (Jo 9,1-41) works as a mirror for that community who will look to Jesus for the light
that it needs to keep going on. The blind man represents the community before knowing the
Light of the World. Solidarity, fraternity and mutual love are powers that did help in the
resistance.
5
Esta pesquisa foi realizada sob os auspícios do
IEPG (Instituto Ecumênico de Pós-Graduação)
e da CAPES.
6
AGRADECIMENTOS
A Deus
Existiam muitos caminhos a seguir, mas este foi o que escolhi. Alguns não compreenderam a
minha escolha, porém Sua Luz me orientou, seu Espírito me guiou, Sua mão me sustentou
quando prostrada diante das dificuldades e o Seu braço amigo me encorajou até aqui. Minha
eterna gratidão por me acompanhar do momento da escolha até agora, quando uma nova
jornarda está por começar.
Aos Mestres
Àqueles que dedicaram seu tempo e compartilharam experiência para que minha formação
fosse também um apredizado de vida. Àqueles que, com sua sabedoria, fizeram-me ver que
estava no caminho certo. Áqueles que não foram só mestres, detentores de conhecimento, mas
grandes amigos, minha homenagem, meu carinho e minha eterna gratidão:
Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia (UMESP)
Prof. Dr. Milton Schwantes (UMESP)
Prof. Dr. Archibald Mulford Woodruff (UMESP)
Prof. Dr. Paulo Augusto de Sousa Nogueira (UMESP)
Prof. Dr. Antônio Carlos de Melo Magalhães (UMESP)
Prof. Dr. Jung Mo Sung (UMESP)
Prof. Dr. Mariano Weizenmann (Fac. Dehoniana)
Prof. Dr. Shigeyuki Nakanose (Fac. Dehoniana)
Profª Drª Maria Antônia Marques (Fac. Dehoniana)
Prof. Dr. Pedro Lima Vasconcellos (PUC-SP)
7
Aos que amo
quero dizer que sei o quanto foi difícil para vocês conviverem com tantas ausências,
esperas, impaciências, sufocos, cansaços e correrias. Mas o mais importante foi compatilhar
com vocês as minhas descobertas, deslubramentos, alegrias, expectativas, vitórias e, acima de
tudo, meu projeto. Obrigada por vocês terem passado pela minha vida e por terem me dado a
força necessária para chegar até aqui. Vocês foram companheiros (as), amigos (as), esteio na
mimha exaustão, ânimo em minhas incertezas, impulso na minha fraqueza, vocês acreditaram
em mim. A vocês cabe uma parcela desta vitória. Por isso, meu carinho, meu amor e meu
muito obrigada:
Joaquim P. de Andrade Júnior (pai); Maria Rosa de Andrade (mãe); Elias de Almeida
(esposo), Verônica Andréa de Andrade Almeida (filha); Eliza Helena de Almeida (cunhada);
Elenice de Almeida (cunhada); Heleno Henrique de Almeida (cunhado), Maria Aparecida de
O. Almeida (cunhada); Maria Ivo Antunes (amiga); Fernando Antunes Filho (amigo); Pe
Jésus Cristiano Arantes (amigo); Felipe Boechat Barbosa (amigo); Érica de Oliveira Matos
(amiga); Moisés Moreira (amigo); Maria Paula Rodrigues (amiga); Elizangela Soares (G.
Oracula); Alexandre Bermudez Bagniewski (G. Oracula); Sebastiana Silva Nogueira (G.
Oracula); Carlos Guilherme F.S. Magajewski (G. Oracula); Francisca Rosa da Silva (G.
Oracula); Denis Duarte (G. Oracula); Aline Duarte (G. Oracula); Valtair Miranda (G.
Oracula); Gilvaldo Mendes Ribeiro (G. Oracula); José Luiz Izidoro (G. Oracula); Julio César
Dias Chaves (Universidade de Laval-Canadá); Regina Coeli de O. C. Lima (amiga); Maria
Sofia de C. Farage (amiga); Damares G. P. Queiroz (Secretária da Pós-Graduação em
Ciências da Religião); Ana Fonseca (IEPG); Rute de Moraes M. Storelle (Secretária do Prof.
Paulo Roberto Garcia); Sirley Antoni (Assistente da Bibliografia Latino Americana).
Homenagem especial
Prof. Dr. Milton Schwantes (por ter me apresentado à UMESP e muito mais);
Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia (pela paciência, pelo carinho em me orientar);
Prof. Dr. Paulo Augusto de S. Nogueira (por tudo que vivemos no G. Oracula de Pesquisa);
Elizangela Soares (por ter feito as revisões finais);
8
Elias de Almeida (pelo amor, paciência e incentivo);
Verônica Andréa de Andrade Almeida (por ser uma filha maravilhosa e razão de minha
persistência);
Júlio César dos Santos (por ter me reservado um lugar na boléia de seu caminhão e ter
me trazido para casa sempre com muita segurança);
Marlene Teixeira de Souza (esposa do Júlio), por sempre lembrar ao Júlio de me trazer;
Ana Aparecida dos Santos Almeida (in memorian, por ter sido não apenas sogra, mas uma
grande amiga);
Vovó Kilocha (in memorian, por ter me ensinado a amar as Palavras Sagradas e a Luz do
Mundo).
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO I ...................................................................................................... ............. 12
INTRODUÇÃO II: A HISTÓRIA DO QUARTO EVANGELHO .......................... ............. 15
Capítulo I: LUZ NO QUARTO EVANGELHO EM DIÁLOGO COM OUTRAS
LITERATURAS ...................................................................................................... ............. 24
1.1. LUZ NO NOVO TESTAMENTO ..................................................................... ............. 25
1.1.1. LUZ NO QUARTO EVANGELHO ....................................................... ............. 25
1.1.1.1. A chegada da luz (1,1-19) ............................................................ ............. 25
1.1.1.2. Manifestação da luz (3,1-21) ....................................................... ............. 26
1.1.1.3. Eu sou a luz do mundo (8,12; 9,5) ............................................... ............. 27
1.1.1.4. Luz soteriológica (12,46-50)........................................................ ............. 28
1.1.2. LUZ NOS SINÓTICOS E ATOS DOS APÓSTOLOS ........................... ............. 29
1.1.2.1 A transfiguração de Jesus como manifestação da luz (Mt 17,1-9)............. 32
1.1.2.2. Luz que brilha no caminho (At 9,1-9; 22,3-11; 26, 9-18) ........... ............. 37
1.1.2.3. Luz que liberta da prisão (At 12,1-11) ........................................ ............. 41
1.1.2.4. Paralelo entre luz no Quarto Evangelho e luz nos Sinóticos e Atos dos
Apóstolos .................................................................................................. ............. 43
1.1.3. LUZ NAS CARTAS PAULINAS, CARTAS JOANINAS E APOCALIPSE....... 44
1.1.3.1. Paralelo entre luz no Quarto Evangelho e luz nas Cartas Paulinas, Cartas
Joaninas e Apocalipse ............................................................................... ............. 46
1.2. LUZ EM QUMRAN........................................................................................... ............. 47
1.2.1. Paralelo entre luz no Quarto Evangelho e luz em Qumran ..................... ............. 51
1.3. LUZ NO EVANGELHO DE TOMÉ ................................................................. ............. 54
10
1.3.1. Paralelo entre luz no Quarto Evangelho e luz no Evangelho de Tomé.... ............. 58
1.4. CONCLUSÃO.................................................................................................... ............. 62
Capítulo II: NARRATIVA DA CURA DO CEGO DE NASCENÇA ................ ............. 65
2.1. INTRODUÇÃO.................................................................................................. ............. 65
2.1.1. A perícope da Narrativa da Cura do Cego de Nascença .......................... ............. 66
2.1.2. Delimitação .............................................................................................. ............. 66
2.1.3. Crítica textual ........................................................................................... ............. 68
2.2. TRADUÇÃO...................................................................................................... ............. 70
2.2.1. Análise de coesão interna ........................................................................ ............. 72
2.3. ESTRUTURA DA NARRATIVA DA CURA DO CEGO DE NASCENÇA .. ............. 75
2.3.1. Jesus é profeta.......................................................................................... ............. 77
2.3.1.1. Profeta é (9,17)........................................................................... ............. 77
2.3.2. Fariseus interrogam o ex-cego e seus pais ............................................. ............. 77
2.3.2.1. Segundo interrogátorio (9,13-16)............................................... ............. 77
2.3.2.2. Terceiro interrogatório (9,18-23) ............................................... ............. 77
2.3.3. A reação dos vizinhos, do povo e das lideranças................................... ............. 77
2.3.3.1. Primeiro interrogatório (9,8-12)................................................. ............. 77
2.3.3.2. Quarto interrogatório (9,24-34).................................................. ..............78
2.3.4. Encontro e reecontro com Jesus............................................................ ............. 78
2.3.4.1. A cura física (9,6-7) ................................................................. ............. 78
2.3.4.2. A fé confirmada (9,35-38)........................................................ ............. 78
2.3.5. Constatação e julgamento de Jesus........................................................ ............. 78
2.3.5.1. Trevas e luz (9,1-5) .................................................................. ............. 78
2.3.5.2. Trevas ou luz (9,39-41)............................................................ ............. 78
2.4. ANÁLISE LITERÁRIA..................................................................................... ............. 79
2.4.1. Jesus é profeta.......................................................................................... ............. 79
2.4.1.1. Profeta é (9,17) ........................................................................... ............. 79
2.4.2. Fariseus interrogam o ex-cego e seus pais................................................ ............. 83
2.4.2.1. Segundo interrogátorio (9,13-16) ................................................ ............. 83
2.4.2.2. Terceiro interrogatório (9,18-23) ................................................. ............. 86
2.4.3. A reação dos vizinhos, do povo e das lideranças ..................................... ............. 90
11
2.4.3.1. Primeiro interrogatório (9,8-12) .................................................. ............. 90
2.4.3.2. Quarto interrogatório (9,24-34).................................................... ............. 92
2.4.4. Encontro e reecontro com Jesus ............................................................... ............. 98
2.4.4.1. A cura física (9,6-7) ..................................................................... ............. 98
2.4.4.2. A fé confirmada (9,35-38) ........................................................... ........... 101
2.4.5. Constatação e julgamento de Jesus............................................................ ........... 105
2.4.5.1. Trevas e luz (9,1-5) ...................................................................... ........... 105
2.4.5.2. Trevas ou luz (9,39-41)................................................................ ........... 112
2.5. GÊNERO LITERÁRIO...................................................................................... ........... 115
2.6. CONCLUSÃO.................................................................................................... ........... 116
Capítulo III: DIVERGÊNCIAS E CONVERGÊNCIAS DO SIGNIFICADO DO
TERMO LUZ PARA A COMUNIDADE JOANINA .......................................... ........... 118
3.1. A COMUNIDADE JOANINA........................................................................... ........... 118
3.2. TREVAS E LUZ NA COMUNIDADE JOANINA........................................... ........... 126
3.2.1. Os filhos das trevas.................................................................................. ........... 126
3.2.1.1. Os judeus ........................................................................................ ........... 126
3.2.1.2. O mundo ......................................................................................... ........... 130
3.2.1.3. Nicodemos e José de Arimatéia ..................................................... ........... 132
3.2.1.4. A exclusão e a expulsão da sinagoga como trevas para a comunidade
joanina ........................................................................................... ........... 134
3.2.2. Os filhos da luz......................................................................................... ........... 138
3.2.2.1. Os judeus ......................................................................................... ........... 139
3.2.2.2. A família de Betânia........................................................................ ........... 142
3.2.2.3. A samaritana ................................................................................... ........... 143
3.2.2.4. O cego de nascença.......................................................................... ........... 144
3.2.2.5. O amor para a comunidade joanina ................................................. ........... 148
3.3. CONCLUSÃO.................................................................................................... ........... 151
CONCLUSÃO........................................................................................................... ........... 152
BIBLIOGRAFIA....................................................................................................... ........... 156
12
INTRODUÇÃO I
A luz é um tema importarte tanto para o Antigo Testamento quanto para Novo
Testamento, pois ampla é gama de aplicações da liguagem figurada de luz nos escritos vetero
e neotestamentários. Por isso, a escolha deste tema se deu na Pesquisa de Conclusão de Curso
na Faculdade Dehoniana de Taubaté. Falar de Jesus Cristo: O Caminho da Luz
1
nos levou ao
Quarto Evangelho e o Quarto Evangelho à narrativa da Cura do Cego de Nascença (Jo 9,1-
41). O dizer de Jesus: “Eu Sou a Luz do Mundo” (Jo 8,12; 9,5) em relação ao contexto
literário imediato do Quarto Evangelho, por um lado, e sua ampla atestação por fontes
independentes e antigas
2
, por outro, fez-nos ver tanto sua importância para a pesquisa da
tradição autêntica de Jesus como para a investigação de vertentes literárias cristãs que deram
interpretações peculiares: a literatura joanina canônica e outras literaturas canônicas e
extracanônicas.
No vasto panorama das religiões, o termo “luz”
3
é empregado com significações e
modalidades diversas para expressar a natureza divina em suas manifestações. Algumas
mitologias atribuem espontaneamente ao mundo divino uma textura luminosa. Ou, então, em
relação às experiências religiosas do tipo místico, que são explicitadas em termos de
“iluminação”. É muito caracterizado, também, como designação da realidade divina: “Iahweh
é minha luz e minha salvação” (Sl 27,1 ); “pois a fonte da vida está em ti, e com tua luz nós
vemos a luz ( Sl 36,10); “Iahweh é Deus: ele nos ilumina” (Sl 118,27); “Tua palavra é
1
Cf. Maria Aparecida de A. ALMEIDA. Jesus Cristo: o caminho da luz. Taubaté: Faculdade Dehoniana, 2005
(Síntese Teológica).
2
James M. ROBINSON. A biblioteca de Nag Hammadi. São Paulo, Masdras, 2006, pp. 41-464; Elaine
PAGELS. Além de toda crença: o evangelho desconhecido de Tomé. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, pp.11-245;
Marvin MEYER. O Evangelho de Tomé: as sentenças ocultas de Jesus. Rio de Janeiro: Imago, pp.2-142.
3
Para uma gama de significados do simbolismo “luz”, ver Marc GIRARD. Os símbolos na Bíblia: ensaio de
teologia bíblica enraizada na experiência humana universal. São Paulo: Paulus, 1997, pp. 89-171.
13
lâmpada para meus pés, e luz para meu caminho(Sl 119,105). Além disso, a luz é primeira
criatura de Deus, conforme Gn 1,3.
No mundo grego e helenístico, a luz significa o próprio ser de Deus (ou da divindade)
enquanto inteligência e inteligência suprema: “Deus é luz” (1Jo 1,5). A tradição bíblico-
judaica, porém, utiliza o termo luz aplicando-o regularmente à Lei: o preceito é uma lâmpada,
a instrução é uma luz, é um caminho de vida da exortação que disciplina (Pr 6,23; Sl 18,4;
Eclo 45,7). A tradição judaica incluiu o versículo do Salmo na Festa das luzes” (Hanukkah),
festa comemorativa da reconsagração do Templo por parte de Judas Macabeu, em dezembro
de 164 a.C (1Mc 4,36-59). Eis, a título de exemplo, um breve texto no qual a metáfora da luz
designa a Lei e a Palavra de Deus:
Eis como as palavras da Torah iluminam o homem quando a ela se aplica.
Aquele que a ela não se aplica é semelhante a um homem que está nas trevas
e se dispõe a caminhar: ele topa contra uma pedra e nela tropeça. Por quê?
Porque ele não tem em mãos “a lâmpada. Qual é a lâmpada de Deus?É a
Torah! O mandamento é uma lâmpada e a Torah uma luz.
Esta dissertação visa a abordar o significado do termo luz em Jo 9,1-41 como janela
para uma investigação mais ampla sobre o universo literário, imagético e político-eclesial
representado pela confluência da literatura joanina canônica. Na Introdução II, principiamos a
pesquisa pelo levantamento da bibliografia produzida com relação ao Quarto Evangelho nos
últimos 100 anos, o que nos levou à constatação de uma transformação considerável nos
estudos joaninos neste período. Esta incursão na história da pesquisa moderna sobre o Quarto
Evangelho, apontando alguns complexos temáticos dessa história, ajudou-nos a contextualizar
a análise exegética apresentada nos capítulos II e III desta dissertação.
Dentre várias abordagens possíveis e o imenso volume de material, três aproximações
se destacaram pela mútua articulação e relevância para a compreensão do Quarto Evangelho:
literária, hermenêutica e sócio-histórica. Estas três abordagens se entrelaçam e se exigem
mutuamente para uma compreensão consistente das relações entre literatura joanina e outras
literaturas. Porém, enquanto a abordagem literária pode e deve preceder as outras duas, a
hermenêutica e a história não podem ser apresentadas senão em mútua articulação dinâmica,
dado que as relações do uso do termo “luzno âmbito do cristianismo primitivo contribuem
para configurar os sentidos imanetes aos textos e ao imaginário que lhe correspondem.
14
O primeiro capítulo enfocará o levantamento da ocorrência do termo luz no Quarto
Evangelho em diálogo com outras literaturas (Evangelhos Sinóticos, Atos dos Apóstolos,
Cartas Paulinas, Cartas joaninas, Apocalipse, Qumran e o Evangelho de Tomé), buscando
apontar temas convergentes e divergentes no uso do termo “luz” para compreender o universo
teológico e simbólico com o qual a comunidade joanina lida.
O segundo capítulo previlegiará a análise gramatical e tradução das formas canônicas
e extracanônicas a partir de uma exegese, utilizando instrumentos que nos permitam visualizar
da melhor forma possível a perícope de João 9,1-41, com pressupostos do método histórico-
crítico e com as abordagens sociológicas e antropológicas recomendadas pelos manuais de
exegese à nossa disposição, que ajudaram a explicitar algumas das inúmeras possibilidades de
sentido oferecidas pela Narrativa da Cura do Cego de Nascença.
O terceiro capítulo se concentrará no confronto entre o resultado das convergências e
divergências do levantamento do termo luz no primeiro capítulo e da exegese no segundo. A
análise da Narrativa da Cura do Cego de Nascença revelou em que medidas estavam corretas
nossas hipóteses preliminares de que “Luz” na comunidade joanina é uma alternativa a alguns
problemas e necessidades vividos na comunidade.
Por fim, a conclusão. Ao realizarmos o diálogo do Quarto Evangelho com outras
literaturas, a exegese do capítulo 9,1-41, as divergências e convergências do termo luz para a
comunidade joanina, chegamos a algumas conclusões a respeito desta narrativa e do fato de a
comunidade joanina ter proclamado Jesus como Luz do Mundo.
15
INTRODUÇÃO II
A HISTÓRIA DO QUARTO EVANGELHO
Um dos primeiros exegetas a tentar compreender sistematicamente o Quarto
Evangelho à luz de seu substrato cultural religioso foi Charles H. Dodd.
4
Na primeira parte de
seu comentário, intitulada O substrato, o autor apresenta sua visão do ambiente intelectual da
Ásia Menor
5
no final do século I: uma combinação de filosofia hermética, judaísmo
helenístico, judaísmo rabínico e gnosticismo. O Quarto Evangelho estaria tentando, de alguma
forma, dialogar com todas estas correntes. A intenção do autor, inclusive, teria sido apresentar
Jesus a intelectuais não-crentes.
Em parte, Dodd reproduz a posição da Religionsgeschichtliche Schule (Escola da
História das Religiões), cuja preocupação maior foi contextualizar o Quarto Evangelho no
âmbito das expressões religiosas supracristãs de sua época e que o interpretava
prioritariamente dentro do marco cultural e intelectual do helenismo ou, pelo menos, do
judaísmo helenístico. Explora várias possibilidades de paralelos imagéticos, teológicos e até
mesmo textuais entre este Evangelho e a tradição hermética, como também em relação aos
escritos de Fílon de Alexandria. Por outro lado, insiste ainda na vinculação entre o Evangelho
e o judaísmo rabínico.
6
Porém, o marco zero da atual fase da pesquisa literária joanina foi estabelecido por
Rudolf Bultmann, discípulo fiel da Religionsgeschichtliche Schule. Para Bultmann, a grande
pergunta é: de onde saiu a peculiar visão teológica que se encontra em João? Ele trabalhou
com a hipótese de que na origem do Quarto Evangelho estaria mais do que a proximidade
4
Charles H. DODD. A interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Paulinas, 2003, pp. 17-25.
5
DODD aceita a localização tradicional em Éfeso. Veja A interpretação do Quarto Evangelho, p. 19.
6
DODD, A interpretação do Quarto Evangelho, pp. 17-136.
16
com um contexto cultural diferente daquele sob cujo influxo foram redigidos os Evangelhos
Sinóticos e os demais escritos neotestamentários. Para ele, a originalidade da literatura
joanina teria provindo de algo mais sólido; assim, além de fontes escritas comuns aos
sinóticos, haveria outra fonte, talvez originalmente aramaica ou siríaca, de natureza gnóstica
ou protognóstica.
7
A partir da comparação do Quarto Evangelho com textos gnósticos tardios (como o
Ginza, livro sagrado dos mandeus, do século VI), mas também com textos antigos (como
Odes de Salomão, do início do século II, ao qual atribui bastante destaque), Bultmann supôs a
existência de uma fonte gnóstica anterior ao Quarto Evangelho, da qual se teria servido o
redator principal. Tratar-se-ia de um documento composto de diálogos ou discursos de
revelação nos moldes gnósticos, em torno do qual teria sido desenvolvido o restante da
narrativa.
Tais discursos de revelação, se não foram compostos em língua semítica, teriam sido
ao menos pensados de acordo com o estilo e a poesia semítica, com paralelismos e antíteses
ocupando papel primordial, em harmonia com o conteúdo fortemente dualista. Dessa fonte
proviriam não somente o prólogo, as palavras e os discursos do Jesus joanino, mas toda a
linguagem dualista que transparece no pensamento do redator e se encontra espalhada por
toda a literatura joanina.
8
Assim Bultmann explica a origem dos diálogos joaninos e a
popularidade do Quarto Evangelho entre cristãos gnósticos posteriores, como Heraclião e
Montano.
Merece destaque a teoria das três fontes de Bultmann: uma fonte dos sinais (Semeia
Quelle), que consiste em milagres tirados de uma coleção maior segundo Bultmann,
milagres não acontecem, de modo que estes eram histórias fictícias destinadas a projetar uma
imagem mais competitiva de Jesus num mundo que acreditava em taumaturgos
9
; uma fonte
7
Rudolf BULTMANN começou a publicar suas pesquisas sobre o Quarto Evangelho em 1923. Uma síntese de
sua teoria sobre as origens do Quarto Evangelho encontra-se em Teología do Novo Testamento. São Paulo:
Teológica, 2004, pp. 430-529. Porém, a obra referencial é seu comentário exegético (The Gospel of John: a
commentary, edição inglesa de 1971). Para uma análise crítica da obra de Bultmann e o resgate de algumas
dentre suas intuições fundamentais, cf. John ASHTON, Understanding the Fourth Gospel. Oxford: Clarendon
Press, 1993, pp. 44-62.
8
“Se o autor provém do judaísmo, como demonstra, as expressões lingüísticas do rabinismo que encontramos
com certa freqüência provêm não de um círculo ortodoxo de judaísmo, e sim de um judaísmo com tendências
gnósticas.” Cf. BULTMANN. Teologia do Novo Testamento, pp. 435-43.
9
As provas são a enumeração dos sinais em Jo 2,11; 4,54 e a menção de outros sinais em Jo 12,37; 20,30. Para o
texto grego da reconstrução bultmanniana das fontes dos sinais, cf. D. Moody SMITH. The composition and
order of the Fourth Gospel. Cambridge/New York: Cambridge University Press, 1995, pp. 38-48; Raymond E.
BROWN. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2004, pp. 494-495.
17
dos discursos de revelação, originalmente em formato aramaico poético, continha os sermões
de um revelador vindo do céu
10
; uma narrativa da paixão e ressurreição, tirada do material
sinótico. Vários foram os pesquisadores que se dispuseram a experimentá-la sistematicamente
por meio da crítica literária, ainda que nem sempre suas tentativas tenham encontrado
simpatia, ou seus resultados, aceitação.
11
Quem faz uma análise crítica da obra de Bultmann e o resgate de algumas dentre suas
intuições fundamentais é John Ashton.
12
Segundo Ashton, o século XIX colocou os
fundamentos da exegese crítica e, embora a literatura sobre o evangelho de João nesse século
não seja nada fácil de ser compreendida, propôs algumas das perguntas que constituirão o
núcleo fundamental do trabalho exegético no culo XX. Podemos acrescentar três aspectos
significativos que marcarão a investigação desse século: o questionamento de que o autor fora
João, o filho de Zebedeu; o lugar da teologia joanina no marco do cristianismo primitivo e a
análise literária de João na história do texto. A partir da crítica liberal, começa-se a questionar
a autoria de João, o filho de Zebedeu, com argumentos que partem tanto da pouca
confiabilidade da narrativa como da data de composição da obra, que é situada no final do
século I até a segunda metade do século II.
13
Senen Vidal apresenta o Quarto Evangelho como produto de três redações prévias.
14
Começa por afirmar que no princípio da Igreja Cristã não havia escritos globais sobre a
atuação e proclamação de Jesus, mas pequenas peças de relatos e discursos, de diversos tipos
e com interesses particulares, que circulavam dentro de grupos cristãos. Semelhante tradição
basicamente oral nas suas origens, foi crescendo e configurando-se pouco a
pouco, chegando, em alguns casos, a ser apresentadas em pequenos escritos,
que por sua vez sofreram transformações e ampliações sucessivas. Esta
10
Todos os paralelos apresentados por Bultmann datam de um período posterior ao escrito de João, por exemplo,
Odes de Salomão e os escritos mandeístas. Ultimamente alguns m pretendido encontrar antecedentes em
documentos gnósticos descobertos em Nag Hammadi (cóptico do século IV, de um grego do século II d.C.),
particularmente nos discursos “Eu” em “O trovão, mente perfeita” (VI, 2). O texto grego da reconstrução
bultmanniana da fonte dos discursos de revelação se encontra em SMITH. The composition and order of the
Fourth Gospel, pp. 23-24. Veja estas citações em BROWN, Introdução ao Novo Testamento, pp. 493-495.
11
Rudolf SCHNACKENBURG faz um rápido balanço destas tentativas, sem chegar a aderir a nenhuma delas.
Cf. El Evangelio según San Juan. Vol. I. Barcelona: Herder, 1980, pp. 78-85.
12
ASHTON, Understanding the Fourth Gospel, pp. 44-62.
13
ASHTON, Understanding the Fourth Gospel, pp. 16-27.
14
A hipótese de Senen VIDAL sobre as três redações prévias pelas quais passou o Quarto Evangelho será
detalhada no terceiro capítulo desta dissertação, pois assumimos a posição das três fontes apresentadas por ele.
18
corrente tradicional é a que sustenta tanto os evangelhos sinóticos quanto o
evangelho de João.
15
Para Vidal, trata-se de tradições soltas, porque não chegaram ao autor do Quarto
Evangelho como uma narrativa unitária, mas como relatos independentes, a começar pela
relação entre João Batista e Jesus. Importante para Vidal é aquilo que ele chama de “coleção
de milagres”, embora ele não trabalhe com a hipótese de R. Bultmann sobre uma fonte pré-
gnóstica de diálogos de revelação. Vidal parte do princípio, como, aliás, também R. Brown,
de que estamos diante de hipóteses e não de certeza absoluta.
16
Na história da investigação é preciso assinalar, ainda, dois pontos que vão se afinando
com o passar dos anos: em primeiro lugar, o enfoque da investigação vai passando do
problema sobre o autor ao problema sobre as origens da visão joanina. Porque o tema da
dependência de João em relação aos sinóticos é questionado de forma cada vez mais unânime.
Então, qual é a chave que conduz a uma visão teológica tão peculiar? Em segundo lugar, é
que se percebe o Evangelho de João como uma obra autônoma, que oferece uma dificuldade
cada vez maior pela sua forte personalidade. No último aspecto, talvez o que mais contribuiu
para o avanço da investigação das obras bíblicas, e dos evangelhos em particular, é a crítica
literária, no sentido das profundas análises estilísticas que oferecem a possibilidade de
delimitar os diversos documentos dentro de uma mesma obra ou dentro de uma determinada
tradição.
17
Nos dois últimos séculos, porém, uma mentalidade mais crítica reconheceu que em João
não existe o menor sinal de que o autor tenha pretendido um suplemento, nem que tenha
oferecido alguma pista de como seu material poderia ser harmonizado com o material
Sinótico. Muitos passaram a acreditar que João não foi produzido por uma testemunha ocular.
Isto provocou dúvidas em relação à historicidade do Quarto Evangelho, cujo material passou
a ser considerado sem valor histórico, à diferença dos Evangelhos Sinóticos. Surgiu a teoria
de que o quarto evangelista serviu-se não dos Sinóticos, mas de fontes aistóricas.
18
15
Cf. Senen VIDAL. Los escritos originales de la comunidad del discipulo “amigo” de Jesus. Salamanca:
Sígueme, 1997, p. 15.
16
Cf. VIDAL, Los escritos originales de la comunidad del discipulo “amigo” de Jesus, pp. 17-19.
17
Josep-Oriol TUÑI; Xavier ALEGRE. Escritos joaninos e cartas católicas. o Paulo: Ave Maria, 1999, pp.
139-141.
18
BROWN, Introdução ao Novo Testamento, pp. 493-495.
19
No decorrer de nosso século, houve tentativas para distinguir em João diversos níveis
literários, pois se pode perceber que existem numerosos textos difíceis de serem
compreendidos em sua situação atual, como se a obra não tivesse sido acabada, ou como se
não tivesse passado por uma correção final. Às vezes tem-se a impressão de que todo o
material de que se dispunha não foi bem encaixado no conjunto.
Encontramos no Quarto Evangelho um gênero literário muito conhecido, que é o
diálogo
19
. Este gênero não é muito freqüente nos livros bíblicos, porém é bastante utilizado
pelos sinóticos através de um esquema simples que parece constar de quatro pontos: a) um
breve quadro narrativo, sem concretização de lugar, pessoa ou tempo; b) pergunta, objeção ou
crítica contra Jesus ou contra os discípulos; c) breve debate com duas ou três perguntas e
respostas, sempre encaminhando para uma sentença de Jesus; d) efeitos do diálogo nos
presentes.
Encontramos um espaço aberto para o diálogo e a poesia.
20
Ao contrário dos Sinóticos,
as frases são curtas e muito ritmadas, de modo que poderíamos afirmar que estamos diante de
um texto mais poético do que narrativo. Mas não se trata de uma poética de rima e sim de
ritmo com diversos paralelismos: o sinonímico, antitético e sintético, de acordo com os
Salmos e a vasta literatura sapiencial. Este aspecto poético tem a ver com a profundidade
teológica do evangelho, muito parecido com a solenidade dos oráculos proféticos ou da
doutrina dos livros sapienciais do Antigo Testamento.
Temos em João uma série de textos pouco polidos, carentes de retoques e acabamentos:
existem relatos que não têm um final (3,1-?); fragmentos flutuantes que poderiam ter sido
situados noutro lugar (3,31-36; 12,44-50); textos que não se entrelaçam com seu contexto e
que, por outro lado, seriam compreensíveis num outro lugar (3,22-30 parece interromper uma
seqüência natural entre 3,1-21, por um lado, e 3,31-36 por outro); a notícia de 7,20-24 a
respeito da obra realizada por Jesus parece se referir a 5,1-18 e, no entanto, passaram-se
muitos meses – e no meio se tem colocado uma festa da Páscoa, a dos pães – entre uma cena e
outra; 10,19-21 parece fora do lugar; 10,26-29 se refere a um ensinamento de 10,1-18, mas
ambos os fragmentos se distanciam através de 10,19-21, por um lado, e 10,22-25 por outro.
São muitas aporias:
19
Para um maior esclarecimento sobre “Diálogo”, veja P. F. ELLIS. The genius of John: a composition – critical
commentary on the Fourth Gospel. Collegeville: The Liturgical Press, 1984, p. 8.
20
Veja Joaquim C. das NEVES. Escritos de São João. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2004, p. 25.
20
Embora as aporias textuais sejam várias, não significa que o Quarto
Evangelho não tenha sentido na ordem que apresenta. É um texto que nos
apresenta um mundo literário e teológico duma igreja dos fins do século
primeiro que contém dentro de si a sua própria matéria, que não deve ser
julgada pelo “senso comum” ou sentido da ordem verdadeira de um
professor dos princípios do terceiro milênio.
21
Estas “aporias” indicam uma história literária e não faltam tentativas para solucionar tal
dificuldade. Alguns não descartam a possibilidade de deslocamentos de textos. Outros se
preocupam em encontrar em João um escrito ou documento básico que sirva como primeiro
nível da história literária do evangelho e que resolva as “aporias” ou contradições” que se
detectam nele.
22
Talvez, a mais chocante “aporia” entre os discursos do Jesus joanino e os do Jesus dos
sinóticos seja a linguagem totalmente peculiar que Jesus usa em João. Linguagem não tanto
no sentido gramatical ou estilístico, mas como universo conceptual. De fato, a linguagem de
João, em sentido restrito, apresenta um problema, pois em vista do caráter fortemente semita
da mesma, conjectura-se que o livro como um todo seria uma tradução do aramaico, embora
ocasionalmente tenha sido proposta uma tradução do aramaico em relação à fonte usada
pelo evangelista. Conjectura-se também que o Evangelho de João tenha sido escrito em
grego
23
e que pertence, pois, à “Koiné”, isto é, “linguagem comum, que na época do Novo
Testamento era a herdeira da grande diversidade dos dialetos gregos anteriores. Era uma
espécie de língua franca utilizada na área mediterrânea como veículo de comunicação.”
24
Todavia, deve-se admitir que o autor ou pensa em aramaico e escreve em grego, ou pelo
menos vive em ambiente bilíngüe.
25
Essa linguagem se caracteriza pelo dualismo entre luz e trevas, verdade e mentira, entre
alto e baixo; os contrastes entre os dois mundos, carne e espírito; as numerosas expressões de
Jesus como “Eu Sou”; conceitos de salvação como: água da vida, pão da vida e luz do
mundo. Em todas estas formas João se diferencia do mundo conceptual palestino-judaico do
21
BROWN, Introdução ao Novo Testamento, p. 64.
22
TUÑI e ALEGRE, Escritos joaninos e cartas católicas, pp. 139-141.
23
Para este assunto, SCHNACKENBURG, El Evangelho según San Juan, vol 1, pp. 134-139.
24
Cf. TUÑI e ALEGRE, Escritos joaninos e cartas católicas, p. 18.
25
SCHNACKENBURG, El Evangelho según San Juan, vol 1, pp. 134-139; BULTMANN, Teologia do Novo
Testamento, p. 438.
21
Jesus dos sinóticos. Mas, a despeito desta evidência, repetidamente tentou-se compreender
João exclusivamente contra o pano de fundo do Antigo Testamento e do judaísmo rabínico.
26
A peculiaridade da linguagem do Evangelho de João é tão notável que podemos
afirmar que os vocábulos que têm maior significado teológico e que caracterizam a mensagem
desta obra não costumam ter preeminência alguma nos Evangelhos Sinóticos. Conforme
observa Helmut Köester, o caráter original do Quarto Evangelho em relação aos Evangelhos
Sinóticos, em particular no que se refere à sua soteriologia e cristologia, fica mais evidente
quando se toma o conjunto dos discursos e diálogos de Jesus.
27
Entretanto, esta originalidade
se sustenta apenas quando se tomam como ponto de referência precisamente os Sinóticos.
Saindo do estreito círculo do cânon cristão, é possível observar um notável parentesco
temático e quiçá literário se se der ouvidos às suspeitas clássicas de Rudolf Bultmann
entre a literatura joanina e a literatura cristã gnóstica,
28
de modo que é possível considerar a
hipótese de que ambas provenham do mesmo Sitz im Leben:
29
O universo conceitual de João não pode ser explicado mediante o judaísmo
farisaico ou qumrânico, nem através da mística helenística ou da gnose pagã
ou do mandeísmo primitivo, a forma mais provável para esclarecer do ponto
de vista histórico-religioso o terreno do universo conceitual joanino, é uma
forma judaica de gnose localizada na região sírio-palestinense. É uma gnose
que se manifesta forte caráter mitológico, como aquele que conhecemos
pelos textos judaicos gnósticos ou pela comunidade de Qumrã; uma gnose
que utiliza o mito, essencial para João, concernente à descida e à subida do
Enviado.
30
Uma descoberta de manuscritos antigos em tempos modernos ocorreu em 1947, na
Palestina, em cavernas logo a oeste do Mar Morto. São os chamados Manuscritos do Mar
26
Werner G. KÜMMEL. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982, pp. 276-291; DODD, A
interpretação do Quarto Evangelho, pp. 17-136.
27
Helmut KOESTER. Introdução ao Novo Testamento: história e literatura do cristianismo primitivo. Vol. 2.
São Paulo: Paulus, 2005, p. 194.
28
Käsemann também defende a teoria de que há um possível parentesco entre o Quarto Evangelho e a gnose. Cf.
Ernest KÄSEMANN. El Testamento de Jesus: el lugar histórico del evangelio de Juan. Salamanca: Sígueme,
1983, pp. 97-99; cf. Josep-O TUÑI VANCELLS. O testemunho do Evangelho de João: introdução ao estudo do
Quarto Evangelho. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 174.
29
Pedro L. VASCONCELLOS. O caminho é estreito: idas e vindas na incorporação (de parte) da tradição
joanina ao cânon do Novo Testamento. In: RIBLA 42/43 (2002): 121-144; KOESTER, Introdução ao Novo
Testamento, vol. 2, pp. 194-195.
30
Cf. KÜMMEL, Introdução ao Novo Testamento, p. 288.
22
Morto.
31
As descobertas de Qumran parecem revolucionar os estudos do Quarto Evangelho se
se considera que o autor deste evangelho teve contato com Qumran. Os anos seguintes
permitiram estudos mais exatos sobre a relação Qumran Quarto Evangelho e pouco a pouco
vai se chegando à conclusão de que aquelas relações são mais tênues do que se pensava no
princípio. Não obstante, Qumran continua sendo um ponto de referência indispensável para se
estudar o Evangelho de João, sobretudo no que diz respeito ao dualismo luz versus trevas.
32
Outra grandiosa descoberta foi da biblioteca gnóstica de Nag Hammadi (1945-48)
33
, que
abriu perspectivas inteiramente novas para os estudos neotestamentários em geral e joaninos
em particular. Se antes a hipótese bultmanniana era difícil de se sustentar pela absoluta falta
de documentos mais antigos, agora é possível retomar os estudos das ligações entre os
universos joanino e gnóstico com maior nível de precisão e realidade. Por outro lado, a
tendência atual da pesquisa em situar geograficamente a redação principal do Quarto
Evangelho em território palestino
34
abre novas perspectivas para a investigação das relações
entre a comunidade joanina e as comunidades cristãs gnósticas que produziram e preservaram
o Evangelho de Tomé.
35
Por fim, é preciso considerar que tanto as descobertas de Qumran quanto as de Nag
Hammadi abriram perspectivas e horizontes inteiramente novos para pesquisas do Quarto
Evangelho, de modo que dificilmente estudos anteriores a elas conseguem se manter atuais.
De fato, as características peculiares do Quarto Evangelho originais na comparação com
os Sinóticos,
36
não tanto, porém, na comparação com alguns textos gnósticos de Nag
Hammadi podem ter suas raízes numa fonte literária primitiva, hipótese cujo caráter
polêmico permanece na ciência bíblica hodierna. Trata-se da fonte dos diálogos de revelação,
que estaria por trás dos desenvolvimentos independentes realizados pelo Quarto Evangelho e
por escritos gnósticos como o Apócrifo de Tiago, o Diálogo do Salvador, O Evangelho de
31
Dentre eles os mais conhecidos são: 1QS, 1QSa, 1QSb, 1QM, 1QH, 1QapGen, 1QpHab, CD, 3Q15
(Manuscrito de Cobre), 11QTemple, 11QPsª, 11QpaleoLev e 11QtgJob. Cf. James CHARLESWORTH. Jesus
dentro do judaísmo: novas revelações a partir de estimulantes descobertas arqueológicas. Rio de Janeiro:
Imago, 1992, p. 71.
32
CHARLESWORTH, Jesus dentro do judaísmo, p. 72.
33
Paul-Hebert POIRIER; Jean-Pierre MAHÈ (orgs.). Ecrits gnostiques: Bibliotheque de la Pleiad. Paris:
Gallimard, 2007; James M. ROBINSON. A biblioteca de Nag Hammadi. São Paulo: Masdras, 2006, 464p.
34
Maria Paula RODRIGUES. “Um pecador quem nos ensinar?” Religião e poder no episódio do cego de
nascença. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, ano (Dissertação de Mestrado), pp.
15-22.
35
POIRIER e MAHÈ, Ecrits gnostiques; ROBINSON, A biblioteca de Nag Hammadi, pp. 114-125; Elaine
PAGELS. Além de toda crença; Marvin MEYER. O Evangelho de Tomé.
36
KÜMMEL, Introdução ao Novo Testamento, pp. 276-280.
23
Tomé e O Evangelho de Felipe. Esta hipótese é aduzida por Rudolf Bultmann e perseguida na
atualidade por Helmut Köester e John D. Crossan, que admitem a possibilidade de interação
entre as literaturas joanina e gnóstica
37
.
A contribuição de Helmut Koester consiste no levantamento dos parentescos literários
entre o Quarto Evangelho e os escritos cristãos reconhecidamente gnósticos da biblioteca de
Nag Hammadi
38
,
em especial o Evangelho de Tomé e o Diálogo do Salvador. Para Köester, os
discursos e diálogos do Jesus joanino se devem a um prolongado processo de interpretação
dos ditos originais de Jesus, processo cujos reflexos podem ser encontrados seja nos
evangelhos sinóticos, seja em outros escritos considerados gnósticos. Embora não haja
evidências externas de que tais documentos sejam contemporâneos, ou ao menos
cronologicamente próximos ao Quarto Evangelho, o trabalho de crítica literária empreendido
por Köester tem conseguido demonstrar que o parentesco entre essas obras merece ser levado
a sério, ao menos por causa do gênero literário – diálogo de revelação – comum a elas.
39
Uma das características desta presumível fonte comum para os diálogos de revelação é
que o foco principal, em vez de estar direcionado ao Reino de Deus, ao fim dos tempos ou a
qualquer conteúdo típico dos Evangelhos Sinóticos, centra-se sobre o próprio sujeito da fala.
Trata-se, portanto, de discursos de auto-revelação; o revelador torna-se ele mesmo o conteúdo
de sua própria fala. Esta transformação no discurso é fundamental para a compreensão de um
texto compósito como o Quarto Evangelho, em que a identidade do revelador Jesus parece ser
um grande diferencial teológico em relação aos Sinóticos.
Dentre várias tradições comuns às literaturas joanina e gnóstica, temos o dito de Jesus
sobre a Luz do Mundo [Evangelho de Tomé 24; Diálogo do Salvador 14; 34; Jo 8,12 (= 9,5);
11,9-10; 12,35-36]. Este Dito teve forte penetração no imaginário cristão primitivo e mantém
sua influência sobre o imaginário ocidental, de sorte que não é preciso argumentar quanto à
sua importância para a história da teologia e da cultura cristã. Tendo em vista tal polêmica,
revela-se instigante a tarefa de verificação do significado do termo “luz” no contexto do
Evangelho de João, bem como o que dá pano de fundo para entendermos o significado de
Jesus ter-se revelado como “Luz do Mundo” neste escrito.
37
KOESTER, Introdução ao Novo Testamento, vol. 2, p. 207; John Dominic CROSSAN. O Jesus histórico: a
vida de um camponês judeu do Mediterrâneo. Rio de Janeiro: Imago, 1994, p. 474.
38
Descoberta em 1945, bem após o início das publicações de Bultmann sobre o Quarto Evangelho.
39
KOESTER, Introdução ao Novo Testamento, vol. 2, pp. 194-210. É importante lembrar que os textos de Nag
Hammadi são relativamente tardios, produzidos originalmente nos séculos II, III, IV. Cf. POIRIER e MAHÈ,
Ecrits gnostiques; Julio Cesar Dias CHAVES. A biblioteca copta de Nag Hammadi: uma história da pesquisa.
In: Oracula 2.4 (2006): 17.
24
CAPITULO I
LUZ NO QUARTO EVANGELHO EM DIÁLOGO COM OUTRAS
LITERATURAS
O objetivo deste capítulo é abordar o tema “luz” no Quarto Evangelho em diálogo com
outras literaturas neotestamentárias (Evangelhos Sinóticos, Atos dos apóstolos, Cartas
Paulinas, Cartas Joaninas e Apocalipse) e extratestamentárias (Qumran e o Evangelho de
Tomé), a fim de detectarmos convergências e divergências experienciadas pela comunidade
joanina e, assim, compreendermos o universo teológico e simbólico com o qual ela lida.
1.1. LUZ NO NOVO TESTAMENTO
Ampla é a gama de aplicações da linguagem figurada da luz nos escritos
neotestamentários (diga-se de passagem, em nenhum outro lugar brilha com mais fulgor). O
substantivo fw/j (luz) ocorre 73 vezes no Novo Testamento, das quais 29 vezes na literatura
joanina (23 no Quarto Evangelho e 6 nas Cartas), 15 vezes nos Evangelhos Sinóticos (7
Mateus, 1 Marcos, 7 Lucas), 13 vezes em Paulo, 10 vezes em Atos e 4 vezes no Apocalipse.
40
40
H. BACHMANJI and W. A. SLABY (eds.). Concordance to the Novum Testamentum Graece. 3 ed.
Berlim/New York: Walter de Gruyter, 1987, pp. 1890-1891; KOESTER, Introdução ao Novo Testamento, vol. 2,
p. 206; Gerhard FRIEDRICH (ed.). Theological dictionary of the New Testament. Vol IX. Grand Rapids:
Eerdmans, 1995, pp. 343-354.
25
1.1.1. LUZ NO QUARTO EVANGELHO
No Novo Testamento torna-se realidade a luz escatológica prometida pelos profetas.
O Novo Testamento apresenta Jesus como personificação da luz ou divina iluminação. É,
sobretudo, no Quarto Evangelho que as idéias sobre luz encontram seu autor de predileção e
aí se exprimem mais claramente, pois um dos seus principais temas é exatamente o da luz. Ela
perpassa todo o escrito:
1.1.1.1. A chegada da luz (1,1-19)
Inicia-se assim o Evangelho de João: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com
Deus e o Verbo era Deus. No princípio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele e
sem ele nada foi feito. O que foi feito nele era a vida, e a vida era a luz dos homens; e a luz
brilha nas trevas, mas as trevas não a apreenderam” (1,1-5). O Logos preexistente, por ser ele
mesmo “vida divina”, é a “luz dos homens”. Esta luz diz João é o Verbo (Logos), e é
intercambiável com a vida. Ambos os conceitos constituem um binômio estritamente ligado,
de forma que a vida é fundamental e que a luz é que lhe um aspecto especial, que a situa
para os seres humanos: a vida existente no Logos significa para os homens a luz.
41
O Logos é
o topos da luz e da vida, ou seja, “luz” e “vida” são aspectos do Logos. No prólogo, o Logos é
chamado “verdadeira luz” (1,9). O Logos é luz e vida.
A Luz (Logos), no princípio, estava
42
com Deus. Agora, no tempo presente,
desempenha esta função de maneira permanente: “a luz brilha nas trevas.” Portanto, “brilha”
43
descreve uma ação que se prolonga na atualidade, ou seja, o Logos faz-se carne e manifesta-se
ao mundo como “luz do mundo” (Jo 8,12; 9,5). Mas a comunicação da luz se dá num contexto
de conflito entre luz e trevas, porque os seres humanos amaram as trevas mais do que a luz
(3,19). A luz é manifestação da vida, enquanto as trevas são manifestação da morte. A treva é
a anti-luz e, portanto, a anti-vida. A treva é hostil à luz e quer aniquilá-la. O conflito entre luz
e trevas, entre Lei e vida, é sentido no evangelho. Enquanto os dirigentes judeus decidem em
favor da Lei (= luz), Jesus decide em favor da vida (= luz, Jo 5,1-18; 9,1-41). Para Jesus, é a
vida que se sobrepõe à Lei.
41
Cf. SCHNACKENBURG, El Evangelio según San Juan, p. 260.
42
Verbo indicativo imperfeito ativo, 3ª pessoa singular.
43
Verbo indicativo presente ativo, 3ª pessoa singular.
26
O termo “luz” era uma das maneiras correntes para designar a Lei de Moisés no
ambiente judaico. Assim, a Lei como luz é a norma que guia o comportamento do judeu fiel:
“tua palavra é lâmpada para meus pés e luz para meu caminho” (Sl 119; 105); “A luz
incorruptível de tua Lei” (Sb 18,4); “Confiou-lhe os mandamentos para que iluminasse o povo
com a Lei” (Eclo 45,17 [LXX]).
O dito de João “a vida era a luz do homem” uma nova conotação à concepção dos
mestres da lei, que enunciaria a sentença ao revés: a Lei (=a Luz) é a vida da humanidade.
Antes se tinha que conhecer a Lei, como luz e guia; sua prática levaria à vida (Jo 7,49). João
propõe o contrário: agora a luz é Jesus e veio para iluminar todo homem que vem ao mundo
44
(Jo 1,9). Ele veio dar pleno cumprimento e uma nova interpretação à Lei de Deus. O que se
conhece é a vida mesma, e este conhecimento e experiência é a luz do homem (ser humano), a
luz que guia os seus passos, a que constitui a norma de sua vida e conduta. A vida é ao mesmo
tempo a luz do ser humano. Não existe para a pessoa humana luz que não seja Jesus; ao ver a
luz, o que se percebe é a vida. João não descreve a luz-verdade como algo visível e
reconhecível anteriormente à vida ou independente dela. Os temas da luz e da vida são
conexos no evangelho.
Assim, a Luz (Logos) no prólogo significa a revelação de Deus trazida aos seres
humanos e salvação para o mundo, pois a encarnação do Logos comunica luz ao mundo. Ao
acolher a Luz que chega, o homem (ser humano) iluminado sai do ambiente das trevas e
recebe a “vida divina”, que se extende desde a criação, passa pela encarnação, até a
consumação escatológica.
1.1.1.2. Manifestação da luz (3,1-21)
Na passagem de Nicodemos (Jo 3,1-21) será desenvolvido o tema vida/luz,
precisamente em relação à Lei. Fala do Monogenes, do Filho único do Deus, que é o portador
da luz e da vida. Anuncia-se um novo nascimento ou renascimento (3,3) em virtude da água-
Espírito (3,5.6). o Filho do Homem será levantado no alto, assim como no deserto Moisés
levantou a serpente, e será apresentado como fonte da vida definitiva (3,13-15). Neste sentido,
44
No prólogo, a palavra “mundo” (kosmos) aparece quatro vezes. No contexto do Quarto Evangelho “mundo”
tem três significados: o mundo, no sentido de universo criado por Deus (11,9; 17,5.6); o mundo amado por Deus,
a humanidade (3,16); o mundo humano submetido ao poder das trevas e hostil à missão e obra savífica de Jesus
(12,31; 16,33; 17,9.14). Cf. Roberto MERCIER. El evangelio según el discípulo a quien Jesús amaba:
comentario exegetico, teologico espiritual y pastoral acompanado de textos de la literatura espiritual. Santafé
de Bogotá: San Pablo, 1994, p. 64.
27
é luz por ser manifestação de Deus à humanidade (3,16). No final da perícope se expressa a
adesão em termos de opção entre vida-luz e trevas-morte, a oferta de luz no meio das trevas a
que o homem pode aceder por uma opção pessoal:
Este é o julgamento: a luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as
trevas à luz, porque suas obras eram más. Pois quem faz o mal odeia a luz e
não vem para a luz, para que suas obras não sejam demonstradas como
culpáveis. Mas quem pratica a verdade vem para a luz, para que se manifeste
que suas obras são feitas em Deus (3,19-21).
Aqui aparece o princípio fundamental de que Jesus veio ao mundo para dar luz e vida
e não para julgar. Mas quando a luz aparece, as pessoas inevitavelmente julgam a si próprias
pela sua atitude perante ela. Neste sentido, Jesus é o agente do julgamento, como se diz
também em 5,27. Ele não julga, no entanto, em virtude de sua unidade com o Pai, ele é o
agente do verdadeiro julgamento. Contudo, é preciso “pôr em obra a verdade” para “vir à luz
(Jo 3,19-21).
1.1.1.3. Eu sou a luz do mundo (8,12; 9,5)
Mais adiante, no capítulo 8, o simbolismo da luz é retomado: Jesus, estando no
Templo, na celebração de Succoth, na Festa dos Tabernáculos (Tendas ou Cabanas)
45
se
autorevela como “Luz do Mundo” (Jo 8,12), a grande manifestação da vida. Quando Jesus se
declara luz do mundo, alguns pensam que ele está se referindo aos enormes candelabros,
majestosos e bonitos acesos no Templo depois do sacrifício da tarde, e cujo brilho dizia-se
iluminar toda a cidade, ou então ao “Sol levante” (Jo 8,2), cuja glória excede à do Templo. O
que sol é para todo o sistema solar o centro da luz, do calor, da vida, da fertilidade João
declara ser Jesus para o mundo: “Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens” (Jo 1,4).
Os mestres da Lei objetam que a pretensão de ser “luz do mundo” não tem outras
provas fora da afirmação do próprio interessado e que isto nada prova, pois, de acordo com a
Torah, “ninguém é acreditado por suas próprias palavras... ninguém pode dar testemunho em
sua própria causa”. A resposta de Jesus é que seu testemunho em seu próprio favor deve ser
45
Essa festa-peregrinação de oito dias, por ocasião da qual os judeus subiam à Jerusalém, além de celebrar a
colheita da uva de setembro/outubro, era marcada por orações pela chuva. Uma procissão diária, partindo da
piscina de Siloé, levava água como uma libação ao Templo, onde a corte das mulheres era iluminada por tochas
imensas – daí os temas da água e da luz. Cf. BROWN, Introdução ao Novo Testamento, p. 475.
28
aceito, porque ele sabe de onde vem e para onde vai, enquanto seus adversários não o sabem:
“Embora eu testemunho de mim mesmo, meu testemunho é válido, porque sei de onde
venho e para onde vou. Vós, porém, não sabeis de onde venho e nem para onde vou” (8,14).
Com esta afirmação João põe como norma de verdade a plenitude de vida contida no projeto
criador e que se manifesta em Jesus, o projeto realizado. Ele vem “do alto”, mas por esta
comunhão com Pai ele é o modelo elevado a grau absoluto do que o próprio homem é
chamado a se tornar. O discípulo acha seu caminho iluminado pelo Filho do Homem; é o que
o evangelista mostra em forma de narrativa na Cura do cego de nascença.
No capítulo 9 de João predomina o aspecto da luz. Não obstante seja mencionada
somente uma vez (9,4), esta constitui o tema do episódio todo. Ao sinal da doação da luz está
associado um diálogo que tem forma de uma cena judiciária: o julgamento em ato. Aquele
que antes era cego e mendigo comparece perante seus juizes, para ser intimado a negar a
única coisa da qual ele tem certeza. Mas o réu propriamente é Jesus. De certa forma, o homem
que Jesus ilumina defende a causa da Luz. Ao ser “expulso”, é a Jesus que os juízes rejeitam.
Então, começa o que Charles Dodd chama de peripeteia dramática
46
. Jesus repentinamente
inverte as posições contra os juízes e pronuncia a sentença: “Para um discernimento é que vim
a este mundo: para que os que não vêem, vejam, e os que vêem, tornem-se cegos. Se fôsseis
cegos, não teríeis pecado; mas dizeis: ‘Nós vemos!’, vosso pecado permanece”.
1.1.1.4. Luz soteriológica (12,46-50)
Também em Jo 12,46-50 se diz que Jesus veio ao mundo como luz, com intento de
que os homens não andassem nas trevas, mas alcançassem, como em 8,12, a luz da vida. Suas
palavras comunicam vida e luz ao mundo. Inevitavelmente, aqueles que respondem às suas
palavras, mas preferem as trevas à luz, condenam-se a si próprios. Portanto, a palavra de
julgamento no “Último Dia” não é outra senão a revelação da vida e da luz que Jesus deu em
sua encarnação. Pois a “palavra” que ele falou é o “mandamento” do Pai e este mandamento é
vida eterna:
Eu, a luz, vim ao mundo para que aquele que crê em mim não permaneça
nas trevas. Se alguém ouvir minhas palavras e não as guardar eu não o julgo,
pois não vim para julgar o mundo. Quem me rejeita e não acolhe minhas
46
DODD, A interpretação do Quarto Evangelho, p. 463.
29
palavras tem seu juiz: a palavra que proferi é que o julgará no último dia;
porque não falei por mim mesmo, mas o Pai, que me enviou, me prescreveu
o que dizer e o que falar e sei que seu mandamento é vida eterna. O que
digo, portanto, eu o digo como o Pai me disse (Jo 12,46-50).
O fulgor decisivo da luz eterna, porém, deve ser colocado na paixão, morte e
ressurreição de Jesus, na qual ele é glorificado. É por isso que imediatamente antes da Paixão
Jesus exclama: “É agora o julgamento deste mundo, agora o príncipe deste mundo será
lançado abaixo e, quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,31). Embora
todo o seu ministério seja julgamento, o ápice deste na sua morte constitui o verdadeiro
momento de julgamento, porque então os últimos recônditos da luz inacessível em que Deus
habita foram abertos. Na presença desta revelação os poderes do mal finalmente se
manifestam por sua rejeição à luz; e ao se declararem desta forma, condenam-se ao
extermínio: “Por pouco tempo a luz está entre vós. Caminhai enquanto tendes luz, para que as
trevas não vos apreendam: quem caminha nas trevas não sabe para onde vai! Enquanto tendes
luz, crede na luz, para vos tornardes filhos da luz” (Jo 12, 35-36).
1.1.2. LUZ NOS EVANGELHOS SINÓTICOS E NOS ATOS DOS APÓSTOLOS
Os Evangelhos Sinóticos empregam o termo “luz” em sentido próprio, muitas vezes
fazendo referência ou mesmo usando uma citação do Antigo Testamento. Algumas vezes o
empregam em sentido figurado, outras vezes é reflexo da divindade. E com menor freqüência,
a luz apresenta-se como símbolo de revelação. Nos Atos dos Apóstolos a luz é reflexo da
divindade.
Nos Sinóticos apenas Lucas chama a Jesus de “luz para iluminar as nações” (Lc 2,29-
32). Lucas está fazendo uma alusão a dois textos de Isaías:
Eu, Iahweh, te chamei para o serviço da justiça, tomei-te pela mão e te
modelei, eu te constitui como aliança do povo, como luz das nações, a fim
de abrires os olhos dos cegos, a fim de soltares do cárcere os presos e da
prisão os que habitam nas trevas (Is 42, 6-7).
30
Pouca coisa é que sejas o meu servo para restaurar as tribos de Jacó e
reconduzir os sobreviventes de Israel. Também te estabeleci como luz das
nações, a fim de que a minha salvação chegue até as extremidades da terra...
A fim de dizer aos cativos: ‘Saí’; aos que estão nas trevas: ‘Vinde à luz’ (Is
49,6).
Para Lucas, Jesus não é apenas o Messias de Israel, mas também o salvador do mundo.
Todas as pessoas que vivem à sombra da morte encontram nele um libertador. Este cântico
define a salvação universal trazida pelo Messias Jesus, pois ele é: iluminação e salvação para
o mundo pagão que, partindo do povo eleito, reverterão em glória universal.
Também Mateus faz uma alusão a Isaías e diz que a grande revelação salvífica
consiste em que “o povo que jazia nas trevas viu uma grande luz: aos que jaziam na região da
sombra da morte, surgiu uma luz” (Mt 4,16; citação de Is 9,1). A luz de Deus para a
humanidade, que está na escuridão do pecado e na sombra da morte, é Jesus, o Filho de Deus,
o Messias, como o Servo de Deus é chamado no Cântico de Isaías. Porém, a missão de ser
luz no mundo pagão será acompanhada de hostilidade e perseguição por parte de seu próprio
povo (Mt 2,1-19).
No Evangelho de Mateus encontramos outra passagem referente à luz, que tem como
pressuposto a idéia semítica de que o olho não é somente um órgão, mas fonte de luz para os
seres humanos. Sendo assim, talvez a expressão “a luz interior” signifique a comunhão com
que Deus torna luminoso o ser inteiro: “A lâmpada do corpo é o teu olho. Se teu olho estiver
são, todo teu corpo ficará também iluminado; mas se ele for mau, teu corpo também ficará
escuro. Por isso, bem se a luz que em ti não é treva. Portanto, se todo o teu corpo está
iluminado, sem parte alguma tenebrosa, estará todo iluminado como lâmpada, quando te
ilumina com seu fulgor” (Mt 6,22-23; cf. Lc 11,34-36).
Naquele tempo, o olho era considerado o mais precioso órgão do corpo. Este era
imaginado como um quarto iluminado por uma fonte luminosa, exatamente pelo olho. O bem
de todo corpo dependia da saúde do olho. É provável que o olho sadio indicasse a liberdade e
a generosidade do coração, enquanto o olho doente exprimisse a perspectiva de vida do
avarento e do egoísta. Isto influenciava, de modo determinante, na qualificação do ser da
pessoa.
47
47
Cf. Giuseppe BARBAGLIO; Rinaldo FABRIS; Bruno MAGGIONI. Os Evangelhos (I): tradução e
comentários. São Paulo: Loyola, 1990, p. 135.
31
É importante ainda em Mateus a declaração do Sermão da montanha: “Vós sois a luz
do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte. Nem se acende uma
lâmpada e se coloca debaixo do alqueire, mas na luminária, e assim ela brilha para todos os
que estão na casa. Brilhe do mesmo modo a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as
vossas boas obras, eles glorifiquem vosso Pai que está nos céus” (Mt 5,14-16; Lc 8, 16-18).
Encontramos um paralelo em Mc 4,21-22, que diz: “Quem traz uma lâmpada para
colocá-la debaixo do alqueire ou debaixo da cama? Ao invés, não traz para colocá-la no
lampadário? Pois nada há de oculto que não venha a ser manifesto e nada em segredo que não
venha à luz do dia.”
Talvez este dito encerre, em Mateus, uma referência à cidade de Jerusalém, a qual os
óraculos proféticos promoviam à dignidade de “luz do mundo” (cf. Is 2,2-3). Porém, Jesus
confere a seus discípulos essa dignidade, certamente, em sentido muito geral, pois o versículo
seguinte tira daí conseqüência para a uma vida ética. Enfim, Mateus interpretou a imagem da
luz no sentido das boas obras.
Marcos contém uma comparação, centrada na lâmpada, cujo modelo referencial parece
ser sapiencial. Assim, acender uma lâmpada para escondê-la era sinal de estupidez. Para
Marcos, a imagem da lâmpada se refere ao ensinamento de Jesus. Este ensinamento, expresso
em parábolas, é a revelação do Reino que tende, por sua natureza, a iluminar a todos, tal qual
lâmpada posta num candieiro.
A luz continua sendo imagem da salvação, que com Jesus irrompe escatologicamente
e encontra a sua consumação final no Reino de Deus. “Ser atirado nas trevas exteriores”
significa ser excluído, banido da bem-iluminada sala do banquete de Deus, isto é, de seu reino
escatológico. Ali haverá chôro e ranger de dentes (cf. Mt 8,12; 22,13; 25,30). As trevas estão
descritas uma vez como ativa força que ataca: “Mas é a vossa hora e o poder das Trevas”
(Lc 22,53).
Ainda encontramos algumas manifestações ou reflexos da divindade numa luz
sobrenatural. Segundo as tradições canônicas neotestamentárias, o fenômeno se produziu
algumas vezes: Pedro, Tiago e João na transfiguração de Jesus (Mt 17,2.5), Paulo a caminho
de Damasco (At 9,3; 22,6.9.11; 26,13) e Pedro na prisão em Jerusalém (At 12,7) foram
beneficiados por este gênero de visão. Podemos nos perguntar sobre este fenômeno: Que luz é
esta? A seguir, faremos uma análise dos três fenômenos que certamente nos ajudarão a
entender a ocorrência da luz no Novo Testamento.
32
1.1.2.1. A Transfiguração de Jesus como manifestação de luz (Mt 17,1-9)
A narrativa da tranfiguração de Jesus segue o esquema das teofanias bíblicas. Nela são
utilizados diversos elementos que, na tradição apocalíptica, servem para descrever as visões
das realidades escatológicas ou mundo celeste: a luz, a nuvem luminosa e a voz. É relatada
pelos Evangelhos Sinóticos, porém somente Mateus diz que o rosto de Jesus resplandece
como o sol, que suas vestes tornam-se alvas como a luz e, ainda, qualifica de luminosa a
nuvem da transfiguração:
Marcos 9,2-13 Mateus 17,1-9 Lucas 9,28-36
2
Seis dias depois, Jesus tomou
consigo Pedro, Tiago e João, e os
levou, sozinhos, para um lugar
retirado sobre uma alta montanha. Ali
foi transfigurado diante deles.
3
Suas vestes tornaram-se
resplandecentes, extremamente
brancas, de alvura tal como nenhum
lavadeiro na terra as poderia alvejar.
4
E lhes apareceram Elias com
Moisés, conversando com Jesus.
5
Então Pedro, tomando a palavra, diz
a Jesus: “Rabi, é bom estarmos aqui.
Façamos, pois, três tendas: uma para
ti, outra para Moisés e outra para
1
Seis dias depois, Jesus tomou
Pedro, Tiago e seu irmão João, e os
levou para um lugar à parte sobre
uma alta montanha.
2
E ali foi transfigurado diante deles.
Seu rosto resplandeceu como o sol
e as suas vestes tornaram-se alvas
como a luz.
3
E eis que lhes apareceram Moisés e
Elias conversando com ele.
4
Então Pedro, tomando a palavra,
disse a Jesus: “Senhor, é bom
estarmos aqui. Se queres, levantarei
aqui três tendas: uma para ti, outra
28
Mais ou menos oito dias depois dessas
palavras, tomando consigo a Pedro, João
e Tiago, ele subiu à montanha para orar.
29
Enquanto orava, o aspecto de seu
rosto se alterou, suas vestes tornaram-se
de fulgurante brancura.
30
E eis que dois homens conversavam
com ele: eram Moisés e Elias que,
31
aparecendo envoltos em glória,
falavam de seu êxodo que se consumaria
em Jerusalém
32
Pedro e os
companheiros estavam pesados de sono.
Ao despertarem, viram sua glória e os
dois homens que estavam com ele.
33
E quando estes iam se afastando,
Pedro disse a Jesus: “Mestre, é bom
estarmos aqui; façamos, pois, três
tendas, uma para ti, outra para Moisés e
33
Elias”.
6
Pois não sabia o que dizer, porque
estavam atemorizados.
7
E uma nuvem desceu, cobrindo-os
com sua sombra. E da nuvem saiu
uma voz: “Este é o meu Filho amado;
ouvi-o”.
8
E de repente, olhando ao redor, não
viram mais ninguém: Jesus estava
sozinho com eles.
9
Ao descerem da montanha,
ordenou-lhes que a ninguém
contassem o que tinham visto, até
quando o Filho do Homem tivesse
ressuscitado dos mortos.
para Moisés e outra para Elias.
5
Ainda falava, quando uma nuvem
luminosa os cobriu com sua sombra
e uma voz, que saía da nuvem disse:
“Este é o meu Filho amado, em
quem me comprazo, ouvi-o!”
6
Os discípulos, ouvindo a voz,
muito assustados, caíram com o
rosto no chão.
7
Jesus chegou perto deles e,
tocando-os, disse: “Levantai-vos e
não tenhais medo”.
8
Erguendo os olhos, não viram
ninguém: Jesus estava sozinho.
9
Ao descerem do monte, Jesus
ordenou-lhes: “Não conteis a
ninguém essa visão até que o Filho
do Homem ressuscite dos mortos”.
outra para Elias”, mas sem saber o que
dizia.
34
Ainda falava, quando uma nuvem
desceu e os cobriu com sua sombra; e ao
entrarem eles na nuvem, os discípulos se
atemorizaram.
35
Da nuvem porém, veio
uma voz dizendo: “Este é o meu Filho, o
Eleito, ouvi-o”.
36
Ao ressoar essa voz, Jesus ficou
sozinho. Os discípulos mantiveram
silêncio e, naqueles dias, a ninguém
contaram coisa alguma do que tinham
visto.
A narrativa da transfiguração (Mt 17,1-9) apresenta traços particularmente mateanos,
48
mas Mateus segue Marcos (9,2-13) bem de perto. Já em Lucas (9,28-36), a transfiguração é
mais uma oração fervorosa do que uma expressão mística. Em Mateus o rosto de Jesus brilha
como o sol e suas vestes tornam-se alvas como a luz
49
(17,2); dá-se uma verdadeira
48
BROWN, Introdução ao Novo Testamento, p. 284.
49
Mateus recorre à “metáfora” (figura de linguagem) para dizer do rosto de Jesus brilhando como o sol e das
vestes brancas como luz.
34
metamorfose (metemorfw,qh).
50
A manifestação de luz procedente do interior do corpo de Jesus
perpassa-o tão intensamente que se torna perceptível até através de suas roupas. Também
neste pormenor a expressão de Lucas: “Suas vestes tornaram-se de fulgurante brancura” (Lc
9,29), e de Marcos: “Suas vestes tornaram-se resplandecentes, extremamente brancas, de
alvura tal como nenhum lavadeiro da terra as poderia alvejar” (Mc 9.3) são bastante simples
em contraste com a descrição muito mais brilhante de Mateus nesta passagem.
51
Certamente a descrição da forma transfigurada de Jesus, “seu rosto resplandeceu como
o sol”, deriva-se de tradições na expectativa apocalíptico-judaica e da experiência de poder e
presença divina vindas de Dn 12,3; 1En 14,20; 38,4
52
; 4Es 7,97; 10,25; 2Bar 51,3.10
53
. Em
Mateus 13,43, o justo no julgamento “resplandece como o sol”. A justificação de Jesus na
ressurreição (cf. Mt 17,9) e seu retorno (Mt 16,27-28) mostram a sorte do justo. Seres divinos
e o justo ressuscitado possuem roupas luminosas: “e as suas roupas se tornaram de um branco
deslumbrante” (Dn 7,9; 1En 14,20; 62,16). Este é o destino de Jesus e sua comunidade
(16,18).
54
Ao dizer “O seu rosto resplandeceu como o sol” (Mt 17,2), sugere-nos também uma
comparação com a “radiância” do rosto de Moisés em Ex 34, 29-35 e aumenta o paralelismo
com a teofania do Sinai.
55
Êxodo conta como Moisés se transfigura na montanha de Deus e
por que ele precisa ocultar sua face com véu
56
depois que desce. O episódio ocorre depois do
50
O verbo metemorfw,qh significa “transformar”, “mudar de forma” de um modo visível, geralmente traduzido
como “foi transfigurado”. É um termo do qual se deriva a palavra “metamorfose”. O elemento “morfo”, no grego
“sempre denota a forma essencial”. Portanto, no presente caso, essa forma essencial foi mudada. Jesus, pois,
sofreu uma metamorfose: sua natureza humana começa a fazer uso de seus atributos divinos. “A todo corpo de
Jesus, por um breve tempo, foi permitido brilhar com a luz e refulgência de sua divindade celestial”. Cf. Ulrich
LUZ. Matthew 8-20: a commentary. Minneapolis: Fortress Press, 2001, p. 393.
51
Fritz RIENECKER. O Evangelho de Mateus: comentário esperança. Curitiba: Ed. Evangélica Esperança,
1998, p. 302.
52
Cf. Diez MACHO. Apocrifos del Antíguo Testamento: ciclo de Henoc. Tomo IV. Madrid: Cristiandad, 1984,
pp. 51; 56.
53
Cf. CHARLESWORTH. The Old Testament Pseudepigrapha: apocalyptic literature and testaments. Vol.
1.New York: Doubleday & Company, 1983, pp. 540; 547; 638.
54
Vestes brancas também podem indicar martírio: Ap 3,5.18; 4,4; 6,11; 7,9.13. Cf. Warren CARTER. O
Evangelho de Mateus: comentário sociopolítico e religioso a partir das margens. São Paulo: Paulus, 2002, p.
441.
55
Além das ligações com Ex 24 e 34, existem outras conexões com a história maior do êxodo: as barracas ou
tendas propostas por Pedro (17,4) lembram a “tenda do encontro” (Ex 33,7.8.9.10) onde Moisés se encontrava
com Deus e ao redor da qual pousava a nuvem da presença divina (Ex 33,9-10). O termo também denota o
tabernáculo no qual era colocada a arca da aliança (Ex 40,2.17,18.19.21.22; Nm 1,50-51). Ali Deus comissiona
Josué como sucessor de Moisés (Dt 31,14-15) e ele entra na terra de Canaã (Js 18,1; 19,51). O termo também se
refere ao festival de ação de graças dos tabernáculos / barracas (sukkot, cf. Dt 16,13), um festival que celebra a
fidelidade criativa de Deus e que, em Zc 14,16-19, antecipa o seu reinado. Cf. CARTER, O Evangelho de
Mateus: comentário sociopolítico..., p. 440.
56
Máscara: esconde uma identidade para assumir outra. Hugo Gressmann, citado no artigo “Masking Moses and
Mosaic Authority in Torah”, interpretou o véu de Moisés como máscara usada em religião primitiva. George
35
seu último encontro com Iahweh no topo da montanha (Ex 34). Este encontro foi tão intenso
e resultou numa radiação tão forte que a pele de Moisés refletiu, resplandeceu o poder de
Deus.
57
Ali estão eles: Moisés e Elias, surgindo “em glória”, provavelmente significando
“rodeados por resplendor celestial” e conversando com Jesus acerca de seu “êxodo” ou
partida, a qual estava por se concretizar em Jerusalém (Lc 9.31)
.
58
Deus faz calar a Pedro.
Enquanto ele ainda está falando, de repente uma nuvem luminosa os cobre. Mateus acrescenta
à nuvem o adjetivo “luminosa”. Na Escritura, a presença de Deus às vezes é indicada pela
menção de uma nuvem. Em diversos casos, como também aqui, é uma nuvem resplandecente,
branca ou luminosa (cf. Ex 13,21; 16,10; 40,35; 1Rs 8,10.11; Ne 9,19; Sl 78,14; Ap 14,14-
16). Os discípulos viram que essa nuvem de luz difusa encobriu Jesus, Moisés e Elias. E dela
saía uma voz: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo”. Mateus acrescenta a
expressão “em quem me comprazo” à fala divina.
Estas palavras foram ouvidas por Jesus e os três discípulos: Pedro, Tiago e João, que
são exortados a continuarem ouvindo as palavras do Filho amado do Pai e a guardá-las no
coração. A voz vinda da nuvem em Mateus 17,6 repete mais exatamente aquilo que a voz
celeste dissera no batismo de Jesus (Mt 3,17). À noite, a nuvem luminosa manifestação
visível da presença de Deus a voz súbita proveniente da nuvem; tudo isso combina para
encher o coração e a mente dos três homens de temor e tremor. Na presença daquele que é
santo e pleno de majestade, homens se enchem de medo (Gn 3.10; Jz 6,22-23; 13,22; Is 6.5;
Dn 8,17; 10,9; Hc 3.16; Ap 1.17a). Diz Calvino ao comentar este versículo: “A intenção de
W. Coats, citado no mesmo artigo, concluiu que a máscara é para estabelecer a autoridade mosaica no
Pentateuco, nascendo do seu envolvimento com o poder de Deus. Pesquisa sobre a função das máscaras apóia tal
conclusão. Ela é um meio de participar do poder de Deus. Máscaras são também instrumentos culturais que,
como mitologias em geral, representam os ideais de uma sociedade inteira. A pesquisa sugere que a máscara de
Moisés contém significado cultural e teológico sobre Deus: liderança, leis e comunidade. O propósito nesta
seção é demonstrar que Ex 34,29-35 contém a história de duas máscaras, não uma: a pele brilhante de Moisés e
seu véu. Quer ilustrar que a relação da máscara cria um paradigma sobre a autoridade mosaica perante a Torah.
Veja Thomas B. DOZEMAN. Masking Moses and mosaic authority in Torah. In: Journal of Biblical Literature
119.1 (2000): 21-45.
57
Cf. RIENECKER, O Evangelho de Mateus: comentário esperança, p. 302.
58
Tanto Moisés como Elias (17,4) estão associados com o Sinai (Ex 24; 1Rs 19) no contexto de desafiar
governantes perigosos. Em Êxodo 34, Moisés, tendo conduzido o povo da escravidão sob o Faraó, sobe
novamente ao Sinai porque o povo rejeitara a Deus criando o bezerro de ouro (Ex 32) e quebra as tábuas de
pedra (32,19). Elias, tendo desafiado o rei Acab no Carmelo, retira-se para o Horeb/Sinai sob ameaça de morte
de Acab e Jezabel (1Rs 19,1-2). Ali será comissionado novamente por Deus. Assim como estes, Jesus
experimenta rejeição e compreensão e também está sob ameaça de morte da elite (Mt 12,14; 16,1-12.13-
20.21-28). Veja CARTER, O Evangelho de Mateus: comentário sociopolítico..., p. 441.
36
Deus era que os discípulos fossem acometidos de grande terror para imprimir mais
indelevelmente no coração deles a memória dessa visão.”
59
Nos versículos 6-7, que são exclusivos de Mateus aparece uma frase na boca do anjo
(“não tenhais medo”).
60
Mateus omite o versículo 6 de Marcos (“não sabiam o que diziam,
pois tinham medo”). Ao escutarem isto, os discípulos caem com o rosto no chão
61
e ficam
com muito medo.
62
Escutando a voz, eles discernem a presença e o discurso de Deus. Sua
reação é típica das pessoas que encontram a presença divina: prostram-se.
Quando Pedro, Tiago e João recobram o controle de si mesmos e erguem seus olhos, a
nuvem brilhante, juntamente com os visitantes celestiais, se desvanecem, de tal sorte que os
discípulos a ninguém mais vêem senão a Jesus. Nem mesmo ele lhes causa mais medo,
porque o brilho que os cegava desaparece. O evento termina. Só a lembrança permanece.
Em Mateus 17,9 o cenário muda. Disse Jesus: “Não conteis a ninguém essa visão
63
até
que o Filho do Homem ressuscite dos mortos”. Mateus tenta sugerir que os discípulos tiveram
uma visão quando Jesus, Moisés e Elias surgiram diante deles, e Jesus se apresenta maior que
os três. A ordem “Não contem a ninguém” naturalmente implica “nem mesmo aos outros
nove discípulos”. É preciso evitar todo o risco de uma proclamação pública prematura.
Quando chegar o tempo oportuno, isto é, depois que o Filho do Homem ressuscitar, a história
da transfiguração poderá e deverá ser proclamada. O próprio fato da ressurreição derramará a
necessária luz sobre ela.
64
Na transfiguração Jesus é entronizado como Filho de Deus e revelado no “Novo
Sinai”.
65
Com efeito, a trasnfiguração pode ser um sinal do mundo divino, dado aos três
discípulos, da profecia de Jesus sobre a experiência do Reino de Deus, ou seja, a antecipação
do céu em forma gloriosa. É também uma experiência antecipada que iluminará a morte
violenta e a glorificação de Jesus. Essa experiência gloriosa levará Pedro, Tiago e João não a
uma contemplação extática do maravilhoso, nem a um medo paralisador em face do divino,
mas ao amadurecimento da fé, a uma adesão plena e comprometida com o ensinamento do
59
Cf. RIENECKER, O Evangelho de Mateus: comentário esperança, p. 303.
60
DOZEMAN, Masking Moses and mosaic authority in Torah. In: Journal of Biblical Literature 119.1 (2000):
21-45.
61
Sobre cair com o rosto no chão ou cair por terra, ver os magos em Mt 2,11, ao contrário do pedido do Diabo
em Mt 4,9. Ver também Gn 17,3; Lv 9,24; Nm 16,22; Js 5,14; Dn 8,17; 10,9.
62
Sobre medo na presença divina, ver Mt 1,20; 9,8; 14,27; Gn 15,1; 26,24; 28,13-17; Jz 6,23; Dn 8,17.
63
Palavra esta que freqüentemente se refere a alguma coisa observável, que participa de uma qualidade ou
origem sobrenatural (cf. At 7,31; 9,10; 12, 7-10, 11:5; 16:9, 18:9). O relato de Marcos, que usualmente é
considerado primário, simplesmente a chama “as coisas que tinham visto” (Mc 9:9).
64
Cf. J. A. SALDARINE. A comunidade judaico-cristã de Mateus. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 276.
65
Cf. LUZ, Matthew 8-20: a commentary, pp. 395-398.
37
Filho do Homem.
Por isso, Jesus aparece glorificado e divinizado, na condição de
ressuscitado: o rosto resplandece como sol e suas vestes tornam-se alvas como a luz.
1.1.2.2. Luz que brilha no caminho (At 9,1-9; 22,3-11; 26,9-18)
Jesus morre, ressuscita e “aparece”, ou melhor, “deixa-se ver”
66
, por Maria
Madalena (cf. Jo 20,14); pelas mulheres voltando do sepulcro (cf. Mt 28,9); por Simão Pedro
(cf. Lc 24,34; 1Cor 15,5); pelos discípulos a caminho de Emaús (cf. Lc 24,13-15); pelos
discípulos no mar de Tiberíades (cf. Jo 21,1); pelos apóstolos em Jerusalém, Tomé presente
(cf. Jo 20,26); pelos apóstolos em um monte da Galiléia (Mt 28,16); por mais de quinhentos
irmãos (cf. 1Cor 15,6); por Tiago (1Cor 15,7); por todos os apóstolos no monte das Oliveiras
na ocasião da ascensão (cf. Lc 24,50); depois de todos, deixa-se ver por Paulo (1Cor 15,8).
Ele próprio diz: “Não vi Jesus, nosso Senhor?” (1Cor 9,1). Paulo, que era “cheio de zelo pelas
tradições paternas” (Gl 1,14), qual fariseu convicto, entendia que o único caminho para obter
a justiça era a observância rigorosa da lei:
Ouve, ó Israel: Iahweh nosso Deus é o único Iahweh! Portanto amarás a teu
Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força.
Que estas palavras que hoje te ordeno estejam em teu coração! Tu as
inculcarás aos teus filhos e delas falarás sentado em tua casa e andando em
teu caminho, deitado e de pé. Tu as atarás também à tua mão como um sinal,
e serão como um frontal entre os teus olhos, tu as escreverás nos umbrais da
tua casa, e nas tuas portas (Dt 6,4-9).
Esse ideal irrepreensível na observância restrita da Lei (cf. Fl 3,6; At 22,3) animou-o
até o momento em que, envolto por uma luz, ele considera que teve uma visão de Jesus
ressuscitado, do mesmo significado que as aparições aos outros apóstolos e que esta visão o
estabeleceu na condição e na missão de apóstolo (cf. 1Cor 15,8-10; Gl 1,11-16; Fl 3,6).
67
66
Joseph RATZINGER. O caminho pascal: curso de exercícios espirituais realizado no Vaticano na presença
de S. S. João Paulo II. São Paulo: Loyola, 1986, p. 104.
67
Para um estudo da vida de Paulo veja John D. CROSSAN; Jonathan L. REED. Em busca de Paulo: como o
apóstolo de Jesus opôs o Reino de Deus ao império romano. São Paulo: Paulinas, 2007, 423p.; KOESTER,
Introdução ao Novo Testamento, vol. 2, pp. 113-159; Josef SCHREINER; Gerhard DAUTZENBERG. Forma e
exigências do Novo Testamento. 2 ed. São Paulo: Editora Hagnos, 2004, pp. 63-98; F. F. BRUCE, Paulo, o
apóstolo da graça: sua vida, cartas e teologia. São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 2003, 464p.
38
Lucas ao episódio grande destaque, oferecendo uma tríplice narração da
experiência no caminho de Damasco:
Atos 9, 1-9 Atos 22, 3-11 Atos 26, 9-18
1
Saulo, respirando ainda ameaças de
mortes contra os discípulos do Senhor,
dirigiu-se ao sumo sacerdote.
2
Foi pedir-
lhe cartas para as sinagogas de Damasco,
a fim de poder trazer para Jerusalém
presos, os que encontrasse pertencendo
ao Caminho, quer homens, quer
mulheres.
3
Estando ele em viagem e aproximando-
se de Damasco, subitamente uma luz
vinda do céu o envolveu de claridade.
4
Caindo por terra, ouviu uma voz que lhe
dizia: “Saul, Saul, por que me
persegues?”
5
Ele perguntou: “Quem és,
Senhor?” E a resposta: “Eu sou Jesus, a
quem tu persegues.
3
Eu sou judeu. Nasci em Tarso, da
Cilícia, mas criei-me nesta cidade,
educado aos pés de Gamaliel na
observância exata da Lei de nossos pais,
cheio de zelo por Deus, como vós todos
sois no dia de hoje.
4
Persegui de morte este Caminho,
prendendo e lançando à prisão homens e
mulheres, como o podem testemunhar o
sumo sacerdote e todos os anciãos. Deles
cheguei a receber cartas de
recomendação para os irmãos e para
me dirigi, a fim de trazer algemados para
Jerusalém os que estivessem, para
serem aqui punidos.
6
Aconteceu que, estando eu a caminho e
aproximando-me de Damasco, de
repente, por volta de meio-dia, uma
grande luz vinda do céu brilhou ao redor
de mim.
7
Caí ao chão e ouvi uma voz que me
dizia: “Saul, Saul, por que me
persegues?”
8
respondi: “Quem és,
Senhor?” Ele me disse: “Eu sou Jesus, o
Nazareu, a quem tu persegues.”
9
Quanto a mim, parecia-me necessário
fazer muitas coisas contra o nome de
Jesus, o Nazareu.
10
Foi o que fiz em Jerusalém: a muitos
dentre santos eu mesmo encerei nas
prisões, recebida a autorização dos
chefes dos sacerdotes; e quando eram
mortos eu contribuía com meu voto.
11
Muitas vezes, percorrendo todas as
sinagogas, por meio de torturas quis
forçá-los a blasfemar; e, no excesso do
meu furor, cheguei a perseguir-los até
em cidades estrangeiras.
12
Com este intuito encaminhei-me a
Damasco, com a autoridade dos chefes
dos sacerdotes.
13
No caminho, pelo do
meio-dia, eu vi, ó rei, vinda do céu,
mais brilhante do que o sol, uma luz
que circundou a mim e aos que me
acompanhavam.
14
Caímos todos por terra, e eu ouvi uma
voz que me falava em língua hebraica:
“Saul, Saul, por que me persegues? É
duro para ti recalcitrar contra o
aguilhão.”
15
Perguntei: “quem és tu,
39
6
Mas levanta-te, entra na cidade, e te
dirão o que deves fazer”.
7
Os homens, que com ele viajavam,
detiveram-se, emudecidos de espanto,
ouvindo a voz, mas não vendo ninguém.
8
Saulo ergueu-se do chão. Mas, embora
tivesse os olhos abertos, não via nada.
Conduzindo-o, então, pela mão, fizeram
entrar em Damasco.
9
Esteve três dias sem
ver, e nada comeu nem bebeu.
9
Os que estavam comigo viram a luz,
mas não escutaram a voz de quem falava
comigo.
10
Eu prossegui: “Que devo fazer,
Senhor?” E o Senhor me disse:
Levanta-te, e entra em Damasco: lá te
dirão tudo o que te é ordenado fazer.
11
Como eu não enxergasse mais por
causa do fulgor daquela luz, cheguei a
Damasco levado pela mão dos que
estavam comigo.
Senhor?” O Senhor respondeu: “Eu sou
Jesus, a quem tu persegues.
16
Mas, levante-te e fica firme em pé,
pois este é o motivo por que te apareci:
para constitui-te servo e testemunha da
visão na qual me viste e daquelas nas
quais ainda te aparecerei.
17
Eu te
livrarei do povo e das nações gentias, às
quais te envio
18
para lhes abrires os
olhos e assim se converterem das trevas
à luz, e da autoridade de Satanás para
Deus. De tal modo receberão, pela fé
em mim, a remissão dos pecados e a
herança entre os santificados.”
A conversão de Saulo no caminho de Damasco faz parte de uma seqüência iniciada no
capítulo 8 com a perseguição contra a Igreja de Jerusalém (At 8,1-3), a qual sucede ao
martírio de Estevão. O movimento da diáspora cristã de Samaria (At 8) se estende até a
conversão de Cornélio (At 10), que inaugura o acesso dos não-judeus à salvação. Atos 9 está
dominado pela transformação da identidade de Saulo para Paulo e intervém no fim de uma
série de conversões: Simão, o eunuco etíope, depois Paulo.
68
O tema que os relatos têm em comum é a surpreendente iniciativa de Deus na escolha
dos convertidos: Simão, o mago ambicioso; o etíope mutilado; Saulo, o perseguidor; Cornélio
o impuro. Cada um destes episódios de At 8-11 confronta a iniciativa divina (At 8,4-8; 8,26;
68
Cf. Daniel MARGUERAT. A primeira história do cristianismo: os Atos dos Apóstolos. São Paulo: Loyola,
2003, pp. 208-209.
40
9,3-12; 10,1-23) com reações dos que abraçam a fé, que vão da lucidez profética (At 8,20-23)
à obediência (At 8,27a), passando pelo embaraço (At 9,13.26; 10,17).
69
No cenário de Atos, Lucas ênfase à luz de Deus, à voz de Jesus e à cegueira de
Paulo (At 9,8; 22,11).
70
Em todos os relatos Jesus se manifesta a Paulo numa luz brilhante. Na
primeira narrativa, frisa-se que “uma luz do céu” o envolveu de claridade (v.3); na segunda,
especifica-se que se trata de “uma grande luz do céu” que brilhou repentinamente ao redor
dele “por volta de meio dia” (v.6); na terceira, sublinha-se ainda mais o esplendor dessa luz,
dizendo que ela é “mais resplandecente que o sol” que brilha “ao meio dia”. A menção à hora
do dia em que Jesus aparece a Paulo (At 22,6; 26,13) tem a função de realçar a luminosidade
da luz que brilha ao redor do perseguidor, mostrando que também a este respeito os relatos
são redigidos em ascensão.
A luz é um elemento constitutivo das teofanias (Ex 24,15-17; Sl 29,7; Sl 97,1-3; Ez
1,4-6 Mt 17,2). Em Atos, Saulo é envolvido completamente por uma luz que sai do céu e uma
voz o chama pelo nome, como fazia Deus no Antigo Testamento (Gn 31, 11-13; Gn 46, 2-3;
1Sm 3,1-10): “Saul, Saul, por que me persegues?Esta voz aparece nos três relatos, com as
mesmas palavras, porém no terceiro acrescenta-se que ela ressoa em língua hebraica, isto é, na
língua do Messias de Israel. Saulo cai por terra (Gn 17,3; Lv 9,24; Nm 16,22; Js 5,14; Dn
8,17; 10,9; Ez 1,27-28; Mt 2,11). Sua queda não é apenas reflexo da surpresa da luz, mas
podemos supor que o perseguidor fica reduzido à impotência.
Nos três relatos Saulo se informa sobre a identidade do personagem desconhecido que
o interpela: “Quem és, Senhor? A resposta também é mais ou menos a mesma nos três
relatos: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues.”
Somente no segundo relato especifica-se a
identidade de Jesus, dizendo que se trata do “Nazareu”. Os que acompanham Paulo, no
primeiro relato, ficam emudecidos por causa do evento, ouvem a voz, porém não vêem
ninguém (At 9,7); no segundo relato, vêem a luz, mas não ouvem a voz que fala com Paulo
(At 22,9); o terceiro relato não especifica se os que acompanham Paulo viram ou ouviram
alguma coisa; fala-se somente que caíram todos por terra (At 26,14).
O efeito da cristofania em Paulo não faz com que ele caia por terra, como acontecia
com os profetas do Antigo Testamento diante do manifestar-se de Deus, como também o
deixa cego pela potência da luz com que entra em contato. É significativa a cegueira daquele
que viu o explendor divino na face de Jesus.
69
Cf. BRUCE, Paulo: o apóstolo da graça, p. 208.
70
Cf. CROSSAN e REED, Em busca de Paulo, p. 19.
41
Indubitavelmente a luz que Paulo no caminho causa uma ruptura em sua vida: de
negador de Cristo, torna-se anunciador do Messias; de inimigo dos discípulos, torna-se mestre
deles; de perseguidor com projetos mortais, transforma-se em entusiasmado pregador,
ameaçado de morte; aquele que apostava na rigorosa observância da Lei e na tradição dos
antigos para conseguir a salvação, agora sabe que ela é gratuidade, a justificação é dom; o
perseguidor passa a ser o que trabalha pela causa de Jesus (1Cor 15,10); se antes procurava a
observância da Lei para a própria justificação, agora consagra-se ao serviço dos outros, no
amor que é a plenitude da Lei (Rm 13, 10; Gl 5,14).
A passagem da treva (cegueira) para a luz (visão) dura três dias (At 9,9). As duas
versões (At 22,6; 26,13
)
assim descrevem a luz: celeste, intensa, de brilho superior ao do sol
ofuscante, a ponto de provocar a perda da visão de Paulo. Além disso, dificilmente pode-se
qualificá-la como experiência interior apenas, que não foi apenas Paulo quem a viu, mas
também seus companheiros vêem a luz. A luz que brilha no caminho de Paulo é a luz que faz
ressuscitar para uma vida nova, radicalmente mudada. Uma luz que provoca e convoca para a
missão. O encontro de Paulo com o Cristo ressuscitado é a raiz de sua vocação ou escolha em
função da evangelização dos gentios. Daí para frente, toda a sua vida, teologia e missão
estarão marcadas por esse encontro-renascimento-revelação pessoal com a luz.
1.1.2.3. Luz que liberta da prisão (At 12,1-11)
Neste episódio, Pedro é preso pelas proximidades da Páscoa, nos dias da festa “dos
pães ázimos”. O relato mostra a minuciosa descrição da guarda militar, à qual é submetido o
prisioneiro. Mas inicia-se um acontecimento que conduzirá Pedro à liberdade: um Anjo de
Deus ilumina a cela e o liberta da prisão. Ao símbolo da luz se junta o do “anjo do Senhor”.
6
Quando se aproximou o momento de Herodes apresentá-lo, naquela mesma
noite Pedro dormia entre dois soldados, preso a duas correntes, enquanto
sentinelas diante da porta vigiavam a prisão.
7
De repente, sobreveio o Anjo
do Senhor, e uma luz brilhou no cubículo. Tocando o lado de Pedro o Anjo
fê-lo erguer-se dizendo: Levanta-te depressa. E caíram-lhe as correntes das
mãos.
8
Disse-lhe ainda: Cinge-te, e calça as sandálias. E ele o fez. Disse-lhe
mais: Envolve-te no manto e segue-me.
9
Pedro saiu e foi seguindo-o, mas
42
não sabia se era verdade o que estava acontecendo por meio do Anjo:
parecia antes uma visão.
10
Passaram, assim, pelo primeiro posto da guarda,
depois pelo segundo, e chegaram ao portão de ferro, que para a cidade, o
qual se abriu por si mesmo diante deles. Saído, enveredaram por uma rua,
quando subitamente o Anjo se apartou dele.
11
Então Pedro, voltando a si,
disse: Agora sei realmente que o Senhor enviou o seu Anjo, livrando-me da
mão de Herodes e de toda expectativa do povo judeu (At 12,6-11).
Pedro é encarcerado numa prisão de segurança máxima.
71
A tradição insiste nas
medidas de segurança: “Pedro dormia entre dois soldados, preso a duas correntes, enquanto
sentinelas diante da porta vigiavam a prisão.” Enquanto isso, a igreja orava incessantemente
por ele. Que chance tem a oração contra uma masmorra? Historicamente, Deus deve ter
atuado através de agentes humanos, aqui encobertos por “Anjo do Senhor”.
Quando chega o momento de Herodes
72
apresentá-lo ao povo, eis que, de repente,
manifesta-se um Anjo do Senhor. A manifestação angélica aparece tanto no Antigo
Testamento (Gn 16,7-13; 32,2.24.30; Ex 14,19; 23,20-24; Js 5,13-15; Jz 13,3-22; Os 12, 3-4)
quanto no Novo (Lc 1, 11.26; 2, 9; Mt 28, 2-3; At 5,19; 8,16, 10,30; 12,7; Ap 15, 16; 18,1) e
nada mais é que a manifestação do próprio Deus. Algumas aparições estão associadas aos
grandes eventos da história da salvação. O Anjo ou Mediador angelomórfico está próximo de
Deus ou de seu trono, mas na aparição terrena assume características físicas numa gama
bastante ampla: fogo, nuvem, homem; exerce funções ou atos típicos de Deus (mediação,
proteção, libertação, intercessão).
73
Uma luz resplandece na cela de Pedro quando o anjo o visita na prisão. Essa luz
provavelmente foi uma manifestação da energia do anjo, isto é, uma propriedade e uma
manifestação visível do tipo de energia que compõe os seres angelicais. Os anjos no Novo
Testamento aparecem geralmente como personagens brilhantes.
74
O anjo a Pedro cinco
71
O relato da libertação de Pedro tem todas as cores de um relato popular, que sempre insiste no maravilhoso e
extraordinário. Cf. Ivo STORNIOLO. Como ler os Atos dos Apóstolos: o caminho do evangelho. São Paulo:
Paulus, 1993, p. 113.
72
O Herodes do qual fala o texto é Herodes Agripa, que governou sobre toda a Judéia do ano 41 ao ano 44. Era
um rei pró-romano, que procurava acalmar o povo. Para isso, maltrata alguns membros da comunidade judeu-
cristã de Jerusalém, depois mata o apóstolo Tiago, irmão de João filhos de Zebedeu e coloca Pedro na prisão
com intenção de matá-lo depois da Páscoa. Veja Pablo RICHARD. O movimento de Jesus depois da
ressurreição: uma interpretação libertadora dos Atos dos Apóstolos. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 104.
73
Luigi SCHIAVO. Fontes dos ditos de Jesus e as raízes da cristologia. In: Jesus de Nazaré: uma outra história.
São Paulo: Annablume/FAPESP, 2006, p. 202.
74
As verdadeiras experiências místicas com freqüência estão associadas a campos com luz, de energia.
43
ordens: levante-se, aperte o cinto, calce as sandálias, ponha o manto e siga-me. A impressão
que Pedro tem é que se trata de um sonho ou de uma visão. Ele não faz nada, porém obedece
as ordens dadas pelo anjo.
Vencidas as barreiras e uma vez estando na rua, o anjo se afasta. Assim como viera,
vai embora: não se identifica, não diz nada, além das ordens, não pede reverência. Apenas
cumpre sua missão. A libertação de Pedro nos faz lembrar 1Reis 19,5-7, quando o anjo de
Deus socorre o profeta Elias no deserto, bem como Êxodo 12,1-13, a noite da libertação do
Egito. Tudo isso mostra-nos que o Deus libertador continua sua ação na história, libertando
seu povo. A luz que ilumina a cela de Pedro está associada à luz que liberta da perseguição e
da prisão. Pedro volta a si, acorda e, então, olha pra trás e compreende. Reconhece que assa
libertação é um ato de Deus: “Agora sei realmente que o Senhor enviou seu anjo, livrando-me
das mãos de Herodes e de toda expectativa do povo judeu”.
1.1.2.4. Paralelo entre luz no Quarto Evangelho e luz nos Evangelhos Sinóticos e
Atos dos Apóstolos
Nos Sinóticos, a luz está ligada à sabedoria judaica: empregam o termo em sentido
próprio e muitas das vezes fazendo referência ao Antigo Testamento: (Mt 4,16 = Is 9,1; Lc
2,32 = Is 42,6, 49,6); fazem uso de metáfora para falar da luz (Mt 6,22-23; Lc 11,34-35);
comparam os discípulos com a ação benéfica da luz (Mt 5,14-16; Mc 4,21-22; Lc 8,16-18) e
algumas vezes, tanto nos Sinóticos quanto nos Atos, fala-se da luz como reflexo da divindade:
na Transfiguração de Jesus (Mt 17,2.5), Paulo a caminho de Damasco (At 9,3; 22,6.9.11;
26,13) e Pedro na prisão em Jerusalém (At 12,7).
Ao contrário, o Quarto Evangelho não usa metáfora para falar da luz e não se refere a
Deus como luz em forma explícita, a não ser em harmonia com a revelação em Jesus. A luz
no Quarto Evangelho designa diretamente a natureza de Jesus. Ele retrata Jesus como luz que
irrompe no meio da escuridão do mundo. A luz não é apenas reflexo da manifestação de
Deus, mas seu próprio filho unigênito que se encarna e se manifesta ao mundo: “Eu sou a luz
do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida” (8,12; 9,5).
44
1.1.3. LUZ NAS CARTAS PAULINAS, CARTAS JOANINAS E APOCALIPSE
Segundo as cartas paulinas, a luz está ligada à Toráh e também ao povo judeu.
75
A
revelação de Jesus como luz vem precisar a antítese das trevas e da luz, não na perspectiva
metafísica, mas no plano moral. Empregam o termo, quase sempre, para referirem-se à
condição do cristão: O pagão vive em trevas; tem inteligência obnubilada e o coração cego
pela sua ignorância e pela dureza de seu coração (cf. Ef 4,18); Deus livra o pagão do poder
das trevas e o faz capaz de participar da herança dos santos na luz (cf. Cl 1,12). O discípulo já
não vive mais nas trevas; é “filho da luz”, “filho do dia”; não pertence à noite e não será,
portanto, surpreendido quando chegar “o Dia do Senhor” (1Ts 5,4-8); sendo “luz no Senhor”,
o discípulo de Jesus de ser mais luminoso ainda, quando receber “a herança dos Santos na
luz” (Cl 1,12); a luz qualifica o domínio de Deus e de Cristo como sendo o do bem e da
justiça; as trevas qualificam o domínio de Satanás como sendo do mal e da impiedade (cf.
2Cor 6,14-15), embora Satanás por vezes se disfarce em anjo de luz para seduzir os homens
(2Cor 11,14).
76
Na carta aos Coríntios diz que, o evangelho difunde uma luz que atrai o olhar do fiel.
A fé, luz divina que brilha no coração, deve fazê-lo resplandecer com esta luz que é trazida
pelo conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de Cristo:
Para os incrédulos, dos quais o deus deste mundo obscureceu a inteligência,
a fim de que não vejam brilhar a luz do evangelho da glória de Cristo, que é
a imagem de Deus. Não proclamamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus,
Senhor. Quanto a nós mesmos, apresentamos-nos como vossos servos por
causa de Jesus. Porquanto Deus, que disse: Do meio das trevas brilhe a luz!
Foi ele mesmo quem reluziu em nossos corações, para fazer brilhar o
conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de Cristo (2Cor
4,4-6; cf. 2 Tm 1,10).
Em Paulo esta recomendação se torna habitual. Toda moral cabe nesta perspectiva: a
missão do discípulo é, portanto, missão de iluminação (Ef 3,9). É preciso comportar-se como
75
FRIEDRICH, Theological dictionary of the New Testament IX, pp. 345-348.
76
Cf. Lothar COENEN; Colin BROWN (eds.). Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento. Vol.
I. São Paulo: Vida Nova, 2000, pp. 1223-1224.
45
um “filho da luz”, procurando discernir o que é agradável ao Senhor e não sendo participante
das obras infrutuosas num mundo envolto em trevas (Ef 5,8), para tornar-se irreprovável e
puro filho de Deus, sem defeito, no meio de uma geração e pervertida, no seio da qual
brilha como astro no mundo, mensageiro da Palavra de vida (cf. Fl 2,15). Não pode envolver-
se nas obras infrutuosas das trevas (cf. Ef 5,11), mas deve rejeitá-las e revestir-se com as
armaduras da luz (cf. Rm 13,12) e portar-se como o filho dela (cf 1Ts 5,5).
Não é outra a linguagem de João. Também as cartas joaninas empregam a luz para
referir-se à condição do cristão: “Deus é luz
77
; nele não treva alguma. Se dissermos que
estamos em comunhão com ele e andamos nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade.
Mas se caminhamos na luz como ele está na luz, estamos em comunhão uns com os outros e o
sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado” (1Jo 1,5-7). O critério é o amor
fraternal. Por se conhece que se está nas trevas ou na luz: “Aquele que diz que está na luz,
mas odeia o seu irmão, está nas trevas até agora. O que ama o seu irmão permanece na luz e
nele não há ocasião de queda. Mas o que odeia o seu irmão está nas trevas; caminha nas trevas
e não sabe aonde vai, porque as trevas cegaram os seus olhos” (1Jo 2,10-11).
Na carta proto-paulina de Timóteo, Deus mora em uma luz inacessível, a qual homem
algum jamais viu, nem é capaz de ver (1Tm 6,16). Não é Ele “o Pai das luzes?” (Tg 1,17).
Aqueles que se aproximam da luz recebem o poder de viver na luz de Deus. Mas aqueles que
rejeitam a luz trazida por Jesus mergulham em trevas.
De acordo com os textos proféticos do Apocalipse, as passagens referentes à luz
refletem a esperança escatológica. Com efeito, a cidade não precisa do sol ou da lua para
iluminar, pois a glória de Deus a ilumina e sua lâmpada é o Cordeiro. As nações caminharão à
sua luz e os reis da terra trarão a ela sua glória” (Ap 21,23-24, citação de Is 60,3). Então os
eleitos, contemplando a face de Deus, serão iluminados por esta luz. Esta é a esperança dos
filhos da luz: “já não mais haverá noite: ninguém mais vai precisar da luz da lâmpada, nem da
luz do sol, porque o Senhor Deus vai brilhar sobre eles e eles reinarão pelos séculos dos
séculos” (Ap 22, 5).
77
A declaração “Deus é luz” em 1Jo 1,5 é o único texto em que Deus é definido diretamente como luz nos
escritos joaninos.
46
1.1.3.1. Paralelo entre luz no Quarto Evangelho, luz nas Cartas Paulinas, Cartas
Joaninas e Apocalipse
Em João encontramos: Este é o julgamento: a luz veio ao mundo, mas os homens
preferiram as trevas à luz, porque suas obras eram más.” Esta passagem pode ser comparada
com 2Cor 4,4, quando Paulo fala de homens aos quais o deus deste mundo cegou “para que
não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de Deus.” Nada
pode mudar esta situação senão um ato criador de Deus, paralelo à criação original da luz.
“Deus disse: ‘Haja luz’, e houve luz.” Ele mesmo resplandeceu em nossos corações, para
iluminação do conhecimento de sua glória na face de Cristo (2Cor 4,6; cf. Gn 1,3). Embora
seja certamente verdadeiro o fato de que, desde a vinda de Jesus, “as trevas passam e já brilha
a verdadeira luz(1Jo 2,8), pois somente “o que ama o seu irmão permanece na luz” (1Jo
2,10). A condição prévia para a prática da verdade que se associa de perto com a idéia da luz,
tanto aqui quanto noutras passagens, é a comunhão com aquele que é a luz do mundo, Jesus.
Os cristãos, para permanecerem nele, devem andar na luz, viver em prol dos seus irmãos e
constatemente buscarem o perdão mediante o poder do sangue de Cristo (1Jo 1,6-7).
78
Paulo, embora empregue estas palavras menos frequentemente do que João, dá-lhes
um conteúdo teológico semelhante. A luz e as trevas são tão incompatíveis quanto a justiça e
iniqüidade (2 Cor 6,14). O conteúdo da luz ou da iluminação, porém, não pode ser outro
senão cristológico: Deus brilhou em nossos corações “para iluminação do conhecimento da
glória de Deus na face de Cristo” (2Cor 4,4-6; cf. 2Tm 1,11). Por meio dele participamos “da
herança dos santos na luz” (Cl 1,12).
Característico de Paulo é o emprego do conceito de luz nas antíteses luz/trevas, como
também o faz João no evangelho. Neste sentido, Paulo fala de armas da luz (Rm 13,12), de
um anjo de luz (2Cor 2,14), dos frutos da luz (Ef 5,9), os frutos de nosso espírito (Gal 5,22) e
da luz que tem brilhado em nossos corações (2Cor 4-5).
Aqueles que antes estavam nas trevas tornaram-se, por sua vez, como que iluminados,
“filhos da luz” (Jo 12,36; cf. Ef 5,8; 1Ts 5,5)
79
e agora são luz em Jesus. Esta filiação, porém,
faz exigências éticas da parte daqueles que a receberam: “O fruto da luz consiste em tudo
quanto é bondade, justiça e verdade” (Ef 5,9). Assim, é necessário andar em conformidade
com a luz e isto tanto mais porque os cristãos têm responsabilidades para com o mundo.
Resposabilidades estas que só podem desempenhar como “luzeiros num mundo escuro” (Fl
78
Cf. COENEN e BROWN, Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento, vol. I, p. 1224.
79
Idéia esta que possivelmente foi influenciada por Qumran.
47
2,15). Neste mundo, o cristão vive sua vida, por assim dizer, entre luz e trevas (Satanás). Este
último pode até se disfarçar “em anjo da luz” (2Cor 11,14). É por isso que os cristãos devem
vestir-se da “armadura da luz” (Rm 13,12). Somente aquele que aceita a luz não precisa temer
o dia em que “o Pai das luzes” (Tg 1,7) trará luz àquilo que está oculto (1Cor 4,5). Assim, na
nova Jerusalém não haverá sol, lua nem luz criada, pois a glória de Deus será sua luz e o
cordeiro será sua lâmpada. As nações andarão mediante sua luz e os reis da terra lhe trarão a
sua glória (cf. Ap 21,23-24).
1.2. LUZ EM QUMRAN
Na Palestina, nas proximidades do Mar Morto, entre os anos de 1946-1956, foram
encontrados milhares de fragmentos de textos hebraicos, aramaicos e gregos. Entre os escritos
descobertos havia textos bíblicos e também textos sectários que revelam certa diversidade no
judaísmo antigo. Os textos de Qumran ficaram conhecidos pelo o nome de Manuscritos do
Mar Morto e propiciaram uma grande quantidade de fontes para o estudo do judaísmo antigo
e para o entendimento de textos cristãos com motivação e background judaicos.
80
O dualismo entre luz e trevas aparece fortemente nos escritos do Mar Morto (cf. I QS
III, 20-25; IV, 1-14; XI, 3-7). Já no Manual de Disciplina ou Regra da Comunidade
81
, 1QS
III, encontramos:
Vacat. Para o sábio, para que instrua e ensine todos os filhos da luz sobre a
história de todos os filhos do homem, acerca de todas as classes de seus
espíritos, segundo os seus signos, acerca de suas obras em suas gerações, e
acerca da visita de seu castigo e do tempo de sua recompensa. Do Deus de
conhecimento provém tudo o que é e o que será. Antes que existissem fixou
todos os seus planos e quando existem completam as suas obras de acordo
com as suas instruções, segundo o seu plano glorioso e sem mudar nada. Em
80
Florentino García MARTINEZ. Textos de Qumran: edição fiel e completa dos documentos do Mar Morto.
Petrópolis: Vozes, 1994, pp. 15-29.
81
É provavelmente um dos documentos mais antigos da seita. Sua composição original pode datar de 100 a.C.
Parece que se destinava aos professores da comunidade, aos seus Mestres ou Guardiões, e contém trechos de
cerimônias litúrgicas, o esboço de um modelo de sermão sobre os espíritos da Verdade e da falsidade, estatutos
referentes à iniciação para a seita e à vida em comum, organização e disciplina, um código penal e, por fim, uma
dissertação poética sobre os deveres religiosos fundamentais do Mestre e seus discípulos, e ainda sobre as épocas
sagradas, próprias da comunidade. Cf. Geza VERMES. Os manuscritos do Mar Morto. São Paulo: Mercuryo,
1991, p. 73.
48
sua mão estão as leis de todas as coisas, e ele as sustenta em todas as
necessidades. Ele criou o homem para dominar o mundo, e pôs nele os
espíritos, para que caminhe por ele até o tempo de sua visita: são os espíritos
da verdade e da falsidade. Do manancial da luz provêm as gerações da
verdade, e da fonte das trevas as gerações de falsidade. Na mão do Príncipe
das luzes está o domínio sobre todos os filhos da justiça; eles andam por
caminhos de luz. E na mão do Anjo das trevas está todo o domínio sobre os
filhos da falsidade; eles andam por caminhos de trevas. Por causa do Anjo
das trevas se extraviam todos os filhos da justiça, e todos os seus pecados,
suas iniqüidades, suas faltas e suas obras rebeldes, estão sob o domínio de
acordo com os mistérios de Deus, causados pelo domínio de sua hostilidade;
e todos os espíritos de seu lote fazem cair os filhos da luz. Porém o Deus de
Israel e o anjo de sua verdade ajudam todos os filhos da luz. Ele criou os
anjos da luz e das trevas, e sobre eles fundou todas as obras (1QS III, 13-
25).
aparecem os “filhos da luz” e os “filhos das trevas”; o “Príncipe das luzes” e o
“Anjo das trevas”; os “caminhos de luze os “caminhos de trevas”. Há dois espíritos que
guerreiam um contra o outro – o Espírito da Verdade e o Espírito da Perversidade. O Espírito
da Verdade procede de uma fonte de luz, e o Espírito da Perversidade de uma fonte de trevas.
Cada um destes dois espíritos domina sobre uma parte da humanidade, que se encontra
nitidamente dividida entre dois grupos: os filhos da luz ou da verdade e os filhos das trevas ou
da perversidade. Na mão do Príncipe da luz está o domínio sobre os filhos da justiça; eles
caminham pelos caminhos da luz; mas na mão do Anjo das trevas está o domínio sobre os
filhos da impiedade; eles andam pelos caminhos das trevas.
Podemos observar que estes “dois espíritos” são elementos alternativos oferecidos ao
homem pelo próprio Deus.
82
Foi Ele quem os criou e é Ele quem vem em socorro de todos os
filhos da luz. A grande batalha espiritual entre a luz e as trevas continuará até o momento da
82
A comunidade de Qumran acreditava na doutrina da divina eleição. Na “Regra da comunidade” a palavra
“sorte”, “destino”, repete-se catorze vezes. É usada em dois sentidos relacionados. Em certos contextos fala da
“sorte” do homem na vida, isto é, o destino permitido por Deus a cada indivíduo. Em outros contextos, fala de
duas divisões do ser humano. A primeira se refere aos justos, chamados “homens do destino de Deus”; a segunda
divisão compõe-se dos perversos, conhecidos como “homem do destino de Belial”. Cf. C. F. PFEIFFER. The
Dead Sea Scrolls. Grande Rapids: Baker Book House, 1962, p. 56 apud Gervásio F. ORRÚ. Os manuscritos de
Qumran e o Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 47.
49
visitação de Deus, isto é, “até o último julgamento, o momento quando Deus destruirá o
espírito maligno para sempre”.
Ainda que côncios da grande batalha entre o reino da luz e o reino das trevas, os
membros da comunidade estavam certos da proteção divina sobre suas vidas. Essa proteção
era resultado da observância da Lei, da busca da vontade de Deus em todas as coisas e do fato
de se abandonarem espontaneamente nele.
Outro documento chamado A Regra da Guerra ou A Guerra dos Filhos da Luz contra
os Filhos das Trevas
83
descreve a batalha escatológica em detalhes. A primeira parte da Regra
da Guerra resume o curso de uma guerra de quarenta anos, que será travada entre aqueles a
quem o texto chama de “filhos da luz” e “filhos das trevas”:
O primeiro ataque dos filhos da luz será lançado contra o lote dos filhos das
trevas, contra o exército de Belial, contra a tropa de Edom e de Moab e dos
filhos de Amon e a tropa de... e de Fislistéia, e contra as tropas dos Kittim de
Assur e os que ajudam dentre os ímpios da aliança. Os filhos de Levi, os
filhos de Judá e os filhos de Benjamim, os exilados do deserto, guerrearão
contra eles. ... contra todas as tropas, quando os filhos da luz exilados no
deserto dos povos retornarem para acampar no deserto de Jerusalém. E
depois da guerra subirão dali... dos Kittim no Egito. E a seu tempo, sairá
com grande fúria para guerrear contra os reis do norte, e sua cólera
exterminará e cortará o chifre de... Seguirá um tempo de salvação para o
povo de Deus e um período de domínio para todos os homens de seu lote, e
destruição eterna para todo lote de Belial. Haverá pânico grande entre Jafé e
cairá Assur, e não haverá socorro para ele; o domínio dos Kittim se acabará
sendo abatida a impiedade sem que fique um resto e não haverá escape para
os filhos das trevas (1QM I, 1-9).
83
A mais famosa das composições escatológicas é provavelmente o Manuscritos da Guerra da Caverna 1 (em
hebraico, Milhamah, daí abreviação 1QM). É um escrito apocalíptico peculiar. Deve ter sido escrito no século I
d.C., porque a descrição que faz da formação de batalha do exército dos filhos da luz apresenta semelhanças com
as formações de batalha romanas. Mas descobertas de fragmentos nas Cavernas 4 e 5 de Qumran sugerem que a
versão conservada é um documento composto baseado em obras anteriores, que datam da segunda metade do
século II a.C. Este livro elabora o tópico da guerra santa, enfatiza a condução da guerra segundo a Lei de Moisés
e explica que diversas batalhas devem irromper antes da vitória final de Deus. A formação do exécito dos filhos
da luz é descrita em detalhe, incluindo as armas usadas. Cf. KOESTER, Introdução ao Novo Testamento, vol. 1,
p. 261; James C. VANDERKAM. Os manuscritos do Mar Morto hoje. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995, p. 70;
MARTINEZ, Textos de Qumran, pp. 139-169.
50
Outras passagens designam a guerra como o “dia da vingança” (1QM, VII, 5; cf.
1QM, XV, 3) e a “batalha de Deus” (1QM, IX, 5). Os filhos da luz e o lote das trevas
guerrearão juntos pelo poder de Deus, entre o grito de uma multidão imensa e o clamor dos
deuses e dos homens, no dia da calamidade. Será um tempo de tribulação para todo o povo
redimido por Deus. De todas as tribulações, nenhuma será como esta, desde sua aceleração até
que se complete a redenção eterna (cf. 1QM I, 11-12; 4QM496 [4papQMf] I, 2-9).
Na guerra, os filhos da luz serão os mais fortes durante três lotes para derrotar a
impiedade; e em outros três, o exército de Belial
84
se cingirá para fazer retroceder o lote de
Deus. Os batalhões de infantaria farão derreter o coração dos filhos das trevas, porém o poder
de Deus reforçará o coração dos filhos da luz. E no sétimo lote a grande mão de Deus
submeterá Belial e todos os anjos de seu domínio e todos os homens do lote. Deus, ou o seu
auxiliar Miguel, levará os filhos da luz à vitória (Cf. 1QS XIII, 10), para “humilhar as trevas e
para fortalecer a luz” (1QS XIII, 15).
Miguel (Quem é como Deus?)
85
é o chefe dos anjos, que socorre e protege o povo de
Israel contra as ameaças dos inimigos terrestres e do inimigo celestial, Satanás. Miguel é um
anjo majestoso (o Príncipe da luz por sua oposição a Lúcifer: “o Portador da luz”, o anjo da
luz que se tornou o Príncipe das trevas) que fará brilhar de gozo a aliança de Israel, trará paz e
bênção ao lote de Deus (1QM XVII, 6-7).
Tanto Miguel como os outros anjos (Gabriel, Sariel e Rafael)
86
estão relacionados com
a tradição bíblica de Ez 1,26 e Dn 7,13; 8,15; 10.16.18, que menciona a figura de um anjo
com forma de homem. Esta relação entre um ser celestial com forma humana, que é enviado
para iluminar, responde a um teólogo judeu, que fundamenta teologicamente a convicção da
84
Belial foi criado para a fossa, anjo de hostilidade. Seu domínio são as trevas, seu conselho é para o mal e a
iniqüidade. Todos os espíritos de seu lote, anjos de destruição, andam nas leis de trevas. Para elas vai seu único
desejo (cf. 1QM XIII, 11-12).
85
Por causa do seu papel de protetor e salvador, Miguel é considerado uma espécie de super-anjo, superior a
todos os outros, um elohim, um ser divino. Em textos posteriores, Miguel se tornará defensor do povo no
julgamento e sumo sacerdote que intercede a favor do povo. Por ser tão importante para o povo, ele é
considerado o mediador entre os homens e Deus. Neste sentido, a tentação posterior de cultuar o Anjo Miguel
traz a afirmação da importância que ele tinha no imaginário popular. Cf. SCHIAVO, Fontes dos ditos de Jesus e
as raízes da cristologia, pp. 197-199.
86
VERMES. Os manuscritos do Mar Morto, p. 125:
O preceito para mudanças na ordem da batalha para formar a posição de um quad[rado com torres],
uma linha côncova com torres, uma linha convexa com torres, uma linha convexa rasa obtida pelo
avanço do centro, ou [pelo avanço, ou [pelo de] ambos os flancos para aterrorizar o inimigo. Os
escudos das torres deverão três côvodos de comprimento e suas lanças, oito côvados. A torre avançará
de formação e terá cem escudos de cada lado; desta [maneira], a torre estará cercada de três lados por
trezentos escudos. E também terá dois portões, [um à direita] e outro à esquerda. Eles deverão inscrever
nos escudos das torres: no primeiro, Micael, [no segundo, Gabriel, no terceiro,] Sariel e no quarto,
Rafael. Micael e Gabriel [postar-se-ão à direita, e Sariel e Rafael à esquerda]... eles armarão uma cilada
a ... x nossos acampamentos e guarda-nos de tudo o que é indecente e mau.”
51
transformação do justo em luz à semelhança dos anjos: “Todos se converterão em anjos no
céu” (1En 51,4); “Os filhos da justiça resplandecerão em todos os confins da terra, irão
iluminando até o final de todos os tempos de trevas; e no tempo de Deus sua grandeza excelsa
brilhará durante todos os tempos eternos” (4Q496 I, 7-8); “porque os filhos da luz irão para a
luz, à eterna alegria, ao regozijo” (4Q548 II, 13). Encontramos esta inspiração ainda em
outros textos nos quais o justo espera brilhar como os anjos (cf. 1QM I, 8; XVII, 5-7; 1QS
IV,7-8; Dn 12, 1-3).
A luta dos “filhos da luzde Qumran dura até que tenham passado “todos os tempos
das trevas, mas no tempo de Deus brilhará a sua sublime majestade para sempre... para
salvação e benção, glória e longos dias para todos os filhos da luz (1QM I, 8-9). Estes
chegarão à luz eterna (1QS IV, 8), pois “a sorte de Deus está destinada à luz da vida” (1QM
XIII, 5).
Os membros eleitos da “aliança de Deus se obrigam a amar todos os filhos da luz,
cada qual segundo sua participação na salvação, segundo o plano de Deus, e a odiar todos os
filhos das trevas, cada qual segundo a sua culpa, de acordo com o plano de vingança de Deus”
(1QS, I, 9-11). As obras destes “se fazem nas trevas e para elas vai o seu desejo” (1QM XV,
9-11). O dualismo não é meramente antropológico e ético, visto que é atribuído à ação das
forças operantes no mundo (espíritos da luz e das trevas). Mas Deus aparece sempre como o
criador e o Senhor. Tudo o que existe e acontece vem do “Deus que sabe” e dele recebe o seu
destino (1QS III, 15); foi ele quem criou os espíritos da luz e das trevas (cf. QS III, 25).
Tendo em vista este dualismo tão caracterizado em Qumran, não é preciso aduzir para
explicar a linguagem dualista encontrada no Novo Testamento. Os textos que demonstram os
mais íntimos e impressionantes paralelos com Qumran são encontrados especialmente no
Quarto Evangelho.
1.2.1. Paralelo entre luz no Quarto Evangelho e luz em Qumran
Observamos, no Evangelho de João, uma linguagem teológica muito parecida com a
linguagem dos textos da comunidade de Qumran. Se nos basearmos Jo 1,35-39, é de se supor
que o apóstolo tenha usado uma linguagem semelhante à de Qumran por influência de João
Batista, o qual teria crescido na comunidade, ou, de qualquer maneira, a ela teria permanecido
por algum tempo, antes de seguir a Jesus. Ou ainda, que essa semelhança de linguagem se
pela possibilidade de que o evangelista, que escreveu em Éfeso, pudesse ter entrado em
52
contato com o universo intelectual de Qumran através dos discípulos do Batista em Éfeso, ou
através da população de Qumran, que depois do ano 70 chegou a Éfeso com seus escritos.
87
No Evangelho de João encontramos o dualismo entre luz e trevas: “O que foi feito
nele era a vida, e a vida era luz dos homens; e a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a
apreenderam” (Jo 1,4-5); “Este é o julgamento: a luz veio ao mundo, mas os homens
preferiram as trevas à luz” (Jo 3,19-20). Assim como o encontramos em Qumran: “Do
manancial da luz provêm as gerações da verdade, e da fonte das trevas as gerações de
falsidade. Na mão do Príncipe das luzes está o domínio sobre todos os filhos da justiça; eles
andam por caminhos de luz. E na mão do Anjo das trevas está todo o domínio sobre os filhos
da falsidade; eles andam por caminhos de trevas” (1QS III, 19-21).
Existe uma semelhança entre os escritos de João e de Qumran neste aspecto que é
importante para a compreensão do dualismo joanino. Em Qumran há tanto um dualismo ético
– luz versus trevas – como um dualismo escatológico, que aguarda o triunfo escatológico final
da luz. Os manuscritos de Qumran não mais do que João utilizam a linguagem dualista
das duas eras. Mas fica claro, que os membros da comunidade de Qumran aguardam um dia
de juízo de visitação divina sobre os poderes das trevas –, quando os ímpios serão
destruídos em uma grande batalha escatológica, e quando as recompensas e as punições serão
conferidas a cada um (cf. 1QS III, 15-20).
Em João encontramos: “Por pouco tempo a luz está entre vós. Caminhai enquanto
tendes luz, para que as trevas não vos apreendam: quem caminha nas trevas não sabe para
onde vai! Enquanto tendes a luz, crede na luz, para vos tornardes filhos da luz” (Jo 12,36). De
Qumran lemos: “e todos os espíritos de seu lote fazem cair os filhos da luz. Porém o Deus de
Israel e o anjo de sua verdade ajudam todos os filhos da luz. Ele criou os anjos da luz e das
trevas, e sobre eles fundou todas as obras (1QS III, 24-25). A luz e as trevas identificam-se
com o dualismo “o espírito da verdade e da falsidade” (Jo 14,17; 15,27; 16,13), as mesmas
formas de expressão encontradas em Qumran. Isto fica ainda mais claro se tomarmos 1Jo 4,6:
“Nós somos de Deus. Quem conhece a Deus nos ouve, quem não é de Deus não nos ouve.
Nisto reconhecemos o espírito da verdade e o espírito do erro”.
As semelhanças de expressão entre o dualismo do Evangelho de João e o de Qumran
são bastante evidentes, mas quanto ao conteúdo da mensagem diferenças marcantes: em
João o conflito se entre o mundo e seu governador e Jesus encarnado; em Qumran o
87
KÜMMEL, Introdução ao Novo Testamento, p. 280; BROWN. A comunidade do discípulo amado. 2 ed. São
Paulo: Paulus, 1984, p. 31.
53
conflito acontece entre dois espíritos, ambos criados por Deus. Embora haja,
indiscutivelmente, uma semelhança verbal entre a luz e as trevas e entre os filhos da luz e os
filhos das trevas, em João estes não são apresentados como dois espíritos dominando sobre
duas classes distintas de pessoas; mas o Logos encarnado é a luz e todos os homens estão em
trevas, porém são convidados a virem para a luz.
88
Para João, a luz do mundo já se manifestou; vive-se sob a mensagem do cumprimento.
Ele em Jesus o cumprimento das promessas e o proclama vitorioso: “Nele estava a vida”
(Jo 1,4); “quem escuta a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna” (Jo
5,24); “passou da morte à vida” (Jo 5,24); “eu venci o mundo” (Jo 16,33); enquanto na
literatura de Qumran vive-se sob a mensagem da espera, acentua-se a luz em luta contra as
trevas.
Além do mais, a vinda da luz às trevas do mundo, em João, é uma escatologia
realizada, algo completamente diferente de qualquer elemento presente na teologia de
Qumran. Também a teologia do pecado é bem diferente: em João, os filhos da luz são aqueles
que crêem em Jesus e, deste modo, recebem a vida eterna; nos escritos de Qumran, os filhos
da luz são aqueles que se dedicam à estrita obediência à Lei de Moisés, conforme interpretada
pelo Mestre da Justiça, e que voluntariamente se separaram do mundo (dos filhos da
perversidade). Para João, as trevas simbolizam a rejeição a Jesus; para Qumran, as trevas
representam a desobediência à Lei. Essas diferenças levam à conclusão de que qualquer
influência da comunidade de Qumran sobre João se localiza na área do idioma e da
terminologia, e não na área da teologia fundamental dos escritos de cada um.
89
Podemos observar outra grande diferença entre João e Qumran: em virtude da
predestinação, no Evangelho de João o dualismo empregado mostra também duas classes:
trevas e luz, porém Deus não criou o “espírito das trevas”. Ele surgiu pela própria decisão do
seres humanos, que “preferiram as trevas à luz(Jo 3,19). Tampouco predestinou um grupo à
perdição. A luz é vitoriosa e o apelo amoroso de Deus se destina a todos os seres humanos. O
dualismo está entre a e a incredulidade das pessoas em relação ao filho Unigênito de Deus.
Em Qumran acredita-se que eles eram os escolhidos e pertenciam à classe do “espírito da
luz”, enquanto os que não haviam sido escolhidos pertenciam à classe do “espírito das
trevas”:
88
Cf. George Eldon LADD. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2003, pp. 350-351; ORRÚ. Os
manuscritos de Qumran e o Novo Testamento, pp. 67-69.
89
Cf. LADD, Teologia do Novo Testamento, pp. 350-351.
54
Neles está a história de todos os homens; em suas (duas) divisões têm sua
herança todos os exércitos, por suas gerações; em seus caminhos andam;
toda obra que fazem cair em suas divisões, segundo seja a herança do
homem, grande ou pequena, por todos os tempos eternos. Pois Deus os
dispôs por partes iguais até o tempo final, e pôs um ódio eterno entre suas
divisões. Os atos de injustiça são abominação para a verdade, e todos os
caminhos de verdade são abominação para a injustiça (1QS IV, 15-17).
Além das diferenças apresentadas, podemos destacar ainda: a procedência de um
redentor na esfera da luz divina, característico em João, não tem nenhuma importância em
Qumran (a esperança messiânica é puramente futurística). Inversamente a concepção de
“nova aliança”, característica em Qumran, é omitida por João.
Por ter se valido de formas e expressões usadas em Qumran, pressupõe-se um
substrato comum entre as duas literaturas. Mas, ainda que tenha recebido influências de
Qumran quanto ao vocabulário e até quanto às idéias, parece-nos que o ensino joanino não se
subordinou a alguma seita ou grupo de sua época. O escritor joanino expôs uma mensagem
independente e diversa da mensagem da comunidade de Qumran. O dualismo que
encontramos no Quarto Evangelho teve por finalidade mostrar não a oposição luz versus
trevas, mas e, sobretudo, a vitória da luz concretizada na pessoa de Jesus: rabi (Jo 9,2),
enviado (9,7), homem (9,11.16), profeta (9,17), Messias (9,22), Filho do Homem (9,35),
Senhor (9,36). Para João, a luz do mundo se manifestou. Ele em Jesus o cumprimento
das promessas e o proclama vitorioso. Assim, podemos deduzir que o modo de falar do
Quarto Evangelho sobre luz e trevas pode ter suas raízes e alimentar-se no chão do judaísmo
tardio e que os escritos joaninos refletem a mentalidade e a índole judaica.
1.3. LUZ NO EVANGELHO DE TOMÉ
Em dezembro de 1945, próximo à cidade de Nag Hammadi, margem leste do Nilo,
alto Egito, uma coleção de manuscritos em língua copta foi encontrada por dois camponeses
egípcios. Esta coleção, contendo treze códices feitos de papiro e cobertos com couro, recebeu
55
o nome de Biblioteca Copta Nag Hammadi.
90
Ela abrange textos teológicos e filosóficos, a
maioria deles cristãos e boa parte, gnósticos.
91
Dentre alguns documentos da Biblioteca de
Nag Hammadi que citam o termo luz (Evangelho de Tomé, Evangelho da Verdade, O Diálogo
do Salvador, Evangelho de Felipe, A Paráfrase de Shem [VII, 1], O [Segundo] Apocalípse de
Tiago [V,4]) escolhemos o Evangelho de Tomé para aprofundar.
Na biblioteca de Nag Hammadi encontramos uma coleção de pronunciamentos
tradicionais de Jesus, que recebeu o nome de Evangelho de Tomé, devido a autoria deste estar
atribuída a Judas Tomé Dídimo, que significa “gêmeo”.
92
Estes pronunciamentos, ou
pequenos grupos de provérbios, são introduzidos, na maioria das vezes, por “Jesus disse (a
eles)”, às vezes com uma pergunta ou uma declaração dos discípulos. apenas um caso em
que o pronunciamento se estende em um discurso mais prolongado entre Jesus e seus
discípulos (EvTo13). Os pronunciamentos preservados no Evangelho de Tomé são de vários
tipos: palavras de sabedoria (provérbios), parábolas, pronunciamentos escatológicos
(profecias) e normas para comunidade. Eles aparecem, neste documento, arranjados de forma
que não permite revelar qualquer planejamento geral da composição. Em alguns casos,
pequenos grupos de pronunciamentos são mantidos juntos por motivos de similaridade na
forma ou por associação rítmica.
93
Uma grande parte dos pronunciamentos no Evangelho de Tomé assemelha-se aos
evangelhos do Novo Testamento (Mateus, Marcos, Lucas, Fonte Quelle) e, particularmente,
ao Evangelho de João (EvTo 13.19.24.38.49.92). Alguns dos pronunciamentos ocorrem
também nos evangelhos não-canônicos, especialmente no “Evangelho segundo os hebreus” e
no “Evangelho dos egípcios”.
Como evangelho sapiencial, o Evangelho de Tomé proclama uma mensagem
característica. Diversamente do modo como é retratado em outros evangelhos, em especial
nos evangelhos do Novo Testamento, Jesus, no Evangelho de Tomé, não realiza milagres
físicos, não revela o cumprimento de profecias, não anuncia qualquer reino apocalíptico
90
Sobre a descoberta, a publicação, os textos revistos e atualizados, cf. POIRIER & MAHÈ, Ecrits gnostiques.
Sobre o atual estágio da pesquisa, ver CHAVES, A biblioteca copta de Nag Hammadi: uma história da pesquisa.
In: Oracula 2.4 (2006): pp. 1-19;
91
Classificação exposta quanto à categorização dos textos de Nag Hammadi. Cf. Louis PAINCHAUD. “Os
textos de Nag Hammadi como fontes para a história do cristianismo primitivo”. Comunicação apresentada no I
Encontro da Associação Brasileira de Estudos do Judaísmo e do Cristianismo Antigo. Rio de Janeiro, 2005.
92
O Evangelho de Tomé em copta foi traduzido do grego. Fragmentos desse evangelho na versão original estão
disponíveis no Oxyrhynchus Papyri 1,654 e 655, que haviam sido descobertos e publicados no início do século
XX, mas que foram identificados como parte do Evangelho de To somente após a descoberta copta da
Biblioteca de Nag Hammadi. Cf. ROBINSON, A biblioteca de Nag Hammadi, pp. 114-116.
93
ROBINSON, A biblioteca de Nag Hammadi, p. 114.
56
prestes a romper a ordem do mundo e não morre pelos pecados de ninguém. Ao contrário, o
Jesus de Tomé dispensa percepção a partir da fonte borbulhante da sabedoria (EvTo 13),
critica anúncios apocalípticos de fim de mundo (EvTo 52) e oferece um modo de salvação por
meio de um encontro com as sentenças do “Jesus vivo”.
94
Os discípulos são convidados a aderir à busca de significado na vida pela interpretação
das “sentenças ocultas” de Jesus, freqüentemente críticas e enigmáticas. A sentença “Aquele
que procura não deixe de procurar até encontrar; quando encontrar, ele se perturbará; depois
de se perturbar, ficará maravilhado e reinará sobre o todo” (EvTo 2), descreve as vicissitudes
de tal busca de percepção.
A busca de significados deve ser empreendida com comprometimento; e se o caminho
tomado pode ser perturbador, os discípulos só alcançarão a percepção e descansarão se
perseverarem. Pois é na busca e por meio da busca que as pessoas encontram a si mesmas e a
Deus. Segundo o Evangelho de Tomé, o reino de Deus não está fora, mas dentro das pessoas:
“Aquele que tem ouvido ouça! luz no interior do homem de luz e ele ilumina o mundo
inteiro: se ele não ilumina, então predomina as trevas” (EvTo 24).
95
Algumas outras sentenças do Evangelho de Tomé mostram um interesse mais
esotérico em transcender o mundo e identificar-se com o divino.
96
O divino tem origem na luz
celeste:
Se eles vos dizem, “De onde vindes”, dizei-lhes: “Nós viemos da luz, do
lugar onde a luz nasceu dela mesma; ela (se ergueu) e revelou-se em sua
imagem”. Se eles vos dizem “Quem sois vós?” dizei: “Nós somos seus
filhos, pois nós somos os eleitos do Pai vivo”. Se eles vos perguntam: “Qual
é o sinal do vosso Pai que está em vós?”, dizei-lhes: “É movimento e
repouso” (EvTo 50).
94
Cf. MEYER, O Evangelho de Tomé, p. 19.
95
MEYER, O Evangelho de Tomé, p. 19.
96
Por causa desse interesse mais esotérico em transcender o mundo, o Evangelho de Tomé foi classificado como
documento gnóstico. Gnosis não é, em princípio, conhecimento racional. A língua grega distingue conhecimento
científico ou conhecimento reflexivo e conhecimento por meio da observação ou experiência (gnosis). Como os
gnósticos utilizam o termo pode-se traduzí-lo como “sabedoria”, pois gnosis envolve o processo intuitivo do
conhecimento de si mesmo. Conhecer a si mesmo, como afirmam, é conhecer a natureza e o destino humano.
Contudo, conhecer a si próprio, no nível mais profundo, é ao mesmo tempo conhecer a Deus; este é o segredo da
gnosis. Cf. PAGELS. Os evangelhos gnósticos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006 (Introdução, pp. xx e xxi).
57
Nesta sentença Jesus explica que quando seus seguidores dialogam com “eles”
(provavelmente com os poderes do mundo), devem afirmar que sua origem está na luz divina,
que são filhos da luz e que a evidência da presença do divino é “movimento e repouso”.
Mostra, porém, que não é só ele (Jesus) que vem da luz divina, mas todos os seres humanos.
97
Esta afirmação crítica suscita outra pergunta: como podemos nos conhecer? Jesus declara que
primeiro os discípulos devem descobrir de onde vêm, voltar e assumir seu lugar “no
principio”.
Alguns discípulos pedem, então, que Jesus mostre o lugar onde ele está, pois precisam
procurá-lo. Ele responde: “Eu sou a luz que está sobre todos eles. Eu sou o Todo: o Todo saiu
de mim e o Todo chegou até mim. Se rachardes a madeira, eu estarei lá; se erguerdes a pedra,
lá me encontrareis” (EvTo 77).
O Evangelho de Tomé oferece apenas indícios ambíguos, não respostas, a quem busca
o caminho de Deus. Seu “Jesus vivo” desafia os ouvintes a encontrarem o caminho por si
mesmos e novamente incentiva os que buscam, dizendo-lhes que já possuem os recursos
internos de que precisam para encontrar o que procuravam: “Quando vós possuirdes (ou
‘produzirdes’) isto em vós, aquilo que tiverdes vos salvará. Se vós não tendes isto, aquilo que
não tiverdes em vós vos fará morrer” (EvTo 70). Ou ainda:
Dois repousarão sobre o leito: um morrerá, o outro viverá. Salomé disse:
“Quem és tu, homem, filho de quem? Tu subiste ao meu leito e comeste em
minha mesa”. Jesus lhes disse: “Eu sou aquele que saiu daquele que é igual:
ele me deu as (coisas) de meu Pai”. (Salomé disse:) “Eu sou teu discípulo”.
(Jesus lhe disse:) “É por isso que te digo: quando ele for igual, ele estará
pleno de luz, mas quando estiver separado, estará pleno de trevas” (EvTo
61).
Para Tomé, a imagem de Deus está dentro, no interior de cada pessoa. Descobrir a luz
divina interior residente em cada pessoa é mais do que uma questão de ser informado de que
ela se encontra lá, pois esta visão faz em pedaços a identidade da pessoa. O que rompe a
pessoa para fora daquilo que ela é fragmenta as maneiras como a identifica normalmente.
97
Vários aspectos desta sentença (respostas aos poderes, origem na luz, movimento e repouso) são de passagens
gnósticas de outros documentos, por exemplo, o “Livro secreto apócrifo de João”. Cf. MEYER, O Evangelho de
Tomé, pp. 20-21.
58
Quando uma pessoa descobrir a luz interior que ilumina “o universo inteiro”, será igual a
Jesus, estará plena de luz. Mas se não descobre esta luz, estará plena de trevas. Ao encontrar o
“Jesus vivo”, conforme sugere Tomé, a pessoa pode vir a reconhecer-se como “gêmeo”
idêntico a Jesus.
1.3.1. Paralelo entre luz no Quarto Evangelho e luz no Evangelho de Tomé
Muitos dos ensinamentos no Evangelho de João, que diferem dos Sinóticos,
assemelham-se a ditos encontrados no Evangelho de Tomé. “O Evangelho de Tomé é
especialmente importante no esforço de descobrir os ditos nucleares dos diálogos e discursos
joaninos. Numerosas passagens neles têm paralelos no Evangelho de Tomé.”
98
João e Tomé
fazem relatos acerca do que Jesus ensinou em particular aos seus discípulos, partindo do
pressuposto de que o leitor já conhecesse a história básica contado por Marcos e pelos outros.
Ao contrário dos Sinóticos, que dizem que Jesus alertou para o “fim dos tempos” que
se aproximava, João e Tomé afirmam que ele disse aos discípulos que se voltassem para o
começo do tempo para o relato da criação (Gn 1)
99
e identificam Jesus com a luz divina que
ganhou existência “no princípio”: “Então, se estais buscando o fim, isso significa que haveis
descoberto o princípio? Pois onde está o princípio é que estará o fim. Feliz daquele que se
mantiver no princípio, pois ele conhecerá o fim e não provará a morte” (EvTo 18). João e
Tomé caracterizam Jesus como a própria luz de Deus em forma humana; dizem que essa luz
primordial liga Jesus ao universo inteiro, visto que, como diz João, “todas as coisas foram
feitas por intermédio do Verbo (logos; ou a luz)”.
100
Mas, apesar destas semelhanças, João e Tomé levam em direções diferentes os
ensinamentos dados por Jesus em particular: para João, é a identificação de Jesus com a luz
que ganhou existência “no princípio” que o torna único (unigênito). João abre assim seu
evangelho: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. No
princípio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito. O que
foi feito nele era a vida, e a vida era a luz dos homens; e a luz brilha nas trevas, mas a trevas
não a apreenderam” (Jo 1,1-5). Refere-se aos versículos de abertura do Gênesis (Gn 1,1-4).
98
KOESTER, Introdução Ao Novo Testamento, vol. 2, p. 196.
99
Para uma excelente discussão, ver Steven DAVIES. Christology and protology in the Gospel of John. In:
Journal of Biblical Literature 111 (1992): 665-683.
100
Cf. PAGELS, Além de toda crença, p. 48.
59
João identifica Jesus não com o Verbo de Deus, mas também com a luz divina que
ilumina a todo homem, que estava chegando ao mundo (Jo, 1,9). João o chama de “luz do
homem” ou “luz da humanidade” e acredita que somente Jesus traz a luz divina a um mundo
imerso em escuridão. Diz que podemos ter a experiência de Deus através da luz divina
encarnada em Jesus.
101
Para Tomé, a luz divina encarnada por Jesus é compartilhada por toda a humanidade,
pois somos todos feitos “à imagem de Deus”. De acordo com Tomé, Jesus diz que essa luz
primordial não deu origem ao universo inteiro, mas ainda brilha em tudo o que vemos e
tocamos, pois não é simplesmente uma energia impessoal, mas um ser que fala com voz
humana: “Eu sou a luz que está sobre todos eles. Eu sou o Todo: o Todo saiu de mim e o
Todo chegou até mim. Se rachardes a madeira, eu estarei lá; se erguerdes a pedra, me
encontrareis” (EvTo 77).
Segundo Tomé, Jesus declara que primeiro devemos descobrir de onde viemos, voltar
e assumir nosso lugar “no princípio”. Depois, diz algo ainda mais estranho: “Feliz daquele
que era antes de tornar-se” (EvTo 19). Mas como se pode voltar para antes do próprio
nascimento – ou mesmo para antes da criação do homem? O que havia antes da criação, antes
mesmo da criação do universo?
De acordo com Gênesis, “no princípio” havia, em primeiro lugar, a luz primordial.
Para Tomé, isso significa que, ao criar Adão (a humanidade) à sua imagem, Deus nos criou à
imagem da luz primordial. Assim, Tomé sugere que o que apareceu na luz primordial era “um
ser humano prodigioso”, um ser de luz radiosa, um protótipo do Adão humano, que Deus
criou no sexto dia. Esse “Adão de luz”, humano na forma, também é, simultaneamente e de
algum modo misterioso, divino, iluminado. Jesus sugere aqui que temos recursos espirituais
em nós, precisamente porque fomos feitos “à imagem de Deus”.
102
Então, o Jesus de Tomé diz aos discípulos que não é somente ele quem vem da luz
divina, mas todos nós:
Se eles vos dizem “De onde vindes”, dizei-lhes: “Nós viemos da luz, do
lugar onde a luz nasceu dela mesma; ela (se ergueu) e revelou-se em sua
imagem”. Se eles vos dizem “Quem sois vós?” dizei: “Nós somos seus
filhos, pois nós somos os eleitos do Pai vivo”. Se eles vos perguntam: “Qual
101
Cf. PAGELS, Além de toda crença, p. 49.
102
Cf. PAGELS, Além de toda crença, pp. 62-63.
60
é o sinal do vosso Pai que está em vós?”, dizei-lhes: “É movimento e
repouso” (EvTo 50).
De acordo com Tomé, Jesus censura os que buscam acesso a Deus em outro lugar. Ele
não se ao trabalho de responder e os orienta para a luz oculta em cada pessoa: “Seus
discípulos disseram: ‘Mostra-nos o lugar onde estás, pois precisamos procurá-lo’. Ele lhes
disse: ‘Aquele que tem ouvido ouça! luz no interior do homem de luz e ele ilumina o
mundo inteiro: se ele não ilumina, então predomina as trevas’” (EvTo 24). Ou seja, cada
indivíduo deve descobrir sua luz interior que ilumina “o universo inteiro”; se não descobre,
vive em escuridão, interior e exterior.
João opõe-se à inclusão do que o Evangelho de Tomé ensina: que a luz divina brilha
não em Jesus, mas, pelo menos potencialmente, em todos nós. João rechaça a alegação de
Tomé de que temos acesso direto a Deus por meio da imagem divina dentro de s, pois
imediatamente acrescenta: a luz divina não penetrou as trevas profundas em que o mundo
estava mergulhado. Embora concorde que desde o princípio do tempo a luz divina “brilha na
escuridão”, também declara que “as trevas não prevaleceram contra ela” (Jo 1, 5). Além disso,
diz que, ainda que a luz divina tenha vindo ao mundo, “e o mundo tenha sido feito por meio
dela, o mundo não a reconheceu” (Jo 1,10). Em seguida, acrescenta que, mesmo quando essa
luz “veio para o que era seu, os seus não a receberam” (Jo 1,11). Ora, como essa luz divina
não estava disponível àqueles “no mundo”, finalmente, o Verbo sai do silêncio de Deus e vem
ao encontro da humanidade:
Deus não ficou no seu mistério indecifrável; ele saiu de sua luz inacessível e
veio para as trevas humanas. Não permaneceu na sua onipotência eterna; ele
penetrou na fragilidade da criatura. Não atraiu para dentro de si a
humanidade; ele se deixou atrair para dentro da humanidade.
103
O Jesus de Tomé instrui cada discípulo a descobrir sua luz interior, mas o Jesus de
João declara: “Eu Sou a luz do Mundo” (Jo 8,12) e “quem me segue não andará nas trevas”(Jo
8,12). Em Tomé, ele revela aos discípulos que “sois do reino e a ele retornareis” e ensina-os a
dizerem por si mesmos que “viemos da luz”; mas o Jesus de João fala como único que vem
“de cima” e, assim, tem legítima prioridade sobre todos os demais: “Vós sois daqui de baixo e
103
Leonardo BOFF. Encarnação: a humanidade e a jovialidade de nosso Deus. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 11.
61
eu sou daqui do alto. Vós sois deste mundo, eu não sou deste mundo” (Jo 8,23). Para João,
somente Jesus vem de Deus e somente ele oferece acesso a Deus. Ele é a nossa única
esperança de salvação. João não cansa de repetir que é preciso crer em Jesus, seguir a Jesus,
obedecer a Jesus e reconhecer somente a ele como o filho unigênito do Pai.
104
O Evangelho de Tomé coloca ênfase na busca da sabedoria, ou no “Reino do Pai”, e
no conhecimento (gnosis) de si mesmo (EvTo 3). Tomé encoraja o ouvinte não tanto a
acreditar em Jesus como a buscar conhecer Deus por meio da própria capacidade que lhe foi
divinamente concedida, visto que somos todos criados à imagem de Deus. Ao contrário, João
insiste em sua convicção inflexível: é Jesus, e somente Jesus, quem encarna o verbo de Deus;
a crença em Jesus oferece salvação; aos que ouvem, promete grandes recompensas: perdão
dos pecados, solidariedade com o povo de Deus e o poder de vencer as trevas (morte).
Ao alegar que somente Jesus encarna a luz divina, João contesta a alegação de Tomé
de que essa luz pode estar presente em todos. Isto fez com que os dois textos tomassem rumos
diferentes. Para os cristãos de gerações posteriores, o Evangelho de João ajudou a criar as
bases de uma Igreja unificada, coisa que Tomé, com sua ênfase na busca pelo indivíduo, não
fez.
105
Essas interpretações poderiam ter sido complementares, porém tornaram-se rivais. As
opiniões de João prevaleceram e, desde então, moldam o pensamento cristão. Depois que os
ensinamentos de João foram reunidos no Novo Testamento, junto com mais três evangelhos
(Mateus, Marcos e Lucas), sua concepção de Jesus veio a dominar e até a definir o que
queremos dizer com ensinamentos cristãos”. Os de Tomé (juntamente com outros textos)
foram tachados como heréticos e rechaçados do cânon cristão. Os cristãos que defenderam o
“evangelho quádruplo” do Novo Testamento denunciaram os ensinamentos encontrados no
Evangelho de Tomé e pediram aos fiéis que rejeitassem tais ensinamentos, pois foram
considerados heréticos.
1.4. CONCLUSÃO
As questões quanto à composição do Quarto Evangelho tiveram grande importância na
pesquisa exegética dos séculos XIX e XX. Desde a antiguidade ele é conhecido como o mais
“espiritualizado” dos quatro evangelhos, aquele que melhor fala de temas relativos à
104
Cf. PAGELS, Além de toda crença, pp. 76-77.
105
Cf. PAGELS, Além de toda crença, p. 80.
62
transcendência, divindade de Jesus e sua relação com o Pai. Em João, Jesus é não um
homem, mas também uma presença misteriosa, sobre-humana: Ele é o “Messias”, o “Filho do
Homem”, o “Profeta”, o “Enviado”, o “Senhor” por ser, de um lado, o projeto de Deus
realizado e, por outro lado, a Palavra (Logos ou luz) de Deus criadora e eficaz.
Basta lermos os Evangelhos Sinóticos e o Evangelho de João para detectarmos diferenças
e semelhanças consideráveis. O Evangelho de João é fortemente marcado por “aporias
redacionais”. “João pertence ao mesmo gênero literário de evangelho’ no sentido de que
todos os quatro evangelhos contam a atividade de Jesus desde a época de seu encontro com
João Batista até sua morte, anexando como conclusão, o relato da ressurreição de Jesus.”
106
Tanto em João como nos Sinóticos encontramos descrições, quer dos milagres de Jesus,
quer de sua atividade doutrinária. Porém, o Jesus de João não faz “sermão da montanha”, não
faz previsões sobre o final dos tempos, não oferece ensinamentos éticos nem apocalípticos e
tampouco fala das origens do cristianismo. No Quarto Evangelho encontramos um Jesus
consciente de ter preexistido junto a Deus (Jo 17,5) antes de vir e autorevelar-se como luz do
mundo; um ministério público amplamente situado em Jerusalém, mais do que na Galiléia, a
significativa ausência do motivo do Reino de Deus (com exceção de Jo 3,3-8); longos
discursos em vez de parábolas; nada de possessões diabólicas, um número muito restrito de
milagres, chamados de “sinais”, incluindo alguns que são únicos, como a transformação de
água em vinho em Caná (Jo 2, 1-12), a cura de um cego de nascença (Jo 9,1-41) e a
ressurreição de Lázaro (Jo 11,1-44).
Em João encontramos uma cristologia baixa e uma cristologia alta
107
e, em conexão com
ela, os discursos gnosticizantes sobre a “vinda do alto” e o “renascer do alto”. O Jesus joanino
proclama continuamente a sua identidade divina vinda do alto e faz uso constante da rmula
“Eu Sou”: “Eu Sou o pão da vida” (Jo 6,35); “Eu Sou a luz do mundo” (Jo 8,12, 9,5); “Eu Sou
a porta” (Jo 10,9); “Eu Sou o bom pastor” (Jo 10,11); “Eu Sou a ressurreição” (Jo 11,25); “Eu
Sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6); “Eu Sou a videira” (Jo 15,5).
Muitos dos ensinamentos no Evangelho de João, que diferem consideravelmente dos
Sinóticos, assemelham-se a ensinamentos encontrados tanto no Evangelho de Tomé quanto
nos Manuscritos do Mar Morto. Observamos, no texto de João, uma linguagem teológica
muito parecida com a linguagem dos textos da comunidade de Qumran e com aquela do texto
de Tomé, principalmente no que diz respeito à luz. Porém, uma comparação atenta nos mostra
106
KÜMMEL, Introdução ao Novo Testamento, p. 253.
107
BROWN, A comunidade do discípulo amado, pp. 25-48.
63
acentuada diferença. Qumran enfatiza fortemente a idéia antitética da revelação, apresentando
um combate escatológico entre luz e trevas. Tomé instrui cada discípulo a descobrir sua luz
interior, pois, para ele, a luz divina brilha não somente em Jesus, mas, pelo menos
potencialmente, em todos. João identifica Jesus com a luz divina. Ele em Jesus o
cumprimento das promessas veterotestamentárias e o proclama vitorioso: é Jesus, e somente
Jesus, quem encarna a luz do mundo. E é somente que Jesus se auto-revela como luz do
mundo (Jo 8,12; 9,5).
O tom que caracteriza os encontros entre Jesus e os judeus no Quarto Evangelho é sempre
de oposição. Os interlocutores de Jesus querem explicação daquilo que faz desde o primeiro
encontro (cf. 2,18), perseguem-no abertamente (cf. Jo 5,16), querem prendê-lo (cf. Jo 7,30;
8,20; 10,39), procuram-no para matar (Jo 5,18; 7,1.19.25; 8,37-40), buscam apedrejá-lo (Jo
8,59,10,31). Por isso Jesus foge (Jo 8,59) e não pode participar das festas com a multidão (Jo
7,10), vive às escondidas (Jo 11,54). Os que seguem Jesus e aceitam seus ensinamentos e
doutrinas vivem com medo (cf. Jo 7,13). Estamos diante de uma oposição sistemática, que
vem de um grupo que se considera “dono” da verdade.
Ele dramatiza essa situação, narrando uma história de milagre de Jesus curando um cego
de nascença. Na sua versão, quando Jesus encontrou o cego de nascença, “cuspiu no chão e
fez barro com a saliva e aplicou nos olhos do cego, e disse-lhe: Vai, lava-te na Piscina de
Siloé. Ele foi, lavou-se, e veio vendo.” É o que agora veremos no capítulo II desta dissertação.
64
CAPÍTULO II
A NARRATIVA DA CURA DO CEGO DE NASCENÇA
2.1 INTRODUÇÃO
Posto que temos como objetivo nesta pesquisa propor uma interpretação da
Narrativa
108
da Cura do Cego de Nascença (NCCN)
109
com relação ao significado do termo
luz em João 9,1-41, somos impelidos à realização de cuidadosa e criteriosa análise exegética
da perícope.
Dentre muitas ferramentas exegéticas disponíveis, selecionamos algumas que nos
permitirão compreender a NCCN. Adotamos os procedimentos obtidos através de uma
pesquisa metodológica com pressupostos do método histórico-crítico
110
e com as
contribuições das abordagens sociológicas e antropológicas. Cabe-nos ressaltar que nem todo
conhecimento adquirido no decorrer dessa pesquisa a respeito do evangelho de João e da
NCCN pôde ser integrado a esta dissertação. Não temos a pretensão de apresentar uma análise
completa e definitiva da NCCN. Ao contrário, consideramos que muitas hipóteses e
pressupostos levantados deverão ser retomados por outros pesquisadores.
108
Narrativa é a descrição de um acontecimento ou fato histórico por um narrador. Apresenta uma série de cenas
inter-relacionadas, colocadas de forma a atingir um clímax. Cf. Klaus BERGER, As formas literárias do Novo
Testamento. São Paulo: Loyola, 1998, pp. 277-278. Assim, João 9,1-41 se nos apresenta como uma narrativa
devido à existência de um narrador e o encadeamento de acontecimentos em seqüência cronológica.
109
Daqui em diante, usaremos a sigla NCCN para Narrativa da Cura do Cego de Nascença.
110
Sobre o método histórico-crítico, veja Uwe WEGNER. Exegese do Novo Testamento: manual de
metodologia. São Leopoldo/ São Paulo: Sinodal/Paulus, 1998, pp. 17-23.
65
2.1.1. A perícope da Narrativa da Cura do Cego de Nascença
A perícope da Narrativa da Cura do Cego de Nascença se insere na terceira parte do
“livro dos sinais” (Jo 5-10) e ocupa o último dos quatro “sinais” que aí se encontram. Jesus se
manifestou aos homens como “vida” e “luz”, mas como está bem expresso na discussão com
os judeus, essa “vida” e essa “luz” foram rejeitadas. As autoridades do mundo judaico fecham
os olhos ao ensinamento do Mestre, feitos com obras e palavras, e se opõem claramente à luz
da verdade que ele proclama: “Eu Sou a luz do Mundo.”
Esta perícope põe ainda mais em relevo o crescimento da cegueira espiritual dos
judeus através do confronto com o caminho de fé percorrido pelo homem cego de nascença. O
caráter unitário da perícope é bem expresso, quer pelo vocabulário tipicamente joanino, com
fórmulas literárias e termos léxicos próprios, quer pelo estilo inconfundível do autor do
Quarto Evangelho. No estilo joanino, ao sinal-milagre segue-se um discurso-diálogo em
forma de processo, no qual aparecem vários personagens: Jesus, cego de nascença, discípulos,
vizinhos e conhecidos, pais do cego, fariseus e judeus. A luz que veio ao mundo comporta
um julgamento que está para se atuar: quem crê que permace cego, diferentemente de
quem crê que é cego, abre-se à luz e se torna um vidente.
2.1.2. Delimitação
A delimitação de João 9,1-41, embora se constitua uma unidade independente, é um
grande desafio, porque este é um texto com várias marcas redacionais,
111
inseridas com muita
habilidade em seu contexto. Enquanto uma série de indícios confirma o fato de que Jo 9,1
inaugura um novo assunto em relação à passagem anterior, quanto ao seu término
controvérsias.
112
A perícope abre com uma determinante temporal e local, depois da afirmação do
narrador da narrativa anterior (8,59): E passando viu um homem cego de nascença (9,1). O
diálogo de controvérsia do capítulo anterior cede lugar a uma narrativa dramática. Jesus fora
expulso do Templo, mas, ao ver o cego de nascença, ao invés de ocultar-se, como se narra em
8,59, ele pára, dialoga com os discípulos (9,2), cura o cego (9, 6), dialoga com os fariseus
111
Para uma crítica literária de Jo 9,1-41, cf. RODRIGUES,Um pecador quer nos ensinar? pp. 110-111.
112
Cf. BROWN. El Evangelio según Juan, vol I. Madri: Cristiandad, 1979, pp. 635-649; SCHNACKENBURG,
El Evangelio según San Juan, pp. 345- 379; KONINGS, Evangelho segundo João, p. 218; VIDAL, Los escritos
originales de la comunidad del discipulo “amigo” de Jesús, pp. 502-509.
66
(9,13), encontra novamente com o cego (9, 35) e dialoga com os judeus (9.39). E tudo que
acontece é em função da declaração introdutória de Jesus: “Nos é preciso trabalhar as obras
daquele que me enviou enquanto é dia; vem a noite quando ninguém pode trabalhar. Enquanto
no mundo estiver, luz sou do mundo” (9, 4-5). O maior indício de autonomia do texto em
relação ao seu entorno, e também o maior fator de coesão interna da narrativa, é a constante
referência à cura do cego. Esse personagem é central na narrativa e há menção a ele e sua
trajetória de forma direta ou indireta em cada linha da perícope. Todos os diálogos funcionam
para justificar ou desmistificar essa cura.
Não devemos perder de vista o fato de que todas as ações e declarações de Jesus, a
começar no capítulo 7 até o 10,21, têm lugar no Templo, durante a Festa dos Tabernáculos. O
que segue ainda após 10,22 também tem lugar no Templo, porém, durante a Festa da
Dedicação (inverno), estabelecendo um novo distanciamento temporal e abrindo, assim, uma
nova perícope.
O motivo que nos leva a suspeitar que o término da Narrativa da Cura do Cego de
Nascença seja Jo 9,41 é o texto seguinte (10,1-21), porque a sentença judicial pronunciada por
Jesus conduz sem interrupção ao discurso do bom pastor. Não inclusão de novos
personagens, nem mudanças de natureza cronológica ou topográfica, porém percebemos uma
mudança repentina de gênero literário a partir de 10,1, com uma introdução abrupta indicando
que houve uma quebra inegável com a narrativa que vinha sendo desenvolvida até 9,41.
As palavras enfáticas amém, amém (10,1) e a conhecida frase de introdução, que
comporta alguma conexão com o que precede, servem como, em outras partes, para marcar a
transição do diálogo para o monólogo. A unidade que preenche o capítulo 10 é diferente do
capítulo 9 no que diz respeito ao aspecto literário, bem como do resto do quarto evangelho,
sobretudo na primeira parte (10, 1-18), em que o autor usa um gênero literário chamado
paroimia, traduzido como parábola ou comparação, para falar da autoridade de Jesus e de
sua liderança em relação aos discípulos.
No capítulo 9, predomina o tema da luz e não nenhuma alusão às imagens pastoris.
Em 10,1-18 uma mudança de vocabulário e de metáforas. As falas perspicazes e precisas
de Jesus (9,4-5.39.41) dão lugar a dois discursos longos e de difícil entendimento por parte
dos interlocutores (10,1-5; 7-18). Não encontramos mais a figura do ex-cego e sim uma
autodefinição de Jesus como a porta e como o bom pastor (“Eu sou a porta das ovelhas... Eu
sou o bom pastor”) em oposição aos ladrões e salteadores, que não entram pela porta das
ovelhas e as abandonam diante do perigo dos lobos (10,7-18).
67
Assim sendo, podemos suspeitar que 10,1-18 não parece ter relação literária com Jo
9,1-41 e que possivelmente pode ter sido um acréscimo posterior, com objetivo talvez de
explicitar ainda mais a questão da autoridade e da identidade em torno da pessoa de Jesus.
os versículos 19-21 bem que poderiam ser o desfecho natural e lógico da narrativa de Jo 9,1-
41 num estágio anterior da redação, se considerarmos o entorno de dois assuntos que
permaneceram esquecidos por dezoito versículos e que agora voltam à tona: a divisão entre os
judeus, provocadas por “certas” palavras ditas por Jesus (v.19), e a menção ao fato de “abrir
os olhos de cego” (v.21). Não nenhum fragmento em 10,1-18 que leve a suspeitar que os
versículos 19-21 se refiram a eles, no entanto, há dois paralelos bem explícitos que lançam
pontes entre os capítulos 9,1-41 e 10,19-21. Primeiro, o uso do termo divisão (sci,sma) em
10,19 faz paralelo com a divisão (sci,sma) mencionada em 9,16. Tanto um quanto o outro se
referem a um escândalo por parte dos judeus, causado pelas concisas palavras de Jesus.
Também podemos lembrar que sua opinião causara divisão em outros momentos (cf. Jo
7,12.25-27.31.40-41 ). Segundo, o fato de abrir olhos de cego (10,21) faz paralelo com “abrir
os olhos” (9, 10.14.17.21.26.30) e abrir os olhos de cego (9,32). Resulta que tais palavras
podem ainda estar vinculadas à abertura dos olhos do cego no capítulo 9.
Consideramos estas hipóteses como plausíveis, porém nesta dissertação propomos
trabalhar a narrativa de Jo 9,1-41, levando em conta que a ordem atual constitui uma unidade
independente e que tem um perfeito sentido para a estrutura que propomos.
2.1.3. Crítica textual
Com a crítica textual
113
queremos aguçar nossa percepção para identificar possíveis
pontos de tensão na história da transmissão do texto de João 9,1-41 dentro da proposta do
Novum Testamentum Graece, pois nos fornece o material e todos os elementos indispensáveis
a essa identificação e capacita-nos a dar a cada variante o peso e o valor que sua fonte traz
consigo.
114
Trabalharemos os problemas mais significativos na NCCN.
115
113
NESTLE-ALAND. Novum Testamentum Graece. 27 ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1993, pp. 278-
281; WEGNER, Exegese do Novo Testamento, pp. 69-83; Wilhelm EGGER. Metodologia do Novo Testamento:
introdução aos métodos lingüísticos e histórico-críticos. São Paulo: Loyola, 1994, pp. 43-70.
114
B. P. BITTENCOURT. O Novo Testamento: metodologia da pesquisa textual. Rio de Janeiro: Juerp, 1993,
pp. 61-63.
115
Na crítica textual utilizaremos muito da pesquisa feita por RODRIGUES, Um pecador quer nos ensinar? pp.
50-52.
68
Em 9,4 (h`ma/j dei/ evrga,zesqai), o NTG assume o pronome acusativo plural h`ma/j. Esta
variante é testemunhada pelos Papiros 66 e 75, os Códices Sinaítico (original), Vaticano,
Beza, Régio, Washington, 070 e versões coptas. Entretanto, uma série de testemunhas
importantes traz no mesmo lugar o acusativo singular me. Dentre elas podemos citar os
Códices Sinaítico (corrigido), Alexandrino, Efraimita, Korideto e Laurense, as famílias de
minúsculos 1e 13 e o minúsculo 33, além do Texto Majoritário e das versões latina, siríaca e
coptas. A variante me sugere que o trabalho mencionado seria prerrogativa somente de Jesus e
não de um sujeito coletivo. Mas, “nós” segundo Juan Mateos e Juan Barreto é uma variante
muito melhor apoiada do que “eu”,
116
pois sugere que aqueles que seguem Jesus também
terão que trabalhar a missão, não individual, mas coletiva.
Mais adiante, porém no mesmo versículo, encontramos tou/ pe,myanto,j me. Em alguns
manuscritos ocorre a troca do pronome acusativo singular me pelo pronome plural h`ma/j
(Papiros 66 e 75, códices Sinaítico [original], Régio, Washington e versões coptas). Contudo,
essa variante não foi assumida pelo NTG, pois não aparece nos Códices Vaticano e Beza.
Pode ser que tenha sido uma correção em vista da harmonização com h`ma/j
do início do
período. Por outro lado, seu conteúdo tem um ponto de vista teológico extraordinário; sua
aceitação resultaria na leitura “do que nos enviou”. Assim, não somente teríamos uma missão
coletiva, como também um envio coletivo. E esta parece ter sido a compreensão de um
seguimento da cristandade primitiva, como nos mostram os manuscritos mencionados.
Em 9/,6 aparece kai. evpe,crisen atestado pelos Papiros 66 e 75, códices Sinaítico,
Alexandrino, Efraimita, Beza, gio, Washington, Korideto, Laurense, 070, 0216, as famílias
de minúsculos 1 e 13, minúsculo 33, o Texto Majoritário, todas as versões siríacas e, ao que
parece, pela tradução latina de Irineu. Porém o Códice Vaticano traz aqui evpiti,qhmi, leitura
que o próprio Novo Testamento Grego assumira em edições anteriores.
O ui`o.n tou/ avnqrw,pou que aparece em 9,35 é encontrado nos Papiros 66 e 75, nos
códices Sinaítico, Vaticano, Beza e Washington, nas versões siríacas e coptas. Porém uma
substituição de ui`o.n tou/ avnqrw,pou por ui`o.n tou/ qeou
/
nos códices Alexandrino, Régio,
Korideto, Laurense, 070 e 0250, as famílias de minúsculos 1 e 13, minúsculo 33, o Texto
Majoritário, versões latinas, siríacas e coptas. Portanto, ui`o.n tou/ avnqrw,pou é mais bem
apoiado que ui`o.n tou/ qeou
)
116
Cf. Juan MATEOS e Juan BARRETO. O Evangelho segundo São João: análise lingüística e comentário
exegético. São Paulo: Paulus, 1999, p. 422.
69
Em 9,38-39a temos o` de. e;fh\ pisteu,w( ku,rie\ kai. proseku,nhsen auvtw/|Å Kai. ei=pen o`
VIhsou/j. Dois dos principais manuscritos utilizados para a crítica textual do Quarto Evangelho
discordam desta leitura. O Papiro 75, bem como os códices Sinaítico (original) e Washington
(apoiados por versões coptas) omitem 9,38-39a, enquanto o Papiro 66 e códices Vaticano e
Beza incluem esta passagem.
117
A crítica textual recomenda que se dê preferência à leitura mais breve; tal critério pede
que se tome a “omissão” por parte dos primeiros manuscritos citados como, na verdade, uma
inclusão posterior por parte dos segundos. Em 9,37.39b, portanto, teríamos uma fala contínua
de Jesus: kai. e`w,rakaj auvto.n kai. o` lalw/n meta. sou/ evkei/no,j evstinÅ eivj kri,ma evgw. eivj to.n
ko,smon tou/ton h=lqon( i[na oi` mh. ble,pontej ble,pwsin kai. oi` ble,pontej tufloi. ge,nwntaiÅ A
perfeita coerência entre o conteúdo desta fala e o conteúdo da fala anterior de Jesus em 9,37–
mostrando que o ui`o.n tou/ avnqrw,pou vem ao mundo parar realizar um julgamento tou/ton
h=lqon( i[na oi` mh. ble,pontej ble,pwsin kai. oi` ble,pontej tufloi. ge,nwntai
Å
Por outro lado, a inclusão posterior de 9,38-39a pode ser explicada pela necessidade
de contrapor explicitamente o ex-cego aos fariseus que não crêem (9,22-40), reforçando a
oposição entre os que vêem o Filho do Homem e os que não vêem. Além disso, a inclusão
confirma a compreensão de que o ex-cego é objeto da primeira parte da sentença (i[na oi` mh.
ble,pontej ble,pwsin) no julgamento realizado pelo ui`o.n tou/ avnqrw,pou, enquanto os fariseus
são objetos da segunda parte (kai. oi` ble,pontej tufloi. ge,nwntai). Dado que este sentido é
coerente com a progressão de tais personagens na narrativa, pode-se entender o acréscimo de
9,38-39a como explicitação de um sentido presente no texto, e não como uma correção
deturpadora do sentido original. Por outro lado, é bem possível que esta inclusão provenha do
uso litúrgico-catequético da perícope num momento pouco posterior ao final da redação. A
leitura adotada pelo NTG é testemunhada por importantes manuscritos; por isso consideramos
parte do texto a ser analisada, sem desconsiderar as luzes que este exame crítico traz à
compreesão da perícope em seu conjunto.
118
117
RODRIGUES, Um pecador quer nos ensinar? p. 50.
118
RODRIGUES, Um pecador quer nos ensinar? p. 52.
70
2.2. TRADUÇÃO
119
1
E passando viu um homem cego de nascença.
2
E perguntaram-lhe os discípulos dele
dizendo: “Mestre, quem pecou este, ou os pais dele, para que cego nascesse?”
3
Respondeu
Jesus: “Nem este pecou nem os pais dele; mas para que fossem manifestas as obras de Deus
nele.
4
Nos é preciso trabalhar as obras daquele que me enviou, enquanto é dia; vem a noite
quando ninguém pode trabalhar.
5
Enquanto no mundo estiver, luz sou do mundo.”
6
Isso tendo dito, cuspiu na terra e fez barro com a saliva e aplicou dele o barro sobre
os olhos.
7
E disse a ele: “Vai, lava-te na piscina de Siloé” (o que é interpretado Enviado).
Saiu, pois e lavou-se, e veio vendo.
8
Os vizinhos, portanto e os que viam a ele anteriormente que mendigo era diziam:
“Não é este o que se sentava e que mendigava?”
9
Outros diziam: “Este é”, outros diziam:
“Não, mas semelhante a ele é”. Aquele dizia: “Sou Eu.”
10
Diziam, pois a ele: “Como então
foram abertos seus olhos?”
11
Respondeu aquele: “O homem chamado Jesus, fez barro, e
aplicou em meus olhos, e disse a mim: ‘Vai a Siloé e lava-te’. Tendo ido, pois, e me lavado
tornei a ver.”
12
E disseram a ele: “Onde está aquele?” Diz: “Não sei”.
13
Conduzem o mesmo aos fariseus o outrora cego.
14
Era sábado em o qual dia fez o
barro Jesus e abriu dele os olhos.
15
Novamente, pois perguntavam a ele também os fariseus
como tornou a ver. E disse a eles: “Barro pôs sobre os olhos e me lavei e vejo”.
16
Diziam, pois
dos fariseus alguns: “Não é este o homem (vindo) da parte de Deus, porque o sábado não
guarda!” Outros, porém diziam: “Como pode um homem pecador tais sinais fazer?” E divisão
havia entre eles.
17
Dizem então ao cego novamente: “que tu dizes a respeito dele, que abriu seus
olhos?” ele disse: “profeta é”.
18
Não creram, pois os judeus a respeito dele que era cego e tornou a ver até que
chamaram os pais dele, do que tornou a ver.
19
E perguntaram a eles, dizendo: “este é o filho
vosso, o qual vós dizeis que cego nasceu? Como, pois, agora?”
20
Responderam, pois os
pais dele e disseram: “Sabemos que este é o filho nosso, e que cego nasceu;
21
Mas como
agora vê, não sabemos; ou quem abriu os olhos dele nós não sabemos. A ele perguntai, idade
tem, em defesa de si mesmo falará.”
22
Essas coisas disseram os pais dele porque temiam os
judeus; pois tinham combinado os judeus que, se alguém a ele confessasse como Cristo,
119
A tradução foi feita de acordo com o NTG. Manteve-se a ordem das palavras, exceto quando a inversão se fez
necessária para se obter o sentido original.
71
excumungado da sinagoga deveria ser.
23
Por isso os pais dele disseram: “idade tem, a ele
interrogai”.
24
Chamaram, pois, o homem que era cego pela segunda vez e disseram-lhe: “Dá glória
a Deus; nós sabemos que esse homem é pecador”.
25
Respondeu, pois aquele: “Se é pecador,
não sei; uma coisa sei, que cego sendo agora vejo”.
26
Disseram, pois a ele: “Que fez a ti?
Como abriu os seus olhos?”
27
Respondeu a eles: “Eu já disse a vós e não ouvistes por que
novamente quereis ouvir? E vós quereis dele discípulos tornar-vos?”
28
E insultaram a ele e
disseram: “tu discípulo és daquele porém nós de Moisés somos discípulos;
29
Nós sabemos que
a Moisés Deus falou porém este não sabemos donde é.”
30
Respondeu o homem e disse a eles:
“Nisto pois o maravilhoso está, que vós não sabeis donde é, e abriu meus olhos.
31
Sabemos
que pecadores Deus não ouve; porém, se alguém temente a Deus for e a vontade dele fizer, a
este ouve.
32
Desde o princípio não foi ouvido que alguém abriu os olhos de cego nascido.
33
Se
não fosse este da parte de Deus não poderia fazer nada.”
34
Responderam e disseram-no: “Em
pecados tu és nascido inteiro e tu ensinas a nós?” E expulsaram-no para fora.
35
Ouviu Jesus que o expulsaram e encontrando-o disse: “Tu crês no Filho do
Homem?”
36
Respondeu aquele e disse: “E quem é Senhor para que eu creia nele?
37
Disse-lhe
Jesus: Tanto viste a este quanto o que fala contigo é.
38
Disse: “Creio, Senhor!” E adorou a ele.
39
E disse Jesus: “Para juízo eu vim a este mundo, para que os que não vêem vejam, e
os que vêem cegos se tornem.”
40
Ouviram dentre os fariseus estas coisas os que com ele
estavam e disseram-no: “Por ventura nós não somos também cegos?”
41
Disse a eles Jesus: “Se
cegos fôsseis não teríeis pecado; agora, porém dizeis: Vemos, o pecado vosso permanece.”
2.2.1 Análise de coesão interna
Depois da narrativa da Ressurreição de Lázaro (Jo 11), este é o sinal em que foi
registrado o maior número de palavras. Encontramos na NCCN 691 palavras e 153 vocábulos
que fazem a coesão interna da perícope. São 195 verbos, sendo 81 verbos no aoristo e 21
particípios. Os períodos são bem conectados pelo uso repetido de vocábulos semelhantes ou
até mesmo frases inteiras repetidas. Os vocábulos repetidos que mais se destacam são:
VOCÁBULOS JO 9,1- 41 VOCÁBULOS
JO 9,1- 41
tuflo.j
13 vezes
Kai.
44 vezes
ovfqalmo.j
10 vezes
apokri,nomai
8 vezes
72
Silwa,m
2 vezes
genna,w
5 vezes
a;nqrwpoj
7 vezes
avkou,w
7 vezes
Mwu?sh/j
2 vezes
avnoi,gw
8 vezes
VIhsou/j
7 vezes
le,gw
35 vezes
r`abbi
1 vez
ei+mi,
32 vezes
pestalme,noj
1 vez
ni,ptw
3 vezes
profh,thj
1 vez
oi=da
11 vezes
Cristo,j
1 vez
evrga,zomai
2 vezes
ui`o.n tou/
avntrw,pou
1 vez
ble,pw
9 vezes
ku,rie
2 vezes
pisteu,w
4 vezes
gonei/j
6 vezes
evpiCri,w
2 vezes
ko,smoj
3 vezes
a`martwlo.j a`marta,nw
a`marti,a
9 vezes
phlo.j
5 vezes
o[ti
21 vezes
ptu,smatoj
1 vez
ou=n
14 vezes
kolumbh,qran
1 vez
ti,j
11 vezes
fw/j
1 vez
pw/j
6 vezes
Farisai/oj
4 vezes
evkei/noj
7 vezes
VIoudai/oj
3 vezes
Alguns vocábulos usados nesta narrativa são fortemente recorrentes ao longo da
literatura joanina
120
em contraste com o restante do Novo Testamento. Um vocábulo que
aparece somente uma vez na NCCN é me,nw (9,41), mas se revela importante na LJ, com 74
ocorrências neste conjunto literário, sendo 118 vezes repetidas ao longo do NT; pisteu,w
(9,18.35.36.38) aparece na LJ 107 vezes contra 243 usos em todo NT; evkei/noj
(9,9.11.12.25.28.36.37) aparece 45 vezes na LJ contra 58 no NT; avpokri,nomai/avpekri,qh
(9,3.11.20.25.27.30.34.36) aparece 57 vezes na LJ contra 82 vezes no NT; ko,smoj (9,5.5.39)
aparece 78 vezes na LJ contra 186 no NT; fw/j (9,5) na NCCN aparece somente uma vez,
sendo 29 vezes na LJ contra 73 vezes no NT; ni,ptw (9, 7.11.15) aparece treze vezes na LJ e
17 vezes no restante do NT.
120
Daqui para frente usaremos a sigla “LJ” para literatura joanina e “NT” para Novo Testamento.
73
É abundante o uso de partículas (kai., o[ti( ou=n( ti,j( pw/j). Entre elas, a mais recorrente
é kai., repetida 44 vezes na NCCN, quase sempre ligando orações coordenadas ou iniciando
períodos. A ela coube o papel de abrir a perícope, estabelecendo uma continuidade com a
perícope anterior. Aparecem também o[ti 21 vezes, como indicação de discurso direto, e ou=n
14 vezes, sinalizando conexões entre elementos internos à narrativa. Estas duas partículas são
fundamentais para a coesão interna da perícope, pois estabelecem seqüência entre as diversas
partes do texto. as partículas ti,j
(11 vezes), pw/j
(6 vezes) e o verbo evrwta,w
(4 vezes)
demonstram que uma grande ocorrência de frases interrogativas na NCCN 18 no total. A
maioria delas é acompanhada de resposta e constitui quatro interrogatórios constantes numa
seqüência 9,8-34. Além da função que ocupam nos diálogos, as interrogações podem ter uma
intenção de levar os leitores a questionar as estruturas em que estão mergulhados.
121
Quanto ao uso dos termos Farisai/oj (9,13.15.16.40) e VIoudai/oj (9,18.22.22) no
Quarto Evangelho, o primeiro ocorre 20 vezes e o segundo 67, quase sempre empregados
como termos equivalentes.
Alguns vocábulos que aparecem na NCCN são raros no NT, como, por exemplo,
Silwa,m e ptu,w. Este último ocorre somente em Mc 7,33 e Mc 8,23. Em Mc 8,23 refere-se
também a uma narrativa de cura de cego pelo mesmo processo empregado em 9,6: uso da
saliva. Já os termos kolumbh,qran
(5,2.4.7; 9,7), ptu,sma (9,6), evpicri,o (9,6.11), qeosebh,j
(9,31) e avposuna,gwgoj (9,22;12,42;16.2) aparecem somente no episódio da NCCN. Não
podemos deixar de destacar avposuna,gwgoj, pois sua primeira ocorrência na Antigüidade
ocorre justamente no Quarto Evangelho, na Narrativa da Cura do Cego de Nascença.
Além da composição interna cênica – a melhor de todo o evangelho – há outros
indícios que mostram que o autor deixou-se guiar pelo número sete: sete vezes a expressão
“abrir os olhos (9, 10.14.17.21.26.30.32) e sete maneiras de nomear Jesus: rabi (v.2),
enviado (v.7), homem (v.11.16), profeta (v.17), Messias (v.22), Filho do Homem (v.35),
Senhor (v.36).
122
Também encontramos quatorze referências ao cego que volta vendo: 9,
9.10.13.14.15.15.17.18.19.21.25.26.30.32.
121
Cf. Maria Paula RODRIGUES; Pedro L. VASCONCELLOS; Rafael Rodrigues da SILVA. na vida: a boa
notícia segundo uma comunidade na periferia do mundo. São Leopoldo: CEBI, 1999, p. 19.
122
KONINGS, Evangelho segundo João, p. 222.
74
2.3. ESTRUTURA DA NARRATIVA DA CURA DO CEGO DE
NASCENÇA (Jo 9,1-41)
Encontramos nesta perícope uma estrutura de quiasmo (a-b-c-d-e-d’-c’-b’-a’):
A A constatação de Jesus: trevas e luz (9,1-5)
B Encontro com Jesus: a cura física (9,6-7)
C Reação dos vizinhos e do povo: Primeiro interrogatório (9,8-12)
D Fariseus interrogam o ex-cego: Segundo interrogatório (9,13-
16)
E PROFETA É (9,17 )
D’ Judeus interrogam aos pais: Terceiro interrogatório (9,18-23)
C’ Reação das lideranças: Quarto interrogatório (9,24-34)
B’ Reencontro com Jesus: A fé confirmada (9,35-38)
A’ O julgamento de Jesus: trevas ou luz (9,39-41)
75
A Narrativa da Cura do Cego de Nascença é uma obra literária, “tão cuidadosamente
elaborada que nem sequer uma palavra é desperdiçada”.
123
Está dividida em partes ou cenas
bem delimitadas, marcadas pela entrada e saída de personagens ou pela mudança de cenário
(9,1.6.8.13.18.24.35.39). A estrutura interna do relato mostra uma consumada maestria
artística; nenhum outro relato evangélico aparece tão perfeitamente trabalhado. Temos aqui
mostra memorável da habilidade dramática de João.
124
Apresenta-nos, assim, um quiasmo
com uma moldura A (9,1-5) e A’ (9,39-41) que sustenta sete cenas, sendo que cada uma
possui uma dinâmica própria e diferente, digamos, uma dinâmica característica B (6-7); B’
(35-38); C (8-12); C’ (24-34); D (13-16); D’ (18-23); E (17)
125
bem amarrada por vocábulos
que fazem a coesão interna e os paralelos da perícope. De acordo com a estrutura de quiasmo
que apresentamos, vamos analisar a pericope partindo do centro para a moldura, pois o objeto
de nossa pesquisa (a luz em Jo 9,1-41) encontra-se citado na moldura da perícope, embora
permeie e ilumine toda a narrativa:
A (1-5)----------------------------------------------------------------------------------------A’ (39-41)
B (6-7) ------------------------------------------------------------------B’ (35-38)
C (8-12)-------------------------------------------C’ (24-34)
D (13-16)-----------------------D’ (18-23)
E (17)
123
BROWN, Introdução ao Novo Testamento, p. 476.
124
Cf. BROWN, El Evangelio según Juan, vol. I, p. 621.
125
Autores como R. Schnackenburg, J. Konings defendem uma subdivisão em sete cenas para toda perícope:
9,1-7; 8-12; 13-17; 18-23; 24-34; 35-39; 40-41 (Cf. KONINGS, Evangelho segundo João, p. 222;
SCHNACKENBURG, El Evangelio según San Juan, p. 302. Porém queremos, com todo respeito aos estudiosos
do Quarto Evangelho, propor uma estrutura de quiasmo que contém uma moldura que sustenta as sete cenas.
Esta divisão será justificada no decorrer da análise literária.
76
2.3.1. JESUS É PROFETA (letra E do quiasmo)
2.3.1.1. Profeta é (9,17). O versículo 17 é o centro de nossa estrutura de quiasmo.
Depois de interrogar o ex-cego, as autoridades judaicas perguntam-lhe novamente sobre a
identidade daquele que lhe abriu os olhos. Ele diz: “profeta é”. Interessante percebermos que
nesta narrativa encontramos sete maneiras de nomear Jesus: rabi (v.2), enviado (v.7), homem
(v.11.16), profeta (v.17), Messias (v.22), Filho do Homem (v.35), Senhor (v.36). Chama a
nossa atenção, porém, o fato de que a nomeação “profeta” se encontre no centro das sete
maneiras de nomeação. Terá o versículo 17 sido acrescentado e colocado de forma
proposital pelo redator joanino?
2.3.2. FARISEUS INTERROGAM O EX-CEGO E SEUS PAIS (letras D e D’ do
quiasmo)
2.3.2.1. Segundo interrogatório (9,13-16). Os vizinhos e o povo que conheciam o ex-
cego conduzem-no aos fariseus que criticam o taumaturgo, ainda sem o conhecerem, por fazer
semelhante ação em dia de sábado. Os fariseus dizem que um homem desses não pode vir de
Deus. Como pode um homem pecador realizar sinais miraculosos? Para os fariseus, Jesus é
um pecador e, para o ex-cego, um profeta.
2.3.2.2. Terceiro interrogatório (9,18-23). Diante desse impasse, os fariseus mandam
chamar os pais do outrora cego e vão interrogá-los acerca da identidade do filho que agora vê.
Eles atestam quanto à cegueira congênita do filho e se recusam a falar sobre e o como foi
realizada a cura, alegando que ele próprio pode se defender, pois idade tem para falar de si.
Assim, dizem os pais do ex-cego por medo dos judeus que haviam combinado de expulsão
da sinagoga quem a Jesus confessasse como o Messias.
2.3.3. A REAÇÃO DOS VIZINHOS, DO POVO E DAS LIDERANÇAS (letras C e C’ do
quiasmo)
2.3.3.1. Primeiro interrogatório (9,8-12). A cura do cego gera uma discussão e uma
reação entre os vizinhos e o povo. Habituados a encontrarem-no a mendigar, na porta do
77
Templo, ficam espantados pelo sucedido e perguntam como é que tudo aconteceu. E ele, pela
primeira vez, explica.
2.3.3.2. Quarto interrogatório (9,24-34). Assim como os vizinhos e o povo reagem
ao fato da cura (vv. 8-12), as autoridades judaicas, inconformadas, também reagem ao fato
acontecido. Chamam novamente o ex-cego, pedem explicações e se estabelece o que podemos
chamar de diálogo de “surdos”, pois os fariseus se fixam na idéia de que se trata de um
pecador, porque eles são discípulos de Moisés, que proíbe qualquer ação em dia sábado.
conhecem a Moisés e não sabem a procedência desse taumaturgo que cura cego nascido, em
dia de sábado. Obrigam o ex-cego a dar glória a Deus, testemunhar a verdade e terminam por
classificá-lo como alguém que “nasceu em pecados” e o expulsam da Sinagoga.
2.3.4. ENCONTRO E REENCONTRO COM JESUS (letras B e B’ do quiasmo)
2.3.4.1. A cura física (9,6-7). No primeiro encontro com o cego, Jesus aplica barro e
saliva em seus olhos e pede que vá se lavar na piscina de Siloé. Ele vai, lava-se e volta vendo.
Ocorre a cura. O cego vê.
2.3.4.2. A confirmada (9,35-38). No segundo encontro com o cego, Jesus o inclui,
a luz àquele que se encontra sentado em trevas. O ex-cego crê. Jesus dá-se a conhecer
como Filho do Homem.
2.3.5. CONSTATAÇÃO E JULGAMENTO DE JESUS (letras A e A’ do quiasmo)
2.3.5.1. Trevas e luz (9,1-5). Chegamos à moldura de nossa estrutura de quiasmo. O
paralelo que podemos estabelecer entre os vv. 1-5 e os vv. 39-41 salta-nos aos olhos. Aqui
uma oposição entre luz e trevas, ou seja, o encontro entre duas forças opostas: luz e trevas
(Jesus e o cego). Jesus estabelece um julgamento e se declara: “Enquanto no mundo estiver,
luz sou do mundo.”
2.3.5.2. Trevas ou luz (9,39-41). A narrativa termina com um monólogo de Jesus
sobre sua ação com um julgamento. Os vv. 5 e 39 estão ligados pela menção ao mundo. Jesus,
enquanto estiver no mundo, é luz que leva a julgamento. Apesar de tudo que se disse sobre o
78
sinal e de quem o realizara, os fariseus se recusam a aceitar a luz oferecida por Jesus. Ao final
do relato, os judeus são declarados culpados por não aceitarem a luz. De “videntes” tornam-se
cegos e aquele que no início do relato estava nas trevas, era cego, encontra a luz, torna-se um
iluminado: luz na Luz.
2.4. ANÁLISE LITERÁRIA
Conforme citamos anteriormente, de acordo com a estrutura de quiasmo
apresentada, faremos a análise literária partindo do centro da perícope para chegarmos à
moldura:
2.4.1. JESUS É PROFETA (Letra E)
2.4.1.1. Profeta é (9,17)
17
le,gousin ou=n tw/| tuflw/| pa,lin\ ti, su. le,geij peri. auvtou/( o[ti hvne,w|xe,n sou tou.j
ovfqalmou,jÈ o` de. ei=pen o[ti profh,thj evsti,n)
Dizem então ao cego novamente: “que tu dizes a respeito dele, que abriu teus olhos?
ele disse: “Profeta é”.
Pela estrutura de quiasmo apresentada, estamos no centro da perícope. A questão que
se coloca aqui ao ex-cego está em continuidade com o debate que vai se firmando entre os
fariseus. Nesta cena, pela terceira vez, os inquisidores dirigem-se ao outrora cego e o
pressionam para que se posicione ao lado da questão colocada no debate (9,16): Jesus é um
homem de Deus ou um homem pecador? Os fariseus tinham perguntado sobre quem abrira
seus olhos. Como se encontram divididos, precisam mais uma vez reforçar a pergunta e ouvir
novamente sua opinião a respeito daquele que lhe devolvera a luz. Embora o ex-cego não seja
autoridade em lei ou religião, é uma testemunha, afinal foi “tocado” por Jesus. Então,
responde o outrora cego: Profeta é.
Pelo uso do termo Pa,lin
(novamente), podemos suspeitar de que o versículo 17 pode
ter sido acrescentado propositalmente, pois parece-nos que o versículo 16 fecha a cena (“E
79
divisão havia entre eles”) e outra cena começa no versículo 18, com mudança de personagens,
ou seja, o versículo 17 dentro da perícope é independente do versículo 16 e do versículo 18.
Parece-nos que este versículo (17) foi assim colocado justamente para reforçar uma lógica que
está se firmando sobre a identidade de Jesus.
Antes de prosseguirmos, faremos uma breve explanação do termo “profeta”, de como
surgiu e quem era considerado profeta, para assim entendermos melhor a resposta que o ex-
cego deu aos fariseus a respeito de Jesus.
Os profetas clássicos surgiram com a instituição da monarquia (+ ou 931 a.C),
embora houvesse profetas antes e também em outros povos. Profeta é uma palavra grega
(profh,thj) usada para traduzir a palavra hebraica nabi: visionário, pessoa extática. Também
encontramos outros termos em hebraico para designar profeta: roêh (vidente) e ish há-elohim
(homem de Deus). Em grego profeta tem um sentido de porta-voz, arauto, alguém que
anuncia uma mensagem em nome de uma autoridade superior, adivinho. Também pode
significar um visionário, um sonhador, alguém que fala alguma coisa tomado pelo êxtase ou
percebe com clarividência o significado de certas realidades ou sinais na perspectiva da
divindade.
O termo “profeta” serve tanto para os que falam em nome de Iahweh (cf. 1 Rs 18,36),
quanto aos que falam em nome de Baal (cf. 1 Rs 18,19); para os que estão ao lado dos reis (cf.
1 Rs 22,6), como para os que se opõem a eles (cf. 1 Rs 22,8); tanto para os que falam a favor
do povo (cf. Jr 1,5), como para quem fala contra o povo (cf. Jr 29,8-9); todos são chamados
profetas. Então, como diferenciar o profeta verdadeiro e o falso profeta? O que fala em nome
de Iahweh e o que fala em nome de Baal? O que o profeta fala deve se realizar, e quando se
realizar, todos saberão que o profeta fala a Palavra de Iahweh. Se o que o profeta fala não se
realiza, este profeta é falso (cf. Dt 18,22; Jr 28,9). Muitas coisas ditas por “profetas”, porém,
que julgamos verdadeiros, não se realizaram. Então, Jeremias estabelece um critério: o
verdadeiro profeta é aquele que acusa os pecados e os desvios da Lei do Senhor. Assim, se um
profeta anuncia algo e isto se cumpre, mas não convoca o povo a viver na Lei e na Aliança,
este profeta é falso (cf. Jr 23, 15-22). Em suma, é genuína profecia o que está de acordo com a
Aliança e favorece a vida.
Também vamos encontrar duas classes de profetas: “profetas do centro e profetas da
periferia”. Os “profetas do centro” são os que apóiam as ações reais. Estes têm casa, salário,
lugar no palácio, proteção e amparo (cf. 1 Rs 18,19; 22,6-9). Eles estão mais preocupados
80
com o rei do que com a Aliança. São conselheiros dele (cf. 2 Sm 7,1-3; 1 Rs 1,11-26). Porém,
mesmo no centro é possível distinguir posicionamentos diferentes em relação à profecia. De
um lado existem aqueles que são sensíveis às situações de injustiça vividas pelo povo. Por
isso criticam e denunciam os agentes do sistema e, muitas vezes, pagam com a própria vida “o
preço de suas denúncias”. Contudo, não conseguem propor uma mudança estrutural, como é o
caso de Isaías (cf. Is 9,5-6).
Os “profetas da periferia” têm seu grupo de apoio popular, a partir da experiência de
Deus e da vida no meio do povo. Combatem o abuso de poder e propõem mudança do
sistema. Eles atacam o rei, o exército e o Templo, denunciam a opressão e a idolatria. Surgem
como verdadeiros porta-vozes dos camponeses empobrecidos. Eles assumem esta função com
todas as suas conseqüências: difamação, perseguição, prisão, tortura e até morte.
O verdadeiro profeta, então, é um homem da palavra, empresta sua boca à boca de
Iahweh. Como um perturbador, tira a paz dos pecadores comunicando o julgamento de Deus.
Tem discurso “engajado”, não mero exercício acadêmico ou oratória virtuosíssima. O que ele
proclama não é uma nova ideologia ou práxis política, mas sim exigências de Deus, que pede
justiça, igualdade, liberdade e dignidade para todos. O profeta se coloca como sentinela da
história (Is 21,8; Hab 2,1). Naturalmente, a profecia autêntica deve passar pelo crivo do
discernimento. O dom profético é genuíno se a vida do profeta é de bom testemunho,
manifesta dons espirituais, é caridoso e prudente, submisso à autoridade verdadeira e cresce
em sua missão.
126
Por exemplo: Elias (1Rs 19), Amós (7,10-14), Oséias (9,7-9), Miquéias
(3,5-8).
Já segundo o Novo Testamento, não há consenso no judaísmo do I século a respeito da
profecia e da autenticidade dos profetas contemporâneos. Foram considerados profetas não
apenas João Batista (1, 6-7) e Jesus, mas também outros: Ana (Lc 2,36), Bar-Jesus (At 13,6),
Judas e Silas (At 15,32), quatro filhas de Filipe (At 21,9), Ágabo (At 21,10). Também
encontramos profetas entre os essênios.
127
A literatura rabínica afirma que os últimos profetas
literários foram Ageu, Zacarias e Malaquias.
128
Embora o registro dessa afirmação seja
posterior ao século I, há traços desta formulação na fonte Quelle (Lc 11,51; Mt 23,35b).
Os judeus contavam com a vinda de um messias-profeta semelhante a Moisés,
considerado o maior de todos os profetas: “Vou suscitar para eles um profeta como tu, do
126
Cf. Benigno JUANES. Profecia, interpretação, palavra de conhecimento. São Paulo: Loyola, 1996, pp. 65-
73.
127
Cf. Flávio JOSEFO apud Joachim JEREMIAS. Teologia do Novo Testamento. 2 ed. São Paulo: Teológica,
2004, p. 140.
128
Cf. JEREMIAS, Teologia do Novo Testamento, p. 139.
81
meio dos seus irmãos. Colocarei as minhas palavras em sua boca e ele comunicará tudo o que
eu lhe ordenar” (Dt 18, 18). Essa expectativa dum profeta-como-Moisés aparece também
entre a comunidade de Qumran (4Q Testim 5-8).
129
É assim que esta promessa se realiza em
Jesus, pois ele se associa a certa expectativa messiânica, à chegada de um profeta singular (Jo
1, 21.25). Tal convicção subentende todo o Evangelho de João e comanda todos os seus temas
maiores. Jesus é não um profeta ordinário, mas o profeta por excelência (Jo 6,14; 7,40.52).
Para salietar isto, o evangelista põe nos lábios de Jesus palavras que no AT se referiam a
Moisés (Jo 12,48-50; 8,28-29; 7,16b-17; cf. Dt 18,18-19; Nm 16,28; Ex 3,12; 4,12).
130
Ele não foi encarado como teólogo de profissão, mas como carismático (Mc 1,22) e o
juízo formulado sobre ele foi: ele é um profeta. É isso que ecoa repetidamente entre o povo
(Mc 6,15; 8,28; Mt 21.11.46; Lc 7.16; Jo 4,19; 6,14; 7,40.52; 9.17) e até mesmo, claro que
associado a certo ceticismo, nos círculos dos fariseus (Lc 7,39; Mc 8,11 ); também os
discípulos de Jesus, segundo Lc 24.19, viram nele um profeta; a mulher samaritana percebera
que Jesus era profeta (Jo 4,19); a multidão que fora alimentada com pães e peixes exclama:
“Esse é, verdadeiramente o profeta que deve vir ao mundo” (Jo 6,14); os habitantes de
Jerusalém, convidados a receber “água viva”, identificaram-no como “o profeta” (Jo 7,40),
porque com suas ações e palavras parecia ser o segundo Moisés esperado.
131
Ele mesmo não
recusou a afirmação de que era um profeta, pois inseriu-se na linha dos profetas: Lc 4,24;
13,33; Mt 23,31.34-36.37-39; Mc 6,4; Jo 4,44. No entanto, como falso profeta foi preso e
acusado pelos judeus, o que decorre da narrativa sobre a zombaria.
132
Depois desta explanação, voltemos à resposta do ex-cego. O outrora cego, por estar
sempre sentado à porta do Templo, pode ter ouvido algumas dessas especulações a respeito do
profeta esperado, pois isso ventilava na discussão entre os judeus.
133
Ao afirmar: É Profeta,
embora não tenha ainda descoberto toda a realidade a respeito da identidade de Jesus, para ele
parece indiscutível que Jesus não está separado de Deus, nem contra ele. É um novo profeta
enviado de Deus e atua em nome dele. Aos profetas se atribuíam um conhecimento especial
(Jo 4,48; Lc 7,39) e uma virtude extraordinária outorgada por Deus (Mc 6,15; Mt 21,46; Lc
24,19). Porém, a palavra franca do ex-cego reforçando a identidade de Jesus como o profeta
129
NEVES, Escritos de São João, p. 88.
130
Cf.
Introdução ao Evangelho de João e às epístolas joaninas. In: BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo:
Paulus, 2004, 2206p.
131
Cf. JEREMIAS, Teologia do Novo Testamento, pp. 133-134.
132
Os Evangelhos falam de três zombarias totalmente distintas endereçadas a Jesus. Cf. JEREMIAS, Teologia do
Novo Testamento, pp. 135-136.
133
À maneira judia Jesus é descrito como: o profeta, o Mestre e o Messias. Cf. KÄSEMANN. El testamento de
Jesus, p. 127.
82
esperado não convence aos fariseus, que se recusam a crer nesse fato e vão, contrariados,
tentar por outros meios silenciar essa voz nascida da escuridão e das trevas
.
134
2.4.2. FARISEUS INTERROGAM O EX-CEGO E SEUS PAIS (letras D e D’)
2.4.2.1. Segundo interrogatório: (9,13-16)
13
:Agousin auvto.n pro.j tou.j Farisai,ouj to,n pote tuflo,na
14
h=n de. sa,bbaton evn h-|
h`me,ra| to.n phlo.n evpoi,hsen o` VIhsou/j kai. avne,w|xen auvtou/ tou.j ovfqalmou,j)
15
pa,lin ou=n
hvrw,twn auvto.n kai. oi` Farisai/oi pw/j avne,bleyenÅ o` de. ei=pen auvtoi/j\ phlo.n evpe,qhke,n
mou evpi. tou.j ovfqalmou.j kai. evniya,mhn kai. ble,pwÅ
16
e;legon ou=n evk tw/n Farisai,wn
tine,j\ ouvk e;stin ou-toj para. qeou o` a;nqrwpoj ( o[ti to. sa,bbaton ouv threi/Å a;lloi Îde.Ð
e;legon\ pw/j du,natai a;nqrwpoj a`martwlo.j toiau/ta shmei/a poiei/nÈ kai. sci,sma h=n evn
auvtoi/j)
Conduziram o mesmo para os fariseus o outrora cego. Era sábado em o qual dia o
barro fez Jesus e abriu dele os olhos. Novamente, pois perguntavam a ele também os
fariseus como tornou a ver. E disse a eles: “Barro pôs-me sobre os olhos e lavei e
vejo.” Diziam, pois, dos fariseus alguns: “Não é este da parte de Deus o homem, que o
sábado não guarda.” Outros, porém diziam: “Como pode um homem pecador tais
sinais fazer?” E divisão havia entre eles.
uma mudança de ambiente e situação (9,13) nesta cena. Inicia-se com o verbo
agousin
135
, usado muitas vezes no Novo Testamento como termo judiciário, referindo-se aos
réus ou prisioneiros levados ante os juízes (Mt 10,18; Lc 23,1; Jo 18,13.28;). O prodígio é
constatado, e por isso o miraculado é conduzido aos responsáveis pelo Templo, no caso, os
fariseus
136
. Por que o conduziram aos fariseus? Porque tinham a impressão de que havia uma
134
Poderíamos nos ater mais a essa suspeita, porém este não é o objeto de nossa pesquisa. Então, deixamos tal
reflexão para pesquisas posteriores.
135
Verbo indicativo presente ativo, pessoa plural de a;gw: levar, conduzir, guiar, trazer a, mandar. Cf. Carlo
RUSCONI. Dicionário do grego do Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2003, p. 20.
136
Os Farisai/oi (os “separados”) eram leigos que, no tempo dos macabeus, haviam se oposto à helenização da
Judéia e que tendiam a realizar o ideal de santidade que se exigia de Israel. Daí seu estudo da Lei e a
preocupação de ensiná-la ao povo de quem, diferentemente dos saduceus, eles permaneciam próximos; peritos
na tradição oral, eles procuravam tornar as exigências da Lei praticáveis no dia-a-dia. Esta atitude respeitosa em
relação à pessoa humana permanece sendo historicamente seu mérito. É a partir dos anos 70, depois da
destruição do Templo, que o grupo dos fariseus se identifica com o poder da nação judaica e que sua ordotoxia
83
questão religiosa envolvida e os fariseus eram respeitados como autoridades da lei e sua
interpretação. É possível imaginar que os gei,tonej (vizinhos) e os qewrou/ntej (povo em
geral) foram os que conduziram o outrora cego aos fariseus, pois o sujeito está oculto. Estes
procedem a uma inquirição e interrogam o ex-cego três vezes (9,13-16; 17; 9,24-34). Esse
interrogatório segue a mesma estrutura do anterior (8-12), em torno do como (9,15) e quem
(9,17) realizou tal cura. Porém, neste interrogatório encontramos um adicional: querem saber
quando aconteceu a cura (9,14).
Acontece que Jesus tinha repetido a façanha que causou tantos transtornos em sua
visita anterior a Jerusalém: operara uma cura num sábado.
137
Aparece aqui novamente o
vocábulo h`me,ra (dia), porém agora não mais referindo-se ao dualismo dia/noite (9,4) e sim a
uma unidade do calendário (sábado). Não é o fato em si de Jesus abrir (vhne,w|xen) os olhos do
cego e assim se apresentar como curador ou milagreiro
138
que infringia a lei e que vai levar o
caso a julgamento, mas o fato de ser no sábado é que infringia a lei. Na ocasião anterior, Jesus
ordenara a um homem carregar sua cama pela rua no sábado; agora ele fez barro com terra e
saliva e aplicou nos olhos do cego. O que havia de errado neste ato? Simplesmente isto: um
dos tipos de trabalho especificamente proibido no sábado, pela interpretação tradicional da lei,
era amassar pão ou algo parecido,
139
o que incluía amassar barro com terra e saliva.
Novamente (pa,lin) os fariseus interrogam o outrora cego. No início da narrativa a
personagem central havia sido chamado de a;nqrwpon tuflo.n evk geneth/j (homem cego de
nascença); logo depois de sua cura o chamam de to. pro,teron o[ti prosai,thj h=n
(o que antes
se torna intransigente. Cf. Xavier LEON-DUFOUR. Leitura do Evangelho segundo João. Vol II. São Paulo:
Loyola, 1996, pp. 236-237.
137
Descanso de preceito. Esta forma translitera o hebraico
!AtôB'v;
, que significa o descanso obrigatório, seja em
dia de sábado (Ex 16,23), seja em outro dia festivo (Lv23,24.39). Cf. MATEOS e BARRETO. O Evangelho
segundo São João, p. 263. Para maior aprofundamento sobre o sábado, veja Paulo Roberto GARCIA. O sábado
do Senhor teu Deus: o Evangelho de Mateus no espectro dos movimentos judaicos do I século. São Bernardo do
Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2001 (Tese de Doutorado), 226p.
138
Alguns pesquisadores apresentam Jesus como um sábio. Outra visão afim é a do
Qei/oj avnh,r
: “homem
divino”; para outros, Jesus é milagreiro, mago ou até mesmo um xamã; para outros ainda é um
rabbi,
ou um
profeta; até poeta é mencionado por causa de suas parábolas. A Fonte Q não está centrada neste aspecto, mas os
compiladores estavam bem cientes desta fama de Jesus. Algumas obras que falam do assunto: Geza VERMES.
As várias faces de Jesus, o judeu. Rio de Janeiro: Imago, 1995, 228p.; Gerd THEISSEN e Annette MERZ. O
Jesus histórico: um manual. São Paulo: Loyola, 2004, 928p.; John D. CROSSAN. O Jesus histórico: a vida de
um camponês judeu do Mediterrâneo; Morton SMITH. Jesus the magician. San Francisco: Harper & Row, 1978,
222p.; Gabriele CORNELLI. É um demônio!” O Jesus histórico e a religião popular. São Bernardo do Campo:
Universidade Metodista de São Paulo, 1998 (Dissertação de Mestrado), 232p.; Gabriele CORNELLI. Sábios,
filósofos, profetas ou magos? Equivocidade na recepção das figuras de
Qei/oi a;ndrej
na literatura helenística:
a magia incomôda de Apolônio de Tiana e Jesus de Nazaré. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista
de São Paulo, 2001 (Tese de Doutorado), 343p.
139
Sobre a discussão, ou aque ponto é permitido ungir olhos feridos no sábado, cf. Mishna, artigo Shabbath
7.2, e o Talmude Babilônico, artigo Abodah Zarah 28b.
84
era mendigo); agora ele é chamado de to,n pote tuflo,n (o outrora cego). O texto o mantém
anônimo e tudo o que se refere a ele está ligado à sua antiga condição de cego de nascença.
Ele conta mais uma vez sua história: “Barro pôs-me sobre os olhos e lavei e vejo.”
Pela terceira vez aparece o barro feito por Jesus e pela segunda vez a expressão abriu os olhos
(9,14). O verbo que finaliza a pergunta dos fariseus é avne,bleyen
e tem sentido análogo àquele
que aparece na resposta do outrora cego, ble,pw. Mas dessa vez o ex-cego não menciona nem
Jesus, nem Siloé e nem o fato de aplicar. Ele prefere o verbo evpe,qhke,n.
140
Surgem dois pontos de vista opostos e que levam a conclusões diferentes: um baseia-
se na premissa de que “um homem que quebra a lei do sábado não pode vir de Deus”. Jesus
quebrou a lei do sábado “trabalhando”, ou seja, amassando barro com terra e saliva para
colocar nos olhos do cego. A conclusão parece ser inevitável: Jesus não é homem de Deus. A
expressão a;nqrwpoj tou- qeou= foi empregada pela tradição deuteronomista para designar
Moisés, o maior dos profetas e outros mensageiros de Deus (
a;ggeloj
): Dt 33,1; Js 14,6; Jz
13,6; 1Sm 2,27; 9,6-10; 1 Rs 12,22. A lei é clara:
Quando surgir em teu meio um profeta ou um intérprete de sonhos, e te
apresentar um sinal ou prodígio, – se este sinal ou prodígio que ele anunciou
se realiza ele te diz: “vamos seguir outros deuses (que não conheceste) e
servi-los”, não ouças as palavras desse profeta ou desse intérprete de
sonhos... quanto ao profeta ou intérprete de sonhos, deverá ser morto, pois
pregou a rebeldia contra Iahweh vosso Deus, que vos fez sair da terra do
Egito e vos resgatou da casa da escravidão, para te afastar do caminho em
que Iahweh teu Deus te ordenou caminhar. Deste modo extirparás o mal do
teu meio (Dt 13, 1-6).
O outro ponto de vista baseia-se na premissa de que “qualquer pessoa que cura um
cego especialmente um cego de nascença é de Deus.” Alguns devem ter argumentado, e
de maneira convincente, que Jesus não fizera a cura por acaso, mas sim por um ato de
compaixão, algo tão de acordo com o caráter de Deus que a pessoa que o executa deve estar
no caminho divino, ou seja, “Jesus é um homem de Deus.” Ele não é um pecador, pois ser
pecador, praticamente equivalente a ímpio, descrente, parece incompatível com o sinal tão
140
Verbo indicativo aoristo ativo de evpiti,qhmi: pôr, colocar, impor as mãos sobre alguém (cf. RUSCONI,
Dicionário do grego do Novo Testamento, pp. 194-195.
85
clamoroso que Jesus acabara de realizar. Assim como em 7,43, a multidão se dividiu. Os
fariseus discutem se o homem de que falou o outrora cego procedia ou não de Deus, se se
tratava de um profeta de Deus ou não. Pela repetição do substantivo a;nqrwpoj é possível,
então, perceber que há um paralelismo antitético simples entre as idéias dos dois grupos:
homem que faz sinais homem que faz sinais
observa o sábado não observa o sábado
homem de Deus homem pecador
O problema encontrado aqui é que os elementos do primeiro termo, que são positivos,
contrapõem-se aos elementos do segundo termo, que são negativos. A gica consiste em que
o objeto de comparação deva identificar-se com apenas um dos termos. O fato é que a mesma
pessoa (Jesus) identifica-se com os elementos presentes em ambos os termos. O homem que
realiza sinais (shmei/a) e que, portanto, é de Deus, é o mesmo que não observa o sábado e que,
portanto, não pode ser de Deus. É um transgressor. A discussão é acirrada acerca do homem
que curou o cego em dia de sábado e havia divisão (sci,sma
141
) entre os fariseus quanto às
credenciais de Jesus.
2.4.2.2. Terceiro interrogatório: (9,18-23)
18
Ouvk evpi,steusan ou=n oi` VIoudai/oi peri. auvtou/ o[ti h=n tuflo.j kai. avne,bleyen e[wj
o[tou evfw,nhsan tou.j gonei/j auvtou/ tou/ avnable,yantoj
19
kai. hvrw,thsan auvtou.j
le,gontej\ ou-to,j evstin o` ui`o.j u`mw/n( o]n u`mei/j le,gete o[ti tuflo.j evgennh,qhÈ pw/j ou=n
ble,pei a;rtiÈ
20
avpekri,qhsan ou=n oi` gonei/j auvtou/ kai. ei=pan\ oi;damen o[ti ou-to,j evstin
o` ui`o.j h`mw/n kai. o[ti tuflo.j evgennh,qh\
21
pw/j de. nu/n ble,pei ouvk oi;damen( h' ti,j
h;noixen auvtou/ tou.j ovfqalmou.j h`mei/j ouvk oi;damen\ auvto.n evrwth,sate( h`liki,an e;cei(
auvto.j peri. e`autou/ lalh,s el
22
tau/ta ei=pan oi` gonei/j auvtou/ o[ti evfobou/nto tou.j
VIoudai,ouj\ h;dh ga.r sunete,qeinto oi` VIoudai/oi i[na eva,n tij auvto.n o`mologh,sh| cristo,n(
avposuna,gwgoj ge,nhtaiÅ
23
dia. tou/to oi` gonei/j auvtou/ ei=pan o[ti h`liki,an e;cei ( auvto.n
evperwth,sateÅ
141
Substantivo nominativo neutro singular comum sci,zw: dividir, separar, abrir (Cf. RUSCONI, Dicionário do
grego do Novo Testamento, p. 447).
86
Não creram, pois os judeus a respeito dele que era cego e tornou a ver até que
chamaram os pais dele do que tornou a ver. E perguntaram a eles, dizendo: “este é o
filho vosso, o qual vós dizeis que cego nasceu? Como, pois, agora?” Responderam
pois os pais dele e disseram: “Sabemos que este é o filho nosso, e que cego nasceu;
Como mas agora vê, não sabemos; ou quem abriu dele os olhos nós não sabemos. A
ele perguntai, idade tem, em defesa de si falará.” Essas coisas disseram os pais dele,
porque temiam os judeus; pois tinham combinado os judeus que se alguém a ele
confessasse como Cristo, excumungado da sinagoga deveria ser. Por isso os pais dele
disseram: “idade tem, a ele interrogai.”
Nesta cena temos a entrada de novos personagens, que são os pais do outrora cego e a
saída temporária do mesmo. Agora se estabelece de um modo que diríamos “oficial” a
identificação entre o cego mendigo com homem vidente.
Devido ao uso da partícula ou=n podemos presumir que os judeus do versículo 18 sejam
os mesmos fariseus do versículo 13. Mediante a troca de “fariseus” por “judeus”, supomos
que o evangelista queira indicar seguramente o caráter oficial da declaração por parte de seus
progenitores, pois os judeus fazem freqüentemente as vezes da autoridade do povo (Jo 1,19;
2,18.20; 5,10.18).
142
Na frase: “Não creram, pois os judeus a respeito dele que era cego e tornou a ver até
que chamaram os pais dele, do que tornou a ver”, o uso repetido do verbo avnable,pw
(avne,bleyen
143
avnable,yantoj
144
) no mesmo período parece querer ressaltar que a investigação
tem duplo objeto: não é a cegueira de nascimento que estava sendo questionada, mas
também o fato miraculoso de retomar a vista e passar a ver. Isto indica que o motivador dessa
cena é a transformação do cego em novo vidente.
Os judeus aparecem revestidos de autoridade, chamam/convocam a julgamento os pais
do cego recém-curado
145
, pois eles podiam testificar e autenticar se seu filho nascera
mesmo cego ou se não passava de fraude o fato de retomar a visão. Provavelmente queriam
142
A expressão “os judeus” aparece 5 vezes em Mt e Lc, 6 vezes em Mc e 67 vezes em Jo com diferentes
significados. Porém, dois significados sobressaem: um anódino comum e social, e outro negativo contra Jesus e
contra os cristãos (Cf. NEVES, Escritos de São João, pp. 178-180).
143
Verbo indicativo aoristo ativo, 3ª pessoa de avnable,pw)
144
Verbo particípio aoristo ativo genitivo de avnable,pw)
145
Cf. Klaus WENGST. Interpretación del Evangelio de Juan. Salamanca: Sígueme, 1988, pp. 53-54.
87
escutar pontos de vistas diferentes e assim poder contrastá-los. Embora com muito medo, eles
obedecem à convocação e comparecem diante dos dirigentes judeus para o inquérito.
Os inquisidores fazem logo três perguntas aos pais do curado, como que querendo
ratificar sem demora suas suposições: este é o filho vosso – a primeira pergunta é para
confirmar a identidade do acusado; o qual vós dizeis que cego nasceu? esta segunda parte
da pergunta revela o real motivo da investigação e do julgamento: a cegueira congênita do
filho do casal, porém o uso dos termos u`mei/j le,gete (vós dizeis) confirma a suposição de que
os inquisidores judeus acreditavam na possibilidade de mentira e fraude por parte dos pais do
que voltou a ver. Como, pois, vê agora? – a terceira pergunta mostra o grande escândalo:
Como, pois vê agora
se nasceu cego,
se pois agora vê
não pode ter nascido cego!
Este paralelo antitético simples mostra a lógica dos inquisidores, que de todas as
formas buscam uma maneira de negar o fato miraculoso. Estão “cegos”, fechados em sua
“verdade”. Não querem ver e tampouco admitir o sinal, enfim, estão reduzidos ao argumento
da autoridade e ao uso da força.
Com a repetição do verbo oi;damen
146
(três vezes nesse período), os progenitores do que
agora vê, limitam com sabedoria a sua contribuição. Com tremor e temor, respondem com
clareza à primeira pergunta, confirmando a identidade e a cegueira congênita de seu filho
(disso não tinham dúvida), porém não deixam transparecer nenhuma manifestação de seus
sentimentos. Naturalmente deviam estar felizes por seu filho, pois este era cego e recobrou a
visão, mas não podiam se manifestar por medo dos judeus. Quanto à identidade de quem o
curou, eximem-se, esgueiram-se completamente, e não explicam os detalhes da cura. Que era
Jesus quem praticara a cura deviam saber. Com uso do termo ti,j, recusam-se a emitir
qualquer juízo quanto à sua pessoa, diferente do interessado, que não teme reparos por parte
dos judeus e pronuncia-se sobre Jesus (9,17).
146
Verbo indicativo perfeito ativo, plural de oi=da: saber, poder, ser capaz de (Cf. RUSCONI, Dicionário do
grego do Novo Testamento, pp. 327-328).
88
Com astúcia e precaução os interrogados transferem a seu filho a responsabilidade de
defender-se por conta própria, alegando que idade (h`liki,a
147
) tem para isso e que a respeito
de si falará. Isto disseram por temerem (evfobou/nto
148
) os judeus. O motivo do “medo dos
judeus” não é novo (Jo 7,13) e continuará aparecendo ao longo do evangelho (Jo 12,42;
19,38). As autoridades previamente já haviam combinado que, se alguém a Cristo confessasse
(o`mologh,sh
149
), da sinagoga seria expulso. A expressão avposuna,gwgoj
150
é genuinamente
joanina (Jo 9,22; 12,42; 16,2) e, inclusive, não aparece em nenhum dos documentos judaicos,
figura em textos cristãos.
151
É exatamente na NCCN que ela aparece pela primeira vez.
Literalmente, significa “excumungado ou expulso da sinagoga”
152
. Chama à atenção, porém, a
frase que diz que os pais do ex-cego “temiam os judeus”, como se tampouco eles mesmos não
fossem judeus. Os judeus aparecem, pois, nesta passagem com um poder autoritativo que
procede severamente contra os dissidentes de seu próprio campo. Especialmente significativo
em 9,22 é o advérbio h;dh
(já). A exclusão da sinagoga havia sido previamente combinada,
pois já aparece no tempo de Jesus. Não nenhum documento que prova a expulsão, porém a
sanção era sem dúvida conhecida e aplicada no tempo do evangelista, como indica claramente
o advérbio “já”.
153
Se a expressão aponta para uma época posterior, final do século I, fica difícil
demonstrar a existência de tal medida nos tempos de Jesus. Então, no contexto histórico
somente cabe pensar em expulsão simples da sinagoga, que tinha uma duração de 30 dias.
Persiste a dúvida, se as autoridades judaicas adotaram esta medida contra os seguidores de
Jesus.
154
147
A tradução literal de h`liki,na é estatura, porém pode ser interpretado também como idade adulta (acima de
treze anos). Para ser admitida como testemunha em um tribunal, a pessoa devia ter pelo menos treze anos (no
caso de homem). Cf. MATEOS e BARRETO, O Evangelho segundo São João, p. 432; BRUCE. João:
introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1987, p. 188.
148
Verbo indicativo imperfeito médio, singular de fobe,w: temer, ter medo, estar amedrontado (Cf. RUSCONI,
Dicionário do grego do Novo Testamento, p. 484).
149
Verbo subjuntivo aoristo ativo, 3ª singular de omologew: confessar, professar, reconhecer (Cf. RUSCONI,
Dicionário do grego do Novo Testamento, p. 484).
150
Expulso da sinagoga, excumungado (Cf. RUSCONI, Dicionário do grego do Novo Testamento, p. 72).
151
Cf. WENGST, Interpretación del evangelio de Juan, Salamanca, 1988, pp.59-60;
152
J. Louis MARTYN. History and theology in the Fourth Gospel. New Yok: Harper & Row, 1968, p. 19.
153
Cf. WENGST. Interpretación del Evangelio de Juan, pp. 54-80.
154
SCHNACKENBURG, El Evangelio según San Juan, p. 315. A rivalidade entre cristãos e judeus apresenta
uma questão debatida ao longo de dois mil anos. A Universidade Católica de Louvain (Bélgica), em parceria
com o “Institutum Judaicum” (Bruxelas), levou a efeito um “simposium” nos dias 17-18 de janeiro de 2000
sobre os textos “anti-judaicos” de João, a começar por Jo 8,31-59. O resultado está presente na obra de Reimund
BIERINGER and Didier POLLEFEYT (eds.). Anti Judaism and the Fourth Gospel. Louisvielle: John knox
Press, 2001. Veja mais sobre o assunto em NEVES, Escritos de São João, pp. 178-187. Também Harold
BLOOM faz algumas “provocações” acerca do anti-semitismo presente no Evangelho de João em Jesus e Javé:
os nomes divinos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, pp. 93-110.
89
2.4.3. REAÇÃO DOS VIZINHOS, DO POVO E DAS LIDERANÇAS (letras C e C’)
2.4.3.1. Primeiro interrogatório (9,8-12):
8
Oi` ou=n gei,tonej kai. oi` qewrou/ntej auvto.n to. pro,teron o[ti prosai,thj h=n e;legon\
ouvc ou-to,j evstin o` kaqh,menoj kai. prosaitw/nÈ
9
a;lloi e;legon o[ti ou-to,j evstin ( a;lloi
e;legon\ ouvci,( avlla. o[moioj auvtw/| evstinÅ evkei/noj e;legen o[ti evgw, eivmiÅ
10
e;legon ou=n
auvtw/|\ pw/j Îou=nÐ hvnew,|cqhsa,n sou oi` ovfqalmoiÈ
11
avpekri,qh evkei/noj\ o` a;nqrwpoj
lego,menoj VIhsou/j phlo.n evpoi,hsen kai. evpe,crise,n mou tou.j ovfqalmou.j kai. ei=pe,n moi
o[ti u[page eij to.n Silwa.m kai. ni,yai\ avpelqw.n ou=n kai. niya,menoj avne,bley
12
kai.
ei=pan auvtw/|\ pou/ evstin evkei/nojÈ le,gei\ ouvk oi=daÅ
Os vizinhos, portanto, e os que viam a ele anteriormente que mendigo era diziam:
“Não é este o que se sentava e mendigava?” Outros diziam: “este é”, outros diziam:
“Não, mas semelhante a ele é”. Aquele dizia: “Eu Sou.” Diziam, pois, a ele: Como
então foram abertos seus olhos? Respondeu aquele: “O homem chamado Jesus, barro
fez, e aplicou em meus olhos, e disse a mim: ‘Vai para Siloé e lava-te’. Tendo ido pois
e me lavado tornei a ver.” E disseram a ele: Onde está aquele? Diz: “Não sei”.
Nesta cena não aparecem Jesus e nem os discípulos, mas os vizinhos e os que
conheciam o cego anteriormente, provavelmente os transeuntes que costumavam passar por
ali sempre e que observavam a condição daquele homem, que era cego e se sentava e
mendigava à porta do Templo (9,8-9). Aparece pela primeira vez a informação de que o cego
era mendigo e que sentado pedia esmolas. Mostra, aí, sua condição de impotente, de um
dependente que estava à margem da sociedade. A ligação entre as pessoas e o ex-cego é
confirmada pelo paralelo verbal entre qewrou/ntej e prosaitw/n,
pois ambos são denominados
pelo verbo particípio presente ativo nominativo.
O verbo qewrou/ntej
155
demonstra que o ato de ver, de observar, é contínuo ao ato de
dar opinião a respeito da condição de mendicante do homem curado. Uma característica desta
cena é que todas as falas são introduzidas pelo verbo le,gw
no indicativo imperfeito (e;legon/
155
Verbo particípio presente ativo nominativo de qewre,w: ver, observar, contemplar, olhar (Cf. RUSCONI,
Dicionário do grego do Novo Testamento, p. 226).
90
e;legen
156
vs. 8.9.9.9.10). Este aspecto verbal indica que as falas mencionadas não foram atos
isolados, mas que foram repetidas várias vezes, sugerindo uma discussão e um debate
continuado. A discussão gira em torno da identidade entre o cego mendigo e o homem que
agora vê. A divergência de opiniões é marcada pela alternância do pronome a;lloi, que
estabelece equivalência entre as partes. A opinião se divide em torno de duas questões
fundamentais: como aconteceu (9,10-11) e quem realizou tal cura (9,12). Dá-se, assim, o
primeiro interrogatório.
O homem que agora vê era conhecido no lugar, por isso suscita opiniões diversas: não
pode ser a mesma pessoa, pois como pode agora ver? A dúvida é desfeita mediante o
testemunho daquele que fora curado. Ele conta literalmente o que Jesus fez e lhe mandou
fazer: “O homem chamado Jesus, fez barro, e aplicou em meus olhos, e disse a mim: Vai para
Siloé e lava-te. Tendo ido, pois, e me lavado tornei a ver.” A expressão evgw, eivmi, usada pelo
cego para confirmar sua identidade, é uma expressão que o Quarto Evangelho coloca, via de
regra, na boca de Jesus, qundo ele se declara “EU SOU” absoluto (cf. 6,48; 8,12; 10,7.9;
10,11.14; 11,25; 14,6; 15,5), assim como YHWH, estabelecendo uma ponte com o relato
epifânico: “Eu sou aquele que é” (cf. Ex 3,14). O “EU SOU”, aqui, costuma ser interpretado
no sentido comum (“sou eu”), dado que o contexto não exige que se lhe dê outro sentido.
157
Contudo, é interessante notar que o uso de evgw, eivmi
em João 9,1-41 se faça por parte
de um personagem que desde o início da narrativa passa por um processo de constituição com
Jesus: ele era cego e passou a ver, estava na escuridão e encontrou a luz, era impotente e
passou à ação. Em Cristo foi cristificado, tornando-se, assim, um Cristo,j, um portador da
luz. Aparece pela primeira vez a expressão evkei/noj
(v.9) para referir-se ao ex-cego, e ao longo
da perícope aparecerá várias vezes, ora referindo a Jesus, ora referindo ao ex-cego.
Como? Esta partícula interrogativa é o leitmotiv do relato, com várias ocorrências na
NCCN: (9, 10.15.16.19.21.26), e exprime sempre mais a incompreensão das pessoas frente ao
acontecimento da cura do cego que era mendigo. Ela acarreta uma repetição múltipla da
resposta, o que cria um efeito literário de insistência que condiz com o acontecimento
inaudito. A saliva de Jesus é esquecida: se o milagre aconteceu, é propriamente pelo barro
aplicado aos olhos e pela lavagem em Siloé/Enviado, de acordo com a ordem dada por Jesus.
156
Verbo indicativo imperfeito ativo de le,gw: verbo que originariamente significava “recolher”. Em tal sentido
não se encontra no NT. Através da sucessão recolher, escolher, reunir, contar, narrar, chegou ao significado de
“dizer” (Cf. RUSCONI, Dicionário do grego do Novo Testamento, p. 284).
157
Cf. BROWN, El Evangelio según Juan, p. 616.
91
Naturalmente todos querem saber: Quem realizou tal cura? Para o ex-cego, quem
realizou a cura foi tão somente um homem chamado Jesus
158
. Para dizer que ele vê, utilizou-se
o verbo avne,bleya,
159
condicionado pelos particípios
avpelqw.n
160
niya,menoj
161
)
Este verbo
indica que os olhos foram erguidos em direção a alguém, sugere que o ex-cego olha na
direção daquele que o curou, embora não o conheça ainda. No fim da narrativa, ele o verá
plenamente (9,37). Ilustra alguém que foi iluminado no primeiro encontro, mas vai
conseguir ver quem Jesus realmente é mais tarde. No fim, ele será o objeto de sua adoração
(v.38). Podemos perceber uma diferença com o curado no tanque de Betesda (5,13), que não
sabe quem o curou. Diz apenas: Jesus, “aquele que me curou.”
Enfim, se o ex-cego ignora “onde está aquele homem”, é que este homem será o
objeto verdadeiro da contestação que se segue e ao longo do qual o antigo cego, intimado a se
pronunciar, aprofunda sua experiência e progride na compreensão daquele que lhe fez ver a
luz.
2.4.3.2. Quarto interrogatório: ( 9,24-34)
24
VEfw,nhsan ou=n to.n a;nqrwpon evk deute,rou o]j h=n tuflo.j kai. ei=pan auvtw/|\ do.j
do,xan tw/| qew/|\ h`mei/j oi;damen o[ti ou-toj o` a;nqrwpoj a`martwlo,j evstinÅ
25
avpekri,qh ou=n
evkei/noj\ eiv a`martwlo,j evstin ouvk oi=da\ e]n oi=da o[ti tuflo.j w'n a;rti ble,pwÅ
26
ei=pon
ou=n auvtw/|\ ti, evpoi,hse,n soiÈ pw/j h;noixe,n sou tou.j ovfqalmou,jÈ
27
avpekri,qh auvtoi/j\
ei=pon u`mi/n h;dh kai. ouvk hvkou,sate\ ti, pa,lin qe,lete avkou,einÈ mh. kai. u`mei/j qe,lete
auvtou/ maqhtai. gene,sqaiÈ
28
kai. evloido,rhsan auvto.n kai. ei=pon\ su. maqhth.j ei evkei,nou(
h`mei/j de. tou/ Mwu?se,wj evsme.n maqhtai,\
29
h`mei/j oi;damen o[ti Mwu?sei/ lela,lhken o`
qeo,j( tou/ton de. ouvk oi;damen po,qen evsti,n
30
avpekri,qh o` a;nqrwpoj kai. ei=pen auvtoi/j\ evn
tou,tw| ga.r to. qaumasto,n evstin ( o[ti u`mei/j ouvk oi;date po,qen evsti,n ( kai. h;noixe,n mou
tou.j ovfqalmou,j
31
oi;damen o[ti a`martwlw/n o` qeo.j ouvk avkou,ei ( avllV eva,n tij qeosebh.j
158
“Jesus” (em hebraico Jeshua: Javé salva) é o nome próprio de Jesus de Nazaré. “Cristo” (O Messias: o
Ungido, a saber, de Deus) é um título honorífico judeu-protocristão que, porém, no cristianismo helenístico
não era mais entendido, de modo que “Jesus Cristo”, naquela época, parecia um nome duplo. Veja Theodor
SCHNEIDER (org). Manual de dogmática I. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 237.
159
Verbo indicativo aoristo ativo de avnable,pw: olhar para o alto, elevar os olhos, tornar a ver (Cf. RUSCONI,
Dicionário do grego do Novo Testamento, p. 40).
160
Verbo particípio aoristo ativo nominativo de avpe,rcomai: ir embora, partir, afastar-se (Cf. RUSCONI,
Dicionário do grego do Novo Testamento, p. 62).
161
Verbo particípio aoristo médio nominativo de ni,ptw: lavar-se (Cf. RUSCONI, Dicionário do grego do Novo
Testamento, p. 320).
92
h=| kai. to. qe,lhma auvtou/ poih/| tou,tou avkou,eiÅ
32
evk tou/ aivw/noj ouvk hvkou,sqh o[ti
hvne,w|xe,n tij ovfqalmou.j tuflou/ gegennhme,nou
33
eiv mh. h=n ou-toj para. qeou/( ouvk
hvdu,nato poiei/n ouvde,na
34
avpekri,qhsan kai. ei=pan auvtw/|\ evn a`marti,aij su. evgennh,qhj
o[loj kai. su. dida,skeij h`ma/jÈ kai. evxe,balon auvto.n e;xwÅ
Chamaram, pois, o homem pela segunda vez o que era cego, e disseram-lhe: “Dá
glória a Deus; nós sabemos que esse homem pecador é.” Respondeu pois aquele: “Se
pecador é, não sei; uma coisa sei, que cego sendo agora vejo.” Disseram pois a ele:
“Que fez a ti? Como abriu teus olhos?” Respondeu a eles: “Eu disse a vós e não
ouvistes por que novamente quereis ouvir? E vós quereis dele discípulos tornar-vos?”
E insultaram a ele e disseram: “tu discípulo és daquele, porém nós de Moisés somos
discípulos; Nós sabemos que a Moisés falou Deus, porém este não sabemos donde é.”
Respondeu o homem e disse a eles: “sobre isto de fato o maravilhoso está, que vós não
sabeis donde é, e abriu meus olhos. Sabemos que pecadores Deus não ouve; mas, se
alguém temente a Deus for e a vontade dele fizer a este ouve. Desde o princípio não
foi ouvido que abriu alguém os olhos de cego nascido: Se não fosse este da parte de
Deus não poderia fazer nada.” Responderam e disseram a ele: “Em pecados tu és
nascido de todo e tu ensinas a nós?” E expulsaram-no para fora.
Entramos no quarto interrogatório do ex-cego e segundo feito pelas autoridades
judaicas ao ex-cego. Esta cena apresenta o debate como tal sobre a cura e, ao mesmo tempo, o
confronto dramático entre o curado e os opositores de Jesus. Distinguem-se duas partes (v.
24-25 e 29-34) com um desenvolvimento análogo e uma tensão crescente: afirmação dos
judeus sobre Jesus (v.24), declaração do curado e pergunta dos judeus (v.25-26), ataque do
curado e violenta reação dos judeus (v.27-28); nova afirmação dos judeus sobre Jesus (v.29),
defesa do curado (v.30-33), reação final dos judeus (v.34).
As autoridades judaicas não conseguem provar que houve fraude no fato da cura,
então chamam de novo o outrora cego, a fim de obrigá-lo, com uma pressão autoritária, a
desdizer suas afirmações precedentes. Inicia-se o v. 24 com a mesma forma verbal utilizada
para referir-se ao chamado dos pais do ex-cego (VEfw,nhsan
162
). Também encontramos mais
duas vezes a partícula ou=n, que será usada para desencadear os acontecimentos.
162
Verbo indicativo aoristo, plural de fwne,w: chamar alguém, convocar (Cf. RUSCONI, Dicionário do grego
do Novo Testamento, pp. 488-489).
93
A expressão “dá glória a Deus é uma típica expressão com que se convida a
agradecer a Deus pelos benefícios recebidos (cf. Sl 67,35; Lc 17,18) ou a submeter-se à sua
vontade (Jr 13,16; Rm 4,20). Em nosso caso, é um convite a testemunhar a verdade no
processo. Significa “não esconda nada; confesse a verdade” por temor a Deus. glória a
Deus tem, aqui, a mesma força do caso na história de Acã: “Quando a sorte indicou Acã como
o responsável pelo desastre de Israel, Josué lhe disse: ‘Meu filho, glória a Iahweh, Deus de
Israel, e a ele rende louvores; declara-me o que fizeste; nada me ocultes’” (Js 7,19).
Não fica claro no texto qual seria a “verdade” a ser confessada pelo outrora cego, mas
parece que os dirigentes querem que o curado admita que a cura fosse uma mentira e que teria
sido melhor continuar cego, porque a vista de que agora goza é contrária à vontade de Deus.
Defendem sua posição negando a evidência. São os inimigos da luz; com “a mentira” (8,44)
tentam extingui-la (1,5).
163
A ironia joanina brinca com o emprego freqüente do verbo oi=da,
164
que nesta cena
aparece 7 vezes (9, 24.25.25.29.29.30.31) e será peça importante na argumentação de ambos
os lados, como indicador dos pressupostos com que cada parte está lidando. Por meio deste
termo, faz-se sentir uma tensão entre os dirigentes e o réu. Os primeiros, são inabaláveis em
suas certezas, sublinham a presunçosa “ciência” dos judeus, como enfatiza a repetição do
h`mei/j
(9,24. 28.29). A segunda, opondo-lhe um saber mais radical e que não pode ser
superado (9,31 é a última menção deste saber). Assim, podemos visualizar um quiasmo (a-b-
b’-a’) implícito formado por pergunta e resposta:
dá gloria a Deus
nós sabemos que esse homem pecador
se pecador é não sei
só sei que sendo cego agora vejo
Julgando “segundo as aparências” (7,24), Jesus violou a lei do sábado, é um pecador e
por isso a posição dos judeus é justificada.
165
De forma bastante irônica, o homem curado
uma de desentendido: “Se Jesus é pecador não é de meu conhecimento!...” No v.33 seguirá a
163
MATEOS e BARRETO, O Evangelho segundo São João, p. 438; BRUCE, João: introdução e comentário, p.
189.
164
Verbo indicativo perfeito ativo oi=da: saber, conhecer, recordar (Cf. RUSCONI, Dicionário do grego do Novo
Testamento, p. 328).
165
Jesus vai contra a lei sabática e, pior ainda, apresenta-se como “Um com o Pai”, como “superior a Abraão e a
Moisés” (8,52-58; 10,30-33), o que tem gerado muitas discussões (veja BLOOM, Jesus e Javé, pp. 93-110).
94
resposta verdadeira: “vocês dizem que Jesus é pecador porque desrespeitou a lei do sábado,
mas Deus não atende ao pedido de pecadores e, como mestres, deveriam saber”. Embora
pareça reconhecer que Jesus violou a lei do sábado e também que os judeus são autoridades
nessa matéria, a pergunta que se faz, segundo as palavras dos próprios judeus é: se Jesus
burlou a lei para devolver a visão ao cego, que é uma coisa boa evidentemente, Jesus está
acima da lei?
Pela quarta vez a pergunta sobre como foram abertos os olhos do ex-cego é feita
(9,10.15.19.25), só que agora de uma forma direta, diferente na ocorrida em 9,19, que
acontece num tom irônico. Porém, a resposta do ex-cego é dada em tom de ironia: “Eu disse a
vós já e não ouvistes por que novamente quereis ouvir?” (9,27). O que sugere este tom irônico
é o uso do verbo qe,lete
166
a repetição do verbo avkou,w (hvkou,sate
167
avkou,ein
168
). Ou seja, não
adiantará muito discutir com esses inquisidores, pois eles estão surdos e não querem ouvir. Só
teria sentido se quisessem aprender (crer), isto é, tornarem-se discípulos daquele. Suas
palavras são importantes porque introduzem o tema fundamental do processo que os judeus
hesitavam em anunciar explicitamente: a autenticidade de quem realizou tal prodígio e a
atitude a tomar frente a ele.
Ante tal provocação, os judeus lançam insultos (evloido,rhsan
169
) contra o ex-cego: “tu
discípulo és daquele”. E diziam orgulhosamente: “porém, nós de Moisés somos discípulos;
Nós sabemos que a Moisés falou Deus, porém este não sabemos donde é.” Ser discípulo de
Moisés é uma característica dos letrados fariseus, afinal Moisés é o intérprete de Deus por
excelência e estes se colocam como os guardiões da Torah. Se os judeus julgam se embasar na
lei de Moisés, “a quem Deus falou”, e isso a eles lhes consta, podemos recordar que Jesus se
apresenta como um grande legislador num testemunho em seu próprio favor no capitulo 5, 19-
47. Para estes judeus, Jesus não passa de um homem obscuro, de origem desconhecida. Em
7,27, o povo de Jerusalém acreditava saber de onde provinha Jesus, concretamente da Galiléia
(7,41). Jesus sempre respondeu que sua procedência vinha do Pai (8,14) e é exatamente essa
origem celeste que os judeus ignoravam. “Os que cantam a libertação antiga opõem-se à
166
Verbo indicativo presente ativo, plural de qe,lw: querer, desejar algo (Cf. RUSCONI, Dicionário do grego
do Novo Testamento, p. 224).
167
Verbo indicativo presente ativo, 3ª singular de avkou,w
)
168
Verbo indicativo aoristo passivo, 3ª singular de avkou,w
)
169
Verbo indicativo aoristo ativo, singular de loidore,w: insultar, difamar, censurar (Cf. RUSCONI,
Dicionário do grego do Novo Testamento, p. 289).
95
presente. Ao Deus, que em outros tempos os tirou da escravidão, proíbem agora tirar outros
da escravidão que eles causam”.
170
De acordo com o conjunto de respostas, podemos mais uma vez visualizar uma
moldura de quiasmo, que um pouco mais complexa do que as encontradas anteriormente
(a-b-c-c’-b’-a’). uma dupla repetição da partícula de. (porém), que fará a ligação entre a
moldura e o miolo da estrutura, tanto de a para c quanto de c’ para a’. Na estrutura a-a’, a
referência é feita a Jesus, do qual o ex-cego é acusado de ser discípulo e que, porém (b’), os
fariseus não sabem de onde vem. No centro do quiasmo encontraremos a referência dos
fariseus a Moisés, de quem são discípulos e que, porém (b), eles sabem de onde vem, pois a
ele falou Deus:
a tu discípulo és daquele
b porém
c nós de Moisés somos discípulos
c’ nós sabemos que a Moisés falou Deus
b’ porém
a’ este não sabemos donde é
O que também chama à atenção nesta cena é o uso do verbo lela,lhken,
171
que indica
ação iniciada no passado, cujos efeitos perduram no tempo, tornando, assim, a ação sempre
atual, um memorial
172
. Para os judeus, o memorial tem o sentido de olhar para o passado,
projetando-o para o futuro, com esperança escatológica e sentindo que o acontecimento
histórico e o futuro se concentram no “hoje”. O presente é continuidade com o passado e
170
MATEOS e BARRETO, O Evangelho segundo São João, p. 438; BRUCE, João: introdução e comentário, p.
437.
171
Verbo indicativo perfeito ativo, do singular de lale,w: falar, dizer, discorrer (Cf. RUSCONI, Dicionário do
grego do Novo Testamento, p. 282).
172
O memorial (em hebraico zikkaron, de zkr, zakar, recordar; em grego, annamnesis ou mnemosynon) tem um
sentido descendente e outro ascendente (Cf. José ALDAZÁBAL. A eucaristia. Petrópolis: Vozes, 2002, pp. 43-
44.
96
antecipação do futuro. O memorial é entendido, então, como acontecimento histórico e
recapitulação de toda história. A comunidade se sente contemporânea dos fatos passados e
destinatária dos bens futuros.
O memorial é uma das atitudes mais características da cultura religiosa judaica. Não é
mero lembrete subjetivo, mas objetivo, o que lembra um sinal visível de uma realidade que
não se considera passada, mas presente. Não se celebra tanto a aliança de séculos passados,
mas a que ainda subsiste e à qual Iahweh continua sendo fiel. Não que Iahweh salvasse
“nossos pais” na saída do Egito ou na passagem do Mar Vermelho: Deus falou ontem a
Moisés e é como se falasse conosco hoje (Dt 5,2-3). Seus efeitos perduram no tempo. Por
isso, os judeus em 9,29 enfatizam que sabem que a Moisés Deus falou. Para eles, a revelação
divina não é um evento passado, mas presente, que se renova no cultivo das tradições tanto
orais (Hagadá e Halaká) como escritas (Midraxe).
No versículo 30, sem ser perguntado o ex-cego continua seu discurso irônico, voltando
a falar da abertura de seus olhos, e o que lhe deixa espantado e maravilhado não é nem mais o
milagre, mas o fato de as autoridades não saberem a procedência de quem o curou. Para ele, é
inadmissível e isto é perceptível pelo uso do termo qaumasto,n,
173
que mostra tanto espanto
quanto admiração. O ex-cego continua ironizando ao usar o verbo oi;damen, ou seja, ele adota
o discurso dos inquisidores, pelo menos momentaneamente (9,16.24), do mesmo modo como
Jesus adota o “oi;damen” de Nicodemos em 3,11.
O futuro do ex-cego dependerá de seu testemunho. Agora não age como um réu,
mas assume a posição de mestre em favor “do profeta” (9,17) que o curou. Dá aos judeus uma
lição de sabedoria num discurso erudito. Ele faz uma síntese, uma retomada dos
interrogatórios anteriores, a fim de desmascarar a incoerência de seus inquisidores. Conclui,
de forma óbvia e incontestável, que Deus não pode conceder a um descrente realizar obra tão
extraordinária: “Sabemos que pecadores Deus não ouve, mas se alguém temente a Deus for e
a vontade dele fizer a este ouve.” Trata-se de um princípio básico conhecido, por exemplo, em
Is 1,15. Ele usa também a expressão evk tou/ aivw/noj”, uma fórmula rabínica para dizer que a
tradição bíblica não registra caso semelhante.
174
O resultado é que os líderes judaicos percebem que estão em desvantagem na
discussão. Reconhecem que o homem nasceu cego e, de acordo com seus próprios princípios,
173
Adjetivo normal nominativo neutro singular de
qaumasto,j: admirável, maravilhoso, extraordinário (Cf.
RUSCONI, Dicionário do grego do Novo Testamento, p. 224).
174
Cf. BROWN, El Evangelio según Juan, vol. I. p. 619.
97
não resposta para tal argumento. Então, chamam o ex-cego de evn a`marti,aij (pecador de
nascença ou nascido todo em pecado). Sugerem, assim como os discípulos (9,2), que sua
cegueira congênita seria por causa de seu pecado ou por causa do pecado de seus pais,
exatamente aquilo que Jesus tinha negado nos versículos 2 e 3. Isto diziam os dirigentes
judaicos por acharem que era muita impertinência um “iletrado”, que fazia parte do
“populacho”, discutir com os reconhecidos intérpretes da lei.
Os líderes judaicos expulsam (evxe,balon
175
) o homem e lançam-no para fora (e;xw) da
comunidade sinagogal (cf. 9,22). Cego, curado, interrogado, vidente, testemunha, mestre,
banido... Agora ele participa plenamente da sorte de Jesus (15,20). Excluído está onde está
seu mestre (12,26). As trevas queriam sufocar a luz, porém disse Jesus: “quem me segue não
andará nas trevas, mas terá a luz da vida” (8, 12). De fato, logo mais ele mesmo o encontrará.
2.4.4. ENCONTRO E REENCONTRO COM JESUS (letras B e B’)
2.4.4.1. A cura física (9,6-7)
6
tau/ta eivpw.n e;ptusen camai. kai. evpoi,hsen phlo.n evk tou/ ptu,smatoj kai. evpe,crisen
auvtou/ to.n phlo.n evpi. tou.j ovfqalmou.j)
7
kai. ei=pen auvtw/|\ u[page ni,yai eivj th.n
kolumbh,qran tou/ Silwa,m ¿o] e`rmhneu,etai avpestalme,nojÀÅ avph/lqen ou=n kai. evni,yato kai.
h=lqen ble,pwnÅ
Isso tendo dito cuspiu na terra e fez barro com a saliva, e aplicou dele o barro sobre os
olhos. E disse a ele: Vai, lava-te na piscina de Siloé (o que é interpretado Enviado).
Saiu, pois, e lavou-se e veio vendo.
Nesta cena acontece o sinal propriamente dito: Jesus cura o cego. Inicia-se com tau/ta
eivpw.n
(Isso tendo dito), uma expressão que aparece mais 9 vezes ao longo do Evangelho de
João ( 7,9; 11,28.43; 13,21; 18,1.38; 20,14.20.22). Também encontramos neste período uma
seqüência de orações coordenadas (polissíndeto
176
), com verbos no tempo narrativo indicativo
175
Verbo indicativo aoristo ativo, 3ª plural de evkba,llw: lançar, expulsar, despedir (Cf. RUSCONI, Dicionário do
grego do Novo Testamento, p. 154).
176
É o emprego intencional do conectivo coordenativo.
98
aoristo, iniciados pela partícula kai.: kai. evpoi,hsen
177
( kai. evpe,crisen
178
( kai. ei=pen
179
( kai.
evni,yato
180
( kai. h=lqen
181
.
Jesus passa à ação: cospe no chão e faz barro com sua saliva
182
, sem nenhuma consulta
ao interessado, porque este, sendo cego de nascimento, não sabia o que era luz para poder
desejá-la ou não. Encontramos nos Evangelhos Sinóticos algumas curas de cego: Cura do
cego Bartimeu, que estava sentado e pedia esmola perto de Jericó quando Jesus ia a caminho
de Jerusalém (Mc 10,46-52; Lc 18,35-43; Mt 20,29-34 [2 cegos]); Cura de dois cegos na
Galiléia (Mt 9,27-31; Cura de um cego e mudo na Galiléia (Mt 12,22-23). No Evangelho de
Marcos (8,22-26) encontramos ainda outra cura de cego com “uso” do cuspe, porém ao cuspe
de Marcos o Quarto Evangelho acrescenta o da terra (camai) para fazer o barro (phlo.n
183
).
J. D. Crossan considera os dois textos como versões independentes da mesma fonte,
principalmente por causa da conjunção dos elementos cegueira e cuspe.
184
Por sua vez,
Morton Smith cita o cuspe como um exemplo de como “o relato dos milagres nos Evangelhos
conserva vários traços de rituais mágicos”.
185
Na frase kai. evpe,crisen auvtou/ to.n phlo.n evpi. tou.j ovfqalmou.j (“e aplicou dele o barro
nos olhos”), o possessivo auvtou/
só pode determinar to.n phlo.n)
Entre o possessivo e o
substantivo a que determina poderia-se intercalar um verbo como, por exemplo, ocorre em
11,21: ouvk a'n avpe,qanen o` avdelfo,j mou
(“não teria morrido o irmão meu”
186
). Ou seja, o
pronome possessivo auvtou/
em 9,6 se refere a Jesus e não aos olhos do cego. Parece querer
insistir que o barro é de Jesus, porque o fez ele mesmo com sua saliva. Ao insistir no barro,
que aparece cinco vezes na perícope (9.6.6.11.14.15), reforça seu sentido simbólico.
177
Verbo indicativo aoristo ativo, pessoa singular de pole,w: fazer, operar, agir, tomar, trabalhar (Cf.
RUSCONI, Dicionário do grego do Novo Testamento, pp. 379-380).
178
Verbo indicativo aoristo ativo, 3ª pessoa singular de evpicri,w: espalhar algo sobre algo, aplicar, untar, ungir
(Cf. RUSCONI, Dicionário do grego do Novo Testamento, p. 196).
179
Verbo indicativo aoristo ativo, pessoa do singular de le,gw: dizer (Cf. RUSCONI, Dicionário do grego do
Novo Testamento, p. 284).
180
Verbo indicativo aoristo médio, pessoa singular de ni,ptw: lavar-se (Cf. RUSCONI, Dicionário do grego
do Novo Testamento, p. 320).
181
Verbo indicativo aoristo ativo, 3ª pessoa singular de ev,rcomai: voltar, vir, chegar, caminhar, atingir (Cf.
RUSCONI, Dicionário do grego do Novo Testamento, p. 199).
182
Cf. também o uso da saliva em Mc 7,33. Na antiguidade, tanto no mundo judaico como no mundo helenístico,
era bem conhecido o uso da saliva na medicina popular, pois se acreditava que ela contivesse qualidades
terapêuticas na cura de afecções oculares (Veja PLÍNIO, Nat. 28,7; TÁCITO, Hist. IV, p. 81).
183
Substantivo acusativo masculino singular comum: lodo, barro, argila (Cf. RUSCONI, Dicionário do grego do
Novo Testamento, p. 373).
184
CROSSAN, O Jesus histórico, pp. 177-191.
185
SMITH, Jesus the magician, p. 223.
186
MATEOS e BARRETO, O Evangelho segundo São João, p. 422.
99
O gesto de aplicar (evpicri,w ) o barro, no entanto, será mencionado mais quatro vezes
na continuidade da narrativa (9,6.11.14.15). Este verbo é traduzido algumas vezes como
aplicar
187
e outras vezes como ungir
188
, porém, neste versículo, o verbo utilizado é evpicri,w
189
e não cri,w
190
. Sendo assim, traduziremos evpicri,w sempre como aplicar. Jesus aplicou o barro
nos olhos do cego; não ungiu num sentido messiânico de unção (como aparece, por exemplo,
em Sl 45, 8-9 ou 1Rs 19,15-18), mas sim no sentido de aplicar, colocar o barro nos olhos do
cego.
O gesto de aplicar o barro foi interpretado recordando a criação do mundo, quando
Deus, no sexto dia, junta terra do chão e modela o primeiro homem (‘Adam) que, em
hebraico, é o masculino de ‘adamah, “terra”. Simbolicamente significa, portanto, o “terreno”,
aquele que nasce da terra (Gn 2,7). Assim, o gesto de Jesus significaria o término da primeira
criação, em vista do ser perfeito que é o homem que crê.
191
A repetição serve também para
encenar a ruptura do sábado, que será denunciada pelos fariseus (9,16; 9,24).
Depois que os olhos do cego foram cobertos com barro, Jesus manda que ele vá se lavar
na piscina de Sil(hebraico x:l{êVih
192
), único lugar que recebe nome no relato. Pode ser que
este fosse o lugar mais próximo, porém o evangelista indica outro significado, o de
“Enviado”. A piscina de Siloé não se confunde com a fonte
193
: situada a sudoeste da cidade
de Ofel (cidade velha), encontrava-se no fim de um túnel construído por Ezequias (em torno
de 740 a.C.) para levar água do Guihon (1Rs 1,33; 2Rs 20,20; 2Cr 32,30; Sr 48,17) para
Jerusalém. Segundo o rito da Festa das Tendas, que tinha uma dimensão messiânica, uma
procissão solene vinha tirar água desse reservatório. Honrava-se, assim, a dinastia davídica
187
Bíblia de Jerusalém; Bíblia TEB. A Bíblia Almeida, de 1969, traduz como “ungir”, porém a Almeida Revista
e atualizada, de 1993, traduz como “aplicar”; SCHNACKENBURG, El Evangelio según San Juan, p. 302.
188
Bíblia do Peregrino; MATEOS e BARRETO, O Evangelho segundo São João, p. 426; BROWN, El
Evangelio según Juan, p. 612; LEON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João, vol. II, p. 223.
189
Verbo indicativo aoristo ativo, 3ª pessoa de evpicri,w: espalhar: algo sobre algo, aplicar, untar, ungir (Cf. Isidro
PEREIRA. Dicionário grego-português e português-grego. 4 ed. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1969,
p. 225; RUSCONI, Dicionário do grego do Novo Testamento, p. 196).
190
Tocar ligeiramente, roçar, pinchar suavemente, ungir, perfumar, untar, esfregar (Cf. PEREIRA, Dicionário
grego-português e português-grego, p. 633).
191
Entre os Padres da Igreja existe uma tradição exegética segundo a qual o barro formado com a saliva recorda
a formação do primeiro homem (Gn 2,7). Veja IRENEU DE LIÃO. Contra as heresias, livro V, 15,2, pp. 558-
559.
192
As águas de x:l{êVih;, (infinitivo qal), que a LXX transcreve como Siloam, possuem, primeiramente, um sentido
ativo: a conduta, o canal. Pode ser lido também como passivo: “ser enviado” (Cf. SCHNACKENBURG, El
Evangelio según San Juan, p. 306).
193
Esta fonte é a segunda piscina referida no evangelho. Aparece em 5,2, em Jerusalém, junto à “Porta das
Ovelhas”, que em hebraico se chama Bethzata, com cinco pórticos.
100
que veio a simbolizar, uma vez que Isaías censurava o povo por desprezar essas “águas que
correm suavemente” (Is 8,6).
194
O gesto de aplicar o barro e lavar-se na piscina de Siloé fez com que este texto fosse
interpretado também no sentido batismal, pois indícios de que se faziam os banhos dos
prosélitos gentios.
195
Esta narrativa mostra como o significado simbólico do milagre é
fornecido antes mesmo da cura ter se realizado, mesmo antes de cuspir. Depois do cuspe, é
Siloé/Enviado que completa a cura. Banhar-se em águas sagradas parece ter sido uma terapia
conhecida na tradição israelita. A ordem que Jesus dá faz pensar naquela que o profeta Eliseu
deu a Naamã (o leproso), de ir mergulhar-se sete vezes no rio Jordão (2Rs 5,8-14). Naamã se
mostrava renitente e reticente, mas o cego de nascença obedece a Jesus, pode-se dizer,
“cegamente”.
Mediante o gesto de Jesus, o homem que nunca vira a luz, pois se encontrava prisioneiro
nas trevas, vai a Siloé, isto é, ao Enviado, banha-se e volta vendo (ble,pwn
196
), isto é,
“iluminado”: seus olhos se abrem e ele vê (9,7), sua mente se abre e ele crê (9,35-38). Quando
Jesus o cura, cura-o por inteiro. Não quer apenas abrir-lhe os olhos do corpo e dar-lhe luz
material, mas, sobretudo, quer penetrar-lhe a mente e também as daqueles que o assistem,
mostrar-lhes outra luz, a luz da (Cf. Jo, 9,5; Mt 9,29-30; Mt 20,32-33; At 26,18). Diz ele:
“enquanto no mundo estiver, luz sou do mundo” (Jo 9,5).
Jesus manifesta que sua missão é libertar das trevas. Dar vista aos cegos era um dos
sinais próprios da salvação definitiva, anunciada pelos profetas, como símbolo da libertação
da tirania: “Naquele dia, os surdos ouvirão o que se lê, e os olhos dos cegos, livres da
escuridão e das trevas, tornarão a ver” (Is 29, 18).
2.4.4.2. A fé confirmada (9,35-38)
35
:Hkousen VIhsou/j o[ti evxe,balon auvto.n e;xw kai. eu`rw.n auvto.n ei=pen\ su. pisteu,eij eivj
to.n ui`o.n tou/ avnqrw,pouÈ
36
avpekri,qh evkei/noj kai. ei=pen\ kai. ti,j evstin( ku,rie ( i[na
pisteu,sw eivj auvto,nÈ
37
ei=pen auvtw/| o` VIhsou/j\ kai. e`w,rakaj auvto.n kai. o` lalw/n meta.
sou/ evkei/no,j evstinÅ
38
o` de. e;fh\ pisteu,w( ku,rie\ kai. proseku,nhsen auvtw=)
194
LEON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João, vol. II, pp. 233-234.
195
MATEOS e BARRETO, O Evangelho segundo São João, p. 422.
196
Verbo particípio presente ativo nominativo masculino singular de ble,pw: ver, olhar, dirigir o olhar, ter a vista,
enxergar (Cf. RUSCONI, Dicionário do grego do Novo Testamento, pp. 99-100).
101
Ouviu Jesus que o expulsaram e encontrando-o disse: “Tu crês no Filho do Homem?
Respondeu aquele e disse: “E quem é Senhor, para que eu creia nele?” Disse-lhe Jesus:
E tanto viste aquele quanto o que fala contigo é”. Ele disse: “Creio, Senhor.” E
adorou-o.
Esta cena (9,35-38) é paralela à segunda (9.6-7). Nos versículos 6-7 dá-se o encontro
com Jesus: a cura. Agora, nos versículos 35-37, num reencontro com Jesus o ex-cego é
incluído no grupo de seguidores e, pela confirmada, torna-se um discípulo, um
(e;pi,cristoj). A iluminação do cego de nascença complementa o relato de sua cura.
Inicia-se com Jesus que ouviu (h;kousen
197
) que os inquisidores judeus expulsaram e
lançaram para fora da sinagoga o homem que por ele foi “tocado” e curado. Jesus, que
agora volta à cena, depois de estar ausente durante todo o processo, encontra (eu`rw.n
198
) o
miraculado (parece-nos que de forma voluntária), que se tornou sua testemunha no confronto
com os judeus, ao ponto de ser por eles rejeitado, e o conduz à fé perfeita: seus olhos se abrem
e ele (9,7), sua mente se abre e ele crê (9,35-38). Seu ver é símbolo do crer. Aquele que
estava na escuridão, agora brilha diante da verdadeira luz que o aborda para interrogá-lo de
forma pessoal, como acentua o su. enfático (9,35). Desde o primeiro encontro não tinha
havido diálogo entre o taumaturgo e o curado, mas um gesto e uma ordem a que o cego de
nascença havia respondido pela obediência (9,7).
Agora Jesus faz uma pergunta ao ex-cego, que em grego implica uma resposta
afirmativa: su. pisteu,eij eivj to.n ui`o.n tou/ avnqrw,pouÈ (“tu crês no Filho do Homem?”).
199
É a
primeira vez no Quarto Evangelho que Jesus requer expressamente a na sua pessoa e não
apenas em suas palavras (4,21; 5,46-47). É possível que o título “Filho do Homem” tenha sido
197
Verbo indicativo aoristo ativo, 3ª singular de avkou,w)
198
Verbo particípio aoristo ativo nominativo de eu,ri,skw:
encontrar, achar, obter (Cf. RUSCONI, Dicionário do
grego do Novo Testamento, p. 206).
199
Os manuscritos de que dispomos não concordam quanto ao título que Jesus aplica a si mesmo em sua
pergunta: “Filho do Homem” (como consta dos manuscritos mais antigos, inclusive os Papiros 66 e 75) ou
“Filho de Deus”. O fato de que este último título seja mais comum neste evangelho torna mais provável que ele
tenha substituído o “Filho do homem” original do que o contrário. “Filho do homem”, como mostra 5,27, é um
título que lembra o papel do juiz, que o Pai conferiu ao Filho, e prepara o leitor para os comentários sobre o
julgamento nos versículos 39-41. Pode também haver, aqui, um vínculo com o papel de advogado creditado ao
Filho do Homem na tradição dos Sinóticos, em que aqueles que confessam Jesus aqui na terra serão
reconhecidos pelo Filho do Homem na presença dos anjos (Lc 12,8). Veja BRUCE, João: introdução e
comentário, p. 188; Werner Georg KÜMMEL. Síntese teológica do Novo Testamento de acordo com as
testemunhas principais: Jesus, Paulo, João. São Paulo: Teológica, 2003, p. 338-340.
102
sugerido pelo tema do julgamento (kri,ma), que aparecerá no versículo 9,39. Segundo a
tradição judaica de Daniel, a figura do Filho do Homem é a do juiz escatológico (Dn 7,13).
Ora, em dez menções a este título no Quarto Evangelho, apenas uma (5,27) diz respeito à
função de juiz, enquanto as outras demonstram um ou diversos aspectos essenciais do
itinerário salvífico do Filho de Deus: sua relação incessante com o céu (1,51), sua descida das
alturas (3,13), sua subida ao céu (6,62), passando pela elevação na cruz (3,14;12,34), que é
glorificado (13,31), e incluindo-se o dom do alimento da vida (6,27.53). A menção em
nosso texto (9,35) é a única em que o título não é acompanhado por um verbo explicitando o
comportamento ou a sorte desta figura. Seu emprego absoluto sugere que aqui se evoca a
totalidade do mistério, na sua realização efetiva e na sua dimensão salvífica.
200
Através do sinal, o ex-cego reconheceu Jesus como profeta vindo de Deus. Agora ele o
confessa como maior do que um profeta. Ele é chamado a crer no Filho do Homem. Mesmo
que no versículo 36 o vocativo ku,rie tenha o sentido cortês de “senhor”, no versículo 38 ele é
mais do que isto; é uma indicação de que Jesus é uma pessoa digna de receber adoração. Sua
pergunta mostra que ele ainda não conhece sua identidade, porém o homem que tinha sido
interrogado pelos judeus expressa sua boa disposição para crer. Jesus se a conhecer de
maneira inequívoca. Através da partícula kai. (9,37), o ex-cego centra a atenção no homem
que tem diante de si e que lhe está falando. O verbo e`w,rakaj
201
assinala uma experiência que
se prolonga até o presente e tem aqui, como em 14,7.9 e em 20,29, um sentido
predominantemente presente. Com este encontro o ex-cego o Filho do Homem e agora o
contempla diante de si, com outros olhos. Não é um recordar a abertura de seus olhos. Se
assim o fosse, o evangelista empregaria o verbo ble,pw ou avnable,pw, até agora empregado
para dizer que o cego via corporalmente (9,7.11.15.15.18.19.21.25). No entanto, ele emprega
e`w,rakaj,
ou seja, está implícita uma visão mais profunda, que não é outra senão a visão da fé.
“Ver” tem aqui um sentido de visão espiritual.
Encontramos de novo nesta cena o emprego da conjunção subordinativa final i[na)
Em
9,2-3 ela teve um papel importante na construção do diálogo entre Jesus e seus discípulos.
Agora ela aparece entre a identificação do Filho do Homem e a adesão que o ex-cego dará a
ele. Então, podemos supor certa correspondência entre ambas como parte da moldura da
perícope, pois expressam finalidade.
200
LEON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João, vol. II, p. 239.
201
Verbo indicativo perfeito ativo, singular de ovra,w: ver, perceber, sentir (Cf. RUSCONI, Dicionário do
grego do Novo Testamento, pp. 333-334).
103
Talvez se tenha evitado, de propósito, a fórmula de revelação evgw, eivmi, porque o Filho
do Homem somente pode ser visto através da (cf.14,9), ou porque a fórmula está vinculada
ao Filho do Homem em sua exaltação (8,28). Jesus não disse “Eu Sou o Filho do Homem”,
mas sim “E tanto viste aquele quanto o que fala contigo é”. Não obstante, o uso de evkei/no,j
na
palavra de Jesus tem uma chamada direta para fé. É a palavra que é dom por excelência que
permite ao homem passar das trevas à luz divina.
O ex-cego percebe o Senhor em sua fé, ele “crê”. A do ex-cego chega, pois, à
maturidade: começa por falar de Jesus como “esse homem, que se chama Jesus” (v.11);
depois o confessa como “um profeta” (v.17). Afirma aos judeus, num processo de ironia
contra os mesmos, atirando-lhes à cara o que eles afirmavam: “... mas Deus não atende os
pecadores...” (v.31); “Se esse não viesse de Deus não poderia fazer nada” (v.33). E mediante
o questionamento:
Tu crês (pisteu,eij
202
) no Filho do Homem?
E quem é Senhor, para que eu creia (pisteu,sw
203
) nele?
Creio (pisteu,w
204
), Senhor.
E adorou-o.
O crer não é algo instantâneo e estático, mas vai crescendo gradativamente até o ponto
máximo de prostrar-se em adoração. O verbo prostrar-se (proseku,nhsen
205
) adquire o sentido
claro de adorar quando tem por objeto o próprio Deus. O verbo, em outras passagens do
Quarto Evangelho, expressa sempre adoração divina: (4,20-23; 12,20). Jesus é o verdadeiro
Templo (2,21) e lugar de genuína adoração do Pai (4,23). Pode expressar também uma
simples homenagem a um homem, porém nos parece que, na mente do evangelista, quer
indicar algo mais. Aqui, no entanto, comporta um sentido mais rico: não é o destinatário do
gesto o novo Templo da Presença? Com a adoração se o passo que o ex-cego deu desde
sua cura até sua afirmação: “creio, Senhor”.
202
Verbo indicativo presente ativo, 2ª singular de pisteu,w: crer em algo ou alguém (Cf. RUSCONI, Dicionário
do grego do Novo Testamento, p. 375).
203
Verbo subjuntivo aoristo ativo, 1ª singular de pisteu,w)
204
Verbo indicativo presente ativo, 1ª singular de pisteu,w)
205
Verbo indicativo aoristo ativo, singular de proskune,w: pode ter o sentido fraco de “prostra-se” (Mt 8,2;
9,18; 15,25; 20,20; Mc 5,6; 15,19). Quando se refere ao Ressuscitado, aproxima-se do sentido de adoração (Mt
28,9.17; Lc 24,52). Veja LEON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João, vol. II, p. 240, nota 49.
104
2.4.5. CONSTATAÇÃO E JULGAMENTO DE JESUS (A e A’)
2.4.5.1. Trevas e luz (9,1-5)
1
Kai. para,gwn ei=den a;nqrwpon tuflo.n evk geneth/j)
2
kai. hvrw,thsan auvto.n oi` maqhtai
auvtou/ le,gontej\ r`abbi( ti,j h[marten( ou-toj h' oi` gonei/j auvtou/( i[na tuflo.j gennhqh/;
3
avpekri,qh VIhsou/j\ ou;te ou-toj h[marten ou;te oi` gonei/j auvtou/( avllV i[na fanerwqh/| ta.
e;rga tou/ qeou/ evn auvtw/|Å
4
h`ma/j dei evrga,zesqai ta. e;rga tou/ pe,myanto,j me e[wj h`me,ra
evsti,n\ e;rcetai nu.x o[te ouvdei.j du,natai evrga,zesqaiÅ
5
o[tan evn tw/| ko,smw w=( fw/j eivmi
tou/ ko,smouÅ
E passando viu homem cego de nascença. E perguntaram-lhe os discípulos dele
dizendo: “Mestre, quem pecou este, ou os pais dele, para que cego nascesse?”
Respondeu Jesus: “Nem este pecou nem os pais dele; mas para que fosse manifesta as
obras de Deus nele. Nos é preciso trabalhar as obras do que me enviou, enquanto é
dia; vem a noite quando ninguém pode trabalhar.
Enquanto no mundo estiver, luz sou
do mundo.
Chegamos à moldura de nossa estrutura de quiasmo, onde está presente o objeto de
nossa pesquisa. Esta é a primeira cena da perícope. Encontramos três personagens: Jesus, o
cego de nascença e os discípulos. Inicia-se com a frase Kai. para,gwn”. Esta expressão é
típica dos relatos “de vocação” em narrativas de milagres nos Evangelhos Sinóticos (Mc 1,16;
Mc 2,14; Mt 9,9; Mt 9,27; Mt 20,30). Significa que a fórmula não é nova, ou seja, poderia ser
conhecida na tradição pré-joanina. Em quase toda a literatura do Novo Testamento a partícula
kai, marca o início da narrativa, ligando-a a narrativa anterior. Não temos nenhuma referência
a lugar ou a tempo, não temos preâmbulos, mas possivelmente o episódio se inscreve no
prolongamento da Festa das Tendas, como sugere a conjunção kai, no início do relato. Ele
será datado no versículo 14: “Era sábado”.
O sujeito está oculto, apenas passando. descobriremos de quem se trata no
versículo 2, quando os maqhtai,
206
(que também estavam sumidos desde o final do capítulo 6)
mais o pronome genitivo auvtou/ confirmam um sujeito masculino singular no período anterior
206
Não é clara a identidade dos discípulos: se são os doze, os da Judéia (Jo 7,3) ou ainda outros.
105
e o chamam de r`abbi,
207
, comumente traduzido como mestre. Este é um título honorífico
que, na literatura rabínica, foi destinado aos grandes conhecedores das tradições judaicas
(rabinos ou doutores da lei). Em sua aparência externa, Jesus apresenta certa semelhança com
os escribas: ensina tendo ao seu redor um círculo de discípulos; disputa acerca da
interpretação da lei; é abordado para decisões jurídicas; prega em cultos de sinagogas; é
interpelado como r`abbi,.
208
O verbo ei=den
209
mostra que, ao sair do Templo, o olhar de Jesus recai sobre um
“homem” que é imediatamente percebido como tuflo.n
210
evk geneth/j
211
. A tradição judaica
relegava os cegos e os aleijados para a porta do Templo; não podiam entrar. E para que isto
fosse justificado, citava-se até a palavra irônica de Davi sobre os cegos e aleijados: “Quanto
aos aleijados e aos cegos, eles desgostam Davi. É por isso que se diz: ‘Aleijados e cegos não
entrarão na casa’” (2Sm 5,8). Dado que ao nível do senso comum tal percepção é
inverossímil, é viável supor que o autor tenha pretendido desde o primeiro instante estabelecer
uma contraposição entre o ver de Jesus e um não- ver do homem que era cego de nascença.
212
O adjetivo acusativo substantivado tuflo.n, que aparece 13 vezes no decorrer da
perícope, será quase sempre empregado como deficiência visual no seu sentindo estrito.
Somente no final da perícope 9,39-41 terá um sentido explicitamente figurado. Segundo a
mentalidade judaica da época, a cegueira era castigo de Deus como conseqüência do pecado:
207
O vocativo r`abbi é um semitismo, não sendo encontrado na LXX. Pode ser derivado da raiz hebraica rb
relacionada com quantidade (grande, muito), mas também pode significar liderança (chefe, mestre, senhor,
maioral). Veja Frederich W. DANKER. A Greek-English lexicon of the New Testament and other early
Christian literature. 3 ed. Chicago/Londres: The University of Chicago Press, 2000, p. 902.
208
No tempo de Jesus, o processo de formação para escriba seguia normas exatas. Quem desejasse tornar-se um
rabi começava a viver a partir de sete a dez anos na companhia de um erudito. Na qualidade se seu discípulo,
assistia-lhe as aulas e o observava no exercício de sua profissão e na execução prática dos preceitos. Quando o
discípulo dominava o conjunto da tradição e conseguia a aplicá-la, era ordenado e recebia um cargo. Quanto a
Jesus, porém, não se pode afirmar que tenha passado por esse processo de formação. Quando, pois, é chamado
de “rabi”, não se trata do título de teólogo, pois tanto “rabi” como “meu senhor” eram de uso recorrente no
século I d.C. como interpelação respeitosa (cf. Mt 23,8). Para mais sobre este assunto, veja JEREMIAS,
Teologia do Novo Testamento, p. 134.
209
Indicativo aoristo ativo de ovra,w: ver, observar, perceber, sentir, constatar, notar a presença de algo ou alguém
pelo olhar, reparar em, identificar (Cf. DANKER, A Greek-English lexicon, pp. 719-720).
210
Adjetivo normal acusativo masculino singular: cego (Cf. DANKER, A Greek-English lexicon, p. 193).
211
Segundo R. E. Brown, a expressão evk geneth/j é uma expressão
grega mais próxima da literatura helenística
(há, de fato, duas ocorrências na LXX), enquanto a expressão semítica normal seria
evk koili,aj mhtro``j (“desde o
ventre da mãe”). Veja Mt 19,12; At 3,2; BROWN, El Evangelio según Juan, vol. I, p. 614.
212
Segundo Bruce Malina e Robert Rouhbaugh, no imaginário da Antiguidade, a escuridão, tanto quanto a luz,
era algo concreto e material. Olhos cegos eram considerados portadores e difusores de escuridão (cf. Mt 6,22-
23). Veja Social-science commentary on the Gospel of John. Minneapolis: Fortress Press, 1998, p. 170.
106
Por isto o julgamento reto está longe de nós; a justiça não está ao nosso
alcance. Esperávamos a luz, e o que veio foram trevas; a claridade, e, no
entanto, caminhamos na escuridão. Como cegos que andam a apalpar um
muro, sim, como os que não têm olhos, andamos às apalpadelas.
Tropeçamos ao meio-dia como se fosse no crepúsculo; somos como mortos
entre pessoas sadias ( Is 59,9-10).
Os discípulos perguntam a Jesus quem são os responsáveis pela cegueira daquele
homem: “o próprio cego ou os pais dele?” Relembrando o livro de Jó, no tempo de Jesus,
todavia, estava em vigor a antiga idéia de que entre pecado e enfermidade havia uma relação
direta, como indica esta pergunta e outra parecida, em Lc 13,2: “Acrediteis que, por terem
sofrido tal sorte, esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus?” Se um
adulto caía doente, a culpa era sua. Maior dificuldade apresentava o caso de uma criança que
nascia aleijada. Em Ex 20,5 está o princípio desta idéia: “Eu Iahweh teu Deus, sou um Deus
ciumento, que puno a iniqüidade dos pais sobre os filhos até a terceira geração e a quarta
geração dos que me odeiam.” Alguns rabinos afirmavam que o pecado dos pais não podia
deixar seqüelas nos filhos, como as crianças podiam pecar ainda no seio materno.
213
A
individualização da culpa e da punição está refletida em Jeremias (31,29-30) e Ezequiel (18,1-
4), na chamada de “teologia da retribuição”, que garante descendência, vida longa e perdão
dos pecados.
Podemos observar que tanto na pergunta dos discípulos quanto na resposta de Jesus
uma repetição de ou-toj h[marten e gonei/j auvtou, formando um paralelismo antitético simples:
quem pecou, este
ou os pais dele
nem este pecou
nem os pais dele
Porém, não devemos nos esquecer das conjunções avllV i[na
214
, que contrapõem os
segundos termos e acabam, assim, por garantir um efeito estilístico em ambos os períodos.
213
Cf. BROWN, El Evangelio según Juan, vol. I, p. 614.
214
“Para quê”. Esta expressão é tipicamente joanina e aparece em 1,8.31; 3,17; 11,52; 12,9.47; 13,18; 14,31;
15,25.
107
Segundo R. Brown
215
, o segundo i[na é final, enquanto J. Mateos e J.Barreto
216
acreditam que
esse i[na seja consecutivo e não final. Conseqüência ou finalidade? O uso conjunto de ou;te e
avllV fazem com que haja uma inversão da pergunta para a resposta. Ao considerar esta
hipótese positiva, é possível visualizar um quiasmo (a-b-b-a) implícito na antítese e
compreender mais claramente as relações intratextuais:
Quem pecou?
para que cego nascesse?
Ele nasceu cego
para que fosse manifesta as obras de Deus nele
O segundo termo do segundo período é uma oração subordinada consecutiva; indica
uma ação cuja causa está apontada na oração principal pelo verbo h[marten
217
(verbo indicativo
aoristo de (a`marta,nw). Já o segundo termo do quarto período, além de ser uma oração
coordenada adversativa (o que coloca em oposição à oração anterior), contém uma oração
principal oculta (que pela lógica do quiasmo deve ser tomada da oração subordinada do
período anterior) e uma oração subordinada final. Assim, percebe-se que a verdadeira
oposição da estrutura quiástica desta antítese é sustentada pela partícula i[na, que permite
levar o mesmo fato à duas interpretações possíveis: o que uns vêem como conseqüência
(indesejada) do pecado (treva), Jesus como uma oportunidade (desejável) para a
manifestação da luz. De sinal de pecado transforma-se em sinal e ocasião de salvação, lugar
de manifestação das obras de Deus: nas trevas resplandece a luz. Jesus se interessa pelo para
quê do sinal e não pelo porquê da enfermidade.
Ao responder: “Nem ele pecou nem os pais dele”, tornando a hipótese dos
discípulos, Jesus rejeita a casuística hebraica e a mentalidade daqueles que ligam a doença a
um determinado pecado, e dá ao encontro com o cego de nascença um valor salvífico: entende
manifestar o agir de Deus nesse homem. No subjuntivo aoristo passivo temos as formas
verbais gennhqh/
218
e fanerwqh/
219
,
que introduzem a idéia de que a manifestação de Deus
215
Cf. BROWN, El Evangelio según Juan, vol. I, p. 614.
216
Cf. MATEOS e BARRETO, O Evangelho Segundo São João, p. 422.
217
Verbo indicativo aoristo ativo, 3ª pessoa do singular de avmarta,nw: errar, pecar, falhar (Cf. DANKER, A
Greek-English lexicon, pp. 49-50.
218
Verbo subjuntivo aoristo passivo, pessoa singular de genna,w: gerar , dar a luz (Cf. DANKER, A Greek-
English lexicon, p. 193).
108
estava consumada no presente dos interlocutores. Dito de outro modo, a manifestação dos
trabalhos de Deus estava contida na própria existência daquele homem cego (evn auvtw
220
) e
não se referia senão secundariamente ao ato taumatúrgico que Jesus estava por realizar.
Em 9,4 percebe-se um paralelismo antitético
221
e um quiasmo com a seguinte estrutura
(a-b-b-a):
nos é preciso trabalhar as obras do que me enviou
enquanto é dia
vem a noite
quando ninguém pode trabalhar
O que determina este paralelismo é uma semelhança que existe entre o verbo infinitivo
presente médio evrga,zesqai
por uma oposição de caráter dualista h`me,ra X nu.x e pelo
acréscimo, na segunda parte, de um pronome com conotação negativa – ouvdei.j.
Ao associar os discípulos a si por um “nós”
222
, Jesus se refere e abrange a futura
atividade dos seus, que terão que segui-lo. Determina que devam agir “enquanto é dia”, isto é,
enquanto dura seu itinerário terrestre ou enquanto possibilidade de trabalho, pois se
avizinha uma noite. A noite é o período da treva, a qual pode considerar-se de três maneiras:
em si mesma, como princípio ativo de morte (1,5), por oposição à luz, como espaço em que
falta a luz/vida (8,12), ou em contraposição às horas iluminadas da manhã e da tarde,
propícias ao trabalho. Os dois termos, dia/noite, designam, como na linguagem rabínica,
respectivamente o período da vida e da morte. Jesus tem seu dia (8,56), durante o qual
manifesta sua luz, que é a glória Daquele que o enviou (11,9;12,35). Sua resposta lembra a
palavra “meu Pai trabalha sempre e eu também trabalho” (5,17), e assim justifica a
transgressão do sábado (cf. 9,14). A referência ao trabalho faz conexão com a frase anterior
219
Verbo subjuntivo aoristo passivo, pessoa singular de fanero,w: tornar conhecido, claro, visível, real (Cf.
DANKER, A Greek-English lexicon, p. 1048).
220
No texto é um dativo locativo.
221
O paralelismo antitético é característico dos ditos originais de Jesus. No Quarto Evangelho aparece mais de
trinta vezes nas palavras de Jesus. Todavia, este número não é apropriado para comparação, porque está
determinado pelo dualismo joanino. Entretanto, J. Jeremias não considera que Jo 9,4 possa ser considerado
ipssissima vox por conter o dualismo típico do Quarto Evangelho (Veja Teologia do Novo Testamento, pp. 45-
53).
222
“Nós”, variante mais bem apoiada do que “eu” (Cf. MATEOS e BARRETO, O Evangelho segundo São João,
p. 422).
109
(9,3). Assim como o patrão/pai envia o servo/filho para trabalhar em sua obra,
223
Deus
envia/manda (tou/ pe,myanto,j
224
) Jesus para realizar sua obra enquanto é dia (3,17; 4,34; 5,24;
30,37). Seus discípulos, por sua vez, serão enviados por Jesus (17,18; 20,21).
225
A Deus é
atribuído o substantivo e;rga, enquanto Jesus e seus discípulos são referidos pelo verbo
evrga,zesqai
226
.
Depois da sentença entendida em seu sentido amplo sobre a realização das obras de
Deus, Jesus fala de sua missão: “Enquanto no mundo estiver, luz sou do mundo”. Aqui
encontramos outro quiasmo (a-b-c-b’-a’) com a combinação dos termos mundo, estar e luz.
Embora apareça somente uma vez, esta forma faz com que o termo fw/j
227
torne-se o ápice
literário não apenas desta subunidade (9,1-5), mas de toda a NCCN:
enquanto no mundo
estiver (eivmi)
luz
sou (eivmi)
do mundo.
Em 9,5 encontramos o que podemos chamar de “o coração da teologia joanina.” Não
nenhum paralelismo possível nos Evangelhos Sinóticos e, em contrapartida, um
paralelismo exato em 8,12.
228
Jesus, estando no Templo, na celebração de Succoth ou Festa
dos Tabernáculos,
229
quer ser mais que a celebração noturna, que ilumina toda Jerusalém. Ele
223
No contexto sócio-cultural da Antiguidade, mandar (pe,mpw) para o trabalho pode estar tão presente na relação
entre pai e filho como entre patrão e servo (cf. Lc 20,11-13). Veja MALINA e ROUHBAUGH, Social-science
commentary on the Gospel of John, p. 170.
224
Verbo particípio aoristo ativo genitivo masculino singular de pe,mpw: Deus é referido através de um particípio.
uma tradição oriental, bem representada na Bíblia Hebraica, de referência indireta ao divino por meio de
particípios (Cf. DANKER, A Greek-English lexicon, pp. 794-795).
225
Cf. MATEOS e BARRETO, O Evangelho segundo São João, p. 422.
226
Verbo infinitivo presente médio de erga,zomai: trabalhar, elaborar, fazer, conduzir (Cf. DANKER, A Greek-
English lexicon, p. 389).
227
Substantivo nominativo neutro singular comum: luz, mpada, tocha, fogo (Cf. DANKER, A Greek-English
lexicon, pp. 1072-1073).
228
A metáfora da luz aplicada a Jesus o tom ao capítulo 8. A seguir ela desaparece para voltar apenas na
NCCN (9,5). Veja LEON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João, vol. II, p. 187.
229
O rito se referia a Zc 14,6s: “E acontecerá, naquele dia, que não haverá mais luz, nem frio, nem gelo. Haverá
um único dia Iahweh o conhece , sem dia e sem noite, mas à tarde haverá luz.” A luz da festa, portanto, tinha
sentido messiânico. O significado simbólico da luz: felicidade, alegria, salvação, libertação. Aplicava-se à obra
do Messias, até o ponto de se designar a este de “Luz”. A expressão “a luz do mundo” aplicava-se também à lei,
a Jerusalém e ao Templo (Cf. MATEOS e BARRETO, O Evangelho segundo São João, p. 383).
110
se revela: “Eu sou a luz do mundo”
230
(Jo 8,12), a grande manifestação da vida, a luz
verdadeira que veio para que os homens não mais permanecessem nas trevas, mas pudessem
ter a luz da vida e serem capazes de andar na luz de forma a não tropeçarem (8,12; 9,5; 11,9;
12,35.46). Os que recebem a luz se tornam filhos dela
231
(12,36). Ao proclamar-se Jesus a luz
do mundo, associa-se ao texto de Zacarias (14,6ss) e dois textos de Isaías, ambos referentes ao
Servo de Javé:
Eu, Iahweh, te chamei para o serviço da justiça, tomei-te pela mão e te modelei, eu te
constitui como aliança do povo, como luz das nações, a fim de abrires os olhos dos
cegos, a fim de soltares do cárcere os presos, e da prisão os que habitam nas trevas (Is
42, 6-7);
Pouca coisa é que sejas o meu servo para restaurar as tribos de Jacó e reconduzir os
sobreviventes de Israel. Também te estabeleci como luz das nações, a fim de que a
minha salvação chegue até as extremidades da terra... A fim de dizer aos cativos:
‘Saí’; aos que estão nas trevas: ‘Vinde à luz’(Is 49,6).
Para Charles Dodd
232
, no presente texto não se supõe que os judeus tenham entendido
a afirmação “Eu sou a luz do mundo”. Eles não objetam, como fazem em outros lugares, que
Jesus está “fazendo-se a si mesmo Deus”, ou “fazendo-se igual a Deus” (cf. Jo 10,33; 5,18).
Ele é a luz na qual vemos a luz; isto é, ele é aletheia (verdade), como é também zoe (vida).
A declaração de Jesus ultrapassa, porém, as fronteiras da opção de Israel: fw/j eivmi tou/
ko,smou. O termo ko,smoj deve ter vindo para esta perícope por causa de fw/j (8,12). Contudo,
ocupa um papel importante em sua delimitação, pois estabelece uma ponte entre 9,4 e 9,39.
Uma norma para a atividade posterior dos seus discípulos. As obras do que o enviou não
podem realizar-se sem sua presença, quando falta a luz.
230
Em 8,12, a frase com artigo (a luz) definia Jesus e fundava o convite a seguí-lo. Nesta passagem, a frase sem
artigo (luz) descreve sua atividade iluminadora (Cf. MATEOS e BARRETO, O Evangelho segundo São João, p.
426).
231
Como vimos no ponto 1.3, em Qumran se fala muito na oposição luz-trevas e filhos da luz (Cf. 1QS III, 13-
25; IV, 7; 1QM I, 1-9; 11-12; 4Q495; 4Q496, I, 79).
232
DODD, A interpretação do Quarto Evangelho, pp. 269-282.
111
2.4.5.2. Trevas ou luz (9,39-41)
39
Kai. ei=pen o` VIhsou/j\ eivj kri,ma evgw. eivj to.n ko,smon tou/ton h=lqon( i[na oi` mh.
ble,pontej ble,pwsin kai. oi` ble,pontej tufloi. ge,nwntaiÅ
40
h;kousan evk tw/n Farisai,wn
tau/ta oi` metV auvtou/ o;ntej kai. ei=pon auvtw/|\ mh. kai. h`mei/j tufloi, evsmenÈ
41
ei=pen
auvtoi/j o` VIhsou/j\ eiv tufloi. h=te( ouvk a'n ei;cete a`marti,an\ nu/n de. le,gete o[ti
ble,pomen( h` a`marti,a u`mw/n me,nei
E disse Jesus: “Para julgamento eu a este mundo vim, para que os que não vêem
vejam, e os que vêem cegos se tornem.” Ouviram dentre os fariseus estas coisas os que
com ele estavam e disseram-no: “Por ventura nós não somos também cegos?” Disse a
eles Jesus: “Se cegos fôsseis não teríeis pecado; agora porém dizeis: Vemos, o pecado
vosso permanece.”
Fechamos aqui nossa moldura e estrutura de quiasmo. Na realidade, 9,39-41 equivale
a um resumo de todo capítulo 9. O ex-cego o atua nesta cena, embora toda a discussão
levantada seja o fato da abertura de seus olhos. Permanece Jesus em cena e entram novamente
os fariseus, que continuarão com suas provocações. Em contrapartida, obterão respostas que
provocarão sua própria condenação.
O evangelista não especifica a quem Jesus está dirigindo estas palavras de julgamento:
“Para julgamento eu a este mundo vim, para que os que não vêem vejam, e os que vêem cegos
se tornem”. Trata-se, pois, de uma declaração geral. O termo usado aqui é kri,ma
233
, que indica
a divisão feita dos homens em dois grupos opostos: um a favor e outro contra diante da
revelação de Jesus. Pode ser traduzido por “discernimento”, sempre conotando o caráter
definitivo de um e outro efeito, correlativamente à soberania da luz que se torna presente com
o Enviado de Deus; e não kri,sij
234
, como em Jo 3,19; 5,22.24.27.29.30; 7,24; 8,16; 12,31;
16,8.11; Mt 23,13; Lc 24,25, que indica o ato de julgar, um sentido de condenação.
Os versículos 39-41 fazem paralelo com 4-5, pois contrabalançam a palavra de Jesus
pronunciada em (9,5) sobre a meta de sua missão. Lá essa meta era manifestar ao mundo a luz
233
Juízo: privado, público; sentença, condenação (Cf. RUSCONI, Dicionário do grego do Novo Testamento, p.
276).
234
Ato de julgar, juízo, ação judicial, processo, critério de juízo (Cf. RUSCONI, Dicionário do grego do Novo
Testamento, p. 376).
112
divina; cá, mostrar os efeitos da luz quando acolhida e quando rejeitada. Jesus muitas vezes
proclamou que “veio ao mundo” (1,9; 3,19; 6,14; 11,27; 12,46; 16,28; 18,37). Aqui, num
contexto em que a atitude dos fariseus contrasta com a do ex-cego, ele diz, como em 8,13:
“este mundo”, designando por esta expressão o mundo onde domina a escuridão. Tanto
como nesta ocasião encontramos um paralelismo antitético com quiasmo (a-b-b’-a’),
para que os que não vêem
vejam
e os que vêem
cegos se tornem
A conjunção final i[na (“para que”) suscita as mesmas dificuldades encontradas em Mc
4,12: “Para que vendo vejam e não percebam, e ouvindo ouçam e não entendam, para que não
se convertam e seja perdoado a eles, onde também parece incluído na missão de Jesus o
“objetivo” de condenar os incrédulos. É preciso observar, porém, que a missão de Jesus entra
no conjunto dos desígnios divinos. Ora, na revelação destes desígnios, de acordo com a
mentalidade judaica, não se faz distinção precisa entre o objetivo, que é a salvação, e o parcial
resultado negativo que depende da sua recusa por parte do ser humano.
Ao dizer “os que não vêem”, por sua vez evoca o profeta Isaías: “Ouvi bem, mas sem
entender, enxergai bem, mas sem reconhecer! Obedeça o coração deste povo e ensurdece-lhe
os ouvidos; fecha-lhe os olhos, para que não suceda que veja com seus olhos, e ouça com seus
ouvidos, e entenda com seu coração, e se converta, e eu sare” (6, 9-10) e deve entender-se em
sentido simbólico e não físico. “Os que não em” são ao contrário dos que, como os judeus
instruídos na lei, gloriam-se da sua autosuficiência frente à revelação de Jesus. Porém uma
reviravolta total em suas vidas: de cegos se tornam videntes.
Então, podemos nos perguntar: o redator do Evangelho de João não “recorreu” às
palavras de Marcos que, da mesma forma, talvez tenha “recorrido” às palavras de Isaías para
“provocar” àqueles que se diziam os “conhecedores” e “dominadores” da Lei, mostrando-lhes
que, embora dissessem que podiam ver muito bem, sem perceber se aprofundavam mais e
mais na escuridão da ignorância? Neles fica exemplificada a lição de 3,19-21: “Este é o
julgamento: a luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz, porque suas obras
são más”. Se tivessem reconhecido sua cegueira espiritual e deixado que o Filho do Homem a
removesse, teriam sido curados. Se tivessem vivido nas trevas sem encontrar uma saída para a
113
luz, sua situação seria lamentável, mas eles não teriam culpa. Culpados eram aqueles que
viviam em trevas, mas diziam ver. A auto-ilusão que chega ao ponto de fechar os olhos para
luz é inadmissível, pois a luz está aí. Porém, se as pessoas a recusam e a rejeitam
deliberadamente, como poderão ser iluminadas?
Encontramos novamente o verbo h;kousan
235
, desta vez referindo-se a um grupo dentre
os fariseus que se estimam clarividentes e, com certa ironia ( indicados pelo uso da expressão
mh. Kai.), questionam a Jesus quanto a seu julgamento: “Porventura nós não somos também
cegos?” Jesus os pega em sua própria afirmação e sua resposta forma um outro paralelismo
antitético (a-b-a’-b’) que resume bem a ambigüidade da situação:
Se cegos fôsseis
não teríeis pecado
agora porém dizeis: “Vemos”
o pecado vosso permanece
Podemos deduzir que o que Jesus diz equivale a: “Vós sois cegos, sim, porque tendes
a pretensão de estar vendo”. Mas ele não diz desta forma. Exprime de modo indireto, a fim de
provocar uma tomada de consciência, uma mudança de atitude. “Se fôsseis cegos, desejaríeis
a luz, e então não teríeis pecado. Mas no fundo de vosso coração pensais que vedes, e é por
isso mesmo que não sentis necessidade da luz, preferis as trevas, então vosso pecado
permanece.” Assim dizendo, Jesus exerce o seu julgamento, o discernimento entre os homens.
A incredulidade e a cegueira dos fariseus estão em contraste com a atitude do cego
curado, que se abre ao chamado de Deus e alcança a em Jesus (9,36-38). Os fariseus têm
consciência de possuírem a “luz” da Lei. Seu pecado é acreditar que tal “luz” seja suficiente,
não querendo aceitar a verdadeira luz que é Jesus, o Filho do Homem.
A perícope se inicia no versículo 1 com a figura de um cego que se sentava à sombra
da morte e se abre à luz, torna-se um iluminado. Finaliza no versículo 41 com os fariseus que
se diziam brilhar à luz da lei e caem nas trevas. De “videntes”, tornam-se cegos. Ao narrar a
mundança sofrida pelo cego, o evangelista quer mostrar que essa é a experiência do próprio
João, seus companheiros e de quem segue a Jesus (a comunidade joanina).
236
Também eles,
“cegos de nascença”, agora, graças a Jesus, são capazes de “ver”. Assim, os seguidores de
235
Verbo indicativo aoristo ativo, 3ª plural de avkou,w)
236
MARTYN sugere que a história contada em João 9 é, na realidade, a da comunidade joanina (Cf. History and
theology in the Fourth Gospel, pp. 70-93.
114
João ficam aliviados e gratos ao ouvirem, no final da história, as palavras irônicas de Jesus:
“Para julgamento eu a este mundo vim, para que os que não vêem vejam, e os que vêem cegos
se tornem.”
2.5. GÊNERO LITERÁRIO
Na NCCN podemos visualizar algumas etapas da história literária da perícope, pois
uma grande diferença entre 9,1-7 e o restante da perícope. Naquilo que toca ao gênero
literário
237
é preciso dizer que este foi construído a partir da apropriação de formas literárias
consagradas tanto na literatura helenística (créia: 9,1-7; diálogo 9,8-41) quanto na literatura
judaica (mashal: 9,4-5.39b.41).
O gênero créia é o que designa uma fala ou ação ocasionada na vida de uma pessoa
importante pela situação, mas transcendendo-a, geralmente um diálogo em torno de um
ensinamento. Causa e reação andam sempre juntas. E, que a causa e a situção resultam da
vida da pessoa, a créia tem a tendência natural de se tornar material de construção para o
gênero “biografia”. Não é gênero de origem veterotestamentário-judaica e sim helenista-
grega. É uma narrativa contundente, curta e direta que atribui um pronunciamento a uma
pessoa histórica. Dentre os vários tipos de créias encontramos: créia verbal”, aquela que
resulta da situação (pode ser uma fala); créia clássica, aquela em que a fala é breve, muitas
vezes apenas uma gnome ou uma sentença também chamada de apotegma ou paradgma. Este
é, portanto, um subgênero da creia. Nele costuma haver somente uma pessoa que pergunta e
uma que responde. Na créia a ligação à situação e ao caso concreto é mais pronunciada e a
resposta pode ser mais longa.
238
Segundo Archibald M. Woodruff, a créia é uma anedota
curta, em que um personagem de destaque age e/ou fala em uma maneira memorável.
239
No caso de 9,1-7, temos características que indicam o gênero créia: a narrativa de uma
cura para confirmar o ensinamento de Jesus; o artifício da correção da pergunta pelo mestre; o
fato de que a autoridade do ensinamento provém não somente de seu próprio conteúdo, mas
sim do ser atribuído a um personagem: Jesus, o qual é chamado de “mestre”; pelo que se
percebe ligação intrínseca do acontecimento com o ambiente de ensino. Assim, na
237
Para este estudo ver BERGER, As formas literárias do Novo Testamento, pp. 76-88; WEGNER, Exegese do
Novo Testamento, pp. 69-83; EGGER, Metodologia do Novo Testamento, pp. 43-70.
238
Cf. BERGER, As formas literárias do Novo Testamento, pp. 76-88.
239
Para mais detalhes sobre o gênero créia e suas classificações no NT, cf. Archibald M. WOODRUFF. A créia,
elegante ou deselegante, a partir dos progymnasmata, em relação ao Novo Testamento. In: PHOÎNIX 9 (2003):
55-64
.
115
subunidade 9,1-7 temos o apotegma (9,3,9,4-5), o diálogo (9,2-3) e a narrativa (9,6-7)
formando a creia. Porém Klaus Berger não classifica 9,1-7 com sendo uma créia e sim como
um gênero literário chamado mandatio (9,7), uma narrativa em que uma ordem é dada por
uma pessoa com autoridade e é obedecida por alguém (pelo subalterno). A difusão deste
gênero reflete a estrutura social da Antigüidade, em que todos os demais eram obrigados a
obedecer ao senhor ou pai de família. Estas narrativas são semelhantes às créias na medida
em que uma palavra ou ação de Jesus está no centro.
240
Em 9,7 uma ordem é dada por Jesus
(autoridade) ao cego (subalterno) e ele a obedece incondicionalmente.
Klaus Berger classifica 9,8-34 como interrogatório, 9,35-39 como diálogo de
revelação e 9,40-41 como diálogo de reprensão.
241
Consideramos válida a classificação de
Berger, porém a classificação de 9,8-34 como uma seqüência de interrogatórios deve ser mais
bem analisada. É possível visualizar, ali, certa estrutura de interrogatório formal que
determina a posição dos atores no processo com interpelações e convocações, mas, para
surpresa nossa, o interrogado toma o lugar dos interrogadores; de réu se torna juiz a partir do
v. 30.
242
Encontramos mais um caso no Evangelho de João em que essa inversão ocorre: Jo
18,18 -19,16.
Resta-nos, então, perguntar: A classificação da subunidade 9,1-7 estaria mais bem
fundamentada como créia ou como mandatio? Não obstante, para uma resposta segura seria
necessário nos aprofundarmos mais nas questões de gênero literário na Antigüidade. O que
não foi possível nessa pesquisa. Porém, a apresentamos para mostrar que há uma considerável
diferença entre 9,1-7 e o restante da perícope.
2.6. CONCLUSÃO
A análise exegética da Narrativa da Cura do Cego de Nascença nos permite vislumbrar
algumas das múltiplas possibilidades de sentido que terá representado o protagonismo do ex-
cego para comunidade joanina ao longo do processo redacional, ele que de cego se torna um
vidente, de mendigo se torna acolhido, um discípulo, um mestre. Este é um texto com amplos
desdobramentos teológicos, mas antes disto, é um texto de caráter etiológico e apologético,
240
BERGER, As formas literárias do Novo Testamento, p. 285.
241
BERGER, As formas literárias do Novo Testamento, p. 233.
242
RODRIGUES, “Um pecador quer nos ensinar?, p. 95.
116
pois se destina aos ouvintes da comunidade joanina e se preocupa em justificar a ruptura entre
cristão joaninos e sinagoga farisaica.
Ao invés de realizarmos agora uma síntese dos resultados obtidos na exegese,
propomo-nos fazê-lo no capítulo III desta dissertação, tendo em vista as leituras sociológicas
e antropológicas em que buscamos levantar temas convergentes e divergentes no uso do
significado luz para compreender o universo teológico e simbólico com o qual a comunidade
joanina lida. Os dados levantados até aqui serão avaliados tendo em vista que, na segunda
metade do século I da Era Cristã, os judeus “cristãos”, ao serem expulsos da sinagoga ou
separarem-se do judaísmo, perdiam muitos privilégios e eram “perseguidos”. É neste contexto
que a comunidade joanina proclamará Jesus como “Luz do Mundo”
117
CAPÍTULO III
DIVERGÊNCIAS E CONVERGÊNCIAS DO SIGNIFICADO DO TERMO LUZ
PARA A COMUNIDADE JOANINA
Um primeiro ponto importante para identificar as divergências e as convergências com
as quais a comunidade joanina lida é conhecermos mais de perto a história dessa comunidade.
3.1. A COMUNIDADE JOANINA
No princípio da Igreja Cristã não havia escritos globais sobre a atuação e proclamação
de Jesus, mas apenas pequenas peças de relatos e discursos de diversos tipos e com interesses
particulares que circulavam dentro dos grupos “cristãos”. Semelhante tradição, basicamente
oral nas suas origens, foi crescendo e configurando-se pouco a pouco, chegando, em alguns
casos, a ser apresentada em pequenos escritos que, por sua vez, sofreram transformações e
ampliações sucessivas. Esta corrente tradicional é a que sustenta o Evangelho de João. Trata-
se de “tradições soltas”, porque não chegaram ao “autor” do Quarto Evangelho como
narrativa unitária, mas como relatos independentes.
243
Por um lado, a história da redação do Quarto Evangelho parece postular uma trajetória
longa e complexa. Por outro, os influxos culturais que se percebem neste texto não são
unitários e fazem suspeitar que o grupo em que foi sendo gestado devido ao uso do “nós”
em alguns lugares (1,14; 21,14; 17,20-21; 20,29) era um grupo complexo, que ampliou o
243
Cf. VIDAL, Los escritos originales de la comunidad del discipulo “amigo” de Jesus, pp. 14-15.
118
seu horizonte cultural no transcorrer dos anos e que, em última instância, era composto por
facções de gosto e procedência diversos.
244
certo consenso de que por detrás de cada evangelho reside uma comunidade cristã
ou comunidades – hipótese aduzida por R. Brown
245
– e que os respectivos evangelhos
procuram responder, através da e da catequese, aos problemas de e de pastoral dessas
comunidades. Não sabemos exatamente quando a comunidade joanina começou a existir.
Formou-se alguns anos depois da ressurreição de Jesus e, em princípio, compunha-se de
judeus convertidos a ele. Iniciou-se, portanto, como a maioria das primeiras comunidades. Foi
gestada aos poucos, em meio a muitos conflitos, fruto de muita reflexão, lutas, conquistas e
fé. Demorou cerca de 60 anos para vir à luz em forma de texto. É testemunho vivo de
gerações. Por isso, podemos considerá-la herança de uma comunidade em que o amor era o
valor absoluto, capaz de tornar a todos iguais.
246
Para Brown, a apresentação de Jesus no Evangelho de João é fortemente marcada por
situações adversas, e dispomos de três epístolas de João que claramente fazem eco ao
pensamento joânino, mais abertamente enderaçadas, porém, a um determinado público e seus
problemas. É possível reconstruir algo do pano de fundo de João mais do que de qualquer
outro evangelho. Contudo, não se deve confundir tal pesquisa reconstrutora com exegese, que
se ocupa com aquilo que o evangelho pretende transmitir aos seus leitores.
247
Dada importância de que se reveste a investigação sobre as possíveis etapas na história
da redação do Quarto Evangelho, pensamos ser útil e pertinente apresentar, a este passo de
nosso trabalho, algumas pistas com relação à história dessa comunidade e de sua redação.
Citaremos dois exemplos – a hipótese aduzida por Raymond Brown
248
e por Senen Vidal.
249
R. Brown reconstitui a vida da comunidade joanina pressupondo quatro fases.
250
A
primeira delas começou em meados dos anos 50, na Palestina ou Síria, e prologou-se até o
final dos anos 80 uma fase que precede o evangelho escrito, mas que modela seu
244
TUÑÍ e ALEGRE, Escritos joaninos e cartas católicas, pp. 128-129.
245
BROWN, A comunidade do discípulo amado, p. 209.
246
Cf. Eduard LOHSE. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1985, pp. 190-196;
BORTOLINI. Como ler o Evangelho de João: o caminho da vida. São Paulo: Paulus, 1994, p. 7; KONINGS.
Evangelho de João: amor e fidelidade. Petrópolis: Vozes, 2000, pp. 6-9.
247
Cf. BROWN, Introdução ao Novo Testamento, p. 507.
248
Pelo fato de sua hipótese ser uma das pioneiras no campo da progressiva redação do Quarto Evangelho e por
reunir uma série bastante complexa de indícios que sustentam sua ousadia.
249
Trata-se de uma obra de síntese, que procura reunir importantes contribuições para os estudos joaninos no
século XX. Vidal desenvolve intuições e teses de antecessores como Marie-Èmile Boismard, Rudolf Bultmann,
Oscar Cullmann e Klaus Wengst.
250
Cf. BROWN, Introdução ao Novo Testamento, pp. 508-510; A comunidade do discípulo amado, pp. 25-169.
119
pensamento. Os judeus que nutriam expectativas relativamente tradicionais, inclusive
seguidores de João Bastista, aceitaram Jesus como messias davídico, aquele que cumpriu as
profecias, confirmadas pelos milagres. Entre tais judeus, em princípio, havia um homem que
conhecera Jesus, tornara-se discípulo seu durante seu ministério público e se tornaria o
Discípulo Amado. A estes primeiros seguidores acreciam-se judeus de mentalidade contrária
ao Templo, que se fizeram convertidos em Samaria (Jo 4). A comunidade joanina abre-se para
acolher discípulos samaritanos. Introduzem à comunidade uma nova hermenêutica do fato
Jesus. Inicialmente, eles compreendiam Jesus com base em um pano de fundo mosaico: Jesus
estivera com Deus, a quem vira e cuja palavra trouxera ao mundo. A aceitação deste segundo
grupo dinamizou o desenvolvimento de uma teologia alta da preexistência que levou a
discussões com judeus que julgavam que os cristãos joaninos estavam abandonando o
monoteísmo judaico ao fazer de Jesus um segundo deus (Jo 5,18). Por fim, os líderes destes
judeus expulsaram os cristãos das sinagogas (Jo 9,22; 16,2).
A data limite deste período vem da notícia sobre a expulsão de cristãos das sinagogas
judaicas (cf. Jo 9,22; 16,2). Este fato está relacionado à reformulação do judaísmo no último
quarto do século I e à inclusão da birkart-hamminim nas práticas devocionais das sinagogas,
com a maldição sobre os hereges, compreendidos os seguidores de Jesus. Os que saíram do
seio judaico tornaram-se bastante hostis “aos judeus”, a quem consideravam filhos do
demônio (Jo 8,44). Eles enfatizavam a realização das promessas escatológicas em Jesus, a fim
de compensar o que haviam perdido no judaísmo. Ao mesmo tempo, os cristãos joaninos
desprezavam os crentes em Jesus que não realizaram a mesma ruptura com a sinagoga (por
exemplo: os pais do ex-cego em Jo 9,21-23; muitos chefes em 12, 42-43).
A segunda fase (anos 80-100, fase durante a qual o texto básico foi escrito pelo
evangelista). Desde que “os judeus” foram considerados cegos e descrentes (Jo 12, 37-40), a
conversão dos gregos passou a ser vista como cumprimento do plano de Deus (Jo 12, 12-23).
A comunidade, ou parte dela, pode ter se mudado da Palestina para a diáspora em virtude da
perseguição aos seguidores de Jesus ou para instruir os gregos (Jo 7,35), talvez para a região
de Éfeso. Tal mudança lançaria luz sobre a atmosfera helenista do evangelho e sobre a
necessidade de explicar nomes e títulos semíticos: rabi (1,38), messias (1,41), Cefas (1,42).
Esse contexto produziu possibilidades universalistas no pensamento joanino, numa tentativa
de falar a um público mais amplo. Este novo grupo ajudou a comunidade a “ver coisas
maiores” em Jesus. Estas “coisas maiores” é que darão cor e identidade próprias à
comunidade do Discípulo Amado.
120
Rejeição e perseguição, porém, convenceram os cristãos joaninos de que o mundo
(como “os judeus”) opunha-se a Jesus. Eles não se consideravam pertencentes a este mundo,
que se encontrava sob o poder de Satanás, o príncipe deste mundo (Jo 17,15-16;14,30; 16,33).
No seu relacionamento com outros cristãos, eles rejeitaram a alguns por terem uma cristologia
tão inadequada que eram verdadeiros descrentes (Jo 6,60-66). Outros, simbolizados por
Simão Pedro, creram deveras em Jesus, mas não eram considerados tão perceptivos quanto os
cristãos joaninos, simbolizados no Discípulo Amado (Jo 20,6-9). A esperança era de que as
divisões entre esses cristãos e a comunidade joanina fosse sanada e que eles pudessem se
tornar um (Jo 10,16; 17,11). Contudo, a ênfase unilateral do evangelho na divindade de Jesus
(delineada pelas lutas com os líderes da sinagoga) e na divindade do amor mútuo como o
único mandamento (Jo 13,34; 15,12.17) abriu o caminho para alguns, na geração seguinte
cujo conhecimento sobre Jesus viera do evangelho –, desenvolverem visões exageradas.
A terceira fase (anos 100, fase durante a qual as epístolas joaninas, 1 e 2 João, foram
escritas). É marcada pelas controvérsias internas. A comunidade se dividiu em duas: de um
lado, os que aderiram à visão representada pelo autor das epístolas 1 e 2 João. Ele
complementava o evangelho realçando a humanidade de Jesus (vindo em carne) e seu
comportamento ético (guardando os mandamentos); de outro lado, os que desertaram (ao
menos na opinião do autor de 1Jo 2,18-19) e eram anticristos e filhos do demônio, pois
exageraram de tal forma a divindade de Jesus que não viam mais importância alguma em sua
carreira humana ou no próprio comportamento deles (além de simplesmente crer em Jesus).
Contudo, na comunidade joanina não havia nenhuma estrutura com autoridade suficiente para
capacitar o autor a disciplinar os separatistas que buscavam ativamente mais adeptos; ele
podia apenas convencer os que estavam confusos acerca da verdade de pôr à prova os
espíritos (1Jo 4,1-6).
A quarta fase (anos 100-110?, fase durante a qual 3 João foi escrita e um redador
acrescentou o cap. 21 a João). A desintegração da comunidade joanina levou ao
desenvolvimento de estruturas pastorais e conduziu os simpatizantes da cristologia descrita
em 3a a aproximar-se mais da Igreja” maior. Em 3 João, ainda que o escritor não gostasse
dele porque se tornara autoritário, Diótrefes provavelmente representava essa nova tendência
que era estranha à confiança joanina anterior no Espírito como o único mestre.
Semelhantemente, em Jo 21,15-17 é confiada a Simão Pedro a tarefa de pastorear as ovelhas,
reconhecendo, assim, pastores humanos ao lado de Jesus, o modelo de pastor. Este
desenvolvimento teria como resultado a vinda de alguns cristãos joaninos para a Igreja mais
121
ampla, conservando nesta a herança joanina. Por outro lado, os partidários da cristologia
descrita em 3b (talvez um grupo maior) incrementaram sua interpretação no docetismo (que
não considerava Jesus verdadeiramente humano), no gnosticismo (que considerava este
mundo tão distorcido que não poderia ser criação de Deus) e, finalmente, no montanismo (no
qual Montano tornou-se a corporificação do Paráclito para guiar a Igreja).
251
A hipótese de R. Brown revela-se muito importante para a compreensão da caminhada
da comunidade joanina. Mostra-nos que o Evangelho de João não é a biografia de Jesus, nem
sequer resumo de sua vida, mas interpretação de sua pessoa e obra, feita por uma comunidade
no seio da sua experiência de fé. Espelha a vida dela, mas não todos os detalhes, nem de sua
experiência, nem de sua tradição. Reflete o essencial da pregação repetida nas comunidades
joaninas, supondo, porém, certos elementos não expressos de modo explícito, elementos da
tradição evangélica mais ampla e mesmo dos escritos sinóticos. É a história de um grupo
eclesial que se distinguiu desde o início pela inclusão em torno de um Discípulo Amado, mas,
também, marcada por uma visão dualista do mundo e pelo impulso de romper com aqueles
que se lhe opunham.
Senen Vidal, no entanto, apresenta o Evangelho de João como produto de três versões
(redações) prévias (diferentes), às quais chama de Evangelho 1 (E1), Evangelho 2 (E2),
Evangelho 3 (E3).
252
No E1 ou primeira versão, o texto original (9,8-22.24-34) do evangelho da
comunidade joânica sofreu ampliações e interpretações com profunda reflexão e experiência
da “escola” joânica dos finais do século I:
O argumento fundamental para aceitar um primeiro evangelho (ou primeira
versão) é a diferença evidente, apanhada numa simples leitura de superfície
de João, entre os relatos (narrativas) e os “discursos”: a sua linguagem e
concepção global apontam para dois estratos literários muito diferentes.
[Aconselha-se a leitura atenta de 5,1-18, seguido do grande discurso 5,19-
47; 6,1-15, seguido do grande discurso (mas com a inclusão de 6,16-21) de
6,22-71; 9,1-41, seguido do grande discurso 10,1-42; 11-44, seguido da
ressonância em 1,45-57]. Os discursos tanto seguem a temática dos relatos
251
Cf. BROWN, Introdução ao Novo Testamento, pp. 508-510; A comunidade do discípulo amado, pp. 25-169.
252
Nesta dissertação assumimos a posição das três fontes apresentadas por Senen Vidal em Los escritos
originales de la comunidad del discipulo “amigo” de Jesus, pp. 66-67.
122
de milagre como se afastam dela. Além do mais, nalguns relatos de milagres
(5,19-47; 9,1-41; 11,1-44) já se funde o relato com o discurso.
253
Na primeira versão descobre-se uma situação concreta preocupante das comunidades
joânicas, pois estas sofreram ou ainda estão sofrendo com a sua expulsão do seio do judaísmo,
onde tinham vivido até a data. Assinalam-se expressamente os textos da primeira versão:
9,22.34. A causa desta situção foi o processo de uniformização do judaísmo depois do ano 70,
centralizado cada vez mais fortemente à volta do rabinismo dos fariseus, cuja delicada
situação política, social e religiosa não podia suportar as diferenças e tensões do judaísmo do
tempo anterior. Como conseqüência, tinha-se iniciado o processo de excluir do âmbito da
sinagoga os diversos grupos considerados “heréticos”, entre os quais estavam os grupos
judaico-cristãos joaninos. A sanção oficial deste processo, e não o seu início, foi a famosa
“benção dos hereges” (birkat haminim), com a qual, por volta de 80, ampliou-se a antiga 12ª
benção da importante oração sinagogal das “18 bençãos (shemoneh esreh)”, em que se
amaldiçoavam os “apóstatas”.
254
O centro da polêmica, depois do ano 70, consiste na confissão de em Jesus como
profeta messiânico. O que no interior do judaísmo plural era suportável converte-se agora
numa ameaça religiosa e social para o judaísmo atual. assim se explica o tom dramático
com respeito à messianidade de Jesus em Jo 9,1-34 e em outros textos: 1,20-21; 7,14-52;
10,22-25; 18,33-37. Neste contexto, a coleção tradicional dos milagres serviu como fonte
principal para as primeiras seções da obra joanina. Segundo a afirmação de muitos estratos, os
milagres representavam um argumento importante de legitimação da confissão de em Jesus
como profeta messiânico: Jo 1,50; 2,23; 3,2; 4,45; 7,31; 9,16-17.30-33; 10,41-42; 11,47-48;
12,10-11.17-17-19.37-42.
A tensa polêmica ao longo da narrativa 9,8-22.24-34 reflete a situação de “denúncia” e
“julgamento” que o grupo joanino está sofrendo nesse momento. Ao mesmo tempo em que a
separação com judeus constitui um “trauma”, e daí o medo (9,22) para os novos seguidores de
Jesus, também conduz ao “nascimento” de uma narrativa de caráter “etiológico”, com
objetivo de apresentar respostas à comunidade joanina no momento de seu maior confronto
com a sinagoga e de se legitimarem frente à ameça do judaísmo. O protagonismo do cego,
que de mendigo torna-se um vidente, de desprezado torna-se acolhido, mostra bem este
253
VIDAL, Los escritos originales de la comunidad del discipulo “amigo” de Jesus, p. 21.
254
O termo “herege” não se refere somente aos cristãos, mas a todos os dissidentes. Os mesmos critãos estavam
incluídos nos grupos considerdos apóstatas.
123
anseio. Segundo Brown, esta narrativa não deixa de ser também um escrito apologético, pois
se destina aos ouvintes da comunidade joanina interpelados por acusações que possivelmente
ouviam por parte dos judeus que estavam ligados à cúpula farisaica.
255
No E2 ou segunda versão, o evangelho sofre algumas “releituras” e interpretações. O
argumento principal é o mesmo apresentado para a existência do E1: a grande diferença entre
o relato e o discurso. O relato representa o estrato básico, enquanto o discurso, o estrato mais
significativo juntamente com pequenos comentários ou glosas. A redação E2 traz ao Quarto
Evangelho uma originalidade formal e teológica intensa, mostra um mundo joanino muito
diferente, o que faz com que se distancie tão profundamente dos Evangelhos Sinóticos.
Desaparece o material riquíssimo de imagens e de parábolas, tão abundantes nos
Sinóticos, centrado no tema-acontecimento do Reino de Deus e dá-se lugar à revelação das
realidades do mundo celeste, com as quais Jesus se identifica como emissário divino. Na base
está uma compreensão marcadamente “dualista” de separação radical entre o mundo de baixo
(o “terreno”, “a carne”), determinado pela “maldade”, “mentira”, “treva” e “morte”, e o
mundo celeste (o âmbito de “Deus” e do “Espírito”), determinado pela “bondade”, “verdade”,
“luz” e “vida”. Esta apresentação marca a pessoa de Jesus, que pertence ao âmbito divino
(Filho de Deus), “enviado” a este mundo por Deus como emissário com plenos poderes.
Como tal, realiza a “revelação” da realidade divina, em cuja aceitação (fé) ou recusa
(incredulidade) se produz a salvação ou a condenação do ser humano.
256
Neste ínterim de reelaboração pelo qual passa o Quarto Evangelho inteiro (em torno
do ano 100), a NCCN sofre novamente interferências. A perícope recebe o acréscimo de 9,4-
5.7b.23.35-37.39b-41, fazendo com que sua estrutura seja modificada pela introdução de duas
novas cenas, com novos temas ou reforço de temas anunciados. São introduzidos os temas
da relação entre Deus e a comunidade à luz da instituição do trabalho/patronado, bem como o
antigo tema da luz do mundo (9,4-5.39b) e a atuação do Filho do Homem como juiz
escatológico (9,35-37.39b). São incluídos ainda os temas do envio (9,4.7b) e a repetição do
esclarecimento sobre a titude ambígua dos pais do ex-cego (9,23).
257
No E3 ou terceira versão, o evangelho sofre ainda uma intervenção redacional.
Surgiram algumas releituras e glosas ao E2.
258
A este estágio de composição deve pertencer o
apêndice do capítulo 21, com respectiva conclusão e problemática ministerial entre Pedro e o
255
Cf. BROWN, El Evangelio según Juan, vol. I, pp. 624-626.
256
Para mais detalhes sobre este assunto, ver NEVES, Escritos de São João, pp. 70-74.
257
Ver VIDAL, Los escritos originales de la comunidad del discipulo “amigo” de Jesus, p. 333.
258
Os interesses do E3 indicam um tempo avançado das comunidades joaninas (fins do séc. I principio do séc.
II). Veja VIDAL, Los escritos originales de la comunidad del discipulo “amigo” de Jesus, p. 32.
124
Discípulo Amado. O mesmo deve ter acontecido com os capítulos 15-17, adicionados ao
capítulo 14,31.
um interesse especial pelo tema da eclesiologia: a justificação e defesa da
comunidade joanina e sua tradição. Assinalam-se os textos sobre o discípulo amado de Jesus
que têm por fim legitimar a tradição e as comunidades joanianas, representandas pelo
Discípulo Amado, perante a “igreja”, representada por Pedro (cf. 13,23-26). Outro ponto
importante da terceira versão reside no tema ético (Jo 15,1-17), como acontece também em
1Jo. No “discurso de despedida” de Jesus, em que abundam as instruções sobre o
comportamento dos “crentes”, é especialmente significativo o encargo do amor
intracomunitário, chave para a coesão da comunidade diante da ameaça externa e interna (cf.
13,34-35). Aparecem também temas da escatologia “futurista”, que pretende interpretar e
inclusivamente corrigir a concepção “presentista” da segunda versão (cf. 6,39 e 5,28-29).
Quanto à NCCN, não sofre alteração no E3, a não ser pela separação de parte do
fragmento 10,19-21, que numa versão anterior era proposto à guisa de conclusão da perícope,
juntamente com 9,1-41 e inclusão de 10,1-18 um discurso sobre a ética da liderança eclesial
com base na alegoria do pastor, aos moldes da narrativa introduzida pelo capítulo 21.
259
Podemos concordar ou não com estas possíveis e diversas fases apresentadas por R.
Brown e S. Vidal, pois é difícil determinar o limite entre uma e outra etapa da história do
texto. Tudo se torna muito hipotético. Contudo, a linha de investigação produziu certo grau de
consenso nos seguintes pontos: a redação progressiva do Evangelho de João; um núcleo
narrativo inicial; uma forte interação com a sinagoga farisaica; uma ampliação do núcleo
inicial através do trabalho catequético e homilético da comunidade; uma última redação que,
ordinariamente, não introduziu aspectos particulamente relevantes, com alguma exceção
significante.
260
O estudo se faz importante para concluirmos que os evangelhos e outros textos
bíblicos não caíram prontos, como mágica, mas são frutos das experiências vividas pelas
primeiras comunidades. Seus autores reais ou implícitos fizeram parte ativa das comunidades,
mas saíram de cena para darem vida ao texto que nos legaram. Não são as “fontestextuais
distintas ou edições e camadas textuais que nos envolvem, mas sim o texto que chegou até
nós.
259
Cf. VIDAL, Los escritos originales de la comunidad del discipulo “amigo” de Jesus, pp. 502-509.
260
Cf. TUÑÍ e ALEGRE, Escritos joaninos e cartas católicas, pp. 124-125.
125
3.2. TREVAS E LUZ NA COMUNIDADE JOANINA
A comunidade joanina enfrentou situações conflitantes tanto no âmbito externo (com o
povo e os judeus/fariseus) como interno (entre os diversos grupos constitutivos da
comunidade). Diante disto, o tema luz se transforma em uma metáfora pedagógica para
orientar a comunidade frente a estes conflitos. O escritor joanino escreve em face à realidade
de sua comunidade, mas não apenas em função dela; reage à expulsão dos cristãos da
sinagoga judaica, mas em termos que ultrapassam esta circustância; reflete o conflito com o
judaísmo, mas o escrito joanino não é um tratato sobre esse conflito, muito menos um escrito
antijudaico. Dos “judeus”, seu fraseado desliza para categorias mais amplas, como o mundo, a
vida, a luz e as trevas. Como linha geral, podemos imaginar um endurecimento das pressões
que a comunidade joanina estava sofrendo em seu ambiente, especialmente após a restauração
do judaísmo depois da destruição do Templo (ano 70 d.C.) e o sínodo de Jâmnia (80 d.C.).
Elencaremos alguns dos filhos das trevas e dos filhos da luz para a comunidade joanina.
3.2.1. Os filhos das trevas
No Quarto Evangelho encontramos muitos personagens que se movem no cenário
joanino muitas vezes como instrumentos das trevas usados ao serviço de um poder de morte.
Eles tentam sufocar a luz. Todavia, o Quarto evangelho não se limita a narrar a oposição
concreta que determinadas pessoas e grupos exercem contra a luz. Porém, detecta com grande
lucidez como, por detrás destes indivíduos e grupos, um sistema orgânico a que as pessoas
estão submetidas. Trata-se de uma instituição dotada de um poder e que age levando
conseqüências devastadoras para a vida daqueles que saem do seu convívio.
3.2.1.1. Os judeus
É indiscutível que “os judeus” desempenhem um papel importante no Quarto
Evangelho. Assim o confirma o surpreendente dado estatístico segundo o qual o evangelho
menciona “os judeus em 70 passagens, 33 das quais eles aparecem como os inimigos de
Jesus. Este dado é tanto mais chocante quando se tem em conta que esta expressão aparece
126
muito raramente nos Sinóticos: 5 vezes em Mateus, 6 vezes em Marcos e 5 vezes em
Lucas.
261
Tanto os personagens positivos quanto os negativos são judeus. Daí que o termo
“judeu” no Quarto Evangelho não designa uma etnia, nem uma cultura, nem um povo.
Quando usado por João com conotação adversativa, este termo não indica os judeus em geral
presentes tanto na Judéia como na Galiléia para falar dos seus costumes, suas leis ou sua
religião, mas se refere aos opositores de Jesus e seus discípulos: um grupo especial no
ambiente judaico que tem peso político e social e até certo poder de decisão; uma ideologia
que está tomando corpo numa estrutura de poder.
Ao usar o termo “os judeus” em sentido hostil, o escritor joanino aponta o grupo
judaico dominante, quer no tempo de Jesus, quer no tempo das comunidades joaninas
(constituídas de judeus e não judeus). O problema é que João não distingue estes dois
momentos e projeta anacronicamente a situação ulterior sobre a narrativa do ministério de
Jesus. Funde em um só horizonte o ano 30 a.C. e o ano 90 a.C.
262
Porém, não razão para
deduzir, do uso deste termo, que o Evangelho de João seja antijudaico. É que João usa o
termo para expressar: o povo judeu, os habitantes da Judéia, as autoridades judaicas; e meio
século mais tarde, o novo judaísmo, enquanto oposto aos cristãos.
263
Os textos que mencionam os judeus de forma pejorativa encontram-se, sobretudo, nos
capítulos 5-10 e 18-19. As razões desta tomada de posição são claras: a messianidade de
Jesus, sua origem, suas pretensões, sua conduta em relação ao sábado e, mais grave, Jesus se
apresenta como “Um com o Pai” (8,52; 10,30.31).
264
No Quarto Evangelho encontramos estes textos: “Por isso os judeus perseguiam Jesus:
porque fazia tais coisas no sábado” (5,16); “Os judeus murmuravam; então, contra ele, porque
dissera: ‘Eu sou o pão descido do céu’” (6,41); Os judeus discutiam entre si dizendo: ‘Como
esse homem pode dar sua carne a comer?’” (6,52); “Entretanto, ninguém falava dele
abertamente, por medo dos judeus(7,13); “Admiravam-se então os judeus, dizendo: ‘Como
entende ele de letras sem ter estudado?’” (7,15); Os judeus lhe responderam: ‘Não dizíamos,
com razão, que és samaritano e tens demônio?’” (8,48); “Disseram-lhe os judeus: ‘Agora
sabemos que tens demônio. Abraão morreu, os profetas também, mas tu dizes: Se alguém
guardar minha palavra, jamais provará a morte’” (8,52); “Disseram, então os judeus: ‘Não
261
Cf. WENGST, Interpretación del Evangelio de Juan, p. 41.
262
Cf. BROWN, A comunidade do discípulo amado, pp. 42-43; Juan Manuel MARTIN-MORENO. Personajes
del Cuarto Evangelio. Madrid: Universidad Pontificia Comillas/Desclée De Brouwer, 2002, p. 273.
263
Cf. KONINGS, Evangelho segundo João: amor e fidelidade, pp. 44-45.
264
Cf. NEVES, Escritos de São João, pp. 178-180.
127
tens ciquenta anos e viste Abraão!’” (8,57); “Houve novamente uma cisão entre os judeus, por
causa dessas palavras. Muitos diziam: ‘Ele tem um demônio! Está delirando! Por que o
escutais?’ ‘Outros diziam: ‘Não são de endemoniado essas palavras; porventura o demônio
pode abrir os olhos de cego?’” (10,19-21); Os judeus, então, o rodearam e lhe disseram:
‘Até quando nos manterá em suspenso?’” (10,24); “Os judeus, outra vez, apanharam pedras
para apedrejá-lo” (10,31); “Rabi, há pouco os judeus procuravam apedrejar-te e vais outra vez
para lá?(11,8); “Jesus, por isso, não andava em público, entre os judeus(11,54); “Então a
coorte, o tribuno e os guardas dos judeus prenderam Jesus e o ataram” (18,12); “Jesus lhe
respondeu: ‘Falei abertamente ao mundo. Sempre ensinei na sinagoga e no Templo, onde
reúnem todos os judeus; nada falei às escondidas’(18,20); “Disse-lhe Pilatos: ‘Tomai-o vós
mesmos, e julgai-o conforme vossa Lei’. Disseram-lhe os judeus: ‘Não nos é permitido
condenar ninguém à morte...’” (18,31); “Jesus respondeu: ‘Meu reino não é deste mundo. Se
meu reino fosse desde mundo, meus súditos teriam combatido para que eu não fosse entregue
aos judeus’” (18,36); “E tendo dito isso, saiu de novo e foi ao encontro dos judeus...” (18,38);
“Quereis que vos solte o rei dos judeus?” (18,39); Os judeus responderam-lhe: ‘Nós temos
uma Lei e, conforme essa Lei, ele deve morrer, porque se fez filho de Deus’” (19,7); “Dem
diante, Pilatos procurava libertá-lo. Mas os judeus gritavam: ‘Se o soltas, não és amigo de
César!’” (19,12); “Pilatos redigiu também um letreiro e o fez colocar sobre a cruz; nele estava
escrito: ‘Jesus Nazareu, o rei dos judeus’” (19,19); “Esse letreiro, muitos judeus o leram,
porque o lugar onde Jesus fora crucificado era próximo da cidade” (19, 20).
Encontramos diversos grupos entre os judeus e dentre estes um grupo opositor que
não crê em Jesus (7,48; 9,39-41; 10,25; 12,37). Portanto, quando se diz que a “luz brilha”,
sem que as trevas apreendam, quando se afirma que a luz veio ao mundo, sem que o mundo a
conheça, ou que veio entre os seus e os seus não a receberam, está se falando de um grupo que
recusa a verdade e se fecha à luz. Embora o autor do evangelho não se refira explicitamente
de um grupo concreto no tempo de Jesus, porque às vezes se fala do povo, outras dos judeus,
outras dos fariseus e, finalmente, do Sinédrio, podemos identificar este grupo como sendo o
círculo de “judeus” e fariseus que estão em volta do Templo e do culto oficial, ou seja, as
autoridades político-religiosas judaicas (1,19; 2,18; 5,10; 5,15; 7,13; 8,22; 8,59; 9,40-41). No
fundo, o evangelho nos diz daqueles que levaram Jesus à cruz. Eles são exatamente os seus
contemporâneos: os que não aceitam Jesus, os “judeus” de seu tempo, herdeiros do farisaísmo
que se impôs depois da queda de Jerusalém, quando se reuniram em Jâmnia. Os “judeus
representam, portanto, também a sinagoga judaica que sucedeu ao grupo do Templo. É aqui
128
que se pode compreender a importância do momento histórico em que foi escrito o evangelho.
A incredulidade descrita e as discussões de Jesus com os “judeus” estão mais centradas na
problemática do tempo do autor do que na do tempo de Jesus.
265
A luz está entre os judeus, embora estes não a conheçam, pois preferem as trevas. Os
judeus, ou as autoridades judaicas, reagem com violência quando Jesus diz: “Eu sou a luz do
mundo”. Para eles, o termo “luz” estava intimamente ligado a Deus (Sl 27,1; Is 60,19; Mq
7,8). Assim, quando Jesus fez esta declaração, na realidade estava dizendo: “Eu sou Deus”, ou
seja: Jesus está fazendo-se igual a Deus (10,33; 5,18), algo que para eles é intolerável e
inadmissível. Aceitar o nome de Jesus como luz é o mesmo que aceitar Jesus como o messias
esperado. Por isso, as autoridades alegam que o testemunho de Jesus o era válido, pois,
segundo a Lei, ninguém é acreditado por suas próprias palavras, ninguém pode dar
testemunho em sua própria causa. Eles se opõem sistematicamente a Jesus-luz desde o
princípio: perseguem Jesus (5,16); querem prendê-lo e enviam guardas ao Templo para isto
(7,30.45; 8,20) e, finalmente, decidem sua morte (11,47-53).
Para K. Wengst, ainda que o Jesus do Evangelho de João apresente as Escrituras,
Moisés e a Lei a seu favor e ainda que o mesmo se qualifique como judeu, fala, no entanto,
em “vossa Lei” (8,17; 10,34), como se tampouco ele não fosse judeu. Também chama seus
antepassados do deserto de “vossos pais” (6,49). É indiscutível que esta distância que
estabelece no evangelho e que apresenta o judaismo como alheio a Jesus não concorde com a
realidade do Jesus terreno. Este tipo de exposição é compreensível, em compensação, como
expressão do contraste entre judaísmo e cristianismo da época do evangelista.
266
A mesma
distância acontece quando este fala da “páscoa dos judeus” (2,13; 6,4; 11,55), da “festa dos
judeus” (5,1; 6,4) e da “purificação dos judeus” (2,6). O julgamento aparece aqui como um
coletivo religioso bem definido frente a Jesus-luz e é, no plano do evangelista, frente à
comunidade que aceita e crê na luz – com sua Escritura, festas e costumes.
O evangelho, no entanto, não somente marca as distâncias da comunidade cristã frente
ao judaísmo, como também fala de uma profunda hostilidade. Essa hostilidade põe em
evidência o quanto o Jesus joânico reprova os judeus e seu desconhecimento de Deus (5,37-
265
WENGST, Interpretación del Evangelio de Juan, p. 41:
Estos presentam el judaísmo del tiempo de Jesús en la variedad de sus diversos grupos y estamento, un
cuadro que corresponde a la realidad histórica de esta época anterior a la guerra judía. Los sinóticos
hablam de fariseos y saduceos, de celotas, de letrados, sacerdotes y sumos sacerdotes. El evangelio de
Juan, en cambio, presenta al judaísmo que polemiza con Jesús como una magnitud uniforme, cosa que
no corresponde a la realidade histórica del tiempo de Jesús.
266
Cf. WENGST, Interpretación del Evangelio de Juan, p. 50.
129
47; 8,19.55), o quanto os judeus também tornam evidente sua não-aceitação a Jesus-luz com
uma atitude agressiva. As trevas entram em luta contra luz. Por isso, a incredulidade é
definida como fazer obras contra luz. Quer dizer, a incredulidade e a hostilidade dos judeus
não são simplesmente um não permitir que a revelação ilumine a vida deles, mas tendem a
aniquilar a revelação, tendem a aniquilar Jesus-luz. Daí a perseguição sistemática a Jesus até
sua morte de cruz.
A comunidade joanina viveu forte conflito com o império romano e com as
autoridades judaicas. Estes dois grupos são chamados, numa linguagem figurada, de
“mundo”. São os representantes supremos da oposição e do ódio contra Jesus. É o mundo
organizado pelos poderosos que se torna hostil e rival dos cristãos. Ambos os grupos viram a
manifestação da luz, ouviram suas palavras, mas preferiram as trevas. A incredulidade é
apresentada como rejeição à luz e à palavra, como uma luta contra a luminosidade da
revelação.
3.2.1.2. O mundo
A julgar pela ocorrência do vocábulo ko,smoj, verifica-se, assim como o termo “os
judeus”, que o “mundo” ocupa um lugar de destaque nos escritos joaninos. O termo ocorre
102 vezes (78 no evangelho e 24 nas cartas). No Quarto Evangelho, este termo é usado de
vários modos. Tem fundamentalmente duas acepções contrapostas e sempre será necessário
verificar em que sentido está empregado. Ora tem um sentido negativo e ora um sentido
positivo.
Em sentido positivo, o mundo foi criado por Deus através do seu lo,goj ( 1,3.10;
17,5.24) e por isso é transitório. O “mundo” não designa primariamente a criação, a natureza,
e sim a humanidade, o conjunto de pessoas que habitam este mundo e que são os destinatários
da revelação e da salvação que Jesus veio trazer.
267
Designa o âmbito dos homens, enquanto
distinto do âmbito de Deus; dos de baixo, enquanto distinto dos de cima. O mundo é a morada
dos seres humanos: do homem, diz-se que vem a este mundo 16,21; do Cristo e do profeta
afirma-se “que deve vir a este mundo(6,14; 11,27); acerca de Jesus, afirma-se que veio a
este mundo (1,9; 3,19), que foi enviado ao mundo (3,17; 17,18), que está ou estava no mundo
(1,10; 9,5), que volta a deixar o mundo (13,1; 16,28). O “mundo” é, neste sentido, o cenário
267
MARTIN-MORENO, Personajes del Cuarto Evangelio, pp. 331-332.
130
da história humana, o lugar onde se desdobra a História da Salvação e no qual Jesus se
apresenta como Revelador do Pai.
Em sentido negativo, o “mundo” é tomado em seu aspecto ético-religioso como força
demoníaca que luta contra Jesus e contra aqueles que crêem nele (15,18-25). Um sentido
hostil, porém o mais freqüente, indica o conjunto dos seres humanos incrédulos que rechaça a
luz que Deus oferece e não reconhecem Jesus como Filho de Deus, Luz do Mundo e Salvador
universal: “É a parcela do mundo que resiste à oferta de Deus e rejeita seu Enviado e sua
comunidade. Por isso, tanto o Enviado como a comunidade são estranhos para o “mundo”,
estão no mundo, mas não são do mundo, não lhe pertencem, não lhe são subservientes.”
268
Este “mundo” preferiu as trevas à luz: “a luz veio ao mundo, mas os homens
preferiram as trevas à luz, porque suas obras eram más” (3,19). O “mundo” que odeia a luz do
mundo se concretiza historicamente na opção feita pelos judeus/fariseus, que não só se
obstinam na incredulidade, mas também perseguem Jesus a ponto de quererem matá-lo
(5,16.18; 11,45-54). É o mundo da mentira e da violência institucionalizadas. Odeia a Jesus
precisamente porque ele testemunha que suas obras são más (7,7); odeia também aos
discipulos de Jesus (15,18-19); desde mundo se nos diz que não tem conhecido o Verbo
(1,10), que não conhece o Pai (17,25), que é incapaz de ver a Jesus (14,19). Por isso, os
discípulos não são deste mundo, como tampouco Jesus é deste mundo (17-14; 15,19).
Neste contexto, pertencer “ao mundo” significa posicionar-se a favor daqueles que se
se caracterizam por uma atitude de aberta oposição ao mundo da luz. Este “mundo” não se
deixa identificar sem mais com o sistema político (poder absoluto do Império romano
servindo-se da hegemonia local dos “judeus”), nem com o sistema econômico-social
(mercantismo, concentração dos meios de produção e escravismo), nem com o sistema
cultural (cultura global do helenismo) ou religioso (a “religião cita” do judaísmo no Império
Romano).
269
O mundo é visto como estando sob o controle de um poder sobrenatural o
opositor de Deus o diábolos, “o chefe desde mundo” (8,44; 13,2) e Satanás (13,27). O
mundo é, em certo sentido, uma potência maléfica que se identifica enquanto manifesta sua
recusa deliberada da luz com o próprio demônio: “Vós filhinhos, sois de Deus e vós os
vencestes. Porque o que está em vós é maior do que aquele que está no mundo. Eles são do
mundo; por isso falam segundo o mundo e o mundo os ouve” (1Jo 4,4; cf. 5,19).
270
268
KONINGS, Evangelho segundo João: amor e fidelidade, p. 37.
269
Para um aprofundamento sobre o aspecto econômico, político, social e religioso da comunidade joanina, cf.
KONINGS, Evangelho segundo João: amor e fidelidade, pp. 38-42.
270
TUÑI VANCELLS, O testemunho do Evangelho de João, pp. 155-157.
131
O dualismo inconciliável que se estabelece entre os discípulos e o mundo não se dirige
aos discípulos de Jesus e o resto da humanidade, mas entre os discípulos de Jesus e esta
estrutura de poder que seduz aos homens e rechaça Jesus. Este poder satânico subjuga as
pessoas e apodera-se deles usurpando um direito que não lhe pertence por natureza.
O que torna o mundo mau não é algo intrínseco a ele, mas o fato de que ele se afastou
do seu Criador e tornou-se escravo de poderes malignos. A alienação do mundo em relação a
Deus é demonstrada por seu ódio e recusa à luz. Enquanto o demônio age no mundo, porque é
“o príncipe desde mundo” (12,31; 16,11), o Senhor das trevas, Jesus é a luz que salva o
mundo, aquele que o vence, superando-o em poder e julgando-o (14,30; 16,11). “Neste
mundo da morte apareceu a vida (1Jo 1,2), ao mundo das trevas veio a luz (Jo 1,5; 3.19), e
isso pelo fato de que o Filho de Deus veio ao mundo.”
271
Ainda que Jesus não tenha vindo
para julgar o mundo (3,16-19), sua presença nele estabelece um julgamento. O julgamento
acontece na hora em que os seres humanos optam pelas trevas e rechaçam a luz do mundo.
3.2.1.3. Nicodemos e José de Arimatéia
Muitos judeus acreditam em Jesus (Jo 2,23; 8,31; 12,10-11), porém não têm coragem
de manifestar sua publicamente por medo dos judeus e também porque não querem abrir
mão de seus privilégios e status social. É o caso de Nicodemos e José de Arimatéia. Enquanto
José de Arimatéia é figura que aparece nos Evangelhos Sinóticos, Nicodemos é uma figura
exclusivamente joanina. Os dois são pessoas importantes na comunidade judaica: Nicodemos
é um fariseu, chefe dos judeus, membro do Conselho (Jo 3,1.4.9; 7,50;19,39) e José de
Arimatéia é um homem rico (Mt 27, 57), ilustre membro do Conselho (Mc 15, 43; Lc 23,50;).
Os dois acolhem a luz, são simpáticos à comunidade cristã, mas às escondidas.
O episódio de Jesus com Nicodemos (Jo 3,1-21) constitui um importante texto acerca
da teologia do juízo. Nicodemos vai visistar a luz (Jesus) à noite (Jo 3,2; 9,4; 11,10; 13,30;
19,30; 21,3), porque tinha medo dos judeus, ou porque representa o costume dos judeus de
estudar a Torah à noite, ou ainda, porque não conseguiu enxergar Jesus como a verdadeira luz
do mundo. Aparece habitualmente para descrever o sentido teológico do acontecimento que
sucede “de noite”, nas trevas. Quer descrever uma situação ou um estado que se opõe à
verdadeira luz do dia.
271
BULTMANN, Teologia do Novo Testamento, p. 463.
132
O envio do Filho de Deus ao mundo destina-se exclusivamente à salvação. O
versículo 18 insiste no tema da salvação mediante a fé, única condição para evitar o juízo e a
condenação escatológica: “Quem nele crê não é julgado; quem não crê, está julgado”,
porque recusa a luz e escolhe as trevas. O Verbo “julgar” está em relação com “crer” ou o
“não crer” na luz que veio ao mundo para iluminar a todos. Para quem crê no revelador não há
condenação, não treva, porque encontra e aceita a Jesus como “luz do mundo”. Mas quem
não crê permanece nas trevas, está julgado, porque não adere à pessoa do Filho único de
Deus.
Esta realidade dramática do juízo é ainda mais acentuada nos versículos 19-21, onde o
julgamento acontece na hora em que as pessoas recusam a luz ao preferirem as trevas. Nestes
versículos, o termo “luz” designa o Filho, o Enviado de Deus, oposto à personificação das
“obras malignas” do mundo.
Nicodemos representa, no evangelho, as pessoas de imperfeita que creram em Jesus
ao ver seus sinais, porém em cuja fé não se pode confiar: “Enquanto estava em Jerusalém para
a festa da Páscoa, vendo os sinais, muitos creram em seu nome. Mas Jesus não tinha
confiança neles, porque os conhecia a todos” (Jo 2,23-24). É interessante que Nicodemos fala
no plural: “Rabi, sabemos que vens da parte de Deus como mestre” (Jo 3,2). Este plural dá ao
discurso um tom majestático, ou seja, Nicodemos é o porta-voz de todo o grupo de gente de fé
imperfeita no evangelho.
272
Por isso, o episódio de Jo,3,1-21 não indica o momento final do
diálogo; não narra a despedida entre Jesus e Nicodemos, não há nenhum acordo final
solenemente travado entre um e outro que marque o final da cena e nem um ato de de
Nicodemos ao estilo da samaritana ou do ex-cego de nascimento. O dialogo não tem um final,
porque a história não acaba ali. Porém, por ironia joanina, Nicodemos e José de Arimatéia vão
sepultar o corpo de Jesus. Coube a eles um cadáver:
Depois, José de Arimatéia, que era discípulo de Jesus, mas secretamente,
por medo dos judeus, pediu a Pilatos que lhe permitisse retirar o corpo de
Jesus. Pilatos permitiu. Vieram, então, e retiraram seu corpo. Nicodemos,
aquele que anteriormente procurara Jesus à noite, também veio, trazendo
cerca de cem libras de uma mistura de mirra e aloés. Eles tomaram então o
corpo de Jesus e o envolveram em faixas de linho com aromas, como os
judeus costumavam sepultar (19,38-40).
272
Cf. MARTIN-MORENO, Personajes del Cuarto Evangelio, pp. 99-100.
133
3.2.1.4. A exclusão e a expulsão da sinagoga como trevas para a comunidade joanina
A primeira medida que os judeus tomaram em relação aos primeiros seguidores de
Jesus parece haver sido a exclusão e a expulsão da sinagoga. A expressão avposuna,gwgoj
(excomungado da sinagoga) é genuinamente joanina (Jo 9,22; 12,42; 16,2) e, inclusive, não
aparece em nenhum dos documentos judaicos. Embora não esteja claro que este seja um
acontecimento produzido no tempo de Jesus, indica que aqui aflora um problema crucial que
já delineava o tempo de Jesus.
A primeira vez em que aparecem as autoridades judaicas excluindo e
conseqüentemente expulsando alguém da sinagoga é em 9,22, no contexto da Narrativa da
Cura do Cego de Nascença. Primeiro estas autoridades são mencionadas como fariseus e
depois como judeus e aparecem ostentando um poder autoritativo. Estes judeus investidos de
autoridade chamam a julgamento, segundo 9,18-23, os pais do ex-cego e os interrogam acerca
de seu filho que fora curado por Jesus. Perguntam a eles sobre como o filho deles recuperou a
visão. Os pais confessam sua ignorância dizendo que ele é maior de idade e pode falar por si
mesmo. Os pais falaram assim porque temiam os dirigentes judeus, que haviam combinado
de expulsar da sinagoga quem a Cristo confessasse como o messias. Depois de sua confissão
indireta de Jesus em 9,30-33, o cego curado aparece em 9,34 sendo expulso da sinagoga.
Segundo Schnackenburg, a expressão evxe,balon auvto.n e;xw (9,34) poderia significar
simplesmente um afastamento do lugar de reunião, porém, em relação a 9,22, por uma parte, e
a confissão explícita posterior do ex-cego, por outra, é provável que o evangelista se refira a
uma exclusão da sinagoga.
273
Também em 9,22 chama a atenção a frase de que os pais do ex-
cego “temiam os judeus”, como se eles mesmos também não fossem judeus. Isto nos mostra
por quanto o evangelista não apresenta os pais do ex-cego como seguidores de Jesus. Os
judeus aparecem, pois, nesta passagem com poder autoritativo que procede severamente
contra os dissidentes de seu próprio campo. Especialmente significativo é o advérbio “já”, que
aponta que a pena era aplicada no tempo de Jesus, porém não nenhum documento que
comprave esta expulsão. Contudo, a sanção era conhecida e aplicada no tempo do evangelista,
como indica claramente o advérbio “já”.
274
Também no capítulo 20,19 se diz que os discípulos reunidos em uma casa ao anoitecer
da páscoa tinham as portas fechadas por “medo dos judeus”. Esta frase referindo-se ao
273
Cf. SCHNACKENBURG, El Evangelio según San Juan, pp. 314-315.
274
Cf. WENGST, Interpretación del Evangelio de Juan, p. 54.
134
contexto histórico dos discípulos de Jesus mostra um resultado muito estranho: parece dizer
que estes discípulos não eram judeus. A frase encontra todo o sentido quando se é transferido
ao plano histórico do evangelista, se sua comunidade se viu realmente submetida à
prepotência de um judaísmo hostil e excludente.
Uma segunda passagem em que encontramos a expressão avposuna,gwgoj é 12,42:
“Contudo, muitos chefes creram nele, mas, por causa dos fariseus, não o confessavam, para
não serem expulsos da sinagoga.” Também neste texto aparecem os fariseus exercendo uma
autoridade que não possuíam no tempo de Jesus. Tampouco esta frase é aplicada à época
anterior ao ano 70 d.C. Tem sentido, em compensação, quando se aplica ao tempo do
evangelista, pois sua comunidade contava com simpatizantes da classe dirigente
275
que
evitavam um reconhecimento público por medo dos judeus/fariseus e suas conseqüências.
Também a em Jesus é motivo para que o judaísmo de orientação farisaica decretasse a
exclusão da sinagoga.
A terceira passagem é 16,2, uma predição que Jesus tem ao despedir-se de seus
discípulos: “Expulsar-vos-ão das sinagogas.” Parece claro que a exclusão da sinagoga não é
uma medida que faz referência à época de Jesus. O evangelista tem presente um problema
instigado no seu tempo. O contexto o confirma: os versículos 1 e 4 assinalam que Jesus
predisse a seus discípulos o ódio que iria desencadear sobre eles e conferem a esta predição
um caráter de consolo: Digo-vos isto para que não vos escandalizeis”. E conclui: “Mas vos
digo tais coisas para que, ao chegar a sua hora, vos lembreis de que vô-las disse.” Porém, isto
somente pode significar que a comunidade do evangelista seja objeto de ódio por reconhecer a
Jesus como o messias e o evangelista trata de consolar-lhes fazendo-os compreender que as
tribulações que os afetarão não são o fruto de uma cega fatalidade, mas que foram preditas
e anunciadas por Jesus. E o versículo 3 indica o verdadeiro motivo da conduta de seus
perseguidores: “E isso farão porque não reconheceram o Pai nem a mim.” Agora, bem dentro
das medidas concretas que afetam aos discípulos de Jesus: “Vos expulsarão da sinagoga.” Por
isso, a expulsão da sinagoga é uma experiência dolorosa para a comunidade joanina. E porque
a comunidade sofre com esta experiência, o evangelista assinala que Jesus a havia predito.
276
275
Com esta expressão, que se encontra três vezes e exclusivamente em João, estamos frente a um estado de
coisas peculiares. A segunda passagem em que aparece (12,42) se deve a uma reflexão retrospectiva do
evangelista: ainda que muitos dos dirigentes (= membros do Sinédrio) cressem em Jesus, não o confessavam por
medo dos fariseus, para não serem expulsos da sinagoga. Cf. SCHNACKENBURG, El Evangelio según San
Juan, pp. 314-315.
276
Cf. WENGST, Interpretación del Eevangelio de Juan, p. 55.
135
Além disso, 16,2 assinala outra medida complementar e ainda mais extrema: “virá a
hora em que aquele que vos matar julgará realizar ato de culto a Deus.Deixa claro, pelo
contexto, que o evangelista tem presente uma experiência que a sua comunidade está vivendo.
Essa experiência consiste em que o evangelista faz referência aos judeus enquanto sujeitos
ativos, como, por exemplo, com poder de expulsar alguém da sinagoga. E isto, porque
condenar os cristãos à morte pressupõe uma suposta obediência a Deus. Então, também fica
claro que as vítimas são judeus cristãos e que a ocasião entendida como obediência a Deus
tem sentido – sob a óptica judaica – tratando-se de judeus renegados.
277
Segundo J. Louis Martyn, temos que ler o Evangelho de João num nível duplo: o nível
da vida de Jesus e o vel da presença poderosa deste Jesus no âmbito de sua comunidade. O
Evangelho de João reflete um estágio inicial de banimento no judaismo formativo. O ponto de
partida do trabalho de Martyn é a expulsão dos cristãos da sinagoga, que ele classifica como
dado anacrônico, pois esta medida contra os cristãos só foi executada a partir dos anos 90 d.C.
Sua aplicação à vida de Jesus é um indício de que outros dados semelhantes podem ser mais
um reflexo dos problemas e preocupações da comunidade joanina do que dados históricos
sobre Jesus.
278
Na prática, a expressão avposuna,gwgoj deve significar uma excomunhão e ter sido uma
medida disciplinar adotada pela sinagoga e que, portanto, tinha um limite temporal.
279
Porém,
as passagens do Quarto Evangelho mostram uma medida muito mais rigorosa. Trata-se de
uma separação, de uma exclusão total da comunidade de judaica,
280
como mostra
claramente em 16,2, onde se fala inclusive de sentença de morte.
De acordo com Overmam, no período fluído que deu origem ao judaísmo formativo,
uma série de facções competia por influência e controle. A possibilidade de excluir dissidente
indica que aqueles que excluem possuem um grau de autoridade no ambiente em que o
banimento é aplicado. O grupo que pratica a exclusão também precisa ter uma identidade
suficientemente bem definida para poder entrar em um acordo quanto ao que constitui uma
violação grave, a ponto de merecer exclusão. Porém, uma série de comunidades sectárias do
judaísmo havia atingido claramente este estágio decisivo de definição e organização. Quando
o banimento é praticado, significa que a comunidade, de uma forma ou de outra, atingiu um
277
Cf. WENGST, Interpretación del Evangelio de Juan, pp. 56-57.
278
MARTYN, History and theology in the Fourth Gospel, pp. 17-41.
279
Cf. BRUCE, João: introdução e comentário, pp. 188-189.
280
Cf. MERCIER, El Evangelio según “el discípulo a quien Jesús amaba”, tomo I, p. 545.
136
consenso quanto ao que ela é e o que ela representa. O judaísmo formativo desenvolveu a
prática institucional do banimento, que protegia o grupo.
281
Um dos procedimentos adotados e que evoluiu no judaísmo formativo tem referência à
recepção da birkat hamminin (a bênção dos hereges), eufemismo para designar a maldição
dos dissidentes.
282
Esta representa a décima segunda de dezoito bênçãos pronunciadas na
sinagoga, as chamadas Amidah. Teve sua elaboração ligada ao concílio de Jâmnia
283
e vai se
consolidando no final do século I, porém sua redação, segundo autores modernos, é do culo
II.
284
Esta bênção, que tradicionalmente incluía uma maldição dos inimigos de Deus (“que
toda maldade pereça, de repente”), teve sua maldição assim reformulada: “Para os apóstatas,
que não haja esperança. O domínio da arrogância elimine rapidamente em nossos dias. E
deixa os nazarenos e os minim perecer em um momento. Deixa-os ser apagados do livro da
vida. E que não sejam escritos junto com os justos”.
285
Os judeus cristãos, que tinham que ficar em silêncio enquanto a congregação recitava
a nova fórmula, foram obrigados a retirarem-se. Não podiam beneficiar-se do “amém”
comum da comunidade, ou sequer rezarem esta benção como recitadores nas assembléias da
sinagoga. Porém, a remodelação do judaísmo não se inicia com a redação da birkat hamminin,
que somente marca uma etapa neste processo. Por isso, as passagens avposuna,gwgoj do Quarto
Evangelho se referem provavelmente à estigmatização dos judeus cristãos como hereges pela
ordodoxia farisaica em processo de formação; pois esta estigmatização tinha como
conseqüência a expulsão da comunidade sinagogal.
286
281
J. Andrew OVERMAN. O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo: o mundo social da comunidade de
Mateus. São Paulo: Edições Loyola, 1997, p. 59.
282
A oração das “Dezoito Bênçãos” devia ser recitada três vezes ao dia por todos os judeus, inclusive pelas
mulheres, escravos e crianças. Ela foi reformulada por Samuel, o Menor, sob a influência do rabi Gamaliel II.
Cf. KONINGS, Evangelho segundo João: amor e fidelidade, p. 200.
283
Carlos G. BRAVO. Mateus: boas-novas para os pobres perseguidos. In: Revista de Interpretação Bíblica
Latino-Americana 13 (1993): 31.
“... Um importante grupo de fariseus reunidos em torno de Yohanan ben-Zakkai, se supõe à guerra por
considerar inútil uma resistência que comprometeria seriamente o destino de Israel. (...) Poucos anos
depois, talvez entre 75 e 80, Yohanan ben-Zakkai, chefe dos que se haviam oposto á resistência armada
a Roma, e que havia fugido de Jerusalém durante as hostilidades de 66-70, empreende a magna tarefa de
reorganizar os judeus em torno da sinagoga. mnia pretende ser o início do fim do sectarismo cuja
variedade desconcertava o povo. O assim chamado “Concílio de Jâmnia” (por volta do ano 90) é o fato
mais significativo neste processo. Significa o estabelecimento do rabinato como corpo normativo para o
judaísmo. Uma hipótese razoável é o seguinte: vários judeus entre os quais Yohanan, se estabeleceram
em Jâmnia durante ou depois do cerco de Jerusalém. Depois do ano 70 se estabelece uma escola
rabínica em Jâmnia, com a autorização de Roma. Sua finalidade, será unificar o fragmento judaísmo,
formando uma coalisão.”
284
Cf. WENGST, Interpretación del Evangelio de Juan, pp. 64-65. Uma boa discussão sobre o assunto pode ser
lida em GARCIA. O sábado do Senhor teu Deus, pp.40-43.
285
OVERMAN, O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p. 59.
286
Cf. WENGST, Interpretación del Evangelio de Juan, pp. 59-60.
137
O desenvolvimento do judaísmo depois do ano 70 d.C., que atua contra a comunidade
joanina e também contra outras correntes
287
, explica a imagem que temos dos judeus no
Evangelho de João como uma retrospecção desta época à época de Jesus. A expulsão da
sinagoga não tinha somente conseqüências religiosas para os dissidentes, mas também era um
ato que alterava substancialmente todas as ciscunstâncias da vida:
No se les vende (a los minim) ni se les compra, no se negocia com ellos, no
se enseña a sus hijos ningún oficio ni se permite que curen a posesiones
(esclavos y ganado) ni a personas. (…) No hay que hahacer negocios con los
minim ni dejarse curar por ellos, ni siquiera para prolongar la vida una hora.
(…) A los paganos y a aquellos que apacientan o crían ganado menor no hay
que favorecerlos, pero tampoco perseguirlos. A los minim y a los renegados
y a los delatores no hay que favorecerlos y hay que perseguirlos.
288
Por isso, a separação do judaísmo era um momento de treva para quem proclamava
Jesus como messias. Os dissidentes ficavam sem proteção, sem trabalho, sem relações sociais
e comerciais, separados de sua tradição religiosa, dos serviços e ritos religiosos. Portanto, sem
a religião judaica farisaica, permitida pela lei do império, os judeus cristãos deveriam assumir
outra religião que fosse reconhecida pelos romanos, caso contrário, seriam vistos como
inimigos. A situação da comunidade era de muita insegurança. De um lado, as autoridades
religiosas e do império mantinham sobre ela uma vigilância continua. De outro lado, a
multidão passou a ver os dissidentes cristãos como pessoas suspeitas, gente perigosa.
3.2.2. Os filhos da luz
Vimos até aqui que a comunidade joanina é uma comunidade ameaçada pelas trevas e
diante das trevas precisa dar testemunho da luz. A solidariedade e o amor mútuo são forças
que ajudam na resistência, que se tornam possíveis porque a experiência da luz do mundo,
presente e viva na comunidade, é renovada. Na família de Betânia (11,1-12,10), no diálogo
com a samaritana (4,1-30), na cura do cego de nascença (9,1-41) e no lava-pés (13,1-16)
encontramos um retrato desta experiência de luz. Eles representam o grupo de pessoas que
287
Cf. OVERMAN, O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p. 59.
288
Cf. WENGST, Interpretación del Evangelio de Juan, pp. 64-65.
138
começa a enxergar na comunidade joanina, ou seja, no grupo que vivencia a solidariedade, a
acolhida e o amor. Formam uma comunidade de amigos, de pessoas que se amam e que
acredita na presença de Jesus como portador da luz nova.
3.2.2.1. Os judeus
Como citamos, a maior parte dos textos em que se fala dos judeus no Quarto
Evangelho é para indicar os opositores de Jesus e seus discípulos. Por outro lado,
encontramos textos que falam dos judeus de um modo geral, para se referir aos seus costumes,
suas leis ou sua religião: “Este foi o testemunho de João, quando os judeus enviaram de
Jerusalém sacerdotes e levitas para interrogá-lo” (1,19); “Havia ali seis talhas de pedra para
purificação dos judeus (2,6); Os judeus interpelaram-no, então, dizendo: ‘Que sinal nos
mostras para agirem assim?’” (2,18); Os judeus, por isso, disseram ao homem curado: ‘É
sábado e não te é permitido carregar o leito’” (5,10); “Disse, então, Jesus aos judeus que nele
haviam crido” (8,31); “Muitos judeus vieram até Marta e Maria, para as consolar da perda do
irmão” (11,19); “Quando Jesus a viu chorar e também os judeus que a acompanhavam,
comoveu-se interiormente e ficou conturbado (11,33); “Grande multidão de judeus, tendo
sabido que ele estava ali, veio, não por causa de Jesus, mas também para ver Lázaro” (12,
9); “Os chefes dos sacerdotes decidiram, então, matar também a Lázaro, pois, por causa dele,
muitos judeus se afastavam e criam em Jesus” (12,10-11); “Eles tomaram então o corpo de
Jesus e o envolveram em faixas de linho com os aromas, como os judeus costumavam
sepultar” (19,40).
Jesus mesmo é um judeu: “Como, sendo judeu, tu me pedes de beber, a mim que sou
samaritana?” (4,9); Sobressai, contudo, o texto em que o Jesus joanino afirma de modo
absotuto: “Vós adorareis o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque a
salvação vem dos judeus(4,22) e não dos samaritanos ou dos pagãos; também encontramos
os discípulos e a família de Lázaro, Marta e Maria que são judeus e amigos íntimos de Jesus
(11,1-43).
No Quarto Evangelho, muitos judeus aceitaram Jesus como o Messias Salvador e sua
proposta de vida (1,39; 4,29.42; 11,27). Porém, não encontramos uma lista com os nomes dos
doze apóstolos. Aparecem neste evangelho somente sete discípulos mencionados pelo nome:
André e Simão Pedro (1,40). Filipe (1,43); Natanael (1,45), Tomé (11,16), Judas Iscariotes
(6,71) e o outro Judas (14,22). Sem nome aparecem: o discípulo a quem Jesus amava (13,23)
139
e os filhos de Zebedeu (21,2). Ainda encontramos José de Arimatéia e Nicodemos, que são
discípulos de Jesus às escuras (19,38-39). Somente Judas Iscariotes (6,71) e Tomé (20,24) são
explicitamente incluídos no grupo dos Doze.
289
Os primeiros discípulos que seguem a Jesus são: uma misteriosa figura anônima e
André (1,35-40), Simão Pedro (1,40-42), Filipe e Natanael. Estes representam três classes de
discípulos.
Primeira, o discípulo anônimo e André eram discípulos de João Batista (1,35-40) e
tinham escutado suas palavras a respeito de Jesus (1,37.40). Sendo discípulos de João,
romperam com a istituição do passado (1,26) sabendo que essa é a vontade do Deus, pois
esperam o messias anunciado por João. Assim, preparados pela mensagem de João, seguem
espontaneamente a Jesus (1,37.38.40), escolhem-no por mestre e desejam conhecer sua
morada. Jesus responde ao seguimento e os convida a conhecerem por experiência o lugar
onde habita (1,39); eles vão e permanecem com ele aquele dia (1,39).
290
Aparece junto com André a misteriosa figura de um discípulo anônimo a quem o
evangelho uma extraordinária importância. Seu anonimato esconde-se por detrás do
cognome de “o discípulo que Jesus amava” ou “o discípulo amado” (13,23; 19,25; 20,2;
21,7.20.24). É quase seguro que se trata do mesmo discípulo anônimo que introduziu Pedro
na casa do sumo sacerdote na noite em que prenderam a Jesus, ainda que neste episódio não o
identifique expresamente como “o discipulo que Jesus amava” (18,15-16). A misteriosa figura
aparecerá quase sempre em relacão a Pedro e/ou em contraste com ele (13,23; 18,15; 20,2-10;
21,7.20). Está livre de todas as deficiências e misérias que o evangelho dedica a Pedro. Este é
o discípulo que goza de uma maior intimidade com Jesus, pois é seu amigo
(13,23.25;21,20).
291
Podemos resumir a presença do Discípulo Amado no Quarto Evangelho da seguinte
maneira: este é o discipulo que, tendo rompido com a instituição judaica, segue a Jesus, fica
com ele (1,39), por isso se torna seu amigo e reclina-se sobre seu peito (13,23.25); o que ama
os outros como Jesus os amou (13,34), levando o distintivo de “o Discípulo Amado” e assim
se faz conhecer por todos como tal (13,35,18,15-16); está disposto a arriscar sua vida (12,25)
e de fato o faz acompanhando Jesus para a morte (18,15); como representante da nova
comunidade, acolhe a mãe de Jesus (antiga comunidade) como sua mãe (19,27);
289
Para João, o número doze é simbólico. Aparece pela primeira vez para falar dos cestos com pedaços dos cinco
pães de cevada deixados de sobra pelos que se alimentaram (6,13).
290
Cf. MATEUS e BARRETO. Vocabulário teológico do Evangelho de São João. São Paulo: Paulus, 1989, pp.
64-65.
291
Cf. MARTIN-MORENO, Personajes del Cuarto Evangelio, pp. 25-37.
140
testemunho da glória (19,35); reconhece a ressurreição (20,8) e, no final do evangelho, diz:
“Este é o discípulo que testemunho destas coisas e foi quem as escreveu: e sabemos que
seu testemunho é verdadeiro” (21,24).
Segunda, Simão Pedro é discípulo de João, recebeu, portanto, o batismo de água
rompendo com as instituições do passado e espera o messias. Contudo, não escutou a palavra
de João (1,40) e por isso não conhece as características do messias que este descreveu. Daí
provém que não vai espontanemente ver Jesus, mas é conduzido pelo seu irmão (1,42). O
olhar de Jesus penetra no interior de Pedro e o caracteriza como “o filho de João”, anuncia-
lhe, ademais, que será chamado, “Pedra”. André e o Discipulo Amado reconheceram a Jesus
como mestre (1,38) e se pronunciam: “Encontramos o messias (que quer dizer Cristo).”
Pedro, embora estabeleça contato com Jesus, não o reconhece por mestre e nem se pronuncia
(1,41-42).
292
Faz uma longa peregrinação na fé até sua confissão final: “Senhor, tu sabes tudo;
tu sabes que te amo” (21,17).
Terceira, Filipe e Natanael, estes não pertecem ao circulo do Batista. Por isso, sua
espera do messias não é concreta nem imediata, como alguém que “está presente” (1,26).
Daí o fato de Jesus ter que chamar Filipe a ser discípulo dele: “segue-me” (1,43), e Natanael
aparecer como figura representativa (1,45). Jesus, como messias, renova a eleição de Israel
para o reino messiânico na figura de Natanael: “Antes que Filipe te chamasse, eu te vi quando
estavas sob a fiqueira” (1,48, alusão a Oséias 9,10).
293
Nestas cenas, o escritor joanino está preparando as diferentes reações à pessoa e
mensagem de Jesus: as dos que a ele aderem plenamente e seguem ao messias que os libertará
do pecado do mundo (discipulo anônimo e André); as dos que concebem o messias como
líder que se oporá às instituições pela força (Simão Pedro); as dos que aceitam as antigas
instituições e o vêem como representante de Deus que agirá dentro deste marco (Filipe e
Natanael).
A comunidade joanina rompe com o sistema baseado no cumprimento rigoroso da Lei.
Isso ameaça a autoridade dos judeus/fariseus. Então, os cristãos são expulsos da sinagoga e
começam a ser perseguidos. Diante das perseguições e das crises internas e externas, sentem a
necessidade de reafirmar sua própria e definir a sua identidade. As pessoas que começam a
enxergar aceitam a proposta de Jesus e passam a viver de um jeito novo. Em meio a esse
sofrimento, a comunidade vivencia uma nova relação de comunhão.
292
Cf. MATEUS e BARRETO, Vocabulário teológico do Evangelho de São João, p. 65.
293
Cf. MATEUS e BARRETO, Vocabulário teológico do Evangelho de São João, pp. 65-67.
141
3.2.2.2. A família de Betânia
Assim começa o capitulo 11 do evangelho de João: “Havia um doente, Lázaro, de
Betânia, povoado de Maria e sua irmã Marta” (11,1). Mas quem são estes personagens? A
identificação nos vv. 1b-2 explicam o desconhecido pelo desconhecido: “Maria era aquela que
ungira o Senhor com bálsamo e lhe enxugara os pés com os cabelos” (11,2). Pelo evangelho,
até então não sabemos quem são estas pessoas, a não ser que o autor suponha Maria e Marta,
conhecidas pelo Evangelho de Lucas (Lc 10,38-39), acrescentando o nome do domicílio, que
em Lc faz falta: Betânia. E quando descreve Maria como aquela que ungiu Jesus com mirra e
enxugou seus pés com os cabelos, o autor parece misturar Mc 14,3 com Lc 7,38 e/ou o
próprio relato de Jo 12,1-8.
294
Pois bem, a intenção destas descrições parece querer evocar a
minicomunidade de Betânia e, em vista de 12,18, o amor que Maria dedicava a Jesus.
O evangelho apresenta três personagens com qualidades bem diferentes: Lázaro,
Marta e Maria, para mostrar que a comunidade joanina é uma comunidade de irmãos e
amigos, onde vigoram relações de afeto e amor ativo. O afeto de Jesus e igualmente o dos
discípulos deve enfrentar o risco para ajudar ao que necessita. A infermidade de Lázaro deve-
se à condição humana, que porta em si a morte física. A comunidade, que ainda na morte a
interrupção da vida, não atingiu a plenitude da fé, por não ter compreendido a qualidade de
luz/vida que Jesus comunica. O medo da hostilidade do mundo nasce precisamente dessa falta
de fé. Em Lázaro manifesta-se a plenitude da obra de Jesus para com a humanidade enferma.
Jesus não elimina a morte física, mas para quem recebeu dele a luz da vida, a morte não passa
de sono.
A comunidade que tem Jesus como luz do mundo celebra a vida recebida dele e nesse
banquete todos têm lugar: Marta serve, Lázaro tem seu lugar à mesa e Maria unge os pés de
Jesus com um perfume caro (12,2-3), num gesto de agradecimento pelo dom da luz/vida que
ele veio trazer. Esta celebração da comunidade joanina substitui o banquete fúnebre. Tirada a
pedra que separava os mortos dos vivos e desatadas as amarras mortuárias de Lázaro, a
comunidade está pronta para a festa. A prática do serviço e da solidariedade é conseqüência
do amor mútuo, que é força que cria e unifica os laços: “Dou-vos um mandamento novo: que
vos ameis uns aos outros. Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros. Nisto
reconhecerão todos que sois meus discípulos se tiverdes amor uns aos outros” (13,34-35).
294
Cf. KONINGS, Evangelho segundo João: amor e fidelidade, São Paulo, Loyola, 2005, p. 220.
142
É significativa no Quarto Evangelho a constituição de um novo modelo de relação
familiar, principalmente porque a família tradicional representa um conflito. Em nossa
perícope (Jo 9,1-41), como vimos, a família do cego se constitui em um
enfrentamento/conflito que permeia todo o relato. Deste modo, ao citar a relação de Jesus com
Lázaro, Marta e Maria com expressões de fraternidade e solidariedade, o evangelho apresenta
possibilidade de organização familiar que ultrapassam o modelo tradicional de família.
3.2.2.3. A samaritana
Era meio dia, Jesus cansado da viagem pára junto ao poço de Jacó
295
enquanto os
discípulos vão à cidade comprar comida. Uma mulher, que era samaritana, veio buscar água
no poço. Jesus se aproxima e lhe pede: “Dá-me de beber” (4,7). Ela jamais imaginou ser
abordada por um judeu, assusta-se, acha estranho o pedido, pois Jesus estava desprovido de
qualquer objeto com que pudesse tirar água do poço e questiona: “Como, sendo judeu, tu me
pedes de beber, a mim que sou samaritana?” (4,9). O espanto se dá por causa dos costumes da
época. De acordo com a Lei, era muito importante preservar a pureza da raça, ou seja, as
pessoas deviam evitar qualquer contato com os estrangeiros. Neste sentido, os samaritanos,
por sua origem, eram desprezados pelos judeus. A origem da inimizade entre estes dois povos
tem raízes históricas.
296
Outra questão é o fato de Jesus, sendo um homem judeu, dialogar com uma mulher.
Na tradição judaica, não era permitido conversas entre mulher e homem em lugares públicos.
Além disso, ensinava-se que tudo que a mulher tocava ficava impuro, inclusive um recipiente
para tirar água do poço. A Lei marginalizava e menospresava a mulher, que em razão de sua
própria condição, vivia quase sempre impura. Porém, acontece o diálogo de Jesus com a
samaritana, uma pessoa marginalizada por ser mulher, por ter origem estrangeira (4,7) e por
estar em condição de pecado (4,16-18). Ela dialoga com ele de igual para igual. Isso só foi
possível porque ambos removerem algumas barreiras impostas pela Lei. Eles ultrapassaram a
295
Situado na cidade de Sicar, onde fica o sítio que o patriarca Jacó deu a seu filho José e que serviu de cemitério
para as famílias dos patriacas (Gn 33,19; 48,22; Js 24,32). Esse poço era o único nessa região, um lugar de
encontro (Gn 16,13-14; 21,25-31; 26,19-22) e abastecimento, por isso mesmo, imprescindível para a vida dos
pastores e seu rebanho. A comunidade se reunia ao redor do poço para festejar a vida (Jz 5,11) e discutir (Gn
26,19; Ex 2,19-22).
296
Em 721 a.C., Samaria, capital do Reino do Norte, foi invadida pelos assírios. A política de dominação
adotada pela Assíria era acabar com a organização do país dominado. Este império deportava os povos
dominados de uma região para outra.
143
lei do puro e impuro e a do povo eleito, leis que foram consolidadas no tempo de Esdras e
Neemias (450 a.C.) e reforçadas pelos judeus/fariseus a partir do ano 70 d.C.
Esta narrativa mostra que a comunidade joanina tem uma prática diferente. Procura
viver o amor e o acolhimento no concreto do dia-a-dia. Uma vivência que ajuda a comunidade
a superar os preconceitos em relação à mulher e ao estrangeiro. Tanto um quanto o outro são
tratados como iguais na comunidade. Aceitar essa realidade certamente foi conflitante,
sobretudo, para os judeus cristãos enraizados na tradição judaica. Portanto, relembrar o
encontro de Jesus com a mulher samaritana significa: todos são chamados à vida. Não importa
se é mulher ou homem, escravo ou livre, rico ou pobre: “Eu sou a luz do mundo. Quem me
segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida” (8,12) ou “eu vim para que todos tenham
a vida e a tenham em abundância” (10,10).
3.2.2.4. O cego de nascença
A Narrativa da Cura do Cego de Nascença é mais um dos sinais escolhidos pela
comunidade joanina para falar da experiência que ela está vivendo e para reafirmar a imagem
de Jesus como Luz do Mundo. Ao realizarmos a exegese do capitulo 9,1-41 do Quarto
Evangelho, chegamos a algumas conclusões a respeito desta narrativa e do fato de a
comunidade ter proclamado Jesus como Luz do Mundo:
a) Nesta perícope encontramos o dualismo luz versus trevas bem distinto: as trevas são
representadas pelo povo, pelos pais do ex-cego e pelos fariseus/judeus. A luz é representada
pelo ex-cego e por Jesus. A narrativa mostra uma comunidade no auge do conflito, que luta
contra as trevas, ou seja, contra as forças negativas que ameaçam sufocar a luz:
O povo: se divide diante do acontecido; não sabe se é o cego que agora vê ou alguém
parecido com ele; quando o que fora cego tira-lhes a dúvida, perguntam-lhe como foi curado e
onde está aquele que o curou; não está claro se estas perguntas são frutos da curiosidade ou
são expressões em busca da verdade; o certo é que acabam conduzindo o ex-cego aos fariseus
e eles não decidem por si mesmos, nem dão mais nenhum passo.
Os pais do ex-cego: concordam que ocorreu uma mudança em seu filho, mas não se
comprometem com nada; não se manifestam, pois o medo os torna mudos e paralíticos;
preferem a segurança própria à luz (12,42-43).
Os fariseus/judeus: começam perguntando pelo sucedido; a resposta do outrora cego
provoca entre eles divisão pelo fato do sinal ter sido realizado no sábado; para uns, Jesus é
144
pecador porque infringe a Lei do Sábado, enquanto, para outros, ele vem de Deus, porque
realiza algo inaudito em favor do homem mendigo. aqui, João faz a pergunta se tudo o que
Jesus fez por este indefeso e desesperançado, mergulhado na miséria social e nas trevas,
diante de Deus vale menos do que a observância da Lei. Diante das reações destes não é
difícil aduzir que esse drama quer nos conduzir para além do conflito do sábado. Perguntam
ao ex-cego sua opinião sobre Jesus, como se eles, estudiosos da Escritura e entendedores da
Lei (7,47-49.52), tão seguros de seus conhecimentos, não pudessem formulá-la por si
mesmos; não crêem no testemunho do outrora cego e convocam seus pais para esclarecer o
acontecido; apesar do que eles respondem, não ficam satisfeitos; voltam a chamar o ex-cego;
pedem que ele glória a Deus, dizendo toda a verdade e nada mais que a verdade; no fundo,
esperavam que dissesse que não havia sido curado por Jesus. Concretamente, o “dar glória a
Deus” seria condenar Jesus como pecador, por infundir no homem a luz de que tanto
necessitava. Procuram enredar o ex-cego; não o ouvem; insultam-no; vangloriam-se por
serem “discípulos de Moisés”, a quem sabem de onde veio e não “desse” sem procedência;
apesar da coerência do ex-cego e de seu testemunho tão sólido, expulsam-no da sinagoga;
rejeitam ao ex-cego porque não querem ver a luz do mundo. Diante da força criadora e
libertadora da luz (9,6), fecham-se nas trevas (3,19-20; 8,43-47; 9,40-41) e, assim, mesmo
afundando nelas, optam pela cegueira.
O cego: nunca gozara da luz antes de se encontrar com Jesus, por isso, nem sequer lhe
pediu algo, porém é obediente e vai lavar-se na piscina de Sil(o Enviado); seus olhos se
abrem e ele vê; sem que ninguém o obrigue, afirma que ele estava cego; que o homem
chamado Jesus lhe abriu os olhos, e diante da polêmica suscitada pelo fato, declara que Jesus
é um profeta; o ex-cego rejeita com clareza os embustes das trevas; não se deixa enredar, nem
cai em contradições; não hesita, porque não falseia os fatos, nem busca amparo à sombra da
morte; não confunde a glória de Deus com a condenação a Jesus; ele, que era cego, quer fazer
ver também os judeus/fariseus; tanta insistência teria sentido se os judeus/fariseus
quisessem ser também discípulos de Jesus; o ex-cego estranha a falta de visão dos que falam
de seus conhecimentos com tanta altivez; num ambiente adverso ao testemunho em favor de
Jesus, nem os insultos, nem as proclamações altissonantes, nem o desprezo a Jesus levam o
ex-cego a negar a luz e a voltar para as trevas; não se deixa escandalizar pelo palavreado
dos que tentam apagar a luz; a do outrora cego cresce na adversidade, mas quem provoca
esta e a leva à maturação é o próprio Jesus; seu coração se abre e ele crê, anda na luz;
devido a este crer, é excumungado e jogado para fora da comunidade em que nascera e
145
crescera; ao encontrar-se com Jesus, estando totalmente revestido da luz, escuta-o e, diante
do Filho do Homem, prostra-se.
Jesus: dele vem a iniciativa de devolver a luz ao cego; por Jesus ter visto o cego, este
se torna capaz de ver; não aceita enquadrar o cego na categoria de pecador; perante o mal não
se deve fazer especulações condenatórias; precisa-se procurar suprimir o mal; é preciso
esforçar-se para que no que sofre se manifeste a glória de Deus; ante as situações de
desesperança e de humilhação, Jesus convida a realizar as obras daquele que o enviou, apesar
da perseguição que isso acarreta; a atividade de Jesus consiste em “abrir olhos de cego”, ou
seja, ser luz para quem se encontra nas trevas; Jesus cospe no chão, faz barro com a saliva,
aplica nos olhos do cego e o manda lavar na piscina de Siloé; cura o cego em dia de sábado,
pois para ele a honra de Deus não pode ser empecilho para a honra de quem sofre; ele vai
atrás do excumungado, do que fora expulso da sinagoga; ele provoca a do ex-cego; faz ver
quem verdadeiramente ele é; isso leva o ex-cego à iluminação completa; ele declara sua vinda
como um processo; traz a luz, mas também coloca em evidência as trevas; diante da luz o
cego vê e quem acha que vê, diante da luz, cego se torna.
b) O cego de nascença representa a comunidade joanina quando ainda o tinha feito
opção pela luz, por isso ele é cego, está nas trevas;
c) o ex-cego é levado aos fariseus para explicar o que aconteceu com ele. Mas, no
tempo de Jesus, os fariseus não eram a autoridade suprema do povo judeu;
d) no v.18 uma mudança de fariseus para judeus sem ter havido troca de
personagem. Acontece que nem todos os judeus eram fariseus, nem os outros personagens
pertenciam a outro povo. Todos eram judeus, inclusive Jesus e o cego de nascença. Isso
demonstra que, ao falar dos judeus como um grupo diferente, nos está indicando que não
nos encontramos no tempo de Jesus, mas numa época posterior, quando a comunidade joanina
se sentia diferente deles. Assim também no v. 28, quando os judeus insultam o que fora cego
dizendo-lhe: “tu discípulo és daquele, porém nós de Moisés somos discípulos”. Esta oposição
entre os que eram discípulos de Moisés e os que eram discípulos de Jesus não existia no
tempo de Jesus, mas no tempo da comunidade joanina, quando ela já se distinguia da
comunidade judaica;
e) no v.22 se narra que os pais do ex-cego ficaram calados por medo dos judeus, pois
estes haviam combinado de expulsar da sinagoga quem confessasse Jesus como messias.
Isto não pode ter acontecido no tempo de Jesus, pois no seu tempo ninguém o confessou
como messias e, depois de sua morte, seus discípulos não deixaram de freqüentar o Templo
146
imediantamente. Quanto à “expulsão dos cristãos joaninos da sinagoga” (9,22; 12,42; 16,2),
muito tratada como causa polêmica anti-judaica, podemos dizer que não podemos datar
semelhante “expulsão”, uma vez que as sinagogas existiam antes do ano 70 a.C. Também
aludir à oração das dezoito bênçãos (birkat hamminin), ligada ao sínodo de Jâmnia, com
oração aos Minim (cristãos), como é usual fazer, parece-nos não ser o mais correto. Para
muitos autores, a expressão grega avposuna,gwgoj (expulsar da sinagoga) dos textos
supracitados refere-se apenas a um conflito local entre a comunidade joanina e os seus
vizinhos judeus. No contexto histórico de Jesus, somente cabe pensar em expulsão simples da
sinagoga, que tinha duração de 30 dias. Mas de modo algum se deve compreender como
decreto de excomunhão de todo o cristianismo por parte do novo judaísmo de Jâmnia. Assim
sendo, o judaísmo não pode ser responsabilizado exclusivamente pela ruptura entre judaísmo
e cristianismo. Na compreensão dos textos joaninos antijudaicos, que não se confundir
entre a intenção do autor e respectivos destinatários reais e implícitos e a compreensão dos
mesmos textos ao longo do tempo;
f) se a isto acrescentarmos os textos que nos falam da “Lei deles” (15,25) ou da “vossa
lei” (10,34), referindo-se às passagens da Escritura Hebraica, indicando assim uma ruptura
entre o judaísmo e a comunidade joanina, então, estas cenas nos indicam uma situação vivida
no tempo da comunidade joanina;
g) enfim, a comunidade joanina nasceu com pessoas que estavam sofrendo com
império romano e com o judaísmo formativo (fase da organização interna do judaísmo sob o
influxo do lendário Concílio de Jâmnia, no final dos anos 70).
297
Com o sofrimento, elas
começam a buscar nova alternativa de viver. Por isso, aplicam a Jesus a imagem de “luz do
mundo”, com intuito de os excluídos e perseguidos não fraquejarem diante das dificuldades e
da dor pela separação do judaismo. Ao aplicar esta imagem a Jesus, podemos entender que a
comunidade joanina tem sua origem em Jesus-luz. É ele quem convoca a comunidade,dá-lhe
unidade e faz desse grupo os “filhos da luz” (12,36). Porém, a todos era dada a liberdade de
permanecer nas “trevas” ou acolher a luz. aquele que segue a Luz do Mundo se subtrai das
trevas. Por isso, no evangelho, Jesus diz: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará
nas trevas, mas terá a luz da vida” (8,12). Ou ainda:
297
Não podemos confundir com o judaísmo rabínico, que será consolidado no final do século II ou início do
século III e é o resultado da seleção de conteúdos formalizada pelos fariseus no período do judaísmo formativo.
Cf. OVERMAN, O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, pp. 45-53.
147
Eu, a luz vim ao mundo para que aquele que crê em mim não permaneça nas
trevas. Se alguém ouvir minhas palavras e não as guardar eu não o julgo,
pois não vim para julgar o mundo. Quem me rejeita e não acolhe minhas
palavras tem seu juiz: a palavra que proferi é que o julgará no último dia;
porque não falei por mim mesmo mas o Pai, que me enviou, me prescreveu
o que dizer e o que falar e sei que seu mandamento é vida eterna. O que
digo, portanto, eu o digo como o Pai me disse (Jo 12,46-50).
3.2.2.5. O amor para a comunidade joanina
Além do termo luz, o amor (avga,ph) é um termo importante no Quarto Evangelho.
Como estes termos podem ser tomados em uma perspectiva complementar, abordaremos
abaixo o amor a partir da perspectiva da luz.
Na comunidade joanina muitos judeus aderem à proposta cristã: samaritanos,
estrangeiros, doentes, escravos e livres, bem como uma presença marcante de mulheres
Maria (2,1-12; 19,25-27), a mulher samaritana (4,1-41), Marta (11,17-27), Maria de Betânia
(12,1-8) e Maria Madalena (20,11-18). A diversidade de grupos existentes na comunidade
joanina exige maior abertura e constante aprendizagem para conviver com pessoas de
diferentes mentalidades. Essa experiência só foi possível através da vivência do amor (15,4).
Dada a importância do tema do amor no Quarto Evangelho tema que é dedicado
fundamentalmente aos discípulos, aos que crêem principalmente nos discursos de despedida
de Jesus, temos que nos deter nele, embora brevemente, para ver a relação que entre o
amor e a fé. A primeira coisa que convém dizer é que tanto o verbo avgapa,w (amar) como o
substativo avga,ph (amor), ou o verbo file,w (amar), são termos joaninos:
Mt Mc Lc Jo
avgapa,w
6 0 10 33
avga,ph
1 0 1 7
file,w
5 1 2 14
O amor é designado no Quarto Evangelho como amor gratuito que se traduz em graça
(1,14.16.17) e amor enquanto entrega de si (5,42; 13,35; 15,9.10.13; 17,26). O verbo
avgapa,w
148
(amar) é usado com freqüência com valor manifestativo: mostrar, demonstrar, manifestar o
amor (3,16; 14,21.23; 15,9; 17,17). file,w (amor de amigo) é usado a fim de denotar o
vínculo de amizade que estabelece relação de iguais (oposto a “servo” cf. 15,15).
O Pai ama o Filho e amou-o antes da fundação do mundo (17,24), ou seja, o Pai previa
a realização de seu projeto em Jesus e o seu amor o impulsiona a realizá-lo. Tudo põe em suas
mãos, constituindo-o herdeiro universal (3,35). Por isso, tudo o que é do Pai é do Filho e o
que é do Filho é do Pai (17,10). Por amor, o Pai ensina ao Filho tudo o que faz (5,19), de
modo que a atividade do Filho é a do Pai (5,17.21.26) e o Pai está sempre com o Filho (8,29;
16,32). O amor do Pai é universal (3,16) e ele o demonstra chegando ao ponto de dar ao
mundo seu Filho único. O propósito do seu amor é que a humanidade não pereça nas trevas,
mas tenha a luz definitiva. Uma vez que o amor é o único princípio de luz definitiva, para
recebê-la é preciso dar adesão à luz do mundo.
Jesus ama o Pai e expressa o seu amor amando a humanidade até ao extremo, como
ele e em união com ele (13,1). Jesus se entrega pela humanidade inteira e a todos oferece sua
mensagem de vida (5,25;10,3). Manifesta o amor do Pai ao ser humano mediante seus sinais
(2,1-11; 4,46-54; 5,1-18; 6,1-15; 6,16-21; 9,1-41; 11,1-44), que culminam com sua morte,
manifestação suprema do seu amor (15,15). Jesus ama também seus discípulos (11,5; 13,1;
13,34; 14,21; 15.9.12), tanto que um deles recebe o cognome de “o discípulo que Jesus
amava” (13,23; 19,26; 20,2; 21,7.20). O amor de Jesus pelos seus é amor de amizade que,
como o amor do Pai para com seu Filho (5,20), exclui a submissão e a distância próprias do
servo (15,13-15). A amizade baseia-se no cumprimento do que Jesus manda, ou seja, na
prática do amor mútuo que põe em sintonia com ele (15,14; 15,12.17).
Jesus mostra aos seus discípulos como é o seu amor lavando-lhes os pés:
“Compreendeis o que vos fiz? Vós me chamais Mestre e Senhor e dizeis bem, pois eu o sou.
Se, portanto, eu, o Mestre e o Senhor, vos lavei os pés, também deveis lavar-vos os pés uns
dos outros. Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, também vós o façais” (13,12-15).
No episódio do lava-pés, Jesus faz-se servidor, dando também a eles a categoria de
“senhores” (homens livres, cf 8,36). O amor é, portanto, a entrega de si, a fim de dar ao ser
humano dignidade e fazê-lo livre, criando a igualdade.
No Quarto Evangelho não se diz que o homem (ser humano) ame a Deus, pois nos dois
textos que falam de um amor maior pelo mundo ou pela própria glória o verbo avgapa,w é
modificado em seu sentido pelo vocábulo ma/llon e, então, a expressão quer dizer exatamente
“preferir”. Não está implicado, portanto, nestes textos, que os homens amem a Deus.
149
Simplesmente se diz que ele prefere a glória (luz) ou as trevas (3,19; 12,43). O evangelho não
insiste no amor que os homens possam ter por Deus. Também não o nega. Simplesmente não
se trata dele.
As pessoas, por outro lado, amaram a Jesus (16,27). Apesar disso, todos os textos que
falam do amor das pessoas por Jesus estão condicionados por “Se me amais...” (14,
15.21.23.28). O que o texto não deixa claro é se a ênfase está em “guardar o mandamento” ou
em “amar”: “Quem tem meus mandamentos e os observa é que me ama” (14,21); mas
também se diz: “Se alguém me ama, guardará minha palavra” (14,23). Então, não sabemos se
a ênfase está no amar ou no guardar os mandamentos. Na realidade, guardar o mandamento é
uma expressão para a fé, pois é a mesma coisa que guardar a palavra de Jesus, e guardar a
palavra de Jesus se refere à (8,31-32; 15,7-8). Portanto, o amor está muito próximo da fé:
“Pois o próprio Pai vos ama, porque me amastes e crestes que vim de Deus” (16,27). Se o
homem amou Jesus, é exatamente porque Deus amou o homem: “Eu lhes dei a conhecer o teu
nome e lhes darei a conhecê-lo, a fim de que o amor com que me amaste esteja neles e eu
neles” (17,26).
298
O amor do ser humano por Jesus é, conseqüentemente, uma manifestação do amor que
Deus lhe deu na fé. Portanto, o amor daquele que crê é posterior à e a pressupõe. Acontece
que a manifesta-se no amor. Neste sentido, pode-se falar do amor como expressão da fé. E
se pode dizer que não há onde não amor. É por isso que o conceito de amor não é
simplesmente ético; é também doutrinal enquanto manifesta uma conduta, fruto do amor com
que Deus ama o ser humano. A comunidade joanina experimentou, através de Jesus, a
gratuidade do amor de Deus, por isso conseguiu permanecer fiel diante da pressão do sistema
dominante: o império romano e os judeus/fariseus.
Assim como o amor do Pai e o de Jesus, também o amor dos discípulos se manifesta
na partilha do que possuem e na entrega de si mesmos no dom. O amor é o fio condutor
invisível que tece e unidade à comunidade joanina. Ela está tentando viver uma nova
proposta de vida baseada na partilha e no amor. Para isso, procura quebrar as barreiras que
impedem o relacionamento livre entre as pessoas. Não existem fronteiras: os judeus, os
estrangeiros, os samaritanos, as mulheres, os escravos, os pobres, os excluídos (cegos, mudos,
aleijados e coxos), todos são incluidos e têm a mesma dignidade. Todos são filhos de Deus
(1,12), filhos da luz (12,36).
298
TUÑI VANCELLS, O testemunho do Evangelho de João, p. 141.
150
3.3. Conclusão
Podemos concluir que a comunidade joanina é marcada por trevas e luz. As trevas se
valem de uma estrutura inculturada no “mundo”, com seus escribas e fariseus, com sua Lei e
governadores. Depois de 70 d.C., este grupo de fariseus/judeus refaz e reconstrói o judaísmo a
partir exclusivamente da Lei, em perspectiva farisaica e deuteronomista, negando, portanto,
que Jesus seja a “consumação-perfeita” messiânica de Deus. Isto é, para este grupo, Jesus não
é a luz do mundo. Eles são os representantes da oposição e do ódio contra Jesus-luz. Por
conseguinte, não podem abrir-se à revelação que Deus oferece em seu Filho, descido do céu
para testemunhar a Luz. A luz veio ao mundo, mas muitas pessoas fecham os olhos a ela e
não querem acolher a palavra escatológica do Filho do Homem. A partir daí, começam a
excluir das sinagogas os que declaravam a Jesus como messias “luz do mundo”.
Os textos Jo 9,22; 12,42; 16,2 e os contextos analisados mostram que devemos ter um
duplo olhar para “o Jesus” do Evangelho de João: o tempo real de Jesus e o tempo em que o
evangelho foi escrito. E é neste ínterim de separação da comunidade de fé judaica, um
momento doloroso para os dissidentes, que a comunidade joanina procurará um caminho, uma
alternativa. Baseados na solidariedade, na fraternidade e no amor mútuo, buscarão em Jesus a
luz de que precisam para resistir.
151
CONCLUSÃO
A comunidade joanina, por aceitar a proposta de Jesus, viveu uma situação de
constante conflito. Enfrentou forte oposição dos judeus e do império romano. Este conflito
perpassa todo o evangelho num antagonismo/dualismo que parece bem diferente daquele
apresentado nos Evangelhos Sinóticos, contudo bastante semelhante a ditos encontrados no
Evangelho de Tomé, bem como uma linguagem teológica muito parecida àquela dos textos da
comunidade de Qumran, principalmente no que diz repeito à luz. Para Tomé, a luz divina
brilha não em Jesus, mas, pelo menos potencialmente, em todos. Qumran acentua
fortemente a idéia de revelação, apresentando um combate escatológico entre luz e trevas,
enquanto o Quarto Evangelho apresenta a vitória da luz concretizada na pessoa de Jesus, o
Cristo. E é somente aí que Jesus se auto-revela como luz do mundo (Jo 8,12; 9,5).
No Quarto Evangelho o termo luz se trata predominantemente do sentido cristólogico
da luz da revelação. João se insere também na linha da tradição judaica, pois apresenta o
Verbo como luz do mundo ou da humanidade, enquanto revela e comunica a vida de Deus. Já
no prólogo, afirma que Jesus é a luz dos homens antes de sua manifestação efetiva no mundo
(Jo 1,4.5.9). Aqui vemos duas noções teológicas fundamentais em João. Primeiro, “luz/vida”
indica não a vida biológica, mas a vida em sentido qualitativo e integral, que corresponde à
“vida eterna”. Essa vida em sentido absoluto, que no evangelho é identificada com Jesus (Jo
11,25; 14,6), é a luz dos homens”. Segundo, “luz” designa, portanto, a revelação pessoal e
histórica do Deus que salva a humanidade através do Verbo encarnado. Ora, a vida divina
começa a manifestar-se e a revelar-se com a encarnação do Logos (Jo 1,4), fonte de vida e de
luz para a humanidade. É entrando em relação com a humanidade que Jesus manisfesta quem
ele realmente é. Para João, é graças ao Lógos (vida e Luz) que os seres humanos vêem a Luz.
Ele os conduz à plenitude da luz/vida. O início do prólogo antecipa a declaração solene de
152
Jesus por ocasião da Festa das Tendas: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará
nas trevas, mas terá a luz da vida” (Jo 8,12; 9,5).
João acredita que somente Jesus traz luz para a humanidade, pois ele é a “luz do
mundo”, em outra circunstância, imerso na escuridão. Em conseqüência da chegada da luz, os
seres humanos são convidados a se posicionarem. Podem rejeitar ou acolher a luz. Os que
rejeitam “já estão julgados” (Jo 3,18), não porque ele os julgasse, mas porque eles mesmos se
condenam ao se posicionarem contra a luz, preferindo as trevas (Jo 3,19). Os que a acolhem
terão a luz eterna.
Estes versículos se enquadram no contexto da polêmica de Jesus com os judeus (8,12-
20; 9,39-41). Trata-se de uma palavra de revelação que sintetiza todo o discurso revelador de
Jesus (Jo 7,37-39). Jesus veio ao mundo como luz escatológica (Jo 3,19; 12,46), para trazer
luz e vida a toda à humanidade. O conteúdo da revelação trazida por ele é o mistério de sua
própria pessoa: ele é o filho de Deus que desceu do céu para iluminar a vida de todos que vêm
a este mundo. Esta luz que brilha sobre a existência humana a cada um o conhecimento da
finalidade da vida. Aqueles que acolherem e aceitarem a luz se converterão em “filhos da luz”
(Jo, 12,36).
A expressão de auto-revelação de Jesus, “luz do mundo”, enriquece-se ainda mais ao
ser declarada no marco da Festa das Tendas. Sabe-se que na liturgia da festa realizada, entre
outros ritos, acontecia a iluminação do Templo ao anoitecer. Quando caia a noite sobre a
cidade, acendiam-se no átrio das mulheres tochas e velas postas em enormes candelabros.
Assim, a cidade santa ficava praticamente iluminada durante a noite e o povo celebrava
alegremente entre música, danças, cânticos de salmos e gritos de júbilo (Sl 118, 15.24).
“Quem não viu o gozo dessa festa assegura uma tradição judaica popular não viu em sua
vida gozo algum.”
299
Dentro deste marco, a designação de Jesus como “luz do Mundo” se entende então
perfeitamente relacionada com o rito religioso popular. O sentido resulta, todavia, mais
preciso: a luz que irradia Jesus não ilumina somente a cidade santa e sim também a vida do
mundo inteiro. Ou seja, todos aqueles que passam pelo sofrimento e pela dor encontram em
Jesus a força e a luz necessária para vencer os tormentos do dia-a-dia.
E é no capítulo 9,5 de João, antes de realizar o pródigio da cura do cego de nascença,
que Jesus mesmo declara por antecipação o sentido da cura, convertendo-o em sinal. Depois
de curado, o ex-cego se diante de um processo. Na realidade, não é um processo contra
299
M. Sukka IV,1. Cf. MERCIER, El Evangelio según “el discípulo a quien Jesús amaba, tomo I, p. 545.
153
o ex-cego e sim, um processo contra a luz que é Jesus. Desde o começo, e em todos os níveis,
esta cura-iluminação é um sinal de contradição, é um verdadeiro divisor de águas. Perante ela,
não se pode permanecer neutro. Exige que se opte pela luz ou permaneça nas trevas.
Efetivamente, antes de curar o cego, Jesus apresenta-se como “luz do mundo”. Aponta
assim, sua missão: “Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo” (9,5). Todavia, num
sentido geral, também deve relacionar-se com um gesto de auto-revelação de Jesus e da cura
de um cego privado da luz do mundo desde o nascimento. Ao fazer ver e contemplar a luz a
um cego que desde seu nascimento não havia visto e nem contemplado a luz, Jesus faz
entender que ele é mesmo o enviado de Deus, a luz do mundo. Assim o contemplará aquele
ex-cego. Seus olhos contemplarão a luz do mundo e seu coração verá àquele que a produziu,
porque ele é a Luz encarnada.
Mas a grande pergunta que o texto faz é: como pode um pecador realizar semelhantes
sinais? Através desta interrogação, alguns judeus reconhecem que um pecador e transgressor
da Lei não pode realizar semelhantes sinais. Se realiza, então não é de Deus. Este é
exatamente o pecado dos fariseus (8,21; 15,22.24; 16,9; 19,11), ou seja, do judaísmo oficial
do Templo. Porém, o ex-cego reconhece que Jesus realiza sinais e é um homem de Deus. Na
antiguidade se considerava a cegueira como uma enfermidade grave e incurável. Somente
alguma divindade podia curá-la.
Abrir os olhos do cego (9,10.11.14.15.17.18.21.26.30.32) e dar-lhe a vista atualiza um
dos sinais escatológicos que coincide com a era messiânica. Ao apresentar Jesus como luz do
mundo, o escritor joanino se refere a uma única tipologia veterotestamentária. De fato, é de
chamar a atenção que os oráculos de Isaías (Is 35,4-5; 42,6-7; 42,16.18; 61,1-9) falem de
maneira expressa da missão do Servo de Iahweh: o profeta. E se tem precisado da dupla
função do dito: “ser luz dos gentios” e abrir os olhos de cego.” No capítulo 9 de João, Jesus
encarna bem esta figura profético-messiânica.
Ao aplicar a imagem de Jesus como luz do mundo à Narrativa da Cura do Cego de
Nascença, a comunidade joanina quer levar a discussão para além da transgressão da Lei,
percebemos que a obra joanina deseja mostrar que foi escrita no auge da polêmica entre
judeus e cristãos. Foi escrita quando se refere, em sentido negativo, “aos judeus não crentes
em Jesus” e ao aparente “antijudaismo” do Jesus joanino. O redador joanino acredita na
verdade histórica da narrativa que está relatando, incluindo os elementos de conflitos entre
Jesus e os judeus. O seu interesse não é de codificar os acontecimentos experienciados pela
comunidade numa narrativa crítica, mas apresentar a sua própria compreensão de Jesus, de
154
modo a encorajar outros a tornarem-se crentes e permanecerem na fé. Ou seja, o objetivo
dessa narrativa está bem expresso no capitulo 20, 30-31: “Jesus fez ainda, diante de seus
discípulos, muitos outros sinais, que não acham escritos neste livro. Esses, porém, foram
escritos para credes que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em
seu nome.”
A acentuada linguagem dualista do autor oferece os termos pelos quais os leitores se
podem definir a si mesmos: como crentes em Jesus, partipantes da luz, possuidores da vida
eterna, tornados filhos da luz. Porém, o Evangelho constrói um papel “negativo” para os que
não acolheram e nem aceitaram Jesus como sendo “luz do Mundo”. Assim sendo, ajuda a
definir as relações entre a comunidade e os que estão fora dela. Estabelece, de fato, um fosso
entre a comunidade joanina e a comunidade judaica, a crente que acolhe a Jesus-luz e se salva
e a não crente que recusa Jesus-luz e se condena nas trevas.
Esse desafio fez a comunidade joanina buscar fortalecer ainda mais os laços de amor e
solidariedade entre as pessoas. Esta busca foi o meio de muitos atritos nas relações de cada
dia. A comunidade faz a experiência do amor que une as pessoas e que também é condição
para que a luz a ilumine e faça morada na comunidade. A comunidade se constrói na
convivência, que se baseia no amor e se expressa no empenho concreto das pessoas para
defender a vida. Este caminhar na luz não é fácil. sofrimentos, porém, iluminada pela luz
do mundo, a comunidade consegue, baseada na nova Lei, a do amor, encontrar alternativa
para continuar sua caminhada.
155
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, A. J. Dimas de. La questione gnostica e l'enigma del quarto evangelo. In:
Protestantesimo 55 (2000): 105-113.
ALMEIDA, Maria A. de Andrade. Jesus Cristo: o caminho da luz. Taubaté: Faculdade
Dehoniana, 2005 (Síntese Teológica).
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
ALDAZABAL, José. A eucaristia. Petrópolis: Vozes, 2002.
ASHTON, John. Understanding the Fourth Gospel. Oxford: Clarendon Press, 1993.
ATTRIDGE, H. W. Thomas and John revisited. In: Society of Biblical Literature Abstracts.
Atlanta: American Academy of Religion, 1995.
BACHMANJI, H.; SLABY, W. A. Concordance to the Novum Testamentum Graece. 3 ed.
Berlin/ New York: Walter de Gruyter, 1987.
BARRETT, C. K. The Gospel of John and Judaism. Londres: SPCK Press, 1975.
BARTOLOMÉ RUIZ, Castor. As primeiras comunidades e o gnosticismo: tensão e
inculturação. In: Estudos Bíblicos 41 (1994): 82-89.
BAUCKHAM, Richard. The Qumran community and the Gospel of John. In: SCHIFFMAN,
Lawrence H.; TOV, Emanuel and Vanderkam. James C. (eds.). The Dead Sea Scrolls fifty
years after their discovery: proceedings of the Jerusalem Congress, July 20–25, 1997.
Jerusalem: Israel Exploration Society/The Shrine of the Book, Israel Museum, 2000.
156
BAUER, Johannes B. Dicionário de teologia bíblica II. São Paulo: Loyola, 1973.
BAUER, Walter. Orthodoxy and heresy in earliest Christianity. Mifflintown: Sigler, 1996.
BERGER, Klaus. As formas literárias do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 1998.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2004.
BIBLIOGRAFIA BÍBLICA LATINO-AMERICANA. 8 vols, Petrópolis/São Bernardo do
Campo: Vozes/Umesp, 1988-1995 (http://www.metodista.br/biblica).
BIERINGER, Reimund; POLLEFEYT, Didier (eds.). Anti Judaism and the Fourth Gospel.
Louisville: John Knox Press, 2001.
BITTENCOURT, B. P. O Novo Testamento: metodologia da pesquisa textual. Rio de Janeiro:
Juerp, 1993.
BOFF, Leonardo. Encarnação: a humanidade e a jovialidade de nosso Deus. Petrópolis:
Vozes, 1988.
BLOOM, Harold. Jesus e Javé: os nomes divinos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
BROWN, Raymond E. A comunidade do discípulo amado. 2 ed. São Paulo: Paulus, 1983.
_______. As igrejas dos apóstolos. São Paulo: Paulus, 1986.
_______. El Evangelio Según Juan. 2 vols. Madri: Cristiandad, 1979.
_______. Evangelho de João e epístolas. São Paulo: Paulinas, 1975.
_______. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2004.
BRUCE, F. F. João: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1987.
_______. Paulo, o apóstolo da graça: sua vida, cartas e teologia. São Paulo: Shedd
Publicações, 2003.
157
BULTMANN, Rudolf. The Gospel of John: a commentary. Oxford: Blackwell, 1971.
_______. A escatologia do Evangelho de João. In: ALTMANN, Walter (ed.). Crer e
compreender. São Leopoldo: Sinodal, 1987.
_______. Teologia del Nuevo Testamento. 2 ed. Salamanca: Sígueme, 1987.
_______. Teologia do Novo Testamento. Tradução de Ilson Kayser. São Paulo: Teológica,
2004.
CÁRDENAS PALLARES, José. Para seguir el vuelo del águila – pistas para ler a San Juan.
Cidade do México: Ediciones Dabar, 1993.
CARTER, Warren. O Evangelho de São Mateus: comentário sociopolítico e religioso a partir
das margens. São Paulo: Paulus, 2002.
CASSIDY, Richard. J. John’s Gospel in new perspective: Christology and the realities of
Roman power. New York: Orbis Books, 1992.
CEBI (org.). Evangelho de João e Apocalipse. São Leopoldo/ São Paulo: Cebi/Paulus, 2000.
CNBB (org.). Uma igreja que acredita: Evangelho segundo João. São Paulo: Paulinas, 1999.
CHARLESWORTH, James. Jesus dentro do Judaísmo: novas revelações a partir de
estimulantes descobertas arqueológicas. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
_______. The Old Testament Pseudepigrapha: apocalyptic literature and testaments. Vol. 1.
New York: Doubleday & Company, 1983.
_______. The Old Testament Pseudoepigrapha: expansions of the “Old Testament” and
legends, wisdom and philosophical literature, prayers, psalms, and odes, fragments of lost
Judeo-Hellenistic works. Vol. 2. New York: Doubleday & Company, 1985.
CHAVES, Julio Cesar Dias. A biblioteca copta de Nag Hammadi: uma historia da pesquisa.
In: Oracula 2.4 (2006): 1-19.
CHEVITARESE, André Leonardo; CORNELLI, Grabriele; SEVATICI, Mônica (orgs.).
Jesus de Nazaré: uma outra história. São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2006.
158
COENEN, Lothar; BROWN, Colin (eds.). Dicionário internacional de teologia do Novo
Testamento. 2 vols. São Paulo: Vida Nova, 2000.
CONTI, Cristina. O mistério do texto elusivo: João 7,53-8,11. In: Revista de Interpretação
Bíblica Latino Americana 41 (2002): 103-110.
CORNELLI, Gabriele. É um demônio!” O Jesus histórico e a religião popular. São
Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 1998 (Dissertação de Mestrado).
_______. Sábios, filósofos, Profetas ou Magos? Equivocidade na recepção das figuras de
Qei/oi a;ndrej
na literatura helenística: a magia incomôda de Apolônio de Tiana e Jesus de
Nazaré. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2001 (Tese de
Doutorado).
CROSSAN, John Dominic; REED, L. Jonathan. Em busca de Paulo: como o apóstolo de
Jesus opôs o Reino de Deus ao Império Romano. São Paulo: Paulinas, 2007.
CROSSAN, John D. O Jesus histórico: a vida de um camponês judeu do Mediterrâneo. Rio
de Janeiro: Imago, 1994.
_______. Jesus: uma biografia revolucionária. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
_______. Quem matou Jesus? As raízes do anti-semitismo na história evangélica da morte de
Jesus. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
CULLMANN, Oscar. The Johannine circle: its place in Judaism, among the disciples of
Jesus and in early Christianity. A study in the origin of the Gospel of John. Londres: SCM
Press, 1976.
DAVIES, Steven. Christology and protology in the Gospel of John. In: Journal of Biblical
Literature 111 (1992): 665-683.
_______. Recension de Gr. J. Riley: resurrection reconsidered. Thomas and John in
controversy. In: Journal of Biblical Literature 116 (1997): 147-148.
DAHL, Nils A. The Johannine church and history. In: ASHTON, John (org.). The
interpretation of John. Filadélfia/Londres: Fortress/SPCK, 1986.
DANKER, Frederich Willian. A Greek-English lexicon of the New Testament and other early
christian literature. 3 ed. Chicago/Londres: The University of Chicago Press, 2000.
159
DATTLER, Frederico. Gênesis: texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 1984.
DESTRO, Adriana; PESCE, Mauro. Como nació el cristianismo joánino. Santander: Sal
Terrae, 2002.
DIDAQUÉ O catecismo dos primeiros cristãos para as comunidades de hoje. 10 ed. São
Paulo: Paulus, 1989.
DIEZ MACHO. Apócrifos del Antíguo Testamento: ciclo de Henoc. Tomo IV. Madrid: Ed.
Cristiandad, 1984.
DODD, Charles. A interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1977.
DOZEMAN, Thomas B. Masking Moses and Mosaic authority in Torah. In: Journal of
Biblical Literature 119.1 (2000): 21-45.
DUNDERBERG, I. Thomas and the beloved disciple. In: URO, R. Thomas at the crossroad:
essays on the Gospel of Thomas. Edimburgo: T&T Clark, 1998.
EGGER, Wilhelm. Metodologia do Novo Testamento: iniciação aos métodos lingüísticos e
histórico-críticos. São Paulo: Loyola, 1994.
ELLIS, P. F. The genius of John: a composition critical commentary on the Fourth Gospel.
Collegeville: The Liturgical Press, 1984.
FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos I. São Paulo: Loyola, 1992.
FRANGIOTTI, Roque. Histórias das heresias (séculos I-VII): conflitos ideológicas dentro do
cristianismo primitivo. São Paulo: Paulus, 1995.
FRIEDRICH, Gerhard (ed.). Theological dictionary of the New Testament IX. Grand Rapids:
Eerdmans Publishing Company, 1995.
FUENTE, Alfonso de la. Trasfondo cultural el cuarto evangelio: sobre el ocaso del dilema
judaísmo/gnosticismo. In: Estudios Bíblicos 56 (1998): 491-506.
GAGNE JR., Armand J. (org.). The Johannine literature: home page for research. Disponível
em http://www.fourthgospel.com.
160
GARCIA, Paulo Roberto. A memória dos marginalizados: um estudo em João 9,1-41. In:
Tempo e Presença 229 (1998): 29-30.
_______. O sábado do Senhor Teu Deus: o Evangelho de Mateus no espectro dos
movimentos judaicos do I século. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São
Paulo, 2001 (Tese de Doutorado).
_______. Uma porta de entrada: leitura comunitária de João 9. In: Mosaicos da Bíblia 9
(1993): 27-35.
GERHARD, Kittel (ed.). Theological dictionary of the New Testament IV. Grand Rapids:
WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1995.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais. Morfologia e história. São Paulo: Companhia
das Letras, 1991.
_______. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
_______. Os andarilhos do bem: feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
GIRARD, Marc. Os símbolos na Bíblia: ensaio de teologia bíblica enraizada na experiência
humana universal. São Paulo: Paulus, 1997.
GRINGS, Dadeus. Creio na santíssima trindade: jubileu do ano 2000. Aparecida: Santuário,
1999.
GUILLET, J. Jesus Cristo no Evangelho de João. São Paulo: Paulinas, 1985.
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento: Mateus. Vol. 2. São Paulo:
Cultura Cristã, 2001.
HENGEL, Martin. The Johannine question. Londres: SCM Press, 1989.
HORSLEY R.; HANSON J. S. Bandidos, profetas e messias: movimentos populares no
tempo de Jesus. São Paulo: Paulus, 1995.
IRENEU DE LIÃO. Contra as heresias. São Paulo: Paulus, 1995.
161
JAUBERT, Annie. Leitura do Evangelho Segundo João. São Paulo: Paulinas, 1985.
JEREMIAS, Joachim. Teologia do Novo Testamento. 2 ed. São Paulo: Teológica, 2004.
JUANES, Benigno. Profecia, interpretação, palavra de conhecimento. São Paulo: Loyola,
1996.
KANAGARAJ, Jey J. “Mysticism” in the Gospel of John: an inquiry into its backgrounds.
Sheffield: Sheffield Academic Press, 1998.
KÄSEMANN, Ernst. El testamento de Jesús: el lugar histórico del Evangelio de Juan.
Salamanca: Sígueme, 1983.
KÖESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento: história, cultura e religião do período
helenístico. Vol. 1. São Paulo: Paulus, 2005.
_______. Introdução ao Novo Testamento: história e literatura do cristianismo primitivo.
Vol 2. São Paulo: Paulus, 2005.
KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João: amor e fidelidade. Petrópolis/São Leopoldo:
Vozes/Sinodal, 2000.
_______. Literatura sobre o Evangelho de João em edição brasileira. In: Estudos Bíblicos 33
(1992): 61-80.
KONINGS, Johan; TUÑI VANCELLS, Josep O. Jesús y el evangelio en la comunidade
juánica: introdución a la lectura cristiana del evangelio de Juan. Salamanca: Sígueme, 1987.
KÖSTENBERGER, Andreas J. Studies on John and gender: a decade of scholarship. New
York: Peter Lang Publishing, 2001.
KRÜGER, René; CROATTO Severino. Métodos exegéticos. Buenos Aires: EDUCAB/Isedet,
1993.
KÜMMEL,Werner G. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas,1982.
_______. Síntese teológica do Novo Testamento de acordo com as testemunhas principais:
Jesus, Paulo, João. São Paulo: Teológica, 2003.
162
KUNTZMANN, Raymond; DUBOIS, Jean-Daniel. Nag Hammadi o Evangelho de Tomé:
textos gnósticos das origens do cristianismo. São Paulo: Paulinas, 1990.
LABAHN, Michael. Between tradition and literary art: the miracle tradition in the Fourth
Gospel. In: Biblica 80 (1999): 178-203.
LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2003.
LA PEÑA, Juan L. Ruiz de. Teologia da criação. São Paulo: Loyola, 1989.
LELOUP, Jean-Yves. O Evangelho de João. Petrópolis: Vozes, 2000.
_______. O Evangelho de Tomé. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2000.
LEÓN-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João. Vols I a IV. São Paulo:
Loyola, 1996.
LÉTOURNEAU, Pierre. Le Dialogue du Sauveur (NH III,5). Québec/Louvain: PUL/Peeters,
2003 (Bibliothèque copte de Nag Hammadi – Textes 29).
LURKER, Manfred. Diccionario de imagenes y símbolos de la Biblia. Cordoba/Madrid:
Ediciones el Almendro, 1994.
LUZ, Ulrich. Matthew 8-20: a commentary. Minneapolis: Fortress Press, 2001.
MACHO A. Diez. Apocrifos del Antiguo Testamento. 5 vols. Madrid: Cristiandad, 1984.
MALINA, Bruce J.; ROHRBAUGH, Richard L. Social-science commentary on the Gospel of
John. Minneapolis: Fortress Press, 1998.
MARGUERAT, Daniel. A primeira história do cristianismo: os Atos dos Apóstolos. São
Paulo: Loyola, 2003.
MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de São João: análise lingüística e
comentário exegético. 2 ed. São Paulo: Paulus, 1999.
_______. Vocabulário teológico do Evangelho de São João. São Paulo: Paulus, 1989.
163
MATEOS, Juan; CAMACHO, Fernando. Jesus e a sociedade de seu tempo. São Paulo:
Paulus, 1992.
_______. O Evangelho de Mateus. São Paulo: Paulinas, 1993.
MARTINEZ, Florentino García. Textos de Qumran: edição fiel e completa dos documentos
do Mar Morto. Petrópolis: Vozes, 1994.
MARTYN, Louis. History and theology in the Fourth Gospel. New York: Harper & Row,
1968.
MERCIER, Roberto. El evangelio según el discípulo a quien Jesús amaba: comentario
exegetico, teologico espiritual y pastoral acompanado de textos de la literatura espiritual.
Santafé de Bogotá: San Pablo, 1994.
MEYER, Marvin. O Evangelho de Tomé: as sentenças ocultas de Jesus. Rio de Janeiro:
Imago, 1993.
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antônio Rodríguez. Evangelhos Sinóticos e
Atos dos Apóstolos. São Paulo: Ave Maria, 2000.
MORIN, Émile. Jesus e as estruturas de seu tempo. 6 ed. São Paulo: Paulus, 1988.
NESTLE-ALAND. Novum Testamentum Graece. 27 ed. Stuttgart: Deutsche
Bibelgesellschaft, 1993.
NEVES, Joaquim C. Escritos de São João. Losboa: Universidade Católica Editora, 2004.
NICCACI, Alviero; BATTAGLIA, Oscar. Comentário ao Evangelho de São João. Petrópolis:
Vozes, 1973.
NOGUEIRA, Paulo A. de Souza. Cristianismos na Ásia Menor: um estudo comparativo das
comunidades em Éfeso no final do 1º século d.C. In: RIBLA 29 (2000).
ORO, Ivo Pedro. O outro é o demônio: uma análise sociológica do fundamentalismo. São
Paulo: Paulus, 1996.
ORRÚ, Gervásio F. Os manuscritos de Qumran e o Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova,
1993.
164
OVERMAN, J. Andrew. O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo: o mundo social da
comunidade de Mateus. São Paulo: Loyola, 1997.
_______. Igreja e comunidade em crise: o Evangelho Segundo Mateus. São Paulo: Paulinas,
1999.
PAGELS, Elaine. Além de toda crença: o evangelho desconhecido de Tomé. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2004.
_______. Os evangelhos gnóstiscos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
PAINCHAUD, Louis. Os textos de Nag Hammadi como fontes para a história do cristianismo
primitivo. In: I Encontro da Associação Brasileira de Estudos do Judaísmo e do Cristianismo
Antigo. Rio de Janeiro, 2005.
PAROSCHI, Wilson. Crítica textual do Novo Testamento. 2 ed. São Paulo: Vida Nova, 1999.
PEREIRA, Isidro. Dicionário grego-português e português-grego. 4 ed. Porto: Livraria
Apostolado da Imprensa, 1969.
PERKINS, P. Gnosticism and the New Testament. Minneapolis: Fortress Press, 1993.
PIÑERO, Antonio. Origenes del cristianismo: antecedentes y primeros pasos. 2 ed.
Córdoba/Madri: Almendro/Complutense, 1995.
POIRIER, Paul-Hebert; MAHÈ, Jean-Pierre (orgs.). Ecrits gnostiques: Bibliotheque de la
Pleiad. Paris: Gallimard, 2007.
PROENÇA, Eduardo de. Apócrifos e pseudo-epígrafos da Bíblia. São Paulo: Fonte Editorial,
2005.
QUEIRUGA, André Torres. Do Terror de Isaac ao Abbá de Jesus: por uma nova imagem de
Deus. São Paulo: Paulinas, 2001.
_______, Recuperar a salvação: por uma interpretação libertadora da experiência cristã,
São Paulo: Paulus, 1999.
_______. A revelação de Deus na realização humana. São Paulo: Paulus, 1995.
165
RATZINGER, Joseph. O caminho pascal: curso de exercícios espirituais realizado no
Vaticano na presença de S. S. João Paulo II. São Paulo: Loyola, 1986.
REYES, George. El Evangelio de Juan: ¿Historia o literatura? In: Revista Bíblica 61.1 (1999):
1-22.
RICHARD, Pablo. O homem Jesus. São Paulo: Moderna, 1993.
_______. O movimento de Jesus depois da ressurreição: uma interpretação libertadora dos
Atos dos Apóstolos. São Paulo: Paulinas, 1999.
RIENECKER, Fritz. O Evangelho de Mateus: comentário esperança. Curitiba: Ed.
Evangélica Esperança, 1998.
ROBINSON, James M. A biblioteca de Nag Hammadi. São Paulo: Masdras, 2006.
RODRIGUES, Maria Paula; VASCONCELLOS, Pedro L.; SILVA, Rafael R. da. em
Deus, fé na vida: a boa notícia segundo uma comunidade na periferia do mundo. São
Leopoldo: CEBI, 1999.
RODRIGUES, Maria Paula. Um pecador quer nos ensinar?” Religião e poder no episódio
do cego de nascença. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2003
(Dissertação de Mestrado).
RUBEAUX, Francisco. As raízes do Quarto Evangelho. In: RIBLA 22 (1995): 60-72.
_______. Mostra-nos o Pai: uma leitura do Quarto Evangelho. Petrópolis/São Leopoldo:
Vozes/Sinodal, 1989.
RUSCONI, Carlo. Dicionário do grego do Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2003.
SALDARINI, J. Anthony. A comunidade judaico-cristã de Mateus. São Paulo: Paulinas,
2000.
SCHNACKENBURG, Rudolf. El Evangelio según San Juan. 3 vols. Barcelona: Herder,
1980.
SCHNEIDER, Theodor (org.). Manual de dogmática I. Petrópolis: Vozes, 2000.
166
SCHREINER, Josef; DAUTZENBERG, Gerhard. Forma e exigências do Novo Testamento. 2
ed. São Paulo: Teológica/Paulus, 2004.
SEGOVIA, Fernando F. The journey(s) of the word of God: a reading of the plot of the
Fourth Gospel. In: Semeia 53 (1991): 23-54.
_______. The significance of social location in reading John's story. In: Interpretation 49
(1995): 370-378.
_______. A new direction in Johannine scholarship: the Fourth Gospel from a literary
perspective. In: Semeia 53 (1991): 1-22.
SEVERINO, Antonio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 21 ed. São Paulo: Cortez,
2000.
SMITH, Moody D. The theology of the Gospel of John. Cambridge: Cambridge University
Press, 1995.
SMITH, Morton. Jesus the magician. San Francisco: Harper & Row, 1978.
STORNIOLO, Ivo. Como ler os Atos dos Apóstolos: o caminho do evangelho. São Paulo:
Paulus, 1993.
THEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus histórico: um manual. São Paulo: Loyola, 2004.
TEPEDINO, Ana M. A. L. Espiritualidade e ética: Jesus Cristo e a história da comunidade
joanina. Rio de Janeiro: PUC, 1994 (Tese de Doutorado).
TUÑÍ, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Escritos joaninos e cartas católicas. São Paulo: Ave
Maria, 1999.
TUÑI VANCELLS, Josep-O. O testemunho do Evangelho de João: introdução ao estudo do
Quarto Evangelho. Petrópolis: Vozes, 1989.
_______. Jesús y el evangelio en la comunidad juánica: introduccion a la lectura cristina del
Evangelio de Juan. Salamanca: Sígueme, 1987.
VANDERKAM, James C. Os manuscritos do Mar Morto hoje. Rio de Janeiro: Objetiva,
1995.
167
VASCONCELLOS, Pedro L. Impressões sobre os caminhos na leitura mais recente do
Evangelho (e Cartas) de João. In: Revista de Cultura Teológica 15 (1996): 77-84.
_______. O caminho é estreito: idas e vindas na incorporação (de parte) da tradição joanina
ao cânon do Novo Testamento. In: RIBLA 42/43 (2002): 121-144.
VERMES, Geza. As várias faces de Jesus, o judeu. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
_______. Os manuscritos do Mar Morto. São Paulo: Mercuryo, 1991.
VIDAL, Senen. Los escritos originales de la comunidad del discipulo “amigo” de Jesus: el
Evangelio y las Cartas de Juan. Salamanca: Sígueme, 1997.
VIELHAUER, Phillip. Historia de la literatura cristiana: introducción al Nuevo Testamento,
los Apócrifos y los Padres Apostólicos. Salamanca: Sígueme, 1991.
VVAA. A tradição do discípulo amado. In: RIBLA 17 (1994).
WEGNER, Uwe. Exegese do novo Testamento: manual de metodologia. São Paulo/São
Leopoldo: Paulus/Sinodal, 2001.
WENGST, Klaus. Interpretación del Evangelio de Juan. Salamanca: Sígueme, 1988.
_______. Pax Romana: pretensão e realidade, experiências e percepções da paz em Jesus e
no cristianismo primitivo. São Paulo: Paulinas, 1991.
WOODRUFF, Archibald M. Duas perícopes soltas: João 7, 53-8,11 e Marcos 16,9-20 como
oferecendo pistas para entender a formação da literatura dos evangelhos. In: Estudos de
Religião 24 (2003): 14-22.
_______. A creia, elegante ou deselegante, a partir dos progymnasmata, em relação ao Novo
Testamento. In: PHOÎNIX 9 (2003): 55-64.
Fontes eletrônicas
http://clawww.lmu.edu/faculty/fjust/John/Bibliog-Gospel-Studies.html
http://www.oracula.com.br
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo