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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ
UNIVERSIDADE DE FORTALEZA – UNIFOR
Vice-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação - VRPPG
Centro de Ciências Humanas - CCH
Mestrado em Psicologia
Orientadora: Profª.drª. Virginia Moreira
Os Heróis Também Sofrem: Um Estudo do Cotidiano de Trabalho dos
Bombeiros e de suas Relações Amorosas.
Aline Maria Loureiro Muniz Moita
Fortaleza
2007
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ii
Aline Maria Loureiro Muniz Moita
Os Heróis Também Sofrem: Um Estudo do Cotidiano de Trabalho dos
Bombeiros e de suas Relações Amorosas.
Dissertação apresentada como exigência
parcial para a obtenção do título de Mestre
em Psicologia à banca examinadora da
Universidade de Fortaleza, na linha de
pesquisa Produção e Expressão
Sociocultural da Subjetividade, sob
orientação da Professora Doutora Virginia
Moreira.
Fortaleza
2007
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_________________________________________________________________________
M715h Moita, Aline Maria Loureiro Muniz.
Os heróis também sofrem : um estudo do cotidiano de trabalho dos
bombeiros e de suas relações amorosas / Aline Maria Loureiro Muniz
Moita. - 2007.
143 f.
Cópia de computador.
Dissertação (mestrado) – Universidade de Fortaleza, 2007.
“Orientação : Profa. Dra. Virgínia Moreira.”
1.Trabalho – Aspectos psicológicos. 2. Relações conjugais.
3. Fenomenologia. I. Título.
CDU 159.9:331.1
_________________________________________________________________________
Universidade
de Fortaleza
-
UNIFOR
Mestrado em Psicologia
Psicologia, Sociedade
e Gultura:
Produção
e Expressão
Sociocu
ltu
ral
da Su
bjetividade
Dissertação intitulada
"Os
herois também
sofrem:
um estudo do
cotidiano
de
trabalho dos bombeiros
e de suas
relações amorosas",
de autoria
da
mestranda
Aline
Maria Loureiro Muniz
Moita, aprovada
pela
banca examinadora
constituída
pelos
seguintes
professores:
Profa. Dra.
Virginia
-
UNIFOR- Orientadora
À-,
bL=-b*ì<
Dr. Georges Daniel a Bloc Boris
-
UNIFOR
Prof.
Dr. E FIGUEIREDO
CARNEIRO
Coordenador
do C Mestrado
em
Psicologia
-
UNIFOR
I
\-
ç
Pereira Alves
-
PUC-CAMPINAS
Fortaleza.
30
de
novembro
de 2007
Av. Washington
Soares,1321, Edson
Queiroz-
Fortaleza,
CE
-
60,811-905
-
Brasil
-
tel:55
(0x*85)
3477-3000
iv
Dedico este estudo aos Bombeiros Militares do Ceará que me
proporcionam um aprendizado diário e uma aproximação com
valores e inquietações tão singulares e ao mesmo tempo tão
“mundanamente” humanos.
Aqueles que passam por nós, não vão s, não nos deixam
sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós (Saint-
Exupéry, O Pequeno Príncipe).
v
Agradecimentos
Agradeço de modo especial a Deus, por nutrir diariamente a minha fé e o meu
entusiasmo, e, ainda, por cercar-me de pessoas que possibilitaram a concretização
desta pesquisa.
Acredito que este momento me remete a toda a minha história de vida, por
isso agradeço aos meus pais que, além de me apresentarem à Psicologia,
transmitiram valores que considero o melhor que carrego em mim. Por investirem em
mim a melhor das expectativas, sei que este momento é de grande alegria para
minha mãe, e para meu pai, mesmo não estando mais aqui conosco, sei que
permaneço enchendo seu espírito de orgulho.
Agradeço aos meus irmãos, Dudu e Carlinhos, e à irmã que escolhi, Eudinha,
pelo simples fato de existirem e me amarem.
Agradeço à minha querida Tia Regina Cerqueira, pelo importante apoio e
incentivo que me deu ao longo dessa jornada.
Às minhas amigas de toda a vida, aqui representadas pela Laninha, que
tantas vezes me ajudaram a relaxar e me encorajaram a seguir adiante.
A todos os meus familiares, representados pelas primas Janaina e Sabrina,
pelas tias Odete, Ângela e Teresa Muniz, e pelas cunhadas, pelo carinho que a mim
devotam.
Às minhas ‘mestras em amizade’, Juliana Teophilo e Mara Aguiar, vocês são
um bem precioso que o mestrado me presenteou.
vi
Aos meus colegas de turma, pelo aprendizado que compartilhamos, em
particular àqueles com os quais tive uma aproximação pessoal, Andréa, Clauberson,
Gabriele, Kátia, Nadja e Tatiana.
À minha orientadora, Professora Virginia Moreira, por favorecer meu
crescimento e por todo o aprendizado que me proporcionou, e que levarei para toda
a vida.
Ao queridíssimo Professor Boris, por seu constante incentivo ao meu trabalho
e pela valorosa dedicação a mim destinada.
À Professora Vera Alves, por sua fundamental contribuição, exercendo de fato
um papel diferenciado na construção do meu estudo.
Aos professores do mestrado, por compartilharem comigo seus
conhecimentos.
Ao Professor Henrique, por exercer da melhor forma o papel de coordenador,
fazendo-me encontrar o melhor caminho.
À Professora lia Felismino, pela primorosa revisão literária que realizou
neste estudo.
À Taciana, por tantas vezes me ajudar e favorecer meu acesso a informações
importantes.
Ao Átila, por colaborar com a formatação desta dissertação, seguindo a
padronização da APA (Associação Americana de Psicologia).
Ao Coronel Duarte Frota, pelo inestimável apoio e incentivo.
Ao Coronel Vasconcelos, pela confiança em mim depositada.
Ao Coronel Sérgio e Coronel Adalberto, por possibilitarem que esse sonho
fosse concretizado.
vii
A todos os companheiros de trabalho, por tantas vezes se envolverem e
buscarem alternativas para que este estudo fosse realizado, em especial à
Manuzinha, quase uma assistente de pesquisa, Diana, e Pepeta, meu muito
obrigada.
A todos que colaboraram com as transcrições das entrevistas, Ângela, Lucas,
Sâmia e Sarah.
À Professora Socorro Lucena, pelo carinho e pelas contribuições acerca da
observação de campo.
À inesquecível Hadassa, por ter me ajudado a ser a profissional e a pessoa
que sou hoje.
Ao Dilcio, por sua mão sempre estendida e tantas vezes requisitada.
Ao querido Martinho, por sua escuta e seu apoio.
À Funcap, pela concessão da bolsa de Mestrado, fomentando parte deste
estudo.
À Noquinha, minha segunda mãe, por toda dedicação à minha família.
Às “minhas” crianças, Maria Eduarda, Maria Carolina, Raíssa, Lucas e
Rafaela, pelos momentos que me alimentaram com um amor tão lúdico.
Ao meu marido, Meu Amor, por simplesmente ter vivido intensamente comigo
essa experiência e se interessar por tudo que me traga alegria ou dor, por tomar
para si o papel de ombro amigo e de companheiro para todas as horas, desde
sentar para ouvir, cronometrar e julgar meus treinos de apresentações, a ir
comprar livros e encadernar trabalho; e por fazer-me conhecer o amor como hoje
conheço.
viii
A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com o mesmo perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
(Carlos Drummond de Andrade, A Verdade).
ix
Resumo
O presente estudo tem como objetivo geral compreender a articulação entre as
relações amorosas e o cotidiano de trabalho dos bombeiros e propõe-se,
especificamente, a investigar como os bombeiros militares vivenciam suas relações
amorosas; conhecer o cotidiano de trabalho dos bombeiros e articular os aspectos
do cotidiano de trabalho dos bombeiros com as suas relações amorosas. Trata-se
de uma pesquisa fenomenológica à luz do referencial de Merleau-Ponty (1945).
Foram utilizados dois instrumentos de coleta de dados: as observações de campo
no Quartel do Corpo de Bombeiros, de onde emergiram os sete sujeitos
colaboradores com os quais foram realizadas as entrevistas fenomenológicas com
roteiro semi-estruturado. Os resultados apontaram que a vivência das relações
amorosas dos bombeiros vêm atravessadas por seus cotidianos de trabalho na
medida em que estes se enraízam no mundo e são por ele enraizados, se
constituindo mutuamente. Verificou-se que o cotidiano de trabalho dos bombeiros
possui múltiplos sentidos, entre eles o que se destacou foi o fato de a sociedade os
colocar no lugar de heróis. Neste sentido, o estudo constatou que uma
experiência ambígua entre este papel de herói que a população comumente atribui
ao bombeiro e a vivência amorosa com que se deparam em suas relações.
Palavra-Chave: relações amorosas, bombeiros, fenomenologia.
x
Abstract
The main objective of the present study is to comprehend the articulation between
the love relationships and the work schedule of the firefighters, and it aims
specifically to investigate how the military firefighters experience their love
relationships; to get to know the firefighters’ work schedule; and to articulate the
aspects of the firefighters’ work schedule and their love relationships. This is a
phenomenological research based on references by Merleau-Ponty (1945). Two
instruments of data collection were used, the field observation at the Fire Brigade
Headquarter, from where the seven subjects who collaborated with the research
emerged, and were submitted to phenomenological interviews with a semi-structured
script. The results indicated that the firefighters’ experience of love relationships are
interposed by their work schedule in the proportion that
they root in the world and
they are rooted by it, being constituted mutually. It was possible to verify that the
firefighters’ work schedule has multiple meanings, among them the fact that the
society places them as heroes stands out. In this sense, it was possible to evidence
in this study that there is na ambiguous experience between this role of hero that the
population uses to attribute to the firefighter and the experience of love they come
across in their relationships.
Keywords: love relationships, firefighters, phenomenology.
xi
Sumário
Lista de Figuras .................................................................................................. xiii
Lista de Tabelas ................................................................................................. xiv
Introdução ............................................................................................................... 15
1. Procedimentos Metodológicos ............................................................................ 23
1.1. A Pesquisa Qualitativa ................................................................................. 23
1.1.1. A Lente Fenomenológica de Merleau-Ponty ..................................... 24
1.1.2. O Método Fenomenológico ................................................................
26
1.2. Os Instrumentos de Coleta de Dados .......................................................... 29
1.2.1. Entrevistas Fenomenológicas com Roteiro Semi-estruturado .......... 29
1.2.2. Observações de Campo .................................................................... 30
1.3. O Campo de Investigação ........................................................................... 31
1.4. Os Sujeitos Colaboradores .......................................................................... 32
1.5. Os Procedimentos de Análise dos Dados .................................................... 34
2. Fundamentação teórica ...................................................................................... 35
2.1. A vivência das Relações Amorosas ........................................................... 35
2.1.1. O Vínculo Afetivo ............................................................................... 35
2.1.2. Quando o Vínculo Amoroso se Rompe ............................................. 39
2.2. O amor e sua Mútua Constituição com Os Aspectos Sócio-Histórico-
Culturais................................................................................................................... 42
2.2.1. Compreendendo o Amor através da Mitologia .................................. 42
xii
2.2.2. O Amor na Sociedade Ocidental ....................................................... 44
2.3. O Trabalho dos Bombeiros ......................................................................... 47
2.3.1. Um breve histórico do Corpo de Bombeiros Militar do Ceará ............ 48
2.3.2. A Hierarquia dos Bombeiros ............................................................. 49
2.3.3. As Atividades dos Bombeiros ........................................................... 51
2.3.4. A Subjetividade Masculina do Bombeiro ........................................... 54
3. Análise e Discussão dos resultados .................................................................... 59
3.1. A Experiência de Campo ........................................................................... 59
3.1.1. O Vivido da Pesquisadora no Quartel ............................................... 62
3.1.2. O Vivido da Pesquisadora na “Praça Vermelha” ............................... 66
3.2. A Análise Fenomenológica ....................................................................... 69
3.2.1. A Vivência do Cotidiano “Heróico” ....................................................... 70
3.2.2. O Fenômeno das Relações Amorosas ............................................... 97
3.2.3. A Interface entre as Relações Amorosas e o Cotidiano de Trabalho. 105
Considerações Finais ........................................................................................... 123
Referências bibliográficas ..................................................................................... 129
Anexos ................................................................................................................135
1. Escala de acontecimentos estressantes .............................................. 136
2. Escala de Tensões no trabalho.............................................................. 138
3. Ficha do sujeito colaborador ................................................................ 139
4. Termo de consentimento ...................................................................... 140
5. Roteiro de entrevista ............................................................................. 142
xiii
Lista de figuras
Figura Página
1 Escala de acontecimentos estressantes .................................................. 19
2 Tensões dos bombeiros militares no trabalho ......................................... 20
xiv
Lista de tabelas
Tabela Página
1 Hierarquia do Corpo de Bombeiros Militar do Ceará ................................ 50
2 Relatório Anual de Ocorrências em Fortaleza (2005) .............................. 53
Introdução
Nos últimos anos, tem aumentado a atenção aos aspectos pertinentes às
relações conjugais. Autores como Alves (2005), Badinter (1986), Buber (1979),
Bucher (1996, 1999), Costa (1998), Fères-Carneiro (1996, 1998, 1999, 2001, 2003),
Giddens (1993), Guedes (2002), Maldonado (1995), entre outros, vêm discutindo
essas questões e apontando as transformações sociais acerca das relações
amorosas e dos novos arranjos conjugais. Tal idéia traz, em seu bojo, o advento
social do divórcio e a dificuldade de manutenção das relações afetivas. Atualmente,
vive-se o fenômeno do descartável, em que o selo do temporário e do transitório
marca implacavelmente aparelhos como o computador, o celular e, até mesmo,
instituições como o casamento. Observa-se que essas modificações sociais
repercutiram nas ciências de maneira geral, abrindo espaço para o debate em várias
áreas do conhecimento, como a sociologia, a antropologia, a filosofia, o direito e a
psicologia, haja vista as discussões propostas por teóricos como Durkheim (1921),
Berger & Kellner (1970), Foucault (1977) e Lévi-Strauss (1968). Nesta perspectiva,
acredita-se que, em sua prática profissional, o psicólogo também vem se deparando
com essa atmosfera de transformações sociais e, por conseguinte, com suas
implicações sobre as relações amorosas, os novos arranjos familiares e a maneira
como as pessoas concebem e vivenciam seus relacionamentos com seus parceiros.
Desta forma, o psicólogo deve estar atento para esse tipo de reflexão, na medida em
que os costumes se modificam e as formas de inter-relação amorosa se diversificam,
abrindo espaço para novas perspectivas de análise e de atuação profissional.
Freud (1931) destacava que o amor está em primeiro plano como uma
dimensão importante e necessária à arte de viver. A partir dessa idéia, enfatizava:
16
“Nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos,
nunca tão desamparadamente infelizes como quando perdemos nosso objeto
amado ou o seu amor” (p. 101). Assim, entende-se quão paradoxal esse sentimento
pode ser, pois, ao mesmo tempo que tem reconhecida importância no
desenvolvimento afetivo do homem, pode colocá-lo em contato com um sofrimento
cuja potência, muitas vezes, é devastadora, desencadeando adoecimentos com
“múltiplos contornos”
1
.
No mundo atual, a dificuldade de enfrentar as dores da vida, o sofrimento, a
tristeza e a renúncia se tornam, cada vez mais, comuns. Freqüentemente, percebe-
se a necessidade, por parte das pessoas, de uma busca frenética de prazer e de
alternativas que sirvam para "amortecer" ou para "aplacar" suas dores, como, por
exemplo, o consumo desenfreado de roupas, de carros ou, até mesmo, de drogas,
como é o caso do álcool. Nessa perspectiva, ao pensar nas relações amorosas, a
idéia da experiência vivida dos laços amorosos é, muitas vezes, atravessada pelo
rompimento dessas relações, sendo este um processo que pode desenvolver a
experiência do luto, ou seja, uma resposta saudável frente a uma perda ou mesmo
um adoecimento psicológico, como, por exemplo, a depressão. Por outro lado,
verifica-se, também, que algumas pessoas vivenciam processos psicopatológicos
cujo padrão de comportamento aparece intimamente ligado aos transtornos de
externalização compulsiva, como o uso abusivo de álcool e de drogas (Moreira &
Sloan, 2002).
1
O conceito de múltiplos contornos, proposto pelo filósofo Merleau-Ponty (1945-1994), será abordado
detalhadamente no primeiro capítulo da fundamentação teórica e nos procedimentos metodológicos desta
dissertação.
17
O trabalho realizado como psicóloga clínica dos bombeiros, mais de três
anos, permitiu observar que uma demanda preponderante de bombeiros para
atendimento psicoterápico tinha como queixa principal o sofrimento vivenciado em
suas relações amorosas
2
. Verbalizações marcadas de dor e de desorientação, no
que tange a aspectos da vida a dois, suscitaram indagações acerca dos vínculos e
da sub-cultura dos bombeiros militares como forma de compreender a experiência
vivida em suas relações amorosas.
Ao longo desses anos de atuação como psicóloga da instituição, chamou a
atenção, ainda, a forma marcadamente destrutiva como os bombeiros, muitas vezes,
direcionam suas vidas e suas relações amorosas. Quando se trata do rompimento
dessas relações, destruir a ex-companheira ou a si mesmos parece ser uma
alternativa de enfrentamento habitualmente considerada por eles. Perseguições,
ameaças, uso abusivo de álcool, agressão física e desorganização financeira
atingem proporções extremas, chegando ao conhecimento dos comandantes e dos
companheiros de unidades.
Revendo algumas versões de sentido
3
de atendimentos psicológicos
realizados com bombeiros no decorrer desse período, verificaram-se fragmentos de
sessões que expressam bem alguns dos depoimentos advindos da prática clínica
com estes homens:
2
Salienta-se que, ao referenciarem-se, neste trabalho, às relações amorosas de bombeiros militares, estão sendo
consideradas quaisquer formas de arranjos conjugais, inclusive envolvimentos paralelos às suas relações
matrimoniais, mas que façam parte das vivências consideradas significativas por eles. Enfim, a concepção de
relação amorosa é flexível para contemplar múltiplas possibilidades que os sujeitos colaboradores possam
apresentar.
3
Versões de sentido são instrumentos utilizados na prática psicoterapêutica a partir do modelo proposto por
Amatuzzi (1993), que os define como um breve relato, registrado logo após a sessão, por meio da experiência do
psicoterapeuta e do que foi apreendido por ele sobre o sentido daquele encontro.
18
Eu o sei porque, de uma hora para outra, ela resolveu fazer isso
comigo...(choro). Tava tudo bem entre a gente, eu fui até danado,
‘aprontei’ umas, ela tinha me perdoado, depois de num sei quanto tempo,
ela me ‘apronta’ uma dessa: mandar eu sair de casa?! Tava tudo bem entre
nós, eu não sei o que deu nela, deve ser essas amigas que o colocando
coisa na cabeça dela. Eu assim porque eu tava feliz, achei que a gente
vivia bem, eu botava tudo dentro de casa...(choro). No que é que deu?
(choro) Eu aqui, me humilhando, chorando na frente de uma mulher!
Aqui, no quartel, todos tão me apelidando de ‘barriga branca’, ruim até
para eu vir trabalhar...(choro) Olha como eu tô...(choro) Perdi minha
dignidade por causa dela (Hércules)
4
.
Não tá dando pra agüentar o que ela tá fazendo comigo não, desta vez não!
fui ‘besta’ com essa ‘égua’! Desta vez, num vou admitir que ela venha no
meu trabalho me xingar de ‘corno’, falar que eu num sou homem e essas
baixarias que ela é craque! Se eu quiser destruí-la, eu sei uma forma muito
simples de fazer isso, e eu não vou me aquietar enquanto não conseguir. É
ela continuar a vir no quartel, dando escândalo para me prejudicar, que
eu armo uma arapuca’ para ela e faço-a ser presa; sim quero ver se ela
ainda vai abrir aquela boca imunda pra vir gritar na sala do comando (Ajax).
Diante deste panorama e da necessidade de conhecer a realidade dos
bombeiros, no que tange, especificamente, aos aspectos de suas vivências no
âmbito do trabalho e da família, realizou-se, entre abril e maio de 2004, uma
pesquisa em várias unidades da corporação na cidade de Fortaleza (anexos 1 e 2)
5
(Moita, 2004). Os dados coletados foram apresentados aos comandantes das
4
Nome fictício inspirado na mitologia grega, como os demais utilizados nesta dissertação.
19
unidades e serviram de sustentação, conscientização e início de um trabalho de
atendimento psicoterápico, que, desde então, vem sendo desenvolvido pela autora
desta dissertação. Cabe acrescentar que na pesquisa mencionada os índices
obtidos refletem dados significativos no que tange ao estresse e às tensões
encontradas no cotidiano de trabalho dos bombeiros, sendo, portanto, pertinente
citá-los. Resumidamente, o panorama encontrado foi o seguinte:
0
10
20
30
40
50
Grau 1 Grau 2 Grau 3
Escala de acontecimentos
estressantes
Grau 1
Grau 2
Grau 3
Legenda:
Grau 3
(801 ou mais pts)
30,1%
Grau 2
(401 a 800 pts)
40,9%
Grau 1
(0 a 400 pts)
29 %
Figura 1. Escala de acontecimentos estressantes.
5
Ver instrumento de coleta de dados nos anexos 1 e 2, respectivamente, concernentes às figuras 1 e 2.
20
0
10
20
30
40
50
Grau 1 Grau 2 Grau 3
Tensões no trabalho
Grau 1
Grau 2
Grau 3
Legenda:
Grau 3
(24 a 30 pts)
9 %
Grau 2
(17 a 23 pts)
49,8%
Grau 1
(10 a 16 pts)
41,2%
Figura 2. As tensões dos bombeiros militares no trabalho.
Os resultados obtidos na pesquisa supracitada vêm ilustrar alguns aspectos
da realidade destes bombeiros, servindo como um ponto de análise tanto para
acontecimentos estressantes como para tensões no trabalho. Apontam, por sua vez,
que a maioria dos bombeiros, em ambos os aspectos, situa-se no que poderia ser
chamada de “zona de risco e alerta”, uma vez que, dentre os sujeitos colaboradores,
40,9%, no caso dos acontecimentos estressantes, e 49,8%, no caso das tensões no
trabalho, encontram-se acima da média do que seria considerado adequado ao
bem-estar e à qualidade de vida, segundo a Organização Mundial de Saúde.
A partir da vivência como psicóloga do Corpo de Bombeiros Militar do Ceará,
surgiu o interesse como da pesquisadora de aprofundar o olhar sobre questões
concernentes à forma como os bombeiros vivenciam suas relações amorosas, bem
como aos aspectos do seu cotidiano do trabalho que atravessam tais relações.
21
Ao contemplar o fenômeno das relações amorosas, observa-se que na
sociedade contemporânea uma dificuldade de manutenção de vínculos afetivos
(Fères-Carneiro, 1998) ou, quando estes são rompidos, tenta-se vivenciar o mínimo
de sofrimento possível. Esse processo é fruto de uma cultura hedonista, que traz à
tona o culto ao prazer e rechaça o desprazer, ainda que ambos sejam inerentes ao
ciclo da vida. A etiologia da palavra hedonismo é grega, hedone, e significa prazer
(Ferreira, 1986, p. 1838), fenômeno muito contemporâneo no momento em que se
observa um excessivo culto ao corpo, à carne ou a outro objeto que abra uma
perspectiva de mediação com o prazer e que torne desnecessário o sujeito moderno
viver a perda, o luto em suas formas diversificadas de expressar a angústia. Essa
situação se complica ainda mais quando se trata da vivência dos bombeiros, haja
vista que, no seu cotidiano de trabalho, estão em constante exposição ao risco e,
por conseqüência, em contato com a possibilidade da morte, experiência de finitude.
Todas essas questões permeiam a discussão ao longo deste estudo.
O objetivo geral deste estudo foi compreender a articulação entre o cotidiano
de trabalho dos bombeiros e suas relações amorosas. Para tanto, buscou-se,
especificamente, investigar como os bombeiros militares vivenciam suas relações
amorosas; conhecer o cotidiano de trabalho dos bombeiros e articular os aspectos
do cotidiano de trabalho com as suas relações amorosas. Esta pesquisa, portanto,
busca compreender uma realidade pouco conhecida pelas ciências, de maneira
geral, e pela psicologia, especificamente.
Dumond (1985) ressalta que a relação com o outro é marcada pela relação
consigo próprio. Eis aí o fio norteador deste estudo: compreender o fenômeno das
relações afetivo-amorosas dos bombeiros a partir de como eles se apropriam e se
22
constituem nessa relação na dimensão de sujeitos, sendo, portanto, responsáveis
polissêmicos, passíveis de expressar múltiplos aspectos e conflitos, ou seja, como
sujeitos mundanos. Sobre esse sujeito, Merleau-Ponty (1994) salienta: ”O mundo é
não aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo,
comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável”
(p.14).
Acrescenta-se, por fim, a relevância de um estudo feito com bombeiros
militares, uma vez que estes prestam grandes serviços à sociedade, dispondo de
suas próprias vidas como ferramenta de trabalho, o que afeta incontestavelmente a
saúde desses indivíduos no mais amplo sentido. E, apesar disso, principalmente no
Brasil, pouquíssimas são as pesquisas realizadas com essas pessoas, que se
encontram cada vez mais adoecidas, sendo, portanto, importante que se comece a
encará-las como parte da sociedade que precisa ser olhada e cuidada.
23
1. Procedimentos metodológicos
A gente só conhece bem aquilo que não entende
(Guimarães Rosa).
1.1. A Pesquisa Qualitativa
Esta é uma pesquisa de cunho qualitativo, cuja base epistemológica vem
subsidiar as ciências humanas (Rey, 2002). Minayo (1994) aponta que a pesquisa
qualitativa “trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças,
valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações dos
processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de
variáveis” (p. 21). Com base nisso, elegeu-se o método qualitativo para este estudo,
por ser o caminho mais coerente com os objetivos aqui estabelecidos e levando em
consideração que se pretende conhecer a experiência vivida e seu significado para a
pessoa que vive ou viveu a experiência. Vale lembrar que, neste estudo, seguiu-se o
que assinala Turato (2003), ao falar que uma pesquisa desta natureza busca a
compreensão e não a explicação do fenômeno estudado.
Holanda (2001) destaca que o cerne de uma pesquisa qualitativa é
incontestavelmente acessar o mundo privado e subjetivo do homem, além de
alcançar dimensões do vivido humano não mensuráveis através do método
quantitativo. vários métodos de pesquisa qualitativa. O método utilizado neste
estudo foi o fenomenológico, com base no pensamento de Maurice Merleau-Ponty,
tal como sedescrito adiante. Tendo em vista seu caráter “mundano”, este método
utilizou-se não apenas das entrevistas, tradicionalmente empregadas nas pesquisas
fenomenológicas, como também da observação participativa no campo, um
24
instrumento da etnografia. A combinação entre as entrevistas fenomenológicas e
instrumentos da etnografia vem sendo aplicada a pesquisas como forma de
contemplar o fenômeno pesquisado e sua interseção com o mundo no qual está
inserido de forma mais ampla (Moreira, 2002, 2004; Moreira & Cavalcante, 2008;
Nogueira 2005).
1.1.1. A Lente Fenomenológica de Merleau-Ponty
A filosofia fenomenológica de Merleau-Ponty será utilizada como lente para
contemplar o arcabouço teórico que fundamenta este estudo, bem como para
delinear a visão de homem que sustentará as discussões. Todavia não se pretende
aludir profundamente à obra do autor, em virtude de sua amplitude teórica. Propõe-
se, portanto, elucidar suas principais idéias, que subsidiarão o enquadre desta
pesquisa.
Moreira (2002) assinala que o pensamento merleaupontiano caracteriza-se
pela ruptura das dicotomias, através do reconhecimento das ambigüidades inerentes
ao ser humano, haja vista que Merleau-Ponty (1966) faz um interessante paralelo
entre sua concepção filosófica e a pintura de Cézanne, obra na qual a característica
que se sobressai é a indefinição de formas e contornos. Assim, a presença de
múltiplos contornos idéia de movimento e proporciona uma deformação na
realidade, sendo esta deformação uma melhor representação do mundo real,
diferente do que acontece com uma fotografia, cuja imagem possui caráter estático,
portanto, irreal. A partir dessa analogia, o filosofo propõe uma fenomenologia
pautada na perspectiva dos “múltiplos contornos”.
25
Em sua obra Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty (1994) afirma que
a realidade, tal como é percebida, está sempre em movimento, não tem uma forma
definida, sobretudo porque não existe uma demarcação entre o real e o imaginário.
Dessa forma, para o filósofo, compreender a percepção significa evidenciar a
inexistência de verdades absolutas, uma vez que a percepção é o campo de
revelação do mundo e este existe para ser descoberto e não construído. Nesse
sentido, Moreira (2004) comenta que “Merleau-Ponty abole verdades fechadas e
pensamentos idealistas. Põe a fenomenologia de no mundo. O conhecimento é
sempre inacabado, não existe absoluto. Sua perspectiva tem uma postura política
que desautoriza qualquer tipo de totalitarismo” (p. 4).
Diferente da fenomenologia husserliana, que busca a essência dos
fenômenos, para a fenomenologia merleaupontiana, o primordial é o significado da
experiência vivida. Nesse sentido, Moreira (1999) enfatiza o dar-se conta do
significado da experiência vivida através de um campo intersubjetivo, estando o
homem inserido no mundo de forma articulada com as dimensões espaciais,
temporais e intersubjetivas da existência. De acordo com o pensamento filosófico de
Merleau-Ponty (1994), a essência está na existência e sobre isso o filósofo comenta:
“A fenomenologia é o estudo das essências, mas também uma filosofia que re-situa
as essências dentro da existência e compreende o homem e o mundo a partir de
sua facticidade na existência” (Merleau-Ponty, 1994, p. 5). Dessa maneira, assume
uma postura existencial, afastando-se do idealismo.
O conceito de lebenswelt, ou seja, mundo vivido, ocupa lugar de destaque na
fenomenologia de Merleau-Ponty (1994) e aproxima suas idéias da Antropologia. De
26
acordo com o filósofo francês, “o homem está no mundo, é no mundo que ele se
conhece” (p. 6). Enfatiza, assim, o homem “mundano”, ou seja, o homem que é
atravessado por dimensões psicológicas, biológicas, políticas, sociais, históricas e
culturais; diferente da idéia de homem no mundo.
Observa-se que a utilização da lente da fenomenologia crítica de Merleau-
Ponty é congruente com a necessidade de contemplar o bombeiro militar em suas
múltiplas dimensões, possibilitando uma compreensão desse bombeiro como um ser
concreto, histórico e multifacetado. Nesse sentido, o filósofo comenta que se trata de
“uma vontade dupla de colidir todas as experiências concretas do homem, e não
somente suas experiências de conhecimento como ainda suas experiências de vida,
de civilização, tais como se apresentam na história” (Merleau-Ponty, 1994, p. 26).
1.1.2. O Método Fenomenológico
A escolha do método fenomenológico com base no pensamento de Merleau-
Ponty advém da necessidade de compreensão das experiências vividas.
Distinguindo-se da proposta fenomenológica de Hursserl, que preconizava a busca
da essência do fenômeno, Merleau-Ponty (1994) busca o significado da experiência
vivida e afirma que a essência está na existência.
Sabe-se que há várias fenomenologias e, por isso, uma metodologia de
pesquisa sofre variações de acordo com o pensamento filosófico que a sustenta;
com isso, Moreira (2004) alerta que seria inadequado pensar o todo
fenomenológico no singular. A busca do significado da experiência será sempre o
27
aspecto que singulariza a pesquisa fenomenológica, por constituir-se como objetivo
principal de um estudo dessa natureza, embora o modo de compreensão desse
significado provoque nuanças completamente distintas acerca do fenômeno,
originando, assim, as fenomenologias. Se esse modo de compreensão passar por
uma perspectiva de compreensão idealista, ou seja, conforme os aspectos
husserlianos mais tradicionais, a descrição buscará acessar a essência (Moreira,
2004). Por outro lado, a pesquisa de base fenomenológica pode assumir uma
postura crítica, se percorrer o caminho da compreensão mundana sugerido por
Merleau-Ponty (1994), caminho este escolhido para este estudo.
A fenomenologia mundana de base merleau-pontyana “propõe um enquadre
a partir da perspectiva de “múltiplos contornos”, na qual os pressupostos
metodológicos incluem um instrumento que priorize a experiência, a utilização de
variáveis descritivas e a hipótese como desconfiança” (Moreira, 2004). A busca de
um significado mundano da experiência vivida inclui uma visão de ser humano em
mútua constituição com o mundo, com a história, com a cultura.
Um pesquisador mundano nunca buscará uma “síntese”, tampouco a “essência”
do fenômeno (Moreira, 2004). O primeiro caso (síntese) justifica-se pelo panorama
proposto por esse método e esse pensamento, que está atrelado à idéia de
movimento, sendo a síntese a própria ausência de movimento. Merleau-Ponty (1984)
se referia à “boa dialética” para citar uma dialética aberta ou mesmo uma dialética
cíclica. no que se refere à essência, torna-se inadequada a busca por ela na
medida em que se acredita não existir verdade absoluta. Merleau-Ponty (1994) é
categórico ao afirmar que “a essência está na existência”.
28
Pode-se afirmar que o método fenomenológico vem embasado nos seguintes
princípios (Moreira, 2004):
Prática da redução fenomenológica: o pesquisador põe em suspenso seus
pensamentos, interesses, pressupostos e idéias preconcebidas.
Foco na descrição da experiência: o pesquisador pede aos sujeitos
colaboradores que descrevam suas experiências vividas em relação ao
fenômeno estudado, explorando o significado dessa experiência.
Relação Intersubjetiva: é a relação entre pesquisador e sujeito pesquisado,
com conteúdos e envolvimentos originados dessa relação. A atuação do
pesquisador se na facilitação do acesso ao vivido, este surge na relação
intersubjetiva, afetando pesquisador e sujeito pesquisado mutuamente.
Merleau-Ponty (1994) defende a idéia de que o homem é mundo e o mundo é
homem, o homem é parte do mundo e vice-versa. Trata-se, então, do enraizamento
do homem no mundo. Foi sob essa ótica, que nesta pesquisa foram utilizados dois
instrumentos: as entrevistas fenomenológicas e a observação participativa, um
instrumento da etnografia, buscando, desta forma, ferramentas que priorizem esse
enraizamento do bombeiro militar a seu contexto de trabalho, ou seja, a explicitação
do contorno sociocultural da experiência vivida. Segundo André (1995), o berço da
etnografia foi a Antropologia, estando aquela intimamente relacionada com a cultura
e a sociedade. Assim, a observação participativa em campo foi um recurso
complementar às entrevistas, extremamente pertinente para conhecer a realidade do
29
trabalho de bombeiro, bem como para melhor compreensão da vivência das
relações amorosas e a mútua constituição com o cotidiano de trabalho desse
profissional, como, por exemplo, a descrição dessas experiências diárias do
ambiente de trabalho etc.
1.2. Os Instrumentos de Coleta de Dados
O mais importante para a pesquisa fenomenológica nesse enfoque é a
priorização da experiência, por isso o instrumento utilizado deve possibilitar que o
pesquisador acesse as vivências do sujeito colaborador. Parte-se do pressuposto
metodológico de que este sujeito colaborador sabe dessa experiência, que a
vivenciou. Propõe-se, portanto, a aprender com quem viveu ou vive a experiência
sobre a qual se investiga.
1.2.1. Entrevistas Fenomenológicas
Conforme foi mencionado anteriormente, através dessas entrevistas, buscou-
sel acessar o fenômeno pesquisado com uma comunicação pautada no sentimento
empático e que seja capaz de trazer à tona a experiência vivida.
Foram realizadas 07 entrevistas com roteiro semi-estruturado e duração
estimada em 50 minutos, estas foram audiogravadas. A questão norteadora foi:
Fale-me sobre suas relações amorosas e seu cotidiano de trabalho.
Moreira (2002) observa que a entrevista é talvez o instrumento mais utilizado
pelos vários métodos qualitativos, tais como: a etnografia, o estudo de caso etc.
Contudo, ao elegê-la como ferramenta de coleta de dados em uma pesquisa
30
fenomenológica, deve-se atentar para aspectos específicos que a norteiam. Na
verdade, trata-se de uma entrevista com roteiro semi-estruturado, pautada em uma
pergunta norteadora ou "disparadora" (Amatuzzi, 1993).
1.2.2. Observação de Campo
Conforme explicitado, Merleau-Ponty (1994) acredita que um
enraizamento do homem no mundo e vice-versa. A partir dessa perspectiva a
pesquisadora investigou o “mundo” do quartel militar dos bombeiros. Foi com este
intuito que a observação de campo foi inserida no caminho metodológico traçado e
percorrido, pois possibilitou a imersão da pesquisadora no contexto de trabalho do
bombeiros. A fim de registrar os achados no campo, utilizou-se o diário de campo
como instrumento, uma vez que este favorece o conhecimento do contorno
sociocultural do bombeiro militar e seu enraizamento no contexto de trabalho.
O diário de campo possibilitou relatos escritos sobre o que a pesquisadora
experienciou no contexto, gerando a produção de vinhetas, que são “descrições
densas” (Geertz, 1989), ou seja, os relatos escritos daquilo que o pesquisador ouve,
vê, observa após cada observação em um dia inserido no campo. As vinhetas são
narrações detalhadas de cenas observadas na realidade em que o pesquisador se
insere e sobre a qual lança um foco específico (Geertz, 1989). Deve possibilitar uma
visão real, fidedigna, um “retrato” do contexto narrado.
A relação existente entre a antropologia e a etnografia confere às ferramentas
do método etnográfico a capacidade de delinear aspectos culturais e sociais de um
determinado contexto; são, portanto, recursos extremamente pertinentes para
31
conhecer a realidade do fenômeno estudado; no caso desta pesquisa, o sofrimento
dos bombeiros.
1.3. O Campo de Investigação
A pesquisa foi realizada no Corpo de Bombeiros Militar do Ceará, na cidade
de Fortaleza. A escolha desse contexto justifica-se pela atuação da pesquisadora
como psicóloga na referida instituição três anos. Foi constatada uma realidade
extremamente carente do olhar da ciência. A busca dos bombeiros por atendimento
psicológico causou estranhamento, haja vista a natureza da demanda: a vivência de
sofrimento nas relações amorosas desses indivíduos, incluindo a forma como “estão
no mundo” e como neste se vinculam.
É pertinente refletir sob a ótica que de “sujeito e sociedade se constituem
mutuamente, não se podendo demarcar um limite ou contorno que é próprio do
sujeito e do que é próprio da sociedade: eles se constituem reciprocamente”.
(Moreira 2004). Assim, sujeito (bombeiro), micro (instituição militar) e macrossistema
(sociedade) parecem se atravessar mutuamente, o que pressupõe uma interferência
dialética.
O lócus de investigação desta pesquisa, Corpo de Bombeiros
6
, localiza-se no
bairro Jacareacanga, em um prédio que corresponde ao quartel central. Nesse
espaço físico, há bombeiros em serviço para atividades de busca e salvamento e há,
6
A caracterização do campo foi descrita no item 3.4 deste estudo.
32
também, bombeiros detidos, por desacatarem regras disciplinares. O prédio possui,
ainda, alojamento para bombeiros que optem por residir no quartel, fato observado
principalmente quando esse profissional deixa sua casa por motivos de separação
com sua esposa.
1.4. Os Sujeitos Colaboradores
O homem é um abismo e a vertigem me assalta quando contemplo suas
profundezas (Georg Büchner).
Moreira (2004) chama atenção para a necessidade de conhecer dados
mínimos sobre os sujeitos colaboradores. Esses dados se tornam relevantes no
momento em que descrevem aspectos concernentes ao grupo ou à pessoa para
quem a pesquisa volta seu olhar. A autora propõe essa descrição não com o intuito
de controle, mas no sentido de favorecer um alcance da compreensão do fenômeno
de forma mais ampla.
Ademais, cita a utilização de variáveis como pressuposto que caracteriza a
fenomenologia crítica e afirma: “Quando falo de variável, portanto, estou falando de
uma variável que descreve o meu sujeito colaborador, uma variável descritiva”
(Moreira, 2004, p. 451). A variável concernente a gênero, por exemplo, subsidia essa
concepção, uma vez que aspectos de gênero o reconhecidamente importantes
para o modo de subjetivação dos seres humanos, bem como para a forma como
concebem as relações amorosas.
33
A escolha dos sujeitos colaboradores aconteceu através do trabalho de
observação de campo no quartel central, onde se realizaram contatos interativos e
conversas informais com os bombeiros que estavam em escala de serviço,
convidando-os, assim, a participarem da pesquisa, através de uma entrevista. Vale
acrescentar que alguns sujeitos colaboradores se disponibilizaram a participar da
pesquisa por indicação de amigos de trabalho, bombeiros entrevistados e
funcionários da instituição. Desta forma, foram entrevistados 07 sujeitos
colaboradores, sendo estes bombeiros militares do Ceará que atuam na capital
Fortaleza, do sexo masculino, com faixa etária entre 30 e 50 anos. Nesse sentido,
Moreira (2001) comenta que o sujeito colaborador não é um “ser humano planetário”,
pois:
Ele é um ser humano, que pode ser homem ou mulher, que faz parte de uma determinada
faixa etária com todas as suas implicações da sua respectiva fase de desenvolvimento, que
se constitui mutuamente com uma determinada cultura, uma classe social específica, uma
história que é simultaneamente individual e social, interior e exterior (p. 229).
O perfil dos sujeitos colaboradores foi organizado no quadro abaixo para
identificação sistematizada, tendo sido omitida a patente e adotado nomes fictícios
com finalidade ética, para preservar a identidade.
Sujeito Colaborador
Estado Civil
Tempo na Instituição
categoria
1 Agamenon Casado 13 anos Oficial
2 Aquiles Casado 13 anos Praça
3 Apolo Casado 20 anos Praça
4 Jasão Casado 12 anos Praça
5 Perseu Solteiro 12 anos Praça
6 Ulisses Casado 12 anos Praça
7 Zeus Casado 13 anos Oficial
34
1.5. Os Procedimentos de Análise dos Dados
A análise é a operação intelectual que possibilita decompor mentalmente um
todo complexo em suas partes, dividir o pensamento do todo em suas múltiplas
relações e componentes.
Os dados das entrevistas passaram por uma análise fenomenológica
mundana, a partir dos seguintes passos (Moreira, 2004):
a) Divisão do texto nativo (transcrição literal da entrevista) em movimentos,
segundo o tom da entrevista (Moreira, 1993).
b) Análise descritiva do significado emergente do movimento.
c) "Sair dos parênteses", que implica o pesquisador deixar de praticar a
redução fenomenológica (em conformidade com a qual estava colocando, entre
parênteses, idéias preconcebidas, suspeitas ou hipóteses). Assumindo-se como
pesquisador mundano, retoma sua hipótese como desconfiança, a fim de dialogar
com os resultados da pesquisa, principalmente posicionando-se frente a esses
resultados, adotando postura crítica e evitando o pensamento de sobrevôo na forma
de neutralidade científica (Moreira, 2004).
As vinhetas produzidas durante a imersão no campo foram analisadas
consistindo no que Creswell (1998) menciona como sendo uma descrição e uma
interpretação de um grupo ou sistema cultural. A análise fenomenológica das
entrevistas e a análise dos dados obtidos através da observação no campo foram
compreendidos conjuntamente, tal como será apresentado no capítulo sobre os
resultados.
35
2. Fundamentação Teórica
A fim de fundamentar teoricamente o estudo proposto, pretende-se utilizar um
arcabouço conceitual ancorado no seguinte tripé:
1. A vivência das relações amorosas, bem como o rompimento destas, incluindo,
ainda, a concepção de vínculo e seus múltiplos contornos.
2. A compreensão de amor e sua tua constituição com os aspectos sócio-
histórico-culturais.
3. O contexto de trabalho do bombeiro militar, contemplando a dimensão da
subjetividade masculina imbricada nessa realidade.
Dessa forma, propõe-se um olhar a partir da lente fenomenológica mundana
de Merleau-Ponty, o que significa a adoção de uma perspectiva crítica de revelação
do mundo, na medida em que este projeto de pesquisa dispõe-se a compreender as
relações amorosas de bombeiros militares a partir de suas próprias vivências,
considerando seus entrelaçamentos com a instituição militar e as múltiplas
dimensões desta.
2.1. A Vivência das Relações Amorosas
2.1.1. O Vínculo Afetivo
A tarefa de compreender a vivência das relações amorosas de bombeiros
militares vem acompanhada da necessidade de sustentar teoricamente estas
36
relações nos aspectos concernentes aos vínculos afetivos. Buber (1979) entende
que os vínculos o pontos de partida fundamentais para a compreensão profunda
do ser humano.
Conforme o dicionário Larousse Escolar da Língua Portuguesa (2004) a
palavra vínculo é “originada do latim vinculum e significa laço, liame, atilho, ou
relação” (p. 786).
Pichon-Rivière (1986) chama de vínculo a “maneira particular pela qual cada
indivíduo se relaciona com outros criando uma estrutura particular a cada caso e a
cada momento” (p. 37). A partir desse conceito, vem o questionamento, que, por ora,
permanece em aberto, sobre a forma como o bombeiro militar vivencia suas relações
amorosas, considerando seu cotidiano de trabalho com todos os aspectos laborais
próprios da realidade desse profissional. O autor supracitado acrescentou que
“nenhum paciente apresenta um tipo único de vínculo: todas as relações de objeto e
todas as relações estabelecidas com o mundo são mistas” (p. 26). Isso faz lembrar a
concepção dos “múltiplos contornos” trazida por Merleau-Ponty (1960), através de
sua análise da pintura de Cézane, concepção que, conforme assinala Moreira
(2002), rompe definitivamente com as dicotomias por meio do reconhecimento das
ambigüidades inerentes ao ser humano, emblematizando a idéia de múltiplos
contornos”. Desse modo, pode-se entender que os vínculos vêm imbricados pela
dicotomia e pela ambigüidade.
Sobre a teoria do vínculo conjugal, Dias (2000), Fonseca (2000) e Busto
(2003) esclarecem que uma relação amorosa é composta pela união de três tipos de
vínculos (motivo/causa que liga uma pessoa a outra): o amoroso, o compensatório e
o de conveniência.
37
Para que se possa entender melhor cada tipo de vínculo, antes de trazer suas
definições, cabe comentar uma ilustração da engrenagem dessas relações, proposta
metaforicamente por Dias (2000), através da imagem de uma tenda de circo, que,
além da lona de cobertura, existem as vigas mestras e as auxiliares. O namoro
aparece como a lona do circo; as vigas mestras são as que sustentam a lona e as
auxiliares são as que a esticam e armam, dando a configuração ao circo. Essas
vigas mestras e auxiliares sofrem alterações de acordo com cada casal, todavia
uma regra que perpassa qualquer situação: caso o dano ocorra na viga mestra,
pode fazer com que o circo desabe, ao passo que, se ocorrer nas vigas auxiliares,
apenas compromete sua configuração.
Atentar-se-á primeiramente para a viga amorosa, pois o vínculo amoroso,
segundo Dias (2000), caracteriza-se por uma atração que resulta em uma paixão ou
sensação de encantamento, implicando, assim, a crença de que a pessoa amada é
capaz de atender todas as necessidades de carinho e afeto daquele (a) que a ama,
a sensação de ter achado a “alma gêmea”, fenômeno amplamente estudado por
caracterizar, de maneira geral, a forma como a sociedade ocidental concebe as
relações amorosas. Após um período de convivência, vem a fase de
desencantamento; acredita-se que esse momento pode evoluir para uma relação de
amor (dependendo do diálogo existente entre os parceiros) ou mesmo para a ruptura
do relacionamento, tema que será abordado adiante.
Retomando a discussão sobre vínculo amoroso, Dias (2000) concebe três
características como ponto de atração para um casal. São elas: sexual, afetiva e
intelectual. No primeiro caso (atração sexual), o foco está no corpo (aparência,
38
timbre de voz, movimentos, cheiro, toque), que desencadeia uma erotização da
atração. No caso da atração afetiva, vai surgir um gostar do "jeito de ser" do parceiro
(os gestos, as atitudes, a forma de se expressar, de fazer as coisas, de se vestir, de
se posicionar nas situações), gerando um intenso desejo de estar junto e, ainda,
sentimentos de ternura, amizade e amor. Na terceira e última atração (intelectual),
tem destaque a forma semelhante de pensar e de ver a vida (as expectativas, os
valores morais, religiosos, a maneira de se comportar e de se conduzir a vida em
relação a si, aos outros e ao mundo). Daí surge a sensação de ser e estar
profundamente compreendido e irmanado na visão de mundo. Em todas as três
formas, quando a liga ocorre mutuamente, tende a se espalhar para os demais
aspectos.
Ainda conforme Dias (2000), o vínculo compensatório, também chamado de
simbiótico, está subjacente a uma relação de dependência, na qual um dos
parceiros delega ao outro funções psicológicas (como cuidado, julgamento e
orientação) que deveriam ser de sua responsabilidade. A pessoa apaixonada
acredita que o parceiro tem o dever de cuidar de seus interesses afetivos e
materiais, cabendo a ele a responsabilidade de julgar, dizer o que está certo ou
errado, adequado ou inadequado nas mais variadas atitudes, decidindo qual a
melhor ação a ser tomada, até nas mínimas atividades cotidianas.
Por último, para o autor supracitado, os vínculos por conveniência se baseiam
nas relações de interesse que acontecem entre os parceiros. Elas podem ser de
ordem financeira, social, comercial, política, profissional e/ou familiar e há, ainda,
alguns aspectos mais específicos, como oportunidade de sair de casa, ter um filho,
39
conseguir visto para um país estrangeiro ou ascensão econômica. Não é pouco
comum ver casamentos que se arrastam por anos, tendo como pano de fundo esse
tipo de vínculo.
Enfim, na engrenagem da relação afetiva, o que realmente importa é a
sintonia que da liga entre os parceiros, isto é, as intenções da relação, não
importando o que compõe a viga mestra (amor, compensação ou conveniência). Um
vínculo amoroso pode ocorrer em uma relação duradoura “apenas” como viga
auxiliar. Cabe acrescentar que todos os vínculos permeiam, em maior ou menor
grau, a relação de um casal.
2.1.2. Quando o Vínculo Amoroso se Rompe
A perspectiva de discorrer sobre as relações amorosas fomentou leituras que
contemplavam, também, o rompimento e o processo que, a partir daí, podem se
delinear. Nesse sentido, pensou-se imediatamente na idéia de luto.
Para compreender o luto, é oportuno iniciar com sua definição semântica.
Sendo assim, propõe-se o seguinte conceito, extraído de um dicionário de língua
portuguesa: “Profundo pesar causado pela morte de alguém (...) Trabalho
intrapsíquico de elaboração da perda de um objeto amado externo” (Larousse
Escolar da Língua Portuguesa, 2004, p. 473).
A partir da definição de luto mencionada acima, é pertinente destacar a perda
como condição inerente a esse processo. Dessa forma, acrescenta-se a idéia de
morte que vem impregnada à palavra luto. Ao vir à tona a questão da morte e sua
relação com o luto, tem-se em mente que essa morte não se trata apenas da morte
40
física, mas também da morte simbólica. Esta pode ser representada pela perda de
um emprego, a saída de um filho da casa dos pais, a ruptura de uma relação afetiva
com o parceiro (fim de um namoro, noivado ou mesmo um divórcio), ou seja, todo e
qualquer outro fato que represente uma mudança. Ao findar uma etapa e iniciar uma
outra, emerge, por conseguinte, a necessidade de um período de elaboração e
reestruturação intrapsíquica. Na verdade, o luto é uma resposta normal e saudável a
diferentes tipos de perdas.
A própria condição da existência humana implica desligamentos, renúncias e,
nesse sentido, pode-se dizer que envolve um trabalho de luto. As pessoas deparam-
se com essas situações desde a mais terna idade, e acredita-se que esses
episódios na infância, bem como outros que serão falados adiante, têm forte
interferência na forma como cada um vai vivenciar suas perdas na idade adulta. A
dor é maior, porque, no geral, ninguém é preparado para perder, principalmente
quando se pisa no terreno dos afetos, no qual se encontram relatos variados sobre
a sensação de que essa ferida nunca vai ter cura.
Caruso (1968), tendo como ponto de partida um ditado francês que diz: “partir
é morrer um pouco”, aponta que estudar a separação amorosa implica estudar a
presença da morte na vida. O autor vislumbra uma sentença de morte recíproca,
oriunda da separação e acrescenta: “o outro morre em vida dentro de mim e eu
também morro na consciência do outro” (p. 20).
Refletir sobre a palavra luto torna-se mais interessante ao se verificar sua
designação em outros idiomas, como no espanhol, em que o vocábulo é chamado
duelo (Roos, 2004). Ora, curioso como isso irremediavelmente faz com que se
41
pense em ”luta”, “combate” e, ainda, em “du – elo”, o que implica a existência de um
elo, de uma ligação, de uma relação entre duas pessoas.
Pensando no luto pela ruptura de uma relação afetiva (namoro, noivado ou
casamento), ao perceber que o parceiro não está mais a seu lado, o sujeito inicia
um processo de desligamento. Esse desligamento, como uma forma de renúncia,
não é realizado sem obstáculos, sem resistência; implica, antes de tudo, um
momento de intenso sofrimento psíquico. Ao ser confrontada com uma perda, a
energia desse indivíduo se volta para a elaboração do luto. E, assim, diante do fim
de um relacionamento, a energia que antes era dirigida, por exemplo, ao trabalho se
volta para essa dor; havendo então, por um período temporário, uma inibição, perda
de interesse pelo mundo externo, sem que isso caracterize uma depressão. Para
Féres-Carneiro (1998), “o tempo de elaboração do luto pela separação é quase
sempre maior do que aquele do luto por morte” (p. 07). uma entrega ao luto, ao
combate desse elo, que consiste em “desatar” essa ligação.
Observa-se que, na literatura sobre o luto, é freqüente a menção a suas
“fases”, contudo cabe discutir uma crítica a essa tendência. Sabe-se que o luto tem
um caráter processual, portanto deve ser vislumbrado como um fenômeno
possuidor de uma evolução, de um ciclo a ser experienciado, todavia isso ocorrerá
mediante as diferenças individuais. Embora exista a necessidade de compreender o
processo e, até mesmo, de tentar controlá-lo, não é possível falar, com precisão,
sobre uma seqüência através da qual todas as pessoas experimentarão esse luto.
Analisando historicamente, esse conceito de fases foi disseminado com a
primeira publicação, em 1969, do livro Sobre a Morte e o Morrer, de Elizabeth
42
Kubler-Ross, um marco na literatura referente a esse tema. Entretanto é
extremamente imprudente que se faça uma interpretação rígida de sua descrição de
fases do morrer. Neste âmbito, Kubler-Ross (1969) não perde de vista a
compreensão processual da elaboração das perdas, reais e simbólicas,
principalmente quando se considera que, subjacente à idéia de luto, existem
questões culturais, sendo estas de extrema relevância para o entendimento dos
“múltiplos contornos” das vivências apresentadas pelos colaboradores desta
pesquisa.
2.2. O Amor e sua Mútua Constituição com Aspectos Sócio-Histórico-Culturais
Acredita-se que, ao buscar compreender aspectos concernentes às relações
afetivo-amorosos, torna-se extremamente pertinente conhecer a concepção de amor
arraigada na cultura do Ocidente. Como o amor foi concebido através do tempo?
2.2.1 Compreendendo o Amor através da Mitologia
Ana Bock et al. (1998) mencionam que existem várias áreas do
conhecimento, ou seja, formas de compreender o mundo. São elas: a Religião, a
Filosofia, o Senso Comum, a Arte e a Ciência. Os autores fazem alusão à evolução
do pensamento humano desde a Mitologia até chegar ao conhecimento científico da
Psicologia.
A Mitologia traz à tona um conhecimento da cultura ocidental sobre vários
aspectos, haja vista que foi a forma encontrada pelos homens de trabalhar questões
43
existentes na época, como é o caso do amor. A partir desse viés, pretende-se
compreender os aspectos históricos e culturais do amor, bem como suas possíveis
influências nas concepções ocidentais acerca das relações amorosas. O ideal do
amor romântico surgiu na sociedade ocidental durante a Idade Média, através do
mito literário que será mencionado a seguir (Tristão e Isolda). Daí a importância
desse ideal para a compreensão da forma como o amor é visto pela sociedade da
qual se está tratando. Ressalta-se, ainda, que é nesta sociedade que os bombeiros,
sujeitos desta pesquisa, estão inseridos, sendo, portanto, por ela enraizados.
O mito de Tristão e Isolda
Tristão e Isolda são uma lenda que muito se propagou na Idade Média.
Considera-se uma das mais contundentes e importantes epopéias sobre o amor
concebidas.
Tristão de Leónis foi encarregado de ir à Irlanda pedir a seu tio Marcus, rei de
Cornualha, a mão de Isolda, a Loura. Nesse país, eles bebem, por engano, um filtro
mágico que desperta, em seus corações, uma paixão irresistível e eterna. Depois de
pensar ter sido abandonado por seu amor, Tristão esforça-se para esquecer Isolda,
sem o conseguir. Mortalmente ferido, ele a chama ao seu leito de morte, mas, em
virtude de um equívoco, falece ao julgar-se abandonado por Isolda, que chega muito
tarde. Ao ver seu grande amor morto, Isolda não resiste e de tristeza vem a falecer.
Ambos, então, foram enterrados juntos. Narra o mito que, no túmulo de Tristão,
nasceu uma videira e, no de Isolda, uma rosa; as duas plantas cresceram
entrelaçadas, permanecendo assim como símbolo do amor que nutriam um pelo
outro.
44
2.2.2. O Amor na Sociedade Ocidental
Observa-se que, no Ocidente, o amor romântico é quem define as relações
entre as pessoas. Como fenômeno de massa, esse amor é peculiar ao Ocidente,
não constituindo apenas uma forma de amar, e sim todo um conjunto psicológico -
uma combinação de ideais, crenças, atitudes e expectativas. Inconsciente e
conscientemente, os indivíduos predeterminam como deve ser um relacionamento
com outra pessoa, o que devem sentir e mesmo o que devem lucrar com isso.
O amor romântico não significa apenas amar alguém; é algo de uma outra
ordem, significa estar apaixonado. Quando está apaixonada, a pessoa acredita ter
encontrado o verdadeiro sentido da vida, que vem projetado e revelado no parceiro.
Esse conjunto psicológico inclui uma exigência, inconsciente, de que o amante ou o
cônjuge alimente-o continuamente com uma sensação de êxtase e emoção intensa.
Acredita-se que uma questão paradoxal pode ser vislumbrada nesse tipo de
concepção de amor, pois, ao mesmo tempo que as pessoas julgam ser essa a forma
“correta” de amar, deparam constantemente com uma realidade diferente de suas
expectativas e crenças, desencadeando-se uma dor incompreendida.
A ambivalência que permeia as pessoas quando se encontram apaixonadas
acaba, por muitas vezes, levando ao fim do relacionamento, pois, embora sintam um
êxtase, são invadidas por uma sensação de solidão e incompletude, o que contribui
para um sentimento de frustração. Seria essa uma ferida psíquica própria dos seres
humanos? Jung (1983) afirma que, quando se descobrir a ferida psíquica num
45
indivíduo ou num povo, estar-se-á próximo do caminho para a conscientização, uma
vez que o processo de cura das feridas psíquicas gera o autoconhecimento.
Após um processo histórico acerca das famílias e dos casamentos, não resta
dúvida de que, aos poucos, no Ocidente, vai sendo construído um novo ideal de
casamento; ao contrário do que ocorreu em décadas anteriores, atualmente, há uma
“pregação” aos cônjuges de que se amem e tenham expectativas a respeito do
amor. A sociedade contemporânea, de maneira geral, não mais apregoa um
casamento sem que este seja pautado no desejo, no amor ou em qualquer outro
artifício que sirva de fonte de prazer, principalmente porque, como já foi mencionado
na introdução deste projeto, vive-se em uma cultura hedonista, sendo, portanto,
nesse panorama que as relações conjugais estão inseridas, relações pautadas no
amor como fonte de satisfação pessoal. Apesar disso, ainda casamentos cuja
configuração está ancorada em conveniência financeira, por exemplo. Neste âmbito,
existem particularidades de gênero. Sobre isso Alves (2005) aponta:
Configura-se, conseqüentemente, como necessidade típica da feminilidade, um casamento
que lhe possibilite obter do parceiro a provedoria financeira, que, por sua vez, caracteriza
como tipicamente femininas a preocupação e a avaliação do status profissional do parceiro e
de suas condições financeiras. O desejo de um casamento, como recurso para mudança de
classe social, torna-se, deste modo, uma expectativa tida como feminina (p.180)
Alves (2005) ainda salienta que “a necessidade feminina de relações estáveis
é superada pela necessidade preponderante de relações construtivas” (p.180).
46
Foucault (1977) discute historicamente a relevância do casamento para os
indivíduos na sociedade contemporânea, analisando o papel da aliança e da
sexualidade, bem como suas implicações institucionais. Assim, formula o conceito
de "dispositivos" para demonstrar como a aliança e a sexualidade se articulam em
aparelhos e instituições. Contudo um ponto que precisa ser mostrado: o fato de
que esses estudos abarcam sobretudo o modelo burguês de casamento, uma vez
que o cerne é a produção da sexualidade vinculada aos dispositivos de poder. Tal
idéia remonta à discussão de individualidade e gênero, em paralelo com a
conjugalidade, proposta por Alves (2005):
Quanto à atuação social, independente das pretensões conjugais, mas a elas posteriormente
alinhadas, conceitua-se como masculina a ênfase dada ao trabalho. A atuação profissional é
uma das fortes características da masculinidade, que resultará no âmbito da conjugalidade, a
atribuição da provedoria financeira do casal (p. 181).
Em princípio, a sexualidade fez parte de uma técnica de poder centrada na
aliança e na manutenção da homeostase social, em que ficou sustentado um
sistema de casamento com desenvolvimento de parentescos e, por conseguinte, de
transmissão de nomes e bens, seguindo os parâmetros da eternidade e da
indissolubilidade. Ironicamente, na “contramão” das leis, essa sexualidade emergia a
partir do próprio corpo, com todos os prazeres que lhe fossem devidos. Sendo
assim, o sistema de aliança passa então para a ordem da sexualidade.
Nesse campo de análise, Guindens (1993) acredita que os ideais do amor
romântico desconectam os indivíduos das relações sociais e familiares mais amplas,
sobressaindo o relacionamento conjugal. Este assume definitivamente uma posição
47
mais valorizada. Surge uma perspectiva interessante que traz a intimidade como
agente gerador de comunicação psíquica e de um encontro pleno.
2.3. O Trabalho dos Bombeiros
O Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Ceará (CBMCE) é um órgão com
as seguintes competências: atuar na defesa civil estadual e nas funções de proteção
da incolumidade e do socorro das pessoas em caso de infortúnio ou de calamidade;
exercer atividades de polícia administrativa para a prevenção e combate a incêndio,
bem como de controle de edificações e seus projetos, visando à observância de
requisitos cnicos contra incêndio e outros riscos; na proteção, busca e no
salvamento de pessoas e bens, atuar no socorro médico de emergência pré-
hospitalar, de proteção e salvamento aquáticos; desenvolver pesquisas científicas
em seu campo de atuação funcional e ações educativas de prevenção de incêndio,
socorro de urgência, pânico coletivo e proteção ao meio ambiente, bem como ações
de proteção e promoção do bem-estar da coletividade e dos direitos, garantias e
liberdades do cidadão; estimular o respeito à cidadania, através de ações de
natureza preventiva e educacional; manter intercâmbio entre os assuntos de
interesse de suas atribuições com órgãos congêneres de outras unidades da
Federação; normatizar, controlar e fiscalizar a criação e extinção de brigadas de
incêndio municipal, privadas e de voluntários e exercer outras atribuições
necessárias ao cumprimento de suas finalidades (Art 1
o
da Lei 13.438, de 07 de
janeiro de 2004 - DOE nº 005, 09 de janeiro de 2004).
48
2.3.1. Um Breve Histórico do Corpo de Bombeiros Militar do Ceará
Segundo o historiador João Xavier de Holanda, a corporação do Corpo de
Bombeiros Militar do Ceafoi criada, oficialmente, no dia oito de agosto de 1925
(Lei 2253), com o nome de Pelotão de Bombeiros, pelo então governador do
estado, José Moreira da Rocha.
O Pelotão de Bombeiros era subordinado ao Comando do Regimento Policial
do Ceará, uma das denominações da Polícia Militar do Estado do Ceará. Nesse
momento, havia 33 bombeiros no quadro de efetivos, cujo objetivo era extinguir
incêndios na capital, Fortaleza. A instituição não possuía sistema de aquartelamento;
seus componentes ficavam alojados no Quartel-General da Polícia Militar.
Em 1932, por meio de decreto, o Corpo de Bombeiros do Estado do Ceará foi
reorganizado pelo interventor do estado do Ceará, Roberto Carneiro de Mendonça.
Um ano mais tarde, em 1933, um novo decreto transforma a "Seção" em "Pelotão de
Bombeiros"; porém, apenas em janeiro de 1934, começa efetivamente a funcionar,
sob o nome de Corpo de Bombeiros Militar de Segurança Pública do Estado. Nesse
momento, contava com 30 homens em seu quadro efetivo, todos advindos do Corpo
de Segurança Pública (hoje Polícia Militar do Ceará) e da extinta Guarda Civil.
Somente em agosto de 1935, passou a ser chamado "Corpo de Bombeiros do
Ceará", ficando subordinado à "Chefatura de Polícia e Segurança Pública". Foi em
1958 que se instituiu o dia dois de julho como "Dia Nacional do Bombeiro".
49
Um dos momentos históricos de grande impacto para a corporação foi em
abril de 1990, quando o Corpo de Bombeiros Militar do Ceará passa a funcionar de
forma autônoma, estando desvinculado da Polícia Militar, embora, apenas em 1997,
tenha sido criada a Secretaria de Segurança Pública e Defesa da Cidadania,
vinculando o Corpo de Bombeiros àquele setor.
Atualmente, o Corpo de Bombeiros Militar do Ceará (CBMCE) possui um
quadro efetivo com aproximadamente 1500 homens.
2.3.2.
A Hierarquia dos Bombeiros
Propor esta pesquisa significa metaforicamente lançar-se em um terreno
ainda virgem, haja vista a incontestável ausência de trabalhos científicos que
contemplem, de alguma maneira, os bombeiros militares. Curiosamente, essa
categoria profissional não tem sido objeto de estranhamento, tampouco despertado
interesse significativo nos pesquisadores, principalmente nas ciências humanas e
sociais. Seria essa uma realidade que advém do fato de provavelmente o bombeiro
ser representado pela sociedade como herói, alguém acima de quaisquer
contingências inerentes aos seres humanos?
Ao mencionar esses profissionais em uma conversa informal, é bem comum
ouvir comentários que suscitam uma imagem heróica do bombeiro, remetendo-o às
suas atuações em incêndios, enfim, salvamentos de comunidades e vidas. Percebe-
se que esse imaginário coletivo baniu os bombeiros do campo de interesse e
reflexão científica. Assim, a carência de uma fundamentação teórica, através das
ciências de maneira geral, exigiu uma sustentação fundada na própria experiência
50
profissional da pesquisadora com esses militares, bem como apoiada em filmes e
documentos institucionais (Estatuto do Bombeiro Militar).
Deve-se evidenciar que o Corpo de Bombeiros se constitui como uma
instituição fundamentada em preceitos extremamente hierarquizados. A descrição
contida no artigo 13° do Estatuto do Bombeiro Militar define que se trata de uma
instituição militar em que “a hierarquia e a disciplina são a base institucional,
crescendo a autoridade e a responsabilidade com a elevação de grau hierárquico”. A
hierarquia é um importante mecanismo legal de controle e normatização do
comportamento dos indivíduos na instituição. Conforme elucida a tabela a seguir,
essa hierarquia se configura através de duas categorias: a dos oficiais e a dos
praças. Em cada uma dessas, subdivisões que compõem o panorama
hierárquico.
Tabela 1: Hierarquia do Corpo de Bombeiros Militar do Ceará
HIERARQUIZAÇÃO ORDENAÇÃO
Círculo de Oficiais Superiores Coronel
Tenente-Coronel
Major
Círculo de Oficiais Intermediários Capitão
Círculo de Oficiais Subalternos Primeiro Tenente
Segundo Tenente
Aspirante a oficial
Círculo de Subtenentes e
Sargentos
Subtenente
Primeiro Sargento
Segundo Sargento
Terceiro Sargento
Círculo de Cabos e Soldados Cabo
Soldado de Primeira Classe
Soldado de Segunda Classe
51
Legenda:
Categoria de Oficiais
Categoria dos Praças
Os praças iniciam suas carreiras com a graduação de soldado; sendo assim, o
posto máximo ao qual podem ascender é o de capitão. A carreira dos oficiais, por sua
vez, principia-se no posto de aspirante a oficial, podendo chegar a coronel, patente
máxima na corporação.
7
A posição hierárquica na qual o bombeiro está inserido é de extrema relevância
para a compreensão das possíveis interferências do cotidiano de seu trabalho em suas
vivências afetivo-amorosas, uma vez que esse cotidiano é particularmente delineado
mediante a patente, conforme assinalam os artigos 37 a 39 do estatuto mencionado
anteriormente:
O oficial é preparado, ao longo da carreira, para o exercício do Comando, da Chefia e da
Direção das Organizações dos Bombeiros-Militares. Os subtenentes e sargentos auxiliam ou
complementam as atividades dos oficiais, quer no adestramento e emprego dos meios, quer
na instrução e na administração. Os cabos e soldados são essencialmente elementos de
execução.
2.3.3. As
Atividades dos Bombeiros
Os bombeiros atuam efetivamente como agentes de manutenção da ordem
pública, desempenhando desde salvamento de uma criança que se encontra soterrada
por um deslizamento, por exemplo, até mesmo prestação de atendimento emergencial
a um paciente psiquiátrico, encaminhando-o a um hospital. Podem atuar, ainda,
7
Ver tabela 1: Hierarquia do CBMCE.
52
cortando uma árvore que configure uma ameaça a uma residência, exterminando
inseto que esteja oferecendo risco de vida ou removendo bêbados de ruas e calçadas.
Enfim, uma extensa e diversificada lista de atividades bombeirísticas, contudo a
responsabilidade envolvida em cada uma dessas está muito além de uma precipitada
classificação segundo os riscos e as tensões possíveis; basta registrar um
atendimento realizado em 2004, com a família de um bombeiro, pelo setor
psicossocial, em decorrência de morte em trabalho. A atividade em função da qual
ocorreu o acidente em questão, embora pareça elementar, era o corte de uma árvore.
Um fato interessante a ser explicitado são os relatos de bombeiros que
trabalham como guarda-vidas nas praias do Ceará, atividade reconhecida por toda
corporação como sendo de extremo desgaste físico e psíquico, uma vez que envolve
condições laborais adversas (intensa e recorrente exposição ao sol e ao vento), bem
como exigência de se manter concentrado no que acontece principalmente no mar,
pressupondo uma eminente postura de alerta.
Por fim, complementando as informações descritas neste tópico, apresenta-se a
seguir uma tabela que diz respeito ao Relatório Anual de Ocorrências (Ano 2005
Capital) para uma melhor visualização do panorama geral de atividades que os
bombeiros exercem.
53
Tabela 2: Relatório Anual de Ocorrências (Ano 2005, Capital: Fortaleza).
MESES/ OCORRÊNCIAS JA
N
FE
V
MA
R
AB
R
MA
I
JU
N
JU
L
AG
O
SE
T
OU
T
DE
Z
TOT
AL
1. INCÊNDIO
INCÊNDIO RESIDENCIAL
UNIFAMILIAR
37 20 28 27 24 20 39 35 38 27 29 30 354
INCÊNDIO RESIDENCIAL
MULTIFAMILIAR
11 03 13 04 08 04 04 04 03 10 06 09 79
INCÊNDIO EM EDIFICAÇÃO
COMERCIAL
21 07 12 13 11 08 19 16 13 15 10 19 164
INCÊNDIO EM EDIFICAÇÃO
INDUSTRIAL
02 00 01 02 02 01 03 06 02 05 02 02 28
INCÊNDIO EM EDIFICAÇÃO
PÚBLICA
01 00 03 00 02 02 02 03 02 02 01 01 19
INCÊNDIO EM VEGETAÇÃO 100
39 15 10 01 08 37 89 129 151 93 188 860
INCÊNDIO EM VEÍCULOS 15 13 17 12 11 15 16 15 09 12 15 15 165
INCÊNDIOS EM MONTURO 62
25 09 11 02 11 33 52 47 43 35 66 396
OCORRÊNCIAS COM GASES 103
79 95 78 114 92 115 85 107 85 61 81 1095
SUBTOTAL 352
186 193 157 175 161 268 305 350 350 252 411 3160
2. BUSCA E RESGATE
CONDUÇÃO DE PACIENTE
PSIQUIÁTRICO
00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 12 11 23
RESGATE DE CADÁVER 02 02 02 03 00 02 00 04 00 04 00 00 19
AFOGAMENTO FATAL
06 02 03 03 05 03 01 05 02 03 03 05 41
AFOGAMENTO NÃO FATAL
68 19 05 03 09 05 15 07 06 04 08 15 164
RESGATE DE PESSOAS
10 11 07 07 09 03 04 04 08 08 05 05 81
EXTERMÍNIO DE INSETOS 110 73 93 84 101 70 76 177 136 109 116 98 1243
CORTE DE ÁRVORES EM PERIGO
129 126 124 79 124 89 57 70 70 63 55 76 1062
DESABAMENTO/
INUNDAÇÃO
04 02 10 09 08 06 06 09 05 05 02 03 69
RESGATE DE ANIMAIS
61 71 59 43 82 73 56 65 67 52 55 70 754
OUTRAS OCORRÊNCIAS
664 463 333 210 207 339 315 174 138 248 454 344 3889
SUBTOTAL
105
4
769 636 441 545 590 530 515 432 496 710 627 7345
3. GRUPO DE SOCORRO
ACIDENTE DE TRÂNSITO
57 108 173 127 128 164 81 103 108 95 105 103 1352
AGRESSÃO
14 59 67 59 85 48 25 33 43 39 40 32 544
CHOQUE ELÉTRICO
00 01 01 04 03 00 01 02 01 01 02 02 18
EMERGÊNCIA OBSTÉTRICA
07 14 055 32 53 37 20 11 28 15 17 17 256
INTOXICAÇÃO
EXOGENA/ENVENENAMENTO
03 02 06 03 08 04 03 01 04 02 02 03 41
MAU SÚBITO
23 91 105 100 104 101 51 65 64 54 52 84 894
QUEDA
19 46 61 51 73 46 32 36 43 40 25 50 522
QUEIMADURA
01 01 02 01 06 03 01 01 02 02 01 03 24
OUTRAS OCORRÊNCIAS
58 126 153 150 141 69 92 99 124 98 88 89 1287
SUBTOTAL
182 448 573 527 601 472 306 351 417 346 332 383 4938
TOTAL GERAL
1.5
88
1.4
03
1.4
02
1.1
25
1.3
21
1.2
23
1.1
04
1.1
71
1.1
99
1.1
92
1.2
94
1.4
21
15.
443
54
2.3.4. A Subjetividade Masculina do Bombeiro
Ao longo deste projeto de pesquisa, a discussão percorreu dois caminhos a
priori distintos (as relações amorosas e o cotidiano de trabalho dos bombeiros), mas
que, neste momento, cruzam-se, conduzindo a um viés que, de forma sutil, embora
com fundamental importância, aponta para os aspectos relacionados à subjetividade
masculina do bombeiro militar.
Pode-se perceber que questões elucidadas por bombeiros militares (homens),
cujo sofrimento parece tomar proporções devastadoras em suas vidas, trazem
subjacente a construção da identidade masculina de cada um, evidenciando uma
notável fusão entre idéias relacionadas a sexo masculino (macho) e gênero
masculino. Não seria precipitado afirmar que a noção do que é “ser homem” para os
bombeiros tem múltiplos contornos. Estes vêm sustentados em algo extremamente
peculiar à cultura nordestina e, junto a isso, ao referencial de sexualidade.
Deve-se atentar para o fato de que é possível encontrar, na literatura
científica sobre estudos de gênero, desde confusões terminológicas até estudos
mais apurados, ressoando fortemente a idéia de que essa miscelânea de
conceitos, termo utilizado por Boris (2002), resulta do fato de que a “trajetória da
construção de um homem não é tão tranqüila quanto muitos poderiam pensar”
(Boris, 2002, p. 23), o que propiciaria uma amplitude interpretativa para os
estudiosos dessa área. De fato, a escuta clínica, como psicóloga, com esses
homens (bombeiros militares) vem confrontando a pesqisadora com a perspectiva de
turbulência emocional que advém do “tornar-se homem”, se é que assim se poderia
dizer.
55
Surge, então, um dado que parece fonte de extremo sofrimento em “constituir-
se homem” para além do sexo: a idéia de que não pode pedir ajuda, sofrer, chorar;
enfim, expressar sentimentos e necessidades. Como se não bastasse, adotam a
crença de que é seu dever proteger e ajudar sua mulher e seus filhos. Sabe-se que
a literatura menciona essa questão como sendo característica da construção da
subjetividade masculina, contudo essa constatação elicia o seguinte posicionamento
crítico: E, quando o homem é militar e pertence a uma instituição que tem como
missão proteger a vida humana (O Corpo de Bombeiros), como vivencia seu
sofrimento diante de sua imagem onipotente? Estaria esta realidade atravessando
suas vivências amorosas? A fim de ilustrar essa realidade, considera-se pertinente
citar o hino dos bombeiros, intitulado “Hino do Soldado de Fogo”
8
, mencionado por
Holanda (1997) que descreve sua missão:
Contra as chamas e lutas ingentes
Sob o nobre alvi rubro pendão,
Dos soldados do fogo valentes.
É, na paz, a sagrada missão
E se um dia houver sangue e batalha,
Desfraldando a auriverde bandeira,
Nossos peitos são férreas muralhas
Contra audaz agressão estrangeira.
Missão dupla o dever nos aponta:
Vida alheia e riquezas a salvar.
E, na guerra, punindo uma afronta,
Com valor pela Pátria lutar.
Aurifulvo clarão gigantesco!
8
Os trechos em itálico foram destacados pela pesquisadora, por trazerem mensagens acerca da missão e do
56
Labaredas flamejam no ar!
Num incêndio horroroso, dantesco,
A cidade parece queimar!
Mas não temem da morte os bombeiros
Quando ecoa d'alarme o sinal,
Ordenando voarem ligeiros
A vencer o vulcão infernal .
Rija luta aos heróis aviventa,
Inflamando em seu peito o valor,
Para frente! Que importa a tormenta.
Dura marcha ou de soes a rigor?
Nem um passo daremos atrás,
Repelindo inimigos canhões!
Voluntários da morte na paz
São na guerra indomáveis leões. (p.347 e 348)
9
Através do supracitado hino, percebe-se que os atributos esperados dos
bombeiros, no exercício da profissão, preconizam valores como a coragem e a
bravura. Os versos do soldado de fogo também enfatizam o trabalho em prol da
sociedade, mesmo que para isso os bombeiros abdiquem da própria vida.
Ao refletir sobre a subjetividade dos bombeiros e as suas relações amorosas,
identifica-se claramente uma ambigüidade entre o papel de herói, que
desempenham no cotidiano de trabalho, e suas experiências no campo afetivo-
sexual, que parecem confrontá-los com sentimentos comuns a quaisquer seres
humanos. Na versão de sentido de atendimento psicológico realizado com
trabalho dos bombeiros.
57
bombeiros (apresentada na introdução deste projeto), questões impactantes
relacionadas à subjetividade masculina podem ser facilmente identificadas.
momentos, por exemplo, em que Hércules deixa claro seu sofrimento e sua
impotência frente à separação proposta pela parceira, uma vivência que se distingue
da bravura entoada no Hino do Soldado de Fogo. Observa-se, ainda, que o referido
bombeiro demonstra surpresa com o pedido de separação, por parte de sua mulher,
uma vez que, em sua percepção, a relação estava satisfatória, uma característica
comum às relações amorosas na cultura ocidental. A despeito disso, Badinter (1986)
assinala: “A hipertrofia do ego e o individualismo militante são sérios obstáculos para
vida a dois” (p. 267).
Lins (1995) vai além ao se referir aos espaços eminentemente masculinos
(como é o caso do Corpo de Bombeiros) e às estratégias de virilidade e de sedução,
mencionando que a mulher não existe como sujeito. Ela é um objeto a consumir, em
alguns casos, etiquetado como um outro homem. Deve-se considerar que os
bombeiros que recorrem ao atendimento psicológico estejam, antes de tudo, em um
momento de buscar compreender questões pertinentes à sua subjetividade
masculina. Há, também, uma mobilização muito grande pela imagem social, até
mesmo pelo fato de buscar ajuda psicológica e como pode temer ser julgado na
corporação, ainda que, em momentos de profunda dor, não se desconectam de
sentimentos e sensações que o mantêm, ou não, nos padrões de imagem através
da qual gostam de ser percebidos.
Compreende-se cada vez mais que não existe masculinidade - nem feminilidade - única, mas
que as manifestações viris apresentam-se numa tal diversidade que se torna praticamente
9
O hino do soldado de fogo aparece articulado com os achados da pesquisa, no capítulo Análise e Discussão dos
Resultados.
58
impossível tratar de uma essência ou de uma identidade masculina universal e atemporal
(Boris, 2002, p. 377).
A perspectiva destacada acima parece adequada por trazer subjacente uma
inexorável diversidade, abordando a construção da subjetividade e da condição de
gênero como algo contingente e circunstancial. Cabe acrescentar que, segundo
Boris (2002), o termo identificação é mais oportuno, exatamente por dar a idéia de
um processo de construção e reconstrução da condição masculina. Esta idéia, tão
ousada quanto pertinente, contempla a diversidade como agente “facilitador” na
compreensão das relações de gênero; facilitador porque, de outra maneira, seria,
por demais, reducionista e, ademais, acredita que, de fato, seria complicado pensar
as questões de gênero sob qualquer ótica que iguale ou aponte uma semelhança
essencial ao feminino ou ao masculino, como propõem as teorias que trabalham a
partir do viés da identidade.
A concepção de gênero aqui utilizada pressupõe uma construção contextualizada ou
situacional, historicizada, e relacional, envolvendo um conjunto de valores, atitudes,
ideologias, comportamentos, práticas, símbolos, representações, normas, preconceitos e
estereótipos sócioculturais, que, portanto, induz, condiciona, limita e/ou reforça determinados
aspectos da vida dos indivíduos diferenciados sexualmente em sociedade - mas para além
do que sugere a mera noção de sexualidade (Boris, 2002, p. 378).
Ensejando a perspectiva do supracitado autor, acrescenta-se, por fim, que ao
abordar aspectos concernentes à subjetividade masculina dos bombeiros, vislumbra-
se, por exemplo, o contexto social de trabalho, no qual estão inseridos, como agente
de construção do processo de identificação de gênero dos bombeiros.
59
3. Análise e Discussão dos Resultados
Vou criar o que me aconteceu. porque viver
não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar
sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não.
Criar não é imaginação, é correr o grande risco de
se ter a realidade (Clarice Lispector).
Neste capítulo, apresentam-se os resultados encontrados na pesquisa
empírica acerca da vivência do cotidiano de trabalho dos bombeiros e de como estes
experienciam suas relações amorosas, tecendo uma análise à luz da fenomenologia
merleupontyana e discutindo a partir do referencial teórico apresentado
anteriormente nesta dissertação. Este momento, além de exigir um trabalho árduo,
constitui-se como cerne desta pesquisa, pois vida, movimento, à realidade
encontrada, possibilitando a compreensão do fenômeno. Para isso, este capítulo foi
dividido em duas partes que contemplam os achados na observação de campo e
nas entrevistas fenomenológicas.
3.1. A Experiência de Campo
Aquele que não espera o inesperado não o
vislumbrará: permanecerá para ele inencontrável e
inacessível (Heráclito).
O trabalho de campo foi realizado no quartel central, após autorização da
instituição e aprovação do comitê de ética, nos meses de julho e agosto de 2007,
60
ocorrendo duas vezes por semana, com aproximadamente quatro horas de duração
cada visita ao local. As informações que emergiam do campo eram registradas em
um diário de campo, bem como as conversas informais que surgiam a partir da
inserção da pesquisadora.
Minayo (1994) elucida que “o campo representa o recorte espacial que
corresponde à abrangência, em termos empíricos, do recorte teórico correspondente
ao objeto de investigação” (p. 115). Assim, a vivência do trabalho de campo
possibilita a aproximação entre fenômeno pesquisado, objeto de investigação e
pesquisador, sendo esta aproximação um caminho para produção de conhecimento.
Foram realizadas 14 visitas em que o vivido da pesquisadora no campo
sinalizou que cada dia de observação representou uma experiência diferenciada, por
conseguinte, conduzindo esta a um foco de análise predominante em cada dia. Ou
seja, a pesquisadora ficou atenta ao que o próprio campo direcionava e às
possibilidades que emergiam desta realidade.
Como estratégia complementar, a pesquisadora sentiu a necessidade de
observar esse cotidiano do bombeiro, através da ‘realidade da praça’ que fica
situada em frente ao quartel, aqui chamada de “Praça Vermelha”
10
. Pelo vivido em
campo, quartel central, observou-se que a praça parecia ser uma “extensão do
quartel”, contudo, sem os atributos hierárquicos e disciplinares da instituição.
Objetivando uma melhor visualização do vivido em campo, sistematizaram-se,
de forma sintética, as atividades que predominaram em cada dia de imersão,
conforme apresentado no quadro a seguir:
10
Nome Fictício atribuído à praça.
61
Dias
Atividade Desenvolvida em Campo
Dia
Observação exploratória com foco na estrutura física.
Dia
Observação exploratória com foco na movimentação das pessoas civis e
militares.
Dia
Observação exploratória e conversa com o oficial do dia.
Dia
Observação exploratória e conversa com o oficial do dia.
Dia
Observação da movimentação dos bombeiros no quartel e acompanhamento
em ocorrência de combate a incêndio.
Dia
Observação exploratória e conversa informal com bombeiros.
Dia
Observação da movimentação dos bombeiros no quartel e acompanhamento
em ocorrência de combate a incêndio.
Dia
Observação exploratória e conversa informal com bombeiros.
Dia
Observação da movimentação dos bombeiros no quartel com foco no
cotidiano de trabalho.
10º
Dia
Observação da movimentação dos bombeiros no quartel com foco no
cotidiano de trabalho e na rotina envolvida neste trabalho.
11º
Dia
Observação da movimentação dos bombeiros no quartel e acompanhamento
em ocorrência de combate a incêndio.
62
12º
Dia
Observação da movimentação dos bombeiros na “Praça Vermelha” e
conversa informal com bombeiro.
13º
Dia
Observação da movimentação dos bombeiros na “Praça Vermelha” e
conversa informal com bombeiro.
14º
Dia
Observação da movimentação dos bombeiros na “Praça Vermelha”,
observação de uma competição com provas práticas realizadas no quartel, e
conversa informal com bombeiros.
A observação realizada ao longo de dois meses ocorreu como um processo
que equivale a algo mais do que simplesmente "olhar". Na verdade, realizou-se uma
observação fazendo uso dos cinco sentidos, objetivando captar da melhor forma a
realidade pesquisada.
3.1.1. O Vivido da Pesquisadora no Quartel
No primeiro dia de observação em campo, foi priorizada a descrição das
características físicas, estruturais, que compunham o quartel central, unidade de
grande relevância do Corpo de Bombeiros, pois é de onde toda a instituição é
administrada.
O quartel central é composto por um prédio principal e prédios
complementares, onde é feita a distribuição de suas unidades. No prédio
principal, uma fachada imponente, com um desenho arquitetônico que
sugere ser de estilo barroco, e construção datada de 1934; tem cor
predominantemente vermelha e detalhes amarelos; fuzis colocados em sua
entrada; três mastros com bandeiras do Brasil, do Ceará e de Fortaleza.
Dois bombeiros ficam em postura de prontidão, logo após a larga porta de
63
entrada do prédio. uma escadaria com tapete vermelho que dá acesso
ao primeiro andar do prédio, onde se localizam as salas do comando geral,
do subcomando e suas respectivas assessorias. Os bombeiros, praças,
que ficam na guarnição da entrada observam o fluxo de pessoas, dão
informações à bombeiros e civis que vão ao quartel para resolver alguma
questão, bem como controlam e pedem a identificação de quem segue em
direção ao primeiro andar. Do lado direito da porta de entrada do prédio
principal, fica a assessoria de imprensa, a comissão de licitação e a
coordenadoria de atividades técnicas; esta tem uma entrada e saída
independente. Seguindo no corredor, ao lado da escadaria, chega-se a um
grande pátio coberto onde ficam: protocolo, secretaria geral, almoxarifado,
caixa eletrônico do banco onde são depositados os salários dos bombeiros
e dois cassinos, um para cabos e soldados e um para sargentos e sub-
tenentes. O cassino é um espaço informal, reservado para assistir
televisão, entre outras coisas. uma enorme torre para treinamento na
área descoberta do pátio, bem como viaturas (carros de serviço
operacional) estacionadas em posição estratégica para saírem para alguma
ocorrência tão logo sejam acionadas. Nesta região onde ficam as viaturas,
existe um prédio de dois andares, onde os bombeiros que estão de plantão
ficam alojados. Este alojamento é estruturalmente divido para oficiais e
praças, bem como o banheiro e o vestiário. Já no final do terreno do
quartel, encontra-se quadra de esporte, capela, setor de saúde (Vinheta).
A partir da descrição física feita acima, é possível verificar que o prédio do
quartel central vem imbricado pelas características institucionais, com uma realidade
militar bem evidenciada em aspectos hierárquicos, por exemplo, nas divisões do
espaço físico feitas segundo patente. Acrescenta-se que não nenhum julgamento
64
de valor, mas uma constatação de aspectos que caracterizam este cotidiano dos
bombeiros, mesmo que estes aspectos a princípio poderiam parecer detalhes, na
verdade, contudo, constitui a realidade de trabalho na qual estão e são por ela
enraizados, segundo Merlaut-Ponty (1994).
Neste contexto físico, algo chamou a atenção da pesquisadora, conforme o
relato a seguir:
Percorrendo o corredor, no primeiro andar do prédio onde ficam os
alojamentos dos bombeiros, avista-se uma frase em letras maiúsculas, na
cor vermelha, escrita na parede de cor amarela do prédio principal, parede
esta que fica de frente aos alojamentos dos bombeiros que estão em escala
para serviço operacional; a frase é a seguinte: “A palavra covardia não
existe no dicionário do bombeiro”. (Vinheta)
Esta frase impactou profundamente a pesquisadora, trazendo uma série de
reflexões acerca desde bombeiro, de sua subjetividade e das representações
criadas e sustentadas por eles próprios. Sim, por eles próprios, pois a instituição e
os bombeiros se constituem mutuamente. Desta experiência em campo produziu-se
a seguinte versão de sentido:
Fico pensando como se sentem aqueles bombeiros que ficam em
conversando naquele corredor de frente para uma frase que os impele a
ver-se de forma forte e corajosa. Causa-me curiosidade em saber o que
estes bombeiros entendem por covardia e que tipo de padrão de
comportamento é esperado de alguém que não conhece essa palavra. E
estes sujeitos atravessados por uma suposta ausência de covardia em seu
cotidiano, como vivenciam suas vidas fora daquele ambiente de quartel?
65
Como a subjetividade masculina desses bombeiros se constitui com a
presença desses valores e crenças em torno deles? Sinto essas
inquietações e acredito que são fruto desta minha imersão neste contexto e
do sentimento empático que criei para com os bombeiros.
Explorando um pouco mais esse contexto e as representações acerca do
bombeiro, verificou-se que há uma atribuição a este do papel de herói:
Ao chegar para fazer a observação hoje, deparo-me com uma enorme faixa
de pano, de cor branca, pendurada em um poste, em frente ao quartel, com
a seguinte frase: “Bombeiros, nossos heróis anônimos”. Converso com um
bombeiro que está de serviço, ele me explica que eles “são chamados de
heróis anônimos pela população” e que aquela faixa havia sido
“confeccionada e tudinho e tal pela senhorinha mesmo que parece que o
filho foi salvo por um de nós sabe?” Percebo claramente o sentimento de
orgulho daquele bombeiro, e como eles ficam fascinados por esse lugar que
a população os coloca. (Vinheta)
Essa questão do bombeiro como herói foi corroborada com o seguinte fato:
Cheguei para fazer a observação de campo e já sou abordada por um
bombeiro e um civil que trabalha na instituição, ambos demonstram
interesse em me ajudar com minha pesquisa de mestrado. Falam-me sobre
o material existente no quartel e a disponibilidade deles em facilitar meu
acesso a documentos, livros e revistinha. Acabo de receber uma pilha desse
material, folheio cada item e deparo-me com uma colorida revistinha em
quadrinho do super-herói dos bombeiros, o capitão tocha. Esta
revistinha é uma iniciativa de um civil, possui distribuição gratuita e traz
66
histórias com vilões, crianças, cidades em perigo e bombeiros; estes no
papel de super-herói lutando para resolver o problema e salvar a todos. De
fato, a existência e a circulação desta revistinha em quadrinho ensejam
mais uma vez na crença do bombeiro com habilidades heróicas e um
cotidiano de trabalho como palco para o exercício de suas missões: vidas
alheia riqueza a salvar”. (Vinheta)
Parece que, de maneira geral, a idéia de herói é validada e incorporada pela
instituição, haja vista a existência de uma revistinha em quadrinho, prefaciada por
suas autoridades, com os bombeiros como protagonistas e com nomes de super-
herói. A verificação desta realidade corroborou, inclusive, com o fato do título deste
estudo trazer a palavra “herói”.
3.1.2. O Vivido da Pesquisadora na “Praça Vermelha”
É preciso, por enquanto e até segunda ordem, duvidar
atrozmente, não propriamente da existência, que está ao
alcance de qualquer um, mas da agitação interior e da
profunda sensibilidade das coisas, dos atos, da realidade
(Antonin Artaud).
A praça aqui não se vista apenas como um lugar público, mas como um
lugar onde bombeiros experienciam múltiplas experiências.
Hoje é um dia de observação que parece um atrevimento meu, enquanto
pesquisadora, como se não bastasse, realizar observação participativas e
entrevistas fenomenológicas, estendi minhas observações para além do
67
ambiente quartelar. Acredito que fazendo isso trarei informações ricas ao
estudo, informações estas que o quartel, por ser outro contexto, não me
dará. Senti-me saindo do lugar comum, do óbvio, e encarando outras
realidades, como a da praça, como constituintes do cotidiano dos bombeiros
e, portanto representativa, onde muito eu poderei aprender (Versão de
sentido).
A idéia de realizar parte da observação de campo na praça, não se revelou
nada simples:
Em meu primeiro dia de observação estou sentindo uma dificuldade muito
grande com relação ao meu papel como psicóloga poder se misturar com
meu papel como pesquisadora, uma vez que eu optei por realizar a
observação de campo a partir da realidade da praça, pois este ambiente me
parece uma extensão do quartel, um território com múltiplas funções, como
a realização de alongamento, exercícios abdominais, caminhadas,
encontros amorosos,familiares e de negócios. Os bombeiros que vão
passando me cumprimentam e seguem suas atividades. Como eles não têm
conhecimento do que eu estou me propondo hoje, temo que seja encarado
como um momento de lazer na praça, contudo percebo que é uma realidade
riquíssima para minha pesquisa. (Versão de sentido)
Logo a “Praça Vermelha” começou a revelar seus significados e as
experiências que os bombeiros nela vivenciam. O trecho a seguir traz à tona
aspectos da vida financeira dos bombeiros, como o hábito de alguns em pegar
empréstimo com agiotas, o que parece ter atraído essas pessoas que emprestam
dinheiro a juros, para os bancos da praça, com regularidade.
68
Acabo de passar por uma situação impactante e reveladora. Ao observar o
movimento dos bombeiros pela praça, um BM pára para conversar comigo,
um outro companheiro da mesma unidade que vai passando em direção ao
quartel pergunta: Ei, cara tirando empréstimo com agiota?” O BM então
explica que estávamos apenas conversando. Fico surpresa com a
representação que têm a praça. O que levaria alguém a deduzir tão
rapidamente que um BM conversando com um civil se trataria de
empréstimo?!? Que acontecimentos ocorrem nessa praça?!? Qual o
significado desta para os bombeiros? Tenho a sensação que estou olhando
através do melhor ângulo... (Vinheta)
Após este dia verificou-se a presença de bombeiros em negociação com civis:
Estou sem saber em que direção olhar, pois de um lado observo o encontro
de um bombeiro com uma moça, ambos conversam com os corpos muito
próximos, ela gesticula com freqüência, passando as mãos no cabelo, o
bombeiro por sua vez, se mantém mais contido, com menos movimento e
olhando para as pessoas que circulam na praça Do lado oposto, um
bombeiro verifica uns papéis pequenos, e os entrega ao senhor que está
sentado. Em conversa informal com um bombeiro, ele me relata que hoje
havia uma pessoa que empresta dinheiro a juros na “praça vermelha”,
fazendo cobranças a bombeiros. Fico surpresa com os fatos que assisto
hoje, sentada no banco da praça, que parecem narrar duas realidades
desses “heróis”, um encontro amoroso que dava a impressão de ser “as
escondidas”, cercado de mistério, e uma vida financeira com sérios
problemas. (Vinheta)
69
3.2. A Análise Fenomenológica
Natureza da gente o cabe em certeza nenhuma
(Guimarães Rosa).
A partir das entrevistas realizadas com sete bombeiros militares, todos do
sexo masculino, buscou-se ter acesso ao mundo vivido destes bombeiros. De posse
do texto nativo, entrevistas transcritas na íntegra, iniciou-se o trabalho de leitura
minuciosa e profunda destas, o que possibilitou a identificação dos sentidos
emergentes que marcavam o discurso de cada sujeito colaborador, atentando para
aspectos convergentes ou divergentes entre eles. Esta etapa possibilitou a emersão
de agrupamentos, seguindo os significados identificados, os aspectos relevantes e
as temáticas que estavam em conformidade entre si; tendo em vista a vasta
abrangência dos temas centrais, cada um deles foi dividido em subtemas,
possibilitando assim uma melhor sistematização da análise e da discussão dos
resultados.
Cabe acrescentar que sabe-se que existiriam inúmeras maneiras de agrupar
e apresentar os achados empíricos, contudo, através do vivido da pesquisadora ao
longo deste estudo, a forma que pareceu apresentar maior coerência foi a seguinte:
A vivência do cotidiano “heróico”
Alegorias que compõem o “herói”
As dificuldades do cotidiano do “herói”
A vivência do serviço operacional
As estratégias de evitação do sofrimento do cotidiano
Sentidos atribuídos ao medo
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Os ricos do “ser herói”
A recompensa como experiência ambígua
A “homenização” do “herói”
O fenômeno das relações amorosas dos bombeiros
Os “múltiplos contornos” das relações amorosas
O “ser homem” interferindo no vivido amoroso
A interface entre as relações amorosas e o cotidiano de trabalho dos
“heróis”
As relações amorosas atravessadas pelo cotidiano de trabalho
O “herói” em dois mundos
A percepção da vivência amorosa dos “heróis”
Adiante os temas centrais e seus respectivos subtemas serão explicados e
densamente analisados. Visando a uma compreensão das falas dos sujeitos
colaboradores, em vários momentos, julgou-se pertinente a apresentação de trechos
mais longos da transcrição das entrevistas. Uma outra estratégia metodológica
utilizada foi destacar algumas partes do discurso dos colaboradores que favorecesse
a ampliação do olhar sobre o fenômeno pesquisado.
3.2.1. A Vivência do Cotidiano “Heróico”
Este tema central apresenta a vivência de cada bombeiro em seu cotidiano
revelando suas distintas experiências e desvelando a riqueza existencial destes
“heróis” que trabalham para a sociedade. O vivido no cotidiano de trabalho por parte
71
dos bombeiros aponta para questões de ordem social, cultural, espiritual e
psicológica. De certo, como pesquisadora mundana, o posicionamento adotado vem
imbricado de aspectos para além de uma pretensa neutralidade científica, admitindo,
assim, a presença da subjetividade da pesquisadora ao longo desta discussão.
a) As alegorias que compõem o “herói”
O cotidiano dos bombeiros se revela cheio de simbolismo no que tange à
composição do personagem, do herói.
Segundo Durkheim (2002), “a vida social é possível graças a um vasto
simbolismo” (p.32). A partir desta perspectiva, “herói-bombeiro” advém de uma
conjuntura social, implicando, portanto uma composição simbólica que vai desde o
uniforme de serviço até a sirene da viatura de resgate e salvamento. Sobre isso Lins
(1995) destaca que “sem símbolo, a vida social se debilita e morre ou se
desencadeia selvagemente; por ‘falta de’, se desloca, se acaba, à procura de outras
clivagens e, portanto, de outros símbolos” (p. 15). Os símbolos aqui explicitados
pelos bombeiros parecem constituir, inclusive, identitariamente a atuação
profissional destes.
O uniforme de serviço
Segundo Magnoli (2005), historicamente, o uniforme militar passou a ser
utilizado mais enfaticamente no século XVIII como elemento simbólico da afirmação
da soberania do Estado, e seu uso foi consagrado pelo ‘exército de cidadãos’ da
França revolucionária. Através dos relatos dos bombeiros, observou-se que o
uniforme de serviço continua exercendo um impacto na subjetividade a ponto de ser
72
visto como algo que favorece atuação profissional e que traz à tona o “personagem”
bombeiro. Viu-se ainda que vestir o uniforme apareceu como um ritual que possibilita
a consciência do trabalho que poderá ser executado, incluindo com todos os
artefatos, nos mínimos detalhes, que devem ser colocados, como, por exemplo,
faca, luvas, cinto etc.
E na hora que eu coloco o uniforme, né?... Tem uma coisa muito
interessante aí: na hora que eu coloco o uniforme, eu encarno o
personagem, , vamos dizer assim, você diz assim: “rapaz, pronto, eu
estou de serviço”. Então realmente a gente se prepara pra o pior, tem
até essa questão: rapaz, eu vou logo me preparar pra o pior porque se vier
coisa pouca, melhor, mas se vier o pior, eu preparado”. É até
interessante... Nós usamos esse uniforme aqui, é o de trânsito. E o uniforme
de serviço é aquele de instrução, que você também conhece. ( Conheço. O
seu é o caqui?) É o caqui. Se eu for pra uma ocorrência com esse aqui não
é a mesma coisa. (...) Não é, o é, o é. Você sente como se você
tivesse, sabe... É como se tivesse sem o escudo... O uniforme de
instrução, eu acho até que tem a questão do ritual que você faz, né?
Você vai, veste o uniforme, é uma roupa que lhe uma proteção maior,
existe uma coisa diferenciada. Certo? Se dissesse: “rapaz, você vai pra
um incêndio agora”, com esse uniforme aqui, você não tá confortável,
você não tá confortável. Enquanto se você tiver com o de instrução... Você
bota o cinto de nylon, você bota corda, bota seu gorro, né?... Você veste o
personagem. “Rapaz, agora eu de serviço... Eu posso me levantar, eu
posso me molhar...”. Ali eu vou pra minha casa, tiro o meu escudo, né, o
meu uniforme, tomo banho, vou jantar, e ali, quando eu tiro o uniforme,
eu tiro toda a carga daquele dia (Agamenon).
73
Eu acho que quando você põe aquela farda, aqueles equipamentos de
proteção individual... automaticamente vem, claro que tem aquela
preocupação, mas que vem uma energia diferente(Ulisses).
“Você fardado, você tá de serviço (Jasão).
A viatura e a sirene
Uma outra alegoria que permeia o cotidiano operacional dos bombeiros vem
com duplo contorno, na verdade o carro em que eles saem para executar o trabalho,
chamado de viatura, e a sirene parecem exercer uma função extremamente
importante e diferenciada, na medida em que não apenas alerta as pessoas que
estão nas ruas, mas a eles próprios e compõem o cenário e o imaginário dos
personagens que estão chegando para salvar. Os relatos dão conta dos efeitos
fisiológicos sentidos pelos bombeiros no momento em que se direcionam para a
viatura e escutam a sirene soar.
Quando toca o alerta, que a gente corre pra viatura, chama a viatura,
que a gente recebe as instruções lá, eu fico todo tempo me comunicando
pelo rádio... mando o pessoal lá não desligar o telefone, ficar informando
o que é que ta acontecendo e tal, e eu ali já planejando o que é que vou
fazer, pra chegar e não ficar perdido (Apolo).
Com aquela sirene, todo aquele contexto que é formado ali, você faz a
operação (Ulisses).
74
É uma adrenalina muito grande. Você tem que correr pra viatura, e ligar
aquela sirene e sair (reproduziu o som da sirene). Sai do meio, que você...
Às vezes até escapa, que a pessoa tá no meio e não sai de jeito nenhum, e
você: “sai do meio, sai do meio”, escapa aquele negócio. Mas, aquela
adrenalina de chegar na ocorrência, antes que a pessoa morra, antes que
num dê mais tempo de chegar lá, tá entendendo (Jasão).
Posso dizer que a adrenalina vai em cima mesmo. A tensão é grande
mas... mas cria uma certa ansiedade. Quando você escuta a sirene e vai
ter... Não sabe o que é que ta esperando na frente. (A sirene, ela tem
um... ela traz um sentido pra você da operação?) Traz porque é aquela
coisa né, ela te deixa a mil, entendeu. Ela alerta mesmo, um alerta,
realmente (Perseu).
A população
Ao narrarem o dia-a-dia de trabalho, os bombeiros com freqüência se referiram à
sociedade. O fato de a população aguardar a chegada de uma equipe dos
bombeiros pareceu imbuí-los do senso de suas profissões. O cenário de atuação
destes personagens, composto por um grupo de pessoas para serem ajudadas e/ou
para “assisti-los” em ação, reforça o surgimento do personagem salvador. A despeito
disso, Marshall & Pires (1999) apontam o aspecto sócio-historico-cultural como
sendo algo peculiar dos heróis e que mesmo estando em contínua transformação,
recebendo as cargas de informações e determinações próprias de cada contexto
histórico, o culto de heróis desde sempre esteve investido de um caráter coletivo. Os
relatos abaixo apresentados vêm revestidos da idéia da população como “alegoria”
que legitima o trabalho dos bombeiros e os impulsiona à ação:
75
Mas quando a gente chega, a gente se sente a Xuxa (risos), eu gosto.
Quando a gente chega lá, a multidão olhando pra gente, a gente vê que a
população gosta, aí a gente se sente legal, é muito bom (Apolo).
Algo que você sabe que as pessoas estão naquela expectativa, te
olhando ou então quem ta aguardando, “graças a Deus que eles tão
chegando aqueles que vão nos ajudar de alguma forma”. Então, a gente
vem com aquela... onde que muitas vezes por conta dessa euforia, dessa
energia que te motiva não se sabe de onde né, essa adrenalina que te
vem, baseada na ocorrência, às vezes é um perigo a mais que representa
pra gente, mas você faz a operação (Ulisses).
b) As dificuldades do cotidiano do “Herói”
Como os bombeiros não são heróis na esfera do fantástico, são profissionais da
realidade e com dificuldades reais têm que lidar em seus cotidianos; para além de
monstros espaciais ou seres malignos que sabotam e atrapalham a ordem social, os
bombeiros enfrentam problemas que vão desde o desgaste físico pelo tipo de
serviço que executam até questões relacionadas ao material de trabalho.
Relacionadas à natureza do serviço
Os oficiais dos bombeiros têm que exercer funções burocráticas, além do
serviço operacional; contudo, esta norma institucional muitas vezes representa uma
dificuldade no dia-a-dia destes, pois não consegue contemplar aspectos vocacionais
e nem mesmo escolhas individuais. Vê-se a seguir um relato em que este trabalho
administrativo aparece como uma dificuldade do cotidiano:
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Hoje eu não de serviço, mas eu tenho toda uma parte administrativa,
que muitas vezes traz mais desgaste do que o operacional.(...) É. Porque o
administrativo é aquele, é aquela pancadinha que vai batendo, todo dia
(toc-toc-toc-toc – batendo em algo), todo dia. (...) Ele não vem com o
uniforme, ele parece que impregna no teu corpo. Por mais que… Não tem
nada a ver com o uniforme. Ele tá aqui, ele fica tatuado. Por que? Vou
chegar agora e vou encontrar o fulano, vou começar a reunião resolvendo
um problema com ele. Começar, porque eu nunca vou resolver. Vai
passar meses se arrastando comigo. (...) Administrativo, entra dia, sai
dia, sábado, domingo, feriado, maltratando, maltratando... É como um
ombro machucado que você tem, coisa que você... (Crônico) Crônico. Você
não fica bom nunca. Vo toma um remédio, ele melhora, quando
esfria dói de novo. E esse é o teu dia, esse é o que traz mais
impacto pra tua vida (Agamenon).
Observa-se ainda que, para Agamenon, a atividade administrativa não
representa apenas um desgaste mediante a imersão na realidade institucional, pelo
contrário, ele deixa claro que este cotidiano administrativo “impregna” em seu corpo
como uma tatuagem. Merleau-Ponty (1994) aborda fenomenologicamente a noção
de homem e mundo como aspectos que se constituem mutuamente a partir de
dimensões vivenciais e corpóreas, e o estas dimensões que dão conta de
perceber esta constituição. Guedes (2001) afirma que o mundo entra e está no
homem pelo corpo e este mesmo corpo o faz parte do mundo como uma dimensão
insolúvel, mas plenamente interseccionada à dimensão outra do corpo-mundo (p.
68). Assim, o relato de Agamenon aponta para as dimensões do corpo e das
vivências como sinalizadores desta constituição dele como o mundo do trabalho.
77
Uma outra dificuldade mencionada com relação à natureza do serviço foi o
desgaste sentido pelos bombeiros que atuam como salva-vidas em praia, por
exemplo. Aquiles e Jasão relatam aspectos de ordem climática e fenômenos
naturais, como vento e maresia, aos quais são submetidos na rotina de trabalho em
praia como agentes de um desgaste laboral extremado.
O pior serviço do bombeiro é a praia Você passar 8 horas num sol
quente como aquele ali... (Aquiles).
Tem o efeito colateral. Qual é? É o sol, a maresia. Aquilo tudo desgasta a
pele da gente. Desgasta, a gente vai envelhecendo mais rápido . É tanto
que se você notar uma placa de ferro lá, ela vai enferrujar. Do mesmo jeito,
do mesmo jeito é o rosto da gente, é a pele da gente, vai ficando mais
desgastada e a gente vai se acabando mais rápido. Às vezes a gente
usa um protetor solar, mas nada disso adianta né? (Jasão).
Relacionadas a aspectos hierárquicos
Sabe-se que a hierarquia é algo inerente à carreira militar, e na pesquisa empírica,
segundo o artigo 14 do estatuto militar “a
hierarquia militar é a ordenação da
autoridade, em níveis diferentes (...). O respeito à hierarquia é consubstanciado no
espírito de acatamento à seqüência de autoridade”. O artigo 15 do referido estatuto
ainda afirma que os círculos hierárquicos têm a finalidade de desenvolver o espírito
de camaradagem, em ambiente de estima e confiança, sem prejuízo do respeito
mútuo”. Em contraponto a essa legalização militar, observa-se que este espírito de
estima e confiança não é amplamente alcançado a nível institucional. Na entrevista,
encontrou-se verbalização que ilustra essa idéia:
78
O que nos chateia muito são algumas pessoas que mesmo na profissão de
bombeiro que assumem cargos de chefia e trazem uma certa intranqüilidade
praqueles que gostam de trabalhar. (...) Isso me atrapalha também da
questão da influência, de patente superior, porque eu sou uma patente
menor e influencia na pressão (Apolo).
Ao tratar da hierarquia militar Leirner (1997) tenta romper com idéias
demasiadamente naturalistas, desnaturalizando-a enquanto fenômeno. Para se ter
uma idéia do impacto deste fato social, o autor o coloca como algo capaz de
permanecer estruturalmente estável através do tempo, mesmo quando sofre
mudanças importantes, como a inclusão na estrutura vertical da mobilidade através
do rito individual, ocorrida no século XIX. Contudo as relações humanas não
podem ser planejadas e programadas tal como ocorre com a hierarquia e é
exatamente da ordem do humano que Apolo se reporta, seu discurso não se baseia
apenas em patente, mas na forma como esta é assimilada por alguns e nos
desdobramentos que isto acarreta nos relacionamentos institucionais, sendo estes
desdobramentos uma dificuldade encontrada em seu cotidiano de trabalho.
Relacionadas a equipamentos
Dentre as dificuldades mencionadas pelos bombeiros, verificaram-se ainda as
relacionadas aos equipamentos para segurança pessoal e para atuação profissional.
Como órgão pertencente à segurança pública do estado, observa-se que este relato
dos bombeiros remete a questões sociais e políticas, uma vez que a instituição está
79
atrelada a um sistema; sistema este que nitidamente não tem dado conta das
condições de trabalho deste servidores militares.
A gente tem problemas, tem dificuldades no serviço, por causa do tipo
de equipamento, que a gente não é igual ao SAMU né, em tipo de material.
Tanto de material de proteção como material que a gente tem dentro da
ambulância né, pra atendimento. Então a gente tem nossas
dificuldades, mas graças a Deus sempre a gente conseguiu se sobressair
né (Jasão).
Por mais que o quartel não condições, o estado... Nem nada... Mas
ninguém vai... Recuar ocorrência, deixar de fazer nada, não... (...) porque o
governo não condições, você vai alí na marra mesmo… (...) E às
vezes o que muito estressa, também, os bombeiros… É relacionado ao
equipamento que a gente usa… (Aquiles).
Percebe-se claramente que o discurso de Aquiles traz subjacente a idéia
proposta no hino dos soldado de fogo que diz: “... Para frente, que importa a
tormenta(...). Nem um passo daremos atrás”. Interessante notar que a tormenta,
neste caso, vem da própria estrutura institucional, contudo o sentido de exercer seu
ofício parece não ser comprometido, embora isto pareça estar alicerçado no
sofrimento e no estresse, como o próprio bombeiro se refere. Merleut-Ponty (1994)
afirma:
Estou em uma natureza, e a natureza não aparece somente fora de mim, nos objetos sem
história ela é visível no centro da subjetividade. As decisões teóricas e práticas da vida
pessoal podem apreender à distância o meu passado e o meu porvir, dar ao meu passado,
com todos os seus acasos, um sentido definido, fazendo acompanhar-se por um certo porvir
do qual se dirá, depois, que era a preparação (p. 463)
80
Vê-se assim que a inserção de Aquiles nesta cultura, microssitema, corpo de
bombeiros, e macrossitema, sociedade brasileira, vem atravessada pelos contornos
históricos e políticos que constituem a realidade de seu trabalho e mutuamente sua
subjetividade.
c) A vivência do serviço operacional como efetivação do papel do bombeiro
Este subtema emergiu de forma contundente na pesquisa realizada. Na
medida em que se insere no cotidiano de trabalho destes profissionais, compreende-
se a estreita relação destas atividades ditas operacionais com o hino do soldado de
fogo, no seguinte trecho: “Missão dupla o dever nos aponta. Vida alheia e riquezas a
salvar”. Leva a acreditar que estes militares sentem que a efetivação do papel de
bombeiros não depende como está intimamente relacionada à execução desta
missão dupla. Na verdade, a atividade operacional é considerada a espinha dorsal
da instituição, conforme é possível observar na Tabela 2: Relatório Anual das
Ocorrências, apresentada anteriormente neste trabalho, que aponta os três grupos
de atividades centrais realizadas pelos bombeiros como sendo: combate a incêndio,
busca e resgate e grupo de socorro.
Eu gostava, gostava bastante de entrar dentro dágua, de tirar uma
pessoa de dentro dágua, salvar, saber que eu salvei, como várias vezes
eu fui... Porque e sem a gente, a corporação não era bem vista não.
Sem o atendimento que a gente faz. (O bombeiro operacional)
Exatamente. Sem o atendimento que a gente faz... o bombeiro não era
bem visto não. Porque nós fazemos... (Jasão).
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Sobre a imagem da instituição que Jasão menciona acima, é interessante
notar que na referida Tabela 2, observa-se o destaque dado às operações
realizadas pelos bombeiros ao longo de um ano de trabalho, o que corrobora o
pensamento de Jasão. Os dados quantitativos apresentados na tabela apontam e
destacam a atuação dos bombeiros como efetivação social do papel da instituição.
A seguir os relatos de Agamenon e Ulisses sobre o cotidiano de trabalho
operacional. Embora ambos exerçam funções administrativas, é explicitamente
declarado o prazer que sentem em exercer as funções bombeirísticas propriamente
ditas. Ao contrário do que se supunha inicialmente, tais funções são referenciadas
como uma fonte de satisfação e não de estresse.
Quando eu era capitão, eu queria poder ser sempre capitão. Eu acho
que do capitão pro oficial é a melhor fase que tem porque é a parte
mais operacional. Ele passou vários anos como tenente, aprendendo,
aprendendo, aprendendo. Como capitão, ele é “o cara”. Ele tem
experiência, ele tem discernimento, ele atua, ele vai, ele chega. Então, é o
melhor momento do nosso trabalho. um momento bem operacional.)
Bem operacional (Agamenon).
Hoje em dia eu não minto pra você, não é exagero dizer, de forma
nenhuma, que é uma alegria, uma satisfação quando eu estou de
serviço de combate a incêndio (...) Então, a gente sai, é uma satisfação,
é uma adrenalina, você fica sempre na expectativa, o que pode ser um
simples vazamento de gás como você pode ir pra uma operação de passar
o dia todo, chegar oito horas da manhã, como nós já passamos, e após
terminar a ocorrência quase dez horas da noite (Ulisses).
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d) As estratégias de evitação do sofrimento
Contempla a maneira como os bombeiros lidam com o sofrimento e os
desgastes oriundos do cotidiano de trabalho. Percebeu-se que, em seus relatos,
freqüentemente manifestavam a necessidade e a tentativa de minimizar a carga
emocional e física que a atividade profissional traz. Em vários momentos, os sujeitos
colaboradores faziam referência às estratégias dos companheiros de instituição,
consideram-se esses exemplos importantes para a pesquisa, contudo a organização
didática dessas estratégias será feita a partir da realidade apenas dos sujeitos da
pesquisa. No caso de Apolo, observou-se que ele utiliza múltiplas estratégias para
dar conta desse cotidiano como bombeiro.
A “ciranda-viva da rotina” como substituição e superação
Mas, o que é que traz o estresse pra gente? Você de madrugada, na
sua casa, seu telefone toca, você já sabe que vai ter alguma coisa mais
complicada. Mas também, você vai se acostumando, com o tempo
você vai tirando mais serviços, e acaba entrando na rotina. (...)Vamos
ver uma situação que não teve o resultado que você esperava. Vem uma
frustração, inicialmente, com certeza eu vou chegar em casa, vou tirar o
meu escudo, tirar meu uniforme, mas vai ficar ainda aquele mal-estar, mas
que com mais tempo ou menos tempo sesuperado. Por que? Porque
logo em seguida, daqui a algum tempo vai aparecer uma outra ocorrência
que eu não vou poder ficar me lamentando por aquela que eu não
consegui resolver. Certo? Tudo bem, eu vou passar uma semana: “poderia
ser melhor, poderia ter...”, né? Eu vou citar pra você um caso interessante
83
que aconteceu na época que eu era capitão. Eu fui pra uma ocorrência que
não teve nenhuma vítima, mas que me deixou assim uma marca
interessante. Foi numa, numa, tipo uma favela e quando nós chegamos
o fogo tinha devorado a casa, uma casinha muito simples, tinha uma cortina,
tinha uns moveizinhos, umas coisinhas... E aquilo me deixou assim: “rapaz,
que coisa deprimente...”. Porque tudo que aquela família tinha tava ali.
Era tão pouco e foi embora. E aquilo ali, quando nós chegamos, não tinha
mais muito o que fazer, certo? o que a gente pôde fazer foi rescaldo, o
resfriamento e só. E aquele drama daquela família... Mas não tinha nada pra
gente fazer de concreto. E ali eu fui, passei ainda uma semana, duas
semanas... (Você dizendo que não tinha nada pra vocês salvarem?) Não,
não tinha nada, o tinha mais nada.(...) É, é, é como eu lhe digo, né, as
coisas que marcam, que vão marcando.(...) Mas é como eu digo: tem
algumas frustrações, alguns sucessos, mas logo, logo, ele vai entrar
na ciranda viva da rotina diária, que vai sendo substituída por outras,
né, outras emoções... (Agamenon).
A religiosidade como “remédio”
Porque eu vejo o seguinte, doutora: cada um de s tem uma maneira
diferente, certo, de dissiparmos aquilo que nós acumulamos na nossa
vida cotidiana. As tensões, as cargas negativas, energias negativas...
Então, vai ter um cidadão que ele vai dissipar isso orando. Vai ter um
cidadão que ele vai dissipar tomando, bebida, qualquer tipo de bebida. Vai
ter um cidadão que vai desopilar, é, dissipar essa energia tendo 2, 3, 4
mulheres, vida sexual... Então cada um tem sua maneira de dissipar, né?
Eu, pra mim eu não acho... Eu tenho certeza, não é achar, eu tenho certeza
eu o gosto de achismo eu tenho certeza que eu dissipar as energias
84
negativas, sobrecargas com o álcool, ou a maconha, lá fora, na prostituição,
eu não acho que isso vá... (Como é que você dissipa?) ... melhorar. Eu
melhoro a minha, a dissipagem dessas cargas, certo, que eu procuro de
forma bem externa não deixar que elas se acumulem e cheguem até aqui...
Mas se por ventura elas vierem, através das minhas orações. Através da
minha religiosidade, que é Deus. Então eu não encontrei um outro
medicamento, digamos, né, entre aspas, né, melhor que esse. Não
existe (Zeus).
A família como “agente” desse processo
Além das minhas orações, eu tenho a minha família. Porque se eu não
transfiro cargas negativas daqui de fora, do mundo externo, mundo da
caserna, pra eles, tá certo?... E muitas vezes eu chego em casa e já procuro
é solucionar algo que errado, procuro dar uma apoio pra um, um apoio
pra outro... Então, o que é que acontece? Eu vou ganhar, certo, uma força
positiva... E eles, dentro do meu lar, minha família, minha esposa,
meus filhos, são agentes coadjuvantes pra que isso aconteça. (...)e
estão me auxiliando sem saber que me auxiliam e muito. E muito
(Zeus).
Sempre que eu chego em casa, eu não procuro conversar o que
acontece no serviço. Porque geralmente, tem certas coisas que trazem
depressão, lembrar que você tem filho, mas tem coisas que a gente não
consegue segurar. Ela que a gente ta muito calado, eu conto pra
ela, é uma forma de desabafar. Eu não conto pra ela aquela situação de
uma criança sendo arrastada por carro, por moto... (Apolo).
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A priorização das técnicas de ajuda à vítima como negação da emoção
Quando a gente chega numa ocorrência, dependendo da gravidade da
situação, eu procuro, eu me sensibilizo, eu sou uma pessoa que me
sensibilizo muito, principalmente quando vejo pessoas que tão
sofrendo, familiares, a gente procura, mas a gente sabe que, tem que ter
profissionalismo e chegar rápido e solucionar aquele problema, porque
ali corre o risco da vida de alguma pessoa. Então, a gente procura tratar
com profissionalismo, mas a gente sente, sente o sofrimento das
pessoas. Eu particularmente sinto, eu procuro conversar com a pessoa;
“olhe não se preocupe que vai dar tudo certo”, eu procuro de alguma
maneira dar uma injeção de ânimo, eu procuro não transmitir pra vítima a
gravidade do problema e procuro conversar bastante com ela, conversar
sobre outras coisas. Tem o procedimento que você tem que levar em
conta, mas você sente (Apolo).
a gente tem que estabilizar a emoção da gente pra poder fazer um
bom trabalho e tentar levar aquela vítima, ela viva até o hospital. Dar
uma sobrevida a ela até chegar ao hospital. Porque se a gente chega
emocionado... se se emocionar, a gente num faz nada. Porque eu vi
isso no SAMU. A mulher olhou: “Ô meu Deus, o bichim morreu”. Eu peguei
olhei pra ela: “Minha senhora, morreu, morreu. Vamo atender o vivo”. Era o
irmão da criançazinha. Quer dizer, aquela parte emocional a gente já tem
que esquecer. Dei graças a Deus nunca atender um familiar meu. Porque
eu acho que a minha emoção, ela ia passar do limite. Porque eu sei
atender você, sei atender qualquer pessoa. Mas, se for um familiar
meu, eu entro em pânico (Jasão).
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O trabalho como fuga
Eu acho que a minha forma de não parar pra ficar me preocupando
muito e agir, é a forma de eu me meter no trabalho. tem outros que
procuram beber o final de semana todinho, todo final de semana tão
embriagado,. É uma forma de fuga, às vezes. Eu fujo no trabalho (Apolo).
O sono como aliado
Ah, quando eu chego em casa eu chego cansado, chego cansado, chego
exausto. Porque a gente é um bombeiro que trabalha aquartelado, sai
pra ocorrência. (...) quando a gente termina no serviço, mais ou menos
doze horas, a tendência da gente é chegar em casa, descansar, tomar um
banho, botar a cabeça no travesseiro, dormir um pedacinho, pra ver se
aquela adrenalina todinha, aquela exaustão todinha acaba, pra meio
dia a gente se acordar e ta pronto pra outra (Jasão).
e) Os sentidos atribuídos ao medo
Ao longo das entrevistas, os bombeiros relataram ocorrências em que
participaram, e o cenário parecia ameaçador, como sugere o hino mencionado
anteriormente, particularmente quando diz: “num incêndio horroroso e dantesco, a
cidade parece queimar, mas não temem da morte os bombeiros quando ecôa
d'alarme o sinal”. Assim, questionou-se se eles sentiam medo, e as respostas foram
afirmativas, mas sempre dando um sentido a este medo. A maioria deu uma
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conotação de proteção, como se o medo funcionasse como recurso de defesa e
alerta do perigo. Outra questão a ser analisada é o fato de o medo, algumas vezes,
aparecer ao final da ocorrência, quando o bombeiro pensa o que, onde e como
executou aquela operação.
medo às vezes não na hora. Depois que passa, né? Eu sinto muito
assim, em dois momentos: quando chegando, que tem a noção do risco,
e quando acabou tudo, que você olha pra trás e você viu o risco. Eu acho
que na hora, você com aquela adrenalina, com o sangue quente,
você pode até se rasgar, se cortar, se quebrar todinho, você na luta,
né? E na hora você não consegue parar pra pensar nesta situação. É
muito antes, assim que chega, e principalmente depois... (Agamenon).
Olha, se eu dissesse pra senhora: “bombeiro não tem medo, eu não
tenho medo”, eu estaria sendo um hipócrita. certo? Taria sendo um
hipócrita. Por que que eu estaria sendo um hipócrita? Quando nós somos
acionados para uma ocorrência, a primeira coisa, que a senhora escuta
aquele toque, o seu coração, ele bate mais forte, mais rápido, pupupu, e a
sua adrenalina sobe. (...) Quando você vai que você se depara com
aquele teatro, você sente medo. Às vezes você sente medo. Medo de
você demorar no atendimento, e ela vir a perder a vida. Medo, por
exemplo, fazer uma escalada numa torre pra se resgatar um suicida, você,
com certeza, você, certo? Você... Medo às vezes de não atingir o seu
objetivo... (E medo pela sua vida?) Aí, fica difícil! (Zeus).
É um sentimento normal, é um sentimento normal medo, agora o
descontrole do medo é o que a gente não pode deixar (Apolo).
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O medo, ele na dosagem correta, ele é uma prevenção. (Sente medo,
Ulisses?) É, como eu te falei, quando a gente for pra uma ocorrência e você
se depara com aquilo tudo, sente um temor sim, mas quando você
vai conhecendo o que é que você ta realmente trabalhando (Ulisses).
É como diz, a gente tem que ter um pouquinho de medo, né? Pra você
não ir muito afoito, ? E aquele medo ali é que vai lhe sua
segurança. Você nunca pode ir 100% assim porque você acaba
esquecendo de alguma coisa, acha que sabe tudo... Tem que ter um
pouco de receio (Aquiles).
Às vezes um pouco. Às vezes... assim, as vezes, o teste da
sirene já... entendeu...já fica. Você imagina um acidente de grandes
proporções, que pode acontecer no aeroporto, é complicado, entendeu?
Tanto pra... porque você vai pensar nas pessoas que vão ali. Como com
a sua segurança também (Perseu).
f) Os riscos do “ser herói”
O Bombeiro Militar em seu cotidiano de trabalho com freqüência põe sua vida
em risco para salvar a vida de terceiros e para defender bens públicos e privados da
sociedade. Sabe-se, portanto, que o risco é inerente a sua profissão. Na realidade, a
vida militar de maneira geral pressupõe essa exposição ao risco, conforme prevê o
Estado Maior das Forças Armadas: “o exercício da atividade militar, por natureza,
exige o comprometimento da própria vida” (Brasil, 1995, p.11). Os bombeiros são
cotidianamente confrontados com esta idéia. A seguir, relatos de todos os
colaboradores:
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Depois que você olha, a gente podia ter ficado ali, a gente podia não
voltando agora, a gente podia não ter...”, né? Então depois que o
sangue esfriando a gente pensa no que passou.(...) meu Deus, e se
tivesse soterrado e eu tivesse ido também? Começa a bater. É um receio,
não sei por que cargas d’água, a gente sabe que é importante, sabe que faz
mesmo, mas coisas que você não imaginava... Do risco que você corre
(Agamenon).
O empolgamento, o senso de salvar é tão grande, que você ali esquece
que é humano também. Esquece que é humano... Por alguns instantes,
você esquece que é humano. Depois, quando aquela adrenalina baixa,
quando você conseguiu o êxito, quando você viu aquela vida salva, quando
você perto, você olha para trás: meu amigo, eu fiz isso? Eu fiz
isso? (Zeus).
Porque eu acho que você entrar no fogo, entrar dentro de um mar pra
resgatar uma vida, você como ser humano limitado, sabe, você de
tudo ali pra resgatar a vida, pra tirar aquela pessoa dali, fazer massagem
cardiorespiratória, se arriscar. (Você se arrisca muito Apolo?) me
arrisquei, me arrisquei muito, corri risco de vida, mas graças a Deus eu
consigo superar (Apolo).
Porque eu penso assim: se eu for tirar serviço, eu vou me enrolar, eu vou
morrer, vai acontecer alguma coisa comigo. Então eu prefiro pagar, eu
prefiro pagar e deixar outra pessoa tirar meu serviço e eu ficar no meu
serviço paralelo lá. Porque não vai acontecer nada comigo. Pode até
acontecer, porque a gente não tá livre de nada. Mas, aqui é mais perigoso.
Aqui a possibilidade de acontecer alguma coisa com a gente é 90% .
90
no meu serviço paralelo é 10% só. (...) Aqui eu peão. Eu trabalho pra
população, eu trabalho pela sua vida, dando minha vida pela sua vida
(Jasão).
Aquele bombeiro que ta realmente fora de casa, se despedindo da família,
seja quem for, e não sabe se volta, como muitos companheiros nossos
aí. (...) Quando nós saímos às vezes a de casa que vamos pra uma
ocorrência, tem aquele negócio, você pode ir pra um fogozinho no muro,
tocaram fogo e chamaram a gente pra apagar, como você pode ir pra uma
coisa e nem voltar mais, como aconteceu com alguns bombeiros ou foi
pra uma ocorrência encontrou aquela coisa ou outra..., o cara se queimou
todinho... (...) Muitas vezes a preocupação do que pode vir a acontecer
contigo, porque às vezes você pode estar numa ocorrência que
aparentemente pode parecer um simples incêndio e de repente tem ali
um gás tóxico que você venha a ingerir e infelizmente falecer. Muitas
vezes você não tem o conhecimento químico suficiente pra saber se a
reação da água com aquelas substâncias causam explosões, como já foram
em algumas ocorrências, e a água em contato com aquela substância se
torna um ácido altamente que queima, como um colega nosso que veio a
se queimar, mesmo com aquelas botas, queimou o , sorte que não
aconteceu algo mais grave. Então, s estamos sujeitos a tudo isso e
fica o pensamento na cabeça. Como nós chegamos também numa
ocorrência a se deparar com um mundo de fumaça preta, a gente tava
por trás dela e você ter que se jogar pra dentro dela, pra ter que ir
muitas vezes na lama, naquela fumaça, naquele fogo, sabendo que aquilo
ta te fazendo mal (Ulisses).
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você vai salvar a vida de uma pessoa e você arriscado morrer
também. (correm riscos pra ajudar, né?) Corremos demais…(Aquiles).
Agora... realmente dá aquele friozinho na barriga, quando vai pensar poxa,
eu posso não ver mais meu filho”. É, faz parte . A gente num tem
assim... Mesmo porque, assim, se dissesse se eu gostaria de mudar de
profissão. Talvez pelo lado militar. Mas, pelo lado do bombeiro em si não
(Perseu).
g) A recompensa
Os “heróis” conversaram sobre suas recompensas como se fosse uma grande
fonte de motivação profissional. Este subtema apareceu com “múltiplos contornos”,
sendo uma experiência ambígua no que tange à sociedade e à instituição, pois, ao
mesmo tempo que eles se sentem, e valorizam o reconhecimento que recebem por
parte da população, alguns mencionaram o contraponto disso no que tange à
instituição, sendo este fato encarado como uma frustração para alguns, como Jasão
e Aquiles, por exemplo; ao passo que Perseu vê nisso uma forma de manter
despretensiosa a vontade de ajudar e exercer a profissão.
Então, ele vai chegar e vai tirar aquele gatinho de cima de uma árvore e
todo mundo: obrigada...”. E aquilo vai marcar o ego dele. Ele vai
chegar e, tem um princípio de incêndio e aquela família aflita vai
agradecer e louvá-lo. (...) Eu diria que o reconhecimento é fundamental.
Não vai ser só o salário que vai lhe manter. É basicamente o
reconhecimento, é a gratidão da população (Agamenon).
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É uma massagem no ego da gente, porque vai lá, salva uma vida, a gente
sabe que aquela pessoa foi resgatada. Recompensa, o dia-a-dia puxado,
porque não tem dinheiro pra pagar as contas, o agradecimento das
pessoas, isso é muito bom pra mim. (Isso é o que recompensa?) É, pra
mim é, particularmente pra mim é. Porque dinheiro, olha, a gente corre e eu
corro atrás, ta entendendo, e viver de bombeiro eu gosto, é uma coisa, uma
paixão que eu abracei mesmo, pro futuro (Apolo).
me deparei com muitas no meio da rua que pega e chega pra mim:
rapaz, tu é tal do bombeiro? eu pego e digo: sou. Não, é porque naquele
dia tal, meu irmão ia morrendo, ou eu ia morrendo, você me salvou. Isso
gratifica. Não é o pagamento da gente. Mas aquilo de a gente saber que a
pessoa ta viva por minha causa. Aquilo me gratificou muito e me
gratifica até hoje. (É o reconhecimento Jasão?) É, o reconhecimento da
população saber que a gente fez alguma coisa por aquele semelhante né.
E esse paralelo de praia é muito bom. Quando eu vejo alguma coisa em
alguma parte falando sobre o bombeiro, coisas boas. Quando o pessoal fica
elogiando porque o bombeiro fez aquilo, eu me sinto tão engrandecido, que
eu pego, chego pra minha mulher “aí, bombeiro”. Aumento a televisão
todinha e mostro pra ela : “aí ó, foi o bombeiro que fez”, né. E eu gosto
muito da minha profissão, de ser bombeiro. aquilo me gratifica. Pras
minhas filhas, de elas saberem que elas têm um herói dentro de casa,
que elas podem contar a qualquer momento pra qualquer coisa. (Você se
emociona, Jasão? ) Me emociono. É bom demais. A população...
gratifica. Porque pra mim ótimo, quem faz o serviço mais dificultoso, que
é o serviço de dar a vida mesmo, ele nunca é reconhecido por ele doar. Eu
disse pro meu capitão, já disse pra ele. Eu nunca fui reconhecido. o
doze anos. Quer dizer que eu nunca fiz nada pela corporação. Doze anos
que eu aqui. (...) Não eu nessa situação, como outros também tão
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né. E isso vai desestimulando mais o homem. Por exemplo, hoje, eu pago o
meu serviço, eu não tiro, eu não tiro. Eu poderia tirando se fosse
reconhecido. Eu pago o meu serviço, eu não tiro. Eu vejo que nisso a gente
não é reconhecido. Reconhecido todo mundo. O bombeiro todo. Porque 96
% da população gosta do bombeiro. Mas, eu digo individualmente. Porque
que nem nunca bateu no meu ombro: “rapaz você fez isso, você é uma
ótima pessoa tal, gostei, você vai receber uma medalha. Nunca recebi isso.
Mas... E também nunca fui puxado a minha orelha”.Rapaz você errou, fez
isso, aquilo, aquilo outro”. (Esse reconhecimento é muito importante,
Jasão?) Pra nós bombeiro é. Pra nós bombeiro é. Tanto a parte da
população, como a parte do nosso comandante. Porque na população, a
gente fica... enche nosso orgulho né. Eu sei que diz que os humilhados
serão exaltados, a bíblia fala quase isso né. Os humilhados serão
exaltados. Mas, era tão bom a gente receber uma barrifazinha: rapaz você
é um bombeiro bom, você é um bombeiro padrão, não me trabalho”
(Jasão).
É daqui que eu me sinto muito a vontade quando esse
reconhecimento que há por parte da população. Não que eu vá me sentir
o máximo quanto a isso, mas que é uma coisa gratificante, você ter esse
reconhecimento (Ulisses).
Ajudar... Salvar uma vida, né? Não tem coisa mais gratificante, não... a
pessoa lhe agradecendo e tudo... é muito... gratificante... E aquele
reconhecimento imediato. E agradecendo e tudo... Você não espera
nada, retorno nenhum... e você passa a ser reconhecido... Uma vez eu
tava na parada de ônibus, há... Isso foi até domingo. Eu fardado... tinha
uma senhora do meu lado assim... ela perguntou, né? Uma senhora
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já... Só olhando assim pra mim... Da cabeça aos pés... Posso ficar aqui mais
pertinho, eu posso? Pode... Eu me acho tão segura do lado de vocês... Eu
acho tão de vocês... Não tem perigo que aconteça... Você ta no meio da rua
e uma senhora só chegar e... Ficou ali do ladinho como se tivesse protegida
(Como é que você se sente numa situação dessa, Aquiles?) eu me sinto
nas nuvens... Não nem pra dizer, não... A recompensa vem de fora.
Recompensa mesmo não vem daqui não. Quando você trabalha, faz tudo,
né? o é visado... Não tem recompensa... Olha praquele cara alí,
trabalhador... que faz tudo... se for espera por isso aí... (Aquiles).
Essa questão de você saber que pode salvando uma vida, você pode
ta ajudando alguém. Se você não der o máximo não adianta. Assim, tudo
que é positivo né, eu acho que causa um bem estar. O reconhecimento
de... saber que realmente fazendo certo, porque... quando as pessoas
gostam é porque o negócio tá andando bem. (Esse reconhecimento é
importante?) É! (Normalmente esse reconhecimento vem de quem?) Na
maior parte das vezes, da população. Eu acho até que é o melhor. O
melhor. Porque... apesar de que o reconhecimento da instituição traria
benefícios profissionais né? (...) Ia ficar uma coisa muito automática. de
repente eu na minha praia, lá, de férias, vejo uma pessoa se afogando...
pronto, não, vou fazer nada não porque num vai ter mesmo ninguém pra me
ver fazendo, não vai me trazer benefícios... Entendeu? (Perseu).
h) “Homenização” do “herói”
O emprego deste termo, homenização, se deve ao fato de que, analisando-se
as entrevistas, relatos davam conta de situações que fizeram com que os bombeiros
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saíssem de uma posição “heróica” e sentissem a confrontação do caráter humano
de suas existências, humano no sentido de ser vivo, portanto passível de morrer.
Paternidade e Família dando condições humanas aos “heróis”
Agamenon e Apolo relataram a paternidade e a família, respectivamente,
como propiciadores desse “sentir-se humano”.
Eu digo o seguinte: eu tive um diferencial emocional muito grande na
minha carreira aqui na Instituição. Sabe o que foi? Quando eu me tornei
pai. Não sei por que, não sei como, se com os outros aconteceu isso, ?
Mas quando eu me tornei pai deu assim, foi um marco... (...) Nasceu meu
primeiro filho. Assim uns cinco meses depois eu tava concluindo um curso e
a avaliação final era na torre da TVC. vai eu pra TVC. Aquela torre
imensa, entendendo? Eu subindo, subindo, subindo. Quando eu
cheguei em cima, que eu olhei pra baixo: se eu cair daqui de cima? O
que vai ser do meu filho? Do nada, Aline, do nada, do nada surgiu
essa... Sabe? (...)Do nada. Eu tinha subido aquilo ali n vezes, nunca
tinha... Nunca pensei assim: se eu cair daqui o que vai ser da minha
esposa? A minha mãe? O meu pai? Não, nunca pensei. Nunca nem pensei
que poderia cair. Nunca pensei. Podia até bater as asas e sair voando e
tchhhh, sair voando. Nunca me deu. Embora a gente estude, né, se
prepare, minimize os riscos. Mas são coisas íntimas, né, pessoal, não tem
como. Mas tem que ser feito. Nesse ramo de segurança... Vamos fazer. Fiz
exercícios, tudinho. Mas aquilo me chamou atenção, sabe? (...) Embora a
gente saiba que: vai passar? Vai. Vai se criar? Vai se criar. Mas vai ter todo
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um sofrimento a mais, vai toda uma dificuldade a mais. E isso você
começa a refletir (Agamenon).
Eu fico pensando, se eu morrer, deixar minha família (...) Eu o vou
fazer nada de egoísmo não, de arriscar a minha vida como se eu não
tivesse nada por trás de mim não. (...) quando eu vou assumir um
serviço, eu converso com a minha guarnição: “eu não quero heroísmo, nós
somos uma equipe e uma equipe tem que trabalhar junta (...) Eu não sou o
senhor da situação, sou bombeiro igual a você, tenho família em casa,
não quero ninguém herói aqui” (Apolo).
Confrontação com a morte mata o “herói” e dá vida ao “homem”
Eu penso que eu sou humano. Isso eu tentei, aconteceu comigo
muitos anos atrás. Tinha uma senhora que estava acontecendo um
incêndio no apartamento dela no segundo pavimento e o fogo já tinha
tomado a sala por completo. E a gente tinha que descer pela porta dos
fundos, porque ela tava no banheiro; eu tinha que entrar pelo banheiro. Eu
pedi pro cabo, que era meu auxiliar, pedi pro cabo amarrar a corda pra
poder descer e nesse ato de amarrar, não sei o que aconteceu, a corda
soltou. Eu caí, na hora que ia caindo ela abriu a janelinha, eu meti o braço e
me segurei... quem me salvou na verdade foi ela... Eu fico assim
pensando, como eu sou limitado, que as coisas podem acontecer, eu
podia ter morrido. É o que eu vejo aqui sabe, o bombeiro ele morre, e
cedo, ninguém lembra mais. (No começo você sentia herói?) Antes de
acontecer esse acidente. (Então assim, você primeiro na instituição se
sentia esse herói. Esse acidente lhe tirou desse lugar de herói?) Me tirou
(Apolo).
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3.2.2. O Fenômeno das Relações Amorosas
A segunda categoria de tema emergente diz respeito às relações amorosas,
constituindo um fenômeno com vários aspectos a serem analisados e discutidos.
Para isso, dividiu-se esse item em duas etapas, uma em que falar-se-á propriamente
do vivido amoroso dos sujeitos colaboradores e uma outra etapa em que se
abordarão aspectos de gênero e subjetividade masculina ressoando nas
experiências amorosas.
a) O vivido no campo amoroso
De fato este vivido apresenta uma variação considerável entre os bombeiros
entrevistados. É notável a presença de experiências e concepções de
relacionamentos completamente distintas.
Zeus apresentou um discurso que coloca a esposa e a família de maneira
geral em uma posição de extrema relevância, dando uma conotação de harmonia
em seu convívio matrimonial; palavras como afeto, amor, carinho e dedicação
refletem essa constatação.
E a minha vida é o seguinte: é minha casa, meu trabalho, meu trabalho,
minha casa. Tá certo? A minha vida, fora da unidade, dentro do meu outro
mundo, do meu primeiro mundo, né? Graças a Deus que é muito boa, E
aquele negócio, também... Mesmo amor, a mesma dedicação que eu tenho
aqui... E muitas horas até maior, muito maior porque em casa eu tenho 4:
Esposa e três filho. Então, tenho que dividir, me dividir em vários sentidos...
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Então, no mais pra mim... Eu tenho retorno muito bom... E se eu tenho que
distribuir meu afeto, meu carinho, amor, dedicação cum, cum quatro, tem
quatro ser vivo, né? Se eu vou dividir um... por quatro... Tem quatro...
Mandando só... é... o retorno positivo. Então eu o posso me queixar de
maneira nenhuma... (Zeus).
Ao falar de sua vivência amorosa, Jasão tenta explicitar o valor afetivo que
à esposa mencionando o aspecto financeiro como exemplificação disso; parece
sentir que o emprego do seu dinheiro exprime o afeto que tem para com a esposa e
filhos, sem contudo negar que sua vivência afetivo-sexual extrapola a realidade
matrimonial:
E eu sou o tipo da pessoa que o meu dinheiro é pra dentro de casa. Eu não
bebo, não fumo, não jogo bola. Dizer que tenho outros relacionamentos...
fora eu tenho, mas dizer que eu gasto o meu dinheiro com outra pessoa
fora, não. Meu dinheiro todinho quem controla é a minha esposa (...) Eu não
escondo nada dela. Nessa parte... (Jasão).
Ulisses, que também menciona suas vivências amorosas extraconjugais,
encaminha seu discurso no sentido dos desgastes do relacionamento conjugal e
aponta suas relações afetivo-sexuais como uma necessidade a ser preenchida e
que o casamento não consegue contemplar devido ao convívio diário repleto de
desavenças e às constantes discussões entre o casal, provocando, inclusive, um
afastamento entre eles.
Muitas vezes procuro substituir essas divergências, porque eu vou te falar,
eu sou uma pessoa muito extrovertida, muito brincalhona, mas gosto muito
do relacionamento afetivo, daquela coisa, sou uma pessoa romântica e
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muitas vezes não consigo desenvolver esse relacionamento com a
minha esposa. Assim, muitas vezes que eu te digo é o seguinte, na maioria
das vezes eu procuro, até porque é a minha esposa, convivemos a anos
juntos, mas quando não consigo ter esse preenchimento dessa parte
que me falta, vem outras, digamos assim... Outras relações. Das
quais entre essas, não mantenho até o ponto que se pode dar, porque pra
muitas pessoas, se envolver com uma pessoa, como no meu caso, casada
ou com outra pessoa casada é uma coisa um pouco complicada, mas o que
a gente puder tirar de proveito pra ambas as partes, daquele
relacionamento, ou duradouro ou momentâneo, se é feito. (...) Às vezes
que acontece pra não ter esse equívoco, todo ser humano gosta de..., ter
um contato amoroso e não de ficar em um ambiente de constantes
discussões, muito embora muitas discussões familiares, muitas, muitas
mesmo nem sempre são pelo motivo que um diz alguma coisa, são do dia-
a-dia mesmo, um monte de besteira (...) porque na conversa praticamente
se torna um monólogo, ela diz, ela falava a parte dela, eu dizia, eu falava
pela aquela raiva momentânea, que você não ta pensando. (...) Sabe, é um
negócio que se torna corriqueiro (Ulisses).
É interessante analisar o discurso de Jasão acerca da importância da esposa
em sua vida, podendo-se inferir, inclusive, uma relação de dependência e um vínculo
simbiótico e de conveniência.
Eu acho que se eu me separasse eu caia em depressão muito grande.
Muito grande. Minha mulher é minhas perna, minha mão. Apesar de eu
não ser fiel a ela, mas deveria ser, como ela queria que eu fosse. Mas, ela é
minhas perna e minhas mão. Ela é que faz tudo pra mim, ela é que é a
cabeça da casa, que sabe resolver os problemas junto comigo. Ela é que
100
me dá uma mão amiga, ela que acorda do meu lado, que agüenta ver
aquele cara todo dia chato, dormindo do lado dela. E fora não. fora a
gente conhece muitas meninas, e só é até aquele tempinho, que... um mês.
Aí quando, “não, vamo terminar, dá mais certo não”. Então, acabou (Jasão).
b) O “ser homem” interferindo no vivido amoroso
Muitos relatos dos bombeiros se voltam para elucidações, comparações e
conclusões sobre o que é próprio do “homeme o que é próprio da “mulher”. Vêem-
se concepções que impregnadas de valoração de gênero que repercutem em suas
experiências afetivo-sexuais. Como Boris (2002) assinala, esse percurso para
construção de uma “homem” é mais turbulento do que a priori se pensava.
A seguir, Agamenon, Apolo e Perseu falam de suas vivências trazendo à tona
a questão do “calar-se masculino”, apontando para uma dificuldade de falar, de
conversar, de dar voz aos sentimentos; ou para uma opção mesmo de manter-se em
silêncio, ou passivo, como Perseu se refere.
Eu digo sempre pra ela que uma dificuldade bem própria não sei se
do homem, mas minha. É... Se eu pudesse, você não deixaria o seu lar,
sua casa, os seus filhos, ter nenhum tipo de problema, né? Proteger.
Acho que tem bem aberto pra mim que a idéia do homem é de proteção,
de prover, né? A esposa, a mulher, tem mais uma tendência a partilhar, ao
diálogo, né? Discutir a relação, discutir aqui os filhos. E eu não sei se os
homens, mas eu tenho uma tendência mais a... Silenciar. Eu sei que a
questão da partilha ela, você libera seus, né, suas angústias? Alivia. Mas
assim. Resolve? Você tem uma conta pra pagar. Agora, meio-dia. Se você
chegar: minha filha, eu tenho que pagar agora meio-dia, essa conta. Vai
101
aparecer dinheiro? Eu sendo bem objetivo, dando um exemplo assim
prático, pragmático. E hoje eu me sinto muito mais na posição de partilhar,
de compartilhar essas emoções mais por saber os motivos. Por saber
que isso é importante pra ela, eu sinto que importância, interesse,
né, talvez pela natureza da mulher, né, pela natureza. Porque é importante
pra ela e porque vai trazer um problema a menos pra mim. Vai evitar o
que? De que dali ela se chateie, e que dali ela comece a imaginar coisas,
que dali ela venha a questionar mais coisas, né, que vai... (Agamenon).
Eu sou um cara que não costumo reclamar, porque se eu reclamar eu
acredito que eu vou criar mais situações. Eu procuro sempre ter um
conselho sempre comigo que diz assim: um homem não com
palavras, um homem com atitudes”; então, eu fico mais calado, falo
pouco e procuro agir mais (Apolo).
Mas, assim, eu sou uma pessoa altamente tranqüila, em relação a... essa
questão de... como eu poderia te dizer... sou muito na minha certo. Então
quando tem alguma dificuldade, alguma coisa, eu sempre com cabeça
fria entendeu. Às vezes ela tá um pouco alterada, eu deixo passar,
depois ali... tranqüilo... vamo pra resolver né. Às vezes eu nem gosto muito
desse meu lado assim... passivo. Mas, eu prefiro do que gerando um
atrito maior, num resolve nada porque com a cabeça quente. Eu levo
muito pra esse lado assim do... É, vamo dar um... deixar a poeira abaixar e
a gente vê o que é que acontece (Perseu).
102
Uma outra questão acerca da “natureza masculina” foi atribuída por Jasão e
diz respeito à impossibilidade do homem de manter relações monogâmicas, legando
tratar-se de questões de ordem biológica como justificativa dessa necessidade de
manter relações sexuais e, por conseguinte, na dificuldade em ter controle de seus
atos quando o terreno é o da sexualidade.
A gente... por ser homem, ser fraco né, a gente cai na tentação. (E você
falou assim: “é coisa de homem”, como se fosse assim, a questão de ter
relacionamentos extraconjugais fosse da natureza masculina. E que ela
sabe que poderia encontrar uma pessoa pior...) E num é? Num é? É da
natureza masculina. Pode ver que, se tiver uma rodinha de mulher aqui, e
tiver uma rodinha de homem aqui, e passar uma mulher uma mulher bonita
pra caramba, todos os homens olham. Mas, se passar um homem bonito
pra caramba, nenhuma das mulheres olham. É diferente. O caráter do
homem é mais diferente do da mulher (Jasão).
Sobre isso Alves (2005) discute amplamente em sua tese de doutorado,
verificando que a idéia do biológico como fator de distinção entre masculinidade e
feminilidade é amplamente difundida nas literaturas de auto-ajuda, e acrescenta:
Entretanto, esta literatura “vende” uma teoria dentre várias, como “a verdadeira” porque esta
se ancora no físico, tido por puramente real, concreto e determinador, alienado do social e da
idéia de que o que se pode ter dele é apenas uma compreensão (p. 184).
O aspecto da vivência amorosa fora do casamento remontou a várias teorias
que apontam que muitos homens que mantêm relações extraconjugais não têm
103
interesse em se separar e dividem os aspectos afetivo-amorosos dos afetivo-sexuias
(Feres-Carneiro, 1999). Idéia que Alves (2005) corrobora quando menciona que
Considera-se também atributo masculino uma atividade sexualmente intensa, sem
envolvimento afetivo decorrente de necessidades sexuais ou de personalidade, como
exibicionismo ou narcisismo que, por sua vez, delineiam tipicamente masculino um auto-
centramento, expresso na desconsideração para com as necessidades do outro (p. 181).
Nesse sentido tem-se o relato de Ulisses:
se você quisesse me pôr numa sinuca, então, se ela quisesses também
fazer pra preencher a parte emocional, a parte afetiva dela, ela procuraria
um relacionamento, é uma coisa que você teria que entender isso aí, é uma
coisa que você, eu, como eu te falei, às vezes eu o consigo compreender
certas coisas mais cômodas, mais fáceis para mim. Muito embora isso
se confunda e eu não quero, que isso que eu te falei, ao final você chegue a
uma conclusão da minha pessoa, a minha personalidade não ser
influenciada muita por certas atitudes, isso aqui é uma, apenas, não é o
que as outras pessoas das quais eu me envolva não que seja apenas
uma válvula de escape, não, como eu disse, eu tenho, terei, não sei,
relacionamentos que me fizeram feliz naquele momento e também procurei
satisfazê-la feliz e nós tivemos. (Foi uma troca?!?) Uma troca. Pronto,
por que que é uma troca? Porque a pessoa sempre soube que nunca, em
momento algum, eu tive a intenção de manter, de acabar meu casamento,
era apenas uma carência e eu procuro também satisfazer todas as
carências dela, preenchendo o lado amoroso... Eu só comecei a fazer esses
complementos extraconjugais depois de uma certa pressão que chegou a
um ponto..., é como se de uma certa forma eu fosse empurrado, porque
104
as tentações são muitas, estão para chamar você, tirando a ingenuidade,
mas tirando uma certa pureza, um certo aspecto de caráter que você tem,
muito embora eu ache que não é um desvio de caráter meu, eu acho que é
só nesse sentido (Ulisses).
Alves (2005) discute as concepções de masculinidade e feminilidade, e
conclui que:
A masculinidade me parece mais alinhada ao que se tem por atividade típica da conquista; a
atração de parceiros. De tal forma que é, apenas, para a masculinidade que se prescreve o
aprimoramento das habilidades de sedução, principalmente da que envolvem a expressão
direta do desejo, por meio da corporalidade (p. 181).
Dentre os achados da pesquisa, verificou-se a concepção de Perseu, em
contraposição ao discurso de Jasão. Perseu atribuiu as vivências extraconjugais a
aspectos éticos e morais, portanto sociais e oriundos do processo de formação
humana.
Assim, se eu falasse puxando pro lado... por causa de uma questão ética
ou moral. Porque eu não vou dizer eu sou santo”. Eu falo pra minha
namorada mesmo: às vezes “puxa, às vezes dá vontade de dar uma fugida”.
Agora, assim, eu não faço porque aprendi outras, outros conceitos né.
Justamente pela questão, a própria questão de ser cristão. E tentar ser
cristão realmente. Foi algo que também aconteceu na minha vida que foi
maravilhoso . A reconciliação com o cristianismo. E eu acho que falta,
assim... um...talvez... mais sensibilidade com as pessoas que estão em
casa... Porque a gente deixa muito a desejar dentro de casa. Às vezes a
105
gente é mais agradável com as pessoas na rua do que com os próprios
familiares.Porque assim, como culturalmente, culturalmente a gente né,
vive numa sociedade machista fica... é como se fosse algo muito
natural. Essa questão... uma liga pra casa, o outro dá uma fugida pra
tal lugar, então, e vai, e sabe? Eu não me vejo fazendo isso. Não assim,
dizer assim, “ah não sinto vontade de dar uma fugidinha” Eu sinto, mas eu
penso, pelo menos, é... me segurar pra num ser assim, é... um
garanhão. Porque se fosse ao contrário também , eu não iria... eu tento
me colocar muitas vezes no lugar do outro né. Se fosse o contrário? O
que é que eu... Como eu reagiria? Eu iria gostar se tivesse acontecendo
comigo? Então eu levo muito por esse lado (Perseu).
Ulisses também deu voz à questão de ser chefe de família e às
representações que isso tem para ele e para sua esposa.
Não é aquela pessoa de chegar em casa de cobrança, de divertir, de
procurar fazer ela feliz, de chegar e entregar rosas, não é assim também
não, eu faço toda essa parte... Essa questão que eu to te falando das
nossas divergências, é coisa do cotidiano mesmo(...) Muito embora eu não
queira ser esse cara, ela acha que o chefe de família é aquele que bota
os pés aqui, e “faz isso aqui, faz aquilo ali” (Ulisses).
3.2.3. A Interface entre as Relações Amorosas e o Cotidiano de Trabalho
A terceira, e última, categoria de tema emergente aborda a articulação da
realidade de trabalho e das relações amorosas dos bombeiros.
106
a) As relações amorosas atravessadas pelo cotidiano de trabalho
Extremamente ricos e relevantes foram os relatos acerca do atravessamento
dos aspectos do trabalho na vivência dos relacionamentos amorosos.
Agamenon fala com muita propriedade das interferências negativas que a
atividade administrativa traz para sua vida pessoal. Faz, inclusive, uma analogia à
linguagem simbólica que utilizou sobre o uniforme de serviço trazer à tona o
personagem operacional, dizendo que os problemas administrativos do cotidiano
estão para além de estar ou não vestindo o uniforme de trânsito (que representaria a
natureza burocrática do seu trabalho).
Então é um problema que aí, me acompanhando. Independente de eu
estar com esse uniforme, independente de eu chegar em casa... Eu vou
chegar em casa, à noite, eu vou almoçar, e vou estar pensando (cita
exemplos de situações administrativas). Então, tem toda uma questão
administrativa. Por isso que eu digo que essa questão pessoal, ou seja, eu
entendo isso de duas formas: a relação operacional, certo, que quando
eu tiro o uniforme eu encerrei aquele meu trabalho. Então ali... Fechou.
Enterrei. Morreu. E eu vou chegar em casa, vou brincar, e sorrir, e namorar,
sem problema. O administrativo, não. O administrativo eu posso até
chegar em casa, tirar o uniforme e namorar com a minha esposa e na
minha cabeça (cita exemplos de problemas administrativos). Ou de
madrugada eu me acordo pensando: amanhã tem o 7 de setembro...”
Esse é o que me traz mais impacto na questão familiar. É esse, Por que?
Os outros eu chego em casa, tiro a roupa, tomo um banho... Por mais que
me marque, na outra semana aquilo novo de novo. Esse daí, não. É
todo dia, todo dia aquela cantiga... (Quando você diz assim de impacto, é
107
em que sentido?) É o que me deixa deprimido, certo? É o que me deixa
angustiado, ou que pode trazer um estresse, ? E que os outros eu
digo: uma ocorrência, se eu chegar em casa um dia, no outro dia eu
novo, pronto, já esqueci, e no convívio com a minha vida normal, sem
problema. O administrativo não. Tá me machucando (Agamenon).
Cargo e locais de trabalho apareceram fortemente nas verbalizações dos
bombeiros como sendo variáveis com capacidade de impacto extremamente
relevantes. Agamenon fala de um cargo que exerceu por um período e Jasão fala da
atividade de salva-vidas em praia como momentos de importante atravessamento
em suas vidas pessoais e conjugais.
Uma certa vez eu assumi uma função, uns dois anos, e essa função
estava me deixando com os nervos à flor da pele. Me consumindo, me
consumindo. Literalmente, literalmente. E eu não pensei duas vezes:
“olhe, eu vou trabalhar pra deixar essa função”. E a mulher começa a
puxar: o que é? É o trabalho? Não. É não sei o que? Não. É outra mulher?
Não. É não sei o que? Começa a criar mais uma fonte de pressão em cima.
E uma vez eu, rapaz... que digo: minha filha, eu vou resumir pra você o
meu sentimento. Tem uma música do Fagner, né? Diz assim: (cantando)
“Guerreiros são pessoas, são homens, são frágeis/ Guerreiros são meninos
no fundo do peito/ Precisam de carinho, precisam lálálá/ Um homem
também chora, lálálá”. Pronto. É essa a música que eu digo pra mim agora,
sabe? Profissionalmente, né? Eu digo, bom, a minha música agora é essa.
Na verdade, a gente se sente um guerreiro, mas guerreiro também cansa,
guerreiro também se maltrata, também... (Sofre?) Sofre, né? Também...
Chora... Sabe? Agora tudo isso não vai ser pouca coisa, sabe? Você vai
108
acumulando, acumulando, acumulando, acumulando. (...) Mas a música foi
assim: achei! Eu vou dizer: Tá aqui, é isso aqui, minha filha, é por isso. E
realmente foi uma música que ela compreendeu e, né, ficou mais tranqüila
com relação... (Agamenon).
A seguir, o relato de Jasão sobre sua experiência como bombeiro de praia,
mencionando com clareza sua percepção acerca do ambiente de praia para ele e
seus companheiros.
Trabalhava em praia como salva-vidas, e essa função me deu muitos
problemas. Fiquei seis anos nessa função e eu vi que esses durante seis
anos eu... Se eu não tivesse saído da praia, eu tinha acabado meu
relacionamento com minha esposa. Aí, de eu ter visto... quando eu saí
da praia que eu fui pra outra unidade, que eu fui trabalhar de socorrista ,
eu vi que melhorou muito o meu relacionamento com minha esposa.
Porque eu tava trabalhando ali de outro tipo de maneira. Porque na praia
você sabe que o salva-vidas ele é muito assediado. E principalmente
quando ele é novinho e... era seguido né... gostoso, né! E elas ficam muito
assediando a gente (...) Então eu optei em sair da praia, que eu notei que o
meu relacionamento tava meio desgastado, meu relacionamento com a
minha esposa. É a mesma coisa, porque a praia desgasta mais rápido a
gente, acaba. Eu chegava em casa, eu ia pro colégio à noite, eu dormia na
sala de aula, não tinha mais tempo, não tinha mais tipo... vontade de
ter alguma coisa como a minha esposa, porque acha tarde,
desgastante. E no outro dia... Quando é novidade, não. Quando é
novidade você tem... Quando você conhece alguma menina novinha
você tem a maior vontade de ficar com a menina. Mas quando chega em
casa você acabou. Porque? Porque você chega cansado... Desgasta a
109
pessoa todinha. Então eu caí em si. Eu vi que eu tava perdendo a minha
família. Então, eu vou sair da praia porque eu não agüento mais. (...)Porque
na praia você as meninas de biquíni, de fio dental, vai gostando... E
vai o que... atiçando os hormônios do homem. o homem vai ficando:
“poxa, que mulher gostosa e tal e tal”. Aí chega... aí rola né. É muito
comum, muito comum. (silêncio) Eu acho, pra mim hoje... eu não sou
evangélico, mas eu acho que é um antro de prostituição, na praia. Pro
bombeiro. (Pro bombeiro né? ) É. Ele se perde muito. Tem muito amigo
meu deixando o casamento, separado, casado com a menina, não deu
certo, abandonou aquela menina, ficou sem a mulher, sem a menina. Cai de
novo no meio do mundo, da bagaceira e...eu até mesmo, quando eu tinha
até um apelido. Eu tinha um apelido, na praia, que eu não vou dizer o
nome senão o pessoal vai descobrir. Mas, é mesmo. Que eu via assim que
era bonitinha, que era... vira-lata no cio...Pegava tudo! Eu só tive uma
mulher. casei com ela e até hoje com ela. Nunca a gente se separou.
Eu tive dificuldades, de a gente ficar sem se falar dentro de casa, um dia,
dois dias. (E nem você nunca pensou nisso? Ou pensou?) No que? (Em se
separar) Não, nunca, nunca. A minha esposa é minha vida, meus filhos,
minha vida. Por mais que eu tenha uma vida paralela ela fora, eu nunca
deixo nada chegar dentro de casa, nunca deixei. No tempo da praia eu
deixava, porque eu era... mas, ela sempre foi uma mulher esperta, sempre
foi uma mulher sábia, ela é evangélica, minhas filha tudinho é evangélica.
Eu não sou, mas ela, ela foi sempre uma mulher sábia. Ela sabe que se me
deixar, se me perder, ela vai conhecer outro pior. Porque homem é assim
mesmo. Eu nunca bati nela, nunca levantei a mão pra bater nela, nunca bati
nas minhas filhas. Eu tenho uma filha de 14 anos, uma de 10, outra de 7.
Graças a Deus. Sou um bom pai, nunca cheguei bebo dentro de casa,
nunca levei, nunca ela soube nada da minha vida particular fora. Mas...
ah, mentira. Soube uma vez. Na praia ela soube de uma menina. Mas,
110
depois a gente passou até uns quinze dias sem se falar, mas depois a gente
resolveu tudo, ficou tudo na paz. foi então que eu... não, eu vou sair da
praia (Jasão).
O relato de Apolo explicita que a vida de bombeiro exerce forte influência em
sua vida conjugal, denotando a prioridade que dá ao aspecto profissional, apontando
este fato, inclusive, como a causa da separação no seu primeiro casamento.
Às vezes a mulher ficava reclamando em casa porque a gente se faz
mais presente no quartel do que em casa, a gente, agente se preocupa
mais com o quartel do que com a própria casa. (E é verdade?) É
verdade. (E isso atrapalha a vida amorosa, conjugal?) Atrapalha,
atrapalha, porque você tem que tem hora pra isso. Tem até um ditado, do
bombeiro, militar, que ele tem hora pra chegar, mas não tem hora pra sair.
Antigamente, quando o bombeiro ainda era unificado com a polícia militar e
então surgia, vinha ordem do comando e ninguém podia sair do quartel.
Entrava 07:00 horas da minha e ficava até 20:00. Chamava pra função que
era da polícia, a gente ia na favela e tudo. (Apolo) Eu não ligava muito pra
mim, me abandonava, queria saber de bombeiro, mais nada. Mas isso,
atrapalha, o bombeiro ele atrapalha no sentido de que você se
programa, por exemplo, uma férias. Existe um plano de férias, aí as
minhas férias sempre ta pra julho, porque é as férias dos meus filhos. Mas
por exemplo, hoje, foi criado o estatuto, fica a critério do comandante.
Antigamente o, publicava no boletim, você só assinava no livro, dava
tchau pro comandante e ia embora. Hoje não, eu estava de férias agora
em julho, não pude tirar... Eu digo que 85%, 90, bombeiro. Gosto de ser
bombeiro. Eu posso ta em casa, um grande acontecimento, eu to de
folga, visto meu uniforme, pego o carro e vo pra lá. Eu me apresento
pro comandante da guarnição..., aconteceu algumas vezes. (Apolo, e
111
no seu primeiro casamento o seu serviço lhe atrapalhou?) Atrapalhou, ela
não compreendia, não aceitava. Eu posso contar pra você, tudo o que eu
tenho na vida hoje, eu devo ao corpo de bombeiros (Apolo).
O relato a seguir, de Ulisses, enseja a idéia de que a vida militar dos heróis
atravessa suas relações amorosas e, conforme ele explicita, o inverso não acontece,
exceto em caso de doença na família; ou seja, a vivência profissional se sobrepõe
de forma contundente à vivência conjugal.
Eu vivo uma vida, eu posso dizer, que a minha vida profissional
bombeirística hoje, ela está, hoje, um pouco mais equilibrada com
relação ao meu casamento, mas não por questões assim do casamento e
sim por questões de, eu e minha esposa somos pessoas..., é aquela história
de dois bicudos..., é... é... um prego não entra no outro. Às vezes que nós
entramos em divergência e alguma coisa, não fica por conta da minha
atividade profissional e muitas vezes o problema que eu possa ta vindo a ter
no meu relacionamento, a não ser que seja um problema de saúde, ou com
minha filha ou com ela mesmo, não costuma interferir muito na minha área
profissional não. (E o inverso?) Agora quando tem alguma coisa na área
profissional que venha me complicar, mudar o comportamento,
atualmente isso com o desgaste físico né, mas em termos de
relacionamento no ambiente mesmo de trabalho, quando isso acontece,
sim, eu to aqui, mas daqui pra mudar aqui é mais difícil, daqui pra mudar
aqui a coisa pode ser mais... (Então assim, o que acontece em casa não
provoca mudanças no trabalho?) Não. (Mas o que acontece no trabalho
provoca mudanças em casa?) Infelizmente, às vezes você chega, pode
chegar com aquele cansaço, né? Ou até aquele aborrecimento, pra você
tentar dissipar isso, é mais fácil quando acontece de você chegar no
112
ambiente de trabalho e conseguir tirar isso, chegar em casa com uma outra
forma. São assim, cinco ou seis anos que eu não tiro um mês de férias.
Mas pra mim, se eu te disser que no ambiente que eu me encontro
atualmente de trabalho, eu não vou te dizer que não é necessário, você ficar
com a família, tanto é que quando eu preciso, vo precisar viajar pra algum
lugar, eu peço. Um final de semana ou noximo uma semana, mas de
passar um mês todinho em casa eu não tive, não eu, mas também as
outras pessoas que trabalham com a gente. E não pra você se
ausentar um mês (Ulisses).
O uniforme de trabalho aparece mais uma vez como atributo significativo,
que neste caso como elemento de sedução de outras mulheres, permeando o vivido
amoroso.
Então, essa coisa da farda, propriamente militar (...) ela tem esse
chamamento, tem o aspecto feminino, essa atração. Inclusive, por
muitas, desses relacionamentos, digamos assim, que eu tive, foram muito
objetivas. Logo que soube que eu era bombeiro, houve mais, a atração veio
e as histórias que foram construídas em torno desse mesmo tema, o
bombeiro (Ulisses).
eu vendo as palestras todo muito que ia palestra… o foco era a
gente, o bombeiro… E tinha muita mulher no curso… você notava
que… as mulheres... via a farda e tudo… Um negócio daquele ali pro
bombeiro ele se empolga logo ali também… Né? Se não tiver um
casamento ali firme e tudo... Não rapaz... A farda chama atenção. Eu acho
que o quartel em sim com o bombeiro... Não atrapalha não... (Aquiles).
113
Pronto, é até algo que.. a própria sociedade conhece. Às vezes o
homem que usou farda ... fica um atrás né. Eu vejo muito
(Perseu).
Até agora eu o tenho afetado minha vida amorosa não. No Corpo de
Bombeiros o. Graças a Deus, eu tiro o meu serviço, quando não pra
mim tirar eu pago. Eu sou da tirada. E até agora a minha vida amorosa não
afetou né. O bombeiro, o bombeiro em si não. Aliás, melhorou bastante pra
mim... pra mim né. Melhorou bastante minha vida amorosa com a minha
esposa em casa (Jasão).
A prioridade dada à família foi algo marcante no discurso de Agamenon,
Aquiles, Perseu e Zeus; ao falar da importância da vida familiar, automaticamente,
vinha em seus relatos comparações, episódios e vivências acerca do aspecto do
trabalho, como algo nitidamente atravessado, contudo, diferenciado e com escala de
importância claramente estabelecida.
E isso eu converso com os meus comandantes, dialogando de uma forma
bem respeitosa, né, sem prejuízo pra Instituição, mas a minha família é o
primeiro plano. A minha etapa dentro da Instituição chegou ao final: 12
anos eu pegando o boné. Vou embora, né? E é que eu digo: está o
diferencial. O que foi que eu plantei pra minha família? O que é... Eu vou
chegar daqui a 12 anos e encontrar que meu filho tá drogado, que eu
me separei da minha esposa, que meu outro filho não fez nada na
vida? Então, o bombeiro consome 30 anos da sua vida, né? Nesses 30,
vamos dizer que 20 é com a família constituída, 10 era solteiro. Então, 20
anos, se eu deixar de lacuna na minha família, 20 anos, se eu me
114
sujeitar só ao Bombeiros, e se eu adoecer pelo Bombeiros, cabelo
branquinho, morrer pelo Bombeiros, daqui a 20 anos jamais essa
lacuna eu vou conseguir reparar. Então, quando terminar meu ciclo
aqui, eu tenho que voltar pra onde vão me acolher, que é a minha
esposa, meus filhos, meus pais, meus irmãos, certo? Os meus
familiares, que é realmente pra onde eu vou retornar.Os 30 anos que eu
estou na Instituição eu tenho que dar o meu melhor, certo, sem prejuízo
para minha família. Tanto é que eu digo assim: se um dia, por qualquer
motivo, uma coisa grave, dessas coisas graves mesmo, eu tiver que optar
entre a família e o Bombeiros, eu opto pela família. “Olha, o seu filho, sei lá,
ou a sua esposa está doente agora, morrendo e Fortaleza pegando
fogo”. Fortaleza vai pegar fogo. Agora, é como eu digo: uma escolha, qual é
a escolha? Eu não pago o preço de ter uma função que eu vou ser.., que eu
posso ser promovido, mas que vai ter um preço direto na minha família, tá,
direto. Eu por exemplo já abdiquei de fazer viagens pra cursos. Por
que? Porque eu iria passar 2, 3 meses, ou passar 1 ano fora, em outros
estados. Por que? Porque um ano da minha família, um ano na infância
de uma criança, pra mim, é muita diferença. Vários momentos, né? É
uma decisão minha com a minha esposa, bem tranqüila nesse
sentido.(...) Eu jamais me perdoaria se eu tivesse todo o sucesso
profissional, conhecido em cada Corpo de Bombeiros do Brasil e minha
família fosse um fracasso. Também não quero ser chamado: “rapaz, o
cara mais irresponsável do Bombeiros”. Então dá pra fazer as duas coisas.
Priorizando o lado familiar (Agamenon).
Esse ano mesmo houve uma oportunidade, houve, né, eu fui indicado, pra
ir fazer um curso no Rio... (...) Eu falei para o comando: “olha, eu não vou,
115
convoque uma outra pessoa. (...) abaixo de Deus, está minha família.
Então, dinheiro nenhum vai pagar a minha presença ao lado deles (Zeus).
Observa-se, ainda, que, nos relatos de Agamenon e Zeus, ambos mencionam
a recusa em participar de cursos que os afastariam do convívio matrimonial, e
familiar, por acontecerem em outras cidades. Pode-se inferir que este
atravessamento da vida profissional na vida pessoal está de acordo com os limites
impostos por cada um, representando muito mais suas escolhas de vida, uma vez
que para ambos foi questionado se isso impediria o crescimento profissional, e a
resposta negativa foi categórica. Zeus chegou a afirmar:
Muito pelo contrário, Doutora. Pois se eu não tiver minha vida estruturada,
aí sim eu corro o risco de não crescer, sabe? (Zeus).
Aquiles e Perseu abordaram a prioridade à família, fazendo menção às
escalas de serviço e a uma prática muito comum de tirar plantões de serviço extra
como forma de incremento da renda. Este procedimento acontece informalmente e
os acertos o feitos entre os próprios colegas que estão negociando as escalas de
serviço (este dado foi verificado também na observação participante).
Porque eu acho que se ele tiver a sua vidinha mesmo com a sua
família… com o trabalhoeu acho que pra ele… Às vezes até na folga
dele, aparece uma escala extra, uma coisa… alí tira aquela folga dele
ficar com a família, né? tem gente que não vai em casa, né? Passa
de semana dentro do quartel... Eu nunca fui de tirar serviço de
116
ninguém, não... Aí, às vezes, eu vou tirar um servicinho, aqui, hoje... Lá
em casa tá tudo bem em casa... Tudo tranqüilo... eu tiro... Se tiver
tudo sob-controle (Aquiles).
Porque essa questão de você tem que ficar vinte quatro horas fora de
casa, às vezes fica mais tempo né. Tem aqueles que dormem em serviço.
Às vezes tem caso que , de setenta e duas horas. (Tirando serviço?) É. Eu
acho muito complicada essa questão. (Vai quebrando o convívio
familiar?) Quebra mesmo. Porque assim, hoje não, não... a gente pega uma
média de dez plantões por mês. No mínimo. nesse dia eu a fim de
pagar, ou então a fim de trocar. Entendeu. quando tem uma pessoa
que fica três, quatro dias dentro, eu imagino “poxa, será que os filhos
reconhecem ele quando chega em casa, né? (Perseu).
b) O herói em dois mundos
Este subtema surgiu após a análise dos dados, pois em alguns momentos os
bomebiros falavam como se sentissem vivendo em dois mundos. No caso de Zeus,
ele chega a verbalizar abertamente sobre esses “mundos”, parecendo uma
estratégia para não deixar sua vida amorosa, sua família, ser prejudicada pela
realidade de seu trabalho.
No meu caso, eu o costumo trazer problemas do meu mundo familiar, do
meu mundo externo, pra dentro do quartel, como também não levo os
problemas do mundo de caserna pra dentro do meu lar. (Você consegue
117
fazer essa divisão?) Com certeza. A partir do momento que eu retiro os
meus pés de dentro do quartel, ali o limite. Ali, fica ali o que é de
problema daquela área. Quando eu chego na minha residência, tô
pra receber a minha família, de forma que eu não vá ser, não
prejudicá-los no que eu vivi no quartel. E quando eu saio da minha
residência, também o limite ali. Então, eu costumo às vezes brincar, né?
“Rapaz, eu vivo em dois mundos.” O meu mundo civil, particular, o
cidadão Zeus. E existe o outro mundo, o bombeiro Zeus, o bombeiro Zeus,
o militar. certo? Porque uma coisa eu vi, várias vezes: quando você
une esses dois mundos, esses dois ambientes... Unir que eu falo não é a
questão de você procurar conciliar, é você transferir problemas de um para
o outro... (Quando você faz uma ponte...) Isso, pronto, o termo é esse
mesmo, uma ponte. O que que vai acontecer? Você vai cometer
injustiças, erros, ou em um ou nos dois. Tá entendendo, ? Por que?
Veja só, doutora: eu, hoje, certo, tive um problema sério, digamos, dentro da
unidade. Minha esposa, meus filhos, podem não estar nem sabendo. Aí, eu
chego, saio do meu quartel com a minha cabeça... Estourado, desculpe o
termo, né? Cheio daquelas energias negativas, chego em casa, está a
minha esposa, que teve uma manhã difícil também, porque cuidando
dos filhos, cuidando do lar... eu chego, deposito mais carga negativa
sobre ela. O que é que eu vou conseguir? Vou conseguir briga, ou seja,
vou prejudicar o meu casamento (Zeus).
Zeus aponta uma visão dicotomizada, vida civil-vida militar, como recurso por
ele utilizado para dar conta de realidade que, segundo ele, não devem se interligar.
118
Diferentemente, Ulisses demonstra nítida dificuldade em fazer essa divisão e
parece misturar o mundo familiar e do trabalho, como se esses assumissem o
mesmo “contorno”.
Chega ao ponto às vezes até de ser a confundido aqui a minha casa, não
sei às vezes qual a primeira, qual é a segunda casa, devido a esse
tempo todo (Ulisses).
c) As percepções de como os demais colegas conduzem a vida pessoal
Através do questionamento acerca de como os sujeitos colaboradores
percebiam os demais colegas de profissão, os relatos foram repletos de
convergências e divergências.
Eu acho que a grande maioria não consegue se desvencilhar. Eu acho
que a Instituição tem assim uma ação muito forte no mundo familiar.
Muito, muito forte. Por mais que se tente, sabe? Em todos os níveis, em
todos os níveis... (Independente de patente?) Independente de posto, de
patente, em todos os níveis. A Instituição tem uma ação muito forte.
Por que? Você o consegue conciliar totalmente, né? Quando eu sou
cobrado, quando eu sou repreendido com a atitude que eu fiz, por um
superior meu, um chefe meu, não tem como eu chegar em casa assoviando,
cantando, feliz, né? Quando eu não consigo dar resposta a algo que
esperam de mim profissionalmente, não tem como eu chegar em casa
achando que tá tudo às mil maravilhas, certo? Então, e como a Instituição,
eu acho que ela é mais frustrações... O sucesso ele é muito, ele tem
muito, como é que eu diria? Se a gente pudesse quantificar, em um ano
119
você vai ter três situações que você vai ser, como se diz, elogiado, tá, e sete
ou seis que você vai ser mais exigido, mais cobrado (Agamenon).
Olhe, por incrível que pareça, certo, a grande maioria das vezes eu vejo
que não interfere muito. Não interfere. Em alguns casos, sim. Interfere
aqui e, pior ainda, interfere na vida familiar dele. Porque como ele se
desestrutura lá, com a família, as seqüelas são respondidas aqui também.
(...) mas com certeza, nem sempre uma correlação não. Um
camarada fora, ele faz mil e uma coisas, entendendo? ...pra dissipar
essas energias, mas quando ele chega aqui, é um profissional, digamos um
termo lá, indo e voltando.É um público muito diversificado, o Corpo de
Bombeiros. Tá certo? É como eu falo, ó, concurso para Bombeiros, 300
homens. Agora temos mulheres também, né? Nós pegamos esse público
de onde? Da sociedade. É uma amostra da sociedade. na sociedade
nós tivemos, nós tivemos, não, nós temos diversos tipos de pessoas. Então
nós estamos trazendo uma fatia da sociedade pra dentro da
Instituição. Então vamos ter de tudo um pouco. Certo? De tudo nós
vamos ter um pouco. Nós vamos ter o cidadão que tem os dois mundos,
como eu falei, vai viver os dois mundos. Vamos ter o cidadão que ele
confunde um com o outro. Vamos ter o cidadão que se dedica demais pra
um e esquece o outro (Zeus).
Difícil. Tem um índice de separação muito alto. Por que? Porque eles, às
vezes não sei, não entendo. Muitos bebem por influência de outros, ficar se
divertindo, então, eles levam isso muito pra casa... Eu não consigo entender
muito os bombeiros. Tem outros, que o envolvidos com drogas, já
120
ajudei alguns, já arrumei vaga no Desafio Jovem que é do Corpo de
Bombeiros e não consigo entender o porquê, se eles tinham uma profissão,
tinha o salário deles ali por mês, mas ele se inclinava assim, ele faltava o
serviço e chegava embriagado, era um cara até solteiro, vinham no quartel
perguntar onde ele tava; às vezes eu o conseguia entender, psicólogo
mesmo. psicólogo, pra conversar, dar conselho, eu não conseguia... (...)
Muito difícil, muito difícil, muito complicado. É como se fosse um troféu
(Entendi), como ele diz Rapaz, vamo beber um litro de cachaça, três litros
de cachaça.Ontem foram não sei quantos engradados de cerveja." ele
adotou como vida particular aquilo ali. Há um índice de separação por causa
daquilo. Ele não abraça o lar porque é cobrado as responsabilidades, eu
não vejo o bombeiro na vida particular muito responsável não, não vejo não,
muito pouco. Eu posso dizer assim, 5%. Você assim bonitinho,
arrumadinho, mas se for fazer uma pesquisa dentro mesmo
pra vo saber. (...)Às vezes até superiores e pra eles aquilo ali é um
troféu, a vida desorganizada, muitas mulheres, muita bebida, muita
farra, na a hora toda vida de chegar a quinta-feira, a gente tava
comentando isso, não vê a hora de chegar a quinta-feira. Já pagava o
serviço adiantado... Eu não consigo compreender isso aí. (Apolo)
Eu vejo que ainda tem muita, muita... não excluindo eu. Muito problema, o
bombeiro dentro de casa, com a sua esposa. Bombeiro se separando,
muito novo deixando família, largando, pra... deixando a falta da presença
do pai dentro de casa. Porque a família se desestabiliza, é filha daquilo,
daquilo outro. Você não tem mais aquela estabilidade de vida em casa. Eu
vejo que muito bombeiro, ele... ele... ele... se separa da esposa e não
consegue viver em paz com a família. Teve caso de bombeiro que foi
morar dentro do quartel, porque sempre por ser muito raparigueiro, muito
dado, gostar de beber, gostar de pegar mulher e achar que aquilo ali é
121
vantagem pra eles. É vantagem, é bom. É bom, serve pro ego da gente.
Mas, como é que fica dentro de casa, depois que você deixou a tua menina
em casa, vai pra casa... vai pra onde? Vai pra dentro do quartel? Morar
dentro do quartel? Eu acho que tem muito prejudicado, bombeiro que se
envolve, se envolve. E a gente nunca consegue escapar disso né.
assim que você percebe seus colegas bombeiros, a forma como eles
conduzem a vida deles amorosa, pessoal?) Se separam, ou vão morar
dentro do quartel, desestabilizam família. Às vezes, eu tive conversando
com um amigo meu, a cabeça dele não muda, tipo...tipo... como é que a
gente pode dizer? Envolvido emocionalmente... fica...como é o nome que a
gente chama? É... cai em depressão. Eles caem muito em depressão. (E
você percebe essa questão que você comentou dos bombeiros, dos seus
colegas, nesses doze anos você convivendo. Você acha que se deve ao
fato de ser bombeiro?) Eu acredito que sim... Acredito que sim, porque
bombeiro, você usou farda, mulher cai em cima (Jasão).
Nós vivenciamos com pessoas de diversos, digamos assim, diversos
problemas. eu acho que mistura conjugal com não conjugal, familiar com
profissional, profissional com familiar (...) Pessoas que estão todos os
dias tirando o serviço de outras pessoas, como eu te falei, através de
uma remuneração, você vai tirando o dinheiro dos bombeiros, que vivem
aquilo ali diariamente, passa serviço e entra serviço e praticamente são os
mesmos bombeiros que tiram serviço, por conta disso, não porque seja a
escala, mas por conta que tão querendo ter uma renda. (...) Olha, sem
querer assim ser, eu não sei, por incrível que pareça, eu não tenho
conhecimento, eu tenho mais conhecimento mais da vida amorosa aqui no
quartel, nem sempre a parte amorosa deles é no ambiente familiar. Porque
122
dificilmente você traz a sua esposa aqui no quartel, a não ser quando
nós trabalhamos e tem esses eventos, confraternizações, sim vai a
família. (...) Fala mais de uma paquera que arranjou, de uma outra
pessoa que ta tendo envolvimento, mas a dificuldade com a família
agente só vai saber se for uma dificuldade muito grande (Ulisses).
No geral assim... é algo bem... não diria nem na questão de, de vivências
amorosas, mas numa questão de convivências mesmo com outras
pessoas. Porque a maioria são casados, mas deixam transparecer que é
um relacionamento talvez só por... é... convenção (Perseu).
123
Considerações Finais
Só o desejo inquieto, que não passa.
Faz o encanto da coisa desejada...
E terminamos desdenhando a caça
Pela doida aventura da caçada
(Mário Quintana)
Realizar uma pesquisa científica com homens, bombeiros militares, foi uma
concretização de um grande desejo profissional que parecia ser o grandioso
quanto as dificuldades, surpresas, satisfações, inquietações e experiências
encontradas no caminho. Se fosse possível o uso de uma linguagem metafórica para
representação deste estudo, certamente seria a de um desbravador de selva que se
insere em uma mata virgem, de difícil acesso, com uma noção geral da mata, mas
sem ter idéia do que poderia encontrar nos próximos “duzentos metros”, em alguns
momentos sendo surpreendido pela riqueza que via, sentia e vivia ao adentrar cada
pedaço, muitas vezes ficando estarrecido por alcançar uma dimensão que nem ele
mesmo podia supor que existia. Para contentamento de alguns, este desbravador foi
munido de todas as ferramentas que possibilitassem que outras pessoas tivessem
acesso a sua experiência, aprendessem sobre e com ela, e, mais, conhecessem
aquela selva, como se houvesse estado lá.
Sabe-se que a realidade é sempre mais ampla e com particularidades, do que
a que se consegue abarcar em um estudo, por isso, reconhecem-se aqui as
limitações em tratar toda riqueza oferecida pela realidade de trabalho dos
bombeiros, contudo, ao que se propôs inicialmente, compreender a articulação entre
a vida amorosa dos bombeiros e o seu cotidiano de trabalho, verificou-se que o
124
fenômeno das relações amorosas dos bombeiros apresenta-se atravessado pela
vivência de suas atividades profissionais. Evidenciaram-se, portanto, as seguintes
compreensões acerca da realidade pesquisada:
A vivência das relações amorosas, articulada à experiência do cotidiano de
trabalho dos bombeiros, apresentou-se imbricada de singularidades no que tange
aos significados na inter-relação entre os sujeitos, o contexto de trabalho e a vida
amorosa; embora tenham sido verificadas vivências heterogêneas, constatou-se que
de fato uma mútua constituição entre sujeito e mundo. Constatou-se que as
experiências dos bombeiros em unidades de atuação diferentes implicam em
distintas realidades com comandantes, escalas e tipo de serviço. Estes fatores,
aliados à história de vida de cada sujeito na instituição, e à posição que cada um
ocupa na hierarquia militar, compõem e produzem significados diversos nesta mútua
constituição do bombeiro com seu “mundo de trabalho”. Isso parece se encaixar
perfeitamente ao que Merleau-Ponty (1994) destaca:
Assim como a natureza penetra no centro de minha vida pessoal e entrelaça-se a ela, os
comportamentos também descem na natureza e depositam-se nele sob forma de um mundo
cultural. Não tenho, apenas o mundo físico, não somente no ambiente da terra, do ar e da
água, tenho em torno de mim estradas, plantações, povoados, ruas, igrejas, utensílios, uma
sineta, uma colher, um cachimbo. Cada um desses objetos traz implicitamente a marca da
ação humana da qual ela se serve (p. 465).
A análise fenomenológica das entrevistas articulada à observação de campo
permitiu não apenas constatar, mas sentir a cultura militar perpassando
inexoravelmente os bombeiros e suas experiências intersubjetivas.
125
A maneira como os bombeiros vivenciam suas relações amorosas em
contraponto com seus cotidianos de trabalho apareceu circunscrita por aquilo que de
universal compartilham, todavia, pautada em idiossincráticas estratégias para
articular os dois mundos destes heróis , bem como em concepções hierarquizadas
de prioridade e importância da família e do quartel. Sobre essa ótica, Guedes (2002)
enseja a concepção merleau-pontyana de homem mundano, quando afirma que “há
uma dialética sem síntese decorrente da tensão das polaridades, afirmadas em
ambigüidade inerentes à constituição do homem mundano” (p. 75).
O cotidiano de trabalho dos bombeiros apareceu atravessado por concepções
de heroísmo, sendo estas sustentadas pela idéia de salvar vidas, trazendo à tona
atributos, como a coragem, e missão da profissão, “vidas alheias e riquezas a
salvar”, como mediadores entre o homem e o herói. Percebeu-se, ainda, que a
sociedade tem importante papel na construção e efetivação do bombeiro como
herói, haja vista as homenagens que estes recebem por salvamentos realizados.
Através da observação de campo, verificou-se que comumente os bombeiros são
surpreendidos com faixas, escritas frases emblemáticas, colocadas próximo às suas
unidades de atuação, com palavras como: “heróis anônimos”, “heróis da vida real”,
“anjos de Deus na terra”, “guardiões de Deus”, entre outras. Nas entrevistas,
constatou-se também a presença da sociedade na composição dos bombeiros como
heróis, através do discurso dos sujeitos colaboradores ao narrarem suas
experiências de trabalho, sempre enfatizando o reconhecimento que recebem da
população.
É fundamental esclarecer que neste estudo a idéia de ser um herói delineou-
se como uma experiência ambígua, imbuída de múltiplos significados e valorações
126
distintas para os sujeitos colaboradores. Embora todos os bombeiros estejam
inseridos nessa atmosfera que os associa a uma figura heróica, alguns disseram que
não se reconhecem de tal forma, nem concordam com essa concepção de que
bombeiro é herói, buscando, assim, outros sentidos para compreenderem suas
vivências. Apresentam argumentações ancoradas em princípios éticos, morais e
religiosos, justificando que “essa questão de ajudar o próximo deveria ser tarefa de
todos os seres humanos”, “o bombeiro é um cumpridor de suas obrigações”, “é uma
profissão muito próxima de Deus, mas herói, não”. Estes bombeiros demonstraram
certo desconforto com a idéia de serem heróis, revelando que a finitude humana à
qual estão submetidos os tira deste lugar.
Ratifica-se, contudo, os múltiplos significados dados à experiência profissional
ligada ao heroísmo, à medida que vários sujeitos colaboradores parecem de fato se
identificar com o papel de herói, revelando aceitação e introjeção do “personagem”.
A pesquisa revelou que o cotidiano de trabalho dos bombeiros também
funciona como fonte de sofrimento, estando este relacionado a diferentes causas,
mas que de maneira geral parecem associadas a dois principais motivos: realidade
institucional (hierarquia, ausência de reconhecimento), tragédias e misérias
humanas do cotidiano operacional (situações de calamidade e destruição, com as
quais são comumente confrontados).
Os sujeitos colaboradores apresentaram suas estratégias de evitação do
sofrimento oriundo do trabalho como bombeiros. Estas, por sua vez, apareceram de
formas bem diversificadas, fomentando a idéia de pensamento reflexivo e pré-
reflexivo, referido por Merleau-Ponty (1974), que aponta uma existência prévia ao
mundo reflexivo, chamado de campo pré-reflexivo. Neste o “eu posso” antecede o
127
“eu penso”. Se, por um lado, alguns bombeiros parecem utilizar recursos de cunho
reflexivo, através da supervalorização das habilidades profissionais em detrimento
das emoções que o cotidiano do bombeiro evoca; outros, por sua vez, enunciaram
condutas de enfrentamento do sofrimento com cunho pré-reflexivo. Neste campo,
apareceram quatro perspectivas, a saber: A religiosidade, como uma ferramenta
para enfrentamento das cargas oriundas do dia-a-dia de trabalho; bem como as
estratégias fisiológicas, como dormir após um dia de trabalho, as de nutrição afetiva,
como o convívio com a família; e, por fim, a própria rotina que substitui um fato
gerador de sofrimento por outros.
Observou-se, ainda, que alguns bombeiros mencionaram subterfúgios para
não entrarem em contato com os sentimentos, como mergulhar no trabalho.
Considera-se, finalmente, que as relações amorosas dos bombeiros
aparecem atravessadas pelo cotidiano profissional destes, na medida em que, ao
encerrar um dia de serviço, os bombeiros, em sua maioria, não se desconectam da
experiência vivida no trabalho, o que impacta na forma como estes “estão no
mundo”, e, conseqüentemente, nas suas relações amorosas. Além disso, uma
ambivalência entre a concepção que têm do “ser herói” e a forma como
compreendem suas relações, pois, paradoxalmente, vivenciam momentos e crises
amorosas que não estão em consonância com o papel social de “bombeiro herói”,
denotando uma incongruência entre o vivido profissional e o amoroso, e
acarretando, por fim, em sofrimento.
Sabe-se que as discussões travadas neste estudo, bem como as articulações
entre os fenômenos das relações amorosas e do cotidiano de trabalho dos
bombeiros, não têm a pretensão de elaborar conclusões resolutas, inquestionáveis e
128
acabadas. Longe disso, acredita-se que este estudo fomenta a necessidade e a
possibilidade de novas pesquisas e estudos complementares. A partir do caminho
percorrido e dos aspectos nele observados, percebem-se como pertinentes
pesquisas que contemplem realidades específicas relacionadas às patentes
hierárquicas, por exemplo, fenômenos por grupos de uma mesma patente, ou
mesmo estudos comparativos entre patentes. Além de pesquisas que abordem o
cotidiano de trabalho específico por unidade operacional, uma vez que cada unidade
possui uma atividade fim, o que remete à natureza de serviço do bombeiro, como as
áreas de combate a incêndio, socorro e resgate, busca e salvamento; que trazem
particularidades que caracterizam o processo de enraizamento do bombeiro
mundano.
Resta ainda apontar que esta pesquisa também se prestou a alertar a
comunidade, incluindo os que fazem ciência, para fenômenos particulares, ou não;
grupos sociais, como os bombeiros militares. Estes têm ficado à margem dos
estudos e do olhar da ciência. Destarte, este estudo terá alcançado uma
contribuição contundente, se tiver despertado a sensibilidade da comunidade
acadêmica com relação aos bombeiros, heróis mundanos, mas também cuidadores
sociais passíveis e vulneráveis aos inúmeros fenômenos sociais, psicológicos e
existenciais. Acredita-se que a contribuição mais valorosa será por ter se apontado
um campo fértil para novos caminhares.
129
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135
ANEXOS
136
Anexo 1. Escala de acontecimentos estressantes
Leia cada um dos acontecimentos. Circule o valor correspondente a todos
aqueles enunciados que refletem um acontecimento que lhe tenha ocorrido nos
últimos anos.
Para cada fato que aconteceu em sua vida, uma pontuação de 0 a 4, de
acordo com a importância que tenha tido para você, levando em conta a seguinte
classificação:
0 = Nenhuma importância.
1 = Pouca importância.
2 = Importância mediana.
3 = Bastante importância.
4 = Máxima importância.
Valor Importância Total
para você
Morte do cônjuge___________________________ 95
Período de encarceramento__________________ 75
Divórcio_________________________________ 70
Problema legal grave que pode levar à prisão____ 70
Problemas com uso de álcool ou drogas________ 65
Morte de um familiar próximo________________ 60
Lesão ou enfermidade pessoal grave___________ 60
Matrimônio______________________________ 55
Problemas sexuais_________________________ 53
Relação sexual extraconjugal________________ 52
Reconciliação conjugal_____________________ 50
Gravidez_________________________________ 48
Operação/Cirurgia_________________________ 47
Ruptura com a família______________________ 46
Problemas com os superiores no trabalho_______ 46
Morte de um amigo íntimo___________________ 45
Problema com companheiro de trabalho________ 45
137
Valor Importância Total
para você
Chegada de um novo membro na família________ 40
Problemas com as contas____________________ 40
Empréstimos ou prestações superiores ao salário__ 40
Compra de casa____________________________ 38
Disputas com a companheira_________________ 36
Roubo em casa____________________________ 32
Condições de vida insuficientes_______________ 32
Hábitos pessoais desfavoráveis (ritmo de trabalho,
lazer etc.)_______________________________ 32
Insatisfação com a moradia__________________ 32
Início ou finalização de escolaridade___________ 30
Violações da lei___________________________ 24
138
Anexo 2. Tensões no trabalho
Todas as pessoas têm tensões no trabalho, porém, algumas vezes, nos
sentimos enfadados, cansados e improdutivos.
Este teste serve para nos auto-analisarmos e, dessa maneira, ficarmos
conscientes sobre qual ponto está nos afetando a situação de trabalho pela qual
estamos passando.
Pontue cada frase da seguinte forma:
1 ponto – Quando NÃO estiver de acordo.
2 pontos- Razoavelmente de acordo.
3 pontos - Claramente de acordo.
No trabalho, não posso dizer o que realmente penso.
Tenho muita responsabilidade, porém não muita autoridade.
Poderia trabalhar muito melhor se não tivesse na função que estou hoje.
Raramente recebo reconhecimento ou elogio.
Não estou orgulhoso nem satisfeito com meu trabalho.
Estou relegado ou discriminado no meu trabalho.
Meu trabalho não tem sido agradável nem seguro.
Meu trabalho interfere em minhas obrigações familiares e minhas
necessidades pessoais.
Sinto-me injustiçado em muitas decisões no meu trabalho.
Sinto que tenho pouco controle da minha vida no meu trabalho.
139
Anexo 3. Ficha Sujeito Colaborador
1. Nome completo:__________________________________________________
2. Telefones para contato: ____________________________________________
3. Idade: __________________________________________________________
4. Escolaridade: ____________________________________________________
5. Patente: ________________________________________________________
6. Unidade em que atua: _____________________________________________
7. Função que desempenha: __________________________________________
8. Horário de trabalho________________________________________________
9. Escalas de serviço: _______________________________________________
10. Tempo em que está na função / área atual: ___________________________
11. Estado Civil: ____________________________________________________
12. Observações adicionais: __________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
140
Anexo 4. Carta de Informação e Termo de Consentimento
Carta de Informação e Termo de Consentimento
Proposta
Estamos convidando você a fazer parte de uma pesquisa. Este termo de
consentimento dará informações sobre essa pesquisa. Antes que você aceite
participar, você deve entender bem estas informações.
O objetivo dessa pesquisa é compreender a vivência das relações amorosas
de bombeiros militares do Ceará, através do que você tem a dizer sobre esse
assunto, a partir de sua experiência, para, assim, aprendermos com você.
Pedimos para conversarmos na Caixa e Assistência de Pecúlio do Bombeiro
Militar (Capbom). Se preferir, podemos conversar em meu consultório ou em outro
local em que você se sinta mais livre e disponível. Realizaremos 1 (uma) entrevista,
com aproximadamente 30 minutos de duração, e esta será gravada. Será informal,
como uma conversa, na qual s discutiremos sua vida cotidiana, seu trabalho, sua
relação com suas parceiras amorosas, dentre outros temas.
Não diremos a ninguém nada do que será conversado na entrevista. Você está
completamente livre para decidir se quer ou não participar da pesquisa e, caso você
não queira, isso não terá nenhuma influência sobre sua atividade profissional na
corporação.
Riscos e desconfortos
Os riscos de participar da pesquisa o mínimos. Se você não quiser
responder a alguma pergunta, basta dizer que não quer responder. Se você achar
alguma das perguntas desconfortável ou difícil de responder, nós poderemos
conversar sobre isso, interromper a entrevista ou, até mesmo, parar, se esse for seu
desejo, e continuar a entrevista em um outro dia.
Benefícios
141
Esperamos que a participação nesse estudo ajude-nos a compreender o
cotidiano de trabalho dos bombeiros militares e como estes vivenciam suas relações
amorosas. Dessa maneira, esperamos contribuir para uma ampliação do olhar sobre
os bombeiros, bem como para uma possível prevenção de adoecimento
biopsicossocial.
Confidencialidade
Sua privacidade será protegida. Isso significa que seu nome nunca será ligado
às informações que você fornecer. Haverá um outro nome fictício nas cópias das
entrevistas. Somente os responsáveis pela pesquisa terão acesso a esses dados.
Nenhuma informação será dada a terceiros. Seu nome nunca será usado em
escritos ou artigos resultantes desse projeto e todos os esforços serão efetuados
para que as descrições dos participantes não sejam capazes de identificá-los.
Questões
Se você tiver qualquer dúvida sobre essa pesquisa, por favor, entre em contato com
Aline Moita, pelo telefone 88028276 ou pelo e-mail [email protected].
Em caso de dúvidas sobre o aspecto ético da pesquisa, entre em contato com o
Comitê de Ética em Pesquisa da UNIFOR (Av. Washington Soares, 1321, 60811-341
Fortaleza – Ceará, [email protected] .
EU LI A EXPLICAÇÃO DESSE TERMO E/OU FOI LIDA PARA MIM. TIVE A
OPORTUNIDADE DE DISCUTIR E FAZER PERGUNTAS, BEM COMO DE
RECUSAR EM PARTICIPAR. AO ASSINAR ESSE TERMO DE COMPROMISSO,
ESTOU DE ACORDO EM PARTICIPAR DESSA PESQUISA.
Data_____________________________
___________________________________
Paciente participante
____________________________________________
Pesquisador-entrevistador responsável
142
Anexo 5. Roteiro de entrevista-piloto
Estabelecimento de rapport
Questão Norteadora:
Fale-me sobre suas relações amorosas e seu cotidiano de trabalho
Aspectos Complementares:
Gostaria de conhecer sua história e seu trabalho no Corpo de Bombeiros
Militar do Ceará. Fale-me sobre isto.
Qual sua percepção sobre os bombeiros no que diz respeito à vida pessoal e
amorosa?
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