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A TECELAGEM DAS MARGENS
Tarcísio dos Santos Ramos
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TARCÍSIO DOS SANTOS RAMOS
A TECELAGEM DAS MARGENS
POR QUE TÃO SOLO? Dança e dramaturgia
BELO HORIZONTE
Escola de Belas Artes da UFMG
2008
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TARCÍSIO DOS SANTOS RAMOS
A TECELAGEM DAS MARGENS
POR QUE TÃO SOLO? Dança e dramaturgia
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas
Artes da Universidade Federal de Minas
Gerais, como exigência parcial à obtenção
do título de Mestre em Artes.
Área de Concentração: Arte e Tecnologia da
Imagem.
Orientador: Luiz Otávio Carvalho Gonçalves de Souza
Belo Horizonte
Escola de Belas Artes /UFMG
2008
4
AGRADECIMENTOS
A Luiz Otávio, por acolher e orientar a pesquisa.
A Arnaldo Alvarenga, pela generosidade, pela disponibilidade e o “olhar de fora”.
A Gabriela Christófaro, pela sólida amizade e pela cumplicidade.
A Ricardo Garcia, companheiro em POR QUE TÃO SOLO?
À banca examinadora, pela leitura e qualificação.
Aos entrevistados, pela disponibilidade de relatar e contribuir, com suas experiências, para este
trabalho.
A Secretaria de Pós-Graduação, especialmente à Zina, pela dedicação e pela seriedade.
À Capes, pelo apoio à pesquisa.
Aos meus amigos, professores e familiares (particularmente a Apoena e Caio Ramos).
A Juliana Mota e Antônio Hildebrando, pela inspiração do formato desta escrita.
A Guto Muniz, por ter registrado e por ceder as fotos do espetáculo.
Agradecimento especial
A Eduardo Marques, pelas portas abertas e pelas árvores plantadas juntos.
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RESUMO
Esta dissertação tem como proposta central a investigação da dramaturgia do espetáculo POR
QUE TÃO SOLO?, criado em Belo Horizonte, no ano de 2006, pela Marcenaria – Centro de
Criação Cênica, como resultado do Prêmio Klauss Vianna de Dança/Funarte. O principal objetivo
da pesquisa é identificar os elementos dramatúrgicos constitutivos do espetáculo e discutir seu
caráter dialógico e as conexões criadas durante o processo criativo. Pretende-se, ainda, revelar os
mecanismos que contribuíram para a organização de sua dramaturgia. Para tanto, a análise se
apoiará na articulação dos conceitos de dramaturgia em dança e de dança-teatro, a partir de
teorizações e reflexões desenvolvidas pelos criadores da dança moderna e por pesquisadores e
artistas contemporâneos, bem como em conceitos relativos à semiologia teatral. O fio da memória
do corpo que dança também é uma referência para a reflexão sobre a dramaturgia criada em POR
QUE TÃO SOLO?. Por fim, propõe-se a definição de cinco elementos estruturadores da
dramaturgia do espetáculo em questão: o corpo que dança; a construção de células imagético-
cênicas; a conexão entre os núcleos imagéticos; o movimento de fundo e a dramaturgia do
espectador.
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ABSTRACT
This dissertation proposes to investigate the dramaturgy of the performance POR QUE TÃO
SOLO?, created in Belo Horizonte/MG in 2006 by MarcenariaCentro de Criação Cênica as a
result of the Klauss Vianna Dance Award granted by FUNARTE (National Art Foundation). The
main goal of the research is to identify the dramaturgic elements upon which the performance is
built as well as discuss its dialogic character and the connections created during the creative
process. Furthermore, the intention is to reveal the mechanisms that contributed to organizing the
dramaturgy. In order to do so, the analysis will be supported by the articulation of concepts of
dramaturgy in dance and dance-theater from the theoretizations and reflections developed by
modern dance creators and contemporary researchers and artists, as well as concepts concerning
theatrical semiology. The memory line of the dancing body is also a reference for reflecting about
the dramaturgy created in POR QUE TÃO SOLO?. Finally, the dissertation proposes to define
five structuring elements of the dramaturgy of the performance here analyzed, namely: the
dancing body; the building of scenic-imagetic cells; the connection among the imagetic cores; the
backdrop movement; the dramaturgy of the spectator.
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ÍNDICE DE IMAGENS
Imagem da Capa – Tratamento e diagramação: Eduardo Marques
Imagem do Colégio Arnaldo, p. 70. Editor K. Hartmann/Casa Para Todos. Fotógrafo sem
identificação. Data 1922 – 1929. Coleção Otávio Dias Filho. Disponível em: Belo Horizonte:
bilhete postal. Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte: 1997.
As fotos do espetáculo “POR QUE TÃO SOLO?” na parte “Tecelagem das margens”, são de
Guto Muniz, exceto:
Foto: Heloísa Oliveira, p. 86. Belo Horizonte, 1998.
Foto: Cleber Salieri, p. 107. Belo Horizonte, 1990.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO - O FIO QUE UNE MARGENS..................................................................10
2 A TESSITURA DOS MESTRES.............................................................................................20
2.1 JEAN-GEORGES NOVERRE – A NATUREZA E PAIXÃO PELAS AÇÕES....................21
2.2 O EXPRESSIONISMO ALEMÃO – TESSITURA VISCERAL.......................................30
2.2.1 Isadora Duncan – Mitologia pessoal, liberdade e revolução...........................................31
2.2.2 Rudolf von Laban – “uma vida para a dança”.................................................................33
2.2.3 Mary Wigman – A essência expressionista e a formatação do caos...............................38
2.2.4 Kurt Jooss – O novo “balé de ação”..................................................................................40
2.2.5 Pina Bausch – Dramaturgia da subjetividade..................................................................42
2.3 - A CORRENTE AMERICANA..........................................................................................46
2.3.1 Marta Graham – O estreitamento entre a dança e o drama..........................................47
2.3.2 Doris Humprhey – “Entre mundos mortos”...................................................................49
2.3.3 Merce Cunningham – Dramaturgia da “não-dramaturgia”..........................................52
2.4 ALINHAVANDO...................................................................................................................55
2.5 QUADRO SINÓPTICO..........................................................................................................56
3 A TESSITURA CONTEMPORÂNEA....................................................................................57
3.1 DIÁLOGOS.............................................................................................................................58
3.2 O ENTRE LUGAR. CONEXÕES...........................................................................................59
3.3 QUADRO SINÓPTICO...........................................................................................................64
4 FILHO DE ALGUÉM...............................................................................................................65
9
4.1 TRANS-FORMA – UM CORPO QUE LEMBRA..................................................................66
4.2 AINDA ME LEMBRO.............................................................................................................70
5 A TECELAGEM DAS MARGENS.........................................................................................71
5.1 “TÃO LONGE, TÃO PERTO”................................................................................................72
5.2 PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DRAMATÚRGICA EM POR QUE TÃO SOLO?..........73
5.3 ROTEIRO DO ESPETÁCULO................................................................................................83
6 AS AMARRAS REVELADAS: OS CINCO ELEMENTOS................................................118
6.1 O ARREMATE......................................................................................................................126
6.2 QUADRO SINÓPTICO.........................................................................................................128
7 A COSTURA FINAL..............................................................................................................129
DVD do espetáculo POR QUE TÃO SOLO?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................................130
ANEXO 1.....................................................................................................................................136
CD com as entrevistas realizadas
ANEXO 2.....................................................................................................................................137
Programa do espetáculo
10
1 Introdução – O fio que une margens
Considero a dança uma das vozes do silêncio.
Um corpo que silencia para escutar com transparência seu desejo, sua
pulsão e sua necessidade, transformando-se muitas vezes em “simples”
companhia.
Por mais que tenha evoluído, desde o seu nascimento até os dias atuais,
abandonando, ou melhor, vendo restringir-se seu caráter ritualístico, litúrgico e
transcendente, a dança não deixa de manter uma narrativa, aportada na lógica
de seu fluxo de movimento.
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O desejo de desenvolver uma pesquisa que tivesse a dramaturgia da dança como foco é
oriundo, primeiramente, da necessidade que sempre senti dar sentido, ou de estabelecer nexos de
sentido, à dança. Certamente, essa necessidade é fruto de minha formação como bailarino/ator.
Esta pesquisa, portanto, tem raízes nos recursos e elementos que participaram de minha formação
como bailarino/ator: minhas influências, minha emoção, meu saber e fazer em dança, por fim,
minha experiência ao longo de 25 anos dedicados ao experimento, ao ensino e à direção do
movimento na dança. Essa experiência dividiu espaço e pôs-se a dialogar com o movimento da
narrativa teatral e literária, solidificando minha atuação.
Meu contato inicial com a arte do teatro – arte em que comumente se revela uma história,
com seu início, meio-conflito e um final, no qual tudo se desenlaça e se traduz à audiência –
trouxe-me a convivência com a possibilidade de se contar uma história, e isso me encantou, pois,
como afirma Clarisse Pinkola Estés: “embora nenhum de nós vá viver para sempre, as histórias
conseguem” (ESTÉS, 1998, p. 39)
O teatro aproximou-me não apenas das histórias, mas também de vários autores,
escritores, diretores, dramaturgos e, mais intimamente, dos atores. Por um longo período
dediquei-me ao treinamento e à preparação de atores, à assistência de direção e mesmo à direção
teatral. Também na área de teatro desenvolvi, e ainda desenvolvo, trabalhos com grupos diversos
e com atores idosos.
Minha formação e principal educação, porém, foi como bailarino. Ainda que realizada em
uma escola livre, essa formação se deu de forma apaixonada e disciplinada. Nessa escola, em que
por cinco anos estudei, acabei me tornando membro integrante de seu grupo experimental de
dança, o TRANS-FORMA. A dança colocou-me em contato com a consciência estrutural de meu
corpo, suas limitações, o prazer e a beleza do movimento, com a capacidade do devaneio, com o
infinito e o movimento projetivo. Por meio do movimento dançado, eu entrava em contato com
uma realidade sonhada. Ampliei meus contatos e relações, ainda que improvisacionais, com o
outro. A faculdade de trabalhar com o instante, com o espaço e o tempo, além de promover um
caminho rumo ao autoconhecimento, também fez parte desse desenvolvimento.
O TRANS-FORMA – Centro de Dança Contemporânea foi um dos grandes marcos em
educação e criação em dança moderna de Belo Horizonte nos anos 1970 e 1980. Um centro que
recebeu diversas influências, criando uma metodologia própria, graças ao esforço e talento de
Marilene Martins e de seus parceiros. Como resultado dessas influências e parcerias, uma forte
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relação metodológica de ensino-aprendizagem foi criada, bem como formas do criar e do fazer
cênicos. Tanto no grupo quanto na escola, fomos habituados a executar danças repletas de
dramaticidade, nas quais já se verificava a influência dos recursos teatrais. No primeiro
espetáculo de dança de que participei, executei um personagem cujas características eram
traduzidas em sua movimentação.
Em alguns trabalhos realizados posteriormente como diretor ou mesmo como coreógrafo,
percebi uma intensificação do desejo de traduzir claramente histórias, narrativas, de modo a "dar
o recado", "passar uma mensagem" para o espectador. Nascia aí uma relação inconsciente-
consciente com essas influências absorvidas durante esse período.
Ao longo de minha carreira, porém, verifiquei que nem sempre era possível realizar essa
tradução. Muitas vezes via-me impotente diante de textos, palavras e narrativas literárias.
Tornava-se escassa a possibilidade da realização de danças que contassem uma história. Faltavam
recursos que viabilizassem a concretização de uma mensagem específica. Decidi então, investigar
os rumos da dramaturgia em dança, pois, concordando com José Gil:
Seria vão descrever o movimento dançado querendo aprender todo o seu sentido. Como
se o seu nexo pudesse ser traduzido inteiramente no plano da linguagem e do
pensamento expresso por palavras (GIL, 2002, p. 67).
O que era a dramaturgia afinal? Onde estaria localizada? O que a constituía? Como ter
uma dramaturgia dentro de uma movimentação que propõe uma narrativa no sentido mimético de
se contar uma história e como esta se realizaria diante de uma encenação que possui um caráter
de abstração, qualidade própria do movimento dançado?
Com o passar do tempo percebi que a dramaturgia se encontrava em toda parte e que as
dramaturgias no teatro e na dança possuíam diferenças históricas, próprias de seus meios
constitutivos. Assim, concordando com Marianne Van Kerkhove
1
, descobri que “a dança não é o
meio mais adequado para contar histórias” (KERKHOVE, 1997).
O que, então, eu suspeitava ser a dramaturgia em dança não era senão aquele desejo
impregnado em meu corpo-mente de associar dança e teatro. Queria permitir que a
transcendência da dança encontrasse com o subtexto e a objetividade das ações teatrais, o
conflito, a busca da realização de imagens contextualizadas; desejava que os bailarinos
revelassem um movimento criado e embasado em uma idéia, de modo que este viesse
acompanhado de texturas carregadas de teatralidade. Teatralidade que se presentifica nos
1
Marianne Van Kerkhove é dramaturga do Kaaiteater.
13
recursos e mecanismos teatrais, mas principalmente na participação e na experiência do
indivíduo, célula singular e ativa no processo de criação. Assim, meu foco deslocou-se e
terminou por encontrar não só a teatralidade, mas também outras linguagens, como a poesia, a
literatura, a fotografia, a música. Meus estímulos criativos ampliaram-se, criando assim
cruzamentos nos quais se delineiam novos territórios e diálogos, rumo à construção de uma
dramaturgia em dança.
A palavra dramaturgia, etimologicamente, significa “composição de um drama” (PAVIS,
2005, p.113), e drama, segundo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (1982), significa
“ação”. A dramaturgia predominou na história das artes cênicas como “arte ou técnica de
escrever e representar peças de teatro ou a totalidade de recursos técnicos, mais ou menos
específicos, de tal arte, para compor e representar peças de teatro” (HOUAISS, 2001, p. 1084). A
partir do século XX, novas acepções foram atribuídas ao termo, ampliando seu conceito. Com
isso, o termo passou a abarcar outros territórios e outras ações, não só físicas e verbais, mas
também a conexão entre os elementos que compõem a cena e o processo de criação desta. Assim,
a dramaturgia amplia seu campo de atuação, permitindo o alargamento de nossa percepção do
que vem a ser uma tessitura. Segundo Adolphe
2
(1997): “ela tenta captar os fluxos de circulação
de sentido. A dramaturgia é um exercício de circulação”.
Esse exercício compara-se ao ato de tecer. Dramaturgia é tessitura, tecelagem, que, por
meio de seus fios, ora visíveis, ora invisíveis, cria conexões que permite circular as partes e o
todo. Essas conexões e circulações se dão entre os elementos que compõem a cena: ações físicas,
verbais, sonoras e imagéticas. Como afirma Eugênio Barba:
Numa representação, as ações (isto é, tudo que tem a ver com a dramaturgia) não
somente aquilo que é dito e feito, mas também os sons, as luzes e as mudanças de espaço
(BARBA, 1995, p. 68).
A dramaturgia conecta as partes objetivas e subjetivas da cena, seus aspectos materiais e
imateriais. Indo além, Ana Pais afirma que a dramaturgia articula o visível e o invisível:
Articulando materiais e estruturando o sentido do espetáculo, a dramaturgia estabelece
cumplicidades entre o visível e o invisível, entre a concepção e a concretização do
espetáculo (...) (PAIS, 2004, p.75).
2
Redator-chefe da Revista Movimento, diretor artístico do projeto “Skite” e conselheiro artístico do Teatro da
Bastilha, em Paris.
14
Assim entendida, a dramaturgia na dança sempre existiu, mesmo que ainda não se
pensasse nela de forma sistematizada ou formalizada e se utilizassem outros termos, como
libreto, significado ou sentido, para se falar de dramaturgia.
A dança sempre criou, construiu e colocou em circulação ações dançantes, conectando
estruturas e formulando um sentido, procurando “novas possibilidades de transformação, sabendo
que a sua pertinência deriva de uma inevitabilidade de estruturar os sentidos do movimento do
corpo no espaço” (PAIS, 2004, p.64).
O termo passa a ser utilizado e investigado com maior profundidade somente no final do
século XX, quando a diretora e coreógrafa alemã Pina Bausch traz, em 1979, dramaturgos como
Raimund Hoghe para compor sua equipe. Bausch esteve sempre aliada com o teatro, e a palavra
(ainda que construída sob outras bases em seus espetáculos) e a teatralidade estiveram presentes
na maior parte de suas criações, colaborando com o texto espetacular. Após o boom da dança
holandesa e belga no final dos anos 1980, a discussão se amplia, chegando ao Brasil apenas
recentemente.
O movimento, entendido como ação na dança, principalmente até o período moderno era
o guia dessa tessitura. Hoje, na complexa contemporaneidade, quando a diversidade é a
protagonista, artistas e pesquisadores trazem novos conceitos para seu fazer; a percepção do
movimento ganha nova estrutura e amplia suas relações de composição. Vejamos, por exemplo, o
que nos diz a artista de dança Dudude Herrmann
3
:
De repente eu posso construir um trabalho a partir de texturas e essa vai ser a
dramaturgia do trabalho. Posso construir através de tons, de humores, posso construir
através de estados onde entra a palavra, onde entra a frase, onde entra a luz. Você pode
construir uma dramaturgia toda apoiada na luz (HERRMANN, 2007).
Observamos então que a dança, ao entrar em contato com outras linguagens, outras artes e
outros processos comunicativos, acaba por criar novas dinâmicas de relações nesses encontros.
Segundo PAIS, “uma relação define-se por uma ligação entre dois ou mais elementos,
num período de tempo ou espaço” (PAIS, 2004, p. 77).
Entendemos que as relações que a dança estabeleceu com outras linguagens contribuíram
para a percepção e construção de uma tessitura dramatúrgica, que amplia nosso próprio conceito
de movimento, relacionado cada vez mais com imagens, palavras e textos diferenciados. Assim,
3
Dudude Herrmann é bailarina, professora, coreógrafa, preparadora corporal de atores e cantores. Ex. bailarina e
coreógrafa do Grupo Trans-Forma. Ex-Diretora da Benvinda Cia de Dança. Como ela mesma se denomina: artista de
Dança. Entrevista de Dudude Herrmann realizada em Belo Horizonte, em 17/8/2007.
15
criam-se novas qualidades para o movimento e para as conexões da tecelagem dramatúrgica do
espetáculo. Para Schulmann
4
:
A mistura atual entre a dança e as outras artes cênicas (“arts de la scene”) – circo, teatro,
plásticas – a influência dos fatores sócio-culturais cada vez mais presentes (lutas étnicas,
AIDS...) traz novos pontos de vista (SCHULMANN, 1997).
Nessa “conversa” em que aparecem e desaparecem fronteiras, diálogos e encontros, cabe
à dramaturgia investigar e estabelecer suas ordens, encontrando o equilíbrio entre os pólos, entre
as margens, entre as vozes que compõem a encenação. Uma dramaturgia do coletivo criador em
conexão com os elementos estruturadores da encenação. Dramaturgia nos e dos corpos dançantes
em processos relacionais, em que o objetivo maior é alcançar um sentido de unidade, de modo
que se estabeleça uma profunda e sincera relação de troca entre os criadores e entre a criação e o
público.
Com a ruptura dos limites estabelecidos pelo movimento, surge uma visão também
ampliada de dramaturgia. Esta se torna a responsável por articular metáforas, forma e conteúdo,
forma e sentido, organizar pulso e estado corporal, conectar lugares (corpo e ambiente), modular
intensidades e texturas (qualidades de movimento), por fim, torna-se uma tessitura que
proporciona a conexão entre as ações cênicas objetivas (visíveis) e as subjetivas (invisíveis).
Não parece adequado, porém, entender que a dança se encerra em um conceito de
dramaturgia. Ela, que por sua natureza caracteriza-se pela presença da energia que trafega em
seus fluxos de movimento, cabendo aos criadores perceber, como nos informa Gil, quando a
energia passa e “a coisa” funciona:
O que é experimentar, “ensaiar”? É chegar a um ponto de “coordenações físicas” tais
que “a energia” passa “naturalmente”. Trata-se de fluxos de movimentos mais que de
formas ou de figura (como no ballet). Ensaiando uma seqüência de movimentos e
verificando que a energia passa, o bailarino encontra-se diante de múltiplas
possibilidades de movimentos (GIL, 2002, p.68).
Dessa forma, não só o bailarino, mas também o coreógrafo e/ou dramaturgista se
desdobram para perceber as modulações de intensidades, a relação com o espaço, o tempo-
rítmico, os materiais e os conteúdos da encenação. O movimento dançado, que possui um caráter
muito mais projetivo do que descritivo, torna-se um movimento que irrompe no espaço e se
propaga no infinito com seus sentidos embutidos, com seus signos ou quase-signos a criar sua
4
Nathalie Schulmann é bailarina contemporânea, assistente coreográfica e professora de análise do movimento para
bailarinos.
16
própria lógica. Esse movimento, que, segundo Cunningham, pode por si só se bastar, é a medula
da dramaturgia. Nas palavras de Pavis:
O dançarino – pelo menos o da dança dita pós-moderna – despreza pelo contrário toda
vetorização narrativa ou mimética, o que pode sugerir que só é submetido a seus
impulsos e a seu desejo e que seu corpo foge a qualquer controle, linearidade ou projeto
de conjunto. A dificuldade para o dançarino, como para o espectador, é de dispor de uma
visualização vetorizada do desejo (PAVIS, 2005, p. 117).
Assim, a dança, com sua qualidade paraverbal, sempre foi percebida mais pelos filtros
sensoriais do que racionais. Ela, que despertou o interesse de poetas, filósofos, romancistas e
historiadores, vem reforçar nosso desejo de não fixar um conceito. Encontramos mais uma vez
em Pais aporte para nossa proposição:
Partindo de uma abordagem exaustiva das possíveis acepções de dramaturgia, cedo nos
apercebemos de que dificilmente encontraríamos uma definição consensual para o
termo, pois os contextos em que cada uma dessas acepções ocorrem e os significados
que as distinguem superam qualquer tentativa de traçar uma definição única (...) (PAIS,
2004, p.16).
Se um conceito de dramaturgia em dança não se fixa, proponho então que busquemos
atentar para a maneira como a dança trabalha seus conteúdos, suas metáforas, intenções,
abstrações, seu propósito, sua pureza ou suas puras misturas. Concordamos que a dramaturgia,
como afirma Pickels
5
, “deve guardar um papel mais modesto em relação à dança” (1997). Se, do
movimento dançado, podemos apenas suspeitar sua significação, porque se apresenta
metaforicamente, poderíamos também somente suspeitar a significação de sua dramaturgia, que
se apresenta genuína em cada nova obra criada.
(...) A dramaturgia é uma prática flexível e renovada por cada espetáculo e o
dramaturgista move-se cada vez mais em territórios diferentes, que vão do teatro à
performance ou à dança, artes que hoje não partem forçosamente de um texto (PAIS,
2004, p. 30).
A liberdade e o aprisionamento possíveis de serem encontrados nos movimentos, a
pluralidade gestual, a possibilidade de articulações e conexões a serem criadas no corpo e entre
este e o espaço e os outros elementos da cena conferem à dramaturgia um caráter também plural,
acanônico. Uma dramaturgia passível de tecer energia de ações, de dinâmicas, daquilo que nos
deixa muitas vezes sem palavras e que faz com que o corpo levemente se crispe
Pavis, escrevendo sobre o papel e a função do dançarino, deixa claro que:
5
Autor, diretor e dramaturgo.
17
Não se espera dele que imite uma ação ou conte uma história. Localiza-se mais
dificilmente sua trajetória, a partir do momento em que não está inscrita em uma lógica
de uma narrativa ou de uma fábula. Por outro lado, a intensidade e a direção do
movimento são muito mais facilmente perceptíveis que seu conteúdo ou seu sentido
(PAVIS, 1996, p. 138).
Segundo José Gil, para Valéry:
Os movimentos dançados fazem-nos captar um sentido que nenhum discurso
simplesmente conceitual poderia pensar. Melhor: outras artes, como a pintura ou a
música, permitem-nos também captar sentido não-traduzível por conceitos, mas a dança
vai mais longe, articula o sentido e o não-sentido, faz-nos compreender “o real e o
irreal”, “as conversões, as inversões, as diversões”, em suma tudo o que um discurso
lógico não deixaria coexistir no seu seio (...) (GIL, 2002, p. 186).
Creio que descobrindo as qualidades dos movimentos dançados, suas propriedades,
mecanismos e elementos constitutivos, estaremos na esteira de descobrir sua dramaturgia. Ela se
revelará a partir da observação, da escuta da sensibilidade e do lugar entre racional e intuitivo,
pois a intuição se faz como material de escuta: “(...) a intuição como um saber afigura-se como
indispensável para lidar com a complexidade artística contemporânea” (PAIS, 2004, p. 54).
A escuta permite a criação de uma teia que revelará as qualidades, propriedades e
elementos apresentados pelo movimento dançante, movimento que constrói imagem visual,
sonora, afetiva. Imagem de movimento.
O objetivo desta dissertação é investigar a dramaturgia do espetáculo POR QUE TÃO SOLO?,
identificar os elementos constitutivos de sua tecelagem e refletir sobre seus princípios. Pretende-
se, ainda, fazer dialogar essa reflexão com outros atos de tecer dança. Para tanto, busquei
artistas ilustres, amigos, parceiros e outras que conheço por lê-las.
Na próxima parte intitulada A tessitura dos mestres, apresentaremos um panorama da
pesquisa sobre a dramaturgia em dança sob o ponto de vista histórico, a partir da concepção do
Balé de Ação criada pelo bailarino e maître de balé francês Jean-Georges Noverre, dos
bailarinos, diretores e coreógrafos alemães que compuseram a base da dança expressionista alemã
e da dança-teatro (Isadora Duncan, Rudolf Laban, Mary Wigman, Kurt Jooss e Pina Bausch) e,
ainda, daqueles que contribuíram para a criação da dança moderna americana (François Delsarte,
Marta Graham, Doris Humprhey e Merce Cunningham). Esses artistas que estabeleceram novas
formas do pensar e fazer a dança, principalmente na perspectiva da história da dança moderna.
18
Logo perceberemos que não só de rupturas a história se faz, mas também de influências e
continuidades. Assim, ao longo da história é perceptível que temos um passado, ainda que o
presente possa modificá-lo, configurando um presente-futuro modificado, ampliado.
Na parte A tessitura contemporânea, proponho uma investigação dos conceitos existentes
de dramaturgia. Devido à escassez bibliográfica sobre o tema, essa investigação será feita a partir
do ponto de vista de pesquisadores e teóricos brasileiros e de artistas mineiros que tiveram o
Trans-Forma como base de sua formação.
Inspirei-me e apoiei-me em um texto do mestre polonês Jerzi Grotowski denominado
“Você é filho de alguém”. Nesse texto, Grotowski valoriza a consciência de um sentido de
hereditariedade, sentido esse que se tornou um procedimento também verificado e reconhecido
por vários criadores, dentre eles, a criadora da dança moderna, a americana Marta Graham. Em
seu livro “Memórias do sangue”, Graham cita o escritor e professor americano Charles William
Goyen, e afirma que:
“Nós somos os portadores de vidas e lendas – quem conhece os afrescos invisíveis das
paredes do crânio”. Com muita freqüência, a execução de uma dança se origina de um
desejo de achar esses afrescos escondidos (GRAHAM, 1991, p. 16).
É também o que sucedeu a Pina Bausch, que estudou com Kurt Jooss, que estudou com
von Laban, que, por sua vez, estudou com um discípulo de Delsarte, que estudou com Delsarte.
Assim, na parte Filho de alguém, será apresentada uma pequena reflexão sobre a construção
dramatúrgica realizada em alguns trabalhos cênicos do grupo Trans-Forma.
Na parte Tecelagem das margens, apresento um fruto das influências apreendidas: o
processo de criação dramatúrgica no espetáculo POR QUE TÃO SOLO?, bem como o roteiro
construído. Esse espetáculo é dramaturgicamente “meu filho”, e eu sou filho do Trans-Forma, e o
Trans-Forma, filho da dança moderna, e esta, por sua vez, filha da Denishaw, de Isadora Duncan,
Mary Wigman dentre outros, que são filhos das sementes lançadas por Delsarte. Um século antes
de Delsarte, Noverre foi, dentro dessa linha de criação, o pai de todos. Assim, adotei a
hereditariedade artística como procedimento e estratégia na busca da articulação do conceito de
dramaturgia. É dessa trajetória que engenho uma tecelagem das margens, a fim de dar vida a um
espetáculo que reflita essa maneira de organizar. Nesse percurso, não só conto com a presença de
todas as heranças, mas principalmente da bailarina e atriz, da minha companheira de delírio e
realizadora do delírio em espetáculo: Gabriela Christófaro. Neste trabalho desenvolvo a
perspectiva de uma dramaturgia vista como conexão, construída como fruto de uma escuta entre
19
as muitas vozes que compõem a encenação. Um encontro no qual essas vozes ora se encontram e
dialogam, ora se fundem ou divergem, no intuito de criar um movimento de dança e uma
dramaturgia genuína, “filha de alguém”. Um diálogo entre os criadores.
Em As amarras reveladas – Os 5 elementos, serão apresentados cinco elementos
constitutivos ou estruturadores da dramaturgia do espetáculo.
Em A costura final, encontra-se o DVD do espetáculo.
20
2 A tessitura dos mestres
Dançamos pela alegria da colheita, pelo grito reprimido e para celebrar a
natureza e nossos Deuses.
Dançamos, fluímos, compartilhamos de uma mesma “estrada”.
Dançamos nas feiras, na periferia dos castelos e dentro deles.
Dançamos para e com o rei, para o burguês.
Dançamos com o teatro, a música, pinturas e poemas. E, ainda, para
protestar, para rebelar-nos e para denunciar.
Dançamos para o público e, finalmente, dançamos “pelo prazer de dançar
e pelo prazer de ver dançar” (VALÉRY, 2003, p.36).
21
2.1 JEAN-GEORGES NOVERRE – A natureza e a paixão pelas ações
“(...) Enquanto existir a força da indigência vegetal em alguém, essa força
comandará a linguagem desse ente para uma poesia sem máquina. Porque ele não
saberá mexer com máquina. Seria uma coisa primal, é claro, mas seria uma força
da natureza”.
Manoel de Barros
6
É, sobretudo, na figura do bailarino e mestre de balé francês Jean-Georges Noverre (Paris,
1727 - Saint Germain en Laye, 1810) que encontramos o primeiro passo na tentativa de promover
um rompimento com a estagnação em que a dança se encontrava nos séculos XVII e XVIII.
Noverre promoveu uma transformação na construção das encenações e dos espetáculos de balé e
dispensou a atenção necessária ao trabalho das ações na dança, em sua obra teórica cartas sobre a
dança. Nela, ele, um revolucionário, discorre sobre o balé de ação
7
e sobre a necessidade de
aproximação e comunicação entre a cena e o público. Sua obra viria a contribuir para um futuro
no qual a dança encontraria não só o teatro como parceiro, mas também outras artes, o que fez de
Noverre um “farol” de seu tempo.
Favorecido por um período em que a experimentação cênica estava sendo ampliada, George
Noverre criou sua teoria, mas não se limitou aos estudos analíticos do movimento, trazendo sua
experiência prática como artista de dança para a criação de sua obra, como afirma Monteiro:
A reflexão de Noverre caracteriza-se por ver a dança do ponto de vista do palco, como
alguém que, ao longo de toda a vida, foi atuante nesse mundo da dança e não pôde
impedir que essa experiência se refletisse em seus escritos teóricos (MONTEIRO, 1998,
p. 24).
Noverre postulava a criação de uma dança expressiva, ou melhor, a união entre o ato
mecânico e o ato expressivo. Clamava por um balé dotado de autonomia, afirmando a
necessidade de permitir que a dança criasse códigos capazes de unificar platéias distintas.
Sobretudo, Noverre não considerava a dança como um mero divertissement, e enfatizava sua
expressão como arte de imitação. Embasado na imitação da natureza, na paixão e nas expressões
humanas, tentava dar aos espetáculos um sentido, uma trama, um início, um meio e um fim,
6
BARROS (1996, p. 319).
7
“O século XVIII teria outros famosos revolucionários do balé. Gasparo Angiolini, um deles, grande mestre-de-baile
florentino, criticava constantemente as teorias de Noverre, achando que suas criações, tinham defeitos de construção,
pois precisavam explicar em extensos programas o que pretendiam apresentar. Além disso, negava a paternidade do
balé-pantomima a Noverre, que a reivindicava em cartas e planfetos, atribuindo-a a si próprio e ao austríaco
Hilferding. Na verdade, ela cabia aos três e não a cada um isoladamente” (MENDES, 1985, p.31 –32).
22
criando um enredo para os mesmos (característica essencial do balé de ação). Além disso, tentava
fazer com que os bailarinos mostrassem suas expressões verdadeiras, longe dos artifícios da
época, que camuflavam toda a originalidade do balé. De acordo com Garaudy: “a dança não era
para ele simples virtuosismo físico, mas um meio de expressão dramática e de comunicação”
(1980, p. 33).
Segundo Paul Bourcier:
Dois princípios dominam as idéias de Noverre:
- o balé deve narrar uma ação dramática, sem se perder em divertimentos que cortam o
seu movimento; é o "balé de ação";
- a dança deve ser natural, expressiva, o que Noverre chama de "pantomima"
(BOURCIER, 2001, p. 170).
Muitos elementos descritos por Noverre apresentam semelhanças com as idéias
relacionadas com a criação de uma dramaturgia para a dança. É possível notar várias
semelhanças entre os pensamentos de Noverre e as idéias que, dois séculos mais tarde,
impulsionariam a criação da dança moderna, por meio de inúmeros artistas que surgiriam no
século XX, dentre eles Delsarte, Isadora Duncan, Rudolf Von Laban, Kurt Jooss e Marta
Graham.
Sabemos que a dança contemporânea propõe conexões com áreas afins, promovendo
intercâmbios estéticos e afetivos. Sua criação se dá em zonas de fronteira ou de transição, em que
os limites entre as artes ora se embaçam, ora se fundem, criando diferentes ressonâncias, diálogos
e complexas dinâmicas de composição. Atento a essas influências e possibilidades de comunhão
entre as artes, Noverre relata em sua primeira carta:
Os balés, até agora, nada mais foram que tênues esboços daquilo que um dia poderão
ser. Essa arte, submetendo-se inteiramente ao gosto e ao engenho, pode embelezar-se e
variar infinitamente. A história, a fábula, a poesia, a pintura estendem-lhe as mãos para
tirá-la da obscuridade em que se encontra mergulhada; é espantoso que os compositores
tenham, até agora, desprezado recursos tão preciosos (NOVERRE, 1998, p. 186).
Ainda em sua primeira carta, Noverre descreve um exemplo de seu conceito de ação,
associando a este outras palavras e expressões que estariam imbricadas na composição cênica,
como ardor, energia, bela desordem, veracidade e o intuito de embelezar a natureza. Noverre foca
seu olhar e sua aguda atenção no estudo das intensidades das qualidades e sentimentos propostos,
opondo-se à simetria, que, segundo ele, deveria ser banida da dança em ação. Um outro elemento
ilumina seus conceitos: a regularidade. Noverre buscava a regularidade em meio ao caos, à
desorganização, à própria irregularidade. Não estaria ele, nesse momento, abrindo um novo
23
caminho, ainda impensado em sua época: a experimentação, tomada como guia do processo
criativo?
A encerrar sua primeira Carta, Noverre se justifica e esclarece: “Não prego a desordem e
a confusão; quero, ao contrário, encontrar regularidade em meio à própria irregularidade (...)”
(NOVERRE, 1988, p. 189).
Jean-Georges aponta caminhos para a composição, agora vinculados à existência de um
tema bem escolhido e pertinente para a dança. Verificamos aqui um princípio que unirá dança e
dramaticidade, movimento e sentido, criação e articulação de cenas, princípio que também
identificamos em nossa organização dramatúrgica:
Os balés, sendo representações, devem unir as partes do drama. Embora de um modo
geral seja indispensável
submeter-se a certas regras, os temas abordados na dança são,
ao contrário, na sua maioria, vazios de sentido e não oferecem senão um amálgama
confuso de cenas que além de mal alinhavadas são desagradavelmente desenvolvidas.
Todo tema de balé deve ter uma exposição, uma intriga e um desenlace. O êxito desse
gênero de espetáculo depende em parte da boa escolha dos temas e de sua distribuição
(NOVERRE, 1998, p. 195).
Influenciado pela Poética de Aristóteles, Noverre segue ponderando a relação coerente a
ser desenvolvida entre a movimentação/dança e o caráter do atuante, levando-nos a refletir sobre
o papel do atuante e sua singularidade como intérprete (dramaturgia do bailarino), na busca de
uma interpretação verdadeira e que mantivesse afastado dos males que assombrava as
representações: o tédio. Assim, escreve:
Ao grande talento é permitido inovar, sair das regras ordinárias, abrir novos caminhos,
desde que levem à perfeição da arte. Mentor, num espetáculo de dança, pode e deve agir
dançando; isso não chocará nem a verdade, nem a verossimilhança, contanto que o
compositor tenha a arte de lhe destinar um gênero de dança e de expressão análogo a seu
caráter, à sua idade, à sua ocupação (NOVERRE, 1998, p. 196).
Nessa carta, o mestre de balé não só define o que seria para ele o mecanismo da dança,
mas também nos alerta para um fato importante e que não poderíamos deixar de enfatizar, pois é
parte fundamental de qualquer dramaturgia: o arranjo, que poderíamos chamar também de
bordado, tessitura, ou de forma como se articulam cenas, movimentos e ações. Noverre ainda
ressalta não somente a necessidade de esse arranjo ser realizado por um grande homem, mas de
ser, sobretudo, impulsionado pelo espírito. O criador francês realiza, assim, a proposição de
novos enlaces para os movimentos de dança, a fim de que esses, animados e embelezados pelo
sentimento, encontrassem reconhecimento, resgatando a nobreza que lhe é própria. Vendo no
artista criador o grande homem, Noverre nos permite concordar com o pensamento de
24
Kandinsky: “O artista é a mão que, com a ajuda desta ou daquela tecla, extrai da alma humana a
vibração certa” (KANDINSKY,1990, p. 72).
Tendo visto o mestre de balé como um arranjador, como responsável pelas articulações e
pelo encadeamento das cenas e como um ouvinte do ritmo das intensidades e pausas, Noverre
desloca, na terceira Carta, a ênfase para o olhar. Um olhar sobre o traço, o desenho da cena, sua
perspectiva e equilíbrio, traçando um paralelo com uma construção pictórica, o quadro. O que
nos interessa aqui, não são propriamente as associações que Noverre faz com os mestres da
pintura e seus legados, mas o que ele nos oferece em meio a essas associações e que nos permite
identificar elementos que nos auxiliam na construção de um caminho rumo à dramaturgia. No
entanto, vale ressaltar que Noverre primava pela busca de um equilíbrio cênico na disposição das
figuras no espaço. Noverre refere-se aos quadros que possuem um equilíbrio e uma disposição
harmoniosa e nos quais a presença dos protagonistas não faz com que os olhos do observador se
fixem somente neles, mas permiti-lhes atentar, ao mesmo tempo, para as outras figuras que
compõem a cena. Refere-se a um equilíbrio entre o todo e as partes, elemento fundamental e
estrutural de uma encenação, de uma dramaturgia captada, sobretudo, pelo sentido do olhar:
Um hábil mestre com um simples golpe de vista deve pressentir o efeito geral da
máquina toda e jamais sacrificar o todo à parte (...) (NOVERRE, 1998, p. 201).
Em consonância com o ponto de vista de Noverre, Arnheim esclarece:
Parece que as coisas que vemos se comportam como totalidades. Por um
lado, o que se vê numa dada área do campo visual depende muito do seu
lugar e função no contexto total. Por outro, alterações locais podem
modificar a estrutura do todo. Esta alteração entre todo e parte não é
automática e universal. Uma parte pode ou não ser visivelmente
influenciada por uma mudança da estrutura total; e uma alteração na
configuração ou cor pode ter pouco efeito no todo, quando a mudança
permanece por assim dizer, fora da linha estrutural (ARNHEIM, 1980, p.
39).
Embora muitos elementos apontados pelo mestre possam ser vistos como norteadores do
papel do diretor ou do encenador, podem também servir como propulsores do dramaturgista e do
desenvolvimento de sua capacidade como propositor e co-construtor da cena. Essa capacidade
está associada, sobretudo, à habilidade de captação do instante, da qualidade e da intensidade dos
movimentos, a percepção de que uma simples mudança de posicionamento no espaço pode gerar
nova expressão e novo sentido.
25
Noverre abre amplo espaço para o diálogo em suas composições. Esse diálogo apresenta-se
na comunhão da dança com outras vozes ativas: figurinos (cores), cenários, pintura, poesia, teatro
e música. Vejamos, por exemplo, a observação que faz a respeito de uma dessas vozes e sobre
seu valor dentro da composição:
Um cenário seja ele de que espécie for, é sempre um grande quadro, preparado para
receber as figuras humanas. As atrizes, os atores, os bailarinos e as bailarinas são os
personagens que devem orná-lo e embelezá-lo, mas para que esse quadro agrade e não
choque de modo algum a vista, é preciso que justas proporções brilhem igualmente nas
diferentes partes que o compõem (NOVERRE, 1998, p. 231).
Noverre nos apresenta alguns elementos fundamentais, que não só norteiam a
composição, mas também colocam o bailarino como agente transformador (cita Proteu
8
como
estímulo e exemplo), responsável pela execução da tradução de uma obra. Esses elementos são o
sentimento e a paixão.
Comparando a composição dançante a uma narrativa (no sentido da representatividade),
Noverre se apropria das características da mesma. Criando uma analogia, Noverre afirma que,
quando a dança atingisse seus fins, revelar-se-ia da seguinte forma:
(...) cada movimento ditará uma frase, cada atitude representará uma situação, cada
gesto revelará um pensamento, cada olhar anunciará um novo sentimento (...)
(NOVERRE, 1998, p. 242).
A partir de três fatores basais (o sentimento, o engenho e a expressividade), Noverre
recorre à unidade de desenho, “(...) a fim de que todas as cenas se conciliem e atinjam o mesmo
objetivo”. A unidade de desenho pode ser vista como um dos objetivos de uma tessitura, como o
resultado de um entrelaçamento em que se articulam os diversos componentes de uma
dramaturgia. Para ele, a composição vai além de um simples agrupamento de passos ou de
figuras simplesmente ordenadas em formas geométricas. Ao compositor, que aqui também
considero como o dramaturgista, cabe:
(...) corrigir os autores, ligar a dança à ação, imaginar cenas análogas aos dramas,
alinhavá-las devidamente aos temas, conceber o que o engenho dos poetas deixou
escapar, preencher, enfim, os vazios e as lacunas que degradam as produções, eis a obra
do compositor (...) (NOVERRE, 1998, p. 247).
A busca pela harmonia na composição está intrinsecamente ligada a uma visão
colaborativa, como o mestre já apontava em sua época. O diálogo entre as artes, bem como entre
seus criadores, era percebido por Noverre, que se referia especialmente à composição operística.
8
PROTEU, o deus do mar que mudava de forma na mitologia grega.
26
A necessidade de as partes se escutarem e conversarem, de modo que todas as vozes atuassem
em uníssono, sem, contudo, se misturarem, era um objetivo sonhado e buscado por ele.
Acredito que o exercício da escuta – do eu e do outro ocupa um lugar central na criação
dramatúrgica. Muitas vezes nossos parceiros na criação (cenógrafos, iluminadores, músicos,
atuantes) podem trazer experiências, idéias e proposições que nos ajudarão a fazer com que a
obra cumpra seu objetivo com clareza, coerência e veracidade. Esse processo confere à obra um
caráter polifônico, fazendo dela uma união entre as vozes cênicas em que cada uma delas
mantém a identidade e a força que lhe são próprias. Ao dramaturgista de dança, como afirma
Noverre referindo-se ao compositor, cabe atuar como poeta, no que tange os fatores de
composição, e, ainda, velar cuidadosamente pelo todo.
A dança e a expressividade teatral sempre foram aliadas nas composições noverrianas.
Talvez tenha sido o contato estreito de Noverre com Garrick que permitiu ao bailarino criar e
desenvolver o gosto pelo teatro, suas dinâmicas, seus recursos e qualidades. Segundo Garaudy:
Em 1776, Noverre foi acolhido e chamado por Garrick, o maior ator shakesperiano da
época, de "o Shakespeare da dança” (GARAUDY, 1980, p. 34).
Noverre cita Garrick como exemplo e justificativa para a criação de uma dança na qual o
bailarino seria o agente transformador e comunicador em essência de uma idéia – paixão –
natureza. Naquela época, as máscaras, as perucas, os arranjos dos figurinos tendiam a eclipsar a
figura do bailarino, anulando sua expressão e sua fisionomia. Noverre acreditava que era no rosto
que as paixões se imprimiam. As máscaras e os demais acessórios usados em profusão não
contribuíam para que a expressividade se realizasse. Para ele, os bailarinos deveriam ser capazes
de transmitir seus sentimentos, afetos, prazer, dor, etc., por meio de sua fisionomia. Noverre
encontrava nas interpretações de Garrick argumento para embasar e justificar suas afirmações.
Noverre contribui, ainda, para a valorização de mais um elemento na construção
dramatúrgica: o respeito e a valorização do indivíduo que cria ou executa. Os intérpretes
deveriam ter liberdade de expressão ante os efeitos oriundos de sua movimentação, fossem estes
suaves ou violentos. Ao intérprete, caberia não só sentir, mas diferenciar as gradações que os
movimentos produzem nos traços. Para Noverre, só assim a dança poderia falar, e o bailarino,
raciocinar.
27
Conectado com os artistas e pensadores de sua época (Diderot, Lessing), Noverre quis
aproximar a arte da natureza – mimese
9
–, eliminando os ornamentos supérfluos, as caretas e as
perucas. Encorajava os atores e bailarinos a mostrarem sua personalidade e a devolverem ao
corpo sua expressividade, trazendo “para a dança um espírito novo: subordinando tudo a ação”
(GARAUDY, 1980, p. 33).
A palavra ação tem sido motivo de polêmica na história das artes cênicas. Diferentes
acepções e analogias foram criadas, segundo diferentes pontos de vista. Criaram-se diversas
derivações, como ação falada, ação física, corporal, ação básica de esforço, etc. Inúmeros
pesquisadores debruçaram-se sobre a ação no intuito de encontrar caminhos mais claros na
edificação de seus conceitos e métodos. O célebre diretor russo Constatín Stanislávski, o grande
pesquisador, coreógrafo, dançarino e teórico do movimento Rudolf Von Laban e o diretor
polonês Jerzi Grotowski, entre outros, destacaram-se entre aqueles que se dedicaram ao tema.
Vejamos como Noverre entendia e concebia a ação:
Ação em matéria de dança é a arte de transmitir à alma dos espectadores nossos
sentimentos e nossas paixões por meio da expressão viva dos sentimentos, dos gestos e
da fisionomia (NOVERRE, 1998, p. 297-298).
Verificamos, então, que a Ação para Noverre não se restringia ao que o corpo físico
produzia, mas a uma qualidade ou, ainda, capacidade de expressão de uma unidade corpórea: a
diversificação dos movimentos na perspectiva de comover e afetar a audiência. Para se alcançar
essa expressividade era necessário, sobretudo, transgredir regras condicionantes muitas vezes
oriundas dos treinamentos e da educação adotados na época. Só assim um estado anímico poderia
direcionar o movimento. Desse modo, Noverre nos confere um executar que, além da técnica,
abre espaço para uma escuta dos sentimentos e da variedade de matizes que os compõem e que
devem ser absorvidas e incorporadas. É da paixão que nascem os gestos e é o sentimento que os
impulsiona rumo a um objetivo; é a paixão e ao sentimento que não se pode escapar, sob pena de
que os gestos deixem de ser críveis.
A linguagem que Noverre buscava para realizar suas traduções, considerando não só a
dança, mas também a música – linguagem expressiva e que pudesse se tornar um ponto comum a
seduzir qualquer espectador (até os menos sensíveis) –, seria a linguagem guiada pelo
sentimento. Em suas palavras:
9
A mimese é a imitação ou a representação de uma coisa. Na origem, mimese era a imitação de uma pessoa por
meios físicos e lingüísticos, porém esta “pessoa” podia ser uma coisa, uma idéia, um herói ou um deus. Na poética de
Aristóteles, a produção artística (poiesis) é definida como imitação (mimese) da ação (praxis) (PAVIS, 1996, p. 241).
28
Para que estas artes tenham voz, elas devem dirigir-se ao coração com a linguagem que
lhes é própria e que a todos seduz, a linguagem do sentimento, por todas as nações
compreendida (NOVERRE, 1998, p. 301).
A necessidade de encontro entre palco e platéia, artista e público, o corpo que faz e o olho
que observa, é uma constante nas encenações e em seus processos de construção. A relação
desenvolvida nesse espaço, a linha sutil que separa palco e platéia, a possibilidade do encontro é
objeto de estudo de vários encenadores modernos que, como Grotowski, compreendem que “a
essência do teatro é um encontro” (GROTOWSKI, 1992, p. 48). Algo é produzido e assimilado,
ou não, pelo olho/corpo que o vê. Talvez seja de fato nesse espaço onde bordas se encontram que
se dá a construção de um sentido e de uma expressão, permitindo que o público faça o papel do
dramaturgo. Discutiremos a questão mais adiante, contentando-nos por hora em saber que
Noverre pensava e zelava pelo público e confiava que a dança podia se comunicar com ele e que
este estaria, ainda, apto a dançar junto. Segundo ele:
Eles precisam envolver o público com a força da ilusão, fazendo com que ele
experimente todos os movimentos que os animam. A verdade, o entusiasmo, que
caracterizam o grande ator e que são a alma das belas-artes, se assim ouso, exprimir-me,
são como a faísca elétrica, a chama que comunica com rapidez, envolvendo a
imaginação do espectador, transformando sua alma e obrigando seu coração a sentir
(NOVERRE, 1998, p. 308).
O bailarino também chama a atenção para as direções e os andamentos que os
agrupamentos de movimentos devem adotar em cena. Percebemos então mais dois fatores
presentes na composição. O mau uso desses fatores compromete sua clareza e precisão. Cabe ao
olhar do mestre compositor – um golpe de vista infalível – a captação desses fatores e seu
aproveitamento, pois, segundo o mestre, “é o momento que determina a composição, e a
habilidade consiste em captá-lo e aproveitá-lo a contento” (NOVERRE, 1998, p. 349).
Um olhar educado para ver e perceber o movimento, aliado ao desenvolvimento da
sensibilidade de ver e capturar o que se manifesta – um tato certeiro. Arriscar-se na captura de
um momento, que pode ser decisivo na construção dançante. Noverre nos convida para ver, e
num gesto análogo ao de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, que, em um de seus
mais célebres poemas, “O guardador de rebanhos”, também evoca a capacidade e a flexibilidade
do olhar:
29
O MEU OLHAR é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,... (PESSOA, 1980, p. 35).
Vê-los e Vê-los várias vezes (NOVERRE, 1998, p. 355). O bailarino francês julgava
fundamental para um compositor esse exercício de ver repetidas vezes, examinando e
experimentando sua construção, pois, para ele, existia um caminho a ser descoberto entre o
imaginado, ou seja, o desejo de criar, o ato de se ter uma idéia e o ato de executá-la. Consciente
do papel do receptor perante a obra, Noverre também investiga formas de afetá-lo,
potencializando seu olhar. Encontra, então, um outro elemento que julgo bastante pertinente na
composição dramatúrgica: o silêncio como elemento ativo e expressivo na encenação.
Descrevendo um de seus balés, ele afirma:
Imaginei, ainda, alguns silêncios na música que produziram o mais sedutor dos efeitos.
O Ouvido do espectador, deixando repentinamente de ser tocado pela harmonia,
permitiu ao olhar abarcar com mais atenção todos os detalhes do quadro (...)
(NOVERRE, 1998, p. 362).
Por fim, em sua busca de conferir verdade, ética, ações, energia, ardor, espírito, alma e
amor à dança, Noverre dialogou com elementos oriundos do teatro – os cenários, luzes, figurinos,
música, mas, sobretudo, com a pantomima. Construiu a base da dramaturgia dançante ao se
perguntar: como unir os mecanismos de dança a uma expressividade anímica que nos toque a
sensibilidade? O sentimento e a paixão eram o seu guia. Como “farol” de uma época, Noverre
permitiu que sua luz se irradiasse para além de seu tempo. Seu sonho era aproximar-se da
natureza através do encontro entre dança e pantomima, ainda que grande esforço fosse necessário
para convencer seus pares. Visionário, sonhador, amante das artes e principalmente da dança,
Noverre não deixou de encontrar obstáculos e opositores diante de suas descobertas,
especulações e composições, o que não impediu, segundo CAMINADA (1999, p. 122), que fosse
considerado por diversos autores como “o construtor do ballet na era moderna”. Nas palavras de
Noverre:
Em qualquer gênero, quanto mais nos aprofundarmos mais os obstáculos se multiplicam
e mais o objetivo que nos esforçamos para atingir parece distante. Da mesma forma,
Senhor, muitas vezes o trabalho obstinado traz ao grande artista somente a incômoda
certeza a respeito de suas insuficiências, enquanto o ignorante, satisfeito consigo
mesmo, em meio às mais espessas trevas, acredita nada existir além daquilo que se
vangloria de saber (NOVERRE, 1998, p. 371
).
30
2.2 O Expressionismo alemão – Tessitura visceral
Podemos detectar impulsos expressionistas em praticamente todos os tipos de atividades
artísticas. Pode-se falar em filósofos expressionistas, historiadores da arte expressionistas e
trabalhos de crítica que se encaixam nesse movimento. Vale ainda observar que muitos artistas
expressionistas envolveram-se com mais de uma forma de expressão, o que reforça a
versatilidade desse movimento. Encontramos pintores que falam de seu trabalho em termos
musicais ou poetas que, segundo Cardinal, investem pesadamente no simbolismo das cores. De
acordo com esse autor:
Foi sem dúvida um movimento de muita dinamicidade, a ponto de, ao liberar energias
de forma tão febril, criar uma impressão inicial de caos absoluto. O Expressionismo
nada mais é que uma prospecção de estados fronteiriços e posições extremas, que
freqüentemente implicam crises de indecisão e gestos hiperbólicos dirigidos
simultaneamente postular que a agonia é uma forma de êxtase. E o êxtase uma forma de
agonia. Alegria e depressão, atração e repulsão, delicadeza e brutalidade, harmonia e
tumulto, são apenas algumas antíteses incorporadas em seus argumentos ou atos
criativos. Os expressionistas podem ser obcecados pela vida urbana e, mesmo em
direções contrárias. Por vezes, os expressionistas parecem assim, ansiaram por uma vida
campestre. Consideram a individualidade como valor supremo, e apesar disso,
demonstram um notável entusiasmo pela ação coletiva. Alimentam-se de sensações,
embora busquem a dimensão supra sensória da experiência (CARDINAL, 1984, p. 17).
A dança ocupa um lugar especial dentro do movimento expressionista, sendo reconhecida
como o veículo natural deste, pois, para Cardinal, “ela implica impulsos de uma única
sensibilidade definindo seu próprio espaço expressivo” (1984, p. 56).
O Expressionismo nos oferece elementos e características que julgo determinantes e
essenciais para uma construção dramatúrgica. Dentre eles estão o sentimento, o impulso, a
intenção, a intensidade das emoções e a recepção. Verificaremos agora como esses elementos são
trabalhados por construtores que atuaram dentro do universo da dança expressionista.
31
2.2.1 Isadora Duncan – Mitologia pessoal, liberdade e revolução
(...) Mas agora, para render graças a Afrodite, olhai-a. Não é ela de repente uma verdadeira onda do mar? Ora
mais pesada, ora mais leve que seu corpo, ela salta, como chocar-se num rochedo; tomba molemente...é a onda!
Paul Valéry
Embora tenha nascido em São Francisco, no final do século XIX, mais precisamente em
1877, Isadora é reconhecida como precursora da dança expressionista alemã, devido a sua
emigração para Berlim. Ela funda sua escola em um subúrbio dessa cidade, no início do século
XX. Segundo Cardinal, Duncan:
(...) executava uma seqüência de movimentos que se desenvolviam espontaneamente em
resposta a impulsos internos, imprevisíveis e derivados de suas fontes espirituais e
emocionais (CARDINAL, 1994, p. 29).
Mais do que a técnica, Isadora agrega a vida em sua dança, dançando suas alegrias e
emoções e seus pressentimentos, ainda que obscuros. Ela pretendia e perseguia uma revolução
para os homens e acreditava que poderia, através de sua dança, “(...) exprimir os sentimentos e as
emoções da humanidade (GARAUDY, 1973, p. 58).
Assim como Noverre, Isadora tem na natureza a inspiração para realizar suas danças,
rompendo convenções acadêmicas. Aproximando-se da natureza, Isadora encontra o ritmo
(movimento de fundo) como princípio ordenador de sua dramaturgia. Como ela mesma nos diz:
Minha idéia do movimento de dança veio do ritmo das ondas... Eu tentava seguir seus
movimentos e dançar em seu ritmo (GARAUDY, 1973, p. 58).
Isadora encontra ainda outros elementos norteadores para construir suas danças.
Preocupa-se com outra constituição lógica. Ao contrário de Noverre, abomina a pantomima, que,
segundo ela, afastava a dança de seu caráter transcendente. Verificamos aí que o caráter
transcendente, para Duncan, vai além da necessidade de traduzir a dança como palavra, daí sua
recusa pela pantomima, que, para ela, “era um substituto da palavra” (GARAUDY, 1973, p. 70).
Assim, percebemos que há rupturas e também continuidades no pensamento sobre o texto
dançante. A dança é vista por Duncan como algo que se organiza em torno do movimento e não
em torno da palavra, do verbo, tendo no ritmo sua inspiração e fluência. Embora discorde de
Noverre nesse aspecto, Isadora repete e enfatiza alguns preceitos do mestre francês ao concordar
que a dança possui um poder de comunicação e comunhão, que ela deveria ser expressiva, e que
deveria ser “a expressão divina do espírito humano pelos movimentos do corpo”. O exercício da
32
escuta como orientador da dramaturgia também retorna aqui, quando Isadora, desejando
reencontrar ritmos inatos do ser, propõe, segundo Paul Bourcier, “escutar as pulsações da terra,
obedecer à lei de gravitação, feita de atrações e repulsas, de atrações e resistências” (2001, p.
248).
Duncan dialogava com filósofos, com pinturas gregas “dançantes”, com os Deuses, com a
chamada “grande” música, com a tragédia, com as nuvens, o vento, o mar e as árvores. Ouvia seu
interior e a ele confiava a ação de mover-se. A respeito das muitas vozes que se manifestavam
em seu interior, Isadora nos relata:
Minha alma era um campo de batalha onde Apolo, Dionísio, Cristo, Nietzche e Richard
Wagner disputavam terreno uns aos outros (apud GARAUDY, 1973, p. 62).
Como dançarina dionisíaca mística, irreverente, trágica ou flutuante, Isadora apontou e
abriu caminhos com seus pés nus e seus braços de nuvem, com seu corpo de árvore ou de mar.
Dançando sua vida, ela nos orienta para uma dramaturgia que só pode ser traçada com base na
própria vida do artista criador, ancorada em elementos como o ritmo, as pulsações e, sobretudo, a
liberdade de movimento. Uma dramaturgia que revela o íntimo do bailarino e permite que seus
desejos, suas aspirações, bem como decepções e frustrações se transformem em material que não
só alimenta, mas também orienta e ordena suas danças. É a experiência humana no coração da
criação. Em Duncan, assim como em Noverre, a dança faz da mecânica somente um meio para
atingir seus objetivos, e não um fim em si mesma.
Entre maio e junho de 1901, Isadora Duncan, segundo Bergsohn e Bergsohn (2003, p. 3),
apresentou-se em Paris. Sobre sua atuação, um jovem artista, na época ainda envolvido com
shows de cabaré e clubes noturnos, escreveu:
A principal contribuição de Duncan foi, contudo, que ela redespertou a forma expressiva
da dança, que poderia ser chamada de dança-lírica, em contraste com as principais
formas dramáticas do ballet.
10
Esse jovem artista viria a se tornar, posteriormente, um dos maiores estudiosos do
movimento dentro e fora da dança. Seu nome:
9 “The main achievement of Duncan was, however, that she reawakened a form of dance-expression, which could be called
dance-lyrics, in contrast to the mainly dramatic dance forms of the ballet”.
33
2.2.2 Rudolf von Laban – A life for dance
11
Ela se transforma em dança, e se consagra toda ao movimento total!
Paul Valéry
Nascido no coração do Império austro-húngaro, Rudolf von Laban (1879-1958) foi o
fundador da dança expressionista. Ele era fascinado pela diversidade de danças, culturas,
expressões e movimentos corporais. Mesmo sendo filho de um oficial militar que queria seu
alistamento nas forças armadas, Laban preferiu a vida boêmia, a pintura em vez da guerra.
Estudou durante sete anos na escola de Belas Artes de Paris e Munique, e lá descobriu que sua
verdadeira vocação era o espetáculo, sobretudo, o espetáculo dançado, acabando por montar uma
revista com dançarinos do Moulin-Rouge. Depois de estudar em Paris, retornou a Viena numa
época em que o Império estava prestes a ruir.
Toda a experiência de Laban termina por conduzir a um retorno à natureza, a um corpo
livre e saudável, assim se dá no caso de Duncan – corpo-dança: livre de repressões. Laban cria e
define estruturas do movimento, atentando-se para quatro fatores que seriam seu alicerce: espaço,
tempo, peso e fluência. Ele devolve ao espaço sua profundidade. Um corpo atuando em um
espaço móvel, dentro de um volume e em várias direções, e liberta-se da música e de sua métrica.
Peso determina dinâmica, equilíbrio e desequilíbrio. Enfim, Laban liberta o movimento de
qualquer restrição, o que permite a percepção da afinidade de suas idéias com as de um dos
grupos precursores do Expressionismo: O Cavaleiro Azul, que postulava “a harmonia total entre
alma e espírito através do movimento”.
Laban cria a "labanotação" – labanotation – método que permite a leitura de coreografias
através de partituras. O método possui princípios básicos, simples e claros: divisão do espaço em
três níveis (vertical, horizontal e axial) sobre os quais se inscrevem doze direções de
movimentos.
Talvez possamos afirmar que Laban está para a dança assim como o mestre russo
Stanislásvski está para o teatro: pesquisadores incansáveis que dedicaram suas vidas à
observação e à reflexão, à prática artística e ao registro de suas teorias. Como nos lembram
Hodgson e Preston-Dunlop:
11
Uma vida para a dança. Frase gravada na pedra tumular de Rudolf von Laban.
34
Resumindo a respeito de sua contribuição, ele simplesmente declara ter devotado toda
sua vida em pesquisar a natureza, significado e ramificações do movimento, mas o fato
que ele era capaz de transferir todo o seu entendimento sobre coreografia, dança,
indústria, interpretação, educação, terapia, conselheiro vocacional, linguagem corporal e
o treinamento de artistas de teatro é apenas uma pequena indicação de uma totalidade de
descobertas de suas teorias universalmente notáveis (HODGSON; PRESTON-
DUNLOP, 1990, p. 20)
Apresentaremos a seguir aspectos do pensamento de Rudolf Laban que possibilitam a
ampliação de nossa reflexão.
Os fatores do movimento
Independentemente do que um criador de dança escolha como tema, idéia ou objeto para
criar e desenvolver sua obra, ele terá sempre dois propósitos: expressar e comunicar. Segundo
Laban, a dança deveria se comprometer com a expressão de uma idéia e exigiria uma grande
dose de concentração para expressar-se. Uma expressão materializada em uma forma plena de
qualidades. Já não nos perguntamos agora por que nos movemos? Nem o que nos move? Torna-
se urgente interrogar-nos como nos movemos?
Um sentido. Estamos sempre buscando um sentido ao assistirmos um espetáculo.
Podemos não dar importância ao fato de termos ou não entendido uma obra, mas considerando
fundamental que ela nos traduza algum sentido. Algo parecido acontece quando vemos uma cor e
percebemos a sensação de agressividade ou passividade que nos é transmitida por ela. Assim
ocorre ao vermos um espetáculo de dança. Na maioria das vezes não capturamos seu sentido
pelos filtros da razão, e sim pelas vias da percepção. O movimento pode nos traduzir sensações,
emoções, vibrações e podemos até traçar uma narrativa para o mesmo, mas a percepção deste se
amplifica livremente dentro de cada espectador, pois, de acordo com o próprio Laban: “(...) há
também valores intangíveis que inspiram movimentos” (1971, p. 19).
Reforçando o pensamento labaniano, é mais uma vez o filósofo Roger Garaudy que nos
elucida sobre o processo de comunicação e recepção diante do movimento. Vejamos:
Toda dança implica participação, mesmo quando ela é espetáculo, não é apenas com os
olhos que a “acompanhamos”, mas com os movimentos pelo menos esboçados de nosso
corpo. A dança mobiliza, de algum modo, um certo sentido, pelo qual temos consciência
da posição e da tensão de nossos músculos.(...) Este sexto sentido estabelece, graças a
um fenômeno de ressonância ou de simpatia muscular, o contato entre o dançarino e o
participante (GARAUDY, 1980, p. 21).
Assim, o espectador capta a dança através de sua própria musculatura e de seus sentidos:
olhos, ouvidos, pele, cheiro, etc. De um lado a dança, de outro, o espectador. Existe entre uma e
35
outro um espaço que há de ser preenchido. Esse espaço é reconhecido por Laban como uma
“corrente magnética bipolar” (1971, p. 27), estabelecida entre palco e platéia. O preenchimento
desse espaço pode se dar de diversas formas e, ao pensarmos a dramaturgia da dança, poderemos
encontrar, nela, uma possibilidade de ocupar tal espaço, fazendo com que a mesma possibilite e
contribua para a conexão entre esses dois pólos.
A dança começa com a revelação de uma “idéia” que lhe inspirou a existência. O próximo
passo para que essa idéia comece a se instalar surgirá através das atitudes internas do atuante em
relação aos fatores de movimento, fazendo com que o esforço seja um orientador de sua
movimentação. Conforme registrado por Rengel em seu Dicionário Laban, “esforço é o ritmo
dinâmico do movimento do agente (...) e que comunica a qualidade expressiva do movimento”
(RENGEL, 2003, p. 60-61).
Ainda segundo a autora, Laban também usa o termo antrieb = propulsão, impulso,
ímpeto. Se considerarmos que o esforço traz a qualidade expressiva do bailarino, caberia ao
dramaturgista, por sua vez, atentar para as formas de articular essas qualidades durante a criação
e o desenvolvimento do movimento-dança. Para além da análise dos esforços, o ritmo a ser
desenvolvido se tornará protagonista no próximo momento da construção. Nas palavras de
Garaudy: “Laban observa que o ritmo é, ele próprio, uma linguagem particular que pode veicular
significado sem recorrer às palavras” (GARAUDY, 1980, p. 114).
Os fatores de movimento observados e definidos por Laban podem ser um primeiro
indicativo na construção da dramaturgia do movimento dançado. Sem dúvida, toda execução,
consciente da utilização desses fatores e das qualidades adequadas de esforço geradas pelos
mesmos, poderá causar maior aproximação ou distanciamento entre executor e receptor. A escuta
dos impulsos durante a construção da tessitura dramatúrgica é de suma importância, pois estes,
que a princípio parecem desordenados, podem, à medida que o trabalho se desenvolve, regular e
equilibrar movimentações e qualidades de expressão. Ao dramaturgista cabe perceber, escolher e
articular as qualidades de esforço, também reconhecidas com o intuito de atingir um objetivo
proposto, pois:
Um único movimento, ou uma seqüência de movimentos, deve revelar, ao mesmo
tempo, o caráter de quem o realiza, o fim pretendido, os obstáculos exteriores e os
conflitos interiores que nascem deste esforço (GARAUDY, 1980, p. 113).
36
Von Laban orienta seu trabalho para os fatores de movimento, que também podem ser
vistos como um exercício de circulação, em que cada elemento interage e dialoga com o outro.
Muitas vezes um nasce do outro, de uma necessidade indicada por uma qualidade de esforço,
pois, para Laban, movimentamos-nos para satisfazer uma necessidade.
Dança-Drama / Diálogo e fronteiraz
Von Laban não só se aproximou do teatro na infância e na adolescência, mas também
durante toda a sua vida dedicou-se ao treinamento de atores. Ele dava a mesma importância ao
corpo, seja no teatro ou na dança, como instrumento total, valorizando as peculiaridades de cada
indivíduo e suas características de esforço. Sabia que essas características eram únicas e que os
movimentos de um indivíduo iriam mostrar os efeitos de seu meio e de sua hereditariedade
artística. Laban abarcou durante sua pesquisa e criação de todo tipo de estilo em seu repertório.
Segundo Dunlop: “Linha narrativa e padrões abstratos, comédia, tragédia, histórias, sátiras,
burlescos – Tudo apareceu dentro de seu repertório” (DUNLOP, 1990, p. 26).
12
Ao observarmos danças de 1923 a 1928, percebemos como o elemento dramático é
constante, enfatizando o encontro com a teatralidade em sua expressão. Como nos informa
Rengel (2003,42):
Dança-teatro ou dança de palco, termos usados por Laban com o mesmo significado. Em
alemão, tansbühne. Dança-teatro é fusão do movimento, da música e da palavra falada.
Uma forma de dança usada por Laban como tentativa de “intensificação formal da
expressividade humana (MARY WIGMAN, 1921 apud PRESTON, 1995).
O termo “dança-teatro” ganharia mais propriedade com o aluno e colaborador de Laban,
Kurt Jooss, e posteriormente seria totalmente consolidado por uma discípula de Jooss: Pina
Bausch, como veremos mais adiante. Gostaria, porém, de chamar atenção para uma afirmação de
Laban que nos leva a uma reflexão que julgo pertinente:
Representações teatrais onde os elementos pictóricos do cenário e as naturezas mortas
são superenfatizadas tendem a enfraquecer o interesse dinâmico, que é o elemento todo-
poderoso
(LABAN, 1971, p. 31).
12
Narrative line and abstract pattern, comedy, tragedy, history, satire, burlesque – all appeared within his repertoire.
37
Se considerarmos a hipótese de que um acontecimento dinâmico tem sua força na
organização dinâmica dos movimentos, como fator poderoso da expressão cênica, poderíamos
suspeitar que a mesma pudesse também nos orientar para a construção de uma dramaturgia. De
acordo com Rengel:
Dinâmica refere-se à combinação das qualidades de esforço. Dependendo da escolha das
qualidades, é gerada um tipo de dinâmica. (...) Dinâmica é a resultante expressiva do
movimento quando duas ou mais qualidades de esforço se organizam simultaneamente
(RENGEL, 2005, p. 44).
Os movimentos dançantes, ao entrarem em diálogo com outras artes, não estariam criando
uma nova dinâmica como fruto desse encontro? Assim, poderia a escuta e a tessitura das
dinâmicas geradas pelos movimentos dançantes ser parte do fio condutor de uma dramaturgia?
Para Laban, “o que realmente acontece no teatro não se dá apenas no palco ou na platéia, mas no
âmbito de uma corrente magnética entre esses dois pólos” (1971, p. 26). Laban irá se referir
posteriormente aos impulsos internos que irão ajudar a estabelecer esse contato e complementa
trazendo à tona o caráter dinâmico como elemento essencial à representação.
Esse elemento “todo poderoso” referido por von Laban é também reconhecido por
Rudolph Arnheim, que se surpreende como o fato de que teóricos e pesquisadores lhe
atribuíssem pouco valor:
Considerando que a dinâmica é a própria essência da experiência perceptiva e assim
prontamente reconhecida por poetas, artistas e críticos, é de se notar que teóricos e
pesquisadores lhe tenham dado tão pouca atenção (ARNHEIM, 2005, p. 409)
Arnheim complementa sua argumentação ao revelar, ainda, que:
A natureza dinâmica da experiência sinestésica é a chave para a surpreendente
correspondência entre o que o dançarino cria com suas sensações musculares e a imagem
do corpo vista pelo público. A qualidade dinâmica é o que unifica os dois diferentes
meios
(ARNHEIM, 2005, p. 398).
Tomada como fator responsável por dar nexos e circulação de sentido ao movimento
dançado e como tecedora das ações teatrais, a dramaturgia se torna, aqui, um elemento também
responsável por realizar a ponte entre esses dois pólos –palco e platéia –, através da percepção e
da articulação das dinâmicas criadas dentro dessa zona de encontro e diálogo.
Assim, a dinâmica de ações que dançam ou dos corpos idílicos que atuam será também
ressignificada, criando uma nova dimensão sinestésica para o intérprete e o espectador, bem
como entre os mesmos. Cabe ao dramaturgista não somente fazer com que essa dramaturgia que
38
une margens seja tecida com foco nas ações ou nos fluxos de movimento, mas também estar
atento à tessitura das dinâmicas resultantes desse encontro. Ele deve perceber e equilibrar
identidades que ora amalgamam-se, ora colidem ou traçam seus cursos lado a lado, fazendo com
que esse intervalo venha à luz. Mais uma vez, é Arnheim que nos apresenta a dinâmica como um
núcleo gerador de sentido:
Finalmente, é essencial para a execução do dançarino e do ator que a dinâmica visual
seja claramente separada da mera locomoção. Eu percebo que o movimento parece
morto quando dá a impressão de mero deslocamento. É claro que fisicamente todos os
movimentos são causados pela mesma espécie de força, mas o que conta para a execução
artística é a dinâmica transmitida ao público visualmente, porque apenas a dinâmica é
responsável pela expressão e significado
(ARNHEIM, 2005, p. 399).
Assim, por meio da união entre música, palavra e movimento, Laban nos oferece uma
dramaturgia cujos elementos são os próprios fatores do movimento pesquisados e desenvolvidos
por ele, terminando por gerar uma dramaturgia com base na escuta e na percepção das dinâmicas.
2.2.3 Mary Wigman – A essência expressionista e a formatação do caos
“- Coisa nenhuma, caro Fedro. Mas qualquer coisa, Erixímaco. Tanto o amor quanto o mar, e a própria vida e os
pensamentos... Não sentis que ela é o ato puro das metamoforses?”
Paul Valéry
O expressionismo caracteriza-se basicamente pela expressão de impulsos interiores do ser
humano (violentos, no caso de Wigman), revelando necessidades urgentes, transformadas em
movimentos vitais. Esses impulsos tinham como base uma grande concentração e, quando
ordenados, demonstravam grande poder de expressão. Mary Wigman (1886-1973) embasou sua
dança nesses impulsos internos, permitindo ao bailarino expressar-se através de uma grande
liberdade individual, calcada a princípio na percepção de seus instintos, para só posteriormente
formatá-los tecnicamente. Assim, poderíamos dizer que, se Laban libertou a dança, Mary
Wigman libertou o dançarino. Dentre os dançarinos expressionistas, ninguém mais do que
Wigman sentiu e materializou a presença do trágico, da angústia e do dilaceramento em suas
danças. Todos esses sentimentos nasceram como fruto de sua convivência e sobrevivência
durante o período em que o mundo passou por duas grandes guerras mundiais, que tiveram a
Alemanha como protagonista do conflito. Wigman era essencialmente germânica, e como ela
39
mesma nos diz ao reconhecer o seu fazer em suas origens: “Meu país, minha língua, meus
sentimentos, pensamentos, minha dança” (ver referência em bibliografia/filmes).
Luz e trevas, Apolo e Dionísio, artes plásticas (máscaras) e literatura, demônios e
divindades, violência e paixão, êxtase e forma, repugnação e fascínio – esses são os diálogos em
que a bailarina, professora e coreógrafa se lança. Em suma, diálogos entre vida e morte.
Após desvincular-se de Dalcroze
13
, Wigman, aconselhada por Emil Nolde
14
, que exerce
grande influência em sua vida, procura por Laban, com quem acaba por estabelecer uma
fascinante identificação. Assim, Wigman tornou-se amiga e assistente de Laban entre os anos de
1913 a 1919. Ambos sofriam influências dos dadaístas
15
e faziam parte do grupo de artistas que
freqüentavam o movimento. No ano de 1920, rompe agressivamente com Laban e o deixa,
seguindo para uma carreira solo. Ela não acreditava que o balé clássico e a dança moderna
poderiam conviver dentro de uma mesma estrutura de formação e expressão do dançarino.
Fazendo do trágico, do êxtase e da morte motivos de inspiração e diálogo para criar e desenvolver
suas danças, Wigman vem reforçar, mais uma vez, a construção de uma dramaturgia com base na
escuta das pulsões e dos sentimentos como norteadores da criação e da composição. A liberdade
creditada aos bailarinos faz com que estes entrem em contato com suas pulsões mais obscuras,
das quais o movimento deveria emergir, ser “explodido” e lançado para fora do corpo. Tessitura
de explosões arrebatadoras e dilacerantes traduzidas em uma dança de elementos dramáticos que
dialogavam, sobretudo, com a morte – assim era a dramaturgia de Wigman. A crença em seu
fazer lhe garantiu o direito à vida, ainda que atingisse uma forma “degenerada”, como seus
conterrâneos nazistas chegaram a afirmar.
13
“Compositor e professor de música nascido na Áustria e naturalizado suíço em 1865, desenvolveu um sistema de
treinamento da sensibilidade musical que foi denominado eurritmia, baseado no movimento rítmico. (...) Entre seus
discípulos de enorme importância podemos citar Mary Wigman e Ivone Georgi” (CAMINADA, 1999, p. 203).
14
Emil Nolde (1867-1956), cujo verdadeiro nome era Emil Hansen, foi um dos mais importantes pintores
expressionistas alemães. Os seus quadros, tal como pretendia, chocavam o espectador, devido à vivacidade das cores,
que contrastavam abusivamente umas com as outras, à deformação dos rostos das personagens retratadas, à distorção
das perspectivas e ao excessivo uso de tinta.
15
O movimento Dada ou Dadaísmo foi uma vanguarda moderna fundada em Zurique, em 1916, por um grupo de
escritores e artista plásticos. O Dadaísmo é caracterizado pela oposição a qualquer tipo de equilíbrio, pela
combinação de pessimismo irônico e ingenuidade radical, pelo ceticismo absoluto e improvisação. Enfatizou o
lógico e o absurdo (...) Sua principal estratégia era mesmo denunciar e escandalizar.
40
2.2.4 Kurt Jooss – O novo “balé de ação”
Seus olhos voltaram à luz.
Paul Valéry
Tendo crescido em um lar onde música e teatro se faziam presentes em larga escala, o
jovem Kurt Jooss (1901-1979), revelou-se desde cedo um garoto talentoso (tocava piano e
realizava experimentos coreográficos). Foi através da dança que ele encontrou respostas para
suas insatisfações. O encontro com Laban foi determinante em sua vida, levando-o a superar a
dúvida entre se dedicar aos negócios da família (no caso, a agricultura) ou à dança e a decidir-se
definitivamente pela profissão de dançarino. Em seu depoimento, podemos observar o poder
entusiástico que a dança exerceu sobre ele, ao “visitá-lo” e envolvê-lo completamente. Vejamos:
“A dança, pela qual, eu me mostrava desatento, veio até mim, e eu fui um ser adormecido que
despertou com a brilhante luz do sol da manhã”
16
(apud BERGSOHN; BERGSOHN, 2003, p.
17).
Do o ponto de vista labaniano, ainda segundo os autores citados acima, “Jooss apareceu
na hora certa. Ele era exatamente o que Laban precisava, uma pessoa que poderia conservar todo
material que Laban havia formulado”
17
(BERGSOHN; BERGSOHN, 2003, p. 19).
Jooss teve uma rápida ascenção no mundo da dança, tanto como bailarino, quanto como
pedagogo e diretor-coreógrafo. Em 1927, ele foi convidado a dirigir o departamento de dança da
Folkwang School, que seguia as idéias de Laban, ou seja, a combinação entre palavra, dança e
música. Aliando elementos do balé clássico com a dinâmica e a expressividade da dança
moderna, ele abre espaço para o diálogo com outras artes, principalmente com o teatro (a
dramaticidade teatral), fortalecendo o conceito de dança-teatro. Ao mesmo tempo, funda o
Ballets Jooss, no qual desenvolvia suas próprias produções. Em suas palavras, em 1928, Jooss
explica:
Nosso objetivo é sempre a dança-teatro, entendida como forma e técnica de coreografia
dramática, preocupada de perto com o libreto, a música, e acima de tudo com os artistas
intérpretes. Na escola e no estúdio, a nova técnica de dança deve ser desenvolvida em
16
“(...) The dance, of which I was unaware, came to me, and I was one sleeping being awakened by bright morning
sunlight”.
17
“Jooss came along at just the right time. He was exactly Laban needed, a person who could retain all the material
that Laban had formulated”.
41
busca de um instrumento objetivo não pessoal para a dança dramática, a técnica do balé
clássico a ser gradualmente incorporada.
18
(BERGSOHN; BERGSOHN, 2003, p. 26).
É interessante observar que a proposta de Jooss era na verdade um diálogo entre danças
que, para terem um significado, careciam de um assunto concreto. Considerava que, para uma
dança dramática ser compreensível sem a utilização das palavras, ela deveria intensificar sua
gestualidade. Assim, Kurt Jooss aproxima-se bastante das idéias da dramaturgia noverriana,
fazendo com que Garaudy visse seu trabalho como uma “versão século XX do balé de ação”
(1973, p. 121).
Sua principal obra, A MESA VERDE
19
, um teatro sem palavras cujo libreto levou cerca de
dez anos para ser concebido, ganha notoriedade e reconhecimento de todo o meio artístico dentro
e fora da Alemanha, e até os dias de hoje é ainda constantemente apresentada.
Assim, podemos suspeitar que a dramaturgia realizada por Jooss (no caso, A MESA
VERDE, única obra a cujo vídeo tivemos acesso – ver referência em bibliografia/filmes)
encontra-se na fronteira com a dramaturgia teatral, devido ao seu próprio desejo de manter acesa
a teatralidade no coração de sua obra. Teatralidade verificada na configuração de personagens, na
qualidade dos movimentos executados em coerência com os personagens criados e na
apresentação de uma narrativa linear. Uma dramaturgia construída dentro de uma narrativa com
características épico-dramáticas, na qual Jooss equilibra a idéia com a forma (elementos clássicos
e modernos). Uma idéia, uma fábula em que podemos ver e “ler”, por meio do movimento
dançado, uma trama realista. Um encontro entre forma e significado que, assim como em
Noverre, ora faz uso da dança, ora da pantomima.
18
“Our aim, is, always, the dance theater, understood as form and technique of dramatic coreografhy concerned
closely with libretto, music, and, above all, with the interpretive artist. In school and studio the new dance technique
most be developed toward a non-perrsonal objective tool for the dramatic dance, the techinique of tradicional clasical
ballet to be gradually incorporated”.
19
“Animado por um poderoso sopro de cólera, este balé é uma denúncia satírica da guerra, dos que dela se
aproveitam e dos políticos que a geram” (GARAUDY, 1973, p. 121).
42
2.2.5 Pina Bausch – Dramaturgia da subjetividade
“(...) Pergunto-me como a natureza soube esconder nessa menina tão frágil e tão fina um tal monstro de força e
prontidão”.
Paul Valéry.
Pina Bausch (1940) não escreve e não gosta de dar entrevistas; e nas raras vezes em que o
faz, é freqüentemente lacônica, não chegando a objetivar suas respostas. Diante de ávidos
entrevistadores, ansiosos por obter respostas referentes aos seus processos de trabalho, criação e
construção dos espetáculos, ela se esquiva, apresentando como resposta somente um “... não sei,
talvez”. Seus segredos nunca são totalmente revelados. Pina Bausch mantém um mistério em
torno de seu fazer, de suas escolhas de material e do modo como os organiza. Responsável pela
renovação da dança alemã no final do século XX, juntamente com outras duas grandes
coreógrafas – Susane Linke e Rainhield Hoffman –, talvez possamos considerá-la como a maior
artista de dança do século XX, e que adentra o século XXI. Bausch está sempre nos
surpreendendo, como o próprio ser humano. É nos indivíduos e nas relações criadas e
desenvolvidas por eles e entre eles que ela está interessada.
Nascida em Solingen, Pina, quando criança, escondia-se debaixo das mesas do café de
que seu pai era proprietário na cidade. E parece que a atitude de observar o indivíduo e as
relações humanas, repletas de contrates, marcou fortemente a menina, que, quando adulta,
materializaria essa atitude em seu trabalho como coreógrafa diretora do Wuppertal Tanztheater,
cargo que assume desde 1973. Em suas palavras: Eu me interesso mais por ver as pessoas na
rua, do que ir assistir a um espetáculo de balé” (BAUSCH apud Bentivoglio, s/d, p.3).
A dramaturgia de Pina é a dramaturgia do homem, da vida cotidiana e de suas relações.
Pina tece diálogos não só entre a dança e o teatro, mas também entre a dança e a ópera, entre os
contrastes e sentimentos como popular e erudito, alegria e tristeza, solidão e afetividade, ternura
e violência, realidade e subjetividade. Promove, ainda, relações dialógicas entre culturas. Muitas
vezes, ocorrem diálogos paradoxais que acabam por resultar em um distanciamento. De acordo
com Cypriano:
Sob o ponto de vista da encenação, Bausch dialoga com certas propostas de outro
alemão, determinante para a cena teatral no século XX: Bertolt Brecht (1898 – 1956) e
seu teatro épico. O efeito de distanciamento Brechtiano como estratégia para evitar o
ilusionismo do teatro está presente em várias peças da coreógrafa, como nos momentos
em que a luz da platéia é acesa para os bailarinos interagirem com o público
(CYPRIANO, 2005, p. 29-30).
43
A preocupação com a recepção também é parte fundamental da dramaturgia de Pina
Bausch. Ela possibilita ao espectador ser um atuante e desenvolver uma relação ativa dentro do
espetáculo. O espectador se torna livre para perceber a encenação e chegar a suas próprias
conclusões sobre o mesmo. Vejamos o que nos diz mais uma vez Fábio Cypriano, em uma de
suas observações sobre o trabalho da diretora:
(...) Bausch chama a atenção do público para sua importância na participação da
encenação da dança-teatro, provocando uma equação palco = público; portanto, o que lá
se observa refere-se à construção de quem está assistindo ao espetáculo (CYPRIANO,
2005, p. 107).
Mais adiante, o autor reforça a relação entre palco e platéia como parte essencial da
dramaturgia bauschiana, fazendo com que o espectador, “imerso entre a delícia e a desgraça,
possa emitir o seu juízo”:
Assim o espectador das peças de dança – teatro de Pina Bausch deve ter uma função
ativa, de criar suas próprias relações e lidar com ambivalências. Ele deve atuar como um
“co- autor” (...)
(CYPRIANO, 2005, p. 114).
Vale lembrar que essa preocupação com o diálogo entre palco e platéia já era uma grande
referência nos fundamentos do expressionismo alemão. Pina foi aluna de um grande mestre, Kurt
Jooss, a quem especialmente reverencia. Tendo estudado na escola fundada por Jooss – Essen
Folwfang Schulle –, onde ingressa em 1955, Pina assume que essa foi uma grande influência em
sua vida artística. As relações dialógicas construídas em seu trabalho certamente foram
influenciadas por sua formação lá, pois como ela mesma comenta:
O magnífico daquela escola, ao lado dos meus eminentes professores Kurt Jooss, Hans
Züllig, Jean Cébron e outros, era que havia tantas coisas a aprender e todas despertavam
a imaginação: a dança clássica e a moderna, o folclore europeu. Particularmente
importante era que, na época, todas as seções se achavam sob o mesmo teto: a música, a
ópera, a dança, o teatro, fotógrafos, escultores, gráficos, designers de tecidos, tudo isso
podia ser mutuamente desfrutado. E nada mais natural que se conhecesse de tudo um
pouco. Desde então não consigo ver sem espaço. Vejo também como um pintor ou
fotógrafo vê. Essa visão espacial, por exemplo, é um componente bem importante do
meu trabalho
20
(BAUSCH apud NESTROVSKI; BOGÊA, 2000, p. 11).
Assim, Pina nos aponta as possíveis articulações que a dança pode promover, ao valorizar
o diálogo entre as disciplinas.
O princípio de seu trabalho, poderíamos também chamar de seu “método” de criação, é
baseado em perguntas feitas aos bailarinos. Essas perguntas podem ser respondidas com
20
Parte do discurso proferido em Bolonha (1999) ao receber o título de doutora honoris causa da Universidade de
Bolonha, Itália.
44
movimentos, palavras ou por ambos. A improvisação não faz parte desse universo, pois os
bailarinos têm tempo para pensar e preparar as respostas que serão apresentadas. Perguntas de
toda ordem e natureza povoam esse início de processo. No entanto, o que vai ser escolhido,
trabalhado e articulado só mesmo ela sabe. As músicas que acompanham as cenas, muitas vezes,
também são bastante variadas e nem sempre criam uma unidade melódica.
Pina cria em cena um caleidoscópio de imagens realistas e ficcionais, expõe contrastes,
revela sentimentos, recria a natureza, que se torna um prolongamento dos corpos dos bailarinos.
Quando utiliza a palavra, esta vem impregnada por um ritmo que é próprio do movimento
dançado e de sua organização. Seus personagens são, na verdade, prolongamentos dos próprios
indivíduos (bailarinos), que se transformam em “pessoas cênicas”. O universo cênico de Pina
revela um diálogo entre dança e dramaticidade. Seus espetáculos apresentam-se normalmente
como colagens, como uma colcha de retalhos, salvo alguns poucos, como Café Muller (1978) e A
sagração da primavera (1975), que se constituem como espetáculos de dança em sua totalidade.
A sagração da primavera de Pina Bausch, segundo Bentivolglio, apresenta-se como uma peça
(bailado) “que alcança uma crueza dramática sem laivos de optismo, tendo em conta (como na
versão original de 1913) a violência do grupo social perante a donzela (a eleita), predestinada ao
sacrifício propiciatório” (BENTIVOGLIO, 1991, p. 50).
Já sabemos, portanto, que muitos elementos povoam a cena bauschiana, no entanto fica a
pergunta: como podemos ter uma sensação de unidade, em um espetáculo, em que a colagem de
cenas, músicas, intenções, textos corpóreos e sonoros não se faz segundo uma lógica formal?
Como e o que articula a encenação? Como se dá, afinal, essa dramaturgia? Talvez a resposta
esteja na declaração da própria diretora: “Há algo muito mais sério do que o público em geral
pode ver. Está e está ali, porém não se mostra (...)”
21
(BAUSCH apud BENTIVOGLIO; s/d, p.
11).
Assim, por mais que revele um corpo mais real que o texto, que perfure intimamente
nossas emoções e escancare sentimentos e necessidades de relação entre os seres humanos, Pina
Bausch sabe que existe sempre algo que não se mostra, algo que nunca se diz, mas que se
percebe, se escuta e atravessa nosso corpo. Assumindo a subjetividade resultante da conexão
entre os elementos cênicos que compõem sua obra dramatúrgica, como movimento e palavra,
21
Trecho de entrevista concedida a Leonetta Bentivolglio.
45
dança e teatro, realidade e ficção, desejos e expectativas, pulsões, medos, anseios, ternuras,
alegrias e sentimentos – algo que existe entre eu e outro –, fragmentando, dissociando gesto e
palavra e buscando distanciamentos, Bausch nos apresenta uma dramaturgia de travessias, de
ausências, do não revelado.
46
2.3 A corrente americana – Continuidade e ruptura
Os Estados Unidos foram, talvez, o país que mais contribuiu para a construção da dança
moderna. O país gerou vários criadores, escolas e movimentos, que ampliaram o conceito de
dança, a reflexão e a discussão sobre o movimento e seus significados. Nessa geração de
criadores, novamente percebemos o aparecimento de rupturas de estilos, em um movimento no
qual verificamos claramente a divisão de ramos estéticos.
Dentre os criadores que trouxeram novas percepções sobre a dramaturgia, a composição
da cena, o trabalho dos bailarinos e a relação entre forma, expressividade, significados e
comunicação, ainda que de forma radicalmente diferente, estão Marta Graham, Doris Humphrey
e Merce Cunningham. Contudo, essas rupturas tiveram como base, como ponto de partida, alguns
precursores: Isadora Duncan, que já tratamos anteriormente, Ruth Saint Dennis e Ted Shawn, que
juntos criaram a Denishawn (Escola e Companhia)
22
. Sobretudo, foi através das sementes
lançadas por um “cantor semifracassado” que se alicerçaram as bases da dança moderna no
Ocidente. Trata-se do francês François Delsarte
23
, que, embora não se interessasse pela dança,
deixa um grande estudo cientificista – “A estética aplicada” –, no qual apontava teorias que se
debruçavam sobre as relações conceituais de expressividade e significação dos gestos, sugerindo
a observação das relações de intensidades entre sentimento e tradução gestual. As teorias
delsartianas influenciaram Isadora Duncan, por intermédio de Geneviéve Stebbins (discípula de
Delsarte), com quem estudou, e compuseram o quadro das diferentes disciplinas da Escola
Denisshawn.
22
Antes de mais nada reivindica a ruptura completa com a dança tradicional, o que realiza recorrendo às danças
orientais. Não que conheça exatamente as técnicas e os estilos, mas assimila seu espírito; no plano mental, considera
que são as liturgias que colocam o dançarino em contato com a divindade (...) No plano técnico, utiliza todo o corpo,
considerado o tronco – e não mais os membros inferiores – como ponto de partida de qualquer movimento; busca
reforçar a impulsão nervosa situada no plexo solar, de modo que cada músculo esteja imediatamente disponível para
traduzir o impulso. Aí está a idéia essencial de toda a técnica moderna” (BOUCIER, 2001, p.263).
23
Teórico de grande importância, nascido em 1811, cantor da Ópera Comique, começou seu trabalho de investigação
entre voz e o gesto a partir da perda da própria voz. Usando métodos pouco convencionais, baseados na observação
de bêbados, loucos ou moribundos, a eles associou música, partindo para a formulação de uma teoria através da qual
criou uma análise de sistematização dos gestos e expressões do corpo humano. Subdividiu-os em três categorias:
gestos concêntricos, excêntricos e normais. Estabeleceu também três zonas de expressão: cabeça, tronco e membros
(...) Foi também o precursor das primeiras teorias sobre contração e relaxamento, que dariam sustentação aos
princípios de uma parte da dança moderna, partindo de uma posição totalmente encolhida para uma extensão plena,
que permitisse até a possibilidade de exprimir emoções (...) (CAMINADA, 1999, p. 201).
47
Saturada de dançar segundo os preceitos dessa escola, acabando por abandoná-la e seguir
suas próprias intuições para a construção de uma carreira, a princípio, solo, encontramos uma
artista que, para além de bailarina e coreógrafa, foi, como nos lembra Garaudy, “dramaturga de
um mundo sem deus e sem unidade humana” (1973, p. 94). Essa artista transformou-se, por meio
de um movimento transgressor, em um nome extremamente representativo da dramaturgia na
dança moderna:
2.3.1 Marta Graham – O estreitamento entre a dança e o drama
Gostaria de ser conhecida como contadora de histórias (GRAHAM, 1993, p. 182).
Tudo que faço tem uma razão, uma razão muito precisa (GRAHAM, 1993, p. 97).
Creio que se deve ter uma técnica demoníaca (GRAHAM, 1993, p. 177).
(...) Mas a arte é eterna, pois revela a paisagem interior, que é a alma do homem (GRAHAM,
1993, p. 11).
O movimento nunca mente (GRAHAM, 1993, p. 12).
Seu corpo diz o que as palavras não podem dizer (GRAHAM, 1993, p. 15).
Nesse recorte de frases extraídas de seu livro Memórias do sangue, Marta Graham (1894 -
1991) nos dá pistas sobre sua necessidade urgente de expressão, sobre seu desejo de dançar os
anseios humanos. Graham dançou a realidade de seu tempo, cultivou suas raízes, valorizou suas
memórias e seu país. Acreditou no homem, preservou sua liberdade e seus instintos. Dramática,
intensa, explosiva, brusca e vigorosa, de forma expressionista dançou a agonia, o sonho e o
horror, as misérias e as glórias da humanidade, o prazer e o êxtase. Criou sua própria técnica,
revelando por meio dela suas paixões, repulsas e sua poesia. Segundo Caminada: “(...) foi, sem
dúvida, o nome mais importante da dança moderna” (1999, p. 225).
Se analisarmos suas criações à luz da dramaturgia, veremos que Graham contribuiu, em
suas composições, para dramaturgia do movimento dançado, sobretudo, com um corpo que deve
ser significante, como tradutor da força das emoções. O movimento/corpo em sua dança é um
instrumento de narrativas cujas ações se encontram apoiadas nas pulsões emotivas,
materializadas em diversas obras criadas pela coreógrafa-dramaturga. Essas obras, conforme nos
indica Garaudy, inspiravam-se em outras artes como:
48
(...) a pintura de Picasso, as pesquisas abstratas e os livros de Kandinsky sobre O
Espiritual na Arte, a música de Bela Bartok, o surrealismo de T.S. Eliot, e também a
psicanálise de Freud e de Jung (GARAUDY, 1973, p. 95).
A partir de inspirações como as citadas acima, Graham dialogou com inúmeros temas,
como os mitos, tanto gregos (Electra, Clitemnestra, Édipo e Jocasta, Teseu, Circe, o Minotauro)
como indígenas e tradicionais (Night Chant, Appalachian Spring, Frontiers). Graham, que possui
uma obra coreográfica imensa, dialogou ainda com poemas, temas religiosos, personalidades
femininas, as relações entre os sexos, protestos contra a violência (referência à ditadura espanhola
de Franco), a barbárie de Guernica e também com o próprio corpo e suas obsessões, como no
célebre solo “Lamentations”.
Em suas “manifestações” coreográficas, percebemos a evidência de um movimento
repleto de intenções, na tentativa de revelar as profundidades da alma do ser, levando-a a
expressar conceitos para além da palavra. Para atingir seus objetivos, Marta Graham cria sua
própria técnica, base da forma de seus desenhos corpóreos. Nessas formas, o corpo retrata suas
tensões, ilustrado por torções num jogo permanente de oposições, dilatações, contrações e
relaxamentos. A idéia-movimento da expansão e do recolhimento pontua a síntese de sua técnica.
As paradas bruscas, a interrupção do movimento, eram também uma marca significativa em sua
obra. Graham desejava que a ação de interromper o movimento fizesse com que o espectador
desse continuidade ao mesmo, imaginando sua execução. Movimento que, com base nas leis
vitais da respiração (inspiração, pausa, expiração, pausa), unificava no corpo o próprio ato de
viver. Graham relacionava, assim, o ato de dançar com o ato de viver (encontro de fluxos). Um
corpo que traçava linhas de forças, de construção e tensões internas. Podemos resumir a
concepção dos movimentos de Graham, segundo Garaudy, em quatro princípios:
1 – A metamorfose do ritmo;
2 – A intensificação dinâmica;
3 – A relação gravitacional;
4 – A totalidade.
Na articulação desses elementos, objetivados dentro da exposição de um tema e aliados,
na maioria das vezes, à simbolização de uma história, ou em diálogo com esta, Graham constrói
suas narrativas dilacerantes, apaixonadas, viscerais e vivas. Não podemos deixar de lembrar que a
composição cenográfica também esteve sempre presente na obra de Graham, contribuindo para o
49
caráter simbólico de suas criações. Ela encontrou e desenvolveu parcerias não só com artistas
plásticos, mas também com escritores e músicos. Embora tendo na dramaticidade, nas memórias
emotivas e na caracterização de personagens os elementos constitutivos de suas encenações,
poderíamos dizer que, sob seu ponto de vista, a dramaturgia de sua dança se aproxima da
dramaturgia teatral. Nas palavras de Garaudy:
Para Marta Graham, a dança e o teatro são uma coisa só. Primeiro porque, para ela, o
teatro não é espetáculo, mas participação (...) (GARAUDY, 1973, p. 97).
Além disso, Marta acredita ser o teatro muito mais que a arte da palavra, o que lhe
permite traçar semelhanças com a dança. Segundo ela, o teatro é composto por “(...) um jogo de
formas e movimentos não realistas, mas significativos e provocantes (...)” (GARAUDY, 1973, p.
97).
Deduzimos, assim, a construção de uma dramaturgia narrativa, não organizada pela
palavra nem mesmo apenas pelo movimento, mas, sobretudo, uma dramaturgia das emoções.
Emoções que orientam a organização não só dos desejos, como também do sentido objetivado.
Emoções que impulsionam, atravessam o corpo e que, à medida que são reguladas e articuladas
em suas intensidades, revelam o movimento. A dramaturgia de um corpo tradutor de emoções e
histórias urgentes de expressão, pulsantes, e que, por fim, celebram A VIDA.
2.3.2 Doris Humphrey – “Entre mundos mortos”
Assim como Marta Graham, Doris Humphrey (1895-1958) desligou-se da Denishawn.
Insatisfeita com a falta de autenticidade com que Saint-Denis e Ted Shawn apropriavam-se dos
movimentos de outras culturas e tradições, expressando-as superficialmente, Doris aliou-se a
Charles Weidman
24
e criaram sua própria companhia.
Embora tenha tido menos visibilidade do que Graham, em razão de seu caráter
introvertido, compartilhava com ela algumas afinidades para criar suas danças, dentre elas o
desejo de expressão calcado nas necessidades do ser humano, de sua nação e de seu tempo.
Dedicou-se mais ao trabalho de formação, não deixando, contudo, de criar uma obra extensa (em
24
“ (1901-1975) Interessante e original neste artista é o fato de ele ser mais um homem de teatro do que um
dançarino, tendo desviado, assim, a dança moderna para as necessidades cênicas. Antes dele, Ruth Saint-Denis e Ted
Shawn tiveram a tendência de expor estados emocionais de maneira, de certa forma, linear. Sob a influência de
Weidman, a geração saída da Denishawn associará a ação dramática à pintura dos estados d’alma, pois a
teatralização reforça a expressão do corpo, tornando-a mais compreensível para o público“ (BOURCIER, 2001, p.
265).
50
torno de 50 coreografias). Humphrey também desenvolveu danças em permanente diálogo com
diversos temas, como o silêncio (“Water Study” – 1928), o misticismo (“Passacale e fuga em dó
menor“ – 1938) e poemas (“Lament”). A música também teve um caráter relevante em sua obra,
utilizada ora para criar um ambiente, um clima para que o movimento se instalasse, ora para
contrastar com o mesmo. Não só as inquietações e os problemas do homem moderno ocupam
espaço em sua obra, mas também reserva lugar à abstração, retratada na peça coreográfica
“Canonade” (1944).
Analisando dramaturgicamente suas composições, verificamos que Doris Humphrey
utilizou-se da estratégica da simultaneidade ao compor “Inquest”. Segundo Boucier:
(...) Inquest, último balé de que participará e que comporta dois quadros simultâneos: o
que descreve os fatos e o que exprime os estados emocionais decorrentes (BOUCIER,
2001, p. 268).
Criou uma técnica genuína, conhecida como “fall-recovery” (queda e recuperação),
conceituada por ela como um “drama muscular”. Nessa técnica percebemos a concentração do
movimento fundamentada no equilíbrio, na ação de ceder o peso do corpo à gravidade para logo
em seguida recuperar sua verticalidade. Assim, o dançarino trafega entre duas oposições,
construindo um sentido revelado como a própria ação de viver. Viver, dançar entre oposições,
dentro de um fluxo que circula em todo ser humano. O ato de cair e se recuperar traz
dramaticidade ao movimento e, por conseqüência, leva à organização de seqüências rítmicas
motoras que se formam na inter-relação entre o corpo e o espaço. Contudo, Humphrey não se
contentou em fundamentar seu fazer apenas nesses princípios, e desenvolveu uma reflexão
valiosa, que contribui para ampliar as bases desta pesquisa. Classificou os gestos (sociais,
funcionais, rituais e emocionais), distinguiu movimentos (simétricos e assimétricos, angulosos e
arredondados) e fundamentou os elementos de sua composição coreográfica (motivação, ritmo,
dinâmica e desenho).
Sobre a conceituação gestual de Humphrey, Garaudy afirma que “os gestos emocionais,
os mais importantes para o bailarino, são os gerados espontaneamente por nossos sentimentos”
(GARAUDY, 1973, p. 123).
Mesmo que essa conceituação estivesse na base de sua criação, é a própria Humphrey que
a amplia, por entender que o gesto não traduz um sentimento na sua inteireza, pois a dança não é
mímica. Assim, ela encontra na qualidade do movimento a resposta para que a transformação
51
aconteça e o movimento não seja simplesmente representativo e superficial. Humphrey acredita
que o atuante deve não somente imprimir ao movimento força interior, mas criar a conexão entre
essa força e “(...) o ritmo voluntário de sua vida, criadora e militante, em favor do advento do
homem humanizado” (GARAUDY, 1973, p. 125).
Quanto aos elementos de sua composição coreográfica-dramatúrgica, verificamos que o
ritmo presente no ato de cair e recuperar-se, movimento presente nas ações humanas,
proporciona um preenchimento do espaço entre o que ela chama de “dois tempos mortos”. – um
tempo de inação na vertical e um tempo de abandono, surgido do efeito da queda. O entre-lugar
está mais uma vez presente no conceito de dramaturgia.
Um segundo elemento a ser notado é o dinamismo, isto é, “as mudanças de intensidades”
(GARAUDY, 1973, p. 128). Aqui, assim como já mencionado quando tratamos de Laban, as
dinâmicas têm um papel central na tessitura dramatúrgica, pois veiculam diferentes intensidades
que, conforme articuladas e reguladas, possibilitam diferentes significados e compreensões do
objetivo, da idéia proposta. As dinâmicas são descargas de forças que podem ser conduzidas de
diferentes maneiras, possuir diferentes acentos, sugerir prolongamentos e pausas bruscas. A
diversidade de tônus que pode ser apresentada no movimento produz diferentes significados.
Dentro da utilização da dinâmica, Doris Humphrey distingue os movimentos, como, por
exemplo, os arredondados, os circulares, os agudos. Segundo Garaudy
Alguns movimentos se prestam mal a esta descarga de forças: a curva, por natureza, é
doce e contínua, e mais ainda os movimentos circulares, assim como as oscilações dos
ombros e do quadril. Tais movimentos só podem ser marcados por um acento se forem
cortados por uma parada brusca. A variedade desta gama permite comunicar os
sentimentos: um movimento dinâmico com seus acentos bruscos, é estimulante; um
movimento lento e contínuo é calmante (GARAUDY, 1973, p. 128).
O desenho (simétrico ou assimétrico) é o próximo elemento a ser observado, tendo em
vista que sua finalidade é permitir que a emoção se torne visível. Para Doris, é da experiência no
cotidiano que ele surge, bem como dos hábitos que o corpo recebe e absorve. Os desenhos, em
suas diferentes formas e perspectivas, oferecem-nos sensações diferenciadas: da calmaria ao
embate, da quietude à convulsão, evoluindo no tempo e no espaço da representação. Pensando
que sua dança alojava-se no espaço convencional (palco), Humphrey, segundo Boucier, “adapta
as noções cênicas propostas por Gordon Graig
25
à dança” (2001, p. 271), ou seja, direciona seu
25
Edward Gordon Graig (1872-1966). Ator, encenador e cenógrafo inglês, cuja concepção teatral foi caracterizada
por seu peculiar antinaturalismo e pela pureza cenográfica. Foi uma das personalidades mais decisivas para a história
52
olhar para a relação significativa do palco com o corpo do atuante. Conforme a localização do
bailarino em cena, seja nos cantos, ao centro ou nas diagonais do palco, conforme posiciona seu
corpo de frente ou de costas ou pela direita ou esquerda deste, no proscenium ou ao fundo do
mesmo, um novo significado vem à tona e, por sua vez, estabelece relações com a força dos
gestos. Assim, o palco é também fundamental para a construção e o desenvolvimento de uma
dramaturgia.
Doris Humphrey tem importância fundamental para o estudo da dramaturgia, não somente
pelo fato de ter sistematizado sua teoria de composição coreográfica, mas também por ter
elaborado, assim como Laban, um sistema de notação de movimentos. Não podemos deixar de
lembrar seu primeiro princípio, a base de todos os elementos anteriormente citados na construção
de uma obra que dance: a motivação. Esta representa a essência, “a alma de toda composição
coreográfica” (GARAUDY, 1973, p. 127).
2.3.3 Merce Cunnhingham – Dramaturgia da “não-dramaturgia” ou
dramaturgia do acaso, do corpo,
do movimento, da ação pura e dançante
“Não é o que estamos vendo? – Que queres de mais claro sobre a dança, além da dança nela mesma?”
Paul Valéry
Merce Cunningham (1919) inaugura um novo tempo, abre outras portas e rompe com os
elementos que fundamentaram a dramaturgia da dança anterior a ele. Propõe desligamentos,
novas operações, introduz novos elementos na composição dançante. Acaba por influenciar um
novo pensamento que surgiria na dança, a partir dele: o pós-modernismo, desenvolvido,
sobretudo na América do Norte, mas que também influenciou criadores europeus. Verifiquemos
as contribuições de Cunningham para esse novo modo de pensar a dança.
Merce Cunningham é um exemplo claro de ruptura no universo da dança. Começa sua
carreira pelos estudos de dança, atravessa os estudos de formação em teatro (ator), mas termina
por voltar à dança, sob a direção de Marta Graham, atuando em sua companhia por seis anos. É
nesse momento que a ruptura se faz. Cunningham, sob a influência direta do músico John Cage,
rompe com as estruturas vigentes da dança moderna: dramaticidade, teatralidade, representação,
do teatro ocidental, promovendo uma notável renovação dos palcos europeus no século XX. Foi um dos pilares do
chamado simbolismo teatral. Criador do conceito-imagem super marionete”, onde vislumbrava um “(...) ator livre
do ruído da emotividade que nada interessa ao trabalho da representação” (GRAIG, 1942). Disponível em
www.artes.com/reflexões/ref 57 - htm. Gordon Graig in “Da arte do teatro” (1942).
53
personagens, linearidade narrativa, lógica, intenções, coordenação de seqüências, sentido de
continuidade, centralização espacial. Rompe, enfim, com toda a expressividade que fosse além
daquela contida no próprio movimento. Assim, nega o psicologismo, o sentimento, a perspectiva
dramática como acionadores do movimento, estruturas básicas do modelo criado por Graham.
Cunningham dá-nos a impressão de alguém que quer se lavar e se livrar de qualquer
artifício, qualquer tema ou assunto que embase uma composição, a não ser o próprio movimento,
o elemento norteador de sua composição. Contudo, não podemos deixar de observar, de acordo
com a perspectiva desenvolvida até aqui, que as relações de encontro e diálogo e os entre-lugares
não deixarão de existir. Merce pode não dialogar, mas o encontro permanece, e este, por sua vez,
cria novas conexões. Conexões materializadas no acaso, no indeterminismo, no entre-lugar das
intensidades, no próprio corpo e em seus movimentos, na apropriação de novos espaços cênicos,
na não-relação entre dança, música e cenário. Os elementos constitutivos da dramaturgia de
Cunningham são aleatórios, cabendo ao espectador criar sua unidade, organizar de forma livre,
apreender seu sentido e interpretá-lo como bem quisesse. Assim, sua obra é caracterizada como
obra aberta, gerando, por sua vez, uma dramaturgia aberta, como nos informa Rodrigues:
Como obras abertas, suas coreografias provocavam inúmeras e diversas leituras. Como
não havia muitas vezes um foco específico, mesmo espacialmente, a platéia poderia
fazer conexões e interpretação interessantes (RODRIGUES, 2005, p. 108).
Não é possível falarmos de Cunningham sem falarmos do compositor John Cage e de suas
investigações e proposições musicais. É Cage quem lança as idéias que serão absorvidas e
desenvolvidas por Cunningham. Van Langendonck, falando a respeito de Cage, afirma que “sua
relevância pode ser encontrada no entendimento da temporalidade, nas relações de lei e acaso e
na adoção de movimentos observados no cotidiano” (2004, p. 31). Juntos criaram uma longa
parceria que durou mais de 50 anos. Cage teve um papel imenso não só na vida e na dança de
Merce, como também na história da música e da concepção cênica. Ainda segundo Langendonck:
Cage foi a inteligência que influenciou o pensamento da pós-modernidade na América
do Norte. Em seus cursos, encorajava os alunos a usar instrumentos não convencionais
ou a combiná-los com instrumentos convencionais, instruía sobre notação, propriedades
de som, como alterá-las e como controlar diferentes situações de tempo (...)
(LANGENDONCK, 2004, p. 31).
Dentre as investigações, sugestões e proposições feitas por John Cage e assimiladas e
ampliadas por Merce estão: a independência entre as artes, a não interpretação da música, o acaso
como elemento norteador (fruto do estudo do I Ching Livro das Mutações). Essas idéias levam
54
o coreógrafo a trabalhar sob a forma de estruturas que vão agir e se interpenetrar livremente no
espaço e no tempo. Assim, Merce distingue novos conceitos, que ampliam e desestruturam os
conceitos vigentes da época, pelo menos no Ocidente. Diante do modo como operam as danças
de Cunningham, desprovidas de conteúdo emocional e dramático, dissociando música e dança,
permitindo que o olhar não busque a mesma lógica, perguntamos: como se constituiria então o
sentido de unidade de suas “performances”, como se constituiria a dramaturgia, onde estariam os
seus nexos?
Percebemos que no manifestar da própria desarticulação dos elementos da cena ou na
própria articulação de movimentos encontraremos o sentido de unidade. Trata-se de uma
dramaturgia que o espectador vai construir por sua conta e risco, como o próprio Cunningham
afirmava ao relacionar sua dança com aleatoriedade dos fatos da vida. Segundo van
Langendonck:
A independência entre os elementos do espetáculo, que caracteriza o trabalho desse
artista, revela-se na unidade do espetáculo. Unidade essa que se assemelha à natureza,
que, em sua diversidade, aparece-nos maravilhosa e uma (LANGENDONCK, 2004, p.
55).
Merce acreditava que o jogo gramatical aleatório (vocabulário corporal com sua própria
lógica, vazia de conteúdo, despido da experiência e da significação emocional), realizado pelo
próprio movimento, que extrai unicamente, segundo Gil, “de si mesmo sua energia” (GIL, 2005,
p. 40), permitiria ao espectador traçar suas próprias analogias.
Observamos, por fim, que, em suma, Cunningham nos apresenta um movimento que é
impulsionado e materializado na própria ação de dançar, configurada no corpo dançante.
Encontro entre movimento e corpo que, a priori, não significa nada mais que a própria
manifestação deste no tempo e no espaço. Para Gil, a imanência é o plano guia dessa
dramaturgia. Ainda segundo Gil:
Em suma, o plano de imanência de Cunnhingham desdobrava-se apenas na esfera da
arte. Para uma geração que não mais queria a imanência porque estava na imanência (da
arte à vida), tornava-se inevitável que o estilo Cunningham surgisse como um objeto a
recusar, arrastando consigo o que não estava de acordo com o real de então: a disciplina
dos corpos, o “glamour”, o espetáculo, no fundo, o extremo profissionalismo dos
bailarinos identificado como o extremo elitismo de um estilo elegante, ainda balético,
muito puro e sublime (GIL, 2005, p. 150).
55
2.4 Alinhavando
Neste percurso histórico, verificamos que a dança passou da imitação da natureza para a
criação de um modelo de tradução da natureza humana, para logo em seguida negar esse modelo,
como o faz Merce Cunningham. Mesmo Cunningham, porém, ainda se encontra dentro de um
modelo: por mais que tenha se deslocado do cânone da dança moderna, ele não rompeu com os
cânones da arte. Percebemos, assim, uma evolução da dramaturgia na dança, que se desenvolveu
de forma inerente à mesma e seus processos criativos.
A partir de Noverre a pantomima dá suporte ao dançar, por meio de seus gestos
representativos, aliando-se à estética do belo e da imitação da natureza. Trata-se de uma
dramaturgia ainda ligada às estruturas aristotélicas da composição do drama, buscando a
narrativa linear. Aglutina-se ainda à sua composição uma preocupação com a expressividade dos
gestos, com sua veracidade, na busca da tradução, da revelação das paixões da alma humana.
Essa busca é paralela à busca de humanização do bailarino. Tem-se, assim, uma tessitura
teatralmente expressiva que aciona a reflexão para criar uma unicidade entre técnica e expressão.
Posteriormente, ainda que em continentes diferentes (América do Norte e Europa), as
perguntas se ampliam. Em um primeiro momento (pré-Cunningham e Pina Bausch), o bailarino
torna-se o centro da dramaturgia. Os sentimentos e as emoções humanas urgem por exprimir-se,
e, juntamente com o simbolismo de uma realidade, de um tempo-mundo e de uma época,
compõem os pontos estruturadores das encenações. Após esse período, Cunningham, como já
vimos, encontra no próprio movimento o mecanismo e o apoio para “ordenar suas danças”,
enquanto Pina Bausch potencializa a energia das ações humanas a tal ponto que uma carícia
também pode ser como uma dança.
Apresentaremos a seguir um quadro que sintetiza as bases para a criação, os elementos
constitutivos e a concepção de dramaturgia dos criadores estudados.
2.5 Quadro Sinóptico “Tessitura dos Mestres”
Criadores Bases para a criação Elementos constitutivos Dramaturgia
Jean-Georges
NOVERRE
- histórias/fábulas
(narrativa linear)
- rastro aristotélico
- mimese
- dança clássica
- libreto
- teatralidade
- gesto
- pantomima
Entre técnica e
expressividade
Isadora DUNCAN
- natureza
- filosofias e artes
gregas
- ritmo
- pulsações
- liberdade de
movimento
Entre frases rítmicas
Rudolf von LABAN
- movimento
- música
- palavra
Fatores do movimento:
- tempo
- espaço
- peso
- fluência
Escuta das dinâmicas
Mary WIGMAN
- pulsões dilacerantes
- sentimentos
- liberdade de criação
individual
-percepção dos
instintos
- dança expressionista
- impulsos
- dramaticidade
- máscaras
Entre as pulsões e os
estados produzidos
entre a vida e a morte
Kurt JOOSS
- realidade social
- histórias
- libreto
- teatralidade
- dança clássica
- dança moderna
- pantomima
Entre a dança e o teatro
(forma e significado)
Pina BAUSCH –
- realidade ficção
- relações humanas
- cotidiano
- criação dos bailarinos
- sentimentos
- dança contemporânea
- recursos teatrais
- gestos
- fragmentação
- dissociação entre
gesto e palavra
- recepção
- diálogo com outras
artes
- afetos
Da subjetividade
Do que não se mostra
Marta GRAHAM
- temas míticos
- poemas
- sociedade (anseios e
sentimentos humanos)
- impulsos
- contrações relaxamentos,
dilatações, paradas bruscas
- interpretação/ dramaticidade
- teatralidade
- dança moderna
- memórias emotivas
Das emoções, da
totalidade, da
metamorfose rítmica
Entre dança e significados
Doris HUMPRHEY
- misticismo
- ritmo (entre queda e
recuperação)
- busca de oposições
- dança moderna
- espaço
- desenho
Da escuta rítmica-motora
e do dinamismo
(mudanças de
intensidades)
Merce
CUNNINGUAM
- movimento puro
- acaso
- tempo
- espaço
- irregularidade
- fluência
Do movimento e de suas
linhas de força
(intensidades)
57
3 A tessitura contemporânea
“Tudo para mim pode ser a dramaturgia em dança” Arnaldo Alvarenga
“Para mim, a dramaturgia engloba tudo. Engloba o meu modo operante de
capturar, de fazer conexões com a vidaDudude Herrmann
“(...) nenhuma linguagem se estrutura se ela não entrar em contato” Luiz
Alberto de Abreu
“Dramaturgia em dança? – Relação entre forma e sentido” Rosa Hércoles
“Não é indizível, é super dizível. Porque se fosse indizível, você não conseguiria
dançar” Cássia Navas
“Tudo está em jogo na dramaturgia na dança” Christine Greiner
58
3.1 Diálogos
Carícias que se tornam dança, gestos do cotidiano que se tornam dança, o não-espetáculo
de dança, a arte como “antiarte”. Nasce um novo tempo, que amplia discussões, quebra e discute
paradigmas, propondo novas ordens, ou mesmo uma “desordenação”. A cena que dança na
contemporaneidade apresenta características como a multiplicidade de informações, uma “nova”
percepção da realidade, a fragmentação e justaposição das imagens, a possibilidade de a dança
acontecer em um corpo muitas vezes não educado por esta, a relação com novas mídias. A busca
do “não ao espetáculo de dança” e até mesmo do “não ao fato de alguém se mover ou se fazer
mover” (RAINER apud Gil, 2002, p. 151), faz com que a dança se estabeleça não somente como
uma nova forma de arte, mas, de acordo com Garaudy, como “uma nova maneira de existir”
(1973, p. 147), permitindo à arte, dessa forma, refletir e integrar o mundo que a cerca. A dança
passa a privilegiar a heterogeneidade, a energia do movimento (da ação), a combinação de
diferentes vocabulários (interdisciplinaridade), a desconstrução da narrativa, a exposição do real
dos corpos, do tempo, do espaço.
Assim, não caberia, a priori, apresentar um conceito fechado de dramaturgia na dança
contemporânea, a não ser, como já citamos anteriormente, segundo Adolphe, como “um
exercício de circulação” (1997). Circulação que, para ser promovida, convida-nos a ampliar
nossa percepção diante da pluralidade de elementos norteadores da criação e de opções
dramatúrgicas a serem eleitas. A partir das entrevistas, dos estudos e pesquisas realizados
criamos um recorte em consonância com os elementos a serem verificados em POR QUE TÃO
SOLO?, na tentativa de agenciar um diálogo entre os saberes e a dramaturgia do movimento que
dança.
A percepção desses elementos gera novos desdobramentos. Verificamos que, ao
reconhecermos a presença dos elementos constitutivos em uma obra, acabamos também por
refletir sobre suas estratégias, possibilidades de conexão, conceitos e contextualizações. Nesse
trajeto deparamos com a capacidade da dança de criar estados que nos permitem vagar pelo
terreno da subjetividade, da imponderabilidade, do pulso sempre presente, mas que também nos
levam ao encontro da materialidade do movimento, ainda que este tenha um caráter de devaneio
ou de sonho.
59
O principal elemento dramatúrgico é, portanto, o próprio movimento dançado, nos
revelando de forma subjacente uma dramaturgia do bailarino ou do corpo que dança.
Além da percepção da dramaturgia do bailarino o habitante de um corpo que nos toca
duravelmente (Pickels, 1997) –, e da relação entre dança e recursos teatrais (a criação de uma
personagem, a construção do subtexto, o desenvolvimento de uma linha contínua de ações),
podemos ainda considerar vários outros aspectos como norteadores da composição dramatúrgica.
Nesta parte da dissertação, chamamos atenção para aspectos da dramaturgia da dança
contemporânea, sobretudo a partir de depoimentos de artistas e pesquisadores, a fim de recolher
elementos para a análise do espetáculo POR QUE TÃO SOLO?.
3.2 O entre lugar... Conexões
A dança é uma linguagem perecível, sempre em trânsito plena de qualidades que
provocam relações que se estabelecem, sempre, num tempo presente. Uma linguagem que,
segundo Abreu
26
, “só se estrutura se entrar em contato”. A dramaturgia vem criar esse contato ao
promover, de acordo com Cássia Navas
27
“a solidariedade entre os elementos da cena”,
estabelecendo conexões entre eles e permitindo a circulação de uma estrutura em rede, de uma
teia. Essas conexões, segundo a pesquisadora, fazem-se entre “(...) cena e mundo, entre eu e o
outro, o dentro e o fora, entre o eu e a consciência do eu, seria assim, mais ou menos, uma
solidariedade entre pólos ou vários pólos” (NAVAS, 2007).
Para Herrmann, a dramaturgia engloba tudo: “engloba o meu modo operante de capturar,
de fazer conexões com a vida”. Nessa operação de captura, outras possibilidades se configuram:
a conexão entre metáforas corporais que produzem um outro nível de comunicação, o qual possui
uma lógica própria, que, segundo Dudude é uma “lógica inventada e descontinuada”.
26
Luís Alberto de Abreu é dramaturgo desde 1980 e roteirista de cinema. Ex-professor da Escola Livre de teatro e de
dança de Santo André. Fundador da Escola de Cinema de Santo André. Entrevista de Luís Alberto de Abreu – Belo
Horizonte, 19/5/2007.
27
Cássia Navas é pós-doutora em dança e professora do Instituto de Artes da UNICAMP/SP. Pesquisadora, gestora
cultural e escritora. Entrevista de Cássia Navas – São Paulo, 8 e 9/3/2007.
60
A dramaturgia pode ser criada a partir da investigação de texturas, volumes, intensidades,
dinâmicas, textos. Pode, ainda, apoiar-se na relação entre pulso e sensação/estados produzidos. A
noção de tempo (passado, presente e futuro) agencia-se de forma diferenciada na organização da
tessitura dançante, pois a noção lógica que trafega entre as imagens cênicas (metáforas) é
revelada sempre na pulsação do tempo presente e na sensação que ela nos traz. Nas palavras de
Luís Alberto de Abreu: “Tem que se levar em consideração na dança esse aspecto da linguagem,
que ela se dá no aqui, agora, no pulso, aqui, agora” (ABREU, 2007).
Outro elemento importante para a percepção de uma organização dramatúrgica é a relação
entre o corpo e o ambiente, o palco, o lugar onde determinada dança/corpo vai atuar. Espaços
diferenciados trazem informações diferenciadas, permitindo uma outra forma de percepção e
comunicação. Estados de dança fundem-se com e no espaço. O espaço é visto como terreno fértil
onde o movimento inscreve seu traço.
Sobre a relação entre palco e audiência, Dudude ressalta a necessidade de se criar uma
freqüência entre ambos. Mesmo que façamos um trabalho, como nos sugere Rosa Maria
Hércoles
28
, “que seja descolado da recepção”, o público deve estar presente na mesma pulsação
que se apresenta diante dele e que pode terminar por atravessá-lo e provocá-lo. Abreu reflete
sobre esse momento e afirma que se trata de um momento sagrado: “Sagrado, porque isso não
acontece normalmente na vida, acontece naquele momento e, principalmente na dança. Porque a
dança é silenciosa” (ABREU, 2007).
Cabe à dramaturgia equilibrar o que é feito (o que está dentro da obra) e o que é visto (o
que está fora da obra), fazer a mediação da percepção do olhar, do ato de ver. Assim, podemos
evitar que a circulação fique bloqueada e resolva os dualismos constantemente presentes na
encenação. Aquela bipolaridade, linha magnética já apontada por Laban, para Adolphe, é a
responsável por “(...) resolver a dualidade entre o íntimo e o público” (ADOLPHE, 2007).
Outras questões são, ainda, relevantes para o processo, como: o que aquele corpo vai
vestir, que técnicas ele tem ou está usando, qual será o ambiente em que a dança irá acontecer.
Além disso, outros elementos entram em jogo, como o encontro entre movimento e música e,
28
Rosa Maria Hércoles é professora doutora da Escola de Comunicação e Artes do Corpo, PUC/SP. Dramaturgista
de dança. Autora da Tese “Formas de Comunicação do Corpo – novas cartas sobre a dança”. (Programa de Estudos
pós-Graduados em Comunicação e Semiótica – PUC/SP – 2005). Entrevista de Rosa Hércoles – São Paulo,
10/3/2007.
61
ainda, o diálogo entre idéia + proposições da direção + habilidade dos bailarinos + “as
necessidades do momento e de desejos que surgem para complementar alguns sentidos”, de
acordo com Arnaldo Alvarenga
29
. Alvarenga aponta ainda para uma dramaturgia que acontece “a
partir de algo não formalizado”, uma dramaturgia que será permeada por diversas perguntas
referentes a esse algo ao longo do processo criativo, fomentado, a princípio, pela sinestesia.
Trata-se do ato de “misturar-se” com os atuantes na espreita de uma escuta guiada, sobretudo,
pelo sentimento.
Durante a pesquisa, observamos que há uma estreita relação entre dança e poesia. Essa
relação foi se configurando, ganhando tônus e espaço ao longo da trajetória, levando-nos a
considerá-la como característica a ser observada na construção de uma dramaturgia.
Muitos dos entrevistados apontaram semelhanças entre as duas linguagens, ressaltando os
aspectos comuns entre elas. Poesia e dança revelam-se, assim, irmãs, parceiras, cúmplices.
O caráter do movimento dançado (gesto poético) relaciona-se com a natureza da palavra
poética, sua estrutura e construção, dando-nos, conforme nos diz Alvarenga, “a possibilidade de
evasão”. Essa evasão se verifica no deslocamento do indivíduo do lugar concreto para o campo
da subjetividade. A subjetividade permeia a poética, habitada pela imponderabilidade trazida pela
dança e “seus movimentos e sons dos quais não se pode mais que suspeitar sua significação”
(KERKHOVE, 1997). Assim, a dramaturgia não deve se afastar das raízes da dança, ou seja, da
lírica. Como nos informa Valéry:
30
A passagem da prosa ao verso, da palavra ao canto, da marcha à dança. – Este momento,
ao mesmo tempo atos e sonho. A dança não tem como objetivo me levar daqui pra ali,
nem o verso e o canto puros. Mas eles existem para me tornar mais presente em mim
mesmo, mais inteiramente em mim mesmo, inutilmente consumido frente a mim
mesmo, sucedendo-me a mim, todas as sensações não tendo mais outros valores. Um
movimento particular os liberta e, infinitamente móveis, infinitamente presentes, eles se
apressam a servir de alimento a um fogo (VALÉRY, s/d, p. 3).
29
Arnaldo Leite Alvarenga é bailarino, coreógrafo e diretor. Ex-bailarino e diretor do Grupo Trans-Forma. Professor
de Expressão Corporal no curso de Teatro da Escola de Belas Artes. Mestre e doutorando em Educação pela
FAE/UFMG. Criador e coordenador do curso de extensão Pedagogia do Movimento para o ensino de Dança/UFMG.
Pesquisador do projeto A Fala da Dança (memória de bailarinos brasileiro e especialmente belo-horizontinos).
Entrevista de Arnaldo Alvarenga – Belo Horizonte, 5/9/2007.
30
*Tradução de Sérgio Alves Peixoto.
62
A grande possibilidade de abstração que a dança e a poesia possuem farrapos de frases,
traços de movimentos – permite que a dramaturgia da dança possa ser vista e tecida como
reguladora de intensidades, moduladora de estados de diferentes ordens, cabendo ao
dramaturgista ver com as orelhas, escutar com os olhos. Portanto, podemos enfatizar a forma
flexível da estrutura dramatúrgica na dança, sempre a se perguntar: como conecto, como
entrelaço matérias e materiais? Como trafego entre pulso e estados produzidos? Como transito
entre texturas e intensidades, como convivo com o tempo despreocupado de passado e futuro?
“Poesia. Será possível, com a ajuda do tempo, do esforço, da sutileza e do desejo trabalhar-se
com ordem para se chegar à poesia?” (VALÉRY, 1957, p. 01) *, Poderia a escuta dos entre-
lugares nos orientar na busca dessa organização poética? O entre pede conexões, fala-nos da
percepção daquele espaço entre margens, bordas, palavras-corpos, frases-movimentos. Espaço a
ser percebido, preenchido, “ponte” a ser construída, fio a ser costurado. Mas como construir essa
conexão?
Christine Greiner
31
acredita que a dramaturgia da dança organiza-se em um lugar que ela
denomina como entre: “É sempre no entre. Então é entre o corpo do bailarino e o ambiente em
que ele está, entre o universo de conhecimento daquele bailarino e os outros universos de
conhecimento com os quais ele vai se relacionar”.
O ponto de vista apresentando por Greiner situa-nos frente a um processo de relações, não
só interior da dança especificamente, mas também nas conexões desta com outras linguagens
com que ela dialoga. Assim, Greiner diz que é aí, nesses encontros, nessas organizações, que
vamos encontrar o que ela chama de “nexos de sentido a serem organizados: “Então, eu acho
que esse nexo de sentido é sempre o entre. (...) Esse nexo de sentido se cria imediatamente numa
circunstância, numa empatia” (GREINER, 2007).
O entre lugar palcoXplatéia também é, segundo Greiner, uma das possibilidades de
encontrarmos uma organização dramatúrgica. É no momento em que se procuram esclarecer os
procedimentos de uma criação e suas conexões que a dramaturgia se faz presente, de forma
31
Christine Greiner é professora do curso de Comunicação das artes do Corpo e do Programa de Estudos Pós-
Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC/SP. Coordenadora do Centro de Estudos Orientais. Escritora e
curadora (ao lado de Cláudia Amorim) da coleção “Leituras do Corpo” (Annablume). Entrevista de Christine Greiner
- Diamantina, 20/7/2007.
63
sempre flexível: “(...) Ela é uma pergunta, porque ela está sempre relacionada a um processo.
Não pode ser um troço pronto, uma resposta, uma definição” (GREINER, 2007).
Podemos, então, a partir desse esclarecimento, dizer que a dramaturgia, tal como é vista
por Greiner, está na maneira como criamos conexões, nexos de sentido. Ela deixa de ser, assim,
uma função atribuída somente ao movimento dançado ou ao espaço ou mesmo à relação entre
público e artista ou, ainda, entre o artista e os elementos da cena. Tudo se relaciona, como já
apontado por Navas, permitindo-nos entender que os “nexos de sentido” (o uso do tempo, dos
intervalos, por exemplo) vão estabelecer relações e criar “nexos de comunicação”.
Segundo Greiner, é o movimento que cria a conexão. Sintetizando a questão, ela nos
informa que dramaturgia em dança é:
Como se organizam as conexões de um espetáculo na hora que ele acontece. Não é uma
coisa já dada e nem que vai rolar depois. Porque, claro, ficam os traços do espetáculo.
Mas é como as conexões se organizam naquele momento. E é por isso que a dramaturgia
não é fixa. Porque se apresentou hoje, apresenta-se amanhã, então as coisas podem ser
muito diferentes (GREINER, 2007).
Assim, podemos afirmar que a dramaturgia em dança diz respeito fundamentalmente a
um modo de organizar conexões. Organizar o que não se fixa. É na percepção dos elementos
dramatúrgicos e na conexão entre eles que suspeitamos estar situada a tessitura de POR QUE
TÃO SOLO? Conexão nos encontros, diálogos, nas margens de um solo. Segundo Adolphe:
“Dramaturgia do movimento como reconhecimento de um entre dois“ (1997).
Antes de adentrarmos no universo dramatúrgico do espetáculo POR QUE TÃO SOLO?,
apresento um novo quadro sinóptico referente à parte “A Tessitura contemporânea”, para logo
em seguida apresentar uma pequena parte nomeada Filho de alguém, na qual procuro traçar as
raízes artísticas do meu saber e do meu fazer, fundadas, sobretudo, na dramaturgia da dança
moderna e na dança-teatro, e desenvolvidas na cidade de Belo Horizonte, fundamentalmente nos
anos 1970 e 1980, com o Grupo Trans-Forma.
64
3.2 Quadro Sinóptico
“A Tessitura Contemporânea”
Criadores Bases para a criação Elementos constitutivos Dramaturgia
Grupo TRANS-
FORMA
- literatura
- teatro
- criação dos bailarinos
- cultura brasileira
- roteiro
- dança contemporânea
- improvisações
- recursos teatrais
Da dança-teatro (ações
dançantes teatralizadas)
Dudude HERRMANN
- filosofia
- diálogo com outras artes
- corpo em estado de
dança
- momentum
- texturas
- dinâmicas
- espaço
- pulsação (tempo
presente)
Conexão entre
movimento, estados e o
espaço da cena
Arnaldo
ALVARENGA
- idéia
- poesia
- criação dos
bailarinos
- teatralidade
(dramaticidade)
- gesto (pantomima)
- perguntas
- habilidade dos
criadores
Do imponderável, do que
provoca e permite evasão
Rosa HERCOLES
- sentido das ações
- informações corporais
- o movimento em
processos relacionais
- ambiente
- técnica
- figurino
- não-recepção
Entre forma e sentido
65
4 Filho de alguém
“(...) Consciência histórica, atualmente em vias de desaparecimento, não
significa retorno ao passado ou nostalgia dele, mas sim esforço pelo
conhecimento do que fez de nós o que somos. Sem esta autocompreensão, a ser
constantemente renovada, a realidade da vida no mundo, na sociedade e em nós
mesmos não é possível” (BAUMGART, 1999, p. 02).
66
4.1 TRANS-FORMA (Um corpo que lembra)
Esta escrita sobre o Grupo Trans-Forma fundamenta-se em duas razões. A primeira diz
respeito ao fato de que a escola, assim como o grupo a ela associado, têm importância
fundamental na história da dança mineira e brasileira. A segunda é de ordem pessoal: o Trans-
Forma foi minha casa, meu lugar, meu “porto seguro”, o espaço onde desenvolvi minhas
faculdades técnico-criativas de maneira, sobretudo, apaixonada e consciente.
Esta parte da dissertação se faz como continuidade/transição das reflexões sobre
dramaturgia apresentadas por criadores e pesquisadores em dança contemporânea e serve de base
para alcançarmos a análise do processo de construção dramatúrgica do espetáculo POR QUE
TÃO SOLO?, que encontraremos na parte seguinte. Em síntese: POR QUE TÃO SOLO? é filho
de alguém, este alguém, por sua vez, é filho do Trans-Forma, e o Trans-Forma é, naturalmente,
filho de outros. Desse modo vamos buscando, construindo e revelando afinidades artísticas, na
tentativa de encontrar uma identidade para o nosso criar.
De acordo com Neves, percebemos que:
O homem é um ser permanentemente em busca de si mesmo, de suas referências, de seus
laços identificadores. Na busca da construção da identidade, os sujeitos individuais e
sociais mergulham na profundidade de suas histórias em busca dos marcos temporais ou
espaciais que se constituem nas referências reais das lembranças. A identidade, além de
seus aspectos individuais, apresenta uma dimensão coletiva que se refere à integração do
homem como sujeito do processo e construção da história (NEVES apud REIS, 2005, p.
129).
As “referências reais de lembranças” alojam-se, no caso da dança, sobretudo no corpo do
bailarino. O corpo não guarda apenas os aspectos físicos experenciados; a qualidade da
informação transmitida afeta também a construção de um corpo-mente, que o bailarino carrega
por toda a vida. Quando faço, lembro. Memória instalada nos ossos, trafegada nos músculos e
articulações, traduzida pela pele habitada de sentido. Memória que o corpo organiza, quando se
abre a novos estímulos (individuais e/ou coletivos) do tempo presente, e que nos possibilita ser,
viver e fazer dança hoje. Trazemos, portanto, uma dramaturgia em nossas próprias vidas, ao
estruturarmos realidades vividas, objetivas, físicas e mentais. Segundo Cardona:
Assim quando crescemos encontramos uma ordem dentro do caos, estruturamos
realidades, criamos significados, damos sentido a tudo aquilo que afeta nosso sistema
nervoso, a tudo aquilo que envolve nossa atenção. Fazemos dramaturgia (CARDONA,
2000, p. 30).
67
Concordamos, assim, também com Grotowski, que postulou que “o corpo não tem
memória, ele é memória” (1993, p. 34). É também o próprio mestre polonês que nos dá a
inspiração e a direção para que esta parte se materialize. Em palestra proferida em Florença,
Itália, no ano de 1985, intitulada Você é filho de alguém, Grotowski nos fala da necessidade de
sabermos a origem de nossas ações, de nossas estratégias cênicas, da importância de termos
consciência de nossa ancestralidade artística, no caso, começando a partir de um simples
elemento: uma canção. Vejamos:
Você não é um vagabundo, você vem de algum lugar, de algum país, de alguma
paisagem. Havia pessoas não identificadas em volta de você, próximas ou longe. Isto é
200, 300, 400 ou 1000 anos atrás, mas é você, o mesmo você. Porque a pessoa que
começou a cantar as primeiras palavras era filho de alguém. Se você não descobre, você
não é filho de ninguém; você está fora, estéril, improdutivo (GROTOWSKI, 1987, p. 30-
41).
A paisagem repleta de movimento (educativo e criativo) que se instalou no meu corpo é a
que sempre reverencio como educador, intérprete e diretor. Parece que não esquecemos aquilo
que amamos. Não farei aqui uma abordagem histórica do desenvolvimento do método de
aprendizagem elaborado pelo Trans-Forma; apenas destacarei as influências que o grupo sofreu
no período de sua construção e, como já mencionado, procurarei traçar os contornos da
dramaturgia nas composições cênicas de seus principais espetáculos. Contudo, não podemos
deixar de registrar que o Trans-Forma teve bases tão sólidas que, mesmo depois de encerrar suas
atividades, ele continua vivo, mantendo sua característica transformadora e formadora. Ele está
no corpo-memória de diversos artistas. De acordo com a historiadora Glória Reis:
Naquele momento, estavam entrando em cena várias pessoas que atuam até hoje
em atividades ligadas à dança ou utilizam o aprendizado gravado na memória corporal
de cada uma dessas pessoas (REIS, 2005, p. 82).
É a própria Marilene Martins (Nena), artista fundadora da Escola e do Grupo Trans-
Forma, que, em entrevista, confirma: “(...) Eu acho que esse tempo não acaba nunca, ele está
dentro da gente, né? Eu acho que ele só morre quando a gente morre. Mas... esta aí”.
32
A dramaturgia criada no Grupo Trans-Forma, segundo Nena, era, sobretudo, uma
dramaturgia coletiva. Toda a equipe colaborava para que uma idéia se concretizasse. O primeiro
passo, ainda não dramatúrgico, era dado pelas improvisações (laboratórios) realizadas pelos
bailarinos criadores, como ela mesma os nomeia. Construíam-se cenas que eram catalogadas. A
costura era tecida por artistas convidados, em geral pessoas de teatro, que também orientavam as
32
Entrevista de Marilene Martins - Belo Horizonte, 14/8/2007.
68
improvisações. Assim, ainda que o Trans-Forma tenha apresentado espetáculos, principalmente
os da Escola, como espetáculos de dança pura, foram nos trabalhos de seu Grupo Experimental
de Dança que o acento dramatúrgico ganhou profundidade. Esse acento veio, sobretudo, das
relações estreitas mantidas com diretores de teatro como Eid Ribeiro, Carlos Rocha, Paulo César
Bicalho e o pesquisador José Adolfo Moura.
Nena não reconhece a influência teatral advinda desses “homens de teatro”, como
também ressalta a importância de outros dois artistas cuja influência considera fundamental:
Klauss Vianna e o alemão Rolf Gelewski. Ambos trouxeram o material que viria solidificar a
base do trabalho de dança do Trans-Forma. Assim, alia-se à teatralidade a preocupação com a
exploração da expressividade de cada indivíduo/bailarino, trazida por Klauss, e a força espiritual
que a dança carregava na visão de Rolf (ex-aluno de Mary Wigman). Nena somou a esses
elementos o desejo de investigação de um corpo brasileiro, a vontade de pesquisar e reverenciar a
força de nosso povo, sua história e sua cultura. Inaugurava-se em Belo Horizonte uma busca pela
compreensão da sensibilidade do povo brasileiro. Nena cita três trabalhos como bons
representantes na história do Grupo Trans-Forma: “Kuadê Juruna mata o sol”
33
, “A Casa da
infância”
34
e “Vidros moídos”
35
.
De todos os elementos e linguagens absorvidos para a criação e a construção dos
espetáculos do Trans-Forma, Nena admite que a linguagem do teatro é a mais presente. Ela
percebe que a palavra, trazida pelo teatro, permite uma comunicação direta, sem dúvidas: “Já a
dança não, a dança você tem que construir como atingir. Por isso que eu gostava muito de fazer
teatro-dança, porque eu acho que atingia das duas formas: atingia como dança e como teatro”
(MARTINS, 2007).
Em seguida, Nena reforça que o encontro entre uma dramaturgia de dança e uma
dramaturgia de teatro só tende a aumentar o poder de comunicação e de troca. Em suas palavras:
“Eu acho que uma coisa completa a outra, sabe? Porque o teatro é completo em si e a dança é
completa em si. Mas, se você mistura os dois, você tem elementos dos dois para jogar. Então fica
mais claro o seu diálogo com o público” (MARTINS, 2007).
33
Baseado em uma lenda indígena, o espetáculo explorava a pesquisa sonora e os elementos ligados à cultura
indígena (sua soltura corporal, seus animais, sobretudo, a simplicidade)
(1980).
34
Dirigido por Mara Borba e baseado no livro do escritor Sérgio Antunes. Espetáculo de intensa teatralidade (1984).
35
Baseado na vida e na obra de Nélson Rodrigues, coreografado por Sônia Mota com roteiro e direção de Arnaldo
Alvarenga (1986).
69
Como membro da última geração do Grupo Trans-forma, permito-me um aparte para
concluir a reflexão. Naquela época não pensávamos em dramaturgia. Os trabalhos tinham uma
forte relação com narrativas representativas, com personagens teatrais, com histórias (ainda que
não lineares) a serem contadas por meio do movimento dançado. Durante minha experiência, vi o
teatro sempre rondando nosso espaço, e muitas vezes seus elementos foram nosso leitmotiv.
Contudo, o pensamento que organizava a encenação era um pensamento coreográfico. Cenas
compostas com início, meio e fim, repletas de dramaticidade, bailarinos/atores, personagens,
intenções, subtextos, objetivos para criar, a palavra como fonte de inspiração e o diálogo com o
movimento. A dramaturgia navegava entre estas margens: uma margem objetiva e significativa,
trazida pelo teatro daquela época, e outra margem que permitia a abstração, o ir além do corpo e
do espaço que um ator puro cria. Éramos bailarinos-atores, fazíamos dança-teatro, embora não a
nomeássemos assim. Era uma dramaturgia entre construída entre ações dançantes teatralizadas.
70
4.2 Ainda me lembro
Neste exato momento volto a subir as escadas íngremes de madeira maciça e torneadas
que habitavam aquele prédio em estilo eclético, ladeado por grandes e escuras árvores e
edificado no coração de minha cidade. Tudo é belo e silencioso. Revejo os enormes corredores.
Agora tudo é mistério, traço e rastro. Ainda me lembro...
Neste exato momento volto a espreitar pela fresta da grande sala de danças. Fresta e
festa. Revejo aquelas salas, aquelas janelas enormes que permitiam que a luz texturizasse o
espaço e aclimatasse o ambiente. Escuto a música, o ritmo do pandeiro marcando pulsos que
encontram os pulsos do meu coração. O acolhimento das mãos que me tocaram e que me
mostraram caminhos. Neste exato momento, retorno. “Venha, eu cuido de você”.
Neste exato momento estou só. Tento escrever como aquele jovem que espreita como
aquelas pessoas dançavam, com aquela alegria que agora me foge.
Temo o massacre da forma, temo não conseguir me fazer entender. Estou exausto, mas
continuo. Sempre continuarei, porque “a memória nos mantém vivos”. A memória dos mestres,
do que agora já se apresentou e do que agora apresento, invento, desinvento, crio, transcrio,
deliro, fundamento e revelo. Minha mão não vai onde meu coração não quer. Que não me visite
a esterilidade, que não sequem minha criatividade, que não matem minha sensibilidade. Deixem-
me respirar, navegar em águas profundas e chegar aonde “nenhum marinheiro ainda ousou
chegar”. Que não se perca a paixão pelo que me resta. Que aquele rapaz não deixe nunca de
espreitar.
Com todo respeito a minha pele, minha casa, meus parceiros, minha história e a uma
história maior: a do planeta. Com todo respeito à dança, me exponho, mesmo estando assim...
tão solo.
71
5 A tecelagem das margens
Como se diz em POR QUE TÃO SOLO?:
- Entra, senta, fique à vontade.
Como nos diz Noverre: -
Sou vosso
72
5.1 “Tão longe, tão perto”
“Na verdade, associar dramaturgia e encenação é perfeitamente plausível quando pensamos que
ambas constituem as escolhas do espetáculo, sendo que a primeira o fundamenta e a segunda o
revela” Ana Pais.
Embora seja estreita a fronteira entre dramaturgia e processo criativo, não
podemos
deixar de frisar que este trabalho tentará se ater à trajetória de uma construção dramatúrgica,
procurando deixar de lado questões que implicariam a investigação de processos específicos de
criação, procedimentos e metodologias de direção. Buscaremos também manter certo
distanciamento em relação à obra estudada, com todo o cuidado para não fazer desta escrita um
tratado da vaidade. Acredito que o conteúdo aqui abordado – um espetáculo que teve sua estréia
há quase dois anos – contribui, por um lado, para minha reflexão a respeito do meu próprio
trabalho, reforçando minha condição de artista-pesquisador. Trata-se de um exercício difícil,
por obrigar a “ver de longe” ou, talvez, muito de dentro, uma obra tão íntima e com a qual
mantenho uma relação de afeto. Esta escrita dissertativa, portanto, longe de ser um receituário,
contribui para o meu desenvolvimento como dramaturgista e diretor em dança-teatro. Por outro
lado, espero que este trabalho possa também servir a outros pesquisadores, parceiros e artistas
na busca de uma validação de seus saberes e fazeres, ainda que intuitivos. Assim como o
movimento, espero que esta escrita ajude a ampliar a consciência de que do experimento sempre
pode surgir a transformação.
73
5.2 Processo de criação dramatúrgico do espetáculo POR QUÊ TÃO SOLO?
“Será que existe alguma experiência que não seja uma experiência solitária?
Joaquim Elias
36
Por mais que saibamos que toda experiência elabora-se na intimidade, e tem, no fundo,
um caráter solitário, a experiência que resultou na criação do espetáculo POR QUE TÃO SOLO?
configurou-se de forma colaborativa. O espetáculo é fruto de uma ativa colaboração entre
parceiros criadores que, permutariam suas solidões. Tínhamos o desejo de trazer para a dança o
processo colaborativo
37
freqüentemente experimentado no teatro. Queríamos o embate criativo, o
corpo-a-corpo na sala de ensaio e a ausência de hierarquização das funções, sem, contudo, diluí-
las.
Ao reforçarmos o desejo de compartilhar o fazer criativo e coletivo na composição dessa
obra, propusemos-nos a exercitar os sentidos e a permitir a ampliação de nossas percepções
diante dos desejos individuais e coletivos que, posteriormente, seriam negociados e adaptados às
necessidades da cena. Diante das dificuldades de se manter uma equipe durante o processo, o
grupo acabou se reduzindo a um trio de criadores constituído pela atuante/bailarina Gabriela
Christófaro, pelo diretor e dramaturgista Tarcísio Ramos e pelo artista multimídia Ricardo
Garcia, que se encarregaria da trilha sonora, da estrutura cenográfica e das projeções. Com essa
equipe modesta, todo o arcabouço estrutural acabou por ser decidido por esse trio de artistas,
sobretudo pela atuante e pelo diretor/dramaturgista.
Assumindo a direção artística e coreográfica do espetáculo, propus-me a desenvolver meu
olhar na investigação e na composição de uma dramaturgia que levasse em consideração o
equilíbrio entre as necessidades e vontades de seus criadores. O exercício da escuta tornou-se
então o grande guia para a construção cênica, uma construção plena de subjetividade frente aos
universos/estruturas em que se apoiaria.
Em processo. A direção e principalmente a dramaturgia tiveram como característica o fato
de se manterem em processo, sempre. Como nos informa Pais, uma dramaturgia assim orientada:
36
Depoimento concedido em entrevista para pesquisa e construção do espetáculo POR QUE TÃO SOLO? (Belo
Horizonte, setembro/2006). Joaquim Elias é bailarino, diretor e professor de interpretação teatral. Pesquisador da
linguagem do Clown e do Bufão. Ex- integrante do Grupo Primeiro Ato e graduando em Psicologia FUMEC/MG.
37
“Tal dinâmica, se fôssemos defini-la sucintamente, se constitui numa metodologia de criação em que todos os
integrantes, a partir de suas funções artísticas específicas, têm igual espaço propositivo, sem qualquer espécie de
hierarquias, produzindo uma obra cuja autoria é compartilhada por todos” (SILVA, 2002, p. 101).
74
(...) não tem origem em qualquer conceito ou elemento definido antes dos ensaios; ela
permite que o significado e a estruturação do espetáculo, temporários em sua natureza
pós-moderna, possam emergir durante o seu processo de construção (PAIS, 2004, p. 51).
Desde 1993 venho assumindo direções coreográficas, pois já havia sentido a necessidade
de estar mais próximo dos bailarinos, tendo-os como parceiros criadores ativos no processo
coreográfico. Ao ser convidado por Gabriela Christófaro
38
, devido às nossas afinidades
ideológicas e artísticas, para dirigir um novo trabalho, procurei fazer com que essa postura
colaborativa se solidificasse. Diretor, bailarina e artista multimídia deveriam colaborar com a
mesma intensidade na criação da encenação, mantendo um diálogo permanente, na busca de um
movimento genuíno, sincero e necessário à obra.
Desenvolvemos então um processo de criação/improvisação/composição, criando um
espaço de diálogo potencialmente em aberto. Nesse processo, valemo-nos de vários materiais:
imagens fotográficas, figurino, músicas, depoimentos coletados de nossos entrevistados,
reflexões geradas no encontro, dados históricos, cenário, cartas, posturas (filosóficas e corporais
dos criadores de dança), sensações, percepções espaciais e sinestésicas. Vimo-nos diante de uma
criação que gerava diferentes qualidades de movimentos e climas. No entanto, tudo precisava ser
tecido, “costurado”, na tentativa de se conferir um sentido de unidade à obra. Era necessário criar
uma estrutura, uma dramaturgia:
Estruturar entende-se aqui como uma tomada de consciência de que o modo como se dá
a ver o espetáculo determina seus efeitos perante um público. Ao escolher ou fazer
opções relativamente aos materiais cênicos e à sua articulação na cena criando uma
lógica, o olhar artístico estrutura-os dramaturgicamente (...) (PAIS, 2004. p. 35).
Passei, então, paralelamente à função de diretor, a investigar a dramaturgia em dança, para
o desenvolvimento da estrutura dramatúrgica de POR QUE TÃO SOLO?. Sob a orientação do
olhar, sob uma escuta do olhar-corpo, fui procurando fundamentar as opções que viriam a ser
feitas, tentando, sobretudo, encontrar conexões que unificassem essas opções. Buscava enquadrar
o espetáculo numa estrutura estética, contextualizá-lo, encontrar a coerência da encenação
revelada pelo olhar. Como afirma Pais:
38
Gabriela e eu já havíamos trabalhado juntos quando eu era diretor do Grupo Experimental de Dança da Fundação
Clóvis Salgado, no período entre 1996 e 1997, nos espetáculos “Dias de Água” e “Muitos Anos de Vida”.
Posteriormente, entre 1999 e 2000, nos reencontramos para criar “Rua das Flores”, espetáculo baseado no conto
“Réquiem por um fugitivo”, de Caio Fernando Abreu.
75
Fazer a dramaturgia de um espetáculo significa freqüentemente estrutura-lo, dar um eixo
organizador ou uma concepção particular ao que se quer dizer, ou dar a ver (...) (PAIS,
2004, p. 35).
Assim, à medida que o processo se intensificava, criações gestuais, vocais, imagéticas e
sonoras iam se apresentando. Como tecê-las? Como criar elos entre ações cênicas objetivas e
subjetivas, reações, movimentos, textos, projeção de imagens, músicas e climas criados? Como
dar sentido ao sentido subjetivo que permeia todo o universo do movimento dançado? A intuição
mais uma vez se presentificaria como uma ferramenta essencial. Essa foi nossa primeira resposta,
mas era ainda uma resposta incompleta. Ela não era suficiente, não nos levaria muito longe. Em
que mais poderíamos nos apoiar? Intuição e sensação. Ainda era vago, e acabamos por criar um
triângulo no qual, além da intuição e da sensação, a conexão entre os elementos constitutivos
seria um novo aspecto a considerar.
O trabalho procurava representar muitas coisas:
reflexões, desejos, reverência, diálogo, continuidade, resgate, gratidão,
memória,
celebração, movimento e vidas.
Como não estar sozinho em cena?
Para onde vai o movimento depois de sua execução?
Como dialogar com aquele movimento congelado?
Quem fez e faz dança dentro dessas montanhas?
Como dançar/estar com o outro que já não dança mais?
39
Por mais que buscasse representar muitas coisas, o espetáculo nasceu de um desejo
primeiro, de uma primeira idéia: dialogar com movimentos de dança capturados pela fotografia,
acreditando que, a partir desse encontro (corpo-foto), o diálogo com as fotos possibilitaria uma
resposta a uma outra questão – como não estar sozinho em um solo? Como comunicar essa idéia?
O pensamento do filósofo mais uma vez contribui para nossa reflexão. Vejamos o que nos
diz Garaudy:
O que é preciso é entrar em contato. O que o homem busca, para além da compreensão,
é a comunicação. A dança nasce dessa necessidade de dizer o indizível, de conhecer o
desconhecido, de estar em relação com o outro (GARAUDY, 1980, p. 8).
39
Do programa do espetáculo (Ver programa completo em ANEXOS).
76
No entanto, discordamos em parte de Garaudy e concordamos com Navas, pois
consideramos que “a dança tem sempre algo a dizer, ainda que seja uma outra forma de dizer”.
Segundo Laban:
Mesmo um solo é na realidade, um diálogo entre dois pólos de uma individualidade
mobilizada por reflexões pessoais ou por alterações de humor, a dualidade dos pólos se
torna visível nos movimentos, os quais exibem as tensões internas. (LABAN, 1971, p.
22).
Assim, a relação dialógica, inerente ao movimento dançado, amplia-se para abarcar não
apenas as tensões internas da atuante, mas também amplia-se as relações, com as fotos e os
movimentos sugeridos por elas, com os depoimentos, as posturas dos entrevistados, com o
cenário, a trilha sonora e as próprias paisagens internas dos criadores. Todos esses elementos
passaram a estimular a criação cênica, ampliando seu caráter.
Nosso primeiro passo foi escolher seis personalidades, de diferentes idades e estilos, do
mundo da dança mineira. Foram eles: Arnaldo Alvarenga, Dudude Herrmann, Dulce Beltrão,
Helena Vasconcelos, Maria Clara Salles e Joaquim Elias.
Solicitamos aos artistas que separassem suas fotos de dança e que nos concedessem uma
entrevista em que conversaríamos sobre aquelas fotos. Gravamos os depoimentos em que os
artistas discorriam sobre cada foto (quando foi tirada aquela foto, como estava o mundo naquela
época, como tal coreógrafo costumava trabalhar, o que aquela foto representava naquele
momento e como era vista hoje?). Acabamos por acordar o fio da memória das histórias do saber
e do fazer dança. Os encontros foram acima de tudo surpreendentes, reveladores e prazerosos. Ao
fim de cada encontro, pedíamos ao entrevistado que escolhesse cinco fotos que eram para ele as
mais significativas e nos dissesse uma palavra que sintetizasse aquele momento. Surgiram
palavras como “paixão”, “solidão”, “silêncio”, “saudade”, “poesia”, etc.
Pedíamos também que os entrevistados nos cedessem, caso ainda a possuíssem, a trilha
sonora que acompanhou aquele momento, coreografia ou espetáculo, pois tínhamos a intenção de
não só projetar aquelas fotos como também de usar recortes de suas trilhas para compor a trilha
do espetáculo.
Posteriormente, outros profissionais (não entrevistados) passaram a nos enviar fotos
representativas de sua trajetória.
Assim, começamos a trabalhar com esse material. Queríamos criar entrecruzamentos e
diálogos a partir das fotografias e, obviamente, a partir das histórias, dos segredos e dos
77
movimentos a que elas remetiam. Pretendíamos fazer uma análise e uma releitura daqueles
movimentos, associando-os a seus processos de criação, configurados no tempo e no espaço. A
respeito das fotografias, Pavis afirma:
O interesse das fotografias para a análise é evidente já que são o traço tangível do que
foi, um traço, todavia, que não leva necessariamente a conhecer o objeto fotografado,
mas que propõe uma visão sobre uma obra de arte (PAVIS, 1996, p. 37).
Nosso olhar recortava o movimento, a imagem, a foto. Delas e das memórias dos
depoimentos nasciam proposições relativas à continuidade ou à ruptura daquela seqüência, uma
pergunta ou uma resposta àquele movimento, ou o desenvolvimento de uma textura que o
movimento nos oferecia. Tínhamos que decidir o que nossa visão revelaria daquele objeto,
daquele traço. Afinal, como nos informa Villeneuve, relembrado mais uma vez por Pavis:
A fotografia, por ela mesma, não diz nada. É preciso fazê-la significar e para isso deve-
se colocá-la em uma espécie de relação de atualização com outros elementos relativos à
representação (restos, traços, descrição, texto...) (PAVIS, 1996, p. 37).
Descobrimos, então, que estávamos construindo um espetáculo de dança que desenvolvia
vários diálogos, mas, sobretudo, um diálogo maior: com a memória da própria dança. O
espetáculo adquiria, assim, um caráter de reverência aos que construíram a dança em Belo
Horizonte. Valorizamos então passado e presente, com a esperança de que pudéssemos também
contribuir para que a memória da dança mantivesse seu curso. Memória em ação.
Sobre o papel da memória no trabalho de criação, vale a transcrição de um pequeno texto
que Luís Alberto de Abreu escreveu sobre o texto teatral por ele criado para o espetáculo “Lúdico
Circo da Memória”, montado pelo Oficinão/2007, em Belo Horizonte, dentro das comemorações
dos dez anos do Galpão Cine-Horto. Com a devida licença, citamos:
(...) Essa consciência da fugacidade do tempo nos abate e nosso único antídoto contra a
crueldade de Cronos é a memória. Além de prodigiosa, dizem que a memória é
misericordiosa porque nos faz esquecer ou pelo menos empalidece as lembranças
sofridas e ativa os bons e intensos momentos passados. Mais do que ativa, a memória
reacende em nós as sensações pregressas e nos propõe buscá-las de novo e vive-las. Esse
trabalho é um tributo à risonha memória humana, pois é apenas com ela que zombamos
e rimos dos dentes aguçados e Cruéis de Cronos. Que ela esteja acesa até o último
instante porque até ali estaremos completamente vivos. E completamente plenos
40
.
40
Do programa do espetáculo.
78
O processo vivido por nós na construção do espetáculo foi análogo ao descrito por Abreu:
buscávamos viver novamente momentos de dança, colocar nossa memória em diálogo com a
memória do outro.
Criávamos diálogos que não só aconteciam em zonas de fronteira (dança-teatro) como
também criavam outras zonas de contato (dança-artes plásticas, dança-platéia, platéia-foto).
Embora o espetáculo navegasse na fronteira entre diversas margens, porém as margens
enfatizadas eram aquelas entre a dança e o teatro.
Referindo-se, por exemplo, ao encontro entre dança e teatro, Arnaldo Alvarenga afirma:
“Com certeza, é uma outra qualidade entre o teatro e a dança”.
Essa mesma alteração de qualidade que Arnaldo cita foi também percebida por nós. Porém, como
explicá-la? O conceito apresentado por Pavis, embora refira-se sobretudo ao corpo do dançarino-
ator, esclarece-nos sobre ela:
Ele hesita entre dois pólos de gestual que pratica alternadamente: o gesto dançado e o
gesto mimético. O corpo do ator-dançarino transmite ao espectador essa incerteza de
ancoragem, muda sem parar de estratégia: ora se deixa levar pelo movimento muscular,
ora imita e codifica o mundo que representa (PAVIS, 1996, p. 138).
O processo criativo e dramatúrgico do espetáculo teve um forte apoio nesse encontro
bipolar. Ancoramo-nos não especificamente no teatro, mas nos recursos que ele oferece à
construção: o subtexto, a construção de uma “personagem”, a relação direta com o público, a
contextualização do movimento.
Em POR QUE TÃO SOLO?, a dramaturgia assume um trânsito entre pequenas narrativas
(cenas), dentro uma narrativa maior e não linear (o espetáculo), configurando-se como um
trabalho de dança-teatro, no sentido que o entende Pavis: (...) a dança-teatro é a dança que
produz efeito de teatro” (PAVIS, 2005, p. 84) (grifo meu).
A teatralidade que permeia o espetáculo é resultante do nosso desejo de trabalhar com os
materiais da encenação. É mais uma vez Pavis que nomeia o que para nós, até então, era um lugar
inominável, um lugar do entre, que ele identifica como o entre a ficção e a fricção – ficção
oriunda do teatro e fricção do movimento do corpo em estado de dança.
Em suas palavras:
É desta forma que se elabora a dança-teatro: a dança, obedecendo a uma dramaturgia e a
uma encenação, vai ao encontro do teatro, sem jamais, no entanto, compreender ou por à
prova a causa – freqüentemente obscura e ilegível – que se propôs servir ao aliar-se a
ele. Desta união anti-natural entre dança e teatro originaram-se as mais belas produções
do nosso tempo (PAVIS, 1996, p. 84).
79
A dramaturgia do espetáculo adquire então propriedades dos elementos configurados na
dança-teatro, principalmente no que se refere à dualidade existente entre a concretude de uma
ação teatral objetivada e a não concretude inscrita no movimento dançado.
Vale lembrar que a dança-teatro é uma derivação da própria dança, ou seja, foi criada a
partir do movimento expressionista alemão na primeira metade do século XX, como vimos na
segunda parte desta dissertação. O olhar que orienta as produções de dança-teatro tende a ser,
portanto, um olhar de dança, de modo que mesmo quando a palavra e outros recursos teatrais se
inserem em seu contexto, esses elementos são organizados por um pensamento de dança.
A dança é uma arte lírica e sua característica é, como afirma Pavis, “comunicar emoções
profundas”. POR QUE TÃO SOLO? busca essa comunicação de emoções profundas, de
diferentes qualidades do agir, resultante de uma disponibilidade dos artistas (atuante e
dramaturgista) para envolverem-se com a experiência, bem como das relações desenvolvidas por
eles com os materiais do espetáculo.
A construção do espetáculo situa-se entre a cinese e a mimese. O espetáculo organiza-se
em fragmentos (pequenas e simples narrativas), característica essencial da dança-teatro. O
movimento nunca é puro, é sempre contextualizado, ligado por ações simbólicas e motivado
psicologicamente e socialmente. Ele acontece entre atuante e parceiros da cena. Dança entre
lugares. Dança plena de travessias, entre sensação e imitação, entre suspeitas de significados.
Dramaturgia estabelecida nas conexões. Dramaturgia construída entre margens, como a define
Pais:
Ela situa-se nas suas margens, delineando a concepção fundamental do mesmo,
numa ausência constitutiva. É das margens que ela tece e (in)forma o visível,
construindo o modo implícito pelo qual o espetáculo se concretiza em opções e relações
várias; é nas periferias da materialização do visível, nas zonas de contacto e cruzamento
entre materiais cênicos, que ela opera, transgride e participa no espetáculo (PAIS, 2004,
p. 73).
Não era o caso de pensar em “amarrar” o espetáculo. Como amarrar algo que flutua e
transita entre o sentido e o não-sentido? O termo conexão pareceu-nos mais profícuo no caso,
pois, nas palavras de Pavis:
A conexão por contigüidade e/ou encadeamento é garantida pelos índices gestuais, ela
não tem nada de mágico ou de inexplicável; ela regula a coordenação das partes do
corpo, mas também o elo entre o visível e o invisível: lembrança, devaneio, sonho
acordado (PAVIS, 1996, p. 231).
80
Muitas vezes me perguntava: como soltar? Ou como tecer ares, entre-lugares? Encontro
em um poema Manoel de Barros o estímulo para uma possível resposta: “Em poesia que é a voz
do poeta, que é a voz de fazer nascimentos/ O verbo tem que pegar delírio” (BARROS, 1993, p.
15).
Em POR QUE TÃO SOLO?, a palavra pega delírio. O corpo engole a palavra e
transforma em movimento a carga imagética e intencional trazida por esta. É a dança das palavras
engolidas. O movimento para além das palavras. Tecê-lo é estar consciente dos “delírios”, das
construções que, primeiramente, emanam do corpo do bailarino, de seus sistemas de organização
e composição do sentido. Fluxos internos em resposta a estímulos internos e externos.
Estabeleceu-se um equilíbrio entre os desejos e necessidades dos criadores, a necessidade
da obra e as intensidades, texturas e dinâmicas que vão se delineando. Concordamos com
Cardona quando esta afirma que “dramaturgia é equilíbrio, fruto de uma interação das dinâmicas
dos elementos que compõem a obra” (2000, p. 44).
Por fim, fomos para a sala de ensaio repletos de fotos, inspirados pelos depoimentos e
com o desejo de colocar todos os estados de danças dentro da mesma casa, do mesmo corpo.
Surgiu então a idéia da construção de uma casa ou um quarto de memórias, onde a atuante
poderia fazer sua “gira”. Gosto de pensar em uma “gira” de força quando estou fazendo um
espetáculo, gosto de vê-lo como lugar onde os artistas irão trabalhar seus conteúdos como uma
passagem de um toureiro pela arena. Ou ele domina o touro (a cena), ou o touro o matará. Por
isso chamo de força. Passagem forte, focada num tempo e num espaço em que pessoas, imagens,
impressões, sensações, materiais e movimentos irão conviver, transformar e frutificar. Uma
“gira” é um trabalho. É o nosso trabalho.
Assumida a idéia do quarto/casa, decidiu-se que o espaço se configuraria por meio de
telas de tecidos finos, brancos, como cortinas apoiadas em uma estrutura metálica, que
permitiriam não só delimitar, recortar espaços, mas também projetar as fotos que escolheríamos
para compor a cena. As telas permitiriam, ainda, desenvolver uma relação entre o que poderia ser
revelado ou escondido e entre o espaço do público e o espaço da cena. A presença de Ricardo
Garcia foi fundamental nesse momento. Em seu depoimento, Garcia narra:
Minha tarefa: trabalhar com o espaço, a luz, o som, as imagens. Desejo: um espaço
virtual, etéreo, que se transforme com o movimento que seja leve como o ar. Luzes que
dancem. Sons da memória, músicas de outros tempos. Palavras, histórias, lembranças,
pessoas. Fotos antigas, recordações, registros de uma vida (GARCIA, 2008).
81
Garcia criou o projeto cenográfico. Juntos recortamos trechos dos depoimentos e das
músicas que iriam compor a trilha, além de criar variações sobre os temas escolhidos, ora
mudando seu andamento, ora sobrepondo canções e textos, de acordo com a percepção de toda a
equipe.
Em um primeiro momento ficamos a sós; Gabriela, eu e as fotos. Pedi a Gabriela que
“brincasse” com aquele material, que se misturasse com ele, que dançasse com as fotografias em
seu corpo, que deixasse seu olhar pairar sobre “aquelas paisagens”, para em seguida deixar seu
corpo livre para as traduzir. Passamos a buscar então:
- a fala daquelas fotos;
- qual parte do corpo ou dos movimentos chamava-lhe atenção;
- qual era o seu desejo ou sua reação diante daquela imagem;
- como continuar aquele movimento, como completar aquela seqüência;
- qual a tonicidade daquele movimento congelado;
- que texto aquela imagem sugeria;
- como fazer a tradução daquele texto em movimento;
- qual sentimento aquela imagem nos despertava;
- como dançaríamos a percepção de um sentimento ou sensação;
- como dançaríamos algum fato ou curiosidade que nos foi revelado, e o que faríamos
com o que não foi revelado;
- qual música ampliaria determinado gesto dançado ou iria contrapor-se a ele;
- como dançar aquelas palavras que sintetizaram as impressões de nossos entrevistados
sobre suas próprias fotos.
“Como captar as relações bilaterais entre, por exemplo, o espaço e o gestual, o objeto e o espaço,
a iluminação e a maquilagem ou a precisão trazida para um detalhe ou um momento fugaz quase
imperceptível a olho nu” (PAVIS, 1996. p. 37).
Descobrimos, por fim, que as fotografias retratavam nossos convidados e que
“passaríamos uma noite” juntos.
Novas perguntas então passaram a ser formuladas:
- quem eram aquelas pessoas?;
- de onde viriam?;
- como as receberíamos?;
82
- como alojá-las no espaço?;
- como elas chegariam?;
- haveria naquele grupo alguém indesejado?;
- o que pode acontecer numa recepção?;
- o que de inesperado pode nos visitar?;
- qual o espaço ideal para essa celebração?;
- buscaríamos uma proximidade com o público?;
- era o público também um convidado, uma foto, um parceiro ativo/dançante?;
- solicitaríamos a platéia diretamente? Olharíamos para ela diretamente, como cúmplice?.
Era ainda necessário definir o que vestir, o que calçar. Qual figurino traria a sensação de
tempo passado e presente? Qual a relação do figurino com o corpo? Sapatos? Sapatos fazem
barulho... Poderia o barulho dos sapatos ser parte de nossa composição?
Várias perguntas foram, portanto, formuladas ao longo do processo criativo, permitindo-nos a
percepção e a triagem dos elementos dramatúrgicos que viriam a ser utilizados. Essas perguntas
estimulavam nosso imaginário e alimentavam as improvisações. Estas aconteciam sempre em
forma de gira, tratava-se de ir para o espaço de forma concentrada, disposto a lidar com todas as
surpresas, estímulos internos e externos (orientações simultâneas vindas da direção), desapegado
do resultado. Ir para o espaço, sobretudo, para viver uma experiência, sem medo do ridículo e
sem críticas.
De uma pergunta, de um estudo ou de uma idéia os movimentos eram criados. Os
movimentos improvisados eram contextualizados dentro de um universo mais amplo e
retrabalhados segundo o objetivo da cena e as relações a serem criadas. Aos poucos, esses
movimentos foram ganhando a forma de várias cenas ou pequenas narrativas a serem conectadas,
e que acabaram por formatar o roteiro apresentado a seguir. Na seção seguinte, esse roteiro é
entremeado com comentários e descrições de Gabriela Christófaro, apresentados em itálico.
83
5.3 ROTEIRO DO ESPETÁCULO – Diálogo entre criadores
“O que eu acredito que seja o universo da dramaturgia é o lugar onde as coisas são costuradas.
E essas coisas são os elementos da cena. E aí os elementos da cena... como quem está atuando,
que tipo de relação ele tem em cena, se tem música, então como ele costura com a música, como
ele costura com o parceiro dele, como ele costura com o figurino que ele está usando, que não é
só um acessório, como ele costura como os objetos que ele manipula, como ele estabelece
estratégias de costura, porque é uma dramaturgia que se faz na hora. Para mim, eu acredito que
é uma costura que se faz todo dia. Então eu acho que a dramaturgia é esse universo da costura.
Gabriela Christófaro”.
41
A ESPERA
As luzes que aos poucos vão se apagando preparam a platéia para o encontro. A mulher
está no espaço desde a entrada do público. Em silêncio e envolta, velada por uma cortina, ela
espera por seus convidados. Durante sua ação de esperar ela confere suas coisas, seus pertences.
Enquanto espera, toca a cortina. A escuridão se faz, e delicadamente a música se introduz no
ambiente. Escuridão e música dialogam nesse momento. Aos poucos a luz de cena começa a se
abrir e a relação entre a atuante e o material cênico (objeto/cenário/cortina) é enfatizada. Segundo
Pais:
Os materiais não são aplicados a uma organização formal que traduza a sensação: eles
contêm a sensação e dão-lhe passagem estética (PAIS, 2004, p. 52).
Quando eu toco a cortina, esse toque já é o meu diálogo com a cortina (...) e tem uma
ação ali, que é a de procurar a sapatilha. (...) É como se eu encostasse-se na cortina e falasse:
“Agora já estou indo para outro lugar”.
41
Gabriela Córdova Christófaro é bailarina, professora de dança e mestranda em Artes Cênicas pela Escola de Belas
Artes/UFMG. Bailarina criadora do espetáculo POR QUE TÃO SOLO?. Entrevista com Gabriela Christófaro – Belo
Horizonte, 27/8/2007. Ver entrevista completa em ANEXO.
84
A casa está arrumada. Ela não acha suas sapatilhas, mas acha seus sapatos. Está atenta ao
volume que precisa produzir ao manipular a cortina, fazendo-a “dançar” com a música. Enfim,
está pronta. A imagem de uma porta se abre ao fundo e ela corre até lá.
Aí eu calço o sapato, solto esse volume (cortina) e aí tem uma ação que é: olhar a porta. Tem
uma porta na minha imagem, e eu saio, e tem uma porta mesmo, feita com luz, e eu olho.
Dessa “porta” (efeito de luz) ela espreita se eles estão chegando...
E aí tem alguns elementos que são bem marcados assim: tem uma mão, que indica uma
ansiedade. Eu tenho que trabalhar com isso que eu fico pensando que é uma emoção. O que a
ansiedade te traz? Uma rapidez, uma falta de lugar para colocar a mão...
85
Note-se que Gabriela não se refere à construção de sentimentos, e sim de ações. Não é o
sentimento que a organiza corporalmente, e sim os fatores constitutivos do movimento, como o
tempo, a dinâmica, a qualidade do tônus muscular, as intensidades e a fluência. Quando fala de
emoção, refere-se a uma disponibilidade para a ação que determina qualidades.
Enquanto não chegam, ela se prepara. Como nos preparamos na dança? Ela retoma a
tradicional posição chamada na dança clássica de preparatória. Assumindo essa posição, ela faz
uma alusão aos ensinamentos, muitas vezes rígidos, dirigidos aos alunos de dança, às varadas
(mencionadas por Dulce Beltrão em seu depoimento, quando conta sobre as aulas do Professor
Carlos Leite) que atingiram muitas pernas em tempos não tão distantes. Busca as posições, as
posturas “corretas”. Nasce um diálogo entre o corpo estável e o instável, configurado na relação
construída entre peso, forma e esforço na busca da forma “ideal”, do corpo ideal para dançar,
para receber seus convidados.
Nasce o primeiro momento de cumplicidade com a platéia. Embora saibamos que é
comum, na dança, que se abra mão da recepção como elemento e estímulo criador, em POR QUE
TÃO SOLO? a platéia é parte fundamental da construção. Ela povoou nossa criação durante todo
o tempo, e muitas vezes modulou nossas buscas de tradução, ora sendo vista como espectador
(fruidor), ora como mais uma foto-imagem em diálogo, ora como um outro dançarino parceiro,
uma extensão do corpo da bailarina, ora, ainda, como testemunha ativa, chegando até mesmo a
86
ser solicitada durante a execução de determinadas ações. O fato de considerar o espectador como
um vivente direto das ações é uma das razões que faz com que a dramaturgia do espetáculo
aproxime-se do universo teatral.
Então tem uma coisa do olhar, de buscar a aprovação do outro, e eu busco isso no olhar
da platéia. E a platéia para mim é como se fosse um professor mesmo.
Retornando à busca pela forma ideal, esta é também criada como diálogo entre a mulher
em cena e um depoimento colhido da bailarina Helena Vasconcelos, que afirma que: “Eu gostava
de tudo certinho, tudo encaixadinho, arrumadinho. Eu gostava da técnica. Toda vida, eu sempre
fui presa à forma de ter que estar bem feito” (VASCONCELOS, 2007).
A mulher em cena busca a “técnica” enquanto espera. Busca o diálogo com outras formas
oriundas das fotos pesquisadas.
Então, naquele momento, mesmo que eu não tenha a imagem projetada ali, eu estou
dialogando com ela, ela está na minha memória, na minha imaginação (...) tem umas que eu
vejo, tem outras que eu não vejo, que eu trabalho com a imagem delas projetada dentro de mim.
Ela às vezes arruma seu vestido, permitindo que este, ao mesmo tempo, seja uma
continuidade de seu corpo e de seus movimentos, e trace deformações em seu corpo, imagem que
dialoga com a foto de Joaquim Elias em ensaio-experimento para a composição do espetáculo
“Um alarme pra o silêncio”
42
. Ela e o vestido.
O vestido é a minha pele
42
“Um alarme para o silêncio” foi um trabalho criado por Joaquim Elias em Belo Horizonte no ano de 2000. O
trabalho é baseado na poética de Manoel de Barros e foi produzido em parceria com o FID (Festival Internacional de
Dança).
87
Em seu texto interno (recurso também oriundo do teatro, conhecido como subtexto),
43
ela
se pergunta “será que estou bem?”. Instala-se um jogo entre vestido, formas de se preparar, o
corpo treinado para obedecer, a instabilidade, a ansiedade da chegada, a busca de um sentido
entre técnica e forma, entre forma e expressão, figurino e deformação, emoção e movimento. Um
depoimento e revelação de Dulce Beltrão (em off), integram suas ações: “Eu nunca fui um cisne”
(BELTRÃO, 2007).
A deformação causada pelo vestido e a retomada do subtexto (a procura da sapatilha)
estimulam-na e levam-na para uma outra estrutura, uma outra dinâmica corporal (um movimento
brusco) que permite seu deslocamento (conexão) para a criação de um novo núcleo.
ENQUANTO ESPERO
“Enquanto não chegam, melhor checar se a casa está toda em ordem”. As cortinas, onde
as imagens serão projetadas, tornam-se o próximo foco. A manipulação simultânea do tecido que
cobre seu corpo e do tecido fora do corpo (cortinas) é a ação responsável por criar uma unidade
de passagem e articulação cênica.
Aí eu encontro o cenário. E aí quando eu pego a cortina, aí pronto, é uma coisa
completamente objetiva para mim. Estou fechando a cortina, eu olho a cortina, eu olho o espaço
que está sendo construído, que aquela ação está construindo.
43
De acordo com Pavis, “Esta noção foi proposta por STANISLAVSKI (1863-1938), para quem o subtexto é um
instrumento psicológico que informa o estado interior da personagem, cavando uma distância significante entre o que
é dito no texto e o que é mostrado pela cena. O subtexto é o traço psicológico ou psicanalítico que o ator imprime a
sua personagem durante a atuação (PAVIS, 1996, p. 368).
88
O cenário passa a recortar todo o espaço, configurando um ambiente fechado, e
conferindo-lhe um clima de intimidade. Há um jogo de entrar e sair do espaço recortado. Para
nós, são os corredores e as portas que envolvem um ambiente. O cenário ora mostra a atuante, ora
a esconde.
Simultaneamente ao movimento vagaroso de fechar as cortinas, de recortar o espaço,
ouvimos em off um trecho do depoimento de Elias, em que ele narra um momento de uma
tournée do Grupo Primeiro Ato em que resolveram (um grupo de 40 pessoas) parar na casa de sua
mãe no interior de Minas Gerais para tomar café da manhã. Encontramos uma correspondência
entre a mulher da cena e a mãe do bailarino, que estava varrendo a porta da casa quando, de
repente, um ônibus repleto de bailarinos, produtor, diretora e técnicos pára diante de sua casa. O
sentimento que ela então experimentou é, possivelmente, próximo daquele que a mulher em cena
está para vivenciar. Muitos chegarão para o encontro. A voz de Dulce Beltrão avisa que eles
estão chegando, ao se referir a como Klauss Vianna e Carlos Leite eram chamados ao serem
avistados descendo uma das ruas do centro de Belo Horizonte: “Lá vem o ponto e vírgula”. Essa
voz-frase faz a conexão para que a mulher se desloque novamente em direção à porta, para
recebê-los. Ao mesmo tempo são projetadas fotos de Klauss e Carlos ao fundo. Referindo-se a
esse depoimento, que permite à bailarina estruturar-se corporalmente, Gabriela nos diz:
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Ele é super pontual. Por que ele é a minha música. (...) A música me dá um tônus, me dá
um tempo. Música é uma vibração mesmo, física.
A mulher em cena corre até a porta, espia, pula para ver melhor e confirmar a chegada. O
título de um espetáculo de Dudude Herrmann é falado nesse momento pela bailarina, por
coincidir com o momento tão aguardado: “Quanto tempo faz que não dançamos...” Entra!
A CAIXA
Em seguida ela afasta uma das cortinas ao fundo e, sem que a platéia perceba, empurra
com os pés uma caixa para dentro do palco, dando a impressão de que a caixa, que contém fotos
de todos os convidados, tem autonomia de movimento. “Todos” estão dentro dessa caixa, todos
vieram. A utilização da caixa como material foi fruto de nossa observação durante o processo de
pesquisa. Inspiramo-nos nas próprias caixas que nossos entrevistados possuíam. Caixa de fotos,
caixa de segredos, caixa a se abrir e a se revelar.
A caixa para mim, ela é o fim das pessoas que a gente entrevistou (...) Eu imagino elas
assim, aquele tanto de gente ali dentro, pego assim com todo cuidado, todo carinho... é uma
coisa muito terna (...) eles me transformam.
Com cuidado ela pega a caixa e dirige-se para a última cortina a ser fechada. A ação ilustra um
depoimento, mais uma vez de Beltrão. Aqui há uma sobreposição de intenções cênicas: arrumar a
casa e também dialogar com o texto narrado. Beltrão afirma em seu depoimento:
Houve uma época em Belo Horizonte que, antes das 10 no cine Brasil, no cine Tupi, no
cine Guarani, aconteciam umas danças na frente das cortinas e eu dancei várias vezes.
Então era maravilhoso. A gente dançava, depois então tocava aquela música
“Tchaaamm”, abria a cortina e começava o filme (BELTRÃO, 2007).
90
ENTRA, SENTA, FICA A VONTADE
A tonicidade e a velocidade do movimento-ação de fechar a cortina são o estímulo para a
conexão e a continuidade, junto com a dinâmica e as qualidades do movimento: passos pequenos
e rápidos, mudança de níveis de altura e espaciais. Essas ações geram na atuante um trabalho na
direção de nosso objetivo nesse momento: a criação de um estado de expectativa. Ela agora
recebe a todos, ansiosa, emocionada e aflita. Dialoga com seus convidados dentro da caixa e, ao
mesmo tempo, com a platéia, que também é convidada a participar e partilhar daquele encontro:
“Entra, senta, fica a vontade. Que prazer, que honra, entra...”
Costumo dizer que tudo o que aconteceu até esse momento era um prólogo e que só então
o espetáculo começaria de fato.
Instala-se uma movimentação aflita, própria de quem está recebendo muitas pessoas
ilustres. Ela corre, cai, levanta, fala. Brinca com as contagens (característica marcante das
tradicionais aulas de dança). Essas ações são os estímulos para que ela dance com a caixa em
suas mãos, em seu corpo; para que ela a coloque sobre o peito, acolhendo a todos. Caixa que
guarda memórias, corpo que é memória. A caixa é um objeto que ganha autonomia e que dialoga
com seu corpo. Corpo e caixa. Corpo-caixa. Como o corpo adquire forma e movimentos de uma
caixa? Qual a sua natureza e função?
Porque na dança a gente corporifica o tempo todo (...) É sentir o desenho da caixa. Eu
sinto as quinas da caixa nas minhas clavículas (...) A parte de dentro da caixa é aqui na frente,
onde estão os meus órgãos. A tampa da caixa são as minhas mãos. Então é assim, é um desenho
mesmo que eu trago para o meu corpo. Que tem um espaço interno para colocar as coisas. (...)
Eu tenho que realmente me imbuir de virar caixa.
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Percebemos aqui a modulação entre objeto e corpo; forma, intensidades e volume se
regulam. Nas palavras da bailarina:
Tem tempo, tem volume... Para mim, o tempo, o volume, essas coisas, é como se fosse o
meu interno. E é com isso que eu dialogo com o externo. Se isso não estiver organizado, eu não
consigo dialogar com o externo.
A caixa às vezes é manipulada, mas às vezes também manipula a bailarina e a leva para o
chão. Da intensidade da queda vem a intensidade (as conexões se dão via intensidades) para a
ação: o gesto de abrir a caixa.
OS CONVIDADOS
Quando a mulher abre a caixa, imediatamente é projetada uma foto do espetáculo “Carne
viva”, do Grupo 1º Ato. A imagem aparece cortada. Avistam-se somente as mãos dos bailarinos.
Essas mãos sugerem entrega, doação, presença. Estabelece-se então um diálogo entre
receptividades: o gesto de receber os convidados dialoga com o gesto de oferecer sugerido pela
foto.
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Caixa aberta, é hora de ver todos os convidados. A foto então é totalmente revelada e
podemos ver vários bailarinos em um grande grupo. A mulher em cena, à medida que retira
fotografias da caixa, vai falando sobrenomes de dançarinos mineiros. Simultaneamente a essa
ação, outros rostos vão se configurando nas projeções.
Ao fim dessa recepção, ela tem todos em suas mãos. É hora de distribui-los pelo espaço
da casa, acomodá-los. Rodopiando, espiralando pelo espaço, ela deixa que as fotos busquem
direções inusitadas no espaço, caindo pelo chão. Trata-se de uma ação de risco, pois as fotos
ocupam lugares aleatórios, imprevistos.
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O movimento traça conexões claras entre a sustentação de um esforço físico (sustentação
da musculatura abdominal de forma a produzir uma qualidade de leveza), a imagem mental da
atuante (construção de uma energia prazerosa) e o objetivo da cena (permitir que os convidados
ocupem seus lugares). Quando a última foto cessa seu movimento de queda das mãos da mulher,
uma nova célula começa a se instalar.
DEPOIMENTOS
Trechos de depoimentos (em off) dos entrevistados são agora o fio condutor para a criação
e o desenvolvimento de uma nova cena. Os depoimentos passam a dialogar com diversas imagens
de dança projetadas em cena.
A mulher agora escuta e sutilmente atua atrás das projeções. Constrói movimentos
discretos de quem está em uma sala de visitas a escutar. O foco principal é o diálogo entre as
vozes e as imagens projetadas, que ora colaboram redundantemente, ora se contradizem, ora se
complementam, permitindo ao público traçar livremente conexões dentro da cena. A dramaturgia
se dá no encontro e no diálogo entre imagem sonora e visual, na conexão entre esses elementos.
Para a atuante:
É um momento que eu posso ficar “sozinha”. Eu estou podendo olhar as fotos junto com
todo mundo. (...) é como se fosse uma brincadeira. Ele me deu uma foto, o que ele me deu é o
ponto de diálogo entre nós dois. Então eu entro na foto e eu saio da foto. E entrar na foto
significa chegar na imagem da foto (...)
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Procuramos, nesse instante, permitir que a platéia possa vir a sentir o que foi nosso ponto
de partida: olhar e recortar as imagens.
A última foto revela a forma de um intenso movimento de braço. Essa forma é
corporificada pela mulher, que dá continuidade àquele movimento, transformando-o e fazendo a
conexão com a nova cena a surgir.
DIALOGANDO
Após juntar todas as fotos e sentar-se ao lado delas, a mulher em cena começa sua “fala”,
seu movimento com opinião própria. É hora de a anfitriã “falar”, após ter ouvido os diversos
depoimentos. Ela inspira-se no movimento sugerido por uma das imagens que está projetada a
sua frente: uma mulher que cruza uma cena ameaçada por três homens.
Essa mulher sustenta os braços em direção ao infinito. Esse movimento dos braços será
apropriado pela mulher em cena para continuar a conversa. São braços que sugerem impulsos de
quem quer falar.
95
A música se instala, dialogando com o movimento. A movimentação ora coincide com a
série de fotos projetadas, ora tem autonomia em relação a ela. Trata-se de uma dança repleta de
subjetividade, alimentada por imagens e intenções internas. Um diálogo da atuante consigo
mesma. O barulho dos sapatos começa a ser reforçado, a ganhar propriedade no espaço. A mulher
dança na fronteira entre imagens visuais, música e silêncio. Apropria-se dos gestos congelados
das fotografias e os transforma. Dança junto, dança sozinha, dá continuidade aos gestos,
atravessa-os. A última foto dessa série é uma imagem de Marilene Martins e Angel Vianna em
“O caso do vestido”
44
(coreografia de Klauss Vianna para o poema de Drummond – 1955, 1959,
1960). Essa foto faz a atuante parar e dialogar com o poema. Dialogando com um trecho do
poema – “Dona, não lhe dou vosso marido, porque não sei onde ele anda, mas lhe dou este
vestido. Última peça de luxo que guardei como lembrança, daquele dia de cobra, da maior
humilhação” –, a mulher em cena tira seu vestido e o oferece à platéia. A platéia é para ela a
“Dona” que recebe o vestido. O vestido é também oferenda, uma extensão da atuante que se
revela, se expõe para todos. Pela primeira vez, ela, que já tinha se relacionado com o público de
forma velada, o faz diretamente. Seu texto interno é o estímulo para a execução do movimento:
“Recebei este vestido e me dá vosso perdão?”.
Aqui a teatralidade é totalmente assumida. O fluxo da energia é desviado de um lugar de
fricção para ceder lugar à ficção teatral. A atuante retira-se da cena como a mulher do poema –
“pobre, desfeita, mofina com sua trouxa na mão.” Ela traz essas qualidades para seu corpo,
44
Poema de Carlos Drummond de Andrade.
96
enquanto “se vai de mansinho”, até desaparecer por entre as cortinas. Essas qualidades são
trazidas pelas palavras do poema e corporificadas por Gabriela.
SEM ASSUNTO – uma tentativa de aproximação
A mulher reaparece no momento em que uma foto de Dudude Herrmann é projetada. É
uma foto do espetáculo “Dissertação sobre o nada”. A imagem nos mostra uma mulher de costas,
numa posição que sugere que ela encontrou algo, teve uma idéia. Traçamos uma relação entre
essa imagem e o estado em que a atuante uma vez se encontrou durante os ensaios, quando se
revelou sem assunto para criar naquele dia e saiu para buscar assunto. Uma foto que disserta
sobre nada, uma bailarina que procura algo a dizer e a mostrar, uma referência à própria dança,
que muitas vezes, em sua forma pura, não tem outro assunto senão o próprio movimento, que por
si só se basta, levaram-nos a criar essa cena: “Sem Assunto”.
Assim, ela, que havia deixado a cena “desfeita e mofina”, reaparece com um sorriso
forçado, tímido, infantil, diante de seus convidados. Não é terrível quando temos convidados e
não temos assunto com eles? Ela decide então “buscar assunto”, pedindo à platéia que “espere só
um pouquinho”, que ela irá encontrar algo a “dizer”, algum assunto para continuar a conversa. A
mulher em cena sai à procura, hesita, reflete, olha para o público, sorri, vaga pelo espaço. O
barulho de seus sapatos no chão reforça a presença destes como elemento cênico atuante,
elemento rítmico, uma outra voz a ganhar autonomia. (Os sons dos sapatos reforçam o
movimento de fundo, de que tratarei posteriormente).
No desespero por encontrar algo a dizer, ela se deixa arrebatar por movimentos
estereotipados, caricaturas dançantes e jocosas. Remete-nos à dança voltada exclusivamente para
o ato de executar, “arrasar”, desprovida de qualquer conteúdo. Fazemos uma alusão à dança
como simples divertimento, à dança que nada tem a “dizer”. No meio de seu devaneio ela
encontra várias possibilidades de assunto: um braço, o vestido, a luz. Todos os impulsos são
aproveitados.
Naquele momento é a ação, diálogo total; eu tenho que encontrar alguém e conversar, eu
tenho que encontrar uma coisa para conversar.
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Por fim, ela encontra uma conexão em seus próprios sapatos. Seu corpo articula a
mudança entre um corpo que corre com sapatos e os sapatos que adquirem autonomia e correm
por si sós. Há uma transformação da relação do corpo com o objeto.
“Dançarás – disse o anjo – Dançarás com teus sapatos vermelhos...
Dançarás de porta em porta... Dançarás, dançarás sempre.”
Andersen, Os sapatinhos vermelhos
Ela vai ao encontro desses sapatos. A movimentação (grotesca) – a tentativa de agarrá-los
para que o movimento cesse fará a conexão com a próxima cena. A mulher, num clima lúdico e
ao mesmo tempo visceral, tenta agarrar os sapatos, ao passo que estes fogem dela, ludibriando-a.
O corpo joga consigo mesmo, criando elementos ilusórios e cômicos.
Um diálogo da gente com a gente mesmo. Tem momentos que são diálogos meus comigo
mesma.
Uma brincadeira em que o elemento surpresa (a autonomia dos sapatos) funde-se ao
vigor, à precisão e à sensualidade da atuante. Finalmente ela agarra seus sapatos, o movimento
cessa, o impacto gera pausa e a pausa gera transformação. Uma nova célula cênica, um ponto
singular irá surgir:
98
O CISNE
“A foto é literalmente uma emanação do referente. De um corpo real que estava lá, partiram
radiações que vêm me atingir, a mim, que estou aqui (...)” (BARTHES, 1980, p. 121).
Observando a diversidade do material que havíamos recolhido, percebemos que várias
fotografias retratavam movimentos virtuosos, sobretudo da dança clássica, mas também de outros
estilos. Essas imagens remeteram-nos à figura do cisne, animal bastante representativo – um
ícone – na história da dança, não só pela tradicional forma clássica dos movimentos retratados,
mas também, por seu caráter de flutuação, pela calma análoga a um deslizar tranqüilo sobre as
águas. Havíamos também recolhido uma frase marcante proferida por Dulce Beltrão em seu
depoimento: “Eu nunca me senti um cisne”. Mais uma vez o animal mostrava-se como um
parâmetro ideal de beleza a ser alcançado no consciente/inconsciente dos dançarinos em
formação.
99
Decidimos dialogar com o cisne, de modo que o corpo atuante construísse outras
qualidades de expressão. Como deslizar, como ter um olhar vazio e atento, como andar, olhar,
esperar e dançar como um cisne. Como seria o cisne na cena contemporânea? Em um espetáculo
de dança que dialoga com a própria dança, não poderíamos deixar de ter como convidado... um
cisne.
Restava decidir quando e como ele iria aparecer. Como iríamos configurá-lo? A
transformação (ponto de conexão) surge quando a mulher em cena consegue finalmente agarrar
seus sapatos. O ato preciso, inesperado e seguro, seguido de pausa e quietude ou, antes, permite,
induz à mudança de tônus muscular e intenção. Essa mudança se faz com o apoio de uma
imagem mental, que a atuante passa a buscar no corpo: leveza, graciosidade e fluidez. O corpo
assimila aquela imagem. A leveza é incorporada e traduzida na estrutura ósseo-muscular, no
sistema sensório-motor, na intenção ou mesmo na falta de intenção traduzida dos olhos do animal
para os olhos da atuante. A pele é pensada como pluma. Uma nova célula surgirá. A música cria a
ambientação para que ele venha (afinal, os cisnes são animais desconfiados). O corpo da atuante
cria pequenas ondulações e os sapatos são segurados na extremidade das mãos, dando a
impressão de serem pontas de asas. Ele chega sem pressa, veio de longe, já habitou muitos
“lagos”.
Ao fundo é projetada uma das fotos-cisne (Arnaldo Alvarenga em “Lagoa silenciosa”; a
palavra lagoa nos inspira e reforça nossa intenção), e a bailarina encaixa-se nela, dando
continuidade ao movimento congelado. A música é terna, suave.
100
Ele busca a platéia (como os animais que, nos parques, aproximam-se dos visitantes na
expectativa de ganhar comida), deita seu pescoço no colo de um dos espectadores, divide sua
calma com o público. Subitamente, ele estranha a presença do outro, “voa” e se afasta, pondo-se
a observar a todos com seu olhar vazio e atento. Cria-se nesse momento uma grande comunhão
com a platéia. Seu olhar, que passou pelo público, termina em uma foto que é projetada ao fundo
e que chama sua atenção (Joaquim Elias, em “Um alarme para o silêncio”, está prestes a pegar
um peixe no ar e colocá-lo dentro de um chapéu). A foto, além de reforçar a leveza, também traz
um peixe, permitindo que o cisne se desloque em busca deste e simule sua deglutição.
101
Ele chega até ao bolo de fotos, cisca no meio delas.
Sua procura leva-o até a cortina lateral, e ali ele desaparece. A cortina agora é coxia, bastidor. Ele
transforma-se em mulher-cisne, dialogando com as grandes bailarinas, damas da dança clássica.
Vemos somente sua silhueta. Ela prepara-se para entrar em cena utilizando movimentos
tradicionais de uma grande diva da dança. A música intensifica-se e anuncia sua chegada. Ela
invade o “palco” arrebatadoramente, ao mesmo tempo em que, ao fundo, é projetada a foto de
uma criança vestida de bailarina clássica (Maria Clara Salles).
102
O pequeno cisne ou a menina que sonha sê-lo. Sobre a projeção dessa foto, revela-nos
Gabriela:
Uma imagem, um ritmo, uma energia muscular. E é com aquela imagem... a imagem é
muito orientadora, a foto me organiza.
Ali, no palco, o cisne dança e executa, por fim, sua morte, referência ao momento
clássico, eternizado no balé de Marius Petipa, “O lago dos cisnes”.
103
DIALOGANDO COM NOVERRE
Ao fim da cena/cisne, fica a pergunta: como retomar, como fazer “renascer” a mulher da
cena? A idéia era trabalhar com uma colagem de textos – cartas escritas por Noverre. Assim, os
sapatos, que antes eram pontas de asas do cisne, ganham vida e transformam-se em pena que
escreve. O francês Jean-Georges Noverre escreveu 15 cartas, um tratado sobre sua concepção de
dança no século XVIII (ver “Tessitura dos mestres”). Nelas ele expressou seu encantamento pela
arte, além de tecer críticas ferrenhas ao mau uso desta. Aos poucos, a mulher em cena, que tem
os sapatos nas mãos, faz com que, por meio do movimento e da nova qualidade rítmica dos
mesmos, a conexão para deixar o lugar do cisne (morto) e ganhar vida se estabeleça. Ela passa,
então, a ocupar o lugar da escritora das cartas noverrianas. Numa movimentação em que associa
movimentos ilustrativos e alusivos à construção de uma escrita apoiada em um texto, ela fala em
tom solene e irônico.
Dialogar com Noverre pareceu-nos necessário dada sua importância como um visionário
na história da dança. Criamos um pequeno recorte de suas cartas, no qual enfatizamos seu
pensamento sobre a necessidade de a dança estar atenta às paixões, sobre a expressividade e
sobre características que a dança deveria possuir para nos falar à alma. O corpo acompanha a
escrita todo o tempo, traduzindo em movimento o estímulo criado pelas palavras. Ao fim da
carta, que se encerra solenemente, os sapatos, que se transformaram em caneta, passarão a ocupar
o lugar das sapatilhas incorporadas às mãos da bailarina.
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VIRTUOSISMO E TORTURA
Nos depoimentos coletados ficou bastante claro que a dança muitas vezes teve uma forma
muita severa, excessivamente disciplinada e rígida em seu treinamento. É com o estereótipo dessa
rigidez que procuramos dialogar nesse momento do espetáculo. A preparação clássica, os
exercícios com pernas e pés vão desencadeando movimentos chavões, grandes valsas e
seqüências de esforço físico (ginástica para o abdome, por exemplo) são realizadas no chão. Toda
a movimentação é realizada no chão, criando um estranhamento diante de uma forma que
naturalmente convida à verticalização. Esse deslocamento de ações reconhecidas em outro plano
confere um clima de comicidade à cena. Essa comicidade é acentuada pelo diálogo entre a
atuante e a música. Ao cessar sua dança-paródia, ela se levanta e, como uma grande dama,
próxima ao bolo de fotos que se encontra a seus pés, agradece em suntuosa reverência.
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DIÁLOGOS ENTRE A LOUCURA E A SANIDADE
“Louca ou sensata? A fotografia pode ser uma ou outra (...)” (BARTHES, 1980, p. 175)
Ao finalizar seu agradecimento, no ato de flectir seu tronco, ela depara com uma foto
específica. A qualidade com que flexiona o tronco, juntamente com o rompimento brusco da
ação, permite que uma tensão e um suspense se instalem e anunciem um novo momento. Como
afirma Gabriela:
É uma mudança de estado muito brusca.
A fotografia imobiliza-a por um breve instante para logo em seguida ser retirada do bolo
de fotos a que pertence. Ela é retirada com cuidado e delicadeza. Pode ser uma foto perigosa.
Então eu realmente procuro estratégias para mim. Eu procuro olhar aquela foto e ver
uma imagem. Eu vejo, eu escolho. Então, isso me dá o risco da cena. Senão eu vou sempre
assim: cheguei, vou pegar a primeira foto que eu vi. Não, não é isso. Eu não tenho que pegar
uma foto, eu tenho que pegar a foto. Eu tenho que ver a foto, eu tenho que dialogar com alguém:
“olha, não quero isso. Disso eu quero distância”. Tem um texto dentro. (...) Aí, vou nesse lugar,
vou na porta da casa, vou colocá-la lá fora. Olho para aquela imagem toda embaçada e aí,
aquele embaçamento é um embaçamento que eu incorporo. Eu vou dançar o embaçamento, uma
textura.
Vemos aqui, como diz Herrmann, um movimento organizado pela percepção da textura.
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A foto que a atuante toma em suas mãos lhe causa estranhamento, angústia, possibilidade
de perda de controle. Esse estranhamento é revelado pela forma como seu tronco reage (uma fala
muda), distanciando-se da fotografia, que, até aquele momento, é sustentada em suas mãos. Entre
a possibilidade da loucura, do desvario, e o controle da consciência, ela anda pelo palco de forma
obstinada. Alcança a cortina frontal, que é levada até o meio do espaço, onde a foto é projetada.
A bailarina agora observa a foto atrás da cortina. Um clima de mistério envolve a cena.
Cria-se uma expectativa em relação ao que virá, em relação ao movimento que aquela
foto pode detonar. A disposição da cortina é sugerida pela própria foto. Um bailarino posicionado
frontalmente apresenta-se numa posição em que seus membros superiores e inferiores estão
simétricos, no entanto, as extremidades (mãos e pés) aparecem diferenciadas: a mão esquerda
fechada e o pé esquerdo no chão, a mão direita aberta e o pé direito alongado. A foto permite uma
leitura dual e dual se tornou o palco ao ser dividido ao meio.
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Um de nossos entrevistados, havia-nos relatado que a dança “havia sido sua cura, uma
forma para não atingir a loucura. Dialogando com sua fala e com a foto, que apresentava dois
universos inseridos no mesmo corpo, a bailarina revela sua opinião/movimento sobre a questão:
estar entre a loucura e a sanidade. Como nós, que muitas vezes somos afetados por um desejo de
executar ações loucas, desordenadas, liberar as pulsões, mas, como estamos numa sociedade
racional, pautada por determinados costumes e regras de convivência, mantemos o controle
diante de situações que nos levam quase à perda do domínio-controle físico e racional. Ficamos à
beira do abismo, divididos entre o desejo de pular e o de nos manter-nos em terra firme.
A mulher em cena executa sua movimentação dialogando com esses dois opostos. De um
lado da cortina ela se autoflagela, provoca colisões e se dilacera, dando vazão a toda a sua fúria,
angústia e loucuras secretas; do outro lado; ela se comporta, sorri e se controla
está tudo bem!
108
A música nesse momento (composição original de Garcia) reforça o caos assumido na
cena.
Exausta, ela, controlada ante pulsões dilacerantes e obsessivas e arranques musculares,
repete o mesmo grand-plié, elemento que funciona como símbolo de centramento e equilíbrio.
Ao fim do movimento, ela já não se sustenta mais e abandona-se ao chão, em busca de quietude e
paz.
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A EXPERIÊNCIA SOLITÁRIA
“Toda fotografia é um certificado de presença.” (BARTHES, 1980, p. 129)
Durante um período de aparente quietude, o espaço dá sua contribuição ao descanso e à
reflexão.
Estou ali com as fotos, é isso, a gente começou assim, com esse desejo de ficar perto, com
esse desejo de diálogo.
O ambiente escurece e passamos a ouvir um texto em off, um depoimento do bailarino
Joaquim Elias. O depoimento chama nossa atenção para a questão da experiência em solo ou em
grupo. Em suas palavras: “Porque mesmo que eu esteja com outras coisas, outras pessoas,
compartilhando, a minha vivência daquilo é solitária. Só eu vivencio aquilo daquele jeito. Então
estar só é nesse sentido. Eu tenho tudo, o mundo inteiro dentro de mim, todas as pessoas, todas as
coisas.”
No entanto, embora afirme a genuinidade de uma experiência que se configura, a priori,
como solitária, posteriormente, Joaquim reconhece o caráter dialogal dessa experiência:
Não tem diferença entre eu ver uma coisa de verdade e eu imaginar essa coisa. Então, se
eu trabalho com memória eu já não estou sozinho mais. Mesmo que eu não tenha a terra
e a luz, que são elementos que naquele momento ali estão presentes fisicamente, mas se
eu estou trabalhando com minha memória, eu já não estou sozinho mais, minha memória
é presença (ELIAS, 2007).
Assim, Elias confirma que a experiência dialógica está, o tempo todo, em nossas vidas.
Esse momento sintetiza a essência do espetáculo. A foto, com seu movimento e memória, torna-
se parceira. A foto é companhia.
Enquanto se narra o depoimento de Elias, sua própria fotografia é projetada ao fundo.
Nessa foto ele dialoga consigo mesmo, pois nela se vê um homem sentado em uma cadeira,
sozinho diante de um espelho que reflete sua própria imagem. O homem dá a impressão de estar
em um momento altamente reflexivo.
110
À medida que o depoimento se desenrola, a bailarina, na penumbra, recobre seu corpo
com fotos e fica ali, dando-nos a sensação de estar em uma conversa íntima com seus
convidados.
Eu sinto que é assim, é de onde surgiu a idéia.
O CÉU
“(...) ao olhar uma foto, incluo fatalmente em meu olhar o pensamento desse instante, por mais
breve que seja, no qual uma coisa real se encontrou imóvel diante do olho.” (BARTHES, 1980,
p. 117).
Durante nosso percurso, como já observado, o olhar era nosso guia, nossa escuta. Olhar e
ver, ver e ser visto, ver e rever. O olho recortava a imagem, a imagem recortava o corpo. Olhar
uma imagem e imaginar. Qual era a “fala” daquela imagem, daquela foto? O que foi dito,
refletido, para que aquele movimento fosse executado? O que ele trazia naquele momento que o
fotógrafo o captou e o que aquele mesmo momento, anos depois, estaria nos comunicando,
convidando-nos a perceber e a criar nosso diálogo-movimento?
111
Percebemos, nas inúmeras fotos que tínhamos, que muitos bailarinos apresentavam-se
olhando para o céu, para cima, como que em busca de algo que só eles vislumbravam, algo que a
dança também nos ensina: olhar longe, na tentativa de aumentar a presença do atuante e sua
projeção no espaço. O olhar, assim como o gesto, esburaca o espaço, atravessa o público, o
espaço da encenação. Juntamente com o movimento, o olhar perfura o espaço infinito. Por fim,
ficava a pergunta: o que estariam vendo? Teria o movimento a mesma intensidade daqueles
olhares? Que a sensação interna aqueles olhos nos provocavam?
Eu continuo ouvindo a foto. A foto olha para o céu. E eu vou olhar para aqueles que
estão olhando. Eu estou conversando com eles.
O que orienta, então, é o espaço?
O espaço, a imagem que eu vejo no espaço.
Olhos, que mesmo vendados como os de Joaquim Elias, buscavam algo a ser alcançado.
A mulher em cena se refaz depois da grande exaustão e do descanso. Acorda como quem
é acordada pela luz matinal, luz do sol, luz do céu. Tem sobre e sob seu corpo todas as fotos
utilizadas durante a encenação. Seus parceiros, seus cúmplices, seus convidados.
112
Uma pequena fresta se abre e a desperta. Ela renasce de sua “solidão”. Continuar? Como
continuar? O céu nos convida a continuar. As fotos nos nutrem de suspensão. Só essa suspensão
sugerida pelo olhar poderia também suspendê-la. Aos poucos ela se verticaliza. Primeiramente
seu tronco e seus braços são guiados para cima, abraçam o espaço, completando o abraço iniciado
e sugerido pela foto que se instala, projetada no fundo da cena.
Esse olhar que se dirige para o alto, elemento próprio da dança, remete-nos a algumas de
suas características, como, o diálogo com: a transcendência e sua instauração de um universo de
sonhos e do “indizível”.
Estávamos próximos do fim do espetáculo. Havíamos dialogado com inúmeros elementos,
memórias, fotos, pessoas e personalidades. Sentimos o desejo de finalmente reverenciar a própria
dança. Uma dança que desenha no espaço, que o faz circular e romper seus limites físicos. Uma
dança sem críticas. Queríamos que o corpo seguisse o caminho de seu desejo puro e vivenciasse o
prazer de dançar. Em nossa interpretação, puro era o céu que aquelas pessoas buscavam, puro era
o ar que lá no alto habita esse céu. Quando um bailarino olha para o céu com intensidade,
naturalmente projeta seu externo, e esse osso, por sua vez, acentua a presença do coração.
Queríamos, sem sentimentalismos, uma dança do coração, livre para ser e estar no espaço da
cena. Dança reverenciando a dança, seja de que natureza fosse: clássica, moderna,
contemporânea, regional. Nas fotos os bailarinos olham para cima, e a mulher em cena constrói
todo o seu trajeto com os olhos para o céu, com o ar puro dos cumes em seu peito.
113
A sustentação dessa forma traz uma nova tensão à atuante. Impõe-lhe um novo sistema de
coordenação, de resistência física, leva-a a buscar movimentos outros, ainda desconhecidos para
nós.
É uma reverência, mas eu não sinto que fico eu e a dança. Eu sinto que está todo mundo
ali. Essa dança que vem da minha avó, que vem da Raquel Pires, que vem do Elias, que vem da
Dudude. Eu compartilho com essas pessoas.
À medida que a dança se desenvolve, a bailarina vai abrindo uma a uma todas as cortinas,
na tentativa de aumentar o espaço a sua volta, de abrir um espaço limpo onde só o movimento
dançado se materializaria. O movimento de abrir as cortinas se faz em diálogo com movimentos e
impulsos sugeridos pelas fotos, como aquela em que o bailarino Joaquim Elias olha para cima
com os olhos vendados. Ele sustenta uma bengala em que suas mãos se apóiam. A forma dessas
mãos é usada como impulso para criar uma nova célula de movimento. O movimento da mulher
que mergulha seu rosto dentro de uma das cortinas dialoga com os olhos vendados do bailarino.
Nesse percurso ela irá deparar com a última foto projetada: a bailarina Angel Vianna em
seu solo “Inscrito”. Angel revela, nesse solo, dores, perdas e amarguras com as quais conviveu
durante sua vida. Angel é um nome a ser reverenciado; e representa muito para o meio da dança,
em que ocupou e ocupa diversas funções, sempre atuando de forma incansável em seu fazer
artístico e formativo. A mulher em cena chama a foto, convida-a a entrar. Ela é a última
convidada. Sua presença nos afeta e nos comove. A mulher em cena a vê sem, a princípio, olhar
para ela, para, em seguida, num movimento extraordinário, abrir seus braços e “alojá-la” em seu
peito.
114
Desse movimento nasce o impulso para o ato final: cerrar a última cortina e fazer com que
a última foto desapareça. Desse movimento, corrida impetuosa e suspensa, nasce uma seqüência
de giros. Mais uma vez a dança dialoga com rituais primitivos, seu ritual- mãe, dando à cena um
caráter de transe.
Depois do transe, vem a retomada da consciência, quando a atuante vê as fotos a seus pés.
Aos poucos ela pára, vê, aproxima-se e olha as fotos como quem olha uma criança adormecida,
em um sono tranqüilo e profundo. Parceiros, cúmplices, inspiradores e companheiros de todo o
trabalho. É hora de ela se despedir de seus convidados, devolvê-los aos seus lugares.
RODA, GIRA, CÍRCULO
A mulher em cena passa a dispor os convidados em uma grande roda. Uma roda análoga
àquela que comumente fazemos quando estamos no início de práticas e sentamos no chão para
nos apresentar e conhecer uns aos outros. Enquanto ela vai depositando as fotos no chão,
115
ouvimos, em off, o nome de vários bailarinos e bailarinas que fazem e que fizeram história em
Belo Horizonte.
Aí, tempo real, ver as fotos, colocar a foto e ver a pessoa. É como se eu estivesse vendo
aquela pessoa.
A mulher em cena constrói um grande círculo.
Naquela hora é como se todo o mundo estivesse ali. Não tem essa coisa de passado,
presente e futuro. A gente está presentificando todo o mundo, está todo o mundo ali.
O grande círculo que nasce do ponto. Círculo que contém movimentos centrífugos e
centrípetos, sagrado e profano. O grande círculo, a grande gira/dança.
Finalmente, ela olha sua caixa vazia. Fecha-a e, um pouco antes de colocá-la no chão,
pára bruscamente, olha para o público, convidando-o a participar de sua ação e despedida.
Para mim, a ação de fechar a caixa e também de “oferecê-la” para alguém é um pouco
assim: a gente tem memória, a gente tem caixa, sabe? Essa memória existe, é verdadeira.
Por fim, ela tira seu vestido e seu sapato e coloca-os ao lado da caixa. “Despe-se”.
Aquele momento é um pouco isso: acabou a cena em público. Íntimo demais quando você
abre a cena em público.
Ela, então, dirige-se a um lugar na roda que está vago. Completa o círculo.
Eu sento na roda e aquele momento para mim é totalmente público.
116
Agora ela é simplesmente mais um no meio de tantos construtores de dança. Seu corpo já
não carrega tensões extracotidianas. Está cansada, relaxada, e assim como os outros, observa.
Dos 45 nomes citados, o dela é o último, e a citação deste coincide com o momento em que ela
ocupa o seu lugar no espaço. Agora ela é mais uma foto, e certeza de continuidade. Agora ela é
presença. “Seu pé não vai aonde seu coração não quer” (Provérbio africano).
Todos reunidos no grande círculo. A cena sugere celebração. Celebração do feito, do que
se faz e do que está por se fazer: dançar. A gira acabou. Agradecemos à dança, aos parceiros, à
vida.
Eu agradeço, realmente agradeço. Quando eu olho para a foto, eu agradeço aquelas
pessoas.
Agradecemos aos nossos ancestrais, afinal, “somos filhos de alguém”.
117
O RITMO
Dialogando com essa celebração, há uma música com um pulso forte, o “prelúdio” de um
samba, o esquentar dos tamborins ressoa no ambiente. Ele é crescente e, quando está prestes a
atingir um momento de verdadeira compulsão rítmica, seu ápice, à medida que as luzes se
intensificam, a cena é cortada e o black-out se faz. Fica a suspensão e o silêncio.
Assim se fez POR QUE TÃO SOLO?. Com uma dramaturgia criada na conexão entre o
corpo que dança e as vozes que compõem a cena, na busca de um sentido, na tentativa de trazer
unidade e veracidade à obra.
118
6 As amarras reveladas: os cinco elementos
Onde há fluência, há dramaturgia.
119
Esta última parte da dissertação tem por objetivo apresentar, discutir e classificar alguns
elementos que orientaram a construção dramatúrgica. Estes formam, basicamente, um conjunto
de cinco. Os três primeiros podem ser observados objetivamente, os dois últimos, apenas de
forma indireta e subjetiva. São eles:
1 – o corpo que dança;
2 – o núcleo cênico-imagético (a cena);
3 – a articulação dos núcleos imagéticos (o conjunto de cenas);
4 – o movimento de fundo;
5 – a dramaturgia do espectador.
1– Para estabelecer a idéia e começar a desenvolver seu conteúdo e traçar suas futuras
conexões, tomamos o corpo da atuante como eixo medular da encenação, protagonista de nossa
tessitura. O corpo revelou-se, assim, um elemento dramatúrgico. Um corpo atravessado por
estímulos internos, ancorado em memórias (técnica e registros imagéticos) e afetos, estruturado a
partir de emoções e histórias passadas e presentes que apontam para o futuro. Corpo atravessado
por imagens que organizam seus sistemas, sua estrutura ósseo-muscular e suas articulações na
criação do movimento. O corpo também faz dramaturgia quando conecta, agrupa, articula e
organiza impulsos internos (invisíveis) e estímulos externos, configurando o movimento e a
materialidade da ação (o visível). Nas palavras de Greiner, “(...) o território entre o visível e o
invisível parece estar sempre presente nos processos de investigação do corpo” (2005, p. 78).
O corpo que dança constrói ações dançantes, plasma o movimento pleno de intensidades
e qualidades. A partir de sua percepção, o corpo/bailarino faz com que ossos, músculos e pele
organizem-se concomitantemente em processos somatossensitivos na construção do movimento.
Segundo Greiner, “essa modalidade somatossensitiva inclui várias formas de percepção: tato,
temperatura, dor, percepção muscular, visceral, vestibular” (2005, p. 72).
Estabelece-se, assim, uma tessitura interna, em que os processos de coordenação são
percebidos e articulados na criação e na comunicação de um movimento que lhe traga um sentido
120
coerente com a ação que aquela idéia convida a criar. Poderíamos chamar essa tessitura de
movimento-idéia
45
, que era um objetivo a ser alcançado segundo Klauss Vianna:
O que eu quero conseguir é o que chamo de movimento-idéia, isso é, um ballet cuja
construção e realização se faça a partir de uma concepção fundamental e criadora. Não basta a
técnica e o virtuosismo como solução. É preciso preencher este movimento de uma idéia criadora
(VIANNA apud ALVARENGA, 2002, p. 128).
Idéia apreendida pelo corpo, corpo gerador de movimento, movimento gerador de
dinâmica, dinâmica geradora de texturas. Texturas produzidas em e por um corpo atento às suas
pulsões, ao agenciamento dos fatores do movimento, que produz energia e luta pela permanência
desta. Como vimos anteriormente, a dramaturgia não acontece plenamente quando existe um
bloqueio na circulação do espetáculo. Assim, também o bailarino domina sua energia no intuito
de não bloquear o fluxo. A energia é criada e colocada no centro, entre duas polaridades a serem
consideradas dentro dessa instância: o corpo que faz e o corpo que vê. Primeiramente, o encontro
se dá entre o atuante e o dramaturgista e/ou coreógrafo, que irá colaborar com a regulação de
intensidades, da qualidade a ser alcançada; juntos eles decidirão qual movimento irá criar a
conexão, seja entre forma e conteúdo, seja entre forma e sentido, entre movimento e objetivo,
entre a ação feita e a ação vista pelos olhos-corpo do dramaturgista. Posteriormente, o encontro
ocorrerá entre atuante e platéia, como será discutido mais à frente.
Em POR QUE TÃO SOLO?, o corpo busca um diálogo com o movimento e a história das
fotos (projetadas ou não); os recursos teatrais, a memória, a palavra, o cenário, a música, o
figurino, os depoimentos, a platéia, e, curiosamente, produz dança que dialoga com a própria
dança. Trata-se de um corpo cambiante, que ora volta-se para seus impulsos e necessidades
dentro do fluxo, ora assume direções narrativas miméticas.
Esse corpo que surge como elemento dramatúrgico, conforme esclarece Christine Greiner,
“(...) não é um pacote que nasce pronto, num texto narrado por um léxico de palavras, mas como
sua etimologia propõe, emerge da ação” (2005, p. 81).
Um corpo que tece ações, oscilante entre margens, entre estados (sensações), desejos e
necessidades, na busca de síntese, execução e forma, criação e comunicação. Um corpo que
45
Segundo Alvarenga em dissertação de mestrado, o movimento-idéia é um conceito que Klauss Vianna criou e
utilizou ao escrever sobre o trabalho de Isadora Duncan, e citado no seu ensaio de 1952.
121
escuta o próprio corpo, fazendo, da corporificação de uma idéia, seu desenho, sua escrita, sua
dança, para inscrever seu traço no espaço.
2– A produção de uma imagem (a cena) é o nosso segundo elemento dramatúrgico.
Denomine-o núcleo-cênico-imagético. A cena se constrói a partir de uma articulação entre o
corpo e os elementos constitutivos de um fragmento específico. Percebemos aí a necessidade de
construção de estratégias para conectar aquele movimento-corpo com a imagem cênica que se
objetiva. Em POR QUE TÃO SOLO?, essa conexão se faz por meio de um processo relacional,
que articula o movimento dançado e outras vozes que se instalam no espaço/ambiente: cenário,
objeto, figurino, projeções, fotografias, depoimentos, músicas, histórias do corpo que dança. O
corpo encontra outras vozes e o exercício da escuta se intensifica, para que desse encontro nasça
um diálogo e cada voz tenha o direito à “fala” e ao silêncio.
Merce Cunningham chamava de séries (seqüências de movimentos coreográficos) aquilo
que, segundo Gil, eram pontos estruturadores. As cenas aqui são a transcriação das séries
cunninghianas e serão objetivamente estruturadoras da encenação.
As cenas são criadas no embate ou na conciliação entre o que o corpo faz, deseja fazer e o
objetivo da cena. Há, nesse encontro, uma intensificação da conexão entre a ação objetiva e a
subjetiva. A metáfora corporal tem que lidar com uma metáfora maior: a cena e suas
prerrogativas. Em nosso espetáculo esse procedimento pode ser exemplificado pela primeira
cena, “A espera”, e efetiva-se do modo descrito a seguir.
Em um primeiro momento, a atuante tem como estímulo encontrar a ação de esperar.
Cabe a ela investigar e construir uma movimentação que alcance esse estado e essa forma. As
formas apresentadas são plurais, cabendo ao dramaturgista, em acordo com a intérprete, fazer a
opção. Bornheim assim se refere a essa velha condição do artista diante de escolhas a fazer:
(...) Certamente o artista ainda fala por vezes na unidade de forma e conteúdo. Mas o
fato novo está em que ele tem diante de si uma diversidade de formas e, querendo ou
não, vê-se compelido a decidir-se por uma delas, ou mesmo em relação a uma obra
particular, a que está sendo criada aqui e agora (BORNHEIM, 1998, p. 40).
Encontradas as formas que traduzam o estado de espera desejado e aceitável pelas partes,
o próximo passo será colocar em jogo outras questões como: o que se espera, onde se espera e o
que faz aquele corpo enquanto espera? Ele olha? Onde olha, o que vê, quem vê? Qual música irá
reforçar aquele estado? O que veste esse corpo enquanto espera? Por que, afinal, espera? Como
122
está o cenário nesse momento? Pode a luz configurar uma porta ou uma janela por onde ele
espreitará? Qual depoimento colhido agencia melhor essa ação? Qual foto sugere o estado de
espera? Há alguma foto que reforce esse estado ou que se relacione com ele?
Assim, o corpo vê ampliar-se seu repertório de ações, modificar-se sua movimentação. O
movimento irá alargar seu alcance à medida que entra em contato com outros materiais.
Encontrada a energia da ação, ela será mantida e estendida a toda a cena, que passa, por fim, a ser
desenhada.
3– O nosso terceiro elemento localiza-se na articulação desses pontos estruturadores, na
articulação das cenas e imagens metafóricas. Esse terceiro elemento ainda é guiado pelo corpo
dançante, que encontra seus fios condutores em diversos pontos e vozes. Em nosso espetáculo,
esses fios aparecem nos depoimentos em off, na manipulação do cenário, no encontro com um
adereço ou figurino, na música, no silêncio, no black-out, nas fotos. A articulação das cenas é o
momento em que o exercício da escuta se efetiva. Ao dramaturgista cabe pesar as partes e ver o
que, do todo, pede voz. Talvez seja o momento de maior necessidade de uma escuta aguda da
obra que está se construindo. Os elementos com os quais dialogamos – o poema, a palavra, o
figurino, a história, a memória, as gravações, as telas de projeção – são elementos vivos que
podem, perfeitamente, guiar-nos na construção dessa teia. Esse é o momento em que as cenas vão
se articular, revelando o fio que as conecta.
Um exemplo do espetáculo POR QUE TÃO SOLO? PODE ESCLARECER COMO ISSO
SE DÁ. Construída a cena “Enquanto espero”, em que a atuante arruma a “casa” para receber os
convidados, a aparição de um depoimento em off (já citado na parte anterior), sobreposta à
projeção de imagens fotográficas, faz a ligação com a próxima cena. Assim, durante todo o
espetáculo, esses fios são criados a partir do contato com o figurino, das pausas, mas,
principalmente, das mudanças de intensidades dos movimentos e projeções de fotografias nas
telas.
4– Como quarto elemento, aproprio-me do que José Gil chama de “continuidade de
fundo”, aqui denominado movimento de fundo. Para Gil, o ritmo é muitas vezes o responsável
por essa continuidade, fazendo o agenciamento entre séries (que chamo aqui de cenas) e
acentuando suas diferenças, sem que elas percam suas singularidades:
123
O ritmo assegura as distâncias na continuidade, permitindo o movimento de
diferenciação sem ruptura, modulando o tempo, a velocidade, a distância interna aos
intervalos, sem destruir a linha de fluxo da energia (GIL, 2005, p. 71).
O movimento de fundo aparece em nosso trabalho sob a forma de ruídos, sonoridades e
música. Em nossa encenação, o barulho dos sapatos é um exemplo de materialização desse
elemento na dramaturgia, ainda que, a princípio, não tivéssemos consciência desse procedimento.
Eles estão sempre marcando diferentes pulsos, dando a sensação, muitas vezes, de serem algo
externo ao trabalho. Com o passar do tempo, porém, vão ganhando propriedade, tornando-se
ativos, a ponto de se transformarem em pontos de contato entre os movimentos e as cenas. Trata-
se de uma estratégia de conexão, que, ainda que percebida apenas subjetivamente, cria a sensação
de integração.
5– “Donde va la mirada, va la mente. Donde a ala mirada e la mente, va el cuerpo.
Donde v ala mirada, la mente y el cuerpo, ahí está el espectador. Si se ausenta la mirada, la
mente y el cuerpo, también se ausenta el espectador” ( Princípio das danças indianas, apud
CARDONA, 2000, p. 62).
Dei à quinta instância, com base no que Laban chamou de “corrente magnética” entre
palco e platéia, o nome de dramaturgia do espectador ou dramaturgia na fronteira. Entenda-
se por essa expressão não só a relação que o espectador estabelece com o espetáculo, mas
também a possibilidade de ele construir suas próprias conexões, de acordo com sua
disponibilidade e com seu envolvimento. Segundo Hubert Godard
(...) O movimento do outro coloca em jogo a experiência de movimento própria ao
observador: a informação visual provoca no espectador uma experiência cinestésica
(sensações internas dos movimentos de seu próprio corpo) imediata. As modificações e
as intensidades do estado corporal do dançarino vão encontrar ressonância no corpo do
espectador (...) (GODARD
46
, 2003, p. 24).
Antes de entrarmos na questão do espectador, é bom lembrar que a disposição espacial do
público e do palco é parte fundamental da construção e da comunicação do espetáculo. Surge
então um desdobramento chamado por Pais de “dramaturgia do espaço”:
A categoria espaço dilata-se em campos conceptuais e físicos, onde o corpo e o olhar do
público são colocados perante propostas estéticas que alteram a postura de sua
percepção. (...) Todas essas práticas exigem um tratamento do espaço como construção
46
Pesquisador, professor do departamento de dança da Universidade de Paris 8 (França).
124
dramatúrgica, i. e., como parte estrutural do espetáculo, e questionam o ponto de vista
tradicional do espectador, explorando e multiplicando as suas possibilidades de visão
(PAIS, 2004, p. 59).
Em POR QUE TÃO SOLO?, a proximidade entre a atuante e o público foi pensada e
criada intencionalmente durante o processo criativo. Assim, o espaço torna-se um elemento
dramatúrgico. Estávamos cansados da dança que transcorria em palcos tradicionais, sem que
fosse possível trocar olhares com o público, permitindo simplesmente ser contemplada. Nosso
objetivo foi, através da proximidade entre público e atuante, fortalecer uma relação de
convivência, explorando e ampliando as possibilidades de visão e até mesmo de atuação do
espectador, uma vez que este é solicitado durante a apresentação.
Segundo Hércoles, a dança “deve abrir mão da recepção”. Era justamente o que não
queríamos. Não só nos preocupávamos com o espectador – não propriamente com o seu
entendimento das cenas, mas com o seu envolvimento na ação e com o fato de que também
queríamos ser estimulados e envolvidos por ele –, mas também pretendíamos que o espectador
fosse não apenas um fruidor, mas também um construtor das ações, um outro atuante. Queríamos
um espectador ativo diante da obra. Sua participação, ainda que aparentemente mínima, é
percebida pela bailarina, que, a partir dessa percepção, pode modificar a execução de sua
movimentação, e também é modificada por ela.
O espectador vem desempenhando diferentes funções ao longo da história das artes
cênicas. Na performance, por exemplo, ele pode se tornar parte da cena, uma vez que tem a
possibilidade de interferir, modificando o espaço, interagindo com os materiais que o compõem,
bem como modificando visivelmente seu corpo, quando é solicitado a caminhar através de uma
instalação ou a agachar para ver. Forçado a deslocar-se, o espectador, muitas vezes, amplia sua
percepção diante da obra.
A performance e os espetáculos de dança (apesar de normalmente serem apresentados em
espaços convencionais) talvez sejam os que mais possibilitem ao espectador construir sua própria
dramaturgia. Por seu caráter metafórico aguçado, oferecem à platéia não só a possibilidade de
ver, sentir, perceber e analisar o espetáculo, mas também a possibilidade de construí-lo
livremente dentro de si, pois, como nos informa Pavis:
(...) O espectador “desambigüisa” as dêiticas e as anáforas: ele preenche os momentos
vazios de sentido, garante as conexões, reúne os elementos de espaço, em suma, garante
coerência das opções de encenação (PAVIS, 1996, p. 241).
125
Essa é, enfim, uma possibilidade de classificação dos elementos constitutivos na
construção dramatúrgica em POR QUE TÃO SOLO?. Trata-se de uma dramaturgia orientada
para o processo, que não teve origem em qualquer conceito prévio; uma dramaturgia composta
por materiais que emergiram durante o processo. Entenda-se por materiais a mesma designação
considerada por Van Kerkoven e citada por Pais:
(...) todos os elementos passíveis de serem integrados num espetáculo, com linguagens
de natureza diferente e com expressividades específicas, incluindo aqueles que servem
de estímulos aos ensaios (fotografias, filmes, objetos, sons, jornais, etc) (VAN
KERKOVEN apud PAIS, 2004, p. 51).
126
6.1 O arremate
Verificamos, ao longo da escrita desta dissertação, que a dramaturgia não é fixa; que está
sempre em circulação, como uma práxis, um exercício e uma necessidade, necessidade,
sobretudo, de conexão entre lugares. Para Greiner, conforme seu depoimento em entrevista:
“É sempre no entre. Então é entre o corpo do bailarino e o ambiente que ele está, entre o universo
de conhecimento daquele bailarino e os outros universos de conhecimento com os quais ele vai se
relacionar” (GREINER, 2007).
Em POR QUE TÃO SOLO?, a conexão se dá entre corpo, imagens, subtextos (ações
subjetivas), significados e texturas. A dramaturgia ocorre nas conexões, no encontro e no diálogo.
Existem linhas de forças, de intensidades, de intenções, de perguntas e respostas, entre espaços
muitas vezes inomináveis, ou nomináveis somente de forma poética. É na escuta do entre que ela
se organiza.
O que faz o olho, a escuta, a percepção decidir por um movimento, uma velocidade, um
gesto, um significado? A dramaturgia é uma escuta, que aqui, como pontualmente observa
Christófaro, vem de uma relação direta entre o dramaturgista de dança e a bailarina:
O POR QUE TÃO SOLO? tem um negócio muito forte... é que você é bailarino. Então,
tem uma escuta sua, de quem está em cena, que é uma escuta corporal. Então, muitas vezes eu
sinto que você escutou o meu impulso. E eu acho que isso é importante. Tem uma sensibilidade
aí... e na verdade não é uma sensibilidade, parece que você está fazendo o movimento comigo.
O fato de que a dramaturgia da dança, em POR QUE TÃO SOLO?, tenha sido feita por
alguém formado no universo da dança, certamente interferiu nos rumos assumidos pelo
espetáculo. Resta a pergunta: como seria a dramaturgia de um espetáculo de dança realizada por
um não-artista de dança? Quais rumos e estratégias ela adotaria?
O exercício da escuta em sua totalidade foi a base para a realização tanto da direção
quanto da dramaturgia em POR QUE TÃO SOLO?. A realização de uma dramaturgia implica
escutar e equilibrar necessidades dos criadores e dos elementos de criação, mas, sobretudo,
escutar o próprio espetáculo, pois, à medida que este vai sendo construído, ele exige novas
tentativas, estratégias, experimentos e direcionamentos. Ele, o espetáculo, vai criando suas
próprias demandas e mostrando-nos caminhos. Há que escutá-lo. Escutar os fios a serem tecidos.
Fios que conectam pontos e lugares estruturadores.
127
É, portanto, na organização desses lugares, dessas margens (bordas), das vozes oriundas
de textos, fotos, cenas que a dramaturgia se presentifica. Entre paisagens. Tecelagem das
margens.
Quando conectam, dão passagem.
Dando passagem, promovem circulação.
Quando circula, flui.
Onde há fluência, há dramaturgia.
128
6.2 Quadro Sinóptico
“A Tecelagem das Margens”
Espetáculo Base para a criação Elementos constitutivos Dramaturgia
POR QUE TÃO
SOLO?
- Fotos
- Memórias
- Recursos teatrais
- Improvisações
- Depoimentos
(entrevistas)
- O corpo
- A imagem (cena)
- Articulação entre
cenas
- O movimento de
fundo
- O espectador
A escuta dos processos
relacionais oriundos
das conexões entre
lugares (os cinco
elementos
constitutivos)
129
7 A costura final
DVD do espetáculo “POR QUE TÃO SOLO?
130
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LANGLADE Alberto; LANGLADE, Nelly R. Teoria general de la gimnasia. Argentina:
Editorial Stadium, 1970.
LELOUP, Jean-Yves. O corpo e seus símbolos: uma antropologia essencial. Rio de Janeiro:
Vozes, 1998.
MADUREIRA, José Rafael. François Delsarte (1811 – 1761) Personagem de uma dança (re)
descoberta. 244 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade
Estadual de Campinas, São Paulo, 2002.
MAINGUENEAU, Dominique. Termos-chave da análise do discurso. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 1996.
MARFUZ, Luiz César Alves. O paradoxo da construção da personagem na dança-teatro de Pina
Bausch. Revista Repertório/Teatro e Dança, UFBA, p. 30-36, s/d.
MARINHO, Nirvana. O gesto na dança contemporânea: que papel cumpre. In: SOTER, Silvia;
PEREIRA, Roberto. Lições de Dança/5. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora., 2005. p. 91-105.
MARKARD, Anna und Hermann. Jooss Ballett. Alemanha: Bühnen, 1985.
MENDES, Miriam Garcia. A dança. São Paulo: Ática, 1985.
MOMMENSOHN, Maria; PERRELLA, Paulo (Orgs.). Reflexões sobre Laban, o mestre do
movimento. São Paulo: Summus Editorial, 2006.
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Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, 2001.
133
NAVAS, Cássia. Os desenhos dos desenhos da dança. Texto dentro do programa da exposição
Desenhos de dança. São Paulo: AS Estúdio, 1996.
NESTROVSKI, Arthur; BOGÊA, Inês. A arte total de Pina Bausch. O gesto essencial. Folha de
S. Paulo, São Paulo, 27 ago. 2000. Caderno Mais!, p. 4-15.
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In: TORRES, Vera; XAVIER, Jussara; NUNES, Sandra Meyer (Orgs.). Tubo de ensaio:
experiências em dança e arte contemporânea. Edição dos autores, 2006. p. 45-53.
OLIVEIRA, Luís Carlos Ganzarolli. A humanização da arte: temas e controvérsias na filosofia.
Rio de Janeiro: Pinakotheke, 2006.
PAIS, Ana Cristina Nunes. O discurso da cumplicidade. Lisboa: Edições Colibri, 2004.
PALLOTTINI, Renata. O que é dramaturgia. São Paulo: Brasiliense, 2005.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 1996.
PEDRON, Denise Araújo. O que dizer do teatro hoje? Intertextualidade em algumas experiências
do teatro brasileiro dos anos 90. O caso de Circo Bizarro, Babachdalghara e o Nervo da Flor de
Aço. 117 f. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura) – Faculdade de Letras, Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1999.
PESSOA, Fernando. Ficções do Interlúdio/1 – Poemas completos de Alberto Caeiro. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
RENGEL Lenira. Dicionário Laban. São Paulo: Annablume Editora Comunicação, 2003.
REWALD, Rubens. Caos/dramaturgia. São Paulo: Perspectiva, 2005.
ROMANO, LÚCIA. O teatro do corpo manifesto: teatro físico. São Paulo: Perspectiva, 2005.
ROUBINE, Jean-Jacquee. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 2007.
REIS, Maria da Glória Ferreira. Cidade e palco: experimentação, transformação e permanências.
Belo Horizonte: Edições Cuatiara Ltda., 2005.
SILVA, Eliana Rodrigues. Dança e pós-modernidade. Salvador: Edufba, 2005.
THORNTON, Samuel. Laban´s theory of movement: a new perspective. Boston: Plays, ING,
1971.
134
TREVISAN, Armindo. A dança do sozinho. São Paulo: Perspectiva, 1988.
VALÉRY, Paul. A alma e a dança e outros diálogos. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
VALÉRY, Paul. Anotações de um poeta; poesia pura. In: Oeuvres, I. Paris: Gallimard, 1957. p.
1447-1464. Trad. Sérgio Alves Peixoto.
VALÉRY, Paul. Degas dança desenho. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
VIANNA, Klauss. A dança. São Paulo: Summus Editorial, 2005.
VILLAR, Fernando Pinheiro; COSTA, José. Operando nas fronteiras: três apontamentos sobre
perspectivas metodológicas. In: CARREIRA, André et al. (Orgs.). Metodologias de pesquisa em
artes cênicas. Memória ABRACE IX. Rio de Janeiro: 7 letras, 2006. p. 130-156.
135
ENTREVISTAS CONCEDIDAS A TARCÍSIO DOS SANTOS RAMOS
ABREU, Luís Alberto. Belo Horizonte, 19 de maio de 2007.
ALVARENGA, Arnaldo Leite. Belo Horizonte, 3 de maio de 2007.
CHRISTÓFARO, Gabriela Córdova. Belo Horizonte, 27 de agosto de 2006.
GREINER, Christine. Diamantina, 20 de julho de 2007.
HÉRCOLES, Rosa Maria. São Paulo, 10 de março de 2007.
HERRMANN, Dudude. Belo Horizonte, 17 de agosto de 2007.
MARTINS, Marilene. Belo Horizonte, 14 de agosto de 2006.
MEDEIROS, Ione Tibúrcio. Belo Horizonte, 21 de agosto de 2007.
NAVAS, Cássia. São Paulo, 8 e 9 de março de 2007.
FILMES
BAUSCH, Pina. Sagração da Primavera. Das Internationale Tanztheater, Das Tanztheater
Wuppertal ZDF, 1978.
BAUSCH, Pina. Café Muller. Das Tanztheater Wuppertal Suhrkamp Verlag, 1985. BAUSCH,
Pina.O lamento da imperatriz (Die Klager der Kaiserin ein film von Pina Bausch) Dramaturgia:
Raimond Höghe. Coreografia, roteiro e direção: Pina Bausch LArche Éditeur. Paris: 1989.
DUNCAN, Isadora (sem créditos).
EXPRESSIONISTA, Dança (documentário sobre a história da dança). In: Dança do Século.
Criação e direção: Sonia Schoonejane. Produtores Associados: RTBF Belgium Television. A la
SEPT/ GEDEON/ DURAN – PATHE TELEVISION (Tradução e legendas: GLOBOSAT).
JOOSS, Kurt. A mesa verde. Der grune tisch ein totentanz. Folkwangballet – WDR,
Deutscheland, s/d.
LABAN, Rudolf. Recriações Coreográficas de 1923 a 1928. Direção: Valerie Preston Dunlop.
Londres: Laban Centre, 1992.
WIGMAN, Mary. Mein leben ist tanz. Roteiro e direção: Ulrich Tegeder. Produção: nter-
Nationes, s/d.
136
ANEXO 1
ENTREVISTAS REALIZADAS (MP 3)
Faixas 1, 2, 3 - NAVAS, Cássia.
Faixa 4 - HÉRCOLES, Rosa Maria.
Faixa 5 - HERRMANN, Dudude.
Faixa 6 - MEDEIROS, Ione Tibúrcio.
Faixa 7 - MARTINS, Marilene.
Faixa 8 - ALVARENGA, Arnaldo Leite.
Faixa 9, 10, 11 - CHRISTÓFARO, Gabriela Córdova.
Faixa 12 - ABREU, Luís Alberto.
Faixa 13 - GREINER, Christine.
.
137
ANEXO 2
PROGRAMA DO ESPETÁCULO
138
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